História da educação Maristela Carneiro
IESDE BRASIL S/A
2017
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Carneiro, Maristela História da educação / Maristela Carneiro. - 1. ed. - Curitiba, PR : IESDE Brasil, 2017. 138 p. : il. ; Inclui bibliograa
ISBN 978-85-387-6361-1 1. Educação - Brasil - História. I. Título. CDD: 370.981 17-45355 CDU: 37(81)
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Apresentação
O propósito desta obra é fornecer um quadro amplo da história da educação, uma narrativa extensa e complexa, que abarca milênios da experiência humana no planeta. Há muito mais que pode ser contado entre as primeiras formas de ensino praticadas por pequenos grupos humanos, restritas à transmissão de experiência dos membros mais velhos do coletivo aos mais jovens, e as escolas contemporâneas, organizadas em séries e turmas, com um currículo compartimentado e sistemas padronizados de avaliação. Delinear um panorama histórico da educação formal implica em compreender a trajetória de como os sistemas de transmissão de conhecimentos e tradições se configuraram entre as culturas da Antiguidade e do cenário europeu que emergiu de suas interações. A partir do século XVI, a Europa se converteu em um grande centro de concentração econômica e difusão cultural, propagando ideias e instituições pelos territórios americanos, asiáticos e africanos, o que incluía visões acerca do gerenciamento do ensino dos jovens. Assim, pelas vias do colonialismo e do imperialismo, seriam lançadas as bases para os modelos educacionais com os quais somos familiarizados hoje. Portanto, é compreensível que, ao tratar da história da educação, busquemos abordar primeiramente as civilizações do Mediterrâneo, cuja influência foi tão crítica nas culturas europeias posteriores. O impacto destas últimas, por sua vez, pode ser amplamente sentido pelo mundo, especialmente em territórios outrora colonizados, como o Brasil. Começando pela tendência do ensino jesuítico, passando pelos valores iluministas e depois pelo pensamento positivista até as tendências escolanovistas, tecnicistas e multiculturalistas do final do século XX, o país acolheria amplamente, ainda que à sua própria maneira e com as falhas que lhe eram idiossincráticas, as influências europeias.
O caminho que levou à consolidação dos modelos de educação atuais foi descrito por uma série de conflitos e concessões, sempre em diálogo com as circunstâncias religiosas, políticas e culturais. Assim, reconhecendo a importância de uma diversidade de aspectos envolvidos nesse complexo cenário, buscaremos compreender os fatores conjunturais em torno das políticas públicas e do pensamento educacional que nos trouxeram até aqui. Boa leitura!
Sobre a autora
Maristela Carneiro Pós-doutoranda em História pela Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). Doutora em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Mestre em Ciências Sociais Aplicadas, pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Licenciada em História pela UEPG e em Filosofia pela Faculdade Santana. Atua como docente nas áreas de História e Filosofia nos mais diversos níveis de ensino. Autora de livros e materiais didáticos.
Sumário
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Concepções de educação clássica e medieval
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1.1 Primórdios da educação formal
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1.2 Educação clássica
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1.3 Educação religiosa
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A Pedagogia renascentista, o humanismo e o Iluminismo
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2.1 Pedagogia renascentista
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2.2 Humanismo e a formação de um novo homem
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2.3 A educação, o Iluminismo e a razão
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Séculos XIX e XX: a educação para o trabalho e para a democracia
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3.1 A institucionalização da educação
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3.2 Tendências pedagógicas conservadoras da educação
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3.3 Tendências progressistas da educação
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4
Século XXI: globalização, novas mídias e diversidade
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4.1 Educação e globalização
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4.2 Educação e novas mídias
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4.3 Educação e diversidade
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6 História da Educação
Sumário 5
Educação no Brasil Colônia e no Brasil Império
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5.1 Educação jesuítica
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5.2 Educação laica e reformas pombalinas
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5.3 Educação no Império: bases para a educação pública
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As iniciativas republicanas na educação e a organização do sistema educacional brasileiro
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6.1 Educação e os princípios republicanos
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6.2 Organização do sistema educacional brasileiro
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6.3 O manifesto dos pioneiros da Educação Nova
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Segunda República: educação populista e ditadura (1930-1985)
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7.1 Educação populista
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7. 2 Educação e ditadura militar
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7.3 Avanços e retrocessos
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Nova República e perspectivas para a educação brasileira (1985-)
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8.1 Reabertura política, a Constituição de 88 e um novo cidadão
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8.2 Desafios da democratização escolar
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8.3 Novos rumos da educação brasileira
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História da Educação
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1 Concepções de educação clássica e medieval
Introdução Assim como muitos mamíferos, o ser humano adquire diversas competências por meio de tentativa e erro ao longo de seu período formativo, mas é mais frequente que seja treinado para a sobrevivência pelo convívio sistemático com indivíduos mais velhos. À medida que se constituíram as sociedades organizadas e se formaram os primeiros conceitos de divisão de trabalho, cultura, religião e proibições/tabus, cabia aos adultos organizarem e recordarem esses conhecimentos, transmitindo-os aos mais jovens dos núcleos comunitários e às famílias estendidas. O que mostra que, de alguma forma, havia uma noção primordial de educação, fundamental a qualquer coletividade humana. Nas sociedades altamente conectadas da contemporaneidade, o processo educacional é uma prática cada vez mais formal, progressivamente menos restrita ao âmbito do núcleo familiar. Todavia, essa reconfiguração não é um processo novo, antes, sim, representa uma trajetória extensa e repleta de quebras, retornos e negociações. Valores foram várias vezes abandonados, retomados ou reformulados por completo, em um fluxo permanente de ideias. História da Educação
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Concepções de educação clássica e medieval
Somos, afinal de contas, seres históricos, fruto de nossa situação temporal e geográfica, e entender isso significa assimilar que nunca houve uma concepção única e fixa a respeito do que significa ser humano, muito menos dos saberes fundamentais para atingir essa condição. Estudar a história da educação implica flexibilizar nossas próprias noções preconcebidas acerca do ensinar e do aprender, por meio de problematizações relativas às fronteiras do conhecimento historicamente produzido e dos mecanismos utilizados para difundi-lo e perpetuá-lo. Esses mecanismos tendem a se cristalizar, ação esta que permite a constituição de instituições, como as conhecidas escolas e universidades. Para discutir as implicações culturais, sociais e políticas dos sistemas em torno do aprender, é importante compreender como as bases dessa institucionalização foram estabelecidas e se consolidaram nos sistemas educacionais vigentes. Neste capítulo estudaremos a emergência dos primeiros modelos de educação formal e seu estabelecimento nos contextos da Antiguidade clássica e da Europa medieval.
1.1 Primórdios da educação formal É muito difícil rastrearmos os primórdios da história da educação, posto que os seres humanos pré-históricos já empreendiam seus próprios esforços educativos, e a Pré-história é, por definição, um período que antecede qualquer forma de registro escrito. Dessa forma, nosso conhecimento é limitado em relação aos pormenores acerca de como esses ancestrais remotos sistematizavam e passavam adiante seus conhecimentos. É possível promover especulação de como era a perspectiva educacional dessas culturas com base na observação de comunidades ainda existentes, como aponta a pesquisadora Maria Lúcia de Arruda Aranha, “na Austrália, na África e no interior do Brasil” (2006, p. 34). Sobre esse tópico, é importante relativizar conceitos. O período tradicionalmente compreendido como Pré-história se estende do surgimento do homo até a descoberta dos metais na maior parte da Ásia, Europa e norte da África. Em relação a essa afirmação, é perceptível uma caminhada evolutiva que se desdobra em eras (Paleolítico, Neolítico e Idade dos Metais), cada qual albergando uma escalada tecnológica que culmina no desenvolvimento da escrita. Essa trajetória seria capaz de encapsular conceitualmente a emergência de uma civilização. Trata-se, contudo, de uma visão etnocêntrica gestada no seio do pensamento europeu dos séculos XVIII e XIX, a qual hierarquiza as civilizações e permite que tenhamos a impressão de que algumas sociedades são superiores a grupos “primitivos”, os quais não atingiram o domínio de determinado recurso, como a escrita ou a metalurgia (FIGUEIREDO, 2011, p. 19). Essa perspectiva nivela a história do desenvolvimento humano em uma única trajetória social e tecnológica uniforme, quando, efetivamente: 1. Desenvolvimentos como a agricultura, a metalurgia, a escrita e os sistemas de religião organizada ocorreram, em cada recanto do globo, segundo uma ordem própria, valendo-se de demandas vitais e econômicas que não seguem um “roteiro obrigatório”. Em partes da África subsaariana, por exemplo, houve uma transição
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do uso de artefatos líticos1 para ferramentas de ferro, sem uma aparente transição marcada pelo uso de tecnologias de cobre e bronze (WAI-ANDAH, 2010, p. 677). 2. Não havendo uma ordem definida para a configuração das sociedades humanas, existem comunidades seminômades em diversas partes do mundo, e muitos povos que possuem uma economia baseada em atividades de caça, coleta e cultivo de subsistência, semelhante a modelos normalmente associados ao período Neolítico: “A terra pertence a todos, e o trabalho e seus produtos são coletivos, o que define um regime de propriedade coletiva dos meios de produção” (ARANHA, 2006, p. 33-34). Essas sociedades ainda existentes, embora distintas entre si em termos de complexidade material e horizontes culturais, têm em comum com os povos neolíticos da Europa, do Oriente Médio e do norte da África uma economia baseada em atividades de subsistência e estatutos de organização social relativamente simples. Seus modos de vida nos oferecem um vislumbre de como era a educação pré-histórica. Tais sociedades, centradas na identidade étnica e local, constituem-se em comunidades tribais. Em regimes tribais, como os de todos os primeiros seres humanos, ocorre o que Aranha (2006, p. 35) compreende como “educação difusa”, que parece ter sido o primeiro modelo educacional conhecido. O ensino difuso, que não está centrado em qualquer instituição ou autoridade específica, mas no qual todos os adultos da comunidade participam da educação da criança, contribui para sua formação integral, visto que é pautado nas atividades de sobrevivência e nas narrativas que fundamentam a cultura do grupo. Tradicionalmente as narrativas assumem o caráter de mitos, os quais legitimam a língua e os costumes locais, dando-lhes uma origem que data de primórdios, mas que serve, de fato, para explicar as características do presente. “Embora as narrativas míticas sempre coloquem os acontecimentos de que tratem em tempos pretéritos, remotos, elas não deixam de refletir o presente, seja no que toca aos costumes, seja no que toca a elementos tão palpáveis como os artefatos” (MELATTI, 1972, p. 125). Os mitos dão sentido à vida do grupo e pautam o crescimento do indivíduo por meio de ciclos de atividades rituais. Podemos supor que as culturas que precederam as grandes civilizações da Antiguidade educavam de forma semelhante, pois preparavam os jovens para a sobrevivência e para a continuidade da cultura e de seus valores nucleares. Os saberes de um eram, geralmente, os saberes de todos, e nenhum homem poderia viver sem ter mínima proficiência nas atividades de caça, coleta, manutenção de armas e ferramentas e construção de abrigos. Armazenar todo o conhecimento já reunido por um grupo de pessoas era uma tarefa possível em sociedades que empregavam uma cultura material simples e extraíam seu sustento de um número relativamente limitado de atividades. No entanto, a própria natureza do conhecimento se modificaria à medida que formas mais complexas de organização surgiam. O desenvolvimento da agricultura e de outras técnicas produtivas foi alimentado pelo crescimento do comércio e das trocas culturais cada vez mais intensas na confluência da Europa, da África e da Ásia. Eventualmente, civilizações poderosas se constituíram nesse cenário. No seio dessas civilizações, surgiriam as primeiras formas de 1
De pedra. História da Educação
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Concepções de educação clássica e medieval
escrita, uma ferramenta de valor, capaz de conceder a professores e instituições educacionais o poder de sistematizar e abrigar mais conhecimentos do que a própria mente de um indivíduo. Nas palavras do filósofo Werner Wilhelm Jaeger (1994, p. 3): “Todo povo que atinge um certo grau de desenvolvimento sente-se naturalmente inclinado à prática da educação”. As primeiras grandes civilizações surgiram em torno de rios, os quais permitiam a exploração agrária regular e o acúmulo de riquezas, acúmulo este que possibilitou a formação de grandes exércitos, complexas hierarquias sacerdotais e governamentais, bem como a criação de arquitetura monumental e de manifestações artísticas sofisticadas. Além da possibilidade de concentração de riquezas, os rios também forneciam canais de comunicação náutica, que serviriam de base para o comércio e trocas culturais entre comunidades remotas (FERNANDEZ-ARMESTO, 2002, p. 182). As ramificações e a multiplicação do conhecimento viriam a exigir a estratificação social e a especialização dos indivíduos, de modo que os saberes passaram a ser mais localizados, específicos. Uma dessas civilizações emergiu no Egito, onde, por volta de 3150 a.C., começou a se formar uma cultura que persistiu, apesar de eventuais invasões, até ser efetivamente conquistada pelos romanos em 31 a.C., e manteve a preservação de muitos de seus costumes até a ascensão do cristianismo (FERNANDEZ-ARMESTO, 2001, p. 196). Ao longo de milênios de desenvolvimento, a civilização egípcia viu poucas alterações em sua arte, sua religião e em seu modo de conceber o processo educacional. Para além do impacto que teve em outras civilizações do Mediterrâneo, por meio de confrontos militares, relações comerciais e diplomáticas e influências artísticas e culturais, o Antigo Egito é digno de nota justamente pela persistência de seu modo de vida e costumes, o que aponta para uma visão de mundo que prezava pela continuidade e buscava a manutenção da ordem social e religiosa conhecida. A educação institucionalizada pode ter desempenhado um papel importante nessa trajetória civilizacional. No caso da maior parte das pessoas, a educação inicial era completamente concentrada no núcleo familiar, e aos mais velhos cabia a função de inculcar nas crianças os valores de obediência e respeito à hierarquia, além das instruções necessárias para a realização dos tipos de trabalho que já eram empreendidos por seus pais. Parece plausível que também partissem dos pais as primeiras formas de aprendizagem religiosa e cultural das crianças. A formação das meninas seria geralmente mais restrita, e, de modo geral, a classe social do indivíduo também seria um fator limitante em relação ao acesso a espaços de ensino e professores, dessa forma: filhos de artesãos receberiam uma educação mais especializada, relacionada ao ofício familiar, enquanto futuros escribas, burocratas e sacerdotes teriam acesso a uma formação mais erudita, o que envolveria a aprendizagem da escrita e da matemática. Como entre diversas civilizações, a complexidade da escrita tornava seu aprendizado um processo lento e dispendioso, acessível para poucos, e as técnicas de ensino seriam rigorosas, o que exigia principalmente as capacidades mnemônicas do aluno. Tutores reais ensinariam os filhos dos faraós e provavelmente outras crianças de origem nobre (DAVID, 1998, p. 205). Se o desenvolvimento da escrita foi uma revolução do conhecimento e permitiu a organização a conservação e a ampliação dos saberes humanos, também se revelou crucial para o estabelecimento de um regime de educação formal. O conhecimento da escrita, em sua 12 História da Educação
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origem, só podia ser transmitido a um grupo seleto de indivíduos, e em muitas circunstâncias estaria além da educação que a criança poderia obter dos próprios pais. Com o tempo, as mesmas pessoas que tinham o domínio da escrita se tornariam encarregadas da educação de crianças de determinados grupos. Entre os povos da Palestina, da Mesopotâmia, da Índia e da China observamos dinâmicas semelhantes: a educação fundamental oferecida por familiares, servindo à fixação de preceitos religiosos/morais, o rigor das técnicas de aprendizado, a presença de profissionais educadores, bem como de um aparato literário que colocava conhecimentos armazenados em escrita à disposição de grupos sociais mais privilegiados. Ou seja, os regimes educacionais dos egípcios e de outros povos da Antiguidade remota demonstravam uma sistematização nitidamente mais complexa que a das sociedades ágrafas, pois não eram tão inclusivos quanto sistemas que surgiriam posteriormente. Esses regimes atendiam a um público limitado e eram essencialmente “conservadores”, pois tinham como principal função garantir a conservação e a perpetuação de valores, ideias e conhecimentos considerados cruciais.
1.2 Educação clássica A civilização que se desenvolveu na Grécia da Antiguidade impactou profundamente as artes, a arquitetura, a literatura, as práticas esportivas e o pensamento de diversas culturas posteriores. O estudo da filosofia, e mesmo palavras como pedagogo e didática são legados gregos. Muitos desses traços culturais foram assimilados e transmitidos por outra sociedade do Mediterrâneo, os romanos, cujo poderio militar permitiu que construíssem um dos maiores impérios da história. Os romanos difundiram por suas extensas conquistas territoriais uma visão de mundo visivelmente influenciada por seus predecessores gregos. As duas culturas em questão constituíram o que se compreende como Antiguidade Clássica , uma das conjunturas históricas mais discutidas, tanto pela literatura acadêmica quanto pela cultura pop. Dessa forma, diante do reconhecimento do impacto que gregos e romanos tiveram ao longo da história, como era efetivamente a educação clássica? O que podemos identificar como influência dessa educação na conjuntura do ensino atual? Primeiramente, é importante identificar o que fundamentava a educação grega. Para tal, precisamos nos remeter ao conceito de paideia , a educação dos rapazes, que, no sentido mais amplo, tratava da formação integral do homem grego livre. Esse homem era um cidadão, um agente da vida coletiva da pólis, a cidade-estado grega. Ao contrário da civilização do Oriente Médio e do Egito, as quais centralizavam sua vida social em torno de reis divinizados, virtualmente anulando as vozes pessoais e homogeneizando-as em um conjunto maior, a comunidade, as coletividades das cidades gregas eram redes de individualidades, e encontravam sua identidade nessa característica. Como afirma Jaeger (1994, p. 9), [...] a importância universal dos gregos como educadores deriva da sua nova concepção do lugar do indivíduo na sociedade. E, com efeito, se contemplamos o povo grego sobre o fundo histórico do antigo Oriente, a diferença é tão profunda História da Educação
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Concepções de educação clássica e medieval que os gregos parecem fundir-se numa unidade com o mundo europeu dos tempos modernos.
O “Oriente” citado pelo autor representa a sintetização das civilizações que viveram na Mesopotâmia, na Palestina e no Egito, povos governados por líderes teocráticos, cuja “falta de individualidade”, expressa em uma educação que enfatizava a obediência e a preservação dos costumes, pode parecer chocante para nossos olhos. Os gregos, em contraste, ambicionavam a formação do cidadão completo. Mas é importante salientar todos os termos que envolviam o estatuto de cidadania do indivíduo em questão: homem, grego e livre. Mulheres, estrangeiros e escravos não tinham os direitos inerentes à condição restrita de cidadão, de modo que não recebiam instrução formal. Tratando do contexto das pólis do Período Clássico (séculos V a IV a.C.), Aranha (2006, p. 61) comenta: Na política, o auge do ideal grego de democracia é representado por Péricles (século V a.C.), estratego de Atenas. Tratava-se, no entanto, de uma “democracia escravista”, em que apenas os homens livres eram cidadãos. Ora, Atenas tinha cerca de meio milhão de habitantes, dos quais 300 mil eram escravos e 50 mil, metecos (estrangeiros); excluídos estes, e mais as mulheres e as crianças, apenas os 10% restantes tinham o direito de decidir por todos. Em todas as atividades artesanais, o braço escravo “libertava” o cidadão para que ele pudesse se dedicar às funções teóricas, políticas e de lazer, consideradas mais dignas.
Ou seja, a compreensão grega de cidadania era menos inclusiva que a atual e designava um privilégio de nascimento. Os homens livres da pólis eram e ram a elite responsável por dirigi-la. Para isso, era fundamental que fossem homens “completos”, formados de acordo com um ideal: a areté . No sentido mais amplo, o termo designa excelência em vários campos, como a superioridade dos deuses ou de animais vigorosos, mas é frequentemente utilizada na literatura grega para tratar do auge do vigor físico ou da agudeza de intelecto que o ser humano é capaz de alcançar (JAEGER, 1994, p. 26-28). Assim, o homem grego ideal se destacava por sua excelência, seja intelectual e da no breza de caráter, seja física, o que repercutia diretamente nas proezas atléticas e militares que o indivíduo se mostraria capaz de realizar. Atingir a areté nas nas competências físicas e do espírito implicava na condição de “belo e bom”, ou kaloskagathos , um status semelhante às ideias de “cavalheiresco” e gentleman que surgiriam posteriormente na história europeia. Assim, apesar de variações regionais, posto que cada pólis constituía sua própria unidade política e organizava seus assuntos, inclusive a educação, à sua maneira, os gregos do Período Clássico aderiram ao princípio da paideia. A grande exceção seria Esparta , uma pólis completamente dirigida para o militarismo e para a formação de cidadãos excelentes na prática da guerra. Os jovens espartanos eram reunidos e educados com base em um sistema público, a agoge , que valorizava valorizava o aprimoramento de habilidades físicas e negligenciav negligenciavaa competências como o comércio e a música (GONZÁLES, 2016, p. 22). Na maioria das cidades gregas, por outro lado, o jovem aristocrata geralmente começava a receber sua educação aos 7 anos de idade. As meninas permaneciam junto das mulheres
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mais velhas no gineceu 2 , assimilando os rudimentos dos afazeres domésticos, enquanto os meninos eram acompanhados por escravos chamados pedagogos (“condutores de meninos”, literalmente). Sua função, a princípio, era acompanhar e conduzir as crianças, embora seu papel viesse posteriormente a englobar também uma postura disciplinadora, servindo de parâmetro moral. A formação dos jovens incluía ainda outros especialistas, es pecialistas, como um gramático, que transmitia o conhecimento da escrita e dos poemas clássicos, especialmente e specialmente de Homero e Hesíodo. Havia também o instrutor de música, que introduzia os alunos na utilização de instrumentos como a cítara e a flauta. Atribuía-se Atribuía-se também importância ao cálculo, ensinado por meio da utilização de ábacos. Fundamental ainda era frequentar o ginásio, onde esperava-se que a prática de esportes condicionasse os corpos dos meninos (ARANHA, 2006, p. 65). Como se pode observar, não havia preocupação com uma formação profissional, já que os conhecimentos inerentes aos vários ofícios deveriam ser aprendidos no exercício destes. Uma educação acadêmica superior existia na forma dos sofistas , que ofereciam seus serviços aos ricos, ensinando filosofia e retórica. Diversos filósofos reconhecidos prestaram esses serviços, como Sócrates, e até fundando escolas, como a Academia, de Platão, e o Liceu, de Aristóteles (CUNNINGHAM; REICH, 2010, p. 63). O nível de sistematização do conhecimento, bem como a existência de “especialistas”, que devotavam suas vidas ao inquérito e ao debate sobre todos os aspectos da existência, elevariam o aprendizado a um status diferenciado na Grécia clássica. Pouco a pouco, as explicações religiosas/míticas passaram a ser complementadas pelo estudo e pela especulação. Em meio a isso, também foram lançadas as bases para o pensamento autônomo, cujas fundações eram a dúvida e o senso crítico. É possível observar o desenvolvimento desse modelo de pensamento no método socrádiálogos atribuídos atribuídos a Sócrates (469-399 a.C.) a.C.) e relatados por por seu discípulo, tico , exposto nos diálogos Platão (428-347 a.C.). Esse método parte de uma dinâmica de diálogo, na qual ideias são colocadas em oposição, a fim de desconstruir noções preconcebidas e erigir novas compreensões, em um processo chamado maiêutica (“referente ao parto/dar à luz”). Platão, por sua vez, idealizaria uma sofocracia em seu livro A república , isto é, um regiregime político encabeçado por sábios, regime este capaz de criar a cidade perfeita pelo domínio da razão. A sofocracia seria, para Platão, mais efetiva que a democracia, pois colocaria as decisões nas mãos de um grupo seleto de estudiosos, em vez de deixá-las à volatilidade da maioria votante. Platão seria um proponente de uma forma de idealismo que viria a ser favorecido por muitas correntes de pensamento posteriores. Um discípulo de Platão, Aristóteles (384-322 a.C.), que fundou sua própria escola, o Liceu, também se revelou uma base importante para pensadores posteriores, ao pensar segundo um modelo realista , fundamentado no inquérito lógico das coisas coisas materiais. Os romanos também tinham sua concepção de cultura fundamental, a humanitas , um senso de humanidade como formação de caráter, um conceito de certa forma análogo à paideia. Assim como a areté dos dos gregos, a virtus romana, origem da palavra virtude , era um 2
Parte da habitação reservada às mulheres na Grécia Antiga. História da Educação
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princípio central do processo educativo. É importante ressaltar que a palavra, cuja raiz é vir (homem), designava um ideal de masculinidade romano, contendo um senso máximo de honra e dignidade na aurora da expansão imperial romana, um período marcado por conquistas bélicas (DILLON; GARLAND, 2005, p. 235). A humanitas romana seria muito influenciada pelo pensamento grego à medida que a expansão de Roma a colocou em contato com ideias diferentes. difere ntes. Entre outras coisas, em vez de impor sua língua e costumes, os romanos assimilaram características do pensamento grego e incorporaram sua língua ao ensino erudito. Professores gregos eram comuns e a literatura grega fazia parte dos estudos gramáticos oferecidos aos meninos (ARANHA, 2006, p. 89-90). Enquanto os mais ricos eram educados por preceptores, muitas vezes de origem grega, crianças menos abastadas estudavam em um ludus , uma escola que poderia ser situada em uma residência ou em espaços públicos, onde um professor lecionava por uma taxa (BLOOMER, 2011, p. 15). Os jovens poderiam ainda ter lições mais avançadas com um gramático, mas poucos ainda teriam acesso a estudos retóricos, fundamentais para a formação de um indivíduo como jurista ou político (BLOOMER, 2011, p. 105). Um estágio final, talvez o mais elevado da educação romana, seria um ciclo de estudos filosóficos, evidência da influência grega. Figura 1 – Relevo encontrado em Neumagen. Representa um professor e três discípulos (180-185 d.C.).
Fonte: shakko/Wikimedia Commons.
É inegável que os romanos desempenharam um papel fundamental na difusão e preservação das ideias gregas que chegaram até nós, mas também deixaram sua própria marca. As línguas latinas (como o português, o espanhol e o italiano) carregam o legado do latim romano, assim como as fundações para o pensamento jurídico moderno se encontram na Roma Antiga. Por fim, o legado bibliográfico greco-romano se revelaria fundamental para eruditos de períodos posteriores, que utilizariam essa soma de conhecimentos como base.
1.3 Educação religiosa Após a queda do Império Romano, em 476, a Europa viveu o período das invasões bár baras, ao que se seguiu o esvaziamento esvaziamento das cidades cidades e a decadência decadência de inúmeras instituições romanas, com notável exceção da Igreja. E, ao longo desse período, a Idade Média, a educação se tornaria uma competência das instituições eclesiásticas. 16 História da Educação
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Indivíduos como Alcuíno de York (725-804 d.C.), um monge inglês que ofereceu educação formal à família do rei franco Carlos Magno, seriam peças-chave na manutenção de conhecimentos após a decadência de Roma. Mosteiros também seriam muito importantes para a reprodução de manuscritos antigos. Por fim, a partir do século X, as instituições eclesiásticas dariam origem, conforme nossa compreensão, a um dos pilares da educação: as universidades. O ensino medieval se baseava em duas vertentes filosóficas opostas: a patrística de Santo Agostinho (354-430 d.C.) e a escolástica de São Tomás de Aquino (1225-1274). Enquanto Agostinho, de base idealista e platonista, situava o espírito no centro de sua abordagem, Aquino dava destaque à matéria, conciliando o cristianismo à visão realista de Aristóteles. A perspectiva orientada pela patrística, cujo nome se refere aos “pais” da Igreja, indicava “os conhecimentos que crianças e jovens devem adquirir de forma organizada: Leitura, Escrita, Cálculo, Gramática, Retórica, Dialética, Geometria, Filosofia e Teologia” (PILETTI; PILETTI, 2012, p. 46), disciplinas estas que, em conjunto, deveriam servir a um único propósito: aproximar o indivíduo educado de Deus e da paz espiritual que o contato com a divindade era capaz de trazer. O método de aprendizado preferencial, de origem gramática , era catequético , pautado em um esquema de perguntas e respostas. Figura 2 – Aula representada em ilustração do manuscrito Grandes Chroniques de France, do século XIV. Biblioteca Municipal de Castres, França.
Fonte: Wikimedia Commons.
Embora admitisse, como Agostinho, que Deus era o primeiro entre todos os mestres, Tomás de Aquino também reconhecia que o conhecimento só poderia ser realmente obtido valendo-se de auxílio externo, não estando diretamente atrelado à presença divina na alma do indivíduo (PILETTI; PILETTI, 2012, p. 54-55). A palavra escolástica deriva de scolasticus , como eram chamados os educadores que lecionavam em conventos e universidades. História da Educação
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Enquanto a educação para os ofícios – sapateiros, tecelões, ferreiros – continuava a ser transmitida no próprio dia a dia do trabalho, geralmente de pai para filho, a formação das classes nobres consistia principalmente de uma educação predominantemente militar, produzindo uma aristocracia armada: os cavaleiros (ARANHA, 2006, p. 108-110). Ambos os regimes educacionais desconsideravam grandemente uma formação erudita, a qual era encontrada em espaços eclesiásticos. A educação formal básica consistia em sete artes liberais, a soma do trívio e do quadrívio. O primeiro conjunto de disciplinas consistia em: Gramática, Retórica e Dialética, ciências do “bem falar”, que serviam para articular o estudante nas competências verbais. O segundo abrangia os estudos cujo núcleo era a Matemática: Aritmética, Geometria, Música e Astronomia (PILETTI, 2012, p. 60). Fundamentado nessa base se seguia o Ensino Superior, encontrado nas universidades, cujo propósito era instrumentalizar os estudantes como mestres das Artes Liberais, que trabalhariam na propagação do conhecimento para as camadas de base, e nas áreas do Direito, da Teologia e da Medicina. Do século X em diante, as cidades europeias passaram por uma fase renovada de crescimento, o que implicava em uma busca pela organização dos ofícios em corporações ou universitas. Considerando que até meados do século XII eram comuns os “mestres itinerantes”, professores que se deslocavam entre povoados europeus sem um local fixo, as universidades medievais surgiram com o propósito de sistematizar a difusão de conhecimento, criando estabelecimentos. Nesses estabelecimentos, universitas de mestres e discípulos, essa sistematização tornava-se possível (ARANHA, 2006, p. 110). É importante frisar que essas universidades eram distintas das atuais na medida que eram dedicadas à preservação e à propagação do conhecimento, mas não eram institutos de pesquisa, visto que não publicavam periódicos científicos, por exemplo. Figura 3 – Ilustração de um manuscrito do século XIV mostrando uma reunião de doutores na Universidade de Paris.
Fonte: Wikimedia Commons.
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O método de ensino predominante era o escolástico, que operava fundamentado em uma base dialética. A primeira etapa dos estudos era o lectio (leitura), quando os conhecimentos propostos eram apresentados considerando-se um texto. A segunda etapa era o disputatio (discussão), quando mestre e estudantes debatiam as propostas a fim de atingir conclusões. Podemos observar como a educação medieval europeia carregava o legado da educação clássica, ao integrar o método de repetição e memorização dos gramáticos da Antiguidade e incorporar como conhecimentos fundamentais as ciências da expressão/comunicação (Retórica, Dialética) e as de base Matemática (Geometria, Música etc.). Certamente a noção medieval de universidade não seria possível sem a valorização dada pelos clássicos à formação integral, que excedia as necessidades práticas da vida e ambicionava contemplar a formação do espírito. O papel do educador como conservador e transmissor de tradições, por sua vez, além das mudanças de perspectiva, preserva características ainda que remontam à invenção da escrita. O método catequético de perguntas e respostas da pedagogia patrística assim como a dinâmica de lectio e disputatio mantinham suas raízes no pensamento clássico e acabariam sendo fundamentais para o estabelecimento das universidades, as quais permanecem e representam centros fundamentais para o pensar e o repensar acerca dos processos educacionais.
Ampliando seus conhecimentos O estudioso inglês Alcuíno de York foi um escritor celebrado em sua época, tendo feito parte da corte do imperador Carlos Magno. Tornando-se mestre da escola palaciana, Alcuíno veio a educar o próprio imperador, além de seus lhos, Pepino e Luís. O texto a seguir representa uma sequência
de trocas dialógicas entre Alcuíno e o jovem príncipe Pepino.
Diálogo entre Pepino e Alcuíno (c. 781-790) (DIÁLOGO..., 2017) P.: O que é a escrita? A.: O guarda da História. P.: O que é a palavra? A.: A delatora dos segredos da alma. P.: Quem gera a palavra? A.: A língua.
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Concepções de educação clássica e medieval P.: O que é a língua? A.: O chicote do ar. P.: O que é o ar? A.: O guarda da vida. P.: O que é a vida? A.: A alegria dos ditosos, aição dos miseráveis, espera da morte.
P.: O que é a morte? A.: Um fato inevitável, uma incerta peregrinação, lágrimas dos vivos, conrmação dos testamentos, ladrão do homem.
P.: Que é o homem? A.: Servo da morte, caminhante passageiro, sempre um hóspede em qualquer lugar. [...] A.: O que é que é e que não é? P.: O nada. A.: E como pode ser e não ser? P.: É enquanto palavra; não é, enquanto realidade. A.: Quem é o mensageiro mudo? P.: O que tenho aqui comigo. A.: O que tens aí contigo? P.: Uma carta tua. A.: Que a leias com proveito, lho.
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Atividades 1. Quais eram as características das primeiras formas de educação adotadas pelos povos da Pré-história?
2. Como podemos caracterizar os povos antigos do Oriente Médio e do norte da África? 3.
Por que Jaeger arma que a paideia dos gregos nos causa um senso de identicação
tão forte?
4. Como funcionava o método catequético, em que se baseava o modelo de ensino da patrística?
5. Observe o texto complementar, Diálogo entre Pepino e Alcuíno (c. 781-790), e descreva o que ele tem a dizer sobre o modelo educacional da Europa medieval.
6. Em que consistia o ensino básico medieval? 7. Em qual contexto surgiram as primeiras universidades? Quais eram suas características?
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Resolução 1. Era uma educação essencialmente tribal. Todos os membros da comunidade participavam da formação das crianças. Dessa forma, contribuíam para que elas adquirissem os conhecimentos necessários para a sobrevivência, bem como para rituais importantes praticados pelo grupo. O mito, em particular, como explicação sobrenatural para o mundo, era um recurso importante para apreender a realidade.
2. Os povos do Egito, da Mesopotâmia e da Palestina constituíam sociedades rigidamente hierárquicas, nas quais a educação servia ao propósito de incutir nas crianças os valores de obediência e respeito. Indivíduos menos privilegiados recebiam uma formação prática de suas famílias, enquanto jovens de origem aristocrática teriam acesso a uma formação erudita e aprendiam a dominar a escrita.
3. Ao contrário dos povos do Oriente, caracterizados por sociedades extremamente hierarquizadas e governadas por monarcas teocráticos, nas quais a maioria dos indivíduos dispunha de pouca autonomia de pensamento, normalmente apenas reproduzindo conhecimentos preservados por gerações, os gregos constituíram um modo de pensar que dependia grandemente do debate, da especulação, do senso crítico e do pensamento autônomo.
