morreste-me
morreste-me a morte e a esperança cristã
morreste-me a morte e a esperança cristã Porto . 2010 Secretariado Diocesano da Pastoral da Cultura
Casa Diocesana de Vilar Rua Arcediago Van Zeller, 50 . 4050-621 Porto www.sdpc-porto.blogspot.com Redacção dos textos principais | António Filipe Barbosa, Fernando Rosas, João Duque, Duque, José Nuno Silva Silva e José Pedro Pedro Angélico Angélico Embelezamento da obra | Isabel Baptista [texto], José Rodrigues [desenhos] Capa | Pietà de Manuel Bronze Elaboração do folheto | Henrique Manuel Pereira Edição | José Rui Teixeira
ISBN 978-989-96803-1-9 Depósito legal Impressão . Papelmunde
Sumário Apresentação | Joaquim Azevedo Ilha dos mortos [poema]| José Tolentino Mendonça Morreste-me A Morte da morte na Cultura actual O fim que nos interroga Esperar apesar de tudo Esperança cristã
A morte na morte se termina [poemas] | Fernando Echevarría Bibliografia
Apresentação No âmbito da «Missão 2010», o Secretariado Diocesano da Pastoral da Cultura ficou responsável por animar as actividades da Nova Evangelização no mês de Novembro, dedicando-o à Esperança. Entre as várias iniciativas programadas sempre esteve perspectivada a elaboração de um texto que actualizasse a reflexão recorrente sobre a Morte e a Esperança Cristã. Ao longo de vários meses, um grupo de pessoas, animadas pelo fogo do Espírito Santo, foi construindo um fio condutor para esta reflexão: o morrer hoje e o significado para tanto encobrimento da morte; a morte humana como o inimigo dos inimigos que nos interroga a vida; as múltiplas esperanças que hoje animam os seres humanos diante da morte (e da vida); e, por fim, o sentido da esperança cristã. O resultado desse labor está agora nas suas mãos. Este texto tem três objectivos principais: [a] ser um instrumento útil para cada pessoa promover a desocultação da morte e do seu sentido, nas suas vidas quotidianas; [b] ser uma ferramenta de focagem sobre o sentido belo, profundo e muito exigente da esperança cristã; [c] ser um apoio para tantos grupos, obras, movimentos e paróquias que querem reflectir sobre estes «temas difíceis», como lhes chamam, e tantas vezes não sabem nem por onde começar, nem como acabar. Procuramos, por isso, escrever um texto acessível, rigoroso e pedagógico, ou seja, capaz de suscitar em nós novas perguntas, acalentar novas perspectivas de vida animada pela Esperança e desencadear mais vida vivida para os outros, sobretudo os mais necessitados. Esperamos que este desafio lançado pelo nosso Pastor, D. Manuel Clemente, possa ser bem concretizado. Vivemos um tempo particularmente carregado de desânimo e desesperança, ensombrado por injustiças e desigualdades. Não haverá, assim, melhor tempo para darmos, sem medo, as razões da nossa Esperança. Estou muito grato a todos os que colaboraram neste empreendimento de equipa: na elaboração da reflexão e dos textos principais (António Filipe Barbosa, Fernando Rosas, João Duque, José Nuno Silva e José Pedro Angélico); nos contributos de completamento e embelezamento da obra (Isabel Baptista, Manuela Bronze e José Rodrigues); e na sua edição (José Rui Teixeira). Com base neste texto, nasceu o pequeno folheto que acompanha este volume, intitulado Morreste-me, para distribuição nos cemitérios e para apoio permanente à actividade pastoral nas paróquias. Agradeço também a mão sábia do Henrique Manuel Pereira para a sua elaboração. Boa leitura e bom proveito pastoral. Nesta reflexão sobre a Morte e a Esperança, como diz o poeta Daniel Faria, só Deus é o clarão, a lâmpada, a estrela, o que soma luz à luz. Joaquim Azevedo Director | SDPC Porto
Ilha dos mortos Enquanto iluminas a entrada do rio o cobre emudece dinastias sem número por degraus desiguais os mineiros, os artesãos, as lavadeiras lutam pela perfeição, lutam por Deus em galerias remotas as armas de caça vencidas por ramos e arados nenhuma morte é tão longa quanto a vida diria quem pela primeira vez visse debaixo de árvores sombrias o sítio do mar, a porta das constelações cem espantos possíveis e no espanto uma esperança o loureiro assinala a todos sua ciência negligenciada címbalos, manuscritos e coroas atiradas para o chão como vestimenta da batalha insígnias do nosso posto de estrela em estrela dão-nos sem nós pedirmos ouvimos até sem querer acima das arestas sombrias a noite clara e os bosques José Tolentino Mendonça
Morreste-me
Eis Novembro que chega, dirigindo os nossos passos para os cemitérios, onde repousam os que amamos e morreram. Fizeram parte de nós e morreram-nos. É isso que experimentamos e por isso nos dirigimos ao cemitério: os que morreram e amamos, de facto não morreram apenas; mais do que isso morreram-nos. Sentimos que quem morre nos morre. Morre o outro, morre ele, morre a sua morte, é a sua vida que chega ao fim, mas, no entanto, sentimos que a sua morte acontece também naqueles que o amam, na vida dos que são seus. É como se a sua morte fosse um pouco a nossa morte. Quando nos morre um amigo, não dizemos: morreu um meu amigo. Dizemos: morreu-me um amigo. E assim com quem quer que nos seja familiar. O afecto torna a morte do outro uma coisa minha e permite-me antecipar a experiência da minha própria morte. O outro que morre, quando amado, morre em quem o ama e, curiosamente, nenhuma experiência da vida o torna tão intensamente presente no íntimo de quem o ama como quando morre. Quando o outro é um estranho e morre, apenas morre. Quando é próximo, alguém que eu amo, alguém que é parte de mim, morre-me e, na experiência do seu morrer, sentida como morrer-me, morrer em mim, oferece-me a oportunidade de olhar de frente essa verdade incontornável em que evito pensar: também eu morrerei. Este é o objectivo deste livrinho, neste dia em que visitamos os que nos morreram – ajudar a tornar esta visita num momento em que a saudade e as memórias que guardamos dos que nos amaram, amámos e, por isso, não apenas morreram, mas nos morreram, nos levem a olhar e integrar na nossa vida o acontecimento futuro da nossa própria morte. Morremos. Morrerei. O que é a Morte? E depois? O que há? Que Além? Para quê viver, se morremos? Que acontece? Acaba tudo? Ou ressuscito? Ou reencarno? Que esperar? Que esperança? Em que acredito? Em quem acredito? Que diz a Ressurreição de Cristo? Os que nos morreram e, hoje, sentimos como conviventes mais presentes na sua ausência, oferecem-nos este precioso serviço: chamam-nos a um silêncio que permite o despontar destas questões que, se as ouvirmos e nos deixarmos levar pela reflexão que provocam, nos conduzem a uma maior autenticidade humana. É que pensar a morte, meditar nela, saberse mortal, é condição indispensável para vivermos segundo a nossa verdade. Somos mortais.
O céu e as nuvens, história de muitas histórias Os meses iam passando. A sua Teresinha ia morrendo. Parecia impossível mas era verdade. Tão pequenina ainda e tanto sofrera já. Como? Porquê? Porquê a ela, à sua filhinha, a sua filhinha única? Porquê a mim?, debatia-se Maria, na angústia da solidão estrema de quem sofre uma dor incomunicável? Naquela manhã, as paredes do pequeno quarto do hospital que vinha sendo a casa de ambas, no último ano e meio, pareciam debruçar-se, também, como para abrigar o que acontecia. O tempo suspendia-se, devagarinho, ao ritmo lento, fatalmente lento, do respirar intranquilo de Teresa. Francisco, não suportando presenciar a longa agonia daquela desesperada espera, retirara-se por momentos. À porta do quarto, entregue às lágrimas que, pela primeira vez, não tentava esconder, rendia-se à realidade. Maria continuava o seu diálogo íntimo com a filha, viva ainda, mas morrendo, morrendo quase sem viver. Porquê? Só seis anos… tantos sonhos, tantos projectos, tanto… e afinal, nada. Tudo por água abaixo? Porquê, meu Deus? Porquê ela? Porquê a mim? Porque não eu? O que fiz eu para isto lhe acontecer a ela, tão inocente? – Sabes, Mãe? – pausa – Eu posso ver o céu. Tu só podes ver as nuvens.
