SUMÁRIO
parte 1 1 Manifestação telúrica 2 A coqueluche do grand monde 3 O vernissage parte 2 4 As cores da novidade 5 O teatro da Pauliceia 6 Da Casa Mappin ao Maine 7 Na terra do Saci 8 A fúria do Jeca 9 Mário de Maria 10 Oswald da mamãe 11 Isadora e o Furacão 12 Juca e Miramar 13 A realeza da República 14 Eduardo e Paulo 15 O Rodin bandeirante 16 O estalo do desvario 17 Máscaras no Trianon 18 Os bandeirantes vão à praia 19 A visita do jovem senhor 20 Organizando a bagunça parte 3
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21 O leão e a pianista contristada Happening futurista 22 Happening 22 23 A consagração do maestro 24 Turma animada Posfácio desinteressantíssimo Agradecimentos Notas Bibliografia citada Créditos das imagens
1 MANIFESTAÇÃO TELÚRICA
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Na madrugada de 27 de janeiro de 1922, a cidade de São Paulo foi acordada por um tremor. Janelas trepidaram, frascos de remédio pularam das prateleiras, ornamentos caíram de fachadas e animais entraram em alvoroço. “Terremoto”, estampou a Folha da Noite na manchete da edição daquela sexta-feira. O “movimento sísmico”, informava o vespertino, havia sacudido quase todo o estado de São Paulo, atingira parte do sul de Minas e propagara-se até o Rio de Janeiro. No dia seguinte, o jornal O Estado de S. Paulo dedicou uma página aos acontecimentos. Dizia que o fenômeno, “o primeiro na capital de tal intensidade”, provocara “impressionante rumor”. Muitos saíram às ruas, e o corre-corre sonâmbulo, em horário tão avançado, teria proporcionado, de acordo com a reportagem, um espetáculo “muito interessante”. Eugenio Egas, membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, comentou o “grande susto” de ver tudo “a oscilar” e classificou o episódio de “desagradável e perigoso”. Embora as primeiras avaliações indicassem prejuízos superficiais, a Folha da Noite voltou ao assunto para dizer que danos mais graves poderiam ter ocorrido. Suspeitava-se que o viaduto do Chá, já mal das pernas, tivesse sido golpeado pela “manifestação telúrica”. Também parecia inspirar cuidados, de acordo com o jornal, a situação das edificações da avenida Angélica, no bairro de Higienópolis. Casas estariam balançando perigosamente à passagem de veículos carregados, num sinal de que os alicerces perdiam solidez.
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A Folha da Noite cobrava inspeções técnicas dos órgãos competentes e aproveitava para lamentar que o Observatório Astronômico e Meteorológico, na avenida Paulista, se encontrasse “à míngua de sismógrafos e outros aparelhos”. Mal equipado, não conseguia prestar esclarecimentos detalhados — ao contrário do que era comum nas capitais da Europa. O tremor, é claro, virou o assunto da cidade. Falava-se da ação de gatunos durante o rebuliço, dos estampidos de armas de fogo que ecoaram nos quatro cantos, do infeliz que sofreu um ataque cardíaco, do princípio de pânico em Ribeirão Preto e dos telhados tombados no Espírito Santo do Pinhal. Alguns se divertiam e faziam piada; outros dramatizavam. Seria possível comparar o fenômeno aos que abalavam cidades da Itália ou do México? Houve quem escrevesse carta à imprensa para considerar exagerado o uso do termo “terremoto”; e também quem garantisse que alguns segundos a mais de vibração teriam reduzido tudo a “um montão de ruínas”. O jovem artista carioca Emiliano Di Cavalcanti, então com 24 anos, que voltava a São Paulo depois de uma temporada no Rio, sentiu seu leito deslizar enquanto dormia. Hospedava-se num hotel no centro da cidade e havia chegado tarde, acompanhado pelo advogado Vicente Rao, seu amigo, após uma noite “boemiando”. Di recordou a agitação daquela madrugada em livro de memórias publicado em 1955: “Assim que me deitei senti a cama correr para a frente. Logo depois gritos de hóspedes, correria no corredor. Vesti-me depressa e, quando cheguei no meio da confusão enorme à porta da rua, um italiano gritava glorioso: — Eu sei o que é. É terremoto!”. Ainda atordoado, o pintor diz ter saído em disparada na direção do elegante Grande Hotel da Rôtisserie Sportsman, que ficava junto ao viaduto do Chá, no endereço em que depois seria erguida a sede das indústrias
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Matarazzo, hoje sede da Prefeitura da cidade. A Rôtisserie recebia o eminente escritor e diplomata Graça Aranha, que retornava ao Brasil após alguns anos na Europa. Segundo o relato do pintor, Graça já tinha pulado dos lençóis e bradava radiante: “É o Cosmos. O Cosmos!”. A cena deve ter sido divertida — se realmente aconteceu. Em outra ocasião, Di afirmou que apenas telefonou para o ilustre visitante. A versão cômica das memórias parece corresponder à incontível vontade do pintor de fazer piada com as famosas elucubrações filosóficas do personagem, que pregava a integração do espírito humano à unidade do cosmos. Trinta anos mais velho que o desenhista carioca, Graça Aranha estava em São Paulo naquele 27 de janeiro de 1922 para cuidar dos preparativos de um festival de artes, música e literatura que se realizaria no Teatro Municipal, intitulado Semana de Arte Moderna. Ele próprio faria a conferência inaugural do evento, que prometia marcar época. No domingo, dois dias depois do terremoto, o Correio Paulistano noticiava que “diversos intelectuais de São Paulo e do Rio, devido à iniciativa do escritor Graça Aranha”, pretendiam apresentar no Municipal uma demonstração do que haveria de “rigorosamente atual” no mundo artístico, da escultura à literatura, passando pela música, pela arquitetura e pela pintura. O programa transcorreria “de 11 a 18 de fevereiro próximo” — e já se divulgava uma primeira lista de participantes. 1 O time paulista seria representado pelos escritores Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia, Mário de Andrade e Oswald de Andrade; pelo escultor Victor Brecheret; e pela pintora Anita Malfatti, entre outros. Tarsila do Amaral — não é demais lembrar — encontrava-se em Paris, e não participaria da Semana. Sinal dos tempos, os dois arquitetos da lista publicada pelo Correio Paulistano, Georg Przyrembel e Antônio Garcia Moya, eram,
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respectivamente, polonês e espanhol; o pintor John Graz, suíço; o escultor Wilhelm Haarberg, alemão; e Brecheret, embora “nosso”, um filho da Itália. Diante de nomes nem sempre conhecidos, a reportagem destacava a presença, nas atividades musicais, de Guiomar Novaes, a grande celebridade paulista e nacional do piano, que nada tinha de modernista mas era garantia de presença de público. O jornal ressaltava também a oportunidade de São Paulo enfim conhecer o “extraordinário compositor brasileiro Villa-Lobos”, que chegaria com a caravana carioca, em companhia de poetas e artistas, como Ronald de Carvalho e Oswaldo Goeldi.
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MÁRIO x CÂNDIDO
Um press release distribuído pelos organizadores e divulgado por alguns órgãos da imprensa afirmava que a notícia da Semana fora recebida “com um frêmito de curiosidade” nas rodas intelectuais e “altamente mundanas” de São Paulo, o que seria natural, pois se tratava da primeira tentativa de realizar no Brasil “um certame dessa natureza”. O texto anunciava que o presidente do estado, Washington Luís (ainda não se usava o termo “governador” naquele tempo), compareceria ao vernissage da exposição, que aconteceria no saguão do teatro. Previam-se agora — como de fato ocorreu — três apresentações, nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro — respectivamente segunda, quarta e sexta. A primeira delas seria dedicada à pintura e à escultura; a segunda, à literatura, e a terceira à música. O comunicado prometia para breve um programa mais detalhado e, no final, alertava: “Escusado será dizer que, desde já, grande é a procura de bilhetes”. No dia 3 de fevereiro, a Gazeta retornava ao assunto com uma nota intitulada “A semana futurista”. Na mesma linha do release, dizia que a proposta vinha “agitando de tal forma o meio artístico e intelectual” que ignorá-la seria dar provas de um parti pris incompatível com o progresso da imprensa. O diário aproveitava a ocasião para apresentar um
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colaborador, o poeta Mário de Andrade, que nas edições seguintes escreveria “em defesa da arte moderna”. O articulista tinha, então, 29 anos incompletos, era autor de artigos sobre música, literatura e arte e professor do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Depois de uma estreia conservadora, seus primeiros versos modernistas já haviam sido divulgados pela imprensa e lidos em rodas literárias, mas seu livro Pauliceia desvairada ainda estava por sair — o que aconteceria alguns meses mais tarde. Na Gazeta, Mário faria contraponto com os artigos de um jornalista que escrevia sob o nome de Cândido e bombardeava, sem piedade, os profetas da nova estética. Por trás do pseudônimo voltairiano estava a figura de Salisbury Galeão Coutinho. Tinha 25 anos e era natural de Curral del Rey, hoje Belo Horizonte. Seu nome homenageava o primeiro-ministro do Império Britânico. Começara a trabalhar em jornalismo na cidade de Santos, como redator da Tribuna, em 1915, de onde se transferiu para a Gazeta, na capital — e lá fez carreira. Cândido era um daqueles que, embora lidos e cultos — ou talvez por isso mesmo —, não engoliam a pregação espalhafatosa do italiano Filippo Tommaso Marinetti, líder do movimento futurista, que pretendia substituir a arte do passado por outra, moldada pelo mundo da velocidade e da máquina. Em 1909, o italiano havia publicado seu manifesto beligerante no jornal francês Le Figaro. “Até hoje a literatura tem exaltado a imobilidade pensativa, o êxtase e o sono. Queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, a velocidade, o salto-mortal, a bofetada e o murro”, dizia o texto, que glorificava a guerra — “única higiene do mundo”. É da Itália, anunciava Marinetti, “que lançamos ao mundo este manifesto de violência arrebatadora e incendiária com o qual fundamos nosso futurismo, porque queremos libertar este país de sua fétida gangrena de professores, arqueólogos, cicerones e antiquários”.
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O efeito foi explosivo. A expressão “futurismo” resumia um sentimento de época, e incendiou a imaginação de artistas e escritores dentro e fora da Europa. A primeira exposição da nova corrente aconteceu em Milão, em abril de 1911. Outra, realizada na galeria Bernheim-Jeune, em Paris, em fevereiro de 1912, circulou depois pela Inglaterra, França e Holanda, com impacto nos meios artísticos. Na literatura, os futuristas lançaram o brado de “liberdade para as palavras”, sugerindo a exploração do design tipográfico da época, da linguagem publicitária e da escrita fragmentada. Mas com a participação da Itália na guerra o movimento se dispersou. O escultor Umberto Boccioni foi morto, e o músico e pintor Luigi Russolo, seriamente ferido. Embora continuasse a se autodenominar “futurista”, o círculo em torno de Marinetti, a partir de 1918, já não tinha o mesmo vigor e se aproximava da caricatura — e do fascismo. Os modernistas de São Paulo, em especial Menotti del Picchia e Oswald de Andrade, usavam habitualmente o termo “futurismo”, mas o faziam em sentido elástico, para designar as propostas mais ou menos renovadoras que se opunham às receitas “passadistas” e “acadêmicas”. A polarização futurismo × passadismo servia como tática retórica eficaz — mas também simplificadora. Esse aspecto do discurso modernista, que se apresentava como ruptura com o “velho”, acabava por atirar na lata de lixo do “passadismo” manifestações variadas, às quais, diga-se, não raro os próprios “novos” estavam atados. O rótulo “futurista” gerava incompreensões e facilitava ataques por sugerir subordinação à escola e às ideias de Marinetti. Por esse e outros motivos, Mário de Andrade preferia, “bandeirantemente”, recusar em público a batuta do vanguardista italiano. Sendo assim, o novo colaborador da Gazeta, escalado para defender o “futurismo”, começou por negar a filiação do grupo à corrente europeia.
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Mário não queria que ele e seus colegas fossem associados ao credo “contraditório, embora às vezes admirável” de Marinetti. Os “rapazes modernistas”, como preferia vê-los chamados, desejavam apenas “ser atuais, livres de cânones gastos, incapazes de objetivar com exatidão o ímpeto feliz da modernidade”. A expressão “ímpeto feliz” vinha como um grito de frescor e juventude em oposição à sisudez “passadista” e ao ambiente soturno dos anos anteriores, imposto pela guerra. Era um traço do movimento. Mário gostava de citar a “mocidade alegre” e Oswald, alguns anos depois, em 1928, sentenciaria no “Manifesto Antropófago”: “A alegria é a prova dos nove”. O poeta de Pauliceia desvairada reconhecia em Cândido “firme e profunda erudição” para fornecer a seus leitores “notícias exatas sobre a nova e muitas vezes simpática renascença italiana”. O problema, a seu ver, era que ele nada dizia sobre “a renascença paulista”, da qual a Semana deveria ser “um divertido e porventura magnífico estalão”. 2 Por sua vez, Cândido não economizava tinta com pilhérias. Desen volto, apontava as incongruências que via no movimento italiano e fustigava a turma de Mário. Percebendo que as alianças se tornavam mais amplas para as jornadas do Municipal, Cândido saía para o ataque. Alegava que teria partido de alguns dos próprios “rapazes modernistas” o uso do termo “semana futurista” — que constava, aliás, do recibo de aluguel do Municipal. Não seria, portanto, culpa sua se agora preferiam chamar a festa de Semana de Arte Moderna, quem sabe com o propósito de melhor acomodar, “num largo abraço, românticos, parnasianos, sim bolistas e místicos”. Diante da amplitude da lista anunciada, Cândido considerava que os “soi-disant futuristas de São Paulo” haviam caído, “mais depressa do que se supunha, nos braços dos representantes de ideais estéticos, se é que os têm, totalmente diversos dos seus”. E sentenciava: “Acabou-se a intransigência dos primeiros tempos”.
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MONUMENTOS DETONADOS
A intransigência, na verdade, não se manifestara exatamente nos “primeiros tempos”, ou seja, cinco ou seis anos antes da Semana, quando um núcleo de jovens artistas, jornalistas e intelectuais, com ideias estéticas vagamente modernizantes, começou a se formar em São Paulo. Naquela ocasião, os mais sectários eram justamente os que se opunham às “aberrações” da arte moderna — caso do escritor e crítico Monteiro Lobato, autor do célebre ataque à exposição de Anita Malfatti, em dezem bro de 1917. Foi só a partir de 1920, 1921, que os moços “futuristas”, sobretudo Oswald, Menotti e Mário, passaram a elevar o tom para insuflar na imprensa e em outras frentes a retórica contra o “passadismo” nas artes. Menotti, em 1922, tinha trinta anos, era autor de um famoso poema “regionalista” intitulado Juca Mulato, e preparava o lançamento da novela O homem e a morte. Ganhava a vida como jornalista prestigiado, responsável pelas notas e editoriais políticos do Correio Paulistano, órgão oficial do Partido Republicano Paulista ( prp), que mandava e desmandava na política brasileira. Despachava diretamente com Washington Luís, no palácio dos Campos Elíseos. No mesmo jornal, com o pseudônimo Hélios, assinava crônicas e artigos em defesa da renovação artística. Orgulhavase de ter convencido o futuro presidente da República, homem educado,
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historiador, com interesses culturais, a permitir que o Correio apoiasse o movimento modernista. Oswald, o mais velho, que chegava aos 32 anos, era pai de um garoto de oito, e figura conhecida nos meios jornalísticos, boêmios e intelectuais de São Paulo e do Rio. Já havia comandado uma revista político-literária modernizante e descontraída, chamada O Pirralho, e sua estreia em livro datava de 1916, com as peças Mon coeur balance e Leur âme — tradicionalmente escritas em francês, em parceria com o poeta Guilherme de Almeida. Filho único de família abastada, Oswald era sobrinho do acadêmico Herculano Inglês de Sousa, radicado na capital federal, cidade que ele visitava regularmente — e onde frequentava rodas de escritores como Olavo Bilac, João do Rio e Emílio de Meneses. Em 8 de fevereiro de 1922, a cinco dias da inauguração da festa, Oswald iniciou no Jornal do Comércio uma série de artigos em que detonava alguns monumentos da cultura oficial e repisava argumentos que já vinha esgrimindo nos últimos anos. Desesperava-se com as defasagens do meio artístico nacional — “haveremos de andar sempre 50 anos atrás dos outros povos?” — e escarnecia dos “analfabetos letrados” que só compreendiam a pintura como cópia da realidade: “Qualquer imbecilzinho saído da repartição em que trabalha durante o dia, pega um pincel, tintas, borra telas com intenções absolutamente fotográficas, e fica sendo pintor”. Blagueur afiado, inteligência fulgurante, o jornalista e escritor promovia os novos e fulminava medalhões, como o pintor Pedro Alexandrino e o compositor Carlos Gomes. “Carlos Gomes é horrível, todos nós o sentimos desde pequeninos”, escreveu na véspera da Semana, num artigo que causou indignação entre os muitos entusiastas do autor da ópera O Guarani . Oswald dizia que, “de êxito em êxito, o nosso homem conseguiu difamar o seu país, fazendo-o conhecido através dos Peris de maiô cor de
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cuia e vistoso espanador na cabeça, a berrar forças indômitas em cenários terríveis”. Contra as patuscadas e a “cantarolice nefanda” do celebrado compositor, o polemista apontava para Heitor Villa-Lobos, que em sua opinião faria estalar, na Semana, o “nosso velho e caduco” ambiente musical. Apesar das ambiguidades da programação da Semana, a linguagem de Oswald era, como se vê, de provocação e ataque. Considerava impossível naquele momento — como escreveu num de seus artigos — “refletir atitudes de serenidade”. Sentia-se em meio a um combate: “Somos boxeurs na arena”, avisou.
2 A COQUELUCHE DO GRAND MONDE
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À direita, palacete que abrigava a sede do elegante Automóvel Clube, do qual eram sócios playboys e endinheirados de São Paulo, entre os quais membros do comitê que patrocinou a Semana de Arte Moderna.
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Enquanto o pugilato estético entre “futuristas” e “passadistas” esquentava, a imprensa noticiava que, diante do “grande interesse despertado” pela Semana, todas as frisas do Municipal já se achavam, dois dias antes da abertura, “tomadas por distintas famílias de nossa melhor sociedade”. Na véspera, um domingo, somente algumas “poucas poltronas”, de acordo com o Correio Paulistano, poderiam ser adquiridas na sede do Automóvel Clube, localizada ao lado do hotel em que se hospedava Graça Aranha. O clube era um ponto de convivência de milionários de São Paulo, entre eles os integrantes do comitê patrocinador da Semana de Arte Moderna. O grupo fora reunido sob a autoridade culta e empreendedora de Paulo Prado, fazendeiro, empresário, escritor, ensaísta e colecionador de arte. Paulo era neto da matriarca Veridiana Prado e filho do todo-poderoso conselheiro Antônio da Silva Prado ( 1840-1929), político influente do Segundo Império e da República. Foi o prefeito que deu ares “europeus” à São Paulo do começo do século e iniciou a construção do Municipal. Ainda jovem, Paulo Prado conheceu Paris, onde se hospedou no apartamento de seu tio Eduardo, que viveu na capital francesa e foi íntimo do escritor Eça de Queirós, a quem serviu de inspiração para o personagem Jacinto de Thormes, de A cidade e as serras. Paulo pertencia à mesma geração de Graça Aranha, seu colaborador nos negócios e também “cunhado informal” — pois o envolvente diplomata e filósofo do cosmos mantinha longo caso extraconjugal com Nazareth Prado, sua irmã.
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Como ocorria tradicionalmente em grandes espetáculos e exposições paulistas, o grupo de notáveis patrocinaria o evento e obteria as adesões necessárias para realizá-lo. A diferença em relação às iniciativas anteriores era que a manifestação modernista não correspondia ao gosto majoritário da burguesia local. Paulo Prado era, quanto a isso, uma avis rara. Seus pares grã-finos, em matéria de arte, mantinham-se quase todos “passadistas” — e só seu prestígio poderia tê-los atraído para a empreitada. O comitê, coordenado pelo aristocrático René Thiollier, era formado por Alberto Penteado, Numa de Oliveira, Alfredo Pujol, Edgard Conceição, Oscar Rodrigues Alves, Armando Penteado, Antônio Prado Júnior, José Carlos de Macedo Soares e Martinho Prado — além do próprio Paulo Prado. Eram nomes conhecidos, ligados a famílias endinheiradas, alguns homens de letras, com presença no circuito cultural da cidade, como Alfredo Pujol (1865-1930), que ajudava a bancar a Semana, sendo, não obstante, um “imortal” da Academia Brasileira de Letras. Estudante da Faculdade de Direito de São Paulo, Pujol foi colega de Olavo Bilac e do poeta, senador e mecenas Freitas Valle, com quem fundou o Clube dos xiii, um dos grêmios estudantis da faculdade, inspirado nos mandamentos liberaldemocráticos da maçonaria. Depois de formado, Pujol trabalhou em jornais e elegeu-se deputado pelo Partido Republicano Paulista. Em 1895, foi nomeado secretário do Interior do Estado, no governo de Bernardino José de Campos. Na década de 1910, dedicou-se à advocacia, apoiou eventos variados em São Paulo e realizou entre 1915 e 1917, na Sociedade de Cultura Artística, sete conferências sobre Machado de Assis. Em 1917, logo depois de publicá-las, foi
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eleito para a Academia, passando a ocupar a cadeira 23, que pertencera ao autor de Dom Casmurro. Mais descontraído e esportivo, Antônio Prado Júnior ( 1880-1955), irmão mais novo de Paulo, liderou a fundação do Automóvel Clube, mas também presidiu o Athlético Paulistano, onde disputava competições de ciclismo, jogava futebol e praticava tênis. Amigo, desde jovem, de Santos Dumont, ia sempre a Paris e adorava automobilismo. Em abril de 1908, Prado Júnior promoveu com colegas um pioneiro raid de automóveis em São Paulo. O grupo, que se autodenominava a “caravana de bandeirantes sobre rodas de borracha”, percorreu o trecho da capital a Santos em 37 horas. Paulo Prado também participou do desafio, mas seu carro quebrou no caminho. O feito, que entusiasmou a cidade, serviu de impulso para o surgimento do clube. A reunião de nomes tão respeitáveis — e ao mesmo tempo alheios à movimentação modernista — no patrocínio da Semana não passaria despercebida pelo sarcasmo de Cândido, que comparou o grupo de bacanas aos seguidores de Cristo, a pregar a Verdade Suprema da arte do futuro: “Homens de boas intenções, os doze apóstolos, armados de bisturi, esvurmarão as mazelas da literatura e da arte. Diante do brilho do seu estilo e das verdades que serão ditas, ruirá por terra todo o edifício levantado pelas gerações anteriores e os representantes da velha arte”… Os nomes divulgados pela imprensa, entretanto, somavam onze — e não doze. É possível que Cândido incluísse Graça Aranha na lista — ou o governador Washington Luís. 3 Se os rapazes modernistas aceitavam di vidir o palco com a pianista Guiomar Novaes, o quadro nos bastidores parecia igualmente dúbio — pois quem bancava o show era a fina flor da oligarquia cafeeira. Para Cândido, não precisava mais nada. Estava exposto o caráter farsesco da pretensa vanguarda e do espetáculo que se
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prometia apresentar no Municipal: “E depois venham dizer que o futurismo é uma coisa séria, coisa, aliás, que nem os seus próprios apologistas acreditam”.
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LAÇOS TRADICIONAIS
Em que pese a alta voltagem retórica, inevitável em momentos de embate, os laços dos nossos “futuristas” com a tradição eram inegáveis. Vinham de berço, de extração social, de amizades e de formação. Quase todos pertenciam a famílias ricas ou influentes e se relacionavam com artistas, escritores e personalidades “passadistas”. Educaram-se à europeia, aprenderam línguas e frequentaram boas escolas. Liam revistas estrangeiras, e alguns conheciam a Europa e os Estados Unidos. Eram pessoas vinculadas aos extratos mais afortunados e cultos da grande cidade emergente do Brasil daquele momento. “Éramos os playboys intelectuais de 1922”, resumiria Guilherme de Almeida, em 62, ao Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo. Em relação às obras até então produzidas, boa parte delas se subordinava a preceitos mais ou menos convencionais. O sugestivo paralelo entre o tremor de terra que chacoalhou a madrugada dos paulistanos e o “terremoto estético” da Semana — imagem que foi usada por Oswald de Andrade e Menotti del Picchia — deve ser visto com uma dose de cautela. Se, em algumas versões, tenta-se negar reconhecimento e importância às apresentações de 1922, em outras tem-se a impressão de que teria ocorrido no Municipal uma espécie de insurreição bolchevique contra o status quo cultural, liderada pela vanguarda revolucionária das artes paulistas.
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A geologia ensina que abalos sísmicos no Brasil não são provocados por choques entre placas tectônicas, mas por rachaduras de uma mesma placa — a Sul-Americana, sobre a qual repousa o país. Assim parece ter acontecido com o “terremoto” da Semana, uma rumorosa acomodação de atritos e fissuras nos limites de um mesmo grande campo. Se havia negação na atitude polêmica e agressiva do grupo, a estética prendia-se ainda ao passado. E o evento, programado para gerar repercussão, parecia com binar muito bem com os interesses da elite paulista de autovalorização histórica e hegemonia intelectual. A exaltação da paulistanidade, muitas vezes com constrangedor ufanismo, sempre esteve presente no discurso e na propaganda dos rapazes modernistas. Num dos artigos da série para o Jornal do Comércio, por exemplo, Oswald insistia na tecla da vocação transformadora da cidade: “Como Roma primitiva, criada nos cadinhos aventureiros, com o sangue despótico de todos os sem-pátria”, a capital do café, “cosmopolita e vibrante”, prestava-se, em sua opinião, “como poucas cidades da América” a acompanhar a renovação que se anunciava nas letras, nas artes e na música. A Pauliceia — exultava o poeta — merecia “a glória de abrigar os portadores da nova luz” do século xx, que exigia “uma maneira nova de expressão estética”.4 Na mesma linha, no Correio, Menotti saudava, por aqueles dias, o “neobrasileiro de São Paulo”, caldeado “sob este sol de trópico com o sangue de cem raças”. Desse tipo humano extraordinário, argumentava ele, só poderia se esperar uma arte “fatalmente nervosa e dinâmica”. O estado bandeirante, já o “berço de um futurismo racial, industrial e econômico”, estava pronto para se consagrar como “berço do futurismo cultural”. Também na Gazeta, apesar das críticas de Cândido, São Paulo falou mais alto no dia da inauguração. Um texto na coluna “Notas de Arte”, no
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dia 13 de fevereiro, anunciava que um grupo de moços, “namorados da sinceridade”, apresentaria naquela noite as novas orientações da arte numa “manifestação de força coletiva, única na América do Sul”. O pequeno artigo ponderava que “mesmo aqueles que seguem caminho di verso” poderiam sentir-se satisfeitos de ver que a São Paulo cabia “a primazia desta manifestação”. E isso era justo, pois “as artes florescem sempre nas terras que apresentam um apogeu de progresso e civilização” e não naquelas “inertes e decadentes”. O que parecia uma “indireta” para o Rio logo se explicitava em todas as letras: “A hegemonia da Corte não existe mais. No comércio como no futebol, na riqueza como nas artes São Paulo caminha na frente”. E parecia fácil demonstrar isso: Quem primeiro manifestou a ideia moderna e brasileira de arquitetura? São Paulo com o estilo colonial. Quem manifestou primeiro o desejo de construir sobre novas bases a pintura? São Paulo com Anita Malfatti. Quem apresenta ao mundo o maior e moderno escultor da América do Sul? São Paulo com Brecheret. Onde primeiro a poesia se tornou o veículo da sensibilidade moderna livre da guizalhada da rima e das correias da métrica? Em São Paulo.
No final, o Rio merecia uma única concessão. Estaria “mais adiantado” na música, com Villa-Lobos. Se a Semana de Arte Moderna foi o marco inicial da trajetória de institucionalização do modernismo como escola oficial no país, foi também um primeiro ponto de chegada para a maioria daqueles escritores e artistas. Eles viam-se, enfim, convidados a brilhar na grande ribalta de São Paulo, que promovia, não por acaso no simbólico ano do Centenário da Independência, uma conveniente demonstração pública de arrojo e cosmopolitismo.
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Como assinalou Menotti del Picchia, para surpresa de muitos, os “futuristas” se tornavam, naquele início de 1922, “a coqueluche do nosso grand monde”.5
3 O VERNISSAGE
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Catálogo com as atrações da exposição de arte realizada no saguão do Teatro Municipal. O desenho de abertura é de Di Cavalcanti, também responsável pela imagem da capa do programa da Semana.
O grand monde paulista respondeu ao chamado dos respeitáveis sobrenomes do comitê patrocinador e compareceu ao Municipal, que se iluminou na noite de 13 de fevereiro para a inauguração da Semana de Arte Moderna. Depois de um dia abafado, com os termômetros por volta dos 28 graus, a temperatura recuava a patamares mais amenos quando os automóveis começaram a chegar com homens em ternos, coletes e gravatas e mulheres em presumíveis saltos altos, meias claras e vestidos soltos, com comprimentos que se afastavam cautelosamente dos tornozelos. Alguns jornais do dia refrescaram a memória de seus leitores com notas sobre a abertura do evento e ressaltaram a liderança de Graça Aranha, que, nas palavras do Jornal do Comércio, achava-se “à frente dessa iniciativa que pretende fazer uma completa demonstração das nossas modernas correntes estéticas”. Graça abriria a noite com uma conferência sobre “A Emoção Estética na Arte Moderna”, ilustrada por músicas executadas pelo pianista Ernani Braga e poemas declamados por Ronald de Carvalho e Guilherme de Almeida. A seguir seriam apresentadas peças de Villa-Lobos. Na segunda parte, Ronald voltaria ao palco para falar sobre “A Pintura e a Escultura Moderna no Brasil”, e uma nova seção musical, também com obras do compositor carioca, fecharia o programa. Mas, antes de tudo isso, aconteceria no saguão do teatro, a partir das “20 e meia horas”,6 o vernissage de uma grande exposição “futurista”.
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Governador, secretários, senhoras e senhores de “distintas famílias”, além de artistas, intelectuais, profissionais liberais e estudantes, que acorreram à noite de estreia, poderiam contemplar cerca de cem obras de arte — de óleos e esculturas a croquis e maquetes de projetos arquitetônicos. Distribuíam-se em painéis e bases que antecediam e secundavam a escadaria interna. De frente para a entrada, à direita de quem chegasse, saltava aos olhos um conjunto de doze pinturas e oito peças — gravuras, desenhos e pastéis — de autoria de Anita Malfatti. 7 A pintora decidira incluir em sua seleção alguns trabalhos mais recentes, mas eles serviam apenas para ressaltar as verdadeiras pièces de résistance reservadas para a ocasião: uma coleção de telas exibidas em 1917, numa famosa e polêmica mostra que despertou gargalhadas epifânicas do jovem parnasiano Mário de Andrade e a dura reprovação do escritor e crítico “naturalista” Monteiro Lobato, num artigo publicado na edição vespertina do Estado de S. Paulo. Ali estavam mais uma vez aos olhos de São Paulo A mulher de cabelos verdes, A estudante russa, O homem amarelo, A onda, A ventania, O ja ponês e Rochedos — obras que permaneceram como algumas das melhores de Anita e do modernismo brasileiro. Entre os desenhos e as gravuras, chamava atenção um nu masculino, gênero que a artista relutava em exibir. Intitulado O homem de sete cores, era feito a carvão e pastel, com colorido fauve, torções anatômicas e folhagens tropicais estilizadas. Com todos os recuos e derivas por que passara a artista nos anos anteriores, seu nome continuava associado, na cidade, às “aberrações” da arte moderna. Cinco anos depois de despertar a fúria de Lobato, as pinturas de Anita ainda eram observadas por alguns com o misto de fascínio e aversão que provocam certas atrações circenses. Para desprezá-las ou não, o fato é que todos no Municipal queriam vê-las.
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A sra. Renata Crespi, por exemplo. Filha do empresário italiano Rodolfo Crespi, dono da maior tecelagem do estado, casada com Fábio Prado, primo de Paulo Prado, estava ali, no saguão, diante daquelas “deformações” coloridas, sem saber direito o que pensar. A seu lado, fazendo-se de guia, um atencioso Menotti del Picchia. “Não estaria torto aquele retrato?”, perguntou-lhe a amiga. O escritor refletiu alguns instantes e respondeu com bom humor: o quadro — disse ele — fora realizado sob os efeitos do famigerado terremoto de final de janeiro. Essa a razão de seu estilo um tanto trepidante, que ressaltava o caráter “dinâmico” da pintura. “O senhor está brincando”, duvidou a senhora. “Não”, garantiu ele — e insistiu na história da “dinamização” que o artista moderno pretendia imprimir em suas criações. 8 Se deixassem para trás os quadros de Anita e caminhassem pelo centro do saguão, na direção da escada, Menotti e sua acompanhante veriam, à esquerda, dez desenhos e pastéis de Di Cavalcanti, em companhia de duas telas — Ao pé da cruz e Retrato. O jovem carioca apenas iniciava sua travessia da ilustração e do desenho para os pincéis. Não era ainda o famoso pintor de mulheres e cenas brasileiras, que só começaria a se delinear a partir de 1923, quando foi passar uma temporada em Paris. Como definiu Mário de Andrade, na dedicatória de um exemplar de Pauliceia desvairada, Di era, em 1922, o “menestrel de tons velados” — autor de imagens muitas vezes envoltas em atmosfera fin de siècle. Era o que se via muito bem no clima penumbrista que cercava os dois barbudos do pastel Boêmios, uma obra de 1921, comprada pelo senador Freitas Valle — hoje no acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Dois meses depois da Semana, em 15 de abril de 1922, a revista belga Lumière, que existiu entre 1919 e 1923, na Antuérpia, publicaria um comentário do poeta e crítico Sérgio Milliet acerca da mostra. Sobre Di,
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cujas obras mais recentes seriam “muito pessoais e modernas”, Milliet considerava que havia errado ao escolher trabalhos que pertenceriam ainda “à velha pintura”. Na sua visão, eram telas “mais ou menos impressionistas, seja pela fatura seja pela própria interpretação do tema”. As hesitações e inquietações do artista carioca eram típicas do momento por que passava sua geração — uma época em que as obras pareciam farejar novidades, sem no entanto tê-las encontrado. Era flagrante a defasagem entre o que se mostrava e o que se dizia no inflamado discurso “futurista” dos principais propagandistas e teóricos do grupo. Quase tudo que se levava ao Municipal naquela celebração de arte moderna eram experimentações que, ora mais, ora menos, se apoiavam em estilos do final do século xix, como o art nouveau, o simbolismo ou o impressionismo. Di também expôs no saguão do Municipal desenhos concebidos para um livro. Tratava-se provavelmente de Os fantoches da meia-noite, que lançava por aquela época, embora em depoimento à pesquisadora e crítica Aracy Amaral o artista tenha manifestado a possibilidade de que fossem ilustrações para a edição de Dança das horas, de Guilherme de Almeida. Depois de percorrer as obras de Anita e Di Cavalcanti, Menotti, nesse tour imaginário em companhia da sra. Crespi, estava possivelmente ansioso para chegar às esculturas de Victor Brecheret, o “Rodin brasileiro”, que tanto o entusiasmava. Estavam dispostas à direita do saguão, mais ao fundo, próximas à lateral da escada. O artista não se encontrava em São Paulo. Havia embarcado, em 1921, para Paris, contemplado com uma bolsa do Pensionato Artístico do Estado — que Anita Malfatti também queria receber. As peças escolhidas para representá-lo eram possantes e bem realizadas. Nas palavras de Milliet, em texto para a revista belga Lumière, tratava-se de “um grande escultor, um gênio da raça latina, digno de
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suceder a Rodin e a Bourdelle”. 9 Suas esculturas fugiam do ramerrão acadêmico afrancesado, mas, como as obras de Di, não apresentavam nenhuma solução mais radical. Eram trabalhos “de transição”, a maior parte concluída até 1920 — caso de Pietà, Ídolo, Vitória, Gênio e da Cabeça de Cristo, que enlouqueceu Mário de Andrade nesse mesmo ano. Enquanto Anita, Brecheret e Di formavam a comissão de frente do grupo de São Paulo, o pernambucano Vicente do Rego Monteiro e a mineira Zina Aita vinham com a turma do Rio. Ele, que se fixara por alguns anos na capital federal, estava, naquele momento, de volta a Paris. Os trabalhos expostos em São Paulo tinham sido produzidos na temporada carioca — e pertenciam ao poeta e diplomata Ronald de Carvalho. Eram dez, dos quais três retratos, um deles do próprio colecionador. Sinal do interesse de Rego Monteiro pelos ismos europeus, duas de suas telas intitulavam-se Cubismo. Outra, Cabeças negras, unia a técnica pontilhista à temática brasileira, uma das predileções do artista. Certamente pareceria estranha ou “desfocada” a olhares fotográficos como os da sra. Crespi. Milliet dividiu a seleção de Rego Monteiro em duas vertentes — uma com características impressionistas e outra com traços cu bistas, que marcavam “a evolução do pintor em direção à pintura intelectual”. Zina Aita, nascida em Belo Horizonte, era filha de família italiana e, depois de estudos em Florença, conheceu, no Rio, Ronald e Manuel Bandeira — que teriam sugerido seu nome para a Semana. Entre as obras que exibiu, talvez a única hoje conhecida seja Petrópolis (ou Trabalhadores), que Aracy Amaral, pela temática, considera possível tratar-se de A sombra, título mencionado no catálogo ao lado de outros sete da artista. O trabalho, na opinião da pesquisadora, seria um dos “mais avançados” da exposição — embora Zina Aita também produzisse naquele tempo aquarelas “passadistas”.
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Petrópolis — ou A sombra — fez parte de uma individual da pintora realizada no espaço da livraria O Livro, de Jacinto Silva, em março de 1922, na sequência da Semana. Foi adquirida por Yan de Almeida Prado, para quem Zina Aita teria sido a “melhor” da mostra de pintura. A opinião de Milliet difere da de Almeida Prado. Para ele Anita Malfatti mostrou o que havia de melhor na exposição. Zina Aita pareceu-lhe “mais bizarra que original”. Completavam o grupo do Rio o obscuro desenhista Alberto Martins Ribeiro e o escultor Hildegardo Leão Velloso. Graças a depoimentos de participantes da Semana colhidos por Aracy Amaral, sabe-se que Martins Ribeiro teria sido um talento promissor — mas, nas palavras de Renato Almeida, “não se desenvolveu”. Segundo Di, “fazia uns retratos, desenhos de cabeça, de imaginação”. Morreu jovem, ao que parece, na Itália. Quanto ao segundo, neto de senador do Império e aluno dos irmãos Henrique e Rodolfo Bernardelli, foi citado na imprensa como um dos participantes, embora seu nome não apareça no catálogo. Leão Velloso notabilizou-se por obras convencionais — monumentos e bustos em homenagem a vultos como Rui Barbosa, almirante Tamandaré e general Osório. Assim como Martins Ribeiro, pouco parece ter influído na evolução do movimento renovador que florescia na época. Um caso duvidoso — e mais interessante, pela qualidade do artista — é o de Oswaldo Goeldi (1895-1961), carioca, filho do cientista Emílio Augusto Goeldi. Sua primeira exposição foi em 1917, em Berna, capital da Suíça, país onde viveu dos seis aos 24 anos. Voltou ao Brasil em 1919, tra balhou como ilustrador e, em 21, expôs no saguão do Liceu de Artes e Ofícios do Rio. Com exceção de menções na imprensa à primeira lista de participantes, não há registro sobre a presença do grande gravurista na
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Semana. Questionada a respeito, Aracy Amaral, que teve oportunidade de ouvir o depoimento de veteranos da exposição, considera que o artista “não participou”.10
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BORRÕES VANGUARDISTAS
Três outros paulistas exibiram trabalhos na assim designada mostra de “pintura” — os ilustradores Ferrignac, Yan de Almeida Prado e Antonio Paim Vieira. Ferrignac, pseudônimo de Ignácio da Costa Ferreira (1892-1958), pertencia à turma que se divertia na garçonnière de Oswald de Andrade, na rua Líbero Badaró, no final da década de 1910. Deixou várias caricaturas no livro-diário daqueles encontros — O perfeito cozinheiro das almas deste mundo… — e colaborou em revistas como Vida Moderna e O Pirralho. Seu trabalho na Semana denominava-se Natureza dadaísta. O título era provocativo, mas a obra se perdeu. Não há como saber se realmente correspondia ao vanguardismo anunciado ou se a alusão ao movimento dadá era só para inglês — no caso, paulista — ver. De qualquer forma, em seu artigo para a Lumière, Milliet situou o desenho na “extrema esquerda do movimento paulista”. O rótulo pode eventualmente corresponder a essa enigmática Natureza dadaísta, mas não se aplica à trajetória do ilustrador — que, aliás, acabou deixando a arte para trabalhar na polícia. Já Yan de Almeida Prado e Paim Vieira sempre insistiram na versão de que nada tinham de modernistas. Teriam se juntado à mostra por pura gozação. O primeiro, desenhista esporádico, que se tornaria historiador e
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bibliófilo, chegou a colaborar na revista Klaxon, mas se desentendeu com o grupo e se transformou num crítico obstinado da Semana, para ele um acontecimento sem importância, cuja notoriedade se deveu exclusivamente ao esforço promocional — que de fato existiu — de alguns de seus participantes, em especial Oswald e Mário de Andrade. 11 O nome de Yan de Almeida Prado aparecia no catálogo da exposição como autor de “dois desenhos”. O de Paim Vieira não era citado. Tratavase, entretanto, de conhecido desenhista e artista gráfico, que fizera as ilustrações do poema As máscaras, lançado em 1921 por Menotti del Picchia. No período de 1923 e 1924 seria também responsável pelo visual refinado da revista Ariel . Os depoimentos de ambos não deixam dúvidas sobre a parceria. Almeida Prado declarou ter sido convidado por membros do comitê patrocinador — como Alfredo Pujol e o próprio Thiollier. Por comodismo teria pedido ajuda a Paim Vieira, “que já tinha tudo pronto” — tintas, papel, crayon, verniz e “até caixilhos”. Em entrevista para o mis-sp em 1971, Paim contou que ele e o amigo acharam “muita graça” quando souberam da organização da Semana, e resolveram entrar no evento “de gaiatos”. Teriam apanhado pedaços de cartolina e esboçado rapidamente algumas figuras, entregues por Almeida Prado a Thiollier, “que recebia os últimos trabalhos”. •
Em esquecido — e surpreendente — testemunho, no livro A longa viagem Menotti afirma que algumas obras teriam sido improvisadas para reforçar a exposição.12 Como o grupo de artistas era “minguado”, dizia ele, “tivemos que nós mesmos borrar às pressas mais algumas telas”. O escritor não menciona a dupla Paim Vieira e Almeida Prado, tampouco
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revela quem seriam as pessoas incluídas nesse genérico “nós mesmos”. Apenas diz que “telas ultraístas” foram “besuntadas a esmo”. Além de ser vir para ampliar a mostra, “essa mistificação consciente”, segundo Menotti, teria o significado de um “protesto contra o meloso e já decrépito academismo”. Embora o catálogo mencione duas, Almeida Prado diz ter pendurado três obras no “tabique” ao fundo do saguão, do lado esquerdo da entrada. Os títulos faziam jus ao espírito brincalhão: La faune rassasié, Une anglaise m’a dit e Galpollinaire. Entre os estrangeiros adotados pela Semana, sobressaía, na pintura, o suíço John Graz, artista que depois se dedicaria a projetos de interiores, mantendo-se ligado à história do modernismo paulista. Em 1922, no entanto, Graz era ainda um pintor estrangeiro casado com uma artista brasileira, Regina Gomide. Seus oito quadros a óleo, dispostos à esquerda, próximos aos de Anita, tinham sido todos trazidos da Europa. Com trinta anos na época, Graz fora aluno da Escola de Belas-Artes de Genebra e de um curso de gráfica publicitária em Munique. Conheceu Regina, filha do pintor Antonio Gomide, na Suíça. Em São Paulo, em 1920, os dois promoveram uma exposição. Oswald de Andrade compareceu, gostou do que viu e adquiriu uma obra de John Graz. Pagou com um terreno em Pinheiros — onde o casal construiu sua residência. 13 Milliet destacou o “colorido vigoroso” das telas do pintor, “de um simbolismo místico simples, duro, ingênuo”, que revelaria a influência de seu conterrâneo Ferdinand Hodler ( 1895-1918), ligado ao art nouveau. Mais episódica na história da arte brasileira foi a presença do alemão Wilhem Haarberg, autor de esculturas de pequenas dimensões, cuja participação na Semana se deve a Mário de Andrade. Ferido na guerra, com um tiro no maxilar, Haarberg ( 1891-1986) deixou o serviço militar e,
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terminado o conflito, mudou-se para São Paulo em 1920. Em 1921, começou a dar aulas de arte na Escola Alemã, quando conheceu o poeta. Correspondência guardada no acervo do Instituto de Estudos Brasileiros, na Universidade de São Paulo, atesta a existência de uma relação cordial entre os dois — que durou anos. São bilhetes datados de fevereiro de 1922 e escritos em alemão, idioma que Mário começara a estudar em 18. Num deles, o escultor dizia ter tomado conhecimento pelo Estado de S. Paulo de sua participação numa “semana de arte brasileira” e pedia esclarecimentos: “Gostaria de cordialmente perguntar se o senhor poderia me dar maiores informações a respeito”. Para tanto, Haarberg convidava o amigo a visitá-lo — e à sua esposa — em sua residência, na rua Tamandaré, 70.14 O catálogo da Semana registra cinco obras de Haarberg, sendo duas delas intituladas Mãe e filho — em madeira. Sobre o artista alemão, Milliet foi lacônico, mas positivo — “um escultor bastante jovem e a quem não falta talento”.
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ARQUITETURA POSSÍVEL
Em meio às pinturas, pastéis, desenhos e esculturas, coube a Antônio Garcia Moya e a Georg Przyrembel defender no Municipal o que haveria de “mais atual” em arquitetura. A peça mais vistosa estava à mostra no meio do saguão, diante da escadaria: a maquete de um projeto de Przyrembel para uma casa de veraneio de sua família — a Taperinha —, na Praia Grande, litoral norte paulista. Era um misto de estilo francês e elementos inspirados no colonial brasileiro. O arquiteto, nascido na Polônia em 1885, chegara ao Brasil por volta de 1912-13, já próximo dos trinta anos. Interessou-se pelo passado do país, foi a Minas ver o barroco, e adotou, à sua maneira, o chamado “colonial”. Era um estilo híbrido, mas prestigiado pelos modernistas, por ser uma tentativa de escapar da “cópia” europeia e dos delirantes “aleijões arquitetônicos” que, nas palavras de Manuel Bandeira, enfeavam a avenida Atlântica do Rio — e outras vias de cidades brasileiras. O mau gosto, no entendimento do poeta, atingira tal proporção que o retorno a padrões inspirados no passado colonial surgia como louvável opção. Mário de Andrade também se preocupava com o assunto. Um dos sócios fundadores da Sociedade de Cultura Artística, estava ele, em 1914, na plateia que prestigiou a conferência do arquiteto português Ricardo Severo, com o tema “A Arte Tradicional Brasileira: a Casa e o Templo”.
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Severo, em sintonia com o nacionalismo que pipocava em todas as áreas, dava início a uma campanha pela busca de raízes “nossas” na arquitetura. O modernismo arquitetônico, contudo, só apareceria mesmo no Brasil em 1927, quando Gregori Warchavchik construiu sua casa no bairro da Vila Mariana, em São Paulo. A conferência de Severo incentivou Mário a visitar Minas, em junho de 1919, para preparar conferências e artigos sobre arquitetura e arte religiosa. Dois anos antes da Semana, o poeta publicou quatro ensaios sobre o tema na Revista do Brasil . Diferentes do colonial afrancesado de Przyrembel, os croquis e desenhos de Moya demonstravam apreço pelas estruturas geométricas e evocavam construções ibéricas, orientais e pré-colombianas. Eram mais ficções que projetos propriamente ditos. O mérito residia justamente nesse exercício imaginoso, cujas formas destoavam dos padrões conhecidos. O espanhol, que se mudara ainda criança para São Paulo, tornou-se amigo de Brecheret, ilustrou Pauliceia desvairada e trabalhou com Jorge Krug, tio de Anita Malfatti; mais tarde, associou-se a Guilherme, irmão da pintora. A representação arquitetônica na Semana e o interesse dos modernistas pelo assunto pareciam não dar muita atenção ao que se passava nas grandes cidades dos Estados Unidos, onde se erguiam os arranha-céus do novo século. Talvez fosse um sinal da “eurodependência” do ambiente cultural. Mas, ainda assim, em 1916 Vicente Licínio Cardoso apresentou no Rio, conforme Aracy Amaral, uma conferência a respeito do tema, sem repercussão entre os paulistas.15 •
Anita Malfatti foi, sem dúvida, a celebridade da exposição de arte da Semana, que lhe reservou, em reconhecimento ao pioneirismo, a maior
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participação individual. Embora não tenha se sentido vítima de “nenhum insulto direto”, Anita descobriu bilhetinhos ofensivos presos no verso de suas telas. E houve quem repetisse na imprensa, com sabor de farsa, a retórica de Lobato. Num artigo publicado ao mesmo tempo na revista Cigarra e na Folha da Noite, em 15 de fevereiro, o jornalista Mário Pinto Serva (1881-1962) repisava a ideia de que a estética futurista deveria “ser estudada como fenômeno de patologia mental”. Para o articulista, as manifestações “extravagantes” da arte moderna seriam fruto de “um verdadeiro estado mórbido” de certos espíritos. Explicava: A pressa de aparecer, o prurido de destaque a todo transe, o desejo incontido de chamar a atenção, sem estudo, sem trabalho paciente, desde logo, de afogadilho, a ingenuidade de certos espíritos desprovidos de qualquer preparo, o desequilíbrio de alguns cérebros, o verdor da mocidade, tais são, entre outros, os principais móveis que determinaram o futurismo e caracterizaram os adeptos dessa escola.
Embora em regra ignorante, todo artista futurista — prosseguia o jornalista — se julgaria mil vezes superior a Dante, Goethe, Shakespeare, Victor Hugo e Beethoven, guardando “o mais soberano desdém” por todos eles. Anita não deu bola para o ataque. Divertiu-se com os bilhetinhos e as reações contrárias. A seu ver, daquela vez o saldo era positivo. Sentiu-se lisonjeada quando o pai de Paulo Prado e sogro da sra. Crespi, o lendário conselheiro Antônio da Silva Prado, em meio ao burburinho do vernissage, quis comprar O homem amarelo. O problema é que o quadro já estava reservado para Mário de Andrade, desde 1917, quando lhe causou, à primeira vista, fortíssima impressão. De qualquer forma, o interesse
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demonstrado por figura tão respeitada, verdadeiro monumento paulista, indicava que as mentalidades mais tradicionais e suas coleções começavam a se abrir à arte moderna. Numa conferência realizada em 1951, na Pinacoteca do Estado, Anita recordou-se, com orgulho, desse episódio. Se o conselheiro se interessou em adquirir uma obra como aquela, era sinal de que a “plantinha havia vingado”.
4 AS CORES DA NOVIDADE
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Anita Malfatti em novembro de 1914, pouco antes de completar 25 anos; a pintora, que nasceu em dezembro de 1889 e morreu em novembro de 1964, passou parte de sua vida em Berlim, Nova York e Paris.
Anita Catarina Malfatti nasceu pouco depois da Proclamação da República, na segunda-feira 2 de dezembro de 1889, em São Paulo. Os pais, Samuel Malfatti, imigrante italiano, e Eleonora Elizabeth Krug, descendente de alemães e de norte-americanos, já tinham um garoto de dois anos chamado Alexandre. A família morava na Florêncio de Abreu, uma via cruzada por bondes puxados a burro, onde se erguiam estabelecimentos comerciais e residenciais, alguns deles numa mesma construção — o negócio no térreo, a moradia no piso superior. A rua, que existe até hoje, ligava o centro de São Paulo à região da Luz. Ali se localizava um dos mais concorridos pontos de lazer da cidade, o Jardim Público, com lago, chafariz, cisnes e seriemas, próximo à estação ferroviária, ainda sem o famoso edifício inglês, importado parafuso por parafuso da Europa e inaugurado em 1901. Ao que se sabe, o republicano Samuel abandonou a Itália por imposição do pai, depois de ter enfrentado problemas políticos. Expulso da Universidade de Pisa, tão logo conseguiu se formar, em Bolonha, foi despachado para a Argentina, onde trabalhou na construção de ferrovias. Em meados da década de 1880, transferiu-se para Campinas, a capital agrícola da então Província de São Paulo, que crescia com os cafezais. Foi lá que Samuel conheceu sua futura mulher. Bety, como os mais próximos a chamavam, era filha do alemão Guilherme Krug, também ligado ao ramo da construção civil. Ele mudou-se para o Brasil aos dezessete
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anos, no início da década de 1850, em companhia do pai. Mas logo partiu para os Estados Unidos. Na Califórnia do Velho Oeste, conheceu Amélia Catarina Bailey, a avó de Anita, uma mestiça com sangue de pele-vermelha. Casaram-se e viveram em Fresno, onde nasceu Bety. Pouco depois, a família mudou-se para Campinas e, a seguir, para São Paulo, fugindo de uma epidemia de febre amarela. Feliz com a chegada da filha naquele final de 1889, o casal Malfatti foi colhido por um imprevisto. A menina nascera com a mão direita defeituosa. Aflito com a situação, em maio de 1892 Samuel, que acabara de ser eleito deputado estadual, pediu licença por tempo indeterminado, alugou uma villa na região de Lucca, na Itália, e partiu com a mulher e as duas crianças em busca de ajuda médica. Passado um período penoso de avaliações, a menina foi submetida a uma cirurgia, em 1893. O resultado não foi o que esperavam. Anita estava condenada a con viver com uma grave atrofia, que a obrigaria a se adaptar ao uso da mão esquerda. De volta da Itália, a Babynha, como era chamada em casa, foi matriculada numa escola católica, o Externato São José, e sua adaptação física confiada a uma norte-americana, a educadora Marcia Browne, que auxiliou Caetano de Campos em reformas do ensino paulista. Com o passar dos anos, Anita fez progressos e a vida da família seguiu seu curso. Já eram quatro filhos — Guilherme havia nascido durante a viagem à Itália, e Georgina após o retorno ao Brasil. Em 1901, Samuel Malfatti morreu, vítima de um ataque cardíaco. Com a perda inesperada, Bety mudou-se para a casa dos pais, na rua Brigadeiro Galvão. Anita, então com doze anos, passou a frequentar a Escola
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Americana, um empreendimento educacional protestante, que oferecia pela primeira vez na cidade modernas classes mistas. Encobria a mão direita com um lenço e saía-se cada vez melhor com a esquerda. Animavase, com esses progressos, a seguir sua inclinação para o desenho, embora se sentisse insegura sobre seu talento. A família morava agora na Barra Funda, bairro que nasceu da fazenda do Iguape, pertencente ao barão do Iguape, pai de d. Veridiana Prado. Dividida, a propriedade deu origem à Chácara do Carvalho, do conselheiro Antônio da Silva Prado, que encomendou uma sede (que ainda existe) em estilo Luís xvi ao arquiteto Luigi Puci, o mesmo que projetou o Museu do Ipiranga. Loteada em finais do século xix, a área, atravessada pelos trilhos da São Paulo Railway e da Sorocabana, cresceu rapidamente. Próxima aos ricos Campos Elíseos e Higienópolis, atraiu famílias endinheiradas — e também operários. O bairro estende-se pela várzea sul do Tietê e seu nome seria uma referência à profundidade daquele pedaço do rio. Num depoimento de 1939, quando já tinha cinquenta anos, Anita Malfatti falou sobre seu drama de adolescente “que não sabia que rumo tomar na vida”. Atormentada, imaginou que uma forte emoção, capaz de aproximá-la “violentamente do perigo”, pudesse ajudá-la a tomar suas decisões. Resolveu, então, submeter-se a uma experiência radical. Entrou num vão sob a linha de trem, nas proximidades de sua casa, e aguardou a passagem da composição: Deitei-me embaixo dos dormentes e esperei o trem passar por cima de mim. Foi uma coisa horrível, indescritível. O barulho ensurdecedor, a deslocação de ar, a temperatura asfixiante deram-me uma impressão de delírio e de loucura. E eu via cores, cores e cores riscando o espaço,
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cores que eu desejaria fixar para sempre na retina assombrada. Foi a revelação: voltei decidida a me dedicar à pintura. 16
O futuro que teria sido descortinado por essa visão lisérgica tinha, na realidade, raízes familiares. A mãe de Anita pintava desde jovem. Naquela época praticava com o pintor italiano Carlo de Servi ( 1871-1947), oriundo de Lucca. Era um dos inúmeros artistas estrangeiros que vieram ao Brasil na virada do século xix para o xx. Chegou em 1895 e, quatro anos depois, participou pela primeira vez do Salão Nacional de Belas-Artes. Em São Paulo, fez retratos de figurões da cidade, como d. Veridiana Prado, Prudente de Moraes, Campos Salles e Washington Luís. Também ficou conhecido por suas decorações em igrejas. Na descrição da pesquisadora Marta Rossetti Batista, Bety, orientada por Servi, realizava uma pintura “de colorido terroso e escuro, na qual pinceladas claras marcavam os efeitos de luz”. Retratava mulheres e velhos, como era comum na chamada “pintura feminina”17 — distinção que se fazia naquele tempo. Em 1906, Anita terminou, no Mackenzie College, o ciclo que encerrava a educação formal das moças na época, e passou a se dedicar com afinco ao desenho e à pintura, sob orientação da mãe. E ia muito bem. Em 1909, a pedido do irmão Alexandre, reproduziu a óleo uma ilustração estampada na capa de uma revista espanhola — um burrinho em disparada. A pintura, com a assinatura “Babynha”, foi vista em casa como uma demonstração definitiva de seu talento. Em 1910, a aprendiz de artista ia completar vinte anos e já sabia o que queria da vida: estudar pintura na Europa. Famílias ricas costumavam mandar os filhos para temporadas educativas e civilizatórias no Velho Continente, mas, para ela, isso não era tão fácil. A mãe já não levava vida
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folgada. Afora as lições artísticas, dava aulas de línguas (falava cinco idiomas, além do português) para ajudar a manter os filhos e a mãe idosa, acamada pelo reumatismo. Estudar fora do país era um sonho, nessas circunstâncias, que parecia impossível. Um dia, ao visitar as amigas Hermantina e Helena, colegas suas do Mackenzie, Anita surpreendeu-se ao ouvir da mãe das meninas, d. Estephania, que pretendia levá-las para estudar música na Alemanha. “Por que você não nos acompanha?”, sugeriu ela. Agitada com a perspectiva que inesperadamente se abria, decidiu recorrer ao lado abastado da família — os Krug. Contou seus planos a uma de suas tias e não demorou a ser procurada pelo tio Jorge, arquiteto, engenheiro, colecionador de arte, que ganhava dinheiro com o boom imobiliário e urbanístico da capital. Depois de se certificar das intenções da sobrinha, ele decidiu bancar a viagem. Ainda incrédula com o rumo dos acontecimentos, em agosto de 1910 Anita Malfatti embarcou para a Europa num transatlântico, em companhia das Shalders. No dia da Independência, 7 de setembro, estava na Alemanha.
