VICE-REITORIA DE ENSINO DE GRADUAÇÃO E CORPO DISCENTE
COORDENAÇÃO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
TEORIA DA LITERATURA II
Rio de Janeiro / 2007 TODOS OS DIREITOS RESERVADOS À UNIVERSIDADE CASTELO BRANCO
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U n3p
Universidade Castelo Branco. Teoria da Literatura II. – Rio de Janeiro: UCB, 2007. 112 p. ISBN XX-XXXXX-XX-X 1. Ensino a Distância. I. Título. CDD – 371.39
Universidade Castelo Branco - UCB Avenida Santa Cruz, 1.631 Rio de Janeiro - RJ 21710-250 Tel. (21) 2406-7700 Fax (21) 2401-9696 www.castelobranco.br
Responsáveis Pela Produção do Material Instrucional
Coordenadora de Educação a Distância Prof.ª Ziléa Baptista Nespoli
Coordenador do Curso de Graduação Denilson P. Matos - Letras
Conteudista Neuza Maria de Souza Machado
Supervisor do Centro Editorial – CEDI Joselmo Botelho
Apresentação
Prezado(a) Aluno(a): É com grande satisfação que o(a) recebemos como integrante do corpo discente de nossos cursos de graduação, na certeza de estarmos contribuindo para sua formação acadêmica e, conseqüentemente, propiciando oportunidade para melhoria de seu desempenho profissional. Nossos funcionários e nosso corpo docente esperam retribuir a sua escolha, reafirmando o compromisso desta Instituição com a qualidade, por meio de uma estrutura aberta e criativa, centrada nos princípios de melhoria contínua. Esperamos que este instrucional seja-lhe de grande ajuda e contribua para ampliar o horizonte do seu conhecimento teórico e para o aperfeiçoamento da sua prática pedagógica.
Seja bem-vindo(a)! Paulo Alcantara Gomes Reitor
Orientações para o Auto-Estudo
O presente instrucional está dividido em duas unidades programáticas, cada uma com objetivos definidos e conteúdos selecionados criteriosamente pelos Professores Conteudistas para que os referidos objetivos sejam atingidos com êxito. Os conteúdos programáticos das unidades são apresentados sob a forma de leituras, tarefas e atividades complementares. A Unidade 1 corresponde aos conteúdos que serão avaliados em A1. Na A2 poderão ser objeto de avaliação os conteúdos das duas unidades. Havendo a necessidade de uma avaliação extra (A3 ou A4), esta obrigatoriamente será composta por todos os conteúdos das Unidades Programáticas 1 e 2. A carga horária do material instrucional para o auto-estudo que você está recebendo agora, juntamente com os horários destinados aos encontros com o Professor Orientador da disciplina, equivale a 60 horas-aula, que você administrará de acordo com a sua disponibilidade, respeitando-se, naturalmente, as datas dos encontros presenciais programados pelo Professor Orientador e as datas das avaliações do seu curso.
Bons Estudos!
Dicas para o Auto-Estudo
1 - Você terá total autonomia para escolher a melhor hora para estudar. Porém, seja disciplinado. Procure reservar sempre os mesmos horários para o estudo. 2 - Organize seu ambiente de estudo. Reserve todo o material necessário. Evite interrupções. 3 - Não deixe para estudar na última hora. 4 - Não acumule dúvidas. Anote-as e entre em contato com seu monitor. 5 - Não pule etapas. 6 - Faça todas as tarefas propostas. 7 - Não falte aos encontros presenciais. Eles são importantes para o melhor aproveitamento da disciplina. 8 - Não relegue a um segundo plano as atividades complementares e a auto-avaliação. 9 - Não hesite em começar de novo.
SUMÁRIO
Quadro-síntese do conteúdo programático .....................................................................................................
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Contextualização da disciplina ............................................................................................................................
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UNIDADE I
A NATUREZA DO FENÔMENO LITERÁRIO
13 1.2 - O texto literário ....................................................................................................................................................... 14 1.3 - Discurso metonímico e discurso metafórico...................................................................................................... 15 1.4 - Mimésis..................................................................................................................................................................... 15 1.5 - A mimésis no fazer poético (Gênero Lírico)....................................................................................................... 16 1.6 - A mimésis na poesia épica (Gênero Épico / Narrativa Épica).................................................................... 16 1.7 - A mimésis no texto teatral (Gênero Dramático)................................................................................................. 16 1.8 - Do problema do trágico......................................................................................................................................... 16 1.9 - A mimésis na matéria ficcional (Ficção-Arte / Ficção Vertical)..................................................................... 17 1.10 - A mimésis na matéria ficcional paraliterária (Ficção Linear / Horizontal)................................................... 17 1.11 - A mimésis na matéria ficcional (Esquema Para a Compreensão do Assunto) .......................................... 18 1.12 - A mimésis na matéria ficcional cinematográfica.............................................................................................. 19 1.13 - Criação literária X Representação cinematográfica...................................................................................... 19 1.14 - Catársis.................................................................................................................................................................... 19 1.15 - Poiésis, tékcne, mimésis, mito....................................................................................................................... 21 1.16 - Conceito, função e valor da literatura............................................................................................................... 21 1.17 - Leitura: Partida do Audaz Navegante, de Guimarães Rosa...................................................................... 22 1.18 - Para o entendimento do valor da literatura ficcional de Guimarães Rosa .............................................. 25 1.19 - Leitura: Velhos Marinheiros (trecho) ........................................................................................................ 28 1.20 - Para o entendimento do valor da literatura ficcional de Jorge Amado .................................................. 28 1.21 - Leitura: O Cágado .......................................................................................................................................... 32 1.22 - Análise para a compreensão do conto O Cágado..................................................................................... 34 1.23 - Leitura: Os Laços de Família, de Clarice Lispector ..................................................................................... 35 1.24 - Leitura: O Ex-Mágico da Taberna Minhota, de Murilo Rubião................................................................ 38 1.25 - Leitura: Dôia na Janela, de Roberto Drummond ........................................................................................ 41
1.1 - A natureza do fenômeno literário.........................................................................................................................
UNIDADE II
GÊNEROS LITERÁRIOS
44 2.2 - Gêneros literários - histórico......................................................................................................................... 48 2.3 - Gênero lírico - fenômenos estilísticos ......................................................................................................... 51 2.4 - Para o entendimento da poesia lírica do século XX .................................................................................. 54 2.5 - Gênero épico - fenômenos estilísticos ......................................................................................................... 57 2.6 - O mito .................................................................................................................................................................... 59 2.7 - Folclore: ciência do saber popular ................................................................................................................... 61 2.8 - Formas da poesia clássica ............................................................................................................................. 61 2 .9 - Gênero dramático - fenômenos estilísticos ................................................................................................ 62 2.10- A tragédia grega ............................................................................................................................................. 63 2.11- A comédia grega ............................................................................................................................................. 63 2.12- Gênero narrativo ficcional ............................................................................................................................ 64 2.13- Padrões narrativos ......................................................................................................................................... 65 2.14- Estrutura tradicional da narrativa de ficção ................................................................................................ 66 2.15- As inovações estruturais da ficção pós-moderna ..................................................................................... 67 2.16 - A ficção paraliterária ..................................................................................................................................... 67 2.17- A crítica literária .............................................................................................................................................. 67 2.18- Reavaliando a atuação da crítica literária ................................................................................................... 75 2.19- Literatura comparada: sob o olhar crítico-comparativo de Marius François Guiard .......................... 83 2.1 - A problemática dos gêneros literários ........................................................................................................
2.20- Estudo comparativo: Édipo-Rei, de Sófocles X Antônio Marinheiro, o Édipo de
95 2.21- Pós-Moderno / Pós-Modernismo pelo ponto de vista de Nicolau Sevcenko........................................... 96 2.22- Pós-Moderno / Pós-Modernismo pelo ponto de vista de Jair Ferreira dos Santos................................ 98 2.23- Pós-Moderno / Narrativas.............................................................................................................................. 101 Alfama, de Bernardo Santareno .................................................................................................................
2.24- Sobre o marxismo independente de Georg Lukács como auxiliar nos estudos de 2.25- Imaginação e mobilidade pelo ponto de vista de Gaston Bachelard ................................................
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Referências bibliográficas .................................................................................................................................
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literatura pelo ponto de vista de Teofilo Urdanoz ...........................................................................
Quadro-síntese do conteúdo programático UNIDADES DO PROGRAMA
I - A NATUREZA DO FENÔMENO LITERÁRIO
OBJETIVOS ESPECÍFICOS
• Levar ao aluno informações que definem a
-
Como definir natureza e fenômeno?
situação do texto literário (Arte Literária),
-
Como avaliar como arte o texto literário?
chamando a atenção para os aspectos que
-
Discurso metonímico e discurso metafórico
possam orientar teoricamente e criticamen-
-
A mimésis no fazer poético
te suas leituras;
(gênero lírico) -
A mimésis na poesia épica (gênero épico)
-
A mimésis no texto teatral (gênero dramático)
-
A mimésis na narrativa ficcional
• Possibilitar ao estudioso da literatura a faculdade de analisar a obra-dearte literária e reconhecer (fenomelogicamente) a natureza do fenômeno literário.
(gênero narrativo em prosa) -
A mimésis na matéria ficcional cinematográfica
-
Criação literária X representação cinematográfica
-
Catársis
-
Poiésis, tékcne, mimésis, mito
-
Conceito, função e valor da literatura
-
Leituras (de textos literários ficcionais)
-
Leituras (de textos ensaísticos)
II - GÊNEROS LITERÁRIOS -
A questão dos gêneros literários
-
Histórico
-
Gênero lírico
-
Gênero épico
-
Gênero dramático
-
Gênero narrativo ficcional
-
Gênero paraliterário
-
Crítica literária
-
Literatura comparada
-
Literatura pós-moderna
-
Conceito marxista X literatura
-
Filosofia bachelardiana X imaginação literária
• Levar o aluno a reconhecer no texto literário a categoria genérica do mesmo.
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Contextualização da Disciplina A disciplina Teoria da Literatura II visa reafirmar o leque de informações que foi utilizado no decorrer do curso de Teoria da Literatura I e, ao mesmo tempo, contribuir com novas orientações teórico-críticas que possam alargar o conhecimento do aluno, para que ele possa interagir com as disciplinas afins que se sucederão, tais como Literatura Brasileira, Literatura Portuguesa, Literatura Espanhola, Literatura Inglesa e outras. Este conhecimento somar-se-á ao conhecimento preliminar do curso anterior, pois, além de explorar todas as possibilidades e fundamentos da Teoria Literária, além do reconhecimento do papel da mímesis no fenômeno literário, o aluno continuará a ter condições de se disciplinar a estudar, agora com maior empenho, e continuar a desenvolver o senso crítico no intuito de prosseguir em estudos posteriores, tais como Cursos de PósGraduação Lato Sensu em Teoria Literária e Literatura propriamente dita, seja ela brasileira ou estrangeira, ou mesmo em Cursos de Pós-Graduação Stricto Sensu, ou seja, um Mestrado e, posteriormente, um Doutorado. As informações contidas nesta disciplina e tendem a provocar no aluno a continuação do gosto pelo crescimento intelectual e levá-lo a pesquisas posteriores, desenvolvendo e ampliando o seu conhecimento ao longo do tempo. Sem esse conhecimento avançado, o aluno não conseguirá atingir o necessário suporte para o seu desenvolvimento intelectual, ético e profissional.
UNIDADE I A
NA TUREZA NATUREZA
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DO
FENÔMENO
LITERÁRIO
1.1 – A Natureza do Fenômeno Literário (Conferir: In.: SAMUEL, Rogel (Org.). Manual de Teoria Literária. CASTRO, Manuel Antônio de. A Natureza do Fenômeno Literário. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 30). NATUREZA “preocupação de compreender a especificidade do literário” ESPECIFICIDADE essência, substância, “aquilo que faz com que uma coisa seja aquilo e não outra”.
Especificidade do Literário Idade Antiga (Gregos) “O estudo da literatura era feito através das poéticas e das retóricas, num sentido formal, que não colocava em questão a natureza do conhecimento, pois este problema era do âmbito da filosofia. Daí a infinidade de interpretações do texto aristotélico, porque sua poética, além dos aspectos formais, pressupõe o seu conceito filosófico do conhecimento” (Manuel Antônio de Castro, Manual de Teoria Literária, op. cit., p. 38).
Vocabulário (Cf.: Dicionário) POÉTICA • Arte de fazer versos; • Teoria da versificação; • Literatura: Crítica literária que trata da natureza, da forma e das leis da poesia; • Literatura: Estudo ou tratado sobre a poesia ou a estética. ESTÉTICA • Filosofia: Estudo das condições e dos efeitos da criação artística; • Filosofia: Tradicionalmente, estudo racional do belo, quer quanto à possibilidade da sua conceituação, quer quanto à diversidade de emoções e sentimentos que ele suscita no homem; • caráter estético; • beleza (exemplos: “a estética de um monumento”, “a estética de um gesto”); • beleza física; • plástica (exemplo: “Ia à praia para apreciar a estética das garotas”).
BELO • Que tem forma perfeita e proporções harmônicas (exemplos: “Sonho o que jamais pude: / – Belo como Davi, forte como Golias...” BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira, p. 29); • Que é agradável aos sentidos; • Elevado; sublime; • Majestoso, grandioso, imponente; • ARTE; • ESTÉTICA; • Estética (Filosofia): Qualidade atribuída a obras humanas – sendo discutível, se aplica também à natureza – que por isso são dotadas de caráter estético. Esta qualidade se anuncia por meio de fatores subjetivos (emoção estética, sentimento e percepção do belo, e todos os fenômenos psicológicos ligados à sua criação) que levam à busca da definição das demonstrações concretas que suscitam (a análise das obras de arte, dos conceitos de gosto, harmonia, equilíbrio, perfeição, etc.). RETÓRICA [do grego rhetoriké (subentende-se téchne), “a arte da retórica”] • Eloqüência; oratória; • Conjunto de regras relativas à eloqüência; • Tratado que encerra essas regras; • Adornos empolados ou pomposos de um discurso; • Discurso de forma primorosa, porém vazio de conteúdo. ELOQÜÊNCIA [do latim eloquentia] • Capacidade de falar ou exprimir-se com facilidade; • A arte e o talento de persuadir, convencer, deleitar ou comover por meio da palavra; • Qualidade de persuasivo, expressivo, convincente, eloqüente (ex.: “a eloqüência do olhar”); • Retórica: a arte de bem falar. ORATÓRIA [do latim oratoria] • Arte de falar ao público. ESPECIFICIDADE DO LITERÁRIO “A conceituação da palavra especificidade (do literário) pelo ponto de vista cientificista, analisando
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apenas as linhas do texto, impõe ao estudioso da literatura um entendimento fechado, estático, formal. A literatura (literatura-arte) torna-se simplesmente um objeto, não há como desenvolver uma apreciação reflexiva que revele o lado oculto do texto, elimina-se a idéia de compreensão das camadas profundas do texto (texto-arte ou texto-obra) uma vez que o analista se vê obrigado a analisar apenas as camadas expressivas do discurso literário. Pelo ponto de vista fenomenológico, observa-se a literatura-arte como um fenômeno, em princípio, estático, como é visto pelos cientificistas, mas, logo a seguir, tal fenômeno torna-se dinâmico, graças à compreensão e ao conhecimento do leitor, quando
1.2 – O
este empreende um estudo consciente das mensagens interlineares, mensagens reveladoras, produtoras de novos conhecimentos, mensagens que estarão sempre e sempre se renovando, pois, com o passar do tempo, novos leitores estarão em comunhão anímica com tais textos (textos-arte, que fique bem entendido), desenvolvendo renovados diálogos ao longo dos séculos (pelo menos, enquanto tais textos existirem).” (MACHADO Neuza. Apontamentos de Teoria Literária e Crítica Literária, 2007, no prelo) FENÔMENO – aquilo que se manifesta [o já manifestado (estático) e o que ainda está se manifestando (dinâmico)].
Texto Literário
(Conferir: In: SAMUEL, Rogel (org.). Manual de Teoria Literária. CASTRO, Manuel Antônio de: A Natureza do Fenômeno Literário. Petrópolis: Vozes, 1999, pp.31-32) Objeto da Teoria e da Crítica Objeto da Literatura
Literatura
Texto
O que é um texto? 1o ) Texto vem do verbo tecer = entrelaçamento de linhas (orações, períodos); 2o ) TEXTO / FORMATO - A disposição das linhas e seu entrelaçamento; - a ocupação e disposição espacial. FORMATO = FORMA FORMATO diagramação; ilustração harmonia. Exemplo: Literatura Infantil. a obra enquanto apresentação. apresentação da obra / texto-formato: “surge como um esforço de integração entre as facetas do formato e da forma”. FORMA É o texto propriamente dito. 3 ) texto = tecido de signos expressa a relação do homem com as realidades e dos homens entre si.
“Há inúmeras correntes teórico-críticas formalizando idéias de como interagir com o texto literário; há formas teóricocríticas cientificistas de como recortar o texto, seja ele paraliterário ou texto-arte, e deter-se em um dos referentes, para investigá-lo, mas, subentendido, os outros dois sempre estarão presentes. É importante que os três referentes estejam sempre interligados, para que o leitor possa desenvolver uma análise consciente do que se encontra visível no objeto de sua investigação (ponto de vista cientificista). Mas, o entendimento e/ou reconhecimento das entrelinhas (o que se encontra invisível no texto-arte), desenvolvido por intermédio do CONHECIMENTO particular de cada leitor (ponto de vista fenomenológico), é algo que a investigação cientificista não poderá alcançar.” (MACHADO Neuza. Apontamentos de Teoria Literária e Crítica Literária, op. cit.) TODO TEXTO É O RESULTADO DE UMA LEITURA LEITOR + TEXTO = relação objetiva e subjetiva. LEITURA = PRODUTIVIDADE (como modalidade de relação radical do homem com a realidade). TEXTO = elaboração humana, trabalho. TRABALHO = ação humana (pela qual o homem textualizando, significando, o real se significa). Por um lado:
o
TEXTO = HOMEM + REALIDADE + EXPRESSÃO
Esta elaboração humana só encontra sua plenitude na medida em que, ao elaborar, ele colabora (pressupõe o outro, socializa).
Ação humana: o homem, textualizando, significando o real se significa.
TEXTO AÇÃO SIGNIFICATIVA
= TRABALHO
Ação humana: ao elaborar (o texto como trabalho) o homem colabora (pressupõe o outro, socializa-se). LEITURA - Supõe colaboração, porque o texto não se lê, o instrumento não se lê; - Pressupõe o outro; - Pressupõe colaboração.
Uma fotografia, uma estátua, um instrumento, etc., é um texto / expressa uma relação do homem com o real.
Por outro lado: Tal noção evidencia que o texto não se limita ao escrito, implicando sobretudo o oral.
(Literário = Literatura - Arte)
1.3 -
Discurso Metonímico e Discurso Metafórico
Discurso: Qualquer manifestação concreta da língua; qualquer manifestação por meio da linguagem, em que há predomínio da função poética; etc. Discurso Metonímico: Discurso próprio de um tropo que consiste em designar um objeto por uma palavra designativa doutro objeto que tem com o primeiro uma relação de causa e efeito. Por ex.: trabalho por obra; copo por bebida, etc.
1.4
Entre tantas modalidades de texto, quando um texto é especificamente literário?
-
Discurso Metafórico: Discurso figurado. Discurso próprio de um tropo que consiste na transferência de uma palavra para um âmbito semântico que não é o do objeto que ela designa, e que se fundamenta numa relação de semelhança subentendida entre o sentido próprio e o figurado. Por exemplo: chamar uma pessoa astuta de raposa; nomear a juventude como primavera da vida, etc. Tropo: Emprego figurado de palavra; figura de linguagem.
Mimésis
“A mimésis é um termo grego geralmente traduzido como imitação. Imitação em que sentido? Até hoje são controvertidas as interpretações. E isso não é tão difícil de entender, uma vez que é um conceito que faz parte dos dois maiores sistemas filosóficos gregos: o platônico e o aristotélico. Assim sendo, qualquer interpretação implica sempre um determinado posicionamento a respeito e dentro de tais sistemas. Não é um conceito literário, porém um conceito filosófico para explicar a arte” (Conferir: CASTRO, Manuel Antônio de Castro. In.: SAMUEL, Rogel. Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, op. cit., pp. 56 - 57). “A mimésis inventa, na ambigüidade do literário, uma problematização profunda sobre o que seja verdade. Em outras palavras, põe uma relação inseparável
entre discurso e espaço: o mundo. (...) As chamadas proposições elementares descrevem o mundo e a totalidade dos fatos. O que aparece e o que o possibilita. O mundo totalmente descrito nos estados de coisas, a mimese. O fato (o que ocorre) existe nos estados de coisas, compreendidos como ligações entre coisas. Põe a realidade inteira e possibilita qualquer realidade. O mundo se constitui pelos fatos e se descrê pelas proposições, mas, por outro lado, as proposições constroem o mundo com a ajuda da “forma lógica”. A totalidade dos fatos empíricos se representa como estado de coisas, ou conjunturas, no espaço lógico pelos outros fatos do discurso. Esta “forma lógica” é a capacidade mimética do discurso” (Conferir: CASTRO, Manuel Antônio de Castro. In.: SAMUEL, Rogel. Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, op. cit., p. 16).
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1.5 - A Mimésis no Fazer Poético (Gênero Lírico) “A mimésis está estreitamente ligada à metáfora como núcleo do fazer poético. O poeta, ao elaborar suas obras, mais do que ninguém, sabe que a matéria que ele molda é a palavra. Como ele trabalha a palavra? São muitas as maneiras de moldar os signos verbais, de tal maneira que não há um só grande poeta que no todo da sua obra não reserve explicitamente um espaço a este problema, não dê uma forma teórica, discursiva, porém, através de poemas cujo tema é poetar (ver, por exemplo, em Carlos Drummond de Andrade “O Lutador”, “Procura da poesia”, em Cecília Meireles “Motivo”, etc.). É um equívoco reduzir tal fazer à chamada
metalinguagem. Realmente, é uma reflexão poética sobre a natureza e alcance da mimésis. Por que a mimésis é a imitação de quê? O poeta, consciente do seu fazer, no e pelo poetar, pergunta-se sempre com que imita? (...) O problema mimésis diz, portanto, respeito a quem imita, com que imita, o que imita e em que circunstâncias. Se fizemos alusão a uma poética explícita, devemos, agora, afirmar que, ao considerar todas essas dimensões da mimésis, toda obra realmente literária [literatura-arte] é uma completa e total poética implícita” (Conferir: CASTRO, Manuel Antônio de Castro. In.: SAMUEL, Rogel. Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, op. cit., p. 16).
1.6 - A Mimésis na Poesia Épica (Gênero Épico / Narrativa Épica) “A mimésis na poesia épica (ou narrativa em versos) só poderá ser reconhecida pelos postulados platônicos, ou seja, a mimésis como reprodução (cópia) das duas realidades conhecidas pelos antigos gregos: a histórica e a mítica (ambas lineares). A idéia de mimésis como recriação da realidade, ou de realidades, um conceito moderno,
só começou a ser aventada a partir do surgimento do Gênero Narrativo Ficcional, um fenômeno da Era Moderna (outros nomes que designam o Gênero Narrativo Ficcional: narrativa em prosa, narrativa vertical, narrativa complexa)” (MACHADO Neuza, Apontamentos de Teoria Literária e Crítica Literária, op. cit.).
1.7 - A Mimésis no Texto Teatral (Gênero Dramático) “A mimese no texto do escritor teatral (dramaturgos, comediógrafos), considerado pelos críticos como texto-arte (mimese como recriação da realidade), só poderá ser detectada no texto escrito, ao relacionarse com a catarse indireta (compreensão do leitor). Os textos teatrais necessitam, ao se trasladarem para o palco, do auxílio dos atores (os quais vão interpretar o texto do escritor dramático, seja uma
tragédia ou uma comédia, por meio do diálogo e das expressões corporais), para, com isso, alcançar a compreensão do espectador (catarse direta, aquela que ocorre instantaneamente, entendimento imediato do que se passa no palco)”. (MACHADO Neuza. Apontamentos de Teoria Literária e Crítica Literária, op. cit.)
1.8 - Do Problema do Trágico “Sendo de natureza complexa, o trágico, segundo Lesky, é difícil de ser definido. O problema se apresentou, na tragédia grega, porque, por mais vastos que foram os espaços, atingidos pelos tragediógrafos da época, os mesmos partiam sempre do fenômeno da tragédia épica e a ela se voltava. As manifestações mais antigas do saber trágico têm sua gênese em Homero, nas Edas (edas = narrativas mitológicas dos povos nórdicos), nas Sagas dos islandeses, nas lendas heróicas de todos os povos do Ocidente à China. No cerne dessas manifestações, observa-se sempre a figura do herói inabalável, radioso, vencedor, repleto de glória, ostentando suas armas (geralmente mágicas) e proezas incontáveis,
jamais vistas. Por tudo isso, o que poderemos dizer, a respeito do problema do trágico, é que as tragédias antigas (que foram escritas para serem representadas em palcos, para platéias específicas, e serem apreciadas apenas pelos espectadores daquela época, uma vez que, tais textos, ao se trasladarem para o palco, ficaram vinculados à realidade daquele momento) se originaram de uma fusão entre os Gêneros Épico e Lírico. Enquanto Poesia Trágica (hoje, se diz Gênero Dramático modalidade tragédia, para diferenciarmos do Gênero Dramático modalidade comédia), o herói trágico guarda uma certa semelhança com o herói épico (matéria épica), mas resguardando também uma grande influência de alguns dos fenômenos estilísticos da matéria lírica. A
poesia trágica, aquela que foi representada por atores antigos, em antigos palcos da Grécia e de Roma, ficou imobilizada no passado dos gregos e romanos, só a conhecemos por meio de leituras, ao lermos, por exemplo, o Édipo Rei de Sófocles e outros textos de tragediógrafos famosos. Mas, ao desenvolvermos tais leituras, a catarse (que faz parte da mimese do literário) que se sobressai é a da criação ficcional, catarse indireta, já que se vale da leitura, da compreensão e
do conhecimento do leitor. Aqui, vale lembrar que a verdadeira catarse do Gênero Dramático é direta, pois deve ocorrer instantaneamente no espectador, graças à tensão acumulada ao longo da apresentação teatral.” (MACHADO Neuza. Apontamentos de Teoria Literária e Crítica Literária, op. cit., no prelo) (Conferir também: LESKY, Albin. A Tragédia Grega. São Paulo: Perspectiva, 1971.)
1.9 - A Mimésis na Matéria Ficcional (Ficção-Arte / Ficção Vertical) “Para responder afirmativamente, não podemos separar os três pólos de referência: quem imita, com que imita, o que imita. Também não podemos separar o imitador, a imitação, o imitado. Porque tal denominação e percepção é já o resultado do processo mimético, ou seja, entender o que imita é penetrar na ação do imitador imitando, é compreender que o homem se revela revelando o real em realidades significadas: a força desse processo revelador é a mimésis. Tal fazer opera-se no processo de metaforização. Releve-se que o que imita nem sempre e nem só diz respeito ao que é externo ao homem. Ele revela igualmente as realidades internas e inconscientes do homem. Por isso, não podemos confundir realidades, sejam externas, sejam internas, com o real. O real é a verdade da ficção, como não pode ser dita, revela-se fingida, quando então ela é
mais verdadeira. (...) O momento histórico, com seus problemas e dados, as estratificações sociais sedimentadas pela tradição, as relações de produção bem como os impulsos, as manifestações dos desejos, o sistema de produção de relações ancorado na repressão socialmente aberta ou camuflada e inconsciente, tudo isso é o material dado, com o qual o autor exerce a força da mimésis. Quando o literário rompe todo esse cerco, esse limite, então o ilimitado, a mimésis aconteceu. Acontecer é deixar o real se revelar. O vigor de manifestação é a mimésis. O meio de manifestação é a metáfora e a mimésis, o seu vigor. Nesse fazer, o poeta [e/ou o ficcionista] se exerce historicamente, manifestando a sua historicidade.” (CASTRO, Manuel Antônio de. In: SAMUEL, Rogel (Org.); op. cit. pp. 58-59)
1.10 - A Mimésis na Matéria Ficcional Paraliterária (Ficção Linear / Horizontal) “O processo paraliterário se constituiria por uma operação imitativa do processo literário. Imitando o processo literário de criação da realidade ficcional, o processo paraliterário procura o fundamento semiológico que lhe permitirá converter-se em discurso. Uma vez convertido em discurso, o processo paraliterário assumiria a lógica significante literária através do investimento semiológico do espaço, do personagem, do acontecimento. Mas ao invés da elaboração no nível do imaginário para a criação de uma matéria romanesca, o discurso paraliterário reduplica a estrutura ficcional ao nível da realidade objetiva. Desse modo, preenchendo a estrutura ficcional com as relações concretas do mundo, simula uma ficção da estrutura de realidade. Inserindo a realidade objetiva na estrutura ficcional, o discurso paraliterário atrela o relato a uma estrutura romanesca.” (Conf.: SILVA, Anazildo Vasconcelos da. Cultura de Massa e Cultura Popular. In.: SAMUEL, Rogel (Org.)
Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, op. cit., pp. 170 - 171) “Se imita o já revelado, o já culturalmente instituído, o que já denominamos como realidades, então não imita, mas repete ou copia.” (Conferir: Manuel Antônio de Castro. A Natureza do Fenômeno Literário. In.: SAMUEL, Rogel (Org.). Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 58) “Portanto, a mimese na matéria ficcional paraliterária só poderá ser reconhecida de acordo com os postulados platônicos, postulados antigos, os quais ainda estavam presos à idéia de mimese como reprodução da realidade, ou seja, como cópia da realidade. Como exemplo, poderemos repensar os textos das novelas da televisão e/ou do cinema, os quais dependem também das imagens televisivas, para reforçarem o texto paraliterário. Assim, é bom esclarecer, desde já, que as grandes obras literárias, de autores reconhecidos pela crítica literária, ao se
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trasladarem para a televisão e/ou o cinema, exigem que sejam adaptadas, ou seja, necessitam de pessoas especializadas em adaptação de grandes obras literárias, e, com isso, tornam-se lineares, são banalizadas, propensas, inclusive, a perderem
o valor artístico, se por ventura, no futuro, os textos originais forem perdidos.” (MACHADO Neuza. Apontamentos de Teoria Literária e Crítica Literária, op. cit.)
1.11 - A Mimésis na Matéria Ficcional (Esquema para a Compreensão do Assunto) PLANO REAL = FÍSICO (ou seja, A CRIAÇÃO FICCIONAL no âmbito da realidade) MIMÉSIS: - PLANO DA CRIAÇÃO = MUNDO DA CRIAÇÃO ARTÍSTICA = MUNDO IDEALIZADO CATÁRSIS: - CATÁRSIS INDIRETA: PLANO DA VERDADE MANIFESTATIVA DA ARTE FICCIONAL (diferente da Catársis Direta, privilégio do Gênero Dramático/Palco) - ROMPIMENTO DAS BARREIRAS DO IMAGINÁRIO (grau mais acabado da libertação promovida pela Criação Artística Ficcional) APOGEU DA CRIAÇÃO ARTÍSTICA FICCIONAL = NASCIMENTO / ARTE LITERÁRIA PLANO DA CRIAÇÃO /NARRATIVA FICCIONAL = GÊNERO NARRATIVO FICCIONAL MIMÉSIS = CRIAR = NARRATIVA FICCIONAL /ARTE: - TENSÃO (com respeito aos Fonemas e à Semântica, ao nexo, ao som, ao sentido) - ESPAÇO DO IMAGINÁRIO (DINÂMICO) imaginação (banal, sem criatividade) - ESPAÇO METAFÓRICO - ESPAÇO DE GESTAÇÃO (criatividade em alto nível) IMAGINAÇÃO PRODUTIVA X PERCEPÇÃO ESTÉTICA MANIFESTAÇÃO DA ARTE FICCIONAL (único plano visível / camada visível) MANIFESTAÇÃO DA LITERATURA (em todos os graus, do paraliterário ao artístico) A MANIFESTAÇÃO DEPENDE DA FORMA (texto escrito) - PLANO DA LINGUAGEM, DO TEXTO, DO ARTISTA, DO LEITOR - ÚNICO PLANO VISÍVEL - PLANO DA MANIFESTAÇÃO DA ARTE LITERÁRIA (ou não) - PLANO DO TEXTO (artístico ou técnico) PLANO DA REPRODUÇÃO /NARRATIVA FICCIONAL = GÊNERO PARALITERÁRIO MIMÉSIS = RECOPIAR = NARRATIVA FICCIONAL PARALITERÁRIA (LINEAR) - TENSÃO (entre Matéria e Forma) - DESREALIZAÇÃO OPERADA PELA LINGUAGEM (cujo propósito é criar um mundo de possibilidades e experiências alternativas) - PLANO DA IMAGINAÇÃO (imaginação reprodutiva; cópia da realidade; percepção cotidiana) - ESPAÇO DA CONCEPÇÃO (seja da Ficção-Arte, seja da Ficção Paraliterária Ambas dependem do Plano da Reprodução. Na Ficção-Arte sempre constará a presença do Plano da Reprodução. A Ficção Paraliterária não alcança o Plano da Criação. - ESPAÇO DO TEXTO TÉCNICO (Paraliteratura = Literatura de Informação e Literatura de Imaginação) PLANO DA MATÉRIA = PLANO DA REALIDADE OBJETIVA/ Suporte material do Ficcionista - PLANO DA REALIDADE OBJETIVA (interna e externa); - PLANO DA LÍNGUA (matéria cultural, pois que criada pela sociedade).
OBSERVAÇÃO: Recomenda-se ao analista e/ou intérprete observar o esquema de baixo para cima.
1.12 - A Mimésis na Matéria Ficcional Cinematográfica “A mimese, nos textos ficcionais escritos para serem, posteriormente, transformados em películas cinematográficas, poderá ser descrita pelo ponto de vista platônico, ou seja, a literatura, ali embutida, será sempre linear, horizontal. Jamais, os textos cinematográficos, aqueles adaptados única e exclusivamente para a tela de cinema, no que se refere à arte propriamente dita, poderão alcançar, no futuro, o reconhecimento como Arte Literária. Isso, porque o cinema visa o reconhecimento no presente, pelo espectador do presente. As películas cinematográficas só alcançam impacto (catársis direta) no momento em que são lançadas ao público, uma vez que foram direcionadas ao espectador da época de sua atuação. Com o passar dos anos, os filmes perdem o
impacto produzido em suas épocas e passam a serem vistos como reminiscências, como reproduções de realidades cinematográficas do passado, mesmo de um passado próximo. Por exemplo, os filmes americanos dos anos trinta do século XX já não causam impacto aos espectadores atuais, quando muito, são cultuados, por alguns aficcionados por cinema, como peças raras do repertório cinematográfico. (Ver os filmes de Charles Chaplin, O Gordo e o Magro, os filmes do faroeste americano, os filmes de Elvis Presley, os filmes de Ingmar Bergman, etc.).” (MACHADO Neuza. Apontamentos de Teoria Literária e Crítica Literária, op. cit.)
1.13 - Criação Literária X Representação Cinematográfica Interioridade x Exterioridade Eu x Outro A vida X A continuação da vida Cada época prioriza uma forma e um gênero, na multiplicidade de opções que se lhe oferecem, para exprimir a sua angústia e a sua visão das coisas.
Final do Século XIX ao Século XX 1a Fase do cinema - Irmãos Goncourt Sociedade das Transformações Momento da tecnologia da captação e da reprodução da imagem. Cinema - momento de transição?
CINEMA: 1a FASE A linguagem cinematográfica, criada no século XIX, expressa um determinado momento da sociedade. Idade Atiga: palavra + imagem = SAGRADO Sociedade Burguesa (comércio e indústria) Serviu-se da pintura e da literatura.
FIM.
//
COMEÇO
Para o entendimento do assunto ATENÇÃO!!! Cinema: Atende a demanda da sociedade de cada momento
1.14 - Catársis “A catársis está profundamente relacionada com a mimésis, daí também ser uma questão controvertida e com múltiplas interpretações. O problema surge quando Aristóteles na Poética, ao definir a tragédia, alude aos efeitos que ela produz nos espectadores: “A tragédia é uma imitação da ação, elevada e completa, dotada de extensão, numa linguagem temperada, com formas diferentes em cada parte, atuando os personagens, e não mediante narração, e que, por meio da compaixão e do temor, provoca a purificação de tais paixões” (ARISTÓTELES, 1974: 145).
Como o efeito da catársis se dá no leitor, tende-se a encaminhar o seu entendimento por esse referente. Ora, para que produza algum efeito, a catársis deve necessariamente fazer parte da natureza do fenômeno literário e como tal deve ser pensada. Normalmente, tal não acontece. Se a transformação se opera no leitor, tende-se a examinar o caráter de suas reações e assim definir a catársis. Tal processo cria uma dicotomia entre o fenômeno literário e a catársis. O inconveniente de tal separação é querer pautar o fenômeno literário pelos valores morais ou, inversamente, atribuir ao literário determinados valores a serem concretizados ideologicamente, isto é, valores moralistas. (...)
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A catársis não pode ser conceituada apenas pela ótica do leitor, pois ela faz parte da natureza do fenômeno literário, estando intimamente ligada à mimésis na manifestação da poiésis. Quando a mimésis está inteiramente desabrochada, há catársis, ela é a experiência operada pela arte, de totalidade, no sentido subjetivo e objetivo. Catársis é a mimésis na plenitude de seus elementos, agindo em seu grau máximo de estruturação, é vencer e ultrapassar os limites dos elementos. “O grau máximo mais acabado de libertação promovida pela criação artística? Onde a mimésis instaura o valor, que constitui um apelo de todos os homens? Aristóteles chama de catársis” (PORTELLA, 1973: 34). A tragédia, como modalidade do drama, tematiza tensionalmente em situação limite, daí podendo decorrer mais nitidamente a catársis. Porém, toda arte opera a catársis, pois ela enche o homem de um prazer (paz) tal cujo nome é plenitude.”
CATÁRSIS / RENASCIMENTO (posição errada) MORALISTA (TRAGÉDIA: purificação, mera lição CATÁRSIS
RACIONALISTA (conceito desatualizado) opera a clarificação racional das paixões levada a cabo pela poesia trágica; o espectador, vendo o que se passa no palco, racionaliza sua sujeição às mesmas desventuras, preparando o espírito em conformidade com semelhantes coisas.
(CASTRO, Manuel Antônio de Castro. “A Natureza do Fenômeno Literário”. In.: SAMUEL, Rogel (Org.). Manual de Teoria Literária. 12.ed. Petrópolis: Vozes, op. cit., pp. 59-61)
conduziria o homem ao equilíbrio da vida iluminada pela razão (ILUMINISMO)
CATÁRSIS = Purificação (conceito já desatualizado) IDADE ANTIGA Aristóteles (Poética), ao definir a tragédia, alude aos efeitos que ela produz nos espectadores. “A tragédia é uma imitação da ação, elevada e completa, dotada de extensão, numa linguagem temperada, com formas diferentes em cada parte, atuando os personagens e não mediante narração, e que, por meio da compaixão e do temor, provoca a purificação de tais paixões.” (CASTRO, op. cit.: 5960) CATÁRSIS relacionada com a MIMÉSIS - Ocorre no Leitor CATÁRSIS - “como o efeito se dá no leitor [na tragédia, no espectador], tende-se a encaminhar o seu entendimento por esse referente (o leitor).” (Ibidem: 59-60) CATÁRSIS: faz parte do FENÔMENO LITERÁRIO e como tal deve ser pensada. FORA DO LITERÁRIO (se dá no leitor) CATÁRSIS DENTRO DO LITERÁRIO (o literário produz algo no leitor)
de moral – conceito desatualizado)
TRAGÉDIA (Renascimento) (POSIÇÃO ERRADA)
DICOTOMIA
centralizada no espectador: purificação, alívio (identificação) TRAGÉDIA CATÁRSIS fora do espectador: purificação, alívio (não-identificação) CATÁRSIS termo técnico usado pela medicina do tempo de Aristóteles, significando purgação . na linguagem religiosa, no tempo de Aristóteles, significava expiação, purificação com o passar do tempo, houve entrelaçamento semântico. Ex.: purgar os pecados (PURGATÓRIO) CATÁRSIS: Posição Atual “Não pode ser conceituada apenas pela ótica do leitor, pois ela faz parte da natureza do fenômeno literário, estando intimamente ligada à mimésis na manifestação da poiésis” (Ibidem: 60).
1.15 - Poiésis, Tékcne, Mimésis, Mito POIÉSIS = Produção, criação, passagem do estado de não ser para o estado de ser.
de determinado fenômeno, ser vivo, acidente geográfico, instituição, costume social, etc. (por exemplo, o mito da criação do mundo);
POIÉSIS (HISTÓRICO): Para os gregos antigos, a poiésis não era produção de algo a partir do nada (o que era desconhecido para eles), mas uma transformação de algo em alguma coisa, que assume uma forma, um aspecto novo, como uma pedra transforma-se em estátua.
• Representação de fatos e/ou personagens históricos, freqüentemente deformados, amplificados através do imaginário coletivo e de longas tradições literárias orais ou escritas (por exemplo, o mito em torno de Tiradentes);
TÉCKNE = Produção (sabe o porquê do que faz ou produz). Espécie de poiésis com o conhecimento das razões daquilo que produz. Exemplo: o escultor dá forma à matéria.
• Exposição alegórica de uma idéia qualquer, de uma doutrina ou teoria filosófica; // fábula; // alegoria (p. ex., o mito da utopia, de More; o mito da caverna, de Platão);
MIMÉSIS E MITO = Elementos da Arte.
• Construção mental de algo idealizado, sem comprovação prática; // idéia; // estereótipo (por exemplo, o mito do detetive infalível; o mito do bom selvagem);
MIMÉSIS = Revelar, representar, imitação da ação. MITO (Etimologia latim mÿthos ou mÿthus; grego mûthos) • Fábula; // História // Relato; // Discurso; // Palavra • Relato fantástico de tradição oral, geralmente protagonizado por seres que encarnam, sob forma simbólica, as forças da natureza e os aspectos gerais da condição humana (por exemplo, as lendas dos índios do Xingu); • Lenda, // fábula, // mitologia; • Narrativa acerca dos tempos heróicos que, geralmente, guarda um fundo de verdade (por exemplo, o mito dos argonautas e o velocino de ouro); • Relato simbólico, passado de geração em geração dentro de um grupo, que narra e explica a origem
• Representação idealizada do estado da humanidade, no passado ou no futuro ou moral questionável, porém decisivo para o comportamento dos grupos humanos em determinada época (por exemplo, o mito da virgindade; o mito do negro de alma branca; e outros); • Afirmação fantasiosa, inverídica, que é disseminada com fins de dominação, difamatórios, propagandísticos, como guerra psicológica ou ideológica (por exemplo, o mito do comunista que come criancinhas; o mito da inferioridade mental dos negros); • Afirmação ou narrativa inverídica, inventada, que é sintoma de distúrbio mental; // fabulação (por ex., sua idéia de que está sendo perseguido não passa de um mito).
1.16 - Conceito, Função e Valor da Literatura Conceito [do latim conceptu] = Representação de um objeto pelo pensamento, por meio de suas características gerais (Filosofia) // Ação de formular uma idéia por meio de palavras; definição, caracterização. Exemplo: “O professor deu-nos um conceito de beleza absolutamente subjetivo”. // Pensamento, idéia, opinião. Exemplo: “Emitiu conceitos reveladores de grande competência”. // Noção, idéia, concepção. Exemplo: “Seu conceito de elegância está ultrapassado”. // Apreciação, julgamento, avaliação, opinião. Exemplos: “Não tenho conceito formado sobre este assunto”. “Com sua atitude correta na questão ele subiu no meu conceito”. // Avaliação de conduta e/ou
aproveitamento escolar // Ponto de vista, opinião. Exemplo: “No meu conceito, a família agiu mal com o rapaz”; etc. Conceito absoluto = Conceito de algo (qualidade ou relação) não submetido às condições limitativas do sujeito em que se realiza; conceito abstrato. Conceito abstrato = Conceito absoluto. Conceito indefinido = Conceito que exprime uma essência indeterminada (Lógica). Exemplo: “não-homem”. Conceituação = Ato ou efeito de conceituar.
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Conceituar = Formular conceito (de ou acerca de). Exemplo: “Freud conceituou o inconsciente” // Formar conceito acerca de; julgar, avaliar. Exemplo: “É pessoa indicada para melhor conceituar os candidatos”. // Fazer conceito; formar opinião de; classificar; avaliar; ajuizar. Exemplo: ‘Sabe conceituar dos homens e das coisas”. Função [Do latim functione] = Utilidade, uso, serventia. Ex.: “Esta caixa não tem função” // Liter. Cada uma das finalidades que se atribuem aos enunciados; etc.
Valor [Do latim valore] = Qualidade de quem tem força; audácia, coragem, valentia, vigor. Ex.: “Grande o valor dos bandeirantes que desbravaram nossas terras”. // Qualidade pela qual determinada pessoa ou coisa é estimável em maior ou menor grau; mérito ou merecimento intrínseco; valia. Ex.: “É profissional de alto valor”, “O empreendimento tem seu valor”. // Importância de determinada coisa estabelecida ou arbitrada de antemão. Ex.: “Qual o valor do valete no pôquer”. // Validade. Ex.: “Seu argumento não tem valor”; o valor da literatura ficcional. Ex.: Grande Sertão: Veredas, narrativa ficcional de João Guimarães Rosa, publicada em 1956, será valorizada também pelos leitores do século XXI; etc.
Qual é a finalidade (função) da literatura? Qual é a finalidade da literatura técnica? Como conceituar literatura-arte?
Literatura [Do latim litteratura] = Arte de compor trabalhos artísticos em prosa ou verso // O conjunto de trabalhos literários de um país ou de uma época.
1.17 – Leitura: Partida do Audaz Navegante, de Guimarães Rosa PARTIDA DO AUDAZ NAVEGANTE Guimarães Rosa Na manhã de um dia em que brumava e chuviscava, parecia não acontecer coisa nenhuma. Estava-se perto do fogo familiar, na cozinha, aberta, de alpendre, atrás da pequena casa. No campo, é bom; é assim. Mamãe, ainda de roupão, mandava Maria Eva estrelar ovos com torresmos e descascar os mamões maduros. Mamãe, a mais bela, a melhor. Seus pés podiam calçar as chinelas de Pele. Seus cabelos davam o louro silencioso. Suas meninas-dos-olhos brincavam com bonecas. Ciganinha, Pele e Brejeirinha – elas brotavam nun galho. Só o Zito, este, era de fora; só primo. Meiamanhã chuvosa entre verdes: o fúfio fino borrifo, e a gente fica quase presos, alojados, na cozinha ou na casa, no centro de muitas lamas. Sempre se enxergam o barranco, o galinheiro, o cajueiro grande de variados entortamentos, um pedaço de um morro – e o longe. Nurka, negra, dormia. Mamãe cuida com orgulhos e olhares as três meninas e o menino. Da Brejeirinha, menor, muito mais. Porque Brejeirinha, às vezes, formava muitas artes. Nesta hora, não. Brejeirinha se instituíra, um azougue de quieta, sentada no caixote de batatas. Toda cruzadinha, traçada as pernocas, ocupava-se com a caixa de fósforos. A gente via Brejeirinha: primeiro, os cabelos, compridos, lisos, louro-cobre; e, no meio deles, coisicas diminutas: a carinha não-comprida, o perfilzinho agudo, um narizinho que-carícia. Aos tantos, não parava, andorinhava, espiava agora – o xixixi e o empapar-se da paisagem – as pestanas til-til. Porém, disse-se-dizia ela, pouco se vê, pelos entrefios: – “Tanto chove que me gela!” Aí, esticouse para cima, dando com os pés em diversos objetos. –
“Ui, ui-te” – rolara nos cachos de bananas, seu umbigo sempre aparecendo. Pele ajudava-a a se endireitar. – “E o cajueiro ainda faz flores...” – acrescentou, observava da árvore não se interromper mesmo assim, com essas aguaceirices, de durante dias, a chuvinha no bruaar e a pálida manhã do céu. Mamãe dosava açúcares e farinhas, para um bolo. Pele tentava ajudar, diligentil. Ciganinha lia um livro; para ler ela não precisava virar página. Ciganinha e Zito nem muito um do outro se aproximava, antes paravam meio brigados, de da véspera, de uma briguinha grande e feia. Pele é que era a morena, com notáveis olhos. Ciganinha, a menina linda no mundo: retrato miúdo da Mamãe. Zito perpensava assuntos de não ousar dizer, coisas de ciumoso, ele abrira-se à espécie de ciúmes sem motivo de quê ou quem. Brejeirinha pulou, por pirueta. – “Eu sei porque é que o ovo se parece com um espeto!” – ; ela vivia em álgebra. Mas não ia contar a ninguém. Brejeirinha é assim, não de siso débil; seus segredos são sem acabar. Tem porém infimículas inquietações: – “Eu hoje estou com a cabeça muito quente” – isto, por não querer estudar. Então, ajunta: – “Eu vou saber geografia.” Ou: – “Eu queria saber o amor...” Pele foi quem deu risada. Ciganinha e Zito erguem olhos, só quase assustados. Quase, quase, se entrefitaram, num não encontrar-se. Mas, Ciganinha, que se crê com a razão, muxoxa. Zito, também, não quer durar mais brigado, viera ao ponto de não agüentar. Se, à socapa, mirava Ciganinha, ela de repente mais linda, se envoava. – “Sem saber o amor, a gente pode ler os romances grandes?” – Brejeirinha especulava. – “É, hem? Você não sabe ler nem o catecismo...” Pele lambava-lhe um tico de desdém; mas Pele não perdia de boazinha e
beliscava em doce, sorria sempre na voz. Brejeirinha rebica, picuíca: – “Engraçada!... Pois eu li as 35 palavras no rótulo da caixa de fósforos...” Por isso, queria avançar afirmações, com superior modo e calor de expressão, deduzidos de babinhas. – “Zito, tubarão é desvairado, ou é explícito ou demagogo?” Porque gostava, poetisa, de importar desses sérios nomes, que lampejam longo clarão no escuro de nossa ignorância. Zito não respondia, desesperado de repente, controversioso-culposo, sonhava ir-se embora, teatral, debaixo de chuva que chuva, ele estalava numa raiva. Mas Brejeirinha tinha o Dom de apreender as tenuidades: delas apropriava-se e refletiaas em si – a coisa das coisas e a pessoa das pessoas. – “Zito, você podia ser o pirata inglório marujo, num navio muito intacto, para longe, lo-õ-onge no mar, navegante que o nunca-mais, de todos?” Zito sorri, feito um ar forte. Ciganinha estremecera, e segurou com mais dedos o livro, hesitada. Mamãe dera a Pele a terrina, para ela bater os ovos. Mas Brejeirinha punha a mão em rosto, agora ela mesma empolgada, não detendo em si o jacto de contar: – “O Aldaz Navegante, que foi descobrir os outros lugares valetudinário. Ele foi num navio, também, falcatruas. Foi de sozinho. Os lugares eram longe, e o mar. O Aldaz Navegante estava com saudade, antes, da mãe dele, dos irmãos, do pai. Ele não chorava. Ele precisava respectivo de ir. Disse: – “Vocês vão se esquecer muito de mim?” O navio dele, chegou o dia de ir. O Aldaz Navegante ficou batendo o lenço branco, extrínseco, dentro do indo-se embora do navio. O navio foi saindo do perto para o longe, mas o Aldaz Navegante não dava as costas para a gente, para trás. A gente também inclusive batia os lenços brancos. Por fim, não tinha mais navio para se ver, só tinha o resto de mar. Então, um pensou e disse: – “Ele vai descobrir os lugares, que nós não vamos nunca descobrir...” Então e então, outro disse: – “Ele vai descobrir os lugares, depois ele nunca vai voltar...” Então, mais, outro pensou, pensou, esférico, e disse: – “Ele deve de ter, então, a alguma raiva de nós, dentro dele, sem saber...” Então, todos choraram, muitíssimos, e voltaram tristes para casa, para jantar...” Pele levantou a colher: – “Você é uma analfabetinha “aldaz”. – “–Falsa a beatinha é tu!” – Brejeirinha se malcriou. –”Por que você inventa essa história de de tolice, boba, boba?” – e Ciganinha se feria em zanga. – “Porque depois pode ficar bonito, uê!” Nurka latira. Mamãe também estava brava? Porque Brejeirinha topara o pé em cafeteiras, e outras. Disse ainda, reflexiva: – “Antes falar bobagens, que calar besteiras...” Agora, fechou os olhos que verdes, solene arrependida de seu desalinho de conduta. Só ouvirá o rumorejo da chuvinha, que estarão fritando. A manhã é uma esponja. Decerto, porém, Pele rezara os dez responsos a Santo Antônio, tãoquanto batia os ovos. Porque estourou manso o milagre. O tempo
temperou. Só era março – compondo suas chuvas ordinárias. Ciganinha e Zito se suspiravam. Soltavamse as galinhas do galinheiro, e o peru. Saía-se, ao largo, Nurka. O céu tornava a azul? Mamãe ia visitar a doente, a mulher do colono Zé Pavio. – “Ah, e você vai conosco ou sem-nosco?” – Brejeirinha perguntava. Mamãe, por não rir nem se dar de alheada, desferia chufas meigas: – “Que nossa vergonha!...” – e a dela era uma voz de vogais doçuras. A manhã se faz de flores. Então, pediu-se licença de ir espiar o riachinho cheio. Mamãe deixava, elas não eram mais meninas de agarra-a-saia. De impulso, se alegraram. Só que alguém teria de junto ir, para não se esquecerem de não chegar perto das águas perigosas. O rio, ali, é assaz. Se o Zito não seria, próprio, essa pessoa de acompanhar, um meiozinho-homem, leal de responsabilidades? Cessouse a cerração do ar. mas tinham de vestir outras roupas quentes. – “Oh, as grogolas!” Brejeirinha de alegria ante todas, feliz como se, se, se: menina só ave. – “Vão com Deus!” – Mamãe disse, profetisa, com aquela voz voável. Ela falava, e choviam era bátegas de bênçãos. A gentezinha separou-se. A ir lá, o caminho primeiro subia, subvexo, a ladeirinha do combro, colinola. Tão mesmo assim, os dois guardachuvas. Num – avante – Brejeirinha e Pele. Debaixo do outro, Zito e Ciganinha. Só os restos da chuva, chuvinha se segredando. Nurka corria, negramente, e enfim voltava, cachorra destapada ditosa. Se a gente se virava, via-se a casa, branquinha com a lista verde-azul, a mais pequenina e linda, de todas, todas. Zito dando o braço a Ciganinha, por vezes, muito, as mãos se encontravam. Pele se crescia, elegante. E ágil ia a Brejeirinha, com seu casaquinho coleóptero. Ela andava pés-para-dentro, feito um periquitinho, impávido. No transcenso da colineta, Zito e Ciganinha colavamse, muito às tortas, nos comovidos não-falares. Sim, já se estavam em pé de paz, fazendo sua experiência de felicidade; para eles, o passeio era um fato sentimental. Descia-se agora a outra ladeira, pegando cuidado, pelo enlameável e escorregoso, poças, mas também para não pisar no que Brejeirinha chamava de “o bovino” – altas rodelas de esterco cogumeleiro. Ali, com efeito, andavam bois: “o boi, beiçudo”; aí, Brejeirinha levou tombo. Ela disse que Mamãe tinha dito que eles precisavam de ter: coragem com juízo. Mas, isso, era mentirinhas. E, o que pois: – “Agora, já me sujei, então agora posso não ter cuidado...” Correu, com Nurka, pela encosta inferior, no verdinho pasto. Pele ainda ralhou: – “Você vai buscar um audaz navegante?” Mas, mais. Entanto, à úmida, à luz, o plano capim – e floriu-se: estendem-se, entremunhadas, as margaridinhas, todas se rodeiam de pálpebras. O que se queria, aqui, era a pequena angra, onde o riachinho faz foz. Abaixo, aos bons bambus, e às pedreiras de beira-rio, ouvindo o ronco, o bufo d’água.
