Sumário
Apresentações Observações sobre os Textos de Gustavo Giovannoni Traduzidos nesta Edição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 Beatriz Mugayar Kühl Atua tualida idade de Gust ustavo avo Gi Giovann vannooni . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31 Andrea Pane O “Velhas “Velhas Cidades” de Gustavo Giovannoni: Algumas No Notas .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 53 Renata Campello Cabral e Carlos Roberto M. de Andrade Gust Gustav avoo Gio Giova vann nnon onii e o Res Resta taur uroo Urb Urban anoo . . . . . . . . . . . . 63
Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos Velhas Cidades e Nova Construção Urbana . . . . . . . . . . . 91 O “Desbastamento” de Construções nos Velhos Centros. O Bairro do Renascimento em Roma . . . . . . 137 A Restauração dos Monumentos na Itália . . . . . . . . . . . 179 Verbete: Restauro dos Monumentos .. . . . . . . . . . . . . . . . 191
Observações sobre os Textos de Gustavo Giovannoni Traduzidos nesta Edição Beatriz Mugayar Kühl
Gustavo Giovannoni (1873-1947) teve atuação de capital importância em variados campos, entre eles o urbanismo, que ajudou a consolidar como disciplina na Itália, a restauração, em geral, e o “restauro urbano” em particular. Dando sequência às publicações na coleção Artes & Ofícios da Ateliê Editorial, pareceu de especial interesse publicar alguns dos textos do autor para oferecer uma visão, mesmo que limitada, de elementos importantes que compõem seu raciocínio sobre esses temas. Giovannoni foi autor muito prolífico, com produção
textos1. Foram escolhidos para esta publicação quatro deles2: “Vecchie Città ed Edilizia Nuova”, Nuova Antologia, 1913, vol. CLXV, fascículo 995 (1o de junho), pp. 449-472. “Il ‘Diradamento’ Edilizio dei Vecchi Centri. Il Quartiere della Rinascenza in Roma”, Nuova Antologia, 1913, vol. CLXVI, fascículo 997 (1o de julho), pp. 53-76. “La Restauration des Monuments en Italie”, em La Conservation des Monuments d’Art et d’Histoire, Paris, Institut de la Coopération Intellectuelle, Office International des Musées, 1933, pp. 60-66. “Restauro dei Monumenti”, em Enciclopedia Italiana, Milano, Istituto della Enciclopedia Italiana (Treccani), 1936, vol. 29, pp. 127-130. Os dois primeiros – publicados na revista quinzenal Nuova Antologia3, voltada a várias temáticas, com ênfase em letras, ciências e artes – estão intimamente relacio
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Contam-se mais de quinhentos títulos na produção de Giovannoni, entre livros e artigos. Alessandro del Bufalo, em estudo de 1982, apontava 476 títulos (Alessandro del Bufalo, Gustavo Giovannoni, Roma, Kappa, 1982, pp. 221-237), enquanto a bibliografia elaborada por Giuseppe Bonaccorso, de 1997, chega a 719 publicações, sem contar os artigos publicados em jornais (Giuseppe Bonaccorso, “Gli scritti di Gustavo Giovannoni”, em Guido Zucconi (org.), Gustavo Giovannoni. Dal Capitello ala Città, Milano, Jaca, 1997). O primeiro foi traduzido por Renata Campello Cabral e Carlos Roberto M. de Andrade e os três últimos por Beatriz Mugayar Kühl. Existe versão digitalizada da Nuova Antologia no endereço www.archive.