Onde foste buscar estas palavras, filha? Que sabedoria é essa, tão estranha para mim? – o dia destas palavras de Teresinha, há duas semanas apenas, no pico de uma crise particularmente dolorosa, voltava, como tantas vezes já, à memória de Maria. Que mistério este, a morte. Que mistério a vida, quando tu, minha filha, a morrer, dizes tais coisas! Que queres dizer? O que queres ensinar-me? Que me dizem hoje, ao morreres, estas palavras? Sinto que foi para as lembrar hoje, que mas disseste. E é verdade, minha filha. Eu só consigo ver nuvens… e tão carregadas, tão escuras, tão negras. Mas tu, tu de certeza que já vês o céu, só podes ver o céu, esse céu que me enraivece, porque te rouba, e me consola, porque te vai guardar assim, pequenina, e linda como eras antes da desgraça… para sempre, à minha espera. Morres, filha. Morres. Morres tu e morro eu contigo: sem ti o que fica de mim? Tu é que és minha filha, mas agora sou eu que fico órfã de ti. Perder-te, filhinha, é ficar órfã de ti, muito mais órfã do que tu ficarias de mim, se te faltasse. Morres. Mas não morres apenas, minha filha. Morres em mim, mais do que em mim viveste, enquanto te trouxe no meu ventre. Morres-me. A respiração espaçava-se. Um silêncio cada vez maior se entrepunha, ameaçador e pacífico, entre cada inspiração… até que cessou. – Morreste-me.
A Morte da morte na Cultura actual Morte Santa – Da morte súbita, – livrai-nos, Senhor. Desde sempre esta invocação fizera parte da oração em família, a concluir a reza diária do terço. Era ela, Maria, a mãe, quem sempre conduzia este momento, após o jantar, à mesa na cozinha em torno da qual se juntava, todos os dias, a casa toda. E era grande, a casa: o marido, os filhos e a sua velha mãe, que uma manhã de um Novembro expirara tranquila ao fim de meses a morrer devagarinho e a preparar-se para esse momento. Naquele dia em que, só com a filha mais velha, sua companhia na oração como na vida – por isso ficara solteira – pedia a Deus que a livrasse da morte súbita, com essas palavras que pareciam tão velhas como o Tempo, o séc. XX aproximava-se do termo. A vida de Maria atravessara-o quase inteiro. Velha, cumpria agora, na mesma casa, o caminho que a sua própria mãe percorrera, preparando-se para quando a morte chegasse: – Da morte súbita, – livrai-nos, Senhor – repetia a filha, ela própria já acima dos setenta. Maria rezava deitada no leito conjugal, o mesmo em que amara e sofrera, se inquietara e descansara, gerara e dera à luz. Dos 17 filhos que gerara – que Deus me emprestou! – como dizia, entre os primeiros onze, cinco haviam morrido meninos – Deus guardou-mos. São anjinhos… – confiava. Depois a vida melhorou – Apareceram as vacinas! – espantava-se, ainda. E nenhum mais morrera. Naquele dia, que não sabia o último, embora o pressentisse perto, enquanto rezava com a sua primogénita, Maria também, Pedro e Luís, os dois mais novos, na casa dos cinquenta, encontravam-se casualmente. Vinham visitar a mãe, mas demoraram-se à porta – é melhor não afligir a Mãe com esta conversa – dissera Luís. O tema, um amigo comum, da mesma idade, que morrera recentemente ao fim de um longo período de doença – Já, viste? – questionava. – Ele sabia de tudo o que ia acontecer, disse-me a mulher – Eu prefiro não saber – contrapunha Pedro, sentenciando: - não há nada como morrer a dormir ou de repente, para não dar por ela. Acho que não conseguia ser feliz sabendo que vou morrer. A Luís preocupava-o outra coisa: – onde é que os médicos falharam? Teve que haver algum engano. Como é que morreu naquela idade? A mulher disse-me que a operação não correu bem por causa de um exame mal feito. – E Pedro, desencantado, concluía: – estamos nas mãos da medicina e os médicos enganamse… Mas ainda bem que, pelo menos, o deixaram morrer no hospital. Já viste se vinha para casa… – Luís ainda juntou: - e a mulher não ficou lá. Primeiro tinha medo e não queria ficar, depois achou que devia mas o hospital não deixava. Ela insistiu, chorou, protestou e acabaram por deixar. Mas os filhos não quiseram, diziam que o pai já estava inconsciente e que ela não ficava lá a fazer nada. Ela veio e agora arrependeu-se de não ter estado com ele na última noite… P edro reparara: – Foi estranho foi a cremação… Nunca tinha visto – pausa, que o irmão acompanhou – Foram os filhos que quiseram. E ainda ouvi um a dizer que, se o pai já tivesse netos, eles não iriam ao funeral. É bonito ser semeado debaixo de uma rosa, mas ficou ali, escondido debaixo dela, longe de todos. Nem pareceu um funeral! Luís tornou: – Não sei o que pensar disto. É complicado… parece -me que estamos a querer simplificar demais. Entraram e subiram. Acharam a mãe já muito fraquinha, terço na mão e olhar mais cansado: – Parece melhor, hoje, Mãe… – mentiu Luís. – Não mintas, Filho. Mas não te aflijas: vivendo ou morrendo, estamos nas mãos de Deus – suspirara Maria, sem saber, as suas últimas palavras ao último dos nascidos das suas entranhas, ao cair do seu último dia. Ao alvorecer do seguinte, a notícia espalhou-se: – Morreu a Maria, a dos Ramos do Poço. Foram dar com ela com um ar muito sereno e o terço nas mãos. Alguém reparou: – Olha, ao menos a ela já não tiveram
que lhe pôr o terço depois de morta. – E outro, quase do seu tempo, acrescentou: – Mas ela era assim. Morreu como a mãe. Morte santa!