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OUTRO MUNDO
Para quem vivia na periférica São Paulo do início do século, Berlim deveria parecer assombrosa. Na capital do reino da rica e multifacetada Alemanha, as engrenagens da modernidade, em 1910, já se moviam em ritmo industrial. A cidade, com mais de 2 milhões de habitantes, tinha metrô, luminosos, fervilhante comércio, universidade, instituições científicas e corre-corre de metrópole. Era um dos palcos culturais do mundo, centro de vanguarda na música, na dança e no teatro — e de intensa atividade nas artes visuais. O descontentamento com a rigidez acadêmica, no final do século xix, já havia gerado uma série de dissidências no meio artístico do país, conhecidas como Secessões. Essas associações estabeleciam seus próprios critérios, agrupavam artistas e promoviam suas mostras. As mais importantes eram as de Munique, Berlim e Viena — esta última liderada por Gustav Klimt, autor do célebre Beijo. Em Berlim, galerias como as de Paul Cassirer e Fritz Gurlitt, além da própria Secessão local, mostravam com frequência os novos artistas europeus, entre eles Van Gogh e Munch — que ficaria mundialmente famoso com seu O grito. O ambiente, antes da escalada nacionalista que culminaria na Grande Guerra, era bastante cosmopolita. Os alemães
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foram, por exemplo, os primeiros a adquirir uma obra de Cézanne para uma coleção pública nacional. Quando Anita chegou ao país, ganhava forma um tipo de pintura agressiva e espontânea, com tintas fortes, cores e deformações, que mais tarde ficaria conhecida como expressionista, termo muitas vezes impreciso, assim como outros comumente usados na tentativa de mapear a di versidade da produção artística. Era uma das muitas e variadas vertentes que pipocavam na nova arte europeia. Reunidos em Dresden, a partir de 1905, os integrantes do grupo Die Brücke (A Ponte) — Ernst Kirchner ( 1880-1938), Erich Heckel (1883-1970), Emil Nolde (1867-1956) e outros artistas — dividiram seus ateliês, realizaram exposições, lançaram e publicaram álbuns inspirados pelas xilogravuras alemãs medievais, pela escultura primitiva e pela manifestação artística de crianças, numa estética que alinhava sentimento trágico, melancolia e grandes doses de acidez e humor. Personagemchave do movimento, o colecionador, marchand e organizador de exposições Herwarth Walden ( 1878-1941) fundou a revista Der Sturm, que chegou a ter uma tiragem de 30 mil exemplares e difusão internacional. Um segundo núcleo expressionista se formaria em 1911, desta vez em Munique, articulado por Wassily Kandinsky ( 1866-1944), Franz Marc (1880-1916), August Macke ( 1887-1914) e Paul Klee (1879-1940). Com o nome de Blaue Reiter (Cavaleiro Azul), editou um almanaque, promoveu exposições e reforçou o contato da Alemanha com as vanguardas da Rússia e da França. Líder espiritual do grupo, Kandinsky interessava-se por filosofia, religião, poesia e música. Suas telas, àquela altura, já abandonavam as referências da realidade para ingressar no mundo da abstração.
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Para Anita, era um carrossel de novidades, ao mesmo tempo fascinante e aflitivo. Impressionava-se com as experiências modernas, mas sobretudo com a grande pintura que tinha a oportunidade de ver, pela primeira vez, nos museus. Sentia-se oprimida e “tonta” com tanta informação. “A emoção não era de deslumbramento, mas de perturbação e infinito cansaço diante do desconhecido”, diria ela depois. 18
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DOIS MESTRES
Há desencontros quanto aos caminhos percorridos pela jovem artista em seus estudos, mas é certo que Anita tomou lições com um pintor chamado Fritz Burger e com Lovis Corinth, que se tornaria seu grande mestre em Berlim. Procurou-o depois de ter visto alguns de seus quadros, pintados, segundo ela, com “quilos de tinta” e muitas cores: “A tinta era jogada com tal impulso, com tais deslizes e paradas repentinas, que parecia a própria vida a fugir pela tela afora”, recordou ela na conferência “A Chegada da Arte Moderna ao Brasil”, em outubro de 1951, na Pinacoteca do Estado. 19 Nome conhecido da pintura alemã, com produção caudalosa e difícil de ser encaixada nos ismos da época, Corinth tinha predileção por temas violentos e sensuais. Foi um dos organizadores da mostra da Primeira Secessão de Munique, em 1892, na qual se viam obras de Claude Monet, Édouard Manet, Paul Cézanne e Vincent van Gogh. No início do século, mudou-se para Berlim e criou sua própria academia. Na mesma conferência de 1951, Anita lembrou-se do inusitado local em que se reuniam os alunos: “No grande ateliê, onde havia aparelhos de ginástica, cordas como nos circos, trapézios e uma floresta de cavaletes, o ambiente me parecia elétrico”. Nas primeiras aulas, ela desenhava sem parar, mas não se sentia autorizada a pintar. Um belo dia, o professor, vendo-a exercitar-se com o carvão, perguntou-lhe o que fazia. “Como não
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posso pintar, estou me divertindo com a forma”, respondeu. “Quem disse que você não pode pintar?”, retrucou ele. Radiante com a autorização do mestre, largou o carvão, atravessou a rua e voltou com uma tela, uma caixa de tintas, pincéis e palheta — pronta para entrar na dança da cor. 20 Corinth era um boêmio. Acordava tarde, nem sempre aparecia na escola e tinha rompantes de fúria. Certa feita, quando corrigia pela enésima vez um trabalho de uma aluna, irritou-se, pegou uma espátula e começou a raspar a pintura de alto a baixo. Encontrando resistência na tinta seca, perdeu a paciência, rasgou a tela, arrebentou o cavalete e — segundo Anita — “pisou tudo com força”. Na mesma escola, ela teve outro professor — Ernst Bischoff-Culm, mais voltado para a técnica de pintura. Com ele, dedicou-se a experiências de separações e misturas de cores, e começou a concluir suas primeiras telas na Alemanha; uma delas, O poeta adolescente, para seu êxtase foi escolhida por Corinth para ser exibida numa mostra da Secessão. •
Nos meses de junho e julho de 1912, nossa jovem pintora, que havia deixado de viver com as Shalders para morar com a família Zschöckel na rua Grünnewald, foi passear com as amigas nas montanhas Harz. A seguir viajou para Bruxelas e Colônia, onde visitou a impressionante Sonderbund — uma das maiores exposições de arte moderna da história, com cerca de seiscentas obras de um amplo leque de artistas europeus, entre os quais Cézanne, Van Gogh, Matisse, Gauguin, Braque, Mondrian, Kokoschka e Kandinsky.
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A visão dessa mostra acompanhou a nascente pintora paulistana na volta ao seu país, no início de 1914, precipitada pelos sinais de guerra no Velho Continente.
5 O TEATRO DA PAULICEIA
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O Teatro Municipal de São Paulo, palco da Semana de Arte Moderna, deve sua construção a Antônio da Silva Prado, pai de Paulo Prado. Inaugurado em 1911, é um dos símbolos das ambições da elite cafeeira.
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No período em que Anita estudava na Alemanha, São Paulo foi deixando para trás o casulo colonial. Na década de 1910, a tradicional sociedade das fazendas ganhava uma interface urbana mais definida e convincente. Famílias do interior transferiam-se para a capital, onde a “picareta civilizadora” — como observou o cronista Couto de Magalhães 21 — abria novos espaços e substituía os pesados casarões por prédios elegantes e construções à moda de tudo, de chalés suíços a moradias bretãs ou “italianadas”. Simultaneamente, o ritmo da imigração estrangeira amplificava a algazarra polifônica dos dialetos e idiomas. Pela cidade, ouvia-se do hebreu ao alemão, passando pelo espanhol e pelo árabe. Sobressaía, contudo, o italiano, que das casas chegava às ruas para cozinhar o macarrônico dialeto ítalo-paulistano — captado, com muito sabor, aliás, por Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, o Juó Bananére, no livro A divina increnca. Nessa atmosfera de prosperidade e frisson europeizante, criavam-se os pré-requisitos para o aparecimento de um circuito cultural. Diferentemente do Rio, antiga corte e capital da República, onde a produção artística já havia se organizado em instituições e encontrava meios mais avançados para circular no mercado, em São Paulo o ambiente ainda invertebrado pedia que a iniciativa privada entrasse em cena para estruturá-lo. Foi o que começou a acontecer de forma sistemática na passagem do século xix para o xx. Em associação com o poder público, ou melhor, em nome desse poder, com o qual na prática se confundia, o baronato do
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café, como se fundasse um país, dedicou-se à criação de instituições educacionais, científicas e artísticas no estado — como o Museu Paulista, o Instituto Histórico e Geográfico, o Liceu de Artes e Ofícios, a Pinacoteca, o Conservatório Dramático e Musical, o Teatro Municipal e a Sociedade de Cultura Artística. Nesse cenário, direta ou indiretamente, por intermédio do mecenato, do investimento ou das subvenções arrancadas do governo estadual, o “ouro verde” financiava a realização de concertos, exposições e espetáculos cênicos, além de bancar a expansão do circuito de cinema. Também era importante a atuação de clubes e associações ligados às comunidades de imigrantes, que promoviam atividades recreativas e culturais. Nas artes plásticas, ao contrário do que se tornou comum repetir, a São Paulo que antecedeu o modernismo não era um deserto; tinha produção, calendário de mostras e mercado ativo de arte. Na década de 1910 foram realizadas pelo menos 244 exposições na cidade, o que corresponde, em média, a duas por mês. 22 A ausência de galerias especializadas e a existência de apenas um museu de arte, a Pinacoteca, levava a maior parte dessas mostras a ser organizada em lojas comerciais e salões de palacetes, que recebiam cenografia especial para a ocasião — paredes forradas de pano, vasos com plantas, cadeiras etc. Em 1911, quando Anita Malfatti partiu para a Alemanha, a agenda artística paulistana foi das mais concorridas. O evento mais espetacular foi a abertura do Teatro Municipal, que substituía, com as vantagens de uma opera house europeia, o velho teatro São José, dando à cidade um palco à altura dos melhores artistas e companhias do mundo. Na véspera da inauguração, que aconteceu na noite de 12 de setembro, o jornal O Estado de S. Paulo descreveu para seus leitores o “suntuoso edifício” situado no quadrilátero das ruas Barão de Itapetininga, Conselheiro Crispiniano, do Theatro e Formosa, “sobranceiro ao vale do
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Anhangabaú, no planalto da margem esquerda”, o que conferia localização “excepcional ao monumento”. Somados plateia, frisas, camarotes e torrinhas, a nova casa era capaz de receber 1816 pessoas. A construção, com área de 3609 metros quadrados, era maior que a do Municipal do Rio. Dividia-se em três partes: O corpo da fachada, abrangendo o vestíbulo, a escada nobre, salão, portaria, restaurante e dependências da administração; a parte central, compreendendo a sala de espetáculos, com seus corredores e galerias; e o corpo posterior, formando o palco, com suas galerias laterais, camarins e salas de artistas.
No dia 13, um artigo do Paiz classificou de “deslumbrante” a concorridíssima estreia, com a encenação da ópera Hamlet , precedida da protofonia do Guarani . Mas não deixou de observar que o grande afluxo de público obstruiu o trânsito e dificultou o acesso dos “carros” (como se chamavam as carruagens puxadas por cavalos) e dos automóveis: Desde o anoitecer que o teatro estava, interior e exteriormente, feericamente iluminado. Nas vizinhanças viam-se numerosíssimas pessoas, havendo também numerosos carros e automóveis com pessoas da melhor sociedade, que admiravam o belíssimo espetáculo. O viaduto estava repleto. Pouco depois das oito horas da noite começaram a chegar os espectadores, todos em traje de rigor; as senhoras vestiam riquíssimas toilettes. A grande multidão que se formava a essa hora nas proximidades do teatro dificultou por tal forma o trânsito de carros e automóveis com os espectadores, que alguns somente às 10 horas da noite conseguiram chegar à porta do teatro.
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Com a confusão, a ópera de Ambroise Thomas, estrelada pelo barítono Titta Ruffo, cujo início estava previsto para as oito horas da noite, só começou por volta das dez — e encerrou-se já na madrugada do dia 13, sem a apresentação do epílogo da tragédia de Shakespeare. O tumulto e os danos causados à programação pediam providências das autoridades para ordenar o trânsito nos dias seguintes. Em 18 de setembro, o Estado noticiava o êxito do novo esquema montado: Depois das medidas adotadas para facilitar o ingresso no Teatro Municipal, o serviço de trânsito de veículos naquele local melhorou consideravelmente, tornando-se irrepreensível não obstante o elevado número de carruagens que ali tem comparecido, como ainda sucedeu ontem. Cerca de 300 veículos transportaram espectadores para o teatro, tendo permanecido aguardando a saída 290 veículos, dos quais 140 automóveis e 150 carros. Não houve dificuldades para o desem barque franqueado na escadaria principal e nos torreões laterais. A saída não foi demorada, prolongando-se por apenas 17 minutos. Como nos dias anteriores, o policiamento foi feito por praças de cavalaria, uma guarnição de infantaria, todos em grande gala, e uma numerosa turma de ciclistas, da guarda cívica, para a chamada dos veículos.
O Municipal foi erguido pelo escritório de Francisco de Paula Ramos de Azevedo, responsável por nove entre dez obras importantes da época. O arquiteto, formado na Bélgica, estabeleceu-se em São Paulo em 1889. Construiu inúmeros palacetes privados e prédios públicos, como o Correio e o Palácio das Indústrias. Envolvido num leque de atividades, foi um dos fundadores do Liceu Pasteur e do Banco Belga. Da mesma forma que
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a família de Anita Malfatti, Ramos de Azevedo mantinha laços com Campinas, sua cidade natal. O tio endinheirado da pintora, Jorge Krug, foi seu sócio e amigo. Uma espécie de catedral da cultura, a simbolizar as ambições que fermentavam na “metrópole do café”, o Municipal servia também para a organização de exposições, banquetes e até convenções do prp — o partido da elite paulista, que era, afinal, “dona” do lugar. Em 1922, quando acolheu os modernistas, o teatro já havia recebido atrações internacionais como Caruso, Ana Pavlova, Isadora Duncan e Nijinski.
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UMA EXPOSIÇÃO AMBICIOSA
Outro grande evento artístico que agitou a sociedade paulistana em 1911 foi a i Exposição Brasileira de Belas-Artes, inaugurada no dia 24 de dezembro, no prédio perto da Estação da Luz, onde funcionavam juntos a Pinacoteca e o Liceu de Artes e Ofícios. O Liceu surgira em 1873, com o nome de Sociedade Propagadora da Instrução Popular, e seu objetivo era formar mão de obra para a agricultura, a indústria e o comércio. Em 1882 sofreu uma reforma curricular e, a partir de 1890, sob a direção de Ramos de Azevedo, suas oficinas passaram a trabalhar sob encomenda para obras públicas e privadas. Com artesãos, pintores, escultores, serralheiros, fotógrafos etc., a escola tornou-se uma importante instituição de artes e ofícios, funcionando ao mesmo tempo como uma espécie de “centro cultural” e “academia de arte” de São Paulo. A i Exposição Brasileira de Artes Plásticas de 1911 era mais um pro jeto da “iniciativa privada” paulista. Duas dezenas de pessoas se empenharam para realizar, pela primeira vez na cidade, uma grande mostra de caráter nacional — a exemplo do que ocorria regularmente no Rio. Entre seus idealizadores, estavam o senador mecenas Freitas Valle, o pintor Torquato Bassi e Nestor Rangel Pestana, educador, jornalista, diretor e crítico de arte do Estado.
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A mostra atraiu artistas de renome do Rio e de São Paulo, como Eliseu Visconti, Benedito Calixto e Henrique Bernadelli, e também reservou espaço para os menos conhecidos, com poucas chances de exibir seus tra balhos — caso de Bety, a mãe de Anita, que figurou entre os selecionados. O regulamento proibia reproduções e autorizava a participação de residentes no Brasil e de brasileiros residentes no exterior. No fim, foram escolhidos cerca de quatrocentos trabalhos de uma centena de artistas, entre pintores, escultores e arquitetos. Todas as obras foram postas à venda, cabendo 10% da receita à comissão organizadora, que contou, além disso, com assinaturas de incentivo, arrecadação de bilheteria e taxas de admissão cobradas aos artistas. Para abrigar a Exposição Brasileira, as salas do segundo andar do prédio (também construído por Ramos de Azevedo, onde hoje funciona a Pinacoteca) foram forradas com oitocentos metros de aniagem marrom, tingida para o evento. O presidente do estado, Albuquerque Lins, compareceu ao vernissage, recheado de personagens da “melhor sociedade” local. Em um mês, por volta de 4 mil pessoas passaram pela mostra e sessenta obras foram vendidas. Na mesma ocasião, no andar térreo do Liceu, instalou-se, com entrada franca, uma grande Exposição Espanhola, anteriormente montada no Rio. Era organizada pelo pintor viajante José Pinelo, de Sevilha. Numa cidade com atrativos escassos, a ocorrência simultânea das duas mostras, nas proximidades do Jardim Público, virou programa obrigatório.
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O GOSTO ACADÊMICO E O LITUANO MODERNO
Quando Anita Malfatti chegou da Alemanha, ninguém em sua casa queria saber de Van Gogh, Cézanne ou Kandinsky. Só perguntavam pela Mona Lisa e pelas glórias do Renascimento italiano. 23 Compreensível que fosse assim. No início de 1914, se o canto do galo da “nova escola” já se fizera ouvir por aqui, não se sabia bem de onde vinha e o que representava. Mesmo na Europa, a institucionalização da arte moderna em museus, coleções, críticas e escolas ainda estava longe do grau que alcançaria décadas depois. Quem seria Picasso perto de um Leonardo ou de um Tiziano? Entre nós, prevalecia uma pintura tradicional, com artistas que respeitavam as convenções clássicas da representação da realidade, ou as questionavam superficialmente. Os mais destacados ganhavam bolsas para estudar em academias europeias, viajavam sobretudo para a França e para a Itália, participavam de salões e passavam longas temporadas por lá. Aqui, recebiam encomendas de governantes, colecionadores e famílias ricas, expunham seus trabalhos, disputavam prêmios e davam aulas. Encontrava-se ainda no meio artístico considerável presença de estrangeiros, em geral paisagistas e retratistas, que chegavam ao país e rapidamente se introduziam no circuito.
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Um desses viajantes abriu, em 1913, uma exposição na rua São Bento, no centro de São Paulo. Era um lituano que pintava de maneira um pouco diferente. Chamava-se Lasar Segall, era dois anos mais novo que Anita e também passara um período na Alemanha, onde conhecera o mesmo Lovin Corinth. Segall tinha uma irmã em São Paulo, chamada Luba, e queria descobrir novos mundos. Unida por casamento à família Klabin, Luba financiou a viagem do irmão, que chegou no final de 1912, trazendo seus trabalhos. Hospedou-se na casa de d. Berta Klabin e, no dia 1o de março de 1913, inaugurou sua mostra, com 52 obras. A influência dos Klabin contribuiu para que a exposição recebesse o apoio do senador Freitas Valle e as atenções de Nestor Pestana — que a tratou, no jornal, com ambígua aprovação. Embora bem-comportada em comparação com o que se via nos círculos vanguardistas europeus, a pintura de Segall expressava um sentimento trágico e possuía alguns traços da “moderna escola alemã”. Foi considerado um talento promissor, apesar de certas características que o crítico do Estado chamou de “ousadas”, e o do Diário Popular de “bizarras”.24 Em sua revista O Pirralho, Oswald de Andrade, que vinha de sua primeira viagem à Europa, publicou uma nota sobre a abertura do “talentoso moço russo”.25 Pouco depois, a exposição foi para Campinas, onde recebeu atenções da imprensa. As críticas, melhores que a do Estado, associaram o quadro O violinista ao cubismo e aprovaram seus “efeitos intensos”. Um dos articulistas, que se assinava X, demonstrou compreender as distorções presentes em algumas obras, afirmando que nem um artista dotado do gênio de um Van Eyck poderia, nos novos tempos, ser realista a ponto de competir com as chapas fotográficas. Embora não tenha passado propriamente em branco, a pintura do lituano não despertou grandes reações, o que se pode explicar pelos tons
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moderados de seu “expressionismo” — e talvez um pouco por suas ligações sociais e a simpática iniciativa de doar uma tela para fins beneficentes.
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O SENHOR DA VILLA KYRIAL
Como Rangel Pestana e Ramos de Azevedo, o senador Freitas Valle era figura carimbada na sociedade paulistana. Oriundo do Rio Grande do Sul, aclimatou-se na Pauliceia, onde participou da criação da Pinacoteca do Estado e da Sociedade de Cultura Artística. Colecionava obras, apoiava jovens artistas e era o principal responsável pelas decisões do Pensionato Artístico, instituição estadual criada para financiar temporadas de talentos na Europa. O grande show de Freitas Valle era encenado regularmente em sua senhorial residência, batizada com o nome de Villa Kyrial. Ali, o mecenas promovia concorridos e memoráveis salões, exercitando-se com esmero nessa forma de sociabilidade típica da belle époque. Marcia Camargos, autora de um livro sobre Valle e seu salão, 26 esclarece que “o sonoro Kyrial, com ., tem raiz no vocábulo grego Kyrios, que significa Deus, Senhor. Em latim, Kyrie, unido a eleison, forma a expressão ‘os eleitos do senhor’”. O título era apropriado ao espírito daqueles encontros, nos quais boa parte das conversas girava em torno das novidades artísticas da França — a Grécia daqueles anos. O próprio senador escrevia poemas simbolistas sob um heterônimo francês, Jacques d’Avray. De acordo com Camargos, “contagiado por Rimbaud, Mallarmé, Verlaine e Laconte de Lisle, D’Avray
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criava em verso livre, soneto ou rondel, uma atmosfera penumbrista por onde desfilavam figuras melancólicas como o cego, o louco, o leproso, o náufrago ou o Palhaço”. A Villa Kyrial era um museu eclético do gosto europeu, forrado de go belins, tapetes persas, mármores, bronzes, cristais, porcelana Limoges e Saxônia, cristais Baccarat, Saint-Louis e Boêmia, peças Gallé e Lalique, chinoiseries, espelhos, lustres suntuosos e esculturas art nouveau. O proprietário procurava seguir a tradição inaugurada na cidade por d. Veridiana Prado, que animava salões no palacete de sua chácara, em Higienópolis. Os excessos e acúmulos da decoração eram sinal de status, adotado nas casas de figuras da alta sociedade, como a própria d. Veridiana, seu filho Antônio da Silva Prado, Ramos de Azevedo e Laurinda Santos Lobo, dona de badalado salão carioca. À Villa Kyrial acorriam políticos, intelectuais e artistas — estes últimos muitas vezes sem recursos, em busca das benesses que o anfitrião poderia oferecer. Para os banquetes, Freitas Valle mandava imprimir convites personalizados, que indicavam o programa cultural do dia e o traje exigido. Sua grande mesa recebia 24 convidados sentados, o que propiciava um rodízio de diferentes turmas. Segunda-feira era o dia dos pintores; terça, dos escultores; quarta, dos músicos; quinta, dos poetas; sexta, dos escritores; e sábados, da política. Aos domingos, promoviam-se almoços, mais informais, servidos no terraço. Jogava-se nos gramados e havia uma animada mesa de pinguepongue na entrada da adega — que escondia um tesouro de vinhos franceses. Os convivas, recepcionados com toques de clarins, também participavam de obrigatórios passeios pela galeria, atulhada de obras de arte.
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Convites, cardápios e programas eram impressos em francês, reservando-se o espanhol para as comunicações internas de uma confraria gastronômica que ali se formara. Era a Hordem dos Gourmets, assim mesmo, com H, comandada pelo senador — nessas ocasiões convertido no maître Jean Jean. Outra atração da casa eram as instalações da sala de banho, importadas dos Estados Unidos. Com ducha e hidromassagem, deixavam todos admirados, mas na realidade serviam mais à exibição esnobe do que ao uso, pois mal funcionavam, por falta de pressão na tubulação de água. Para o cronista carioca João do Rio, que frequentava os salões, a Villa Kyrial poderia ser comparada a uma Academia de Arte de São Paulo, onde jovens “cheios de timidez e de sonhos” mereciam a desvanecedora atenção do dono da casa, assim como os “maiores gênios que passam pelo Brasil”.27 O artificialismo afrancesado e os modos postiços daqueles saraus tam bém despertavam ironias e ataques ferozes de quem, a exemplo de Monteiro Lobato, via na presepada aristocrática da Villa Kyrial um sintoma da alienação cultural do Brasil. O senador, que passeava pela cidade “encasacado à francesa, conversando em argot e comendo foie gras de Nantes”, era para Lobato um caso estridente e desprezível do complexo de inferioridade nacional. Exemplificava a mentalidade dominante, que macaqueava hábitos estrangeiros e via nas coisas brasileiras inadequação, feiura e atraso. Nada disso impediu que os modernistas fossem frequentar aqueles saraus — com o tempo menos fechados às novas tendências. Mário de Andrade considerava o salão de Freitas Valle uma rara oportunidade de se afastar das “falcatruas da vida chã”: “Pode muito bem ser que a ele afluam, junto conosco, pessoas cujos ideais artísticos discordem dos nossos — e mesmo na Villa Kyrial há de todas as raças de arte; ultraístas
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extremados, com dois pés no futuro, e passadistas múmias — mas é um salão, um oásis”. 28 Oswald de Andrade lembrou-se certa vez daquelas “reuniões avinhadas”, onde acreditava ter avistado Lasar Segall pela primeira vez: “Homens do futuro, homens do passado, políticos, intelectuais e pseudointelectuais, estrangeiros, nativos, artistas, bolsistas da Europa, toda uma fauna sem bússola em torno da gota anfitriã do senador poeta”. 29
6 DA CASA MAPPIN AO MAINE
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Freitas Valle, principal responsável pelas bolsas do Pensionato Artístico do Estado, em caricatura de Voltolino, publicada pela revista A Cigarra, em 17 de outubro de 1918, com os dizeres: “o delicioso mecenas dos ‘rebentos’”.
Anita Malfatti e sua família concordavam que seria proveitoso dar prosseguimento aos estudos iniciados na Alemanha e interrompidos pela ameaça da guerra. Na volta da Europa, os trabalhos da jovem estudante foram avaliados em casa como “fortes”, embora “crus”. Os traços menos convencionais do ambiente berlinense, que procurava imprimir em suas obras, eram percebidos como sinal de técnica pouco desenvolvida. Sendo assim, um novo período de aprendizado poderia levá-la a uma pintura mais amadurecida e suave. Eram opiniões em perfeita consonância com o meio artístico da cidade, que nada diferiam das que Nestor Rangel Pestana havia manifestado a respeito de Lasar Segall. Em busca de financiamento para o novo ciclo de estudos, os olhos dos Krug e dos Malfatti voltaram-se para Freitas Valle e o Pensionato Artístico. Anita pleiteou a bolsa e, como prova de aptidão, escolheu três dezenas de obras, entre óleos, gravuras, desenhos e aquarelas, para montar uma individual. A mostra foi inaugurada no dia 23 de maio, na Casa Mappin Stores, loja de departamentos na rua Quinze de Novembro. Apresentava trabalhos feitos na Europa e no Brasil — estes com datas anteriores ou posteriores à viagem. Em se tratando de uma exibição com o propósito de obter apoio para uma temporada no exterior, o título foi cuidadosamente escolhido: “Exposição de estudos de pintura — Anita Malfatti”. Tio Jorge e d. Bety, que investiam na carreira da iniciante, participaram dos
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preparativos e acompanharam tudo de perto. O vernissage reuniu setenta pessoas, e a visitação, cerca de quarenta por dia — com declínio no final. No dia 4 de junho, Anita sentou-se para escrever algumas notas sobre os lances da exposição que considerou mais interessantes. Registrou a presença de Pedro Alexandrino e Oscar Pereira da Silva, dois pintores consagrados, bem como a dos prestigiados Alfredo Norfini e Victor Dubugras — o primeiro, aquarelista nascido em Florença; o segundo, arquiteto de origem francesa. Alexandrino, de acordo com as anotações deixadas pela pintora, opinou a favor da mostra e achou “esplêndido” o “princípio” que ela seguia. Queixou-se de morar no Brasil — um “martírio” — e incentivou a iniciante a voltar para a Europa. No dia 28 de maio, foi a vez de Rangel Pestana visitar a Casa Mappin. O amigo jornalista do tio Jorge disse que tudo faria para ajudá-la a ganhar a esperada pensão. No dia seguinte, sem assinar, publicou no Estado um texto sobre a mostra. “Para os que acompanham o movimento artístico europeu, não seria preciso dizer que os seus estudos foram feitos na Alemanha”, dizia o artigo, destacando os traços da “moderna escola” daquele país presentes na arte da jovem paulistana. Embora não tenha gostado tanto do que viu, o articulista procurou ser simpático, salientando nas obras a presença de uma capacidade artística a exigir treinamento: Os estudos têm uma espontaneidade, um vigor de expressão e uma largueza de execução de que só dispõem os temperamentos verdadeiramente artísticos, nos quais o poder de síntese logo se revela nos menores estudos e esboços. Além disso, o seu senso de colorido é rico e equilibrado, e os seus meios de expressão, limitados ainda por uma técnica incipiente, embora notável para o seu tempo de estudo, são já poderosos pela emoção que conseguem despertar.
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No dia em que saiu o texto, a visitação chegou ao recorde de cinquenta pessoas, só superado pelo público da abertura. No dia seguinte, apareceu Freitas Valle. Era a visita mais aguardada. As palavras de incentivo estampadas no Estado alimentavam as expectativas de o todo-poderoso do Pensionato Artístico simpatizar com a mostra. O sábado já chegava ao lusco-fusco quando o homem entrou, acompanhado, na descrição da pintora, de “todos os seus satélites, sendo os principais Zadig e Elpons”. William Zadig e George Fischer Elpons eram, respectivamente, um escultor sueco e um pintor alemão radicados em São Paulo, onde trabalhavam e davam aulas. Tarsila do Amaral estudou com ambos e Di Cavalcanti foi aluno de Elpons, com quem Anita também estudaria posteriormente. A sala “encheu-se de homens”, ela anotou.30 Ansiosa, a mãe pediu uma opinião do senador sobre a tela que retratava a filha Georgina. A resposta foi dura: “Minha senhora, não se ofenda, se sou franco”, respondeu o senador, que considerou o quadro “um carnaval de cores”, crivado de erros, com desenho fraco e nenhum valor artístico. Desconcertada, Bety chamou a atenção do visitante para uma paisagem do Guarujá. Freitas Valle, mais uma vez, não se comoveu. Classificou a obra de “insignificante”. A bolsa de estudos parecia bater asas, embora não tivesse desagradado completamente a ilustre comitiva. Zadig e o próprio Valle viram virtudes num retrato de crianças e gostaram sobretudo do nu feminino — apesar de supostos erros no torso e no ventre. Anita detestou aquele teatro todo. Considerou o visitante um fanfarrão ridículo, que nada entendia de pintura. Para ela, o nu tinha mesmo defeitos, mas não no ventre ou no torso, aspectos que seu professor, BichoffCulm, elogiara. Os problemas estavam, segundo ela, no “jogo de clavículas” — o que nenhum dos arrogantes entendidos fora capaz de perceber.
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“Que pena tenho desses artistas que dependem de Freitas Valle para o seu pão!”, escreveu. “Adeus, liberdade e franqueza de opiniões.” 31 •
Um mês depois de encerrada a mostra, a guerra estourou na Europa. A bolsa, como se imaginava, não saiu, mas Jorge Krug resolveu financiar uma nova viagem da sobrinha, agora aos Estados Unidos — onde os Krug ainda tinham parentes. No final de 1914, Anita embarcou num navio inglês, que navegou sob ameaça de assédio alemão. Em janeiro de 1915, estava em Nova York, a nova capital da arte moderna. •
Fixou-se numa pensão no West Side e começou a estudar na Art Students League, na rua 57. Era uma escola conhecida, por onde passaram muitos artistas modernos norte-americanos. No estabelecimento, administrado por uma liga de estudantes, a atmosfera era de liberdade, mas a pintura mantinha-se presa a uma representação realista. Anita tentou, mas não conseguiu se adaptar. Depois de alguns meses desistiu da League — onde passou a frequentar apenas as oficinas de gravura. Foi então que uma colega lhe contou sobre um “grande filósofo incompreendido” que dava aulas de pintura e oferecia a incrível vantagem de deixar todo mundo se exercitar à vontade. Chamava-se Homer Boss e, naquele verão, acompanhava uma turma de discípulos numa ilha na costa do Maine.
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A ILHA DA FANTASIA
Monhegan é uma ilhota rochosa localizada a 22 quilômetros da costa do estado do Maine, no nordeste dos Estados Unidos, fronteira com o Canadá. Tem 2,2 quilômetros quadrados de terra firme e, ainda hoje, uma população de menos de uma centena de pessoas. É um lugar de pescadores, sem asfalto ou automóveis. O isolamento e a paisagem a transformaram, nos finais do século xix, em refúgio procurado por artistas e pintores. Anita e sua amiga chegaram a Monhegan, naquele verão de 1915, para encontrar Homer Boss, o tal “filósofo incompreendido”, que criara sua própria escola, a Independent School of Art, em Nova York. Sete anos mais velho que a pintora brasileira, Boss tinha sido aluno de Robert Henri (1865-1929), artista importante na configuração da pintura moderna norte-americana em sua vertente realista. Em 1908, Henri liderou, em Nova York, uma exposição dissidente, que ficou famosa. Chamava-se The Eight — em referência ao número de artistas que com ele haviam sido preteridos, em 1907, no Salão da Primavera organizado pela Academia Nacional. Professor da New York School of Art, de onde saiu em 1912 para fundar sua escola, Henri teve numerosos alunos, entre os quais Rockwell Kent e Edward Hopper. A pintura realista que ele promoveu, com referências nacionais e sociais, acabou encoberta pela onda
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de renovação formal promovida pelos modernismos europeus, mas emergiu novamente, com vigor, na década de 1930. Boss chegou a dar aulas na escola de Henri, com quem compartilhava o mesmo espírito liberal, o apreço pela independência e o respeito radical à individualidade do artista. Era tudo que Anita desejava — mas, para ser aceita pelo novo professor, precisou antes superar um tenso rito de passagem. No primeiro encontro, Boss perguntou-lhe se tinha medo da morte. Ela disse que não, e foi convidada para um passeio de barco pelo mar agitado, em meio aos perigosos rochedos do litoral da ilha. Aguentou firme e, na volta, Boss, depois de demonstrar como se esticava a tela sobre o chassi, liberou-a para pintar. “À vontade?”, espantou-se ela. “Naturalmente”, ele respondeu.32 Em êxtase, aos 25 anos, Anita começou a viver naquele momento o período mais intenso, livre e transformador de sua vida — que lhe daria as melhores obras. Na ilha, sem luz elétrica e sem notícias da civilização, o grupo de jovens artistas passava os dias a pintar, fizesse chuva ou sol, vento ou neblina. À noite, se divertiam, contavam histórias, cantavam e dançavam no barracão alugado para servir de ateliê. Aos sábados, reuniam-se para mostrar os trabalhos e conversar sobre arte. Nessas ocasiões, Boss entrava em cena para opinar e orientar os discípulos. Tudo era discutido e o progresso, segundo Anita, “se acentuava de semana para semana”. Agora ela não mais insistia no “divisionismo” e no uso separado das cores, que a haviam seduzido na Alemanha. Sob influência dos fauves e de Van Gogh, as pinceladas e os volumes mudavam. Definia-se seu próprio estilo expressionista de pintar. Fez ali, entre outras, A ventania, uma pequena obra-prima que se aproximava da abstração, Monhegan Island, O barco e também O farol — tema, aliás, de outros pintores que
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passaram pela ilha, entre eles Hopper, que o retratou pouco depois da brasileira. “Eram telas e telas. Era a tormenta, era o farol, eram as casinhas dos pescadores escorregando pelos morros, eram paisagens circulares, o sol e a lua e o mar”, recordou-se ela. No fim do verão, de volta a Nova York, Anita continuou com Boss na Independent School. Não queria outra vida. Pintava sem constrangimentos entre colegas de espírito livre, com senso coletivo e avessos às con venções. Não se sabia quem era rico, pobre ou remediado. Na escola havia uma gaveta na qual quem pudesse colocava dinheiro e quem precisasse retirava. Sem chave e sem controles. Era comum que os estudantes recorressem a colaborações na imprensa como forma de ganhar algum trocado. Faziam ilustrações para revistas e periódicos. Anita também publicou as suas na Vogue e na Vanity Fair. O meio artístico de Nova York passava por um período de efervescência, sob o impacto do Armory Show, a grande exposição de arte moderna realizada nos Estados Unidos em 1913, pouco antes de Anita chegar. O Armory foi a Sonderbund de Nova York. Depois dessa exposição, com o início da guerra, levas de artistas perseguidos ou empurrados pelo conflito começaram a chegar da Europa. Eram de diversas áreas e procedências — e alguns visitavam a escola de Boss. Foi assim que Anita conheceu pessoalmente o “bonito Marcel Duchamp, que pintava sobre enormes placas de vidro” e que certa vez a divertiu com “uma dissertação engraçadíssima sobre como fazer barba num dia de tristeza”. Encontrou-se com Leon Bakst, pintor e cenógrafo dos Bailados Russos de Serguei Diaghilev, e com a dançarina Isadora Duncan — cujos ensaios, no Century, frequentou ao longo de três meses.
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Mencionou também, em depoimentos, contatos com um “homem russo, reservado”, chamado Máximo Górki, e com o pintor espanhol Juan Gris. Ela sentia-se no centro do mundo, e não imaginava que pouco tempo depois, em meados de 1916, estaria fazendo as malas para reencontrar a garoa de sua velha São Paulo.
7 NA TERRA DO SACI
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O escritor e crítico Monteiro Lobato começou a fazer sucesso nas páginas de O Estado de S. Paulo. Embora atacasse a arte moderna, foi amigo de Oswald de Andrade e de outros rapazes do grupo modernista.
De volta a São Paulo, em agosto de 1916, Anita Malfatti não precisou de muito tempo para perceber que o meio artístico da cidade pouco havia mudado. O convencionalismo provinciano e altivo, que ela conhecera na figura de Freitas Valle, naquela fatídica visita à mostra de 1914, manifestava-se agora em sua própria casa. Seus trabalhos causaram péssima impressão em d. Bety e no tio Jorge Krug, que esperavam dela uma pintura mais “amadurecida e suave”. Por mais que tenha tentado explicar as mudanças estéticas em curso na Europa e nos Estados Unidos, obras como O homem amarelo, A boba, A ventania e Nu cubista foram vistas como aberrações. Eram “coisas grotescas”, na sumária definição de Krug, que teria desferido bengaladas em algumas delas. De uma hora para outra, a euforia colorida de Monhegan Island e o ju venil liberalismo da Independent School saíam de cena, trocados por um ambiente cultural acanhado e uma atmosfera hostil à experimentação. Anita ia morar com a mãe e os irmãos Guilherme e Georgina em novo endereço, na avenida Angélica. Precisava trabalhar para ajudar no orçamento da casa. Começou a dar aulas e retomou sua pintura em padrões mais cautelosos.
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O CRÍTICO NACIONALISTA
Naquele final de 1916, o que parecia mais “avançado” em São Paulo para Anita Malfatti era o debate sobre a identidade nacional da arte. O campeão da campanha nacionalista chamava-se Monteiro Lobato. Nascido em Taubaté, em 1882, formado pela Faculdade de Direito, herdeiro de uma fazenda de café no Vale do Paraíba, o futuro criador do Sítio do Pica-Pau Amarelo tornara-se conhecido em 1914, quando publicou dois textos no Estado de S. Paulo: “Uma velha praga” e “Urupês”. No primeiro, enviado como carta, Lobato insurgia-se contra as queimadas, promovidas por homens do campo, que destruíam florestas e degradavam o solo; no segundo, atacava a mitologia romântica dos Peris e Cecis e traçava um retrato impiedoso da idiotia rural cabocla, simbolizada pelo Jeca Tatu. Os textos agradaram em cheio os leitores e a equipe do jornal. Não apenas pelo assunto, vinculado à realidade rural do estado e do país, mas pela vivacidade da pena do articulista. Embora fosse tecnicamente um fazendeiro, Lobato escrevia com regularidade desde os tempos de estudante de direito. Tinha também pendores artísticos — gostava de desenhar e pintar. Mais jovem, quis estudar na Escola de Belas-Artes, no Rio, mas foi demovido pela família.
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O escritor admirava Machado de Assis, Euclides da Cunha e seu mestre português Camilo Castelo Branco. Gostava ainda do jovem carioca Lima Barreto — mas não via bons autores em atividade na nossa “Zululândia”. A outra face de seu nacionalismo, naquele momento, era justamente o horror e a impaciência com o Brasil selvagem e inculto. Considerava que os brasileiros, excetuando os “bugres puros”, tinham duas mães — “a mestiça simplória” e “a mãe de criação”, que era a Europa. Embora se irritasse com a afetação afrancesada da elite, queria mesmo era morar em Paris, onde pretendia estudar, mais confortavelmente, o Brasil. “Acho penoso viver toda a vida no regaço da mãe tapuia, ainda de argolas nos beiços da alma”, escreveu a Godofredo Rangel em dezembro de 1917.33 Lobato julgava sofrível a linguagem corrente do jornalismo, com os “adjetivos prepostos aos substantivos” e a “nojenta coisa de agregar o ter e o haver ao resto da verbalhada”. 34 Expressava-se com inteligência demolidora em estilo seco e vigoroso, usando metáforas campestres e expressões cultas e coloquiais. O enfezado homenzinho, de pouco mais de um metro e sessenta, entendeu rapidamente a fórmula de seu sucesso midiático: Já compreendi o nosso público. Para interessá-lo é preciso vir com bombas na mão e explodi-las nas ventas de alguém, ou meter a riso qualquer coisa, farpear um grande paredro da política […] — ou então falar do caboclo. Em havendo caboclo em casa, o público lambe-se todo. O caboclo é um Menino Jesus étnico que todos acham engraçadíssimo, mas ninguém o estuda como realidade.35
Colaborador do Estado, Lobato também foi convidado a participar da Revista do Brasil , lançada em 25 de janeiro de 1916 por iniciativa do
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jornalista e político Júlio de Mesquita, proprietário do jornal. Nacionalista, com raízes em São Paulo, a linha da revista vinha anunciada em editorial publicado no primeiro número: O que está por trás do título desta revista e dos homens que a patrocinam é uma coisa simples e imensa: o desejo, a deliberação, a vontade firme de constituir um núcleo de propaganda nacionalista. Ainda não somos uma nação que se conheça, que se estime, que se baste, ou, com mais acerto, somos uma nação que ainda não teve o ânimo de romper sozinha para a frente, numa projeção rigorosa e fulgurante de sua personalidade.
Eram esses os princípios a partir dos quais o crítico de arte Monteiro Lobato começaria a revigorar, em perspectiva paulista, uma ideia antiga no meio cultural — a necessidade de substituir nossa pintura europeizada, ainda vinculada aos padrões da Academia Imperial de Belas-Artes, por outra mais condizente com a realidade da jovem República do século xx. As bases da Academia foram lançadas pelos artistas franceses ligados ao neoclassicismo que desembarcaram no Rio em 1816, oito anos depois de o rei de Portugal, d. João vi, ter se transferido com a corte para a cidade. A chamada Missão Francesa trouxe ao país nomes como os pintores Joachin Lebreton, Nicolas Antoine Taunay e Jean-Baptiste Debret, os escultores Auguste Marie Taunay e Marc Ferrez, o medalhista Zepherin Ferrez e o arquiteto Auguste Henri Victor Grandjean de Montigny. Foram os preparadores da Academia Imperial de Belas-Artes, criada depois da Independência, em 1826. A exemplo das congêneres europeias, nossa Academia tropical oferecia formação científica e humanista, além de educação artística: na pintura, com ênfase na produção histórica, fundamentada no método tradicional da Academia francesa, que impunha a
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cópia de gravuras, de moldes e o desenho de modelo-vivo. Exercia a autoridade artística no Rio de Janeiro, embora seus agentes também se instalassem em outros estados, ditando temas, normas e critérios de gosto. Promovia exposições nacionais regulares, lançava concursos e distribuía prêmios. Coube à arte “acadêmica” fornecer as representações iconográficas oficiais que alegorizavam o compromisso nacionalista do Império, como retratos de membros da corte, paisagens e celebrações de fatos históricos. Os padrões dessa pintura, no entanto, já se tornavam, para alguns críticos, repetitivos e vazios desde o último quartel do século xix — e mais ainda no novo século, num país ainda em busca de afirmação e independência cultural. Para uma nova elite intelectual, era tempo de abandonar as inclinações idealizantes do que eles entendiam como “arte acadêmica”. Na realidade, alguns artistas, também formados pela Academia, já haviam descoberto o caminho para uma pintura da realidade mundana do país. Na opinião de Lobato, tratava-se, especificamente, de retomar o exemplo deixado pelo pintor paulista José Ferraz de Almeida Júnior. Morto em 1899, Almeida Jr. introduziu em suas obras, a partir da sua segunda volta da Europa, em 1887, o mundo rural paulista, desen volvendo um naturalismo com luzes e feições locais, em sintonia com um projeto de valorização do tipo rural paulista, como já desejavam, aliás, alguns críticos oitocentistas do Rio, entre eles Gonzaga Duque ( 1863-1911). Retratava o violeiro, o caipira a picar fumo, a brasileira saudosa, a casa e a cena interiorana. O artista de Itu, na opinião de Lobato, era o grande inventor da pintura nacional36 e a referência a ser seguida pelos jovens. Também Oswald
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de Andrade considerava Almeida Jr. um artista a ser valorizado — e já escrevera sobre isso, em 1915, na sua revista semanal O Pirralho. Na defesa dessa tese, o crítico tratava, estrategicamente, de empurrar do trono o incensado pintor histórico Pedro Américo ( 1843-1905), autor do Grito do Ipiranga, que ele chamaria de “o maior dos pintores brasileiros e o menos brasileiro de nossos pintores”.37 Não era mais plausível, àquela altura, como fizera Américo, dar o título A carioca a uma figura feminina se a alva moçoila em nada diferia das ninfas de pinacotecas europeias. Era um dever das novas gerações, na opinião de Oswald, extrair “dos imensos recursos da nação”, de seus tesouros de luz e de cor, uma “arte nossa”, capaz de se apresentar como “manifestação superior da nacionalidade”. Monteiro Lobato já fazia anos via no naturalismo uma tendência que rompia com a tradição idealizante — era uma novidade, dizia ele, como o art nouveau na artes decorativas, o futebol no esporte, o automóvel na locomoção e o “neopaganismo nas ideias”. O autor de Urupês lia revistas e autores estrangeiros — e comungava com as concepções de Émile Zola, que defendia a pintura naturalista e o impressionismo mas nunca aceitou a ruptura com a representação “naturalista” da realidade. Na mesma linha do escritor e crítico francês, Lobato considerava que figuras distorcidas podiam ser usadas na caricatura e nas artes gráficas, porém nunca na pintura, arte elevada, que pedia respeito às proporções e ao equilíbrio. O grande artista, em sua opinião, seguia as regras veristas mas imprimia, na fatura, o seu “temperamento” — termo, aliás, muito comum nas críticas da época. Ao eleger Almeida Jr. como parâmetro, o fazendeiro intelectual de Taubaté passava a fomentar na imprensa um tipo de nacionalismo em que o imaginário rural, com raízes em São Paulo, sobrepujava as representações litorâneas. O Brasil, frisava ele, “está no interior”, nas serras e
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nos sertões “onde moureja o homem abaçanado pelo sol” — e não na costa “praguejada de europeísmo”. •
No início de 1917, já em plena militância no Estado e na Revista do Brasil , Lobato lançava uma campanha em prol da “mitologia brasílica” — ele que defendia a expulsão dos gnomos e anões germânicos dos jardins e sua substituição por estátuas de caiporas e sacis-pererês. Era justamente o diabinho de uma perna o seu assunto do momento. A agitação acontecia nas páginas do Estadinho, a edição vespertina do jornal — criada em 1915, com o objetivo de oferecer à colônia ítalopaulista uma cobertura mais caprichada da participação italiana na guerra. Lobato convocava os leitores a opinar sobre a lenda do Saci e a relatar como ela era contada nas várias regiões do país. O “inquérito”, como a coisa foi chamada, obteve ampla repercussão e ofereceu a seu idealizador a oportunidade de promover um concurso artístico baseado na figura do Pererê. Ele próprio começou a entrar em contato com pintores e escultores, em busca de apoio para a ideia.
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DEGRINGOLISMO
Ao tomar conhecimento do certame, Anita Malfatti interessou-se e resolveu participar. Já na sua Primeira tela (o homem do campo com uma enxada sobre o ombro), a simpatia por temas brasileiros se manifestara. Agora, de volta ao país, seus pincéis procuravam novamente as cores locais. Seu Saci era sacudido e intrigante. Anita escolheu como narrativa uma inesperada aparição da entidade, que assustava um cavaleiro solitário, e mandou para o Estadinho. O concurso não foi tão bem-sucedido quanto seu mentor gostaria. Poucos nomes conhecidos participaram — e os brasileiros, dos quais se esperava larga adesão, quase todos se abstiveram. No mês de outubro, finalmente, as pinturas, desenhos e esculturas selecionados por Lobato vieram à luz. Malfatti não ganhou nenhum prêmio, mas mereceu a irônica atenção do crítico, que associou sua obra aos ismos europeus: Um viandante e o seu cavalo, em pacato jornadear por uma estrada vermelha, degringolam-se numa crise de terror ao deparar-se-lhes pendente duma vara de bambu uma coisa do outro mundo. Degringola-se o cavaleiro, degringola-se o cavalo, tentando arrancarse do pescoço, o qual estira-se longo como feito da melhor borracha do Pará. Gênero degringolismo. Como todos os quadros do gênero ismo,
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cubismo, futurismo, impressionismo, marinetismo, está horsconcours.
O vencedor do certame foi O Saci e a cavalhada, de Ricardo Cipichia, italiano que chegou jovem ao Brasil — e criou, entre outras, a escultura O índio e o tamanduá, hoje na praça Marechal Deodoro, na região central de São Paulo. Bem que o vitorioso quadro de Cipichia poderia ter brilhado num salão de belas-artes, não fosse a figurinha perneta, de capuz e pito, a se equilibrar no lombo de um vigoroso corcel.
8 A FÚRIA DO JECA
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O jovem Di Cavalcanti, em uniforme do Colégio Militar do Rio de Janeiro, sete anos antes de mudar-se para São Paulo (com carta de recomendação de Olavo Bilac), onde fez parte do grupo modernista.
O carioca Emiliano Di Cavalcanti chegou a São Paulo com vinte anos, oito a menos do que Anita Malfatti. Em suas memórias disse não saber ao certo por que resolveu deixar sua cidade natal naquele 1917. “São Paulo me seduzia”, resumiu.38 Desceu do trem numa manhã fria, trazendo no bolso cartas de apresentação do poeta Olavo Bilac endereçadas a nomes influentes, ligados ao Estado e à elite intelectual da cidade, como Amadeu Amaral, Rangel Pestana e Roberto Moreira. Sua mãe, d. Rosália, também o recomendava ao amigo Alfredo Pujol — que se preparava para ingressar na Academia Brasileira de Letras. Na primeira mocidade, ela teve um namoro com Bilac, que viria a ser o mais famoso dos poetas brasileiros, um mestre do estilo parnasiano, tão combatido pelos modernistas. A irmã de d. Rosália era casada com o abolicionista José do Patrocínio, um dos primeiros brasileiros a adquirir um automóvel no Brasil. Foi na residência dele, na rua do Riachuelo, que Di Cavalcanti nasceu. A casa era frequentada por políticos, artistas e intelectuais que amavam Victor Hugo, Castro Alves e a Marselhesa. Meu pai — pobre tenente do Exército, minha mãe a caçula linda de uma família desmantelada… Criei-me num mundo estranho, mijando nas pernas de poetas e militares, ou entre os braços de não sei quantas mulheres: minhas amas, minhas tias, amigas de minha mãe e de minhas tias, minhas avós e tias-avós; distribuído como um mimo para todo mundo, e aos três anos (coisa prodigiosa para a família) soletrava.
