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Kaio Felipe
A Crise da Bildung em Doutor Fausto
Dissertação apresentada, como requisito para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP/UERJ).
Orientador: Prof. Dr. César Augusto Coelho Guimarães
Rio de Janeiro 2013
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Kaio Felipe A Crise da Bildung em Doutor Fausto
Dissertação apresentada, como requisito para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP/UERJ).
Aprovado em ______________________________________________________________ Banca Examinadora__________________________________________________________
_____________________________________________________________ Prof. Dr. César Augusto Coelho Guimarães (Orientador) Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ
_____________________________________________________________ Prof. Dr. Frédéric Vandenberghe Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ
_____________________________________________________________ Prof. Dr. Ricardo Augusto Benzaquen de Araújo Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro 2013
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AGRADECIMENTOS À minha namorada Carolina Trotta, que pacientemente me ajudou a revisar todos os capítulos da dissertação, além de me apoiar nos momentos de “crise criativa”. Ao meu amigo Fernando Modelli, que também leu praticamente tudo o que escrevi desde o início do mestrado (e vice-versa), sempre com críticas construtivas. Aos meus amigos Hugo Noguchi e Filipe Horta, com quem dividi a experiência de assumir turmas no estágio-docência e com quem desenvolvi intuições decisivas para esta dissertação. Ao meu amigo Glauber Lemos, com quem conversei bastante sobre Thomas Mann, Bildung e literatura em geral. Aos demais amigos e colegas do IESP/UERJ, pela inestimável companhia nestes dois anos de mestrado. Aos professores do IESP/UERJ, em especial meu orientador César Guimarães e Frédéric Vandenberghe; os cursos de ambos – além das conversas informais – forneceram subsídios para várias das discussões presentes nesta dissertação. Aos colegas do Sociofilo, cujas reuniões – em particular o seminário interno de Outubro deste ano – foram oportunidades para debater temas relevantes e para receber comentários valiosos para o desenvolvimento de minha pesquisa. Ao professor Ricardo Benzaquen, cujos cursos – que sempre têm uma brecha para discutir Thomas Mann – foram inspiradores para o meu trabalho. Aos professores Marcus Alexandre Motta e Fernanda Lima, do departamento de Letras da UERJ, cujos cursos sobre autores como Adorno e Lukács muito contribuíram para as questões mais teóricas desta dissertação. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo apoio à pesquisa. Por último, mas não menos importante, à minha família, principalmente à minha mãe, que me apoiou em todos os momentos, difíceis ou prósperos, desde que me mudei para o Rio.
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RESUMO FELIPE, Kaio. A Crise da Bildung em Doutor Fausto. Dissertação (mestrado em Ciência Política) – Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Programa de Pós-graduação em Ciência Política, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. O propósito desta dissertação é interpretar como o romance Doutor Fausto (1947), de Thomas Mann, se relaciona com seu contexto histórico, tanto o cultural quanto o sociopolítico. A trágica história de vida do músico Adrian Leverkühn, que pactua com o Diabo para adquirir maior inspiração artística, é uma alegoria do cenário intelectual da Alemanha nas primeiras décadas do Século XX, marcado pelo crescente fascínio por doutrinas antidemocráticas (e a subseqüente ascensão dos nazistas) e pelos impasses da arte moderna. A saga de Leverkühn também retrata a crise do ideal da Bildung (formação) – isto é, da tradição humanística alemã – diante de uma adversa situação sociocultural. Em suma, este romance dialoga com autores da filosofia alemã (Schopenhauer e Nietzsche), com o mito fáustico (Faustbuch, Marlowe, Goethe e Dostoiévski) e se posiciona em relação a seu momento político (“revolução conservadora”) e artístico (a colaboração de Mann com Adorno). Estas intertextualidades serão exploradas de modo a compreender amplamente a relevância de Doutor Fausto para se pensar não só a cultura alemã, mas a própria modernidade. PALAVRAS-CHAVE: Thomas Mann; Bildung; Sociologia da Cultura; Filosofia da Arte; Literatura Alemã.
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ABSTRACT The purpose of this dissertation is to interpret how Thomas Mann‟s novel Doctor Faustus (1947) is related to its historical context, both sociopolitical and cultural. The tragic life story of musician Adrian Leverkühn, which pacts with the Devil to gain greater artistic inspiration, is an allegory of the intellectual scene in Germany in the first decades of the 20th century, marked by the growing fascination with antidemocratic doctrines (and the subsequent rise of the Nazis) and the dilemmas of modern art. The saga of Leverkühn also portrays the crisis of the ideal of Bildung (formation) – i.e., the German humanistic tradition – when faced with an adverse sociocultural situation. In short, this novel deals with thinkers of German philosophy (Schopenhauer and Nietzsche) and the Faustian myth (Faustbuch, Marlowe, Goethe and Dostoevsky), and links itself to its political (“conservative revolution”) and artistic (Mann‟s collaboration with Adorno) time. These intertextualities will be explored in order to understand the relevance of Doctor Faustus to think about not only the German culture, but modernity itself. KEYWORDS: Thomas Mann; Bildung; Sociology of Culture, Philosophy of Art; German Literature.
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SUMÁRIO 1.
INTRODUÇÃO...................................................................................................................7
1.1. OUVERTÜRE...........................................................................................................................7 1.2. JUSTIFICATIVA TEÓRICA......................................................................................................11 2.
UMA ABORDAGEM SOCIOLÓGICA DA BILDUNG...........................................................15
2.1. O FLORESCIMENTO DA BILDUNG ATÉ O SÉCULO XVIII.......................................................16 2.2. O IDEAL DA FORMAÇÃO SEGUNDO CLASSICISTAS E ROMÂNTICOS.......................................19 2.3. AS TRANSFORMAÇÕES SOCIOCULTURAIS DA ALEMANHA NO SÉCULO XIX E A DECADÊNCIA DA BILDUNG...............................................................................................................................27
2.4. A CRISE DA BILDUNG SEGUNDO WEBER E SIMMEL.............................................................31 3.
THOMAS MANN E A VIDA COMO BILDUNGSROMAN.....................................................38
3.1. O PENSAMENTO CONSERVADOR NAS CONSIDERAÇÕES DE UM APOLÍTICO............................38 3.2. A ADESÃO AO HUMANISMO E À DEMOCRACIA....................................................................45 4.
LEITMOTIV: AS ORIGENS DO MITO FÁUSTICO............................................................51
4.1. O NASCIMENTO DE UM MITO MODERNO...............................................................................51 4.2. O FAUSTO HISTÓRICO..........................................................................................................54 4.3. O FAUSTO DE MARLOWE.....................................................................................................56 4.4. O FAUSTO DE GOETHE.........................................................................................................60 4.5. UM FAUSTO RUSSO? IVAN KARAMÁZOV E O DIABO...........................................................63 5.
A BILDUNG DEMONÍACA DE ADRIAN LEVERKÜHN......................................................69
6.
A PRESENÇA DA FILOSOFIA ALEMÃ: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE........................82
7.
UM CONCERTO NO GRANDE HOTEL ABISMO: O DIÁLOGO COM ADORNO................93
7.1. UMA BREVE APRESENTAÇÃO DAS REFLEXÕES ESTÉTICAS DE THEODOR ADORNO...............93 7.2. A PARCERIA DE MANN E ADORNO E OS PERSONAGENS “ADORNIANOS”..............................96 8.
A ESPERANÇA EM MEIO À CRISE: O HUMANISMO DE THOMAS MANN....................102
9.
CONCLUSÃO................................................................................................................115
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................................118
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1.
INTRODUÇÃO
1.1.
OUVERTÜRE “O humanismo está humilhado ou morto. Conseqüência: devemos estabelecê-lo novamente.” (Thomas Mann)
O escritor alemão Thomas Mann (1875-1955) fez em 1901 suas primeiras anotações para um possível projeto de trabalho sobre um pacto entre um artista o e diabo. Foi, no entanto, apenas em Março de 1943 que Mann finalmente decidiu escrever seu romance baseado no mito fáustico. Esta decisão evidenciava “uma aura de sensação de vida inteira em torno desse núcleo temático” (MANN, 2001, p. 21), afinal um tema recorrente em sua obra é a crise moral do artista, dilacerado entre seus impulsos estéticos e suas obrigações sociais, entre a irresponsabilidade que há na dedicação exclusiva ao “espírito” e os difíceis fardos da “vida”. Ao longo dessas quatro décadas, porém, a Alemanha e o próprio escritor passaram por várias transformações, e essa retomada temática seria bem mais densa do que a forma como foi retratada em seus primeiros contos e romances. Publicado em 1947, Doutor Fausto é narrado em 1ª pessoa por Serenus Zeitblom, um professor universitário de idéias humanistas que se propõe a fazer uma biografia de seu melhor amigo, Adrian Leverkühn, um músico que, em meio a conflitos teológicos (relacionados à existência ontológica do Mal) e estéticos - “Por que me parece (...) que todos os recursos e convenções da Arte hoje só prestem para paródias?” (MANN, 1996, p. 179) -, faz um pacto diabólico que lhe garante intensa criatividade artística durante 24 anos, em troca de uma saúde instável e da proibição de amar, sob a pena de as pessoas amadas terem um desfecho terrível. A marca de seu contrato demoníaco é a sífilis que adquiriu alguns anos antes, após se relacionar com uma prostituta. Eis os termos desta “parceria”, nas palavras do próprio Diabo que aparece ao protagonista em uma das cenas mais perturbadoras da obra: Arranjamos de propósito que te atirasses aos nossos braços, quer dizer, aos de minha pequena, a Esmeralda, e lá apanhasses a coisa, a iluminação, o aphrodisiacum do cérebro que teu corpo, tua alma, teu intelecto desesperadamente desejavam conseguir. (...) Recebeste de nós tempo, tempo apropriado para um gênio, tempo que permite vôos altos; plenos vinte e quatro anos (...) ser-te-ão concedidos por nós, para que alcances tua meta. Passados eles, (...) hemos de levar-te. Em compensação, vamos servir-te e obedecer-te em tudo nesse ínterim, e o Inferno te beneficiará, contanto que abjures de tudo quanto vive, de todas as hostes celestes e de todos os seres humanos. Pois assim deve ser. (...) Significa renúncia, e nada mais. (...) O
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amor te fica proibido, porque esquenta. Tua vida deve ser frígida, e, portanto, não tens o direito de amar pessoa alguma. (Ibidem, p. 336-337)
Selado o pacto, Leverkühn passa a se focar cada vez mais nas suas composições, e progressivamente se isola; as poucas relações sociais que ele mantém são com pessoas de índole duvidosa e/ou de posições políticas e estéticas problemáticas. Quando o prazo estipulado pelo Diabo está prestes a se encerrar, Adrian demonstra remorso e até certo arrependimento; durante uma audição na qual iria tocar sua última composição (Lamentação do Dr. Fausto), confessa em público os seus pecados, além da culpa que sente pela morte de pessoas próximas a ele, particularmente a de seu sobrinho Nepomuk. Leverkühn sofre um súbito colapso nervoso, e passa os últimos dez anos de sua vida em estado vegetativo. Com base nesta história de vida, Serenus Zeitblom narra a crise na arte. “Trata-se da história amarga de orgulho intelectual e cegueira moral; a proximidade do esteticismo e da barbárie como conseqüência da cultuação da arte; do pensamento ilusório de que o homem pode libertar-se a si mesmo.” (RIEMEN, 2011, p. 77) Doutor Fausto também é marcado pelas constantes alusões ao contexto histórico-social alemão e europeu: Thomas Mann transforma o drama pessoal do pianista Adrian Leverkühn em uma alegoria do próprio destino do povo alemão sob o regime nacional-socialista e a II Guerra; ou seja, neste romance a tragédia da Alemanha se une ao esgotamento da arte contemporânea. O gênio de Leverkühn, que não quis sucumbir à mediocridade, apela para o demônio, enlouquece e a redenção de sua arte torna-se sua própria condenação: “O talento que se fundiu com o mal pelo pacto paga, na esfera artística, com a aniquilação do compositor e, embora de forma distinta, na esfera política, com a aniquilação da Alemanha.” (BACKES, 2003, p. 253) A autoconsciência de Thomas Mann sobre o potencial hermenêutico de seu romance repleto de símbolos e alegorias se revela no fato de ter escrito A Gênese do Doutor Fausto: Romance sobre um romance (1949). Este texto serve como indicador dos fatos pessoais e históricos que influenciaram o autor para a “montagem” de Doutor Fausto. Além disso, revela seu repertório filosófico, tanto do passado (Schopenhauer e Nietzsche, sobre quem Mann escreveu um ensaio pouco depois que terminou o romance) quanto do presente: o filósofo Theodor Adorno (1903-1969) contribuiu com Mann para elaborar os momentos mais técnicos do romance; por exemplo, as composições de Leverkühn e suas reflexões sobre música. Adorno, líder da primeira geração da Escola de Frankfurt, escreveu obras importantes sobre estética e arte contemporânea, sendo que uma delas em particular – a Filosofia da Nova Música – incentivou Thomas Mann a procurá-lo em busca de auxílio para a gestação de
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Doutor Fausto. A colaboração de ambos prolongou-se durante quatro anos, e Adorno foi influência crucial para as digressões artísticas de pelo menos três personagens importantes da obra: Adrian Leverkühn, seu professor Kretzschmar e até mesmo o Diabo. A propósito, esta “conversa diabólica” também foi inspirada em uma passagem de Os Irmãos Karamázov (Fiódor Dostoiévski) em que Ivan Karamázov, no diálogo que trava com o Diabo, depara-se com as conseqüências perturbadoras de sua visão de mundo hiperracionalista. Em ambos os casos, o demônio funciona como auto-revelação dos pensamentos mais sórdidos dos personagens, além de gerar uma ambigüidade entre sonho e realidade. Feita esta breve exposição, cabe dizer que esta dissertação pretende interpretar a forma como Thomas Mann, em seu romance Doutor Fausto, faz uma mediação entre passado e presente; ou seja, como sua obra dialoga com a tradição filosófica alemã (Schopenhauer e Nietzsche), com o mito fáustico (desde suas origens até suas representações literárias em Marlowe, Goethe e Dostoiévski) e ao mesmo tempo se situa em relação a seu contexto histórico (II Guerra e Alemanha nazista) e artístico (Adorno). Acima de tudo, este romance será estudado à luz do conceito de Bildung (formação), uma idéia central para a intelectualidade alemã na “Era de Goethe”, mas cujas origens remontam à mística medieval. Este ideal, que visa à formação universal do indivíduo nutrido pela vida comunitária, foi abandonado em prol de doutrinas niilistas e esteticistas na primeira metade do Século XX. Em Doutor Fausto, Thomas Mann procurou retratar justamente esta guinada anti-humanística: a catástrofe que se abateu sobre a Alemanha na primeira metade do século passado seria um corolário de um processo iniciado quatro séculos antes, época tanto da Reforma quanto do surgimento do mito fáustico. Sendo assim, entender a forma como a crise da Bildung é representada neste romance será o objetivo desta dissertação. É preciso, contudo, também levar em consideração a tradição cultural na qual Mann é formado. No capítulo 2 (“Uma Abordagem Sociológica da Bildung”) passo por alguns episódios importantes da história do ideal humanista da Bildung na Alemanha. Foi descrito de forma sucinta o seu surgimento na mística medieval e na seita protestante do Pietismo; em seguida são apresentadas as contribuições de pensadores como Herder, Goethe e Humboldt e de movimentos como o Romantismo para conceber a idéia de um auto-aperfeiçoamento e de uma formação integral das potencialidades humanas, tanto no âmbito estético quanto no ético. Em seguida lido com as mudanças socioculturais no Século XIX que enfraqueceram a tradição da Bildung, e por fim, entrando explicitamente em terreno sociológico, são
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apresentadas as contribuições de Max Weber e Georg Simmel para se pensar a crise da cultura na transição dos Séculos XIX e XX. O capítulo seguinte (“Thomas Mann e a Vida como Bildungsroman”) trata do amadurecimento político e filosófico do escritor até meados da década de 1940. Mann se filiava ao pensamento conservador em Considerações de um Apolítico (1918), um longo ensaio que escreveu durante os quatro anos da Grande Guerra, porém nos anos seguintes há uma metamorfose de sua visão de mundo, indo tanto do decadentismo em direção ao humanismo quanto do conservadorismo à social-democracia. Estas mudanças ideológicas são rastreadas em ensaios como Sobre a República Alemã (1922) e Um Apelo à Razão (1930) e no romance A Montanha Mágica (1924). No capítulo intermediário “Leitmotiv: As Origens do Mito Fáustico” há uma breve descrição do surgimento do mito de Fausto na Europa do Século XVI, a partir das lendas que surgiram em torno do alquimista Jörg Faust, e como ele foi adaptado por dois clássicos da literatura ocidental: A História Trágica do Doutor Fausto (1592), de Christopher Marlowe, e Fausto I (1808) e II (1832), de Johann Wolfgang von Goethe. Um aspecto central é a relação entre este mito e o individualismo moderno. Em seguida, apresento os aspectos fáusticos do personagem Ivan de Os Irmãos Karamázov, com ênfase em sua conversa (ou delírio?) com o Diabo, a qual inspirou a situação parecida pela qual Leverkühn passa em Doutor Fausto. O capítulo 5 (“A Bildung demoníaca de Adrian Leverkühn”) apresenta em maiores detalhes o enredo de Doutor Fausto: dentre outras situações, há a educação musical de Leverkühn pelo professor Kretzschmar, os estudos universitários em Teologia, o pacto diabólico, a composição da Lamentação do Dr. Fausto e a confissão que fez em último concerto. Também discorro sobre uma questão mais teórica: seguindo a tipologia de Lukács (vide “Justificativa Teórica”), a trajetória de Adrian em Doutor Fausto pode ser considerada típica de um romance de formação, mesmo que possua características de um romance da desilusão ou mesmo de um romance histórico. A 6ª parte da dissertação (“A Presença da Filosofia Alemã: Schopenhauer e Nietzsche”) é sobre o diálogo que Mann desenvolve com a tradição filosófica em Doutor Fausto. De Arthur Schopenhauer ele herda a associação entre loucura e genialidade, além de uma visão de mundo que chama de “humanismo pessimista”; de Friedrich Nietzsche ele questiona o esteticismo (isto é, a hiper-valorização da Arte) e o vitalismo (abordagem filosófica que enfatiza elementos orgânicos e instintivos em detrimento dos racionais), além de se inspirar
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em eventos da vida deste filósofo para criar Leverkühn; por exemplo, a sífilis como fonte de inspiração e sofrimento e a perigosa proximidade intelectual entre o esteticismo e a barbárie. No capítulo 7 (“Um Concerto no Grande Hotel Abismo”) tratarei da colaboração entre o escritor Thomas Mann e o filósofo Theodor Adorno para a composição de Doutor Fausto. Ambos desenvolveram uma fecunda relação intelectual que permite penetrar nas principais discussões acerca da criação artística e da teoria estética no Século XX. No sub-capítulo 7.1. há uma síntese de algumas das principais questões estéticas tratadas por Adorno, como a possibilidade existencial da arte em um mundo em crise e as questões filosóficas suscitadas pela música dodecafônica de Arnold Schönberg. O sub-capítulo 7.2 trata da correspondência entre Mann e Adorno, por meio da qual desenvolveram uma colaboração decisiva para o romance, e demonstrarei a influência das idéias deste filósofo na criação dos personagens Adrian Leverkühn, Kretzschmar e mesmo do Diabo com o qual o protagonista Leverkühn pactua. Outra questão discutida é a posição do narrador Serenus Zeitblom a partir de um ensaio de Adorno sobre os dilemas da narrativa na literatura contemporânea. Por fim, no capítulo 8 (“A Esperança em meio à Crise: o Humanismo de Thomas Mann”) discuto a natureza da relação de Adrian Leverkühn com o contexto político e cultural da Alemanha; por meio da cena do romance sobre o círculo de Kridwiss, torna-se explícita a crítica do autor à intelligentsia alemã do período entreguerras. Em seguida, é finalmente apresentado o humanismo defendido por Mann, e como em sua visão de mundo este escritor concilia aspectos seculares e religiosos. Este ideal humanista aparece em Doutor Fausto a partir do amadurecimento de Zeitblom e do caráter problemático da Bildung de Leverkühn.
1.2.
JUSTIFICATIVA TEÓRICA
O primeiro pressuposto teórico que adoto em minha pesquisa é considerar que a literatura realista se nutre da sabedoria da “grande cultura humanística”, permeada por ricas descrições da realidade social. Este gênero literário – do qual fazem parte autores como Dostoiévski, Machado de Assis e o próprio Thomas Mann – é capaz de apresentar personagens sócio-historicamente enraizados e situados em mundos sociais particulares. Segundo Luis de Gusmão, a lucidez intelectual desses romancistas não se manifesta exatamente na formulação explícita, discursiva, de um saber “sobre o homem”, devendo antes ser buscada “na construção de personagens complexas e plausíveis, as quais, em determinadas
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circunstâncias, por palavras ou atos, evidenciam „coisas que podíamos não perceber‟, alargando assim o nosso autoconhecimento.” (GUSMÃO, 2012, p. 39). O segundo pressuposto para tratar a Literatura como fonte de estudo nas Ciências Sociais é a noção de “arte crítica”, segundo a qual “a arte aparece como forma de conhecimento e investigação, constituindo uma modalidade de saber, apta a compreender o mundo e sintetizar a realidade.” (CHAIA, 2007, p. 22) Na medida em que o artista possui a capacidade de “expressar poeticamente a sua sociedade” (Ibidem, p. 13), sua obra de arte ajuda na apreensão dos limites e paradoxos da política. Do ponto de vista epistemológico, as reflexões de Hans-Georg Gadamer em Verdade e Método amparam este trabalho, pois este pensador considera a literatura tanto um fundamento quanto um objeto de estudo proveitoso para as ciências do espírito: “A literatura é uma função da preservação e da transmissão espiritual e por isso introduz em cada presente sua história oculta. (...) Não há nada que possua um caráter espiritual tão puro quanto a escrita, e nada depende tanto do espírito compreendedor quanto ela.” (GADAMER, 2008, pp. 227-230) Ainda sobre a abordagem hermenêutica da literatura, o autor de Verdade e Método afirma que “toda obra de arte literária só pode se realizar inteiramente pela leitura” (Ibidem, p. 230), pois a estética deve se subordinar à hermenêutica. Em outras palavras, o sentido do texto só se realiza plenamente a partir da sua compreensão enquanto acontecimento semântico. Portanto, a hermenêutica deve “determinar-se, em seu conjunto, de maneira a fazer justiça à experiência da arte.” (Ibidem, p. 231) Além disso, Gadamer postula que a interpretação que não é meramente questão de metodologia, pois ela é inevitável; ou seja, é ontológica. Cabe à hermenêutica reativar intencionalidades, compreender o processo criativo a partir do contexto cultural. O hermeneuta é como um tradutor: explicita o não-dito. Gadamer enfatiza o diálogo com a tradição como uma forma de atravessar as perspectivas; a tradição é o “passado no presente”, e nos é possível re-conectar com ela, atualizando-a. Esta continuidade na relação entre passado e presente nos permite superar nossos próprios pontos de vista. Desta forma, há uma idéia humanista na hermenêutica de Gadamer: a modificação mútua entre o mundo do passado e quem o interpreta. A pesquisa é por definição Bildung (formação), pois o intérprete também se (trans) forma durante ela. A obra A Teoria do Romance, de Georg Lukács, também apresenta reflexões que inspiraram a minha pesquisa. Lukács afirma que o romance, enquanto forma literária
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moderna, expressa o desabrigo transcendental, é “a epopéia do mundo abandonado por Deus” (LUKÁCS, 2009, p. 89). O romance é uma construção “problemática”, emblema de uma modernidade que perdeu o sentido da vida, mas ainda assim mantém a busca por uma totalidade, mesmo que esta seja artificial e instável. Sendo assim, cabe ao romancista fazer dessa constatação da nulidade da ação humana o pressuposto para refletir sobre o próprio tempo e, quem sabe, tentar em sua obra reconciliar o indivíduo e o mundo. (cf. SILVA, 2006, pp. 88-89) Nesse sentido, Lukács acredita que no romance “a intenção, a ética, é visível na configuração de cada detalhe e constitui, portanto, em seu conteúdo mais concreto, um elemento estrutural eficaz da própria composição literária.” (LUKÁCS, 2009, p. 72) O que mais me interessa em Lukács é sua formulação de uma tipologia da forma romanesca, na qual cada uma delas tenta resolver à sua maneira a relação entre alma e mundo: o idealismo abstrato, quando a alma é mais estreita que a complexidade do mundo, sendo o Dom Quixote de Cervantes o exemplo clássico deste tipo; o romantismo da desilusão, em que a consciência do personagem é mais complexa que seu destino exterior e, por conseqüência, há um refúgio na interioridade, como se verifica nos romances de Flaubert; o romance de formação, que é uma tentativa de síntese do ideal do indivíduo com a realidade concreta, como se verifica em Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe; e, a extrapolação das formas sociais de vida, em que há um repúdio das convenções culturais do Ocidente, como nos romances dos russos Liev Tolstói e Fiódor Dostoiévski. A partir desses tipos de romance estabelecidos por Lukács, no capítulo 5 da dissertação há um “Intermezzo” no qual argumento que Doutor Fausto é, com algumas ressalvas, um romance de formação. No âmbito retórico, recorro ao que Bakhtin entende por polifonia; o sujeito que fala no romance é sempre, em certo grau, um ideólogo, alguém que defende e que experimenta suas posições, que desvenda sua posição de fé, sujeita a uma provação na trama. (cf. BAKHTIN, 1998, p. 135) Os personagens num romance polifônico são marcados pela autoconsciência e pela multiplicidade de discursos; algumas vezes, a voz do autor se confunde com a dos caracteres, mas as vozes destes também podem abafar a do escritor. Sendo assim, durante esta dissertação dou estatuto ontológico aos personagens literários, como se eles fossem autores, pessoas reais. Esta estratégia argumentativa permite explicitar quais deles apresentam idéias semelhantes às de Thomas Mann e quais expressam visões de mundo opostas às do escritor. Antes de encerrar esta introdução, algumas palavras serão ditas sobre as três visões de mundo mais recorrentes ao longo da dissertação: humanismo, niilismo e esteticismo.
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O Humanismo, embora seja uma cosmovisão heterogênea, pode ser entendido como a idéia e o imperativo de uma formação ideal, que tende a ter como conteúdo e escopo o próprio homem. De forma geral, os humanistas se preocupam com a plena formação cultural e intelectual do ser humano; daí o ideal do “homem universal”, capaz de dominar todas as artes e ser apto tanto ao estudo dos clássicos quanto ao pleno exercício da cidadania. O humanismo é um ideal educacional por excelência, pois consiste na busca do “homem dentro do homem”, isto é, o processo no qual um ser, originando-se de uma mera possibilidade de humanidade, se apresenta como um verdadeiro homem, dotado de virtude. Para o humanista, portanto, só é possível desenvolver todas as potencialidades humanas estabelecendo uma harmonia entre elas. (cf. MELLO, 1996, pp. 19-20) O Niilismo é outro conceito que pode ser assumir várias formas; mas, pode ser definido como a “situação de desnorteamento provocada pela falta de referências tradicionais, ou seja, dos valores e ideais que representavam uma resposta aos porquês e, como tais, iluminavam a caminhada humana.” (VOLPI, 1999, p. 8) O que o caracteriza é a negação de um “sentido último”, da vida que rege a passagem do mundo de Deus ao mundo dos homens, não havendo abertura ao devir. O niilismo pode assumir tanto uma faceta passiva (isto é, como mera crítica resignada dos valores superiores) quanto uma ativa. No segundo caso, “o espírito livre destruirá tais valores ao denunciar as ilusões sobre as quais repousam” (CAMUS, 2011, p. 91), pois, nesse vazio axiológico há uma brecha para a ação: o homem deve agir transformando a vida em uma experiência de criação e destruição. Ou seja, a postura niilista é marcada pelo ceticismo radical quanto à possibilidade de se atribuir um sentido à existência humana; sendo assim, para o niilista quaisquer princípios e critérios “absolutos” ou “universais” podem (ou mesmo devem) ser dissolvidos ou abolidos. Por sua vez, o Esteticismo consiste na afirmação da superioridade dos valores estéticos e do caráter auto-suficiente da Arte. No caso do esteticismo presente no pensamento de Friedrich Nietzsche, o que se tem é a idéia de que “a existência do mundo só se justifica como fenômeno estético.” (NIETZSCHE, 2007, p. 16) Os valores estéticos são superiores aos demais, “pois a Arte se situa acima do Bem e do Mal, e é a única atividade através da qual o homem, manifestando a sua vontade de poder, restabelecendo o seu contato com os instintos agressivos reprimidos pela educação moral, pode criar um sentido para a existência.” (NUNES, 1999, p. 39) Sendo assim, pouco importa que a criação artística se afaste da realidade e seja “amoral”, pois suas ilusões são mais humanas e suas exigências morais mais autênticas que os conceitos frios e abstratos da ciência e da filosofia.
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2.
UMA ABORDAGEM SOCIOLÓGICA DA BILDUNG
A palavra Bildung (cuja raiz etimológica é Bild [imagem], da qual deriva Bilden [formar, modelar]) tem suas origens na mística da Idade Média. O teólogo e místico germânico Meister Eckhart (1260-1327) foi quem criou este conceito, ao propor ver o homem como imagem de Deus. As seitas surgidas com a Reforma reiteraram a dimensão espiritualizada do conceito de Bildung, com destaque para o Pietismo, a vertente decididamente mais extramundana do protestantismo alemão; para os pietistas, a Bildung é o processo de construção do caráter do homem. É, contudo, a partir da secularização deste ideal no fim do século XVIII, através de pensadores como Goethe, Herder e Humboldt, que a Bildung se estabeleceu como a idéia de uma formação universal, estreitamente ligada ao conceito de cultura (Kultur) e designando, antes de tudo, a maneira especificamente humana de aperfeiçoar as aptidões e faculdades. (cf. GADAMER, 2008, p. 45) Realizada por meio do contato profundo do indivíduo com as várias esferas da cultura, a Bildung não se produz na forma de uma finalidade técnica, mas nasce do processo interior de formulação e aperfeiçoamento; ou seja, é imanente, um fim em si mesmo. Enquanto visão de mundo, a Bildung sintetiza elementos racionalistas provindos do Esclarecimento (Aufklärung) e do Classicismo com a valorização da subjetividade cara aos pré-românticos do Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto) e ao Romantismo. O que se busca é a formação integral e harmônica do ser humano, reconhecendo nele a paridade razão-emoção. Além do autoaperfeiçoamento do indivíduo (isto é, uma disciplina do self), também se objetiva algo mais coletivo e universalista: a constituição de uma nova Paidéia.
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A importância deste ideal
formativo na cultura alemã inspirou inclusive um novo gênero literário: o Bildungsroman (romance de formação), cuja obra mais representativa é Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister (1796), de Goethe. Uma peculiaridade da sociedade alemã que favoreceu o florescimento da Bildung consiste no fato de ter sido bem menos politizada, mais hierárquica e com menor mobilidade social que a França e a Inglaterra; com isso, os esforços intelectuais foram devotados a áreas 1
Paidéia era o processo educacional de formação cultural e intelectual dos jovens nobres na Grécia Antiga. Segundo Jaeger, a palavra alemã Bildung “é a que designa de modo mais intuitivo a essência da educação no sentido grego e platônico.” Vide JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 13. 2 Conceito de Max Weber que designa a atitude existencial marcada pela adaptação e conquista do mundo pelo fiel para, na medida do possível, permeá-lo pela glória divina; ou seja, procura-se reformar o mundo racionalmente por meio da ação vocacional (Beruf). 3 Vide GIACOMONI, Paolo. Paideia as Bildung in Germany in the Age of Enlightenment. Fonte: http://www.bu.edu/wcp/Papers/Mode/ModeGiac.htm 4 “A poesia romântica é uma poesia universal progressiva.” Vide SCHLEGEL, Friedrich. “Athenäum”. In: O
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mais introspectivas: a arte e a filosofia. Sendo assim, os intelectuais e artistas alemães viam seu auto-cultivo de forma mais estética e/ou especulativa que os britânicos e franceses. Esta situação excepcional da Alemanha em boa parte se explica pela importância particular que a burguesia cultivada deste país atribui à cultura e ao espírito. Para os alemães, a cultura (Kultur) é um valor dominante, sempre associada ao que eleva e ao que é distinto, ao que permite cultivar a interioridade da alma e desenvolver a autonomia da pessoa. (cf. VANDENBERGHE, 2012, p. 93-94) A insistência alemã na Bildung repercute na própria concepção alemã de liberdade, que é mais comunitarista e menos atomista que a inglesa e a francesa. A idiossincrática fórmula da “ideologia alemã” consiste em uma combinação de holismo comunitário e individualismo auto-cultivado. (cf. DUMONT, 1994, p. 19)
2.1.
O FLORESCIMENTO DO IDEAL DA BILDUNG ATÉ O SÉCULO XVIII
As raízes da idéia de Bildung remontam tanto à crença judaico-cristã de que os seres humanos são criados à imagem [Bild] e semelhança de Deus quanto ao conceito de "tornar-se como Deus" [homoiosis theoi], que aparece em Platão, o qual foi transmitido para a posteridade pelas tradições do platonismo e do neoplatonismo. Na Idade Média, a idéia de Bildung se expressa em imaginatio, uma das quatro virtudes tradicionais, “denominando a capacidade de representação interior e de auto-investigação.” (MAAS, 2000, p. 27) Quem, no entanto, de fato introduziu na língua alemã a palavra Bildung foi Meister Eckhart. Em sua origem este termo tem fortes traços místicos, pois se fala de uma entrega à Vontade eternamente ativa no mundo e na sociedade; para Eckhart, “nós gastamos no amor (ação caridosa) o que recebemos da contemplação.” (MERQUIOR, 1972, p. 57) Esta mística eminentemente ética será retomada séculos depois com a Reforma, particularmente pela tendência que melhor conciliou ascese intramundana2 com misticismo: os pietistas, movimento que surgiu de dentro do Luteranismo em meados do Século XVII com uma ênfase na subjetividade e na conduta pessoal. O Pietismo, segundo Max Weber, cultiva simultaneamente o lado sistemático e sentimental da religiosidade. Se por um lado os pietistas enfatizaram a disciplina do self, havia também elementos anti-racionais e até eudemonistas, na medida em que pregam um ideal de experimentar sentimentalmente a felicidade no 2
Conceito de Max Weber que designa a atitude existencial marcada pela adaptação e conquista do mundo pelo fiel para, na medida do possível, permeá-lo pela glória divina; ou seja, procura-se reformar o mundo racionalmente por meio da ação vocacional (Beruf).
