FOTOGRAFIA, HISTÓRIA e CULTURA VISUAL: V ISUAL: PESQUISAS RECENTES
FOTOGRAFIA, HISTÓRIA e CULTURA VISUAL: V ISUAL: PESQUISAS RECENTES
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Jerônimo Carlos Santos Braga – Diretor Jorge Campos da Costa – Editor-Chefe
CAROLINA ETCHEVERRY CHARLES MONTEIRO (ORG.) MARIA CLÁUDIA QUINTO PATRICIA CAMERA RODRIGO DE SOUZA MASSIA
FOTOGRAFIA, HISTÓRIA e CULTURA VISUAL: PESQUISAS RECENTES
Série Mundo Contemporâneo 2
Porto Alegre, 2012
© EDIPUCRS, 2012 – Fotograa e Criação: Patricia Camera – Diagramação: Rodrigo Valls Fernanda Lisboa Rodrigo Valls
F761
Fotograa, história e cultura visual: pesquisas recentes [recurso eletrônico] / Charles Monteiro (Org.). – Dados eletrônicos. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2012. 132 p. - (Série Mundo Contemporâneo) ISBN 978-85-397-0154-4 Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader Modo de Acesso:
1. Fotograa - História. 2. Cultura Visual. 3. Fotograa - Brasil . 4. Antropologia Cultural. I. Monteiro, Charles. CDD 770.981
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SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ....................................................................................06 Ana Maria Mauad PARTE I – FOTOGRAFIA, HISTÓRIA E IMPRENSA Capítulo 1 - Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950: a elaboração de um novo padrão de visualidade urbana nas fotorreportagens da Revista do Globo
.........................................................................................09
Charles Monteiro
Capítulo 2 - A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman na fotograa porto-alegrense dos anos 1950 ......50
Rodrigo Massia
Capítulo 3 - Por trás das lentes, uma história: a percepção de fotógrafos sobre as imagens da mídia impressa ......................................................72 Maria Cláudia Quinto PARTE II: FOTOGRAFIA, HISTÓRIA E ARTE Capítulo 4 - História da fotograa moderna brasileira: experimentações de Geraldo de Barros e José Oiticica Filho (1950-1964) .....................90
Carolina Etcheverry Capítulo 5 - A dimensão histórica em “Mujeres Presas”: aproximações teóricas entre fotograa-expressão e ator social ...................................117
Patricia Camera
APRESENTAÇÃO Ana Maria Mauad Não é de hoje que os estudos históricos ultrapassaram os limites documentais de uma escritura feita exclusivamente com documentos verbais. A iniciativa de
renovação da ocina da história, defendida pelos pais fundadores do Annales, que conclamaram seus pares a saírem de seus gabinetes e a aprenderem a “ler” a
demarcação dos campos, ou os rituais da cavalaria medieval, foi amplicada pela revolução documental que a história serial dos anos 1970, implementaram com a introdução das séries, da quanticação e do dado numérico, como fundamentais para a produção do conhecimento histórico de natureza total. A história dos eventos
foi substituída pela história das estruturas na longa duração, sendo a revolução documental, a expressão mais evidente de uma outra revolução, essa mais profunda, a da consciência historiográca. 1 Dos anos 1970 em diante, com as publicações-manifesto da Nova História Francesa, novos objetos, novos problemas e abordagens começaram a fazer parte da reexão historiográca; na sequência as manifestações da micro-história italiana ajudaram a compor um panorama onde racionalidade histórica e expressão
subjetiva se encontravam na escrita de uma outra história, chegando à denitiva renovação da historiograa brasileira com a consolidação dos programas de pósgraduação, uma nova revolução reorientou a delimitação das fronteiras da História em rumo denitivo a uma perspectiva transdisciplinar. Assim, o corolário da revolução documental, da ampliação dos tipos de fontes e registros considerados aptos à produção do texto historiográco orientou o pesquisador a buscar novas possibilidades de interpretação. Os estudos sobre cultura visual em história são um bom exemplo para
considerarmos esse tipo de renovação. De fato, como esclarece o historiador Paulo Knauss, é possível se fazer uma história com imagens, que abandone uma epistemologia da prova, rumo à construção de uma leitura histórica que valorize o processo contínuo de produção de representações pelas sociedades humanas. 2 A essa reexão, um outro historiador, Ulpiano Meneses, agrega problemas e questões que nos levariam rumo a uma História Visual, que considera as imagens não como efeitos, ou sintomas, mas a própria visualidade como princípio cognitivo de caráter indefectivelmente histórico. 3 Aliás, em outro texto, uma Le Goff, Jacques. Documento/Monumento. Enciclopédia Einaudi, Vol.1, Lisboa: Imprensa nacional/Casa da Moeda, 1985. 2 NAUSS, Paulo, O desao de fazer História com imagens: arte e cultura visual , ArtCultura, Uberlândia, vol.8, K n.12, jan-jun. 2006, p.97-115. 3 MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. “Fontes visuais, cultura visual, história visual. Balanço provisório, propostas 1
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apresentação como esta, Meneses já armava serem as imagens fotográcas suportes de relações sociais. 4 Neste sentido, os ensaios aqui reunidos pelas temáticas da história, fotograa e cultura visual prescrevem um itinerário no qual são apontados caminhos para a
compreensão da fotograa como expressão estética, percepção subjetiva, produção autoral, leitura do mundo visível, tramas de ver e registrar visualmente a história, como processo e problema.
Há muito venho trabalhando com fotograa, em aulas, textos e pesquisa. Esse trabalho me possibilitou encontros inesquecíveis com produtores e suas imagens, com sujeitos e suas lembranças, com trajetórias e seus projetos. 5 Ainda assim, me surpreendo com a inndável riqueza que a reexão sobre a prática e a experiência fotográca pode revelar. Boa leitura.
cautelares”, Revista Brasileira de História, vol. 23, n° 45, julho de 2003. 4 MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Apresentação. In: LIMA, Solange F.; CARVALHO, Vania Carneiro de. Fotograa e Cidade: da razão urbana à lógica do consumo, álbuns de São Paulo (1887-1950). São Paulo: Mercado das Letras, 1997. 5 MAUAD, Ana Maria. Poses e Flagrantes: ensaios sobre história e fotograas. Niterói: Eduff, 2008.
PARTE I – FOTOGRAFIA, HISTÓRIA E IMPRENSA
CAPÍTULO 1 IMAGENS DA CIDADE DE PORTO ALEGRE NOS ANOS 1950: A ELABORAÇÃO DE UM NOVO PADRÃO DE VISUALIDADE URBANA NAS FOTORREPORTAGENS DA REVISTA DO GLOBO 1 Charles Monteiro2 A pesquisa problematiza a elaboração de uma nova visualidade da cidade
brasileira na imprensa nos anos 1950, através de um estudo de caso sobre Porto Alegre, no contexto de mudanças na cultura visual. Trata-se de compreender a produção e a veiculação de imagens fotográcas da cidade de Porto Alegre nos anos 1950, na Revista do Globo, no contexto de modernização da imprensa ilustrada brasileira. Busca-se discutir os temas, as formas de fotografar a cidade e os sujeitos urbanos, bem como o processo de editoração dessas imagens fotográcas em fotorreportagens nas páginas da revista, visando a compreender a nova visualidade urbana e as representações de cidade elaboradas em um contexto de crescimento populacional, expansão do perímetro urbano e verticalização da área central. Os estudos sobre cultura visual problematizam a forma como os diversos
tipos de imagens perpassam a vida cotidiana, relacionando as técnicas de produção e circulação das imagens à forma como são vistos os diferentes grupos e espaços sociais, entre o visível e o invisível, propondo um olhar sobre o mundo, mediando a nossa compreensão da realidade e inspirando modelos de ação social. 3 A pesquisa foi apresentada no Minissimpósio Temático História, Imagem e Cultura Visual, no XXIV Simpósio Nacional de História da ANPUH, realizado de 15 a 20 de julho de 2007, na UNISINOS (São Leopoldo/RS/Brasil), e coordenado pelos Professores Doutores Iara Lis Franco Schiavinatto (UNICAMP) e Charles Monteiro (PUCRS), bem como no VII Congresso Internacional de Estudos Ibero-Americanos, realizado de 21 a 23 de outubro de 2008, na PUCRS (Porto Alegre/RS/Brasil). Versões parciais foram publicadas em: MONTEIRO, Charles. Imagens sedutoras da modernidade urbana: reexões sobre a construção de um novo padrão de visualidade urbana nas revistas ilustradas na década de 1950. Revista Brasileira de História, 2007, Vol. 27, n. 53, p. 159-176; MONTEIRO, Charles. A construção da imagem dos “outros” sujeitos urbanos na elaboração da nova visualidade urbana de Porto Alegre nos anos 1950. Urbana, 2007, ano 2, n. 2, p. 1-21. 2 Doutor em História Social (PUCSP/Lyon 2), Professor Adjunto de História do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Brasil/RS/Porto Alegre). Desenvolve pesquisas na área de História, Fotograa e Cultura Visual; ministra Seminário “História, Fotograa e Cultura Visual: Imagens das cidades brasileiras séc. XIX e XX” no PPGH da PUCRS; orientou cinco dissertações sobre História e Fotograa; publicou vários artigos em revistas nacionais e papers em anais de congressos nacionais e internacionais sobre o tema; coordenou organizou simpósios temáticos em congressos; organizou dossiês sobre História e Fotograa; faz parte do Grupo de Pesquisa interinstitucional do CNPQ Imagem, Cultura Visual e História. Endereço: PPGH/PUCRS Av. Ipiranga, 6681, Prédio 3, Sl. 303 – Porto Alegre – Brasil – CEP. 90619-900. E-mail: 1
[email protected] .
Sobre Cultura Visual, História e Fotograa, cf. MENESES (2003, 2005); KNAUS (2006); sobre fotograa e imprensa ilustrada, cf. MAUAD (2004, 2005); sobre fotograa e cidade, cf. LIMA e CARVALHO (1997). 3
Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950
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Reexões sobre História, Fotograa e Cultura Visual Nos anos 1990, desenvolveu-se, nos Estados Unidos, um campo novo de pesquisa chamado de Estudos Visuais, ligando departamentos de artes, comunicação, antropologia, história e sociologia. As pesquisas apresentavam uma clara perspectiva multidisciplinar e procuravam problematizar a centralidade das imagens e a
importância do olhar na sociedade ocidental contemporânea. Alguns autores chegam mesmo a diagnosticar que estaríamos vivendo um pictorial turn ou um visual turn, dado o papel do visual e da visualização no contexto atual marcado pelas imagens
digitais e virtuais presentes na televisão, em lmes, em games, na internet (o second life é um sintoma), em celulares, em i-phones etc. Os estudos sobre cultura visual problematizam a forma como os diversos
tipos de imagens perpassam a vida social cotidiana (a visualidade de uma época), relacionando as técnicas de produção e circulação das imagens à forma como são vistos os diferentes grupos e espaços sociais (os padrões de visualidade), propondo um olhar sobre o mundo (a visão), mediando a nossa compreensão da realidade e inspirando modelos de ação social (os regimes de visualidade). Segundo Knauss,4 existem duas grandes perspectivas de estudo da cultura visual, uma mais restrita, que procura tratar da experiência visual da sociedade ocidental na atualidade (marcada pela imagem digital e virtual), e outra mais abrangente, que permite pensar diferentes experiências visuais ao longo da história em diversos tempos e sociedades.
Este texto constitui-se de uma série de notas sobre a relação entre história, fotograa e cultura visual, sem a pretenção de ser exaustivo na revisão bibliográca, visando dar certas orientações e pistas para pensar o lugar da fotograa no contexto mais amplo dos estudos sobre a imagem. As imagens acompanham o processo de hominização e de socialização do
homem desde a pré-história, elas perpassam a vida e a organização social, ordenando a relação entre os homens e desses com o visível e o invisível. A confecção de máscaras
mortuárias e a produção de lápides, desde a Antiguidade, apontam para a relação entre imagem e morte, bem como para a necessidade do homem de armar e de prolongar a vida frente a perspectiva de sua nitude. Régis Debray 5 aponta para a função social da imagem ligada à produção de um duplo do morto visando à preservação de sua memória. Os usos políticos da imagem também estão presentes desde os tempos mais
remotos, pois de seu controle dependia a legitimidade do exercício do poder.
4 5
KNAUSS (2006, p. 108-110). DEBRAY (1994, p. 22-30).
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Charles Monteiro
Segundo Kern,6 desde seu início a imagem esteve relacionada à representação e à noção de imitação do real. A imagem emerge de uma troca simbólica e de um simulacro fabricado para enfrentar a destruição provocada pela passagem do tempo, t empo, agenciar a memória, manter a coesão social e, também, exercer o controle político. Funções sociais que não abolem a dimensão artístico-criativa do ato de criação da imagem no tempo. A imagem situava-se entre a mimese, pela produção de uma cópia do real através da semelhança, e a representação, ao buscar tornar presente uma ausência e conferir-lhe signicados sociais precisos e controlados. A partir do século XIX, a fotograa vai tomar o seu lugar nesse mundo das imagens, ao qual vem alterar de forma radical no contexto da Revolução Industrial ou Revolução Técnico-Cientíca. Por um lado, a fotograa veio responder a uma demanda crescente de imagens e de autorrepresentação da burguesia em ascensão, buscando uma forma de fabricar imagens de forma rápida e consideradas éis aos seu referente. De outro lado, o dramático processo de urbanização criou a necessidade de controlar e disciplinar um contingente divesicado de sujeitos em uma sociedade de massas, criando a foto de identicação. Segundo Santaella,7 esse mundo das imagens pode ser divido, em termos de diferentes formas de produção, circuitos de circulação, formas de recepção e de estatuto das imagens no tempo, em três paradigmas: pré-fotográco; fotográco e pós-fotográco. O paradigma pré-fotográco está relacionado ao conjunto das imagens produzidas de forma artesanal pela mão do homem, dependendo de sua habilidade e imaginação para plasmar o visível. Tratam-se de imagens produzidas pela mão do artista, que guardam a sua marca e a aura de objetos únicos. Elas têm uma circulação restrita, sobretudo feitas para serem expostas em galerias e museus. O paradigma fotográco diz respeito às imagens produzidas por conexão dinâmica e captação física de fragmentos do mundo visível com a mediação de um aparato
ótico-mecânico: a câmera fotográca (a caixa-preta), de vídeo ou de TV. TV. São imagens produzidas com o auxílio de um aparelho mecânico, visando sua reprodução em série. Perdem a sua aura de objeto único e passam a circular em diferentes meios sociais, sobretudo, em jornais, revistas, outdoors publicitários etc. Finalmente, o paradigma pós-fotográco que se refere às imagens sintéticas e infográcas (virtuais), prémodelizadas e matematicamente elaboradas através do computador. Percebe-se a importância da fotograa nessa interpretação à medida que ela é o parâmetro para a existência de um pré-fotográco e um pós-fotográco. O paradigma fotogr fotográco áco é herdeiro da câmara obscura, utilizada desde o Renascimento. O dispositivo foi sendo aperfeiçoado e tornou-se capaz de capturar uma imagem latente em suporte sensível à luz, desencadeand desencadeandoo a fotograa. A máquina 6 7
KERN (2005, p. 7) SANTAELLA (2005, p. 295-307).
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Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950
fotográca (o dispositivo técnico) media o enfrentamento entre o olhar de um sujeito (o fotógrafo) e um referente (a realidade), que é observado e tem sua luz (uxo fotônico) f otônico) capturada através de uma lente em uma superfície sensível. O ato fotográco é o fruto de um corte, tanto t anto no campo visual (espaço) quanto na duração (tempo), ( tempo), constituindose em um fragmento separado e embalsamado do mundo para a posteridade. O que
nos interessa reter dessa proposta é a particularidade material da imagem fotográca frente às imagens manuais e as infográcas. Embora a fotograa não inaugure a era da reprodutividade das imagens (precedidade por outras técnicas como a xilograa, litograa etc.), ela inaugura a era da reprodutividade técnica das imagens, permite que essa reprodução seja muito mais rápida, barata e em massa, bem como considerada mais el do que aquelas obtidas pelas tecnologias anteriores. A fotograa respondeu às demandas econômico-industriais e estéticas (realismo) da sociedade europeia da segunda metade do século XIX, que lhe confere o estatuto de atestação, de duplo do real e de documento. Isso leva a reetir sobre a questão do realismo na fotograa e da forma como ela foi pensada pelos críticos e teóricos no ocidente.
Segundo Dubois,8 essse percurso pode ser pensado em três tempos: 1) a fotograa do real (o discurso da mimese); 2) a fotograa como transformação do real (o discurso do código e da desconstrução); 3) a fotograa como um traço do real (o discurso do índice e da referência). O primeiro corresponde à euforia que se segue à sua invenção e divulgação na França, Inglaterra e nos Estados Unidos, onde seus atributos de precisão, pr ecisão, rapidez e suas inúmeras possibilidades de utilização foram amplamente louvadas. A fotograa foi apresentada como um auxiliar precioso para a ciência e para as artes em geral. O
potencial da fotograa de repertoriar repertoriar os recantos mais distantes do mundo mundo auxiliando auxiliando as expedições cientícas, bem como de reproduzir as obras de arte antigas visando ao seu estudo, conferiu-lhe o estatuto de espelho do real. O que se devia, por um lado, à semelhança entre a imagem e seu referente e, por outro, à valorização da sociedade europeia dos princípios técnico-cientícos envolvidos na operação fotográca, que lhe garantiriam ser uma reprodução el do mundo. O segundo momento é caracterizado pela denúncia da fotograa como transformação do real. Entre o nal do século XIX e início do século XX, apontaram-se a falsa neutralidade e a redução do real produzida pela fotograa. Primeiramente, ela produzia um corte no uxo do tempo, o congelamento de um instante separado da sucessão dos acontecimentos. Em segundo lugar, ela era um fragmento escolhido pelo fotógrafo através da seleção do tema, dos sujeitos, do entorno, do enquadramento, do sentido, da luminosidade etc. Em terceiro lugar, a fotograa transformava o tridimensional em bidimensional, reduzindo a gama de cores e simulando a profundidade do campo de visão. Além de tudo isso, ela 8
DUBOIS (1993, p. 23-56).
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Charles Monteiro
também era uma convenção do olhar herdada do Renascimento e da pintura, que seria necessário apreender para poder “ver”. Ou seja, questionavam-se a exatidão, o realismo e a universalidade desse tipo de imagem.
Segundo Dubois,9 a fotograa se distingue de outros sistemas de representação como a pintura e o desenho (dos ícones), bem como dos sistemas propriamente linguísticos (dos símbolos) enquanto se aparenta muito com o dos signos como a fumaça (índice do fogo), a sombra (alcance), a poeira (depósito do tempo), a cicatriz (marca de um ferimento) e as ruínas (vestígios de algo que esteve ali). Para Dubois, a fotograa seria um índice, pois guardaria um elo físico com o seu referente. Ela seria uma marca deixada pelo rastro de luz emitido ou reetido por um corpo físico (pessoa ou objeto) sobre uma superfície sensível (lme, papel etc.). Essa posição foi questionada, recentemente, por autores como André Rouillé10 e Mario Costa,11 que apontam para a importância do processo mecânico e da produção de uma memória da máquina ou dos materiais (película, papel) e não de uma projeção do referente na superfície sensível.
Segundo Roland Barthes, em A em A mensagem fotográca fotográca,,12 a fotograa é uma imagem híbrida, pois construída em parte por um aparelho técnico, que captaria um real puro, e em parte por uma mensagem com conteúdo histórico, social e cultural. A fotograa é uma convenção do olhar e uma linguagem de representação e expressão de um olhar sobre o mundo. Nesse sentido, as imagens são ambíguas (por sua natureza técnica) e passíveis de múltiplas interpretações (em relação ao meio através do qual elas circulam e do olhar que as contempla). Por isso, para a sua interpretação, são necessárias a compreensão e a desconstrução desse olhar fotográco, através de uma discussão teórico-metodológica, que permita formular problemas históricos e visuais, no sentido de que a dimensão propriamente visual do real possa ser integrada à pesquisa histórica. Assim sendo, passo a inventariar alguns trabalhos tr abalhos que vêm contribuindo para essa discussão teórico-metodológica, que visam incorporar os documentos visuais à pesquisa histórica.
Em Fotograa e História,13 Kossoy aponta para a necessidade de pensar a tríade sujeito (fotógrafo), técnica (equipamento) e assunto (a história do tema abordado). Primeiramente, o historiador deveria procurar informações sobre a atuação prossional do fotógrafo, se possuía um ateliê, qual era a sua clientela, se trabalhava por encomenda para uma empresa ou administração, a classe social a que pertencia, os seus gostos e os preços cobrados. Deveriam se levar em conta DUBOIS (1993, p. 61). ROUILLÉ (2005, p. 288-304). 11 COSTA, Mario (2006, p. 179-192). 12 BARTHES (1982, p. 11-25). 13 KOSSOY (1989). 9
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Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950
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ainda os ltros culturais e ideológicos de classe do fotógrafo e de sua época. Outra variável diria respeito aos equipamentos e às técnicas empregadas: o tipo de câmara, o tipo de negativo, as lentes, a forma de revelação, os formatos das fotograas etc. Finalmente, o assunto deve ser colocado no seu tempo e gênero especíco: retrato, vistas urbanas, cartão-postal, álbum de família, último retrato ou fotorreportagem. Para esse autor, o assunto tem uma lógica própria que extrapola os quadros da imagem fotográca, sendo necessário, para discutir um determinado tipo de fotograa, compreender o percurso histórico do assunto: seja o das formas de representação do poder da classe dominante, do jogo político ou da cidade. O autor também chama atenção de que a fotograa tem uma primeira realidade ligada ao momento de produção da imagem pelo fotógrafo, e uma segunda realidade ligada à circulação e aos usos posteriores da imagem em contextos sob formas que não foram previstas pelo fotógrafo no momento de produção da
imagem. Ou seja, a fotograa em uma fototeca ou acervo iconográco tem usos e signicados muito diversos daqueles para os quais foi produzida pelo fotógrafo no passado, bem como a reutilização de imagens na imprensa, em manuais ou em livros de história agregam ou transformam os signicados das imagens a partir de outro contexto de recepção.
Essa proposta metodológica de Kossoy é, posteriormente, ampliada no livro Entre realidades e cções da trama fotográca,14 no qual o autor analisa os usos da fotograa em cartões-postais e álbuns de vistas como forma de construção do nacional na fotograa brasileira no século XIX, como no álbum Le Brésil , produzido sob os auspícios do Império para fazer propaganda do país na Exposição Universal de Paris de 1889. O seu trabalho precursor foi e continua sendo importante sobre os pioneiros
da fotograa no Brasil e as questões relacionadas à utilização, à conservação, à gestão e à interpretação desses acervos fotográcos do século XIX e XX. No entanto, a partir da tradução e publicação no Brasil, nos anos 1980, de autores como Roland Barthes, Susan Sontag, Philippe Dubois, Jean-Marie Schaeffer e Rosalind Krauss entre outros, surge novo contexto de pesquisa histórica, impulsionando investigações a partir da renovação da matriz teórica e da elaboração de novos problemas de pesquisa relativos ao campo visual: história visual, cultura visual e regimes de visualidade. 15
Nos anos 1990, multiplicaram-se as investigações sobre a fotograa e cidade, para reetir sobre o acelerado processo de transformação da paisagem e da sociedade urbana brasileira no século XX. 14 15
KOSSOY (2002). MENESES (2003, 2005).
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Charles Monteiro
A pesquisa de Ana Maria Mauad 16 representa uma nova fase dos estudos sobre cidade e fotograa, pesquisando a construção da visualidade urbana do Rio de Janeiro em revistas ilustradas na primeira metade do século XX. Seu trabalho, além de tratar dos usos privados da fotograa pelo grupo familiar, abordou a fotograa de imprensa a partir das revistas Careta e O Cruzeiro, tendo sido esta última a mais importante e inovadora revista ilustrada brasileira entre as décadas de 1930 e 60.
Uma das principais contribuições desse estudo é o tratamento da problemática do espaço na construção de códigos de representação fotográca do comportamento da sociedade burguesa carioca entre 1900 e 1950. Mauad 17 estabeleceu para sua análise das imagens fotográcas cinco categorias espaciais que abrangem tanto o plano do conteúdo quanto o da expressão: o espaço fotográco, o espaço geográco, o espaço do objeto, o espaço da guração e o espaço da vivência. Mauad relacionou e cruzou os padrões técnicos envolvidos na forma de expressão das imagens com os padrões de conteúdo para elaborar a sua interpretação dos códigos de representação social da classe dominante carioca. Esse trabalho sugere uma série de questões sobre a predominância de certas imagens (urbanas, de determinadas zonas da cidade, de determinados grupos sociais, em determinados espaços urbanos, de um gênero sobre outro, de certos objetos a eles associados, as ordenações dos grupos, as poses e os tipos de performances etc.) em detrimento de outras que cam fora do quadro fotográco, bem como da forma de fotografar proporcionada por uma técnica e de publicar essas imagens nas páginas das revistas, criando séries e narrativas que enfatizam determinados códigos de representação social de certos grupos urbanos excluindo outros. O livro Fotograa e Cidade, 18 de Solange Ferraz de Lima e Vânia Carneiro
de Carvalho, deu uma contribuição signicativa aos estudos sobre o tema ao propor uma metodologia própria para a análise icônica e formal das imagens de cidade, no caso de São Paulo, em álbuns de fotograas produzidos entre 1887-1919 e 19511954. A importância desse estudo está no fato de construir uma metodologia voltada para a interpretação dos padrões visuais de representação da cidade, remetendo à análise dos modos especícos de tratamento fotográco do espaço urbano. Os descritores icônicos (relativos aos conteúdos e espaços das fotograas) são agrupados a partir de um vocabulário controlado em: tipologias do espaço; localização; tipologia urbana; abrangência espacial; acidentes naturais/vegetação; infraestrutura/processos/serviços; infraestrutura/comunicações; infraestrutura/ mobiliário urbano; infraestrutura/paisagismo; estrutura/funções arquitetônicas; elementos móveis/ gênero/idade; elementos móveis/personagem/categoria; MAUAD (1990, 2004, 2005, 2006, 2008). MAUAD (2004, p. 19-36). 18 LIMA e CARVALHO (1997). 16 17
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Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950
elementos móveis/personagens; elementos móveis/transportes; atividade agrícola; atividade urbana; temporalidade. Os descritores formais (relativos à técnica, à forma e aos códigos de expressão) são agrupados a partir das categorias: enquadramento; arranjo; articulação dos planos; efeitos; e estrutura. O cruzamento dos percentuais de recorrência das imagens fotográcas enquadradas nos descritores icônicos confrontadas com a recorrência dos descritores formais permitiu às autoras estabelecerem uma tipologia de oito padrões fotográcos predominantes nesses álbuns: retrato; circulação urbana; gurista; diversidade; coexistência; intensidade; mudança; e paisagístico. As autoras puderam chegar a uma série de conclusões a partir da vericação da maior incidência de determinados padrões em cada um dos períodos, como a predominância do padrão “circulação” na virada do século XIX para o XX, relacionada à racionalização do espaço urbano, e o padrão “retrato” nos anos 1950, relacionado à tipicação do trabalho e à mercantilização do espaço urbano, bem como reetir a partir das imagens sobre a construção da diferenciação/indiferenciação social na metrópole capitalista. Esse trabalho permite problematizar a forma como foram construídos os padrões de visualidade urbana nas imagens fotográcas dos álbuns da cidade de São Paulo nos anos de 1887-1919 e 1951-1954. Mais recentemente, no texto “Rumo a uma ‘História Visual’”, Meneses propõe que o estudo desse campo se realize a partir da reexão sobre três domínios complementares: o visual, o visível e a visão.19 O domínio do visual compreenderia os sistemas de comunicação visual e os ambientes visuais, bem como “os suportes institucionais dos sistemas visuais, as condições técnicas, sociais e culturais de produção, circulação, consumo e ação dos recursos e produtos visuais”, para poder circunscrever “a iconosfera, isto é, o conjunto de imagens-guia de um grupo social ou de uma sociedade num dado momento e com o qual ela interage”.20
Para o autor, o domínio do visível e do invisível situa-se na esfera do poder e do controle social, do ver e ser visto, do dar-se a ver ou não dar-se a ver, da visibilidade e da invisibilidade. Já a visão “compreende os instrumentos e técnicas de observação, o observador e seus papéis, os modelos e modalidades do olhar” de uma época.21 A pesquisa em tela orientou-se pelas questões teóricas mais amplas propostas por Meneses sobre a relação entre visual, visível/invisível e visão e serviu-se das propostas metodológicas de Mauad e Lima & Carneiro para interpretar as fotograas na elaboração do novo padrão de visualidade urbano nos anos de 1950, a partir do estudo de caso de Porto Alegre. MENESES (2005, p. 33-56). Idem, Ib. p. 36. 21 Idem, Ib. p. 38. 19 20
Charles Monteiro
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Fotograa e Cultura Visual em Porto Alegre entre 1940 e 1960 No Brasil, a partir dos anos 1940, a fotograa passa por um processo de difusão e expansão através do aperfeiçoamento das técnicas de edição e de
reprodução de imagens fotográcas, bem como de modernização através do trabalho de experimentação nos fotocineclubes de São Paulo, Recife e Porto Alegre, entre outros. Durante a Segunda Guerra Mundial, a fotograa se tornou uma forma importante de informar e mobilizar a população através de sua veiculação em jornais
e revistas ilustradas. Os fotógrafos passam a se organizar em associações e sindicatos visando ao reconhecimento e à valorização do seu trabalho. Câmaras mais portáteis como a Rolleiex, com negativos de 120 mm e 6 x 6 cm, e a Leica, com lmes de 35 mm, com películas mais sensíveis, além de objetivas e ash permitiram o avanço da foto instantânea (sobretudo no fotojornalismo) e a presença mais dinâmica do fotógrafo no espaço público, para documentar e informar a modernização dos espaços urbanos, das formas de sociabilidade e os movimentos políticos.
A tradição de edição de álbuns fotográcos com vistas da cidade inaugurada no século XIX prolonga-se no século XX visando xar a memória da velha Porto Alegre frente às rápidas mudanças em curso na paisagem urbana, decorrentes do processo de modernização e verticalização da cidade. Em 1941, um ano após as comemorações dos 200 anos de colonização de Porto Alegre, foi editada a obra comemorativa Porto Alegre: Biograa da Cidade. O livro, de grandes proporções (37 x 27 cm e 664 páginas) e ricamente ilustrado, apresenta duas séries de fotograas com histórias visuais sobre o passado (1890-1910) e presente (nal dos anos 1930 e 1940) da cidade. A seção A vida na velha Porto Alegre: Reminiscências Grácas, referente ao século XIX, apresenta imagens de Calegari e outros fotógrafos, destacando as formas de sociabilidade das elites e camadas médias ( footing , carnaval, exposições), o trabalho (através de tipos populares como o aguateiro e os acendedores de lampião), as formas de transporte ao longo do tempo e certos aspectos pitorescos da velha cidade. A seção Excursão caleidoscópica através da cidade apresenta imagens de grande formato dos principais prédios públicos, igrejas e praças da cidade, apontando para uma visão ocial, turística, higienista e pitoresca da cidade. O livro tinha o duplo objetivo de legitimar a gestão do Prefeito
Loureiro da Silva e projetar suas realizações para o futuro, construindo a memória de uma cidade que se modernizava a passos rápidos.
Como nos jornais e nas revistas ilustradas, fotos destacavam as novas práticas políticas do Estado Novo com os seus desles cívicos, educação cívica e eventos esportivos, que visavam à educação do corpo para o trabalho, preparação para a guerra e puricação da nação.
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Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950
O fotojornalismo conheceu o seu auge nos anos 1950 com novas narrativas
fotográcas – série de imagens de tamanhos variados que contam uma história visual – ocupando cada vez mais lugar nas páginas dos jornais e revistas. A Revista do Globo, os jornais A Hora e Última Hora estão na vanguarda desse processo no âmbito local. No plano formal, multiplicam-se as fotos aéreas, a fotorreportagem, a foto de publicidade e as fotos instantâneas de grandes manifestações políticas, bem como inovações na composição e no uso da luz. A cultura visual está marcada pela introdução da televisão no nal da década de 1950 e pelo período áureo dos lmes hollywoodianos, apresentados no formato cinemascope nas grandes salas de cinemas de calçada do centro da cidade e nos bairros. Os fotógrafos passam a ser mais valorizados nas revistas ilustradas e a
terem seus nomes mencionados como autores das imagens. Em Porto Alegre, Leo Guerreiro, Pedro Flores e Sioma Breitman se destacam no fotojornalismo, na fotograa de publicidade e na produção de retratos em estúdio. Leo Guerreiro é autor de famosas vistas aéreas da cidade, que acompanham o processo de modernização e verticalização da área central. Muitas dessas fotos também eram ampliadas, tornando-se painéis e comercializadas para decorar escritórios e casas comerciais. O fotojornalismo vai privilegiar a mobilização política envolvendo o
processo de discussão sobre nacionalização do subsolo, a estatização de empresas de energia e transporte públicos. Nesse período ocorreu a irrupção das massas na cena urbana, ora como ator ora como coadjuvante dos processos políticos. Em 24 de agosto de 1954, a morte de Getúlio Vargas constitui-se em um momento signicativo de mobilização e utilização da rua como espaço político. A fotograa de imprensa perpetuou os conitos e as depredações no centro da cidade de Porto Alegre.
