História do Brasil ,
um filme de Marcos Medeiros e Glauber Rocha 1 Maurício Cardoso2
Glauber Rocha a caminho do exílio
Em 1968, Glauber iniciou as filmagens de seu primeiro longa-metragem a cores, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro que lhe rendeu, no ano seguinte, a Palma de Ouro
de melhor diretor no Festival de Cannes. Além disso, lançado no Brasil, o filme tornou-se seu maior sucesso de público e seria, para Glauber, a síntese possível entre uma obra popular, comercial e sem concessão estética.3 Naquela época, Glauber recebeu alguns convites para filmar no exterior, com orçamentos apropriados e liberdade de criação. Ele realizou r ealizou no Congo uma produção ítaloDer leone have sept cabeças ) francesa, em 1970, O Leão de Sete Cabeças , cujo título original ( Der simbolizava, em cada palavra, os idiomas dos colonizadores: alemão, italiano, angloamericano, francês e português.4 No mesmo ano, filmou Cabezas Cortadas , na Espanha, com produtores, atores e maioria da equipe e quipe técnica composta composta de espanhóis. No Brasil, a edição do Ato Institucional n.º 5, em dezembro de 1968, restringia a ação ação polí polítitica ca ou cult cultur ural al de opos oposiç ição ão e ampl amplia iava va o cont contro role le da cen censu sura ra e dos dos órgão órgãoss de repressão política. Este contexto limitava as possibilidades de trabalho de Glauber no país, fosse pelas dificuldades em obter recursos, fosse pelo risco de ter seus projetos proibidos pela censura.5 Reconhecido e prestigiado pela crítica européia, controlado pelo regime militar no Brasil, Glauber viajou, em janeiro de 1971, para Nova York, iniciando um longo exílio que dura durari riaa até até mead meados os de 1976 1976.. Ante Antess de sair sair do país país,, escr escrev eveu eu no Pasquim o arti artigo go “o Cinema Novo Acabou”, anunciando o fim do movimento como conseqüência direta da ação militar sobre a cultura brasileira. Numa entrevista, publicada no Le Monde, na França, ele reforçava re forçava esta ruptura no processo cultural brasileiro em termos individuais: individuais: 1 Artigo
publicado em CAPELATO, Maria Helena et. alii. História e Cinema: Dimensões Históricas do audiovisual .. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2007, v. 01, pp. 149-170. 2 Professor Doutor do
Departamento de História - USP. Cartas ao Mundo/Glauber Rocha . SP: Cia. das Letras, 1997. p. 41.
3 BENTES, Ivana. (org.). 4 Idem,
ibidem, p. 44. no final da década de 70, a maioria dos filmes de Glauber, Glau ber, inclusive os realizados no exterior, estavam proi proibid bidos os de serem serem exib exibido idoss em terri territó tório rio naci nacion onal. al. João João Carlo Carloss Teixe Teixeir iraa GOME GOMESS anali analisa sa este este tema tema no capítulo “O sofrido retorno”, Glauber Rocha – esse vulcão. RJ: Nova Fronteira, 1997. Op. cit. pp. 297-353. 5 Ainda
“Term Termiino nouu o Cine Cinem ma Novo, ovo, a époc épocaa em que eu repr repres esen enta tavva o cav cavaleiro eiro da esperança, o profeta de uma revolução malograda, a bandeira de uma revolução em revolta.”6 A expectativa de representar o papel de líder revolucionário, r evolucionário, no entanto, não seria abandonada, mas expandida para o cenário internacional. Glauber realizou vários contatos com gente de cinema, políticos e exilados brasileiros, na Europa e na América Latina, antes de se esta estabel belec ecer er em Cuba Cuba,, no iníc início io de 1972 1972.. Nest Nestaa épo época ca,, já era cons consid idera erado do um dos dos cineastas mais importantes do continente e um intelectual do terceiro mundo. Não era apenas respeitado pelas autoridades da revolução cubana, mas era reconhecido e saudado nas nas ruas ruas de Hava Havana na.. Lá vive viveuu dura durant ntee prat pratic icam amen ente te um ano ano e seri seriaa o seu seu “par “paraí aíso so no exílio”, numa convivência eclética com lideranças de vários países e intelectuais do mundo inteiro que visitavam a ilha. Glauber mantinha um relacionamento estreito com Alfredo Guevara e tinha o status de convidado oficial do governo, o que lhe permitiu morar num dos dos mel melho horres ho hottéis, éis, o Hava avana Libr Libre, e, e desf desfru ruta tarr de uma vida sem sem incon nconvveni enient entes materiais. Naquele clima favorável, obteve recursos e condições de trabalho para realizar suas pesquisas e iniciar a montagem de um documentário intitulado intitulado História do Brasil , co-dirigido por Marcos Marcos Medeiros, Medeiros, militan militante te brasil brasileir eiroo exi exilad ladoo em Cuba. Cuba. O filme filme seria seria uma uma revisão revisão crítica de 500 anos de história do país, segundo explicou Glauber numa entrevista, publicada em Cine Cubano: “Exami “Examinei nei e fiz fiz uma uma avalia avaliação ção de todos todos os compo componen nentes tes desta desta his histór tória ia de 1500 1500 a 1973: componentes econômicos, políticos, sociais. O cenário foi constituído com a bibliografia brasileira contemporânea e de toda a literatura internacional que pude consultar. Passei um ano inteiro nessas pesquisas. Ao assim proceder, observei que nunca se fez, e portanto que ainda não existe, estudo que impede de todos os aspectos da história brasileira. Só encontrei versões parciais nos livros de Euclides da Cunha, José Veríssimo, Sérg Sérgio io Buar Buarqu quee de Hola Holand nda, a, Celso Celso furta furtado do,, Darc Darcyy Ribe Ribeir iro, o, Gilb Gilbert ertoo Frey Freyre, re, Ferna Fernand ndoo Henrique Cardoso e em muitos outros. O mais duro foi restituir e sintetizar o que se chama c hama ‘o caos caos brasil brasileir eiro’. o’. Um caos que que nunca nunca teve teve exist existênci ência, a, que que não foi e con contin tinua ua a não ser senão o fruto da alienação e da ignorância – a concepção defendida e alimentada do exterior, instrumento de alienação, o grande responsável por nossa incultura e pela mediocridade de nossa formação universitária.”7 Entrevista Entrevista concedida concedida a Louis Marcorelles Marcorelles e republicada, republicada, no Brasil, por Novais Teixeira, Teixeira, in: O Estado de São Paulo, 21 mar 1971. Apud: REZENDE, Sidney (org.) Ideário de Glauber Rocha. RJ: Philobilion, 1986, p. 104. 7 CONVERSA com Glauber Rocha. Documento datilografado, 3 folhas, sem data. Com o título “Entrevista 6
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Esta declaração, embora indicativa dos métodos de produção e das intenções de realização nos oferecem uma pista instigante: Glauber parecia mais interessado em dialogar com a pesquisa historiográfica e sociológica do que com a produção artística do seu tempo.8 Esta projeção do cineasta sobre o campo do conhecimento científico teve, de fato, repercussões importantes na feitura de História do Brasil , como veremos, visto que o filme retomava os temas recorrentes pelos autores citados. Este tema sugere um campo de investigação sobre o diálogo da obra com a produção do conhecimento histórico no Brasil, tendo em vista o esforço de interpretação e as referências aos temas centrais da historiografia, como o sentido da colonização, o papel da elite colonial, o processo de emancipação política e a consolidação do império, o caráter da revolução burguesa e o enfrentamento das lutas sociais e políticas desde a colonização até o regime militar de 1964. Neste sentido, o filme parece articular história e revolução, na qual o presente, desvendado como potencial portador da ruptura política e cultural, construiu uma interpretação sobre um passado de lutas contra a dominação. Glauber permaneceu em Cuba até dezembro de 1972, quando viajou para a Europa e se estabeleceu em Paris por alguns meses, depois se mudou para Roma, onde escreveu o roteiro O Nascimento dos Deuses , planejado para ser exibido, em seis partes, na televisão italiana.9 Marcos Medeiros também mudou-se para a Europa, prolongando seu exílio. Nesta época, História do Brasil ainda estava inconcluso. Em 01º de janeiro de 1974, Medeiros enviou de Argel uma carta a Alfredo Guevara, informando sobre as dificuldades de finalização do projeto: O tom formal da carta é marcado por referências à revolução socialista e a luta dos povos oprimidos, mas o objetivo do texto se relacionava diretamente com os caminhos tortuosos que levariam a conclusão do filme: “Todo el año 1973 se dedico a finalizar nuestro fim, ‘Historia del Brasil’. “Creo que Glauber te escribió informando nuestras dificultades en encontrar productor para terminar el film.” Medeiros também lamenta que as condições econômicas precárias obrigaram os dois diretores a se engajar em outros trabalhos: reproduzida em Cine Cubano, no. 86, 7, 8” Arquivado em Produção intelectual. Pasta: Textamento da Loukura, Parte I. Arquivo Tempo Glauber, Rio de Janeiro. 8 Alcides Freire Ramos refere-se ao risco de aceitarmos as “interpretações autojustificadoras” do cineasta sobre sua própria obra. RAMOS, Alcides F. Canibalismo dos Fracos: cinema e história do Brasil . SP/Bauru: Edusc, 2002, p. 85. 9 O filme, sob patrocínio da RAI, contaria a história da civilização clássica a partir da vida de Ciro I, imperador persa, até a invasão da península grega pelo exército romano. No entanto, divergências entre os
