Freud Skinner Wa W all llo on Lacan Piaget V ygots tsk ky
In tr o d u ç ã o à Psicologia da Educação c' sAbordagens bordagens Kester Carrara (organizador) Adrián Oscar Dongo Montoya Elena Etsuko Shirahige José Sterza Justo Kester Carrara Maria Letícia B. P. Nascimento Marília Matsuko Higa Suely Amaral Mello
Av k r c amp amp . 11)1 I OH A
In t r o d u ç ã o à P s i c o lol o g iai a d a Educação
importância importâ ncia da Psicologia Psicolo gia no no processo proce sso eductl eductl cional é tão evidente evident e quanto polêmica. polêmic a. Não d sem razão que, em dado momento histórico, apenas esln ou aquela abordagem, dc acordo com o prestígio ulcunçn do, constitui preferência - às vezes vezes verdadeiro modlsmodlsmo - entre os educadores e/ou órgãos oficiais que que patrocinam patroc inam o modelo de educaç ed ucação ão a ser adotado. () falo é que a formulação de cada abordagem, quer pela concepção de homem que contém, quer pelos pressti postos teóricos teó ricos adotado a dotadoss ou pelos seus desdobram de sdobramentos entos práticos, prático s, necessa nec essariam riamente ente implica uma estrutura de política polític a educacional, educac ional, um con conjunto junto de objetivos objetivo s cspecíl í cos na formação acadêmica e um projeto socioculltual típico. As abordagens psicológicas, nessa perspectiva, são muitas, mas nem todas com repercussão significai! va no contexto educacional.
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Nesta obra os autores apresentam aprese ntam caminhos cam inhos diferentes dife rentes e i igualmente importantes a serem conhecidos pelos | educadores. Propostas Propostas de estudiosos são examinadas do modo abreviado e em linguagem acessível, todavia evitando-se qualquer superficialidade desnecessária Os textos, que também podem ser utilizados separada mente, são indicados para professores que queiram i compreender melhor as diferentes abordagens, hem como para graduandos de Pedagogia e cursos afins afins com i interesse em iniciar um contato com alguns dos princi pais enfoqu enfoques es da Psicologia Psic ologia da Educação. Educaçã o.
Avkr camp . EDITORA
In t r o d u ç ã o à P s i c o lol o g iai a d a Educação
importância importâ ncia da Psicologia Psicolo gia no no processo proce sso eductl eductl cional é tão evidente evident e quanto polêmica. polêmic a. Não d sem razão que, em dado momento histórico, apenas esln ou aquela abordagem, dc acordo com o prestígio ulcunçn do, constitui preferência - às vezes vezes verdadeiro modlsmodlsmo - entre os educadores e/ou órgãos oficiais que que patrocinam patroc inam o modelo de educaç ed ucação ão a ser adotado. () falo é que a formulação de cada abordagem, quer pela concepção de homem que contém, quer pelos pressti postos teóricos teó ricos adotado a dotadoss ou pelos seus desdobram de sdobramentos entos práticos, prático s, necessa nec essariam riamente ente implica uma estrutura de política polític a educacional, educac ional, um con conjunto junto de objetivos objetivo s cspecíl í cos na formação acadêmica e um projeto socioculltual típico. As abordagens psicológicas, nessa perspectiva, são muitas, mas nem todas com repercussão significai! va no contexto educacional.
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Nesta obra os autores apresentam aprese ntam caminhos cam inhos diferentes dife rentes e i igualmente importantes a serem conhecidos pelos | educadores. Propostas Propostas de estudiosos são examinadas do modo abreviado e em linguagem acessível, todavia evitando-se qualquer superficialidade desnecessária Os textos, que também podem ser utilizados separada mente, são indicados para professores que queiram i compreender melhor as diferentes abordagens, hem como para graduandos de Pedagogia e cursos afins afins com i interesse em iniciar um contato com alguns dos princi pais enfoqu enfoques es da Psicologia Psic ologia da Educação. Educaçã o.
Avkr camp . EDITORA
In tr o d u ç ã o à Psicologia da Educação Cnc
A b o r d a g en s
Kester Carrara (organizador) Adrián Oscar Dongo Montoya Elena Etsuko Shirahige José Sterza Justo Kester Carrara Maria Letícia Let ícia B. P. Nascime Nasc imento nto Marília Matsuko Higa Suely Amaral Mello
COPYRIGHT © 2004 by I DITORA AVERCAMP LTDA. Av Ir,ií, 79 - c j. 35B 04082-000 - São Paulo - SP Tel./Fax.: (11) 5042-0567 Tel.: (11) 5092-3645 E-mail:
[email protected] Site: www.avercamp.com.br Impresso no Brasil. Printed in Brazil. 1'1edição 2004 1J reimpressão 2005; 3a reimpressão 2007; 5'1reimpressão 2010; 7a reimpressão 2012; 9areimpressão 2014
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida sejam quais forem os meios empregados sem a permissão, por escrito, da Editora. Aos infratores aplicam-se as sanções previstas nos artigos 102, 104, 106 e 107 da Lei n° 9.610, de 19 de fevereiro de 1998.
2a reimpressão 2006; 4a reimpressão 2008; 6a reimpressão 2010; 8- reimpressão 2014 (PLT);
Capa: LUMMI Produção Vifcrat e Assessoria Ltda.
Composição:
Prc dução:
LUMMI Produção Visual e Assessoria Ltda.
*A44ana Mauro
Este livro contempla ^ Nova Qftnprnfin rln I ím^n-rTmilIfjnr-~i de acordo com o Decreto no 6.583, de 29 de setembro de 2008. Este livro contempla a Nova Ortografia da Língua Portuguesa, de acordo com o De creto n ô 6.583 , de 29 de setem bro de 200 8.
Dados I nt er naci onai s de Cat al ogação na Publ i cação ( CI P)
148 I nt r odução à psi col ogi a da educação: sei s abor dagens / Kest er Car r ar a ( or gani zador ) . — São Paul o: Aver camp, 2004. I ncl ui bi bl i ogr af i a. I SBN 978- 85- 89311- 13- 7 1. Psi col ogi a educaci onal . 2. Educação. 2 Psi canál i se. I Car r ar a, Kest er .
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\ O -■..... s Sobre os A utores
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/ ° Sjqos .
- Livre-docente do Departamento de Psicologia da Educação e professor do Programa de Pós-Gra duação em Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP, Marília-SP.
A d r iá n Oscar Do n g o M o n t o y a
- Psicóloga clínica e educacional, doutora pela Faculdade de Educação da USP, docente do Curso de Pós-Graduação em Psicopedagogia da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
El ena Et suko Shir ahige
- Professor-assistente doutor do Departamento de Psicologia Evolutiva, Social e Escolar da Faculdade de Ciên cias e Letras da UNESP, Assis-SP.
José St er za Ju st o
- Livre-docente do Departamento de Psicologia da Faculdade de Ciências da UNESP, Bauru-SP e professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da FFC/UNESP, Marília-SP. (e-mail:
[email protected] )
Kest er Car r ar a
- Pedagoga, doutora em Educação pela Faculdade de Educação da USP, professora do Curso de Pe dagogia da Universidade Presbiteriana Mackenzie na área de Educação Infantil.
M ar ia Let ícia B. P. Nasciment o
6 • Intro dução u Psicologia da Educação
- Psicóloga, doutoranda em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP, professora-assistente do De partamento de Psicologia da Educação da Faculdade de Filo sofia e Ciências da UNESP, Marília-SP.
M ar íl ia M at suko Hig a
- Professora-assistente, doutora do Departamen to de Didática e docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP, Marília-SP.
Suel y A mar al M e l l o
v^ t \ l a ç âo . ' 0 $ ç a t n e s e r p ^ p t
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2 Apresentação
Há diversas maneiras pelas quais pode ser organizado um texto introdutório de Psicologia da Educação. Pode-se adotar um enfoque teórico específico, abordado por um único autor; pode-se apresentar um material orientado pelos parâmetros teóricos direta ou indireta mente sugeridos pelos órgãos oficiais; pode-se também organizar um texto centrado nas questões candentes que permeiam o debate no ce nário atual da Educação. Respeitados os variados contextos, as alter nativas são igualmente válidas e possíveis, até mesmo pelo fato de que, excedido o limite imposto pelos objetivos do material, um texto que pretenda responder a todas as possibilidades perde a condição de introdutório e passa a exigir do leitor um esforço que vai além da conotação didática do contato inicial com determinado assunto. Não foi diferente com este livro. Deparamo-nos com a incum bência preliminar de eleger a forma de apresentação do material. Es colhido apenas um enfoque teórico, qualquer que fosse, estaria esta belecido o primeiro viés da apresentação de um texto introdutório de Psicologia da Educação. No presente trabalho, porém, ainda que al gumas óticas importantes precisassem ser deixadas de lado, a possi bilidade de escolher apenas um viés teórico foi minimizada face à liberdade de convidar alguns colegas para discorrerem sobre o assun to à luz de diferentes abordagens. Assim se procedeu, reunindo ao menos seis entre diversas formas relevantes (e, por vezes, polêmicas)
8 • Intiodu^uo à Psicologia da Educa^ao
de abordar as contribuições da Psicologia à Educação. Os autores con vidados são profissionais reconhecidos pela sua identificação com os assuntos de que tratam e pelo trabalho de ensino e pesquisa que têm conduzido ao longo dos últimos anos. Sabe-se, adicionalmente, que quaisquer conceitos tratados, ain da que em texto de interesse genérico, ensejam a possibilidade de interpretações e leituras diferentes. Talvez constitua uma deficiência deste trabalho a concisão dos textos, que, embora justificada pela na tureza do livro, pode semear indagações ao leitor incipiente. Por ou tro lado, é visível uma certa irregularidade quanto ao nível de dificul dade das leituras: optou-se por ir e vir entre o conceituai e o cotidia no, entre os exemplos e a teoria, entre as polêmicas e o consenso. Por isso, o leitor pode ter, às vezes, a impressão de uma leitura densa, e, em outros momentos, ter a sensação de uma apresentação simplificada do material. O importante, para que o texto seja produtivo, é que ele proporcione um cotejamento transparente das abordagens, tomando como pressuposto que nenhuma delas se pretende melhor ou pior, e também que esteja disponível à apreciação inaugural do leitor que pensa aprofundar suas incursões à Psicologia da Educação. Pela característica introdutória dos textos, o leitor encontrará pela frente um material apresentado de forma sintética (mas razoavelmen te estruturada) e simples (mas não superficial). Apreendidos os con teúdos, por certo estará preparado para leituras mais densas, recomen dadas ao final dos textos pelos próprios autores. Os textos apresentam teorias de certo modo clássicas, porém si nalizam para um debate atualizado de conceitos e dão margem, para o leitor atento, à escolha de um entre vários caminhos que, em tese, podem levar à educação emancipadora. Sem dúvida, o leitor deve considerar não ser passível nem recomendável nenhuma aplicação asséptica dos pressupostos apresentados, uma vez que a Psicologia, de fato, ainda que amparada em cuidados com eventuais cânones de cientificidade, não pode prescindir da compreensão da complexa na tureza ético-política das práticas educacionais.
Kester Carrara
x<\o • Surriá «ar m o i r á m u S
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Sumário
Capítulo I - A Contribuiç ão da Psicanálise à Educação
13
Elena Etsuko Shirahige • Marília Matsuko Higa
1.1 O Que É Psicanálise? 13 1.2 Como Surgiu a Psicanálise? 13 1.3 A Estrutura da Personalidade 17 1.3.1 Oid 17 1.3.2 O ego 18 1.3.3 O superego 19 1.4 Processos Mentais: o Inconsciente, o Consciente e o Pré-Consciente 19 1.4.1 O inconsciente 20 1.4.2 O consciente 20 1.4.3 O pré-consciente 20 1.5 A Dinâmica da Personalidade 21 1.5.1 O instinto (impulso instintivo ou pulsão) 21 1.5.2 Quantos instintos existem? 23 1.5.3 Distribuição da energia psíquica 24 1.5.4 Mecanismos de defesa do ego 24 1.6 Fases do Desenvolvimento da Sexualidade Infantil 27 1.6.1 Fase oral 28 1.6.2 Fase anal 28 1.6.3 Fase fálica 29 1.6.4 Período de latência 34 1.6.5 Fase genital 34 1.7 Contribuição da Psicanálise à Educação 35
10 • Introd ução à Psicologia da Educação
A revolucionária teoria de Freud contribuiu de alguma forma para a aducação? 35 1.7.2 A educação e o conceito de transferência 36 1.7.3 A educação e o processo de sublimação 37 1.7.4 A educação e a sexualidade 38 1.7.5 A educação e os impulsos parciais 38 1.7.6 Psicopedagogia e psicanálise 40 Exercícios 42 Glossário 42 Referências 45 Leituras Recomendadas 46 1.7.1
Capítulo II - A Criança Concreta, Completa e Con textu alizada: a Psicologia de Henri Wallon
47
Maria Letícia B. P. Nascimento
11.1 Constituição da Subjetividade e Construção do Conhecimento: o Desenvolvimento Infantil 49 11.2 A Consciência de Si: Integração e Conflitos Eu-Outro 52 11.3 Emoção: Simultaneamente Orgânica e Social 56 11.4 O Movimento e suas Dimensões 58 11.5 O Pensamento: Origens e Uso da Linguagem 60 11.6 Psicologia e Educação 63 Exercícios 65 Obras 67 Referências 68 Bibliografia de Apoio 68 Capítulo III - A Psic análise Lacaniana e a Educação
71
José Sterza Justo
II I.1 A Linguagem e a Cultura na Constituição do Sujeito 75 II 1.2 A Importância do Espelho na Constituição do Sujeito 83 III.3 Sobre as Fundações 89 II 1.4 Espelhismos, Heranças e Desejos na Educação 92 Exercícios 103 Glossário 10 4 Referências 107 Capítulo IV - Behavioris mo, Análise do Comp ortamento e Educação Kester Carrara
IV.l
Princípios Básicos da AEC 114 1V.1.1 Distinção operante-respondente 114 IV. 1.2 Reforçamento e punição 115
109
Su má rio I 11
IV.1.3 Tipos de reforçadores 116 IV.1.4 Controle de estímulos 117 IV.1.5 Esquemas de reforçamento 118 IV. 1.6 Aproximações sucessivas 119 IV.1.7 Reforçamento diferencial 119 IV. 2 AEC e Educação: Controvérsias e Novas Perspectivas Exercícios 132 Referências 132 Leituras Recomendadas 133 Capítulo V - A Escola de Vyg ots ky
120
135
Suely Amaral Mello
V. V.2 V.3 V.4 V.S
l Introdução 135 O Ser Humano Constrói sua Natureza 137 Educação e Desenvolvimento Humano 139 Aprendizagem e Desenvolvimento 142 Alguns Elementos para Compreender a Aprendizagem 143 V.5.I As zonas de desenvolvimento e o papel do educador 143 V.S.2 Em que circunstâncias as crianças aprendem? 145 V.5.3 O conceito de atividade e a atividade principal 146 V.5.4 A aprendizagem como processo compartilhado 148 V.5.5 A criação de novos motivos, interesses e necessidades 149 V.6 A Criança Competente 152 V. 7 A Guisa de Conclusão 153 Exercícios 154 Leituras Recomendadas 154 Capítulo VI - Contribuições da Psicologia e Epistemologia Genéticas para a Educação
157
Adrián Oscar Dongo Montoya
VI. 1 A Psicologia e a Epistemologia Genéticas: Noções Gerais 158 VI.2 Pesquisas sobre o Conhecimento Lógico-Matemático e suas Implicações Educacionais 161 VI.3 Pesquisas sobre o Conhecimento Físico e suas Implicações Educacionais 163 VI.4 Pesquisas sobre os Conhecimentos Sociais e Culturais e suas Implicações Educacionais 172 VI.5 Pesquisas sobre o Desenvolvimento Moral e suas Implicações Educacionais 175 VI.6 Pesquisas sobre as Origens e Desenvolvimento da Linguagem e suas Implicações Educacionais 179 VI.7 Outras Pesquisas 182 Exercícios 182 Referências 183
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o l u t i p a C
Elena Etsuko Shirahige • Marília Matsuko Higa — ---------------------------------------
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A Contribuição da Psicanálise à Educação
0 Q ue É P s ic a n á l is e ?
A Psicanálise é Psicologia? Um psicólogo pode ser psicanalista? O que é analista? O termo Psicanálise costuma suscitar confusões e vale a pena fazer um esclarecimento inicial a respeito dele. A expressão Psicanálise designa uma ciência, uma área de co nhecimento, uma escola psicológica que busca penetrar na dimensão profunda do psiquismo humano para conhecê-lo. Enquanto ciência, possui um método, um conjunto de procedimentos para o estudo dos fenômenos humanos. Assim, com o termo Psicanálise podemos nos referir também ao método que lhe é peculiar, neste caso, o método de associação livre, que é um método interpretativo. Podemos ainda nos referir à forma do próprio tratamento psicológico, utilizando as expressões Psicoterapia, Terapia Analítica ou Psicanalítica ou simplesmente Psicanálise.
1.2
Co mo S u r g iu a P s ic a n á l is e ?
Em meados do século XIX, na Alemanha, a Psicologia surgiu como ciência independente, cujo objeto de estudo consistia na análise da consciência. Esta era concebida como se fosse composta dc ele-
14 • Intiod uMi o á Psicologia da Educação
inentos estruturais em estreita ligação com os órgãos dos sentidos. Por exemplo: a sensação visual da cor era correlacionada com mu danças fotoquímicas na retina do olho. Várias críticas com argumentos diferentes foram dirigidas a essa concepção e as grandes polêmicas da época diziam respeito aos ele mentos básicos da consciência e sua forma de composição. Sigmund Freud, um dos críticos dessa visão tradicional, alegava que a análise da consciência era limitada e inadequada, pois a compreensão dos motivos fundamentais do comportamento humano requeria um outro elemento: o inconsciente. Ele comparou a mente a uma montanha de gelo flutuante, cuja parte visível da superfície representava a consciên cia e a submersa, a parte maior, representava o inconsciente. Nessa vasta região do inconsciente encontram-se os impulsos, as idéias e os sentimentos reprimidos, enfim as forças vitais e invisíveis que exer cem controle sobre os pensamentos e ações conscientes do homem. Assim, coube a ele o mérito da descoberta do nível inconsciente da personalidade, o que revolucionou e ampliou o horizonte do estudo do homem. Por essa razão, sua teoria é chamada Psicologia Profunda. Sigmund Freud nasceu em 6 de maio de 1856, na Morávia, e morreu em 23 de setembro de 1939, em Londres. Viveu a maior parte de sua vida em Viena, deixando a cidade apenas durante a ocupação nazista. Em 1873, matriculou-se na Escola de Medicina da Universidade de Viena, graduando-se oito anos depois. Embora nunca tivesse pen sado em clinicar, as oportunidades acadêmicas, escassas para um ju deu, forçaram-no a exercer sua profissão. Seu interesse pela Neurolo gia levou-o a especializar-se no tratamento de doenças nervosas. Seus pressupostos básicos surgiram não só dos estudos em Neurologia como também de sua preocupação terapêutica com os doentes men tais, o que o levou a focalizar o aspecto anormal da personalidade. Foram mais de 40 anos de um longo caminho de descobertas até chegar ao vasto acervo que constitui, hoje, a teoria psicanalítica. Para isso, foram importantes e decisivas algumas parcerias das quais Freud pôde extrair pontos que, paulatinamente, foram moldando seu pensamento. Podemos citar, dentro dessa perspectiva, o seu estudo, em Paris, com Jean Charcot, famoso psiquiatra francês que utilizava hipnose no tratamento de histeria, cujos sintomas variam desde vômitos persis
Capítulo I * A Contribuição da Pskanàliso à Educaçao I IS
tentes até alucinações visuais contínuas, passando por contrações, paralisias faciais, perturbações da visão, ataques nervosos e convul sões. Durante a hipnose, Charcot provocava o aparecimento e o desa parecimento desses sintomas histéricos. Isso mostrou para Freud que não havia comprometimento físico ou neurológico dos pacientes, como se acreditava naquela época. A partir dessa experiência, Freud concebeu o primeiro postulado de sua teoria, qual seja, a natureza psí quica da histeria. Outro fato relevante foi observar os pacientes após a hipnose, pois eles adotavam as condutas que lhes eram sugeridas durante o sono hip nótico. Freud concluiu que não apenas os conteúdos conscientes influen ciavam o comportamento humano, mas também os inconscientes. Essas descobertas quanto à natureza psíquica das neuroses e à possibilidade de o inconsciente influenciar a conduta foram cruciais e constituíram ponto de partida para o desenvolvimento da teoria freu diana sobre o psiquismo do homem. Outra experiência decisiva foi seu trabalho com Breuer, um mé dico vienense que utilizava um método pelo qual o paciente ficava curado de seus sintomas pelo processo de falar sobre si próprio. Freud encontrou nesse método catártico (cura pela fala - a palavra catarse vem do grego e significa purificação) um caminho para alcançar os conteúdos inconscientes que havia postulado. No tratamento de pa cientes histéricos, Freud observou que, durante o sono hipnótico, quan do os pacientes respondiam a perguntas, algumas palavras lhe pareciam mais significativas, carregadas de conteúdo emocional. Pediu, então, que os pacientes contassem tudo o que lhes viesse à mente ao serem mencionadas novamente essas palavras. Os pacientes relatavam his tórias cujos conteúdos apresentavam ligação estreita com os fatos ocorridos na vida deles. Surpreendentemente, após essas sessões, Freud e Breuer observaram uma melhora significativa nos pacientes, como se eles tivessem se purificado dessas lembranças. Dessas experiências, Freud concluiu que os fatos ou aconteci mentos que ficavam aparentemente esquecidos eram cruciais na de terminação do atual comportamento manifesto do indivíduo. Além disso, mediante o uso do método catártico de Breuer, Freud desenvol veu seu método de associação livre. Neste método, solicita-se ao pa ciente que relate tudo o que lhe venha à mente, sem restrições e sem preocupação com a lógica e significação. A utilização desse método possibilitou a Freud enfatizar a importância das ocorrências da pri meira infância sobre a formação da personalidade do indivíduo e sua
16 • Introd ução ó Psicologia da Educação
posterior evolução e descobrir a associação de cada ocorrência com outras, formando uma cadeia. Freud e Breuer trabalharam juntos no estudo de alguns casos de histeria; no entanto se separaram por causa de divergências quanto à origem da doença. O argumento de Freud era que conflitos sexuais causavam a histeria, mas Breuer mantinha uma visão tradicional, o que os levou ao distanciamento. Assim, Freud passou a trabalhar sozinho, desenvolvendo suas idéias, o que resultou na publicação de sua primeira grande obra A interpretação dos sonhos, em 1900. Outras obras se seguiram, cha mando a atenção dos médicos e cientistas de várias partes do mundo. Dentre elas, Psicopatologia da vida cotidiana (1904), Instintos e suas vicissitudes (1915), Introdução geral à Psicanálise (1917), Novas li ções introdutórias sobre a Psicanálise (1933) e, sua última obra, Esbo ço de Psicanálise (1940). As obras completas de Freud foram publicadas postumamente e constam de 24 volumes na edição inglesa de 1953. É importante lembrar a relevância dos estudos de Freud com pacientes histéricas para a elaboração da teoria psicanalítica. Nesses estudos há, segundo o autor, uma supervalorização da história de se dução relatada pelas pacientes. No entanto, por meio deles descobriu-se a importância das fantasias na vida mental dos pacientes. Por trás dessas fantasias, desvelou-se o material que permitiu a Freud traçar o desenvolvimento da função sexual. Dessa descoberta resultou o tra balho intitulado A sexualidade infantil , que chocou a sociedade da época e serviu de pretexto às resistências contra a Psicanálise. A con sequência mais importante da obra foi colocar por terra um dos pila res da teoria da sexualidade, ou seja, a constituição da sexualidade como própria do período da puberdade. Mas, como veremos adiante, o conceito de sexualidade empregado por Freud é um pouco diferente daquele que marca o senso comum em torno do assunto. Freud teve vários seguidores, destacando-se entre tantos Emest Jones, da Inglaterra, que redigiu, mais tarde, uma biografia de três vo lumes de seu mestre; Carl Gustav Jung, de Zurique; Karl Abraham, de Berlim; Alfred Adler, de Viena etc. Jung e Adler separaram-se posterior mente do grupo e desenvolveram pontos de vista particulares. Freud criticou as práticas educacionais de sua época. No entan to, não há em sua obra tratado sobre educação. Esse assunto foi en globado em outro, mais geral, o das relações entre o indivíduo e o que ele chamou de “civilização”. Enquanto seus contemporâneos atri
Capítulo I • A Contribu ição da Psicanálise à Educaçao I 17
buíam o aumento do número de doenças mentais aos danos produzi dos pela civilização industrial moderna, Freud dirigiu suas críticas à moral sexual civilizada. Para ele, a atitude moral diante da sexualida de era responsável pelas neuroses. A educação, enquanto veícúlo des sa moral, era seu agente propagador; portanto, sua reforma constitui ría uma via mais curta para a transformação da moral sexual. Caberia aos educadores, munidos de conhecimento sobre a Psicanálise, a tare fa de prevenir as neuroses. Mais tarde, porém, Freud abandonou essa esperança depositada em tal função profilática da educação. Relataremos, em seguida, as idéias de Freud acerca da teoria da personalidade, mais especificamente, os conceitos básicos de sua teo ria, o desenvolvimento do indivíduo e sua contribuição à educação.
1.3
A Es t r u t u r a d a P e r s o n a l id a d e
A Psicanálise, ao estudar o aparelho psíquico do indivíduo, divide-o em regiões e instâncias: o id, o ego e o superego. A personalida de é composta desses três sistemas e o comportamento é resultante da interação entre eles. Embora cada um desses sistemas tenha suas pró prias funções, princípios operantes, dinamismos e mecanismos, os três atuam de uma forma tão estreita que é difícil determinar os seus efei tos separadamente.
1.3.1
O
id
O id é a instância original da psique, é a matriz dentro da qual o ego e o superego se diferenciam. É um substrato contendo tudo o que é psicologicamente herdado, de onde provêm os impulsos ou pulsõcs (tradução mais comum em português). Seus conteúdos são as repre sentações psíquicas dos instintos, ou seja, representações do mundo interno da experiência subjetiva, a verdadeira realidade psíquica como Freud o chamou. Está intimamente relacionado com os processos corporais, dos quais retira sua própria energia; portanto, é o reserva tório da energia física que põe em funcionamento os outros sistemas. Podemos dizer que é o componente biológico da personalidade. Quando ocorre uma estimulação externa ou uma excitação inter na, o nível de tensão do organismo se eleva e o id funciona de tal
IH • Intioiluçuo ò Psicologia da Educação
maneira visando a descarregar imediatamente essa tensão, pois não tolera energias muito intensas. Procura fazer com que o organismo retorne e permaneça num nível de conforto e baixa tensão. Esse princípio de redução da tensão é denominado princípio do prazer. Para realizar esse objetivo, o id dispõe de dois processos: a ação reflexa e o processo primário. O organismo é equipado por ações reflexas, que são reações automáticas e inatas, como tossir, espirrar, piscar etc., que reduzem imediatamente as tensões. Já no processo primário a redução da tensão se dá pela formação da imagem mental do objeto desejado. Por exemplo, quando uma pessoa está faminta, ela forma a imagem mental da comida como uma maneira de satisfazer seu desejo. Para Freud, um outro exemplo ilustrativo do processo primário é o sonho, que representa sempre a satisfação ou a tentativa de satisfação de desejos. Ocorre que a imagem mental da comida para uma pessoa faminta não reduz sua tensão ou sua fome. Ela precisa procurar, encontrar e consumir alimento para satisfazer, de fato, sua fome. Dessa forma, entra em ação a segunda estrutura do sistema: o ego. Este opera no nível da consciência, fazendo o indivíduo partir em busca da realização concreta do seu desejo. Podemos dizer que, ao nascer, o indivíduo é puro id e é puro inconsciente. Mediante o contato com a pressão da realidade, a massa indiferenciada vai se estruturando e formando o ego.
1.3.2
O
EGO
E o responsável pelo contato com o ambiente, com a realidade externa, e constitui a sede de quase todas as funções mentais. Podemos dizer que é o componente psicológico da personalidade. Enquanto o id conhece apenas a realidade subjetiva da mente, o ego é capaz de diferenciar entre ela e a realidade do mundo externo. No exemplo da pessoa faminta, o ego é capaz de diferenciar a imagem mental da comida (realidade subjetiva) e a percepção real dela como existe no mundo externo (realidade externa). Para o id interessa apenas saber se uma experiência é agradável ou desagradável (princípio do prazer). Já o ego quer se certificar se uma experiência é falsa ou real, se tem existência externa ou não.
Capítulo I • A Contribuição da Psicanálise o Edutaçao I 19
Enquanto isso, retém a descarga imediata da tensão até que seja encon trado o objeto apropriado para a satisfação da necessidade, suspenden do, temporariamente, o princípio do prazer. Por essa razão, dizemos que o ego é regido pelo princípio da realidade e opera, em função dis so, por meio do processo secundário. O ego, por meio desse processo secundário, elabora um plano para satisfazer a necessidade e depois o testa a fim de verificar a fun cionalidade de sua ação. Cabe a ele controlar as direções da ação, bem como selecionar a quais aspectos do meio deverá reagir e quais instintos devem ser satisfeitos. O ego, por ser a parte organizada do id e por possuir a função de realizar os objetivos dessa instância primá ria, desempenha, assim, a difícil tarefa de integrar as exigências, muitas vezes antagônicas, do id, do meio ambiente e do superego. E o intermediário entre as exigências instintivas do organismo e as con dições do ambiente.
1.3.3
O SUPEREGO
Último sistema a se desenvolver, o superego nada mais é do que uma parte bastante diferenciada do ego, a tal ponto que podem se con trapor frontalmente. É o censor das funções do ego e decide se algo é certo ou errado, de modo a garantir que uma pessoa aja em harmonia com os padrões sociais vigentes. E o árbitro moral internalizado, ou seja, o representante interno dos valores e ideais da sociedade transmi tidos e reforçados pelo sistema de punições e recompensas impostas à criança pelos pais. Portanto, representa mais o ideal do que o real, tende mais à perfeição do que ao prazer e, podemos dizer, é o compo nente social da personalidade. Dessa forma, bloqueia os impulsos do id, principalmente os de natureza sexual e agressiva, pois são os impul sos mais condenados pela sociedade quando exteriorizados.
1.4
P r o c es so s M e
e n t a is : o
I n c o n s c i en t e ,
o
Co n s c ie n t e
o P r é -C o n s c i en t e
Segundo Freud, o conteúdo da mente pode ser: inconsciente, consciente ou pré-consciente.
VO • Int ro d u zo ò Psicologia da Educação
1.4.1 O
INCONSCIENTE
No modelo freudiano, o inconsciente é o lugar teórico dos im pulsos instintivos ou pulsões e das representações reprimidas ou da quelas que nunca puderam chegar à consciência. No inconsciente há energia instintiva livre e representações que podem ser carregadas com essa energia e influir no funcionamento da consciência. Há uma série de forças impulsionando a vida mental. Essas forças ou impulsos instintivos representam as necessidades do organismo humano e de seu psiquismo, como a fome, o sexo, a curio sidade etc. Há, porém, necessidades ou impulsos instintivos antagôni cos, frontalmente contrários às normas da socialização, como certos desejos sexuais e agressivos, cujo acesso à consciência é proibido pela censura interna, não permitindo que cheguem a ser representados cons cientemente. Esse mecanismo de proibição denomina-se repressão ou recalque. O id, modelo estrutural da psique desenvolvido por Freud, é puro inconsciente.
1.4.2 O
CONSCIENTE
Tudo o que conhecemos é consciência: a percepção do mundo objetivo, as lembranças, os sentimentos, o pensamento e a percepção do mundo subjetivo, ou seja, como concebemos as lembranças, os sentimentos, os sonhos, os devaneios. Um conteúdo mental para ter acesso à consciência precisa ser um acontecimento perceptível.
1.4.3 O
PRÉ-CONSCIENTE
E o sistema psíquico que serve de intermediário entre o incons ciente e a consciência. Nele estão as representações que podem se tor nar conscientes, desde que o sujeito se interesse por elas, e as represen tações de fatos esquecidos, incômodos, mas não censurados no âmbito do inconsciente, em que se verifica uma proibição que dificulta sua evocação, uma força para afastá-los da consciência. Esse mecanismo denomina-se supressão. A pré-consciência tem a função de selecionar os atos motores e as vias de pensamento para a consciência. Vimos que a consciência exige que o conteúdo mental seja perceptível. No entan to, a maioria dos acontecimentos mentais não possui essa qualidade,
Capitulo I • A Contribu ição da Psicanálise à Educaçao I 71
mas pode ser representada na consciência por estar ligada a lembran ças verbais ou sensoriais que têm essa qualidade necessária. Essas representações verbais ou sensoriais, por pertencerem ao sistema pré-consciente, são facilmente acessíveis à consciência. O pré-consciente está separado do sistema inconsciente pela cen sura, que não permite a passagem de seus conteúdos para o pré-consciente sem sofrerem transformações. O ego, uma das estruturas da personalidade, liga-se estreitamen te ao sistema pré-consciente/consciente, mas há também funções in conscientes do ego, os mecanismos de defesa.
1.5
A D in â m ic a d a P e r s o n a l id a d e
Dada a apresentação das estruturas (o id, o ego e o superego) que compõem a personalidade e as qualidades dos conteúdos men tais, como elas atuam no funcionamento de uma pessoa? Embora cada estrutura tenha denominação particular e opere se gundo princípios distintos, em circunstâncias habituais, esses sistemas trabalham como uma unidade completa sob o gerenciamento do ego. Bem, para algo funcionar há necessidade de um elemento que o faça se mover. Nessa perspectiva, Freud sofreu a influência da filoso fia positivista e determinista da época. O homem era visto como um sistema complexo de energia, a qual se originava da alimentação e era gasta tanto nos processos fisiológicos como respiração, circula ção, digestão etc. quanto nas atividades como pensamento, memória etc., enfim, a energia era definida em termos da ação que ela desenca deava. Para Freud, então, era pertinente referir-se à energia psíquica se a ação traduzisse uma atividade psicológica. E essa energia, segun do o princípio da conservação, jamais poderia ser subtraída do total da energia cósmica, embora pudesse passar de um estado ao outro. A energia psíquica, portanto, podia ser convertida em energia física e vice-versa. O id, com seus instintos, era o ponto de contato entre es sas duas energias, a do corpo e a da personalidade.
1.5 .1 O INSTINTO (IMPULSO INSTINTIVO OU PULSÃO)
Trata-se de uma representação psicológica inata de uma fonte de excitação corpórea. A representação psicológica chama-se desejo e a
22
•
Intio du uio ò Psicologia da Educação
excitação corpórea que o causa denomina-se necessidade. Por exem plo, no caso de uma pessoa faminta, ao afirmarmos que os tecidos do organismo apresentam deficiência nutritiva, estamos nos referindo ao estado fisiológico. Há, portanto, necessidade de alimentação. A re presentação psicológica desse estado é o desejo de alimentar-se. A pessoa faminta procura alimento, ficando mais sensível a estímulos que o sugerem, como o cheiro. Quer dizer, então, que os instintos são propulsores da personalidade, impulsionam o comportamento e de terminam a direção que ele deverá tomar. O instinto é a quantidade de energia psíquica necessária para movimentar as diferentes operações da personalidade. Os instintos tomados como um todo compõem a soma total de energia psíquica de que dispõe a personalidade. Têm sua sede no id e originam-se do pro cesso metabólico. Falamos acima que a excitação corpórea causa uma representação psicológica. Essas excitações podem surgir em diferentes partes do corpo e a região em que surgem constitui a fonte do impulso ou do instinto; trata-se, portanto, de uma condição ou necessidade do corpo. O objetivo primordial do instinto é reduzir a excitação, sendo essa re dução sentida como satisfação (princípio do prazer). Para satisfazer os impulsos instintivos é necessária a participação de algum objeto ou de alguma pessoa, que não são simplesmente a coisa específica ou as con dições que satisfaçam a necessidade, mas todo comportamento que visa a assegurar a coisa ou condição. No caso da pessoa faminta, ela tem que realizar certas ações para conseguir o que deseja, isto é, comer. Segundo a teoria freudiana, a fonte e o objetivo ou a finalidade do instinto permanecem constantes durante toda a vida, exceto quan do a fonte é mudada ou eliminada pela maturidade física ou quando surgem novos instintos, na medida em que aparecem novas necessi dades orgânicas. Por outro lado, o objeto ou os meios pelos quais a pessoa procura satisfazer seus impulsos variam no decorrer da vida como veremos no tópico sobre o desenvolvimento da personalidade. Isso é possível gra ças à capacidade de deslocamento da energia psíquica. Caso um objeto não esteja ao alcance da pessoa, devido à sua ausência ou à existência de barreiras na própria personalidade do indivíduo, a energia psíquica pode ser aplicada a outro. Dessa forma, os objetos podem ser substituí dos até que seja encontrado um que satisfaça o sujeito.
Capítulo I * A Contribuição da Psicanálise à Educaçao | 73
Esse deslocamento de energia de um objeto a outro é que asse gura a plasticidade da natureza humana e a versatilidade do compor tamento. Os interesses, os hábitos, as preferências e as atitudes dos adultos nada mais são do que deslocamentos de energia das escolhas objetais. Podemos afirmar ainda que o instinto tem uma força que é deter minada pela intensidade da necessidade subjacente. Por exemplo, no caso da pessoa faminta, quando a deficiência alimentar se torna maior, a força do instinto também aumenta. Em suma, os instintos apresentam quatro aspectos: uma fonte, um objetivo ou finalidade, um objeto e um impulso.
1.5.2
Q u a n t o s in s t in t o s
e x is t e m ?
Freud não se preocupou em enumerar os instintos existentes, mas classificou-os em dois grandes grupos: os instintos de vida e os de morte. Os instintos de vida são instintos que servem tanto para autoconservação (fome, sede e fuga à dor) como para preservação da espécie (sexo). Freud atribuiu grande importância à sexualidade, um dos as pectos que caracteriz cara cterizaa sua teoria, como um impulso básico e funda funda mental para o ajustamento da personalidade e chamou de libido a forma de energia pela qual os instintos de vida realizam sua tarefa. Trata-se, na verdade, de uma designação para a energia sexual. Mais adiante, no tópico sobre o desenvolvimento, veremos as maneiras pelas quais se satisfaz a sexualidade e que o objeto de interesse sexual varia muito ao longo da vida. Os instintos de morte são instintos destrutivos, menos evidentes do que os de vida, mas que cumprem sua função. Para Freud, a morte é a finalidade de toda vida e, portanto, toda pessoa tem desejo incons ciente de morrer. No entanto, ele não se referiu às fontes orgânicas dos instintos de morte, tampouco atribuiu nome à energia pela qual eles cumprem sua tarefa, mas desenvolveu argumentos em favor do desejo de morte. Para isso, apoiou-se no princípio de constância de Fechner, qual seja, que todos os processos vivos tendem a retornar à estabilidade do mundo inorgânico. Considerou que o desejo de morte nada mais é do que a representação psicológica do princípio de cons tância e que os impulsos agressivos são derivados dos instintos de
74 • Introd ução à Psicologia da Educa Educaçã çãoo
morte. A agressividade é a manifestação de morte (autodestruição) contra objetos substitutivos. Os instintos de vida e de morte e seus derivados entram em ação agrupando-se, neutralizando-se ou ainda trocando de posição. Por exemplo, a alimentação representa a fusão da fome (instinto de vida) e da agressividade (instinto de morte), pois o comer envolve o mor der, mastigar e triturar a comida. O amor, derivado do instinto de vida, portanto porta nto sexual, pode tanto neutra neu traliza lizarr o ódio, que é instinto de mor te, bem como tomar seu lugar.
1.5.3
D is t r ib u iç ã o d a e n e r g ia p s íq u i c a
Dissemos que os instintos contêm toda a energia psíquica que os três sistemas da personalidade (o id, o ego e o superego) utilizam para realizar seu trabalho. Sabemos também que a quantidade de energia disponível é limitada. Como se dá, então, a distribuição e a utilização dessa energia por eles? Como há um limite de quantidade de energia disponível, os dife rentes sistemas a disputam. Quando há maior quantidade de energia em um sistema, este se torna preponderante sobre os demais, a não ser que nova energia seja acrescentada ao sistema todo.
1.5.4
M ecanismos de defesa do eg o
O mundo contemporâneo leva as pessoas a viverem situações com altas doses de ansiedade. Mas a função da ansiedade é alertar o ego ou o “eu” para situações de perigo, controlando ou inibindo os desejos que vão ao encontro dessas situações. E, portanto, uma fun ção necessária ao desenvolvimento psíquico. O que se questiona hoje é o excesso de situações que provocam ansiedades a que estamos expostos. Sabe-se, no entanto, que o ego pode empregar e emprega real real mente a qualque qua lquerr momento mome nto todos os processos proce ssos de sua formação formaç ão e função para sua defesa. () objetivo do presente item é apresentar algumas atividades es pecíficas de defesa do ego. São processos proc essos que se referem principalprincipa lmcntc às defesas do ego contra o id. E importante assinalar que esses mecanismos de defesa são inconscientes.
Capítulo I • A Contribu ição da Psicanálise á Educaç Educação ão I 25
pelo qual qual os senti Repressão - é um mecanismo de defesa básico pelo mentos, as lembranças e os impulsos proibidos são expulsos da consciência. Exemplo: o funcionário embriagado demonstra hosti lidade em relação ao chefe a quem sempre trata amistosamente quando sóbrio.
consiste em Negação - trata-se de um mecanismo primitivo que consiste negar um fato evidente. É geralmente uma defesa contra a angús tia, negando a realidade. Exemplo: um fumante insiste em dizer não haver evidência empírica convincente de que fumar faz mal à saúde. neste mecanismo expressam-se sentimentos sentimentos Formação reativa - neste opostos ao sentimento que produz ansiedade. Uma maneira de deter minar a natureza da formação reativa é responder às questões: de que ameaça o psiquismo, ou o ego, está se defendendo? Quais são os impulsos ameaçadores para o ego? Se a ameaça for o ódio, este aparecerá sob o disfarce do amor; se o sentimento temido é o amor, este estará disfarçado em ódio. Assim, o amor pode aparecer substituindo o ódio, a gentileza pode substituir a crueldade, a ordem e a limpeza podem substituir o pra zer da sujeira etc. Na formação reativa, a conduta expressa o con flito entre o senso moral e um comportamento inaceitável. Um aluno pode abandonar atitudes que não são socialmente aceitas pelos professores profe ssores,, como também tamb ém apresenta apre sentarr atitudes atitude s inversas. As sim, um adolescente pode mostrar-se hostil a uma colega, objeto de amor não correspondido.
Projeção - mecanismo de defesa que consiste em atribuir incons
cientemente ao outro, e, de forma mais geral, em perceber no mun do exterior, suas próprias pulsões e conflitos interiores. Na proje ção, é possível liberar afetos intoleráveis. Um marido extremamen te ciumento pode não ter consciência de seus impulsos de infideli dade. Um professor, crítico ácido da incompetência dos alunos, pode, inconscien incon scientem temente, ente, esconde esc onderr o medo de sua própria própr ia incom incom petência. Na projeção, projeç ão, quand quandoo se diz “ele me ama” am a”,, o significado significa do é “eu o amo”, quando se diz “ela me ofendeu”, pode-se entender “eu a ofendi”. A projeção é um mecanismo que desempenha um papel importan te nos primeiros estágios da infância. Assim, uma criança, quando acusada de ter quebrado algum objeto, pode atribuir a outra crian
26 • Introduç ão à Psicologia da Educação
ça o seu ato. Um indivíduo preconceituoso também pode justificar suas ações com base em experiências negativas anteriores. Na patologia mental, a projeção adquire uma importância particu lar. Ocorrem, muitas vezes, acusações graves do tipo “fulano me violentou”. No caso, esse comportamento pode ser denominado como paranoico. □ Racionalização - justificação de um comportamento cujas razões verdadeiras são ignoradas, ou melhor, apresentação de explicações que justifiquem certas ações. Em geral, essas explicações não são convincentes, mas o indivíduo acredita nelas. Exemplo: um escri tor magoado por ter sido preterido pela namorada fica sabendo que ela se casara e partira com o marido em viagem de núpcias, num navio. Escreve, então, a história do naufrágio de um navio em que um jovem casal, em viagem de núpcias, morre. Dessa forma, leva a cabo seu sentimento de vingança, de revanche, por meio de uma ação racional. Usa racionalmente a lógica da emoção. Na raciona lização, usam-se explicações racionais para uma razão de ordem emocional. Assim, um político que perdeu a eleição explica aos eleitores que houve fraude. □ Fixação - é a permanência num estágio primitivo de desenvolvi mento. Como veremos adiante, o desenvolvimento da sexualidade passa por fases bem definidas até se alcançar a maturidade. Essas passagens, no entanto, não são indolores. A ocorrência de frustra ções e ansiedades pode acarretar uma parada temporária ou per manente do desenvolvimento. A pessoa pode, enfim, fixar-se em um dos estágios da sexualidade. Um exemplo clássico desse me canismo é o prazer voyeur, ou seja, o prazer provocado pela visão de órgãos ou atos sexuais. No caso em questão, a fixação remonta à fase fálica do desenvolvimento, à curiosidade infantil de ver os órgãos genitais alheios. □ Regressão - o mecanismo da regressão consiste em retornar a um estágio anterior de desenvolvimento. A fixação, às vezes, e a regres são, em particular, constituem mecanismos de defesa que ocorrem em condições relativas, pois raramente acontecem de uma forma completa. Isso significa que ambas surgem em determinadas situa ções e desaparecem com a resolução do conflito que as originou. Exemplos clássicos de regressão denotam certos traços infantis de
Capítulo I • A Contribu ição da Psicanálise à Educaçao I 27
voltar a chupar o dedo, urinar etc., ou da aluna de 5a série em busca da “tia” única.
Deslocamento - mecanismo psíquico inconsciente pelo qual uma descarga afetiva (emoção, impulso) é transferida de seu objeto ver dadeiro para um elemento substituto. Desloca-se a ação ou senti mento para um outro objeto, diferente do original. Exemplos: me ninos inconformados por terem perdido o jogo de futebol chutam furiosamente as traves do campo; humilhado pelo patrão, o mari do bate na esposa.
Sublimação - é, possivelmente, o mecanismo de defesa do ego mais importante para os nossos propósitos, ou seja, para a relação entre a Psicanálise e a educação. Introduzido por Freud, esse ter mo designa o mecanismo de defesa pelo qual certos impulsos in conscientes são desviados de seus objetos primitivos para fins so cialmente úteis e integram-se à personalidade. A sublimação tem um papel importante na adaptação do indivíduo a seu meio, per mitindo seu ajustamento social sem, contudo, inibir o seu desen volvimento pessoal. Na sublimação é possível canalizar pulsões destrutivas para fins socialmente úteis. O exemplo clássico é a ca nalização da agressividade para determinadas atividades profissio nais socialmente valorizadas, como no caso dos cirurgiões.