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Aos cinco, lia, escrevia e rabiscava. Aos seis fui para o colégio de dona Adélia Noronha e nesta época fixou-se minha personalidade — fiquei sendo o menino fujão. Fugir é tudo para mim e sempre há de ser tudo na minha vida. Não fugir medroso, temendo algo grave. Fugir para não assistir a um fim banal ou para continuar sendo o mesmo.
Di Cavalcanti teve aulas de piano, estudou no Colégio Militar e publicou uma caricatura na revista Fon-Fon antes de fugir pela primeira vez, rumo à próspera Ribeirão Preto, onde trabalhou com um tio na ferrovia Mogiana — e aproveitou para se iniciar nos cabarés. Voltou ao Rio decidido a ser um “profissional das artes e, se possível, das letras”. Foi estudar direito e passou a frequentar uma turma de estudantes com ideias literárias avançadas — talvez os primeiros, segundo ele, a abandonar a idolatria por Bilac ou Lecomte de Lisle na poesia francesa. Em busca de “libertações simbolistas para mundos incandescentes e nebulosos”, os rapazes liam Baudelaire, Rimbaud, Verlaine e Mallarmé, os poetas simbolistas franceses que “davam a certeza de que a arte deveria ser diferente dos sonetos das revistas mundanas”. Antes de partir para São Paulo, participou pela primeira vez de uma exposição, no Salão dos Humoristas. Recebeu elogios públicos de João do Rio e uma encomenda para ilustrar a edição de Balada do enforcado, de Oscar Wilde, na tradução do poeta Elísio de Carvalho.
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PORTAS ABERTAS
Na Pauliceia, onde se alojou na rua das Flores, as cartas de Bilac e as recomendações de d. Rosália abriram as portas. Di foi trabalhar nos arqui vos do Estado, onde organizava livros, e logo encontrou os primeiros amigos paulistas. Além de Oswald, foi apresentado a Arnaldo Simões Pinto, da revista Vida Moderna, e Gelásio Pimenta, da Cigarra. Também se aproximou de Júlio de Mesquita Filho, com sua “afabilidade de grão-senhor”, e de Monteiro Lobato. Di acompanhou o rumoroso “inquérito do Saci” e quis conhecer Anita Malfatti. Soube das temporadas dela em Berlim e Nova York — e que guardava em casa um lote de pinturas modernas. Com Simões Pinto e Gelásio Pimenta, marcou um encontro para conferir os trabalhos. Numa tarde de novembro, ele e seus amigos foram recebidos em casa por Malfatti. Não se sabe exatamente quais as reações provocadas por aquelas obras tão diferentes para os padrões brasileiros, mas é certo que os visitantes incentivaram a pintora a exibi-las. Provavelmente era isso mesmo que ela desejava fazer, apesar dos constrangimentos familiares e das restrições do meio artístico paulistano — o qual, no entanto, com aquela visita, parecia dar um sinal de arejamento. Se fora procurada por um grupo de jornalistas e se eles consideravam que os trabalhos deveriam ser mostrados, por que não fazer, afinal, uma exposição? (Na verdade, de
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acordo com uma breve notícia publicada pelo Estado de S. Paulo, descoberta pelo historiador da arte e crítico Tadeu Chiarelli, Anita já teria feito em junho uma silenciosa individual, cujos detalhes não se conhecem.) Pouco depois do encontro com os jornalistas, uma nota na Vida Moderna preparava o público para o que vinha: Inaugurar-se-á brevemente nesta capital uma exposição de telas da lavra da talentosa pintora paulista srta. Anita Malfatti, cujas aptidões os nossos amadores já conhecem. A srta. Malfatti é um dos mais curiosos temperamentos artísticos do nosso meio. Tendo estudado primeiramente na Alemanha e depois nos Estados Unidos, a nossa distinta patrícia tem da arte uma concepção tão bizarra que a põe num lugar absolutamente à parte entre os artistas nacionais.
A Exposição de Pintura Moderna Anita Malfatti, nome que ela decidiu dar à mostra, foi marcada para a quarta-feira 12 de dezembro de 1917, na rua Líbero Badaró, 111, endereço do mesmo salão onde se realizara a mostra do Saci. O espaço pertencia a Antonio de Toledo Lara, o conde de Lara. Era um homem rico, conhecido como “o dono do Triângulo” — região formada pelas ruas Quinze de Novembro, Direita e São Bento, o tradicional centro de São Paulo.
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UM ACONTECIMENTO
O vernissage da srta. Malfatti foi um sucesso. O salão do conde de Lara encheu. Compareceram artistas da nova e da velha guarda, como Elpons, Zadig e Wasth Rodrigues, o arquiteto Victor Dubugras, as amigas Shalders e Jorge Krug — um ano depois do chilique provocado pelas “coisas dantescas” pintadas pela sobrinha. O amigo da família, Rangel Pestana, que havia escrito para o Estado sobre a mostra de 1914, apareceu no dia seguinte. Freitas Valle também foi depois da abertura, assim como o escultor Alfredo Norfini, o pintor Clodomiro Amazonas e Wasth Rodrigues, artista da mesma geração de Anita, considerado por Monteiro Lobato uma esperança da pintura nacional. No dia 17, a autoridade máxima do estado de São Paulo, o presidente Altino Arantes, assinou o livro de visitas, que recebeu de setenta a oitenta registros ao longo do mês de dezembro — uma frequência acima do normal. Mantida essa média, em dez dias teriam ido à mostra setecentos a oitocentos visitantes, o que não é pouco. A imprensa foi receptiva com a exposição, que mostrava 53 trabalhos da artista, acrescidos de algumas obras de autoria de colegas norte-americanos — entre elas o Nu cubista, de A. S. Baylinson. Retratado por Anita, ele era o secretário da Independent School — o responsável por colher
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contribuições e cuidar da providencial gaveta de dinheiro, salvação dos alunos necessitados. A seleção da pintora contemplou trabalhos mais recentes e outros da fase nova-iorquina, como Ventania, O barco, O homem amarelo e A mulher de cabelo verde. O catálogo dividia as obras em cinco blocos: Figuras, Paisagens, Gravuras, Aquarelas e Caricaturas e desenhos. No dia 14, o Correio Paulistano informou que o salão, na abertura, esteve “constantemente cheio de amadores e curiosos”. O jornal notou nos quadros “um aspecto original e bizarro”, e explicou que a arte ali exposta era “essencialmente moderna”, distanciada dos “métodos clássicos”. A artista, de acordo com o texto, tinha traço “quase violento”, e sua paisagem era “larga e iluminada”. Em algumas telas, os detalhes cediam lugar “para a mais forte impressão do conjunto”. Em 16 de dezembro, quatro dias depois do vernissage, o mesmo Correio afirmava que a exposição da srta. Malfatti era “o acontecimento artístico de maior importância desses últimos dias”. Passada a primeira semana, tudo corria bem. Malfatti recebia numerosas visitas, despertava o interesse dos jornalistas pela “arte que se faz atualmente nos mais adiantados meios de cultura” e, last, but not least , vendia quadros — oito deles já nos primeiros dias. 39 Foi então que, na quinta-feira 20 de dezembro, o Estadinho publicou um intempestivo arrazoado de Monteiro Lobato contra o tipo de arte à qual aderira a expositora. O texto, “A propósito da exposição Malfatti”, ficaria famoso com o título “Paranoia ou mistificação” — como o autor decidiu chamá-lo na coletânea de artigos As ideias de Jeca Tatu, lançada dois anos mais tarde. A estratégia retórica de Lobato era valorizar o talento da artista — “independente, original, inventiva” — e mostrar-se, por isso mesmo, sincero, alertando-a para o grave erro de ter se deixado seduzir pelo mal da arte
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moderna, seu grande alvo. Malfatti não apenas se influenciara pelas correntes europeias: ela fazia questão de explicitar a adesão já no título pro vocador que escolhera para a mostra, ao que se saiba a primeira no país a se autodeclarar de “arte moderna” — termo que só cinco anos depois seria usado na Semana. Lobato não analisou as obras; usou-as como pretexto para atacar as “extravagâncias de Picasso e companhia”. Ele não precisaria ter ido à exposição para escrever o que escreveu — e há quem acredite que de fato não foi. Sua assinatura não consta do livro, o texto erra na grafia do nome Baylinson e o Nu cubista do norte-americano é referido como “carvão”, embora fosse um óleo — erro crasso, em se tratando de um conhecedor com veleidades de pintor, que estudava desenho com Elpons e Wasth Rodrigues. O artigo começa por distinguir duas espécies de artistas: os que “veem normalmente as coisas” e os que “veem anormalmente a natureza e a interpretam à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes”. Estes últimos seriam típicos dos períodos de decadência, “frutos de fim de estação, bichados ao nascedoiro”. Sob a alegação de modernas, as deformações criadas pelos rebeldes europeus não revelariam nada de novo, senão a velha arte “anormal ou teratológica” que nasce com a paranoia e a mistificação. Tais obras seriam comparáveis aos desenhos que ornam as paredes dos manicômios, produtos “de cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses”. Com a diferença de que nos manicômios a expressão é sincera, enquanto fora deles, “nas exposições públicas zabumbadas pela imprensa”, não há “sinceridade nenhuma, nem nenhuma lógica, sendo mistificação pura”. A recorrente aproximação entre arte moderna e perturbação mental, usada por Lobato, já havia aparecido antes em críticas na França e nos Estados Unidos.
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No intuito de ridicularizar a arte moderna aos olhos do grande público, Lobato aproveita o longo artigo para contar uma história anedótica — que mais parece um daqueles “causos” do interior: Em Paris se fez uma curiosa experiência: ataram uma brocha à cauda de um burro e puseram-no de traseiro voltado para uma tela. Com os movimentos da cauda do animal a brocha ia borrando a tela. A coisa fantasmagórica resultante foi exposta como um supremo arrojo da escola cubista e proclamada pelos mistificadores como verdadeira obra-prima que só um ou outro raríssimo espírito de eleição poderia compreender. Resultado: o público afluiu, embasbacou, os iniciados rejubilaram e já havia pretendentes à tela quando o truque foi desmascarado.
Apesar de uma ou outra manifestação mais bem informada, jornalistas e críticos da época ainda não se acertavam com o recente vocabulário da arte moderna — que inexistia no circuito brasileiro. Muitos já tinham ouvido falar em cubismo e futurismo, mas a maioria parecia conhecer superficialmente os movimentos europeus. Era comum, por exemplo, usar o termo “impressionista” em referência a obras inspiradas na “nova escola” — como fez Lobato ao mencionar, numa passagem, o “impressionismo discutibilíssimo” de Anita Malfatti. Para ele, no final das contas, pouco importava, pois “futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti ” não passavam de “ramos da arte caricatural”. Repetindo o repúdio de Zola às deformações, o crítico reitera que o procedimento é inaceitável na grande arte, regida “por princípios imutá veis” e por “leis fundamentais que não dependem do tempo nem da
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latitude”. A verdadeira pintura há que seguir as “medidas de proporção” e buscar o equilíbrio na forma e na cor. No seu libelo, Lobato chega a defender princípios acadêmicos que anteriormente relativizara, por parecerem inadequados ao desenvolvimento de uma nova pintura brasileira. Ao aliar-se à velha escola, reunia forças na tentativa de afugentar o fantasma moderno que rondava a arte nacional e já era até “zabumbado” pela imprensa. Não por acaso, em meio aos comentários, o crítico faz uma pequena pausa para lembrar que também na literatura começavam a aparecer “furúnculos dessa ordem”, graças à “cegueira nata de certos poetas elegantes, apesar de gordos”. Era uma referência a Oswald de Andrade, 1,68 m, fino nos modos e redondo na cintura, que vinha ensaiando seus modernismos, como os primeiros escritos de Memórias sentimentais de João Miramar. Na época da publicação da crítica, Oswald alugara uma concorrida garçonnière na mesma rua Líbero Badaró onde se realizava a exposição Malfatti. O apartamento era frequentado por animada roda de moços da qual Lobato fazia parte. Coube ao “poeta elegante, apesar de gordo” responder ao ataque do Jeca Tatu à arte moderna, num breve texto publicado pelo Jornal do Comércio em 11 de janeiro de 1918: Encerra-se hoje a exposição da pintora paulista Srta. Anita Malfatti, que, durante um mês, levou ao salão da rua Líbero Badaró, 111, uma constante romaria de curiosos. Exigiria longos artigos discutir-se a sua complicada personalidade artística e o seu precioso valor de temperamento. Numa pequena nota cabe o aplauso a quem se arroja a expor, no nosso pequeno mundo da arte, pintura tão pessoal e tão moderna.
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Possuidora de uma alta consciência do que faz, levada por um notável instinto para a apaixonada eleição dos seus assuntos e da sua maneira, a vibrante artista não temeu levantar com os seus cinquenta trabalhos as mais irritadas opiniões e as mais contrariantes hostilidades. Era natural que elas surgissem no acanhamento de nossa vida artística. A impressão inicial que produzem seus quadros é de originalidade e de diferente visão. As suas telas chocam o preconceito fotográfico que geralmente se leva no espírito para as nossas exposições de pintura. A sua arte é a negação da cópia, a ojeriza da oleografia.
Oswald, embora também fosse simpático ao naturalismo caipira de Almeida Jr., não se prendia ao “preconceito fotográfico” reinante — pelo contrário, saía em defesa de uma pintura que ele considerava a “negação da cópia”. •
Muita gente ainda foi visitar a exposição de Anita depois da publicação do texto de Lobato — como Wasth Rodrigues e o jornalista Simões Pinto, de todos o mais assíduo. Apareceu por lá também, pelo final do mês de dezembro, um rapaz interessantíssimo, que se pôs a rir sem parar ao ver nas paredes um homem amarelo e uma mulher de cabelos verdes. Voltou mais de uma vez. Numa delas, debaixo de uma chuvarada de verão, apresentou-se à pintora. “Sou o poeta Mário Sobral”, disse, antes de oferecer de presente um soneto parnasiano inspirado em O homem amarelo. Entusiasmado, já se considerava dono do quadro — “Um dia virei buscá-lo”, avisou. Mário Sobral era o pseudônimo que Mário de Andrade, aos 24 anos de idade, usava em seu primeiro livro de poemas, lançado naquele ano.
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Posteriormente, ele ressaltaria a importância da exposição de Malfatti para o despertar de sua consciência modernista. Aquelas pinturas provocaram em seu espírito uma “intuição divinatória”. •
Além de Mário, deixaram suas assinaturas no livro de visitas outros nomes que fariam parte do núcleo modernista de São Paulo e da Semana de Arte Moderna, como Oswald de Andrade, Di Cavalcanti, Guilherme de Almeida, Ribeiro Couto e os arquitetos Przyrembel e Moya. Tarsila do Amaral também registrou presença — possivelmente incentivada por comentários de Elpons, com quem estudava na época.40 Os laços entre a turma eram tênues ou inexistentes naquele momento. Oswald já era amigo e parceiro de Guilherme de Almeida, mas só encontrara Mário e Di havia pouco tempo. Tarsila ainda não se relacionava com nenhum deles, e Anita, que conhecia Di, fora apenas apresentada por ele a Oswald. Quanto a Menotti del Picchia, que mais tarde faria parte do chamado Grupo dos Cinco, com Oswald, Mário, Tarsila e Anita, vivia por aquele tempo em Itapira, no interior do estado.
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RETORNO À ORDEM TROPICAL
Muitas hipóteses, versões e mitos se criaram em torno da crítica de Monteiro Lobato e de suas consequências para a obra de Anita Malfatti. Os modernistas, tendo à frente Mário de Andrade, estimularam uma narrativa sobre o caso que, com o passar do tempo, tornou-se dominante. Por essa visão, Lobato, além de uma besta em matéria de arte, seria um pintor frustrado que, de maneira rancorosa, violenta e reacionária, investiu contra uma frágil e promissora artista moderna. O trauma originado por esse ataque explicaria a subsequente regressão de Malfatti a um tipo mais aguado e aceitável de pintura. Tadeu Chiarelli, autor de Um jeca nos vernissages, considera que essa versão da história é fruto de uma historiografia propensa a apresentar uma trajetória ascendente e triunfal do movimento modernista. Nesse contexto, um recuo de Malfatti, que não fosse causado por feroz reação externa, poderia ser uma hipótese incômoda. Chiarelli lembra que a artista, já antes da exposição de 1917, retornava a padrões mais contidos. Acredita que ela se unia, naquele momento, ao movimento europeu de “retorno à ordem”, que começou a se adensar no período da guerra — quando muitos artistas foram deixando de lado as experiências radicais para revalorizar o equilíbrio e a figura. Foi, aliás, o
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que também fizeram os colegas da Independent School, que passaram a se dedicar à pintura da cena americana. Como o início do conflito, em 1914, um ciclo chegava ao fim. O ambiente cosmopolita e farrista em que o cubismo e a poesia experimental desabrocharam tornava-se mais moralizante e circunspecto. As prioridades eram outras. Raros foram os membros das vanguardas a permanecer em Paris. Muitos se alistaram e estrangeiros voltaram a seus países de origem. Paris transformou-se num grande acampamento militar. Qualquer civil do sexo masculino em boa saúde gerava olhares desconfiados, numa cidade cada vez mais povoada só por mulheres e crianças. Nesse quadro, alguns setores da opinião pública francesa começaram a ver traços de inspiração germânica na arte moderna, no cubismo em especial. Contra uma cultura que teria se perdido em seus próprios devaneios, o patriotismo ascendente insistia na necessidade de recuperar uma arte enraizada e comedida. A aproximação entre a França e a Antiguidade Clássica era um lugarcomum da propaganda oficial. Os franceses viam-se como herdeiros da civilização e dos valores fundamentais do passado, em oposição aos bárbaros alemães. Natural que se retornasse à própria tradição neoclássica do país. Essa guinada conservadora na França durou aproximadamente até 1925 — embora ali ao lado, na cidade de Zurique, na neutra Suíça, a vanguarda prosseguisse em sua aventura radical, com o niilismo dadaísta. •
É certo que Anita Malfatti seguiu por essa trilha conservadora, mesmo que não se possa avaliar quanto pesou nesse redirecionamento a reação tacanha da cidade onde ela precisava viver e construir sua carreira de
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artista. O fato é que a fase norte-americana foi para Anita uma viagem à extrema liberdade, mas não um caminho sem volta. Como Lovis Corinth, seu mestre alemão, também ela transitaria por diferentes experimentações, sem se estabelecer em nenhuma. Embora parte das pinturas que fez logo que voltou para o Brasil tenha se perdido, os títulos, sugestivos, indicam a adesão a temas da terra: A palmeira, Rancho de sapé, Capanga e Caboclinha. Dessa safra, sobre viveu a tela Negra baiana — que estava entre as obras da exposição de 1917. Rebatizado de Tropical , nome mais amplo e alegórico, o quadro traz a figura de uma mulher negra que segura um cesto de frutas tropicais, com vegetação ao fundo. Lobato, curiosamente, não mencionou essa obra em sua crítica — o que reforça as suspeitas dos que consideram a possibilidade de ele ter escrito o texto sem ter visto a mostra. Mas Rangel Pestana não a deixou passar em branco. Num comentário publicado pela Revista do Brasil , o jornalista, com argúcia, notava um certo hibridismo formal na tela. Via na convivência da “anatomia teratológica” da negra com os “abacaxis tão bem desenhados” um sinal de incoerência. Ou bem Anita enveredava pela deformação modernista ou bem se moldava ao naturalismo. “Onde está a escola, o método, o sistema?”, perguntava. Rangel Pestana tinha razão. Tropical realmente mostrava esse caráter híbrido, que de certa forma antecipava a faceta “modernismo de compromisso” da Semana de 1922. Quando apresentou a tela ao público, juntamente com outros trabalhos da mesma série, Anita, na visão de Chiarelli, talvez não estivesse interessada em atenuar o ímpeto de suas obras anteriores apenas com o intuito de agradar esse ou aquele grupo local:
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Quem sabe estivesse querendo chamar a atenção para a possibilidade de uma produção conectada com a constituição ou valorização de uma cultura visual típica do país, a partir de procedimentos estéticos vinculados nem ao naturalismo, que até então caracterizara a melhor pintura nacionalista brasileira (os paisagistas e a fase “caipira” de Almeida Jr.), e nem às experimentações vanguardistas, que caracterizaram sua produção nova-iorquina.
E, de fato, a artista consegue esse feito, constituindo uma figura que fica num lugar próprio, entre o naturalismo mais minucioso das frutas e as nervosas sínteses das figuras pintadas nos Estados Unidos. 41 Nesse sentido, Tropical poderia ser vista como obra inaugural e típica de nosso modernismo pictórico, uma solução para o problema da representação nacional num registro que rechaça o “passadismo fotográfico” mas permite a identificação de um lugar, de uma pátria tropical e mestiça. Em 1921, quando escreveu pela primeira vez um longo texto sobre Anita, Mário de Andrade, que se atualizava pelas revistas estrangeiras, como a .’ Esprit Nouveau, mencionou elogiosamente “o retorno à construção equilibrada”, que seria “um dos anseios da arte contemporânea” — numa referência explícita ao chamado “retorno à ordem”. Embora criticasse as concessões da pintora ao gosto atrasado e pro vinciano, exibidas numa nova individual, em 1920, o crítico mostrava-se cauteloso — e assim continuaria a ser — quanto às deformações exageradas, que apontavam para a abstração. Sintomaticamente, elegeu A estudante russa como o melhor trabalho de Anita, mas não deixou de citar Tropical (que chamou de Mulata vendedora de frutas) como um exemplo a ser seguido, ao lado de O homem amarelo, Cabeça de negro e o Retrato de Lalive. Eram trabalhos que, na opinião do jovem e aplicado crítico, denotariam uma “ciência abalizada e um conhecimento profundo
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da serena arquitetura de um Ingres ou dos artistas do Renascimento”. Para Mário, justamente o “equilíbrio” seria a maior qualidade de Anita, “como a cor é sua maior força expressiva”. 42 •
Numa carta endereçada a Mário, Anita abordava de maneira explícita, em fevereiro de 1924, seu retorno à ordem. “Agora coragem”, escreveu ao amigo, em seu simplificado domínio da escrita em português. “Vou dar uma notícia ‘bouleversante’ — Estou clássica! Como futurista morri e fui enterrada.” A pintora afirmava nunca ter pertencido “a uma escola definida” e comentava as movimentações no mesmo sentido que observava em artistas europeus: Não posso forçar-me para agradar a ninguém. Nisto sou, fico e serei sempre livre. Aliás todos ou quase todos os grandes artistas daqui estão enfrentando este tremendo problema. Matisse, Derain, Picasso. Todos passam atualmente esta reação. Andava apreensiva com isto, mas estive hoje com diversos artistas que me afiançaram ser esta fase atual em Paris. Voltamos à mãe Natureza.43
9 MÁRIO DE MARIA
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Mário de Andrade (o sexto em pé da direita para a esquerda) com colegas da Congregação Mariana. O jovem poeta, autor de Pauliceia desvairada, estreou em 1917 com Há uma gota
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de sangue em cada poema, livro marcado pelo pacifismo católico.
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Um ano antes de conhecer Anita Malfatti, em 1916, Mário de Andrade, então com 23 anos, escreveu um pedido de autorização ao vigário-geral do Arcebispado de São Paulo para ler livros interditados pelo Índex do Santo Ofício, como Madame Bovary e Salambô, de Gustave Flaubert (1821-80). Na correspondência, datada de 21 de fevereiro, incluíam-se também obras de Honoré de Balzac ( 1799-1850), Johann Heinrich Heine (1797-1856) e Maurice Maeterlinck ( 1862-1949) — além do Grand dictionnaire, de Larousse. A solicitação repetiu-se em 1920, dessa vez para a leitura de autores italianos, entre os quais Antonio Fogazzaro ( 1842-1911) e Gabriele d’Annunzio (1863-1938). Os documentos encontram-se no vasto legado deixado pelo poeta, sob a guarda do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. Não é certo que o primeiro pedido tenha sido de fato enviado à autoridade eclesiástica. Quanto ao segundo, ao que tudo indica não foi além do vigário de Santa Efigênia, que considerou o requerente “tanto pela sua formação intelectual quanto pela parte moral” merecedor de despacho favorável. As duas requisições são, de qualquer maneira, atestados da preocupação do moço cristão em observar as regras de Roma. Criado para combater a divulgação de ideias protestantes, o Índex, que chegou a reunir cerca de 4 mil títulos, só foi abolido em 1966, pelo papa Paulo vi. Mário fez seus estudos em instituições católicas. Formou-se no Ginásio Nossa Senhora do Carmo, dos Irmãos Maristas, e, a exemplo de seu irmão mais velho, Carlos, tornou-se congregado mariano — aderindo
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à Congregação da Imaculada Conceição, da igreja Santa Efigênia —, compromisso que impunha uma série de regras e exercícios espirituais. O pai, Carlos Augusto de Andrade, fundou com amigos e um irmão o primeiro vespertino de São Paulo, a Folha da Tarde. Depois de lançar um segundo título, o Diário do Povo, foi parar no Constituinte, jornal de Basílio Machado e Joaquim de Almeida Leite Moraes. Quando Leite de Moraes, homem rico e educado, lente da Faculdade de Direito, foi designado presidente da província de Goiás, em 1881, Carlos Augusto, que se destacara como jornalista, foi convidado a acompanhá-lo na função de secretário particular. De volta a São Paulo, em 1882, deixou o jornalismo de lado e abriu uma tipografia e papelaria, a Casa Andrade, Irmão & Cia. Passados cinco anos, em 1887, casou-se com Maria Luísa, segunda filha de Leite Moraes, que convidou o casal a morar com sua família, na rua Aurora, 320. Em 1891, já pais de um menino, também chamado Carlos, os dois mudaram-se para Santos, onde ele trabalharia como contador do irmão de seu sogro, um rico exportador de café. A vida no litoral foi atribulada — Maria Luísa perdeu uma filha e adoeceu. Após longo restabelecimento, o casal voltou a viver em São Paulo, onde nasceu, no dia 9 de outubro de 1893, Mário Raul de Moraes Andrade. Com a morte de Leite de Moraes, em 1895, a família mudou-se para uma casa ampla e nova, no largo do Paissandu. Foram juntos a mãe de Maria Luísa e sua irmã Ana Francisca, madrinha de Mário. Ao lado, na rua Visconde do Rio Branco, moravam a cunhada mais velha de Carlos Augusto, Isabel Maria do Carmo de Moraes Rocha, viúva, e seus filhos. Em 1899 Mário ganhou um novo irmão, Renato, e, dois anos depois, a caçula Maria de Lourdes.
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A infância rodeada de parentes deixou marcas na obra do escritor, cheia de referências autobiográficas. A tia Ana Francisca, por exemplo, inspirou a tricoteira que faz os sapatinhos do filho de Macunaíma; e Isabel, mais durona, é a Tia Velha do conto “Vestida de preto”. 44 Terminado o ginásio, em 1909, depois de repetir o ano em grego, Mário iniciou sua errática formação técnica e universitária. Tentou obter um diploma de contador na Escola de Comércio Álvares Penteado, mas em dois meses abandonou o curso, ao que se sabe por um grave desentendimento com o professor português Gervásio de Araújo, em torno de normas gramaticais. A seguir, influenciado pelo irmão mais velho, que se formava em direito e estudava filosofia, matriculou-se na Faculdade de Filosofia e Letras, no Mosteiro de São Bento, vinculada à Universidade de Louvain, da Bélgica. O curso logo lhe pareceu “muito forte”. Não ficou nem um ano. “Só frequentava as aulas de literatura”, contou depois, numa carta à pianista e pesquisadora Oneyda Alvarenga. 45 Dizia na correspondência que os sistemas filosóficos, em especial os modernos, o “fatigavam pa vorosamente”. Apesar das dificuldades, suas leituras teriam passado por “quase tudo” de Platão e “bastante Aristóteles”. Para seu uso, no entanto, preferia Epicuro, o filósofo da felicidade, cuja doutrina — contava à amiga — já conhecia sem precisar ter lido. 46 Se a metafísica e a contabilidade não eram seu forte, restavam os interesses artísticos, que foram se impondo. O pai, amante do teatro, escre via peças; a mãe e a tia tocavam piano; e Renato, grande promessa de concertista, frequentava o Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Também pianista diletante, Mário decidiu prestar exames para a instituição — que fora criada em 1906, na onda do aparelhamento cultural de São Paulo, incentivada pelo baronato do café. Entrou no terceiro ano e
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não tardou a assumir funções de monitor. Posteriormente seria professor de piano e de história da música. Embora não tenha se tornado um concertista, como chegou a imaginar, Mário apresentou-se em situações públicas — tocou Schubert, por exemplo, na cerimônia do quarto aniversário da Congregação Mariana da Imaculada Conceição. Paralelamente à música, seus interesses pela literatura e pela arte só aumentavam. Se não perdia concerto e vivia mergulhado em livros sobre a vida dos grandes compositores, também frequentava exposições, cada vez mais numerosas em São Paulo, e estudava história da arte. Aos dezesseis anos, antes de entrar para o Conservatório, Mário já havia adquirido um quadro de Torquato Bassi — pintor que teve participação ativa no projeto da i Exposição Brasileira de Belas-Artes, no Liceu de Artes e Ofícios, em 1911. Ao rememorar a aquisição, anos depois, o poeta pintou um quadro de sacrifícios financeiros na juventude, uma vez que dependia de “mesada miserável” fornecida pelos pais. Menções dessa ordem aparecem algumas vezes em relatos sobre a vida do autor de Macunaíma, levando alguns a imaginar um intelectual abnegado, às voltas com apertos materiais. Na realidade, Mário não se cercava de confortos de milionário, mas, com todos os malabarismos econômicos que fazia para comprar livros e obras de arte, viveu de maneira confortável, com recursos próprios e da família.
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SONETOS DO DESTINO
Uma tragédia abateu-se sobre os Andrade no ano de 1913: Renato morreu em decorrência de um acidente numa brincadeira de futebol. Surpreendido pela perda, para ele incompreensível, do irmão de catorze anos, Mário foi tomado por forte depressão — “uma neurastenia que quase me matou”, como escreveu a Carlos Drummond de Andrade em 1925. Na tentativa de reanimá-lo, o tio Pio Lourenço Corrêa, afilhado do avô Leite Moraes, levou-o para passar alguns meses em sua fazenda, na cidade de Araraquara. Era um sujeito culto, poliglota, dono de vasta biblioteca, ligado em zoologia e estudos linguísticos. Foram dias de isolamento e angústia, que contribuíram para intensificar o interesse pela literatura. Na volta a São Paulo, ainda se recuperando do baque, Mário começou a levar mais a sério suas ambições poéticas. Foi provavelmente em 1914 — ano em que Anita Malfatti viajava para Nova York — que ele tomou coragem e decidiu submeter seus sonetos a Vicente de Carvalho, poeta a quem muito admirava. Embora se enquadrasse na lírica dominante, inspirada no parnasianismo, com métrica, rimas e algumas fumaças românticas e simbolistas, Carvalho era tido por Mário como um “genuíno artista”. Numa série de artigos intitulada “Mestres do Passado”, publicada em 1921, retirou-o do grupo dos “legítimos parnasianos”, considerando-o “mais poeta do que todos os metrificadores da sua geração”.
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Remeteu os sonetos num envelope registrado, acompanhados por carta “assombrada de idolatria e servidão”. 47 Esperava de Carvalho um parecer — “que me dissesse qualquer coisa, um ‘não’ que fosse, para esclarecer as minhas dúvidas sobre mim”. É de imaginar a ansiedade do aprendiz na expectativa do juízo do mestre — que, todavia, jamais chegou. O poeta ignorou o pedido, num episódio difícil e humilhante, nunca esquecido pelo autor de Macunaíma, que em 1935, em entrevista a O Jornal , do Rio, ainda o mencionava: Quando me iniciei fazendo versos, reuni meus melhores sonetos, o que eu supunha fosse o melhor, e mandei-os em carta a Vicente de Carvalho, pedindo-lhe opinião. Ainda não publicara coisa nenhuma, a não ser alguns sonetos em revistecos sem importância. Vicente nunca me respondeu. Cheguei a ir à casa dele para retirar a limpo se morava mesmo lá, ou se estava em São Paulo. Estava. Deve ter recebido a carta registrada e… sei que não respondeu. Como gosto muito da poesia dele, até agora sofro disso.
No ano seguinte à frustrada tentativa de ser aprovado por Vicente de Carvalho, Mário formou-se em canto pelo Conservatório e publicou pela primeira vez um artigo na imprensa, no Jornal do Comércio. Era um comentário musical — mas seu autor continuava a escrever contos e poemas. •
Em fevereiro de 1917, Carlos Augusto de Andrade sofreu um ataque cardíaco no barbeiro, foi levado para casa, pareceu recuperar-se, mas poucos dias depois não resistiu. Morreu no dia 15 do mesmo mês, uma
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quarta-feira, na semana anterior ao Carnaval. Numa carta que diz bastante sobre sua relação com a figura paterna, Mário rememorou a morte do pai ao amigo Sérgio Milliet em 1939: Sofri horrivelmente. Hoje imagino que havia bastante egoísmo naquele sofrimento, porque embora já trabalhasse e ganhasse regularmente, ainda vivia na sombra de meu pai, covardemente ou preguiçosamente (é o mesmo…) aceitando mesada. Tive a perfeita sensação do desamparo, de me perder infantilmente na bruta multidão. Se, de fato, pelo que me lembro, era o corpo dele que eu chorava vendo morto, não sei até que ponto era a inatividade, a improdutividade não mais protetora desse corpo morto que me fazia chorar e ficar, como fiquei, meio abobalhado. Me lembro muito bem que desde a madrugada da vigília ao morto me entreguei completamente, já sem sequer chorar, incapaz de um gesto qualquer. Pegaram em mim, me vestiram, me puseram no automóvel, me conduziram pelo braço, inquietei a todos, tomando um papel principal quase tão importante na cerimônia como o do morto. Tudo isso me fez pensar num egoísmo qualquer, recôndito, porque sempre soube estimar meu pai muito lucidamente sem muitos amores. Ele mesmo aliás soubera criar entre nós e ele um sentimento muito profundo, sempre nobre, mas sem demonstrações físicas de amor. Resto, decerto, do operário que ele foi no início da vida, pois que não era coisa raciocinada nem comentada, mas espontânea. Havia entre nós uma enorme estima. De mim para ele, isto é. Ele não podia me estimar muito não, pois eu não era nada, e na família era considerado, mais ou menos com razão, como um perdido. Isso entre três manos exemplares, imagine o contraste que fazia.
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Logo me ergui de novo. Não é como o meu irmão que morreu e cuja morte até hoje me faz sofrer. Meu pai, menos de uma semana depois da morte, fui a uma conferência do Pujol sobre Machado de Assis, não quis perder a série que estava seguindo. O escândalo foi enorme na família, só mamãe creio me compreendeu porque aceitou tudo silenciosa, sem dar mostra de sofrer o que eu fiz. Fui. Raciocinei forte que não era festa — festa f esta de fato não teria ainda gosto para ir — era continuação de estudos e fui. Meu pai já estava es tava arquivado numa memória clara, sem ressentimentos, cheia de imensa gratidão, não, imensa estima pelo homem verdadeiro que ele foi. Mas era preciso guardar o pierrô. Quer dizer: quando meu pai ficou doente, eu estava me preparando pra ir num grande baile de carnaval. Minha tia me dera um cetim verde-alface sublime e caríssimo. Eu mesmo desenhei um pierrô miraculoso. Estava já passadinho, num manequim, no meu quarto. Com o doente não fui ao baile nem pensei nisso, está claro. 48
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PERSONALIDADE “ESTRAGOSA”
Em 1917, a guerra na Europa chegava ao terceiro ano e insuflava o nacionalismo no Brasil. Em 1916, criara-se no Rio de Janeiro a Liga de Defesa Nacional, que reunia nomes como Rui Barbosa e Olavo Bilac. O “príncipe dos poetas” percorria o país a discursar com fervor patriótico em defesa do serviço militar e da participação do Brasil no conflito. A Liga propunha-se a “estimular o patriotismo consciente e coesivo; propagar a instrução primária, profissional-militar e cívica; e defender: com a disciplina — o trabalho; com a força — a paz; com a consciência — a liberdade; e com o culto do heroísmo a dignificação da nossa história e a preparação do nosso porvir”. Os combates mexiam com o ânimo da juventude. “Queríamos com bater mas não sabíamos como”, recordou-se recordou-se Di Cavalcanti, em suas memórias. “Só se nos apresentássemos no Consulado da França.” E lá foram ao consulado. “O cônsul nos recebeu carinhoso mas nada podia fazer por nossa fúria guerreira.”49 A agressão alemã a um navio navio brasileiro, o Paraná o Paraná,, no canal da Mancha, foi o início de uma escalada que levaria o governo de Venceslau Brás a declarar guerra à Alemanha em 27 de outubro. Antes disso, em março, logo depois depois da perda do pai, Mário tornou-se noviço da Venerável Ordem Terceira do Carmo. No mês seguinte,
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estimulado por seu juvenil pacifismo católico, encerrou os versos de Há de Há uma gota de sangue em cada poema e decidiu bancar a edição do livro, que seria assinado por Mário Sobral. O volume, editado em junho, trazia uma “Explicação”, de quatro parágrafos, e uma brevíssima “Biografia”, em forma de verso livre. Na nota explicativa, o autor ressaltava o fato de os poemas terem sido realizados “antes de ter o desvairo dos idólatras atingido o nosso Brasil” — ou seja, antes do ataque alemão ao navio Paraná navio Paraná.. Se fossem posteriores à agressão, dizia, os versos teriam sido “muito outros”. Ficasse claro que naquele livro o autor “chorava pela França, que o educara, e pela Bélgica que se impusera à admiração do Universo”. Quanto à curiosa “Biografia”, que expunha a humildade e o medo do poeta diante da estreia, chamava a atenção sobretudo por um comentário acerca de uma sensibilidade “estragosa” que nascera com o autor: São Paulo o viu primeiro. Foi em 93. Nasceu, acompanhado daquela daquela estragosa sensibilidade que deprime os seres e prejudica as existências, medroso e humilde. E, para a publicação destes poemas, sentiu-se mais medroso e mais mais humilde, que ao nascer.
Os textos de Há de Há uma gota de sangue em cada poema eram ambientados na França; evocavam os dramas do conflito e a esperança de triunfo da paz: Ó paz, divina geratriz do riso,
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Chegai! Ó doce paz, ó meiga paz, Sócia eterna de todos os progressos, Estendei vosso manto puro e liso Por sobre a Terra, que se esfaz
E por aí seguia. Na tentativa de descobrir na obra de estreia algum traço precursor do modernismo, o próprio Mário, já maduro, sublinhou um comentário do crítico Nuto Santana, no Correio Paulistano. Paulistano. O articulista teria ficado “irritadíssimo” na época com a rima da palavra “voou” com um oou feito pelo vento. Tal opção, segundo Mário, teria sido “positivamente um exagero” em 1917. Na opinião de Manuel Bandeira, no entanto, a quem o poeta paulista enviara seus escritos “passadistas” em 1925, os versos do livro eram de um “ruim esquisito” e pareciam nascidos do espírito “de um rapaz de seus quinze dezesseis anos que não trepou” por ser feio e acreditar que as meninas não davam bola para ele. Bandeira chegara a cogitar um artigo sobre a juventude literária do amigo, mas viu naquela lírica imatura apenas um “fermentozinho” do futuro poeta. Na conversa por cartas, Mário, então com 32 anos, traçou um breve retrato de si mesmo quando jovem — sem mencionar o jocoso comentário sexual feito pelo interlocutor pernambucano: Quando releio coisas passadistas minhas tenho a impressão do Mário de Andrade que fui na casa dos vinte. Um sujeito grandão, feio como o diabo, almofadinha usando com exagero as modas do dia, desengraçado de corpo, com olhar apagado, no princípio uma cabelama enorme que não havia meios de ficar quieta, um tipo antipático porém
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que tinha um certo sal, dava vontade da gente saber mesmo o que ele é.
Em 21 de novembro de 1917, realizava-se um ato no Conservatório Dramático, em apoio à entrada do Brasil na guerra. Discursaria no evento o secretário de Justiça do Estado de São Paulo, o cafeicultor e industrial Elói Chaves, filiado ao prp. Ao entregar ao palestrante uma corbeille de flores, em nome da casa de ensino, o professor Mário de Andrade leu um breve discurso, no qual declarava seu amor à pátria e reafirmava o compromisso das novas gerações com o engrandecimento do país: Pátria é a saíra que singra o azul de São Paulo; é a onda esbatendo-se contra os rochedos da Guanabara; é a carnaúba flamulando ao vento nas restingas adustas do Ceará! Pátria é a gurara para o Norte, Curupaiti no Sul! São essas grandes matas — movimentos verdes — onde os Pais Leme deixaram as suas ossadas junto às pedras de luz viva! É a conjugação conjugação de três raças tristes donde donde saiu esta nacionalidade nacionalidade inda em botão — forte e dura — vencedora de tantas intempéries diversas!
O jornalista Oswald de Andrade, que na época trabalhava para o Joro Jornal do Comércio, Comércio , encantou-se com o que ouviu, e disputou a íntegra do texto com concorrentes, levando-a para publicar no dia seguinte. 50 Oswald já tinha conhecido Carlos, o irmão mais velho de Mário, nos tempos de estudante, e sabia da existência do jovem poeta — de quem se tornaria, a partir daquele dia, amigo e companheiro de agitação cultural.
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Foi pouco mais de um mês depois de ver suas palavras patrióticas publicadas pelo Jornal pelo Jornal do Comércio que aquele moço feioso e enigmático — autor, sob pseudônimo, de versos pacifistas afrancesados, marcado por sensibilidade “estragosa” e considerado “perdido” pela família — visitou a exposição de Anita Malfatti, riu às gargalhadas e deixou com a artista um cartão de visita tarjado de preto, em sinal de luto pela morte do pai.
10 OSWALD DA MAMÃE
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Oswald de Andrade pintado por Tarsila do Amaral em 1922. Filho único de família abastada, o escritor começou a trabalhar como jornalista no Diário Popular.
Como Mário de Andrade, José Oswald de Sousa Andrade também foi um jovem católico praticante, estudou no Ginásio Nossa Senhora do Carmo e desfilou — vestido de anjinho — em procissões. Três anos mais velho, nasceu em 11 de janeiro de 1890, na avenida Ipiranga, de onde a família passou para uma casa na Barão de Itapetininga, esquina com a atual rua Dom José de Barros, no centro de São Paulo. A mãe, Inês Henriqueta de Sousa Andrade, e o pai, José Oswald Nogueira de Andrade, descendiam de famílias tradicionais; ela, com raízes na Amazônia, vinha dos Souza Marzagão, fundadores do Pará; ele, de Minas Gerais, tinha sangue do bandeirante Thomé Rodrigues Nogueira do Ó, que morou em Baependi no início do século xviii e é antepassado de outros brasileiros conhecidos, como o escritor Raul Pompeia e o senador Eduardo Suplicy. A avó paterna, Antônia Nogueira Cobra, era leitora de romances franceses — e possivelmente deu o nome Oswald ao filho inspirada pelo personagem do livro Corinne, de Madame de Stäel. Pronuncia-se, portanto, “Oswáld”, embora ele mesmo assinasse, com frequência, Oswaldo — como era chamado por seus amigos e parentes. 51 Seu Andrade, o pai, foi um negociante imobiliário rico, que multiplicou a herança deixada pelo sogro, para quem trabalhou como corretor antes de se casar. Possuiu e loteou áreas inteiras de bairros paulistanos — Brás, Cambuci, Glória, Cerqueira Cesar — e atuou um período na vida pública, como vereador.52
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D. Inês, católica dedicada, tinha em casa oratório e imagens de santos, que eram evocados para tudo. Santa Bárbara e são Jerônimo para as noites de trovoadas, santa Luzia para resolver problemas nos olhos, santa Clara para interromper a chuva e são Bento para proteger contra os bichos perigosos. “Todo esse dicionário do totemismo órfico presidiu e explicou o mundo ante meus olhos infantes”, escreveu Oswald em suas memórias.53 Além das procissões e das missas na igreja da Consolação, o garoto participou, com pais, amigos e parentes, de romarias a Aparecida e ao santuário de Bom Jesus do Pirapora — festa religiosa que aparece no romance A estrela de Absinto, numa das incontáveis referências autobiográficas de sua obra. Em 1900, aos dez anos de idade, Oswald testemunhou o que parecia um milagre na antiga São Paulo — operado não pelos céus, mas pela técnica, que anunciava um novo século urbano e agitado: no dia 7 de maio inaugurou-se a primeira linha de bondes elétricos da cidade. A novidade, que já chegara ao Rio, desembarcava na Pauliceia por iniciativa dos canadenses Alexander Mackenzie e Frederick Pearson, que se associaram a uma empresa de Nova York e fundaram a The São Paulo Tramway, Light & Power Company — a famosa e controversa Light. No dia da estreia da “maravilha mecânica” uma multidão foi às ruas do centro — e a ela se uniu o menino Oswald, posicionado na ladeira de São João, na esquina da Líbero Badaró, com os olhos fixos no largo de São Bento, de onde viria a coisa: Um murmúrio tomou conta dos ajuntamentos. Lá vinha o bicho! O veículo amarelo e grande ocupou os trilhos no centro da via pública. Um homem de farda azul e boné o conduzia, tendo ao lado um fiscal. Uma alavanca de ferro prendia-o ao fio esticado, no alto. Uma
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campainha forte tilintava abrindo as alas convergentes do povo. Desce devagar. Gritavam: — Cuidado! Vem a nove pontos! Um italiano dialetal exclamava para o filhinho que puxava pelo braço: — Lá vem o bonde! Toma cuidado! O carro lerdo aproximou-se, fez a curva. Estava apinhado de pessoas, sentadas, de pé. Uma mulher exclamou: — Ota gente corajosa! Andá nessa geringonça! Passou. Passou adiante, perto do local onde se abre hoje a avenida Anhangabaú. Houve um tumulto. Acidente? Não andava mais, gente acorria de todos os lados. Muitos saltavam. — Rebentaram a trave do lado! Não é nada! Tiraram a trave quebrada. O veículo encheu-se de novo, continuou mais devagar ainda, precavido. E ficou pelo ar, ante o povo boquiaberto que rumava para as casas, a atmosfera dos grandes acontecimentos. Nas ruas, os acendedores de lampião passavam com suas varas ao ombro acendendo os acetilenos da iluminação pública.
Em breve os lampiões também dariam lugar à iluminação elétrica numa cidade que começava a se encher de fios e postes. Por essa época, depois de ter estudado no Caetano de Campos e no Ginásio Nossa Senhora do Carmo, Oswald transferiu-se para o São Bento, onde conheceu Guilherme de Almeida e foi aluno do professor Gervásio de Araújo — o mesmo mestre lusitano com quem Mário de Andrade se desentendeu, por divergências gramaticais, na Escola de Comércio
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Álvares Penteado. Aquele homem homem “grosso e baixote, sob uma desgrenhada cabeleira grisalha” foi o primeiro a ver talento nas suas composições escolares. Desejoso de tornar-se escritor, como o tio acadêmico Herculano Inglês de Sousa, irmão de sua mãe, o meninão de quinze anos começou precocemente a se aproximar de gente ligada ao meio literário. Por intermédio de um colega, Indalécio de Aguiar, conheceu Ricardo Mendes Gonçalves, intelectual com ideias anarquistas — que Monteiro Lobato consideraria “o mais genuíno poeta” de sua geração. Poucos anos antes, Lobato, Gonçalves e outros amigos da Faculdade de Direito, como Godofredo Rangel, haviam formado um grupo intelectual, o Cenáculo, que chamavam também de Cainçalha, termo usado para designar um ajuntamento de cães ou, em sentido figurado, de caipiras. Os moços reuniam-se no Café Guarany e escreviam para um jornalzinho criado em Pindamonhangaba — O Minarete, Minarete, que existiu de 1903 a 1908. Minarete também era o apelido da “república” onde moravam. Indalécio foi responsável pela primeira crise religiosa de Oswald, ao dar-lhe de presente o livro A livro A relíquia, relíquia, de Eça de Queirós. Na realidade, a crise — como o escritor diria mais tarde — foi de catolicismo, pois ele nunca deixaria de manter um profundo sentimento religioso, que preferia chamar de “sentimento órfico”. Como testemunhou o crítico e amigo Antonio Candido, Oswald, depois de longo sofrimento, iria morrer, em 1954, “com a Nossa Senhora da Aparecida na mão”. No início de 1909, com ajuda do pai, começou a trabalhar como repórter e crítico de teatro do Diário do Diário Popular, Popular, jornal fundado por José Maria Lisboa e Américo de Campos. Foi no Diário no Diário que Aristides Lobo, ao escrever sobre a Proclamação da República, cunhou uma conhecida descrição do pasmo popular diante da quartelada: “O povo assistiu àquilo
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bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer conhecer o que significava. Muitos acreditaram seriamente estar vendo uma parada”. Em março, o foca do Diário do Diário matriculou-se na Faculdade de Direito e se revoltou com o trote aplicado pelos veteranos. “A valentona imbecilidade daquele grupo do trote criou em mim uma verdadeira alergia por tudo que se processe debaixo das Arcadas”, escreveu depois. •
Em 1910, com vinte anos, o jornalista, crítico de teatro e estudante de direito Oswald de Andrade foi pela primeira vez ao Rio de Janeiro. Hospedou-se no palacete do tio Inglês de Sousa, na rua São Clemente, 271 , perto da casa de Rui Barbosa. Sentiu-se um paulista meio “pança” (ridículo) com aquelas “primas desembaraçadas e bonitas e primos bempostos”. Um dos motivos que o levaram à capital foi a estreia do Otelo, Otelo, no Municipal, com o ator siciliano Giovanni Grasso. Os comentários para o Diário o aproximavam do mundo que começava a frequentar, o das celebridades do palco. Uma noite, saindo tarde pelas ruas do centro, depois de ter se demorado na pensão dos atores italianos, Oswald foi surpreendido por militares a cavalo, numa movimentação inusual para a hora. Alguma coisa acontecia. Era uma “revolução”, avisou alguém, apontando para o mar. Curioso, o jornalista desceu a avenida Central, atual Rio Branco, até a altura da praça Paris, aproximou-se do cais e seguiu, no escuro, na direção da Glória. Nada viu — apenas homens montados que passavam de tempo em tempo. Decidiu recostar-se num banco à espera do amanhecer, para tentar descobrir o que estava ocorrendo. Pegou no sono e acordou numa
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daquelas insuperáveis auroras de verões cariocas. Ao olhar para o mar, avistou diante de si navios de guerra que singravam em fila, liderados pelo encouraçado Minas encouraçado Minas Gerais. Gerais. Em todos tremulava, numa verga do mastro dianteiro, uma pequena bandeira triangular vermelha. De repente, acendeu-se um fogo no flanco do Minas do Minas Gerais e um estrondo se seguiu. O bombardeio começou a alcançar a avenida Beira-Mar, forçando a testemunha, a essa altura já acompanhada de outros curiosos, a se agachar atrás das estátuas dos jardins da Glória: “Era terrível o segundo que mediava entre o ponto aceso no canhão e o estrondo do disparo. Meus olhos faziam linha reta com a boca de fogo que atirava. Naquele minuto-século esperava me ver soterrado, pois parecia ser eu a própria mira do bombardeio”. Oswald presenciava a Revolta da Chibata, nome do movimento liderado por João Cândido, o Almirante Negro, para mudar os regulamentos da Armada, que preservava práticas dos tempos do Império e da escravidão — como punir marinheiros, quase sempre pobres e pretos, com chibatadas. •
A “revolução” que Oswald, até então alheio à vida pública, presenciou no Rio acendeu nele o interesse pela política nacional. No ano seguinte, com apoio financeiro do pai, abriu o semanário O Pirralho, Pirralho, revista que se engajaria na Campanha Civilista liderada por Rui Barbosa, em oposição ao presidente recém-eleito, o marechal Hermes da Fonseca, sobrinho de Deodoro. Obra de um golpe militar, a República trouxera para o primeiro plano da política brasileira a lei da espada, que se impôs no início do novo regime, autoritário e repressor. Hermes da Fonseca, apoiado pelo caudilho
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gaúcho Pinheiro Machado, parecia representar, em 1910, um retorno ao poder fardado, contra o qual se opunha o candidato Rui Barbosa, com a adesão da elite paulista. Numa eleição considerada pela primeira vez “competitiva” na curta história republicana, o candidato civil foi derrotado pelo militar, em meio às tradicionais denúncias de fraude. O Pirralho não foi apenas uma revista “civilista”, que recebeu apoio de políticos do prp, como Washington Luís. Foi também uma publicação cultural e social influente, com edições interessantes e brincalhonas. 54 A redação ocupava uma sala de sobrado na rua Quinze de Novembro, para onde d. Inês transferiu escrivaninha, sofá e cadeiras de sua casa. A revista, editada ao longo de sete anos, anos, projetou o desenhista Voltolino e o escritor Juó Bananére. Colaboravam Colaboravam nomes como Paulo Setúbal e Guilherme de Almeida, além de escritores em atividade no Rio, com os quais o jornalista proprietário mantinha boas relações — Olavo Bilac, Emílio de Meneses, Goulart de Andrade etc.
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A DESCOBERTA DA EUROPA
Apesar do sucesso do Pirralho do Pirralho e de ainda não ter terminado o curso de direito, Oswald convenceu os pais de que deveria interromper tudo para fazer sua primeira viagem à Europa. Era uma experiência que, naquela época, nas palavras de Paulo Prado, “marcava uma data” no espírito de quem a vivesse.55 Numa fase em que a vida financeira da família ia muito bem, o Pirralho o Pirralho foi arrendado por Paulo Setúbal e Babi de Andrade. Em fevereiro de 1912, Oswald já estava pronto para embarcar no navio Martha Washington rumo à Itália. As despedidas foram calorosas. Cobertos Cobertos de “lágrimas ardentes”, ele e d. Inês se abraçaram longamente antes da partida. Tinham muitas afinidades, e ela o envolvia em cuidados e carinhos, naturalmente, correspondidos. Para seu Andrade, que não se animava com a ideia de o filho seguir carreira literária, preferindo que o ajudasse nos negócios, a temporada no exterior era uma esperança de que as coisas mudassem. Tudo acertado, o jovem viajante embarcou em companhia de “dois clandestinos”, um primo de Minas e um colega jornalista, Renato Lopes, cujas passagens ele mesmo bancou. Foi novamente às lágrimas no convés, quando o navio se soltou do cais e iniciou a viagem em direção ao Rio, onde faria uma escala — que coincidiu com a data da morte do barão do Rio Branco, homenageado com salvas de canhão.
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Em direção à Europa, nos primeiros dias em alto-mar, uma garota atraiu a atenção do jovem j ovem jornalista. Chamava-se Landa Kosbach e viajava com uma senhora que dizia ser sua mãe. Era bailarina e ia estudar no Scala, em Milão. Oswald ficou fascinado com a dança de gente grande daquela “criança loira e linda que não teria 11 anos”. Ao saber que não fora batizada, ofereceu-se para padrinho e sugeriu que a cerimônia se realizasse no Duomo. O Martha Washington atracou em Nápolis. Oswald pegou um trem e foi a Roma ao encontro de um amigo. Depois, passou por Milão, onde o improvável batismo da menina Landa aconteceu, e seguiu para Paris. Alugou um apartamento perto do Jardim Jardim de Luxemburgo, que serviria de base para suas andanças. andanças. Não demorou para descobrir o éclair, éclair, o camembert e bert e as garotas parisienses. Começou a namorar uma estudante chamada Henriette Denise Boufflers, que apelidou de Kamiá. Mas não conseguia se livrar das fantasf antasias que o enlaçavam à menina dançarina, agora sua afilhada. Perversamente obcecado por Landa, foi novamente encontrá-la em Milão, numa viagem complicada, em companhia companhia de Kamiá, que, segundo segundo ele, se encheu de ciúme, antevendo uma rival. O tempo passava e, de São Paulo, a mãe saudosa enviava pelo correio a clássica goiabada e cartas aconselhando cuidados com a saúde. Caso tivesse algum problema, que não fosse se tratar com qualquer um — procurasse médico “de rei ou de presidente da República”. Seu Andrade contava que o Pirralho o Pirralho já já não tinha a mesma graça. graça. E os dois recomendavam as obrigações religiosas — que fosse à missa e rezasse antes de dormir e ao acordar. Amparado pelos pais, Oswald viveu viveu um período de despreocupação e liberdade. Divertia-se pulando de país em país, de cidade em cidade. Alugou apartamento em Londres, visitou Espanha e Bélgica, voltou voltou à
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Itália e foi à Alemanha — onde na época estudava Anita Malfatti, sem que ainda se conhecessem.
