UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS
FEMINA SILENCIATA A MULHER NA PERSPECTIVA DOS CLÉRIGOS MEDIEVAIS
Andreia de Almeida
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Nenhuma religião ou visão do mundo glorificou e honrou tanto a mulher como o cristianismo. Haering
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ÍNDICE
INTRODUÇÃO
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1. A Biologia Sexual na Idade Média
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2. A Difícil Arte de Amar nos Tempos Medievais
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2.1. Os Modelos de Masculinidade
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2.1.1. A Masculinidade entre o Clero
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2.1.2. A Masculinidade dos Cavaleiros
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2.1.3. A Virilidade das Classes Inferiores
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3. Clero Regular e Secular: Relações com o Feminino
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4. Os Modelos de Feminilidade preconizados pelo Clero
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4.1. Eva
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4.2. Maria
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4.3. Maria Madalena
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5. A Mulher sob Tutela: O Casamento
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CONCLUSÃO
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BIBLIOGRAFIA
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INTRODUÇÃO Estêvão de Fougères, ordenado bispo de Rennes, em 1168, dedicou parte da sua vida a escrever hagiografias. No entanto, o seu relato sobre a vida de Guilherme Firmat, merece-nos especial atenção. Estêvão descreve a vida deste eremita francês, canonizado pela Igreja Católica, relatando-nos um episódio durante o qual o santo é tentado pelo Demónio. Uma tarde, tentando alhear-se do mundo, Guilherme retirou-se para uma cabana, num recôndito bosque, na tentativa de reflectir sobre si próprio. Quando a noite caiu, Guilherme sentiu alguém bater à porta. O eremita correu a abri-la e, diante de si, apareceu uma jovem mulher que, assustada e faminta, lhe pediu abrigo. Guilherme acolheu-a e alimentou-a. Em troca, a mulher tentou seduzi-lo. O homem que habitava em si não conseguiu resistir! Satanás provocava-o com o desejo ardente, que o consumia como labaredas de um fogo incorpóreo. No entanto, num vislumbre de razão, fugindo à tentação que o corroía, Guilherme tirou um tição do lume que crepitava na lareira, e queimou a sua própria carne, perante o olhar incrédulo da mulher…
Esta narrativa do bispo de Rennes parece ser bastante explícita no que respeita à visão dos homens da Igreja face às mulheres. A mulher aparece como o instrumento de tentação, causa primeva e derradeira da decadência do Homem, o fruto do pecado. Ela é a raiz de todo mal, o símbolo de tudo aquilo a que estes homens tentam fugir. Para eles, todas elas são Eva, embora consigam encontrar modelos bíblicos alternativos, onde vão encaixar uma minoria de mulheres! Estes homens de Deus fogem do pecado da carne, da luxúria que os sobressalta, da sua própria natureza… Neste sentido, inundados pelo medo da tentação, estes clérigos vão desenvolver uma literatura misógina, praticamente a única que chegou até nós sobre as mulheres durante a Idade Média. A razão é óbvia: eles detêm o monopólio do saber e da escrita logo, da transmissão da informação!
É através das palavras inflamadas destes clérigos, proferidas durante a eucaristia, que a mentalidade dos cristãos medievais, dessa horda de gente simples que teme pelo fogo do inferno, que tem como objectivo único a salvação da sua alma, se vai formando. São estes eclesiásticos, pois, os verdadeiros opinion makers da época em questão, um
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tempo em que a comunicação se exercia de modo pessoal e directo. É, pois, também, nesse sentido, que vale a pena escutá-los. É meritório observar as suas palavras num período tão díspar do actual, no qual cabe ao Estado uma função de ordenação e de regulação das relações sociais e dos interesses individuais e colectivos. Todavia, durante a Idade Média, tal não acontecia assim. Longe da secularização, era à Igreja que cabia a regulamentação da vida em sociedade, era a ela que reis e imperadores deviam obediência. Segundo Santo Isidoro de Sevilha, o rei servia para fazer cumprir pela força o que os sacerdotes não conseguiam pela palavra. E esta noção de Braço Secular foi fulcral na teoria política medieval. Isto não significa um aumento do poder real, porque o monarca passa a ser necessário apenas com o propósito bélico, podendo a não consumação desta função ser argumento válido para o depor. É por este motivo que estes clérigos, mais do que liberdade de informação (liberdade que protege um todo constituído pelo direito a ser informado, a formar a opinião e a exprimi-la), possuem uma obrigação de transmitir a sua verdade para que todos possam conhecer o caminho de Deus. Todavia, não cabe ao homem actual fazer juízos de valor sobre estes tempos idos, nem sequer sobre estes clérigos. Tal incorre no perigo, tão assustador para qualquer historiador: o do anacronismo! É, na verdade, um erro observarmos os homens de ontem com os olhos de hoje! Nem poderemos, contudo, cair no erro de considerar os homens semelhantes, independentemente das épocas em que tenham vivido. Biologicamente tê-lo-ão sido! Todavia, as suas mentalidades terão sido moldadas de acordo com as circunstâncias, como um pedaço de barro ao sabor de duas mãos eleitas.
Na verdade, estes clérigos parecem deturpar a mensagem de Jesus, escrita nos Evangelhos. Através da narração dos seus primeiros seguidores, podemos constatar que Jesus não despreza as mulheres, nem teme macular-se pelo facto de andar na sua companhia. Cristo vai mais além, mostrando mesmo uma aproximação positiva em relação a elas. Admite-as perto de si, como vimos relatado com Maria Madalena ou com a Samaritana. Na verdade, um certo número de jovens judias começa a adquirir o hábito de acompanhá-l’O pelas estradas da Galileia, juntamente com os seus discípulos. Jesus fala-lhes, conversa com elas como pessoas de pleno direito! As mulheres estão, ainda, presentes, em número significativo, no momento da sua crucificação. Mais fiéis, mais crentes ou mais pacientes que os discípulos, elas esperam diante do sepulcro. São as
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primeiras a aperceberem-se da ressurreição de Cristo e é a elas que Ele vem ao encontro, pela primeira vez, após vencer a morte. Perante isto, é insustentável negar o cuidado e o respeito com os quais Jesus tratava as signatárias do sexo oposto, numa altura em que estas eram afastadas de tudo aquilo que era considerado importante, inclusive do ensino da Torah.
Paulo de Tarso, um dos primeiros, senão o doutor da Igreja por antonomásia, contribuiu para o agravamento do destino da mulher, acabando por submetê-la expressamente ao homem, coisa que Jesus parece nunca ter cogitado. São Paulo é pouco favorável ao casamento e à fecundidade. Ele acredita, sobretudo, nos benefícios da virgindade! Tudo o que defende é inspirado na filosofia grega, na qual a mulher aparece sempre como um fogo incendiário. De facto, o medo e a desvalorização da mulher não são uma invenção do cristianismo! Poderemos esquecer o mito de Pandora, tão intrínseco aos Gregos, como o episódio do jardim do Éden aos hebreus? Pandora introduziu o mal entre os helénicos, tal como Eva entre os judaico-cristãos. Esta visão corrompida do género feminino influenciou os sábios cristãos medievais, como Isidoro de Sevilha, Alberto, o Grande ou Tomás de Aquino. Eles irão repetir e insistir que a mulher é uma falha da criação…
Vários historiadores da actualidade, como Georges Duby ou Michelle Perrot, entre outros, têm reflectido sobre o papel da mulher durante a Idade Média. Praticamente todos corroboram a existência de uma atitude misógina entre os representantes do clero. No entanto, não podemos, nem devemos ser completamente taxativos! No tempo da exaltação do culto da Virgem Maria e do nascimento da devoção a Maria Madalena, existiam claras diferenças entre os membros do clero regular, encerrados nos seus mosteiros, e do clero secular, vivendo em comunidade. Diferenças notórias no que era respeitante ao contacto com o sexo feminino. São essas nuances, que ao longo deste trabalho tentaremos diferenciar. São esses homens, que escreveram sobre mulheres, que tentaremos conhecer com maior profundidade. Só assim poderemos compreender a sua forma de percepcionar o feminino.
De facto, traçar o percurso das mulheres na História não se revela uma tarefa fácil. O primeiro obstáculo que se coloca no caminho do investigador prende-se com a escassez de fontes. Poucos são os documentos que chegaram até nós, escritos pelos 7
punhos dessas mulheres, reveladores da sua própria visão do mundo. Neste sentido, o vislumbre que podemos alcançar da mulher medieval é a visão que os clérigos, homens de Deus, possuíam sobre ela. Visões de homens, entregues aos seus próprios preconceitos, obrigados pela fé a manterem-se longe delas, a temê-las. No entanto, seria essa visão representativa do quotidiano dessas mulheres? Ou apenas um reflexo vacilante da sua própria existência? Nesta linha de pensamento, tornar-se-iam imprescindíveis estudos que contemplassem a temática feminina na sua vertente introspectiva, isto é uma visão da mulher sobre si própria. No entanto, o investigador ao tentar fazer este tipo de abordagem embate sempre com o problema da escassez de fontes. Poderá um oleiro trabalhar sem barro?
Para terminar, falta-nos revelar o objectivo primevo deste trabalho. Porque falar de mulheres é também falar de homens, tentaremos dar algum protagonismo às mulheres medievais, servindo-nos das penas dos homens de Deus, que tanto se esforçaram para as denegrir. É a história dessa misoginia eclesiástica que pretendemos descrever…
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1. A BIOLOGIA SEXUAL NA IDADE MÉDIA
Fig: Adão e Eva no Paraíso, de Lucas Cranach o Antigo (1472-1553), Berlim, Gemäldegalerie.