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Porque, o rio, grossoso, se descomporta, e o riachinho porém também, seu estuário já feio cheio, refuso, represado, encapelado – pororoqueja. – “Bochechudo!” – grita-lhe Brejeirinha. Sumiu-se a última areiínha dele, sob baile de um atoalhado de espumas, no belo despropositar-se, o bulir de bolhas. Brejeirinha já olhou tudo de cor. Cravou varetas de bambu, marcando pontos, para medir a água em se crescer, mudando de lugar. Porém, o fervor daquilo impunha-lhe recordações, Brejeirinha não gostando de mar: – “O mar não tem desenho. O vento não deixa. O tamanho...” Lamentava-se de não ter trazido pão para os peixes. – “Peixe, assim, a esta hora?” – Pele duvidava. Divagava Brejeirinha: – “A cachoeirinha é uma parede de água...” Falou que aquela, ali, no rio, em frente, era a Ilhazinha dos Jacarés. – “Você já viu jacaré lá?” – caçoava Pele. – “Não. Mas você também nunca viu o jacaré-não-estarlá. Você vê é a ilha, só. Então, o jacaré pode estar ou não estar...” Mas, Brejerinha, Nurka ao lado, já vira tudo, em pé em volta, seu par de olhos passarinhos. Demorava-se, aliás, o subir e alargar-se da água, com os mil-e-um movimentos supérfluos.
– “A moça estava paralela, lá, longe, sozinha, ficada, inclusive, eles dois estavam nas duas pontinhas da saudade... O amor, isto é... O Aldaz Navegante, o perigo era total, titular... não tinha salvação... O Aldaz... O Aldaz...”
A gente se sentava, perto, não no chão nem em tronco caído, por causa do chovido do molhado. Ciganinha e Zito, numa pedra, que dava só para dois, podiam horas infinitas; apenas, conversando ainda feito gente trivial. Pele saíra a colher um feixe de flores. Mais não chuviscava. Brejeirinha já pulando de novo. Disse: que o dia estava muito recitado. Voltava-se para a contramargem, das mais verdes, e jogava pedras, o longe possível, para Nurka correndo ir buscar. Depois, se acocora, de entreter-se, parece que já está até calçada com um sapatinho só. Mas, sem se desgachar, logo gira nos pezinhos, quer Ciganinha e Zito para ouvirem. Olha-os.
Brejeirinha fez careta. Mas, nisso, o ramilhete de Pele se desmanchou, caindo no chão umas flores. – “Ah! Pois é, é mesmo!” – e Brejeirinha saltava e agia, rápida no valer-se das ocasiões. Apanhara aquelas florinhas amarelas – josés-moleques, douradinhas e margaridinhas – e veio espetá-las no concrôo do objeto. – “Hoje não tem nenhuma flor azul?” – ainda indagou. A risada foi de todos, Ciganinha e Zito bateram palmas. – “Pronto. É o Aldaz Navegante...” – e Brejeirinha crivava-o de mais coisas – folhas de bambu, raminhos, gravetos. Já aquela matéria, o “bovino”, se transformava.
”OAldaz Navegante não gostava de mar! Ele tinha assim mesmo de partir? Ele amava uma moça, magra. Mas o mar veio, em vento, e levou o navio dele, com ele dentro, escrutínio. OAldaz Navegante não podia nada, só o mar, danado de ao redor, preliminar. O Aldaz Navegante se lembrava muito da moça. O amor é original...” Ciganinha e Zito sorriram. Riram juntos. – “Nossa! O assunto ainda não parou?” – era Pele voltada, numa porção de flores se escudando. Brejeirinha careteou um “ah!” e quis que continuou: – “...Envém a tripulação... Então, não. Depois, choveu, choveu. O mar se encheu, o esquema, amestrador... O Aldaz Navegante não tinha caminho para correr e fugir, perante, e o navio espedaçado. O navio parambolava... Ele , com o medo, intacto, quase nem tinha tempo de tornar a pensar demais na moça que amava, circunspectos. Ele só a prevaricar... O amor é singular...” – “E daí?”
– “Sim. E agora? E daí?” – Pele intimava-a. – “Aí? Então... então... Vou fazer explicação! Pronto. Então, ele acendeu a luz do mar. E pronto. Ele estava combinado com o homem do farol... Pronto. E...” – “Nã-ão. Não vale! Não pode inventar personagem novo, no fim da estória, fu! E – olha o seu “aldaz Navegante”, ali. É aquele...” Olhou-se. Era: aquele – a coisa vacum, atamanhada, embatumada, semi-ressequida, obra pastoril no chão de limugem, e às pontas dos capins – chato, deixado. Sobre sua eminência, crescera um cogumelo de haste fina e flexuosa, muito longa: o chapeuzinho branco, lá em cima, petulante se bamboleava. O embate e orla da água, enchente, já o atingiam, quase.
Deu-se, aí, porém, longe rumor: um trovão arrasta seus trastes. Brejeirinha teme demais os trovões. Vem para perto de Zito e Ciganinha. E de Pele. Pele, a meiga. Que: – “Então? A estória não vai mais? Mixou?” – “Então, pronto. Vou tornar a começar. O Aldaz Navegante, ele amava a moça, recomeçado. Pronto. Ele, de repente, se envergonhou de ter medo, deu um valor, desasssustado. Deu um pulo onipotente... Agarrou, de longe, a moça, em seus abraços... Então, pronto. O mar foi que se aparvalhou-se. Arres! O Aldaz navegante, pronto. Agora, acabou-se, mesmo: eu escrevi – “Fim”!” De fato, a água já se acerca do “Aldaz Navegante”, seu primeiro chofre golpeava-o. – “Ele vai para o mar?” – perguntava, ansiosa, Brejeirinha. Ficara muito de pé. Um ventinho faz nela bilo-bilo – acarinha-lhe o rosto, os lábios, sim, e os ouvidos, os cabelos. A chuva, longe, adiada. Segredando-se, Ciganinha e Zito se consideram, nas pontinhas da realidade. – “Hoje está tão bonito, não é?
Tudo, todos, tão bem, a gente alegre... Eu gosto deste tempo...” E: – “Eu também, Zito. Você vai voltar sempre aqui, muitas vezes?” E”Se Deus quiser, eu venho...” E: – “Zito, você era capaz de fazer como o Audaz Navegante? Ir descobrir os outros lugares? E: – “Ele foi, porque os outros lugares ainda são mais bonitos, quem sabe?...” Eles se disseram, assim eles dois, coisas grandes em palavras pequenas, ti a mim, me a ti, e tanto. Contudo, e felizes, alguma outra coisa se agitava neles, confusa – assim rosa-amor-espinhos-saudade. Mas, o “Aldaz Navegante”, agora a água se apressa, no vir e ir, seu espumitar chega-lhe já re-em-redor, começando a ensopação. Ei-lo circunavegável, conquanto em firme terrestreidade: o chão ainda o amarrava de romper e partir. Brejeirinha aumenta-lhe os adornos. Até Ciganinha e Zito pegam a ajudar. E Pele. Ele é outro, colorido, estrambótico, folhas, flores. –“Ele vai descobrir os outros lugares...” – “Não, Brejeirinha. Não brinca com coisas sérias!” – “Uê? O quê?” Então, Ciganinha, cismosa, propõe: – “Vamos mandar, por ele, um recado?” Enviar, por ora, uma coisa, para o mar. Isso, todos querem. Zito põe uma moeda. Ciganinha, um grampo. Pele, um chicle. Brejeirinha – um cuspinho; é o “seu estilo”. E a estória? Haverá, ainda, tempo para recontar a verdadeira estória? Pois: – “Agora, eu sei. o Aldaz Navegante não foi sozinho; pronto! Mas ele embarcou com a moça que ele amavamse, entraram no navio, estricto. E pronto. O mar foi indo com eles, estético. Eles iam sem sozinhos, no navio, que ficando cada vez mais bonito, mais bonito, o navio... pronto: e virou vagalumes...” Pronto. O trovão, terrível, este em céus e terra, invencível. Carregou. Brejeirinha e o trovão se engasgam. Ela iria cair num abismo “intacto” – o vão do trovão? Nurka latiu, em seu socorro. Ciganinha, e Pele e Zito, também, vêm para a amparar. Antes, porém, outra fada, inesperada, surgia, ali, de contraflor. – “Mamãe!” Deitou-se-lhe ao pescoço. Mamãe aparava-lhe a cabecinha, como um esquilo pega uma noz. Brejeirinha ri sem til. E, Pele:
–“Olha! Agora! Lá se vai o “Aldaz Navegante”!” –“EI!” –“Ah!” O Aldaz! Ele partia. Oscilado, só se dançandoando, espumas e águas o levavam, ao Aldaz Navegante, para sempre, viabundo, abaixo, abaixo. Suas folhagens, suas flores e o airoso cogumelo, comprido, que uma gota orvalha, uma gotinha, que perluz – no pináculo de uma trampa seca de vaca. Brejeirinha se comove também. No descomover-se, porém, é que diz: – “Mamãe, agora eu sei, mais: que o ovo só se parece, mesmo, é com um espeto!” De novo, a chuva dá. De modo que se abriram, asados, os guarda-chuvas. (Conferir: ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias. 5.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969:115-123) VOCABULÁRIO: azougue = pessoa muito viva e esperta; socapa = disfarce, fantasia tenuidades = delicadezas, sutilezas extrínseco = exterior; não pertencente à essência de uma coisa assaz = bastante, suficientemente bátegas = aguaceiro forte e grosso subvexo = sub + vexo = molestado, maltratado, humilhado, afligido combro = corruptela: calombo coleóptero = insetos, larvas, pragas dos vegetais transcenso = superior, excedido refuso = refundido, transformado escrutínio = exame atento, minucioso, apuramento vacum = gado vacum embatumada = acumulada, enchida demais eminência = elevação, altura concrôo = talvez, corruptela de “concretude” (ou “no alto” do objeto = lugar de coroação) estricto = estrito = rigoroso, exato viabundo = via (caminho) + vagabundo (Recomendamos leituras dos livros de Guimarães Rosa aos alunos de Teoria da Literatura II)
1.18 - Para o Entendimento do Valor da Literatura Ficcional de Guimarães Rosa CONSCIÊNCIA DA LINGUAGEM: NOVO Neuza Machado* DINAMISMO PSÍQUICO* Uma imagem literária imitada perde a sua virtude de animação. A literatura deve surpreender. Certamente, as imagens literárias podem explorar imagens fundamentais – e nosso trabalho geral consiste em classificar essas
imagens fundamentais –, mas cada uma das imagens que surgem sob a pena de um escritor deve ter a sua diferencial de novidade. Uma imagem literária diz o que nunca será imaginado duas vezes. Pode-se ter algum mérito em recopiar um quadro. Não se terá nenhum em repetir uma imagem literária.1
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Em meados do século XX, o escritor mineiro Guimarães Rosa surpreendeu os meios intelectuais brasileiros, valendo-se de uma linguagem fora dos padrões habituais para desenvolver a sua arte literária. Naquele momento, Guimarães Rosa conseguiu a sua diferencial de novidade, recriando a antiga técnica de contar estórias exemplares, à moda do sertão de Minas, mas, retiradas criativamente de seu imaginário particular, singularíssimo. Graças a essa diferente forma de narrar, extraiu das recordações íntimas o aspecto altivo do homem sertanejo, sustentado pelo primitivismo de uma existência alheada dos valores modernos. O escritor, de origem sertaneja, rejeitando os valores da modernidade, as regras lingüísticas formais, as imagens mascaradas (limitadas), e buscando o linguajar primordial (provocador), a imaginação material (reprodutora) aliada à imaginação criadora (dinâmica), tornou-se um ativo modelador de um universo diferente2. Não quis apenas contemplar o sertão da infância, recriou-o, domou a matéria terra, e venceu a natureza. Guimarães Rosa, em suas primeiras narrativas, uniu terra e água em uma massa perfeita. Às vezes, sobressaindo-se mais a terra, outras, a água. Mas, se tivesse registrado apenas o seu ato de modelar o sertão da infância, por intermédio da imaginação reprodutora, não teria legado aos pósteros a sua indiscutível arte ficcional. Ele explorou as imagens reprodutoras, desenvolvendo, inicialmente, o ato de bem ver a realidade sertaneja, mas soube atingir o domínio de uma imaginação fundamentalmente criadora, quando rejeitou a cultura realista e passou a bem sonhar o seu passado inesquecível, permanecendo fiel ao onirismo dos arquétipos que [estavam] enraizados [em seu] inconsciente.3 Nas recordações da infância, momentos de pura inspiração o impelem à modelação de trechos narrativos de alta criatividade. Por exemplo, reconstituindo as façanhas infantis de um grupo de crianças, em “A partida do audaz navegante”4 , propicia-nos um retorno ao regaço materno, seja qual for a significação que queiramos dar a esta expressão: retorno ao útero materno, retorno aos braços carinhosos da mãe, retorno às origens, ou, mesmo, retomada dos valores puros da terra/sertão. Bachelard nos alerta: Afastar a criança da cozinha é condená-la a um exílio que a aparta dos sonhos que nunca conhecerá. Os valores oníricos dos alimentos ativam-se ao se acompanhar a preparação. Quando estudarmos os sonhos da casa natal, veremos a persistência dos sonhos da cozinha. Esses sonhos mergulham num feliz arcaísmo. Feliz o homem que, em criança, “rodou em volta” da dona da casa.5
OBS.: Ler, para o entendimento do assunto, a coletânea de contos de Guimarães Rosa, Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.
Nesta narrativa, que assinala um dos mais inspirados momentos criativos de Guimarães Rosa, há um retorno ao regaço materno, revelando o homem que, em criança, conheceu as delícias feitas em fogão de lenha. O sertão roseano é o invólucro do sonho da casa natal, repleno de lembranças e recordações. Assim, por exemplo, uma certa manhã de chuva (água) mistura-se à terra, formando a massa de lembranças imperecíveis. Desse composto de água e terra, evola-se? ficcionalmente? o cheiro dos alimentos de outrora somado às recordações do passado infantil, no qual o menino de então observava sua mamãe mandando Maria Eva estrelar ovos com torresmos e descascar os mamões maduros (Op. cit.: 115). Os sonhos da cozinha estão presentes e vivos nas lembranças (matéria ficcional) e recordações (matéria lírica) do narrador de antigas experiências infantis. Mas, o sonhador das vivências inesquecíveis, agora, já se aliou definitivamente à imaginação criadora e consegue transmitir ficcionalmente os inumeráveis planos de sua consciência singular. Nos sonhos da casa natal, terra, chuva, cozinha e lama se misturam, para realçar a figura materna. Num meio repleto de primitividade, mamãe é a mais bela, a melhor, e cuida com orgulhos e olhares as três meninas e o menino (Op. cit.: 115). O Artista? aquele que saiu do sertão dos valores primitivos e adquiriu inúmeros talentos na moderna sociedade brasileira? remodela a figura materna por intermédio de um olhar infantil. Não estaríamos violando regras teórico-críticas, apoiados que estamos na idéia de compreensão do texto literário? fenomenologia?, se afirmássemos que é ele? o Artista Ficcional Guimarães Rosa? o menino que admira a mãe, e que esta admiração só se revelará valiosa mediante a percepção infantil aliada à criatividade do adulto. Graças à percepção infantil, aquecida pelo fogo familiar permanentemente aceso nas lembranças do passado, iluminando as recordações do adulto, a voz de mamãe se transforma em uma voz de vogais doçuras e a manhã se faz de flores (Op. cit.: 118). No início, o elemento fogo se sobressai, para o cozimento da massa formada pela terra e pela água. Na cozinha das recordações, os alimentos se tornam saborosos, e a doce voz materna também se transforma em alimento, nutrindo a criança, oferecendo-lhe condições de desenvolver o corpo e os sonhos. A cozinha é o gineceu do sertão roseano, e a sua criação ficcional só foi possível graças a essa íntima e doce convivência com a terra e a água. Em seus devaneios de dilatação da massa que irá ao forno da criação literária, o criador de um mundo ficcional (sustentado pelas lembranças de uma infância feliz), onde os valores poéticos se sobressaem, registra a imagem da mãe dosando açúcares e farinhas, para a
feitura de um bolo, enquanto as crianças entrefiam a estória do audaz navegante, descobridor de lugares além do cotidiano. Esta narrativa, oriunda dos sonhos dilatados do amanhecer? dos devaneios da vontade de um sonhador-modelador, que sabe trabalhar sua criatividade ficcional?, é uma massa de palavras bem dosadas. O estilo inconfundível de Guimarães Rosa se faz presente nesta aparentemente simples narrativa, mas, em suas camadas ocultas, há uma profunda natureza complexa. As verdadeiras fontes do estilo são fontes oníricas. Um estilo pessoal é o próprio sonho do ser.6 Sob a proteção do olhar infantil, o narrador acompanha os movimentos de mamãe, transforma Pele? a irmã? em uma criança diligentil, além de dar forma a uma imagem ímpar: Ciganinha ? a outra irmã ? lendo um livro sem virar a página (op. cit.: 16). Percebe-se, neste discurso inovador, os valores imaginários da criança em seu mais alto grau. A massa perfeita encontrou seu elemento individualizador, pode transformar o audaz navegante e seu navio? núcleo de uma sub-estória dentro da narrativa? numa coisa vacum, atamanhada, embatumada, semiressequida, obra pastoril no chão de limugem, e às pontas dos capins-chato deixado (Op. cit.: 120-121). Um cogumelo branco se transforma no audaz navegante, bamboleando em cima da tal coisa? o navio?, que está prestes a ser tragada pela enchente produzida pela chuva anterior. O escritor, agora vivenciando o cogito (3) da consciência singular7, possui total conhecimento da linguagem infantil. Graças à nova convivência com um plano de difícil acesso, próximo das inconseqüências quânticas8, a narrativa de um dia de chuva atrelado ao universo infantil transmite um novo dinamismo psíquico9. A imaginação material? matéria terrestre: o sertão das pedras, madeiras, metais e gomas? associa-se à imaginação das matérias inconsistentes e móveis? a água, o fogo, o ar?, reprodutora da percepção e da memória. Desta associação, surge a imaginação criadora do Ficcionista, retirada de sua solidão de homem há muito apartado dos valores primários. O Criador Literário refaz a imaginação infantil, uma imaginação intermediária entre as pulsões inconscientes e as primeiras imagens que afloram na consciência. Surge, assim, um discurso diferente, insólito, renovando os arquétipos inconscientes da criança, aquela que repensa o itinerário de aventuras do Audaz Navegante. Inspirado pela linguagem inerente à criança, ele remodela a linguagem ficcional, enriquecendo-a com as recordações da infância. A narrativa surpreende e encanta, porque o leitor refaz também os primórdios de seu próprio passado. Todas as mamães se transformam em fadas, surgindo inesperadamente? de contra-flor?, para socorrerem seus filhinhos (ROSA, op. cit.: 122).
O sonhador de um imaculado sertão (perfeição = matéria épica digladiando com a forma ficcional do século XX ), distante temporalmente de sua realidade imediata, reinventa seu passado inesquecível, as possibilidades perdidas, os sonhos revividos nos momentos de solidão. No sonho, as palavras reencontram amiúde o seu sentido antropomórfico profundo. Aliás, pode-se observar que a modelagem inconsciente não é coisista; é animalista. A criança entregue a si mesma modela a galinha ou o coelho. Cria vida.10 As palavras remodelam o homem e a vida, refazem as imagens do inconsciente, dão substância aos pensamentos e, aqui, dão substância aos pensamentos de um criador ficcional que se apossa criativamente do universo infantil. A modelagem inconsciente, retirada dos sonhos da infância, faz o leitor-eleito retornar às alegrias primeiras da descoberta da vida. Nessa região psíquica, entre as pulsões inconscientes e as primeiras imagens da consciência infantil, o narrador-mirim de um sertão imaculado, avatar do narrador moderno (submetido diariamente a experiências comunitárias conflitantes), recria seu antigo mundo familiar, transformando uma manhã de chuva normal em uma narrativa onírica e poética, propulsora de profundas meditações para esse mesmo leitor. (Texto registrado de Neuza Machado. Este texto pertence aos Apontamentos de Teoria Literária e Crítica Literária, um livro que está sendo elaborado pela autora e que será publicado, em breve, por sua editora particular, NMachado, editora da autora registrada no ISBN, Rio de Janeiro.) BIBLIOGRAFIA: BACHELARD, Gaston. A Dialética da Duração. Tradução de Marcelo Coelho. 1.ed. brasileira. São Paulo: Ática, 1989. BACHELARD, Gaston. A Terra e os Devaneios da Vontade. Trad. de Paulo Neves da Silva. 1.ed. S. P.: Martins Fontes, 1991. BACHELARD, Gaston. Le Nouvel Esprit Scientifique. 9.ed. Paris: Presses Universitaire de France, 1966. ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias. 8.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975. NOTAS: BACHELARD, Gaston. A Terra e os Devaneios da Vontade (1991), pp. 4-5. 2 BACHELARD, Gaston. Le Nouvel Esprit Scientifique (1966), pp. 54-55. 3 BACHELARD (Op. cit., 1991), p. 2. 4 ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias (1975). p. 70. 5 BACHELARD (Op. cit., 1991), p. 173. 6 BACHELARD (Op. cit., 1991). 7 BACHELARD, Gaston. A dialética da Duração (1989), p. 6. 8 Ibidem. 9 Idem. 10 BACHELARD (Op. cit., 1991), p. 77. 1
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1.19 – Leitura: Velhos Marinheiros (Trecho) VELHOS MARINHEIROS Jorge Amado A Completa Verdade Sobre as Discutidas Aventuras do Comandante Vasco Moscoso de Aragão, Capitão de Longo Curso De como o narrador, com certa experiência anterior e agradável, dispõe-se a retirar a verdade do fundo do poço Minha intenção, minha única intenção, acreditem!, é apenas restabelecer a verdade. A verdade completa, de tal maneira que nenhuma dúvida persista em torno do comandante Vasco Moscoso de Aragão e de suas extraordinárias aventuras. “A verdade está no fundo de um poço”, li certa vez, não me lembro mais se num livro ou num artigo de jornal. Em todo caso, em letra de forma, e como duvidar de afirmação impressa? Eu, pelo menos, não costumo discutir, muito menos negar, a literatura e o jornalismo. E, como se isso não bastasse, várias pessoas gradas repetiram-me a frase, não deixando sequer margem para um erro de revisão a retirar a verdade do poço, a situála em melhor abrigo: paço (“a verdade está no paço real”) ou colo (“a verdade se esconde no colo das mulheres belas”), pólo (“a verdade fugiu para o pólo norte”) ou povo (“a verdade está com o povo”). Frases todas elas, parece-me, menos grosseiras, mais elegantes, sem deixar essa obscura sensação de abandono e frio inerente à palavra poço. O meritíssimo dr. Siqueira, juiz aposentado, respeitável e probo cidadão, de lustrosa e erudita careca, explicoume tratar-se de um lugar-comum, ou seja, coisa tão clara e sabida a ponto de transformar-se num provérbio, num dito de todo mundo. Com sua voz grave, de inapelável sentença, acrescentou curioso
detalhe: não só a verdade está no fundo de um poço, mas lá se encontra inteiramente nua, sem nenhum véu a cobrir-lhe o corpo, sequer as partes vergonhosas. No fundo do poço e nua. O dr. Alberto Siqueira é o cimo, o ponto culminante da cultura nesse subúrbio de Periperi onde habitamos. É ele quem pronuncia o discurso do Dois de Julho na pequena praça e o de Sete de Setembro no Grupo Escolar, sem falar noutras datas menores e em brindes de aniversário e batizado. Ao juiz devo muito do pouco que sei, a essas conversas noturnas no passeio de sua casa; devo-lhe respeito e gratidão. (...) No entanto, por mais que ele me explique tratarse apenas de um provérbio popular, muitas vezes encontro-me a pensar nesse poço, certamente profundo e escuro, onde foi a verdade esconder sua nudez, deixando-nos na maior das confusões, a discutir a propósito de um tudo ou de um nada, causando-nos a ruína, o desespero e a guerra. Poço não é poço, fundo de um poço não é o fundo de um poço, na voz do provérbio isso significa que a verdade é difícil de revelar-se, sua nudez não se exibe na praça pública ao alcance de qualquer mortal. Mas é o nosso dever, de todos nós, procurar a verdade de cada fato, mergulhar na escuridão do poço até encontrar sua luz divina. “Luz divina” é do juiz, como aliás todo o parágrafo anterior. Ele é tão culto que fala em tom de discurso, gastando palavras bonitas, mesmo nas conversas familiares com sua digníssima esposa, dona Ernestina. (...) (Conferir: AMADO, Jorge. Velhos Marinheiros. São Paulo: Martins, 1961:79-80) (Recomendamos leituras dos livros de Jorge Amado aos alunos de Teoria da Literatura II)
1.20 - Para o Entendimento do Valor da Literatura Ficcional de Jorge Amado EM DEFESA DE JORGE AMADO Este artigo tem por finalidade homenagear o escritor Jorge Amado e, ao mesmo tempo, configurar a defesa de sua produção literária, uma vez que o escritor baiano (atualmente reverenciado), até há bem pouco tempo, não logrou receber da crítica literária brasileira uma justa avaliação. Poderemos até afirmar que, apesar das transformações que ocorreram em nosso cenário crítico, avaliações negativas dos anos sessenta e setenta sobre a obra de Jorge Amado, ainda, são recuperadas por nossos alunos de Letras, induzidos
por manuais críticos temporalmente já ultrapassados. É sempre importante reafirmar que a crítica literária, seja no Brasil ou em qualquer parte do mundo, está e estará sempre sujeita a novas reformulações, acompanhando as inovações literárias e os novos conceitos críticos que a envolvem. Por tais motivos, para posicionar como defensora da obra ficcional de Jorge Amado, fui averiguar em História Concisa da Literatura Brasileira, de Alfredo Bosi, uma avaliação crítica sobre o assunto em questão. Como todos já sabem, uma avaliação já
reconhecida nos meios intelectuais, desde o início dos anos setenta. No decorrer de minha pesquisa, constatei que o ponto de vista de Alfredo Bosi, um renomado estudioso da Literatura Brasileira, não se mostra favorável ao escritor baiano e, por esta razão, decidi realçá-la, aqui, como forma de comprovar os meus argumentos de defesa.
conhecimentos de teoria literária (retirados evidentemente de longos anos de estudos e práticas de avaliação crítica) aliados à minha sensibilidade de leitora, conscientemente adepta de uma visão crítica propulsora de novíssimos juízos, ou juízos de descoberta, de acordo com os preceitos filosóficos de Gaston Bachelard.
Com o devido respeito ao já consagrado teórico, recupero-a, para que eu possa desenvolver, a seguir, as alegações em favor de Jorge Amado.
Desejo tornar evidente o fato de que nas chamadas narrativas lineares de Jorge Amado, ao lado do plano sociosubstancial (sintagmático), há a presença do plano mítico-substancial, também sintagmático, é bem verdade!, mas, nem por isso, menos conceituado, quando se trata de definir o valor de uma obra literária.
Segundo Alfredo Bosi: Jorge Amado, fecundo contador de histórias regionais, definiu-se certa vez “apenas um baiano romântico e sensual”. Definição justa, pois resume o caráter de um romancista voltado para os marginais, os pescadores e os marinheiros de sua terra que lhe interessam como exemplos de atitudes “vitais”: românticas e sensuais... A que, vez por outra, emprestaria matizes políticas. A rigor, não caminhou além dessa abordagem psicológica a ideologia do festejado escritor baiano. Nem a sua poética, que passou incólume pelo realismo crítico e pelas demais experiências da prosa moderna, ancorada que estava em um modelo oral-convencional de narração regionalista. Cronista de tensão mínima, soube esboçar largos painéis coloridos e facilmente comunicáveis que lhe franqueariam um grande e nunca desmentido êxito junto ao público. Ao leitor curioso e glutão a sua obra tem dado de tudo um pouco: pieguice e volúpia em vez de paixão, estereótipos em vez de trato orgânico dos conflitos sociais, pitoresco em vez de captação estética do meio, tipos “folclóricos” em vez de pessoas, descuido formal a pretexto de oralidade... Além do uso às vezes imotivado do calão: o que é na cabeça do intelectual burguês, a imagem do Eros do povo. O populismo literário deu uma mistura de equívocos, e o maior deles será por certo o de passar por arte revolucionária. No caso de Jorge Amado, porém, bastou a passagem do tempo para desfazer o engano. (Conf.: BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1970: pp. 405-406).
Eis, portanto, a questão central de minha defesa: provar que Jorge Amado ultrapassou os limites da linearidade em suas narrativas ficcionais (narrativas lineares: sempre rejeitadas pelos analistas e intérpretes, quando se trata de dignificar a chamada Ficção-Arte), apesar do “nunca desmentido êxito junto ao público” (aliás o maior pecado do escritor, se o considerarmos pela avaliação elitista de alguns críticos, os quais se ancoram em suas diretivas teóricas). Ao longo de minha atuação como professora de Teoria Literária (ou Teoria da Literatura, se quiserem assim), ouvi muitas críticas sobre a capacidade de criação ficcional deste renomado escritor. Se o acusam de ter escrito vários romances lineares e, vez por outra, se deixando surpreender, escrevendo narrativas consideradas de altíssimo teor inventivo, posso defendê-lo, afirmando que, não em um ou em outro, mas em todos os seus escritos ficcionais insere-se a marca de sua capacidade criadora. Portanto, inicio agora a minha defesa, submetendo-me aos meus
Todos os grandes escritores passaram pela experiência do mito. Desde a Antigüidade, os narradores – épicos e, posteriormente, ficcionais – se viram enredados nas malhas misteriosas da consciência mítica. O Invisível (o Sobrenatural, o NãoLógico, o Não-Visível o Insólito, seja qual for a nomenclatura estabelecida pelos teóricos e críticos literários) sempre incomodou e incomodará àqueles que receberam o dom de reinventar a realidade. Jorge Amado, de acordo com o meu ponto de vista, quis-se narrador à moda antiga, experiente, tradicional, exaltando a heroicidade cotidiana de seus conterrâneos, mas, a realidade do Século XX obrigouo a narrar/ver os acontecimentos de seu momento, e o autêntico narrador dessa fase histórica jamais poderia se autoproclamar um contador de verdades institucionalizadas. Quem narra? Obviamente, o narrador tradicional, experiente, se penso e recupero os ensinamentos de Walter Benjamim. Quem vê a realidade? Quem questiona a sua própria percepção da realidade, percepção da experiência e percepção do literário? Evidentemente, o ficcionista do século XX, ficcionista pós-moderno, participante ativo de uma realidade fragmentada. Por esta perspectiva, não há como desmerecer a produção literária de Jorge Amado. Muito mais do que simplesmente registrar o ato de ver os vários ângulos da realidade de seus conterrâneos, o próprio escritor amalgamou-se miticamente ao seu próprio ato de narrar. Para colocar seus personagens, oriundos de classes secularmente desvalorizadas, no patamar dos grandes heróis de todos os tempos, foi buscar suas verdades cotidianas no fundo do poço, como afirma seu narrador da narrativa VELHOS MARINHEIROS. A verdade está no fundo de um poço. (...) A verdade é difícil de revelar-se, sua nudez não se exibe na praça pública ao alcance de qualquer mortal (Cf.: Velhos Marinheiros. 3. ed. São Paulo: Martins Editora, 1961:79).
“A verdade está no fundo de um poço”. O narrador do Século XX, argumentador, transmutativo, se faz
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presente nesta afirmação, e se mostra desconcertado ante uma realidade que não lhe oferece certezas institucionalizadas. O narrador do Século XX não possui certezas, não transmite verdades, “mergulha na escuridão do poço até encontrar sua luz divina.” (Op. cit.: 80). Ainda, para realçar a minha defesa, posso dizer que, em uma outra narrativa, MAR MORTO, depois da recriação da história de amor de Guma e Lívia, e do trágico fim de seu personagem (nada parecido com o texto adaptado da novela da televisão), fecha humildemente sua narrativa, passando todos os créditos para os narradores experientes (tradicionais) que o antecederam: “Assim contam na beira do cais”. Em VELHOS MARINHEIROS, por exemplo, não há como reafirmar verdades pelo ponto de vista do ontem eterno (cf. Weber), o que marcaria a linearidade da narrativa. O seu narrador não se posicionou linearmente. Como reafirmar verdades lineares, se o narrador de Jorge Amado se põe a pensar no assunto, duvidando dos “homens de muito saber”? Como reafirmar verdades, se “a verdade esconde sua nudez no fundo de um poço”, deixando os narradores do Século XX “na maior das confusões, a discutir a propósito de um tudo ou de um nada, causando-lhes a ruína, o desespero e a guerra? A verdade é difícil de revelar-se” (Op. cit.: 80), mas os grandes escritores conseguiram e conseguem revelá-la. Como rejeitar uma parte da obra de um escritor da categoria de um Jorge Amado, se o mesmo soube como retirar do “fundo do poço” do imaginário-em-aberto, “profundo e escuro”, algumas verdades, nuas e cruas, de certas realidades de nosso cotidiano que não aceitamos presenciar ou mesmo repensar. Verdades que obrigam os leitorescríticos a novíssimas reflexões: a prostituição, crianças abandonadas em um Cais da Bahia, miséria extrema e outras realidades que incomodam os leitores, argutos, ultrapassando a marca do simples entretenimento [marca daquele plano linear, que subjaz corretamente em algumas obras de Jorge Amado (já que o plano linear, plano este tão do agrado dos leitores que ainda estão presos ao nível emocional, terá de fazer parte de qualquer obra ficcional, inclusive da Ficção-Arte)]. Relatar ficcionalmente tais realidades não é tarefa para simples mortais. Poucos escritores, no Século XX, ousaram incursões no “fundo do poço” do imaginárioem-aberto – espaço universal – em busca de suas próprias verdades. Mas existem ainda os donos de verdades seculares, e o escritor Jorge Amado soube realçá-los, em sua narrativa VELHOS MARINHEIROS, recuperando-os em seu personagem Dr. Alberto Siqueira, figura caricata, própria para induzir seu narrador a dialetizar comicamente uma questão controvertida. O humor, a matéria cômica inserida no plano diegético de sua
ficção, é o seu grande trunfo para conquistar os leitores menos exigentes, aqueles curiosos e glutões, atitude que realmente franqueou-lhe um grande e nunca desmentido êxito junto ao público, como esclarece Alfredo Bosi. Então, reafirmando a minha defesa, posso dizer que o narrador argumentativo de Jorge Amado (narrador pósmoderno do Século XX, aquele que observa a sua própria realidade e a transforma em criação ficcional) posiciona-se como crítico de seu momento histórico, ao questionar as atitudes de um seu personagem que se diz conhecedor da verdade. “Mas, como duvidar da palavra de um homem de tanto saber, as estantes entulhadas de livros, códigos e tratados?” (op. cit.: 80) O narrador de Jorge Amado, em VELHOS MARINHEIROS, duvida da palavra do Juiz, o meritíssimo Dr. Alberto Siqueira, aquele que afirma, nas páginas iniciais da narrativa: “A verdade é o farol que ilumina minha vida”(Op. cit.: 80). Buscando a sua própria verdade, o narrador incomodado do Século XX instala-se na borda do poço, procurando a melhor forma de descer ao misterioso fundo. Este momento chegará, com tempo e paciência, pois a busca da verdade requer “decisão, caráter, boa vontade e método”(Op. cit.: 82). Jorge Amado buscou no povo da Bahia, melhor dizendo, em todas as camadas sociais da Bahia, a inspiração literária, para relatar aos seus leitores-eleitos a verdade de sua realidade ficcional. Por intermédio dessa busca, as camadas míticas, de todas as Eras, fizeram-se presentes em seus relatos. O escritor, auxiliado por seus personagens narradores, revestiu os mitos antigos, rebatizou-os, tornando-os reais. Com essa atitude, confrontou-se, heroicamente (matéria mítica), com uma novíssima forma de nomear o plano ficcional, ultrapassando as barreiras conceituais. O arcabouço mítico universal, recuperado ficcionalmente, está presente, por exemplo, em MAR MORTO: no cancioneiro do cais, nas pedras do cais, nos saveiros que brilham na noite do mar. Como exemplo, poderemos dizer que os gemidos de amor, que tanto agradam aos leitores telúricos (“curiosos e glutões”, pelo ponto de vista de Alfredo Bosi), são os mesmos gemidos dos amores míticos que atravessaram a História da Humanidade. Os personagens Guma e Lívia personificam o mito do amor supratemporal. Rosa Palmeirão é o símbolo da mulher guerreira, indomável, aquela que se masculiniza para lutar contra as leis do destino (posicionamento antigo), exigindo o reconhecimento de seu nome (ou apelido) no plano das exigências vitais (Rio de Janeiro), aquele plano da obra, horizontal, onde se percebe a força do mito. E, muito além da linearidade nitidamente telúrica, passa a exigir o reconhecimento de seu nome no espaço
complexo das exigências ficcionais da Literatura-Arte (o já sacralizado plano paradigmático do imaginárioem-aberto, característica inconteste das narrativas do Século XX). Os homens estavam satisfeitos. Lá fora, no Rio de Janeiro, nas outras terras, ela [Rosa Palmeirão] tinha se mostrado quem era. (...) Se mulher da Bahia é assim, que dizer dos homens? (Op. cit.: 51).
A aparente linearidade, inserida habilmente nas obras de Jorge Amado, revela-se como ponto de partida, para o despertar de sua inegável criatividade. Ao lado das leis do cais – espaçosocio substancial –, reina Iemanjá dos Cinco Nomes, a sereia, a dona do mar, “a rainha dessas terras misteriosas, que se escondem na linha azul que as separa de outras terras” (Op. cit.: 66). Eis os cinco nomes da Rainha do Mar: Iemanjá, Dona Janaína, Dona Maria, Inaê, Princesa de Aiocá. A divindade dos terreiros baianos, foi promovida: saiu do plano mítico (linear) para o plano vertical do imaginário-em-aberto. Graças ao poder criativo do escritor, agora, a deusa do candomblé não é apenas a rainha do plano mítico-substancial, linear, conceitual, das superstições cotidianas. Agora, ela fará parte de um mundo de “terras misteriosas, que se escondem na linha azul que as separa de outras terras”(Op. cit.: 66), o mimético mundo da verticalizante realidade ficcional. Assim, além de agradar aos leitores “curiosos e glutões” de seu momento histórico, a Iemanjá de Jorge Amado, retirada do humilde arcabouço mítico brasileiro (oriundo da religiosidade dos antigos escravos africanos), terá a honra de permanecer nas páginas da História da Literatura Universal, incomodando ad infinitum as próximas gerações, sejam elas de leitores brasileiros ou não. Há outras recuperações míticas, em outras palavras, há a presença da matéria mítica interagindo com a apreensão das imagens dinamizadas do universo ficcional. Em meio a títulos pomposos – barão do Império, viscondes, condes, marqueses –, notabilizase o nome (apelido) de Besouro, um negro que correu pelas ruas de Santo Amaro, “ali derramou seu sangue, esfaqueou,, atirou, lutou capoeira, cantou sambas” (Cf.: MAR MORTO, p. 110). Besouro, personagem sem nome – perda da identidade: fenômeno do Século XX –, herói, muito acima dos grandes nomes de família; herói, graças ao poder ficcional de um aplaudido escritor da Bahia, do Brasil, do Mundo, do Futuro. Besouro. Esse foi homem de mar, sabia manejar um leme, embicar uma canoa, correr com o vento e com a música. Destes todos só ele sabe onde ficam as terras de Aiocá que ficam mesmo no fim do mundo. Por isso ele é o mais amado dos homens do cais. E foi aqui, em Santo Amaro, oh! marinheiros do mundo todo, carregadores, estivadores, doqueiros, canoeiros, doutor Rodrigo, dona Dulce, todos que trabalham no mar, que ele nasceu. E bem perto daqui, na Maracangalha, cortaram-no todo de facão,
fizeram dele picadinho, mas, reparai bem, marinheiros do mundo todo, foi à traição, foi enquanto ele dormia numa rede que, de todas as coisas da terra, é a que mais se parece com um saveiro, balança como se estivesse em cima das ondas. Nasceu aqui. No Recôncavo nascem os homens valentes das águas. Na Bahia, a capital, a cidade das sete portas, nascem as mulheres bonitas do cais. Lívia nasceu lá (Op. cit.: 112 – o negrito é nosso).
Besouro, Guma, Lívia: os mitos renomeados pelo poder criador da especialíssima ficção de Jorge Amado. Mas há também a consciência crítica: dona Dulce, a professora, é sua porta-voz, enquanto conversa com o Doutor Rodrigo. Você nunca imaginou esse mar cheio de saveiros limpos, com marítimos bem alimentados, ganhando o que merecem, as esposas com o futuro garantido, os filhos na escola não durante seis meses, mas todo o tempo, depois indo aqueles que têm vocação para as faculdades? Já pensou em postos de salvamento nos rios, na boca da barra? Às vezes eu imagino o cais assim (Op. cit., p. 134). Um narrador de ficção paraliterária teria desenvolvido uma longa explicação ideológica para sustentar seus pensamentos. Em um pequeno parágrafo, Jorge Amado mostra a seus leitores-eleitos inúmeras verdades, retiradas do fundo do poço de seus pensamentos verticais. Aqui, nesta minha defesa, não aceito esquecer-me da narrativa SEARA VERMELHA, em que o escritor realça a temática da seca e seus subtemas cruciais: a fome, as doenças, as superstições, o coronelismo, a jagunçagem, etc. A seca é um fenômeno natural, cíclico, que seria passível de ser contornado, se houvesse um mínimo de interesse por parte das classes privilegiadas. Penso também em CAPITÃES DA AREIA e não posso deixar de reconhecer o poder criativo, ficcional, de Jorge Amado, revelando aos leitores, pelo ponto de vista da Ficção-Arte, a face horrenda da miséria, que sempre atingirá os deserdados do mundo. Mas o escritor soube valorizar os laços de amizade, de amor e de lirismo, entre os componentes do grupo de meninos marginalizados, em confronto com os instantes de terríveis sofrimentos existenciais. Reconheço que em TIETA DO AGRESTE visualizase, com mais nitidez, o plano diegético (linear). Mas algumas questões, indispensáveis para o entendimento dos textos ficcionais do Século XX, estão ali presentes: a questão do patriarcalismo agonizante reflete-se na figura do pai; o problema da prostituição é mais uma vez retirado do fundo do poço e visto por um novo ângulo; o tabu da virgindade está crítica e ficcionalmente realçado; enfim, o seu narrador vai
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engendrando (inventando, imaginando, recriando) novos e íntimos juízos sobre a realidade que o cerca. Todos os narradores de Jorge Amado percorrem a Velha Bahia e a reinventam, transformando-a em espaço universal, instaurando novos juízos. Seus personagens poderão correr o mundo e alcançar a preferência dos leitores do futuro, porque sempre existirão pobres e ricos, alegrias e tristezas, amor e ódio, em permanente conflito, ao longo da História do Homem. Os juízos de valor – negativos e positivos – pertencem às narrativas horizontais. Como então avaliar a obra de Jorge Amado por esta ótica? Ainda defendendo o escritor, apreende-se no todo de sua criação literária uma realidade, já transformada, que transcende o tempo vital. O linear, ao longo de seus romances, cede espaço para as questões existenciais, questões sem respostas ainda, porque a realidade de seu momento histórico, ou seja, a sua realidade, como cidadão, participante ativo da sociedade brasileira, não estava (e não está) devidamente solucionada.
Enfim, como fecho desta defesa, registro aqui a capacidade do escritor de revelar-se um tanto quanto argumentador, já vivenciando o cogito (2) da consciência questionadora (Cf. Gaston Bachelard, A dialética da duração), quando se coloca em posição de defesa (ou ataque?), nas páginas de VELHOS MARINHEIROS, por intermédio de seu narrador. Quem pode, neste mundo, escapar aos invejosos? Quanto mais se destaca um homem no conceito de seus concidadãos, quanto mais alta e respeitável sua posição, mais fácil alvo para a peçonha da inveja, contra ele se levantam, em vagalhões de infâmia, os oceanos da calúnia. Nenhuma reputação, por mais ilibada, é inatingível, nenhuma glória, por mais pura, é intocável (Cf. Op. cit.: 112).
(Texto registrado de Neuza Machado. Este texto pertence aos Apontamentos de Teoria Literária e Crítica Literária, um livro que está sendo elaborado pela autora e que será publicado em breve por sua editora particular, NMachado, editora da autora registrada no ISBN, Rio de Janeiro)
1.21 – Leitura: O Cágado O CÁGADO Almada Negreiros Havia um homem que era muito senhor da sua vontade. Andava às vezes sozinho pelas estradas a passear. Por uma dessas vezes viu no meio da estrada um animal que parecia não vir a propósito – um cágado. O homem era muito senhor da sua vontade, nunca tinha visto um cágado; contudo, agora estava a acreditar. Acercou-se mais e viu com os olhos da cara que aquilo era, na verdade, o tal cágado da zoologia. O homem que era muito senhor da sua vontade ficou radiante, já tinha novidades para contar ao almoço, e deitou a correr para casa. A meio caminho pensou que a família era capaz de não aceitar a novidade por não trazer o cágado com ele, e parou de repente. Como era muito senhor da sua vontade, não poderia suportar que a família imaginasse que aquilo do cágado era história dele, e voltou atrás. Quando chegou perto do tal sítio, o cágado, que tinha desconfiado da primeira vez, enfiou buraco abaixo como quem não quer a coisa. O homem que era muito senhor da sua vontade pôsse a espreitar para dentro depois de muito espreitar não conseguiu ver senão o que se pode ver para dentro dos buracos, isto é, muito escuro. Do cágado, nada. Meteu a mão com cautela e nada; a seguir até ao cotovelo e nada; por fim o braço todo e nada. Tinham
sido experimentadas todas as cautelas e os recursos naturais de que um homem dispõe até ao comprimento do braço e nada. Então foi buscar auxílio a uma vara compridíssima, que nem é habitual em varas haver assim tão compridas, enfiou-a pelo buraco abaixo, mas o cágado morava ainda muito mais lá para o fundo. Quando largou a vara, ela foi por ali abaixo, exatamente como uma vara perdida. Depois de estudar novas maneiras, a ofensiva ficou de fato submetida a nova orientação. Havia um grande tanque de lavadeiras a dois passos e ao lado do tanque estava um bom balde dos maiores que há. Mergulhou o balde no tanque e, cheio até mais não, despejou-o inteiro para dentro do buraco do cágado. Um balde só já ele sabia que não bastava, nem dez, mas quando chegou a noventa e oito baldes e que já faltavam só dois para cem e que a água não havia meio de vir ao de cima, o homem que era muito senhor da sua vontade pôs-se a pensar em todas as espécies de buracos que possa haver. – E se eu dissesse à minha família que tinha visto o cágado? – pensava para si o homem que era muito senhor da sua vontade. Mas não! Toda a gente pode pensar assim menos eu, que sou muito senhor da minha vontade. O maldito sol também não ajudava nada. Talvez que fosse melhor não dizer nada do cágado ao almoço. A
pensar se sim ou não, os passos dirigiam-se involuntariamente para as horas de almoçar. – Já não se trata de eu ser um incompreendido com a história do cágado, não; agora trata-se apenas da minha força de vontade. É a minha força de vontade que está em prova, esta é ocasião propícia, não percamos tempo! Nada de fraquezas! Ao lado do buraco havia uma pá de ferro, destas dos trabalhadores rurais. Pegou na pá e pôs-se a desfazer o buraco. A primeira pazada de terra, a segunda, a terceira, e era uma maravilha contemplar aquela majestosa visibilidade que punha os nossos olhos em presença do mais eficaz testemunho da tenacidade, depois dos antigos. Na verdade, de cada vez que enfiava a pá na terra, com fé, com robustez, e sem outras intenções a mais, via-se perfeitamente que estava ali uma vontade inteira; e ainda que seja cientificamente impossível que a terra rachasse de cada vez que ele lhe metia a pá, contudo era indiscutivelmente esta a impressão que lhe dava. Ah, não! Não era um vulgar trabalhador rural. Via-se perfeitamente que era alguém muito senhor da sua vontade e que estava ali por acaso, por imposição própria, contrafeito, por necessidade do espírito, por outras razões diferentes das dos trabalhadores rurais, no cumprimento de um dever, um dever importante, uma questão de vida ou de morte – a vontade. Já estava na nonagésima pazada de terra; sem afrouxar, com o mesmo ímpeto da inicial, foi completamente indiferente por um almoço a menos. Fosse ou não por um cágado, a humanidade iria ver solidificada a vontade de um homem. A mil metros de profundidade a pino, o homem que era muito senhor da sua vontade foi surpreendido por dolorosa dúvida – já não tinha nem a certeza se era a qüinqüagésima milionésima octogésima quarta. Era impossível recomeçar, mais valia perder uma pazada. Até ali não havia indícios nem da passagem da vara, da água ou do cágado. Tudo fazia crer que se tratava de um buraco supérfluo; contudo, o homem era muito senhor da sua vontade, sabia que tinha de haver-se de frente com todas as más impressões. De fato, se aquela tarefa não houvesse de ser árdua e difícil, também a vontade não podia resultar superlativamente dura e preciosa. Todas as noções de tempo e de espaço, e as outras noções pelas quais um homem constata o quotidiano, foram todas uma por uma dispensadas de participar no esburacamento. Agora, que os músculos disciplinados num ritmo único estavam feitos ao que se quer pedir, eram necessários todos os raciocínios e outros arabescos cerebrais, não havia outra necessidade além da dos próprios músculos.
