ANTONIO GODINO CABAS
CURSO E DTSGURSO
RA DE LAGAN
EÔfi> /
EDITORÀ MOn{ES
CIP-BÍsil.
Cstsloasçlo!8-PublicÂçÃo CÂmur Brmilcira do Lirc, SP
Godilo Cabu, Anionio.
G531c 'Cum e dism
da obrs dcJrcqucs lÁc8n / Atrtonio Godiao Cabas : (traduçlo rlc Muia Lúcia Baltezu). Slo Peulo : Mor6, 1982.
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(Biblioècô lrcudius brsileira; 1) BibliogÍstir.
I.
1.
Iren,
Jacques, 1901.19E1 2. PsiconÍrlirc
Tltulo.
cDD-150.195
Indie
para catálogo sistcmÁtico:
l.
Ican, Jrques r Tcoria psicuallticr lí).195
2.
PsicanÁlisc :
Tcoias : Psicologia 150.195
Tradução: Maria Lúcia Baltazar Produção gráfica: César Augusto Nogueira Capa e logoüpo da Biblioteca: Ronaldo Ranieri (Arq.) Composição: Fcrma Composições Gráficas Ltda. Todos os direitos reservados,
EDITORA MORAES LTDA. Rua Ministro de Godói, 1002 Fones: (011) 864 1298 e 62 8987 01505 Paulo - São - SP 1982
Impresso no Brasil.
EPITOGO ('crlutrrcrrlt', í' r'orsrr lriz,rllrr rlcnolrrinar epílogo a um escrito quc, l)or st'rr /llgrlr nn r'orrrposiçrìo tlt:stc lióro, deveria com mais prccisão rlt'rrorrrirrrrr sr'1rrqil1pg1v. l',, tro crrliurto, além do lugar, insislilttos: c;tílogo. ll .1rrc rrtlrri st' lrrrlrr ulììÍÌ vez, concluído o prrlrrvll tgrrrrrrkr, uchanrlo-se o texto jâ traballto - rlc rrossrr rrllirrrrr no prcl(), vcll(ì lrrls olrrigrrrkrs lr rlr'srrrrrltu () ('{llÌrirtlì(), olltar para trâs e intentar apltls st'rrl/r hr. Sob ccrlo Jrottlo rlc vislrr, r'slrts pirgirulri, l)()r'st:rr glrópri<'l título, por si próprirs s(: rlìr'('s('nlrurr. Í,. r1rrc, rlctrotìriltnttrkr-sc "curso", trata-se cfctivllrrcrrlr: rkr rlist'rrl'so (lu('crn('l'gc tlu lrurrscrição do seminírritl (luc, e()rl iHrrrrl lilrrlo, [olrr ploÍt'r'irkr ttrt Âssrrciação dc Psicólogos
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VIII
IX
de estar dizendo que o outro disse aquilo que na realidade não disse. Como se vê e se verâ, a empresa não é fâcil. É claro que seria bom assinalar que o paradoxo que acabamos de formular não é sem solução. E não o é, desde o momento em que toda comunicação - pretensamente - científica concerne à presença explícita e explicitada de um referente. Referente que invocaríamos no início deste trabalho e que não é outro que o objeto da ciência. Objeto que faz com que a nossa se denomine: cíêncía do inconsciente. Revendo a questão, verificamos uma mudança de lugar. No entendimento desta mudança ciframos a possibilidade de entender que um prôlogo possa transformar-se em epílogo. Mas, também, no éntendimento desta mudança ciframos a possibilidade de definir o presente trabalho. Aqui, trata-se de definir o campo conceitual problemâtico na obra de Freud, sobre o qual se funda o desenvolvimento de J. Lacan, como maneira de prevenir o risco (sempre implícito) de que, na ausência dessa definição prévia, todo desenvolvimento ulterior, toda formulação redunde num enunciado vazio, numa mera repetição de definições cujo alcance pode terminar resultando inobjetivâvel. Em nossa mudança, trata-se da ciência - questão suficientemente importante para suscitar polêmicas. É que, tratando-se da ciência, alguns preférirão escrevê-la com maiúsculas e em negrito. Outros, por outro lado, se inclinarão a escrevê-la com caracteres suficientemente'assépticos para diferenciá-la do barroquismo. Em ambos os casos, o erro salta à vista. Nem a ciência é a ciência do grande e do maiúsculo, nem tampouco se define por ser simples e asséptica. Existe também a ciência do minúsculo e do infecto. E é por isso que a nós bastarâ escrevê-la em minúsculas (como qualquer outro significante), embora especificando que nela se trata de um discurso cuja nota distintiva é a capacidade de explicar seu referente. Referente que, insistimos, pode ser minúsculo e complexo como prova ser o inconsciente, ao qual nos remetemos e invocamos para que ilumine nossas palavras e esclareça nosso entendimento. Buenos Aires. outubro de 1976
EPITOGO A EDIçÃO BRASIIEIRA Com efeito. Estou a dizer epilogo, posto que, mais tl nta vcz, o de que se trataê de refletir um trabalho jâ concluído, prcstcs it ctttrar ncr prelo, prestes a virar livro. Por essa razão: "epílogo".