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A subalternização da mulher em relação ao homem, durante a Idade Média, baseava-se claramente numa teorização sustentada biologicamente. Fenómeno do qual não devemos demonstrar especial estranheza, pois que ainda há poucas décadas foi fundamento bastante para o extermínio de milhares de judeus. Conhecer as teorias que pretensamente o comprovariam parece ser de especial interesse no âmbito desta narrativa. Teorias elaboradas numa perspectiva da mais pura anti-ciência, pois que o seu objectivo não seria a verificação de hipóteses, mas a confirmação de um resultado considerado de uma verdade inabalável, verdadeiro dogma sexual: a inferioridade da mulher! Na realidade, na Antiguidade Clássica acreditava-se que a diferença sexual não derivava das características anatómicas, mas, sim, da mistura de 4 elementos que compunham o mundo 1:
- Fogo (quente e seco) - Ar (quente e húmido) - Água (fria e húmida) - Terra (fria e seca)
Nesta perspectiva, o corpo humano era composto por 4 humores:
- Bílis Amarela (quente e seca como o fogo) - Sangue (quente e húmido como o ar) - Fleuma (fria e húmida como a água) - Bílis Negra (fria e seca como a terra)
Para os Gregos, o calor era a fonte da vida. As coisas quentes e secas eram colocadas acima de todas as coisas. Os homens eram quentes, o princípio activo da vida, enquanto as mulheres eram frias e passivas. Tal era a explicação para a diferença entre sexos. Para Aristóteles, homens e mulheres eram princípios para os quais os órgãos
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Cf. Marcel Bernos et all. - O Fruto Proibido. Lisboa: Ed. 70, 1991, p. 25.
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reprodutores eram simples instrumentos. O princípio masculino era a fonte da vida e punha o mundo em movimento, enquanto o feminino era passivo e dependente do outro.
Para Galeno, as mulheres tinham órgãos sexuais iguais aos masculinos mas recolhidos no interior do corpo, porque a falta de calor fazia com que se albergassem. Para Vesalius, o órgão sexual feminino era um pénis recolhido dentro do corpo. Consideravam, assim, o princípio feminino como o negativo do masculino, incompleto e inacabado. Segundo a teoria de Galeno, era possível uma mulher transformar-se em homem, facultando-lhe o calor necessário. A parte mais nobre do ser humano era os testículos, local onde era cozido o sangue. O esperma era considerado sangue cozido introduzido na mulher. Para Aristóteles, era o esperma que fazia cozer o sangue menstrual e que originaria a vida 2.
Na Idade Média, a tradição clássica foi mutilada pelas traduções feitas pelos árabes. O livro Gynaecia, de Sorano de Éfeso, grego do século I, foi traduzido pelo monge Moschion, do século VI. A obra de Nemésio de Émeso, De Natura Hominis, foi traduzida no século XI por Alfano de Salerno. As traduções dos séculos XI e XII são as mais importantes. Constantino, o Africano foi um tradutor e professor nas primeiras universidades em território europeu, nomeadamente em Salerno, Itália, seguido de Bolonha e Montpellier. Estas obras clássicas traduzidas terão grande difusão e vão constituir a base do estudo médico. São elas: - Pantegni, de Ali – Ibn – Abbas - Viaticum, de Ibn – al – Jazzar - De Coitu, do mesmo autor - Dyspermate, atribuído primeiramente a Galeno, mas que actualmente não é imputado a tal autor.
Estas obras foram essenciais para a concepção medieva dos órgãos sexuais. No século XII, Gerardo de Cremone traduz novas obras importantes:
- Cânon, de Avicena 2
Cf. Vern L. Bullough e James A. Brundage (ed.), Handbook of Medieval Sexuality, London : New York, Garland Publ., 1996, p. 45.
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- Libera ad Almansorem, de Rhazés
No século XIII, Guilherme de Moerbecke vai traduzir De Animalibus, de Aristóteles. No século XIV, De uso partium, de Galeno. Estas obras já eram, no entanto, conhecidas pelas citações de outros autores. Avicena, no Cânone, retomou a afirmação de Galeno, de que os órgãos sexuais femininos são negativos dos masculinos. Embora, no século VI, Moschion tivesse identificado o clítoris, os tradutores cristãos traduziram a obra sem lhe fazer referência, não lhe reconhecendo qualquer especificidade 3.
As primeiras dissecções, realizadas durante o século XIII não alteraram este cenário. Os corpos utilizados na dissecção são corpos de criminosas ou mulheres da vida, pessoas desqualificadas. A observação directa destes vai provocar uma série de constatações como a de Mondino Luzzi, na sua obra Anatomia, que revela ter encontrado no útero feminino as 7 células que os autores antigos encontraram no útero das porcas. Estes compartimentos permitiam a coagulação do sangue em contacto com o esperma.
O sangue menstrual era constituído pelos resíduos do sangue que não tinha sido cozido e refinado devido à falta de calor. Seria um sangue nocivo que tinha de ser expulso regularmente. Aristóteles exclamava que as mulheres não produziam mais nenhuma secreção do que o fluxo menstrual. Galeno e Hipócrates defendiam a existência de um esperma feminino que, segundo eles, era a contribuição das mulheres para a geração. O embrião seria gerado através da junção dos dois espermas, masculino e feminifo. Esta concepção teve, no entanto, efeito positivo na condição feminina. Apenas o prazer da mulher era essencial à reprodução, por gerar a libertação de esperma. Logo, aos homens era necessário gerar o orgasmo feminino. O facto de as mulheres produzirem fluxo seminal e não o poderem consagrar era considerado lesivo para elas e causa da histeria feminina 4.
A existência de dois sémenes e a teoria dos humores passaram a explicar o sexo do embrião. Crianças geradas na parte esquerda do útero (mais fria e húmida) seriam
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Cf. Jacques Le Goff e Nicolas Truong, Une histoire du corps au Moyen Âge, s. l., Liana Levi, 2003, p.121 4 Cf. Vern L. Bullough e James A. Brundage, op. cit., p.54.
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meninas. As crianças geradas na parte direita (mais quente e seca) seriam meninos. Da mesma forma, o esperma produzido no testículo esquerdo originaria uma menina e no testículo direito, um menino. Durante o século XVI este cenário não se alterou. Contudo, na opinião de humanistas, houveram algumas interpretações de textos mais antigos num sentido mais favorável para as mulheres. Marie Le Jars de Gournay, numa obra de 1622, L’Egualité entre les Hommes et les Femmes, contrapõe a teoria aristotélica e evoca a noção bíblica de uma criação andrógina e interpreta ambas as teorias da criação para reclamar uma idêntica força para ambas. Marguerite Buffer, em 1668, escreveu Novelle Observation sur la Langue Francaise, que defendia os mesmos ideais. Um autor alemão, Henricus Aggripa von Nettersheim, de 1532, na obra A Proeminência do Sexo Feminino sobre o Masculino, desenvolve a teoria de que as mulheres, tendo sido criadas depois do homem, mostravam a sua superior dignidade, não tendo sido feitas de barro, mas sim de carne humana. A Revolução Científica do século XVII não vai alterar significativamente estas observâncias. Descartes e Bacon (sec. XVII), Locke e Leibniss (sec. XVIII) não alteraram este quadro, apenas deram à mulher um papel mais equitativo na sociedade. Distinguem entre o corpo e o espírito, afirmando que as almas possuíam igual capacidade. François Poulain de La Barre (1647-1725), autor jesuíta, utilizou os métodos cartesianos para observar que não há diferenças significativas entre os sexos.
A partir de finais do sec. XVI, a teoria de Galeno é ultrapassada, passando a considerar-se os órgãos sexuais femininos como órgãos próprios, únicos e capazes de gerar novas vidas. Surge uma corrente científica, denominada de Prefermacionista, que considera que, no esperma ou nos óvulos, já se encontram formados todos os seres humanos futuros. Dá-se, assim, uma cisão entre espermistas e ovistas (principais defensores da dignidade das mulheres) 5. A escola Epigenista considerava os fetos como organismos simples que se desenvolviam e se aperfeiçoavam e para a sua formação tanto era importante o homem como a mulher. Os outros órgãos corporais, independentemente dos sexuais pareciam ser iguais entre os sexos. Vesalius constrói manequins de esqueletos para aulas de anatomia, em que ambos eram iguais. O
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Cf. Marcel Bernos et all, op. cit, p.67.
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dismorfismo sexual ainda não era conhecido. Seria falta de observação? Ou alguns princípios da Medicina antiga continuavam a ser inconscientemente aceites?
William Cowper, em 1697, escreveu The Anatomy of Humam Body, onde narra que a diferença de gordura entre os corpos era devida à frieza da mulher, logo não derretia. O maior calor também era responsável pelo maior desenvolvimento do cérebro nos homens, como defendia William Harvey na sua obra Lectures on the whole of Anatomy of the Male and Female Body. A teoria dos humores, que já tinha desaparecido, reaparecia agora para responder a novas perguntas.
Em finais do sec. XVIII, a relação entre homens e mulheres deixa de ser de desigualdade para ser uma relação de diferença. Passam a existir representações de esqueletos femininos e masculinos, mas com as diferenças muito mais acentuadas do que as reais: o crânio feminino é excessivamente pequeno quando comparado com o do homem; a sua caixa torácica é excessivamente pequena; as costelas representam-se mais estreitas; a bacia exageradamente aumentada; um excessivo comprimento do pescoço, que parece transparecer uma associação entre as mulheres e as aves. O homem era associado ao cavalo, com a sua força possante e um maior tamanho das pernas. As representações dos esqueletos eram, pois, o espelho de ideais de beleza da época. No século XIX esta diferença na representação dos esqueletos começou a espelhar as diferenças raciais através do tamanho do crânio. A mulher branca situava-se, umas vezes à frente, outras atrás do homem negro, enquanto a mulher negra era sempre a base de uma pirâmide hierarquizavel. Era o homem branco que servia de modelo para todos os seres humanos…
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2. A DIFÍCIL ARTE DE AMAR NOS TEMPOS MEDIEVAIS
Fig: O Bordel, Valério Máximo. Paris, Bibl. Nacional, Ms. Fr. 289, fl. 414v.