1.6
Fa s e s d o D e s en v o l v ime n t o d a S e x u a l id a d e I n f a n t i l
No trabalho citado anteriormente, A sexualidade infantil, Freud postula a existência na sexualidade humana de impulsos presentes desde a infância, os chamados impulsos ou pulsões parciais, que de sempenham importante papel na educação. Esses impulsos ou pulsões parciais seriam aspectos perversos da sexualidade infantil. Perversos por serem desvios do impulso sexual em relação ao seu objeto e ao seu fim. Freud percebeu que existe na vida sexual infantil uma organização entre esses impulsos ou pulsões sexuais. Agrupou-os então em fases de desenvolvimento. Alguns au tores denominam fases de desenvolvimento da libido. Libido, é im portante lembrar, é o nome usado na Psicanálise para designar a ener gia sexual. As fases ou estágios do desenvolvimento são: fase oral, fase anal, fase fâlica, período de latência e fase genital.
28 • Intro dução a Psicologia da Educação
1.6.1
Fas e o r a l
Nesta fase, que dura aproximadamente o primeiro ano da vida da criança ou um ano e meio, a zona oral desempenha o papel princi pal - o prazer advém da sucção. A boca e sua extensão, como os lábios e a língua, constituem a zona erógena (zona de prazer). Os ob jetos escolhidos são os seios ou seus substitutos, como os dedos, a chupeta, alimentos etc. As crianças, no estágio oral, levam qualquer objeto à boca, mordendo-o ou sugando-o. O mundo, nessa fase, tem características de boca. Assim, o “gostar” ou “não gostar” da criança poderia ser expresso como “quero colocar na boca” ou “quero tirar da boca”. Daí advêm expressões usuais como “uma leitura gostosa” , “quero morder o bebê” etc. O prazer de fumar, beber, beijar, declamar poesia, fazer discursos e, de forma mais agressiva, morder prova que a fase oral não desaparece total mente. A medida que o desenvolvimento da criança prossegue, impõe-se a necessidade de desmame, surgem as tentativas de uso da lingua gem e a percepção de outras pessoas. Esses fatos precipitam a perda da primazia da boca e a criança passa para a segunda fase do desen volvimento da libido, a fase anal.
1.6.2
Fas e a n a l
A duração da fase anal pode ser estimada em aproximadamente um ano e meio. Nessa fase, o ânus constitui a zona privilegiada das tensões e gratificações sexuais. A sensação de prazer ou desprazer está associada à expulsão (defecação) ou à retenção das fezes. O prazer advém também da ma nipulação das mesmas. Nesse estágio aparece a oposição, presente na vida sexual, entre o ativo e o passivo, mas ainda não caracterizada, segundo Freud, pelo masculino e feminino. Na passagem da fase oral para a fase anal, a educação esfincteriana, ou seja, o controle da eva cuação, tem papel relevante. Ao conseguir controlar seus esfíncteres a criança tem a sensação de poder controlar também seus impulsos. Os resquícios da fase anal podem ser percebidos na idade adulta na forma como os indivíduos administram sua vida econômica, tornan do-se perdulários ou generosos (a expulsão), parcimoniosos ou mesmo
Capítulo I • A Contribui ção da Psicanális e à Educação I 29
avarentos (retenção), ávidos em dominar ou que se satisfazem retendo... Esses resquícios aparecem também no desejo passivo de sempre rece ber do mundo (retenção) ou na intolerância às frustrações e limites, no desejo de expulsá-los. Na repressão aos impulsos anais, o indivíduo poderá tornar-se obcecado por limpeza. São considerados substitutos prazerosos para as fezes a massa de modelar, o barro, a massa de pão, entre outros. A fixação ou perma nência do impulso sexual nessa fase pode ser encontrada de forma sublimada nos escultores, pintores etc. Observa-se, portanto, que os selos ou marcas características de cada estágio permanecem, não desaparecendo totalmente. Após as colocações acima, é possível imaginar como as desco bertas de Freud devem ter sido chocantes em sua época, já que ainda hoje elas nos perturbam, deixando-nos momentaneamente incrédulos!
1.6.3
F a s e f á l ic a
No entanto, a terceira fase do desenvolvimento da libido, a fase fálica, deve ter provocado um escândalo maior ainda! O estágio fálico ocorre por volta dos três ou quatro anos de idade e as zonas erógenas localizam-se nos órgãos genitais. Denomina-se fase fálica porque o pênis (= falo) é o principal objeto de interesse da criança de ambos os sexos. Na menina, o clitóris é o correspondente feminino do pênis. O desejo de ver os órgãos genitais de colegas e de exibir os pró prios são manifestações características da fase fálica, assim como o desejo de manipulação dos órgãos genitais. O voyeur seria o adulto fixado na primitiva curiosidade infantil de contemplar o outro. A vi são seria sua única via de obter prazer, sendo refém desse sentido. Também o exibicionista em sua ânsia de mostrar seus órgãos genitais e ser visto estaria fixado no estágio fálico. É importante observar que as fases de desenvolvimento sexual não são, como já foi dito, realmente abandonadas. A passagem de uma fase à outra significa integração, mas não o desaparecimento total da ante rior. Portanto, em várias situações pontuais da vida ou até mesmo de maneira mais persistente, as pessoas podem apresentar as marcas de
30 • Introdu ção à Psicologia da Educação
As fases configuram práticas perversas, isto é, desvios da sexuali dade que acontecem tanto no indivíduo normal como no chamado neu rótico durante o desenvolvimento da sexualidade. Apesar das marcas ou selos, elas estão, no entanto, submetidas ao domínio da genitalidade.
Complexo de Édipo É na fase fálica, também denominada estágio edipiano, que Freud localiza o aparecimento de uma relação triangular singular entre pai, mãe e filho, que configura o complexo de Édipo. Trata-se de uma relação de amor que tem como objeto o progenitor do sexo oposto - mãe, no caso do menino; pai, no caso da me nina - e impulsos de rivalidade e ciúme do progenitor do mesmo sexo. O nome complexo de Édipo origina-se na tragédia grega Édipo - rei, escrita por Sófocles. A história de Édipo, o rei mítico de Tebas que mata seu pai e se casa com a mãe, aparece assim resumida por Freud em seu livro A interpretação dos sonhos (parte I, p. 277): Édipo, filho de Laio, Rei de Tebas, e de Jocasta, foi en jeitado quando criança porque um oráculo advertira Laio que a criança que ainda não nascera seria o assassino de seu pai. A criança foi salva e cresceu como príncipe numa corte estran geira, até que, em dúvida quanto à sua origem, ele também interrogou o oráculo e foi advertido que evitasse o seu lar, vis to que estava destinado a assassinar seu pai e receber a mãe em casamento. Na estrada que o levava para longe do local que ele acreditava ser seu lar, encontrou-se com o Rei Laio e o matou numa súbita rixa. Em seguida, dirigiu-se a Tebas e re solveu o enigma apresentado pela Esfinge que lhe barrava o caminho. Por gratidão, os tebanos fizeram-no rei e lhe deram a mão de Jocasta em casamento. Ele reinou por muito tempo com paz e honra, e ela que, sem que ele soubesse, era sua mãe, lhe deu dois filhos e duas filhas. Foi quando, então, irrompeu uma peste e os tebanos interrogaram mais uma vez o oráculo. É neste ponto que tem início a tragédia de Sófocles. Os mensa geiros trazem de volta a resposta de que a peste cessará quan do o assassino de Laio tiver sido expulso do país. Mas ele,
Ca pítulo I * A Contribuição da Psicanálise á Educaçao I 31
onde está ele? Como encontrar agora os vestígios desse crime tão antigo? A ação da peça consiste em nada mais do que o processo de revelar, com pausas engenhosas e sensação sem pre crescente - um processo que pode ser comparado ao traba lho de uma psicanálise que o próprio Édipo é o assassino de Laio, mais ainda, que ele é o filho do homem assassinado e de Jocasta. Apavorado com a abominação que ele inadvertidamente perpetrara, Édipo cega-se a si próprio e abandona seu lar. A predição do oráculo foi cumprida.
Explica Freud que o destino de Édipo nos comove porque pode ría ser o nosso. É como se o oráculo tivesse lançado sobre nossa ca beça igual maldição antes de nascermos: É o destino de todos nós, talvez, dirigir nosso primeiro impulso sexual no sentido de nossa mãe e nosso primeiro ódio e nosso primeiro desejo assassino contra nosso pai. O Rei Édipo, que assassinou seu pai Laio e casou com sua mãe Jocasta, simplesmente nos mostra a realização de nossos pri meiros desejos de infância.
Assim, o amor infantil dirigido ao progenitor do sexo oposto car rega também impulsos de ciúme e rivalidade dirigidos ao progenitor do mesmo sexo, representando a situação edipiana. Essa situação suscita sentimentos ambivalentes, ou seja, sentimentos de amor e ódio. Simul taneamente, a criança teme ser punida por seus desejos proibidos, o que gera nela sentimento de culpa. Enfim, vencida pelo sentimento de culpa e medo diante de um rival superior e poderoso (pai e mãe), a criança aceita renunciar ao seu objeto de amor. Transforma a rivali dade em identificação, isto é, em desejo de ser como o pai ou a mãe, antigos rivais. Mãe e pai transformam-se, dessa forma, em modelos constitutivos: a mãe para a filha, o pai para o filho. Essa situação edipiana constitui um ensaio geral dos amores futuros da criança. O estágio de vida que abrange o complexo de Édipo, a fase fálica, é de importância crucial para o psiquismo. Para o antropólogo Lévi-Strauss, a passagem da natureza para a cultura ocorre com a proibição do incesto. Segundo ele, a passagem pela fase edipiana enquadraria a criança à lei do incesto, integrando-a à ordem humana universal da cultura.
32 • Intro dução à Psicologia da Educação
Foi no inconsciente de seus pacientes que Freud descobriu as fantasias de incesto com o genitor de sexo oposto, associadas a ciú mes e rancores homicidas em relação ao genitor do mesmo sexo. No entanto, é importante assinalar que o complexo de Edipo encontra-se presente na vida mental tanto dos chamados neuróticos como das pessoas normais. A apresentação extremamente esquemática desse complexo constitui apenas um contato inicial com o assunto.
Complexo de Castração No desenvolvimento do complexo de Edipo, o desejo sexual do menino pela mãe e sua rivalidade com o pai geram ressentimentos em relação à figura paterna. Dessa situação, origina-se no garoto o temor de que, enciumado, o pai possa puni-lo, castrando-o. Renuncia então aos seus desejos eróticos pela mãe, identificando-se com o pai, antigo rival. A esse choque afetivo, o temor à castração, denomina-se complexo de castração. Trata-se, na realidade, de um sistema incons ciente de emoções relacionadas ao valor simbólico do falo. A menina descobre no decorrer de seu desenvolvimento que o menino possui pênis, o qual não lhe foi dado pela mãe. A inveja do pênis corresponde, na menina, ao complexo de castração no menino. Enquanto o menino teme perder um objeto de valor, o pênis, a meni na sente-se prejudicada por não possuí-lo, buscando compensar essa falta no desejo pelo pênis paterno. Observa-se a angústia da castração em várias situações de perda e de separação do objeto, como no des mame e na defecação. Os complexos de Edipo e de castração fundamentam psicologi camente as diferenças sexuais.
Narcisismo Uma das concepções de Freud bastante utilizadas na atualidade é o conceito de narcisismo. Em virtude de sua complexidade, o pre sente texto restringir-se-á à apresentação de algumas noções básicas sobre o tema. O narcisismo é caracterizado desde a Grécia antiga como o amor do indivíduo por si próprio. O poeta latino Ovídio imortalizou em seu livro Metamorfoses a lenda de Narciso, cuja síntese apresentamos a seguir:
Capítulo I • A Contri buiç ão da Psicanálise à Educaçao I 33
Filho de Deus Céfiso, protetor de rio de mesmo nome, e. da Ninfa Liriope, Narciso era de uma beleza ímpar. Atraiu o desejo de mais de uma Ninfa, dentre elas Eco, a quem repeliu. Desesperada, esta adoeceu e implorou à Deusa Nêmesis que a vingasse. Durante uma caçada, o rapaz fez uma pausa junto a uma fonte de águas claras: fascinado por seu reflexo, supôs estar vendo um outro ser e, paralisado, não mais conseguiu desviar os olhos daquele rosto que era o seu. Apaixonado por si mesmo, Narciso mergulhou os braços na água para abraçar aquela imagem que não parava de se esquivar. Torturado por esse desejo impossível, chorou e acabou por perceber que ele mesmo era o objeto de seu amor. Quis então se separar de sua própria pessoa e se feriu até sangrar, antes de se despedir do espelho fatal e expirar. Em sinal de luto, suas irmãs, as Náiades e as Díades, cortaram os cabelos. Quando quiseram instalar o corpo de Narciso numa pira, constataram que havia se trans formado numa flor.
O termo narcisismo, segundo Freud, encontra-se na descrição fei ta por Paul Nãcke (1899) para denotar a atitude de urna pessoa que rata seu próprio corpo como trata o corpo de um objeto sexual: contem plando-o, afagando-o. Freud remonta a compreensão do narcisismo à primeira infância, ao chamado narcisismo primário. Inicialmente, a li bido do bebê não se relaciona com o mundo externo. O bebê não dis tingue o “eu” e o “não eu”. Sua única realidade é seu próprio corpo, com suas sensações físicas de frio, calor, sede, sono. A criança é para si mesma o objeto de amor. Gradativamente, porém, ela se percebe separada da mãe, do mundo externo. Ao perceber o mundo externo com suas normas e regras, transforma o seu narcisismo original em amor objetai. Segundo Freud, o indivíduo evolui do narcisismo abso luto para a capacidade de raciocínio e amor objetai. A pessoa normal, comum, amadurecida, é aquela cujo narcisismo atingiu um grau so cialmente aceitável. Todo indivíduo conserva, no entanto, um certo grau de narcisismo. Nas alucinações e nos delírios paranóicos a situação é semelhan te à do bebê. A diferença é que nelas o mundo exterior deixa de ser real, ao passo que para o bebê o mundo exterior não existe. Na aluci nação, a percepção não registra os fatos do mundo externo, apenas as experiências subjetivas.
34 • Introdução à Psicologia da Educação
te não se percebe a realidade de outra pessoa como diferente de sua realidade interna. Ocorre, assim, uma ausência de interesse genuíno pelo mundo externo.
1.6.4
P e r í o d o d e l a t ê n c ia
O período fálico é de muita tensão e dificuldade para a criança, pois ela vive sentimentos edipianos. E quando ocorre também o de senvolvimento do superego. Após essa fase, a criança passa por um período mais calmo, denominado período de latência. Corresponde ao primeiro período de escolarização do ensino fundamental ( l â a 4a série) que antecede a adolescência. Segundo Freud, trata-se de um período de relativa estabilidade, mas fundamental para a aquisição de habilidades, valores e papéis culturalmente aceitos. O superego torna-se mais organizado, pois a convivência com outras pessoas, além dos pais, contribui não só para a formação do sistema de valores, mas também para confrontar diferentes sistemas, o que torna a criança mais flexível e tolerante. Embora o termo latência traga a ideia de calmaria, não significa que nesse período não haja dificuldades, mas apenas que nele não surgem novos problemas básicos de relações próximas. Essa fase é a mera consequência lógica da situação edipiana vivida anteriormente como desenvolvimento dos papéis sexuais e resultante da identifica ção da criança com o pai ou com a mãe e da acentuação do seu papel sexual, seja masculino ou feminino. Alguns autores afirmam que a teoria freudiana não capta o que ocorre nesse período com a mesma riqueza e profundidade que o faz em relação ao período pré-escolar ou aos problemas da adolescência.
1.6.5
F a s e g e n it a l
Segundo a teoria freudiana, a estrutura básica da personalidade forma-se no fim da fase fálica. A adolescência seria a fase de reativação dos impulsos sexuais adormecidos durante o período de latência. Os períodos pré-genitais que antecedem essa fase são caracteri zados pelo narcisismo ou amor a si mesmo, isto é, o indivíduo tem
Capítulo I • A Contri bui ção da Psicanálise à Educação I 35
satisfação ao estimular e manipular o próprio corpo. Na fase genital, esse narcisismo é canalizado para escolhas objetais genuínas. O ado lescente estabelece uma relação de amor mais altruísta, um amor que tem como objetivo a felicidade do objeto amado e, simultaneamente, a sua própria, numa relação mútua satisfatória. Sob certos aspectos, o adolescente revive o período edipiano quando se sente atraído por uma pessoa do sexo oposto, deixando apenas de ser incestuoso o objeto do amor. Os impulsos libidinosos que antes se voltavam para figuras parentais podem ser dirigidos para pessoas que apresentam certas semelhanças com elas. Por exemplo, um rapaz pode sentir-se atraído por uma moça explicitamente seme lhante à mãe ou, ainda, pode haver semelhanças entre o pai da moça e seu namorado. Além da atração sexual, a socialização, as atividades grupais, a escolha profissional, a preparação para constituir uma família carac terizam essa fase do desenvolvimento, na qual o indivíduo, da criança narcisista em busca de prazer, torna-se um adulto socializado e orien tado para a realidade. Não significa, no entanto, que os impulsos das fases anteriores (oral, anal e fálica) sejam substituídos pelos da genital, mas eles se fundem e se sintetizam nos impulsos genitais. A reprodu ção é a principal função biológica dessa fase e os aspectos psicológi cos ajudam na realização desse objetivo. Quanto ao desenvolvimento da personalidade, Freud o vincula a quatro fontes principais de tensão: processo de crescimento fisiológi co, frustrações, conflitos e perigos. O indivíduo é obrigado a desen volver formas de reduzir tensões que emanam dessas fontes, o que o leva ao crescimento, à evolução.
1.7
Co n t r ib u iç ã o d a P s ic a n á l is e à Ed u c a ç ã o
1.7.1
A
REVOLUCIONÁRIA TEORIA DE FREUD CONTRIBUIU
DE ALGUMA FORMA PARA A EDUCAÇÃO?
Freud nutria esperança de que a Psicanálise, uma teoria explica tiva da natureza, do funcionamento e da forma de desenvolvimento do psiquismo, pudesse contribuir para reformar os métodos e objeti vos educacionais, exercendo, assim, uma ação profilática.
36 • Intro dução à Psicologia da Educação
Autoras como Catherine Millot, em Freud antipedagogo, e Ma ria Cristina Kupfer, em Freud e a Educação - o mestre do impossível, mostram que a Pedagogia e a Psicanálise caminham em sentidos opos tos. Enquanto a primeira tem como meta a estabilidade e a previsibi lidade, a segunda trabalha com um ferramental altamente imprevisível. Millot é mais categórica em sua posição, afirmando que a desco berta do inconsciente invalida qualquer tentativa de construir uma ciência pedagógica que evite recalques e neuroses. Embora a Psica nálise tenha esclarecido os mecanismos psíquicos em que se funda o processo educacional, tal esclarecimento não aumentou o domínio so bre esse processo. Para Kupfer, se como psicanalista Freud foi um antipedagogo, no sentido de não conseguir fundar sobre as descobertas da Psicanálise uma Pedagogia que prevenisse as neuroses, foi também um mestre da teoria psicanalítica ao difundir suas idéias alterando o panorama da cultura e da ciência de seu tempo até a contemporaneidade. Ele fundou o movimento psicanalítico, proferiu inúmeras conferên cias, provocando debates e polêmicas acirradas, e formou um círculo de discípulos envolvidos intelectual e emocionalmente em torno dele. Foi, portanto, um mestre.
1.7.2 A
EDUCAÇÃO E O CONCEITO DE TRANSFERÊNCIA
Por meio de suas análises, Freud elaborou o conceito de transfe rência, fenômeno presente em toda situação em que duas pessoas se relacionam frente a frente. Esse fenômeno foi observado inicialmente no tratamento analítico: formava-se entre o paciente e o médico uma relação emocional especial muito além dos limites racionais. Sabe-se hoje que essa relação pode variar entre a devoção e a admiração mais afetuosas até a inimizade e a hostilidade mais acirra das. Deriva das relações afetivo-sexuais anteriores e inconscientes do paciente. A transferência tanto positiva quanto negativa pode se trans formar em poderoso instrumento terapêutico desempenhando um pa pel relevante no processo de cura. A transferência encontra-se também presente na relação professor-aluno e nos permite refletir sobre o que possibilita ao aluno acre ditar no professor e chegar a aprender. E, portanto, um poderoso ins trumento no processo de aprendizagem. Constitui-se, assim, numa contribuição essencial da Psicanálise à educação.
Capítulo I • A Contr ibu ição da Psic análise à Educação I 37
1.7.3
A EDUCAÇÃO E O PROCESSO DE SUBLIMAÇÃO
E importante lembrar, para compreensão do assunto em pauta, que o conceito de sexualidade para a Psicanálise é bastante amplo. Em seu livro Dois verbetes de enciclopédia (p. 297), Freud escreve o seguinte: Tornou-se necessário ampliar o conceito do que era sexual, até abranger mais que o impulso no sentido da união dos dois sexos no ato sexual ou da provocação de sensações agradáveis específicas nos órgãos genitais. Essa ampliação foi, porém, re compensada pela nova possibilidade de apreender a vida sexual infantil, normal e perversa, como um todo único.
Podemos dizer, enfim, que a sexualidade se refere a tudo aquilo que pode provocar prazer e que se encontra em toda atividade humana. Mesmo a amamentação é uma experiência prazerosa, tanto para o bebê que suga o seio como para a mãe que o amamenta. Observa-se com isso a visão ampliada da sexualidade, caracteri zando sua plasticidade e flexibilidade. Assim, apesar de o desenvolvimento da sexualidade pressupor, na idade adulta, práticas genitais, isso nem sempre ocorre. Na perver são adulta, por exemplo, o impulso parcial recusa a submeter-se ao domínio genital. Há fixação numa fase infantil, como no exemplo clássico do voyeur, que só encontra prazer pela visão das práticas ou dos órgãos sexuais alheios. Do mesmo modo como acontece na crian ça, o impulso sexual não está associado a um objeto definido, poden do ser atingido por diversas vias. Dessa forma, observam-se novamente aspectos flexíveis na sexua lidade humana, como a possibilidade de se passar do domínio genital para os estágios anteriores de desenvolvimento. Observa-se, sobretudo, que o impulso sexual não possui uma fixação, como ocorre com o instinto. O objeto pelo qual se satisfaz lhe é indiferente, podendo ser tanto uma mulher como uma parte de seu corpo, os pés, por exemplo. Ele é desviante, intercambiável e pode ser direcionado para fins não propriamente sexuais, como na sublimação.
38 • Introd ução à Psicologia da Educação
nismo da sublimação os indivíduos podem dedicar-se a atividades “espiritualmente elevadas” como as relacionadas com a arte, a ciên cia, a promoção de valores humanos e de melhores condições de vida. Por serem impulsionadas pela energia sexual, embora sua finalidade não seja diretamente o sexo, é possível perceber a presença da libido nessas atividades. O prazer na realização de uma tarefa, mesmo de natureza tênue, traz a marca de sua origem sexual no empenho e na paixão com que alguns indivíduos dedicam-se a ela.
1.7.4
A EDUCAÇÃO E A SEXUALIDADE
Inicialmente Freud associou a doença nervosa a uma educação moral repressora. As noções de pecado, pudor, vergonha inibiríam os impulsos sexuais limitando seu desenvolvimento. A doença nervosa poderia ser, então, resultado das restrições morais excessivas. No en tanto, Freud chegou à conclusão de que existiría no interior da sexua lidade um componente de desprazer que reforçaria a moralidade. Além disso, percebeu que uma satisfação plena dos impulsos é impossível e até mortal. A preservação da vida tanto do indivíduo como do grupo implica no recalque - repressão sexual profunda e inconsciente - da sexualidade. A Psicanálise, enfim, pode contribuir com a educação delimitan do uma de suas tarefas: conseguir o equilíbrio usando sua autoridade na correção educativa necessária, mas não de forma excessiva. O presente espaço é evidentemente exíguo para um debate mais aprofundado dessa questão. Aliás, uma questão que pela sua comple xidade e importância merecería um olhar mais atento dos estudiosos, seja da Psicanálise, seja da Educação.
1.7.5
A EDUCAÇÃO E OS IMPULSOS PARCIAIS
Uma vez que a possibilidade de suprimir os impulsos parciais, além de inútil, pode levar à neurose, é importante que o educador saiba utilizar a energia desses impulsos. No caso do olhar do voyeur , é preciso conduzi-lo para que possa contemplar o mundo e os objetos a sua volta, compreendê-los e estabelecer um novo saber que permita
Capítulo I • A Contr ibui ção da Psicanálise à Educação I 39
transformar sua curiosidade em desejo de conhecimento, em curiosi dade intelectual. Em relação à pulsão da sucção, é fundamental que o professor não recrimine a criança por levar à boca qualquer objeto, mas que lhe forneça “alimentação” por meio de bons objetos, como conhecimento, e de atividades lúdicas e artísticas, a fim de nutri-la intelectualmente. Ao mostrar a existência de uma sexualidade infantil constituída por aspectos perversos, a Psicanálise aponta também para a existência de um mal inato no ser humano. Todavia, em vez de exor cizá-lo, a Psicanálise propõe o desvio desse “mal” para fins úteis à sociedade mediante a sublimação. Esta parece ser a proposta da Psicanálise para a educação: que o educador possa buscar com o educando o justo equilíbrio entre o pra zer individual e as necessidades coletivas. Também o professor colombiano Américo Calero expressa em seu texto “Notas sobre a concepção de Educação de Freud” sua preo cupação com as relações entre a Psicanálise e a educação. Diz o autor que na extensa obra de Freud não se encontra uma teoria sistemática e integrada sobre educação e assinala uma evolução nas concepções de Freud sobre o papel do educador. Nos seus primeiros trabalhos, quando abordava a repressão so bre a criança para que ela se adaptasse à vida social, Freud considera va secundário o papel do educador. Em 1918, colocou que a dissi mulação dos adultos no trato com a sexualidade levava as crianças à neurose ou à perversão. Defendeu a educação sexual da criança, ressal tando que se deveria responder a todas as suas perguntas, e assinalou que um dos erros mais prejudiciais, pelo perigo de levar à neurose, é ocultar da criança a realidade sobre a sexualidade e amedrontá-la com argumentos religiosos. Embora tenha privilegiado a educação em função da sexualida de, segundo Calero em 1911 Freud começa a insistir em uma “educa ção para a realidade”. Ou seja, a Educação deveria ser considerada um estímulo para a submissão do princípio do prazer ao princípio da realidade. Uma educação para a realidade teria como objetivo impe dir o homem de permanecer na infância levando-o a enfrentar a vida, a dura “vida inimiga”. Outra tarefa do educador seria conseguir um equilíbrio justo en tre a permissão e a proibição, isto é, sacrificar o mínimo de prazer sem entrar em choque com as exigências da sociedade.
40 • Introduç ão u Psicologia da Educação
1.7.6
PSICOPEDAGOGIA E PSICANÁLISE
O termo Psicopedagogia é usado, comumente, em português, francês e espanhol para referir-se à psicologia dos processos ligados à aprendizagem e ao ensino. Não há um termo correspondente em in glês, apenas designações como Psicologia Educacional, Psicologia do Ensino, Psicologia da Aprendizagem etc. Segundo a Associação Brasileira de Psicopedagogia (ABPp), esta é entendida como a área que estuda e lida com o processo de apren dizagem e suas dificuldades. A Psicopedagogia tem sua origem, no Brasil, na fragmentação da educação - a Pedagogia de um lado e a Psicologia do outro - em decorrência da própria extensão do processo educacional, o que levou ao surgimento de diferentes ciências aplicadas à educação, como So ciologia da Educação, Psicologia da Educação etc. Seu objeto de estudo é a pessoa a ser educada, seus processos de aprendizagem e as alterações de tais processos, visando a resolver proble mas de aprendizagem mediante o atendimento individual e terapêutico, tendo o profissional uma atuação remediativa. Ampliou-se, porém, seu objeto de estudo para uma realidade institucional, como a escolar, a hos pitalar e a da comunidade, atingindo diferentes faixas etárias e de escolarização, tanto em atuação remediativa quanto preventiva. Em seu campo teórico, há inúmeras abordagens acerca das difi culdades de aprendizagem. Nesse contexto, visualizamos a contribui ção da Psicanálise em algumas delas. Citaremos dois autores, repre sentantes da abordagem afetivo-cognitiva, talvez os mais difundidos e discutidos, que buscam na Psicanálise subsídios para a compreen são dos problemas de aprendizagem: Jorge Visca e Sara Pain. Jorge Visca elaborou a abordagem teórico-técnica denominada Epistemologia Convergente, uma integração das teorias de Piaget, da Psicanálise e da Psicologia Social de Enrique Pichon-Rivière, para conceituar aprendizagem e suas dificuldades. Por meio dela procura compreender a participação dos aspectos afetivos, cognitivos e do meio que convergem no processo de aprendizagem do ser humano. Ou seja, articula as dimensões afetiva e cognitiva como constituintes de um sis tema único, no qual há constante interjogo entre essas duas dimensões
Capitulo I • A Contribuição da Psicanálise à Educação I 41
e no contato com o meio ocorre a evolução de cada uma e do sistema estabelecido. Para ele, a análise do interjogo construído pelas duas di mensões é fundamental, pois fornece subsídios para a compreensão da singularidade dos processos de aprendizagem de cada indivíduo. Sara Pain, por sua vez, apresenta uma proposta de trabalho sobre problemas de aprendizagem fundamentada e articulada sobre três teo rias: a Psicanálise, a teoria piagetiana e o materialismo dialético. Considera a participação do inconsciente na construção do conheci mento. Essa participação constitui nada mais que a articulação do de sejo e do conhecimento, um mecanismo afetivo que o indivíduo põe em funcionamento. A dificuldade de aprendizagem é vista como sin toma e, dessa forma, cumpre uma função positiva e integrativa dentro da estrutura total da situação pessoal. O não aprender, portanto, não se configura como o oposto do aprender. Para lidar com a dificuldade de aprendizagem, sua proposta é inter-relacionar os aspectos orgâni cos, intelectuais e o desejo do sujeito, este visto como um ser históri co. Busca nos esquemas propostos pela teoria psicogenética de Piaget auxílio para estudar as operações lógicas e na Psicanálise, subsídios da ordem de significação. As descobertas psicanalíticas como o inconsciente e a pulsão de morte são incompatíveis com a Pedagogia. Na medida em que o in consciente implica o imprevisível, o imponderável e a falta de con trole, impede a criação de uma metodologia pedagógico-psicanalítica, a qual requer ordem, estabilidade e previsibilidade. A noção de inconsciente nos mostra que, embora o educador possa organizar seu conhecimento, ele não tem controle sobre o efeito que produz sobre seus alunos, mais especificamente, não tem acesso às repercussões inconscientes de tudo que ensina. Contudo, podemos dizer que a Psicanálise abre um novo olhar sobre o aluno, um ser que tem subjetividade e desejo, um ser cujas manifestações, muitas vezes de difícil aceitação, têm seus significa dos, da mesma forma que seus sintomas de não aprender. Além disso, a Psicanálise possibilita compreender certas dificuldades do aluno, na medida em que dá a conhecer o processo de desenvolvimento de sua personalidade. Ao educador ela possibilita reavaliar suas atitudes, suas práticas
4 2 • Introd ução à Psicologia da Educação
e serve para lembrá-lo de que possui os mesmos aparatos psicológicos do aprendiz. O processo de aprendizagem envolve, assim, um en contro do desejo de ensinar do professor com o desejo de aprender do aluno. Nessa perspectiva, a transferência que ocorre na relação aluno-professor é fundamental.
Ex e r c íc io s
1) Quais são os pressupostos básicos da teoria psicanalítica? 2) Qual a função das três estruturas (o id, o ego e o superego) da
personalidade? 3) Explique as relações entre id, ego e superego. 4) Observe uma criança nas fases oral e anal e apresente suas consi
derações. 5) Dê dois exemplos dos seguintes mecanismos de defesa: projeção,
repressão e formação reativa.
6) Extraia da relação entre o id, o ego e o superego, bem como das tensões e conflitos produzidos pela libido, situações que podem ser aplicadas na concepção e prática educacionais.
G l o ss ár io
Agressividade - em sentido restrito designa o comportamento hostil, destrutivo. Para a Psicanálise é a manifestação do instinto de morte. Consciente - é uma qualidade mental e envolve todos os conteúdos que são perceptíveis. E tudo aquilo que é conhecido. Deslocamento - consiste em deslocar o sentimento ou a ação para outro objeto diferente do original. Exemplo: a hostilidade em relação ao chefe pode ser deslocada para um funcionário subalterno. Ego - é uma das estruturas da personalidade que se origina do id mediante o contato com o meio externo. E o segundo sistema a se desenvolver na personalidade da pessoa e age como intermediário entre o id e as exigências do superego e do ambiente.
Capítulo I • A Contribui ção da Psicanálise à Educação I 4 3
Fase anal - segunda fase da organização da libido, na qual a prima zia do prazer se encontra no ânus. Fase fálica - terceira fase da organização da libido, na qual o pênis é o objeto de interesse das crianças de ambos os sexos. Fálico origina-se de falo, que significa pênis. Fase oral - primeira fase da organização da libido, na qual a zona oral (boca, lábios, língua) desempenha o papel principal. Fim sexual - ato a que o impulso conduz. Fixação - permanência de uma pessoa em um estágio de desenvolvi mento primitivo pelo fato de o estágio seguinte estar carregado de ansiedade. Formação reativa - mecanismo de defesa pelo qual um impulso ou sentimento que produz ansiedade é substituído pelo seu oposto. Id - é o polo instintivo ou pulsional da personalidade, dentro do qual se diferenciam o ego e o superego. Seu conteúdo é inconsciente, podendo ser hereditário ou recalcado. Identificação - processo de tornar-se semelhante a alguém ou a algo em relação a aspectos de comportamento ou pensamento. Inconsciente - é o local das representações reprimidas ou das pulsões ou impulsos instintivos. Instinto (impulso instintivo ou pulsão) - é a representação mental, no id, de uma fonte somatória de excitação. Os instintos compõem a soma total de energia psíquica e impulsionam o comportamen to, determinando a direção que ele deve tomar. Instintos de morte (pulsões de morte) - são pulsões que se contra põem às pulsões de vida e tendem a reconduzir o ser vivo ao es tado inorgânico. Quando voltadas para o interior tendem à autodestruição e quando dirigidas para o exterior manifestam-se sob a forma de agressividade e hostilidade. Instintos de vida (pulsões de vida) - são os instintos que servem para a autoconservação e perpetuação da espécie e que se contra põem às pulsões de morte. Libido - é a designação de energia sexual, ou seja, é a energia que constitui o substrato das transformações dos impulsos sexuais. Mecanismo de defesa - consiste nas maneiras de o psiquismo se pro teger de ameaças. São os mecanismos psicológicos utilizados para diminuir a angústia originada por conflitos interiores.
44 • Introd ução à Psicologia da Educação
Narcisismo - consiste no amor excessivo a si mesmo. Para a Psica
nálise é quando toda a energia da libido é investida sobre o “eu”. Negação - mecanismo de defesa contra a angústia que consiste em
negar a evidência. Por esse mecanismo o indivíduo se recusa a reconhecer fatos reais penosos ou que provocam ansiedades, transformando-os em fatos imaginários. Objeto - termo utilizado para nomear pessoas ou coisas do ambiente
externo, animadas ou não, que são psicologicamente significati vas para a vida psíquica do indivíduo. Objeto sexual - pessoa ou coisa que exerce atração sexual. Perversão - desvios em relação ao fim ou ao objeto sexual. Pré-consciente - é o intermediário entre o inconsciente e o conscien
te. Contém representações que podem se tornar conscientes se a atenção se voltar para elas. Princípio da realidade - é o princípio pelo qual o ego opera, suspen
dendo temporariamente a descarga de tensão (princípio do prazer) até que seja encontrado um objeto apropriado para a satisfação da necessidade. Princípio do prazer - é o princípio pelo qual o ego opera, reduzindo
a tensão.
Processo primário - é o processo pelo qual o id realiza seu objetivo
de evitar a dor e obter prazer (princípio do prazer), formando a representação mental de um objeto que removerá a tensão. É o processo que caracteriza o sistema inconsciente. Processo secundário - é o processo pelo qual o ego opera, orientado
pela realidade. E o pensamento realista. E o processo que caracte riza o sistema pré-consciente/consciente. Projeção - mecanismo de defesa que consiste em atribuir inconscien temente a outros e perceber no mundo externo suas próprias pulsões e seus conflitos interiores. Racionalização - explicações racionais para justificar ações de ori gem emocional. Regressão - retorno às atitudes e condutas características de um está
gio anterior de desenvolvimento. Relações de objeto - refere-se à atitude ou conduta do indivíduo em
relação aos objetos.
Capítulo I • A Contri bui ção da Psicanálise à Educuçuo | 4 ‘>
Repressão (recalque) - é o mecanismo pelo qual o indivíduo procu
ra reter no inconsciente representações ligadas a um instinto ou pulsão. Sexualidade - conjunto de fenômenos da vida sexual. Os psicanalistas distinguem a genitalidade, conjunto de características ligadas aos órgãos de cópula, da sexualidade, estendida ao amor em geral. Sublimação - desvio de um impulso de seus objetivos diretamente
sexuais para fins socialmente úteis. Superego - é o terceiro sistema estrutural da personalidade. Represen ta as restrições sociais internalizadas e exerce a tarefa de censor das funções do ego, que bloqueia os impulsos ou pulsões do id. Supressão - é o mecanismo pelo qual os conteúdos da pré-consciên-
cia são afastados da consciência. Transferência - processo psicológico que consiste em transferir para pessoas ou objetos aparentemente neutros emoções e atitudes que existem no indivíduo desde a infância. Na terapia psicanalítica, a transferência é essencial para a cura. Trata-se de uma relação afetiva particular que o paciente estabelece com o terapeuta para reviver suas experiências passadas.
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,
o / o t i p a C .
Maria Letícia B. P. Nascimento
A Criança Concreta, Completa e Contextualizada: a Psicologia de Henri Wallon'
A psicologia de Henri Wallon (1879-1962) é considerada com plexa. Tomando a dialética como fundamento epistemológico, Wallon buscou compreender o desenvolvimento infantil por meio das rela ções estabelecidas entre a criança e seu ambiente, privilegiando a pessoa em sua totalidade, nas suas expressões singulares e na relação com os outros. Dessa maneira, não propôs um sistema linear e orga nizado de etapas de evolução psíquica, mas desenvolveu sua teoria buscando compreender os objetivos da criança e os meios que ela utiliza para realizá-los, estudando cada uma de suas manifestações no conjunto de suas possibilidades. Sua teoria expõe a evolução psíquica passando de um campo a outro da atividade infantil, em textos entre meados por termos médicos e neurológicos. Médico, psiquiatra, psicólogo e educador, nessa ordem de forma ção, dedicou-se primeiro à Psicopatologia, em decorrência de sua atua ção como médico na Primeira Guerra Mundial. Concentrou-se, em1
1 Parte do texto foi extraída de NASCIMENTO, Maria Letícia B. P. Corpo e fala na constituição do eu: investigação sobre o prelúdio da pessoa em creche pública. São Paulo, 1997. Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação
48 • Introd ução à Psicologia da Educação
seguida, na análise do psiquismo humano, voltando-se para a psicolo gia da criança. Seu profundo interesse pela educação permitiu-lhe com preender a Psicologia e a Pedagogia como ciências complementares, sem que houvesse superioridade de uma sobre a outra, ou seja, via a prática educativa como campo para a pesquisa psicológica e, em para lelo, a investigação psicológica como base para uma possível renova ção da prática educativa, numa relação de reciprocidade. Contemporâneo de Sigmund Freud (1856-1939), de Jean Piaget (1896-1980) e de Lev Vygotsky (1896-1934), viveu, como eles, sob a influência do evolucionismo, embora, para Wallon, a realidade psico lógica tivesse história e condições materiais de existência, ou seja, o desenvolvimento infantil inseria-se num contexto em que as relações interpessoais, históricas e culturais eram privilegiadas. Wallon define o ser humano como geneticamente social: Jamais pude dissociar o biológico do social, não porque os creia redutíveis entre si, mas porque, no homem, eles me parecem tão estreitamente complementares, desde o nascimen to, que a vida psíquica só pode ser encarada tendo em vista suas relações recíprocas. (Wallon, apud Werebe & Nadel-Brulfert, 1986, p. 8) Por relações recíprocas entre o desenvolvimento biológico e o desenvolvimento social pode-se entender que um é condição do ou tro, pois, ao nascer, a criança tem movimentos impulsivos ou refle xos, descargas musculares provocadas principalmente por sensações internas de desconforto. Em função da própria inaptidão, a criança passa por períodos de espera ou de privação e depende de alguém que satisfaça suas necessidades. Suas reações impulsivas, orgânicas e desordenadas precisam ser completadas, compensadas e interpretadas pelo meio envolvente. A resposta do meio vai favorecer o estabelecimento de conexões, pela criança, entre as ações do adulto próximo e as manifestações impulsivas, e, em pouco tempo, essas associações fisiológicas trans formam-se em manifestações expressivas, ou seja, vão constituir uma troca emocional entre criança e adulto próximo. Estabelece-se, assim, o prelúdio da constituição psíquica, ao mes mo tempo em que é criado um estado de indivisão entre o que depen de do exterior e do próprio sujeito, ou seja, “a união da situação, ou
Capítulo II • A Criança Concreta, Completa e (on tex tu alizad a I 4 9
ambiente, com o sujeito começa por ser global e indiscerníver (Wallon, 1986, p. 162). Nesse sentido, não existe um sujeito a princí pio: o que existe é uma indiferenciação entre o recém-nascido e o meio social (a mãe, o outro) e físico que o acolhe. A criança nasce para a vida psíquica pela emoção, que, ao lado do movimento, ali menta a simbiose inicial. Diz Wallon que, “incapaz de efetuar algo por si próprio, ele [o recém-nascido] é manipulado pelo ‘outro’ e é nos movimentos desse ‘outro’ que suas primeiras atitudes tomarão forma” (ibid., p. 161). As atitudes, vinculadas aos estados de desconforto, de necessidade, im primem, na relação, aspectos culturais distintos, configurando a sin gularidade e a historicidade de cada criança. Nesse sentido, o adulto é um mediador entre a criança e ela mesma, entre ela e os elementos do mundo cultural onde nasceu. A indiferenciação entre a criança e o meio envolvente, a comu nhão afetiva estabelecida, constitui uma primeira relação psicológica: a emoção que, segundo Tran-Thong (1967), revela a originalidade da contribuição de Wallon aos estudos sobre o desenvolvimento infantil.
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Ao contrário de Piaget, cuja epistemologia genética é mais co nhecida entre nós, para Wallon o desenvolvimento não começa cognitivamente: a atividade da criança está primeiramente voltada para a sensibilidade interna (visceral e afetiva), que abrange o primei ro ano de vida. A afetividade, na teoria, vai designar os processos psíquicos que acompanham as manifestações orgânicas da emoção (Dantas, 1990). A essa sensibilidade, posteriormente, vai se acrescen tar a sensibilidade externa (elementos do mundo exterior), caracteri zando, então, o aspecto cognitivo do desenvolvimento. Não se trata porém de um processo linear, no qual o aspecto afe tivo cederá lugar ao cognitivo. A anterioridade indica conflito e oposi ção permanente entre eles. As condutas cognitivas surgem das afetivas; estas se subordinarão àquelas, alternando-se em fases centrípetas, vol
SO • Introd ução à Psicologia da Educação
Segundo Dantas (1990), isso indica que o controle da razão so bre a emoção poderá ser mais sólido quanto mais longe for o desen volvimento da razão. Vale dizer que, tomando o princípio dialético da teoria, quanto mais elaborada a emoção, melhor fluirá a razão. Pode-se pensar que um “eu” bem constituído terá mais possibilidades de se colocar no lugar do “outro”, de maneira a discutir ou compreender diferentes pontos de vista. Acompanhando as etapas do desenvolvimento, na organização de Tran-Thong2 (1967) - visto que nos livros e artigos que publicou Wallon não apresenta as etapas do desenvolvimento numa ordem li near -, essa alternância entre afetivo e cognitivo, ou a predominância de um aspecto sobre o outro nas diferentes idades da criança, fica mais clara. Ao nascer, a criança é um ser centrípeto, ocupado consigo mes mo, e reage pouco ou nada aos objetos do mundo físico. Suas reações vão se voltar para o mundo humano, principalmente para o adulto mais próximo dela; na maioria dos casos, a mãe. Se no útero materno a satisfação das necessidades alimentares ou posturais era automática, no período pós-nascimento, as sensações internas de desconforto revelam-se por meio de movimentos reflexos. As respostas do meio a essas manifestações permitirão que o bebê estabeleça relações entre suas manifestações impulsivas e as ações do adulto, o que Wallon denomina reações úteis. A etapa impulsiva prepara a etapa emocional que, nas palavras de Dantas (1990), corresponde ao predomínio da motricidade que mani festa a emoção. O movimento atua sobre o meio humano como forma de comunicação. A emoção é o elo entre a criança e o outro. Os efeitos dessa ligação tornam as manifestações cada vez mais nitidamente expressivas, intencionais. Contudo, antes de se caracteri zar como processo relacionai, o estágio impulsivo-emocional aponta para o fechamento da consciência sobre si, isto é, para a indiferenciação entre a criança e o outro. Gradativamente, os elementos do mundo exterior vão se consti tuindo como objeto de interesse e exploração, fazendo predominar
2
Que procurou ordenar os conceitos e as etapas de desenvolvimento propostos por Wallon.
Capítulo II • A Criança Concreta, Completa e Con textu alizada I 51
um aspecto mais centrífugo no desenvolvimento. Segundo Tran-Thong, “a passagem do estádio emocional ao sensório-motor e projetivo é uma passagem da atividade tônica, automática e afetiva, à atividade relacionai, que põe a criança em contato com o mundo exterior dos objetos” (1967, p. 184), preponderante nessa outra etapa. Isso significa que há “uma troca de orientação, de uma fase centrípeta e subjetiva [de ordem emocional] para uma fase centrífuga e objetiva” (ibid.), de or dem cognitiva, de conhecimento sensorial do mundo. O movimento objetivo se completará com o andar - que dará à criança a possibilidade de deslocamento no espaço, tanto de si mes ma quanto dos objetos - e com a palavra - que lhe permitirá identifi car e nomear esses objetos. De acordo com Dantas (1990), ao longo dessa etapa, sensório-motora e projetiva, há uma nova utilização das coisas, que deixam de ser apenas exploradas e manuseadas e se tornam significantes, isto é, adquirem uma dimensão além do aqui e do agora. À autonomia senso-motora adquirida com o andar segue-se de maneira quase imediata a entrada no mundo dos signos, que emancipa a criança da realidade. Assim como será possível identificar e nomear objetos, o que Wallon denomina consciência de si, permitirá a ela objetivar-se, identi ficando sua imagem e seu nome. No estágio do personalismo, essa conquista vai fazer com que se volte de novo para o mundo humano, no qual se colocará, sucessivamente, em situação de oposição, sedução e imitação, iniciando outra vez uma fase centrípeta do desenvolvimento. A consciência de si vai abrir espaço para um retorno ao mundo físico, mundo do conhecimento, quando a criança irá adquirir um pouco mais de autonomia e ampliar seu domínio do espaço físico, auxiliada pela representação. Em outras palavras, na etapa categorial, o maior domínio do universo simbólico permitirá que ela se dirija a objetos não necessariamente presentes, sobre os quais será capaz de pensar e operar. Essa fase centrífuga será seguida por outra, de caráter centrípeto, de construção de si mesma, já na adolescência. Nesse momento, ela torna a se voltar para o mundo humano, modificada pelo caráter cognitivo da etapa anterior, ou seja, distinguindo-se do outro pela di ferenciação de pontos de vista. A descrição das etapas evidencia o que Wallon denomina princí pios funcionais integraçã derância alternância de-
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,
finem o desenvolvimento como um processo descontínuo, marcado por rupturas e crises. Nessas etapas, as formas de atividade construídas pela criança passam por reformulações. Ora preponderam os aspectos afetivos, voltados para o mundo humano, ora os cognitivos, voltados para o mundo físico, que se alternam, proporcionando características próprias a cada etapa. A ordem para a realização do desenvolvimen to, além disso, é permeada pela cultura e pelo ambiente onde a crian ça está inserida.