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presente. (cf. WEBER, 2004, pp. 123-124) Ou seja, coexistem uma postura ascética e o cultivo da sensibilidade (Empfindsamkeit), no sentido de um “abandono sentimental” à Vontade divina.3 Esta vertente protestante exerceu profunda e extensa influência sobre a mentalidade prussiana e alemã, e é impossível separá-la de sua obra educativa. A partir do Século XVII escolas pietistas rapidamente se espalharam pelos diversos principados germânicos; a primeira universidade pietista, com a qual se iniciou toda uma revitalização das universidades alemãs, foi a de Halle, em 1694. Nela se verificava a combinação entre o novo espírito religioso e o desejo de livre investigação, que juntos combatiam o formalismo, o tradicionalismo e a subserviência à autoridade que marcavam outras universidades. Além disso, para os pietistas a educação significava o máximo desenvolvimento possível e o cuidadoso desdobrar do potencial único de cada alma individual. (cf. GROSS, 2006, pp. 3-4) Outra forma de manifestação do Pietismo é a literatura de conversão religiosa. Este gênero, que se popularizou no Século XVIII, consiste em relatos da trajetória pessoal do crente desde sua vida pregressa – geralmente descrita pelos convertidos como marcada por convicções errôneas e julgamentos falhos tanto no que se refere à vida social quanto a vocação individual – até o momento da conversão mística ao pietismo. Para os pietistas, o ato da própria existência no mundo secular é considerado pecaminoso, e sua concepção de Bildung envolve um “isolamento em relação ao mundo, como forma de se trilhar o caminho que leva à graça divina.” (cf. MAAS, 2000, p. 74) Uma boa caracterização do pensamento pietista foi feita por Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) em seu romance Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister . No Livro VI desta obra temos as “Confissões de uma Bela Alma”, narrativa de uma canonisa sobre sua conversão ao Pietismo e, conseqüentemente, sua renuncia à vida mundana, explicitada na seguinte passagem: “Nada me prendia ao mundo, estava convencida de que jamais haveria de encontrar aqui o que é justo, e assim me sentia no estado mais alegre e mais sereno, enquanto, havendo renunciado à vida, nela era mantida.” (GOETHE, 2006, p. 373) Para criar esta personagem Goethe inspirou-se em Susanne von Klettenberg (17231774), uma pietista que era conhecida de sua família. A trajetória da canonisa de Wilhelm Meister se desenrola entre a existência no mundo secular e a renúncia piedosa ao mesmo. O 3
Vide GIACOMONI, Paolo. Paideia as Bildung in Germany in the Age of Enlightenment. Fonte: http://www.bu.edu/wcp/Papers/Mode/ModeGiac.htm
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trecho a seguir é bastante revelador de duas características do Pietismo – o ascetismo e a intensa preocupação com a disciplina do self: Aquele cujo espírito anseia por uma formação moral tem todas as razões para educar ao mesmo tempo sua mais fina sensibilidade, a fim de não correr o risco de despencar do alto de sua moral, entregando-se às tentações de uma fantasia desregrada e chegando ao caso de degredar sua natureza mais nobre mediante o prazer em brincadeiras insípidas (...). Ser ativo (...) é a primeira destinação do homem, e deve empregar todos os intervalos, durante os quais se vê obrigado a descansar, para adquirir um claro conhecimento das coisas exteriores que, mais tarde, facilitaria sua atividade. (Ibidem, p. 394; 400)
Ainda que brevemente, cabe referir a Jean-Jacques Rousseau, um pensador que foi uma importante influência para a tradição alemã do auto-cultivo. Seu romance Emílio, ou Da Educação (1762) teve grande impacto não só nas concepções pedagógicas, mas na visão de mundo de muitos autores germânicos. Em Emílio, Rousseau preconizou um programa educativo capaz de formar a criança de acordo com suas habilidades e tendências naturais, pela intervenção de um preceptor, em direção à vida adulta. (cf. MAAS, 2000, p. 67) O autor emprega uma metáfora agrícola para explicar a importância do processo formativo: “Moldamse as plantas pela cultura, e os homens pela educação.” (ROUSSEAU, 2004, p. 8) Sua noção de perfectibilidade (perfectibilité) – que envolve a formação do ser humano tanto enquanto cidadão quanto em suas potencialidades naturais – é decisiva para o gênero literário que veremos no próximo capítulo, o Bildungsroman, pois com este conceito Rousseau antecipa a preocupação do pensamento alemão com a personalidade e auto-desenvolvimento do indivíduo, marcante em romances como Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister. Cabe lembrar ainda, no quadro do Aufklärung (versão alemã do movimento do Iluminismo/Esclarecimento), o filósofo Immanuel Kant (1724-1804), que afirmava que o homem, não como animal, mas como pessoa, deveria ser considerado um fim em si mesmo; ou seja, Kant enfatiza a realização pessoal (autotelia), colocada no centro da moralidade. O filósofo alemão, assim como Rousseau, acreditava que devemos, por meio do esforço moral, transformar necessidade em liberdade. Kant vê o sujeito moderno como “demiurgo”, capaz de realizar todas as suas possibilidades; sendo assim, o dever moral do homem é o de se elevar acima de si mesmo. Como veremos adiante, Humboldt se inspirará na filosofia kantiana para elaborar a sua noção de Bildung. Simultaneamente, em meados da década de 1770, surgiu um movimento artístico marcado pelo culto ao “gênio” e pela exploração do lado irracional do ser humano. O Sturm
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und Drang (Tempestade e Ímpeto) ressaltava um aspecto central para a idéia de Bildung: a subjetividade como força criativa; via-se o gênio como algo que dorme em todos, e que apenas espera um espírito (Geist) – no caso, o próprio Sturm und Drang agiria como tal – para finalmente vir ao mundo. (cf. SAFRANSKI, 2010, p. 24) Curiosamente, dois autores que mais tarde serão considerados “classicistas” tiveram seus primeiros êxitos literários com obras ligadas a este “pré-romantismo”: Goethe, com o romance epistolar Os Sofrimentos do Jovem Werther (1774), e Schiller, com o drama Os Bandoleiros (1781). Outra perspectiva da Bildung foi oferecida por Johann Gottfried Herder (1744-1803), que acredita que há um propósito geral a ser alcançado pela vida humana: a Humanität, termo que designa o desenvolvimento harmonioso de todas as almas em direção a metas universalmente válidas (razão, liberdade, amor, respeito mútuo), bem como a realização harmônica de tudo o que Deus implantou no homem, sua obra mais nobre. (cf. HERDER apud BERLIN, 2002, p. 425) A pessoa que se desenvolve em um indivíduo é e permanece o centro significativo, mesmo quando ela precisa de uma comunidade, desde que esta esteja organizada de modo que cada um possa fazer desabrochar suas potencialidades, funcionando assim como uma união para ajuda mútua neste desenvolvimento. Tal comunidade não resulta apenas numa soma: “ela forma um espírito especial através da atuação comum.” (SAFRANSKI, 2010, p. 28) Eis o porquê de Herder se referir ao Volksgeist (“espírito do povo”), ou seja, na cultura como caráter de uma nação, como esfera espiritual e interna própria de cada povo. Há neste pensador, portanto, uma mescla – aliás, constante na história do conceito de Bildung – de um personalismo radical com a exaltação da pluralidade cultural, vista como responsável pelo florescimento da riqueza humana. Herder postula um individualismo holista, contrário às concepções atomizantes do indivíduo e da sociedade advindas da França e principalmente da Inglaterra. Esta percepção do homem em Herder receberá a atenção do antropólogo Louis Dumont, na medida em que envolve elementos comunitaristas (pela ênfase na interiorização dos valores da comunidade) e universalistas (Herder atribui igual valor a todas as culturas). Segundo Dumont, o pensamento herderiano é como uma adaptação do individualismo para uma sociedade não-individualista quando esta é confrontada com a modernidade (cf. DUMONT, 1994, pp. 9-11).
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2.2.
O IDEAL DA FORMAÇÃO SEGUNDO CLASSICISTAS E ROMÂNTICOS
A secularização da Bildung, iniciada por Herder e influenciada por Rousseau, consolidou-se com os círculos literários e filosóficos na transição dos séculos XVIII e XIX. As figuras de destaque são os “classicistas” Goethe e Schiller, cuja colaboração foi decisiva nos capítulos mais pedagógicos de uma obra do primeiro, Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister. O protagonista Wilhelm sente a ânsia “de ser uma pessoa pública e agradar e atuar num círculo amplo (...), de formar o meu espírito e o meu gosto.” (GOETHE apud HABERMAS, 2003, p. 27) Wilhelm Meister surge em 1777 sob o título A Missão Teatral de Wilhelm Meister, com um enredo abertamente idealista (o protagonista tinha a ambição de reformar o teatro alemão, dando-lhe um aspecto educativo para o público) e, após várias revisões, concluído entre 1794 e 1796 com uma trama mais teleológica e com personagens num estilo mais realista, esta obra é considerada o primeiro “romance de formação” (Bildungsroman). Este novo gênero literário tipicamente mostra a trajetória de um jovem inteligente e de mente aberta em uma sociedade complexa e moderna, no sentido de não haver valores predominantemente compartilhados; este jovem, através da influência de amigos, educadores e conhecidos casuais e também de suas próprias capacidades intelectuais e artísticas, decide o que é melhor na vida para ele e como pretende alcançá-lo. Ao longo do enredo o protagonista vai amadurecendo, na medida em que aprende a lidar com problemas comuns nos relacionamentos pessoais e sociais e em que adquire uma filosofia de vida (Weltanschauung). (cf. BRUFORD, 1975: 30) No caso deste romance de Goethe, Wilhelm demonstra desde a infância a vontade de ser um ator e diretor de teatro; mas, no decorrer de sua formação associa-se a uma sociedade secreta filantrópica (a Sociedade da Torre), e por meio dela sua Bildung adquire uma conotação menos artística e mais sociopolítica, pois há nesta sociedade uma aliança – em alguns casos até matrimonial – entre aristocratas e burgueses preocupados com os desdobramentos do processo revolucionário na França. Como já foi dito, há uma interlocução de Goethe com as concepções pedagógicas de Rousseau, como demonstra a seguinte fala da já mencionada canonisa: “Ao se pretender fazer algo pela educação do homem, devia-se considerar para onde tendem suas inclinações e desejos. Em seguida deve-se colocá-lo em condição de satisfazê-las logo que possível”. (GOETHE, 2006, p. 403) Outro personagem bastante próximo da visão do autor de Emílio, o qual enfatiza a “educação pelo erro” (ou seja, deixar o educando desenvolver livremente suas
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potencialidades, mesmo que por um caminho errante), é o Abade, um dos membros da Sociedade da Torre: “Não é obrigação do educador de homens preservá-los do erro, mas sim orientar o errado.” (Ibidem, p. 470) Há, contudo, quem discorde dessa pedagogia “flexível” e defenda uma abordagem mais disciplinadora. Um exemplo desta segunda concepção é a própria Natalie, noiva de Wilhelm: “É melhor equivocar-se segundo as regras que se equivocar quando a arbitrariedade de nossa natureza nos deixa à deriva.” (Ibidem, p. 502) Uma temática sociológica que podemos visualizar no enredo deste romance é o conflito de status entre burguesia e nobreza. Wilhelm nasceu em uma família burguesa, mas está angustiado com as limitações que tal origem social lhe impõe, afinal ele anseia uma formação universal. No Livro V da obra, o protagonista escreve uma carta a Werner, amigo de infância que se tornou um próspero e mesquinho burguês, na qual traça interessantes observações sobre as diferenças entre o auto-cultivo na nobreza e na burguesia. Enquanto o nobre não conhece limites, pois ele “tudo dá só com a apresentação de sua pessoa”, ao burguês “nada se ajusta melhor que o puro e plácido sentimento do limite que lhe está traçado”. Não lhe cabe perguntar “Quem és tu?”, mas “Que tens tu? Que juízo, que conhecimento, que aptidão, que fortuna?” (Ibidem, p. 285) Apesar dessas dificuldades, Wilhelm não perde as esperanças de alcançar seu intento: Para dizer-te em uma palavra: instruir-me a mim mesmo, tal como sou, tem sido obscuramente meu desejo e minha intenção, desde a infância. (...) Tenho uma inclinação irresistível por essa formação harmônica de minha natureza, negada a mim por meu nascimento. (Ibidem, pp. 284-286)
Esta questão levantada pelo romance de Goethe coincide com o que o sociólogo Norbert Elias afirma sobre o contexto social alemão no fim do Século XVIII. Elias contrapõe a autoimagem da intelligentsia alemã de classe média, caracterizada por seu orgulho pela erudição, pela formação intelectual (Bildung) e pelo enriquecimento interno individual, e a imagem que este segmento social tinha sobre a vida da aristocracia cortesã: sua etiqueta, seu decoro e o controle das emoções eram vistos como superficialidade, falsidade e polidez de fachada. Nos principados germânicos a desigualdade de status entre nobreza e burguesia era muito mais marcante que, por exemplo, na vizinha França; com isso, havia diferenças nos costumes, nos gostos, na vida afetiva, nos ideais e aspirações da aristocracia cortesã e da classe média. Este contexto favoreceu o surgimento, no seio da classe média, de um ideal de autocultivo, na medida em que isso era visto como a distinção social e cultural possível para aqueles que não nasceram numa família nobre e, portanto, teriam de ascender por seus
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próprios méritos. Além disso, essa estratificação social estimulou o subjetivismo radical da intelligentsia burguesa: A burguesia comercial, que poderia ter servido como público para os escritores, é relativamente subdesenvolvida na maioria dos Estados alemães no século XVIII. A ascensão para a prosperidade apenas ensaia os primeiros passos nesse período. Até certo ponto, por conseguinte, os escritores e intelectuais alemães como que flutuam no ar. Mente e livros são seu refúgio e domínio, e as realizações na erudição e na arte são seu motivo de orgulho. Dificilmente aparece para esta classe oportunidade de ação política, de metas políticas. (ELIAS, 1990, p. 43)
Jürgen Habermas é outro autor que vê grande importância no conflito social presente em Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister. O rompimento de Wilhelm com o mundo da atividade burguesa à qual pertence seu cunhado Werner é visto por Habermas como a busca por “personalidade pública”, pela representatividade da qual carece a burguesia. A escolha de Wilhelm pela carreira teatral é uma alternativa para o fato de não ser aristocrata e não se identificar com suas origens burguesas: no palco, o homem culto aparece tão pessoalmente em seu brilho quanto nas classes altas. (cf. HABERMAS, 2003, p. 27) O outro lado da moeda é que Wilhelm Mester passa a pertencer a uma espécie de “limbo social”, pois não consegue se associar a nenhuma classe: orbita por todas elas (burguesia mercantil, aristocracia latifundiária e artistas), sem efetivamente engajar-se em nenhuma. (cf. MAAS, 2000, pp. 151152) Sendo assim, essa ambição pelo teatro – e seu inevitável fracasso – revelam a percepção de Goethe da decadência da representatividade pública na sociedade burguesa. Um dramaturgo que muito contribuiu para as passagens mais filosóficas deste romance foi Friedrich Schiller (1759-1805), cuja correspondência com Goethe nos seus últimos onze anos de vida é considerada o ápice do “Classicismo de Weimar”. A colaboração artística entre ambos foi impulsionada pelas Cartas sobre a Educação Estética do Homem (1794-1795), que Schiller estava escrevendo na mesma época em que Goethe redigia seu romance de formação. Essa obra epistolar revela o enorme impacto da Revolução Francesa (1789) na intelligentsia alemã e a necessidade que a mesma via de fornecer uma resposta que não fosse nem totalmente apologética nem de repulsa ao que estava acontecendo na França. Schiller sente-se por ela coagido a criar uma teoria estética moderna, e com isso se transforma no iniciador das subseqüentes tentativas românticas de incluir a revolução no mundo filosófico-literário, não apenas como tema, mas também como princípio produtivo. Em outras palavras, “a teoria schilleriana do jogo, de 1794, é o prelúdio da revolução literária romântica em torno de 1800.” (SAFRANSKI, 2010, p. 41)
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Na segunda carta sobre a Educação Estética do Homem, Schiller estabelece o princípio da utilidade como inimigo principal do ideal da Bildung: A utilidade é o grande ídolo da época; quer ser servida por todas as forças e cultuada por todos os talentos. Sobre essa grande balança, o ganho espiritual da arte não tem peso nenhum, e, roubada de toda motivação, ele desaparece diante do mercado barulhento do século. (SCHILLER, 2002, p. 21)
É possível afirmar que esta crítica de Schiller à mentalidade utilitária antecipou uma temática weberiana: a Modernidade como crosta de aço. Segundo Max Weber, a ascese, ao se transferir das celas dos mosteiros para a vida profissional, passou a dominar a moralidade intramundana e assim contribuiu “para edificar esse poderoso cosmos da ordem econômica moderna (...), que hoje determina com pressão avassaladora o estilo de vida de todos os indivíduos que nascem dentro dessa engrenagem.” (WEBER, 2004, p. 165) Cem anos antes, Schiller já dizia que a sociedade burguesa “vive mais do que nunca sob o imperativo da utilidade. Ele a descreve como um sistema fechado da racionalidade do útil e da razão instrumental, como uma máquina social.” (SAFRANSKI, 2010, p. 44) Nos trechos a seguir, retirados das cartas II, VIII e XV, Schiller afirma que antes da revolução política é preciso uma “revolução estética” – o que, aliás, pode ser visto como uma alternativa para compensar o “atraso” dos alemães diante da efervescência sociopolítica da vizinha França – e estabelece o cultivo da sensibilidade e o jogo (isto é, o impulso lúdico), principalmente sob a forma de arte, como responsáveis pela plena formação humana: Para resolver na experiência o problema político é necessário caminhar através do estético, pois é pela beleza que se vai à liberdade. (...) A formação da sensibilidade é, portanto, a necessidade mais premente da época, não apenas porque ela vem a ser um meio de tornar o conhecimento melhorado eficaz para a vida, mas também porque desperta para a própria melhora do conhecimento. (...) O homem joga somente quando é homem no pleno sentido da palavra, e somente é homem pleno quando joga. (SCHILLER, 2002, pp. 22; 47; 80)
Schiller, não surpreendentemente, analisou Wilhelm Meister munido de suas teorias estéticas, procurando no protagonista a expressão de seus ideais artísticos e filosóficos. Porém, fez algumas críticas à insuficiência do “progresso” do protagonista, chegando a reclamar da forma como Wilhelm assimila seu aprendizado e mestria; Schiller alegou que este personagem não desenvolveu plenamente seu estado estético, não possuindo de todo “aquela liberdade estética que o deixaria totalmente seguro para não cair em certos embaraços.” (GOETHE, 1993: 85-86) De toda forma, as contribuições deste dramaturgo ao romance de
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Goethe são explícitas em várias passagens, por exemplo: “A verdadeira arte (...) é como a boa sociedade: obriga-nos da maneira mais agradável a reconhecer a medida segundo a qual e para a qual está formado nosso ser mais íntimo.” (Idem, 2006, p. 492) Um terceiro classicista que merece a nossa atenção é Wilhelm von Humboldt (17681835). Este pensador considerava que a tarefa última de nossa existência é “conferir, pelos indícios de uma ação vital efetiva, um conteúdo de humanidade presente em nossa pessoa, tanto durante o tempo de nossa vida quanto para além dela mesma.” (HUMBOLDT, 2006: 217) Para Humboldt, a formação é algo mais íntimo que a cultura (Kultur), ou seja, é “o modo de perceber que vem do conhecimento e do sentimento do conjunto do empenho espiritual e moral, e que se expande harmoniosamente na sensibilidade e no caráter”. (GADAMER, 2008, p. 46) O ideal humboldtiano não é meramente o indivíduo livre em estado bruto, mas o indivíduo formado pela cultura, “esclarecido”, o herdeiro do século das Luzes; além disso, estava convencido de que uma vida dedicada com sucesso à Bildung constituía em si mesma uma obra de arte. De certa maneira, Humboldt é um herdeiro do Aufklärung, na medida em que preza o exercício crítico da razão realizado por uma humanidade tornada adulta, capaz de caminhar por seus próprios passos. Porém, ele se afasta um pouco do conceito “iluminista” de utilidade (isto é, de ver o cultivo da razão como algo “útil” ao progresso da humanidade), pois se propõe a corrigir ao menos dois erros fundamentais. Em primeiro lugar, para ele a Bildung é uma ampliação do âmbito da atividade espiritual do homem, pois reintegra a sensibilidade no horizonte teleológico da formação da identidade dos indivíduos, e, somente como conseqüência disso, de sua espécie. Em segundo lugar, essa ampliação abre o caminho para a entrada do elemento extra-racional, pois a gênese das forças que regem a formação é “ao mesmo tempo inapreensível pelo intelecto humano e imprevisível, se comparada às regularidades da visão de mundo newtoniana precedente.” (BRITTO, 2010, p. 11) Outro grande movimento que contribuiu para o ideal da Bildung na transição entre os séculos 18 e 19 foi a “Escola Romântica”. Reunidos em Jena, o objetivo deste círculo era criar uma nova cultura, muitas vezes com um impulso religioso, o qual havia sido desprezado pelo Aufklärung; não por acaso, os românticos viam a Arte como uma nova religião. Eles também valorizam a autonomia do pensamento e são marcadamente anti-sistemáticos; acreditam que o homem tem a potencialidade para tudo, desde que não esgote suas possibilidades em esquemas. O Romantismo alemão coloca a categoria de “gênio” como centro gravitacional do
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pensamento estético; ao contrário da visão apolínea do classicismo, que prioriza a criação de formas belas e puras, a ênfase dos românticos é na auto-expressão da subjetividade do poeta. (cf. ROSENFELD, 1985, p. 151) Friedrich Schlegel (1772-1829), que pode ser considerado o líder dos românticos, dá continuidade ao “impulso revolucionário” da teoria estética de Schiller e, ao lado de Novalis (1772-1801), cunhou o conceito de romantização para designar uma arte marcada pela sensibilidade e pela reflexibilidade: Toda e qualquer atividade da vida deve se carregar de significado poético, deve trazer à luz uma beleza da contemplação peculiar e uma força de criação que tem (...) seu „estilo‟. A arte lhes é, no geral, menos produto do que um acontecimento (...) onde pessoas executam suas atividades com energia criadora e impulso vital. (...) A vida tem de ser infiltrada pela poesia. Friedrich Schlegel cria para isso o conceito da poesia universal progressiva.4 (...) Tudo deve ser interligado com o espírito da poesia; os limites da especialização devem ser superados – não só a especialização na área da literatura (...) [ou] a especialização entre as diversas atividades do espírito (...); o que deve ser eliminado é a separação entre a lógica da vida cotidiana e do trabalho e qualquer outra atividade livre, criativa, do espírito. (SAFRANSKI, 2010, p. 56)
Os românticos alemães, ao contrário do que diz o estereótipo, não preconizam a “volta à natureza” ou o primitivismo rude. Embora mantenham alguns aspectos dos “pré-românticos” do Sturm und Drang, essa nova geração, ao invés de retornar à natureza, quer “avançar até ela, depois de assimilado todo o processo civilizatório.” (ROSENFELD, 1985, p. 154) O Romantismo é, segundo Friedrich Schlegel, a afirmação do que é “essencialmente moderno” – o que, em termos de gêneros poéticos, seria o romance. Para Schlegel, este conceito “deve conter em si todos os „subgêneros‟ possíveis, o drama e o épico, a poesia e a filosofia, o fantástico, o sentimental” (MAAS, 2000, p. 119). Cabe salientar que essa aspiração pela totalidade verificada nos românticos – e não só no âmbito estético, pois como disse Safranski essa síntese é buscada inclusive entre a vida cotidiana e a atividade criativa – é outra marca da tradição da Bildung. Porém, a totalidade almejada pelo Romantismo entra em choque com a dos classicistas, como demonstram as críticas que Novalis e Friedrich Schlegel fizeram a Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister. Novalis acusou a obra de ser prosaica (um “Cândido contra a poesia” 5) e Schlegel, 4
“A poesia romântica é uma poesia universal progressiva.” Vide SCHLEGEL, Friedrich. “Athenäum”. In: O dialeto dos fragmentos. Márcio Suzuki (ed.). São Paulo: Iluminuras, 1997, p. 64. 5 Alusão ao personagem principal de Cândido ou O Otimismo (1758), romance de Voltaire.
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embora a tenha considerado, ao lado da Doutrina das Ciências de Fichte e da Revolução Francesa uma das três “maiores tendências da época” (SCHLEGEL apud MAAS, 2000, p. 121), pondera que a formação de Wilhelm foi uma perfectibilidade inacabada, limitada. Tomando como pressuposto sua concepção da “poesia universal progressiva”, este romântico fez a seguinte crítica: Um romance perfeito deveria ser uma obra muito mais romântica do que o Wilhelm Meister; mais moderna e mais antiga, mais filosófica, mais ética e mais poética, mais política, mais liberal, mais universal, mais social. (...) Todo romance completo deve ser obsceno; deve dar também o absoluto da luxúria e da sensualidade – no Meister não há nem luxúria nem cristandade suficiente para um romance. (...) O Meister [é] por isso mesmo incompleto, porque não é totalmente místico. (Ibidem, p. 126)
Há, no entanto, um fundo comum aos românticos e ao “Classicismo de Weimar” que não pode ser ignorado: o contexto social alemão, no qual a ânsia por liberdade espiritual absoluta de filósofos e artistas convivia com o autoritarismo na política. Se a identificação da vida interior com a liberdade é um dos traços característicos da cultura alemã, é possível localizar aspectos sociais que justificam tal atitude subjetivista. Paradoxalmente, o individualismo da Bildung localiza-se no nível da comunidade [Gemeinschaft] que é união, pertença cultural, e não se liga com a sociedade [Gesellshaft] isto é, com as questões sociopolíticas, as quais envolvem divisão e luta por interesses particulares. (cf. DUMONT, 1994, p. 44) Dumont chega a afirmar que, ao contrário do alemão médio, que vive em comunidade e se identifica com ela, o intelectual alemão ignora a sociedade e pensa de si mesmo como um indivíduo, devotando sua atenção ao desenvolvimento de sua personalidade. (cf. Ibidem, p. 19) Esta caracterização aparentemente negativa da intelligentsia alemã pode, todavia, ser atenuada se considerarmos que muitos dos classicistas ocuparam importantes cargos públicos – principalmente Humboldt, que como Ministro da Educação da Prússia fundou a Universidade de Berlin (1810), exemplar do inovador modelo educacional prussiano, caracterizado pela liberdade de cátedra. Desta forma, é possível dizer que muitas vezes o “egoísmo” desse auto-cultivo era mais retórico do que prático. 2.3.
AS TRANSFORMAÇÕES SOCIOCULTURAIS DA ALEMANHA NO SÉCULO XIX E A
DECADÊNCIA DA BILDUNG
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O período oitocentista não teve, entre os povos germânicos, círculos literários e/ou filosóficos tão consistentes como o “Classicismo de Weimar” ou a “Escola Romântica”. A cena universitária alemã do início do Século XIX era dominada pelo idealismo filosófico de Fichte, Schelling e principalmente Georg Wilhelm Hegel, o qual se preocupou de forma tangencial com o tema da Bildung. Para Hegel, a essência universal da formação humana é tornar-se um ser espiritual, no sentido universal. (cf. GADAMER, 2008, p. 47) As grandes contribuições para o ideal da formação, contudo, foram de dois pensadores idiossincráticos e relativamente isolados do meio acadêmico: Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche. Schopenhauer desenvolveu uma teoria estética que enfatiza a contemplação do Belo e do Sublime (vide capítulo 6) que influenciou inúmeros artistas, tais como o músico Richard Wagner (1813-1883) e o escritor Thomas Mann. Além disso, este filósofo é o autor de Aforismos para a Sabedoria de Vida (1851), um tratado de ética no qual defende que a felicidade humana depende muito mais do que somos (isto é, de nossa personalidade) do que daquilo que temos ou representamos. Arthur Schopenhauer exalta o cultivo da riqueza interior, mesmo que em detrimento da sociabilidade: aquilo que um homem é por si mesmo, aquilo que o acompanha em sua solidão e que ninguém pode proporcionar ou subtrair lhe é mais essencial do que tudo o que possui, ou mesmo do que pode ser aos olhos dos outros. Nestes Aforismos há também uma defesa da vida intelectual, a qual permite ao homem adquirir “uma coesão, uma intensificação, uma totalidade e uma plenitude cada vez mais pronunciadas, como uma obra de arte amadurecendo aos poucos.” (SCHOPENHAUER, 2006, p. 39) Há na abordagem schopenhaueriana da Bildung uma diferença em relação às anteriores: o seu ideal formativo é radicalmente individualista, e a comunidade pouco contribui para o auto-cultivo. Para além da personalidade misantrópica de Arthur Schopenhauer, há um motivo mais sociológico: ele foi uma figura isolada, que chegou a abandonar a carreira acadêmica em 1821 por não ter espaço diante da hegemonia do idealismo hegeliano nas universidades alemãs durante a 1ª metade do Século XIX.6 Aliás, Schopenhauer via em Hegel o maior dos “filosofastros”, cujos pomposos discursos exaltavam o Estado como fim supremo, como florescência da existência humana e, com isso, conduziam a uma apoteose dos filisteus, isto é, dos burgueses de espírito vulgar, desprovidos de profundidade espiritual (cf. BARBOZA,
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Vide ensaio de Schopenhauer: Sobre a Filosofia Universitária. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
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1997, pp. 24-25). Será somente em 1851, e justamente com o sucesso dos Aforismos para a Sabedoria de Vida, que Schopenhauer se tornará mais conhecido. A propósito, foi um de seus discípulos7 que, ainda na juventude, mostrou como a educação universitária era cada vez menos capaz de fornecer os meios para a Bildung. Friedrich Nietzsche, entre 1872 e 1874, escreveu dois importantes ensaios sobre a educação: a conferência Sobre o Futuro de Nossos Estabelecimentos de Ensino e a terceira de suas “considerações
intempestivas”:
Schopenhauer
Educador.
Dando
prosseguimento
à
Kulturkritik schopenhaueriana, Nietzsche condena o otimismo vulgar da cultura moderna, cujos valores são uma celebração da mediocridade e da barbárie quando comparados com os da cultura grega. Além disso, este filósofo lutou contra a decadência cultural que prosperava no seu tempo. Se até meados de 1850 o problema educacional era a “estatolatria” e a exaltação do papel histórico da burguesia pelos “filosofastros”, a partir da segunda metade do século o desafio que Nietzsche toma para si é a defesa da formação humanística diante da educação meramente profissionalizante e, acima de tudo, do “filisteísmo cultural”. Uma das facetas deste é a subordinação da cultura à economia política, e o seguinte trecho estabelece uma continuidade com a crítica da mentalidade utilitária feita anteriormente por Schiller: Temos aqui, como objetivo e fim da cultura a utilidade, ou, mais exatamente, o lucro, o maior ganho de dinheiro possível. Do ponto de vista dessa tendência, (...) a verdadeira tarefa da cultura seria então criar homens tão „correntes‟ quanto possível, um pouco no sentido em que se fala de uma „moeda corrente‟. Quanto mais houvesse homens correntes, mais um povo seria feliz; e o propósito das instituições de ensino contemporâneas só poderia ser justamente o de (...) formar os indivíduos de tal modo que, do seu nível de conhecimento e de saber, ele possa extrair a maior quantidade possível de felicidade e de lucro. (NIETZSCHE, 2011, pp. 72-73)
O tipo humano que Nietzsche estabelece como alvo é o “filisteu da formação” [Bildungsphilister], o qual presume ser um homem da cultura. Em sua falta de autoconhecimento, ele se sente firmemente convicto de que a sua “formação” é a expressão plena da cultura alemã, e como encontra por toda parte pessoas com formação semelhante à sua e vê que todas as instituições escolares e artísticas estão constituídas “segundo a sua própria bagagem formativa [Gebildetheit] e segundo as suas necessidades, ele ostenta por toda parte o sentimento vitorioso de ser o digno representante da atual cultura alemã e, em
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Não no sentido de uma ligação pessoal, afinal Nietzsche só conheceu a obra de Schopenhauer em 1865, portanto cinco anos após a morte deste.
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consonância com isso tudo, levanta as suas exigências e pretensões.” (NIETZSCHE apud MAZZARI, 2010, pp. 107-108). Friedrich Nietzsche também desconfia da “liberdade acadêmica” (sim, aquela mesma preconizada pelo modelo prussiano de Humboldt), alegando que ao invés de favorecer a elevação da cultura, ela leva a um distanciamento nocivo entre professor e aluno no processo pedagógico; a suposta “autonomia” não passa de uma ilusão que mascara a agonia dos alunos de se verem conduzidos a uma especialização limitada, e não promove de fato a individualidade, mas sim a imaturidade, a ignorância e a mediocridade. Em suma, para Nietzsche “os estabelecimentos de ensino da sua época se apresentavam como instituições transmissoras de uma educação ao mesmo tempo uniformizada e medíocre, utilitária e integradora.” (SOBRINHO in NIETZSCHE, 2011, p. 16) No que diz respeito à situação social da Alemanha naquela época, segundo Habermas desde a metade do Século XIX foram abaladas as instituições que, até então, asseguravam a reunião do público enquanto público pensante. A principal delas, a família, perdeu suas funções tradicionais, inclusive a de “círculo de propaganda literária”. Além disso, o “salão” burguês saiu de moda, e as atividades de convívio informal perderam a força específica de instituição que assegurava a conexão dos contatos sociais como substrato da comunicação pública. Com isso, o público pensador de cultura passa a ser um público consumidor de cultura, vigorando dali em diante a serviço da propaganda econômica e política. (cf. HABERMAS, 2003, p. 192-193) Durante o Século XIX os alemães, mesmo após a unificação do país e o forte desenvolvimento econômico após 1870, continuavam a compor uma sociedade estratificada; a ascensão política da burguesia foi limitada, e não rompeu com as estruturas feudais e nobiliárquicas. Nas últimas décadas deste século, entretanto, houve a crescente militarização da sociedade alemã, o que ofereceu obstáculos inclusive culturais ao ideal da formação universal. Norbert Elias (1997) observou neste processo uma guinada ideológica da classe média, indo do humanismo para o nacionalismo. O período clássico da literatura e filosofia alemã, segundo Elias, representou uma etapa no desenvolvimento social da Alemanha, durante a qual o antagonismo entre a classe média e a nobreza de corte foi muito pronunciado. No início do Século XIX, o humanismo idealista do movimento clássico teve uma influência determinante nas iniciativas políticas da oposição da classe média alemã, e um dos principais pontos presentes nos programas tanto dos liberais
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quanto dos conservadores-nacionalistas era a unificação da Alemanha, o que poria fim à pluralidade exacerbada de Estados germânicos. O fracasso desses planos causou grande impacto no desenvolvimento do habitus8 alemão da classe média, e este choque foi aprofundado quando o rei da Prússia (e seu conselheiro Bismarck) conseguiu satisfazer militarmente os anseios pela unificação alemã, “através de uma guerra vitoriosa, quando as classes médias nada tinham conseguido por meios pacíficos. A vitória dos exércitos alemães sobre a França [em 1871] foi, ao mesmo tempo, uma vitória da nobreza alemã sobre a classe média alemã.” (ELIAS, 1997, p. 26) Os grupos da classe média germânica, conseqüentemente, passaram a adotar o estilo de vida e as normas da nobreza militar como seus próprios; de forma decisiva, eles trocaram o idealismo burguês clássico pelo Realpolitik (realismo de poder) e pelo nacionalismo expansionista. Ou seja, o código moral humanista, que excluía a violência e pressupunha uma identificação fundamental entre todos os seres humanos, decaiu diante da crença de que nas relações entre os Estados devem prevalecer o interesse próprio irrestrito. (cf. Ibidem, p. 136) Segundo Norbert Elias, com freqüência os modelos aristocráticos adotados o eram de forma equivocada, e o ethos militar foi em geral apropriado enquanto apoio ao uso ilimitado do poder e da violência. Décadas depois, no regime nacional-socialista (1933-1945), um exemplo dessa vulgarização grosseira de modelos aristocráticos era a exigência de que todo “ariano” tinha de provar sê-lo apresentando um número específico de ancestrais “arianos”. Porém, acima de tudo, o centro da doutrina nazista se encontra nesse antecedente histórico de legitimação, pela classe média, do recurso “realista” a atos de violência. (cf. Ibidem, p. 27) Este processo de militarização da sociedade alemã foi bem descrito pelo próprio Thomas Mann em seu primeiro romance, Os Buddenbrooks: Decadência duma família (1901). Ao retratar as mudanças pedagógicas numa escola secundária inspirada no Ginásio Katharineum de Lübeck, onde estudara na adolescência, Mann expressava melancolia (como, aliás, sugere o próprio título de seu romance, que contém a palavra Verfall [decadência]) diante do autoritário complexo acadêmico-militar que emergiu na Alemanha do II Reich. A educação a serviço do Estado “parecia ser o único caminho possível para se progredir (o que se refletia na mania de vestir as crianças com uniformes de marinheiro).” (PRATER, 2000, pp. 25-26). Eis um trecho dessa crítica em Os Buddenbrooks:
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Em Elias, habitus diz respeito à segunda natureza, ao saber social incorporado por meio da vida em sociedade.
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Outrora, a cultura clássica era considerada ali como objetivo agradável, que tinha em si próprio o seu fim, procurado com calma, ócio e idealismo alegre. Agora, nesse mesmo lugar, as idéias de autoridade, dever, poder, serviço e carreira tinham chegado às mais altas honras. (...) A escola se tornara Estado dentro do Estado. (MANN, 1975, p. 632)
Outro autor que enfatizou a força desses elementos militaristas e conservadores na Alemanha foi o sociólogo Talcott Parsons. Em um estudo sobre a estrutura social da Alemanha pré-nazista, ele constatou que a “revolução” que depôs a monarquia do II Reich e instalou a República de Weimar (eventos aos quais se somou a redução do exército alemão pelo Tratado de Versalhes, em 1919) não foi suficiente para quebrar a identidade social ou destruir os privilégios tradicionais da elite militar e Junker (nobreza rural alemã). Um dos fatores responsáveis por essa permanência foi a ideologia do “conservadorismo prussiano”, que combinava um tipo patriarcal de autoritarismo com um legalismo formal altamente sofisticado. Mesmo o luteranismo tinha o seu papel nesse complexo ideológico, pois a doutrina da predestinação dava legitimidade à elite dirigente. (cf. PARSONS, 1954, pp. 107109) Eis, portanto, o ideal da Bildung colocado em xeque.
2.4.
A CRISE DA BILDUNG SEGUNDO WEBER E SIMMEL
Como a Sociologia, ciência humana que estava se consolidando justamente na transição dos séculos XIX e XX, lidou com a questão da Bildung? O propósito deste sub-capítulo é descrever e analisar os diagnósticos de dois sociólogos pioneiros, Max Weber e Georg Simmel, no intuito de entender com ambos lidaram com este problema. Segundo Fritz Ringer (1934) em sua obra O Declínio dos Mandarins Alemães (1968), além da elite sociocultural conservadora descrita no sub-capítulo anterior por Parsons, havia um segmento “modernista” dessa elite, o qual devia seu status muito mais às qualificações educacionais do que à riqueza ou aos direitos hereditários. Este grupo se apoiava no ideal da Bildung e na visão de que o ensino constitui uma interação empática e única com textos cultuados. Mesmo a sociologia alemã era filha legítima do modernismo mandarim, refletindo as ansiedades e preocupações fundamentais das teorias políticas e sociais do conservadorismo romântico ao mesmo tempo em que se propunham a “aceitar que algumas facetas da vida moderna são inevitáveis ou mesmo desejáveis (...). Essa atitude levou-os (...) a manter um
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ideal heróico de clareza racional perante a tragédia (...): tornaram-se científicos.” Simmel e Weber são dois dos cientistas sociais mais importantes deste campo modernista e ambos, sempre com certo pessimismo cultural, “puseram sua ambivalência a serviço da análise.” (RINGER, 2000, pp. 11; 159; 173) Em A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo (1904), Max Weber analisa os efeitos e conseqüências não-premeditadas da teologia protestante na mentalidade e aquisição capitalistas. Um aspecto central desse processo é resumido no conceito de ascese intramundana, atitude existencial na qual o crente sente-se como instrumento de Deus, e a partir da rejeição do mundo (afinal este está corrompido pelo pecado original e, em sua imperfeição, não faz jus à perfeição emanada pelo Deus transcendente), procura adaptá-lo e conquistá-lo para, na medida do possível, torná-lo mais digno da glória de Deus. Este processo envolve uma disciplina do self – ou, nas palavras de Weber, uma “auto-inspeção sistemática.” (WEBER, 2004, p. 105) Há uma ruptura do crente com o habitus da vida “natural” e um esforço em prol do aperfeiçoamento da personalidade, o que envolve o rigor da conduta em todos os domínios da vida. No capítulo final desta obra, entretanto, aparece um tema mais sombrio: às afinidades eletivas entre ethos protestante e economia capitalista sucedeu-se uma fase em que o capitalismo não precisa mais de um sustentáculo ético; ou seja, a sociedade passa a se guiar por critérios estritamente utilitários, pelos meios e não pelos fins; enfim, pela racionalidade instrumental. Para Weber este é apenas um caso que evidencia um fenômeno generalizado: os universos sociais e culturais se autonomizam e evoluem segundo as suas próprias leis internas. Aliás, é isto que caracteriza a entrada na modernidade cultural: “a racionalização9 e o refinamento consciente das relações que os homens entretinha com as diferentes ordens de bens (...) materiais, espirituais, profanos e religiosos, lograram colocar em evidência a autonomia interna das esferas particulares.” (WEBER apud VANDENBERGHE, 2012, p. 316) É possível dizer que essa tensão entre valores e a crescente racionalização das relações sociais desempenharam um papel decisivo em minar o ideal da Bildung. Na opinião de Weber, a racionalização ocidental, ligada como foi com o desenvolvimento da ciência, tinha criado as crises tanto da cultura ocidental em geral quanto da cultura alemã em particular. (cf. GOLDMAN, 1992, p. 53) Weber deixa transparecer a 9
O processo de racionalização é caracterizado pela objetividade, a impessoalidade, a indiferença ética e a disciplina. (cf. VANDENBERGHE, 2012, p. 267) Ou seja, as estruturas sociais da sociedade moderna são marcadas por uma crescente previsibilidade e calculabilidade das ações.