As fotos desse período, produzidas pela Assessoria de Imprensa do Palácio Piratini (Acervo do Setor de Fotograa do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa), representam os governadores em plena ação, visitando e inaugurando obras, recebendo delegações de políticos ou lideranças dos movimentos sociais. O populismo transformou algumas fotograas em imagens de culto ao poder político. Na segunda metade dos anos 1950, a Assessoria de Imprensa e o serviço fotográco do Palácio Piratini crescem em importância e ocorre um salto no número de fotograas e na forma de documentação das ações dos governadores e secretários de Estado. Alguns fotojornalistas trabalhavam simultaneamente para a Revista do Globo e para repartições públicas (Secretaria de Educação e Secretaria de Agricultura), como nos casos de Pedro Flores e Léo Guerreiro. No início da década de 1960, foram as imagens da Campanha da Legalidade que marcaram uma nova postura através do uso consciente e maciço dos meios de
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comunicação (jornal e rádio) na mobilização popular. O Palácio do Governo do Estado do Rio Grande do Sul foi transformado em quartel-general da resistência e centro de difusão de notícias.
Por um lado, acelera-se a migração do campo para a cidade, e surgem as vilas populares. Começam a aparecer as imagens da desigualdade social através da documentação da remoção de vilas populares como a Vila Dique. Por outro lado, o processo de modernização urbana ganhava visibilidade através das imagens de
grandes obras públicas (Ponte do Guaíba, Aeroporto Salgado Filho) e da abertura de novas avenidas, bem como da construção de escolas (como as chamadas “brizoletas”, em madeira). A realização de um levantamento fotográco aéreo e terrestre aponta tanto para o processo de expansão da malha urbana em direção
ao sul e ao norte da cidade quanto para o uso da imagem fotográca para gestão do espaço urbano (aterros, expansão da malha urbana, crescimento de vilas etc.).
A modernização da grande imprensa nos anos 1950 O período também foi marcado pela modernização da grande imprensa 22
nos principais centros urbanos (especialmente nas capitais), dominada por alguns grupos proprietários de jornais e rádios, que passaram a monopolizar o setor de comunicação. Observa-se, por um lado, a expansão nesses periódicos do espaço destinado à publicidade e aos classicados, bem como a ampliação do número de leitores, que favoreceu uma série de inovações na editoração e na diagramação, o que permitiu a utilização cada vez maior de fotograas. Por outro lado, esses veículos não estavam totalmente livres do jogo político-partidário e da dependência da propaganda institucional de governos estaduais e do federal. As revistas ilustradas formavam um segmento diferenciado visando a um
público de maior poder aquisitivo, construindo as matérias sob um ângulo novo, da tomada de opinião e não exatamente do imediato. Elas desempenham toda uma nova pedagogia social sobre as elites vindas do campo, as camadas médias provenientes das pequenas cidades do interior e para os próprios habitantes das capitais em processo de expansão e transformação do espaço urbano. A revista O Cruzeiro, Revista do Globo e a Manchete se destacam como os veículos de
comunicação impressos mais modernos, no sentido de construírem um novo tipo de reportagem e de narrativa baseada no uso da fotograa.23 As revistas buscavam assuntos polêmicos para mobilizar a atenção do
público leitor. Eram meios híbridos que mesclavam uma variedade de temas – 22 23
Cf. RIBEIRO (2003), GRANDI (2005). MUNTEAL e GRANDI (2005, p. 90-95).
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desde política internacional, política nacional, artes, vida social, cotidiano, esportes, variedades e publicidade – buscando equilibrar informação, formação de opinião e entretenimento.24 As revistas trabalhavam com polaridades como “nós” e os
“outros”,25 “presente e passado”, “tradição e modernidade” etc., seguidamente propondo uma abordagem sensacionalista dos acontecimentos. Através de imagens
e palavras, as revistas construíram representações sociais, agregando novidade e promovendo consenso sobre determinados signicados sociais. Quanto menor a competência na decifração dos códigos verbais, maior a importância das imagens fotográcas que ocupavam a maior parte do espaço das páginas. As fotorreportagens construíram uma imagem da cidade em processo de
mudança para o consumo das elites e das camadas médias, bem como uma imagem dos novos sujeitos urbanos que chegam à cidade: os “outros”. Uma cidade cada vez maior e difícil de abarcar pelo olhar humano, que necessitava da mediação dos meios de comunicação para promover a compreensão e a legitimação das mudanças na paisagem urbana em um tempo cada vez mais acelerado. Ao congelar fragmentos de
temporalidade, a fotograa permitiu condensar e recriar a nova imagem das cidades brasileiras em processo de mutação: a destruição de espaços tradicionais e a criação de espaços modernos submetidos à lógica da sociedade de consumo. Ou seja, a fotograa nas revistas ilustradas e, em especial, as fotorreportagens “davam a ver a cidade”, promovendo uma reeducação do olhar, sintetizando e ressignicando esse processo de expansão horizontal e vertical urbana. Permitiram, também, a difusão de toda uma nova cultura urbana, com novos parâmetros de sociabilidade, de civilidade e de consumo, que passariam ser almejados e buscados pelos leitores desses periódicos, ávidos em participar da modernidade urbana. O estatuto da imagem fotográca que predominava nas revistas ilustradas era o da cópia da realidade e de documento verídico, que procurava apresentar como objetiva e verdadeira a interpretação dos fatos abordados. As revistas ilustradas, através das fotorreportagens, visavam ensinar uma nova maneira de ver, que tanto entretinha e deleitava quanto cumpria a tarefa de informar e difundir uma nova imagem moderna da cidade e da cultura urbana entre as camadas médias da população brasileira.
Segundo Costa, “a fotorreportagem é uma narrativa que resulta da conjugação de texto e imagem, ou seja, de duas estruturas narrativas totalmente distintas e independentes, dentro de uma armação própria realizada pela edição”. 26 De forma geral, as fotorreportagens iniciavam-se com uma fotograa de página inteira ou página dupla, uma “imagem síntese” do tema, que visava mobilizar COSTA (1992, p. 53-68). BAITZ (2003). 26 COSTA (1992, p. 58), SOUSA (2004). 24 25
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emocionalmente o leitor acerca da matéria. Compreender a relação entre imagem e texto é importante no sentido de compreender como este disciplina a leitura daquela.
O título e uma legenda sobreposta à fotograa de grande formato completavam o apelo à atenção do leitor. Seguia-se uma sequência de cerca de 8 a 12 fotos, formando uma narrativa ao redor do tema principal. Pequenos textos e subtítulo auxiliavam na
urdidura da trama e na construção dessa narrativa visual, direcionando a atenção do leitor para determinados aspectos da realidade abordada nas fotos. A Revista do Globo foi o periódico ilustrado quinzenal mais duradouro
e de maior tiragem produzido no Rio Grande do Sul, entre 1930 e 1960. Tendo sido criada em 1929, torna-se um veículo de comunicação inuente na imprensa regional, com um projeto gráco e editorial arrojado para o período. Nos anos 1950, a Revista do Globo disputava espaço com outras revistas de tiragem nacional como O Cruzeiro e Manchete. Todas elas se inspiravam de alguma forma no modelo americano fornecido pela Life, publicando fotorreportagens com tom sensacionalista, misturadas a artigos de entretenimento, resenhas de obras literárias, publicação de contos, de poesias e notas sobre a vida social das elites da capital e das principais cidades do estado. De forma geral, uma edição possuía cerca de 100 páginas e estava dividida entre as seções: “Reportagens”, “Assuntos Gerais”, “Literatura”, “Cinema” e “Passatempo”. As “Reportagens” abordavam assuntos internacionais, nacionais e locais, entremeados de publicidade e crônica social, visando dar maior leveza à leitura da revista. As fotorreportagens da Revista do Globo iniciavam-se geralmente com uma fotograa de página inteira ou página dupla, que era uma “imagem síntese” do tema e visava mobilizar emocionalmente a atenção do leitor sobre a matéria.27 Compreender a relação entre imagem e texto é importante no sentido de compreender como este
disciplina a leitura daquela. O título e uma legenda sobrepostos à fotograa de grande formato procuravam capturar a atenção do leitor. Seguia-se uma sequência de cerca de 6 a 12 fotos formando uma narrativa ao redor do tema principal. Pequenos textos e subtítulo auxiliavam na construção dessa narrativa visual. Na Revista do Globo, três fotógrafos contratados produziram o maior número
das fotorreportagens dos anos 1950: Pedro Flores, Léo Guerreiro e Thales de Farias. Os nomes desses fotógrafos começaram a aparecer abaixo do título como coautores dessas fotorreportagens. O trabalho deles era complementado por outros fotógrafos free lancers e por imagens compradas de agências de informação e de outras revistas.
Entre as 256 edições da Revista do Globo publicadas entre 1950 e 1960, foi possível identicar 184 fotorreportagens que tratavam da cidade de Porto Alegre pelo levantamento realizado. Essas fotorreportagens abordavam questões relativas ao processo de modernização do espaço urbano (verticalização, obras públicas e 27
COSTA (1992, p. 53-68).
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privadas), as novas formas de sociabilidade públicas (muitas dessas ligadas aos novos padrões de consumo), os novos equipamentos culturais, problemas de segurança pública, de habitação, de transportes e, também, de política municipal. A revista valorizava o processo de modernização e também abordava alguns dos “problemas urbanos” de Porto Alegre.
Pode-se dividir a década de 1950 em duas metades. Na primeira metade, observa-se a formulação dessa nova visualidade urbana moderna, mas ainda com a presença de imagens das contradições sociais e dos problemas urbanos: a falta de habitações, de energia, de água tratada, de esgotos, de hospitais, bem como os vendedores ambulantes (camelôs), os acidentes de automóveis, as las de ônibus etc. Na segunda metade dos anos 1950, a revista se engaja no projeto e discurso desenvolvimentista da administração do Presidente Juscelino Kubitschek (19561960), de realizar “50 anos em 5”, e passou a privilegiar o processo de transformação e modernização da sociedade e do espaço urbano, deixando em segundo plano as críticas e as contradições que acompanhavam esse processo. Passa-se, então, à análise de algumas das fotorreportagens sobre a elaboração da nova visualidade urbana.
A construção de uma nova visualidade urbana moderna de Porto Alegre A fotorreportagem “Marco Inicial”,28 de 3 de fevereiro de 1951, trata da construção, pelo Instituto de Assistência e Aposentadorias do Comerciários (IAPC), de um conjunto de 250 casas que formariam a Vila dos Comerciários na zona sul de Porto Alegre (bairro Tristeza). A fotorreportagem tem quatro páginas e oito fotograas; o formato predominante é o retângulo horizontal (seis fotograas) e de tamanho médio (quatro fotograas); sendo cinco fotos internas e apenas três externas; cinco fotos posadas e três instantâneos; cinco fotos pontuais e três parciais. As linhas são bem denidas e há boa iluminação tanto nas fotos externas quanto nas internas, realçando o efeito de realismo das fotos.
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Marco Inicial, Revista do Globo, n. 527, 2/3/1951, p. 61-63, 79.
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23
Fonte: “Marco inicial”, Revista do Globo, n. 527, 1951, p. 61 (esquerda), 62 (centro), 63 (direita.).
A fotorreportagem se inicia com uma foto instantânea de grande formato (1/2 página), com a imagem enquadrando, em primeiro plano, o quintal de uma casa com terra, materiais de construção e um muro; em segundo plano, um grupo grande de pessoas em la (a comitiva do Governador do Estado do Rio Grande do Sul, Walter Só Jobim, e do Presidente do IAPC, Remy Archer); em terceiro plano, observa-se a rua que se estende em diagonal, um automóvel, uma calçada e um conjunto de casas (algumas ainda em construção). O efeito de dinamismo é dado pelas pessoas em movimento (a maioria homens em idade produtiva, entre os 30 e 50 anos), a casa em construção e a linha diagonal formada pelo muro, pela rua, pelos postes e pelas casas.
A narrativa segue com uma foto posada de tamanho pequeno, de formato quadrado, representando o ato solene de inauguração com a presença do Prefeito, do Governador e do Bispo Metropolitano. Seguem-se, nas duas páginas seguintes (p. 61, 62), seis fotos que completam a narrativa a partir dessa fotomanchete. Três delas apresentam os novos equipamentos de atendimento médico, sioterápico e odontológico do IPAC. Fotos de interior e planos pontuais que não permitem localizar o local no espaço urbano. Pela leitura do texto, descobre-se que esses equipamentos se encontram em outro local, no centro da cidade.
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Em foto de tamanho médio (p. 61), apresentam-se as prováveis pessoas beneciadas pela construção das casas e pelos serviços médicos: funcionárias do comércio de Porto Alegre. Trata-se de uma foto posada do interior de uma residência, destacam-se a elegância da roupa das mulheres (vestidos e adornos) e a decoração da casa (com cortinas e abajur de pé). Apesar de o texto referir-se à “classe trabalhadora”, observa-se que o grupo retratado pertence às camadas médias urbanas. Na página seguinte, mais uma fotograa com o Governador em primeiro plano e uma casa recém-construída em segundo plano, mais ao alto. Ou seja, as fotograas editadas associam a construção das casas às autoridades públicas e apresentam os trabalhadores do comércio que iriam usufruir de casas modernas, com todo o conforto, em um bairro novo e moderno, além de atendimento médico. A última imagem da fotorreportagem constrói a oposição ao enquadrar em primeiro plano uma mulher que lava roupa ao ar livre ao lado de um forno a
lenha de campanha – representando o antigo, o rural e o tradicional – e, em segundo plano, o conjunto de casas recém-construídas e em construção da nova Vila dos Comerciários, que se perdem na linha do horizonte – representando o presente, o urbano e o moderno.
Observa-se a construção da imagem de um governo que se associa aos Institutos de Previdência para enfrentar o problema da falta de habitação, através da construção de 250 casas das 2.100 previstas, que atenderiam cerca de 15.000 pessoas. Essa reportagem deve ser relacionada, por um lado, a outras que abordam a construção da Vila do Instituto de Aposentadoria e Previdência dos Industriários (IAPI) e de edifícios por empresas de engenharia e construção, entre 1950 e 1954, e, por outro, às reportagens que tratam do problema da habitação em Porto Alegre e do surgimento de vilas irregulares de casas autoconstruídas. Ou seja, ao longo da década, a Revista do Globo aborda problemas urbanos e também coloca em destaque a ação das autoridades e administrações na resolução desses problemas. A dramaticidade e a amplitude do problema da habitação estão associadas
às migrações decorrentes da aceleração do movimento do campo para a cidade, à expansão territorial urbana sobre antigos espaços rurais e semirrurais (com a ocupação ilegal de terrenos ou loteamento de chácaras, saneamento de várzeas e realização de aterros ao redor da cidade) e à abertura de novas avenidas de ligação entre os bairros. Daí também a ênfase das reportagens sobre o processo de verticalização do centro da
cidade, através da construção de edifícios de alto gabarito (de 10 andares ou mais). Esse é o caso da fotorreportagem “Porto Alegre cresce para o céu e para o rio”,29 com fotos de Thales Farias. O processo de modernização é o tema central abordado, a partir de fotos de grande formato, com tomadas fechadas do centro da CARNEIRO, Flávio; FARIAS, Thales. “Porto Alegre cresce para o céu e para o rio”. Revista do Globo, 1958, nº 722, p. 38-42. 29
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cidade, colocando em destaque os novos edifícios (verticalização), as grandes obras públicas da Avenida Beira-Rio (expansão do perímetro urbano) e da Ponte sobre o Guaíba (nova escala de construções e ligação entre o sul rural e o norte urbano do estado). O que é enfatizado pelo título e pelo subtítulo da fotorreportagem: “Construções civis: recorde no Brasil e duas obras grandiosas”. São 10 fotos de meia página, com o predomínio do formato retangular vertical. As três primeiras fotos que abrem a fotorreportagem apontam para a verticalização, a expansão da área urbana e a monumentalização das construções e obras públicas no espaço urbano. Enfatiza-se a imagem de uma cidade em construção, em movimento, armando o signicado dinâmico do trabalho e da circulação pelas novas avenidas. A presença do leito de ruas ou avenidas em primeiro plano, em quatro fotograas, orienta o caminho do olhar e constrói o signicado de circulação urbana associado ao movimento de automóveis e pessoas. Em seis das oito fotos são representadas construções inacabadas, entre elas duas fotos de prédios recém-construídos. Linhas bem denidas, contrastes de tons, a luminosidade direta e fotos tiradas no sentido ascensional enfatizam os efeitos de verticalização e monumentalidade desses prédios de alto gabarito em construção.
Fonte: CARNEIRO, Flávio; FARIAS, Thales. “Porto Alegre cresce para o céu e para o rio”. Revista do Globo, 1958, nº 722, p. 38-39.
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Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950
A legenda da terceira página armava: “Porto Alegre, 1958: recorde brasileiro de construções”. O texto ensaia uma explicação para essa “febre de construções”: “o aumento vertiginoso nada tem de inuências políticas, mas é tão somente a ação de capitais particulares, pois, com a desvalorização constante do cruzeiro, o negócio mais rendoso e seguro ainda continua sendo o imobiliário”. O dinamismo do processo de transformação do espaço urbano é atribuído ao empreendedorismo de
investidores privados e à especulação imobiliária. Mas talvez o melhor exemplo desse engajamento da Revista do Globo em dar publicidade a esse projeto de modernidade urbana seja a fotorreportagem “Porto Alegre
via aérea, 1959”,30 de sete páginas, com fotos de Thales Farias. Ela está composta por seis fotos, quatro delas de grande formato retangular e duas de ¼ de página. Ela começa com uma foto aérea parcial do centro da cidade ocupando duas páginas. O sentido diagonal sugerido ao olhar pela foto enfatizava o processo de verticalização
do centro e como que a passagem do passado (representado pelos prédios baixos em primeiro plano) para o presente (representado pelos edifícios de grande gabarito, em segundo plano e destacados pela luminosidade natural). Na página seguinte, outra foto aérea do centro da cidade com a legenda “dentro de alguns anos, a cidade não terá mais prédios velhos” sugere percurso semelhante para o olhar visando ao mesmo efeito.
Fonte: CARNEIRO, Flávio; FARIAS, T. “Porto Alegre via aérea, 1959”. Revista do Globo, 1959, nº 742, p. 10-11. 30
CARNEIRO, Flávio; FARIAS, T. “Porto Alegre via aérea, 1959”. Revista do Globo, 1959, nº 742, p. 10-16.
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Percebe-se que estava claramente engajada no projeto político das elites dirigentes de modernização social. A forma como a Revista do Globo publicava fotograas panorâmicas do centro da cidade, com planos fechados sobre as áreas mais centrais de Porto Alegre, visava exaltar o ideário de modernidade. Enquanto os textos difundiam todo um conjunto de i deias e valores que visavam educar as camadas médias urbanas, que eram as principais consumidoras da Revista para
a concretização da utopia da cidade moderna numa verdadeira pedagogia social, as imagens elaboravam esse processo de mudanças e desenraizamento social de uma forma positiva.
Mas não há somente publicidade da modernização ou a venda de uma imagem da cidade para consumo dos leitores de classe média na Revista do Globo . Ela também cumpria o papel de apontar os dilemas que a cidade enfrentava e deveria mobilizar a opinião pública e a vontade das administrações, municipal e estadual, para a sua resolução.
As imagens dos problemas urbanos da cidade moderna: descontextualização, despolitização e busca da superação
através da denúncia A fotorreportagem “Bairro sem rua nem terra nem destino”31 aborda a transformação da antiga Doca dos Laranjeiros, na zona norte da cidade. Ela possui quatro páginas e 10 fotos. As laterais das páginas são ocupadas por
publicidade. As fotos são todas externas, diurnas e com iluminação natural; linhas e contornos bem denidos; sendo uma de tamanho grande, duas de tamanho médio e seis pequenas; seis de formato quadrado e quatro de formato retangular; oito instantâneas e duas posadas; quatro fotos com abrangência parcial, tendo como referência o Guaíba, e seis pontuais, nas quais não é possível reconhecer o espaço urbano.
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“Bairro sem rua nem terra nem destino”, Revista do Globo, 30/9/1950, p. 54-57.
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Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950
Fonte: “Bairro sem rua nem terra nem destino”, Revista do Globo, 30/9/1950, p.54-55.
A primeira foto da reportagem de tamanho grande coloca, em primeiro plano, tábuas, laranjas e lixo espalhados pelo chão, varais de roupa secando. Em segundo plano, uma mulher adulta parece trabalhar (talvez ela seja uma lavadeira) em frente a um barraco de madeira. Na sequência, mais quatro fotos pequenas aprofundam o tema: uma criança tirando uma rede de um barco, tendo ao lado um porco comendo; uma mulher cortando lenha com um grande machado, com um varal de roupas e uma casa em segundo plano; crianças mexendo com madeiras, tendo um barco e um telhado ao fundo; um homem com roupas esfarrapadas carregando um saco nas costas. Todas as imagens apontam para a desordem, a sujeira e a precariedade do local e das condições de vida de seus moradores (material das habitações, roupas, convívio entre crianças e animais etc.). Apesar de visualizarmos água em uma das imagens, os enquadramentos mais fechados não permitem localizar de forma segura esse lugar no espaço urbano, promovendo a fragmentação e a segregação do lugar e de seus habitantes do conjunto
da cidade. É o texto e as legendas que precisam ao leitor tratar-se das margens do Guaíba na zona norte da cidade. O texto também faz uma comparação entre a paisagem
bucólica da praia de areias brancas, onde no passado passeavam os namorados e alguns barcos descarregavam laranjas, e o presente, caracterizado pelos cortiços, pelas casas utuantes e pela população miserável que mora no local. O poder público não teria conseguido impedir a formação de outro bairro clandestino entre tantas vilas de lama
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na cidade. Porém, o texto também alerta que o bairro estava com os dias contatos diante do projeto de aterro e construção do novo cais da zona norte (Bairro Navegantes). Essa é uma das poucas reportagens que apontam para o problema da expulsão dos moradores de uma área em decorrência da realização de grandes obras urbanas
pelo poder público. Entretanto, o texto e as fotograas da reportagem promovem a estigmatização e a segregação desses sujeitos – chamados de “curiosa mistura de trabalhadores, mendigos e malandros” – associando-os à sujeira, à degradação e a um estado primitivo de vida social (falta de saneamento, escola, assistência médica etc.). Tudo o que aqui falta reaparece no ano seguinte nos projetos habitacionais da Vila dos Comerciários e na Vila IAPI, visando dar aos trabalhadores todos os confortos e as comodidades da vida em habitações higiênicas e modernas com aluguéis módicos. A fotorreportagem “Amarelou o sorriso da cidade”,32 com texto de Joseph Zukauska e fotos de Pedro Flores e Wilson Cavalheiro, amplia o elenco dos problemas urbanos – falta de água, de luz, de transporte e de moradia – através de uma série de 15 fotos, a maioria de pequeno formato. As fotograas que acompanham o texto apontam para a contradição entre os altos e modernos edifícios do centro da cidade e as malocas nas vilas populares da periferia
de Porto Alegre. Porém, o sentido das fotos, sugerido pela leitura da esquerda para a direita, parece sugerir a sua superação por obras que estavam em curso na cidade.
Fonte: ZUKAUSKA, Joseph; FLORES, Pedro, CAVALHEIRO, Wilson. “Amarelou o sorriso da cidade”. Revista do Globo, 1954, nº 607, pp. 48-55. ZUKAUSKA, Joseph; FLORES, Pedro, CAVALHEIRO, Wilson. Amarelou o sorriso da cidade. Revista do Globo, 1954, nº 607, pp. 48-55. 32
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Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950
As razões arroladas para essa crise seriam a modernização no campo e a falta de amparo ao trabalhador rural, que agiriam como fatores de expulsão do homem do campo. De outro lado, os motivos de atração de migrantes para a capital seriam a busca de trabalho na indústria, melhores salários, direitos trabalhistas, serviço de saúde e educação para os lhos. Nessa fotorreportagem, na página 50, a revista coloca lado a lado um alto edifício em construção e a casa de madeira de
uma vila à beira do Guaíba. O subtítulo acima da página arma: “Uma cidade de zinco e trapos dentro da outra”, e na legenda arma-se: “De 51 a 53, a população marginal duplicou, por que não só quem casa quer casa. Os que vêm do interior para trabalhar na capital, também dela necessitam. A metade da população de uma vila de malocas é dada como catarinense” (idem, p. 50). Logo, a culpa dos problemas urbanos era atribuída aos migrantes e aos sujeitos que vêm de fora
da cidade, às vezes, até mesmo de fora do estado. Ou seja, a culpa era dos não cidadãos, dos próprios excluídos e não da falta de planejamento e de políticas públicas adequadas. No que se refere às representações da cidade nas revistas ilustradas nos anos de 1950, observa-se que os recortes do espaço, dos temas e das formas de construir a narrativa apontam para um processo de construção de determinados sentidos, através de uma nova visualidade urbana. As fotos são diurnas, com luminosidade natural, e com uma denição clara de linhas. Algumas fotograas apresentam três planos e uma grande profundidade de campo. O espaço geográco destacado é o espaço urbano, o centro, que passa a
representar muitas vezes toda a cidade (como uma metonímia, ou seja, a parte pelo todo), excluindo do quadro fotográco as vilas e periferias da cidade. Por sua vez, as imagens do centro da cidade privilegiam os espaços públicos com ângulos abertos sobre as principais ruas e avenidas, por vezes no sentido ascensional, destacando o processo de verticalização da cidade através da construção de prédios de alto
gabarito e, noutras, descensional (áreas) através de fotos panorâmicas que davam a ver a expansão da área central. O que se destaca no espaço dos objetos são os prédios de alto gabarito,
com mais 10 andares, os principais edifícios públicos e privados (comerciais e residenciais) do centro da cidade e as grandes obras públicas (federais e estaduais), que ajudavam a construir a percepção de uma nova escala monumental de
crescimento, de verticalização e os signicados de produtividade urbana. Mas também os automóveis, que ajudam a dar uma noção da escala dos edifícios e a construir signicados de modernidade urbana. O espaço de guração é monopolizado pela circulação de carros, ônibus e pessoas no centro, principalmente de homens adultos em idade produtiva, que
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coloca em destaque os signicados sociais relativos ao trabalho e ao consumo de bens e serviços urbanos. As pessoas são representadas em vistas parciais do centro, de longe, não permitindo sua identicação individual, em movimento, circulando, trabalhando e comprando. Apontando assim para o transeunte anônimo, produtor e consumidor dos espaços, produtos e serviços urbanos. Os prédios de alto gabarito são enquadrados em segundo plano, indicando que essas pessoas vivem, trabalham ou consomem produtos nesses prédios modernos. O espaço de vivência é o espaço urbano ordenado, planicado, racionalizado e produtivo da cidade moderna, com seus uxos incessantes de trabalho e consumo, com uma nova temporalidade urbana caracterizada pela velocidade acelerada de circulação de pessoas e automóveis no centro da cidade.
Passa-se a reetir sobre a construção da imagem dos “outros” sujeitos urbanos, aqui particularmente representados pelos jovens e pelas crianças em situação de rua. Esses “outros” não eram considerados como cidadãos-construtores da cidade moderna e constituíam o avesso da nova ordem no processo de elaboração de um novo padrão de visualidade do espaço urbano nas fotorreportagens sobre a cidade de Porto Alegre na Revista do Globo nos anos de 1950.
As fotograas participavam do projeto de construção da visualidade urbana e do processo de inclusão e legitimação da ação de certos atores e grupos sociais, bem como da exclusão e estigmatização da ação e presença de outros sujeitos e
grupos sociais no espaço urbano em processo de modernização. As fotograas ajudavam a dar visibilidade, davam a ver certos grupos e práticas sociais, bem como construíam hierarquias e diferenças sociais. O processo de construção de identidades
ou de identicações sociais, bem como do seu oposto, a alteridade e a exclusão, aparece ora de forma camuada ora de forma clara e plasmada em certos sujeitos e grupos sociais. Conforme Woodward, os “discursos e os sistemas de representação constroem lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar”.33
A elaboração da imagem dos “outros” sujeitos urbanos na cidade moderna: estigmatização, segregação e sua integração forçada na sociedade urbana moderna Passa-se agora a analisar uma série de três fotorreportagens que elaboram a representação social dos outros sujeitos urbanos na Revista do Globo nos anos 1950. O estatuto destas imagens fotográcas lembra as fotograas de identicação do projeto de modernização e ordenação social do nal do século XIX, paralelo à ascensão da 33
WOODWARD (2000, p. 17).
Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950
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burguesia, que elaboraria seus retratos em estúdios na forma de romances.34 A primeira delas é “Porto Alegre: uma cidade entregue aos ladrões”, de 21 de fevereiro de 1953,35 com três páginas e oito fotograas em P&B. A fotograa de abertura da fotorreportagem é de grande formato, no sentido horizontal, e ocupa a metade da primeira página.
Fonte: TAJES, T.; FLORES, P.; CAVALHEIRO, W. “Porto Alegre: Uma cidade entregue aos ladrões”. Revista do Globo, 1953, n. 580, p. 60, 61.
Nessa primeira imagem são representadas seis crianças descalças e sentadas
sobre os paralelepípedos da rua (um trilho de bonde é visível no canto direito) em uma roda. Três delas encontram-se de costas e usam chapéus, uma delas está de perl e outras duas de frente para a câmara, mas não podemos ver seus rostos. Três delas são negras e uma delas tem cabelo claro. Sobre esse tema, ver os excelentes trabalhos de FABRIS (2004, p. 21-55); bem como o estudo sobre o mesmo processo de identicação dos criminosos e prostitutas no México de DEBROISE (2005, p. 69-79); além de dois ensaios sobre o nascimento da fotograa de documentação social em Leeds na Inglaterra no séc. XIX e no Administration Secutity Farm nos Estados Unidos dos anos 1930 em TAGG (2005, p.153-198; 199-236). 35 TAJES, T.; FLORES, P.; CAVALHEIRO, W. “Porto Alegre: Uma cidade entregue aos ladrões”. Revista do Globo, 1953, n. 580, p. 60, 61, 66. 34
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Elas parecem conversar ou jogar, pois estão todas olhando para o centro da roda. A fotograa em P&B, tirada de cima para baixo, ao nível dos olhos de um adulto, com luz forte do meio dia, salienta os contornos e os volumes. Ao pé da página, três pequenas fotograas no estilo retrato de meio-corpo e de formato retangular vertical apresentam três homens de terno e gravata, sentados em fotos de interior. O primeiro deles está sentado, com apenas ¾ de seu corpo aparecendo na foto; o segundo está de perl, sentado, falando ao telefone. O terceiro está de frente, tendo ao fundo uma parede neutra.
Em uma delas, a fotograa central, é possível identicar que o local é um escritório, pois o homem está sentado atrás de uma escrivaninha e fala ao telefone. A análise da diagramação das fotograas na página da revista aponta para uma oposição/ tensão entre a fotograa dos meninos descalços representados acima da página e as fotograas dos três homens de terno e gravata na parte de baixo da página. Essa oposição é construída também no plano formal, pois a primeira fotograa é externa e enquadra um pequeno grupo na rua, enquanto as três fotograas abaixo enquadram planos fechados do interior de um escritório. A primeira é tirada de cima para baixo
apontando uma hierarquia do olhar (superioridade do fotógrafo/repórter/adulto que tira a foto) e cortada no formato retângulo horizontal salientando o chão, no qual as crianças encontram-se sentadas, já as outras três fotograas são tomadas da mesma altura dos olhos dos homens de terno e são cortadas em um retângulo vertical (ascensão). Na página seguinte, outras quatro fotos de formato pequeno e retangular vertical completam a fotorreportagem. As legendas dessas fotos ampliam essa
contradição e aprofundam a tensão social entre esses dois grupos. Sobre o primeiro grupo se projeta um olhar externo, que é um ser visto pelo outro, ou seja, a objetiva do repórter fotográco, e no segundo há um “dar-se a ver” da autoridade policial que olha para a câmera do fotógrafo. A legenda da primeira foto arma que “sessenta por cento dos larápios que agem em Porto Alegre são menores” e completa que “não é de estranhar, pois a qualquer momento, em qualquer parte da capital, podem-se ver grupos de garotos na malandragem, sem lar, sem escola, sem assistência”. 36 As legendas das seis fotos menores de homens de terno e gravata indicam que se trata do delegado Homero Schneider, do delegado-adjunto Miranda Meira, do inspetor-chefe Osmar Barreto, dos inspetores Osvaldo Scherer e Alfredo Vitorino Vargas e do depositário Agostinho F. Pena. Todos individualizados ao serem retratados de perto em seu ambiente de trabalho, no exercício de suas funções e identicados pelo nome, sobrenome e respectivos cargos na polícia. A ordem policial é representada pelos policiais e
objetos relacionados ao seu trabalho (telefone, livros, cofre). TAJES, T.; FLORES, P.; CAVALHEIRO, W. “Porto Alegre: Uma cidade entregue aos ladrões”. Revista do Globo, 1953, n. 580, p. 60. 36
Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950
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A análise do texto da fotorreportagem aponta para o aprofundamento dos binômios delinquentes versus polícia e desordem versus ordem policial, o que reforça esse processo de hierarquização e estigmatização das crianças de rua através do tom sensacionalista que caracterizava as revistas ilustradas do período. O subtítulo
arma: “Desaparelhada de gente e de material, a Delegacia Especial de atentados à propriedade na capital gaúcha tem contra si um adversário cem vezes mais numeroso: os menores delinquentes e os fugitivos”. 37 A Revista também dá a palavra aos policiais, enquanto se apropria da fala de um dos jovens para construir dele uma imagem de
perigoso contraventor: “O pobre rapazinho confessou ainda que sua maior aspiração era ser chefe de uma quadrilha, ter automóvel e metralhadora”. 38 A estigmatização social desses jovens pela revista se completa ao nal da fotorreportagem: O que de melhor se poderia esperar de uma geração criada
na maloca, analfabeta e acostumada desde criança a disputar com os porcos a própria alimentação. Procurem-se as chas dos recém-entrados na Casa de Correção. Noventa por cento analfabetos! É o que prolifera em nossas vilas de marginais, fruto da desagregação dos costumes, da dissolução das famílias. 39
Acerca da imagem pública dessas crianças e jovens, a revista sentencia: “A maior desgraça para eles é a lei que não permite à imprensa publicar fotograas ou o nome dos menores”,40 o que explica o fato de as fotograas não mostrarem nem os rostos e nem os olhos dos jovens. Isso evidencia o desejo social de visibilidade do poder (da polícia), de identicação e de controle desses jovens em uma cidade em processo acelerado de crescimento e diversicação social. A campanha de moralização e controle social do espaço urbano ca clara quando a revista dá a palavra ao inspetor Schneider: “Sessenta por cento dos furtos praticados em Porto Alegre são de autoria de menores. Ache-se um estabelecimento adequado e tire-se de circulação cinquenta meninos delinquentes e a estatística baixará”. 41
Ou seja, o ideal policial seria o seu isolamento e a sua vigilância em instituições corretivas para crianças e adolescentes. O que nos leva a outra fotorreportagem da Revista do Globo, de 10 de julho de 1954, intitulada “Não é doce nem é lar”, com
texto de Dionísio Toledo e fotos de Pedro Flores, exatamente sobre esse assunto.42 Id., Ib., p. 60. Id., Ib., p. 60. 39 Id., Ib., p. 61. 40 Id., Ib., p. 61. 37
38
41 42
Id., Ib., p. 61.