Este pequeno conto, entrelaçamento de muitos pedaços de histórias reais, dá-nos conta do que está a acontecer no tempo que vivemos: no espaço de uma geração, a morte mudou e esta mudança continua. Os estudiosos destas questões são unânimes, na afirmação desta inversão da nossa atitude face à morte e aos que morrem. Basta citar o maior de entre eles, Philipe Ariès que, em 1974, escrevia na primeira publicação da sua obra Sobre a História da Morte no Ocidente desde a Idade Média : “desde há cerca de trinta anos, estamos a assistir a uma revolução brutal das ideias e dos sentimentos tradicionais; tão brutal que não deixou de impressionar os observadores sociais. É na realidade um fenómeno absolutamente inaudito. A morte, outrora tão presente, de tal modo era familiar, vai desvanecer-se e desaparecer. Torna- se vergonhosa e objecto de um interdito”. Dantes, aos que estavam a morrer, queríamo -los perto; agora queremo-los longe. Philipe Ariès analisava assim em 1974, referindo-se à generalidade do mundo ocidental. Entre nós, foi mais tarde: a inversão aconteceu mais perto do fim do século. No conto, cinco gerações: a de Maria e de sua mãe, também Maria, e a de sua filha mais velha, Maria também; depois, os filhos mais novos, Pedro e Luís, o amigo recentemente falecido e a viúva que deixara; finalmente os filhos destes. As três primeiras gerações, a das Marias, cultivando a imemorial atitude de familiaridade com a morte que parecia de sempre; a quarta geração, a dos dois filhos mais novos e do amigo e da esposa, confusos, sem saber o que pensar nem o que fazer; os filhos desta geração, firmes na sua decisão de minimizar a morte. As Marias, quer a mãe, quer a filha, haviam nascido na primeira parte do século. Nos seus mais que noventa e mais que setenta anos estão de bem com a morte. Não a querem súbita, mas preparar-se para ela e olhá-la de frente; a mãe pressentea, vive-a em casa, no seu leito de vida tornado leito de morte, porque a morte faz parte da vida; inserida numa tradição, como a de sua mãe que mergulhava as suas raízes já nos confins do séc. XIX, percebendo-se que assim será a da filha mais velha, também; em relação com os seus próximos, mas sem mentira nem tentativas de escondimento, como os mais novos dos filhos tentavam; enquadrando-a no horizonte religioso, sabendo a vida um empréstimo de Deus ao tempo e a morte o regresso a casa, terço entre as mãos a morrer e já morta. Um modo de morrer diferente, correspondendo a um diferente modo de viver. Luís e Pedro, como o amigo falecido e a esposa agora viúva, haviam nascido perto da metade do século. As atitudes são diferentes, face à morte, como se depreende da conversa sobre a morte do amigo de ambos e do encontro com a mãe. Para eles a morte é um roubo, um falhanço da medicina e da técnica, preferida na ignorância de estar iminente, iludindo a dos outros, como quem se esconde da lembrança da sua própria por esta supostamente tornar impossível a felicidade; morte medicalizada, na inconsciência, no hospital, que por sua vez dificulta o acompanhamento de quem fica a quem parte; uma relação pautada pelo medo, que faz desertar de junto dos que morrem deixando o remorso como herança, porque coexiste com a consciência do dever de presença; perplexos e confusos entre os hábitos que haviam testemunhado, crianças ainda, e os desenvolvimentos que os surpreendiam, como a cremação, marcada pela ausência dos ritos que rasgavam a sujeição das pessoas ao ciclo da vida biológica e pelo escondimento da memória na caducidade de uma rosa, porventura procura de transformar em perfume efémero e impessoal a saudade sem objecto nem lugar nem visita e tarefa amorosa, desaparecido o túmulo, com nome e datas e fotografia, de que cuidar até ao fim dos dias. Mais radicalizada é a atitude dos filhos do amigo que morrera, que nem sequer consentiram à mãe ficar a acompanhar a última noite do marido, por não compreenderem o que ficaria a fazer estando ele inconsciente; que quiseram a cremação e o sepultamento das cinzas, não no cemitério do local em que viviam, mas no roseiral do crematório, deslocado; e que poupariam as crianças, se as houvesse, ao contacto com a morte. Marie de Hennezel, psico-terapeuta francesa especialista em cuidados paliativos, isto é, nos cuidados médicos específicos para o acompanhamento das pessoas que estão a viver uma doença que já não é possível curar, sintetiza significativamente o estado da questão: “a nossa época expulsou a morte. Perdemos os nossos ritos e opomos resistências culturais. Coisas tão simples como velar um moribundo, na paz de um quarto, desapareceram. Já não se ousa pronunciar a palavra morte, nem aceitar ver morrer os familiares. Os saudáveis têm aversão em romper o muro de silêncio que os separa
daqueles que viajam para o último porto. Não se conseguem encontrar as palavras adequadas, os gestos pacificadores que poderiam permitir aos moribundos partirem mais pacificamente. Então, cada vez mais se morre longe de casa”. Muitos autores se pronunciam neste sentido, denunciando uma sociedade em que, cada vez mais, se vive como se se não morresse. A morte é expulsa simultaneamente da sociedade e do conceito de vida feliz, como se a felicidade se pudesse construir sobre a ilusão de não morrer. È significativa a afirmação de Jean- Louis Baudoiun e Danielle Blondeau: “Hoje em dia, tende se a expulsar literalmente a morte do mundo dos vivos”. O morrer perdeu o lugar físico e simbólico de sempre: a casa. Porque a morte se tornou uma estranha; perdeu, como o morrer hospitalizado manifesta, o seu lugar natural de sempre: a vida, a vida do próprio, a vida da sua família, a vida da sociedade a que pertence o vivo que morre; perdeu o seu lugar na imensa teia de relações que constitui a vida, porque a morte não cabe nos seus conceitos de sucesso, êxito e felicidade, porque a morte não é entendida como o seu cumprimento, mas como a sua derrota; nesta vida assim, o morrer é relegado para a distância dos cuidados a que são confiados os que morrem. Daniel Serrão denuncia este processo como um “esforço da sociedade do consumismo e da abundância”. E Jean Claude Besanceney esclarece: “a morte parece não nos dizer respeito. Na nossa sociedade de rentabilidade, de poder e de técnica tudo se passa como se esta fosse uma realidade um pouco indecente que é preciso esconder”. Enrique Rojas, define a sociedade como uma sociedade de costas para a morte; o autor desenvolve esta perspectiva, considerando o ambiente cultural típico da pós- modernidade: “hoje vive-se – em boa medida – de costas para a morte, como se não existisse [...] existe o tabu da morte, apagámo- la psicologicamente dos temas a tratar”. Este tema do tabu erigido em torno da morte e do morrer exige mais detido desenvolvimento. Grande parte da linguagem usada no debate sobre este assunto é próxima deste termo e explicita o seu sentido. Marie de Hennezel é incisiva na sua consideração desta realidade da cultura dos nossos dias: “Escondemos a morte como se ela fosse vergonhosa e suja. Vemos nela apena s horror, absurdo, sofrimento inútil e penoso, escândalo insuportável”. Efectivamente, no séc. XX, a atitude do homem perante a morte mudou. E porque a atitude perante a morte mudou, mudou o modo de morrer. Assiste-se em tempo real à evacuação (Abel Pasquier) da morte. Nunca uma mudança cultural de tão profundo significado e tão determinantes consequências aconteceu num período tão curto, na evolução da atitude do homem face à morte e ao morrer. Elio Sgreccia sintetiza a situação com clareza: “encontrámo -nos com a recusa da morte do ponto de vista sócio- cultural”. Mário Bizzotto define o processo como “ocultamento da morte” e Daniel Serrão retoma este termo e acrescenta outros: disfarce, negação e esquecimento; Jorge Cunha, prefere a expressão escamoteamento. J.-C. Besanceney opta por o caracterizar como marginalização: “no fundo, para a sociedade, a morte é um acontecimento que se marginaliza”; Olegario González de Cardedal descreve a morte encoberta pela sociedade , considerando que a sociedade desaloja a morte e “fez todo o possível para a fazer desaparecer do horizonte visível da casa e da família, da consciência, conversação e projecto de vida”; J. Gevaert, retomando o tema do tabu, classifica a situação como remoção da morte da vida social: “a morte parece ser um dos grandes tabus do séc. XX, a realidade que, mais do que qualquer outra, se arranca da vida social”. A mudança está consumada: da harmonia de antanho, nada resta. A estranheza instalou -se e a distância interpôsse, entre as pessoas e a morte e na relação com os que estão a morrer. Luciano Sandrin denuncia a tendência social para pôr a morte de lado , e analisa, do ponto de vista da psicologia, “as razões que estão por detrás dos comportamentos que escondem a morte”: para este autor, “um comportame nto que oculta a morte exprime a recusa em aceitá-la [...] a negação da morte leva, assim, à negação (e ocultação) do processo de morrer e de todas as realidades da morte que com ele estão ligadas e que poderiam «simbolicamente» lembrá- la”. Assim se verifica o afastamento dos moribundos, busca consciente ou não que concorre para a sua hospitalização. O tabu é uma classificação recorrente no debate em torno destas questões. Salvino Leone, apresenta a construção do tabu em torno da morte e do morrer como a primeira de sete atitudes que caracterizam a cultura contemporânea face à morte, sendo as outras a privatização, a desritualização, a medicalização, a objectivação, a desabituação e a solidão. A morte deixa de ter lugar em casa e a pessoa que se encontra em processo de morrer, na maior parte dos casos, passa por este transe no