11.2 A Co n s c i ê n c i a de S i : I n t e g r a ç ão e Co n f l i t o s Eu -O u t r o A afetividade, o movimento e a inteligência constituem campos funcionais entre os quais se distribui a atividade da criança. Quase que indiferenciados no princípio do desenvolvimento vão, aos pou cos, diferenciando-se. O mesmo processo - da indiferenciação para a diferenciação - acontece na constituição da pessoa. A origem da evolução psíquica está ligada ao desenvolvimento dos diferentes sistemas de sensibilidade interoceptiva (visceral), proprioceptiva (sensações ligadas ao equilíbrio, às atitudes e aos movimentos) e exteroceptiva (voltada para as excitações de origem exterior), que vão se completando ao longo do primeiro ano de vida e que atuarão conjuntamente (associações intersensoriais), unificando o campo da percepção, já no terceiro mês de vida, do mesmo modo que a consciência corporal, primeira forma do “eu”, é o resultado das diferenciações e das ligações dessas sensibilidades. Na perspectiva walloniana, a constituição do “eu” é ao mesmo tempo a construção do “não eu”, a percepção do que é próprio e do que é exterior a si mesmo. Diferentemente de Piaget, que proclama que a criança, de um “eu” egocêntrico e autocentrado, acaba por so cializar-se, Wallon a concebe como um ser geneticamente social, que nasce num meio envolvente do qual depende inteiramente para a sa tisfação de seus desconfortos e necessidades alimentares e posturais. A participação do outro na formação da consciência de si é con sequência da simbiose inicial entre a criança e o meio envolvente. A confusão entre a criança e o outro, que interpreta e responde aos seus movimentos impulsivos, tornará o “eu” e o “não eu” indistinguíveis. Essa comunhão afetiva torna-se uma consciência orgânica, subjetiva,
Capítulo II • A Criança Concreta, Completa e Con textu alizad a I 53
subjetividade da consciência transforma-se em sociabilidade por in termédio da expressão emotiva” (Wallon, apud Tran-Thong, 1967, p. 180). Nesse momento, sociabilidade significa, enquanto sujeito, de pendência do outro para “ser”. A construção da pessoa acontece na medida em que a criança, opondo-se ao outro, distancia-se do meio onde está envolvida. A su cessão de elementos de ordem afetiva e cognitiva se alternam no pro cesso de desenvolvimento, sublinhando os aspectos subjetivos e obje tivos na construção do “eu” e do mundo. O recorte corporal permite uma objetivação da imagem e, portanto, a consciência de um “eu” subjetivo, que o espelho reflete. Em 1931, Wallon escreveu um artigo, “Comment se développe chez 1’enfant la notion du corps propre”3, no qual descreve o processo de estruturação da imagem corporal e o estágio do espelho. O texto detalha e analisa o processo de constituição do corpo pela criança, em suas diferentes etapas, ponto de partida para a constituição do “eu” psíquico. A noção de unidade corporal, antes de ser uma realização simples e/ou primitiva, passa pela distinção entre o que é do corpo e o que é exterior ao corpo e implica em diferentes relações funcionais, que se sucedem e se integram nas variadas manifestações de ativida de da criança. Reorganizado em capítulos, esse artigo foi publicado em 1934 em As origem do caráter na criança 4, com o título “Consciência e individualização do próprio corpo”. A obra, que focaliza os três pri meiros anos de vida da criança, reproduz publicações de cursos pro feridos na Sorbonne, entre 1929 e 1931. Divergindo de outros autores, Wallon não postula que a consciên cia do “eu” venha antes da consciência do outro, isto é, que a cons ciência de si seja essencial e primitivamente individual e que haja uma passagem desse estado para uma consciência social. Ao contrá rio, aponta que é na interação com o meio que a criança constitui sua individualidade (Wallon, 1966, p. 175).
3
Publicado no Jo u rn a l de P sy ch o lo g ie de novembro/dezembro do mesmo ano, reeditado na revista E n f a n c e , n. 1-2, de 1963, e traduzido para o português em Objetivos e métodos da psicologia. Lisboa: Estampa, 1975.
4
Foi utilizada a tradução de Heloysa Dantas de Souza Pinto. São Paulo: Nova Alexandria, 1995.
54 • Introdução à Psicologia da Educação
No processo de consciência corporal e psíquica, interagem os domínios interoceptivo, proprioceptivo e exteroceptivo, embora suas manifestações sejam distanciadas cronologicamente. O domínio exteroceptivo vai se constituindo gradativamente, a começar pela sen sibilidade ao contato, ainda orgânica e afetiva, “progressivamente substituída por atividade de aspecto mais sensório-motor” (Wallon, 1995, p. 187). Segundo Wallon, num primeiro momento, o organismo predomina sobre o social. Ao longo do primeiro ano de vida, o interesse pela presença humana prevalece. O contato com os objetos é intermediado por pes soas. O interesse da criança por eles parece ser uma transferência da pessoa para o objeto por ela apresentado. As sensações auditivas, vi suais ou táteis, que começam a se constituir, despertam reações afetivas, não exploratórias. Com o aumento dos recursos próprios e da possibilidade da ação direta sobre as coisas, gradativamente a criança começa a se interes sar mais pelo mundo físico, diminuindo as solicitações ao adulto pró ximo. Vai ocupar-se então em acompanhar objetos em seu campo vi sual, pegá-los e soltá-los, verificando os efeitos de seu gesto. Essa atividade circular será seguida pela atividade exploratória, que, am pliada pelo andar e pela palavra, permitirá à criança deslocar objetos no espaço, nomeá-los, deslocar-se, nomear as diferentes partes do corpo e explorá-las. Esse movimento vai provocar uma singularização dos objetos e, ao mesmo tempo, uma diferenciação entre o que é de si mesma e o que é externo. Diz Tran-Thong (1967) que:
As atividades de exploração do corpo próprio, de individualização das partes corporais, do seu reconhecimento e da sua integração na unidade do corpo, de delimitação do espaço subjetivo e do espaço envolvente, assim como das atividades sociais afetivas de delimitação de si em relação aos outros, são contemporâneas das atividades sensório-motoras e projetivas, que as tornam possíveis, mas que vão ser ultrapassadas, dando origem à pessoa consciente, (p. 208-9)
De acordo com a teoria de Wallon, na etapa anterior, já tendo descoberto seus pés e suas mãos, a criança experimentava os limites
Capítulo II • A Criança Concreta, Completa e Contox tualiim lu I '»'»
do próprio corpo, numa exploração sistemática. Cada órgão, porém, era tratado como objeto, estranho a seu corpo. A individualização de cada parte do corpo e sua integração numa unidade corporal vai cau sar uma delimitação de si em relação aos outros. Essa diferenciação se produzirá no que Wallon denomina perío do do espelho, quando a objetivação do próprio corpo, possível gra ças às diferentes formas de duplicação da própria imagem e aos pri meiros avanços ao mundo simbólico, permitirá à criança conhecer-se de fora para dentro, integrando sensação, percepção e imagem de si mesma. Ao longo do terceiro ano de vida, a partir do acabamento do “eu” corporal, a criança consegue destacar-se dos seres e das coisas, apro priando-se de si e dos objetos. A consciência de si vai produzir-se mediante uma crise de oposição ao outro, ao “não eu”. Para afirmar-se como um “eu”, diz a teoria, ela precisa negar o outro e, mais do que isso, expulsar o que é do outro em si mesma. Essa afirmação de si é caracterizada por um ponto de vista pessoal exclusivo, unilateral, agressivo; uma ruptura na simbiose anterior. Tran-Thong (1967) afirma que: Com a crise de oposição a criança deixa, na sua lingua gem, de se designar na terceira pessoa e emprega, por vezes ostensivamente, os pronomes eu e me. O seu sentimento pes soal estende-se aos objetos nos quais o sentido de posse se concretiza... (p. 219)
Segundo a teoria, a oposição é sucedida pela sedução e imitação do outro. A dependência em relação ao outro - busca de sua admira ção, utilização do outro como modelo - parece significar um “eu” afetivo, ainda parcialmente constituído. Essa etapa subj et ivamente objetiva, em que a atividade cognitiva é a própria constituição do “eu”, é seguida pela transposição da delimi tação pessoal para o plano da inteligência, que vai favorecer a constru ção de categorias mentais que permitirão definir e explicar a realidade. A aquisição da capacidade conceituai, posteriormente, já na ado
56 • Intro duç ão à Psicologi a da Educação
ta. O outro, aí, será alguém - pessoa ou grupo - que se posiciona de maneira diferente. A diferenciação do “eu” e do “não eu” vai supor uma diferenciação de pontos de vista. A constituição do “eu”, contudo, é um processo que jamais se acaba: o outro interior, ou fantasma do outro, segundo Wallon, vai acompanhar o “eu” durante toda a vida. Diz ele que: As pessoas do meio nada mais são, em suma, que oca siões ou motivos para o sujeito exprimir-se e realizar-se. Mas, se ele pode dar-lhes vida e consistência fora de si, é porque realizou, em si, a distinção do seu “eu” e do que lhe é comple mento indispensável: esse estranho essencial que é o “outro”. A distinção [...] resulta de uma bipartição mais íntima entre dois termos que não poderíam existir um sem o outro, ainda ou porque antagonistas, um que é uma afirmação da identidade consigo próprio e o outro que resume aquilo que é necessário expulsar dessa identidade para conservá-la. (1986, p. 164)
A construção do “eu” não tem limite temporal, acontece durante toda a vida.
11.3 Em o ç ã o : S imu l t a n e a me n t e O r g â n ic a
e
So c i a l
A emoção, simultaneamente biológica e social em sua natureza, é o primeiro ponto de comunicação entre a criança e o meio envol vente. Colocada numa perspectiva genética, adquire seu significado funcional. O componente orgânico das emoções garante a sobrevivência do recém-nascido. Entretanto, não se esgota aí, como revelam as altera ções físicas constatadas nas diferentes idades numa situação de pre domínio da emoção: batimentos cardíacos acelerados, alterações na respiração, “frio na barriga”, por exemplo. Ao mesmo tempo em que acontecem internamente, as emoções trazem consigo mudanças visí veis nas expressões faciais, gestuais e na postura. Nesse sentido, esta dos de profunda emoção contagiam aqueles que estão próximos. Emoção e afetividade não podem ser compreendidas da mesma maneira. As primeiras manifestações de afetividade, no bebê, têm alto componente emocional. Na medida em que a criança adquire a lin
Capítulo II • A Criança Concreta, Completa e Cont extu alizadu I 57
guagem, ampliam-se os recursos para a expressão da afetividade, tor nando possíveis os sentimentos, que não envolvem alterações físicas visíveis. Nesse sentido, a afetividade é um campo funcional mais ela borado do que a emoção, embora tenha nela sua origem. Uma aná lise detalhada sobre a teoria da emoção é encontrada no livro de M. Martinet, Teoria das emoções5. Segundo Zazzo, “a emoção é uma linguagem antes da lingua gem” (1978, p. 98). É a primeira manifestação psicogenética da afetividade e precede o aparecimento de condutas cognitivas: ...os primeiros sistemas de reações organizados sob a in fluência do ambiente, as emoções, tendem tão somente a reali zar, por meio de manifestações consonantes e contagiosas, uma fusão de sensibilidades entre o indivíduo e os que o cercam. Elas podem, sem dúvida, ser encaradas como a origem da cons ciência, porque, pelo jogo de atitudes determinadas, elas ex primem e fixam para o próprio sujeito certas disposições espe cíficas de sua sensibilidade. Porém, elas só constituem o ponto de partida da sua consciência pessoal por intermédio do grupo onde elas começam por fundi-lo e do qual receberá as fórmu las diferenciadas de ação e os instrumentos intelectuais sem os quais ser-lhe-ia impossível operar as distinções e as classifica ções necessárias ao conhecimento das coisas e dele mesmo. (Wallon, 1995, p. 276-7)
Como elemento que possibilita o acesso ao universo simbólico do grupo social, incluindo aí a linguagem, a emoção torna-se o funda mento da razão. Nas palavras de Dantas (1990), “a razão nasce da emoção e vive de sua morte”, o que revela o antagonismo entre os dois elementos, antagonismo esse que evidencia o caráter paradoxal das emoções. Quando a emoção prevalece, a razão se retrai; o oposto é também verdadeiro. Assim, emoção e razão, cuja origem é comum, complementam-se e opõem-se na constituição da pessoa.
58 • Introdução à Psicologia da Educação
11.4
O M o v i me n t o e s u a s D i m e n s õ e s
O papel do movimento na psicogenética walloniana tem duas dimensões distintas, uma afetiva e outra cognitiva. A afetiva se rela ciona aos gestos ou movimentos expressivos que têm a intenção de causar impacto sobre o outro. A cognitiva se refere à ação direta so bre o meio físico. No recém-nascido, antes de atuar diretamente sobre o meio físi co, o movimento atua sobre o meio humano, mobilizando o adulto próximo por meio de sua expressividade. Assim, é possível pensar que a primeira função do movimento é afetiva, que serve principal mente à comunicação criança-adulto próximo. O caráter exploratório do movimento começa a surgir a partir dos gestos de pegar, empurrar, abrir e fechar, o que Wallon denomina praxias, que ampliam a exploração do mundo objetivo. Esse movi mento, entretanto, mantém sua expressividade, como se verá mais à frente, na referência à atividade ideomotora. O andar possibilita à criança o reconhecimento espacial dos ob jetos e de si mesma, ou seja, ela manipula os objetos, deslocando-os ou deslocando-se, o que vai permitir seu reconhecimento e agrupa mento, numa apropriação de suas qualidades. Segundo Tran-Thong, “não se trata nem duma análise nem dum inventário, mas é o reco nhecimento duma estrutura significativa que só é possível em relação a outras estruturas” (1967, p. 193). A linguagem, por sua vez, permite reforçar a identificação de diferentes objetos e sua localização. O nome ajuda a individualizá-los em relação ao conjunto perceptivo, compará-los, destacá-los da im pressão presente. Wallon afirma que a noção de objeto não é resulta do da reunião dos dados sensoriais ou motores, mas implica numa integração “a um outro plano da vida psíquica, a uma ordem diferente de operações, na qual intervém a atividade simbólica” (1995, p. 192). O andar e a linguagem colocam à disposição da criança um mundo exterior, onde os objetos adquirem mais independência e rea lidade, o que inaugura um tipo de atividade que Wallon chama ativi dade projetiva, que: Consiste em realizações ideomotoras em que as imagens mentais são imediatamente projetadas em atos que os provocam
Capítulo II • A Criança Concreta, Completa e Con tox tualiiad a I S9
e que os esgotam ao mesmo tempo, fusionando-os, misturando-os com as realidades exteriores. (Tran-Thong, 1967, p. 195)
O que a teoria walloniana indica é um alargamento do espaço motor pela constituição de um espaço mental, no qual os limites vão se ampliando na medida da ampliação do pensamento. Este, a princí pio, vai ser expresso por intermédio do movimento e da linguagem simultaneamente, o que Wallon denomina pensamento ideomotor. Nesse sentido, em sua origem, o pensam ento é sustentado pela motricidade e, gradativamente, ao longo da infância, a motricidade se reduzirá aos movimentos vocais, e o pensamento será impulsionado pela fala. Num primeiro momento, a criança recorre ao gesto para expres sar o que pensa, o que significa que impedir a criança de se movi mentar é fazê-la parar de pensar. A atividade projetiva, ou seja, o ato mental projetado em atos motores, abre caminho para a representa ção, isto é, para o desdobramento da realidade, para o alargamento do espaço mental, para a possibilidade de “prolongar a lembrança no presente e substituir o presente pela antecipação, pela combinação, pelo cálculo ou somente pela imaginação e pelo sonho”. A imitação, contemporânea da atividade projetiva, é o prelúdio da representação. Não se trata de uma repetição imediata, mas, perce bida uma situação, a criança a recria, estruturando os elementos sensoriais num conjunto para reconstituí-los, depois de um período de “incubação”. Wallon não a localiza senão na segunda metade do se gundo ano, quando, integrando as sensibilidades exteroceptivas e proprioceptivas, a criança é capaz dc dominar seu corpo e seus movi mentos e imitar o que vê ao seu redor. Segundo Tran-Thong “na có pia do modelo, [a criança] deve interiorizar o sensível transformando as impressões sensório-motoras em fórmulas mentais” (1967, p. 198). O “poder” imitar reflete uma fusão à situação ou ao objeto, ou seja, é perceber, elaborar e copiar uma ação no aqui e no agora. O “querer” imitar, contudo, sobrepõe-se a essa ação: de um lado, tem-se aquilo que é percebido, imaginado ou desejado e, de outro, aquilo que é realizado ou que se constitui a representação do modelo. Entre essas ações se coloca o simulacro, que corresponde à mími ca, cuja ação se realiza independente da permanência do objeto. Nas palavras de Dantas, “...o objeto é absorvido pelos gestos que o supõem. Trata-se de uma utilização do objeto sem objeto, apenas postural e
60 • Introduç ão à Psicologia da Educação
gestual...” (1990, p. 13). Sua origem está nas atitudes e posturas que servem de modelo à criança. Trata-se de uma ação realizada à imagem de um ato verdadeiro que dispensa o objeto real. O simulacro contém em si o real, a imagem e os signos. Segundo Tran-Thong, “gestos e símbolos encontram-se numa relação conflitual que define o processo de simbolização na criança desta idade” (1967, p. 198). O desdobramento da realidade só será possível quando o símbo lo e, principalmente, o signo se tornarem instrumentos de significa ção, pressupondo a representação do real. A linguagem vai organizar esse universo simbólico e permitir sua expressão: “Através da lingua gem, o objeto do pensamento deixa de ser exclusivamente o que, pela sua presença, se impõe à percepção” (Wallon, 1998, p. 174).
11.5 0 P e n s a me n t o : O r ig e n s e U s o d a L i n g u a g e m Wallon não formulou, explicitamente, uma teoria sobre o desen volvimento da linguagem, mas se refere a ela em diferentes textos. Para ele, a linguagem é suporte e instrumento para os progressos do pensamento e para a constituição do “eu”, revelando as diferentes fases pelas quais passa a criança. Os primeiros anos de vida são caracterizados por uma inteligên cia sensório-motora, essencialmente prática, que se apoia em percep ções e movimentos, sem a intervenção da linguagem ou do pensa mento. A aquisição das primeiras palavras, na fase sensório-motora, re lacionadas à nomeação dos objetos, antes de distingui-los do conjunto perceptivo em que estão inseridos, vai se caracterizar pela diversida de de sentidos atribuídos a elas. Sua sonoridade prepondera sobre a lógica, ou seja, os termos são associados independentemente de sua significação objetiva. Essa sonoridade, de caráter subjetivo, sustenta o pensamento. Ao mesmo tempo em que uma mesma palavra serve para designar diversos objetos, a cada objeto corresponde um nome. Essa confusão é pertinente ao pensamento sincrético, principal característica do pensa mento da criança de três a seis anos, impregnado de subjetividade, no qual prevalecem os critérios afetivos sobre os lógicos e objetivos. A
Capítulo II • A Criança Concreta, Completa e Con textu alizada I 61
diferenciada, misturando sujeito e objeto, assim como os vários planos do conhecimento, ou seja, a representação dos objetos e situações pela criança está impregnada de experiências sensoriais e afetivas. A preponderância afetiva sobre o pensamento está presente nas explicações sobre o mundo objetivo, revelando as origens afetivas da atividade cognitiva. O processo de simbolização vai permitir que o pensamento se distancie da subjetividade para atingir uma represen tação mais objetiva da realidade, a partir da preponderância de refe rências mais objetivas. Distinguir-se do outro, diferenciar sujeito e objeto é tarefa do desenvolvimento do pensamento. Ao longo do período em que preva lece o pensamento ideomotor, citado anteriormente, no qual ação e fala - realidade e imagem - não se dissociam, o delineamento entre o que é próprio e o que não é começa a se colocar segundo os jogos de alternância, nos quais a criança, em diálogos consigo mesma, exerci ta o “eu” e o “outro”, assumindo ora um papel, ora o outro, como se os experimentasse sem ser capaz ainda de fixar seu próprio lugar. Os papéis são diferenciados pelas entonações que ela lhes confere. Se gundo Wallon (1995): Os diálogos mantidos consigo mesma correspondem aos desempenhos alternantes; ambos constituem um sinal da épo ca em que a criança descobre nas situações que está vivendo a dualidade das atitudes complementares ou antagônicas, (p. 257)
Tais diálogos tendem a desaparecer quando da afirmação de seu ponto de vista pessoal, que coincide com o prelúdio da representação, momento em que será capaz de substituir os objetos por palavras que os representam, evocar o passado e antecipar o futuro. Da perspectiva da consciência de si, a utilização dos pronomes possessivos e pessoais, na forma direta ou oblíqua, em primeira pessoa, será uma conquista do terceiro ano de vida, da passagem da etapa projetiva para a personalista. Até então, a criança utiliza o termo “eu” ocasional mente, referindo-se a si mesma na terceira pessoa, como se fosse o outro, mal distinguindo seu ponto de vista. Wallon afirma que: O período da 3Upessoa é também o da 2a: a criança não sabe transformar em eu os tu que lhe são dirigidos e que incitam seus diálogos consigo mesma. A causa disso c sempre sua
62 • Introdução ó Psicologia da Educação
incapacidade de integrar as situações das quais participa ao se n timento soberano de sua identidade pessoal. (Ibid., p. 259)
Maior autonomia no uso da palavra significa consistência da fun ção simbólica e vice-versa ou mais independência da fala em relação à ação. A utilização do pronome em primeira pessoa no processo de percepção de um “eu” é um indício da consciência de si. Diz Wallon (1975) sobre o terceiro ano de vida: E afinal a época em que deixando de designar-se na ter ceira pessoa emprega, por vezes com ostentação, os pronomes “Eu sujeito” e “Eu complemento”6. Por extensão do seu senti mento pessoal aos objetos, o “Meu” ganha um significado bem preciso de posse: existe o objeto emprestado, cuja utilização é apenas momentânea, e aquele que pertence permanentemente à mesma pessoa, (p. 158)
Do ponto de vista da realidade objetiva, a função simbólica mar ca a capacidade da criança de representar algum objeto ou aconteci mento ausente, por meio da construção e atribuição de significados a esse objeto ou acontecimento. Os símbolos permitem a ela lidar com a realidade distante da experiência imediata e assim reconstruir uma realidade maior de passado e futuro que amplia e enriquece seu mun do. A representação permite à criança deixar de pertencer unicamente ao aqui e agora e dirigir-se para um plano em que o real corresponde a noções mais ou menos estáveis, mais resistentes às flutuações da sensibilidade ou das disposições subjetivas. O pensamento categorial, no qual a diferenciação será a tônica, é forjado ao longo da etapa personalista, a partir da distinção estabelecida no plano pessoal. A função categorial organiza o mundo objetivo em categorias - séries, classes - , estruturadas sobre a estabi lidade do plano simbólico, ou seja, permite a objetivação do real. Organizar categorias significa separar as coisas de suas qualida des, estabelecendo novas combinações. A função categorial, portan
6
Respectivamente J e e moi. A língua francesa, diferentemente da nossa, tem os dois termos para o “eu”: o primeiro (J e ) é uma referência da criança a si mesma, o segundo (moi) indica consciência ou percepção de si em relação ao mundo exterior.
Capitulo II • A Criança Criança Concreta, Concreta, Compl eta e Co nt ox lual iim lu I 63
to, permite análise e síntese, comparação e generalização, promoven do a abstração. Na interação com o conhecimento formal, torna-se possível à criança crianç a apropriar-s aprop riar-see das diferenc dife renciaçõe iaçõess estabelec estab elecidas idas culturalmente para realizar suas discriminações específicas.
11.6 P s ic ic o l
o g ia ia e
Ed u c a ç ã o
Wallon manifestou-se em relação à educação, tendo elaborado textos específicos e um projeto de reforma do ensino, o “Projeto Langevin-W Lange vin-Wallon” allon”7 7, de 1947 1947.. Foi Foi o criador cria dor da cadeira de Psicologia P sicologia e Educação da Infância no Collège de France, permanecendo como pro fessor dessa disciplina entre 1937 e 1941 e entre 1944 e 1949. Analisou os sistemas pedagógicos propostos em seu tempo, re conhecendo o valor de suas contribuições, mas, ao mesmo tempo, evidenciando seu alcance social limitado, principalmente por não te rem conseguido superar a contradição entre indivíduo e sociedade, ora privilegiando um, ora outro. Se os conflitos entre ambos são ine vitáveis, pela ordem de seus interesses, e necessários, pois que se opõem, é na sua confluência que se coloca a prática educacional. Para Wallon, a integração entre a formação da pessoa e sua inserção na coletividade asseguraria a realização da educação (Werebe, 1986). Destacou o trabalho de Decroly (1871-1932), que entendia a ne cessidade de respeitar a criança criança como uma pessoa completa, sobre quem publicou um artigo8 artigo 8, e de Makarenko Makare nko (1888-1939 (1888 -1939), ), cuja cu ja pedagogia pedago gia im plicava na inserção in serção de cada um na coletiv co letividad idade9 e9.. Coerente Coeren te com a posi po si ção marxista que advogava, via na educação um caráter político-social fundamental. Segundo Wallon, o projeto de sociedade define o projeto de edu cação. Para ele, formar sujeitos históricos, autônomos, capazes de construir sua sociedade implicava em associar essa meta aos métodos
7
O texto completo completo está em MERANI MER ANI,, A. L. Psicologia e pedagogia: as idéias peda gógicas de Henri Wallon. Lisboa: Editorial Notícias, 1977, p. 173-221.
8
Lóeu vre du Do cteur Decroly. Paris: Comitê Français 1953. Reeditado em E n f a n c e , n. 1-2, 1968.
9
Ver MAKAREN MAKA RENKO, KO, Antón Antón S. Poema pedagógico. Tradução de Tatiana Belinky. São Paulo: Brasiliense, 1985 (v. 1), 1986 (v. 2 e 3).
pour Ueducation Préscolaire,
64 • Introdu ção à Psicologia da Educaç Educação ão
pedagógic peda gógicos, os, não sem se apoiar apo iar em princípio prin cípioss científicos científic os relativos relati vos ao conhecimento da criança e do meio onde se desenvolve. O Projeto Langevin-Wallon é o retrato de seus ideais de homem, sociedade e educação. Chamado a assumir esse projeto de reformu lação do sistema educacional francês, após a morte de Paul Langevin, em 1946, 1946, Wa Wallon llon pôde expressar sua opção por uma sociedade carac cara c terizada pela democracia e pela justiça social. Para isso, o projeto previa transfo tran sforma rmaçõe çõess na estrutura estru tura e no funcion fun cioname amento nto do sistema escolar, oferecendo também sugestões sobre métodos de ensino. A teoria psicogenética de Wallon revela-se de grande importân cia para a educação. Em primeiro lugar, porque compreende a criança completa, o que implica a necessidade de uma prática pedagógica que dê conta dos aspectos intelectual, afetivo e motor integrados, sem privi legiar o cognitivo, fazendo com que a escola deixe de ser um espaço meramente instrucional para tornar-se lugar de desenvolvimento da pessoa. Esse desenvo dese nvolvim lvimento ento responde resp onde ao plano biológico biológ ico em inte ração com o plano social: a criança concreta tem história, faz parte de um grupo social, traz consigo elementos da cultura em que está inserida. Além disso, a criança contextualizada apresenta característi cas específicas em seu desenvolvimento. O modelo escolar tradicional tem como objetivo disciplinar, homogeneizar. As atividades propostas pouco significam para o pro cesso de desenvolvimento e aprendizagem de qualquer criança, para sua constituição como pessoa. Além disso, por se repetirem indefini damente para qualquer grupo, revelam o caráter universal e a-histórico com o qual foram elaboradas, desconsiderando o contexto e a sin gularidade de cada criança. Em outras palavras, nelas predomina uma visão adultocêntrica da infância. Entretanto, diz Wallon: “A criança só sabe viver a sua infância. Conhecê-la pertence ao adulto. Mas o que vai prevalecer nesse conhecimento: o ponto de vista do adulto ou o da criança cria nça?” ?” (Wallon, 1998, 1998, p. p. 27) Uma proposta que considere a teoria de Wallon privilegiará a observação atenta das crianças, de tal modo que seja possível reco nhecer as mudanças de objetivos de sua conduta, em diferentes ida des e situações. No contexto de sua psicologia, uma prática pedagógi ca adequada será aquela que promova relações entre a criança e o meio humano e físico, incluindo aí o conhecimento, reconhecendo que se modificam modificam reciprocamente. O meio é o campo da atividade da criança, ao mesmo tempo em que dele retira recursos para sua ação. Cada etapa
C a p ítu lo II • A Cria Criança nça Concreta Concreta,, Completa Completa e (on textu alizada I 6S 6S
do desenvolvimento define um tipo particular de relação com o meio. Se, ao nascer, a criança volta-se para o meio humano, por meio dele voltar-se-á para o mundo físico, adquirindo recursos cada vez mais ela borados para interagir intera gir com a cultura cultu ra em que está inserida. A teoria de Wallon, marcada pela visão de que a configuração social é a primeira instância do ser humano e que é num processo de interação social que se constitui o “eu”, num processo gradual e con tínuo, revela-se de grande atualidade se colocada em interlocução com textos contemporâneos, produzidos em estudos da Sociologia da In fância, área que constitui importante marco para compreender a crian ça como sujeito que estabelece relações sociais concretas, afetando e sendo afetado pelas interações com os adultos e com seus pares, desen cadeadas nos espaços escolares e domésticos. Nos grandes centros centros urbanos, a rotina rotina cultural cultural experimentada, apro priada e reinventada pela criança apresenta aspectos dos contextos es colares e domésticos, estruturais e funcionalmente diferentes, onde são estabelecidas as relações socioculturais. As experiências vividas com seus pares, fora de casa, em creches e escolas, vão constituir outras referências para elas. Serão os diferentes adultos, mas, principalmente, as várias crianças, com as quais vão conviver cotidianamente, ao longo de muitas horas, que vão oferecer elementos para a constituição de uma singularidade. O processo de humanização se concretiza nos meios e nos grupos que a criança frequenta. Segundo Wallon, “o meio é um complem com plemento ento indispensáv ind ispensável el ao ser vivo” viv o” (1986, p. 168) 168).. Entrar em contato com a obra de Wallon, ainda que a comple xidade de seus textos o mantenha como um autor “alternativo”, pou co divulgado e pouco compreendido, significa descobrir outras possibilid poss ibilidades ades de reflexão sobre seus textos, te xtos, novas leituras sobre o de de senvolvimento infantil e, sobretudo, uma maneira original de pensar a Psicologia.
Ex er c íc íc io s
1) Pensar a criança completa, concreta e contextualizada significa
66 • Introdução à Psicologia da Educação
2)
Wallon descreve o desenvolvimento infantil como uma construção progressiva, em que se sucedem períodos com predominância alternadamente afetiva e cognitiva. A que correspondem as atividades predominantes em cada etapa?
3)
De acordo com a teoria walloniana, o fundamento do psiquismo é a emoção, que opera a passagem do mundo orgânico para o social. A partir desse pressuposto, discuta:
4)
•
O que caracteriza essa passagem?
•
Qual o papel do meio humano no processo?
A inteligência pode ser caracterizada de diferentes maneiras, ao longo do desenvolvimento da criança, segundo Wallon. Uma de las é o pensamento sincrético, presente entre os três e os seis anos de idade. Como você o explica?
5) Ainda entre os três e os seis anos de idade, a grande tarefa da crian
ça é a construção do “eu”. Nesse sentido, a construção do objeto deve estar a serviço da construção do sujeito e não o contrário. Por quê?
6 ) Observando crianças de aproximadamente dois anos de idade, registrou-se a seguinte cena: Aproximando-se de novo do espelho, J. (20 meses) “fala” com ele. Olha, abre a boca, ergue braços, ergue roupa, olha sua barriga e a barriga no espelho. Encosta o rosto no espelho e “fala” de novo. Aproxima-se e distancia-se. Ri, faz careta, se mexe e sai do espelho. Discuta seu significado no processo de consciência de si. 7)
Vendo imagens do grupo de crianças ao qual pertence, filmadas em dias anteriores, L. (33 meses), parecendo entusiasmada com a própria imagem, identifica-se espontaneamente como L., utilizan do a terceira pessoa para referir-se a si mesma. Em seguida diz “Sou eu! Sou eu!”. Como você explica essa situação?
8) Exigir que a criança pequena fique sentada, parada, impede-a de pensar. Relacione essa afirmação com o pensamento ideomotor. 9)
Qual é o papel da imitação no desenvolvimento da criança?
C a p ít u lo II • A Criança Concreta, Completa e Con textu aliiada I 67
O br as
Uma bibliografia completa das publicações de Wallon e sobre Wallon, em francês, pode ser encontrada em ZAZZO, R. Henri Wallon: psicologia e marxismo. Lisboa: Vega, 1978, p. 183-209. Cronologia e bibliografia são também encontradas em WEREBE, M. J. G. & NADEL-BRULFERT, J. (orgs.) Henri Wallon. São Paulo: Ática, 1986 (Coleção grandes cientistas sociais, 52), p. 31-36 e GALVÃO, 1. Henri Wallon: uma concepção dialética do desenvolvi mento infantil. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 123-131. Apresento a seguir seus livros mais conhecidos: L 'enfant turbulent (1925)
Mostra o resultado da observação de 200 crianças com síndromes psicomotoras e se configura no ponto de partida para a elaboração de sua teoria. Apresenta os períodos impulsivo-emocional, sensório-motor, projetivo, personalista e a teoria da emoção. As origens do caráter na criança (1934,
1995l0)
Conjunto de cursos ministrados, entre 1921 e 1931, na Sorbonne. Descreve a criança nos três primeiros anos de vida, destacando seu comportamento emocional, a individualização do próprio cor po e a formação da consciência de si como processos paralelos e complementares do desenvolvimento nessa faixa. Detalha a teoria da emoção no início do desenvolvimento e seu papel biológico (tônus) e social (primeira forma de comunicação). A evolução psicológica da criança (1941,
1998)
Apresenta os princípios do desenvolvimento (oposição/conflito/negação, alternância e integração) e aborda cada campo funcional. Do acto ao pensamento (1942,
1966)
Aborda a origem motora do ato mental, apresentando a interde pendência entre o motor e o intelectual.
10 A primeira data refere-se à publicação original; a segunda, à edição em português.
68 • Intro duç ão à Psicologia da Educação
As origens do pensamento na criança (1945, 1989) Reúne entrevistas e diálogos entre crianças de cinco e nove anos, destacando as características do pensamento sincrético, o conflito entre o discursivo (verbal) e o emocional (pré-verbal) e os níveis da linguagem: linguagem tônica (reação ao som, não ao conteúdo), sensório-motora (musical: rima, ritmo), semântica.
R ef er ên c ia s DANTAS, lleloysa. A infância da razão: uma introdução à psicologia da inteli gência de Henri Wallon. São Paulo: Manole, 1990. TRAN-THONG. Estádios e conceito de estádio de desenvolvimento da criança na psicologia contemporânea. Porto: Afrontamento, 1967, Segunda Parte, Capí tulo Primeiro, p. 159-264. WALLON, Henri. Do acto ao pensamento. Tradução de J. Seabra-Dinis. Lisboa: Portugália, 1966. (Colecção Problemas, 10)
_______ Níveis
e flutuações do eu. In: Objectivos e métodos da psicologia. Lisboa: Estampa, 1975, p. 153-172.
_______ Psicologia e educação da criança. Tradução de Ana Rabaça e Calado Trindade. Lisboa: Editorial Veja, 1979.
_______ As
origens do pensamento na criança. Tradução de Doris Sanches Pinheiro e Fernanda Alves Braga. São Paulo: Manole, 1989.
_______ As
origens do caráter na criança. Tradução de Heloysa Dantas de Souza Pinto. São Paulo: Nova Alexandria, 1995.
_______ A evolução psicológica da criança. Tradução de Cristina Carvalho. 2. ed. Lisboa: Edições 70, 1998. (Nova Biblioteca, 70) ZAZZO, René. Henri Wallon: psicologia e marxismo. Lisboa: Vega, 1978.
B ib l io g r
a f ia de
A poio
DANTAS, Heloysa. A afetividade e a construção do sujeito na psicogenética de Wallon. In: LA TA1LLE, Yves de. Piaget, Vygotsky, Wallon : teorias psicogenéti discussão São Paulo Summ 1992 85-98
Capítulo II • A Criança Concreta, Compl eta e Con tex tual izada I 69
GALVÃO, Izabel. Uma reflexão sobre o pensamento pedagógico de Henri Wallon. Idéias. São Paulo: FDE, n. 20, p. 33-40, 1993. ----------- Henri Wallon: uma concepção dialética do desenvolvimento infantil.
Petrópolis: Vozes, 1995.
----------- O espaço do movimento: investigação no cotidiano de uma pré-escola
à luz da teoria de Henri Wallon. São Paulo, 1992. Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. MAHONEY, Abigail A. & ALMEIDA, Laurinda R. (orgs.) Henri Wallon: psico logia e educação. São Paulo: Loyola, 2000. MARTINET, M. Teoria das emoções: introdução à obra de Henri Wallon. Lis boa: Moraes, 1981. MERANI, Alberto L. Psicologia e pedagogia: as idéias pedagógicas de Henri Wallon. Lisboa: Editorial Notícias, 1977. NASCIMENTO, Maria Letícia B. P. Corpo e fala na constituição do eu: investi gação sobre o prelúdio da pessoa em creche pública. São Paulo, 1997. Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. VASCONCELLOS, Vera M. R. Wallon e o papel da imitação na emergência de significado no desenvolvimento infantil. In: PEDROSA, M. I. et al. (org.) Inves tigação da criança em interação social. Recife: UFPE, 1996, p. 33-47. (Coletâ neas da ANPEPP, v. 1, n. 4) WALLON, Henri. O papel do outro na consciência do eu. In: WEREBE, M. J. G. & NADEL-BRULFERT, J. Henri Wallon. São Paulo: Ática, 1986, p. 158-167. ----------- Os meios, os grupos e a psicogênese da criança. In: WEREBE, M. J. G.
& NADEL-BRULFERT, J. Henri Wallon. São Paulo: Ática, 1986, p. 168-178. WEREBE, Maria José G. & NADEL-BRULFERT, Jacqueline (orgs.) Henri Wallon. São Paulo: Ática, 1986. (Coleção grandes cientistas sociais, 52)
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José Sterza Justo
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e a Educacão
Freud sempre foi muito zeloso na difusão de sua teoria e de sua técnica psicoterapêutica. Quando suas idéias começaram a despertar interesse, formou um grupo de estudos que se reunia em sua própria casa, em Viena, às quartas-feiras. Rapidamente o movimento cresceu, passando a atrair profissionais de outros países, culminando, culminan do, em 19 1910 10,, com a fundação da Sociedade Internacional de Psicanálise (SIP). Freud mantinha-se atento às colaborações de seus discípulos, selecionando e filtrando aquilo que considerava adequado ao desenvolvimento de sua teoria, procurando preservar os postulados centrais da Psicanálise. Diferentemente de outras teorias, a Psicanálise não se desenvol veu nem se difundiu por intermédio da universidade, mas pelas asso ciações de psicanalistas que, ainda hoje, muito bem organizadas como uma rede mundial, detêm o controle do desenvolvimento dessa ciên cia e da formação de novos profissionais. É claro que o grande suces so da Psicanálise no mundo ocidental, como teoria e prática psicote rapêutica, suscitou todo um jogo de interesses e poder no interior do movimento psicanalítico, desde a época de Freud, gerando conflitos, desavenças e disputas pelo controle desse cobiçado arsenal teórico e do precioso naco do mercado das psicoterapias. Nesse palco de disputa e de jogo de poder, muitos foram afastados, expulsos ou se desligaram da Psicanálise oficial, fundaram suas próprias escolas e conseguiram bri lhar por conta própria, como ocorreu com Jung, Adlcr e Reich. As disputas, os expurgos e as desíiliações s for justificados justifica dos como
72 • Intro duç ão à Psicologia da Educaç Educação ão
tendo sido produzidos por divergências quanto ao cerne do legado de Freud: eram comuns acusações de heresia e desvios em relação aos ensinamentos centrais do Mestre, no embate entre as forças adversá rias que periodicamente surgiam no interior da organização. O argu mento de traição e deturpação das teses de Freud e a consequente alegação da necessidade de se resgatarem os tesouros originais deixa dos por sua obra ganharam bastante espaço e converteram-se na prin cipal justificativa tanto para as deserções e rupturas como para a fun dação de outros grupos e associações. Jacques Lacan foi um desses discípulos rebeldes que provoca ram incômodos razoáveis nos detentores do comando da SIP, a partir dos anos 50, marcando profundamente a psicanálise francesa. Ele esteve sempre ativo e envolvido nos principais debates deflagrados em torno de questões teóricas, da formação de novos analistas e do funcionamento da associação. Ingressou no movimento psicanalítico professan profe ssando do a necessidad neces sidadee do retorno retorn o a Freud, segundo segun do ele, para não deixar morrer a tradição da “peste”, ou seja, um certo caráter de per turbação, incômodo e subversão do instituído que, de acordo com o próprio próp rio Freud, seria inerente ineren te à Psicanálise Psican álise e se alastraria alas traria por onde quer que passasse. A chegada de Lacan produz abalos sísmicos no edifício psicanalí psican alí tico, sacudindo tanto a teoria quanto as instituições gerenciadoras do legado de Freud. Sua figura, sempre polêmica, é também disparadora ou foco de outros sismos na própria sociedade que funda em torno de si e de de suas idéias. A primeira dissidência dis sidência de Lacan ocorre em 1953 1953,, quan do, com vários outros psicanalistas, abandona a Sociedade Psicanalítica de Paris, filiada à SIP, e juntos fundam a Sociedade Francesa de Psicanálise (SFP) como uma organização independente. Dez anos depois, a nova sociedade será também abalada por um grande impasse. Em função de interesses diversos, surge na SFP a intenção de filiar-se à SIP; porém, tal pretensão esbarra na exigência, por parte desta última, de que Lacan seja excluído excluí do da lista dos analis ana lis tas didatas. A maioria aceita tal imposição e Lacan acaba sendo ex pulso em 1963 1963.. No ano seguinte, seguin te, cria sua própria próp ria entidade: a Escola Freudiana de Paris. Não tardará muito para que novas questõe que stõess teóricas e divergên dive rgên cias profundas profun das sobre a formação forma ção gerem outras dissidências. dissidên cias. Em 1969 1969,, Lacan encabeça a defesa de uma proposta de formação de analistas relativamente diferenciada da tradicional, conferindo maior autono mia aos candidatos e gerando uma crise de tal monta que acabou por
Lacaniana e a Educaç Educação ão I 73 Capítulo III • A Psicanális e Lacaniana
provocar, em 1969, 1969, a saída de um grupo de psicanali psic analistas stas da escola por ele dirigida. Os dissiden diss identes tes fundam o Quarto Qua rto Grupo, em alusão a lusão ao número de fracionamentos do movimento psicanalítico francês. Po rém, o gesto mais contundente ocorre em 1980, quando Lacan, tam bém no meio de uma crise, dissolve diss olve sua escola esco la para criar outra, a Escola da Causa Freudiana, que perdura até hoje. O propalado retorno a Freud, significando a correção de desvios desvirtualizadores da sua obra, atribuídos a seus discípulos, será insis tentemente afirmado como a principal finalidade do movimento lacaniano e constituir-se-á no grande mote de atração de novos adep tos. A bandeira ou o projeto científico de retomo a Freud organizará todo o movimento lacaniano, que rapidamente ganhará expressão sig nificativa, primeiro no círculo da intelectualidade e da psicanálise fran cesa, depois no cenário de outros países, inclusive da América Latina, despontando primeiro na Argentina e posteriormente no Brasil. Lacan, Lacan, psiquiatra ps iquiatra com certo prestígio na França, frequentador frequen tador dos círculos de intelectuais (filósofos, artistas e cientistas) de sua época, concluiu em 1933 sua tese de doutorado sobre as relações da paranóia com a culpa, analisando casos clínicos marcados por tentativas de homicídio ou pela presença de temas sociais no núcleo do delírio. Demonstrava já sua capacidade de interligar temas clássicos da Psi quiatria (a paranóia) a preocupações de outras áreas do conhecimen to, como a Sociologia. Afirma, por exemplo, nesse trabalho, que a diferença entre uma paranóica como Aimée - nome dado a um caso clínico de uma mulher que acaba confinada num manicômio judiciá rio após tentar assassinar uma atriz famosa por sentir-se ameaçada e perseg per seguida uida por ela - e de um como Rousseau, Rouss eau, já que também tamb ém era reconhecido como um paranoico, é que o segundo conseguiu acesso aos meios sociais de comunicação e assim pôde colocar sua produção delirante no circuito do saber e lapidar suas visões de mundo no uni verso da intelectualidade oficial, conquistando, dessa forma, reconhe cimento e legitimidade para suas impulsões delirantes. Observa-se nesse trabalho a preocupação com a agressividade, a destrutividade, a psicose, a identificação, o espelhismo e a lingua gem, que acompanhará seus desenvolvimentos teóricos posteriores, mas, sobretudo, evidencia-se aí uma inquietação e uma atração pelo insólito, pelo incomum e pelo incompreensível, tal como se apresenta 0 gesto homicida de Aimée tentando ferir a atriz com uma navalha.
74 • Introdução à Psicologia da Educação
da fundação da Psicanálise pelo modelo antropológico-cultural. As sim, o inconsciente - conceito central na teoria psicanalítica - passa a ser entendido não como uma instância psicológica localizada no ponto de contato entre o somático e o psíquico, mas como estruturado pela linguagem e na relação do sujeito com o “Outro”. Dessa forma, o inconsciente nascería da inscrição do sujeito na linguagem, inscrição essa dada pelo contato com seus semelhantes e por sua inserção na cultura, ou seja, no universo dos signos, das sig nificações, num mundo codificado, constituído fundamentalmente por significantes - sons, imagens visuais, olfativas, táteis; enfim, aquilo que transporta significados (idéias, conceitos e representações). Os significantes, por sua vez, não produzem significação por uma sim ples associação a um significado convencionado pela cultura, mas sim por suas articulações com outros significantes, dentro de uma cadeia instituída pelas regras da linguagem. Por exemplo, uma palavra não significa por si mesma, mas pelo lugar que ocupa na frase, ou seja, pela relação que estabelece com outras palavras dentro das regras gramaticais de uma dada língua. Os significantes mais importantes, na acepção lacaniana, são aqueles que aparecem abruptamente, ou irrompem involuntariamente, sem controle ou sem o comando da consciência, como o que acontece, por exemplo, nas expressões de falhas ou erros da memória, quando nos esquecemos do nome de uma pessoa conhecida ou quando trocamos palavras. O inconsciente, portanto, não se circunscreve num lugar deter minado no interior do aparelho psíquico, delimitando a fronteira en tre o somático e o psíquico ou recobrindo representações primitivas dos impulsos instintivos; não é um conceito topográfico, mas um con ceito dinâmico referido à linguagem, alusivo àquilo que no ser falante resta por dizer, que permanece nas entrelinhas ou no não dito. Con forme assinala Nasio (1993, p. 22): ...o inconsciente é um processo ativo, que não para de se exteriorizar através de atos, acontecimentos ou palavras que reunam as condições definidoras do significante, a saber: ser uma expressão involuntária, oportuna, desprovida de sentido e identificável como um acontecimento ligado a outros aconteci mentos ausentes e virtuais.