nados; “Vecchie Città ed Edilizia Nuova” é dirigido às teorias relacionadas ao urbanismo, abrangendo temas como a transformação da cidade existente, ampliação, adensamento, circulação, coordenação entre “cidade velha” e “cidade nova”, trabalhando também com os conflitos entre as exigências de modernização e expansão e a necessidade de preservar (e mostrando ser possível e viável trabalhar através de uma chave conservativa); o segundo, valendo-se da fundamentação teórica exposta no primeiro, é o estabelecimento de uma metodologia para intervenções em áreas urbanas de interesse para a preservação. Foram escolhidos por serem uma primeira exposição sistematizada de um modo de encarar a cidade de maneira orgânica – Giovannoni retorna à temática de modo mais extenso num livro, que retoma o título do primeiro artigo Vecchie Città ed Edilizia Nuova , publicado em 1931 pela Utet de Turim –, dando passos primordiais na consolidação do urbanismo como campo disciplinar na Itália. Os dois últimos referem-se à fundamentação teórica e estabelecimento de método para o restauro de obras arquitetônicas; foram escolhidos por terem grande repercussão internacional, dando a conhecer aspectos do pensamento giovannoniano em outros ambientes culturais que não o italiano. Um deles é o texto apresentado em congresso que deu origem ao documento conhecido como Carta de Atenas, de restauração, de 1931, em que a participação de Giovannoni foi essencial; o outro, um ver-
preceitos teórico-metodológicos para a restauração estão nesses textos expostos de maneira concisa e sistematizada. Três ensaios precedem as traduções. No primeiro deles, Andrea Pane, professor da Faculdade de Arquitetura da Università degli Studi di Napoli Federico II, faz uma abrangente análise da atuação de Giovannoni, evidenciando sua atuação articulada em distintos campos disciplinares, sua relevante ação para uma formação mais ampla dos arquitetos, a forma como suas proposições foram recebidas ao longo do tempo, os aspectos de sua elaboração teórica que permanecem atuais e prospectivos. Carlos Roberto M. de Andrade, professor do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP-São Carlos e Renata Campello Cabral, doutoranda na mesma instituição, abordam questões relacionadas à fundamentação teórica de Giovannoni, suas relações com proposições do período, e perscrutam a estruturação do artigo “Vecchie Città”. Manoela Rossinetti Rufinoni, professora da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo, por sua vez, analisa as colocações do autor no que respeita ao restauro, tanto na escala da edificação, quanto na escala urbana, e suas repercussões. Giovannoni formou-se em engenharia civil em 1895; fez especialização em história da arte com Adolfo Venturi de 1897 até 1899, ano em que começou a atuar como assistente da cátedra de arquitetura técnica na atual Faculdade de Engenharia da Universidade de
produção de novos edifícios (a partir de 1898), entre eles o complexo para a fábrica de cerveja Peroni, em Roma, e também da restauração, tema que começou a abordar em seus escritos a partir de 1903, com artigo sobre o Congresso Internacional de Ciências Históricas realizado naquele mesmo ano4. Seus interesses e seus escritos estendiam-se a variadas questões, como historiografia da arquitetura e produção arquitetônica contemporânea; voltaram-se também, com muita ênfase, às questões de urbanismo e de restauro urbano. Teve, ainda, atuação preponderante nas discussões relacionadas ao ensino da arquitetura e à formação do arquiteto, buscando uma figura profissional – a do “arquiteto integral” – que possuísse não apenas o domínio das questões técnicas e das ciências envolvidas, mas também preparação teórica, histórica e artística, e em questões urbanas e de restauração, abordando, em parte, também aspectos econômicos e jurídicos. Trabalhava em sintonia com o pensamento de Camillo Boito, amplificando-o, e dava vazão a uma ampla discussão sobre o papel dos arquitetos, debate muito vivo na Itália de final do século XIX e início do século XX. Boito, em suas propostas sobre o ensino de arquitetura, buscou afastar a ar-
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G. Giovannoni, “Il Restauro dei Monumenti e Il Recente Congresso Storico”, Bolletino della Società degli Ingegneri e degli Architetti Italiani, 1903. Para a análise das restaurações de Giovannoni, ver: Claudio Varagnoli, “Sui Restauri di Gustavo Giovannoni”, em Maria Piera Sette (org.), Gustavo Giovannoni. Riflessini agli Albori del XXI Secolo , Roma,
quitetura do empirismo das Escolas de Belas-Artes, para integrá-la às ciências e ao pensamento crítico, propondo a filiação dos cursos ao ensino Universitário. Giovannoni buscou, ainda, autonomia em relação às escolas de engenharia, em que a arquitetura era considerada apenas um dos ramos da construção. Giovannoni considerava a formação dos arquitetos insuficiente, pois lhes faltava preparação teórica e humanística, domínio de aspectos científicos ligados ao campo e preparo para trabalhar com restauro, como pode ser visto em seus parágrafos finais do texto sobre o “desbastamento” nos velhos centros aqui traduzido. Pelas deficiências que verificava na formação dos profissionais, Giovannoni empenhou-se em implementar esse projeto e foi um dos principais promotores da criação da Escola Superior de Arquitetura em Roma – criada por decreto de 1919, publicado em 1920, posteriormente transformada em Faculdade ligada à Universidade e Roma –, sendo seu diretor entre 1927 e 1935, e na qual o ensino do restauro como disciplina obrigatória foi instituído desde seus inícios 5.