4. Era um método pautado na gramática e funcionava com base em um esquema de perguntas e respostas.
5. O texto consiste de um diálogo entre Alcuíno de York, um monge inglês, e um no bre franco, Pepino. Trata-se de um esquema catequético , composto por perguntas e respostas, muito comum como metodologia de ensino no modelo patrístico. O texto tem um pano de fundo em torno da escrita e descreve uma série de relações poéticas sobre a natureza da vida, da morte, do homem e da linguagem. É possível notar aqui o papel do sacerdote como detentor de conhecimento e professor, um elemento fundamental da cultura educacional medieval, além da profunda revêrencia do nobre
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por Alcuíno em seu papel de educador. Fora a erudição e o lirismo mostrados nas elaborações a respeito de cada tópico discutido, percebemos também um cristianismo subjacente no caráter transitório da vida.
6. O ensino básico medieval, que somente podia ser aprendido em instituições religiosas, consistia do aprendizado de sete artes liberais, divididas em dois grupos, o trívio (Gramática, Retórica e Dialética) e o quadrívio (Aritmética, Geometria, Música e Astronomia). O primeiro grupo compreendia as competências expressivas, o bem falar, enquanto o segundo tratava de conhecimentos de ordem matemática.
7. As primeiras universidades surgiram na Europa medieval, após o século X, em um momento de crescimento urbano renovado. Havia um interesse pela divulgação de conhecimento, mas também pela sistematização do ensino, de modo que essas instituições surgiram como corporações de mestres e estudantes, nas quais os regimes de aprendizado podiam ser sistematizados. As universidades medievais se prestavam à formação de mestres de artes liberais, bem como doutores em Direito, Teo Teologia logia e Medicina, e o método de ensino predominantemente utilizado era o escolástico, fundamentado na sucessão de lectio (leitura) e disputatio (discussão), quando os estudantes debatiam as propostas oferecidas, em uma dinâmica dialética.
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Introdução Embora tenha visto a perpetuação de saberes clássicos e o florescimento das primeiras universidades, o Período Medieval é visto como um momento de extrema retração cultural, após a derrocada da Pax imperial de Roma e antes do retorno aos valores clássicos pelo ímpeto racionalista do Renascimento. Por vezes, nos referimos ainda à Idade Média, de forma preconceituosa, como Idade das Trevas , um termo injusto e tendencioso, conforme afirma Alain de Libera (1999, p. 97), já que, apesar de uma redução inicial no século V, a cultura letrada viria a crescer nos séculos seguintes, atingindo um grau de sistematização sem precedentes. A visão preconceituosa em relação ao período medieval provém, em parte, do agudo contraste com o período subsequente, o Renascimento. A conjuntura renascentista se destaca pelo florescimento das artes plásticas, da arquitetura, da literatura e da música secular, bem como da política, das humanidades e da filosofia natural , , e marca o início da Idade Moderna. A emergência dessas manifestações culturais e científicas era alimentada pelo patronato de ricos mecenas – comerciantes, bispos e nobres dispostos a investir uma parte de suas fortunas em artistas, filósofos e pesquisadores de interesses diversos. História da Educação
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O humanismo permeava todos esses desenvolvimentos, sendo fundamental para o pensamento renascentista. Embora não fosse essencialmente irreligioso, o princípio humanista dava preeminência à formação de um ser humano culto e autônomo, voltado para a fruição e a compreensão do mundo físico, para além de valores espirituais abstratos. Assim, a sede por conhecer, compreender e explorar se espalharia por muitas áreas além das artes e da filosofia, como a medicina e as navegações, que permitiriam uma nova era de conquistas para os europeus, o que mudou para sempre seu modo de interpretar o mundo. A exploração de novos territórios, a diversificação da economia e dos interesses humanos e a consolidação dos estados nacionais viriam a se estabelecer em conjunção com novos modelos educacionais, que não só substituíram a escolástica medieval como instigaram uma corrente de reformas filosóficas e sistêmicas dos sistemas de ensino europeus.
2.1 Pedagogia renascentista Antes de entrar em questões conceituais, importa salientar o quão peculiar é a conjuntura que produziu o Renascimento e deu início à Era Moderna. A queda do Império Romano Oriental, em Constantinopla em 1492, promoveu a busca por novas rotas comerciais, enquanto em 1494 os árabes foram definitivamente expulsos de Granada e a Coroa espanhola recém-unificada ingressou em uma era de navegações exploratórias e conquistas territoriais. Os regimes feudais começaram a dar lugar a Estados cada vez mais fortes, com exércitos profissionais, burocracias organizadas. Os monarcas dos séculos XV e XVI, muito mais do que seus antecessores medievos, preocupavam-se em firmar sua autoridade, unificar os territórios nacionais e expandir suas fronteiras, garantindo também o fluxo de riquezas por meio do controle sobre as interações comerciais. Como afirma o pesquisador italiano Franco Cambi (1999, p. 195): “Trata-se de um ciclo histórico que tem características profundamente diferentes do anterior, em relação ao qual ele opera uma ruptura consciente”. Que ruptura seria essa? Afinal, a própria ideia de Renascimento, enquanto categoria de periodização, já foi colocada em questão por pesquisadores contemporâneos. O historiador holandês Johan Huizinga argumentou no ensaio O problema do Renascimento (1959, p. 244), publicado originalmente em 1920, que a ambiguidade do conceito de Renascimento dificulta sua aplicabilidade. Para o autor, a cultura do Renascimento seria ainda uma espécie de “traje de domingo” (1959, p. 270), pois estava restrita às classes altas do período, interferindo pouco no quadro social mais amplo. Erwin Panofsky, crítico e historiador da arte alemã, por sua vez, publicaria Renascimento e renascimentos na arte ocidental , obra na qual sustenta não ter existido um Renascimento único e claramente definido (PANOFSKY, 1981, p. 25). O Alto Renascimento que se propagou a partir da fase da Itália quatrocentista e quinhentista, com base nesse ponto de vista,
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foi um de vários renascimentos culturais experienciados ao longo da história ocidental. Em que se fundamentou, então, a singularização dessa conjuntura como um momento de reviravolta para narrativa da história europeia? Primeiramente, podemos dizer, dos próprios autores da época. Os humanistas italianos do século XV foram os primeiros a conceber a ideia de que a conjuntura histórica em que viviam caracterizava uma ruptura com a Idade das Trevas que a precedera. A renovação do interesse por valores das artes visuais e da literatura da Antiguidade instigaram, no século XVI, a gênese do rinascita ou renascimento. Historiadores de séculos seguintes se basearam nessa concepção e elaboraram a ideia de que não se tratava apenas de uma conjuntura de reavivamento das letras e das artes, mas do pensamento humano no sentido mais amplo (HARTOG, 2017, p. 94). Desse modo, temos de ressaltar que a ruptura renascentista não diz respeito a um abandono de uma visão de mundo fundamentalmente cristã, ou a uma negação das autoridades vigentes, como grandes desenvolvimentos deixariam evidente. A expansão para o continente americano, por exemplo, ainda seria grandemente justificada pela evangelização de populações indígenas, consideradas pagãs. As correntes religiosas reformistas que emergiram no século XVI, por seu turno, rejeitaram o papa e a Igreja de Roma como lideranças válidas, mas não o mandato divino dos monarcas ou o sistema de estamentos 1 que governava a sociedade. A grande transição foi, portanto, de ordem cultural, e o processo educacional foi considerado fundamental para tal. É importante lembrar que a revolução comercial que se instaurou na Europa da época é, em grande parte, fruto da aliança entre estados monárquicos centralizadores. Esses estados detinham grande controle sobre o comércio e as elites financeiras ascendentes das grandes cidades, em detrimento de aristocracias feudais, compostas por duques e barões, cujo poder se tornava progressivamente menor. Os burgueses urbanos, em franco enriquecimento graças à abertura de novos mercados, buscaram formas de se educar e adquiriram a cultura letrada que passou a ser admirada. O acesso à instrução formal mantinha-se limitado para padrões atuais, mas passava por uma notável onda de crescimento. Se, por um lado, a educação mais formal e variada era garantida para as elites, havia alternativas para outros estratos sociais. Enquanto os mais ricos ou da alta nobreza continuavam a ser educados por preceptores em seus próprios castelos, a pequena nobreza e a burguesia também queriam educar seus filhos e os encaminhavam para a escola, na esperança de melhor prepará-los para a liderança e a administração da política e dos negócios. (ARANHA, 2006, p. 125)
Como eram essas escolas? Embora não houvesse uma abordagem uniforme nos territórios europeus desde o século XII, importa frisar que era esperado que as dioceses locais disponibilizassem um professor para educar jovens que não tinham condições de pagar por sua própria instrução (ORME, 2006). Existiam também escolas independentes, mas igualmente estruturadas em torno de uma perspectiva religiosa de ensino. 1 Congressos, assembleias.
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Portanto, tal como ocorria com as universidades, as primeiras escolas renascentistas eram limitadas pelas bases de conhecimento que ainda incorporavam, por isso, mantinham-se ainda leais às tradições medievais de ensino. Isso ocorria porque mesmo escolas independentes eram normalmente administradas por ordens religiosas. Os jesuítas , em em especial especial,, torna tornaram-se ram-se conhecidos por suas instituições de ensino, que combinavam princípios religiosos e uma disciplina rigorosa. Os colégios jesuíticos tornaram-se famosos mundo afora e preservaram uma posição de proeminência em regiões católicas até finais da Idade Moderna. A ação dos educadores jesuítas era regrada por uma coletânea de saberes sistematizados, que consistia de diretivas rígidas: 1. aliar as virtudes religiosas e mundanas mundanas à rotina rotina de estudos; estudos; 2. evitar a introdução de novas novas opiniões opiniões e novos conceitos conceitos sem a aprovação dos superiores da ordem; 3. realizar repetições regulares para a fixação dos conhecimentos; 4. manter a ordem nos recintos do colégio; 5. realizar preleções acerca dos autores antigos. Com a difusão da literatura clássica e o interesse renovado pelo aprendizado das letras nos séculos XVI e XVII, o número de colégios aumentou pelo continente, e estes se tornaram cada vez mais organizados. O modelo de ensino, como já foi salientado, ainda seguia o método escolástico. “Os programas continuavam a se basear nos clássicos trivium e quadrivium , persistindo, portanto, a educação formal de gramática e retórica, como na Idade Média. Não foi abandonada a ênfase no estudo do latim, com frequente descaso pela língua materna” (ARANHA, 2006, p. 126). Podemos perceber aqui as permanências do período medieval, uma das razões que fizeram autores como Huizinga refletirem acerca da arbitrariedade da ruptura cultural atri buída ao Renascimento. Não obstante os eruditos europeus do século XVI tivessem um acesso ampliado a obras clássicas, bem como a ambientes mais convidativos à especulação e à pesquisa, a instrução formal não acompanhou de imediato esses desenvolvimentos. Era possível observar ainda o surgimento de academias, inspiradas em espaços filosóficos da Antiguidade Clássica, como a Academia , do filós filósofo ofo grego grego Plat Platão, ão, e o Liceu , administ administrado rado por Aristóteles. Esses espaços, dedicados ao estudo do pensamento greco-romano, não eram espaços formais de educação como as universidades e os colégios, mas agremiações de jovens ricos, que buscavam atingir sua versão da areté dos dos gregos, ou da virtude dos romanos. Eventualmente reformas passaram a pressionar os modelos tradicionais. A Universidade de Paris, por exemplo, converteu a Faculdade de Artes em propedêutica, isto é, um curso de base para as outras faculdades: Filosofia, Direito e Medicina. Com isso foi possível notar o início da divisão mais clara entre o ensino secundário e o superior. Outras reformas também viriam para as antigas universidades, com a admissão de novos professores e novos valores. Educadores leigos, assim como religiosos com uma visão
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mais afinada às novas correntes de pensamento, flexibilizavam a tradição educacional e apresentavam suas adições, dando crescente importância às práticas de experimentação. Progressivamente, a observação da natureza e a experiência dos fenômenos em si se tornaram tão importantes quanto a teorização encapsulada em escritos tradicionais. A presença de pensadores como Erasmo de Roterdã (1467-1536) em instituições tradicionais de ensino superior representava a incorporação do pensamento humanista , que figurava o início de uma relevante cadeia de reformulações nos sistemas de ensino das potências europeias e de outras regiões do globo sob sua influência e domínio.
2.2 Humanismo e a formação de um novo homem Para que possamos compreender como se deram essas transformações, é importante refletir acerca do conceito de humanismo. Como vimos, a Europa do século XVI vivia uma ampliação de seus horizontes geográficos e econômicos, bem como passava por processos localizados de unificação política. Assim, é importante ressaltar que o ideal humanista surge na confluência de interesses burgueses e mercantilistas, movidos pelo impulso de encontrar e acumular riquezas. Navegar por oceanos não mapeados e colonizar regiões remotas do planeta era parte dessa busca por riqueza. Os burgueses eram importantes aliados dos reis da Idade Moderna nascente. Compunham uma elite financeira, não aristocrática, buscavam enriquecimento por meio de atividades mercantis e atuavam como investidores, negociantes e exploradores, mas não competiam com a autoridade central, como a nobreza feudal. Esta, por sua vez, se tornaria progressivamentee mais fraca, em favor de governos cada vez mais capazes de articular granprogressivament des riquezas e contingentes militares, fundamentais para o controle das fronteiras e a busca por novas terras e rotas comerciais. Como vimos, apesar de diversas mudanças, a visão de mundo europeia ainda era fundamentalmente cristã, e isso se traduzia no modo como a educação básica era gerenciada. Eventualmente, porém, foi estabelecido o contato com outras culturas. Após atritos e trocas intensas com árabes e bizantinos, ocorreram encontros com culturas ainda mais diferentes daquelas da Europa Cristã, na África, na Ásia e na América. Ao mesmo tempo que os estudos clássicos gregos e latinos ganhavam força, os europeus se viam diante de modos de vida muito diferentes do que conheciam, o que produziu inúmeros conflitos e revisões filosóficas. Nesse contexto, apareceram significativos exemplos de literatura erudita escritos em línguas nativas, em vez de latim, o que gerou impacto na formação bibliográfica das pessoas e tornou o processo de assimilação da leitura consideravelmente mais acessível. Diversos pensadores introduziram ainda outros conceitos inovadores, como Juan Luis Vives (1492-1540), que preconizava a importância do desenvolvimento do pensamento indutivo, Erasmo de Roterdã (1467-1536), que criticava a abordagem escolástica e defendia que cada fase do
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aprendizado respeitasse os diferentes estágios de desenvolvimento da criança, e Michel de Montaigne (1533-1592), que salientava a importância de educar os jovens para a autonomia e o senso crítico, visando à formação humana integral (ARANHA, 2006, p. 132-134). Erasmo empregou uma analogia para reforçar a importância do ensino de base ao comparar a mente humana a uma ânfora, que carrega o aroma das primeiras ideias que a ocuparam: “A “A ânfora exala, por longo tempo, o aroma do licor que a encheu primeiro, e custa para ser depurada. Aliás, é em ânfora nova e vazia que se conserva o licor da preferência. preferência. Assim a mente humana. Se mal semeada, logo se enche de coisas inúteis que devem ser erradicadas” (ERASMO, 2008, p. 122). Novas ideias colocavam em cheque a visão de mundo proposta pelas autoridades católicas, o que consequentemente minou sua influência. Isso ocorria em mais de uma frente. De um lado, a descoberta de terras até então desconhecidas pelos europeus, e de outro, as culturas e formas de vida animal e vegetal encontradas nelas, que desafiavam o modo como a realidade era compreendida por pensadores respeitados havia séculos. A isso se somavam o entusiasmo retomado pelas tradições clássicas de conhecimento e questionamentos à Igreja de Roma. Em várias partes do continente despontavam proponentes de novas perspectivas perspectivas religiosas, as quais viriam a romper com a Igreja. Isso representou um período turbulento de Reforma e Contrarreforma , que envolveu a emergência de vertentes protestantes do credo cristão e confrontos motivados, entre outras razões, pela religião, como a Guerra dos 30 anos. As reformas religiosas se revelaram um passo fundamental para o desenvolvimento do modelo educacional que conhecemos, especialmente no norte da Europa, onde correntes reformistas se manifestaram com grande força, suprimindo o modelo clerical tradicional. A Igreja da Escócia, por exemplo, protestante e presbiteriana, instituiu a designação de um professor para cada paróquia, incluindo aulas gratuitas para os pobres, em 1561, serviço este que foi mantido por um imposto específico. Em regiões da atual Alemanha, ao longo do século XVII, por sua vez, reformas profundas instituiriam a educação obrigatória e os graus de aprendizagem. Mesmo na Europa católica, outras ordens religiosas à exceção dos jesuítas se mostraram capazes de assimilar o ensino e nsino em línguas modernas e os princípios da filosofia racionalista de René Descartes (1596-1650). Aliavam-se, então, a crença religiosa e a primazia da razão, em oposição aos fundamentos de memorização e repetição dos jesuítas, além de dar mais importância ao ensino das línguas nativas que do latim. Importa salientar que a filosofia de Descartes se pautava em um questionamento dos saberes tidos como estabelecidos. O princípio do Cogito ergo sum (“Penso, logo existo”) se referia à ideia de que a construção do saber era fundamentalmente a construção do ser humano elevado. Conforme o autor sugere a respeito de sua própria aprendizagem:
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[...] há algum tempo eu me apercebi de que, desde os meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados não pode ser senão mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências. (DESCARTES, 1987, p. 17)
Enquanto isso, o filósofo empirista inglês John Locke (1632-1704) se opunha tanto ao ensino de base religiosa quanto ao de base racionalista, e defendia uma educação fortemente inclinada para a experiência e para o aprendizado da língua vernácula, bem como a cultura do corpo, isto é, a educação física. O pensador afirmou: “A felicidade e a desgraça do homem são, em grande parte, sua própria obra. Aquele que não dirige seu espírito sabiamente, não tomará nunca o caminho certo, e aquele que cujo corpo seja doente e débil, nunca poderá avançar por ele” (LOCKE, 1986, p. 31). Contudo, talvez a influência mais duradoura na configuração da educação moderna foi possivelmente Jan Amos Comênio (1592-1670), um pedagogo tcheco e bispo da Igreja moraviana. Autor do tratado intitulado Didática Magna , Comênio foi um dos primeiros grandes defensores da educação universal. Ele tinha a pretensão de desenvolver uma metodologia que tornasse possível ensinar tudo a todos. Para isso era preciso desenvolver um sistema educacional que oferecesse uma base sólida de conhecimentos, sem molestar ou entediar os estudantes. Para Comênio, a aquisição de conhecimentos não devia ser restrita a um grupo seleto, mas expandida para todos, a fim de melhorar sua compreensão do mundo e de si mesmos. “Todo homem nasceu com capacidade de adquirir a ciência das coisas, antes de mais nada porque é imagem de Deus” (COMÊNIO, 2010, p. 53), afirmou o autor ao explicitar uma das premissas mais fundamentais de sua obra: a de que todos os seres humanos apresentam as condições necessárias para adquirir conhecimento. De fato, a imagem, se acurada, representa necessariamente as feições do arquétipo, ou não seria imagem. Portanto, uma vez que entre as outras propriedades de Deus sobressai a onisciência, necessariamente algo de semelhante resplenderá no homem. E por que não? Por certo o homem está no centro das obras de Deus e tem mente lúcida, semelhante a um espelho esférico, suspenso numa sala, que recebe as imagens de todas as coisas: estou me referindo a todas as coisas que o circundam. (COMÊNIO, 2010, p. 53- 54)
Podemos observar no pensamento do autor a visão antropocêntrica própria do pensamento humanista. Para os pensadores que defendiam essa visão, o homem está no centro do universo e representa a expressão máxima da criação divina. A centelha divina na mente humana poderia ser apreciada, entre outras características, em sua capacidade de apreender
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não apenas o que está próximo no tempo e no espaço, mas, por meio da indagação e da pesquisa, também explorar o desconhecido e investigar o infinito. Figura 1 – Ilustração dos escritos didáticos de Comênio publicados em Amsterdã, em 1657.
Do ponto de vista prático, a influência de Comênio seria vasta. De um ponto de vista organizacional, contribuiria para a divisão da educação em níveis ao influenciar modelos posteriores, os quais tinham base em uma escala de educação infantil, fundamental, secundária e superior. No nível da prática pedagógica, estimularia a investigação e o “aprendizado pela Natureza”, tão preconizado pelos filósofos humanistas. Talvez mais importante seria sua premissa de abordar o aprendizado como algo prazeroso em vez de uma tarefa, que deveria se embasar na língua vernácula, de conhecimentos mais elementares para os mais complexos, fazer uso de coisas com as quais a criança tinha familiaridade e transmitir conhecimentos mais por meio de objetos que de conceitos abstratos, como era comum à formação tradicional centrada nas artes liberais.
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Como podemos notar, embora seja ainda controversa a questão que envolve a complexidade do fenômeno do Renascimento e a extensão de seu impacto no campo da cultura, o legado humanista para o pensamento educacional posterior é considerável. As contribuições dos filósofos dos séculos XVI e XVII ajudaram a repensar o ensinar, e os experimentos institucionais do período foram fundamentais para o desenvolvimento das escolas posteriores.
2.3 A educação, o Iluminismo e a razão O século XVIII marcou a culminação de um longo processo de ampliação de horizontes para o pensamento europeu. A consolidação dos estados nacionais, que teve início na aurora da Idade Moderna, promoveu a ascensão de monarquias absolutistas, comandadas por reis com um poder sem paralelo em séculos recentes. Ao mesmo tempo, havia a circulação de pessoas e mercadorias do capitalismo emergente, assim como a circulação de ideias, provocando uma reconfiguração do pensamento e da moral. Uma burguesia enriquecida em busca incessante de seu lugar em um cenário ainda governado por uma aristocracia eclesiástica e cortesã, as quais se delineavam claramente como estamentos opressores. Uma guinada significativa para a laicidade, para o liberalismo e para o individualismo tornou evidente o caráter desse século como um período limítrofe entre a Idade Moderna e a Contemporaneidade, e muitos conflitos foram provenientes desse cenário. Esse seria o “século das luzes”, a era do Iluminismo , um período marcado pela chegada dos pensadores a um posto de alta influência na sociedade ocidental. Em razão de sua proximidade aos monarcas do período, filósofos e educadores ocuparam o centro do poder, e a educação, de necessidade formal de instrução, converteu-se em política de Estado no sentido mais amplo. Conforme argumenta Cambi (1999, p. 324), Nesse contexto social e político, mas também econômico e jurídico, deve ser sublinhada ainda e com força a nova fisionomia assumida pelo intelectual: o seu papel sociopolítico, a sua identidade cultural, a sua função pública, que o delinearão como uma figura central nos séculos seguintes e o caracterizarão cada vez mais no sentido educativo.
Esses pensadores frequentemente dialogavam com as autoridades dominantes, primeiro como críticos do poder estabelecido, depois como conselheiros, em busca da implementação de reformas. Essas reformas representavam uma grande transição, na medida em que propunham a liberdade de imprensa, a liberdade de culto (o que incluía posturas irreligiosas) e novas formas de pensar o direito e a educação. Exemplos de filósofos iluministas que operaram esse diálogo: Diderot (1713-1784), Voltaire (1694-1778), Leibniz (1646-1716), Rousseau (1712-1778) e Kant (1724-1804).
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A Pedagogia renascentista, o humanismo e o Iluminismo
Figura 2 – BECKER, Johann Gottlieb. Retrato de Emmanuel Kant . 1768. óleo sobre tela; 46 x 49 cm, color. Museu Nacional de Schiller, Marbach, Alemanha.
Para esses pensadores, o ensino era um recurso valioso para propagar ideias e desenvolver um novo pensamento social, que valorizasse a razão e a busca individual pelo entendimento. Superar o obscurantismo religioso era o maior obstáculo que se apresentava para a concretização dessas propostas. Para tal, era fundamental que a educação se afastasse das ordens religiosas, tornando-se leiga e administrada pelo Estado, o que foi defendido pelo jurista Louis-René de Caradeuc de La Chalotais (1701-1785). Em 1763, La Chalotais publicou seu Ensaio sobre a educação nacional , tratado no qual propôs um programa de estudos para substituir as escolas administradas por jesuítas. Rousseau julgou a educação tradicional, fundamentada na erudição dos livros, essencialmente negativa e corruptora, como toda influência social sobre o indivíduo em formação, de modo que a educação ideal deveria ser natural. Para esse pensador, as disposições primitivas do ser eram mais positivas que qualquer influência social. Embora suscetível a críticas, o pensamento de Rousseau representava um ataque relevante aos perigos da educação excessivamente voltada para a erudição e pouco dirigida para a realidade. Kant, por sua vez, foi instrumental ao elaborar conceitualmente o princípio do iluminismo, imaginando-o como uma saída do estado de menoridade. A menoridade em si consiste na incapacidade do indivíduo de empregar o conhecimento sem a direção de outrem, o que o torna intelectualmente subordinado a autoridades do pensar, como as instituições religiosas e outros guardiões institucionalizados das tradições. Assim, para atingir o iluminismo, é fundamental a ruptura dos indivíduos com as guias que os prendem, prevenindo-os de fazer uso de seu próprio entendimento.
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Do ponto de vista da educação, grandes são as implicações desse modo de pensar, haja vista que se espera que o aluno atinja, por meio do processo educacional, não apenas instrução formal ou uma noção ampla do conjunto de acumulado de saberes da humanidade, mas a emancipação intelectual. Há um aparente paradoxo no modo como Kant pensa o processo educacional, o qual caracteriza a liberdade como meta final, mas a obediência como meio necessário. Entretanto, é importante notar que a obediência nesse caso não é uma observância passiva a um estado de hierarquia absoluta, mas uma expressão de liberdade, uma obediência voluntária da parte do estudante, que se submete à busca pelo conhecimento como emancipação de si. Em Portugal, e por consequência em suas colônias, entre elas a que se converteria posteriormente no Brasil, as reformas ilustradas foram promovidas principalmente por Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal (1699-1782). Pombal, que atuou efetivamente como chefe de governo durante o reinado de José I, empregou o pensamento ilustrado como forma de suprimir o poder da Igreja e consolidar a esfera de influência da Coroa lusitana. Dessa forma, Carvalho e Melo agiu de forma contundente contra as instituições dos jesuítas ao lançar as bases para um sistema público de educação. É válido notar que, embora as novas escolas contassem com administradores e professores leigos, ainda se ensinava nelas a religião cristã, e um rigoroso controle bibliográfico do material utilizado era mantido, especialmente para evitar influências francesas, consideradas perniciosas (ARANHA, 2006, p. 176). Ou seja, por mais amplo que tenha sido o alcance do pensamento iluminista na Europa do século XVIII, essa movimentação de conceitos e ações não foi uniforme, dando margem para descontinuidades e conflitos, tal como o humanismo renascentista, pois apresentava um caráter frequentemente paradoxal. De qualquer forma, esses desenvolvimentos lançaram as bases para a educação ocidental contemporânea.
Ampliando seus conhecimentos Comênio foi um dos pensadores mais importantes para a educação moderna e seu impacto no campo da didática seria fundamental para a transição de modelos mais tradicionais para formas mais abrangentes de ensino. O pensador buscava encontrar uma forma de ensinar “tudo a todos”, e a obra na qual melhor expressou suas ideias foi a Didática Magna , de 1649. Seguem alguns trechos.
Didática Magna, de Comênio (1649) (apud PIAGET, 2010, p. 46-48) 1.1. Didática signica arte de ensinar: de não muito tempo a esta parte,
homens ilustres têm-se empenhado em estudar essa parte por sentirem
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A Pedagogia renascentista, o humanismo e o Iluminismo compaixão pelo trabalho de Sísifo realizado pelos escolares; diferentes as tentativas, diferentes os resultados. [...] 1.3. Nós ousamos prometer uma didática magna, ou seja, uma arte universal de ensinar tudo a todos: de ensinar de modo certo, para obter resultados; de ensinar de modo fácil, portanto sem que docentes e discentes se molestem ou enfadem, mas, ao contrário, tenham grande alegria; de ensinar de modo sólido, não supercialmente, de qualquer maneira, mas para
conduzir à verdadeira cultura, aos bons costumes, a uma piedade mais profunda. Finalmente, demonstramos essas coisas a priori, partindo da própria natureza imutável das coisas, como se zéssemos brotar de uma
fonte viva regatos perenes, que se unissem depois num único rio para constituir uma arte universal, a m de fundar escolas universais.
[...] 1.5. Sem dúvida, a empresa é muito séria e, assim como deve por todos ser desejada, também deve ser ponderada pelo juízo de todos que, em conjunto, devem levá-la adiante, pois ela diz respeito à salvação comum do gênero humano. “Que dádiva maior e melhor podemos oferecer ao Estado senão educar e cultivar a juventude? Sobretudo em tempos e costumes tais, nos quais ela avançou tanto que precisa ser freada e controlada pela ação de todos”: é o que diz Cícero. Melanchton, por sua vez, escreveu que “dar uma formação correta à juventude é mais difícil que expugnar Troia”. E Gregório de Nazianzo arma: “a arte das artes está em formar o
homem, o mais versátil e mais complexo de todos os animais”. [...] 1.7. Por isso, peço aos meus leitores, ou melhor, em nome da salvação do gênero humano, esconjuro todos os que me leem, em primeiro lugar, a que não qualiquem de temeridade o haver alguém ousado não só tentar coi sas tão grandiosas, mas sobretudo prometê-las, visto que tudo isso é feito com um m salutar; em segundo lugar, que não desesperem se a primeira
tentativa não tiver sucesso imediato e se a empresa concebida segundo os nossos desejos não for por nós levada à absoluta perfeição. Na verdade, é necessário que as sementes das coisas comecem antes a germinar, para que depois se desenvolvam em graus sucessivos. Por mais imperfeitas que sejam estas nossas coisas e ainda que não alcancem o m proposto,
mesmo assim este estudo servirá para ensinar que há um degrau mais alto
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e mais próximo da meta do que até agora se acreditou. Rogo, enm, aos
leitores que tenham em si a atenção, o empenho, a liberdade e também a acuidade da mente que convêm às circunstâncias mais importantes. Devo agora aludir rapidamente à ocasião que me levou a iniciar este trabalho, exponho depois, de modo simples, os pontos capitais da nova invenção; cono, com fé plena, aquela à franqueza e estes ao exame de quantos jul guem com retidão. [...] 1.8. Esta arte de ensinar e de aprender, no grau de perfeição a que agora, ao que parece, quer alçar-se, foi em grande parte desconhecida nos séculos passados: por isso, no mundo das letras e das escolas sempre se acumularam canseiras e enfado, incertezas e falhas, erros e imperfeições, razão pela qual somente os dotados de engenho superior podiam aventurar-se em busca de uma instrução mais sólida. 1.9. Mas não faz muito tempo Deus nos mandou uma espécie de aurora, com o novo século que está nascendo, suscitando na Alemanha algumas pessoas excelentes que, desgostosas com a confusão do método usado nas escolas, começaram a pensar num método mais fácil e sucinto para ensinar as línguas e as artes; depois vieram mais outros, que obtiveram resultados ainda melhores, como pode ser visto pelos livros e ensaios de didática que publicaram. [...] 1.11. Comecei a ler esses trabalhos sempre que tinha oportunidade, e nisso encontrei um prazer incrível que em grande parte lenia meu pesar pela ruína da pátria e pelo miserável estado de toda a Alemanha. Comecei, de fato, a acreditar que a providência do altíssimo Deus não tivesse con jugado esses acontecimentos em vão, de tal sorte que tivesse feito coincidir a ruína das velhas escolas com o planear-sedas novas, segundo ideias novas. Porque quem tem a intenção de edicar um novo edifício costuma,
antes de mais nada, aplanar o terreno e demolir a velha construção, pouco cômoda e decadente. 1.12. Esse pensamento suscitava em mim grande esperança, mesclada a um sereno prazer, mas pouco depois senti que ela se desvanecia, pois não me sentia capaz de levar a cabo, desde as fundações, empresa tão grandiosa. [...]
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Atividades 1. Em que sentido podemos dizer que a educação renascentista não representa um corte limpo em relação à educação religiosa do período medieval?
2. Como podemos caracterizar o cenário que dá origem à educação humanista? 3. Qual é o impacto dos princípios iluministas no cenário educacional europeu? 4. A partir do excerto da Didática Magna , comente qual era a intenção exposta por Comênio em seu texto e qual era sua visão a respeito do cenário educacional da época.
Referências ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da educação e da Pedagogia – Geral e Brasil. 3 ed. São Paulo: Moderna, 2006. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. São Paulo: Brasiliense, 2006. CAMBI, Franco. História da Pedagogia. São Paulo: FEU, 1999. DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Nova Cultural, 1987 ERASMO. De pueris (Dos meninos). São Paulo: Escala, 2008. FRANCISCO FILHO, Geraldo. História geral da educação. Campinas, São Paulo, Editora Alínea, 2003. LOCKE, J. Pensamientos sobre la educación. Madrid: Ediciones Akal, 1986. ORME, Nicholas. Medieval Schools. New Haven: Yale University Press, 2006. PANOFSKY, Erwin. Renascimento e renascimentos na arte ocidental. Porto: Editorial Presença, 1981. PIAGET, Jean. Jan Amos Comênio. Recife: Massangana, 2010. PILETTI, Claudino; PILETTI, Nelson. História da educação. São Paulo: Contexto, 2012.
Resolução 1. A educação permaneceu, em grande parte, e principalmente nos reinos de maioria católica, nas mãos de ordens religiosas, como os jesuítas, famosos por seus colégios. Consequentemente, a formação oferecida por essas instituições ainda era essencialmente religiosa e normalmente com base no ensino das artes liberais do trivium e do quadrivium. Do ponto de vista da institucionalidade, embora os colégios tenham se estruturado como tal, isso pode ser interpretado como uma continuidade/sistematização do ensino oferecido por preceptores e professores de diocese.
2.
A Europa do século XVI vivia uma ampliação de horizontes econômicos e geográ cos, assim como uma reconguração política. Os grandes reinos egressos do perío -
do medieval tornavam-se progressivamente mais centralizados ao buscarem maior controle sobre seus territórios e sobre as riquezas obtidas por meio do comércio. 38 História da Educação
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Os burgueses eram peças fundamentais desse cenário, e eventualmente buscaram atingir um nível de educação e renamento cultural que reetisse sua importância
recém-adquirida, incorporando a cultura letrada clássica em voga naquele momento.
3. O pensamento iluminista consiste em uma convergência de interesses intelectuais e sociopolíticos e envolve a consolidação das monarquias absolutistas e da economia capitalista, assim como a ascensão do pensamento liberal e a busca da burguesia por mais direitos e inuência em um cenário ainda predominantemente aristocrático. Conceitualmente, para o lósofo Immanuel Kant, o Iluminismo representa o aban -
dono do estado de menoridade. A menoridade em si representa a incapacidade do indivíduo de empregar o conhecimento sem a direção de outrem, o que o torna intelectualmente subordinado às autoridades do pensar, como as instituições religiosas e outros guardiões institucionalizados das tradições. Assim, para atingir o iluminismo, foi fundamental a ruptura dos indivíduos com as guias que os prendiam, o que os preveniu de fazer uso de seu próprio entendimento. Do ponto de vista da educação, são grandes as implicações desse modo de pensar, haja vista que se espera que o aluno atinja, valendo-se do processo educacional, não apenas instrução formal ou uma noção ampla do conjunto de acumulado de saberes da humanidade, mas a emancipação intelectual.