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No período do Alto Império Romano observou-se uma contenção da sexualidade, típica sobretudo das classes superiores: o puritanismo da virilidade. Tocava os homens ligados ao poder que consideravam que, para o exercício de cargos públicos, era necessário um auto-controlo, pois o bem público tinha que ser mais importante do que o bem privado. Logo, não poderia existir um excessivo amor à família, de tal ordem que ultrapassasse o amor pelo Imperador. O cristianismo tornou mais ampla a adesão a este pensamento com origem grega. Na sua génese um comportamento minoritário e típico de uma camada masculina e superior, vai passar a disseminar-se à grande massa populacional. Observemos as palavras de São Jerónimo, na sua obra Contra Joviniano:
«Na verdade, em relação à esposa alheia, todo amor é vergonhoso; em relação à própria, apenas o amor excessivo. O homem sábio deve amar a sua mulher com entendimento, não com paixão. Que ele domine o arrebatamento da volúpia e não se deixe arrastar precipitadamente para a cópula. Nada há de mais infame do que amar uma esposa como uma amante. Que aqueles que dizem juntar-se às suas esposas em benefício da coisa pública e do género humano e para criar filhos, imitem ao menos os animais e, quando o ventre das suas esposas tiver inchado, não corrompam as crianças. Que não se apresentem às suas esposas como amantes, mas como maridos.»
A carne e o sexo, a comida, a bebida, o repouso, os cuidados do corpo vão passar a constituir pecados mortais. O pecado sexual, a luxúria, vão ser socialmente estigmatizados. Desde muito cedo se ligou o pecado original à descoberta do sexo. Santo Agostinho identifica o pecado original com o desejo, com a descoberta da nudez e o desejo sexual. A Igreja vai, pois, procurar exercer um controlo estrito entre o que é lícito e o que é ilícito. Mesmo no seio do matrimónio, o amor excessivo é considerado um pecado. Durante os primeiros séculos até ao ano 1000 foram redigidos livros penitenciais, guias para sacerdotes a utilizarem durante a confissão, que demonstravam as penas exigidas para cada um dos pecados apontados 6.
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Cf. Georges Duby (introd.), Amor e sexualidade no Ocidente. Lisboa, Terramar, 1990, p. 4.
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Durante festas como o Natal, Páscoa, Pentecostes, festas dedicadas ao culto de Maria, que se foram multiplicando durante a Idade Média, eram proibidas as relações sexuais. Nas vigílias, isto é, na noite anterior a estes festejos, estava também proibido o contacto íntimo. Tal acontecia, da mesma forma, durante o Domingo e sua vigília. Ou durante as três Quaresmas: 40 dias antes da Páscoa, 40 dias antes do Natal (Advento), e 40 dias antes do Pentecostes. Para além do calendário litúrgico comum existiam outras proibições: menstruação da mulher, gravidez (desde o momento da concepção ou quando a criança começava a mover-se) e 40 dias após o parto. Estes últimos eram princípios ancestrais, de impureza e derramamento de sangue. Ao calendarizar estas proibições, chegamos à conclusão de que os casais, durante a época medieval, poderiam apenas usufruir de 4 a 5 relações sexuais durante um mês, gerando duas a três concepções num período de 4 anos 7.
2.1OS MODELOS DE MASCULINIDADE Se, na verdade, procuramos compreender a opinião dos clérigos medievais sobre as mulheres, é importante que compreendamos estes homens como aquilo que biologicamente eram: homens. Quais os modelos de masculinidade que os regiam? O que os tornaria verdadeiramente másculos? As informações de que dispomos provêm de autores masculinos e eclesiásticos. Estes estudos, na verdade, são mais recentes do que os estudos sobre as mulheres, havendo-se iniciado desde finais dos anos 90 e inícios do 2º milénio. Na verdade, não existe uma masculinidade, mas várias masculinidades diferentes entre classes sociais, entre civilizações e entre tempos históricos. Ao nível mais básico foi-se procurar na Psicologia e na Psicanálise a constituição da masculinidade. Para Freud, através de uma teoria bastante contestada, a sexualidade humana é marcada pela existência de um falo como símbolo de poder e pelo medo da castração, da privação do falo e, logo, da privação do poder.
Segundo o mesmo autor, a identidade sexual seria mais fácil na mulher, por associação com a mãe. No homem, a identidade sexual estava ligada com a separação da mãe e a identificação com o pai. Nos rapazes deveria de haver, pois, uma ruptura com a figura materna. Os psicólogos consideram, pois, que a masculinidade não é algo
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Cf. Vern L. Bullough e James A. Brundage, op. cit., p. 67
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que se tem, mas é algo que tem que ser reafirmado constantemente, sendo marcada pela recusa de ser feminino. Ponderam, nesse sentido, que a masculinidade se pode resumir numa trilogia o património masculino comum: - seduzir e emprenhar mulheres – potência sexual - capacidade de sustento da família - protecção dos dependentes e amigos
Na Idade Média, existem várias masculinidades, existindo algumas mais dominantes e outras que vão ser dominadas. Cada uma procura a hegemonia, desvalorizando as outras, acusando-as de não serem verdadeiros modelos da masculinidade. A sexualidade ligada ao clero é distinta da ligada aos cavaleiros. Qual das duas seria dominante? Claramente a do Clero, com o seu poder económico, político e ideológico. A masculinidade do clero espelha, no entanto, a masculinidade dos cavaleiros. A doutrina católica foi sempre no sentido de os membros do clero não se poderem casar e não desempenharem a sua sexualidade. Nos primeiros tempos, contudo, a virgindade era apreciada, mas não era necessária! Bastava o clérigo manterse continente após a conversão8.
2.1.1 A MASCULINIDADE ENTRE O CLERO
Nos primeiros séculos da Idade Média, as famílias entregavam aos mosteiros um dos seus filhos para aí ser criado. Estas crianças, desenvolviam, assim, uma identidade de género que não era completamente masculina, nem feminina, porque não eram educados por mulheres. Estas crianças eram denominadas de oblatos e a sua identidade de género seria uma espécie de um terceiro género, intitulado por alguns autores de emasculino9. Nos mosteiros, a disciplina ia no sentido de acalmar os desejos através da utilização de silícios, da penitência e de outros instrumentos de punição da carne, como forma a impedir o pecado.
Para o clero secular, que vivia no meio da sociedade, o desenvolvimento da sua identidade sexual era masculina, necessitando de um maior esforço de continência na 8 9
Cf. Georges Duby, As três ordens ou o imaginário do feudalismo, Lisboa, Ed. Estampa, 1982, p. 34. Cf. Jacques Le Goff e Nicolas Truong, op.cit, p. 67
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idade adulta. No entanto, abundavam os filhos ilegítimos dos clérigos, sendo encontrados, por vezes, vários filhos da mesma mulher, o que significa que estes possuíam relacionamentos prolongados com uma companheira, chamada barregã, de tipo conjugal. Tal pode ser provado através das legitimações dos filhos nos seus testamentos, nos quais os sacerdotes deixam, por vezes, os bens aos filhos e às barregãs. Esta ligação é, por vezes, escamoteada por uma linguagem metafórica, na qual as suas companheiras são apresentadas como serventes. Nesta perspectiva, a igreja católica dava indicação que os clérigos deveriam ter serventes maiores de 50 anos e com laços de familiaridade com eles. Os filhos eram tratados como afilhados ou sobrinhos para esconderem tal situação escandalosa.
Os clérigos também sustentam os seus filhos, fomentando os seus estudos e dando-lhe rendimentos para se deslocarem com esse intuito. Por vezes, deixam-lhes o seu benefício eclesiástico, por renuncia. Outra forma de tratamento dos filhos era por criados nascidos na sua casa. Na verdade, os sacerdotes também se comportavam com os seus filhos de uma forma protectora. Gostavam de se vestir bem, com cores e formatos que não eram os mais adequados à sua postura. Disfarçavam a tonsura para fingirem que não eram clérigos, não andando sempre com a barba aparada 10. Não podiam usar armas, exceptuando os que pertenciam às ordens religiosas militares. Era criticado o seu gosto pela caça, por beber, comportamentos típicos da virilidade dos membros da aristocracia, dos cavaleiros. Os membros do clero das classes mais inferiores identificavam-se com os modelos de virilidade das classes mais pobres, baseados na bebedeira e na fornicação. Os eclesiásticos mais ligados à vida espiritual seriam, pois, os precursores do 3º género.
2.1.2 A MASCULINIDADE DOS CAVALEIROS
A identidade sexual dos cavaleiros enraíza-se nas tradições dos povos bárbaros no seio do Império Romano, exprimida no domínio pela força. É a força que permite submeter as mulheres e outros homens inferiores. Prestam o culto do corpo perfeito, robusto, detentor de grande potência, valorizando qualidades como a coragem, a resistência, e valores morais como a lealdade, a fidelidade. Toda esta exuberância era
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Cf. Jacques Le Goff e Nicolas Truong, op.cit, pp.100-102.
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violenta e perigosa. A força bruta era disciplinada pela Igreja, que lhe introduziu alguns valores, canalizando a violência para os não Cristãos e o auxílio aos desprotegidos (mulheres solteiras, viúvas, crianças e inválidos).
Se exprimem a sua virilidade na guerra, os cavaleiros também a mostram protegendo as damas, os pobres e pondo-se ao serviço dessas damas através do amor cortês. Outra forma de canalizar a violência é o amor cortês, que obriga a uma educação no seio da corte para um correcto linguajar, versejar, dançar e boas maneiras, dotes que se vão tornando mais importantes11. Os cavaleiros também deviam formar família. Na sua juventude, a sua masculinidade estava ligada à tomada de afecto com mulheres de outras classes sociais, muitas vezes violadas. Mais tarde, ao casamento e à sua numerosa prole. Duby, diz-nos que, para casar, o cavaleiro tinha que ter sustento para a família. No norte da Europa, os bens eram divididos pelo primogénito e pelas raparigas. Os outros filhos iam para um mosteiro ou tornavam-se cavaleiros andantes, pois não tinham forma de sustento, logo não se podiam casar, indo muitos deles engrossar o contingente humano das Cruzadas. As mulheres sem dote eram enclausuradas num convento. Os senhores, para além da sua família, tinham sob sua protecção dependentes, vassalos a quem lhes atribuía um feudo pelos seus feitos militares.