Umas vezes a terra era mais capaz de se deixar furar por causa das grandes camadas de areia e de lama; todavia, estas facilidades ficavam bem subtraídas quando acontecia ser a altura de atravessar uma dessas rochas gigantescas que há no subsolo. Sem incitamento nem estímulo possível por aquelas paragens, é absolutamente indispensável recordar a decisão com que o homem muito senhor da sua vontade pegou ao princípio na pá do trabalhador rural para justificarmos a intensidade e a duração desta perseverança. Inclusive, a própria descoberta do centro da terra, que tão bem podia servir de regozijo ao que se aventura pelas entranhas do nosso planeta, passou infelizmente desapercebida ao homem que era muito senhor da sua vontade. O buraco do cágado era efetivamente interminável. Por mais que se avançasse, o buraco continuava ainda e sempre. Só assim se explica ser tão rara a presença de cágados à superfície devido à extensão dos corredores desde a porta da rua até aos aposentos propriamente ditos. Entretanto, cá em cima na terra, a família do homem que era muito senhor da sua vontade, tendo começado por o ter dado por desaparecido, optara, por último, pelo luto carregado, não consentindo a entrada no quarto onde ele costumava dormir todas as noites. Até que uma vez, quando ele já não acreditava no fim das covas, já não havia, de fato, mais continuação daquele buraco, parava exatamente ali, sem apoteose, sem comemoração, sem vitória, exatamente como um simples buraco de estrada onde se vê o fundo ao sol. Enfim, naquele sítio nem a revolta servia para nada. Caindo em si, o homem que era muito senhor da sua vontade pediu-lhe decisões, novas decisões, outras; mas ali não havia nada a fazer, tinha esquecido tudo, estava despejado de todas as coisas, só lhe restava saber cavar com uma pá. Tinha, sobretudo, muito sono, lembrou-se da cama com lençóis, travesseiro e almofada fofa, tão longe! Maldita pá! O cágado! E deu com a pá com força no fundo da cova. Mas a pá safouse-lhe das mãos e foi mais fundo do que ele supunha, deixando uma greta aberta por onde entrava uma coisa de que ele já se tinha esquecido há muito – a luz do sol. A primeira sensação foi de alegria, mas durou apenas três segundos, a segunda foi de assombro: teria na verdade furado a Terra de lado a lado? Para se certificar alargou a greta com as unhas e espreitou para fora. Era um país estrangeiro; homens, mulheres, árvores, montes e casas tinham outras proporções diferentes das que ele tinha na memória. O sol também não era o mesmo, não era amarelo, era cobre cheio de azebre e fazia barulho nos reflexos. Mas a sensação mais estranha ainda estava para vir: foi que, quando quis sair da cova, julgava que ficava em pé em cima do chão como os habitantes daquele país estrangeiro, mas a verdade é que a única maneira
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de poder ver as coisas naturalmente era pondo-se de pernas para o ar... Como tinha muita sede, resolveu ir beber água ali ao pé e teve de ir de mãos no chão e o corpo a fazer pino, porque de pé subia-lhe o sangue à cabeça. Então, começou a ver que não tinha nada a esperar daquele país onde nem sequer se falava com a boca, falava-se com o nariz. Vieram-lhe de uma vez todas as saudades da casa, da família e do quarto de dormir. Felizmente estava aberto o caminho até casa, fora ele próprio que o abrira com uma pá de ferro. Resolveu-se. Começou a andar o buraco todo ao contrário. Andou, andou, andou; subiu, subiu, subiu... Quando chegou cá acima, ao lado do buraco estava uma coisa que não havia antigamente – o maior monte da Europa, feito por ele, aos poucochinhos, às pazadas de terra, uma por uma, até ficar enorme, colossal, sem querer, o maior monte da Europa. Este monte não deixava ver nem a cidade onde estava a casa da família, nem a estrada que dava para a cidade, nem os arredores da cidade que faziam um belo panorama. O monte estava por cima disto tudo e de muito mais.
O homem que era muito senhor da sua vontade estava cansadíssimo por ter feito duas vezes o diâmetro da terra. apetecia-lhe dormir na sua querida cama, mas para isso era necessário tirar aquele monte maior da Europa. Foi restituindo à Terra, uma por uma, todas as pazadas com que a tinha esburacado de lado a lado. Começavam já a aparecer as cruzes das torres, os telhados das casas, os cumes dos montes naturais, a casa da sua família, muita gente suja de terra, por ter estado soterrada, outros que ficaram aleijados, e o resto como dantes. O homem que era muito senhor da sua vontade já podia entrar em casa para descansar, mas quis mais, quis restituir à Terra todas as pazadas, todas. Faltavam poucas, algumas dúzias apenas. Já agora valia a pena fazer tudo bem até ao fim. Quando já era a última pazada de terra que ele ia meter no buraco, portanto a primeira que ele tinha tirado ao princípio, reparou que o torrão estava a mexer por si, sem ninguém lhe tocar; curioso, quis ver porque era – era o cágado. (NEGREIROS, Almada, Contos e Novelas. Lisboa: Estampa, 1970: 111-116) (Recomendamos leituras de livros de escritores portugueses aos alunos de Teoria da Literatura II)
1.22 - Análise Para a Compreensão do Conto O Cágado ATO DE (BEM) VER: Característica central dos narradores do século XX = ato de bem narrar: característica dos narradores tradicionais
intercessor, por meio de uma descrição truncada das coisas visíveis. O narrador pós-moderno evocaria o real que se encontra atrás delas (das coisas visíveis);
NARRADOR DO SÉCULO XX: Faz o leitor sonhar com a vida próxima e, ao mesmo tempo, distante. No caso do narrador de Almada Negreiros, esta assertiva se aplica, porque ele apresenta um misterioso buraco onde se esconde um cágado;
BURACO: No âmbito da representação artístico-literária significa o espaço da pureza; algo ainda não maculado; BURACO = GRUTA: Ressalta, além da natureza, os aspectos míticos (cf.: Platão: “Alegoria da Caverna”);
NARRADOR: Vê tudo (todos os detalhes e nuanças de sua narrativa);
FAMÍLIA: Não aceita novidades sem provas // VER PARA CRER;
O HOMEM QUE ERA MUITO SENHOR DA SUA VONTADE: não vê nada;
PÁ: Proporciona o retorno à gruta, ao útero, ao primitivo (retorno às vivências primeiras);
NARRATIVA INSÓLITA (narrativa do século XX / narrativa de Acontecimento): Construção estética pela palavra // sondagem do eu // devaneio que antecede a criação artística ficcional // paisagem revisitada por meio das lembranças;
SENHOR DE SUAVONTADE: Ele se obriga a penetrar no cerne da gruta para descobrir, posteriormente, os sintomas do medo, obrigatoriamente sintomas iniciais de futuras incursões em cavernas desconhecidas;
NARRATIVA: Segundo Robbe-Grillet, há nas narrativas pós-modernas um mundo presente e um mundo real; só o primeiro seria visível, só o segundo importante. O papel do ficcionista seria o de
GRUTA: Permite ver tudo = de recordar = sentir; ESCRITOR: Parece falar das coisas deste mundo com o único objetivo de direcionar o leitor para o ato de entrever a existência problemática de um além.
Assim, ele descreve as atribulações do homem que era muito senhor da sua vontade em relação à sua família;
CÁGADO: simboliza (ou mostra) o caminho difícil de uma nova arte narrativa-ficcional; O FINAL DA NARRATIVA: Volta ao princípio de tudo;
SENHOR DA SUA VONTADE: A descoberta do centro da Terra passou-lhe despercebida; QUEM VÊ TUDO É O NARRADOR / O HOMEM NÃO VÊ NADA; BURACO (CAVERNA): o narrador de Almada Negreiros obriga o leitor a sentir / entender a insolidez (INSÓLITO) de seu discurso ficcional; FAZER VER = Fazer entender o além da realidade; O Narrador vê // O leitor sente; A imaginação ajeita a gruta (o buraco) o narrador vê tudo; Significações do mundo: parciais, provisórias, contraditórias, contestadas. Como poderia a literatura pretender ilustrar uma significação antecipadamente conhecida, fosse qual fosse? A narrativa ficcional pós-moderna é uma pesquisa, que cria para si mesma suas significações à medida que vai acontecendo. A realidade tem um sentido? O Ficcionista Pós-Moderno não pode responder a tal pergunta, porque não sabe nada do que vai escrever. A escrita ficcional vai acontecendo e tomando forma por conta própria. Tudo o que ele (o Ficcionista) pode dizer é que tal realidade talvez produza um sentido posteriormente, ou seja, ao término da obra.
BURACO = GRUTA. (Leitura para a compreensão do assunto: BACHELARD, Gaston. A Terra e os Devaneios do Repouso. Tradução de Paulo Neves da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 1990.) Proteção; aconchego; Devaneio de construção (construção de algo novo); Gabinete de trabalho secreto; Continuidade entre a gruta e a casa; Casa Cósmica; Imagem fundamental; Arquétipo da casa primeira (casa natal); Protege o repouso e o amor; Imaginação de vozes profundas; Imaginação de vozes subterrâneas; Morada das Maravilhas, segundo Miguel de Cervantes, Dom Quixote. BURACO = CAVERNA Força do pavor; Voz do papai (troveja); Eu X Tu; Interrogação X Resposta; Medo = Origem do Conhecimento; Criança = Dona de um poder de apavorar; Caverna = Não familiar; Caverna = Oráculo (resposta de um deus a uma consulta. No caso da narrativa, a resposta está implícita, quando o narrador compreende o insólito = origem de um conhecimento diferente do conhecimento já instituído; Caverna: Ligada ao elemento terra.
1.23 - Leitura: Os Laços de Família, de Clarice Lispector OS LAÇOS DE FAMÍLIA
– Não, não, não esqueceu de nada, respondia a filha divertida, com paciência.
Clarice Lispector A mulher e a mãe acomodaram-se finalmente no táxi que as levaria à Estação. A mãe contava e recontava as duas malas tentando convencer-se de que ambas estavam no carro. A filha, com seus olhos escuros, a que um ligeiro estrabismo dava um contínuo brilho de zombaria e frieza assistia. – Não esqueci de nada? Perguntava pela terceira vez a mãe.
Ainda estava sob a impressão da cena meio cômica entre sua mãe e seu marido, na hora da despedida. Durante as duas semanas da visita da velha, os dois mal se haviam suportado; os bons-dias e as boastardes soavam a cada momento com uma delicadeza cautelosa que a fazia querer rir. Mas, eis que na hora da despedida, antes de entrarem no táxi, a mãe se transformara em sogra exemplar e o marido se tornara o bom genro. “Perdoe alguma palavra mal dita”, dissera a velha senhora, e Catarina, com alguma alegria, vira
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Antônio não saber o que fazer das malas nas mãos, a gaguejar – perturbado em ser o bom genro. “Se eu rio, eles pensam que estou louca”, pensara Catarina franzindo as sobrancelhas. “Quem casa um filho perde um filho, quem casa uma filha ganha mais um”, acrescentara a mãe, e Antônio aproveitara sua gripe para tossir. Catarina, de pé, observava com malícia o marido, cuja segurança se desvanecera para dar lugar a um homem moreno e miúdo, forçado a ser filho daquele mulherzinha grisalha... Foi então que a vontade de rir tornou-se mais forte. Felizmente nunca precisava rir de fato quando tinha vontade de rir: seus olhos tomavam uma expressão esperta e contida, tornavam-se mais estrábicos – e o riso saía pelos olhos. Sempre doía um pouco ser capaz de rir. Mas nada podia fazer contra: desde pequena rira pelos olhos, desde sempre fora estrábica. – Continuo a dizer que o menino está magro, disse a mãe resistindo aos solavancos do carro. E apesar de Antônio não estar presente, ela usava o mesmo tom de desafio e acusação que empregava diante dele. Tanto que uma noite Antônio se agitara: não é por culpa minha, Severina! Ele chamava a sogra de Severina, pois antes do casamento projetava serem sogra e genro modernos. Logo à primeira visita da mãe ao casal, a palavra Severina tornara-se difícil na boca do marido, e agora, então, o fato de chamá-la pelo nome não impedira que ... – Catarina olhava-os e ria. – O menino sempre foi magro, mamãe, respondeu-lhe. O táxi avançava monótono. – Magro e nervoso, acrescentou a senhora com decisão. – Magro e nervoso, assentiu Catarina paciente. Era um menino nervoso, distraído. Durante a visita da avó tornara-se ainda mais distante, dormira mal, perturbado pelos carinhos excessivos e pelos beliscões de amor da velha. Antônio, que nunca se preocupara especialmente com a sensibilidade do filho, passara a dar indiretas à sogra, “a proteger uma criança”... – Não esqueci de nada..., recomeçou a mãe, quando uma freada súbita do carro lançou-as uma contra a outra e fez despencarem as malas. – Ah! Ah! – exclamou a mãe como a um desastre irremediável, ah! dizia balançando a cabeça em surpresa, de repente envelhecida e pobre. E Catarina? Catarina olhava a mãe, e a mãe olhava a filha, e também a Catarina acontecera um desastre? Seus olhos piscaram surpreendidos, ela ajeitava depressa as malas, a bolsa, procurando o mais rapidamente possível remediar a catástrofe. Porque de fato sucedera alguma coisa, seria inútil esconder: Catarina fora lançada contra Severina, numa intimidade de corpo há muito
esquecida, vinda do tempo em que se tem pai e mãe. Apesar de que nunca se haviam realmente abraçado ou beijado. Do pai, sim. Catarina fora mais amiga. Quando a mãe enchia-lhes os pratos obrigando-os a comer demais, os dois se olhavam piscando em cumplicidade e a mãe nem notava. Mas depois do choque no táxi e depois de se ajeitarem, não tinham o que falar – por que não chegavam logo à Estação? – Não esqueci de nada?, perguntou a mãe com voz resignada. – Catarina não queria mais fitá-la nem responder-lhe. – Tome suas luvas! disse-lhe, recolhendo-as do chão. – Ah! ah! minhas luvas! exclamava a mãe perplexa. Só se espiaram realmente quando as malas foram dispostas no trem, depois de trocados os beijos: a cabeça da mãe apareceu na janela. Catarina viu então que sua mãe estava envelhecida e tinha os olhos brilhantes. O trem não partia e ambas esperavam sem ter o que dizer. A mãe tirou o espelho da bolsa e examinou-se no seu chapéu novo, comprado no mesmo chapeleiro da filha. Olhava-se compondo um ar excessivamente severo onde não faltava alguma admiração por si mesma. A filha observava divertida. Ninguém mais te ama senão eu, pensou a mulher rindo pelos olhos; e o peso da responsabilidade deu-lhe à boca um gosto de sangue. Como se “mãe e filha” fosse vida e repugnância. Não, não se podia dizer que amava sua mãe. Sua mãe lhe doía, era isso. A velha guardara o espelho na bolsa, e fitava-a sorrindo. O rosto usado e ainda bem esperto parecia esforçar-se por dar aos outros alguma impressão, da qual o chapéu faria parte. A campainha da Estação tocou de súbito, houve um movimento geral de ansiedade, várias pessoas correram pensando que o trem já partia: mamãe! disse a mulher. Catarina! disse a velha. Ambas se olhavam espantadas, a mala na cabeça de um carregador interrompeu-lhes a visão e um rapaz correndo segurou de passagem o braço de Catarina, deslocando-lhe a gola do vestido. Quando puderam ver-se de novo, Catarina estava sob a iminência de lhe perguntar se não esquecera de nada... – ... não esqueci de nada? perguntou a mãe. Também a Catarina parecia que haviam esquecido de alguma coisa, ambas se olhavam atônitas – porque se realmente haviam esquecido, agora era tarde demais. Uma mulher arrastava uma criança, a criança chorava, novamente a campainha da Estação soou... Mamãe, disse a mulher. Que coisa tinham esquecido de dizer uma a outra? e agora era tarde demais. Parecia-lhe que
deveriam um dia ter dito assim: sou tua mãe, Catarina. e ela deveria ter respondido: e eu sou tua filha. – Não vá pegar corrente de ar! gritou Catarina. – Ora menina, sou lá criança, disse a mãe porém de se preocupar com a própria aparência. A mão sardenta, um pouco trêmula, arranjava com delicadeza a aba do chapéu e Catarina teve subitamente vontade de lhe perguntar se fora feliz com seu pai. – Dê lembranças a titia! gritou. – Sim, sim! – Mamãe, disse Catarina porque um longo apito se ouvira e no meio da fumaça as rodas já se moviam. – Catarina! disse a velha de boca aberta e olhos espantados, e ao primeiro solavanco a filha viu-a levar as mãos ao chapéu: este caíra-lhe até o nariz, deixando aparecer apenas a nova dentadura. O trem já andava e Catarina acenava. O rosto da mãe desapareceu um instante e reapareceu já sem o chapéu, o coque dos cabelos desmanchado caindo em mechas brancas sobre os ombros como as de uma donzela – o rosto estava inclinado sem sorrir, talvez mesmo sem enxergar mais a filha distante. No meio da fumaça, Catarina começou a caminhar de volta, as sobrancelhas franzidas, e nos olhos a malícia dos estrábicos. Sem a companhia da mãe, recuperara o modo firme de caminhar: sozinha era mais fácil. Alguns homens a olhavam, ela era doce, um pouco pesada de corpo. Caminhava serena, moderna nos trajes, os cabelos curtos pintados de acaju. E de tal modo haviam-se disposto as coisas que o amor doloroso lhe pareceu a felicidade – tudo estava tão vivo e tenro ao redor, a rua suja, os velhos bondes, cascas de laranja – a força fluía e refluía no seu coração com pesada riqueza. Estava muito bonita neste momento, tão elegante; integrada na sua época e na cidade onde nascera como se a tivesse escolhido. Nos olhos vesgos, qualquer pessoa adivinharia o gosto que essa mulher tinha pelas coisas do mundo. Espiava as pessoas com insistência, procurando fixar naquelas figuras mutáveis seu prazer ainda úmido de lágrimas pela mãe. Desviou-se dos carros, conseguiu aproximar-se do ônibus burlando a fila, espiando com ironia; nada impediria que essa pequena mulher que andava rolando os quadris subisse mais um degrau misterioso nos seus dias. O elevador zumbia no calor da praia. Abriu a porta do apartamento enquanto se libertava do chapeuzinho com a outra mão; parecia disposta a usufruir da largueza do mundo inteiro, caminho aberto pela sua mãe que lhe ardia no peito. Antônio mal levantou os olhos do livro. A tarde de sábado sempre fora “sua”, e, logo depois da partida de Severina, ele a retomava com prazer, junto à escrivaninha.
– “Ela” foi? – Foi sim, respondeu Catarina empurrando a porta do quarto de seu filho. Ah, sim, lá estava o menino, pensou com alívio súbito. Seu filho. Magro e nervoso. Desde que se pusera de pé caminhara firme; mas quase aos quatro anos falava como se desconhecesse verbos: constatava as coisas com frieza, não as ligando entre si. Lá estava ele mexendo na toalha molhada, exato e distante. A mulher sentia um calor bom e gostaria de prender o menino para sempre a este momento; puxou-lhe a toalha das mãos em censura: este menino! Mas o menino olhava indiferente para o ar, comunicando-se consigo mesmo. Estava sempre distraído. Ninguém conseguira ainda chamar-lhe verdadeiramente a atenção. A mãe sacudia a toalha no ar e impedia com sua forma a visão do quarto: mamãe, disse o menino. Catarina voltou-se rápida. Era a primeira vez que ele dizia “mamãe” nesse tom e sem pedir nada. Fora mais que uma constatação: mamãe! A mulher continuou a sacudir a toalha com violência e perguntou-se a quem poderia contar o que sucedera, mas não encontrou ninguém que entendesse o que ela não pudesse explicar. Desamarrotou a toalha com vigor antes de pendurá-la para secar. Talvez pudesse contar, se mudasse a forma. Contaria que o filho dissera: mamãe, quem é Deus. Não, talvez: mamãe, menino quer Deus. Talvez. Só em símbolos a verdade caberia, só em símbolos é que a receberiam. Com os olhos sorrindo de sua mentira necessária, e sobretudo da própria tolice, fugindo de Severina, a mulher inesperadamente riu de fato para o menino, não só com os olhos: o corpo todo riu quebrado, quebrado um invólucro, e uma aspereza aparecendo como uma rouquidão. Feia, disse então o menino examinando-a. – Vamos passear! Respondeu corando e pegando-o pela mão. Passou pela sala, sem parar avisou ao marido: vamos sair! E bateu a porta do apartamento. Antônio mal teve tempo de levantar os olhos do livro – e com surpresa espiava a sala já vazia. Catarina! chamou, mas já se ouvia o ruído do elevador descendo. Aonde foram? perguntou-se inquieto, tossindo e assoando o nariz. Porque o sábado era seu, mas ele queria que sua mulher e seu filho estivessem em casa enquanto ele tomava o seu sábado. Catarina! chamou aborrecido embora soubesse que ela não poderia mais ouvi-lo. Levantou-se, foi à janela e um segundo depois enxergou sua mulher e seu filho na calçada. Os dois haviam parado, a mulher talvez decidindo o caminho a tomar. E de súbito pondo-se em marcha. Por que andava ela tão forte, segurando a mão da criança? Pela janela via uma mulher prendendo com força a mão da criança e caminhando depressa, com os olhos fixos adiante; e, mesmo sem ver, o homem
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adivinhava sua boca endurecida. A criança, não se sabia por que obscura compreensão, também olhava fixo para frente, surpreendida e ingênua. Vistas de cima as duas figuras perdiam a perspectiva familiar, pareciam achatadas ao solo e mais escuras à luz do mar. Os cabelos da criança voavam... O marido repetiu-se a pergunta que, mesmo sob a sua inocência de frase cotidiana, inquietou-o: aonde vão? Via preocupado que sua mulher guiava a criança e temia que neste momento em que ambos estavam fora de seu alcance ela transmitisse a seu filho... mas o quê? “Catarina”, pensou, “Catarina, esta criança ainda é inocente!” Em que momento é que a mãe, apertando uma criança, dava-lhe esta prisão de amor que se abateria para sempre sobre o futuro do homem. Mais tarde seu filho, já homem, sozinho, estaria de pé diante desta mesma janela, batendo dedos nesta vidraça: preso. Obrigado a responder a um morto. Quem saberia jamais em que momento a mãe transferia ao filho a herança. E com que sombrio prazer. Agora mãe e filho compreendendo-se dentro do mistério partilhado. Depois ninguém saberia de que negras raízes se alimentava a liberdade de um homem. “Catarina”, pensou com cólera, “a criança é inocente!” Tinham porém desaparecido pela praia. O mistério partilhado. “Mas e eu?” perguntou-se assustado. Os dois tinham ido embora sozinhos. E ele ficara. “Com o seu sábado.” E sua gripe. No apartamento arrumado, onde “tudo corria bem”. Quem sabe se sua mulher estava fugindo com o filho da sala de luz bem regulada, dos móveis bem escolhidos, das cortinas e dos quadros? Fora isso o que ele lhe dera. Apartamento de um engenheiro. E sabia que se a mulher aproveitava da situação de um marido moço e cheio de futuro – desprezava-a também, com aqueles olhos sonsos, fugindo com seu filho nervoso e magro. O homem inquietou-se. Porque não poderia continuar a lhe dar senão: mais sucesso. E porque sabia que ela o ajudaria a consegui-lo e odiaria o que conseguissem. Assim era aquela calma mulher de trinta e dois anos que nunca falava propriamente, como se tivessem vivido sempre. As relações entre ambos eram tão tranqüilas. Às vezes ele procurava humilhá-la, entrava no quarto enquanto ela mudava de roupa porque sabia que ela detestava ser vista nua.
Por que precisava humilhá-la? No entanto, ele bem sabia que ela só seria de um homem enquanto fosse orgulhosa. Mas tinha se habituado a torná-la feminina deste modo: humilhava-a com ternura, e já agora ela sorria – sem rancor? Talvez de tudo isso tivessem nascido suas relações pacíficas, e aquelas conversas em voz tranqüila que faziam a atmosfera do lar para a criança. Ou esta se irritava às vezes? Às vezes o menino se irritava, batia os pés, gritava sob pesadelos. De onde nascera esta criaturinha vibrante, senão do que sua mulher e ele haviam cortado da vida diária. Viviam tão tranqüilos que, se se aproximava um momento de alegria, eles se olhavam rapidamente, quase irônicos, e os olhos de ambos diziam: não vamos gastá-lo, não vamos ridiculamente usá-lo. Como se tivessem vivido desde sempre. Mas ele a olhara da janela, vira-a andar depressa de mãos dadas com o filho, e dissera-se: ela está tomando o momento de alegria – sozinha. Sentia-se frustrado porque há muito não poderia viver senão com ela. E ela conseguia tomar seus momentos – sozinha. Por exemplo, que fizera sua mulher entre o trem e o apartamento? Não que a suspeitasse mas inquietava-se. A última luz da tarde estava pesada e abatia-se com gravidade sobre os objetos. As areias estalavam secas. O dia inteiro estivera sob essa ameaça de irradiação. Que nesse momento, sem rebentar, embora, se ensurdecia cada vez mais e zumbia no elevador ininterrupto do edifício. Quando Catarina voltasse, eles jantariam afastando as mariposas. O menino gritaria no primeiro sono, Catarina interromperia um momento o jantar... e o elevador não pararia por um instante sequer?! Não, o elevador não pararia um instante. – “Depois do jantar iremos ao cinema”, resolveu o homem. Porque depois do cinema seria enfim noite, e este dia se quebraria com as ondas nos rochedos do Arpoador. (Conferir: LISPECTOR, Clarice. Laços de Família Coletânea de contos. Rio de Janeiro: Rocco, 1998:94.) (Recomendamos leituras de livros de Clarice Lispector e outros escritores brasileiros aos alunos de Teoria da Literatura II)
1.24 - Leitura: O Ex-Mágico da Taberna Minhota, de Murilo Rubião Murilo Rubião
Hoje sou funcionário público e este não é o meu desconsolo maior.
Inclina, Senhor, o teu ouvido, e ouve-me, porque eu sou desvalido e pobre. (Salmos. LXXXV,1)
Na verdade, eu não estava preparado para o sofrimento. Todo homem, ao atingir certa idade, pode perfeitamente enfrentar a avalanche do tédio e da amargura, pois desde a meninice acostumou-se às
O EX-MÁGICO DATABERNAMINHOTA
vicissitudes, através de um processo lento e gradativo de dissabores.
menos me ocorria odiá-las por terem tudo que ambicionei e não tive: um nascimento e um passado.
Tal não aconteceu comigo. Fui atirado à vida sem pais, infância ou juventude.
Com o crescimento da popularidade, a minha vida tornou-se insuportável.
Um dia dei com os meus cabelos ligeiramente grisalhos, no espelho da Taberna Minhota. A descoberta não me espantou e tampouco me surpreendi ao retirar do bolso o dono do restaurante. Ele sim, perplexo, me perguntou como podia ter feito aquilo.
Às vezes, sentado em algum café, a olhar cismativamente o povo desfilando na calçada, arrancava do bolso pombos, gaivotas, maritacas. As pessoas que se encontravam nas imediações, julgando intencional o meu gesto, rompiam em estridentes gargalhadas. Eu olhava melancólico para o chão e resmungava contra o mundo e os pássaros.
O que poderia responder, nessa situação, uma pessoa que não encontrava a menor explicação para a sua presença no mundo? Disse-lhe que estava cansado. Nascera cansado e entediado. Sem meditar na resposta, ou fazer outras perguntas, ofereceu-me emprego e passei daquele momento em diante a divertir a freguesia da casa com meus passes mágicos. O homem, entretanto, não gostou da minha prática de oferecer aos espectadores almoços gratuitos, que eu extraía misteriosamente de dentro do paletó. Considerando não ser dos melhores negócios aumentar o número de fregueses sem o conseqüente acréscimo nos lucros, apresentou-me ao empresário do Circo-Parque Andaluz, que, posto a par das minhas habilidades, propôs contratar-me. Antes, porém, aconselhou-o que se prevenisse contra os meus truques, pois ninguém estranharia se me ocorresse a idéia de distribuir ingressos graciosos para os espetáculos. Contrariando as previsões pessimistas do primeiro patrão, o meu comportamento foi exemplar. As minhas apresentações em público não só empolgaram multidões como deram fabulosos lucros aos donos da companhia. A platéia, em geral, me recebia com frieza, talvez por não me exibir de casaca e cartola. Mas quando, sem querer, começava a extrair do chapéu coelhos, cobras, lagartos, os assistentes vibravam. Sobretudo no último número, em que eu fazia surgir, por entre os dedos, um jacaré. Em seguida, comprimindo o animal pelas extremidades, transformava-o numa sanfona. E encerrava o espetáculo tocando o Hino Nacional da Cochinchina. Os aplausos estrugiam de todos os lados, sob o meu olhar distante. O gerente do circo, a me espreitar de longe, danavase com a minha indiferença pelas palmas da assistência. Notadamente se elas partiam das criancinhas que me iam aplaudir nas matinês de domingo. Por que me emocionar, se não me causavam pena aqueles rostos inocentes, destinados a passar pelos sofrimentos que acompanham o amadurecimento do homem? Muito
Se, distraído, abria as mãos, delas escorregavam esquisitos objetos. A ponto de me surpreender, certa vez, puxando pela manga da camisa uma figura, depois outra. Por fim, estava rodeado de figuras estranhas, sem saber que destino lhes dar. Nada fazia. Olhava para os lados e implorava com os olhos por um socorro que não poderia vir de parte alguma. Situação cruciante. Quase sempre, ao tirar o lenço para assoar o nariz, provocava o assombro dos que estavam próximos, sacando um lençol do bolso. Se mexia na gola do paletó, logo aparecia um urubu. Em outras ocasiões, indo amarrar o cordão do sapato, das minhas calças deslizavam cobras. Mulheres e crianças gritavam. Vinham guardas, ajuntavam-se curiosos, um escândalo. Tinha de comparecer à delegacia e ouvir pacientemente da autoridade policial ser proibido soltar serpentes nas vias públicas. Não protestava. Tímido e humilde mencionava a minha condição de mágico, reafirmando o propósito de não molestar ninguém. Também, à noite, em meio a um sono tranqüilo, costumava acordar sobressaltado: era um pássaro ruidoso que batera as asas ao sair do meu ouvido. Numa dessas vezes, irritado, disposto a nunca mais fazer mágicas, mutilei as mãos. Não adiantou. Ao primeiro movimento que fiz, elas reapareceram novas e perfeitas nas pontas dos tocos de braço. Acontecimento de desesperar qualquer pessoa, principalmente um mágico enfastiado do ofício. Urgia encontrar solução para o meu desespero. Pensando bem, conclui que somente a morte poria termo ao meu desconsolo. Firme no propósito, tirei dos bolsos uma dúzia de leões e, cruzando os braços, aguardei o momento em
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que seria devorado por eles. Nenhum mal me fizeram. Rodearam-me, farejaram minhas roupas, olharam a paisagem, e se foram. Na manhã seguinte regressaram e se puseram, acintosos, diante de mim. – O que desejam, estúpidos animais?! – gritei, indignado. Sacudiram com tristeza as jubas e imploraram-me que os fizesse desaparecer: – Este mundo é tremendamente tedioso – concluíram. Não consegui refrear a raiva. Matei-os todos e me pus a devorá-los. Esperava morrer, vítima de fatal indigestão. Sofrimento dos sofrimentos! Tive imensa dor de barriga e continuei a viver. O fracasso da tentativa multiplicou minha frustração. Afastei-me da zona urbana e busquei a serra. Ao alcançar seu ponto mais alto, que dominava escuro abismo, abandonei o corpo no espaço. Senti apenas uma leve sensação da vizinhança da morte: logo me vi amparado por um pára-quedas. Com dificuldade, machucando-me nas pedras, sujo e estropiado, consegui regressar à cidade, onde a minha primeira providência foi adquirir uma pistola. Em casa, estendido na cama, levei a arma ao ouvido. Puxei o gatilho, à espera do estampido, a dor da bala penetrando na minha cabeça. Não veio o disparo nem a morte: a máuser se transformara num lápis. Rolei no chão, soluçando. Eu, que podia criar outros seres, não encontrava meios de libertar-me da existência. Uma frase que escutara por acaso, na rua, trouxe-me nova esperança de romper em definitivo com a vida. Ouvira de um homem triste que ser funcionário público era suicidar-se aos poucos. Não me encontrava em condições de determinar qual a forma de suicídio que melhor me convinha: se lenta ou rápida. Por isso empreguei-me numa Secretária de Estado. 1930, ano amargo. Foi mais longo que os posteriores à primeira manifestação que tive da existência, ante o espelho da Taberna Minhota. Não morri, conforme esperava. Maiores foram as minhas aflições, maior o meu desconsolo.
Quando era mágico, pouco lidava com os homens – o palco me distanciava deles. Agora, obrigado a constante contato com meus semelhantes, necessitava compreendê-los, disfarçar a náusea que me causavam. O pior é que, sendo diminuto meu serviço, via-me na contingência de permanecer à toa horas a fio. E o ócio levou-me à revolta contra a falta de um passado. Por que somente eu, entre todos os que viviam sob os meus olhos, não tinha alguma coisa para recordar? Os meus dias flutuavam confusos, mesclados com pobres recordações, pequeno saldo de três anos de vida. O amor que me veio por uma funcionária, vizinha de mesa de trabalho, distraiu-me um pouco das minhas inquietações. Distração momentânea. Cedo retornou o desassossego, debatia-me em incertezas. Como me declarar à minha colega? Se nunca fizera uma declaração de amor e não tivera sequer uma experiência sentimental! 1931 entrou triste, com ameaças de demissões coletivas na Secretaria e a recusa da datilógrafa em me aceitar. Ante o risco de ser demitido, procurei acautelar meus interesses. (Não me importava o emprego. Somente temia ficar longe da mulher que me rejeitara, mas cuja presença me era agora indispensável.) Fui ao chefe da seção e lhe declarei que não podia ser dispensado, pois, tendo dez anos de casa, adquirira estabilidade no cargo. Fitou-me por algum tempo em silêncio. Depois, fechando a cara, disse que estava atônito com meu cinismo. Jamais poderia esperar de alguém, com um ano de trabalho, ter a ousadia de afirmar que tinha dez. Para lhe provar não ser leviana a minha atitude, procurei nos bolsos os documentos que comprovavam a lisura do meu procedimento. Estupefato, deles retirei apenas um papel amarrotado – fragmento de um poema inspirado nos seios da datilógrafa. Revolvi, ansioso, todos os bolsos e nada encontrei. Tive que confessar minha derrota. Confiara demais na faculdade de fazer mágicas e ela fora anulada pela burocracia. Hoje, sem os antigos e miraculosos dons de mago, não consigo abandonar a pior das ocupações humanas. Falta-me o amor da companheira de trabalho, a presença de amigos, o que me obriga a andar por lugares solitários. Sou visto muitas vezes procurando retirar com os dedos, do interior da roupa, qualquer coisa que ninguém enxerga, por mais que atente a vista.
Pensam que estou louco, principalmente quando atiro ao ar essas pequeninas coisas.
extremo a outro. E os aplausos dos homens de cabelos brancos, das meigas criancinhas.
Tenho a impressão de que é uma andorinha a se desvencilhar das minhas mãos. Suspiro alto e fundo.
(Conferir: RUBIÃO, Murilo. O Pirotécnico Zacarias e Outros Contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006:19. A 1a edição data de 1974).
Não me conforta a ilusão. Serve somente para aumentar o arrependimento de não ter criado todo um mundo mágico. Por instantes, imagino como seria maravilhoso arrancar do corpo lenços vermelhos, azuis, brancos, verdes. Encher a noite com fogos de artifício. Erguer o rosto para o céu e deixar que pelos meus lábios saísse o arco-íris. Um arco-íris que cobrisse a Terra de um
VOCABULÁRIO: Pirotécnico = Fabricante de fogos de artifício; Lisura = (figurado) Boa fé, sinceridade, honradez. PROPOSTA DE MONOGRAFIA: O(A) aluno(a) poderá pesquisar um texto ficcional de Murilo Rubião – um dos contos escritos por ele.
1.25 - Leitura: Dôia na Janela, de Roberto Drummond DÔIA NA JANELA Roberto Drummond Dôia ficava olhando da janela. Como Dôia podia voar, puseram grades na janela, não eram grades como as das cadeias, eram pintadas de verde. Com a ponta da unha, Dôia arranhava as grades, a cada manhã, para nunca perder a conta dos dias que estava ali. Já havia 38 arranhões, como esmalte descascando na unha, nas grades verdes. À noite a vista era mais bonita da janela e Dôia via as luzes da cidade. Lá longe, onde a cidade acabava, parecia haver um mar, com navios chegando. Dôia gostava de olhar o anúncio luminoso da Coca-Cola e certas noites o único consolo de Dôia era aquela garrafa enchendo um copo de Coca-Cola. Dôia se imaginava usando uma calça Lee desbotada e tomando uma Coca-Cola num barzinho ao ar livre, onde cresciam samambaias longas como os cabelos de Dôia. À tarde Dôia ligava o toca-fitas com as gravações que a irmã trouxe. Eram as vozes e os barulhos de sua casa. Dôia ouvia o pigarro do pai, com o canto do sabiá ao fundo. Às vezes a mãe de Dôia cantava e os irmãos mandavam recado para Dôia. Dôia escutava os latidos da cachorra Laika e prometia ser boa para Laika quando voltasse para casa. O quarto onde Dôia ficava era pintado de branco. Na cabeceira da cama penduraram um crucifixo e Dôia foi se tornando amiga daquele Jesus Cristo esquálido. Durante o dia, Dôia dormia. Logo que eram acesas as primeiras luzes da cidade, Dôia debruçava na janela. Ficava de joelhos, olhando da janela, e já estava com calos, como as beatas. Quando levaram Dôia para aquele quarto, ela olhava da janela com seus olhos cor de bala de menta. Depois
o irmão de Dôia teve a idéia de trazer a luneta que foi do avô. Dôia tinha uma vaga lembrança do avô, sempre de terno de linho, e falando nas estrelas. Com a luneta, Dôia olhava o céu e tinha esperança de ver um disco voador. À noite, Dôia só deixava a janela quando escutava o barulho do rato que apelidou de Salamemingüê. Ele era manso e Dôia alisava seu pêlo e uma noite Dôia cantou “We Sahall Overcome”* para Salamemingüê ouvir. Dôia nunca dava muito pão para Salamemingüê, com medo de que ele engordasse e não pudesse mais passar pela fresta por onde entrava no quarto. Dôia já conhecia todos os barulhos da noite. De madrugada os trens apitavam como se passassem debaixo de sua janela. À Meia-Noite e 35 um homem espancava uma mulher numa casa debaixo de um anúncio luminoso dos pneus Firestone. Antes de receber a luneta, Dôia achava que a briga era de algum filme da “Sessão Coruja”, na televisão. Com a luneta, localizou a casa da briga e via, pela janela acesa, o homem espancar a mulher e depois se ajoelhar aos pés dela. Dôia desviava a luneta quando os dois começavam a se abraçar na cama. Depois Dôia ficava esperando o avião que ia para Nova Iorque. Dôia conhecia os aviões pelo barulho que faziam e achava bom vê-los voando baixo, as janelinhas acesas parecendo brasas vermelhas. Os passageiros daqueles aviões nunca souberam o quanto Dôia os amava. Dôia só ia dormir depois que passava o satélite artificial “Pássaro Madrugador”. Antes de fechar os olhos, Dôia dava um último olhar para Sirius, a estrela. Na véspera de receber alta, Dôia descobriu que amava cada coisa daquele mundo onde esteve encerrada. Dividiu um pedaço de pão com o rato Salamemingüê e lhe disse, alisando sua cabeça, que ia levá-lo com ela. Dôia mudou de idéia e achou que Salamemingüê devia
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ficar, para fazer companhia a quem ocupasse o quarto das grades verdes. E Dôia ficou olhando o anúncio luminoso da Coca-Cola, depois Dôia olhou o casal que brigava na casa debaixo do anúncio dos pneus Firestone e teve vontade de dizer aos dois: juízo, hein? Quando passou o avião para Nova Iorque, Dôia acenou e gritou boa viagem para os passageiros. Dôia ainda olhou lá longe, viu dois navios chegando, e ficou com a luneta na mão, esperando o satélite “Pássaro Madrugador”. Era noite de lua cheia e Dôia viu três jipes parando onde iam fazer uma praça ou uma quadra de basquete. Uns homens desceram dos jipes e Dôia os viu sumir debaixo de uma árvore. Dôia ajustou a luneta e os homens voltaram, carregando uma cruz, como as usadas na encenação da Semana Santa. Puseram a cruz no chão e Dôia os viu arrastar um homem de dentro de um jipe. O homem estava com as mãos amarradas atrás, com uma corda de bacalhau, e usava uma calça Lee desbotada e um quedes azul, sem meia. Sua blusa Dôia imaginou como sendo “Adidas”, comprada em Buenos Aires. A barba do homem de calça Lee era grande e Dôia achou-o parecido com Alain Delon. Os cabelos eram louros como os de Robert Redford.
– Eram cabelos compridos, Dôia? – perguntou o dr. Garret. – Eram , respondeu Dôia. – Ele tinha barba, Dôia? – perguntou o dr. Garret. – Tinha , respondeu Dôia. – Agora, Dôia, me diga uma coisa – falou o dr. Garret com um ar misterioso – Quantos anos o homem parecia ter? – Uns 33 – respondeu Dôia. – E estava descalço e quase nu? – insistiu o dr. Garret. – Estava – respondeu Dôia – Só ficou com a cueca Zorba laranja. – Então Dôia – disse o dr. Garret, sem conseguir conter a emoção, a cena que você presenciou aconteceu há muitos e muitos anos... – Como? – perguntou Dôia.
Desataram as mãos do homem de calça Lee e o arrastaram para a cruz e três homens apontaram suas metralhadoras Ina para o homem de calça Lee desbotada. Dôia soltou um grito, que os outros internos pensaram que fosse alguém tendo um pesadelo, e o homem de calça Lee tirou o quedes azul, a calça Lee, a camisa Adidas e ficou nu, vestido apenas com uma cueca Zorba laranja. Os homens o agarraram, houve gritos abafados, depois um silêncio, com o rádio de um táxi tocando música, e Dôia começou a ouvir o barulho de martelo batendo prego. Dôia mudou de posição na janela, ajustou mais a luneta e viu os homens crucificando o homem de cueca Zorba laranja. De manhã cedo, o médico que ia dar alta a Dôia, o dr. Garret, achou-a pálida e com olheiras. Dôia contou que não tinha dormido porque de noite crucificaram um homem e ela assistiu tudo da janela do quarto, olhando com a luneta. O dr. Garret ajeitou os óculos, como fazia quando alguma coisa o espantava, e pediu a Dôia que contasse como foi. O dr. Garret ouviu tudo, sempre ajustando os óculos, e disse: – Escuta, Dôia, o homem que crucificaram não se parecia com ninguém que você já tenha visto, mesmo em gravura? – Sim, se parecia, respondeu Dôia. – Com quem? perguntou o dr. Garret. – Com o Alain Delon, menos nos cabelos. Os cabelos dele eram louros como os de Robert Redford...
– Isso mesmo, Dôia. Aconteceu há quase 2 mil anos – respondeu penalizado, o dr. Garret. Mais tarde, quando tomava um café com um colega da clínica, o dr. Garret contava que sua cliente teve uma alucinação e viu um homem ser crucificado como Jesus Cristo. – Sabe o que estavam fazendo de noite na praça onde ela viu a crucificação? perguntou o dr. Garret, ajustando os óculos . Estavam plantando rosas nuns canteiros... Nos 385 dias que ainda ficou ajoelhada olhando da janela, Dôia nunca se esqueceu do Cristo de cueca Zorba laranja, parecido com Alain Delon. Ele costumava aparecer nos sonhos de Dôia transformado numa rosa loura como os cabelos de Robert Redford. (Conferir: DRUMMOND, Roberto. A Morte de D. J. Em Paris. 1.ed. São Paulo: Ática, 1975: 21-25) *[“Nós estamos chegando” ou “Nós venceremos”] (Recomendamos os textos ficcionais de Roberto Drummond, escritos durante o período de ditadura militar no Brasil, aos alunos deTeoria da Literatura II. Ler, também, os textos ficcionais que foram escritos depois da ditadura, como, por exemplo, Hilda Furacão, texto que foi adaptado, posteriormente, para uma minissérie da Rede Globo de Televisão.)
PROPOSTA DE MONOGRAFIA: O(A) aluno(a) poderá pesquisar um texto ficcional de Roberto
Drummond – um dos contos escritos por ele .