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consciência do áspero destino que a modernidade acarretava: ela “paga suas conquistas com a incapacidade de fundamentar pela razão os valores supremos e as opções vitais.” (VOLPI, 1999: 75). Estamos falando do desencantamento do mundo, que levou os homens a banirem da vida pública os valores supremos e mais sublimes; estes agora apenas “encontram refúgio na transcendência da vida mística ou na fraternidade das relações diretas ou recíprocas entre indivíduos isolados.” (WEBER, 1972: 51) A conseqüência desse desencantamento é uma cultura destituída de apego a qualquer princípio ético transcendente – inclusive a idéia de uma formação humanística. Weber, contudo, em A Ciência em Vocação (1918) chega a oferecer uma “solução” para o problema que coloca: a idéia de especialização. Ao invés da Bildung convencional, caracterizada pela experiência interior que vem a público para ser aperfeiçoada, o especialista escolhe um ofício e se concentra nele. Se por um lado a especialização é um traço da modernidade avançada, com a crescente autonomia das diversas esferas da vida ela se torna criativa e bem-sucedida “desde que feita com paixão, ou seja, marcada pela preferência incondicional e muitas vezes obscura por um assunto ou tema” (CALDAS, 2006, p. 120). É nesse sentido que se pode falar em vocação (Beruf), ou seja, em adesão a um ideal convertido em dever, colocando o self a serviço de algo externo a ele. Somente aquele que se coloca pura e simplesmente a serviço de sua causa possui “personalidade”. Pela dedicação às suas tarefas, o especialista é capaz de elevar a dignidade daquilo com que se ocupa. Cabe-lhe ser capaz de agir com distanciamento e profundidade em relação às pessoas e às coisas, mas sem deixar de ter paixão pelo que faz ou estuda: “Sem essa embriaguez singular, (...) melhor será que se dedique a outra atividade. Com efeito, para o homem, enquanto homem, nada tem valor a menos que ele possa fazê-lo com paixão.” (WEBER, 1972, p. 25) Max Weber, embora esteja longe de ser um tradicionalista ou mesmo um humanista nostálgico, não necessariamente quer abandonar a noção de Bildung, mas alargá-la, de tal forma que ela possa servir à Humanidade de uma forma que não seja estritamente contemplativa. Desta forma apelava “ao senso de responsabilidade (...) e convidava a viver virilmente, sem profetas nem salvadores, o destino do relativismo e do niilismo de nossa época, seguindo, na labuta diária, o „demônio‟ que tece as teias da própria existência.” (VOLPI, 1999, p. 76) Por sua vez, Georg Simmel possui um pensamento marcado pela plasticidade, pois se move pelas mais diversas direções, e defende o fragmento de toda pretensão de sistema. Não
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por acaso, é um autor interdisciplinar, que navega pelas mais diversas áreas – desde a estética até a economia -, de acordo com aquilo que julgue necessário para entender seu objeto de estudo. Aliás, sua própria definição do que caracteriza a modernidade demonstra essa flexibilidade: para Simmel, ela consiste numa libertação do que é fixo e sólido, sendo marcada pela mobilidade do espírito. O moderno é contingente, é um livre jogo que se desenrola infinitamente. (cf. WAIZBORT, 2000, pp. 23-25) Mesmo assim, é possível dizer que a questão fundamental para a sociologia de Simmel é a relação entre cultura subjetiva e cultura objetiva. Porém, o que este autor entende por cultura? Simmel define-a como o requinte, as formas intelectualizadas da vida, a realização do trabalho mental e prático. Os valores tornam-se manifestações da cultura na medida em que nós os interpretemos como telas [displays] intensificadas de vitalidade natural e potencial, e intensificadas para além do nível de plenitude, desenvolvimento e diferenciação que seria alcançado pela sua natureza simples. (cf. SIMMEL, 1990, p. 446) Em outras palavras, a cultura é o caminho que sai da unidade fechada, passa pela pluralidade desenvolvida e chega à unidade desenvolvida. (cf. Ibidem, 2002, p. 320) Em sua filosofia da cultura Simmel desenvolve uma noção dinâmica da cultura; esta não é somente a objetivação da alma nas formas (“o sujeito se objetiva”), mas também, inversamente, a formação da alma através da assimilação das formas objetivadas (“o objetivo se subjetiva”). Essa interação é teleológica, “pois o sujeito, apropriando-se dos conteúdos culturais, faz um desvio pela cultura objetiva unicamente para cultivar sua alma, para aperfeiçoar seu ser em sintonia com suas próprias aspirações, em suma, para realizar-se realizando seu próprio potencial.” (VANDENBERGHE, 2005, p. 170) Em outras palavras, o auto-cultivo só existe se o homem incorpora em seu desenvolvimento algo que é externo a ele - um desafio, algo diferente, que lhe é estranho. A cultura objetiva serve para desestabilizar o que há de mais íntimo em cada um; isso se dá, por exemplo, pela educação do tato moral. Para Simmel essa versão mais cultivada de si mesmo é um processo puramente imanente, afinal só nos homens se encontra a possibilidade de aperfeiçoamento. Este cultivo consiste na articulação teleológica do sujeito com o objeto, o qual de alguma forma tem um potencial natural e estrutural latente e, portanto, é por meio da cultura que cumprirá suas tendências essenciais e fundamentais. (cf. SIMMEL, 1971, p. 228) Segundo Simmel, “talvez um ser humano só possa ser considerado cultivado se a passagem pela cultura objetiva lhe tiver permitido educar sua alma a um ponto tal de
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perfeição que ele jamais poderia ter atingido se tivesse sido abandonado a si próprio.” (VANDENBERGHE, 2005, p. 171) É nesse ponto que entra a idéia de Bildung, pois as experiências clássicas e românticas se unem na manutenção da cultura subjetiva e objetiva. As transformações sociais que começaram no Século XVIII e se radicalizaram no séc. XIX e início do XX trouxeram uma mudança crucial: segundo Simmel, houve uma ruptura entre objetividade e subjetividade. Veio à tona uma defasagem entre o cultivo dos objetos (que se aperfeiçoou
de forma acelerada) e dos
sujeitos
(que não aumentou
proporcionalmente). Em outras palavras, ocorreu uma separação fortemente crescente entre a produção cultural objetiva e o nível cultural do indivíduo. Com isso, surgiram homens menos capazes de ganhar da perfeição dos objetos uma perfeição da vida subjetiva. Com o crescimento das forças produtivas e a divisão social do trabalho10, o mundo anterior (isto é, aquele em que havia conexão entre cultura objetiva e cultura subjetiva) começou a ser quebrado: a objetividade não consegue mais ser colocada a serviço da subjetividade. A Segunda Revolução Industrial fez com que estes vínculos se perdessem, fragmentando-se; aquilo que era cultura objetiva virou mercadoria, ganhou completa independência. Na medida em que a objetividade se autonomiza e se hipertrofia, a síntese se transforma em paradoxo e mesmo em tragédia. A cultura objetiva se aparta de sua significação de mediadora, “acolhendo em si todos os conteúdos espirituais presentes e passados, torna-se inchada e a tal ponto hipertélica que o indivíduo se encontra esmagado pela amplitude da riqueza acumulada, que de modo algum ele pode assimilar.” (Ibidem, p. 171) Eis, portanto, a configuração da tragédia da cultura: As coisas que preenchem e circundam concretamente nossa vida, instrumentos, meios de circulação, produtos da ciência, da técnica da arte, são indiscutivelmente cultivadas; por outro lado, a cultura dos indivíduos não avançou na mesma proporção e até retrocedeu em vários aspectos. (SIMMEL, 1990, p. 453)
O problema se revela maior ainda quando Simmel afirma que a saída da tragédia da cultura não se dá pela exacerbação da subjetividade. A insistência dura da personalidade no seu próprio modo de existência (sendo, aliás, a vida de Nietzsche o maior exemplo dessa
10
Cabe notar que pensamento de Simmel dialoga bastante com o de Karl Marx: “Simmel corrige, generaliza e persegue a crítica marxista da alienação (...). [É] possível dizer que a Filosofia do Dinheiro não poderia ter sido escrita se ela não tivesse sido precedida pelo Capital”. (VANDENBERGHE, 2012, p. 224)
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postura) proporciona um tipo peculiar de desenvolvimento, mas que não é auto-cultivo. Ou seja, tais indivíduos possuem intensidade e força, mas são autofágicos e acabam implodindo. Sendo assim, para Georg Simmel a cultura pode entrar em crise de duas maneiras: ou quando a cultura objetiva segue suas próprias leis e se dilata a tal ponto que o individuo não pode mais assimilar uma ínfima parte dela (tragédia da cultura); ou quando o indivíduo, para se proteger de sua própria alienação, se volta para si mesmo e tenta se auto-realizar mergulhando no mais profundo de si mesmo (o que hoje em dia seria chamado de “cultura do narcisismo”, “era do vazio”). Com isso Simmel quer dizer que, assim como a objetivação da vida em formas culturais pode se transformar em alienação, “a reação inteiramente sadia da vida contra a alienação pode ir inteiramente longe e se tornar patológica. Esse é o caso quando a vida não se contenta em fluidificar ou substituir as formas mortas e alienadas, mas rejeita as formas como tal.” (VANDENBERGHE, 2005, p. 187) Portanto, com esse segundo tipo de crise Simmel quer dizer que alguns dos problemas mais profundos da vida moderna, tal como esta questão foi formulada em As Grandes Cidades e a Vida do Espírito (1903), provêm da pretensão do indivíduo de resguardar a autonomia e a peculiaridade da sua existência frente às superioridades da sociedade, da herança histórica, da cultura exterior e da técnica da vida. A vida do espírito passa a ser caracterizada pela impotência, o estiramento dos nervos e a perda da vivacidade e da disposição para lidar com o mundo. (cf. SIMMEL, 2005, p. 577) O maior problema da vida moderna reside no conflito entre indivíduo e sociedade, entre cultura interior e cultura exterior; esta é “uma configuração histórica do processo civilizatório, de diferenciação social, de identidade do eu.” (WAIZBORT, 2000, p. 316) O homem moderno é desenraizado e isolado; soçobra no vazio do absurdo, é um niilista no sentido nietzschiano, pois “não tem mais um fim último.” (SIMMEL apud VANDENBERGHE, 2005, p. 154) Eis o desfecho melancólico da Bildung para Simmel, que, ao contrário de Weber, não percebe nenhuma “redenção”; presume que não se pode alterar esse mundo. No máximo seria possível encontrar certos espaços e momentos em que a sociabilidade poderia escapar ao efeito deletério; porém, mesmo estas são “aventuras”, experiências frágeis e efêmeras. Em uma comparação das abordagens de Max Weber e Georg Simmel, começo por uma semelhança: a influência nietzschiana que ambos compartilham, que se manifesta na crença aristocrática de que são poucos os homens realmente capazes de enfrentar a crise da Bildung. Em outras palavras, tanto para Weber quanto para Simmel são raros os indivíduos que
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conseguirão, em suas vidas, reequilibrar cultura objetiva e subjetiva e assim alcançar o pleno cultivo de si mesmos: “Inspirando-se em Nietzsche - e inspirando diretamente a formulação da „ética da responsabilidade‟ de Weber -, Simmel considera que somente os „virtuoses da ética‟, somente os „super-homens‟ têm a consciência e a coragem de se realizarem a cada instante e a cada ato.” (VANDENBERGHE, 2005, p. 194) A diferença central entre ambos reside nas distintas posturas existenciais que cada um deles adota a partir desse legado nietzschiano. Max Weber se apropriou do lado mais “propositivo” de Nietzsche (o “niilismo ativo”), pois acredita que é preciso enfrentar a depreciação histórica dos valores superiores; além disso, enfatiza a importância do posicionamento, do comprometimento incondicional e subjetivo do homem com o destino. Weber mantém o realismo sem perder um tom confiante; ele preserva a Bildung ao fazê-la sóbria, “mantendo nela o que lhe parece essencial, depurando tudo o que, se um dia já foi músculo envelheceu e virou peso morto.” (CALDAS, 2006, p. 119) É na insubordinação a todo princípio heterônomo que a razão se mantém lúcida, governando-se e modelando-se por si mesma. O exercício da razão é a virtude de uma ascese intramundana que conhece e aceita o caráter criado deste mundo, mas renuncia a qualquer valor transcendental e considera a finitude a única dimensão temporal em que se mesclam o êxito ou o fracasso da vida. (cf. VOLPI, 1999, p. 76) Simmel tem uma visão de mundo mais trágica, bastante ancorada num vitalismo que vê o conflito entre a “vida” e as “formas culturais” como um impasse, algo insolúvel. Não por acaso, o diagnóstico que faz de seu tempo é melancólico: a pluralidade dos mundos e das esferas em que se manifesta o espírito humano (o mito, a arte, a religião, a ciência, a técnica) não se aglutinam nem se conciliam; cada uma dessas áreas parece afirmar-se em sua própria autonomia e validade: “A vida está em permanente contraste com as formas culturais que ela mesma produz, pois estas últimas tendem a se cristalizar.” (VOLPI, 1999, p. 69) Diante da vida da alma que vibra sem cessar, em ilimitado desenvolvimento, “está seu produto sólido, idealmente inamovível, com a perturbadora capacidade (...) de enrijecer essa vitalidade. Muitas vezes, é como se o dinamismo criador da alma morresse em seu produto.” (SIMMEL apud VOLPI, 1999, p. 69) Diante da crise da Bildung, Simmel adota uma postura esteticista e blasé, para empregar um termo que ele próprio utiliza para descrever o esgotamento do ânimo do homem metropolitano (cf. SIMMEL, 2005, pp. 581-582) - e não vê na política (ou na ciência) arenas nas quais possam ser infundidos valores que inspirem uma vida mais plena.
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3.
THOMAS MANN, A VIDA COMO BILDUNGSROMAN
Thomas Mann pode ser considerado o prototípico intelectual da Bildung (cf. SOUZA, 1997, p. 3), e pode ser visto como uma síntese e renovação desta tradição intelectual. Mann se via como um mediador entre a cultura alemã e o resto do mundo, e de certa forma moldou a sua própria vida como uma obra de arte; sua trajetória revela um verdadeiro processo de formação, o qual envolve o amadurecimento por meio da revisão de posicionamentos equivocados. No início de sua carreira, expressava um pensamento de tendências conservadoras e esteticistas. Posicionava-se a favor do II Reich, e escreveu um “esforço de guerra”, as Considerações de um Apolítico (1918), na qual opera com uma dicotomia entre Kultur e Zivilisation como a oposição fundamental entre a Alemanha e os países ocidentais, em especial a França. Porém, quatro anos depois, começou a fazer discursos em prol da República de Weimar (1919-1933) e rechaçando o nacionalismo que pouco antes defendia. Considerando que este ensaio de 1918 sintetiza a posição política de Thomas Mann nos primeiros anos de sua carreira, e isto será importante para alguns temas que analisarei em Doutor Fausto, dediquei um sub-capítulo inteiro a ele. Na segunda parte deste capítulo, o propósito é interpretar as mudanças na perspectiva política de Mann para verificar se, nas décadas seguintes, quando passou a defender a democracia, houve uma transição ideológica ou uma continuidade reformulada.
3.1.
O PENSAMENTO CONSERVADOR NAS CONSIDERAÇÕES DE UM APOLÍTICO
Cabe definir o que entendo por conservadorismo. Como ideologia política, caracterizase pelo desejo de conservar, que se reflete em uma resistência à mudança ou, ao menos, uma desconfiança em relação a ela. Os conservadores “se apóiam na tradição, crêem na imperfeição humana e tentam preservar a estrutura orgânica da sociedade.” (HEYWOOD, 2010, p. 75) Há também um caráter anti-utópico, contrário à mentalidade revolucionária e às filosofias da história (sejam elas marxistas, hegelianas ou mesmo liberais) – que exaltam o progresso contínuo. O conservador se legitima em nome do que constrói como antigüidade, experiência consolidada, conhecimento adquirido, segurança e prudência.
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O conservadorismo lança mão da tradição de forma bastante peculiar: esta seria a materialização da identidade sócio-cultural, identificando os sujeitos isolados a uma produção social definida e construindo o sentimento de pertença a um grupo; ou seja, a tradição passa a servir em defesa do status quo. Além disso, a mentalidade conservadora não contém por si própria predisposição teorizante; pelo contrário, geralmente parte de uma pragmática de que não cabe divagar sobre as situações em que se encontram os homens naturalmente ajustados. O conservador guia-se pelo hábito e “tranqüilamente aceita o existente, como se fosse a exata ordem das coisas e do mundo.” (MERCADANTE, 1972 apud CARVALHO, 2005) Segundo Frederik Stjernfelt em A vida em si – filosofia da vida e conservadorismo, e é possível relacionar o pensamento vitalista com o conservador; o denominador comum é a prioridade que ambos atribuem de toda e qualquer faculdade “viva” sobre a epistemologia. (cf. STJERNFELT, 2009, p. 51) Em outras palavras, os dois contrapõem-se à teoria do conhecimento subjetivista do kantismo, sob o argumento de que não somos apenas seres cognitivos; somos seres vivos antes mesmo de sermos seres racionais.11 Um grande exemplo desse vitalismo é Schopenhauer, que acredita que conhecemos o mundo que nos cerca através de nossa vida interior; ou seja, a introspecção nos permite apreender a conexão direta entre vontade e ação. O pessimismo schopenhaueriano se expressa na idéia de que “o sujeito se ilude e crê ser guiado por altos ideais (pela razão) quando, em verdade, encontra-se irremediavelmente preso à cega vontade, esta, egoísta, irracional, inexplicável e insaciável.” (Ibidem, p. 53) O indivíduo permanece eternamente escravo dessa vontade, e pode no máximo amenizar momentaneamente as imposições da mesma por meio de uma atitude contemplativa; por exemplo, na fruição artística. Schopenhauer influenciou vários artistas e pensadores com seu “ascetismo estético”, o qual permite entender a aliança que há entre vitalismo e conservadorismo: ambos compartilham a crença básica no espontâneo, no desarticulado e no a priori que antecede o pensamento. Tais conceitos foram radicalizados e politizados no início do Século XX, tendo como principais características o provincianismo, o romantismo perante a natureza e uma 11
Por outro lado, o vitalismo também tem um potencial revolucionário, afinal pôde servir à esquerda como substrato para uma crítica à sociedade moderna. O próprio Stjernfelt fala sobre isso: “Nos anos 1960, o papel do vitalismo como ideologia oficial dos movimentos juvenis fica plenamente estabelecido (...). Como é sabido, 1968 não constituiu um ataque ao sistema capitalista – como queriam crer seus protagonistas -, mas um ataque à sociedade burguesa, „bourgeois‟, tomada em sua acepção vitalista (versus a acepção marxista). (...) A rotineira celebração da transgressão, do movimento pelo movimento, da dinâmica, da crítica aos valores burgueses (...) – todos esses fatores são decorrências da rearticulação crítica do conservadorismo cultural de 1968.” (STJERNFELT, 2009, p. 59)
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atitude refratária ao Esclarecimento, ao capitalismo, à burguesia e à democracia. Artistas como Hugo von Hoffmansthal e o próprio Thomas Mann defenderam esta causa. (Ibidem, pp. 56-57) O sociólogo Karl Mannheim também para o estudo do pensamento conservador. Este autor argumenta que as sociedades humanas elaboram historicamente diferentes modos de vida, “maneira como o grupamento social estabelece relações internas peculiares” (MANNHEIM, 1981 apud CARVALHO, 2005). O modo de vida, por sua vez, produz o estilo de pensamento, que é a relação que se estabelece entre o modo de vida de um grupo e a realidade, ou seja, com os outros modos de vida; assim, os grupos sociais produzem estilos de pensamento diferenciados porque têm modos de vida diferenciados. Agrupamentos políticos também podem ser distinguidos por seus respectivos estilos de pensamento, embora a recíproca não seja verdadeira (ou seja, um estilo de pensamento não se limita à sua dimensão política). Estes estilos caracterizam mais do que apenas a subjetividade dos indivíduos; ao mesmo tempo, eles não são totalmente objetivos. Indivíduos participam de um estilo de pensamento que irá sobreviver ao seu ir e vir, mas não existe para além, separado dos indivíduos. Ou seja, indivíduos não criam os padrões de pensamento em termos dos quais eles concebem o mundo, mas os assumem a partir de seus respectivos grupos. É necessário, portanto, dar conta do background do qual a contribuição desses indivíduos emergiu e adquiriu sua significância. (cf. MANNHEIM, 1993, pp. 261-262) Para ilustrar essa teoria, o autor examina o pensamento conservador durante a primeira metade do século XIX, na Alemanha.12 Os segmentos sociais alemães que se empenharam pela causa conservadora eram diversos; podemos destacar a nobreza latifundiária, camponeses e também artistas e intelectuais. Era uma sociedade ainda de base feudal, mas que já possuía uma classe média incipiente. Todos esses grupos compartilhavam a sensação de insegurança diante das transformações sociais e econômicas, as quais tornavam a sociedade mais dinâmica e menos estratificada. Aliás, ironicamente o pensamento conservador, a despeito dos grupos sociais “retrógrados” que o apóiam, nasceu na modernidade, na medida em que o tradicionalismo só pode se tornar conservadorismo em uma sociedade na qual a mudança 12
Cabe dizer que o conservadorismo anglo-saxão, cuja maior figura é Edmund Burke (Reflexões sobre a Revolução na França, 1790) apresenta aspectos diferentes das vertentes continentais (como é o caso alemão), que são mais reacionárias. Por exemplo, entre os conservadores britânicos e americanos é mais comum a associação com os liberais na defesa do livre mercado, do livre comércio, do governo representativo e da liberdade religiosa. Vide José Guilherme Merquior, O Liberalismo: Antigo e Moderno, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991, pp. 109-114.
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ocorre por meio do conflito de classe – ou seja, em uma sociedade de classes. (cf. Ibidem, p. 287) Portanto, o pensamento conservador surge quando a diferenciação social ganha caráter político, passando a ser necessário “racionalizar” as tradições, valores e costumes de forma a defendê-los das novas idéias e práticas. Não por acaso, o conservadorismo alemão do início do Século XIX foi em geral uma reação ao racionalismo iluminista, cujos elementos centrais eram construídos dedutivamente a partir de princípios lógicos e de uma filosofia moral e política amparada na teoria do direito natural; é um pensamento marcado pela pretensão de validade universal e pelo método atomista e mecanicista. (cf. Ibidem, p. 303) O racionalismo iluminista inspirou as transformações sociais e econômicas iniciadas na França e Inglaterra no fim do século XVIII, e foi o estilo de pensamento predominante entre a nova burguesia capitalista – e também, de certa forma, o proletariado. Em contraste a esse estilo racionalista, surgiu no século XIX o pensamento romântico, que tornou autoconscientes várias tradições que estavam sendo ameaçadas pelo novo tipo de sociedade que emergia. O Romantismo tentou resgatar forças irracionais reprimidas, expondo suas causas: “comunidade” contra “sociedade”, família contra contrato, conhecimento intuitivo contra razão, experiência espiritual contra experiência material. Foi a partir desse pano de fundo que surgiu o conservadorismo alemão, que se tinha por firmemente enraizado no mundo real e via o presente como uma culminação e continuação do passado. Sendo assim, qualquer mudança teria de ser gradual; ao invés de se devotar essencialmente ao que é contemporâneo, como faz o pensamento burguês, os conservadores se concentravam no passado que ainda “vive” no presente; em contraposição ao apelo “progressista” pelo abstrato e ideal, o conservadorismo apega-se ao que é imediato, real, concreto. (Ibidem, pp. 275; 288) As repercussões do conservadorismo “romântico” alemão do início do século XIX foram de longo alcance. Thomas Mann foi um porta-voz dessas idéias quase um século depois, num momento crucial para a identidade alemã – e do próprio escritor. Em 1914 Mann estava em meio a uma crise criativa. A inadequação de sua solução para os problemas da identidade do artista e da relação entre “vida” e espírito – sendo a vida entendida sob moldes burgueses (e não hedonistas) e o espírito como consciência crítica da arte – estava expressa em sua recente novela A Morte em Veneza (1912). O medo da esterilidade artística, a obsessão pela decadência e a insegurança se refletiram no personagem principal, Gustav Aschenbach. (cf. GOLDMAN, 1992, p. 87)
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O início da I Guerra Mundial foi um divisor de águas para Thomas Mann. Ao mesmo tempo em que trouxe um clima de celebração nas classes intelectuais alemãs, o conflito europeu também acarretou em uma crise da ordem e ideologia dominantes, levando a um grande esforço por auto-compreensão e auto-justificação diante dos inimigos europeus a Leste e a Oeste. Mann não ficou alheio a essa crise, ainda mais pelo fato de ela ter chegado à sua família: seu irmão Heinrich o identificou com a Alemanha reacionária, vendo em Thomas um microcosmo dos valores e atitudes que se opunham ao desenvolvimento progressista da Alemanha. (cf. Ibidem, p. 116) Thomas Mann se viu no dever de defender tanto os alemães quanto a si mesmo, identificando “eu” (self) e nação. Essa identidade tornou-se tão forte que reativou sua criatividade artística, preparando o terreno para as poderosas interpretações da cultura e sociedade alemã que desenvolveu em A Montanha Mágica e Doutor Fausto. Sendo assim, sigamos o itinerário das Considerações. O viés conservador do escritor se expressa na antinomia que estabelece entre os conceitos de “Cultura” (encarnada pela música e poesia dos alemães) e “Civilização” (expressa na política e retórica dos franceses). Em outras palavras, Mann defendia o “espírito”, a cultura alemã, e a diferença do “caminho especial” de sua pátria (mesmo que fosse acusado de ser monárquico e autoritário) com os fundamentos democráticos dos franceses e anglo-saxões. Esta oposição é reforçada pela figura do “Literato da Civilização”, uma caricatura que o autor fez da intelectualidade progressista da qual seu próprio irmão era representante: O tipo de partidário alemão da civilização literária é (...) o nosso literato radical, a quem me habituei a denominar o „literato da civilização‟; e é possível compreendê-lo porque o literato radical, o representante do espírito literarizado e politizado, em suma, do espírito democrático, é um filho da Revolução [Francesa]. (MANN, 1978, p. 76)
Este tipo de intelectual, fosse socialista ou liberal, dizia acreditar na Razão e no Progresso, louvava a Revolução Francesa e, embora se considerasse pacifista e democrata, afirmava francamente a superioridade do Ocidente, sendo por isso mesmo favorável ao imperialismo da civilização européia. Essa politização preconizada pelo “Literato da Civilização”, contudo, levaria a uma “desgermanização” (Ibidem, p. 87), pois Thomas Mann temia que a democracia corrompesse as esferas da cultura e do espírito, pois ela vivia precisamente da politização de todos os cidadãos. Sendo assim, definia-se como conservador sob a alegação que, caso a Alemanha condescendesse com o democratismo ocidental, perderia espiritualmente a guerra.
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Mann acreditava que o verdadeiro artista deveria ser essencialmente apolítico, até mesmo porque o Estado alemão autoritário conservava a todo cidadão – e também ao artista – a independência e liberdade frente ao político que é tão necessária para seu trabalho. O viés antidemocrático de Mann é, portanto, apenas a conseqüência da indiferença do intelectual germânico diante da política; de fato, em Considerações de um Apolítico a democracia é vista como a politização da ética, limitada a um quadro estatal e nacional. Em outras palavras, “Thomas Mann se reapropria da crítica clássica da democracia/demagogia.” (DAYANHERZBRUN, 1997, p. 78) A liberdade de consciência, segundo Mann, só poderia sobreviver se a ordem fosse mantida por alguma poderosa autoridade central, de preferência uma monarquia forte que deixe a religião, a arte e a academia livres. O típico alemão de classe média seria indiferente à política por estar mais interessado em sua Bildung, e esta devoção à cultura é boa porque tende a torná-lo mais humano. Somente o cultivo do espírito, da mente torna os homens livres; o que importa para o povo alemão, diz este escritor, é a Bildung e a moralidade que dela deriva. (cf. BRUFORD, 1975, p. 228-231) Mann verificava, portanto, uma incompatibilidade entre Bildung e política, e nesse sentido pode ser considerado um herdeiro de Goethe (bastante cético em relação à Revolução Francesa 13), Schopenhauer (que desejou e apoiou a repressão à Primavera dos Povos de 1848 14
) e Nietzsche (crítico do nacionalismo alemão pós-unificação 15). Nas Considerações de um
Apolítico, Mann estabeleceu um contraste entre a Reforma luterana e a Revolução Francesa: “A experiência da Reforma imuniza contra a Revolução” (MANN apud DUMONT, 1994, p. 54), na medida em que legou uma ênfase na interioridade, uma atitude quietista e um desdém em relação a questões sociopolíticas. Já no prólogo das Considerações o escritor explicita o seu estilo de pensamento, ao alegar que sua obra combate manifestamente o “progresso” apregoado pela intelligentsia democrata, oferecendo-lhe uma resistência conservadora:
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Para Goethe “a revolução nada mais significou do que o começo sinistro da era das massas, que ele odiava e temia, mas cuja inevitabilidade reconhecia. (...) À paixão política, Goethe contrapõe a formação da própria personalidade graças à limitação. Já que não podemos abraçar o todo e o que é longínquo nos dispersa, o indivíduo deve assim transformar-se em algo inteiro.” (SAFRANSKI, 2010, pp. 37-39) 14 Vide o prefácio de Jair Barboza aos Aforismos para a sabedoria de vida (SCHOPENHAUER, 2006, p. XXI) 15 “Aquele que tem o furor philosophicus em si próprio não terá absolutamente mais tempo para o furor politicus e se absterá sabiamente de ler os jornais cotidianamente, ou mais ainda, de servir a um partido; no entanto” – e eis aqui o ethos aristocrático de Nietzsche, e não uma postura nacionalista – “ele não hesitaria em nem um momento em assumir seu posto no caso de seu país estar realmente ameaçado.” (NIETZSCHE, 2011, p. 239)
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De fato, todo o conservadorismo [deste livro] é apenas oposição neste aspecto; toda sua melancolia e resignação semi-fingida, todo seu afundar-se no peito do romantismo e sua „simpatia pela morte‟ tampouco são outra coisa. Nega o progresso em geral, para negar, em todo caso, esse progresso; argumenta de forma bem pouco seletiva, e inclusive celebra alianças duvidosas; investe contra a „virtude‟, cobre a „fé‟ com citações, pronuncia juízos desafiantes sobre o „humanitarismo‟, tudo isso para se opor a este progresso, ao progresso da Alemanha da música em direção à democracia. (MANN, 1978, pp. 56-57)
Aliás, esta oposição entre música (um símbolo germânico, pátria de grandes compositores como Beethoven e Wagner) e democracia (um legado dos franceses e ingleses) é outro aspecto que reforça o caráter “apolítico” deste ensaio. Segundo Thomas Mann, a verdadeira arte, na medida em que nunca lhe está permitido ser política, deve ser conservadora, sempre voltada para trás. Além disso, ela deve ser um poder irracional, antiintelectual, inimigo inato do progresso e da razão. Portanto, a obra de arte deve se ocupar do passado, do sofrimento e da decadência, e também ser individualista, representando destinos individuais; não lhe cabe a pretensão de reproduzir os grandes movimentos sociais da atualidade ou simplesmente influenciá-los. É possível, dessa forma, interpretar as Considerações de um Apolítico não necessariamente como um manifesto belicista, mas sim como uma longa meditação sobre a relação que a cultura alemã mantém com a política. Thomas Mann não está escrevendo como um político, mas como um artista. Nesse sentido, ele acredita que os artistas não têm nada a acrescentar ao estoque ideológico da humanidade; cabe a eles moldar a experiência da transitoriedade da vida em linguagem e por tal meio preservá-la para sempre. (BERENDSOHN, 1973, p. 56) É por isso que estabelece uma oposição entre o artista desinteressado, ironicamente não comprometido (aliás, a própria ironia seria uma reação conservadora ao radicalismo), e o “Literato da Civilização”; num sentido mais amplo, é o burguês dotado de uma atitude vital romanticamente individualista e aristocrática em oposição ao boêmio literário, o qual ele enxergava no irmão Heinrich (SIEGLER, 1975, p. 146). Além de serem mais uma autobiografia artística do que um manifesto, as Considerações revelam seu caráter apolítico pelo fato de terem sido lançadas quando já era tarde demais para afetar o debate público: no último bimestre de 1918, quando a guerra foi encerrada. Há outros dois sentidos em que se pode configurar esta apoliteia de Mann. Um deles é o fato de toda defesa do status quo, mesmo que se alegue apolítica, é, na prática, conservadorismo político. O segundo é que, por mais distante que esteja da realidade, uma visão de mundo se torna um
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fator político quando assumida por pessoas o bastante – e Thomas Mann certamente não estava sozinho em sua postura conservadora. (cf. REED, 2004, p. 8)
3.2.