4. Comênio explicitou que buscava compor uma didática magna , isto é, “uma arte universal de ensinar tudo a todos: de ensinar de modo certo”, um modelo de ensino que atingisse os estudantes de forma ampla e efetiva, sem tornar-se enfadonho ou incômodo. O autor descreve seu ponto de vista ao armar que, por muitos séculos, pre valeceu um ensinar repleto de equívocos e enfados, responsável por gerar confusão em vez de esclarecimento, e que apenas aqueles que eram dotados de engenho superior foram capazes de se promover com base nesses modelos tradicionais de ensino. O autor comenta, todavia, que alguns autores já se manifestavam no século XVII ao preconizarem a necessidade de renovar o modelo educacional: “Mas não faz muito tempo Deus nos mandou uma espécie de aurora, com o novo século que está nascendo, suscitando na Alemanha algumas pessoas excelentes que, desgostosas com a confusão do método usado nas escolas, começaram a pensar num método mais fácil e sucinto para ensinar as línguas e as artes”. Comênio, encorajado pela leitura desses autores, bem como motivado por um desejo de construir uma didática sólida e “alegre”, apresentou seu método, a Didática Magna.
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3 Séculos XIX e XX: a educação para o trabalho e para a democracia
Introdução Como vimos no capítulo anterior, os períodos medieval e renascentista abriram precedentes para a consolidação da educação formal como a compreendemos. Dessa forma, foram lançadas as bases para boa parte dos conhecimentos que ainda hoje julgamos fundamentais e para a sistematização das universidades e das metodologias de ensino. As instituições religiosas adotaram, no contexto explorado, o monopólio da educação básica e instituíram os primeiros colégios. Ao longo do século XVIII, a crescente tendência de valorização da educação como formação para o homem, acompanhada de um pensamento cada vez mais laico, promoveu a secularização das instituições do ensino, assim, passos significativos foram dados para a constituição de um ensino público universal, imaginado por pensadores como Jan Amos Comênio. História da Educação
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Os novos tempos trouxeram ainda mais ondas de mudança para a educação. Os séculos XIX e XX constituíram uma era de expansão de fronteiras para a humanidade, marcada também por intensos conflitos. Desenvolvimentos sem precedentes nos campos da comunicação e dos transportes e ampliaram maciçamente o potencial para a divulgação de ideias e a propagação de conhecimentos. O acesso a correntes de pensamento de diferentes proveniências geográficas, a aurora de novas áreas de conhecimento, como as ciências sociais , e o início de um período de intensa experimentação científica são marcas de um período que presenciou o conhecimento se tornar progressivamente mais disponível e acessível a grupos para os quais era antes vetado ou dificultado por questões financeiras ou amarras sociais. Por outro lado, conflitos ideológicos dividiram grupos e nações, o que trouxe a necessidade emergencial de novos projetos de Estado e sociedade e, consequentemente, instigou reconfigurações nos sistemas de ensino do mundo. Neste capítulo, portanto, trataremos da educação que emergiu na contemporaneidade , em grande parte ainda devedora de tradições de pensamento que remontam à Antiguidade, assim como de estruturas administrativas herdadas dos medievos e dos modernos. Todavia, para além das permanências, devemos observar as rupturas, isto é, o que os dois séculos passados trouxeram de significativo para a construção dos sistemas educacionais que conhecemos? Quais as suas contribuições para a concepção dos modelos que ainda ambicionamos e se encontram em meio ao embate travado entre a esfera teórica e a prática nos ambientes de ensino?
3.1 A institucionalização da educação Como vimos anteriormente, a ascensão do pensamento iluminista na Europa do século XVIII provocou uma nova concepção escolar, predominantemente laica e liberal. Por toda a Europa, sistemas educacionais desvinculados das autoridades eclesiásticas começaram a ser defendidos, como no caso de Portugal, onde o Marques de Pombal , entre outros ataques à ordem dos jesuítas , instituiu a substituição dos colégios religiosos por instituições públicas de ensino. É importante frisar que esse havia sido um século de consolidação de poderes e projetos nacionais na Europa. Os países buscavam fortalecer suas fronteiras e suas economias, e uma parte desses projetos nacionais consistia na criação de modelos educacionais fortes e abrangentes. O caráter assumido pela educação no período é ressaltado por Cambi (1999, p. 398 grifos do original): A escola tornou-se obrigatória (pelo menos em certas ordens e graus), gratuita ou quase, estatal (com algumas exceções, mas que não chegam a anular o papel de controle por parte do Estado sobre todos os tipos de escola): são três aspectos que a colocam na sociedade atribuindo-lhe um papel essencial. Existe ainda o outro aspecto da diferenciação interna, dos muitos tipos de escola, que vem cobrir outra exigência: de reprodução da divisão de trabalho e de reconstrução de classes e grupos sociais.
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Surgiram assim as divisões mais estritas entre as esferas do jardim de infância e dos ensinos fundamental, secundário e superior, bem como o desenvolvimento das escolas politécnicas , que serviam para oferecer formação tecnológica. Entretanto, apesar da elaboração de projetos de ensino universal como o de Louis-Michel le Peletier (1760-1793) para a França Revolucionária , os quais almejavam a formação de crianças de todas as classes sociais, o ensino formal permaneceria relativamente restrito em termos de alcance social até o século XIX. O direito de todos à educação decorria do tipo de sociedade correspondente aos interesses da nova classe que se consolidara no poder: a burguesia... Para superar a situação de opressão, própria do “Antigo Regime”, e ascender a um tipo de sociedade fundada no contrato social celebrado “livremente” entre os indivíduos, era necessário vencer a barreira da ignorância... A escola é erigida, pois, no grande instrumento para converter súditos em cidadãos. (SAVIANI, 1991, p. 18)
Todavia, novos fatores econômicos, políticos e sociais contribuíram para transformar esse cenário. Conforme afirma Cambi (1999, p. 414), esse século seria “[...] bastante rico em modelos formativos, em teorizações pedagógicas, em compromisso educativo e reformismo escolar, em vista justamente de um crescimento social a realizar-se da maneira menos conflituosa possível e da forma mais geral”. Mas qual seria o impulso efetivo para a reestruturação dos modelos pedagógicos tradicionais e a subsequente universalização da educação formal? É importante fazer alguns apontamentos sobre a conjuntura em questão. Delineavam-se, nesse momento, sociedades capitalistas em franco crescimento, nas quais, após a Revolução Francesa e a Revolução Industrial , era possível observar um crescimento do poder representado por uma burguesia ascendente, que havia permanecido à margem no Antigo Regime. Esse poder não era de origem hereditária e divina como o das aristocracias de outrora, mas econômico, e fundamentado na exploração do trabalho, no lucro e na criação de mercados. Entretanto, à medida que os fundamentos aristocráticos do Antigo Regime davam lugar aos mesmos valores liberais que haviam instigado a Revolução Francesa, não se viu uma emancipação das classes menos abastadas. Na esteira da Revolução Industrial foi estabelecida uma nova sociedade e uma nova classe: o proletário. Incumbido a rotinas extremas de tra balho nas fábricas, o indivíduo desse grupo se via desumanizado, alienado, submetido a um distanciamento de qualquer postura reflexiva a respeito de seu trabalho ou dos frutos deste. Diante de condições ruins de trabalho, moradia e alimentação, circulando apenas entre o local de trabalho e o parco repouso, os trabalhadores urbanos do final do século XVIII e do início do século XIX ainda eram privados dos tradicionais aparatos educativos que haviam estado à disposição de classes desprivilegiadas “através da paróquia, da comunidade e do paternalismo” (CAMBI, 1999, p. 371). As condições desumanas que caracterizavam o trabalho na aurora das sociedades industriais seriam melhoradas apenas gradativamente, por meio de movimentos organizados de trabalhadores, que pouco a pouco obteriam uma
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sucessão de pequenas conquistas, de grande impacto em longo prazo, como a restrição da jornada de trabalho. Também é importante compreender que essas sociedades, além de voltadas para a consolidação da economia capitalista e de estarem em busca da compreensão do mundo e do ser humano pela via cientificista, eram profundamente nacionalistas. Na segunda metade do século XIX, os estados italiano e alemão se constituíram ao passarem por processos de unificação. Ocorreram também lutas por independência na América espanhola, e o Brasil emergiu como um Estado independente de Portugal. Diversos pensadores se mobilizaram para teorizar acerca desse estado de coisas, como Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), Mikhail Bakunin (1814-1876) e Karl Marx (1818-1883). Juntamente com Marx, Max Weber (1864-1920) e Émile Durkheim (1858-1917) buscaram compreender os fenômenos envolvidos na trama da sociedade contemporânea, e se converteram em pensadores seminais para as ciências sociais. A busca por compreender fenômenos e sistematizar conhecimentos foi em grande parte influenciada pelo pensamento positivista de Auguste Comte (1798-1857), um filósofo cuja doutrina se baseava em colocar as ciências no primeiro plano, a fim de esclarecer como funcionam a natureza e o ser humano. A via do cientificismo apontava então um caminho para o entendimento do mundo que o conhecimento religioso e a especulação filosófica não haviam ainda fornecido. Figura 1 – Comte, Durkheim e Marx, três autores fundamentais para o pensamento contemporâneo.
Fonte: Wikimedia Commons.
A educação universal que os estados europeus buscavam instituir refletia um mundo em transição. A formação escolar de épocas anteriores havia se dedicado a inculcar uma grade de conhecimentos clássicos – o trivium e o quadrivium das artes liberais – nos estudantes, e apenas equipar um grupo seleto de indivíduos para atividades intelectuais especializadas, valendo-se das universidades. Agora, após anos de contínua experimentação, incluindo as propostas de Comênio, le Peletier e outros, buscava-se estabelecer um regime educacional capaz de produzir cidadãos preparados e produtivos. Conforme sugere Hobsbawn (1990, p. 112): “Os Estados iriam usar a maquinaria de comunicação, crescentemente poderosa, junto a seus habitantes – sobretudo, as escolas primárias – para difundir a imagem e a herança da ‘nação’ e inculcar adesão a ela [...]”. 44 História da Educação
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O aspecto dos nacionalismos se fazia presente no delinear de projetos nacionais, da criação de sistemas educacionais que atendessem às necessidades do país e que formassem os jovens para “construir suas nações”. O sistema de educação prussiano foi um destaque nesse contexto. O ministro da Prússia, Wilhelm von Humboldt (1767-1835), foi o arquiteto de um novo sistema educacional, com a intenção primária de reformar o país após sua derrota nas Guerras Napoleônicas. O sistema prussiano era extremamente focado na disciplina e na relação hierárquica no ambiente escolar, de modo que veio a ser alvo de críticas. Não obstante, sua estrutura básica ainda é observada por muitos sistemas contemporâneos (ARANHA, 2006, p. 201-202). Enquanto avançava o século XIX, o pensamento positivista de Comte estabeleceu uma estreita relação com os projetos nacionais de educação. Positivo designava o conceito de real e se referia ao último estágio ambicionado para o desenvolvimento humano. A educação formal era um dos pilares do pensamento positivista, pois esperava-se que, por meio do processo educacional, o ser humano deveria ser removido do pensamento teológico que caracteriza a infância, avançando para o pensamento racional , que os positivistas situavam como o segundo estágio do desenvolvimento humano e social, ou a fase metafísica. A fase final, ou positiva , seria um arranjo ideal, atingido apenas quando o conhecimento, as liberdades individuais e o bem-estar coletivo se tornassem componentes universalizados da experiência humana. É válido ressaltar que a educação positivista era pautada na disciplina e em uma relação hierárquica entre professores e alunos, abrindo pouco espaço para questionamentos. Podemos dizer que, guardadas outras influências e permanências históricas anteriores, como os colégios jesuíticos e o sistema prussiano, o modelo positivista mantém forte influência sobre o ensino formal contemporâneo. O iluminismo educacional representou o fundamento da pedagogia burguesa, que até hoje insiste, predominantemente na transmissão de conteúdos e na formação social individualista. A burguesia percebeu a necessidade de oferecer instrução, mínima, para a massa trabalhadora. Por isso, a educação se dirigiu para a formação do cidadão disciplinado. O surgimento dos sistemas nacionais de educação, no século XIX, é o resultado e a expressão que a burguesia, como classe ascendente, emprestou à educação. (GADOTTI, 1995, p. 90)
A expansão dos sistemas educacionais estava em vias de torná-los efetivamente públicos, embora certamente permanecessem ainda resquícios elitistas no modo como as instituições eram gerenciadas, tais como o ensino de aspectos das artes liberais de outrora. A chegada do século XX traria novos conflitos, ao marcar as disputas entre dois campos pelo domínio da educação pública: as tendências conservadoras e as tendências progressistas.
3.2 Tendências pedagógicas conservadoras da educação O pensamento pedagógico do século XX foi caracterizado principalmente por seguir uma linha de ação liberal , o que quer dizer que se voltou predominantemente para a História da Educação
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preparação do indivíduo para a integração no mundo social – especialmente sua aplicação como agente produtivo na esfera do trabalho. É possível notar, então, desde já, um distanciamento dos modelos educacionais mais antigos, que buscavam o desenvolvimento da erudição ou a adequação a um ideal elevado de humanidade. Ora mais conservadoras, ora renovadas, as tendências pedagógicas da contemporaneidade recente buscam amplamente encontrar maneiras de preparar o jovem para o mundo ou introduzi-lo neste. Esse ensino tradicional que ainda predomina hoje nas escolas se constituiu após a revolução industrial e se implantou nos chamados sistemas nacionais de ensino, configurando amplas redes oficiais, criadas a partir de meados do século passado, no momento em que, consolidado o poder burguês, aciona-se a escola redentora da humanidade, universal, gratuita e obrigatória como um instrumento de consolidação da ordem democrática. (SAVIANI, 1991, p. 54)
A ideia de que a escola era vista como “redentora universal”, uma percepção já exposta por Comênio no século XVII, conduzida agora a uma escala governamental, é fundamental para compreender esse contexto. Não apenas a sociedade europeia do século XIX era fundamentalmente burguesa e voltada para a elevação da produtividade e ampliação do capital, como era uma sociedade que havia deslocado o foco de suas expectativas de ideias de matriz espiritual e moral para o predomínio da tecnologia e da ciência, encantada com os avanços dos transportes, das comunicações, da arquitetura e da medicina. Tratava-se de uma sociedade essencialmente positivista. O florescimento do pensamento positivista permitiu que se teorizasse amplamente a centralidade do papel da educação na composição da malha social, embora, como aponta Durkheim (2011, p. 75-76), tenha sempre existido um descompasso entre a educação de uma época e a Pedagogia que ela produz. Com base nisso, a Pedagogia constitui o pensamento teórico a respeito do ensinar, enquanto a educação se apresenta como um aspecto prático do ensinar, que pode inclusive se mostrar oposto ao pensamento pedagógico vigente. O autor observou que a educação de uma determinada época, além de teorizações mais elevadas, buscava parâmetros para seus jovens com base naquilo que é mais valorizado pelo conjunto social, de modo que enquanto a educação espartana tinha o objetivo de produzir indivíduos endurecidos, a educação da conjuntura em que vivia Durkheim – a passagem do século XIX para o XX – visava “à higiene” e se preocupava “em conter os perigos de uma cultura intelectual demasiado intensa” (DURKHEIM, 2011, p. 113). Se a educação e a cultura intelectual cederam lugar a algo, foi à aprendizagem pelo condicionamento. Com base nos experimentos de Ivan Pavlov (1849-1936), pensadores estadunidenses como John B. Watson (1878-1958) e B. Frederich Skinner (1904-1990) desenvolveram uma corrente de estudos no campo da psicologia conhecida como behaviorismo. O behaviorismo parte do princípio de que é possível obter resultados concretos em práticas educativas, valendo-se de uma rotina de estímulo e resposta.
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Figura 2 – Ivan Pavlov, John B. Watson e Burrhus Frederic Skinner.
Fonte: Wikimedia Commons.
Conforme esse modelo de aprendizagem, cabe ao professor aplicar atividades que incentivem a memorização e arbitrar se a resposta do aluno é correta ou incorreta. Respostas corretas são recompensadas com algum tipo de reforço positivo, enquanto respostas incorretas resultam em alguma forma de repreensão. Não há espaço para questionamentos sobre a natureza das atividades propostas e o aluno apenas reage quando lhe é aberto espaço para tal. A importância da atribuição de notas no modelo educacional pode ser interpretada como um reforço de comportamento behaviorista. O modelo behaviorista é um exemplo de tendência pedagógica conservadora, posto que não instiga uma prática pedagógica amplamente participativa e é caracterizado por uma disposição vertical e de mão única do conhecimento – isto é, do professor para o aluno. Nesse respeito, o behaviorismo estadunidense não era o único. As propostas estatais de educação da França e da Inglaterra preconizavam a importância de um ensino laico, intelectualista e disciplinador. A proposta do alemão Johann F. Herbart (1776-1841), por sua vez, era baseada nos princípios de governo (o domínio dos docentes sobre as crianças), instrução (a prática intelectual de ensino) e disciplina (a autodeterminação da criança a manter-se no caminho para a educação) (ARANHA, 2006, p. 212). Herbart (apud HILGENHEGER, 2010, p. 57) afirmou que “a educação em geral conhece o que se pode chamar coação. É certo que a educação nunca é dura , mas frequentemente muito severa”, sugerindo que coagir os alunos, isto é, impor o governo, é fundamental para criar um ambiente propício à aprendizagem, e que esse rigor é a base da formação intelectual e moral. Essas propostas, às quais frequentemente nos referimos como pedagogias tradicionais , deixaram um significativo legado para as práticas pedagógicas amplamente aceitas atualmente. Conforme afirma Saviani (1991, p. 18),
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Séculos XIX e XX: a educação para o trabalho e para a democracia Como as iniciativas cabiam ao professor, o essencial era contar com um professor razoavelmente bem preparado. Assim, as escolas eram organizadas em forma de classes, cada uma contando com um professor que expunha as lições que os alunos seguiam atentamente e aplicava os exercícios que os alunos deveriam realizar disciplinadamente.
O modelo tradicional herbartiano a que se refere Saviani caracteriza-se então pela sistematização espacial da própria escola e pelo investimento de uma autoridade clara à figura do professor, exigindo-se dos alunos o exercício da vontade , o esforço fundamental para alcançar o conhecimento. As crianças, supunha Herbart, não têm naturalmente o ímpeto para aprender, pois não são inclinadas normalmente à assimilação, de modo que a vontade precisava ser exercitada. Esse modelo, explica Saviani (1991, p. 55), tem base na metodologia da aula expositiva , uma presença marcante no sistema educacional tradicional, pensada por Herbart e pautada em cinco passos: Esses passos, que são o passo da preparação, o da apresentação, da comparação e assimilação, da generalização e da aplicação, correspondem ao método científico indutivo, tal como fora formulado por Bacon, método que podemos esquematizar em três momentos fundamentais: a observação, a generalização e a confirmação. Trata-se, portanto, daquele mesmo método formulado no interior do movimento filosófico do empirismo, que foi a base do desenvolvimento da ciência moderna. (SAVIANI, 1991, p. 55)
Percebemos, assim, como o clima favorável às ideias positivistas entre os séculos XIX e XX foi fundamental para a consolidação da pedagogia tradicional. A concepção de que as ciências se apresentariam como redentoras e transformadoras da sociedade infundiu o pensamento educativo. A estruturação dos espaços escolares e a clara divisão e institucionalização das atribuições de professores e alunos são expressões da ideia de que uma educação gerida como política de estado formaria uma sociedade forte. Entretanto, o pensamento pedagógico tradicional não se desenvolveu sem oposições de outros círculos teóricos. O século XX traria a infusão de novas ideias para o meio educacional, introduzindo metodologias mais participativas, menos rígidas em termos de organização/institucionalização ou preocupadas em desenvolver competências reflexivas nos estudantes, conforme veremos a seguir.
3.3 Tendências progressistas da educação Muitos pensadores emergiram no século XX e propuseram visões renovadas de educação, em oposição à pedagogia tradicional. Eventualmente, essa caminhada resultou no estabelecimento de linhas pedagógicas progressistas. Porém, o que isso significa efetivamente? De acordo com os pensadores que estudaremos aqui, importa considerar quatro pontos principais: 1. O aluno é um sujeito no processo de aprendizagem. Seu posto não é meramente o de receptor de verdades por parte do professor. Com efeito, se o aluno não consegue extrair sentido das atividades realizadas, o processo é falho. 48 História da Educação
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2. A criança não é um adulto, não pensa como um e suas capacidades de assimilação e compreensão devem ser respeitadas, sendo contraproducente forçar ao aluno um modo de pensar essencialmente adulto, independentemente de sua faixa etária. 3. A experiência constitui uma forma de aprendizagem mais significativa que a memorização, à medida que o conhecimento resultante da experiência é reconhecível pelo sujeito da aprendizagem como algo que integra sua vida, muito mais significativo que construções conceituais mais densas e difíceis de manusear para mentes mais jovens. 4. A educação não é algo apenas para o indivíduo, tampouco é feita apenas pelo indivíduo e por meio de seus ímpetos, mas se desenvolve e encontra seu propósito maior nas relações entre o indivíduo e a sociedade. Entre outros pensadores de visão reformista, em conformidade com os pontos apresentados, o suíço Adolphe Ferrière (1879-1960) foi um pioneiro da educação progressista e fundador do movimento da Escola Nova em 1921. Sua proposta parecia certamente inovadora em contraste com a estrutura institucionalizada nas salas de aula tradicionais. Distante da proposta intelectualista e disciplinadora de Herbart, Ferrière propunha que a criança tivesse liberdade para assimilar o conhecimento pela via da exploração, e que desenvolvesse sua criatividade com base em atividades práticas. Sua abordagem envolvia: Observar a criança, despertar nela as suas curiosidades, esperar que o interesse a leve a formular perguntas, ajudá-la a achar-lhes a resposta; gastar poucas palavras e apresentar muitos factos, fazer observar ao vivo, analisar, experimentar, fabricar, colecionar: deixar à criança a liberdade da palavra e da acção na medida compatível não com uma certa ordem aparente, mas com o trabalho real [...]. (FERRIÈRE, 1934, p. 191)
Outros pensadores, de uma linha semelhante, posicionaram-se mais ou menos contra o modelo estabelecido no século XIX. O estadunidense John Dewey (1859-1952) foi um dos primeiros a tecer uma crítica das propostas tradicionais de Herbart. Dewey foi um filósofo que atuou em muitas áreas, incluindo teoria social, estética e epistemologia, tornando-se especialmente conhecido como um grande pensador das reformas educacionais do século passado. Para Dewey, a criança em processo de aprendizagem não era uma folha em branco ou um indivíduo em estado selvagem a ser domesticado, incapaz de reagir ao ensino, rece bendo informações e condicionamentos, apenas. Para o autor, visto que “a ação deve ser inteligente e refletida, e o pensamento deve ocupar uma posição central na vida” (DEWEY, 2008, p. 130), não cabia estimular processos de memorização e protocolos, mas estabelecer um ambiente que propiciasse o desenvolvimento da reflexão. Com efeito, para Dewey (1959, p. 179-180), é importante, [...] primeiro, que o aluno esteja em uma verdadeira situação de experiência – que haja uma atividade contínua a interessá-lo por si mesma; segundo, que um verdadeiro problema se desenvolva nesta situação como um estímulo para o ato de pensar; terceiro, que ele possua os conhecimentos informativos necessários para agir nessa situação e faça as observações necessárias para o mesmo fim;
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Séculos XIX e XX: a educação para o trabalho e para a democracia quarto, que lhe ocorram sugestões para a solução e que fique a cargo dele desenvolvê-las de modo bem ordenado; quinto, que tenha oportunidades para pôr em prova suas ideias, aplicando-as, tornando-lhes clara a significação e descobrindo por si próprio o valor delas. (DEWEY, 1959, p. 179-180)
O aprendizado concebido dessa forma não descreve uma linha vertical emanando do professor para o aluno, mas compreende uma troca constante de estímulos e respostas, na qual é fundamental “[...] o processo de reconstrução e reorganização da experiência, pelo qual lhe percebemos mais agudamente o sentido, e com isso nos habilitamos a melhor dirigir o curso de nossas experiências futuras” (DEWEY, 1978, p. 17). Como podemos perceber, o componente da experiência é um eixo crítico da aprendizagem para Dewey, bem como para outros pensadores de viés progressista, como Célestin Freinet (1896-1966): A experimentação, sempre que isso for possível, que pode ser tanto observação, comparação, controle, quanto prova, pelo material escolar, dos problemas que a mente se formula e das leis que ela supõe ou imagina. A criação, que, partindo do real, dos conhecimentos instintivos ou formais gerados pela experimentação consciente ou inconsciente, se alça, com a ajuda da imaginação, a uma concepção ideal do devir a que ela serve. (FREINET, 1998, p. 354)
Em contraposição ao princípio tradicional da fixação de informações pelas vias de memorização e quantificação dos objetos, propostas fundamentadas na experiência pressupõem que o contato direto com o objeto de aprendizagem, por meio de práticas críticas e criativas proporcionam um conhecimento mais relevante e estimulam a reflexividade. O aspecto da experiência também foi reforçado por Jean Piaget (1896-1989), que coloca o indivíduo em processo de aprendizagem como sujeito , o qual tem de equilibrar seus conhecimentos prévios com aquilo que lhe é proposto de novo, acomodando e assimilando esses saberes. O papel do professor nesse processo é predominantemente o de gerar tensão, pautando-se naquilo que o aluno conhece e, com isso, promover meios de estimular o repensar. Com efeito, a inteligência é assimilação na medida em que incorpora nos seus quadros todo e qualquer dado da experiência. Quer se trate do pensamento que, graças ao juízo faz ingressar o novo no conhecido e reduz assim o universo às suas noções próprias, quer se trate da inteligência sensório-motora que estrutura igualmente as coisas percebidas, integrando-as nos seus esquemas, a adaptação intelectual comporta, em qualquer dos casos, um elemento de assimilação, isto é, de estruturação por incorporação da realidade exterior a formas devidas à atividade do sujeito. (PIAGET, 1975, p. 17)
Muito além da experiência, era fundamental, entre pensadores de viés reformador/ progressista, compreender que há diversos estágios de desenvolvimento, e que estes devem ser respeitados, não se forçando a criança a acolher conhecimentos que não correspondem as suas capacidades por serem demasiado complexos e/ou abstratos. O médico francês Henri Wallon (1879-1962) buscou explicar a psicologia infantil ao refletir acerca do processo educativo. Tal como Dewey, o pensador francês salientou que não cabia negociar conhecimentos com os alunos que ainda não se encontravam numa faixa etária correspondente 50 História da Educação
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à assimilação eficaz desses conhecimentos, afirmando que “cada idade da criança é como um estaleiro onde certos órgãos asseguram a atividade presente, enquanto edificam massas importantes que só terão a sua razão em idades ulteriores” (WALLON, 1995, p. 50). O autor frisou quão grande era o descompasso entre o que se esperava da criança em termos de aprendizado, diante do que ela era capaz de assimilar: Numa época em que o domínio das ciências e das técnicas se torna cada vez mais a condição do progresso social, submeter a aquisição deste às invenções de que a criança é capaz parece uma distância desproporcionada entre as suas capacidades espontâneas e o imenso patrimônio social que lhe competirá fazer prosperar. (WALLON, 1975, p. 232-233)
O meio social , portanto, deve ser sempre um fato relevante no processo educacional. É, afinal de contas, para a vida em sociedade que o indivíduo é educado. O pensador soviético Lev Vygotsky (1896-1934) afirmava, com efeito, que é por meio das interações com a sociedade que o indivíduo adquire muitos de seus saberes e conhecimentos, tornando-se humanizado à medida que convive e empreende trocas com outros indivíduos. “Assim, o aprendizado é um aspecto necessário e universal do processo de desenvolvimento das funções psicológicas culturalmente organizadas e especificamente humanas” (VYGOTSKY, 1998, p. 118). O ser humano, portanto, define-se no aprendizado e na assimilação de propriedades culturais e intelectuais, o que faz com base nas ferramentas que recebe com o passar do tempo, como símbolos e palavras. Figura 3 – Da esquerda para a direita: Henri Wallon, Jean Piaget, Lev Vygotsky, Célestin Freinet e John Dewey.
Fonte: Wikimedia Commons.
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As ideias expostas por esse grupo de pensadores, embora passíveis de contestações e reformulações posteriores, revelaram-se cruciais para o desenvolvimento de uma visão mais participativa da educação contemporânea. As suas muitas contribuições ainda são relevantes e estabeleceram as fundações para o trabalho das correntes pedagógicas vigentes, como veremos a seguir.
Ampliando seus conhecimentos No texto abaixo, Henri Wallon comenta sobre a inadequação de um modelo educativo centrado nos adultos, posto que o sistema educativo se dirige, em essência, para a formação dos jovens. O processo educativo, comenta o autor, deve ser desenvolvido em conformidade com os interesses e habilidades vigentes em cada estágio de aprendizagem.
A criança e o adulto, de Henri Wallon (apud GRATIOT-ALFANDÉRY, 2010, p. 43-45)
Para a criança, só é possível viver sua infância. Conhecê-la compete ao adulto. Contudo, o que irá predominar nesse conhecimento, o ponto de vista do adulto ou o da criança. Se o homem sempre começou colocando-se a si mesmo em seus objetos de conhecimento, atribuindo a estes uma existência e uma atividade conformes à imagem que tem das suas, o quanto essa tentação não deve ser forte quando se trata de um ser que vem dele e deve tornar-se semelhante a ele – a criança, cujo crescimento ele vigia, guia e a quem muitas vezes lhe parece difícil não atribuir motivos ou sentimentos complementares aos seus. Para seu antropomorsmo espontâneo, quantas oportunidades, quantos pretextos, quantas aparentes justicativas! Sua solicitude é um
diálogo em que ele completa as respostas que não obtém mediante um esforço de intuitiva simpatia, em que interpreta os menores indícios, em que acredita poder preencher manifestações lacunares e inconsistentes remetendo-as a um sistema de referências, feito de quê? Dos interesses que ele sabe serem os da criança e em relação aos quais lhe empresta uma consciência mais ou menos obscura, das predestinações cuja promessa gostara de conrmar nela, dos hábitos, conveniências mentais ou sociais com as quais ele mesmo se identicou em maior ou menor medida, e
também das lembranças que imagina ter guardado de sua própria infância. Sabemos, porém, que nossas primeiras lembranças variam com a idade em que são evocadas, e que toda lembrança trabalha em nós sob a
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inuência de nossa evolução psíquica, de nossas disposições e das situações.
A menos que esteja solidamente inserida num complexo de circunstâncias objetivamente identicáveis, o que raramente ocorre quando sua origem é
infantil, é muito mais provável que uma lembrança seja à imagem do presente e não do passado. É assim, assimilando-a a si, que o adulto pretende penetrar a alma da criança. Contudo, embora reconheça diferenças entre si mesmo e a criança, ele as reduz em geral a uma subtração: elas são de grau ou quantitativas. Comparando-se à criança, ele a vê relativa ou totalmente inapta em presença das ações ou das tarefas que ele consegue executar. É claro que essas inaptidões podem dar lugar a medidas que, adequadamente combinadas, poderão pôr em evidência proporções e uma conguração psíquica dife rentes na criança e no adulto. Nesse sentido, ganharão uma signicação
positiva. Mas nem por isso, a criança deixa de ser uma simples redução do adulto. A subtração pode, contudo, se dar de maneira mais qualitativa se as sucessivas diferenças de aptidões que a criança apresenta forem reunidas em sistemas e se for possível atribuir um período determinado do crescimento a cada sistema. Nesse caso, pode-se falar de etapas ou estágios a cada um dos quais corresponderá certo lote de aptidões ou de características que a criança deve adquirir para se tornar adulta. O adolescente seria o adulto amputado do estágio mais recente de seu desenvolvimento e assim por diante, remontando de idade em idade até a primeira infância. Mas, por mais especícos que os efeitos próprios de cada etapa possam
parecer, não deixam de ser, nessa hipótese, características que se somam a outras para realizar o adulto; e a progressão continua sendo essencialmente quantitativa. O egocentrismo do adulto pode enm se manifestar por sua convicção de que toda evolução mental tem por m inelutável seus próprios modos
de sentir e de pensar, os de seu meio e de sua época. Por outro lado, caso aconteça de ele reconhecer que os modos da criança são especicamente
diferentes dos seus, não lhe resta outra alternativa senão considerá-los uma aberração. Aberração constante, sem dúvida, e nesse sentido tão necessária, tão normal quanto seu próprio sistema ideológico; aberração cujo mecanismo é preciso demonstrar. [...] Outra atitude poderia constituir em observar a criança em seu desenvolvimento, tomando-a como ponto de partida, em segui-la no curso de suas sucessivas idades e em estudar os estágios correspondentes, sem
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Séculos XIX e XX: a educação para o trabalho e para a democracia submetê-los à censura prévia de nossas denições lógicas. Para quem
olha cada um em sua totalidade, a sucessão deles parece descontínua; a passagem de um para o outro não é uma simples amplicação, mas
um remanejamento; atividades preponderantes no primeiro são aparentemente reduzidas ou às vezes suprimidas no seguinte. Entre os dois, muitas vezes parece abrir-se uma crise que pode afetar visivelmente a conduta da criança. Portanto, conitos pontuam o crescimento, como se
fosse preciso escolher entre um tipo antigo e um tipo novo de atividade. A atividade que se vê submetida à lei da outra tem de se transformar, perdendo em seguida seu poder de reger de maneira útil o comportamento do sujeito. Mas o modo como o conito se resolve não é absoluto nem
necessariamente uniforme em todos os sujeitos, E deixa em cada um a sua marca. [...]
Atividades 1. Quais foram as características conjunturais que moldaram a educação nos séculos XIX e XX?
2. Como podemos caracterizar a educação tradicional proposta por pensadores como Herbart? Em que sentido ela é fruto de sua época?
3. O que caracteriza fundamentalmente uma visão progressista de educação? 4.
O médico francês Henri Wallon teve grande inuência no pensamento educacional
do século XX, ao propor um modelo educacional correspondente à faixa etária dos estudantes. O que o autor propõe no excerto de A criança e o adulto? Em suas propostas, ele concorda com outros autores de sua época?
Referências ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da educação e da Pedagogia – Geral e Brasil. 3 ed. São Paulo: Moderna, 2006. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. São Paulo: Brasiliense, 2006. CAMBI, Franco. História da Pedagogia. São Paulo: FEU, 1999. DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Nova Cultural, 1987. DEWEY, John. Democracia e educação. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959. ______. Vida e educação. São Paulo: Melhoramentos; Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Material Escolar, 1978.
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Resolução 1. O século XVIII havia visto a aurora da era do pensamento iluminista e do liberalismo econômico que elevou a burguesia ao poder na Europa. Nesse contexto, de grande desenvolvimento econômico e tecnológico, o objetivo era também padronizar o processo educativo, a educação sendo concebida como política de Estado e havia a pretensão de que fosse estabelecida uma escola laica e capaz de incutir os princípios da razão e da disciplina nos jovens, a m de formar cidadãos produtivos. Competia
também com esse cenário a ascensão do pensamento positivista, o qual colocava a ciência como grande redentora da humanidade.
2. A educação tradicional consiste de um arranjo cujas bases foram estabelecidas ainda no século XVII, no modelo prussiano, que se tornaria, após a unicação alemã, uma
política de estado rigorosa e bem organizada. Nesse sistema, era reconhecida a divisão das turmas segundo a série, às quais correspondiam faixas etárias especícas, cada
turma tendo seu próprio professor. Os alunos eram apenas receptores, e o professor expunha os conteúdos por meio do método expositivo, o qual consiste em cinco passos: preparação, apresentação, comparação e assimilação, generalização e aplicação. Esses passos mimetizam o processo cientíco, conforme compreendido na época, e
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expressam a primazia do pensamento positivista traduzido para o meio educacional.