TOLEDO, D.; FLORES, P. Não é doce nem é lar. Revista do Globo, 1953, n. 616, p. 48-50, 56.
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Fonte: TOLEDO, D.; FLORES, P. “Não é doce nem é lar”. Revista do Globo, 1953, n. 616, p. 48-49.
A fotorreportagem tem três páginas com cinco fotograas, iniciando-se com página dupla com duas fotos de formato grande (com mais de ½ página) e continuando na terceira página com três fotos de formato pequeno com menos de ¼ de página. Nas primeiras duas páginas, na abertura da fotorreportagem, apresentamse fotograas de grande formato com tom sensacionalista visando causar impacto e despertar a atenção do leitor. A primeira foto no formato retangular vertical apresenta em primeiro plano
um jovem negro de costas, enrolado em um cobertor, descalço e caminhando sobre as pedras irregulares de um pátio e ao fundo, em segundo plano, uma leira de jovens sentados no chão (com tarjas pretas cobrindo os olhos) diante de uma casa térrea de madeira com beiral. Ao lado, a segunda foto apresenta em primeiro plano um pátio com chão de pedras, sobre o qual se projeta uma larga sombra, no qual se encontra um grupo de jovens sentados no chão lado a lado em la (dois deles se destacam por estarem em pé) em frente a uma casa de madeira e de telhado baixo com três aberturas de onde pendem cobertores. Veem-se, ainda, ao fundo, um fragmento de céu, a parede de outra casa e a copa de uma árvore que projeta sua sombra sobre o pátio, onde quatro
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jovens se enco jovens encontram ntram senta sentados dos contr contraa a pared parede. e. Obse Observa-se rva-se,, por um fragme fragmento nto do cobertor nas costas do jovem da primeira fotograa que aparece na segunda fotograa, que se trata do mesmo lugar e que essas se complementam enfocando os dois lados do mesmo pátio. O que permite ver a casa ao fundo e um grande grupo de jovens sentados no chão do pátio ora mais de perto ora mais de longe em seu conjunto.
Na página seguinte, três fotograas de formato pequeno complementam e detalham alguns aspectos das duas imagens anteriores. No alto da página, a terceira foto apresenta uma parede rústica com uma prateleira, onde se observa uma leira de latas, abaixo dela um banco de tábuas e em cima dele um tacho de leite vazio virado. Na quarta foto, quatro jovens j ovens dormem amontoados no chão no canto de uma peça enrolados em panos. No plano do conteúdo, observa-se a repetição da ideia de empilhamento dos jovens sentados no chão, dormindo num canto de peça, dos panos sobre um cavalete e das latas. Os signicados de rusticidade do chão de pedras, da casa de madeira, das paredes rugosas da pilha de panos e latas. A casa térrea de uma água que lembra o espaço rural e o passado colonial em oposição à casa burguesa e aos prédios de apartamentos que dominam a representação da cidade em outras
fotorreportagens. Os signicados de abandono e a anomia são explorados através da apresentação dos jovens sentados contra a parede ou deitados no chão, bem como a pobreza das suas vestes vestes e do lugar que se encontram.
Fonte: TOLEDO, D.; FLORES, P. Não é doce nem é lar. Revista lar. Revista do Globo, Globo, 1953, n. 616, p. 50, 56.
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A análise formal das imagens aponta para escolhas de enquadramento e
luminosidade que ampliam esses signicados de pobreza, rusticidade e abandono. Nas duas primeiras fotos de grande formato, a câmera baixa (próxima ao chão) coloca em primeiro plano o piso do pátio de pedras irregulares, sobre o qual se projetam largas largas sombras, focando os os pés descalços dos jovens. jovens. A sequência narrativa das fotos começa no exterior e penetra no interior rústico da habitação apresentando detalhes que complementam os signicados de pobreza, rusticidade e abandono. Estamos na esfera do visível dos dispositivos do olhar do poder, da visão policial, que esquadrinha e dá a ver o outro, que torna o visível para reicá-lo, que o transforma em objeto, em coisa. A revista dá a ver o outro – o jovem, negro, pobre, condenado pela justiça – na sua miséria e na sua diferença em relação ao padrão burguês de habitação e consumo da cidade moderna. Desvalorizando-o e estigmatizando-o em relação às esferas do trabalho e do ordenamento social que caracterizam as representações da cidade moderna e das classes alinhadas com esse projeto de modernização.
Os títulos, as legendas e os textos ampliam essa representação e colaboram para construir uma imagem de alteridade negativa destes jovens relacionado a
certos espaços da cidade. Observe-se o subtítulo da fotorreportagem: “É na Colônia Africana, um antro miserável, que Porto Alegre procura ‘recuperar’ seus menores delinquentes”.43 Nesse subtítulo, associa-se a representação desses jovens com os signicados de colônia, de africana, de miserável e de delinquência, localizados em determinado espaço urbano e que se opõe ao conjunto da cidade de Porto Alegre. A fotorreportagem adquire tom de fotonovela pela forma como a narrativa
é conduzida em primeira pessoa, seguindo os passos do repórter que procura desvendar o problema do jovem e criança de rua em Porto Alegre. O texto começa
com uma caminhada da personagem-repórter pelo centro da cidade a deparar-se com as manchetes dos jornais a noticiar o arrombamento de seis prédios. Depois, em um uxo de consciência, a personagem pensa na possibilidade de sua residência ser arrombada e na sua vontade de ver os responsáveis na cadeia. Na sequência
depara-se com uma criança oferecendo-se para engraxar os seus sapatos, aceita e passa a pensar no problema problema dos jovens delinquentes delinquentes da cidade. O fato o leva a querer
investigar o assunto. Ele se dirige à autoridade competente do Juizado de Menores, que lhe fala do problema da escassez de verbas e se oferece para conduzi-lo a um passeio visando conhecer uma instituição que abriga jovens e crianças na Colônia Africana. Cabe salientar que essa forma de narrativa (próxima ao antigo folhetim e à fotonovela) visa despertar o interesse dos leitores e colocá-los ao lado do repórter em sua “pesquisa”. A descrição da instituição pela personagem-repórter é bastante forte e entremeada de qualicativos: 43
TOLEDO, D.; FLORES, P. Não é doce nem é lar. Revista lar. Revista do Globo, Globo, 1953, n. 616, p. 48-49.
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Dirigimo-nos para lá, entramos em seu recinto, e... que horror! Duas celas, duas jaulas. Cinquenta menores, uns sobre os outros, o que nos faz pensar nas promiscuidades que devem se suceder
entre eles. Um cheiro insuportável das instalações sanitárias junto às celas sem porta. Não há uma cama sequer, sequer, sacos servem de cobertores. Uma massa humana agrupada atrás das grades a pedir cigarros. cigarros. Então a nosso pedido, são todos todos eles retirados das “grades”, colocados em uma leira, se deixam fotografar com uma passividade de bestas.44
Descobre-se, então, que a fotograa foi armada, e os jovens posaram para ela segundo a lógica da fotograa policial de identicação do criminoso, do outro, do excluído. A avaliação da revista é tanto estética quanto moral sobre o lugar e as pessoas
que lá se encontram. “Lá” na Colônia Africana, tudo se opõe à moral, à estética e aos padrões sociais civilizados que o repórter e os leitores defendem na “cidade”. Mais adiante, o repórter-personagem completa o processo de estigmatização desse “outro”: “Todos esses garotos que podiam ser de utilidade social em verdade não passam de autênticas bestas humanas”. humanas”.45 Apesar de certo humanismo que leva o repórter a associar aqueles jovens
ao engraxate que encontrou no centro e da vontade “de que seja nosso próprio lho, que o levemos para casa...”, 46 a reportagem defende um conjunto de medidas de caráter preventivo das autoridades que permitissem identicar, avaliar, encaminhar e tratar esses jovens visando a sua recuperação e reintegração no convívio social.
Para tanto, poder-se-ia utilizar o regime semiaberto, sob vigilância discreta, mas constante. O que remete à próxima fotorreportagem sobre uma nova instituição para o recolhimento e reeducação de jovens infratores.
A fotorreportagem “O lar para o pequeno marginal”,47 de 24 de agosto de 1957, com texto de Antônio Goulart e fotograas de Léo Guerreiro, é composta de seis páginas e sete fotos P&B: duas fotos grandes com formato de retângulo horizontal, três fotos de tamanho médio (uma no formato retângulo vertical e outras duas no formato retângulo horizontal) e duas fotos f otos pequenas no formato quadrado.
Id., Ib., p. 50. Id., Ib., p. 50. 46 Id., Ib., p. 50. 47 GOULART, A.; GUERREIRO, L. O novo lar para o pequeno marginal. Revista marginal. Revista do Globo, Globo, 1957, n. 697, p. 36-41. 44 45
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Fonte: GOULART, A.; GUERREIRO, L. O novo lar para o pequeno marginal. Revista do Globo, 1957, n. 697, p. 36,37.
Ela começa em página dupla com uma fotograa retangular na vertical um pouco menor do que meia página. Nela se podem observar dois rapazes no fundo
de um longo corredor. Em primeiro plano, destaca-se o piso de ladrilhos de duas cores em “L”; em segundo plano, um jovem de costas caminha em direção ao fundo do corredor e caminha em frente a três portas abertas de onde se projeta uma luz
sobre a parede contrária cheia de portas de armários fechadas; um pouco à frente e à esquerda, outro rapaz procura algo dentro de um armário com a porta aberta. No teto de cor clara, como as paredes laterais, observam-se duas luminárias. Não se observam objetos no chão ou nas paredes.
No plano formal, a foto tirada em ângulo de 90 graus com o chão, que ocupa o primeiro plano e com os jovens ao fundo em segundo plano, destaca a profundidade e a amplidão do corredor; a sequência de portas de armários e de portas abertas dá ritmo, ordenação e equilíbrio à imagem. A fotograa constrói signicados de ordem, limpeza e amplitude do espaço. O que é rearmado pela legenda “Ao lado do dormitório, num longo e claro corredor, cada um deles possui o seu armário para
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Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950
roupa”.48 A segunda foto é uma vista parcial que, em primeiro plano, apresenta uma
grande árvore e, em segundo plano, em toda a sua extensão um longo edifício de dois andares, em terceiro plano, o céu ocupa boa parte do espaço da fotograa. No plano formal, observa-se que o fotógrafo construiu uma foto tirada a distância para enquadrar a árvore alta que se sobrepõe e projeta a sua sombra sobre o longo prédio de dois andares com uma generosa porção de céu ao fundo. A árvore alta parece proteger o edifício novo ao projetar sua sombra sobre ele. A tomada a
distância enfatiza o tamanho do prédio e sua integração com a natureza (árvore e céu) construindo signicados de salubridade e amplidão. O que também é destacado na legenda e no início do texto da fotorreportagem: “Num amplo descampado, atrás de uma colina, ergue-se o moderno edifício do Novo Lar de Menores”. 49 O adjetivo moderno coloca-o em sintonia com os objetivos reiterados da revista de ser portavoz do homem e da mulher moderna. No terceiro parágrafo descreve-se o Novo Lar: A casa apresenta-se com simplicidade, dentro de um estilo funcional e linhas modernas. Tem capacidade para 50 ou mais pessoas. Tudo muito amplo, aberto, não oferecendo aos meninos o mínimo aspecto de prisão. Bem perto se alarga um campo de esportes, mais abaixo uma horta.50
As fotograas e o texto complementam-se na apresentação das instalações e das atividades que se desenvolvem na instituição. Nesse sentido as fotos têm o papel
de testemunhar e certicar a veracidade e a exatidão da descrição, como se observa na sequência de cinco fotos que complementam a fotorreportagem, testemunhando e detalhando atividades de trabalho e de lazer dos meninos na instituição. Na segunda
página, a terceira foto enquadra em primeiro plano um menino de costas no gol observando três outros garotos disputando a bola a alguns metros à frente, no segundo plano. Num terceiro plano, apresenta-se a amplidão de um campo aberto e morros ao fundo, muito além dos limites do campo de futebol onde os meninos jogam bola. Na foto abaixo dessa, apresentam-se em primeiro plano dois meninos carregando enxadas, em segundo plano, mais à frente dois homens também carregando ferramentas (o primeiro deles de roupa preta, que aparenta ser um padre de batina) e, mais além, observam-se o prédio da instituição e a amplidão do céu. No plano icônico de conteúdo, as duas fotos apresentam a união de lazer e trabalho, ambas as atividades desenvolvidas ao ar livre e em contato com a natureza (campo, árvores, céu). Por isso, muito saudáveis e apropriadas a esses jovens. O que é complementado pelo subtítulo ao lado “Apreciam esporte e trabalho”.51 GOULART, A.; GUERREIRO, L. O novo lar para o pequeno marginal. Revista do Globo, 1957, n. 697, p. 36. GOULART, A.; GUERREIRO, L. O novo lar para o pequeno marginal. Revista do Globo, 1957, n. 697, p. 37. 50 Id., Ib., p. 37. 51 Id., Ib., p. 38. 48
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No formal da expressão, estas vistas parciais da instituição com grande profundidade de campo e enquadramento do céu (representa entre ⅓ e ½ das fotograas respectivamente) apontam para a vida em contato com a natureza, liberdade, salubridade, num ambiente com harmonia e paz ideal para o desenvolvimento dos jovens.
Fonte: GOULART, A.; GUERREIRO, L. “O novo lar para o pequeno marginal”. Revista do Globo, 1957, n. 697, p. 38-39.
Outras três imagens complementam esses signicados nas duas páginas seguintes que concluem a reportagem. 52 Nestas páginas, as fotos, o subtítulo e as legendas concorrem com as publicidades que ocupam a metade externa dessas
páginas. A quinta fotograa apresenta um grupo de jovens/meninos ao redor de uma mesa em um ambiente amplo. Em primeiro plano, um menino está se levantando na ponta da mesa e outro está de pé no lado esquerdo, um homem de pé parece ser um padre usando batina preta, outros três meninos estão sentados e outros dois mais ao fundo parecem estar de pé atrás da mesa. Em um segundo plano, ao fundo da sala ampla há armários na parede e uma porta aberta para outro aposento. A legenda 52
GOULART, A.; GUERREIRO, L. O novo lar para o pequeno marginal. Revista do Globo, 1957, n. 697, p. 40-41.
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esclarece: “No refeitório este grupo, sem nenhuma cerimônia, mistura no café da tarde conversa e risadas gostosas”. A foto é um instantâneo, a análise icônica sugere o binômio formado pela amplidão da sala e a unidade do grupo ao redor da mesa para a refeição. A descontração do grupo é vigiada e controlada pelo padre ao fundo, que representa a autoridade e a ordem na instituição. O grupo que está bem centralizado
e em foco é núcleo signicante da imagem. O contraste entre a luminosidade clara da sala e os tons mais escuros das roupas dos meninos do grupo ao redor da mesa
complementa esse signicado de unidade do grupo.
Fonte: GOULART, A.; GUERREIRO, L. O novo lar para o pequeno marginal. Revista do Globo, 1957, n. 697, p. 40-41.
Ao lado dessa fotograa, outra apresenta dois meninos em um dormitório arrumando as suas camas. As roupas de cama parecem bem brancas, e uma luminosidade forte entra através das duas janelas abertas sobre as camas. É um instantâneo ou foto posada? Não se pode saber ao certo, mas tudo indica a pose. Novamente, a análise do conteúdo aponta para a construção de signicados de responsabilidade, disciplina, ordem, higiene e bem-estar dos meninos na instituição.
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Embaixo, na mesma página, uma fotograa média em formato retangular horizontal representa dois jovens e um menino operando máquinas sobre bancadas
de ferro e madeira num ambiente que parece ser uma ocina. Em primeiro plano à direita, observa-se um jovem de frente para a câmera (porém seu rosto foi borrado, provavelmente no negativo antes da ampliação, para preservar a sua identidade) operando uma ferramenta elétrica com a mão esquerda e pousando a mão direita
sobre outra em cima da bancada. Em segundo plano, outro jovem de costas opera uma máquina sobre uma bancada. A legenda esclarece tratar-se de uma ocina de marcenaria onde se fabricam móveis.
No plano do conteúdo, essa imagem encerra a fotorreportagem com os signicados do trabalho, da operosidade, da produtividade com complemento e ponto culminante do trabalho de reabilitação e ressocialização dos “pequenos marginais”
(sic). A narrativa visual ordenada nos leva a um passeio pela instituição: começamos a distância contemplando o terreno, a modernidade e o tamanho do prédio, bem como sua localização favorável em meio à natureza; depois passamos ao campo de futebol; e ainda a volta do trabalho da horta; no interior observamos o refeitório, os quartos e a ocina. Tudo muito limpo, espaçoso, ordenado e iluminado para a reabilitação dos meninos e jovens sobre o olhar atento e vigilante do padre e seu assistente. Há um processo de acumulação e de reforço dos signicados das imagens anteriores de forma bastante pedagógica para o leitor da revista, visando apresentar-lhes os benefícios da reclusão, do trabalho, da disciplina e do trabalho para a reabilitação e reinserção social desses jovens e meninos.
Essas reportagens encerram todo um percurso e uma discussão sobre o lugar da criança e do jovem de rua na cidade moderna. Na primeira reportagem o
leitor é informado da sua periculosidade e dos inúmeros roubos por eles cometidos, fazendo-os gurar como ameaça número um à propriedade. Na segunda reportagem, a revista focaliza os jovens vivendo quase como animais em um antro na periferia
da cidade: a Colônia Africana. Finalmente, a última reportagem apresenta a solução do problema com o distanciamento desses jovens e meninos da cidade grande para
as áreas saudáveis em contato com a natureza de Viamão no “Novo Lar do Menor”. Nesse ambiente saudável, limpo, arejado e disciplinado, isolado dos maus da cidade, eles aprenderão a trabalhar na horta, na ocina e receberão cama, comida, roupas e educação prossional para se tornarem indivíduos úteis e prontos para se reinserirem na sociedade moderna.
Logo, a todo um processo de estigmatização desses jovens e crianças de rua, exigindo seu afastamento dos antros das periferias (verdadeiras escolas do crime) e sua segregação em espaços afastados da cidade, em meio à natureza, visando a seu disciplinamento, recuperação e futura reinserção na sociedade através do mundo do trabalho.
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Através dessas fotorreportagens, a revista se engajou no projeto de modernidade e de modernização da cidade através da construção de uma nova
visualidade. Essa nova visualidade urbana jogou tanto com signicados sociais de inclusão e legitimação da ação de certos atores e grupos sociais no espaço urbano quanto de estigmatização e exclusão de outros sujeitos e grupos sociais
na cidade em processo de modernização. Este é o caso dos jovens e das crianças de rua, infratoras ou não, que passavam a ser identicadas como uma ameaça à propriedade e à ordem social. As fotograas ajudavam a dar visibilidade à ação da polícia no combate ao crime e a construir uma imagem negativa desses jovens e dos espaços urbanos a eles
associados na cidade: as vilas periféricas. Elas construíam hierarquias e diferenças sociais, produzindo a segregação desses sujeitos no espaço urbano. Elas terminavam reforçando e legitimando o processo de afastamento desses grupos para áreas distantes
dos espaços centrais onde imperaria a lógica da modernidade, da sociedade de consumo e da especulação imobiliária. O processo de construção de identidades ou de identicações sociais passa pela denição de práticas modernas e seu avesso, constituindo a alteridade. A necessidade de exclusão e de disciplinamento dos jovens de rua aparece de forma clara
nas páginas das fotorreportagens, sendo construída pelas falas das autoridades policiais e pela forma como a revista alçada à condição de porta-voz da sociedade porto-alegrense construía a sua imagem. A imagem destes jovens e crianças em situação de rua fazia estilhaçar o espelho onde se projetava a nova imagem de cidade em construção no espaço urbano e em elaboração nas páginas da Revista do Globo. Logo, essa imagem exigia uma elaboração e um tratamento para que não ferisse a nova sensibilidade ou o novo padrão visual de cidade moderna consumida pelas elites e camadas médias. A nova visualidade
urbana construída na revista permite uma série de recursos (editoração, paginação, narrativa etc.) para elaborar e disciplinar essa imagem do outro e fazê-la reforçar os signicados sociais ligados à modernidade: visibilidade e ordenamento entre outros. Nesse sentido, a análise dessas fotorreportagens permite problematizar a construção de um padrão de visualidade urbana e o discurso de modernidade social
das revistas ilustradas. Elas fazem pensar sobre a forma excludente e hierárquica como é construída a imagem dos “outros” sujeitos sociais, que terminam sendo apenas objetos do olhar disciplinador das elites que os coisica, tornando-os alvo de políticas públicas e não sujeitos sociais com direitos civis e demandas políticas no processo de construção social do espaço urbano. Por outro lado, ajudam a legitimar o processo de mercantilização e monopolização do espaço urbano através da especulação imobiliária e a verticalização da área central da cidade através da construção de edifícios de
alto gabarito, bem como da difusão de novas formas de sociabilidade e formas de consumo através das publicidades associadas às reportagens no contexto do processo de diagramação e edição das fotograas nas páginas da revista.
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CAPÍTULO 2 A TÉCNICA DE JOÃO ALBERTO FONSECA DA SILVA E A ARTE DE SIOMA BREITMAN NA FOTOGRAFIA PORTO-ALEGRENSE DOS ANOS 1950 Rodrigo Massia1 Sioma Breitman fotografou do ano de 1921 até 1970, quando decidiu se aposentar. João Alberto Fonseca da Silva começou a tomar contato com a fotograa a partir do trabalho de laboratorista no Serviço Histórico Geográco do Exército, no ano de 1939. Fotografou prossionalmente até os anos 1990. Ao valer-se da biograa destes dois sujeitos, pretende-se problematizar em que medida estas duas trajetórias permitem compreender parte do circuito social da fotograa em Porto Alegre na década de 1950.
Como se trata de um tema ainda pouco explorado pela pesquisa histórica, essa investigação utiliza depoimentos orais. A reexão sobre este tipo de fonte necessariamente implica uma problemática da memória, que se relaciona aqui com a textualidade de Sioma e a oralidade de João Alberto. Outrossim, estes dois fotógrafos possuem trajetórias distintas, o que se cristaliza no modo como falam de sua atividade e de sua relação com os demais colegas de prossão. Sioma Breitman escreveu um livro2 contendo 166 páginas no qual narra trechos de sua trajetória. João Alberto concedeu dois depoimentos 3 ao Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa. O primeiro depoimento data de 1978, e o segundo foi realizado no ano de 2006. Há um intervalo de 28 anos entre uma entrevista e outra. Sioma Breitman tem sua memória bastante consolidada, pois sua atividade conta com maior reconhecimento do estado. Há um logradouro com o seu nome e a fototeca homônima do Museu Municipal Joaquim José Felizardo. A doação de parte de seu acervo fotográco foi concedida ao Museu em função desse reconhecimento.4 João Alberto considera-se um homem de sorte por ter parte de seu trabalho reconhecido como algo que deve ser preservado, pois se constitui em parte da memória arquitetônica da cidade. As fontes sobre os dois fotógrafos são de tipos distintos e exigem formas de
leitura crítica diferenciadas pelo historiador. O livro escrito por Sioma Breitman faz parte do acervo público do fotógrafo e se encontra no Museu Joaquim José Felizardo. Mestre em História pela PUCRS. E-mail: [email protected]. BREITMAN (1976.). 3 SILVA (1978, 2006.). 4 Cf. POSSAMAI (1998, p. 95). 1 2
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Rodrigo Massia
Trata-se de uma fonte textual na qual o escritor teve a oportunidade de escrever, corrigir e enfatizar momentos de sua trajetória, bem como relegar outros ao esquecimento. O processo de escrita permite maior controle sobre a edição e a escolha das palavras. A
motivação para a elaboração do livro teria sido de ordem pessoal, ou seja, responderia, segundo Sioma Breitman, a uma demanda de memória familiar. No caso de João Alberto, as entrevistas realizadas não obedeceram a um roteiro estabelecido por esta pesquisa. Foram produzidas para registrar a trajetória do fotógrafo, de modo que abarcasse a totalidade de sua atividade prossional. 5 As
entrevistas, ocorridas em tempos distintos, não contaram com a presença ou com qualquer sugestão de pauta para este trabalho. O contato com a fonte foi feito a
partir do áudio e da transcrição das falas do fotógrafo registradas nas tas cassete. Apesar de o autor não exercer o papel de entrevistador, a pesquisa contribuiu para um momento decisivo do acervo oral: quando ele se torna um documento textual. O material foi digitalizado e entregue ao Museu, que agora conta com o arquivo textual e sonoro em formato digital.
Dentre os diferentes tipos de enfoque da História oral, este trabalho caracteriza-se como uma história oral temática.6 Nessa abordagem o pesquisador faz um uso direcionado da fonte, pois ela conduz as entrevistas ou as utiliza em função de um tema que tem relação com a história de vida do entrevistado. Não
se mensurou aqui a tradição oral, mas os aspectos da memória individual de João Alberto. Entende-se aqui a memória individual como “uma reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de fato uma representação seletiva do passado, um passado que nunca é aquele do indivíduo somente, mas do indivíduo inserido num contexto familiar, social, nacional”. A concepção teórica sobre a memória visa pensar em que medida estas fontes podem auxiliar a pensar no circuito social da fotograa em Porto Alegre nas décadas de 1940 e 1950.
João Alberto Fonseca da Silva: o olhar do migrante, o olhar técnico João Alberto Fonseca da Silva é natural de Quaraí, cidade localizada próxima à fronteira com o Uruguai e a Argentina. Quando chegou à idade de servir ao exército veio a Porto Alegre, para tentar melhores condições de vida. Foi quando teve a oportunidade de trabalhar como laboratorista do Serviço Geográco do Exército, no qual aprendeu as técnicas de revelação e de composição de cartas em O tratamento das fontes orais orientou-se, em linhas gerais, pelas propostas de: VOLDMAN In: AMADO; FERREIRA (1996, p. 33-41.). 6 ROUSSO In: AMADO; FERREIRA (1996, p. 93-101.). 5
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A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman
aerofotogrametria. A aerofotogrametria é uma técnica que permite o levantamento
de extensas áreas, que são fotografadas e posteriormente transformadas em cartas topográcas, equivalentes a mapas que indicam as condições do terreno: formações naturais, localização de cidades, curso dos rios etc. Com o aprendizado obtido nesta tipologia de processo técnico em fotograa e com as amizades que fez em sua passagem pelo exército, João Alberto ingressou na Secretaria Estadual de Obras Públicas. Em suas memórias, João Alberto lembra que ingressou no Serviço Geográco em 1939 e que trabalhou nas Obras Públicas no período em que o governador era Walter Jobim, portanto, entre os anos de 1947 e 1951. Na secretaria, João Alberto relata que os órgãos públicos passaram a fazer uso corrente de fotograas, notadamente a Secretaria de Obras Públicas. Dentro desta havia a Diretoria de Saneamento e Urbanismo, subseção na qual João Alberto era encarregado de fotografar as inaugurações das obras públicas do Estado, acompanhando o secretário, e fazer levantamento fotográco das áreas que receberiam melhoramentos no abastecimento de água e tratamento de esgoto.
Cabe aqui salientar o lugar que esse tipo de imagem ocupa na história da fotograa. A partir da segunda metade do século XIX, com a complexicação e centralização da máquina estatal, a fotograa começou a ser utilizada como uma importante ferramenta auxiliar no planejamento de obras públicas e no controle do espaço urbano.7 No Brasil, foi no contexto do Estado Novo que a fotograa ganhou maior espaço com essas atribuições. Em níveis federais destaca-se a contratação de fotógrafos para o Departamento de Imprensa e Propaganda, Serviços de Proteção ao índio e ao Instituto do Patrimônio Histórico Cultural, todos estes executados por fotógrafos estrangeiros.8 Em nais dos anos 1940 o IBGE também passou a trabalhar com fotógrafos prossionais, com vistas a documentar a geograa humana das regiões periféricas do Brasil.9 Junto ao trabalho no Setor de Obras Públicas João Alberto começou a produzir outros tipos de fotograa. Como o cargo de fotógrafo do departamento passou a ser desempenhado em meio turno, João buscou alternativas para aumentar seus rendimentos e aprender outras possibilidades do ofício. Fotografou casamentos, confeccionou lembranças de aniversário e atuou como artista-fotógrafo, fazendo fotograas de criança. Segundo o fotógrafo, esta era a melhor alternativa para um iniciante, porque as crianças têm a pele quase sem imperfeições, sendo a melhor maneira de chegar aos cânones de beleza que vigoravam na sua época. 10 Outras duas áreas de extrema importância nos trabalhos de João Alberto foram a publicidade e Sobre este tema em uma perspectiva internacional ver: TAGG (2005, p.199-235). Cf. COELHO (2006, p.79-99). MAUAD (2005, p.43-75). 9 Foram três fotógrafos contratados, todos eles imigrantes húngaros. Cf. ABRANTES (2007, p.1-8). 10 Esta concepção estética encontra correspondência com a corrente europeia do pictorialismo na fotograa. Para saber mais ver: MELLO (1998, p. 43-46.). 7
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a arquitetura. Os trabalhos para os escritórios de arquitetura tornaram-se a “marca” do fotógrafo. Quando, em meados dos anos 1990, houve a transformação das suas imagens de documento para monumento,11 suas fotograas de arquitetura foram as escolhidas como as mais relevantes de sua produção. Através do aperfeiçoamento das técnicas de ampliação e redução foi possível fazer da publicidade algo corrente dentro da imprensa. Logotipos e imagens podiam ser
justapostos e diagramados. Como se sabe, este é um ramo da fotograa na qual se exige do fotógrafo o contato com o que há de mais moderno em termos técnicos. 12 Porém, mais do que aparato técnico, João Alberto destaca o aprimoramento do próprio olhar como característica principal. O serviço em publicidade surgiu em decorrência de sua experiência na produção dos aerolevantamentos. O chamado trabalho de traço 13* fez
da fotograa um desao ao olhar de João Alberto: enxergar com exatidão e simetria. Essas características apontam para um tipo de “olhar da época”, que encontrava espaço em áreas como a publicidade, o design gráco, a arquitetura e as artes plásticas. Na arquitetura utilizou-se de inovações como a fotomontagem14 e realizou serviços de redução. Mais uma vez valendo-se de seu saber técnico – aqui sempre mencionado como oposição ao saber artístico na opinião do depoente – João Alberto foi desaado a fazer a inserção de maquetes de prédios no espaço urbano da cidade. O fotógrafo observava o local de construção do prédio e fotomontava a maquete
no espaço da cidade, de modo que a imagem se constituía em um documento no qual era possível visualizar a presença da futura construção no espaço urbano. As
fotograas de arquitetura obedeciam a padrões simétricos, de proporções calculadas, exploração dos efeitos de tridimensionalidade, equilíbrio e nitidez.15 Em síntese, a fotograa de arquitetura pretendia ser um espelho da realidade futura, com a inserção dos prédios no espaço urbano como forma de analisar suas condições estéticas no conjunto da cidade. Na apresentação dos projetos arquitetônicos, os dossiês eram elaborados com a presença de plantas das edicações, fotografadas e reduzidas, para serem visualizadas em sua integralidade no corpo da apresentação da obra. Mais um recurso visual que conta com o desenvolvimento de um saber técnico baseado na precisão e no realismo como efeitos fundamentais.