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UNIDADE II GÊNEROS LITERÁRIOS 2.1 - A Problemática dos Gêneros Literários SOBRE A QUESTÃO DOS GÊNEROS LITERÁRIOS Desde a antiguidade helênica até aos nossos dias, muito se especulou sobre Gêneros Literários. O filósofo que se preocupou, em primeiro lugar, com o problema foi Platão, no Livro III de A República, no qual distinguiu as três grandes divisões dentro da poesia, como eram conhecidos os textos literários, naquela época: a poesia mimética (ou dramática), a poesia não mimética (ou lírica) e a poesia mista (ou épica). Assim, foi a partir de Platão que originou-se a atualmente chamada PROBLEMÁTICA DOS GÊNEROS LITERÁRIOS, também reconhecida, no auge do Renascimento, como uma questão a ser solucionada. De qualquer maneira, é importante que se saiba que Platão aboliu a divisão, que ele mesmo havia instituído, no seu Livro X, na mesma obra A República. Se repensarmos, com atenção, as idéias de Aristóteles, o segundo desta lista, sobre este assunto tão controvertido, vamos perceber que ele foi, em verdade, o primeiro a fazer uma reflexão consciente e profunda sobre a questão que, no momento, priorizamos. O seu livro Poética, ainda hoje, poderá servir-nos de bússola, para orientar-nos, quanto à compreensão das atuais delimitações dos Gêneros Literários, no âmbito da Literatura-Arte. Aristóteles, entre os muitos teóricos que se envolveram com o problema, foi o que mais nos legou subsídios para que pudéssemos hoje, no início do século XXI, analisar e compreender tais distinções sobre os Gêneros Literários. Assim dito, passamos a entender, agora, o papel da mimese no que tange ao reconhecimento das diversas categorias genéticas. A mimese (um conceito filosófico), para Aristóteles, se colocará, para sempre, como o fundamento de todas as artes (entretanto, no caso de nossa disciplina, esta se envolve única e exclusivamente com a Arte Literária), diferenciando-se a forma como cada uma assimila e demonstra esta dita mimese. Na Literatura-Arte, é importante esclarecer, a mimese é apreendida através da palavra escrita. Na pinturaarte, as cores revelarão a mimese. Na música-arte, o ritmo e a harmonia se acoplarão e, através deles, a mimese poderá ser apreendida. Na arquitetura-arte, o vazio, que será, posteriormente, preenchido pelo Artista-Arquiteto, irá revelar, com grandeza, a mimese, que se colocará subentendida na forma arquitetônica. Na escultura-arte, o mesmo será revelado, pois a
mimese estará subentendida na forma. Assim, é por intermédio da forma que a mimese se faz presente na escultura-arte. Na coreografia-arte (dança), percebese a mimese, intuída pelo coreógrafo, nos movimentos dos bailarinos. E, mesmo na Literatura-Arte, em que a mimese do texto é revelada por intermédio da palavra escrita, há distinções. Há como observar a mimese em formas literárias diferentes. A essas formas diferentes do texto literário, denominamos Gêneros Literários. Assim, é possível, ainda hoje, distinguirmos o Gênero Épico do Gênero Lírico e do Gênero Dramático, a chamada tripartição genérica, reconhecida pelos antigos estudiosos da literatura, desde os gregos até ao Renascimento. Somente no início do século XVII, ainda sob o impacto da anterior transição da Idade Média para a Idade Moderna, com o surgimento de Dom Quixote, o Cavaleiro da Triste Figura, do espanhol Miguel de Cervantes, logrou-se reconhecer um novo Gênero Literário: o Ficcional. Não o ficcional linear das adaptações em prosa de textos épicos, antigos e medievais, mas, o ficcional complexo, verticalizante, promovido pelos ficcionistas de renomes, posteriores a Cervantes, ou seja, os textos ficcionais-arte, conhecidos, desde o século XIX, como romances modernos, incluindo, também, alguns excepcionais contos, os quais não poderão desvincular-se daquilo a que chamamos Literatura-Arte. Como se pode observar, as novelas, reconhecidamente lineares, de estrutura simples, não poderão ser avaliadas como Literatura-Arte. Se, por ventura, algum texto novelístico (ou pequena narrativa supostamente conceituada como novela) alcançou tal privilégio, poderemos repensá-lo, colocando-o como autêntico embrião de romance. É o caso, por exemplo, da pequena narrativa A Hora e Vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa, conceituada por alguns especialistas de literatura como pequena novela, e que poderemos, sem sombra de dúvida, classificarmos como embrião de Grande Sertão: Veredas. Poderemos repensar, também, algumas narrativas (excepcionais) de Érico Veríssimo, as quais foram avaliadas como novelas, em um passado ainda muito próximo, colocando-as como representantes do romance do século XX. Basta-nos, por exemplo, passar os olhos em E o resto é silêncio, de autoria deste renomado escritor gaúcho, para mediatamente compreendermos o engano dos conceituados teóricos que avaliaram o grande escritor das reminiscências dos pampas como novelista. Diante
de tais enganos, torna-se clara a necessidade de renovarmos nossos conceitos teórico-críticos, principalmente pelo fato de que escritores como Jorge Amado foram mal avaliados pelos críticos dos anos setenta no Brasil. Só depois de o mesmo ser aplaudido na França, alguns críticos de cá começaram a prestigiálo. A maioria dos críticos brasileiros, dos anos sessenta aos anos oitenta, não estava preparada para compreender o fato de que o escritor baiano possuía sim muita criatividade ficcional. Uma ficção voltada para os valores da Bahia, é bem verdade, mas, também, propensa a alcançar o panteon da glória universal e ser aclamada pelos pósteros (os únicos que saberão com certeza avaliar o que seja literatura-arte). Enfim, retomando o assunto de nosso interesse, foi Aristóteles que considerou os dois modos fundamentais da mimese na poesia, em outras palavras, o modo narrativo, o que atualmente se conhece como Gênero Épico, ou Epopéia, escrita em versos, ou Narrativa em versos, com seus fenômenos estilísticos tradicionais, e o modo dramático, ou Gênero Dramático, conhecido à época de Aristóteles, como Poesia Trágica e Poesia Cômica, uma vez que os Gêneros, na Antiguidade Clássica, grega e romana, e mesmo na Idade Média, eram escritos em versos. Lembremo-nos que a prosa ficcional, como Ficção-Arte, só se materializou a partir do século XVII (até prova em contrário), com o Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, obra esta que deu início ao que conceituamos como Gênero Narrativo em Prosa (ou Gênero Ficcional, ou Romance Complexo da Era Moderna). Horácio, escritor latino, preocupou-se também com a Questão dos Gêneros Literários. Em seu livro Epistula ad Pisones, uma espécie de manual para o reconhecimento da literatura, direcionado aos irmãos Pisões, oriundos de uma família tradicional de sua época, por intermédio de preceitos particulares, ele propicia uma renovação, avançadíssima para a época, na evolução da compreensão dos conceitos gregos de Gêneros Literários. Para Horácio, o que se conhece por Gênero Literário liga-se à questão da tradição formal, acrescida indubitavelmente por um certo tom, os quais revelariam (a tradição formal e o tom, oriundos da palavra escrita) o Gênero Literário de cada texto averiguado. Sendo assim, o iambo, um metro poético conhecido só pelos antigos gregos e romanos, desconhecido nas formas atuais da poesia, seja ela épica ou lírica, seria, para Horácio, o metro mais semelhante à linguagem coloquial, e por esta razão, foi o metro preferido dos dramaturgos antigos na elaboração da ação dramática (poesia trágica e poesia cômica). Submetido às suas assertivas, Horácio não aceitou a mistura dos gêneros literários (mistura esta que só foi reconsiderada séculos depois, e, mesmo assim, não logrou tornar-se sacralizada). Para Horácio, o estilo próprio de cada modalidade genérica era algo inconfundível, e cada
poeta adaptava-se aos seus assuntos, revelando ritmo, tom e metro adequados ao estilo de cada gênero literário. Para Horácio, os temas de cada poeta deveriam ter forma própria. Horácio não admitia hibridismo, quando o assunto era literatura. A literatura resguardava uma finalidade moral e uma finalidade didática, pois, em sua época, a literatura era vista como instrumento de educação, sim, mas, também, se revelava um instrumento de prazer indescritível, nos quais as regras exigiam respeito, derivadas que eram de modelos ideais. Do final da Idade Média ao início da Era Moderna, depois do não muito explicado “momento das trevas” da Alta Idade Média, assinalou-se o ressurgimento da Poética de Aristóteles. O que Aristóteles considerou como bipartição, realçando apenas a poesia narrativa e a poesia dramática, supostamente deixando de lado a poesia lírica, uma vez que não se tem notícia de suas idéias sobre a poesia lírica (talvez, perdidas nos subterrâneos da História Literária), os renascentistas substituíram a divisão de Aristóteles pela chamada “tripartição dos gêneros literários”, ou seja, uma divisão da poesia em poesia épica, poesia lírica e poesia dramática. Havia a necessidade, à época do início da Era Moderna, de se desenvolver uma classificação consciente das obras anteriores e, principalmente, das que viriam a ser escritas, gradativamente. Essa decisão dos estudiosos quinhentistas só se fez visível porque, os mesmos, não tinham como classificar as Odes de Horácio e tampouco o Cancioneiro de Petrarca, os quais não se ajustavam naquilo que se conhecia como poesia épica e/ou poesia dramática. Por tais razões, uma vez que as idéias de Horácio já se faziam conhecidas pelos estudiosos do quinhentos, estes desenvolveram argumentações em prol de um terceiro gênero literário, o qual ficou conhecido como Gênero Lírico, ou seja, a Poesia Lírica. Foi o classicismo francês que propagou os conceitos de gêneros literários, elaborados pelos antigos gregos e romanos (Platão, Aristóteles e Horácio). A partir dos pensadores franceses, da época do Renascimento, foi que cada gênero passou a ser classificado como “essência eterna, fixa e imutável”. Mas, com o passar do tempo, a poética disseminada pelos franceses sofreu questionamentos e não pode se colocar como verdade indestrutível. Foi a partir daí que iniciaram-se as polêmicas em torno do assunto, o que conhecemos como Querela entre Antigos e Modernos, um debate grandioso que, até hoje, movimenta as diversas argumentações, os prós e os contras, sobre esta questão ainda tão polemizada. Até hoje, os estudiosos da literatura se debatem nas diversas linhas teóricocríticas que compõem o nosso universo cultural. Os adeptos da crítica cientificista (formalismo, estruturalismo, semiologia da literatura, etc.) pregam ainda a imutabilidade dos gêneros. A chamada crítica fenomenológica aceita as idéias cientificistas com ressalvas. Esta decantada imutabilidade dos gêneros,
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para os fenomenólogos, poderá ser detectada apenas na forma explícita (o texto como camada visível), mas, no que se refere às entrelinhas, estas poderão ser repensadas, por intermédio do conhecimento de cada leitor. Assim, o conhecimento de cada leitor atuará, ao longo da leitura, promovendo incursões inéditas no invisível da obra literária. Estas incursões independem, atualmente, do reconhecimento da forma genérica. São incursões que se valem do que se encontra subentendido no texto-arte e, naturalmente, não se preocupam com o estudo analítico de base cientificista. Assim, apenas como esclarecimento da ainda atual Problemática dos Gêneros Literários, os antigos pregavam a imutabilidade dos gêneros e os modernos, a partir do Renascimento, passaram a postular a mistura desses gêneros, incomodados que estavam com as regras e diretrizes no âmbito da literatura. No final do século XVII e princípio do século XVIII, o classicismo francês, que promovia a tripartição, ainda foi respeitado por diversos estudiosos da literatura. As correntes neoclássicas (ou árcades) pautavam o seus entendimentos, sobre o literário, resguardados por tais idéias, mas o século XVIII foi um século de muitas crises e de renovações inéditas de valores estéticos, e, tais valores foram vislumbrados também nas idéias sobre gêneros literários. Por estas razões, a polêmica continuou, demonstrando a perene necessidade de entendimento a respeito de uma questão que, pelo visto, se fará sempre presente nos Anais da História da Literatura Ocidental. Lembremo-nos ainda de que foi no final do século XVIII (momento de transição do neoclassicismo para o romantismo) que o movimento alemão “Tempestade e Ímpeto” (Sturm und Drang) alcançou um grande prestígio, transformando todo o panorama da literatura ocidental. Esse movimento literário proclamou uma rebelião contra a idéia clássica de gêneros literários, salientando o papel do indivíduo criador e a autonomia da obra literária, e questionando, inclusive, o estabelecimento das tripartições. É importante realçar que, no século XVIII, ainda não se promovia a idéia de gênero ficcional, apesar de a ficção ser conhecida desde o início do século XVII, por intermédio da obra de Cervantes. Assim, o problema se evidenciou com mais força à época do Neo-Romantismo, no final do século XVIII, mais precisamente, na Alemanha. Pela ótica dos neo-românticos, a criatividade do gênio ultrapassava os limites impostos na classificação dos gêneros literários. Com esta atitude, os neo-românticos substituíam as idéias tradicionais sobre gêneros literários pela firme convicção de que cada obra literária possuía sua própria autonomia no vasto âmbito da literatura. No início do século XIX, com o advento do Romantismo, as novas idéias prenunciadas pelo Pré-
Romantismo ganharam uma força extraordinária. Vitor Hugo, em 1827, no prefácio de sua obra Cromwell, estabeleceu as idéias vigentes sobre o assunto. Para Vitor Hugo, a verdade e a beleza estavam na síntese dos contrários, por isso, a obra deveria ser criada a partir de sua autonomia, passando a ser avaliada e entendida por meio das inovações formais híbridas e desconhecidas, como o romance moderno, o qual, a partir do romantismo, passa a ser valorizado. Mesmo não tendo se perpetuado, essas idéias inovadoras foram de grande importância. É certo que a questão continua incomodando os milhares de teóricos da literatura, no mundo todo, as cesuras nos gêneros literários continuarão, ad infinitum, mas, as contribuições pré-românticas ainda permanecerão acendendo a fogueira de diversos pontos de vista teórico-críticos que se entrecruzam em nosso cenário intelectual, promovendo numerosos debates sobre a existência ou não dos Gêneros Literários. Foi a partir do início do século XIX, com o surgimento da estética romântica e com os novos argumentos de Victor Hugo, que nasceu o drama, um novo gênero, o qual amalgamava em um único texto — texto dramático — todos os gêneros conhecidos até então. O diferencial, nesse novo gênero do romantismo francês, era o fato de o mesmo apresentar uma dimensão temporal e uma dimensão psicológica do homem desconhecidas até então por anteriores dramaturgos, os quais, em seus textos dramáticos, se submetiam apenas em registrar as duas realidades, em planos lineares já conhecidos, já conceituados, tais como o plano da realidade propriamente dita e o plano da realidade mágica (ou mítica). O grande trunfo da dramaturgia (incluindo o romance) daquele período estético foi reconhecer e valorizar as inovações formais, nomeando como valiosas as formas até então desmerecidas, tais como o drama, a tragicomédia e o romance. Por intermédio de uma doutrina multiforme e paradoxal, repleta de características diferenciadas, cujo único objetivo era se desvincular das idéias clássicas, o Romantismo, apesar das críticas depreciativas que o colocam como uma estética voltada simplesmente para a sentimentalização da realidade, legou-nos valores imperecíveis, tais como o reconhecimento de um gênero que não foi devidamente apreciado na ocasião de sua materialização no panorama cultural do século XVII: o Gênero Narrativo Ficcional, o que atualmente conhecemos como Romance Moderno. Agora, passemos a repensar a questão dos gêneros literários pela ótica dos realistas. No final do século XIX, novamente, foi defendida a natureza substancial dos Gêneros Literários. Quem se preocupou com o problema foi Brunetière, apresentando o Gênero Literário, em toda a sua totalidade, como algo vivo, que nasce, se desenvolve, envelhece e morre, ou, por
um outro ângulo, se transforma, gerando novos gêneros, de acordo que estava ele com as doutrinas positivista e naturalista. É importante que se diga que muitos teóricos se opuseram contra a já mencionada doutrina positivista/naturalista. Isso, porque os valores românticos ainda se faziam presentes, naquele final de século. Um estudioso da poesia chamado Croce combateu intensamente as idéias de Brunetière, não aceitando as assertivas positivistas e naturalistas preconizadas por ele. Para Croce, a poesia, aquela considerada como especial, só poderia se materializar por intermédio da intuição. Intuir poeticamente, para Croce, seria o meio mais sublime de alcançar a verdadeira forma da expressão. Por intermédio da intuição, o poeta lírico teria como exprimir seus sentimentos através da poesia. A obra poética, para o mesmo Croce, seria uma forma una e indivisível, distanciada das regras realistas que a queriam objetiva. Assim, foi o gênero lírico que ficou na berlinda dos debates, por ocasião do reinado dos realistas. Em favor de Croce, poderíamos dizer que o Gênero Lírico jamais poderá ser apartado de seu fenômeno estilístico fundamental, a sentimentalização, uma vez que, para que seja verdadeira, a poesia terá de se materializar através dos sentimentos unívocos do poeta, terá de sair das camadas profundas do espaço do não-dito, não importando, ao poeta, a forma convencionada em seu momento estético. Qualquer que seja a forma (quantidade de sílabas, extensões variadas nos versos, quantidade de estrofes, canções ou sonetos, etc.), o Gênero Lírico não perderá os seus valores essenciais, será para sempre o gênero preferido daqueles que sabem interagir com o plano do não-dito e de lá resgatar, trazendo para os seus versos, os murmúrios, os sons primordiais, os quais, posteriormente, graças à sensibilidade do Poeta, se tornar-se-ão conceituados. É interessante notar que o gênero lírico não se adequou às regras realistas. Na verdade, os poetas realistas (chamados no Brasil também de parnasianos) sentimentalizaram objetivamente a realidade, ou seja, não puderam excluir a sentimentalização, a interiorização, de seus escritos poéticos. Em meados do século XX, os Conceitos Fundamentais da Poética, um livro de Emil Staiger, monopolizou os estudantes de Letras no Brasil. As idéias do teórico alemão se tornar-se-ão conhecidas entre os nossos estudiosos, tornando-se uma espécie de bíblia para o reconhecimento dos Gêneros Literários. É bom que se diga que, até hoje, início do século XXI, tais idéias são disseminadas pelos professores de literatura, nas Universidades brasileiras. Tais idéias são repassadas e, em verdade, poucos questionam se são aceitáveis ou não. Parece que atualmente, aqui, em nossa realidade cultural, pensar é algo cansativo. Melhor é aceitar como verdade tudo
o que vem do estrangeiro, ou mesmo idéias que foram disseminadas há muito tempo e que já não fazem parte da realidade hodierna. Entretanto, o nosso semiólogo Anazildo Vasconcelos da Silva, graças às suas análises semiológicas e cientificistas, viu ali, nos textos de Staiger, uma falha, no tocante ao Gênero Épico. Para Emil Staiger, Aristóteles, em sua Poética, ao desenvolver assertivas sobre o Gênero Épico, construiu uma teoria que teria validade, para sempre, nos textos épicos dos séculos seguintes. Anazildo, o nosso teórico, brasileiro, viu a questão de uma forma diferente, e, nos anos oitenta, repassava as suas idéias aos alunos da pós-graduação em literatura. De acordo com Anazildo Vasconcelos (ler: SILVA, Anazildo Vasconcelos da. Semiotização Literária do Discurso. Rio de Janeiro: Elo, 1984: 9-10), Aristóteles foi, em verdade, um grande crítico de sua época. Aquelas idéias, sobre o Gênero Épico, estavam ligadas aos textos dos escritores épicos de seu momento literário (momento literário da Grécia Antiga do século de Aristóteles, que seja bem entendido). Portanto, os textos épicos, posteriores a Aristóteles, deveriam ser repensados com estudos reformulados, sem com isso desmerecer os conceitos de Aristóteles, os quais estavam condizentes com o que se produzia em sua época no âmbito da Literatura Épica. As epopéias em versos, posteriores a Aristóteles, realmente, grafaram as marcas de seus momentos. A epopéia Os Lusíadas, de Luís de Camões, por mais que o seu autor se fixasse nas normas da Antiguidade Clássica, nos legou para sempre os valores do século XVI, já com intervenções de outras matérias genéricas. A concepção literária renascentista, de acordo com Anazildo, contaminou o discurso épico daquele momento histórico. A notável contribuição de Emil Staiger, e isso deve ser declarado, foi preferir as designações de estilo (estilo lírico, estilo épico, estilo dramático), adjetivando os Gêneros Literários, ao invés de os classificar na forma de substantivo (a lírica, a épica, o drama) porque, para Staiger, a forma adjetiva evitaria sérios erros interpretativos. Atualmente, estamos envolvidos por diversas idéias sobre os Gêneros Literários. Estamos vivendo o momento dos estudos voltados para a interdisciplinaridade. Cada linha teórico-crítica desse nosso hodierno universo cultural (2007), deseja que as suas idéias sejam as mais valiosas. Se o nosso momento mundial é o momento do Caos (dos desencontros sociais e existenciais), nada mais normal do que também o Caos no que se refere aos estudos da literatura. Aliás, os textos pós-modernos (de ficcionistas e, também, dos poetas dos anos quarenta do século XX para cá) refletem este Caos que nos envolve. São textos de difícil compreensão, os quais merecem novíssimos posicionamentos teórico-críticos, ou mesmo a invenção de uma nova
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denominação genérica para eles. Enquanto esses posicionamentos não aparecem, vamos empurrando o nosso barco teórico brasileiro com as idéias estrangeiras do século anterior, mas, no que nos diz respeito, em especial, estamos em expectativa por novas definições.
(Texto registrado de Neuza Machado. Este texto pertence aos Apontamentos de Teoria Literária e Crítica Literária, um livro que está sendo elaborado pela autora e que será publicado em breve por sua editora particular, NMachado, editora da autora, registrada no ISBN – Rio de Janeiro)
2.2 - Gêneros Literários – Histórico a) Fase Clássica: • Gêneros Literários: relacionados com a Retórica (Livro que continha as regras do bem falar ou do bem escrever, de acordo com os postulados clássicos). • Os que se preocuparam com o assunto: Platão, Aristóteles, Horácio, Quintiliano. • “Estratificados e hierarquizados segundo um conceito mais ou menos imutável de ordem de regra.” (MOISÉS, Massaud. A Criação Literária. “Gêneros Literários”, p. 31) “A história das teorias ou doutrinas acerca dos gêneros literários confunde-se com a história da Estética, da Filosofia e da própria Crítica Literária, o que explica em parte a enorme confusão existente em torno do problema. O mais antigo traço do pensamento acerca dos gêneros, muito embora sem o rótulo pelo qual vieram a ser conhecidos, encontramos em Platão, em cujo livro República (livro III, 394) aparece pela primeira vez uma divisão, tripartite, da Literatura: 1a ) a tragédia e a comédia, isto é, o teatro, 2a ) o ditirambo, isto é, a poesia lírica, e 3a ) a poesia épica. Mais adiante, Aristóteles, na Poética, refere-se à epopéia, à tragédia, à comédia, o ditirambo, à aulética [arte de tocar flauta] e à citarística [arte de tocar cítara] como expressões poéticas, mas só se demora no exame da comédia e especialmente da tragédia. Não parece que na Antiguidade, depois de Aristóteles, a doutrina dos gêneros fosse objeto de tratados especiais. Todavia, entre os latinos o problema volta a aflorar, ainda que passageiramente, na Epístola aos Pisões ou Arte Poética, de Horácio” (Ibidem: 31). “Há muitas variações no conceito de gêneros literários desde a Antigüidade Helênica até aos nossos dias. (...)” Platão, livro III – República: distingue três grandes divisões dentro da poesia. – Poesia mimética ou dramática – Poesia não mimética ou lírica – Poesia mista ou épica Esta é a primeira teoria que se tem notícia dos gêneros literários.
Platão, livro X – Nesse livro, Platão abole essa divisão. Aristóteles – O primeiro a fazer uma reflexão profunda acerca da existência e da caracterização dos gêneros literários, e a sua Poética, ainda hoje, permanece como um dos textos fundamentais sobre esta matéria. Para Aristóteles (sobre mimese): – Mimese: fundamento de todas as artes, diversificando-se o modo como cada uma realiza essa mimese; – Dois modos fundamentais da mimese poética: um modo narrativo e um modo dramático. Horácio – Gênero literário corresponde a uma certa tradição formal, sendo também caracterizado por um determinado tom. Não pode haver misturas nos gêneros.” AGUIAR e SILVA, Victor Manuel. Teoria da Literatura. Porto: Almedina, capítulo IV, passim: 204228. b)Fase Medieval: “Na Idade Média Alta (Momento das Trevas), o estudo da Literatura Clássica ficou restrito ao conhecimento dos religiosos. As idéias dos filósofos gregos e romanos ficaram confinadas nas Bibliotecas dos Primitivos Mosteiros Medievais e somente uns poucos monges cristãos puderam burlar as severas imposições da Igreja de Roma para lê-las. Presume-se (não há provas) que as idéias teológicas de Santo Thomas de Aquino (século XII), considerado um doutor da Igreja Romana, tenham se originado de suas leituras dos antigos filósofos gregos, principalmente Aristóteles. Mesmo assim os gêneros não desapareceram totalmente durante o “período de trevas”, período pouco avaliado pelos críticos de literatura. Os erroneamente chamados Romances de Cavalaria da Era Medieval, por exemplo, são, em verdade, continuação do Gênero Épico, uma modalidade literária conhecida na Idade Antiga pelos gregos, romanos e outros povos: por exemplo, Bhagavad Gita (A Canção do Senhor ou A Sublime Canção), poema épico da
Índia Antiga, supõe-se escrito no século VIII a. C. (faz parte do épico Mahabharata); Mahabharata, poema épico da Índia Antiga, escrito há mais de cinco mil anos antes de Cristo (século IV a.C.); Ramayana, poema épico indiano, escrito em 1500 a. C.; as Sutras do Budismo (com características épicas incon-fundíveis); o Alcorão do Islã. Nos Romances de Cavalaria da Idade Média (os textos originais, escritos em versos) podemos perceber vários fenômenos estilísticos do Gênero Épico. Esses romances não são evidentemente parecidos com os textos de Homero e/ou Virgílio, porque foram criados em um outro momento histórico (aqui, relembrando os ensinamentos de Anazildo Vasconcelos sobre o assunto “Gênero Épico”), e, graças a essa diferença, revelam a “contaminação” de idéias que vigoravam no período medieval. Por exemplo: A narrativa As Aventuras do Rei Arthur e os Doze Cavaleiros da Távola Redonda (o texto primitivo, em versos, não as adaptações posteriores em prosa) possui características notadamente épicas: é um texto narrativo escrito em versos, revela a fusão entre os planos da realidade e do mágico (o feiticeiro Merlim, a feiticeira Morgana, a espada poderosíssima do Rei Arthur, o próprio rei Arthur, herói da narrativa à moda épica, etc.), mostra a força e poder de um povo em especial, e outras características comprovadoras. A Idade Média legou-nos também textos, em versos, cujo herói principal é o Amadis de Gaula. Esses textos, que eram conhecidos através da oralidade no período da Idade Média, poderão ser conceituados como épicos, graças aos fenômenos estilísticos próprios. Os textos do Ciclo dos Amadises foram muito apreciados no século XVI, depois do surgimento da Imprensa (final do século XV). José de Arimatéia e a Busca do Cálice Sagrado, outro texto erroneamente conceituado como Romance ou Novela de Cavalaria, e que, sem sombra de dúvida, poderá ser dignificado como um épico religioso cristão da Era Medieval. As “Canções de Gesta” que exaltam o período carolíngio (século VIII d. C.), conhecidas no século X d. C., cujo texto mais conhecido é a Chanson de Roland (Canção de Rolando), certamente poderão se situar entre os épicos da Idade Média. É importante lembrar também que A Canção dos Nibelungos, um épico da mitologia germânica (alemão medieval), foi escrita por volta do século XII d. C. (ou talvez já fosse conhecida nos séculos iniciais da Idade Média). E muitos outros textos, de reinos diversos da Idade Média, os quais poderão ser pesquisados pelos estudiosos de literatura, neste século XXI inicial. O Gênero Lírico também não desapareceu durante a Idade Média, principalmente durante a denominada Idade Média Plena, ao contrário, foi o momento de sua maior dignificação. Das Carjas (trovas populares, líricas, anteriores ao século XII) e dos cantares
trovadorescos, líricos, do Sul da França, à moda provençal (Langue D’Oc e Langue D’Or), originaramse as Cantigas do Trovadorismo Português da segunda fase da Idade Média, a partir do século XII (Cantigas de Amigo e Cantigas de Amor). No que se refere à dramaturgia (Representação Trágica), durante a Idade Média Final (ou Baixa Idade Média), esta recebeu o enfoque cristão nos chamados Autos Religiosos, os quais apresentavam textos religiosos, ao ar livre, representados por atores vestidos a caráter e pelo próprio povo. Esses textos mostravam os sofrimentos da Virgem Maria, A Paixão de Cristo, os padecimentos dos Mártires Cristãos, etc. Por esses aspectos, podemos afirmar que, apesar das imposições religiosas do Santo Ofício Romano, naquele momento medieval, quanto ao conhecimento das idéias dos anteriores filósofos pagãos, os preceitos literários antigos (a chamada tripartição dos gêneros literários) continuaram a imperar, através da oralidade (transmissão oral do Conhecimento), até ao Renascimento.” (MACHADO, Neuza. Apontamentos de Teoria Literária e Crítica Literária, no prelo) “Sobre o teatro medieval, sabemos que era utilizado principalmente como veículo das idéias da Igreja. Por volta dos séculos XI e XII surgem os dramas litúrgicos, cuja finalidade era ensinar os preceitos do cristianismo; os milagres, que eram encenações de um fato sobrenatural, produzido pela intervenção de um santo; os mistérios, que representam o apogeu do teatro medieval, baseados no Velho e no Novo Testamentos, e que eram apresentados em grandes festas da Igreja, como Corpus Christi. Havia também produções profanas, como as farsas, que a princípio eram interpoladas às peças religiosas, como uma espécie de intervalo descontraído, onde o público podia rir das situações cômicas a que assistia. Posteriormente, sobretudo na França, a farsa passou a ser uma peça independente, geralmente em um ato. Entre as mais conhecidas está a Farsa do Advogado Patelão, uma estória de trapaças e confusões.” (Conferir: SENNA, Marta de. Da Idade Média ao PréRomantismo. In.: SAMUEL, Rogel (Org.). Literatura Básica. Petrópolis:Vozes, 1985, Vol. I, p. 50). c) Fase Renascentista (início: séc. XIV, na Itália, e séc. XVI, em toda a Europa): “O poeta romano Horácio, em sua Arte Poética, reformulou e popularizou os preceitos Aristotélicos. Embora não seja um pensador original, Horácio foi a principal ponte entre o pensamento clássico e o Renascimento. Muito do restabelecimento da teoria
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de gênero clássica do Renascimento se baseia em Horácio” (Cf.: SAMUEL, Rogel. Novo Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, 2006: 49). “O Renascimento recuperou os preceitos já conhecidos das poéticas aristotélica e horaciana. Segundo os críticos da época, a poesia, para atingir o grau de universalidade, deveria ser realizada segundo modelos prefixados pelos tratados ou artes poéticas até então difundidos. O conceito de imitação aristotélico foi levado às últimas conseqüências, interpretado como cópia da realidade e não como recriação. No caso específico dos gêneros, conceberam-nos como cópias fiéis dos modelos grecoromanos. Foi nesta época que a tripartição dos gêneros encontrou seu definitivo estabelecimento. Platão e Horácio já haviam feito referências nítidas aos três gêneros, enquanto Aristóteles só se havia ocupado da epopéia e do drama. Na lírica se incluíram as obras que apresentavam formalmente ou subjetivamente as reflexões do próprio poeta sobre as coisas acontecidas. Eram considerados, como gêneros maiores, o lírico, o épico e o dramático. Eles se subdividiam em gêneros menores, distintos uns dos outros e possuidores de suas próprias regras” (Cf.: ARAGÃO, Maria Lúcia. Gêneros Literários. In.: SAMUEL, Rogel (Org.). Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, op. cit.: 69). d)Os gêneros no Neoclassicismo (século XVII e século XVIII): “A ênfase de Horácio na ordem e coerência da obra de arte tornou-se lei na doutrina neo-clássica da unidade de tempo, de lugar e de ação. E a idéia horaciana de que cada gênero deve ter um único assunto, um caráter, uma linguagem e um metro apropriado se tornou doutrina central na crítica dos séculos XVII e XVIII” (Cf.: SAMUEL, Rogel. Novo Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, op. cit.: 49). “Os princípios do Renascimento foram confirmados no período denominado Neoclassicismo ou Classicismo Francês. Cada gênero ou subgênero possuía os seus temas específicos, seu estilo próprio e seus objetivos peculiares. Esta época, século XVII e inícios do século XIII, reflete o pensamento da aristocracia, classe dominante política e socialmente, que não admitia questionamentos sobre a validade do seu poder e cuja visão de mundo iria determinar, no campo artístico-literário, uma maior valorização de alguns gêneros (epopéia e tragédia) em detrimento de outros (lírica e comédia). A lírica não encontrou no neoclassicismo um campo propício ao seu desenvolvimento porque, nesta épo-
ca, a razão e o bom senso deveriam predominar sobre a emoção” (Cf.: ARAGÃO, Maria Lúcia. “Gêneros Literários”. In.: SAMUEL, Rogel (Org.). Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, op. cit.: 69). e)Os gêneros no Romantismo (fase final do século XVIII, na Alemanha, e século XIX em toda a Europa e Américas): “Em meados do século XVIII surge o movimento alemão denominado Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto) que questionava violentamente as posições rígidas neoclássicas, substituindo a teoria tradicional dos gêneros pela crença na autonomia de cada obra literária. Abre-se caminho para a doutrina romântica que apregoava uma melhor fundamentação teórica sobre o assunto, baseada em elementos intrínsecos e filosóficos. Victor Hugo, em 1827, apresentou uma síntese das idéias vigentes no prefácio de sua obra Cromwell. Nasce assim o drama, um novo gênero, que participava de outros gêneros, refletindo a dimensão temporal e psicológica do homem. Para os românticos, a verdade e a beleza residiam na síntese dos contrários, daí a obra literária ser concebida em sua autonomia, passando a ser reconhecida e valorizada por suas inovações formais, híbridas ou desconhecidas, como o drama, a tragicomédia e o romance” (Cf.: ARAGÃO, Maria Lúcia. Gêneros Literários. In.: SAMUEL, Rogel (Org.). Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, op. cit.: 70) f) Os gêneros no final do século XIX (Realismo/ Naturalismo): “A partir da segunda metade do século XIX, o Positivismo e o Naturalismo, juntamente com as teorias evolucionistas de Spencer e Darwin, irão influenciar toda a cultura européia. Destacamos o crítico Brunetière (1849-1906), que tentará reabilitar o conceito dos gêneros, comparando-os a organismos vivos, com nascimento, crescimento, morte ou transformação. Nesta concepção, os gêneros, assim como os homens e a história, estavam sujeitos às leis da evolução natural da espécie” (Cf.: ARAGÃO, Maria Lúcia. Gêneros Literários. In.: SAMUEL, Rogel (Org.). Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, op. cit.: 70). g)Os gêneros no século XX e início do século XXI (Modernismo e Pós-Modernismo): Para os teóricos do século XX, desde os anos iniciais até este início de século XXI, 2007: os gêneros foram e são conceituados como “instituições que exercem certa pressão sobre o escritor, assim como também são por ele modificados. Essas convenções estéticas, por assim dizer, servem para ordenar e classificar as obras, tornando-as mais aptas a serem apreendidas pelos leitores.
Muitas manifestações, outrora classificadas dentro do quadro dos gêneros literários, foram retiradas da atual teoria dos gêneros, como o jornalismo, a história e a filosofia. Isso porque chegou-se à conclusão de que há grandes diferenças conceituais entre literatura-arte, produto da imaginação criadora, e outras atividades que visam predominantemente à informação, ao conhecimento de fatos passados, à inteligência e ao raciocínio” (Ibidem: 71). h)Os gêneros na atualidade (início de século XXI): “A teoria de gênero contemporânea, por sua vez, evita julgamentos de valor (sobre o que é melhor), e procura descrever os gêneros em suas inter-relações. Seu pon-
to de partida foi o Romantismo, que enfatizou a individualidade e insistiu o trabalho literário como expressão da sensibilidade do autor” (Cf.: SAMUEL, Rogel. Novo Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, op. cit.: 49-50). “Apesar de sua genealogia histórica longa, a teoria dos gêneros não foi ainda resolvida pela crítica. A multiplicidade de nomes que o gênero assumiu – espécie, tipo, modo, forma – atesta a confusão que cerca este problema crítico. Realmente, porque o conceito de gênero levanta perguntas fundamentais sobre a natureza e estado de textos literários, há talvez muitas definições de gênero. Sob esta variedade de aproximações, porém, várias perguntas persistem” (Ibidem: 42).
2.3 - Gênero Lírico – Fenômenos Estilísticos (Cf. CUNHA, Helena Parente. Os gêneros Literários. In.: PORTELLA, Eduardo et al. Teoria Literária. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1976 passim: 93-130) GÊNERO LÍRICO (OU POESIA LÍRICA) POEMA LÍRICO = FORMA DA POESIA LÍRICA Essência do Lírico: RECORDAÇÃO (= novamente ao coração) / Tensão Lírica – Necessita da atuação do eu lírico do poeta; – O poeta se volta para o seu interior para, de lá, trazer à luz, em forma de poema, a poesia apreendida, aquela que anteriormente vigorava no espaço do nãodito. FENÔMENOS ESTILÍSTICOS: – MUSICALIDADE / RITMO – “O termo lírico originariamente liga-se a uma espécie de composição poética que os gregos cantavam ao som da lira. Grande parte do que hoje se denomina composição lírica era musicada, conforme ainda atesta a poesia trovadoresca medieval. Mesmo depois, quando se destinou apenas à leitura, conservou remanescente dos seus primórdios, bastando lembrar que uma das características do Simbolismo era a aproximação da música e da poesia. (...) Um dos fenômenos estilísticos mais típicos da composição lírica é a musicalidade da linguagem, obtida através de uma elaboração especial do ritmo e dos meios sonoros da língua, a rima, a assonânica ou a aliteração. A urdidura da camada fônica propicia uma tendência geral para a identidade entre o sentido das palavras e sua sonoridade, que podemos constatar na “Canção do vento e da minha vida” de Manuel Bandeira: O vento varria as folhas, / O vento varria os frutos, / O vento varria as flores... / E a minha vida
ficava / Cada vez mais cheia / De frutos, de flores, de folhas. A insistência dos fonemas fricativos /v/ e /f/ induz a uma aproximação do som dos versos ao sentido de voragem do vento varrendo as coisas num ímpeto destruidor. O significado metafórico do vento na imagem da devastação desencadeada pelo tempo, amplia-se na recorrência aliterativa dos fonemas congêneres. Diversa é a impressão do vento na “Cantiga outonal” de Cecília Meireles: Outono. As árvores pensando... / Tristezas mórbidas no mar... / O vento passa, brando... brando... / E sinto medo, susto, quando / Escuto o vento assim passar... O acúmulo do fonema fricativo sibilante /s/ imprime aos versos, graças à sua fluidez, a suavidade de um vento brando, na melancolia da paisagem outonal que a rede de fonemas nasais sombreia. A sensação difere do outro poema, onde os fonemas labiais são as próprias chicotadas violentas do vento, que agora se faz apenas um sussurro de brisa” (Op. cit.: 98-99). – REPETIÇÃO – “Em correlação direta com a musicalidade surpreendemos a repetição, entre os traços estilísticos do poema lírico. (...) Entre os processos mais comuns da repetição, citamos o refrão que exemplificaremos numa cantiga de amor de D. Dinis: Quanto me custa, Senhora, / tamanha dor suportar, / quando me ponho a lembrar / o que pensei desde a hora / em que formosa vos vi; / e todo este mal sofri / só por vos amar, senhora. // Desde o momento, senhora, / em que vos ouvi falar, / não tive senão pesar; / cada dia e cada hora / mais tristezas conheci; / e todo este mal sofri / só por vos amar, senhora. // Devíeis ter dó, senhora, / do meu profundo pesar, / da minha mágoa sem par, / porque já sabeis agora / o muito que padeci; / e todo este mal sofri / só por vos amar, senhora. Todo o campo semântico da cantiga é uma repetição do refrão das três estrofes, que se resume na
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equação amor = mal, definição da atitude trovadoresca medieval” (Ibidem: 101- 102). – DESVIO DA NORMA GRAMATICAL – “A repetição, contrária ao uso lingüístico corrente, demonstra que a linguagem poética provoca um desvio da norma gramatical. Jean Cohen afirma que a norma do discurso poético é a antinorma, e que o poeta busca intencionalmente o obscurecimento e o equívoco, levando a língua a perder a firmeza. A ambigüidade, característica inerente a toda obra poética, decorre muitas vezes da violação da norma. O hipérbato, proveniente da inversão na ordem natural das palavras, é uma das infrações mais freqüentes, cometida para satisfazer às exigências do ritmo, do metro ou da rima, em prejuízo da clareza. Estes versos de O navio negreiro de Castro Alves ilustram o caso: Era um sonho dantesco... o tombadilho / Que da luzernas avermelha o brilho, / Em sangue a se banhar. // Negras mulheres suspendendo às tetas / Magras crianças, cujas bocas pretas / Rega o sangue das mães. A língua perde a consistência e faz as palavras deslizarem de uma classe a outra, assumindo posições inusitadas. Fernando Pessoa utiliza este recurso em várias passagens: Passou, fora de Quando, / De Porquê e de Passando... (Ibidem: 100-101). Ler também: PORTELLA, Eduardo. Limites Ilimitados da Teoria Literária. In.: PORTELLA, Eduardo (Org.). Teoria Literária. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1976, p. 7-18): “Na peculiar hermenêutica do professor Leodegário A. de Azevedo Filho, o trovador Pero Meogo emerge livre da linearidade característica dos nossos estudos medievais. Sobretudo porque o analista soube ser sensível à peripécia meta-textual do analisado. Colocou-o no centro de um vasto sistema, onde o poeta aparece como um hábil transgressor de códigos e como um eficiente instaurador de símbolos” (PORTELLA, op. cit.: 13). – ANTIDISCURSIVIDADE – “Susanne Langer denomina discursividade a propriedade de uma espécie de simbolismo, o verbal, segundo o qual as idéias se enfileiram, como ocorre nas seqüências frasais. Existem coisas que não se adaptam à linearidade da forma gramatical discursiva, havendo outra espécie de simbolismo, o apresentativo, que funciona de modo simultâneo e integral. O poema pertence ao simbolismo apresentativo, porquanto sua significação não é linear e sim globalizante. A poesia (...) sempre reagiu contra a sintaxe lógico-gramatical, tentando romper suas imposições. Desde o período do Simbolismo, os poetas se rebelaram abertamente contra os procedimentos sintáticos, numa antecipação à revolução empreendida pelos Ismos dos movimentos vanguardistas, que fizeram desta questão uma das plataformas de suas reivindicações, em favor de uma literatura desatrelada das amarras tradicionais. A poética atual se empenha
cada vez mais em abolir o discursivo ao suprimir os elos conectivos sintáticos, chegando mesmo, em muitos casos, a eliminar a frase, conforme se verifica na Poesia Concreta. Cassiano Ricardo empregou este procedimento em várias composições, entre as quais “Posições do corpo”: Sob o azul sobre o azul subazul subsol subsolo O breve poema opera um desdobramento fonosemântico do sob e azul (metáfora de tera), na medida em que estes dois termos se diluem nas diversas variações e combinações. O conteúdo significativo espacial da preposição sob ecoa no prefixo -sub que compõe as três últimas palavras. As duas preposições antitéticas indicam as “posições do corpo”, abaixo da terra (enterrado), em cima (na superfície) ou acima (na estratosfera), resumindo a parábola do homem no seu irrecorrível destino. Mesmo sem atingir tais extremos compositivos, as vivências anímicas rejeitam a rigidez das construções sintáticas, e repelem o discursivo, que instala o distanciamento reflexivo, incompatível com a essência lírica” (CUNHA, Helena P. Op. cit.:103-104). – ALOGICIDADE – “A alogicidade caracteriza a poesia lírica, numa inter-relação com os demais aspectos típicos, desde que a estrutura lógica do discurso expressa as formas da cogitação racional que não se concilia com a linguagem lírica. Naturalmente esta propriedade diz respeito ao componente do imaginário que integra toda criação artística, entretanto, o poema lírico parece romper com mais veemência os estatutos da realidade controlada pela razão. É o que verificamos na definição do amor, através da série de oxímoros no soneto de Camões, numa das mais belas manifestações do petrarquismo renascentista: Amor é fogo que arde sem se ver; / É ferida que dói e não se sente; / É um contentamento descontente; / É dor que desatina sem doer; // É um não querer mais em bem querer; / É solitário andar por entre a gente; / É um não contentar-se de contente; / É cuidar que se ganha em se perder (Ibidem: 104). Oxímoro [figura que consiste em reunir palavras contraditórias] e paradoxo [contrário ao comum; contrasenso, absurdo]: Traços Estilísticos do Gênero Lírico.
“A lógica e a coerência não se querem líricas. A lírica reage à racionalidade da lógica dos controladores, da certeza imparcial, impessoal. À brutalidade econômicomilitar, a lírica opõe a emanação de seu melodioso aceno
de ternura e afetividade. Mas a emoção é solitária, isolada no clima de intimidade e confissão das frases soltas, das palavras e sugestões imprecisas, mais música do que idéias. A poesia pode comunicar-se na sua musicalidade, mais sentida do que compreendida, pois na música está o elemento significativo essencial” (Cf.: SAMUEL, Rogel. Novo Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, op. cit.: 43). – CONSTRUÇÃO PARATÁTICA – “Nas composições mais líricas, predomina o uso da construção paratática (orações coordenadas) sobre a hipotática (orações subordinadas). (...) As orações independentes e as coordenadas da parataxe correspondem melhor ao fluxo da disposição afetiva. As orações valem por si, justapondo-se sem prioridade, como acontece na emoção lírica, em que fatos distantes no tempo e no espaço se aproximam e se fundem nas vivências da alma. Em ‘Meus oito anos’ de Casimiro de Abreu, a recordação da infância une o passado e presente num reviver repleto de ternura. As breves orações coordenadas da estrofe que transcrevemos refletem a justaposição dos fatos, arrastados pela torrente lírica: Naqueles tempos ditosos / Ia colher as pitangas, / Trepava a tirar as mangas, / Brincava à beira do mar; / Rezava às Ave-Marias, / Achava o céu sempre lindo, / Adormecia sorrindo, / E despertava a cantar! (CUNHA, Helena P. Op. cit.: 105-106). Observação: Para o entendimento dos Fenômenos Estilísticos do Gênero Lírico, recomendamos leituras de textos líricos dos seguintes poetas: - Safo de Metilene (Grécia Antiga) - Pero Soares de Taveirós (Portugal Medieval) - Pero Meogo (Portugal Medieval) - D. Diniz (Portugal Medieval) - Francesco Petrarca (Itália - Século XIV) - Luís Vaz de Camões (Portugal - Século XVI) - Gôngora (Espanha) - Quevedo (Espanha) - Gregório de Mattos Guerra (Brasil - Século XVII) - Manuel Maria Barbosa Du Bocage (Portugal - Século XVIII) - Thomaz Antônio Gonzaga (Brasil - Século XVIII) - Cláudio Manuel da Costa (Brasil - Século XVIII) - Alvarenga Peixoto (Brasil - Século XVIII) - Silva Alvarenga (Brasil - Século XVIII) - Almeida Garrett (Portugal – Século XIX) - Alexandre Herculano (Portugal - Século XIX) - Gonçalves Dias (Brasil - Século XIX) - Casimiro de Abreu (Brasil - Século XIX) - Fagundes Varela (Brasil - Século XIX) - Álvarez de Azevedo (Brasil - Século XIX) - Castro Alves (Brasil - Século XIX) - João de Deus (Portugal - Século XIX) - Antero de Quental (Portugal - Século XIX) - Cesário Verde (Portugal - Século XIX)
- Olavo Bilac (Brasil - Século XIX) - Alberto de Oliveira (Brasil - Século XIX) - Raimundo Correia (Brasil - Século XIX) - Eugênio de Castro (Portugal - Século XIX) - Antônio Nobre (Portugal - Século XIX) - Camilo Pessanha (Portugal - Século XIX) - Verlaine (França – Século XIX) - Mallarmé (França – Século XIX) - Rimbaud (França – Século XIX) - Cruz e Sousa (Brasil - Século XIX) - Pedro Kilkerry (Brasil - Século XIX) - Alphonsus de Guimarães (Brasil - Século XIX) - Augusto dos Anjos (Brasil - Século XX) - Raul de Leoni (Brasil - Século XX) - Fernando Pessoa (Portugal - Século XX) - Mário de Sá-Carneiro (Portugal - Século XX) - Florbela Espanca (Portugal - Século XX) - Oswald de Andrade (Brasil – Século XX) - Mário de Andrade (Brasil - Século XX) - Manuel Bandeira (Brasil - Século XX) - Murilo Mendes (Brasil - Século XX) - Augusto Frederico Schmidt (Brasil - Século XX) - Carlos Drummond de Andrade (Brasil - Século XX) - Cecília Meireles (Brasil - Século XX) - Cassiano Ricardo (Brasil - Século XX) - João Cabral de Melo Neto (Brasil - Século XX) - Mário Quintana Neto (Brasil - Século XX) - Augusto de Campos (Brasil - Século XX) - Haroldo de Campos (Brasil - Século XX) - Décio Pignatari (Brasil - Século XX) - Mário Chamie (Brasil - Século XX) - Ferreira Gullar (Brasil - Século XX) - Marli de Oliveira (Brasil - Século XX) - Laís Correia de Araújo (Brasil - Século XX) - Renata Pallottini (Brasil - Século XX) - Foed Castro Chamma (Brasil - Século XX) - Stella Leonardos (Brasil - Século XX) - Edison Moreira (Brasil - Século XX) - Walmir Ayala (Brasil - Século XX) - Carlos Nejar (Brasil - Século XX) - Vinícius de Moraes (Brasil - Século XX) - Antônio Carlos Jobim (Brasil - Século XX) - Gilberto Mendonça Telles (Brasil - Século XX) - Adélia Prado (Brasil - Século XX) - Cora Coralina (Brasil - Século XX) - Nauro Machado (Brasil - Século XX) - Ana Cristina César (Brasil - Século XX) - Antônio Carlos Brito (Brasil - Século XX) - Paulo Leminski (Brasil - Século XX) - Tom Zé (Brasil - Século XX) - Caetano Veloso (Brasil - Século XX) - Chico Buarque de Holanda (Brasil - Século XX) - Cazuza (Brasil - Século XX) - Renato Russo (Brasil – Século XX) - Maria Verônica de Aragão (Brasil - Século XX / Século XXI) - Elisa Lucinda (Brasil - Século XX / Século XXI) - Rogel Samuel (Brasil - Século XX / Século XXI)
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A POESIA LÍRICA NO SÉCULO XX: “A lírica sobreviveu no nosso século [Século XX] como força de resistência, manifestação humana, com a qual nossa época reage contra a dominação instrumental e funcional. Neste nosso mundo eletrônico, a poesia aparece como um reduto, um gueto da emoção humana contra este horizonte armado, metalizado, onde a poesia lírica acontece como subjetividade rebelde, enternecendo os duros corações. Como nos versos de Cecília Meireles: Eu tinha um cavalo de asas, / que morreu sem ter pascigo. / E em
labirintos se movem / os fantasmas que persigo. Falando de si o poeta lírico fala de nós mesmos, nos seus ritmos e imagens. Não conta nossa história, mas recorda nossas emoções do passado, a dificuldade solitária do vazio presente. O lírico é sempre um solitário, como todos nós somos no mundo individualista. O lírico faz a subjetividade rebelde amante, contra a insipidez do tempo presente, mas sem grito. Sua disposição resta em não perturbar a subjetividade do silêncio de onde vem sua melodiosa voz. O lírico não revoluciona (SAMUEL, Rogel. Novo Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 43).
