O NEGRO NA EMERGÊNCIA DA SOCIEDADE DE CLASSES Florestan Fernandes, 1978
Resumo: Após a abolição da escravatura com a Lei Áurea, em 1888, os libertos l ibertos passaram a fazer parte do regime de trabalho livre. O processo de transição, entretanto, não ocorreu de forma que protegessem os direitos de trabalho dos antigos escravos. Na procura por sobreviver, muitos escravos continuavam nas antigas fazendas, procuravam fazendas próximas ou mesmo mesmo optavam optavam pelo trabalho trabalho de artesões. artesões. Grande dificuldades dificuldades se deviam a mão de obra do estrangeiro, que à época, passou a ser a maioria da mão de obra. A falta de garantias do Estado no processo de transição: A desagregação do regime escravocrata escravocrata ocorreu sem que assistência e garantias que os protegessem na transição do trabalho livre. Os senhores de escravos foram eximidos de responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos. Nem o Estado ou a Igreja assumiram encargos para prepara-los para a transição. Com a abolição, os ex escravos tinham que optar entre a reabsorção no sistema de produção, em condições substancialmente análogas as anteriores, e a degradação de sua situação econômica, incorporando-se a massa de desocupados e semi desocupados da economia de subsistência. As alternativas da nova situação econômica brasileira comprometiam ou arruinavam a posição do negro nas relações de produção e como agente de trabalho (como a concorrência com o imigrante europeu). Assim se explica porque o clamor por medidas compulsórias, que obrigassem o ex escravo ao trabalho tr abalho e o protegessem, promovendo sua adaptação se tenha extinguido com relativa rapidez. Perdendo sua importância como mão de obra exclusiva, ele também perdeu todo o interesse que possuíra para as camadas dominantes. A legislação e os poderes públicos ativos da sociedade mantiveram-se indiferentes diante deste drama claramente reconhecido, “largando-se
o negro ao penoso destino que ele estava em
condições de criar por si e para si mesmo”.
“O liberto viu-se convertido, sumária e abruptamente, em senhor de si
mesmo, tornando-
se responsável por sua pessoa e por seus dependentes, embora não dispusesse de meios materiais e morais para realizar essa proeza nos quadros de uma economia competitiva.”.
A transição do trabalho escravo para o trabalho livre como um processo político: Vários projetos visavam regular, legalmente, a transição do trabalho escravo para o trabalho livre, desde 1823 até a assinatura da Lei Áurea, em 1888. Na década de 80, as fugas dos escravos tornam-se incontroláveis e os senhores voltam-se para os seus próprios interesses. A revolução abolicionista eclodiu, apesar de seu sentido humanitário, como um processo político e histórico de condenação ao antigo regime em termos de interesses econômicos, valores sociais e ideais políticos da “raça dominante.”. A participação do
negro no processo revolucionário chegou a ser atuante, mas, pela própria natureza de sua condição, não passava de uma espécie de aríete, usada como massa de percussão pelos brancos que combatiam o “antigo regime”. A estrutura dinâmica da economia brasileira não impunha às camadas dominantes outra orientação. Nas zonas onde a prosperidade econômica desaparecera, os senhores já haviam se desfeito de seus escravos. Para eles a abolição era uma dádiva: se desfaziam de obrigações onerosas ou incomodas. A concorrência: Além disso, os libertos tinham que concorrer com os chamados trabalhadores nacionais: que constituíam em um verdadeiro exército de reserva, e, principalmente, com a mão de obra importada da Europa. Os efeitos dessa concorrência foram altamente prejudiciais aos antigos escravos, que não estavam preparados para enfrenta-la. Mas correspondiam aos interesses dos proprietários de terras e donos de fazendas. O imigrante europeu absorveu as melhores oportunidades de trabalho
livre e independente, mesmo as mais modestas , como a de engraxar sapatos, vender jornais, verduras, transportar peixes, etc. Aos efeitos negativos, é preciso acrescentar outras influencias à rápida assimilação do negro a ordem social competitiva: a) A inclusão de São Paulo na economia de exportação colonial aconteceu tardiamente, somente no século XIX a cidade participa de prosperidade econômica, por isso, até essa época permaneceu acanhada e pouco diferenciada a esfera de serviços e trabalhos livres, ao contrário do que aconteceu em Recife e Rio de Janeiro. b) O êxito da competição dos libertos na área de trabalho livre também foi associado ao artesanato urbano que lhe deram oportunidade de ascensão econômica e social, já que os trabalhos comuns normalmente iam para os imigrantes europeus. c) São Paulo aparecia como o primeiro centro urbano especificamente burguês, permanecia uma mentalidade mercantil, pensava- se que o “trabalho livre”, que a “iniciativa individual” e o “liberalismo econômico” eram os ingredientes do progresso.