hospital. Seja porque há cuidados que só o hospital pode prestar, seja porque na sua casa e na sua família ou não há condições, ou ritmo de vida, ou capacidade, ou vontade de acompanhar a morte dos seus. Igual atitude marca o processo que se segue ao óbito: os funerais simplificados ao máximo, o luto quase desapareceu e, porque desapareceu, não se faz, o que é uma realidade de consequências psicológicas graves: lágrimas ficam por chorar, desgostos por desafogar, memórias por partilhar... “a sociedade já não suporta a vista das coisas da morte, e por conseguinte nem a do corpo do morto, nem a dos próximos que o choram. O sobrevivente é portanto esmagado entre o peso da sua dor e o do inte rdito da sociedade” (Philipe Ariès). É desta dimensão da realidade que Geoffrey Gorer parte, em meados do século, para definir a pornografia da morte . Os sobreviventes furtam-se ao luto e este deixa de caber no espaço social, como se de uma indecência se tratasse. De facto, no recusar-se à expressão da dor de perder quem morre como no eximir-se a ser interlocutor dessa expressão por parte de outro transparece a mesma estranheza face à morte concretizada na distanciação face ao morrer que temos vindo a verificar. Abel Pasquier afirma claramente: “No Ocidente, cala-se a morte, bane- se o luto”. Além desta óptica da morte individual, assistimos todos os dias às notícias de mortes às centenas e aos milhares, seja vítimas de catástrofes naturais, seja fruto das guerras que persistem em tantos lugares do mundo, seja vítimas da fome, da pobreza, da injustiça e da exploração do homem pelo homem. Até estas mortes, forjadas num flagrante desrespeito pela pessoa humana e pela sua dignidade, são-nos reveladas até à exaustão como forma de as “naturalizarmos”, de as integrarmos no dia -a-dia, como mais um produto de consumo. Na sua excessiva visibilidade está o trampolim para a sua excessiva invisibilidade, para o seu apagamento das nossas preocupações e acções, como se fossem coisas normais do quotidiano humano e social. O problema é que com esta invisibilidade é arrastada uma crescente indiferença social face às injustiças, às desigualdades, à dor, à fome e à pobreza. E é nestas situações que sabemos que está o maior clamor do mundo, o maior sofrimento humano. Falar da morte, hoje, é também assinalar com rigor esta morte social que nos invade e que constitui fonte de muito sofrimento humano. A construção da paz passa por aqui. Vasco Pinto Magalhães diz que a paz obriga a tomar decisões e a fazer opções, a não pactuar com a injustiça, a não pactuar com a mentira, a lutar contra tudo o que é desumano. A conquista da Paz começa pela destruição da paz podre diante da morte social. Percorrendo retrospectivamente as páginas anteriores, encontramos a morte significativamente adjectivada: interdita, invertida, recusada, expulsa, banida, evacuada, escamoteada, desalojada, arrancada, relegada, marginalizada, posta de lado, transferida, subtraída, desintegrada, calada, ocultada, escondida, encoberta, disfarçada, desaparecida, apagada, desritualizada, objectivada, obscena, indecente, pornográfica, escandalosa, vergonhosa, suja, horrorosa, privatizada, insuportável, solitária. Uma pergunta de impõe: como é possível morrer humanamente? Barros de Oliveira, padre e psicólogo, diz sugestivamente que se faz batota com a morte: “o tabu resiste e há muitos sintomas ou sinais, mais ou menos camuflados disso: Antes morria-se em casa, quase ritualmente, hoje morre-se «cientificamente» no hospital, às escondidas da família, rodeado de silêncio «mortal», e o morto não entra em casa”. Mas valerá a pena fazer batota? Crentes das várias religiões, ateus e agnósticos, todos se preocupam com este estado de coisas. Interroga François Mitérrand, francês destacado que atravessou grande parte de séc. XX europeu: “Como morrer? Vivemos num mundo aterrado por esta interrogação, e que lhe vira as costas. Houve, antes da nossa, civilizações que encaravam a morte de frente. Traçavam para a comunidade e para cada um o caminho de passagem. Conferiam à conclusão do destino a sua riqueza e o seu sentido. Talvez que nunca a relação com a morte tenha sido tão pobre como nestes tempos de aridez espiritual em que os homens, na pressa de existir, parecem sofismar o mistério. Ignoram que, desse modo, secam uma fonte essencial do gosto de viver”.
Não valerá a pena pensar nisto? Descobrir que a consciência de morrer é, paradoxalmente, condição do gosto de viver? Não valerá a pena olharmos para o inevitável e, em vez de fazer batota, procurarmos modos novos de viver a morte nos tempos novos em que estamos, em vez de fazer de conta que não morremos?
Não será melhor enfrentar que fugir, acompanhar que abandonar? Não será melhor sermos verdadeiros connosco próprios e sermos verdadeiramente o que somos? E podemos ser autenticamente o que somos sem admitirmos que morremos? E como tornar humana a morte – e, portanto, a vida de que ela faz parte! – se nos escondemos da consciência da nossa mortalidade e nos afastamos daqueles que morrem?
O fim que nos interroga A morte não é um problema. É uma certeza que nos afecta desde o princípio e que foge totalmente ao nosso conhecimento. Na verdade, é um momento único de cada indivíduo que será (é) vivido na singularidade de cada um. Esta certeza da finitude (Françoise Dastur) é que acrescenta de modo indelével uma necessidade de sentido. A essa busca podemos responder com uma angústia adiada pelas preocupações do dia-a-dia; ou pelas grandes obras de que também as criaturas são capazes e, assim, tentar escapar à mortalidade; um silêncio contemplativo diante dum vazio que agiganta o mistério; ou uma resignação ao nada que desvaloriza todo o ímpeto de vida: ou, finalmente, semeia uma esperança de que somos bastante mais do que conhecemos e uma plenitude nos espera para nos completar. Diz-se que o homem é a única criatura que sabe que acaba na morte. Muito antes de morrer se sabe mortal. Se não temos directamente essa experiência é porque ainda «não chegou a nossa hora». Contudo, a proximidade da morte quando chega para os que fazem parte de nós, obriga-nos a experimentá-la mais de perto, a enfrentá-la face a face, quer seja para fugir dela, quer para nos deixarmos interrogar pela sua presença persistente. Mais ainda, os sinais da nossa fragilidade, o claudicar, paulatino ou acelerado, do nosso corpo, da sua organização e funcionamento, são também sinais da nossa finitude, sinais duma fragilidade que não controlamos e nos assusta pela pela redução progressiva da vida de que somos portadores, o que acontece de modo natural ou na surpresa da doença. Sabemos que não somos os primeiros a habitar este mundo e até nos esforçamos por não sermos os últimos ao garantir o futuro dos nossos genes em novas criaturas que se geram na alegria da co-criação. Mesmo quando vivemos sem sentido, há um impulso de futuro que não depende de nós e nos impele para a frente, como, por exemplo, o desejo de ser pai ou ser mãe. Também esses, desde o berço estão marcados por essa fragilidade radical de não pertencerem aos seus progenitores, de nada poderem diante da lei da fragilidade e da finitude do homem. Esta condição mortal, muito para além duma participação na natureza, é uma condição que determina a nossa condição humana, não como uma incapacidade temporária, mas como uma característica fundamental. Heidegger tinha razão quando falava do homem como «ser-para-amorte». Mas será só isso? Ou será isso o que melhor nos define? Não tinha a razão toda. Os que lhe entregaram toda a verdade depressa encontraram o desespero, que o digam os «mestres da suspeita» que espalharam a dúvida sobre o valor da vida humana, depois de terem anulado a possibilidade de Deus. É que se esqueceram que a natureza humana não é determinada pelo pensamento mas exactamente ao contrário: somos nós que nos esforçamos por descobrir a verdadeira natureza de que somos feitos. Ora, também em nós habita uma certeza de eternidade, seja ela qual for. Chamamos, por vezes, esperança (Torres Queiruga), a essa certeza. A vida é também uma tentativa de fuga à morte, seja pela nova geração, seja pela transformação do mundo, seja pelo reforço dos grandes ideais, seja pela a rte… seja pelos pequenos gestos com que pensamos deixar o mundo melhor. Que valor teria esse futuro que criamos se não houvesse futuro? Há em nós algo que nos desprende duma natureza igual à natureza das coisas e das outras criaturas, algo que nos liberta deste «aqui», que nos engrandece porque contraria essa finitude. A Vida que pulsa em nós, que sentimos no íntimo do que somos apela para um mais do que «aquilo que acaba». Afinal não fazemos parte dum ciclo inexorável, que se repete sem saída, condenado à monotonia e à tragédia final. Cada Homem rompe esse fatalismo com a sua liberdade singular que faz com que o futuro se torne possível. Sem esta capacidade ficaríamos diminuídos naquilo que somos e fracassados antes de arriscarmos, seria um fim que ainda não tinha tido princípio. Como isso não é possível, a vida há-de ser uma resposta à finitude de que somos feitos, mas uma resposta que pode ter muitos modos de se expressar. Se pensamos conseguir possuir a vida como um bem pessoal que conquistamos por direito e engrossamos com a nossa inteligência e engenho, então a morte sobrevém como um ladrão, como algo que nos retira daquilo onde colocamos a vida e nos entrega, de novo, a essa solidão de que quisemos fugir. Esse é um sentimento comum que assalta os que souberam olhar para além de si mesmo e do que têm. Na verdade, “a morte quebra a existência sem que esta se tenha