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A Escola foi fundada como Escola Superior de Arquitetura de Roma, passando depois a Real Escola Superior de Arquitetura até se constituir na Faculdade de Arquitetura de Roma, ligada à Universidade La Sapienza. Sobre os desdobramentos da instituição ao longo do tempo, regimentos, disciplinas e também sobre o ensino do restauro na Escola, ver as importantíssimas contribuições presentes no livro organizado por Vittorio Franchetti Pardo, Le Facoltà di Architettura dell’Università di Roma “La Sapienza” dalle Origini al Duemilla, Roma, Gangemi, 2001. Sobre o ensino de restauro, em especial, são de grande interesse os textos do próprio Pardo (pp. 11-41) de Giovanni Carbonara (pp. 113-131), e de
Além disso, a ação de Giovannoni foi também notável como consultor e no serviço público, tendo papel importantíssimo no Conselho Superior das Antiguidades e Belas-Artes6, e em variadas associações culturais, em especial o atual Centro de Estudos para a História da Arquitetura7, e, ainda, em conselhos editoriais de revistas, algumas das quais ele ajudou a fundar (como a
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escola na Itália a oferecer a disciplina Restauro não foi a de Roma pois, a rigor, havia sido instituída antes em ambiente lombardo, talvez por influência de Boito; no entanto, em Roma a disciplina atinge tal consistência que transformou a escola numa referência incontornável no campo, internacionalmente reconhecida, tanto no ensino de graduação, quanto de pós-graduação (a partir da fundação da escola de especialização, em 1957). As pesquisas conduzidas por Miarelli Mariani mostram que o primeiro curso de restauração foi oferecido, em Roma, já no biênio 1920-1921, por Sebastiano Giuseppe Locati, que fora aluno de Boito na Academia de Brera, através da disciplina de “Levantamento e Restauro dos Monumentos”; no biênio sucessivo, o levantamento é separado da disciplina de “Restauro dos Monumentos”, que passa a ser oferecida por Giovannoni, que se manteve no ensino da matéria até 1943. Consiglio Superiore delle Antichità e Belle Arti, ligado ao Ministero della Pubblica Istruzione (Ministério da Educação). O Centro de Estudos descende de uma associação, criada em 1890, a Associazione Artistica tra i Cultori di Architettura, na qual Giovannoni viria a desempenhar papel de extrema importância, assumindo o encargo de vice-presidente em 1906. A associação teve importância crescente ao longo do tempo, com especial empenho de Giovannoni, e, a partir de 1939, quando se transferiu para a sua atual sede na Casa dei Crescenzi em Roma, passou a se chamar Centro di Studi per la Storia dell’Architettura, onde estão localizados os arquivos de Giovannoni, com numerosíssimos desenhos. Nos anos 1980, Gianfranco Spagnesi, então presidente do Centro, empreendeu a tarefa de realizar uma primeira fase de organização e catalogação do arquivo Giovannoni e da Associação, trabalho que foi retomado duas décadas depois, através da colaboração de vários profissionais, que completa e agrupa numa única obra a catalogação de todos os desenhos. A publicação, feita pela equipe que capitaneou os trabalhos, foi organizada por Giorgio Simoncini, Calogero Bellanca, Giuseppe Bonac-
prestigiosa Palladio). Teve, como mencionado, atuação preponderante no urbanismo (a ser apresentada de modo mais adequado nos textos introdutórios que se seguem), lembrando-se de seu ativo papel em defesa do centro de Roma, em especial do Bairro do Renascimento, tema do segundo dos artigos aqui traduzidos, de 1913, para o qual coordenaria ainda o plano de salvaguarda, elaborado no final daquela década e efetivamente implementado. Sua figura, de extrema importância no panorama cultural italiano da primeira metade do século XX, multifacetada, quase tentacular, espraiava-se por várias áreas e temas e acabou por, em alguns aspectos, ser mal recebida, com críticas, por vezes, exacerbadas. Um dos aspectos que mais polêmicas despertou foi sua dificuldade em entender manifestações arquitetônicas do modernismo, como apontado por vários de seus contemporâneos, a exemplo de Marcello Piacentini e Bruno Zevi. Após seu falecimento, passa por certo período de ostracismo, mas seu papel começou a ser reavaliado, de maneira mais isenta8, a partir do final dos anos 1960, mas em especial