Nas fotomontagens João Alberto valeu-se de seus conhecimentos, porém a inuência do desenho arquitetônico na fotograa de cidade era uma forte recorrência Cf. MAUAD; KNAUSS (2007, p. 9). Cf. COELHO (Opus cit., p. 95). 13 * O trabalho de traço era a técnica que tornava possível o encaixe de uma fotograa aérea na outra. Essa técnica era desenvolvida com o auxílio de aparelhos que aumentavam o foco das fotograas, para que o encaixe fosse o 11 12
mais exato possível.
Fala-se de inovação aqui em termos locais. A fotomontagem foi bastante utilizada na “nova arte” da Revolução Russa e ainda timidamente na arte modernista e fotograa moderna brasileira. Sobre estes assuntos ver respectivamente: FABRIS (2005, p.99-132.) e CHIARELLI (2003, p. 67-81). 15 Cf. LIMA; CARVALHO (1997, p. 99-100). 14
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A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman
nos anos de 1950. Este tipo de imagem respondia bem à demanda por realismo e equilíbrio de proporções. Essas fotograas buscavam a exatidão em termos de simetria que, em última análise, era produzida a partir do olhar humano.16 Nesse caso aqui a presença do observador que visualiza a cena in loco era condição necessária para a produção da fotomontagem.
Cabe ressaltar aqui que estes efeitos de realismo tendem a migrar, da imagem para a cidade.17 Esse tipo de imagem tinha uma circulação bastante ampla e cumpria funções técnicas e estéticas. As fotograas de arquitetura também exerceram forte inuência no fotojornalismo em ascensão nos anos 1940 e 1950. Essas imagens fotográcas tinham um forte apelo de veracidade ao apresentar a modernização e o crescimento urbano das cidades brasileiras e eram muito utilizadas pelas revistas ilustradas.18 Além das revistas, é possível citar o uso desse tipo de fotograa pelo fotoclubismo19 e pelos álbuns fotográcos. Em Porto Alegre também identicou-se
essa inuência na produção de painéis fotográcos, que eram imagens de grande formato produzidas a partir de fotograas. João Alberto fez parte do grupo de fotógrafos pioneiros nesse tipo de fotograa. Como é possível observar, a trajetória de João Alberto se confunde com a própria história da fotograa. Muitas vezes o fotógrafo teve que achar suas próprias soluções para as ideias apresentadas, como no caso de sua primeira fotomontagem, que será abordada mais adiante. Do ponto de vista da estética sua obra não se
encontra isolada. Porém, mais importante do que localizar a imagem do ponto de vista da estética, seria conhecer as condições sociais de produção da obra. 20 A busca de compreensão a partir desse enfoque aproxima-se de uma História da fotograa em Porto Alegre. O depoimento de João Alberto permite que a compreensão de algumas de suas imagens extrapole o campo estético. A fotomontagem do edifício Formac na área central de Porto Alegre foi feita
sob encomenda de um arquiteto carioca que sugeriu ao fotógrafo João Alberto que zesse a montagem do prédio, ainda inexistente. A fotomontagem causou impacto ao ser exposta na Casa Comercial Herrmann situada na esquina da Rua dos Andradas com a Uruguai. Esse fato data de 1953 ou 1954, conforme o relato do fotógrafo. A casa em questão vendia materiais fotográcos, relógios e joias. João Alberto, pelas suas relações de amizade com o dono do estabelecimento, deixou a fotomontagem exposta na vitrine da loja. O fotógrafo relata sobre os comentários que ocorriam
entre os transeuntes. Uma das falas que cou marcada na memória de João Alberto Cf. MENESES (2005). Cf. LIMA; CARVALHO (Opus cit., p. 99-104). 18 Cf. MONTEIRO (2007, p. 159-176). 19 Notadamente os de São Paulo e Recife. Cf. LIMA; CARVALHO (Opus cit.), COSTA; SILVA (2004) e SILVA (2005). 20 Cf. BOURDIEU (1996, p. 11-16). 16 17
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foi que a cidade na imagem não deveria ser Porto Alegre e muito menos que tivesse
sido feita por um fotógrafo local. Conforme o relato do fotógrafo: (...) surgiu a famosa fotomontagem, que tinha um arquiteto que gostava muito de novidade, era muito ilustrado que era um arquiteto formado no Rio. Mendonça, o Mendonça, Carlos Alberto Mendonça, de Orlando Mendonça. O Mendonça quis fazer uma fotomontagem de um edifício, chegou, deixou a maquete na minha casa, com um bilhetinho: “Fazer fotograa da maquete e fazer uma fotomontagem da maquete” em tal lugar assim.
Esse foi o edifício Formac. Aí eu ri, eu nunca disse que fazia fotomontagem. Mas depois tava tomando meu chimarrãozinho em casa depois do banho e quei pensando, mas digo, eu não disse que fazia, mas podia ir lá olhar né. Aí vinha eu, olhei o local e bati uma foto. E acabei montando a fotomontagem e foi a minha primeira fotomontagem foi do edifício Formac. É que deu bastante curiosidade, como o Mendonça era muito noveleiro como a gente chamava, gostava de novidade, ele quis fazer uma ampliação grande. Então eu z uma ampliação, se não me engano, era noventa por sessenta do trabalho dele já fotomontando. E porque eu andava muito na Casa Hermann, botamos na vitrine da casa Hermann (...), na esquina da rua Uruguai com a rua dos Andradas. E aí até foi curioso. Pena que eu não tinha gravador como vocês têm agora [risos do depoente] porque o que se ouvia
de coisas engraçadas daquele público que olhava ali, na época já era novidade uma ampliação grande. Então não era feito em Porto Alegre. (...) Mas o importante da história é que se comentava, a fotograa daquele tamanho já tinha vindo dos Estados Unidos, pra começar. E o Braga que era da Casa Hermann mandou um dia escutar, e eu fui escutar, quei no meio do povo ali escutando e se comentavam coisas engraçadas, entre elas que o edifício não era em Nova York, que era em tal cidade, que tinha um sabido lá. Porque o edifício aqui em Porto Alegre não tinha um edifício, parece que são vinte e poucos andares (...).21 A questão mais importante do trecho acima é que o depoente tem a
oportunidade de relatar situações não só sobre a circulação da obra, mas de sua recepção. A fotomontagem servia muito bem ao processo de planejamento urbano e sabe-se de seu uso pelo corpo técnico do Estado. 22 Ao inserir a maquete do prédio
em plena área central da cidade, ainda predominantemente horizontal, o fotógrafo SILVA (2006.). Há algumas fotograas que fazem parte do acervo do Museu Hipólito José da Costa que levam o carimbo da Secretaria de Planejamento Urbano. Não se pode perder de vista que no ano de 1959 foi elaborado o primeiro plano 21 22
diretor da cidade.
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A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman
causou um choque visual, pois uma imagem tida como reexo da realidade estava ali criando cções, conforme é possível observar em seu produto nal.
Figura 1: João Alberto Fonseca da Silva. Espaço de inserção da maquete e construção do prédio. In: CANEZ, p. 129.
Figura 2: João Alberto Fonseca da Silva. Fotomontagem do edifício Formac no espaço urbano de Porto Alegre, 1953. In: CANEZ (Idem).
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Nos dias atuais é pertinente a tentativa de compreensão sobre tantos comentários. A foto hoje não causa o mesmo choque. A sociedade atual já saturou o olhar com
relação a essas imagens urbanas assépticas. É necessário somente visualizar, já que a imagem tem o poder de substituir o acontecimento. 23 Ao pensar na visualidade da época não se pode esquecer que as principais referências em termos de modernização
urbana eram as grandes cidades dos Estados Unidos. A ideia de uma cidade tomada por edifícios de alto gabarito era uma clara referência a Nova York, e o conhecimento que grande parte da população tinha das metrópoles estrangeiras era oriundo da visão
de cartões-postais e das fotograas impressas em revistas ilustradas. Certamente não seria possível mensurar o grau de amplitude da fotograa, no caso de um exemplar, sem o relato oral. A fotograa de cidade é um tema constante que perpassa diversas instâncias de produção, circulação e consumo: ela está nas revistas ilustradas, nos interiores de prédios públicos e no planejamento da cidade. Trata-se de um tema de forte recorrência no período, que foi representado sob as mais diversas formas, desde o utilitário até a expressão artística de vanguarda.24 Partindo desse contexto local para o mais geral, o olhar fotográco moderno materializava a ideia de um Brasil urbano, cosmopolita e vertical. O período dos anos 1950 é marcante nesse sentido, pois é um contexto no qual a ideia do urbano é vista como a inserção denitiva do Brasil na modernidade e um “alinhar o passo” com as cidades europeias e estadunidenses. Se em períodos anteriores a modernidade era vista como algo a ser alcançado no futuro, na década de 1950 havia a sensação de que este futuro havia chegado denitivamente. 25 Exatamente nestas ocasiões em que aparecem tensões como, por exemplo, uma espécie de nostalgia sobre um tempo que se encontra no passado rural. Um sintoma dessa conjuntura de transformações na cidade foi o tradicionalismo, movimento urbano surgido em 1947 que cultivava a tradição rural e elegia a gura do gaúcho como elemento síntese de comportamento. João Alberto foi um desses jovens do período que optou pelo uso da bombacha em oposição à invasão das lambretas e calças jeans. 26 Diante deste contexto, o fotógrafo João Alberto responde de forma ambígua às duas questões mais gerais sobre a inuência desse olhar técnico, que responde aos imperativos de uma modernização econômica e de um olhar voltado para as resistências locais. João Alberto é um fotógrafo que cultiva as práticas do tradicionalismo gaúcho que exerceu forte inuência sobre a juventude gaúcha dos anos 1950. Quando o destino das imagens é a fruição estética João Alberto optou No caso da fotomontagem de João Alberto, pode-se se dizer que a imagem é o acontecimento, já que não há um referente externo. Sobre este tipo de análise ver o introito teórico do artigo de: KERN (2007, p. 138-140.) e MENESES (2003, p. 138-149.). 24 Ver o caso dos fotógrafos Roberto Yoshida e Gertrudes Altschul em: COSTA; SILVA (Op. cit., p. 54-56). 25 OLIVEIRA. In: MIRANDA (2002, p. 35). 26 Sobre a inuência estadunidense no comportamento da juventude porto-alegrense ver: Revista do Globo (1959, p. 30-33). 23
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pelo tema regional para concorrer ao I Salão Internacional de Fotograa em Porto Alegre. Fotografou um carreiro em Quaraí, imagem que intitulou de “Aguardando o frete”. Na ocasião João Alberto comenta que Sioma Breitman viu essa foto de sua autoria e o convidou para expô-la no salão supracitado, caso contrário não teria feito, pois não se considerava um artista.27
Não se pode perder de vista o papel da fotograa como dispositivo que mediava a questão do crescimento urbano, exercia papel fundamental no planejamento de ações futuras e apresentava a cidade como um índice concreto da modernização do país. A fotograa era um espelho do real,28 no qual o corpo técnico via o futuro, os habitantes conformavam uma ideia de cidade que se representava sob forte efeito de realismo, ao mesmo tempo em que se apresentava como objeto de apelo estético. Essa mediação era feita por fotógrafos, trabalhadores responsáveis pela produção de imagens.
Uma questão bastante importante contida nos depoimentos de João Alberto e Sioma Breitman diz respeito ao mercado da fotograa em Porto Alegre, principalmente na relação entre os fotógrafos. Os dois chegam a diagnósticos similares quando o tema
é a organização da atividade: a falta de um espaço de formação estética e aprendizado das técnicas, onde o fotógrafo receba uma formação que lhe dê legitimidade para atuar prossionalmente. João Alberto, porém, apresenta-se como um fotógrafo sem as características de liderança, fundamental para um grupo de prossionais ainda em fase de organização. A autoridade ainda se encontrava nas mãos dos fotógrafos
mais tradicionais como Olavo Dutra e Sioma Breitman, os dois grandes fotógrafos de sua geração, herdeiros do talento dos grandes artistas-fotógrafos do século XIX. Para João Alberto cava o espaço de alguém que, mesmo sem a formação humanista destes grandes fotógrafos, conseguiu exercer seu ofício com êxito graças ao que o fotógrafo chama de visão técnica.
O olhar de João Alberto desaa a exatidão, a simetria e o equilíbrio. Sua inserção na fotograa deu-se de acordo com os imperativos do mercado e pela oportunidade recebida em uma fase de instabilidade. João acabava de chegar do interior do estado à capital e em primeiro lugar buscava um trabalho e uma prossão. É lícito dizer que a trajetória do fotógrafo foi construída a partir dos desaos que lhe foram lançados em termos visuais. O êxito se deu pela insistência e pelo treinamento
do olhar, de acordo com uma visão tecnicista, que predominava na arquitetura.
27
28
Cf. SILVA (2006). Cf. DUBOIS (1993).
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Sioma Breitman: olhar do imigrante, olhar da tradição Sioma Breitman foi um dos fotógrafos mais destacados entre as décadas de 1930 e 1960 no estado do Rio Grande do Sul. De origem ucraniana, teve que deixar seu país devido à Revolução Socialista na Rússia, que perseguiu de forma severa os judeus da região. Após deixar a Europa, partiu para a América, separando-se de sua família e estabelecendo-se em Buenos Aires, onde conseguiu emprego em um estúdio fotográco. Pouco tempo depois, veio para Porto Alegre, onde sua família havia se xado. Em meados dos anos 1920, Sioma e sua família famíl ia passaram a produzir as fotograas da comunidade judaica estabelecida no bairro Bom Fim. Fi m. Entre os anos de 1920 e 1950, montou estúdios nas cidades por onde passou: Cachoeira do Sul, Santa Maria e Porto Alegre. Ao sair dessas cidades, Sioma deixava os estúdios para os seus irmãos, que também eram fotógrafos. Seu pai, Nathan Breitman era o dono do estúdio onde Sioma trabalhava com seus cinco irmãos, ir mãos, tendo se notabilizado pela edição de negativos, tarefa denominada de retocador. retocador. Sioma fez parte de uma segunda leva de fotógrafos estrangeiros, se forem considerados os “pioneiros” do século XIX. Esses novos fotógrafos foram responsáveis por mudanças importantes, tanto no Rio Grande do Sul quanto nos demais estados do Brasil. Aqui em Porto Alegre tem-se registro de Ed Keffel, de origem alemã, que teve grande contribuição nas mudanças ocorridas no campo do fotojornalismo na Revista do Globo.29 No Rio de Janeiro, fotógrafos como Jean Manzon, Marcel Gautherot,30 Harald Schultz, Heinz Foerthmann, Pierre Verger 31 e Hildegard Rosenthal foram responsáveis por alterações importantes no campo prossional da fotograa. Trabalharam para diversos órgãos do Estado e consolidaram novas práticas no fotojornalismo.32
Sioma aborda com senso de humor em suas memórias os procedimentos de seu ofício de retocador. A tarefa consistia em manipulações diversas feitas tanto nos negativos como nos positivos. Esse tipo de prática era oriunda de uma postura na qual a fotograa era um produto bruto onde fotógrafos contavam com a parceria de um pintor,33 que dava um toque artístico às fotograas, notadamente os retratos e as vistas urbanas. Segundo Sioma: “Acredite se quiser, até chapéus eram tirados e o penteado desenhado de acordo com as indicações dadas pelos clientes. (...) Ao MASSIA (2008). Sobre Marcel Gautherot ver: ANGIOTTI-SALGUEIRO ANGIOTTI-SALGUEIRO (2007). 31 Sobre Pierre Verger ver: LÜHNING (2002). 32 Cf. COELHO (Op. cit.). 33 Essa prática fazia parte dos grandes estúdios do século XIX e início do XX. A citação citação do nome desses artistas que trabalhavam com os fotógrafos era recorrente nos anúncios publicitários dos estúdios, pois conferia ao mesmo o status de espaço de produção de arte. Cf. LIMA (1991, p. 59-82). 29 30
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perguntar o ‘grosso’ cliente como era era o penteado penteado do falecido falecido que gurava gurava no retrato, a resposta era: ‘Quando você tirar o chapéu, verá – não vale rir...”.34 Em meados dos anos 1960 o fotógrafo já havia trabalhado em uma gama enorme de atividades como, por exemplo, estúdios de retrato,35 as vistas urbanas, as festas e os casamentos da elite porto-alegrense, fotograa para as peças teatrais que passavam pela cidade, publicação de álbuns e os concursos de arte art e fotográca que lhe renderam inúmeros títulos e distinções em nível nacional e internacional. Além de participar com trabalhos fotográcos, Sioma foi membro ativo na organização das exposições de arte fotográca em Porto Alegre, captando recursos e rmando parcerias com empresas distribuidoras de material fotográco. Ministrou cursos de fotograa e aulas de russo. Viajou para fora do país com a Exposição: Rio Exposição: Rio Grande do Sul através da fotograa e Arte Fotográca, no Fotográca, no ano de 1958. Percorreu Portugal, Espanha, França, Alemanha, Alemanha, Itália e Israel. No ano de 1959, com patrocínio da Varig, Varig, expôs estes mesmos trabalhos em Nova York. Depois de mais de 40 anos dedicados ao ofício da fotograa, grande parte dele exercido em Porto Alegre, Sioma escreveu um livro de memórias sobre sua trajetória prossional, o qual fala das suas atividades, da sua condição judaica, relata histórias sobre alguns de seus registros fotográcos, os lugares por onde passou, as premiações, os colegas de trabalho, a fundação da associação. O livro, intitulado Respingos de Revelador e Rabiscos Rabiscos,, foi editado por seu lho, Irineu Breitman. A obra não contou com a parceria de nenhuma editora, sendo seu acesso ainda feito em uma edição caseira, com as folhas batidas à máquina e as fotograas fotocopiadas ao longo do livro, utilizadas utili zadas como ilustração dos temas abordados pelo fotógrafo. No início da obra, Sioma revela que o objetivo do livro era contar sua trajetória aos netos e bisnetos, como forma de relatar parte da saga da família, que partiu de uma Europa em guerra e com muito trabalho conseguiu êxito no Brasil, superando as diculdades naturais do choque entre culturas distintas. Contudo é inegável que se trata de uma obra na qual o autor imaginou outras possibilidades de circulação. As evidências de um texto que se aproxima do histórico são latentes.
Muitas vezes o autor se coloca quase que como uma terceira pessoa, outras vezes relata experiências pessoais. O texto alterna momentos de narração de estórias com
relatos de memórias afetivas, ao mesmo tempo em que apresenta trechos de elevada erudição, com referências literárias e análises de cunho histórico e antropológico. Os textos e imagens de Sioma Breitman são itinerários possíveis para percorrer parte do universo da fotograa em Porto Alegre entre os anos de 1930 e 1960. A sua atuação constitui-se em um conjunto amplo de possibilidades da prática práti ca BREITMAN (Op. cit., p. 32). Sioma montou cinco estúdios fotográcos. Quatro deles tinham o nome de Aurora e caram sob a gerência de seus irmãos. O mais importante deles foi montado em 1937 e levava o seu nome: Sioma. Cf. BREITMAN (Ibdem, p. 28.). 34 35
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fotográca. Muitas delas se caracterizam por ser uma novidade para o período. São elementos que se referem à própria expansão da atividade fotográca, por inovações de ordem técnica e social. Não se pode perder de vista que a fotograa é uma invenção moderna, que surgiu em plena vigência da segunda revolução cientícotecnológica, de forte inuência da losoa positivista. A própria ideia de progresso material, tão em voga no período, fez da fotograa elemento estratégico da demanda social por realismo e objetividade. Cabe aqui avaliar essa dimensão da fotograa, pois é justamente esse o caminho de abertura – o fotojornalismo, a publicidade e os eventos sociais – que melhor responderam a esse tipo de demanda que só a imagem técnica era capaz de proporcionar no período a um público amplo e variado. Apesar de todas as inovações advindas das máquinas portáteis e das possibilidades de trabalho fora dos estúdios fotográcos, esses ainda ainda constituíam-se no espaço por excelência da produção fotográca. O retratista mantinha seu status de artista-fotógrafo, qualidade atribuída a quem atingia algo próximo do sublime em fotograa: captar a personalidade do retratado e xá-la em uma imagem fotográca. Os estúdios fotográcos do centro da cidade ainda mantinham seu status de espaços consagrados à nobre arte do retrato. O estúdio Sioma era um deles,36 no qual as grandes personalidades políticas e artísticas confeccionavam confeccionavam seus seus retratos. retratos. Localizado na rua
dos Andradas, na área central da cidade, o estúdio era um catalisador de atividades fotográcas. Além dos tradicionais retratos, se confeccionavam ampliações, revelações, lembranças de aniversário e casamento. O estúdio era também um espaço de sociabilidade, onde fotógrafos se reuniam. A vitrine, onde Sioma expunha seus retratos, fazia publicidade do retrato artístico, como uma capacidade de que poucos fotógrafos eram dotados, conforme armava seu material publicitário: “Para o melhor retrato procure Sioma. Um retrato artístico... sempre Sioma”.37 O retrato artístico foi o modo de representação do indivíduo burguês, como forma de construção da sua distinção social. 38
No estúd estúdio io Sioma foram produ produzidos zidos os retrat retratos os ocia ociais is de perso personalid nalidades ades políticas polític as como Getúli Getúlioo Varg argas, as, Flore Floress da Cunha Cunha,, Corde Cordeiro iro de Faria Farias, s, divers diversos os funcionários do alto escalão do estado,39 do escritor Erico Verissimo, Verissimo, do ator e produtor O estúdio Sioma mantinha a tradição dos grandes estúdios de retrato, tributários do séc. XIX, no qual a localização se constitui em uma evidência de distinção, frente a um contexto de vulgarização, tanto dos estúdios como da produção de retratos. retratos. Cabe lembrar aqui que a área área central central ainda era o espaço de maior valorização, valorização, tanto econômico econômico quanto social, da cidade. Cf. POSSAMAI (2005.) e SANTOS (1997.). 37 BREITMAN (Opus cit., p. 148.). 36
38
Para saber mais sobre a historicidade da relação entre o retrato e o modo de vida burguês ver em especial
FREUND (1999.). 39 Em uma edição da Revista do Globo alusiva aos feitos do Estado Novo e as comemorações do bicentenário de Porto Alegre, foi feita uma extensa reportagem sobre o crescimento do Estado, no qual grande parte dos retratos dos prefeitos das cidades em destaque foi produzida por Sioma Breitman. É interessante notar que a assinatura do fotógrafo assume destaque na imagem, pelas dimensões, localizada logo abaixo do rosto, na parte inferior à direita. Cf. Revista do Globo (1940, p. 72-160.).
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Procópio Ferreira e de diversas personalidades do high society porto-alegrense, já que
foi responsável pela produção fotográca dos casamentos da alta sociedade. 40 Além das fotograas produzidas no ateliê, os irmãos de Sioma que trabalhavam com ele praticavam uma função que o fotógrafo chamava de angariador, 41 que consistia em percorrer o interior do estado para conseguir encomendas de ampliações fotográcas. Uma das práticas correntes em fotograa era pendurar as fotos dos familiares nucleares nas paredes das casas, com molduras, retoques, colorizações etc. O fotógrafo chegou até o interior do sul de Santa Catarina recolhendo retratos para futuras ampliações. Mantendo-se autônomo Sioma Breitman apresenta em suas memórias um cenário bastante diversicado sobre o ofício da fotograa em Porto Alegre e nas principais cidades do interior do estado. O fotógrafo trabalhava muitas vezes nos
três turnos: ao longo do dia no estúdio e à noite em eventos sociais, o que evidencia o extenso tempo de trabalho do fotógrafo.
Sioma parece ter assimilado desde cedo uma das características principais de um bom fotógrafo, que é manter-se neutro em relação a conitos ideológicos ou de grupos rivais. Sioma fala do exemplo de seu pai que, em plena perseguição aos judeus no leste europeu nos anos 1910 conseguiu manter boas relações com o Estado que lhe perseguia para poder exercer o seu ofício. Apesar de assumir sua condição étnica judaica, o fotógrafo parece ter mantido sempre uma relação harmoniosa com a elite luso-brasileira e teuto-brasileira. Tendo se rmado como fotógrafo primeiro em torno da comunidade judaica, posteriormente se projetou como o principal fotógrafo das elites políticas e dos eventos sociais. Como lidava com um equipamento ainda pesado e pouco discreto (principalmente pelo uso do ash), o fotógrafo comenta que sempre pedia permissão para fotografar as pessoas nos eventos sociais, para não causar nenhum tipo de desconforto aos seus fotografados. Sua competência fazia com que raramente perdesse as chapas que batia. Por esses motivos, Sioma sempre contou com apreço das principais personalidades políticas e culturais do estado.
Na AFPRGS Sioma cumpria as funções de relações públicas para arrecadar fundos para as exposições de arte fotográca e auxiliava na organização. Sioma também expunha seus trabalhos em diversos concursos de fotograa, tanto no Brasil como no exterior, acumulando cerca de 400 trabalhos. Foi um dos responsáveis pela montagem da AFPRGS no ano de 1946. Os principais objetivos da associação eram manter cursos de capacitação no exercício da fotograa, congregar os Cf. POSSAMAI (1998, p. 98-99.). Fala dessa atividade como prática corrente nos anos 1920 e 1930, mas que certamente não desapareceu. Uma evidência disso é a similaridade do trabalho de Chico Pintor, que ganhava vida como fotógrafo nos anos 1960 e 1970 fazendo ampliações e colorizações de fotograas, principalmente nas cidades do interior. Para saber mais ver: SILVA (1998, p.66-68.). 40 41
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fotógrafos da cidade em torno de uma organização e regularização jurídica do
ofício em atividade prossional. Entre os anos de 1946 e meados de 1954, período em que funcionou a associação, foram realizados três salões de fotograa (1948, 1951 e 1952), sendo o último deles de abrangência internacional (1952). Ainda na associação funcionava, além dos salões e cursos de aperfeiçoamento – no qual Sioma ministrava justamente o retoque de negativos, a publicação da Associação chamada O Fotógrafo, que funcionou entre os anos de 1947-1952 com apenas três edições. Sioma arma que a associação sempre passou por diculdades de ordem nanceira devido aos custos de infraestrutura, que ainda era precária.42 Dentro da associação, o fotoamadorismo era desenvolvido como uma espécie de subseção da qual surgiu no ano de 1951 o
Foto Cine Clube Gaúcho. O deslocamento evidencia o caminho da especialização e fragmentação dos ramos da atividade fotográca, que teve seu início nesse contexto. Como o foco da AFPRGS era na formação de um grupo de prossionais da fotograa, o FCCG aglutinou os fotógrafos que exerciam a atividade sem ns prossionais, seguindo a tradição dos Fotoclubes de início do século XX. Contudo isso não impediu que fotógrafos prossionais obtivessem formação técnica nesse espaço, a princípio destinados aos amadores. Além de suas atividades exercidas com ns lucrativos, Sioma foi um fotógrafo que incentivou o exercício da fotograa como forma de expressão artística. Consagrado entre seus pares como artista-fotógrafo, considerado pela imprensa como a continuação de uma linhagem de artistas-fotógrafos locais como Otto Schönwald, Virgílio Calegari e os Irmãos Ferrari, Sioma teve extensa produção voltada para este ramo da fotograa. Ganhou inúmeros títulos, dentre os quais, considerava como o mais importante o reconhecimento, em 1957, da Federation Internationale de L’art Photographique (FIAP), com sede em Berna na Suíça.43 A titulação, com direito a certicado, era exibida como prova de sua competência e como publicidade da qualidade de seus trabalhos. Esse status conferia distinção às suas fotograas. Sioma fez uso de suas qualidades artísticas na produção do “retrato clássico”. 44 O fotógrafo era conhecido pela sua capacidade de dar um “sopro de vida” ao retratado.
Como artista-fotógrafo Sioma contabilizou mais 400 trabalhos de sua autoria que participaram em salões de arte fotográca, que aconteceram em diversas partes do mundo, inclusive no Japão. A maioria de seus trabalhos fotográcos foi produzida entre os anos de 1946 e 1958. Em sua obra textual, o autor sinaliza o ano de 1946 como Cf. BREITMAN (Opus cit., p.114.). Segundo Sioma, a indicação partiu do Foto Cine Clube Bandeirante de São Paulo, o que demonstra o reconhecimento da vanguarda da arte fotográca no Brasil. Cf. BREITMAN (Ibdem, p. 102.). 44 O retrato clássico obedece a cânones bastante denidos: controle de abrangência do espaço, posição do rosto, expressão, incidência de luz, relação do retratado com o segundo plano. Neste contexto, dominar estes normativos técnicos e estéticos permitia ao fotógrafo considerar-se um artista de fato e de direito. Para ver mais sobre o gênero do retrato ver: FABRIS (2004, p. 91-114) e CASTANO (s.d.). 42 43
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um marco signicativo em sua percepção das potencialidades da fotograa. Começou a tomar contato com publicações estrangeiras e ter notícias sobre a existência de associações de fotógrafos e de salões de arte fotográca. Mais do que isso, Sioma observava o ano de 1946 como o início de uma conjuntura geopolítica de mudanças
internacionais. O m da segunda guerra mundial era visto por Sioma como uma nova etapa das relações humanas, na qual o aprendizado da guerra traria novas perspectivas para os tempos de paz. Imbuído deste espírito, o fotógrafo percebeu que sua atividade prossional não possuía qualquer tipo de organização e regulamentação jurídica. Sioma faz apenas uma alusão ao contexto paulista, embora seja plausível armar que o fotógrafo tinha conhecimentos sobre contexto de exposições nacionais e internacionais. Estes eventos aconteciam no Foto Cine Clube Bandeirante desde a sua fundação, em 1939.45 Em 1947 foi lançada a Revista Íris, primeiro periódico sobre fotograa de caráter comercial. No ano de 1948, quando foi realizado o primeiro salão de arte fotográca de Porto Alegre, em São Paulo, o FCCB já estava na 7ª edição de seu salão internacional.46 Em 1950 o nível de organização da atividade amadora em São Paulo era bastante satisfatório. Foi realizada a I Convenção Brasileira de Arte fotográca, que resultou na fundação da Confederação Brasileira de Fotograa e Cinema. Esta entidade era a representante brasileira na FIAP.47 Quando a AFPRGS organizou seu primeiro e único salão internacional, o FCCB já estava com o mesmo evento em sua décima primeira edição.
Sioma entendia que a fotograa era uma atividade que estava para além das possibilidades que oferecia o mercado, onde a prática se dava no nível de uma fotograa corrente, na qual os eventos familiares eram a tônica das imagens produzidas pelos estúdios. Conforme Sioma: “As condições eram difíceis. As exigências gerais não permitiam afastar-se nem um pouco da linha classica do ocio, e do provimento de recursos para a existencia (sic)”. 48 Nesse sentido o fotógrafo se aproxima da interpretação de Bourdieu sobre os devotos e transgressores na fotograa. Para o autor, a atividade fotográca que se afasta da prática corrente surge como forma de oposição a esta e constitui-se na tônica da fotograa praticada no âmbito dos fotoclubes. A atitude devota caracteriza-se pela repetição das ocasiões (turismo, aniversários, casamentos, formaturas) e padrões (identicação imediata do local fotografado, gestual denido) da fotograa corrente. O transgressor é justamente aquele que, ao negar as ocasiões e expressões correntes, busca novas situações de prática fotográca, aproximando-se da expressão artística. A fotograa é uma forma de ingresso no mundo das artes justamente para os sujeitos das camadas
médias, pois estes não têm livre acesso aos modelos já consagrados de arte como a Cf. COSTA; SILVA (Opus cit., p. 37-44). Ibidem, p.39. 47 Ibidem, p.48. 48 BREITMAN (Opus cit., p.101.). 45 46
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música erudita, a pintura. Fazer da fotograa uma forma de arte é, conforme aponta Bourdieu, uma atitude transgressora.49 Sioma Breitman observa que a prática corrente impede que novas formas de expressão em fotograa sejam desenvolvidas, o que também obstaculiza a constituição de espaços de formação e aperfeiçoamento da atividade fotográca. Sioma evidencia em seu discurso uma visão tradicional, legado pela fotograa pictorialista,50 na qual o fotógrafo deve ser um sujeito versado nas artes e na literatura. Sua bagagem cultural deve lhe permitir a obtenção de uma fotograa que fuja à prática corrente e aos imperativos do mercado. Para que tal realidade fosse possível em Porto Alegre, fazia-se necessário a organização de uma associação que promovesse salões de arte fotográca e oferecesse cursos de fotograa, concebendo-a como forma de expressão artística. O fotógrafo também comenta sobre o contexto de produção de algumas de suas
fotograas premiadas, o que permite compreender a apropriação de certas concepções e práticas fotográcas que vigoravam no período. A ideia de uma fotograa cândida,51 na qual o fotógrafo é uma testemunha silenciosa e discreta do acontecido é uma
postura, que surge em decorrência das novas possibilidades técnicas (máquinas de pequeno formato que independem do uso do ash), que foi utilizada no fotojornalismo. No campo da arte fotográca, esse tipo de fotograa exigia do sujeito a sensibilidade de observar uma cena fugidia e lançar um olhar poético sobre a realidade exterior.