Nessa ânsia de se exteriorizar, o inconsciente se deixa captar por
Capítulo
III •
A Psicanálise Lacaniana o a Eilucacao I /'»
presentações por semelhanças - metáfora - e as representações por contiguidade - metonímia. A linguagem do inconsciente, tal como aparece no sonho, por exemplo, é extremamente simbólica, a ponto de não conseguirmos decifrá-la inteiramente. A linguagem simbólica do inconsciente admite a condensação - a reunião de vários significa dos numa mesma imagem - e o deslocamento - a substituição de imagens na expressão de um significado ou o uso de uma parte para representar o todo. Mas, além de ser o celeiro do simbolismo, o inconsciente é tam bém o manancial da busca do “outro”, de alguém ou de alguma coisa onde possa efetivamente produzir sentido. Não há um inconsciente propriamente individual. Enquanto linguagem, as produções do in consciente estão sempre referidas a um “outro”, estarão sempre dirigidas a um destinatário e cunhadas pela presença desse outro no discurso. Na verdade, o inconsciente não está nem no indivíduo nem fora dele, mas exatamente no espaço da relação que se estabelece entre o “Eu” e o “Outro”. A noção do nascimento do inconsciente não no biológico mas na cultura, no contato do sujeito com o “Outro”, mediado pela linguagem, é uma das principais contribuições da teoria lacaniana à Psicanálise.
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Su j e i t o
“A vaca sabe ser vaca. Mas o homem precisa de bula para ser homem.” Essa afirmação de Jorge Forbes, um eminente psicanalista lacaniano brasileiro, em entrevista dada à revista IstoE (2003, p. 45), sintetiza algo essencial da condição humana: a necessidade do Outro. O animal vive movido pela convicção de seus instintos, que não relu tam em dar respostas rápidas, automáticas e eficazes a um estímulo interno ou externo. Os instintos dos animais não vacilam diante das estimulações, dispondo de respostas prontas e acabadas a tudo aquilo que, vindo do meio ambiente ou do interior do organismo, os afeta gerando algum incômodo ou produzindo um estado de excitação. Os animais não são tomados por vacilações quando afetados por algum acontecimento do seu meio nem se consomem em dúvidas “existenciais”. O animal sabe comer quando tem fome, sabe se defender quando está em perigo, sabe procurar um parceiro para se acasalar; enfim, dispõe de um re
76 • Introd ução à Psicologia da Educação
pertório de comportamentos, a maioria herdados, que o habilitam para a vida. Tal repertório é fixo na espécie e a homogeneidade dos com portamentos, derivada da herança, caracteriza a identidade da espécie no plano comportamental. Assim, uma vaca sabe ser uma vaca. Pos sui todos os padrões de conduta de sua espécie, sabe que alimento buscar, o que fazer para atrair um macho e assim por diante. A vaca não se detém diante da famosa dúvida ontológica: “Ser ou não ser?” Com o homem se passa algo totalmente diferente. Quando vem ao mundo, não sabe o que é, nem tem à sua disposição algum meca nismo biológico que lhe dê, por herança e sem a necessidade de algu ma forma de apropriação, os recursos comportamentais mínimos para a sobrevivência. O homem não vem ao mundo com um registro, já dado no seu organismo, de como se defender, buscar o semelhante, associar-se, reproduzir, proteger a prole, amar e assim por diante. Todos aqueles comportamentos que aparecem espontaneamente nos animais, sem a necessidade de uma aprendizagem, nos homens são insuficientes para o enfrentamento de toda a complexidade que o ca racteriza. São poucos os comportamentos instintivos no homem, resumindo-se praticamente aos primeiros reflexos que operam no início da vida, como o da sucção. O fato de o homem não ter a parte principal de sua conduta de terminada pela herança biológica o torna capaz de criar, inventar e ser agente de sua própria história. O não saber inicial do homem pro piciará um saber praticamente ilimitado a ser construído ao longo de sua história. Será justamente a falta de um saber pronto sobre sua existência que o lançará à busca desenfreada do conhecimento. É importante considerar algumas diferenças inscritas na consti tuição da natureza “instintiva” do homem e dos outros animais. Se é certo que os homens, como os outros animais, dispõem de algumas orientações inatas que impulsionarão sua conduta desde o início da vida, é certo também que tais instintos possuem características espe cíficas quando referidos ao ser humano. A principal especificidade reside no fato de que no homem tais instintos são plásticos, flexíveis, podendo ser modificados com a experiência, enquanto no restante dos animais são mais fixos e estereotipados, admitindo pouca ou nenhu ma modificação ao longo da vida ou do processo de desenvolvimento tanto filo como ontogenético. Vale dizer: a espécie humana modifica substancialmente suas disposições inatas, assim como cada indivíduo também o faz ao longo de sua vida, enquanto os outros animais man têm seus padrões herdados de comportamento, com maior rigidez, tanto na história da espécie como no curso da vida de cada indivíduo.
Capítulo
III •
A Psicanálise Lacaniana e a Educa
Os “instintos” humanos são bastante flexíveis quanto aos obje tos a que visam, quanto aos próprios objetivos e quanto à parte do corpo mobilizada na busca de gratificação. Um rápido olhar sobre as necessidades básicas dos organismos vivos permite visualizar clara mente os diferentes graus de flexibilidade instintiva entre as espécies. E claro que a escala filogenética ou o grau de evolução das espécies em relação à capacidade de aprendizagem e transformação exigiría um exame mais detalhado da questão da maleabilidade dos instintos ou quanto ao papel da aprendizagem na formação de condutas e hábi tos. Para os nossos propósitos, no momento, tomaremos o homem numa categoria e o restante dos animais em outra, sabendo, entretan to, que nessa segunda categoria existem diferenças respeitáveis quan to ao grau. Resguardadas as devidas ponderações, é possível verificar que os “instintos” humanos são bastante flexíveis em relação aos objetos que elegem para a realização de sua finalidade última: a remoção da excitação ou a satisfação da necessidade. Mesmo tomando disposi ções instintuais mais elementares e rígidas do homem, como a fome, é possível constatar que ele consegue se valer de uma infinidade de objetos para realizar essa necessidade, removendo a excitação por ela produzida. Por isso mesmo, encontramos nas diferentes culturas há bitos alimentares distintos, assim como observamos entre os indiví duos de cada cultura uma enorme variação da preferência alimentar. No campo da sexualidade tal flexibilidade é ainda maior. O ser huma no praticamente não tem limites para eleger os objetos de sua sexua lidade, como podemos observar nas eleições mais estranhas e exóti cas, como o caso da necrofilia - escolha de cadáveres como objetos sexuais. Ocorre a mesma coisa quanto aos objetivos ou ao tipo de relacionamento estabelecido com os objetos. A oscilação entre passi vidade e atividade pode ocorrer com qualquer desejo e, ainda, finali dades variadíssimas podem ser estabelecidas como intenção da busca do objeto. Por exemplo, a sexualidade pode assumir como finalidade o propósito de dominar o objeto (finalidade ativa) ou submeter-se a ele (finalidade passiva); humilhá-lo, infligir-lhe dor ou ser humilhado e castigado; observar, contemplar ou ser observado e admirado. As zonas erógenas também migram, podendo, a rigor, catalisar qualquer parte do corpo, embora algumas, como boca, ânus e órgãos genitais ocorram com maior frequência. Nos outros animais, objetos, objetivos e zonas erógenas são muito
78 • Introd ução à Psicologia da Educação
característicos de cada espécie assumem a primazia como zonas erógenas, assim como um outro indivíduo da mesma espécie é geral mente eleito como objeto preferencial e a cópula, a serviço da fecun dação, comumente se estabelece como objetivo único. Porém, o mais surpreendente, no caso do ser humano, é a possibi lidade de surgirem condutas contrárias às exigências pulsionais. Como destaca Reich (1975), o ser humano é capaz de contrariar as demandas de suas pulsões a ponto de renunciar completamente à sua satisfação ou exceder-se na busca do prazer. Consegue, por exemplo, não comer quando está com fome ou, inversamente, comer exageradamente mes mo estando sem fome. Consegue “não transar” quando está com desejo ou, inversamente, “transar” compulsivamente, buscando o prazer além das demandas pulsionais. No caso dos animais, há uma maior adequa ção entre a necessidade e as buscas de satisfação. O ser humano possui essa intrigante capacidade de se reprimir, significando aqui a repressão não simplesmente à abstenção da reali zação de um desejo - o que os animais também fazem quando con têm um impulso por medo de um castigo mas também à sonegação de uma representação que impede a consciência de tomar conheci mento do desejo e, assim, poder propiciar alguma satisfação. No ser humano a pulsão, enquanto representação mental, enquan to fenômeno psicológico, assume autonomia em relação ao biológico, abrindo caminho para as variações quanto aos objetos, objetivos, zo nas erógenas e grau de realização de um desejo. Justamente essa plasticidade da pulsão possibilita ao homem criar representações, ins tituir-se como ser da linguagem, vislumbrar alternativas, descolar-se dos determinismos das necessidades biológicas brutas e, assim, ser alçado à condição de sujeito produtor de cultura. Mas, se por um lado a capacidade de produzir representações acerca de si e do seu mundo e de subjetivar a realidade permite ao homem a condição de sujeito, por outro o coloca como refém da cul tura, num lugar inicial de não saber, um não saber que não diz respei to apenas ao mundo externo, mas também, e principalmente, a si mesmo, ao seu próprio desejo. Aliás, sendo o desejo uma representa ção, algo que alude a um possível e que surge precisamente porque o aparelho psíquico não consegue prover um encontro radical entre a necessidade e o objeto, jamais um desejo conseguirá preencher total mente a falta que ele denuncia. O próprio do desejo é denunciar uma falta, impelindo o sujeito a uma busca que, porém, jamais será preen
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A Psicanálise Lacaniana e a Eduuicuo I /«/
chida totalmente. O projeto humano de busca da felicidade, entendi da como a realização plena dos desejos, está fadado ao fracasso, pelo menos enquanto busca da plenitude ou do paraíso. Portanto, se o ho mem enquanto animal desejante inaugura-se como sujeito, paga o preço da infelicidade ou do sofrimento psíquico potencializado pelas condições sociais que ampliam sobremaneira as restrições ao gozo ou o direcionam para propósitos alheios, instituídos por uma ordem po lítica e econômica alienadora. Se as necessidades dos animais indicam claramente as faltas, pres crevendo os objetos e objetivos, o ser humano, por sua vez, vê-se às voltas com a falta, porém sem ter de antemão a indicação exata de como preenchê-la. E justamente essa busca de decifração das faltas que inau gura o desejo, sinalizando as possibilidades de encontro ou reencontro de algo que possa apaziguar a ansiedade do sentimento de incompletude. Não possuindo um saber prévio, como o da vaca, o homem precisa conquistá-lo ou produzi-lo em contato com os outros. Dessa condição de conviver com os semelhantes advêm a metáfora da bula. Ele precisa encontrar a prescrição de sua existência no mundo e, como o biológico não lhe dá a receita ou a bula, terá que procurá-la no contato com os outros. Tal como no caso dos remédios, a bula contém a composição do sujeito (quem ele é ou o que se pretende que ele seja), as indicações de uso (seu lugar e função no mundo), o modo de usar (como agir, desejar) e até mesmo os efeitos colaterais (riscos decorrentes de sua presença no mundo). A herança do ser humano, portanto, não é uma herança biológi ca, mas cultural. Não são os comportamentos herdados ou inatos que direcionarão a conduta do homem ao longo de sua vida, mas as he ranças culturais, igualmente determinantes, porém que permitem sua metabolização pelo sujeito. Uma característica importante das heranças culturais é que, dife rentemente das biológicas, elas não são autorreveladoras, não estão anunciadas e nem se realizam automaticamente por meio do sujeito. Hanna Arendt (1972) coloca sabiamente essa especificidade da cultu ra ao utilizar um aforismo para enunciar o caráter silencioso dos le gados que cada geração deixa para as outras. Diz cia: “Nossa herança nos foi deixada sem nenhum testamento”. A autora utiliza esse aforismo para analisar a situação dos intelectuais franceses que se filiaram à resistência, durante a ocupação nazista, ocorrida na Segun
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resistência detiveram em suas mãos um precioso tesouro, a visão de liberdade pública, mas não conseguiram sequer reconhecê-lo plena mente e muito menos nomeá-lo, dar-lhe um nome e, assim, poder transmiti-lo às gerações seguintes. Esse fracasso na transmissão dos legados que uma geração deixa à outra não é uma especificidade desse episódio particular da história, mas algo próprio da transmissibilidade das conquistas de uma geração a outra. Isso porque, primeiro, os tais tesouros ou legados, lutas e rea lizações de cada geração não são plenamente reconhecíveis em seu devido valor pela própria geração que os produz. Tais realizações, na verdade, expressam sonhos, miragens e por isso mesmo não têm como ser compreendidas diretamente, expressas e transmitidas em uníssono. Além dessa dificuldade intrínseca à nomeação dos tesouros para a própria compreensão daqueles que os detêm, e para sua transmis sibilidade para os herdeiros, existem os bloqueios ou as censuras de correntes das forças sociais contrárias aos ideários de certos tesou ros, para as quais não interessam nem sua elucidação nem sua passa gem para a história. Esse fenômeno das heranças não atestadas, tomado no plano macrossocial da história da civilização ou no plano microssocial e psicológico do processo de desenvolvimento do indivíduo, pode ser claramente visualizado quando nos interrogamos sobre o que nossa geração procurou realizar no plano político e o que deixou de suas realizações para as gerações posteriores, ou mesmo quando nos inter rogamos sobre as heranças psicossociais que rondam nossa trajetória de vida pessoal. De quais legados culturais somos herdeiros enquanto geração e o que estamos deixando para as seguintes? O que herdamos dos sonhos e realizações de nossos pais e o que estamos projetando nos nossos filhos? Quais tesouros estamos usufruindo e repassando para nossos filhos, com alguns enriquecimentos? Quais dívidas estamos pagando e quais outras estamos deixando a nossos herdei ros? O essencial dessa herança, seja um bem ou uma dívida, não é propriamente o valor ou o peso que possa representar para o herdeiro, mas sim o fato de ela estar ou não atestada, isto é, nomeada e esclarecida tal como num testamento clássico de bens onde tudo que está sendo deixado está devidamente indicado, nomeado e destinado a cada herdeiro. A ausência do testamento impede o herdeiro de saber o que está recebendo e o que pode fazer para utilizar os tesouros rece
Capítulo
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A Psicanális e Lacaniana e a Educa^uo
No plano ontogenético, poderiamos entender a metáfora da he rança não atestada como aquela que é transmitida silenciosamente, nas entrelinhas, aquela que se incrusta no inconsciente, no não dito. A herança sem testamento, no plano psicológico, inclui as expectativas dos pais, seus desejos em relação aos filhos, suas intenções em relação a eles, os sonhos e os projetos que lhes são destinados e que nem se quer são totalmente reconhecidos pelos próprios pais. Essa herança está ali, como uma bula, indicando desejos, formas de ser, agir, prevendo destinos, formatando o sujeito sem que, também à semelhança de uma bula, o texto esteja escrito em letras grandes e legíveis. Hanna Arendt (1972) coloca como condição fundamental para a constituição do sujeito sua apropriação do passado, a posse da heran ça e dos legados deixados pelas gerações anteriores, entendendo essa possibilidade de apropriação como uma busca ativa na qual tais te souros possam ser apreendidos, renomeados, ressignificados e postos a serviço da orientação do sujeito no seu tempo. Os tesouros, como visagens de uma geração, não estariam pron tos e lapidados, mas necessitariam de um acabamento por parte de quem os construiu, como também precisariam ser reconstruídos por aqueles que os herdaram. O pensamento e a linguagem funcionariam aí como uma peça fundamental. Por intermédio deles é que tanto o acabamento da experiência como sua transmissão seriam possíveis. Refletir a experiência, dar-lhe significados, movimentá-la para o pas sado e para o futuro, contá-la e recontá-la seriam tarefas indispensá veis para a apropriação e a transmissão da herança. A “bula cultural”, portanto, para funcionar como um tesouro teria que estar devidamen te lida pela geração que a construiu e usou e relida por aquelas a quem foi transmitida. Mais ainda, conforme a autora, fatos isolados de seu contexto perdem seu sentido e, no máximo, são registrados pela me mória como acontecimentos desconexos, desprovidos de significação. Portanto, não apenas os eventos, mas o contexto geral que lhes dá significação constitui o bem mais precioso da herança. Não se trata apenas de ter acesso a fatos isolados, mas aos sentidos dados por suas disposições no discurso que os capta e transmite. Juntando a afirmação primeira de que o homem precisa de bula para saber ser homem com o aforismo utilizado por Hanna Arendt (1972), segundo o qual “nossa herança foi deixada sem testamento”, concluímos que o ser humano precisa de uma bula, mas que essa bula está ilegível. O acesso à herança - a inteligibilidade da bula - é con-
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tlição indispensável para a constituição do sujeito. Sem uma apropria ção ativa dos legados destinados ao sujeito, do acervo que lhe foi dei xado e que persegue seu caminho, não há como ele redirecionar a rota que lhe foi prescrita pela herança e, assim, instituir-se como participan te de sua própria história de vida. A apropriação dessa herança só é possível pela da linguagem - por atos que nomeiem o que foi destina do ao sujeito, que indiquem o cenário e as intenções que cercam sua gênese e acompanham sua existência; enfim, que possam funcionar como uma narrativa, uma história que explicite o lugar do sujeito na trama ou no enredo, o projeto do qual faz parte. A “historiação” torna-se uma atividade indispensável. É neces sário contar e recontar a história - coletiva e pessoal - como forma de produzir incessantemente sentidos e permitir ao sujeito a decifração dos enigmas que rondam sua existência no mundo. É justamente a ausência de uma bula legível, clara e monossêmica, tal como aconte ce com a bula biológica da vaca, que torna o ser humano um sujeito cuja carência maior é a ausência de conhecimento e que o lança, ine vitavelmente, como Edipo, em busca da decifração dos enigmas in crustados nas fundações de sua pessoa, aqueles atos básicos que o colocaram no mundo. Por isso mesmo a criança, desde muito cedo, indaga incessante mente sobre suas origens e fatos marcantes de seu passado. Quer sa ber como nasceu, onde, que acontecimentos acompanharam sua vin da ao mundo. Quer saber de sua história, de uma época da qual possui poucos ou nenhum registro, ou de fatos dos quais não teve conheci mento. Indaga sobre episódios dos quais foi protagonista e se deleita, em geral, ao saber de cenas pitorescas. Como sabemos, a atração das crianças por histórias infantis também funciona como meio de acesso ao seu próprio passado e aos sentidos de sua existência simbolizados nas figuras dos personagens e nas tramas desenroladas na narrativa. Contar, recontar e elaborar são os grandes recursos disponíveis ao ser humano, enquanto portador da linguagem e do pensamento, para apropriar-se de suas heranças, da bula ou da cultura que o desig na como homem. São os recursos pelos quais, desde a infância, o ser humano pode ir decifrando os enigmas de sua existência, desvelando tanto as intenções mais próximas, os desejos mais imediatos e constitutivos de suas fundações - o desejo parental -, como aqueles
Capítulo
111.2 A I mp o r
t â n c ia d o
Es pel h o
na
III • A Psicanális e Lacaniana e a Educacao I H I
Co n s t it u iç ã o
do
Su j e i t o
Uma das grandes contribuições de Lacan à (re)leitura de Freud se deu mediante sua teorização sobre o estádio do espelho no desenvolvi mento da criança. Sua primeira comunicação sobre essa teoria ocorreu num congresso de Psicanálise, realizado em Zurique, em 1949. Nessa ocasião, o debate em torno desse assunto foi bastante polêmico, como seriam suas demais contribuições à teoria psicanalítica. Seu texto sobre o estádio do espelho, que pode ser tomado tam bém como um dos textos fundadores da psicanálise lacaniana, trata das tentativas, por parte do bebê, de elaborar as imagens deflagradas nos primórdios de sua relação com o mundo. Como é sabido, o relacionamento da criança com o espelho por ora tomado como o espelho comum - passa, ao longo do primeiro ano de vida, por transformações interessantes. Num primeiro momen to, o bebê não demonstra nenhuma atração por sua imagem refletida no espelho, como se não reconhecesse ali qualquer coisa especial capaz de chamar a sua atenção. Num segundo momento, sua reação diante do espelho se modifica: ele é tomado por uma intensa excita ção, passa a observar atentamente o que vê ali, demonstrando alegria e curiosidade por aquela imagem ainda não reconhecida como sendo a sua, mas como se fosse a de uma outra pessoa. Num momento se guinte, dá um passo adiante, procurando olhar atrás do espelho para certificar-se da existência dessa outra pessoa que visualiza na sua pró pria imagem. Começa a se evidenciar a suspeita da criança de que aquilo que aparece no espelho é apenas uma imagem; porém, ainda não reconhecida plenamente como sendo a sua própria. No estádio final, a criança é capaz de se reconhecer nela. O momento inicial da inexistência de qualquer interesse pela imagem refletida no espelho corresponde ao período da indiferenciação do bebê em relação ao mundo externo. Como é sabido, no início da vida, o bebê não consegue perceber-se como algo separado dos demais objetos do mundo. Não existe distinção entre sujeito/objeto, Eu/não Eu, mundo interno/mundo externo. Por isso mesmo, ele não demonstra qualquer reação especial frente às imagens refletidas no espelho; no máximo as toma como qualquer outra formada na sua percepção e tida como mais uma do montante desse mundo indiferenciado. Subsiste, nesse período, um funcionamento psicológico coman dado pelo narcisismo primário - investimentos afetivos que se ligam
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a objetos tomados como parte desse “Eu” soberano, grandioso, que abarca ou não se destaca do restante do mundo. O “Outro”, aquilo que residiría num espaço diferenciado, independente do sujeito, ainda não é instituído, como tal, no universo do bebê nesse período da indiferenciação. No plano das representações mentais, conforme assinala Piera Aulagnier (1979), as primeiras imagens geradas, nesse momento, constituem-se como imagem-coisa, ou seja, como representações que não diferenciam o representante, o representado e o agente da representa ção. Poderiamos entender essas imagens primitivas como represen tações alucinatórias onde a imagem criada (representante) confunde-se com a coisa (objeto representado) e não há o reconhecimento do agente da representação. Aulagnier chama tais representações de pictográficas por serem essencialmente icônicas (baseadas em ima gens) e por buscarem a maior similaridade possível entre o representan te e o representado. O pictograma procura decalcar, copiar o mais fielmente possível, como uma fotografia, a coisa que está sendo re presentada. As representações pictográficas são próprias de uma lin guagem tida como mais primitiva, simplificada, concreta e, embora sendo típicas das primeiras manifestações da capacidade do homem de representar, tanto na filogenia como na ontogenia, não desapare cem ao longo do processo de desenvolvimento, mas continuam sendo utilizadas, por exemplo, na arte contemporânea e pelo adulto. O momento da descoberta, pela criança, de que no espelho exis te alguma coisa que tomará como um “outro” denuncia uma mudança importantíssima no seu psiquismo. Ela já começa a diferenciar o “Eu” e o “Outro”, embora ainda não consiga realizar uma separação com pleta e realista entre ambos, visualizando o “outro” a partir de sua própria imagem ou tomando sua imagem como sendo o “outro”, um estranho no qual não se reconhece. Esse período será acompanhado por uma mudança importante no processo de representação e por um avanço considerável em todo esse caminho de acesso à linguagem. Surgem as chamadas represen tações cênicas, nas quais começam a circular intenções ou visadas de desejos de um sobre o outro ator de uma cena. Aliás, somente aí se constitui o cenário propriamente dito, onde as imagens se movimen tam conforme as intencionalidades expressivas dos desejos. Antes, nas representações pictográficas, predominavam as imagens fundidas aos objetos, sem nenhum reconhecimento de singularidades dadas por suas
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intenções próprias. Portanto, não havia confrontos ou a possibilidade de ação e reação de um sobre o outro. Na representação cênica, o início da separação sujeito/objeto e das discriminações dos objetos do mundo entre si permite uma primeira visualização do cenário onde personagens distintos se movimentam, agem e reagem. Porém, ainda não há o reconhecimento pleno da fonte das intencionalidades que aí circulam, persistindo uma certa confusão entre o “Eu” e o “Outro”, implementada pelo uso da projeção e da introjeção, ou seja, pelo mecanismo de atribuição ao “outro” de coisas que, na verdade, pertencem ao sujeito (projeção) ou, inversamente, tomando como produção sua coisas pertencentes ao “outro” (introjeção). As próprias imagens preliminares pelas quais a criança começa a se reconhecer como pessoa, incluindo as imagens do seu corpo, transitam nesse movimento de projeção e introjeção, produzindo identificações completamente alienantes. Como se observa nesse período de não reconhecimento da própria imagem refletida no espelho, o próprio corpo é tomado como sendo de um “outro”, revelando o extremo desse momento de alienação do “Eu” na figura do “Outro”. Na representação cênica, o que transita na relação entre o “Eu” e o “Outro”, projetiva e introjetivamente, são as intenções dos atores presentes no cenário ou as aparições primitivas do desejo nas quais, de qualquer maneira, não há o reconhecimento efetivo do sujeito do desejo ou o discernimento de que desejo é de quem. No último momento do estádio do espelho, a criança sabe que o que está ali é ela ou, melhor ainda, sua imagem. Consegue agora diferenciar o representante do representado e do agente da representação. Reconhece que aquela imagem é apenas um reflexo de si mesma e que é ela quem está captando a própria imagem. A coisa se diferencia de sua representação, abrindo caminho para a instituição da relação significante/significado na linguagem e para o domínio da palavra. Aulagnier (1979) entende esse momento como sendo o da instituição da representação da palavra, no lugar da representação da coisa, característica do pictograma. O fundamental, entretanto, dentro das formulações de Lacan (1998) acerca do estádio do espelho é compreender o nascimento do “Eu” no processo de espelhamento, em que esse “Eu” começará a se formar a partir de uma imagem criada não por ele mesmo, mas pelo “Outro”. A ideia é simples: imaginemos que o espelho principal no
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qual a criança se mira não é o espelho propriamente dito, mas o olhar da mãe. E nesse grande espelho (mãe) que a criança se projeta e se vê cotidianamente quando busca ou recebe alimento, carinho, proteção e cuidados. É a reação da mãe diante do bebê que fornecerá as imagens primordiais dele mesmo, que dirá a ele quem ele é, o que está sentin do, quais seus desejos e assim por diante. A mãe, ou quem preenche a função materna, funcionará como uma tradutora para o bebê. É ela quem decifrará, inicialmente, para a criança, os enigmas de si e do mundo. Mesmo o mais elementar incômodo ou a mais trivial das ne cessidades, como a fome, receberá uma tradução feita pela mãe me diante a qual a criança começará a realizar representações sobre si e sobre seu mundo, até mesmo a representação dessa distinção “Eu”/ “Outro”. Por exemplo, quando o bebê, recém-nascido, é assaltado pelo incômodo da fome ele sente esse algo que o incomoda, enseja algu mas ações reflexas para se livrar desse estado de desconforto, mas não consegue reconhecer (representar) adequadamente o que está acontecendo em todo o cenário e assim produzir uma compreensão capaz de apontar as soluções do problema. Quando a mãe, diante do choro da criança, oferece-lhe alimento, é como se estivesse lhe dizen do que aquilo que ela (criança) está sentindo chama-se “fome” e pode ser aliviado com aquilo que se chama “leite”, mediante uma ação chamada “mamar”. E evidente que não é a palavra propriamente dita que circula aí, nesse momento, mas imagens decorrentes da reação da mãe e que construirão para a criança as primeiras representações de suas próprias necessidades, sentimentos e ações. A mãe, ou quem preenche a função materna na relação com a criança, estará no lugar desse tradutor que verterá para ela os sentidos de sua própria experiência. É como se diante dos olhos do bebê esti vesse se desenrolando uma série de imagens legendadas pelo “Ou tro”, como num filme falado em outra língua. O olhar da mãe fornecerá para a criança as primeiras imagens de si mesma. E pelo espelho do olhar materno que o bebê começa a se ver e se reconhecer. Portanto, o “Eu” começa a se formar de maneira totalmente alienada: o bebê começa a se representar tomando para si aquelas imagens geradas pelo olhar materno. Como o olhar da mãe será constituído a partir dos seus desejos projetados na criança, serão os desejos maternos que serão tomados como sendo os próprios dese jos da criança. A gênese do desejo do sujeito é, portanto, o desejo do “outro”.
Capítulo
III •
A Psican álise Lacaniana e a Educacuo
Essa condição de alienação primeva do “Eu” na figura do “Ou tro” é própria do período de indiferenciação e persiste durante toda a fase do espelhamento, quando a criança não consegue reconhecer sua própria imagem, estabelecendo com o “Outro” uma relação imaginá ria em que transitam intensamente a projeção e a introjeção. A condi ção para a superação do espelhismo e para o reconhecimento de si como algo desalienado da figura do “outro” é o acesso ao plano simbó lico, no qual a imagem refletida pelo espelho será tomada apenas como uma imagem e reconhecida como sendo um simples reflexo do pró prio sujeito. Representante e representado definitivamente se separam, ou significante e significado se isolam, possibilitando o surgimento da palavra e da linguagem. “Eu” e “Outro” passam a ser reconhecidos como campos distintos e, mais ainda, existindo entre eles a presença de um terceiro, que intercede e barra a simbiose entre mãe e criança, essa fusão que representa a visagem de um gozo absoluto. A aparição da figura paterna na relação simbiótica estabelecida entre a mãe e a criança representará um interdito no espectro do gozo absoluto, instaurando o lugar da lei na estrutura psíquica. A presença do pai desfaz a díade estabelecida entre o par mãe-criança, instauran do uma estrutura de relacionamento triádico em que, fundamental mente, a mãe representa o lugar do desejo, o filho o do desejante e o pai o da interdição. E importante salientar que esse pai representa, antes de tudo, um lugar específico na estrutura da relação: o lugar da lei, da interdição. Ele é fundamentalmente uma função que poderá ser exercida por qual quer personagem e não somente pelo pai biológico; aliás, pode-se prescindir da existência concreta dele. Por isso mesmo, ele é mais um nome do que uma pessoa concreta. Como sabemos, é “em nome do pai”, mais do que de suas ações efetivas, que se estabelece a lei fami liar. O cotidiano está repleto de exemplos dessa imago paterna que expressa a presença da lei. E comum a mãe interditar o filho “em nome do pai”, ou seja, evocando seu nome para cercear alguma investida do desejo do filho. Falas tais como “seu pai não vai gostar" ou “seu pai não vai permitir” são recorrentes como forma de apresen tação da lei e da interdição. Esse “pai” é mais um significante do que uma pessoa de carne e osso e, portanto, constitui-se eminentemente pela linguagem. A inserção do nome do pai, da interdição, na relação da criança com a mãe é que permitirá a constituição de um lugar próprio da crian
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ça destacado da figura materna. Impedida de continuar colada na mãe, prisioneira do seu desejo, a criança descobrirá seu lugar próprio, seu desejo, desvinculada da figura materna. Paradoxalmente, é a interdi ção que permitirá à criança desalienar-se da figura materna, desco brindo seu lugar de filho, de sujeito, na rede de relações em que esta rá inscrita como um ponto de cruzamento dos fluxos afetivos que nela transitam. A chegada do pai afasta a criança da mãe e, ao fazê-lo, designa-lhe um lugar próprio onde encontrará sua própria imagem, sua identidade ou seu nome. A instauração do relacionamento triádico é fundamental para a constituição do sujeito. É na tríade que o sujeito irá descobrir que não é soberano e onipotente, mas que seu desejo está submetido a um terceiro, a uma lei, desfazendo suas ilusões narcisistas. Tal experiên cia é decisiva para a inserção do sujeito na cultura e nas relações so ciais, possibilitando o efetivo reconhecimento do “Eu” e do “Outro”, constituídos numa rede de relações em que todos os elementos são interdependentes. A existência de um depende do outro de tal forma que os lugares ocupados na relação não estão dados a priori nem são fixos, mas são construídos e se movimentam uns em relação aos ou tros, como num jogo de futebol. Essa noção é extremamente impor tante para compreendermos qualquer contexto de relações. Cada ele mento, cada sujeito, se constitui numa relação ocupando um determi nado lugar a partir dos lugares ocupados por “outros”, como numa luta de boxe, em que cada boxeador ocupará um lugar e se movimen tará no ringue tendo como referência o lugar e a movimentação do seu adversário, ou como numa frase, em que cada palavra se define pela relação que estabelece com as demais. Portanto, o sujeito não é uma entidade isolada, o inconsciente não é algo mergulhado nas profundezas de um indivíduo, mas produzido numa relação. Logo, o sujeito se constitui nas encruzilhadas. Seu lugar estará sendo posto sempre entre outros lugares, numa rede, e não num ponto isolado e desconectado das outras caselas que o circundam. E necessário enfatizar que tudo isso - o espelhismo, as diferen tes formas de representação, a tríade que permite o surgimento do sujeito e seu relativismo em relação ao “outro” -, embora apresenta do em sua gênese num momento particular do desenvolvimento, sub siste no funcionamento psicológico do sujeito, podendo produzir dinamismos da personalidade, mesmo em períodos tardios. Por exem plo, o espelhismo, típico do primeiro ano de vida, frequentemente
Capítulo III • A Psicanáli se Lacani ana e a Educação I 89
Sintetizando as idéias básicas da teoria lacaniana, diriamos que a linguagem é o elemento constitutivo fundamental do homem e do seu mundo. O sujeito aparece na e pela linguagem e a rede de rela ções na qual está imerso é, ela própria, também estruturada como lin guagem, tal como o inconsciente e assim por diante. A linguagem não é apenas um sistema de representação, ela também institui rela ções, materializa-se na comunicação, no diálogo, no discurso, num dado contexto e é estruturante do lugar ocupado pelo sujeito na rede de relações psicossociais, fazendo com que o sujeito do inconsciente emerja na relação com o “outro”.
111.3 So b r e
as
Fu n d a ç õ e s
Tomando a constituição do “Eu” como algo que emerge da pre sença do “Outro” e a questão da herança, discutidas anteriormente, é possível visualizar, na gênese do sujeito, como se formam os marcos de sua referência, como são criadas suas fundações. De imediato, é possível afirmar que os legados da herança tran sitam na rede de relações e são desejos impressos no sujeito por aque les a quem está conectado, ou seja, pelos intérpretes encarregados de traduzir-lhe as imagens que emergem dessa relação, provendo-lhe representações de si próprio e do mundo. O desejo da mãe, que designará num primeiro momento o lugar da criança no mundo, funciona como um desses marcos inaugurais. A presença do pai, num segundo momento, deslocará a criança para um lugar próprio, distanciado da mãe e mantido sob o espectro da função materna e paterna. A aparição da função paterna estabelece outro marco de referência importante para o sujeito. Basicamente, são esses dois marcos que constituem a fundação do sujeito e servirão como bússola para sua orientação na rede de relações e na sua trajetória de vida. Contardo Calligaris (1992), um renomado psicanalista lacaniano europeu, porém com bastante vivência da cultura brasileira, faz uma leitura interessante das nossas fundações e dos seus reflexos na nossa subjetividade. Ele busca na história da nossa cultura, nas nossas heran ças mais longínquas, elementos capazes de esclarecer alguns de nossos
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hábitos e costumes, particularmente relacionados ao tratamento que damos às crianças c como concebemos a infância e a educação. Segundo ele, a ocupação do Brasil pelos europeus se deu pela miragem subjetiva dos invasores de encontro do paraíso, um lugar de riquezas, de gozo fácil e de felicidade absoluta. Tal miragem correspondería à visada infantil de acesso pleno e irrestrito ao corpo materno: fonte de todos os prazeres, da satisfação de todos os dese jos. A ausência de uma resistência significativa às miragens ensandecidas dos exploradores teria esmaecido a noção de lei, um interdito que pudesse colocar algum freio na sanha dos conquistadores, tal como a palavra do pai coloca limites para a criança. Assim, nossa herança cultural, nossas fundações, seria marcada principalmente por esse sonho primevo de felicidade e gozo sem li mites que teria atravessado o tempo e estaria presente ainda hoje, direcionando nossa subjetividade. Com efeito, reconhecemos facilmente entre nós o “jeitinho brasi leiro”, expressão direta do esmaecimento da lei ou da disposição para burlá-la e transgredi-la, como se estivéssemos reencenando a chegada dos primeiros exploradores ávidos para usufruir a posse da terra e exau ri-la, sem nenhuma restrição ou senso de responsabilidade. Também não é difícil reconhecer essa herança no relacionamen to pais-filhos. Os pais projetam nos filhos seus sonhos frustrados de felicidade, destinando a eles a realização do gozo que não consegui ram conquistar. Mas é sobretudo visível a dificuldade que pais e adul tos, de maneira geral, têm em interditar o filho ou a criança. Qualquer restrição a um desejo soa como um grande pecado cometido por de salmados que não se compadecem com o “sofrimento” da criança. É comum ver pais extremamente pobres fazendo qualquer sacrifício para atender aos pedidos de presentes de suas crianças, desde guloseimas de supermercado até brinquedos mais sofisticados. E lugar-comum na nossa cultura que “criança não pode passar vontade” ou ser objeto de interdição. Porém, Calligaris (1992) chama a atenção para o fato de que, ao lado de toda essa valorização e essa condescendência com a criança, coexiste um sentimento de negligência e maus-tratos beirando à barbárie, como acontece nas mais variadas formas de violência prati cada contra a criança. Segundo ele, tal paradoxo só existe porque não há na nossa cultura um reconhecimento efetivo do lugar inalienável da criança, onde ela poderia ser reconhecida e tratada conforme de
Capítulo
III •
A Psicanálise Lacaniana e a tduca
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mandas que lhe fossem próprias. Na verdade, o adulto se espelha na criança tomando-a como portadora dos seus desejos, visadas de gozo e de busca do paraíso perdido. Não seriam os desejos da criança que estariam sendo realizados, mas sim os dos pais nela projetados. A incapacidade para interditar não permite à criança se reencontrar con sigo mesma, com seus desejos constituídos a partir de um lugar pró prio na rede de relações. A criança subsiste como um fantasma parental submetida ao imperativo do gozo absoluto, tão impositivo quanto uma censura autoritária e mais alienante do que ela por apri sionar o sujeito no desejo do outro, retirando-lhe a possibilidade de uma insurreição que lhe daria um lugar próprio. Tais heranças culturais, tornando tênues os limites entre o adulto e a criança, potencializam o trânsito de tantos outros desejos parentais na figura do filho. O nome dado à criança expressa os desejos inaugu rais depositados pelos pais na figura do filho. São as fundações mais arcaicas e os assentamentos primevos estabelecidos mesmo antes do nascimento. O nome próprio funciona como a primeira nomeação do desejo parental, como um testamento que designa os legados da criança e indica os investimentos afetivos que recaem sobre ela, as idealizações dos pais e o projeto de vida do qual é portadora. Como sabemos, o sobrenome pertence ao domínio da filiação, à linhagem parental, co locando o sujeito numa rede familiar e, a partir dela, numa rede social mais ampla. O nome pertence ao domínio da fantasia; não está preestabelecido, permitindo a projeção de vários desejos. Cada época foi marcada por certos hábitos na escolha dos no mes. Antes, era comum atribuir ao neonato o nome do santo do dia do nascimento. Em algumas famílias, prevalecia o hábito de homena gear um antepassado recaindo normal mente a escolha sobre as figu ras dos avós, tios ou do próprio pai. E curioso notar que a escolha de um nome de alguém da própria família seguia um padrão vertical, designava a hierarquia familiar, visava a cultivar uma tradição, perpe tuar algo valorizado no homenageado. Jamais se fazia uma escolha lateral, optando-se, por exemplo, pelo nome de um primo, a não ser em raros casos, quando o homenageado havia morrido. Aliás, os ca sos de homenagem aos mortos, colocando-se seus nomes nos nasci dos, demonstram com clareza a existência de um lugar já estruturado
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carão, sobretudo, o que se espera do filho. O nome é, pois, um com ponente central da formação da imagem do sujeito no espelho mater no, no qual a criança irá mirar-se para realizar os primeiros reconhe cimentos de si própria. Nos costumes da atualidade, é comum os pais escolherem os nomes dos filhos homenageando um po p star da mídia ou acompa nhando uma tendência da moda. Surgem as safras de certos nomes que, inclusive, invadem as planilhas de matrícula das escolas. Existe ainda o gosto pela sonoridade da palavra ou simplesmente uma atra ção estética como critérios para a escolha do nome. Seja como for, o fundamental é que o nome e tudo o que mais designe a criança, colocando-a num lugar delineado pelo desejo do “Outro”, explicitem suas heranças filo e ontogenéticas, tomando-as re conhecíveis o máximo possível. Isso implica que sejam simbolizadas e não tratadas como um espelhismo alienante, que sirvam de âncoras para o sujeito poder se movimentar no horizonte de possibilidades e não se afundar com o peso de fixações que não o deixam sair do lugar. O silêncio do desejo parental ou sua omissão, o não testamento da herança, impedirá a criança de reconhecer seu lugar, apreender seus legados, tesouros e dívidas e, assim, poder orientar-se no espaço e no tempo, traçando um caminho próprio.
111.4 Es p el h is mo s , H er a n ç as
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D es ej o s
na
Ed u c a ç ã o
Bertolt Brecht (1963), conhecido escritor alemão contemporâ neo de Freud, retratou no conto “Diálogos dos exilados” a educação de uma forma muito provocativa e indulgente; porém, com a geniali dade de um artista que consegue, com intuição e sensibilidade, pene trar no âmago das coisas, na mundaneidade. Escolhemos esse conto para ilustrar algumas questões básicas que saltam à vista num olhar lacaniano sobre a educação. Nele, Brecht retrata dois amigos falando sobre educação, con versando num café, como faziam toda manhã. Um deles começa a ler para o outro um trecho de seus escritos sobre experiências da infância na escola. Após expor seu ceticismo em relação à escola, situando-a como transmissora de práticas e valores sustentadores de uma socie dade hipócrita e injusta, o personagem começa a descrever episódios
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de sua experiência escolar. Num deles, havia um professor que se deliciava em humilhar os alunos, lançando-lhes questões a que não conseguiam responder. Assim realizava sua onipotência, ostentando sua sabedoria diante da fragilidade dos alunos. Certa vez, quando um supervisor visitou a sala para avaliar o trabalho do professor, como acontecia rotineiramente, os alunos ficaram todos mudos e não respon deram a nenhuma pergunta do supervisor, como se não tivessem apren dido nada da matéria ensinada. O professor ficou muito constrangido e, desse dia em diante, não foi mais aquela figura mesquinha. Outro professor tinha um péssimo hábito: cultuava uma deusa chamada “Justiça”. Debruçava-se obsessivamente na correção de pro vas procurando ser o mais correto possível na avaliação. Costumava assinalar os erros em vermelho na prova dos alunos e calculava a nota contando o número de erros cometidos. Os alunos tentavam ludibriar o professor apagando os traços vermelhos colocados por ele, raspan do a tinta ou passando a borracha bem forte. O professor detectava facilmente o uso desse expediente, olhando a folha por transparência, contra a luz. Um aluno, no entanto, teria sido mais hábil e esperto do que seus colegas. Acrescentava mais traços vermelhos em passagens corretas da prova e então protestava ao professor que, reconhecendo a “injustiça” cometida, descontava do total de erros o número dos seus “equívocos” e, assim, aumentava a nota. Após relatar esse episódio o personagem comenta, ironicamente, que era preciso reconhecer que esse aluno aprendera a refletir na escola. Outra experiência que jamais esquecera, e que considerava la pidar, teria ocorrido no primeiro dia de aula. Logo na entrada, o pro fessor pediu que todos se reunissem, de pé, num canto da sala. Orde nou, em seguida, que fossem ocupar seus lugares nas carteiras. Porém ele havia retirado, propositalmente, uma cadeira da sala de modo que um aluno acabou ficando de pé, sem encontrar um lugar. O professor, então, aproximou-se dele e lhe deu um bofetão. Nesse momento de sua narrativa, o amigo interlocutor o inter rompe para elogiar eloquentemente esse professor. Afirma que se tra tava de um gênio: usando um recurso extremamente simples - a falta de uma cadeira na sala - teria exposto para os alunos toda a crueldade do mundo com o qual iriam se defrontar. Um mundo injusto, compe titivo, que deixa muitos sem lugar e os pune brutalmente. Essa seria uma lição preciosa, fundamental na preparação do aluno para a vida
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constasse do currículo escolar. Comenta ainda que seria uma pena e um engodo se a escola simulasse, pela sua maneira de tratar os alu nos, a existência de uma sociedade justa, igualitária, solidária, coope rativa, cidadã, enfim, calcada em valores que assegurassem a cidada nia, a coletividade, o amparo, a segurança, a proteção e a realização das aspirações humanas mais elevadas. O aluno assim formado esta ria completamente iludido quanto ao mundo e, além de ser ridiculari zado, seguramente não estaria equipado para enfrentar a “lei da sel va”. Dessa forma, a função precípua da escola e da educação seria a de mostrar o mundo tal como ele é, colocando o aluno em contato com o lodo, cabendo a ele nadar ou engoli-lo. O papel do professor seria, basicamente, o de encarnar os tipos humanos fundamentais e deflagrar na sala de aula, na relação com os alunos, as cenas típicas da sociedade, as pessoas gananciosas, mesquinhas, exploradoras, nar cisistas e assim por diante, dando a oportunidade para os alunos vivenciarem o contato com esses tipos paradigmáticos. As disciplinas seriam meros pretextos para que essas cenas mundanas fossem reproduzidas na sala de aula, na relação do aluno com o professor. O verdadeiro conteúdo ou a verdadeira aprendizagem residiria nessas “lições de vida” deflagradas na interação. O diálogo entre os personagens termina com um deles dizendo que, tendo tido uma experiência escolar bastante rica quanto a tais “lições de vida”, julgava-se devidamente preparado para enfrentar o mundo, mas que um dia as virtudes acabam sendo exigidas e que aí... Esse conto é bastante intrigante, provocativo, pessimista e, no geral, fere o brio do professor por prevalecer uma visão de escola e de educação como meros instrumentos de mergulho da criança e do jo vem no lodo, embora no final, como escritor genial que é, com meia dúzia de palavras e pontos de reticências Brecht deixa a questão to talmente em aberto. Como professores, somos levados a pensar uma escola e uma educação transformadoras, inspiradas por ideais elevados e assim por diante. De fato, é bom que seja assim: por mais difícil que esteja o cenário e por mais arruinado que esteja o mundo é importante vis lumbrar alternativas de uma vida melhor. No entanto, isso não impe de, e até exige, que tenhamos um olhar crítico para nossa realidade. Para isso, o conto de Brecht é valioso. Como toda obra de arte de qualidade, o conto é inesgotável. Pre tendemos apenas explorá-lo nas suas relações com os pontos da teo ria lacaniana que comentamos para refletirmos sobre a educação.