A ADESÃO AO HUMANISMO E À DEMOCRACIA
Não surpreendentemente, este ensaio causou controvérsia assim que foi lançado. Quem pensava que Mann era liberal ou progressista ficou perplexo; já os nacionalistas e reacionários o viram como aliado – embora mal pudessem imaginar que apenas quatro anos depois o declarariam como adversário ideológico... Porém, as Considerações de um Apolítico acima de tudo pareciam demonstrar um retrocesso em relação à visão de mundo que emanava na obra ficcional de Thomas Mann. Georg Lukács acredita que esta era uma situação paradoxal: A crítica ficcional de Mann ao prussianismo alcançou seu ponto culminante no mesmo momento em que a crise nacional [decorrente da guerra] eclodiu – e sua ligação pessoal e política com a causa prussiana estavam no auge. Ao historiador em sua condição de profeta retrospectivo, ficamos horrorizados ao ver quão pouco Thomas Mann sentiu os efeitos mais profundos de sua própria evolução literária, e com que paixão tomou conseqüências erradas de sua própria obra. (LUKÁCS, 1969, p. 29)
Quando alegava a incompatibilidade entre Bildung e política, Thomas Mann trabalhava, mesmo que com visões profundas e afiadas, por uma “causa indefensável”. Aliás, nos meses seguintes à publicação do ensaio continuou a manter tais posições: votou no Partido Bávaro do Povo Alemão (agremiação de centro-direita) nas eleições parlamentares de 1919, e apoiou a repressão violenta à efêmera república soviética que se instalou em Munique no mesmo ano. Entre 1919 e 1922, no entanto, Mann começa uma metamorfose no seu pensamento político. O Tratado de Versalhes lhe fez perceber a importância do compromisso político, e o assassinato de lideranças da República de Weimar (1919-1933) por nacionalistas radicais (principalmente o do judeu Walter Rathenau, ministro do Exterior) foi o estopim para que Mann constatasse que os verdadeiros inimigos da liberdade e da Kultur não eram os democratas. Thomas Mann percebe, portanto, que se podia viver livremente como artista num regime democrático, mas o mesmo não ocorreria se os ultranacionalistas chegassem ao poder. Com isso chega à conclusão de que, por mais “não-alemã” que fosse a origem da República de Weimar, ela deveria ser apoiada contra a subversão e “preenchida” o mais rápido possível com valores culturais alemães, de tal forma que a população simpatizasse mais com o novo regime. (cf. REED, 2004, p. 9) O escritor resolve, então, se posicionar a favor da república:
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O artista não podia omitir-se. O mundo havia mudado. A Europa mudara. Ele, também. „A política e o social fazem parte integrante da esfera humana‟ – declara. Antes que Hitler tomasse o poder [Mann] já se compenetrara de que o irracionalismo favorecera a eclosão dos movimentos populistas, ateados pelo fogo das emoções. Vislumbrara na germanofilia romântica o anti-semitismo e o ódio das massas que o chanceler manipulava a seu prazer. (QUEIROZ, 1998, p. 573)
Porque vislumbrara desde as primeiras fagulhas o que seria o incêndio nazista, e determinado a extirpar o mal pela raiz, Thomas Mann reorienta a sua palavra, muda o endereço de suas idéias políticas: põe-se ao lado daqueles que queriam dar à terra um sentido humano. (cf. Ibidem, p. 573) Mann tenta reviver o ideal de Humanidade (Humanität) como uma alternativa para a crise, instabilidade e divisão ideológica da Alemanha; o humanismo seria uma síntese espiritual e uma tentativa de transcendência em relação à sociedade burguesia e seus oponentes de extrema-direita e extrema-esquerda. (cf. GOLDMAN, 1992, p. 232) Em suas Considerações, Thomas Mann havia polemizado contra uma imagem abstrata de uma democracia radical, que, em realidade, não existia em lugar algum. Quando se familiarizou com a democracia efetiva, admitiu que ela não era tão horrível e perniciosa quanto havia temido. Ao invés de ser um pesadelo para a arte livre, podia-se viver nela como artista, e até mais livremente do que antes. Mann convenceu-se de que o artista não tem só o direito, mas o dever de formular questões políticas. Não obstante, o escritor manteve o divórcio entre arte e política: são dois modos de atividade que não devem mesclar-se, mas que podem ser realizados por um indivíduo enquanto tarefas espirituais. (cf. SIEGLER, 1975, pp. 149-150) Ou seja, era possível politizar a Bildung, mas mantendo uma atitude equilibrada. Entregando-se a uma forte, mas afetuosa autocrítica, Thomas Mann reconhecerá que foi seu irmão Heinrich que tivera razão pregando a democracia, enquanto ele próprio se comprazia na defesa melancólica de uma burguesia romântica e anti-política. Esta visão mais positiva da política do escritor se manifesta em sua nova definição da democracia, “que se torna a condição do exercício da liberdade individual, reconhecendo „na política e no social uma parte da totalidade humana‟.”. (DAYAN-HERZBRUN, 1997, p. 79) É possível dizer que Mann equivocou-se ao equiparar o conservadorismo cultural (isto é, preservar o legado de uma cultura) ao político (defender a ordem social existente). Um não necessariamente leva ao outro; é possível defender a tradição ocidental sem se apegar a um regime decadente e autoritário. É necessário identificar quais forças políticas estão mais
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empenhadas em prol da liberdade, e já no início dos anos 1920 Thomas Mann aprendeu que a democracia não era tão nociva quanto temia, e prontamente passou a República de Weimar diante da ascensão do nacionalismo exacerbado. Nesse sentido, Mann é para Lukács uma exceção na literatura burguesa alemã, justamente porque aderiu à social-democracia; através dos restos da decadência burguesa, ele se orientou pela busca das tradições progressistas e potenciais da burguesia. (cf. BRODE, 1975, pp. 136-137) As Considerações passaram a ser vistas por Mann como “uma batida em retirada em grande estilo – a última e a mais tardia de uma burguesia romântica alemã – levada a efeito com a plena consciência de sua inutilidade (...), até mesmo com a percepção da insalubridade e imoralidade espirituais de toda simpatia para com o que está fadado à morte.” (MANN apud LUKÁCS, 2009, p. 16) O autor, contudo, nunca renegou as Considerações de um Apolítico, o que prova que este ensaio foi parte fundamental de sua evolução intelectual e também no seu amadurecimento artístico. São, no entanto, os mesmos princípios fundamentais que o levaram a redigir as Considerações que o convencem a se engajar na defesa da República de Weimar e, anos depois, na luta contra o fascismo e o nazismo: “a primazia da ética individual, a defesa da liberdade e o amor por uma Alemanha cosmopolita, européia, pátria dos sem-pátria e de um „povo universal‟.” (DAYAN-HERZBRUN, 1997, p. 79) Nesse sentido se pode falar mais em continuidade do que em transformação no pensamento de Mann. Seus inimigos sempre foram o niilismo e o esteticismo; antes os via encarnados na “Civilização”, mas agora percebia que o nacionalismo radical era quem mais se ancorava nesses perniciosos valores. Essa “continuidade reformulada” fica evidente em 1922, ano em que proferiu o discurso Sobre a República Alemã, no qual tenta “tornar a República palatável aos jovens”; ressalta que “o republicanismo implica um senso de responsabilidade” e identifica o verdadeiro Romantismo alemão como fundamento da democracia, “denunciando a sua perversão no „obscurantismo sentimental‟”, que resultava em atos de terrorismo político como o assassinato de Rathenau (PRATER, 2000, pp. 184-186). Em sua opinião, “o obscurantismo – reação, para chamá-lo por seu nome político – é algo incivilizado; é um barbarismo sentimental, tentando esconder seu caráter brutal e ignorante „sob a máscara imponente‟ do sentimento, da boa lealdade alemã.” (MANN, 1942, p. 10) A democracia e a república são vistas por Mann como fatos inegáveis; quem é a favor da Kultur deve agora concordar com a paz. Em suma, Mann sentiu-se na responsabilidade intelectual e no dever cívico de se manifestar publicamente sobre as necessidades sociais de seu país. (cf. RIEMEN, 2011, pp. 65-66)
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Em 1923, no discurso Espírito e Essência da República Alemã, Mann fornecerá a sua própria definição de Bildung. Percebem-se nela ressonâncias do tom apolítico de sua primeira fase, mas já é possível vislumbrar o discurso humanista que predominará em sua obra nas décadas seguintes. Para Thomas Mann, a principal característica do típico alemão é o seu cultivo da interioridade. Não por acaso, foram os alemães que deram ao mundo uma forma literária intelectualmente estimulante e bastante humana: o romance do cultivo e desenvolvimento pessoal [Bildungsroman]. A Bildung de um germânico envolve as seguintes características: introspecção, uma consciência cultural individualista e a cuidadosa moldura, aprofundamento e aperfeiçoamento da própria personalidade – ou, em termos religiosos, da salvação e justificação da própria alma. Mann reconhece nisso ecos da cultura pietista, a qual tinha como um dos aspectos centrais a confissão autobiográfica. (cf. MANN apud BRUFORD, 1975, p. vii) Nesta mesma palestra, o escritor diz estar convencido de que a república democrática está apta a servir aos mais desejáveis propósitos nacionais, o que inclui a realização do ideal de humanidade [Menschlichkeit] alemão, isto é, a boa vida conforme concebida pelas melhores tradições de seu país. Por fim, recorre à imagem romântica do fragmento (isto é, da carência de um desenvolvimento harmonioso) para defender a importância do ideal da Bildung contemplar não só o cultivo de si mesmo, mas também a dimensão política. (cf. Ibidem, pp. 245-246) Ou seja, o verdadeiro humanismo deve abarcar não só a cultura subjetiva, mas também o envolvimento com a esfera pública. É a partir de A Montanha Mágica (1924) que Mann passa a falar mais de questões sociopolíticas em seus romances, com várias alusões e reflexões sobre a atmosfera soturna e cada vez mais politicamente polarizada que assolava a Alemanha e a Europa. O protagonista Hans Castorp, durante os sete anos que passa num sanatório para tuberculosos nos Alpes suíços, amadurece por meio das mais diversas experiências: lidar com a paixão que sente por uma russa excêntrica, superar o perigoso fascínio estético que nutre pela morte e se educar através do conflito de orientações pedagógicas entre o humanista Lodovico Settembrini, o niilista Leo Naphta e o vitalista Mynheer Peeperkorn. Embora esta obra seja um Bildungsroman. (romance de formação), ela não fornece um quadro completo da sociedade; o processo formativo de Castorp se dá numa instituição que, embora cosmopolita (há tuberculosos das mais diversas nacionalidades), é restrita a pessoas de alto poder aquisitivo, além de estar relativamente imune às pressões e exigências da vida
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cotidiana na “Planície”. Mesmo assim, o sanatório de Davos não escapa às turbulências de sua época, e em 1914 a atmosfera bélica toma conta do local; o ápice da “Grande Irritação” (título do penúltimo capítulo de A Montanha Mágica) é o duelo de armas entre Settembrini e Naphta, que já não conseguiam mais resolver pacificamente suas desavenças filosóficas. Além disso, no capítulo final, Hans Castorp vai lutar na I Guerra, o que pode ser visto tanto como a última etapa de seu processo de amadurecimento quanto como descida para o horror do mundo que o esperava fora do sanatório. As emocionantes últimas linhas deste romance contêm uma inquietante pergunta que reflete (sobre) a crise espiritual da Europa: Felicidade, Hans Castorp, enfermiço e cândido filho da vida! Tua história terminou: contamo-la até o fim. (...) Não dissimulamos a simpatia pedagógica que, ao narrá-la, começamos a nutrir por ti, e que seria capaz de nos induzir a tocar delicadamente o canto de um olho com a ponta do dedo, ao pensar que nunca mais tornaremos a te ver nem ouvir. Adeus – para a vida ou para a morte! (...) Será que também da festa universal da morte, da perniciosa febre que ao nosso redor inflama o céu desta noite chuvosa, surgirá um dia o amor? (Idem, 2000, p. 986)
A evolução de Thomas Mann desde A Montanha Mágica demonstra um contínuo esforço para conciliar os valores da tradição alemã com o novo princípio democrático. O escritor empreende uma tentativa de, mesmo vivendo em tempos sombrios, preservar e desenvolver a tradição do humanismo alemão e também europeu. (cf. BISHOP, 2004, p. 22) Mann, todavia, também demonstrava preocupação com a crescente polarização política. Em 1927 escreveu a um amigo que as idéias ocidentais apenas pareciam ter vencido a guerra, mas na verdade os “Naphtas” estavam vencendo os “Settembrinis”. Aliás, o ponto essencial sobre o personagem Naphta é que este personagem encarnava a essência totalitária compartilhada pela extrema-esquerda e extrema-direita: disciplina férrea, negação do indivíduo e “revolução do retrocesso anti-humano”. (MANN, 2000, p. 627) Nos anos seguintes, o escritor faz críticas contundentes ao nazismo anos antes de Adolf Hitler (1889-1945) et caterva chegarem ao poder. Em 1930, sua palestra Um Apelo à Razão clama pela união dos social-democratas e conservadores que sejam amantes da liberdade contra os nacional-socialistas. Mann demonstra preocupação com o resultado das eleições parlamentares daquele ano, nas quais os nazistas cresceram de 2,6% para 18,2% dos votos, e teme que a Alemanha esteja sendo levada pela retórica estridente do fanatismo e pela “revolta contra a razão”. (cf. BRUFORD, 1975, p. 252) Durante sua fala o escritor enfrentou uma oposição barulhenta: “A sua presença foi um sinal para os nazistas encherem o salão com seus
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membros, (...) e à medida que ele avançava em seu discurso era mais difícil ouvi-lo, por causa das vaias e apupos crescentes.” (PRATER, 2000, p. 231) Não surpreendentemente, Thomas Mann teve que se exilar apenas algumas semanas depois que Adolf Hitler ascendeu ao cargo de chanceler, em Março de 1933. Dois anos depois, sua cidadania foi cassada e seu título de Doutor Honoris Causa, concedido pela Universidade de Bonn, retirado. Após passar alguns anos na Suíça, Mann mudou-se para os Estados Unidos em 1939. Seu engajamento político, porém, não diminui com o exílio. É possível ver no conto Mario e o Mágico (1930) e no romance Carlota em Weimar (1939) alegorias da problemática situação alemã e européia: no primeiro, pelo carisma e manipulação exercidos pelo ilusionista, assemelhando-se à retórica fascista; no segundo, pela bela digressão sobre a agressão militar e a opressão social, traçando um paralelo da Alemanha do início do Século XIX com o regime nacional-socialista. Outra prova desse engajamento são os Discursos contra Hitler que proferiu para a BBC (British Broadcasting Corporation) entre 1940 e 45, os quais constituem uma exortação à consciência de seus compatriotas. Eis um trecho do discurso de Dezembro de 40: Gostaria de lhes perguntar como lhes parecem, sob a sua luz, os atos que seus líderes os fizeram cometer, como nação, nos últimos anos, os atos de violência desvairada e destruição dos quais eles os tornaram cúmplices intencionalmente, (...) a inexplicável miséria e o sofrimento humano que a Alemanha nazista, ou seja, uma Alemanha que não pode mais ser nem alemã, nem cristã, disseminou em torno de si mesma. (...) Alemães, salvemse! Salvem suas almas recusando fé e obediência aos tiranos que só pensam em si mesmos e não em vocês! (MANN, 2009, pp. 23-25)
O romance Doutor Fausto (1947), nesse sentido, é aquele em que o escritor cristaliza de forma definitiva sua visão filosófica da vida e da própria arte e, por meio da história de um músico vanguardista, trata da tragédia da cultura e sociedade alemã nas primeiras décadas do Século XX, processo que culminou na ascensão dos nacional-socialistas e na II Guerra. Antes de entrar na análise propriamente dita deste romance, julgo pertinente explicar em que consiste o mito de Fausto ao qual Mann recorre para construir esta obra.
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4.
LEITMOTIV: AS ORIGENS DO MITO FÁUSTICO
4.1.
O NASCIMENTO DE UM MITO MODERNO
Fausto, um intelectual ávido por gozar prazeres mundanos e obter amplos conhecimentos, contrai um pacto com o demônio Mefistófeles: vende a sua alma em troca de fama, riqueza e conhecimento por um período de vinte e quatro anos. No entanto, ao ver esgotar o seu tempo terreno, Fausto entra em um conflito existencial: apesar de saber-se proscrito das relações divinas, ainda pensa em uma forma de se livrar do castigo que o espera. Porém, há um preço que o personagem tem que pagar por seu hedonismo, e o desfecho trágico é inevitável. Este mito é um dos mais recorrentes na literatura e na arte em geral nos últimos cinco séculos. O fascínio que exerce reside no fato de retratar dilemas centrais à condição humana, particularmente aqueles ligados com o acelerado desenvolvimento econômico e científicotecnológico que marca o advento da Modernidade: o indivíduo fáustico é um “eterno insatisfeito”, marcado pelo orgulho e pela ambição por conhecimento, prazer e poder. Em outras palavras, temos aqui um arquétipo do “homem da ciência”, que, “desiludido por um lado com as limitações de seu saber e por outro com as frustrações de uma vida de sacrifícios, decide vender a alma ao diabo em troca de conhecimento, domínio sobre a natureza, poder e prazeres mundanos.” (INNOCÊNCIO, 2006, p. 12) Nesse sentido, é possível afirmar que a narrativa fáustica é um símbolo da passagem da época medieval para a moderna. Assim sendo, este mito mantém um aspecto tipicamente medieval: seu fundo cristão e moralista, afinal o demônio é o símbolo da soberba, da rebeldia do homem contra o Criador, e Fausto pode ser visto como um pecador que ambiciona apenas o que é mundano e imanente e, ao mesmo tempo, desafia e amaldiçoa as virtudes cristãs, como bem demonstra este trecho do Fausto de Johann von Goethe: Do amor, maldita a suma aliança! (...) Maldita fé, crença e esperança! E mais maldita ainda, a paciência! (GOETHE, 2011a, p. 136)
Para entender melhor o mito fáustico, cabe fazer uma digressão histórica. Na transição entre os séculos XV e XVI, a elite intelectual européia, principalmente nas cidades italianas, esteve envolvida em um grande movimento cultural que já na época foi chamado de “Renascença”. Houve pelo menos três frentes deste movimento: uma mais artística, outra mais científica e ainda uma focada nas letras clássicas e nos estudos humanistas; porém, havia
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cruzamentos entre elas, o que fica evidente em personalidades como Leonardo Da Vinci (1452-1519). Aliás, o próprio termo “Homem Renascentista” designa a idéia de um ser integral, um indivíduo que possui saberes nas mais diversas áreas e domina todas as potencialidades de seu corpo e mente. O eixo da autoconsciência renascentista, do sentimento que tiveram os humanistas do valor e da originalidade da sua época, “foi o culto da excelência do homem, fonte do impulso de idealização da humanidade.” (MERQUIOR, 1972, p. 30) Ocorreu nesta época uma mudança na disposição emocional e intelectual: o mundo passou a ser visto não mais com a rigidez de um “outro”, que confrontasse o homem de forma firme e desconhecida; agora, “homem e mundo estavam interligados por um grande número de camadas visíveis e invisíveis; era um nexo de acontecimentos, do qual todos participavam.” (HELFERICH, 2006, p. 144) Em contraste com os valores que marcaram a Idade Média, nesta nova visão de mundo era dada uma importância maior aos sentidos e à experiência do que à fé. O que o ideal formativo renascentista persegue é a liberação da excelência contida na natureza humana. Esta visão de mundo nutre um sentimento bem pouco cristão: a valorização ontológica do ser humano. Ou seja, no Renascimento o princípio formativo do homem ocidental deixou de ser a fé religiosa e passou a se amparar no tripé auto-estima, amor próprio e vontade moral. (cf. MERQUIOR, 1972, p. 34) Este antropocentrismo (isto é, a concepção de que o homem é a medida de todas as coisas), contudo, também pode assumir a forma de antropolatria, ou seja, de adoração do Homem com um ser divino, titânico. O argumento renascentista, exemplificado na tese da “indefinição humana” do filósofo italiano Pico della Mirandola (1463-1494), postula a existência de uma potencialidade infinita, não predeterminada por qualquer incapacidade necessária restritiva. A condição humana, portanto é irrestrita, livre para qualquer coisa; eis uma concepção divinizante do Homem. (cf. PONDÉ, 2009, pp. 93-94) Nas palavras de Mirandola é possível perceber a ruptura com qualquer noção de pecado original, condicionante: “Para [o Homem] é garantido ter o que quer que ele escolha, ser o que quer que ele deseje.” (MIRANDOLA apud PONDÉ, 2009, p. 94) Além disso, este filósofo se interessava pela magia cabalística, e tentava harmonizar a estrutura do conhecimento para além das divisões religiosas, “resguardando-se sempre na associação da magia a aspectos sagrados.” (VILLA in MARLOWE, 2011, p. 19) Décadas depois, o pensador Francis Bacon (1561-1626) sintetiza esta visão renascentista do Homem, aplicando-a numa apologia à Ciência moderna. Não por acaso, é
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dele o famoso lema “Knowledge is Power” (“saber é poder”), proferido em um texto de 1597. A personalidade de Bacon exprime de modo bem intenso o caráter “fáustico” dessa era de descobertas e de endeusamento da razão humana: “O verdadeiro objetivo das ciências é, pois, o enriquecimento do gênero humano com novas forças e descobertas.” (BACON apud HELFERICH, 2006, p. 150) Revela-se em Bacon com grande intensidade uma nova concepção de ciência e também um novo adversário: a natureza. Para ele, a “bem-aventurança humana” é o objetivo supremo; o progresso da sociedade humana passa pelo domínio progressivo da natureza. (cf. HELFERICH, 2006, pp. 150-153) Outro importante movimento cultural relacionado com o individualismo no Século XVI foi a Reforma Protestante. Embora à primeira vista haja um contraste do espírito dos reformistas com a Renascença - afinal homens como Lutero (re) valorizaram a religiosidade cristã perante o desgaste moral da Igreja Católica Romana -, o protestantismo também incentivou tendências individualistas, pois colocou a salvação da alma nas mãos do próprio crente, e não mediante “boas obras” e sacramentos, como acontecia no Catolicismo: Com a sua insistência na responsabilidade individual pela própria vida e a própria salvação, e com a sua veemente simplificação de muitas das tradições doutrinais e institucionais de Roma, o protestantismo realmente aumentou em larga medida a tendência geral do cristianismo para basear a vida religiosa na aventura de cada alma individual; o que, levando-se em conta a fraqueza comum aos seres humanos, conduz a um poderoso reforço da tese da recompensa adiada: é necessário fazer com que as pessoas acreditem que o prazer neste mundo resultará em sofrimento no outro. (WATT, 1997, p. 39)
É, portanto, por meio da combinação de ambas estas tendências históricas e culturais que podemos entender a fertilidade da narrativa fáustica. Por um lado, há uma representação do antropocentrismo renascentista na figura de Fausto; por outro, o desfecho moralista da tragédia demonstra afinidade com a concepção protestante de que a fé individual é o critério decisivo para a salvação: a impiedade e o hedonismo de figuras como Fausto são punidos e, portanto, podiam ser utilizados como contra-exemplo de conduta moral. Feita esta contextualização histórica, este capítulo tem como propósito narrar o surgimento do mito fáustico no Século XVI e mostrar como o mesmo foi adaptado em duas obras: A História Trágica do Doutor Fausto, escrita em 1592 por Christopher Marlowe e o Fausto (1808 e 1832) de Goethe. O último sub-capítulo trata dos aspectos fáusticos do personagem Ivan Karamázov de Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski.
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4.2.
O FAUSTO HISTÓRICO
Na cidade alemã de Kittlingen, nasceu por volta de 1480 Jörg Faust (ou Johann Georg Faust, dependendo do relato). De acordo com vestígios documentais da época, ele estudou medicina, astrologia, alquimia e magia. Faust levou uma vida errante, passando por várias localidades da Alemanha, onde trabalhou com horóscopo, fez profecias e tinha habilidades de cura. Com isso, ficou famoso e conseguiu reunir uma boa fortuna, mas todas essas aptidões incomuns renderam-lhe a fama de ter vendido a sua alma ao diabo. (cf. HEISE, 2008) Segundo uma carta datada de 1507 do erudito beneditino Johannes Tritheim dirigida ao amigo Johann Virdunng, Faust era um “vagabundo, falastrão e patife” que se declarava astrólogo e “líder dos nigromantes”, isto é, praticante de magia negra, capaz de ver o futuro mediante comunicação com os espíritos dos mortos. Ainda segundo Tritheim, Jörg Faust afirmava ter dominado a tradição clássica dos gregos e romanos (cf. WATT, 1997, pp. 20-23) – o que é, aliás, uma característica (ou empáfia?) típica dos humanistas do Renascimento. Outro relato da época, feito pelo médico Philipp Begardi, publicado no ano de 1539, traz mais detalhes sobre as ações do Fausto real: Desde há vários anos que ele passou por várias regiões, províncias e reinos, fez seu nome conhecido por todos, e é muito famoso pela sua grande habilidade, não só na medicina, mas também em quiromancia, necromancia, fisiognomia, visões em cristal, e artes afins. Ele também não é apenas famoso, mas descrito e conhecido como um mestre experiente. Ele próprio não admitiu nem negou que era assim, e disse que seu nome era Faustus, e chamou a si mesmo philosophum philosophorum. Mas muitos se queixaram a mim de que eles foram enganados por ele - na verdade, um grande número! (CAMPBELL apud KOSTIC, 2009, pp. 209-210)
A morte de Jörg Faust, ocorrida em 1539 ou 1540, foi sob circunstâncias misteriosas: possivelmente foi causada por uma explosão durante um experimento ou por degola. (cf. FRANCO in BINSWANGER, 2011, p. 16) Há relatos de que seu corpo foi encontrado em um estado gravemente mutilado, o que alguns interpretaram no sentido de que o Diabo veio buscá-lo pessoalmente. A partir dessas informações é possível afirmar que a vida do Fausto histórico é a de um “charlatão gabola e desagradável”, mas também “um individualista impertinente, capaz de abrir seu próprio caminho numa sociedade em que cada vez mais se exigia das pessoas um trabalho regular e uma residência fixa.” (WATT, 1997, p. 26) Jörg Faust era uma encarnação
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das forças novas que impulsionavam a mudança, na medida em que se ancorava no resgate dos clássicos pagãos e se interessava por uma ciência “mágica” (que são duas posturas características do humanismo renascentista) e, ao mesmo tempo, tinha um interesse pela hermenêutica bíblica (típico da Reforma Protestante). Os relatos acerca de suas façanhas milagrosas, sejam elas reais ou imaginadas, espalharam-se pelas cidades alemãs. Em 1587, A História do Doutor Fausto (Historia von Johann Fausten, também conhecida como Faustbuch) foi editada por Johann Spies. Neste livro composto a partir de narrativas populares, Fausto nasce filho de camponeses e faz brilhantes estudos universitários de Teologia e Medicina. Angustiado por querer compreender muito e gozar de prazeres materiais, Fausto resolve pactuar com o demônio. Com o pacto, Fausto adquire poderes sobre os animais e passa a apreciar os mais finos manjares do mundo, que entram voando por sua janela. Não se casa, mas o diabo lhe promete todas as mulheres, uma para cada noite. Depois de algum tempo, Fausto negocia vantajosamente com judeus, constrói palácios mágicos, e até escarnece o Papa. (cf. BACKES, 2003) Em seus últimos anos de vida, Fausto começa a pensar mais sobre a danação que se aproxima, e cogita arrepender-se. O demônio Mefistófeles, contudo, entra em seus pensamentos e o força a reiterar sua lealdade a Lúcifer. (cf. WATT, 1997, p. 36) Fausto passa o ano final do pacto com Helena de Tróia e tem com ela um filho, Justum Faustum. Além disso, faz de Wagner, um ingênuo estudante que era seu assistente, seu herdeiro; após abandonar as artes mágicas, passa seus últimos dias em melancolia e lamentação pelo seu erro (e pecado). Pouco antes da morte, Fausto aconselha seus estudantes a não lhe seguirem o exemplo. No final, o pactário sucumbe à sua própria impiedade e é condenado para sempre. A tendência moralizante do livro é explícita em seu enorme título integral, cheio de admoestações, e que também funciona como sumário da obra: História do Doutor Johann Faust, o célebre mago e nigromante, como ele se vendeu ao Diabo por um período fixado, as estranhas aventuras que viveu nesse entretempo, alguns atos de magia que praticou, até o momento em que finalmente recebeu a merecida paga. Extraída na maior parte dos seus escritos póstumos, recolhidos e impressos para servirem como horrível precedente, abominável exemplo e sincera advertência a todas as pessoas presunçosas, curiosas e ímpias. (Ibidem, p. 34)
A busca por um saber desligado da fé, pela “especulação com os elementa”, somada com a ousadia do uso da magia e da necromancia (considerada na época “o pior e mais pesado
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pecado contra Deus e o mundo”), só podia terminar, segundo a moral luterana, em danação e morte terrível. Há também um aspecto político nesta lenda: Fausto é filho de camponeses e se destaca nos altos estudos de Teologia, Magia, Astrologia e Medicina na Universidade de Würtemberg. Ou seja, é um homem de origem modesta que comete a hybris (arrogância, orgulho desmedido) de não apenas infringir as normas religiosas consagradas pela Reforma, mas também contrariar a organização sociopolítica vigente. (cf. BACKES, 2003) De acordo com Ian Watt, o tom moralista da História do Doutor Fausto de Spies traz à tona as posições da Reforma em relação à magia, aos prazeres carnais, à experiência estética, ao conhecimento secular – “em suma, em relação à maioria das aspirações otimistas do Renascimento.” (WATT, 1997, p. 40) Ao mesmo tempo, esta versão de Fausto também revela a busca por um saber que superasse a visão de mundo de seu tempo, a ponto até mesmo de ir além dela, ampliando o alcance da responsabilidade moral do homem. Sendo assim, o mito fáustico “encarou com terrível seriedade o mal na natureza humana.” (MAYER apud INNOCÊNCIO, 2006, p. 14) Em suma, o Fausto histórico pode ser visto como o cruzamento da antiga e da nova tradição: a primeira é representada pelo uso da magia, afinal estamos falando de uma sociedade “pré-científica” (cf. WATT, 1997, p. 26); a nova se revela justamente no individualismo desenfreado de Jörg Faust, que desafiou as convenções religiosas e sociais de seu tempo para dar vazão às suas potencialidades.
4.3.
O FAUSTO DE MARLOWE
A vida de Christopher Marlowe, assim como a de Jörg Faust, está cercada de controvérsias. Sua morte precoce, aos 29 anos, “numa briga de taberna, esfaqueado no rosto por um de seus companheiros de operação militar ou de espionagem” (FRANCO in BISWANGER, 2011, p. 18), levantou a suspeita de que este assassinato teria sido encomendado. Ao longo de sua vida breve e turbulenta, Marlowe acumulou uma série de atritos com a justiça ocasionados por brigas e agressões e por proferir blasfêmias, heresias e ateísmo. (cf. INNOCÊNCIO, 2006, p. 15) Alcançou, contudo, grande sucesso com suas peças e poemas; sua obra-prima é a versão que fez do mito fáustico: A Trágica História da Vida e Morte do Doutor Fausto, encenada pela primeira vez em 1592, um ano antes de sua morte. Esta peça possui uma enorme força expressiva, e já em sua estréia causou excitamento e
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horror em seus espectadores (e leitores). Além disso, ela apresenta poucos, mas importantes contrastes em relação à versão original da narrativa. A primeira cena da tragédia transcorre no quarto de estudos de Fausto, no qual ele tem uma fantasia espiritual de onipotência enquanto lia textos de magia negra. O fato de que Marlowe demonstrava desprezo em relação ao conhecimento acadêmico e “oficial” reforçou a negação da educação escolástica que já havia no Fausto histórico, levando o personagem desta versão da tragédia a expressar sua insatisfação e tédio com os campos de saber convencionais. Fausto quer um conhecimento que lhe permita ir além de sua condição de homem sujeito às leis da natureza. (cf. INNOCÊNCIO, 2006, pp. 15-20) Também cabe notar que já nestes primeiros versos ficam explícitas as ambições mundanas deste personagem: Fausto, ordena os estudos, e procura Sondar o fundo do que vás seguir. Pois começaste, dá-te por teólogo, Porém visando o fim das artes todas. [Com as] obras de [Aristóteles] vive e morre. (...) Será bem disputar o fim da lógica? Não confere tal arte [maiores] milagres? Então não leias mais. Chegaste ao cabo. (...) Economia, adeus. (...) Física, adeus! (...) Teologia, Vai-te! Estas metafísicas de mágicos, Livros de necromancia são divinos! (...) São esses os que Fausto mais deseja! Que mundo inteiro de prazer e lucro, De grão poder, onipotência e honra, [Está] prometido ao estudioso artífice! (MARLOWE, 2011, pp. 31-33)
Fausto, então, pede a seu ajudante Wagner que chame seus amigos necromantes Cornélio (cujo nome foi inspirado em Cornelius Agrippa, filósofo que adquiriu fama de mágico) e Valdez para ajudá-lo na conjuração que pretende realizar. Em seguida, um Anjo Bom tenta dissuadi-lo da blasfêmia que está prestes a cometer, mas um Anjo Mau o persuade a prosseguir “na famosa arte, que contém os tesouros da Natura.” (Ibidem, p. 34) O protagonista se deixa seduzir por tal perspectiva, afinal embriaga-lhe a idéia de tanto poder. Na cena III Fausto invoca Mefistófeles; é nesta parte que ocorre um dos principais diálogos do drama de Marlowe, iniciado com uma pergunta do personagem sobre o Inferno e encerrado com uma revelação soturna do personagem diabólico: FAUSTO: Quem são os que com Lúcifer habitam? MEFISTÓFELES: Míseros [seres], com Lúcifer caídos,
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Que contra Deus com Lúcifer tramaram, Sem remissão com Lúcifer julgados. FAUSTO: E julgados para onde? MEFISTÓFELES: Para o Inferno. FAUSTO: Como é que então de lá te encontras fora? MEFISTÓFELES: Isto é o Inferno, e fora dele não estou! (Ibidem, p. 47)
Mefistófeles, portanto, nega a existência de um local específico para o Inferno, e ao invés disso o define como um estado de espírito. (cf. KOSTIC, 2009: 213) Fausto, porém, permanece cético a esse aviso e diz crer que o Inferno é uma lenda, ao que Mefistófeles lhe responde de forma sardônica: “Pois crê, [até] que te mude a experiência.” (MARLOWE, 2011, p. 62) Marlowe povoa o texto da peça com suas próprias opiniões acerca da fé e da religião; um exemplo disso é quando Mefistófeles surge pela primeira vez e Fausto lhe ordena que se retire e volte “tal qual um velho franciscano”, pois “convém piedoso aspecto a um diabo.” (Ibidem, p. 44) Ao mesmo tempo em que esta passagem reflete o anti-clericalismo de Marlowe, por outro remete a uma tradição da literatura popular medieval, “que pintava os padres e monges como personagens ladinos, oportunistas e hedonistas.” (INNOCÊNCIO, 2006, p. 24) Uma situação particularmente sardônica de A História Trágica do Doutor Fausto se dá na Cena V, quando Mefistófeles ridiculariza a pretensão de Fausto de se casar: “Vá Fausto... O casamento não é senão convencional brinquedo. Escolherei as cortesãs mais belas, trar-tasei sempre à cama de manhã: a que à vista agrade, há de ser tua” (MARLOWE, 2011, pp. 6364). Fausto não se faz de rogado e cenas depois possuirá e terá um filho com Helena de Tróia. Outra situação bastante ímpia se dá quando Fausto e Mefistófeles entram invisíveis num banquete papal, e promovem algazarras incômodas aos cardeais. O protagonista também aproveita seus poderes diabólicos para obter fama: na Cena IX da peça, ninguém menos que o Imperador Carlos V (1500-1558) louva seus notáveis feitos. Com a aproximação do vencimento de seu contrato com o Diabo, Fausto torna-se cada vez mais ressentido e frustrado; ou seja, a “profecia” de Mefistófeles sobre seu desespero tarda, mas não falha. Porém, ao contrário da versão alemã de 1587, não há aqui tanto uma indagação moralista, mas sim uma reafirmação da mundanidade: o personagem está menos preocupado com a perspectiva de salvação de sua alma do que com a “impossibilidade de obter plena satisfação com os prazeres terrenos ou de saciar sua curiosidade intelectual.”
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(FRANCO in BINSWANGER, 2011, p. 19). Ou seja, Fausto está aflito com o sofrimento do seu corpo – e nesse ponto ele é um epicurista confesso. (cf. INNOCÊNCIO, 2006, p. 29) Este tom cético (e, de certa maneira, desencantado) de Marlowe transparece no discurso de arrependimento de Fausto diante de dois letrados, na Cena XIV: Oh, quem me dera nunca ter visto Wertenberg, nunca ter lido um livro! E os prodígios que realizei, pode testemunhá-los a Alemanha inteira. Quê?... Todo o mundo!... Por eles perdeu Fausto a Alemanha e o mundo, mais, o próprio Céu, a mansão de Deus, o trono dos bem-aventurados, o reino da alegria... E há de ficar no Inferno para sempre, no Inferno... (MARLOWE, 2011, p. 113)
Ao final desta cena, soa a meia-noite, e os diabos vêm buscar a alma de Fausto. Entra então o Coro e faz um poderoso discurso final: Cortado o ramo está, que poderia Ter crescido direito, e estão queimados Os louros apolíneos deste sábio. Fausto morreu. Que o seu caso infernal, E desgraça, oh, prudentes, vos exortem A ficar pela admiração Perante o proibido, cujo abismo Aos audazes, como ele, incita a mente A fazer mais, que o jus do Céu consente. (Ibidem, pp. 117-118)
Se à primeira vista este desfecho parece ser uma concessão do dramaturgo à visão cristã que permeia a narrativa alemã, é possível enxergar também nele (mais) uma ironia de Marlowe: o coro estaria apenas advertindo sobre o triste destino dos “sábios” que se interessam pelo “proibido” (FRANCO in BINSWANGER, 2011, p. 20). Eis uma situação ambígua, pois não fica claro se há uma perspectiva de redenção, de salvação da alma do personagem. Conclui-se, portanto, que esta peça de Marlowe oferece um Fausto pândego, contrastando assim com o tom moralista da compilação alemã de 1587. O Fausto marloviano viaja pela Europa em busca de prazer e glória e espera que o demônio satisfaça seus apetites carnais.
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A tragédia começa com o tédio diante das limitações humanas e termina com a
punição do orgulho e arrogância de Fausto, mas em um tom que não sugere redenção, mas até certo lamento diante do destino trágico dos “audazes”.
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Vide PINTO, Manuel da Costa. “O Fausto Pândego”. In: Folha Ilustrada; 7 de Abril de 2007. Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0704200711.htm
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4.4.
O FAUSTO DE GOETHE
Johann Wolfgang von Goethe foi para Thomas Mann sua principal influência artística e até um modelo de Bildung; afinal, o autor de Wilhelm Meister empenhou-se bastante em moldar a própria vida como obra de arte. Foi com Goethe que Mann passou a ver ligação entre a formação da pessoa e o ideário da educação como uma ponte entre o mundo interior e o mundo social.17 Sendo assim, não surpreende que Mann tenha batizado de Doutor Fausto a sua obra que retoma o tema do pacto diabólico presente nas duas partes do Fausto de Goethe (1808 e 1832). A trama do Fausto goethiano começa de forma parecida com a adaptação de Christopher Marlowe: mostra-se a angústia do protagonista pela insuficiência dos saberes acadêmicos diante de sua ambição desmedida por sabedoria e poder. Fausto se volta então para os livros de magia negra e invoca o Gênio da Terra; contudo, é por ele desprezado. Seu desespero aumenta e ele chega a cogitar o suicídio; para se redimir desse estado, Fausto sai de seu quarto gótico e passeia um pouco pela cidade. Quando volta aos estudos, decide traduzir o Evangelho segundo São João. Nesta cena o personagem revela uma confiança no poder da ação humana que enfatiza seu caráter de alegoria do individualismo moderno: Escrito está: “Era no início o Verbo!” Começo apenas, e já me exacerbo! Como hei de ao verbo dar tão alto apreço? De outra interpretação careço; Se o espírito me deixa esclarecido, Escrito está: No início era o Sentido! Pesa a linha inicial com calma plena, Não se apressure a tua pena! É o sentido então, que tudo opera a cria? Deverá opor! No início era a Energia! Mas, já, enquanto assim o retifico, Diz-me algo que tampouco nisso fico. Do espírito me vale a direção, E escrevo em paz: Era no início a Ação! (GOETHE, 2011a, p. 112)
Pouco depois, Mefistófeles, que estava disfarçado de cão, aparece para Fausto. O discurso do personagem demoníaco revela suas concepções materialistas: para ele, tudo que 17
Além disso, várias de suas obras retomam temas goethianos: A Morte em Veneza (1912) lembra o espírito esteticista e sedutor do Mediterrâneo que está presente em Viagem à Itália (1786-1788); A Montanha Mágica (1924) é um romance de formação na linhagem de Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister (1796); Carlota em Weimar (1939) tenta imaginar como seria um reencontro, quarenta anos depois, entre Goethe e a Charlotte que inspirou a personagem homônima de Os Sofrimentos do Jovem Werther (1774); Mann também redigiu quatro ensaios sobre o maior dos escritores alemães: Goethe e Tolstoi (1922), Goethe como representante da era burguesa (1932), Goethe em sua carreira de homem de letras (1932) e O Fausto de Goethe (1938).