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CAPITAL DAS VANGUARDAS
Oswald chegou a Paris poucos anos depois do lançamento do “Manifesto Futurista”, em 1909. A capital francesa ainda se vestia de art nouveau, o estilo novo, ornamental e cosmopolita que marcou a belle époque. Suas formas sinuosas, flores e trepadeiras haviam se espalhado por todos os lados — no urbanismo, na arquitetura, na arte decorativa, no vestuário, na publicidade e nos espetáculos. Mas, enquanto o art nouveau enfeitava a cidade e os objetos do cotidiano, novos grupos de artistas se organizavam com o intuito de questionar o sistema artístico dominante e as con venções sociais que o cercavam. Eram as vanguardas que entravam em cena, em agrupamentos multidisciplinares, os quais acreditavam na correspondência entre as artes, a música, a literatura, a arquitetura, a pintura. Atuavam coletivamente, criavam suas próprias estruturas de divulgação e compartilhavam com bativos programas estéticos. Valorizavam a experimentação e o “novo”, desejavam ampliar o espectro do que se considerava artístico e propunham novas maneiras de a arte se inscrever na sociedade e com ela interagir. Usavam artifícios para atrair a atenção e provocar reações — como o humor ácido, o primitivismo e o absurdo. Foi na Paris art nouveau do início do século que Pablo Picasso desem barcou, aos dezenove anos, com a intenção de pouco se demorar. Uma
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obra sua, Les derniers monuments, fora escolhida para representar a Espanha na Exposição Universal de 1900. Picasso acabou encontrando-se com amigos espanhóis que viviam no bairro boêmio de Montmartre e por lá ficou. Pouco tempo depois dividia um quarto no boulevard Voltaire com o poeta Max Jacob, naquela época tão sem recursos quanto ele. Pintava à noite, enquanto Jacob dormia. E dormia durante o dia, quando Jacob tra balhava. Nasceu ali uma forte amizade. Algumas vezes, bem-vestido e usando o pseudônimo Maxime Febur, Jacob passava pelas galerias de arte fingindo ser um rico colecionador. E logo perguntava se havia pinturas de Pablo Picasso. Diante da negativa, indignava-se com a ausência de obras daquele “gênio” da arte. A roda artística do pintor espanhol reunia nomes como os poetas Guillaume Apollinaire e André Salmon, o dramaturgo Alfred Jarry e os pintores Vlaminck e Derain. Frequentavam o Bateau Lavoir, uma casa em Montmartre, misto de ateliê, residência e ponto de encontro, onde se di vertiam em noites regadas a álcool, haxixe e ópio. A fase “Montmartre” de Picasso seria uma entre tantas outras, mas naquele ambiente, em torno de 1907, ele começou seus experimentos com um novo tipo de composição, que logo ganharia o nome de cubismo. Considerada o marco inicial do movimento, a tela Les demoiselles d ’Avignon (hoje no moma-ny) reunia cinco prostitutas com os rostos fragmentados, reduzidos a traços elementares e representados sob vários ângulos simultaneamente. Desenvolvido nos anos subsequentes por Picasso, mas também por Braque e outros pintores, o cubismo queria ir “além” do realismo, na busca da estrutura interior e dos volumes “essenciais”. Em oposição à sensualidade da linha ondulada, surgia uma pintura analítica, preocupada com a construção e o “corpo” dos objetos.
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O crítico Louis Vauxcelles escreveu num artigo, em 14 de novembro de 1908: “Braque maltrata as formas, reduz tudo, lugares, figuras, casas, a esquemas geométricos, a cubos”. E assim o movimento ganhou seu nome. Importante na inspiração formal para o cubismo, a arte africana, que se via nos museus de etnografia surgidos no século xix, pouco a pouco conquistava projeção e começava a ser comercializada em alguns recantos de Paris. Reza a lenda que Vlaminck, por volta de 1907, encontrou uma escultura negra que o impressionou. Encantado, levou-a ao estúdio de Derain, para mostrá-la ao amigo. “É quase tão linda como a Vênus de Milo!”, disse. “É tão linda quanto”, respondeu Derain, sem conseguir chegar a um acordo, os dois questionaram Picasso, que por sua vez sentenciou: “Vocês estão enganados: é muito mais bonita!”. 56 •
Em 1912, o modernismo em Paris era um fato não apenas cultural, mas também comercial. Em paralelo à vida dos salões oficiais e alternativos, novos marchands assumiam papel relevante no desenvolvimento e no financiamento de novos artistas. Um dos pioneiros foi Paul Durant Ruel (1831-1922), marchand dos impressionistas. Ruel, que inovou com a organização de exposições individuais, firmava contratos de exclusividade com pintores e atendia o mercado internacional, por meio de filiais de sua galeria em diferentes cidades. Mas foi na galeria de Ambroise Vollard ( 1867-1939), na rue Lafitte, que Paris viu as primeiras individuais de Cézanne ( 1895), Picasso (1901) e Matisse (1904). Vollard comprava em quantidade, diretamente no estúdio. Não raro adquiria a produção inteira de um talento ainda por ser reconhecido.
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Daniel Kahnweiler foi, entretanto, o grande marchand dos cubistas. Abriu sua galeria em 1907, na rue Vignon, e desde o início comprou obras de Derain, Braque, Picasso, Vlaminck e Léger — que seria mais tarde importante referência para Tarsila do Amaral, futura mulher de Oswald. •
Em setembro de 1912, Oswald levou um susto. D. Inês, muito doente, pedia-lhe que voltasse o quanto antes da Europa. Depois de sete meses de vinhos, champanhes, lagostas, exposições, livrarias e aventuras sexuais, ele pegou o vapor Oceania, em Trieste. Levava a seu lado Kamiá — a quem prometera companhia mas não casamento. Ao parar na Bahia, en viou telegrama aos pais anunciando a breve chegada. Desembarcou no porto do Rio e tomou o primeiro trem para São Paulo. Soube então que sua mãe já estava morta. •
Oswald, Kamiá e seu Andrade foram morar na rua Oscar Freire, esquina com Teodoro Sampaio. O pai, desolado, passou a ocupar um quarto na casa da chácara de seus compadres Marta e Antenor. Oswald alugou um chalé, que dava para os fundos da propriedade — por onde foi aberta uma ligação. Em 1913, Kamiá ficou grávida e, em 14, nasceu José Oswald Antonio de Andrade, chamado de Nonê, o mesmo apelido de infância do pai. •
Um ano depois, quando seu Andrade claudicava nos negócios e Kamiá via minguar as atenções de seu companheiro, eis que reapareceu em São
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Paulo a menina dançarina. Ao saber do retorno, Oswald convidou-a, com a mãe, para que ficassem em sua casa. Ele, Kamiá e seu Andrade haviam se mudado para o sobrado de número 64 na rua Augusta — onde na década de 1980 funcionou o restaurante Spazio Pirandello. A partir daí, os acontecimentos se precipitaram de forma rocambolesca. A acompanhante de Landa era na verdade sua avó, Rosa Schindelar. As duas tinham viajado para a Itália com papéis forjados. A mãe da menina vivia na Alemanha, em situação difícil. Oswald conseguiu entrar em contato com ela e confirmou a história. Estabelecida a verdade, ele decidiu assumir o comando da carreira de Landa, que era agenciada pela avó. Criou o nome artístico Carmen Lídia 57 e usou seus contatos para levá-la às páginas de revistas, como a Cigarra — que saiu com foto e página inteira de entrevista. Algumas apresentações de Carmen Lídia em São Paulo foram elogiadas. Uma delas aconteceu no Conservatório Dramático, quando Olavo Bilac lançava sua campanha a favor do alistamento militar obrigatório. Oswald participara da organização da visita, mas ainda desconhecia Tarsila do Amaral, que estava na plateia e gostou da dançarina. Entre 1924 e 1929, os dois viveriam como uma espécie de casal 20 do modernismo brasileiro.58 •
Para surpresa de Oswald, Landa e sua avó foram para o Rio, onde se hospedaram numa pensão. Rosa escreveu-lhe uma carta contando que a neta estudava dança e se apresentava com sucesso na cidade. Certo de que ela queria afastá-lo de Landa, Oswald tentou encontrá-las. Revirou a
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cidade em vão. Chegou a ter um entrevero com o escritor Coelho Neto, que, segundo soube, ajudava a ocultá-las. Transtornado com a situação, sentindo-se traído e humilhado, passou a viver, entre porres de uísque, na ponte ferroviária São Paulo-Rio, mas sem conseguir tirar a avó de cena e ficar com Landa, como queria. Planejou, então, simular um rapto. Montaria uma cena de filmagem na praia do Flamengo, frequentada pela garota, que se hospedava no Catete. Quando ela viesse para o banho, seria apanhada. A trama exigia um elenco de farsantes, que seria preenchido pelos amigos Guilherme de Almeida, Vicente Rao e Ignácio da Costa Ferreira, o ilustrador Ferrignac. Mas eles não toparam. Tampouco Landa, consultada por telefone pelo próprio Oswald. Fracassada a trama, os amigos ad vogados sugeriram que Landa recorresse à Justiça para se libertar da avó — que a explorava sexualmente, obrigando-a a se prostituir. Dessa vez, ela topou. Foi tudo planejado para que depois de uma apresentação em São Paulo, com Sousa Lima ao piano, a garota fosse diretamente ao fórum. O processo correu e Landa foi posta sob tutela do juiz Amadeu Amaral, que determinou seu internamento num colégio de freiras, no bairro de Santana, em São Paulo. Livre da avó “caftina”, o amante obcecado viu uma oportunidade para pedir ao tutor a mão da moça em casamento — o que lhe foi negado. Rumores sobre uma suposta gravidez de Landa esquentaram o caso, que explodiu na imprensa. Em São Paulo, o jornal O Parafuso, de Babi de Andrade, com quem Oswald tivera uma desavença quase sangrenta ao se reapropriar de O Pirralho, fez sensacionalismo, com manchetes em série. No Rio, A Gazeta de Notícias também entrou na história e deu foto do apaixonado na capa.59 O gossip sobre a gravidez traduziu-se em pressões para que a dançarina fosse retirada da guarda das religiosas e transferida para um asilo no
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Ipiranga, chamado Bom Pastor, onde se recolhiam prostitutas. Revoltado, Oswald fez uma visita intempestiva ao arcebispo de São Paulo, amigo de seu pai, para avisar que, se a transferência se consumasse, ele buscaria a moça no asilo e se casaria com ela. A situação o torturava. Tomado pelo ciúme, um dia pegou um re vólver, que comprara na Bélgica, e foi ao colégio de Santana para tirar a limpo a história da gravidez. A intenção, caso as suspeitas se confirmassem, era matar Carmen Lídia e se suicidar. Parou nas redondezas e, com a ajuda de uma freira, conseguiu um encontro. Soube, aliviado, que era tudo mentira. O alívio, porém, não bastava para resolver o imbróglio. A paixão de Oswald permanecia encalacrada e a ideia do suicídio continuou a rondálo: “Cheguei a ir ver no caixão o corpo de um suicida. Filho do político Al buquerque Lins. Para olhar como eu ficaria”. Mas depois, no dia a dia, “tudo se dissolveu”.
11 ISADORA E O FURACÃO
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Maria de Lourdes Castro, a Miss Cyclone, em caricatura assinada por Jeroly no erfeito cozinheiro das almas deste mundo, diário mantido pelos frequentadores da garçonnière de Oswald de Andrade.
Em 1916, Oswald reiniciou o curso de direito e aceitou um convite para trabalhar na edição paulista do Jornal do Comércio. O secretário de redação do jornal era Mário Guastini — que tempos depois seria um dos críticos do “futurismo” paulista. Nesse mesmo ano, conheceu Isadora Duncan, no Rio, onde estava com Guilherme de Almeida para divulgar as peças que tinham acabado de publicar. A diva proto-hippie, que revolucionou a dança com pés descalços e gestualidade espontânea, estava no mesmo hotel em que ele e o amigo se hospedavam. Conheceram-se casualmente e Oswald prometeu visitá-la em São Paulo. Um detalhe: a extensão da turnê à capital paulista contou com a ajuda de Anita Malfatti. Ao saber da passagem da dançarina pelo Rio, ela entrou em contato com René Thiollier e sugeriu que se oferecesse o Municipal à estrela americana, que conhecera em Nova York. Ao que se sabe, Oswald não foi ver Isadora Duncan no Rio. Mas Di Cavalcanti foi. Em companhia de amigos estudantes, visitou, depois do espetáculo, o camarim da dançarina, que recebia seus admiradores com a túnica de gaze usada no palco. Em suas memórias, Di descreveu com característico machismo a aparência de Duncan. Aos 39 anos, ela seria uma mulher de “carnes flácidas”, 60 que deixava entrever sob a roupa vaporosa uma nudez “feia e espetacular”. O artista beijou a mão da diva e se dissolveu no burburinho do camarim repleto — onde num canto se via, sentado, o cronista João do Rio, com ar displicente, a citar Oscar Wilde.
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O encontro de Oswald com Isadora Duncan — episódio que virou filme do cineasta Júlio Bressane — foi rememorado no Homem sem profissão. Diz o escritor que, sem avisar, chegou engravatado ao hotel da Rôtisserie Sportsman às cinco da tarde para uma visita: “Hora elegante, hora do chá inglês que o mundo adotou, hora clara em que estão presos todos os demônios e atadas as mãos das feiticeiras e dos elfos”. O porteiro ligou para o apartamento e o anunciou. Pouco depois, saiu do elevador um moço alto e loiro. Era o pianista Dumesnil, que acompanhava Duncan em suas turnês. Avisou ao visitante, em francês, que madame não poderia recebê-lo naquele momento, mas o esperava em seus aposentos após o espetáculo. Na divertida reconstituição do encontro, feita quarenta anos mais tarde, quando tudo já ganhava ares de mito, Oswald diz que o inesperado convite o colocou “dentro de um problema terrível”: Como? Visitar uma mulher extraordinária a horas mortas num hotel, depois do espetáculo. Isso é o cúmulo da falta de educação, da falta de linha, da ausência de escrúpulos. […] Eu, aquele menino gordinho que saiu virgem das saias maternas aos vinte anos, sobrinho do tio Herculano e ex-redator do Diário Popular? […] O próprio porteiro, tão amável agora na sua sobrecasaca de botões dourados vai me agarrar pela nuca, levando-me à porta aos pontapés. 61
Surpreso e um pouco assustado com as implicações do convite, foi ao Municipal assistir ao espetáculo: O pano se levantou e eu vi a Grécia, não a Grécia livresca dos sonetões de Bilac, que toda uma subliteratura ocidental vazava para a colônia
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inerme. Eu vi de fato a Grécia. E a Grécia era uma criança seminua que colhia pedrinhas nos atalhos, conchas nas praias e com elas dançava. O cenário único duma só cor abria-se para vinte e cinco séculos de mar, de montanhas e de céu.
Encerrada a apresentação, cerrada a cortina, era hora de decidir. O convite teria sido pra valer? Se fosse, o que faria na companhia daquela mulher? “Quem era eu diante da deidade boêmia e esvoaçante?”, perguntava-se. Quem era ele, “o filho bem-educado de dona Inês, o rapaz que tinha família em Caxambu, matriculado na Lógica do padre Sentroul e no Direito Romano do professor Porchat, para suportar aquele sopro de tempestade shakespeariana”? Angustiado, zanzou pela cidade até tomar coragem de se apresentar na portaria da Rôtisserie Sportsman. Madame pedia que subisse, disselhe o porteiro. Medo. Torcia para que a dançarina já estivesse dormindo, assim poderia escapar discretamente. Mas o quarto estava aceso. Dumesnil abriu-lhe a porta. Isadora Duncan estava acordada. Oswald cumprimentou-os e sentou-se. Viu então a mesa posta com dois lugares e uma garrafa de champanhe enfiada num balde de gelo. Perguntou-se quem seria o feliz conviva. “Com certeza o próprio pianista”, imaginou. Quando estava pronto para se despedir e fugir do desconforto, Dumesnil levantou-se, deu adeus e saiu. Ele e ela ficaram a sós. Sentaram-se à mesa e ela chamou o garçom para servi-los. Depois, levantou-se, ligou um gramofone e pôs-se a dançar, com um xale, na penumbra do quarto. Fascinado e embaraçado, Oswald tirou do bolso uma fotografia de sua querida Landa e a mostrou à anfitriã, imaginando que Isadora pudesse ajudá-la a livrar-se da avó e se realizar como grande bailarina. Duncan não gostou da conversa, disse que como Landa havia dez mil pelo mundo. A gafe, conveniente ou não, estragou tudo. Só havia uma coisa a fazer —
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sair depressa. Foi o que fez, acompanhado pelas “taras da negatividade e do fracasso”. Apesar da rata, tornaram-se amigos naqueles dias: “Andávamos de carro por São Paulo inteiro. Ela me fazia descer para pedir flores estranhas nos jardins das casas. Fomos a Osasco e, num pôr de sol entre árvores, ela dançou para mim, quase nua”. •
Anos se passaram e, na década de 1940, casado com Maria Antonieta d’Alkmin, Oswald contratou uma professora de balé para dar aulas à filha Marília. A professora, madame Carmen Brandão, era Carmen Lídia — sua inesquecível Landa. •
De 1912 a 1916, quando perdeu a mãe, tornou-se pai, rompeu com Kamiá, quase enlouqueceu com a bailarina adolescente e tremeu diante de Isadora Duncan, Oswald reassumiu O Pirralho, trabalhou para outras publicações, participou dos salões de Freitas Valle e conseguiu que Leur âme tivesse um ato encenado, no Municipal, pelos atores franceses Suzane Deprès e Aurélien Lugné-Poe, que visitavam a cidade. Na viagem à Europa, ele havia lido o “Manifesto Futurista”, de Marinetti, presenciado o cubismo e se entusiasmado com a eleição do francês Paul Fort para príncipe dos poetas. A boa notícia, no caso, era que o eleito praticava o verso livre — o que aumentava a chance de Oswald mostrar que sua assumida dificuldade de rimar e metrificar poderia provar-se atual e poética. Pouco depois de voltar a São Paulo, com a barba aloirada que deixara crescer, escreveu, sem rima e sem métrica, o que teria sido seu
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primeiro poema “modernista”. Intitulava-se “O último passeio de um tuberculoso, pela cidade, de bonde”. Para sua decepção, os amigos detestaram — e o texto foi parar no lixo.
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MUSA DA GARÇONNIÈRE
Em 1917, num almoço na casa da rua Augusta, apareceu uma estudante, prima da professora de piano de Kamiá — com quem Oswald, naquele momento, mantinha relações não mais que amigáveis. Com dezesseis ou dezessete anos, a moça tinha aparência “esquálida e dramática, com uma mecha de cabelo na testa”. Chamava-se Maria de Lourdes Castro. Era órfã de pai, a mãe morava em Cravinhos e ela vivia em São Paulo com a prima. Estudava na Escola Normal Caetano de Campos, gostava de escrever, tinha ideias liberais e comportamentos rebeldes, num tempo em que eram escassas as perspectivas femininas fora da vida certinha, matrimonial e doméstica. Maria de Lourdes era o tipo da garota por quem Oswald se interessaria no ato. Ao aproximar-se dela, no primeiro encontro, já sugeriu, com cinismo, que fizessem sexo. Recebeu um inesperado sim — “mas sem premeditação, quando nos encontrarmos um dia”, disse ela. Ele perguntou o que ela pensava dos homens. “Uns canalhas”, respondeu. E as mulheres? “Também!” Em favor de sua liberdade, o escritor alugou naquela época um apartamento na rua Líbero Badaró, 67, terceiro andar, para servir de garçonnière — um lugar de encontros amorosos e reuniões entre amigos. Ele e a normalista, que passou a chamar de Deisi, iniciaram um romance, e ela
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logo foi eleita a musa da turma que se encontrava no local, formada por Guilherme de Almeida, Leo Vaz, Ferrignac, Vicente Rao, Edmundo Amaral, Sarti Prado, Pedro Rodrigues de Almeida e Monteiro Lobato. Oswald já tinha, portanto, sua garçonnière quando, em finais de 1917, conheceu Mário de Andrade no Conservatório e foi visitar, na mesma rua Líbero Badaró, a exposição de Anita Malfatti. Lobato, que frequentava as noitadas no apartamento, continuou a fazê-lo durante o ano seguinte — na sequência, portanto, da desavença pública com o amigo “elegante, apesar de gordo” sobre a pintura moderna de Anita Malfatti. Embora nunca tenha reconsiderado sua crítica, num artigo que publicaria em 1926, no Diário da Noite, ele diria que o movimento modernista, uma “brincadeira de crianças inteligentes”, valeria, ao longo do tempo, por um Sete de Setembro. 62 •
Em 1918, Oswald começou a compor com os amigos da garçonnière uma espécie de diário coletivo, que se chamava — por sugestão de Rodrigues de Almeida — O perfeito cozinheiro das almas deste mundo… Era um cadernão de duzentas páginas, escrito com tinta lilás, verde e vermelha, no qual se adicionavam tiradas líricas, pastiches, poemas sintéticos, trocadilhos, carimbos, xingamentos, gozações, caricaturas etc. Ainda que tivesse nascido apenas para consumo interno, O perfeito cozinheiro constituiu-se, de fato, numa obra experimental, publicada e estudada. Nela, vida e arte se espelham e se comentam numa narrativa fragmentária, paródica, metalinguística, que prefigura livros da fase mais radical de Oswald de Andrade. Como assinalou Mário da Silva Brito na introdução da edição fac-similar do livro,63 O perfeito cozinheiro, mais que um diário, seria um
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“desordenado romance” por onde flui uma história de amor. “Um romance de nova estrutura, de técnica inusitada, de um surrealismo natural e espontâneo, em que estão o clima e as personagens que vão gerar e po voar Os condenados (1922), Memórias sentimentais de João Miramar (1924) e Serafim Ponte Grande (1933).” Espécie de “livro-caixa-de-surpresas”, nas palavras de Haroldo de Campos, costurado pela “pré-Pagu da Idade Boêmia de Oswald de Andrade”, O perfeito cozinheiro marcaria aquela época em que o escritor ainda “acreditava que o contrário do burguês seria o boêmio”.64 A rainha desse caleidoscópio, que misturava ousadias já quase dadaístas com coqueteria belle époque,65 não seria outra senão Deisi, a jovem escritora enigmática, inteligente e transgressiva que hipnotizava os moços boêmios e sabichões. Todos no Perfeito cozinheiro tinham seus pseudônimos. Se Deisi também era Tufão, Tufãozinho e Miss Cyclone 66 (com a tônica na primeira sílaba), Oswald era Garoa e Miramar. Tufão passava, destroçava corações e desaparecia. Onde teria se metido? Estava de volta a Cravinhos. Uma vez soube-se que se encontrava com um tipo estranho no Brás. Numa outra, Miramar seguiu-a pelas ruas do centro até vê-la entrar numa “pensão de rapazes”. •
O caso com Deisi foi mais um turbilhão na vida afetiva — e criativa — de Oswald. Acabou de maneira trágica, em 1919. Depois de ter sido vítima da pandemia de gripe espanhola que chegou ao país em finais de 1918, ela ficou grávida. Em dúvida sobre a paternidade, os dois decidiram pelo aborto. Ele providenciou a parteira — a mesma que cuidara de Kamiá no nascimento de Nonê. Atendida em condições precárias, Deisi sofreu uma hemorragia e, a seguir, contraiu
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tuberculose. Aflito e culpado, vendo-a definhar, Miramar casou-se com Miss Cyclone in extremis. Monteiro Lobato, Ferrignac e Guilherme de Almeida foram as testemunhas da cerimônia. Em 24 de agosto de 1919, Maria de Lourdes morreu. Foi sepultada no Cemitério da Consolação, no jazigo da família de d. Inês. Meses antes, em fevereiro, Oswald tinha perdido seu pai.
12 JUCA E MIRAMAR
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As sedes do jornal O Estado de S. Paulo e do Correio Paulistano, no centro de São Paulo. Menotti del Picchia era editor político do Correio, o órgão oficial do Partido Republicano Paulista.
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Menotti del Picchia lembra-se de ter conhecido Oswald de Andrade no Hotel Migliori, nos tempos em que vivia entre interior, Santos e São Paulo. Depois de formado pela Faculdade de Direito, ele mudou-se para Itapira, sua cidade natal, onde advogou e fundou o jornal O Grito.67 Em 1918, convidado pelo secretário de redação do Correio Paulistano a assumir o posto de redator político, deixou mulher e filhos no interior e transferiu-se para a capital. A proposta, contudo, não se concretizou e, para minimizar o desastre, Fonseca intercedeu para que Menotti chefiasse a Tribuna de Santos. O escritor não conhecia a cidade e ignorava a existência da Tribuna, mas precisava do emprego e aceitou o cargo. Gostou do jornal e fez amizades nas rodas literárias. Era a Santos de Vicente de Carvalho — que havia ignorado os sonetos enviados por Mário de Andrade pelo correio. Também Menotti era fã do “poeta do mar”, e remeteu-lhe duas obras lançadas em 1917, mesmo ano em que Mário publicou Há uma gota de sangue em cada poema. A primeira foi o poema Moisés, que Vicente de Carvalho agradeceu de maneira protocolar. A segunda, Juca Mulato, mereceu um cartão em que agradecia os “versos borbulhantes de inspiração”. Ainda em 1918, Menotti deixou Santos, mais uma vez a convite de Fonseca, para comandar a redação da Gazeta, que fora comprada por Cásper Líbero. Ao mesmo tempo começou a escrever crônicas sobre temas sociais e culturais para o Correio Paulistano, com o pseudônimo Hélios.
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A Gazeta, espécie de linha auxiliar do Correio na defesa dos interesses do prp, cresceu com a nova direção. Cásper Líbero percebeu a maré ascendente dos esportes e o jornal passou a cobrir essa área como nenhum outro. As vendas aumentaram e Menotti logo se viu convocado a ocupar o posto para o qual fora anteriormente convidado. Exercia, enfim, a função de redator político do órgão oficial do partido da burguesia paulista. Discutiria as estratégias diretamente com o governador, no Palácio dos Campos Elíseos, e redigiria as notas e editoriais políticos do jornal. No xadrez da grande imprensa paulista daquele período, o Correio, com ajuda da Gazeta, defendia o governo e combatia o republicanismo oposicionista representado pelo Estado, cuja independência contava com a simpatia do Diário Popular, de José Maria Lisboa. Usando a imagem de uma batalha naval, Menotti descreveu assim as relações entre os diários da época: Dois jornais polarizavam então a opinião: o Correio Paulistano e O Estado de S. Paulo. Eram como duas capitânias de duas esquadras em combate, tremendos couraçados, tendo cada um seus ágeis naviosauxiliares. O Correio Paulistano, órgão oficial do prp, mantinha ciosamente nas suas colunas uma quase majestática dignidade, mas delegava a obra de provocação e reconhecimento à Gazeta e à Plateia, enquanto, sem uma vinculação política, mas por suas afinidades de independência à influência do governo, movia-se nas águas do Estado o corajoso e prestigioso Diário Popular — o “jornal das cozinheiras” — como o apelidavam, mas de forte repercussão na opinião pública, respeitado e temido pelo governo.68
A criação do Estado, antiga Província de S. Paulo, datava de 1875. Fora iniciativa de um grupo de dezesseis pessoas, reunidas por Manoel
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Ferraz de Campos Salles e Américo Brasiliense, com o propósito de defender ideias republicanas e abolicionistas. Em 1902, Julio Mesquita, genro de José Alves de Cerqueira César, um dos dezesseis fundadores, assumiu o controle do jornal. Como nove entre dez personagens da elite, era formado pela Faculdade de Direito e, republicano histórico, participava ativamente da vida política paulista. Em julho de 1901, pouco antes de Mesquita tornar-se dono do jornal, Cerqueira César, Prudente de Moraes e ele romperam com o presidente Campos Salles e o governador Rodrigues Alves, gerando uma dissidência republicana. As sedes dos principais diários paulistas concentravam-se no Triângulo, onde se acotovelava a São Paulo “europeia” dos cafés, confeitarias, livrarias, prostíbulos e comércio variado. Em finais da década de 1910, o Estado fizera uma série de investimentos, com a aquisição de máquinas e de novas áreas para redação e gráfica — unidas por um moderno tubo pneumático, que passava sob a rua do Rosário e a ladeira Geral, para en viar originais e provas às oficinas, situadas a 250 metros de distância. Em 1916, o jornal imprimia 45 mil exemplares por dia, número que chegou a 52 mil em 17 e caiu a 25 mil em 18, em razão de restrições à importação de papel agravadas pela entrada do Brasil na guerra. O conflito na Europa, se aguçava a curiosidade dos leitores, aumentava os custos e trazia incertezas. •
A sede do Correio Paulistano ficava quase defronte à de seu maior rival, num edifício onde se via, no térreo, um toldo anunciando a Charutaria Mimi. Fumava-se sem culpa no início do século xx.
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O hotel em que se hospedava Menotti del Picchia dava de frente para a redação da Gazeta, na Líbero Badaró — a mesma rua da garçonnière e do palacete do conde de Lara, onde Anita Malfatti montou a exposição de dezembro de 1917. Menotti conhecia Oswald pelo Pirralho e o via com desconfiança, depois de um comentário negativo que fizera sobre seu poema Moisés. Ele o teria procurado no hotel para manifestar sua aprovação e a de Deise ao Juca Mulato. O poema ganhara uma segunda edição, em 1919, sob aplausos de críticos e leitores. Na versão de Menotti, o contato com aquele sujeito “gordo, aloirado e extrovertido”, dotado de capacidade “quase mágica de fascinar qualquer pessoa”,69 aconteceu em 1920 e marcou o início da “conjuração renovadora”, que culminaria no “brado” de 22. De todos os modernistas, o escritor itapirense foi possivelmente o que mais se aferrou à versão insurrecional e revolucionária da Semana, à qual sempre se referiu com transbordante triunfalismo. Ao mesmo tempo, de forma ambígua e “política”, tratou muitas vezes de mostrar que o bicho futurista não seria tão brabo assim — como fez na própria conferência proferida na segunda noite do evento, ao dizer à plateia que sob a aparência de “um bando de bolchevistas das estéticas” se encontrava ali reunido um “ordeiro e pacífico bando de vanguarda”. Menotti, no segundo volume de A longa viagem, pinta-se como pioneiro inconteste do modernismo literário paulista — e pinça uma frase de Tristão de Athayde para apresentar-se à posteridade como “o homem que mudou o rumo da literatura brasileira no século xx”. Sobre o primeiro papo com Oswald, “decisivo para nossa vida literária”, afirma ter sido ele a alertar o colega para a necessidade de “fazer
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nas letras uma verdadeira revolução”. “Precisamos ser brasileiros e não europeus”, teria dito ao interlocutor, que “exultava” ao ouvi-lo, pois Oswald, embora fosse “admirador excitado de Bilac e Emílio de Meneses”, possuía “explosiva essência revolucionária”. A amizade que se iniciava no Hotel Migliori foi, sem dúvida, decisiva para o primeiro impulso do movimento modernista. A dupla destacou-se no agitprop futurista, marchando unida nas páginas dos jornais até a “insurreição intelectual” de 1922. É difícil, no entanto, imaginar que o esperto Miramar do Perfeito co zinheiro dependesse daquela conversa para abraçar ideias sobre o abrasileiramento da temática artística e perceber o desgaste da fórmula parnasiana de Meneses e Bilac — com quem, não obstante, mantinha relações amigáveis. Quando se encontraram, Oswald já havia publicado artigo em prol da arte brasileira e em defesa da pintura moderna de Anita Malfatti. Além do mais, exercitava-se naquele tempo em textos que antecipavam algumas de suas mais bem-sucedidas experiências modernistas. Em suas memórias, inéditas até 2011, o bibliófilo Rubens Borba de Moraes, que participou do grupo modernista e ajudou a organizar a Semana, afirma justamente o contrário — que Menotti foi “conquistado por Oswald de Andrade às ideias de renovação da arte e da literatura”. 70 Na visão de Borba, Menotti teria sido um “propagandista notável” e um “vendedor habilíssimo dos novos produtos da arte e da literatura moderna” — mas seus artigos nem sempre interpretavam corretamente as ideias do grupo. Citava nas suas crônicas “autores contraditórios que hurlaient d ’être ensemble” e exprimia “conceitos errados”. “Toda essa prosa flamejante afligia os verdadeiros modernistas, desesperava Mário de Andrade, fazia rir Guilherme de Almeida, assustava Sérgio Milliet.”
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Convém, de qualquer forma, considerar que as escolhas políticas de Menotti — que foi com Plínio Salgado para o integralismo, a opereta fascista tupiniquim — levaram posteriormente alguns dos “verdadeiros” modernistas a empurrá-lo, o quanto possível, para as áreas de sombra da história do movimento, que, ao longo do tempo, foi fixando seus gênios e seus degenerados. Ponderando-se os perigos desse campo minado de versões que mal dissimulam estratégias ególatras, lapsos e preconceitos ideológicos, é razoável imaginar que no encontro da dupla se instaurou uma sintonia entre moços da mesma geração com ideias e propósitos comuns. Semanas depois do encontro, Oswald levou o novo amigo à revista O Eco, editada pela Casa Edison, que distribuía pelo Brasil os primeiros discos de gramofone. Queria apresentá-lo a um conhecido a quem admirava muito. Subiram uma escada íngreme, num prédio malconservado, tam bém na Líbero Badaró, e se depararam, na pequena redação, com um homem atirado numa poltrona. Na descrição de Menotti, era “um grande moço magro, de longas pernas de gafanhoto, testa larga, queixo prognata, nariz longo e curvo, já com um início de calvície na fronte aberta na cabeça oblonga, tal qual uma praça cheia de sol”. Foi assim que o autor de Juca Mulato viu pela primeira vez Mário de Andrade. Menotti del Picchia chegou a participar de reuniões na garçonnière de Oswald e foi visitar Deisi no leito, consumida pela tuberculose. Em suas memórias, ao falar das paixões conturbadas e avassaladoras de Oswald, ele faz uma rápida comparação do perfil afetivo dos dois Andrades. Em sua opinião, era preciso rever “o fenômeno literário e humano Oswald de Andrade, com sua tão falada vida marcada por um dom-
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juanismo que muitos imaginam à Casanova”. Com a autoridade de “amigo fraterno” e de “companheiro confidencial de horas decisivas”, rechaçava a imagem de um courrer à femmes devasso e incorrigível. Oswald seria, antes de tudo, um “desajustado”, pois “órfão ainda muito jovem, rico, ansiava por uma base doméstica que ele, no fundo, invejava nos demais amigos”. Teria inveja até mesmo da vida de Mário de Andrade, “irredutível celibatário”, que encontrava na mãe e na família “aquele calor de lar” que lhe faltava. Para Menotti, se a “égide materna tornou Mário uma eterna e grande criança genial”, Oswald “procurava um lar nas amantes que colecionava”. •
O poemão sertanejo Juca Mulato apresentava uma trama universal — o amor proibido — enraizada no mundo rural paulista: é o rapaz empregado da fazenda que se apaixona pela filha do patrão. Pobre e mestiço, sabe que a relação está condenada a fracassar. Melhor calar-se e fugir. A natureza, porém, como que enciumada, pede que fique, pois ele é parte dela: E Juca ouviu a voz das coisas. Era um brado: “Queres tu nos deixar, filho desnaturado? ” E um cedro o escarneceu: “Tu não sabes, perverso, que foi de um galho meu que fizeram teu berço? E a torrente que ia rolar no abismo: “ Juca, fui eu quem deu a água para o teu batismo”.
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Uma estrela a fulgir, disse da etérea altura: “ Fui eu que iluminei a tua choça escura no dia em que nasceste. Eras franzino e doente. E teu pai te abraçou chorando de contente… — Será doutor! — a mãe disse, e teu pai, sensato: — Nosso filho será um caboclo do mato, forte como a peroba e livre como o vento! — Desde então foste nosso e, desde esse momento, nós te amamos seguindo o teu incerto trilho com carinhos de mãe que defende seu filho!” Juca olhou a floresta: os ramos, nos espaços, pareciam querer apertá-lo entre os braços! […] E Mulato parou. Do alto daquela serra, cismando, o seu olhar era vago e tristonho: “ Se minha alma surgiu para a glória do sonho, o meu braço nasceu para a faina da terra.” Reviu o cafezal, as plantas alinhadas, todo o heroico labor que se agita na empreita, palpitou na esperança imensa das floradas, pressentiu a fartura enorme da colheita… Consolou-se depois: “O Senhor jamais erra… Vai! Esquece a emoção que na alma tumultua.
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Juca Mulato volta outra vez para a terra, procura o teu amor numa alma irmã da tua.”
Juca Mulato foi concebido em Itapira, quando o autor vivia entre a advocacia, as letras e sua complicada fazenda — de onde divisava ao longe as montanhas de Minas Gerais. Em linguagem direta, fácil e expressiva, essa idealização telúrica do homem do campo, tão ao gosto do momento, fez grande sucesso. A fama do poema chegou a Portugal, onde recebeu elogios. Depois da primeira tiragem, de quinhentos exemplares, financiada por Menotti, Juca Mulato ganhou inúmeras reedições — inclusive pelas mãos de Monteiro Lobato, nosso Jeca culto e operoso. •
Manuel Bandeira, ao pé de uma carta endereçada a Mário de Andrade em fevereiro de 1923, escreveu o seguinte ps: “Diga ao Oswald de Andrade que ele é um ingrato: não me mandou Os Condenados. Diga ao Menotti que eu só o conheço pelo Juca Mulato que abomino com todas as forças da minha alma”.71
13 A REALEZA DA REPÚBLICA
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O bandeirante Domingos Jorge Velho, pintura de Benedito Calixto, de 1903, investe no mito do desbravador paulista, que também aparece na obra de Victor Brecheret e nas teses históricas de Paulo Prado.
Em maio de 1919, o Teatro Municipal apresentou ao público paulistano uma montagem sui generis da peça O contratador de diamantes, de autoria de Affonso Arinos — que morrera prematuramente em 16. Era uma espécie de drama histórico baseado na vida do rico mineiro Felis berto Caldeira Brant, descendente de nobres, que no século xviii firmou contrato com a Coroa portuguesa para explorar diamantes em Minas Gerais. Por uma série de circunstâncias, Brant, que se tornara popular e era encarado com apreensão por Lisboa, vê-se acusado de simular um improvável roubo contra si próprio, numa trama que culmina com o confisco de seus bens e sua prisão. Alguns ingredientes prometiam dar a essa encenação do mito do patriota injustiçado um sabor pitoresco. O mais exótico seria a presença no palco de figuras da alta sociedade paulista no lugar de atores profissionais. A patrocinadora da montagem, Antonieta Penteado Prado Arinos, viúva do escritor, participava do coro, e Eglantina Penteado Prado encarnava o principal personagem feminino. As duas eram irmãs de Paulo Prado. Também subiu à ribalta René Thiollier, que alguns anos depois, como vimos, seria o “empresário” da Semana de Arte Moderna. O cenário foi concebido pelo pintor Wasth Rodrigues e as famílias forneceram luxuosos objetos de cena, como peças dos tempos da mineração, móveis antigos e pratarias.
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A galeria de sobrenomes e tradições paulistas compartilhou o palco, para surpresa de alguns, com um grupo de negros provindos de Atibaia, Bragança e Juqueri, que apresentou uma congada. O contratador foi a sensação teatral do ano, mas o regionalismo e o nativismo já não eram novidade no Municipal (menos ainda em São Paulo). Em 1915, por exemplo, a montagem de Reisadas, também de Affonso Arinos, levara ao teatro o bumba meu boi e, em pessoa, o compositor Catulo da Paixão Cearense, para apresentar, pela primeira vez em São Paulo, “Luar do sertão” — que se tornaria um clássico da canção sertaneja. O próprio cinema brasileiro, em seus primeiros esforços para se estabelecer, recorreu naquela época, sobretudo a partir de 1915, a obras com forte “cor local” — levando às telas títulos como O Caçador de Esmeraldas, A Moreninha, O garimpeiro, Ubirajara, O Grito do Ipiranga etc. O caso do Contratador, entretanto, trazia algo mais, que era a fina flor da classe dirigente paulista exibindo-se na ribalta numa história em que se associava à tradição brasileira e às raízes culturais e étnicas do povo. “O que teria motivado as escolhidas famílias paulistas para que se empenhassem na montagem dessa peça?”, pergunta Carlos Eduardo Ornelas Berriel.72 Além de fatores circunstanciais, como a homenagem ao autor, parece evidente a tentativa de autovalorização da elite cafeeira, que dramatizava suas origens de “fundadora da pátria” e procurava legitimar suas ambições de liderança intelectual do país. Para Berriel, o que se anunciava no Municipal era a substituição de uma mitologia nacional por outra: “Basta de indianismo romântico! Matemos Peri! O Brasil é obra dos bandeirantes. Proclame-se o novo mito”.
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O esforço intelectual de enaltecer o passado de São Paulo, fazendo-o coincidir, em suas grandes epopeias, com os momentos decisivos da história do país, foi visível nas páginas da Revista do Brasil , editada mensalmente de 1916 a 1925. Embora lançada pelo grupo ligado ao jornal O Estado de S. Paulo, a publicação, voltada para a discussão de temas brasileiros, ficou a cargo de uma sociedade por cotas. Dividiam-se, dessa maneira, os riscos financeiros da empreitada, quando a guerra redobrava a cautela financeira. A proposta foi apresentada por Júlio de Mesquita em 1915, e consumiu um ano em contatos com possíveis colaboradores e in vestidores antes de se tornar realidade. A diretoria reunia, além de Mesquita, Luís Pereira Barreto e Alfredo Pujol — este último advogado, escritor, político do prp, amigo da mãe de Di Cavalcanti e um dos membros do futuro comitê organizador da Semana de Arte Moderna. Também participava da sociedade, como secretário, Mário Pinto Serva, que anos depois seria um dos ardorosos críticos das estripulias modernistas. A revista, com perfil cultural, dedicava-se a questões que naquele momento, como ocorrera no século xix, continuavam a apaixonar intelectuais, políticos e artistas: o que seria preciso para fazer do Brasil um país com identidade própria, capaz de superar suas deficiências e caminhar na direção das nações mais produtivas e civilizadas do mundo. Nessa linha, conseguiu atrair para suas páginas a elite pensante do país e tornar-se o principal fórum do debate de ideias. Em maio de 1918, enfrentando dificuldades financeiras, a Revista do Brasil foi adquirida por Monteiro Lobato. Depois de se desfazer de sua fazenda, o escritor dava seu primeiro passo como empresário da área editorial, no mesmo ano em que lançava Urupês. Até 1925, quando faliu, Lobato seria responsável por uma verdadeira revolução na indústria do
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livro do país, com a importação de máquinas modernas, o uso de técnicas agressivas de venda, a expansão da rede distribuidora e a elevação da qualidade gráfica dos seus produtos. A historiadora Tânia Regina de Luca, que se embrenhou nos debates promovidos pelas 113 edições da primeira fase da revista, observou que com o passar dos anos a perspectiva paulista foi se impondo. O estado, que dava exemplo de dinamismo econômico, credenciava-se, como escre veu o carioca Alceu Amoroso Lima em 1917, a assumir “a realeza na República”: Até nossos dias continuou a capital do Império, e depois da República, a ser o centro econômico e literário do Brasil. Hoje, a mesma lei histórica nos autoriza a prever que o futuro movimento intelectual no Brasil vai irradiar de São Paulo. Vivendo em pleno germinar da ideia regionalista, desfrutando a metade da fortuna nacional, possuindo uma aristocracia da terra, tendo herdado os seus filhos a altivez e o bom senso dos “paulistas” de Piratininga, prepara-se São Paulo para a realeza na República. Não é caso de invejas pequeninas, esforcemonos somente, porque o regionalismo, em vez de abafar o nacionalismo, lhe insufle novo vigor. O século xvi pertenceu a Pernambuco, o xvii à Bahia, o xviii a Minas Gerais, o xix ao Rio de Janeiro, o século xx é o século de São Paulo.73
Os representantes ilustrados da oligarquia cafeeira tratavam de revigorar e embelezar o passado paulista, associando-o ao nascimento da nação. São Paulo nos dera os bandeirantes e a vastidão do território, era a terra dos Andrada e o palco do grito da Independência, seus filhos foram republicanos de primeira hora e seus empreendedores anteciparam-se ao fim da escravidão, buscando mão de obra assalariada na Europa.
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As avaliações sobre o Brasil naquela naquela época podiam divergir, mas se encontravam no diagnóstico de que o país era jovem e imaturo. Era preciso que crescesse e amadurecesse, contudo havia dúvidas se isso seria possível. Se alguns eram benevolentes e acreditavam que o tempo sanaria todos os males, outros professavam prof essavam nossa histórica “fracassomania”. Um artigo de Mário Pinto Serva, na Revista na Revista do Brasil , exemplificava bem o tom de desalento dos pessimistas: “Um enorme torpor nos nos pesa sobre as pálpebras, nos paralisa o cérebro, nos imobiliza os membros, nos detém todos os passos”. 74 O Brasil parecia condenado “a andar na rabeira” da humanidade. O país fora o último da América a conquistar a Independência, o último a abrir os portos ao comércio estrangeiro e o último a abolir o tráfico de escravos — assim mesmo graças às pressões inglesas. “A grande lei da inércia”, dizia dizi a Serva, “domina o organismo nacional, boçaliza a nossa mente, degrada o nosso caráter.” Entre as radiografias que sondavam as profundas mazelas nacionais, uma delas sugeria a existência de uma fratura entre nossa história e nossa geografia. Enquanto a segunda impressionava pelas vastas dimensões e promessas de riquezas, a segunda era rala, desprovida de vultos e escassa de glórias. Nesse quadro, articulistas da revista convidavam os historiadores a um esforço de “ciência e arte” para produzir representações mais altivas do passado, capazes de despertar orgulho entre os jovens e transmitir confiança no amanhã. Tratava-se de reconfigurar nossa brancaleônica narrativa histórica, dotando-a de mais ordem, vigor e positividade. Mas o que ressaltar na versão otimista da história? A resposta eram episódios como a “epopeia pernambucana” da expulsão dos holandeses, a vitória do espírito nacional sobre movimentos separatistas e — por fim, mas não menos importante — as bandeiras paulistas.
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A promoção do mito dos bandeirantes, transformados em homens idealistas e empreendedores, a desbravar sertões, escavar riquezas e expandir fronteiras, foi o caminho que São Paulo encontrou para religar geografia e história. À generosidade do território passava a corresponder uma grandiosidade histórica, materializada nos feitos memoráveis daqueles homens que se lançaram do planalto paulista para dar ao Brasil contornos continentais. Não tardaria que historiadores de São Paulo, debruçados sobre a restauração do heroísmo bandeirante, trouxessem à luz estudos sobre o assunto, como fizeram Alfredo Ellis Jr., Alcântara Machado, Affonso de Taunay e Paulo Prado. Taunay, a propósito, em significativa decisão do governo do Estado, assumiu em 1917 a direção do Museu Paulista (o nome oficial do Museu do Ipiranga) com a missão de preparar a instituição para o Centenário da Independência. O que havia sido até então, na prática, um museu natural e “enciclopédico”, passaria a ganhar características de museu histórico. Em 1913, Taunay — que fora professor de Oswald de Andrade no Ginásio São Bento — já escrevia, na revista do Instituto Geográfico e Histórico de São Paulo, que a história paulista era “a própria história do Brasil”. 75 Além do descompasso entre geografia geografia e história, que suscitou a entrada em cena dos bandeirantes, duas outras questões nacionais animavam as polêmicas — o perfil étnico do povo brasileiro e a língua. No primeiro caso, numa época em que Gilberto Freyre ainda não tinha apresentado sua versão otimista da civilização lusotropical, a miscigenação era um problema quase que insolúvel. Havia dificuldades para acreditar no futuro de um país povoado por mestiços. O Jeca Tatu de Lobato surgia justamente como trágica caricatura caricatura dessa condição fracassada. Era preciso achar uma “saída honrosa” para o caboclo — e São Paulo, mais uma vez, tentava apresentar uma resposta: a incorporação de
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elementos europeus “mais evoluídos” à base étnica miscigenada, como ocorria no estado, indicava uma auspiciosa possibilidade de síntese. Ao mesmo tempo, a biologia, as teorias de Charles Charles Darwin e os conhecimentos da medicina moderna incentivavam novas abordagens, permitindo que a fatalidade étnica fosse se transformando, nos debates, em descaso social. O torpor que nos paralisava de cócoras, consumidos por vermes, passava a ser resultado de de péssimas condições de saúde. O prestígio ascendente da higiene e da eugenia dava ao Jeca Tatu uma chance de se regenerar. Monteiro Lobato logo viu a porta de saída e se engajou em campanhas em prol do saneamento básico. O autor de A de A menina do narizinho arrebitado investiu no personagem Jeca Tatuzinho e, associado ao farmacêutico Cândido Fontoura, fabricante do milagroso Biotônico, começou a entrar nos lares com a mensagem da boa saúde infantil. Por fim, São Paulo marcava presença no debate nacionalista com propostas para desatar o nó da língua, que se debatia entre as regras gramaticais lusas e a doce prosódia tropical. Nessa polêmica que, na realidade, não era nova, os puristas defendiam as normas do português culto, e seus adversários as julgavam incompatíveis com a língua falada f alada no Brasil. O fato é que predominava a subordinação aos padrões portugueses. As peças de teatro, por exemplo, respeitavam a pronúncia lisboeta, mesmo quando encenadas por atores brasileiros. Um artigo publicado em 1919 considerava lastimável essa “submissão incompreensível” e propunha que se implantasse “de vez nos nossos palcos a nossa prosódia, banindo para sempre o arremedo simiesco do acento lusitano”. Monteiro Lobato também apareceu no front no front do do abrasileiramento da língua. Apoiou iniciativas como a publicação p ublicação de dicionários de português do Brasil e elogiou montagens teatrais que dispensavam a entonação lusitana. Mais do que tudo, foi ele próprio um dos artífices dessa mudança.
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O estouro de Urupês e do Jeca, citado em discurso por Rui Barbosa, 76 deu-lhe a fama de “o mais brasileiro dos escritores brasileiros”, com um estilo pessoal que não se submetia aos ditames da antiga Metrópole. Embora se cite, com frequência, o regionalismo como um precedente menor do modernismo, não há dúvida de que Lobato e outros autores avançaram na reformulação do português brasileiro. Para a professora Tânia Regina de Luca, “a produção regionalista, com sua sintaxe e seu léxico peculiar, marcados pela oralidade, estava a meio caminho das formulações modernistas”, que seriam expressas, depois, por Mário de Andrade, o grande defensor da da “estilização culta” do falar brasileiro. Pro vocativamente, seria possível dizer que, desse ângulo, ângulo, o modernismo foi um pós-regionalismo.77 •
Em meio à onda de “paulistanidade”, que já havia estimulado tentações separatistas no final do século xix, o então prefeito Washington Luís lançou um concurso, em 1916, para que se criasse um brasão da cidade. Os vencedores foram o poeta Guilherme de Almeida juntamente com o pintor Wasth Rodrigues, com o escudo em que se vê um braço destro armado empunhando uma bandeira da Ordem de Cristo, secundado por ramos de café, como no Império, e encimado por uma coroa. O lema, em latim, non ducor, duco significa “não sou conduzido, conduzo”. O brasão, que parecia concebido para consagrar uma nova realeza em tempos republicanos, sofreu algumas alterações ao longo do tempo, mas é essencialmente o mesmo que foi oficializado em 1917.
14 EDUARDO E PAULO
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Blaise Cendrars, Paulo Prado e sua mulher, Marinette, no hotel Copacabana Palace, quatro anos depois da realização da Semana de Arte Moderna, quando o poeta vanguardista franco-suíço franco-suíço visitou o Brasil.
No dia 31 de dezembro de 1899, à espera das primeiras luzes do século xx, Eduardo Prado ofereceu um jantar em sua residência, no número 194 da Rue de Rivoli, em Paris. O apartamento era um concorrido ponto de encontro de intelectuais, políticos, artistas e homens de negócios, brasileiros e europeus, que viviam na cidade ou por lá passavam. Recebia nomes como Rui Barbosa, Rio Branco, Joaquim Nabuco e notáveis da Geração de 70 portuguesa, como o historiador Oliveira Martins e o escritor Ramalho Ortigão. Nas noites festivas, o salão, a sala de jantar e a biblioteca fervilhavam. As conversas tratavam de atualidades, atualidades, passeavam por temas literários e se acaloravam em debates sobre os destinos do Brasil, da Europa e do mundo. Havia uma “sala de fumar”, mas segundo depoimento depoi mento de Olavo Bilac, que frequentou o local, o título era “honorário”, pois se fumava em todos os aposentos. Nas reuniões em tempo de inverno, o tabaco, o acúmulo de gente e o falatório elevavam a temperatura a graus quase tropicais — até que alguém resolvesse abrir as janelas para deixar entrar o ar frio da cidade. Na última ceia dos 1800, Eduardo Prado cercou-se de gente da sua “raça e língua”, conforme anotou num diário, pouco depois de encerrada a festa. Estavam presentes amigos queridos e ilustres, como Nabuco e Eça de Queirós. Cônsul de Portugal na França naquele momento, o escritor era íntimo do “bom Prado”, como chamava o anfitrião. Dele ganhara certa vez uma
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verdadeira fauna para habitar os jardins de sua casa em Neuilly, nas redondezas de Paris. Entre galos, galinhas, pombos, peixes, tartarugas e serpentes reinava um papagaio, que sabia repetir “oui, oui ”. O autor de Primo Basílio inspirou-se no amigo brasileiro para criar o personagem Jacinto de Thormes, de A cidade e as serras. Eduardo Prado era o filho caçula de d. Veridiana Prado, mulher lendária, que animou memorável salão político e cultural no palacete erguido na rua que hoje tem seu nome, no bairro de Higienópolis. A aventura dos Prado coincidia com a história da prosperidade paulista e do esplendor da cultura cafeeira. O clã não era apenas um dos maiores produtores de café do mundo. Suas atividades se estendiam ao comércio, às finanças, à indústria, às ferrovias e, como não poderia deixar de ser, à vida política. •
O primeiro membro da família Prado a desembarcar no Brasil partiu de Portugal, no início do século xviii, movido pelo sonho de descobrir ouro. Chamava-se Antônio, e, depois de se estabelecer como comerciante e pequeno proprietário de terra no interior de São Paulo, foi garimpar pelo sertão de Goiás. Não se sabe se a mineração deu os frutos esperados, mas é certo que ele reuniu recursos, casou-se duas vezes e teve seis filhos. Um deles, Martinho, que viveu de 1722 a 1770, morou em Jundiaí, onde se tornou juiz, vereador e capitão-mor. Era um monarquista conservador, empenhado em expandir suas atividades econômicas. Martinho foi o pai do segundo Antônio da Silva Prado, homem que fornecia animais, produtos agrícolas e empréstimos para a sociedade paulista. Casou-se com uma mulher chamada Ana Vicência Rodrigues de Almeida, filha de um tenente português que havia enriquecido no Brasil. Educada pelo pai
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para cuidar dos negócios, ficou viúva depois de sete anos de casada e resolveu a situação de maneira prática: uniu-se em matrimônio ao cunhado Eleutério Prado, dono de uma fazenda de cana-de-açúcar. Ana Vicência foi a mãe do terceiro Antônio da Silva Prado, que levou o sobrenome da família ao baronato do Império, em 1848, ao receber de d. Pedro ii o título de barão de Iguape. Comerciante, fazendeiro e negociante de gado, já tinha hospedado d. Pedro i em sua casa por ocasião do episódio que cercara o “Grito do Ipiranga”. O quarto Antônio da Silva Prado, filho do barão, irmão de Eduardo e pai de Paulo Prado, foi empresário e homem público de grande influência sobre os destinos de São Paulo e do país. Formado em direito, com aperfeiçoamento na França, foi deputado pela então província paulista e conselheiro do Império, presente nos debates e articulações que levaram à abolição da escravatura. Na República, o conselheiro Prado ligou-se ao prp e foi prefeito de São Paulo de 1899 a 1911, período em que a cidade se modernizou e sofreu importantes transformações urbanísticas. Várzeas foram aterradas, surgiram novas vias, jardins e edificações — entre elas o Teatro Municipal. Longevo, o conselheiro Prado viveu de 1840 a 1929.