2.4 – Para o Entendimento da Poesia Lírica do Século XX OS INSTANTES METAFÍSICOS DO TEMPO DE POESIA DE EDISON MOREIRA Se analiso e repenso os textos – poéticos ou ficcionais – dos escritores brasileiros do século XX, se vejo-me em face ao momento criador ímpar de nossos líricos (aqueles que surgiram aqui no Brasil depois dos anos 40), na tentativa de compreendê-los além das análises tradicionais e das interpretações corriqueiras, não posso deixar de orientar-me pelos sábios ensinamentos filosóficos de Gaston Bachelard. Sobre a minha ligação teórico-crítica com a filosofia de Bachelard, devo dizer que a mesma vem dos anos noventa, quando ainda repleta de mineiridade serrana resolvi alcançar outros cogitos, na tentativa de decifrar os pergaminhos ficcionais do mineiro João Guimarães Rosa. Desde então, Bachelard tornou-se teoricamente necessário em meus estudos e propostas de escrever sobre os textos dos escritores e poetas brasileiros. Depois das análises (extremamente racionais) e das interpretações submetidas ao ponto de vista da hermenêutica, criei elos afetivos com as produções literárias de diversos ficcionistas e poetas da segunda metade do século XX, textos literários esses que redirecionaram o meu ponto de vista crítico como professora de Literatura Brasileira e Portuguesa. Em se tratando de ficção-arte, depois de Guimarães Rosa, as narrativas dos mineiros Lúcio Cardoso, Murilo Rubião, Roberto Drummond, e outros, marcaram-me profundamente. Ao lê-los, submetida à técnica da Crítica Literária, sempre surgia espontaneamente aquela cumplicidade afetiva que existe entre falantes de um mesmo linguajar nativo. Muito além das análises cientificistas, dialoguei com os textos desses escritores, como se os mesmos tivessem permitido-me uma interação afetiva com seus incomuns universos ficcionais. Quanto aos poetas, não posso deixar de
realçar o meu amor incondicional pelos versos de Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, João Cabral de Melo Neto, Gilberto Mendonça Teles, porque esses transportaram para o papel, liricamente, a fragmentação existencial de seus contemporâneos e, ao mesmo tempo, suas próprias dilacerações interiorizadas. Se analiso e, posteriormente, repenso filosoficamente os criativos textos desses escritores, terei de nomear aqui a influência de Bachelard sobre minhas argumentações. O filósofo francês do século XX passou a fazer parte da minha lista de paixões transcendentais. Bachelard influenciou-me em meu exercício da crítica literária, e exercerá esta influência enquanto houver páginas ficcionais ou poéticas que se adeqüem aos seus postulados filosóficos. Ele soube desvendar as camadas impessoais do ser humano, camadas internas, descobrindo ali as zonas do repouso ativado que propiciam a privilegiados escritores e poetas, participantes de um período agitado da História do Homem, a formalização de páginas ficcionais ímpares e da criação de versos singulares, diferentes das anteriores formalizações (Arcadismo, Romantismo, Parnasianismo) de alguns solitários que se compraziam em conviver com a criatividade poética, fechados em seus universos particulares e em suas torres de marfim. Ao expor aqui o meu entendimento sobre assunto tão polêmico, não é minha intenção desmerecer esses períodos literários, anteriores ao século XX. Os grandes poetas que deixaram suas marcas na História da Humanidade jamais serão esquecidos. Não há como desmerecê-los, uma vez que souberam sentimentalizar suas realidades com inigualáveis poderes de criatividade lírica. Esses poetas incomuns conseguiram ultrapassar as barreiras geográficas e temporais de seus limites históricos. Esses líricos incomuns, cada qual inserido nos padrões estéticos de seus momentos existenciais, ainda são e continuarão reverenciados –
Sapho de Metilene, Alceu de Metilene (Grécia Antiga), Dom Diniz (Idade Média), Petrarca (Renascimento Italiano), Camões (Classicismo Português), Calderón de La Barca (Barroco Espanhol), Thomaz Antônio Gonzaga (Arcadismo Brasileiro-Colonial), Bocage (Arcadismo Português), os nossos poetas românticos (sentimentalizando subjetivamente a realidade à moda romântica), os nossos líricos parnasianos (os quais souberam também sentimentalizar objetivamente a realidade), e, por fim, os poetas simbolistas do Brasil (Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimarães, incomparáveis e pouco conhecidos) –, poetas esses que intuíram a possibilidade de transitarem em outros planos superiores, além da realidade vital (replena de “exigências externas e sociais”), por intermédio de uma insólita musicalidade provinda da camada amorfa, aquela camada que somente uns poucos eleitos conseguem detectar. Mas, é preciso que se diga, esses grandes poetas (incluindo também os que não foram mencionados, oriundos de várias partes do mundo e momentos estéticos diversificados) foram abençoados, receberam um sinal que os marcaram e os individualizaram ao longo da História da Humanidade. Foram realmente excêntricos criadores de poesia, mas mesmo alojados em suas excentricidades estavam presos a modelos poéticos pré-estabelecidos; no entanto, mesmo assim, souberam colocar em seus versos aquele algo mais que transforma o texto poético em Arte. Então, o que dizer dos poetas do século XX? Como modelar tecnicamente palavras que os enalteçam e os diferenciem? O que dizer daqueles poetas que enfrentaram a ruptura com a telúrica sentimentalização anterior? Porque todos eles (os anteriores) sentimentalizaram a realidade, e isso não se pode negar. Então, nos anos iniciais do século XX, foi necessário que alguém se rebelasse, mostrando a impossibilidade de se aprisionar a poesia em formas estéticas preestabelecidas. A sentimentalização, digase de passagem, não é privilégio do poeta romântico, é fenômeno estilístico do Gênero Lírico; a musicalidade, por sua vez, não é privilégio do poeta simbolista, é fenômeno também do Gênero Lírico, desde os gregos antigos, etc., etc., etc., e o poeta realista e/ou parnasiano do final do século XIX será “para sempre” um poeta lírico, queiramos ou não, portanto, seus poemas “objetivos” pertencerão “para sempre” ao Gênero Lírico. Os poetas do século XX, fragmentados, machucados, conseguiram recuperar-se da cisão com as anteriores formas líricas institucionalizadas (colocaram-se como poetas de um novo tempo, participantes ativos de uma época de transtornos existenciais), e renovaram a forma da criação poética, sem, no entanto, renunciarem ao reconhecimento da pura Poesia, aquela “melodia inaudível” (Gilberto Mendonça) que vigora no espaço do não-dito. Antes da sentimentalização – fenômeno estilístico do Gênero Lírico –, os poetas do século XX ocuparam-se com o entendimento de sua própria
realidade. Para que esse entendimento pudesse, posteriormente, acontecer liricamente, valeram-se do repouso ativado de suas consciências dinamizadas, interiorizaram-se, alcançaram o tempo do pensamento, questionaram suas próprias posturas existenciais, e só depois revelaram a uns poucos leitores a revolução lírica que os dominava. Assim, nestas linhas, repensando a poesia e os poetas do século XX, deparo-me com o livro de Edison Moreira, Tempo de Poesia, que me foi gentilmente presenteado por seu irmão Pedro Paulo Moreira. Pois foi com imensa satisfação que li os poemas de Edison Moreira, meu conterrâneo; autêntico prazer provindo do Conhecimento Teórico-Crítico, do reconhecimento da criatividade poética de um homem que nasceu em Minas Gerais, mas que, para o meu orgulho de mineira, residiu em uma pequena e mágica cidade – Carangola, a minha cidade de nascimento. Não sei se o Edison nasceu nesta pequena cidade, lugar de minhas origens (este poeta que me encanta liricamente). Se o Edison for oriundo de outra localidade adjacente, não deixará de ser reverenciado por mim, porque sua poesia interpreta a realidade que o envolveu e, que, de certa forma, envolveu também os anos primaveris que ali vivi. Reafirmando minhas induções anteriores, li e encanteime com os versos de Edison. Quero esclarecer que não foram as palavras elogiosas de Jorge Amado, de Carlos Drummond de Andrade, de Emílio Moura, Aderbal Jurema, Celso Brant, e outros portentosos da literatura (impressas no livro de Edison), que me fizeram apreciar os incomuns poemas de meu conterrâneo; o que me encantou foi encontrar-me em face de um poeta lírico singular que soube realçar poeticamente os instantes metafísicos que o envolveram – instantes repletos de criatividade. Edison Moreira soube eternizar o seu Tempo de Poesia; soube registrar nas formas líricas de seu momento histórico – formas descompromissadas, distanciadas dos padrões préestabelecidos, formas recomeçadas – seus instantes de autêntica inspiração, instantes “suspensos entre o antes e o depois” da realidade vital. Este poeta mineiro – até há pouco tempo, desconhecido para mim – não deixou que a poesia se aprisionasse em uma determinada forma; valeu-se de todas: fez versos rimados, versos sem rimas, sonetos, romanceiros, poemas existenciais, porque o seu Tempo de Poesia (título que reúne toda a sua obra poética) mostrou-se amplo, um invólucro de “acontecimentos excepcionais”. Ele quis que a sua criatividade poética saísse do mais profundo de seu ser, e que durasse, ou seja, ultrapassasse as barreiras de seu próprio tempo/ espaço histórico. E ele conseguiu. Para explicar esta duração, que se fez/faz presente nos versos de Edison, recorro aos ensinamentos de Bachelard:
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Para durarmos, é preciso então que confiemos em ritmos, ou seja, em sistemas de instantes. Os acontecimentos excepcionais devem encontrar ressonâncias em nós para marcar-nos profundamente. Desta frase banal – “a vida é harmonia” –, ousamos então finalmente fazer uma verdade. Sem harmonia, sem dialética regulada, sem ritmo, nenhuma vida, nenhum pensamento pode ser estável e seguro: o repouso é uma vibração feliz. (BACHELARD, Gaston. A Dialética da Duração, 1998: 09)
Edison confiou em ritmos, em sistemas de instantes. Mesmo abandonando antigas exigências formais, mesmo rejeitando por vezes a tradicional contagem de sílabas, “assombrou” aos que já não acreditavam que a Poesia ainda pudesse se fazer atuante em pleno século XX, século das “coisas aparentes”. No VIII SONETO (p. 30 de seu livro), a “sempre esperada” é anunciada, “assombrando” os presentes, “trazendo riquíssimas sementes, para a fecundação da madrugada”. O poeta suspende o dito “véu das coisas aparentes”, mas a esperada “permanece ainda irrevelada, vestida de prodígios e montada em cavalos de crinas fluorescentes”. O Poeta do século XX continua repensando liricamente o seu próprio recolhimento: Ó pastora de origens. Como um fruto germinaste no meu recolhimento. Se em meu espanto tua avena escuto dentro da eterna noite criadora, – por que esta inquietação, este tormento e esta procura desesperadora? Em seu recolhimento, ou “repouso ativado” (como diria Bachelard), a poesia germina, e o poeta escuta, espantado, a música dessa germinação “dentro da noite criadora”. O espanto é concebível, porque a inquietação, o tormento, a procura desesperadora são provenientes do já comentado “repouso eletrizado”, bem diferente daquele repouso como sinônimo de descanso, de afastamento dos problemas cotidianos. Cada poema de Edison foi recolhido desses instantes de pura reflexão, instantes que o marcaram em profundidade. Se alguns poemas revelam momentos doloridos, como por exemplo os versos feitos em homenagem à irmã Ana Maria, evidenciando dor e saudade, conotam também a certeza de que, em sua duração terrena, ela conheceu momentos de extrema felicidade, recebendo o amor de seus familiares. Por intermédio do “repouso ativado”, o irmão soube registrar, através de uma inegável sensibilidade, os instantes de carinhosa convivência familiar que pontuaram suas existências. Bachelard diz em seu livro A Dialética da Duração que os fenômenos da duração (tempo) devem ser construídos com ritmo (sistema de instantes). Edison Moreira construiu o seu Tempo de Poesia com ritmo, com instantes liricamente superpostos. Vejamos al-
guns versos que revelam esses momentos suspensos entre o antes e o depois do tempo vital. Sobre a Poesia: Em ti, levado por terríveis numes, numa incursão de angústia me sepulto, mas volto sob a luz dos mesmos lumes que em Babilônia, numa noite fria, iluminaram meu passeio oculto pelos jardins suspensos da poesia. (p. 26) Instantes: “onde presença e ausência se eqüivalem” (p. 27). Instantes registrados a partir de um “tumulto inicial de luzes virgens, / no mapa imemorial do imponderável”. Os poemas do livro Promontório de Deus, parte da Coletânea já assinalada (os Sonetos a Nossa Senhora, A Canção do Mensageiro, os Salmos, e outros), mostram momentos de iluminação espiritual. Nesses instantes metafísicos, o poeta Edison abeira-se do que Bachelard chama de Tempo Espiritual. O Tempo Espiritual, segundo Bachelard, está fora do Tempo Vital (do Relógio) e do Tempo do Pensamento (os cogitos superpostos), mas poderá ser apreendido através dos clarões do espírito. Ainda, segundo Bachelard, só os Poetas e os Visionários vislumbram esses clarões. Busquemos outros exemplos que revelam tais instantes nos Sonetos de Amor (I SONETO, p. 49): Chega-me, às vezes, o pressentimento de que em função de algum encontro existo, e é para mim o encontro já previsto, mais que encontro: um pressentimento. Do promontório de mim mesmo assisto, na madrugada de outro nascimento, aproximar-se alguém que reconquisto pelo infinito mar do esquecimento. Eu venho pressentindo de era em era que esse alguém que me busca e em cuja espera a vida de meu ser se concentrou, Será na doce condição de esposa, o retorno feliz de alguma cousa que em milênios de mim se separou. Eis o momento do encontro com a poesia, tantas vezes realçado, mas, de cada vez, transfigurador de formas singulares, únicas, diferentes. O Poeta Edison já alcançou os planos superiores do pensamento puro, porque se não fosse assim, ele não transmitiria a ouvidos e olhos atentos estes versos reveladores: “Do promontório de mim mesmo assisto, / (...) / aproxi-
mar-se alguém que reconquisto / pelo infinito mar do esquecimento”. Ele tem plena consciência de seu poder. Ele sabe que reconquistou o direito de posse da Poesia, aquela que vigora “no infinito mar do esquecimento”. Os insensíveis que se exaltam por serem autenticamente racionais, aqueles que estão submetidos aos grilhões das exigências cotidianas (exigências horizontais), jamais alcançarão o Promontório do Poeta. Do alto de seu Promontório, ele pode visualizar o Imponderável (o Mundo do Silêncio, o Mundo Amorfo, seja lá a denominação científica que queiramos dar a tal lugar), mundo apenas acessível aos sinalizados por nascimento. O Poeta Edison pressente o encontro tão importante, porque a “esposa esperada” será sempre incorpórea. Ela só será aparentemente formalizada por líricos incomuns, e terá de ser eternamente redescoberta (“Suspenso o véu das coisas aparentes, / permaneces ainda irrevelada”, p. 30). A poesia é um mistério a ser revelado, “é uma viagem sem roteiros no impossível” (p. 31).
Para confirmar os instantes dinamizados de Edison Moreira, fecho os meus argumentos teóricos com os versos de um poema dele mesmo (POEMA, p. 145); finalizo estas linhas com a força poética de meu conterrâneo, um mineiro de Antigas Eras, meu amigo sobrenatural, sim, já que presenciamos, ambos, as marcas de um mesmo tempo admirável (Carangola, as estrelas, as árvores), sem ao menos nos encontrar, naquelas esquinas insólitas, nas íngremes ruas, para uma mineiríssima conversa reabastecida com café-com-leite mineiro e sonhos de primavera.
Há muitos instantes de pura poesia nos versos de Edison Moreira. Poderia mesmo afirmar que todos os poemas do livro são preciosos. Por intermédio deles, eu poderia ficar aqui, envolta em meu próprio repouso dinamizado, reguardecendo-me com o lirismo singular que evola de suas entrelinhas, e percorrendo intermitentemente, junto com ele (o Edison Moreira a me guiar), os caminhos líricos de seu Tempo de Poesia. Entretanto, pude também perceber a necessidade do auxílio de Gaston Bachelard nesta minha empreitada (auxílio interdisciplinar). Com o filósofo francês, através de seus pensamentos, que me ajudaram a vislumbrar o particular Promontório do Poeta, eu pude entender o mágico Destino de Edison, o privilegiado irmão de Pedro Paulo Moreira.
Permanência do dia em que deixasse em cada gesto aberto em meu delírio a marca absoluta do meu ser.
Dor de saber que o espanto com que fito as estrelas, as árvores e o mar, há de deixar-me dentro de momentos. Não ser eterno o instante em que eu teria forças para romper o compromisso que entre mim e o efêmero se fez.
Não poderei, Senhor, reter o tempo a plenitude que de mim faria um caminheiro alegre como pássaros. (Texto registrado de Neuza Machado. Este texto pertence aos Apontamentos de Teoria Literária e Crítica Literária, um livro que está sendo elaborado pela autora e que será publicado em breve por sua editora particular, NMachado, editora da autora, registrada no ISBN – Rio de Janeiro)
2.5 - Gênero Épico – Fenômenos Estilísticos (Cf. CUNHA, Helena Parente. Os gêneros Literários. In.: PORTELLA, Eduardo et al. Teoria Literária. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1976, p. 93-130) GÊNERO ÉPICO (OU POESIA ÉPICA): narrativa épica em versos (ou poema narrativo em versos) EPOPÉIA = RECITAÇÃO (Poema épico em versos) – Supõem-se situação de confronto, propiciada pelo distanciamento; – O Autor se coloca diante do objeto, segundo um determinado ponto de observação, para registrar, apontar, mostrar, APRESENTAR. Essência do Épico: APRESENTAÇÃO. (Camões apresenta a história das façanhas marítimas de um povo).
Fenômenos Estilísticos – PASSADO – “Tempo verbal de quem apresenta um fato distante no passado, é o pretérito. Mesmo quando o poeta emprega o presente, trata-se do presente histórico. (...) Passado cronológico épico que, vitalizado pela imaginação, é lembrado pela memória, num defrontar-se com o fato distante, temporal e espacialmente.” (CUNHA, Helena P. Op. cit.: 108) – ALGUNS ELEMENTOS DE FORMA EXTERIOR – “poema extenso // Versos (posição tradicional) hexâmetros ou heróicos // O ritmo épico relaciona-se com a posição de distanciamento do narrador a fim de apresentar seu relato, o que implica utilização de uma sintaxe lógica e de uma linguagem onde podem caber os efeitos da discursividade” (Ibidem: 108).
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– GRANDILOQÜÊNCIA (Prosopopéia) – “Episódios espetaculares, batalhas, exaltação de heróis sobrehumanos em luta contra a sorte (Destino), intervenção fantástica dos deuses ou de forças sobrenaturais. Grandiosidade. Estilo retumbante” (Ibidem: 109). – NARRATIVA E AÇÃO – “Narra ações de personagens nobres // apresenta comportamentos humanos e acontecimentos ligados entre si e combinados na fábula e na trama, constituindo o enredo” (Ibidem: 110). – INALTERABILIDADE – “Distanciamento entre o sujeito (narrador) e o objeto (mundo apresentado). Isso favorece a inalterabilidade de ânimo do autor que não experimenta as oscilações do estado afetivo lírico. // O afastamento não significa o desaparecimento total do autor, presente nas observações pessoais e do entusiasmo demonstrado pelos fatos expostos” (Ibidem: 110). – DESENROLAR PROGRESSIVO – “A apresentação da variedade dos fatos apresentados prende a atenção do leitor (ou ouvinte) e desvia seu interesse do desenlace” (Ibidem: 113). – AUTONOMIA DAS PARTES – “As partes são independentes entre si, mas sempre voltadas para a apresentação // Traço estilístico básico da poesia épica, decorrente do desenrolar progressivo da ação” (Ibidem: 114). Observação 1: Mesmo existindo autonomia das partes, não é lícito afirmar que na obra épica se anule a visão de conjunto, mas as particularidades são tão importantes que os episódios ganham vida relativamente autônoma. Observação 2: Para o entendimento dos Fenômenos Estilísticos do Gênero Épico, recomendamos as seguintes leituras de textos épicos (narrativas em versos): - Teogonia, de Hesíodo (Grécia Antiga) - O Trabalho e os Dias, de Hesíodo (Grécia Antiga) - Ilíada, de Homero (Grécia Antiga) - Odisséia, de Homero (Grécia Antiga) - Eneida, de Virgílio (Roma Antiga) - Bhagavad Gita (Índia Antiga) - Mahabharata, de Vyasa (Índia Antiga) - Ramayana (Índia Antiga)
- A Canção dos Nibelungos, Anônimo (Alemão Medieval) - Chanson de Roland (Francês Medieval – século X) - A Divina Comédia, de Dante Alighiere (Itália – século XIV) - El Cid (Espanhol Medieval) - Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões (Portugal – século XVI) - O Uraguai, de Basílio da Gama (Brasil Colonial – século XVIII) - Caramuru, de Frei José de Santa Rita Durão - O Guesa, de Souzândrade (Brasil Imperial – século XIX) - Mensagem, de Fernando Pessoa (Modernismo Português – século XX) - Cobra Norato, de Raul Bopp (Modernismo Brasileiro – século XX) - Poema Sujo, de Ferreira Gullar (Brasil, século XX) - Saciologia Goiana, de Gilberto Mendonça Teles (Brasil – século XX) - Táxi, de Adriano Espínola (Brasil – século XX, 1986) - Metrô, de Adriano Espínola (Brasil – século XX, 1990) “O épico se caracteriza primordialmente por ser um estilo narrativo, através do qual o poeta narra, descreve e exalta fatos históricos e personagens heróicos. É o estilo mais próprio para traduzir os sentimentos coletivos, a grandiosidade dos cenários, dos heróis, dos combates e dos sentimentos. A forma mais característica em que o estilo épico se apresentou foi a epopéia, mas também podemos destacar outras diferentes concepções do épico, segundo as épocas: as canções de gesta da Idade Média, pequenas narrativas em versos do século XVI, XVII e XVIII, as epopéias românticas como Jocelyn de Lamartine, poemas narrativos como o Uraguai de Basílio da Gama, etc.” (Cf.: ARAGÃO, Maria Lúcia. Gêneros Literários. In.: SAMUEL, Rogel (Org.). Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, op. cit.: 76) “A épica apresenta, conta uma estória, uma narrativa. O rei português D. Fernando I morreu em 1383, depois de reinar escandalosamente. O povo o
odiava tanto que havia uma canção popular que dizia: “Morra el-rei D. Fernando / no inferno muitos anos / pois deixou por testamento / Portugal pros castelhanos.” Mas o rei D. Fernando era tido como bonito, tanto que era “o formoso”. Envolveu-se com D. Lianor, a “aleivosa”, mulher de má fama e pior caráter. Fraco, D. Fernando acabou tão mal-amado por seu povo, que assim se refere Camões no início do Canto Quarto de Os Lusíadas. Depois de procelosa tempestade, Noturna sombra e sibilante vento, Traz a manhã serena claridade, Esperança de porto e salvamento, Aparta o Sol a negra escuridade, Removendo o terror ao pensamento. Assim no Reino forte aconteceu Depois que o Rei Fernando faleceu. Como se vê, o gênero épico conta uma estória com dose de objetividade. O épico não fala de si, mas apresenta o outro, como objeto narrado. (...) O épico apresenta metodicamente, por partes, os sucessivos fatos descritos e ações narradas, sem pressa. Não visa a um objetivo, a um fim. (...) A epopéia era uma narrativa [em versos] de fundo histórico em que se registravam poeticamente as tradições e os ideais de um povo, de um grupo étnico, sob a forma de aventuras de um ou mais heróis. As epopéias têm um herói central e narram as aventuras através das quais se firma triunfalmente a personalidade do herói, daquele que simboliza uma raça ou grupo étnico, o povo. (...) As grandes epopéias são a Ilíada e a Odisséia de Homero, a Eneida de Virgílio [epopéias antigas], Os Lusíadas de Camões [epopéia moderna, século XVI].” (Conferir: SAMUEL, Rogel. Novo Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, op. cit.: 44-45)
ATENÇÃO: Sobre o Gênero Épico na Idade Média, ou melhor, da Idade Média ao Renascimento, eis a visão cientificista de Anazildo Vasconcelos, datada de 1984: “Conquanto Os Lusíadas realizem o modelo épico renascentista plenamente, não se pode deixar de reconhecer a importância de obras como A Divina Comédia, Chanson de Roland e El Cid, que não integram o modelo, mas aportam dados estruturais específicos, que mais tarde serão incorporados definitivamente por Camões. Não parece teoricamente possível sustentar um modelo épico medieval, por falta de identidade entre as obras desse período. Isso decorre, ou melhor, se explica, pela situação própria da Idade Média, que não viveu, em termos de arte literária, uma proposta coletiva conscientizada. As epopéias medievais apresentam, em cada lugar onde surgiram, uma identificação com as raízes culturais emergentes, representam manifestações específicas de matérias épicas, aportam elementos estruturais ao modelo renascentista, distinguindo-se da manifestação clássica, mas não chegam a constituir uma nova estrutura épica definida. Os elementos aportados, como o maravilhoso cristão, a elaboração lírica dentro do mundo narrado, a projeção do poeta/narrador no mundo narrado, etc., só definirão uma nova manifestação do discurso épico com Os Lusíadas. Do ponto de vista teórico, é possível propor um modelo épico de transição e assinalar os elementos que, afastando-o da manifestação clássica, vão integrar a manifestação renascentista. Analisar essas obras entre os dois modelos construídos, abre uma nova perspectiva crítica para avaliar a dimensão épica medieval.” (Conferir: SILVA, Anazildo Vasconcelos da. Semiotização Literária do Discurso. Rio de Janeiro: Elo, 1984: 22).
2.6 - O Mito “O mito é o estágio do desenvolvimento do pensamento humano anterior à história, à arte e à lógica. Trata do fundamento ou do começo da história de uma comunidade ou do gênero humano em geral. Ele pode ter como conteúdo fenômenos naturais, que são apresentados sob a forma de alegoria; eis por que o mito pode assumir uma forma alegórica. O mito põe em cena personificações de coisas ou acontecimentos. É uma narrativa do que poderia ter acontecido no passado, se a realidade presente puder ser explicada pelo modelo de realidade que o mito propõe (como por exemplo o mito de Adão e Eva). O mito expressa, de uma forma sucessiva e narrativa, o supratemporal e permanente, o que ja-
mais deixa de ocorrer e que, como paradigma, vale para todos os tempos. A consciência mítica pressupõe uma identidade entre as coisas, uma fusão do sujeito no objeto, do visível no invisível, do natural no sobrenatural. O pensamento mítico é portanto pré-lógico e eqüivale a uma ontologia sagrada: Cada mito mostra, por uma manifestação do sagrado, como cada realidade veio ao mundo. (...) Modernamente, considera-se o mito como um problema de linguagem. A formação dos mitos obedece a uma necessidade cultural, isto é, os mitos são pressupostos culturais. O mito se encontra no nomear: Tudo o que foi nomeado torna-se real, como
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a própria coisa, como a realidade. O nomear dá nome às coisas, isto é, cria-as. “A princípio era o Verbo” significa isto: o nomear funda a realidade que é nomeada. Em lugar de um nome representar uma coisa, na nomeação há a identificação do nome com a coisa (coisa que não existia antes da nomeação). O nome não só designa, mas é a própria realidade. Desta maneira se tocam os problemas do mito e da literatura, isto é, da poesia como nomeação das coisas da realidade. Essa posse do nome é considerada demoníaca, no sentido de que o homem estaria de posse da capacidade de criar o mundo através da nomeação, ou seja, toma o lugar dos antigos deuses. O mito literário reside nessa nomeação, nessa recriação. E criar um mito significaria extrair da realidade uma narrativa que, de modo não-lógico, enfrenta o problema de explicação da própria realidade. Ou seja, o mito seria uma metáfora da realidade, daí a ligação entre metáfora e mito. A literatura, como o antigo mito, participaria da mesma natureza imaginativa de explicação do mundo. A literatura participa da necessidade mítica de explicar a realidade. O mito é uma função da literatura” (Cf.: SAMUEL, Rogel. Literatura, Mito e Linguagem. In.: SAMUEL, Rogel (Org.). Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, op. cit.: 182-183).
- Coisa inacreditável, fantasiosa, irreal; utopia. Por exemplo: A perfeição absoluta é um mito. - Na Filosofia: Forma de pensamento oposta à do pensamento lógico e científico. - Mito da Caverna (Filosofia): Aquele com que Platão, no começo do livro sétimo da República, figura o processo pelo qual a alma passa da ignorância à verdade. - Ontologia Sagrada: Ontologia: Parte da filosofia que trata do ser enquanto ser, isto é, do ser concebido como tendo uma natureza comum que é inerente a todos os seres e a cada um dos seres. Sagrada: Que se sagrou ou que recebeu a consagração. MITO: “Os heróis épicos são sempre seres excepcionais, que se destacam por sua beleza, nobreza, excelência nos combates, astúcia e religiosidade. (...) Representam os arquétipos da imaginação humana, daí serem idealizados e dotados de forças e virtudes excepcionais. (...) Outra característica importante a se ressaltar é a presença do maravilhoso: atuação dos deuses e de fatos sobrenaturais que se interpõem na solução de um problema” (In.: SAMUEL, Rogel (Org.) Manual de Teoria Literária. 13. ed. Petrópolis: Vozes, op. cit.: 78-79).
Vocabulário
Deuses da Mitologia Grega
MITO (Do grego mythos = fábula, pelo latim mythu)
URANOS - mutilado por Saturno.
- Narrativa dos tempos fabulosos ou heróicos;
SATURNO - Devorador dos próprios filhos // SATURNO = CRONOS è símbolo do tempo, que destrói tudo o que cria.
- Narrativa de significação simbólica, geralmente ligada à cosmogonia (Ciência que trata da origem e evolução do Universo), e referente a deuses encarnadores das forças da natureza e/ou de aspectos da condição humana; - Representação de fatos ou personagens reais, exagerada pela imaginação popular, pela tradição, etc. - Pessoa ou fato assim representado ou concebido. Por ex.: Para muitos, o mito do Super Homem do cinema americano representa o próprio homem americano, dos Estados Unidos da América do Norte. - Representação (passada ou futura) de um estádio ideal da humanidade. Por ex.: o mito da Idade do Ouro.
ZEUS - Conseguiu escapar à fome infanticida do pai, destrona-o e o pune implacavelmente. ZEUS = Júpiter dos latinos, Osíris dos egípcios, Amon do resto da África.
Outros: Hera, Apolo, Athenas, Afrodite, Etc. Para um conhecimento maior sobre os deuses da mitologia greco-romana, ler: BRANDÃO, Junito. Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, 1994.
2.7 - Folclore - Ciência do Saber Popular
- Lendas - Contos de fada - Fábulas
TRADIÇÃO ORAL
- Superstições - Provérbios - Mito - etc.
Vocabulário LENDA (Do latim legenda = coisas que devem ser lidas).
- Historieta de Ficção, de cunho popular ou artístico; Narração breve, de caráter alegórico, em verso ou em prosa, destinada a ilustrar um preceito, por ex.: as fábulas de La Fontaine;
- Tradição popular = antiga lenda;
- Narração de coisas imaginárias, ficção.
- Narração escrita ou oral, de caráter maravilhoso, na qual os fatos históricos são deformados pela imaginação popular ou pela imaginação poética.
SUPERSTIÇÃO (Do latim superstitione)
CONTOS DE FADA
- Sentimento religioso baseado no temor ou na ignorância, e que induz ao conhecimento de falsos deveres, ao receio de coisas fantásticas e à confiança em coisas ineficáveis; crendice; - Crença em presságios tirados de fatos puramente fortuitos;
- Conto: Narração falada ou escrita; Narrativa pouco extensa, concisa e que contém unidade dramática, concentrando-se a ação em um único ponto de interesse.
- Apego exagerado e infundado a qualquer coisa. Por ex.: superstição do número treze.
- Conto de Fada: Conto popular para crianças.
PROVÉRBIO (Do latim proberbiu)
FÁBULA
- Máxima ou sentença de caráter prático e popular, comum a todo um grupo social, expressa em forma sucinta e geralmente rica em imagens.
- Mitologia, lenda;
2.8 - Formas da Poesia Clássica VERSO HEXÂMETRO (usado por Homero)
VERSO DACTÍLICO OU ESDRÚXULO
- O verso mais conveniente para a natureza do assunto epopéia, em virtude de sua gravidade e amplidão.
- É o verso que acaba em palavra proparoxítona VERSO TROCAICO
- Verso grego ou latino de seis pés, dos quais os quatro primeiros podem ser dáctilos ou espondeus, o quinto é dáctilo, e o sexto espondeu ou troqueu. - Forma em desuso. Só poetas épicos da Antiguidade Clássica sabiam como utilizá-la.
- Verso formado de troqueus - Troqueu – Pé rápido, próprio para corrida. Pé de verso grego ou latino, constituído de uma sílaba longa e outra breve.
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VERSO HERÓICO (usado pelos poetas do Renascimento / Classicismo)
- Verso decassílabo com pausas na 6a e 10a sílabas. VERSO ESPONDEU
-A cesura (corte) empresta-lhe consistência, impedindo que se dissolva no fluxo rítmico da estrofe.
- Pé de verso, grego ou latino, constituído por duas sílabas longas.
2.9 - Gênero Dramático - Fenômenos Estilísticos (Cf. CUNHA, Helena Parente. Os gêneros Literários. In.: PORTELLA, Eduardo et al. Teoria Literária. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1976, pp. 93-130)
da unidade de ação, emaranhando-se no abarrotamento de episódios que dispersam a densidade dramática.”
GÊNERO DRAMÁTICO (denominação moderna: a partir do século XIX, o gênero dramático – texto para ser representado em teatro – passou a ser escrito em prosa)
- DIÁLOGO – “O diálogo é a forma natural de as personagens desenvolverem a ação, emancipadas do narrador. O monólogo não chega a contradizer a situação dialógica, por constituir recurso para a personagem expressar os próprios pensamentos, indispensáveis ao decurso da trama. O inesquecível monólogo em que Hamlet profere a frase proverbial “Ser ou não ser, eis a questão”, além de ser a expressão da dúvida existencial do homem, se insere no dinamismo da peça, sombreada pelo sentimento de hesitação da personagem central, após o desmoronamento dos valores do seu mundo.
NA ANTIGUIDADE CLÁSSICA: POESIATRÁGICA E POESIA CÔMICA (Textos trágicos ou textos cômicos escritos em versos) - Supõem-se situação dialógica; diálogo representado em um palco; - O Autor só se faz presente no texto escrito; no palco, o Autor desaparece para dar lugar aos atores, os quais darão vida aos personagens. Essência do Dramático: TENSÃO (Tensão Dramática) FENÔMENOS ESTILÍSTICOS DO GÊNERO DRAMÁTICO - MANEIRA DRAMÁTICA – Na obra dramática, o autor desaparece atrás do mundo criado, numa espécie de realidade independente, onde os acontecimentos se desenvolvem autonomamente, sem a interferência do narrador. Assim se justifica a necessidade do palco, como representação do mundo, diante do qual o espectador assiste ao desenvolvimento da ação por intermédio das personagens.
O gênero dramático se dirige para o espetáculo, para o palco, para o público. Contém força e paixão, é patético, desperta as mais fortes emoções. O dramático pressupõe um público frio, indiferente, anestesiado, que é necessário despertar e mobilizar aos gritos, acordar e conscientizar com som e fúria. O dramático tem a mesma natureza das revoluções, das multidões, que levanta com a força de seu discurso. Todo discurso político é dramático. O dramático no teatro põe o público na expectativa de um acontecimento com final extraordinário, provocando uma forte tensão que pode ser descarregada nas gargalhadas da comédia (quando não leva a nada).
- CONCENTRAÇÃO – A tensão dramática, dinamizada pelo alvo a alcançar, impele a ação e suprime todo excesso. Deste aspecto provém a concentração ou densidade, já defendida por Aristóteles, que atribuía ao mais concentrado um prazer maior do que aquilo que vem diluído. Por se achar no final o objetivo da trama e por existir cada parte somente em função do todo, não se admite retardamento na ação nem desperdícios de pormenores.
Sua técnica faz a concentração. Ali não se perde tempo, o espetáculo só dura uma hora e meia, tudo acontece rápido. As pessoas têm a impressão de estar assistindo a grandes acontecimentos, que vão desabar sobre todos, pois o dramático impõe a emoção do espetáculo violento” (Conferir: SAMUEL, Rogel. Novo Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, op.cit.: 47-48).
- AS UNIDADES – O imperativo da concentração e do sentido global mobilizado em direção ao desfecho, se conexiona à unidade de ação, mais significativa na obra dramática. Sacrifica-se a unidade, caso se entrelacem muitas ações. (...) O teatro medieval carece
A ação dramática encontra sua plena realização no espaço de um palco e num tempo restrito a esse tipo de representação, apoiada por recursos os mais variados, necessários para a efetiva transmissão da mensagem e da comunicação entre
a obra e o público. O ritmo cênico é um ritmo próprio que tem por objetivo chegar ao desfecho da história. Para criar esse ritmo particular, é necessário que o autor dirija a atenção do espectador através da tensão” (Cf.: ARAGÃO, Maria Lúcia. “Gêneros Literários”. In.: SAMUEL, Rogel. (Org.). Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, op. cit.: 79-80).
- O Velho da Horta (comédia), de Gil Vicente - Castro (tragédia), de Antônio Ferreira - El-Rei Seleuco (drama), de Luís Vaz de Camões - Filodemo (comédia), de Luís Vaz de Camões - Anfitrião (comédia), de Luís Vaz de Camões
Observação: Para o entendimento dos Fenômenos Estilísticos do Gênero Dramático, confrontando-os com a Poesia Trágica e a Poesia Cômica dos Antigos, recomendamos as seguintes leituras:
- Hamlet (drama), de Shakespeare - Romeu e Julieta (drama), de Shakespeare
- Rei-Édipo (tragédia grega), de Sófocles
- Frei Luís de Sousa (drama), de Almeida Garrett
- As Rãs (comédia grega), de Aristófanes
- Yerma (drama), de Garcia Lorca
- A Ceia de Anfitrião (comédia romana), de Plauto
- A Casa de Bernarda Alba (drama), de Garcia Lorca
- Auto da Barca do Inferno (comédia), de Gil Vicente
- Antônio Marinheiro: O Édipo de Alfama (drama), de Bernardo Santareno
- Auto da Barca da Glória (comédia), de Gil Vicente - Farsa de Inês Pereira (comédia)
- O Auto da Barca do Motor Fora da Borda (comédia), de Sttau Monteiro
2.10 - A Tragédia Grega TRAGÉDIA – MIMÉSIS DE UMA AÇÃO IMPORTANTE E COMPLETA. Valoriza o homem. Exalta o sentimento de piedade. Ex.: Rei Édipo, de Sófocles. Na tragédia grega (poesia trágica), “o herói trágico é aquele que, acreditando em suas idéias e vivendo coerentemente a partir delas, sem duvidar de sua validez, vê-se inesperadamente diante do inevitável destino, que lhe impõe as suas normas próprias e as suas vontades,
incompatíveis com a sua visão de mundo e idealização. (...) A tragédia configura o choque entre o caráter do herói e o seu destino. O trágico seria exatamente a oscilação entre estas duas tábuas de valores, a impossibilidade de se poder optar por uma em particular” (Cf.: ARAGÃO, Maria Lúcia. Gêneros Literários. In.: SAMUEL, Rogel (Org.). Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, 1999, pp. 81-82).
2.11 - A Comédia Grega COMÉDIA – MIMÉSIS QUE RIDICULARIZA O OBJETIVO DA TRAGÉDIA. Em vez de valorizar a derrocada do homem, nega-lhe importância, exalta o lado ridículo da situação; explora todos os ridículos humanos, acentuando seus traços; exagera a fim de tirar partido do efeito cômico. Ex.: As Rãs, de Aristófanes. Na comédia grega (poesia cômica), “o riso cômico seria desencadeado por um excesso, por uma desmedida (hybris). As máscaras cômicas se caracterizavam pelo exagero no detalhe. Emil Staiger nos diz que ‘o cômico extravasa as bordas desse mundo e acomoda-se à margem numa evidência despreocupada’ e Kant: ‘O riso
é a paixão decorrente da transformação súbita de uma expectativa densa em nada’.” (Cf.: ARAGÃO, Maria Lúcia. Gêneros Literários. In.: SAMUEL, Rogel (Org.). Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, op. cit.: 82-83).
Vocabulário Comédia = komoidía. No teatro, obra ou representação teatral em que predomina a sátira e a graça. Comédia Antiga = Teatro: O conjunto das obras de teatro cômico da Grécia Antiga escritas no período
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que vai até o século IV a. C., de conteúdo predominante político-social, e que tem Aristófanes como seu principal representante.
século IV a. C., caracterizadas pela sátira aos costumes, e cujos principais autores foram Menandro e Filêmon.
Comédia Média = Teatro: O conjunto das obras de teatro cômico da Grácia Antiga, de conteúdo alegórico, mitológico e literário, e situadas nos três primeiros quartéis do século IV a. C.,
Comédia Atelana = No antigo teatro romano, peça no gênero da farsa, curta, caracterizada pelas sátiras político-sociais, oriunda das representações da antiga cidade de Atela, e na qual os atores eram sempre mascarados e personificavam tipos fixos
Comédia Nova = Teatro: O conjunto de obras de teatro cômico da Grécia Antiga, escritas no período final do
Hibris = (grego) ultraje, afronta, ofensa extremamente grave (desmedida).
2.12 - Gênero Narrativo Ficcional Ficção
Vocabulário
Característica da Ficção: “A ficção tem como característica fundamental o imaginar. O imaginar é o contraponto do formar. O contraponto indica a presença da tensão do limite e do ilimitado, do discurso e do imaginário, do homem ultrapassando as fronteiras das realidades dentro do real. A forma ficcional sem o imaginar origina os formalismos retóricos, os modismos estilísticos, provocando equívocos sobre o literário: este se realiza quando o imaginário irrompe em formas que o deixam manifestarse silenciosamente. É isso o que caracteriza fundamentalmente a ficção: a presença marcante e irrefreável do imaginário. O imaginário da ficção não pode ser confundido com ilusão. Esta [a ilusão] manipula e impõe esteriótipos ideológicos, é o veículo de um discurso que não liberta, mas domina. Ao contrário, na ficção literária, a forma é viva, variada e diferente. As grandes obras são irretocáveis e inimitáveis. É fingidora, mas não é falsa” (CASTRO, Manuel Antônio de, op. cit.: 45).
Fingir: Do latim fingire = inventar, fabular; ser ou mostrar-se dissimulado.
“A o falarmos de ficção, de uma maneira mais ou menos explícita, sempre fica claro que estamos perante um fingir. Este fingir ou dissimular não é encarado na ótica do falso. O fingir, pelo contrário, aponta para uma complexa dimensão do homem. Como o fingir da ficção, as mais das vezes, envolve, gratifica e transforma o leitor, o simplesmente falso jamais explicaria essa atração e atuação da ficção. O envolvimento não pode ser meramente explicado pelas palavras correntes: divertimento e lazer. Esta dimensão está ligada à catársis (grego: κάθαρσ ις ) como prazer e plenitude, que só a verdadeira literatura realiza. E também se pode compreender por que a ficção seja literariamente verdadeira, embora possa até falsear fatos históricos. Nisso é preciso pensar a natureza do signo e do conhecer. (...) Ela é fingidora mas não é falsa” (Ibidem: 45).
= mudança de imagens;
Imaginário: Do latim imaginariu = Que só existe na imaginação. Imaginação: Do latim imaginatione = Faculdade que tem o espírito de representar imagens. Faculdade de evocar imagens de objetos que já foram percebidos; imaginação reprodutora. Faculdade de formar imagens de objetos que não foram percebidos ou de realizar novas combinações de imagens; imaginação criadora. Criação. Invenção. Para Bachelard (filósofo): Imaginação = faculdade de deformar imagens; = faculdade de libertar-nos das imagens primeiras; = ação imaginante
= união inesperada de imagens; = imagem presente que faz pensar numa imagem ausente; = imagem ocasional que determina uma prodigalidade de imagens aberrantes, uma explosão de imagens. Para Bachelard, quando não há ação imaginante: - há percepção (de algo real); - há lembrança de uma percepção; - há memória familiar; - há hábito das cores e das formas.
Gênero Narrativo Ficcional em Prosa “O processo literário, convertido em discurso narrativo, estrutura o Espaço, o Personagem e o Acontecimento, criando uma realidade imaginária. A criação da realidade ficcional se faz por uma operação imitativa da dinâmica que, estruturando o mundo, o homem e as ocorrências, cria a realidade objetiva. (...) Os discursos ficcionais, articulados pelo processo literário, realizam a relação do homem com o mundo no nível do imaginário”.
(Cf.: SILVA, Anazildo Vasconcelos da. Semiótica Literária. In.: SAMUEL, Rogel (Org.). Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, op. cit.: 111) Para um maior conhecimento sobre o assunto, pelo ponto de vista da Semiologia Literária (ponto de vista cientificista), ler também: SILVA, Anazildo Vasconcelos da. Semiotização Literária do Discurso. Rio de Janeiro: Elo, 1984.
2.13 - Padrões Narrativos (Cf.: SILVA, Anazildo Vasconcelos da. Semiotização Literária do Discurso. Rio de Janeiro: Elo, 1984.)
NARRATIVA DE SEMIOTIZAÇÃO DO PERSONAGEM
NÍVEL DA REALIDADE:
- o sentido é dado a partir do PERSONAGEM;
H = M – Mundo: raciocínio que dá sentido objetivo
- o raciocínio que dá sentido subjetivo ao personagem, aliado ao fio narrativo, converte o personagem em força estruturante, para direcionar a proposta de realidade ficcional;
A – ações do Homem + ocorrências do mundo = raciocínio que dá sentido objetivo Homem: raciocínio que dá sentido objetivo NÍVEL DA FICÇÃO: P = E A – ações do Personagem / ocorrências do mundo Personagem: raciocínio que dá sentido subjetivo FIO NARRATIVO - ATIVIDADE QUE ESTRUTURA A NARRATIVA (MOVIMENTO, FORÇA, DINAMISMO)
PADRÕES NARRATIVOS: - NARRATIVA DE SEMIOTIZAÇÃO DO PERSONAGEM - NARRATIVA DE SEMIOTIZAÇÃO DO ESPAÇO - NARRATIVA DE SEMIOTIZAÇÃO DO ACONTECIMENTO - Narrativa de Semiotização de Acontecimento Comum - Narrativa de Semiotização de Acontecimento / Fantástico - Narrativa de Semiotização de Acontecimento / Absurdo - Narrativa de Semiotização de Acontecimento / Real-Mágico
- o personagem atinge a plenitude; - valorização do aspecto pessoal; - o espaço faz o possível para sujeitar o PERSONAGEM (não consegue); - o acontecimento é uma ocorrência do espaço, tentando restaurar a identidade perdida (não consegue). Exemplos: Narrativas do Romantismo: Iracema, de José de Alencar, Amor de Salvação, de Camilo Castelo Branco, Ivanhoé, de Walter Scott. NARRATIVA DE SEMIOTIZAÇÃO DO ESPAÇO - o sentido é dado a partir do ESPAÇO (REALIDADE OBJETIVA); - o raciocínio que dá o sentido objetivo do espaço, aliado ao fio narrativo, converte o espaço em força estruturante, para direcionar a proposta de realidade ficcional; - o ESPAÇO submete o acontecimento e o personagem à sua lógica, ou seja, ao seu raciocínio; - o sentido do acontecimento é dado em função de valores objetivos, sujeitando o personagem; - a identidade é restabelecida com a punição do personagem;
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- o acontecimento é uma ação do personagem; - por mais que o personagem tente projetar sua experiência por fora dos limites do espaço, não consegue. Exemplos: Narrativas do Realismo/Naturalismo: Dom Casmurro, de Machado de Assis; O Primo Basílio, de Eça de Queirós; O Cortiço, de Aluísio de Azevedo, Luzia-Homem, de Domingos Olympio, Dona Guidinha do Poço, de Manuel de Oliveira Paiva, A Fome, de Rodolfo Teófilo. NARRATIVA DE SEMIOTIZAÇÃO DO ACONTECIMENTO - o raciocínio que dá sentido ao ACONTECIMENTO, aliado ao fio narrativo, converte o ACONTECIMENTO em força estruturante, para direcionar a proposta de realidade ficcional;
- o acontecimento submete o personagem e o espaço à sua lógica; - o personagem e o espaço se desarticulam e passam a se desconhecer; - quebrada a identidade, ela não é mais restabelecida; - a Crítica tem batizado esta modalidade da narrativa com vários nomes: NARRATIVA DE ACONTECIMENTO NORMAL; NARRATIVA FANTÁSTICA; NARRATIVA DO ABSURDO, NARRATIVA DO REALISMO-MÁGICO. Todas essas narrativas pertencem à NARRATIVA DE SEMIOTIZAÇÃO DO ACONTECIMENTO, apenas o insólito é realizado de maneira diferente. Exemplos: Todas as narrativas do século XX (a partir dos anos vinte) consideradas grandes obras ficcionais.
2.14 - Estrutura Tradicional da Narrativa de Ficção * Apresentação * Complicação (Complicações) * Clímax * Solução (Resolução ou Epílogo) COMPONENTES DA NARRATIVA TRADICIONAL * Enredo - Linear ou não; - Seqüência lógica ou não; - Princípio, meio e fim; - Abertura da obra; - Construção da narrativa; - Estruturação do conjunto; - Enfoque narrativo; - Desenvolvimento da narrativa; - Planos da narrativa. * Personagens - A relação entre si; - A imagem que formam; - A intriga de que participam; - Os obstáculos que têm de enfrentar; - O discurso das personagens.
* Ação - Como se desenvolve (Exemplo: Se é desenvolvida no passado; se a ação do presente é monótona, etc.); - Como as personagens participam da ação (a maneira); - Como o conflito se estabelece na ação. * Tempo - Normal; - Lento; - Acelerado; - Tempo de memória; - etc. * Espaço - Sua limitação ou não; - Regional; - O contra-espaço. * Ambiente - Urbano; - Campestre; - Outros; - A relação do ambiente com a caracterização das personagens; - As personagens niveladas ou não ao ambiente de que participam.
2.15 - As Inovações Estruturais da Ficção PósModerna Exemplos: - A paixão segundo GH, de Clarice Lispector, que começa assim: “- - - - - - estou procurando, estou procurando.” E termina assim: “E então adoro. - - - - - -.”
- Aprendizagem ou Livro dos prazeres, da mesma autora, começa por uma vírgula e com letra minúscula. ATENÇÃO: Para o entendimento das inovações estruturais da ficção pós-moderna, leia os itens 2.21, 2.22 e 2.23 (pp. 96 - 103) deste Instrucional da UCB, os quais se referem ao assunto.
2.16 - A Ficção Paraliterária Diz Anazildo Vasconcelos da Silva: “Há um discurso paraliterário, diferente do discurso literário [literaturaarte], cuja manifestação cria, segundo sua especificidade, o produto paraliterário. Resultando da manifestação de um discurso específico e não da má utilização do discurso literário, o produto paraliterário nada tem a ver com o produto literário. É uma outra coisa que não literatura, e se define por suas próprias características.
(Conf.: SILVA, Anazildo Vasconcelos da. Cultura de Massa e Cultura Popular”. In.: SAMUEL, Rogel (Org.). Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, op. cit.: 169)
Jean Tortel, o proponente do termo, coloca toda a massa da escritura contemporânea, da carta comercial à novela, e da receita culinária ao romance policial, no âmbito da paraliteratura. Excetuando uma ilhota que constitui a literatura propriamente dita, todo o resto da escritura é paraliterária. Tortel propõe uma divisão da paraliteratura em didática, abrangendo as formas estereotipadas da comunicação, e de imaginação, abrangendo as formas excludentes da prática comunicativa, definida.”
Paraliteratura = Para = Igual, semelhante, parelho / literatura
Vocabulário Exclusão / Excludente = ato de excluir (-se); exceção
Para uma melhor compreensão do assunto leia: SILVA, Anazildo Vasconcelos da. Semiotização Literária do Discurso. Rio de Janeiro: Elo, 1984. SILVA, Anazildo Vasconcelos da. A Paraliteratura. In.: PORTELLA, Eduardo (Org.). Teoria Literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975: 172-185.
2.17 - A Crítica Literária DEFINIÇÃO E OBJETIVO
juízos ou opiniões a favor ou contra (designação errada). (...)
CRÍTICA (Etimologia): O termo crítica deriva do grego KRÍNEIN, que significa “julgar”, através do feminino da forma latina CRITICU(M). KRITÉS significa “juiz” e KRITIKÓS, “juiz” ou “censor literário”. “A palavra crítica, ou qualquer de seus sinônimos, enriqueceu-se de sentido e tornou-se universalmente aceita como designativo de análise, interpretação e julgamento da obra de arte, ou de objetos paralelos (crítica da situação econômica, crítica do progresso científico, etc.), ou ainda indicativo dos modos de julgar (crítica histórica, crítica oral, crítica jurídica, etc.). Em razão da elasticidade semântica adquirida, a palavra também recorre no dia-a-dia para emoldurar
No curso do tempo, aos poucos o vocábulo crítica veio ganhando significados novos, até chegar à indeterminação semântica dos nossos dias (abarca atividades múltiplas e diferenciadas: desde artigos de jornal à tese universitária, passando pelas monografias, ensaios, artigos de revista, conferências, etc., tudo recebe indistintamente o apelativo de crítica. Como se não bastasse, aglutinam-se a atividades vizinhas, numa interrelação verdadeiramente labiríntica; a historiografia literária, que possui métodos e objetivos próprios, não dispensa o suporte da crítica; a análise literária conduz necessariamente à crítica e dela recolhe esclarecimentos, etc.)” (In.: MOISÉS, Massaud. A criação literária. 4. ed. São Paulo, Melhoramentos, 1971: 289-290).
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Objetivo da Crítica Literária (visão cientificista)
TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA LITERÁRIA
“Para a crítica literária o que interessa é averiguar os processos literários que o autor empregou para traduzir a sua visão de mundo.” (Massaud Moisés, Ibidem)
1) TEORIA LITERÁRIA – Disciplina de configuração autônoma (porém de caráter interdisciplinar).
CRÍTICA LITERÁRIA E TEORIA LITERÁRIA: A crítica como consciência do fato literário (Visão fenomenológica) “O conhecimento literário não pode prescindir de uma base teórica, que o sustente sem limitá-lo, que o livre dos “achismos”, sem confiná-lo numa única perspectiva.” FATO: - coisa ou ação feita; - caso; - acontecimento; - feito; - aquilo que realmente existe, que é real; - FENÔMENO (Filosofia). TEORIA LITERÁRIA - fornece elementos para a apreensão do FENÔMENO LITERÁRIO. TEORIA E CRÍTICA - inter-relação teórico-analítica para o reconhecimento do texto literário. LITERATURA - caracteriza-se pela pluralidade de sentidos. TEORIA LITERÁRIA è aberta às múltiplas dimensões do seu objeto de estudo (a Literatura). TEORIA LITERÁRIA - caráter interdisciplinar e, ao mesmo tempo, independente. “A Teoria Literária assume um caráter interdisciplinar porque assimila os conhecimentos de ciências afins tais como a sociologia, a antropologia, a lingüística, a história, a psicanálise, todas voltadas igualmente para manifestações do ser e do fazer humanos. Este inter-relacionamento amplia e enriquece o estudo da Literatura. (...) A crítica, qualquer que seja a via de acesso escolhida (sociológica, psicológica, lingüística...), não pode descartar-se de sua dupla feição: enquanto crítica obedecerá a um rigor, que lhe é garantido pelo método de abordagem e, enquanto literária, incluirá literariamente o sentido que, na literatura, ultrapassa o campo do conhecimento com o qual se articulou, na construção do modelo de leitura”. (Conferir: SOARES, Angélica Maria. A Crítica. In.: SAMUEL, Rogel (Org.). Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, op. cit.: 90-91)
CRÍTICA
* pratica concretamente o sistema de ensino de literatura
TEORIA (NÚCLEO)
MÉTODO
* TEORIA - suporte para ensinar literatura
LIMITES DA TEORIA LITERÁRIA - Teoria: Não pode desequilibrar as relações de poder das outras disciplinas literárias (limite que não pode ser violado). - Limites: Impedem que a Teoria Literária se transforme numa disciplina dominadora e repressiva. 2) ALARGAMENTO INTERDISCIPLINAR - É uma natural conseqüência do seu progresso técnico. METODOLOGIAALTERNADA: *
TEXTO LITERÁRIO
ANTROPOLOGIA LINGÜÍSTICA PSICOLOGIA DIREITO SOCIOLOGIA SEMIOLOGIA FILOSOFIA HERMENÊUTICA
TEORIA LITERÁRIA + CRÍTICA LITERÁRIA
ANTROPOLOGIA ETC. *Disciplinas aparentemente dissociadas
- União para a DECIFRAÇÃO do enigma do homem. 3) AS DIFERENTES ALTERNATIVAS DA COMPREENSÃO LITERÁRIA (Ponto de vista de Eduardo Portella, na década de setenta – Livro de Portella: Teoria Literária, editora Tempo brasileiro, 1976.)