O ajustamento do liberto à vida urbana: O comportamento dos agentes conformava-se de modo crescente pelos padrões de “empresário e trabalhador”, este clima dava boa acolhida ao negro, que se abrigava como “protegido”, “dependente”, ou “cria da família”,
sob o manto das relações paternalistas. O negro apegava-se a modelos de ação variavelmente anti-capitalistas. As próprias condições psicossociais e econômicas, que cercam a emergência e a consolidação da ordem social competitiva em São Paulo tornavam-se improprias e até perigosas para a massa de libertos. De outro lado, as deformações introduzidas em suas pessoas pela escravidão limitavam sua capacidade de ajustamento a vida urbana, sob regime capitalista, impedindo-os de tirar algum proveito relevante e duradouro. Nessa fase de transição, viver na cidade pressupunha, para ele, condenar-se a uma existência ambígua e marginal. Em suma, a sociedade brasileira largou o negro ao seu próprio destino.
CAP. I: TRABALHO LIVRE E EUROPEIZAÇÃO Os dados demográficos do século XIX revelam que o elemento negro e mulato, escravo ou livre constituía aproximadamente 54% da população total. A situação se alterou de tal modo que o elemento negro e mulato se encontrava com 37% (1872) e 21,5% (1886) da população global da cidade. Enquanto os estrangeiros passam de 3% em 1854 para 25% em 1886. O aumento da população consignada como branca deveu-se, principalmente, a fixação em proporções maciças de imigrantes na cidade. Essa situação comportava um quadro demográfico próprio e acarretava consequências econômicas que precisam ser levadas em conta. Esboça-se um contraste nítido na composição da população segundo a cor entre a Capital e o Estado de São Paulo.
População Brancos Pretos Caboclos Mestiços Total
Estado de São Paulo 63% 12% 8% 15% 100%
Município de São Paulo 81% 6% 1% 9% 100%
Os Estrangeiros: Os 10 842 pretos e mestiços da cidade de SP, esbatiam-se contra 14 303 estrangeiros, ou seja, 22% da população local. A informação histórica sobre a concentração de negros e mulatos na cidade, logo após a abolição, são provavelmente verdadeiras. Doutro lado, os estratos da população branca sofreram alterações sensíveis, atingindo os estrangeiros predominância sobre os nacionais. (Estrangeiros: 54,6%, Nacionais: 45,4%). O fator humano preponderante passou a ser fator preponderante como agente de excelência do trabalho livre. Correspondiam a quase cinco vezes a população negra e mulata da cidade, como os brancos nacionais, existiam até mais imigrantes italianos na cidade, que brasileiros natos. Onde havia maior concentração de estrangeiros, era mínima a presença de negros e mulatos; e, ao inverso, onde havia maior concentração de negros e mulatos, era mínima a presença de estrangeiros. Os fazendeiros tinham maior confiança no trabalho do colono italiano, português e alemão. Com a universalização do trabalho livre, a abundancia crescente da mão de obra do colono fizeram com que ele, como trabalhador livre, eliminasse o negro mesmo nas ocupações para as quais eles se achavam adestrados e gozavam de alguma reputação favorável. “O imigrante aparece como
o lídimo agente de trabalho livre e assalariado, ao mesmo
tempo que monopoliza, praticamente, as oportunidades reais de classificação econômica e de ascensão social, aberta pela desagregação do regime servil e pela constituição da sociedade de classes.”. (Fernandes, p. 28).