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vem a ser é digno apenas de perecer. Mefisto oferece seus favores ao protagonista e este, após expressar desprezo pelo que possa vir acontecer à sua alma no “outro mundo”, faz uma aposta: se viesse a ter um momento de tal felicidade plena no qual quisesse exclamar “Oh, pára, és tão formoso!” (Ibidem, p. 142), entregaria sua alma a Mefistófeles. Em outras palavras, se sua eterna aspiração aplacar-se um dia, e com isso ele se entregasse à indolência e à fruição hedonista, então Mefisto terá ganhado a aposta. (cf. MAZZARI in GOETHE, 2011a, p. 141) O trecho seguinte revela que Fasto cultivou uma espécie de “Bildung demoníaca”; com isso quero dizer que ele via o pacto – e, por conseqüência, os favores que seu companheiro diabólico lhe ofertaria – como solução para sua infrutífera busca por conhecimento em meios convencionais (como a carreira acadêmica), pois agora via a possibilidade de uma formação mais plena (de um ponto de vista esteticista e amoral, é claro), capaz de nutrir tanto suas vontades estritamente materiais quanto aquilo que lhe estimulava no âmbito intelectual: Meu peito, da ânsia do saber curado, A dor nenhuma fugirá do mundo, E o que a toda a humanidade é doado, Quero gozar no próprio Eu, a fundo, Com a alma lhe colher o vil e o mais perfeito, Juntar-lhe a dor e o bem-estar no peito, E, destarte, ao seu Ser ampliar meu próprio Ser, E, com ela, afinal, também eu perecer. (GOETHE, 2011a, p.146)
Mefistófeles regozija-se com essa postura menos especulativa e mais ativa de seu pactuário: “Basta de andar cogitabundo (...)! Mete-te dentro do mundo!” (Ibidem, p. 150) Ao longo das duas partes da tragédia, ele lhe oferecerá mulheres (primeiro a camponesa Gretchen e, depois da comovente morte desta, Helena de Tróia), poder político e econômico (a certa altura Fausto se torna Ministro das Finanças do imperador germânico, e posteriormente empreende um projeto de colonização) e até uma incursão pela Grécia antiga (mais especificamente na “Noite de Valpúrgis Clássica” do segundo ato de Fausto II). Já em sua apresentação, Mefisto também diz algo que é decisivo para a interpretação do Fausto de Goethe: “Sou parte da Energia que sempre o Mal pretende e que o Bem sempre cria.” (Ibidem, p. 118) Considerando-se o “final feliz” da tragédia, no qual Fausto é salvo, é possível dizer que aqui temos uma perspectiva segundo a qual uma ação de motivações torpes seria capaz de gerar bons frutos. Em outras palavras, “o caminho para a salvação se confunde com o êxtase supremo.” (FRANCO in BINSWANGER, 2011, p. 33) Eis uma rejeição da
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transcendência cristã em prol da exacerbação do orgulho humano; ou, em outras palavras, aquilo que chamei anteriormente de antropolatria. Segundo esta visão tipicamente moderna (e com ecos da Renascença), o pensamento humano torna-se o lócus da criação e o Homem passa a ser o autor dessa criação: “Fausto e Mefistófeles narram nas suas aventuras esse momento crucial em que o intelectual, (...) entediado diante da criação, invoca o Espírito de Negação para transformar o mundo ao seu talante.” (CORDEIRO, 2011a) Como demonstrarei no capítulo 5, é possível dizer que, mesmo sob uma forma indireta, Thomas Mann criticou esta visão de mundo através dos teólogos de Doutor Fausto, os quais exerceram uma má influência sobre Adrian Leverkühn. O próprio Goethe, no entanto, atenua, nos momentos finais da tragédia, sua crença antes desmedida no potencial humano. Mesmo que seu Fausto se redima e vá para uma região mística (as “Furnas montanhosas”), há certo aspecto católico na cena em que isso ocorre, não só porque é uma salvação mediante a graça divina (o que de certa forma já era antecipado no “Prólogo no Céu” do Fausto I), mas também pelo fato de a última fala da tragédia caber a um coro que profere uma liturgia tipicamente cristã: “Tudo o que é efêmero é somente Preexistência; O Humano-Térreo-Insuficiente Aqui é essência; O Transcendente-Indefinível É fato aqui; O Feminil-Imperecível18 Nos ala a si.” (GOETHE, 2011b, pp. 650-652)
De forma geral, a versão goethiana do mito fáustico apresenta um caráter mais utópico e romântico que o das demais adaptações literárias do mesmo. A utopia se dá tanto no nível individual, com a aspiração de Fausto de superar a si mesmo (“ampliar meu próprio Ser”), quanto no coletivo, pois Goethe impregnou os últimos momentos da trajetória terrena de Fausto “com a visão utópica de um povo livre trabalhando livremente numa terra livre.” (MAZZARI in GOETHE, 2011, p. 14) Não por acaso, é justamente nessa cena que o protagonista, ao vislumbrar em seu empreendimento colonial o potencial de uma sociedade “progressista”, finalmente profere a frase que o faria perder a aposta, caso não fosse salvo logo depois pela intervenção divina: 18
Sobre este Eterno-Feminino: “Enquanto na ação interna da tragédia o elemento ativo, violento, sempre aspirando e errando, é representado como um „Eterno-Masculino‟, o amor salvífico, prestimoso, que doa a graça, revela-se aqui na símile do Eterno-Feminino‟.” (SCHÖNE apud MAZZARI in GOETHE, 2011b, p. 652)
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À liberdade e à vida só faz jus, Quem tem de conquistá-las diariamente. (...) Quisera eu ver tal povoamento novo, E em solo livre ver-me em meio a um livre povo. Sim, ao Momento então diria: Oh! pára enfim – és tão formoso! Jamais perecerá, de minha térrea via, Este vestígio portentoso! (GOETHE, 2011b, p. 601)
Quanto ao romantismo, segundo Thomas Mann em O Fausto de Goethe (1938) ele se manifesta sob a forma de um fenômeno notável: o gênio dos jovens estudantes, representado por Fausto, usurpa o papel da própria Humanidade, e todo o Ocidente aceitou essa valoração e reconheceu no simbolismo da figura fáustica a sua essência mais profunda. O jovem Fausto almeja e alcança um distanciamento crítico de sua própria imaturidade juvenil, caracterizada pelo desejo ilimitado por liberdade e pelo Absoluto. Distanciamento implica ironia - e disso Mann sabia muito bem -, e o protagonista da tragédia goethiana faz da ironia a sua “segunda alma”; de certa maneira, Mefistófeles, em seu materialismo cético, reforça isso ao agir como um corretivo irônico ao entusiasmo romântico do protagonista. (cf. MANN, 1958, pp. 22-24) Com isso estou sugerindo que Mefisto pode ser visto como um “duplo”, isto é, tanto um contraponto quanto um realce de características do próprio Fausto. Esta contradição entre “duas almas” é uma tópica recorrente na obra de Goethe; por exemplo, em Wilhelm Meister o personagem principal possui aspectos românticos e racionalistas, e toda a sua formação é uma tentativa de conciliar e sintetizar o impulso artístico com o distanciamento crítico; suas próprias influências pedagógicas tentam levá-lo ora para um caminho (a carreira teatral), ora para outro (a Sociedade da Torre). No caso da “Bildung demoníaca” de Fausto, é como se Mefistófeles fosse seu arquétipo de auto-aperfeiçoamento, a “inspiração” para o personagem superar suas limitações e explorar suas potencialidades.
4.5.
UM FAUSTO RUSSO? IVAN KARAMÁZOV E O DIABO
Dostoiévski também enfatiza – e de forma até mais explícita – a possibilidade de o Diabo ser um alterego (isto é, um eu inconsciente) do personagem fáustico, o que terá grandes repercussões em Doutor Fausto. Esta temática aparece em Os Irmãos Karamázov quando Ivan Karamázov, o irmão do meio, após descobrir que deu a fundamentação moral para o
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assassinato de seu pai, tem uma estranha conversa com o Diabo que o perturba profundamente (ou, talvez, já seja sintoma de sua perturbação). Antes de tudo, julgo pertinente contar desde os primórdios a trajetória de Ivan, afinal, como ficará claro no capítulo seguinte, sua formação apresenta alguns paralelos com a de Leverkühn. Após ele e seu irmão Alieksiêi (cujo apelido é Aliócha) serem abandonados pelo pai devasso depois da morte precoce da mãe, ambos foram criados por um decano da nobreza que era próximo à família materna. Desde a infância Ivan Karamázov revelou “aptidões extraordinárias e brilhantes para os estudos”, e seu tutor deixou sua educação ao cargo de “um pedagogo experiente e então famoso”, afinal “estava dominado pela idéia de que um menino de aptidões geniais devia ser educado por um educador também genial.” (DOSTOIÉVSKI, 2008, p. 29) Durante os anos de universidade Ivan se sustentou financeiramente escrevendo artigos para jornais, “de modo que chegou até a ficar conhecido nos círculos literários.” (Ibidem, p. 30) Já nessa época Ivan professava posições ateístas, e impressiona a todos com sua inteligência – ao mesmo tempo em que os atormenta com sua arrogância e cinismo. A primeira cena do livro em que este personagem expõe sua filosofia materialista é durante uma reunião de familiares, amigos e padres no mosteiro em que seu irmão Aliócha vive. Instigado por Piotr Miússov, um russo “ocidentalista” 19, Ivan fala um pouco sobre sua visão de mundo: não há virtude se não há fé na imortalidade da alma, pois na ausência desta fé “se exaure de imediato não só o amor como também toda e qualquer força que continue a vida no mundo”. Se Deus não existe e a alma é mortal, então tudo é permitido: “o egoísmo, chegando até ao crime, não só deve ser permitido ao homem, mas até mesmo reconhecido como a saída mais necessária e mais racional para a sua situação.” (Ibidem, p. 110) Ivan Karamázov, contudo, é marcado por uma profunda angústia existencial; ele precisa “resolver uma idéia”, como diria seu irmão Alieksiêi. Mesmo seu ateísmo é vacilante, pois é fruto de uma revolta metafísica: ele “aceita Deus, mas não pode aceitar o mundo de Deus, onde tem lugar o sofrimento dos inocentes, de modo especial das crianças.” (MORAES, 2011, p. 152) Em outras palavras, este personagem é marcado pela agonia intelectual resultante do embate contínuo com Deus e do impasse trazido por seu princípio do “Tudo é permitido” – que, por sinal, também é, segundo Luiz Felipe Pondé, um impasse do humanismo naturalista
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Sobre este personagem, eis uma descrição que enfatiza o fato de ele ser de uma geração de russos “progressistas” anterior à do ateísmo niilista de Ivan: “Miússov é um revolucionário de araque, (...) representa o russo que se tornou europeu, perdeu contato com os valores da pátria e derivou para um ateísmo ilustrado, „europeu‟, iluminista, que satiriza a religião e a considera como algo de mau gosto.” (MORAES, 2011, p. 148)
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(isto é, da versão estritamente secularista e imanentista do ideal humanista): “Quando o ser humano escolhe a liberdade como princípio da vida, ele acaba destruindo a própria possibilidade de liberdade, porque cai no caos, no total arbitrário.” (PONDÉ, 2003, p. 262) Para piorar, durante a conversa em que seu irmão bastardo Smierdiakóv confessa ser o assassino de seu pai Fiódor Pávlovitch - crime, aliás, pelo qual Dmitri, o irmão mais velho, suspeito por ter uma relação conflituosa com o pai, foi injustamente julgado e condenado -, Ivan é acusado de ter sido o mentor intelectual do crime. De fato, um dia antes do homicídio, mesmo quando ficou sabendo por Smierdiakóv de toda uma conjunção de fatores que poderiam facilitar a Dmitri assassinar Fiódor na noite seguinte, Ivan manteve sua resolução de viajar pela manhã. O irmão bastardo, que já demonstrava fascinação pelas idéias niilistas de Ivan, interpretou tal atitude como indiferença perante o risco de morte do próprio pai: O senhor tem toda culpa, porque sabia do assassinato (...) e, [mesmo] sabendo de tudo, partiu. Por isto quero provar na sua cara que o senhor é o principal e único assassino em toda essa história, enquanto eu não passo de um colaborador secundário, mesmo tendo sido eu quem o matou. (...) „Tudo é permitido‟. O senhor me dizia muitas coisas como essa: pois se Deus definitivamente não existe, então não existe nenhuma virtude, e neste caso ela é totalmente desnecessária. Isso o senhor realmente me disse. E foi assim que julguei. (DOSTOIÉVSKI, 2008, pp. 811; 816)
Em “O Diabo. O pesadelo de Ivan Fiódorovitch”, um dos capítulos mais fascinantes deste romance, Ivan, atormentado por se sentir cúmplice da morte do pai, em um delírio (ou, para os menos céticos, em uma aparição perturbadora), é visitado pelo diabo. Ao invés de um Satanás amedrontador, o demônio com quem conversa é um simplório gentleman. Frente à insistente negação de Ivan, para quem tudo não passa de pesadelo (muito embora já seja a 2ª vez que o Diabo lhe aparece...), o “cavalheiro” brinca com as tentativas “psicologizantes” de refutação empreendidas por Ivan Karamázov: Embora eu até seja sua alucinação, contudo, como num pesadelo, digo coisas originais que até hoje não te ocorreram, de modo que já não repito, em absoluto, os teus pensamentos, e no entanto sou apenas o teu pesadelo e nada mais. (...) Pelo arroubo com que me renegas (...), vou me convencendo de que, apesar de tudo, crês em mim. (Ibidem, pp. 828; 834)
Mesmo que Dostoiévski pretendesse que este personagem demoníaco não fosse nada mais que um sonho ou um delírio, o grau de perturbação - e profundidade psicológica - que esta cena revela em Ivan já é suficiente para tornar este “diálogo” extremamente instigante.
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Pouco depois o Diabo debocha de todas as idéias que Ivan Karamázov expressou em dois ensaios poéticos: o “O Grande Inquisidor”
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e “A Revolução Geológica”, sendo que
neste o racionalismo de Ivan (e, de forma mais geral, do humanismo naturalista) tem sua faceta niilista revelada. O Diabo começa pela exposição da utopia materialista nutrida por Ivan – que, aliás, assemelha-se bastante à apresentada por Karl Marx e outros teóricos revolucionários: “Novos homens virão”, proclamaste ainda na primavera passada, quando te preparavas para vir para cá, “eles tencionam destruir tudo e começar pela antropofagia. (...) A meu ver, nem é preciso destruir nada, mas só e unicamente destruir na humanidade a idéia de Deus (...). Quando a humanidade, sem exceção, tiver renegado Deus (e creio que essa era – um paralelo aos períodos geológicos – virá), então cairá por si só, sem antropofagia, toda a velha concepção de mundo, e principalmente, toda a velha moral, e começará o inteiramente novo. Os homens se juntarão para tomar da vida tudo o que ela pode dar, mas visando unicamente à felicidade e à alegria neste mundo. O homem alcançará sua grandeza imbuindo-se do espírito de uma divina e titânica altivez, e surgirá o homem-deus. (...) Cada um saberá que é plenamente mortal, não tem ressurreição, e aceitará a morte com (...) tranqüilidade, como um deus. Por altivez compreenderá que não há razão para reclamar de que a vida é um instante, e amará seu irmão já sem esperar qualquer recompensa (...)”... e assim por diante, tudo coisas desse gênero. Um primor! (Ibidem, p. 840)
Logo em seguida, contudo, a figura demoníaca expõe as conseqüências, digamos, “problemáticas” que aparecerão quando da execução deste ideal, e aproveita para debochar do tom paternalista e egocêntrico recorrente em várias teorias racionalistas em voga no Séc. XIX: Será mesmo possível que essa era comece algum dia ou não? Se começar, tudo estará resolvido, e a humanidade se organizará definitivamente. Mas como, devido à arraigada estupidez humana, isso talvez não se organize nem em mil anos, então a qualquer um que já hoje tenha consciência da verdade é permitido organizar-se sobre novos princípios a seu absoluto critério. Neste sentido, a ele „tudo é permitido‟. (...) Ao novo homem, ainda que seja a um só no mundo inteiro, será permitido tornar-se homem-deus e (...) passar tranquilamente por cima de qualquer obstáculo moral imposto ao antigo homem-escravo, se isso for necessário. Para um deus não existe lei! (...) Tudo isso é muito encantador; mas se alguém quiser usar de vigarice, então, parece, para que ainda servirá a sanção da verdade? (Ibidem, p. 841) 20
Passagem mais famosa de Os Irmãos Karamazov, consiste num poema de Ivan, recitado a Aliócha, no qual Cristo volta ao mundo em meados do Século XVI, na Espanha dos tempos de Inquisição, e é preso pelo Grande Inquisidor, o qual atribui a si e aos seus aliados o mérito de finalmente terem vencido a liberdade e feito isto com o fim de tornar as pessoas felizes. O Inquisidor ainda afirma que a maioria dos homens trocaria facilmente a liberdade pelo “pão da terra” (uma metáfora para a felicidade terrena), pois “não existe nada mais sedutor para o homem que sua liberdade de consciência, mas tampouco existe nada mais angustiante.” (Ibidem, p. 353)
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É possível considerar esta fala do Diabo como uma crítica contundente de Dostoiévski à mentalidade utópico-revolucionária - a qual, de certa maneira, também é inerente ao mito fáustico. O individualismo desenfreado do Fausto histórico persevera nas diferentes adaptações desta história e também serve de retrato da própria Modernidade. Por meio desta “conversa demoníaca” de Ivan Karamázov torna-se explícito que a fundamentação racionalista e “científica” das utopias sociais - e também individuais, de auto-cultivo, afinal Ivan também está moldando seu self quando deseja esta liberdade absoluta, esta autorealização na pura imanência – não as torna mais “humanitárias”, mas sim mais perversas. De certa maneira Doutor Fausto compartilhará desta crítica, embora o racionalismo que critique não seja no âmbito sociopolítico, mas sim no artístico: a música dodecafônica. A “conversa” entre Adrian Leverkühn e o diabo em Doutor Fausto é bastante inspirada no diálogo (ou “sonho febril”) entre Ivan e o gentleman diabólico, pois o demônio do romance de Mann também parece ser um alterego, já que sempre expressa pensamentos do próprio Leverkühn; ou seja, o romance nos leva a compreender o documento de Adrian como uma confissão, ao invés de uma prova de um pacto “real” fornecido por uma fonte onisciente e objetiva. (cf. GOLDMAN, 1992, p. 242) Em ambos os casos, tudo fica indeciso entre sonho e realidade, e não se sabe se foi um delírio; no caso do romance de Mann, “a incerteza se intensifica pelo fato de o pacto ser narrado pelo próprio Leverkühn em anotações da manhã seguinte, que são reproduzidas literalmente por Zeitblom.” (VEJMELKA, 2009, p. 301) Eis um exemplo do diálogo demoníaco do romance de Mann que ecoa o viés psicológico – e o tom irônico – do delírio de Ivan21: EU: - Dicis et non es. Afirmais mesmo que estais sentado no sofá à minha frente e falais de fora de mim, usando locuções tudescas do bom linguajar kumpfiano? 22 (...) ELE (meneando a cabeça e estalando a língua, aparentemente magoado): Te, te, te! Sempre essa mania de duvidar, sempre a mesmíssima falta de confiança em si próprio! (...) Tu, meu caro, sabias muito bem o que te faltava e agiste inteiramente à maneira alemã, quando empreendeste tua viagem e apanhaste, salva venia, o mal-francês.23 - Cala-te! - Cala-te? Vejam só! Estás fazendo progressos. Esquentas-te. Abandona finalmente a cortesia do plural e me tratas por tu, assim como convém entre 21
Voltarei a falar do encontro entre Adrian Leverkühn e “Ele” no cap. 5. Por enquanto, restrinjo-me a mostrar a inspiração dostoievskiana para tal cena. 22 Alusão ao teólogo liberal Kumpf. Vide capítulo 5. 23 Alusão à sífilis que Leverkühn contraiu de uma prostituta. Como era uma “doença de artistas”, a sífilis passou a ser conhecida como mal-francês.
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pessoas ligadas por um pacto e conluiadas no tempo e na eternidade. (MANN, 1996, pp. 305; 309)
*** A lenda do Doutor Fausto é uma alegoria do individualismo moderno ao refletir tanto o otimismo renascentista quanto o pessimismo da Reforma em relação à condição humana: se por um lado o indivíduo fáustico é ávido por prazeres mundanos, conhecimento dos segredos da natureza e poder sobre a mesma, por outro em seu desfecho trágico há uma lição de moral cristã, pois Fausto não consegue “resgatar” sua alma do Diabo, sendo punido por sua soberba. Este mito, contudo, é transfigurado de formas distintas nos três exemplos citados. O ceticismo do Fausto de Marlowe, a utopia romântica da versão de Goethe e – como ficará mais claro no capítulo seguinte – a introspecção e melancolia do personagem fáustico de Mann ressaltam, em sua pluralidade, o caráter intrigante do mito fáustico, na medida em que desvelam a postura dúbia do homem moderno diante de suas conquistas intelectuais, econômicas e científico-tecnológicas. A tragédia da modernidade consiste justamente nesta oscilação incessante entre a apologia do progresso e o arrependimento diante dos excessos do mesmo, seja em seus danos à natureza, à sociedade, à cultura ou mesmo quando este “progresso” afeta a moralidade e a dignidade humana. Eis, portanto, a razão de o mito de Fausto permanecer tão atual.
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5.
A BILDUNG DEMONÍACA DE ADRIAN LEVERKÜHN
Durante este capítulo faço um resumo detalhado da história de Doutor Fausto e apresento a fortuna crítica feita ao romance, sendo que darei maior atenção a uma dessas análises: a de Lukács, tanto em seu ensaio especificamente sobre este romance (Thomas Mann e a Tragédia da Arte Moderna, de 1948) quanto, de forma hipotética, a partir da tipologia da forma romanesca que desenvolveu em A Teoria do Romance; por meio dela argumento sobre a razão pela qual a saga de Leverkühn poder ser considerada um romance de formação. Adrian Leverkühn, protagonista de Doutor Fausto, nasceu em 1885 no seio de uma família luterana. Jonathan, seu pai, “era um homem da melhor estampa alemã”, mas de “um tipo que dificilmente se encontra nas nossas cidades de hoje” porque investe contra o mundo “com uma veemência deveras angustiante.” (MANN, 1996, p. 18). Ele herdou uma Bíblia impressa por volta de 1700, encadernada em pele de porco – a propósito, eis um elemento simbólico, pois este animal é associado ao demoníaco (cf. CORDEIRO, 2011). “Alquimista fora de moda”, o pai de Adrian possui e transmite ao filho uma curiosidade científica análoga à dos bruxos. (MANN, 1996, p. 20) Em vários momentos da história fica evidente de que há algo de terrivelmente peculiar no filho de Jonathan. Na escola, por exemplo, Serenus se angustiava com a mescla de talento e soturnidade que marca a personalidade do seu melhor amigo: “Há maus alunos em grande número. Adrian, porém, representava o fenômeno de um mau aluno na figura de um primeiro da classe.” (Ibidem, p. 62) Leverkühn demonstrava uma predileção pela Matemática, que refletia seu anseio por ordem, e também uma propensão autodidata à Música, sobre a qual diz algo que impressiona Serenus: “a Música é a ambigüidade organizada como sistema. Pega este ou aquele tom. Podes entendê-lo assim ou também assado, elevado de baixo ou abaixado de cima, e, se fores hábil, conseguirás aproveitar à vontade o duplo sentido.” (Ibidem, p. 65) Na adolescência, influenciado pelo professor estrangeiro Wendell Kretzschmar, Adrian não foge da vocação à qual estava predestinado, e desenvolve sua aptidão artística de forma acelerada. Kretzschmar não se opunha e até favorecia “a pressa com que o jovem vibrante de inteligência se adiantava também em matéria de música, ocupando-se com coisas que um mentor mais pedante teria proscrito como disparates.” (Ibidem, p. 98) Leverkühn começa então a sua formação, facilitada pela cumplicidade de seu mestre, é tema de um dito espirituoso do narrador: “Um professor é a personificada consciência do
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aluno; confirma-o nas suas dúvidas; explica-lhe os motivos de sua insatisfação e lhe estimula a vontade de melhorar.” (Ibidem, p. 242) No entanto, a Bildung de Adrian não é como a de Hans Castorp, pois nela não há aperfeiçoamento moral. O caráter problemático de seu processo formativo tem raízes já no esteticismo preconizado por Kretzschmar: embora seu mestre lhe tenha ensinado bastante não só sobre música, mas também filosofia e literatura (o plano de leituras incluía nomes como Shakespeare, Sterne, Goethe, Hölderlin, Novalis, Schopenhauer etc.), do ponto de vista ético ele foi uma influência danosa: “Não é minha função fazer o papel do titio médico da família, que adverte contra leituras prematuras (...). Deixemos que ele mesmo forme sua opinião a esse respeito!” (Ibidem, p. 97) O primeiro curso universitário que Leverkühn fez foi Teologia, o que revela seu interesse em decifrar os mistérios do Eterno. Aliás, nessa decisão reside uma interessante questão metafísica: Leverkühn se sentia alienado e inútil em relação a Deus, o que se refletia até mesmo em sua timidez e incapacidade para cultivar relações sociais. Adrian Leverkühn fez este curso durante dois anos na Universidade de Halle, que, aliás, é a primeira universidade pietista. Segundo Serenus Zeitblom, que durante algum tempo estudou nesta cidade e aproveitava para assistir às disciplinas que Adrian estava cursando, desde os primórdios esta instituição era um espaço espiritual cheio de controvérsias religiosas, “rixas e discussões eclesiásticas que sempre prejudicaram o empenho pela cultura humanística” (Ibidem, p. 117). No trecho a seguir, Zeitblom – que, aliás, é católico – aponta a relação dúbia da teologia pietista com a ciência: O Pietismo, de acordo com a sua índole exaltada, queria (...) obter uma separação nítida entre a piedade e a ciência, afirmando que nenhum movimento, nenhuma alteração nos domínios científicos podia exercer a menor influência sobre a fé. Mas isso era uma ilusão, já que em todos os tempos a teologia, voluntária ou involuntariamente, se deixou dominar pelas correntes científicas do respectivo período; sempre desejou ser filha de sua época, ainda que os tempos lhe dificultassem isso cada vez mais e a relegassem a um cantinho anacronístico. (...) Nada lhe adianta tentar adaptarse e fazer concessões à crítica científica. O que estas produzem é uma híbrida mistura da ciência e da fé na Revelação; fica a meio caminho da renúncia a si própria. (Ibidem, p. 119-120)
Na universidade, Adrian convive com professores que só reforçaram suas tendências niilistas. O primeiro de seus professores é o Ehrenfried Kumpf, adepto da teologia liberal, que segundo o narrador é marcada por uma “ideologia progressista burguesa” e vê tudo sob um viés culturalista: ela “degrada o princípio religioso à função de um sentimento humanitário e
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dilui os componentes de êxtase e paradoxo, essenciais do gênio religioso, até se converterem numa ética do progresso.” Seu moralismo e seu humanismo, entretanto, são incapazes de perceber e penetrar “no caráter demoníaco da existência humana.” (Ibidem, p. 121) Ou seja, era uma teologia culta, mas superficial. Kumpf era representante de um conservadorismo mediador com laivos críticos-liberais; não somente era anti-dogmático, mas também anti-metafísico, pois nutria o ideal da personalidade alicerçada na moral e demonstrava veemente aversão à dissociação pietista de mundo e religião. Este teólogo liberal defendia uma religiosidade secular e se colocava em prol da cultura alemã de tal forma que o narrador ironizou como “um inabalável nacionalismo de cunho luterano.” (Ibidem, p. 129) Quando se referia ao Diabo, Kumpf empregava um linguajar que não dava a impressão de ser meramente simbólico, embora como homem de ciências ele se arrogasse de um racionalismo crítico. As expressões jocosas que atribuía a “Ele” (Cão-tinhoso, Mestre Capiroto, Dicis-et-nos-facis...) davam a entender que mantinha uma “relação intensamente pessoal, de forte rancor com o opositor de Deus.” (Ibidem, p. 130) Outro professor é Eberhard Schleppfuss, cuja abordagem era abertamente vitalista, irracionalista. Logo na apresentação o narrador aponta o caráter soturno deste teólogo: A ingênua convivência que o professor Kumpf tinha com o Diabo era simples brincadeira em comparação com a realidade psicológica que Schlepfuss conferia à figura do Destruidor, personificação da traição a Deus. Pois, se me permitem expressar dessa forma, acolhia ele dialeticamente na esfera divina o escândalo do pecado e o inferno no empíreo, elevando a perversidade à categoria de necessária e congênita correlação de santidade, a qual, por sua vez, seria uma contínua tentação satânica, convite quase irresistível à violação. (Ibidem, p. 133)
Em uma de suas aulas de Psicologia da Religião, Schlepfuss alega que o Mal é conseqüência necessária da existência de Deus, e que o livre-arbítrio e o pecado são indissociáveis. Este professor ocupava boa parte do curso traçando a ligação dialética do Mal com o Santo e o Bem, o que desempenhava um papel importante em sua teodicéia24: O Mal contribuía, segundo ele, à perfeição do Universo e, sem aquele, este não seria perfeito. Por esse motivo, Deus o admite, já que Ele mesmo é perfeito e, portanto, deve querer a perfeição. (...) A verdadeira justificação de Deus em face do mísero espetáculo da criação consistia em sua faculdade de fazer o Bem brotar do Mal. (Ibidem, pp. 137-138)
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Estudo da presença do mal no mundo e da sua coexistência com um Deus todo-poderoso e de infinita bondade.
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Schlepfuss, portanto, reconhecia o Mal como uma realidade imediata, e Leverkühn de alguma maneira se deixa influenciar por esta teodicéia, enquanto Zeitblom sentia-se desconfortável, e só ia a essas aulas “pelo inevitável desejo de ouvir o que ele ouvia, de saber o que ele assimilava, numa palavra: de velar por ele – já que isso se me afigurou extremamente necessário, ainda que em vão.” (Ibidem, p. 149) Serenus, portanto, preocupavase com as experiências espirituais de Adrian, mesmo que seus esforços tenham sido inúteis para mudar o destino trágico de seu melhor amigo. Embora profundamente marcado pelos conhecimentos que adquiriu nas aulas e nos debates com seus colegas, após dois anos Adrian abandona o curso de Teologia e assume em definitivo a sua Beruf (vocação) para a Música. Ele até envia uma carta a Kretzschmar notificando-o da decisão, em uma espécie de manifesto esteticista: O senhor acha que tenho vocação para essa arte e me dá a entender que o desvio que me conduziria até ela nem sequer seria muito grande. Meu luteranismo concorda com isso, já que reputa a Teologia e a Música esferas vizinhas, muito afins e, para mim, pessoalmente, a Música sempre tem representado uma combinação mágica entre a Teologia e a tão divertida Matemática. (Ibidem, p. 175)
O professor de Adrian fica feliz com a decisão de seu pupilo, e tenta acalmar Leverkühn quanto às inquietações e dúvidas que este ainda tem sobre a sua vocação. Kretzschmar afirma que a Arte também tem um caráter supra-individual, e na digressão citada a seguir deixa claro que um dos temas centrais de Doutor Fausto é a intelectualização da arte: A Arte progride – escreve Kretzschmar – e o faz por intermédio da personalidade, que é produto e instrumento da época, e na qual fatores objetivos e subjetivos ligam-se até tornarem-se indistinguíveis, assumindo uns a forma de outros. Devido à necessidade vital que a Arte tem do progresso revolucionário e da realização do renovamento, depende ela do veículo do mais intenso sentimento subjetivo, que acha chochos, inexpressivos e obsoletos os recursos ainda corriqueiros e se serve daquilo que aparentemente não é vital, a saber, da predisposição pessoal para a lassitude, do fastio intelectual, do asco que acomete a quem perceba o segredo do feitio, da maldita inclinação de ver as coisas à luz de sua própria paródia, do senso do cômico. O desejo de vida e progresso, inerente à Arte, põe as máscaras dessas indolentes qualidades pessoais, para assim manifestar-se, objetivar-se, cumprir-se. (Ibidem, p. 181)
Uma passagem decisiva na vida de Adrian foi durante uma viagem a Leipzig em 1905, quando um guia turístico mal-intencionado o levou a visitar um prostíbulo. Foi lá que ele conheceu a meretriz Esmeralda, a qual reencontrou um ano depois. A prostituta chegou a
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acautelá-lo contra seu próprio corpo, mas foi em vão: “A pobre moça deve ter-se sentido purificada, justificada, engrandecida e feliz pelo fato de que o homem vindo de longe recusava, apesar de qualquer perigo, renunciar a ela (...). O destino encarregou-se de fazer com que jamais a esquecesse.” (Ibidem, p. 207) Sendo mais explícito, foi com ela que Adrian adquiriu sífilis, a doença demoníaca - e o germe criador - que o atormentaria pelo resto de sua existência. (cf. CORDEIRO, 2011) Sobre esta relação entre enfermidade e inspiração artística, a sífilis sempre foi vista socialmente como a doença que atinge todos os que desprezam as conseqüências dos seus atos. O que caracteriza Adrian Leverkühn, e é indissociável de sua genialidade, é justamente o niilismo ativo: “O niilista declara ansiar por um fundamento novo e mais sólido, mas não se abala diante da possibilidade de que seu projeto resulte apenas em destruição.” (DRUCKER, 2010, p. 176) É por isso que a decisão voluntária de Adrian pela doença “pode ser um meio de negação da vida como ela é e a aceitação do lado escuro da existência como próprio do artista.” (MISKOLCI, 1998, p. 195) 25 O momento mais marcante da obra ocorre em 1912, durante a estadia de Leverkühn e alguns amigos em Palestrina (Itália). Um dia, enquanto lia uma obra do filósofo cristão Kierkegaard (1813-1855) sozinho na sala, ele sente algo extremamente frio e percebe que uma pessoa instalou-se no sofá. A partir daí desenrola-se uma estranha conversa (ou um sonho?) com o Diabo, por meio da qual Adrian e “Ele” fazem um pacto que garante ao compositor a genialidade artística durante um período de vinte e quatro anos: Um diabo ilustrado disserta sobre estética e filosofia, cita Kierkegaard e Goethe, nega ironicamente toda a tradição do Fausto. Muda de aparência conforme a temática, do cafajeste ou cafetão (...), pelo intelectual elegante parecido com Adorno (...) à figura clássica do Cujo animalesco. Explica que nem o pacto pode ter mais a forma clássica: já fora negociado e assinado há tempo, a conversa é somente a explicitação dos termos estabelecidos. (VEJMELKA, 2009, p. 301)
No início do diálogo, o Diabo se parece com um rufião, falando alemão e espalhando frio. Porém, “Ele” muda de aparência, tomando a forma de um intelectual musicólogo (eis uma alusão a Kretzschmar e até Adorno), com isso se tornando mais elegante, o que faz Adrian se sentir mais à vontade. À medida que a conversa avança, ele ganha a aparência de um professor de Teologia (uma referência a Schlepfuss). O Diabo promete a Leverkühn uma 25
A propósito, ainda segundo Miskolci, entre os inúmeros sifilíticos famosos do Século XIX contam-se Charles Baudelaire, Oscar Wilde, Flaubert e Nietzsche.
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deleitosa, fascinante e férvida inspiração artística, que não seria possível com Deus, “que abandona demasiado trabalho ao intelecto”, mas unicamente com “Ele”, o verdadeiro senhor do entusiasmo: “uma inspiração que faz com que o passo estaque e tropece, com que sublimes tremores percorram da cabeça aos pés o ente agraciado e lhe arranquem dos olhos uma torrente de lágrimas de felicidade.” (MANN, 1996, p. 321) Tanto Adrian quanto o Diabo consideram a arte de seu tempo como paródia, e poderia até ser divertida se não fosse tão melancólica em seu niilismo aristocrático. Eis a razão pela qual, segundo Richard Miskolci, há em Doutor Fausto uma representação do dilema com que a arte moderna se deparou: servir a objetivos sociopolíticos ou rejeitar qualquer laço exterior e desenvolver-se a partir de regras estritamente codificadas. Na intelectualização da Arte preconizada por Kretzschmar e reforçada por Leverkühn nesta conversa com o demônio, está subjacente “o fato de que na era mais sofisticada do intelecto emergiram as forças irracionais com poder até então inimaginável de destruição.” (MISKOLCI, 1998, p. 194) Leverkühn, portanto, por estar angustiado com a crise da arte em seu tempo - “as formas das quais, como não se ignora, a vida desapareceu” (MANN, 1996, p. 327) - cai na tentação de reativar sua criatividade artística com um pacto diabólico. Em meio a seus dilemas existenciais e artísticos, Adrian vê este “contrato” como uma forma de se libertar da inibição e tornar possível sua redenção como músico. Num sentido simbólico, a entrega da alma ao Diabo é a condição para o artista dominar a Arte e alcançar seus delírios de grandeza: Tu serás um líder, imprimirá o ritmo à marcha que conduz ao futuro; teu nome será adorado pela rapaziada, que graças à tua loucura, já não precisará enlouquecer. (...) Não somente vencerás as estorvadoras dificuldades dos tempos; não, os próprios tempos, a fase da Cultura e seu culto serão superados por ti; terás a audácia de uma barbárie duplamente bárbara, por ocorrer após o humanismo, após o refinamento burguês e qualquer tratamento de canal que se possa imaginar. (Ibidem, p. 329)
Há, contudo, uma cláusula no contrato: em troca de inspiração criativa, Adrian deve renunciar a amar, pois a iluminação criativa que lhe será dada “requer o esfriamento total de tua existência e de tua relação para com os homens.” (Ibidem, p. 337) Leverkühn já demonstrava em outras cenas uma frieza emocional notável, o que é reconhecido pelo Diabo, que diz não estar impondo a ele qualquer coisa inédita. A propósito, reside aqui a essência do pacto fáustico (e do próprio esteticismo): a ausência do amor ao próximo (cf. CORDEIRO, 2011), pois para espíritos orgulhosos como Adrian é a existência extravagante a única a satisfazer.