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Em primeiro lugar, salta à vista uma visão de escola como um cenário eminentemente humano e mundano, ou seja, um lugar consti tuído fundamentalmente por pessoas e onde circulam cruamente os altibaixos do homem. Esse é um primeiro ponto a ser destacado dentro de uma visão lacaniana de homem e mundo: a mundaneidade resulta da presença do homem inserido em lugares designados por uma rede de relações. No conto de Brecht, os professores e seus alunos - não prédios, equipamentos ou tecnologias de ensino - representam a escola e pro tagonizam seus acontecimentos. Como participantes de uma rede de relações, eles ocupam lugares (de professor e aluno) que se definem um em relação ao outro e aos demais nós da rede. Cada um desses lugares se designa por uma função, de maneira a que seus ocupantes se constituam como porta-vozes de um discurso do qual são mensa geiros. Assim, aquele professor descrito como adepto contumaz da justiça, além de, como professor, ocupar o lugar do suposto saber, é porta-voz do senso de justiça, obediência e correção, valores circu lantes na sociedade. O professor, enquanto um tipo humano, representa o espelho no qual o aluno se mira para se reconhecer ou rejeitar as imagens de si e do seu mundo ali refletidas. Esse fenômeno do espelhamento, tão bem explorado por Brecht no seu conto, é estruturante da relação professor-aluno. Enquanto lugar-função na estrutura das relações, o professor terá que se constituir no lugar do ideal do ego do aluno; ele terá que repre sentar para o aluno suas aspirações mais elevadas, seus projetos, o ideal de si mesmo que persegue e procura alcançar. É necessário ressaltar que o professor não terá que ser efetiva mente aquilo que o aluno almeja, mas sim representar simbolicamen te tais ideais. Por isso mesmo designamos anteriormente o lugar do professor como sendo o do “suposto” saber, ou seja, o aluno terá que se posicionar e encontrar o seu lugar em relação a esse outro lugar onde presumivelmente está o saber. E evidente que, por mais que o professor saiba e tenha conhecimento da matéria que ensina, a busca do aluno ou aquilo que ele atribui ao professor e tenta conquistar para si estará sempre muito além do que o professor efetivamente detém. Até porque, e isso é fundamental, o que o aluno imputa ao professor não é apenas o conhecimento intelectual, mas, sobretudo, afetos que
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do aluno como pessoa inteira e é assim que será admirado ou odiado. Ele acaba dando lições de vida e não somente de Matemática ou Geografia, por exemplo, porque está ali diante do aluno como um ser humano, com uma história de vida de sucesso ou fracasso, admirada ou desprezada e assim por diante. Aliás, é comum o professor, em suas aulas, tecer longos comentários sobre assuntos que nada têm a ver com a disciplina que ensina. Normalmente fala de sua vida pessoal, em muitos casos se expondo de forma demasiada, tecendo comentários sobre seus feitos profissionais ou até amorosos, queixando-se de doen ças, sofrimentos e frustrações afetivas, ou então expondo suas opi niões sobre outros professores, sobre alunos, sobre a escola ou até sobre política; porém, de forma absolutamente pessoal. O persona gem do conto de Brecht seguramente diria que esse é o verdadeiro professor e, provavelmente, ainda com ironia, diria que, de fato, para um trabalho assim tão pessoal, para tamanha exposição da intimida de, maior talvez do que a de uma modelo posando nua, o salário real mente é muito baixo. Ironias à parte, resta a constatação das relações transferenciais estabelecidas entre professor e aluno. No plano psicológico, isso pos sibilita a invasão da sala de aula pelos fantasmas do professor e do aluno advindos de seus relacionamentos afetivo-emocionais estabele cidos com outros personagens e lugares, em momentos bem distan tes. Pela via da transferência, além de estarem trazendo para a sala de aula modelos de relações e vínculos emocionais estabelecidos princi palmente com as figuras da família, estão também tomando um ao outro dentro da lógica do espelhamento. O professor, entorpecido por uma gravitação narcisista, toma o aluno como seu ego ideal e o aluno toma o professor como seu ideal de ego. O professor tende a tomar o aluno como extensão de si mesmo. Ele se vê no aluno, projetivamente, seja como o jovem de outrora, seja como aquele que deverá absorver seus ensinamentos, suas qualidades e assim, como um duplo, conti nuar seu projeto narcisista. O aluno, por sua vez, deposita no profes sor seus ideais, vendo-o como um modelo a ser seguido. Essa condição de espelhamento é inevitável na relação professor-aluno e precisa ter a devida consideração. Obviamente, o professor não deve se valer dessa condição de ideal do aluno para dominá-lo e assujeitá-lo, da mesma forma que não pode tomar o aluno como exten são de sua pessoa e, à semelhança dos pais, fazê-lo um sucessor encar regado de saldar suas dívidas.
Capítulo III * A Psican álise Lacaniana o a Educaçno I 9 /
O professor, tal como a mãe, funciona como um espelho através do qual o aluno irá construir sua imagem enquanto pessoa e, particu larmente, enquanto sujeito em busca do conhecimento. O olhar do professor é decisivo para as imagens que o aluno forma de si mesmo. E óbvio que a criança não chega à escola como uma página em bran co. Trará incrustada em si os olhares de “outros” que habitaram sua vida emocional-afetiva e procurará, no olhar do professor, a reprodu ção dessas imagens de si já cristalizadas, como se fosse buscar nesse novo espelho a mesma imagem já vista e conhecida. Por outro lado, o professor também estará dominado por um acervo de imagens, decor rentes de suas experiências anteriores, com as quais irá fotografar o aluno e presentear-lhe com essa foto. Se esse processo de espelhamento não for interrogado e questionado, a alienação, o relacionamento fantasmático e as representações cênicas dominarão essa relação impe dindo o surgimento de qualquer autonomia. Porém, para que se estabeleça uma relação em que possam tran sitar transferências, espelhismos e as modificações próprias do desen volvimento de um relacionamento, é necessário que os lugares este jam bem constituídos. Aliás, é a diferenciação de lugares e funções na relação que age como fator de crescimento ou de solução de con flitos e dilemas que possam surgir. Os maiores problemas não decor rem daquilo que está transitando na relação (seu conteúdo), mas do modo como os lugares estão constituídos e delimitados na relação (a forma, a estrutura). Com a estrutura bem posta, qualquer conflito poderá ser resolvido ou, pelo menos, enfrentado pelo sujeito dentro de condições psicológicas básicas para isso. Como sabemos, nem sempre a mãe ou o pai conseguem ocupar efetivamente o lugar que lhes cabe na relação entre si ou com os fi lhos. Podem se tornar extremamente distantes, recusando a função materna ou paterna, ou procurar uma aproximação exagerada, trans formando-se em “amiguinhos dos filhos”, ou então se colocar em oposição, produzindo verdadeiras colisões ou esmagamentos do lugar do filho. Em qualquer um desses casos não há lugares bem delimita dos e constituídos na relação. No primeiro, há um esvaecimento de um e outro pela negação e recusa dos vínculos; no segundo, os luga res estão fantasmaticamente sobrepostos, colados, impedindo a dife renciação e, no terceiro, o antagonismo exacerbado cria a mesma dependência e a mesma confusão dos lugares pela negação, onde cada um se define não por afirmar o que é e pretende, mas por se afirmar em oposição ao outro (“sou e quero o que ele não é e não quer”).
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A relação professor-aluno pode ser invadida por essas dificulda des na constituição dos lugares e, consequentemente, no funciona mento da relação. Saber exatamente que lugares são esses e quais exatamente as funções que lhes correspondem não é tarefa fácil; po rém, é fundamental que isso seja objeto de constante preocupação e de redefinição. O importante é saber que lugar devemos ocupar e destinar ao aluno, dentro da visão de educação e de escola que nos orienta como educadores. Tais lugares não somente devem permitir a expressão do sujeito, como ainda, na rede de relações, devem existir lugares vazios, à se melhança das casas vazias que permitem a circulação das peças num jogo de xadrez, para que o sujeito possa circular, para que o conheci mento possa circular, e a palavra também, criando-se assim espaços para a liberdade, a criatividade e a expansão do sujeito. Retomando a ótica de Contardo Calligaris sobre o papel da in terdição na constituição do sujeito e na educação, diriamos que, na delimitação dos lugares ocupados pelos sujeitos na rede de relações, inclusive no caso da relação professor-aluno, é necessário que se ob serve efetivamente o limite de cada um e que haja uma lei estabele cendo direitos e coibindo transgressões. E necessário ter bem claro que a violência e as opressões não decorrem da aplicação da lei, mas precisamente da ausência da lei, quando alguém impõe soberanamen te seu arbítrio e sua vontade. A interdição, portanto, não significa censura ou coibição autoritária, mas sim estabelecimento de limites entre os lugares constituídos na rede de relações. Não significa tam bém cerceamento de contato; ao contrário, significa exatamente a promoção de contatos e relacionamentos possibilitados por um posicionamento efetivo de cada um diante do “Outro”, a partir dos lugares que ocupam na rede de relações. Por mais paradoxal que pos sa parecer, é exatamente aquele educador (pai ou professor) que se apresenta como liberal, como promotor dos prazeres da criança, que acaba funcionando como um educador tóxico, ou seja, que não per mite o surgimento do próprio desejo da criança, que não consegue superar o espelhismo na relação, tornando-a uma eterna dependente. É preciso ficar atento para não se deixar iludir por idéias e propos tas educacionais fáceis que procuram vender o sonho de felicidade, tal como aquele do qual foram vítimas os primeiros exploradores que che garam ao nosso país e também os imigrantes de cujas tragédias huma nas e político-sociais ainda somos herdeiros. Quando se fala, por exem plo, de uma pedagogia assentada no “prazer” (de ensinar e aprender) é
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III • A Psicanálise Lacaniana c a Educucao
necessário saber de quem é esse prazer, saber, no final das contas, do que se está falando: do prazer fantasmático decorrente do desejo do “outro”, do prazer narcisista que ignora e prescinde da presença do “ou tro”, ou do prazer autoritário que exige que o “outro” goze? Numa cultura tão carente e vitimada, onde qualquer alusão à in terdição soa como profecia da opressão e miséria, é difícil reconhecer o papel da existência de limites e impedimentos na coexistência hu mana. Mais difícil ainda é entender que justamente essa miragem do paraíso e da transgressibilidade é que impede o efetivo reconhecimen to das faltas e dos caminhos para solucioná-las na realidade. Enfim, o professor precisa encontrar seu lugar na relação com o aluno e exercer com toda autoridade as funções que lhe são outorga das, especialmente a de provedor e interditor. A relação triádica pre cisa ser assumida na relação professor-aluno, ou seja, é necessário explicitar que entre o aluno e o conhecimento (objeto do seu desejo) há um terceiro, o professor, que funcionará como elemento de regu lação do acesso a esse objeto. O professor, inicialmente visto como detentor absoluto do conhecimento, alçado pelo aluno ao lugar do suposto saber, normalmente se deixa capturar por essa imagem gran diosa de si vislumbrada no olhar do aluno e assume acriticamente todo o poder que tal transferência lhe confere. Quando o aluno não o investe desse poder decorrente do suposto saber, utiliza-se de instru mentos coercitivos para se impor como tal, como dono absoluto da verdade e do mando. No primeiro caso, utiliza-se da sedução, da alie nação do aluno espelhado na sua imagem; no segundo, se vale do poder institucional que lhe é conferido. Nenhuma dessas situações é, evidentemente, facilitadora da ascensão do aluno ao lugar de sujeito do conhecimento. O professor sedutor, aquele que aliena o aluno na sua imagem narcisista de “grande mestre”, procurará manter o aluno como um eterno dependente. Esse professor funciona como um pro fessor “tóxico”, tal como aqueles pais que jamais deixam os filhos assumirem a condução da vida deles, temendo a quebra do vínculo afetivo que, nesse caso, é mais necessário para a segurança dos pais do que dos filhos. Tanto o professor alienador como o autoritário são codependentes, ou seja, dependerão da dependência do aluno em relação a eles, tornando-os portanto eternos ignorantes ou aprisiona dos no lugar do “não saber”. O verdadeiro saber do professor não é aquele mero conhecimen to do conteúdo da matéria que ensina, mas, sobretudo, é o conheci
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seu lugar como parâmetro na constituição dos lugares dos seus alunos na sala de aula, assim como o lugar dos pais designará os lugares dos filhos no grupo familiar. Como é sabido, o relacionamento entre os fi lhos e o lugar de cada um na estrutura familiar dependerão do lugar ocupado pelos pais, do relacionamento que estabelecem com cada um. Assim, cada filho ocupa um lugar determinado, constituído em torno do epicentro paterno/matemo, surgindo, por exemplo, o lugar do mais velho, do mais novo, do filho do meio e assim por diante, cada um espelhando o desejo parental e estabelecendo e relacionando-se com os demais a partir dessa posição que ocupam no núcleo familiar. A figura do professor na sala de aula funciona como a dos pais no grupo familiar. É a partir dela que se constituem os lugares espe cíficos de cada aluno e é por ela que passam os vínculos afetivos e os relacionamentos estabelecidos entre os alunos. O professor precisa ter noção de toda essa sua implicação como elemento mediador das rela ções do aluno com o objeto do conhecimento e de toda a rede de relacionamentos constituída na sala de aula. O professor precisa sair desse lugar inicial onde ele é confundi do com o objeto do desejo do aluno para se colocar no lugar de me diador. O professor é investido fantasmaticamente como sendo ele próprio o objeto do desejo do aluno, numa relação de espelhismo. E notável como, principalmente na universidade, o nome do professor se confunde com o nome da disciplina que ensina. Assim, os alunos se referem a uma dada disciplina dando a ela o nome do professor. Não dizem, por exemplo, que têm aula de uma disciplina X, mas sim que têm aula do professor X, colocando o nome do professor no lugar do nome da disciplina e estabelecendo um vínculo positivo ou nega tivo com aquela matéria a partir do tipo de vínculo afetivo-emocional estabelecido com o professor. Não conseguem diferenciar a pessoa do professor da natureza da disciplina que ele ensina ou tomá-lo apenas como um mediador, como um lugar de passagem e não como o pro prietário daquele conhecimento. O professor precisa sair desse lugar de proprietário, de fusão com o objeto do conhecimento, para se colocar como um terceiro, como um elo entre o aluno e o objeto do conhecimento. Na rede de rela ções, é muito comum, por parte dos mestres, a intenção de formar discípulos à sua imagem e semelhança - suas crias porém, para possibilitar a autonomia do aluno, necessária para sua participação como sujeito na construção do conhecimento, o professor precisa des tituir-se do lugar de proprietário do aluno e do seu conhecimento. Para
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III • A Psican álise Lacaniana e a Educaaio I 101
tanto, é importante que ele saiba abdicar do seu narcisismo, permitir que o aluno desfaça sua alienação, crie vínculos com o conhecimento por intermédio de outros mediadores, diminuindo sua dependência e seus investimentos fantasmáticos. A existência de lugares “vazios” é indispensável para a desalienação do aluno, lugares esses que não são preenchidos pelo professor, mas deixados para o aparecimento do novo, do diferente, de vínculos, idéias e conexões construídas independente mente da figura do professor. Quanto à intermediação do professor nos relacionamentos esta belecidos entre os alunos, sua tarefa principal é a de possibilitar a abertura de frestas nas redomas que enjaulam cada aluno em determi nados papéis-função na sala de aula. Como podemos verificar nos grupamentos constituídos em qualquer situação de ensino-aprendizagem, a rede de relações destina, a cada um ou a pequenas células formadas por mais de um indivíduo, determinados papéis-função que sustentam o conjunto do grupo delimitado na sala de aula ou na esco la como um todo. Estamos aqui fazendo um recorte na rede de rela ções, circunscrevendo-a a um espaço limitado e sabendo que princi palmente hoje, com a enorme expansão das comunicações, essa rede é praticamente ilimitada. Pois bem, na rede local da sala de aula emergem os conhecidos papéis-função de “aluno dedicado”, “aluno inteligente”, “aluno disciplinado”, “aluno crítico”, “aluno criativo”, “aluno carente” e assim por diante, sempre, é claro, constituídos a partir dos seus opostos, como o aluno “relapso”, “burro”, “indiscipli nado”, “acrítico”, “afortunado”, e outros antônimos que sempre acom panharão os nomes que forem firmados para designar um lugar no grupo. Como foi dito anteriormente, cada lugar depende de outros, principalmente do seu oposto. Sem a figura do “aluno inteligente” não haveria a do “deficiente”, a ponto de podermos afirmar que, se guindo a lógica dialética, um elemento depende da existência do seu contrário e se define mais pelo que nega do que pelo que afirma como sendo suas qualidades, ou seja, um elemento é definido tanto pelo que é como pelo que não é. O aluno, quando chega à sala de aula, assim como a criança quan do nasce, encontra certos lugares psicossociais postos, analogamente ao que acontece com o espaço geográfico quando já está reservado um quarto ou um berço para o bebê ou quando o aluno já encontra na sala de aula cadeiras que, posicionadas umas em relação às outras,
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mesmo podendo se deslocar a cada dia por diferentes cadeiras, insis tem em permanecer sempre no mesmo local e esse local acaba sendo tomado como signo de sua presença naquele espaço, designando ati tudes e posturas decorrentes de seu posicionamento em relação aos outros. E conhecida a “síndrome” dos alunos que ocupam o “fundo da sala”, por exemplo. Os lugares psicossociais já estão dados previamente na estrutura das relações que configuram a escola e vão sendo preenchidos por aluno e professor na sala de aula. Assim, os personagens que habitam a sala de aula vão ocupando posições ou assumindo papéis-função que estão disponíveis, adaptando ou modelando na estrutura da esco la predisposições constituídas a partir de cristalizações de modos de ser e agir do indivíduo, decorrentes de seus relacionamentos anterio res ou daqueles estabelecidos em outros espaços. É importante lem brar que tais lugares psicossociais são formados por desejos ou por expectativas, intenções e buscas circulantes nas relações onde cada um pretende preencher suas faltas no contato com o “outro”. O problema não está na existência desses lugares preestabelecidos para o sujeito, mas sim no seu aprisionamento a eles pelo desejo do “outro”, tal como a mãe faz quando amarra a criança às suas fal tas, tornando-a dependente e não lhe permitindo constituir seu pró prio desejo. O problema surge quando tanto o aluno quanto o profes sor não conseguem se desvencilhar das amarras do desejo do “outro”, que os aprisionam num determinado lugar. O ideal é que o aluno pos sa circular por diferentes lugares psicossociais, ressignificar-se a cada passagem por diferentes possibilidades e espaços e, a partir daí, en contrar um canto próprio. Além disso, o ideal é que ele possa também habitar esses lugares como lugares simbólicos, isto é, como represen tações de si constituídas a partir de um significantc central - a figura do professor - e que tais representações indiquem possibilidades de suas faltas ou significados de sua presença naquele lugar, ou seja, que funcionem como alusões à sua pessoa e não como uma coisa sitiada num jeito único de existir, dado como uma realidade inamovível ou como um aprisionamento ao desejo do “outro”. Considerando que a figura do educador é o eixo central dessas representações do educando, ela precisa ser construída no plano sim bólico e não no fantasmático, ainda que esse simbólico expresse sua condição de encarnar tipos humanos fundamentais da sociedade, tal como Brecht, no seu conto, predestina a função do professor.
Capítulo
III • A Psicanális e Lacaniana o a Educu
É justamente no plano simbólico que o sujeito consegue represen tar o real - sua condição de faltante - e o imaginário - as faltas que circulam no espelhamento em relação ao outro - e finalmente vislum brar seus desejos, suas faltas e alternativas para seu preenchimento. Em suma, de um olhar lacaniano é possível entender a educação como um fenômeno que surge da condição humana de movimentar-se pela busca incessante de saber, dos meios para ler e compreender a bula que registra o que é o ser humano e seu mundo. Essa bula não vem com o bebê, não está nele, mas na cultura, no “Outro”, cifrada, e só pode ser apreendida pelo acesso aos códigos para sua decifração mediante o domínio da linguagem. A bula funciona como uma heran ça cujo testamento, no entanto, não está completo, seja porque não explicita claramente o que está destinado ao sujeito, seja porque omi te parcelas dos bens e das dívidas que lhe cabem na filiação à huma nidade. Tais legados dos quais é herdeiro são indicados e transmitidos pela linguagem, ou melhor, são constituídos por ela. Portanto, jamais serão completamente acessíveis, dado que a linguagem, pelo seu ca ráter representacional, por valer-se de signos em substituição às coisas, por operar com relações estabelecidas entre significantes e signi ficados, fornece, no máximo, um espectro do real. Subsiste no sujeito e no seu mundo um indizível, um resto por dizer, ainda mais quando a interdição atua sonegando representações, cassando significantes ou fixando, de forma estereotipada, certas significações. Tudo isso que fica por dizer, sempre presente na estrutura psicológica do sujeito, é o que podemos entender como inconsciente. O básico da herança, individual ou coletiva, é o desejo do “Ou tro” dirigido ao sujeito. E a partir do desejo do “Outro” que o sujeito se descobre como ser desejante, ser da falta ou da incompletude, ne cessitando de contato com seus semelhantes. A educação ocupa o maior espaço da bula, podendo auxiliar o sujeito no conhecimento e na conquista da parte que lhe cabe neste latifúndio mundano ou subtrair-lhe a condição de sujeito, aprisionan do-o em lugares psicossociais fechados ou impedindo que construa seu próprio lugar no enfrentamento com o “Outro”.
Ex er
c íc io s
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104 • Intro dução à Psicologia da Educação
2) Exemplifique o mecanismo de identificação e de espelhamento
com situações observadas no cotidiano, na sala de aula, em fil mes, na literatura ou em outras obras de arte. 3) Interprete uma narrativa extraída de um conto, de um romance ou
do registro de uma fala comum colhida no cotidiano, procurando identificar o uso de metáforas, metonímias e outros recursos de produção de efeitos de sentido. 4) Discuta a importância da linguagem para o homem, apontando o
impacto da imagem e do signo disseminados no mundo contem porâneo pelos diferentes meios de comunicação. 5) Faça uma leitura dos signos presentes nas imagens arquitetônicas
dos prédios dos espaços educacionais.
6) Analise um grupo levando em consideração o lugar psicossocial ocupado pelos seus membros.
Gl
o ss ár io
Condensação - mecanismo psicológico, próprio do inconsciente, pelo qual ocorre uma junção e fusão de conteúdos ou materiais anímicos. Pela condensação, representações de desejos ou intenções diversas são reunidas numa única representação. No sonho, por exemplo, uma imagem pode ser montada mediante a sobreposição de vários objetos fundidos entre si e, por isso, possuir vários sig nificados. A condensação assegura a polissemia da linguagem, isto é, a capacidade de um termo ou expressão possuir vários sentidos. Desejo - alude a um fenômeno da linguagem: é a expressão, pela palavra, da incompletude do sujeito e de sua condição de faltante. O desejo, portanto, expressa as buscas, por meio da palavra, dos objetos supostamente perdidos. E sempre conveniente lembrar que o desejo se forma na relação entre o “Eu” e o “Outro” e, devido ao espelhamento, ele se constitui a partir do “outro”. Deslocamento - mecanismo psicológico, próprio do funcionamento do inconsciente, responsável pela substituição de um material psicoló gico (anímico) por outro. E pelo deslocamento que um objeto do desejo pode ser substituído por outro ou que o todo pode ser subs tituído por uma de suas partes. Na linguagem, o deslocamento pos sibilita a figuração de um significado por uma de suas parcelas, vi
Capítulo III • A Psicanális e Lacaniana o a Edu(a
sando com tal transposição a desfocar o sentido original ou encon trar um subterfúgio para driblar a censura que recai sobre ele. “Eu”
- no sentido amplo, refere-se à instância psicológica constituída pelo senso de diferenciação sujeito/mundo. Reúne funções e quali dades como consciência, memória, controle motor, pensamento e percepção, sendo responsável pela mediação das relações entre supereu (superego) e Isso (Id). Lacan enfatiza o “Eu” como lugar de identificação e como resultado do olhar do outro sobre o sujeito. E pelo “Outro” que o sujeito se reconhece e forma as imagens pelas quais se diferencia dos demais objetos do seu mundo.
Gozo
- termo largamente empregado na terminologia lacaniana. Diferencia-se do prazer, comumente tomado como a sensação de alívio produzida pela redução da tensão no uso de um objeto desejado. O gozo situa-se no campo da relação do sujeito com a palavra e desenrola-se no plano simbólico. E a satisfação obtida no manejo da linguagem, na obtenção dos sentidos das buscas do sujeito e não na posse propriamente dita dos objetos. O protótipo do gozo é aquele que acompanha as visadas do desejo do “outro”. O que desejamos na relação com o “outro” não é ele em si, mas seu desejo, suas intenções em relação a nós, ou seja, visamos a significantes e nos realizamos com o encontro simbólico do “outro”.
Inconsciente
- Freud utilizou esse termo para qualificar certos con teúdos e processos psicológicos não acessíveis à consciência. Empregou ainda o termo para designar uma região psicológica for mada por conteúdos recalcados e por pulsões móveis e errantes capazes de migrarem para objetivos e objetos variados. No senti do lacaniano, o inconsciente é entendido como um sistema decor rente da linguagem, cujo traço fundamental é operar por intermé dio de representações nas quais o representante (significante) é separado do representado (significado). Assim, o recalcamento age sonegando ou barrando uma figura à consciência, pela qual um material poderia ser apreendido ou representado. Além disso, por não aprisionar os significantes a determinados significados, o in consciente, à semelhança da mobilidade da pulsão, pode valer-se de todo tipo de metamorfose para se expressar, fazendo uso de analogias, como no caso da metáfora, e de outros meios passíveis de expor figurativamente um material capaz de significação.
Metáfora
- figura de linguagem pela qual o efeito de sentido é pro duzido fazendo a palavra migrar de um campo semântico para outro e, assim, por semelhança, associá-la a um objeto diferente
106 • Introdução ò Psicologia da Educação
mamos uma pessoa de “burra”. Lacan destaca na metáfora a subs tituição de uma palavra por outra, como no caso da substituição da palavra “pessoa” por “burra”, enfatizando a propriedade da metáfora de condensar significados, ou seja, a capacidade de uma palavra poder carregar vários significados e poder expressá-los conforme seu posicionamento na frase.
Metonímia - figura de linguagem pela qual a significação é produzi da pela substituição de uma palavra por outra com a qual possui uma relação de continuidade. Assim, o todo pode ser expresso por uma de suas partes, como no caso do uso da palavra “cabeça” para designar “rebanho”. A metonímia opera pelo deslocamento, permitindo ao desejo, em sua mobilidade, saltar de um objeto para outro ou, mais comumente, tentar buscar o todo inatingível do objeto por intermédio de suas partes, fracionando-o e fragmentan do o próprio sujeito. “Outro”, “outro” - designa tudo aquilo que determina o sujeito, que funciona como seu espelho e especifica, na relação, seu lugar no mundo. Na terminologia lacaniana, o “Outro”, grafado com ini cial maiuscula, designa todo tipo de contraste pelo qual o “Eu” se reconhece localizado num determinado lugar. Pode ser tomado como a cultura, o mundo social e simbólico que ronda o sujeito. Grafado com a letra inicial minúscula, refere-se aos pares estabe lecidos concretamente nas relações, concebidos de forma imagi nária, ou seja, numa relação de espelhamento. Paranóia - refere-se a uma organização e a um funcionamento psi cológico em que predominam a ansiedade persecutória (temor de um ataque repentino perpetrado por inimigos) e delírios de perse guição, erotomaníacos e de grandeza. Destacam-se na paranóia a capacidade de fabulação e um interpretacionismo sistematizado, pelos quais o sujeito dá sentido a si e a seu mundo, em geral atri buindo-se uma missão grandiosa e salvadora da humanidade. Significado - é a ideia ou conceito veiculado pelo significante. Trata-se de um fenômeno psicológico, posto que o significado não é o referente ou o objeto real, mas a ideia formada sobre ele e que o representa na mente do sujeito. Significante - no uso corrente, refere-se ao substrato material do sig no, isto é, designa tudo aquilo que transporta o significado: sons, imagens visuais, impressões táteis, olfativas, gustativas, cinestésicas etc. Entretanto, é preciso considerar que tal substrato material é, antes de tudo, um fenômeno psicológico, ou seja, não é o som em si, mas a impressão ou imagem acústica gerada pelo psiquismo.
Capítulo III •
A Ps ic an áli s e Lac an ian a o a Edu
- unidade básica da linguagem constituída pela articulação do significante com o significado. Algumas teorias da linguagem entendem o signo como composto de uma estrutura triádica. Além de significante e significado, o signo portaria também um referen te ou a imagem mental da coisa ou daquilo que está sendo repre sentado.
Signo
R ef
e r ên c i a s
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0 / u t i p a C
.
Kester Carrara
Behaviorismo, Análise do Comportamento e Educação
O predomínio recente de abordagens ancoradas no socioconstrutivismo e no cognitivismo tem reduzido o espaço para que as propostas da Análise Experimental do Comportamento (AEC) sejam acolhidas na área da educação. A Análise Comportamental e a filosofia de ciên cia que lhe é subjacente, o Behaviorismo Radical, têm constituído objeto de frequentes e contundentes críticas, especialmente na área da educa ção. Paradoxalmente, apesar da literatura crítica, as pesquisas nessa abordagem têm crescido significativamente em todo o mundo, incluí dos os principais núcleos brasileiros de pesquisa das universidades pú blicas. A participação efetiva de pesquisadores, com apresentação de trabalhos relevantes, tem sido ampla nos principais eventos, como os da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), da So ciedade Brasileira de Psicologia (SBP) e da Associação Brasileira de Psicoterapia e Medicina Comportamental (ABPMC). Tendo em vista a ampla discussão centrada no contexto teórico e o desenvolvimento intenso de pesquisas experimentais, estaria a AEC reaparecendo como abordagem promissora em relação à área educacional? Nessa pers pectiva, em que medida essa abordagem, relegada a planos menores enquanto reacionária e positivista, seria capaz de colocar seus acha dos a serviço de uma educação progressista e emancipadora? Por certo, aqueles que conhecem razoavelmente a história da Análise do Comportamento e do Behaviorismo Radical reconhecem-na inegavelmente polêmica e controvertida. Essa constatação decorre
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da (coerente) combinação de uma filosofia objetivo-pragmática com um modelo de ciência fundado na observação, na interação organismo-contexto mediada pelo comportamento e na valorização do con trole pelas consequências. Historicamente, esse arranjo de pressupos tos e condições, temperado pelo determinismo probabilístico e cen trado em incisivo antimentalismo, associado a frequente desconheci mento de algumas relevantes possibilidades de aplicação, tem sido responsável constante por alguns temores, críticas, ou mesmo sumá ria rejeição à abordagem. De forma geral, o Behaviorismo apareceu em 1913, com Watson, a partir de um artigo que condensava a tendência objetivista da épo ca: propunha a substituição da consciência pelo comportamento en quanto objeto de estudo, ao mesmo tempo em que sugeria o uso da observação, em contrapartida à introspecção, como instrumento pre dileto de acesso às atividades humanas. Mais tarde, os historiadores diriam que Watson teria sido um behaviorista ortodoxo, uma vez que excluira quaisquer conteúdos internos do escopo de finalidades da Psicologia. Outros, posteriormente, incluíram esses conteúdos como importantes e pertencentes à natureza humana, mas, por conta das dificuldades instrumentais, tecnológicas e de procedimentos de ob servação, sinalizariam no sentido de não constituírem parte dos estu dos de uma ciência objetiva. Influenciada pelo modelo de ciência unificada almejado pelos positivistas lógicos do Círculo de Viena, essa nova fase do Behaviorismo (Metodológico) não foi adiante. Seguiu-se-lhe a proposta de Skinner, que, embora reconhecendo as grandes difi culdades da utilização dos relatos verbais e descrente da adequação do uso de eventuais indicadores fisiológicos como referentes claros dos eventos privados, acolheu explicitamente tais eventos em seu referen cial (Behaviorismo Radical). Neste, a expressão radical, ao invés de sinonimizar qualquer edifício teórico impenetrável, reducionista ou in transigente, representa abertamente a ideia de que o comportamento ( behavior ) constitui, por excelência, a raiz epistemológica por via da qual se pode melhor compreender, com transparência de dados e proce dimentos replicáveis, alguns dos mais fundos enigmas humanos. Naturalmente, outras abordagens também têm proporcionado relevantes contribuições nessa mesma direção, mediante outras óticas e construções teóricas distintas. De sua parte, a Análise Experimental do Comportamento (ou Análise Comportamental), ciência constituí da sobre pressupostos filosóficos behavioristas, ainda que enfrentan
Capítulo IV • Behaviorismo, Análise do Compo rtamento e Edutacao 1111
de aplicações bem-sucedidas em variadas áreas e apresenta amplia ção inequívoca de pesquisadores e usuários nos mais diversos setores de atuação humana. Seu sucesso prático, todavia, não livra a Análise do Comportamento da vigilância ética e do constante e acurado exa me de sua validade epistemológica, seja por parte de seus oponentes, seja por parte de seus próprios seguidores. Tomar o Behaviorismo como referência equivale a centrar aten ção nas interações entre organismos e ambientes em que estes se in serem. Decorre dessa postura uma primeira implicação fundamental: ao contrário do que frequentemente se veicula, a Análise do Com portamento não considera os organismos vivos quer enquanto mera mente passivos, quer enquanto unilateralmente ativos. De modo parti cular, os seres biologicamente constituídos, ao mesmo tempo em que, mediante comportamentos, agem sobre o mundo, por ele são direta mente influenciados. Não haveria nenhum sentido, em função do pres suposto da tríplice (ou mais ampla, a partir de Sidman, 1986) relação de contingências, presumir uma natureza passiva, ou, ao contrário, imanente e unilateralmente ativa dos organismos: o comportamento ocorre diante de e é alterado por determinadas condições ambientais e, por seu turno, também altera o ambiente. O estudo dessas relações funcio nais constitui finalidade precípua da Análise do Comportamento. Posto de outra maneira, ao dirigir seu olhar para as relações fun cionais, o analista adota enfoque divergente da tradicional pesquisa de causalidade linear: escapa ao modelo newtoniano e apoia-se no modelo machiano que enuncia que “descrever é explicar”, tal qual Mach (1915), que influenciou Skinner, sugere à comunidade científi ca. É nesse sentido que o analista comportamental passa a observar, registrar e sistematizar, enquanto dados empíricos, todos os eventos que ocorrem concomitantemente, seja precedendo, seja sucedendo um determinado comportamento. Diante de condições ambientais específicas (contexto anteceden te), as consequências para um certo conjunto de respostas seleciona das é que são responsáveis pelo aumento ou redução da probabilidade de ocorrência de respostas similares num futuro em que condições ambientais semelhantes estejam presentes. Fora de dúvida, naturalmen te, está o fato de que adquirem probabilidade maior de ocorrência aque las respostas com maior semelhança em relação à originalmente refor çada. Daí a ideia de classe de respostas, em que estas, produzindo na história do indivíduo consequências equivalentes, são mais prováveis,
112 • Introdução à Psicologia da Educação
Skinner, com o Behaviorismo Radical, entende que as relações indivíduo-ambiente, especialmente no que diz respeito ao aspecto sociocultural, são controladas pelas consequências do cotidiano (ontogênese), assim como, no que toca à filogênese, a evolução é de modo similar explicada no paradigma darwiniano. Também se caracteriza o Behaviorismo Radical como uma filo sofia monista e materialista, na medida em que entende tanto o corpo (e todas as ações humanas) quanto o ambiente como sendo constituí dos de um único estofo material. Skinner rompe com o dualismo, mesmo quando trata da questão dos eventos privados, acerca dos quais recomenda que não se confunda a díade público-privado com outra, objetivo-subjetivo. São dicotomias muito diferentes e ainda que, como já se mencionou, seja reconhecida a imensa dificuldade de mensuração de eventos privados, isso não significa que eles pertençam a outra dimensão e a outro estofo da realidade. Mesmo que não pública explicita e exemplifica Skinner - sua dor de dente é tão concreta e tão física quanto as teclas de sua máquina de escrever (daí desposar um monismo qualificado com o adjetivo de fisicalista). Ainda que não apenas para desfazer mal-entendidos da crítica externa, mas inclusive para dirimir querelas internas aos próprios behavioristas, vale tratar, com a brevidade que o texto recomenda, da pertinente questão da teorização. Ao constituir-se em abordagem que privilegia a dimensão descritivo-observacional, indiretamente a Aná lise do Comportamento e, particularmente, B. F. Skinner têm sido identificados como abordagem e autor ateóricos ou antiteóricos. Nes se sentido, haveria, ao lado de um desinteresse pelas conjecturas, uma (necessária) superficialidade no exame da complexa rede de relações entre variáveis que controlam o comportamento humano. Mesmo en tre behavioristas, por vezes tem sido realimentada a ideia de que faz verdadeira ciência quem pouco formula hipóteses, quem pouco de duz, quem não infere, quem não conjectura. Ou seja, apenas o faria quem se dedicasse, exclusivamente, ao empírico. Embora o próprio Skinner tivesse alertado para o fato de que são os dados empíricos os melhores argumentos científicos, também foi ele, em histórico artigo (1950), quem abordou a acusação que lhe faziam de ser um antiteórico. Mostra, em síntese, que era contrário apenas a teorizar com argu mentos sustentados em outra dimensão que não aquela em que se encontram os fatos a serem explicados (o comportamento explicado por eventos mentais, de estofo não físico, por exemplo). Nesse caso -
Capítulo IV • Behaviorismo, Análise do Compo rtamento o Educaçao I I I I
mais. Em todos os outros, era um defensor do exercício fundamental da teorização em ciência; de resto, instrumental imprescindível à ela boração de novos problemas científicos a serem respondidos median te o aparato da ciência. Embora emérito pesquisador e reconhecido designer de estratégias, técnicas e procedimentos de pesquisa, admi tia os limites do experimentalismo puro, uma vez que este pouco fer tiliza a inspiração de novas hipóteses desafiadoras na ciência. Para confirmar essa posição, Skinner empreendeu grandes aventuras teóri cas, todas bem sustentadas nos dados de suas investigações cientí ficas, o que pode ser constatado pela leitura de suas mais de 230 pu blicações (cf. Carrara, 1992), de 1930 a 1990. Para tornar ainda mais clara a dimensão na qual Skinner argu mentava contra a teorização a partir de conceitos e supostos eventos de outra dimensão, tome-se a questão do mentalismo. Skinner é antimentalista não porque negue a existência e importância dos even tos privados (aliás, fator privilegiado a distingui-lo dos behavioristas metodológicos), mas porque não aceita eventos mentais, estruturas mentais, estruturas cognitivas, estruturas de personalidade, volição, traços, drives, instintos, entre tantos, enquanto entes explicativos do comportamento, dada sua característica eminentemente subjetiva. Essa rejeição funda-se, portanto, exclusivamente na fidelidade ao monismo fisicalista e no modelo descritivista, bem como na consequente ex clusão de constructos hipotéticos próprios das correntes dualistas. Custou caro a Skinner a incompreensão dos críticos a esse respeito, especialmente quando se sinonimizava sua posição com uma suposta negação à existência de cognição, sentimentos e emoções. A esses, é óbvio, Skinner não negava existência, mas apenas o status causai numa ciência do comportamento. É fácil constatar em que medida as convicções skinnerianas fo ram aguilhoadas pela crítica (alguns exemplos podem ser encontra dos em Carrara, 1998). De fato, algumas de suas descobertas podem ter sido prematura e descuradamente aplicadas, com resultados e metodologia passíveis de pertinentes críticas (cf. Ayllon & Azrin, 1968). O desenvolvimento e o constante aprimoramento, tanto no que concerne a procedimentos quanto no que, incisivamente, diz respeito ao aperfeiçoamento ético da abordagem, entretanto, são inegáveis. Como assinalou Bijou (1984): Tem sido d ito que a aplicação da análise comp ortamen tal do desenvolvimento infantil pode ter efeitos prejudiciais para
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a criança, a educação fundamental e a terapia infantil. Isso ocorre na aplicação prática de qualquer sistema de Psicologia (psicanalítica, cognitiva ou comportamental) quando quem a aplica não está adequadamente preparado. Com o fim de pre venir esse mau uso do conhecimento psicológico devem exis tir normas profissionais e legais que incluam padrões cuidado samente definidos de treinamento, supervisão e experiência daqueles que se qualifiquem como profissionais, (p. 30)
I V . l P r in c íp io s B á s i c o s
da
AEC
Derivados da experimentação controlada e testados principal mente sob o design típico da AEC (o delineamento de sujeito único, mediante replicação), alguns princípios estão consolidados enquanto imprescindíveis e típicos dessa abordagem, bem como algumas dis tinções e determinados conceitos.IV .
IV. 1.1 D is t
in ç ã o
o p er an t e
-r e sp o n d en t e
Preliminarmente, cabe uma importante distinção de paradigmas: há comportamentos típicos da espécie, dados geneticamente, que são controlados (“causados”) por eventos antecedentes, chamados estímu los eliciadores. O exemplo sobejamente conhecido advém do para digma de Pavlov, em que um estímulo (neutro para a resposta de sa livar de um cão - no caso um som de campainha) é pareado a outro (incondicionado, como pó de carne, que é colocado diretamente na boca do animal). Como resultado de sistemático pareamento, o som passa a eliciar a mesma resposta antes produzida apenas pelo pó de carne (condicionamento respondente, representado por E -* R). Cedo, nos seus escritos, Skinner identificou outro tipo de condi cionamento mais frequente nas atividades humanas cotidianas: o operante. Neste caso, as respostas não são eliciadas, mas emitidas. Ou seja, o organismo “aprende”, em função de sua história, que o respon der diante de um certo conjunto de condições tem certa probabilidade de ser seguido por uma consequência específica. Por exemplo, verbalizar “táxi!”, acrescentando certa postura física (talvez o polegar
Capítulo IV • Behaviorismo, Análise do Comportanmnto d 11I11<
erguido), sinalizando diante de um contexto ambiental específico: um veículo que se aproxima, portando uma pequena plaqueta iluminada no teto (em que se lê, obviamente, “Táxi”). E nítida a importância da história de interações do indivíduo com seu ambiente, nesse caso. Dela depende a probabilidade de que o possível passageiro repita seu gesto na próxima vez que quiser parar um táxi, bem como depende do seu sucesso em parar o veículo, dessa vez, nessa específica rua. Pode-se notar, no caso, que o paradigma envolvido é outro (... R —* ER), onde uma determinada resposta (R), emitida diante de certo conjunto de condições ambientais (...), tem uma probabilidade previsível de ser seguida de um estímulo reforçador (—* ER). Note-se que o paradigma representa apenas uma situação simbólica mínima, reduzida, e que pode ser encontrada com símbolos similares em outros textos. Em outras palavras, no exemplo mencionado, na verdade não há uma res posta específica, mas uma série delas, pertencentes a uma classe fun cional, que constituem um conjunto de comportamentos típicos, com plexos, a serem provavelmente seguidos pela parada do referido táxi. Depreende-se, daí, a tipicidade, no operante, da tríplice relação de contingências. Nela: 1) eventos antecedentes estão presentes e precedem a ocorrência (emissão) de um determinado comportamento; 2) ocorre, em seguida, um certo comportamento constituído de qual quer mudança mensurável e observável no curso de atividades executadas por um organismo vivo; 3) seguem-se eventos responsáveis pela manutenção, ampliação ou redução da probabilidade de ocorrência futura de respostas simila res à ora consequenciada (o que remete, de volta, à ideia de classe de respostas).
IV.1.2
R
ef o r ç a men t o
e punição
A lógica da Análise do Comportamento sustenta-se, principal mente, na seleção pelas consequências. Os efeitos produzidos por essas consequências, via de regra, são aumento, manutenção da fre quência de respostas ou sua diminuição. Pode-se ter um reforçamento positivo quando ocorre fortalecimento da resposta (aumento da pro
116 • Intro duç ão o Psicologia da Educação
estímulo (reforçador positivo). Pode-se ter um reforçamento negativo quando, como consequência da emissão de determinada resposta, tem-se a retirada de um estímulo (aversivo), redundando, também, em aumento da probabilidade da resposta que produziu tal retirada. Note-se que nesses dois casos ocorre sempre aumento da probabilidade de ocorrência da resposta, seja pela apresentação, seja pela retirada de um estímulo: trata-se, nas duas situações, do procedimento de refor çamento (positivo ou negativo). Uma terceira situação é a da punição “positiva”, em que uma resposta é seguida de um estímulo (aversivo) e sua frequência se re duz. Finalmente, a quarta situação típica é a da punição “negativa”, em que a emissão da resposta tem como consequência a perda de um reforçador positivo. Note-se, nesses dois casos, que sempre ocorre re dução da frequência das respostas. Naturalmente, os analistas do comportamento devem evitar o uso de punição, quer pelos subprodutos negativos que ela gera para o orga nismo, quer pelo fato de que seus efeitos tendem a ser temporários, o mais das vezes controlados pela contingência punitiva: quando esta cessa, o comportamento antes sob seu controle tende a, rapidamente, voltar à condição anterior. Sem dúvida, conforme já se anunciou desde o início deste texto, a atuação dos analistas do comportamento, embora intensa nos Estados Unidos nas diversas áreas, tem permanecido em outros lugares, razoavelmente restrita ao âmbito da clínica. Na área edu cacional, exceto por trabalhos isolados, dá lugar especialmente ao en foque piagetiano, sobejamente melhor acolhido nas várias instâncias oficiais da educação brasileira. Ainda assim, não é pequeno o número de analistas em atividade, haja vista sua participação na literatura, even tos e entidades que congregam profissionais da Psicologia. IV .
IV . 1.3
T ip o s d e r e f o r ç a d o r e s
No paradigma operante, pode-se falar em reforçadores incondicionados (primários) ou condicionados (secundários). O primeiro já po ssui pro pried ades re fo rç adora s, en quan to o segun do requ er pareamento prévio com outros reforçadores para adquirir seus efei tos. Os reforçadores podem, ainda, ser classificados em simples ou generalizados, conforme adquiram suas propriedades reforçadoras por pareamento com um único reforçador prévio ou com vários. Os refor çadores também podem ser naturais ou arbitrários, conforme sigam,
Capítulo IV • Behaviorismo, Análise do Comportamento o [ducu^no 111/
tipicamente, no ambiente social, determinada resposta (ler para com preender um romance e ser reforçado naturalmente a partir da com preensão da trama e sua identificação com situações prazerosas do cotidiano, por exemplo, exemplifica reforçadores naturais) ou con forme se constituam em artifícios, apenas utilizados para intermediar, na prática, uma situação de aprendizagem (um “muito bem” do pro fessor diante da mesma leitura já mencionada representa uma conse quência artificial). Por certo, a utilização de reforçadores naturais é preferível, embora, às vezes, seja inevitável o uso de reforçadores arbitrários como primeiro passo para se chegar aos naturais numa si tuação qualquer do cotidiano.
I V . 1 .4
C
o n t r o l e
de
e s t ím u l o s
Conceito essencial na Análise do Comportamento é o de controle de estímulos, em que duas dimensões do mesmo continuum são consi deradas: generalização e discriminação de estímulos. Observa-se a pri meira situação quando o indivíduo responde de forma igual ou seme lhante frente a estímulos diferentes. Na discriminação, o indivíduo responde de forma diferente a estímulos diferentes. No estabelecimen to de uma discriminação simples estão incluídos pelo menos dois es tímulos discriminativos: um SDe um SR. As respostas que ocorrem diante do primeiro estímulo são reforçadas, enquanto aquelas emiti das diante do segundo, não. Como resultado, naturalmente, o indiví duo passa a responder sistematicamente diante do primeiro estímulo. Tal configuração de estímulos discriminativos, no ambiente na tural, assume complexidade muito maior, na medida em que se esta belece uma rede de condições que passam a controlar os repertórios discriminativos. O controle de estímulos, nas suas diversas variantes, exerce papel central na Análise do Comportamento. Merece especial atenção o estudo das discriminações condicionais envolvendo rela ções arbitrárias entre estímulos discriminativos condicionais e as dis criminações para as quais eles estabelecem a ocasião. O estudo do comportamento simbólico, envolvendo classes de equi valência, iniciado mediante experimentos com animais e abrangendo a comparação de respostas escolhidas com uma amostra, exemplo ou mo delo (matching to sample), evoluiu amplamente em diversas aplicações ao comportamento humano, sendo reconhecidas, hoje, as propriedades de relações denominadas reflexividade, simetria e transitividade. Cons-
1 1 8 a Introdução à Psicologia da Educação
tituiriam propriedades reflexivas aquelas que se mantêm entre um determinado termo e ele mesmo (A = A); constituiríam propriedades simétricas aquelas em que a ordem dos termos da relação é reversível (se A = B, então B = A); constituiríam propriedades transitivas aquelas em que os termos comuns em dois pares ordenados determinariam um terceiro par ordenado (se A = B e B = C, então A = C).