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di Studi per la Storia dell’Architettura. Cattalogo Generale dei Disegni di Architettura, 1890-1947, Roma, Gangemi, 2002. Parte da virulência endereçada a Giovannoni vinham de suas críticas à arquitetura do modernismo, de seu arraigamento em relação às tradições do classicismo, e sua postura que foi percebida, durante muito tempo como ambivalente em relação ao fascismo; as revisões historiográficas recentes, através de leituras como as de Françoise Choay e de Zucconi, por exemplo, mostram que, apesar das loas que tece a Mussolini no livro Vecchie Città, ele não pode ser confundido com os arquitetos a serviço do regime, devendo ser encarado como um profissional competente que
nos 1970, com os estudos de Alessandro Curuni, voltados à reordenação do material de arquivo e ao projeto de Giovannoni para a cervejaria Peroni, tema também abordado por Alberto Maria Racheli, e, já nos anos 1980, com o resultado da reordenação dos desenhos conservados no Centro de Estudos para a História da Arquitetura, promovida por Gianfranco Spagnesi, com as pesquisas de M. Centofanti, G. Cifani9 e Alessandro del Bufalo, aos quais se seguiram outros estudos monográficos – que procuram oferecer uma visão historiográfica mais atualizada, e matizada, de sua figura – que se têm tornado cada vez mais numerosos e aprofundados nos últimos anos10, através dos trabalhos de variados autores, além
do governo fascista, e, não, ser considerado uma figura política do fascismo. Giovannoni, no entanto, jamais apreciou de fato as manifestações do modernismo, dando provas disso em variados textos, como ao criticar o irracionalismo de obras de Le Corbusier e sua falta de preparo técnico, além de, ao defender a arquitetura na Alemanha, em plena Segunda Guerra Mundial, considerar “até que uma arquitetura nacional se afirme de maneira segura, é melhor recorrer à Arquitetura clássica, do que àquela difundida há até poucos anos pelas correntes democráticas internacionais”, citando, em seu apoio, Mein Kampf de Adolf Hitler (ver Gustavo Giovannoni, “Restauro dei Monumenti e Urbanística”, Le Arti, 1942, pp. 33-39, ver em especial, pp. 36; 39). 9. Alessandro Curuni, Riordino delle Carte di Gustavo Giovannoni, Roma, 1979; A. M. Racheli, “L’Opificio della Birra Peroni nel Quartiere Salario in Roma”, Ricerche di Storia dell’Arte, 1978-79, n. 7, pp. 61-68; M. Centofanti, G. Cifani, A. Del Bufalo, Catalogo dei Disegni di Gustavo Giovannoni Conservati nell’Archivio del Centro di Studi per la Storia dell’Architettura, Roma, 1985; A. Del Bufalo, Gustavo Giovannoni, op. cit., 1982. 10. A autora agradece a Ana Paula Farah pelo levantamento das referências bibliográficas sobre Giovannoni apresentadas nas notas deste texto e
dos supracitados (e dos autores citados nas notas), como Gianfranco Spagnesi, Françoise Choay, Giusppe Bonaccorso, Guido Zucconi, Claudio Varagnoli (em especial para os temas de restauro) e Andrea Pane 11, que escreve ensaio introdutório neste volume. O interesse estendeu-se também pelo âmbito internacional com a tradução francesa de trechos do livro Vecchie Città ed Edilizia Nuova12, publicada em 1998, ou de estudiosos brasileiros, caso dos autores que escrevem para este volume, por exemplo. A introdução da edição francesa foi escrita por Françoise Choay, que evidencia o papel capital de Giovannoni para as teorias urbanísticas, em especial para as relações entre urbanismo, arquitetura e preservação do patrimônio, mostrando sua contribuição para estabelecer a fundamentação teórico-metodológica da atuação prática, para estruturação da