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“Tuvimos que parar el trabajo a mediados del año 73 para trabajar en documentales que nos permitieran vivir. Glauber salió para um largo viaje por América Latina y del Norte, de donde regresó en julio y entonces fue posible reiniciar el trabajo en História del Brasil. “Pasamos de agosto a noviembre escrubiendo el guión del film.” 10 Em dezembro, afirmava Medeiros, surgiram novos impasses e o filme estava incompleto e seria necessário ainda 50 minutos de material de arquivo, cujo custo de direitos autorais estaria entre 40 e 60 mil dólares. Finalmente, informava: “Añadiendo los gastos necessarios para la finalización del film además de llevarlo al portugués, español, francés y inglés, el presupuesto básico para terminar el film es de 80 mil dólares.”11 Medeiros e Glauber não obtiveram recursos adicionais do Estado cubano para concluir História do Brasil . O filme, finalizado naquele contexto de precariedade, em setembro de 1974, foi exibido numa sessão privada, na França, para um grupo de amigos, exilados políticos e críticos de cinema, num mosteiro beneditino em Paris, onde Glauber vivia temporariamente como clandestino. Em 1975, no 11º Festival do Cinema Novo de Pesaro, na Itália, realizou-se a primeira exibição aberta do filme de maneira inesperada e fora da programação do festival. Glauber retornou ao Brasil em 1976, mas sem as latas do original do filme, nem os roteiros produzidos. Em carta a Marcos Medeiros, que ainda estava no exílio, pediu que se enviasse o material através de amigos. 12 No país, o filme só foi exibido depois da morte de Glauber, em 1985, a princípio na Cinemateca e, posteriormente, em mostras que se realizaram em várias capitais. História do Brasil sofreu um percurso acidentado e marcado por interrupções.
Iniciado em Cuba, em 1972, finalizado em Roma, em 1974, através do apoio do produtor Renzo Rossellini, contou com o patrocínio inicial do governo cubano e a posterior rejeição do ICAIC, que solicitou a retirada de sua referência nos créditos; segundo declarações dos autores, teria sete horas, mas foi reduzido a menos de três; entrecortado de outros projetos, ora pelos interesses intelectuais de Glauber Rocha, ora por necessidades econômicas, foi editado em vários momentos intercalados pelas viagens constantes de ambos; só foi financiadores do projeto, inclusive, o Estado Iraniano - herdeiro do Império Persa -, impossibilitaram a sua realização. 10 SEM TÍTULO, sem autor. Documento arquivado em duas pastas com documentação fotocopiada e enviada recentemente de Cuba por Alfredo Guevara. Arquivo Tempo Glauber. Rio de Janeiro. 11 Idem, ibidem. 12 Carta reproduzida por BENTES, Op. cit. pp 615-617. 4
exibido no Brasil algumas vezes até hoje é pouco conhecido pelo público e pouco reconhecido pela crítica cinematográfica. Trata-se, portanto, de um projeto complexo e longo, entre Cuba e Itália, entre Glauber e Marcos Medeiros, entre o Cinema Novo e a produção internacional de Glauber. Tudo isso transformou o filme num acontecimento relevante e expressivo dos processos culturais que envolveram a produção cinematográfica deste cineasta. Neste sentido, dois problemas cruciais se apresentam à análise do filme. De um lado, o debate em torno da liberdade estética e criativa que Glauber teria diante das implicações políticas do filme e do controle ideológico do ICAIC - tema recorrente nos países socialistas e que parece pouco analisado no caso de História do Brasil . De outro, o dilema da co-autoria, na qual dois intelectuais com formações políticas distintas e interpretações históricas diversas e, em certos pontos, antagônicas, se dispuseram a realizar este filme. A presença de Glauber Rocha em Cuba foi, segundo alguns autores, um assunto delicado para o governo de Fidel Castro, na medida em que Glauber representava, simultaneamente, um dos intelectuais mais importantes do Terceiro Mundo e um artista que declarava sua independência política e a primazia do estético sobre as diretrizes ideológicas do partido.13 Entretanto, a análise deste problema exigiria aprofundar a pesquisa em torno da atmosfera cultural cubana, nos anos 70, verificando tanto a produção cinematográfica do país, quanto os debates publicados nas revistas especializadas e nas diretrizes de orientação do Estado. As tensões entre Glauber Rocha, Guevara e Marcos Medeiros e a retirada do nome do ICAIC dos créditos do filme podem ser compreendidos como episódios das relações entre o cineasta e o poder socialista institucionalizado. Mariana Villaça sugere que a estrutura disforme, “ora épica e didática, ora alegórica” motivara a ação de Guevara, mas, é possível também sugerir que os receios de Guevara se relacionassem ao caráter interpretativo do filme, cujo diagnóstico final descarta a possibilidade de tomada do poder pela luta armada.14 Este artigo pretende analisar o percurso de produção do filme História do Brasil e identificar certos temas e procedimentos de linguagem expressivos do cinema de Glauber Rocha naquele contexto de transição e redefinição de posturas estéticas e políticas deste cineasta. Este tema aparece nos trabalhos de GOMES, Op. cit. pp. 243-295 e de PIERRE, Sylvie. Glauber Rocha . SP/Campinas: Papirus, 1996. p. 68. 14 VILLAÇA, Mariana Martins, Op. cit. p. 502. 13
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A América Latina e Glauber Rocha
Um diálogo permanente do Cinema Novo e de Glauber Rocha com a crítica estrangeira e com outras cinematografias da América Latina e da Europa se configurou a partir do início dos anos 60 através dos festivais, das revistas especializadas e da divulgação de manifestos. Formou-se, naquele contexto, uma atmosfera propícia aos embates políticos e estéticos e de valorização do intelectual como “sismógrafo” dos processos sociais, particularmente, nos países pobres. A ação internacional do Cinema Novo gestava-se desde a formação do grupo em 1961, quando cineastas e críticos brasileiros construíram sua legitimidade internacional, levando os filmes para os mais diversos festivais e articulando uma intervenção política sistemática no mundo cinematográfico15. Em 1962, o primeiro longa-metragem de Glauber, Barravento, recebeu o prêmio Opera Prima do Festival de Cinema de Karlovy-Vary, na Tchecoslováquia; no ano seguinte, Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963), Porto das Caixas (Paulo César Saraceni, 1963) e Os Fuzis (Ruy Guerra, 1963) foram cuidadosamente divulgados para concorrer em vários eventos europeus e latino-americanos. 16 Nos anos seguintes, Deus e o Diabo na Terra do Sol participou do Festival de Cannes, recebeu prêmios na Itália, México e Argentina, e contribuiu decisivamente para consagrar o Cinema Novo no solo sagrado das grandes cinematografias modernas. Em termos culturais, o cinema brasileiro empolgava setores inovadores da crítica, pela vitalidade e originalidade da linguagem, enquanto os cineastas seduziam as platéias dos festivais através dos debates e das mesas-redondas, cujas altas temperaturas se faziam de intervenções eloqüentes e incendiárias dos jovens realizadores. Esta consagração parecia selada com o reconhecimento nos festivais mais prestigiados e com dezenas de convites que levavam os expoentes do Cinema Novo para palestras, debates e retrospectivas. A figura de Glauber oscilava entre duas representações recorrentes: o papel de “deputado da cultura brasileira” sugerido por Hélio Pellegrino e a imagem de intelectual do Terceiro Mundo que o próprio Glauber construía nas suas falas e artigos.17 15 FIGUEIRÔA,
Alexandre. Cinema Novo. A onda do jovem cinema e sua repercussão na França. SP: Campinas, Papirus, 2004. pp. 21-50. 16 BENTES, Ivana. Op. cit. pp. 195-206. A leitura da correspondência, especialmente, entre Glauber, Gustavo Dahl e Cacá Diegues sugere a arquitetura de estratégias conscientes para levar os filmes do Cinema Novo para os festivais internacionais. 17 GOMES, João Carlos Teixeira. Op. cit. p. 271.