3. Primeiramente, o aluno é um sujeito no processo de aprendizagem. Seu posto não é meramente o de receptor de verdades por parte do professor. Se o aluno não consegue extrair sentido das atividades realizadas, o processo é considerado falho. Considera também que a criança não pensa como um adulto e suas capacidades de assimilação e compreensão devem ser respeitadas, sendo contraproducente forçar ao aluno um modo de pensar essencialmente adulto independentemente de sua faixa etária. A experiência constitui uma forma de aprendizagem mais signicativa que a memo -
rização, à medida que o conhecimento resultante da experiência é reconhecível pelo sujeito da aprendizagem como algo que integra sua vida, o que representa muito mais que construções conceituais mais densas e difíceis de “manusear” para mentes mais jovens. Por m, a educação não é algo apenas para o indivíduo, tampouco é fei ta apenas pelo indivíduo e valendo-se de seus ímpetos, mas se desenvolve e encontra seu propósito maior nas relações entre o indivíduo e a sociedade.
4. Conforme argumenta Wallon, “Para a criança, só é possível viver sua infância” (2007, p. 9), ou seja, é fundamental respeitar cada estágio de desenvolvimento humano, considerando, para ns de ensino e aprendizagem, os conceitos rele vantes e compreensíveis para a faixa etária especíca. Como argumenta o autor: “O egocentrismo do adulto pode enm se manifestar por sua convicção de que toda evolução mental tem por m inelutável seus próprios modos de sentir e de
pensar, os de seu meio e de sua época”. O pensamento de Wallon encontrava eco no de outros pensadores progressistas do século XX, como Piaget e Vygotsky, que salientavam a importância de uma proposta de educação que faça sentido para os sujeitos do processo.
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4 Século XXI: globalização, novas mídias e diversidade
Introdução A institucionalização dos sistemas educacionais ocorreu gradualmente. Podemos identificar diversas permanências históricas nos ambientes escolares, metodologias e posturas relativas ao ensinar. No entanto, parece seguro que a organização escolar tenha se configurado majoritariamente com a chegada da contemporaneidade, entre os séculos XVIII e XIX, consolidando-se e ramificando-se no XX. Ao longo desse período, constituiu-se o espaço da sala de aula, sua hierarquia e um conjunto de expectativas sociais em torno do processo educativo. A escola, outrora um espaço reservado para a formação erudita dos setores aristocráticos, converteu-se no lócus da educação universal, onde, expressando-se a ambição de Comênio, seria possível ensinar tudo a todos. No entanto, apesar de todos os esforços políticos e elaborações teóricas, houve muitas complexidades estruturais envolvidas na ampliação da educação para o maior número possível de pessoas. A questão do conteúdo – isto é, “o que ensinar” – preservou-se controversa enquanto estava em debate o tipo de ser humano que se buscava formar para o mundo, mas talvez mais controversa tenha sido a questão da metodologia – o “como ensinar”. Enquanto os defensores de uma pedagogia tradicional – como o alemão Johann Herbart – preconizavam a importância de um ambiente rígido, disciplinador e hierárquico para o aprendizado efetivo, proponentes de linhas progressistas – como a Escola Nova, de Adolphe Ferrière – pediam por um ambiente que respeitasse as necessidades especiais de aprendizado do indivíduo conforme sua faixa etária e sua experiência prévia. História da Educação
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Século XXI: globalização, novas mídias e diversidade
A chegada do século XX introduziu novos componentes à problemática da organização educacional. A emergência de tecnologias comunicacionais poderosíssimas ampliou o poder de transmitir conhecimento, mas também deixou claro o frequente descompasso entre o modelo educacional vigente e a disponibilidade de saberes. A questão da diversidade, cada vez mais visível, deve ser abordada de forma compreensiva, respeitosa e inclusiva. Esses dois pontos – a diversidade e o caráter inescapável da tecnologia – evidenciam a complexidade do cenário atual, de um mundo cada vez mais integrado e de fronteiras difusas, que faz surgir inúmeros desafios para os educadores contemporâneos.
4.1 Educação e globalização Em certo sentido, vivemos em um mundo progressivamente mais integrado. Nos referimos a essa dinâmica de integração como globalização , isto é, um suposto encurtamento das distâncias, ou a diminuição de fronteiras pelo globo. Novos meios de transporte facilitaram o deslocamento por grandes distâncias e a internet permite que nos comuniquemos de forma mais ágil e em uma escala sem precedentes, possibilitando também a difusão de informações e de bens de consumo. Entretanto, não se pode dizer que esse nível de integração foi capaz de apagar as desigualdades entre diferentes recantos do planeta. Com efeito, a globalização acabou por tornar ainda mais visíveis essas contradições. Mas como se caracteriza e quando começa esse processo? Mais importante: quais são seus efeitos sobre a educação? Quando as potências marítimas europeias do século XVI se lançaram ao mar, buscando ouro, especiarias, escravos e terras, teve início o ciclo das Grandes Navegações. A procura incessante por riquezas e pela consolidação das monarquias pôs em marcha um expediente de trocas materiais e culturais, o que ganhou intensidade à medida que colônias europeias eram fundadas nas Américas, na Ásia e na África. O desenvolvimento do modo de produção capitalista e o pensamento econômico liberal emergiram do processo histórico subsequente. Grandes potências se constituíram nessa dinâmica, na Europa, nos EUA e no Japão. Esses países se tornaram potências industriais enquanto outros erigiam suas economias em torno da produção de matérias-primas para o mercado exportador e permaneciam sempre em atraso em relação aos primeiros nos quesitos de desenvolvimento tecnológico e social. No século XX, os mercados internacionais integravam os mais remotos lugares do mundo de maneira sem precedentes, mas isso não significava o fim das igualdades entre os diferentes jogadores no campo mundial. Ao contrário, a expansão da economia de consumo muito além de todas as fronteiras acabou por tornar ainda mais evidente o descompasso entre os países desenvolvidos e aqueles em desenvolvimento. Atualmente, valendo-se de meios de incrível alcance, como a ficção audiovisual e a publicidade veiculadas via televisão, cinema e internet, indivíduos que vivem em países economicamente periféricos vislumbram os padrões de consumo do mundo industrializado, embora frequentemente não possam acessar os bens relacionados a esses padrões de consumo. Assim,
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Século XXI: globalização, novas mídias e diversidade
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A globalização criou novas conexões internacionais entre os Estados Nacionais e o processo capitalista de acumulação global. Progressivamente, o Estado Nacional foi internacionalizado. Esta internacionalização foi (e continua sendo) a internacionalização de novas obrigações ou funções que são impostas por esse processo. (ROMÃO, 2008, p. 117)
Diante desse mundo de redes intensamente imbricadas e uma abundância de imaginários e estímulos, a educação enfrenta uma série de desafios, dos quais o mais complexo parece ser pensar a identidade e a autonomia diante das forças que cooperam para uma conjuntura de homogeneização da cultura e subserviência econômica. Essa dinâmica afeta a educação seriamente, pois, embora os parâmetros do que se considera uma educação de qualidade sejam internacionalizados, nem todos os países têm as mesmas condições para estruturar seus ambientes educacionais e equipá-los, ou para preparar seus professores. Os desejos são globais, mas as condições para sua concretização são locais. Como então criar um ambiente de aprendizagem significativo em um mundo tão virtualmente expandido e tornar ainda assim relevante a esfera do local? Gadotti (2000, p. 4), pedagogo brasileiro que escreveu extensivamente sobre os desafios da educação contemporaneidade, aponta a importância de não perder de vista os avanços representados pelo pensamento educacional progressista. Enraizada na sociedade de classes escravista da Idade Antiga, destinada a uma pequena minoria, a educação tradicional iniciou seu declínio já no movimento renascentista, mas ela sobrevive até hoje, apesar da extensão média da escolaridade trazida pela educação burguesa. A educação nova, que surge de forma mais clara a partir da obra de Rousseau, desenvolveu-se nesses últimos dois séculos e trouxe consigo numerosas conquistas, sobretudo no campo das ciências da educação e das metodologias de ensino. O conceito de “aprender fazendo” de John Dewey e as técnicas de Freinet, por exemplo, são aquisições definitivas na história da pedagogia. Tanto a concepção tradicional de educação quanto a nova, amplamente consolidadas, terão um lugar garantido na educação do futuro.
Como argumenta Moacir Gadotti, esforços estatais empreendidos no sentido de imaginar uma educação globalizada datam já de algumas décadas. No início da segunda metade deste século, educadores e políticos imaginaram uma educação internacionalizada, confiada a uma grande organização, a Unesco. Os países altamente desenvolvidos já haviam universalizado o ensino fundamental e eliminado o analfabetismo. [...] A tese de uma educação internacional já existia desde 1899, quando foi fundado, em Bruxelas, o Bureau Internacional de Novas Escolas, por iniciativa do educador Adolphe Ferrière. (GADOTTI, 2000, p. 4-5)
Conforme vimos no capítulo anterior, Ferrière, fundador da Escola Nova, desempenhou um papel importante na constituição de um pensamento educacional progressista, que colaboraria para uma concepção mais ampla de educação que aquela defendida por pedagogos tradicionais, favorecendo o exercício da curiosidade e o estímulo à busca ativa pelo
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Século XXI: globalização, novas mídias e diversidade
conhecimento entre os alunos, abrindo-se espaço para a experimentação e para a criação no espaço escolar (FERRIÈRE, 1934, p. 191). Figura 1 – Adolphe Ferrière (1879-1960).
Fonte: Wikimedia Commons.
À medida que esses sistemas nacionais de educação se sedimentaram, avanços notáveis na democratização do ensino foram observados em vários lugares. “Como resultado, tem-se hoje uma grande uniformidade nos sistemas de ensino. Pode-se dizer que hoje todos os sistemas educacionais contam com uma estrutura básica muito parecida” (GADOTTI, 2000, p. 5). Assim, relativas melhorias foram percebidas no tocante à efetividade da aprendizagem e à organização dos ambientes escolares. Assombrava, todavia, e continua a assombrar a educação globalizada, o descompasso nas experiências de desenvolvimento dos diferentes estados ao redor do globo. À parte todos os projetos e políticas públicas colocados em ação, a predominância de relações mercadológicas internacionalizadas, sobre as quais se observa pouca regulação, faz com que nem o domínio do Estado nem a internacionalização sejam realmente efetivos. É claro que o papel de cada Estado era (e continua sendo) determinado pelas lutas entre as forças localizadas no interior de cada formação social. Depois dos anos noventa, tornou-se impossível cumprir aquele papel sem prestar atenção à produção e às finanças internacionais. É que, nem o Estado Nacional pode manter ou desenvolver sua capacidade para resistir às pressões do capital “globalizado”, nem foi possível construir ainda um consenso internacional sobre uma regulação transnacional dos mercados capitalistas. (ROMÃO, 2008, p. 116-117)
Assim, é importante que tenhamos ciência de todas as complexidades em torno do processo da globalização. Seria simplista pressupor que este consiste de uma integração equânime entre recantos afastados da Terra e que seus efeitos sobre os sistemas nacionais de educação são estritamente positivos, pelo fato de ampliar o acesso a bibliografias e métodos. Acometidos por problemáticas específicas, desiguais em termos de economia e aparatos 60 História da Educação
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tecnológicos e marcados por distinções culturais notáveis, diferentes países não se adaptam da mesma forma aos mesmos modelos. Países menos desenvolvidos podem ativamente buscar se adequar a esses modelos, assim como podem ceder a pressões de parceiros de mercado e de órgãos financeiros internacionais, por exemplo, sem que as diretrizes aplicadas sejam devidamente assimiladas ou produzam resultados satisfatórios. Desse modo, mais que uma força positiva para a democratização do conhecimento, a globalização se apresenta como uma força de homogeneização, “não como princípio de justiça social, mas apenas como parâmetro curricular comum” (GADOTTI, 2000, p. 5). Quando não são considerados os fatores locais na formação dos indivíduos, é possível teorizar, a escolarização perde parte de seu significado ao impor valores artificiais, mecânicos e ocasionalmente incompreensíveis para os alunos. Nos deparamos, assim, com um problema que reside no seio das políticas de ampliação e difusão dos processos educativos: a homogeneização que pode vir da padronização. Tal como os sistemas educacionais ocidentais necessitaram de séculos para repensar sua função e transitar do aparato oficial necessário à formação erudita de um grupo seleto de indivíduos privilegiados para o ensino “de tudo a todos”, não se pode esperar que a transição de perspectivas educacionais regionais para uma educação global ocorra sem conflitos e sérios efeitos negativos, especialmente para países menos equipados e com menos condições de implementar melhorias efetivas. Em todo caso, os processos decorrentes da globalização são demasiado poderosos para serem desprezados, e é fundamental compreendê-los para avaliar seus efeitos, assim como para analisar as práticas educacionais locais face o cenário mais amplo, tal como buscamos compreender contribuições históricas, a fim de pensar um futuro educacional mais inclusivo e abrangente.
4.2 Educação e novas mídias Uma das características preponderantes da cultura contemporânea é o alcance e a variedade das novas mídias. O advento do cinema ao final do século XIX revelou-se uma mudança crucial na forma das sociedades industrializadas vislumbrarem o mundo, algo que se intensificou com o surgimento da televisão no século XX. A emergência da internet e sua difusão massiva entre a década de 1990 e os anos 2000 constituiu ainda outra revolução estética e comunicacional, cujo alcance e influência não podem ser subestimados. Obviamente que, ao menos nas regiões do mundo onde tal é permitido pelas condições materiais, esses bens culturais constituem um fator decisivo na formação da visão de mundo dos indivíduos. Músicas, filmes, jogos eletrônicos e séries televisivas são amplamente propagados atualmente, ainda que em condições técnicas precárias, ou até mesmo ilegais, e o pensamento educacional do século XX em diante tem mantido uma relação de idas e vindas com essas manifestações. Tais desenvolvimentos devem ser compreendidos como parte da complexa relação humana com o desenvolvimento tecnológico. A história das invenções e dos melhoramentos História da Educação
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técnicos reflete uma narrativa maior sobre o que estimula e repercute a partir desses processos. Conforme David E. Nye (1998, p. 3) argumenta: “Tecnologias são parte de um diálogo entre seres humanos sobre suas diferentes percepções. Este diálogo toma a forma de narrativas, diferentes histórias que contamos um ao outro para dar sentido às transformações que acompanham a adoção de novas máquinas”. Os seres humanos diferem, nessa medida, de outros animais, por estarem atrelados, enquanto espécie, a uma trajetória de desenvolvimentos técnicos, que tornam a vida mais confortável. Esse pensamento pode ser aplicado a bens tecnológicos diretamente aplicáveis à vida prática, como ferramentas, mas também a bens de fruição estética ou ritual, que, em grau maior ou menor de elaboração e alcance, permeiam a vida das sociedades humanas. O modo como se concatenou a cultura visual da contemporaneidade é um exemplo. Fernando Hernández foi um educador espanhol influenciado pelo pensamento de John Dewey, estudioso que, como vimos anteriormente, preconizava a importância das relações entre alunos, educadores e meio social. Para Hernández (2000, p. 43), encontramo-nos imersos em uma cultura visual, a qual atinge intensamente nossas vidas, de modo que se apresenta como necessidade “o estudo e a decodificação desses produtos culturais mediáticos”. Os produtos da cultura visual, elabora Hernández, não são meros desdobramentos unidimensionais de uma indústria produtora de entretenimento, mas expressam formas de pensamento, e é fundamental educar os jovens para analisar essas formas e compreender o que comunicam e como o fazem. Em outra frente, muitos desses produtos, como anúncios publicitários, videoclipes, filmes e jogos abordam temas relevantes em um nível temático, artístico, histórico ou sociológico, e passaram a integrar os acervos de escolas, sendo transmitidos aos alunos como auxílio pedagógico ao trabalho disciplinar regular. A tendência educacional progressista que emergiu na década de 1970, conhecida como Pedagogia crítico-social dos conteúdos , desenvolvida por pedagogos como Georges Snyders e Dermeval Saviani , defendia a necessidade de utilizar todos os recursos possíveis para viabilizar o aprendizado. O educador, ao propiciar a relação do educando com os conteúdos do ensino, deverá fazê-lo de forma dinâmica e, sempre que possível, relacionar a experiência do aluno com os conteúdos trabalhados, tentando, sistematicamente, evidenciar a importância de uma sólida formação escolar como instrumento para a sua prática cotidiana. Desta forma, a atuação do educador deverá ser coerente, articulada e intencional, de forma a propiciar a crítica ao social, bem como uma educação escolar viva, na vida social concreta. (FUSARI, 1988, p. 24)
Isso incluía, entre outras questões, aproximar o aprendizado do educando pela via das novas mídias como recursos pedagógicos. Essa postura surgia em oposição aos métodos tradicionais que vimos previamente. Afinal, uma das posturas possíveis da institucionalidade educacional em relação aos produtos da cultura visual foi sempre a rejeição, ou a aceitação com ressalvas. Pode-se observar essa postura na figura de Jonathas Serrano (1855-1944), professor da escola normal do Rio de Janeiro, autor de Methodologia da História na aula primária (1917) e idealizador do programa de rádio Universidade do Ar. Embora afirmasse que a
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narrativa do professor deveria ser instigante e atraente e defendesse a introdução de estímulos visuais como mapas e pinturas, Serrano rejeitava a utilização do cinema como instrumento pedagógico, posto que o meio “romantizava” as narrativas históricas que representava. Essa é uma visão persistente, no entanto nem sempre exposta nos mesmos termos: a educação formal não poderia se integrar aos meios de comunicação contemporâneos sem ressalvas, dado o potencial massificador ou pernicioso que este detinha sobre os jovens. Entretanto, como qualquer outro campo, a educação se mantém aberta a discussões. A incorporação de novos recursos visuais, sonoros e audiovisuais ocorreu, bem como a introdução da tecnologia informática, ao longo dos séculos XX e XXI, em medidas desiguais, diante dos descompassos sociais e econômicos que já observamos. O uso das novas tecnologias na passagem dos anos 90 para os 2000, e até a atualidade, caracterizou-se por ser restrito devido às condições limitadas de acesso de escolas e alunos de baixa renda aos materiais necessários, mas também pela própria hesitação de corpos docentes incertos com relação às possibilidades reais de adequação de elementos novos aos métodos tradicionais, que, como vimos, ainda são amplamente favorecidos nas instituições educacionais. Conforme teoriza Gadotti (2000, p. 5), “Os sistemas educacionais ainda não conseguiram avaliar suficientemente o impacto da comunicação audiovisual e da informática, seja para informar, seja para bitolar ou controlar as mentes. Ainda se trabalha muito com recursos tradicionais que não têm apelo para as crianças e jovens”. Ou seja, a questão do apelo é fundamental para compreender o lugar das novas mídias na educação. Além da relevância postulada por Hernández, isto é, a de uma busca por estimular nos alunos o desejo por compreender e decodificar as complexidades de uma cultura variada, esmagadoramente influente e que propaga formas de pensamento nem sempre refletidas ou problematizadas, há que se pensar ainda na qualidade instigante que esses elementos inovadores têm para os jovens. Vejamos: Os que defendem a informatização da educação sustentam que é preciso mudar profundamente os métodos de ensino para reservar ao cérebro humano o que lhe é peculiar, a capacidade de pensar, em vez de desenvolver a memória. Para eles, a função da escola será, cada vez mais, a de ensinar a pensar criticamente. Para isso é preciso dominar mais metodologias e linguagens, inclusive a linguagem eletrônica. (GADOTTI, 2000, p. 5)
Como podemos observar, esse modo de pensar ecoa as ideias defendidas pelos teóricos progressistas do século XX, como Dewey. De um ponto de vista contemporâneo, a assimilação das novas tecnologias pode ser apontada como uma das vias para atenuar o impasse entre o meio educacional e o social, aproximando os debates desenvolvidos dentro e fora dos muros da escola. Considerando essa perspectiva, é possível teorizar que habilitar o indivíduo para analisar o que a tecnologia lhe oferece, bem como para usá-la a seu favor, resultaria em melhor integração entre os indivíduos no contexto global, em longo prazo. Com base na exploração do poder dos meios comunicacionais seria possível obter máximo de proveito do poder que essas mídias mais recentes têm para tecer redes significativas de comunicação globo afora.
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Contudo, é válido salientar que, apesar de todo o seu potencial, as novas mídias ainda transmitem discursos que nem sempre são universalmente compreensíveis. Como vimos anteriormente, o global frequentemente vê em seu caminho o regional. Isso também é verdade à medida que há lugares nos quais a escola encontra dificuldades para se equipar com aparatos audiovisuais e conexão com a internet ou montar laboratórios de informática. Papert (1994, p. 13) expõe preocupação a respeito do tópico nestas linhas. A pergunta que permanece é: estas alternativas serão criadas democraticamente? Em essência, a educação pública mostrará o caminho ou, como na maioria das coisas, a mudança primeiro melhorará as vidas dos filhos dos ricos e poderosos e apenas lentamente e com um certo grau de esforço entrará nas vidas dos filhos do resto de nós?
Parece justo traçar um paralelo com o que estudamos acerca de boa parte dos processos educativos desenvolvidos ao longo da história. Na Antiguidade, a educação formal era restrita a um público de elite, formado para governar sua sociedade. O período medieval proporcionou uma ampliação do acesso à escolaridade valendo-se das escolas paroquiais, mas o acesso a uma formação melhor equipada se preservou restrito às elites. Mesmo o estabelecimento das instituições educacionais modernas e, posteriormente, das contemporâneas, debateu-se com o problema da universalização do ensino. Como norma, poderíamos argumentar, o padrão com relação a qualquer novo implemento referiu-se primeiro à oferta a um público privilegiado antes da ampla difusão, e a implementação das novas mídias parece ter acompanhado a tendência. Preserva-se, assim, a discussão sobre como efetivamente democratizar o acesso às novas mídias no meio escolar.
4.3 Educação e diversidade Como vimos no início do capítulo, um dos maiores desafios enfrentados pela educação do século XXI é justamente o choque entre diferentes sociedades em intenso circuito de trocas econômicas e culturais. Mas, superadas as concepções estritamente nacionalistas do século XX, é importante compreender que o diferente não é apenas encontrado para além de fronteiras geopolíticas, mas é parte fundamental das mecânicas internas de uma sociedade contemporânea. Há certamente uma demanda social para que os setores educacionais abracem e compreendam a diversidade que caracteriza a malha social. Como podemos caracterizá-la? A diversidade, do ponto de vista cultural, pode ser entendida como a construção histórica, cultural e social das diferenças. Ela é construída no processo histórico-cultural, na adaptação do homem e da mulher ao meio social e no contexto das relações de poder. Os aspectos tipicamente observáveis, que se aprende a ver como diferentes, só passaram a ser percebidos dessa forma porque os sujeitos sociais, no contexto da cultura, assim os nomearam e identificaram. (GOMES, 2007, p. 30)
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É importante, então, entender que as diferenças que compõem uma malha social diversa são construídas e compreendidas de forma social e histórica, fruto de várias interações, desenvolvidas ao longo do tempo, e a educação desempenha papel crucial nesse processo. Defensores de uma perspectiva pluralista argumentam que é parte do mandato da instituição escolar formar os jovens, além da perspectiva acadêmica, para compreender e respeitar outras culturas. Conforme aponta Gadotti (1992, p. 21), acerca da visão pluralista , isto é, receptiva às diferenças: A escola que se insere nessa perspectiva procura abrir os horizontes de seus alunos para a compreensão de outras culturas, de outras linguagens e modos de pensar, num mundo cada vez mais próximo, procurando construir uma sociedade pluralista.
Assim, do ponto de vista progressista contemporâneo, deve-se criar um ambiente plural na escola. Isso quer dizer abrir o espaço para a compreensão de todos por todos, incluindo os indivíduos independentemente de origem, etnia, formação religiosa, orientação sexual, identidade de gênero ou classe social. Trata-se, evidentemente, de uma gama ampla de particularidades para se conciliar no ambiente escolar, o que certamente constitui uma tarefa complexa para os profissionais do meio educacional, ainda que necessária. “Os desafios postos pela diversidade na educação básica estão a exigir medidas políticas que garantam para todos os grupos sociais, principalmente para aqueles que se encontram histórica e socialmente excluídos, o acesso a uma educação de qualidade” (GOMES, 2007, p. 32). Em paisagens culturais específicas, esses grupos excluídos histórica e socialmente podem ser minorias diversas. Um exemplo seriam grupos étnicos reduzidos, historicamente relegados a geografias específicas de um país, como povos aborígenes egressos de um passado de extermínio e perseguição, ou recém-chegados de origem estrangeira, aos quais foi negado o acesso à educação básica em razão de entraves burocráticos, diplomáticos ou linguísticos, como é o caso de refugiados oriundos de zonas de guerra, muitas vezes isolados por causa da língua ou por preconceitos e outras arbitrariedades. Podem ser também como grupos de maior representatividade numérica, mas atingidos por conjunturas de opressão que dificultaram seu acesso ao ensino, como os descendentes de escravos no continente americano. Podem ser ainda indivíduos excluídos por serem oriundos de famílias pertencentes a ramos profissionais frequentemente desprezados, ou em razão de alguma forma de deficiência, ou por não se adequarem a padrões heteronormativos em termos de orientação sexual. Todos esses grupos convivem no meio social, sendo abertamente perseguidos por suas diferenças em alguns contextos. O pensamento educacional progressista visa preparar o terreno para um século XXI mais inclusivo e plural, em parte, ao evidenciar a necessidade de serem abertas as escolas para indivíduos de origens diversas, mas também, pela via da convivência e das interações pacíficas, educar os jovens para a diversidade do mundo fora dos muros escolares. Alguns apontamentos importantes referem-se, por exemplo, a pensar equanimemente as condições de todos esses grupos diversos, para que não se incorra no risco de hierarquizar o espaço educativo:
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Século XXI: globalização, novas mídias e diversidade O grande desafio está em desenvolver uma postura ética de não hierarquizar as diferenças e entender que nenhum grupo humano e social é melhor do que outro. Na realidade, todos são diferentes. Tal constatação e senso político podem contribuir para se avançar na construção dos direitos sociais. (GOMES, 2007, p. 30)
Ou seja, trata-se de avançar na formação de uma atmosfera de equidade. Seria um contrassenso avançar no sentido de acolher a diversidade, apenas para criar uma cadeia de importância dos indivíduos conforme suas especificidades. Como microcosmo do mundo que a cerca, a escola é uma esfera de importância crítica para a formulação de uma sociedade que se pensa como rica por acolher as diferenças. Nas palavras de Gadotti (1992), trata-se de pensar de forma humanista: a diversidade cultural é a riqueza da humanidade. Para cumprir sua tarefa humanista,a escola precisa mostrar aos alunos que existem outras culturas além da sua. Por isso, a escola tem que ser local como ponto de partida, mas tem que ser internacional e intercultural como ponto de chegada. [...] Pluralismo não significa ecletismo, um conjunto amorfo de retalhos culturais. Significa, sobretudo, diálogo com todas as culturas, a partir de uma cultura que se abre às demais. (GADOTTI, 1992, p. 23)
Ecletismo, aponta o autor, seria meramente estabelecer os lócus escolares como galerias irreflexivas de diferenças, nas quais os particulares são vistos, mas não problematizados. Importante é, portanto, que se desenvolvam as interações entre os diferentes, e que estes assimilem a importância da diversidade no convívio humano. Uma expressão desse pensamento pode ser vista no texto Educação: um tesouro a descobrir , um relatório da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI elaborado para a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), no qual se enumera, dentre outros eixos, o aprender a conviver , como um dos pilares para a educação que se deseja para o futuro. Sobre esse eixo, Gadotti (2000, p. 9) comenta: “Aprender a viver juntos – a viver com os outros. Compreender o outro, desenvolver a percepção da interdependência, da não-violência, administrar conflitos. Descobrir o outro, participar em projetos comuns. Ter prazer no esforço comum. Participar de projetos de cooperação. Essa é a tendência”. Mediar e administrar conflitos revela-se, desse modo, vital para relevar a diversidade, assim como desconstruir percepções arbitrárias no meio educacional, desarticulando a discriminação. Falar sobre diversidade e diferença implica, também, posicionar-se contra processos de colonização e dominação. Implica compreender e lidar com relações de poder. Para tal, é importante perceber como, nos diferentes contextos históricos, políticos, sociais e culturais, algumas diferenças foram naturalizadas e inferiorizadas, tratadas de forma desigual e discriminatória. Trata-se, portanto, de um campo político por excelência. (GOMES, 2007, p. 31)
E para defender um modelo favorável à diversidade, é válido compreender quão politizado é o campo escolar e a questão da diversidade para abordá-la com efetividade, trazendo para o debate todo o peso das diferenças como foram construídas histórica e socialmente. Como tantos outros debates acerca do meio educacional, que estudamos anteriormente, trata-se de avançar a discussão e compor uma escola mais inclusiva e mais democrática. 66 História da Educação
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Ampliando seus conhecimentos Os textos expostos a seguir foram extraídos de um relatório elaborado para a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) pela Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, uma equipe liderada pelo político francês Jacques Delors (1925- ), em 1996, no estudo intitulado Educação: um tesouro a descobrir. O primeiro excerto consiste de uma apresentação do que os autores compreendem como os “quatro pilares” sobre os quais deveria se sustentar a educação no novo século, uma série de competências a desenvolver nos estudantes para uma nova perspectiva educacional e um mundo mais inclusivo e justo: “aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser”. O segundo excerto expõe a ideia de que o processo educativo não está connado à sistemática escolar que sistematiza o que compreendemos
como educação básica. Essa parte do relatório liderado por Delors parte do princípio de que a educação é um processo contínuo e fundamental à condição humana, não apenas às crianças em idade escolar.
Educação: um tesouro a descobrir (DELORS et al., 2010, p. 31-32)
Os quatro pilares da educação Pistas e recomendações A educação ao longo da vida baseiase em quatro pilares: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser. Aprender a conhecer , combinando uma cultura geral, sucientemente ampla, com a possibilidade de estudar, em profundidade, um número reduzido de assuntos, ou seja: aprender a aprender, para beneciarse das
oportunidades oferecidas pela educação ao longo da vida. Aprender a fazer , a m de adquirir não só uma qualicação prossional, mas, de uma maneira mais abrangente, a competência que torna a pessoa apta a enfrentar numerosas situações e a trabalhar em equipe. Além disso, aprender a fazer no âmbito das diversas experiências sociais ou de trabalho, oferecidas aos jovens e adolescentes, seja espontaneamente
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Século XXI: globalização, novas mídias e diversidade na sequência do contexto local ou nacional, seja formalmente, graças ao desenvolvimento do ensino alternado com o trabalho. Aprender a conviver , desenvolvendo a compreensão do outro e a percepção das interdependências – realizar projetos comuns e prepararse para gerenciar conitos – no respeito pelos valores do pluralismo, da com preensão mútua e da paz. Aprender a ser , para desenvolver, o melhor possível, a personalidade e estar em condições de agir com uma capacidade cada vez maior de autonomia, discernimento e responsabilidade pessoal. Com essa nalidade,
a educação deve levar em consideração todas as potencialidades de cada indivíduo: memória, raciocínio, sentido estético, capacidades físicas, aptidão para comunicarse. No momento em que os sistemas educacionais formais tendem a privilegiar o acesso ao conhecimento, em detrimento das outras formas de aprendizagem, é mister conceber a educação como um todo. Essa perspectiva deve no futuro inspirar e orientar as reformas educacionais, seja na ela boração dos programas ou na denição de novas políticas pedagógicas.
A educação ao longo da vida Pistas e recomendações O conceito de educação ao longo da vida é a chave que abre as portas do século XXI; ele elimina a distinção tradicional entre educação formal inicial e educação permanente. Além disso, converge em direção a outro conceito, proposto com frequência: o da “sociedade educativa” na qual tudo pode ser uma oportunidade para aprender e desenvolver os talentos. Sob essa nova perspectiva, a educação permanente é concebida como algo que vai muito mais além do que já se pratica, especialmente nos países desenvolvidos, a saber: as iniciativas de atualização, reciclagem e conversão, além da promoção prossional, dos adultos. Ela deve abriras possibi lidades da educação a todos, com vários objetivos: oferecer uma segunda ou terceira oportunidade; dar resposta à sede de conhecimento,de beleza ou de superação de si mesmo; ou, ainda, aprimorar e ampliar as formações estritamente associadas às exigências da vida prossional, incluindo
as formações práticas. Em suma, a educação ao longo da vida, deve tirar proveito de todas as oportunidades oferecidas pela sociedade.
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Atividades 1. Caracterize o que é globalização e a problemática que ela representa para a educação. 2. Quais são os dois principais polos na discussão entre educadores acerca da pertinência do uso das novas mídias nos ambientes educacionais? Além dessa oposição, que outros problemas se colocam no caminho da adoção dessas mídias nas escolas?
3. O que caracteriza o conceito de diversidade e por que teóricos contemporâneos argumentam que sua compreensão é fundamental para atender às demandas educacionais do século XX?
4. Nos excertos “Os quatro pilares da educação” e “A educação ao longo da vida”, a Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI expõe os parâmetros para um ideal de educação a ser vigente em nosso século. Em que sentido a visão exposta nesses textos se relaciona àquilo que vimos sobre a relação entre educação, globalização e diversidade?
Referências ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da educação e da Pedagogia – Geral e Brasil. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2006. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. São Paulo: Brasiliense, 2006. CAMBI, Franco. História da Pedagogia. São Paulo: FEU, 1999. DELORS et al. Um tesouro a descobrir: relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI. Trad. G. J. F. Teixeira. Brasília, DF: Unesco/CNPq, 2010. FERRIÈRE, Adolphe. A Escola Activa. Tradução de Domingos Evangelista. Porto: Editora Nacional de António Figueirinhas, 1934. FUSARI, José Cerchi. Histórico breve das tendências das práticas dos treinamentos de professores. Tese mestrado. PUC/SP, 1988. GADOTTI, Moacir. Diversidade cultural e educação para todos. Juiz de Fora: Graal.1992. ______. Perspectivas atuais da educação. São Paulo em perspectiva , São Paulo, v. 14, n. 2, p. 3-11, 2000. GOMES, Nilma Lino. Diversidade e Currículo. In: BRASIL. Ministério da Educação. Indagações sobre o currículo no Ensino Fundamental. Salto para o Futuro/TV Escola/SEED/MEC, 2007. HERNÁNDEZ, Fernando. Cultura visual, mudança educativa e projeto de trabalho. Porto Alegre: Artmed, 2000. ______. Catadores da cultura visual: proposta para uma nova narrativa educacional. Porto Alegre: Mediação, 2007. NYE, David E. Narratives and spaces: technology and the construction of American Culture, New York: Cambridge University Press, 1998. PAPERT, Seymour. A máquina das crianças: repensando a escola na era da informática. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
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PILETTI, Claudino; PILETTI, Nelson. História da educação. São Paulo: Contexto, 2012. ROMÃO, José Eustáquio. Globalização e reforma educacional no Brasil (1985-2005). OEI – Revista Ibero-Americana de Educação , n. 48, set./dez. 2008. Disponível em: . Acesso em: 11 out. 2017.
Resolução 1. Globalização é o fenômeno de integração que se dá entre diferentes culturas ao redor do globo pelas vias da comunicação intensicada e de relações de dependência econômica. Essas relações de integração dicilmente poderiam ser desprezadas,
dadas as dependências culturais e materiais que se estabelecem entre diferentes países e regiões, mas também geram complicações. O principal problema originado pela globalização é reexo do fato de várias partes do planeta apresentarem
particularidades culturais e diferentes estágios de autonomia produtiva, acesso à riqueza e segurança econômica, de modo que a intensicação das relações pode
acentuar contradições. Por exemplo: a disponibilidade e os preços de bens considerados de luxo em um país podem ser tidos como artigos de primeira necessidade em outro. Essa dinâmica afeta a educação seriamente, pois, embora os parâmetros do que se considera uma educação de qualidade sejam internacionalizados, nem todos os países têm as mesmas condições para estruturar seus ambientes educacionais e equipá-los, ou para preparar seus professores. Os desejos são globais, mas as condições para atendê-los são locais.