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Para Marcus Mazzari, este pacto fáustico também reflete o fato de que em Doutor Fausto há uma vigência de aspirações que só se concretizam por meios diabólicos, impondo ao pactário Leverkühn uma esquiva permanente das pessoas, da vida social, da realidade histórica. Conseqüentemente, este personagem opera uma fuga cada vez mais intensa para dentro de si mesmo, na solidão da existência estética. (cf. MAZZARI, 2010, p. 73) Com isso, o niilismo inato de Adrian aprofunda-se. Além disso, este acordo satânico feito por Adrian revela o problemático fundamento de sua Bildung: se por um lado o pacto pode ser visto como uma escapatória das dificuldades acarretadas pela “tragédia da cultura”, também é possível encará-lo como a ânsia por eclosão, a qualquer custo, de um espírito orgulhoso e ameaçado de esterilidade, de uma subjetividade exacerbada e fechada em si própria. A primeira das duas obras-primas de Adrian Leverkühn é Apocalipsis cum figuris, terminada em 1919. Com essa composição marcada pelo negativo teológico e pelo caráter impiedoso, o compositor procurou revelar o segredo mais profundo do homem: “a sua ambigüidade, nossa identidade tanto de bestialidade quanto da mais pura nobreza de sentimentos.” (RIEMEN, 2011, p. 78) O próprio círculo social de Leverkühn - pequeno, mas repleto de pessoas de caráter ambíguo e idéias radicais - reforçou-lhe suas tendências niilistas. Além dos já citados professores de Teologia, ele conviveu com artistas e intelectuais marcados pelo soturno Zeitgeist26. Um exemplo é o acadêmico Helmut Institoris, marido de Inês, uma amiga de Adrian e Serenus. Especialista na Renascença, Helmut faz constantes apologias ao ideal da “arte pela arte”, não se importando com as conseqüências morais e políticas dessa postura. Outro intelectual intrigante que os dois amigos conhecem é Chaim Breisacher, segundo o narrador “um filósofo da cultura cuja mentalidade se dirigia, contudo, (...) contra a própria Cultura” (MANN, 1996, p. 377). Breisacher via na história da mesma um processo de decadência, e desprezava o assim-chamado “progresso”. Uma de suas falas mais perturbadoras é quando, após criticar o bíblico Rei Salomão por abandonar as tradições de um deus nacional – que para este filósofo é a “quinta-essência da força metafísica do povo” – e iniciar o culto a um Deus abstrato, Breisacher afirma que não existe pecado, pois na religião autêntica de um povo genuíno não existem “conceitos teológicos débeis, tais como „pecado‟ ou „castigo‟, com seu nexo causal apenas ético.” De acordo com este personagem, a Religião
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Expressão atribuída a Hegel, refere-se ao fato de que as idéias, noções e tudo mais que dá forma à consciência ou visão de mundo de uma determinada época constituem o Espírito do Tempo (der Geist seiner Zeit).
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e a Ética nada têm em comum, a não ser o fato de que esta representa a decadência daquela: “Tudo o que é moral é deformação „puramente espiritual‟ do rito.” (Ibidem, p. 383) Ao longo do romance, a cláusula do pacto se cumpre, e várias pessoas amadas por Leverkühn morrem em circunstâncias trágicas; a última delas, seu pequeno sobrinho Nepomuk, serviu de inspiração para sua composição final (e segunda obra-prima), a Lamentação do Dr. Fausto. O narrador Zeitblom aproveita para traçar um paralelo entre a obra de seu amigo com a situação da Alemanha sob o nazismo e a guerra, além de operar um contraste entre o contexto sombrio do compositor e sua nação no Século XX com a Nona Sinfonia de Beethoven como trilha de um passado glorioso dos germânicos - mais especificamente, as vitórias contra o exército de Napoleão, na década de 1810: Anos houve em que nós (...) sonhávamos com o canto jubiloso, (...) a Nona Sinfonia, para festejarmos a aurora da libertação da Alemanha, da liberdade obtida por suas próprias forças. Neste momento, porém, só uma única música pode servir-nos, somente ela corresponderá a nossas almas, a saber: a lamentação do filho do Inferno, a lamentação humana e divina, que, partindo do indivíduo, mas ampliando-se cada vez mais e, em certo sentido, apoderando-se do cosmo, há de ser a mais horrenda que jamais tenha sido entoada na Terra. (...) O final é puramente orquestral: um adágio sinfônico, ao qual passa aos poucos o lamentoso coro, que começou poderosamente após o galope infernal. É, por assim dizer, o caminho inverso ao Hino à Alegria, a negação congenial daquela transição da sinfonia ao júbilo vocal, é sua revogação... (...) Quão definitivamente não ressoa isso de cada compasso, cada nota desse Hino à Tristeza! Não há dúvida de que a cantata foi concebida com olhos fixos na Nona de Beethoven, como seu contrapeso no sentido mais melancólico do termo. (Ibidem, pp. 653; 659-660)
Como sugere seu próprio título, Lamentação do Dr. Fausto é a composição de Leverkühn que lida mais diretamente com o mito fáustico. É no mínimo sintomático o fato de que o núcleo da obra é a frase dodecafônica “Pois eu morro como um mau e bom cristão.” (Ibidem, p. 659) Nesta cantata final de Leverkühn, Fausto rejeita a esperança na salvação de sua alma, não apenas por lealdade formal ao pacto e por ser tarde demais, “mas também por desprezar totalmente o caráter positivo do mundo devido ao qual poderia ser salvo, e a mentira da divina beatitude do mesmo.” (Ibidem, p. 660) Em 1930, Adrian Leverkühn convidou seus amigos e conhecidos para tocar sua nova obra. Seu amigo Serenus estranhou esta atitude: o plano de iniciá-los em sua obra mais solitária não estava de acordo com a natureza de Adrian, um notório recluso. De toda forma, um grupo de cerca de trinta pessoas se reuniu em Pfeiffering para a audição.
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Antes de tocar, Leverkühn, para espanto de todos, faz uma confissão de seu pacto diabólico: “tendes diante de vós um ser desesperado, abandonado por Deus”. (Ibidem, p. 671) Este personagem demonstra que, apesar de tudo, continua a cultivar uma religiosidade luterana: “Desde a minha juventude, tem sido meu destino ir em busca d‟Ele, uma vez que deveis saber que o homem foi criado e predeterminado para a beatitude ou o Inferno, e eu nasci para o Inferno.” (Ibidem, p. 672) Por outro lado, pode-se argumentar, como o faz Nivaldo Cordeiro (2011), que a doutrina da predestinação tira dos ombros da pessoa a responsabilidade moral sobre seus atos, na medida em que ela pode debitar seus erros e pecados à divindade ou a razões metafísicas – e Adrian, neste trecho, de certa forma, “culpa” o Diabo pelo seu destino. No trecho seguinte este músico parece continuar acreditando piamente que vender a alma ao Diabo era inevitável para que ele se tornasse um gênio da Música: ... esta é a época em que já não é possível realizar uma obra de modo piedoso, correto, com recursos decentes. A Arte deixou de ser exeqüível sem a ajuda do Diabo e sem fogos infernais sob a panela... Sim, sim, meus caros companheiros, certamente cabe aos nossos tempos a culpa de que a Arte estagna, que se tornou difícil e zomba de si mesma, que tudo se tornou por demais difícil e a pobre criatura de Deus já não percebe nenhuma saída, na sua miséria. (Ibidem, p. 672)
Logo em seguida, contudo, Leverkühn faz uma dura autocrítica de sua opção pelo isolamento, mostrando até certa consciência social: ... ao invés de cuidarem sabiamente de tudo quanto for necessário na terra, a fim de que nela as coisas melhorem, e de contribuírem sisudamente para que entre os homens nasça uma ordem suscetível de propiciar à bela obra novamente um solo onde possa florescer e ao qual queira adaptar-se, os indivíduos freqüentemente preferem faltar às aulas e se entregar à embriaguez infernal. Assim sacrificam então suas almas e terminam no podredouro. (Ibidem, p. 673)
Findo o discurso (durante o qual várias pessoas, chocadas, saíram do recinto), Leverkühn, às lágrimas, senta-se ao piano, mas logo depois cai do banquinho. Soa a meianoite do pacto, e o protagonista de Doutor Fausto prostra em estado vegetativo, causado concretamente pela sífilis, mas simbolicamente pelo fim do prazo de seu contrato diabólico. A história de vida de Adrian mostra que seu espírito, cujo desenvolvimento era limitado por sua perspicácia niilista e sua total alienação do mundo, não pôde superar todas as suas inibições sem a ajuda de uma vontade formadora (isto é, de uma aspiração fáustica) e de um
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ato de absoluta prostituição. O produto desta é uma arte que não é tanto uma questão de autodisciplina, mas acima de tudo resultado do orgulho de Leverkühn, que sacrificou seu intelecto para solucionar sua angústia espiritual. Com o pacto sifilítico, este personagem se revigora de tal forma que se torna capaz de enfrentar as vacilações de sua personalidade hipercrítica, mas o preço disso é uma resignação ao terrível destino que o aguarda. (cf. KAUFMANN, 1973, p. 214) Se a trajetória de Adrian Leverkühn for relacionada com a de Ivan Karamázov (vide capítulo 4), é possível dizer que Thomas Mann compartilharia da crítica feita por Dostoiévski ao niilismo, afinal estava convicto de que a verdade não pode ser “um conceito relativo e subjetivo que cada um pode manipular a seu bel-prazer. A verdade deve ser novamente a medida absoluta com que se mede a nossa dignidade humana.” (RIEMEN, 2011, p. 72) A partir de influências pedagógicas nefastas, em particular o teólogo negativista Schlepfuss e o esteticista Kretzschmar, mas também de sua propensão inata tanto às forças ocultas quanto ao hiper-racionalismo, a Bildung de Leverkühn encaminhou-se para um rumo diabólico. Doutor Fausto também representa o fim e o enterro de uma era: Serenus Zeitblom, já velho, revê a própria vida, a de seu amigo e a de sua época - e o que ele vê é a morte como saída majestosa de uma grande tradição, mas também na aridez que ela emite; isto é, na pseudo-vida da paródia, no “niilismo aristocrático” em que as velhas formas são perpetuadas, reverentemente ou não. O fim da guerra e da Alemanha nazista é experimentado por Zeitblom em 1945, embora o desfecho da história já tenha sido prefigurado pelo “Apocalipse” de seu melhor amigo. E Thomas Mann? Ele não se permite a indulgência de voluptuosos sonhos de morte. Esta posição pessoal aparece na consciência de última hora de Leverkühn, quando este, mesmo sendo tão orgulhoso, confessou seus pecados à platéia daquele que seria seu último concerto. (cf. KAUFMANN, 1973, pp. 220-221) Há, portanto, certa redenção no ato final deste personagem, refletindo o tom esperançoso do escritor. *** Interrompemos nosso concerto para a execução do Intermezzo. Apresento a seguir a análise de Doutor Fausto feita por Georg Lukács, que considera este romance como síntese da obra de Mann e continuidade com a temática de escritos anteriores como A Morte em Veneza: “é uma monumental recapitulação e sistematização de todos os temas das suas obras juvenis.” (LUKÁCS, 1965: 178) A complicada relação entre artista e sociedade aparece agora sob a forma de um pacto diabólico cujo indivíduo fáustico, diferentemente da versão goethiana para
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o mito, não é extrovertido e expansivo, mas introvertido e com tendências isolacionistas. Marcado pelo dilaceramento demoníaco na produção e pela postura niilista ativa, a tragédia de Adrian transforma-se “não apenas numa tragédia da música, da arte e da cultura”, mas também “na tragédia da Alemanha, da humanidade que vive atualmente naquela forma de vida que é a burguesa”. (Ibidem, p. 211) O discurso final de Leverkühn é uma das partes mais elogiadas do livro por Lukács em seu ensaio Thomas Mann e a Tragédia da Arte Moderna (1948), pois representa uma rejeição da arte desligada da vida. As últimas palavras de Adrian Leverkühn constituem a conseqüência natural da tragédia da Alemanha e da arte burguesa na perspectiva de Mann. É assim que se esboça “uma ação de pulverização das espessas paredes daquele cárcere que é seu „pequeno mundo‟.” Sendo assim, Doutor Fausto enfatiza a vizinhança de esteticismo e barbárie, de “vanguardismo” e reacionarismo político e social. (Ibidem, pp. 226; 234) De certa maneira, na década de 40 tanto Mann quanto Lukács convergem no entendimento do romance como tentativa de reconciliar o indivíduo e o mundo. Este escreve dois ensaios (À procura do burguês e o supracitado Thomas Mann e a Tragédia da Arte Moderna) bastante elogiosos dos romances de Thomas Mann, estabelecendo uma relação entre sua obra literária e o futuro da Alemanha. O escritor retribuiu considerando Lukács o crítico que melhor interpretou sua obra: “... o ensaio „À procura do burguês‟ (...) é uma interpretação sociológica e psicológica do meu trabalho e de minha existência como nunca vi em tão grande estilo, e por isso reservo ao crítico uma genuína gratidão.” (MANN, 2001, p. 114) Lukács reconhece, no entanto, que ambos continuam ideologicamente distantes: os romances de Mann são um retrato crítico da burguesia alemã, mas isso não acarreta numa posição revolucionária: “Thomas Mann é um realista de rara fidelidade à realidade, devoto, inclusive, da realidade.” (LUKÁCS, 1969, p. 13) De toda forma, Georg Lukács enxerga em Mann a maior expressão do “realismo crítico”, isto é, do romance burguês com consciência social. Para o filósofo húngaro, toda grande arte é socialmente progressista no sentido de que, seja qual for a filiação política do autor, “ela torna concreta as forças histórico-universais de uma época, (...) revelando seu potencial de desenvolvimento em seu mais alto grau de complexidade.” (EAGLETON, 2011, p. 58) Ou seja, o escritor realista consegue apreender o essencial dos fenômenos da vida social e compor uma totalidade, elaborada como uma experiência concreta.
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Em 1969, uma década depois da morte de Thomas Mann, o pensador húngaro escreveu um ensaio sobre os primeiros romances de Aleksandr Solzhenitsyn, no qual reformulou algumas de suas posições estéticas. Lukács demonstrou menos restrições a autores “vanguardistas”
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e enalteceu Mann não enquanto “um continuador da narrativa tradicional,
mas, ao contrário, como iniciador da nova forma do romance centrada na „totalidade de reações‟; Lukács não hesita mesmo em chamá-lo de „inovador formal‟”. (Ibidem, pp. 45-46) Antes de encerrar este capítulo, farei um “experimento de pensamento”: considerando os tipos de romance formulados por Georg Lukács em sua Teoria do Romance (vide cap. 1), em qual deles Doutor Fausto poderia ser encaixado: romance de desilusão, à la Flaubert, ou romance de formação, como o Wilhelm Meister de Goethe ou o próprio A Montanha Mágica? Para tal definirei com mais precisão os dois tipos. De um lado, o romance da desilusão tem um viés psicológico, focado na análise da vida interior, “caracterizado pela passividade do herói e sua consciência demasiado vasta para contentar-se com que o mundo da convenção lhe pode propiciar.” (GOLDMANN, 1976, p. 10) Já o romance de formação evita os extremos do idealismo quixotesco e do romantismo desiludido, por meio de uma auto-limitação do protagonista: “o herói compreende e aceita a necessidade das estruturas sociais ao mesmo tempo em que busca exercer uma influência sobre elas.” (VANDENBERGHE, 2012, p. 360) O próprio Thomas Mann contribuiu na caracterização do Bildungsroman; segundo ele, objetiva-se no herói do romance autobiográfico de formação e de desenvolvimento “o sentido da necessidade de melhoria e de aperfeiçoamento, esta sensação do próprio „eu‟ como uma tarefa, uma obrigação moral, estética e cultural”. (MANN, 1988, p. 119) Se por um lado Doutor Fausto apresenta o personagem fáustico mais introspectivo da história desse mito na literatura ocidental, o que o aproximaria do romance da desilusão, também se deve levar em conta o aprendizado que há na trajetória de Leverkühn. O discurso que citei anteriormente demonstra que houve algo de “pedagógico” na sua sombria aproximação com o elemento demoníaco, e o que ele tentou capturar em suas derradeiras palavras foi justamente o erro que há em contaminar a Arte por tentações esteticistas e 27
Lukács, desde a década de 1930, adotou uma postura avessa ao modernismo literário. Iniciou, assim, um confronto com as vanguardas artísticas, que acusava de serem decadentes e incapazes de expressar artisticamente as relações sociais em sua totalidade. Um exemplo marcante dessa polêmica abordagem é o contraponto que fez entre Thomas Mann e Franz Kafka (1883-1924). Lukács afirmou que enquanto aquele construíra um realismo crítico “verdadeiro como a vida”, Kafka seria nada mais do que uma expressão de decadência: em suas obras, o homem é despido da sua história e não possui qualquer realidade além da subjetiva; os personagens são dissolvidos em estados mentais e a realidade é reduzida a um caos ininteligível. Vide LUKÁCS, Georg. “Franz Kafka or Thomas Mann?” In: The Meaning of Contemporary Realism. London: Merlin Press, 1962.
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niilistas. Se inicialmente Adrian parecia continuar acreditando que vender a alma ao Diabo era inevitável para que ele se tornasse um gênio da Música, no fim de sua fala fica claro, se não um arrependimento, pelo menos um reconhecimento sensato de seu destino. Doutor Fausto, portanto, pode ser considerado como um romance de formação, muito embora ele questione este cânone tanto do ponto de vista estético quanto do próprio conteúdo, a começar por uma inversão: o fato de ser concretamente situado na história e no espaço (cf. VEJMELKA, 2009, p. 300) – ao contrário, por exemplo, do tom utópico do Wilhelm Meister de Goethe, obra canônica deste gênero. Mesmo assim, seu caráter formativo se evidencia quando o narrador Zeitblom inicia o epílogo deste romance com as palavras: “Está feito” (MANN, 1996, p. 679), e em seguida se pergunta se cumpriu a sua tarefa e qual será o destino de sua escrita; após descrever os últimos anos de vida de Leverkühn em delírio mental, termina com uma imagem de esperança dolorosa. Portanto, o que está em jogo em Doutor Fausto é “a salvação do pactário, o futuro da Alemanha e da humanidade.” (VELMELKA, 2009, p. 310) Por fim, e voltando a Lukács, cabe citar um trecho da Teoria do Romance sobre o romance de formação que, a meu ver, se aplica perfeitamente a Doutor Fausto: O parâmetro educativo preservado nessa forma e que a distingue claramente do romance da desilusão consiste no fato de que o advento final do herói a uma solidão resignada não significa um colapso total ou a conspurcação de todos os ideais, mas sim a percepção da discrepância entre interioridade e mundo e uma realização ativa da percepção dessa dualidade: a adaptação à sociedade na resignada aceitação de suas formas de vida e o encerrar-se em sim e guardar-se para si da interioridade apenas realizável na alma. (LUKÁCS, 2009, pp. 142-143)
Se em Leverkühn, “herói” deste romance fáustico, já foi possível identificar várias características típicas do Bildungsroman, mesmo que sob um viés bastante marcado pelo sombrio contexto alemão no Século XX, no capítulo 8, quando discuto mais sobre o narrador (e, até certo ponto, co-protagonista) Serenus Zeitblom, pretendo demonstrar que também ele desenvolve uma Bildung ao longo de Doutor Fausto. Antes disso, vamos discutir a influência de três filósofos alemães nesta obra.
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6.
A PRESENÇA
DA
FILOSOFIA ALEMÃ: SCHOPENHAUER
E
NIETZSCHE Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche são dois filósofos que têm enorme influência nas obras de Thomas Mann; no caso de Doutor Fausto, ela se manifesta tanto em temáticas quanto em caracteres. Comecemos por Schopenhauer, que elaborou uma intuição filosófica segundo a qual o sujeito permanece eternamente escravo de uma Vontade cega, inflexível e onipotente, e nem mesmo a morte é capaz de libertá-lo, pois a Vontade sobrevive a essa mera individuação desprendida. Além disso, “Schopenhauer faz da dor a substância absoluta da vida, converte-a em sua determinação a priori, a situa na raiz da nossa existência, de tal modo que todos os frutos da vida têm a natureza da dor.” (SIMMEL, 2011, p. 75) Sua teoria estética deriva desse ascetismo a possibilidade de uma contemplação objetiva das Idéias, o que permitiria amenizar momentaneamente as imposições da Vontade: A transição possível (...) ocorre subitamente quando o conhecimento se liberta do serviço da Vontade e, por aí, o sujeito cessa de ser meramente individual e, agora, é puro sujeito do conhecimento destituído de Vontade, sem mais seguir as relações conforme o princípio de razão, mas concebe em fixa contemplação o objeto que lhe é oferecido, exterior à conexão com outros objetos, repousando e absorvendo-se nessa contemplação. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 245)
A arte é o modo de conhecimento que considera unicamente o essencial propriamente dito do mundo, o conteúdo verdadeiro dos fenômenos, conhecido com igual verdade por todo o tempo – numa palavra, as Idéias, que são a objetidade imediata e adequada da Vontade. A obra do gênio artístico “repete as Idéias eternas apreendidas por pura contemplação, o essencial e o permanente dos fenômenos do mundo.” (Ibidem, p. 253) Schopenhauer, nesse aspecto, é influenciado por Platão, mas alega que, em seu sistema filosófico, as Idéias platônicas não têm o estatuto ontológico máximo; ou seja, existe um “ente” superior a elas. As Idéias são arquétipos que constituem a máxima objetivação possível da Vontade, e o máximo que podemos fazer em relação a esta força superior que nos escraviza é representá-la, objetivá-la. O essencial de todos os graus de objetivação da Vontade constitui a Idéia; cada uma delas é a forma permanente de toda uma espécie de coisas. No âmbito da arte, a transição possível do conhecimento comum das coisas particulares para o conhecimento das Idéias ocorre subitamente, quando o conhecimento se liberta do
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serviço da Vontade e, com isso, o sujeito cessa de ser meramente individual. Essa amenização, entretanto, é temporária, e só um gênio artístico consegue prolongá-la a ponto de criar uma obra-prima que emane uma arte “pura”. De toda forma, quando todo o poder do espírito é devotado à intuição e nos afunda por completo nesta; quando nos perdemos por completo nesse objeto de contemplação, isto é, quando nosso espírito “esquece o próprio indivíduo, o próprio querer, e permanece apenas como claro espelho do objeto” – então é como se ambos, sujeito e objeto, se tornassem unos, “na medida em que toda a consciência é integralmente preenchida e assaltada por uma única imagem intuitiva.” (Ibidem, p. 246) Segundo Schopenhauer, com a representação artística passa a ser possível conceber o mundo não mais segundo o princípio de razão – isto é, com um olhar científico –, mas a partir de uma fixa contemplação do objeto que lhe é oferecido, exterior à conexão com outros objetos, repousando e absorvendo-se nessa contemplação. Sendo assim, a arte é o modo de consideração das coisas que independe do princípio da razão, da ciência; só na representação artística seria possível uma contemplação objetiva das Idéias (arquétipos) – e, ao mesmo tempo, a arte ameniza as imposições da Vontade que nos escraviza. Na metafísica do belo schopenhaueriana, o artista de gênio é aquele capaz de apreender de forma pura as Idéias, isto é, as objetivações da Vontade, a ponto de anular sua individualidade (principium individuationis) e adquirir uma perspectiva universal. Com isso ele se torna sujeito do conhecimento, purificado de Vontade, espelho claro da essência do mundo. Isso explica a vivacidade, que beira a inquietude, em indivíduos geniais, “na medida em que o presente quase nunca lhes basta, já que não preenche a sua consciência.” Também se torna compreensível “aquela tendência ao desassossego, aquela procura incansável por novos objetos dignos de consideração, o anseio quase nunca satisfeito por seres que lhe sejam semelhantes e que os ombreie e com os quais possa se comunicar.” (Ibidem, p. 255) Impossível não se lembrar dos românticos e da parceria entre Goethe e Schiller e ao ler tais palavras... A arte é para Schopenhauer um fim em si mesmo, contemplação pura. As grandes obras artísticas evocam uma objetividade e paz de espírito na qual se torna manifesto o calmo e sereno estado de espírito do artista livre da opressão da Vontade. Há, contudo, um fundo ético em sua teoria estética. Isso se delineia na própria distinção entre o belo e o sublime: No belo o puro conhecimento ganhou a preponderância sem luta, pois a beleza do objeto, isto é, a sua índole facilitadora do conhecimento da Idéia,
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removeu da consciência, sem resistência e portanto imperceptivelmente, a vontade e o conhecimento das relações que a servem de maneira escrava (...). No sublime, ao contrário, aquele estado de puro conhecimento é obtido por um desprender-se consciente e violento das relações do objeto com a vontade conhecidas como desfavoráveis, mediante um livre elevar-se acompanhado de consciência para além da vontade e do conhecimento que a esta se vincula. Uma tal elevação tem de ser não apenas obtida com consciência, como também mantida com consciência. (Ibidem, p. 274)
É, portanto, no sublime que reside o elemento ético da arte, pois um artista de tal caráter notará erros, ódio, injustiça dos outros contra si, sem, no entanto, sentir inveja; reconhecerá até mesmo as qualidades boas dos homens, mas sem procurar associação mais íntima com eles, “pois, em seu próprio decurso de vida com seus acidentes, olhará menos a própria sorte e mais a da humanidade em geral, e, assim, conduzirá a si mesmo mais como quem conhece, e não como quem sofre.” (Ibidem, p. 280) No que diz respeito à conexão entre a estética redentora e a doutrina do sofrimento humano, para Schopenhauer a literatura, assim como a filosofia, trata do conflito da Vontade consigo mesma, que se manifesta no plano empírico pela vontade de viver, expondo assim o conflito humano de “ser para a morte”. Ou seja, justamente porque a vida humana é inescapavelmente ligada à dor e ao sofrimento é que cabe à arte nos salvar desse mundo desencantado, despido de ilusões e sonhos metafísicos. Em sua teoria ética propriamente dita, Schopenhauer estabelece duas possibilidades de conduta: a afirmação da Vontade (aceitar, inclusive em sua faceta negativa, este impulso cego que conduz nossos insaciáveis desejos) e a negação da mesma (ascetismo, abnegação, renúncia). Como a segunda delas era a mais incomum no cenário filosófico de sua época (e não por acaso, afinal foi “importada” do misticismo hindu-budista), o autor ficou marcado como apólogo da negação da Vontade, da rejeição à “vida”. O tom amargo de Schopenhauer dá munição para tal interpretação; segundo ele, toda vida é sofrimento, uma oscilação entre dor e tédio. O otimismo é um modo de pensamento não apenas absurdo, mas impiedoso, “um escárnio amargo acerca dos sofrimentos inomináveis da humanidade.” (Ibidem, p. 419) Este filósofo foi uma forte influência filosófica para Thomas Mann, especialmente em suas primeiras obras, como Os Buddenbrooks, nas quais predomina um esteticismo de tom melancólico. Exemplo disso é quando o personagem Thomas Buddenbrook (o pai de Hanno), em meio às suas angústias existenciais, encontra por acaso na biblioteca da família uma obra de Schopenhauer: o segundo volume de O Mundo como Vontade e como Representação
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(publicado em 1844), que contém um ensaio Sobre a morte e a sua relação com a indestrutibilidade da nossa essência pessoal que deixa Thomas fascinado: “A sua inteligência estava nublada e totalmente embriagada por algo de indizivelmente novo, atraente e prometedor, que lembrava o primeiro desejo esperançoso do amor.” (MANN, 1975, p. 575) Thomas Buddenbrook conclui, a partir deste ensaio, que a morte era uma felicidade profunda, um regresso de uma caminhada penosa através de um labirinto, a reparação de um acidente lamentável. Ele também julga ter aprendido que a personalidade individual não passa de um “obstáculo que nos impedia de ser outra coisa melhor” (Ibidem, p. 576), e deseja a morte como a libertação de uma ilusão.28 Segundo Mann, o modo de pensar de Schopenhauer era uma “filosofia de artista”, não só pela ênfase na estética, mas também por ser a expressão de uma natureza artísticodinâmica, emocional e plena de tensões. Não se poderia classificá-lo nem como “clássico”, nem como “romântico”. Ele é mais moderno, mais doloroso e mais complicado que Goethe, mas muito mais robusto e mais são do que Nietzsche. (cf. MANN, 2000, p. 77) Além disso, em um ensaio sobre Schopenhauer datado de 1938, Mann afirma ter encontrado nesse autor um “humanismo pessimista”: Não é em vão que Schopenhauer vê a dignidade do homem na estátua do Deus das Musas. É uma visão profunda e particular, unindo a arte, o conhecimento e a dignidade do sofrimento humano, que se revela nesta imagem; é um humanismo pessimista que, posto que o humanismo tem essencialmente a colaboração dum otimismo de retórica, representa qualquer algo inteiramente novo e, me atrevo a afirmá-lo, uma visão de futuro fecunda no domínio das convicções. No homem, objetivação suprema da Vontade, está é iluminada pelo mais claro conhecimento. Porém, à medida em que o conhecimento atinge maior nitidez, que a consciência se eleva, também o sofrimento cresce. (Ibidem, pp. 69-70)
Mann acredita que a humanidade e a espiritualidade de Schopenhauer residem justamente no matiz pessimista de sua doutrina, que o leva a renegar o mundo e pregar um ideal ascético. Este filósofo versado no sofrimento colocou o Homem acima do elemento biológico-natural, converteu sua alma sensitiva e cognoscente em cenário da conversão da Vontade e viu no Homem o salvador possível de todas as criaturas. (Ibidem, p. 80) Uma das influências schopenhauerianas em Mann se dá na relação que traça entre a genialidade e a loucura. Para o filósofo, “ambas têm um lado que fazem fronteira, sim, 28
Poucas páginas depois, a ironia típica de Mann reserva um destino tragicômico para o personagem: Thomas Buddenbrook, após uma cirurgia mal-sucedida, morre por causa de um dente estourado.
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confundem-se, eis aí algo freqüentemente notado.” O espírito torturado, na loucura, “procura refúgio daqueles sofrimentos espirituais que ultrapassam suas forças.” (SCHOPENHAUER, 2005, pp. 260-263). Em Doutor Fausto, este será justamente o caso de Adrian Leverkühn, que deliberadamente adquiriu sífilis para atiçar a sua criatividade artística, e ao longo da obra sofrerá um processo de degeneração mental. A influência desta concepção sobre o personagem de Mann fica mais explícita pelo fato de Schopenhauer ter dito que veementes sofrimentos espirituais com freqüência podem ocasionar a loucura, na medida em que esta funcionaria como último meio de salvação da vida. Outro aspecto de Leverkühn que também remete a Schopenhauer é a associação entre grandeza artística e miséria existencial. O artista, em seu sofrimento, rebela-se contra a aparência ilusória da vida no espelho da arte, e sua melancolia e desajustamento em relação à sociedade moderna o levam à negação da Vontade, a um ascetismo extremo. Da aversão de fazer parte no jogo enganador que é a celebração da vida “burguesa” (no sentido cultural e não no econômico do termo) cresce a descrença do artista contra as obras de arte que não espelham a vida em suas fraturas.
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(cf. KAUFMANN, 1973, pp. 43-45) Isso talvez ajude a
entender o porquê de Leverkühn ter construído, principalmente na Lamentação do Dr. Fausto, uma obra tão deliberadamente perturbadora – e sublime. O leitmotiv schopenhaueriano servirá de inspiração para outra personagem de Doutor Fausto: Inês Rodde, uma amiga de Adrian e de Serenus. Ao contrário de seu marido Helmut Institoris (um professor de tendências esteticistas, além de entusiasta da Renascença), ela era dotada de uma “melancolia ávida de desgraça”, uma resignação aos caprichos da vida mundana. Não necessariamente se opera nela um processo completo de negação da Vontade, mas sua visão de mundo blasé tem um quê de schopenhaueriana: Reduzindo tudo à fórmula mais breve, tratava-se do conflito entre a estética e a moral, que predominava em boa parte da dialética cultural daquela época e nesses dois jovens quase se personificava: o embate entre uma doutrinária glorificação da „vida‟, na sua exuberante irreflexão, e a veneração pessimista do sofrimento, com toda a sua profundeza e todo o seu saber. (...) O Dr. Institoris era – cumpre acrescentar um „Deus meu! ‟ – até à medula homem do Renascimento, e Inês Rodde aderia claramente ao moralismo pessimista. (MANN, 1996, p. 390)
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A propósito, no próximo capítulo esta visão da arte como espelho das fraturas da sociedade encontrará eco em Adorno, mas este enfatiza o elemento inconformista desta concepção.
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Em suma, a influência de Schopenhauer sobre Mann se dá em dois sentidos. No âmbito estético, pela noção de “gênio”, tanto pela capacidade de contemplação pura e desinteressada (o que caracterizaria o artista genuíno) quanto pela relação que estabelece entre genialidade e loucura. No ético, pelo ascetismo que Mann incorporou a personagens como Adrian e Inês, e principalmente pela localização, no autor de O Mundo como Vontade e como Representação, de um “humanismo pessimista”, pois Schopenhauer vê a vida humana necessariamente ligada à dor e ao sofrimento, mas também encara o Homem como a suprema objetivação da Vontade, sendo, portanto, capaz de redimir o mundo. Friedrich Nietzsche, por sua vez, é um pensador marcado pelo pessimismo cultural; para ele, como vimos no capítulo 2, ao longo do Século XIX a palavra Bildung “perdeu todo o seu significado e não passa de uma boneca num belo vestido, mas totalmente oca. A utilidade foi declarada como o objetivo mais importante da vida.” (RIEMEN, 2011, p. 120) Com o enfraquecimento da formação cultural, também ficam ameaçadas de desaparecerem a arte da distinção e a nobreza de espírito. Sua filosofia, no entanto, guarda certo otimismo em relação à Arte. Ela nos ensina a ter prazer na existência e de considerar a vida humana um pedaço da natureza; ela semeia a intensidade e multiplicidade da “alegria de vida”. (cf. NIETZSCHE, 2005, pp. 140-141) Nietzsche, um esteticista por excelência, vê a arte como o grande estimulante da vida, capaz de mostrá-la inclusive no que tem de feio, temível e questionável. Aliás, seu esteticismo tem um quê de cosmológico, como se o artista fosse capaz de desvendar os segredos do universo. Já em sua primeira obra, O Nascimento da Tragédia (1872), Nietzsche afirma que “somente na medida em que o gênio, no ato da procriação artística, se funde com o artista primordial do mundo, é que ele sabe algo a respeito da perene essência da arte” (Idem, 2007, pp. 44-45). Esta sua afirmação da superioridade da Arte também é marcada por um amoralismo fáustico, o que pode ser visto de forma explícita na frase a seguir, expressa em Humano, Demasiado Humano (1878): O artista tem uma moralidade mais fraca do que o pensador; ele não quer absolutamente ser privado das brilhantes e significativas interpretações da vida, e se guarda contra métodos e resultados sóbrios e simples. (...) [Ele] não deseja abrir mão dos pressupostos mais eficazes para a sua arte, ou seja, o fantástico, mítico, incerto, extremo, o sentido para o simbólico, a superestimação da pessoa, a crença em algo miraculoso no gênio. (Idem, 2005, pp. 107-108)
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Para entender melhor este ponto, recorrerei à famosa dicotomia que este pensador cria entre o dionisíaco e o apolíneo. Segundo Nietzsche, aos dois deuses gregos da arte, Apolo e Dionísio, “vincula-se a nossa cognição de que no mundo helênico existe uma enorme contraposição, quanto a origens e objetivos, entre a arte do figurador plástico [Bildner], a apolínea, e a arte não figurada [unbildlichen] da música, a de Dionísio.” (Idem, 2007, p. 24) O impulso dionisíaco é um movimento vital, torrencial, transbordante, que transcende a individualidade humana, ameaçada por este impulso nos seus limites, na sua forma. A arte produzida pelo dionisíaco tem na embriaguez o seu elemento essencial. O impulso apolíneo, ao contrário, é criador de formas, um sonho de imagens que resiste à violência do primeiro impulso e encaminha suas energias para a produção de formas belas e individualizadas. Um impulso não pode existir sem o outro: entregue a si mesmo, o dionisíaco é como uma terrível avalanche que destrói tudo na embriaguez de sua passagem descontrolada; por sua vez, o apolíneo, sem contato com o dionisíaco, fica debilitado, sem significação verdadeira. (cf. MELLO, 1996, pp. 29-30) Para Nietzsche o grande artista (no caso de O Nascimento da Tragédia, leia-se: Richard Wagner) é aquele capaz de reconciliar Apolo e Dionísio, tal como ocorre nas tragédias gregas; no entanto, em obras seguintes, principalmente Assim Falava Zaratustra (1885), fica a impressão de que o elemento dionisíaco deve prevalecer sobre a obsessão formalista – e, no final das contas, moralista – do apolíneo.
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Na fase final de sua filosofia, em meados da
década de 1880, Nietzsche anuncia uma “transvaloração dos valores”, que antepõe em triunfo, com o pathos dos profetas religiosos, o elemento irracional (dionisíaco), a “vida”, como valor mais elevado do que o racional (apolíneo), o “intelecto”. Nesse sentido, para Nietzsche o problema de seu “mestre” Schopenhauer teria sido considerar a arte, o gênio e a beleza como expressões da negação da Vontade, quando na verdade, são a afirmação desta. Por exemplo, quando o autor de O Mundo como Vontade e como Representação fala que a beleza é redentora do instinto procriador, do “cerne da vontade”, haveria nisso uma moralização altruísta, pois tenta suprimir nossos impulsos 30
Segundo Mario Vieira de Mello, o Zaratustra, “que deveria representar a feliz contraposição dos dois princípios, do dionisíaco e do apolíneo, que deveria constituir a síntese modelo, o equilíbrio perfeito das duas forças contraditórias, (...) nada mais é do que (...) uma embriaguez dionisíaca à qual nenhuma forma apolínea, nenhuma motivação espiritual poderia se contrapor ou servir de meio condutor. (...) Ensinamentos tais como: a morte de Deus, a fidelidade à terra, o advento do super-homem constituem tão somente negações dionisíacas de toda forma apolínea existente, (...) se justificam exclusivamente pela embriaguez extática que se recusa a todo esforço de individualização”. Vide MELLO, Desenvolvimento e Cultura: o problema do estetismo no Brasil. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, pp. 168-169.