IV . 1.5
E s q u e m a s de r e f o r ç a me n t o
E fácil concluir que existem inúmeras maneiras pelas quais as consequências dos comportamentos operantes podem se apresentar. Também não é difícil supor que, dependendo dessa relação de contingência, os comportamentos por essa via instalados e/ou controlados serão mais ou menos “resistentes”, mais ou menos “estáveis” ou terão tais ou quais características e daí por diante. De fato, assim é. Ou seja, o modo pelo qual a ocorrência de um reforço é programado costuma ser designado esquema de reforçamento. Os esquemas mais comumente utilizados são: reforçamento contínuo ou reforçamento intermitente. No primeiro, toda resposta é seguida de um reforço: há uma relação de 1:1, portanto. Já os esquemas de reforçamento intermitentes, em que apenas algumas res postas são reforçadas, podem ser de razão ou de intervalo. Os de razão implicam uma certa quantidade de respostas para cada reforço. Se essa quantidade for fixa (exemplo: 2:1, 3:1, 100:1), naturalmente estaremos diante de um esquema de reforçamento em razão fixa (do qual o esquema contínuo é apenas um caso particular (1:1)). Se essa quantidade for variável e aleatória, estaremos diante de um esquema de reforçamento em razão variável (num esquema de reforçamento em razão variável, 3:1, por exemplo, ocorrerão, em média, 3 respostas para cada evento reforçador, mas poderemos ter, nos episódios individuais, 2 respostas para 1 reforço, 3 para 1, 4 para 1, de modo que a média de respostas para cada reforço seja, no caso, 3). Ainda entre os esquemas intermitentes, temos os de intervalo fixo e os de intervalo variável, em que o parâmetro controlador é o tempo. Assim, num esquema de intervalo fixo 3’, receberá reforço apenas a primeira resposta emitida após o término do intervalo de três minutos. Valem os mesmos critérios apontados quanto aos esque-
Capítulo IV • Behaviorismo, Análise do Comportamento o Edu«u
Muitas propriedades específicas de respostas são geradas a cada esquema de reforçamento. Para exemplificar pelos mais simples, os esquemas intermitentes produzem repertórios de resposta com resis tência à extinção muito mais alta; os esquemas de razão produzem altas frequências de resposta; os esquemas de reforço contínuo asse guram a manutenção imediata das respostas, sendo os recomendados quando se trata do momento de instalação de comportamentos, mais que de sua manutenção.
IV. 1.6
A p r
o x im a ç õ e s
s u c e s s iv a s
Pode-se, portanto, instalar, eliminar, aumentar ou reduzir a força de um operante (o que, conforme cada situação, é possível medir pela frequência, duração, intensidade, topografia ou outra unidade ou cri tério de medida arbitrado, desde que fisicamente identificável). A instalação de comportamentos, via de regra, realiza-se mediante a técnica de modelagem por aproximações sucessivas, reforçando-se, seletivamente, respostas parecidas com a resposta final esperada. Assim, se se deseja a pronúncia correta da palavra “água” pela crian ça, é funcional o uso dos primeiros reforços diante de aproximações feitas por ela ao vocábulo correto. Todavia, a boa técnica, para resul tados precisos e rápidos, exige não reforçar excessivamente “elos in corretos” entre o comportamento inicial e o final (algo como “a”, “aga”, “aua” etc.), reforçando-se, em contrapartida, até que o com portamento final esteja bem instalado, episódios cada vez mais simi lares ao comportamento esperado. Também é notório o prejuízo re sultante de “pular” etapas, supondo a criança, no caso, tão preparada quanto o adulto para, sem mais intermediação, poder emitir o padrão final “água”. Está sempre em jogo, portanto, o princípio de aproxi mações sucessivas mediante o uso de pequenos passos, o que implica redução de erros desnecessários.IV .
IV. 1.7
R e f
o r ç a me n t o
d if e r e n c ia l
Ainda no exemplo precedente, reforçam-se, portanto, respostas que se aproximem do repertório desejado, mas não outras que esca pem aos critérios estabelecidos. Está em curso o reforçamento dife rencial, procedimento cm que se reforça uma resposta específica, co-
1 IV
170 • Intioduçno Psicologia da Educação a
locando-se em extinção (ou diminuindo a força, mediante a retirada do reforço) todas as demais, porque, ainda que possam ter alguma similaridade topográfica, estão fora dos critérios estabelecidos. Ob tém-se com isso a chamada diferenciação de respostas, que resulta do procedimento de reforçamento diferencial (um padrão de respostas é fortalecido, em detrimento do enfraquecimento das demais formas de resposta apresentadas). A resposta escolhida é, assim, designada res posta diferenciada. Finalmente, ressalte-se que dezenas de outras questões, princípios básicos, achados significativos e áreas de pesquisa e atuação poderíam ser arrolados aqui, fosse outra, que não essencialmente introdutória, a finalidade deste texto. A bibliografia básica, indicada ao final, pode sugerir ao leitor inúmeros assuntos relevantes a serem estudados.
IV.2 AEC e Ed u c a ç ã o : Co n t r o v é r s ia s e N o v a s P e r s pec t iv a s Em que medida e de que maneira os principais achados da Análi se do Comportamento foram, até aqui, colocados em prática na área educacional? Houve aceitação? Quais os resultados? Qual o estado atual dessas questões? Quais perspectivas se apresentam para o futuro? Respeitados os limites editoriais quanto ao formato e as finalida des deste pequeno texto, ao mesmo tempo em que respeitado o cuida do de não super simplificar o assunto, essas serão as principais inda gações a serem, se não respondidas face à sua complexidade, ao me nos analisadas brevemente. Uma das características mais caras à AEC, e que sempre fez parte das recomendações dos seus autores quando de iniciativas junto ao sistema escolar, é a questão da clareza na especificação de objetivos comportamentais. Do final dos anos 60 em diante, inúmeras iniciati vas no ensino norte-americano e em bom número de escolas brasilei ras, estiveram carregadas de excepcional preocupação com a defini ção de objetivos instrucionais claros. Embora a (pertinente) ideia fos se expressar os objetivos (educacionais e instrucionais) em termos de comportamentos a serem apresentados pelo aluno ao final do proces so, a exacerbação desse cuidado e, por vezes, a má compreensão das razões para essa prática conduziram frequentemente e em pouco tem po a uma condição de descrédito ao procedimento. Equívocos (técni
Capítulo IV • Behaviorismo, Análise do Compo rtamento o Ediutiftio 1171
to da proposta de definir clara e objetivamente o que se pretendia com certos procedimentos educacionais, os autores de tentativas de formulação de objetivos comportamentais faziam das próprias defini ções o assunto central. Isso levou a uma aparência de ensino segmen tado, reducionista, tecnicista e atomizado, em que, decerto, a poste rior reunião dos comportamentos altamente particulares ensinados não conseguiría representar ou constituir-se no próprio objetivo educacio nal maior então proposto. Por exemplo, as inúmeras respostas isola das numa aula de computação aritmética simples, quando eventual mente reunidas no repertório do educando, nem sempre conseguem dar conta da ideia geral almejada pelos professores, de “compreensão do significado de operações aritméticas simples”. Naturalmente, redi gido dessa forma, esse não teria sido um objetivo proposto por analis tas do comportamento, mas, de resto, certamente continuaria uma aspiração genérica no meio educacional. Isso denota também que no contexto da AEC, embora detentora de procedimentos relevantes para a educação, têm faltado aos analistas (grosso modo) estratégias de articulação entre as metas pretendidas e os achados científicos exis tentes na área. Recentemente, pesquisadores experientes (cf. Luna, 2001) têm reconhecido as grandes resistências à Análise do Compor tamento aplicada à educação: Definitivamente, a análise do comportamento é perso na non grata (se é que já foi grata um dia). No entanto, ela se mantém presente e atuante. Independentemente de tentativas ostensivas em contrário, ela mantém-se nas universidades como parte do currículo. Pelo menos nos grandes centros, esforços sérios de avaliação do ensino dessa disciplina têm evidenciado que os alunos reconhecem a seriedade, o cuidado e o preparo dos professores que a ministram. Nesse sentido, fala bem alto o número contínuo (se não crescente) de alunos interessados em monitoria e em pesquisa extracurricular. Os programas de pós-graduação em análise do comportamento mantêm-se bem avaliados e com demanda contínua (apesar de crescerem em número). Uma avaliação externa da produtividade dos pesqui sadores em análise do comportamento pode ser conduzida pelo número de processos aprovados em agências como as Funda ções de Apoio à Pesquisa e o CNPq e a participação de pes quisadores em eventos internacionais. Finalmente, pesquisado res publicamente identificados com a análise do comportamen to são eontinuamente requisitados por órgãos oficiais nacio
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nais como consultores e participantes de comissões. Como ex plicar, então, a baixa penetração/atuação dos profissionais iden tificados com a análise do comportamento no encaminhamen to de problemas educacionais? Há vários fatores a analisar e eu selecionei alguns que me parecem particularmente impor tantes. (p. 145)
Provisoriamente, apesar da incógnita, retomemos os princípios frequentemente associados aos projetos educacionais behavioristas, nos quais se destacam: 1) a necessidade de que se garanta uma boa densidade de reforçamento, sempre dirigida aos comportamentos compatíveis que le vem diretamente ao comportamento desejado; 2) a importância de assegurar oportunidades, em sala de aula, para que o aluno tenha condições de emitir os comportamentos selecio nados em função dos objetivos; 3) a recomendação de se utilizar, preferencialmente, situações de aprendizagem que apresentem maior probabilidade de gerar reforçadores naturais. Como já se mencionou, ainda que o professor possa se ver obrigado a, inicialmente, valer-se do expediente de usar reforçadores sociais arbitrários, deve buscar sua pronta subs tituição pelos reforçadores naturais. Obviamente, não tem sentido que o aluno aprenda a diferença entre as cores verde, amarelo e vermelho de um semáforo em virtude do elogio do professor ou de meio ponto a mais na nota: o que deve controlar a discriminação feita pelo estudante é o valor de sobrevivência social resultante do dominar essa informação, ou seja, o controle pelas consequências naturais na sua vida cotidiana gerado pela aquisição dessa discri minação simples. Portanto, embora seja aceitável o uso provisório de reforçadores arbitrários (artificiais), esse procedimento só tem sentido se for etapa que antecede outra, em que o aprender adquire perenidade em função de consequências naturais. Deve-se, ainda, tomar o cuidado para não entender essa proposição como tendo fundo utilitarista (no sentido ético mais negativo do pragmatismo); na verdade, é imprescindível que o comportamento do educando seja mantido por consequências naturais de sua vida cotidiana, mas esta não necessariamente está limitada ao fazer ou às situações consumatórias corriqueiras. Ler, horas a fio, um livro de ficção, embora não torne facilmente explícita uma situação típica de so
Capítulo IV • Behaviorismo, Análise do Comportamento o lilutm m» | 17.1
brevivência da espécie, muito menos um rol imediatamente obje tivo de consequências operantes, sinaliza claramente a possibili dade de que o comportamento de ler também esteja controlado pelas consequências intrínsecas já associadas pelo leitor, na sua história de vida, a outros valores essenciais (reforçadores): daí a leitura ser reportada como “interessante”, por exemplo; 4) a utilização do “princípio de progressão gradual para estabelecer repertórios complexos”, conforme sugere Matos (1993): Dê inicialmente o máximo de ajuda necessária ao aluno e retire gradualmente essa ajuda; estabeleça critérios os míni mos possíveis de desempenho e aumente gradualmente suas exigências; construa sequências longas passo a passo; final mente, diminua gradualmente a frequência e a magnitude dos reforçadores extrínsecos à situação. Os critérios de mudança nos estímulos antecedentes (instruções, situações, ilustrações, generalizações etc.) e nas regras de consequenciação devem ser: 1) consistentes com o desempenho do aluno e 2) relevan tes, isto é, devem acompanhar o progresso do aluno (o que será retomado mais tarde) e estar estreitamente vinculados aos com portamentos que se desejam que os alunos aprendam, (p. 157)
5) o fato de que facilita o ensino constatar a existência ou instalar comportamentos que constituem condições para a aprendizagem em geral, tais como o prestar atenção e o seguir instruções ver bais, frequentemente presentes em todas as demais situações de ensino, qualquer que seja o seu nível. Naturalmente, pode-se cor rer o risco de incidir numa regressão infinita quanto a eventuais “pré-requisitos”, de modo que, para melhor compreender essa ques tão, recomenda-se, à vista do Behaviorismo Radical, uma leitura da questão da complementaridade entre os aspectos filogenético c ontogenético; 6) a necessidade de evitar, tanto quanto possível, ocasiões que levem o aluno a cometer erros desnecessários (o que não deve ser con fundido com a ideia corrente e, não raro, mal compreendida, do “erro construtivo”, na verdade uma resposta funcional e produtiva da criança que deve ser valorizada). Utilizar o princípio dos pe
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a instituição ou para meros formulários) são providências que po dem reduzir a probabilidade de que educando e professor errem demasiada e desnecessariamente, produzindo frustrações que ini bem a motivação geral para novas tentativas de aprendizagem. Muitas outras sugestões poderíam ser arroladas para nortear par te da atuação em sala de aula. As “máquinas de ensinar” e o ensino programado também têm sido associados a Skinner e à AEC, por ve zes como iniciativas desumanizantes, porque excluiríam a presença do professor. Ambos os projetos, certamente interligados, foram pen sados inicialmente por Skinner e tiveram suas sementes lançadas há mais de 50 anos. O ensino programado, bem como as teaching machines , propunham uma série de princípios (pequenas doses, cla reza de objetivos, imediaticidade das consequências etc.), de modo que o velho objetivo do “ensino eficaz”, por vezes entre os autores norte-americanos equalizado com a ideia de educação “consumatória” e “conteudista” (nada coerente com o que se pretende numa vi são emancipadora), pudesse ser rapidamente alcançado. Iniciativas marcantes com sistemas instrucionais personalizados ocorreram, nas décadas de 60 e 70, especialmente nos Estados Uni dos, México e Brasil (UnB, por exemplo). Diversos textos programa dos foram escritos, mas também aqui, ao que parece, ao lado da resis tência cultural às novas tecnologias (vide situação recente do Ensino a Distância - EaD), estratégias pouco esclarecedoras, por exemplo, acerca do imprescindível papel do educador (e da preservação de par te fundamental de sua interação com o aluno), não foram levadas adiante com sucesso. Como consequência, retoma relevância a obser vação de Luna (2001):
Pessoalmente, não tenho dúvidas de que temos o que di zer e muito a contribuir para a melhoria e o desenvolvimento da Educação. Mas não seremos moda, não constituiremos dog ma (felizmente), muito menos deteremos um produto desejado de consumo. Razões para explicar esse status não faltam... Se pretendemos intervir no sistema educacional parecem impres cindíveis algumas linhas de ação coordenadas. 1) Analisarmos macrocontingências que nos permitam posicionar-nos lado a lado com os formuladores das políticas educacionais; afinal, valor é ou não parte da contingência?; 2) Prepararmo-nos para
Capítulo IV • Behaviorismo, Análise do Comportamento o Eduta^uo I 17S
identificar identificar que problemas ameaçam - se não o futuro futuro da cultu ra, como como queria Skinner - pelo menos o presente presente da nossa so ciedade; 3) Produzir material educacional passível de ser ab sorvido pelo professor na situação de ensino e divulgar seus resultados e eficiência; 4) Preparar o professor para usá-lo. O trabalho direto com o professor tem uma possibilidade de mul tiplicação dificilmente alcançada pelo trabalho direto com o aluno; 5) Marcar presença em todos os eventos em que o tema da educação esteja presente. Não avançaremos nada se nos confinarmos a eventos evento s específicos da AEC. AEC. (p. 154-5) 154-5)
É necessário registrar, por outro lado, que tem sido muito pro missora a produção científica (e as aplicações práticas) na área que estuda equivalência de estímulos e questões correlatas. Atualmente, essa área reúne grupos importantes de pesquisadores da AEC em todo o mundo, devendo-se muito de suas raízes primeiras ao trabalho con sistente de Murray Sidman. Intervenções com grande sucesso têm sido empreendidas, seja no que concerne a uma análise comportamental da leitura e da escrita, seja no que diz respeito às relações entre com portamento portam ento acadêm aca dêmico ico e (in)disc (in) disciplin iplinaa escolar. Esta última, se abor dada com os tradicionais procedimentos aversivos, por um lado, ou mediante simples posturas gratuitamente acolhedoras, compreensivas ou de superproteção, por outro, tem apresentado grande resistência à mudança, exigindo novos procedimentos. As pesquisas mais recentes têm confirmado o pressuposto da incompatibilidade de respostas en quanto boa técnica nesses casos. Ou seja, no que concerne à indisci plina, o envolvim env olvimento ento do aluno em program prog ramas as que organizam organi zam sequên sequ ên cias apropriadas de ensino, que respeitam o ritmo de aprendizagem individual, que proporcionam consequências apropriadas aos alunos e que, portanto, asseguram condições para que eles se envolvam po sitivamente com a instrução garantem incompatibilidade genérica com a apresentação e manutenção da indisciplina escolar. No que diz respeito respei to à leitura e escrita, escrita , inúmeros procedime proce dimentos ntos bem-suce bem -sucedido didoss têm sido implementa imple mentados. dos. Segundo De Rose (1999): O ensino de leitura e escrita envolve, portanto, o estabe lecimento de relações de controle de estímulo envolvendo estí
176 • Introdução à Psicologia da Educação
no caso da leitura, seja como produto da resposta, no caso da escrita. Os estímulos textuais, no entanto, têm significado. Se considerarmos apenas palavras isoladas, o significado pode ser analisado em termos de relações de equivalência entre os estí mulos textuais e seus referentes. O procedimento de empareIhamento com modelo é central, tanto para a análise das rela ções de equivalência quanto para o ensino das relações de con trole de estímulo e equivalência envolvidas na leitura e escrita. (...) Desta forma, programas de ensino bem construídos, de acordo com esses princípios, tomam-se altamente eficazes para promo pr omover ver a apren ap rendiza dizagem gem e a satisfação satis fação do estud e studante ante com seus resultados. Mesmo nas situações em que for necessário utilizar consequências extrínsecas, um bom programa de ensi no pode criar condições para que a própria aprendizagem e seus resultados adquiram propriedades de reforçador condicionado, ou seja, para que o estudante passe a “gostar de aprender”, de modo que a aprendizagem venha a ser a própria recompensa para o engajam eng ajamento ento na tarefa acadêmica acad êmica,, (p. 6, 19)
Mesmo que sob perene jurisdição da crítica ética, ideológica e social, cremos que a educação não pode prescindir da rica pluralidade de opções teóricas de aprendizagem disponíveis (e neste pequeno li vro apenas algumas são apresentadas, de modo brevíssimo, dada a natureza introdutória do texto) em favor de posição hegemônica qual quer, mormente quando essa hegemonia é cíclica e frequentemente representa insólitas tentativas episódicas, governo a governo, de apon tar alternativas redentoras (menos para a própria própria educação e ducação do que que para projetos políticos político s personalistas) person alistas).. Nessa Ness a perspectiva persp ectiva,, ressalvada ressalv ada nossa opção profissional pela abordagem comportamental contextualista (que explicitaremos adiante), entendemos que o melhor projeto de abordagem da Psicologia para a educação é... aquele que é bem-feito! Ou seja, cremos nas contribuições psicanalíticas, nas cognitivo-construtivistas, nas histórico-sociais, na medida em que derivem de proje tos sérios e consistentes, voltados para uma educação emancipadora e progressista. progres sista. Não é sem razão, igualmente, igualm ente, que entendem enten demos os existirem existire m motivos substantivos o suficiente para sustentar boas propostas com portame porta mentalis ntalistas tas para a educação. educação . Os exemplos de aplicações equivocadas, em todas as abordagens, preenchem preenche m muitas páginas da história da educação. educação . Os exemplos exem plos de
Capitulo IV • Behaviori smo, Análise do Com portam ento o [
equívocos teóricos acerca do que supostamente pensariam os analis tas do comportamento ou acerca daquilo que essa abordagem preco nizaria igualmente estão espalhados pela literatura de segunda mão disponível entre estudantes e profissionais da área: mesmo textos hoje considerados clássicos apresentam vieses marcantes ao tratar das dis tinções entre escolas e correntes de pensamento da Psicologia. Portanto Portanto,, é crível crível que que também - mas não não exclusivamente - a Análise do Comportamento pode trazer contribuições valiosas à edu cação e que deveria ser papel dos órgãos oficiais encarregados de pensar pen sar as políticas públicas pública s para a educação educaç ão agir de modo plural: ao lado de grande transparência e de rigor ético, por vezes em falta, é rara, embora desejável, a adoção de postura mais pluralista na aceita ção e no apoio cuidadoso a iniciativas múltiplas na área do ensino e da aprendizagem. Na abordagem comportamental, para exemplo que não se preten de generalizar a grandes conglomerados populacionais, permitimo-nos recuperar parte do relato do interessante empreendimento adotado pela comunidade mexicana Los Horcones (http://www.loshorcones.org.mx ( http://www.loshorcones.org.mx)), tal como o apresentou Juan Robinson, um membro dessa comunidade fundada nos anos 70 por estudantes mexicanos de Psicologia (e de AEC, portanto), durante uma das mesas-redondas do III III Simpósio em Filoso fia e Ciência, Ciência , na UNESP-Maríli UNESP-M arília, a, em 1999 1999 (Carrara, (Carrar a, 2001):
A partir de um ponto de vista behaviorista, podemos di zer que a maior parte dos problemas educativos atuais se deri va de uma concepção mentalista sobre o comportamento hu mano. Por mentalismo nos referimos a qualquer filosofia que trate de explicar o comportamento humano referindo-se a even tos mentais e afirme que esses eventos se auto-originam e se automantêm... uma filosofia mentalista explica o comportamen to... referindo-se a eventos que ocorrem na mente. Por exem plo: o menta me ntalista lista dirá que um estudan estu dante te não presta pres ta atenção aten ção porque tem uma “mente “m ente apática apá tica ou inerte”, inerte ”, ou que um profes pro fes sor precisa de uma “mente dinâmica, clara e criativa” para ensinar efetivamente. O mentalista também afirma que a edu cação atual não é de qualidade porque os indivíduos que po dem influir sobre ela não têm uma “atitude mental positiva” dirigida à educação, (p. 129-130) 129-130)
178 • Introdução n Psicologia da Educação
Esse mesmo autor enumera ao menos 17 princípios que na expe riência de ensino com as crianças da comunidade Los Horcones têm sido levados efetivamente a sério e têm produzido resultados anima dores. São eles, resumidamente e em contraposição ao que Robinson chama de “filosofia mentalista”: 1) O comportamento do professor e do aluno são eventos naturais, ou seja, trata-se de fenômenos observáveis e mensuráveis. 2) O comportamento do professor e do aluno têm causas; não ocor rem sem razão. Seu comportamento é resultado de interação com o meio educativo. A definição comportamental de meio difere da definição comum desse termo, ou seja, trata-se de tudo o que afe ta a conduta, quer seja um evento físico, químico, biológico ou comportamental. 3) O comportamento do professor e o comportamento do estudante estão sujeitos a explicações com bases científicas, que por sua vez constituem objeto de estudo do behaviorismo. 4) O professor aprende a ensinar efetivamente pelas consequências que recebe ao ensinar. 5) O professor não apenas ensina comportamentos aos estudantes, mas também lhes ensina como certos eventos podem ser reforçadores, neutros ou aversivos. 6) A relação entre professor e aluno é bidirecional, afetando-se reci procamente; daí a importância de manejo do meio que afeta seus comportamentos. 7) Todo professor e todo estudante são dignos de serem tratados como pessoas, o que inclui evitar eventos aversivos. A ciência do com portamento contribui para que cada pessoa seja tratada com dig nidade, evitando punições e priorizando consequências positivas. 8) Por considerar aluno e professor pessoas únicas e não como gru po, a filosofia behaviorista promove a utilização de métodos de ensino personalizados e sistemas de avaliação não comparativos. 9) O behaviorismo não considera o ser humano como passivo diante do ambiente. A ciência do comportamento entende que há intera ção de meio e pessoas.
Capítulo IV • Behaviorismo, Análise do Comportamento o Eliminem | | W
10) A filosofia comportamentalista de educação é otimista: isso quer dizer que o comportamento do professor e do estudante não está predeterminado de modo fatalista. Todo professor pode aprender a ensinar efetivamente e todo estudante pode aprender com êxito. 1 1 ) 0 ensino eficaz requer conhecimento científico sobre como ensi nar. O educador precisa adquirir competência na aplicação dos princípios comportamentais. 12) O reforçamento positivo é mal interpretado quando se diz que sua aplicação produz efeitos colaterais negativos, como depen dência e falta de criatividade. E claro que a aplicação inapropriada de reforçamento positivo produzirá efeitos negativos. 13) A filosofia comportamentalista enfatiza o uso de reforçamento natural na manutenção do comportamento. 14) O uso de extinção e reforçamento de comportamentos incompa tíveis são técnicas comportamentais propostas pelo comportamentalismo como alternativas ao uso do castigo. 15) A Análise do Comportamento usa o princípio de modelagem com aproximações sucessivas. E importante esclarecer que a expres são técnica “modelagem” não guarda similaridade com qualquer ideia de “modelar a pessoa”. 16) Os professores também devem ensinar habilidades sociais e pes soais, não apenas habilidades acadêmicas. Relacionar-se apropria damente com outras pessoas, comunicar-se efetivamente, ser ca paz de solucionar e prevenir problemas interpessoais são condu tas que a escola deve ensinar e manter nos estudantes. 17) A filosofia comportamentalista de educação promove o ensino de comportamentos pró-sociais (comunitários) que contribuam para um mundo melhor para todos e rejeita a ideia de escola que ensine aos seus estudantes, preponderantemente, sobrevivência fundada na competição, desigualdade e discriminação e que fo menta uma sociedade competitiva, desigual e discricionária. Em Los I lorcones ensina-se enfaticamente a cooperação, a igualda de, o compartilhamento, a não violência e a importância dos cui dados com a preservação do meio ambiente.
13 0 • Introd ução á Psicologia da Educação
Por fim, J. Robinson esclarece que a sua comunidade, que adota um sistema de governo chamado personocracia (em que todas as pessoas podem participar das decisões que afetam a comunidade), elegeu, por unanimidade, a proposta de um Modelo Educacional Personalizante-Comunitário-Comportamental (MEPCC) para sua educa ção geral. O modelo é “personalizante” (e não personalizado) porque busca ajudar o estudante a melhorar como pessoa e não somente a sobressair nos estudos e porque apoia o desenvolvimento pessoal da queles envolvidos no processo educacional, para que se tornem me lhores cidadãos. Robinson fez questão de lembrar que, embora a co munidade também se utilize do Sistema de Instrução Personalizada, não é por isso que ele é nomeado como personalizante, senão pela sua importância para o desenvolvimento total da pessoa. O MEPCC é também um modelo comunitário, na medida em que enfatiza um comportamento construtivo (e que busca a melhor cidadania, como aqui designamos) para a comunidade, incluindo, por exemplo, cooperação e igualdade. Para tanto, o modelo não trata os alunos isoladamente, mas a escola como uma comunidade integrada por professores, administradores, estudantes e familiares, ou seja, tra ta-se de uma comunidade dentro de outra comunidade. Por sua vez, os alunos de Los Horcones, que é uma comunidade pequena no Esta do de Sonora, a cada ano realizam exames de certificação de compe tência, administrados pelo Estado mexicano. Explica J. Robinson que o MEPCC é um modelo comunitário por considerar que a educação não pode se limitar à instituição de ensino; pelo contrário, deve se estender a toda a comunidade enquanto lugar onde se pode ensinar e aprender. Uma das principais características da família comunitária é justamente o fato de ter caráter educativo, porque busca compartilhar o ensino e aplicar os princípios comportamentais a todos os membros da comunidade, que vivem sob o que designam ser um sistema cooperativo-econômico do tipo Walden (referindo-se à novela utópica Walden //, de B. F. Skinner). Conclui J. Robinson:
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Capítulo IV • Behaviorismo, Análise do (om poitom milo u filuuuu o I n i
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140)
Cabe-nos assinalar que, entre os primórdios do ensino programa do no Brasil, nos anos 60, de modo competente liderados pela pro fessora Carolina Bori, por Rodolpho Azzi e por Fred Keller, e os dias atuais, grandes avanços de pesquisa se deram na AEC. Por outro lado, está, naturalmente, muito distante a ótica epistemológica atual em relação à incipiente proposta do behaviorismo ortodoxo watsoniano de 1913, embora com esta seja frequentemente confundida. É certo, todavia, que muito existe a aperfeiçoar e que, tendo em vista a enor me ampliação das publicações, dos eventos científicos, dos progra mas de pós-graduação e a criação e desenvolvimento de entidades representativas da área, a Análise do Comportamento vem se expan dindo de forma considerável nos últimos anos. Concomitantemente, sua aplicação em vários campos, inclusive na educação, constitui con sequência natural a ser constatada proximamente. Nesses novos de senvolvimentos do behaviorismo têm sido cogitadas, com frequência, alternativas teórico-práticas renovadoras, como é o caso das análises que têm sido feitas, de 1988 para cá, a respeito da possível adoção de uma ênfase humanista contextualista (no sentido pepperiano) no Beha viorismo Radical, o que implica, entre outras questões, a ampliação das variáveis a serem consideradas quando se analisam relações funcionais, bem como redimensionamento do conceito e alcance da ideia de ambiente enquanto contexto em que se insere o comporta mento. Esse e outros temas, todavia, fogem ao escopo deste texto, embora sinalizem com o fato de a Análise do Comportamento se cons tituir como ciência que, mesmo detentora de vasto cacife teórico-tecnológico, permanece aberta e em constante desenvolvimento. Como já mencionamos em outros escritos (Carrara, 1998), os tempos exigem agora outro tipo de esforço possível, já que: . .. p e r m a n e c e s e ja m
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13? • Introdução a Psicologia da Educação
Ex e r
c íc io s
1) Quais são os pressupostos básicos do Behaviorismo Radical? 2) O que distingue o Behaviorismo Radical do Behaviorismo Meto
dológico?
3) O que é um esquema de reforçamento? 4) O que é a tríplice contingência? Explique cada um dos seus termos. 5) Com base nos princípios da AEC, analise a frase: “O que é refor-
çador para uns, não é para outros”.
6) Descreva o procedimento de modelagem por aproximações suces sivas. 7) Dê um exemplo de como a AEC poderia ser empregada na área de
educação.
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Capítulo IV • Bchaviorismo, Análise do Comportamonto u Educiiftin I I I I
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| A Escola de V yg o tsky
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Int r o d u ç ã o
A teoria histórico-cultural parte do pressuposto de que, na presen ça de condições adequadas de vida e de educação, que serão esclarecidas ao longo do texto, as crianças desenvolvem intensamente, e desde os primeiros anos de vida, diferentes atividades práticas, intelectuais e ar tísticas e iniciam a formação de idéias, sentimentos e hábitos morais e traços de personalidade que até pouco tempo atrás julgávamos impos sível. Como isso pode se dar e qual o significado desse desenvolvimen to para a educação e, mais especialmente, para a educação escolar, é o que procuraremos discutir nas páginas seguintes. Antes de entrarmos nas discussões pedagógicas, cremos ser im portante conhecer o contexto em que surgiu a teoria e suas teses princi pais. A teoria histórico-cultural, mais conhecida no Brasil como Es cola de Vygotsky, constituiu-se como uma vertente da psicologia que se desenvolvia na União Soviética, nas décadas iniciais do século XX. Os autores que autodenominaram sua corrente de pensamento como histórico-cultural tinham razões para isso: partiam do pressuposto de que o homem é um ser de natureza social. O que significa isso? Ad mitida a origem animal dos homens, restava à ciência explicar suas
1.16 • Introdução á Psicologia da Educação
Outras correntes da Psicologia, presentes no início do século passado, ou simplesmente ignoravam a consciência e tratavam ape nas de explicar os elementos mais simples do comportamento huma no ou explicavam a consciência dos homens apelando para uma dádi va divina. Insatisfeito com essas explicações, Vygotsky, o fundador da teoria histórico-cultural, retomou os estudos de Karl Marx, reali zados no século XIX, que apontavam que os homens não são dotados de muita ou pouca inteligência, solidários ou egoístas, plenos ou va zios de aptidões para a poesia, para a música, para a ciência devido a uma vontade divina. Da mesma forma que os homens não são ricos ou pobres por uma decisão divina, mas devido ao lugar que ocupam nas relações sociais - que, diga-se de passagem, foram criadas pelos homens ao longo da história -, também não têm mais ou menos capa cidades, mais ou menos habilidades, mais ou menos aptidões para as artes, para a filosofia e para a ciência por um dom divino, mas devido às suas condições materiais de vida e de educação, que são condicio nadas pelo lugar que ocupam nas relações sociais. Vem daí, pois, o nome dessa corrente da Psicologia: da compre ensão de ser humano - do conceito de homem - que fundamenta os estudos e investigações dessa teoria. A teoria histórico-cultural supe ra a concepção de que a criança traz, ao nascer, o conjunto de apti dões e capacidades - que vai apresentar quando adulta - dadas como potencialidades que ela vai desenvolver mais ou desenvolver menos à medida que cresce e de acordo com o meio em que vive, mas sempre dentro do conjunto de possibilidades que tem no nascimento. Para a teoria histórico-cultural, a criança nasce com uma única potenciali dade, a potencialidade para aprender potencialidades; com uma única aptidão, a aptidão para aprender aptidões; com uma única capacida de, a capacidade ilimitada de aprender e, nesse processo, desenvolver sua inteligência - que se constitui mediante a linguagem oral, a aten ção, a memória, o pensamento, o controle da própria conduta, a lin guagem escrita, o desenho, o cálculo - e sua personalidade - a autoestima, os valores morais e éticos, a afetividade. Em outras palavras, o ser humano não nasce humano, mas aprende a ser humano com as outras pessoas - com as gerações adultas e com as crianças mais ve lhas -, com as situações que vive, no momento histórico em que vive e com a cultura a que tem acesso. O ser humano é, pois, um ser his tórico-cultural. As habilidades, capacidades e aptidões humanas cria das e necessárias à vida eram umas na Pré-História, outras na Idade
Capítulo V • A Escola de Vygots ky I 13 7
apropria-se daquelas qualidades humanas disponíveis e necessárias para viver em sua época. Essas qualidades, além disso, diferem de um grupo social para outro, de acordo com o acesso que cada pessoa tem à cultura. Quando falamos em cultura, queremos dizer tudo o que os seres humanos vieram criando ao longo da história: tanto coisas materiais como não materiais. As coisas materiais da cultura são constituídas pelos instrumentos de trabalho, pelas máquinas, pelos objetos que utilizamos para as mais diferentes atividades - o que usamos para vestir, mobiliar a casa, a própria casa, os livros... só para dar um pe queno exemplo do conjunto enorme de objetos que os homens cria ram ao longo da história. As coisas não materiais formam um con junto igualmente extenso constituído pelos hábitos e costumes de um povo, pela língua, pelos conhecimentos, pelas artes, pelas idéias... Então, o ser humano depende daquilo que aprende, do que conhece e utiliza da cultura acumulada para ser aquilo que é.
V .2 0 S er H u m a n o Co n s t r ó i s u a N a t u r e z a
Diferentemente dos outros animais, que trazem, ao nascer, o con junto de habilidades que vão desenvolver na idade adulta, o homem precisa aprender as habilidades que poderá desenvolver. Isso pode pa recer uma vantagem para os animais, no entanto tal condição deter mina que os animais não se desenvolvam para além daquelas habili dades que já lhes vêm dadas biologicamente. Com isso, eles repetem sempre suas gerações anteriores: aquilo que um animal aprende em sua experiência individual não é transmitido para as futuras gerações, ou seja, os animais não acumulam conhecimento de uma geração para outra, não fazem história. Só para exemplificar, um gato caça hoje como sempre caçou ao longo da história. Já o ser humano, sem as habilidades dadas biologicamente, precisa aprendê-las e as aprende sempre com a geração com que convive e no mundo em que vive. O homem, desde o princípio da história humana, não parou de modificar suas condições de vida e a si próprio. Ao mesmo tempo, todo o conhecimento e todos os objetos que foi criando não pararam de ser transmitidos de uma geração para outra, o que possibilitou a história humana. Essa transmissão de uma geração para outra dos conheci mentos, aptidões c habilidades que foram sendo criadas ao longo da
IÜH • Inliodwao á Psicologia da Educação
lutamente própria dos homens: a criação de objetos externos da cultura - os instrumentos de trabalho, as máquinas, a arte. Esses objetos não existiam no início da história humana e se tornaram possíveis pela atividade criadora e produtiva específica do homem: o trabalho. Ao construir esse conjunto de objetos que constituem a cultura huma na, os homens foram criando também as aptidões, habilidades e capa cidades humanas necessárias à sua utilização e tais habilidades foram ficando como se estivessem cristalizadas - encarnadas - nesses obje tos da cultura. Assim, cada nova criança que nasce, nasce num mun do pleno de objetos que escondem aptidões, habilidades e capacida des que foram criadas ao longo da história e que são, portanto, modi ficadas a cada nova geração, com o aperfeiçoamento de objetos já existentes e com a criação de novos. Ao aprender a utilizar os objetos da cultura que encontra na sociedade e no momento histórico em que vive, cada novo ser humano reproduz para si aquelas capacidades, habilidades e aptidões que estão cristalizadas naqueles objetos da cultura a que tem acesso. Dessa forma, diferentemente dos filhotes dos outros animais, cada nova geração de seres humanos não nasce para repetir as aptidões da espécie, mas para aprender as aptidões ne cessárias à utilização da cultura no mundo e no momento histórico em que vive. Assim, à medida que aprende a utilizar a cultura, a crian ça vai acumulando experiências em conjunto com as outras pessoas com quem vive e vai criando sua inteligência e sua personalidade. De acordo com a concepção de ser humano da teoria histórico-cultural, vamos percebendo uma de suas teses principais: o processo de desenvolvimento resulta do processo de aprendizagem. Esse pro cesso de aprendizagem da cultura e de reprodução das aptidões hu manas nela encarnadas é um processo socialmente mediado. O que significa isso? As aptidões humanas que estão cristalizadas nos obje tos da cultura não estão expostas ou imediatamente dadas nesses ob jetos. A criança só se apropria das aptidões cristalizadas nesses obje tos quando ela aprende a realizar a atividade adequada para a qual o objeto foi criado. Para dar um exemplo, só nos apropriamos da colher quando aprendemos a utilizá-la de acordo com o uso social para o qual ela foi inventada. Para isso, é necessária a mediação de um parcei ro mais experiente que demonstre seu uso ou que instrua verbalmente a criança. Esse processo pode ser intencional, ou seja, realizado quando o parceiro mais experiente tem a intenção explícita de ensinar, ou pode ser espontâneo, ou seja, realizado sem a intenção explícita de ensinar, como quando aprendemos a usar a colher observando alguém. De uma
Capítulo V • A Escola do Vyq olik y I 13 9
pre um processo de educação. É esse processo que garante a trans missão do desenvolvimento histórico da humanidade para as gera ções seguintes e possibilita a história. Para ilustrar essa ideia, se o nosso planeta fosse vítima de uma catástrofe que apenas poupasse as crianças pequenas e os objetos da cultura e fizesse desaparecer todos os adultos e as crianças maiores, a vida humana continuaria, mas a história da humanidade teria que recomeçar, pois, sem ter quem ensi nasse às crianças o uso dos tesouros da cultura, eles continuariam e existir fisicamente, mas não poderíam ser apropriados por elas: as máquinas deixariam de funcionar, os livros ficariam sem leitores, as obras de arte perderíam sua função estética. A história, portanto, só é possível com a transmissão às novas gerações das aquisições da cul tura humana. Esse é o significado profundo da afirmação que ouvi mos, sem, muitas vezes, darmos conta de seu significado: o homem é um ser social não porque ele viva ou goste de viver em grupo, mas porque, sem a sociedade, sem os outros com quem aprender a ser um ser humano, o homem não se torna humano com inteligência, perso nalidade e consciência. Assim, enquanto os animais têm apenas duas fontes de conheci mento - o instinto e a experiência individual que termina com sua morte -, o homem tem três fontes essenciais de conhecimento: a he rança biológica - que é o ponto de partida necessário, ainda que não suficiente, para o desenvolvimento daquelas características tipicamen te humanas como a linguagem, a memória e a atenção voluntárias, o pensamento e o controle da própria conduta -, a experiência indivi dual - que deixa suas marcas na cultura e na história humana - e a experiência humana - a herança social pela qual as gerações passadas transmitem suas experiências, seus conhecimentos, suas habilidades, suas aptidões e suas capacidades e as novas gerações recebem das gerações anteriores tudo o que foi criado antes: os objetos da cultura material (as máquinas, as casas, os objetos) e da cultura não material ou intelectual (a linguagem, as artes, as ciências), reproduzindo, nes se processo, as aptidões criadas até então.
V . 3 Ed u c a ç ã o
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D e s en v o l
v ime n t o
Humano
Essa compreensão de homem e de como ele se desenvolve que é
140 • Introdu ção à Psicologia da Educação
ensão que essa teoria tem da questão educacional. Uma vez que a teo ria concebe todo o processo de desenvolvimento das qualidades tipica mente humanas como um processo de educação, suas investigações envolvem sempre contribuições para refletirmos sobre o processo edu cativo, de um modo geral, e a prática pedagógica escolar, em especial. Antes de conhecermos a teoria histórico-cultural, pensávamos conforme havíamos aprendido com as teorias anteriores - que o ser humano já carregava, ao nascer, o conjunto de aptidões, habilidades e capacidades que teria quando adulto. Desse ponto de vista, aprende mos a pensar que a educação deveria facilitar o desenvolvimento das qualidades que estariam naturalmente dadas no nascimento. Assim como o senso comum, essas teorias, a que chamamos naturalizantes, entendem que o desenvolvimento das qualidades do ser humano - de sua inteligência e de sua personalidade - acontece naturalmente à medida que a criança vai crescendo. Ou seja, aquilo que a criança traz consigo ao nascer basta para seu desenvolvimento: as experiên cias e condições concretas de vida e de educação contribuirão para esse desenvolvimento, mas não são essenciais para que ele ocorra, uma vez que não criam qualidades que já não existam naturalmente dadas no nascimento. Tais teorias, que têm Piaget como seu principal representante, trouxeram um certo imobilismo para a atuação do edu cador, pois, segundo elas, as qualidades que o sujeito não trouxesse consigo, de nada adiantaria tentar formar, uma vez que a educação apenas facilitaria o desenvolvimento daquelas qualidades para as quais o sujeito apresentasse uma predisposição para desenvolver. Com a teoria histórico-cultural, aprendemos que o papel da edu cação é garantir a criação de aptidões que são inicialmente externas aos indivíduos e que estão dadas como possibilidades nos objetos materiais e intelectuais da cultura. Para garantir a criação de aptidões nas novas gerações, é necessário que as condições de vida e educação possibilitem o acesso dos indivíduos das novas gerações à cultura historicamente acumulada. Os educadores - os pais, a professora, as gerações adultas, os par ceiros mais experientes - têm papel essencial nesse processo, pois as crianças não têm condições de decifrar sozinhas as conquistas da cultura humana. Isso só é possível com a orientação e a ajuda constante dos parceiros mais experientes, no processo da educação e do ensino. Nes se sentido é que o educador é o mediador da relação da criança com o mundo que ela irá conhecer, pois os objetos da cultura só fazem sentido quando aprendemos seu uso social - e só pode ensinar o uso social das
Capítulo V • A
Eh o Iii
do Vyuohky j 141
coisas quem já sabe usá-las. Na relação com o parceiro mais cxpe riente, o velho relógio de pulso de ponteiros deixa de ser um objeto quadrado ou redondo - com números de 1 a 12 distribuídos em torno de um eixo, com dois ponteiros que giram num espaço recoberto por um vidro e é preso a duas correias - e passa a ser um instrumento para marcar a passagem das horas. Ou seja, apenas pela experiência social o objeto assume o fim para o qual ele foi criado. Conforme Vygotsky, as funções psíquicas humanas, como a lin guagem oral, o pensamento, a memória, o controle da própria condu ta, a linguagem escrita, o cálculo, antes de se tornarem internas ao indivíduo, precisam ser vivenciadas nas relações entre as pessoas: não se desenvolvem espontaneamente, não existem no indivíduo como uma potencialidade, mas são experimentadas inicialmente sob a for ma de atividade interpsíquica (entre pessoas) antes de assumirem a forma de atividade intrapsíquica (dentro da pessoa). Se a apropriação da linguagem oral, do pensamento, da memória, da linguagem escrita e do cálculo resulta de um processo de internalização de processos externos, então a ação do educador é de suma importância para diri gir intencionalmente o processo educativo. O educador não é, pois, um facilitador no sentido de que possibilita um nível de desenvolvi mento que aconteceria independentemente da aprendizagem. Do pon to de vista da teoria histórico-cultural, a tarefa do educador é garantir a reprodução1, em cada criança, das aptidões humanas que são produ zidas pelo conjunto dos homens e que, sem a transmissão da cultura, não aconteceria. Para garantir a apropriação dessas qualidades, é pre ciso que os educadores identifiquem aqueles elementos culturais que precisam ser assimilados pela criança para que ela desenvolva ao máximo as aptidões, capacidades e habilidades criadas ao longo da história pelas gerações antecedentes e, ao mesmo tempo, é necessário que descubram as formas mais adequadas de garantir esse objetivo. Antes de discutirmos esse assunto mais específico dos conteúdos e metodologia, algumas questões de caráter mais geral merecem ser discutidas com o objetivo de explicitar o papel essencial da educação e do ensino para o desenvolvimento das qualidades humanas.