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NABUCO E O JOVEM GRAÇA
Joaquim Nabuco chegou ao apartamento de Eduardo Prado na companhia de um afável jovem de olhos claros, com quem mantinha relações de amizade temperadas por sentimentos paternais. Chamava-se Graça Aranha, era quase vinte anos mais novo que Nabuco, professava ideias anarquistas e humanistas, e trabalhava como seu secretário numa missão diplomática do governo brasileiro. Em maio de 1899, os dois haviam deixado o Rio de Janeiro com a espinhosa tarefa de representar o Brasil numa disputa territorial com a Inglaterra, que envolvia uma área de fronteira com o Suriname, na Floresta Amazônica. Para Nabuco, monarquista ferrenho, a tarefa tinha sabor especial, pois era a primeira vez que aceitava um convite — no caso, do chanceler Rio Branco — para servir oficialmente ao regime republicano. Graça, bacharel em direito pelas escolas do Recife e de São Paulo, realizava o sonho de conhecer a Europa, onde planejava terminar seu primeiro romance, Canaã. Embora ainda não tivesse publicado nenhum livro, era membro fundador da Academia Brasileira de Letras — assim como Nabuco e Eduardo. Inaugurada em 1897, a abl nasceu de uma roda de intelectuais e escritores que se reunia em torno da Revista Brasileira, no Rio, liderada
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por José Veríssimo. Graça era naquela época um moço animado, com ideais reformistas, discípulo de Tobias Barreto, que frequentava o grupo da revista. Já tinha conquistado seu lugar na capital federal — advogava, publicava artigos e casara-se com a filha do conselheiro do Império José Bento de Araujo, político que comandou as províncias do Maranhão, de Santa Catarina e do Rio de Janeiro. Não foi muito fácil para os fundadores da Academia encontrar os quarenta nomes necessários para imitar o modelo francês. Apoiado por Nabuco e convidado por Machado de Assis a ser um dos nossos primeiros “imortais”, registre-se que de pronto Graça Aranha recusou. Só veio a ceder depois, numa carta em que creditava a mudança de atitude à amizade que o unia ao autor de Dom Casmurro — cujas provas, aliás, conseguiria ler em primeira mão, ali mesmo em Paris, onde o livro estava sendo impresso naquele ano de 1899. •
O dia 31 de dezembro caiu num domingo, o que levava o novo século a ser inaugurado numa segunda-feira. Mas seria mesmo o novo século que chegava? Em Paris, discutia-se o problema. Alguns insistiam, não sem razão, que o século xx só nasceria na passagem de 1900 para 1901. Mas como ignorar a magia do número? Era a aproximação de 1900 que a todos fascinava. Para comemorar a data, restaurantes, bares e casas de espetáculo prepararam atrações especiais em Paris, como o cabaré Folies Bergère, que anunciou três noites com Carolina Otero, dançarina espanhola, espécie de mulher-mito da época, cortejada por príncipes e reis. Entre os espetáculos apresentados na noite do dia 31 — era hábito ir ao teatro antes da ceia —, a Dama das Camélias, com Sarah Bernhardt, prometia ser dos mais
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concorridos. O que não se imaginava é que, ao deixar sua casa, a diva fosse sentir uma indisposição e cancelar a apresentação em cima da hora. No raiar de 1900, a França era um país mais populoso que o Brasil, com 38 milhões de habitantes — dos quais 2,5 milhões viviam na movimentada capital do século xix, iluminada por 350 mil lâmpadas elétricas. O grande tema político do país naqueles dias era a trama em que fora envolvido o capitão Alfred Dreyfus, judeu francês de origem alsaciana, acusado, em 1894, de ter fornecido documentos secretos aos alemães. O caso despertava paixões e atraía a atenção da opinião pública internacional. Condenado à prisão perpétua por traição, Dreyfus fora deportado para a ilha do Diabo, na Guiana Francesa. Convicta do equívoco, a família continuou tentando, por todos os meios, provar sua inocência. Em 1896, o chefe da contraespionagem, Georges Picquart, constatou que o verdadeiro traidor era o comandante Ferdinand Walsin Esterhazy — mas mesmo assim o estado-maior se recusou a voltar atrás. Em 1898, o escritor Émile Zola publicou seu célebre “J’accuse” e, no ano seguinte, o primeiro julgamento de Dreyfus foi, enfim, anulado. No entanto, para desespero de seus defensores, o segundo júri o condenou a trabalhos forçados. Só em 1906 sua inocência seria oficialmente reconhecida. Graça Aranha foi um fervoroso partidário de Dreyfus. Logo depois de sua chegada a Paris, escreveu uma carta ao amigo José Veríssimo para contar que havia participado de uma manifestação socialista de “formidável entusiasmo”. Dizia que tinha tentado, em vão, ir a Rennes para assistir ao segundo julgamento do capitão. De acordo com seu relato, todos os membros da missão diplomática brasileira ficaram chocados com a segunda condenação. “A nossa comoção é imensa.” O caso também
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repercutiu no Brasil — e Rui Barbosa, na época exilado, foi um dos primeiros homens públicos estrangeiros a se manifestar a favor de Dreyfus. •
Fez frio e choveu em Paris no último dia do século. O jantar transcorreu sem incidentes, e Nabuco e Graça partiram mais cedo para comemorar a data com suas famílias. Encerradas as despedidas, o dono da casa soube por um criado que um pesado aguaceiro havia caído pelo lado oeste da cidade, em meio a uma tempestade elétrica. “Foi portanto entre raios e trovões que apontou para Paris o século xx. Funesto agouro”, anotou em seu diário. •
Homem muito bem informado, Eduardo Prado usava suas relações, amplas e influentes, em favor dos empreendimentos da família e dos interesses do Brasil. Era sócio e colaborador de jornais no Rio e em São Paulo. Escrevia artigos e mandava notícias da Europa — onde também colaborava em títulos importantes, como os britânicos Financial Times e The Economist . Colecionador de arte, apoiava artistas e manifestações culturais brasileiras. Foi um dos patrocinadores da representação do país na Exposição Universal, inaugurada em Paris, em 1889 — quando os franceses apresentaram ao mundo a torre Eiffel. O pavilhão nacional, com uma chamativa cúpula envidraçada a quarenta metros de altura, abrigava enormes telas de Estevão da Silva, com frutas tropicais, e seis estátuas gigantescas que representavam nossos
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rios. Servia-se café ao lado e “numa enorme bacia flutuava, romanticamente, uma típica vitória-régia”.78 À diferença de outros membros de sua família, Eduardo, como Nabuco, era partidário da monarquia parlamentarista à moda inglesa e adversário da República. Tão logo Deodoro ergueu sua espada, voltou a São Paulo para com bater o regime. Atacou ferozmente a nova ordem e escreveu um livro, A ilusão americana, que teve todos os exemplares recolhidos. Perseguido, com prisão decretada pelo governo federal, refugiou-se pelos sertões, antes de conseguir retornar a Paris. Já cansado do combate político, dedicava-se, naquela virada do século, à sua paixão pela história do Brasil. Uma síntese de suas teses sobre a formação brasileira e paulista foi apresentada no dia 20 de agosto de 1896, na Faculdade de Direito, quando ele proferiu a segunda das Conferências Preparatórias do Tricentenário do Padre José de Anchieta. 79 Ao diferenciar a colonização lusitana da inglesa, o conferencista sublinhou o fato de os portugueses serem os europeus que “mais e melhor se aliam a diferentes raças”. Contra os que viam na miscigenação um fator negativo, Eduardo preferia exaltar as qualidades de um tipo específico de mestiço — o filho do português e do índio “chamado desprezivelmente mameluco, que descobriu este grande país”. Nessa fusão inter-racial, o branco entrava com “o cérebro mais desenvolvido, que se reproduz no seu descendente”, e o nativo, com a “agudeza da sensibilidade dos seus sentidos e a agilidade elástica dos seus músculos”. O mameluco — que era, afinal, a pujante “raça” do bandeirante — não teria evoluído sem a principal obra dos missionários jesuítas, a seu ver, a fundação da cidade de São Paulo na região do planalto, de clima mais ameno e isolada do mar. Na praia, em Santos ou São Vicente, os forasteiros e aventureiros exerceriam um papel “corruptor e fatal” — e a
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temperatura tórrida não permitiria que a “raça europeia” medrasse na mistura. O esquema apresentado refletia ideias de Oliveira Martins, que conclamava seus patrícios a estabelecer colônias nos planaltos africanos com o intuito de repetir a experiência paulista: “Tivéssemos tido outro São Paulo e criaríamos em África outro Brasil”. Martins foi um dos responsá veis pela ideia de que as populações brasileiras do Norte e do Sul são diferentes — com vantagem para a sulina. Uma de suas máximas — “o espírito aventureiro do paulista foi a primeira alma da nação brasileira” — foi adotada como uma espécie de bordão da elite cafeicultora ilustrada. Em seus esforços historiográficos, Eduardo, com o auxílio de Capistrano de Abreu, aprofundou-se em estudos sobre a Inquisição e duas de suas vítimas, os padres Antônio Vieira e Manuel de Moraes. Segundo relatou ao mestre cearense, faltava pouco para terminar o trabalho acerca de Vieira. Mas, depois da agourenta e tempestuosa passagem de século em Paris, o “bom Prado” perdeu o amigo Eça, em agosto de 1900. Deprimido, mudou-se para o Brasil — onde acabou morrendo, em 1901, com 41 anos de idade. Seus escritos sobre Vieira nunca foram encontrados.
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HERDEIRO INTELECTUAL
Paulo Prado, o “verdadeiro fautor” da Semana, nas palavras de Mário de Andrade, foi o herdeiro intelectual do tio, cujas ideias desenvolveu, tam bém em diálogo com Capistrano de Abreu — figura que os modernistas conheceram em seu palacete, em Higienópolis. Nascido em maio de 1869, Paulo concluiu parte de seus estudos no Rio, onde seu pai exercia as funções de deputado e membro do Ministério imperial. Iniciou a Faculdade de Direito em 1887, na mesma turma de Affonso Arinos, e formou-se em 1889. No ano seguinte viajou para a Europa, onde viveu por uma temporada. Em Paris, hospedou-se no apartamento do tio, com quem viajou, em companhia do diplomata Domício da Gama e de Olavo Bilac, até Rouen, para participar das homenagens aos dez anos da morte de Gustave Flaubert. Também conheceu Eça de Queirós, que com ele se encantou. Circulou por diversas capitais e países — com direito a um périplo de veleiro pela Grécia, que repetia o roteiro percorrido por Lord Byron. 80 Após a morte do tio Eduardo, sua vida voltou-se para as atividades de cafeicultor, numa época em que cerca de 80% do café consumido no mundo era do Brasil — e 90% da produção nacional provinha de São Paulo. Durante o período da guerra, Paulo Prado desdobrou-se na tentativa de superar os obstáculos à exportação do produto para a Europa. Em 1917, com apoio do poeta Paul Claudel, que trabalhava na embaixada
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francesa, no Rio, promoveu o Convênio Comercial Franco-Brasileiro, pelo qual o país vendeu à França 2 milhões de sacas de café numa transação que envolvia o arrendamento de navios alemães apreendidos na costa brasileira. Os pagamentos eram feitos sem a necessidade de dinheiro sonante, por meio de mecanismos como a compensação da dívida brasileira na França. A operação, que precipitou a entrada do Brasil na guerra, gerou desconfianças e polêmicas. Foi votada pela Câmara Federal em fevereiro de 1918, em meio a acusações dirigidas a seu negociador e a um de seus conhecidos colaboradores — Graça Aranha. Um ano depois, em 1918, Paulo Prado deu início à sua correspondência com Capistrano de Abreu e retornou com mais afinco às suas atividades intelectuais. Começou a trabalhar nos seus ensaios históricos, que só sairiam em livro em 1925, pela editora de Monteiro Lobato, de quem se tornara sócio nos últimos anos da Revista do Brasil . Um dos textos mais conhecidos, “O Caminho do Mar”, foi elaborado no período imediatamente anterior à Semana, tendo aparecido pela primeira vez em setembro de 1922, numa versão publicada pelo Estado de S. Paulo. Retomava temas de Eduardo Prado e Oliveira Martins. A ideia central era que a primitiva e íngreme ligação entre São Paulo e o litoral teria funcionado mais como barreira do que como facilitador de contatos com o litoral, o restante do país e o mundo. Essa estufa segregada pelas escarpas da Serra do Mar teria servido como canteiro para o florescimento e desenvolvimento do tipo paulista, com seu espírito de liderança, insubordinado às determinações da Metrópole, seu senso pragmático e suas “predestinações heroicas e étnicas”. Num outro ensaio, em que trata dos bandeirantes, Paulo Prado expôs a mesma tese com delirante ufanismo:
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Do cruzamento do forte sangue português quinhentista, dos franceses, castelhanos e flamengos com cunhãs, o mameluco surgiu perfeitamente aparelhado para o seu destino histórico. A montanha isoladora dos contágios decadentes do litoral; a atitude sempre sobressaltada de quem vivia na orla das imensas matas virgens, sombrias e espessas; a convivência diária e íntima com o gentio da terra de quem falava correntemente a língua; a feliz situação geográfica e topográfica, que o locava à margem e nas proximidades de grandes rios descendo para o interior das terras; a aspereza fortificante de um clima de bruscas variações, que às geadas das manhãs claríssimas sucedem sóis abrasadores do meio-dia — todos esses fatores conjugados criaram um admirável exemplar humano, belo como um animal castiço, e que só puderam realizar nesta perfeição física os homens da Renascença italiana, quando César Bórgia seduzia o gênio de Maquiavel. 81
Em seu esquema histórico, essa São Paulo original, tenaz e apolínea, temperada também pelo sangue judeu, precisou experimentar longa decadência até se regenerar no ciclo do café, sob o comando de famílias tradicionais, como a sua, que descendiam daquele primitivo e belo “animal castiço” bandeirante. Em 1919, além da montagem de O contratador de diamantes, bancada por sua família, Paulo Prado promoveu, com Freitas Valle, Numa de Oliveira, Ramos de Azevedo e Paul Claudel, uma importante exposição de arte francesa no hall do Municipal — mesmo local onde se instalaria, três anos depois, a mostra modernista. Ao lado de pinturas impressionistas, foram exibidas esculturas de Auguste Rodin, Émile-Antoine Bourdelle e Henri Laurens — com direito a um concerto com obras de César Franck e Debussy no dia do vernissage.
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A importância de Paulo Prado para o movimento modernista transcenderia a realização da Semana de Arte Moderna. O ilustrado fazendeiro foi uma espécie de elo entre gerações, um orientador e um proponente de questões para os rapazes, que frequentavam os concorridos almoços dominicais em sua casa. Nas palavras de Mário, “com o seu pessimismo profundo e o seu realismo, convertia sempre o assunto das livres elucubrações artísticas ao problema da realidade brasileira”. A ele o poeta e escritor dedicou seu grande Macunaíma. E Oswald de Andrade convidou-o para escrever o prefácio — notável — de Pau-Brasil , o “ovo de Colombo” da poética modernista, lançado em 1924. Para Berriel, Paulo Prado não deve ser visto como alguém que se movia simplesmente pelo interesse mundano ou excêntrico de se divertir com jovens artistas. Se ele se envolveu na realização da Semana, foi porque buscava “a identidade entre a elite tradicional paulista e a expressão de uma particular modernidade nas artes”. A oligarquia do café, em sua expressão mais esclarecida, imaginava-se, segundo Berriel, como uma “burguesia clássica”; considerava-se portadora de um projeto nacional que abarcava, além do poder econômico e político, o poder cultural. Paulo Prado seria a expressão mais cosmopolita e moderna — e também aristocrática — dessa ilusão, que desmoronaria, afinal, no fim da década de 1920, com o crack das bolsas e a Revolução de 30. Berriel aponta uma diferença crucial entre o processo de instauração da arte moderna na Europa, sobretudo na França, e no Brasil. Enquanto por lá a nova estética precisou conquistar terreno à margem dos salões oficiais, no Brasil essa mesma arte ingressou “pela via oficial e conduzida
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pela mão do poder”. A inversão revelaria o esforço de modernização de um poder já assentado — no caso, o do café —, que desejava ir além. Por seu caráter renovador e sua vocação “insurrecional”, a arte moderna teria uma contribuição a dar nessa tentativa de ascendência intelectual da elite paulista.
15 O RODIN BANDEIRANTE
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Victor Brecheret aos dezenove anos. O artista, nascido na Itália, mudou-se aos dez anos para São Paulo e retornou a seu país de origem para estudar escultura. Em 1920, novamente no Brasil, foi “descoberto” pelos modernistas.
Em 1920, quando “fremia todo o Estado de júbilo cívico e euforia patriótica”,82 o governador Washington Luís anunciou que a cidade de São Paulo ergueria um monumento em memória dos bandeirantes com o intuito de amplificar sua presença nos festejos do Centenário da Independência. Para implementar a ideia, nomeou uma comissão, presidida por Monteiro Lobato, e formada, entre outros, por seus amigos Menotti del Picchia e Oswald de Andrade. Os três, daquela vez, com o apoio de Mário de Andrade, estavam juntos numa ofensiva para promover o que consideravam a grande revelação artística de São Paulo, o escultor Victor Brecheret, que seria o autor do monumento. Tímido e arredio, Brecheret tinha sido “descoberto” em janeiro daquele ano por Oswald, Menotti, Di Cavalcanti e pelo escultor Hélio Seelinger, durante uma visita ao Palácio das Indústrias, onde se expunham os projetos que participavam do concurso do Monumento da Independência — a ser instalado nos jardins do Museu do Ipiranga. Souberam por um funcionário que um escultor trabalhava em peças de grandes dimensões numa das salas do edifício, onde improvisara seu ateliê. Foram conferir e, nas palavras de Oswald, viram um “deslumbramento”, a revelação de um artista “original e poderoso”. 83 Encantados com o jovem talento, que se destacava do padrão “passadista” da estatuária brasileira, trataram de divulgá-lo pelos jornais e de organizar os “lobbies” possíveis para promovê-lo. Não há dúvida de que a
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decisão de Washington Luís, a par de sua sensibilidade de historiador, foi influenciada pelos descobridores do escultor. Já em fevereiro de 1920, a Revista do Brasil , de Lobato, estampava em suas páginas fotografias de O despertar e Eva, duas esculturas do artista, que completava 26 anos naquele mês — embora o texto anunciasse “ 22 anos apenas”.84 “Admiremos sem reservas, que isso é arte de verdade, da boa, da grande, da que põe o espectador sério e, se é sensível, comovido”, dizia a apresentação das obras, escrita por Lobato mas sem assinatura. O entusiasmo era pleno: “Honesto, fisicamente sólido, moralmente emperrado na ideia de que o artista moderno não pode ser um mero ‘ecletizador’ de formas revelhas e há de criar arrancando-se à tirania do autoritarismo clássico, Brecheret apresenta-se-nos como a mais séria manifestação de gênio escultural surgida entre nós”. O crítico que investira ferozmente contra a arte moderna falava agora na necessidade de o artista atual escapar da “tirania clássica”. Parecia uma autocrítica sobre o caso Anita Malfatti, mas não chegava a tanto. Na realidade, as obras de Brecheret, se testemunhavam a força do artista e fugiam ao padrão neoclássico, não se comparavam, em arrojo, às telas expressionistas trazidas de Nova York pela pintora. Não tinham nenhuma “esquisitice”. Preservavam, de certa forma, as convenções “naturalistas” tão estimadas por Lobato. Menotti del Picchia, nos artigos que assinava como Hélios, no Correio Paulistano, foi um dos mais efusivos propagandistas de Brecheret, o “Rodin brasileiro”. Sua estratégia era reivindicar a “descoberta” para os modernistas e fixar o escultor, nascido na Itália, como legítimo artista nacional. Nessa linha, acentuava em seus argumentos algumas características “autóctones” que via nas figuras criadas pelo escultor — como as
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frontes proeminentes, a estilização do cabelo e “a audácia dos lábios carnosos e sensuais”. No seu característico estilo exaltativo, Menotti definia Brecheret como “brasileiro e paulista”, fruto de um “amálgama de raças caldeadas no nosso clima”, cuja obra, mesmo no “profundo misticismo em que se ene voa”, preservava algo de “visceralmente nosso”.85 No segundo número da revista Papel e Tinta, que tinha sido lançada em maio por Menotti e Oswald, um certo Ivan assinou elogioso artigo, no qual destacava a inteligência e a força criativa do escultor, raras nesse país “de lenta evolução”. Para o autor, no período de estudos em Roma, Brecheret não teria se limitado a aprender o catecismo da escultura clássica, mas observado “as ideias modernas” em circulação na Europa e com elas comungado — o que faria dele um caso “quase único em nosso meio”. Ivan encerrava o artigo fazendo um “veemente apelo” ao governo do Estado para que patrocinasse uma nova temporada de aprendizado do artista no “Parnaso Europeu”, em centros, como Paris, que ele ainda desconhecia. Segundo o historiador Mário da Silva Brito, era Oswald quem estava por trás do pseudônimo Ivan. A pesquisadora Telê Ancona Lopez, no entanto, sustenta com argumentos sólidos que na realidade Ivan era Mário de Andrade.86 •
Victor Brecheret era descendente de italianos e franceses. Nasceu em Farnese, na Toscana, em 1894, e foi batizado Vittorio. Depois de uma série de mortes em sua família, entre as quais a de sua mãe, foi levado para São Paulo em 1904, aos dez anos de idade, por uma tia materna,
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chamada Antonia, que já morava na cidade. O pai, Augusto Brecheret, casado novamente, com uma mulher mais jovem, ficou na Itália. Vittorio e a irmã foram morar com a tia na rua Jaguaribe, perto do largo do Arouche. O garoto, que gostava de moldar barro no quintal de casa, começou a trabalhar como vendedor e entregador de uma loja de calçados na Florêncio de Abreu — a mesma rua onde morou Anita Malfatti. Conta-se que certa vez, numa entrega, viu no chão uma revista com reproduções de obras de Rodin. Encantado, levou a reportagem para casa e mostrou aos tios — era aquilo que queria fazer. 87 Continuou a trabalhar durante o dia, mas passou a frequentar cursos noturnos do Liceu de Artes e Ofícios, onde estudava, entre outras disciplinas, desenho, modelagem e entalhe em madeira. Foi aluno de Domiziano Rossi e Affonso Adinolfi, que participaram do projeto de construção do Municipal. A escultura mais antiga de Brecheret de que se tem notícia data dessa época — é uma Pietà em madeira, de 1911-12. Animado com os estudos e incentivado pelos professores italianos, Vittorio começou a alimentar o desejo de estudar em Roma, o que acabou conseguindo, graças aos tios. Chegou à capital italiana em 1913, antes do início da guerra, levando uma apresentação do então deputado Washington Luís para um amigo. Por falta de estudos formais, não foi aceito na Escola de Belas-Artes. Valeu-se então do contato do político, que o ajudou a ingressar como discípulo no ateliê de Arturo Dazzi ( 1882-1971), escultor famoso, um dos preferidos do rei Vittorio Emanuele ii. Admirador de Michelangelo, influenciado por Rodin e Bourdelle, Dazzi ajudou o jovem artista a formar sua base clássica e naturalista. Depois dos primeiros estudos com Dazzi, Brecheret decidiu se estabelecer como escultor independente. Transferiu-se para um ateliê que havia sido ocupado pelo escultor croata Ivan Mestrovic. Ligado à Secessão
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Vienense, Mestrovic se tornaria uma das principais influências do brasileiro, na monumentalidade, nas alegorias e na absorção de elementos do art nouveau. Em 1916, o nu O despertar, apresentado na Exposição Internacional de Belas-Artes de Roma, ganhou elogios da imprensa italiana, que foram reproduzidos pelo Estado de S. Paulo. Em 1919, a escultura Eva, exposta na Itália, foi citada pelo Il Messagero, pouco antes de o artista retornar a São Paulo, no mês de março. De volta à “pequena Itália” paulistana, sem lugar para instalar seu ateliê, Brecheret pediu auxílio a Ramos de Azevedo, que o conhecia dos tempos do Liceu. O arquiteto cedeu-lhe então um espaço no Palácio das Indústrias. •
Instruído por Menotti e possivelmente por outros amigos modernistas sobre o significado histórico dos bandeirantes, Brecheret apresentou, em julho, uma maquete do monumento, acompanhada de uma detalhada explanação. Era assinada por ele mesmo, que, no entanto, mal sabia escre ver em português, como atestam os cartões enviados de Roma para os tios. O estilo do texto era de Menotti — o qual declarou depois ter sido o verdadeiro mentor do monumento. O texto citava Affonso de Taunay e esclarecia como a obra exprimiria, “na harmonia de seu conjunto”, toda “a audácia, o heroísmo, a abnegação e a força” despendidos por aqueles “seres titânicos” para “desvendar e integralizar o arcabouço geográfico da pátria”. A reação da imprensa foi favorável. A maquete, embora não fosse em nada revolucionária, fugia dos clichês das esculturas oficiais
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comemorativas, revelando-se, segundo O Estado de S. Paulo, uma “bela e audaciosa obra de arte”, digna da epopeia que se pretendia comemorar. Para decepção da animada claque de Brecheret, a proposta, apesar das simpatias que despertou, acabou não se realizando. Um dos motivos do fracasso teria sido a decisão da comunidade portuguesa de competir com o escultor ítalo-brasileiro, oferecendo a São Paulo um monumento relativo ao mesmo episódio histórico esculpido pelo patrício Teixeira Lopes. A disputa acirrou rivalidades e criou situações delicadas, o que levou Washington Luís a “adiar” a decisão. Menotti, inconformado, responsabilizou os portugueses por terem “matado” a proposta e eliminado a oportunidade de São Paulo ganhar uma obra de arte “moderna, pujante, revolucionária”. Para amenizar a frustração, Brecheret doou a maquete ao governo do Estado — que agradeceu o presente e a integrou ao acervo da Pinacoteca. •
Em 1953, às vésperas das comemorações do iv Centenário de São Paulo, uma nova versão de Brecheret para o Monumento às bandeiras foi inaugurada no parque do Ibirapuera. O ressurgimento do projeto, mais uma vez, contou com o apoio de Menotti del Picchia, que na década de 1930, sob o governo de Getúlio Vargas, persuadiu o interventor Armando Salles de Oliveira, de quem era assessor, a retomar a proposta. Um contrato foi assinado com o escultor em 1936, já prevendo a simplificação da maquete original. Paralisado diversas vezes por falta de verbas, o monumento, em granito, ficou pronto dezessete anos depois, como uma espécie de síntese da obra de Brecheret. Do ponto de vista do conteúdo histórico, tornou-se menos regional. As bandeiras, antes investidas de patriotismo paulista, ficaram mais
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associadas ao Brasil e às três raças constitutivas do povo — a branca, a negra e a indígena. Como declarou Brecheret por ocasião da inauguração, tratava-se, naquele novo momento, de criar uma espécie de “altar da pátria”.
16 O ESTALO DO DESVARIO
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A escultura Cristo, de Brecheret, causou forte impressão em Mário de Andrade, que a adquiriu. Discussões provocadas pela obra na família do poeta serviram de impulso para que ele escrevesse Pauliceia desvairada.
A euforia em torno do descobrimento de Brecheret era compreensível. Para muitos, a potência criativa do artista aumentava em contraste com o atraso da arte da escultura no Brasil. “Acostumados ao barrinho machucado dos escultores do nosso Salon, ante a obra à parte do escultor paulista surpreendemo-nos, não só por ele se destacar entre medíocres, mas pela distância que ele guarda dos seus contemporâneos”, escreveu Di Cavalcanti.88 Nas encomendas públicas, o cenário não era mais animador, como testemunhavam os monumentos da capital federal, moldados pela forma neoclássica que Marc Ferrez trouxera com a Missão Francesa. 89 De modo geral, tínhamos ou uma estatuária de artistas brasileiros com perfil acadêmico ou peças importadas de autores estrangeiros. Na opinião de Mário de Andrade, nem mesmo importar sabíamos muito bem, pois, ao contrário dos argentinos, que embelezavam Buenos Aires com esculturas de artistas mais atualizados, como Bourdelle, nos limitávamos a comprar velharias. Era o caso da obra de Ettore Ximenes ( 1855-1926), que, em meados de 1920, venceu o concurso para o Monumento da Independência. Com sarcasmo Mário atacou a escolha nas páginas da Ilustração Brasileira,90 editada no Rio: “O Ilustre Sr. Ximenes, que de longe veio, infelicitará a colina do Ipiranga com seu colossal centro de mesa de porcelana de Sévres”. O artigo, publicado em novembro, era o primeiro de uma série de quatro sobre São Paulo, que se estenderia até maio de 1921. Começava com um empolgado retrato da cidade naquele início de década:
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São Paulo toda se agita com a aproximação do Centenário. Germinam monumentos numa floração de gestos heroicos; as alamedas riscam o solo em largas toalhas verdes e os jardins se congregam em formosos jogos florais de poesia e perfume. São Paulo se arreia de graças. São Paulo quer tornar-se bela e apreciada. Finalmente, a cidade despertou num desejo de agradar. E era preciso que assim fosse…91
O texto prosseguia numa declaração de amor à cidade: A urbe de Amador Bueno é agressiva e misteriosa como seus heróis; suas belezas recônditas; raro o estrangeiro que alcança levantar um pouco o pesado manto de segredo em que se embuça. Num orgulho tradicional ela sempre se guardou rudemente, medievalmente, como certas igrejas da Itália, que sob uma feição esquipática e bisonha ocultam a severa doçura dum Cimabue, dum Piero della Francesca ou os arco-íris dos mosaicos bizantinos. E no entanto ela é curiosa, viva, singular; e para o paulistano inveterado, que a ama e contempla, tem sugestões tão inéditas como os versos de Mallarmé. Dizem-na Fria… Dizem-na tristonha, escura… Mas no momento em que escrevo, novembro anda lá fora, desvairado de odores e colorações. Eu sei de parques esquecidos em que a rabeca dos ventos executa a sarabanda por que pesadamente bailam os rosais… Eu sei de coisas lindas, singulares, que Pauliceia mostra só a mim, que sou o amoroso incorrigível e lhe admiro o temperamento hermafrodita…
Frustrado com a perda da ocasião de se comemorar a Independência com uma obra mais brasileira e menos passadista, Mário insistia na tecla do Monumento às bandeiras, de Brecheret. Como Menotti, sustentava
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que o escultor, apesar do sotaque “italianado”, “de que os cariocas tanto se riem”, era um legítimo artista brasileiro. Esperava que os paulistanos conseguissem reunir recursos e erguer a escultura, pois Brecheret estava pronto para reatar os laços com um passado artístico nacional ainda “sem continuador”: a arte sacra de Aleijadinho e de outros mestres do Rio e da Bahia. O escultor paulista representava, a seu ver, a preciosa oportunidade de dar prosseguimento a uma tradição “nossa”, ligando as glórias do barroco ao “ideal moderno de escultura”. •
Mário de Andrade passou 1920 sem publicar poesia. Ao comentar aquela época de “modernistas das cavernas”, numa famosa conferência, realizada no Rio em 1942, ele lembrou que guardava cadernos e cadernos de “coisas parnasianas e algumas timidamente simbolistas” — mas nada que o agradasse. Foi um ano de leituras. Informava-se sobre o expressionismo e as novas tendências estéticas europeias por meio de livros e revistas — como a .’ Esprit Nouveau, projeto do pintor francês Amédée Ozenfant, do arquiteto suíço Le Corbusier e do poeta belga Paul Dermée, lançada em outubro de 1920. Já conhecia “futuristas de última hora”, mas só então veio a conhecer o que considerou uma grande descoberta, o livro Les villes tentaculaires de Émile Verhaeren, autor que lera nas aulas da Faculdade de Filosofia do mosteiro de São Bento. Se a lírica católica e pacifista do poeta belga o encorajara a escrever o “passadista” Há uma gota de sangue em cada poema, o contato com o simbolismo de Cidades tentaculares, voltado para o tema moderno da vida urbana, o estimulou a pensar num livro em versos livres sobre São Paulo.
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Fez várias tentativas, mas nada que entusiasmasse: “Os meses passavam numa angústia, numa insuficiência feroz. Será que a poesia tinha se acabado em mim?”.92 Naquela época, o professor do Conservatório e colaborador da imprensa já ganhava o suficiente para viver “folgado”, mas torrava o dinheiro em livros e se “estrepava em cambalachos financeiros terríveis”. A família o importunava por suas preferências e atitudes pouco convencionais. As discussões muitas vezes terminavam em explosões de ódio. Fascinado, como todos, por Brecheret, que tinha na temática religiosa uma de suas fixações, Mário conseguiu, com ajuda do irmão, comprar do escultor a peça Cabeça de Cristo. Ao chegar em casa, “sensualissimamente feliz”, abriu o pacote diante do olhar pasmo dos parentes, que consideraram a obra medonha e herética. Onde já se vira Cristo de trancinha? A reação da família criou no poeta um estado de ânimo que acabaria se refletindo na própria história da literatura brasileira: Fiquei alucinado, palavra de honra. Minha vontade era bater. Jantei por dentro, num estado inimaginável de estraçalho. Depois subi para o meu quarto, era noitinha, na intenção de me arranjar, sair, espairecer um bocado, botar uma bomba no centro do mundo. Me lembro que cheguei à sacada, olhando sem ver o meu largo. Ruídos, luzes, falas abertas subindo dos choferes de aluguel. Eu estava aparentemente calmo, como que indestinado. Não sei o que me deu. Fui até a escrivaninha, abri um caderno, escrevi o título em que jamais pensara, Pauliceia Desvairada.
Depois de quase um ano de tentativas frustradas, em pouco mais de uma semana Mário já tinha em sua escrivaninha, se não uma obra pronta, ao menos o jorro de um “canto bárbaro” a ser revisto, modificado,
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acrescido. Editado em 1922, o primeiro livro modernista da poesia brasileira foi escrito entre dezembro de 1920 e dezembro de 1921.
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ANITA DE NOVO
Se a escultura, por intermédio de Brecheret, atraiu e influenciou, em 1920, os “modernistas das cavernas”, a pintura de Anita Malfatti, como vimos, já era “avanguardista” quando Mário Sobral escrevia sonetos parnasianos, Menotti del Picchia fazia regionalismo fácil, e Oswald de Andrade e Guilherme de Almeida assinavam peças em francês sobre paixões perdidas. Depois dos escândalos que cercaram a exposição de 1917, contudo, Anita, mais do que um “retorno à ordem”, voltou-se para convenções passadistas, dedicando-se ao que Mário de Andrade chamou mais tarde de “impressionismo colorido para contentar os silvícolas”. O novo mestre da artista, em 1919, era Pedro Alexandrino. O pintor, então com 63 anos de idade, fora discípulo de Almeida Jr., bolsista da Academia Imperial de Belas-Artes e professor de desenho do Liceu de Artes e Ofícios. Com apoio do Pensionato do Estado havia passado quase dez anos em Paris, onde participou de mostras e estudou com René-Louis Chrétien ( 1867-1942) e Antoine Vollon (1833-1900). De volta a São Paulo, Alexandrino retomou suas atividades, participando de exposições e dando aulas de pintura. Suas famosas naturezas-mortas se destacavam pela hábil representação verista de apetrechos metálicos.
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O artista caiu nas graças de Monteiro Lobato. Depois de ter metralhado a arte moderna em 1917, o temível Jeca da crítica nacionalista dedicou ao pintor longo e elogioso artigo na Revista do Brasil . Para Anita, Alexandrino era um nome bem-sucedido, que a incentivara a voltar para a Europa e elogiara seus trabalhos, na mostra de 1914. Estudar com o rei da natureza-morta não deixava de fazer sentido se os principais interesses da pintora naquele momento eram se adaptar ao convencionalismo dos colecionadores e mecenas de São Paulo e investir numa nova exposição, na tentativa de ganhar, enfim, as simpatias de Freitas Valle e do Pensionato Artístico. •
Durante as aulas com Alexandrino, Anita conheceu, enfim, Tarsila do Amaral, que tinha visitado sua exposição de 1917. Filha e neta de ricos fazendeiros paulistas, era três anos mais velha, mas começara a se dedicar às artes mais tarde. Por sugestão dela, Anita também se tornou aluna de Elpons. No início de 1920, as duas frequentavam juntas as sessões de modelo-vivo do pintor alemão, no ateliê da rua Vitória, que Tarsila deixaria para o mestre, em aluguel, antes de embarcar para a França em junho. De Paris, em 26 de outubro, ela remeteu uma carta a Anita, presumindo que a nova exposição tivesse ocorrido em setembro: “Pedi intensamente a Deus por ti e estou certa de que foste feliz ou estás sendo agora”. Contava de suas atividades na Academia Julian e dizia que tinha visitado o Salão de Outono. Pelo que observava, “tudo tendia” para o cu bismo e o futurismo. Havia também muita natureza-morta, mas “daquelas ousadas, em cores gritantes e forma descuidada”. Tarsila mencionava, ainda, a permanência do impressionismo e a vanguarda
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dadaísta: “Conheces, certamente, o dadaísmo. Eu, porém, vim a conhecer agora”. •
A exposição da srta. Malfatti foi inaugurada em novembro, no Clube Comercial, na rua São Bento. Como em 1917, selecionou 53 trabalhos. A lista completa perdeu-se, mas, pelo que saiu na imprensa, sabe-se que a maior parte das obras eram recentes e que havia algumas telas da safra expressionista. Muitos dos visitantes de 1917 voltaram — como Wasth Rodrigues, Clodomiro Amazonas e Nestor Rangel Pestana. As reações foram, de modo geral, moderadas, algumas favoráveis, outras ambíguas ou vagamente críticas. Os que esperavam ver, enfim, uma artista mais “amadurecida”, domada pelo gosto convencional, encontraram motivos para comemorar. Diversos trabalhos exibiam, como se comentou na imprensa, um “espírito mais equilibrado” e uma “melhor compreensão artística da natureza”. No Estado, Rangel Pestana insistiu no mesmo raciocínio de 1914, quando comentou a tela Tropical na Revista do Brasil : Anita era talentosa, mas contraditória. Suas obras evidenciavam “várias tendências em conflito”. Muitas pinturas mereciam aplauso, pois nelas prevalecia o “bom senso”; outras, porém, revelavam-se sensíveis às influências de “pseudoescolas que caem no domínio da patologia”. Quanto aos modernistas das cavernas, não se entusiasmaram muito. Um artigo na Cigarra, sem assinatura mas atribuído a Mário de Andrade, que se iniciava na crítica de arte, 93 destacou a diferença em relação a 1917, quando Anita se mostrara partidária “das novas escolas revolucionárias”. Sem citar Lobato, o texto atribuía a mudança de rumos aos
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ataques da crítica, que teriam “influído no ânimo e, o que é pior, no próprio senso estético” da pintora. O autor, apesar de tudo, reconhecia na mostra “trabalhos de grande valor” e um “tom de modernismo que a enobrece”. Quem saiu em defesa de Anita foi Menotti del Picchia, que não tinha visto a exposição anterior e formara um juízo negativo da pintora ao ler o arrazoado de Lobato. Num artigo de Hélios, no Correio Paulistano, o autor de Juca Mulato penitenciava-se por ter se deixado levar pelo “diabólico prestígio” e pelo “mágico poder de sedução” da pena do crítico. 94 “Caí, a respeito de Anita Malfatti, no visgo do seu estilo e, preso por ele, julguei com o critério de Lobato.” Na sua dúbia avaliação, as telas expostas pela pintora não apresentavam, como chegou a imaginar, “delírios dos cubistas e dos futuristas de vanguarda”. Exibidas em qualquer cidade do mundo “consagrariam o nome de um pintor moderno”. Diante disso, Menotti sugeriu que Lobato revisse suas posições e fizesse uma autocrítica pública — o que jamais aconteceu.
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PRONTOS PARA O COMBATE
No final de 1920, os modernistas estavam prontos para sair das cavernas, empunhar suas armas e partir para o combate. Mário debruçava-se sobre Pauliceia desvairada, Oswald retocava Os condenados e A estrela de Absinto, e Menotti preparava-se para lançar novos poemas e romances, como Máscaras e Laís, ao mesmo tempo que trombeteava a nova “estética original e nossa” em artigos no Correio Paulistano. Nas artes plásticas, Anita era uma realidade, Brecheret parecia ter caído do céu, e Di Cavalcanti, conhecido por exposições e colaborações na imprensa, ensaiava mudanças em seus desenhos, influenciados, como os de Ferrignac, pelo art nouveau do artista gráfico inglês Vincent Beardsley (1872-98). Em junho, o segundo número da revista Papel e Tinta (que durou seis edições) já havia noticiado a presença na cidade do “notável” artista suíço John Graz, “reputado na Europa pelos seus admiráveis vitrais e pela moderníssima composição de seus quadros”. O texto que saudava Graz, assinado por um certo Claro Mendes, lamentava o “atraso de meio século” do meio artístico paulistano, onde se continuava a encher paredes com “baboseiras feitas na Europa”. Entre os “verdadeiros artistas” da cidade citava-se o velho mestre Pedro Alexandrino, que seria posteriormente demolido por Oswald de Andrade, e os
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novos — como o “menino-prodígio” Di Cavalcanti, Anita, Ferrignac, e a pintora e decoradora Regina Gomide, que se casara com Graz, em Genebra, naquele mesmo ano. A revista mencionava ainda Mick Carnicelli, paulista de origem italiana, filho de famoso alfaiate, que estudou na Europa e, em seu retorno, juntou-se ao grupo renovador. Também marcava presença na cena artística da cidade o pernambucano Vicente do Rego Monteiro, estabelecido no Rio desde 1915. Rego Monteiro passara longa temporada em Paris, onde estudou, participou do Salão dos Independentes e conheceu artistas como Fernand Léger (1881-1955), Georges Braque ( 1882-1963) e Joán Miró (1893-1983). Suas obras expostas em São Paulo foram bem recebidas por Monteiro Lobato e elogiadas na Revista do Brasil . De Genebra, além de Graz, chegavam por aquela época dois rapazes brasileiros — Sérgio Milliet da Costa e Silva (1898-1966) e Rubens Borba de Moraes (1899-1986). O primeiro, escritor e crítico de arte, fora para a Suíça em 1912, onde cursou ciências econômicas e sociais, colaborou na revista Le Carmel e publicou dois livros de poemas, Par le sentir, em 17, e Le départ sur la pluie, em 19. O segundo, amigo de infância de Mário de Andrade, nascido em Araraquara, filho da oligarquia cafeeira, graduou-se em letras pela Universidade de Genebra, em 1919. Na volta à Pauliceia, com notícias frescas sobre a arte e a literatura europeias, os dois se uniram ao círculo modernista. Foi Borba de Moraes quem apresentou aos moços paulistas a revista .’ Esprit Nouveau. •
Mário de Andrade, em seus artigos para a Ilustração Brasileira, via a Pauliceia palpitar “num esto incessante de progresso e civilização”. Na
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vida artística da metrópole emergente, os conservadores a “corvejar agouros” passavam a se deparar com os “futuristas em fúria”. Em dezem bro de 1920, o poeta anunciava na revista que “os palácios de mármore dos parnasianos” começavam a ruir “sob o alaúde vertiginoso da mocidade alegre e triunfal”.
17 MÁSCARAS NO TRIANON
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O Trianon, na avenida Paulista, ponto de encontro da sociedade paulistana, foi palco de homenagem a Menotti del Picchia,
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em 1921, na qual Oswald de Andrade discursou a favor da renovação estética.
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No dia 9 de janeiro de 1921, um sortido grupo de engravatados reuniu-se no salão de festas do badalado restaurante Trianon, no alto da larga e aprazível avenida Paulista, para um banquete em homenagem a Menotti del Picchia, que lançava uma edição do poema Máscaras. Situado na área hoje ocupada pelo masp, em frente ao então parque Villon, o Trianon era uma espécie de restaurante-pavilhão, com belvedere, prédio de dois andares, salão de chá e de festas. Inaugurado em 1916, tornara-se um dos centros da vida social paulistana, com seus bailes, concertos, aniversários, casamentos e banquetes. Naquele domingo de verão, ilustres integrantes do mundo cultural e político foram prestigiar o escritor e redator político do Correio Paulistano, homem de amplo arco de amizades — de mandatários do prp aos moços modernistas. O jornal anunciava, na edição do dia, a adesão de cerca de oitenta nomes, entre os quais figuravam os “novos” Oswald de Andrade, Guilherme de Almeida e Victor Brecheret, o poeta “passadista” Martins Fontes, o arquiteto Victor Dubugras, o diretor do Museu Paulista, Affonso de Taunay, e René Thiollier. Mário de Andrade, que estava presente, escreveu sobre a festa na edição de março da Ilustração Brasileira. Impressionou-se com a diversidade dos convidados, um séquito de homens das finanças, jornalistas, poetas e escritores da velha e da jovem guarda: “Mirras de todas as crenças, padrões de todos os estilos, focinhos de todos os bairros baralhavam-se num hugoano [de Victor Hugo] amor pelas antíteses”.
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Figurões revezaram-se na tribuna até chegar a vez de Oswald de Andrade, que faria soar, nas palavras de Mário, “o clarim dos futuristas” — aquela gente “do domínio da patologia”, como gostavam de escrever “certos críticos passadistas, num afanoso rancor pelas auroras”. O tribuno foi logo avisando que não gostaria de confundir sua voz com o cantochão dos conservadores. Juntava-se à louvação a Menotti, mas “numa tecla de sonoridade diferente”, em nome “de um grupo de orgulhosos cultores da extremada arte de nosso tempo”. Representantes desse “restrito bando de formalistas negados e negadores” apresentavam-se ali como “guarda de honra” do homenageado. Vinham sagrá-lo para os “combates mais vivos” que se anunciavam. Para selar o pertencimento de Menotti ao clã dos modernos, a máscara de seu rosto, esculpida por Brecheret, lhe era ofertada. Disse Oswald: Examina a máscara que te trazemos em bronze. Ela é a sintética marcação das tuas forças mentais. Produziu-a de ti a mão poderosa e elucidadora de Victor Brecheret que, com Di Cavalcanti, Anita Malfatti e esse maravilhoso John Graz, ultimamente revelado, afirmou que a nossa terra contém no seu ignorado cadinho uma das mais fortes, expressivas e orgulhosas gerações de supremos criadores.95
Não poderia faltar ao discurso a exaltação do dinamismo paulista, pano de fundo da inquietação dos novos artistas e escritores, que pretendiam seguir pelos “espantosos caminhos da arte atual”. Num mundo — dizia o orador futurista — em que o pensamento e a ação se deslocavam, “num milagre lento e seguro”, da Europa para “os países descobertos pela súplica das velas europeias”, São Paulo surgia como uma espécie de Canaã, terra prometida da modernidade. Com suas chaminés e
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“gargantas confusas”, seus conjuntos de “palácios americanos” e seus bairros em veloz expansão, a cidade agitava, num “tumulto egoísta e inteligente”, as “profundas revoluções criadoras de imortalidades”. E, se a capital bandeirante podia promover aquela festa e nela ofertar uma “obra-prima” de Brecheret ao homenageado, isso significava que uma etapa do processo de arejamento das mentalidades já estava vencida. Era preciso, então, dar novos passos: “Daqui para diante!”, bradou Oswald, pouco antes de encerrar o discurso. Na avaliação de Mário da Silva Brito, o que se viu no Trianon foi o lançamento oficial do movimento modernista em território hostil — um “ataque de surpresa no campo do adversário distraído”. Ao que parece, entretanto, a distração do respeitável público foi mais funda — a ponto de poucos terem notado que as palavras ali proferidas representavam um “ataque”. Oswald foi aplaudido por passadistas, futuristas e demais presentes. “Todos estavam muito satisfeitos porque se julgavam incorporados à ‘meia dúzia’ de que falara o audaz”, ironizou Mário de Andrade. 96 •
Talvez tenha contribuído para a distração dos convivas o tom convencional do discursar de Oswald, que entoava suas sentenças à moda antiga. Segundo Mário, o amigo falava no diapasão do “místico psalmodiar beneditino”.97 Menotti foi diplomático ao agradecer as manifestações. Mas não negou fogo. Citou poetas modernos e colocou-se ao lado dos “apóstolos do verbo novo”. •
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Ao opinar sobre o homenageado em seu artigo para a Ilustração Brasileira, Mário de Andrade considerou-se suspeito para tecer elogios. “Somos paroquianos. Quase irmãos. Elogios, notoriedade, glorificações por ele recebidos recaem um pouco sobre mim”, ponderou. Talvez as críticas também recaíssem — e quem sabe, por isso mesmo, tenha preferido declarar-se partidário da tese de que o autor de Máscaras manejava “com maior perfeição a prosa do que o verso”. Em seu juízo, Menotti seria uma espécie de Euclides da Cunha “menos retumbante e erudito”, o que, ainda assim, era um elogio e tanto, considerando-se que Os sertões era o grande livro brasileiro do início do século xx e um dos maiores de todos os tempos. Para Oswald, aliás, Euclides e Machado de Assis, no final das contas, seriam as duas principais matrizes da narrativa moderna brasileira — como declarou em entrevista publicada pelo Jornal de Notícias em 1950: “Coloco um e outro no pórtico de toda a literatura moderna nacional, pois deles partiram duas linhas mestras de nossas letras: o campo e a cidade”.98 Mário da Silva Brito também entendeu o discurso do Trianon como um chamamento aos aliados — um “agressivo toque de reunir” lançado pela vanguarda cultural paulistana. Talvez tenha exagerado no “agressivo”, mas ressaltou um aspecto importante — o caráter minoritário e disperso do grupo renovador nos primórdios do modernismo. Tratavase ainda, como disse Oswald, de “meia dúzia de artistas moços”, situação que pedia esforços para identificar novos valores e alistá-los à “causa” — algo que ele, aliás, fazia muito bem. Fora Oswald, afinal, o “descobridor” de Mário, o pioneiro defensor de Anita e um dos responsáveis pela revelação do fenômeno Brecheret. E, sintomaticamente, em seu discurso procurava atrair “esse maravilhoso John Graz, ultimamente revelado”,
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para as hostes modernistas. Ficou famoso, a respeito dessa habilidade de Oswald, um trecho do poema “A caçada”, de Pauliceia desvairada: na Cadillac mansa e glauca da ilusão Passa o Oswald de Andrade Mariscando gênios entre a multidão
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O PROGRAMA DAS REFORMAS
Quinze dias depois do banquete do Trianon, Menotti del Picchia publicou no Correio Paulistano um resumo da plataforma que parecia unir o grupo modernista no início de 1921. O artigo, intitulado “Na maré das reformas”, começava por lembrar que, em determinadas fases da história, “o stock de ideias, de doutrinas, de processos técnicos velhos e vistos entra em liquidação”. Nessas circunstâncias, “uma nova série de mercadorias espirituais, de criação fresca, é exposta à avidez dos consumidores”. Era o caso do momento em que viviam. A vida “multiforme e absor vente” do mundo das “fábricas e do bolchevismo”, com o “sangue ainda quente derramado no holocausto da grande guerra”, exigia da arte “outra técnica” para ser representada. “Casimiro de Abreu não pôde com seu lirismo romântico, cantar a agitação das greves” — e tampouco poderia fazêlo o “cindianizado” José de Alencar. Era tempo de acabar com os mitos românticos e o predomínio defasado de estilos “achochados”. A musa poética “que tem mãozinhas para teclados, olheiras de monja, vestidinhos outonais, lábios assim, gestos assado” já estava revogada “por um decreto da estética nova”. O problema, no Brasil, segundo ele, apresentava-se com feições ainda mais exasperantes, pois aqui pouco se salvaria do passado. A liquidação literária entre nós teria de assumir “proporções de queima”: “Raramente
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tivemos personalidade. Euclides, Machado, dois ou três cumes da cordilheira de picos escassos, salvam-se nesse amontoado incolor de pastiches ecianos, camilianos, franceses, sobretudo franceses”. Se a independência política do país estava por completar um século em 1922, ainda nos faltava conquistar a “independência mental”, pois continuávamos a ser “uma colônia das letras”. O artigo chegava ao fim conclamando os modernistas à ação. Era preciso esfacelar os velhos moldes literários, reformar a técnica, arejar o pensamento. “Mostremos que no Brasil não somos uns misoneístas faquirizados, nem um montão inerte e inútil de cadáveres.” Em sua vibrante retórica de editorialista político, Menotti elevava o tom e sintetizava o programa de reformas que Mário e Oswald também divulgavam em seus artigos. Se as artes plásticas haviam pulado na liderança e provocado os primeiros embates, era tempo de a literatura apresentar suas armas e contribuir para uma reforma mais ampla da cultura nacional. O artigo sugeria um movimento que alguns logo apontariam como uma contradição dos modernistas, mas que exprimia, na realidade, a complexidade da questão a ser colocada — que coincidia com o próprio problema da formação da identidade nacional: se por um lado se pedia a independência da colônia das letras em relação aos velhos padrões da Europa, adotava-se, por outro, como referência de modernização, uma estética igualmente europeia. A melhor resposta para essa equação viria alguns anos depois, em 1928, com o “Manifesto Antropófago”, de Oswald de Andrade — do qual Menotti, afinal, se afastaria, preferindo se alinhar com o verde-amarelismo que desaguaria em nosso fascismo curupira. O discurso de Oswald e o artigo do Correio complementaram-se no que Silva Brito chamou de “Manifesto do Trianon” — o anúncio
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orquestrado de uma proposta de rompimento com a sobrevivência extemporânea de formas estéticas do passado e a adoção de um repertório compatível com a nova realidade do país e do mundo. Em 1921, as distâncias entre o Brasil e as “nações civilizadas” já não eram as mesmas dos tempos do rei. Se o Jeca Tatu parecia nos condenar a um passado remoto, à margem da história, o ritmo da vida em cidades como Rio e São Paulo ecoava a experiência urbana moderna dos grandes centros internacionais.