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naturais em prol de uma suposta salvação. Nietzsche não concorda com esta visão consoladora da arte, pois vê nela potenciais positivos, ativos. O esteticismo de Nietzsche, no entanto, não se confunde com o credo da “arte pela arte”. Como demonstra o seguinte trecho de O Crepúsculo dos Ídolos (1888), ele defende uma concepção vitalista; o que lhe importa é a aproximação entre vida e arte: A luta contra a finalidade é sempre luta contra a tendência moralizante na arte, contra a sua subordinação à moral. L‟art pour l‟art significa: “Ao Diabo com a moral!”. – Mas mesmo essa hostilidade revela a força dominante do preconceito. Havendo-se excluído da arte o fim da pregação moral e do aperfeiçoamento humano, não se segue daí que ela seja sem finalidade, sem sentido, sem objetivo; em suma, l‟art pour l‟art – um verme que morde a própria cauda. (...) O que faz toda arte? Não louva? Não glorifica? Não escolhe? Não enfatiza? (...) Isto é uma coisa acessória? Casual? (...) Ou não é antes o pressuposto para que o artista possa...? Seu mais profundo instinto visa a arte, não visa antes o sentido da arte, a vida? (...) A arte é o grande estimulante para a vida: como poderíamos entendê-la como sendo sem finalidade, sem objetivo como l‟art pour l‟art? (NIETZSCHE, 2005, pp. 77-78)
Nietzsche foi outra influência intelectual decisiva para Thomas Mann, servindo inclusive de inspiração para a trama de Doutor Fausto. Mann se inspirou na história de vida nietzschiana para compor o personagem Leverkühn, pois em ambos os casos a visita a um bordel desperta um fascínio que mais tarde se consumará na aquisição da sífilis - uma doença terrível, mas artisticamente inspiradora.
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Em A Gênese do Doutor Fausto, Mann afirma que
em seu romance há o entrelaçamento da tragédia de Leverkühn com a de Nietzsche. Além de se apropriar desta experiência nietzschiana no bordel de Colônia e dos sintomas de sua doença, o Diabo, quando oferece seus favores a Adrian Leverkühn, parafraseia trechos do Ecce Homo32. (MANN, 2001, pp. 31-32)
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"Em 1865, Nietzsche, que na época tinha vinte e um anos, (...) tinha viajado sozinho para Colônia e havia contratado um guia para mostrar-lhe os monumentos da cidade. Após o passeio que durou a tarde toda, à noite Nietzsche pergunta ao guia onde poderia encontrar um bom restaurante. O homem, que assumiu para mim a figura de um mensageiro demoníaco, o leva para um bordel. O adolescente, puro como uma donzela, (...) cheio de timidez inocente, se vê rodeado por meia dúzia de figuras vestidas com lantejoulas, e que cravam nele seus olhos cheios de expectativa. (...) Um ano depois que fugira daquela casa em Colônia, Nietzsche, desta vez não conduzido pelo guia diabólico, vai a um lugar desses e contrai - alguns dizem que propositadamente, como autopunição - aquilo que despedaçará sua vida, mas que também a elevará a alturas enormes." (MANN, 2000: 94) 32 Qualquer semelhança entre este trecho de Ecce Homo, sobre a poderosa inspiração que Nietzsche teve na época em que escrevia Assim Falava Zaratustra, com uma das passagens da conversa com o Diabo que citei no capítulo anterior não é mera coincidência: “como se fosse um raio, um pensamento vem à luz, por necessidade, em uma forma sem hesitações, - eu jamais tive uma escolha. Um encantamento, cuja tensão monstruosa se dissolve numa torrente de lágrimas, (...) um estar-fora-de-si completo, com a consciência mais distintiva de um
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Segundo Richard Miskolci, “Mann trabalhou com os paradoxos da genialidade e chegou a denominar seu romance de um Nietzsche Roman, revelando seu intuito de, a partir do caso patológico do filósofo, diagnosticar a doença que atingira a germanidade espiritual.” (MISKOLCI, 1998, pp. 198-199) A profunda afinidade do autor de Assim Falava Zaratustra com a Música só reforça a analogia, que chega a se expressar em datas: Leverkühn falece em 25 de Agosto de 1940, exatos quarenta anos depois da morte de Nietzsche. Outro exemplo da influência nietzschiana sobre Doutor Fausto é o já mencionado acadêmico Helmut Institoris. Este personagem faz constantes apologias ao “sangue e formosura” do Renascimento, não se importando com as conseqüências éticas dessa postura esteticista. Durante um sarau em que estava, e no qual foi lido um poema que exaltava a guerra e a conquista imperial (“Ó soldados! Entrego-vos, para o saqueardes, o mundo!”), eis como a platéia reagiu: Tudo isso era „belo‟ e tinha forte consciência de sê-lo. Era „belo‟, de um modo cruel, inteiramente estético, naquele desbragado espírito exclusivo, irresponsável, frívolo, que poetas ousam manifestar. Em suma, o mais esdrúxulo, o mais absurdo esteticismo que jamais me foi dado presenciar. É escusado dizer que Helmut Institoris o apreciava grandemente. Mas também entre os demais convidados, o autor e a obra gozavam de alta estima. (MANN, 1996, p. 492)
Thomas Mann não se furta de criticar o esteticismo nietzschiano. Em seu ensaio A Filosofia de Nietzsche à luz de nossa experiência (1947), o escritor afirma que Nietzsche é o esteta mais completo que a história do pensamento conheceu. A premissa nietzschiana contém um pessimismo dionisíaco: a vida é justificável, inteligível e venerável somente como fenômeno estético. Nisso há uma negação do espírito em favor da vida bela, forte e petulante. Ironicamente, Nietzsche maldiz o homem teórico, mas o é par excellence, em estado puro. Se há um lado positivo em Friedrich Nietzsche, consiste em sua defesa de um humanismo dotado de um fundamento e um tom religioso; ele assumiu, em veneração do mistério humano, todos os conhecimentos acerca do inferior e do demoníaco: se Nietzsche foi ateu, o foi por amor aos homens. (cf. Idem, 2000, p. 134) Além disso, o conhecimento e o exemplo de Nietzsche mostraram de que a filosofia não é uma abstração fria, mas sim uma experiência vital, um sofrimento e um sacrifício em favor da humanidade. (cf. Ibidem, p. 135)
sem-número de tremores e transbordamentos finíssimos”. Vide NIETZSCHE, Ecce Homo: de como a gente se torna o que a gente é. Porto Alegre: L&PM, 2003, p. 115.
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Mann, contudo, aponta dois erros que perturbam de forma fatal o pensamento de Nietzsche. O primeiro deles é um desconhecimento completo, e possivelmente premeditado, das relações de poder entre o instinto e o intelecto na terra, como se fosse o interesse que dominasse perigosamente, e houvera chegado o momento de salvar o instinto de seu governo opressivo. Porém, na grande maioria dos seres humanos a vontade, o instinto e o interesse dominam e reprimem o intelecto, a razão e o sentido do justo. Esta opinião de Nietzsche só se explica historicamente, a partir de uma situação filosófica momentânea, como correção da saciedade, do fastio em relação ao racionalismo. Mann acredita que a humanidade experimentou a loucura que tudo isso significa; o fascismo foi inspirado por essa doutrina da “vontade de poder”
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. Nietzsche, portanto, agiu como a consciência moral que, como
Mefistófeles, estendeu o punho frio do diabo à vida. (cf. Ibidem, p. 115) O segundo erro de Nietzsche é a relação completamente falsa que traça entre a vida e a moral, considerando-as contrárias. Segundo Mann, na verdade elas são indissociáveis; a ética é um suporte para a vida e o homem moral é um bom “cidadão da vida” - talvez um pouco chato, mas muito útil. A pura afirmação da vida só poderia levar às profundezas, ao elemento irracional e animalesco e à autodestruição. Além disso, se há uma verdadeira oposição, ela é entre a ética e a estética. Não é a moral, mas sim a beleza que está ligada à morte, como já foi dito e cantado por muitos poetas. (cf. Ibidem, p. 116) Para Thomas Mann, portanto, o problema da visão esteticista é que a beleza em sua forma pura e espontânea “leva à embriaguez e à cobiça, arrisca levar um coração nobre a cometer um atentado atroz contra o sentimento, atentado que sua própria exigência de austera beleza repudia como infame” 34. Sem freios morais o belo conduz ao abismo, é o abismo: “O esteticismo de Nietzsche, que é uma raivosa negação do espírito e do intelecto em favor da vida bela, forte e perversa; que é, portanto, a autonegação de um homem que sofre profundamente por causa da vida, coloca em suas efusões filosóficas um elemento inautêntico, irresponsável, perturbador, um elemento apaixonado e teatral, um elemento de profunda ironia, contra o qual falhará a mente do leitor ingênuo. Não apenas é arte o que Nietzsche oferece, mas também lê-lo é uma arte. (...) Quem leva
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Thomas Mann, contudo, rechaça a idéia de que Nietzsche tenha sido um precursor do fascismo ou que “o nazismo fosse resultado direto dos pronunciamentos nietzschianos.” (MISKOLCI, 1998: 192). Para o escritor, Nietzsche estava longe da política; era um homem inocentemente espiritual. Foi só graças à apropriação arbitrária de autores do “conservadorismo radical” como Oswald Spengler (A Decadência do Ocidente, 19181922) que Nietzsche se converteu, com uma univocidade estúpida, em patrono do imperialismo – do qual, na verdade, não entendia nada. (cf. MANN, 2000: 122-124) 34 Vide MANN, A Morte em Veneza. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 87.
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Nietzsche no „sentido estrito‟, ao pé da letra, quem crê nele, está perdido.” (Ibidem, P. 130)
No retrato que faz do pensamento nietzschiano em Doutor Fausto, Mann alerta que esta postura esteticista era recorrente em vários intelectuais alemães da época: no circulo de Kridwiss (vide capítulo 8) celebrava-se tanto a autonomia das formas e da beleza em detrimento das questões políticas e sociais quanto algo pior do que isso: a estetização da própria política. Leverkühn, nesse sentido, pode ser visto como uma alegoria do fascínio da intelligentsia alemã por idéias niilistas e de forte influência nietzschiana. Mann ligou de forma alegórica o destino de Leverkühn com, por um lado, a evolução gradual da Alemanha em direção ao nazismo e, por outro, a vida e destino de Friedrich Nietzsche - cuja vida, como se pôde ver no excerto de A Filosofia de Nietzsche à luz de nossa experiência, serviu quase literalmente de inspiração para o personagem. Com isso Thomas Mann esperava mostrar que a tentativa de escapar da impotência através da adesão a ideais anti-sociais (como o esteticismo e, em maior medida, o nazismo) fracassaria, pois está divorciada do ideal de Humanidade. Nietzsche e a Alemanha nazista seriam dois exemplos do malogro dessa tentativa. (cf. GOLDMAN, 1992, p. 226) Doutor Fausto, portanto é um romance anti-nietzschiano, no qual Nietzsche é forçado a ver e confessar seus erros. (Ibidem, p. 252) Neste livro a vida pessoal deste pensador é o tema, não sua filosofia. (cf. MISKOLCI, 1998, p. 199) Thomas Mann teme que o esteticismo possa levar à alienação, e não associa a inspiração dionisíaca com o Diabo por acaso. O que Mann defende, a partir de sua crítica de Nietzsche, é o ideal de Humanidade que, outrora parte integrante e pilar da tradição da Bildung, havia sido suplantado por elementos reacionários e vitalistas. Thomas Mann tenta reviver este ideal como uma alternativa para a crise e divisão da Alemanha e à sua perda de ideais estáveis; ou seja, vê o humanismo como uma síntese espiritual e uma tentativa de transcendência da sociedade burguesa e de seus oponentes de extrema-direita e de extrema-esquerda. É por isso que a vontade de poder e o avanço em direção ao Übermensch, empreendidos tanto pela Alemanha quanto por Adrian Leverkühn, são uma solução nietzschiana que Mann rejeita categoricamente. (cf. GOLDMAN, 1992, p. 232)
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7.
UM
CONCERTO NO
GRANDE HOTEL ABISMO35: O DIÁLOGO
COM
ADORNO 7.1.
UMA
BREVE APRESENTAÇÃO DAS REFLEXÕES ESTÉTICAS DE
THEODOR
ADORNO Principal expoente da Escola de Frankfurt, o filósofo Theodor Adorno, após ser expulso da Alemanha pelos nazistas, morou durante alguns anos em Nova York até se instalar em 1941 na cidade de Los Angeles, na qual foi vizinho de Thomas Mann e do músico Arnold Schönberg (1874-1951), duas figuras com quem cultivou intensas relações artísticas e intelectuais. Em Teoria Estética, sua última obra, Adorno afirma que o lugar da arte se tornou incerto na contemporaneidade. A autonomia que ela adquiriu, após se ter desembaraçado da sua função cultual, vivia da idéia de humanidade; contudo, esta foi abalada à medida que a sociedade se tornava menos humana. (cf. ADORNO, 1988, p. 11) Eis um paradoxo: quanto mais livres as obras de arte se tornaram dos fins exteriores, tanto mais perfeitamente se definiram enquanto organizadas, por sua vez, na dominação. Para Adorno, a obra de arte comunica-se e tira o seu conteúdo da realidade empírica que recusa; sendo assim, há uma tensão que revela o caráter contingente da obra de arte: ela é um instante, um equilíbrio, uma pausa momentânea. Além disso, a definição do que é arte é sempre dada previamente pelo que ela foi outrora, “mas apenas é legitimada por aquilo em que se tornou, aberta ao que pretende ser e àquilo em que poderá talvez tornar-se.” A arte movimenta-se, e põe tudo em risco para manter este movimento. Eis onde reside a “aposta” de Adorno nas vanguardas, no Novo: nada é tão prejudicial ao conhecimento teórico da arte moderna como a sua redução a semelhanças com a arte anterior: “Através do esquema do „Tudo já foi feito‟, esvanece-se a sua especificidade.” O desencantamento do mundo, marca da modernidade, exige uma arte que expresse a situação soturna da qual emerge, que desvele a irracionalidade desta realidade: “A arte representa a verdade numa dupla acepção: conserva a imagem do seu objetivo obstruída pela racionalidade e convence o estado de coisas existente (...) da sua absurdidade.” (Ibidem, pp. 13-17; 31; 68)
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“Grande Hotel Abismo” é uma expressão sardônica criada por Georg Lukács, desafeto de Adorno e da Escola de Frankfurt, presente no prefácio que escreveu em 1962 à sua Teoria do Romance: “Uma parte considerável da inteligência alemã, inclusive Adorno, alojou-se no „Grande Hotel Abismo‟ (...), um belo hotel, provido de todo conforto, à beira do abismo, do nada, do absurdo, entre refeições ou espetáculos comodamente fruídos, [o que] só faz elevar o prazer desse requintado conforto.” (LUKÁCS, 2009, p. 18)
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Adorno, contudo, logo depois afirma que a arte, por preservar um elemento mágico, também precisa negar o caráter reificado do mundo moderno: “O factum da arte, imitação do encantamento, é um escândalo que [esse mundo] não suporta.” (Ibidem, p. 74) Portanto, graças ao Novo, a crítica torna-se momento objetivo da própria arte. Segundo Adorno, uma frase de Arnold Schönberg poderia ser um slogan do Novo: “Quem não busca não encontra”. (Ibidem, p. 34) Aliás, este compositor, cuja obra envolve uma fase atonal e se consolidou em uma dodecafônica, será alvo da maior parte das discussões da obra Filosofia da Nova Música. Em poucas palavras, pode-se dizer que seu caráter revolucionário de Schönberg reside no fato de que seu sistema tonal pretendeu substituir o de Bach-Rameau36, que foi o padrão da música ocidental durante mais de dois séculos. Em vez das 24 tonalidades do sistema tradicional, “Schönberg só admite uma única tonalidade: os 12 sons, entre os quais nenhum é destacado e todos desempenham a mesma função. Não há mais tom maior nem menor. Não há consonâncias nem dissonâncias.” (CARPEAUX, 1999, p. 379) Estas inovações musicais levaram Adorno a considerá-lo o maior compositor vivo. Sendo assim, considera necessário fazer um esclarecimento construtivo de sua música, que se permanecesse incompreendida, ameaçaria recair no obscuro e no mitológico. (cf. ADORNO & MANN, 2006, p. 38) Este risco é expresso de forma explícita já na introdução da obra: A música dodecafônica diz „nós‟, mesmo quando viva unicamente na fantasia do compositor, sem alcançar nenhum outro ser vivente; mas a coletividade ideal, que esta música ainda leva em si como coletividade separada da empírica, entra em contradição com o inevitável isolamento social e o caráter expressivo particular que o próprio isolamento lhe impõe. (...) A incoerência de uma obra solipsística para grande orquestra não somente reside na desproporção entre a massa numérica do cenário e das poltronas vazias ante as quais se executa a música, mas também atesta que a forma como tal transcende necessariamente o eu em cujo âmbito se experimenta, enquanto a música que nasce nesse âmbito e o representa não consegue superá-lo positivamente. Esta antinomia consome as forças da nova música. Sua rigidez deriva da angústia da obra diante de sua desesperada falta de verdade. (ADORNO, 2009, pp. 24-25)
Schönberg, segundo Adorno, é subversivo por mudar a função da expressão musical: “as primeiras obras atonais são documentos no [mesmo] sentido dos documentos oníricos dos psicanalistas.” As obras deste compositor são simultaneamente documento e construção: “Nelas nada permanece das convenções que garantiam a liberdade do jogo.” A técnica 36
Johann Sebastian Bach (1685-1750) e Jean-Philippe Rameau (1683-1764), compositores do período barroco, são considerados um momento de transição na música moderna por terem restabelecido a ordem tonal.
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dodecafônica, portanto, culmina na “vontade de superar a oposição dominante da música ocidental, a oposição que há entre a natureza polifônica da fuga e a natureza homofônica da sonata.” Além disso, esta técnica escraviza a música ao liberá-la; o sujeito impera sobre a música mediante o sistema racional, mas sucumbe a ele, pois nenhuma regra se mostra mais repressiva do que aquela que impomos a nós mesmos: “O sujeito subordina-se-lhe e busca proteção e segurança, porque se desespera de poder dar por si só verdadeira realidade à música.” (Ibidem, pp. 40-41; 50; 60) Ao se colocar como intérprete filosófico de Schönberg, Adorno pretende explicar seu isolamento: como artista, ele não foi anti-social; o mundo lhe foi hostil porque não suporta ouvir, na sua música, as desarmonias gritantes de nossa época. “Schönberg teria assumido a tarefa ingrata de dizer a verdade, que sempre é dura, para expiar a mentira da arte acadêmica e os crimes que esta esconde sob o manto da pseudobeleza; a música de Schönberg tollit pecata mundi [tira os pecados do mundo].” (CARPEAUX, 1999, p. 381) Sendo assim, Adorno acreditava que as experiências musicais da Segunda Escola de Viena, expressas na técnica atonal e posteriormente dodecafônica de composição, haviam produzido as condições de possibilidade para se pensar um conceito renovado de sujeito e de razão. (cf. SAFATLE, 2009, p. 174) Destarte, em Filosofia da Nova Música Adorno se empenha em compreender as potencialidades estéticas abertas por esta vanguarda musical: A música de Schönberg quer emancipar-se em seus dois pólos: ela libera as pulsões [Triebhafte] ameaçadoras, que outras músicas só deixam transparecer quando estes já foram filtrados e harmonicamente falsificados; e tensiona as energias espirituais ao extremo; ao princípio de um Eu que fosse forte o suficiente para não renegar (verleugnen) a pulsão (...). Embora sua música canalizasse todas as forças do Eu na objetivação de seus impulsos, ela permaneceu ao mesmo tempo, durante toda a vida de Schönberg, algo “estranho ao eu”. (ADORNO apud SAFATLE, 2009, p. 177)
Já em seu ensaio Posição do Narrador no Romance Contemporâneo, Adorno afirma que o romance foi a forma literária específica da era burguesa, contudo no Século XX enfrenta uma crise: não consegue mais dominar artisticamente a existência, o que é uma decorrência do subjetivismo, “que não tolera mais nenhuma matéria sem transformá-la, solapando assim o preceito épico da objetividade.” (cf. ADORNO, 2003, p. 55) Não basta mais ao romance a linguagem do relato, e a narrativa se tornou impossível com a desintegração da identidade da experiência, “a vida articulada em si mesma e contínua, que só a postura do narrador permite.” (Ibidem, p. 56)
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Para Adorno, o impacto da II Guerra Mundial e das intensas transformações sociais e econômicas desde o fim do Século XIX feriram o tecido comunitário do qual o narrador partia; isto é, a objetividade épica não é mais possível. Diante desse cenário, os melhores romancistas são justamente os que apresentam as soluções mais inteligentes para essa “crise da narrativa”. Além de autores como Proust, Kafka e Joyce, o autor cita “o último Thomas Mann”, isto é, a fase final da obra deste escritor, cuja principal expressão é Doutor Fausto: Só hoje a ironia enigmática de Thomas Mann, que não pode ser reduzida a um sarcasmo derivado do conteúdo, torna-se inteiramente compreensível, a partir de sua função como recurso de construção da forma: o autor, com o gesto irônico que revoga seu próprio discurso, exime-se da pretensão de criar algo real, uma pretensão da qual nenhuma da suas palavras pode, no entanto, escapar. (Ibidem, p. 60)
7.2.
A PARCERIA DE MANN E ADORNO E OS PERSONAGENS “ADORNIANOS”
Já nos primórdios de sua carreira literária Thomas Mann demonstrava sua paixão pelo tema da música, entrelaçado com a tensão entre o artista e a sociedade sobre a qual já comentei na Introdução. O personagem Hanno de Os Buddenbrooks, que é filho de uma violinista holandesa, demonstra grande talento no piano, tocando com extrema melancolia: Era o motivo, o primeiro motivo que ressoava! (...) No culto fanático desse nada, desse fragmento de melodia, curta e infantil invenção harmônica de um compasso e meio, havia algo de brutal e embotado e, ao mesmo tempo, de ascético e religioso, alguma coisa de crença e abandono de si próprio... Manifestou-se certa viciosidade, no exagero e na insaciabilidade com que o menino gozava e explorava essa sua invenção; um desespero cínico, desejo de volúpia tanto quanto do ocaso, mostrou-se na cobiça com que sugava dela a derradeira doçura, até o esgotamento, até o nojo e o tédio. (MANN, 1975, p. 656)
Mais de quarenta anos depois, seu romance fáustico, dentre outras temáticas, lida com várias questões artístico-musicais. É possível dizer que o Fausto de Mann é um músico porque, “se foi especialmente em termos musicais que a Alemanha enriqueceu enormemente a cultura ocidental, também já estava presente nesse dom as sementes da catástrofe germânica.” (MISKOLCI, 1998, p. 197) O meio artístico do protagonista Adrian Leverkühn é a música serial, dodecafônica, a qual apresenta uma racionalidade quase escolástica, mas cuja “constelação” – e seu amigo Serenus Zeitblom logo o percebe – pertence ao “irracional” campo da astrologia: “o racionalismo que Leverkühn invocava tinha, para a contida
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humanidade de Serenus, boa parcela de superstição, de crença num demonismo vago; um sistema que, antes de racional, parecia mais apropriado a „dissolver a razão humana em magia‟.” (BACKES, 2003, p. 254) Um fato decisivo para a criação deste romance é que Adorno, que coincidentemente era vizinho de Mann em Hollywood, a partir de 1943 tornou-se o conselheiro do escritor em matéria de música, depois que este leu e se interessou pelo escrito de Adorno sobre Schönberg presente em Filosofia da Nova Música. Eis uma passagem do diário de Thomas Mann que revela a importância da leitura dos manuscritos de Adorno para a gestação do Doutor Fausto: À noite, outra vez o texto de Adorno sobre música, que me elucida alguns pontos e ao mesmo tempo evidencia toda a dificuldade do meu intento. (...) Eu tinha nas mãos, de fato, algo „importante‟. Era uma crítica profunda da situação artística e sociológica, de extremo refinamento e atualidade, que apresentava uma singularíssima afinidade com a idéia de minha obra, com a „composição‟ que eu estava vivendo, tecendo. (MANN, 2001, p. 39)
Segundo Mann, o interesse de Adorno pelo seu livro “crescia à medida que ele se inteirava de seu conteúdo e que começou a mobilizar para o romance sua faculdade imaginativa musical.” (Ibidem, p. 95) O autor de Teoria Estética também disse, numa carta de 03 de Junho de 1945, que quando encontrou Thomas Mann na “remota costa oeste” teve a sensação de estar, pela primeira e única vez, pessoalmente de frente com a tradição alemã na qual foi educado, e mais do que isso, também à capacidade de resistir a essa tradição. (cf. ADORNO & MANN, 2006, p. 19) Além disso, Mann encontrou-se regularmente com Adorno durante os quatro anos em que escreveu o romance; leu-lhe passagens da obra e pediu ajuda para as descrições da música que Leverkühn compunha. A crise artística enfrentada por Adrian (e a sua resolução diante da mesma) se assemelha bastante à análise que Adorno fez da situação com que Schönberg se deparou com suas inovações, na medida em que este “elucida a fatalidade que lança às trevas míticas a iluminação construtiva e objetivamente necessária da música, por motivos também objetivos, e, por assim dizer, por cima da cabeça do artista.” (MANN, 2001, p. 41) Há três personagens que parecem ter sido inspirados nessas reflexões estéticas de Adorno. O primeiro deles é justamente Adrian Leverkühn, que constrói uma técnica de composição bastante inspirada no estilo dodecafônico analisado por Adorno em Schönberg: “Tal estilo, tal técnica (...) não admitiria nenhuma nota, nem uma única, que não cumprisse na construção geral sua função de motivo. Não haveria mais nenhuma nota livre.” (MANN,
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1996, p. 655) O coração da experiência musical de Schönberg, da forma como foi capturado por Adorno - e nesse ponto fica evidente a inspiração que forneceu para a criação do protagonista de Doutor Fausto - “é uma dialética da solidão. Ele leva ao paroxismo a concepção da música como expressividade, como canto da alma, insufocável – e tragicamente incompreendido.” (MERQUIOR, 1969, p. 64) Um aspecto de Leverkühn que lembra o próprio Adorno é sua personalidade introspectiva e até misantrópica; o filósofo de Frankfurt era constantemente criticado pela sua “atitude high-brow, cheia de mal disfarçado desprezo pela cultura popular de qualquer espécie.” (Idem, 1987, p. 160) O segundo dos personagens “adornianos” é Wendell Kretzschmar, professor de música de Adrian. No início do romance ele faz uma palestra sobre vários temas que interessam profundamente a seu pupilo: a relação entre cultura e barbárie, Música e ascetismo, o reencontro com o Elementar... – e, por fim, a história do anabatista Beissel, que inventou uma teoria musical heterodoxa, “por demais extravagante e arbitrária para que pudesse ser aceita pelo mundo exterior.” (MANN, 1996, p. 90). Os manuscritos de Adorno, segundo Mann, foram uma leitura estimulante e de muita importância para a criação de Kretzschmar (cf. ADORNO & MANN, 2006, p. 9), o qual terá um papel decisivo (e, por assim dizer, diabólico) na decisão de Adrian de se tornar um músico. Por fim, ironicamente ou não, o Diabo com quem Leverkühn faz o pacto também se assemelha a Adorno. No início de sua soturna conversa com Adrian, “Ele” se parece com um cafajeste; porém, à medida que seu interlocutor começa a se sentir à vontade, o Diabo muda de fisionomia, tomando a forma de um elegante musicólogo, “um intelectual, que escreve para os jornais comuns artigos sobre Arte e Música, teórico e crítico, que ele mesmo faz tentativas no campo da composição musical, na medida das suas capacidades.” (MANN, 1996, p. 322) A semelhança com o autor da Filosofia da Nova Música, portanto, é patente. Este parentesco se reforça quando o Diabo começa a tecer considerações sobre a crise da arte moderna que parecem fortemente inspiradas nas de Adorno. Segundo “Ele”, a composição tornou-se mais difícil na arte emancipada, devido à submissão à técnica. A aparência auto-suficiente da Música tornou-se impossível, e assim como as demais expressões artísticas ela entrou em uma fase (auto) crítica: A cada instante, a técnica, na sua totalidade, exige dele [do artista] que se submeta a ela e impõe a única resposta certa, que no momento lhe parece
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admissível. Chega-se então ao ponto no qual as composições do artista (...) não passam de soluções de rebus técnicos. A Arte transforma-se em crítica. Conversão muito honrosa, inegavelmente, e que requer muita rebeldia em plena subordinação, muita independência, muita coragem. (...) A crítica ao ornamento, à convenção e à generalidade abstrata é uma e a mesma. O que permanece objeto dela é o caráter ilusório da obra de arte burguesa, do qual a Música participa, ainda que não crie nenhuma imagem. (Ibidem, pp. 324326)
Cabe dizer, no entanto, que Mann ficou com a consciência aliviada quando Adorno não “torceu o nariz” para a utilização de seus comentários de crítica contemporânea a fim de levar o personagem demoníaco a, conforme diz Adrian, “cortejar a arte”. (cf. Idem, 2001, p. 122) Porém, há quem sugira que o pensador frankfurtiano também não ficou exatamente contente com o fato de que seu modernismo estético foi associado ao Diabo. Segundo José Guilherme Merquior, a arte do compositor Leverkühn é uma consumada metáfora do pathos demoníaco embutido no apocalipse do esteticismo moderno, e quando Adorno contribuiu para a descrição da música de vanguarda de Leverkühn, “o fez, é claro, inadvertidamente – e não ficou nada satisfeito quando viu como Mann acabou usando a sua ajuda...” (MERQUIOR, 1987, p. 193) Podemos, contudo, tomar isso como um gracejo do sempre sarcástico Merquior e recorrer ao que disse Donald Prater, um biógrafo de Mann: Adorno tratou de forma benevolente o fato de Mann ter se apropriado de muitas de suas próprias observações sobre o cenário musical contemporâneo, tal com as expôs em sua Philosophie der neuen Musik, utilizadas sobretudo nos comentários ácidos do Demônio de Mann. (...) Theodor Adorno, embora permanecendo em silêncio, deu a impressão de estar descontente com a falta de crédito à sua colaboração, (...) [mas] ficou satisfeito quando Mann lhe garantiu que escreveria um balanço autobiográfico completo sobre a gênese e o desenvolvimento do romance, no qual o filósofo receberia o merecido crédito por sua inestimável ajuda. (PRATER, 2000, pp. 481-499)
A promessa de Thomas Mann foi cumprida: de fato várias páginas de A Gênese do Doutor Fausto demonstram a importância de Adorno para a construção de seu romance. Aliás, este não se fez de rogado e, numa carta de 1948, expressou sua empolgação com o “romance sobre o romance”: “Mal posso esperar para ver a portinhola para a eternidade que o seu romance abrirá para mim. Não preciso lhe dizer o que significa para mim o seu reconhecimento de meus esforços excêntricos, bem como a sua intenção de trazê-los à luz.” (ADORNO & MANN, 2006, p. 38) A amizade entre ambos perdurou até a morte de Mann, em 1955; durante os últimos anos, trocaram cartas sobre, por exemplo, o último romance deste (Confissões do impostor Felix Krull) e a música de Wagner.
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Finalmente sobre a questão do narrador à luz de Adorno, nas palavras de Mann “decidi não contar eu mesmo a vida de Adrian Leverkühn, mas inseri um outro que a contasse, portanto escrevendo não um romance, mas uma biografia com todas as características pertinentes ao gênero.” (MANN, 2001, p. 30) A inserção deste narrador – no caso, o professor universitário Serenus Zeitblom, o melhor amigo de Leverkühn – permitiu situar a narrativa num plano temporal duplo, entrecruzando polifonicamente os eventos que abalam o narrador enquanto escreve com os fatos por ele apresentados, de tal forma que seu tremor advém tanto das vibrações de bombardeios distantes quanto ao terror interno que tem ao se lembrar da trajetória do amigo. (cf. Ibidem, p. 30-31) Zeitblom constantemente “quebra a quarta parede” e confessa ao leitor a incapacidade de fazer uma narração neutra e imparcial diante dos terríveis acontecimentos que afligiram seu amigo Leverkühn e seu próprio país. Várias passagens de Doutor Fausto simbolizam esta autoconsciência de Zeitblom quanto à limitação de seu papel enquanto narrador; por exemplo, a seguinte: Para mim, cada palavra que escrevo nestas páginas tem o mais ardente interesse, mas quanto não devo cuidar-me em considerar isso uma garantia de sentimentos iguais da parte de pessoas indiferentes! Por outro lado, cumpre não esquecer que não escrevo para o momento nem para leitores que por hora nada saibam de Leverkühn, de modo que não possam pretendem receber informações pormenorizadas a seu respeito; pelo contrário, preparo esse relato para um tempo em que as premissas da atenção pública forem totalmente diversas e, como posso assegurar, muito mais propícias, numa época em que a curiosidade pelas peripécias dessa vida pungente, apresentadas com habilidade ou sem ela, for mais intensa e menos fastidiosa. (Idem, 1996, p. 42)
Este trecho deixa explícita a situação precária do narrador deste romance, na medida em que revela uma mistura de ceticismo e pálida esperança: se por um lado Zeitblom afirma a impossibilidade de que seu relato consiga “tocar” seus leitores sobre a tragédia de seu amigo da mesma forma que esta o afetou, por outro ele espera que, no futuro, caso a guerra e o totalitarismo já sejam coisas passadas, haja um ambiente propício para que sua biografia de Leverkühn possa servir como retrato de uma época. *** Como já expus sinteticamente as idéias de Adorno, agora posso ser mais normativo: não compactuo com o tom amargo que permeia a estética adorniana. Lukács tem certa razão quanto critica o “desespero cultural” deste pensador; mas, bancando o “advogado do diabo”, é
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preciso reconhecer que Adorno vê uma luz no fim do túnel; basta lembrar sua defesa das vanguardas artísticas, em particular a música dodecafônica de Schönberg. Por outro lado, não posso deixar de concordar com Merquior quando este diz que Adorno possui um ascetismo melancólico, segundo o qual só o martírio da forma poderia refletir, se não espelhar, a miséria do homem moderno. Para Adorno, “escrever poesia depois de Auschwitz é bárbaro”, e a arte já não pode mais ter um caráter afirmativo: “O único humanismo que resta a compele a representar, em formas torturadas, „nossa idade satânica‟.” (MERQUIOR, 1987, p. 192) A arte da ruptura seria assim, em sua reação à repressão iluminista da civilização moderna, uma “falência necessária”. (Idem, 1969, p. 94) Thomas Mann oferece em seus romances uma perspectiva mais humanista que esta, mas sem deixar de ser realista. Doutor Fausto, de certa maneira, é uma reflexão perplexa sobre o potencial nefasto e destruidor da música, inserindo-se na tradição – de certa maneira originada em Platão e sua “expulsão dos poetas” em A República – que enfatiza a dimensão moral da arte, mostrando o lado soturno do culto das formas desligado de qualquer finalidade edificante. Embora a arte não ofereça uma “verdade salvadora”, ela poderia libertar a alma humana do medo e do ódio, e assim auxiliar o homem em sua viagem pela vida. (cf. RIEMEN, 2011, p. 83) A maneira como Mann expôs os dilemas da música erudita moderna por meio da trágica história de seu Fausto mostram uma sensata desconfiança com relação aos excessos das vanguardas artísticas. Colocar na boca do Diabo as mais progressistas e ousadas opiniões sobre arte mostra que o escritor não via nesse “niilismo aristocrático” - ora ironizado, ora preconizado pelo Diabo e por Adrian - uma panacéia para as angústias humanas diante da modernidade. A arte pode ter, portanto, um papel consolador e pedagógico, inclusive pelo exemplo negativo, ao mostrar que os impulsos esteticistas têm um caráter perigoso e até mortal – algo, aliás, que o próprio “pecador” Leverkühn reconheceu, à beira do colapso.
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8.