"Epílogo", como quem olha para trâs e diz.... I)igo ctttão nrcu muito obrigado a Maria Lúcia Baltazar cuja paciôncin ó qusse-causa deste epílogo, ou seja, desta edição brasilcirrt tlc (ìrr.ro .v prcfcriritt tlizcr Discurso de la Obra de J. Lacan, oü - como cu desta edição que dá curso a um discurso sobrc it ttbrit rlc l.ttctttt' Esta paciência que me obriga ê, a de quem tratlrtz c, pollttltlo, tlc quem decifra. É à paciência do analisando a (lu('nì nrìsso lrrtltttlltrt
deve tanto. É à paciência que fez com qu(: () irrrfllisulrrkr fossc batizado depaciente, mas que, acima dc tu
x empurrando certas letras que são as que fixam as marcas da paixão e traçam a trilha do destino. Paro aqui e olho para trâs. Afinal, é isso que todo epílogo exige que seja feito. Ao fazê-lo, observo ter sublinhado dois gestos para um sô efeito. Nada mal! Nada mal, posto que o que é do humano hâ sempre de ter um "dois" na sua origem. Todavia, nada mal se esses dois são a pulsão e o analisando. Nada mal, visto que esses dois são os que fazem o mundo do homem. Um mundo que lévi-Strauss definiu como sendo eminentemente cultural. Portanto: um mundo de livros (leia-se: metâforas) nos quais o humano mergulha à procura do saber, da verdade e da ciência, por ser o único bicho a quem coube essa possibilidade, por ser o único bicho dotado de nome, isto é, o único bicho cujo Ser é grifado com um amontoado de letras. Por isso, os livros (repito: as metáforas) são sempre feitos para transbordar as prateleiras, mesmo aquelas que se pretendem freudianas. E o que se propõe este texto mesmo quando a sua releitura me f.azver o envelhecimento de certas noções ou a provisoriedade de certos apoios teôricos. Estou pensando - concretamente - na noção de códígo. Uma noção que jâ fora revista e criticada por Lacan. Trata-se de uma noção dúbia, jâ que, se bem permite pensar o universo significante cotno um sistema, ao mesmo tempo induz ao engano de supor - à maneira como ocorre na informâtica - a existência de uma correspondência biunívoca entre significante e significado, coisa que carece de qualquer sustento teôrico, seja no campo da lingüística, seja no universo da experiência analítica. No entanto, a cútica em questão não constitui, a bem dizer, uma novidade. A rigor, ela jâ foi formulada na edição castelhar'.a quando, ao tocar na questão (capítulo VI[: Motus), propusemos entender o côdigo como um sistema de fechos, isto é, de cortes. Apenas quero gnÍâ-la, posto que, apesar de que esta é uma edição revista e corrigida, tornou-se necessârio manter a noção de côdigo, embora sob um ponto de vista exclusivamente didâtico no curso do discurso que o presente texto fixa. Com efeito, é neste sentido que o conceito de "lalangue" (a alíngua) sugere entendermos a noção de código. Em outras palavras, o côdigo em questão nada mais é que um sistema de cortes, um sistema de pontuação. E, afinal, é uma boa maneira de definir
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o Outro, tendo em vista que seu efeito (isto é, o inconsciente) se define por ser um estilo. Se estilo e homem são conceitos quc sc funclcnt, ó ptlrque, ao dizermos estilo, estamos pensando ntllììít nrancira {c anrclntoar letras (ou seja, dar um nome) e nunìÍt nt:tncira tlc corlar a scqüência por meio de uma barra. Destc urotlo, prrt
tAPtïrJ o !_
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DE PROFUNDIS
Como definir o trabalho de Jacques Lacan? Qual é a causa de sua teoria, qual sua especificidade, o que nos ensina e o que acrescenta ao desenvolvimento da teoria psicanalítica? Não é alheio a isso o título do nosso curso: "Curso e Discurso/ da Obra de J. Lacan", porque quem díz curso estâ dizendo ditado, mas também estâ dizendo caminho. Caminho que, quando formulado em palavras, se denominar
â,
dis cu rx t .