2.1.3 A VIRILIDADE DAS CLASSES INFERIORES
A virilidade das classes inferiores era demonstrada através da constituição de família e do emprenhamento de mulheres. Os servos, aprendizes, aproprietários, por vezes não se casavam, mas juntavam-se. Os proprietários rurais, contudo, separavam bem as águas, no sentido de transmissão do património. O problema entre lavradores e mesteirais era o mesmo que entre os cavaleiros. Entre os lavradores mais ricos e os chefes dos mestres, há um controlo da natalidade, havendo uma parte de excluídos. As mulheres ficam em casa, controladas pelos familiares e os homens são remetidos para uma marginalidade social patente nos meios urbanos. São jovens sem família legítima, frequentadores das tabernas, que entram em convívio com homens e mulheres de má
11
Cf. Jean-Louis Flandrin, Un temps pour embrasser. Aux origines de la morale sexuelle occidentale (VIe-XIe siècles), Paris, Seuil, 1983, p. 98.
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vida, que não gerarão uma família digna. São os mais mobilizáveis para as revoltas de tipo político existentes nas cidades, contra a miséria e os salários.
Entre os artesãos, a expressão da masculinidade dos mestres tem o mesmo sentido que a dos camponeses. Os mestres têm controlo sobre outros da sua profissão, regulando a prática do seu mester. A entrada para as corporações de mesteres no governo da cidade acentuam o seu poder. Recebem o rei, entram nas procissões, com funções de representação. Os companheiros e aprendizes que não têm fortuna para ascenderem ao grau de mestre vivem sempre numa situação subordinada ao mestre. São esses que não podem constituir família, servindo de mão-de-obra para revoltas contra a autoridade12. São homens que, através da violência tentam reverter a sua situação, exercendo violência sobre as mulheres.
Ruth Mazo Karras, estudou o comportamento sexual dos universitários, um meio masculino de aspirantes a clérigos, no qual se procurava evitar o contacto com mulheres. A autoridade eclesiástica pede-lhes que não casem, afastando-os das mulheres da sua categoria social, o grande perigo de perda desses estudantes. É um meio onde existe um homoeroticismo, com relatos de amizades entre colegas, e de alívio das pulsões sexuais semelhantes aos seus contemporâneos citadinos. Revelam acreditar numa superioridade da racionalidade masculina sobre a irracionalidade feminina. As mulheres eram, para eles, seres nos quais a emoção se sobrepunha à razão. Vão afirmarse através do uso racional da palavra, diferente da palavra das mulheres, prolixa, sem interesse.
Têm
comportamentos
típicos
dos
jovens
urbanos,
mas
também
comportamentos que os ligam ao clero.
12
Cf. Jean-Louis Flandrin, op.cit., p.54
21
3. O CLERO REGULAR E SECULAR: RELAÇÕES COM O FEMININO
Fig: O Jardim do Amor, De Sphaera. Modena, Bibl. Estense, Ms. Lat. 209
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Será que nos é possível avaliar aquilo que desconhecemos? Para melhor compreendermos a substância da informação sobre o feminino veiculada por estes clérigos, é importante termos consciência das suas verdadeiras relações com o sexo oposto. O ascetismo não foi nem ensinado, nem praticado por Jesus. No entanto, converteu-se numa característica do cristianismo, veiculado sobretudo pelos membros das ordens regulares. A palavra monge, que advém do vocábulo monos, que significa solitário, aparece pela primeira vez no léxico cristão por volta do ano 180. No entanto, não podemos falar de um monaquismo cristão, propriamente dito, antes dos meados do século IV. Terá sido a partir dessa época que alguns cristãos começaram a viver sozinhos ou em grupo, não possuindo, no entanto, leis ou regras sólidas. Em 320, surgiu em Tabennisi, no actual Egipto, um mosteiro dirigido por Pacomio, antigo soldado romano. Foi este monge que terá escrito a primeira regra monacal, que impunha uma disciplina militar e que, directa ou indirectamente, terá influenciado todas as regras posteriores.
Apesar de, durante os primeiros séculos de cristianismo, o celibato não ser levado em conta por muitos prelados, nomeadamente seculares, os monges norteavamse por um ideal extremamente exigente, no que era respeitante a tal virtude. O seu quase total afastamento do mundo e, em particular das mulheres, por vezes desde a infância, facilitava-lhes, de certo modo, a tarefa de não cederem às tentações da carne. De facto, na Alta Idade Média, como já foi dito, era frequente os pais entregarem os filhos, de tenra idade, a mosteiros para que neles fossem educados e viessem a tornar-se, anos mais tarde, religiosos13. Essas crianças eram denominadas “oblatos”, constituindo o gesto de seus pais uma atitude sacrificial destinada a atrair a benevolência de Deus para com a sua família. No entanto, não podemos esquecer que tal postura possuía objectivos materiais, como a protecção e o sustento dessas crianças e, quando muito, de todos os seus parentes, pela comunidade cenobítica. Esta prática terá tido como consequência o total desconhecimento por parte de alguns monges de uma vida familiar tradicional, marcada pela presença masculina e feminina e pelos seus afectos inerentes. Muitos 13
Vide José Mattoso, “A cultura monástica em Portugal (975-1200)”, Religião e Cultura na Idade Média Portuguesa, 2ª ed., Lisboa, I.N.C.M., 1997, p. 359.
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destes religiosos guardavam apenas uma imagem longínqua de sua mãe, imagem muitas vezes perdida na bruma dos tempos. A mãe, para muitos, a única mulher que conheceram, era um espectro fugidio de um passado há muito esquecido…
No entanto, para além da vocação religiosa e dos objectivos materiais, existiam um conjunto de outras razões que levavam os homens a ingressar numa ordem religiosa. Nomeadamente, entre outros motivos, a fuga a um matrimónio contrariado ou a um crime, tendo em conta que os conventos possuíam direito de asilo 14. Note-se que, Santo Agostinho, apesar dos seus elogios aos monges, declarava que não conhecia pessoas piores do que aquelas que acabavam nos mosteiros! Salviano, no século V, queixava-se dos que se entregavam aos vícios do mundo debaixo do manto de uma ordem.
Para salvaguardar os monges da tentação carnal, tentação das tentações, Pacomio determinou que se uma mulher dirigisse a palavra a um monge ao passar junto dele, este deveria responder-lhe com os olhos fechados. Os beneditinos, por seu turno, começaram a reger-se por uma estrita clausura. Os cluniacenses nem sequer deixavam fixar mulheres nas proximidades do seu mosteiro, num círculo de duas milhas. Os franciscanos, de acordo com a sua regra, deveriam ter cuidado com as mulheres e nenhum deveria conversar ou simplesmente andar com elas, nem comer do seu prato durante a refeição. São Francisco proibiu, ainda, os irmãos de estabelecerem qualquer tipo de relação com mulheres e de entrarem em conventos femininos. Tudo com o objectivo de não dar ao diabo nenhuma ocasião, como afirma no sínodo de 1212.
Qualquer transgressão era duramente castigada! Os penitenciais da Alta Idade Média fixavam uma penitência de três anos para o monge que se envolvia com uma mulher; se essa mulher fosse uma monja, a pena aumentaria para sete anos; se cometia adultério teria que sofrer durante dez anos, seis deles a pão e água. Se a relação fosse incestuosa, a penitência poderia chegar aos doze anos, metade deles a pão e água. No entanto, apesar das punições, os prevaricadores pareciam abundar, como comprova a preocupação com a elaboração dos penitenciais. Um pouco por toda a Cristandade, existem relatos de monges libertinos. Segundo relatos da época, em Estrasburgo, os dominicanos bailavam e relacionavam-se intimamente com as monjas de Saint Marx,
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Cf. Karlheinz Deschner, Historia Sexual del Cristianismo, Zaragoza, Editorial Yalde, 1993, p. 133.
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Santa Catarina e San Nicólas. Em Salamanca, os carmelitas descalços trocavam frequentemente de mulher. Em Farfa, perto de Roma, os beneditinos viviam publicamente amancebados. 15 Existem, ainda, relatos de abades com inúmeros filhos, como o abade Clarembaldo de Santo Agostinho, de Canterbury, que foi pai de dezassete crianças numa só aldeia.
Relativamente ao clero secular, encontramos uma diferente panorâmica. Durante os primeiros tempos do cristianismo, a ordenação de homens casados, até mesmo como bispos, foi uma prática corrente. No entanto, a partir do século IV, começou a ser exigida uma coabitação casta ou a separação de corpos. Em contrapartida, se os sacerdotes tivessem sido ordenados enquanto celibatários, já não poderiam casar. E aqueles que eram casados, caso enviuvassem viam proscritos os seus segundos casamentos. Estas restrições aplicavam-se apenas aos clérigos das ordens maiores, podendo os restantes consorciar-se e constituir família. Gregório de Nazianzo (329389), doutor da Igreja, era filho de um bispo. No entanto, durante o século V, existem relatos da descendência de certos bispos. Os prelados solteiros guardavam abstinência, apenas voluntariamente. Quando São Patrício (372-461) foi enviado por Roma para evangelizar a Irlanda, os sacerdotes casados apareciam como algo de completamente banal. Durante o período merovíngio nunca tiveram a obrigação de dissolver o matrimónio e a maioria mantinha relações com mulheres, sem necessidade de ocultá-lo. Nem sequer os sínodos de Espanha, onde surgiu o primeiro decreto de celibato, mencionam a abstinência do clero até ao raiar do século VI. Em Roma, já durante o século X, registou-se a subida ao papado de vários filhos de sacerdotes. Inclusive, houveram papas que eram filhos de outros papas, como foi o caso de Silvério e João XI.
No limiar do ano mil, surgiram novas ameaças para a sociedade cristã devido à emergência da feudalidade. Foi no modelo monástico triunfante que os dirigentes eclesiásticos foram inspirar-se para reformar a Igreja e garantir a preeminência do poder espiritual sobre o temporal. Para serem aceites pelos fiéis como únicos interlocutores legítimos entre Deus e os homens e poderem continuar a conduzir o povo cristão no caminho da salvação, os oratores tinham de ser puros. Não só aqueles que viviam
15
Vide Karlheinz Deschner, op. cit, p. 135.
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afastados do mundo, dedicados à oração e à penitência, mas também os que no século dirigiam espiritualmente os crentes e lhes ministravam os sacramentos 16.