11. Andrea Pane tem dedicado parte significativa de seus estudos à reavaliação da obra, e da fortuna crítica, de Gustavo Giovannoni, tema de sua tese de doutorado, intitulada Fortuna Critica di Gustavo Giovannoni e del suo Contributo alla ‘Questione dei Vecchi Centri’ (orientadora: Profa. Dra. S. Casiello) , Napoli, Università degli Studi di Napoli ‘Federico II’, Tese de Doutorado ( XIV ciclo), novembro 2002. O autor publicou também uma relação bibliográfica de escritos que tem por tema Giovannoni (em M. P. Sette (org.), op. cit., pp. 261-279). Sobre os temas tratados neste volume, ver, por exemplo, do autor: “Quartiere del Rinascimento a Roma; Sistemazioni Viarie, Diradamenti, Ricostruzioni, 1925-1940”, em C. Di Biase, Il Restauro e i Monumenti. Materiali per la Storia del Restauro, Milano, Clup, 2003, pp. 239-257; “ Dal Monumento all’Ambiente Urbano: La Teoria del Diradamento Edilizio” , em S. Casiello (org.), La Cultura del Restauro. Teorie e Fondatori , Venezia, Marsilio, 2005. Entre seus textos mais recentes, ver: “ Da Boito a Giovannoni: Una Difficile Eredità” , , 2009, n. 57, pp. 144-153. ‘
profissão do arquiteto e do urbanista, e para questões legislativas. Giovannoni, com efeito, entendia a cidade como um organismo complexo, a ser trabalhado em sua inteireza, abordando a relação entre cidade existente, novas áreas de expansão e zonas de interesse para a preservação de maneira articulada, e não como mera oposição13. O tratamento dessas zonas é o tema abordado no segundo dos textos aqui traduzidos “Il ‘Diradamento’ Edilizio Dei Vecchi Centri. Il quartiere della Rinascenza in Roma”, ou seja, o “desbastamento” de edificações. Giovannoni estabelece uma proposta articulada para a sobrevivência das áreas urbanas de interesse para a preservação, preconizando seu estudo minucioso, rua por rua, edifício por edifício, para, então, chegar a soluções não-massificadas, estudadas ponto a ponto, para melhorar as condições de salubridade, habitabilidade e circulação. Propõe não ater-se a vias retilíneas de largura constante, e, através de demolições pontuais (justificáveis e justificadas do ponto de vista da arte e da história), ou seja, o “desbastamento”14, é possível, por exemplo, criar pequenos largos, que permitem uma melhor insolação e ventilação das edificações existentes, além de melhorar a visibilidade de alguns edifícios notáveis e as 13. Ver em especial G. Giovannoni, Vecchie Città ed Edilizia Nuova, Torino, Utet, 1931. 14. É recorrente no pensamento giovannoniano a comparação com ações relacionadas ao trato de plantações ou áreas naturais, como desbastamento
condições de tráfego. Propõe, ainda, que determinados trechos sejam recompostos através de novas edificações, que não deveriam, porém, destoar por cor ou volume, aconselhando que se faça recurso a formas simples com raízes na tradição arquitetônica local. Manifestou-se contra a arquitetura pseudomedieval, assim como também se contrapôs às “fachadas da moda” e aos “ornatos artificiosos”; se o arquiteto não sabe fazer uma arquitetura contemporânea que possa inserir-se de maneira apropriada num ambiente historicizado, é melhor que não o faça e que recorra a formas simples mais próximas da tradição15. Desse modo, nessas áreas, preserva-se a grande maioria das edificações, seguindo o mesmo rigor de aproximação metodológica para o tratamento tanto das “grandes eminências”, quanto das demais edificações que, por serem mais modestas, poderiam parecer admi-
15. Lembre-se que Giovannoni era bastante reticente quanto à arquitetura moderna, algo que não é extensível a todos os profissionais que trabalhavam com temas de restauração no período. Por causa das questões colocadas no segundo pós-guerra, em especial, por conta das destruições maciças geradas pelo conflito, esse foi tema muito debatido a partir da década de 1940. Verificou-se a impropriedade de trabalhar com “neutros” (como propunha Giovannoni) em âmbito arquitetônico (e também pictórico), ou o “moderno ambientado”, por resultar numa arquitetura desprovida de qualidades intrínsecas e que acabava por deteriorar a qualidade do ambiente como um todo. Muito se discutiu no período sobre a licitude da presença de manifestações arquitetônicas contemporâneas em ambientes historicizados. Para referências bibliográficas sobre esses temas ver: Beatriz Mugayar Kühl, Preservação do Patrimônio Arquitetônico da Industrialização: Problemas Teóricos de Restauro, Cotia ( SP), Ateliê,