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O Cinema Novo inseria-se num movimento mais amplo de renovação da cinematografia nos países da América Latina que incluía cineastas da Argentina, Chile, México e Cuba, entre outros, cujos esforços de realização e o desenvolvimento de certas posturas ideológicas convergiam para o mesmo fim: a emancipação estética, política e econômica do cinema e do campo cultural latinoamericano. 18 Compunham o núcleo central do Nuevo Cine Latinoamericano os cineastas Fernando Birri, Fernando Solanas, Julio Garcia Espinosa, Tomás Gutierrez Alea e Glauber em torno de revistas especializadas, como a Cine Cubano e Hablemos de Cine, editada no Peru. Além disso, as afinidades entre o Nuevo Cine e a revolução cubana no que se refere às questões sociais e às estratégias de transformação política do continente forjaram um habitat natural para a propagação de novas idéias e filmes. Alfredo Guevara, no comando do ICAIC (Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica), promoveu o contato entre jovens realizadores e ofereceu condições para a formação de técnicos e para a criação de uma linguagem cinematográfica original.19 Neste contexto, Glauber e Alfredo construíram uma relação produtiva e intensa, marcada pela amizade e por interesses políticos comuns. A correspondência entre ambos marcava aspectos importantes do processo cultural, das tensões e dos anseios de realização da nova cinematografia do continente. Glauber escreveu a primeira carta, ainda em Salvador, em fins de 1960, saudou a Revolução e o cinema cubanos, falou sobre as novas produções brasileiras, do seu filme Barravento e propôs um intercâmbio entre filmes dos dois países. 20 As relações se estreitaram nos anos seguintes, como se pode perceber pelo tratamento dispensado nas cartas: de “Compañero” Glauber passou a chamar Alfredo de “Querido Compañero” e, depois, apenas “Querido”, revelando aspectos pessoais e afetivos e estabelecendo uma cordial, mas íntima amizade. Uma carta escrita por Glauber, em 1º de agosto de 1967, e enviada de Roma onde ele divulgava Terra em Transe , descrevia para Alfredo como seria o próximo filme, America Nuestra : “Es un film muy ambicioso, donque quiero demostrar el proceso de destrucción y de liberación de América Latina, desde la destrucción de los Incas por los conquistadores, 18 AVELLAR,
José Carlos. A Ponte Clandestina. Teorias do Cinema na América Latina. SP: Edusp; Editora 34, 1995. pp. 7-40; PARANAGUÁ, Paulo. Cinema na América Latina. Longe de Deus e perto de Hollywood. Porto Alegre, LP&M, 1985, pp. 66-89. 19 VILLAÇA, Mariana. “ América Nuestra – Glauber Rocha e o cinema cubano.” In: Revista Brasileira de História . 22(44): 489-510, ANPUH, São Paulo, 2002. p. 501. A autora cita o Grupo de Experimentación Sonora como exemplo de inovação técnica e estética do cinema cubano que iria repercutir em outros países. 20 CINE Cubano . Havana, 101: 12, 1982. Trata-se de uma seleção de cartas publicadas pela revista, após o falecimento de Glauber, em agosto de 1981. 7
la influencia de la iglesia, la aparición de los latifundios y la explotación; el chantaje de la política civil; hasta las guerrilhas como camino de liberación. Debe ser una película épica y violenta.”21 Nesta carta, ele propunha a Alfredo uma co-produção, pois o filme seria rodado em vários países da América Latina e finalizado no ICAIC que também entraria com o envio da película virgem necessária. Nos dois anos seguintes, Glauber amadureceu a idéia e esboçou o roteiro de America Nuestra , enquanto declinava do convite de Alfredo para ir à Cuba participar de um encontro de cineastas, justificando que isso traria complicações políticas para ele quando pretendesse filmar no Peru ou na Bolívia. Apenas em meados de 1971, aceitou o convite, abandonando aparentemente, o projeto de filmar America Nuestra . Desta vez, porém, utilizou outros motivos para justificar sua ida, no seu espanhol displicente: “Deseo mucho ir a conversar com usted y com los cineastas cubanos y si me demore tanto em aceptar la invitación que usted me hizo hace alrededor de diez años es porque ahora me siento preparado para enfrentar una experiencia radical sin la menor huella de uma cultura pequeño-burguesa. “Como lo considero un viejo amigo le diré que el artista e intelectual han desaparecido radicalmente y ahora soy una persona dispuesta a trabajar revolucionariamente, siendo revolucionario.”22 Em setembro do mesmo ano, escreveu de Roma, opondo-se gentilmente a realizar um filme idealizado por Marcos Medeiros, militante brasileiro exilado em Cuba, sobre a história do Brasil. Insistia que sua atividade política era fruto de sua visão cinematográfica e que esta era mais ampla que a instrumentalização didática ou a comercialização de seus trabalhos. Afirmava, porém, que se fosse do interesse do ICAIC financiar apenas o projeto de Medeiros, “yo compreenderé perfectamente la situación”. Entretanto, na conclusão da carta, retomava um argumento para sustentar que a aprovação do seu projeto seria a escolha certa: “La revolución em América Latina deve ser desencadenada profundamente. Hoy en Europa se que el triunfo de la estética de derecha absorbe los códigos de la estética de la izquierda. Veo el peligro de un retroceso cultural en el cine latinoamericano, motivado por uma teoría de cine revolucionario que no tiene correspondencia en el lenguaje acadêmico y colonizado. Esto demuestra la debilidad del artista latinoamericano que se deja neocolonizar. Uma revolución cinematográfica radical, puede incluso producir películas de 21 Idem,
ibidem, p. 19. 8
ruptura absoluta con el lenguaje tradicional como, ‘Cabezas Cortadas’ pero teniendo disposición autocrítica para llevar a profundidad estos problemas.”23 Durante sua estadia em Cuba, enviou uma carta, em 9 de março de 1972, ao ICAIC, onde apresentava um novo projeto de um “filme a ser realizado em Cuba”, no qual, dizia, interessava-se menos por suas idéias pessoais e temáticas, que por uma “produccion coletiva planificada”, como instrumento de luta ideológica, desde que se garantisse aos realizadores total liberdade criativa e de experimentação estética – condição necessária a uma nova linguagem, ao mesmo tempo, revolucionária e industrial. 24 O cineasta baiano parecia ter abandonado definitivamente a idéia de fazer America Nuestra com produção cubana, engajando-se integralmente na confecção de um “projeto coletivo” que se concretizaria em História do Brasil . As idas e vindas de Glauber a respeito do assunto não passaram desapercebidas pelos observadores do governo cubano. Um documento, sem indicação de autor, datado de setembro de 1971 e enviado de Roma para Havana, registra as intenções de Glauber com relação a América Nuestra . O tom de relatório policial sugere que um funcionário do governo cubano tivesse a incumbência de descrever os passos do cineasta. Entre outros assuntos, o relatório sugeria que America Nuestra ainda fazia parte dos seus planos: “[Glauber] Ha tenido relación com respecto a este film con 6 organizaciones. No acepta proyecto de Marcos. Las orgnizaciones le plantearan que estava utlizando los contactos de las organizaciones para hacer um film. Outras organizaciones le plantearon hacer el film com Jane Fonda y Rod Steiger. Con algunas organizaciones tuve uma discusión sobre los mercados, discutieron sobre el 50% del film. Em otras discusiones se planteé (ou planteá?) que Marcos debía fiscalizar el film. Algunos propusieron que el film debía hacerse em Argélia. No quiere ser censurado irracionalmente. El acepta la discusión política pero no cinematográfica. Le escrivié todo esto a Alfredo Guevara.” 22 Idem,