Com isso, estamos sinrplesmente fixando uma posição: a obra de Lacan é um passo no dcscnvolvinrento da teoria psicanalítica; todavia, trata-se de um passo capital, ftrndamental, necessârio. Por onde iniciâ-lo, pois? Seria prcciso dcscrcver o espectro cla teoria nos anos quarenta, quando se inicia sua glro
Freud, os conceitos capitais ficaram circunscritos a unìa teoria sobre a pulsão, uma teoria sobre a catexi:Ì, urìrÍr tcrlria clo objeto, uma teoria da identificação e uma tcori:r
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CURSO E DISCURSO
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coisas haveria de culminar com a produção de uma teoria na qual existiria uma zona "livre de conflito". Isto, omitindo, certamente, a conclusão freudiana segundo a qual o sujeito é, desde sempre, um
conflito. Essa teoria não é outra que a teoria do Ego. Naturalmente, do Ego-forte. Uma vez estabelecido isso, os demais problemas deveriam tornar-se claros. As pulsões de vida geram fantasias e, por conseguinte, expectativas positivas orientadas em relação a objetos tam-
bém positivos, propiciando a constituição de uma identificação igualmente positiva (leia-se adaptada). Ao contrârio, as pulsões de morte, geradoras de expectativas "negativas", voltam-se pata objetos negativos, o que determinaria a concreção e o assumir de identificações negativas, isto é - aos olhos da teoria que estamos comentando um Ego débil e, portanto, inadaptado. É óbvio-,que a leitura dos conceitos de vida e morte, em psicanâlise, tem sido feita a partir de uma perspectiva moral, eventualmente religiosa, porém à custa do abandono do campo da teoria psicanalítica. Senão, vejamos: a psicanâlise é, por acaso, uma teoria da adapt açãio? É uma guia do consciente ou uma leitura do inconsciente? A psicanâlise consiste numa teoria que pretende interpretar, isto é, explicar, dar conta e descobrir os motores latentes, por assim dwer, de um sintoma. Não se trata, conseqüentemente, de uma propedêutica, nem de uma proposta redentora cuja função fosse a de orientar ou salvar o sujeito. É precisamente contra esse estado de coisas que pretende reagir Lacan quando começa a ditar de maneira plena seus seminârios, por volta de t952. Seu primeiro projeto foi pensar a relação existente entre essas cinco categorias freudianas. Hâ alguma sistematicidade entre elas? É sabido que Freud trata o tema das pulsões, em sua versão definitiva, €h 1920, em Além do Princípio do Prazer, que sistemattza as reflexões concernentes ao objeto em seus trabalhos finais sobre a sexualidade em geral e a sexualidade feminina em particular; sistematiza a teoria da identificação em O Ego e o Id, mas é sabido também que não consegue enfeixar essas reflexões num corpus definitivo Esboço de Psicanâlise, o de 1938, permanece inconcluso.