2. Essencialmente trata-se de uma discussão entre educadores favoráveis à ampla incorporação de novas mídias aos ambientes educacionais e educadores com uma visão mais conservadora, opostos à inclusão, ou pelo menos à inclusão em larga escala, de novas tecnologias. A argumentação mais conservadora está centrada em uma visão das novas mídias como não facilmente conciliáveis com o contexto escolar em termos técnicos e por apresentarem visões de mundo não compatíveis com uma educação mais tradicional. O argumento exposto por Jonathas Serrano no início do século XX contra o uso do cinema, por exemplo, ainda ecoa: como as linguagens mediáticas que os sucederam cronologicamente, os lmes mostram uma visão de mundo idealizada.
Por outro lado, a argumentação mais favorável parte do princípio de que é necessário introduzir esses aspectos mediáticos ao meio educacional, justamente por serem eles tão presentes na vida dos educandos. Fernando Hernández, defensor do trabalho envolvendo a cultura visual em sala de aula, postula ser importante “o estudo e a decodicação desses produtos culturais mediáticos”, inclusive a título de formar
os estudantes para a compreensão dos modos de pensar expostos por essa cultura.
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Além desse debate, um problema adicional é a própria implementação das novas mídias no contexto educacional, dado que frequentemente as instituições de ensino apresentam condições materiais precárias de fazê-lo na escala necessária para que sua aplicação se dê de modo eciente e verdadeiramente inclusivo e democrático.
3. Segundo Gomes (2007, p. 30), “A diversidade, do ponto de vista cultural, pode ser entendida como a construção histórica, cultural e social das diferenças”, o que constitui, assim, o mosaico de diferenças que encontramos em um meio social, incluindo diferenças de caráter étnico, religioso e de gênero. Essa diferenciação dos indivíduos é construída por meio de processos histórico-sociais, e é importante que seja reconhecida, de modo que as individualidades sejam respeitadas, e ao mesmo tempo que abra um campo no qual todos possam ser tratados com equidade. O meio educacional não pode fugir do debate relativo à diversidade, posto que a escola é um microcosmo do espaço social e abrange em seu bojo toda a complexidade do meio social mais amplo. Essa complexidade em si deve ser respeitada como intrínseca aos espaços humanos, mas também porque a diversidade no meio educacional é fundamental para fomentar nos estudantes o respeito pelo diferente por meio da interação intensa.
4. Os quatro pilares expostos no relatório para a Unesco expressam o ideal de um processo educativo amplo, que desenvolve uma diversidade de competências: aprender a conhecer, a fazer, a conviver e a ser. Em oposição à perspectiva tradicional de educação, que valorizava apenas a aquisição ou a aplicação de conhecimentos a um contexto produtivo, espera-se dessa nova educação que seja capaz de compor um indivíduo com uma formação humana mais completa. Esse indivíduo precisa ser ciente de como adquirir e desenvolver saberes, e de como aplicá-los à vida prática, mas também capacitado para que seja reconhecido em seu contexto de vida e para a convivência com as diferenças, valor fundamental para compreender uma sociedade plural e diversa, bem como o cenário global, no qual, em oposição a várias tendências homogeneizadoras, a diferença é a norma. Esse processo educacional, por m, deve ser concebido como contínuo, e o educando
precisa assimilar a ideia de que a educação do ser humano não cessa quando este abandona a institucionalidade da escola e da universidade, mas que se prolonga para a vida.
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Introdução A história do Brasil, como a de outras antigas colônias americanas, está intimamente ligada à história da Europa moderna. Transitando vigorosamente das fronteiras limitadas de um domínio feudal para uma era de exploração e conquistas territoriais, Portugal tomaria para si uma parte significativa da América do Sul, onde seriam lançadas as bases para o futuro Estado brasileiro. Ao longo do período em que esse território esteve sob domínio português, e mesmo após sua independência no século XIX, a Europa seria sempre o ponto de referência, o modelo a ser imitado, na religião, na língua, nos costumes e no modo de ensinar. O padrão do aprendizado das artes liberais, assim como ensino da religião e dos ofícios, seria trazido para o novo mundo, da mesma forma como os ideais iluministas posteriores, embora sempre encontrassem dificuldades estruturais em seu caminho. História da Educação
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Os primeiros educadores da colônia seriam membros de ordens religiosas, especialmente os jesuítas. Como vimos anteriormente, os membros da Companhia de Jesus eram uma presença hegemônica no cenário educacional europeu, ao menos nos reinos católicos. Na América, essa hegemonia adquiriria matizes de conflito, na medida em que a Companhia, assumindo a atribuição de evangelizar e educar os povos nativos nos modos europeus, construiria uma relação complexa com o projeto colonial, conduzindo eventualmente a um estado de tensão. O poderio da ordem no território que viria a se tornar o Brasil, desde sua chegada, em 1549, até 1759, quando os jesuítas foram banidos do território por um decreto de Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal (1699-1782), o mais proeminente político português do período e também um dos representantes do pensamento ilustrado da época. Mesmo após a expulsão da Companhia de Jesus, a educação brasileira permaneceu dependente de educadores encontrados entre as fileiras do sacerdócio, frequentemente as pessoas mais qualificadas para a prática docente, dado serem normalmente versados ao menos nas artes liberais. Assim se iniciaria um longo processo, repleto de idas e vindas, que caracterizou a constituição de uma educação laica, institucionalizada e gerenciada pelo Estado no território brasileiro.
5.1 Educação jesuítica Como vimos anteriormente, a Era das Navegações mudou os rumos da história europeia ao introduzir no imaginário da época a noção de que havia um novo mundo para além das fronteiras conhecidas, repleto de riquezas naturais e culturas que nunca haviam travado contato com a religião cristã. A exploração desses territórios e a cristianização desses povos apresentaram-se como prioridades para as potências europeias do século XVI. Movidas, segundo Boris Fausto (1995, p. 23-30), por um gosto pela aventura, pela disponibilidade de novas técnicas de navegação, pela atração por metais preciosos e especiarias e pelo desejo de explorar o Atlântico, embarcações portuguesas eventualmente atingiram a costa brasileira em 1500. O território foi reclamado pela Coroa lusitana, mas as tentativas de ocupá-lo e explorá-lo economicamente demoraram a vingar. Podemos dividir a história do Brasil colonial em três períodos muito desiguais em termos cronológicos: o primeiro vai da chegada de Cabral à instalação do governo geral, em 1549; o segundo é um longo lapso de tempo entre a instalação do governo geral e as últimas décadas do século XVIII; o terceiro vai dessa época à Independência, em 1822. (FAUSTO, 1995, p. 41)
O primeiro período consistiu basicamente do reconhecimento do território e de sua exploração comercial incipiente. A população indígena que vivia na costa, predominantemente pertencente ao horizonte cultural e linguístico tupi-guarani, não construía cidades, não tinha metalurgia e desenvolvia uma agricultura de subsistência. Não sendo encontrados metais preciosos a princípio, tampouco grande variedade de artigos de comércio de luxo, os
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portugueses concentraram-se em obter dos povos da costa a madeira do pau-brasil , empregada na fabricação de tinturas vermelhas para tecidos na Europa. Em troca do pau-brasil, os primeiros exploradores lusitanos ofereciam bens manufaturados que interessavam aos nativos, como machados de ferro, armas, espelhos e miçangas de vidro para ornamentação corporal. Desse modo, a primeira fase da exploração portuguesa da nova colônia permaneceu restrita a uma forma relativamente simples, embora lucrativa, de comércio, sem que se estabelecesse ali uma população portuguesa grande o bastante para transformar o território de forma tão intensa como ocorria com a implantação das colônias espanholas e inglesas em outras partes do continente americano. A partir da década de 1530, teria início a colonização propriamente dita. Concessões de terra conhecidas como capitanias hereditárias foram outorgadas a portugueses com a finalidade de ocupar o território, torná-lo lucrativo e defendê-lo de ameaças estrangeiras, como a pirataria, garantindo ali a primazia portuguesa. O Brasil foi dividido em quinze quinhões, por uma série de linhas paralelas ao equador que iam do litoral ao meridiano de Tordesilhas, sendo os quinhões entregues aos chamados capitães-donatários. Eles constituíam um grupo diversificado, no qual havia gente da pequena nobreza, burocratas e comerciantes, tendo em comum suas ligações com a Coroa. (FAUSTO, 1995, p. 44)
Não se encontravam entre estes donatários membros da alta nobreza. Os negócios mantidos por Portugal na Ásia e nas feitorias africanas eram mais lucrativos, o que tornava a exploração da América portuguesa menos atrativa. Ainda assim, um modelo estava estabelecido para sua exploração, e sistemas fundamentais para a manutenção da lei e a coleta de impostos para a Coroa foram estabelecidos. A outorga de sesmarias para terceiros estabeleceria a base do modelo de agricultura de plantation , que predominaria ao longo de todo o período colonial, modelo baseado em três pontos cruciais: o uso de latifúndio (grandes propriedades), a monocultura visando à exportação (especialmente a cana-de-açúcar, no caso brasileiro) e o uso intensivo de mão de obra escrava (a princípio de indígenas, posteriormente de africanos, trazidos por meio do comércio transatlântico). As dificuldades com o modelo de capitanias hereditárias levariam ao estabelecimento do governo geral , em 1549, que buscava centralizar a administração da lei, a coleta de tri butos e a defesa do território. Ao longo do século XVII, ocorreria uma expansão da Colônia, enquanto expedições oficiais ou particulares, conhecidas respectivamente como entradas e bandeiras , buscavam escravos indígenas, produtos silvestres conhecidos como drogas do sertão e metais preciosos. A descoberta de ouro na região das Minas Gerais levaria um grande fluxo de portugueses da metrópole para a Colônia, o que acarretou no crescimento populacional e em uma série de conflitos. Ao longo desse período, a presença da Igreja foi uma constante. O controle das almas e a propagação da fé cristã eram prioridades da Coroa portuguesa. A evangelização das populações indígenas do Brasil, vistas como pagãs, era atribuição das ordens religiosas, especialmente dos jesuítas. Fundada em 1534, por Inácio de Loyola, a Companhia de Jesus
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recebeu caráter oficial do Papa Paulo III, em 1540. Era o período da Contrarreforma , e a Igreja de Roma buscava ganhar terreno e suprimir o avanço protestante por meio de várias medidas, como a intensa atividade missionária. Em 1549, os primeiros jesuítas, chefiados pelo padre Manuel da Nóbrega, chegaram ao Brasil, junto com a expedição de Tomé de Sousa, o primeiro governador-geral. A Companhia de Jesus reunia os nativos em missões ou reduções , espaços assim chamados porque eram dedicados a “reduzi-los” ao modelo europeu de civilidade (ARANHA, 2006, p. 164). Nesses espaços, os povos aldeados eram educados para se adequarem aos parâmetros humanistas europeus da época, o que significava, além da conversão ao credo católico, aprender rudimentos de escrita e manufaturas. Assim, os jesuítas administravam verdadeiras unidades produtivas autossuficientes, em que o ensino de ofícios como a carpintaria, a tecelagem, a metalurgia e a cerâmica era tão fundamental quanto o ensino das passagens bíblicas e de orações e cânticos para as celebrações religiosas. O raciocínio era simples: para os colonizadores seria mais fácil submeter o índio e tomar suas terras se aqui se apresentassem em nome de Deus, abençoados pela Igreja; para os jesuítas seria mais fácil converter à fé católica e catequizar os índios se contassem com a ajuda das armas portuguesas. (PILETTI; PILETTI, 2012, p. 69)
A educação das camadas mais privilegiadas da sociedade também era administrada pelos jesuítas, posto que os padres atuavam em meio a todas as classes e grupos: indígenas, escravos africanos e filhos de senhores. Para os jovens de elite, todavia, a formação, fundamentalmente literária e dogmática, ia além das primeiras letras e do ensino religioso. Semelhante à formação erudita anterior à introdução de ideias cartesianas, o ensino ofertado pelos padres em colégios e seminários era centrado no aprendizado da religião, do latim e da leitura dos clássicos. Essa educação oferecia base, portanto, para funções eclesiásticas e para o exercício das letras. Uma forma de ensino secundário estava compreendida no plano da ordem, o Ratio Studiorum (Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Iesu , ou “Plano Oficial para a Educação Jesuítica”), consistindo em três cursos: Humanidades, Filosofia e Teologia (RIBEIRO, 2000, p. 23). Concluindo-se esse ciclo de estudos, jovens de elite poderiam obter uma educação superior apenas em instituições de Portugal, como a Universidade de Coimbra, ou outros reinos europeus. “A única saída dos brasileiros desejosos de seguir as carreiras profanas, as profissões liberais, era o estudo na metrópole, mesmo porque o Colégio da Bahia teve negado o pedido de equiparação à Universidade de Évora (Portugal), em 1675” (ARANHA, 2006, p. 165). Observa-se, desse modo, que, assim como em vários outros respeitos (economia, manufaturas, administração e justiça), a educação das pessoas da Colônia era profundamente dependente de recursos que emanavam apenas da metrópole portuguesa. Essa estrutura pouco flexível, que forçava os colonos a buscarem uma formação especializada no exterior, se manteria ao longo de todo o período colonial.
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O modelo preconizado pelo Ratio Studiorum preconizava a indissolubilidade entre religiosidade e processo de ensino, algo manifesto em exortações espirituais regulares e orações antes do início de cada lição. A rigorosa disciplina enfatizava a repetição e a correção constantes, bem como a aplicação regular de tarefas, e exigia-se que os alunos soubessem as lições de cor. A observância das regras era fundamental para a manutenção do sistema, e havia corretores encarregados de castigar alunos que agiam contra as normas (PILETTI; PILETTI, 2012, p. 74). Figura 1 – O Ratio Studiorum, datado de 1598-99.
Fonte: Wikimedia Commons.
O sistema organizado de ensino jesuítico persistiu até 1759, quando o conflito entre a ordem e o Marquês de Pombal, o ministro mais importante do rei D. José I, acirrou-se de forma irremediável. Pombal instituiu várias reformas administrativas na Colônia e aboliu as escolas jesuíticas, expulsando de Portugal e das colônias os membros da Companhia. No lugar dos tradicionais colégios, seria instituído o sistema de aulas régias , e teria início uma nova era, na qual se almejaria um ensino laico e ilustrado.
5.2 Educação laica e reformas pombalinas A Europa do século XVIII, como vimos em capítulos anteriores, viu o florescer de novas ambições intelectuais. Diversos pensadores imaginaram uma sociedade marcada por valores liberais na economia e livre das amarras da religiosidade no campo do saber. O pensamento ilustrado se desdobraria em todas as esferas, levando à emergência de pro jetos nacionais ambiciosos, como as reformas pombalinas durante o reinado de D. José I.
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Para o Marquês de Pombal e outros ilustrados lusitanos da época, havia a necessidade premente de olhar para o modelo europeu como meta, aproximando Portugal das potências europeias. Para tal, era fundamental livrar-se do passado representado pelos jesuítas. Duas palavras-chave e os dois imaginários que elas encerram estão presentes no discurso pombalino, quer seja de caráter legislativo, historiográfico, tratadístico ou panfletário: jesuítas e Europa. Jesuítas e jesuitismo encerram um conceito/ visão de carga negativa, pessimista. Representam todo um passado cultural, educativo, mental que urgia repudiar e abolir. O termo Europa situa-se conceptualmente no polo oposto. Expressa uma visão de carga altamente positiva, um conceito luminoso de dimensão utópica, encerra, no fundo, um ideal, um modelo a seguir, uma utopia de aproximação e de imitação. (FRANCO, 2008, p. 19)
Portanto, havia naquele contexto uma compreensão de que Portugal era um estado retrógrado, que carecia de reformas intensivas a fim de acompanhar seus vizinhos. Como vimos nos capítulos anteriores, os projetos nacionais de desenvolvimento descritos pelos reinos europeus em ascensão deram grande ênfase ao impacto da educação sobre a configuração do Estado. Figura 2 – Autor desconhecido. Retrato de Marques de Pombal. séc. XVIII. óleo sobre tela, color. Museu Francisco Tavares Proença Júnior, Castelo Branco, Portugal.
Na educação, o principal efeito do pensamento ilustrado seria o clamor pelo ensino laico e público, desvinculado da influência poderosa (considerava-se potencialmente perniciosa e obscurantista) das autoridades eclesiásticas. O pensamento liberal coincidia com os interesses da burguesia em ascensão na Europa do século XVIII, interesses que, em grande parte, se chocavam com os tradicionais valores aristocráticos e eclesiásticos que constituíam a base sobre a qual se assentava o Antigo Regime. 78 História da Educação
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Pombal antes de pensar na formação dos teólogos, canonistas, advogados e médicos – problema que não foi estranho aos propósitos do gabinete de D. José I – cuidava preliminarmente de amparar o trabalho econômico por intermédio da criação de uma escola destinada a formar a “elite” indispensável ao progresso financeiro das empresas e dos grupos que a política monopolista do novo governo planejara e organizara, ao pretender motivar o acúmulo de riquezas individuais de tal forma que as novas condições econômicas melhor pudessem satisfazer aos reclamos dos interesses estatais. (CARVALHO, 1978, p. 43)
Assim, a prioridade de ilustrados, como Pombal, era constituir um estado cuja força residia em uma elite financeira e liberal, não aristocrática ou sacerdotal. Já no século XVIII se argumentava que era necessário remover a educação do seio da Igreja e situá-la sob a tutela do Estado, a fim de formar cidadãos mais aptos a compor um Estado forte, unificado e voltado para o fortalecimento das fronteiras e dos valores nacionais. Portugal deu um significativo primeiro passo nessa arena, conforme aponta Aranha (2006, p. 175): “[...] Portugal foi pioneiro nessa intenção: a estatização do ensino ocorreu em 1763 na Prússia, em 1773 na Saxônia, enquanto na França, na década de 1790 (após a Revolução Francesa), essas ideias ainda eram debatidas na assembleia legislativa”. Com a finalidade de substituir o ensino jesuítico, Pombal instituiu as aulas régias, nome que indicava o vínculo com o rei (e, portanto, o Estado), e não com as instituições eclesiásticas. “A reforma dos estudos menores foi iniciada pelo alvará de 28 de junho de 1759, que trata dos estudos de latim, grego, retórica, hebraico, abolindo as escolas dos jesuítas e esta belecendo nas aulas e estudos das letras uma geral reforma” (FALCON, 1993, p. 432). O projeto pombalino para a educação estatal consistia em dois estágios: Estudos menores e Estudos maiores. A primeira etapa tratava das escolas de primeiras letras, nas quais noções gerais de leitura e escrita eram transmitidas, e das escolas secundárias, dedicadas principalmente ao estudo das humanidades. A segunda etapa, a dos Estudos maiores, compreendia a educação universitária, ainda mais voltada para uma formação erudita e teológica que para estudos científicos do modo como é esperado das universidades atuais. Entre as reformas estava a revisão dos currículos existentes nos cursos de Direito, Medicina e Teologia, a criação de faculdades de Matemática e Filosofia, bem como a equipagem dos cursos com hortos, museus, laboratórios e outros espaços para experimentação e pesquisa (FALCON, 1993, p. 438). Essas reformas buscavam descontruir uma forma de ensino que se julgava pouco experimental, aplicável ou científica. De modo geral, o problema apontado em todas as instituições de ensino, das primeiras letras ao ensino superior, era o predomínio da religião: o ensino era baseado em catecismos, dava-se prioridade ao latim em detrimento da língua portuguesa e o ensino de Filosofia, não autônomo, descrevia-se na prática como um desdobramento dos cursos de Teologia. Para o Marques de Pombal, interessado em reduzir o poder da Igreja e, ao mesmo tempo, ampliar a influência centralizadora do Estado, era necessário repensar todo o modelo educacional:
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Educação no Brasil Colônia e no Brasil Império [...] seu objetivo superior foi criar a escola útil aos fins do Estado e, nesse sentido, ao invés de preconizarem uma política de difusão intensa e extensão do trabalho escolar, pretenderam os homens de Pombal organizar uma escola que, antes de servir aos interesses da fé, servisse aos imperativos da Coroa. (CARVALHO, 1978, p. 139)
No caso da Colônia, porém, após o desmantelamento da Companhia de Jesus e o confisco de seus bens, não houve medida imediata para a substituição de seus serviços. Em 1772 vieram a se instituir as reformas de fato, com a introdução do subsídio literário , um imposto que deveria prover recursos para remunerar os professores e manter as aulas régias. É importante observar, mesmo depois de implementadas as medidas pombalinas, que demoraria a surgir uma estrutura tão organizada e bem equipada de ensino quanto a que havia sido oferecida pelos colégios jesuíticos, sendo muitas vezes os ambientes de ensino improvisados: residências, edifícios públicos e lojas maçônicas (ARANHA, 2006, p. 192). Outras ordens religiosas, como carmelitas e franciscanos, continuaram a oferecer serviços educacionais a particulares, embora não na mesma escala que os jesuítas haviam feito previamente. As reformas trouxeram avanços apreciáveis, como o ensino mais difundido do português vernáculo, quando antes a proeminência era certamente do latim. A difusão dos princípios liberais e iluministas pelas lojas maçônicas e alguns centros religiosos intelectuais remanescentes, como o Seminário de Olinda, também desencadeariam mudanças na vida política da Colônia, especialmente as inquietações que se materializaram nas revoltas separatistas de fins do século XVIII. De modo geral, porém, os efeitos das aulas régias não foram sentidos pela parcela mais ampla da população, em razão de seus recursos limitados. Na verdade, em comparação com a amplitude das escolas jesuíticas, poucas aulas régias chegaram a ser instaladas. Antes de 1772, sabe-se com certeza da existência de algumas aulas régias em Pernambuco. A partir deste ano, graças à criação de um imposto para o ensino – o subsídio literário –, foram instaladas 17 aulas de ler e escrever, 15 aulas de Gramática latina, 6 aulas de retórica, 3 aulas de língua grega e 3 de Filosofia, em diferentes pontos da colônia. (PILETTI; PILETTI, 2012, p. 75)
É necessário cuidado para se observar a conjuntura da transição do monopólio jesuítico para a educação ilustrada de Pombal. Se por um lado a visão pessimista aponta para um desmonte das instituições religiosas bem organizadas dos dois séculos anteriores, seguido de uma substituição insuficiente, é importante observar que os parâmetros educacionais jesuíticos estavam, em muitos sentidos, em descompasso com o pensamento dominante e as ambições nacionalistas e econômicas da época. Seriam necessários ainda muitos anos para que planos mais amplos e compreensivos de educação pública fossem estabelecidos no território brasileiro, o que apenas ocorreria de forma mais clara após a Independência, em 1822.
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5.3 Educação no Império: bases para a educação pública Em 1808, a Corte portuguesa se estabeleceu no Brasil. O Império de Napoleão atingira o auge de seu ímpeto expansionista e a Coroa lusa começou a se sentir pressionada a se aliar aos franceses contra a Inglaterra. Com o auxílio dos ingleses, a realeza portuguesa se retirou para a Colônia, que passou a ser o núcleo dos domínios lusos. Com o estabelecimento do príncipe regente D. João VI no Rio de Janeiro, diversos avanços tiveram lugar, como a inauguração de manufaturas, a abertura dos portos e a queda do pacto colonial, que permitia à Colônia apenas manter relações comerciais com a metrópole. A vida intelectual da Colônia também passou por mudanças. Com a presença da Corte, estabeleceram-se as bases para uma imprensa local, bibliotecas, museus e instituições de ensino. No sentido mais amplo, a vida cultural e erudita da capital, senão da Colônia, passaria por um processo de intensificação e ampliação. A criação da Imprensa Régia, em 1808, bem como da biblioteca real em 1810 e do museu real em 1818 apontavam para essa ampliação. Também seriam fundadas a Academia Real Militar e a Academia Real da Marinha, bem como os primeiros cursos médicos no Rio e na Bahia (ARANHA, 2006, p. 221), com a finalidade de suprir as forças armadas com profissionais da área. É importante frisar, entretanto, que as primeiras faculdades surgiriam apenas no período imperial, sendo a norma até então que os filhos dos brasileiros ricos buscassem sua formação superior em Portugal, em instituições como a Universidade de Coimbra ou a Universidade de Évora. A fundação do Jardim Botânico, em 1810, representava um interesse renovado pelos estudos naturalistas em voga à época. Em 1816, com a chegada da Missão Cultural Francesa , observou-se um interesse sem precedentes em registrar e catalogar a paisagem e o povo brasileiro. Os artistas que integravam a Missão também foram responsáveis pela fundação da Escola Nacional de Belas Artes , formando artistas brasileiros no estilo neoclássico francês, que viria a substituir o Barroco, até então hegemônico na arte local. Eventualmente as tensões políticas em Portugal levariam ao retorno de D. João VI à metrópole, deixando seu filho, D. Pedro, como regente. Em 1822, o príncipe tornou-se D. Pedro I, ao declarar o Império do Brasil como uma unidade política independente de Portugal, o que viria a ser reconhecido como legítimo pela Coroa portuguesa em 1825. O ambicioso projeto nacional do Império brasileiro envolvia, dentre outras coisas, um sistema nacional de educação pública, o qual seria, porém, preterido em favor de outras prioridades da nação emergente, como a consolidação da economia. O resultado dessa desconsideração foi um cenário de poucas escolas, geralmente instaladas em prédios pouco adequados para o número de alunos que precisavam ser atendidos. Isso era especialmente grave em decorrência de favorecer-se no Brasil do período o método do pedagogo britânico Joseph Lancaster (1778-1838).
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Figura 3 – MIGUIARA, Giovanni. Confalonieri e Silvio Pellico em uma aplicação do Método Lancaster de ensino mútuo. ca. 1860. aquarela, color. Museu Nacional do Renascimento, Torino, Itália.
Também conhecido como ensino mútuo ou monitorial, o método Lancaster era pensado para atender ao maior número possível de alunos pelo menor custo, haja vista que o professor passava a lição aos alunos “mais adiantados”, que então atuavam como monitores, auxiliando os que apresentavam maiores dificuldades com o conteúdo ensinado (ARANHA, 2006, p. 202-203). Esse método era tornado dificultoso quando as instalações não eram adequadas para acolher um número substancial de indivíduos, como era o caso dos ambientes de ensino básico do Império. A leitura do Artigo 5 o da lei imperial que diz respeito à criação de escolas primárias denuncia em si mesmo este estatuto de precarização. Art. 5o Para as escolas do ensino mútuo se aplicarão os edifícios, que couberem com a suficiência nos lugares delas, arranjando-se com os utensílios necessários à custa da Fazenda Pública e os Professores que não tiverem a necessária instrução deste ensino, irão instruir-se em curto prazo e à custa dos seus ordenados nas escolas das capitais. (BRASIL, 1878 [1827], p. 71)
Embora a Constituição de 1824 garantisse o ensino primário universal e gratuito, a lei de 1827 que tratava das condições para o ensino das primeiras letras deixava o encargo da primeira instrução para as províncias, cujas finanças eram frequentemente deficitárias para suprir o ensino em ampla escala. Deixado ao encargo das províncias, o ensino primário era pouco difundido pelas seguintes razões, dentre outras: os orçamentos provinciais eram escassos; os
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escravos eram proibidos de frequentar a escola; o curso primário não era exigido para o ingresso no secundário. (PILETTI; PILETTI, 2012, p. 102)
Além dos edifícios inadequados e das condições políticas desfavoráveis, deve-se observar ainda que o Brasil contava com poucos professores, que frequentemente não dispunham do preparo técnico para lecionar suas disciplinas em profundidade. O ensino secundário era igualmente confiado às províncias, mal financiado e, no todo, atingido pelas mesmas mazelas. O caráter do curso secundário era essencialmente propedêutico , ou seja, dirigido para o ingresso no ensino superior, não havendo preocupação com a formação integral ou mesmo erudita do aluno. Havia cursos técnicos e normais (dirigidos para a formação de educadores), mas estes atingiam poucos alunos e muitas vezes dispunham de poucos professores e instalações inadequadas. Piletti e Piletti (2012, p. 103) deixam clara a precariedade da situação do Ensino Médio profissionalizante do período ao enunciar que, em 1864, havia apenas 106 alunos matriculados no ensino técnico em todo o Império, “53 no Instituto Comercial do Rio de Janeiro, 25 no Curso Comercial de Pernambuco, 14 na Escola de Agricultura do Pará e 14 na Escola de Agricultura do Maranhão”. Uma forma relativa de centralização se deu com a fundação do Imperial Colégio de Pedro II , em 1837. Situado na capital, buscava imitar os liceus franceses da época, sendo destinado a oferecer a preparação acadêmica fundamental para os filhos da elite do país, antes de seu ingresso no ensino superior, e constituir o parâmetro a ser seguido por outros liceus do país. O Colégio Imperial era o único autorizado a realizar os exames para a obtenção do título de bacharel, imprescindível para o ingresso em cursos superiores, o que acabou por criar uma padronização no ensino secundário brasileiro, mais em termos burocráticos que de efetiva formação de conhecimento. Essa distorção fez com que o ensino secundário se desinteressasse da formação global dos alunos, tornando-se ainda mais propedêutico. Como agravante, os demais liceus provinciais precisavam adequar seus programas ao do colégio-padrão, inclusive usando os mesmos livros didáticos. Muitas vezes nem chegava a haver currículo nessas escolas, mas sim aulas avulsas das disciplinas que seriam objeto de exame. (ARANHA, 2006, p. 225)
Criava-se, assim, um ensino médio pouco significativo e preparatório em essência, esvaziado de seu sentido formativo. Uma exceção notável teria sido o já mencionado Seminário de Olinda, fundado pelo bispo Azeredo Coutinho, em 1798, e bem estabelecido como um local de intensa divulgação das ideias iluministas. Outra característica a se notar acerca do ensino secundário no Brasil da época foi a tendência crescente de escolas confessionais, nas quais o ensino se entrelaçava com a pregação de uma ideologia religiosa predominante. Na maioria dos casos nacionais, estas eram instituições católicas, mas surgiriam também instituições de administração protestante, como o Colégio Mackenzie, fundado em 1870, e o Colégio Internacional, fundado em 1873, em Campinas, sendo ambos de administração presbiteriana.
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Efetivamente, apesar do ambicioso projeto nacional de um país nascente, o Império não se revelou capaz de atender à proposta de oferecer educação a todos, ou mesmo de oferecer educação em níveis equivalentes a todos os seus escolarizados. Foram fortes demais para se superarem as contradições de um país ainda predominantemente rural e com uma parcela colossal de sua população ainda composta por escravos, gerido por uma administração que centralizava a riqueza e o poder decisório, mas não cedia às províncias os recursos necessários para que cuidassem de seus problemas educacionais à sua maneira. Em 1889 o Império veria seu fim, substituído pela república, e o país entraria em uma nova era política e econômica, enquanto novos problemas se apresentavam em todas as áreas, inclusive a educação.
Ampliando seus conhecimentos A lei imperial de 1827, descrita a seguir representa o ímpeto das elites do Brasil do século XIX de organizar o sistema educacional, revelando, ao mesmo tempo, as condições precárias em que essa organização se daria, relegando às províncias os cuidados com instalações, professores e alunos.
Lei de 15 de outubro de 1827 (Lei imperial do ensino das primeiras letras) (BRASIL, 1878, p. 71-73)
Manda crear escolas de primeiras letras em todas as cidades, villas e logares mais populosos do Imperio. Dom Pedro, por Graça de Deus, e unanime acclamação dos povos, Imperador Constitucional, e Defensor Perpetuo do Brazil: Fazemos saber a todos os nossos subditos, que a Assembléa Geral decretou, e nós queremos a lei seguinte: Art 1o Em todas as cidades, villas e logares mais populosos, haverão as escolas de primeiras letras que forem necessarias. Art 2o Os Presidentes das provincias, em Conselho e com audiencia das respectivas Camaras, emquanto não tiverem exercicio os Conselhos geraes, maracarão o numero e localidades das escolas, podendo extinguir as que existem em logares pouco populosos e remover os Professores dellas para as que se crearem, onde mais aproveitem, dando conta á Assembléa Geral para nal resolução.
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Art 3o Os Presidentes, em Conselho, taxarão inteiramente os ordenados dos Professores, regulando-os de 200$000 a 500$000 annuaes: com aen ção ás circumstancias da população e carestia dos logares, e o farão presente á Assembléa Geral para a approvação. Art 4o As escolas serão de ensino mutuo nas capitaes das provincias; e o serão tambem nas cidades, villas e logares populosos dellas, em que fór possivel estabelecerem-se. Art 5o Para as escolas do ensino mutuo se applicarão os edicios, que houverem com suciencia nos logares dellas, arranjando-se com os uten sillios necessarios á custa da Fazenda Publica e os Professores; que não tiverem a necessaria instrucção deste ensino, irão instruir-se em curto prazo e á custa dos seus ordenados nas escolas das capitaes. Art 6o Os Professores ensinarão a ler, escrever as quatro operações de arithmetica, pratica de quebrados, decimaes e proporções, as nações mais geraes de geometria pratica, a grammatica da lingua nacional, e os principios de moral chritã e da doutrina da religião catholica e apostolica romana, proporcionandos á comprehensão dos meninos; preferindo para as leituras a Cosntituição do Imperio e a Historia do Brazil. Art 7o Os que pretenderem ser providos nas cadeiras serão examinados publicamente perante os Presidentes, em Conselho; e estes proverão o que fôr julgado mais digno e darão parte ao Governo para sua legal nomeação. Art 8o Só serão admiidos á opposição e examinados os cidadãos brazilei ros que estiverem no gozo de seus direitos civis e politicos, sem nota na regularidade de sua conducta. Art 9o Os Professores actuaes não seram providos nas cadeiras que novamente se crearem, sem exame e approvação, na fórma do art. 7o. Art 10o Os Presidentes, em Conselho, cam autorizados a conceder uma graticação annual, que não exceda á terça parte do ordenado, áquelles
Professores, que por mais de doze annos de exercicio não interropindo se tiverem distinguindo por sua prudencia, desvelos, grande numero e approveitamento de discipulos.
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Educação no Brasil Colônia e no Brasil Império Art 11 o Haverão escolas de meninas nas cidades e villas mais populosas, em que os Presidentes em Conselho, julgarem necessario este estabelecimento. Art 12o As mestras, além do declarado no art 6 o , com exclusão das noções de geometria e limitando a instrucção da arithmetica só as suas quatro operações, ensinarão tambem as prendas que servem á economia domestica; e serão nomeadas pelos Presidentes em Conselho, aquellas mulheres, que sendo brazileiras e de reconhecida honestidade, se mostrarem com mais conhecimentos nos exames feitos na fórma do art. 7 o. Art 13o As mestras vencerão os mesmos ordenados e graticações conce didas aos Mestres. Art 14o Os provimentos dos Professores e Mestres serão vitalicios; mas os Professores em Conselho, a quem pertence a scalização das escolas, os poderão suspender, e só por sentenças serão demiidos, provendo intei -
ramente quem substitua. Art 15o Estas escolas serão regidas pelos estatutos actuaes no que se não oppozerem á presente lei; os catigos serão os praticados pelo methodo de Lencastre. Art 16o Na provincia, onde estiver a Côrte, pertence ao Ministro do Imperio, o que nas outras se incumbe aos Presidentes. Art 17o Ficam revogadas todas as leis, alvarás, regimentos, decretos e mais resoluções em contrario. Mandamos portanto a todas as autoridades, a quem o conhecimento e execução da referida lei pertencer, que a cumpram e façam cumprir, e guardar tão inteiramente como nella se cóntem. O Secretario de Estado dos negocios do Imperio a faça imprimir, publicar e correr. dada no Palacio do Rio de Janeiro aos 15 dias do mez de Outubro de 1872, 6 o da Independencia e do Imperio. IMPERADOR com rubrica e guarda. Visconde de S. Leopoldo. Carta de lei, pela qual Vossa Magestade da Assembléa Geral Legislativa, que Houve por bem sanccionar, sobre a creação de escolas de primeiras letras em todas as cidades, villas e logares mais populosos do imperio, na fórma acima declarada.