ibidem, p. 28. ibidem, p. 28. 24 SARNO, Geraldo. Glauber Rocha e o Cinema Latino-Americano . RJ: CIEC/Rio Filme, 1995. pp. 95-106. As páginas citadas correspondem à transcrição, na íntegra e em versão “fax-simile” da carta endereçada a “Direccción del ICAIC”, na qual, além do projeto do filme, realiza um diagnóstico sobre cinema e política na América Latina. 23 Idem,
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O documento informa também que Glauber teria disposição de ir a Cuba, depois que finalizar um projeto para a televisão estatal italiana (RAI), mas afirma que ele não quer realizar projetos com outros brasileiros: “El quiere que sea una producción ICAIC y que el film sea propriedad cubana. No quiere inmiscuirse en las relaciones ICAIC-brasileños. El quiere hacer un film sobre el fascismo en general. Cree que la idea de Marcos es uma idea limitada y puede ser mezquina. El film tiene que ser fuerte para poder ir en contra de la información. Prefiere arriesgarse con uma cosa ambiciosa. El film de Marcos le interesa a nivel político pero no cinematográfico.”25 Este relatório aponta três aspectos que nos parecem significativos da perspectiva de Glauber filmar em Cuba, em 1971. Em primeiro lugar, reproduz a preocupação do cineasta em se afastar das disputas políticas “domésticas” evitando trabalhar com outros brasileiros; em segundo lugar, retoma a idéia de que Glauber tinha um “grande lance”, um filme arriscado e ambicioso para produzir sobre a América Latina; finalmente, o relatório aponta que o interesse estético e cinematográfico de Glauber não poderia se efetivar num projeto em parceria com Marcos Medeiros. De certa forma, a realização de História do Brasil contrariava as expectativas de Glauber e o submetia a uma co-direção que ele provavelmente não teria aceitado se tivesse condições de realizar seu próprio filme. O que teria levado o ICAIC a limitar o raio de ação de Glauber e não oferecer condições mais autônomas de trabalho? É provável que a liberdade criativa e as posições políticas de Glauber colocariam em risco uma produção assinada pelo instituto de cinema cubano. Além disso, Cuba, naquele momento, recebia inúmeros brasileiros exilados e oferecia uma espécie de “quartel general” da esquerda da América Latina. O alinhamento ideológico com as organizações políticas e os grupos de luta armada somado ao acirramento da luta revolucionária, afastavam o Estado cubano e, portanto, o ICAIC de iniciativas independentes, como no caso de Glauber. Trajetória pessoal e projeto cultural no exílio
No período de exílio, entre 1971 e 1976, Glauber construiu inúmeras representações sobre o Brasil e sobre as relações dos países pobres com a Europa e os Estados Unidos. Estas representações incluíam uma concepção de história na qual a cultura e a política se entrelaçavam, sugerindo um caminho possível para a transformação social.
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Havia, portanto, um projeto de sociedade que, de um lado, se baseava numa interpretação histórica, de outro, propunha um plano de ação política. Este projeto articulou conceitos analíticos diversos e práticas políticas antagônicas, unificadas numa concepção de história original, cuja perspectiva revolucionária deveria promover a libertação integral do homem. O resultado, em termos práticos, mobilizou o cineasta para o campo da ação política, ainda que individualmente e integrado apenas por relações pessoais e afetivas. A confecção deste plano de ação levou Glauber a aprofundar sua crítica às esquerdas tradicionais, representadas pelos partidos comunistas, sem, no entanto, abandonar o instrumental analítico marxista. Sua análise política, durante o exílio, se ampliou e ultrapassou as fronteiras nacionais em direção a uma história total, a tal ponto que um dos roteiros feitos por ele, a pedido da televisão estatal italiana chamava-se O Nascimento dos Deuses . A leitura do manifesto “A Estética da Fome”, em 1965, no encontro Terzo Mondo e Comunitá Mondiale, organizado pelo Colombianum, em Gênova, empolgou setores importantes das intelectualidades italiana e francesa, apesar do desconcerto inicial das idéias defendidas por Glauber26. O reconhecimento internacional de Glauber atingiu o ápice com o sucesso de O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro , em 1969, que obteve a Palma de Ouro em Cannes para Melhor Diretor. Entretanto, na década de 1970, o Cinema Novo deixou de ser a grande novidade vinda dos trópicos e projetos e filmes de Glauber entraram, por assim dizer, na pauta doméstica da crítica européia que assumia diferentes posições a respeito dos novos filmes, embora guardassem, em geral, grande reverência às primeiras obras do cineasta brasileiro.27 O exílio foi uma das épocas mais difíceis para Glauber, como se pode verificar na correspondência mantida com amigos e familiares no Brasil. Ele lamentava viver a distância 25 SEM
TÍTULO, sem autor. Documento arquivado em duas pastas com documentação fotocopiada e enviada recentemente de Cuba por Alfredo Guevara. Arquivo Tempo Glauber. Rio de Janeiro. 26 Cf. GOMES, J. C. Op. cit. pp. 267-273. Neste manifesto, Glauber ataca o gosto europeu pela “miséria” da América Latina, cuja produção artística interessava apenas como realização de um certo primitivismo. O resultado da ação colonialista, afirmava, impedia que o latino comunicasse sua “verdadeira miséria ao homem civilizado” e este, por sua vez, não compreendia “verdadeiramente a miséria do latino”. A experiência histórica, portanto, havia sido responsável pela construção de uma estética que se materializava na violência – a “mais nobre manifestação cultural da fome.” O artigo encontra-se reproduzido na íntegra por GOMES, Op. cit. pp. 594-599. 27 Os louvores em torno de Deus e o Diabo e O Dragão da Maldade , transformaram-se em severas indagações e críticas a nova produção que incluía O Leão de Sete Cabeças e Cabeças Cortadas , exibidos na Europa em 1970, além de Câncer , Claro e História do Brasil , que não chegaram a freqüentar circuitos comerciais ou salas “culturais” muito expressivas.