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MEU POETA FUTURISTA
Um mês depois de apresentar uma conferência na Villa Kyrial, de Freitas Valle, sobre “Debussy e o Impressionismo”, Mário de Andrade, que até então só se aventurara publicamente na poesia com os versos bem-comportados de Mário Sobral, viu seu nome aparecer na imprensa associado à poética futurista. No dia 27 de maio de 1921, um artigo de Oswald para o Jornal do Comércio, intitulado “O meu poeta futurista”, revelava as novas incursões líricas do autor de Pauliceia desvairada — e publicava um poema inédito, “Tu”. Para Oswald, “esse lívido e longo Parsifal bem-educado”, que lecionava “com rara honestidade de erudição no nosso Conservatório”, era autor de “um supremo livro” ainda desconhecido, que reunia “cinquenta páginas talvez da mais rica, da mais inédita, da mais bela poesia citadina”. Os versos de Mário eram mais uma evidência de que São Paulo, “a metrópole incontida”, que reivindicava uma expressão artística em “compasso com o senso profundo de sua responsabilidade americana”, fervia “de arte boa e nova”. “Acharam estranho o ritmo, nova a forma, arrojada a frase?”, perguntava o artigo. E respondia: “Graças a Deus!”. “Bendito futurismo paulista,
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que surge companheiro de jornada dos que gastam os nervos e o coração na luta brutal, na luta americana, bandeirantemente.” O poema escolhido, dedicado à cidade-musa, atestava o grau avançado do diálogo que Mário, em suas sistemáticas e aplicadas leituras, mantinha com o modernismo europeu, sobretudo por intermédio da revista .’ Esprit Nouveau. Anotações feitas à margem de artigos da publicação francesa não comprovam que os debates acerca do nascente surrealismo na França deixaram suas marcas na concepção de “Tu” — em versos como “mulher mais longa/ que os pasmos alucinados/ das torres de São Bento”. As repercussões de “Meu poeta futurista” não foram boas para Mário. “O casto, o bom, o tímido” congregado mariano e mestre do Conservatório viu-se envolvido em fama inesperada e alvo de críticas e chacotas. O problema não era só o rótulo “futurista”, já conhecido e associado por críticos, como Lobato e Rangel Pestana, a deformações mentais. Chocavam também a construção inusual e os versos inusitados do poema, sem métrica, sem rima, sem temas elevados, que escapavam às con venções dominantes. Diante de coisas como “Mulher feita de asfalto e de lamas de várzea/ toda insulto nos olhos/ toda convites nessa boca louca de rubores!” ou “Gosto dos teus desejos de crime turco/ e das tuas am bições, retorcidas como roubos!”, alguns pais zelosos preferiram retirar suas filhas das aulas ministradas pelo erudito professor. Não apenas por isso, Mário resolveu responder ao amigo e refutar a pecha de futurista. Embora ele próprio usasse o termo e dois meses antes tivesse classificado de “clarim dos futuristas” a intervenção de Oswald no Trianon, preferia não associar sua poesia à escola de Marinetti. Numa réplica publicada pelo mesmo Jornal do Comércio em 6 de junho, o autor de Pauliceia desvairada rechaçou a tentativa do amigo de enquadrá-lo no futurismo ou na “estrebaria malcheirosa de qualquer escola”. O texto apresentava argumentos teóricos respeitáveis, mas
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também evidenciava a preocupação de minimizar o impacto negativo causado pelo artigo. Mário reafirmava aos leitores seu catolicismo praticante, amainava as supostas ousadias poéticas do livro e declarava que não tinha “nenhuma intenção” de publicá-lo… Oswald, numa tréplica, confirmou os elogios aos poemas, que continuou a chamar de futuristas, e disse que Mário, na resposta, exagerava em seu passadismo. Aproveitou a chance para ampliar a propaganda dos novos, divulgando versos de Guilherme de Almeida, Agenor Barbosa e Menotti del Picchia, que correspondiam ao que ele considerava ser o futurismo paulista. •
A polêmica no Jornal do Comércio foi a primeira divergência pública entre os dois. A amizade duraria até finais da década de 1920, quando Mário decidiu cortar relações, depois de uma série de gracinhas de Oswald sobre sua sexualidade. Nas páginas da Revista de Antropofagia, entre outras “indiretas”, foi chamado pelo colega de “o nosso Miss São Paulo traduzido no masculino”. Embora o ex-amigo tenha em algumas ocasiões sugerido uma reconciliação, Mário jamais cedeu. •
Em julho de 1921, a visita do poeta Paul Fort ao Brasil foi uma nova oportunidade para Oswald atacar a ideia, que ainda muitos cultivavam no país, de que boa poesia era sinônimo de soneto, métrica e rima. O francês, de quem ele tomara conhecimento na viagem à Europa em 1912, consagrara-se como referência da poesia em versos livres. Na mesma época, Oswald e o mineiro Agenor Barbosa pagaram tributo à face
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modernizadora da poesia simbolista, por ocasião da morte de Alfonsus de Guimarães. O poeta mineiro foi considerado um “lutador da arte nova”, que iniciara a reação “contra a incultura e o atraso dos nossos principais poetas”. Mário de Andrade também compartilhava a admiração ao sim bolista de Mariana. •
Em meados do ano, depois do debate sobre ser ou não ser futurista, da visita de Paul Fort e da morte de Alfonsus de Guimarães, Oswald apresentava no Jornal do Comércio uma série de artigos de Mário sobre a geração de poetas parnasianos, que seria publicada de 2 de agosto a 1o de setembro. Constava de um texto introdutório, com o título “Glorificação”, e de cinco pequenos ensaios críticos sobre Raimundo Correia, Francisca Júlia, Olavo Bilac, Alberto de Oliveira e Vicente de Carvalho — este último, um dos preferidos do autor em sua juventude, a quem, como vimos, submeteu seus primeiros sonetos, sem obter resposta. Na série, Mário demonstrava conhecimento da poética de cada um deles e expunha, de forma corajosa e sarcástica, as razões que o levavam a considerá-los superados. Das cinco glórias da poesia nacional analisadas, duas, Alberto de Oliveira e Vicente de Carvalho, estavam vivas naquele momento. Bilac, o mais consagrado, subira aos céus dois anos antes, em 1919. Dizia o crítico: Ó Mestres do Passado, eu vos saúdo. Venho depor a minha coroa de gratidões votivas e do entusiasmo varonil sobre a tumba onde dormis o sono merecido! Sim: sobre a vossa tumba, porque vós todos estais mortos! E, se infelizmente para a evolução da poesia, a sombra fantasmal dalguns de vós, trêmula, se levanta ainda sobre a terra, em noites
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foscas de sabat, é que esses não souberam cumprir com magnificência e bizarria todo o calvário do seu dever! […] Vivos alguns, embora! Despejo sobre vós, ó Mestres do Passado, os aludes instrumentais do meu réquiem; e acendo junto à cruz dos vossos monumentos, sobre os vossos crânios vazios, a fogueira da consagração contemporânea. Fostes grandes, guardando a Língua ou cantando a Pátria, embora fôsseis mesquinhos na macaqueação do almofadismo francês, monótono e gelado!
A investida contra os respeitáveis poetas do passado, em parte motivada pelos ataques e galhofas em torno da publicação do poema “Tu”, acirrou os ânimos, causou celeuma e consagrou Mário, já autor de Pauliceia desvairada, como a nova liderança dos rapazes modernistas que incendiavam o debate cultural, numa escalada de radicalização. Como anunciara Oswald em maio de 1920,99 a nova geração subia ao ringue para enfrentar a “avalanche de obrinhas nacionais e estrangeiras que entopem o mercado” e lutar pelo triunfo de uma arte que representasse a independência mental do país no ano do Centenário. 100
18 OS BANDEIRANTES VÃO À PRAIA
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Palacetes erguidos no centro do Rio para a Exposição do Centenário da Independência, em 1922. Um ano antes, Mário e Oswald de Andrade foram visitar escritores na capital, entre os quais Manuel Bandeira.
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Em 22 de outubro de 1921, um artigo de Hélios, no Correio Paulistano, anunciava a partida, em direção ao Rio de Janeiro, do que seria uma “bandeira futurista”. Formavam a inusitada expedição “o papa do novo Credo”, Mário de Andrade, que levava na bagagem um “chuço de ouro” chamado Pauliceia desvairada, e o “bispo” Oswald de Andrade — ambos escoltados por um “apóstolo”, Armando Pamplona. 101 Em seu característico ufanismo paulista, Hélios — ou Menotti del Picchia — fazia em seu texto um caricato esforço para transformar a visita dos paulistas ao Rio numa espécie de incursão desbravadora aos sertões primitivos das artes e da literatura nacional. Na velha corte, os destemidos bandeirantes enfrentariam “todas as lanças, morriões e guantes” do parnasianismo “ainda triunfante na terra do defunto sr. Estácio de Sá”. Hélios advertia: A façanha é ousada! Em lugar de onças, das tribos selvagens, das serpentes que se atravessavam no caminho das “entradas”, como o grito de revolta da terra virgem contra a audácia dos conquistadores, a bandeira futurista terá que afrontar os megatérios, os bisontes, as renas da literatura pátria.
Mas nem tudo, felizmente, como reconhecia o próprio cronista mais adiante, seria combate contra godzillas passadistas: “Os bandeirantes futuristas, estou certo, vão maravilhados descobrir, na formosíssima urbe máxima do país, acampamentos de novos, de brilhantes espíritos moços e
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renovadores, que já iniciaram sua guerra às múmias, recebendo a falange dessa terra com abraços fraternais e amigos”. Hélios exagera na formulação da ideia de que cabia a São Paulo a primazia de palco e polo difusor da renovação modernista, que precisaria ser levada a cidades e regiões mais “atrasadas” da nação. Apesar das defasagens temporais da sociedade brasileira, centros como Recife e Rio não viviam aprisionados no passado, sem conexões com o mundo moderno, como sugere a crônica. Se o pioneirismo paulista se impunha de fato em muitos aspectos, é impossível ignorar que o “papa” e o “bispo” do novo credo pegaram o trem noturno rumo à formosíssima capital interessados sobretudo em conhecer um poeta ali radicado, cujos versos se anunciavam modernizantes — o pernambucano Manuel Bandeira. Ele havia lançado em 1919, no volume Carnaval , ilustrado por Di Cavalcanti, o famoso poema “Os sapos”. Não representava propriamente uma ruptura poética, mas era provocativo o bastante para tornar-se o hino antiparnasiano da Semana de Arte Moderna. Não é demais lembrar que o Rio, no início da década de 1920, continuava a ser o principal centro urbano do país, não apenas por reunir o dobro da população de São Paulo, mas pela diversidade de suas atividades, pela estrutura institucional de capital da República, pelo desenvol vimento do mercado cultural e por suas articulações internacionais. Havia, além da poesia de Bandeira, outras manifestações modernizantes sugestivas na capital federal naquele momento. Mário e Oswald poderiam, por exemplo, ter aproveitado a viagem para conhecer Heitor Villa-Lobos, já “descoberto” pelo compositor francês Darius Milhaud, companheiro de Erik Satie no vanguardista Grupo dos Seis, e por Arthur Rubinstein, que incluíra peças do brasileiro em seu repertório. Em 1921, Villa-Lobos tinha escrito todas as obras que levaria ao Municipal no ano seguinte — a maioria delas já apresentada a plateias cariocas.
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Em linhas gerais, a cena da música erudita no Brasil mantinha-se presa ao romantismo, fruto do florescimento promovido pelo Império, que distribuiu bolsas, impulsionou a formação de compositores e, com isso, ajudou a consolidar o gosto dominante. O advento da República interrompeu esse processo de patrocínio e contribuiu para que se criasse uma espécie de gap geracional. Na grande música na época da Semana prevaleciam nomes maduros, na faixa dos sessenta anos. Entre os mais novos, de promissores havia, além de Villa-Lobos, Luciano Gallet — marcado por um compositor enigmático e influente 102 naquele período, Glauco Velásquez (1884-1913). O ambiente musical do Rio não era apenas mais encorpado e “oficial” que o de São Paulo — também era, em algumas faixas, mais enfronhado nas novas tendências, em especial as francesas. Milhaud, que morou na capital brasileira em 1917-18, trabalhando como adido de Paul Claudel na embaixada da França, foi surpreendido ao descobrir na cidade uma elite viajada e bem informada103 que lhe permitia viver num ambiente sintonizado com a cultura de seu país. E com a grande vantagem, para um músico como ele, de encontrar uma rica e interessante música popular local. O par formado pelo compositor Oswaldo Guerra e sua mulher, Nininha, representava bem esse meio atualizado, que conhecia as tendências mais recentes da música francesa — e ao qual Villa-Lobos e Gallet tinham acesso. A ideia de que coube a Milhaud difundir no Brasil informações sobre essa nova música deve ser relativizada. Basta dizer que — ao contrário — se deveu ao casal Guerra o primeiro contato do compositor com as obras de Satie. Também não foi Milhaud, como às vezes se pensa, o responsável por revelar Debussy a Villa-Lobos — que já havia composto, entre 1914 e 1916, as Danças africanas, influenciadas pelo notável impressionista.
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Na realidade, em sentido inverso, foi a cultura musical carioca que adquiriu importância na carreira de Milhaud, tornando mais encantadoras suas experiências de “politonia”. Como se sabe, ele escreveu uma série de peças marcadas pela experiência no Rio. O título da mais conhecida delas, Le boeuf sur le toit , espécie de “colagem” de canções brasileiras, é uma versão para o francês de “Boi no telhado”, de José Monteiro, o Zé Boiadeiro. Além de ritmos populares como o maxixe, o samba, o cateretê, o visitante foi tocado por um tipo mais elaborado de manifestação musical, cujo principal representante era o pianista Ernesto Nazareth, com seu “tango brasileiro”. A tudo, entretanto, Milhaud chamava de “folclore brasileiro” — e talvez por isso não tenha dado nome aos bois musicais que aqui capturou. Fluía na sociedade carioca daquele tempo, com mais desenvoltura do que em São Paulo, a interação entre pessoas de estratos mais cultos e artistas do povo. Foi esse, aliás, o cenário da formação de Villa-Lobos, filho de um instrumentista amador e funcionário da Biblioteca Municipal, que o levou a estudar violoncelo e admirar Johann Sebastian Bach. Na década de 1910, o jovem músico costumava escapar para encontros com chorões e sambistas da noite do Rio, que o chamavam pelo apelido de Violão Clássico.104 Em 1917, Donga, amigo de Villa, gravara “o primeiro samba”, “Pelo telefone”, e em 21 fazia sucesso na sala de espera do cinema Palais, com Os Oito Batutas — o conjunto liderado por Pixinguinha que, em 22, passaria seis meses em Paris exibindo-se em festas e casas noturnas. Também exemplificam esse tipo de trânsito social as rodas da boemia jornalística e literária da cidade, cujo espírito modernista fermentava no contato com a rua e se beneficiava — da mesma forma que em São Paulo — da expansão da imprensa. Nos grandes jornais, nas revistas ou nas pequenas publicações, a crônica, a ilustração e a caricatura absorviam
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influências estilísticas internacionais, e procuravam uma linguagem atual, sintética e direta para falar com o público.
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DROGAS, SEXO E LITERATURA
Em 1921, quando Hélios anunciava o embate dos bandeirantes futuristas com os bisontes do parnasianismo à beira-mar, estourava na capital federal um tipo de prosa de feições modernas, depois varrida do mapa, à qual a professora Beatriz Resende chamou de “literatura art déco”. 105 Nessa vertente predominava o gosto pelos excessos — nos amores, preferencialmente pecaminosos, no comportamento transgressor ou no consumo de álcool, cigarros e drogas. Entre os representantes dessa ficção malcomportada, movida a sexo, perversão e cocaína, estavam nomes como Theo-Filho, Madame Crysanthème (pseudônimo da jornalista Cecília Bandeira de Melo Rebelo de Vasconcelos), João de Minas e Ben jamin Costallat. Costallat, cronista de grande sucesso, que conhecia bem Paris, escre via, naquele 1921, Mademoiselle Cinema, best-seller lançado em 23. O livro, considerado pornográfico por conservadores, levou a Liga pela Moralidade a mover uma ação para barrar sua venda, quando 25 mil volumes já haviam sido comercializados. Após as polêmicas causadas pela interdição, a obra atingiu, em cinco anos, a admirável vendagem de 75 mil exemplares.106 Mademoiselle Cinema foi defendido por Medeiros e Albuquerque, que o considerou “realista e de alto valor artístico”. O escritor comparou o
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êxito comercial de Costallat ao do ator Leopoldo Fróes: “Se cada espetáculo do ator é uma casa cheia, cada obra do autor é um sucesso de livraria”.107 Essa situação poderia ser explicada pelo fato de ambos mostrarem “a vida tal como é, com a mais completa naturalidade de expressões”. Benjamin Costallat começou a ficar famoso como crítico de espetáculos musicais e cronista da vida subterrânea carioca — seguindo, de certa forma, as pegadas de João do Rio. Contratado pela Gazeta de Notícias em 1919, foi nesse mesmo ano que lançou seu primeiro sucesso em livro, A luz vermelha. Em 1920, veio Modernos, ilustrado por Di Cavalcanti; em 21, Mutt, Jeff & Cia; e, em 22, Depois da meia-noite. Em 1923, o escritor foi trabalhar no Jornal do Brasil com salário milionário para os padrões da época. Seguindo os passos de Monteiro Lobato, fundou, com um sócio italiano, a editora Costallat & Micollis, que tratava o livro como um produto “ pop”, com capas, ilustrações e preços atraentes. Em 1921, o Rio já havia produzido também a prosa modernizante de Lima Barreto, que estreara em 11, com o folhetim O triste fim de Policarpo Quaresma, no Jornal do Comércio. Boêmio, “pardo”, desajustado, o escritor, em seu litígio com o mandarinato literário carioca, atacava a linguagem empolada, “coelhonetista”, ornamental, da velha literatura e antecipava um tipo de escrita que seria depois desenvolvido pelos modernistas. Num balanço dos quarenta anos da Semana de Arte Moderna, publicado pelo Estado de S. Paulo em 1962, o poeta Murilo Araújo considerou que os paulistas, até o início dos anos 20, teriam sido vanguarda de fato nas artes plásticas. Se faziam muito barulho na literatura, parecendo mais radicais e vibrantes do que os outros, seria porque, segundo Araújo, comportavam-se “com o exagero natural dos cristãos-novos”. 108
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Na realidade, também na pintura o Rio teria mais a apresentar, além dos nomes que foram à Semana — caso do veterano Artur Timóteo (1882-1923), que na avaliação de Aracy Amaral seria um verdadeiro fauve em sua última fase. A pesquisadora supõe que a exclusão se tenha devido ao quesito “juventude”, o qual teria pesado nas escolhas. Na opinião do crítico e curador Paulo Herkenhoff, para quem a Semana de Arte Moderna “virou um ícone preguiçoso”, 109 ocorreu um processo intencional de esquecimento de manifestações cariocas — ou “não paulistas” — na construção da história do modernismo, e Mário de Andrade teria sido o artífice dessa estratégia. Esse seria o motivo da des valorização de artistas como Belmiro de Almeida, Eliseu Visconti ou Gio vanni Battista Castagneto, colocados à margem da genealogia modernista, quando deveriam ser considerados introdutores do moderno na pintura brasileira. Nesse terreno minado pelo bairrismo, há exageros de torções de todos os lados. Se é certo que nossa “cidade máxima” não estava desconectada das novas experimentações estéticas, é verdade também que ali não se formara um “grupinho de intelectuais” dinâmico e combativo, organizado em torno da militância modernista, como em São Paulo. E é fato que duas das principais cidadelas do conservadorismo cultural pontificavam na Guanabara — a Academia Brasileira de Letras e a Escola Nacional de Belas-Artes. Em 1921, no Rio de Janeiro, todas as atenções estavam voltadas para a Exposição Internacional que marcaria, no ano seguinte, o Centenário da Independência. Tratava-se da mais grandiosa iniciativa oficial para festejar a data e demonstrar ao mundo as virtudes do país. A imponência do evento levou à polêmica remoção do morro do Castelo, que resultou em novas expulsões de famílias pobres do centro, depois do que ocorrera
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nas reformas do prefeito Pereira Passos. Na área criada para a Exposição, foram erguidos cerca de trinta duvidosos edifícios, entre palácios e pavilhões nacionais e estrangeiros. A comemoração ajudava a despertar sentimentos nacionalistas e esperanças de que o Rio se tornasse mais cosmopolita e também mais brasileiro. Benjamin Costallat foi um dos que vocalizaram esse anseio, ao imaginar o surgimento de uma cidade nova, que deixaria para trás aquela “ignorante e pernóstica que bebe chá às cinco porque Londres assim o faz e toma ares displicentes porque Paris assim o ordena”.110 •
A partir da década de 1980 começaram a se tornar mais frequentes no meio universitário — inclusive o de São Paulo — questionamentos sobre a historiografia modernista e a periodização segundo a qual a produção das décadas anteriores à de 20 estaria condenada, já no nascedouro, à frustração e ao esquecimento. Como escreveu Flora Sussekind em 1988,111 tudo se passa como se só fosse possível entender essas manifestações “enquanto pré ou pós alguma coisa” — ou como diluição de estilos precedentes ou como “embrião” de modernismos futuros. Seria ingenuidade ignorar o empenho do grupo de São Paulo em passar para a história como referência e divisor de águas. Não há dúvida de que um cânone foi aos poucos se constituindo para deixar à sombra obras anteriores ou simultâneas ao movimento paulista que também se despiam do beletrismo “passadista” ou abandonavam convenções da arte oficial. Bem diferente é entender que a intelectualidade de São Paulo teria patrocinado uma fraude histórica. Não há como passar a borracha no que aconteceu nos anos subsequentes à Semana, quando Oswald e Mário de
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Andrade, por assim dizer, mataram a cobra e mostraram o pau, em obras da grandeza de Macunaíma e João Miramar, e na formulação de questões, como as do “Manifesto Antropófago”, de fértil e longo alcance para o debate cultural brasileiro. •
Em sua conferência de 1942, Mário de Andrade reconheceu no Rio a existência de antecedentes modernistas. Citou como exemplo o livro Carnaval , de Bandeira, que teria sido descoberto pelos paulistas “por um acaso de livraria”, pois a corte preferia exportar quinquilharias acadêmicas, o “sorriso da sociedade, útil de provinciano gostar”. Esse e outros sinais precursores da cidade não chegavam a caracterizar um projeto de mudança, um movimento modernista. Para Mário, era preciso compreender o modernismo, no Brasil, como “ruptura” — “uma revolta contra o que era a Inteligência nacional”. E para essa tarefa São Paulo estaria, a seu ver, mais preparada. Se o Rio, por suas circunstâncias de porto e capital, era uma cidade quase que naturalmente internacional, a Pauliceia, em razão de “sua atualidade comercial e sua industrialização”, travava contato direto com “a atualidade do mundo”. Em sua vontade de afirmação cosmopolita, a capital do café, que saía do casulo provinciano, seria espiritualmente mais avançada. Punha-se mais “ao par” das novidades, importando-as diretamente da Europa, sem precisar dos filtros e juízos de gosto da corte. “Socialmente falando”, disse Mário, “o modernismo só podia mesmo ser importado por São Paulo e arrebentar na província.” Esse aspecto de cidade menos desenvolvida, desprovida de instituições artísticas normalizadoras, ajuda a explicar, na opinião do professor Antonio Candido, por que o movimento modernista eclodiu em São
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Paulo. A meia dúzia de intelectuais renovadores da Pauliceia, por estarem mais afastados do campo gravitacional do poder literário e artístico, teriam menos a perder, podendo arriscar mais. Quanto ao aspecto socioeconômico, Oswald também destacou, nos anos 1950,112 a importância, para o movimento, da industrialização, que produzia, também no meio cultural paulista, uma mentalidade mais competitiva: Se procurarmos a explicação do porquê o fenômeno modernista se processou em São Paulo e não em qualquer outra parte do Brasil, veremos que ele foi consequência de nossa mentalidade industrial. São Paulo era de há muito batido por todos os ventos da cultura. Não só a economia cafeeira promovia os recursos, mas a indústria com sua ansiedade do novo, a sua estimulação do progresso, fazia com que a competição invadisse todos os campos de atividade. •
É preciso considerar, além disso, que nenhum lugar do país experimentou a aceleração do tempo, propelida pela mudança técnica e industrial, de forma tão veloz e concentrada como São Paulo. Se os ventos da modernidade apanharam o Rio já como cidade grande e influente, a Pauliceia foi colhida, na virada do século, por um furacão que em três ou quatro décadas transformou uma vila colonial em centro urbano rico, dinâmico e cosmopolita. A frenética espiral ascendente da “metrópole do café” fez-se acompanhar da emergência de uma geração intelectual ambiciosa e de uma classe dirigente que se projetava como promessa de futuro moderno e glorioso para o país.
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SÃO JOÃO BATISTA, O PAPA E O BISPO
Manuel Bandeira nasceu em Recife, em 1886, onde concluiu o ensino básico. Estudou no Colégio Pedro ii, no Rio, e começou a fazer arquitetura na Escola Politécnica de São Paulo — curso que abandonou, em razão de problemas de saúde. Tuberculoso, buscou tratamento em diversas cidades e passou um ano — de 1913 a 1914 — no sanatório de Clavadel, na Suíça, onde fez amizade com o poeta francês Paul Éluard ( 1895-1952), que o ajudou a conhecer a literatura de vanguarda da época. Novamente no Brasil, lançou, em 1917, o simbolista A cinza das horas e, em 19, Carnaval . Mário de Andrade, em reconhecimento ao pioneiro espírito moderno do escritor pernambucano, o chamou certa vez de “São João Batista” da renovação da poesia brasileira. Em 1921, quando os paulistas foram procurá-lo, Bandeira morava no bairro de Santa Teresa. O encontro, entretanto, aconteceu em Copacabana, na casa de Ronald de Carvalho, que tinha a mesma idade de Mário — ambos sete anos mais novos que Bandeira. Bacharel em direito, Ronald, durante uma viagem a Portugal, conhecera Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Luís Montalvor, com quem participou, em 1915, da renovadora revista Orpheu. Começou a escrever versos de inspiração parnasiana e simbolista, passando mais tarde a experimentar soluções identificadas com o modernismo.
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Ao ouvir Mário recitando os poemas de Pauliceia desvairada, Bandeira sentiu-se “arrastado pelo aluvião lírico do Desvario”. Ao recebêlos, porém, impressos, um ano depois, revelou ao amigo, numa carta de novembro de 1922, que alguns aspectos o exasperavam, em especial o que chamou de “desvairismo gongórico” — na linha de “Oh incendiária dos meus aléns sonoros!” ou “alucinações crucificantes/ de todas as auroras do meu jardim!”. Para o autor de Carnaval, Pauliceia tinha “muitos exageros coloridos”, algum “resquício passadista” e excesso de neologismos. Bandeira considerou os poemas, de modo geral, “belos e estranhos”, e atribuiu os reparos a idiossincrasias de sua parte — pois estaria ficando “para trás”. No final, disse ao amigo que Pauliceia era o primeiro livro “integralmente moderno” a aparecer no Brasil. “Todos os outros foram de transição.”113 Em resposta, Mário reconheceu os exageros e os justificou à luz das circunstâncias em que a obra fora concebida e escrita: “Se não te disse ainda, digo agora a razão por que os conservei. Trata-se de uma época toda especial de minha vida. Pauliceia é a cristalização de 20 meses de dúvidas, de sofrimentos, de cóleras. É uma bomba. Arrebentou”. •
Oswald de Andrade levou ao Rio os originais do romance Os condenados, que seria lançado em 1922. O livro foi apresentado aos colegas da capital na casa de outro pernambucano, o poeta e diplomata Olegário Mariano Carneiro da Cunha — onde Mário também leu versos de Pauliceia. Segundo o artigo de Hélios, a bandeira futurista embarcou para o Rio no dia 20 de outubro de 1921, uma quarta-feira. Na terça 19, a Gazeta de Notícias publicava longa reportagem sob o título “O momento literário
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paulista”, na qual Oswald, “um dos espíritos mais fulgurantes da nova geração”, era entrevistado. Falava ao leitor carioca sobre o cenário artístico de sua cidade, elogiava Anita Malfatti e Brecheret, procurava explicar o sentido genérico do termo “futurismo”, usado pelos paulistas, comentava o modernismo europeu, citava o dadaísmo de Tristan Tzara e Picabia, e se derramava em elogios à “figura intelectualíssima” de Mário de Andrade.
19 A VISITA DO JOVEM SENHOR SENHOR
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O escritor e diplomata Graça Aranha, em 1922. Colaborador de Paulo Prado, retornou da Europa em 1921, encontrou-se com o grupo paulista e foi peça fundamental na organização da Semana de Arte Moderna.
Em 1921, a casa de Mário de Andrade na Barra Funda começou a abrir suas portas para reuniões regulares do grupo modernista, que se encontrava em bares, cafés, livrarias e na garçonnière de Oswald de Andrade, na praça da República. Com o casamento de Carlos, a mãe de Mário decidira vender o sobrado do largo Paissandu e comprar três casas na rua Lopes Chaves, uma para ela, a irmã e a filha, e as outras para os dois rapazes. O poeta preferiu alugar — e depois vender — a dele e continuar morando com a mãe. Seus cômodos, na nova casa, foram decorados com móveis que ele próprio desenhou, inspirando-se em peças estampadas na revista alemã Deutsch alemã Deutsch Kunst und Dekoration. Dekoration. As conversas na rua Lopes Chaves Chaves aconteciam às terças-feiras. Os mais assíduos eram Oswald, Guilherme de Almeida, Di Cavalcanti, Sérgio Milliet, Anita Malfatti, Rubens Borba de Moraes e um rapaz de vinte anos chamado Luís Aranha, poeta precoce e futuro diplomata, que se aproximara do grupo. Menotti raramente aparecia, preso aos afazeres do jornal. Na turma, Borba de Moraes era um importante divulgador de publicações europeias. Trouxera de Genebra uma sortida biblioteca, com “tudo” que saía naquela época na França — poesia, romance, ensaios, peças de teatro e periódicos. De São Paulo, ele continuava a fazer encomendas à livraria Nouvelle Revue Française, onde mantinha uma conta. Antes mesmo dos “salões” das terças-feiras, Mário, leitor obsessivo, habituara-se a tomar emprestados livros do amigo, a quem ajudava com indicações de autores brasileiros e portugueses.
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O papo na casa da Barra Funda passava por momentos de conspiração e discussão intelectual, mas pouco tinha de sisudo. Mesmo quando o assunto pedia seriedade, todos se sentiam autorizados a intervir com ironias e piadas. Uma das diversões era malhar, com exageros críticos jocosos, os novos poemas e passagens de livros lidos na roda. Foi numa dessas reuniões que Borba de Moraes conheceu Di Cavalcanti — um jovem “inteligentíssimo e muito engraçado”, sempre às voltas com apertos financeiros. Entre idas e vindas do Rio, hospedava-se naqueles dias numa pensão no largo da Sé, em companhia de uma prima, Maria. Angustiado com a situação situação do artista, que não conseguia ganhar ganhar o suficiente para pagar a hospedagem, Moraes reuniu-se com ele e a prima morena e dentuça para tentar consertar a situação. A ideia era passar em revista os desenhos de Di e ajudá-lo a organizar uma exposição. O artista voltara do Rio com pinturas e uma série de desenhos desenhos intitulada Fantoches intitulada Fantoches da meia-noite, meia-noite, que pretendia transformar num álbum de luxo, com prefácio do amigo, advogado, poeta e jornalista Ribeiro Couto. Para realizar a mostra, o local mais indicado parecia ser a livraria O Livro, inaugurada na Quinze de Novembro pelo p elo carioca Jacinto Silva, que tinha trabalhado durante anos na Casa Garnier, na rua do Ouvidor — onde conhecera Machado de Assis e outros o utros nomes da virada do século. O livreiro, amante da cultura, amigo de Di, conhecido por seu temperamento gentil, queria que seu estabelecimento paulista fosse também um ponto de encontros literários, leituras e exposições — e para isso possuía um vasto salão, no fim de um corredor. Não eram poucos os amigos amealhados por Di na boemia, nas redações de jornais, nas rodas inteligentes i nteligentes e abastadas de São Paulo, de modo que o vernissage de sua exposição só poderia ser um sucesso. A mostra foi a primeira que reuniu pinturas a óleo do — até então —
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desenhista e ilustrador. Uma das telas inspirava-se na “Balada de Santa Maria Egipcíaca”, poema de Manuel Bandeira que apareceria posteriormente no livro Ritmo livro Ritmo dissoluto. dissoluto. A livraria lotou, e a presença de endinheirados endinheirados alimentou a expectativa de um êxito comercial — que poderia retirar do buraco o pintor carioca. Pura ilusão. As vendas não se concretizaram.
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A VOLTA DE GRAÇA
No dia 22 de outubro de 1921 — quando o Correio Paulistano publicou o artigo de Hélios anunciando a partida da “bandeira futurista” para o Rio — o transatlântico Lutetia transatlântico Lutetia,, que fazia a linha Bordeaux-Buenos Aires, atracou no cais da praça Mauá. Trazia a bordo o escritor e diplomata Graça Aranha. Era a quarta quarta vez que ele retornava da Europa, onde onde havia passado bons anos em diversos países — como França, Itália, Suíça e Noruega. Àquela altura, Graça Graça era um velho amigo da família Prado, Prado, que conhecia desde sua primeira passagem por Paris, quando, pelas mãos de Joaquim Nabuco, participou da ceia oferecida por Eduardo Prado, em seu apartamento da Rue du Rivoli, para comemorar a chegada do século xx. Desde então, suas relações com o clã paulista só tinham prosperado. No início dos anos 1910, apaixonou-se por uma das irmãs de Paulo Prado, Maria Nazareth, com quem passou a manter um longo caso extraconjugal — ele casado com Maria Genoveva, a Iaiá, e ela com Oduvaldo Pacheco Silva. Depois disso, vieram os negócios. Graça conhecia muita gente importante. Em suas lides diplomáticas e literárias fez amizades com personagens do alto escalão intelectual e político de países europeus, em especial da França. Essa circunstância permitiu-lhe oferecer intermediação para os interesses econômicos dos
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Prado no período da guerra. Em 1915, quando apresentou no Municipal de São Paulo, a convite da Sociedade de Cultura Artística, uma conferência sobre a juventude de Joaquim Nabuco, já trabalhava para o conselheiro Antônio da Silva Prado e seus parentes, em negócios que iam da exportação de café à venda de carne congelada para mercados europeus. Aposentado em 1914, com dívidas a saldar, Graça escreveu a Iaiá, naquela época, para dizer que já era tempo de abandonar o canto da cigarra e dedicar-se à vida de formiga. Suas atividades de “empresário” levaram Lima Barreto a chamá-lo, em 1917, ano do controverso convênio firmado com a França para venda de café, de “caixeiro-viajante” da família Prado. Quando voltou ao Brasil, em 1921, o escritor maranhense já tinha acumulado respeitável experiência como formiga e grande prestígio como cigarra. Era homem público, acadêmico de primeira hora, autor de artigos, ensaios, peças de teatro — e sobretudo de Canaã, Canaã, romance famoso, em bora não muito lido, lançado em 1902, visto por alguns como modernizante na temática das relações multiétnicas no Brasil. Tudo somado, tratava-se de um figurão. As referências ao modo de ser de Graça Aranha Aranha costumam ressaltar ressaltar suas boas maneiras, a sociabilidade fluente, o otimismo generoso, alguma ingenuidade e a conversa empolgante. 114 Espírito inquieto, ateu, reformista desde jovem, tinha prazer em conviver com os mais novos. É ilustrativa, sobre isso, sua relação com amigos de seu filho Temístocles, quando ele esteve em Paris, em 1913 e 1914, para tratamento de saúde. Alceu Amoroso Lima e Ronald de de Carvalho estavam entre os jovens brasileiros da turma. Uma vez Graça chamou Temístocles e Alceu para um chá no Hotel Ritz. Segundo a narrativa da biógrafa Maria Helena Castro Azevedo,115 o escritor fez um sermão contra a indiferença pelas
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letras brasileiras e o excessivo francesismo intelectual dos moços. “A nossa literatura não se renova, são os mesmos sonetos, os mesmos romances, os mesmos elogios, as mesmas descomposturas”, disse aos dois, incentivando-os a investir em novidades: “Façam loucuras”. Uma de suas sugestões era que criassem no Rio um centro de cultura dedicado à renovação das artes, de modo a colocar o Brasil “em harmonia com a criação universal”.116 Graça acompanhou de perto a movimentação modernista da Europa e formou suas convicções a respeito. Encontrou-se com o modernismo por suas próprias pernas, guiando-se por um mapa que não era o mesmo dos moços de São Paulo — embora, em alguns aspectos, coincidissem. Em 1921, o escritor estava lançando uma obra do “gênero filosófico”, intitulada A estética da vida, que começara a escrever havia anos. Apresentava um sistema relativamente complexo — e confuso — de ideias. Em linhas gerais, o filósofo Graça Aranha considerava que a ciência, por analisar a realidade, decompondo-a em partes, era incapaz de nos colocar em contato com a “unidade infinita do todo”. 117 Só por meio do sentimento — ou da religião, da estética, do amor — o homem poderia curar-se da dualidade e encontrar o caminho da conciliação com o cosmos. Quanto à arte, seu fim supremo não estaria em servir a ideais políticos, religiosos ou morais. Não deveria tampouco guiar-se por cânones de beleza ou condenarse a mimetizar a realidade. A tarefa da arte seria servir a si mesma, ou seja, à sua função de integrar o espírito humano à tal unidade do cosmos. Ainda que fossem conceitos discutíveis e criticáveis — e, de fato, geraram ataques e polêmicas —, não há dúvida de que comungavam com a reivindicação modernista de ampla liberdade para a criação estética. Graça, como todos, preocupava-se com a questão da identidade cultural brasileira. Entendia que a elite do país voltava as costas para as raízes que deveriam uni-la à nação. Essa fratura seria a causa do
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artificialismo cultural dominante, que se prestava, na realidade, a ocultar nossa ausência de cultura. Essas ideias já haviam sido expostas no Municipal de São Paulo, em 1915, quando o conferencista afirmou que a literatura feita no Brasil jamais conseguiria expressar a alma nacional se não abandonasse a “língua afetada e postiça” do classicismo lusitano. 118 Houve homenagens ao ilustre diplomata no regresso ao Rio. Um grupo, do qual participava Ronald de Carvalho, organizou um banquete no Palace Hotel, que atraiu embaixadores, escritores, artistas e políticos. No discurso de agradecimento, Graça retomou o tema da juventude. Disse que o Brasil era “a pátria da mocidade” e que se sentia atraído pela “força irreprimível e promissora” da nova geração. Ronald escreveu artigos elogiosos na imprensa — e não é improvável que tenham surgido comentários sobre o homenageado em sua casa, durante o encontro com os moços da “bandeira futurista”, que estavam na cidade naquele momento. Alguns dias depois da homenagem, Graça, no mês de novembro, via jou para São Paulo. Além de cuidar de suas relações com a família Prado, queria conhecer a juventude da Pauliceia, os colegas de Ronald e de Manuel Bandeira, que apareciam nos jornais pregando reformas estéticas. Natural que, ao chegar à cidade, fosse procurar a livraria do bom Jacinto Silva, onde se realizava a mostra de Di. Pretendia, por intermédio do livreiro, marcar uma conversa com o pintor e seus amigos futuristas. Desse encontro nasceria a Semana de Arte Moderna.
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O DESPISTE DE MÁRIO
Quem teve a ideia da Semana? Em 1942, na sua citadíssima palestra sobre o movimento modernista, Mário de Andrade começou a responder a essa pergunta com uma evasiva: “Por mim não sei quem foi, nunca soube, só posso garantir que não fui eu”. Logo a seguir, no entanto, ao recordar o encontro de Graça Aranha com o grupo modernista, o conferencista dizia que “alguém” teria lançado a ideia dos festivais de literatura, música e arte. “Foi o próprio Graça Aranha? Foi Di Cavalcanti?”, indagava. Se no início da conferência Mário nada sabia sobre a autoria da ideia, na sequência já apontava o dedo para os principais suspeitos — o escritor da velha guarda, morto em 1931, de cuja Estética da vida “nós ríamos um bocado”, e o boêmio pintor do Rio, que àquela altura militava no Partido Comunista. Mário deixou a questão no ar. Preferiu ressaltar que o importante mesmo “era poder realizar essa ideia, além de audaciosa, dispendiosíssima”. Sendo assim, o grande responsável pela Semana — seu “fautor verdadeiro” — não poderia ter sido outro senão o abonado e bandeirantíssimo Paulo Prado, o homem que levantou, com seus amigos da alta sociedade paulista, os meios para realizar os festivais no Municipal. É provável que Mário tentasse aparar o excessivo destaque concedido pela imprensa e pelos próprios modernistas à liderança de Graça Aranha,
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em 1922. Naquele tempo os paulistas pouco tinham publicado, e não podiam medir-se em prestígio com o autor de Canaã. Já em 1942, no ano da conferência, a situação era diferente. O “papa” do modernismo via-se em condições de rir em público de A estética da vida e contar a seu modo a história do movimento. Talvez Mário já não lembrasse que, numa nota na revista Para Todos…, do Rio, no dia 15 de fevereiro de 1922 tinha citado a “bela ideia de Graça Aranha”. 119 Ou que, numa de suas Crônicas de Malazarte, publicada na revista América Brasileira, também do Rio, em abril de 1924, apontara sem rodeios Di como o responsável pela ideia original — que se transformaria na Semana de Arte Moderna pelas mãos de Graça Aranha: A ideia pertence a Di Cavalcanti. Chegado do Rio nesse 1921 guerreiro, comunicara-me o projeto, bem como a Oswaldo, Anita e outros. Pretendíamos abrir um salão de pintura e escultura, com tardes literárias em que se recitariam versos e conferências. O projeto mal sabia do local grandioso onde breve se realizaria. Sempre adiado. Inexequível, pela fraqueza das nossas forças. Graça Aranha chegou do Rio. Quis conhecer-nos. E imaginou então, sem que soubesse do nosso projeto, a Semana de Arte Moderna.
No depoimento de 1942 parece ter pesado também o justificado desejo do conferencista de fixar para a posteridade o papel desempenhado por Paulo Prado — que morreria um ano depois — na aparição e nos desdo bramentos do movimento modernista.
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A HISTÓRIA SEGUNDO DI
Em Viagem da minha vida, Di Cavalcanti apresentou sua reconstituição da visita de Graça Aranha à exposição de 1921. Na história contada pelo pintor, o livreiro Jacinto Silva chamou-o misteriosamente a um canto e anunciou que o “glorioso acadêmico” visitava São Paulo e desejava estabelecer contatos “com a mocidade literária e artística”. Jacinto mal avisara Di do pedido de Graça, e eis que o próprio despontava no salão — “belo, elegante, perfumado de lavanda”. Feitas as apresentações, o visitante percorreu os quadros e desenhos “com gloriosa distância”, comentou o aspecto “atormentado” de alguns deles e pôs-se a “doutrinar sobre a necessidade de um Brasil de homens fortes”. Ao encontro proposto por Graça teriam comparecido, segundo Di, Oswald, Mário, Guilherme de Almeida e Menotti del Picchia. Todos muito impressionados com o distinto senhor, que prometeu unir os jovens paulistas aos do Rio e divulgar o movimento pelo Brasil: “Sua habilidade de diplomata, seu ‘savoir-faire’ de mundano, sua autoridade de mais velho, agiam como uma música sedutora”. Novas conversas teriam acontecido no apartamento de Graça, no Grande Hotel da Rôtisserie Sportsman. Discutiu-se um plano de “conferências, exposições e concertos”, e o autor de A estética da vida sugeriu que procurassem Paulo Prado para tratar da proposta. De acordo com Di,
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Graça, antes de partir para o Rio, entregou-lhe um cartão de apresentação para o fazendeiro aristocrático: “E fui eu, do grupo modernista, o primeiro a conhecer aquela figura nobre e elegante de civilizado paulista, educado pelo tio Eduardo Prado, por Eça de Queirós, amigo de Claudel, homem que conheceu Oscar Wilde, dançarinas do tempo de Degas e o próprio Degas”. Embora vago em muitas referências, o memorialista não deixou dúvidas: “Eu sugeri a Paulo Prado a nossa semana”. •
Lançado em 1955, Viagem da minha vida reunia memórias escritas numa época em que o abstracionismo geométrico, consagrado pela i Bienal de São Paulo (1951), assumia a vanguarda estética no país e punha em xeque o “populismo” figurativo de Di Cavalcanti, além de outras manifestações ligadas ao modernismo. Como explica Éder Silveira, autor de um ensaio sobre as incursões memorialísticas do pintor, 120 ele procurava oferecer ao público, naquele momento, uma profissão de fé na arte que se tornara “majoritária no Brasil a partir da segunda metade da década de 1920 e que vinha sendo colocada à prova por amplos setores da crítica especializada no final dos anos 1940 e no início da década de 1950”. Defendendo-se do avanço do construtivismo — o lançamento da arte concreta no Brasil ocorreu oficialmente em 1952 —, Di enfatizava seus compromissos políticos, associados à pintura de temática popular e nacional. Filiado ao pcb desde 1928, fazia questão de ressaltar as diferenças de classe que supostamente o separavam dos colegas paulistas — também mais “formalistas” do que ele. A certa altura do livro, Mário e Oswald são chamados de “meninões burgueses”, que não teriam perdoado o autor pelas críticas dirigidas ao
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aspecto “demasiadamente mundano” que adquiria a Semana. Na mesma linha, ao lembrar-se da greve geral de 1917, Di afirma que Oswald, “com aquele reacionarismo católico que o dominava”, teria pensado em fazer “incursões armadas pela madrugada para desalojar os grevistas”. Já ele, mais avançado, teve, naquele mesmo ano de 1917, “a revelação do socialismo revolucionário” com o advento da insurreição bolchevique. Em outra passagem, bastante citada, o tom de bravata esquerdista salta aos olhos. Ao relatar conversa com Paulo Prado, Di afirma que manifestou a ele a necessidade de o evento ser daqueles de “meter os estribos na barriga da burguesiazinha paulista”. Quanto a Graça Aranha, é responsabilizado pelo caráter “festivo” da Semana — “irreconciliável talvez com o sentido de transformação social que para mim deveria estar no fundo de nossa revolução artística e literária”. Não obstante, do ponto de vista afetivo, Di deixou uma visão positiva do diplomata: “Fiz-me seu amigo e dele recebi admiráveis lições de cordialidade, distinção e inteligência. Sua grande ingenuidade de eterno adolescente foi o maior prêmio que ele me deu. Graça Aranha é para mim sempre como uma árvore florida diante da janela do meu espírito”.
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AS LEMBRANÇAS DO BIBLIÓFILO
O depoimento de Rubens Borba de Moraes endossa os artigos de Mário de Andrade de 1922 e 1924 ao afirmar que a ideia de organizar um salão de arte moderna surgiu antes de Graça Aranha desembarcar em São Paulo. Irritado e frustrado com os maus resultados econômicos de sua individual na livraria de Jacinto Silva, Di, num papo noturno, teria manifestado a ele essa intenção: “Esse negócio de exposiçãozinha individual é coisa do passado. O que é preciso é fazer uma grande exposição de arte moderna, um salon des indépendants ou coisa que o valha. Sei lá o quê, uma coisa que sacuda a indiferença do público”. 121 Animados com os planos mirabolantes que teriam arquitetado na con versa, ambos resolveram convocar Mário e Oswald “para expormos nosso projeto, isto é, a ideia de Di Cavalcanti”. O pintor já teria falado com Guilherme de Almeida e obtido a aprovação de Jacinto Silva para instalar o salão moderno em sua livraria. Aqui é preciso mencionar outro depoimento de Di, posterior às suas memórias, publicado pelo Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, em 17 de fevereiro de 1962, por ocasião dos quarenta anos da Semana. Segundo disse ao jornal, a ideia do salão teria surgido numa conversa com Guilherme de Almeida na livraria de Jacinto Silva, onde o poeta fizera uma leitura de seu livro Era uma vez… “Por que, perguntamos a Jacinto,
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não realizar programa mais vasto, com outras exposições, outras conferências e mesmo recitais de música?” Guilherme, na mesma edição do Estado, repetiu a história, afirmando que da conversa entre os três, ele, Di e Jacinto, teria surgido a proposta de um salão: “O germe, talvez, da Semana”. Pelas lembranças de Moraes, foi só depois de levantada a hipótese do salão que apareceu Graça Aranha, “um senhor britanicamente vestido de flanela cinzenta”, que se mostrava “ao corrente de tudo que se passava em São Paulo” e desejoso de conversar com os novos. Ao encontro com o diplomata teriam ido Mário, Oswald, Sérgio Milliet, Menotti del Picchia e Anita Malfatti — esta, acompanhada de “uma amiga gorda que escrevia suas coisas”. Poderia haver outros, mas Moraes não saberia dizer quem. Como nas demais versões, Graça expôs suas ideias sobre arte, falou da “necessidade de renovar” a cultura no Brasil, ressaltou a importância da união com o grupo do Rio e sugeriu que fossem ao encontro de Paulo Prado. No final, exortou todos à “ação”, palavra que pronunciou como se estivesse “comandando uma carga de cavalaria”. Tão logo saiu, Mário, garante Moraes, já teria manifestado o receio de que o ativo visitante estivesse interessado em “grilar nosso modernismo”. Dias mais tarde, na mansão de Paulo Prado em Higienópolis, Di teria exposto a todos “sua ideia de organizarmos uma grande manifestação de arte moderna”. Com o avançar da conversa, passou-se também a pensar na música e na arquitetura. Houve quem sugerisse um mês de atividades, mas “reduzimos o tempo de combate a uma semana”. Moraes diz que a duração do evento foi sugerida por um personagem também citado por outros — a francesa Marinette, que vivia com Paulo Prado. Ela teria lembrado aos presentes o êxito de uma semana de festas organizada pela cidade de Deauville, na Normandia, espécie de fashion
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week, que lançava moda, promovia exposições e atraía figuras do meio artístico. Definido, enfim, o formato do salão, Moraes não tem plena certeza de quem propôs o nome, já quase óbvio, de Semana de Arte Moderna: “Não me recordo com absoluta precisão, mas parece que foi Paulo Prado quem sugeriu esse título”. •
No depoimento de 1962, Di confirmou a sugestão de d. Marinette, mas afirmou que apenas ele, dos modernistas, estava no encontro: “Conversa vai, conversa vem, a senhora de Paulo Prado falou da semana de moda de Deauville. Foi então que eu falei: por que não se fazer então uma semana de arte moderna?”.
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RESUMO DA ÓPERA
Com todas as divergências e diferenças, os diversos relatos sobre a origem da ideia da Semana (há outros não mencionados aqui) apontam para algumas situações que parecem estabelecidas: Di Cavalcanti, em conversas com Guilherme de Almeida e Jacinto Silva, teve a ideia de promover uma espécie de salão modernista, a ser realizado na própria livraria onde o pintor fazia sua exposição. A sugestão, já apresentada ao grupo modernista, coincidiu com as intenções de Graça Aranha, que, ao retornar da Europa, precipitou os acontecimentos. O escritor procurou os paulistas, inteirou-se das propostas e expôs suas ideias. Sugeriu que se fizesse uma aliança com os artistas do Rio e levou os rapazes a Paulo Prado, que estaria disposto a patrocinar a aventura. As primeiras reuniões aconteceram no Grande Hotel da Rôtisserie Sportsman, onde Graça se hospedava, e no palacete do autor de Paulística. Num desses encontros — ou talvez no primeiro, apenas com a presença de Di, na residência de Prado — discutiu-se a hipótese de um evento mais amplo e estruturado. D. Marinette influiu na definição do formato ao mencionar a semana elegante de Deauville. Quanto ao Teatro Municipal, a sugestão teria sido de Paulo Prado, único em condições de conseguir o principal palco da cidade para um festival de arte moderna.
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Embora as histórias sobre a Semana de maneira geral reconheçam que Di e Graça estiveram na origem da ideia, muitas vezes parecem fazê-lo um pouco a contragosto — como Mário em sua conferência. Certamente a história do movimento contada do ponto de vista de São Paulo ficaria mais bonita se os dois Andrades tivessem sido os autores da proposta que acabaria por se transformar no marco da “ruptura” modernista. Houve quem especulasse que Oswald, em 1920, ao publicar um artigo intitulado “Arte do Centenário”, já tramava com seus colegas uma manifestação modernista para 22 — mas isso nem ele mesmo confirmou. •
Em 1971, às vésperas das comemorações dos cinquenta anos da Semana, o Museu da Imagem e do Som de São Paulo reuniu alguns veteranos modernistas para gravar depoimentos. Estavam presentes, entre outros, Menotti, Di e Tarsila do Amaral. Na ocasião, Renato Almeida, poeta, musicólogo e folclorista, que fazia parte do grupo do Rio, foi firme e enfático ao atribuir a ideia a Di Cavalcanti. “Isso precisa ser fixado”, disse ele, “porque é um dado histórico.” •
Se Graça Aranha foi visto por Mário como um potencial aproveitador, disposto a “grilar” o movimento de São Paulo, os bandeirantes futuristas, em contrapartida, não perderam a chance de usar em proveito próprio o prestígio do escritor e os meios que seu amigo Paulo Prado poderia mo bilizar. Nos meses que antecederam a Semana, Graça foi muito elogiado pelos modernistas. No dia 8 de novembro de 1921, Hélios foi o primeiro a dar a senha. Em mais um de seus artigos para o Correio Paulistano,
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saudou a juventude do veterano diplomata, que se mantinha “com vigor capaz de aderir à formidável reação literária que se pressente”. 122 Um mês depois, Cândido Mota Filho, o Motinha, advogado, crítico, ensaísta, cuidava de elogiar A estética da vida no mesmo Correio Paulistano. Em sua opinião, a concepção artística do autor era “completamente moderna”. Oswald, entre outras saudações, incensou a “figura extraordinariamente nova” do mestre e chegou a atribuir à sua ação o ressurgimento de Anita Malfatti: “Foi preciso, agora, a cultura de Graça Aranha retirar da obscuridade a que se voltara a grande artista ofendida”. 123 Referia-se, claro, ao que chamou de “erro brilhante”, cometido por seu amigo Lobato ao tentar fulminar a arte moderna. Ao longo do tempo, Oswald — como todos, aliás — não poupou Graça de críticas e zombarias, mas não ocultou a importância do escritor, circunstancial que fosse, para a realização da Semana. Em Um homem sem profissão, afirma que o escritor maranhense era “geralmente confuso e parlapatão, filho duma abominável formação filosofante do século xix”, mas, ainda assim, um “grande homem nacional”, cujo apoio aos moços da Pauliceia teria sido um “presente do céu”, pois precisavam de seu endosso para serem levados a sério.
20 ORGANIZANDO A BAGUNÇA
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No recibo do aluguel do Teatro Municipal de São Paulo consta que 847 mil-réis foram pagos para o espetáculo Semana de Arte Futurista. O evento, segundo a imprensa, deu prejuízo de 7400 contos de réis.