tir maior liberdade de ação; mas, justamente pela sua importância para a composição do ambiente16 urbano, demandam acurados estudos. Concomitantemente, são propostas algumas demolições pontuais e também novas construções, restritas ao mínimo necessário. Giovannoni estabelece, assim, a fundamentação teórica para guiar os atos não-conservativos, que estão presentes nas ações de preservação, seja na escala urbana, seja na escala do edifício, e que devem, sempre, ser baseados num pensamento de cunho cultural (as questões que dizem respeito à arte e à história), também para resolver questões práticas, como a salubridade de edificações e os problemas de circulação. Ou seja, as questões práticas devem ser encaradas de maneira articulada, sendo subordinadas às razões de cunho cultural. Demonstrou isso também na atuação concreta, ao participar de comissões de planos diretores de diversas cidades e ao se tornar consultor para as transformações do Bairro do Renascimento, colocando em ação algumas das propostas esboçadas nesse texto de 1913. Na implementação, porém, alguns aspectos foram sacrificados em nome de soluções de compromisso (dadas as exigências do regime fascista), como evidenciado no texto de Andrea Pane que se segue. Apesar da ambi16. Ambiente é outra palavra-chave nas propostas de Giovannoni e também foi mantida na tradução neste livro. É algo muito mais amplo do que a área envoltória de um monumento ou de simplesmente preservar as perspectivas pitorescas, referindo-se à composição do ambiente urbano como
guidade dos resultados, a empreitada comprova, na prática, que uma ação fundamentada em aspectos culturais pode ser viável também do ponto de vista econômico e dá conta dos problemas práticos, sendo possível opor-se às ações meramente especulativas. Os dois últimos textos apresentados neste volume são posteriores, da década de 1930, e voltados à restauração de obras arquitetônicas. Dentre a numerosa produção do autor sobre o tema, são escritos de enorme interesse pela sua difusão em âmbito internacional. A começar pelo texto sobre a restauração dos monumentos da Itália, que foi apresentado no Congresso de Atenas de 1931, do qual resultou a Carta de Atenas de restauração. O congresso – organizado pelo Escritório Internacional de Museus da Sociedade das Nações17 – foi o primeiro 17. As cooperações internacionais em âmbito cultural tinham também como objetivo um maior conhecimento recíproco que pudesse auxiliar na manutenção da paz, como evidenciou Rosalia Varoli-Piazza (“Brandi e l’Iccrom: Una Stretta Collaborazione per la Conservazione del Patrimonio Culturale Internazionale”, em Caterina Bon Valsassina (org.), Omaggio a Cesare Brandi nel Centenario della sua Nascita , Firenze, Edifir, 2008, pp. 83-84). No entanto, contraditoriamente, ao ser criada, em 1920, a Sociedade das Nações não tinha entre suas atribuições a cooperação intelectual. Léon Bourgeois (membro da Academia de Ciências Morais e Políticas da França, prêmio Nobel da paz em 1920) propôs, em 1921, que a organização tivesse também a missão de colaborar no âmbito da cultura e da educação. Sua proposta não foi levada adiante, pois alguns países consideravam, então, a questão da educação como um problema de soberania nacional. Somente em 1922 foi criada a Comissão de Cooperação Intelectual (que criou o Escritório Internacional de Museus), também para tratar de problemas de países que tiveram seu patrimônio cultural atingido pela Guerra. Henri Bergson foi designado para dirigir essa Comissão e, por sua iniciativa, foi criado em 1924, em Paris, o
grande evento internacional18 que teve por resultado um documento de tamanha significância. O papel de Giovannoni foi importantíssimo e é possível ver, nas conclusões do Congresso, o quanto suas propostas foram relevantes na conformação final da Carta de Atenas. Giovannoni, expressamente, reafirma as proposições teóricas de Camillo Boito, formuladas desde as duas últimas décadas do século XIX, consolidando uma linha de pensamento que seria conhecida como “restauro científico” ou, mas apropriadamente, “restauro filológico”. Nessa corrente era dada grande atenção aos aspectos documentais das obras e às marcas de sua passagem ao