Leão IX (1049-1054) foi, de certo modo, o iniciador do movimento pelo celibato preconizado pela Reforma Gregoriana. O pontifex ordenou que os sacerdotes abandonassem as suas mulheres sob pena de perda de privilégios e sob ameaça de suspensão permanente do seu ofício. Na realidade, Gregório VII não trouxe nenhuma inovação, nem nos temas, nem nas penas. A única novidade que imprimiu foi a austeridade com a qual pôs em vigor leis que já existiam, mas que habitualmente não eram cumpridas. Novidade foi, talvez, a intolerância com a qual arruinou a imagem dos sacerdotes casados, convertendo-os em concubinatários. No entanto, apesar de ilícito, o casamento de clérigos continuava a ser válido. Foi o segundo Concílio de Latrão, em 1139, que decidiu que o casamento de sacerdotes passaria a ser inválido17.
No entanto, apesar do rigor imposto por esta reforma, muitos prelados continuaram a infringir as regras de celibato. Existem, na verdade, indicações que nos sugerem que muitos continuaram a manter relações com mulheres, desta feita dissimuladamente. Na verdade, o clérigo secular ainda enfrenta mais um “perigo”: a confissão. De facto, durante a confissão, oferecem-se amplas possibilidades de sacrilégio. A Igreja tomou várias precauções nesse sentido. Proibiu a confissão às escuras, em especial às mulheres, mulheres essas que nunca deveriam estar sozinhas junto ao prelado. Os confessores, por seu turno, não deveriam contemplar a face dessas mulheres, nem deveriam posicionar-se à sua frente, mas a um dos lados. O clérigo só podia visitar as mulheres doentes perante duas ou três testemunhas, não sendo permitido administrar o sacramento à porta fechada. Convidar as mulheres, pelo menos as mais nobres, a confiarem-se a um homem da Igreja era tratá-las como pessoas, capazes de se corrigirem. Mas, também, era capturá-las! A Igreja apanhava-as nas suas malhas….
Durante a confissão, as perguntas perpetuadas a um homem e a uma mulher começam, também, a diferir. Esta divisão pelos dois sexos das questões formuladas mostra bem que, já no inicio do século X, corria a ideia de que a natureza das mulheres
16
Cf. Georges Duby, As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo, p. 156. Cf. Armando Martins, História do Cristianismo Medieval, Textos e Documentos, [Lisboa], Faculdade de Letras, 2001, p. 54. 17
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as levava a pecar de determinada maneira. Esta ideia vem, na verdade, de mais longe, dos clérigos e monges carolíngios que redigiram penitenciais: Teodoro, Rabano Mauro, Teodulfo, bispo de Orleans. O leque de penas prometidas às pecadoras é muito aberto, entre três dias de privações a dez anos. De um ano a cinco ou seis vão as punições severas que castigam a negligência com crianças, as diversas maneiras de enfeitiçar e de tirar prazer com outras. Seis pecados são punidos com tanto rigor como o homicídio: envenenar, contrariar o juízo de Deus com talismãs, ensinar práticas abortivas, entregarse ao mais abjecto dos desvios sexuais, a bestialidade, beber o esperma do marido, e depois o sonho, sair de noite para regiões estranhas onde põem a grelhar o coração dos homens. Para além da barreira dos sete anos contava-se o crime de abortar ou matar um homem18.
Podemos, pois, concluir que estamos perante duas realidades distintas, no que se refere ao contacto dos prelados com as mulheres. Os monges, almas solitárias que vivem uma existência baseada na oração, no trabalho e na penitência, profundamente ascética, possuem pouco contacto com o sexo feminino, salvo os prevaricadores que, talvez não fossem assim em tão escassa percentagem. Os monges julgavam-se anjos. Pretendiam, como estes, não ter sexo e viam honra na sua virgindade, professando horror pela mácula sexual. Por seu turno, os sacerdotes do século, membros activos da sociedade, possuem contactos oportunos e privilegiados com o sexo oposto. A Igreja, por conseguinte, dividiu os homens em dois grupos. Aos servidores de Deus proibiu o uso do seu sexo; permitiu-o aos outros nas condições draconianas que decretou. É esta realidade, que terá consequências na sua visão sobre a feminilidade, que irá prevalecer durante toda a Idade Média…
18
Cf. George Duby, As Damas do Século XII – Eva e os Padres., Lisboa, Teorema, p.36-37.
27
4. OS MODELOS DE FEMINILIDADE PRECONIZADOS PELO CLERO
Fig: Madonna of the Meadow, de Giovanni Bellini, 1505, in National Gallery, London.
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Envoltos no seu universo masculino, mais preponderantemente a partir da Reforma Gregoriana, os clérigos mantinham-se fechados nos seus claustros, nos scriptoria, nas escolas, nas faculdades de teologia… Os clérigos seculares preparavamse para a vida imaculada dos monges. A imagem da mulher, a cada dia, se desvanecia, para a maioria daqueles que não transgrediam as regras de celibato. Cada vez mais afastados do universo feminino, nomeadamente os membros do clero regular e os altos prelados, olham a mulher com medo e estranheza. Ela pode ser percepcionada como uma espécie de íman que os atrai e que, ao mesmo tempo, devem repudiar com todas as suas forças. Ela é o desconhecido, o insondável, que clama incessantemente para ser explorado. É o pecado, é a tentação demoníaca à qual o clérigo deve resistir com a força da sua fé! A ideia da mulher obceca-os e é essa obsessão que estará na origem de uma literatura misógina, levada a cabo por muitos destes sacerdotes. Para tal, baseiam-se nos comentários dos padres dos primeiros séculos, alimentados pelas Escrituras e pela tradição. De facto, não trouxeram nada de novo, porque estes autores medievais detestam a ideia de novidade 19. É sempre do velho que eles fazem o novo.
Na viragem do século XI para o século XII, no oeste de França, um conjunto de prelados assumem-se como os precursores da mais pura misoginia. Entre eles, destacam-se Marbode de Rennes, Godofredo de Vandoma e Hildeberto de Lavardin. Detemo-nos um pouco sobre estas três personagens, porque nelas poderemos rever a convicção geral dos eclesiásticos coevos. Marbode e Hildeberto são de origem modesta, produtos das escolas-catedrais. Por seu turno, Godofredo é da mais alta extracção, proveniente de uma linhagem de barões. Entra em criança para um mosteiro beneditino, tornando-se seu abade aos vintes anos, cargo que ocupará até à sua morte. Sabemos, ainda, que Hildeberto viveu maritalmente, foi polígamo e teve vários filhos.
Para Godofredo, a mulher é, acima de tudo, Eva, a desgraça (vae), a tentação e o pecado. O abade dirigia-se aos seus monges para os convencer a recusarem a sua parte na carne, a se afastarem da mulher, moralmente hedionda desde a origem e cuja beleza 19
Cf. Jacques Dalarun, “Olhares de Clérigos”, História das Mulheres no Ocidente. Dirigido por Georges Duby e Michelle Perrot, vol II, [Porto], Edições Afrontamento, 1994, p.30.
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constituía o pior dos logros: «Este sexo envenenou o nosso primeiro pai, que era também o seu marido e pai, estrangulou João Baptista, entregou o corajoso Sansão à morte. De uma certa maneira, também, matou o Salvador porque, se a sua falta o não tivesse exigido, o nosso Salvador não teria tido necessidade de morrer.20» Marbode, no poema Da Mulher Má, da sua autoria, conseguiu juntar todas as imagens que conhecia da sua vasta cultura clássica, redigindo uma peça da literatura mais misógina que nos pode ser dado ler. Para o bispo de Rennes, a mulher é a raiz do mal, o fruto de todos os vícios. Este alto prelado revela ainda uma repugnância face à mulher grávida, referindose aos ventres das mulheres retesados pela gravidez como velhos odres inchados de vinho novo21. Esta perspectiva não parece ter nada de novo, se recordarmos que Santo Agostinho, séculos antes, proclamava que o homem nascia no meio de urina e fezes. Desta forma, a mulher aparece simultaneamente como uma chama voraz e uma “coisa” frágil. Nesse sentido, para Hildeberto de Lavardin, os três maiores inimigos dos homens são as mulheres, o dinheiro e as honras: «A mulher, coisa frágil, inconstante a não ser no crime, não deixa nunca espontaneamente de ser nociva. A mulher, chama voraz, loucura extrema, inimiga íntima, aprende e ensina tudo o que pode prejudicar. A mulher, vil fórum, coisa pública, nascida para enganar, pensa ter triunfado quando pode ser culpada. Consumindo tudo no vício, é consumida por todos; predadora dos homens, torna-se ela própria a presa.22»
Não poderíamos fazer referência à misoginia eclesiástica sem nos referirmos a Odão, abade de Cluny, talvez o maior dos misóginos do seu tempo. O prelado inspirava aos seus monges os mesmos terrores salutares: “ A beleza do corpo não reside senão na pele. Com efeito, se os homens vissem o que está debaixo da pele, a vista das mulheres dar-lhes-ia náuseas…Então, quando nem mesmo com a ponta dos dedos suportamos tocar um escarro ou um excremento, como desejaríamos abraçar esse saco de excrementos?”23
Durante toda a Idade Média, a mulher aparece como a quinta-essência de todos os vícios, de todas as maldades e de todos os pecados. Ela é a origem da corrupção do homem, como uma emboscada na senda da virtude e da santidade. São Tomás de 20
Cf. Godofredo de Vandoma, PL 157, col. 168. Vide idem, ibidem, p. 37. 22 Cf. Hildeberto de Lavardin, PL 171, col. 1428. 23 Citado por Jacques Dalarun, op. cit, p. 35. 21
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Aquino, elevado por Leão XIII à categoria de primeiro doutor da Igreja e patrono de todas as faculdades e escolas católicas, acreditava que o valor essencial da mulher residia nas suas capacidades reprodutivas e na sua utilidade nas tarefas domésticas. Segundo este, a mulher deveria estar subordinada ao homem porque ele seria a sua “cabeça”, mais perfeito em corpo e espírito. Ainda segundo este doutor da Igreja:” A mulher relaciona-se com o homem como o imperfeito e defeituoso com o perfeito. A mulher é espiritual e corporalmente inferior e a inferioridade intelectual é o resultado da corporal, mais precisamente devido ao excesso de humidade e à sua falta de temperatura.”24 A mulher aparece, pois, como um verdadeiro erro da natureza, uma espécie de um pequeno homem defeituoso, errado, mutilado….