TEORIA INVESTIGAÇÃO LITERÁRIA = CRÍTICA LITERÁRIA “A partir do esforço de verticalização, quando a consciência crítica da literatura assumiu o comando dos estudos literários, deixando de lado o palpite emocionado, mas ingênuo, a investigação literária registrou algumas atitudes básicas, importantes. A primeira tomada de posição aconteceu com a chamada NOVA CRÍTICA, que abrigava vários tipos de análise literária, desde a análise estilística alemã ou espanhola até o new criticism anglo-americano. A segunda opção crítica [filológica], embora podendo ser enlaçada com a primeira, identifica-se por um rigor sistemático e por uma amplitude de visão, que justifica plenamente o tratamento autônomo (isto, quando exercida por representantes da força criadora de um Leo Sptizer, de um Erich Auerbach, de um Damaso Alonso, de um Hugo Friedrich). O terceiro momento tem na Lingüística o seu modelo e o seu padrão de verdade” (Conferir: PORTELLA, Eduardo. Limites Ilimitados da Teoria Literária. In.: PORTELLA, Eduardo (org.). Teoria Literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1977: 9). CRÍTICA E HISTÓRIA LITERÁRIA “Crítica e História Literária são encaradas atualmente de muitas perspectivas. Em meio aos múltiplos ensaios e posições teóricas torna-se cada vez mais difícil abrir um caminho de apreensão e compreensão mínima, não só do objeto como das próprias metodologias. É que, a par das múltiplas pesquisas de que resulta uma bibliografia numerosa, muitas vezes de difícil acesso, elabora-se uma nomenclatura especialíssima. Sucede então que em vez de aquelas esclarecerem cada vez mais o objeto pesquisado, tem-se um resultado inverso. Acresce que a mudança constante deixa o leitor interessado – o qual procura um acesso a tal conhecimento, confuso e desanimado. De fato, nem sempre isto é inevitável, porque o conhecimento do literário se constitui cada vez mais crítica e reflexivamente.” (Conferir: CASTRO, Manuel Antônio de. “Crítica e História Literária”. In.: PORTELLA, Eduardo (Org.) Teoria Literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975:19) HISTÓRIA LITERÁRIA - SUPÕE UM ENFOQUE TEÓRICO-CRÍTICO. *A posição crítica resulta de uma teorização do que seja determinado objeto. *A teoria literária, ao teorizar sobre o objeto (obra literária), automaticamente institui um método, decorrente da própria teoria e do objeto de enfoque.
OBJETO MÉTODO
MÉTODO - caminho para. REALIZAÇÃO METODOLÓGICA (se pode dar em forma de): *proposições (teorizações); *forma prática (ensaios, história literária). Partindo do princípio de que não há prática sem teoria, “acontece muitas vezes que a prática é uma teoria que se desconhece. Temos assim, inevitavelmente, um primeiro nível de relacionamento entre Crítica e História Literária” CASTRO, op. cit.: 19).
Crítica e Sociedade Vocabulário CRÍTICA - Faculdade de examinar e/ou julgar as obras do espírito, em particular as de caráter literário ou artístico; - A expressão da crítica, em geral por escrito, sob forma de análise, comentário ou apreciação teórica e/ou estética; - Discussão dos fatos históricos; - O conjunto daqueles que exercem a crítica; os críticos; - Juízo crítico; discernimento; critério; - Apreciação minuciosa, julgamento; SOCIEDADE - Agrupamento de seres que vivem em estado gregário (sociedade humana; sociedade de abelhas; etc.); - Conjunto de pessoas que vivem em certa faixa de tempo e espaço, seguindo normas comuns, e que são unidas pelo sentimento de consciência do grupo; CORPO SOCIAL (a sociedade medieval; a sociedade moderna; etc.); - Grupo de indivíduos que vivem por vontade própria sob normas comuns; COMUNIDADE (sociedade cristã; sociedade dos hippies); - Meio humano em que o indivíduo se encontra integrado (A sociedade constitui-se de classes de diferentes níveis);
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- Relação entre pessoas; vida em grupo; participação; convivência; comunicação (O homem precisa da sociedade dos seus semelhantes); - Reunião de indivíduos que mantêm relações sociais e mundanas (os prazeres da sociedade; homem de sociedade); - Grupo de pessoas que se submetem a um regulamento a fim de exercer uma atividade comum ou defender interesses comuns (agremiação; centro; grêmio; associação [Sociedade brasileira de autores teatrais; Sociedade protetora dos animais, etc.] ); - Companhia de pessoas que se agrupam em instituições ou ordens religiosas; - Parceria; associação; - Etc.
O Percurso Histórico da Crítica Literária As primeiras manifestações no final do século XIX: Crítica Biográfica (Romantismo); Crítica Impressionista (Impressionismo) e Crítica Determinista (Realismo/ Naturalismo): “O século XIX tem uma especial importância, pois é quando nascem as principais idéias e ciências que vão formar o século XX. No século XIX aparecem Hegel e Marx, o positivismo e o evolucionismo. A razão, a racionalidade desta época atinge o máximo de seu apogeu com o capitalismo europeu. (...) O século XIX assiste ao nascimento de um conflito teórico prático até agora não superado, e modificou o velho mundo: as idéias liberais e neoliberais democráticas da burguesia ocidental predominaram. Correntes filosóficas fundamentavam dois tipos de teoria literária, dois modos de ler o texto, um tradicional e o outro prospectivo, que tinha os olhos no futuro, nas transformações sociais.” (Conferir: SAMUEL, Rogel. Novo Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, op. cit.: 61-62); - “Século XIX no Brasil. No Brasil havia um ambiente de estagnação intelectual, salvo pelo gênio de uns poucos críticos extraordinariamente ativos, como Tobias Barreto (1839-1889), que superava a sua época. Tobias Barreto revolucionava e escreveu grandes obras – hoje desconhecidas. // O meio cultural do Brasil persistia reacionário, não aceitando nada que exigisse algum esforço de compreensão ou que lhe mudasse o gosto, a idéia.” (Ibidem: 73); - O Formalismo Russo (Círculo Lingüístico de Moscou, 1914): “Caracterizando-se pela recusa aos elementos extratextuais, como fonte de explicação da obra literária, através de seu método descritivo e
morfológico (Eikhenbaun), os formalistas vão procurar distinguir, no próprio texto, as características que o tornam literário, a sua literariedade.” (Conferir: SOARES, Angélica Maria. A Crítica. In.: SAMUEL, Rogel (Org.). Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, op. cit.: 95); “A primeira notícia que se dá sobre o Formalismo Russo diz que nasceu no Círculo Lingüístico de Moscou (1914-1915) e durou até 1924-25, quando o patrulhamento ideológico bruscamente interrompeu suas pesquisas, não sem o fuzilamento de alguém, como o do lingüísta Polivanov. Nessa época foi fundada a Associação para o estudo da linguagem poética, chamada de Opaiaz, que também não escapou ao início do stalinismo. Não era para estranhar: o chefe do formalismo, Chklovski, atacava o marxismo. (...) // Os que deixaram trabalhos pioneiros foram Chklovski, Eikhenbaurn, Jakobson e Tinjanov. A grafia destes nomes varia muito, e a pronúncia geralmente se desconhece: Jakobson disse que seu nome se dizia / Jacobêu/. (...) // A literatura, entretanto, é explicada no formalismo como uma função da linguagem, a função poética: que dá ênfase à própria mensagem (uma contradição, já que se omitia o estudo da mensagem).” (Conferir: SAMUEL, Rogel. Novo Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, op. cit.: 78-79); - Opoiaz (Associação Para o Estudo da Linguagem Poética, 1917): “Um movimento de crítica literária, estreitamente ligado aos movimentos artísticos de vanguarda” e ao Formalismo Russo. (Conferir: SOARES, Angélica Maria. A Crítica. In.: SAMUEL, Rogel (Org.). Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, 1999: 95); - A Dialética Hegeliana: A Fenomenologia do Espírito de Hegel é um texto que só deve ser compreendido na integralidade de seu método (o sistema é um todo, ou “o verdadeiro é o todo”*, dizia ele), em que um fato gerador é racionalmente verificado como matriz de uma determinada forma de pensar o mundo, e qualquer parte se torna obscura se não for vista como parte dele. O sistema da ciência – como diz Hegel, denominaria a atividade filosófica – tem unidade interna que tudo sistematiza, e quem se propõe a pensar sem sistema, não faz ciência, apenas emite opiniões e convicções, como na cultura de massa, opiniões que só se justificariam dentro de um conteúdo sistemático que tem um princípio, ou seja, aquilo que determina tudo o mais na construção da grade lógica. O sistema hegeliano, tal como se apresenta na Fenomenologia, é um círculo que se fecha sobre uma totalidade, mas se abre à contingência, ao nãonecessário; e também se abre à liberdade, à revolução, pois é filho da Revolução Francesa, e Hegel foi o primeiro a submeter a dialética da filosofia à História. Além disso, a liberdade em Hegel significa poder ser, e
tal sistema deve conter em si uma capacidade, na medida em que nele sejamos conduzidos a ver que nós produzimos o saber ou, dito de outro modo, na medida em que descubramos que a realidade é produzida por nós mesmos, como na Democracia Representativa.” (Conferir: SAMUEL, Rogel. Novo Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, op. cit.: 63-64); - Estilística: um ramo da Ciência da Linguagem (Apogeu: anos 30/40): “Charles Bally (1865-1947), discípulo de Saussure, foi quem primeiramente colocou a estilística como ramo da ciência da linguagem. Ele propõe uma estilística fundamentalmente lingüística, ainda não voltada para os aspectos da função estética da língua literária.” (Conferir: SOARES, Angélica Maria. “A Crítica”. In.: SAMUEL, Rogel (Org.). Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, op. cit.: 98-99); - Nietzsche e a Crítica dos Valores: “A crítica (toda a filosofia de Nietzsche é crítica) determina conceitos de valor, noção de valor que implica um certo investimento crítico contra: 1) de um lado, os valores aparecem como princípios pressupostos (existindo como tais); 2) de outro lado, ao contrário, contra valores de que derivam avaliações, “pontos de vista de apreciação”, de onde estes valores derivam (são fenômenos criados). Estas avaliações não são valores, mas maneiras de ser, modos de vida daqueles que julgam, avaliam e criam seus próprios princípios sobre os quais são construídos os valores (a democracia, o socialismo). / A filosofia crítica de Nietzsche* tem dois movimentos inseparáveis: todas as coisas e todas as origens de qualquer valor se referem a valores, para depois referir estes valores a outra coisa que seja a origem (dos valores) e que decida o valor (dos valores), como o “bem” e o “mal”. (Conferir: SAMUEL, Rogel. Novo Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, op. cit.: 70); - O New Criticism norte-americano dos anos quarenta do século XX: “Na década de 30 surgiu, nos Estados Unidos, o New Criticism (Nova Crítica) / O new criticism acabou com a crítica que se publicava nos jornais, acusada de impressionista, de nãocientífica. Passou a ser exercida unicamente pelos professores universitários, que só deviam ver os elementos “intrínsecos”, formais, sendo abolidas as verificações “extrínsecas”, históricas e sociológicas. // Os próprios escritores tiveram máxima influência naquele momento, dentre eles Paul Valéry, Ezra Pound, Henry James, T. S. Eliot. / Acreditava-se que a crítica podia ser produto da experiência. Eliot dizia: “A crítica honesta e a sensibilidade literária não se interessam pelo poeta, e sim pela poesia”. (Ibidem: 81); “A nova crítica se propõe a romper com a hermenêutica (interpretação de texto), com a ontologia (estudo metafísico ou do ser), com a filologia (interpretação a partir de figuras de linguagem previamente dadas) e
com a leitura de texto que empresta a este a noção de “intenção do autor” ou se rege pelo perfil biográfico do mesmo. Dentro de uma noção de autonomia do texto estético, a nova crítica propõe para o texto poético uma “leitura microscópica” (close reading), isto é, imanente do texto literário, com uma análise a partir do significado do próprio texto, e não de um contexto histórico, biográfico ou externo a ele, como seria o caso também de uma leitura de fontes. A obra é o próprio testemunho do autor. / O crítico busca portanto os significados denotativos e conotativos das palavras, ambigüidades tensões de vocábulos e sintagmas, imagens, metáforas e símbolos dominantes ou recorrentes, processos retóricos na composição de cada gênero a partir do enredo, personagens, atmosfera, temas principais e secundários. Na “leitura microscópica” o crítico se aproxima do texto com objetividade e precisão, como um anatomista que estuda o tecido ao microscópio, embora sem esquecer do aspecto humano da obra. A ênfase está no objeto analisado, a obra, e não no sujeito que a analisa, ou mesmo nas origens e efeitos daquela. (...) / O objetivo da nova crítica é aproximar o crítico do texto poético e afastá-lo da interpretação ontológica ou hermenêutica, que especula sobre a essência, ou da interpretação sociológica ou histórica, que extrapola os limites do texto.” (Conferir: LOBO, Luíza. A Crítica. In.: SAMUEL, Rogel (Org.). Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, op. cit.: 102-104); - A Nova Crítica Americana no cenário cultural brasileiro dos anos 50/60 do século XX: “As proposições teóricas da Nova Crítica foram introduzidas no Brasil por Afrânio Coutinho. Sua atividade infatigável, de um verdadeiro profissional das Letras e não um mero diletante, provocou uma renovação dos estudos críticos literários e abriu-lhe novos rumos. Entre os numerosos escritos destacase A literatura no Brasil, onde pôs em prática os princípios da Nova Crítica.”. (Conferir: CASTRO, Manuel Antônio de. Crítica e História Literária. In.: PORTELLA, Eduardo (Org.) Teoria Literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975:31); - Estruturalismo: Reunião de pesquisas analíticocientificistas (anos 50/60 do século XX - Modelos de Análise; Gramática Geral da Narrativa): “Trazendo a herança do Formalismo Russo e recebendo a influência do grande desenvolvimento que tiveram os estudos lingüísticos, com a publicação póstuma do Cours de linguístique générale (1916) do genebrino Ferdinand de Saussure (no qual Bally e Sechehaye reuniam anotações de aula de três cursos do mestre), aparecem, sob o rótulo do estruturalismo, pesquisas diversas sobre a análise do texto literário, todas elas guiadas pelo reconhecimento da obra como uma estrutura, isto é, um sistema de relações, um todo formado de elementos solidários, tais que cada um depende dos
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outros e não pode ser o que é, senão devido à relação que têm uns com os outros. Cada elemento teria uma maneira de ser funcional, determinada pela organização do conjunto e, conseqüentemente, pelas leis que a regiam. Apreendendo-se o texto literário como estrutura verbal, essas leis eram buscadas na lingüística e, a partir delas, criaram os estruralistas, desde os primeiros trabalhos de Roland Barthes (1915-1980) ou de Tzvetan Todorov, modelos de análise que conduziam a uma possível gramática geral da narrativa.” (Conferir: LOBO, Luíza. A Crítica. In.: SAMUEL, Rogel (Org.). Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, op. cit.: 104105); - Sociologia da Literatura: “Lukács estuda a forma romanesca caracterizando a existência de um herói problemático, isto é, o romance seria a história de uma investigação degradada (ou demoníaca), pesquisa de valores autênticos num mundo inautêntico (degradado). E se caracterizaria pela ruptura insuperável entre este herói e o mundo, quando se dariam duas degradações: a do herói e a do mundo.” (Ibidem: 108-109); - Semiologia da Literatura: “A Semiologia (também chamada num sentido filosófico, semiótica) é a ciência dos signos. Seu criador foi C. S. Peirce (1839-1914), que definiu o signo como um primeiro que mantém com um segundo, chamado objeto, uma relação triádica capaz de determinar um terceiro, o interpretante do sentido do signo. Ou seja, um signo se traduz por outro signo, no qual se desenvolve. / O interpretante do signo na mente das pessoas se forma quando elas se encontram em relação de comunicação com aquilo que representa alguma coisa para alguém. / A semiologia estuda os meios de comunicação, que podem ser: 1) vocal: ações envolvidas na fala; 2) nãovocal: comunicações que não se utilizam da fala, como o gesto, o sinal com o dedo; 3) verbal: comunicações que não usam a língua codificada. Há comunicações vocal-verbal, como as palavras; vocal não-verbal, como a entonação, a ênfase; não-vocal verbal, as palavras escritas; não-vocal, não-verbal, como os elementos faciais, os gestos. / Pearce fez a distinção de ícone, índice e símbolo. O ícone retrata o objeto, um signo determinado por seu objeto através da natureza interna dos dois. Por exemplo, uma onomatopéia ou fotografia. O ícone imita o objeto, tem pelo menos um traço em comum com ele, como as caricaturas. / O índice tem uma relação real, causal, direta com seu objeto, aponta para o objeto, assinalao. É o signo determinado pelo objeto em virtude de uma relação real que com ele mantém. Por exemplo, a fumaça índice do fogo. / O símbolo não imita nem indica nada, mas o representa de maneira arbitrária. É um elemento determinado pelo seu objeto convencionalmente, como uma bandeira ou um nome de batismo. / O ícone imita de fora: a fotografia. O
índice tem uma relação real e contínua com o objeto: a fumaça em relação ao fogo. O símbolo não tem nenhuma relação com o simbolizado. Mas o signo marca sempre a intenção de comunicar um sentido. Chama-se significação esta relação entre significante e significado. Quando um significante se refere ou sugere vários significados há literariedade.” (Conferir: SAMUEL, Rogel. Novo Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, op. cit.: 84-85); - Hermenêutica Antiga (religiosa) X Hermenêutica Literária (profana): “O termo ‘hermenêutica’ tem origem em Hermes, divindade-intérprete a quem era confiada a transmissão das mensagens do destino dos mortais. E, como atividade de interpretação, da hermenêutica podemos traçar um longo caminho que vem desde a época clássica ateniense até os nossos dias. Nosso propósito, no entanto, é aqui apresentar algumas de suas características atuais, com relação à crítica literária. Colocando-se em oposição a uma postura epistemológica, a hermenêutica substitui a tarefa analítico-descritiva por um trabalho de interpretação, que parte do texto e se encaminha para uma reflexão sobre a essência humana. Alicerçando-se filosoficamente, os postulados dessa proposta de compreensão existencial da obra literária estão hoje ligados, sobretudo, à conceituação de história de Wilhelm Dilthey, à ontologia [ontologia = Filosofia que trata do ser enquanto ser, isto é, ser concebido como tendo uma natureza comum que é inerente a todos e a cada um dos seres] de Martin Heidegger e à hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer. (...) Eduardo Portella esclarece, em seu Fundamento da Investigação Literária, que para além da estrutura pronta, do sistema de signos, do texto, constitui-se a literatura por uma força de criação da linguagem, energia geradora do texto, que, estando por trás dele e mantendo-se em permanente tensão com ele, faz com que seu sentido penetre no não-dito, pelo pré-texto. O texto poético seria sempre, portanto, um entretexto, uma entidade dinâmica resultante da tensão texto/prétexto. E caberia ao intérprete apreender a literatura enquanto processo de entretextualização, através de um modelo aberto e transmanente, construído com consciência de que o sentido da obra não se esgota numa perspectiva, pois que a imagem poética é, a todo o tempo, uma coisa nova, nos dirigindo para possibilidades ilimitadas. Emmanuel Carneiro Leão, em vários ensaios do seu Aprendendo a pensar, remete-nos para a necessidade de uma crítica que se exerça literariamente, para que mais se aproxime do processo de constituição da obra. (...)
A razão hermenêutica seria, portanto, conscientemente inconclusa e antiimpositiva, mantendo, muitas vezes, a pergunta como única resposta possível, deixando, tantas vezes, que o poema fale, ao invés de falar por ele, pois a imagem poética, como lembrou Otávio Paz, não pode ser explicada com outras palavras, senão pelas da própria imagem, que, enquanto imagem, já deixaram de ser simplesmente palavras. A imagem, segundo o crítico mexicano, nos convidaria sempre a recriá-la, a revivê-la: proposta que nos parece muito tem a ver com a da leitura poética.” (Conferir: LOBO, Luíza. A Crítica. In.: SAMUEL, Rogel (Org.). Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, op. cit.: 117119); “De acordo com Ricoer e Gadamer, a hermenêutica vê os textos como expressões da vida social fixadas na escrita, através de fatos psíquicos, de encadeamentos históricos. Sua interpretação consiste, então, em decifrar o sentido oculto no aparente e desdobrar os diversos graus de interpretação ali implicados. Só há interpretação quando houver ambigüidade, e é na interpretação que a pluralidade de sentidos se torna manifesta. Na realidade, a hermenêutica é a compreensão de si mediante a compreensão do outro: o máximo de interpretação se dá quando o leitor compreende a si mesmo, interpretando o texto. - A tática da interpretação aparece sempre que há ambigüidade, mas compreender não significa a repetição do conhecer. A hermenêutica postula uma superação: ela se quer uma teoria e uma arte, fazendo da leitura uma nova criação; e dela se exige uma reflexão que leve à ação.” (Conferir: SAMUEL, Rogel. Novo Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, op. cit.: 86); - A Crítica Filosófica de Gaston Bachelard: “Gaston Bachelard (1884-1962) se caracteriza pelo trabalho dedicado à pesquisa da epistemologia. Seus trabalhos sobre a imaginação revolucionaram o campo da crítica literária francesa e deram origem, durante os anos 50, aos estudos das imagens, ou à crítica temática. Bachelard trabalha com as imagens da terra, água, ar e fogo como contexto metodológico para a sua pesquisa da imaginação. Nesses quatro elementos tradicionais considerou os componentes principais de todo o universo imaginativo. Sua meta era estudar a imaginação como forma de consciência, conceito que pareceu indispensável a ele para que estudasse a criação poética” (Ibidem: 89-90); - Conceitos psicanalíticos na elucidação de textos literários do século XX (Psicocrítica): “É grande a apropriação da psicanálise pela recente teoria literária, especialmente com respeito ao trabalho de Freud e
Lacan. Em particular foi usado o método da teoria da subjetividade para colocar a questão do falar, escrever e ler em relação aos sistemas simbólicos e às representações inconscientes. Estudou-se, também, assim, a função da fantasia e do desejo no texto literário (Ibidem: 91-92); - Crítica Marxista e Neomarxista: “Nos anos 70 os intelectuais romperam ao mesmo tempo com o capitalismo e com o comunismo do regime de Stalin. Desenvolveram-se novas tradições esquerdistas e marxistas até então reprimidas, principalmente na Inglaterra, como correntes alternativas do marxismo revolucionário ligado à política de massas luxemburguista, trotskista, maoísta. Simultaneamente, os vários legados do marxismo ocidental, nascido de Lukács, Korsch e Gramsci, tornaram-se importantes, sob a influência do marxismo de Sartre, Lefèbvre, Adorno, Marcuse, Della Volpe, Colletti, Althusser e outros. (...) A crítica marxista é baseada na teoria histórica, econômica e sociológica de Karl Marx e Friedrich Engels. De acordo com o Marxismo, a consciência de uma determinada classe em um determinado momento histórico deriva do modo de produção material. O jogo de convicções, valores, atitudes e idéias, que constituem a consciência de classe, forma uma superestrutura ideológica, e esta superestrutura ideológica é amoldada e determinada pela infra-estrutura material ou base econômica. Conseqüentemente, o termo marxismo vê o produto de forças históricas e uma relação dialética entre trabalho literário e base sócio-histórica. A crítica dialética marxista focaliza as conexões causais entre conteúdo, ou forma de uma obra literária, e os fatores sociais, econômicos, de classe ou ideológicos, que amoldam e determinam aquele conteúdo ou forma. Por exemplo, escritores burgueses propagam a ideologia burguesa que busca inevitavelmente universalizar o status quo, vendo isto como natural e não como fato histórico. A noção de que há uma correspondência entre consciência de classe, ideologia do trabalho e a base sócio-histórica na qual emerge é freqüente no Marxismo. Mas Fredric Jameson mostra a influência de uma determinada matéria-prima social, não só no conteúdo, mas na forma mesma das obras. (Conferir: Ibidem, passim: 93-97); - A Estética da Recepção de Base Alemã (Diálogo com o Texto) Presente no Cenário Cultural Brasileiro, no final do século XX: “A crítica literária desenvolvida na Alemanha Ocidental durante os anos 60 e 70 inclui a Escola de Constance que se volta para a recepção de textos literários, ao contrário dos métodos que enfatizam a produção ou sua leitura. Essa escola fez sucesso na Alemanha durante uma década como ‘teoria da recepção’ ou como ‘estética da recepção’, mas não foi muito conhecida até quando os trabalhos mais
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importantes foram traduzidos, como os de Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser. Surgiu durante o movimento estudantil que pedia reformas educacionais e questionava os métodos tradicionais na Universidade Experimental de Constance, fundada em 1967. Surgiu quando uma conferência de Hans Robert Jauss (1967) foi pronunciada, sobre o que se chamou de Estética da Recepção, e era uma tentativa de superar o formalismo e a crítica marxista. Segundo Jauss, o marxismo representava uma aproximação positivista, e o formalismo tinha uma percepção estética que isolava a arte de seu contexto histórico. Por isso, ele tentava fundir as melhores qualidades do marxismo e do formalismo, propondo alterar a perspectiva pela qual nós normalmente interpretamos os textos literários. (Conferir: SAMUEL, Rogel. Novo Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, 2002: 117-118); - Os novíssimos rumos da Crítica Literária no Panorama Mundial: “Como a crítica sociológica, a crítica marxista se orienta para a realidade social que condiciona as obras de arte, como na teoria de Frankfurt e em Benjamin. A nova esquerda hoje é representada por Hobsbawm, que fez a interpretação do século XIX; Jameson, que escreveu sobre pós-modernidade; Robert Brenner, que ofereceu uma interpretação econômica do desenvolvimento capitalista desde a Segunda Guerra Mundial; e também Giovanni Arrighi, sobre estrutura temporal mais extensa. Tom Nairn e Benedict Anderson são importantes autores sobre o nacionalismo moderno. Regis Debray desenvolveu uma teoria da mídia contemporânea. Terry Eagleton desenvolveu seus estudos no campo literário. T. J. Clark nas artes visuais e David Harvey na reconstrução da geografia. Nos campos da filosofia, sociologia e economia, estariam incluídos os trabalhos de Habermas, Bordieu, Fredric Jameson, Edward Said e Perry Anderson.” (IBIDEM: 96-97); - A Crítica Literária no Brasil: Nestes anos iniciais do Terceiro Milênio, que rumo devemos tomar? (Repensar as palavras de Eduardo Portella, publicadas em 1970.) “Sem dúvida um pensamento que não se arme dialeticamente permanecerá inteiramente perdido diante de um fenômeno tão multidimensional como é o literário. Na chave da dicotomia, as categorias se opõem excluindo-se mutuamente. Somente os pensadores tricótomos pensam no eixo da contradição, admitindo um terceiro elemento como mediador dialético. E só estes possuem olhos para penetrar nas esquinas secretas dos caminhos da arte.” (Conferir: PORTELLA, Eduardo. Teoria da Comunicação Literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, op. cit.: 61-62).
“Decodificação não quer dizer necessariamente coincidência ou acordo; quer dizer apenas a ultrapassagem da incompreensão. Porque o único que se lhe pede é que esteja ancorada no porto seguro do entendimento” (Ibidem: 25). Crítica Literária Dialética: “Postul(o) uma contribuição satisfatória para o entendimento atual do literário, uma contribuição entre as duas grandes correntes críticas (a cientificista e a fenomenológica) em benefício da correta decodificação e interpretação do texto literário, para que a compreensão fique ‘ancorada no porto seguro do entendimento’ [como a queria Eduardo Portella em 1970]. Ao reivindicar uma colaboração da Semiologia com a Hermenêutica, não quero (e, aqui, quero pedir licença para parodiar Eduardo Portella) repudiar o silêncio, que se encontra palpitante no interior da Obra Literária, e reverenciar a ‘loquacidade enganadora de um analismo que, em nome da objetividade, se mostra impermeável ao subjetivismo’.* Ao contrário, proponho um labor crítico dialético, mesmo que provisório, usando dos ensinamentos de ambas as correntes, para que esse silêncio seja rompido. Reivindico uma colaboração entre as duas correntes (afirmo que esta colaboração, que muitos dizem existir, não se efetua na prática, em nossos dias), para que este ‘silêncio’ se ouça acima dos estudos esquemáticos, (estudos de origem estruturalista), e promova a compreensão dos sentidos corretos do texto literário.” (*Nota de Neuza Machado)
DIALÉTICA: - Arte do diálogo ou da discussão como força de argumentação. - Desenvolvimento de processos gerados por oposições que provisoriamente se resolvem em unidades. - De acordo com Hegel, dialética é a natureza verdadeira e única da razão e do ser que são identificados um ao outro e se definem segundo o processo racional que procede pela união incessante de contrários – tese e antítese – numa categoria superior, a síntese. - Segundo Marx, a dialética é o processo de descrição exata do real.
2.18 - Reavaliando a Atuação da Crítica Literária Sem dúvida um pensamento que não se arme dialeticamente permanecerá inteiramente perdido diante de um fenômeno tão multidimensional como é o literário. Na chave da dicotomia, as categorias se opõem excluindo-se mutuamente. Somente os pensadores tricótomos pensam no eixo da contradição, admitindo um terceiro elemento como mediador dialético. E só estes possuem olhos para penetrar nas esquinas secretas dos caminhos da arte (Ibidem: 61-62).
APRESENTAÇÃO Esta reflexão teórico-crítica tem por fim provar a possibilidade de uma colaboração da Semiologia de Segunda Geração (Estudos Analíticos da Literatura) com o desenvolvimento da Hermenêutica de um determinado texto (âmbito do Conhecimento). Não se trata de qualquer texto, como se verá, já que cada obra impõe o seu próprio método de análise e/ou interpretação. Mas, no tipo de texto que pretendo intermediar criticamente (A hora e vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa, o qual fez parte de minha Dissertação de Mestrado, em 1990, e, posteriormente, de minha Tese de Doutorado, em 1996), a Semiologia de Segunda Geração (de Roland Barthes, Umberto Eco e Anazildo Vasconcelos da Silva), certamente, oferece um corpo teórico, para a análise, e colabora com a posterior interpretação hermenêutica, possibilitando uma interação paradigmática consciente, de acordo com as exigências críticas atuais, voltadas à interdisciplinaridade. Para que esta propedêutica não se desvirtualize (já que a direciono aos alunos de graduação em Letras), começarei resenhando o livro de Emerich Coreth, Questões Fundamentais de Hermenêutica, sobre a história do problema hermenêutico. A seguir, desenvolverei alguns dos principais elementos metodológicos do movimento hermenêutico do século XIX e verei o relacionamento dialético entre Hermenêutica e Ciência, a partir de Richard Palmer e Paul Ricoer, discutindo as noções de compreensão, interpretação e o problema do método crítico. Ressalto que apoiar-me-ei nas conclusões do Professor Eduardo Portella (escritas na década de setenta, mas ainda atuais), para superar determinados impasses teóricos, já que colocarei a Semiologia de Segunda Geração (própria para análises literárias) como Ciência Auxiliar à compreensão dos sentidos. Para tal empresa, utilizarei também alguns postulados do semiólogo italiano Umberto Eco. Assim, nas páginas finais desta propedêutica, retomarei os ensinamentos de Ricoer e Eduardo Portella, esperando demonstrar então a possibilidade da Semiologia da Literatura realizar com a Hermenêutica um criador diálogo, uma contribuição criadora para o entendimento atual do fenômeno literário.
Quero esclarecer ainda que, ao postular a possibilidade de uma colaboração entre Semiologia e Hermenêutica, não é minha intenção comparar o método de uma Ciência com o de outra. Ambos (os métodos) possuem, segundo o meu ponto de vista, qualidades próprias. A experiência de contemplação da obra tem de abranger os dados visíveis e não-visíveis. Esta experiência de contemplação da obra é um conhecimento (nomenclatura hermenêutica). Não há como separar forma e conteúdo. Direi ainda, apoiada em Gadamer: o essencial na experiência estética de uma obra não é o conteúdo nem a forma, mas a matéria significada, ou seja, um mundo com a sua própria dinâmica. Não pretendo comparar dois métodos científicos, mas admitir que um (o semiológico) pode colaborar com o outro (o hermenêutico).
Hermenêutica e Semiologia: Um Problema da Crítica Literária Atual Neste início de século XXI, observa-se um fenômeno significativo no que concerne à Crítica Literária (aliás, este fenômeno já é antigo: seus primórdios se localizam nos anos oitenta): há um impasse de teorias diversificadas, várias maneiras de se penetrar no universo do texto, e isto traz, para a Ciência da Interpretação, a dúvida, quanto a direção a ser seguida, na realização do trabalho crítico. Ressalte-se o fato de que todas as teorias convivem nos meios acadêmicos brasileiros, senão em harmonia total, pelo menos respeitando-se cordialmente, evitando, assim, as divergências que existiram nos anos setenta. Nos anos sessenta, não será demais lembrar, o Estruturalismo (no que se refere à literatura, ponto de vista analítico repressor) imperou nas Universidades. Nos anos cinqüenta, os universitários que se dedicavam ao estudo da literatura estavam submetidos às diretrizes teóricas (também analíticas e repressoras) do New Criticism americano, divulgado aqui no Brasil, pelo Professor Afrânio Coutinho, com o nome de Nova Crítica. Por tais motivos, compreende-se que não há como escolher um partido teórico único, no âmbito da Literatura-Arte, se há atualmente a facilidade de se conhecer cada feição crítica e avaliar-lhe suas contribuições, em função do desvelamento e compreensão do texto. Restará ao crítico literário brasileiro hodierno, antes de fazer uma escolha consciente, observar as sugestões oferecidas pela própria obra, pelo próprio texto, relacionando razão e compreensão: A obra impõe a sua verdade e, portanto, o seu próprio método a ser utilizado. Não se pode dissociar a Crítica da Arte.
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Em conseqüência deste impasse, a maneira de como interpretar um texto literário tornou-se um problema nos meios acadêmicos (não estou referindo-me aos teóricos conceituados). O que se observa atualmente, entre os alunos de Letras, é a utilização aleatória de todas as correntes críticas. Há um cruzamento de nomenclaturas que, ao invés de esclarecer a mensagem, torna-a ilegível. Reconheço que este problema se origina no fato de o aspirante à função de Crítico Literário não possuir um conhecimento de base, já que o mesmo desconhece os postulados fundamentais de cada corrente crítica. No que se refere à Hermenêutica, por exemplo, o problema torna-se mais grave, por esta ter sua origem nos primórdios da História religiosa do homem ocidental. Fala-se muito em Hermenêutica, mas não há, nos meios acadêmicos, um conhecimento correto em relação à mesma. Desconhecem-se seus questionamentos de origem, sua ligação com os Textos Sagrados, as divergências que a marcaram no decorrer de sua história, a sua posterior incursão nos domínios da Filosofia e da Literatura. Por estas razões, farei uma breve retrospectiva da História da Hermenêutica, desde o seu advento, em que o que a preocupava era o problema da correta interpretação dos Textos Sagrados. Esta retrospectiva baseia-se em dados oferecidos por Emerich Coreth (1977), e tem por objetivo inicial reconhecer a história do problema teológico e a sua ligação com as questões hodiernas da Hermenêutica, ou seja, a questão do conhecimento ao se contemplar as obras literárias não religiosas. A seguir, por esta mesma retrospectiva, buscarei um diferente olhar crítico, o qual irá proporcionar-me a defesa de meu objetivo central: provar a possibilidade de uma colaboração consciente da Semiologia da Literatura com o desenvolvimento da Hermenêutica de um determinado texto.
Uma Retomada da História da Hermenêutica Muito antes de se pensar na Hermenêutica como a concebemos hoje, ou seja, como Ciência da Interpretação e da Observação Crítica – ciência que questiona a correta interpretação dos textos literários já a questão era problematizada pelos intérpretes (os antigos “escribas”) das mensagens contidas no Antigo Testamento. Emerich Coreth (1977), ao se referir aos escribas, situa-os como os primeiros exegetas que procuravam questionar a importância de uma correta interpretação dos Textos Sagrados. Observe-se que esses textos anunciavam o nascimento do Salvador, e os mesmos eram interpretados por sacerdotes rudes, os quais legaram à posteridade suas interpretações ambíguas. Com o advento do Novo Testamento, as
ambigüidades se desfazem, pois quem as esclarece não é outro senão o próprio Filho de Deus, o Salvador esperado. Segundo Coreth, o Novo Testamento se coloca, desde as primeiras páginas, como o único intérprete autêntico das Mensagens Sagradas. Reavaliando as palavras de Coreth por uma diretriz interpretativa, isso se deve ao aval de Jesus Cristo, ao procurar elucidar, para as multidões que o acompanhavam, todas as ambigüidades do Antigo Testamento anteriormente questionadas, algumas que foram interpretadas incorretamente, de acordo com o que nos passa o Novo Testamento. Jesus Cristo posicionou-se como o fecho de um ciclo da História dos hebreus e a estrutura basilar de uma nova etapa da História da humanidade. Se graças à sua interpretação os Textos Sagrados ficaram devidamente esclarecidos, ou se o povo acatava os ensinamentos sem formular questões, quanto à profundidade do que era recebido – haja vista as parábolas simplificadas –, o mesmo não aconteceu posteriormente. Coreth alerta para toda uma problemática da compreensão, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, envolvendo os exegetas dos Textos Sagrados, desde o século II d. C. Menciona as divergências existentes entre os padres que seguiam as orientações da Escola de Antioquia, em contraponto com os postulados da Escola Alexandrina. Situa esse momento como marco de um futuro problema hermenêutico, pois, se uma Escola procurava ressaltar o sentido histórico contido na Bíblia (Escola de Antioquia), a outra colocava em evidência a necessidade de se atingir o sentido espiritual que se evolava das páginas sagradas. Esses dois pontos de vista divergentes atestam o caráter polêmico da Bíblia (como repositório das mais diversas expressões literárias), sem, contudo, despojar-se de sua condição de reveladora da palavra de Deus. Atestam, inclusive, a dificuldade do intérprete de ater-se a uma interpretação consensual. Coreth informa ainda que Orígenes [um estudioso preocupado em unir a investigação histórico-filológica do texto a uma noção distinta dos vários sentidos que se podem destacar do mesmo] procurava ligar as duas correntes conscientemente, procurando desenvolver uma investigação cuidadosa. Prosseguindo em sua recapitulação histórica do problema teológico, ressalta, cuidadosamente, as divergências de opiniões entre São Jerônimo e Santo Ambrósio, bispo de Milão, e orientador de Santo Agostinho em sua redescoberta do Cristianismo. No que se refere a Santo Agostinho, é importante destacar seu caráter conciliador, ao procurar aliar as duas formas de interpretar a Bíblia. Isso se prende ao fato de que o mesmo vivenciou várias formas de vida contemplativa, antes de se converter definitivamente ao cristianismo. Conhecendo-se suas transformações existenciais e religiosas, não é difícil compreender o porquê dessa atitude conciliadora (também destacada
por Coreth). De origem cristã, o futuro Bispo de Hipona desenvolveu sua inteligência dentro de conceitos filosóficos e científicos distantes dos ensinamentos religiosos de sua infância. Estudou retórica, leu os professores e poetas latinos, desenvolveu estudos referentes às Ciências Humanas (foi aluno de Varrão) e, posteriormente, aderiu-se à doutrina Maniqueísta, abandonando os postulados cristãos da revelação sobrenatural da palavra de Deus, em benefício de uma orientação religiosa fundamentada apenas no conhecimento racional. Não satisfeito com esta doutrina, torna-se discípulo de Ambrósio, Bispo de Milão. Por tais razões, mesmo abandonando os conceitos da razão pura e retornando às normas do Cristianismo, o ex-estudioso das teorias de Varrão, exprofessor de gramática e retórica, ex-maniqueísta, jamais pode eliminar de sua vida o que foi aprendido e vivenciado. Restou-lhe uma atitude conciliadora: interpretar a Bíblia observando o elemento sobrenatural, sem abdicar do racional. O problema da compreensão dos Textos Sagrados continuou repercutindo nas etapas seguintes da Era Moderna: a reforma luterana em oposição à Igreja Romana, posteriormente a Contra-Reforma [numa tentativa de recuperar o anterior poder religioso, naquele momento em decadência], passando pelo pensamento Iluminista e sua visão racional da mensagem divina, até chegar a Hegel e outros pensadores. No século XIX, inaugura-se o movimento hermenêutico, propriamente dito. É nesse momento que vamos encontrar a palavra hermenêutica como sinônimo de investigação e compreensão do texto ainda religioso, visando a opor-se à pesquisa histórico-crítica, método que tem sua origem na obra polêmica de David Friedrich Strauss, A Vida de Jesus, e que procurava ressaltar, na Bíblia, a história do Antigo Oriente, preocupando-se em estudar os aspectos lingüísticos e culturais em detrimento do sentido sobrenatural contido nos Textos e revelador dos desígnios de Deus. O movimento hermenêutico opunha-se ao método histórico-crítico, mas, ao mesmo tempo, não desprezava a contribuição valiosa oferecida por essa forma de investigação crítica da Bíblia e, inclusive, destacava seu caráter esclarecedor. Não se tratava exatamente de uma oposição, mas de conciliação, postura que outros exegetas da Bíblia adotaram, no transcorrer da História Religiosa do Homem. Observando a repercussão histórica do problema teológico, pelo ponto de vista crítico de Emerich Coreth, contido no livro já citado, pude encontrar o cerne de meu questionamento sobre o problema da Crítica atual, em outras palavras, a base para o meu próprio postulado que, a partir de agora, desenvolverei, ou seja, o problema atual dos vários paradigmas analíticointerpretativos que convivem, mescladamente, no
âmbito da Ciência da Literatura. Trazendo à luz os problemas que afligiam os intérpretes da Bíblia no passado, Coreth procurou demonstrar a perenidade dos conflitos interpretativos, tanto na área das Ciências Exatas, quanto na das Ciências Humanas, inerentes à História da Humanidade. Diz ele, falando especificamente do problema hermenêutico: Em todo caso, põe-se aqui já o problema em toda a sua amplitude, evidenciando que a questão hermenêutica da atualidade não é, no fundo, nova, mas retoma um antigo problema, ainda que de um outro modo e sob novos pontos de vista (CORETH, 1977: 6).
O que marca o movimento hermenêutico do século XIX, não é seu caráter opositor e, ao mesmo tempo, conciliador, mas o fato de que, por intermédio dele, o posicionamento crítico, marcadamente religioso, desprende-se dos Textos Sagrados, alcançando os domínios da Filosofia e da Literatura. A Crítica passa a centralizar-se no problema da compreensão do texto como linguagem, questionamentos esses que levaram ao entendimento da essência do Homem e do Universo, e que estavam antes restritos ao âmbito dos estudos teológicos. Quanto à Literatura, nosso tema de reflexão crítica, a Hermenêutica passa a promover a compreensão dos textos, tornando-se conhecida como a teoria que permite compreender e, posteriormente, explicar o que foi compreendido. Compreensão não como faculdade de compreender, como se vê nos dicionários, mas como maneira de ser e relacionar-se com os seres e com o ser (RICOER, 1977: 17). Sem deixar de pertencer aos domínios da investigação teológica (o que se conhece como Hermenêutica Específica), a Hermenêutica da Filosofia e da Literatura expande-se, e passa a centralizar na linguagem do texto (seja religioso, histórico ou literário) a sua busca de compreensão da essência do Homem e de sua atuação como ser-no-mundo, passando também a possibilitar ao investigador uma maior amplitude de visão, permitindolhe o alcance dos sentidos do texto investigado. No que se refere à interpretação literária, faz-se necessário, agora, um esclarecimento. Observe-se que compreender um texto não é suficiente, necessita-se de uma operação ou transação que possibilite esclarecer e decifrar o significado da obra. Necessitase saber distinguir o que realmente quis-se anunciar; quais as mensagens contidas em um texto que se produz em uma linguagem pluri-ambígua. Impõe-se assim um método de abordagem transmutativo, uma atitude mediadora entre compreensão e explicação (posicionamento fundamental da Hermenêutica). A este método de abordagem dá-se o nome de interpretação. Como interpretar fundamenta-se em postulados científicos, diferente da compreensão como elemento do universo crítico-filosófico hermenêutico
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(fenomenológico), subentende-se que não há como fugir a um inter-relacionamento entre Hermenêutica e Ciência. Uma questão que foi observada nos anos setenta, permanece ainda insolúvel neste início de terceiro milênio, incomodando a maior parte dos profissionais da Ciência da Literatura, simpatizantes do antigo método da análise literária estruturalista. No momento em que se propõe uma nova atitude didática, uma aproximação necessária entre o professor e seus alunos, não há mais como promover o distanciamento. Se o professor for realmente um artífice de categoria, em sua disciplina de estudos literários, saberá como promover o entendimento e o diálogo receptivo.
Intercâmbio Entre Ciência e Hermenêutica: Um Diálogo Necessário Quando se retoma o posicionamento de Richard E. Palmer (1986), apresentado nos anos oitenta, recusando-se a reconhecer no método científico uma atitude válida para o esclarecimento do texto, volta-se à questão, já assinalada pelos exegetas da Bíblia, de opor-se ou aderir-se a uma conciliação entre o sentido apreendido e a forma de esclarecer o que foi decifrado. Palmer desenvolve e reconhece a necessidade de se procurar um método, ou teoria que possibilite a decifração da marca humana contida na obra literária. Método e Teoria são palavras que fazem parte do universo teórico-crítico das Ciências Exatas; decifrar não é o mesmo que compreender, portanto, não se visualiza outra saída para a Crítica Literária atual: pressupõe-se um intercâmbio entre Ciência (análise) e Hermenêutica (conhecimento), em benefício da verdadeira compreensão do texto literário. Palmer diz: É certo que os métodos de “análise científica” podem e devem ser aplicados às obras, mas ao proceder deste modo estamos a tratar as obras como objetos silenciosos e naturais. Na medida que são objetos, são redutíveis a métodos científicos de interpretação; enquanto obras, apelam para modos de compreensão mais sutis e compreensíveis (PALMER, 1986: 19).
Palmer não procura separar interpretação e compreensão, apenas não concorda que as obras sejam observadas como objetos silenciosos. É lógico que há, hoje, várias formas de interpretar e avaliar a mensagem do texto [um fenômeno da globalização], mas todas passam por pressupostos científicos, inclusive a interpretação que se faz, atualmente, por uns poucos iniciados, dentro do que se impõe como Crítica Receptiva. Como sabemos, esta diretriz crítica é exatamente a tal forma conciliadora, retirada de um pensamento tricótomo (relembrando aqui a epígrafe desta propedêutica, de autoria de Eduardo Portella), revestida com um título pomposo? Estética da Recepção?, mas que tem suas raízes na Hermenêutica e Dialética.
A Hermenêutica, como a concebemos atualmente, também é Ciência, ou por outra, é um postulado científico, porquanto passa por uma averiguação que não se pode localizar no âmbito apenas da compreensão divinatória, se reporto-me aos ensinamentos de Schleiermacher. Há de se acrescentar à intuição espontânea o esclarecimento da Verdade Científica. Nesta manifestação do intelecto, está a faculdade de percepção do Homem atual. Sem se pleitear confundir compreensão com faculdade de compreender, faz-se necessário observar o Homem e o Mundo pósmodernos, e, conseqüentemente, a obra literária, que os problematiza dentro de sua realidade. Realidade esta, não será demais lembrar, que já se encontra mascarada por opiniões ou juízos conflituosos, que longe estão do padrão comunitário dos antigos dogmas religiosos. Sem se pretender confundir compreensão com faculdade de compreender, faz-se imprescindível observar o Homem como ser-no-mundo, como ser específico de um mundo que, ao longo do século XX, foi-se deteriorando, gradativamente, fragmentando-se, e encaminhando-se para um ponto que, segundo as reflexões de Baudrillard (1986), em seu livro América, será um ponto de fuga em direção ao Nada. No que se relacione ao texto literário propriamente dito, e de acordo com os postulados hermenêuticos, concebêmo-lo como repositório da problemática social e psíquica que envolve o Homem e o Mundo. Para que haja uma interpretação consciente de um texto literário, há a necessidade de o intérprete estar preparado para captar a ambigüidade, a pluralidade de sentidos que uma obra da arte literária oferece. A obra literária é um enigma; é preciso decifrar esse enigma, trazer à luz os sentidos ocultos, os quais subjazem nas entrelinhas. Assim, para um reconhecimento crítico seguro, faz-se indispensável um conhecimento analítico que propicie, depois da análise evidente, a compreensão dessas camadas invisíveis. Por esta linha conciliadora (exigência deste momento pós-moderno), o intérprete se apropria do papel de leitor participativo, incorporando-se ao texto interpretado, pois, graças a uma prévia compreensão do que se passa no universo da linguagem literária (seja ela poética ou ficcional), passa a compreender a mensagem do outro. O texto se coloca como mediador entre a obra e o intérprete. Este só compreende e interpreta porque possui já uma compreensão anterior de sua própria atuação como ser-no-mundo, e, assim, está apto para compreender o que se encontra subentendido nas entrelinhas do texto. Compreendendo, liberta-se; interpreta-se a extensão do ato de compreender. Compreendendo o texto, o intérprete dispõe-se a observar suas próprias preconcepções do mundo, e dele mesmo, que se acham inseridas em sua consciência transmutativa. O texto é também mediador entre compreensão e interpretação. Compreendendo-o e interpretando-o
hermeneuticamente, interpreta-se a própria consciência, desvenda-se o próprio inconsciente. Compreendendo o outro, interpretando seus questionamentos, sua posição diante do Mundo e do enunciado, passase a compreender as próprias indagações e as indagações do Universo; permutam-se conhecimentos; exerce-se o ato (ou hábito) de questionar e/ou responder, ou mesmo de se buscar a resposta através da polissemia da palavra, promovedora de uma série de significações. Mas, se a compreensão do texto literário proporciona concebê-lo como repositório da problemática social e psíquica que envolve o Homem e o Mundo, é também lícito repetir que estou aqui a referir-me ao Homem e ao Mundo atuais. Estes já vivenciaram novas etapas de vida; novos conhecimentos se foram agregando aos do passado. Não é o caso de avaliar se tais conhecimentos foram benéficos ou não, o fato é que eles se materializaram, e é impossível pensar em desfazer-se deles. E eis que chego, agora, ao ponto central de meu postulado: Como conceber um método crítico satisfatório, se no universo da Crítica Literária atual há diversos encaminhamentos que propiciam o desvelamento do texto? É bom reafirmar que a questão não é nova. Desde o advento da Lingüística, e o posterior surgimento dos postulados científicos, penetrando o universo da obra literária e tentando decodificá-la unicamente por meio da análise explícita, que o problema se faz presente nos domínios da Crítica. Se nos últimos decênios do século dezenove a compreensão hermenêutica, ao se desprender dos Textos Sagrados, possibilitou uma amplitude de visão, centralizada no texto profano e na sua ambigüidade, permitiu também, gradativamente, o desenvolvimento de diferentes abordagens, todas de caráter científico. A Teoria do Conhecimento foi cedendo a vez às análises puramente científicas, fechadas e autosuficientes, e, quando já se pensava que a supremacia do posicionamento científico era um fato concreto e irreversível, ressurge a Hermenêutica (e ressurgirá sempre que houver necessidade de mudanças), desta vez provando (e eis nesta prova algo de científico) que, além do texto explícito (a linguagem literária), há outras camadas da obra literária dignas de serem observadas e compreendidas. Os antagonismos existentes entre as duas facções eram visíveis nos anos setenta, e é naquele momento que encontro, no que se relaciona especialmente à Crítica Literária no Brasil, o professor Eduardo Portella, preocupado com o cientificismo crítico, que aqui se aportara nos anos cinqüenta e sessenta, e que se
fechava em prepotentes modelos de como se interpretar os textos literários. Observe-se a sua posição defensiva a respeito da questão, a qual seria examinada no decorrer de sua teorização assentadamente hermenêutica, e que está registrada no seu livro Fundamentos da Investigação Literária: Recusamo-nos inicialmente a imaginar a crítica literária fechada em si mesma, entregue a uma estranha forma de autodevoramento. Criticar é rasgar novos horizontes de compreensão. Uma crítica enclausurada será fatalmente uma crítica cega, provinciana ou parasitária. O seu entendimento superlativo pressupõe a consciência de sua interdisciplinaridade (PORTELLA, 1981: 22).