Préhistoire de l’Unesco”, em Jacques Fontaine (org.), Bicentenaire de l’Institut de France, Paris, Fayard, 1995, pp. 490-493). 18. Houve, porém, tentativas anteriores, como o Congresso Internacional sobre a Proteção de Obras de Arte e dos Monumentos (realizado na época da Exposição Universal em Paris, de 24 a 28 de junho de 1889). Foi evento importante para intercâmbio de dados e para verificar o estado em que estava a salvaguarda e as leis de proteção dos bens culturais nos vários países. Suscitou especial interesse a lei francesa, de 1887, que autorizava o Ministro da Educação a expropriar, em favor do Estado, caso estivesse em perigo um bem que pertencesse a um particular. Foi analisada ainda uma forma específica de vandalismo, a dos restauradores. Os participantes votaram a moção que, ao lidar com uma obra de arte (arquitetura, escultura ou pintura), o autor da intervenção deveria ser assistido por comissão multidisciplinar e elaborar relatório pormenorizado do estado da obra antes, durante e depois da restauração. Foram ainda abordados temas como a preservação do entorno dos monumentos públicos e a proteção dos monumentos em tempos de guerra. Recomendou-se a criação de convenção internacional e que, para cada país, uma comissão designasse edifícios a serem protegidos em caso de conflito. Esse congresso foi relevante para o intercâmbio entre países e balão de ensaio para reuniões posteriores, como a de Atenas (ver Paul Saintenoy, “Le Congrès International pour la Protection des Œuvres d’Art et des Monuments tenu
longo do tempo, respeitando as várias fases e não mais, como fora comum na prática do século XIX, tentar impor na obra um estado completo idealizado, desconsiderando muitas de suas etapas; afasta-se, portanto, das recomposições miméticas, evidenciando, na intervenção, o momento em que foi realizada. A denominação “restauro filológico” vem justamente do fato de a ação assemelhar-se a edições críticas de textos, pois, ao tratar as lacunas do documento, as interpolações e interpretações são feitas através de elementos diferenciados: tipo e cor da letra, notas à margem do escrito. No texto para a conferência, Giovannoni coloca uma série de pontos que seriam reafirmados na Carta: a importância da manutenção constante para a conservação dos bens, assim como dos trabalhos de consolidação estrutural, fazendo uso de técnicas modernas; realizar o mínimo possível de obras e de acréscimos, respeitando a solução estrutural do bem; respeito pelas várias fases da obra; ao tratar lacunas e completar elementos, utilizar materiais diferenciados e adotar linhas simplificadas; inserção de datas e epígrafes nos trabalhos realizados; documentação precisa das obras executadas. Ou seja, o programa que Boito vinha propondo desde 188319, acres19. Camillo Boito teve papel de enorme relevância no campo da restauração, inclusive com repercussões normativas; durante o Congresso dos Engenheiros e Arquitetos Italianos realizado em Roma em 1883, propôs critérios (muito semelhantes aos retomados por Giovannoni na conferência de Atenas) que depois seriam adotados pelo Ministério da Educação da Itália (cf. Atti del Quarto Congresso degli Ingegneri ed Architetti Italiani Radu-
cido, ainda, do respeito pelas condições de ambientação dos monumento. Giovannoni, no verbete Restauro dos Monumentos, da Enciclopedia Italiana , reafirma esses princípios e, ademais, reitera a construção historiográfica, sugerida por Boito e por ele consolidada, de que ambos, no campo da restauração, abriram caminho para uma teoria “intermediária” entre as visões antitéticas de restauro de John Ruskin e de Eugène Viollet-le-Duc20, construção essa que teria grande repercussão na historiografia da restauração. Giovannoni evidencia, desse modo, os dois pólos extremos do restauro oitocentista e constrói a noção de uma trilha intermediária entre eles, não mencionando, nesses textos, as posições mais matizadas que existiram ao longo do século XIX e no início o século XX. Salienta ainda, nos dois textos, a importância de se ater, de maneira rigorosa, ao método, baseado nos princípios acima expostos, para poder enfrentar as questões particulares de cada obra e os imprevistos que sempre surgem numa restauração, mantendo a unidade de critérios.