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da mãe e da filha Paloma, reclamava com Cacá Diegues e Zelito Viana as dificuldades para encontrar trabalho, comentava com vários amigos a saudade do país. 28 Glauber não recebia qualquer ajuda de organizações políticas ou culturais, e se mantinha com recursos financeiros próprios, por isso, articulou inúmeras iniciativas, com a ajuda do produtor francês Claude Antoine e do italiano Gianni Amico. Disto resultaram alguns projetos para a RAI e viagens pela América, Europa e URSS, ora convidado para os festivais, ora à procura de produtores e de opções de trabalho. 29 Foi um período pouco produtivo, em termos cinematográficos, e um dos mais problemáticos da vida do cineasta baiano. Situação agravada com a publicação, em março de 1974, de sua carta na Revista Visão, onde Glauber declarou seu apoio às medidas de Geisel, elogiou o general Golbery,
chamando-o, junto com Darcy Ribeiro, de “gênio da raça”.30 Naquele contexto, tumultuado e transitório, o filme História do Brasil nos pareceu um ponto-chave na transição entre o Brasil e os demais países onde Glauber viveu. Esta transição comportou uma dimensão pessoal significativa, afinal, ele deixava o país pressionado pela situação política e iniciava um exílio sem garantias de obter recursos materiais e se estabelecer como cineasta – especialmente, a partir de 1973, quando foi morar em Roma e Paris. No entanto, também foi uma transição estética que transferiu os interesses de Glauber para a experiência da América Latina e do Terceiro Mundo. Este aspecto da transição pode ser identificado na passagem do Cinema Novo para as novas representações sobre um “Cinema Tricontinental”, defendido por Glauber desde fins dos anos 60.31 Neste sentido, História do Brasil representou um balanço histórico não apenas sobre o país, mas sobre o próprio cinema de Glauber, compondo um quadro de preocupações com os temas da revolução, da política e das transformações sociais. O esforço de síntese presente no filme e, simultaneamente, a amplitude de conteúdos trabalhados contribuem para esta impressão de “história passada a limpo”, de ponto de virada que procura sistematizar uma tese ampla sobre a história do país. História do Brasil expressou também as tensões entre experimentação estética e orientação política institucionalizada, na medida em que Glauber combatia a separação entre engajamento político e renovação estética, afirmando a primazia da liberdade criativa 28 BENTES,
I. Op. cit., pp. 390-622; GOMES, J. Op. cit., pp. 243-295. Sobre a trajetória de Glauber na Europa e a crítica aos seus filmes dos anos 70, as análises de VALENTINETTI, Op. cit, PIERRE, Op. cit. e GOMES, Op. cit. indicam, sob pontos de vista diferentes, os problemas vividos durante o exílio. 30 GOMES, Op. cit., pp. 303-319. 31 XAVIER, Ismail. “Glauber Rocha: o desejo de história”. In: -----------------------.O Cinema Brasileiro Moderno. RJ: Paz e Terra, 2001, p. 132. 29
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como um pressuposto para a libertação política dos centros de poder. 32 Por isso, ele pretendia que seus filmes comportassem uma pedagogia política para uma nova linguagem e uma nova cultura. Neste sentido, História do Brasil carrega, assim, as marcas desta arte revolucionária capaz de se libertar da estética colonizada. No entanto, o filme comporta também os dilemas desse projeto estético-político, confinado, em termos de comunicação, ao público intelectualizado das camadas médias. Além disso, determinadas tensões na interpretação da história do Brasil remetem-nos às polêmicas do meio intelectual no país e na América Latina. Finalmente, acreditamos que um dos temas recorrentes na trajetória de Glauber Rocha, a relação entre cultura e política, marcaria uma das tensões em História do Brasil , não apenas pelo recurso a explicações históricas de caráter cultural, mas, pelo propósito do filme na difusão de uma leitura interpretativa da história como contribuição ao processo de formação educacional e de cultura política do país. Em síntese, as concepções teóricas e a noção de história presentes em História do Brasil serviram de base ideológica e política para a atuação de Glauber no exílio e foram retomadas em inúmeras entrevistas e artigos escritos na imprensa européia e latinoamericana. Ao mesmo tempo, estes textos alimentaram as interpretações presentes no filme construídas ao longo dos dois anos que separam o projeto inicial, em 1972, em Cuba, da finalização, em Roma, em outubro de 1974. A Crítica sobre História do Brasil
O filme de Marcos Medeiros e Glauber Rocha conta a história do país desde a conquista portuguesa até o início da década de 1970, a partir de planos e seqüências de outros filmes e de material iconográfico, conduzidos por uma voz over incessante e raramente interrompida. Não há, portanto, nenhum plano produzido exclusivamente para o filme, mas há utilização de materiais de arquivo colocados à disposição dos diretores, em Cuba, onde as pesquisas e a coleta de imagens foram feitas, em 1972. O filme, com duração de 2 horas e 45 minutos, pode ser dividido em duas partes distintas. Na primeira, o narrador da voz over e, às vezes, a música articulam-se a cenas de filmes brasileiros e imagens iconográficas selecionadas pelos diretores, contando a história do país desde a conquista, no século XVI, até o seqüestro dos diplomatas alemão e suíço e a morte de Lamarca, em 1973. O caráter cronológico dos temas narrados prossegue durante esta etapa do filme 32 ROCHA,
Eryk. (org.). Rocha que Voa. RJ: Aeroplano, 2002. pp. 95-107. 13
com cerca de 135 minutos. A segunda parte, aberta com uma seqüência de trechos de músicas brasileiras e uma montagem em ritmo acelerado com imagens do país, estrutura-se em torno de um diálogo dos dois diretores, num tom interpretativo, analítico e informal que abandona a pretensão narrativa e inicia um debate sobre temas contemporâneos, como a ação do Partido Comunista, em 1964, a importância da Revolução Cubana, o tema do desenvolvimento econômico e do imperialismo e as estratégias brasileiras para a conquista do socialismo. As primeiras interpretações de História do Brasil foram produzidas, paradoxalmente, antes da finalização do filme, em 1974, a partir de duas matrizes: as entrevistas e depoimentos dados por Glauber para revistas de cinema em Cuba e em outros países da América Latina33; e a correspondência mantida por Glauber com amigos, cineastas e críticos de cinema.34 Nestes documentos, destacam-se pelo menos três aspectos que compõe a primeira teia de significados sobre o filme. O primeiro aspecto tratava da função do filme, destinado a ser exibido na televisão e nas escolas, a partir de sete capítulos de uma hora cada, e oferecido como uma “autêntica aula de história” - baseada numa visão integrada dos “473 anos do Brasil.” 35 O segundo, lançava uma interpretação global da obra que se tornaria recorrente em vários momentos posteriores: a noção de que História do Brasil seria uma síntese estruturada pelo instrumental analítico do “materialismo dialético”.