Estes homens de Deus levaram simultaneamente a mulher ao pináculo e votaram-na ao anátema. Sim, porque os prelados aos quais fizemos referência, da mesma forma que desprezam a mulher, exercitam-se em orações fervorosas a Maria. Não nos esqueçamos que a Idade Média é o tempo da exaltação da Virgem. No entanto, não nos enganemos! Como diria Jules Michelet, louvar a Virgem Mãe não era, de maneira nenhuma, prestar homenagem ao conjunto das suas irmãs terrenas…. No entanto, de forma a catalogarem e orientarem as mulheres reais, os nossos prelados produziram modelos de feminilidade inscritos na Bíblia, várias categorias onde encaixam vários arquétipos de mulheres. Modelos duais, que compreendem figuras femininas do Antigo e do Novo Testamento. São elas: Eva, a Virgem Maria e Maria Madalena.
4.1. EVA
Para estes religiosos, Eva é a mãe universal, mas, acima de tudo, a pecadora. Eva é vae, a desgraça, mas também vita, a vida. No Génesis, existem dois relatos, com diferenças significativas, que se seguem sem explicação. O primeiro relato é de tradição sacerdotal, explicando a criação em sete dias. Nessa descrição, Deus cria o Homem à sua imagem e semelhança, homem e mulher, simultaneamente. O relato que se segue é um relato Javista, que não divide a criação por dias e, quando chega à génese do Homem, narra que Deus criou primeiro o homem. Trouxe, então, vários animais para o
24
Citado por Karlheinz Deschner, op. cit, p. 225.
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auxiliar, mas ele não se contentou com a sua companhia. Então, Javé colocou o homem num sono profundo, retirou-lhe uma costela e moldou com barro a figura feminina, dando-lhe o sopro da vida. Segundo as ideologias de determinada época, uma ou outra versão é escolhida. A iconografia e a teologia medievais, mostram a criação segundo o relato sacerdotal, mas quando chega à criação do Homem, servem-se da narração Javista.
O episódio do fruto da árvore do conhecimento é o relato que se segue. Trata-se do encontro de Eva com a serpente e o incitamento de Adão à transgressão perpetuado pela sua companheira. Trata-se do episódio, como intitularia Duby, da «Queda».25 Este relato faz da mulher o veículo do mal no mundo. De facto, nesta história é ela que desobedece. Na verdade, para os nossos prelados medievais, Eva introduziu o pecado no mundo. A sua condenação é parir os filhos com dor e estar submetida ao marido. Para muitos, Eva é a assassina de Cristo, porque Ele redimiu o pecado original com a sua morte. Assiste-se, pois, a uma acentuação do carácter maléfico de Eva e ao branqueamento da acção de Adão. O pecado original, que na sua génese é um pecado de desobediência, vai sendo considerado como um pecado carnal. Porque Adão influenciou-se pela sua companheira, devido ao amor que por ela nutria…
É esta concepção da mulher que vai dar origem a uma literatura misógina, da qual já fizemos referência, que atribui todos os pecados e defeitos aos elementos do sexo feminino. Na sua génese, parecem estar os monges isolados que seguem uma tradição dos pais do deserto, que tentavam fugir às tentações do espírito e da carne, nomeadamente de São João Crisóstomo. A partir desse momento, durante o século IV, começam a ser desenvolvidos escritos, que serão retomados nos tempos áureos do monaquismo.
Apoiado nesta teorização, o já citado Godofredo de Vandoma, observa a mulher como a precursora do pecado de Eva, a alma pérfida que tudo consegue através da sedução. Para ele, a mulher não é uma fonte de vida, mas aquela que leva à morte, ao pecado. Aquela que faz incorrer o homem no castigo eterno! Os escritores monásticos do século XI a XIII, continuam a fazer a associação da mulher à morte, considerando o
25
Cf. Georges Duby, As Damas do Século XII – 3: Eva e os Padres, Lisboa, Teorema, 1997, p.47.
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cariz corporal como algo de efémero, condenado à destruição do devir temporal. As características biológicas do corpo feminino causam repulsa e horror a estes homens. Eva é, pois, um modelo de mulher que serve como objecto de aversão.
4.2. MARIA
Maria. É este o tempo pleno da sua devoção, de Chartres a Amiens, o seu Verão esplêndido. O século XII foi a primavera das catedrais, o tempo pleno de Nossa Senhora. Os cânticos mais enamorados em seu louvor vêm do meio monástico, muito particularmente dos cistercienses. É virada para a Virgem que a mística medieval levanta voo. Os séculos XIII, XIV e XV ressoam com os lamentos dos autores mais místicos sobre a dor da Virgem, aquela que recolhe o seu filho aos pés da cruz e o deposita no túmulo. É o tempo da pietà… De facto, nota-se uma exaltação poética da «virgem sempre preciosa», «stella maris», «porta do Céu», «refúgio do pecador», «esperança dos homens», …
Maria é a mãe por antonomásia, no seio da qual o filho indigno pode vir esconder a sua vergonha. Dos quatro grandes dogmas atribuídos a Maria – maternidade divina, virgindade, Imaculada Conceição e Assunção – os dois últimos foram promulgados bastante depois da Idade Média, ainda que, desde o século XI, tenham suscitado grandes paixões. Na verdade, no Novo Testamento, a virgindade de Maria é afirmada, apenas, na concepção e por dois evangelistas: Lucas e Mateus. É a Godofredo de Vandoma que se deve a fórmula da virgindade «antes, durante e após o parto» 26. Esta concepção de Maria, torna-a cada vez mais incorpórea, mais irreal. Cada vez mais, Ela torna-se mais numa virgem do que numa mãe… No século XIV, existem relatos de uma santa sueca, Santa Brígida, que tem uma visão do nascimento de Cristo, na qual a Mãe não sente dor… Tratava-se, pois, de um parto miraculoso. Maria, através da mão dos nossos prelados, torna-se a cada passo, uma personagem imaginária, não podendo servir de modelo para as mulheres terrenas, somando-se o perigo de o seguimento do seu modelo originar uma quebra demográfica!
26
Cf. Jacques Dalarun, op. cit, p. 42.
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Se Maria não constitui um modelo a seguir pelas mulheres reais, o que propõem os nossos prelados para elas? A virgindade! Para as destinatárias do Espelho das Virgens, redigido durante o século XII, na Alemanha, não haverá temores desde que se preservem. De facto, segundo eles, as virgens gozavam da maior liberdade, livres do poder do homem sobre o seu corpo e dos temores em relação à progenitura. No entanto, o que deveriam propor às mulheres casadas, distantes da castidade virginal e que queriam ser salvas? No espírito dos autores eclesiásticos, a possibilidade de salvação para as mulheres casadas é, antes de mais, uma possibilidade de resgate. A perda do selo virginal não tem apelo, tanto física como moralmente. A penitência é a única via; o arrependimento da pecadora, da meretrix é o único modelo. Para as descendentes de Eva, que não souberam aceitar o desafio mariano, não há salvação senão pela porta pequena 27. E essa porta seria aberta por Maria Madalena…
4.3. MARIA MADALENA
Influenciado pela tradição, Gregório Magno faz ressurgir uma figura que interessa especialmente às mulheres: Maria Madalena. Mas, quem seria essa mulher que o Papa tanto se interessou por glorificar? Nos Evangelhos, ela não existe como indivíduo. Constitui, na verdade, uma amálgama de três personagens do Novo Testamento: Maria de Magdala, Maria de Betânia e uma pecadora anónima. Maria de Magdala, é a mulher da qual Cristo expulsa sete demónios e que o segue até ao Calvário, tendo sido a primeira testemunha da Sua ressurreição. Maria de Betânia era a irmã de Marta e Lázaro. A terceira Madalena é conotada com a pecadora não nomeada, que em casa de Simão banha os pés de Cristo com as suas lágrimas, enxuga-os com os cabelos, cobre-os de beijos e unge-os com perfume. Se, na verdade, alguns factos permitem ligar algumas destas personagens, sem mais delongas, Gregório Magno fundiu-as definitivamente na figura de Maria Madalena. No entanto, não devemos menosprezar a influência das penitentes do deserto, nomeadamente da figura de Maria Egipcíaca. Depois de ter oferecido, indiscriminadamente, os encantos do seu corpo, esta sacerdotisa passa a viver numa solidão total, para além do Jordão. Foi precisamente a sua lenda que inspirou a vida eremítica de Maria Madalena.
27
Cf. Jacques Dalarun, op. cit, p. 47.
34
A aparição do culto a Maria Madalena, surgiu no século VIII, como comprova a sua menção nos martirológios e na liturgia. As suas relíquias podiam ser encontradas na abadia de Chelles. Mas o verdadeiro desenvolvimento do culto, vindo provavelmente do Leste, está ligado ao êxito do santuário de Vezelay. Em 1050, esta abadia borgonhesa, originalmente dedicada à Virgem Maria, é colocada sob protecção de Maria Madalena. A peregrinação a este local irradia com esplendor incomparável nos séculos XI e XII. Fenómeno que alguns autores denominam de “fermentazione magdalenica del sec. XI”28. Devoção que irradia, não só em França, mas também na Inglaterra, na Alemanha e em Itália. Franciscanos e Dominicanos tornam-se zelosos propagadores do seu culto e da sua imagem. Em 1105, Godofredo de Vandoma compõe um sermão intitulado “Em Honra da Bem-aventurada Maria Madalena”. Nele, o prelado parte da figura da mulher que unge os pés de Cristo, em casa de Simão. Madalena é a pecadora por antonomásia e todos, durante a Idade Média, compreendem que o seu pecado é o da carne. Madalena é, pois, uma meretrix! No entanto, dividida entre a esperança e o temor, ela arrepende-se dos seus pecados e é essa confissão que a salva! Godofredo vai mais longe, opondo-a a Pedro. Segundo ele, Madalena ultrapassa o apóstolo no seu amor por Cristo. De facto, é a ela que Cristo ressuscitado aparece primeiro, encarregando-a de anunciar a boa nova. Godofredo delineia, desta forma, o papel de Maria Madalena: para que a mulher que trouxe a morte ao mundo tenha esperança de salvação. Pela mão da mulher a morte, mas pela sua boca o anúncio da Ressurreição. Maria Madalena irá surgir, assim, como modelo de arrependimento e porta da salvação para as mulheres corrompidas pelo pecado da carne. Salvação também para os homens, porque Madalena não é apenas símbolo de mulher, mas também da parte feminina existente em cada homem, que o atrai para o corpo, para o sensível….