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Atividades 1. Explique qual foi o alcance e a relevância da Companhia de Jesus para a educação em Portugal e no Brasil.
2. O que levou à expulsão dos jesuítas de Portugal e suas colônias? Qual foi o impacto dessa medida na educação brasileira?
3. Ao criar o Colégio Pedro II, o governo imperial brasileiro criou um modelo problemático de padronização para o ensino secundário no Brasil. Explique por que esse modelo era problemático.
4. Leia a lei de 15 de outubro de 1827 e explique o que em seu texto é claramente problemático em relação ao valor de oferecer ensino primário gratuito e universal, enunciado na Constituição de 1824.
Referências ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da educação e da pedagogia – geral e Brasil. 3 ed. São Paulo: Moderna, 2006. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. São Paulo: Brasiliense, 2006. BRASIL. Collecção das Leis do Imperio do Brazil de 1827– primeira parte. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1878. CAMBI, Franco. História da pedagogia. São Paulo: FEU, 1999. CARVALHO, Laerte Ramos de. As reformas pombalinas da instrução pública. São Paulo: Saraiva/ Editora da Universidade de São Paulo, 1978. FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina: política econômica e monarquia ilustrada. São Paulo: Ática, 1993. FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EdUSP, 1995. FRANCO, José Eduardo. A reforma pombalina da Universidade Portuguesa no quadro da reforma antijesuítica da Educação. In: PEREIRA, Sara Marques (Org.). Compêndio histórico da Universidade de Coimbra. Porto: Campo das Letras, 2008. Disponível em: . Acesso em: 28 set. 2017. PILETTI, Claudino; PILETTI, Nelson. História da educação. São Paulo: Contexto, 2012. RIBEIRO, Maria Luisa Santos. História da educação brasileira: a organização escolar. Campinas: Autores Associados, 2000.
Resolução 1. A Companhia de Jesus detinha o controle dos instrumentos educacionais nas terras portuguesas, administrando colégios. Na Colônia americana, os jesuítas administravam tanto colégios, nos quais lecionavam para os lhos das elites e das classes História da Educação
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urbanas, quanto reduções, onde indígenas eram catequizados e recebiam instrução técnica e artística. Os padres da ordem ainda conseguiam atingir as senzalas, na qualidade de evangelizadores. Pode-se argumentar, deste modo, que sua esfera de inuência na Colônia era considerável.
2. Os jesuítas constituíam uma poderosa organização em Portugal e suas colônias, detendo muitos bens e grande inuência política no século XVIII, além de um monopó -
lio sobre a educação. Os colégios e outras instituições administradas pela Companhia de Jesus eram tidos como inuentes demais e perniciosos face os ideais ilustrados
que prevaleciam em Portugal na época. Isso levaria às medidas implementadas pelo Marquês de Pombal, que baniu os jesuítas, substituindo seus colégios pelas aulas régias. No curto prazo, essa mudança representou uma signicativa redução no al cance da educação na Colônia, posto que as aulas régias não dispunham da mesma estrutura.
3. O Colégio Pedro II era modelado nos liceus europeus da época e visava à formação das elites intelectuais de então, servindo também de padrão para os liceus provinciais. Como o colégio imperial era o único que podia distribuir o certicado de ba charel, necessário para o ingresso no ensino superior, a base do ensino nos colégios das províncias passou a ser a matéria cobrada nos exames, não existindo efetivamente um ensino secundário global ou erudito.
4. No texto da lei é possível observar que o Império exigia que as províncias fundassem escolas, mas os gastos para tal eram estritamente da província, bem como a qualicação dos professores deveria provir de seus próprios ordenados. Tudo isso
desencorajava o crescimento do sistema educacional para que este fosse capaz de atender a todos.
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Introdução Independente de Portugal, o Estado brasileiro emergiu sob a égide de um regime monárquico, sendo governado por dois imperadores, D. Pedro I e D. Pedro II, de 1822 a 1889. Entretanto, questões econômicas e disputas internas levariam a uma crise do regime imperial ao fim do século XIX. Dentre outros fatores, os latifundiários cafeicultores de São Paulo, que compunham um dos setores econômicos mais influentes do Brasil, ressentiam-se da abolição da escravatura, oficializada por meio da Lei Áurea, de 1888. Em 1889 a classe militar se encontrava fortalecida após a Guerra do Paraguai, um dos maiores conflitos da história do continente, e se insurgiu contra a monarquia, proclamando a então chamada República dos Estados Unidos do Brasil. História da Educação
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Teve início, dessa forma, o período da Primeira República , ou República Velha. Esse período é tradicionalmente dividido em duas etapas. A primeira, conhecida como República da Espada , consiste nos governos dos dois primeiros presidentes, Marechal Deodoro da Fonseca e Marechal Floriano Peixoto, entre os anos de 1889 e 1894. O segundo, a República Oligárquica , inicia-se com o mandato de Prudente de Moraes, o primeiro presidente civil, e se encerra com a Revolução de 1930, quando Getúlio Vargas assumiu a chefia do executivo nacional, pondo fim a uma linha de presidentes que representavam principalmente os interesses das elites econômicas de São Paulo e Minas Gerais. Ao longo das primeiras décadas do período republicano, a educação formal continuaria a ser limitada em seu alcance, atingindo principalmente as elites. Em razão da falta de recursos e profissionais qualificados, as escolas brasileiras seguiram formando intelectuais das camadas mais privilegiadas da sociedade, tal como ocorrera no período imperial. Apesar das reformas que atingiram a institucionalidade, alterando-se a distribuição do poder no território nacional, prevaleceram desigualdades e carências estruturais profundas. Assim como na área econômica, na qual preservou seu estatuto de agroexportador, na educação o Brasil também tardaria a superar os modelos excludentes de ensino. Como vimos no capítulo anterior, o regime imperial falhou em suprir o povo brasileiro com educação em ampla escala. Embora esforços de caráter oficial tenham sido feitos no início do período republicano, a maioria das escolas continuaria a operar em condições precárias, com professores mal preparados e mal remunerados, enquanto a educação formal completa permanecia uma forma de luxo, acessível principalmente às elites.
6.1 Educação e os princípios republicanos A transição da monarquia para a república não era um fenômeno isolado. Como vimos, desde o século XVIII se percebia a solidificação das fronteiras, das identidades nacionais e da influência das entidades estatais. À medida que o advento da industrialização e o crescimento do comércio dividia o mundo entre nações desenvolvidas e em desenvolvimento, as elites da Europa e da América elaboraram projetos nacionais, geralmente dirigidos para o estabelecimento de países fortes, incentivadores do progresso científico e em posse de infraestrutura avançada. A República inaugurava, pois, transformações estruturais importantes, tais como o encurtamento das distâncias com a construção de vias férreas e a expansão das já existentes, a agilização dos transportes marítimos através dos barcos a vapor, a modernização dos processos de fabrico do açúcar e a construção de engenhos, sem contar o importante avanço nos processos de beneficiamento do café que aumentaram a sua produtividade. Todas essas alterações foram decisivas no surgimento de novas relações e novos interesses na sociedade. Da mesma forma que estas mudanças, o incremento das indústrias, a urbanização e a modernização das capitais e das cidades portuárias, bem como, a imigração, contribuíram de
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algum modo para a República e para a federalização do país. (CARTOLANO, 1994, p. 94)
Esses projetos de modernização passavam por reelaborações dos modelos educacionais favorecidos até então? Qual era o pensamento em voga na Europa de fins do século XIX e início do século XX? Um dos pensadores mais relevantes dos 1800 foi o positivista Auguste Comte (1798-1857), cujo lema era “l’amour pour principe et l’ordre pour base; le progrès pour but” (“O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim”). O pensamento comtiano busca acima de tudo a ordem, ou seja, um meio social estável, capaz de ordenar o caos gerado pelas paixões humanas. Sob essa ordem social, pensava Comte, poder-se-ia construir o progresso. Emanando da França, o ideal positivista se difundiu na Europa e na América. Sua marca no Brasil seria visível na bandeira nacional. Idealizada pelo filósofo Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927), a bandeira mantinha as cores da bandeira imperial, mas substituía o brasão da casa de Orleans e Bragança por uma esfera com o dístico “Ordem e Progresso”. O design estava imbuído do pensamento em voga nos círculos intelectuais da época: a república era a via política do futuro e Igreja e Estado deviam ser entidades separadas. Os avanços científicos, responsáveis por trazer novas comodidades e ampliar o conhecimento, eram vistos como a solução para os problemas da separação entre Igreja e Estado, da inclusão social e do contínuo melhoramento do ser humano e da sociedade. A educação formal era um dos pilares do pensamento positivista. Por meio do processo educacional, o ser humano deveria superar a infância do pensamento teológico , para então avançar para o pensamento metafísico , que os positivistas situavam como o segundo estágio do desenvolvimento humano e social. A fase final, ou positiva , seria um arranjo ideal, atingido apenas quando o conhecimento, as liberdades individuais e o bem-estar coletivo se tornassem componentes universalizados da experiência humana. Em seu núcleo, o positivismo se caracterizava por um afastamento do pensamento metafísico/religioso, visando à aproximação do pensamento laico e de base experimental. Para os positivistas, era fundamental obter ideias claras com base em modelos científicos uniformes, práticos e objetivos. Esses modelos deveriam ser capazes de chegar a resultados conclusivos, sendo aplicáveis a todas as ciências. Pode-se compreender, dessa forma, o apelo da perspectiva positivista, que propunha uma educação mais técnica e aplicável, em oposição ao modelo erudito e humanista de conhecimento prevalente à época. O positivismo de Comte chegou ao Brasil em meados do século XIX. As ideias positivistas encontraram boa receptividade entre muitos oficiais do exército. Com um currículo voltado para as ciências exatas e para a engenharia, a educação se distancia da tradição humanista e acadêmica, havendo uma certa aceitação das formas de disciplina típicas do positivismo. (ISKANDAR; LEAL, 2002, p. 4)
Guiado para a objetividade, para o cientificismo e para o progresso, o positivismo apresentava um horizonte teórico para um mundo no qual a indústria se tornava um fator
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decisivo para a primazia econômica, e os setores sociais intermediários assumiam o protagonismo em detrimento de famílias aristocráticas e burocracias religiosas. Em um país como o Brasil, com um contingente crescente e cada vez mais estável de burgueses urbanos, militares e profissionais liberais, fortes interesses pressionavam por novas perspectivas para o país. Esses interesses haviam levado à derrocada do regime monárquico justamente na medida em que, em setores como o militar, se buscava um horizonte político mais moderno e menos atrelado às tradições portuguesas coloniais, ainda muito fortes durante o período imperial. Da mesma maneira que ocorria com outras instituições, o modo como as escolas haviam sido geridas precisava ser revisto. A escola jazia na base das políticas públicas que buscavam formar um país forte, produtivo, moderno e laico. A ideia de modernização pedagógica defendida e proclamada pelos reformadores assentava-se na acepção de modernidade vislumbrada como eclosão do “novo” que promoveria o rompimento com os resquícios da tradição colonial, instituindo um sentido de mudança entendida como transformação e progresso. (CAMARA; BARROS, 2006, p. 280)
O sistema educacional deveria ser uma importante ferramenta para atingir o estado de ordem e progresso tão almejado pelos positivistas, visto que a formação dos jovens cidadãos constituía um pilar do Brasil futuro. Conforme aponta Faria (2012, p. 252): As iniciativas das políticas públicas do Estado, voltadas para a escolarização do povo, foram orientadas a partir da necessidade de reinventar a escola como local para o soerguimento de um projeto nacional integrador do povo aos desígnios da nação moderna, posto que, nesse momento, a escolarização foi percebida como um instrumento de correção do processo evolutivo e como força propulsora do progresso da sociedade brasileira.
A proposta de uma sistematização mais forte para a educação nacional combinava de forma bastante consistente com o positivismo em voga, mas seria colocada à prova nas difíceis condições oferecidas pelo cenário brasileiro. O estado nacional se revelaria incapaz de suprir todo o território com profissionais habilitados, espaços de ensino adequados e outras aparelhagens que garantissem o pleno funcionamento das operações educacionais básicas. Tal como no período imperial, ocorreria um descompasso entre as exigências descritas na letra da lei e a prática efetiva.
6.2 Organização do sistema educacional brasileiro Com a transição de um regime a outro, viriam as mudanças na cúpula do poder e, consequentemente, as reformas. Na sequência da Proclamação, em 1890, Benjamin Constant , Ministro da Instrução Pública do novo governo, encabeçaria uma importante reestruturação no currículo e nos procedimentos educacionais do final do século XX. Como outros militares que eram figuras-chave da Primeira República, Constant era simpático às ideias positivistas,
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louvando seu caráter racional e experimental e sua ênfase no progresso, em oposição aos princípios de “doutrinas vagas e arbitrárias”. A Filozofia Pozitiva não é uma dessas doutrinas vagas i arbitrarias que os metafizicos tên criado, bazeando-as em ipotezes gratuitas e inverificáveis, i que só podem ter influencia passajeira; ao contrarío, é uma doutrina racionalmente fundada no raciocinio, na observação i na esperiencia, unicas fontes que podem oferecer à atividade de nosso espirito un alimento são i suculento, i os dados essenciais à sua marxa progressiva, i essa força assencional con que vemos aumentar cada vês mais o tesouro dos seus conhecimentos elevando-se gradativamente dos fenômenos os mais elementares aos fenômenos mais complicados, das leis as mais sinples às leis as mais transcendentes. (CONSTANT apud MENDES, 1894, p. 179)
Como já discutimos, o positivismo tinha certamente grande apelo em um contexto que priorizava o progresso e o fortalecimento da nação. Na capacidade de ministro sobre os assuntos educacionais do país, Constant defenderia um novo modelo de ensino. Em oposição ao ensino predominantemente propedêutico do período imperial, dedicado principalmente a preparar para o ingresso de jovens de elite no ensino superior, o ensino republicano visava também construir cidadãos produtivos para o futuro. Esse modelo seria descrito em detalhes no Decreto n. 981 , assinado pelo presidente Deodoro da Fonseca em 8 de novembro de 1890, aprovando as normativas básicas para a instrução primária e secundária. Art. 1o E’ completamente livre aos particulares, no Districto Federal, o ensino primario e secundario, sob as condições de moralidade, hygiene e estatistica definidas nesta lei. § 1o Para exercer o magisterio particular bastará que o individuo prove que não soffreu condemnação judicial por crime infamante, e que não foi punido com demissão, de conformidade com o disposto no art. 63 do presente decreto. Para dirigir estabelecimento particular de educação será exigida esta mesma prova e mais o certificado das boas condições hygienicas do edificio, passado pelo delegado de hygiene do districto. § 2o Depois de iniciados os trabalhos do ensino, os directores de estabelecimentos particulares serão obrigados a franqueal-os á visita das autoridades incumbidas da inspecção escolar e da inspecção hygienica, e a remetter á Inspectoria Geral mappas semestraes declarando o numero de alumnos matriculados, sua frequencia, quaes os programmas e livros adoptados, e os nomes dos professores. § 3o Na parte relativa ao ensino, a inspecção dos estabelecimentos particulares limitar-se-ha a verificar que elle não seja contrario á moral e á saude dos alumnos. § 4o E› inteiramente livre e fica isento de qualquer inspecção official o ensino que, sob a vigilancia dos paes ou dos que fizerem suas vezes, for dado ás crianças no seio de suas familias. (BRASIL, 1890)
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É importante notar que a lei reconhece a precariedade das condições de formação de educadores no país, ao estabelecer como critério para o exercício do magistério que os candidatos não tenham sofrido condenações criminais. O Artigo 14 estabelece que estes deveriam ter ao menos os três primeiros anos do curso Normal e um ano de prática na escola de aplicação para atuar como professor-adjunto; o curso completo era exigido para o título de professor primário. De diretores, exigia-se ainda a comprovação de que o local da escola apresentava condições adequadas para operar como tal. Tal como no período imperial, as condições em que essas escolas operavam não eram necessariamente as mais favoráveis. Um professor reunia um grupo de alunos, frequentemente com níveis diferentes de aprendizado, requisitando uma cadeira de instrução primária para o estabelecimento de um local de ensino. Assim funcionavam as escolas isoladas. Ao mesmo tempo que o professor atuava como um funcionário público, remunerado e fiscalizado pelo Estado, fundamental era sua relação de proximidade e confiança com a comunidade local, à qual atendia diretamente. Logo começariam a ser implantados os grupos escolares , um experimento que tinha a intenção de efetivamente superar os contornos “improvisados” herdados ainda das escolas da época imperial. Os grupos deveriam criar uma nova identidade escolar, operando com infraestrutura mais sólida, onde fosse possível submeter professores e alunos a sistemas pedagógicos mais centralizados. O decreto de 1890 também tratava dos conteúdos a serem ofertados. O Artigo 3 o estabelece, para as escolas primárias de primeiro grau, “que abrange três cursos”, o currículo a seguir: Leitura e escripta; Ensino pratico da lingua portugueza; Contar e calcular. Arithmetica pratica até regra de tres, mediante o emprego, primeiro dos processos espontaneos, e depois dos processos systematicos; Systema metrico precedido do estudo da geometria pratica (tachymetria); Elementos de geographia e historia, especialmente do Brazil; Lições de cousas e noções concretas de sciencias physicas e historia natural; Instrucção moral e civica; Desenho; Elementos de musica; Gymnastica e exercicios militares; Trabalhos manuaes (para os meninos); Trabalhos de agulha (para as meninas); Noções praticas de agronomia. (BRASIL, 1890)
O currículo, bastante extenso, não se restringe, como as listas tradicionais, aos estudos das primeiras letras e das humanidades, incorporando uma variedade de disciplinas, muitas delas, como Trabalhos manuaes e Noções praticas de agronomia , dirigidas especificamente
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para a formação ao trabalho. O friso “especialmente do Brazil”, no que se refere aos estudos de Geografia e História, evidencia o forte ufanismo prevalente na época, e o nome Lições de cousas e noções concretas de sciencias physicas e historia natural evidencia o desejo de construir um aprendizado científico sistemático e aplicável. O ensino primário de 2 o grau compreenderia ainda disciplinas como Caligrafia, Elementos de língua francesa, Desenho de ornato, de paisagem, figurado e topográfico e Noções de direito pátrio e de economia política (BRASIL, 1890). O currículo secundário, por sua vez, se desdobrava da seguinte forma: Art. 26. O curso integral de estudos do Gymnasio Nacional será de sete annos, constando das seguintes disciplinas: Portuguez; Latim; Grego; Francez; Inglez; Allemão; Mathematica; Astronomia; Physica; Chimica; Historia natural; Biologia; Sociologia e moral; Geographia; Historia universal; Historia do Brazil; Litteratura nacional; Desenho; Gymnastica, evoluções militares e esgrima; Musica. (BRASIL, 1890)
Um currículo semelhante, para os cursos normais, é descrito no Artigo 12: Paragrapho unico. O curso da Escola Normal comprehenderá as seguintes disciplinas: Portuguez, noções de litteratura nacional e elementos de lingua latina; Francez; Geographia e historia, particularmente do Brazil; Matematica elementar;
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Pode-se observar um discurso ambicioso nas reformas propostas por Benjamin Constant e oficializadas pelo primeiro governo republicano do país. Com a intenção de criar uma nova identidade nacional, caracterizada por modernidade e progresso, o novo governo pretendia inaugurar uma nova era educacional, distanciando-se dos problemas constantes do período imperial. Figura 1 – Benjamin Constant (1836-1891).
Fonte: Le Monde Ilustré/ Wikimedia Commons.
Entretanto, não se pode dizer que as reformas resultaram em uma expansão decisiva ou uma experiência realmente transformadora do ensino brasileiro. Essa incapacidade de gerar mudanças efetivas afetaria a educação da Primeira República até a década de 1930, quando críticas severas de educadores e outros setores intelectuais levariam a novas considerações acerca do sistema vigente.
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6.3 O manifesto dos pioneiros da Educação Nova Em 1930, um movimento político nacional pôs fim à República Velha e à hegemonia das elites de São Paulo e Minas Gerais sobre a presidência do Brasil. O resultado final da Revolução de 1930 seria a ascensão do gaúcho Getúlio Vargas à liderança do país, posto no qual permaneceria até 1945. Novamente, esse seria um período de transformações para o país, e as contradições do sistema educacional da Primeira República seriam apontadas por intelectuais da época. Proponentes da Escola Nova , uma tendência em voga na Europa e nos Estados Unidos, como Fernando de Azevedo (1894-1974) e Lourenço Filho (1897-1970), militariam em prol de uma nova abordagem pedagógica no Brasil. Outro pensador significativo desse movimento foi Anísio Teixeira (1900-1971), que, em uma viagem aos Estados Unidos, entrou em contato com o pensamento de John Dewey (1859-1952). Dewey, como vimos anteriormente, era um pragmático , defendendo que os processos de aprendizagem eram mais eficientes por meio da prática e da contextualização que pela memorização tradicional. Teixeira se tornaria um dos maiores porta-vozes de um sistema de ensino público universal em todos os níveis de ensino. Com efeito, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova , redigido por Azevedo e assinado por 26 intelectuais, incluindo Teixeira, defendia abertamente o ensino público pleno, sendo necessário que fosse também gratuito e laico, além de obrigatório e único, a fim de garantir o acesso livre e igual aos benefícios da educação, independentemente da classe social do estudante: “A laicidade, gratuidade, obrigatoriedade e coeducação são outros tantos princípios em que assenta a escola unificada e que decorrem tanto da subordinação à finalidade biológica da educação de todos os fins particulares e parciais (de classes, grupos ou crenças)” (AZEVEDO et al., 2006 [1932], p. 193). Com uma postura tão bem delineada e atípica para o cenário predominante, a tendência escolanovista tinha seus opositores. As escolas confessionais, que ocupavam um papel proeminente na formação dos jovens de elite, discordavam da ênfase que os progressistas davam ao ensino laico. Jonathas Serrano, um célebre educador marcado por um cristianismo subjacente, opôs-se ao suposto agnosticismo da Escola Nova: Se é exato que uma pedagogia completa supõe uma filosofia completa, uma visão da vida em suas perspectivas morais e religiosas, um conceito integral do homem e de seu destino definitivo – como esperar que possa porventura realizar satisfatoriamente as exigências todas dessa pedagogia um sistema educacional deliberadamente agnóstico, ou apenas leigo, mas em qualquer dos casos incapaz de ver na criança o homem concreto, ainda em formação, sem dúvida, porém, já com as suas tendências mais profundas, entre as quais a de ordem religiosa. (SERRANO, 1932, p. 106)
Apesar das polêmicas envolvendo as propostas desses pensadores, o ambiente educacional brasileiro veio a favorecer os escolanovistas. A criação da disciplina de Estudos Sociais nas escolas primárias, como forma de substituição à História e à Geografia, é um exemplo de influência da Escola Nova na institucionalidade educacional brasileira. O propósito da História da Educação
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disciplina, que envolvia aspectos de uma ampla gama de interesses das Ciências Humanas, era formar indivíduos observadores e criativos. Na prática, contudo, a implementação de ideias novas sempre se depararia com as dificuldades estruturais próprias do cenário brasileiro, que somente viriam a ser superadas à medida que, com o passar das décadas, a disponibilidade de escolas, salas de aula e professores com formação mínima aumentasse consideravelmente. Não se pode minimizar, porém, os efeitos de longo prazo do manifesto. A ideia de uma educação fundamentalmente pública e gratuita, erigida para atender a todos, não apenas aos herdeiros da elite, era um dos pontos centrais do manifesto, e permanece uma das questões centrais da discussão sobre educação no Brasil atual. A gratuidade extensiva a todas as instituições oficiais de educação é um princípio igualitário que torna a educação, em qualquer de seus graus, acessível não a uma minoria, por um privilégio econômico, mas a todos os cidadãos que tenham vontade e estejam em condições de recebê-la. Aliás o Estado não pode tornar o ensino obrigatório, sem torná-lo gratuito. (AZEVEDO et al., 2006 [1932], p. 193-194)
Para além da questão da gratuidade, da obrigatoriedade e da isonomia do ensino, o tópico da laicidade do meio educacional permanece tão relevante atualmente quanto na primeira metade do século passado. O argumento de escolanovistas como Teixeira e Azevedo pela laicidade era que o meio educacional deveria ser um espaço de aprendizado livre de dogmatismos, no qual o conhecimento pudesse florescer de forma livre de pressões sectárias. A laicidade, que coloca o ambiente escolar acima de crenças e disputas religiosas, alheio a todo o dogmatismo sectário, subtrai o educando, respeitando-lhe a integridade da personalidade em formação, à pressão perturbadora da escola quando utilizada como instrumento de propaganda de seitas e doutrinas. (AZEVEDO et al., 2006 [1932], p. 193)
Os pioneiros da Escola Nova não constituíam necessariamente uma frente sólida e indivisível, mas foram capazes de manter coesão suficiente para se posicionarem contra o que viam como insuficiências e pontos problemáticos do sistema educacional vigente. Se o impacto de suas propostas demorou a ser amplamente sentido, sua postura crítica foi certamente importante para movimentações futuras no cenário educacional brasileiro.
Ampliando seus conhecimentos Lançado em 1932, o Manifesto dos Pioneiros da Educação é um documento que aponta problemas acerca do sistema educacional brasileiro vigente e sugere caminhos para a superação dessas diculdades. Redigido por
Fernando de Azevedo, o documento foi assinado por 26 intelectuais, incluindo Anísio Teixeira e Cecília Meirelles, e tornaria visível a demanda por uma educação laica, pública e gratuita por uma parcela signicativa
da intelectualidade brasileira da época. 98 História da Educação
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O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932) (AZEVEDO et al., 2006 [1932], p. 191-194)
[...]
Finalidades da educação Toda a educação varia sempre em função de uma “concepção da vida”, reetindo, em cada época, a losoa predominante que é determinada,
a seu turno, pela estrutura da sociedade. É evidente que as diferentes camadas e grupos (classes) de uma sociedade dada terão respectivamente opiniões diferentes sobre a “concepção do mundo”, que convém fazer adotar ao educando e sobre o que é necessário considerar como “qualidade socialmente útil”. O m da educação não é, como bem observou
G. Davy, “desenvolver de maneira anárquica as tendências dominantes do educando; se o mestre intervém para transformar, isto implica nele a representação de um certo ideal à imagem do qual se esforça por modelar os jovens espíritos”. Esse ideal e aspiração dos adultos toma-se mesmo mais fácil de apreender exatamente quando assistimos à sua transmissão pela obra educacional, isto é, pelo trabalho a que a sociedade se entrega para educar os seus lhos. A questão primordial das nalidades da edu cação gira, pois, em torno de uma concepção da vida, de um ideal, a que devem conformar-se os educandos, e que uns consideram abstrato e absoluto, e outros, concreto e relativo, variável no tempo e no espaço. Mas, o exame, num longo olhar para o passado, da evolução da educação através das diferentes civilizações, nos ensina que o “conteúdo real desse ideal” variou sempre de acordo com a estrutura e as tendências sociais da época, extraindo a sua vitalidade, como a sua força inspiradora, da própria natureza da realidade social. Ora, se a educação está intimamente vinculada à losoa de cada época, que lhe dene o caráter, rasgando sempre novas perspectivas ao pensa -
mento pedagógico, a educação nova não pode deixar de ser uma reação categórica, intencional e sistemática contra a velha estrutura do serviço educacional, articial e verbalista, montada para uma concepção vencida.
Desprendendo-se dos interesses de classes, a que ela tem servido, a educação perde o “sentido aristológico”, para usar a expressão de Ernesto Nelson, deixa de constituir um privilégio determinado pela condição econômica e social do indivíduo, para assumir um “caráter biológico”, com que ela se organiza para a coletividade em geral, reconhecendo a todo o
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indivíduo o direito a ser educado até onde o permitam as suas aptidões naturais, independente de razões de ordem econômica e social. A educação nova, alargando a sua nalidade para além dos limites das classes,
assume, com uma feição mais humana, a sua verdadeira função social, preparando-se para formar “a hierarquia democrática” pela “hierarquia das capacidades”, recrutadas em todos os grupos sociais, a que se abrem as mesmas oportunidades de educação. Ela tem, por objeto, organizar e desenvolver os meios de ação durável com o m de “dirigir o desenvol vimento natural e integral do ser humano em cada uma das etapas de seu crescimento”, de acordo com uma certa concepção do mundo. [...]
O Estado em face da educação a) A educação, uma função essencialmente pública
Mas, do direito de cada indivíduo à sua educação integral, decorre logicamente para o Estado que o reconhece e o proclama, o dever de considerar a educação, na variedade de seus graus e manifestações, como uma função social e eminentemente pública, que ele é chamado a realizar, com a cooperação de todas as instituições sociais. A educação que é uma das funções de que a família se vem despojando em proveito da sociedade política, rompeu os quadros do comunismo familiar e dos grupos especícos (instituições privadas), para se incorporar denitivamente entre
as funções essenciais e primordiais do Estado. Esta restrição progressiva das atribuições da família, – que também deixou de ser “um centro de produção” para ser apenas um “centro de consumo”, em face da nova concorrência dos grupos prossionais, nascidos precisamente em vista
da proteção de interesses especializados”, – fazendo-a perder constantemente em extensão, não lhe tirou a “função especíca”, dentro do “foco interior”, embora cada vez mais estreito, em que ela se connou. Ela é
ainda o “quadro natural que sustenta socialmente o indivíduo, como o meio moral em que se disciplinam as tendências, onde nascem, começam a desenvolver-se e continuam a entreter-se as suas aspirações para o ideal”. Por isto, o Estado, longe de prescindir da família, deve assentar o trabalho da educação no apoio que ela dá à escola e na colaboração efetiva entre pais e professores, entre os quais, nessa obra profundamente social, tem o dever de restabelecer a conança e estreitar as relações, associando
e pondo a serviço da obra comum essas duas forças sociais – a família e a escola, que operavam de todo indiferentes, senão em direções diversas e ás vezes opostas.
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b) A questão da escola única
Assentado o princípio do direito biológico de cada indivíduo à sua educação integral, cabe evidentemente ao Estado a organização dos meios de o tornar efetivo, por um plano geral de educação, de estrutura orgânica, que torne a escola acessível, em todos os seus graus, aos cidadãos a quem a estrutura social do país mantém em condições de inferioridade econômica para obter o máximo de desenvolvimento de acordo com as suas aptidões vitais. Chega-se, por esta forma, ao princípio da escola para todos, “escola comum ou única”, que, tomado a rigor, só não cará na
contingência de sofrer quaisquer restrições, em países em que as reformas pedagógicas estão intimamente ligadas com a reconstrução fundamental das relações sociais. Em nosso regime político, o Estado não poderá, de certo, impedir que, graças à organização de escolas privadas de tipos diferentes, as classes mais privilegiadas assegurem a seus lhos uma educa ção de classe determinada; mas está no dever indeclinável de não admitir, dentro do sistema escolar do Estado, quaisquer classes ou escolas, a que só tenha acesso uma minoria, por um privilegio exclusivamente econômico. Afastada a ideia do monopólio da educação pelo Estado num país, em que o Estado, pela sua situação nanceira não está ainda em condições
de assumir a sua responsabilidade exclusiva, e em que, portanto, se torna necessário estimular, sob sua vigilância as instituições privadas idôneas, a “escola única” se entenderá, entre nós, não como “uma conscrição precoce”, arrolando, da escola infantil à universidade, todos os brasileiros, e submetendo-os durante o maior tempo possível a uma formação idêntica, para ramicações posteriores em vista de destinos diversos, mas antes como a escola ocial, única, em que todas as crianças, de 7 a 15, todas ao menos que, nessa idade, sejam conadas pelos pais à escola pública,
tenham uma educação comum, igual para todos. c) A laicidade, gratuidade, obrigatoriedade e coeducação
A laicidade, gratuidade, obrigatoriedade e coeducação são outros tantos princípios em que assenta a escola unicada e que decorrem tanto da subordinação à nalidade biológica da educação de todos os ns particu -
lares e parciais (de classes, grupos ou crenças), como do reconhecimento do direito biológico que cada ser humano tem à educação. A laicidade, que coloca o ambiente escolar acima de crenças e disputas religiosas, alheio a todo o dogmatismo sectário, subtrai o educando, respeitando-lhe a integridade da personalidade em formação, à pressão perturbadora da escola quando utilizada como instrumento de propaganda de seitas e doutrinas. A gratuidade extensiva a todas as instituições ociais de educação é um
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princípio igualitário que torna a educação, em qualquer de seus graus, acessível não a uma minoria, por um privilégio econômico, mas a todos os cidadãos que tenham vontade e estejam em condições de recebê-la. Aliás o Estado não pode tornar o ensino obrigatório, sem torná-lo gratuito. A obrigatoriedade que, por falta de escolas, ainda não passou do papel, nem em relação ao ensino primário, e se deve estender progressivamente até uma idade conciliável com o trabalho produtor, isto é, até aos 18 anos, é mais necessária ainda “na sociedade moderna em que o industrialismo e o desejo de exploração humana sacricam e violentam a criança e o jovem”,
cuja educação é frequentemente impedida ou mutilada pela ignorância dos pais ou responsáveis e pelas contingências econômicas. A escola uni cada não permite ainda, entre alunos de um e outro sexo outras separações que não sejam as que aconselham as suas aptidões psicológicas e pros sionais, estabelecendo em todas as instituições “a educação em comum” ou coeducação, que, pondo-os no mesmo pé de igualdade e envolvendo todo o processo educacional, torna mais econômica a organização da obra escolar e mais fácil a sua graduação. [...]
Atividades 1. O que caracterizava o pensamento republicano como diferente, e em que sentido isso repercutiu em uma visão diferente e moderna de educação?
2. Que intenções para o sistema educacional eram expostas nas reformas instituídas por Benjamin Constant? Essas intenções se concretizaram? Por quê?
3. Como era organizado o sistema educacional brasileiro com base no modelo de escolas isoladas e grupos escolares?
4. Que modelo de educação pública era defendido pelo Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova? Qual foi a relevância do Manifesto e por que ele
foi alvo de críticas?
Referências ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da educação e da pedagogia – geral e Brasil. 3 ed. São Paulo: Moderna, 2006. AZEVEDO, Fernando et al. O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932). Revista HISTEDBR On-line , Campinas, n. especial, p. 188-204, ago. 2006. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. São Paulo: Brasiliense, 2006.
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Resolução 1.
O pensamento republicano era amplamente inuenciado por uma das principais
correntes intelectuais do século XIX, o positivismo comtiano. As ideias positivistas giraram em torno dos princípios de ordem e progresso, e defendiam que os avanços cientícos e tecnológicos seriam a chave para o estabelecimento de um país forte e
moderno, e de uma sociedade pautada na ordem e no melhoramento dos costumes, livre do pensamento religioso/metafísico. O pensamento positivista era, portanto, essencialmente laico e cienticista.