Fotos posadas eram práticas associadas à fotograa corrente, produzida em eventos sociais, como casamentos, festas, aniversários e demais eventos de cunho familiar. A arte fotográca praticada entre os anos 1940 e 1960 procurou se afastar deste tipo de fotograa. A máquina fotográca era entendida como uma espécie de arma silenciosa, na mira de um instante decisivo, único. Esta concepção encontra tradução nas palavras do fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson, quando este diz que a fotograa é um momento de cruzamento entre o “cérebro, olho e o coração”.52 A partir da narrativa de Sioma, é possível entender um pouco mais das motivações pessoais e as soluções encontradas por ele para fotografar o cenário, de acordo com a sua ideia. A discussão recairá sobre a fotograa intitulada por ele de “Súplica”. BOURDIEU (Opus cit., p.80-87.). O autor faz aqui uma divisão entre o que ele caracteriza por uma fotograa corrente e uma fotograa exigente. Estas duas tipologias são analisadas dentro da perspectiva de uma fotograa amadora. Outra ressalva importante é que o autor faz suas considerações sobre o contexto francês dos anos 1960. 50 Ver em linhas gerais e sob uma perspectiva nacional e internacional, respectivamente: MELLO, (Opus cit.) e NEWHALL, (2002, p.141-166.). 51 A fotograa cândida, conforme refere o adjetivo, constitui-se em uma imagem na qual a presença do fotógrafo não foi percebida pelos retratados. Esta prática só se tornou possível pela existência das máquinas portáteis como a Leica, a Ermanox e a Rolleiex, para citar as mais conhecidas. Esse tipo de fotograa passou a ser praticada principalmente pelo fotojornalismo alemão dos anos 1920, tendo como principal referência o fotógrafo Erich Salomon. Na arte fotográca brasileira dos anos 1950 identica-se essa mesma postura, só que para ns diferentes. Ver por ordem das referências abordadas: FREUND, (Opus cit., p. 99-123) e COSTA; SILVA, (Opus cit., p.63-70.). 52 CARTIER-BRESSON (2004.). 49
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Sioma conta que certa vez uma de suas inúmeras clientes que solicitavam seu trabalho nos casamentos foi ao seu Estúdio para retirar as fotograas. Na ocasião estava com luvas de couro e as tirou para manusear suas fotos. A cliente teria cado tão satisfeita com o resultado do trabalho que ao sair esqueceu-se de seu par de luvas, o que prontamente despertou o interesse do fotógrafo. Ao ver que as luvas, pela maciez do couro ainda mantinham a forma das mãos com suas rugosidades
o fotógrafo começou a pensar em um projeto fotográco com o objeto. A luva clara sob um fundo escuro com os efeitos de luz articial sugeriu uma imagem de um gestual de súplica, de conotação fortemente religiosa. De tão satisfeito com o resultado, Sioma decidiu inserir esta imagem em sua Exposição de 1958, chamada “Arte Fotográca”, que percorreu diversos países da Europa e América.
Figura 3: “Súplica”, por Sioma Breitman. BREITMAN, (Opus cit., p.135).
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Em seu livro, o fotógrafo chegou a inserir alguns comentários sobre esta imagem, quando a expôs a bordo do navio que o levou para a Europa. Chamoulhe a atenção o fato de uma mesma pessoa ter postado dois comentários, o que demonstra o retorno e o impacto que tal imagem causou, algo que traduz os verdadeiros propósitos do fotógrafo, como pode ser observado na citação a seguir: “Há tanta originalidade, tanto sentimento, tanto extro (sic) artístico, tanta inspiração, que chega-se a passar em segundo plano a técnica portanto insuperável, somente tomando em consideração e apreciando o artista, o verdadeiro puro artista, que sente, que vive, que cria sua composição”.53 Ao falar de suas imagens, Sioma Breitman constantemente abordava a questão da fotograa como caça (o retratado como “alvo”, a máquina como “metralhadora” e o click como um “tiro”). Essa analogia é possível não só pela presença de uma máquina portátil, mas da mudança de postura, assumida na prática fotográca como expressão artística. Seus conteúdos são pensados a partir de um enquadramento estético que o fotógrafo caracteriza por ser agradável, ou seja, respondem aos imperativos de harmonia, condições de luminosidade e de casualidade. O conteúdo, quando predominantemente corriqueiro e banal, consome mais as possibilidades estéticas, no caso de Sioma, a questão da luz. Tanto em página social como em súplica identicase o uso da luminosidade como recurso estético primordial, que faz da fotograa uma expressão artística. No caso de preço da independência, a fotograa é enfatizada mais pelo seu conteúdo, pois guarda fortes relações com a memória afetiva do fotógrafo. Mais do que grandes revelações sobre o enigma da fotograa, a interpretação recai aqui sobre as condições de produção. A ideia de expressão artística contida na fotograa é tema de uma extensa discussão. Muitas vezes é atribuída a uma obra artística questões que são da ordem do inefável. Sobre este tema, Bourdieu argumenta: Porque se faz tanta questão de conferir à obra de arte – e ao conhecimento que ela reclama – essa condição de exceção, senão para atingir por um descrédito prévio as tentativas
(necessariamente laboriosas e imperfeitas) daqueles que pretendem submeter esses produtos da ação humana ao
tratamento ordinário da ciência ordinária, e para armar a transcendência (espiritual) daqueles que sabem reconhecerlhe a transcendência? (...) É legítimo valer-se da experiência do inefável, que é sem dúvida consubstancial à experiência amorosa, para fazer do amor como abandono maravilhado à obra apreendida em sua singularidade inexprimível a única forma de conhecimento que convém à obra de arte? 54 53 54
ZAPPI apud BREITMAN (Op. cit., p. 136.). BOURDIEU (Opus cit. p.12-13.).
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A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman
Ao observar esta resistência a uma análise que qualique a ação humana como racional, que faz parte da produção da obra de arte, Bourdieu chama a atenção para as bases da crítica de arte, ainda presa às categorias de gênio e dom natural. O entendimento da obra de arte nessa acepção seria algo que escapa ao conhecimento
cientíco. No caso da arte fotográca de Sioma observa-se que há um contexto de produção da obra na qual esta experiência da ordem do sublime não acontece a partir
de um dom genial, mas fruto de investigação, de estudo das condições de luz, da sorte, da casualidade, da relação com o tema. A arte, como fruto da ação humana muitas vezes recorre à casualidade, como no caso da produção da fotograa com as luvas, que recebeu elogios que qualicam o autor da obra nos termos criticados por Bourdieu, ainda que não seja proveniente de uma crítica especializada. Ao pensar a trajetória de Sioma Breitman partindo do contexto local e inserindo-o em níveis de análise nacionais e internacionais, identica-se que seu olhar constitui-se em uma apropriação das possibilidades existentes. O domínio do que é possível em termos de fotograa no período lhe permite transitar, tanto de um olhar tradicional, lançado sobre os retratos da elite dirigente e aos casamentos quanto de um olhar moderno, onde o fotógrafo é uma testemunha silenciosa, observadora, aos moldes de um caçador. A prática devota lhe permite prover o seu sustento, enquanto a transgressora faz dele um fotógrafo engajado na constituição de um campo de produção da arte fotográca. Contudo, suas fotograas são “apenas” um entre tantos outros possíveis olhares, lançados sobre o mundo, ora bisbilhoteiro e comovido, ora moralizante e tradicional. Sem a sua assinatura em destaque nas fotograas certamente não seria possível inferir com certeza de que se trata de uma foto sua, pois não há a possibilidade de identicar uma marca pessoal. Retomando as ideias de Mario Costa: A partir da fotograa isso deixa de ser possível porque, ao anular em si a própria noção de ‘estilo’, ela é a primeira a recusar toda ‘marca’ e a constituir-se como uma multidão de coisas desobjetivadas cuja ‘obstinada estranheza’ não pode ser recuperada de forma alguma. E passamos, assim, da automatização à autonomização da imagem.55
Sioma construiu a sua História ao narrar suas memórias. Mais do que informar, o fotógrafo, mesmo com uma vasta coleção de imagens, recorreu às palavras para sacramentar uma vida dedicada ao ofício da fotograa. Será que o fotógrafo tinha em mente a ausência da categoria texto nas imagens? A autoria Cf. COSTA In: KERN;FABRIS (2006, p.190-191.). A questão da impossibilidade de estilos pessoais na fotograa é debatida a partir da estética hegeliana na qual a expressão artística é forma de transformar a realidade exterior, pois 55
nela é impressa a marca do artista.
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da expressão artística contida na foto seria perdida com o tempo, fazendo de suas fotograas expressões mudas, completando o caminho de uma imagem automática para uma imagem autônoma.56 Os propósitos de Sioma ao fazer seus registros seriam perdidos sem o recurso das palavras. Mesmo para um homem que viveu imerso no mundo das imagens, o recurso da palavra se constitui em algo denitivo, que revelaria e estabilizaria a “verdade” da cena retratada?
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CAPÍTULO 3 POR TRÁS DAS LENTES, UMA HISTÓRIA: A PERCEPÇÃO DE FOTÓGRAFOS SOBRE AS IMAGENS DA MÍDIA IMPRESSA Maria Cláudia Quinto1 O mais importante na comunicação [...] é a sociedade que há por trás dessa palavra. Dominique Wolton
As questões sobre a publicação de imagens têm sido cada vez mais discutidas e analisadas pelos diversos saberes em estudos que abordam desde a análise de
imagens até entrevistas com o público receptor. Segundo o historiador Peter Burke (2004, p. 24), “deve-se aconselhar alguém que planeje utilizar o testemunho de imagens para que se inicie estudando os diferentes propósitos dos realizadores dessas
imagens”. Tais propósitos, às vezes, se distanciam do resultado nal – a imagem publicada – e o processo que existe por trás das imagens nos informa muito sobre a lógica dessas publicações. A fotograa, surgida em 1839, de acordo com Susan Sontag (2004, p. 13), atua como uma ponte entre o mundo e nós, tornando próximo o que está distante, informando outras realidades e outros tempos. Como aponta Ivan Lima (1989, p. 9), a fotograa “mudou a visão das massas. Até então o homem comum só visualizava os acontecimentos que ocorriam ao seu lado, na rua, em sua cidade”. Hoje, temos acesso a uma gama enorme de situações, dos grandes feitos dos homens às catástrofes que mobilizam o público. Os acontecimentos são congelados pela lente do fotógrafo, pois “a fotograa jornalística xa um acontecimento e as suas impressões. O fotógrafo é o relator desse acontecimento: o intermediário visual entre a notícia e o público”, como indica Lima (1989, p. 35). Por ser um intermediário visual , o prossional também ltra e altera a realidade a ser mostrada, no sentido de que escolhe o quê, como e quando fotografar. Os primeiros periódicos no Brasil possuíam poucas imagens e, no século XIX, o acesso a essas fotos era restrito. Dessa forma, as imagens causavam grande impacto nas pessoas, como armam Marco Morel e Mariana Barros (2003). De acordo com os autores, as primeiras imagens na mídia impressa, no Brasil, tinham a guerra – do Paraguai e de Canudos, por exemplo – como principal tema. Já com relação à revista, o jornalista Eugênio Bucci (2000, p. Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. O presente artigo é parcialmente baseado na Dissertação de Mestrado em Psicologia intitulada “Imagens de morte na mídia impressa: o olhar do fotógrafo”, defendida em 2007, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, sob orientação da Dra. Monique Augras. 1
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109) aponta que “a fórmula da revista semanal de informação” foi criada pela revista Time na década de 1920. No Brasil, Lima (1989, p. 71) indica que “o ciclo das revistas semanais de informação com a fotograa em cores surgiu no nal dos anos 1960, e teve início com a revista Veja e Leia”. Segundo o autor (p. 71), a revista Veja surgiu em 1968, e em março de 1976 foi lançada a revista Isto É. Sobre esta última, Lima (1989, p. 74) arma que “o surgimento da revista Isto É foi fundamental para o surgimento de grupos de fotógrafos independentes e para a posterior criação de agências de
fotógrafos”. Finalmente, de acordo com Lima (1989, p. 74), em 25 de maio de 1977, na edição 22, a revista Isto É viria a publicar “a sua primeira grande reportagem fotográca. Na época, foram mostrados, em várias fotograas, os conitos da Polícia com estudantes universitários”.
A partir desse momento, informar passou a signicar mostrar, como indica Muniz Sodré (1972, p. 52), e essa regra parece persistir até hoje, até porque a fotograa é compreendida de maneira mais direta e rápida do que o texto. Como ressalta Lima (1989, p. 10), “a facilidade do entendimento e a força da imagem é que colocaram a imagem produzida pela fotograa na vanguarda da transmissão da informação nos meios impressos”. De acordo com o autor (p. 39), “a notícia vinculada com a fotograa em um jornal é sempre mais lida”. Para abordar sobre o tema fotograa é preciso, inicialmente, registrar que as primeiras máquinas fotográcas surgiram na França e na Inglaterra, no início da década de 1840, de acordo com Susan Sontag (2004, p. 18), e “só contavam com os inventores e os accionados para operá-las”. Conforme a obra citada, a fotograa, nessa época, “não tinha nenhuma utilidade social clara” (p. 18), sendo que sua importância, como registro da realidade, foi reconhecida somente mais tarde. Em termos de estrutura, a fotograa de imprensa – e, dentro dela, o fotojornalismo é considerada como uma vertente da fotograa documental, de acordo com Lima (1989, p. 11). O valor da fotograa documental é inquestionável, no sentido de mostrar e denunciar realidades às quais não teríamos acesso de outras maneiras. As primeiras guerras “registradas por fotógrafos” foram a Guerra da Crimeia (1854-56) e a Guerra Civil Espanhola (1936-39), de acordo com Sontag (2003, p. 21). A autora comenta que “até a Primeira Guerra Mundial, o combate propriamente dito esteve fora do alcance das câmeras” e que as imagens da guerra “publicadas entre 1914 e 1918, quase todas anônimas, eram, em geral [...] de estilo épico” (p. 21-22). A lósofa cita o exemplo da Guerra Civil Espanhola, como sendo “a primeira guerra testemunhada (‘coberta’) no sentido moderno: por um corpo de fotógrafos prossionais nas linhas de frente e nas cidades sob bombardeio” (p. 22). Em relação à fotograa de guerra, Sontag (2004, p. 51) oferece um interessante relato:
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Embora a fotograa, normalmente, seja uma visão onipotente e a distância, existe uma situação em que as pessoas são mortas, de verdade, por tirar fotos: quando fotografam pessoas matandose mutuamente. Só a fotograa de guerra combina voyeurismo e perigo. Fotógrafos de combate não podem deixar de participar
da atividade letal que registram, até vestem uniformes militares, ainda que sem insígnias de patente. (2004, p. 51)
Atualmente, podemos transpor essa ideia, por exemplo, à realidade dos fotojornalistas do Rio de Janeiro, que entram em comunidades acompanhando as operações da Polícia. Podem não estar do outro lado do mundo registrando guerras, mas vivenciam o mesmo estresse semelhante, correndo riscos durante a prática. Em algumas vezes, os fotógrafos permanecem horas à espreita, em locais considerados perigosos, à procura da fotograa perfeita. A fotograa “Execução em uma rua de Benca”, da fotógrafa Wania Corredo, vencedora do Prêmio Esso de Fotograa, exemplica essa questão. Assim, podemos observar que, guardadas as devidas proporções, os repórteres fotográcos de hoje se assemelham aos fotógrafos de guerra. Sobre o surgimento dos fotógrafos na imprensa brasileira, Lima (1989, p. 26) observa que estes sugiram na década de 1920 “através dos contínuos ou amigos dos
donos de jornais”, sendo que os amigos dos donos tinham “maior tempo livre” e “uma câmera na mão”, e os contínuos desejavam “subir de categoria”. O fotojornalismo só começou a ser reconhecido por volta de 1940, em “tempo de guerra”, como arma Sontag (2003, p. 32). No fotojornalismo tem-se a preocupação de informar a maior quantidade de dados em uma única imagem. A imagem deve resumir a notícia e mostrar o essencial da reportagem. Segundo Lima (1989, p. 35), “a reportagem é um acontecimento dinâmico, do qual o fotógrafo tem que extrair uma imagem que exprima o momento visual signicativo daquele acontecimento”. O autor ressalta que “tudo tem que estar no mesmo quadro: os personagens e as suas relações com o espaço e com a circunstância” (p. 35). Portanto, informar pode, também, signicar mostrar , mas não basta mostrar de qualquer maneira, pois a foto deve chamar a atenção e ter qualidade. O fotógrafo também deseja ter o seu trabalho reconhecido no meio da
Comunicação. Burke (2004, p. 24) arma que seria imprudente atribuir a esses artistas fotógrafos um ‘olhar inocente’ no sentido de um olhar que fosse totalmente objetivo, livre de expectativas ou preconceitos de qualquer tipo. Tanto literalmente quanto metaforicamente, esses esboços [...] registram ‘um ponto de vista’.
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O pesquisador Fernando de Tacca (2004, p. 5-6) arma que “será na foto-choque que encontramos a representação crua da violência, da morte e do sofrimento. O trágico traz a dor alheia de forma explícita, impactante e cruel”. É comum vermos relatos nos quais se arma que, atualmente, há uma proliferação de imagens chocantes e violentas. No entanto, não podemos dizer que este é um fenômeno recente. Imagens chocantes sempre tiveram espaço nas revistas e jornais, como vimos, anteriormente, e como podemos observar no relato, feito em 1860, pelo poeta francês Charles Baudelaire, citado por Sontag (2003, p. 89-90): É impossível passar os olhos por qualquer jornal, de qualquer dia, mês ou ano, sem descobrir em todas as linhas os traços mais pavorosos da perversidade humana [...]. Qualquer jornal, da primeira à última linha, nada mais é do que um tecido de horrores. Guerras, crimes, roubos, linchamentos, torturas, as façanhas malignas dos príncipes, das nações, de indivíduos particulares; uma orgia de atrocidades universal. E é com este aperitivo abominável que o homem civilizado diariamente rega o seu repasto matinal.
A descrição de Baudelaire sobre os jornais de 1860 não está tão longe da descrição de nossos veículos de comunicação atuais, sendo que hoje se tem muito mais imagens nos jornais do que na época do poeta. A imagem fotografada deve ser digna de
ser publicada, como Lima (1989, p. 27) aponta: “se a notícia não for quente ou a foto não for boa o seu trabalho pode não ser publicado”. O autor (p. 67) ainda comenta que “os redatores e fotógrafos apreciam, particularmente, as fotos ditas ‘sensacionalistas’, pelas condições excepcionais nas quais elas foram realizadas”. Pode existir, em alguns casos, uma maior valorização da imagem registrada em contingências de risco. Segundo Lima (1989, p. 67), “o risco enorme que o fotógrafo corre é recompensado pelo seu prestígio na redação. São poucas as fotograas de catástrofes que tem um grande valor informativo. Elas são apreciadas pela sua força emocional”. Durante a produção da imagem é preciso considerar o elemento de
subjetividade do fotógrafo, o mundo visto através da lente da máquina fotográca já se mostra transformado por uma série de razões: a escolha do melhor ângulo, o objeto a ser fotografado. Sobre isso, Boris Kossoy (2000, p. 30) arma que “as possibilidades do fotógrafo interferir na imagem – e portanto na conguração do assunto no contexto da realidade – existem desde a invenção da fotograa”. O fato fotografado é congelado na imagem e reproduzido.
Sobre esse assunto, Roland Barthes (1984, p. 15) arma que “o que a fotograa reproduz ao innito só ocorreu uma vez: ela repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente”. A escolha do que fotografar inclui,
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também, o perl do veículo de comunicação, permeado por motivações diversas, sensacionalistas ou não. Algumas publicações, mais sensacionalistas, são capazes de publicar imagens grotescas de determinadas situações, imagens que, talvez, o público não tenha interesse de ver, e nem mesmo o fotógrafo. Conforme Barthes (1984, p. 57), o fotógrafo, como um acrobata, deve desaar as leis do provável ou mesmo do possível; em última instância, deve desaar as do interessante: a foto se torna ‘surpreendente’ a partir do momento em que não se sabe por que ela foi tirada. [...] Em um primeiro tempo, a Fotograa, para surpreender, fotografa o notável; mas logo, por uma inversão conhecida, ela decreta notável aquilo que ela fotografa.
Nesse processo, a imagem mostrada se torna superestimada e pode adquirir um status de realidade. Conforme arma Sontag (2003, p. 22), “algo se torna real – para quem está longe, acompanhando o fato em forma de ‘notícia’ – ao ser fotografado”. Sontag (2003, p. 23) revela ainda que o uxo incessante de imagens (televisão, vídeo, cinema) constitui o nosso meio circundante, mas quando se trata de recordar, a fotograa fere mais fundo. A memória congela o quadro; sua unidade básica é a imagem isolada. Numa era sobrecarregada de
informação, a fotograa oferece um modo rápido de apreender algo e uma forma compacta de memorizá-lo. A foto é como uma citação ou uma máxima ou provérbio. Cada um estoca, na mente, centenas de fotos, que podem ser recuperadas instantaneamente. A imagem memorizada serve como um banco de registro de todos os
conteúdos a que somos expostos diariamente. Tais conteúdos se tornam parte de quem somos. Em virtude disso, a delicada discussão sobre a veracidade e autenticidade das imagens se torna necessária. O sociólogo Michel Maffesoli (1995, p. 92) arma que “a imagem ou o fenômeno não pretende a exatidão [...] Em suma, a imagem é relativa, no sentido de não pretender o absoluto. [...] É esse mesmo relativismo que a torna suspeita”. Nesse aspecto, um ponto importante a ser reetido é o uso do argumento da relativização da imagem para legitimar certas publicações, questão que deve ser avaliada através de um exercício crítico do olhar. Outro ponto interessante para se pensar é a questão das cores das imagens e
seus impactos. Sobre esse aspecto, Lima (1989, p. 82) ressalta que devemos questionar
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se a forma de leitura de uma fotograa muda quando essa foto é em cores. Sem dúvida que sim. [...] As cores primárias (vermelho, amarelo e azul) são perceptíveis antes das cores secundárias (laranja, violeta e verde) e quanto mais puras forem essas cores, mais elas se destacam em relação às não puras. Da mesma forma, os componentes de cor vermelha dominam em relação ao amarelo e ao azul. O vermelho do sangue de um acidente ou crime acentua indevidamente a questão emocional da mensagem.
Um interessante estudo feito por Luciano Guimarães (2000) mostra que, desde o surgimento da revista Veja, a cor mais utilizada em suas capas é o vermelho. Com a transformação da imagem impressa pelos meios de comunicação, passando da fotograa preto e branco para a colorida, as imagens violentas passaram a chamar ainda mais a atenção do público. Quanto mais chocante for a imagem, obviamente, mais intensa poderá ser a emoção que ela irá provocar. Com as transformações tecnológicas, as formas de produção, consumo e repercussão dessas imagens também se alteram.
Como aponta Vilém Flusser (2002, p. 57), “o receptor pode recorrer ao artigo do jornal que acompanha a fotograa para dar nome ao que está vendo. Mas, ao ler o artigo, está sob inuência do fascínio mágico da fotograa”. Um exemplo do impacto da fotograa é o caso de uma foto tirada pelo fotógrafo Severino Silva, em 1992, para o jornal O Povo, do Rio de Janeiro, analisada no trabalho de Denise Camargo (2005). A foto mostra um grupo de crianças jogando futebol, próximo a um corpo esquartejado. O fotógrafo optou por registrar a cena utilizando uma perspectiva de forma que a cabeça do cadáver parecia estar no lugar da bola de futebol das crianças.
Obviamente, criou-se uma polêmica em torno de tal foto, pois a primeira impressão, ao olhar a foto, era a de que as crianças estavam jogando com a cabeça humana. Após um olhar atento, era possível perceber a bola atrás. Em casos como esse, parecem ser comuns os debates que envolvem, de um lado, argumentos sobre o valor documental da imagem e, do outro lado, comentários sobre os impactos emocionais que fortes imagens podem provocar no público, sendo necessário lançar um olhar atento aos vários argumentos e discursos dos atores envolvidos no debate.
Tal exemplo também ilustra a acalorada discussão sobre os impactos das imagens e questões éticas das publicações. No ano de 2007, entrou em vigor o novo Código de Ética da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), que substituiu o antigo Código, de 1987. Em comparação com o anterior, o novo código traz sutis alterações em vários artigos: a nova versão do Artigo 2, do capítulo I, registra, agora, que a liberdade de imprensa “implica um compromisso com a responsabilidade social
inerente à prossão”. No artigo 11, a versão antiga dizia que “o jornalista deve evitar a divulgação de fatos de caráter mórbido e contrários aos valores humanos”. A versão
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atual arma que “o jornalista não pode divulgar informações [...] de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em cobertura de crimes e acidentes”. O artigo 12 informa que o jornalista deve “rejeitar alterações nas imagens captadas que deturpem a realidade, sempre informando ao público o eventual uso de recursos de fotomontagem, edição de imagem, reconstituição de áudio ou quaisquer outras manipulações”. Esses são alguns exemplos da atual preocupação da Comunicação com as questões de ordem ética. As questões sobre a ética na Comunicação também dividem os prossionais do meio, e, como ressalta Eugênio Bucci (2000, p. 11), “o jornalismo é conito, e quando não há conito, um alarme deve soar. Aliás, a ética só existe porque a Comunicação Social é lugar de conito”. O jornalista (p. 10) comenta, ainda, que o jornalismo como o conhecemos, isto é, o jornalismo como instituição da cidadania, e como as democracias procuram preservá-lo, é uma vitória da ética, que buscava o bem comum para todos, que almejava a emancipação que pretendia construir uma cidadania, que acreditava na verdade e nas leis justas.
Contudo, mesmo sendo o jornalismo, historicamente, uma vitória da ética, se um leitor se sentir agredido pelo conteúdo de determinadas imagens, poderá passar a ter uma série de questionamentos sobre a atuação dos veículos de comunicação.
Sobre a ética jornalística, Bucci (2000, p. 12) ressalta que esta “encarna valores que só fazem sentido se forem seguidos tanto por empregados da mídia como
por empregadores – e se tiverem como seus vigilantes os cidadãos do público”. É necessário considerar a especicidade dos casos isolados e evitar generalizar as conclusões ao tratar desse assunto. A vigilância do público só é possível na medida em que o mesmo acredita que suas ações e contestações farão, de fato, diferença e trarão resultados.
De acordo com Raquel Paiva (2002, p. 37), “com a responsabilidade de propiciar um sentimento de espaço público por onde circulem as falas e as contradições, ergue-se o jornalismo”. No entanto, através de um rápido olhar nas seções de cartas de leitores de jornais e revistas, é possível observar a grande incidência de mensagens que apenas elogiam as matérias. Há depoimentos que consideram as reportagens esclarecedoras, bem escritas e com belas imagens. É compreensível que se procure legitimar o conteúdo das matérias através da publicação seletiva de cartas positivas, mas também é preciso ver além do que está exposto e saber perceber o que as ausências são capazes de mostrar.
O fotógrafo se preocupa em mostrar os fatos, em fazer da sua imagem um documento a ser levado a sério. Nesse processo, muitas vezes não há tempo para
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maiores abstrações. Após a publicação de uma foto, uma nova pauta é recebida, e uma nova imagem deve ser feita. A dinâmica da velocidade na imprensa acaba por servir de justicativa para o não pensar a reação do público. E dessa forma os dias se passam, pauta após pauta, com prossionais despejando imagens às vezes impensadas sobre um público consumidor que pode querer dedicar tempo a essas imagens. O receptor pode se tornar consciente de tais imagens, nutrindo uma autoridade no assunto que o emissor nem sempre parece ter, por estar algumas vezes mais envolvido com a velocidade da informação do que com o conteúdo. Nesse caso, a posse da imagem pode passar do emissor distraído ao receptor mais atento, que dispõe de tempo para analisar e absorver a imagem. Durante todo o processo, a imagem interage mais com o receptor do que com o emissor, que está focado, naturalmente, com a pauta do dia seguinte. Sobre o conteúdo da mensagem, despertar a emoção no público parece signicar que, assim, a comunicação é humanista. É possível perceber isso pelo relato de Bucci (2000, p. 95) ao dizer que “banir a emoção da informação é banir a humanidade do jornalismo. E é banir o público. Os leitores, internautas, ouvintes e telespectadores reagem emocionalmente [...] aos acontecimentos”. Será que podemos armar que reagir ao acontecimento signica que a comunicação é humanista? Despertar emoção signica necessariamente que a comunicação é humanista, se o sentimento gerado for negativo e angustiante para seus consumidores? Para Dominique Wolton (2002a, p. 64), doutor em Sociologia, “a comunicação torna-se um setor explosivo se, ao lado da técnica e da economia, não se incluem orientações humanistas”. A comunicação, segundo Wolton, “é um grande desao cientíco e político do século XXI” (2002b, p. 1). Para o autor, através dela “joga-se em denitivo a relação de cada um de nós com o mundo” (p. 3). Wolton (2005, p. 12-13) indica, ainda, que “o essencial da comunicação é o respeito ao outro, diálogo entre as culturas, construção da tolerância. E é sobre isso que a comunicação é certamente responsável”. Dessa forma, Wolton (2003b, p. 42) salienta quatro pontos a serem considerados sobre as imagens: (1) “valorizar a importância do contexto, da história”; (2) “reconhecer a dimensão crítica do receptor”; (3) “jamais pensar a imagem ‘em si’” (independente do seu público-alvo, considerando-o como um “ser universal, sem identidade”) e (4) “não há imagem sem imaginário” (o imaginário do produtor da imagem pode ser diferente do receptor). Reetir sobre essas quatro dimensões é fundamental para aquele que deseja pesquisar sobre imagens publicadas na mídia. Ainda hoje, a capacidade crítica do receptor nem sempre parece ser valorizada como deveria e o público é frequentemente visto como um ser universal – é comum supor o que o público gosta ou deseja e usar tais argumentos para legitimar as formas como as notícias são produzidas.
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Na outra ponta da discussão está o fotógrafo com as suas questões e seus pontos de vista. Conforme Fernando de Tacca (2004, p. 7), “o fotógrafo sempre foi um indivíduo livre, um viajante, âneur , [...] que almejava não viver enclausurado em normas produtivas rígidas”. O fotógrafo, que antes vagava pelas ruas à procura da imagem ideal, agora se vê restrito às amarras das regras do campo das comunicações. Tacca (2004, p. 7) aponta que o olhar livre do fotógrafo percorre os labirintos da sociedade para nos informar visualmente aquilo que não está nos meios
tradicionais de comunicação de massa. Seriam então todas essas imagens que permearam nosso imaginário e nossa cultura visual
retiradas à força do cotidiano das pessoas e tornadas públicas por um ato antiético? O autor conclui que cabe ao fotógrafo não aceitar as “camisas de força ao
olhar”, lutando para continuar sendo um “indivíduo livre das amarras institucionais” (TACCA, 2004, p. 9), e que a lógica da ética não pode ser regida pela punição a priori e sim pelo uso que se faz dessas imagens. Veremos, adiante, um pouco mais sobre a percepção dos fotógrafos sobre a publicação de imagens na mídia impressa.
Relato de Pesquisa O relato a seguir se baseia na Dissertação de Mestrado intitulada “Imagens de morte da mídia impressa: o olhar do fotógrafo” (170 p.), sob orientação da Dra. Monique Augras, no Mestrado em Psicologia da Pós-Graduação de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), entre os anos de 2005 e 2006, e defendida em 2007. O tema da Dissertação manteve o foco em questões sobre imagens violentas (de mortes) na mídia impressa. Ao todo foram entrevistados dez fotógrafos prossionais, com o tempo de atuação que varia entre nove até 38 anos de prática, com passagem pelos principais jornais e revistas do Brasil. A fundamentação teórica da Dissertação foi baseada em autores da Sociologia francesa (Michel Maffesoli e Dominique Wolton) e em teorias sobre a fotograa e imagem (Sontag, Flusser, Barthes, Ivan Lima), e as entrevistas foram analisadas com base na Análise do Discurso.
As questões abordadas nas entrevistas se referiam à prática do fotógrafo no momento de produção das imagens, sua opinião sobre a prática de fotografar para diferentes tipos de jornais ou revistas, sobre manipulação e edição de imagens, sobre a visão que se tem do público, critérios, normas e restrições de publicação, localização das imagens, percepção sobre vendas e consumo do material. Alguns
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tópicos abordados nas entrevistas foram selecionados a seguir para exemplicar e reetir sobre as questões que este artigo aborda. Sobre a questão da produção da imagem, alguns fotógrafos entrevistados enfatizaram a responsabilidade do fotógrafo nesse processo e o desejo por uma
fotograa mais autoral, o que às vezes esbarra em limitações institucionais. A questão da distância entre o fato em si e a imagem produzida também é relatada nas entrevistas, sendo que a consciência dessa distância pode nem sempre estar presente nos consumidores das imagens. Alguns relatos apontam para a visão da imagem
enquanto representação e não como realidades explícitas, e que caberia ao leitor a autonomia de decidir o que deseja comprar ou não.
No que diz respeito ao conteúdo das imagens, os relatos apontam para a ênfase de que as imagens registradas não são mais impactantes do que a própria realidade
moderna e que a violência estaria presente no dia a dia, não havendo diferença se essa violência está nos fatos ou na capa de um jornal. De qualquer forma, a questão da banalização da violência e da anestesia diante das imagens foram pontos citados
por alguns prossionais entrevistados, juntamente com a percepção de que o público costuma não memorizar as imagens recebidas.