O desprezo medieval pela sexualidade feminina é, pois, compensado com a figura de Madalena, a prostituta arrependida que escolhe um caminho de purificação e penitência. A sua própria representação iconográfica evolui. Para alguns pintores como Giotto de Bondone, ela já não é uma figura penitente. Cresce e o seu tamanho
28
Cf. Jacques Dalarun, op. cit , p. 48.
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hierárquico define-a como mulher santificada, consolo dos aflitos e transmissora do perdão.
Através da reflexão sobre estes modelos, podemos encontrar, de imediato, uma antinomia: Eva e Maria. Eva simboliza as mulheres reais, plenas de pecado, e Maria a mulher ideal, mas incorpórea. Na viragem dos séculos XI e XII, Eva é a mais sobrecarregada. Ela é a filha do Diabo, de quem o clérigo se deve afastar. Por seu turno, a Virgem Mãe é projectada, pelos altos prelados, para fora do alcance das mulheres terrenas. Maria é um modelo praticamente inatingível. No entanto, quase miraculosamente, entre Maria e Eva começa a estabelecer-se uma ponte, uma ponte que toma o nome de Maria Madalena. Entre a porta da morte e a porta da vida, Madalena é a porta entreaberta, a ponte a percorrer para uma possível salvação. No entanto, tal redenção tem um preço: a confissão, o arrependimento e a penitência…
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5. A MULHER SOB TUTELA: O CASAMENTO
Fig: O quarto dos esposos, fresco de c. 1320.San Gemignano, Museu cívico.
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Segundo a lei romana, o casamento traduzia-se num pacto, um contrato, entre as famílias e os conjugues, feito muito informalmente; tinha que haver um consenso, quer entre os parceiros quer entre os pais, no qual a intenção de se casar era preferível a viver em concubinato. Era revestido de uma certa formalidade social, especialmente entre as pessoas abastadas, que diferenciavam o casamento de outro tipo de relacionamento. Durante o período imperial romano surge o casamento por consentimento mútuo entre os parceiros, ou entre os seus pais, ou quem tivesse a pátria potestas, a autoridade paterna, sobre eles. Uma das suas finalidades principais, universalmente reconhecida, era a de ter filhos legítimos. Mas, nas palavras do grande jurista romano Ulpiano: “«Não é a consumação (concubius) mas o consentimento que faz os casamentos», ou então «não é a consumação (coitus) mas a intenção de casar (maritalis affectio) que faz um casamento»” 29. Embora a linguagem da lei romana tenha sobrevivido, o seu significado foi sendo subtilmente adaptado, à medida da passagem dos séculos.
No princípio da idade Média o casamento começou por ser um acto puramente profano, não regulado pela Igreja. Nos primeiros tempos medievais existiam dois moldes de união conjugal: o Concubinato, casamento temporário, provisório, até que a família escolhesse uma boa aliança, destinando-se esta prática a controlar os impulsos sexuais dos cavaleiros e a resolver da mesma forma o problema dos clérigos; o Matrimónio, este sim, considerado como casamento legítimo e definitivo, implicando rituais mais ostensivos e visando a união de duas famílias.
Nos séculos IX e X as uniões matrimoniais eram previamente combinadas pelos pais dos noivos, como se de um negócio se tratasse, envolvendo várias etapas até à consumação final. Começava por um pacto de esponsais nas quais as famílias prometiam o consórcio dos seus filhos. Era então redigido um contrato, documento no qual se previa o dote da família da noiva e o do futuro marido e a verba a deixar à esposa para o seu sustento, caso ficasse viúva. Não se pense, contudo, que o casamento se revestia da simplicidade actual. Percorrendo as fontes do século XI e XII convencemo-nos que a distância entre a desponsatio e as nuptiae varia muito segundo as circunstâncias. Os prazos mais longos relacionam-se com os caracteres originais da 29
Cf. Karma Lochrie, Peggie McCracken, James A. Schultz (ed.), Constructing Medieval Sexuality, Minneapolis / London, University of Minnesota Press, 1997, p. 117.
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própria vida aristocrática: afastamento geográfico de duas parentelas, que impunha uma viagem sob a responsabilidade do marido, ou a necessidade de concluir o noivado do filho, dado que tal noivado era o selo indispensável de uma aliança ou de uma reconciliação entre grupos em guerra 30.
Este processo de formalidades do casamento iniciava-se com a petitio, pedido da noiva pelos pais do noivo; seguia-se o desponsatio: entendimento das famílias sobre a ligação dos seus filhos; a dotatio: concordância sobre o dote; a traditio: entrega da jovem ao noivo pelos pais; a publicae nuptiae: que consistia na cerimónia do casamento propriamente dita; e por fim a copula carnalis: consumação, que só acontecia após a união carnal.
O desponsatio podia ser entendido como um noivado, mas sempre sem intervenção alguma por parte dos noivos, pois eram ainda crianças, com cerca de sete anos de idade, quando não menos, portanto sem idade para decisões. Quanto ao dotatio para além de estabelecer os acertos sobre o dote, estipulava também que, após as crianças crescessem e atingissem a idade de tomar as suas próprias decisões, se o casamento não se realizase por rebeldia de alguma das partes, haveria lugar a uma espécie de multa a pagar pela família de quem desistisse do casamento. A traditio, entrega da jovem ao futuro marido, só acontecia anos após as três primeiras etapas, quando os jovens já tivessem atingido a idade de aproximadamente doze ou catorze anos, no caso das raparigas, e de dezasseis anos de idade, no caso dos rapazes.
A cerimónia (publicae nuptiae) consistia no transporte da noiva para a casa do noivo, num cortejo ruidoso, precedido por uma grande festa dada na casa dos pais do noivo. Nesta época, em que a Igreja não participava dos casamentos, a copula carnalis (acto sexual) constituía o momento da efectivação do matrimónio. O longo desenrolar da aliança matrimonial, apesar de parcialmente privado (promessa, entrega do anel), os últimos rituais, começo da coabitação, visita à casa paterna, eram celebrados em público com alarde, sobretudo entre o povo. Convidados, conhecidos, clientes, mirones, centenas de pessoas participam alegremente em cada dia nas festas. As cavalariças e os
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Cf. História da Vida Privada, sob a direcção de Philippe Ariés e de Georges Duby, Porto, Edições Afrontamento, 1990, p. 134.
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celeiros transbordavam de presentes (sobretudo vinho), enviados por aldeias inteiras, por mosteiros, camponeses anónimos, assim como pelos próximos.
Neste período até por volta do ano mil o casamento tinha por objectivo estabelecer alianças e assegurar a transmissão do património, assim como o sangue e a honra da linhagem. Para tal o importante era casar com alguém do mesmo grupo social, ou superior, para aumentar a riqueza das famílias e consequentemente exercer maior poder. A partir do ano mil, os contratos de esponsais tendem a desaparecer. Os bens do marido cedidos à esposa em arras, passam a ser menores, e ela é obrigada a deixa-los aos filhos primogénitos, passando apenas a dispor do dote dos seus familiares para passar às filhas.
No final do século XI, principio do XII o consentimento mútuo do casal passa a ser exigido pela Igreja. E no século XII passa-se a assistir a um ritual no qual os noivos depois de terem prometido a profissão de fé trocam alianças que são benzidas pelo pároco. A bênção fazia-se à porta da Igreja. E tal só acontecia depois de o sacerdote ter verificado os consentimentos e a não consanguinidade entre ambos. Só depois os noivos e familiares entravam no templo para assistir à cerimónia, que se limitava, ainda, a presenciar o testemunho que termina apenas com uma oração 31. A esposa (sponsa) é depois entregue ao marido pelo pai ou parente próximo que a tinha à sua guarda.
No século XIII, o padre substitui-se ao pai da noiva para a entregar ao futuro marido, passando ele próprio a representar o papel daquele que une. O esposo passa em três dedos da sua mulher, o anel benzido pelo qual a desposa. Anel que afastará os assaltos do demónio; e é dado, diz já a teoria eclesiástica, por amor e fidelidade, mas o gesto recíproco só aparecerá depois, no século XVI. Duas das ordines do século XII comportam em seguida a prosternação da mulher perante o marido: depois, a transformação do gesto é esboçada por uma tentativa de ajoelhar os futuros esposos aos pés do padre, mas tal é pedir demasiado, e a Igreja, hábil em ter em conta as tentativas e os erros na sua empresa de absorção do ritual, prefere a supressão pura e simples desta sequência, que não era, sem dúvida, como tantas outras, mais do que uma
31
Cf. Jean-Pierre Poly, Le chemin des amours barbares. Genèse médiévale de la sexualité européenne, Paris, Perrin, 2003, p.201.
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particularidade regional. Bem se esforça a teologia por exaltar as dádivas dos esposos um para com o outro, mas a cerimónia acaba por marcar o predomínio do marido. Ele é a parte activa: dando com o anel aos presentes «acostumados» e apresentando a carta do dote, assim como os treze drenários vindos da lei sálica. «Com este anel te desposo, com este ouro te honro e com este dote te doto»: fórmula dita pelo marido ou qualquer outra do mesmo género, acompanha o gesto32.
Entretanto, vão-se afastando as antigas formas de união, nomeadamente o concubinato. O casamento, segundo a doutrina da Igreja, era visto como o único contexto em que a sexualidade podia ser praticada de forma legítima. Visando o casamento servir apenas para a procriação de herdeiros legítimos, assim sendo o corpo feminino devia ser controlado de forma especial a fim de permanecer reservado unicamente para a «fecundação» pelo marido. Consideradas fonte de todo o mal, só o casamento, com um homem ou com Cristo, permitia às mulheres uma certa moderação da sua natural concupiscência; de mulheres transformavam-se em mães e, assim, podiam alcançar alguma da serenidade da Virgem Maria ou de Maria Madalena 33.