Em linhas gerais, Glauber atribuía à narração cronológica o caráter educativo, enquanto as complexas relações entre som e imagem garantiriam uma análise dialética da história, condensada numa visão objetiva e científica dos processos sociais e políticos. 36 LA HISTORIA do Brasil segun Glauber Rocha, in: Cine Cubano. 86/88: 97, Havana, 1997. CINE Cubano em Bogotá. In: Alternativa. 22-29, set 1975. Para uma leitura sobre as teorias de Glauber Rocha AVELLAR, José Carlos. A Ponte Clandestina. Teorias de Cinema na América Latina. SP: EDUSP/Editora 34, 1995. pp. 77-114. E, finalmente, onze cartas escritas antes da edição do filme, em setembro de 1974, e enviadas de Roma e Paris para amigos e críticos de cinema, fazem alusões ao filme. BENTES, I. Op. cit, pp. 452-500. 34 Há uma longa carta de Glauber, com 12 páginas datilografadas, enviada a Alfredo Guevara, em 9 de março de 1972, na qual apresentava uma análise sobre o cinema latino-americano e sobre os motivos para realizar um filme em Cuba. Cf. SARNO, Geraldo. Op. cit.. pp. 95-106. Sobre a correspondência mantida entre os dois, ver o artigo de Mariana VILLAÇA, Op. cit., pp. 495-496. E, finalmente, onze cartas escritas antes da edição do filme, em setembro de 1974, e enviadas de Roma e Paris para amigos e críticos de cinema, fazem alusões ao filme. Cf. BENTES, I. Op. cit, pp. 452-500. Acreditamos que na correspondência não publicada encontraremos mais documentos com referências a História do Brasil , tendo em vista a impressionante quantidade de missivas escritas e recebidas por Glauber durante sua vida, especialmente, no exílio. 35 NETTO, Araújo. A Revisão Histórica de Glauber. Jornal do Brasil. 16 jan 1973. 36 Essa produção de significados sobre sua própria obra é recorrente na história do cineasta, tendo em vista seu envolvimento direto com a atividade jornalística, a produção intensa de textos analíticos e sua volumosa correspondência. Certas análises sobre a obra de Glauber incorporam, sem o devido crivo analítico, estas “auto-justificativas” do cineasta à interpretação, confundindo as intenções do autor com a realização efetiva do trabalho. Cf. VALENTINETTI, Cláudio M. Glauber: um olhar europeu. SP: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi/Prefeitura do Rio, 2002. Para uma visão crítica do uso das versões “auto-justificadoras” do cineasta, RAMOS, Alcides Op. cit., pp. 49-129. 33
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Finalmente, um terceiro aspecto que se destaca nesses materiais é o tema da autoria exclusiva de Glauber Rocha. Nesse sentido, Marcos Medeiros é visto apenas como um “colaborador”, um estimado auxiliar de pesquisa que contribuiu com certas idéias, mas não como um co-diretor ou realizador intelectual da obra. 37 Este conflito de autorias pode ser uma das chaves do entendimento do filme, tendo em vista divergências profundas que podem ser identificadas nas diferentes concepções de história de cada autor. A primeira referência à História do Brasil na crítica especializada brasileira encontrase num artigo de Sérgio Augusto, de 1985, que realizou uma crítica sucinta ao filme, informando que havia um aparente desleixo na “sucessão de imagens” e que o discurso narrativo estaria no “auge da simplificação materialista dialética”, carregado de jargões. 38 Augusto contrariava, assim, a versão de Glauber sobre a relação complexa entre som e imagem e lamentava que um diretor tão genial tivesse realizado um filme tão mal acabado. Dentre os livros que analisam o cinema de Glauber Rocha, História do Brasil tem figurado como uma obra experimental e acidentada, cujo sentido se desloca em geral para os percalços da produção e as tensões entre os realizadores.39 Gomes descreve o ambiente cultural cubano e as condições de Glauber na Ilha, oferecendo informações valiosas sobre a atmosfera que reunia amplos setores da intelectualidade revolucionária da América Latina. Entretanto, não há informações detalhadas sobre o filme, limitando-se a descrição dos acordos mais gerais entre Rocha, Guevara e Medeiros. Ivana Bentes informa que História do Brasil foi um dos “férteis resultados” cinematográficos do “idílio cubano”, todavia, empobrecido pela suspeita sobre sua paternidade incerta, isto é, a desconfiança sobre a autoria de Glauber.40 Sylvie Pierre interpreta a trajetória Glauber, de um ponto de vista privilegiadamente europeu, não apenas porque ela foi uma das principais interlocutoras do cineasta na Cahiers du Cinema, como também pelo seu interesse nas relações do diretor de Antonio das Mortes com a crítica e o público europeus.41 A respeito de História do Brasil , Pierre sugere
um contexto marcado pela ambigüidade entre o inquieto hóspede do Havana Libre e as 37
NETTO, Araújo. Op. cit. Segundo esta entrevista realizada em Roma, Glauber afirma que Marcos Medeiros ofereceu uma valiosa colaboração. “Auxiliou-me e aconselhou-me em todos os momentos da realização do filme.” Entretanto, a ficha técnica do filme atribui a Marcos Medeiros a co-produção, co-direção e co-roteiro. Cf. VALENTINETTI, C. Op. cit., p. 201; BENTES, I. Op. cit., p. 740. 38 Cf. AUGUSTO, Sérgio. Glauber e o resto do pessoal. In: Folha de São Paulo. 19 mar 1985. s/p. Trata-se evidentemente de uma primeira etapa da pesquisa, baseada no levantamento de documentos referenciados diretamente ao filme, no acervo da Cinemateca e no acervo do Arquivo Tempo Glauber. Acreditamos que uma pesquisa mais sistemática deverá revelar novos materiais. 39 Cf. GOMES, J. C. T., Op. cit. pp. 253-264; PIERRE, Sylvie, Op. Cit. pp.67-69; BENTES, Ivana, Op. cit. pp. 52-55.; VALENTINETTI, C. Op. cit., pp. 157-168. 40 BENTES, I. Op. cit., pp.48-50. 41 PIERRE, Sylvie. Op. cit. pp. 34-101. 15
autoridades cubanas, que, se de um lado, reverenciavam o cineasta, de outro, o mantinham sobre vigilância severa, embora velada e sigilosa.42 Cláudio Valentinetti dedicou um capítulo ao filme, percorrendo o contexto de produção em Cuba e, posteriormente, em Roma, mas a análise estética do filme aproximou-se demasiadamente das declarações do próprio cineasta, reproduzindo trechos das entrevistas e justificando as idéias defendidas por Glauber Rocha. 43 Em suma, a recuperação prévia da fortuna crítica sobre História do Brasil , seja através das entrevistas do autor, de críticas especializadas ou das pesquisas acadêmicas, compõe um quadro emblemático de produção de significados e de campos de possibilidades, dos quais podemos destacar, de um lado, na confecção da obra, o caráter simultaneamente “dialético” e “pedagógico” do filme, presentes no esforço de síntese da história do país; de outro, a importância dada ao trajeto do filme, ou melhor, ao contexto em que o filme foi produzido, entre os dois anos de exílio na América e na Europa. Finalmente, os documentos produzidos sobre o filme nos revelam aquilo que parecem ocultar: a presença de um co-realizador, Marcos Medeiros, poucas vezes citado e circunstancialmente mal posicionado. Os procedimentos de linguagem em
História do Brasil
Há, ao longo do filme, um predomínio dos temas políticos e das lutas socais, além de análises econômicas macro-estruturais que, via de regra, procuram explicar as grandes transformações da formação sócio-econômica do país. A articulação entre a luta política e os temas artístico-culturais se realiza sem sobressaltos, através de mediações que, em geral, privilegiam uma certa “história social” das práticas culturais. Numa aproximação inicial, o filme parece construído sobre duas bases distintas e que raramente convergem. Entretanto, o que nos interessa é, evidentemente, o diálogo entre narração e imagem. Tome-se, de um lado, a irrupção das imagens: inúmeros trechos de filmes nacionais e cubanos, farto material iconográfico, cenas documentais produzidas por fontes variadas, documentos produzidos pela imprensa escrita, revelam infinitas experiências coletivas e individuais, ações espontâneas e dirigidas, múltiplas performances, e em geral, protagonizada es por homens simples que lutam por sua sobrevivência, expressam sua religiosidade e vivem experiências cotidianas. Visto assim, estas imagens compõe um repertório de subversão e criativa, explosiva e violenta, oculto às elites, submersos e indiferente à versão oficial e à arena da grande política. 42 Idem,