Sobre a possibilidade da alteração das imagens, a manipulação tende a ser vista como uma ferramenta que sempre existiu na fotograa, tendo em vista as antigas práticas de laboratório, sendo, porém, mais aceita quando se tratam de imagens publicitárias, pois vários entrevistados enfatizaram o caráter documental da fotograa no fotojornalismo. A questão que se coloca nesse ponto seria o argumento de alguns
consumidores sobre os seus direitos de verem uma imagem el ao acontecimento. Assim, alguns relatos apontam que, ao aceitar um trabalho, o fotógrafo precisaria estar consciente das questões que envolvem a prática. Além disso, relatos apontam que as questões que mobilizam os fotógrafos são, muitas vezes, detalhes prioritários sobre as técnicas utilizadas para a imagem a ser produzida, e que essa, sim, seria a função do fotógrafo. Há também a questão de se produzir o máximo possível de imagens durante o acontecimento, para depois escolher; portanto, o elemento temporal é preciso ser levado em consideração.
Os relatos sobre a concentração e o foco, no momento do registro, são frequentemente citados pelos entrevistados, assim como a percepção de que o público percebe as imagens como realidade. Os relatos apontam para a importância de a imagem ser contextualizada, sendo necessário haver uma razão para determinada fotograa estar publicada em algum veículo ou em determinada posição. Com relação aos reguladores da publicação das imagens, ou seja, o que ou quem ditaria ou deveria ditar essa veiculação, os entrevistados não pareceram chegar a um acordo. Alguns pensam que, na hora de decidir se uma imagem deve
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ser publicada ou não, o que deve contar é o bom-senso. Outros acreditam que, nesse momento, o respeito às pessoas deve ser a prioridade, assim como a reação do público. Sobre a aprovação do público, os relatos enfatizaram a importância de estarse atento à forma como esse reage diante da publicação de imagens violentas, através de contatos feitos com a redação do jornal ou revista. Vários fotógrafos entrevistados relataram preocupação em não expor imagens violentas. Outra preocupação relatada
foi no sentido de produzir fotos de qualidade, resgatando um aspecto artístico e valorizando o fotojornalismo perante o campo da Fotograa. Durante as entrevistas, apareceram, também, elementos importantes sobre a subjetividade e emotividade dos prossionais, alguns relataram sobre diculdades encontradas em situações nas quais se depararam com notícias tristes sobre pessoas conhecidas ou sobre o medo que sentiram em situações de risco na cobertura de certas matérias, enfatizando a dicotomia entre a procura da beleza nas situações e a possibilidade real de estar exposto a riscos. Em algumas situações relatadas, a preocupação em captar o instante parece se sobressair ao cuidado com a própria segurança: o fotógrafo deseja conseguir tal foto e ser reconhecido por isso, inclusive, pelo risco ao qual se submeteu. Lima (1989, p. 37) observa que “o fotógrafo também não pode ser um espectador passivo nem se envolver emocionalmente com o acontecimento”. Porém, a busca desse equilíbrio parece fácil em teoria, mas difícil de ser aplicada no momento em que cenas chocantes acontecem diante dos olhos do fotógrafo.
Sobre as imagens selecionadas para as capas de revistas, vários entrevistados lembraram-se de imagens de situações difíceis, mas que foram captadas de maneira bela e sensível por outros fotógrafos, enfatizando a importância da sensibilidade do prossional e também da identicação que certas imagens são capazes de produzir nas pessoas. O importante é que sejam consideradas as diferenças nos imaginários
dos consumidores e dos produtores das imagens. Nesse aspecto, Wolton (2003b, p. 42) sinaliza que “entre a intenção dos autores e a dos receptores não operam somente os diferentes sistemas de interpretação, de codicação e de seleção, mas igualmente todos os imaginários”.
Como vimos, a discussão sobre as imagens publicadas na mídia impressa abarca uma série de questões sobre variadas práticas. O processo precisa ser compreendido cada vez mais a partir de um olhar múlti e interdisciplinar, que possa compreender e respeitar os diversos campos de atuação, mas que também possa lançar um olhar crítico sobre os fenômenos contemporâneos que nos cercam. A proliferação das imagens abre margem a uma espécie de anestesia social na qual o
risco da banalização está intrínseco no processo. Cada vez mais, parece ser necessário despertar para essas questões, lançar um olhar atento às imagens, às subjetividades envolvidas nos processos e à própria necessidade de se consumirem tantas imagens.
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Diante da proliferação das imagens na modernidade e da importância atribuída às mesmas, nalizamos este artigo com o interessante prognóstico de Dominique Wolton (2002a, p. 60) sobre o futuro das imagens: Estamos numa sociedade na qual a imagem desempenha um papel muito mais importante do que há 50 anos. Mas o espetáculo não transforma tudo, não dirige a sociedade. [...] Haverá um retorno a outros valores, pois o indivíduo não pode viver somente na imagem.
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PARTE II: FOTOGRAFIA, HISTÓRIA E ARTE
CAPÍTULO 4 HISTÓRIA DA FOTOGRAFIA MODERNA BRASILEIRA: EXPERIMENTAÇÕES DE GERALDO DE BARROS E JOSÉ OITICICA FILHO (1950-1964) Carolina Martins Etcheverry 1
Muito já foi escrito sobre a história da fotograa oitocentista no Brasil.2 Entretanto, a história da fotograa moderna brasileira do século XX, ainda está, em grande parte, por ser escrita. Tem-se um determinado número de autores, entre eles Helouise Costa, 3 Tadeu Chiarelli4 e Rubens Fernandes Júnior,5 que trouxeram importantes contribuições para aqueles que desejam estudar este tema tão interessante.
É comum, principalmente devido ao livro A fotograa moderna no Brasil , de Helouise Costa e Renato Rodrigues da Silva, estabelecer como marco temporal a década de 1940 para o início desta prática fotográca. Segundo eles, foi no seio do Foto Cine Clube Bandeirante que a fotograa moderna nasceu. De acordo com os autores, A fotograa moderna no Brasil surgiu e se desenvolveu no Foto Cine Clube Bandeirante. Os fotógrafos bandeirantes concretizaram uma transformação que abalou a tradição
pictorialista e acadêmica do movimento amador. Embora haja notícias de especulações modernas esparsas fora do ambiente fotoclubista, a documentação até agora levantada aponta que essa prática só se realizou sistematicamente e como experiência
de grupo no Foto Cine Clube Bandeirante. 6
Pode-se perceber que o critério utilizado pelos autores para denir o que seria a fotograa moderna e onde ela se posicionaria dentro do panorama geral da fotograa está baseado na sua inserção em um meio legitimador – o Foto Cine Clube Bandeirante. As contribuições esparsas, ainda que relevantes, são colocadas em segundo plano por não se inserirem nesta categorização. Mestre em História, Teoria e Crítica da Arte e Doutoranda em História do PPGH/PUCRS. E-mail: [email protected]. Cf.: Kossoy (1998, 2002 a, 2002 b, 1983), Fabris (1998, 2007, 2008), Pedro Karp Vasquez (1985, 2002, 2003), Solange Ferraz de Lima (1997), Vânia Carneiro de Carvalho (1997), Zita Possamai (2005). 3 Cf. Helouise Costa e Renato Rodrigues da Silva (2004). 4 Cf. Tadeu Chiarelli (2003). 5 Cf. Rubens Fernandes Júnior (2006). 6 Helouise Costa e Renato Rodrigues da Silva (2004, p. 36). As especulações a que os autores referem-se dizem respeito às imagens de Jorge de Lima, Athos Bulcão e Fernando Lemos, os dois primeiros ligados à fotomontagem, em textos escritos por Paulo Herkenhoff, Annateresa Fabris, Fernando Cocchiarale e Ricardo Mendes. 1 2
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Também Rubens Fernandes Júnior contribui para o pensamento sobre a fotograa moderna brasileira, porém sob um ângulo um pouco diferente, pois não a relaciona diretamente ao advento do Foto Cine Clube Bandeirante, mas sim à conjuntura histórica do período. Segundo ele, Podemos armar, contudo, que a fotograa moderna brasileira começa no nal dos anos 40, após os primeiros investimentos de capitais estrangeiros no país e as primeiras iniciativas para alavancar o desenvolvimento industrial. 7
No livro Labirinto de identidades, do qual tiramos a citação anterior, o autor
procura sistematizar uma história da fotograa moderna e contemporânea, traçando um panorama da fotograa brasileira de 1946 a 1998. Para tanto, Rubens Fernandes Júnior estabelece três momentos principais: as décadas de 1940 e 1950 (com destaque para Geraldo de Barros, Thomaz Farkas, José Medeiros e Pierre Verger – documental e experimental juntos); as décadas de 1960 e 1970 (destacando Maureen Bisilliat, Walter Firmo e Luis Humberto – representação da identidade nacional a partir de manifestações populares); os fotógrafos da década de 1980, atuantes até hoje (Juca Martins, Nair Benedicto, Mario Cravo Neto, Antonio Saggese, Miguel Rio Branco, Araquém Alcântara, Pedro Vasquez, entre outros) e, por m, os fotógrafos da década de 1990, tais como Ed Viggiani, Rubens Mano, Elza Lima, Cássio Vasconcellos, Luiz Braga, Eustáquio Neves, entre outros. Interessante também para o estudo da fotograa moderna e contemporânea brasileira é o livro de Antonio Fatorelli, intitulado Fotograa e viagem.8 Em seu último capítulo, o autor aborda a fotograa de José Oiticica Filho, bem como a de Antonio Saggese, buscando, assim, traçar uma relação entre a prática moderna e a contemporânea. A historiadora da arte Annateresa Fabris9 igualmente contribuiu para a construção do campo historiográco da fotograa, ao escrever sobre temas que vão desde a fotograa do século XIX até as relações entre fotograa e artes visuais. Nosso objetivo é oferecer ao leitor um panorama geral a respeito do estudo
das fotograas de Geraldo de Barros e de José Oiticica Filho, como forma de pesquisar a história da fotograa moderna brasileira. Através destes fotógrafos, é possível compreender o sistema da fotograa no Brasil, bem como suas relações com as artes visuais, e perceber as principais contribuições destes autores para o campo da fotograa. Na primeira parte, fazemos um apanhado geral sobre os fotógrafos e suas imagens; a seguir, há um debate teórico sobre os conceitos usados para denir suas fotograas; na terceira parte, fazemos um levantamento historiográco acerca Rubens Fernandes Júnior (2003, p. 144). Antonio Fatorelli (2003). 9 Cf. Annateresa Fabris (1998, 2007, 2008). 7
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dos principais textos escritos sobre Geraldo de Barros e José Oiticica Filho; a quarta parte deste texto é dedicada à inserção das fotograas no contexto geral da História da Fotograa brasileira e, por m, a quinta parte dedica-se a analisar as imagens dos fotógrafos dentro do contexto nacional das Artes Visuais. Com isto buscamos abarcar as principais questões relacionadas às fotograas de Geraldo de Barros e de José Oiticica Filho, fornecendo um panorama de sua obra, procurando facilitar estudos posteriores.
Sobre Geraldo de Barros e José Oiticica Filho Geraldo de Barros e José Oiticica Filho foram dois importantes fotógrafos brasileiros, que atuaram entre o nal da década de 1940 e a década de 1960. Em comum, compartilham o apreço pela experimentação na fotograa, a participação no movimento fotoclubista e no movimento concretista brasileiro. Além disso, ambos tinham na fotograa uma paixão, mas suas atividades prossionais principais giravam em torno de outros assuntos. Geraldo de Barros era bancário, funcionário do Banco do Brasil, e José Oiticica Filho era professor de entomologia. Barros iniciou na fotograa no nal da década de 1940. Artista plástico, gravador, designer, além de fotógrafo e bancário, Barros usava a fotograa como modo de expressar suas ideias plásticas, subvertendo, muitas vezes, o uso “comum” feito pelos demais fotógrafos. Utilizava diversas técnicas experimentais nos seus trabalhos fotográcos. Fazia uso de sobreposições de negativos e intervenções com ponta-seca em nanquim na película. Com isso ele conseguia quebrar com a ideia de mimese do real. Suas imagens apontam para um profundo questionamento da natureza fotográca, bem como expandem o campo da fotograa tradicional. Em 1950, Barros montou a exposição Fotoforma, no Masp. Nela havia um conjunto de imagens elaboradas, aproximadamente entre 1948 e 1950, dentre as quais guravam fotograas geométricas que se alinham à arte concreta e desenhos livres sobre o suporte fotográco. Todos estão dentro da ideia de campo expandido da fotograa, ao mostrarem experimentações de diversas ordens. Suas fotograas abstratas, como veremos, alinham-se aos ideais da arte concreta, apoiadas em noções matemáticas geométricas.
José Oiticica Filho teve uma trajetória um pouco diferente de Barros. Ele foi entomologista no Museu Nacional desde 1942, onde fotografava insetos. Foi a partir desta necessidade de documentar seu estudo que surgiu o interesse pela fotograa. Segundo Hélio Oiticica, “ao aperfeiçoar-se na microfotograa de Lepidoptera (e outras ordens de insetos também), foi-lhe, aos poucos, nascendo o sentido da fotograa como uma expressão de arte”.10 10
Oiticica (1983, p. 7).
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Oiticica Filho passou, então, a pesquisar no campo da fotograa. Produziu vários artigos sobre a prática fotográca, publicados em jornais e boletins fotográcos. Sua produção fotográca foi dividida por ele próprio em várias categorias, que dão título às imagens: forma, ouropretense, abstração, derivação e recriação. Com títulos diversos, estão as fotograas da sua fase pictorialista. Segundo Paulo Herkenhoff, em texto escrito para o catálogo da exposição do fotógrafo em 1983, ele passou por quatro fases em sua trajetória artística: Há quatro fotógrafos em José Oiticica Filho: o utilitário, o fotoclubista, o abstrato e o construtivo. Por vezes, algumas dessas linhas se identicaram ou tiveram um desenvolvimento simultâneo e paralelo. No entanto, o fotógrafo construtivo seria um radical que negaria a validade estética dos demais.11
Este fotógrafo foi bastante fecundo, investindo nas experiências fotográcas de expansão do campo. Para ele, como ca bastante claro em entrevista intitulada “Fotograa se faz no laboratório”, concedida a Ferreira Gullar em 1958, a parte mais importante do processo fotográco se dá no laboratório: FG – Pela nossa conversa, concluo que para você a máquina fotográca mesma tem um papel relativo no que chama de fotograa. OF – Para mim a câmera fotográca, como os demais meios técnicos que entram no processo fotográco, tem o mesmo papel que o pincel, a tinta e a tela para o pintor. O que interessa é o resultado.
FG – Estou de acordo. OF – E o papel da máquina fotográca ainda é bem menos importante do que vem depois. Se o fotógrafo bate a chapa, revela e manda copiar, ele entrega a fase mais importante do trabalho de criação fotográca. Quanta coisa se pode fazer ao copiar uma foto. É nessa hora quando se graduam os cinzas, as luzes, o corte, que a fotograa a bem dizer nasce. Mas os fotógrafos neorrealistas batem as fotos e mandam copiar. É até um crime uma pessoa assinar como sua uma foto que outro
copiou. Mas esses equívocos estão hoje em moda. Acabo de comprar o último número da revista de arte “XXème Siècle”, dedicada ao grasmo, onde aparece uma reportagem sobre o fotógrafo Brassai, que fotografou garatujas feitas por crianças nas paredes de Paris. As garatujas são às vezes bonitas, mas o fotógrafo apenas as fotografou, isto é, fez uma reportagem 11
Herkenhoff (1983, p. 11).
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sobre as garatujas. No entanto é apresentado pela revista como grande artista.12
Paulo Herkenhoff, em conclusão ao texto do catálogo, escreveu a respeito de José Oiticica Filho que “sua produção, precedida das Fotoformas de Geraldo de Barros, representa o momento em que a fotograa esteve mais sintonizada e integrada a um projeto geral da cultura no país”.13 O projeto geral de cultura no país, segundo Gershmann,14 passava pela criação dos museus de arte (Masp e MAM) e pela arte construtiva. Estes estariam de acordo com o ideal desenvolvimentista, que objetivava a atualização do país em todos os setores.
Debate teórico-conceitual sobre as imagens Neste ponto é preciso fazer uma digressão para entendermos de que modo as
fotograas de Geraldo de Barros e de José Oiticica Filho podem ser entendidas em termos conceituais, visto que os vários autores que pensaram a respeito de tais imagens (e não apenas as destes artistas) as denominam de modos bastante diferentes. É preciso denir estes modos, a m de melhor entender as implicações de cada um deles. As fotograas de Geraldo de Barros e José Oiticica Filho podem ser inseridas na ideia de “campo expandido” da fotograa. Segundo Rubens Fernandes Júnior, criador da ideia, A fotograa expandida existe graças ao arrojo dos artistas mais inquietos, que desde as vanguardas históricas, deram início a esse percurso de superação dos paradigmas fortemente impostos pelos
fabricantes de equipamentos e materiais, para, aos poucos, fazer surgir exuberante uma outra fotograa, que não só questionava os padrões impostos pelos sistemas de produção fotográcos, como também transgredia a gramática do fazer fotográco. 15
Rubens Fernandes Júnior, inuenciado por Flusser, apresenta uma ideia geral de transgressão do fazer fotográco tal como foi concebido desde o surgimento do aparelho fotográco, utilizado amplamente pelos fotógrafos documentais, como Atget, Bresson ou Salgado. Assim, as experimentações feitas por Geraldo de Barros e José Oiticica Filho estariam incluídas nesta concepção, visto que elas alargam o campo de atuação da fotograa, aproximando-o do campo artístico, por exemplo. Mas as práticas fotográcas constituintes deste “campo Oiticica: “fotograa se faz no laboratório”, Jornal do Brasil , 24/08/1958, suplemento dominical de artes plásticas. Herkenhoff (1984, p. 19). 14 Gershmann (1992). 15 Rubens Fernandes Júnior (2006, p. 11). 12 13
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expandido”, principalmente na contemporaneidade, são muitas, o que torna este um termo de aplicação operacional genérica.
Em catálogo publicado em 1936, pelo Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, Alfred Barr,16 curador da exposição Cubism and abstract art , cunha o termo “fotograa abstrata”. Usando como exemplo os artistas Man Ray (com suas rayograas), Moholy-Nagy e Bruguiere, Barr descreve em poucas linhas o que ele acredita ser a fotograa abstrata. Assim, no texto do catálogo, Barr explica: Man Ray foi também um pioneiro na fotograa abstrata. Ele foi provavelmente o primeiro a fazer uso da técnica rayográca para fazer composições abstratas. Ao fazer uma rayograa, nenhuma câmera é usada; objetos são colocados diretamente sobre o papel sensível que então é revelado. Com objetos como um matador de moscas, um ovo de cerzir, anéis de metal e um cacho de cabelo, Man Ray obteve composições de grande sutileza (g. 186, 187). Elas foram aclamadas pelos companheiros dadaístas de Man Ray pela sua técnica “antiartística” e aparentemente casual, mas muitas delas são, de fato, trabalhos de arte completos diretamente relacionados com a pintura abstrata e não ultrapassados no seu medium. O húngaro Moholy-Nagy, antigo professor da Bauhaus de Dessau, foi, até sua recente mudança para Londres, um dos mais inventivos e originais mestres do fotograma (g. 188), outro nome do rayograma. Francis Bruguiere, um americano morando em Londres, usa a câmera na feitura de fotograas abstratas de luz caindo em papel branco dobrado ou amassado.17
Nota-se que o autor, nestas poucas linhas, tenta organizar o conhecimento a respeito destas fotograas que fogem aos padrões normais do que seria uma fotograa – cópia do real, mimética por natureza. Utiliza-se do termo usado nas artes que estão, neste momento, recém se consolidando, e o aplica para o caso da fotograa feita por artistas. Não por acaso, acreditamos, Barr deixa alguns fotógrafos de fora, como Alvin Langdon Coburn, que neste momento também fazia experimentações no campo expandido da fotograa. Se optasse por incluir Coburn, que atua apenas como fotógrafo, talvez tivesse que rever a ligação estabelecida com a pintura abstrata. Coburn, segundo Helmut Gernshein,18 foi o primeiro a fazer fotograas abstratas. Este fotógrafo acreditava que as possibilidades da câmera fotográca ainda não haviam sido exploradas completamente, e, por isso, iniciou uma série de Alfred Barr (1974). Ibidem, p. 170, tradução nossa. 18 Helmut Gernsheim (1990). 16 17
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experimentos que culminariam na série Vorticism (na qual ele se utiliza de prismas
para criar a imagem). Também foi o responsável pela organização de uma exposição de fotograa abstrata, na qual buscava a “apreciação do extraordinário”. Entretanto, no caso de Gernsheim – conhecido fotógrafo e historiador da fotograa – o termo “fotograa abstrata” não tem um uso crítico, apenas operatório. Na esteira desta terminologia, Paulo Herkenhoff, em 1983, escreve para o catálogo da exposição de fotograas de José Oiticica Filho aquilo que entende por fotograa abstrata. Segundo o autor, É preciso demarcar o signicado do termo fotograa abstrata, com o qual se pretende operar este texto. Inicialmente, opõese ao gurativo: é a emergência de imagens fotográcas não identicáveis com objetos naturais e articiais, é um não verismo. (...) imagens não gurativas (informais ou geométricas), produzidas conforme os processos tradicionais (registro e cópia) e os cânones codicados para a arte fotográca – sem exclusão de alguns de menor uso, como o fotograma, a solarização, a fotomontagem, já então consagrados na história da arte (introduzidos por Man Ray, Moholy-Nagy, Rodchenko, Grosz, Hearteld, Haussman, El Lissitzky, Ernst, Dali, e outros). 19
Assim, Herkenhoff acompanha Barr em sua terminologia e exemplo de artistas abstratos, ainda que sua explicação seja um pouco mais complexa. A fotograa abstrata é colocada em oposição à fotograa gurativa, reproduzindo uma dicotomia oriunda das artes plásticas. É também colocada em condição de suspeita, já que é denida como uma imagem fotográca não identicável com objetos naturais e articiais. Deixa-se de lado outras possibilidades de abordagem, como o caráter narrativo ou descritivo da fotograa, que é inexistente em Barros e Oiticica. Nesse caso, talvez fosse interessante considerar termos como fotograa não narrativa ou fotograa não denotativa, como alternativas para essa crise de conceituação de tais imagens.
Filiberto Menna,20 em texto de 1975, intitulado La opción analítica en el arte moderno, dedica-se ao que chama de fotograa analítica, bem como elabora o termo antifotograa. Segundo este autor, a prática analítica da arte assumiu a tarefa de desmascarar a pretensão da fotograa de gurar como equivalente da visão natural. Esta concepção revela a natureza convencional, histórico-cultural que permeou as ideias sobre a fotograa desde o seu início. Entretanto, Menna, em sua análise, desarticula este postulado, ao considerar especialmente os fotogramas, dentro do que Moholy-Nagy armou sobre estes: 19 20
Paulo Herkenhoff (1983, p. 13). Filiberto Menna (1977, p. 50-52, tradução nossa).
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A concreção do fenômeno da luz é peculiar no processo fotográco e a nenhuma outra invenção técnica. A fotograa sem câmera (a construção de fotogramas) se embasa nisto. O fotograma é uma realização de tensão espacial em branco preto-cinza (...). Embora careça de conteúdo representativo, o fotograma é capaz de evocar uma experiência ótica imediata, baseada na nossa organização visual psicobiológica.21
Assim, o fotograma traduz o objeto em motivo luminoso não gurativo, criando uma relação ótica elementar, parecida com a pintura construtivista. O autor não menciona o termo fotograa abstrata, mas elabora uma série de técnicas de détournement , tais como fotomontagem, solarização, negativo, uso de objetivas especiais e lentes deformadoras, que deniriam a elaboração de “antifotograas”: Em denitivo, se trata de verdadeiras “antifotograas”, que pulverizam as expectativas do espectador, destroem a conança nas qualidades reprodutivas do medio, em suma, provocam uma espécie de “ginástica mental” que desloca a atenção do referente ao signo linguístico. 22
Estas antifotograas colocam em discussão o que Menna chama de “iconismo fotográco”, que vem a ser a importância da representação gurativa na fotograa. As fotograas nas quais não há elementos denotativos, tais como os fotogramas, as múltiplas exposições, e todas as outras imagens produzidas sem que o referente seja identicado pelo espectador, podem ser enquadradas como antifotograas, pois criam um sentimento de suspeita, contribuindo para a complexidade da imagem. Em 1977, Rosalind Krauss escreveu o texto Photography and abstraction, no qual desenvolveu uma análise bastante losóca e semiótica a respeito da possível existência de fotograas abstratas, contrapondo-se à concepção de Barr. A autora inicia o artigo analisando uma fotograa de um exercício sobre luz e superfície, realizado na Escola da Bauhaus, que consistia em dobrar uma folha de papel formando pregas ritmadas, para, ao receber uma forte luz rasante, se tornar um jogo de puro desenho, formas visuais puras. Este jogo abstrato de relações e inversões de gura e fundo para nós é uma fotograa. Krauss arma que Esta fotograa não é a demonstração das condições abstratas da visão. Ela o é de algo, é a marca documental daquela coisa que foi registrada fotoquimicamente na película, a imagem de uma folha de papel recortada e dobrada. Não pode livrar-se desta condição. Lissitzky, Moholy-Nagy, Man Ray, Brugière, Berenice 21 22
László Moholy-Nagy apud Filiberto Menna (1977, p. 50, tradução nossa). Filiberto Menna (1977, p. 51, tradução nossa).
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Abbott, Imogen Cunningham... nenhum deles a defendeu, ainda que tenham experimentado com a “fotograa abstrata”. 23
Assim, o conceito de fotograa abstrata começa a ser questionado, trazendo um problema para o desenvolvimento da pesquisa sobre Geraldo de Barros e José Oiticica Filho. Percebe-se que foi um termo operativo cunhado por críticos, e não pelos próprios artistas e fotógrafos. As fotograas feitas por Geraldo de Barros a partir de cartões perfurados não seriam, dentro da lógica de Krauss, uma abstração. Sabemos que aqueles são cartões perfurados, mas o modo como o autor os fotografa abre uma dúvida, ou uma suspeita, a respeito de sua identicação. É por esse motivo que o termo, também de certo modo genérico, fotograa sem referente claramente identicável , parece, em alguns casos, mais apropriado. Rosalind Krauss vai além em sua análise, e, ao chegar no punctum barthesiano, a autora arma que “esta ferida inigida pela fotograa existe em função da maneira como a foto entrega o real de seus conteúdos, marcando-lhes não apenas com o ser – “isto é” –, mas de forma irrevogável com o tempo: “isto foi”.24 A autora coloca, assim, a questão da relação da fotograa com o passado e com o acontecimento. O que, segundo ela, ocorre no caso de fotograas supostamente abstratas – para isso ela utiliza fotograas de James Welling – é uma queda na “incerteza” e no “silêncio”. “Vemos o referente, mas não o reconhecemos. Perdemos o encontro.” 25 O trabalho de Welling é baseado em um diário escrito por sua tataravó em 1840. As fotograas do diário criaram um marco para o que o artista buscava: “uma fotograa que não entregara o presente (fotograa de rua, do cotidiano, do instante decisivo), mas que, ao apresentar uma distorção temporal, colocou a ele e aos espectadores em contato com um passado que se encontrou demasiado tarde”. 26 Por isso a perda do encontro.
Torna-se tarde para reconhecer o objeto fotografado. Krauss, para explicar esta ideia, apropria-se do termo tuché, usado por Lacan e transformado por Barthes no punctum. Esta palavra indica “a realidade perdida, a realidade que já não pode produzir a si mesma a não ser repetindo-se incessantemente em um despertar jamais alcançado”.27 Assim também o punctum faz com que o real seja tanto aquilo que eu perdi como o que estarei obrigado a reproduzir a partir de então por repetição. É por isso que Welling refotografa os lugares por onde sua tataravó passou, sobrepondoas às páginas do diário escrito por ela, obtendo assim uma imagem obscura, não claramente identicável, “abstrata”. Rosalind Krauss (2004, p. 231, tradução nossa). Ibidem, p. 233. 25 Ibidem, p. 235. 26 Rosalind Krauss, loc. cit. 27 Rosalind Krauss, loc. cit. 23 24
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Por m, em texto de 1984, intitulado A ilusão especular , Arlindo Machado mostra-se negativo em relação à própria possibilidade de existência de fotograa abstrata, devido, justamente, às suas características formativas. Segundo ele: É curioso constatar que as fotograas ditas “artísticas” sejam, no geral, bem pouco severas em relação à ilusão especular e permaneçam, apesar de tudo, gurativas, por mais que tentem disfarçar essa condição com arranjos harmônicos e composições “musicais”. (...) Daí o equívoco fundamental de José Oiticica Filho ao supor que poderia, numa certa fase de sua obra, construir uma fotograa “abstrata”, debruçandose sobre motivos informais, como traçados de tinta sobre vidro rugoso. O momento de abstração nas fotos de Oiticica
é anterior à fotograa propriamente dita: por essa razão, tais fotos “abstratas” não são nem um pouco menos gurativas que qualquer pimentão hiper-realista de Edward Weston. É que, em quaisquer circunstâncias, a câmera e a película gelatinosa foram concebidas para possibilitar a emergência da gura, sem deixar brechas para qualquer outra exploração que não o ilusionismo de “real”.28
Nota-se que o que parece ser fácil – encontrar um termo justo para referir-se a determinadas fotograas – mostra-se, em realidade, uma reexão bastante profícua. Percebe-se que o termo “fotograa abstrata” não explica por si só as imagens fotográcas de Barros, Oiticica Filho e muitos outros. Ela apenas refere-se ao fato de que o objeto da fotograa não se faz claro aos nossos olhos, mostra-se à nós de maneira “abstrata”. Mas se a fotograa é o registro de luz emanada por objetos reais em uma superfície fotossensível, é possível pensar em abstração, em oposição à existência de uma gura? Não seria mais apropriado buscar outros modos de referir-se a determinadas imagens, sem engessá-las em uma terminologia demasiado genérica e, por vezes, inapropriada? Em alguns casos, fotograa não narrativa basta, em outros é preciso ir além, identicando-a como fotograa construtiva, de composição geométrica, com referente não identicável, não denotativa – o que melhor se aplicar à fotograa que se tem à frente. O debate dos críticos: uma revisão historiográca Sobre Geraldo de Barros e José Oiticica Filho, foram escritos alguns textos, de pesquisadores e críticos de renome, que servem como baliza para uma primeira aproximação à pesquisa sobre tais personagens. Ao revisar tais textos, pretendemos rearmar a importância que tiveram na divulgação e na valorização do trabalho destes fotógrafos no contexto da fotograa nacional. Assim, trataremos de textos de Pietro 28
Arlindo Machado (1984, p. 155).
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Maria Bardi, Radhá Abramo, Annateresa Fabris, Maria Teresa Bandeira de Mello, Antonio Fatorelli, Helouise Costa, Paulo Herkenhoff, Heloísa Espada Lima e Paulo Henrique Camargo Batista. Entre artigos, ensaios, capítulos de livros e dissertações de mestrado, pretendemos mostrar como estes fotógrafos foram construídos enquanto objeto de estudos pelos mais diversos autores, preocupados em sistematizar o estudo a respeito das obras de Geraldo de Barros e José Oiticica Filho. Procurando manter uma ordem cronológica na abordagem dos textos, de modo que que visível a tentativa de reconstrução crítica da historiograa a respeito destes fotógrafos, parece-nos conveniente iniciar este percurso pensando sobre dois pequenos ensaios, escritos por Pietro Maria Bardi, em 1950, para o catálogo da exposição de Geraldo de Barros, Fotoformas, e por Radhá Abramo, em 1977, para o catálogo da exposição Geraldo de Barros: 12 anos de pintura 1964 a 1976 , realizada no MAM-SP, em 1977.29 Bardi inicia este ensaio para o catálogo da exposição Fotoformas armando que Barros tinha a composição como um dever, transformando segmentos lineares em harmonias formais agradáveis. Para o autor, o fotógrafo utiliza a fotograa como meio de fugir dos verismos da pintura, pois, ainda que a fotograa seja um meio verista por excelência, ela também “se presta a transformar a sensação numa expressão sem “artisticidade”, pura derivação de sombras e por isso mais ligada à abstração”. 30 Bardi encerra a apresentação às fotograas de Geraldo de Barros anunciando sua viagem de estudos a Paris, da qual ele voltaria, certamente, muito enriquecido. O texto de Radhá Abramo busca apresentar o artista e sua criação, por ocasião de sua exposição de pinturas. A autora não aborda tanto as fotograas quanto suas pinturas, que são caracterizadas por ela como “ambíguas”. 31 Entretanto, ao traçar a biograa de Barros, Abramo acaba por pincelar sua pesquisa fotográca, elencando seu papel na organização do Laboratório de Fotograa do Masp, em 1949, e sua participação em inúmeras exposições fotográcas, nas quais é inclusive fotógrafo premiado. Paulo Herkenhoff 32 escreveu três textos importantes para o tema em estudo.