Penso também, resguardada por Eduardo Portella, que “criticar é rasgar novos horizontes de compreensão”; reconheço, como profissional de Letras, que não se pode prescindir, nos estudos literários, da contribuição da Crítica Hermenêutica, propulsora do alcance das camadas mais profundas da obra literária e diretriz consciente da compreensão de suas mensagens unívocas, que se encontram camufladas nas entrelinhas. Mas, assim como Eduardo Portella já observava, na década de setenta, a “progressiva pressão dos modelos científicos no âmbito do fazer ou do saber literário”, e se preocupava em desenvolver uma espécie de reciclagem terminológica, visando se posicionar hermeneuticamente, abolindo de suas teorizações qualquer contato epistemológico, assim, também, encontro-me agora, nesta propedêutica e em meu próprio campo de trabalho. Usando outras palavras, tenho consciência de que a questão permanece, aqui no Brasil (não estou a referir-me aos posicionamentos americanos e europeus), apesar da afirmação de uns poucos teóricos, os quais divulgam que a tensão entre as duas correntes inexiste. Para tal comprovação, bastará ao crítico tricótomo fazer uma avaliação do que ocorre, em termos de ensino da Literatura, nas diversas Universidades do país. Atualmente, em vez da “pressão”, o que existe são trilhas díspares, abertas a todos incondicionalmente, e que levam o analista desavisado e/ou o pseudointérprete da obra literária a desenvolver uma crítica aleatória, misturando os conceitos e as terminologias dos diversos tipos de crítica literária. É lícito lembrar que estes diversos paradigmas são importantes, mas deveriam ser teoricamente bem encaminhados. Ainda, apoiando-me no pensamento do professor Eduardo Portella, continuo repetindo a sua assertiva: “criticar é rasgar novos horizontes de compreensão”. Penso que todos esses encaminhamentos críticos são válidos, desde que se saiba situá-los corretamente. Penso no texto como mediador de compreensão e somente ele dirá qual a forma de desenvolvimento crítico a ser seguida. Cada texto impõe a própria Verdade, e não é lícito que o crítico se afaste desta Verdade compreendida.
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Se hoje, em nossos meios intelectuais, não há mais a “pressão dos modelos científicos no âmbito do fazer ou do saber literário”, como muitos afirmam, infere-se que estas linhas críticas díspares reverteram-se em um novo problema. Urge reordenar o desordenado por meio de uma conciliação crítica satisfatória. A Semiologia de Segunda Geração, proposta por Umberto Eco nos anos oitenta, continua válida, uma vez que, pressionada pelas exigências críticas da Fenomenologia, a mesma reconheceu a sua validade apenas para os estudos analíticos preliminares, lineares, aceitando as posteriores incursões do analista-intérprete nas camadas invisíveis da obra. Esta aceitação deveu-se unicamente aos plurissignificativos textos (de poesia e prosa) dos escritores do século XX, os quais naturalmente se obrigaram a interpretar criativamente a sua desordenada realidade. Assim, a Semiologia de Segunda Geração (anos oitenta), de Umberto Eco, de Roland Barthes e outros, reivindicando somente a decodificação do texto literário, por meio de esquemas objetivos, e certa ao aceitar que se desenvolva posteriormente qualquer tipo de interpretação, desde que se respeite seus postulados básicos, preliminares, limitados apenas ao texto, como camada explícita da obra literária, aliada conciliadoramente à Hermenêutica, ou qualquer outra linha crítica socio-fenomenológica, parece-me a solução ideal, pelo menos momentaneamente (não se deve perder de vista o fato de que a Crítica Literária deverá, forçosamente, adaptar-se aos valores estéticos das épocas vindouras). Presa ao meu momento histórico-estético, penso em uma conciliação entre análise e interpretação. Mais precisamente, como base analítica, só vejo a Semiologia de Segunda Geração como colaboradora de uma interpretação extra-texto. Aos Estudos Semiológicos de Segunda Geração, conhecidos como Crítica Semiológica, não importam se a posterior interpretação (do que foi decodificado por meio de esquemas) é semi-hermenêutica (termo de minha autoria, pois a crítica autenticamente hermenêutica não se permite misturas), psicanalítica ou sociológica. Importam-lhes que a interpretação seja pertinente e não se distancie em demasia do universo pesquisado, distorcendo a mensagem explícita e/ou unívoca do texto literário. É bem verdade que a Semiologia, como suporte analítico, não possibilita a compreensão do sentido que se oculta ali, ao desenvolver seus estudos esquemáticos, mas não impede que se observe a posteriori as outras camadas. Atualmente, os já renovados semiólogos da literatura têm consciência de que a linguagem do texto-arte é pluri-ambígua, permitindo diversos pontos de vista interpretativos. O problema se atém somente ao fato de que não há um consenso pertinente, que esclareça a desordenação crítica atual, observada no entrelaçamento aleatório das diversas e confusas nomenclaturas.
A partir de agora, entro no núcleo temático deste empreendimento: superar o impasse teórico-crítico, no âmbito específico da Crítica Literária, entre análise (cientificismo) e interpretação (fenomenologia). A Semiologia de Segunda Geração, tal como a entendo e pratico, não é uma teoria reducionista, não reduz a obra literária a um mero objeto de análise sem vida. Há, realmente, aqueles semiólogos que assim procedem. Eu defendo, aqui, as idéias de Roland Barthes e Umberto Eco, provedoras de uma Semiologia (para o texto literário) aberta, uma Semiologia que seja, e não mais que isso, um ponto de partida para a posterior interpretação hermenêutica. Esta Semiologia, do tipo praticada pelos semiólogos acima citados, visa a decodificar os signos e sinais contidos no texto, nas mensagens, nos relatos, mas passa adiante, ultrapassando o sistema de signos e chegando, mais precisamente com Barthes, quase ao nível do texto literário propriamente dito. Umberto Eco, um dos baluartes da “arte” de como desenvolver uma leitura semiológica do texto literário, na introdução de seu livro Leitura do Texto Literário, coloca em evidência a necessidade de uma cooperação interpretativa nos textos literários, não sem antes assinalar o fato de que esta cooperação interpretativa é, realmente, um problema a ser avaliado. Como uma obra de arte poderia, por um lado, postular uma livre intervenção interpretativa por parte dos próprios destinatários e, por outro, exibir características estruturais que estimulam e ao mesmo tempo regulam a ordem das suas interpretações? (ECO, 1983: 7).
Como exemplos de seu questionamento, Umberto Eco, referindo-se a um estudo de Jakobson, sobre “Les chates”, de Baudelaire, procura demonstrar, em benefício da compreensão, “a função ativa desempenhada pelo leitor na estratégia poética do soneto” (Ibidem: 09). Quando publicou o seu livro Obra Aberta, Eco já fora criticado por Lévi-Strauss, que não concordava com a sua concepção de que a obra é aberta à interpretação do leitor. Para Lévi-Strauss, a obra é fechada, dotada de propriedades precisas que só a análise deve especificar. Reportando-se à análise feita por Jakobson, Umberto Eco se defende e demonstra que o próprio Jakobson já previra a cooperação do leitor (talvez inconscientemente), ao desenvolver categorias, observadas através de um ponto de vista estruturalista, acerca das “funções da linguagem” Tais categorias falavam de “emissor, destinatário e contexto”, como “indispensáveis ao tratamento do problema da comunicação, mesmo da comunicação estética” (Ibidem, 1974: 08). Umberto Eco assinala, ainda, que um texto como “Les chats” reivindica a cooperação
do leitor, assim como deseja também que este ensaie uma série de opções interpretativas, e defende a sua tese de que é possível uma abertura interpretativa do texto, mesmo sendo adepto dos postulados semiológicos. Postular a cooperação do leitor não significa contaminar a análise estrutural com elementos extratextuais. O leitor, como princípio ativo da interpretação, faz parte do quadro generativo do próprio texto. “Se até mesmo os reenvios anafóricos postulam cooperação por parte do leitor, então nenhum texto escapa a esta regra” (ECO, op. cit.: 9). “Se antes a intervenção interpretativa era vista com desdém pelas normas estruturalistas (portanto, científicas), e totalmente eliminada em proveito de um estudo objetivo e metodológico, agora a mesma passou a ser respeitada, mas ainda há opositores, oriundos das antigas exigências estruturalistas, que se recusam a uma necessária reciclagem crítica. Então, se a questão permanece sublinearmente (interagindo nas diversas Universidades do país), porque não buscar a conciliação, por meio de um renovado ponto de vista crítico, aceito por todos, e que seja devidamente registrado nos meios intelectuais. O semiólogo Umberto Eco, com seus questionamentos dos anos oitenta (quase à moda hermenêutica), permitiu uma abertura, permitiu conciliar pontos de vista divergentes em prol de uma consciente compreensão do texto. Procuro articular as semióticas textuais com a semântica dos termos, limitando o objeto do meu interesse aos processos de cooperação interpretativa” (Ibidem: 11). Logo, para Umberto Eco, o “sentido” dos significados é tão importante quanto o desenvolvimento de uma articulação semiológica com os textos literários. E, para ele, não é lícito “isolar estruturas formais”, ou seja, desenvolver “análise de aspectos significantes” sem acatar, de antemão, uma interpretação, um preenchimento dos espaços das entrelinhas (espaços estes que jamais poderão ser tachados de vazios, quando, ao contrário, são plenos de significações), os quais só poderão ser revelados por meio da colaboração do leitor. Percebe-se que Umberto Eco não é avesso a uma interpretação hermenêutica, mesmo que, por motivos óbvios, não assinale em seu trabalho esta provável concordância. A Ciência é um fato palpável em nossos dias. Prepotente ou não, ela faz-se presente em nosso cotidiano e, como sempre se observou, não se eliminam da História do Homem os conhecimentos que foram revelados e que vão sendo sucessivamente revelados.
Assim, a Hermenêutica atual se vê em face de uma questão, qual seja a de usar uma metodologia, sem se submeter às imposições da Ciência. O problema foi detectado por Eduardo Portella, no início da década de setenta, passou pelos anos oitenta e noventa, e, segundo minhas observações acadêmicas, continua insolúvel, neste início de Terceiro Milênio. Como forma de revisão do impasse gerado nos anos setenta, recupero, aqui, o posicionamento de Eduardo Portella, delineando a sua concepção de expressão crítica, e defendendo uma disposição acentuadamente hermenêutica. O empreendimento metodológico que levamos a efeito, embora obediente a determinados padrões de rigor que são eminentemente científicos, em nenhum instante quis comprometer a natureza peculiar do fenômeno literário (PORTELLA, op. cit.:22).
Como se observa, não estou extrapassando limites, colocando o termo dentro da jurisdição científica. Muito menos coloco-me como adepta inconteste dos postulados da crítica de base científica, quando reconheço a priori a importância da Hermenêutica, para que se desenvolva uma compreensão autêntica do sentido do texto. Apenas admito uma cooperação semiológica, repito, de Segunda Geração, uma vez que, nestes meus anos de magistério, ainda não reconheci novos segmentos da Semiologia Literária (é bem possível que, no âmbito da Lingüística, tal fato tenha acontecido). Admito a cooperação semiológica porque, não se pode negar, a Semiologia, aquela que lida especificamente com a forma literária, permite que se observe o texto translucidamente, promovendo a correta compreensão da mensagem implícita nele. Repetirei mais uma vez que sou partidária de uma saudável conciliação entre ciência e fenomenologia. A ciência explica e a fenomenologia esclarece (a postulação de uma episteme, como base de estudos críticos, será sempre necessária ao estudioso da literatura). Como já observei antes, pela ótica de Paul Ricoer, ao adepto da Hermenêutica atual se coloca a alternativa entre compreender e explicar a mensagem, e esta alternativa só se realiza por intermédio da interpretação. É ainda pelo ponto de vista de Ricoer que continuo a refletir esta questão tão antiga em nossos meios e, ao mesmo tempo, tão atual. Vejo a história recente da hermenêutica dominada por duas preocupações. A primeira tende a ampliar progressivamente a visada da hermenêutica, de tal modo que todas as hermenêuticas regionais sejam incluídas numa hermenêutica geral. Mas esse movimento de desregionalização não pode ser levado a bom termo sem que, ao mesmo tempo, as preocupações propriamente epistemológicas da hermenêutica, ou seja, seu esforço para constituir-se em saber de reputação científica, estejam subordinadas a preocupações ontológicas segundo as quais
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compreender deixa de aparecer como um simples modo de conhecer para tornar-se uma maneira de ser e de relacionarse com os seres e com o ser. O movimento de desregionalização se faz acompanhar, pois, de um movimento de radicalização, pelo qual a hermenêutica se torna, não somente geral, mas fundamental (RICOER, 1977:18).
Por conseguinte, num primeiro posicionamento, a Hermenêutica preocupa-se mais com a linguagem, mais especificamente, no dizer de Ricoer, com a linguagem escrita. Isso acontece porque a linguagem escrita reflete uma característica peculiar da linguagem humana (a polissemia), quando se observa o significado das palavras fora de seu contexto expressivo. Por meio desta constatação, passa-se para um segundo posicionamento, no qual se exige sensibilidade e compreensão, porque, ainda segundo Ricoer, (...) o manejo dos contextos (...) põe em jogo uma atividade de discernimento que se exerce numa permuta concreta de mensagens entre os interlocutores, tendo por modelo o jogo da questão e da resposta. Esta atividade de discernimento é, propriamente, a interpretação: consiste em reconhecer qual a mensagem unívoca que o locutor construiu apoiado na base polissêmica do léxico comum. Produzir um discurso relativamente unívoco com palavras polissêmicas, identificar essa intenção de univocidade na recepção da mensagem, eis o primeiro e o mais elementar trabalho da interpretação. É no interior desse círculo bastante amplo de mensagens trocadas que a escrita demarca um domínio limitado, chamado por W. Dilthey (...) de expressões da vida fixadas na escrita. São elas que exigem um trabalho específico de interpretação, por razões (...) que se devem justamente à efetuação do discurso como texto. Digamos, provisoriamente, que, com a escrita, não se preenchem mais as condições da interpretação direta mediante o jogo da questão e da resposta, por conseguinte, através do diálogo. São necessárias, então, técnicas específicas para se elevar ao nível do discurso a cadeia dos sinais escritos e discernir a mensagem através das codificações superpostas, próprias à efetuação do discurso como texto (Ibidem:19).
Ricoer já postulava, nos anos setenta, como se vê, uma Hermenêutica que se baseasse em pressupostos científicos. O termo discernir, por exemplo, distancia-se em muito dos postulados hermenêuticos anteriores, os quais pregavam apenas uma compreensão para uma posterior explicação, à moda dos exegetas da Bíblia. Discernir remete-me aos postulados semiológicos, os quais indicam a forma exata de como distinguir, diferenciar, separar, apartar, identificar, palavras-chave que conduzem à decodificação (termo também usado por Ricoer, nesta longa citação que destacamos acima), e que, de acordo com a nomenclatura semiológica, servem para destacar os referentes, os sememas, os semas, as isotopias? núcleos que compõem o todo do texto?; palavras-chave que permitem discernir a verdadeira mensagem do texto-arte, evitando que se desenvolva uma crítica distanciada do seu sentido exato, e que poderá ser destacado na interpretação.
Foi Schleiermacher o primeiro a se conscientizar da necessidade de uma reavaliação dos pressupostos hermenêuticos. Antes dele, as questões se localizavam nas duas formas, já assinaladas no início de minha considerações, de como se interpretar os Textos Sagrados, e numa análise filológica dos textos grecoromanos. Portanto, foi a partir de Schleiermacher que a “arte de compreender” desenvolveu-se até chegar ao ponto em que se encontra agora. É de meu particular interesse lembrar que a Semiologia desenvolve uma técnica objetiva, cerceando, num primeiro momento, por intermédio de estudos esquemáticos, a compreensão espontânea do intérprete, mas, repito, depois dos estudos semiológicos, o texto se ilumina, permitindo que se observe o seu próprio reverso. Depois da análise, o intérprete passa a observar o que se esconde nas entrelinhas do literário. Retomo, agora, as reflexões de Eduardo Portella (1970: 22), para, novamente, concordar com a sua assertiva de que “criticar é rasgar novos horizontes”. Se não há como “pensar a literariedade sem ser em tensão (ou, direi por minha vez, em colaboração) com a cientificidade, porque não submetermo-nos a um encontro que se efetive para além da recusa passional ou da submissão ingênua: seja um diálogo criador”. Ainda em relação ao termo decodificação, de largo uso na crítica de base cientificista, Eduardo Portella esclarece: Decodificação não quer dizer necessariamente coincidência ou acordo; quer dizer apenas a ultrapassagem da incompreensão. Porque o único que se lhe pede é que esteja ancorada no porto seguro do entendimento (Ibidem: 25).
Não foi outra coisa o que propus aqui. Postulei uma contribuição satisfatória para o entendimento atual do literário, uma contribuição entre duas grandes correntes críticas (a cientificista e a fenomenológica) em benefício da correta decodificação do texto literário, para que a compreensão fique “ancorada no porto seguro do entendimento”. Ao reivindicar uma colaboração da Semiologia com a Hermenêutica, não quero (e, aqui, quero pedir licença para parodiar Eduardo Portella) repudiar o silêncio, que se encontra palpitante no interior da Obra Literária, e reverenciar a “loquacidade enganadora de um analismo que, em nome da objetividade, se mostra impermeável ao subjetivismo”. Ao contrário, proponho um labor crítico dialético, usando dos ensinamentos de ambas as correntes, para que esse silêncio seja rompido. Reivindico uma colaboração entre as duas correntes (afirmo que esta colaboração, que muitos dizem existir, não se efetua na prática, em nossos dias), para que este “silêncio” se ouça acima dos estudos esquemáticos, ou seja, estudos de origem
estruturalista, e promova a compreensão dos sentidos corretos do texto literário. (Texto registrado de Neuza Machado. Este texto pertence aos Apontamentos de Teoria Literária
e Crítica Literária, um livro que está sendo elaborado pela autora e que será publicado em breve por sua editora particular, NMachado, editora da autora, registrada no ISBN – Rio de Janeiro)
2.19 - Literatura Comparada: Sob o Olhar CríticoComparativo de Marius François Guiard Conferir: (GUYARD, Marius François. A Literatura Comparada. Tradução de Mary Amazonas Leite de Barros. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1956, passim: 7-100).
Prefácio de Jean-Marie Carré A Literatura Comparada é um ramo da história literária: é o estudo das relações espirituais entre as nações, relações de fato que existiram entre Byron e Púchin, Goëthe e Carlyle, Walter Scott e Vigni, entre as obras, as inspirações, até as vidas de escritores pertencentes a várias literaturas (pp. 7-8). Ela não considera essencialmente as obras no seu valor original, mas, dedica-se principalmente às transformações que cada nação, cada autor impõe a seus empréstimos. Quem diz influência diz muitas vezes interpretação, reação, resistência, combate. Nada há de mais original, escreve Paul Valéry, nada de mais pessoal do que se alimentar dos outros. É preciso, porém, digeri-los. O leão é feito de cordeiro assimilado. Aliás, talvez, os estudos de influência tenham exercido atração exagerada. Eles são difíceis de ser dirigidos e, freqüentemente, enganadores. Expomonos muitas vezes a querer pesar imponderáveis. É mais segura a história do êxito das obras, da aceitação de um escritor, da sorte de uma grande figura, da interpretação recíproca dos povos, das viagens e das ilusões. Como se vêem mutuamente ingleses e franceses, franceses e alemães, etc. Enfim, a Literatura Comparada não é Literatura Geral. Pode redundar nela: para alguns deve-o. Todavia, esses grandes paralelismos (e sincronismos também), tais como o humanismo, o classicismo, o romantismo, o realismo, o simbolismo, correm o risco de serem muito esquemáticos, muito extensos no espaço e no tempo, de cair na abstração, no arbitrário ou na nomenclatura. Se a Literatura Comparada pode prepará-los, não pode, entretanto, esperar grandes sínteses. O movimento prova-se quando se anda. O necessário é não avançar em ordem dispersa, é disciplinar nossa marcha (p.8).
Literatura Comparada Marius François Guyard INTRODUÇÃO (p. 9) Finalidade: Expor os métodos e, principalmente, os resultados de uma disciplina ainda pouco conhecida do público erudito em geral. Desse modo, sem delongar em estabelecer a legitimidade da Literatura Comparada, (...) delimitá-la, tanto no aspecto nacional como no “mundial”, para chegar a uma definição tão simples e fiel quanto possível. No aspecto nacional: justapor e comparar duas ou até três obras pertencentes a literaturas diferentes não basta para proceder como comparatista. O inevitável paralelo, de 1820 a 1830, entre Shakespeare e Racine, pertence à Crítica ou à Eloqüência. Pesquisar o que o dramaturgo inglês conheceu sobre Montaigne e o que dele transportou para seus dramas, é Literatura Comparada. Bem se vê: a Literatura Comparada não é comparação. Esta é apenas um dos métodos de uma ciência mal denominada, que mais exatamente se definiria: HISTÓRIA DAS RELAÇÕES LITERÁRIAS INTERNACIONAIS. RELAÇÕES: a palavra marca um limite no aspecto “mundial”, que estudaria “os fatos comuns a várias literaturas” (Cf.: P. Van Tieghem), haja entre elas dependência ou apenas coincidência”. // Onde não mais existe “relação”, seja de um homem com um texto, de uma obra com um público, de um país com um viajante, termina o domínio da Literatura Comparada e começa o da pura história das idéias, quando não da retórica” (p.10). RELAÇÃO = TRANSMISSÃO
Capítulo 1: Origens e História A Literatura Comparada surgiu, nos seus primórdios, como uma tomada de consciência do cosmopolitismo literário, unida ao desejo de estudá-la historicamente. A Idade Média Ocidental, unificada pela fé cristã e pelo latim, é cosmopolita; um mesmo humanismo une os escritores do Renascimento; essas três primeiras
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épocas cosmopolitas são, portanto, inegavelmente, idades de unidade lingüística ou, pelo menos, reconhecem a predominância de uma língua compreendida e amada em toda a parte. Com o Romantismo, pela primeira vez, a afirmação das originalidades nacionais coincide com a intensidade das relações entre as várias literaturas” (p.11, final). SOMENTE NO FINAL DO SÉCULO XIX NASCE A LITERATURA COMPARADA, COMO DISCIPLINA AUTÔNOMA E ORGANIZADA “O livro teórico de um inglês, M. H. Posnett, Comparative Literature (1886), marca a inauguração oficial das pesquisas comparatistas. No mesmo ano, Edouard Rod começa em Genebra seus cursos de História Comparada das Literaturas. Mais um ano e Max Koch publica, na Alemanha, a sua Revue de Littérature Comparée (1887). A tomada de consciência do cosmopolitismo pelo romantismo une-se à preocupação de utilizar o método histórico e comparativo que, em outros domínios – lingüística, direito, mitologia – provara a sua fecundidade. Nasceu a Literatura Comparada. (...) Em 1895, Joseph Texte sustenta, a respeito de JeanJacques Rousseau et les origines du cosmopolitisme littéraire (Jean-Jacques Rousseau e as origens do cosmopolitismo literário), uma tese que é na França a primeira grande obra do comparatismo científico. De 1897 a 1904 sucedem-se as diversas edições de Betz e Balldensperger; a Segunda, com seus seis mil títulos, demonstra suficientemente o grau de progresso da Literatura Comparada em 1904. Daqui em diante, Ferdinand Baldensperger publicará, durante meio século, uma série de estudos comparatistas, que teremos mais de uma vez ocasião de citar. Com Paul Hazard funda, em 1921, a Revue de Littérature Comparée francesa (Revista de Literatura Comparada) e dirige a coleção que aí está radicada. A Literatura Comparada teve realmente, no século XX, seu centro na França. Seu brilhante início na Grã-Bretanha e Além-Reno não teve futuro. A Itália, em compensação, com Benedetto Croce, Farinelli, Mornigliano, ocupou um lugar mais importante. Hoje (década de 50), na França, esta disciplina é ensinada na Sorbonne e em várias universidades da província (p.13).
1. O equipamento do comparatista a) Primeiramente, ele é ou deseja ser historiador: Historiador das Literaturas // O comparatista deve possuir uma cultura histórica suficiente para colocar no seu contexto total os fatos históricos que examina. Por exemplo: conhecer a história da Espanha e de Portugal à época dos autores examinados. b) O comparatista, porém, é o Historiador das Relações Literárias e deve, pois, na medida do possível, conhecer as literaturas de diversos países (necessidade evidente). c) Deve saber onde encontrar as primeiras informações, como organizar a bibliografia sobre um assunto. 2. O campo da Literatura Comparada Sigamos agora o comparatista no caminho que escolheu: dessa maneira, objeto e método se esclarecerão mutuamente. a) Os agentes do cosmopolitismo: Em todas as épocas, livros e homens contribuem para o conhecimento das letras e dos países estrangeiros. A Literatura Comparada encontra neles um primeiro objeto de estudo. 1 o) Os livros: A Literatura Comparada pode primeiramente certificar-se do exato conhecimento que um autor, uma classe ou uma época tinham a respeito de sua língua e de uma língua estrangeira. Essa pesquisa oferece um evidente interesse literário: entusiasmamonos freqüentemente com um romance traduzido, mas, só o avaliamos realmente lendo-o no original. - observar o problema da tradução; - observar as obras críticas (fontes de informação); - inventariar os livros, os artigos; - analisá-los, apreciar-lhes o valor, medir-lhes as influências. 2o) Os homens - Procurar conhecer o que o autor conhecia da língua, do país e dos homens. AUTOR: intérprete de seu país junto a outro;
Capítulo 2: Objeto e Método
AUTOR: intérprete de uma cultura estrangeira junto à sua pátria.
A Literatura Comparada é a História das Relações Literárias Internacionais. O comparatista limita-se às fronteiras, lingüísticas ou nacionais, e acompanha as trocas de temas, idéias, livros ou sentimentos entre duas ou várias literaturas. Seu método de trabalho deverá adaptar-se à diversidade de suas pesquisas” (p.15).
Métodos do comparatista: - ser um pouco biógrafo; - avaliar a fidelidade de um tradutor; - avaliar a inteligência de um crítico; - avaliar a veracidade de um viajante; - possuir conhecimento da história da literatura que está sendo avaliada.
b) O destino dos gêneros · GÊNEROS (pela ótica da Literatura Comparada, relacionada ainda com as normas do RealismoNaturalismo): nascem, crescem e morrem, às vezes, sem razão aparente.
Tratando-se de uma moda ou de uma influência sofrida, que proveito tirou da necessidade em que estava colocado? Foi esmagado por uma forma tirânica? Explorou-lhe todos os recursos? // Estudar o destino de um gênero exige, pois, uma análise rigorosa, um método histórico muito severo, uma verdadeira penetração psicológica (psicologia comparada).
· A História é feita à custa de muitas coisas mortas. c) O destino dos temas · Na falta de gêneros, não empregam os romancistas certos processos, não seguem modas? Simultaneísmo, monólogo interior, simbólica dos sonhos, são outras tantas fórmulas cujas origens estrangeiras o futuro comparatista poderá pesquisar. A noção de gênero, outrora tão importante, apaga-se diante da de técnica. O romancista, poeta ou dramaturgo, o escritor, doravante, preocupa-se menos em ser fiel às convenções de uma forma bem definida, do que adotar certa posição diante dos acontecimentos. Seja essa posição a da duração ou da psicanálise, é necessário, para mantê-la, submeter-se a certas regras, e descobrimos que o problema dos gêneros está transposto, mas não abolido (p.22). · O interesse das pesquisas sobre o destino dos gêneros é, portanto, histórico, mas também atual. Tais investigações supõem preenchidas duas condições: um gênero bem definido e um público nitidamente delimitado no tempo e no espaço. MÉTODO: O método consistirá em: 1o) Definir o Gênero (Pela ótica da Literatura Comparada). Se se trata de uma moda muito vaga, até mesmo de um estilo, a pesquisa está exposta a perderse no deserto. Como estudar rigorosamente uma influência de estilo, quando, por definição, trata-se de textos estrangeiros, o mais das vezes conhecidos em traduções? (p.22). 2o) Fazer a prova do EMPRÉSTIMO. O empréstimo pode ser direto ou indireto. *Empréstimo direto: quando Victor Hugo delibera transportar para a cena francesa o drama shakespeareano. *Empréstimo indireto: quando os seguidores de Victor Hugo retomam a fórmula. Quanto mais nos distanciamos do primeiro imitador, tanto menos é reconhecível a imitação, acabando por haver muito de Victor Hugo e nada de Shakespeare em algum dramaturgo romântico sem importância. 3o) Apreciar a ação recíproca do gênero e do autor. Se se trata de uma escolha livre, por que a fez o autor? Que enriquecimento ou limitações encontrou nela?
*Todas as grandes literaturas ocidentais têm o seu Fausto, o seu Dom Juan. De onde provêm esses tipos, que são encontrados em toda parte, esses mitos cuja significação é discutida em cada época, pelos mais diferentes autores? Neste caso, a direção da pesquisa é imprimida pelo assunto e não pela forma. *Estudar Fausto nos escritores alemães e franceses significa seguir, de Goëthe a Paul Valéry, um tema essencialmente literário, capaz de ajudar a valorizar ou descobrir traços característicos de psicologia individual ou nacional. d) O destino dos autores 1. Ponto de partida // A obra de um escritor ou apenas uma de suas obras; 2. Público // O público poderá ser mais ou menos extenso; // um país; // um grupo; // um escritor. Teremos, dessa maneira, estudos de princípios idênticos, mas de extensão e alcance muito diversos. 3. Distinguir cuidadosamente entre: DIFUSÃO, IMITAÇÃO, ÊXITO, INFLUÊNCIA. - Um best-seller é um livro de êxito, mas sua influência literária pode ser nula. - A poesia de Mallarmé teve uma difusão muito restrita, inspirando, não obstante, inúmeros poetas estrangeiros. Estudar a difusão, as imitações, o êxito de uma obra é trabalho que requer paciência e método; descobrir uma influência é muito mais delicado. *ESPÉCIES DE INFLUÊNCIA: - Pessoal. (Por exemplo: o culto das obras de Guimarães Rosa durante sua vida e postumamente); - Técnica. (Por exemplo: o prestígio do drama shakespeareano junto aos românticos franceses); - Intelectual. (Por exemplo: a difusão do espírito voltaireano nas estéticas literárias subseqüentes); - Influência referente aos TEMAS ou aos QUADROS. (Por exemplo: o empréstimo de assuntos do teatro
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espanhol por parte dos dramaturgos do século XVII; a moda das paisagens ossiânicas na época préromântica). 4o) Os métodos deverão adaptar-se a pesquisas igualmente variadas. - Conhecimento profundo da obra e do homem cujo destino se estuda; - Conhecimento do público; - Inventário escrupuloso dos livros, jornais e revistas; - Atenção constante à cronologia; - Prudente distinção entre influência e êxito e entre as diferentes espécies de influência quando da exposição das conclusões.
1o) Por uma literatura estrangeira (Por exemplo: Como os argentinos vêem os brasileiros? Que traço se lhes atribuem? E vice-versa?) // A Literatura Comparada pode ajudar dois países a operar uma espécie de psicanálise nacional. Conhecendo melhor a origem de seus mútuos preconceitos, cada qual se conhecerá melhor e será mais indulgente com o outro, que nutriu prevenções análogas às suas (p.29). 2o) Por um autor estrangeiro. A interpretação de um país estrangeiro pelo autor: *Mais do que descobrir em sua obra as influências sofridas, mais do que observar o que um autor deve a um outro estrangeiro, (o comparatista deverá) olhar: - como ele descobriu o país? - como ele aprendeu a língua?
e) Fontes - como travou amizades? Por uma dialética inversa, pode-se considerar um escritor não mais como emissor, mas como recebedor de influência e descobrir suas fontes estrangeiras. ATENÇÃO: Toca-se aqui no mistério da CRIAÇÃO. O empréstimo nem sempre poderá ser visto como sinal de falta de criatividade do escritor. Movimento de idéias - Idéias ou correntes de sensibilidade. O jogo das influências torna-se muito difícil de acompanhar e é através de vários países ou várias literaturas que o comparatista deve seguir o movimento que pretende estudar. - Não confundir coincidência e influência. A coincidência pode ser instrutiva e acrescentar à história de cada literatura um sentido do relativo que lhe falta quando ela se isola. f) Interpretação de um país (p. 28) - Cada povo atribui aos outros caracteres mais ou menos duradouros, cuja veracidade cede, muitas vezes, à lenda. Por exemplo: Um cançonetista desejoso de rimar a qualquer preço pode dar origem a uma reputação. Todos na França sabem que “les portugais / sont des gens gais” (os portugueses são pessoas alegres – trocadilho francês). Há, amiúde, causas mais profundas: um francês não tem a mesma predisposição que um alemão para gostar e compreender os mesmos traços do caráter inglês. Na elaboração destes tipos nacionais, a literatura desempenha um papel decisivo (por exemplo: opiniões de determinados autores sobre determinados países). Estudar os nascimento e desenvolvimento dessas interpretações de um país constitui uma das tarefas da Literatura Comparada.
*Depois, quando voltou a seu país: - que aspectos do outro país deu a conhecer e por que esses e não outros? *Se por acaso falar em influências, fazê-lo de forma positiva: - realçar o caráter da obra; - levar em conta a cronologia; - o êxito da obra e do autor; - as interpretações particulares. ATENÇÃO: Se uma obra, de uma dada época, se reflete numa obra bem posterior, as influências são positivas. Aquelas não retiram da nova obra seu caráter ímpar. Assunto principal da literatura comparada: Semelhanças e diferenças entre dois textos literários.
Capítulo 4: Relações de Contato Depois de haver examinado as possibilidades e as limitações teóricas da Literatura Comparada em geral, é preciso estudar a extensão de seu campo de investigação, os enfoques permitidos e os problemas enfrentados. Para por em ordem os materiais de que dispõe o comparatismo, foi proposto um método de classificação que não parece completamente satisfatório. Segundo Van Tieghen, a totalidade dos
problemas abarcados pela disciplina comparatista se pode classificar tendo em conta a posição do autor ou de sua obra, em relação com o processo de transmissão que forma o objeto do estudo.
Se se tomam em consideração as possibilidades que se oferecem à comparação literária, se poderá estabelecer que esta (a comparação literária) conhece e estuda três classes de relações (p. 75).
Segundo Van Tieghem:
RELAÇÕES DE CONTATO - Contato literário individual;
· Estudar a extensão de seu campo de investigação; · Estudar os enfoques permitidos; · Estudar os problemas enfrentados.
RELAÇÕES DE INTERFERÊNCIA - Interpenetração múltipla de idéias ou de correntes;
TRANSMISSÃO - RELAÇÃO.
RELAÇÕES DE CIRCULAÇÃO - Presença de um tema que circula ao longo das épocas ou das literaturas.
TRANSMISSÃO - Meio de influenciar.
RELAÇÕES DE CONTATO
TRANSMISSÃO - O autor pode servir de emissor (se é ele quem serve de modelo ou de fonte).
Supõe a presença de uma espécie de equação, cujos termos de comparação têm por condição a de pertencer a duas literaturas nacionais: de modo que se pode falar, neste caso, de literatura pluri-nacional ou, se se prefere, de fontes e de influências.
EMISSOR è É aquele que serve de modelo ou fonte. MODELO è Escritor ou obra ou personagem ou tema. (por exemplo: O escritor Machado de Assis; as obras de Guimarães Rosa; Dom Quixote, de Miguel de Cervantes; o Mito do Eterno Retorno) FONTE - Escritor ou obra = fonte para outros escritores.
Também é necessário esclarecer que novas divisões não contêm nada de revolucionário, e que é a mesma que se vem respeitando pelo uso e que foi indicada mais de uma vez, em formas diferentes.
RECEPTOR - Em suas obras captam-se as influências ou as repercussões de ações contidas no modelo.
Por exemplo: Pierre Moreau (1960) propõe representar por “linhas verticais” (linhas paradigmáticas) o que chamamos de RELAÇÕES DE CONTATO.
RECEPTOR/EMISSOR - Escritores que captam e retransmitem.
LINHAS VERTICAIS = RELAÇÕES DE CONTATO = LINHAS PARADIGMÁTICAS
AGENTE DE TRANSMISSÃO (OU INTERMEDIÁRIO) - Quando o autor apenas serve de enlace (entre a fonte e o seu próprio narrador-imitador).
RELAÇÕES DE CONTATO - Relações literárias entre autores ou obras, em que intervem em um, o outro dos dois termos da relação, se não, nos dois de uma vez, a idéia de aportação ou de contato pessoal e individual. // Prevê a presença de um emissor, ou de um transmissor, ou de um receptor individual.
Esta ótica é interessante e particulariza com suficiente claridade as possíveis atitudes do autor, desde o ponto de vista comparatista; de modo que nos serviremos dela (da ótica) mais de uma vez. Mas isso é insuficiente para assegurar uma boa divisão dos problemas e uma classificação coerente das matérias que se comparam. Com efeito, pelo menos dois dos três termos indicados por Van Tieghem estão presentes em cada estudo de Literatura Comparada. Esta modalidade não se ocupa só com o receptor, por exemplo, mas, ao mesmo tempo, com o transmissor ou com o emissor, senão com os dois de uma vez. Por outra parte, a matéria do comparatismo não é o autor, ou sua obra, mas sabemos que, no final, são estes que resultam classificados, se seguimos este caminho.; mas, como justamente o indicava Van Tieghem, o que interessa é o mesmo processo de transmissão ou, como o chamamos acima, de RELAÇÃO.
Possibilidades para uma investigação comparatista no âmbito das RELAÇÕES DE CONTATO: CATEGORIAS: 1o) Distinção entre a verdadeira comparação de obras literárias, e a que prevê, em um dos dois extremos de sua equação, obras não literárias, que produzem ou que surgem da literatura. 2 o) Documentos comparatistas. // Intercâmbios culturais que apenas têm por objeto (ou finalidade) documentar a existência real do intercâmbio. A mesma idéia de documentar indica já que os testemunhos a que se recorre não estão solicitados (aclarados,
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esclarecidos) devido a sua categoria literária, mas só como documentos. Estes testemunhos pertencem às categorias: viagens ou relações de viagem; leituras e estudo de línguas; intermediários.
original em sua nova forma desnacionalizada. RELAÇÕES DE CONTATO (pp. 91 - 100) Estudar com atenção:
(continuar a pesquisa, p. 76 em diante da op. cit.) INFLUÊNCIA
Coincidência
INFLUÊNCIA
Difusão
INFLUÊNCIA
Êxito
INFLUÊNCIA
Sorte
LINHAS SINTAGMÁTICAS LINHAS CRUZADAS = RELAÇÕES DE CIRCULAÇÃO ATENÇÃO: Os alunos deverão estar atentos às diversas nomenclaturas (diversos termos) RELAÇÕES DE CONTATO (p. 86) A relação dos contatos literários: Compreende a tradução, a imitação e a influência de uma fonte, de um modelo ou de um autor.
A influência, em termos de Literatura Comparada, tem duas acepções diferentes: 1a) A que indica a soma das relações de contato de toda classe, que se podem estabelecer entre um emissor e um receptor. Exemplos:
O estudo das traduções é mais facilmente acessível para o investigador principiante. Nada mais simples que colher uma boa bibliografia, a espanhola por exemplo, e ir fichando todas as traduções impressas, e, inclusive, as manuscritas (de Molière, por exemplo). O resultado será uma bibliografia das traduções (de Molière) para o espanhol, cuja utilidade é inegável. Este tipo de trabalho não é comparatista, mesmo sendo útil. A tarefa do comparatista consiste em determinar o interesse e a significação da tradução, tendo em conta sua coincidência com uma moda ou sua oposição à mesma, o interesse generalizado ou o interesse singular, o compromisso cultural ou o profissional, a congenialidade ou a oposição do tradutor a seu autor.
- O estudo da influência de Goëthe na França; - As traduções francesas de Goëthe; - As imitações; - Os contatos pessoais; - As críticas; - Estudos publicados na França sobre Goëthe e suas obras;
- Analisar os procedimentos do tradutor;
A influência de Goëthe é o mesmo que o total de relações de contato que se podem assinalar entre Goëthe e a literatura francesa. De certa forma, esta acepção da palavra coincide com a difusão; mas a confusão não é possível.
- Seus conhecimentos de língua e de ambientação geral;
A noção de influência agrega um matiz qualitativo e um enfoque crítico dos problemas.
- Seus problemas e suas soluções;
DIFUSÃO - É a materialidade das relações de contato, a sua quantidade e o modo de documentá-la.
Outras tarefas:
- Seus extrapolamentos e sua fidelidade; DIFUSÃO - É uma função estatística do comparatismo. - Seu servilismo e sua personalidade; INFLUÊNCIA - É FUNÇÃO LITERÁRIA. - A significação dos matizes que captou e a explicação histórica e cultural de seu enfoque e de sua interpretação;
2a) Mais restringida que a primeira; - Mais encoberta;
- Estudar em conjunto o resultado do encontro de duas personalidades e, através delas, de duas culturas diferentes, e a nova ressonância adquirida pela obra
- Mais obscurecida pela esfera maior da noção primeira.
INFLUÊNCIA - Resultado artístico autônomo de uma relação de contato. RELAÇÃO DE CONTATO - Conhecimento direto ou indireto de uma fonte por um autor. Enquanto resultado autônomo, nos referimos, com esta expressão, a uma obra literária, produzida com a mesma independência e com os mesmos procedimentos difíceis de analisar, mas fáceis de reconhecer intuitivamente, da obra literária em geral, ostentando personalidade própria, representando a arte literária e as demais características próprias de seu autor, mas em que se reconhece, ao mesmo tempo, em grau que pode variar, consideravelmente, a folha de contato antes assinalada. Até certo ponto, a influência se pode confundir com a imitação, assim como, em sua outra acepção, se confundia em parte com a difusão. Neste caso, o matiz que diferencia as duas noções é que a imitação se refere a detalhes materiais (dentro da pouca materialidade da obra literária), a rasgos de composição, a episódios, procedimentos ou imagens bem determinados. INFLUÊNCIA - Denuncia a presença de uma transmissão menos material, mas difícil de significar, cujo resultado é uma modificação da “forma mentis” e da visão artística ou ideológica do receptor.
a disposição geométrica dos assuntos e dos personagens se associa, em ambos os casos, com uma fantasia verbal, com uma graça, com um estro poético igualmente inconfundíveis. Se houve influência, isto supõe a existência de uma relação de contato, e por conseguinte de um contato material de Marivaux com a obra de Calderón. Por outro lado, a influência não é como a tradução, que se identifica a si mesma. // Não é como a imitação, que se reconhece por meio de um simples cotejo de textos. Quando não há provas: A INFLUÊNCIA só se pode comprovar por meio de análises intrínseca e comparativa. // Naturalmente, é preferível possuir provas históricas. Se estamos seguros de sua existência, ou se damos por averiguado o que não o é, resulta que a influência de Calderón sobre Marivaux, que se pode explicar pelo contato com o poeta espanhol e por sua frequentação e admiração, ou seja, sua técnica dramática considerada como um arreglo simétrico e confiado em aparência de azar. A influência não é algo palpável que se denuncia a si mesma, como a tradução ou a imitação, e que não se impõe com evidência como única solução possível.
Exemplo de INFLUÊNCIASUBJETIVA: A influência de La Fontaine em Iriarte é evidente, mesmo que não seja possível citar um só rasgo de imitação.
Dentro de um método, o estudo das influências se pode enfocar de vários modos, segundo os critérios que se queiram aplicar ao assunto. Se podem tomar em consideração, indiferentemente:
Para exemplificar claramente: - os agentes da transmissão literária; Marivaux deve muito, como autor cômico, à arte dramática de Calderón de La Barca, mas não foi possível provar, com documentos, nem assinalar textos precisos que autorizem a idéia de um empréstimo direto. Existe, sem dúvida, uma técnica poética e dramática de Marivaux, que é inconfundível dentro do teatro francês, e que apresenta mais de um ponto em comum com a técnica do poeta espanhol. Ambos têm igual e exagerada confiança no que um chama Los empeños de un acaso, e o outro Les jeux de l’amour et du hazard. Ambos o deixam todo ao cuidado de um azar, concebido como um princípio geométrico, chamado a pôr ordem em tudo, com uma força coordenadora tão precisamente geométrica, que chega a ser sua mesma contradição. Ambos propõem impossíveis, para solucioná-los pelos mesmos meios rigorosamente simétricos, que parecem obedecer ao capricho e à fantasia, quando, na realidade, tudo resulta perfeitamente ordenado e conduzido até o fim. No fim,
- a materialidade do sentido ou do recebido; - a natureza ou o gênero literário do transmitido, que pode variar entre os dois extremos da transmissão. Do ponto de vista dos agentes de transmissão, se deve ter em conta a existência, naquilo que até agora chamamos de equação comparatista, de um EMISSOR e de um RECEPTOR. EMISSOR ORIGINAL - Casos de tradução EMISSOR MODELO - Casos de imitação EMISSOR FONTE - Casos de influência Sobre o problema da terminologia na Literatura Comparada:
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A tradução e a imitação têm nomes próprios, mas quando se trata de influência não tem. Não há nenhum nome particular para indicá-la. O VERDADEIRO OBJETO DO ESTUDO COMPARATIVO: É aquela parte da obra e das concepções de um autor que se transmite, se adota e se assimila na obra de um outro autor. Influências detectáveis: RELAÇÕES DE CONTATO: Quando um dos termos da equação comparatista é uma obra literária determinada; quando, por conseguinte, o passar de uma literatura a outra supõe a existência deste misterioso processo, desta elaboração ao cabo da qual o bem artístico ou cultural próprio de uma literatura foi trasladado e apropriado por uma literatura diferente, então as relações de contato adquirem sua verdadeira significação, e o histórico cede a prioridade ao comparativo e ao crítico. Neste caso, o objeto do estudo já não interessa como documento, mas como obra de arte. A finalidade do estudo não é a comparação, mas a determinação dele (do estudo) como, comparação, ou seja, das modalidades e dos matizes da transmissão. Enfim, se se nos permite representar estas idéias por meio de uma linguagem não de todo apropriada, mas talvez mais expressiva, o método de investigação já não é análise quantitativa, mas a qualitativa. Textos poéticos para comparação: CANÇÃO DO EXÍLIO Gonçalves Dias (Coimbra, julho, 1843, Primeiros Cantos) Minha terra tem palmeiras, (1) Onde canta o Sabiá, (2) As aves que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá. Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzes têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida, (3) Nossa vida mais amores. Em cismar, sozinho, à noite, Mais prazer encontro eu lá; Mina terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Minha terra tem primores, Que tais não encontro eu cá; Em cismar, sozinho, à noite, Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Não permita Deus que eu morra Sem que volte para lá; Sem que desfrute os primores Que não encontro por cá; Sem qu’inda aviste as palmeiras, Onde canta o Sabiá. (1) Influência do trecho da balada “Mignon”, do poeta alemão: “Conheces a região onde florescem os limoeiros? / Laranjas de ouro ardem no verde-escuro da folhagem; / Conheces bem? Nesse lugar / Eu desejaria estar”. (2) Atenção: “Onde canta o Sabiá” - imagem poética; o sabiá canta em laranjeiras, não em palmeiras. (3) Esta estrofe foi aproveitada (emprestada) por Osório Duque Estrada na letra do Hino Nacional Brasileiro. Observar a hipérbole “mais”. CANTO DE REGRESSO À PÁTRIA Oswald de Andrade Minha terra tem palmares Onde gorjeia o mar Os passarinhos daqui Não cantam como os de lá. Minha terra tem mais rosas E quase que mais amores Minha terra tem mais ouro Minha terra tem mais terra. Ouro terra amor e rosas Eu quero tudo de lá Não permita Deus que eu morra Sem que volte para lá. Não permita Deus que eu morra Sem que volte pra São Paulo Sem que veja a Rua 15 E o progresso de São Paulo. POEMA DO BECO Manuel Bandeira Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? – O que eu vejo é o beco. CANÇÃO DO EXÍLIO Murilo Mendes (Poemas) Minha terra tem macieiras da Califórnia onde cantam gaturamos de Veneza. (1) Os poetas da minha terra
são pretos que vivem em torres de ametista, os sargentos do exército são monistas, cubistas, (2) os filósofos são polacos vendendo a prestações.
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A gente não pode dormir com os oradores e os pernilongos. Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda. Eu morro sufocado em terra estrangeira. Nossas flores são mais bonitas Nossas frutas mais gostosas mas custam cem mil réis a dúzia. Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade e ouvir um sabiá com certidão de idade! (1) Gaturamos: pássaros ornamentais. (2) Monistas: adeptos da doutrina filosófica que considera que o conjunto das coisas pode ser reduzido à unidade. (3) Cubistas: representantes da tendência artística européia, surgida no começo do século XX, cujo maior expoente foi o pintor espanhol Pablo Picasso. AINDA IREI APORTUGAL Cassiano Ricardo (Um dia depois do outro) Nunca fui a Portugal. Não foi por falta de querer. Nem por perder meu lugar, Que este bem guardado está. Dificuldades de vida... Contratempos de memória... Certas questões de prosódia e outros pequenos abismos postos entre mim e o Atlântico até que algum dia eu vá. Não conheci meu avô. Senão de fotografia. Não ouvi, senão em sonho, o canto da cotovia. No entanto, talvez lirismo, – lirismo da hora H – ah! que saudade que eu sinto de tudo que ficou lá. Fui marujo, com certeza, pois tenho alma azul-marinha. Vim pro Brasil tão futuro que nunca soube que vinha. Hoje caço papagaios e outras aves tagarelas no bojo das caravelas entre o azul e o Deus dará.
Com os olhos do meu avô conheci horizontes novos, gentes de todas as cores e os mais variados povos que só em sonhos revejo por nunca ter ido eu lá. No doloroso retrato que no meu sangue caminha me vieram estas paisagens filhas de audaciosas viagens. Condição estranha, a minha. Sinto que sou quase autor da carta de Vaz Caminha. Onde estaria eu agora? meu avô, onde estará? Saudade de Portugal que o coração espezinha. Sem saber se ele me “quere”. Esta saudade que fere Mais que as outras quiçá. Sem exílio, nem palmeira – Onde canta um sabiá... Saudade assim por herança de coisas que não conheço, chega a ser, quase, esperança... Esperança pelo avesso. Saudade tanto mais grave por nunca ter ido eu lá. Saudade maior? Não tem. “Não tem”, não – senhor, não há. EUROPA, FRANÇA E BAHIA Carlos Drummond de Andrade Meus brasileiros sonhando exotismos. Paris. A Torre Eiffel alastrada de antenas como um caranguejo. (1) Os cais bolorentos de livros judeus e a água suja do Sena escorrendo sabedoria. O pulo da Mancha num segundo. (2) Meus olhos espiam olhos ingleses vigilantes nas docas. Tarifas bancos fábricas trustes craques. (3) Milhões de dorsos agachados em colônias longínquas formam um tapete para sua Graciosa Majestade Britânica pisar. E a lua de Londres como um remorso. (4) Submarinos inúteis retalham mares vencidos O navio alemão cauteloso exporta dolicocéfalos arruinados. (5) Hamburgo, umbigo do mundo Homens de cabeça rachada cismam em rachar a cabeça dos outros dentro de alguns anos. (6)
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a Itália explora conscientemente vulcões apagados, vulcões que nunca estiveram acesos a não ser na cabeça de Mussolini. (7) e a Suíça cândida se oferece numa coleção de postais de altitudes altíssimas. Meus olhos brasileiros se enjoam da Europa. Não há mais Turquia. O impossível dos serralhos esfacela erotismos prestes a declanchar. (8) (9) Mas a Rússia tem as cores da vida. A Rússia é vermelha e branca. Sujeitos com um brilho esquisito nos olhos criam o filme bolchevista e no túmulo de Lênin em Moscou parece que um coração enorme está batendo, batendo mas não bate igual ao da gente... (10) Chega! Meus olhos brasileiros se fecham saudosos. Minha boca procura a “Canção do Exílio”? Como era memo a “Canção do Exílio”? Eu era tão esquecido de minha terra... (11) Ai terra que tem palmeiras Onde canta o sabiá! (1) Este verso apresenta uma imagem animalizadora da Torre Eiffel e da máquina que impera no século XX. (2) Refere-se ao Canal da Mancha, que separa a França da Inglaterra. (3) Truste: - Organização financeira que dispõe de grande poder econômico. - Associação financeira que realiza a fusão de várias firmas em uma única empresa. (4) “E a lua de Londres como um remorso”: Refere-se ao imperialismo britânico, seja, ao capitalismo selvagem. (5) Dolicocéfalos: Tipo humano cuja largura de crânio tem 4/5 do seu comprimento. (6) Estrofe: Refere-se ao espírito beligerante dos alemães da época. (7)Refere-se às idéias fantasiosas de Mussolini, idéias fascistas. (8) Serralhos: haréns. (9) Declanchar: levantar o véu usado pelas mulheres turcas. (10) Colocação de sentimentos de culturas diferentes.