DE
DA OBRA DE J. LACAN
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mente o projoto lacanleno contra-io no ronticlo de ver u articulação, relação e urgunlzaçlo dor tormur de teorln, a saber: pulsão, cate-
xia, objeto, ldontlÍlclçlo o Íentalma. A prlnrolrl ohrorvrglo quo ro potlo Íar,or ó quo, conro substrato últinro rkr rlrlonta Írourllano, rlotronlanl()-noË conr o touria das pulrõcr; n rorllollo, l"reurl rllrrs om Metuptlttilttgiu (1915), que ohr purlorrr rlo umr Íllnle qu€ á rcmltr€ nlmltlcl, Ê cumr);o o suporto rle lorkr o rpârclho ortlvorre rcrtrllrl num fl.mpt, llmlte ontre o bkll(rglco (511qu6nto íonte) 3 rt ptlqulco (entluento mota). As pulrôcr, rlepolr úe Allm út Prlntlplu út Pruter,l&r urgenlzadas om dusr rllrollOer: dr vklr o do rnorlo, Bntrctrnto, cunvóm portuntrr ro orrtr pulrOu gqlo dutlno á o lnaonrcl€nt€ tôm al3uma Íunçlo €, n€rl€ crro, qurl ó orrr luttçlo € o quo á que pruclur,om, Se onr rl rn€rnur ttÌl r&l prlqulem ntm blolôrlum (á um ortlmulo llrlolôrlco o qu! m orltlnt I, nlo rcndo prlqulcm, nlo tâm lngrorro rro lnconrclont!), ohvlrmrnte erllo obrllrrlrr r rcnem rcprerenluúss, ltuÍ qurm r por qult Em l9ll, lfl A Em t o ld,t Frtud obrenr qu€ o dortlno dor rnovlmentor qur ra produr.m no ld hvr I aonrtltulçlo do uma lnrtlnolr orlrnlrrdu o rprnlho ldrntlllertôrlo, Podcmor polr, Iojo do lnlclo, uilpulrr r oonolurlo dr qur r nlrflo ontru r pulrf,o ou lrrcorrrerlonb rurldo n.lnt ttpltmnltnlcrcrprrsr do conrtltuÍrom.ro onl ldcntlllorOôu, Brtm ldrnilllcreôu conrtltuom o Elo ou, mrh prcclrrmrltor m lnrllnolm quc oontormlm o Elo; o dlzomos lnrtlnclm nrì plurrl porgut o Eto nlo ó uml unldedo llvro de oonlrrdlgô€r, o Ílua drmonrtÍlnmor, Que o dutlno dag pulsões rdr umr ldrntlllsrglo, nlo rnulr o trto dc quc uma pulsão tenha um modo do duerrlr (rtlvo ou pmrlvo) quo ê fruto de uma "rprondlauim" obvltmtnta lnconrclonto c gqe precisamente a mrnlÍertrçlo dc umr ldontltlorelo re rurtcnte no mesmo andarlvol: atlvldrtle vlruut purlvldrdo. Errr pulrlo á rompru uml lorca constante (daí ser representrdr, om nollo lrlÍlco, por um traço cheio) que alimenta interminlvol o lnerjotrvolmcnto o clrcuito das identificações. Qual é o dortlno dr onorglr mrlm rcumulada? Se queremos ater-nos a uma Íormulrçlo onorjétlcr, dc lnÍcio, sabemos que o destirto da mesma
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É possível pensar numa articulação entre esses cinco conceitos? Ou serão, ao contrârio, cinco achados díspares? Precisa-
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p, 9.
-
l, Ftturl, Slgmund - Ohru Completas, t. II, Madrid, Biblioteca Nueva, 'l'rxlu m cltrçõor rclcrom-ro r orta cdição.