A ESPERANÇA
EM MEIO À
CRISE: O HUMANISMO
DE
THOMAS
MANN Em A Gênese de Doutor Fausto (1949), Thomas Mann alega que, durante o processo de escrita do seu romance fáustico, estava cauteloso quanto ao risco de, com sua obra, “contribuir para a criação de um novo mito germânico, de lisonjear os alemães com seu aspecto „demoníaco‟”. Para evitá-lo, procurou “dissolver o tema do livro - crise, um tema de tonalidade (...) tão germânica - o máximo possível num contexto geral histórico e europeu.” (MANN, 2001, pp. 48-49) Há um belo trecho de Saudades do Carnaval (Merquior) - aliás, um ensaio que emana certo espírito frankfurtiano, embora com um tom mais moderado do que o pessimismo hipercrítico de Adorno - que ajuda a entender a motivação de Mann para escrever um romance sobre um tema aparentemente tão vago como crise: Krisis quer dizer separação. Diante de nossos olhos, a cultura moderna está se destacando de si própria. Refletir sobre isso já é uma viagem atordoante; quando as perguntais mais cruciais cavalgam as respostas mais perplexas, quem se atreveria a ir além? (...) Aqui o pensamento recua na ponta dos pés; um sóbrio instinto lhe murmura que só o exame crítico do passado consola dessa certeza invencível. (...) Somente debruçado deste estudo – que não é só mental – o homem contemporâneo chegará, ou não, a compor um dia, talvez sem sentir, o epitáfio da moléstia dos tempos modernos.” (MERQUIOR, 1972, pp. 220-221)
É justamente este esforço de se debruçar sobre o passado, tanto o pessoal como o de sua sociedade, que o autor desempenhará em Doutor Fausto. Basta lembrar que este livro foi a retomada de um projeto literário antigo: Quarenta e dois anos haviam se passado desde que eu fizera anotações para um possível projeto de trabalho sobre um pacto entre um artista e o diabo, e buscá-las e revê-las provocou em mim uma comoção, para não dizer um abalo emocional, que me evidencia, já no começo, (...) uma atitude biográfica etérea, cujo alcance, mais profundo do que minha própria visão, predestinou a novela a se tornar romance. (MANN, 2001, pp. 20-21)
A obra começou a ser escrita em 27 de Maio de 1943, que também é o marco ficcional do início do relato de Serenus Zeitblom sobre a vida de Adrian Leverkühn. A estrutura narrativa do romance sobrepõe três tempos: o da vida de Leverkühn, o da redação da biografia por um amigo (Zeitblom) e o da história alemã (há vários trechos que são verdadeiros “diários de guerra”). Doutor Fausto, porém, não aspira a ser um romance histórico tradicional. A
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preocupação de Mann não foi a de explicar como ocorrer os eventos históricos mais negros do Século XX, mas sim a de alcançar seu significado oculto. O escritor percebeu precocemente que o Zeitgeist da primeira metade do século passado revelava-se “aterrorizado diante da liberdade individual e ameaçado pelo rompimento da tradição. Assim, [o século 20] ignorou qualquer possibilidade de resistência moral e sucumbiu a seus baixos elementos instintuais traindo a razão.” (MISKOLCI, 1998, pp. 193-194) Doutor Fausto é uma narrativa em dois planos: os graves episódios da vida de um artista recentemente falecido, recontados para a posteridade sob o impacto real das ofensivas dos Aliados contra a Alemanha e a iminente aniquilação do país, produzem no romance uma forte atmosfera de realidade. (cf. PRATER, 2000, p. 440) Mann deixa essa intenção explícita em uma carta que enviou para seu filho Klaus: Resumindo, o tema é a inspiração maligna e os vôos da imaginação como sendo provocados pelo diabo. (...) Mas é também a idéia de um delírio intoxicador em geral, e sua combinação com a anti-razão, e, portanto, também abordo o político, o fascista, e com isso o triste destino da Alemanha. A questão é adaptar um colorido arcaico e luterano (o herói sendo originariamente um teólogo), à Alemanha de ontem e hoje. (MANN apud PRATER, 2000, p. 439)
Ao criar Adrian Leverkühn, Thomas Mann fundiu simbolicamente a trilha histórica da psicologia coletiva da Alemanha desde a Reforma. Este personagem, portanto, é um mosaico de várias personalidades: representa ao mesmo tempo figuras como Martinho Lutero (14831546), Goethe, Nietzsche e Adorno. Sobre os três últimos já falei o bastante; quanto a Lutero, o fato de Adrian estudar Teologia e Música é uma alusão a esta figura central da Reforma, que certa vez escreveu: “A senhora música sempre me foi cara ao coração. Ela é uma bênção divina, uma parente próxima da teologia.” (LUTERO apud ROSENFELD, 1994, p. 58) Doutor Fausto, entretanto, é um protesto contra determinados aspectos do protestantismo e, no caso de Leverkühn, a música (tida como a mais alemã das artes) não é uma bênção, mas uma maldição. Mann conseguiu estabelecer um elo de seu Fausto moderno com o Fausto histórico – e, portanto, com o século da Reforma religiosa, “composta de um modo tão singular por elementos atávicos e progressistas.” (ROSENFELD, 1994, p. 59) Estes pontos são explicitados no seguinte trecho de sua palestra A Alemanha e os alemães, proferida em 1945 (portanto, na época em que escrevia seu romance fáustico): Lutero era um herói libertador, mas em estilo alemão. Nada sabia de liberdade. Não falo de liberdade do cristão, mas da liberdade política, do
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cidadão, liberdade esta que só deixava Lutero indiferente, mas cujas exigências lhe eram repugnantes... A concepção alemã de liberdade era sempre dirigida contra o exterior; ela acentuava apenas o direito de ser alemão, só alemão e nada além disto... é uma concepção de protesto apenas, de autodefesa contra tudo que tende a limitar e restringir o egoísmo nacional. (MANN apud ROSENFELD, 1994, p. 140).
Aproveitando que estamos em terreno religioso, cabe relacionar este romance com uma temática de A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo (Max Weber): o desencantamento do mundo. Segundo Weber, o protestantismo, embora tenha re-encantado o mundo por um momento por meio da idéia de vocação e da ascese intramundana, “acabou por desencantá-lo definitivamente, e (...) esta perda de sentido se generalizou, induzindo por isso mesmo à perda de liberdade em todas as esferas da vida.” (VANDENBERGHE, 2012, p. 301) Esta racionalização social levou a uma despersonalização, e os frutos desse desenvolvimento cultural (chamados por Weber de os “últimos homens”) poderiam ser definidos como “especialistas sem espírito, gozadores sem coração.” (WEBER, 2004, p. 166) Como já vimos anteriormente, Adrian veio de uma família protestante, e herdou as tradições introspectivas desta forma religiosa, o que inclui a preocupação com o auto-cultivo e a doutrina da predestinação. O católico Serenus Zeitblom, ao contrário de seu amigo luterano, critica a renegação humana em prol de uma predeterminação absoluta, pois esta consiste na quebra da relação religiosa entre obras e salvação, ou pelo menos do comportamento moral coerente com a vontade divina na ação no mundo. (cf. CORDEIRO, 2011) Ainda sobre esta oposição ideológica entre Serenus Zeitblom e Adrian Leverkühn, é preciso dizer que, enquanto o primeiro é um humanista, o seu melhor amigo combina uma melancolia tipicamente niilista e uma forma esteticista de encarar a arte. O profundo interesse de Adrian pelas Ciências da Natureza o leva a zombar da visão de mundo de Serenus, chamando-a de “medieval”. Há um nítido sentimento de superioridade na fala de Adrian, que demonstra um desprezo pela metafísica análogo ao de filósofos e cientistas do Século XIX: Teu Homo Dei é em última análise ou, desculpa, é antes de mais nada um pedaço de asquerosa natureza, com uma quantidade parcimoniosamente conferida de espiritualização. De resto, é divertido observar a que ponto teu humanismo, e provavelmente qualquer humanismo, tende para o geocentrismo medieval, evidentemente por necessidade. (...) Isso é Idade Média. A Idade Média foi geocêntrica e humanista. A Igreja, na qual sobreviveu, opunha-se às percepções da Astronomia à base do espírito humanista; condenou-as e proibiu-as, por terem sua origem no Demônio; insistiu na ignorância em nome da humanidade. (MANN, 1996, p. 369)
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Voltando à questão do ethos protestante, Adrian encontra a sua Beruf (vocação) na música, e desenvolve um profundo distanciamento e até hostilidade em relação à vida burguesa. Afundado na introspecção, Adrian não desenvolveu seu self com auto-estima, mas sim com negatividade e até auto-desprezo. Um exemplo disso é quando, ainda abalado pela morte do sobrinho Nepomuk, a quem dedicava um raro afeto, escreve sua obra magna, a Lamentação do Dr. Fausto, e afirma ao amigo Serenus Zeitblom que a obra tem uma pretensão anti-humanista: “O bom e o nobre (...), aquilo que qualificamos de humano, embora seja bom e nobre. Aquilo por cuja causa os homens têm lutado e têm tomado bastilhas de assalto; aquilo cuja glória os extáticos proclamaram jubilosamente; aquilo não deve existir. Será revogado. Eu o revogarei.” (MANN, 1996, p. 646) A postura isolacionista de Leverkühn, aliás, condiz não só com os “últimos homens” weberianos, mas também com o diagnóstico de José Guilherme Merquior sobre a modernidade como um avanço não do individualismo, mas sim do isolamento: o desdobramento da personalidade moderna corresponderia a uma genealogia da solidão. Este processo teria sido iniciado com o repúdio pelo protestantismo puritano dos ideais tradicionais da caridade e da solidariedade; foi reforçado pela subjetivação da religiosidade (um legado dos protestantes liberais do Século XIX), que afastou ainda mais o indivíduo de todo objeto transcendente e, portanto, reduziu-o à “consciência-interesse” (racionalidade instrumental); e, por fim, teríamos o homem-massa do mundo contemporâneo, um indivíduo abstrato e impessoal, alienado dos “jogos sociais racionalizados”. Embora se possa afirmar que este isolamento seria o reverso da auto-valorização do homem moderno, em sua vocação de liberdade política, social e cultural, para Merquior esta tese é bastante discutível: Desde Tocqueville e Burckhardt temos consciência de que o apogeu da solidão na sociedade de massa não coincide, de jeito algum, com a vitória do individualismo, e sim com a maré invasora dos conformismos de todo gênero, da coletivização negativa. O homem-ilha do mundo moderno não é um indivíduo valorizado, nem auto-valorizado. (MERQUIOR, 1972, p. 155)
Ao representar o colapso da relação entre indivíduo e comunidade na Alemanha, Doutor Fausto nos apresenta uma “Bildung demoníaca”: a formação de Adrian não se nutre da vida comunitária, mas se afasta da mesma em um hermetismo de conseqüências danosas para o personagem e para todos à sua volta. Aliás, revela-se aqui, segundo a análise que Lukács fez deste romance, o problema social que aflige toda a arte moderna: o subjetivismo profundo, o afastamento de toda coletividade e o desprezo por toda comunidade. Mesmo a aspiração à síntese, ao domínio do ser, à ordem e à organização ocorre sem qualquer fundamento real no
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mundo social; sendo assim, a subjetividade de um artista como Leverkühn cria esfacelamento e decomposição, e acaba se anulando a si mesma. (cf. LUKÁCS, 1965, p. 202) Em seu romance Mann também conseguiu prever o ambiente de descrença e cinismo que iria permear o chamado “pós-modernismo”, conseqüência da necessidade modernista de ruptura constante. O sistema tonal que Adrian inventa é uma metáfora para a evolução de uma arte que há anos estava passando por rápidas transformações com Wagner, Mahler etc. e que parecia ter chegado a um estágio no qual só os especialistas a poderiam fruir. Outra temática relevante em Doutor Fausto é a relação entre o self e a nação. Adrian Leverkühn, segundo Safranski em Romantismo: uma questão alemã (2007) assemelha-se ao destino trágico da Alemanha não pelo elemento dionisíaco ou como herdeiro do Romantismo. Mann teria percebido que a ligação entre o espírito romântico e a política criminosa não se sustentava; “sua falsidade teria se manifestado num esquematismo artificial.” Em vez isso, mostra-se no fim de Leverkühn algo bem distinto: “a crise de uma criação artística que sofre de intelectualismo e que busca um caminho de volta a uma segunda ingenuidade.” (SAFRANSKI, 2010, p. 339) Isso teria mais a ver com a consciência artística moderna, com os dilemas da vanguarda que Thomas Mann aprendeu com Adorno, do que com um fenômeno especificamente alemão. Por outro lado, é preciso lembrar que a meta essencial de Mann era expor a obra de Leverkühn “para reprovar tanto a barbárie sangrenta quanto o intelectualismo sem sangue.” (PRATER, 2000, p. 482) Adrian de fato não luta pela prerrogativa de uma vida dionisíaca; ele é um esteta de conduta extremamente ascética, descompromissado, sem consideração das sensibilidades humanas; despreza o “indivíduo rústico” e encara a superação do “meramente pessoal” como necessária para adentrar nos “domínios do mítico e do coletivo”. (MANN, 1996: 73) A tragédia do protagonista consiste em ter subestimado as conseqüências terríveis dessa atitude intelectual estética. Ao lutar contra a estagnação da Arte, Adrian Leverkühn acabou caindo na mais pura negatividade. (cf. LOHMÜLLER, 2010, pp. 459-460) Segundo o próprio autor em A Gênese do Doutor Fausto (1949), o pacto deste personagem com o diabo não é movido pela ânsia por glória ou auto-realização, mas sim “uma escapatória das dificuldades da crise da cultura, a ânsia por eclosão, a qualquer custo, de um espírito orgulhoso e ameaçado de esterilidade”, havendo nisso um paralelo com “a embriaguez popular fascista e uma euforia danosa desembocando num colapso.” (MANN, 2001, p. 29)
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Pois bem, e qual é a relação dessa angústia artística de Leverkühn com a Alemanha? Segundo Mann em seu discurso A Alemanha e os Alemães (1945), o povo alemão, em seu perpétuo e ambicioso esforço pela salvação, que remonta à Reforma luterana e ao Romantismo, superestimou-se; ao dissociar o elo entre O elemento especulativo e o sociopolítico da energia humana – segundo Mann, um reflexo disso seria o desprezo do povo alemão pelo pragmatismo político, pelo compromisso –, os alemães acabaram se comportando como “um professor com tendências demoníacas, inabilidoso e, com isso, determinado pelo convencimento soberbo de poder ser mais profundo que o mundo.” (MANN apud LOHMÜLLER, 2010, p. 458) Mann, portanto se preocupou em mostrar que o apego à interioridade, se num primeiro instante deram sentido e unidade cultural à Alemanha, em seguida condenaram seu povo “a um grau de solidão e egoísmo nacional que culminaria num egocentrismo xenófobo estimulado ulteriormente pelo nazismo.” (BORGES, 2010, p. 75) Esta conexão do personagem principal de Doutor Fausto com o período nacionalsocialista na Alemanha também se revela em outro sentido: na sua filosofia existencial marcada pelo niilismo e pelo esteticismo. O viés niilista se manifesta pela ausência de valores transcendentais que davam um sentido para a existência humana, o que abre brechas para transformar a vida em pura imanência, ou seja, um processo interminável de criação e destruição. Já o esteticismo vê a vida como justificável, inteligível e venerável somente como fenômeno estético. Zeitblom condena a posição de Leverkühn, que via na estética “um compartimento estreito, separado, da Humanidade”; para o humanista, ela é muito mais do que isso: “é tudo no fundo, na sua ação cativante ou desconcertante (...). Redenção ou perdição estéticas, eis o destino, que determina a felicidade ou a desventura, a convivência de seres sociáveis na Terra ou o isolamento irremediável, por mais soberbo que este seja.” (MANN, 1996, p. 418) Para Serenus, segundo este viés esteticista, o que define a germanidade é “o afã de abrir caminho, livrando-nos das amarras e do cárcere do feio (...), um estado de alma ameaçado de quimeras, do veneno da solidão, de um provincianismo boçal, de maranhas neuróticas, de silencioso satanismo...” (Ibidem, p. 418) Além disso, Zeitblom constantemente ressalta que a misantropia de seu amigo é análoga à de sua pátria perante o resto da Europa. O narrador compreendia e sentia “as imperiosas necessidades da Alemanha, seu isolamento moral e sua proscrição pública”, como expressão do medo generalizado à sua força e à vantagem que seu país levava devido à sua prontidão à guerra, ainda que essas duas, tanto a vantagem quanto a força, somente serviam aos alemães “de consolo grosseiro, em face do ostracismo.” (Ibidem, p. 413) Adrian seria, portanto, um
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produto da crença segundo a qual “a cultura nacional superaria qualquer outra, sendo a Alemanha a veiculadora de uma nova ordem e, para provar ao mundo sua teoria, não importava o preço que lhe seria cobrado.” (CASTRO, 2004, pp. 93-94) No âmbito político, Doutor Fausto retrata a adesão de grande parte da intelligentsia alemã ao ideário da “revolução conservadora”, que era a crença dos radicais alemães da década de 1920 de que “o verdadeiro estado de coisas fora destruído pelo desenvolvimento e por projetos ingênuos de modernidade, especialmente o liberalismo”, sendo, portanto, “necessária a ação radical para que seja restaurada a ordem.” (STJERNFELT, 2009, p. 56) Há ao longo da obra várias cenas de colóquios na qual este conservadorismo radical é evocado, mas a mais interessante delas está no capítulo XXXIV. Nele são descritas as discussões travadas no apartamento de Sixtus Kridwiss, gravador e ilustrador de livros, as quais reúnem um filósofo paleozoologista, um professor de Belas-Letras, um historiador da Arte, entre outros. Zeitblom vê no círculo de Kridwiss “pretensiosas exibições de crítica cultural” (MANN, 1996, pp. 492-493), e os discursos são ao mesmo tempo revolucionários e retrógrados; sintomaticamente, um dos autores mais celebrados por este círculo é Georges Sorel (1847-1922), que na obra Reflexões sobre a Violência (1908) exalta o lado “criativo” da violência e diz que as massas deveriam ser providas de ficções míticas para ativar as energias revolucionárias. Segundo o narrador, “a obra fazia jus a seu título ameaçador, pois seu tema era a violência como oponente vitorioso da verdade.” (Ibidem, p. 495) Os intelectuais do círculo de Kridwiss consideravam que, na modernidade, “os valores ligados à idéia do indivíduo – verdade, liberdade, direito, razão – ficaram inteiramente debilitados e rejeitados”, portanto deveriam ser relativizados e “submetidos a uma instância muito superior, à da força, da autoridade, da ditadura da fé – o que não se realizaria de modo reacionário, (...) e sim de uma forma que igualaria uma regressão muito inovadora da Humanidade em direção a estados e condições teocrático-medievais.” (Ibidem, p. 498) Com isso, o retrocesso e o progresso, o antigo e o novo, o passado e o futuro, tornar-se-iam uma e a mesma coisa; na política, a direita ia confundir-se cada vez mais com a esquerda, e cabia ao pensamento a “liberdade” para legitimar a força e a autoridade das massas. É possível perceber neste trecho do romance a contribuição da intelligentsia germânica para o surgimento de um comunitarismo distorcido e violento: o regime nazista – o que, aliás, se aproxima da descrição que Norbert Elias faz em Os Alemães sobre o nacionalismo agressivo adotado pela classe média germânica desde o fim do Século XIX, em um abandono
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dos valores humanistas. É certo que o nacionalismo foi a mais poderosa das crenças sociais dos séculos 19 e 20 (cf. ELIAS, 1997, p. 141), porém no caso alemão ele se agravou pela ligação com o clima de violência e hostilidade que marcou a República de Weimar. “O desfecho da guerra de 1914-18 significou uma dupla derrota: internacionalmente, na luta decisiva pela supremacia na Europa (...); internamente, na luta pela supremacia dentro da Alemanha.” (Ibidem, pp. 194-195) Uniram-se no ressentimento vários segmentos sociais, desde o alto escalão das forças armadas até jovens de classe média, que formaram desde vanguardas especializadas em atos de violência até o Partido Nacional-Socialista. Nesse sentido, o que Doutor Fausto nos mostra é a legitimidade que a classe intelectual deu a essa escalada. Este círculo que pregava a “revolução conservadora” nos remete também à decadência da esfera pública retratada por Habermas em Mudança Estrutural da Esfera Pública (1962). Do ponto de vista normativo, o espaço público deveria transformar a vontade [voluntas] em um discurso racional [ratio] que se produz na interação e concorrência pública de argumentos privados como consenso sobre o praticamente necessário para preservar o interesse e bemestar de todos. (cf. HABERMAS, 2003, p. 103). Além disso, Habermas via a esfera pública como meio próprio para a liberdade e a dignidade humana. O que se verifica entre os cientistas, eruditos e professores universitários descritos nesta cena de Doutor Fausto, no entanto, é um apreço pela ditadura e pela violência. Seu consenso intersubjetivo não é nem um pouco benéfico para a sociedade, o que reforça a idéia de que ele é um retrato da cumplicidade da classe intelectual dos anos 30 com a ascensão do regime nacional-socialista. Esta descrição ácida da intelligentsia alemã do período entreguerras revela também a oposição de Thomas Mann à distinção radical que outros exilados – dentre eles o seu desafeto Bertolt Brecht (1898-1956) – faziam entre o regime de Hitler e o povo alemão. O que causara o seu “sofrimento pela Alemanha” tinha sido “o fato assustador de que os líderes da cultura do país tinham sucumbido ao nazismo, ou ao menos aceitado conviver com ele, e seu Fausto seria a expressão desse sofrimento.” (PRATER, 2000, p. 445) Aliás, mesmo a postura apolítica de Leverkühn – e também a de Zeitblom – é uma condescendência com o status quo; no caso, o colapso da experiência republicana na Alemanha. Esta crítica, aliás, poderia ser aplicada ao próprio Mann da época das Considerações de um Apolítico e da I Guerra Mundial, e o autor parece estar consciente desse “acerto de contas” consigo mesmo.
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O narrador Serenus Zeitblom, a propósito, demonstra sentimentos ambíguos em relação a essa atmosfera intelectual radicalizada, e de certa maneira também é cúmplice do problema que diagnostica. Se por um lado Zeitblom acredita que o círculo de Kridwiss “tomou o pulso” da época, por outro “lamenta a frieza objetiva com que descreveram seu tempo e aderiram a ele.” (GONÇALVES, 2010) Aliás, o humanismo desenvolvido por este personagem, assim como o de Thomas Mann, é fruto do amadurecimento. Na década de 1910 Serenus apoiou o nacionalismo autoritário que regia a Alemanha nos tempos da Primeira Guerra em prol da suposta autonomia da classe intelectual; em suas palavras, sob tal ordem “a Cultura conservava-se livre e mantinha-se num nível apreciável.” (MANN, 1996, p. 407) Eis o que Mann chamava de interioridade protegida pelo poder, isto é, a postura de esperar do Estado “que ele assuma os assuntos políticos e se encarregue de que o indivíduo possa dar exclusiva atenção às suas questões particulares e espirituais.” (SAFRANSKI, 2010, p. 338) Anos depois, no entanto, o narrador do romance, após uma aprovação inicial (novamente em nome do restabelecimento da “ordem”), passa a se opor ao totalitarismo nazista, o qual politizava o cotidiano ainda mais – e de forma mais perversa – que a democracia, e antecipa sua aposentadoria da carreira acadêmica. Zeitblom torna-se com isso um “exilado interno” – o que é irônico, levando-se em conta o desprezo que Mann tinha por essa oposição tímida que alguns de seus compatriotas demonstraram ao regime de Hitler. Por outro lado, Serenus demonstra uma visão lúcida sobre seu contexto histórico. Na citação a seguir – que, aliás, também tem tons fortemente autobiográficos – o narrador de Doutor Fausto relata a sua mudança de posicionamento político, não sem deixar de fazer ressalvas quanto à suposta superioridade moral dos Aliados em relação ao Eixo, afinal países como a Inglaterra e a França, durante vários anos, fizeram vistas grossas ao regime nazista: Há vinte e seis anos, a repugnância pela discurseira moralizante, farisaica, do orador burguês, „filho da Revolução‟, revelava-se em meu coração mais forte do que o receio à desordem (...). Desde então, a História ensinou-me a formar outra opinião acerca dos que nos venceram daquela vez e em breve o farão novamente, aliados aos revolucionários do Leste. Verdade é que certas camadas da democracia burguesa pareciam e parecem também hoje merecer o que acabo de chamar de domínio da escória, dispostas como estão a pactuar com ele, a fim de conservarem por mais tempo os seus privilégios. Porém, para exercerem esse domínio, surgiram líderes que, assim como também eu, rebento da mentalidade humanista, consideravam-no o suprasumo da desgraça que se pudesse e devesse impor à Humanidade. Levaram, portanto, seu mundo a lutar até a morte contra ele. Nunca seremos capazes de expressar toda a nossa gratidão a esses homens, e sua ação demonstra que a democracia dos países ocidentais, não obstante tudo quanto haja de
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obsoleto em suas instituições, (...) trilha, por essência, o caminho do progresso humano, da boa vontade de aperfeiçoar a sociedade e tem (...) a força indispensável para renovar, corrigir, rejuvenescer e finalmente instaurar condições de vida mais eqüitativas... (MANN, 1996, p. 460)
Nesse sentido é possível afirmar que Doutor Fausto completa um ciclo de desenvolvimento que começou com a auto-identificação de Mann com sua nação em suas Considerações de um Apolítico e prosseguiu por sua alegoria da exaustão da cultura nacional em A Montanha Mágica. Este ciclo se encerra com seu retrato de uma tentativa fracassada de domínio ativo sobre tal exaustão: Doutor Fausto simbolicamente coloca Settembrini contra Naphta novamente, isto é, o humanismo burguês e a tradição da Bildung contra o reacionarismo diabólico. Settembrini é agora encarnado no narrador, Serenus Zeitblom – mais preocupado, mais indefeso e mais simpático – com Naphta re-emergindo como o diabo, mais irônico e estranhamente mais cativante. O conflito de ambos desta vez é mediado pela batalha pela alma de Adrian Leverkühn, ao invés de Hans Castorp. (cf. GOLDMAN, 1992, p. 227) O humanismo proposto por Thomas Mann procura filtrar o que há de nobre e “saudável” em Goethe, Nietzsche e os demais representantes da tradição alemã, e o que há neles de “enfermidade”, de ligação perigosa entre esteticismo e barbárie. Eis, portanto, se recorrermos à famosa distinção nietzschiana, um humanismo “apolíneo”, mas ligeiramente aberto ao “dionisíaco” (isto é, aos elementos vitalistas). Este ideal humanista de Mann, no entanto, não se confunde com o humanismo francês, à la Rousseau, caracterizado por um discurso mais abstrato e universalista. Mesmo tornando-se mais simpático à socialdemocracia ao longo de sua vida, no âmbito cultural Thomas Mann mantém um tom aristocrático, um conservadorismo de tom mais “humano” e cultivado. Sendo assim, seu referencial não é o tripé “liberdade, igualdade e fraternidade” da Revolução Francesa, mas sim a idéia de Humanität – e, portanto, também a de Bildung. Nove anos antes de Doutor Fausto, em um ensaio intitulado What I Believe (escrito em 1938 para um jornal americano), Mann expressa de forma mais clara o seu ideal filosófico. O escritor fala em um “terceiro humanismo”, o qual descreve como uma mistura da tradição do humanismo secular com a reverência da religião cristã e sua consciência da realidade do pecado original. (cf. WEBB, 2012, p. 208) Sua postura humanista reconhece que o imenso valor e beleza do ser humano residem precisamente no fato de que ele pertence a dois reinos: o da natureza e o do espírito. Não há nisso um conflito romântico ou um dualismo trágico, mas antes uma combinação frutífera e cativante de determinismo e livre arbítrio. O amor pela
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humanidade não deve, portanto, recair nem no pessimismo nem no otimismo: unirá o conhecimento corajoso do lado sombrio, demoníaco e radicalmente “natural” do homem com a reverência por seu valor espiritual. (cf. MANN, 1942, p. 165) É possível verificar nesta visão de mundo de Thomas Mann uma tonalidade cristã; em outras palavras, ele não é um humanista estritamente naturalista ou secular. Uma carta de 1953 evidencia este tom religioso e até levemente utópico: Bom seria se, de todos os nossos sofrimentos emergisse um novo sentimento de compaixão pela humanidade, uma comiseração unificadora pelo precário posto do homem no universo, entre a natureza e o espírito; em suma, se um sistema ético novo e humanista se formasse e adentrasse a consciência e a subconsciência geral. Ele exerceria uma salutar influência sobre a vida aqui na terra. (...) Esses, porém, são desejos piedosos. Desejos até mesmo cristãos, se assim quiserem. „Cristão‟, para mim, apesar de Nietzsche, ainda não é um termo ultrajante. (MANN apud WEBB, 2012, pp. 208-209)
As críticas de Thomas Mann ao niilismo de sua época demonstram claramente este fundo cristão. O escritor alemão era de criação protestante, mas por meio do católico personagem-narrador de Doutor Fausto, não poupa o luteranismo de certas críticas. Isso talvez seja um reflexo da relação de amor e ódio que Mann nutria pelo protestantismo; exemplo disso é que, assim como Lutero, ele era apaixonado pela música, mas, por meio de Zeitblom, o escritor diz que não gostaria de “por a mão no fogo” quanto à confiabilidade absoluta da arte musical “em matéria de razão e da dignidade humana.” (MANN apud ROSENFELD, 1994, p. 58-59) Outro exemplo desse cristianismo de Mann aparece quando, após descrever a Lamentação do Dr. Fausto, Serenus Zeitblom (o mais autobiográfico de Doutor Fausto) diz que, mesmo que esse sombrio poema tonal não admita até o fim nenhum conforto ou reconciliação, ele acredita ser possível que a última obra de Leverkühn corresponda ao paradoxo religioso segundo o qual “da mais profunda desgraça poderá germinar a esperança”, sendo que esta, “fora dos limites do desespero”, constitui a “transcendência da desolação, não como sua renegação e sim como o milagre que ultrapassa a fé.” (MANN, 1996: 661) O desfecho de Doutor Fausto também apresenta uma tonalidade religiosa. Aliás, ao lado do parágrafo final de A Montanha Mágica (citado no capítulo 3), talvez ele seja a expressão mais adequada da opinião de Mann sobre a natureza humana e aquilo que o homem poderia se tornar. (cf. WEBB, 2012, p. 207) Zeitblom indaga-se sobre que destino é reservado à Alemanha, que após estar a ponto de conquistar o mundo, “graças a um pacto ao qual
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tencionava manter-se fiel e que assinara com seu sangue”, com a derrota na guerra “cai de desespero em desespero, cingida de demônios, cobrindo um dos olhos com a mão e cravando o outro num quadro horroroso”. O narrador, então, faz uma pergunta seguida de uma prece: “Quando raiará, em meio à derradeira desolação, um milagre superior a qualquer fé, a luz da esperança? Um homem solitário junta as mãos e diz: „Que Deus tenha misericórdia de vossas pobres almas, meu amigo, minha pátria!‟” (MANN, 1996, p. 687) Saindo da religiosidade para voltar à política, é importante dizer que, apesar de ter se tornado engajado pela causa da democracia desde a década de 20, Thomas Mann via com cautela a relação entre arte e política, como bem demonstra o seu ensaio O Artista e a Sociedade (1952). O artista “corrige” o mundo de uma maneira totalmente diferente da que faz a doutrina moral: “Ele o faz fortificando em palavras, em imagens e em pensamentos a sua vida – e, num modo substitutivo, a vida em geral – conferindo a ela sentido e forma e tornando transparente (...) „a vida da vida‟: a alma”. (MANN, 1988, p. 30) Embora na época de Doutor Fausto já não seja mais um “apolítico”, como chegou a se definir em 1918 nas Considerações de um Apolítico, ele procura incorporar questões políticoideológicas a seus romances sem ser panfletário. Já o havia feito com maestria em A Montanha Mágica (1924), com o debate entre Settembrini e Naphta, e o realizou novamente no romance fáustico. Embora o moralizar político de um artista tenha um quê de cômico e fútil, o problema da humanidade é indivisível: o estético, o moral e o político-social são uma unidade, e a arte não pode estender a fria mão diabólica do niilismo à vida. (cf. Ibidem, p. 35) Esta grandeza ética de Mann é atenuada caso se considere, como o fez Rüdiger Safranski, que a terrível história da Alemanha nazista experimentou, em Doutor Fausto, uma interpretação sublime; a profundidade solene da obra quase se reconciliava com o horror que descrevia. Ou seja, o pathos com o qual o narrador constrói a sua representação acaba fazendo desta obra parte do problema cuja solução pensa ser: “No romance, Thomas Mann protestara contra a busca romântica por uma interpretação superior do acontecimento bruto, mas foi exatamente isso que ele propiciou.” (SAFRANSKI, 2010, p. 335) Por outro lado, ao tornar Leverkühn mais próximo dos dilemas de um artista moderno do que de um alemão dionisíaco, Mann consegue escapar um pouco do tom bajulador aos alemães que cometeria caso acusasse o idealismo ou o espírito romântico de terem levado a Alemanha ao crime. (cf. Ibidem, p. 339)
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Mesmo assim, o legado do autor e sua obra é mais positivo do que negativo. Como bem observou Louis Dumont, já nas polêmicas Considerações Thomas Mann apresentava uma importante definição da cultura alemã como uma “unidade-em-relação”, sendo que o papel do artista é agir como representante daquilo que é característico de sua nação. (cf. DUMONT, 1994, p. 65) Mann de fato estava consciente de seu papel de mediador cultural entre o “unicamente alemão” e o resto do mundo; representa isso na sua arte e nele próprio. Exemplo disso é que, já no começo do seu exílio nos Estados Unidos, declara: “Onde eu estiver, também lá estará a cultura alemã.” (MANN apud RIEMEN, 2011, p. 79)
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CONCLUSÃO
Estamos no finale do concerto. Ao longo dessa dissertação a formação problemática de Adrian Leverkühn foi um pretexto para discutir temáticas sociopolíticas, filosóficas e artísticas, além de traçar um panorama da cultura e sociedade da Alemanha nas primeiras décadas do Século XX. Em que sentido, porém, este romance de fato forma o seu leitor? Em primeiro lugar, do ponto de vista moral o que fica evidente em Doutor Fausto é o caráter problemático e em última instância fracassado de uma arte criada com base em um isolamento da realidade, em uma tentativa de realizar-se humanamente na pura interioridade. Mann chegou a dizer que, ao escrever Doutor Fausto, pretendia elaborar “um romance da minha época, disfarçado numa história de vida de artista altamente precária e pecaminosa.” (MANN, 2001, p. 35) De fato esta obra constitui-se em uma tomada de posição, uma reação contra o esteticismo e a decadência e em prol dos valores humanistas. Em segundo lugar, Doutor Fausto é uma verdadeira síntese da filosofia de vida que permeia toda a produção artística de Mann: Toda a vida de Thomas Mann, no seu sentido mais profundo, é um constante esforço de superar a sua natureza, impregnado do romantismo musical da Alemanha, a sua vida é (...) exemplar no seu aspecto de superação moral e de vitória sobre as suas mais profundas inclinações. E toda a sua vida nada é senão a expressão estética desse esforço de contrapor os dois valores, de pôlos em xeque, de referi-los num jogo de dialética altamente ambígua, de ironizar-lhes a unilateralidade, de salientar a necessidade de sua síntese final num humanismo em que espírito e vida se interpenetrem e em que o indivíduo isolado se integre de novo na sociedade, enriquecido pela experiência da “doença”, da “morte” e da alienação. (ROSENFELD apud BORGES, 2010, p. 72)
No caso deste romance, a inclinação romântica – mas também paradoxalmente hiperracionalista – do autor é representada por Leverkühn, que passa pelas experiências de doença, alienação e morte de tal forma que seu amigo-narrador Zeitblom não pode deixar de lamentar seu destino errático, num misto de compaixão e de aprendizado moral. Finalmente, num sentido mais político, o autor de Doutor Fausto recusa a idéia de que haveria duas Alemanhas, uma má e uma boa; ressaltava que há “apenas uma, na qual o que havia de melhor se transformou em maldade por artimanha do demônio. A Alemanha malvada é a boa que tomou um mau caminho, a bondade na infelicidade, na culpa e no naufrágio.” (MANN apud SAFRANSKI, 2010, p. 338) Ao mesmo tempo - e ao contrário do
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que disse um dos professores de Teologia de Leverkühn - do Mal só podia brotar o Mal. Eis porque, para Mann, não se pode minimizar a cumplicidade da intelligentsia alemã com a implantação do totalitarismo nazista: esteticismo e barbárie andam juntos, e tanto a postura apolítica de Adrian e Serenus quanto a pregação da “revolução reacionária” do círculo de Kridwiss foram aspectos devidamente representados com um olhar crítico nesta obra. Essa diversidade de temáticas e discursos, contudo, também pode ser alvo de críticas. Thomas Mann já foi acusado por Otto Maria Carpeaux de ser “um Nietzsche disfarçado de Flaubert”, devido a essa constante inserção de temáticas filosóficas e políticas em seus romances, sob a roupagem de um vocabulário excessivamente estilizado: “há muitas discussões e muitas reflexões; o leitor desprevenido abre a boca, sufocado sob enormes massas de pensamentos.” Num autor de trabalho minucioso, de vocabulário artificialmente escolhido e de frases meticulosamente construídas como é o caso de Mann, “tudo trai a impotência para o verbo espontâneo”, a qual é “penosamente disfarçada sob as máscaras da estilização.” Carpeaux, referindo-se também a Albert Camus, sentencia: “a grande maioria dos romances da nossa época não passam de ensaios, de ensaios frustrados.” (CARPEAUX, 1999a, pp. 252-254) Se pela perspectiva de um crítico literário como Carpeaux essa “literatura filosofante” perde em autonomia estética, acredito que do ponto de vista das ciências humanas as obras de Thomas Mann podem se tornar um rico objeto de estudo. Em outras palavras, é justamente porque seus romances apresentam aspectos de ensaio (além de dimensão pedagógica, no caso de um Bildungsroman como A Montanha Mágica ou, com as devidas proporções, Doutor Fausto) que se tornam mais ricos em conteúdo e inovadores na forma. De certa maneira, este escritor abre mão da autonomia da obra de arte para se posicionar – seja sobre política, filosofia ou mesmo arte – de forma mais autônoma.37 A relevância de Thomas Mann consiste em sua defesa do resgate de uma arte (no seu caso, uma literatura) que não se furte de refletir sobre a tradição cultural e promover a educação do self, assim como cultivar sua relação com a comunidade (Herder) e conectar sua 37
O próprio Carpeaux, em sua História da Literatura Ocidental, adota um tom mais benevolente ao se referir a Doutor Fausto: “Com mais de setenta anos de idade desmentiu Thomas Mann, de maneira inesperadamente vigorosa, todas essas críticas. No seu romance épico Doktor Faustus, a carreira artística do grande compositor Leverkühn coincide com a história política da Alemanha durante os últimos decênios: os dois grandes temas, a política e a música, estão ligados através de uma nova técnica novelística na qual „tudo alude a tudo‟: tudo é realidade e tudo é símbolo; e um fato real de significação simbólica, a tentação da Alemanha e do artista pelo demônio, dá à obra a dimensão metafísica e transcendental.” Vide História da Literatura Ocidental (volume VI). Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1959, p. 2819.
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subjetividade com a “cultura objetiva” (Simmel) – o que, é claro, envolve a ligação com a esfera pública (Habermas). Para Mann, a verdadeira Bildung é aquela que forma plenamente o indivíduo, tanto no âmbito estético quanto no ético e moral. O que a tragédia de Adrian Leverkühn revela é que a Arte e o Belo não podem ser sucedâneos para as verdades da alma e, caso desconectados de um propósito formativo, caem inexoravelmente no vazio existencial ou mesmo no cinismo esteticista. Zeitblom, nesse aspecto, funciona como contraponto “positivo” de Leverkühn, pois sua formação intelectual mais “humanística” o resguardou das tentações fáusticas que corromperam o seu amigo. Mann chegou a propor um ideal filosófico, o “terceiro humanismo”, para conciliar a tradição cristã com a secular, além de ter buscado revigorar o ideal da Bildung, mostrando que o republicanismo democrático é compatível com o auto-aperfeiçoamento no “mundo invisível da cultura”. Em 1930, em meio à crise cultural e política que assolava o seu país e a Europa como um todo, o escritor disse: “O humanismo está humilhado ou morto. Conseqüência: devemos estabelecê-lo novamente.” (MANN apud PRATER, 2000, p. 230) Esta frase resume bem a missão assumida por Thomas Mann: resgatar a idéia de formação, a partir do que havia de melhor na cultura alemã, para combater os caminhos equivocados e diabólicos que seu país tomou ao longo da 1ª metade do Século XX.
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