Na opinião da Igreja continua a residir no casamento a única forma de controle sobre a mulher, vendo assim o casamento como forma de evitar o incesto, tabu que a Igreja persegue, chegando ao cúmulo de proibir as uniões com parentes até ao décimo quarto grau, como impõe o Concílio de Latrão, de 121534. Quanto à vida conjugal era sobretudo um estilo de vida e uma questão de regulamentação das relações sociais, que afectava o exterior e o futuro, não uma comunhão de almas entre indivíduos. A falta de amor conjugal não era reconhecida como razão para um divórcio, assim como o amor por si só não bastava para fundar um casamento válido: filhos comuns e fidelidade conjugal constituem o essencial do sacramento do matrimónio. “Dar à luz e criar filhos eram as tarefas principais das esposas, a «profissão» das mulheres casadas” 35.
32
Cf. História da Vida Privada, dir. Philippe Ariés e de Georges Duby, Porto, Ed. Afrontamento, 1990. p. 138. 33 Vide A Mulher na História, Actas dos colóquios sobre a temática da Mulher (1999-2000), Câmara Municipal da Moita, 2001, p. 128. 34 Idem, ibidem, p. 135. 35 História das mulheres no Ocidente, sob a direcção de Georges Duby e Michelle Perrot, Porto, Edições Afrontamento, 1990, p. 377.
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«As mulheres sejam submissas a seus maridos, como ao Senhor, pois o marido é a cabeça da mulher, como Cristo é a cabeça da Igreja…E como a Igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres se devem submeter em tudo aos seus maridos»36. Aos olhos da Igreja um bom casamento era uma comunhão entre um homem e uma mulher, mas, segundo os ensinamentos morais da Igreja, ele só era realmente bom quando o homem «governava» e a mulher obedecia. Constituindo os maridos a primeira instância de controlo social das suas mulheres, o que não era apenas determinado pelas disposições legais, mas pelos próprios decretos canónicos que convertiam o marido em chefe da sua mulher e reforçavam também a responsabilidade e as possibilidades de controlo por parte do «senhor e mestre». Este monopólio encontra a sua expressão mais nítida no direito que o marido tinha de castigar a mulher, que as autoridades laicas e eclesiásticas fixavam, e no privilégio masculino de ser-se infiel sem consequências. Enquanto as normas jurídicas e a mentalidade pretendiam condenar as mulheres adúlteras com a pena de morte, os homens casados escapavam impunes 37.
A terminar este capítulo julgamos pertinente concluir com a análise acerca dos escritos de Bourchard de Worms, bispo da Igreja entre 1107 e 1112, autor de uma pastoral, compilação de textos normativos, o Decretum, dado parecer bastante apelativo da forma como a Igreja concebia o casamento. Autor do prólogo de um penitencial precedente, do qual constam oitenta e oito infracções classificadas por ordem de gravidade decrescente, Bourchard entende que o casamento é deveras concebido como um remédio para a avidez sexual. Ele ordena, disciplina, mantém a paz. Por meio dele, o homem e a mulher são afastados da área onde existe um acasalamento livre, sem regra, na desordem. Contribuindo a penitência para a ordem social, para a paz, actuando em prol da reforma da sociedade 38.
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Carta de Paulo aos Efésios, V, 21-24 Idem, ibidem, pp. 367-369. 38 Georges Duby, O Cavaleiro a Mulher e o Padre, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1998, p.45-57. 37
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CONCLUSÃO Ao longo deste trabalho pareceu-nos ficar comprovada uma intensa misoginia eclesiástica, durante a Idade Média. Facto que, na verdade, não revela nada de novo! No entanto, o objectivo deste trabalho projectou-se mais além. Mais do que provar a existência dessa atitude execranda face à mulher, procurou-se compreender a causa de tal postura, analisando o relacionamento dos homens de Deus, com o sexo feminino. Que conclusão poderemos, então, tirar deste tipo de abordagem? Na verdade, estes prelados não inventaram nada de novo. Eles baseiam-se numa tradição, há muito implantada nas sociedades patriarcais, que descreve a mulher de uma forma subalternizada em relação ao homem.
Os nossos prelados medievais terão pegado nessa tradição pouco favorável à mulher, exacerbando-a preponderantemente. Porquê? A maior parte da bibliografia relativa a esta temática, tende a explicar este facto com um agravamento do controlo sobre a mulher. Durante a Idade Média, a mulher é considerada um ser precioso, sobretudo pela faculdade de gerar descendência e, por isso, muito protegida e inibida nos seus contactos sociais desde a infância. No entanto, esta necessidade de manter a mulher sob custódia não parece esgotar as possíveis razões para esta atitude dos prelados. Outros autores, avançam com a hipótese de que a causa desta misoginia clerical seja o seu afastamento das mulheres. Longe das mulheres? Talvez, nomeadamente os clérigos regulares, muitos deles oblatos, que não ousaram quebrar a sua ascética castidade. Mas, e os restantes? Os prevaricadores regulares e os sacerdotes seculares? Estariam eles assim tão distantes das mulheres? Os sacerdotes do século sempre tiverem contactos privilegiados com o sexo oposto. Nunca estiveram longe delas, pessoal e/ou intimamente! E depois, não esqueçamos a confissão, mátria de todos os segredos femininos, partilhados com o prelado!!
A razão desta misoginia pode basear-se na tradição, numa necessidade de controlo da mulher ou no seu maior ou menor afastamento face a ela, como vimos anteriormente. No entanto, avizinha-se-nos uma outra causa possível: o controlo do
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clérigo, isto é do próprio homem, aliás, tão característico da Reforma Gregoriana. Ao tentarem convencer os sacerdotes da inferioridade, por vezes demoníaca e execrável da mulher, o objectivo dos nossos prelados seria, talvez, a repressão do desejo carnal que estes homens salutarmente experimentavam. Causar-lhes repúdio seria uma forma de afastá-los ainda mais da realidade feminina, a que muitos não resistiam… Este facto, em concordância com a matéria inscrita nos penitenciais, sugere-nos que a clerezia e o universo feminino são duas realidades muito próximas durante a época medieval.
No início deste estudo, ainda durante a introdução ao tema, formulámos uma questão essencial: será que esta visão clerical da mulher, a informação deturpada que estes homens transmitiam aos sete ventos, corresponde à realidade por ela vivida no seu dia-a-dia? A resposta é, taxativamente, negativa. Na verdade, a diferença entre os tratados teóricos elaborados pelos eclesiásticos e a realidade da época medieval é incomensurável. Através da análise de várias fontes, podemos encontrar uma sociedade medieval amplamente partilhada pelos dois sexos e, ao contrário do que muitas vezes se pensa, a mulher tinha personalidade jurídica, que lhe foi sendo retirada com o limiar do Renascimento. De facto, o reflexo que estudamos neste trabalho, é um reflexo deturpado, vacilante, da mulher medieval, veiculado por aqueles que tinham o poder de difundir informação. Contudo, é o único meio que possuímos e que nos dá conta da vivência das mulheres daquele tempo, sempre filtrado pelas mentes dos clérigos produtores de comunicação. Das mulheres e da sua vivência interior, nesta época, pouco sabemos, tendo em conta que estas não possuíam o mesmo direito dos homens, ao conhecimento, ao ensino, à informação…. Claro, que só podemos estabelecer um grau de comparação entre sexos em termos dos níveis mais abastados da sociedade. Apenas os homens nascidos nos meios mais elitistas possuíam acesso à formação e ao conhecimento. Aqueles que nasciam nos meios mais humildes, homens ou mulheres, jamais poderiam ansiar qualquer tipo de educação.
Quanto aos modelos bíblicos analisados, desde logo, Eva e Maria constituem um contraponto. No entanto, a terceira via aberta por Maria Madalena marca o início de uma nova perspectivação da vida espiritual das mulheres medievais. Levada ao pináculo por Gregório Magno, Madalena é sinónimo de arrependimento, de esperança. É, por muitos, associada ao Purgatório. Sob os seus auspícios, as mulheres parecem resgatar-se duas vezes: por serem pecadoras e por serem mulheres. Madalena é o sintoma de 44
avanço para uma nova mentalidade, símbolo da mulher redimida. Se, na verdade, a Reforma Gregoriana intensificou o controlo da mulher e do prelado, também é um facto que glorificou a figura de Madalena, esperança de salvação da mulher real.
Embora o cristianismo não tenha aliviado a discriminação sexual no seio do Império Romano tardio, na verdade, ofereceu às mulheres a oportunidade de se considerarem personalidades independentes. O cristianismo permitiu que as mulheres desenvolvessem uma auto-estima como seres espirituais que possuíam o mesmo potencial de perfeição dos homens. Apesar da atitude misógina dos prelados, materialmente, o cristianismo foi generoso e protector para com a mulher, condenando todas as formas de violência física contra ela. No entanto, no campo moral, foi bastante severo. Talvez, no seio do cristianismo, a mulher tenha encontrado a pior imprecação, mas a melhor sorte, especialmente quando comparamos com outras religiões.
Para terminar, é importante salientar que, quando comparada com a perspectiva cavaleiresca, a perspectiva cristã da mulher é muito mais igualitária. De facto, a óptica da nobreza, coeva do horizonte clerical que temos vindo a estudar, era extremamente desigual, pois considerava que aos homens tudo era permitido… A Igreja, no que diz respeito aos leigos, irá também exercer um controlo estrito entre o lícito e o ilícito. Tal é comprovado pelos livros penitenciais, guias de pecados e penas aplicáveis a ambos os sexos. Em suma, podemos concluir que no seio da doutrina cristã, o destino de homens e mulheres interligam-se, parecendo haver uma exigência moral equivalente para ambos… Embora apenas os homens continuassem a ter o monopólio da informação, do conhecimento e da sua difusão…. E pudessem, sem temer penas civis, consumar o adultério à sua livre vontade….
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