completado” (Urs von Balthasar), sempre, não depende do tempo nem da condição, é sempre uma ruptura onde nos parece que algo ficou por dizer ou fazer, que ainda havia mais que nos foi roubado. O sentido de propriedade falha porque a vida nunca foi nossa definitivamente, sempre nos foi dada e a prazo, sem negociação possível nem prolongamento conquistado. Ela não nos é roubada porque ela nunca foi nossa, foi-nos dada para a restituirmos, para a darmos. E esta lei é tão forte como a lei da finitude. O culto dos mortos, tal como surgiu nas civilizações, foi uma tentativa de prolongar a vida dos que morriam. Antes ainda de nascer a ideia da eternidade, há um prolongamento da vida em condições semelhantes àquelas que tinham antecedido a morte. Veja-se, por exemplo, certos cultos ancestrais presentes em várias culturas, embora a mais conhecida seja, talvez, a egípcia, em que os faraós eram sepultados com tudo o que lhes seria útil para uma vida igual à que terminavam. Mesmo hoje, este aspecto não estará muito distante da prática de muitos de cultura ocidental, dita cristã, mas onde a esperança da Ressurreição não chegou verdadeiramente. Esta fuga à fatalidade teve os seus frutos ao longo da história do pensamento humano, frutos que permanecem hoje em dia. A resposta idealista que começa com a sobrevalorização do espírito sobre o corpo, com a redução instrumental do físico ao espiritual, da supremacia da alma sobre o corpo, é a ilação simples do reconhecimento desse princípio espiritual no homem. Contudo, depressa se passou a responder à finitude do homem com uma sobrevivência da alma que seria o mais importante da existência humana, e, por isso, o que ressuscitava era a alma e, para tal, o corpo tinha de desaparecer. Claro que, tal idealismo conduz facilmente ao gnosticismo, numa desvalorização total da criação, que a Igreja desde o princípio condenou, talvez mais na teoria do que na prática, especialmente na espiritualidade. De qualquer forma, num renovado modo de entender o Homem, teremos de continuar a afirmar uma unicidade corpoalma, de tal modo que possamos falar do homem todo que vive e do homem todo que morre. Ainda que por razões de expressão não tenhamos encontrado a fórmula certa para falar da misteriosa natureza humana, tão complexa como bela, não podemos continuar a falar duma divisão que fere de modo tão grave aquilo que cada um sente que é: corpo e alma. Teremos de conviver com esse concreto especial que é capaz de albergar a eternidade e reestruturar o Céu para que nele caiba a nossa corporeidade. É isto que a Ressurreição de Jesus vem mostrar e realizar. A questão posta pela fatalidade da morte poderá dar lugar à grandeza da finalidade. O destino do homem pode não ser marcado pelo seu fim mas pela grandeza para que foi criado e só se completa quando Deus acaba a obra que começou em cada um. Começamos hoje a assistir cada vez mais a uma influência oriental no pensar da vida e a morte. Sem dúvida que a globalização vem acelerar este efeito de moda que notamos, numa espécie de exotismo que procura afirmar-se mais pela diferença do que pelo pensamento. Infelizmente, as respostas mais fáceis não passam facilmente o crivo da reflexão mas, são as que encontram mais adeptos distraídos. Hoje é vulgar encontrar um tipo de resposta cósmica, isto é, que no universo fazemos parte dum ciclo de renascimentos que mantêm a matéria inalterável, mudando somente a forma. Pelo que a forma interessa pouco ou nada e serve, muitas vezes, mais para castigo do que para salvação. Na verdade, esta resposta não se afasta muito da anterior, embora tenha contornos diferentes (Bernard Sesboüé). Será possível que a vida seja um castigo? Talvez para alguns esta resposta seja o modo de não responderem ao desafio de viver. A reencarnação, que muitos hoje admitem como resposta para a nossa condição finita, aparece de forma empírica, aplicando ao homem aquilo que acontece com toda a natureza, esquecendo-se completamente da sua especificidade. Se o nosso corpo é tão inútil e a nossa liberdade tão insignificante, se o trabalho é vão e o amor uma auto-flagelação, então onde fica o que de melhor tem a nossa vida e de mais rico tem a natureza humana? É por isso que a teoria da reencarnação não passa duma resposta simples e bastante primitiva, ainda que com maquilhagem moderna, aos porquês que a morte põe à vida. Não passa duma neo-espiritualismo em que desconhecemos as razões porque existimos e os critérios pelos quais reencarnaremos. Tudo, que é determinante para a nossa compreensão e para o nosso futuro, se passa no fora de nós, ao nosso lado e não teremos uma só palavra a dizer. Mais ainda, a existência de cada um não passa dum acaso e a morte dum acidente necessário para que tudo se renove até a um limite que se propõe de perfeição, mas duma perfeição que nasce da própria fragilidade humana! Ora, deixar a natureza humana assim entregue ao acaso ou confiar demasiado na sua capacidade auto-regeneradora não é optimismo que a história confirme. Infelizmente a humanidade não melhorou muito
nos últimos milénios e o futuro aparece cada vez mais ameaçado pelos poderosos. Não é isso que muitas vezes nos desmotiva? Ainda que muitos hoje descansem sobre esta hipótese vinda de longe, a humanidade precisa dum sentido que lhe seja dado, duma Palavra que ressoe entre as suas mas tenha sido pronunciada do Alto, de Deus. E que seja dita a cada um, sem essa dissolução num todo que a todos desresponsabiliza e anula. Talvez essa Palavra esteja inscrita no coração de cada um e precise de ser despertada para ser ouvida e seguida... Curiosamente é neste tempo de maior individualismo que ganha mais adeptos esta cómoda ideia que derruba absolutamente a especificidade da vida humana. “A ligeira aflição dum momento prepara- nos, para além de qualquer medida, um peso eterno de glória” (2 Cor 4, 17). Talvez esta afirmação de S. Paulo nos ajude a olhar a morte do homem como um momento imprescindível para a sua compreensão e a viver no acolhimento dessa glória para que fomos criados. A vida não foi dada arbitrariamente nem está em nós em forma de hóspede. Isto é, rejeitamos um simples naturalismo e o platonismo, seja ele em que forma se apresentar, mesmo de sabor oriental. A Vida está em nós como em mais ninguém. Não se repete, apesar de ser a mesma e verdadeira Vida, ela é dada a sentir no íntimo de cada homem, nesse complexo de corpo, espírito, carne, cultura, desejos (Adolphe Gesché). É aí que cada um de nós se sente vivo e é aí que a morte nos afecta profundamente. Nela somos chamados a dar o que nos foi dado, a restituir a Vida ao Seu Senhor. A nossa finitude não suporta a Vida na Sua plenitude e por isso temos de abandonar aquilo que é finito, que tem fim, para guardarmos em nós tudo aquilo que é eterno: o espírito, a relação com os outros, os sentimentos que também nos vêm pelos cinco sentidos, tudo o que somos sem nada se perder, até essa nossa certeza de que somos finitos vai para a eternidade para nunca substituirmos Deus como a única fonte de Vida. Não se trata de nos endeusarmos, como faziam os gregos com os seus heróis. Antes de receber de Deus o cumprimento de nos completar por Ele. A morte transforma-se assim não numa tragédia insuportável, nem num absurdo redutor, nem tão pouco como um resignado e desconfiado sentir, mas numa metanóia, numa última e derradeira conversão (Adriaan Peperzak), na verdadeira transformação do que somos naqueles que estamos chamados a ser. Mas isso não será só obra nossa. Se esse «acabamento» depende de nós, das nossas decisões fundamentais, da nossa liberdade em encontrar o amor, como súmula de todos os bens, ele vem de Deus, o único que pode acabar o que Ele mesmo começou. Assim, a morte não é um problema mas é um momento chave a viver. Pode-nos assustar a aproximação do fim mas não podemos nem queremos fugir a esse fim porque é o caminho para nos tornarmos completos. É um convite a sermos mais humanos, mais próximos dela, e um desafio para nos deixarmos transformar, darmos ao Criador a possibilidade de terminar a Sua Criação.