ibidem, pp. 67-69 16
De outro lado, a narração tradicional da voz over , recorrente desde os primórdios da criação dos diversos gêneros de cine-jornalismo, conduz cronologicamente a história do país e se comporta como senhora absoluta dos acontecimentos e das interpretações. Uma avaliação do filme que privilegiasse demasiadamente a banda sonora encontraria um modelo explicativo racional, cartesiano e coerente, marcado por eventos históricos tradicionais e por análises, no conjunto da obra, comumente aceitas e difundidas pelas ciências sociais. Na primeira parte do filme, dois procedimentos formais conferem o caráter pedagógico sugerido por Glauber: a imposição de uma história cronológica, linear e unívoca da narração da voz over e uma distribuição equilibrada do tempo utilizado no filme para a análise dos fenômenos históricos, expondo temas e personagens sem prolongar-se demasiadamente sobre cada assunto. Entretanto, esta estrutura geral é contrariada por referências mais prolongadas ou por citações aos temas contemporâneos do cineasta. Assim, a estrutura linear da primeira parte do filme, marcada por datas e acontecimentos, é entrecortada por comentários mais complexos e analíticos que se interpõem à exposição narrativa. Esses “comentários” podem ser observados pela contraposição entre som e imagem. A produção de significados e o esforço de interpretação no filme remontam às conexões entre imagem e som e à montagem, procedimento essencial na confecção da obra. Neste sentido, o material visual utilizado foi reinterpretado e selecionado a medida em que fotografias, mapas, iconografias, artigos de jornal, documentos escritos e uma diversidade de películas foram incorporados ao filme por Glauber e Marcos Medeiros. Assim, a profusão e diversidade de materiais, a relação entre a banda sonora e a imagem (raramente disposta ao sincronismo) e uma clara intenção na produção de novos significados pela justaposição de planos e pela contraposição som/imagem conferem à História do Brasil uma riqueza interpretativa capaz de romper com o discurso unívoco da
narração da voz over. Estes procedimentos desestabilizam conceitos e visões consolidadas da história, provocam paradoxos e ambivalências e, em certos momentos, levam o filme ao paroxismo. Esta interpretação inicial nos orientou a analisar o filme a partir de três problemáticas centrais que, ao serem compreendidas, explicitariam a visão de Glauber sobre a história do país. Trata-se dos seguintes aspectos: 1) a representação do intelectual e o papel da produção artística e cultural no processo de transformação social e política do 43 VALENTINETTI,
C. Op. cit., pp. 157-168. 17
país; 2) a função dinamizadora da violência nos momentos de ruptura e radicalização das tensões sociais; 3) o presença das forças armadas na história e a polarização entre os nacionalistas e os “entreguistas”. Estas questões estariam articuladas por determinados procedimentos de linguagem que dão sentido ao filme a partir da articulação passado-presente dos fenômenos históricos, vinculando-os ao potencial político, artístico e revolucionário que teriam no momento da produção do filme. A composição entre imagem e som e a articulação dos planos impõe um complexo trabalho de reflexão sobre os significados abertos pela obra. A constante assimetria entre imagem e voz over desqualifica o narrador como única fonte de interpretação, produz um terceiro sentido, instaura outra instância narrativa e interpretativa que não está na narração, nem na imagem, mas na composição das cenas e seqüências. Caso predominasse um estilo informativo, no qual as imagens apenas ilustrariam a “verdade” dos acontecimentos narrados, então, a identificação com o mundo do narrador seria, não só possível, como desejada. Desde o início, porém, texto e imagem são diacrônicos e seguem em direção à descontinuidade absoluta. Há, ao longo do filme, uma modulação expressiva entre a narração over de caráter informativo num discurso pretensamente objetivo e a seleção das imagens, múltiplas, às vezes caóticas, dona de infinitas possibilidades de interpretação. A aderência aos mecanismos explicativos do narrador é freqüentemente solapada pelo questionamento das imagens que interfere formalmente na significação dos fatos. Este efeito, em termos de linguagem cinematográfica, é provocado pelo deslocamento do ponto de vista narrativo. A diversidade de focos narrativos, presente no filme, a partir da articulação das imagens e dos sons, é um aspecto comum aos filmes do cinema moderno, a partir dos anos 50. Entretanto, um texto de Eisenstein, de 1932, explora o assunto ao discutir uma adaptação cinematográfica do livro de Theodoro Dreiser, Uma Tragédia Americana . O cinema, afirma Eisenstein, permitiria, do ponto de vista formal, alguns avanços em relação às possibilidades narrativas da literatura. Interessa-lhe, particularmente, a transcriação do “monólogo interior” para o filme sonoro, cujo resultado expressivo seria muito mais adequado para representar as sutilezas do conflito íntimo da personagem. Eisenstein sugere, assim, as possibilidades de uma “montagem-vertical” entre som e imagem, desde que a locução não se prestasse unicamente a comentar as imagens, mas a questioná-la,
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provocando o entrechoque e o estranhamento.44 No cinema moderno, a heterogeneidade e a não-identidade dos canais de narração possibilitou ir além do “mostrar” em cenas e dar continuidade à ação do comentário na voz over . As estratégias narrativas de História do Brasil parecem motivadas por este tipo de
conquista, visto que não é apenas o narrador da voz over que estabelece sentido à história, mas entram no jogo de significados, a relação som e imagem e a montagem dos planos. Todavia, não é apenas a montagem que subverte a cronologia “bem comportada”. A própria narração da voz over contribui para introduzir certos estranhamentos em pelo menos três direções. A primeira, relaciona-se ao destaque maior dado a certas figuras, seja nas referências da imagem, seja na locução narrativa. A presença incessante e repetitiva de Getúlio Vargas, por exemplo, sugere esse rompimento com uma cronologia mais sistemática e enclausurante, desequilibrando a cadência narrativa, através da leitura de dois documentos (um discurso sobre o imperialismo e a carta-testamento) e da presença de inúmeras imagens do presidente em filmes e fotografias, ora envolvido pela multidão, ora presente nos ambientes fechados dos acordos políticos. Esta seria uma das chaves de entendimento da relação que o filme estabelece com a leitura dos temas contemporâneos à obra e aos interesses de Glauber Rocha, especialmente, os engendramentos do varguismo no campo da melhoria das condições de vida da classe trabalhadora e das lutas nacionalistas contra o imperialismo. Estes dois temas reapareceram nas análises de Glauber sobre o regime militar, numa crítica que destacava certas positividades mesmo num contexto de repressão política. A segunda direção caracteriza certos processos históricos ou personagens a partir de atributos contemporâneos ao contexto de realização do filme. Há várias seqüências com indicações muito claras de certas articulações políticas e ideológicas de Glauber, através de referências aos temas da década de 60, como o imperialismo, a luta de classes e a revolução social. A narração e as imagens privilegiam, num certo momento, a figura de Castro Alves o poeta “revolucionário do romantismo” -, cuja ideologia da “burguesia industrial” denunciava as “causas do subdesenvolvimento econômico”. Poeta de prestígio e referência constante na vida de Glauber Rocha, Castro Alves é visto não apenas como o poeta romântico dos negros e escravos, mas como um revolucionário. Segundo o narrador, “atuando nas universidades de direito da Bahia e Pernambuco e a de São Paulo e do Rio, Castro Alves improvisa, declama, escreve poemas que denunciam a estrutura reacionária do 44 EISENSTEIN,