de Boito: Os Restauradores, Cotia ( SP), Ateliê Editorial, 2002; Questioni Pratiche di Belle Arti, Milano, Hoepli, 1893; ou, ainda, o artigo “I Nostri Vecchi Monumenti, Conservare o Restaurare”, La Nuova Antologia, 1885, vol. 81, pp. 640-662; vol. 82, pp. 58-73; 1886, vol. 87, pp. 480-506. Para uma análise do tema e referências bibliográficas complementares, ver B. M. Kühl, “Os Restauradores e o Pensamento de Camillo Boito sobre a Restauração”, em C. Boito, Os Restauradores, op. cit. , 2002, pp. 9-28. 20. Para as definições antitéticas dos autores ver: John Ruskin, A Lâmpada da Memória, Cotia (SP), Ateliê Editorial, 2008; Eugène Emmanuel Viollet-
São esses princípios enunciados por Boito e reiterados por Giovannoni que conformam o primeiro grande documento internacional sobre a restauração, a Carta de Atenas, e também, logo a seguir, a Carta Italiana de Restauração, do Conselho Superior das Antiguidades e das Belas-Artes (de dezembro de 1931 e efetivada a partir de 1932), cujos principais pontos Giovannoni retoma no verbete da Enciclopedia Italiana. A visão de Giovannoni sobre o restauro teria repercussão normativa ainda maior no final da década, através das Instruções para a Restauração de Monumentos, da Direção Geral das Antiguidades e das Belas-Artes; todo esse empenho de construção normativa resultaria não apenas nessas recomendações, mas repercutiria na nova lei de tutela, incentivada pelo ministro Giuseppe Bottai, a lei n. 1089 de junho de 1939, sobre a tutela dos bens de interesse histórico-artístico 21. O restauro filológico, apesar de ter muitos de seus princípios ainda válidos, mostrou certos limites, que ficaram evidentes com as devastações geradas pela Segunda Guerra Mundial; dada a vastidão das destruições, mostrou-se a insuficiência de considerar apenas as questões documentais da obra, não trabalhando, concomitantemente, com meios conceituais mais elaborados para lidar com seus aspectos figurativos. Desse modo, a corrente
21. Segundo as informações de Pane, no texto a seguir, a lei permaneceu em vigor até 1999, sendo absorvida, com algumas alterações, no atual
que se seguiu, conhecida como “restauro crítico”, ao mesmo tempo em que acolhe os princípios fundamentais do restauro filológico – de respeito pelas várias estratificações do bem e de diferenciar a ação contemporânea –, também os associa ao tratamento da dimensão formal das obras, introduzindo, no processo metodológico, teorias estéticas e questões relacionadas à percepção, como desenvolvidas já na primeira metade do século XX. Essa postura, que considera as dimensões – formal e documental – da obra de maneira concomitante, interagindo através duma relação dialética, foi consolidada em outra carta de restauro, a Carta de Veneza, de 1964, adotada pelo Icomos (International Council on Monuments and Sites, criado em 1965 e acolhido como órgão consultor e de colaboração pela Unesco) que permanece em vigor como documento-base da instituição22. A Carta de Veneza, apesar de se colocar como uma superação da de Atenas, reconhece o seu papel essencial ao oferecer um conjunto coerente e rigoroso de critérios, incorporando muitos deles – como a ênfase na manutenção constante e o respeito pelas várias fases de uma mesma obra – que permanecem como pilares fundamentais para a intervenção em edifícios de interesse cultural até os dias de hoje.
22. Para mais informações e bibliografia complementar sobre as formas como elementos da Carta de Atenas, que é considerado um documento ultrapassado, foram reinterpretados na Carta de Veneza, que continua a ser um documento não-superado, ver: B. M. Kühl, “Notas sobre a Carta de Veneza”, Anais do Museu Paulista, São Paulo, 2010, vol. 18, n. 2, pp.
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