O que é a alma? O que queremos dizer quando dizemos “alma”?
Porque é que quem acredita na Ressurreição não pode aceitar a reencarnação? Como fazer do fim uma conclusão e não uma derrota?
Esperar apesar de tudo
Quero que sejas A última palavra Da minha boca. A mortalha de sol Que me cubra e resuma. Mas como à despedida só há bruma No entendimento, E o próprio alento Atraiçoa a vontade, Grito agora o teu nome aos quatro ventos. Juro-te, enquanto posso, lealdade Por toda a vida e em todos os momentos. Miguel Torga
A vida real, como a concretizada na história da Teresinha e que todos experimentamos de forma directa ou indirecta, confirma-nos que, de facto, “é terrível a morte. Tira sentido às palavras, aos gestos, às lágrimas, ao silêncio. Deixa a vida sem expressão” (Miguel Torga). Reclama-se, portanto, um sentido que ilumine o absurdo da angustiante dor de peito, da ensurdecedora impossibilidade de diálogo e do radical vazio da ausência presente que revolve as entranhas, como se de fome do outro se tratasse. É sentida, e somente dizível em lágrimas, a carência de sentido que estas dolorosas experiências tatuam profundamente a nossa carne. No entanto, alicerçada na esperança, “é com esta amarga consciência de mortais que teremos que amparar a desilusão e continuar a caminhada” (Miguel Torga), porque “o ter que realizar a existência através do tempo obriga o homem a fazer previsões e projectos, expondo-se portanto necessariamente a ilusões e a desilusões. Um homem que já não possa esperar nada, que não tenha nada a projectar, que não corra nenhum risco nem se exponha a nenhum fracasso, pode dizer-se um homem autêntico e real?” (Joseph Geavert) O anseio de compreender e racionalizar os nossos actos e as suas consequências na existência, quer própria quer do semelhante, sublinha, com precisão, a vacuidade do viver, alheio de tudo e de todos, no encontro com a realidade da morte e, mais doloroso ainda, com a realidade do morrer. A busca incessante de razão para o existir impulsiona a humanidade, quer consciente quer inconscientemente, a procurar as da esperança. A esperança, sem qualquer margem de dúvida, “pertence ao grupo de vivências fundamen tais que chegam ao fundo da existência, mobilizando todos os meios da vida e suscitando as questões de sentido” (Torres Queiruga) porque, “em última instância, o problema da esperança coincide com o problema da existência humana”. Indo mais longe, podemos mesmo afirmar a esperança como um constitutivo ontológico do ser humano pois “um homem sem esperança seria um absurdo metafísico”. Ou, como diz Torga, “mesmo absurda, a esperança é sagrada”. A esperança emerge assim como única resposta válida. Não com uma clareza unívoca e inquestionável, mas sim, como a única possibilidade do ser humano atribuir sentido à existência diante das situações de mal e sofrimento, cuja experiência de morte é dos rostos mais visíveis, presentes na realidade histórica da sua existência. Contudo, pela impossibilidade de aparecer uma esperança universal e inquestionavelmente facilitadora de uma resposta definitiva
para a questão do carácter absolutamente castrador do mal, pontificam diferentes formas de a compreender. Na verdade, se é inquestionável a sua necessidade para conferir sentido à vida não é tão inquestionável a raiz da própria esperança. Ante o inevitável confronto com os limites da existência humana, que se dão à consciência em relação de participação e partilha com toda a limitação do real percebido, que é o mundo da vida, dos seres e da matéria cósmica, adensa-se no ser humano um inexplicável e enevoado sentimento, de que as fronteiras da vida abrem, na morte, a possibilidade de a perda não ser definitiva. No coração do homem, que é o lugar mais misterioso do seu estar-no-mundo, revela-se um profundo mistério que o vai configurando como (e elevando a) ser-no-mundo : a esperança. Tradicionalmente, algumas religiões procuraram uma solução para questão da morte, alicerçando a problemática da esperança numa base pouco mais que mitológica e, por vezes, carregada de demasiadas respostas definitivas. Com efeito, algumas destas respostas chegam mesmo roçar o insulto para quem vive a experiência concreta da perda e do absurdo que ela encerra. Esta esperança não sacia verdadeiramente a sede de respostas que a realidade impõe, porque a sua «oferta» de salvação aponta sempre e exclusivamente para além do presente concreto. É uma esperança que esquece o «aqui e agora», daqueles que ficam, projectando-se num mais além de felicidade plena e eterna. As reflexões que apontam neste sentido foram criticadas, diga-se com alguma justiça, como alienação ou fuga da realidade. Se uma esperança verdadeira não pode nunca dispensar a eternidade para além do material também não pode esquecer a realidade concreta em que o ser humano se realiza enquanto tal porque, “ao fim e ao cabo, a vida é irremediavelmente um dom provisório” (Miguel Torga). Porém, à insuficiência das respostas tradicionais de carácter religioso, que tratam de resolver a questão do mal, da morte e do sofrimento fora do seu âmbito próprio, que é o da experiência real desses factos concretos, catapultando-as para um transcendente desligado e unicamente futuro, sem consciência de passado nem relação de presente, à evolução do espírito humano manifestou-se fundamental a afirmação da memória e do passado como testemunhas vivas e alicerces seguros de uma esperança que não esquece: “os mortos dos fornos crematórios não descansam em nenhum cemité rio, os seus corpos transformaram-se em espirais de fumo, e o seu lugar é a memória dos sobreviventes e dos que nasceram depois. Se estes esquecem, matam pela segunda vez. Se as vítimas permanecem na memória do homem, este talvez tenha forças para configurar o presente e o futuro mais humanamente do que fizera no passado” (Johann Baptist Metz). Todo o religioso deve, sob pena de auto-traição e degradação em projecção ilusória e alienante, assumir que a esfera da esperança engloba também o presente vivo e concreto da vida humana, porque é essa que se supõe alentar. É da própria constituição das coisas, do mundo e da vida que a esperança brota e se afirma como essencial, como parte integrante do ser das coisas. Toda a realidade vive, e não somente ao nível da consciência humana, de uma tendência para a plenitude. Chega a ser contraditório e estranho que a mesma realidade se constitua, a um tempo, de insatisfação e desejo. Porém, é do não-realizado, do insatisfeito, do esperado e do esperar que a esperança nasce. Mas é também o não-realizado, o insatisfeito, o esperado e o esperar que a esperança, ou essa tendência e possibilidade, impulsiona para a frente. São dois movimentos que se complementam. A insatisfação vive da possibilidade da satisfação, da mesma forma que a não-vida, ou vida em potência, se alimenta da vida. Por isso, a morte do outro abre, nesta dinâmica natural de tendência-para--a-completude, a possibilidade de uma esperança que justifique o passado, alente o presente e abra ao futuro. Por essa razão, “esquecer e reprimir este problema da vida dos mortos é extremamente inumano. Pois significa esquecer e reprimir os sofrimentos passados e aceitar sem resistência o absurdo de tais sofrimentos. No fim de contas, a felicidade dos netos não coloca nenhum remédio na dor dos avós, como nenhum progresso social compensa a injustiça padecida pelos mortos. Se continuamos a aceitar o absurdo da morte e da indiferença diante dos mortos, no final nenhuma outra coisa poderemos oferecer aos vivos senão promessas triviais” (J. B. Metz) . A esperança não se situa, portanto, na esfera de promessas vãs que em nada se relacionam com a experiência concreta do quotidiano, mas, pelo contrário e não deixando de abrir ao futuro, transformam a sucessão do tempo em história que pode ser contada e revelam o mais profundo mistério do real: a tendência para ser mais, para a perfeição e para a felicidade. Mesmo quando a negação desta tendência parece ser a regra que tudo orienta, pois que muitas são as
vidas não-satisfeitas, afastadas da plenitude desejada, a sua possibilidade e a da resolução das insatisfações, que são satisfações em estado latente e evolutivo, manifesta-se como constitutiva de tudo quanto existe. É por isso que a possibilidade de viver sem esperança se apresenta à razão humana como um redondo absurdo. A esperança é o único dinamismo da vida humana capaz de salvar a existência do abismo negro do desespero e do sem-sentido. A esperança será sempre, e por isso, a mais humana das definições e concretizações.