1 Reprodução não tem aqui o sentido negativo que lhe atribuem os críticos da escola como reprodutivista. Com esse termo nos referimos ao fato de que cada novo ser humano precisa se apropriar das qualidades humanas que foram criadas pelos homens ao longo da história humana. Esse não é um processo de invenção de novas qualidades, mas de reprodução das já existentes e a partir das quais se faz
147 * Introdução ú Psicologia da Educação
V . 4 A p r e n d iz a g e m
e
D e s en v o l
v ime n t o
A compreensão de ser humano e de como ele reproduz para si as qualidades humanas na relação que estabelece com as outras pessoas e no contato com a cultura acumulada traz, também, uma nova com preensão da relação entre aprendizado e desenvolvimento. Com Piaget aprendemos a pensar que o desenvolvimento antecede a aprendiza gem e que é condição para que a aprendizagem aconteça. A formação de Piaget na área das ciências naturais - Piaget era biólogo - levou-o a conceber o desenvolvimento humano à semelhança dos demais se res vivos, que trazem ao nascer toda a informação, geneticamente dada, para se desenvolverem e se tornarem representantes adultos de sua espécie. Desse ponto de vista, tomou-se o desenvolvimento das características humanas nos seres humanos como naturalmente dadas ao nascer e pensou-se que o desenvolvimento fosse determinado bio logicamente. Como já afirmamos, desse ponto de vista as condições materiais de vida e educação exerceríam certa influência nesse de senvolvimento, mas não o impulsionariam, pois não criariam capaci dades e aptidões novas no indivíduo. Portanto, não são consideradas essenciais para que o desenvolvimento ocorra. Em outras palavras, para essa concepção, as relações do indivíduo com a cultura são im portantes, mas não essenciais, uma vez que sem elas haveria um nível de desenvolvimento humano garantido pela carga biológica com que a criança nasce. E justamente nesse ponto que se localiza a ruptura que precisa ser compreendida para que possamos dimensionar adequadamente a concepção adotada por Vygotsky e as implicações pedagógicas daí decorrentes. Para Vygotsky, o desenvolvimento da inteligência e da personalidade é externamente motivado, ou seja, é resultado da apren dizagem. As características inatas do indivíduo são condição essen cial para seu desenvolvimento, mas não são suficientes, pois não têm força motora em relação a esse desenvolvimento. As relações do in divíduo com a cultura constituem condição essencial para seu desen volvimento, uma vez que criam aptidões e capacidades que não exis tem no indivíduo no nascimento. Em outras palavras, para a teoria histórico-cultural, na ausência da relação com a cultura, o desenvol vimento tipicamente humano não ocorrerá. Isso significa que a rela ção entre desenvolvimento e aprendizagem ganha uma nova perspec tiva: não é o desenvolvimento que antecede e possibilita a aprendiza gem, mas, ao contrário, é a aprendizagem que antecede, possibilita e
Capítulo V • A Escola do Vyq oh ky | N I
impulsiona o desenvolvimento. Sem o contato da criança com a ciillu ra, com os adultos, com as crianças mais velhas e com as gerações mais velhas, a criação das capacidades e aptidões humanas não ocorrerá. Dito de outra forma, o desenvolvimento fica impedido de ocorrer na falta de situações que permitam o aprendizado. Se a aprendizagem é tão importante, uma vez que move o desen volvimento das qualidades humanas em cada ser humano, precisa mos ir à teoria histórico-cultural e perguntar: quando acontece a apren dizagem?
V . 5 A l g u n s El e men t o s
pa r a
Co mp r e en d e r
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A p r e n d iz a g e m
Em que condições a aprendizagem acontece? Qualquer ensino pode levar à aprendizagem? Vygotsky ajuda a responder a essas ques tões quando discute a relação entre as zonas de desenvolvimento real e próxima.
V.5.1 As
ZONAS DE DESENVOLVIMENTO E O PAPEL DO EDUCADOR
Ao estudar as formas tradicionais de avaliação do desenvolvi mento psíquico, ou seja, do desenvolvimento daquelas funções como a linguagem, o cálculo, o pensamento, a memória, o controle da con duta, Vygotsky percebeu que, para avaliar esse desenvolvimento, uti lizava-se apenas aquilo que a criança era capaz de fazer de forma in dependente, ou seja, sem a ajuda de outros. Vygotsky chamou esse nível de desenvolvimento de zona de desenvolvimento real, uma vez que expressa o nível de desenvolvimento psíquico já alcançado pela criança. No entanto, percebeu a existência de um outro indicador que precisava ser necessariamente considerado ao lado do desenvolvimen to real já alcançado pela criança. Esse outro indicador foi chamado nível ou zona de desenvolvimento próximo e se manifesta por aquilo que a criança ainda não é capaz de fazer sozinha, mas já é capaz de fazer em colaboração com um parceiro mais experiente. Para Vygotsky, ao fazer com a ajuda de um parceiro mais experiente aqui lo que ainda não é capaz de fazer sozinha, a criança se prepara para, em breve, realizar a atividade por si mesma. Dessa forma, só há apren dizagem quando o ensino incidir na zona de desenvolvimento próxi
144 • Intro duç ão à Psicologia da Educação
mo. Se ensinarmos para a criança aquilo que ela já sabe, não haverá nem aprendizagem nem desenvolvimento. O mesmo acontecerá se ensinarmos algo que está muito além de sua possibilidade de aprendi zagem, ou seja, para além daquilo que ela possa fazer com a ajuda de alguém. Por isso, para Vygotsky, o bom ensino é aquele que garante apren dizagem e impulsiona o desenvolvimento. Nesse sentido, o bom ensi no acontece num processo colaborativo entre o educador e a criança: o educador não deve fazer as atividades pela nem para a criança, mas com ela, atuando como parceiro mais experiente, não no lugar da criança. Quando a criança realiza, com a ajuda de um educador, tare fas que superam seu nível de desenvolvimento, ela se prepara para realizá-las sozinha, pois o aprendizado cria processos de desenvolvi mento que, aos poucos, vão se tornando parte de suas possibilidades reais. Como lembra Vygotsky, o desenvolvimento da linguagem, do pensamento, da memória voluntária, do controle da conduta - que só o ser humano tem capacidade de desenvolver -, ocorre a partir do exterior: primeiro a criança experimenta a fala, a orientação de sua conduta, a atenção, a observação, a memória, a linguagem escrita, o cálculo matemático, o desenho etc., em conjunto com os outros, e só depois essas funções se tomam internas ao seu pensamento. Dessa forma, fica claro que o papel da escola é dirigir o trabalho educativo para estágios de desenvolvimento ainda não alcançados pela criança. Ou seja, o trabalho educativo deve impulsionar novos conhe cimentos e novas conquistas, a partir do nível real de desenvolvimen to da criança - de seu desenvolvimento consolidado, daquilo que a criança já sabe. Por isso é que Vygotsky conclui que o bom ensino não é aquele que incide sobre o que a criança já sabe ou já é capaz de fazer, mas é aquele que faz avançar o que a criança já sabe, ou seja, que a desafia para o que ela ainda não sabe ou só é capaz de fazer com a ajuda de outros. Essa discussão destaca a importância da interferência intencio nal do adulto - do planejamento competente do educador - e também a importância de atividades com grupos de crianças de diferentes ida des e níveis de desenvolvimento, onde quem sabe ensina quem não sabe. O educador deve, portanto, intervir, provocando avanços que de forma espontânea não ocorreríam. No entanto, a compreensão de que o educador tem um papel essencial no processo de desenvolvimento humano não nos deve le
Capítulo V • A Escola do Vy yo Uk y I I1 S
var a pensar que o ensino deva ser centrado exclusivamente na inten ção do professor de ensinar e independente da criança. Ainda que o educador deva interferir, de forma intencional, por meio do processo de ensino, para fazer avançar o nível de desenvolvimento já alcançado pela criança, isso não significa absolutamente que se possa ensinar à criança tudo aquilo que acreditamos ser conveniente sem considerar as particularidades de seu processo de aprendizagem. Para garantir que o processo de ensino impulsione ao máximo o desenvolvimento da criança precisamos conhecer também as especificidades do desenvolvimento das crianças.
V.5.2
E
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q u e
c ir c u n s t â n c ia s
a s c r ia n ç a s a p r e n d e m
?
Já vimos que a intervenção do adulto deve considerar sempre a relação entre o desenvolvimento real já alcançado pela criança e o nível de seu desenvolvimento próximo; só assim a intervenção do educador provoca o aprendizado. Retomando considerações que fizemos anteriormente, a criança só tem condições de aprender a fazer sozinha num futuro próximo aquilo que ela consegue fazer hoje com a colaboração de alguém mais experiente. Assim sendo, o que não é possível que ela faça em colaboração com um parceiro mais experiente não adianta ser compartilhado pelo educador. Com essa reflexão, percebemos que o processo de aprendizagem é sempre colaborativo, ou seja, resulta da ação conjunta entre o educador ou parceiro mais experiente e aquele que aprende. Além disso, o processo de aprendizagem é sempre ativo do ponto de vista do sujeito que aprende: para se apropriar de um objeto, vimos que é necessário que o aprendiz reproduza, com o objeto, o uso social para o qual ele foi criado. No caso da colher, é preciso que o sujeito a utilize para comer, da forma como socialmente a utilizamos. Essa concepção de processo de aprendizagem traz, para a reflexão pedagógica, a compreensão de que a aprendizagem não resulta de um processo de criação, mas de um processo de reprodução do uso que a sociedade faz dos objetos, das técnicas e mesmo das relações sociais, dos costumes, dos hábitos, da língua. Em outras palavras, o processo de aprendizagem exige a atuação do adulto junto com a criança, mas, para se apropriar de um objeto ou
M 6 • liitio tluf uo à Psicologia da Educação
dc lima habilidade, a criança precisa realizar, ela própria, as ativida des, e não o educador por ela ou para ela. Outro elemento ainda deve ser considerado quando tratamos de compreender o processo de aprendizagem: é o que a teoria histórico-cultural chama de períodos sensitivos.
V.5.3 O
CONCEITO DE ATIVIDADE E A ATIVIDADE PRINCIPAL
Quando observamos as crianças pequenas, percebemos que cada idade se distingue por uma sensibilidade seletiva frente a diferentes tipos de ensino ou de influência dos adultos. A existência desses pe ríodos sensitivos se explica pelo fato de que o ensino influencia prin cipalmente aquelas qualidades que estão em processo de formação. Só para ilustrar, nos primeiros meses de vida, a atividade principal da criança, aquela pela qual ela entra em contato com o mundo que a rodeia, aprende e se desenvolve, é a comunicação com os adultos que cuidam dela. Essa comunicação ainda não é verbal mas emocional. A iniciativa antecipadora dos adultos de falar com a criança antes que ela seja capaz de responder ou entender e de aproximar objetos para ela ver e pegar cria novas necessidades: a necessidade de comunica ção e de manipulação dos objetos. Nessa atividade com objetos, a criança acumula experiências que formam as premissas para o desen volvimento do pensamento. Inicialmente esse desenvolvimento do pensamento acontece segundo as imagens daquilo que a criança está fazendo no momento. Depois, ela pensa com as imagens que vão fi cando em sua memória e, só mais tarde, com a aquisição da lingua gem oral, o pensamento se torna verbal. Na atividade com objetos, também acontece o desenvolvimento da memória, da atenção e da própria linguagem oral - ao categorizar os objetos que vai conhecen do (os pesados, os leves, os sonoros, os redondos), a criança vai crian do as condições para o desenvolvimento da fala. Próximo aos três anos, o interesse da criança recai sobre a utilização dos objetos tal como ela vê os adultos utilizarem e passa a imitar os adultos em suas relações sociais e com o mundo da cultura. Até próximo aos seis anos de idade, o faz de conta será a atividade principal da criança. Será por meio dessa atividade, que alguns autores chamam jogo, outros chamam brincar, que a criança mais vai desenvolver a linguagem, o pensamento, a atenção, a memória, os sentimentos morais, os traços
Capítulo V • A Escola do Vyg ots ky
conduta... A partir da entrada na escola fundamental, o estudo passa a ser a atividade principal. Isso significa dizer que é pela atividade de estudo que a criança mais amplia seu conhecimento sobre o mundo, mais é levada a pensar e reorganizar o que pensa e melhor compreen de as relações sociais. Em cada etapa de desenvolvimento, a criança adota um tipo de atividade que permite, dentro das particularidades desse desenvolvi mento, a ampliação de suas qualidades humanas. Considerando as situações em que observamos as crianças atuando, aprendendo e se desenvolvendo, constatamos que as situações que garantem mais aprendizado são aquelas que envolvem intensamente as crianças na quilo que estão fazendo: não atuam mecanicamente, mas atuam com o corpo e o intelecto, concentradas no fazer que realizam. Quando isso acontece, dizemos que o fazer da criança se realiza como uma atividade e não como um fazer mecânico. Para a teoria histórico-cultural, a realização de uma tarefa leva à aprendizagem quando esta se configura como uma atividade. O que caracteriza uma atividade? Em que condições o sujeito mergulha de corpo e mente numa tarefa? Leontiev, um pesquisador que trabalhou com Vygotsky e ajudou a desenvolver suas idéias, chama atividade não a qualquer coisa que a pessoa faça, mas apenas àquilo que faz sentido para ela. E quando uma tarefa adquire sentido para a pessoa que a realiza? Vejamos. Toda tarefa que a pessoa faz tem sempre um objetivo e um motivo. O ob jetivo é aquilo que deve ser alcançado no final da tarefa - seu resul tado -, que já é previsto como uma ideia, antes do início da ação. O motivo é a necessidade que leva a pessoa a agir. O sentido é dado pela relação entre o motivo e o objetivo - ou resultado - previsto para a tarefa. Se houver uma coincidência entre motivo e objetivo, ou seja, se a pessoa atua porque está interessada, necessitada ou motivada pelo resultado que alcançará no final da tarefa, então a atividade tem um sentido para ela. Em outras palavras, se o resultado da tarefa respon de a uma necessidade, motivo ou interesse da pessoa que a realiza, percebemos que a pessoa está inteiramente envolvida em seu fazer: sabendo por que realiza a tarefa e querendo chegar ao seu resultado. Nesse caso, dizemos que ela realiza uma atividade e, ao realizar essa atividade, está se apropriando das aptidões, habilidades e capacidades envolvidas nessa tarefa. Com isso, percebemos que atividade não é sinônimo de execu ção de uma tarefa pela criança. Ao contrário, a atividade envolve o
147
148 • Introd ução à Psicologia da Educação
atividade deve responder a um motivo, a uma necessidade ou a um interesse da criança. Quando refletimos sobre isso, percebemos que devemos envolver, sempre que possível, a criança no processo de pla nejamento, seja de forma direta, quando ela participa das decisões do que fazer e de como fazer, seja de forma indireta, quando apontamos para ela o objetivo da tarefa proposta na perspectiva de criar ou res ponder a uma necessidade, motivo ou interesse seu. Desse ponto de vista, promovemos aprendizagem e, consequen temente, desenvolvimento, à medida que respondemos ao desejo ou à necessidade de conhecimento das crianças. Ainda nessa perspectiva, a atividade que faz sentido para a criança é a chave pela qual ela entra em contato com o mundo, aprende a usar a cultura e se apropria das aptidões, capacidades e habilidades humanas. Essa compreensão do processo de aprendizagem, ao revelar a importância essencial do sentido da atividade, coloca sob suspeita os processos artificiais de ensino presentes em muitas escolas. A com preensão reducionista do processo de apropriação da leitura como decodificação dos sons desenhados na palavra escrita, assim como a compreensão de que a apropriação da escrita resulta do exercício motor, acolhe procedimentos mecânicos que, nas palavras de Vygotsky, “ensinam as crianças a traçar as letras e a formar palavras com elas, mas não ensinam a linguagem escrita”. As atividades arti ficiais criadas apenas para ensinar a criança a ler e escrever, e que não utilizam a leitura e a escrita para o fim verdadeiro para o qual foram criadas, não geram necessidades de leitura e escrita na criança, nem buscam sua iniciativa. Desse modo, não fazem sentido para a criança que aprende. Ler apenas para aprender a ler e escrever apenas para aprender a escrever tornam-se tarefas que até podem fazer senti do para o adulto que ensina, mas não para a criança que está sendo introduzida no mundo da escrita.
V.5.4 A
APRENDIZAGEM COMO PROCESSO COMPARTILHADO
Da compreensão de que a atividade deve ser um processo neces sariamente ativo por parte da criança e significativo para garantir a apropriação do conhecimento, nasce uma questão que merece nossa reflexão. Diz respeito ao fato de que se o bom ensino é aquele que incide sobre o que a criança ainda não sabe, como garantir que a crian
Capítulo V • A Escola dc Vy g oh ky | I4V
educador e a criança é a garantia para que ela mantenha uma atitude ativa em relação ao conhecimento e que, ao mesmo tempo, conheça o novo. Isso não significa que o educador se iguale à criança no proces so de ensino, mas que, ao coordenar e dirigir esse processo para o desenvolvimento das qualidades humanas, compartilhe com a criança os passos dos procedimentos didáticos, os objetivos das tarefas pro postas, a divisão das tarefas possíveis e provoque a iniciativa e a ati vidade da criança no processo de execução da tarefa, assim como sua participação na avaliação da atividade desenvolvida. A participação da criança em nenhum momento desqualifica o tra balho intencional do educador; ao contrário, qualifica-o ainda mais, uma vez que esse trabalho compartilhado possibilita a atuação do aprendiz em níveis cada vez mais elevados e a internalização de aptidões, habi lidades e capacidades humanas cada vez mais elaboradas. O que não se pode perder de vista é a atividade principal específica que caracteriza as diferentes etapas do desenvolvimento humano, pois é por meio dela que o indivíduo entra em contato com novos conhecimentos e internaliza aptidões e capacidades. Assim, por exemplo, entre três e seis anos, devemos considerar que o faz de conta é a atividade pela qual novas capacidades e aptidões podem ser introduzidas às crianças. Uma segunda questão, apresentada pelo conceito de atividade, diz respeito ao fato de que a atividade deve responder aos desejos, interesses e motivos da criança. Em relação a isso, vale perguntar: se a criança precisa experimentar as atividades mais diversificadas para se apropriar de aptidões, capacidades e habilidades também diversifi cadas, como podemos diversificar a experiência da criança quando suas necessidades, interesses e motivos são restritos? Em outras pala vras, o que fazer quando as crianças não mostram interesse, motivo ou necessidade de leitura? Devemos simplesmente ignorar a leitura?
V.5.5 A CRIAÇÃO
DE NOVOS MOTIVOS, INTERESSES
E NECESSIDADES
Na visão de Gramsci, um importante filósofo italiano do século passado, o papel da escola é formar cada criança para ser um dirigen te, um cidadão preparado para ser o presidente da república ou mes mo para escolher de forma autônoma e crítica os caminhos de sua própria vida. Para isso, devemos criar nas crianças o máximo daque
ISO • lnliodu(uo a Psicologia da Educação
tórico em que vivem. A formação dessas aptidões resulta, como vi mos, do processo de educação, do acesso à cultura. O que fazer frente a crianças que não apresentam necessidades, interesses ou motivos de aprender e, nesse sentido, de fazer avançar seu desenvolvimento às máximas possibilidades permitidas pelo desenvolvimento humano? Para refletir sobre essa questão, devemos lembrar que os moti vos e interesses humanos são históricos e sociais, ou seja, são criados nas crianças pela sociedade em que vivem e por tudo o que acontece ao seu redor. Se são criados, não devem ser vistos como algo natural da criança e, consequentemente, como algo inquestionável. Os moti vos, necessidades e interesses são aprendidos a partir das condições concretas de vida e educação: por exemplo, os programas de TV a que assistimos criam, em nós, interesses e motivos. Olhando a ques tão dos motivos desse ponto de vista, duas idéias nos assaltam. Pri meira ideia: se os motivos, os interesses e as necessidades são apren didos, então velhos motivos podem ser modificados e novos podem ser ensinados ou criados. Ou seja, na escola, podemos criar novos motivos que contribuam para o desenvolvimento de aptidões e capa cidades humanizadoras que tornem a criança um ser humano mais completo. Segunda ideia: se os motivos que as crianças ou alunos trazem para a escola são aprendidos nas diferentes situações que vi vem, então o papel da instituição escolar não é o de responder às neces sidades, aos motivos ou interesses que as crianças trazem para a escola. Tais necessidades, ensinadas às crianças pela vida cotidiana, estão liga das à sobrevivência do indivíduo, mas, em geral, não criam nelas ne cessidades humanizadoras - como a necessidade de conhecimento, a necessidade de expressão pela arte, a necessidade da reflexão filosófica e a necessidade de um posicionamento ético - que contribuam para que alcancem o máximo de desenvolvimento humano. O papel da educa ção escolar é, então, criar novas necessidades humanizadoras nas crian ças. O educador é, assim, um criador de necessidades que contribuam para o desenvolvimento humano nas crianças. Como provocar nas crianças o surgimento de novos motivos, ne cessidades e interesses de tal forma que elas possam ampliar suas neces sidades de conhecimento para esferas de atividades não experimenta das? Ou, em outras palavras, como criar novos motivos e interesses ligados às atividades humanas que a vida cotidiana não estimula nas crianças - o estudo, o desejo de conhecimento, a solidariedade, a arte? Para responder a essas perguntas, é preciso distinguir os motivos
Capítulo V • A Escola de Vygotsky 1151
compreendidos pelo sujeito, mas são ineficazes para impulsionar sua ação. Quando uma criança lê um livro “para ir brincar”, por exemplo, “ir brincar” é o motivo eficaz que move sua ação. Ela pode até enten der que “ler o livro é importante para conhecer o assunto de que tra ta”, mas não é esse o motivo que a faz ler. Se lembrarmos o que estu damos sobre a atividade (a atividade se constitui quando o motivo que leva o sujeito a agir coincide com o resultado da tarefa que reali za), então percebemos que, nesse caso, a criança não faz a leitura como uma atividade, pois o motivo (ir brincar) não tem relação direta com o resultado que ela obtém ao final da ação que realiza (conhecer o assunto do livro). Nessa situação, a leitura não tem sentido para a criança: ela só lê para poder ir brincar em seguida. E ela lê pensando no brincar e não concentrada na leitura. No entanto, nesse processo de ler para poder ir brincar, a criança pode se interessar pelo assunto do livro. Quando isso acontece, “co nhecer o assunto do livro” - que é o resultado da leitura - torna-se também o motivo da leitura. Nesse caso, a leitura se tornou uma ati vidade que tem sentido para a criança, pois o motivo e o resultado daquilo que ela realiza coincidem. A criança passa a ler profunda mente interessada na leitura. Em que condições o resultado da atividade passa a ser também seu motivo? Isso ocorrerá quando o resultado da tarefa que realiza se tornar mais significativo para a criança do que o motivo que inicial mente impulsionou seu agir. Nesse caso, a atividade se torna significati va para a criança. Voltando ao exemplo da leitura, essa passagem se dá quando o assunto do livro é tão atrativo que a criança percebe que co nhecê-lo é tão gostoso quanto ir brincar e, assim, passa a ler para conhe cer o assunto. Nesse caso, dizemos que a criança passou a compreender a leitura num nível mais elevado em sua consciência. Essa passagem transformou a leitura em uma atividade significativa. Ao ler motivada por conhecer o assunto do livro, a criança concentra-se inteiramente na leitura e aprende, cria uma nova necessidade e se desenvolve. Trazendo essa discussão para a escola, percebemos que as con dições concretas para a criação de novos motivos são, em primeiro lugar, que a criança tenha oportunidades de experiências diversificadas para que possa vir a fazer delas atividades carregadas de sentido, ou seja, é preciso propor experiências que possam vir a se tornar ativida des significativas. No entanto - e essa é a segunda condição para que a ação se torne uma atividade significativa , essas experiências preci
I 52 • Inliod uç oo (i Psicologia da Educação
cm sua realização e que o objetivo da atividade se torne o motivo que move o fazer da criança. Crianças que não gostam de parar para ouvir histórias certamente passarão a fazê-lo se as histórias contadas em sala por sua temática e apresentação - atraírem sua atenção e criarem nelas um novo desejo, uma nova necessidade, um novo prazer. Escolher bem aquilo que será proposto às crianças é essencial. Para isso, conhecer a prática social - a vida - em que as crianças se inserem, os temas que atraem inicialmente sua atenção, os interesses e necessidades já criados nas crianças muito ajudará o trabalho do educador. Por isso, na escola, além de oportunidades diversificadas de contato com a cultura acumulada histórica c socialmente, as crian ças precisam dar a conhecer sua identidade, isto é, o que acontece quando a escola está aberta à vida que acontece antes, durante e de pois do horário escolar. Ao mesmo tempo, é preciso que o educador descubra as formas mais adequadas de trabalho com o seu grupo. Isso se faz possível quando o educador conhece os níveis de desenvolvimento real e pró ximo das crianças, quando conhece as regularidades do desenvolvi mento delas, ou seja, conhece quais as funções psíquicas que se en contram em desenvolvimento em determinada etapa e que constituem os períodos mais adequados às influências da educação, e, ainda, quan do percebe qual atividade é principal para a criança em determinada etapa de seu desenvolvimento e propicia a experiência da criança sob tal forma de atividade.
V . 6 A C r ia n ç a Co mp et e n t e Por tudo o que vimos, ao longo da discussão das teses centrais da teoria histórico-cultural, a criança que emerge dos estudos dessa teoria é uma criança capaz: capaz de interagir com o adulto desde os primeiros dias de vida e desenvolver, a partir do contato emocional com esse adulto, a necessidade de comunicação; capaz de interagir com os objetos que o adulto lhe apresenta e, nessa atividade com objetos, criar as premissas para o desenvolvimento das funções psí quicas que caracterizam o homem adulto, como o pensamento, a aten ção, a memória, a linguagem oral; capaz de internalizar, a partir da relação com os adultos, funções essenciais, como o pensamento ver bal, o controle da própria conduta, idéias e sentimentos morais e éti-
Capítulo V • A Escola do Vygotsk y
inteligência e sua personalidade; capaz de colocar-se no lugar do adul to e, nesse processo, compreender os papéis e as relações sociais que testemunha; capaz de fazer teorias, interpretando fenômenos e rela ções - teorias essas que, embora não sejam estáveis e científicas, são exercícios de pensamento e de interpretação das experiências vividas. Tal concepção de criança como um ser capaz muda radicalmente a compreensão, ainda hoje vigente, acerca da infância em nossa socie dade. Apesar dos perceptíveis avanços que podemos contar quando ensaiamos pensar a criança como cidadã, nossa relação adulto-criança é, todavia, marcada pelo preconceito que concebe a criança como um ser incapaz, alguém que não sabe e não é capaz de aprender. Por isso, em geral, não a ensinamos a usar a máquina fotográfica - mas a escondemos - quando ela tem interesse, tiramos a caneta de suas mãos e a colocamos em lugar inacessível, para ela não a estragar, e assim por diante. Em geral, sempre subestimamos sua capacidade de apren der - ou quem sabe a nossa capacidade de ensinar? - alegando que a criança é pequena. De uma forma ou de outra, sem estabelecer uma relação consciente com o processo de educação dos pequenos, reser vamos para eles um lugar menos importante nas relações sociais de que eles participam - na família, na creche, na pré-escola. De acordo com a teoria histórico-cultural, o lugar ocupado pela criança nas rela ções sociais de que participa é força motivadora de seu desenvolvi mento e esse lugar é justamente determinado pela concepção que os adultos têm acerca da criança e de seu desenvolvimento, pois o adul to é quem se aproxima da criança, apresenta o mundo da cultura para ela e cria nela necessidades, interesses e motivos, de acordo com a experiência que vai proporcionando para a criança. Com isso, perce bemos o significado dessa nova concepção de criança que emerge da teoria, essencial para a proposição de experiências que façam avançar o desenvolvimento humano na criança.
V . 7 A G u i s a de Co n c l u s ã o
Conforme aponta a teoria histórico-cultural, quando respeitamos a atividade principal das crianças, na presença de condições adequa das de vida e de educação, elas, até os seis anos, desenvolvem inten samente diferentes atividades práticas, intelectuais e artísticas c ini ciam a formação de idéias, sentimentos e hábitos morais e traços de
IS3
IS 4 • Introdução ò Psicologia da Educação
voco de acreditar que a abreviação da infância vai garantir um maior progresso tecnológico... O ensino da criança de zero a seis anos não se desenvolve sob a forma de lição escolar, mas sob a forma de jogo, de observação direta, de diferentes tipos de atividade plástica. Para os estudiosos da Escola de Vygotsky, as condições ótimas para a realização das máximas possibilidades da criança e seu desen volvimento harmônico não se criam pelo ensino forçado, antecipado, dirigido a diminuir a infância, a converter, antes do tempo, a criança pequena em pré-escolar e o pré-escolar em escolar. É indispensável, ao contrário, o desenvolvimento máximo das formas especificamente in fantis de atividade lúdica, prática e plástica e também da comunicação das crianças entre si e entre os adultos. É sobre essa base que se deve realizar a formação orientada ao desenvolvimento daquilo que consti tui o bem mais valioso da pessoa: a inteligência e a personalidade.
Ex e r c íc i o s
1) O que o educador precisa considerar ao programar uma atividade para seus alunos, se seu objetivo é garantir que as crianças apren dam e se desenvolvam? 2) Do
ponto de vista da teoria histórico-cultural, que papel tem a educação no desenvolvimento humano e que papel desempenha o educador nesse processo de desenvolvimento?
3) Como
a teoria histórico-cultural conceitua atividade e que impli cações esse conceito tem para o processo educativo escolar?
4) Como
o educador pode atuar para criar novos motivos, interesses ou necessidades de conhecimento nos alunos?
5)
Como a teoria histórico-cultural compreende a relação entre apren dizagem e desenvolvimento? Quais as implicações dessa compre ensão para o trabalho do educador?
L e i t u r a s r e c o me n d a d a s D U A R T E ,
N .
Educação escolar, teoria do cotidiano e a Escola de Vygotsky.
C am pinas: A utores A ssociados,
1 9 97 .
Capítulo V • A Escola do Vygotiky
L E O N T IEV , A. L i s b o a:
N.
O
L iv r o s N o v o s
h om em
e a c u ltu r a .
H o r iz o n t e s ,
In :
O desenvolvimento do psiquismo.
1 9 7 8.
_______________ U m a c o n t r i b u i ç ã o à t e o r i a d o d e s e n v o l v i m e n t o d a p s i q u e i n f a n t i l . I n : V Y G O T S K Y , Pau lo:
L.
S .
e t al.
Ícone /Edu sp,
1 9 8 8.
Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem.
S ã o
M E L L O , S . A . A l g u m a s i m p l i c a ç õ e s p e d a g ó g i c a s d a E s c o la d e V y g o t s k y p a r a a e d u c a ç ã o i n f an t il . F a c u ld a d e
d e
S A V IA N I , D .
Pro-posições.
E d u c a ç ã o
v. 10, n. 1 {28}, m ar.
d a U n i c a m p )
Pedagogia histórico-crítica:
C o r te z / A u t o r e s A s s o c i a d o s ,
Paulo:
L. S . e t al.
Ícone /Edu sp,
1988.
p r i m e i r a s a p r o x i m a ç õ e s .
S ão
P au lo :
1991.
V Y G O T S K Y , L. S. A prendizagem In : V Y G O T S K Y ,
1999. (R ev ista qua drien al da
e d e s e n v o l v i m e n t o i n t e le c t u a l n a i d a d e e s c o la r .
Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem.
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Cap/f
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Adrián Oscar Dongo Montoya
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Contribuições do Psicologia e Epistemologia Genéticas para a Educação
São bastante conhecidas as contribuições da teoria e das pesquisas de Piaget nas tarefas educacionais. Seria difícil negar sua enorme influência no século XX na modificação de posturas e concepções tradicionais de ensino. Entretanto, o alcance de sua obra e a sua concepção teórica ainda não foram esgotados; pelo contrário, podem abrir novas contribuições para a teoria e para a prática educacional quanto maiores forem os avanços na compreensão da originalidade e profundidade do seu pensamento. O presente trabalho pretende destacar as possíveis contribuições da Psicologia e Epistemologia Genéticas para a educação a partir de uma leitura que leve em conta a teoria e a pesquisa piagetiana sobre a troca entre o sujeito e o meio em função das particularidades dos conteúdos a serem adquiridos, sobretudo dos conteúdos do mundo real. Sem postular a dependência da Pedagogia para com a Psicologia nem pretender constituir esta como fundamento daquela, é evidente que a pesquisa psicológica pode fornecer conhecimentos científicos precisos e necessários sobre os quais a Pedagogia pode se apoiar. Esse foi o ponto de vista de Piaget sobre a relação entre a pesquisa psicológica e a Pedagogia. Assim, para o educador se afastar do pressuposto de que os conhecimentos podem ser simplesmente transmitidos e
I *»tt • Intr od ução à Psicolog ia da Educação
Embora exista consciência da necessidade desse conhecimento para a ação pedagógica e educacional, o pensamento e a obra desse autor, infelizmente, foram reduzidos ao desenvolvimento das estruturas lógico-matemáticas, particularmente aos seus estágios sucessivos. Essa forma de leitura contribuiu muito para o empobrecimento do seu pen samento e limitou, assim, a sua contribuição para a ação educacional. Entretanto, uma leitura mais atenta da obra de Piaget nos infor ma que o desenvolvimento e a aquisição das estruturas lógico-mate máticas são apenas uma parte do seu sistema teórico. As estruturas lógico-matemáticas dizem respeito às formas gerais e puras de co nhecimento, independentes do conteúdo particular do real, pois a sua substância não é extraída das propriedades dos objetos, mas, sim, dos relacionamentos e coordenações realizados pelo sujeito sobre os ob jetos. Saber conservar o número de elementos de um conjunto dc pedrinhas independe da sua composição física e das suas proprieda des inerentes. A Epistemologia Genética não se reduz às estruturas lógico-matemáticas, embora elas sejam necessárias para a formação de outros conhecimentos. O que se torna importante destacar, então, é que quanto melhor forem conhecidos os caminhos e mecanismos psicológicos formado res das diferentes operações, noções e explicações do mundo real - e não somente das operações lógico-matemáticas -, as contribuições da Psicogênese para a prática docente serão, sem dúvida, enormes e imprevisíveis.
V I. 1 A P s ic o l o g i a e a Ep is t e mo l o g ia G e né t ic a s : N o ç õ e s G e r a is E preciso dizer que a Epistemologia Genética é uma ciência nova, inaugurada pelos trabalhos de Piaget, que tem como objetivo revelar os processos pelos quais se constituem os diferentes estados - estru turas - do conhecimento. Diferentemente do tratamento tradicional dado à pesquisa do conhecimento, Piaget se propôs um novo desafio: constituir como fato da pesquisa epistemológica não o conhecimento enquanto estado acabado, mas sim como processo de formação dos diferentes estados alcançados pelo conhecimento. A Epistemologia Genética, desse modo, exige, além da formalização lógica e matemá tica, dois procedimentos básicos: a pesquisa histórica das idéias cien tíficas (e prc-cientíücas) e a pesquisa psicogenética. Desses dois mo
Capítulo VI • Contribui ções da Psicologia e Epist emolog ia Genéticas para a Educação | IS 9
dos de pesquisa (Sociogênese e Psicogênese) surgiram as novidades explicativas de uma nova epistemologia, ou, o que quer dizer a mes ma coisa, as novidades explicativas da nova epistemologia se apoiam na pesquisa histórica e na pesquisa psicogenética. Por isso, a verda deira compreensão da obra desse autor não poderia prescindir do es tudo complementar e solidário dessas duas formas de pesquisas. A pesquisa histórica do desenvolvimento do conhecimento cientí fico e pré-científico é de grande importância, pois mostra que essa for ma de conhecimento apresenta uma gênese, isto é, transformações por reorganizações contínuas, que começam pelas formas mais primitivas (fenomenistas e egocêntricas, nas representações míticas e animistas) e vão até as formas mais acabadas da ciência contemporânea. A Socio gênese, portanto, tem mostrado que tanto nos conhecimentos lógico-matemáticos como nos conhecimentos físicos e socioculturais há avan ços e aprimoramentos por reconstruções sucessivas. A Psicogênese, por outro lado, toma-se um instrumento podero so na pesquisa do conhecimento-processo quando verifica, no desen volvimento individual, mediante a pesquisa experimental, as pertinências das hipóteses epistemológicas em disputa. O estudo das funções psicológicas como a memória, a atividade perceptiva, as representa ções imagéticas, as representações conceituais, das estruturas afetivas, cognitivas e morais nos planos sensório-motor e conceituai, dos me canismos psicológicos como a abstração empírica e reflexionante, a generalização indutiva e construtiva etc., participantes na constituição dos diferentes patamares do conhecimento, mostra a fecundidade da pesquisa psicogenética na revelação de novos fatos e na interpretação nova de velhos problemas. Assim, em coerência com esse modo de entender o conhecimen to como processo, a Epistemologia Genética e a Psicologia Genética colocam duas hipóteses científicas fundamentais a serem considera das na pesquisa sobre a evolução dos conhecimentos. Em primeiro lugar, concebem o conhecimento como ato de assimilação aos esque mas de ação, isto é, assimilação a ações que se coordenam em siste mas lógico-matemáticos, o que significa que o conhecimento, nos diferentes planos e campos em que se articula, não é simplesmente conexão associativa e linguagem. Em segundo lugar, como consegui mos analisar num texto anterior (Dongo-Montoya, 2000), no proces so de desenvolvimento psicológico do conhecimento (e da afetividade) existe uma dialética radical entre os processos de continuidade e de desconlinuidade, o que significa que os novos avanços do indivíduo
160 • Introdução à Psicologia da Educação
(e da ciência) são sempre reconstruções das conquistas anteriores e não rupturas radicais nem simples prolongamentos. Essas duas hipóteses são mais bem esclarecidas quando analisamos os aspectos funcional e estrutural da inteligência e/ou do conhecimento. O aspecto funcional diz respeito aos processos adaptativos e organizativos, comuns a todos os níveis da atividade intelectual, e o aspecto estrutural, às formas ou estruturas alcançadas pelo sujeito nos processos adaptativos. No processo adaptativo, o esquema sensório-motor mais primiti vo é uma ação que se aplica a um conjunto de objetos e não a outros, à maneira de um conceito (ou pré-conceito) que no seu exercício in sere certas qualidades comuns dos objetos. Reciprocamente, esses esquemas e conceitos, no seu exercício, são obrigados a se ajustar e se transformar em função das particularidades dos objetos. Desse modo, no exercício de um mesmo esquema, encontramos tanto a sua dimensão assimiladora quanto a sua dimensão acomodadora. Mas esse fato coloca imediatamente uma questão crucial: por que o esquema de ação funciona inserindo objetos e transformando-se em função desse exercício assimilador? Simplesmente porque todo esquema de ação funciona como sistema ou como um todo organizado. Este últi mo aspecto é o aspecto organizador do funcionamento da inteligência e se refere tanto à composição interna de um mesmo esquema quanto às suas coordenações com outros esquemas. Os esquemas sensório-motores, assim como os esquemas con ceituais, na medida em que se adaptam a novas realidades, dão lugar a novas formas de organização. As novas formas de organização se constituem, então, como resultado das transformações sofridas pelas anteriores, tendo como resultado esquemas de maior abrangência so bre os dados exteriores. Para Piaget, esse progresso não poderia se explicar apenas por força das imposições do meio nem pela emergên cia de estruturas pré-formadas, mas sim por sucessivas reorganiza ções internas (construções) na busca de maior coerência e equilíbrio estável. Esse processo de reorganização interna é chamado na teoria de Piaget de equilibração majorante. Nesse processo, a constituição de formas a partir de formas anteriores explica-se por meio do meca nismo de abstração reflexionante. Esse mecanismo, contrariamente às abstrações empíricas, que retiram dados e caracteres observáveis nos objetos, permite retirar ou abstrair o que há de comum nos relacio namentos que se fazem sobre os objetos. Por exemplo, a classificação
Capítulo V I • Contribuiçõ es da Psicologia e Epistemo logia Genéticas para a Educaçào 11 61
conceptual ou pré-conceptual não é resultado dos caracteres observá veis nos objetos nem nas ações materiais, mas sim das ações de juntar e separar os objetos, isto é, das coordenações que se fazem sobre os objetos (que não são observáveis). Como se pode notar, o resultado do processo de adaptação e organizativo define o aspecto estrutural da inteligência; reciprocamen te, o dinamismo do processo adaptativo não poderá funcionar sem uma estrutura prévia. Por isso, não poderia existir estrutura sem fun cionamento nem funcionamento sem estrutura. De igual modo, se as novas estruturas são formadas por reorganizações das estruturas ante riores, não poderia existir, por isso mesmo, rupturas absolutas nem simples prolongamentos ou continuidades.
VI.2
P e s q u i s a s s o b r e o C o n h e c ime n t o Ló g i c o - M a t e má t ic o e suas
I mp l ic a ç õ e s Ed u c a c i o n a i s
As pesquisas de Piaget sobre o conhecimento lógico-matemático revelaram que a sua formação consiste numa verdadeira criação e construção por parte do indivíduo. Noutras palavras, a criança, na tro ca permanente com o meio, insere os objetos em sistemas de relações cada vez mais complexos e reversíveis. As noções de série, de classe e número são as maiores testemunhas desse processo construtivo. Entretanto, essa forma de conhecimento, como se tem observado nas linhas anteriores, diz respeito às formas mais gerais de conhecimento, as quais são formadas, por abstração reflexionante, a partir das for mas e coordenações efetuadas pelo sujeito sobre os objetos. A extra ção das formas ou estruturas não é feita dos caracteres e particulari dades dos objetos (como seu peso, sua força, sua velocidade, sua con sistência etc.), mas sim dos relacionamentos e das coordenações que o sujeito estabelece sobre esses objetos. Isso não quer dizer que os objetos deixem de ser necessários e importantes, como poderia argu mentar uma concepção apriorista; pelo contrário, são eles que possi bilitam a formação das estruturas ou dos esquemas sensório-motores e conceituais (ordem, classificação, espaço, número etc.). A partici pação dos objetos exteriores e da experiência é tão importante que, no começo da construção dessas estruturas, o sujeito não estabelece separação alguma entre a própria forma que ele constrói e o conteúdo físico dos objetos; somente no caso do conhecimento lógico-matemá tico a atenção está voltada para os próprios relacionamentos e coor-
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• Introdu ção à Psicologia da Educação
dcnações feitas pelo sujeito e não para as propriedades e resistências particulares dos objetos a serem transformados. São múltiplas as implicações práticas e educacionais das pesqui sas realizadas sobre o conhecimento lógico-matemático. O ensino da Matemática contemporânea se enriqueceu devido à descoberta psicogenética de que a noção de número é produto da síntese das re lações simétricas e assimétricas, isto é, do domínio prévio das rela ções de classes e de séries lógicas. É claro que o número não se reduz a isso, como mostram pesquisas mais atuais, entretanto essa desco berta permitiu, no seio do ensino da Matemática, colocar a criança como um agente central e ativo da aprendizagem. Esse triunfo inquestionável da Psicologia e Epistemologia Genéticas contribuiu, entretanto, para identificar a teoria de Piaget com o conhecimento lógico-matemático. A introdução da teoria dos conjuntos no ensino da Matemática teve como argumento a sua suposta identidade com o desenvolvimento do pensamento lógico-matemático na criança. Por outro lado, o fato de terem-se realizado muitas pesquisas comparativas do desenvolvimento cognitivo, tendo como base as pro vas operatórias - provas que denunciam estruturas básicas e de cará ter lógico-aritmético -, conduziu à ideia de que a teoria de Piaget se reduzia a diagnosticar os níveis gerais de desenvolvimento cognitivo. E claro que o diagnóstico do nível cognitivo das crianças por inter médio das provas operatórias tem cumprido grande importância na clínica, na escola e na pesquisa comparativa, mas os instrumentos não refletem e nem substituem toda a teoria. Como essas pesquisas e trabalhos tiveram como principal objeti vo diagnosticar o nível cognitivo da criança, assim como observar os pré-requisitos intelectuais - em analogia com as pesquisas de QI para a aprendizagem dos conteúdos escolares, reforçaram a ideia pré-concebida de que a pesquisa piagetiana teria pouco a ver com a par ticularidade da aquisição dos conteúdos escolares. Ideia que serviu de pretexto para a crítica da teoria de Piaget como espontaneísta e para a legitimação de concepções que defendiam o resgate do ensino dos conteúdos escolares em oposição ao escolanovismo. E fácil constatar que a divulgação da teoria de Piaget esteve (e ainda se encontra) centrada na compreensão do estágio intelectual ou mental das crianças e não nos processos de construção do real (físico e cultural). Em decorrência disso, quando o professor de escola, por exemplo, é solicitado a trabalhar com as descobertas de Emília Fer
Capítulo V I • Contribu ições da Psicolog ia e Epistem olo gia Genéticas par a a Educuçuo I 16 t
reiro sobre a aquisição da escrita, ele não percebe conexão alguma entre os resultados da pesquisa dessa autora e a teoria de Piaget e, se percebe, assimila-os à construção das estruturas lógico-matemáticas. Corno consequência, então, de privilegiar o estudo das estruturas lógico-matemáticas e deixar num segundo plano os estudos sobre a aquisição e o desenvolvimento do conhecimento do mundo real (es crita, ciências da natureza, Geografia, História etc.), o pensamento piagetiano foi alvo de severas críticas no meio educacional. Ainda se diz hoje que a teoria piagetiana é “cognitivista” por estar interessada somente em diagnosticar as estruturas gerais do conhecimento e, por isso, ficar alheia às questões de aprendizagem de conteúdos específi cos. Alega-se que o interesse dessa teoria estaria centrado apenas no conhecimento geral e que não serviría portanto para a análise das si tuações concretas do ensino e da aprendizagem escolar. Associada com essa crítica estaria a negligência da teoria piagetiana em relação às questões sociais e culturais, o que é evidentemente falso.