Serguéi. “Da Literatura ao Cinema: uma tragédia americana”. In XAVIER, Ismail (org.). A 19
império escravocrata, ataca o imperialismo internacional, proclama a luta de classes e a tomada do poder pelo povo.” E, finalmente, um terceiro comentário corresponde a certas interpretações sobre a história que articulam fenômenos distintos e separados cronologicamente, remetendo-nos aos temas comuns e recorrentes à historiografia brasileira desde os anos 30, tais como, as práticas culturais da população indígena antes da chegada dos portugueses; a articulação da empresa colonial com o mercado atlântico; a dinâmica de miscigenação cultural e étnica entre negros, índios e brancos tecida no interior da sociedade patriarcal; a temática das lutas sociais emancipacionistas e o caráter revolucionário de Tiradentes; a relação entre industrialização e burguesia cafeeira e o caráter das rupturas políticas como expressões da revolução liberal burguesa. Esse conjunto de temas e o próprio papel que Glauber Rocha atribui ao filme - realizar uma síntese da história do país, com finalidades didáticas - levanos ao cotejamento do filme com a produção historiográfica que se debruçou sobre os temas cruciais na interpretação do país. Em síntese, a presença de outros pontos de vista elaborados a partir de determinados procedimentos de linguagem, “destrona” a voz do narrador do papel de mediador único entre fato e interpretação, entre o encadeamento dos processos históricos e seus significados no mundo contemporâneo ao filme. A manipulação da linguagem resulta, pois, em manipulação ideológica, dado que interfere na produção de significados sobre a história do país e, portanto, sobre a eficácia da sua visão de mundo. A análise do filme requer, deste modo, que se avalie os procedimentos de linguagem, especialmente a relação som e imagem como respostas estéticas a demandas políticas e sociais. Por isso, a interpretação sobre as concepções de história do filme passa necessariamente pela mediação do processo de representação fílmica da história.45 História do Brasil produz um conjunto de significações tecidas pela articulação entre
imagem e som, pela montagem de determinados planos e pela recuperação do sentido original (seja dos trechos de filmes, seja do papel social de determinado artista plástico). Estes procedimentos de linguagem recaem sobre a concepção de história do filme a partir de três elementos: em primeiro lugar, conferem força política aos fenômenos históricos, na medida em que atualizam, pelo uso de imagens contemporâneas, aquilo que a voz over trata como acontecimento pretérito; segundo, o filme condensa processos históricos distintos articulando política, economia, sociedade e cultura numa única cena ou seqüência síntese; Experiência do Cinema. RJ: Graal/Embrfilme, 1983. pp. 203-215. O texto foi publicado originalmente em 1932. 20
terceiro, o filme se estrutura numa tensão constante entre a fragmentação das imagens e a unidade narrativa da voz over , produzindo uma interpretação aberta da história, na medida em que jogo de pontos de vista favorece leituras complexas e multifacetadas. O diálogo entre passado e presente esteve pautado, no filme, pela militância cultural e política dos diretores, preocupados com a conjuntura do país, embora distantes na condição de exilados. Parece-nos, assim, que esta concepção de história, a despeito da afinidade com certas correntes historiográficas, surgiu das demandas concretas de Marcos Medeiros, envolvido com as organizações de esquerda, de Glauber Rocha, imerso numa atividade artística profundamente política e de inserção internacional. Neste sentido, apesar da co-autoria, acreditamos que as interpretações apresentadas pelo filme parecem menos afinadas com as visões de história dos grupos de esquerda do que com as idéias e o pensamento de Glauber. Por isso, insistimos, ao longo do artigo, em responsabilizar este cineasta pela manipulação da linguagem e, portanto, pelo resultado ideológico do filme. É provável que Medeiros interferiu no resultado final, visto que participou do processo de montagem em Roma, mas seu foco de atenção deve ter se limitado a garantir certa coerência na narração da voz over - elemento tradicionalmente central na produção documental ou no telejornalismo. A autoria de Glauber, ao contrário, pulsa nas “entrelinhas” de cada significado e de cada estranhamento produzido pelo resultado formal inusitado. A tensão entre imagem e som expõe não apenas a polaridade entre unidade e fragmentação, mas por meio desta polaridade, revela uma rede de interpretações tecidas por fundamentos teóricos que levam em consideração dois universos distintos e interligados: um, refere-se ao engendramento de forças econômicas e políticas, analisados pela matriz marxista tradicional; o outro, diz respeito às manifestações místicas, artísticas e religiosas que impulsionam forças inconscientes, fusões étno-culturais específicas da civilização brasileira, segundo o pensamento de Glauber. Ao longo do filme, estes universos convivem na síntese sobre a história do país. Assim, procuramos identificar em História do Brasil , os pressupostos que orientam a interpretação dos processos históricos e revelam a tensão entre as teorias marxistas correntes e as concepções originais de Glauber. No conjunto, o resultado foi uma interpretação que unifica a experiência histórica e lança uma dimensão inusitada de mística popular e de misticismo que torna original a constituição histórica do país e revela seu potencial revolucionário. 45 XAVIER,
Ismail. Sertão/Mar: Glauber Rocha e a estética da fome. SP: Brasiliense, 1983, p. 11. 21
O tema da história, portanto, encontra-se intimamente ligado à teoria revolucionária, pautada no materialismo dialético como instrumento da práxis e elucidação das grandes forças sociais. Decorre que este entendimento da história forneceria uma arma eficaz na luta política, como um veículo de difusão ideológica, com ressonâncias entre os diversos grupos de oposição ao regime militar. Como sugerimos no artigo, Glauber tinha interesse em realizar um filme que dialogasse com as ciências sociais e se apresentasse menos como obra de arte do que como uma intervenção sociológica. Entretanto, é preciso ainda compreender o filme como fenômeno de comunicação e, portanto, como produto disposto a um tipo de interlocução que embora exija reflexão e debate, mas não requer uma confrontação sistemática das fontes, da bibliografia e dos métodos utilizados. Neste sentido, o poder de comunicação do filme encontra-se, exatamente, neste procedimento que atualiza e aproxima os acontecimentos da história do país na experiência contemporânea do seu público. Resulta, desta operação uma interpretação dinâmica e contemporânea capaz de construir elos entre fenômenos temporalmente distantes. Os aspectos mais originais de História do Brasil encontram-se na riqueza de interpretações históricas produzidas pelo filme e presentes, particularmente, nos “lances arriscados”, surpreendentes e inéditos que explicam ou simplesmente caracterizam inúmeros fenômenos históricos, vinculando-os ao universo místico construído por Glauber. Segundo o filme, por exemplo, as rebeliões escravas, desde que o século XVI, seriam protegidas por “sistemas míticos” trazidos pelos povos africanos; Canudos seria uma manifestação do Sebastianismo e do “inconsciente místico do nordeste”; o Modernismo não teria se transformado no “espelho estético da inconsciência do povo”; a arte pós 64 teria desmistificado as “mitologias da sociedade fascista afro-Índia-européia” e, finalmente, numa das últimas falas de Glauber no filme, a transformação política e cultural do país precisaria preparar uma “feijoada ideológica” que iria produzir “o banquete do Quarup”. Estes “lances arriscados” constituem, na verdade, a espinha dorsal de uma teoria da história que pretendeu articular fenômenos de natureza distintas e forjou uma concepção de história absolutamente original, tanto no filme analisado, quanto em outras produções escritas ou cinematográficas de Glauber Rocha.
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