No campo educacional, o pensamento republicano positivista repercute principalmente em iniciativas reformistas, que conduzem a educação brasileira para um favorecimento de aspectos técnicos e ciências exatas, em contraposição ao reforço dado às humanidades em modelos de educação mais tradicionais. Objetivava-se, com isso, atingir uma educação menos erudita e mais concreta, objetiva e funcional para o futuro do país.
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2. As reformas de Benjamin Constant buscavam implementar na instrução formal básica brasileira um modelo essencialmente positivista, baseado na racionalidade e na experimentação, e não na característica dogmática dos saberes religiosos e metafísicos. Esse modo de pensar estava no centro de uma reestruturação do ensino nacional, que seria descrita no Decreto 981, de 8 de novembro de 1890, no qual se observam exigências acerca dos critérios de formação e scalização de professores e
diretores de escolas, bem como das disciplinas a serem ensinadas em cursos primários, secundários e normais. Na prática, as reformas encontrariam diculdades para serem efetivamente imple -
mentadas, posto que frequentemente não existiam condições adequadas para a instalação de escolas, o que incluía edifícios bem equipados e prossionais devidamen te preparados.
3. Os professores, com formação parcial ou completa no curso normal, requisitavam uma cadeira de instrução básica para ofertar o curso à comunidade que precisava ser atendida. Assim, eram formadas as escolas isoladas, com a nalidade de suprir
alunos locais. As classes consistiam de alunos de diferentes níveis de aprendizado, e as aulas eram muitas vezes desenvolvidas em ambientes improvisados, tal como ocorrera anteriormente, no período imperial. Já os grupos escolares eram um experimento que tinha a intenção de efetivamente superar os contornos “improvisados” herdados ainda das escolas da época imperial. Os grupos deveriam criar uma nova identidade escolar, operando com infraestrutura mais sólida, onde fosse possível submeter professores e alunos a sistemas pedagógicos mais centralizados.
4. O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova abordava as insuciências de um siste ma educacional ainda demasiado “tradicional” e incapaz de satisfazer as demandas sociais da época. O texto defende que a educação tem o papel social de preparar os indivíduos da melhor maneira possível conforme as demandas do pensamento de sua época. Defende também ser a educação uma função essencialmente pública, a qual deve ser proporcionada gratuitamente a todos, sendo obrigatória e laica, a m
de garantir que os dogmas religiosos não se sobreponham à formação do estudante. Enquanto reconhece não ser propriamente possível o monopólio do Estado na educação de um país, o manifesto defende ainda que se estimule uma escola “única”, de modo que haja um componente de isonomia na formação de todos, colaborando para a manutenção dos direitos individuais, apesar das desigualdades sociais. Os defensores da educação nova foram alvos de críticas por parte de educadores com uma visão mais tradicional de ensino e dos proponentes da educação confessional, membros de organizações religiosas, as quais eram responsáveis em grande parte pela administração de colégios Brasil afora, nos quais não trabalhavam conforme o princípio da laicidade. 104 História da Educação
7 Segunda República: educação populista e ditadura (1930-1985)
Introdução A virada do século XIX para o XX foi um período marcado intensamente por transformações sociais e desenvolvimentos tecnológicos. O surgimento de uma ampla gama de dispositivos comunicacionais e meios de transporte, tal como o crescimento de movimentos pela ampliação dos direitos civis, acarretou também intensas mudanças na percepção das sociedades acerca de si mesmas e da educação que desejavam. A transição do regime imperial para o republicano caracterizou uma das transformações mais marcantes que o Brasil viveu nesse período. A imposição de princípios como a democracia, o amplo direito e a laicidade do Estado, além das ideias cientificistas advindas do pensamento positivista francês, revelaram o alcance da influência estrangeira sobre as elites nacionais. Ao mesmo tempo, o ímpeto reformista se chocou com imensas dificuldades: a extensão e a heterogeneidade do território brasileiro, tal como a permanência de atitudes e preconceitos do período monárquico. História da Educação
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Como vimos, porém, o Brasil se tornou um regime republicano mais por força de alguns setores que por clamor popular, e mesmo fundamentado em um projeto nacional ambicioso, revelou-se incapaz de efetivar tudo que planejava no campo educacional. A chegada de Getulio Vargas ao poder marcou uma grande transição para a jovem república. O primeiro governo varguista (1930-1945), em especial a fase mais autoritária iniciada em 1937, conhecida como Estado Novo , demonstrou um caráter fortemente anticomunista e nacionalista. Essa onda crescente de nacionalismo sobreviveu ao Estado Novo, sendo um componente fundamental dos governos de caráter nacional-desenvolvimentista e populista da República Nova (1946-1963), assim como de seus sucessores, os governos representantes da ditadura militar, a qual foi instaurada no país após o Golpe de 1964 , estendendo-se até 1985. Embora os projetos educacionais desenvolvidos ao longo desse período certamente não sejam uniformes, por apresentarem uma diversidade de ângulos ideológicos e abordagens, também é perceptível que todos tinham em comum um forte caráter nacionalista. De modo geral, a educação formal era percebida como uma ferramenta para modelar o “Brasil do futuro”, um país unido por um projeto de desenvolvimento. Os desdobramentos desses projetos nacionais podem ser sentidos até os dias de hoje, quando os princípios que os originaram e seus resultados são ainda invocados em discussões sobre os rumos que o Brasil deseja assumir para seu futuro educacional.
7.1 Educação populista O governo de Getulio Vargas teve início em 1930, mas assumiu um caráter nitidamente centralizador a partir de 1937, pois adotou uma postura predominantemente autoritária e ufanista. Francisco Campos, primeiro a assumir o recém-criado Ministério da Educação e Saúde, implementou reformas universitárias, o que incluiu a organização de cursos e reorganizou o ensino básico em um ciclo fundamental, de cinco anos, e um ciclo médio, de dois anos, cujo caráter era preparatório para o ingresso no ensino superior. Também foi criado o Conselho Nacional de Educação e, ao menos na letra da lei, a formação e admissão de professores passou a ser mais rigorosa. O sucessor de Campos foi o político mineiro Gustavo Capanema , que assumiu a cadeira de Saúde e Educação em 1934 e manteve o controle desta até 1947. Ele seguiu com a ampla reforma do ensino brasileiro das primeiras letras ao ensino superior.
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Figura 1 – Gustavo Capanema, Ministro da Educação do Brasil de 1934 a 1945.
Fonte: Wikimedia Commons.
O ministro Capanema materializou a proposta getulista no campo educacional brasileiro ao abordar a educação formal como uma poderosa ferramenta para a formação de uma identidade nacional ufanista, coesa e bem estabelecida. Se o governo Vargas buscava implantar um estado brasileiro produtivo, economicamente poderoso e orgulhoso de sua herança nacional, a educação do país deveria instrumentalizar os cidadãos em formação para construir e manter esse estado. Conforme aborda Bomeny (1999, p. 138): A reforma da educação passou pela elaboração de um Plano Nacional de Educação que teve como base os resultados de um grande inquérito sobre a educação nacional. Em maio de 1937, o Conselho Nacional de Educação encaminha a Capanema o texto final do plano, que é enviado pelo presidente da República ao Congresso para aprovação.
Entre as décadas de 1920 e 1930, o cenário brasileiro havia visto o florescimento de inúmeras propostas educacionais locais, predominantemente empíricas, mas localizadas, muitas delas por pensadores da linha ideológica da Escola Nova, como Anísio Teixeira. Não havia, entretanto, uma sistematização generalizada do ensino brasileiro, que era justamente o que Capanema buscava empreender.
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O Manifesto dos Pioneiros foi uma forte influência no pensamento educacional dos anos 1930, mas este entraria ainda em conflito com o pensamento dos educadores católicos da mesma época. Os setores militares também passaram a exercer sua influência nas discussões sobre educação, ressaltando a importância de uma formação moral e patriótica para os jovens. Dessas tensões emergiu um ensino predominantemente conservador, implementado por Capanema, visto que era demonstrado um forte caráter de inculcação cívica à formação dos alunos. O estímulo ao patriotismo, o uso de símbolos nacionais e comemorações das datas nacionais também são pontos destacados na legislação federal. Militares que participaram da campanha deram especial atenção ao civismo como instrumento de assimilação e meio de formação de uma “consciência nacional”. Nesse aspecto, a questão educacional extrapola os limites da escola para chegar à população adulta através de solenidades públicas de exaltação aos símbolos e heróis nacionais. (SEYFERTH, 1999, p. 220)
Assim, a proposta federal reforçava a importância de unificar a população em torno de uma identidade nacional cristalizada em datas, hinos, lemas, e imagens comemorativas. Tradicionalmente, esse caráter nacionalista impregnava todo o ensino formal, inclusive presente na alfabetização de crianças por meio do estudo de documentos oficiais e narrativas acerca da formação do país. Entretanto, destacava-se, nesse sentido, o ensino da disciplina de História, à qual servia o papel de perpetuar entre os alunos a glorificação de um passado que desembocava na configuração do país como tal, conforme argumenta Hollanda (1957, p. 18): conquanto pertença a todas as disciplinas do curso a formação da consciência social do aluno, é nos estudos de História que mais eficazmente se realiza a educação política, baseada na clara compreensão das necessidades de ordem coletiva e no conhecimento das origens, dos caracteres e da estrutura das atuais instituições políticas e administrativas.
Mas a que se prestava esse modelo educacional? Em muitos sentidos podem se notar permanências da visão positivista de uma educação edificante, a qual sempre buscou moldar o indivíduo para a sociedade, enquanto agente produtivo e cidadão alinhado com o senso de moralidade prevalente. Entretanto, a partir do pensamento populista de Getulio e seus sucessores imediatos, mostrou-se uma preocupação genuína com a universalização da educação básica no território nacional. A influência católica era perceptível na forte veia anticomunista que permeava o modelo de ensino apregoado, tal como outros aspectos da vida social. A ideologia de base desse modelo era: Formar um “homem novo” para um Estado Novo, conformar mentalidades e criar o sentimento de brasilidade, fortalecer a identidade do trabalhador, [...] forjar uma identidade positiva no trabalhador brasileiro, tudo isso fazia parte de um grande empreendimento cultural e político para o sucesso do qual contava-se estrategicamente com a educação por sua capacidade universalmente reconhecida de socializar os indivíduos nos valores que as sociedades, através de seus segmentos organizados, querem ver internalizados. (BOMENY, 1999, p. 139)
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Com os decretos-lei assinados entre 1942 e 1946, denominados Leis Orgânicas do Ensino , instituiu-se propriamente a Reforma Capanema (ARANHA, 2006, p. 307). Apesar de problemas operacionais em sua implementação, uma constante na realidade brasileira a essa altura, as leis previam a ampliação das escolas normais, tal como a reestruturação do curso secundário para quatro anos de ginásio (equivalente aos atuais 6 o a 9o anos do Fundamental) e três anos de colegial , que foi dividido entre clássico (enfatizando as Humanidades) e científico (com predominância de Ciências Exatas e da Natureza). A divisão deixava claro que o papel do Ensino Médio era preparar os alunos para rumos universitários específicos. Como vimos em capítulos anteriores, a educação de um povo reflete em grande parte os valores que esse povo apregoa ou que ambiciona possuir. O caso brasileiro busca formar indivíduos ordeiros e trabalhadores, respeitadores do senso de moral dominante. Como é possível observar no texto do Decreto-Lei n. 8.529, de 1946, o ensino incorporava disciplinas dirigidas para a formação acadêmica, presumivelmente com vistas para o estudo de engenharias (Aritmética e Geometria e Desenho), assim como uma disciplina voltada para o “conhecimento do Brasil” (Geografia e História do Brasil) e também Noções de Direito Usual, que ambicionava introduzir os alunos em aspectos legalistas da vida prática. A presença ainda do estudo de economia doméstica e puericultura1 para as mulheres evidenciava a visão tradicional de que, muito além da formação profissional e cidadã, as jovens estavam sendo educadas para serem esposas e mães. O layout do currículo, aliás, sempre esteve sujeito a infindáveis debates. Uma questão premente para os governos populistas de Getulio e seus sucessores imediatos era uma que ainda aflige as discussões educacionais no Brasil: O que e para que ensinar? Conforme a perspectiva universalista e desenvolvimentista que se seguiu à Primeira República, não convinha mais buscar um modelo puramente acadêmico de formação, de matriz humanista, que outrora havia servido principalmente para preparar os filhos da elite para a faculdade. Ao mesmo tempo, enquanto se buscava formar futuros trabalhadores, esse público de elite, futuros universitários, precisava de uma preparação tradicional. A resposta do escritório de Capanema seria estimular uma “bifurcação” no sistema. O Estado Novo resolveria o problema com uma solução engenhosa. Ao lado da reforma do ensino secundário, onde acabou prevalecendo a matriz clássica humanista, montou-se todo um sistema de ensino profissional, de ensino industrial que deu origem ao que conhecemos hoje como “Sistema S”, ou seja, os Senai, Senac, Sesi etc. Coroando todo esse empreendimento, o ministério reestruturaria o ensino superior, criando e dando corpo ao grande projeto universitário. (BOMENY, 1999, p. 138)
Assim, enquanto as escolas-padrão preparavam seus alunos ainda de maneira relativamente tradicional, embora visivelmente reformada e dirigida para uma perspectiva de país unido e ufanista, a indústria mantinha serviços de formação que garantiam a inserção de 1 Conjunto de noções e técnicas voltadas para o cuidado (médico, higiênico, nutricional etc.) das crianças pequenas. História da Educação
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amplos contingentes no campo da indústria, uma área que, em um país predominantemente rural, os governos populistas pretendiam estimular. Houve a emergência de movimentos renovadores e de colégios experimentais no período imediatamente posterior ao Estado Novo, quando o autoritarismo getulista deu lugar à maior abertura. Entretanto, a norma que prevaleceu preservou grandemente a estrutura então estabelecida. É válido salientar que, apesar da ampliação e da sistematização da educação nacional, as divisões propostas por Capanema perpetuariam em muito a segregação social, pois instituiu uma escola para aqueles que buscavam a universidade e a ascensão social, e outra para aqueles que não tinham opção senão o ingresso imediato no mercado de trabalho.
7.2 Educação e ditadura militar O regime militar estabelecido a partir do Golpe de 1964 representou a ascensão de uma onda conservadora, a qual não era representada apenas por lideranças entre as fileiras militares, mas por grande parte da sociedade brasileira, incluindo setores do clero e das classes médias. Esses setores apoiaram amplamente o golpe e seus perpetradores, frequentemente temerosos da emergência de um governo comunista, temor este, como vimos, alimentado desde os tempos do Estado Novo. Esse apoio à instauração do golpe se estendeu às medidas adotadas pelo regime, inclusive no tocante à educação, especialmente porque era visível o descompasso do nível de instrução formal dos brasileiros e do Brasil moderno que se buscava construir. Reformas apresentavam-se como necessárias, e os militares assumiram o poder com a pretensão de resolver esse descompasso. Assim, o regime ditatorial apresentou como necessária uma reestruturação, a fim de trazer o Brasil para a modernidade econômica. Mas em que consistiram essas reformas? Primeiramente, as demandas sociais das classes de base, como direitos trabalhistas e melhores condições de vida, princípios tão importantes para a manutenção dos regimes populistas das décadas anteriores, passaram a ser vistos como ameaças, imediatamente relacionados ao pensamento socialista. O contexto era da Guerra Fria , que converteu o planeta em palco das tensões entre as potências políticas e militares entre Estados Unidos e União Soviética, dividindo-o violentamente entre dois espectros ideológicos. E, nesse contexto, o alinhamento político dominante no Brasil, qual seja, o do modelo estadunidense e capitalista, requeria a supressão de quaisquer manifestações divergentes. Em razão disso, a educação prevalente no período do regime militar se desdobrou em duas frentes: ao mesmo tempo em que mantinha fortes políticas repressivas ao suprimir formas de pensamento diferentes do padrão desejado, estimulava princípios que sustentavam o desenvolvimento econômico e a modernização desejada para promover o avanço capitalista do Estado brasileiro. Na prática, essa postura resultou em um padrão de educação de Estado que era mecânico antes de dialogado, e fortemente tecnocrático. Conforme as palavras de Ianni (1979, p. 288), acerca desse projeto nacional, “em um dos seus polos estaria 110 História da Educação
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o projeto de criar um capitalismo nacional, ao passo que no outro estaria o projeto de desenvolver um sistema capitalista associado”, associado significando parceiro minoritário e guardião de interesses capitalistas estadunidenses. A aliança entre o Ministério da Educação e a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID – United States Agency for International Development), um organismo estadunidense de intervenção civil em outros países, revelou-se fundamental para a manutenção do modelo. Do ponto de vista da repressão ideológica, podem ser percebidas diretrizes claras no que se refere à divulgação de ideias consideradas subversivas, não apenas por parte dos professores, mas das próprias agremiações de estudantes, como exemplificado na Lei n. 4.464, de 1964: “É vedada aos órgãos de representação estudantil qualquer ação, manifestação ou propaganda de carácter político-partidário, bem como incitar, promover ou apoiar ausências coletivas aos trabalhos escolares” (BRASIL, 1964, p. 75). Assim, qualquer forma de articulação ou manifestação que pudesse se apresentar como contrária ao regime era sumariamente proibida. Posto que havia esse ângulo ideológico, convinha que fosse introduzida uma nova disciplina ao currículo, a qual se tornou fundamental para a perpetuação de ideias moralizantes, fundamentadas nos imaginários católico tradicional e capitalista, sendo instituído assim o ensino de Educação Moral e Cívica na sequência do Golpe de 1964. “O papel da nova disciplina seria preencher o ‘vácuo ideológico’ deixado na mente dos jovens, para que não fosse preenchido pelas ‘insinuações materialistas e esquerdistas’” (CUNHA; GÓES, 1985, p. 74). No campo da formação para o capitalismo propriamente dita, podemos observar como se delineou o currículo do período militar. A ênfase notável em discussões acerca do currículo seria um afunilamento para os saberes “essenciais” a uma formação profissional. Deveríamos limitar o número de matérias ensinadas, ensinar poucas matérias, mas ensinar bem. No primário deveríamos ensinar apenas: Português, Matemática e trabalhos manuais. História, Geografia e Ciências podem ser ob jeto de leitura e a sala de aula com mapas, desenhos e fotografias ajudariam a dar as primeiras noções dessas matérias. Achamos que, desde o primário até o fim do colégio, deveríamos ensinar poucas matérias. Hoje, um aluno aprende História no Primário, no Ginasial e no Colegial e, quando chega ao Vestibular, não sabe quem descobriu o Brasil. Vamos ensinar uma só vez, mas bem. (RODRIGUES, 1972, p. 69)
Como é possível observar na declaração de Rodrigues, a ênfase deveria ser, para os articuladores governamentais do período, conteudista em essência. O quadro de matérias, por sua vez, deveria ser reduzido. Assim se configurou uma educação cada vez mais dirigida, tendo em vista a expectativa de formar futuros trabalhadores e vestibulandos, não indivíduos intelectualizados, como fora a prioridade da educação humanista décadas antes. Com relação ao núcleo-comum, isto é, o quadro básico de disciplinas a ser seguido por escolas Brasil afora, se desdobrava nas seguintes linhas, conforme descrito no Parecer n. 853, de 1971:
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Segunda República: educação populista e ditadura (1930-1985) Art.1o. O núcleo-comum a ser incluído, obrigatoriamente, nos currículos plenos do ensino de 1 o e 2o graus abrangerá as seguintes matérias: a) Comunicação e Expressão b) Estudos Sociais c) Ciências § 1o Para efeito da obrigatoriedade atribuída ao núcleo-comum, incluem-se como conteúdos específicos das matérias fixadas: em Comunicação e Expressão – a Língua Portuguesa; nos Estudos Sociais – a Geografia, a História e a Organização Social e Política do Brasil; nas Ciências – a Matemática e as Ciências Físicas e Biológicas. (BRASIL, 1971)
É perceptível que a divisão das disciplinas diferia da concepção mais utilizada atualmente (Linguagens, Humanidades, Ciências Exatas e da Natureza), sendo em grande parte mais sintética, como pedia o imaginário educacional do período. [...] o técnico [...] há de ser um especialista no assunto da pasta que é chamado a dirigir (economista para a Fazenda, engenheiro para Transportes ou para Energia, eletrônico para Telecomunicações etc.), o gênero intelectuais abrange várias espécies. Ninguém negaria por exemplo aos membros da Academia Brasileira de Letras o diploma de intelectuais, mas também ninguém, em seu juízo perfeito, lhes entregaria postos de governo, salvo honrosíssimas exceções. (GUDIN, 1978, p. 145)
Na educação clássica brasileira havia prevalecido uma espécie de esforço pela intelectualização, de acordo com os padrões elitistas dos liceus europeus, isso até a busca por uma educação mais contextualizada durante o período populista, o que, inclusive, ocorreu de forma relativamente contida e respeitando-se grandemente os valores historicamente mais arraigados. Em oposição a essa tendência persistente, a educação preconizada no regime militar reduziu o processo de ensino a um condicionamento para o modelo do trabalho capitalista, dos valores modernos da industrialização e da moral católica tradicional. Mario Henrique Simonsen (1935-1997), que foi Presidente do Banco Central no governo de Castelo Branco (1897-1967), nos anos de 1960, Ministro da Fazenda durante o governo de Ernesto Geisel (1907-1996), entre 1974 e 1979, e Ministro do Planejamento no governo de João Figueiredo (1918-1999), defendia abertamente uma proposta que considerasse a educação como aliada do progresso econômico, e não como fim em si mesma. Um dos maiores defeitos da chamada tradição cultural brasileira é o de quase sempre ter encarado a educação como um bem de consumo, muitas vezes até supérfluo, e não como matéria-prima básica de produção. A cultura, nesse sentido tradicional, constituía um complemento refinado ao lazer, e não um instrumento de trabalho. (SIMONSEN, 1969, p. 222)
Assim, a tônica da educação básica no regime militar era a formação para o mercado de trabalho para as classes subalternas e a propedêutica para os jovens de elite, encaminhados para o ensino universitário. Ao mesmo tempo, por via das leis, as reformas populistas seriam levadas mais longe, mas a educação discriminatória permaneceria. 112 História da Educação
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Mas qual é o balanço que se pode fazer do desempenho das políticas educacionais instituídas nesse período? Quais foram os avanços e retrocessos resultantes da pesada interferência da institucionalidade estatal militar no panorama educacional do país?
7.3 Avanços e retrocessos A ditadura prevaleceu no cenário político brasileiro entre 1964 e 1985, sob o comando de sucessivos presidentes militares e períodos variáveis, tanto em termos de crescimento/ retração econômica, quanto de repressão e relativa abertura ideológica. Na educação, entretanto, é possível observar certa uniformidade. A exclusão temporária da disciplina de Filosofia do cotidiano, a redução do currículo, a ênfase tecnicista e o recorte ideológico unilateral deixaram marcas evidentes nas instituições educacionais e no imaginário brasileiro de modo geral. Como, porém, avaliar os efeitos mais duradouros do período militar na história educacional brasileira? Seria mais adequado fazer esse balanço pela via dos dados quantificáveis ou pelas marcas ideológicas visíveis? Provavelmente uma percepção completa leva em consideração o todo. Ribeiro (2000, p. 186-189) aponta um crescimento nos números do pessoal docente que trabalhava nos espaços escolares, bem como melhorias nos índices de matrículas e redução ou manutenção dos índices de evasão entre as décadas de 1960 e 1970. Entretanto, isso ocorria ao mesmo tempo que as taxas de desemprego subiam, tal como aumentavam o arrocho salarial e as falências das pequenas empresas. As multinacionais, por outro, lucravam mais no território brasileiro que em seus países de origem (RIBEIRO, 2000, p. 181-182). O Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral) começou a funcionar na década de 1970, em um esforço para reduzir o analfabetismo entre jovens e adultos (ARANHA, 2006, p. 319). Podemos observar nesse campo, como em outros, certa tendência: aparentes avanços – e mesmo estes não se manteriam necessariamente estáveis até os anos finais do regime, na década de 1980 – conviviam com realidades educacionais problemáticas. a) Em 1980, 25,94% dos brasileiros de 15 anos ou mais eram analfabetos, de acordo com o IBGE; b) Dos alunos que iniciaram o 1o grau em 1978, pouco mais que a metade, 55,3%, passaram para a 2 a série em 1979, 38,5% cursaram a 5 a série em 1982, 18,3% fizeram a 8a série em 1985, 11,8% terminaram o 2 o grau em 1988 e 5,9% conseguiram ingressar no ensino superior em 1989, segundo dados do MEC; c) ainda conforme o IBGE, os alunos do 1 o grau que, em 1980, representavam 18,6% da população brasileira, passaram a ser 18,3% em 1985; e os alunos de 2 o grau que, em 1980, correspondiam a 2,37% da população, caíram para 2,23% em 1985. (PILETTI; PILETTI, 2012, p. 214)
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Como observam Piletti e Piletti, as políticas implementadas pelos militares na educação nacional falharam em preparar o público educando tanto para uma ampliação do contingente de profissionais pela via das universidades, quanto como mecanismo de inculcação ideológica e formação profissional, visto que parcela substancial da população brasileira sequer tinha o acesso à escola básica disponibilizado. Apesar de todas as exigências minuciosamente descritas em textos de leis e decretos, estes demonstrariam, ser, em certas circunstâncias, letra morta. Afora a incapacidade de efetivamente cumprir suas proposições iniciais, quais sejam, as de formar cidadãos de moral uniforme e bem equipados para colaborar com a construção de um país moderno, industrializado e de economia pujante, há que se pesar o impacto negativo sobre as próprias instituições educacionais em sua mecânica interna. Aranha (2006, p. 315) argumenta nos seguintes termos: No Brasil, a tendência tecnicista foi introduzida no período da ditadura militar nas décadas de 1960 e 1970, e prejudicou sobretudo as escolas públicas, uma vez que nas boas escolas particulares essas exigências foram contornadas. Uma das consequências funestas foi a excessiva burocratização do ensino, porque, para o controle das atividades, havia inúmeras exigências de preenchimento de papéis. Evidentemente, essa tendência ignorava que o processo pedagógico tem sua própria especificidade e jamais permite a rígida separação entre concepção e execução do trabalho.
O processo de burocratização era conveniente para manter razoável controle dos conteúdos ministrados, mas reduzia de forma significativa a natureza orgânica do trabalho docente. Ainda problemática era a endêmica carência de materiais e instalações como la boratórios para que as escolas pudessem diversificar suas atividades e proporcionar uma aprendizagem mais significativa (ARANHA, 2006, p. 319). A falta de profissionais preparados para a docência era ainda outro problema de ordem estrutural. O cargo de professor das categorias do ensino básico, não suficientemente profissionalizado ou dotado de respeito social, se manteria em grande parte por uma classe a ser ocupada por mão de obra barata e desencorajada a buscar uma formação mais completa. Isso impacta diretamente na qualidade da educação, posto que educadores que não buscam ser também pesquisadores e que não têm condições adequadas para buscar seu aprimoramento profissional, tendem a não revisitar e/ou corrigir suas práticas pedagógicas. As escolas particulares, por sua vez, seguiam formalmente as leis do Estado, mas cumpriam seus próprios programas, preparando os jovens de classe alta para o ingresso nas universidades. Essa dicotomia entre o ensino dos subalternos e o ensino dos dominantes preservava ainda traços do elitismo de décadas (e séculos) anteriores, e ainda é um aspecto não resolvido da educação brasileira, embora o nível de segregação tenha sido reduzido sensivelmente desde a redemocratização.
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Esses problemas residuais do regime militar, que a educação contemporânea ainda sente, revelam, em grande parte, resquícios do pensamento culto presente nas raízes da cultura brasileira. Caberia aos pensadores educacionais que discutiram – e discutem – os processos educacionais subsequentes à abertura política, em 1985, fazer esse balanço e buscar propostas alternativas para nosso futuro educacional.
Ampliando seus conhecimentos O excerto a seguir compreende considerações apresentadas no Decreto-Lei n. 8.529/46 – Lei Orgânica do Ensino Primário. Embora leis não bastem para transformar a realidade sem que haja esforço social e institucional para efetivá-las, a sistematização proposta pelo decreto, contemplando, por exemplo o ensino supletivo, faria muito para avançar o alcance do ensino formal entre brasileiros de camadas sociais diversas.
Decreto-Lei n. 8.529, de 2 de janeiro de 1946 (BRASIL, 1946, p. 640)
TÍTULO I Duas bases de organização do ensino primário CAPÍTULO I DAS FINALIDADES DO ENSINO PRIMÁRIO Art. 1o O ensino primário tem as seguintes nalidades: a) proporcionar a iniciação cultural que a todos conduza ao conhecimento da vida nacional, e ao exercício das virtudes morais e cívicas que a mantenham e a engrandeçam, dentro de elevado espírito de Naturalidade humana; b) oferecer de modo especial, às crianças de sete a doze anos, as condições de equilibrada formação e desenvolvimento da personalidade; c) elevar o nível dos conhecimentos úteis à vida na família, à defesa da saúde e à iniciação no trabalho.
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Segunda República: educação populista e ditadura (1930-1985) CAPÍTULO II DAS CATEGORIAS DO ENSINO PRIMÁRIO E DE SEUS CURSOS Art. 2o O ensino primário abrangerá duas categorias de ensino: a) o ensino primário fundamental, destinado às crianças de sete a doze anos; b) o ensino primário supletivo, destinado aos adolescentes e adultos. Art. 3o O ensino primário fundamental será ministrado em dois cursos sucessivos; o elementar e o complementar. Art. 4o O ensino primário supletivo terá um só curso, o supletivo. CAPÍTULO III Da ligação do ensino primário com as outras modalidades do ensino Art. 5o O ensino primário manterá da seguinte forma articulação com as outras modalidades de ensino: 1. O curso primário elementar com os cursos de artesanato e com os de aprendizagem industrial e agrícola. 2. O curso primário complementar com os cursos ginasial, industrial, agrícola e de formação de regentes de ensino elementar. 3. O curso supletivo com os cursos de aprendizagem agrícola e industrial e com os de artesanato, em geral. Art. 6 o Os cursos de jardim de infância se articularão com o curso primário elementar. TÍTULO II Da estrutura do ensino primário CAPÍTULO I DO CURSO PRIMÁRIO ELEMENTAR Art. 7o O curso primário elementar, com quatro anos de estudos, compreenderá: I. Leitura e linguagem oral e escrita. II. Iniciação matemática.
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III. Geograa e história do Brasil. IV. Conhecimentos gerais aplicados à
vida social, à educação para a saúde e ao trabalho. V. Desenho e trabalhos manuais. VI. Canto orfeônico. VII. Educação física. CAPÍTULO II DO CURSO PRIMÁRIO COMPLEMENTAR Art. 8o O curso primário complementar, de um ano, terá os seguintes grupos de disciplinas e atividades educativas: I. Leitura e linguagem oral e escrita. II. Aritmética e geometria. III. Geograa e história do Brasil, e noções de geograa geral e história da
América. IV. Ciências naturais e higiene. V. Conhecimentos das atividades econômicas da região. VI. Desenho. VII. Trabalhos manuais e práticas educativas referentes às atividades econômicas da região. VIII. Canto orfeônico. IX. Educação física. Parágrafo único. Os alunos do sexo feminino, aprenderão, ainda, noções de economia doméstica e de puericultura. CAPÍTULO III DO CURSO PRIMÁRIO SUPLETIVO Art. 9o O curso supletivo, para adolescentes e adultos, terá dois anos de estudos, com as seguintes disciplinas: I. Leitura e linguagem oral e escrita. II. Aritmética e geometria. III. Geograa e história do Brasil.
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Segunda República: educação populista e ditadura (1930-1985) IV. Ciências naturais e higiene. V. Noções de direito usual (legislação do trabalho, obrigações da vida civil e militar). VI. Desenho. Parágrafo único. Os alunos do sexo feminino aprenderão, ainda, economia doméstica e puericultura. CAPÍTULO IV DE ORIENTAÇÃO GERAL DO ENSINO PRIMÁRIO FUNDAMENTAL Art. 10. O ensino primário fundamental deverá atender aos seguintes princípios: a) Desenvolver-se de modo sistemático e graduado, segundo, os interesses naturais da infância; b) ter como fundamento didático as atividades dos próprios discípulos; c) apoiar-se nas realidades do ambiente em que se exerça, para que sirva à sua melhor compreensão e mais proveitosa utilização; d) desenvolver o espírito de cooperação e o sentimento de solidariedade social; e) revelar as tendências e aptidões dos alunos, cooperando para o seu melhor aproveitamento no sentido do bem estar individual e coletivo; f) inspirar-se, em todos os momentos, no sentimento da unidade nacional e da fraternidade humana. CAPÍTULO V DA ORIENTAÇÃO GERAL DO ENSINO PRIMÁRIO SUPLETIVO Art. 11. O ensino primário supletivo atenderá, aos mesmos princípios indicados no artigo anterior, em tudo quanto se lhe possa aplicar, no sentido do melhor ajustamento social de adolescentes e adultos.
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CAPÍTULO VI DOS PROGRAMAS DO ENSINO PRIMÁRIO Art. 12. O ensino primário obedecerá a programas mínimos e a diretrizes essenciais, fundamentados em estudos de caráter objetivo, que realizem os órgãos técnicos do Ministério da educação e Saúde, com a cooperação dos Estados. Parágrafo único. A adoção de programas mínimos não prejudicará a de programas de adaptação regional, desde que respeitados os princípios gerais do presente decreto-lei. Art. 13. E lícito aos estabelecimentos de ensino religioso não poderá, porém esse ensino constituir objeto de obrigação de mestres os professores, nem de freqüência obrigatória para os alunos. [...]
Atividades 1. Qual foi o nível do alcance das Reformas de Francisco Campos e Gustavo Capanema no ambiente educacional brasileiro? O que elas buscavam? Qual foi a medida de seu sucesso?
2. Com base na leitura do excerto exposto do Decreto-Lei n. 8.529, de 1846, explique o que se esperava do currículo em termos de formação de alunos.
3. Qual era a intenção do modelo educacional predominante no período do regime militar? Por que dizemos que era traçado valendo-se de duas frentes de ação?
4. Qual era a importância da nova disciplina de Educação Moral e Cívica para o ensino no período da ditadura militar?
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Referências ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da educação e da Pedagogia – geral e Brasil. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2006. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. São Paulo: Brasiliense, 2006. BRASIL. Decreto-Lei n. 8.529, de 2 de janeiro de 1946. Coleção das Leis da República dos Estados Unidos do Brasil de 1946. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1946. v. 1. ______. Lei n. 4.464, de 9 de novembro de 1964. Coleção das Leis da República dos Estados Unidos do Brasil de 1964. Brasília: Imprensa Nacional, 1964. v. 7. ______. Parecer n. 853, de 12 de novembro de 1971. Núcleo comum para os currículos do ensino de 1 o e 2o graus. A doutrina do currículo na Lei n. 5.692. Documenta , Rio de Janeiro, n. 132, nov. 1971. CAMBI, Franco. História da Pedagogia. São Paulo: FEU, 1999. CUNHA, Luiz Antônio; GÓES, Moacyr de. O golpe na educação. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1985. GUDIN, E. Intelectuais ou homens de Estado? In: GUDIN, E. Reflexões e comentários: 1970-1978. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978. p. 145-146. HOLLANDA, Guy de. Um quarto de século de programas e compêndios de História para o ensino secundário brasileiro. 1931-1956. Rio de Janeiro: INEP/MEC, 1957. IANNI, Octavio. Estado e planejamento econômico no Brasil (1930-1970). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. ISKANDAR, Jamil Ibrahim; LEAL, Maria Rute. Sobre Positivismo e Educação. Revista Diálogo Educacional , Curitiba, v. 3, n. 7, p. 89-94, set./dez. 2002. BOMENY, Helena M. B. Três decretos e um ministério: a propósito da educação no Estado Novo. In: PANDOLFI, Dulce (Org.). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1999. PILETTI, Claudino; PILETTI, Nelson. História da educação. São Paulo: Contexto, 2012. RIBEIRO, Maria Luisa Santos. História da Educação brasileira: a organização escolar. Campinas: Autores Associados, 2000. RODRIGUES, E. C. Nova tecnologia de ensino. In: SANTIAGO, Alberto Alves et al. Brasil potência. São Paulo: Unidas, 1972. SEYFERTH, G. Os imigrantes e a campanha de nacionalização do Estado Novo. In: PANDOLFI, Dulce (Org.). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1999. SIMONSEN, M. H. Brasil 2001. Rio de Janeiro: APEC, 1969.