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Paulo Prado acolheu cordialmente os moços modernistas, impressionouos com sua figura de rico inteligente e definiu seu papel na empreitada. Não entraria em cena como o mecenas extravagante de um salão de inconsequências. A Semana de Arte Moderna haveria de aparecer aos olhos de todos como fruto de uma mobilização da sociedade paulista, de sua elite e de seus artistas. Quanto a isso, é bom frisar que o “fautor” da Semana tinha convicções sobre o papel civilizatório das elites, como demonstram diversas iniciativas suas e de sua família — entre elas um curioso episódio ocorrido em 1926, ligado à aquisição de uma carta de José de Anchieta, posta à venda por uma casa londrina. O documento, endereçado ao capitão-mor Jerônimo Leitão, datado de 15 de novembro de 1579, fora avaliado em duzentas libras esterlinas. O preço equivalia a irrisórias trinta sacas de café. Ao tomar conhecimento das condições, Paulo Prado organizou uma lista de doações, em sacas, para comprar a carta histórica e doá-la ao Museu do Ipiranga. A iniciativa foi tratada com ironia pelo escritor e jornalista Mário Guastini, refinado crítico dos modernistas, num artigo para o Jornal do Comércio, no qual perguntava por que o milionário fazendeiro não bancava do próprio bolso a aquisição: “Moderno seria o Sr. Paulo Prado se resolvesse converter trinta de suas sacas de café em documento histórico, confiando-o, depois, à zelosa guarda do erudito sr. Taunay”. Na resposta a Guastini, Paulo Prado explicou a razão de ter proposto a lista de doações para levantar uma quantia que poderia desembolsar: “Foi
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por altruísmo que proporcionei aos meus colegas argentários, na compra da carta anchietana, uma preciosa ocasião para fazer figura. Em São Paulo faltam pretextos para a generosidade dos ricos nessas questões de inteligência”.124
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MÃOS À OBRA
Coube a René Thiollier a tarefa de obter do prefeito Firmiano de Morais Pinto, com quem tinha laços de amizade, o aluguel do Municipal — que saiu por 847 mil-réis por sete dias. Para se ter uma ideia, em 1919, o Municipal, palco mais caro da cidade, cobrou de seus assinantes 15,5 mil-réis por uma cadeira para a apresentação da bailarina russa Anna Pavlova. A renda de uma família operária naquela época girava em torno de 30 a 35 mil-réis por semana. No mesmo teatro, custavam 10 mil-réis as cadeiras para um concerto do violinista brasileiro Pery Machado, em 1921.125 Cálculos do preço médio da cadeira do Municipal variam de acordo com a metodologia. Em 1921 estariam entre 12 mil-réis e 20,6 mil-réis.126 De acordo com Menotti del Picchia, as cadeiras para os festivais da Semana custaram 20 mil-réis no primeiro dia, caíram para 12,5 mil-réis no segundo, e chegaram a 5,3 mil-réis no terceiro. Camarotes e frisas foram oferecidos às tradicionais famílias por 196 mil-réis na estreia — e passaram a 77 mil-réis no dia seguinte. Em 31 de dezembro de 1921, a Folha da Noite, fundada no mês de fevereiro daquele ano, anunciava assinaturas anuais por 25 mil-réis — e semestrais por 15 mil. Na época da Semana, sessões de cinema eram
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anunciadas nas páginas dos jornais por valores próximos a 1,5 mil-réis a cadeira — podendo chegar a oitocentos réis no bairro operário do Brás. Não se conhecem os motivos que levaram Thiollier a reservar para o festival modernista a semana que se iniciava na segunda-feira 13 de fevereiro. Sabe-se que o Carnaval começaria logo depois, no sábado 25, e que em 1o de março o país estaria de olhos voltados para as eleições presidenciais. Nilo Peçanha, aliás, o candidato derrotado por Arthur Bernardes, quis usar o teatro para sua campanha justo no período em que ocorreria a Semana. A recusa da Municipalidade foi vista por ele, seus correligionários e setores da imprensa como uma decisão política — uma vez que a “tal semana futurista ou coisa que o valha” só poderia ser um pretexto. Afora o aluguel do teatro, havia os custos dos artistas, muitos deles provenientes do Rio. Para arrecadar fundos, o comitê organizador providenciou uma lista de subscrições, encabeçada por Paulo Prado e por uma figura que, em pouco tempo, se tornaria amiga, animadora e mecenas dos modernistas — d. Olívia Guedes Penteado. Além da lista de subscrições, frisas e ingressos foram postos à venda antecipadamente. •
Os depoimentos dos participantes da Semana são, não raro, omissos, vagos e divergentes sobre os detalhes da elaboração do programa, da escolha dos artistas e da seleção das obras. Há também dissonâncias e lacunas quanto aos aspectos operacionais — quem decidiu o quê, quem falou com quem, quem era responsável por esta ou por aquela tarefa. Segundo Rubens Borba de Moraes, após as primeiras reuniões, Mário, Oswald e Di teriam sido encarregados de estabelecer a programação. Outros, no entanto, certamente opinaram — e não se pode duvidar que Paulo Prado e Graça Aranha tenham participado diretamente da
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definição dos nomes, obras e conferências. O fazendeiro mecenas deixou para a posteridade um papel timbrado do Automóvel Clube de São Paulo com a programação dos três dias datilografada. Houve, diga-se, divergências quanto aos participantes. Borba de Moraes, que se viu acamado numa viagem a Araraquara, vítima de tifo, correspondeu-se com Mário de Andrade na época dos preparativos. Em bora não tenha guardado as cartas, registrou sua insatisfação com a presença da pianista Guiomar Novaes na lista de artistas — o que só se justificaria pela “intenção de atrair público”. A seu ver, a Semana deveria incluir, “exclusivamente, modernistas e não uma porção de gente sem importância”. Com a famosa solista a executar Debussy no Municipal, a festa modernista poderia parecer “um sarau literomusical de cidade do interior”. Moraes afirma que então acusou Mário de “fraco”, por ter se deixado envolver “pelos jeitosos politiqueiros passadistas que procuravam notoriedade”.127 De São Paulo, o amigo teria laconicamente concordado com as críticas, dizendo que nada poderia fazer. Assim como Di Cavalcanti, que disse em suas memórias ter contestado os rumos que as coisas iam tomando, em seu relato o bibliófilo procura ressaltar sua contrariedade com as concessões feitas ao passadismo — tarefa facilitada, no caso, pelo fato de ele ter permanecido fora da arena, na cama, numa fazenda no interior do estado. Terá havido, por certo, discussões e divergências, mas, no final das contas, o que salta aos olhos é a conciliação de interesses. A entrada dos modernistas pela porta da frente, no ano do Centenário da Independência, com direito à presença do governador e do grand monde paulista, não seria possível sem compromissos. E estes não consistiam simplesmente em abrir mão de escolhas estéticas radicais para facilitar o êxito do espetáculo. Na realidade, com uma ou outra exceção, mal havia escolhas estéticas radicais das quais abrir mão. Naquele momento,
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estava tudo a meio caminho, em nosso modernismo plantation. O velho tardava em se retirar e o novo ainda não reunia energias para se impor. A Semana, é certo, irradiou um sentimento de rejeição à arte oficial e ao “passadismo”, mas o fez por intermédio de obras que, em muitos aspectos, se conectavam à tradição que pretendiam confrontar.
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CONVIDADOS CARIOCAS
O interregno entre a decisão de organizar o evento e sua realização foi relativamente curto — de novembro de 1921 a fevereiro de 1922. Era preciso correr. Rubens Borba de Moraes conta que participou dos contatos com Villa-Lobos e com a turma literária do Rio — Manuel Bandeira, Ribeiro Couto, Ronald de Carvalho, Renato Almeida e Sérgio Buarque de Holanda. Enviado à capital federal, encontrou-se com Graça Aranha no Hotel dos Estrangeiros e, depois do almoço, foi ao encontro de Ronald de Car valho no Itamaraty, onde o poeta trabalhava na Secretaria de Estado. Ronald, já informado por Graça sobre o projeto da Semana, teria organizado uma reunião em sua casa para que fossem expostos os planos. Nem todos da lista citada apareceram, mas nos dias que se seguiram, entre encontros em bares da Lapa ou no Restaurante Lamas, no largo do Machado, os contatos foram se completando. Moraes diz ter se entendido muito bem com Ribeiro Couto (1898-1963), que era de Santos e mantinha relações com os paulistas. Naquele tempo ele vivia no Rio, onde escrevia para a Gazeta de Notícias. Também tuberculoso, era vizinho de Bandeira, em Santa Teresa, e acabara de lançar seu primeiro livro, O jardim das confidências. Em 1924, Bandeira escreveu a Mário censurando-o por ter omitido Ribeiro
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Couto num artigo sobre o movimento modernista, publicado pela revista América Brasileira, de Emílio de Meneses: 128 Quem agitou o meio carioca e nele lançou as ideias modernas foi o Ribeiro Couto. Prestou o incomparável serviço de converter o Ronald. Este, em 1920, criticando o Carnaval , meteu as botas em Guillaume Apollinaire, e numa conferência pública estigmatizou os modernos, opondo-lhes a arte equilibrada e sadia do nosso Bilac e do nosso Raimundo Correia. Foi o Ribeiro Couto que, com aquela vivacidade sedutora, captou o Ronald. O Couto vivia falando no Oswald, em Anita, em Brecheret. Companheiro dele era o Di. Mas este não tinha a irradiação generosa do Couto. 129 •
Após alguns dias, Moraes precisava ainda falar com duas figuras importantíssimas — Manuel Bandeira, que estava doente, sem poder sair de casa, e Villa-Lobos, que dava sinais de não estar interessado em discutir sua participação num festival paulista de arte moderna. Mas o encontro com Lobos aconteceu. Sempre de acordo com o memorialista, os dois se avistaram pela primeira vez numa noite, na cervejaria Brahma, no andar térreo do Hotel Avenida, onde o músico tocava violoncelo numa orquestra.130 No intervalo, o celista cabeludo teria descido do palco, cumprimentado o visitante paulista e dito que Graça Aranha já havia lhe contado sobre os planos. Terminada a apresentação, por volta da meianoite, os dois saíram, então, para conversar em outro bar. Segundo Moraes, Villa teria se comportado como “prima-dona”, inventando desculpas para escapar do convite.
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Na noite seguinte, mais uma vez o emissário paulista foi procurar o músico na cervejaria. Saíram de táxi pela morna noite carioca até que Villa batesse à porta de uma cabrocha, perto do largo da Lapa. Ali vararam a madrugada bebendo cerveja, tocando violão e cantando. Dias depois, Moraes voltava à sua cidade, segundo afirma, com a garantia de que o talentoso cabeludo participaria da Semana. •
Em depoimento registrado pelo mis-sp, Renato Almeida afirmou que “não houve critério” na seleção dos nomes para a mostra da Semana. As escolhas, em muitos casos, teriam sido feitas na base do “você pode ou não pode?”. “Ninguém teve tempo de preparar algo novo”, testemunhou, em outra ocasião, Anita Malfatti. “Catamos o que havia de moderno”, disse Borba de Moraes. Pecou-se por “falta de preparação”, declarou Paim Vieira, também ao mis: “Reuniram-se, resolveram fazer e foram fazendo”.
21 O LEÃO E A PIANISTA CONTRISTADA
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Guiomar Novaes, glória paulista do piano, famosa internacionalmente, protestou contra a execução de uma peça do compositor francês Erik Satie na noite de abertura da Semana.
Um sentimento de desconforto se apoderou da pianista Guiomar Novaes, na noite da segunda-feira 13 de fevereiro, quando seu colega Ernani Braga, a título de ilustrar a conferência de abertura da Semana de Arte Moderna, proferida por Graça Aranha, executou uma peça que não estava no programa. Tratava-se de .’ Edriophthalma, do compositor francês Erik Satie — na qual se ouve uma paródia à Marcha fúnebre, de Chopin. Novaes, a mais conhecida das atrações do evento, com estreia prevista para a segunda jornada, na quarta-feira, não gostou da surpresa. A ponto de ter enviado ao jornal O Estado de S. Paulo uma carta em que dizia o seguinte: Em virtude do caráter bastante exclusivista e intolerante que assumiu a primeira festa de arte moderna, realizada na noite de 13 do corrente, no Teatro Municipal, em relação às demais escolas de música, das quais sou intérprete e admiradora, não posso deixar de aqui declarar meu desacordo com esse modo de pensar. Senti-me sinceramente contristada com a pública exibição de peças satíricas alusivas à música de Chopin. Admiro e respeito todas as grandes manifestações de arte, independente das escolas a que elas se filiem, e é de acordo com esse meu modo de pensar que, acedendo ao convite que me foi feito, tomarei parte num dos festivais da semana de Arte Moderna — com toda a consideração.
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O desejo da pianista de explicitar sua contrariedade e marcar distância em relação aos modernistas foi provavelmente reforçado por outras demonstrações do suposto “caráter exclusivista” dos organizadores da festa. A primeira delas, não esqueçamos, havia aparecido na véspera — o provocativo artigo de Oswald de Andrade que desancava o medalhão nacional Carlos Gomes, o glorioso autor do Guarani . Já no dia seguinte ao ataque, a Gazeta publicava uma espirituosa resposta, assinada por um certo Mestre Cook. Dizia ele que não ficaria surpreso se os conferencistas da Semana declarassem que Castro Alves não sabia gramática, Fagundes Varela era um bêbado, e Gonçalves Dias “um mulato insigne em quebrar versos”. Além de Oswald, o próprio Graça Aranha, em sua conferência, ajudou a alimentar a refrega. Não apenas por ressaltar o traço paródico da arte moderna — uma “arte que zomba da própria arte” —, mas por ter afirmado, logo a seguir, que, diante da “maravilhosa aurora” do modernismo, tudo que fora feito antes no Brasil, na música e na pintura, seria “inexistente”. Essas passagens do conferencista aliadas à música de Satie e ao direto desferido por Oswald no “passadismo”, sob medida para atiçar os ânimos na noite de abertura, serviam para confirmar as piores suspeitas dos conservadores. Se Carlos Gomes não valia nada e se a nova escola se divertia com zombarias a Chopin, era porque, como acusou o jornalista Mário Pinto Serva ao criticar a exposição de arte, os “futuristas” desprezavam os gênios do passado, como Dante, Goethe e Shakespeare. Na dúvida, Guiomar Novaes preferiu expor sua insatisfação e defender uma hipotética posição de intérprete neutra diante das variadas tendências musicais.
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A ESTÉTICA DE GRAÇA ARANHA
A sra. Antonieta Borba, tia de Rubens Borba de Moraes, estava naquela noite no Municipal incumbida pelo sobrinho, acamado na fazenda em Araraquara, de tomar notas e enviar-lhe um resumo dos acontecimentos. De acordo com seus registros, feitos à mão sobre o próprio programa, Graça inaugurou a primeira noite da Semana com a presença, no palco, de “todos os novos”. Foi o que também assinalou o Jornal do Comércio ao noticiar o programa com o conferencista, em cena aberta, “rodeado por todos os artistas que tomavam parte na Semana de Arte Moderna”. Numa conta que incluísse artistas plásticos, escritores, palestrantes, bailarina, instrumentistas, cantores (ficando de fora o “coro feminino oculto” que atuou na última noite), chegaríamos a cerca de quarenta pessoas. Mas talvez fossem menos a acompanhar Graça no palco, apenas os protagonistas — pouco mais de vinte, entre artistas e escritores. De qualquer forma, pode-se imaginar que Villa-Lobos estivesse em meio aos “novos”, em torno do conferencista. Teria sido aquela sua primeira aparição num palco da Pauliceia. Em desacordo com a casaca, estaria usando o famoso chinelo que entrou para o folclore da Semana, por ter gerado especulações sobre uma possível atitude “futurista”. Como o próprio músico contou, a razão do inusitado calçado estava numa “bruta manifestação de ácido úrico” que o atacara nos pés antes de viajar para São Paulo.
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Com as luzes acesas, Graça começou a discorrer sobre “A Emoção Estética na Arte Moderna”. Menotti del Picchia, sem consultar arquivos, recordando-se dos momentos que teriam se fixado em sua memória, disse que o conferencista se apresentou sentado — e assim deveriam estar seus acompanhantes — “numa cadeira no canto esquerdo da cena visto da plateia”.131 O tom do discurso teria sido “natural e didático”, sem exageros retóricos. Lida de ponta a ponta, sem interrupções para pausas dramáticas, a palestra teria tomado pouco menos de meia hora da audiência. Depois de citar as “desvairadas interpretações da natureza” que se viam no saguão do teatro, o escritor começou por argumentar que a arte não poderia ser subordinada à ideia do Belo. “Nenhum preconceito”, a seu ver, seria mais “perturbador à concepção da arte do que a Beleza”, uma vez que não há como defini-la, a não ser com convenções e conceitos precários e inexatos. “Onde repousa o critério infalível do belo?”, perguntou à plateia. Impossível dizer. A arte, portanto, deveria ser considerada uma expressão “independente deste preconceito”. Sua verdadeira função estaria em proporcionar a tal integração da subjetividade ao Todo Universal. A emoção estética provocada pela obra de arte, ao despertar sentimentos vagos e sensações misteriosas, conduziria o espírito humano à sua “suprema alegria” — numa espécie de gozo na unidade do cosmos. Não é muito difícil tratar com desdém o esquema monista do ideário de Graça Aranha — e, com isso, ridicularizar sua intervenção no Municipal e no próprio modernismo. Prestando-se atenção na conferência, no entanto, outros aspectos poderiam se distinguir — como o individualismo professado pelo conferencista. Para Graça, o indivíduo, base da estrutura social, passava nos tempos modernos por um processo de libertação propiciado por revoluções políticas e científicas, mas em especial pelas teorias de Darwin:
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O individualismo freme na revolução francesa e mais tarde no romantismo e na revolução social de 1848, mas a sua liberdade não é definitiva. Esta só veio quando o darwinismo triunfante desencadeou o espírito humano das suas pretendidas origens divinas e revelou o fundo da natureza e as suas tramas inexoráveis.
Nesse contexto, a arte moderna surgia como manifestação de ampla liberdade do sujeito. Ao rejeitar as regras impostas pelas academias e os constrangimentos culturais à livre inspiração, a nova estética, segundo Graça, estimulava “o mais livre e fecundo subjetivismo”. Em seu depoimento sobre a Semana, René Thiollier mencionou as críticas do escritor maranhense à Academia, considerada um grande mal para a renovação estética do Brasil, por suscitar um estilo que constrangia a livre inspiração. Acadêmico de primeira hora, Graça nesse momento, de acordo com Thiollier, teria irritado seu colega de imortalidade, Alfredo Pujol, instalado numa frisa do teatro, “anafado e solene”. Menos discreto teria sido um senhor que se inquietou na plateia por julgar “indigno ouvir-se uma coisa assim”. Foi preciso que um amigo o agarrasse pelo casaco para que permanecesse sentado. Se os ataques à Academia — da qual sairia ruidosamente em 1924 — irritaram alguns, o reconhecimento do darwinismo e as ideias individualistas destoavam das visões religiosas — compartilhadas por parte de nossos modernistas — e também das ideologias coletivistas, que prosperavam à sombra da Revolução Russa. •
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Sérgio Milliet, em artigo para a Lumière, publicado em novembro de 1922, comentou: Graça Aranha, autor de Canaã, livro já traduzido em francês, e de Estética da vida, membro da Academia Brasileira, teve a enorme coragem de romper com o passado para se colocar à frente dos jovens. Ele tem entusiasmo, convicção e influência, mas temo que não compreenda bem o verdadeiro intuito dos modernos, que não é a procura de uma liberdade absoluta, mas sobretudo de novas regras de construção. •
Autor de Luz gloriosa (1913) e Poemas e sonetos, livros de inspiração parnasiana e simbolista, Ronald de Carvalho presumivelmente leu, para ilustrar a conferência, versos de Epigramas irônicos e sentimentais, a obra modernista que estava por lançar. Amigo de Graça e de seu filho, foi chamado pelo conferencista de “o meu Ronald de Carvalho”. Já Guilherme de Almeida, sempre elogiado pela destreza poética, mas considerado um modernista “moderado”, escrevera Nós (1917), A dança das horas (1919), Messidor (1919) e Livro de horas de Sóror Dolorosa (1920). Em 1922 publicava Era uma vez…, com ilustrações de John Graz — talvez a fonte de suas declamações. Segundo Anita Malfatti, “Guilherme de Almeida leu os versos no palco; Ronald de Carvalho não subiu, pois não estava com tanta coragem”.
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MAIS QUE UM LOBO
Encerrada a conferência, com os aplausos de praxe, a iluminação foi reduzida para o início do concerto. Uma boa ocasião para “algum bobo”, como anotou Antonieta Borba, fazer piada. Em voz alta, “com muita falta de graça”, alguém teria dito, em tom de ironia, sentir-se “maravilhado” com o que ouvira. Não obtendo reação, no entanto, segundo a testemunha, o inoportuno “calou-se”. Silêncio no ambiente, subiram ao palco Alfredo Gomes e Lucília VillaLobos. Ele, violoncelista, era sobrinho do detratado Carlos Gomes; ela, pianista, esposa do compositor carioca. Faziam parte de um grupo de dez instrumentistas e dois cantores — a maioria do Rio — ensaiado pelo maestro para as apresentações em São Paulo. No centro das atenções de um Municipal ansioso por conhecer a música do propalado “gênio” carioca, o duo deu início à Sonata número 2, para violoncelo e piano — de 1916. Pela primeira vez uma plateia paulista ouvia Villa-Lobos. E reagiu bem à primeira audição. Lucília deixou o palco aplaudida, enquanto Alfredo Gomes permaneceu para receber a violinista Paulina d’Ambrósio e o pianista Frutuoso Vianna, que fariam com ele a apresentação do Trio segundo. Mais uma vez, a plateia acolheu civilizadamente o que ouviu — e, a julgar pelos comentários da imprensa, gostou em especial do segundo movimento, a Berceuse-Barcarola.
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Com o Trio chegou ao fim a primeira parte do festival, que foi retomado depois do intervalo com a palestra de Ronald de Carvalho sobre “A Pintura e a Escultura Moderna no Brasil”. De acordo com o Jornal do Comércio, o poeta e crítico passou em revista os trabalhos expostos no hall do teatro, “fazendo ver que nenhum deles obedecia a nenhuma escola, procurando cada artista ser pessoal”, sem preconceitos e “peias acadêmicas”. A Folha da Noite achou a crítica “laudatória”, mas elogiou os ataques — feitos “com veemência e boa ironia” — ao ensino das artes no Brasil. Concluídas as considerações de Ronald, as luzes mais uma vez diminuíram para a música de Villa-Lobos. Ernani Braga voltou à cena para uma sequência de três solos de piano — Valsa mística (1917), Rodante (1919) e Fiandeira (1921). As duas primeiras eram peças curtas, com menos de dois minutos. Já a terceira, aproximando-se dos três minutos, teria sido involuntariamente cortada pelo intérprete. É que a Fiandeira exigia o uso de um pedal contínuo, sobretudo no final, que não convencia Braga. Por isso mesmo, alguns dias antes da estreia, numa reunião na casa do maestro Luiz Chiafarelli, o pianista tocou sem seguir a indicação quanto ao pedal. Villa-Lobos, que estava presente, teria se erguido, segundo Braga, “de olhos arregalados” e declarado no meio da sala, em alto e bom som, que aquilo não era dele. Diante do constrangimento, Chiafarelli pediu um bis, agora com o tão polêmico pedal. Braga atendeu ao pedido e o autor teria exultado, abraçando-o satisfeito. Todos pareciam ter aprovado a versão. Menos Chiafarelli. No relato de Braga, ele o chamou num canto e aconselhou: “Use o pedal como da primeira vez; o Villa não é pianista, você é quem está com a razão”. Quando chegou a hora de apresentar a Fiandeira no Municipal, o intérprete, nervoso, ficou na dúvida. Com pedal ou sem pedal? Como Villa
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queria ou como ele e Chiafarelli achavam melhor? E se o compositor reclamasse diante daquele público que já lhe parecia “meio zangado”? Sem saber o que fazer, Braga saiu tocando “em plena turbação de sentidos”. O resultado foi que se perdeu no meio da peça e, de repente, sem saber como, estava na última página. Reduziu a Fiandeira “à quarta parte”. Não se sabe qual foi a reação de Villa, mas, a crer na história do pianista, o auditório gostou daquela peça “tão viva, tão extravagante… e tão curtinha”.132 Abreviado seu tempo em cena, Braga deixou o palco para a entrada dos instrumentistas encarregados do Octeto. Executariam Três danças africanas: Farrapós (1914), Kankukus (1915) e Kankikis (1916), originalmente criadas para piano. De acordo com o Jornal do Comércio, o próprio Villa-Lobos dirigiu o conjunto. As Danças mexeram com a plateia. Em suas anotações, Antonieta Borba de Moraes entusiasmou-se: “Interessantíssimas e lindas danças. Paulina d’Ambrósio toca violino admiravelmente; não temos ninguém em São Paulo que lhe aproxime. Maravilhoso! Gostei muitíssimo!”. E sobre o autor: “Este Villa-Lobos é um bicho! É mais que um lobo, é um leão!”. O “leão” carioca foi o artista mais bem representado da Semana, escalado para as três jornadas, com um total de vinte peças — duas sonatas, dois trios, dois quartetos, um octeto, seis composições para canto e piano, e sete para piano solo. O número era o mesmo das obras exibidas por Anita Malfatti no saguão, mas a pintora tinha a companhia de oitenta trabalhos de outros artistas, enquanto ele, único compositor brasileiro do evento, comparecia com mais que o dobro dos títulos dos demais — ao todo cinco autores franceses.
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UM ARTISTA EXCEPCIONAL
Os diários noticiaram a boa acolhida do público à primeira audição de Villa-Lobos no Municipal e elogiaram o compositor. O Jornal do Comércio relatou que a Berceuse-Barcarola do Trio segundo “foi coroada por frenéticos aplausos” e classificou as Danças africanas de “esplêndidas”. O Correio Paulistano afirmou que o número final produziu “boa impressão” e mereceu “justas palmas do auditório”. A Folha da Noite também disse que a Berceuse-Barcarola foi bem recebida e descreveu as Danças africanas como “curtas e encantadoras”. Não obstante parecessem “fortemente características”, essas peças, no entender do jornal, revelavam “um artista excepcional”. E, na Gazeta, Villa-Lobos foi tratado como um incontestável “talento de escol”, apesar do “preconceito de escola”. Não houve registro de vaias no primeiro festival, embora o folclore em torno da Semana fosse, com o tempo, produzindo novas versões, como uma de Ernani Braga, segundo a qual Graça Aranha “foi demolindo, um após outro, os ídolos antigos”, como Bach, Beethoven e Wagner, até chegar a Carlos Gomes. Quando, enfim, fuzilou o compositor de Campinas, “foi uma vaia tremenda, formidável, uma cousa do outro mundo, um barulho de todos os infernos”.133 Ocorre que em nenhum momento Graça se referiu a Carlos Gomes — e as publicações e articulistas da época nada falaram sobre essa vaia, que só aconteceria na quarta-feira. Nas
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lembranças de Menotti del Picchia, “a plateia comportou-se com respeitoso desapontamento por ver e ouvir o que não esperava, deixando o chefe do movimento intrigado com a passividade de seu auditório”. Quanto ao traço “fortemente característico” das Danças africanas, mencionado de modo crítico pela Folha da Noite, a expressão diz respeito ao uso de elementos do folclore musical ou da “música brasileira” por compositores desejosos de dar uma coloração local a suas obras. A “peça característica” é uma espécie de correspondente do regionalismo literário na música. Na ausência de uma elaboração que conseguisse unir de maneira orgânica o vocabulário musical popular ao erudito europeu, o resultado parecia uma colcha de retalhos. Como explica o crítico, ensaísta e músico José Miguel Wisnik, essas obras do início do século eram “espécimes híbridos de relances de ‘música brasileira’ encravados em suítes e rapsódias”, nas quais trechos sincopados apareciam “espremidos entre trêmulos e floreios pianísticos totalmente estranhos aos motivos populares utilizados”.134 As manifestações mais críticas da imprensa na cobertura do primeiro festival da Semana dirigiram-se à exposição de arte e à conferência de Graça Aranha, considerada decepcionante por não ter defendido a escola futurista como se imaginava. “Era de esperar que uma arte que pretende ser nova recebesse do seu paladino ilustre a marca indelével e elucidativa de algum princípio também novo com que a pretensa escola se apresenta à conquista de modernos ideais”, publicou A Gazeta, na terça 14. Para o jornal, o mundo subjetivo apontado pelo conferencista como fonte da arte moderna seria na realidade fonte de qualquer manifestação estética — e, sendo assim, aquilo que se oferecia como novo parecia “tão velho como a Sé de Braga”.
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No mais, boa parcela das reportagens e artigos queixou-se da longa duração da noitada, que teria tornado enfadonha parte da audição de Villa-Lobos. Apenas a execução de suas peças teria consumido cerca de uma hora e quinze minutos. A conferência de Graça, praticamente meia hora. Supondo-se tempo equivalente para a palestra de Ronald, teríamos, só com os três, aproximadamente duas horas e quinze minutos. Acrescentando-se as peças de Satie e Poulenc executadas por Ernani Braga, os poemas recitados, os aplausos, o sobe e desce do palco e um imaginável intervalo entre as duas partes, iríamos para mais de duas horas e meia de espetáculo numa noite de segunda-feira — sem contar o vernissage da mostra de arte. “Programa excessivamente longo”, observou o Correio Paulistano; “parte musical por demais longa”, escreveu a Folha da Noite. Para o Jornal do Comércio, a comissão organizadora precisaria atentar, nos futuros programas, “para a extrema duração dos espetáculos, em virtude da prolixidade do de ontem, que cansou demasiado o público, impedindo que apreciasse devidamente as diversas e interessantes manifestações de arte moderna em nosso país”. Em outras palavras, muitos acharam a noitada comprida e chata — entre eles, quem sabe, o jovem pintor Alfredo Volpi, que estava nas galerias. 135
22 HAPPENING FUTURISTA
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Desenho feito por Menotti del Picchia reconstitui o momento em que o autor de Juca Mulato teria apoiado Mário de Andrade em meio às vaias que eclodiram no segundo festival da Semana.
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Ao anunciar no Correio Paulistano o segundo festival da Semana de Arte Moderna, Menotti del Picchia, com seu pseudônimo Hélios, considerou que havia terminado “sem mortos e feridos” a “primeira batalha”, travada na segunda-feira, entre a “cultíssima e aristocrática plateia de São Paulo” e o grupo dos “futuristas”. Num artigo que poderia ser chamado, hoje, de “marqueteiro”, o articulista antecipava para a quarta-feira uma “vitória garantida”. O principal motivo da certeza era simples: o time vanguardista levaria como “mascote” uma “glória universal” — a pianista Guiomar Novaes (1894-1979), conhecida e elogiada na Europa e nos Estados Unidos. A filha de São João da Boa Vista, cidade do interior paulista, era um prodígio. Aos quinze anos fora aceita no Conservatório de Paris por uma banca da qual fazia parte Claude Debussy. E concluiu os estudos com uma premiada execução de Balada, do seu admirado Chopin. Menotti deveria ter conhecimento da carta de Guiomar Novaes, publicada no mesmo dia de seu artigo, na qual se queixava do caráter “exclusivista” da primeira noitada e repudiava a execução da peça paródica de Satie. Era o que indicava seu texto, ao sublinhar que a “gloriosa artista” se colocava “visceralmente em desacordo com as irreverências dos futuristas para com os mestres”, embora isso não a impedisse de “achar altamente intelectual e galhardo o movimento dos vanguardistas”. •
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Se a consagrada virtuose era uma boa isca para o público, restava ao time “escarlate” dos modernistas partir para a ofensiva e retirar a contenda do zero a zero — o decepcionante placar do primeiro confronto, na avaliação de Hélios. 136 E seria justamente ele o responsável pelo pontapé inicial. Com sua fama de poeta, sua experiência de jornalista político e seu talento para o agitprop, tinha tudo para esquentar a plateia na abertura dos trabalhos. Menotti, no entanto, começou seu discurso na retranca. “Julgam-nos”, disse ele, “uns cangaceiros da prosa, do verso, da escultura, da pintura, da coreografia, da música, amotinados na jagunçada do Canudos literário da Pauliceia desvairada… Que engano! Nada mais ordeiro e pacífico do que este bando de vanguarda…” Essa tentativa de afastar temores quanto às intenções rebeldes dos “futuristas” fez soar, logo de saída, o acorde ambíguo que acompanharia a primeira parte do pronunciamento. Numa estratégia “morde e assopra”, o conferencista, falando de pé, parecia ter um olho no gato e outro na frigideira. Aqui, acalmava os conservadores; ali, lançava um brado guerreiro a seus amigos futuristas, sentados em cadeiras dispostas sobre o palco. Amigos futuristas? “Não somos e nunca fomos futuristas”, assegurou o tribuno, dizendo abominar o “dogmatismo e a liturgia” de Marinetti. Pouco depois, entretanto, partia em outra direção: o vanguardista italiano era pintado como um “precursor iluminado, que veneramos como um general”. Na verdade, tentou explicar Menotti, o que não fazia sentido para os modernistas brasileiros seria o “futurismo ortodoxo”, pois — como já dissera Graça Aranha na segunda-feira — “ao nosso individualismo estético repugna a jaula de uma escola”. Salvaguardadas as diferenças dos “temperamentos” artísticos do grupo, faltava indicar o denominador comum:
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O que nos agrega não é uma força centrípeta de identidade técnica ou artística. As diversidades das nossas maneiras as verificareis na complexidade das formas praticadas. O que nos agrupa é a ideia geral de libertação contra o faquirismo estagnado e contemplativo, que anula a capacidade criadora dos que ainda esperam ver erguer-se o sol atrás do Partenon em ruínas.
Irmanavam-se, portanto, os participantes do movimento, no combate ao atraso, à indigência estética, ao apego a valores e estilos decadentes e ultrapassados. E o que desejariam no lugar disso? “Queremos”, anunciou o palestrante, em elétrica recaída futurista, “luz, ar, ventiladores, aeroplanos, reivindicações obreiras, idealismos, motores, chaminé de fábricas, sangue, velocidade, sonho, na nossa arte!” Havia chegado a hora de o “rufo de um automóvel” espantar da poesia “o último deus homérico, que ficou anacronicamente a dormir e sonhar, na era do jazz-band e do cinema, com a flauta dos pastores da Arcádia e os seios divinos de Helena”. Menotti atacava a poética parnasiana e a sedimentação do gosto “clássico”, formado por padrões europeus anacrônicos, desconectado do novo século e do jovem país que comemorava o centenário de sua Independência. Naquele início do século xx, São Paulo demonstrava a existência de um Brasil sintonizado com o mundo das lutas operárias, das chaminés, dos idealismos, para o qual o canto decorativo dos mitos da Antiguidade nada mais tinha a dizer: Basta de se descrever as correrias dos sátiros caprinos atrás das ninfas levípedes e esguias: a Babilônia paulista está cheia de faunos urbanos e as ninfas modernas dançam maxixe ao som do jazz , sem temer mais
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egipãs da República… Morra a Hélade! Organizaremos um Zé-pereira canalha para dar uma vaia definitiva e formidável nos deuses do Parnaso!
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Para o conferencista, a vida moderna exigia também o abandono do canto da mulher fatal, a “mulher-fetiche”, a “mulher-cocaína”, a “mulher tuberculosa lírica”. Que se visse nela, como cobravam os novos tempos, uma “colaboradora inteligente” da batalha diária: “Queremos uma Eva ativa, bela, prática, útil no lar e na rua, dançando o tango e datilografando uma conta-corrente; aplaudindo uma noitada futurista e vaiando os tremelicantes e ridículos poetaços de frases içadas de termos raros como o porco-espinho de cerdas”. Em contraste com seu regionalismo telúrico de anos antes, o autor de Juca Mulato via agora a nação pelas lentes urbanas de sua capital industrial. Nesse país emergente, o vaqueiro se transformava em “cowboy nacional”, o capitalista ganhava milhões e nasciam heróis como Santos Dumont ou o admirado Edu Chaves, pioneiro aviador (primo, aliás, de Paulo Prado), que reproduzia, “com audácia paulista, o sonho de Ícaro”. Esse cenário exigia o fim do que restava de “postiço, meloso, artificial e arrevesado” em nossas artes e letras. “Queremos escrever com sangue — que é humanidade; com eletricidade — que é movimento, expressão dinâmica do século; violência — que é energia bandeirante”, pontificou o eufórico palestrante, pouco antes de terminar. E, num último basta a Atenas, saudou mais uma vez a Pauliceia, essa “cidade tentacular”, palco de tantas “tragédias hodiernas”, que chegava aos 600 mil habitantes.
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A expressão “cidade tentacular” evocava o poeta belga Émile Verhaeren, uma das referências de Mário de Andrade em Pauliceia desvairada — título também mencionado pelo conferencista. As citações pareciam traduzir a intenção de falar pelo coletivo e talvez de ressaltar o que haveria de “mais atual” na poesia paulistana — justamente os poemas do livro modernista que Mário ainda estava por lançar. Menotti, entretanto, parecia ter uma visão da grande cidade mais eufórica que a de seu colega, que seria menos aderente à “modernolatria futurista”. 137 •
Em 1971, em depoimento ao mis-sp, Menotti considerou seu discurso “um pouco caricato”.
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VIVA A VAIA
Concluída a conferência — mais curta que a de Graça Aranha —, o tribuno chamou à cena Oswald de Andrade. E eis que rompeu no Municipal a grande assuada: “Uivos, gritos, pateadas no assoalho, risadas, dichotes chistosos ou impertinentes. Um caos!”, descreveu Menotti em A longa viagem. Ali estava, diante da audiência excitada, o rechonchudo provocador, que no domingo torpedeara, nas páginas do Jornal do Comércio, o mestre das naturezas-mortas Pedro Alexandrino e o inatacável compositor Carlos Gomes. Enfrentava a turba o bem-criado filho de d. Inês, o exrepórter do Diário, fundador de O Pirralho e de Papel e Tinta, protagonista da paixão escandalosa pela bailarina adolescente, parceiro de Guilherme de Almeida, acompanhante de Isadora Duncan em São Paulo, viúvo, in extremis, da sedutora Deisi, o Miramar da garçonnière da Líbero Badaró e da praça da República, o dissidente do Trianon, o descobridor de talentos, que lançara Mário de Andrade e Victor Brecheret. “Quanto mais a vaia subia com silvos, gritarias e apupos”, lembrou-se Anita, “mais calmo e feliz ficava o Oswald, e sua voz muito suave, mas de registro muito intenso, foi aumentando de volume até terminar tudo que queria dizer.” A descrição de Menotti é semelhante: “Como um herói
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numa trincheira visada por todos os lados pela fuzilaria inimiga”, o escritor apresentou-se “calmo, com o sorriso mordaz com que fazia suas travessuras literárias”. Travessuras que, àquela altura, é bom lembrar, eram escassas. Ainda não nascera o poeta sintético, imaginoso e surpreendente do Pau-Brasil , tampouco o inspirado autor do “Manifesto Antropófago” e de narrativas arrojadas, como Memórias sentimentais de João Miramar. Conhecido sobretudo pela atividade jornalística, Oswald leu no Municipal trechos de seu primeiro romance, Os condenados, da Trilogia do exílio, previsto para ser lançado naquele ano pela editora de Monteiro Lobato. A história passava-se em São Paulo e os personagens ecoavam figuras do círculo do autor, como a endiabrada Miss Cyclone e o escultor Brecheret. O livro trazia características cinematográficas, como descontinuidades e busca da simultaneidade, mas ainda estava muito longe do que o escritor faria de melhor. Para o professor e crítico Antonio Candido, pode-se considerar Oswald de Andrade autor de “duas obras paralelas”, uma de vanguarda, outra mais tradicional. Os condenados, apesar do “estilo descontínuo”, seria um exemplo da vertente convencional. Em depoimento ao mis-sp, por ocasião do centenário do nascimento do escritor, Candido declarou que o romance parecia “o Oswald de Andrade fazendo pastiche e piada com o Oswald de Andrade”. Inovador ou não, pouco importava. O que se impunha naquele instante era o happening futurista, com gracejos e xingamentos, que, enfim, se encenava no palco maior da Pauliceia. Como o próprio Oswald lembrou: Menotti, de pé, iniciou a apresentação dos novos escritores, aproveitando o primeiro silêncio. Ouviram-no atenciosamente até o fim. Aí,
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disse ele, apontando-me, que para dar um exemplo do que era a prosa nova, ia eu ler um trecho de romance inédito. Eu levava comigo umas laudas contendo uma página evocativa de “Os Condenados”, que nada tinha de excessivamente moderno ou revolucionário. Mas a pouca gente interessava o que eu ia ler e apresentar. O que interessava era patear. Apenas Menotti se sentou e eu me levantei e o Teatro estrugiu numa vaia irracional e infrene. Antes mesmo d’eu pronunciar uma só palavra. Esperei de pé, calmo, sorrindo como pude, que o barulho serenasse. Depois de alguns minutos, isso se deu. Abri a boca então. Ia começar a ler, mas a pateada se elevou, imensa, proibitiva. Nova e calma espera, novo apaziguamento. Então pude começar. Devia ter lido baixo e comovido. O que me interessava era representar o meu papel, acabar depressa, sair se possível. No fim, quando me sentei e me sucedeu Mário de Andrade, a vaia estrondou de novo. Mário, com aquela santidade que às vezes o marcava, gritou: “Assim não recito mais!”. Houve grossas risadas.
Não há dúvida de que a Semana havia sido concebida pelos seus idealizadores para causar furor, marcar uma data, gerar atritos e instaurar-se como marco simbólico de uma transformação. Sem reações de desagrado, sem polêmica e sem vaias, o plano corria o risco de naufragar. A imprensa, aliás, já tocara na ferida, na cobertura da primeira noite, ao notar que a expectativa hostil do público se transformara em aplausos — o oposto do que se esperava de um acontecimento futurista: “O êxito, encarado ele sob o ponto de vista de todos, foi completo, isto é, foi um fracasso”. 138 Depoimentos de participantes do evento sugerem que o receio do fiasco os teria levado a incentivar alguns conhecidos a puxar a vaia no
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segundo dia. Os provocadores serviriam para estimular a plateia a cumprir seu papel no espetáculo, aderindo, ao menos em parte, ao rito atritivo e ruidoso para que fora, afinal, tacitamente convidada. Depois da noite chocha de segunda, seria “importante”, como disse Menotti, “uma reação violenta do público”. Daí que se providenciassem, segundo ele, “pequenos grupos estrategicamente colocados” com a missão de “acirrar a projetada vaia”.139 Reza o folclore que parte dessa vanguardinha do barulho era formada por estudantes, arregimentados por Oswald. Mário da Silva Brito, que conheceu os protagonistas da festa, afirmou que os “comandantes da assuada” foram Cícero Marques, Carlos Pinto Alves e Getúlio de Paula Santos.140 Di Cavalcanti, em depoimento ao misrj, gravado em 1966, também falou de “um sujeito chamado Cícero Marques”. Tratava-se de um aviador, conhecido de Paulo Prado, que o teria convocado para ajudar na organização da vaia. Amigo de Edu Chaves, o personagem fazia parte da turma de playboys paulistas que praticava esportes e vibrava com o automobilismo e a aviação. Participou de pioneiras missões militares na Guerra do Contestado e foi o primeiro piloto a voar nos céus do Rio Grande do Sul. Antonieta Borba, que diz ter visto “muitos malcriados” naquela noite, não registrou o nome de Cícero Marques e o do advogado Getúlio de Paula Santos em suas anotações, mas apontou Carlos Pinto Alves como um dos vaiadores. Alves, anos depois, participaria da criação do Museu de Arte Moderna de São Paulo e seria um de seus diretores. Além dele, a tia de Borba de Moraes incluiu Carlos Magalhães, Fernando C. Leão e “os Le beis” na turma do barulho. À reportagem de O Estado de S. Paulo não escapou a possibilidade de que a zombaria coletiva da segunda noite tivesse contado com o apoio de uma claque:
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Talvez isto também estivesse nas intenções dos promotores da reunião, embora não figurasse no programa. Espontânea manifestação da galeria ou claque de novo gênero, o certo é que as frases e atitudes menos respeitosas atingiram algumas vezes artistas respeitáveis pelo seu talento e pelo seu passado, que colaboravam no festival.
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ODE A MÁRIO
Ficou na memória da Semana que Mário de Andrade teria enfrentado a plateia ululante do teatro com os versos inconformados de “Ode ao burguês”: Eu insulto o burguês! O burguês-níquel, o burguês-burguês! A digestão bem-feita de São Paulo! O homem-curva! o homem-nádegas! O homem que sendo francês, brasileiro, italiano, É sempre um cauteloso pouco-a-pouco!
Alguns historiadores e comentadores do evento endossam essa versão sem, no entanto, mencionar as fontes. Se os artigos publicados na época pela imprensa não entram em detalhes sobre os textos que foram recitados, Menotti del Picchia, pelo menos em duas ocasiões, indicou que Mário declamou o poema “Inspiração”, de Pauliceia desvairada. Em A longa viagem, Menotti reconstituiu os acontecimentos que marcaram a apresentação do poeta, comparado por ele ao Cristo entregue à multidão: Foi minha vez de tentar serenar o tumulto. Agora ninguém me obedecia. A sessão, porém, não podia parar. Então chamei Mário de
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Andrade. À vista de Mário — do grande Mário — a plateia pareceu ficar alucinada: o clamor atroou com a violência com que os escribas, os fariseus e a patuleia judaica gritavam crucifige no átrio de Pilatos quando o covarde legado de César entregou à turba a figura sanguinolenta do Cristo após a flagelação. Era contra Mário de Andrade que a revolta da assistência explodia com maior veemência. Como no Horto, o Filho do Senhor, Mário de Andrade pela primeira vez fraquejou. Adivinhei nos seus olhos a súplica que o Cordeiro dirigiu ao Pai celeste na hora suprema da agonia: “Afasta de mim esse cálice…” Não havia ceder. Compreendi a angústia do mártir — pois Mário tornou-se o Tiradentes da nossa Inconfidência — e vendo que ele recuava ao impacto estertóreo da plateia, segurei-o pelo paletó e disse: — Mário! Que é isso? O grande artista — glória da geração — reagiu já sereno e heroico. Vi-o voltar-se para a plateia, fronte larga como uma praça coruscante de sol rebrilhando à luz dos refletores, mão nervosa premendo o original amassado, voz que procurava tornar dominadora e declamar: “São Paulo! comoção de minha vida…” Declamou até o fim seu canto arlequinal, pórtico desse desafio genial do Verbo Novo que é Pauliceia Desvairada.
A mesma história foi contada pelo autor de Juca Mulato, em 1971, para o mis-sp — e mais uma vez ele citou “Inspiração”: São Paulo! Comoção de minha vida… Os meus amores são flores feitas de original… Arlequinal!… Traje de losangos… Cinza e ouro… Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes…
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Perfumes de Paris… Arys! Bofetadas líricas no Trianon… Algodoal!… São Paulo! Comoção de minha vida… Galicismo a berrar nos desertos da América!
Antonieta Borba também deixou suas impressões sobre a participação de Mário na récita, mas não especificou nenhum título de poema. Registrou que ele foi “vaiadíssimo” e se mostrou “um tanto nervoso”. Em 1942 — sem dizer o que declamara em 22 — o próprio poeta comentou o ambiente hostil que cercou sua apresentação e a conferência que, pouco depois, realizou no saguão do Municipal: Como tive coragem para participar daquela batalha! É certo que com minhas experiências artísticas muito que venho escandalizando a intelectualidade do meu país, porém, expostas em livros e artigos, como que essas experiências não se realizam in anima nobile. Não estou de corpo presente, e isto abranda o choque da estupidez. Mas como tive coragem para dizer versos diante duma vaia tão bulhenta que eu não escutava no palco o que Paulo Prado me gritava da primeira fila das poltronas?… Como pude fazer uma conferência sobre artes plásticas, na escadaria do Teatro, cercado de anônimos que me caçoavam e ofendiam a valer?… O meu mérito de participante é mérito alheio: fui encorajado, fui enceguecido pelo entusiasmo dos outros. Apesar da confiança absolutamente firme que eu tinha na estética renovadora, mais que confiança, fé verdadeira, eu não teria forças nem físicas nem morais para arrostar aquela tempestade de achincalhes. E se aguentei o tranco, foi porque estava delirando. O entusiasmo dos outros me embebedava,
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não o meu. Por mim, teria cedido. Digo que teria cedido, mas apenas nessa apresentação espetacular que foi a Semana de Arte Moderna. Com ou sem ela, minha vida intelectual seria o que tem sido.141
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OS POETAS
Não é uma tarefa simples precisar quem participou da récita literária e quem leu o que naquela noite. Os testemunhos variam, os historiadores divergem e os jornais da época pareciam não se entender com nomes pouco conhecidos. De acordo com o programa oficial, a conferência de Menotti seria ilustrada “com poesias e trechos de prosa” por Oswald de Andrade, Luís Aranha, Sérgio Milliet, Tácito de Almeida, Ribeiro Couto, Mário de Andrade, Plínio Salgado e Agenor Barbosa. É a mesma lista apresentada na cobertura do Jornal do Comércio, em 16 de fevereiro. Já o Correio Paulistano incluiu no rol Ronald de Carvalho e Armando Pamplona, que teriam lido textos de Ribeiro Couto e Plínio Salgado. Menotti, em A longa viagem, listou Oswald, Mário, Guilherme de Almeida, Ronald de Carvalho, Renato Almeida, Plínio Salgado e Agenor Barbosa. É uma relação que não merece confiança, pois, como ele próprio declarou, foram nomes lembrados sem nenhuma consulta a eventuais arquivos ou testemunhas. Além do mais, a cada artigo, a cada comemoração, a cada entrevista, os poetas lembrados por Menotti variavam. Já Oswald, em depoimento originalmente publicado pela revista Anhembi , em 1954, recordou-se de um grupo mais enxuto: Mário, Sérgio Milliet, Ronald de Carvalho, Agenor Barbosa e o poeta suíço Henri Mugnier.
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É comum ainda encontrar referências a Afonso Schmidt e ao jornalista e poeta carioca Álvaro Moreyra. É que eles constavam da primeira relação de artistas entregue à imprensa e publicada no final de janeiro. Além dos dois, apareciam nomes como Rodrigues de Almeida e Moacir de Abreu, sobre quem, posteriormente, não mais se falou. Quanto a Schmidt, ele próprio disse que não participou da festa. Moreyra, de acordo com depoimento de Di Cavalcanti ao mis-sp, também não — “mas foi importante no Rio”. •
Embora seja arriscado afirmar, o Correio Paulistano parece mais próximo dos fatos. Oswald, Mário, Luís Aranha, Tácito de Almeida e Agenor Barbosa, ao que tudo indica, leram ou recitaram textos próprios. Sérgio Milliet estava no Municipal, mas, aparentemente, pediu ao colega suíço Mugnier — lembrado por Oswald — que lesse um único poema de sua autoria, escrito em francês, o que consta das anotações de Antonieta Borba. Já Plínio Salgado, convidado na última hora por Menotti, é possível que tenha ficado literalmente “nos camarins da Semana” — para usar uma sugestiva imagem de Oswald em outro depoimento. A dúvida é se os versos do futuro integralista foram apresentados, como sugeriu o jornal, por Armando Pamplona ou por Ronald de Carvalho — como afirma Mário da Silva Brito em A revolução modernista.142 Ronald, que já declamara poemas de sua autoria na primeira noite, leu, com certeza, “Os sapos”, de Manuel Bandeira, que não viajou para São Paulo, e alguma coisa de Ribeiro Couto. O poeta santista, apesar de sempre citado como participante da Semana, não subiu ao palco do Municipal — como assegura o sociólogo e escritor José Almino de Alencar, expresidente da Casa de Rui Barbosa, que organizou a antologia Ribeiro
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Couto: melhores poemas e reuniu a correspondência entre o escritor e o amigo Bandeira. Elegante, com seus cabelos negros bem repartidos, Ronald de Car valho, chamado à cena, teria sido recepcionado com um latido, que partiu das galerias, onde se entrincheiravam estudantes. Depois de risos e comentários, deu-se, na descrição de Menotti, um momento de silêncio. “Atrevido e sorridente”, o poeta aproveitou a pausa e dirigiu-se à plateia: “Senhoras e senhores! Todos são testemunhas de que há um cachorro nesta sala e todos verificaram que ele não está aqui no palco, mas do lado de lá…” — e apontou para as galerias. A reação espirituosa teria contribuído para que se instaurasse um clima mais descontraído e amistoso — embora, segundo Antonieta Borba, alguém o tenha chamado de “almofadinha carioca”. Na versão da violinista Paulina d’Ambrósio, não foi uma imitação de latido: “Alguém zurrou nas galerias e Ronald, imperturbável, olhando para cima, disse: — ‘Cada um fala com a voz que Deus lhe deu’”. No final, o teatro repetia o refrão de “Os sapos”, acompanhando a leitura do poeta carioca: Clame a saparia Em críticas céticas: Não há mais poesia, Mas há artes poéticas… Urra o sapo-boi: . “ Meu pai foi rei!”. “ Foi!” . “ Não foi!” . “ Foi!” . “ Não foi!”143
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Guilherme de Almeida, por sua vez, embora mencionado em depoimento de colegas, não aparece nem no programa nem no noticiário do segundo festival. •
O pouco conhecido Tácito de Almeida ( 1899-1940) era irmão de Guilherme de Almeida. Advogado, militou em entidades de classe, na política e na imprensa. Na descrição de Mário da Silva Brito, seus versos tendiam ao “lirismo meditativo” e buscavam a integração do homem com a natureza. Passada a Semana, participou da revista modernista Klaxon. Sobre Agenor Barbosa, de quem pouco se falou depois da Semana, teria sido o único aplaudido na noite das vaias, supostamente por não ser um futurista. No entanto, ele leu no Municipal um poema de dicção futurista — “Os pássaros de aço” — que, segundo Silva Brito, Oswald elogiava. A primeira estrofe: No aeródromo, o aeroplano Subiu, triunfal, na tarde clara, Grande e sonoro, como o Sonho humano! Ó bandeiras de audácia!
Num artigo em que traçava uma panorâmica da poesia paulista, publicado em maio de 1922 na Ilustração Brasileira, Plínio Salgado classificou o mineiro Barbosa de “poeta raro da cidade moderna”, cujos versos interpretariam “as emoções atuais” e às vezes nostálgicas que tomavam os habitantes da Pauliceia, em meio a fábricas, locomotivas e o “fonfonar” dos automóveis. Era “nossa melancolia racial” a debater-se “na onda formidável do progresso”.
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Luís Aranha, poeta que se tornou cult na década de 1980, quando foi publicado Cocktails, escreveu poesia apenas entre 1920 e 1922. Formouse em direito, em 1926, e seguiu carreira na diplomacia. Ganhou fama com três poemas longos, Drogaria de éter e de sombra, Poema Pitágoras e Poema giratório. Ao todo, são 26 os seus textos poéticos conhecidos. Um trecho de Drogaria de éter e de sombra, de 1921: Injeções hipodérmicas contra a estética atrasada Vacina contra a nova… Laboratório químico Cadinhos retortas balões vidros copos termômetros tubos Vasos e alambiques Grande fábrica de produtos químicos sobre o rio Tietê Grandes conduções de água com reservatórios e tanques especiais Pontes que se fecham e se abrem Elevadores e chaminés Volantes roldanas cadeiras carretilhas Vagonetes turbinas canos máquinas e aparelhos elétricos Chave especial de uma estrada de ferro Trens internos para uso exclusivo da indústria Os fios telefônicos e elétricos são uma rede sobre a fábrica… O mundo é estreito para minha instalação industrial!…
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A HORA DA ESTRELA
Encerradas as declamações, os ânimos se acalmaram, com a entrada em cena da dançarina e cantora Yvonne Daumerie, que apresentou números de dança. Sobreviveram poucos detalhes sobre a apresentação dessa figura de “graça fina e ferina”, como a descreveu Menotti. Daumerie deu aulas de dança e canto em São Paulo. Foi professora de dança do jovem Sérgio Buarque de Holanda e, de canto, da atriz Tônia Carrero — cujo nome artístico foi dado por ela. O bailado de Daumerie serviu para preparar o clima do Municipal para a grande atração da noite, Guiomar Novaes. Sua carta, publicada no Estado, queixando-se do sectarismo dos modernistas na noite da inauguração, só teria aumentado — se isso era possível — a admiração do público por ela. A virtuose era a expressão máxima de um fenômeno paulista que Mário de Andrade chamou de “pianolatria”. São Paulo teria firmado, segundo ele, uma admirável tradição nesse instrumento, mas em prejuízo do estudo dos demais. Esse culto ao piano produziria alguns efeitos negativos no meio musical da cidade, como estreitar o repertório e estimular um certo sentimentalismo. Era como se São Paulo vivesse “em pleno romantismo”, fazendo de Chopin o “soluçante ideal de todas as nossas pianeiras”.144
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Se as vaias, gracinhas, latidos, miados e cacarejos das galerias deram o tom da seção literária da noite, havia chegado a hora dos aplausos. Como noticiou a Folha da Noite, depois da “grande confusão, que mal permitia fosse ouvido o que se dizia no palco”, a intérprete foi recebida com “estrondosa salva de palmas” e despertou “pouco vulgar entusiasmo”. 145 No teatro, em respeitoso silêncio, a pianista cumpriu o programa: executou Au jardin du vieux sérail , de Blanchet, o Ginete do Pierrozinho, de Villa-Lobos, e duas peças de Debussy, La soirée dans Grenade e Minstrels. Houve insistentes pedidos para que tocasse Chopin — mas não foram atendidos. Fora do previsto, Novaes concedeu ao público .’ Arlequin, do francês Vallon. Foi aplaudidíssima e, segundo o Correio Paulistano, chamada ao palco “mais de cinco vezes”. Da pateada à ovação, a primeira parte do festival chegou ao fim. Inter valo. Quem se interessasse poderia ouvir Mário de Andrade apresentar uma conferência na escadaria do saguão do teatro. Seria sobre arte moderna, como ele mesmo disse em seu depoimento de 1942, embora outros depoimentos, como o de Anita Malfatti, falem de uma leitura de A escrava que não é Isaura. Se isso de fato ocorreu, seria uma versão embrionária desse ensaio, só publicado em 1925, no qual o escritor expunha princípios de uma poética moderna. De acordo com a artista, o amigo leu o texto “nervoso, mas resolvido”, para um saguão que estava “repleto”. “E quando o pessoal da vaia deu com o que estava se passando, recomeçou, mas logo cessou, pois Mário tinha terminado.” Já o ilustrador Paim Vieira, em depoimento ao mis-sp em maio de 1971, estimou os presentes em cerca de “quarenta pessoas em pé”. Segundo ele, “Mário queria impor a nova arte afirmando que esses que estavam expondo naquele salão eram os clássicos do futuro”.