V I . 3 P e s q u i s a s s o b r e o Co n h e c i me n t o Fí s i c o e suas
I mp l ic a ç õ e s Ed u c a c i o n a i s
Se há um lugar onde se pode reconhecer a novidade e originali dade da epistemologia piagetiana é na formulação do processo de aquisição do conhecimento físico. Chama-se conhecimento físico so bretudo o modo como a ciência da natureza apreende o mundo real e realiza explicações causais sobre ele. Contrariamente ao positivismo, a perspectiva da Epistemologia Genética, à semelhança das concep ções mais dialéticas e relacionais, como a de Brunschvicg e Bachelard, transcende a simples busca de regularidades e leis constatáveis para avançar na direção da formulação de sistemas de representação ou modelos de interpretação. A aquisição do conhecimento físico, como se pode observar, diz respeito à formação e aprendizagem do conhecimento do mundo ex terior, à aquisição do conhecimento sobre as propriedades inerentes aos objetos; tal aquisição, porém, é possível somente pela sua inser ção progressiva em sistemas operatórios e esquemas explicativos. Assim, esses sistemas se constituem em mediadores epistemológicos nos diferentes níveis de organização e de relação do sujeito com o objeto, e isso desde o início. As diferentes noções físicas estudadas
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por Piaget e seus colaboradores revelam esse caráter fundamental. As pesquisas sobre as noções tísicas de conservação (substância, peso e volume), as pesquisas sobre questões de mecânica e de dinâmica, como as noções de força, de velocidade, de tempo, de espaço físico, de trans missão de movimentos, e as pesquisas sobre composição e combinação interna dos corpos, como o atomismo, e dos processos químicos reve lam duas condições: a necessária abstração de caracteres específicos dos objetos (abstração empírica) e a sua inserção progressiva em sis temas de relações ou de coordenações (abstrações reflexionantes). Se o conhecimento físico não deixa de ser uma organização lógi ca e matemática do mundo (quantificação intensiva e extensiva), ele não é uma simples aplicação das estruturas lógico-matemáticas, como o senso comum poderia acreditar. Pelo contrário, a apreensão da reali dade exterior exige relacionamentos e coordenações progressivas c es pecíficas sobre as propriedades e conteúdos particulares dos objetos, como o seu peso, seu volume, sua duração, sua força etc. Por isso, é necessário agir e ter experiência sobre os caracteres específicos dos objetos para realizar abstrações empíricas desses dados e inseri-los em sistemas de relações. Assim, mesmo no plano do conhecimento sensório-motor e prático, é somente pesando e estabelecendo relações sobre os objetos que é possível saber que um objeto X tem peso igual a um objeto Y. Também no plano da representação conceptual, so mente comparando e reconstituindo os estados percebidos pelos quais passa a transformação da matéria é possível compor operatoriamente a quantidade dessa qualidade física. A afirmação da necessária parti cipação da experiência sensível não significa o retorno ao empirismo, pois, se a experiência é absolutamente necessária, a experiência real não é possível sem a indispensável contribuição das coordenações das ações. O conhecimento do mundo real não se reduz à experiência sensível nem ao seu oposto, à dedução pura; ele é produto da ação solidária de ambos (por isso as necessárias abstrações empíricas e reflexionantes). É preciso levar em conta a experiência com os objetos para reti rar deles as suas características particulares; essa experiência, porém, não é suficiente, porque a realidade objetiva do mundo não é possível de ser apreendida sem que seja inserida em sistemas de relações. A realidade imediata que aparece aos sentidos é somente fenomênica e egocêntrica. Somente é possível alcançar a objetividade da realidade exterior pela mediação dos sistemas de relação e, isso, desde os ní
Capítulo V I • Contribu ições da Psicolog ia e Epistem olog ia Genéticas par a a Educação I 16b
A realidade exterior é construída por ser resultado da abstração progressiva das propriedades inerentes dos objetos, enquanto inseri dos em sistemas de relações. Esses sistemas podem ser desde os mais primitivos até os mais objetivos e científicos, dos mais centrados na aparência fenomênica dos objetos e na ação imediata do sujeito até os mais profundos e desligados da subjetividade individual e do grupo. Assim, por exemplo, a noção primitiva de substância é aquela que se encontra atrelada à ação de reencontrar perceptivamente os elemen tos de um objeto, de tal maneira que se a forma e o estado da matéria mudarem radicalmente o sujeito não acreditará mais na conservação da sua substância. Quando da dissolução de torrões de açúcar num copo de água, a criança acredita no aniquilamento total dessa subs tância, apesar de constatar a permanência do nível da água, do peso e mesmo do seu sabor. Embora a criança lembre perfeitamente os esta dos pelos quais passou a transformação dessa matéria, ela não conse gue compô-los num sistema coerente que permita prever a conserva ção da quantidade total dos seus elementos ou formular a hipótese da conservação da unidade mínima de matéria (condição da origem do atomismo). No que se refere às experiências da mudança da forma de uma bolinha de barro, a criança, da mesma maneira, acredita na alte ração da sua substância, do seu peso e do seu volume. Apesar de lem brar os estados pelos quais passa a transformação, ela não consegue reconstituí-los e compô-los num sistema de relações e compreender, dessa maneira, a conservação da substância. O peso primitivo é, igualmente, uma noção atrelada à ação de so pesar, de tal modo que o peso dos corpos é avaliado em função daquilo que se pode medir com as mãos e com o corpo. A criança, apesar de observar e constatar que a matéria dissolvida pesa igual antes e de pois da sua transformação, pensa que o peso inicial não é o mesmo após a sua dissolução. Mesmo no nível em que a criança consegue pen sar a conservação da substância, ela tem a impressão de que o peso diminui até o seu aniquilamento total, pois não consegue imaginar que uma matéria dissolvida e cujos grãos se tornam muito pequenos e invisíveis poderia ainda continuar pesando. Esses grãos diminutos já não são possíveis de serem sopesados com as próprias mãos! O que acontece em relação ao peso acontece também em relação à conservação do volume. A diferença agora é de organizar um novo conteúdo, o qual tem a ver com o espaço ocupado pelos corpos em estado de compressão e de descompressão. São os fatores do Icnomenismo e egocentrismo que impedem novamente a composição opera-
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Intmduoio « Psicologia da Educação
(ói ia, assim como a fraqueza dessa composição impede o afastamento dessas idéias primitivas. O fenômeno físico da transmissão mediata de movimento, para uma criança pequena, significa uma ação imediata de um agente so bre o paciente. Essa noção, central na teoria da causalidade, é inter pretada pela criança em função da ação dela sobre os objetos e não como uma relação entre objetos considerados como externos. Desse modo, para a criança pequena, não é possível pensar transmissão de força através de objetos imóveis, pois todo movimento de um corpo é causado pela ação exterior e imediata de outro objeto. O mesmo acontece com a noção de tempo, que se encontra redu zida, nos estágios primitivos, ao movimento do próprio corpo. Nesse caso, não há um tempo homogêneo que consiga inserir o próprio movimento e o dos objetos exteriores. Em síntese, o que se pode destacar desses diferentes estudos é que, nos níveis primitivos da causalidade e do conhecimento físico, o sujeito abstrai certos caracteres dos objetos sem inseri-los em siste mas de relações, pois eles dizem respeito às atividades particulares e isoladas do sujeito, como reencontrar objetos percebidos, sopesar, preencher os espaços vazios, impulsionar imediatamente os objetos, conceber a sucessão e duração dos corpos em função do espaço per corrido e do esforço realizado etc. Nas suas formas acabadas o conhecimento físico apresenta os traços de uma verdadeira composição lógico-matemática, pois as ações particulares se encontram coordenadas operatoriamente. O aca bamento da noção de conservação da substância, que se realiza na criança por volta dos sete/oito anos, ocorre quando ela percebe que a quantidade de elementos que compõem a matéria não se altera apesar das transformações na sua forma e no seu estado físico. Diante da dissolução do açúcar na água, por exemplo, a criança tem certeza de que todos os grãos que faziam parte do torrão inicial continuam os mesmos. Essa certeza a priori é resultado de uma composição operatória (reversível) de deslocamentos e fracionamentos físicos (espacial e temporalmente inseridos) sobre as transformações da matéria. Essa forma de composição, sem ser uma pura forma lógico-matemática, é uma operação mental que considera transformações reais, nas quais a matéria em questão se parte e desloca sucessivamente e, por isso, al cança a conservação do todo inicial: a somatória dos elementos assim iracionados e deslocados pelo efeito da propriedade da água é igual
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aos elementos do estado inicial da matéria. É claro que antes do aca bamento dessa noção a criança inicia afirmando a conservação da substância de uma forma intuitiva, pois o apoio da sua afirmação é ainda um dado empírico e não uma composição operatória. Assim, sabe que alguma coisa se conserva, mas não se encontra convencida de que o todo inicial permanece inalterado, pois o fundamento da sua certeza ainda não é um sistema de operações físicas. A conservação do peso segue um caminho análogo ao da subs tância ao exigir ações de fracionamentos e deslocamentos, mas, coisa surpreendente, a sua construção operatória se inicia somente quando a noção de substância é acabada, a partir de uma forma fenomenista e egocêntrica. Piaget explica que isso acontece devido ao fato de que a ideia inicial de peso se encontra atrelada à ação de sopesar, e essa ideia é tão forte que dificulta o triunfo da forma operatória de pensar. A transmissão mediata de movimento passa por um processo evolutivo análogo ao da conservação da matéria. No seu começo essa noção se reduz a uma transmissão imediata, de tal modo que a ação de um agente A sobre um paciente B por intermédio de um agente C, para a criança pequena, significa uma ação direta de A sobre C. Mes mo quando o movimento do agente intermediário é anulado a criança percebe movimentos de translação de A sobre C. Essa forma de ação a distância é chamada viagem imaginária. Há uma pequena evolução, quando o movimento de B é interpretado como resultado de uma su cessão de transmissões imediatas. Portanto, a noção da transmissão mediata, no sentido do impulso que atravessa os objetos intermediá rios, encontra-se ausente nos níveis iniciais e a sua construção é pos sível somente quando as ações entre os objetos são compostas de uma maneira operatória. Essa composição apresenta uma particularidade que é necessário frisar: do resultado da ação de A sobre C o sujeito deduz a ação de A sobre B e de B sobre C, mesmo que os objetos intermediários permaneçam imóveis. Trata-se aqui de uma transitividade física e não simplesmente lógico-matemática, pois o sujeito é obrigado a reconstituir os estados anteriores da transformação e da conservação da força inicial. Portanto, nesse caso, as operações estão submetidas às condições espaço-temporais do mundo real e não são simplesmente coordenações formais. O estudo da noção temporal é mais ilustrativo da condição espaço-temporal das operações físicas (que são mentais). Essa noção, se gundo a física clássica, é resultado de uma intuição primária, que jun-
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Io com a noção de espaço constitui a noção de velocidade. A pesquisa psicogenética, à semelhança da teoria da relatividade, revela que a noção de tempo é aquela que é derivada a partir da noção primitiva de velocidade e a partir da sua diferenciação da noção espacial. As sim, num primeiro momento, para a criança, o tempo primitivo está ligado ao ritmo dos seus próprios movimentos, isto é, das sucessões e durações das suas próprias ações. Um progresso inicial acontece quan do a velocidade e o tempo são avaliados em termos de ultrapassagem dos pontos de chegada. Progressivamente, os acontecimentos que duram e se sucedem se ordenam de maneira operatória até formar um tempo homogêneo. O que é importante destacar do processo construtivo do tempo homogêneo é o fato de que ele não é resultado da simples aplicação de uma forma lógico-matemática à sucessão dos acontecimentos, mas sim da organização progressiva de uma dimensão do mundo exterior, qual seja, o ritmo ou velocidade do movimento dos corpos, inicial mente atrelado ao movimento do próprio corpo (ritmo das ações exer cido sobre os objetos), para logo se libertar e objetivar-se em razão da sua composição operatória. O tempo homogêneo é, portanto, resulta do de uma composição física de natureza operatória. Assim, o estudo psicogenético das noções físicas mostra a ne cessidade de afastar duas hipóteses tradicionalmente aceitas: a pri meira consiste em considerar as operações lógico-aritméticas como precedendo as operações físicas e imaginá-las como uma forma de terminando seu conteúdo; a segunda considera as construções lógico-aritméticas a partir das construções físicas, as quais conduziríam a supervalorizar o conteúdo experimental. A primeira hipótese mostra-se aparentemente mais verossímil. Parece que seria preciso começar por saber seriar pesos e concluir com o peso A = o peso A” se A = A’ e A’ = A”, para poder em segui da construir as invariantes de peso da bolinha transformada em salsi cha ou do açúcar dissolvido na água transparente. Ora, as pesquisas sobre as noções de conservação física (substância, peso e volume), relacionadas às composições formais (lógico-aritméticas) sobre essas qualidades, mostram que nada disso acontece: ...nem a lógica das classes de Aristóteles nem mesmo a das relações de Russel poderíam impunemente pretender pas sar à frente do trabalho dos Galileus ou dos Lavoisiers, pois
Capítulo V I • Contribuições da Psicologia e Epistemolo gia Genéticas para a Educuçao I W»V
não é possível constituir uma lógica nem uma aritmética do peso antes de ele [o sujeito] possuir a física. (1975, p. 297) Os dados psicogenéticos mostram, com toda evidência, que as construções lógico-aritméticas e as construções físicas são paralelas e sincronizam-se na medida em que se generalizam os três tipos de objetos analisados (substância, peso e volume), sem que as primeiras precedam as segundas. Esses dados mostram também que à ausência de invariantes físicas corresponde a ausência de invariantes operatórias de ordem lógica, isto é, enquanto a criança não considera o peso de um objeto como uma invariante física, ela não consegue compor nem lógica nem aritmeticamente as equivalências de peso. A segunda hipótese também não seria aceitável, pois não somente a indução experimental mas ainda a própria leitura da experiência constituem composições. A experiência real, contrária à experiência imediata, constitui uma construção, do mesmo modo que o sistema de relacionamento operatório é oposto ao egocentrismo. Para a terceira interpretação, que é a de Piaget, as operações lógico-matemáticas e as operações físicas são solidárias num desenvol vimento comum. Mas qual a natureza dessa solidariedade? E neces sário chegar a uma invariante física para raciocinar corretamente so bre a noção correspondente ou constituir invariantes lógicas para po der construir os sistemas físicos que lhes correspondem? Para Piaget, colocado dessa maneira, o problema seria bem artificial, porque é evidente que existem relações lógico-aritméticas, isto é, extemporâ neas, em toda construção física, e relações espaço-temporais e, por tanto, físicas, em toda construção lógica (reuniões, seriações etc.), mas das quais se pode fazer legitimamente abstração. Antes dos seis ou sete anos a criança só representa os números como figuras e os seres lógicos como objetos complexos inseridos em coleções. E apenas no momento em que ultrapassa esse nível in tuitivo, para conceber as operações reversíveis, que o sujeito começa a distinguir as operações físicas e as operações lógico-matemáticas: elas constituem, em seu mecanismo formal, exatamente as mesmas transformações, mas as primeiras se aplicam ao objeto como tal e às suas partes ou às suas relações espaço-temporais internas, e as segun das, às coleções dos objetos (classes), às relações entre objetos con cebidos como elementos de classes ou entre classes (relações) ou às duas ao mesmo tempo (números). Tal é a diferença entre os dois tipos
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tle operações. Portanto, não é de surpreender que seus grupamentos qualitativos ou intensivos e suas quantificações numéricas ou métricas sejam sempre sincrônicos para as mesmas realidades (substância, peso ou volume). Mas, se as operações físicas constituem uma composição do mundo exterior, o problema imediato é se a realidade a isso se presta sem nada acrescentar. Como temos visto em parágrafos anteriores, o desenvolvimento das noções físicas denuncia as resistências que os objetos impõem aos sujeitos. Daí as particularidades e a ausência de linearidade do desenvolvimento e a aquisição do conhecimento físico. Daí também a necessidade de se realizar pesquisas experimentais sobre as particularidades do desenvolvimento das diferentes noções do mundo natural. No que se refere às implicações das pesquisas psicogenéticas do conhecimento físico para a educação, podemos considerar algumas. Em primeiro lugar, os fatos psicogenéticos evidenciam a necessidade urgente de abolir, no campo educacional, as posturas reducionistas em relação ao conteúdo (conteudismo) e em relação à forma (formalismo). É preciso que o educador conheça tanto o conteúdo acabado quanto os processos e mecanismos pelos quais esse conteúdo é construído. Somente esses conhecimentos podem impedir, sobretudo no ensino das ciências da natureza, que a ação pedagógica continue se reduzindo à transmissão de conteúdos acabados, sem permitir ao aluno a necessária problematização dos fenômenos e a explicação espontânea dos dados constatados. Mesmo quando o currículo escolar demanda atividades de observação da realidade natural e observações de laboratório, não é mais possível (mesmo com a ajuda de com putadores) realizar experiências fora das atividades de problematização, de interpretação e de controle de dados por parte dos alunos. Noutras palavras, não é mais possível formar o espírito inteligente fora da análise e da pesquisa atenta da realidade com a qual o sujeito convive e experimenta, assim como, reciprocamente, não é possível apreender essa realidade independentemente das tomadas de consciência progressiva que envolvem necessariamente a construção do raciocínio operatório. Nesse sentido, o núcleo central da ação educativa deverá resgatar a pesquisa científica da caricatura a que foi submetida no ensino fundamental. Sobre esse assunto é importante resgatar as colocações de Piaget (1998, p. 179) sobre o ensino elementar das ciências naturais. Para ele constitui um imenso progresso a substituição do ensino verbal e
Capítulo V I • Contribuições da Psicologia e Epistemologia Genéticas para a Educaçao I 1/1
da leitura dos manuais por urna série de constatações diretas e de experiências propriamente ditas. Porém, no próprio terreno da experi mentação concreta, ainda existem duas maneiras de conceber a rela ção do professor com a criança e desta com os objetos sobre os quais incide sua ação. Uma é preparar tudo, de tal modo que a experiência consista numa espécie de leitura compulsória e totalmente regulada de antemão. A outra é provocar no aluno uma invenção das próprias experiências, limitando-o a fazer com que tome plena consciência dos problemas, que em parte ele mesmo já se coloca, e a ativar a desco berta de novos problemas, até fazer dele um experimentador ativo que procura e acha soluções, por meio de inúmeras tentativas talvez, mas por seus próprios meios intelectuais. O método de pesquisa no campo das ciências da natureza exige substituir a simples leitura dos fatos, enquanto dados externos, pela organização espontânea das rela ções e pela própria construção do processo indutivo (que não deixa de ser construtivo). Em segundo lugar, o ensino de qualquer dos conteúdos da reali dade física exige um conhecimento prévio, por parte do educador, das particularidades do percurso que seguem o desenvolvimento e o pro cesso de aquisição de tal ou qual conteúdo. Sem uma referência dessa natureza é artificial e carente de sentido possibilitar problematizações e a aquisição verdadeira de alguma noção científica. E imprescindí vel que o educador que lida com conteúdos científicos conheça as noções espontâneas (no sentido de serem independentes do ensino escolar), específicas e necessárias à aquisição de determinado con teúdo escolar sobre o real. Por exemplo, como ensinar as noções de combinação química de uma substância qualquer se a criança ou o adolescente desconhece a noção de conservação elementar da maté ria, de peso e de volume? Como introduzi-lo no mundo da combina ção das partículas mínimas de matéria se nem sequer a noção mais primária de átomo se encontra constituída? Sabemos hoje que os pré-socráticos somente conseguiram formular a ideia de átomo quando pensaram a composição da matéria de uma forma operatória, ideia que foi reiniciada por Lavoisier depois de mais de 20 séculos. Do mesmo modo, podemos nos perguntar como seria possível o adoles cente compreender a noção relativa de tempo se nem sequer a noção homogênea foi ainda construída? Como entender a lei dos pesos em equilíbrio sobre uma balança se a noção elementar de força ainda não foi descoberta? Assim, os fatos da pesquisa psicogenética sobre o co nhecimento físico colocam em evidência que as noções físicas ele-
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à
Psicologia da Educação
mcnlares, e não simplesmente o domínio do raciocínio lógico e malemático geral, constituem a subestrutura necessária para a compreen são de todo ensino da Física no ensino médio. Em terceiro lugar, se a pesquisa dos fenômenos físicos exige um trabalho de busca, controle e inteipretação por parte dos indivíduos, esse trabalho não exclui, segundo Piaget, a discussão e a colaboração entre os pares e, portanto, uma vida social organizada entre os própri os alunos: ...a experimentação se completa pela discussão conjunta, a redação ou o desenho nos cadernos de observação convoca a colaboração dos pesquisadores, em suma, o exercício das ope rações constitutivas do saber supõe essa cooperação intelec tual que é o meio necessário para a organização das próprias operações individuais. (1998, p. 180)
E justamente nesse processo que a participação do educador se revitaliza e se torna insubstituível, pois, como o próprio autor diz, de pois de ter sido instigador junto às problematizações e descobertas de cada criança, tornou-se animador das discussões do grupo de “pesqui sadores”. Em quarto lugar, os processos e mecanismos revelados na cons trução do conhecimento físico podem contribuir enorme e imprevisivelmente para melhor compreensão dos processos e mecanismos dos conhecimentos sociais e culturais. Se estes últimos dizem respeito às regras e normas coletivas de ação, construídas social e historicamen te, o processo de aquisição por parte do indivíduo seria diametralmente oposto àquele do conhecimento físico? Será que os conhecimentos sociais e culturais, por terem particularidades específicas (regras e acordos coletivos), não exigem na sua aquisição composições pro gressivas sobre os elementos abstraídos da realidade exterior, como os modelos físicos?
V I . 4 P e s q u i s a s s o b r e o s C o n h e c ime n t o s S o c i a i s e C u l t u r a is e suas
I mp l ic a ç õ e s Ed u c a c i o n a i s
Apesar das diferenças que separam os conhecimentos físicos dos sociais e culturais, estes últimos se desenvolvem e são adquiridos de
Capítulo V I • Contribuições da Psicologia e Epistemologia Gonóticas para a Educaçuo I 173
forma análoga aos primeiros. Essa analogia obedece ao fato de que tal como o conhecimento físico, o conhecimento social e cultural exige abstrações empíricas, no sentido de extrair caracteres e particularida des do mundo exterior, e inserção desses dados em sistema de rela ções ou composições lógico-matemáticas. Deve-se igualmente ao fato de que as composições sucessivas, efetuadas pelo sujeito, realizam-se numa sequência de complexidade e objetividade progressiva. As pesquisas de Emília Ferreiro sobre a psicogênese da escrita obedecem a essa forma de evolução e refletem de forma original, no campo dos conteúdos culturais, as principais hipóteses da teoria piagetiana sobre a construtividade do mundo real. As pesquisas de Ferreiro, de enorme importância para os desafios da alfabetização, so bretudo nos países do terceiro mundo, tratam de revelar os processos e os estados pelos quais o sujeito adquire conceitualmente um sistema de representação sobre a própria fala. Assim como a humanidade percor reu, progressivamente, milênios para organizar um sistema de repre sentação conceptual sobre as regras da escrita, o indivíduo também organiza progressivamente sistemas de representação conceptual para conseguir escrever e ler consciente e competentemente. Como no caso do conhecimento físico, a escrita apresenta-se ao sujeito, do ponto de vista ontológico, como um sistema exterior e acabado, com as suas leis e seus mecanismos internos. O problema epistemológico e genético aparece quando surgem as seguintes per guntas: de que modo o indivíduo interpreta esses signos e sinais já organizados e quais os processos e estados que o indivíduo constrói para alcançá-los? Esse indivíduo começa interpretando de um modo objetivo e acabado ou inicia a sua interpretação de um modo fenomenista e egocêntrico, como no caso dos conhecimentos físicos observa dos no item anterior? A interpretação progride por meio dos sistemas de interpretação cada vez mais complexos e acabados? E justamente a essas interrogações que as pesquisas psicogenéticas de Ferreiro res pondem de forma original e surpreendente. No campo da pesquisa do conhecimento social e cultural a pes quisa psicogenética se complementa com a pesquisa sociogenética. No desenvolvimento da escrita, num trabalho anterior (Dongo Montoya, 1996), nós mesmos verificamos a existência de estados e pro cessos análogos na psicogênese e no desenvolvimento histórico da escrita. Ambas as formas de pesquisas revelam um progresso lento c sucessivo, que vai desde as formas mais elementares (com as caracte
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rísticas de fenomenismo e egocentrismo) até as formas mais objetivas de representação conceptual (escrita alfabética). Piaget, a propósito das suas primeiras pesquisas sobre a causali dade e representação do mundo no sujeito, descreve e analisa o de senvolvimento de algumas noções sociais e culturais na criança. Es sas pesquisas revelam a complexidade construtiva das noções do mundo real (tanto do mundo físico como do mundo cultural). Dentro das pesquisas atuais, realizadas no campo social e cultural, podemos destacar aquelas efetuadas por Juan Delval (1989). Essas pesquisas revelam, a nosso ver, aquilo que afirmamos a propósito das pesquisas de Ferreiro: a apropriação progressiva de conteúdos sociais pela crian ça passa pela construção progressiva e original de formas de repre sentação e por processos comuns ao conhecimento físico (abstração empírica e abstração reflexionante). A pesquisa realizada por Sandra Regina Ferreira de Oliveira (2000), nossa co-orientanda, sobre o tempo histórico na criança, mos tra como se desenvolvem noções de passado e idéias espontâneas re lativas à história da civilização. E importante destacar nessa pesquisa o fato de que o tempo histórico na criança, do mesmo modo que o tempo físico, é heterogêneo, pois se encontra centrado na própria ação e na aparência fenomênica da sucessão e da duração dos aconteci mentos. A diferença entre ambos consiste no fato de que os conteú dos da representação histórica são acontecimentos sociais vividos e transmitidos pela escola e pelas gerações mais velhas. Para a criança, cada um dos acontecimentos representados tem seu próprio tempo e não um tempo comum e homogêneo que os possa inserir. A história se reduz, assim, a fatos e acontecimentos simplesmente justapostos. Quais as implicações educacionais dessas pesquisas? Em primei ro lugar, os fatos importantes da pesquisa psicogenética mostram a existência de uma construção progressiva de modelos originais de interpretação por parte da criança e ao mesmo tempo processos e mecanismos de construtividade comuns aos objetos do inundo real. Isso demonstra que, do ponto de vista pedagógico, tanto o estado al cançado como o processo de formação são muito importantes para assegurar a aprendizagem dos conteúdos. Desse modo, a ação peda gógica não poderia contentar-se com a transmissão de conteúdos aca bados, mas sim, e sobretudo, com a forma de alcançá-los. Assim como no caso dos conhecimentos físicos, no caso dos conteúdos sociais e culturais se faz necessário o questionamento da realidade pesquisada para que a criança tenha a oportunidade de criar hipóteses e modelos
Capítulo V I • Contribuições da Psicologia e Epistemolo gia Genéticas para n Educaçcio | I / S
interpretativos originais, de verificá-los e controlar os fatos e aconte cimentos postulados. Faz-se necessária igualmente a discussão e eo laboração com os colegas “pesquisadores”. O exposto exige do educador constituir-se num pesquisador que não domine apenas o conteúdo acabado a ser ensinado, mas também, e sobretudo, os processos pelos quais esse conteúdo se constitui progres sivamente no indivíduo e na história da ciência a ser ensinada. Esses conhecimentos é que deveríam ser os seus referenciais permanentes. Do contrário, como se pode contribuir para a superação das hipóteses elementares, para a reelaboração dos conhecimentos anteriores e para alcançar desse modo conhecimentos mais objetivos e mais acabados? Em segundo lugar, a organização mais objetiva e sistemática dos dados segue um percurso de acordo com uma organização de comple xidade progressiva e operatória. Esses modos de organização conforme a particularidade de cada área e setor do conhecimento seguem geral mente um percurso original e nem sempre refletem o caminho percor rido pela ciência em questão. Disso advêm a necessidade de realizar novas pesquisas psicogenéticas e sociogenéticas para descobrir os mo delos sucessivos construídos pela criança e pela ciência, que possam servir de referência para a reflexão e prática educacional.
VI.5
Pesquisas e suas
s obr e o
D e s en v o l
v ime n t o
M
oral
I mp l ic a ç õ e s Ed u c a c i o n a i s
As pesquisas filosóficas e psicológicas sobre a moralidade são de longa data. Na obra de Piaget, apesar de poucos trabalhos dedica dos a esse assunto, há uma novidade no seu modo de tratamento. Essa novidade se materializa pelo tratamento científico outorgado a esse tema, fundamentando-o em fatos constatáveis com suas leis e com seus processos, e por abordá-lo como um processo de construção real por parte do indivíduo. Não insistiremos sobre o primeiro ponto neste trabalho. E sobre o segundo ponto que gostaríamos de nos deter, isto é, sobre a particu laridade da construção moral. Em primeiro lugar, o fato que percorre toda a obra psicogenética de Piaget é o de que o esquematismo da ação prática ou sensório-motora é condição do desenvolvimento da representação e do pensa
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tcligência scnsório-motora, não deixa de obedecer às leis do esquematismo anterior e constituir a sua interiorização e tomada de cons ciência. No desenvolvimento da moralidade infantil, Piaget mostra também a continuidade e descontinuidade entre a regra motora e a regra representada. A consciência moral na criança é um prolonga mento, com reconstrução, das ações práticas morais, do mesmo modo que o processo de interiorização ou conceptualização das estruturas e noções intelectuais. Em segundo lugar, a grande descoberta da Psicologia Genética é ter invertido o tratamento clássico dado à moralidade humana. Embo ra exista, nos estudos clássicos da moral, consenso sobre o fato de o respeito constituir o sentimento fundamental que possibilita a aquisi ção das noções morais, as formas de tratamento dessa relação é que podem ser diametralmente opostas. Assim, segundo Piaget (1998), enquanto Kant vê no respeito um resultado da lei e Durkheim um reflexo da sociedade, Bovet mostra, ao contrário, que o respeito pelas pessoas constitui um fato primário e que mesmo a lei dele deriva. Para Bovet (1912), duas condições são necessárias e suficientes para que se desenvolva a consciência da obrigação: em primeiro lugar, que um indivíduo dê ordens a outro e, em segundo, que esse outro respei te aquele de quem emanam as ordens. Noutras palavras, é suficiente que a criança respeite seus pais ou professores para que as ordens pres critas por eles sejam aceitas por ela e por isso se tornem obrigatórias. Esse resultado, para Piaget, é essencial para a educação moral, posto que leva logo de início a situar as relações de indivíduo a indivíduo acima de qualquer ensinamento oral e teórico. Por isso é necessário duvidar da eficácia e possibilidades da educação moral que se apoia nas lições morais e nos belos discursos, pois as concepções de bem e de mal serão abstraídas das relações sociais efetivamente vividas. Entretanto, se esse modo de colocar a relação entre o respeito e a lei moral é novo, é preciso ainda diferenciar as modalidades que assumem o respeito na relação entre os indivíduos. Assim, as pesqui sas de Piaget distinguem dois tipos de respeito. Por um lado, há o respeito unilateral que implica a desigualdade entre aquele que res peita e aquele que é respeitado; é o respeito do pequeno pelo grande, da criança pelo adulto, do caçula pelo irmão mais velho. Esse respei to, que traz consigo uma coação inevitável do superior sobre o infe rior, é característico daquela relação social que Piaget chama de rela ção de coação. Por outro lado, existe o respeito mútuo, pois os indiví duos que estão em contato se consideram iguais e se respeitam reci procamente. Esse respeito não implica nenhuma coação e caracteriza
Capítulo V I • Contrib uições da Psicolo gia e Epis temolo gia Genétic as para a Educuçno | I / /
um segundo tipo de relação social que Piaget chama de relação de cooperação. Essa relação constitui a essência das relações entre crian ças ou entre adolescentes num jogo regulamentado, numa organiza ção de autogoverno ou numa discussão sincera e bem conduzida. É importante acrescentar que, para Piaget, esses dois tipos de respeito explicam a existência de duas morais. O respeito unilateral fazendo par com a relação de coação moral conduz ao sentimento de dever. Mas o dever primitivo, assim resultante da pressão do adulto sobre a criança, permanece essencialmente heterônomo. Ao contrá rio, a moral resultante do respeito mútuo e das relações de coopera ção pode caracterizar-se por um sentimento diferente, o sentimento do bem, mais interior à consciência, cujo ideal de reciprocidade tende a tornar-se inteiramente autônomo. Os resultados das pesquisas psicogenéticas sobre a moral mos tram, então, que a melhor forma das instituições educacionais contri buírem na formação de indivíduos autônomos é pela educação moral ativa, isto é, pelo favorecimento de experiências morais não apenas de coação - que são inevitáveis nas práticas morais autoritárias - , mas também, e sobretudo, de cooperação. E necessário que, para os partici pantes da escola ativa, a educação moral não constitua uma matéria especial de ensino, mas um aspecto particular da totalidade do sistema: ...a educação forma um todo, e a atividade que a criança executa com relação a cada uma das disciplinas escolares su põe um esforço de caráter e um conjunto de condutas morais, assim como supõe uma certa tensão da inteligência e mobiliza ção de interesses. Esteja ocupada em analisar regras da gramá tica, em resolver um problema de matemática ou em documen tar um ponto da história, a criança que trabalha “ativamente” é obrigada, não só diante de si como diante do grupo social que é a classe ou a “equipe” da qual faz parte, a comportar-se de modo muito diferente do aluno tradicional que escuta uma li ção ou realiza um “dever” escolar. (Piaget, 1998, p. 43)
E nesse sentido que, a nosso ver, dever-se-iam pensar as ques tões atualmente faladas em tennos de “educação transversal”. Por outro lado, um procedimento ativo especificamente moral tem a ver com as relações de autogoverno. Para Piaget ( 1998, p. 44-5), para aprender física ou gramática, não há método melhor que des-
I /8 • Intiod uçao à Psicologia da Educação
cobrir por si, por meio da experiência ou análise de textos, as leis da matéria ou as regras da linguagem; do mesmo modo, para adquirir o sentido da disciplina, da solidariedade e da responsabilidade, a escola ‘‘ativa” deve esforçar-se em colocar a criança numa situação tal em que ela experimente diretamente essas realidades espirituais e descu bra por si mesma, pouco a pouco, suas leis constitutivas. Ora, acres centa esse autor, posto que a classe forma uma sociedade real, uma associação que repousa sobre o trabalho em comum de seus mem bros, é natural confiar às próprias crianças a organização dessa socie dade. Elaborando elas mesmas as leis que regulamentarão a discipli na escolar, elegendo elas mesmas o governo que virá a se encarregar de tais leis e constituindo o poder judiciário que terá por função a repressão dos delitos, as crianças adquirirão a possibilidade de apren der, pela experiência, o que é a obediência à regra, a adesão ao grupo social e a responsabilidade individual. Em terceiro lugar, no desenvolvimento do julgamento moral as coordenações que o sujeito estabelece não são de caráter geral, como no caso das estruturas lógico-matemáticas, mas, pelo contrário, refe ridas a regras produzidas e vividas em contextos espaço-temporais particulares. Por exemplo, os jogos de regras, como o das bolinhas, diferem, sobre certos aspectos, de um bairro a outro, numa mesma cidade, de uma escola para outra. Um estudante de 20 anos pode afir mar que em sua cidadezinha, atualmente, não se joga mais como em seu tempo. As regras morais que a criança aprende a respeitar lhe são transmitidas pela maioria dos adultos, isto é, ela as recebe já elabora das pela sucessão ininterrupta das gerações adultas anteriores. Isso explica, segundo Piaget, a extrema dificuldade para distinguir o que provém do conteúdo das regras e o que provém do respeito da criança pelos seus próprios pais. A regra moral não é uma simples regularidade, mas é, sobretu do, uma obrigação moral. Para Piaget (1994), desde que um ritual é imposto a uma criança pelos adultos ou pelos mais velhos respeitados por ela (Bovet), ou desde que um ritual resulte da colaboração de duas crianças (Piaget), ele adquire para a consciência do indivíduo um ca ráter novo que, precisamente, é aquele da regra. Esse caráter pode variar segundo o tipo de respeito que predomina (respeito pelo mais velho ou respeito mútuo), mas, em qualquer caso, intervém um ele mento de submissão que não estava incluído no simples ritual. A obrigação moral, portanto, exige tanto interiorização de regras exteriores quanto composições operatórias. E essa condição que per
Capítulo V I • Contribuições da Psicologia e Episteniologia Genéticos piii u u Educaçno | I 79
mite afirmar que o desenvolvimento da moralidade obedece a proces sos análogos ao desenvolvimento do conhecimento físico. É verdade que as pesquisas sobre a inteligência são mais fáceis que as pesquisas sobre a moral: mas isso só é verdadeiro quanto ao funcionamento do pensamento e não quanto ao con teúdo. Quando somos obrigados, para estudar o conteúdo, como o fizemos no decorrer de trabalhos anteriores, a interro gar a criança a respeito das suas próprias crenças, o problema é o mesmo. (Piaget, 1994, p. 95)
Finalmente, é necessário dizer que as descobertas de Piaget sobre o desenvolvimento da moralidade acarretam implicações enormes não somente na ação pedagógica escolar, mas também na leitura dos rumos civilizatórios da própria sociedade. E nesse sentido que concordamos com as afirmações de Yves de la Taille quando, no prefácio à edição brasileira do livro de Piaget O juízo moral na criança (1994), diz: Porém, é preciso tomar cuidado com as pretensões da ação educativa escolar: os conceitos de coação e cooperação são, para Piaget, conceitos que permitem a leitura de uma so ciedade dada. Se uma cultura for essencialmente coercitiva, valorizando as posturas autoritárias e o respeito unilateral, di ficilmente uma ação pedagógica, por si só, levará à autonomia dos alunos. Ajudará, sem dúvida, mas terá alcance limitado. Acreditar o contrário é pensar que uma criança é puro produto dos métodos e objetivos de uma instituição educacional. Não há dúvidas de que a teoria de Piaget permite-nos pensar a edu cação. Mas ela permite sobretudo pensar a cultura e, dentro dela, a educação, (p. 19-20)
V I . 6 P e s q u i s a s s o b r e a s O r ig e n s e D e s en v o l v ime n t o da
L i n g u a g e m e s u a s I mp l ic a ç õ e s Ed u c a c i o n a i s
A novidade dos estudos de Piaget sobre as origens e desenvolvi
mento da linguagem, como não poderia ser de outro modo, é decor rência das suas pesquisas sobre as origens do conhecimento humano.
I HO • Intro duç ão ò Psico logi a da Educação
A originalidade da pesquisa piagetiana sobre a linguagem encontra-se relacionada às suas hipóteses sobre as origens do pensamen to humano. A grande tese científica de Piaget é que o pensamento humano é o prolongamento com reconstrução do esquematismo sensório-motor. Sem o entendimento dessa tese torna-se impossível en tender o pensamento desse autor. Essa tese quer dizer que durante os 18 primeiros meses de vida, antes da manifestação da linguagem ar ticulada, a criança constrói, progressivamente, por meio de seus mo vimentos e percepções, sistemas de esquemas análogos às futuras es truturas lógico-matemáticas. E segundo esses esquemas que a criança pequena consegue atribuir significados cada vez mais complexos e objetivos ao mundo exterior imediato. A permanência do objeto, o espaço e o tempo comum, assim como a causalidade objetiva, são resultados dessa construção inicial. Por outro lado, como resultado de todo esse processo construti vo, por volta dos 18 meses de vida, a criança consegue alcançar a capacidade de significar simbolicamente, isto é, de diferenciar signi ficados e significantes e, portanto, de adquirir uma linguagem articu lada: usar signos coletivos. Logo, na teoria científica piagetiana, a possibilidade do desen volvimento da linguagem supõe a possibilidade do desenvolvimento do próprio pensamento, de tal modo que em lugar de existir oposição ou determinação unilateral há uma solidariedade verdadeira. Infelizmente os trabalhos principais que mostram a pertinência dessas idéias não se encontram nos textos iniciais sobre o assunto, como o livro Pensamento e linguagem na criança (1923). São os tra balhos científicos das décadas de 30 e 40 do século XX que mostram, com fatos e argumentos mais consistentes, essas realidades. As obras como O nascimento da inteligência na criança (1936), A construção do real na criança (1937) e A form ação do símbolo na criança (1945) demonstram de maneira transparente essas teses. Infelizmente, é ne cessário dizer, muitos dos críticos de Piaget não tiveram acesso ou não outorgaram a importância devida a esses trabalhos científicos. Piaget trata de mostrar que a significação simbólica das crianças pequenas não é produto da associação entre um som e um objeto ex terior, mas sim dos esquemas sensório-motores previamente adquiri dos. A estrutura sintática e semântica das onomatopéias e das primei ras palavras reproduzidas do meio ambiente social diz respeito aos esquemas de ação práticos e do processo de interiorização deles. Por
Capítulo VI • Contrib uições da Psicologia e Epistemolo gia Genéticas para a Educação | 181
tanto, na medida em que esse esquematismo se desenvolve rumo às organizações pré-conceituais e conceituais, também a linguagem tem possibilidade de se desenvolver; reciprocamente, na medida em que a produção linguística, na sua estruturação semântica, sintática e foné tica, transforma-se e aprimora-se, o pensamento também se transfor ma, pois tem meios mais eficazes de se exprimir. Nesse sentido, o uso da narrativa, enquanto reconstituição das ações executadas e vividas por parte da criança, torna-se um instru mento poderoso para as ações educativas e reeducativas. Narrar não é fazer um simples discurso, mas uma organização dos esquemas em processo de conceptualização. A pesquisa de mestrado de Inaiara Rodrigues (2000), com crianças com problemas de aprendizagem es colar, mostra a veracidade dessa afirmação, pois prova por meio de um trabalho de intervenção que o uso da narrativa, que reconstitui a experiência vivida, consegue interferir positivamente na organização temporal do pensamento e, com isso, na melhor compreensão do mundo. As pesquisas de mestrado e doutorado de Rosimar Poker (1995, 2001), com crianças surdas, mostram igualmente a validade das teses de Piaget sobre a solidariedade entre o desenvolvimento da linguagem e do pensamento. As querelas entre os métodos orais e gestuais deixam de ter sentido visto que se restabelece a continuidade, com reconstrução, entre o esquematismo sensório-motor e o esque matismo conceptual, visto que se restabelece a solidariedade entre lin guagem e pensamento. Sem o movimento de significação outorgado pelos esquemas de ação do sujeito, toda ação educativa torna-se arti ficial. Pode-se transmitir o código, mas jamais o uso significativo e inteligente dele. A troca simbólica, no sentido de interações de verda deiras significações no plano da representação, é condição necessária tanto do avanço do discurso como do pensamento. Nossos próprios trabalhos de diagnóstico e reeducação, realizados na década de 80, com crianças faveladas, mostram também a pertinência das teses piagetianas e as suas novas aberturas de aplicação prática. As implicações da pesquisa das origens da linguagem e do pen samento na criança pequena no campo da clínica e da educação são portanto promissoras. Os trabalhos clínicos de novos profissionais fonoaudiólogos, assim como de educadores que lidam com as ques tões de défieits de linguagem, levando em conta as pesquisas piagetianas, estão ainda no começo. E claro que esses trabalhos prá ticos, sem descuidar da pesquisa científica, poderão enriquecer e de
IH7 • Inlrodu^uo à Psicologia da Educação
V I . 7 O u t r a s Pesquisas
Outros trabalhos de pesquisa no campo do desenvolvimento da arte, na perspectiva da Epistemologia Genética, são recentes e promis sores no meio brasileiro. Ao trabalho pioneiro de Roseli Breneli (1996) vem se somar a pesquisa de Roxana Guadalupe Herrera Álvarez (2000) sobre um nexo possível entre Escher, Piaget e Cortazar. Essa pesquisa trata de provar que a criação literária no adulto, apesar de possuir certas normas de organização própria, não deixa de ser um prolongamento do exercício lúdico e simbólico da criança e do adolescente. As pesquisas sobre o desenvolvimento do movimento corporal têm iniciado, no meio brasileiro, um trabalho que resgata as idéias de Piaget para o campo da Educação Física. Pesquisas atuais que se detêm no diagnóstico evolutivo das com petências sensório-motoras, simbólicas e conceptuais de crianças com as mais diferentes deficiências permitem visualizar novas possibili dades de contribuição da teoria piagetiana para as tarefas de educação e reeducação. Pesquisas de desenvolvimento moral com crianças com experiên cias de internamento institucional é outro campo em que as idéias piagetianas começam a se tornar importantes, sobretudo levando-se em conta os graves problemas de violência que afligem a sociedade brasileira. A pesquisa de Leonides da Silva Justiniano (2000), sobre juízo moral e violência, também contribui para a reflexão dessa pro blemática.
Ex er c íc i o s
1) Qual ou quais as diferenças entre a Epistemologia Genética e as epistemologias tradicionais? 2) Qual
ou quais as particularidades do conhecimento lógico e mate mático? Como a criança forma, por exemplo, a noção de número?
3)
De que modo os objetos participam da formação do conhecimento matemático? Exemplifique.
4)
Tendo em vista o conhecimento lógico-matemático, como se cons titui o conhecimento físico?
Capítulo V I • Contribu ições da Psicologia e Epistemo logia Genéticas para a Educaçào I 18 1
5)
De que modo os objetos participam da formação do conhecimenlo do mundo exterior (conhecimento físico e social)? Exemplifique.
6) De que modo o sujeito participa da formação do conhecimento do
mundo exterior (conhecimento físico e social)? Exemplifique. 7) O desenvolvimento e a aquisição da moralidade são análogos (não
idênticos) ao conhecimento do mundo exterior? Se a sua resposta for afirmativa, analise em que sentido isso ocorre.
R e f er ê n c i a s
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Outras Obras LDB Passo a Passo 3a Edição Atualizada Carlos da Fonseca Brandão 192 páginas Formato: 16 x 23 cm ISBN: 978-85-89311-39-7
Direito à Educação A LDB de A aZ Clóvis Roberto dos Santos 120 páginas Formato: 16 x 23 cm ISBN: 978-85-89311-55-7
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Ética, Moral r Compettncla
dou ProílMlonalt *
di llduí âilo
Outras Obras
Educação •-
Inclusiva
*
e
/M
Igualdade Social
Educação Física: Como Planejar as Aulas na Educação Básica Marta Scarpato (Org.) 184 páginas Formato: 16 x 23 cm ISBN: 978-85-89311-38-0
Ensino de Engenharia - Técnicas para Otimização das Aulas Marcos T. Masetto (Org.) 208 páginas Formato: 16 x 23 cm ISBN: 978-85-89311-44-1
Formação de Educadores a Distância e Integração de Mídias José Armando Valente e Maria Elizabeth B. de Almeida (Orgs.) 228 páginas Formato: 16 x 23 cm ISBN: 978-85-89311-42-7
Educação a Distância Via Internet José Armando Valente, Maria Elisabette B. B. Prado e Maria Elizabeth B. de Almeida (Orgs.) 204 páginas Formato: 16 x 23 cm ISBN: 978-85-89311-14-4
Tecnologias na Formação e na Gestão Escolar Maria Elizabeth B. de Almeida e Myrtes Alonso (Orgs.) 132 páginas Formato: 16 x 23 cm ISBN: 978-85-89311-41-0
Gestão Educacional e Tecnologia Alexandre Thomaz Vieira, Maria Elizabeth B. de Almeida e Myrtes Alonso (Orgs.) 164 páginas Formato: 16 x 23 cm ISBN: 978-85-89311-09-0
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Fundamentos da Tutoria em Educação a Distância Mathias Gonzalez 96 páginas Formato: 14 x 21 cm ISBN: 978-85-89311-21-2
Educação Inclusiva e Igualdade Social Priscila Augusta Lima 176 páginas Formato: 14 x 21 cm ISBN: 978-85-89311-32-8
WebQuest: Um Desafio para o Professor! Celina A. A. P. Abar e Lisbete Mad sen Barbosa 100 páginas Formato: 16 x 23 cm ISBN: 978-85-89311-54-0
ENSINO DE EnGEDHflRIR
Outras Obras
Manual o Metodologia
$ Pesquisa Cientifica
INCLUI Manual Artigos Científicos
Manual. Projetos ,kPesquisa Científica
Metodologia Científica Auro de Jesus Rodrigues 224 páginas Formato: 16 x 23 cm ISBN: 978-85-89311-30-4
Monografias Científicas - TCC Dissertação - Tese Clóvis R. dos Santos e Rogeria T. S. de Noronha 144 páginas Formato: 16 x 23 cm ISBN: 85-89311-20-1
Manual de Metodologia da Pesquisa Científica Hortência de Abreu Gonçalves 142 páginas Formato: 14 x 21 cm ISBN: 978-85-89311-28-1
Manual de M onografia, Dissertação e Tese 2a Edição Rev. e Atual. Hortência de Abreu Gonçalves 124 páginas Formato: 14 x 21 cm ISBN: 978-85-89311-45-8
Manual de Artigos Científicos Hortência de Abreu Gonçalves 90 páginas Formato: 14 x 21 cm ISBN: 978-85-89311-17-5
Manual de Projetos de Extensão Un iversitária Hortência de Abreu Gonçalves 116 páginas Formato: 14 x 21 cm ISBN: 978-85-89311-40-3
Manual de Projetos de Pesquisa Científica 2a Edição Rev. e Atual. Hortência de Abreu Gonçalves 72 páginas Formato: 14 x 21 cm ISBN: 978-85-89311-46-5
Manual de Resumos e Comunicações Científicas Hortência de Abreu Gonçalves 126 páginas Formato: 14 x 21 cm ISBN: 978-85-89311-25-0
Não Seja o Pato do Mercado F inanceiro Otto Nogami 128 páginas Formato: 16 x 23 cm ISBN: 85-89311-12-0
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MONOOKACIAS CIENTIFICAS
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Manual Monpgralla. Dissertaçüo
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Manual Resumos . Comunicnvôcs Cientificas
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Introdução à Sociologia da Cultura Alonso B. de Carvalho e Carlos da Fonseca Brandão (Orgs.) 172 páginas Formato: 16 x 23 cm ISBN: 85-89311-29-5
Introdução à
Sociologia da Cultura
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