O primeiro deles, de 1983, é sobre José Oiticica Filho, e os dois últimos, de 1987 e 1989, são sobre Geraldo de Barros. O texto A trajetória: da fotograa acadêmica ao projeto construtivo busca traçar um panorama da obra de José Oiticica Filho, enumerando as quatro fases pelas quais o fotógrafo teria passado: o utilitário, o fotoclubista, o abstrato e o construtivo. Segundo Herkenhoff, A obra de José Oiticica Filho representa uma experiência radical de ruptura na história da fotograa brasileira. O seu Estes dois ensaios encontram-se no livro de Geraldo de Barros (2006, p. 137-138). Pietro Maria Bardi apud Geraldo de Barros (2006, p. 137). 31 Radhá Abramo apud Barros (2006, p. 138). 32 Paulo Herkenhoff é um dos principais críticos de arte e curadores do Brasil. 29 30
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percurso, desde a participação no movimento fotoclubístico até o engajamento com o projeto construtivo, testemunha um equilíbrio entre o rigor técnico e uma inquietação intelectual questionadora.33
Desse modo, Herkenhoff estabelece categorias e relações para as diferentes imagens produzidas por Oiticica Filho, buscando também precedentes, paralelos, contatos e, por m, a atualidade do fotógrafo no momento da arte brasileira contemporânea. Este é, com certeza, um dos mais importantes e completos textos produzidos sobre José Oiticica Filho até o momento. E já se passam mais de 20 anos. No texto A imagem do processo, de 1987, Paulo Herkenhoff contextualiza Geraldo de Barros como fotógrafo que busca a ruptura com a ordem vigente. Segundo ele, É como fotógrafo que Geraldo de Barros fará sua inserção radical no processo cultural brasileiro, no momento da criação dos museus no Rio de Janeiro e São Paulo, da Bienal e sobretudo das discussões sobre o abstracionismo e a formulação do processo construtivo.34
O autor continua sua análise abordando o que chama de “projeto atualizador
do fotoclubismo”, ao qual Barros propõe uma ruptura, visto que suas fotograas operam no campo da percepção visual como construção abstrata, bem ao contrário dos postulados pictorialistas vigentes até então no ambiente fotoclubista. Geraldo de
Barros, assim como José Oiticica Filho, vive um impasse entre a busca do abstrato e a permanência da guração, sendo que a “abstração”, para ele, é uma oposição à fotograa realista.35 Segundo Herkenhoff, a importância da obra de Barros está na construção do signo e na fundação de uma outra fotograa. Ele estabeleceu uma nova lógica do olhar, com a ruptura das antigas certezas abalizadas pela fotograa. 36 O autor encerra o artigo armando que Geraldo de Barros, assim como José Oiticica Filho, a quem ele nunca conheceu, é desarticulador da fotograa, corrompendo os cânones fotoclubistas, que eram, até então, as únicas alternativas para uma fotograa artística. Além de desarticulador de processos, imagens e mecanismos lógicos da fotograa, Barros também desarticula o tempo da imagem, ao não associá-la a um momento decisivo, mas a um processo construtivo.37 Paulo Herkenhoff (1983, p. 10). Paulo Herkenhoff apud Barros (2006, p. 147). Este texto foi publicado originalmente no jornal Folha de São Paulo, em 23 de outubro de 1987. 35 Ibidem, p. 148. 36 Ibidem, p. 149. 37 Ibidem, p. 150. 33 34
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No texto Geraldo de Barros: a renovação e a constância , de 1989, Herkenhoff
segue armando a importância do fotógrafo enquanto agente da dessacralização da fotograa no Brasil da década de 1950. Destaque deste artigo, e diferencial em relação ao anterior, é a ênfase do autor no processo de desenvolvimentismo que se instaura no Brasil nesta época. Depois de contextualizar amplamente o ambiente favorável à cultura nos anos 1950, passando, desde o próprio desenvolvimentismo até a poesia e a crítica de arte, Herkenhoff coloca Barros dentro do movimento concretista paulista, do qual o fotógrafo faz parte com suas pinturas e como um dos signatários do Manifesto Ruptura. Assim, o autor arma que As linguagens construtivas na América Latina, orescentes desde a década de 1940 até os anos 1960, na Argentina, Uruguai, Brasil, Colômbia e Venezuela, estão em relação com os planos de uma cultura organizada nos sonhos de modernização e desenvolvimento.38
Na mesma linha, o autor encerra o artigo armando que, nos anos 50, a arte concreta podia ser relacionada com a utopia do desenvolvimento nacional.
Do mesmo modo, as fotograas de Geraldo de Barros podem ser entendidas como pertencentes a este ideal, em razão do rigor compositivo. Todos os textos de Paulo Herkenhoff têm como mérito o fato de terem realizado um apanhado crítico da obra destes fotógrafos, alçando-os a um outro patamar de reconhecimento pelo público e pelos estudiosos acadêmicos.
Merece destaque também o livro A fotograa moderna no Brasil , publicado em 1995, com reedição em 2004, escrito por Helouise Costa e Renato Rodrigues da Silva. Este livro pioneiro tem a importância de trazer à tona a formação de uma fotograa moderna brasileira, gestada no Foto Cine Clube Bandeirante (FCCB), em São Paulo. No que tange Geraldo de Barros e José Oiticica Filho, os autores os colocam como a expressão máxima da fotograa moderna no Brasil. Geraldo de Barros ganha destaque por ser o primeiro fotógrafo moderno, membro do FCCB a intervir no processo clássico de produção da fotograa – fotografar, revelar, ampliar –, “dando corpo a um profundo questionamento dos limites da linguagem fotográca”.39 Esta liberdade a que Barros se permitia ao criar suas imagens o manteve ao largo das atividades do fotoclube, que, na época, não se encontrava aberto aos seus experimentos fotográcos. Entretanto, o fotógrafo, como já mencionado anteriormente, teve profunda inuência nas relações entre o FCCB e a Bienal de São Paulo. Paulo Herkenhoff apud Geraldo de Barros (2006, p. 157). Este texto foi publicado originalmente em 1989, para o catálogo da exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. 39 Helouise Costa e Renato Rodrigues da Silva (2004, p. 43). 38
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Os autores destacam José Oiticica Filho como tendo grande importância no ambiente fotoclubista carioca, sendo um dos principais divulgadores da sensibilidade moderna. E acrescentam: No entanto, enquanto o bandeirante lançava-se à experiência renovadora com a atuação dos pioneiros, José Oiticica Filho continuava preso ao academismo, sendo um defensor ardoroso dessa estética.40 Somente a partir da segunda metade da década de 1950 ele implementou mudanças em sua produção, o que determinou o seu afastamento do fotoclubismo carioca e uma
maior aproximação do Foto Cine Clube Bandeirante, onde seu trabalho de características modernas pôde ser divulgado. 41
No FCCB, Oiticica Filho é visto como “um dos mais destacados mestres do abstracionismo fotográco com suas derivações e recriações”. 42 Com esta análise, Costa e Silva rearmam a importância do trabalho do fotógrafo, e mostram como este passou pelas diversas fases da fotograa, como apresentado por Herkenhoff. Na edição de 1995 do livro, os autores encerram a parte dedicada à Oiticica Filho situando-o não como pioneiro da fotograa moderna, mas como pertencente à fase de diluição desta experiência. Já na edição de 2004 há uma reformulação desta posição, como é possível perceber no seguinte excerto: Por m, é importante ressaltar que no contexto da fotograa brasileira a produção de caráter abstracionista de José Oiticica Filho constitui um segundo momento, cabendo situá-lo como precursor em relação ao ambiente carioca. De fato, ele foi um fotógrafo que atuou de modo mais sistemático na ampliação das
possibilidades dessa estética. Assim, o trabalho do artista deve ser localizado a partir de sua aguçada sensibilidade plástica, materializada em uma pesquisa de grande potencial reformulador
no universo mais amplo das artes plásticas no Brasil. 43
Com isto podemos perceber que houve, por parte dos autores, uma percepção de que José Oiticica Filho extrapola o ambiente fotoclubista, sendo considerado um artista que explora seu potencial poético através da fotograa, em consonância com o panorama das artes visuais brasileiras. Neste sentido José Oiticica Filho tem uma série de artigos publicados a respeito das principais técnicas pictorialistas
40
de fotografar.
Ibidem, p. 72. Ibidem, p. 73. 43 Ibidem, p. 75. Ver também a edição de 2005 da obra: Helouise Costa e Renato Rodrigues da Silva. A fotograa moderna no Brasil . Rio de Janeiro: Funarte/IPHAN/Editora UFRJ, 2005. 41 42
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O texto de Annateresa Fabris, A fotograa além da fotograa: José Oiticica Filho (1947-1995),44 dialoga, em termos de ideias, com o que Maria Teresa Bandeira de Mello45 escreve a respeito de suas fotograas em texto do mesmo ano. Ambas enfatizam o caráter pictorialista da obra de Oiticica Filho, que teria se mantido mesmo nas fases posteriores do fotógrafo. Para Fabris, “José Oiticica Filho arma-se aos olhos do público como mais um adepto do fotopictorialismo”. 46 Ainda segundo a autora, mesmo suas fotograas da fase utilitária não podem ser dissociadas de seu interesse pelo pictorialismo. Para Fabris, Se, de fato, luz e superfície são questões fundamentais para o Oiticica pós-pictorialista, o que não se pode deixar de levar em conta – e é isso o que o distancia da atitude dos fotógrafos evocados por Herkenhoff – é que sua visão de fotograa continua a ser informada pelos postulados da estética que ia abandonando.47
Os fotógrafos evocados por Herkenhoff são Moholy-Nagy e Rodchenko, que pretendiam, através da fotograa, atingir uma “nova visão”. A autora, neste caso, arma que os princípios norteadores de José Oiticica Filho ainda são os do pictorialismo. Segundo ela, “Oiticica supervaloriza o papel da técnica, detectando o nascimento da fotograa no trabalho de laboratório, ‘quanto se graduam os cinzas, as luzes, o corte’”.48 Fabris refere-se à célebre entrevista concedida pelo fotógrafo a Ferreira Gullar, em 1958, no qual ele arma a importância do trabalho em laboratório na criação das fotograas.49 Maria Teresa Bandeira de Mello, na mesma linha de Annateresa Fabris, arma o seguinte a respeito das obras de Oiticica Filho: “É curioso observar que, mesmo depois de se libertar dos cânones fotoclubistas e de se entregar a experimentações modernizadoras, ainda podem ser encontradas em suas obras semelhanças com a concepção de fotograa pictorialista”. 50 A seguir, Fabris analisa duas fotograas que, para ela, são o marco da transição de Oiticica, do pictorialismo para a abstração: Triângulos semelhantes e Um que passa, ambas de 1953. Segundo ela, Em duas composições de 1953, Triângulos semelhantes e Um que passa, as preocupações geometrizantes do fotógrafo emergem de imediato, enfatizadas pelo contraponto denido pela presença Annateresa Fabris (1998). Maria Teresa Bandeira de Mello (1998). 46 Annateresa Fabris (1998, p. 69). 47 Ibidem, p. 71. 48 Ibidem, p. 74. 49 Cf. Oiticica: “fotograa se faz no laboratório”, Jornal do Brasil , 24/08/1958, suplemento dominical de artes plásticas. 50 Maria Teresa Bandeira de Mello (1998, p. 120). 44 45
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da gura humana. A luz adquire uma conotação construtora ao contrário do efeito dramático que desempenhava no momento
pictorialista. (...) O mesmo contraste entre abstração e presença do referente preside também Composição óbvia (1954-55), na qual Oiticica aprofunda mais a procura do campo bidimensional
e a denição da fotograa em termos requintadamente tonais. 51
Logo a seguir, apoiando-se em excertos da entrevista de Oiticica Filho de 1958, a autora conclui que o afastamento cada vez maior do referente é uma estratégia do fotógrafo para produzir obras de arte, visto que ele acreditava mais no resultado que se consegue obter no laboratório do que na produção da fotograa em si. Seguindo seu percurso de análise, a autora chega às Derivações e Recriações, as quais “exibem, por vezes, parentesco com a abstração informal dos anos 50”. 52 Analisando a série seguinte de suas obras, as Formas, Fabris arma que “ao mesmo tempo em que está engajado na exploração da abstração informal, na estruturação de campos matéricos, de relações sutilmente tensionadas, Oiticica busca também uma linguagem de caráter construtivo que se resolve, de início, na série Formas”.53 Annateresa Fabris, por m, enfatiza que José Oiticica Filho estava preocupado em pesquisar as “possibilidades da fotograa para além da fotograa”, com isso querendo dizer que todas as manipulações por ele feitas nas imagens tinham como objetivo colocar tais imagens mais próximas da arte do que da própria fotograa, negando o especíco fotográco. O cerne da análise da autora pode ser resumido na seguinte citação: O que se detecta no Oiticica construtivo é, no fundo, um paradoxo. A constituição de formas novas, a saída do código acadêmico que regia a experiência fotoclubista brasileira estruturam-se através da reedição da ideologia que guiava o fotopictorialismo, disposto a parecer tudo menos fotograa. Ao dizermos isso, não queremos negar a contribuição de Oiticica à constituição de uma linguagem plástica renovada. Se ela é fundamental, é impossível, no entanto, não perceber que Oiticica foge, as mais das vezes, da questão do especíco fotográco para postular uma fotograa que negue a fotograa, sem parecer dar-se conta de que mesmo o recurso ao simulacro não o livrava do enfrentamento com o instante. Por mais que seus modelos
fossem previamente elaborados, por mais que a imagem nal fosse o produto dos tempos longos do laboratório, por mais que o negativo possuísse potencialidades próprias, existia a Annateresa Fabris (1998, p. 75). Ibidem, p. 76. 53 Fabris, op. cit. 51 52
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intermediação do aparelho e, portanto, o momento do disparo no qual o objeto se apresenta em sua conotação estrutural. Ao tentar
negar isso, Oiticica reatualiza a ideologia do fotopictorialismo, não importa se em sentido abstrato e concreto.54
É, portanto, de suma importância a análise exaustiva realizada por Fabris, no intuito de situar a obra de José Oiticica Filho dentro dos parâmetros tanto da história da fotograa quanto da história da arte. Análise atenta, crítica, que vem a complementar, por vezes deles discordando, os textos de Paulo Herkenhoff e Arlindo Machado. Antonio Fatorelli, no texto José Oiticica Filho e o avatar da fotograa brasileira,55 é mais positivo em relação ao trânsito de estilos do fotógrafo. Para ele, este movimento é decorrente de um espírito investigativo, que buscava diferentes soluções plásticas para determinados problemas. A análise de Fatorelli busca inserir a obra fotográca de Oiticica Filho dentro do panorama maior da história da fotograa e do embate que esta trava entre o estatuto de realidade e a prática de experimentações. Para este autor, De modo condensado, e sem dispensar o brilho que acompanha as poéticas modernas, Oiticica refez, ao longo de sua trajetória de fotógrafo, o percurso realizado pelos principais movimentos fotográcos precedentes, apresentando e posteriormente superando, sucessivamente, os princípios da fotograa cientíca, da prática pictorialista e da estética purista moderna. Além de atualizar estes
movimentos, a contribuição de Oiticica – particularmente de suas imagens da década de 50, identicadas com as propostas estéticas do movimento concretista – estende-se projetivamente às décadas de 60, 70 e 80, prenunciando o trabalho de vários artistas plásticos e fotógrafos, como Hélio Oiticica e Lygia Clark.56
Com isto, podemos perceber que Fatorelli busca contextualizar as pesquisas de Oiticica Filho no campo fotográco e também artístico, relacionando-o com os diversos ambientes pelos quais o fotógrafo passou – fotoclubes e artístico, especialmente – e com os quais promoveu intercâmbios criativos. O autor aponta, também, a importância que este fotógrafo teve para a emergência da fotograamatéria ou pós-fotograa, na década de 1980, movimento do qual participam fotógrafos como Rosângela Rennó e Antonio Sagesse. Annateresa Fabris (1998, p. 77-8). Antonio Fatorelli (2000). Fatorelli expande suas ideias sobre as diversas fases da história da fotograa, culminando com uma expansão do campo fotográco, um apagamento das fronteiras entre fotograa e artes visuais, através da ideia de suspeita na fotograa, presentes neste artigo sobre José Oiticica Filho, no seu livro intitulado Fotograa e Viagem. Ver Antonio Fatorelli (2003). 56 Antonio Fatorelli (2000, p. 141). 54 55
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Por m, é importante situar a produção acadêmica a respeito de Geraldo de Barros. Existem duas dissertações de mestrado, ambas de 2006, acerca do fotógrafo. Heloísa Espada Lima escreveu a dissertação intitulada Fotoformas: a máquina lúdica de Geraldo de Barros, 57 na qual busca traçar um amplo panorama sobre a produção das fotograas de mesmo título. A autora busca relacionar as fotograas de Barros ao movimento construtivista e às vanguardas históricas ligadas à fotograa, bem como investigar a participação do fotógrafo em diversos grupos e ambientes
artísticos, procurando com isso perceber possíveis inuências. Também em seu trabalho há um estudo sobre a relação de Geraldo de Barros com o crítico Mário Pedrosa e um mapeamento do contexto cultural paulistano, no qual suas fotograas foram gestadas. Sua dissertação constitui leitura obrigatória para todos aqueles interessados em estudar o trabalho de Geraldo de Barros. Da mesma forma, a dissertação de Paulo Henrique Camargo Batista, intitulada Fotoformas: a poética do processo interventor de Geraldo de Barros na práxis fotográca,58 busca apresentar o trabalho de Barros a partir do ponto de vista tecnológico, buscando entender o rompimento que o fotógrafo produz ao intervir no processo de constituição da fotograa. O autor parte da ideia de intervenção no processo fotográco e do rompimento com a programação da câmera, tendo como referencial teórico Vilém Flusser e Arlindo Machado. O ponto de vista de Batista é o de que Geraldo de Barros é um exemplo do rompimento conceitual e estético com o programa operatório da câmera fotográca. Com um ponto de vista diferente do de Heloísa Espada Lima, este também é um trabalho enriquecedor para os estudos sobre Geraldo de Barros.
As imagens de Geraldo de Barros e de José Oiticica Filho dentro do contexto da História da Fotograa brasileira As fotograas de Geraldo de Barros e de José Oiticica Filho relacionam-se, em muitos aspectos, tanto com a questão da experimentação, como com outras questões pertinentes à história da fotograa brasileira. Para tanto, é importante abordarmos em linhas gerais algumas dessas questões, dando uma visão panorâmica do ambiente no qual os fotógrafos estavam inseridos, e do qual tinham amplo conhecimento. É importante observar, em primeiro lugar, que suas imagens discutem de modo incisivo as funções da fotograa, seu estatuto em relação à realidade. 59 Este debate sobre o estatuto da fotograa não é privilégio de Barros ou de Oiticica Filho, bem como não se inicia no século XX. Entretanto, é interessante notar que, ao experimentarem com diferentes formas de fotografar, obtendo resultados que não Heloísa Espada Lima (2006). Paulo Henrique Camargo Batista (2006). 59 Sobre este tema, ler Philippe Dubois (2003) e Maria Teresa Bandeira de Mello (1998). 57
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privilegiam a mimese do real, estes fotógrafos estão, de certo modo, subvertendo o estatuto “principal” da fotograa, que seria o de reproduzir elmente a realidade que se encontra na frente do fotógrafo. Este seria apenas um observador apto a registrar elmente aquilo que vê, contribuindo para um inventário neutro e realista do mundo. O que podemos depreender das imagens dos fotógrafos em estudo é uma
necessidade de criação a partir da fotograa, e não de simples reprodução. Assim, a câmera fotográca, ou os meios de impressão fotográca, permitem a eles criar diferentes formas visuais, que desaam o olhar do espectador. Este debate pode ser percebido, por exemplo, ao analisarmos as diferentes experiências fotoclubísticas, tanto nacionais quanto internacionais. Os primeiros fotoclubes foram marcados pela presença do pictorialismo, que procurava aproximar a fotograa da arte utilizando recursos “artísticos”, ou que faziam com que o resultado nal parecesse artístico, através de diferentes técnicas. Segundo Maria Teresa Bandeira de Mello, O movimento pictorialista não mantém com a pintura uma
relação de mera imitação. Ao contrário, estabelece uma correspondência entre ambas que impulsiona a fotograa a elevar-se ao nível da pintura, e, nesta situação de igualdade, reivindicar o estatuto de arte.60
Devemos ter em mente a diferença entre pictorialismo e experimentação na
fotograa. O segundo procura reivindicar o estatuto de arte para a fotograa a partir da exploração do potencial artístico intrínseco ao meio fotográco. É na expansão da fotograa que ela se torna artística, dialogando com as artes visuais do período. Já o pictorialismo buscava inserir diversas técnicas no processo fotográco, a m de que o resultado nal parecesse artístico. Se nos mantivermos apenas no caso brasileiro, para facilitar nossa análise, podemos perceber que, com os anos, a experiência fotoclubística vai se alterando, caminhando do fotoclube voltado ao pictorialismo àquele voltado à fotograa moderna. José Oiticica Filho pode ser considerado um exemplo desta trajetória. Primeiramente membro do Photo Club Brasileiro,61 do Rio de Janeiro, marco maior do pictorialismo no Brasil, passou a ser membro do Foto Cine Clube Bandeirante, considerado, por sua vez, marco da fotograa moderna brasileira. Suas fotograas reetem esta trajetória, visto que, no início, temos fotograas como Um que passa, de 1949, para, quase dez anos depois, em 1958, nos depararmos com as fotograas intituladas Recriações. Maria Teresa Bandeira de Mello (1998, p. 16). O Photo Club Brasileiro foi fundado em 1923. O primeiro fotoclube de que se tem notícias no Brasil foi o Sploro Photo Club, fundado em 1903, em Porto Alegre. Este foi seguido pelo Photo Club do Rio de Janeiro, de 1910 e pelo Photo Club Hélios, em 1916, em Porto Alegre. 60 61
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À parte do movimento fotoclubista, temos a presença das fotomontagens no cenário da história da fotograa brasileira. Os principais nomes são Jorge de Lima e Athos Bulcão.62 Conforme Tadeu Chiarelli, Excetuando esses exemplos bastante frágeis para congurar um corpus de real signicação, o uso da fotograa por artistas e intelectuais modernistas cou connado, até muito recentemente, a duas contribuições muito especícas, ligadas à fotomontagem. Rero-me às fotomontagens do poeta e pintor Jorge de Lima, realizadas entre os anos 30 e 40, e àquelas do artista plástico Athos Bulcão, cujas produções remontam à primeira metade dos anos 50.
Mais recentemente, tornou-se público que Alberto da Veiga Guignard – respeitado como um dos principais pintores modernistas –, igualmente ocupou-se da fotograa, mais especicamente, da fotomontagem. Dentro dessa escassez de produções fotográcas de âmbito modernista, parece-me no mínimo curioso o fato de as produções daqueles modernistas que mais se dedicaram à fotograa gravitarem em torno da fotomontagem. Em torno de uma fotomontagem, diga-se, fortemente vinculada ao surrealismo (...). 63
Com este breve panorama, que certamente deixa de lado algumas nuances da história da fotograa brasileira,64 como, por exemplo, a importante participação da fotograa nas revistas ilustradas e nos jornais, pretendemos mostrar que a fotograa começou a ganhar espaço na cultura brasileira. A história da cultura visual não pode deixar de lado estes aspectos aqui abordados.
As imagens de Geraldo de Barros e de José Oiticica Filho dentro do contexto das Artes Visuais Dentro do contexto das artes visuais, é possível relacionar Geraldo de Barros e José Oiticica Filho com o movimento concretista e neoconcretista, que dominaram a cena artística nacional dos anos 1940 aos anos 1960, pelo menos. Suas fotograas são marcadas pelo diálogo constante com as artes visuais de sua época, estabelecendo, portanto, uma visualidade bastante especíca. No nal da década de 1940, com intervalo de apenas um ano, surgem em São Paulo dois museus de arte, decorrentes da iniciativa privada de grandes empresários. Sobre eles, ler Tadeu Chiarelli (2003). Tadeu Chiarelli (2003, p. 70). 64 Escolhemos deixar o fotojornalismo de lado não por este não ser importante, mas por não estar tão diretamente ligado à fotograa voltada para as artes visuais. 62 63
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Em 1947, Assis Chateaubriand, diretor dos Diários Associados e fundador da TV Tupi, criou o Museu de Arte de São Paulo, o Masp. No ano seguinte, Francisco Matarazzo, dirigente de um grande complexo industrial, criou o Museu de Arte Moderna de São Paulo, o MAM. Segundo Míriam Gershmann,65 estes museus nascem dentro do ideal desenvolvimentista, que objetivava a atualização do país nos mais diversos setores, inclusive no setor cultural. De acordo com Francisco Alambert e Polyana Canhête, as ações e mutações promovidas pelo capital privado na esfera da cultura na cidade de São Paulo irão instalar uma nova etapa no processo de formação, transmissão e recepção da arte moderna: a “era dos museus” (...). 66
Conforme Fernando Cocchiarale e Anna Bella Geiger, 67 o surgimento dos primeiros núcleos de artistas abstratos no Rio e em São Paulo ocorre entre 1948 e 1949, criando uma oposição entre os artistas brasileiros. Artistas como Di Cavalcanti e Portinari mostram-se contrários a essa vertente não gurativa, pois seria uma arte que se afasta da realidade, “a abolição da ‘gura’ isola a obra do artista de uma visualidade reconhecível, e, o que é mais grave, da realidade social de seu povo”. 68 A arte abstrata se afastaria dos ideais de nacionalidade que permearam os trabalhos
dos artistas da Semana de 22.69 Ao mesmo tempo em que este debate ocorria, José Oiticica Filho estava fazendo fotograas dentro do ideal pictorialista dos fotoclubes – sua segunda fase – e Geraldo de Barros já estava iniciando suas precursoras experiências envolvendo a fotograa e suas possibilidades plásticas. Em 1949 ele foi convidado, junto com Thomaz Farkas e German Lorca, a montar o laboratório fotográco do recém-criado Museu de Arte de São Paulo (Masp). Segundo Helouise Costa, 70 foi assim que Barros teve acesso a um espaço fora do Foto Cine Clube Bandeirante para realizar suas fotograas no campo da abstração. E isso é marcante para estabelecer sua relação com as artes visuais do período.
Para a formação dos artistas brasileiros no campo da abstração, a Bienal de São Paulo foi de suma importância. Marcada pela presença de importantes artistas abstratos, como Max Bill (que introduz ideias concretistas no país), na Primeira Bienal,71 Miriam Gershmann (1992). Francisco Alambert e Polyana Canhête (2004, p. 26). 67 Fernando Cocchiarale e Anna Bella Geiger (1987). 68 Idem, p. 11. 69 É importante observar que na Semana de 22 não houve espaço para a fotograa ou o cinema. Os “novos” meios mecânicos não foram incluídos como arte moderna. Sobre isso, ver Ricardo Mendes (2003). 70 Helouise Costa e Renato R. da Silva (2004). 71 Na I Bienal, em 1951, Max Bill e Ivan Serpa ganharam prêmios com trabalhos em abstração. 65 66
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as primeiras edições da Bienal foram profundamente cortadas por polêmicas calorosas (e por vezes maniqueístas), sobretudo entre os críticos que atacavam os “formalismos modernos”, responsabilizando-os por esvaziar o valor social e militante da arte, contra os defensores das “novas formas” de intervenção e corte (...), do abstracionismo, tanto geométrico quanto formal – que, aliás, também estavam em confronto uns com os outros. 72
Assim, é possível ver que estava em jogo um debate não apenas entre guração e abstração, mas também entre os diferentes tipos de abstração. Este debate ocorre também na fotograa, ainda que de forma marginal. Marcada pela homologia com o real, a fotograa sempre foi gurativa, sendo este, justamente, seu grande atrativo. Ao entrar na abstração a partir do contato dos fotógrafos com este ambiente
artístico experimental e inovador, a fotograa altera seu estatuto, ingressando de modo mais direto no campo das artes plásticas.
Mário Pedrosa, importante crítico e defensor da arte abstrata, escreveu a respeito dos trabalhos fotográcos de Geraldo de Barros, no texto “A Bienal cá e lá”, de 1970, (...) foi o primeiro a fazer da fotograa dita de arte não esse enlanguescimento pictórico do gosto convencional, mas uma experiência viril de imagens instantâneas ou xadas, simultâneas ou dissolvidas em signos da vida e do espaço urbanístico. 73
Com este excerto de Pedrosa é possível perceber como os trabalhos fotográcos experimentais de Barros inseriam-se neste novo momento da arte brasileira, marcado pela presença da arte abstrata e pelo Movimento Concretista, do qual ele fazia parte. Ainda que suas fotograas tenham sido feitas antes do seu engajamento no Grupo Ruptura,74 em 1952, é possível pensar que as questões norteadoras do concretismo – hierarquia de forma, cor e fundo, junto com geometrizações das guras – podem ser vistas em suas imagens. Entretanto, assim como nas fotograas de José Oiticica Filho, algumas delas são abstrações informais, demonstrando o alto grau de procuidade de seu trabalho.
José Oiticica Filho dentro deste contexto do concretismo brasileiro se mostra um artista bastante variado. Além de fotograas abstratas geométricas, em que há Francisco Alambert e Polyana Canhête (2004, p. 45). Mario Pedrosa (1995, p. 258). 74 O Grupo Ruptura era formado por Lothar Charoux, Waldemar Cordeiro (seu principal teórico), Geraldo de Barros, Kazmer Fejer, Leopoldo Haar, Luis Sacilotto e Anatol Wladyslaw. Eles propõem uma ruptura com questões plástico-formais, com todo um passado que as vanguardas europeias tinham cortado desde o Impressionismo. Cf. BANDEIRA, João. Arte concreta paulista: documentos. São Paulo: Cosac Naify, Centro Universitário Maria Antonia da USP, 2002. 72 73
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uma preocupação com a cor e ausência de meios-tons, ele também realiza, com a série Ouropretenses, fotograas abstratas informais, na qual há uma ligação com o sentimento, mais do que com a razão. A fotograa concreta de Oiticica Filho foi chamada, por ele próprio, de Recriações, pois, como explica Herkenhoff: Oiticica prepara as formas iniciais que são fotografadas. O
negativo (isto é, a transparência) é ampliado para produzir um positivo transparente, que copiado produz nova transparência negativa, que copiada... e assim sucessivamente podem ser criadas diversas transparências positivas e negativas, as quais são usadas isoladamente ou combinadas entre si (positivo com positivo, negativo com negativo, positivo com negativo) para a obtenção da imagem.75
Nas fotograas ditas concretistas, é possível perceber a ausência de meiostons, característica da arte concreta.76 O próprio José Oiticica Filho dene seu entendimento acerca das Recriações, em entrevista a Ferreira Gullar, em 1958: Há quem não considere como fotograa minhas “recriações”, porque não uso cinzas, próprios da fotograa tal como ela é entendida pela maioria. Acham que é desenho, porque as formas se imprimem em preto e branco. Minhas “recriações” são fotograas, pois nascem de um processo fotográco legítimo como outro qualquer. Se não uso cinzas é porque o que me interessa é a forma e a dinâmica do plano, que só se pode conseguir pela impressão, sem meias-luzes, do preto sobre o branco. Não tenho culpa de que, por usar preto e branco, confundam minhas “recriações” com desenhos que em geral são em preto e branco também.77
Desse modo, o fotógrafo insere seu trabalho como fotograa e explica o que interessa a ele no momento de feitura da imagem: a forma e a dinâmica do plano.
Paulo Herkenhoff (1983, p. 15). “A proposta de uma cor pura, abstrata, seria encontrável, segundo ele [Mondrian], “na cor primária claramente denida”, chapada, sem meios-tons, matérias ou texturas.” (COCCHIARALE, GEIGER, 1987, p. 16). É importante mencionar, a este respeito, que José Oiticica Filho é pai de Hélio Oiticica, importante artista brasileiro, vinculado ao concretismo e neoconcretismo. Com isto podemos depreender que o fotógrafo tinha trânsito entre as artes visuais e a fotograa. 77 Oiticica: “fotograa se faz no laboratório”, Jornal do Brasil , 24/08/1958, suplemento dominical de artes plásticas. 75 76
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Consideração nal: por que estudá-los? Este texto procurou mostrar a complexidade do estudo em torno da fotograa moderna brasileira, bem como buscou trazer à tona diversas possibilidades de estudos. A partir de Geraldo de Barros e de José Oiticica Filho, considerados precursores nas técnicas de experimentação para criação de imagens fotográcas impactantes, foi possível perceber como o campo fotográco expande-se na segunda metade do século XX. A importância de estudá-los reside no fato de que tais fotógrafos ainda são muito atuais, pautando diversos trabalhos fotográcos contemporâneos. Por isso, é preciso que eles sejam estudados a fundo, para que possamos construir uma história da cultura visual deste período, buscando elementos para entender tais imagens. Uma leitura informada é sempre mais instigante do que aquela marcada apenas pelo sentimento que a imagem traz ao seu leitor.
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CAPÍTULO 5 A dimensão histórica em “Mujeres presas”: aproximações teóricas entre fotograa-expressão e ator social Patricia Camera1 Este texto analisa o ensaio “Mujeres presas”, 2 realizado pela fotógrafa argentina Adriana Lestido,3 durante junho de 1991 e junho de 1992, na prisão número 8 de Los Hornos, em La Plata , Argentina. O resultado desta produção, que contou com o apoio da Hasselblad Foundation, foi exposto na II Bienal de Artes Visuais do Mercosul (1999 – Porto Alegre, Brasil) e deu origem à publicação do catálogo4 de mesmo título, compondo a Colección Fotografos Argentinos . No prefácio, “Lestido: el ocio de narrar”,5 o escritor Guillermo Saccomanno comunica: Mujeres presas no es un libro de fotos convencional, ese objeto a mitad de camino entre la mezquindad coleccionista y el regalo elegante de shopping. Si me gusta pensarlo como un trabajo narrativo es porque explica más de la realidad social que cualquier argumentación política. Lo que no quita que las
fotos de Lestido entreveren, tensándolas, las relaciones entre arte e ideologia.