Pensar a morte, pensar a vida: a morte só pode ser vivida em «primeira-mão», ela toca-nos porque está presente em outrem que amamos, e daí nos chama à responsabilidade, à nossa condição de criaturas. Estar «às portas da morte» significa aproximar-me do «a-Deus». Este «a» significa abertura, acolhimento, aproximação de Deus. Significa também a saudação de despedida àquele que parte. No «adeus» separamo-nos do mundo onde fomos acolhidos e é sempre a outrém, ao outro, a começar pelos familiares e amigos, que devemos essa lembrança. A morte é sempre vivida por quem permanece vivo, como experiência misteriosa que abre as portas do in-finito, porque quem parte, esse rosto agora transformado em máscara, por força de uma ausência que dói, de uma partida sem retorno, abre-nos ao mistério e à transcendência. Esse é o facto mais importante que decorre da nossa relação com a morte: pensar a minha vida como vida para o outro. Carregar o luto é carregar a “santidade do outro” ausente e abrir ainda mais as portas ao outro presente, o único caminho verdadeiramente humano. O Apóstolo João escreveu: “Nós sabemos que passamos da morte para a vida porque amamos os irmãos”.
A esperança é um constitutivo fundamental do ser humano ou é apenas uma ilusão? Há apenas uma forma de olhar a esperança e o seu fundamento último? Há possibilidade de olhar a vida com sentido sem colocar a esperança no horizonte?
Esperança cristã Salvos na esperança . O título da bem conhecida Encíclica de Bento XVI é, por si só, digno de nota. De facto, não se afirma, simplesmente, a esperança de salvação. Afirma-se a própria salvação, através da esperança. De modo sintético, poderíamos dizer que a raiz última da salvação é, precisamente, a possibilidade de esperar, que permite superar todos os absurdos e, desse modo, dar sentido à existência – precisamente, um sentido que salva quem está perdido, como quem perdeu o caminho no interior de uma floresta espessa, mas não desespera de o encontrar. No dizer de Miguel Torga, que habitualmente era céptico e pessimista: “a esperança continua, porque não posso viver sem esperança, e quero viver”. Mas a constatação de que, sem esperança, nunca seremos salvos, deixa no ar ainda muitas questões, sobretudo se pretendemos abordar o assunto em perspectiva cristã: De que absurdos seremos salvos, pela esperança especificamente cristã? E que esperamos nós, nessa esperança que nos salva? Qual o caminho que nos é dado, para sair da floresta escura ou do interior das nuvens espessas que parecem encobrir qualquer caminho? E que razões nos permitem esperar, com fundamento? S. Paulo fala de uma série de inimigos, que esperamos sejam superados. E diz claramente que o último inimigo a ser vencido é a morte. Não tanto porque esta venha em último lugar, mas porque talvez seja esse o problema mais fundamental do ser humano, no interior dos absurdos com que possa defrontar-se. Porque tem que acabar, alguém que foi criado para ser? Porque terminará a relação entre seres que foram criados para se amarem? Não parece isso tudo contradizer a própria dinâmica da Criação e, por isso mesmo, o seu Criador, Senhor de vivos e não de mortos, Senhor da relação e não da solidão mortal? A estas questões, parece responder apenas o absurdo da morte, que nos inspira medo. “Tem-se medo da morte porque ela destrói o que construímos, nos priva de todos os bens que com o da vida, ou através desse, acumulamos… O medo da morte é uma r eacção secundária e confusa em relação à sua incompreensibilidade” (Vergílio Ferreira). Com palavras sintéticas, também Torga constata esse absurdo: “É terrível, a morte. Tira sentido às palavras, aos gestos, às lágrimas, ao silêncio. Deixa a vida sem expr essão”. Aliás, qualquer um de nós se confronta com estas questões radicais, se mais não for, ao enfrentar a dor nua e crua de quem perde um filho. A pergunta de Job ressoa sempre de novo, tão incómoda como irrecusável: Porquê? Porquê a mim? Porquê ele? Ora, precisamente, não apenas o livro de Job, mas toda a Escritura – e a tradição cristã, dela brotando – não nega o peso destas questões e o aparente absurdo com que nos confrontam. Por isso a morte é o inimigo dos inimigos. Sobretudo quando parece colocar fim a uma existência incompleta, ou porque foi vitimada pela injustiça, ou porque não teve sequer hipótese de se realizar, sendo injustamente vitimada pela própria voracidade do tempo, como o caso da criança que nos morre. E é perante a seriedade deste irrecusável espinho – e da dor que em nós provoca – que começa a afirmar-se, progressivamente, a esperança bíblica de que esse drama terrível não terá a última palavra sobre a nossa existência, mesmo que tenha uma palavra penúltima, importantíssima, decisiva, quase final. Estranhamente, a luz ténue da esperança cristã apresenta duas facetas paradoxais, em relação à morte. Por um lado, surge como salvação da morte e, nesse sentido, como condenação da morte, enquanto o que de pior pode acontecer aos humanos – e que é experimentado, sobretudo, na morte do outro que amamos; por outro lado, o caminho da esperança cristã só é possível através da morte, isto é, depois de dita a penúltima palavra sobre nós, pois é essa palavra que coloca um ponto final na nossa vida terrena e, desse modo, torna essa vida completa – mesmo que, na nossa perspectiva, pareça estar sempre incompleta. Ou seja, cada um de nós só será ele mesmo, sem mais possibilidade de alterar a sua identidade, quando morrer, por mais breve que seja o seu tempo de vida. Assim, a morte é inevitável, não apenas de facto – todos sabemos que morreremos – mas, em certo sentido, de direito – somos seres biologicamente finitos e, para o «encerramento» do nosso processo de construção da identidade pessoal, temos que morrer. Isso não significa, contudo, que tudo termine com a morte biológica. Com ela termina, é certo, algo muito importante, essencial; termina a vida em liberdade, que nos permite escolher ser o que seremos; e interrompe-se a relação com os
outros, fundamento da construção da nossa identidade. Mas não termina, por completo e para sempre, a possibilidade dessa relação, como condição de vida. Abre-se, isso sim, uma outra dimensão da vida, em que o que somos e a nossa relação aos outros atinge um outro patamar de existência. É aí que se torna explícito – dentro dos limites da nossa compreensão – aquilo que nos é dado esperar, enquanto cristãos, para todos os humanos. Na relação concreta com a morte, os conteúdos da esperança cristã poderão definir-se, antes de mais, negativamente. De facto, não esperamos que, na morte, apenas morra o nosso corpo biológico. A ideia de separação entre corpo e alma, na perfeita continuidade da alma, é apenas uma negação da morte. Com a morte, apenas morreria uma parte de nós, a menos importante. Mas nós mesmos, enquanto alma, continuaríamos alheios à morte. Em realidade, a morte não seria real, apenas aparente e apenas problemática para quem estivesse demasiado apegado ao corpo. Mas, sem morte, não há ressurreição. Portanto, a esperança cristã não pode negar ou contornar a morte, enquanto tal. Antes a assume na sua problematicidade e dramaticidade. Só não a acolhe como trágico destino, sem saída nem solução. A «saída» oferecida, que é o núcleo da nossa esperança, é precisamente a ressurreição. Mas é necessário precisar o que se entenderá por ressurreição. Mais uma vez, convém começar negativamente. Não é ressurreição o regresso à vida, a revivificação, pois isso é, simplesmente, regressar a uma dimensão novamente sujeita à morte – às numerosas mortes quotidianas. Também não é reencarnação, pois acabaria por significar o mesmo, no interminável ciclo das vidas mortais – que, além do mais, anulariam por completo a possibilidade de uma identidade pessoal. A ressurreição é a transfiguração de nós mesmos numa outra dimensão