Proletarização x criminalidade como meios de sobrevivência: Abrem-se, para o negro e o mulato, duas escolhas: dentro do caminho de classificação econômica e social pela proletarização, ou se incorporava à escoria do operariado urbano em crescimento ou abater-se, procurando na vagabundagem sistemática ou na criminalidade meios para salvar as aparências e a dignidade de homem livre. A natureza das reações: O branco contratava os trabalhadores em termos puramente mercantis, o que contava era o rendimento de trabalho, a observância das cláusulas dos contratos e o nível de remuneração desse fator da produção. Para o negro e o mulato, isso era secundário, como meros atributos do homem que fosse livre para vender e aplicar sua força de trabalho, mas o caráter essencial era a condição moral da pessoa e sua liberdade de decidir como, quando e onde trabalhar. Enquanto o estrangeiro via o trabalho assalariado como um meio de iniciar uma vida nova em uma nova pátria, o negro e o
mulato convertiam em um fim em si para si mesmo, como se nele e por ele provassem a dignidade e a liberdade da pessoa humana. Introduziam elementos morais no contrato de trabalho, altamente desfavoráveis em uma ordem social como aquela. Tornava-se difícil para o negro e o mulato dissociar o contrato de trabalho de transações que envolviam diretamente a pessoa humana. A recusa entre certas tarefas e exercícios, entre outros fatores, faziam com que o negro e o mulato se entrosavam a complexa situação humana com que defrontavam no regime de trabalho livre. Viram-se repudiados na medida em que pretenderam assumir o papeis de homem livre com demasiada ingenuidade. A transição na prática: Mesmo na vigência do regime servil, o ex-escravo, liberto de direito ou apenas de fato, aprendia que precisava contar com a própria força de trabalho para sua subsistência e da família. Tentava obter emprego com o antigo senhor ou em outra fazenda. Em regra, o liberto não ia para longe, retirava-se, as vezes, somente da fazenda em que sofreu no cativeiro e ia a outra fazenda próxima para prestar serviços. 1) Em regiões em decadência econômica, a transição operou sem comoções, os antigos escravos continuaram trabalhando nas fazendas como assalariados. 2) Onde havia mão de obra estrangeira os escravos quase nunca readmitiram os empregos, onde normalmente eram mandados embora, “pondo logo no luga r
o
colono italiano.”.
3) O comportamento dos antigos escravos foi encarado pelos fazendeiros como uma ingratidão, levando-os a agir com sede de represália ou a guardar ressentimentos. As dificuldades demonstram-se nestes três pontos, onde o liberto lutou para não ser posto à margem da vida econômica ativa, mesmo permanecendo nas ocupações que foram mais desagradáveis pela escravidão. Todo o processo orientava-se, pois, não no sentido de
converter, o liberto em trabalhador livre, mas de mudar a organização de trabalho para permitir a substituição do negro pelo branco. O trabalho livre não apenas expulsaria o trabalho escravo, no regime da livre iniciativa o branco iria, fatalmente, substituir o negro como agente de trabalho. O grande proprietário deu preferência ao imigrante, nas regiões onde isso não aconteceu, que ocorreu em menor escala, teve de apelar para os libertos ou para a mão de obra nacional. Isso deu origem a movimentos migratórios, onde negros e mulatos se deslocavam das áreas em que sofriam grande concorrência do imigrante branco para zonas de lavouras depauperadas. Em resumo, nem
o imigrante substituiu o negro, nem o negro largou sem mais nem menos suas posições na organização da economia, as fugas em massa e o deslumbramento com a liberdade e a abolição do cativeiro incentivaram deslocamentos maciços de negros. Todavia, em todos os episódios desse tipo se fazia sentir o influxo de reguladores econômicos que compeliam o negro a desenvolver ajustamentos que o reintegravam como artesão, assalariado, etc. As regiões de maior prosperidade econômica eram aquelas onde havia maior concentração de imigrantes e maior mobilidade de mão de obra negra. O abolicionismo em função de interesses políticos: A ideologia abolicionista foi contida ou manipulada estrategicamente em função dos interesses econômicos, sociais e políticos dos grandes proprietários. Os movimentos abolicionistas e as rebeliões nas senzalas deram um pano de fundo extremamente vantajoso aos círculos sociais que encontraram condições para canalizar e capitalizar as insatisfações contra o antigo regime. Romperam as barreiras que detinham o afluxo de mão de obra estrangeira, reprimiam o desenvolvimento do trabalho livre e paralisavam os surtos progressistas da livre iniciativa. Os grupos sociais que construíam a historia não precisavam lutar pela liberdade, segurança ou dignidade da pessoa, pois tudo isso já tinham. O que desafiava a imaginação criadora eram os dilemas de uma ordem econômica.