Nesta linha de pensamento, o presente estudo desenvolve-se com o objetivo de discutir a fotograa contemporânea de Adriana Lestido como forma de narrativa visual elaborada por atores sociais. Para isso, apresentam-se algumas especicidades do gênero fotográco e algumas reexões sobre sujeito, razão e identidade com referência aos estudos de Alain Touraine. A proposta é aproximar alguns aspectos deste ensaio fotográco às problemáticas levantadas por Touraine no contexto da sociedade cultural6 (pósFotógrafa, Mestre em Tecnologia (UTFPR), Doutoranda do PPGH/PUCRS. E-mail: [email protected]. O ensaio fotográco Mujeres presas está disponível no web-site da fotógrafa (www.adrianalestido.com.ar ) e no livro Mujeres Presas, LESTIDO (2007). 3 Adriana Lestido nasceu em 1955 na cidade de Buenos Aires. Estudou na Escuela de Arte Fotográco y Técnicas Visuales de Avellaneda. Trabalhou como repórter fotográca entre 1982 e 1995 em La Voz, agência DyN e o diário Página 12. Em seguida, passou a lecionar fotograa e a dedicar-se aos trabalhos pessoais. 4 Lestido (2007). 5 Lestido (2007, p. 2). 6 De forma resumida pode-se dizer que Touraine (2007, 2008) compreende a sociedade atual como uma sociedade fragmentada: a empresa e o consumo numa esfera e o sujeito e a Nação em outra esfera. Nesta decomposição Touraine explora a noção de subjetividade (desejo, individualidade, identidade, alteridade) e arma a importância da democracia. Por m, valoriza o conceito de sujeito identicando-o neste contexto como ator social que inaugura 1 2
outro paradigma social que é denominado por ele como sociedade cultural.
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social). Desta forma, o presente texto busca comunicar o valor histórico da expressão artística de “Mujeres Presas”, elaborada por Lestido.
Apontamentos sobre o entendimento de André Rouillé sobre fotograa-documento e fotograa-expressão Para iniciar-se o estudo sobre o ensaio fotográco de Lestido, tem-se em vista reetir sobre a crise da fotograa conforme comunicado na obra A fotograa: entre documento e arte. 7 Neste livro, o pesquisador André Rouillé procura esclarecer que a fotograa-documento baseia-se na crença de que a fotograa é uma “marca” direta da realidade, e a fotograa-expressão assume caráter indireto para com a “realidade”.
Do documento à expressão, consolidam-se os principais rejeitados da ideologia documental: a imagem, com suas formas e sua escrita; o autor, com sua subjetividade; e o Outro, enquanto dialogicamente no processo fotográco. Essa passagem do documento à expressão se traduz em profundas mudanças nos procedimentos e nas produções fotográcas, bem como no critério de verdade, pois a verdade do documento não é a verdade da expressão. Historicamente, tal transição funciona quando a fotograa-documento começa a perder contato com o mundo que, no nal do século XX, se tornou muito complexo para ela; mas, sobretudo, quando esse mesmo mundo é objeto de uma larga desconança, quando se começa a não acreditar mais nele.8
Para contextualizar as duas “práticas” fotográcas (fotograa-documento e fotograa-expressão), Rouillé comenta que o auge da fotograa-documento ocorreu em 1952 com o lançamento do álbum fotográco de Henri Cartier-Bresson, contendo 126 fotograas tiradas ao longo dos últimos vinte anos. Esta obra pode ser considerada como uma das referências para o entendimento da fotograa-documento, uma vez que além de ser uma coleção fotográca extensa, também contém o prefácio explicativo “O instante decisivo”9 (1952) escrito pelo próprio fotógrafo. Rouillé (2009). Rouillé (2009, p. 19). 9 Pierre Assouline (2008) explica na biograa de Cartier-Bresson que o título pretendido para o álbum fotográco foi Imagens a la sauvette (Imagens furtivas). Porém, o título “O instante decisivo” do prefácio escrito por CartierBresson e a epígrafe (“Não há nada nesse mundo que não tenha um instante decisivo”) apropriada das palavras do cardeal de Kerzt motivaram o editor responsável pela publicação nos EUA a solicitar ao fotógrafo a mudança do título deste álbum fotográco para Decisive Moment . 7
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Neste pequeno texto, Cartier-Brresson analisa a fotograa através de seu pensamento a respeito da reportagem, do tema, da técnica e dos clientes. Nossa tarefa consiste em observar a realidade com a ajuda deste
bloco de esboços que é a nossa máquina fotográca, e xá-la, mas sem manipulá-la nem durante a tomada, nem no laboratório através de pequenas manobras.10
[...] Um tema não consiste numa coleção de fatos, pois os fatos em si não têm interesse algum. O importante é escolher
entre eles; captar o fato verdadeiro em relação à realidade mais profunda. Em fotograa a menor coisa pode ser um grande tema, e o pequeno detalhe humano pode se tornar um leitmotiv....11 [...] Uma fotograa é para mim o reconhecimento simultâneo, numa fração de segundo, por um lado, da signicação de um fato, e por outro, da organização rigorosa das formas percebidas visualmente que exprimem o fato. 12
Nota-se, nas declarações de Cartier-Bresson, que sua práxis fotográca se dá na valorização do instante fotográco e como consequência na produção da fotograa única, ou seja, parece que a intenção do fotógrafo era montar ao longo de sua trajetória de vida uma “coleção de instantes” da realidade. Disto, pode-se observar que o culto à “magia” da tecnologia fotográca está presente na poética fotográca de Cartier-Bresson. Em sua biograa, Assouline menciona: “ Imagens a la sauvette, catálogos desses instantes de eternidade, não diminui em nada o mistério de sua criação”. 13
Com essas considerações, interessa recordar que desde a invenção da fotograa (em torno de 1835) até meados da década de 1980 – quando do lançamento do livro A Câmara Clara,14 de Roland Barthes – a orientação prática e losóca esteve fortemente atrelada à especicidade documental. Essa interpretação sobre a possibilidade de reproduzir de forma automática o mundo visível fez com que algumas pessoas entendessem que o operador humano tivesse somente um papel administrativo.15 Sobre essa questão, Fabris lembra que no discurso feito por Talbot, no livro The pencil of nature, 16 ele tenta “demonstrar
o aspecto cientíco do calótipo, depreciando o papel da mão e a inteligência do fotógrafo em favor da objetividade da máquina”. 17 Depois de mais de um século e Cartier-Bresson (2004, p. 19). Cartier-Bresson (1952) apud ASSOULINE (2008, p. 211). 12 Cartier-Bresson (2004, p. 29). 13 Assouline (2008, p. 211). 14 Barthes (1984). 15 Machado (1984). 16 Primeiro livro ilustrado com fotograas (entre 1844 e 1846). 17 FABRIS (1998, p. 179). 10 11
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meio Barthes escreve em 1980 o livro A Câmara Clara,18 defendendo a mesma linha de pensamento, isto é, que o referente adere à imagem. Em oposição à defesa da fotograa como espelho do real, Machado 19 comenta: A realidade não é essa coisa que nos é dada pronta e predestinada, impressa de forma imutável nos objetos do mundo: é uma verdade que advém e como tal precisa ser intuída, analisada e produzida. Nós seríamos incapazes de registrar uma realidade se
não pudéssemos ao mesmo tempo criá-la, destruí-la, deformá-la, modicá-la: a ação humana é ativa e por isso as nossas formas tomam reexo e refração. A fotograa, portanto, não pode ser o registro puro e simples de uma imanência do objeto: como produto humano, ela cria também com esses dados luminosos uma realidade que não existe fora dela, nem antes dela, mas precisamente nela.
Apesar de alguns pensadores, artistas e fotógrafos se posicionarem contrários à defesa da fotograa como “espelho da realidade”, 20 a técnica fotográca parece ter solapado qualquer operação do fotógrafo, como que este fosse somente capaz de apertar o botão. Conforme mencionado, tal pensamento tramitou em diferentes esferas da sociedade, como, por exemplo, na mensagem publicitária da Kodak: “Você aperta o botão e nós fazemos o resto”, 21 quando do lançamento em 1888 da câmera fotográca com lme de rolo. Considerando as citações anteriores, pode-se compreender que o click fotográco armou a fotograa como o resultado de um simples ato que “registra” o “isso foi”. Sendo assim, a fotograa esteve inicialmente associada mais à ideia de captação ou recorte da realidade do que à noção de representação ou construção do real.
Atualmente, interessa ainda à indústria, aos meios de comunicação e ao mercado das artes a discussão sobre diversas abordagens relativas ao automatismo
fotográco e à condição de verossimilhança ou desconstrução do referente fotográco. Nessa busca, o universo artístico e da comunicação concentraram-se em compreender a gênese automática da técnica fotográca, levantando questões relativas à atividade humana (subjetividade) e à “veracidade” da mensagem fotográca. Barthes (1984). Machado (1984, p. 40). 20 No livro O ato fotográco (DUBOIS, 1999), o pesquisador aborda essa problemática citando diferentes pensadores da área com principal atenção à análise dos conceitos “ícone”, “índice” e “símbolo” junto ao entendimento do ato fotográco. 21 “You press the button, we do the rest” (FRIZOT, 1998). 18
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Conforme mencionado no livro, A Câmara Clara,22 Roland Barthes sustenta a defesa da aderência do referente na fotograa, tomando como base a percepção sensível do espectador e do fotografado: “Eu tinha à minha disposição apenas duas experiências: a do sujeito olhado e a do sujeito que olha”.23 Apesar dos esforços de Barthes em compreender o noema “isso foi” – fortalecendo o entendimento do estado indiciário da fotograa – seu estudo é frágil por apresentar o fotógrafo como funcionário da câmera fotográca:24 “[...] o órgão do fotógrafo não é o olho (ele me terrica), é o dedo o que está ligado ao disparador da objetiva, ao deslizar metálico das placas (quando a máquina ainda as tem)”.25 No entanto, Barthes foi sensível por trazer à tona a discussão da aderência do referente fotográco num momento em que a sociedade conferia o status de verdade à fotograa no contexto do mundo cada vez mais atrelado às tecnologias da informação. Com respeito à problemática sobre o entendimento da “fotograa-verdade”, Rouillé menciona na obra citada26 que os fotógrafos Robert Doisneau e Henri CartierBresson são referências na história da fotograa quando o conceito de veracidade fotográca é analisado a partir dos anos de 1930. No outro extremo, Rouillé apresenta e discute o ensaio “The Americans”, 27 do suíço Robert Frank, para compreender o rompimento do paradigma da fotograa-documento . Com Robert Frank, o “eu” ganha em humanidade e em subjetividade. É um “eu” fotográco disposto de maneira plenamente assumida, com uma vivência pessoal, sentimental, até mesmo íntima. Em 1983, Frank escreve: “Gostaria de fazer um lme que misturasse minha vida, naquilo que ela tem de privado, e meu trabalho, que é público, por denição; um lme que mostrasse como os dois polos dessa dicotomia se juntam, se entrecruzam, se contradizem, lutam um contra o outro, visto que se completam, segundo os momentos”. O “eu” de Frank parece o estado ideal de total liberdade, quase de imponderabilidade. Livre em seus movimentos e em suas inspirações, sem nenhuma imposição, nem econômica nem social nem, evidentemente, estética. Essa liberdade abre a imagem para todas as possibilidades, neste caso, para o aparecimento de um novo Barthes (1984). Barthes (1984, p. 21-22). 24 No livro Filosoa da caixa preta: ensaios para uma futura losoa da fotograa, Flusser (2002) discute a práxis fotográca defendendo que o fotógrafo não deve estar em função do equipamento. Ou seja, o fotógrafo deve se posicionar de forma autônoma frente às técnicas e aos parâmetros tecnológicos existentes na estrutura 22 23
do equipamento.
Barthes (1984, p. 30). Rouillé (2009). 27 Este trabalho fotográco foi desenvolvido entre 1955-1956 ao longo das estradas dos EUA com auxílio da John Simon Guggenheim Memorial Foundation. 25 26
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regime de enunciados fotográcos, exatamente os da fotograaexpressão. Mas tal liberdade priva, simultaneamente, a imagem de sua ancoragem no real e de sua amarração à representação, que garantiam sua unidade e sua uniformidade internas. Frank não mostra, ele se mostra. O sujeito, o autor prevalecem, a partir daí, sobre o real. Este advento intempestivo da subjetividade embute o da fotograa-expressão nos escombros dos principais paradigmas da fotograa-documento.28 [...] Se as fotos de Frank rompem com a estética documental, é porque elas não representam (alguma coisa que foi), mas apresentam (alguma coisa que aconteceu); é porque não remetem às coisas, mas aos acontecimentos; é porque eles quebram a lógica binária da aderência direta com as coisas pela armação de uma individualidade.29
Esta percepção sobre a dimensão subjetiva na práxis de Robert Frank interessa para localizar os projetos pessoais da fotógrafa Lestido: “Hospital Infanto Juvenil” (1986-1989), “Casa Cuna”, de La Plata (1989), “Mujeres presas” (19911992), “Madres adolescentes” (1989-1990), “Madres e hijas” (1995-1999). Especicamente no livro Mujeres Presas,30 a fotógrafa relata no prólogo desta obra sobre um breve período de sua vida: Construí asi mi camino y mi trabajo porque nadie me regalo nada, más allá de que hubo muchos que me ayudaron. Pero, por outro lado, mi origen (la nena más pobre de uma escuela pobre de Mataderos, la infancia en uma pieza con una madre sensible pero iracunda, padre preso), todo eso me hace a veces tambalear.
Esta experiência subjetiva de Lestido frente ao mundo social e a constante investigação em seus ensaios sobre a condição da mulher na sociedade contemporânea permitem avançar o presente estudo sobre o ensaio “Mujeres Presas” com foco no sujeito como questão. Desta forma, deve-se mencionar que este estudo entende que as fotograas que compõem o catálogo Mujeres Presas inserem-se no campo da fotograaexpressão. Isto signica que o posicionamento de Lestido frente ao seu trabalho fotográco localiza o “eu” (sua subjetividade) entre o referente e a imagem. Em outras palavras, as fotograas elaboradas por Lestido são entendidas como uma “representação” social da condição de um grupo especíco de mulheres que foram Rouillé (2009, p. 172). Rouillé (2009, p. 173). 30 Lestido (2007, p. 1). 28
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fotografadas segundo o “olhar” de Lestido. Contudo, esta condição subjetiva não impossibilita reconhecer estas fotograas como meio de investigação histórica. Sendo assim, deve-se não apenas valorizar as imagens como fenômenos positivos, mas também como uma fonte não trivial, por apontar, através do elogio à forma, da valorização à individualidade do fotógrafo e da prática do dialogismo entre fotógrafa e fotografadas, informações sobre a escrita, o autor e o outro num sistema visual que traz à tona questões sobre o sujeito (mulher) na sociedade cultural.
O ator social: razão e subjetividade Partindo do princípio de que as fotograas presentes no álbum Mujeres presas são resultados de uma práxis atual que valoriza o dialogismo entre fotógrafa e fotografadas e que nesta prática trabalha-se tanto a subjetividade de Lestido como a self-identity das presidiárias, tais especicidades podem então ser relacionadas ao estudo de Alain Touraine com principal atenção às obras Crítica da Modernidad e31 e Um novo paradigma para Compreender o Mundo de Hoje. 32 No primeiro livro mencionado, interessa destacar o questionamento de Touraine sobre o projeto e o desenvolvimento da ideia de modernidade, lembrando que ambos repousaram fundamentalmente na defesa da razão, uma vez que é no entendimento da própria modernidade que se instaurou o desejo de associar a ação
humana com a ordem do mundo em prol do devir. Ainda com referência nesta obra, deseja-se apresentar a discussão de Touriane sobre a negação do devir frente à existência do Ser contemporâneo (antimoderno) que busca em sua subjetividade e reexividade ações e posicionamentos que contribuam para uma vida mais estável e equilibrada, próximo ao desejo inicial da modernidade clássica (baseado no pensamento iluminista). Do segundo livro, pretende-se apontar algumas reexões sobre sujeito e identidade para apresentar o novo paradigma das representações sociais, particularmente atreladas à perspectiva do desejo e da ação (subjetiva e coletiva) do sujeito social.
Desta forma, as problemáticas levantadas por Touraine sobre sujeito, razão e identidade presentes no contexto da sociedade atual, denominada por ele como sociedade pós-social ou cultural, servirão como fundamento teórico para compreender sobre a visualidade do ensaio executado por Lestido.
Vale ressaltar que as duas obras de Alain Touraine são complementares. Isto é, em Crítica da Modernidad e,33 o ator social aparece junto à proposta da redenição Touraine (2008). Touraine (2007). 33 Touraine (2008). 31 32
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da modernidade levando em consideração o desejo do sujeito no contexto da democracia do mundo globalizado. No livro seguinte, Um novo paradigma, 34 o
sociólogo comunica que, na atualidade, observa-se o enfraquecimento do paradigma econômico e social, defendendo que no presente momento a sociedade passa pela transformação de outro paradigma – denominado paradigma cultural – onde o sujeito busca os direitos coletivos e individuais, considerando fundamentalmente a relação de si consigo mesmo ( self-identity). Isto é, a última obra dá continuidade às discussões presentes na primeira, com a intenção de destacar a mudança de paradigma. Com isso, Touraine tenta entender essa corrente transformação da decomposição dos quadros sociais a partir da denição do que descreve a sociedade na atualidade. Em Crítica da Modernidad e,35 Touraine analisa o projeto da modernidade e seus resultados para apontar alguns equívocos que ocorreram ao longo de seu
desenvolvimento. Compreende que este projeto “mal orientado” resultou em primeira instância na negação do sujeito, mas que, segundo sua análise, reetiu na atualidade para a emergência do ator social. Em Um novo paradigma, 36 Touraine explica que este ator faz parte do processo de transformação social. Lembra que
a história da sociedade foi descrita e analisada em termos políticos (sociedade política), depois segundo a organização econômica e social (sociedade social) e, atualmente, é pensada sobre sua transformação com foco no sujeito reexivo, denominando-a de sociedade cultural . Sendo esta teoria complexa e abrangente, optou-se por compreendê-la a partir da discussão da razão e suas relações com o sujeito, tendo como motivação inicial a citação de Touraine: “A modernidade não repousa sobre um princípio único e menos ainda sobre a simples distribuição dos obstáculos ao reinado da razão; ela é feita do diálogo entre Razão e Sujeito. Sem Razão, o Sujeito se fecha na obsessão da sua identidade; sem o Sujeito, a Razão se torna o instrumento do poder”.37 A última parte desta expressão “[...] sem o Sujeito, a Razão se torna instrumento do poder” (idem) é singular, pois nos faz reetir sobre dois aspectos: 1) o entendimento equivocado da razão – quando exercida como razão instrumental; 2) a interpretação de alguns intelectuais38 sobre a contribuição da razão instrumental para a “morte” do sujeito na sociedade.
Touraine contextualiza esta problemática escrevendo: os intelectuais tinham animado o movimento de racionalização, associando aos progressos da ciência a crítica das instituições e Touraine (2007). Touraine (2008). 36 Touraine (2008, p. 119). 37 Touraine (2008, p. 14). 38 Principal exemplo: estudiosos que compõem a Escola de Frankfurt. 34 35
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das crenças passadas. [...] Após séculos de modernismo, porém, as relações entre os intelectuais e a história desarranjaram-se no século XX.39 O pesquisador observa que o pensamento moderno ocidental privilegiou a
racionalidade instrumental, passando a produção e o consumo de massa a compor a “sociedade programada” pela indústria cultural (educação, saúde, entretenimento). Isto privilegiou o desenvolvimento da associação entre empresa e consumo, fortalecida pela lógica da economia global que se sobrepôs ao próprio Estado, culminando para o desfalecimento do sujeito40 e da Nação. Tal descompasso é descrito por Touraine em Crítica da Modernidad e41 como explosão ou decomposição da modernidade. Touraine menciona nesta mesma obra sobre a tentativa que houve na história em superar o regime moderno em prol da igualdade. Porém, alerta que tal projeto se mostrou inadequado quando da emergência de regimes comunistas ou totalitários que acabaram por anular a individualidade do sujeito. Por muito tempo lutamos contra os antigos regimes e suas
heranças, mas no século XX lutamos contra os novos regimes, contra a nova sociedade e o novo homem que quiseram criar
tantos regimes autoritários, que fazem ouvir os apelos dramáticos à libertação, fazem revoluções dirigidas contra as revoluções e os regimes que delas nasceram. [...] agora procuramos nos
desprender da multidão, da poluição e da propaganda. 42
Com essas duas citações, observa-se que das posturas intelectuais referentes à “morte” do sujeito, Touraine não compartilha integralmente porque o objeto central de sua discussão é o sujeito. Sendo assim, não poderia concordar nem com a “morte” deste, como também com o conceito de “humanidade” – quando pensado a partir da ideia de homogeneização presente na clássica teoria desenvolvida por Comte na obra O sistema de política positiva (1851-1854). Sendo o sujeito o foco central da pesquisa, Touraine parte para problematizálo levando em conta uma série de análises sobre o Ser . Para isso, considera diversas situações históricas, sociais e econômicas para entender o sujeito de modo simultâneo às mudanças losócas que orientam a defesa ou não deste sujeito como ator social. Desloca o clássico objeto de estudo das ciências sociais, ou seja, Touraine (2008, p. 159). Touraine entende que este contexto contribuiu para o fortalecimento do sujeito ( self-identity). Assim, Touraine vai ao encontro de Anthony Giddens (2002) quando estuda sobre a necessidade e a busca do sujeito em reetir sobre sua condição pessoal (TOURAINE, 2007, p. 119-120). 41 Touraine (2008, p. 99) 42 Touraine (2008, p. 99-100). 39 40
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a sociedade,43 para centrar-se no estudo do ser “personalizado” e suas ações, tendo como principal respaldo a ideia inicial da modernidade clássica pautada no sujeito e no pensamento racional. Para defender sua tese sobre o sujeito como ator social, Touraine entende que
o ser humano busca seus desejos pessoais. Isto é, o indivíduo projeta de modo (in) consciente a denição e a conquista de seus diferentes referenciais culturais, que são subjetivos, pessoais e cambiáveis. A fundamentação de Touraine parte da história do pensamento, selecionando algumas concepções e interpretações sobre o Ser na losoa moderna, com principal atenção às teorias de Nietzsche e Freud. A partir daí, Touraine tenta compreender a dualidade razão-sujeito considerando inicialmente a armação “Penso, logo existo” feita por Descartes.
[...] O Eu do “Eu penso” não coincidia, no Cogito, com o Eu do seu “Eu sou”. A formação do sujeito não é somente um distanciamento do indivíduo e uma identicação com o grupo e com as categorias da ação racional; ela está ligada a um desejo de si ao mesmo tempo que a um desejo do outro.
O que nós aprendemos de Freud é que a desconança com respeito à “vida interior” repleta de identicações alienantes e de modelos sociais inculcados, que nos obriga a procurar o Eu fora do Ego, na recusa da correspondência entre o indivíduo e a sociedade, a ligar sua defesa à revolta contra a ordem estabelecida.44
Isto é, o pensamento iluminista de Descartes liberta o sujeito da relação subordinada ao Deus, tornando-o sujeito consciente. Mas esta análise não é suciente para Touraine. Sendo assim, desmonta esta dualidade com base nas teorias de Freud. Touraine entende que a razão extrapola do inconsciente o desejo de liberdade. A partir desta observação, acrescenta em sua análise o sentimento irracional, associando-o à noção de sujeito como ator social. Apresenta esta especicidade junto à gura de Dionísio. Nós matamos Deus e nossa culpa alimenta nossa sede de
submissão e de redenção. Então é preciso ir além desse assassinato, além do bem e do mal, encontrar ou criar uma experiência natural liberada de todos os ascetismos, de todas as alienações, graças a um esforço que é ao mesmo tempo desejo Comte procura a unidade da história humana numa sociedade cientíca e industrial. Acredita que “só há um tipo de sociedade absolutamente válido, toda a humanidade deverá, segundo sua losoa, chegar a esse tipo de sociedade” (ARON, 2000, p. 65). 44 Touraine (2008, p. 132). 43
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e razão, dominação e controle de si, que é, ao contrário de uma interiorização, uma libertação de si, um retorno a Dioniso. 45
Para completar, Touraine observa: “Nietzsche é, ao mesmo tempo, aquele que denunciou primeiro a ilusão modernista, a ideia de correspondência entre o desenvolvimento pessoal e a integração social, e aquele que empenhou uma parte do pensamento europeu em uma nostalgia do Ser que frequentemente conduziu à exaltação de um ser nacional e cultural particular. 46 Adiante introduz as teorias de Freud sobre a intensa relação da formação do Eu referindo-se ao Id, Superego e
Ego, informando: O que nós aprendemos de Freud é que a desconança com respeito à “vida interior” repleta de identicações alienantes e de modelos sociais inculcados, que nos obriga a procurar o Eu fora do Ego, na recusa da correspondência entre o indivíduo e a sociedade, a ligar sua defesa à revolta contra a ordem estabelecida.47
No entanto, para Touraine, a discussão sobre sujeito e razão é tão complexa a ponto de escrever em Um novo paradigma: 48 “não situo minha reexão no universo da identidade, e esta palavra desperta a mim mais medo do que atração”. Então, esforça-se para analisar o que seria este sujeito sem nomear qualquer “identidade xa”: [...] sou levado a dizer que o sujeito é a convicção que anima um
movimento social e a referência às instituições que protegem as liberdades. [...] eu deno o sujeito em sua resistência ao mundo impessoal do consumo, ou ao da violência e da guerra. [...] O sujeito é um chamamento a si mesmo, uma vontade de retorno a si mesmo, em sentido contrário à vida ordinária. Para mim, a ideia de sujeito evoca uma luta social como a de consciência de classe ou a de nação em sociedades anteriores, mas com um conteúdo diferente, privado de toda exteriorização, voltado totalmente para si mesmo – embora permanecendo profundamente conituoso. É por isso que as primeiras imagens que me vieram à mente para ilustrar a ideia de sujeito foram as de resistentes, de combates pela liberdade. 49 Touraine (2008, p. 119). Touraine (2008, p. 123) 47 Touraine (2008, p. 132). 48 Touraine (2007, p. 120-121). 49 Touraine (2007, p. 120-121). 45 46
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A partir destes trechos e das colocações apresentadas até o presente momento deste trabalho, observa-se que Touraine tem postura crítica e interpretação otimista. Entende que desta tensão entre sujeito, razão e sociedade veio o declínio da modernidade tradicional (ideal do pensamento iluminista). Pressupõe que a democracia social não se limita às garantias institucionais e neste sentido a própria democracia é também o lócus das lutas dos sujeitos sociais.
Assim, segundo a teoria de Touraine, a importância da democracia pode ser compreendida quando explica a decomposição da modernidade e quando mostra suas
associações. Isto é, neste contexto contemporâneo, tem-se por um lado a empresa e o consumo e por outro lado o sujeito e a Nação. Sendo que o primeiro grupo está ligado principalmente ao racionalismo instrumental que tenta organizar a economia
global, sobrepondo-se ao sujeito e ao próprio Estado. O segundo grupo está focado no Ser , ou seja, nos atores sociais que tentam obter espaços que o valorizem a partir de seus desejos, de suas subjetividades internas e coletivas. Então, é no conito entre as duas esferas mencionadas anteriormente que Touraine acredita que o sujeito se impõe. Com base nos estudos de Freud e Nietzsche, este pesquisador entende que a atitude do sujeito reexivo se dá na procura do eterno retorno do Ser , representado pelas guras mitológicas gregas Apolo (razão) e Dionísio (sentimento/emoção), somada à vontade de “poder”, representado pela gura do “super-homem”. Segundo estas concepções, o retorno ao Ser está associado à busca da vida equilibrada e estável, negando a ideia moderna do devir. De forma geral, a proposta de Touraine nos faz entender que a busca do Eu através da constante (des)combinação entre a tensão interna (desejo) versus tensão externa (mundo repressivo) é uma das condições que faz emergir no contexto democrático o sujeito como ator social. Assim, defende-se no presente trabalho que o sujeito soma o desejo (íntimo e de consumo) com esta subjetivação (ação reexiva de self-identity), desestabilizando ou alterando a ordem de produção de bens materiais e culturais; exigindo a mudança dos direitos sociais e políticos em prol da alteridade. Neste caso, pode-se destacar a organização destes sujeitos para uma possível sustentabilidade dos diferentes grupos culturais montados sob alicerces
particulares (minorias, etnia, raça etc.) voltados mais à defesa de seus princípios culturais (língua, religião, território, gênero, ecologia) do que a princípios gerais frequentemente relacionados à lógica que rege a política do Estado e principalmente a economia globalizante.
Nesta estrutura fragmentada, tem-se a cultura da informação que junto às novas tecnologias desterritorializou-se. Por exemplo, as notícias e as imagens sobre os protestos contra os resultados das eleições presidenciais no Irã em junho de 2009 foram censuradas pelo governo local. Porém, algumas pessoas que presenciaram as
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manifestações conseguiram fotografá-las e lmá-las. Alguns dos resultados foram veiculados no ciberespaço.
De forma mais local, outras atitudes vêm surgindo recentemente. Dentre elas estão os eventos internacionais (Bienal de Artes de Veneza, Documenta de Kassel etc.) de artes que expõem os diferentes posicionamentos de artistas com relação a realidade, imaginário, busca de alteridade etc. No caso do Brasil, a Bienal de Artes de São Paulo e a Bienal de Artes Visuais do Mercosul (BAVM) são destaques. Especicamente, a Bienal de Artes Visuais do Mercosul iniciou sua atividade em 1997, atrelada intensamente à questão mencionada neste trabalho: busca da alteridade do sujeito, representado na BAVM pelas nações que compõem o Mercosul. Nesta perspectiva o ensaio “Mujeres presas”, exibido na II Bienal de Artes Visuais (Porto Alegre, 1999), destaca a problemática discutida por Touraine.
Sobre a reexão pessoal em “Mujeres presas” A produção fotográca de Lestido é um trabalho contemporâneo que se fundamenta na expressão pessoal (subjetiva) da fotógrafa e das fotografadas. Nos ensaios “Madres Adolescentes” (1989-1990), “Mujeres Presas” (1991-1993) e “Madres e Hijas” (1995-1999), percebe-se que a temática está centrada no afeto/ desafeto entre mães e lhos, vivenciado num momento histórico denominado particularmente na teoria de Alain Touraine como sociedade cultural. No presente trabalho, interessa comunicar que as fotograas realizadas por Lestido problematizam o sujeito, sobretudo sua condição de cidadão compreendida junto às divergências subjetivas encontradas na interioridade ( self-identity) da mulher e às problemáticas coletivas de grupos especícos do gênero feminino. Desta forma, o trabalho de Lestido é antes de tudo uma narrativa visual sobre a passagem de uma sociedade que se compreendia anteriormente em termos
socioeconômicos, mas que na atualidade percebe-se como uma sociedade que organiza suas representações e ações voltadas à questão cultural. 50 O valor histórico de sua expressão artística sustenta-se na reexão do sujeito e sobre o sujeito que vivencia a decomposição dos quadros sociais (empresa e consumo versus sujeito e Nação). No caso especíco do ensaio fotográco “Mujeres Presas” a visualidade da self-identity é singular na poética fotográca por mostrar a “individualização” do sujeito em situação extrema. Isto porque a locação das cenas fotográcas se dá unicamente na prisão: sozinhas nas celas ou isoladas em algum setor do presídio. Touraine (2007, p. 215) explica: “[...] nossa experiência já não é mais transtornada pela sociedade de massa apenas na ordem de produção, mas também na ordem do consumo e da comunicação”. 50
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Essa visualidade do retrato da mulher isolada exibe pontualmente a apresentação do ser “personicado” por duas formas dominantes: corpo e lócus. No corpo das presidiárias encontram-se declarações inscritas no braço como “André te amo”; ou no próprio braço de uma das lhas fotografadas: “Cláudio” (provavelmente o nome de seu pai). Nas celas veem-se alguns elementos pessoais que integram o ambiente da cena: história em quadrinhos, pôster e carteiras de cigarros coladas nas paredes, retrato de família que preenchem o vazio da escrivaninha. Quando se analisa a práxis fotográca de Lestido, deve-se observar que se deu com experiências próximas às presidiárias pelo fato da fotógrafa visitá-las uma vez por semana na prisão, ao longo de um ano. Esta metodologia fez Lestido perceber que a situação de isolamento das mulheres excedia o feito de algumas das mães
estarem juntas com seus lhos. Isso lhe fez indagar: “Quem é lho de quem?”.51 Esta aproximação de Lestido junto às detentas também tem seu valor por ter possibilitado o desenvolvimento das cenas posadas ou em movimento que foram
tiradas no cotidiano e até mesmo em momentos especiais: retrato do casamento de uma das presidiárias ocorrido no pátio central do presídio e retrato de uma presidiária
saindo abraçada junto a duas mulheres e uma criança, declarando: “Me siento tan perdida como mi primer dia en cana”.52
Este sentimento levanta a seguinte questão: Esta desorientação pessoal seria parecida à vivida por Lestido e sua mãe quando da ausência de seu pai durante a infância por este ter vivido numa prisão? Provavelmente esta situação familiar tenha contribuído para o desenvolvimento dos diferentes ensaios de Lestido que tem como objeto central expor a mulher como questão pessoal e social.
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