(11) Sentimento de amor à Pátria, de ser brasileiro; o poeta, graças ao seu sentimento lírico, gerado pela distância, observa os valores de sua cultura.
Textos Poéticos para Comparação SONETO 134 Francesco Petrarca (1304 – 1374) Pace non trovo, e non ho da far guerra; e temo, e spero; et ardo, e son um ghiaccio; e volo sopra ’l cielo, e giaccio in terra; e nulla strigo, e tutto ’l mondo abbraccio. Tal m’há in pregion, che non m’apre né serra, né per suo mi ritèn né scioglie il laccio; e non m’ancide Amore, e non mi sferra né mi vuol vivo né mi trae dímpaccio. SONETO 4 Sir Thomas Wyatt (1503 – 1542) I find no peace, and all my war is done, I fear, and hope. I burn, and freeze like ice. I fly above the wind, yet can I not arise. And naught I have, and all the world I season. That loseth nor locketh holdeth me in prison, And hodeth me not, yet can I scape nowise: Nor letteth me live nor die at my devise, And yet of death it giveth me occasion. Without eyen I see, and withhout tongue I plain: I desire to perish, and yet I ask health: I love another, and thus I hate myself: I feed me in sorrow, and laugh at all my pain: Likewise displeaseth me both death and life, And my delight is causer of this strife. TRADUÇÃO DO SONETO 4 Sir Thomas Wyatt (1503 – 1542) Não encontro paz, e toda a minha luta já está finda. Desejo e temo. Ardo, ou esfrio como gelo Vôo em cima do vento e não levanto. Nada possuo, mas partilho o mundo. Nada me solta, nada me aprisiona, Não há como escapar, nada me retém. Nem viver nem morrer posso à vontade, Mas motivos de morte me são dados. Vendo sem olhos, falo sem língua: Querendo perecer, peço saúde: A mim odeio, amando outra pessoa.
Me encho de dor e rio desta sina. Desagradam-me a vida, a morte. E mina, Causador do conflito, o meu prazer.
Estando em terra, chego ao céu voando; Numa hora acho mil anos, e é de jeito Que em mil anos não posso achar uma hora.
SONETO 8 Louise Labé (1515/1524 - 1566)
Se me pergunta alguém porque assim ando, Respondo que não sei; porém suspeito Que só porque vos vi, minha Senhora.
Je vis, je meurs: je me brule et me noye. J’ay chaut estreme en endurant froidure: La vie m’est et trop molle et trop dure. J’ai grands ennuis entremeslez de joye:
SONETO Francisco Rodrigues Lobo
Tout à un coup je ris et je larmoye, Et en plaisir maint grief tourment j’endure: Mon bien s’en va, et à jamais il dure: Tout en un coup je seiche et je verdoye.
Fermosos olhos, quem ver-vos pretende A vista dera um preço, se vos vira, Que inda que por perder-vos a sentira, A perda de não ver-vos não se entende:
Ainsi Amour inconstantamment me meine: Et, quand je pense avoir plus de douleur, Sans y penser je me treuve hors de peine.
A graça dessa luz não na compreende Quem, qual ao Sol, a vós seus olhos vira, Que o cego Amor, que cego deles tira, Com vossos próprios raios a defende.
Puis, quand je croy ma joye estre certeine Et estre au haut de mon desiré heur, Il me remet en mon premier malheur.
Não pode a vista humana conhecer Qual seja a vossa cor, que a luz forçosa Não ausente mostrar tanta beleza:
TRADUÇÃO DO SONETO 8 Louise Labé (1515/1524 - 1566)
Se eu, que em vendo-a ceguei, pude ainda ver, Uma cor vi, porém, cor tão fermosa Que me não pareceu da natureza.
Eu vivo, eu morro. Eu me queimo e afogo. Com extremo calor suporto o frio: De vida mole, ou dura, eu me sacio, Tédio e alegria em mim se alternam logo:
A UMA AUSÊNCIA Antônio Barbosa Bacelar (Lisboa, 1610-1663)
Ao mesmo tempo eu rio e me pranteio, No auge do prazer sofro um tormento: Vai-se-me o bem, perdura o pensamento, Ao mesmo tempo eu enverdeço e enfeio.
Sinto-me, sem sentir, todo abrasado No rigoroso fogo que me alenta; O mal que me consome me sustenta, O bem que me entretém me dá cuidado.
Tão inconstante, Amor me desordena: Se me creio sentindo imensa dor, O meu pensar dissolve toda a pena.
Ando sem me mover, falo calado, O que mais perto vejo se me ausenta, E o que estou sem ver mais me atormenta; Alegro-me de ver-me atormentado.
E se alegria eu tomo por serena, Pensando estar na mais feliz das cenas, Ele arremete e torna-me ao torpor.
Choro no mesmo ponto em que me rio, No mor risco me anima a confiança, Do que menos se espera estou mais certo.
SONETO Luís de Camões
Mas, se confiado desconfio, É porque, entre os receios da mudança, Ando perdido em mim como em deserto.
Tanto de meu estado me acho incerto, Que em vivo ardor tremendo estou de frio; Sem causa, juntamente choro e rio; O mundo todo abarco e nada aperto.
AOS AFETOS E LÁGRIMAS DERRAMADAS NA AUSÊNCIA DA DAMA AQUEM QUERIA BEM Gregório de Mattos Guerra (1633 – 1696)
É tudo quanto sinto um desconcerto; Da alma um fogo me sai, da vista um rio; Agora espero, agora desconfio, Agora desvario, agora acerto.
Ardor em firme coração nascido; pranto por belos olhos derramado; incêndio em mares de água disfarçado; rio de neve em fogo convertido:
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Tu, que em um outro peito abrasas escondido; tu, que em um rosto corres desatado: quando fogo, em cristais aprisionado; quando cristal, em chamas derretido: Se és fogo, como passas brandamente? Se é neve, como queimas com porfia? Mas ai, que andou Amor em ti prudente! Pois, para temperar a tirania, como quis que aqui fosse a neve ardente, permitiu parecesse a chama fria. AMOR E MEDO Casimiro de Abreu (1839 – 1860) Quando eu te fujo e me desvio cauto Da luz de fogo que te cerca, oh! bela, Contigo dizes, suspirando amores: “– Meu Deus! Que gelo, que frieza aquela!” como te enganas! Meu amor é chama que se alimenta no voraz segredo, e se te fujo é que te adoro louco... És bela – eu moço; tens amor – eu medo!... (...) NEL MEZZO DEL CAMIN... Olavo Bilac (1865 – 1918) Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada E triste, e triste e fatigado eu vinha. Tinhas a alma de sonhos povoada, E a alma de sonhos povoada eu tinha... E paramos de súbito na estrada Da vida: longos anos, presa à minha A tua mão, a vista deslumbrada Tive da luz que teu olhar continha. Hoje, segues de novo... Na partida Nem o pranto os teus olhos emudece Nem te comove a dor da despedida. E eu, solitário, volto a face, e tremo, Vendo o teu vulto que desaparece Na extrema curva do caminho extremo. SUAVE CAMINHO Mário Pederneiras (1868 – 1915)
E tu – te sentirás menos cansada, E eu – menos sentirei o meu cansaço. E assim, ligados pelos bens supremos, Que para mim o teu carinho trouxe, Placidamente pela Vida iremos, Calcando mágoas, afastando espinhos, Como se a escarpa desta Vida fosse O mais suave de todos os caminhos.
Vocabulário Urzes = Designação comum a diversas plantas européias da família das ericácias; Em Portugal, torgo. Escarpa = Ladeira íngreme. SONETO XVII Guilherme de Almeida (1890 – 1969) Eu em ti, tu em mim, minha querida, Nós dois passamos despreocupados, Como passa, de leve, pela vida, Um parzinho feliz de namorados. E assim vou, e assim vais. E assim, unida À minha mão na tua, de braços dados, Assim nós vamos, como quem duvida Que haja, no mundo, tantos desgraçados. Um dia, para nós – não sei... quem sabe? – É bem possível que tudo isto acabe, Que sejas mais feliz, que eu fique louco... Mas nunca percas, nunca mais, de vista Aquele moço sentimentalista Que te quis muito e a quem quiseste pouco. SONETO VIII Guilherme de Almeida (1890 – 1969) Por que confiado estou dos fingimentos De mores bens e de menores danos, Se o de que vive amor são desenganos, Se o que morre são contentamentos? Ah! Que tornar pudera aos meus tormentos Que em outro tempo tive por tiranos! Que hoje é dias, semanas, meses, anos, Sec’los aquilo que era só momentos.
Assim... Ambos assim, no mesmo passo, Iremos percorrendo a mesma estrada; Tu – no meu braço trêmulo amparada, Eu – amparado no teu lindo braço.
E vejo a vida assim tão mal devida Ao mal d’amor que tanto bem lhe deve E lhe paga co duro desfavor.
Ligados neste arrimo, embora escasso, Venceremos as urzes da jornada...
Por que viver d’amor e amar a vida, Se para o bem amar a vida é breve, Se para bem viver é breve o amor?
2.20 - Estudo Comparativo: Édipo-Rei, de Sófocles x Antônio Marinheiro, o Édipo de Alfama, de Bernardo Santareno Quando se destrói a razão de uma existência humana, quando uma causa final e única cessa de existir, nasce o trágico. Dito de outro modo, há no trágico a explosão do mundo de um homem, de um povo, ou de uma classe” (STAIGER, Emil. Conceitos Fundamentais de Poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969: 147) .
Para um estudo comparativo entre a forma da tragédia grega e a forma da dramaturgia moderna do século XX, passo a exemplificar com o Édipo-Rei, de Sófocles (tragediógrafo grego) em confronto com o Antônio Marinheiro: O Édipo de Alfama, de Bernardo Santareno (teatrólogo português dos anos 50/60, já falecido). Em primeiro lugar, há a necessidade de explicar que a forma literária da tragédia grega não sofreu continuidade através do tempo. A forma da poesia trágica à moda antiga (com todas as características textuais e de palco daquela época) ficou no passado, restrita às obras dos trágicos gregos. Com o passar do tempo, novas formas foram criadas, o texto em prosa para o teatro substituiu o texto em versos, a presença do coro na escrita teatral não existe mais, a idéia de Destino comandando as ações do homem (herói trágico) foi abandonada pelos dramaturgos (graças a desvitalização do mito e a ascendência do cristianismo) e substituída pela idéia moderna do livre-arbítrio e da luta contra o ônus da culpa difundido pela Igreja Romana nos anos iniciais da Era Moderna. Neste princípio de século XXI, os textos teatrais que impõem forte carga emocional estão longe da forma conhecida na Antiguidade Clássica. As tragédias, desde o início do século XX (um século de guerras mundiais e inúmeras guerrilhas particulares), transformaram-se em ocorrências do cotidiano, passaram a fazer parte da realidade objetiva, estão estampadas nos jornais e em outros meios de comunicação, como a televisão e a Internet. Os acontecimentos trágicos, tão significantes nos palcos antigos, foram substituídos, nos palcos de hoje, pelos chamados dramas modernos, os quais seguem os ditames da realidade objetiva do nosso caótico momento histórico. Quanto a uma comparação entre tragédia grega e drama moderno, na peça trágica, Édipo-Rei, o trágico se instaura a partir da terrível revelação, a qual confirmou os presságios do oráculo, ou seja, a partir do momento em que Édipo e Jocasta descobrem que são, na verdade, filho e mãe vivendo uma relação incestuosa. Comparando a minha exemplificação com as palavras de Staiger, posso dizer que o mundo dos dois explodiu
ao tomarem conhecimento da dura realidade. Esse trágico acontecimento estendeu-se também ao povo, pois afinal os dois eram os reis desse povo. Algo parecido acontece na peça Antônio Marinheiro, o Édipo de Alfama, de Bernardo Santareno. Depois de uma briga, em uma taberna de Alfama, um bairro pobre de pescadores da cidade de Lisboa, em Portugal, o jovem Antônio Marinheiro, ali embriagando-se, em um intervalo de suas obrigações como marinheiro de um navio mercante, no auge de uma briga mata um velho pescador, morador do local. Durante o inquérito, ao se deparar com a viúva do pescador, sente por ela uma irresistível atração, e é também correspondido. Ao final da peça, ambos descobrem que são na verdade filho e mãe, e que Antônio havia assassinado o próprio pai. À semelhança do Édipo de Sófocles, o Antônio (nascido no dia de Santo Antônio, abandonado em um barco pela avó Bernarda no mesmo dia, achado por marinheiros que o criaram e a ele deram o nome e sobrenome de Antônio Marinheiro) volta à sua terra natal, já adulto, e é exatamente ali que vão se desenrolar os acontecimentos dramáticos, os quais guiarão o enredo teatral do século XX, mas com um final diferente submetido às leis do livre-arbítrio (ao contrário do Édipo, pois este submeteu-se às leis do Destino, leis severas que regiam as ações humanas na Antiguidade Clássica). Comparando as duas peças (a antiga e a pós-moderna) pelo ponto de vista de Staiger, posso dizer que, além das semelhanças, há diferenças marcantes: enquanto no texto trágico de Sófocles observa-se um mundo voltado para a riqueza, o cenário, onde se desenrola o amor entre Antônio e Amália, é de ostensiva pobreza. Mesmo assim a matéria trágica se instaura, pois, com a descoberta, o amor entre os dois sofre um tremendo abalo e, conseqüentemente, acontece o rompimento, uma saída natural para o conflito. Assim, para o espectador do século XX, mais dramático do que a morte de Jocasta e do sacrifício de Édipo furando os olhos, no texto de Sófocles, é o abandono de Antônio e o desespero de Amália, chamando pelo amante e não pelo filho. No texto de Bernardo Santareno, o momento da revelação é o momento crucial, o clímax, uma vez que Amália não aceita o fato de ser mãe do rapaz. Este sim é o momento trágico pós-moderno. O que vem a seguir (o abandono de Antônio, o desespero de Amália) seria então a situação-limite, impelindo os personagens centrais para uma espécie de purificação (se olharmos a mimese do texto pelo ponto de vista antigo). No caso de Édipo e Jocasta, o Destino (com D maiúsculo) impunha essas atitudes, uma vez que tais impulsos faziam parte do modo grego de solucionar os problemas humanos. No Antônio
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Marinheiro (recriação teatral do tema do Édipo, do início da pós-modernidade – meados do século XX), os personagens centrais já não possuem aquela idéia de destino, nos moldes antigos, e, assim, optam pelo livrearbítrio (fenômeno da Era Moderna, ainda atuando neste início de pós-modernidade): o Antônio parte, retomando a vida de marinheiro e Amália fica a gritar, chorando e chamando pelo marido, nunca pelo filho, pois ela não se sentia culpada, uma vez que fora enganada pela mãe. Esta, Bernarda, à época do nascimento de Antônio (ler os motivos para o abandono da criança em: SANTARENO, Bernardo. Antônio Marinheiro: O Édipo de Alfama.) lhe contara uma história falsa, dizendo-lhe que a criança era uma menina, que havia falecido durante o parto, quando na verdade era um menino, abandonado por ela, a avó, em um barco de pescadores. “Nem toda desgraça é trágica, mas apenas aquela que rouba do homem seu pouso, sua meta final, de modo que ele passa a cambalear e fica fora de si.” (STAIGER, Emil. Conceitos Fundamentais de Poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, op. cit.: 148). Em outras palavras, o trágico seria aquele momento em que o homem sente o seu mundo desmoronar e fica fora de si. No caso de Édipo, ele ficou sem ação, seu futuro sofreu um abalo, e ele se mutilou, depois do suicídio de Jocasta. Na peça pós-moderna de Bernardo Santareno, o Antônio preferiu fugir ao invés de enfrentar com heroísmo a fúria do povo de Alfama, enquanto que Amália ficou em casa, chorando e gritando por seu amor, à mercê do povo que a acusava sem avaliar a sua inocência diante do ocorrido.
vista, a peça de Bernardo Santareno não poderá ser avaliada como uma peça trágica, ela na verdade, se adéqua ao que chamamos de drama moderno. O caráter de Antônio, ao longo das peripécias dramáticas, não é assim tão firme. Há inclusive uma leve insinuação de homossexualismo entre ele e Rui, um outro personagem, amigo e companheiro de aventuras marítimas (atentar para os ciúmes de Rui, personagem representativo do oráculo moderno). E ele vacila diante do tumulto, abandonando Amália à própria sorte, à sorte desgovernada da realidade do século XX. O trágico surpreende o herói dramático inesperadamente (Ibidem:149). Aqui há semelhanças: O herói trágico, ou mesmo o personagem da dramaturgia do século XX, não se encontra preparado para enfrentar as tragédias que virão. Isso, porque ele se preocupa mais com um determinado problema (no caso de Antônio, como enfrentar a fúria dos moradores de Alfama?), ou um determinado deus (no caso de Édipo, o deus Destino comanda as suas ações), ou uma determinada idéia, e não vê mais nada a não ser o que está em sua mente. Quando o momento trágico se instaura, pega-o desprevenido.
“Para que o trágico cause efeito e espalhe sua força fatal, deverá atingir um homem que viva coerente com sua idéia e não vacile um momento sobre a validez desta idéia” (Ibidem: 149).
Repensando as semelhanças e diferenças entre os dois textos (o antigo e o pós-moderno), posso afirmar que, apesar da influência de Sófocles em Bernardo Santareno, o texto da peça teatral portuguesa possui qualidade indiscutível. Não poderá ser considerado uma mera repetição de um texto clássico de altíssimo nível, como é o texto de Sófocles. Assim como o Édipo exigiu reflexões teóricas de gerações e gerações de leitores (não estou a referir-me a espectadores, este é um outro assunto) até ao nosso momento, o Antônio Marinheiro também exigirá que seus leitores façam profundas reflexões sobre a problemática existencial do homem do século XX.
Neste aspecto reside a grande diferença entre a verdadeira forma da tragédia grega (centrada no Destino, deus da mitologia antiga) e a forma da dramaturgia moderna do livre-arbítrio. O Édipo possui uma profunda firmeza de pensamento e jamais renegaria suas próprias atitudes. Por este ponto de
(Texto registrado de Neuza Machado. Este texto pertence aos Apontamentos de Teoria Literária e Crítica Literária, um livro que está sendo elaborado pela autora e que será publicado em breve por sua editora particular, NMachado, editora da autora, registrada no ISBN – Rio de Janeiro).
2.21 - Pós-Moderno / Pós-Modernismo Pelo Ponto de Vista de Nicolau Sevcenko In.: OLIVEIRA, Roberto Cardoso de (Org.). Pósmodernidade. 1.ed. Campinas: Unicamp, 1987. pp. 43 – 55 Resumo: PÓS-MODERNO - Supõe uma reflexão sobre o tempo (por exemplo: Era Medieval / Era Moderna / Era Pós-
Moderna) // A que tempo se refere? – Não a um tempo homogêneo, linear, em que se possa estabelecer um recorte e fixar uma data decisiva, um ato inaugural, como se poderia esperar da visão simplista da história, na qual somos zelosamente educados. Não se pode definir um início preciso e, embora se prenuncie e se deseje uma superação, ela não é nunca o fim (p.45).
ATITUDE PÓS-MODERNA - Atitude nascida do espanto, do desencanto, da amargura aflitiva, que procura se reconstruir em seguida como alternativa parcial, desprendida do sonho de arrogância, de unidade e poder, de cujo naufrágio participou, mas decidiu salvar-se a tempo, levando consigo o que pode resgatar da esperança (p.45). QUE NAUFRÁGIO? QUE CATÁSTROFE FOI ESSA? [O autor analisa a partir de Walter Benjamim: Naufrágio e catástrofe produzidos pelas “caldeiras insaciáveis da locomotiva do progresso” (p.47).] (Cf.: Walter Benjamim) [Naufrágio e catástrofes provindos “da racionalidade, do maquinismo, da transformação da sociedade num gigantesco autômato auto-regulado, em que a arte, a técnica e a vida se fundiriam numa unidade revitalizadora. Uma utopia da igualdade perfeita, produzida pela razão, governada pela técnica e desfrutada pela arte” (p.47)]. (Ler Benjamim) [Os Artistas se identificaram no início com a militância surrealista, ou seja, “a plenitude da máquina em seu máximo desempenho. (...) Os próprios Artistas viamse como um movimento, um núcleo de combate, uma vanguarda. Metáforas técnicas e militares que prenunciavam já a guerra tecnológica e o planejamento totalitário das sociedades” (p.47).] “Quando Benjamim analisa o quadro de Paul Klee as ilusões já se haviam consumido. A técnica derivada da razão instrumental, apropriadora, planejadora, ao invés de libertar, submetera os homens ao império da máquina genocida, dotada de uma capacidade destrutiva sem precedentes. A herança de Prometeu, ele descobre afinal, é a águia que devora as vísceras de cada um e não a redenção da humanidade. Ele e Klee se sentiram traídos, mas muitos intelectuais e artistas envolvidos na vanguarda dispuseram-se de boa vontade a colaborar com os novos poderes, na Europa e nos Estados Unidos, sobretudo depois da guerra. Revelação final: a vanguarda em si não foi traída, ela mantinha no seu íntimo uma correspondência com as forças do progresso” (p. 47, final, e p.48). [Análise do quadro de Klee Angelus Novus – pp.48-49) Por que chamá-lo de Angelus Novus? 1o) Os anjos são intemporais, não têm vontade própria, são governados pelo desígnio divino e por isso mesmo a natureza ou as forças do mundo celeste jamais atuam sobre eles. // Se a tempestade letal do progresso, que vem
do paraíso, decorreu da vontade de Deus, esse anjo não mais obedece, mas resiste aos propósitos do Supremo. 2o) ANJO DA HISTÓRIA - Anjo decaído e sua rebeldia o tornou impotente para auxiliar os vencidos, mortos e humilhados. - Não mais sintonizado com o poder - Ele próprio está condenado a ser um vencido e enxovalhado - Sua natureza de ser destinado à vida eterna o submete ao castigo de assistir paralisado à destruição do mundo e à degradação de si mesmo [ele cuja missão precípua é agir e salvar]. - ANGELUS NOVUS (QUADRO DE PAUL KLEE) – METÁFORA DE PÓS-MODERNIDADE “Não deve haver dúvida quanto ao sentido desta metáfora: o ANGELUS NOVUS representa a própria condição do artista e do intelectual depois que o sonho modernista perdeu a sua inocência. A expressão “novo” justifica-se assim pela mudança de perspectiva criadores aturdidos. Eles já não voam na mesma direção e na mesma velocidade do vento do progresso. Já não gozam do privilégio de se fundirem com a fonte única de todo poder, de toda vontade e de toda justiça. Não estão mais voltados para o infinito radiante do futuro e sim para a tragédia impronunciável do passado. Não acreditam mais no absoluto, nem se deixam levar por suas falsas promessas. Estão sós, reduzidos aos limites estreitos de sua fraqueza, seu horror e sua fúria. Essa é a condição do novo que se manifesta após a modernidade (p.50). A CONSUMAÇÃO DO PROJETO DA MODERNIDADE PELA RAZÃO PLANEJADORA “A consumação do projeto da modernidade pela razão planejadora não significou o seu ponto final, embora alguns intelectuais e artistas tenham iniciado a crítica das vanguardas, depois que serviram na encruzilhada entre o planejamento totalitário e o terrorismo genocida, a maior parte manteve-se fiel a uma prática artística que, após a guerra, recebeu a consagração de estilo oficial das galerias e de governos comprometidos com a reconstrução, o desenvolvimento e o progresso. Marx já disse que a história não se repete senão como farsa, ao que caberia acrescentar que a arte não retoma sua aura senão como fuga. O que antes era moderno, agora se tornou pastiche, simulação, impostura: um gesto repetitivo, anódino e frouxo” (pp.50-51).
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Não há como querer datar com precisão o início do PÓS-MODERNO. Benjamim pode ter sugerido que esse marco é a Segunda Guerra. ESSE PENSAMENTO É QUESTIONÁVEL. Em Kafka também existe uma sugestão a respeito. ATITUDES DA RAZÃO PLANEJADORA (p.52) - Atitude de rejeição da herança socrática da unidade, transcendência e supremacia dos princípios da razão, da verdade e do belo; - Atitude de repúdio à redução de toda realidade e toda experiência à homogeneidade e coerência das representações metafísicas (o que é chamado de espírito moderno desde o Renascimento e o Iluminismo), podem ser encontradas em Mallarmé, Joyce e Borges. As vanguardas tiveram um papel decisivo na destruição de uma ditadura da representação realista, segundo os cânones autoritários das “belas artes”. - As vanguardas abriram caminho para o questionamento da suposta autonomia da arte, expuseram e tematizaram os artifícios da composição e exigiram a liberdade radical da imaginação criadora. - As vanguardas substituíram a tirania do “bom gosto” burguês pela da “utopia compulsória” da razão planejada e do maquinismo (p.52). “O movimento modernista nunca foi homogêneo. Do Futurismo ao Dada medeiam as distâncias que vão de um discurso colado à arregimentação fascista à denúncia visceral de qualquer engajamento. Da mesma forma não há qualquer unidade dentre as experiências artísticas e filosóficas que têm sido postas sob a legenda do PÓS-MODERNISMO.” (p.53). PÓS-MODERNISMO - Não há sequer acordo sobre o significado desse termo. - Para os americanos: mera correspondência na área cultural do advento da tecnologia pós-indus-
trial, baseada nos recursos da cibernética e informática. -Para alguns autores: crítica voltada à negação total das vanguardas, que exalta o período anterior ao modernismo e se inclina para um retorno às fontes da história e do passado. - Outros ainda denunciam como uma mera pasteurização dos cacoetes das vanguardas, sem vitalidade e sem compromissos. - Todas essas concepções são de fundo reacionário e esvaziam o sentido crítico profundo do movimento. - Há autores que se autoproclamam pós-modernista. Há latências passíveis de discussão como os riscos do esteticismo hermético de Aldo Rossi, ou da fetichização do passado em Palladio, por exemplo, para só falarmos da arquitetura. Há o monumentalismo autoritário e a sedução comprometedora pela técnica de Philip Johnson e dos autores do edifício do Centro Pompidou. O pósmoderno sem dúvida traz ambigüidades – aliás é feito delas – e deve ser criticado e superado. É isso que ele propõe: a prudência como método, a ironia como crítica, o fragmento como base e o descontínuo como limite (pp. 53-54). PÓS-MODERNO - Anseio de uma justiça que possa ser sensível ao pequeno, ao incompleto, ao múltiplo, à condição de irredutível diferença que marca a materialidade de cada elemento da natureza, de cada ser humano, de cada comunidade, de cada circunstância, ao contrário do que nos ensinam a metafísica e o positivismo oficiais. A sensibilidade para a expressão inevitável do acaso, do contraditório, do aleatório. O espaço para o humor, o prazer, a contemplação, sem outra finalidade senão a satisfação que o homem neles experimenta. O aprendizado humilde da convivência difícil mas fundamental com o imponderável, o incompreensível, o inefável – depois de séculos de fé brutal de que tudo pode ser conhecido, conquistado, controlado (p.54).
2.22 - Pós-Moderno / Pós-Modernismo pelo Ponto de Vista de Jair Ferreira dos Santos In.: OLIVEIRA, Roberto Cardoso de (org.). PósModernidade. 1a ed. Campinas: Unicamp, 1987. pp. 59-69. RESUMO: Para a identificação da literatura Pós-Modernista (Século XX):
Barth (escritor americano) - verbos no passado; // Deus, ou qualquer outro grande referente tipo História, Natureza, Conhecimento são liquidados como abonadores da ordem ou de um sentido para o universo e a vida; e em seguida é anulado o realismo, a mais cara das convenções literárias, com sua fé de sapateiro numa realidade objetiva que seria singelamente
captada na linguagem por um sujeito-narrador atento e forte, em franca afinidade com as coisas. PÓS-MODERNISMO - Literatura bem-humorada, fantasiosa, sem “iluminações”, problematizando ao máximo a percepção da experiência e da própria literatura (p.59). - Entropia (desordem) e anti-realismo são os decalques, na literatura, do capitalismo pós-industrial, baseado na tecnociência e na informação, em ascensão nos Estados Unidos da América há duas décadas. Receptor de mensagens aleatórias, emitidas pela “mass media” e os sistemas informatizados, o indivíduo percebe o mundo e a História como um espetáculo entrópico (desordenado), fragmentário, sem totalidade e irracional, enquanto à sua volta a realidade se dissolve numa colagem de signos e simulacros cujos referentes são remotos ou se perderam. Nesse cosmos tendente ao caos, sem princípio unificador seja ele cristão ou newtoniano, o sujeito é, quando muito, um átomo estatístico surfando nas ondas do provável e do incongruente (p.60). - Anos 60: Nova sensibilidade, não linear, não livresca – quântica no seu feitio descontínuo – estava sendo modelada pela TV, a moda, a publicidade, o design, o rock. Era Pop e gregária, dionisíaca e contracultural, experimentadora e sem hierarquias, enfeixando o que seria a revanche pós-moderna dos sentidos contra a inteligência modernista. O consumo desbancava a Bíblia, McLhuan abalava Marx e Dylan silenciava Eliot. Aos escritores americanos do pós-guerra, como Barth, Pynchon, Heller, Vonnegut, Brautingan, só restava não se oporem a essa sensibilidade pelo intelectualismo, mas pesquisar um estilo ou anti-estilo para expor sua face apocalíptica, sua farsa terminal, engendrar uma antiforma para o absurdo sob o guarda-chuva nuclear, numa era de mutação cultural (p.60). - Década de 60 (nos EUA): O romance tradicional perdera a eficácia e a credibilidade. A nova complexidade cultural e social ultrapassava seus meios de espelhar a realidade. - Anteriormente: Dos Passos, Hemingway, Faulkner tinham feito a glória trágica do indivíduo e do tempo esfacelados, tinham explorado os conflitos da consciência alienada a poderosas forças sociais. (...) Esses meios explorados por esses escritores agora pareciam canhestros ante um mundo informacionalmente hiperbólico (p.61). - 1963: Thomas Pynchon – incoerência grotesca mas talentosa (Romance V). - ROMANCE V: Alguma coisa experimental e lúdica igual ao modernismo emergia irredutível, no entanto,
ao modernismo, excluindo muitos dos seus dogmas. Vinha sem revelações epifânicas; descartava o privilégio do artista como guia para iluminar os porões da subjetividade; substituía a psicologia por uma sociologia meio alegórica meio delirante; trocava a originalidade formal pela reciclagem, em paródia, dos vários gêneros; desfazia ou recompunha o enredo sem aludir a uma mítica tomada como quintessência da realidade; criava enfim sem se pretender “cultura superior” (p. 61-62).
Romance Tradicional (Moderno) X Romance Pós-Moderno Argumento de Barth: (...) numa ambiência niilista, desencantada, o romance tradicional, calcado na ilusão verossímil, é um flatus vocis... A solução seria jogar esse impasse intelectual contra si mesmo. Isto é, o romance deve se tornar uma imitação deliberada do romance, dos gêneros literários ou de qualquer outro texto apto a injetarlhe sobrevida. Era a hora da metaficção, literatura sobre literatura, texto que expõe sua fraude e renega o ilusionismo (p.62).
O Burlesco (Autodevoração Criadora) O burlesco (exagero cômico) vai ser o tom dominante da metaficção. Uma estética jocosa, fantasista, nãomodernista, do absurdo passará por ele. Gênero menor, modo temático e estilo narrativo, o burlesco, em ação na literatura inglesa desde o século XVII, surrupiado ao francês Searson, é um dispositivo de paródia que faz rir pela incongruência entre o fundo e a forma (algo assim como transpor a Eneida com a linguagem virgiliana para o meio de uma família calabresa vivendo hoje no Brás). Para fazer rir, o burlesco convoca toda a baixaria: sexo, violência, drogas, loucura, perversão, escatologia, em outras palavras, a parte maldita com a qual o pós-modernismo, sem ilusões ante a sociedade tecnológica, desanca o projeto Iluminista em sua crença na emancipação do homem pelo conhecimento e progresso. Nessa mesma trilha, o burlesco é ainda a ponte intertextual por onde os autores pós-modernos cruzam o fosso (bem modernista) entre arte culta e arte de massa: ficção científica, romance policial, conto de fadas, pornografia, western e quadrinhos são alegremente canibalizados pelos espíritos mais requintados (p.62). METAFICÇÃO Não é apenas uma fisiologia do escabroso e do bizarro, nem os funerais de gêneros que se esgotaram. A metaficção é um contra-romance que imita o romance.
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Ela quer ser uma nova epistemologia literária, um desmascaramento das convenções ficcionais mantidas intactas pelo próprio modernismo, e por aí, criando mundos verbais alternativos, ser um ataque à atualidade, na qual, segundo Borges, é total a contaminação da realidade pelo sonho (p.63). NARRATIVA PÓS-MODERNA (ESSA IDÉIA JÁ SE TORNOU CHAVÃO) - Vitimada pela entropia (volta à desordem), caotiza espaço, tempo e enredo. - Enredo: destruído por saturação (Ler Barth) // Acontecem mais coisas do que a memória pode reter ou seria necessário; ou simplesmente o descartar (ler Donald Barthelme).
(escritor russo) é seu rebento mais radical. Seu fantástico Pale Fire (1962), cujo humor e inteligência metem no chinelo as Écritures, fatura Tel Quel, parodia ao mesmo tempo thriller de espionagem, estudo literário e análise filológica, até consumar-se em delirante máquina intertextual. Pois seu personagem é um poema de 999 versos escrito por John Shade possivelmente a partir de conversas com seu vizinho Kimbote. Mas Kimbote, que tenta provar sua participação na criação do poema, é um homossexual lunático que se crê o exilado e perseguido rei de Zembla, e, com isso, a narrativa nos mantém até o fim flutuando, incertos, entre dois textos e vários níveis de realidade: o objetivo, o delirante, o ficcional (p.66). METAFICÇÃO AMERICANA (Plural nas suas vertentes)
- Não existe curva dramática na narrativa pósmoderna // A curva dramática inexiste e o fim não traz mensagem ética; é antes lugar para glosas. Exemplo: Em Lost in the Funhouse, Barth-Narrador propõe e rejeita vários finais.
- Prosa especializada em poesia concreta;
- PERSONAGENS: Cômicos (a começar pelo nome) // São emblemas bidimensionais com rala psicologia, como se extraídos das histórias em quadrinhos; // São palhaços como nós do acaso (seus desastres não levam à compaixão mas ao riso, pois lembram, na sua inanidade, na sua estupidez, ou na sua frieza, os bonecos beckettianos, em que filósofos europeus têm lido o eclipse do sujeito.
- Formalismo ultrachic;
- TÉCNICA NARRATIVA: Está voltada à incerteza, que na metaficção é endêmica (uma doença). O labirinto é também instável. Pessoa ou pronomes narrativos podem se permutar até no meio de uma frase e ficamos sem saber quem está narrando. // Perda da unidade de tom; // Carga de incerteza, que provoca resistência à leitura, representa a opacidade do mundo à interpretação, o que é obtido mediante a desestabilização de elementos antes intocados da gramática narrativa. // Constatação da narrativa pela narrativa [exemplo (início de um conto): “Percorro a ilha e eu a invento”]. Segue-se, em 55 fragmentos, uma desova, em abismo, de contos de fadas mortos pela narração, mal nascem na narrativa, centrados nos motivos da varinha e do beijo mágicos. (Ler The Magic Poker, de Robert Coover); // No conto “A frase”, de Donald Baethelme, o personagem é a própria frase que está sendo escrita sem ponto algum por oito páginas (p.65).
Intertextualidade Se a intertextualidade – sistemática, carnavalesca – é marca de nascença no pós-modernismo, Nabokov
- Romances; - Pornografias;
- Narrativa picaresca (ironias); - Em comum: Recusam a dourar o bezerro da ciência e da tecnologia na América pós-industrial, e porque, esteticamente, ostentam inventividade e consistência à prova de qualquer crivo crítico. // Os autores de metaficção americana (alguns) pedem atenção especial. THOMAS PYNCHON (1937): Entropia (conto); V (romance); The Crying of Lot 49 (romance – 1966); [Dicionário: entropia = desordem]. JOHN BARTH (1930): The Floating Opera; Chimera; Letters; Sabbatical; Giles Goat-Boy (Giles, o MeninoBode, 1966, 810 páginas); Giles, o Menino-Bode, de John Barth: Alegoria = paródia da Bíblia; releitura de Édipo, com uma paráfrase em versos; farsa da guerra fria entre EUA x URSS; reciclagem burlesca do mito do herói errante (Wandering hero), chupado confessadamente ao livro The Hero With Thousand Faces, de Joseph Campbell. Seu alvo predileto, no entanto, é a ciência. Todos os cientistas são cretinos ou defeituosos, e, logo na terceira página, Max Spielman, pastor de Giles e Psicoproctologista matemático, desvenda o mistério do Universo medindo o ânus das cabras, com uma das quais é amasiado. A metáfora universitária esculacha não só a política como também o ensino americano, onde o passar (pass) ou esmerdear (flunk) é convertido em princípio absoluto. Os computadores, que são autoprogramáveis, simbolizam a troca da liberdade
frente ao destino pela tecnologia, mas também permitem ao ecletismo pós-moderno de Barth a deglutição literária da ficção científica. Em seu pique à Rabelais, símbolos e metáforas a serviço da burla filosófica, Barth castiga numa só verdade: sendo ilusório o heroísmo, viver é passar da fantasia ao saber, da ingenuidade à consciência, mas inutilmente. Se estamos perdidos no mito, estiolamos no saber. Da ilusão perigosa à ciência triste, o percurso é pela desmistificação e o ridículo. Somos uma lucidez desencantada. Se não há fins ideais que norteiem os meios, o niilismo bate no coração do conhecimento. O americano, dizem, vai à Disneylândia para sentir que fora dali sua vida é real. O pós-modernismo está ancorado aqui: na insustentável leveza de não crer nem na realidade nem na ficção. Nesse desvão descrente passeiam os simulacros ofertados pelos mass media, os modelos computacionais, a tecnociência – nova ordem na qual a simulação do romance pela sua
destruição ainda é subversiva, porque invoca clownescamente, se não verdades, ao menos possibilidades atravessadas pelo absurdo, o que é sempre inquietante. Não é outro o motivo da generosa acolhida que essa literatura teve entre os jovens. Na origem dessa virada estética sem dúvida está o fato de que, sem projeto histórico além do consumo, sem novos ideais em substituição aos valores tradicionais, a sociedade pós-industrial abandona o artista à deriva de um pacto patafísico com a entropia: se a desordem é o destino, vamos rir enquanto é tempo. Pois ele sabe que a arte, na visão pós-moderna, não passa de um “sublime excremento” e que chegou tarde demais. Sua voz é vazia, glacial, alusiva, inumana, retrô. O que afinal, para ainda dar o que pensar, não é um privilégio pós-moderno. Como transcreve Barth num surpreendente ensaio publicado nos anos 70, The Literature of Replenishment, o escriba egípcio Khakheperresemb já se queixava 200 anos antes de Cristo: “Tivesse eu frases desconhecidas, palavras singulares numa língua jamais usada...” (pp. 70-71).
2.23 - Pós-Moderno / Narrativas Anos 60 (Momento de Transição para o Pós-Modernismo na Literatura Brasileira) · Nova sensibilidade não linear, descontínua (modelada pela TV, a moda, a publicidade, o design, o rock); · Pop X gregária; · Dionisíaca X contracultural; · Experimentalista X sem hierarquias; · Revanche pós-moderna dos sentidos contra a inteligência modernista · A ideologia americana direcionando · Consumo desbancando a bíblia · McLhuan abalando Marx · Bob Dylan silenciando T. S. Eliot
· Tendência literária inserida numa Era de mudanças culturais. ANTES DE 60 (MODERNISMO) · Exploração dos conflitos da consciência (alienada a poderosas forças sociais) DEPOIS DE 60 (PÓS-MODERNISMO) · Exploração de um mundo informacionalmente hiperbólico; · Algo meio parecido com a tendência modernista (experimentalmente e lúdica), mas excluíndo muito dos seus dogmas. EXEMPLOS: · Excluindo as revelações epifânicas (Clarice Lispector e Guimarães Rosa – epifânicos); · Descartando o privilégio do Artista como guia para “iluminar” os porões da subjetividade;
TENDÊNCIA LITERÁRIA · Sensibilidade (oposição ao intelectualismo);
· Substituindo a psicologia por uma sociologia meio alegórica, meio delirante;
· Pesquisa de um estilo, ou anti-estilo, para expor a face apocalíptica da realidade;
· Trocando a originalidade formal pela reciclagem, em paródia dos vários gêneros;
· Engendramento de uma anti-forma para o absurdo (localizado sob o teto nuclear);
· Desfazendo e recompondo o enredo, sem aludir a um arcabouço mítico (o mítico com quintessência da realidade);
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· Criação sem pretensão a uma “cultura superior”; · Testamento com alegorias onde o apocalipse é um thriller à moda dos quadrinhos.
movimentando e, ao mesmo tempo, sendo construído desordenadamente; Literatura-Viva; - Tentativa de preenchimento discursivo (diferente da forma romanesca tradicional com princípio, meio e fim).
· Literatura-Paródia ou Literatura de Exaustão; MUNDO REAL (VITAL)
· Homenagem aos autores de antes;
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MUNDO FICCIONAL
- Caótico e confuso
- Caótico e confuso
- Fragmentado
- Fragmentado
- Inautêntico
- Inautêntico
- Realidade vital absurda
- Realidade ficcional absurda
· Ambiência niilista, desencantada;
- Homem-objeto
- Personagem-objeto
· Embate intelectual: Literatura X literatura;
OUTRAS CARACTERÍSTICAS:
· Impasse intelectual (o intelectual-indivíduo contra o mundo intelectual circundante) // A narrativa ficcional imitando deliberadamente a narrativa ficcional, os gêneros literários ou qualquer outro texto apto a injetar-lhe sobrevida (METAFICÇÃO: literatura sobre literatura / texto que expõe sua própria fraude e renega o ilusionismo);
-Vida existencial e vida ficcional: várias dimensões que se interpenetram, cada uma possuindo leis próprias e particulares. Por exemplo: vida social, vida íntima, vida conjugal, vida religiosa, etc.
· Sacralização desses autores (principalmente, de Jorge Luis Borges): notas de pé-de-página a textos imaginários;
PÓS-MODERNISMO · AUTODEVORAÇÃO CRIADORA (os instrumentos ainda estavam por inventar, ou reinventar, por isto, o indivíduo-narrador busca no exagero o tom dominante de sua metaficção) - ESTÉTICA DO ABSURDO
- O romancista não aceita o tempo cronológico, linear, previsível, assim, observa-se a confusão espacial e temporal, produzida pelo monólogo interior ou diálogo entre vários “eus” ficcionais que, na verdade, representam uma outra forma de monólogo interior do próprio ficcionista. NARRATIVA PÓS-MODERNA: - Rejeita os valores ficcionais já conhecidos;
CARACTERÍSTICAS ROMANCE - ENSAIO - Detém-se na análise de fatores íntimos e reações psicológicas familiares;
- Registra, por meio de um turbilhão de palavras, a aventura existencial de um herói problemático, o próprio narrador, alter ego do escritor pós-moderno;
- Situado na confluência do existencialismo e do realismo crítico, exprimindo com sutil e desencantada lucidez uma problemática do nosso tempo e situação;
- O herói problemático da segunda metade do século XX e início do século XXI é o próprio escritor (herói problemático de uma narrativa problemática).
- Expressão da vivência do tempo, das relações entre o passado e o presente;
Rejeitando os valores já conhecidos da ficção linear, problematizando a realidade ficcional, o escritor do século XX e início do século XXI só tem duas saídas:
- Escrita revolucionária. A caneta como arma, ou então, como um juiz implacável, questionando, indagando, apontando as falhas do Sistema. Só que este “juiz” não tem respostas para os seus questionamentos e indagações e não tem poder ideológico suficiente para consertar os “erros” que incomodam. -Escrita-Pesquisa - Não há um projeto ficcional que a sustente; - Narrador: não sabe o que vai escrever; - Obra: é a ficção acontecendo; o mundo ficcional se
1a) Como porta-voz da realidade vital, ele imagina também uma realidade objetiva (social ou psicológica). Sua proposta inicial: oferecer aos leitores seu testemunho pessoal de uma realidade que ele almeja decifrar. Ele está vivendo um momento de crise, não sabe como enfrentar o porvir, e a sua obra torna-se o meio de expressão desse desequilíbrio (ou seja, de como estar e permanecer no mundo). 2a) A realidade é apenas um pretexto para o seu narrar. A forma (a palavra) é mais importante para a
realização da narrativa. A forma que dará consistência à sua voz ininteligível, monocórdia, solitária, repleta de “rumores brancos” (ler: Rumor Branco, de Almeida Faria, 1962, ficcionista português). A forma abrangendo, atropeladamente, toda essa realidade. O escritor esvazia as imagens tradicionais, ficcionais, que dão consistência a essa realidade; contesta, desarticula, rejeita as técnicas discursivas já sacralizadas.
NARRATIVA PÓS-MODERNA: Em busca da linguagem primordial. O homem primitivo (o primeiro de uma Nova Era) se apoderando da linguagem, afastado das regras idiomáticas que conduziram a humanidade até então. ESCRITOR PÓS-MODERNO: É o Senhor Absoluto dessa linguagem e, já que não há regras a seguir, está livre para utilizá-la do jeito que quiser.
2.24 - Sobre o Marxismo Independente de Georg Lukács Como Auxiliar nos Estudos de Literatura Pelo Ponto de Vista de Teofilo Urdanoz URDANOZ, Teofilo. História de la Filosofia. Madrid: Biblioteca de autores cristianos, 1985 (Vol. VIII), passim: 33-37. Georg Lukács - iniciador da corrente de marxistas independentes que surgiram fora da Rússia Soviética. // Lukács alcançou especial notoriedade por seus vários desvios da ortodoxia marxista, durante sua longa vida. E também por sua grande fama e influência sobre a corrente neomarxista, graças a sua fecunda atividade literária, como crítico de arte e teórico da estética marxista (p. 33).
Marxismo Revisionista Lukács - pensador marxista, inconformista e recalcitrante. - Abre caminho a uma série de marxistas independentes do mundo ocidental. - Não se satisfaz com o socialismo materialista, que impunha o abandono da cultura das ciências do espírito. A longa e turbulenta vida de Lukács é um caso típico de pensador marxista inconformista e recalcitrante que posteriormente vai servir de exemplo e abrir o caminho a uma série de marxistas independentes do mundo ocidental, recusando-se a ligar-se aos rígidos cânones dogmáticos do marxismo-leninismo” (p. 34). As interpretações pessoais da filosofia marxista desenvolvidas por Lukács renovam, a seu modo, os desvios esquerdista e direitista que foram dados nas discussões internas do marxismo russo. Sua obra, de 1923, História e Consciência de Classe, que revela uma profundeza especulativa superior à dos marxistas de então, representa o revisionismo de esquerda, semelhante ao professado na Rússia por Deborin, ainda que de signo mais radical. No prólogo posterior, de
1967, esclarece (explica) seu sentido, dizendo que o livro ‘significou o intento, provavelmente mais radical, de reatualizar o revolucionário de Marx, mediante uma renovação e continuação da dialética hegeliana e seu método. A empresa resultou porque, paralelamente, ou seja, naqueles mesmos anos se faziam cada vez mais intensas, na filosofia burguesa, as tendências à renovação de Hegel (p. 37).
Propostas de Redações para Avaliação do Professor - Escolher um poema lírico e seu respectivo autor e tecer comentários teórico-críticos sobre o mesmo. Situar também o poema diacrônicamente e sincronicamente. - Desenvolver uma pesquisa teórico-crítica sobre os gêneros literários. - Desenvolver um estudo teórico-crítico sobre o gênero épico. Escolher o poema épico e seu respectivo autor. Situar também o poema escolhido diacronicamente e sincronicamente. - Desenvolver uma pesquisa teórico-crítica sobre o gênero dramático. Escolher o texto dramático e seu respectivo autor. Situar também o texto escolhido diacronicamente e sincronicamente. - Desenvolver uma pesquisa teórico-crítica sobre literatura comparada. Escolher textos literários, brasileiros ou estrangeiros (traduzidos) e seus respectivos autores, textos que propiciem a prática comparativa. Situar também os textos escolhidos diacronicamente e sincronicamente. - Desenvolver pesquisas teórico-críticas sobre PósModerno/Pós-Modernismo, em textos de autores (poetas e/ou ficcionistas) do Século XX. Sugestões: Ler as narrativas Estorvo, de Chico Buarque de Holanda, e O Caso Alice, de Sônia Coutinho (1990).
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2.25 - Imaginação e Mobilidade pelo Ponto de Vista de Gaston Bachelard (Ler: Gaston Bachelard, A Dialética da Duração. São Paulo: Ática, 1988)
- Não permite sonhar e falar obriga a agir.
IMAGINAÇÃO - Faculdade de deformar imagens;
IMAGINAÇÃO SONHADORA = IMAGINAÇÃO SEM IMAGENS
- Faculdade de libertar-nos das imagens primeiras.
- Não se deixa aprisionar em nenhuma imagem cria imagens além de suas imagens
Mudança de imagens IMAGINAÇÃO = AÇÃO IMAGINANTE
IMAGINÁRIO (imaginário-em-aberto) é sempre um pouco mais que suas imagens
União inesperada de imagens Imagem presente que faz pensar numa imagem ausente
aspiração a imagens novas
IMAGINAÇÃO POEMA Imagem ocasional que determina uma prodigalidade de imagens aberrantes, uma explosão de imagens QUANDO NÃO HÁ AÇÃO IMAGINANTE:
necessidade de novidade (para o psiquismo humano)
CONSTITUIÇÃO DAS IMAGENS (ocupação da psicologia da imaginação)
- Há percepção (de algo real); - Há lembrança de uma percepção;
MOBILIDADE DAS IMAGENS (ocupação do poeta)
- Há memória familiar; - Há hábito das cores e das formas. IMAGINAÇÃO/ AÇÃO IMAGINANTE = IMAGINÁRIO (imaginário-em-aberto) IMAGINÁRIO = IMAGINAÇÃO ABERTA = IMAGINAÇÃO EVASIVA ATENÇÃO: Imagem estável não se aplica à criatividade poética. IMAGEM ESTÁVEL - Abandona seu princípio imaginário; - Corta as asas à imaginação; - Se fixa numa forma definitiva; - Assume pouco a pouco as características da percepção presente;
Exemplo de imaginário-em-aberto no âmbito da poesia de João Cabral de Melo Neto: IMITAÇÃO DAÁGUA João Cabral de Melo Neto De flanco sobre o lençol, paisagem já tão marinha, a uma onda deitada, na praia, te parecias. Uma onda que parava ou melhor: que continha; que contivesse um momento seu rumor de folhas líquidas. Uma onda que parava naquela hora precisa em que a pálpebra da onda cai sobre a própria pupila.
Uma onda que parara ao dobrar-se, interrompida, que imóvel se interrompesse no alto de sua crista
mas o clima de águas fundas, a intimidade sombria e certo abraçar completo que dos líquidos copias.
e se fizesse montanha (por horizontal e fixa), mas que ao se fazer montanha continuasse água ainda.
Sugestão para Desenvolvimento de Apreciação Teórico-Crítica pela Ótica da Fenomenologia:
Uma onda que guardasse na praia cama, finita, a natureza sem fim do mar de que participa, e em sua imobilidade, que precária se adivinha, o dom de se derramar que as águas faz femininas
Ler os livros filosóficos de Gaston Bachelard e, posteriormente, aplicar os conhecimentos adquiridos na elaboração de textos monográficos sobre ficcionistas e poetas brasileiros e portugueses (ou mesmo de outras nacionalidades, como escritores espanhóis ou ingleses, se o aluno se sentir capacitado e motivado para tal empreitada).
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Se você: 1) 2) 3) 4)
concluiu o estudo deste guia; participou dos encontros; fez contato com seu tutor; realizou as atividades previstas;
Então, você está preparado para as avaliações. Parabéns!
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