Resolução 1. A intenção primordial das reformas dos dois primeiros ministros da Educação era criar um “homem novo” para o Estado Novo, caracterizado pela intensa divulgação de uma identidade nacional, à qual se prestava grande reverência, e pelo apelo populista. Em termos de alcance, houve avanços e desaos. Visto que se tornara tradicional
com as reformas educacionais empreendidas no território nacional, posto que a implementação da estrutura e admissão de professores eram questões problemáticas. Entretanto, é válido notar que as leis-decretos, implementadas entre as décadas de
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1930 e 50, moldaram o modo de ensinar no Brasil, especialmente no que se referia ao ensino secundário, nas décadas que se seguiram.
2. A versão mais completa do currículo primário incorporava Leitura e Linguagem oral e escrita, Aritmética e Geometria, Geograa e História do Brasil, e noções de Geograa geral e História da América, Ciências Naturais e higiene, Conhe -
cimentos das atividades econômicas da região, Desenho, Trabalhos manuais e práticas educativas referentes às atividades econômicas da região, Canto Orfeônico e Educação Física, compreendendo ainda noções de economia doméstica e puericultura para as meninas. O que se percebe por meio da análise do dito currículo é como enfatizava ao mesmo tempo uma educação com permanências acadêmicas do aprendizado clássico de humanidades e aspectos formativos mais relacionados à preparação para o ensino superior e remotamente associados à vida prática, como noções de higiene e aspectos de direito e da vida econômica local. Também se nota certa ênfase na formação da estrutura familiar tradicional, na qual a posição da mulher ainda era majoritariamente a de esposa e mãe, sendo necessário educar as meninas formalmente para tal.
3. O pensamento educacional militar, forjado na conjuntura da Guerra Fria, quando prevalecia o feroz conito ideológico entre o modelo capitalista estadunidense e o
modelo socialista da União Soviética, buscava reforçar valores capitalistas e alinhados com certo senso de moral cristã, ao mesmo tempo que repelia valores que poderiam remeter ao modo de vida socialista soviético. Assim, em uma primeira frente, buscava-se reprimir de forma incisiva toda dissidência ao apagar possíveis defesas de um modelo socialista/subversivo. Enquanto isso, uma segunda frente buscava reforçar os valores capitalistas, constituindo um modelo educacional fundamentalmente tecnicista, que visava educar os jovens para a modernização tecnológica e para o avanço da economia capitalista. Dessa forma, erigiu-se um país que se caracterizou como uma potência econômica associada aos interesses estadunidenses.
4. A disciplina de Educação Moral e Cívica cumpria o papel de divulgar as ideias do regime militar acerca dos padrões desejados de cidadania e postura moral, que deveria estar de acordo com o pensamento católico tradicional e com a perspectiva capitalista estadunidense. Conforme apontam Cunha e Góes (1985, p. 74), “O papel da nova disciplina seria preencher o ‘vácuo ideológico’ deixado na mente dos jovens, para que que não fosse preenchido pelas ‘insinuações materialistas e esquerdistas’”. Desse modo, a Educação Moral e Cívica se prestou principalmente a conter o avanço de ideias consideradas subversivas e tinha o objetivo de difundir entre os jovens os valores que estavam de acordo com o pensamento do regime.
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Introdução Por volta de 1980 o regime militar brasileiro dava sinais de estar em processo de decadência. Aos perceptíveis problemas econômicos que abatiam o país, somavam-se outras questões relevantes como o retorno de exilados políticos que discordavam abertamente do regime, o clima de insatisfação entre boa parte da população e no seio das próprias forças armadas. Além desses fatores, havia ainda a pressão advinda de organizações estudantis e outros grupos de interesse que se manifestavam contra os caracteres mais autoritários do regime militar. É digno de nota que a transição se deu de forma gradual e resguardando os interesses do status quo militar – a Lei n. 6.683, de 1979, garantia a anistia tanto aos perseguidos políticos quanto aos militares que haviam agido em defesa dos interesses do regime. A censura passou por uma retração e promoveu-se o retorno do pluripartidarismo , mas o país marchava para um novo modelo sem ter plenamente resolvido questões residuais do modelo anterior. História da Educação
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No que se referia à educação, a redemocratização apontava para um futuro de grandes possibilidades. Apresentava-se, acima de tudo, a possibilidade de constituir uma educação democrática, que avançasse para além dos princípios tecnicistas que haviam dominado o pensamento educacional no regime militar. Problemas estruturais continuaram a afetar as instituições públicas de ensino do país, principalmente no que se referia à disponibilidade de instalações adequadas e à complexidade da formação dos docentes, mas a meta de suprir o meio educacional com professores-pesquisadores se delineou com mais força. Por um lado, tornou-se mais comum uma percepção de educação mais aberta, inclusiva e integrada com a realidade social, disposta a trazer para a escola questões como a pluralidade cultural brasileira, meio ambiente e prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. Por outro, permanências ainda eram sentidas no abismo entre instituições públicas e particulares, especialmente em relação ao caráter de “curso preparatório” para o vestibular que as últimas assumiram. Podemos dizer que muitos desafios se colocam diante da educação brasileira neste início de século. A diversificação nas propostas metodológicas e interesses pode dificultar a busca por novos rumos. Por exemplo: oferecer uma formação intelectual relevante, respeitando as especificidades das comunidades de educandos e equilibrando demandas sociais, acadêmicas e mercadológicas.
8.1 Reabertura política, a Constituição de 88 e um novo cidadão Muitas mudanças estruturais foram propostas para a educação brasileira na década de 1980. O ensino seria, ao menos na esfera do ideal, pensado como uma peça central das reformas, fundamental para a formação de um cidadão ciente e da dinâmica do estado democrático e preocupado em preservá-lo, valorizando o caráter plural, complexo e livre desse cidadão. Entretanto, após anos seguidos de ênfase autoritária, construir essa receptividade ao pensamento múltiplo e democrático se revelaria um desafio. Entre outros problemas, conforme apontado por Cunha (1991, p. 475), o ambiente escolar está sujeito às flutuações de um quadro político mais amplo: Os padrões de gestão da rede pública que prevalecem são os que, à falta de melhor denominação, chamo de administração “zig-zag”: as mais diferentes razões fazem com que cada secretário de educação tenha o seu plano de carreira, a sua proposta curricular, o seu tipo de arquitetura escolar, as suas prioridades.
Diante de todos os problemas institucionais, de formação e de infraestrutura, a onda de mudanças teve início no ensino brasileiro, tal como a sociedade era atingida por reela borações operacionais e de sentido. Em 1987, durante a presidência de José Sarney (1930-), foi instalada a Assembleia Nacional Constituinte , composta por 559 congressistas, com o propósito de elaborar o texto constitucional. Também conhecida como Constituição Cidadã , a Constituição de 1988 representou um marco social. Seu texto trata da busca pela
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consolidação de um estado de direito após um longo ciclo de governos autoritários, lançando as bases para um modelo de governo presidencialista com vistas para a ampliação dos direitos dos trabalhadores. O Artigo 208 da Carta Magna enumera as obrigações do Estado com relação à oferta de dispositivos educacionais a seus cidadãos. O texto constitucional aborda a educação como direito cidadão, não sendo apenas política pública para promoção do Estado, mas instrumento para a promoção e afirmação do indivíduo. Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria; II - progressiva universalização do ensino médio gratuito; III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino; IV - educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade; V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um; VI - oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando; VII - atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica, por meio de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde. § 1o O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo. § 2o O não oferecimento do ensino obrigatório pelo poder público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente. § 3o Compete ao poder público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela frequência à escola. (BRASIL, 1988)
O texto, como se pode observar, compreende ser necessária a oferta de educação pú blica e gratuita, incluindo ensino noturno para oportunizar o estudo aos adolescentes tra balhadores. Também garante suporte em termos de suprimentos didáticos e alimentação, a fim de evitar que os educandos sejam desfavorecidos em suas oportunidades pedagógicas por situações de carência material. O zelo pela frequência escolar evidencia, por sua vez, o compromisso com o cumprimento do direito de todos à educação. É importante frisar a transição que essa passagem de texto representa. Em décadas anteriores, a educação brasileira fora concebida majoritariamente para atender os interesses envolvidos na consolidação e na prosperidade da nação. A perspectiva assumida pelo documento, em contrapartida, é a de que a educação formal deve agregar valores intelectuais, filosóficos e criativos à vida do cidadão, de modo que este esteja bem equipado para a vida social, para o trabalho e para a reflexão crítica nos campos da estética e da política.
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Em 1990, os valores educacionais promovidos pela Constituição seriam ainda reforçados com a instituição do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), pela Lei n. 8.069 (BRASIL, 1990), que se tornaria o principal marco legal para se abordar as questões referentes à infância e à juventude no Brasil. Esse documento apresenta definições técnicas para as condições de infância (pessoa até doze anos de idade incompletos) e adolescência (pessoa de doze a dezoito anos de idade incompletos), estabelecendo ainda diretrizes fundamentais para o respeito à condição humana e proteção de indivíduos nessas condições contra quaisquer formas de violência e/ou opressão. No que se refere ao tópico da educação básica, a lei reforça ideias já postuladas pelo marco constitucional, enfatizando o papel do Estado como principal fornecedor de serviços educacionais gratuitos à maior parcela da população, o que está compreendido no Capítulo IV da Lei, “Do Direito à Educação, à Cultura, ao Esporte e ao Lazer”. Vejamos: Art. 54. É dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente: [...] § 1o O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo. § 2o O não oferecimento do ensino obrigatório pelo poder público ou sua oferta irregular importa responsabilidade da autoridade competente. § 3o Compete ao poder público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsável, pela frequência à escola. (BRASIL, 1990)
Portanto, o Capítulo IV se ocupa, no sentido mais amplo, de prezar pela frequência, matrícula e permanência do aluno na escola, garantindo – pelo menos em caráter formal – o direito dos jovens à educação. Mas, muito além do tópico do acesso à instrução em estabelecimentos formais, o texto pormenoriza também outras questões, como o direito dos pais de ter ciência dos processos pedagógicos desenvolvidos no ambiente escolar, bem como o direito dos alunos à organização estudantil – previamente suprimido durante o regime militar – e o de questionar critérios avaliativos adotados arbitrariamente e reivindicar revisões das avaliações realizadas por professores ou instâncias escolares superiores. O Artigo 57, por seu turno, reforça a necessidade do compromisso do Estado com a constante atualização e melhoria das condições educacionais gerais. Trata-se aqui, em linhas gerais, de uma preocupação com o delinear de um arranjo educacional amplo, inclusivo e orgânico, capaz de se renovar e trazer os jovens para dentro da área de abrangência do ensino público de forma consciente e enriquecedora. “Art. 57. O poder público estimulará pesquisas, experiências e novas propostas relativas a calendário, seriação, currículo, metodologia, didática e avaliação, com vistas à inserção de crianças e adolescentes excluídos do ensino fundamental obrigatório” (BRASIL, 1990). Já os Artigos 58 e 59 se ocupam da formação cultural e esportiva mais ampla. Aqui se torna evidente que a preocupação com a formação do indivíduo não está restrita à instância da sala de aula, lançando ramificações para além dos muros da escola. Art. 58. No processo educacional respeitar-se-ão os valores culturais, artísticos e históricos próprios do contexto social da criança e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade da criação e o acesso às fontes de cultura.
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Art. 59. Os municípios, com apoio dos estados e da União, estimularão e facilitarão a destinação de recursos e espaços para programações culturais, esportivas e de lazer voltadas para a infância e a juventude. (BRASIL, 1990)
Observa-se, assim, uma proposta abrangente de construção do indivíduo. Acreditava-se que esse processo de construção aconteceria majoritariamente pela via do acesso à instrução formal, pois o documento admite que esse processo deveria incorporar também a exposição a programas culturais, atividades físicas e espaços recreativos, a fim de introduzir o jovem como cidadão pleno em seu meio social, tanto no contexto acadêmico quanto em outros círculos. A caminhada para essa formação universal do indivíduo se materializou ainda em outro dispositivo legal, a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, a Lei de Diretrizes e Bases. A LDB sistematiza e detalha o pensamento educacional já exposto na Constituição e no ECA, reforçando o princípio fundamental da oferta de ensino obrigatório e gratuito como caminho para a promoção do indivíduo. Ao mesmo tempo, deixa claro que escolas públicas e privadas devem coexistir, que a educação não deve ser restrita ao espaço da escola, que as escolas devem ser geridas conforme o princípio democrático e deve haver relação entre as esferas da escola, da sociedade e do trabalho. Art. 3o O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I – igualdade de condições para acesso e permanência na escola; II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; IV – respeito à liberdade e apreço à tolerância; V – coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; VI – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; VII – valorização do profissional da educação escolar; VIII – gestão democrática do ensino público, na forma desta lei; IX – garantia de padrão de qualidade; X – valorização da experiência extraescolar; XI – vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais. (BRASIL, 1996)
Assim, entre 1988 e a década de 1990, a educação passou a ser amparada por diversos dispositivos legais, os quais indicavam com clareza qual era o tipo de ensino que se am bicionava para o futuro. A publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais , em 1997, estabeleceria propostas de ação pedagógica para as disciplinas de base, bem como para os temas transversais , tópicos que deveriam permear a prática pedagógica em todos os campos: Ética, Meio ambiente, Saúde, Pluralidade cultural e Orientação sexual. Os anos 2000 representariam, em muitos sentidos, avanços, especialmente nos aspectos da formação de professores e da ampliação do acesso da população em geral à escola. A Lei n. 13.005, de 25 de junho de 2014 instituiu o Plano Nacional de Educação – PNE, que propôs
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a “promoção humanística, científica, cultural e tecnológica do País”, tal como a erradicação do analfabetismo e a melhoria geral da qualidade da educação nacional (BRASIL, 2014). Não obstante a consolidação dessa visão diversificada, plural e abrangente, importa enfatizar que, apesar de superada a veia tecnicista do modelo de educação pública instituído pelo regime militar, o capitalismo seguiu tendo uma influência inegável sobre o ensino do país. Em muitos sentidos, a nova percepção educacional, com princípios como competências e habilidades , dava suporte à flexibilização das novas formas de gestão e trabalho que caracterizavam o período (KUENZER, 2007, p. 1.158). Organismos como o Banco Mundial, por sua vez, apresentando-se como “investidores do projeto brasileiro”, demandavam medidas e reformas estruturais específicas em retorno aos investimentos injetados no país, encorajando a imposição governamental de normativas padronizadoras. O Banco Mundial não tem digamos, uma personalidade acadêmica. Ele representa um conjunto de forças e ideias oriundas dos países centrais que têm como principal escopo, a defesa de seus interesses [...]. Nesse quadro a pressão para que se adote um determinado modelo de gestão vem imbricado num pacote completo de reformas sugeridas, dentre as quais as reformas educacionais. (BUENO, 2004, p. 447)
Conforme sugere Bueno, o pensamento subjacente a tais reformas não se ocupa – ao menos não estritamente – de fins humanizadores e enriquecedores em termos educativos, mas principalmente de interesses econômicos. Desse modo, no final ao século XX, o capital demonstrou ter um poder tão significativo para as reformas educacionais brasileiras quanto concepções plurais de valorização do docente, da experiência do aluno e da formação do cidadão crítico e consciente.
8.2 Desafios da democratização escolar Como vimos, a educação pós-abertura tinha como meta a composição de um sistema cuja tônica era a formação cidadã e a operacionalidade democrática dos espaços escolares, entretanto, a transição não se estabeleceria sem que desafios fossem impostos pelas circunstâncias. Afinal, se o tecnicismo havia sido dominante até o momento, como defender a proposta de um ensino mais abrangente em um mundo no qual, ao fim da Guerra Fria, os princípios capitalistas emergiam ainda mais triunfantes? Além disso, havia que se contar com os problemas mais “tradicionais”, os quais já afligiam a educação brasileira desde seus primeiros passos institucionais: falta de professores (ou a presença de professores inexperientes e despreparados), falta de instalações adequadas e de materiais, ao menos na esfera do ensino público. Dadas as frequentes disparidades de financiamento, infraestrutura e formação dos profissionais educadores, a convivência de instituições públicas e privadas continuou – ao menos em parte – a perpetuar a histórica separação entre as elites, empregando o ensino básico como plataforma propedêutica para o ensino superior, e as classes de base, que seguiram tomando o espaço escolar como preparação para o mundo do trabalho. 128 História da Educação
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Não se dissolveriam facilmente tais percepções, as quais haviam se sedimentado ao longo do período militar. Conforme aponta Frigotto (2010, p. 20): A educação no Brasil, particularmente nas décadas de 1960 e 1970, de prática social que se define pelo desenvolvimento de conhecimentos, habilidades, atitudes, concepções de valores articulados às necessidades e interesses das diferentes classes e grupos sociais, foi reduzida, pelo economicismo, a mero fator de produção – “capital humano”.
A proposta de democratizar o ambiente escolar passava por uma revisão da ideia persistente de que as escolas têm como função primordial a formação de “capital humano”, ou seja, mão de obra qualificada e obediente. Não obstante as fundações teóricas da educação reformada propusessem um tipo de “formação integral” do cidadão, a ideia de que a escola é um “preâmbulo” da vida profissional continuava a ter peso. Ao mesmo tempo, essa permanência existia em equilíbrio com a nova configuração social. Ricci (2003) aponta a reconstituição da ideia de família que se materializa na esteira dos efeitos econômicos mais agressivos do capitalismo flexível. A necessidade de manter as condições de consumo do núcleo familiar em tempos de desvalorização do trabalho e redução do poder de compra levou à permanência dos pais nos ambientes de trabalho por mais tempo, o que produziria uma relação familiar de trama mais solta, cujos efeitos seriam sentidos nos espaços educacionais. [...] entre a década de 60 e 70 ocorreu uma grande alteração na relação entre gerações. A desmontagem da família como “ninho” aumentou a probabilidade de adolescentes organizarem opiniões autônomas, muitas vezes diametralmente opostas às convicções de seus pais. (RICCI, 2003, p. 104)
Ou seja, conviveriam, tanto nas casas quanto nas escolas brasileiras, opiniões, e, portanto, visões de mundo significativamente distintas, por vezes antagônicas. Por mais que a tônica da escola ainda fosse moldar grupos de indivíduos para a vida produtiva, a abertura a novos discursos, promovida pelo fim da ditadura, veio efetivamente tornar o espaço de ensino um lugar mais plural do que havia sido até então. Havia finalmente que se abordar questões até então abafadas acerca da vida brasileira no espaço escolar, como o histórico brasileiro de tensões raciais e de classe, a vida política e outros conflitos cuja compreensão é fundamental para uma análise efetiva de nossa realidade. O fator unificador diante dessa multiplicidade de discursos, como já foi mencionado, seguiria sendo a questão econômica. Essa concepção de educação como “fator econômico” vai constituir-se numa espécie de fetiche, um poder em si que, uma vez adquirido, independentemente das relações de força e de classe, é capaz de operar o “milagre” da equalização social, econômica e política entre indivíduos, grupos, classes e nações. (FRIGOTTO, 2010, p. 20)
Essa perspectiva encontra eco nas afirmações de Paulo Freire (1987, p. 34), que defendia ser fundamental o apoio das classes subalternas para a manutenção de políticas de classe opressivas, posto que, dado o histórico brasileiro de elitismo, a perspectiva dos oprimidos seria tornarem-se opressores, em vez de ambicionar uma sociedade livre de opressão. História da Educação
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Figura 1 – Paulo Freire.
Fonte: Slobodan Dimitrov/Wikimedia Commons.
O que Freire postula ao sustentar essa tese, é que os ambientes educacionais frequentemente enfatizam a formação acrítica – e, portanto, alienada – para o trabalho, e é preciso confrontar os problemas que emanam dessa dinâmica, a fim de se criar um ensino significativo. Pensadores como Jesus e Torres (2009, p. 136) argumentam que é fundamental pensar a educação como política pública, como atribuição do estado – tal como indicado na Constituição –, não cedendo à pressão mercadológica de entregar a responsabilidade a interesses privados: Diante da enorme dívida social que representa a falência do sistema educacional brasileiro, não podemos ingenuamente aceitar o novo senso comum da retórica neoliberal, segundo a qual a educação deve sair da esfera das políticas públicas (incompetentes) e inserir-se na lógica (eficiente) do mercado, adotando os padrões produtivistas e empresariais da qualidade total, para assim, cumprir sua moderna função de formar cidadãos-consumidores competitivos e empreendedores.
Como vimos, há, certamente, uma forte presença das instituições privadas no cenário educacional brasileiro, as quais, atendendo demandas de mercado, equipam-se adequadamente para atender alunos que assumem o posto de consumidores. As instituições públicas, por outro lado, estão sujeitas ao desfavor de órgãos públicos, da vontade política vigente e de orçamentos limitados. Para além do caráter elitista e discriminatório inerente a esse estado de coisas, outros pro blemas dele emanam. Se o ensino superior concede ao indivíduo acesso a melhores condições de trabalho e constituição cultural, um educando com menores condições de ingressar no ensino superior é prejudicado em seu nível de acesso a melhores condições de vida. Também há que se questionar se não é prejudicial para as próprias universidades brasileiras acolher quadros pouco diversos de estudantes, constituindo-se em culturas fechadas, pouco vinculadas à sociedade como um todo, até mesmo elitistas em seu posicionamento social. 130 História da Educação
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Diante das circunstâncias cabe, então, fazer uma análise daquilo que foi construído até o momento e discutir os possíveis desdobramentos que o futuro há ainda que descortinar. Prevalecerá a postura pregada pelo texto constitucional, com acesso ao ensino gradativamente ampliado e a implementação contínua, ainda que lenta de melhorias? Ou será a norma constituída pela precarização do trabalho docente, dos espaços físicos das escolas e pela massificação dos currículos?
8.3 Novos rumos da educação brasileira O que esperar do futuro da educação? Como vimos anteriormente, as condições nunca foram realmente favoráveis para o estabelecimento de um modelo educacional abrangente. As tradições de ensino, cujas marcas ainda são visíveis nos currículos atuais, privilegiaram modelos herdados de uma instrução culta das elites, enquanto políticas de estado buscavam ampliar o acesso à educação, difundindo-a para o conjunto da sociedade. Sequências de reformas e desvios de foco buscaram priorizar ora uma escola culta ou moralizante, ora a formação profissional, ora a formação humana. Como resultado, a educação brasileira ainda se debate para decidir qual é sua função majoritária. Outro problema que se apresenta de forma bastante visível é a questão das dificuldades materiais enfrentadas pelas escolas. O ensino efetivo demanda recursos, e embora existam dispositivos legais para a articulação de fundos e materiais, os processos envolvidos podem ser lentos e estão sujeitos a desvios e outros problemas. Essas condições levam, como apontam Frigotto e Ciavatta (2003, p. 115), ao enaltecimento de políticas de obtenção de recursos que removem do Estado suas obrigações constitucionais. As apelativas e sequenciais campanhas de “adote uma escola”, “amigos da escola”, “padrinhos da escola” e, depois, do “voluntariado” explicitam a substituição de políticas públicas efetivas por campanhas filantrópicas. No âmbito organizativo e institucional a educação básica, de direito social de todos, passa a ser cada vez mais encarada como um serviço de filantropia. (FRIGOTTO; CIAVATTA, 2003, p. 115)
O horizonte de formação dos professores, embora se apresente indubitavelmente mais favorável do que em outros períodos, ainda reserva problemas, oferecendo aos docentes recém-formados prospectos de salários baixos e cargas horárias exaustivas, em grande parte destacadas para o cumprimento de obrigações burocráticas. Conforme afirma Kuenzer (1999, p. 163), “as políticas de formação inviabilizaram a construção da identidade do professor como cientista da educação para constituí-lo como tarefeiro, em virtude do aligeiramento e da desqualificação de sua formação”. Ou seja, como esperar que os professores constituam uma forte presença como pesquisadores, efetivamente contribuindo para a construção e para a propagação do conhecimento, quando sua formação acadêmica carece de profundidade e seu trabalho é, em grande parte, reduzido em seu sentido? Com certeza é fundamental que se faça uma revisão dessas condições de formação e trabalho, de modo a instigar o aprofundamento do ofício docente e seu impacto junto aos educandos, à institucionalidade e à sociedade. História da Educação
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Aranha (2006, p. 346), escrevendo uma década atrás, sugeriu ser importante preservar o otimismo diante das condições aparentemente adversas do ambiente educacional atual, haja vista que, como foi apontado, avanços foram feitos, mesmo que não na medida desejada. Para não sucumbirmos ao derrotismo, lembramos que desde a década de 1990 setores da sociedade civil têm se expressado com maior autonomia, fazendo pressão contra a corrupção e os desmandos do governo e exigindo os direitos dos cidadãos. Mesmo que nem sempre os resultados tenham sido plenamente os desejados, não há como desprezar os avanços nesse sentido. (ARANHA, 2006, p. 346)
Com efeito, é possível contar com sinais de reação de setores da sociedade civil. Em 2016 foi aprovada a Proposta de Emenda Constitucional 241 – PEC 241, estabelecendo um teto de gastos para o governo federal, e possivelmente limitando investimentos que poderiam efetivamente concretizar as metas do PNE. No mesmo ano foi apresentada a Medida Provisória n. 746 , que institui uma reformulação do currículo do Ensino Médio, ampliando agressivamente a carga horária obrigatória e convertendo disciplinas obrigatórias em facultativas. Em consulta pública, a MP 746 contou com 4.551 votos favoráveis contra 73.564 desfavoráveis, e grupos de estudantes ocuparam escolas Brasil afora, manifestando sua insatisfação em relação às políticas educacionais do governo. Em um primeiro momento, porém, tais demonstrações de insatisfação popular, por mais polarizadoras que tenham sido em sua movimentação, revelaram ter pouco impacto no diálogo entre a sociedade civil e o governo. Em muitos sentidos, as políticas públicas da esfera federal e de muitos dos governos estaduais agem de maneira unilateral, pouco abertas a observar o que os setores de base têm a dizer. Cabe então frisar que qualquer ação efetiva para a construção de um modelo de ensino democrático, inclusivo e multicultural deve passar pela participação da sociedade, prestando-se também para a promoção da sociedade. Conforme defende Hannoun (1998, p. 43), é importante que os processos educacionais não se desvinculem do fator humano. A reflexão e a ação educacionais pressupõem o real fundamento de afirmação referente, por um lado do homem como humanidade e como pessoa, e, por outro, ao processo de ensino-aprendizagem. No plano fundamental, o conceito de educação só é aceitável se a humanidade for possível obreira da felicidade e se a imagem do homem por formar-se for moral e socialmente positiva, enfim, se a pessoa humana for perfectível e capaz de liberdade. (HANNOUN, 1998, p. 43)
Como observamos, não é possível estabelecer prognósticos claros acerca de desenvolvimentos futuros, mas é possível observar a história transcorrida e constatar que existem tendências e continuidades, e que a educação brasileira frequentemente padeceu de inclinações elitistas e autoritárias. Gradualmente nota-se uma abertura em relação a essas permanências, mas resquícios persistem, perpetuando tensões, as quais ainda precisam ser superadas antes que se conceba um modelo educacional verdadeiramente abrangente e capaz de atender às demandas de uma sociedade plural e reflexiva.
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Ampliando seus conhecimentos A Lei de Diretrizes e Bases de 1996 foi escrita com o propósito de regularizar a educação brasileira com base no que foi exposto acerca do tema no texto da Constituição Cidadã. Entre outras coisas, a Lei n. 9.394 garante a carga horária mínima do ensino básico, formação mínima para os professores e a destinação de valores mínimos dos orçamentos da União, dos estados e dos municípios para o desenvolvimento da educação. Apresentamos, a seguir, um trecho desse importante documento.
Lei n 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei De Diretrizes e Bases da Educação Nacional) (BRASIL, 1996)
TÍTULO I Da Educação Art. 1o A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. § 1 o Esta Lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias. § 2o A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social. TÍTULO II Dos Princípios e Fins da Educação Nacional Art. 2o A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por nalidade
o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualicação para o trabalho.
Art. 3o O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber;
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III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância; V - coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; VI - gratuidade do ensino público em estabelecimentos ociais; VII - valorização do prossional da educação escolar;
VIII - gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino; IX - garantia de padrão de qualidade; X - valorização da experiência extraescolar; XI - vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais. [...] CAPÍTULO II DA EDUCAÇÃO BÁSICA Seção I Das Disposições Gerais Art. 22. A educação básica tem por nalidades desenvolver o educando,
assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores. Art. 23. A educação básica poderá organizar-se em séries anuais, períodos semestrais, ciclos, alternância regular de períodos de estudos, grupos não seriados, com base na idade, na competência e em outros critérios, ou por forma diversa de organização, sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar. § 1o A escola poderá reclassicar os alunos, inclusive quando se tratar de transferências entre estabelecimentos situados no País e no exterior, tendo como base as normas curriculares gerais. § 2o O calendário escolar deverá adequar-se às peculiaridades locais, inclusive climáticas e econômicas, a critério do respectivo sistema de ensino, sem com isso reduzir o número de horas letivas previsto nesta Lei.
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Art. 24. A educação básica, nos níveis fundamental e médio, será organizada de acordo com as seguintes regras comuns: I - a carga horária mínima anual será de oitocentas horas, distribuídas por um mínimo de duzentos dias de efetivo trabalho escolar, excluído o tempo reservado aos exames nais, quando houver; II - a classicação em qualquer série ou etapa, exceto a primeira do ensino
fundamental, pode ser feita: a) por promoção, para alunos que cursaram, com aproveitamento, a série ou fase anterior, na própria escola; b) por transferência, para candidatos procedentes de outras escolas; c) independentemente de escolarização anterior, mediante avaliação feita pela escola, que dena o grau de desenvolvimento e experiência do candi dato e permita sua inscrição na série ou etapa adequada, conforme regulamentação do respectivo sistema de ensino; III - nos estabelecimentos que adotam a progressão regular por série, o regimento escolar pode admitir formas de progressão parcial, desde que preservada a sequência do currículo, observadas as normas do respectivo sistema de ensino; IV - poderão organizar-se classes, ou turmas, com alunos de séries distintas, com níveis equivalentes de adiantamento na matéria, para o ensino de línguas estrangeiras, artes, ou outros componentes curriculares; V - a vericação do rendimento escolar observará os seguintes critérios:
a) avaliação contínua e cumulativa do desempenho do aluno, com prevalência dos aspectos qualitativos sobre os quantitativos e dos resultados ao longo do período sobre os de eventuais provas nais;
b) possibilidade de aceleração de estudos para alunos com atraso escolar; c) possibilidade de avanço nos cursos e nas séries mediante vericação do
aprendizado; d) aproveitamento de estudos concluídos com êxito; e) obrigatoriedade de estudos de recuperação, de preferência paralelos ao período letivo, para os casos de baixo rendimento escolar, a serem disciplinados pelas instituições de ensino em seus regimentos; História da Educação
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VI - o controle de frequência ca a cargo da escola, conforme o disposto
no seu regimento e nas normas do respectivo sistema de ensino, exigida a frequência mínima de setenta e cinco por cento do total de horas letivas para aprovação; VII - cabe a cada instituição de ensino expedir históricos escolares, declarações de conclusão de série e diplomas ou certicados de conclusão de cursos, com as especicações cabíveis.
[...]
Atividades 1. Qual era o pensamento educacional que guiava documentos como o Artigo 208 da Constituição de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente?
2. Qual o modelo de educação que a Lei de Diretrizes e Bases busca implementar e perpetuar?
3. Frequentemente nos referimos ao tecnicismo, prevalente na educação do regime militar, como um obstáculo para o estabelecimento de um ensino complexo. É possível observar permanências do modelo tecnicista na educação atual? Como essas permanências podem ser contornadas?
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Resolução 1. Na sequência da abertura política, buscava-se um modelo de educação mais completo que o ensino tecnicista preconizado pelo regime militar, capaz de contemplar as complexidades da vida social. Esse novo modelo deveria ser capaz de levar em consideração as relações do indivíduo com o mundo do trabalho, o conhecimento acadêmico e os diversos desdobramentos de uma sociedade plural. Acima de tudo, nesse período, ressalta-se o papel do Estado como principal fornecedor de uma educação pública gratuita e uniforme, capaz de suprir estudantes em todo o território nacional com competências necessárias para a vida social e o ensino superior. Na prática, muitos problemas se colocaram – e ainda se colocam – diante da meta: a falta de estrutura das escolas, a formação insuciente e as condições pre cárias de trabalho dos prossionais docentes e as heterogeneidades sociais.
2. A Lei de Diretrizes e Bases buscou reforçar o princípio fundamental da escola pública, gratuita e obrigatória, embora a escrita reforce a ideia de “convivência” entre a educação pública e a privada. O texto da LDB reforça a necessidade de compreender a constituição plural do espaço escolar, o dever do aparelho de ensino para com a formação humana, prossional, acadêmica e criativa do educando. Entre outras
coisas, a lei também reconhece a importância da formação extraescolar, o que compreenderia as vivências culturais e esportivas/recreativas desenvolvidas em outros espaços que não as salas de aula. Observa-se ainda o caráter autônomo das escolas no que diz respeito à organização das classes, planejamento pedagógico, metodologia de ensino e avaliação, conquanto que esta seja empreendida de forma contínua e cumulativa, e prevaleçam os criHistória da Educação
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térios qualitativos sobre os quantitativos, de modo a fornecer um quadro abrangente do desempenho estudantil. A lei também estabelece uma carga horária mínima, composta de 800 horas, distribuídas entre 200 dias letivos, e instrumentos para a vericação e manutenção da qualidade de ensino.
3. Embora as políticas de Estado do período militar tenham se encerrado com a transição democrática, o modelo econômico capitalista persistiu como uma fortíssima inuência sobre o campo educacional. O sistema, embora remodelado por novas
propostas, dirigiu parte considerável de suas energias e recursos para perseguir índices positivos e servir aos interesses da cadeia produtiva, introduzindo indivíduos no mercado de trabalho, ainda que se postule, a partir de documentos como a LDB e os PCNs, que a escola deva incorporar ao ensino questões pertinentes à vida social como um todo – os temas transversais, por exemplo. Afora esse descompasso entre a proposta e os interesses aos quais ela efetivamente atende, há ainda que se relevar que os espaços de educação pública são frequentemente mal aparelhados para acomodar satisfatoriamente as demandas das comunidades locais. A complexidade envolvida em contornar essas diculdades trata
principalmente de efetivamente trabalhar a educação a partir do prisma complexo apresentado na LDB e nos PCNs, valorizando a escola como local de aprendizado para a cidadania, tal como o aspecto formativo complementar das atividades realizadas fora da escola.
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