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Terminado o intervalo, a programação previa uma palestra de Renato Almeida com o título “Perennis Poesia”. Nascido na Bahia, Almeida (1895-1981) mudou-se ainda adolescente, com a família, para o Rio, onde se formou em direito, trabalhou como jornalista, e interessou-se por música, filosofia e estética. Discípulo e amigo de Graça Aranha, aproximou-se dos modernistas. Sua conferência, sobre a qual não ficaram detalhes — se é que de fato ocorreu, em meio às confusões que marcaram o segundo festival —, teria provavelmente, à moda de seu mestre, defendido a lírica moderna contra dogmas e regras “passadistas”. Sua participação precedia a entrada em cena, mais uma vez, da música de VillaLobos.
23 A CONSAGRAÇÃO DO MAESTRO
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O compositor carioca Heitor Villa-Lobos, que nunca havia se apresentado em São Paulo, teve obras executadas nos três festivais da Semana, o último deles inteiramente dedicado a suas composições.
Villa-Lobos foi o artista que mereceu mais destaque na Semana de Arte Moderna. O compositor carioca esteve presente nos dois primeiros festivais e ganhou um espetáculo — o terceiro — inteiramente dedicado à sua música. Apresentou ao todo vinte peças — duas sonatas, dois trios, dois quartetos, um octeto, seis composições para canto e piano, e sete para piano solo. É o mesmo número das obras exibidas diariamente por Anita Malfatti no saguão do teatro, mas ela dividia as atenções com oitenta tra balhos de outros artistas. Ele, único compositor brasileiro do evento, compareceu com mais que o dobro dos títulos dos demais — os franceses Blanchet, Debussy, Poulenc e Satie, além de Villon, executado por Guiomar Novaes a pedido da plateia. Com seu talento irrefutável, conquistou público, imprensa e mesmo alguns críticos do “futurismo” — que deram o braço a torcer, apesar de ressalvas e conselhos para que o jovem músico se livrasse da escola vanguardista a que supostamente estava filiado. Villa, na realidade, não se perfilava como militante modernista e não se destacava pelas ideias teóricas e programáticas. Longe disso. Nas palavras de Di Cavalcanti, parecia “incapaz, fora da música, de concatenar as coisas”. Mário de Andrade, numa carta a Manuel Bandeira, em 1924, também comentou essa característica do músico: Villa chegou. Como sempre: chega, vê e vence. E cansa também. Vence por aquela força que tem, aquela inconsciência no agir em negócios que o tornam singularmente cômico nesta cidade negociante. Domina
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por isso. Creio que conseguiremos que ele arranje por aqui uns cobres e em troca dê uns concertos. Vamos a ver! Mas ao mesmo tempo que domina a gente pela música e pelo jeito, cansa, meu Deus! Quando ele começa a falar e diz teorias, críticas etc. é um pavor. Nunca vi cabeça mais embrulhada que aquela. Às vezes tem críticas finíssimas, acertadíssimas. Mas isso vem de embrulho com uma porção de nefelibatismos, erros e até tolices. Mas não faz mal. A gente aguenta a conversa dele porque lembra-se da música.146
Aplaudido pela plateia do Municipal, ao maestro também não faltou a necessária “consagração da vaia”. Durante as apresentações de suas peças houve manifestação de desagrado e até embates com a audiência. O mais quente deles aconteceu na execução de três peças para canto e piano, Festim pagão, Solidão e Cascavel , na segunda noite, a cargo de sua mulher, Lucília, e do barítono Frederico Nascimento Filho. A uma altura do número, na versão de Paulina d’Ambrósio, “um gaiato das galerias gritou: — ‘Ride, Pagliaccio’ e o Nascimento replicou: — ‘Desce para eu lhe ensinar como se canta’”.147 O episódio também foi registrado pela imprensa. Para o Correio Paulistano, o procedimento do cantor “deixou muito a desejar”, bem como a atitude de “uma parte mínima da audiência, que nem sempre conservou a linha de respeito que devia manter em relação às famílias presentes”. A altercação — ou o que hoje alguém poderia chamar de “barraco” — teria culminado com uma briga física depois do espetáculo, pois, segundo Paulina, no dia seguinte Nascimento “apareceu com um dos olhos arroxeado, produto de sua singular lição de canto”. A violinista também deixou comentários sobre a dor que martirizava o maestro, obrigando-o a entrar em cena com um dos pés enfaixado (ela não fala em chinelo) e “apoiado em um guarda-chuva”. Não se sabe
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exatamente quando o público viu pela primeira vez essa cena, se foi na noite de estreia, com Villa no palco, ao lado de Graça Aranha, como supomos anteriormente, ou se no segundo festival, quando ele teria espetado com a ponta do tal guarda-chuva o enfezado barítono, “para que se calasse”. E em qual dos pés estaria enfiado o folclórico chinelo? O esquerdo — a crer em Menotti del Picchia. Mas convém manter uma dose de desconfiança, pois, no mesmo artigo em que faz essa afirmação, o articulista dizia que o maestro, de casaca, estava à frente da “orquestra do Municipal” — e, como se sabe, não houve orquestra no Municipal, apenas conjuntos de câmara.148 Numa carta ao compositor Arthur Iberê de Lemos ( 1901-67), Villa contou que, antes de deixar o Rio rumo a São Paulo, fora atacado nos pés por uma “bruta manifestação de ácido úrico”, que o fez partir capengando. Era esse, portanto, o problema, e não uma “unha encravada”, como aparece em algumas versões. 149
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O TERCEIRO FESTIVAL
No dia 17 de fevereiro, uma nota no Correio Paulistano anunciava o terceiro e último festival “com o concurso do distinto compositor patrício Villa-Lobos”. E informava que o valor dos ingressos fora reduzido. A “modicidade dos preços”, como dizia o jornal, era conveniente àquela altura. Depois de uma segunda-feira considerada longa em demasia — “o espetáculo estava longe do fim e o auditório já cabeceava de sono” 150 — e na sequência do agitado happening futurista da quarta-feira, pode-se imaginar que nem todos teriam ânimo para ir ao teatro, na sexta, assistir ao concerto do compositor, avaliado por alguns jornais como “prolixo”. Em seu depoimento sobre a Semana, Anita Malfatti fez referência ao “teatro, franqueado ao público”. É certo que a mostra de arte ficava aberta à visitação, mas, para os espetáculos, as entradas, como se sabe, foram postas à venda. É possível, contudo, que a determinada altura o acesso tenha sido, ao menos em parte, liberado. Em carta a Iberê de Lemos, Villa-Lobos fez um resumo de sua grande noite, marcada por vaias e pela prisão de um grupo de estudantes, com latas cheias de ovos podres e batatas para atirar no palco: Organizei um bom programa, revestido dos melhores intérpretes. Começamos pelo Terceiro Trio, que de quando em quando um
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espectador musicista assobiava o principal tema, paralelamente com o instrumento que o desenhava. A Lucília e a Paulina queriam parar, eu me ria e o Gomes bufava, mas foi até o fim. Nos outros números, novas manifestações de desagrado, até o último número, que foi o quarteto simbólico, onde consegui uma execução perfeita, com projeção de luzes e cenários apropriados a fornecerem ambientes estranhos, de bosques místicos, sombras fantásticas, simbolizando minha obra como imaginei. Na segunda parte desse quarteto, lembras-te?, o conjunto esclarece um ambiente elevado, cheio de sensações novas. Pois bem, um gaiato qualquer, no mais profundo silêncio, canta de galo com muita perícia. Bumba… Pôs abaixo toda a comoção que o auditório possuía, provocando hilaridade tal que a polícia (finalmente) interveio, prendendo os graçolas e mais duas latas grandes de manteiga cheias de ovos podres e batatas. Esses moços, ao serem interrogados, declararam que aqueles presentes estavam destinados a coroar os promotores da Semana de Arte Moderna em S. Paulo, como se fossem flores e palmas, mas que tal não fizeram porque respeitavam os intérpretes que na maioria eram paulistas. Uf!… chega. Adeus meu amigo, escreva-me com urgência, pois devo breve partir para o Rio Grande noutra tentativa de vaia. 151
A crise de Paulina, que, no relato de Villa, teve vontade de parar no meio do concerto, aconteceu na apresentação da Sonata segunda. Durante a peça, executada em duo com Frutuoso Vianna, uma das alças do vestido da instrumentista escorregou pelo ombro. Rapidamente ela tratou de recolocá-la no lugar — quando alguém gritou: “Quem tem um alfinete aí?”. A brincadeira a fez “chorar de nervosismo” — mas foi contida pelos olhares de advertência do maestro. 152
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No dia seguinte, o Correio Paulistano noticiou o encerramento da “série de saraus da Semana de Arte Moderna”, ressaltando que o último festival fora “bem mais concorrido do que os demais” — talvez por conta dos preços reduzidos e/ou da eventual liberação da entrada. A nota dizia que o espetáculo poderia ter deixado melhor impressão, não fosse “a atitude de hostilidade assumida sem razão, valha a verdade, no começo e no fim do concerto, por uma parte diminuta da audiência”. Sobre as obras de Villa-Lobos, teriam deixado “ótima impressão”, em especial a Sonata segunda — a mesma do “Ride, Pagliaccio”. Num tipo de comentário que também se fez no julgamento das pinturas de Anita Malfatti, o jornal dizia que, “apesar de uma ou outra extravagância e de umas tantas preocupações de modernismo”, as peças executadas revelavam “um temperamento e um talento dignos de nota”. 153 A nota do Estado dizia que as apresentações teriam impressionado o auditório, embora fosse difícil, “numa primeira audição, apreciar todas as qualidades do compositor”. Como as obras, em virtude de seu “incontestável valor”, deveriam ser novamente apresentadas em São Paulo, ficaria para essa próxima ocasião o “justo prêmio” devido ao talento do jovem musicista. De fato, o maestro viajou para São Paulo com a promessa de que faria, em seguida, novas apresentações na cidade — o que aconteceu, já no dia 7 de março, com um concerto sinfônico dedicado à sua música.
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OUVIDOS EDUCADOS
Nem todos os críticos se curvaram a Villa-Lobos, que, no Rio, vinha sendo elogiado por alguns e reprovado por outros — caso notório do veterano Oscar Guanabarino ( 1851-1937), que também se notabilizara na crítica de arte, exercida desde os anos 1880, ainda no Império. O polêmico niteroiense aproveitou as apresentações do maestro e de artistas cariocas na Semana para entrar em cena. Em 22 de fevereiro, no Jornal do Comércio, publicou um artigo que começava com uma ironia “bairrista” endereçada a Menotti del Picchia, responsável pela publicidade da “bandeira futurista”, de 1921, para catequizar a capital federal. Guanabarino iniciava seu texto mencionando “a organização de uma embaixada de arte moderna destinada a explorar o provincianismo paulista”. Os que a integravam não teriam, segundo ele, “o menor vislumbre de autoridade artística” — embora São Paulo levasse a sério a “patacoada” e procurasse imitar os “desequilibrados que, capitaneados por Mallarmé, em Paris, criavam a escola do absurdo”. Retomando o mote da “teratologia”, o crítico afirmava que a nova arte, “que tem por base a ausência de arte”, invadia a música, a pintura e a escultura sem “nenhuma novidade, nem interesse, a não ser para a psiquiatria”. O crítico via-se impedido de comentar os acontecimentos da Semana, pois não os presenciara, mas poderia dizer algumas palavras sobre o
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discurso de Menotti, no segundo festival, publicado pela imprensa. E foi o que fez, anunciando o “luto” da arte nacional pelo fato de “um dos seus mais dignos cultores”, autor de “belíssimos poemas”, ter “ensandecido” e se filiado à tal “escola do absurdo”. Apesar de considerar inexistente no Brasil uma arte que pudesse ser chamada de “futurista”, Guanabarino dizia que Villa-Lobos, “um músico de talento ainda não cultivado”, esforçava-se para seguir por aquele caminho, apresentando ao público uma “barulhada sem pé nem cabeça”. 154 Menotti respondeu com uma “Carta aberta ao sr. Oscar Guanabarino”, no Correio Paulistano, na qual ironizava o “velho mestre do passado” e repetia os conhecidos argumentos a favor de uma arte contrária à cópia e às convenções acadêmicas. 155 O crítico do Rio voltou à carga em 8 de março (a polêmica ainda se estenderia por mais tempo), num texto em que criticou a réplica do oponente e atacou, mais uma vez, a “cacofonia musical” dos modernos: “A única novidade que encontramos nesses futuristas é a ausência de forma e a carência da harmonia sensata, formando um todo tão ridículo como enfadonho e repugnante ao ouvido educado”.156 O comentário aplicava-se a Villa-Lobos, cujas obras não adotavam princípios radicais das vanguardas europeias, mas incorporavam, como observou José Miguel Wisnik, “elementos estranhos” — caso do gosto pelas “estridências e fortíssimos”, temperado pela influência de Debussy. Como esses componentes apontavam para um “novo universo sonoro”, a reação da crítica conservadora, representada por Oscar Guanabarino, expressaria “o temor do desconhecido, pregando o cerceamento dos horizontes criadores”.157
24 TURMA ANIMADA
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O Grupo dos Cinco, desenho de Anita Malfatti, mostra a própria pintora, deitada no sofá, Oswald de Andrade e Menotti del Picchia, estirados no chão, e Mário de Andrade e Tarsila do Amaral, ao piano.
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Encerrada a Semana, Mário de Andrade enviou a Menotti del Picchia uma “carta muito particular”, na qual se regozijava e divertia com o êxito do evento, que iria transformá-los em celebridades eternizadas “nos jornais e na História da Arte Brasileira”: Que tal? Conseguimos enfim o que desejávamos: celebridade. Soube que o x.z. estava um pouco atemorizado com os insultos que temos recebido. Consola-o tu. Realmente, amigo, outro meio não havia de conseguirmos a celebridade. Era só assim: aproveitando a cólera dos araras. Somos todos pseudofuturistas, uns casos teratológicos. Somos burríssimos. Idiotas. Ignorantíssimos. Compreendes que com todas essas qualidades só havia um meio de alcançar celebridade: lançar uma arte verdadeiramente incompreensível, fabricar o carnaval da “Semana de Arte Moderna” e… deixar que os araras falassem. Caíram como araras. Gritaram. Insultaram-nos. Vaiaram-nos. ms o público já está acostumado com descomposturas: não leva a sério. O que fica é o nome e um sentimento de simpatia que não se apagam mais da memória do leitor. Estamos célebres! Enfim! Nossos livros serão lidíssimos! Insultadíssimos, celebérrimos. Teremos nossos nomes eternizados nos jornais e na História da Arte Brasileira. Agora calemo-nos, amigo Hélios. Não há mais necessidade de “escores”. Estamos célebres, amados e detestados.
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E tudo isso por quê? Porque os araras caíram na armadilha. Insultaram-nos. Somos bestas, doentes, idiotas, ignaros! Tudo isso é verdade, amicíssimo. Mas como os jornais disseram e o público não acredita, toda a gente imagina que somos perfeitíssimos de corpo e de alma, inteligentes, honestos e eruditos. Que araras, amigo Hélios, que araras! 158
Na avaliação de Menotti, esse comentário “tão jovial e esportivo” ser viria como “registro do acontecimento e profecia”. De fato. •
Os “araras”, como dizia Mário, continuaram a grasnar naquele ano de 1922, enquanto os “futuristas” faziam planos, publicavam obras e criavam sua própria revista. Lançada em maio, Klaxon, que reunia o núcleo modernista de São Paulo e era representada, no Rio, por Sérgio Buarque de Holanda, trazia em seu editorial-manifesto uma avaliação crítica da Semana, que teria dado “frutos verdes” e proclamado erros em voz alta: A luta começou de verdade em princípios de 1921 pelas colunas do Jornal do Comércio e do Correio Paulistano. Primeiro resultado: “Semana de Arte Moderna” — espécie de Conselho Internacional de Versalhes. Como este, a semana teve sua razão de ser. Como ele: nem desastre, nem triunfo. Como ele: deu frutos verdes. Houve erros proclamados em voz alta. Pregaram-se ideias inadmissíveis. É preciso refletir. É preciso esclarecer. É preciso construir. Daí klaxon. E klaxon não se queixará jamais de ser incompreendido pelo Brasil. O Brasil é que deverá se esforçar para compreender klaxon.159
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Curiosamente, um dos que não compreenderam a revista — ou pelo menos não gostaram dela — foi Lima Barreto. Em artigo na carioca A Careta, em 22 de julho, o autor de Policarpo Quaresma dizia que São Paulo de quando em quando mandava ao Rio “umas novidades velhas de quarenta anos”: “Agora por intermédio do meu simpático amigo Sérgio Buarque de Holanda quer nos impingir como descoberta dele, São Paulo, o tal de ‘futurismo’”. Lima Barreto ironizava o título da revista, que, em inglês, referia-se a uma buzina estridente ou sirene, usada em veículos antigos: “Em começo pensei que se tratasse de uma revista de propaganda de alguma marca de automóveis americanos. Não havia, para tal, motivos de dúvidas, porque um nome tão estrambótico não podia ser senão inventado por mercadores americanos, para vender seu produto”. Depois de tratar com sarcasmo Marinetti, o escritor dizia que o “azedume” de seu artiguete não representava nenhuma hostilidade aos fundadores da revista, apenas ao “grotesco futurismo”, que não passaria de brutalidade “grosseira e escatológica”. •
A propósito, dizia o manifesto: “Klaxon não é futurista. Klaxon é klaxista”.
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TARSILA ENTRA EM CENA
Em junho de 1922, Tarsila do Amaral voltou a São Paulo e foi apresentada por Anita Malfatti ao grupo modernista. No período em que estudou em Paris, recebeu notícias da Semana por intermédio da amiga, de quem se aproximara nas aulas de Pedro Alexandrino. Ela era aluna da Academia Julian, fundada em 1860 por Rudolf Julian, que fora a primeira — em 1873 — a aceitar mulheres, diferenciando-se das academias oficiais. Ela ainda não iniciara, naquela época, o tipo de pintura que ficaria conhecido como sua marca registrada, mas já havia alcançado um grau de sofisticação e complexidade digno de nota. Numa esclarecedora análise da tela Academia n. 4, produzida em Paris naquele período, a historiadora da arte e crítica Fernanda Pitta observa que seria um erro considerá-la “acadêmica”, no sentido da Academia francesa de David ou de Ingres. A obra nos revelaria, na realidade, uma pintora com acesso a “um rol de experimentações e formas de pintar muito mais amplo”: A academia há muito estava aberta aos experimentos que os artistas considerados “não acadêmicos” vinham fazendo pelo menos desde os anos 1860 na Europa. Há muito as conquistas da pintura impressionista e seus derivativos pós-impressionistas já haviam ultrapassado
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as portas das instituições de ensino e de seus salões e se tornado vocabulário comum ao acesso de todos os pintores. O que Tarsila fazia aqui parece ser um ensaio ou resumo de aspectos desse vocabulário, testando, numa mesma tela, várias de suas possibilidades. 160
O comentário serve de alerta para o caráter esquemático e genérico com que muitas vezes é usado o termo “acadêmico”. Em parte da crítica e da historiografia modernista, a expressão acaba servindo para chapar a diversidade e os relevos da pintura antecedente, confinada, em bloco, num passado supérfluo e conservador. •
As relações de Anita com os rapazes modernistas haviam se estreitado na sequência de sua exposição de 1920. No final daquele ano, Oswald oferecera um jantar em sua casa, que serviu para a pintora reencontrar-se “com todos”.161 Depois da Semana, a proximidade, que já tinha se estabelecido, entrou numa nova fase. Com a chegada de Tarsila, imediatamente acolhida, formou-se uma turma, autodenominada O Grupo dos Cinco: as duas pintoras, Mário, Oswald e Menotti. Foram seis meses vividos intensamente. “Parecíamos uns doidos em disparada por toda parte na Cadillac de Oswald, numa alegria delirante, à conquista do mundo para renová-lo”, lembrou-se Tarsila, em depoimento de 1950 — publicado no catálogo de uma exposição de suas obras realizada naquele ano, no mam paulista. O termo “delirante” fora usado por Mário, em 1942, na sua conferência no Itamaraty, numa passagem em que revivia os prazeres do “tempo destruidor” do movimento modernista, que envolve e se segue à Semana:
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Todo esse tempo destruidor do movimento modernista foi pra nós tempo de festa, de cultivo imoderado do prazer. E se tamanha festança diminuiu por certo nossa capacidade de produção e serenidade criadora, ninguém pode imaginar como nos divertimos. Salões; festivais, bailes célebres, semanas passadas em grupo nas fazendas opulentas, semanas santas pelas cidades velhas de Minas, viagens pelo Amazonas, pelo Nordeste, chegadas à Bahia, passeios constantes ao passado paulista, Sorocaba, Parnaíba, Itu… Era ainda o caso do baile sobre os vulcões… Doutrinários, na ebriez de mil e uma teorias, salvando o Brasil, inventando o mundo, na verdade tudo consumíamos, e a nós mesmos, no cultivo amargo, quase delirante do prazer.
Os cinco se encontravam na casa de Mário ou de Anita, mas o grande salão foi o ateliê de Tarsila, na rua Vitória, em reuniões que contavam frequentemente com a presença de convidados — como Graça Aranha e o próprio Freitas Valle. Trocavam-se ideias, liam-se textos, comentavam-se obras e falava-se sobre os rumos da arte no Brasil e na Europa. E, é claro, divertiam-se, como lembrou Mário em sua conferência e como se constata no sugestivo desenho de Anita, O Grupo dos Cinco. Numa sala, Oswald e Menotti aparecem desabados no tapete, de paletó e sapatos, com a cabeça apoiada sobre almofadas. Anita, à esquerda, descansa no sofá. À direita, ao fundo, Mário e Tarsila estão de costas, lado a lado, corpos encostados, ao piano. A “caipirinha” vinda de Paris a todos encantou. Anita, que já a conhecia, adotou-a como amiga íntima, e os rapazes, naturalmente, interessaram-se por ela — rica, bonita e talentosa. Menotti, em A longa viagem, não esconde a impressão que lhe causou aquela “linda mulher, elegantíssima em sua toilette parisiense, olhos serenos e negros, fala musical e tranquila”.
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Escreveu ele: “Creio que Mário de Andrade — cuja vida sentimental sempre foi um mistério no nosso grupo — não escapou também ao fascínio de Tarsila, a qual, embora fosse tão aristocraticamente discreta, não deixava de ser perigosamente feminina”. Em depoimento ao mis-sp, em 1990,162 Antonio Candido, ao responder a uma questão sobre o assunto, disse que havia “um deslumbramento”, “uma relação afetiva muito intensa do Mário de Andrade com a Tarsila”. Foi Oswald, como se sabe, quem acabou namorando a moça, no início de maneira discreta, pois ela ainda não era separada oficialmente de seu primeiro marido, André Teixeira Pinto, de quem se afastara em 1913. Em dezembro de 1922, Tarsila partiu de volta para a Europa, interessada em experimentar novas linguagens. Em janeiro e fevereiro, ela e Oswald viajaram juntos por Portugal e Espanha — e, a seguir, se fixaram em Paris.
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CARTA RASGADA
Em março de 1923, Anita Malfatti conseguiu, enfim, o que tanto desejara nos últimos anos — uma bolsa do Pensionato Artístico para estudar na Europa. Nove anos depois de tê-la rejeitado pela primeira vez, o próprio Freitas Valle lhe deu a notícia, durante um sarau na Villa Kyrial em que Mário apresentava a conferência “Paralelo de Dante e Beethoven”. Exultante com a novidade, preparou-se para a viagem e, antes de partir, promoveu uma grande despedida “futurista” para os amigos, em sua casa na rua Ceará, com direito a encenação de peças, painéis artísticos e ruidosas intervenções musicais. Embarcou em agosto, no Mosella, rumo a Paris — e, antes de partir, escreveu a Mário, declarando-se. E logo se arrependeu do que fez. Numa carta ao poeta, enviada pouco depois de deixar o país, ela se desculpava por ter cometido “um crime de lesa-amizade”: Perdoe-me. Estava desesperada por deixar os meus, eis a razão do meu sentimentalismo déplacé. Sinto-me tão constrangida contigo que resolvi escrever-te pedindo-te que destruísses esta minha falta. Confio em tua amizade, que conforme confirmastes vai “hasta la muerte”. Percebo quanto pareceria ridícula a minha carta nas tuas mãos… por favor rasgue-a depressa pois só assim poderei continuar a escrever-te sempre e ser sua amiga.
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Despedia-se com “um abraço atrapalhado” e um “até Paris”. 163 •
Mário, como se sabe, jamais deixou o país.
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O escritor Menotti del Picchia e a artista Tarsila do Amaral encontram-se na exposição comemorativa do cinquentenário da Semana de Arte Moderna, realizada no Museu de Arte de São Paulo, o MASP.
POSFÁCIO DESINTERESSANTÍSSIMO
No dia 27 de outubro de 1976, o cineasta Glauber Rocha irrompeu no salão do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, onde transcorria o velório de Di Cavalcanti. O pintor, aos 79 anos, morrera na noite anterior, de insuficiência hepática. Barba por fazer, calça de brim azul-marinho, casaco azul-claro, camisa esporte quadriculada e sapatos marrons, segundo a descrição do Jornal do Brasil , o autor de Terra em transe, acompanhado do fotógrafo Mário Carneiro, aproximou-se do defunto e pôs-se a comandar a ação: “Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze… Corta! Agora dá um close na cara dele”. De acordo com a reportagem do JB, publicada no dia seguinte, o espetáculo encenado por Glauber, “para espanto de todos e revolta da família e de vários amigos”, só terminou uma hora e 23 minutos depois, no Cemitério São João Batista, no bairro de Botafogo. Ao ser questionado por um repórter sobre o motivo da filmagem, o diretor respondeu que, da mesma forma que a imprensa cobria a cerimônia, ele sentia-se na obrigação de registrá-la. E para quem seria o filme? “Para ninguém”, respondeu. “Para o museu ter um documentário do enterro de Di Cavalcanti. É um documentário. Nem sei se vai ficar bom. É para mim.” O filme, de dezoito minutos, produzido pela estatal Embrafilme, foi mostrado ao público pela primeira vez em 11 de março de 1977, na Cinemateca do mam-rj. Em 1979, a filha do pintor, Elizabeth Di Cavalcanti, obteve na Justiça a interdição das exibições. O veto perdura, mas se
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tornou, até certo ponto, inócuo, uma vez que a obra pode ser vista no YouTube. O documentário começa com um travelling pela fachada do museu, que leva instantaneamente o espectador àquele Brasil já longínquo, de fuscas, Variants e Opalas, amordaçado pelo regime militar, sob o governo do general Ernesto Geisel. Dois anos antes, em 1974, o cineasta baiano surpreendera a esquerda ao manifestar sua confiança no processo de distensão política que o ditador de turno, secundado pelo “gênio da raça” Golbery do Couto e Silva, prometia instaurar de maneira gradual e segura. Glauber estaria louco? Alguns achavam que sim, outros que não — e a performance na cerimônia fúnebre do pintor modernista ajudou a alimentar as discussões. Em 1976, na visão de um estudante universitário de vinte anos sem nada nas mãos mas com ideias radicais na cabeça, como poderia ser descrito o autor deste livro naquela época, Di Cavalcanti era um figurão boêmio e simpático, mas um artista ultrapassado, adversário do abstracionismo, que retratava mulatas em quadros populistas e convencionais. Seu nome associava-se à linha cultural “nacional-popular”, sob influência do ideário do Partido Comunista, que, para muitos de meus colegas de geração, tratava-se de uma organização atrasada, com suas políticas conciliatórias, seus códigos caretas e seu nacionalismo estreito. Eu estava com os que preferiam concretos, neoconcretos, tropicalistas, conceituais, performáticos, experimentais ou marginais — um território que, em matéria de modernismo, foi tocado sobretudo pela obra sintética, dionisíaca, política e antropófaga de Oswald de Andrade. Relançado pelos concretistas na década de 1950, depois de um período de ostracismo, Oswald esteve presente no lançamento do tropicalismo, com a histórica montagem de O Rei da Vela pelo Teatro Oficina, de José
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Celso Martinez Corrêa, em 1967. E não ficou por aí. O “homem do PauBrasil” apareceu na música de Caetano Veloso e Gilberto Gil, no cinema de Júlio Bressane e Joaquim Pedro de Andrade, nas artes de Hélio Oiticica e nas manhas da contracultura e da poesia marginal… Oswald foi a principal projeção do movimento modernista na efer vescência cultural daquele período, embora não a única. Villa-Lobos tam bém esteve lá, nos filmes de Glauber, assim como Mário de Andrade, na tela, no palco e nos debates universitários. Se esses nomes que participaram da Semana de Arte Moderna ressurgiram de modo vivo e estimulante no trabalho de jovens artistas das décadas de 1960 e 1970, foram, ao mesmo tempo, objeto de uma nova rodada de entronização da Semana como “divisor de águas” da cultura brasileira — processo que começou pouco depois do evento e prosseguiu, década a década, em rituais rememorativos e enaltecedores, incentivados pelos modernistas. “Dez anos! Caramba! O tempo metralha os dias como a cinta de uma arma automática! Vai para uma década que se realizou em São Paulo, o Estado líder da Federação, a Revolução intelectual do Brasil”, escrevia Menotti del Picchia na Folha da Manhã, em 1932. Em 1942, mesmo a propalada “autocrítica” de Mário na conferência realizada no Itamaraty, por ocasião dos vinte anos da Semana, foi uma maneira de fortalecê-la como marco de rompimento com o passado e afirmação de uma nova consciência nacional. Em 1953, na sequência do trigésimo aniversário, o próprio presidente Getúlio Vargas encarregou-se de glorificar a festa modernista em sua mensagem presidencial. Em 1972, a esperada efeméride do cinquentenário contribuiu para relançar o mito, festejado tanto pela ditadura como pela intelectualidade de esquerda. Para o regime, em época de milagre econômico e patriotismo
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desenfreado, tratava-se de explorar a dimensão nacionalista do movimento modernista e alçar seu lançamento ao panteão dos fatos históricos gloriosos e intangíveis, mantendo-o afastado da realidade cultural e política do momento — como se viu na imprensa e nas homenagens oficiais. 164 Para o mundo cultural de esquerda, o cinquentenário não deixava de ser uma oportunidade de valorizar os traços “vanguardistas” do modernismo e ressaltar seu aspecto insurrecional, de “ruptura” ou levante contra a velha ordem. O interesse pelo tema, que já existia no meio universitário, renovou-se com uma leva de teses e livros, em especial em São Paulo — como seria inevitável. É verdade que vozes críticas já se levantavam nessas comemorações, até com virulência, como a de Yan de Almeida Prado — mas não raro en venenadas pelo ressentimento ou pelo bairrismo. Foi na década de 1980 que uma nova geração universitária começou a questionar de forma mais sistemática a suposta prevalência de uma perspectiva excludente, linear e triunfalista na narrativa histórica sobre o modernismo. Se coube especialmente ao Rio promover as revisões, é fato que também em São Paulo novos acadêmicos trataram de rediscutir algumas “verdades” que foram se sedimentando ao longo do tempo, como a ideia de que a pintura anterior a 1922 não passaria de arte “acadêmica” e sem interesse. Convidado pela Companhia das Letras a fazer uma espécie de reportagem histórica sobre a Semana, tive a oportunidade de conhecer historiadores da arte, pesquisadores e estudantes da nova geração, ligados à Escola de Comunicação e Arte da usp, que se revelaram extremamente críticos em relação ao modernismo “oficial” e às convenções que se consolidaram em sua historiografia. Dois desses jovens me auxiliaram no tra balho de pesquisa — Ana Cândida Avelar e, a seguir, Fabio d’Almeida Maciel, estudioso da pintura e da fotografia do nosso século xix, a quem devo sugestões e críticas valiosas. Nossas conversas serviram para confirmar a
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ideia original de um relato “jornalístico” que procurasse inserir os personagens numa rede de relações capaz de relativizar ou transcender simplificações do tipo futuristas × passadistas, modernos × acadêmicos, mocinhos × bandidos.
AGRADECIMENTOS
Devo agradecer, sobretudo, aos pesquisadores e estudiosos que se dedicaram nas últimas décadas ao esclarecimento da história do modernismo brasileiro. Tive o privilégio de conversar com alguns deles em entrevistas e consultas para a realização deste livro: Antonio Candido de Mello e Souza, Augusto de Campos, Aracy Amaral, Jorge Schwartz, Telê Porto Ancona Lopez, José Miguel Wisnik, Maria Augusta Fonseca, Marcos Antonio de Moraes, Tadeu Chiarelli, Carlos Eduardo Berriel, Carlos Augusto Calil, Marcia Camargos, Beatriz Resende, Gênese Andrade e Maria Helena Castro Azevedo. Agradeço também por sugestões e conversas a Jorge Caldeira Filho, Pedro Corrêa do Lago, Julio Lucchesi Morais, Stella de Mendonça, Di Boretti, Ana Maria Martins, João Bandeira e Lenora de Barros. Sou grato ainda à direção da Folha de S.Paulo, a meus colegas jornalistas e ao produtor Rodrigo Teixeira, pelo apoio e pelo interesse. Por fim, não posso deixar de mencionar os jornalistas Zuenir Ventura, meu mestre, e Laurentino Gomes. O título deste livro, que surgiu num chiste, é uma espécie de blague (quase) oswaldiana com os títulos dos brilhantes bestsellers por eles escritos: 1968 — O ano que não terminou e 1822. Espero que me perdoem.
NOTAS
1. MANIFESTAÇÃO TELÚRICA 1 Os artigos e notícias que a imprensa publicou em 1922 sobre a Semana aqui citados, estão
reunidos no valioso levantamento de Maria Eugenia Boaventura (org.), 22 por 22: a Semana de Arte Moderna vista pelos seus contemporâneos. 2 Sobre as discussões acerca do futurismo em São Paulo, ver Annateresa Fabris, O futurismo paulista. A autora considera que Cândido, em que pesem os elogios feitos por Mário de Andrade, cometia equívocos na apreciação do grupo italiano. 2. A COQUELUCHE DO GRAND MONDE 3 Nicolau Sevcenko, Orfeu extático na metrópole, p. 274 . Para Annateresa Fabris, todavia,
os nomes dos “apóstolos” eram outros: “Menotti del Picchia, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Luís Aranha, Sérgio Milliet, Agenor Barbosa, Plínio Salgado, Cândido Motta Filho, Graça Aranha, Ronald de Carvalho, Álvaro Moreira e Renato Almeida”. Cf. Annateresa Fabris, O futurismo paulista, pp. 139-40. 4 Oswald de Andrade, “O triunfo de uma Revolução”, em Maria Eugenia Boaventura (org.), 22 por 22, p. 49. 5 Hélios, “Semana de Arte Moderna”, em Maria Eugenia Boaventura (org.), 22 por 22, p. 48. 3. O VERNISSAGE 6 “Semana de Arte Moderna”, em Maria Eugenia Boaventura (org.), 22 por 22, p. 410. 7 A descrição baseia-se sobretudo num esquema desenhado por Yan de Almeida Prado,
publicado por Aracy Amaral em Artes plásticas na Semana de 22. Foram vãos os esforços do autor na busca de um registro fotográfico da exposição. 8 Menotti del Picchia, depoimento prestado ao Museu da Imagem do Som de São Paulo por ocasião dos preparativos para as comemorações dos cinquenta anos da Semana, ano 1971-72. Participaram dessas gravações outros veteranos da Semana, como Di Cavalcanti, Renato Almeida, Guiomar Novaes, além de Tarsila do Amaral. Menotti mencionou, ao
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contar a história da sra. Crespi, um suposto retrato de Oswald de Andrade, que também cita em seu livro de memórias A longa viagem. 9 “Uma semana de arte moderna em São Paulo”, em Maria Eugenia Boaventura (org.), 22 por 22, p. 127. 10 Depoimento ao autor. 11 Seus artigos críticos podem ser encontrados em João Fernandes de Almeida Prado, A grande Semana de Arte Moderna: depoimentos e subsídios para a cultura brasileira. 12 Menotti del Picchia, A longa viagem, vol. 2, p. 133. 13 Os dados sobre John Graz foram baseados nos perfis biográficos dos artistas da Semana, publicados no livro Artes plásticas na Semana de 22, de Aracy Amaral, edição de 1992. 14 Essas cartas pertencem ao arquivo que o ieb-usp dispõe sobre Mário de Andrade. Suas traduções são cortesia do estudioso, e também professor do ieb, Marcos A. de Moraes, a quem agradecemos. Foram traduzidas por Flávio Penteado, mestre em literatura portuguesa pela fflch-usp. Para uma análise do conteúdo dessas cartas e do posicionamento de Mário de Andrade com relação à Semana, consultar Marcos A. de Moraes. “ Muito riso e pouco siso”: a Semana de Arte Moderna segundo Mário de Andrade (no prelo). 15 Aracy Amaral, Artes plásticas na Semana de 22, edição de 1992, p. 150. As demais citações da autora se referem à mesma obra, um clássico da historiografia da Semana. 4. AS CORES DA NOVIDADE 16 Depoimento a Luís Martins, “Em São Paulo, com Anita Malfatti”, Vamos ler!, Rio de Janeiro, 28 de dezembro de 1939, p. 35, apud Marta Rossetti Batista, Anita Malfatti no tempo e no espaço, p. 40. 17 Ibidem, p. 42. 18 Marta Rossetti Batista, Telê Porto Ancona Lopez, Yone Soares Lima, Brasil: 1o tempo modernista, p. 41. 19 Mestres do modernismo, p. 263. 20 Ibidem. 5. O TEATRO DA PAULICEIA 21 Julio Lucchesi Morais, “São Paulo, capital artística”, p. 46. 22 Mirian Silva Rossi, “Circulação da obra de arte na belle époque paulistana”, Anais do Museu Paulista, ano/vol. 6/7, no 007, São Paulo, pp. 83-122. 23 Depoimento à Revista Anual Salão de Maio, no 1, São Paulo, 1939, em Marta Rossetti Batista, Telê Porto Ancona Lopez, Yone Soares Lima, Brasil: 1o tempo modernista, p. 42.
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24 Vera d’Horta Beccari, Lasar Segall e o modernismo paulista, p. 56. 25 Ibidem, p. 53. 26 Marcia Camargos, Villa Kyrial: crônica da belle époque paulistana. 27 Ibidem, p. 45. 28 Telê Ancona Lopez (org.), De São Paulo: cinco crônicas de Mário de Andrade, p. 112. 29 Vera d’Horta Beccari, Lasar Segall e o modernismo paulista, p. 53.
6. DA CASA MAPPIN AO MAINE 30 Anotação de Anita Malfatti durante a exposição que realizou em 1914, após seu retorno da Alemanha. Apud Marta Rossetti Batista, Anita Malfatti no tempo e no espaço, pp. 85-95. 31 Ibidem. 32 Marta Rossetti Batista, Anita Malfatti no tempo e no espaço, p. 117 . 7. NA TERRA DO SACI 33 Carta de Monteiro Lobato a Godofredo Rangel, 28 de dezembro de 1917, em Monteiro Lobato, A barca de Gleyre, t. 2, p. 166. 34 Ibidem, p. 126. 35 Tadeu Chiarelli, Um jeca nos vernissages, p. 132. 36 Ibidem, p. 173. 37 Ibidem, p. 147. 8. A FÚRIA DO JECA 38 Di Cavalcanti, Viagem da minha vida (memórias). Testamento da alvorada, p. 78. 39 Marta Rossetti Batista, Anita Malfatti no tempo e no espaço, p. 203 . 40 Ibidem, p. 200. 41 Tadeu Chiarelli, “Tropical , de Anita Malfatti: reorientando uma velha questão”, Novos Estudos — Cebrap no 80, São Paulo, mar. 2008. 42 Marta Rossetti Batista, Anita Malfatti no tempo e no espaço, p. 273 . 43 A carta pertence aos arquivos do ieb , da Universidade de São Paulo. Permanecia inédita
quando da s deste livro. 9. MÁRIO DE MARIA 44 Mário de Andrade, A imagem de Mário: fotobiografia de Mário de Andrade. 45 Ibidem, p. 41. 46 Ibidem.
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47 Mário da Silva Brito, História do modernismo brasileiro: I — Antecedentes da Semana de Arte Moderna, p. 78. 48 Ibidem, p. 74. 49 Di Cavalcanti, Viagem da minha vida (memórias). Testamento da alvorada, p. 84. 50 Maria Augusta Fonseca, Oswald de Andrade, p. 111.
10. OSWALD DA MAMÃE 51 Ibidem, p. 35. 52 Oswald de Andrade, Obras completas: um homem sem profissão, memórias e confissões. Volume I , p. 35. 53 Ibidem. 54 Cristina Fonseca, Juó Bananére: o abuso em blague. 55 Carlos Eduardo Ornelas Berriel, Tietê, Tejo e Sena, p. 103. 56 Francis Carco, De Montmartre au Quartier Latin, p. 36. 57 Depoimento de Carmen Lídia ao Museu da Imagem e do Som de São Paulo, 14 de dezembro de 1990. 58 Aracy Amaral apud Maria Augusta Fonseca, Oswald de Andrade, p. 90. 59 Oswald de Andrade, Obras completas: um homem sem profissão, memórias e confissões. Volume I , p. 103. 11. ISADORA E O FURACÃO 60 Di Cavalcanti, Viagem da minha vida (memórias). Testamento da alvorada, p. 76. 61 Oswald de Andrade, Obras completas: um homem sem profissão, memórias e confissões. Volume I , p. 95. 62 Marcia Camargos, Semana de 22, entre vaias e aplausos, p. 61. 63 O perfeito cozinheiro das almas deste mundo… (ed. fac-similar), textos de Mário da Silva Brito e Haroldo de Campos, São Paulo, Ex Libris, 1987. 64 Ibidem. 65 Vera Casa Nova, Fricções — Traço, olho e letra. Belo Horizonte: Editora da ufmg, 2008, p. 143. 66 Seu nome aparece grafado de maneiras distintas em vários escritos, de diferentes pess-
oas que a conheceram. Às vezes “Deisi”, outras “Daisy” ou “Dasy”. 12. JUCA E MIRAMAR 67 Menotti del Picchia, A longa viagem.
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68 Ibidem, p. 58. 69 Ibidem, p. 123. 70 Rubens Borba de Moraes, Testemunha ocular, p. 164. 71 Marcos Antonio de Moraes (org.), Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, p. 82.
13. A REALEZA DA REPÚBLICA 72 Carlos Eduardo Ornelas Berriel, Tietê, Tejo e Sena, p. 77. 73 Tania Regina de Luca, A Revista do Brasil , p. 274. 74 Ibidem, p. 190. O artigo foi publicado no n o 55 de A Revista do Brasil , julho de 1920. 75 Ana Cláudia Fonseca Brefe, O Museu Paulista, p. 64. 76 Discurso proferido em 1919, no Rio de Janeiro. 77 Tania Regina de Luca, A Revista do Brasil . 14. EDUARDO E PAULO 78 Lilia Schwarcz apud Luiz Felipe d’Avila, Dona Veridiana, p. 462. 79 Carlos Eduardo Ornelas Berriel, Tietê, Tejo e Sena. 80 Paulo Prado, Paulística, p. 365. 81 Ibidem. 15. O RODIN BANDEIRANTE 82 Mário da Silva Brito, História do modernismo brasileiro: I — Antecedentes da Semana de Arte Moderna, p. 11. 83 Ibidem, p. 107. 84 Revista do Brasil no 50, em Marta Rossetti Batista, Telê Porto Ancona Lopez, Yone Soares Lima, Brasil: 1o tempo modernista, p. 50. 85 Mário da Silva Brito, História do modernismo brasileiro: I — Antecedentes da Semana de Arte Moderna, p. 111. 86 Telê Ancona Lopez (org.), De São Paulo: cinco crônicas de Mário de Andrade, p. 16. 87 Daisy Peccinini, Brecheret: a linguagem das formas, p. 22. 16. O ESTALO DO DESVARIO 88 Marta Rossetti Batista, Telê Porto Ancona Lopez, Yone Soares Lima, Brasil: 1o tempo modernista, p. 58. 89 Aracy Amaral, Artes plásticas na Semana de 22, p. 66.
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90 Telê Ancona Lopez (org.), De São Paulo: cinco crônicas de Mário de Andrade, p. 74. 91 Ibidem. 92 Mário de Andrade, “O Movimento Modernista”, em Mestres do modernismo, pp. 235-56. 93 Marta Rossetti Batista, Anita Malfatti no tempo e no espaço, p. 262 . 94 Ibidem, p. 256.
17. MÁSCARAS NO TRIANON 95 Discurso de Oswald de Andrade em homenagem a Menotti del Picchia em 9 de janeiro de 1921, em Mário da Silva Brito, História do modernismo brasileiro: I — Antecedentes da Semana de Arte Moderna, pp. 180-3. 96 Mário de Andrade, “De São Paulo — iv”, em Telê Ancona Lopez (org.), De São Paulo: cinco crônicas de Mário de Andrade, pp. 99-106. 97 A propósito, o professor Antonio Candido, em depoimento ao autor deste livro, imitou,
com bom humor, esse jeito “passadista” de Oswald falar em público. 98 Oswald de Andrade, Os dentes do dragão: entrevistas, p. 256. 99 Mário da Silva Brito, História do modernismo brasileiro: I — Antecedentes da Semana de Arte Moderna, p. 178. 100 Ibidem, p. 174. 18. OS BANDEIRANTES VÃO À PRAIA 101 Ibidem, p. 316. 102 José Miguel Wisnik, O coro dos contrários, pp. 51-6. 103 Ibidem, p. 40. 104 José Miguel Wisnik, “Entre o erudito e o popular”. Revista de História usp no 157, São Paulo, dez. 2007. 105 Beatriz Resende (org.), Cocaína: literatura e outros companheiros de ilusão, p. 17. 106 Ibidem, p. 21. 107 Benjamin Costallat, “Moralidades…”, Jornal do Brasil , Rio de Janeiro, 26 de agosto de 1923, em Patrícia França, “‘Livros para os leitores’: a atividade literária e editorial de Ben jamin Costallat na década de 1920”. 108 O Estado de S. Paulo, 19 de fevereiro de 1962. 109 Folha de S.Paulo, 29 de janeiro de 2008, entrevista a Silas Martí e Mario Gioia. Para as
opiniões do crítico e curador sobre a Semana, ver Paulo Herkenhoff, “O moderno antes do modernismo oficial”, em Arte brasileira na Coleção Fadel . 110 Beatriz Resende (org.), Cocaína: literatura e outros companheiros de ilusão, p. 13.
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111 Ibidem, p. 21. 112 Maria Augusta Fonseca, Oswald de Andrade, p. 135. 113 Mário da Silva Brito, História do modernismo brasileiro: I — Antecedentes da Semana de Arte Moderna, p. 318.
19. A VISITA DO JOVEM SENHOR 114 Maria Helena Castro Azevedo, Um senhor modernista: biografia de Graça Aranha, p. 182. 115 Ibidem. 116 Ibidem, p. 187. 117 Ver Eduardo Jardim Morais, A brasilidade modernista. 118 Maria Helena Castro Azevedo, Um senhor modernista: biografia de Graça Aranha, p. 201. 119 Maria Eugenia Boaventura (org.), 22 por 22, p. 437. 120 Éder Silveira, “Di Cavalcanti Memorialista — Boemia, Arte e Política”. 121 Rubens Borba de Moraes, Testemunha ocular, pp. 163 -8. 122 Afrânio Coutinho, A literatura no Brasil: modernismo, vol. v, p. 14. 123 Maria Eugenia Boaventura (org.), 22 por 22, p. 50. 20. ORGANIZANDO A BAGUNÇA 124 Mário Guastini, A hora futurista que passou e outros escritos, p. 75. 125 Os dados foram extraídos de jornais da época e de entrevista realizada pelo autor com
Julio Lucchesi Morais, autor da tese “São Paulo, capital artística: a cafeicultura e as artes na belle époque (1906-1922)”. 126 Julio Lucchesi Morais, “São Paulo, capital artística”. 127 Rubens Borba de Moraes, Testemunha ocular, pp. 140 -1. 128 Carta de Manuel Bandeira a Mário de Andrade, 19 de maio de 1924, em Marcos Antonio de Moraes (org.), Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, p. 123. 129 Ibidem, p. 124. 130 Rubens Borba de Moraes, Testemunha ocular, pp. 136 . 21. O LEÃO E A PIANISTA CONTRISTADA 131 Menotti del Picchia, A longa viagem, vol. 2, p. 134. 132 José Miguel Wisnik, O coro dos contrários, p. 79. 133 Ibidem, p. 82.
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134 Ibidem, p. 28. 135 No final de depoimento ao mis-sp, por ocasião do centenário da Semana, o mediador Francisco Luiz de Almeida Salles anunciou que o pintor Alfredo Volpi ( 1896-1988), presente
no recinto, pedia para registrar que presenciou a Semana das galerias do Municipal. 22. HAPPENING FUTURISTA 136 Menotti del Picchia, A longa viagem, vol. 2, p. 134. 137 Telê Ancona Lopez, “A criação literária na biblioteca do escritor”, Ciência e Cultura (sbpc) v. 59, São Paulo, 2007, pp. 33-7. 138 Maria Eugenia Boaventura (org.), 22 por 22, p. 291. 139 Menotti del Picchia, A longa viagem, vol. 2, p. 133. 140 Afrânio Coutinho, A literatura no Brasil: modernismo, vol. v, p. 17. 141 “O Movimento Modernista”, em Mestres do modernismo, p. 235. 142 Ibidem, p. 16. 143 Mário da Silva Brito, Poetas paulistas da Semana de Arte Moderna, p. 12. 144 José Miguel Wisnik, O coro dos contrários, p. 76. 145 Maria Eugenia Boaventura (org.), 22 por 22, p. 441. 23. A CONSAGRAÇÃO DO MAESTRO 146 Carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira, 18 de dezembro de 1924, em Marcos Antonio de Moraes (org.), Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, p. 164. 147 Luiz Guimarães, Villa-Lobos: visto da plateia e na intimidade, p. 74. 148 Menotti del Picchia, . “semana” revolucionária, p. 81. 149 Luiz Guimarães, Villa-Lobos: visto da plateia e na intimidade, p. 73. 150 Maria Eugenia Boaventura (org.), 22 por 22, p. 363. 151 Luiz Guimarães, Villa-Lobos: visto da plateia e na intimidade, p. 73. 152 Ibidem, p. 74. 153 Maria Eugenia Boaventura (org.), 22 por 22, p. 453. 154 Ibidem, p. 255. 155 Ibidem, p. 115. 156 Ibidem, p. 283. 157 José Miguel Wisnik, O coro dos contrários, p. 36. 24. TURMA ANIMADA
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158 Menotti del Picchia, A longa viagem, vol. 2, p. 141. Na carta, Mário de Andrade se refere a alguém sob as iniciais x. z ., que não sabemos quem é. 159 Editorial da revista Klaxon, 15 de maio de 1922, em Gilberto Mendonça Telles, Vanguarda europeia e modernismo brasileiro, p. 234. 160 Fernanda Pitta, “Tarsila do Amaral, Academia n. 4, 1922”. 161 Marta Rossetti Batista, Anita Malfatti no tempo e no espaço, p. 254. 162 Os depoimentos ao mis citados pelo autor podem ser consultados e ouvidos na
instituição. 163 As cartas de Anita para Mário pertencem ao arquivo do ieb, da Universidade de São Paulo. Permaneciam inéditas quando da redação deste livro. POSFÁCIO DESINTERESSANTÍSSIMO 164 Ver, a propósito, Roselis Oliveira de Napoli, “1922/72: a Semana permanece”.
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Museu de Arte Contemporânea de São Paulo Teatro Municipal de São Paulo
CRÉDITOS DAS IMAGENS Todos os esforços foram feitos para determinar a origem das imagens deste livro. Nem sempre isso foi possível. Teremos prazer em creditar as fontes, caso se manifestem. Cap. 1. Di Cavalcanti. Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros — ieb/usp. Fundo Mario de Andrade, código do documento: ma_plm_2_01.tif Cap. 2. Arquivo Público do Estado de São Paulo — apesp Cap. 3. Di Cavalcanti. Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros — ieb/usp Cap. 4. Anita Malfatti, 18/11/1914 Cap. 5. Acervo do Museu da Imagem e do Som de São Paulo/ Divisão de Iconografia da Secretaria Municipal de Cultura/ Fotógrafo desconhecido Cap. 6. A Cigarra, 17/10/1918 Cap. 7. Acervo Iconographia Cap. 8. Di Cavalcanti, 1910 Cap. 9. Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros — ieb/usp. Fundo Mario de Andrade. Reprodução de Renato Parada Cap. 10. Retrato de Oswald de Andrade. Tarsila do Amaral. Óleo sobre tela, 1922. 61 x 42 cm. Coleção Bogoricin Cap. 11. dr/ Jeroly Cap. 12. Secretaria Municipal de Cultura. Departamento do Patrimônio Histórico. Divisão de Iconografia e Museus. Acervo do Museu da Cidade de São Paulo Cap. 13. O bandeirante Domingos Jorge Velho. Benedicto Calixto. Óleo sobre tela, 1903. 140 x 100 cm. Acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo. Fotografia de Hélio Nobre Cap. 14. Acervo pessoal de Augusto Calil Cap. 15. Victor Brecheret. Roma, 12/12/1913. Acervo Victor Brecheret Filho Cap. 16. Cristo. Victor Brecheret. Bronze, 1920. 31,5 x 14 x 15 cm. Acervo Biblioteca do Instituto Brasileiros — ieb/usp Cap. 17. Acervo do Museu da Imagem e do Som de São Paulo/ Divisão de Iconografia da Secretaria Municipal de Cultura/ Fotógrafo desconhecido Cap. 18. Acervo G. Ermakoff Cap. 19. Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros — ieb/usp. Fundo Mario de Andrade. Reprodução de Renato Parada
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Cap. 21. dr/ Divulgação Cap. 22. dr/ Menotti Del Picchia Cap. 23. Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros — ieb/usp. Fundo Mario de Andrade. Reprodução de Renato Parada Cap. 24. O grupo dos cinco. Anita Malfatti. 1922. Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros — ieb/usp. Reprodução de Renato Parada Cap. 25. Acervo do Museu da Imagem e do Som de São Paulo/ Fotografia de Gabriel G. Bonduki
Copyright © 2012 by Marcos Augusto Gonçalves Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.
PROJETO GRÁFICO
warrakloureiro CAPA
warrakloureiro. Inspirada na capa de Guilherme de Almeida para Pauliceia desvairada (1922), de Mário de Andrade, que por sua vez teria sido inspirada na capa do livro Arlecchino (1921), de Sofficci. PESQUISA
Fábio D’Almeida, Ana Cândida Avelar e Gabriela Longman PREPARAÇÃO
Márcia Copola REVISÃO
Carmen T. S. Costa Ana Luiza Couto
ISBN 978-85-8086-181-5
Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA.
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