de nós, que é uma outra dimensão da vida. Essa outra dimensão não podemos nós próprios realizá-la – apenas podemos preparar-nos para a acolher ou para a recusar. Porque essa outra dimensão é a dimensão de Deus, em que seremos nós mesmos, por pura dádiva gratuita do seu amor. Aquilo a que a tradição cristã chamou céu não será senão essa dimensão de Deus, em que a força do seu amor será tudo em nós – e nada mais. Mas será tudo, em cada um de nós, considerado pessoalmente, como ser único e irrepetível, que construiu a sua identidade enquanto ser corpóreo, de carne e osso. Por isso, a ressurreição não é pensável sem referência ao corpo, que foi o lugar e a possibilidade da nossa identificação. E a dádiva imensa de Deus será acolhida, de acordo com a identidade de cada um, no respeito pela liberdade com que construiu essa identidade. Por isso é que esperamos, também, que a vida na dimensão de Deus seja, ao mesmo tempo, uma vida plena, na relação aos outros, que supera a interrupção dessa relação, introduzida na morte e que, legitimamente, tanto nos faz sofrer. Na dimensão da vida de Deus, seremos dados à vida – uma vida diferente da que conhecemos biologicamente – para darmos a vida, tal como a demos, no nosso percurso terreno. Porque a dimensão do amor de Deus é a dimensão da doação plena, da dádiva completa de si. Se aceitarmos viver eternamente para os outros, teremos vida eterna, nesse dinamismo de doação sem fim e sem limite. Nesse sentido, o desejo que poderá animar-nos eternamente, é o desejo da vida eterna do outro, não tanto da nossa. E é na medida em que desenvolvermos uma identidade pessoal, ao longo da vida terrena, orientada por esse desejo de vida para o outro, que estaremos preparados – nunca totalmente – para acolher a vida eterna, enquanto eterno desejo de vida para o outro – mesmo directamente para o outro que nos morre, sempre que a morte do outro nos acontece. Nesse sentido, não vivemos para «conquistar um lugar no céu», mas para que os outros tenham esse «lugar». E só se em nós houver, ainda que mínimo, esse desejo de vida eterna para o outro, é que Deus poderá completar o nosso mísero amor com a plenitude do seu – de si mesmo, como amor. Sem entrar em pormenores descritivos, porque seria impossível e mesmo insensato descrever essa dimensão da vida, a não ser metaforicamente, poderemos dizer que o conteúdo da esperança cristã ainda torna mais dolorosa a experiência da morte dos outros, sobretudo do próximo que mais nos toca. Porque se o sentido da vida é a vida para o outro, o maior absurdo está na interrupção dessa relação ao outro que nos morre. Chorar, amargamente, quem nos morre, é um acto profundamente cristão. Só não o será o desespero completo, perante essa morte. Porque seremos salvos pela esperança. A perdição seria o desespero, simplesmente. Mas, qual o fundamento dessa esperança? Não se tratará de pura ilusão alienante? Que razoabilidade pode possuir o que nos anima? Não será mera construção humana, para responder a um desejo que não consegue satisfazer de outro modo?
É claro que não podemos demonstrar pelas ciências naturais aquilo em que esperamos. É normal que assim seja, pois a dimensão da vida que esperamos não se pode demonstrar por esses meios. Como não podem, aliás, muitas dimensões importantes da nossa existência, entre as quais sobressai o próprio amor, que torna a morte mais dramática ainda. Mas essas dimensões podem, isso sim, ser acreditadas, constituindo essa fé a base da nossa confiança e, por isso, da nossa esperança. É claro que não se trata de uma fé cega, simplesmente para contornar a dolorosa questão da morte. De facto, há motivos para crer, e esses constituem a razão da nossa esperança. Fundamentalmente, a base da nossa esperança é o próprio Jesus Cristo, ressuscitado de entre os mortos e primogénito na nova dimensão da vida, precisamente porque viveu dando a vida, até à doação extrema da morte. Ou seja, a ressurreição de Jesus, núcleo da fé cristã, é o fundamento da esperança de que seremos dados à vida, para além da morte, numa outra dimensão da existência – a dimensão plena de Deus. Por isso, verdadeiramente só pode partilhar a esperança cristã quem partilhar a fé cristã. Uma é impensável sem a outra – assim como ambas são impensáveis sem a caridade, pois é na doação da vida ao outro que se realizam a nossa fé e a nossa esperança. Aliás, Jesus Cristo não é apenas o fundamento primordial da nossa esperança, mas também o revelador da verdadeira relação entre os humanos e a morte. De facto, enquanto verdadeiro Filho do Homem, Jesus assumiu completamente a condição mortal dos humanos, sem com isso declarar a morte como algo bom. De facto, ela não deixou de ser o último inimigo, que só a dádiva da «vida eterna» pode vencer. Mas essa vitória é tudo menos triunfal. A vida de Jesus e o seu desfecho manifestam, claramente – embora paradoxalmente – que o caminho da verdadeira vida é o caminho que passa pela morte, sem lhe fugir de modo ilusório. Mas, ao mesmo tempo, essa passagem pela morte não é uma passagem qualquer. Ela mesma é, em Jesus, uma dádiva livre e gratuita da vida. E só essa dádiva possui força – que é a força de Deus – para vencer verdadeiramente a morte. Porque uma vida dada livremente pelo outro, na morte, faz com que essa morte não possa roubar-nos a vida, pois esta adquire eternidade, na medida em que é dada. Assim sendo, a ressurreição de Jesus, que constitui fundamento da nossa esperança, é uma ressurreição que coincide com um determinado modo de morte – a morte como doação da vida pelo outro e ao outro (e, neste, ao próprio Deus). Mas, para além deste fundamento crente da esperança cristã, poderíamos considerar o que significa, humanamente, ser-nos permitido esperar que a morte não tenha a última palavra sobre nós. Tal como tão bem têm formulado muitos escritores e pensadores nossos contemporâneos – e mesmo nossos conterrâneos – a impossibilidade dessa esperança apenas nos conduz ao absurdo, ao sem-sentido completo de todos os nossos desejos e aspirações, assim como das nossas realizações. Nesse sentido, poderíamos dizer que é mais humanizante esperar para além da morte do que desesperar com a morte. E é essa esperança que nos dará coragem para acreditarmos no ser humano, apesar de tudo – apesar da morte.
Porque a morte tem o seu tempo A ruína soma ruína, à cabeça Equilibra a existência desmoronada e inteira. Tu és o que edifica Tu constróis mil vezes. Porque o raio tem o seu tempo. És o clarão, a lâmpada, a estrela Somas luz à luz. Não és a luz, és mais que a luz Porque a noite tem o seu tempo. Daniel Faria
Como aborda a Escritura o fenómeno da morte?
Que espera o cristão, em relação à morte? Quais os fundamentos da esperança cristã?
Que poderá significar a «vida eterna»?
A morte na morte se termina. E amamos na esperança que a alimenta não a transparente ferramenta mas a alma que passa e se ilumina. Porque estarmos na morte nos designa. E a própria virtude que a sustenta nela se afirma e nos ensina a iluminar também a ferramenta. por onde a alma se ilumina e passa. E estar na morte segue o seu destino de saber que por esta morte baça ir à morte é lermo-nos num signo que se acende somente, repentino, quando lermos é lido em obra e graça.
A morte na morte se termina. E irmos por ela é ir nascendo, de mágoa em mágoa, à alba matutina como se a mágoa fosse sacramento por onde a alma andando só confina o repente sem fim do nascimento. E esperando a esperança se termina e apaga-se nos signos o ofício de instrumento. E, matutina, na alba, dobra a turba a extrema luz de haver analogia morrendo aonde a ponta vence a curva e a cruz do sacrifício a melodia de um canto que ainda se perturba emergindo da morte por onde ia. Fernando Echevarría
Bibliografia | leituras aconselhadas
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