1968,
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OBRA DE J. LACAN
um objeto; um objeto que, em última instância, ê sempre sexual, mesmo que se trate de uma sexualidade inibida em seu fim, como é o caso da sublimação. É assim que a identificação estabelece com o objeto uma relação na qual nenhum dos dois pôlos pode ser desconhecido. Precisamente a mediação entre tais pôlos estâ realnada pela catexia que, definitivamente, vem a ser a peculiar ligação que a identificação estabelece com o objeto. É como se, finalmente, a fantasia fosse, em tudo isso, a "expressão" ou superestrutura de uma relação peculiar fundada entre a identificação e o objeto. é
Fantasma
Catexia
I
Pulsão (vida e morte) Descarga da tensão
I
Fonte (biológica)
Vejamos, agota, como funciona a interdependência dessas teorias. Tomemos, por exemplo, a pulsão como ponto de partida. Tomemo-la em um sujeito masculino. o exemplo é, enfim, caricaturesco, mas permitirâ demonstrar que este é um "sistema" em funcionamento e que m aspecto, pensar qualquer dessas teori por si mesma os fenômenos restantes. tomando em um sujeito masculino terâ um destino que depende da identificação, posto gu€, se esse sujeito se tem identificado com a sua mãe, caberia pensar gu€, no caso de uma catexia que fosse de amor em relação a um objeto, exigiria um objeto homossexual, isto é, também masculino. Em compensação, o mesmo registro da pulsão anal, por exemplo em um indiúduo identificado com o pai geraria jã nío uma catexia de amor paÍa o objeto mas se manteria nabaliza da agressividade, retenção, ataque... Com isto queremos simplesmente dner que não basta (como às vezes se cosfuma admitir e crer) reèorrer às pulsões para explicar o inconsciente. É que,
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vistas deste mtxkr, tuis explicações são mais bem reduções. A pulsãu, glor si nleltmü, nlo indica nacla a nõo ser em relação a uma identificaçlo; por $us von, r identlflcação não existe senão em relaçõo ao obJoto. lincontramo-nrlfl, pols, ante a indissolúvel ligaç[o quo spõo o obJoto à ldontlÍlcaçf,o, asrlm como a ligação que concomltntttontonto Íundu a ldentiÍlcuçlo na pulsão. De acordo com umr llnguegom porltlvlrtr, dlromos quc o objeto e a identificação rkl rlmultrnormonto varlAvols dependentes da pulsão, mas a pulsftl nlo ó umr varlávol autônoma e, sim, encontra-se em função da vsrlAvol lntorvonlonte que é a identificação em relação ao objeto. Porgunto-mc o que aconteceria com essa formulação se consldorÁssomos o conceito de anobjetalidade em Freud. Em primeiro lugar, a etapa chamada anobjetal, em Freud, pressupõe não a não-existência de um objeto no exterior; sempre haverÁ um objeto - a mãe - sobre cuja figura, pela noção de apoio, eo elegerão os posteriores objetos. A anobjetalidade, €lr Froud, tcm mais a ver com a impossibilidade de simbolizar vm obJoto; lmporrlbilidade cuja causa se enraíza na prematuração do rocóm-nmcldo (cqlo nascimento se verifica sob o signo da dependôncla) o quG, por sua vez, ê causa, entre outras, da indiscriminrçlo mlc-Íllho. Falar dc anobjetalidade pressupõe, então, obseryrr quG a crlrnçr nlo dlstlngue a mãe como um objeto, digamos, oxtorno, mar como um objeto que se integra, por sua vez, segundo o ortado do "írl3monteçlo cotporal" que o rege. Isto nos remeteria ao problomt clo nrrchhmo, posto gu€, se toma a mãe como uma parto do rl mormo, mrlr quo de anobjetalidade poderíamos falar de ni
O quc lntororra dortrcar de tudo isso é como, em psicanôlise, ponsar em termos isolados, isto é, feudalizando ou ilhando a tcorla. [ogo, o que podemos fazer notar é que o funcionamento é absolutamente solidôrio; solidôrio no sentido da corres-
nio podomor
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DA OBRA DE J. LACAN
DE
pondência entre o objeto depcnclente da identificação e esta, por sua vez, do encadeamento pcculiar que a pulsão lhe impõe. o fantasma é, nestc corrtcxto, algo assim como a expressáo da relação peculiar que a itlcrrtificação estabelece com o objeto. Se tomâssemos qualqucr flnlirsrrrt - por exemplo, Espancam uma Criança vamos nolar qrrc aí não aparece nenhum objeto em - Melhor rlito, tí ugrnrccc um cenârio para onde confluem particular. o indivíduo espÍtttcatkr, o pti csgrancador e o instrumento da relação: o chicotc. I)or Íirrr, lotla fantasia "manifesta" essa infra-estruturalitlatlc tlc irlctttificrçõcs, catexias e objetos que a suporta. Se tomarÌl()s ils 'lloriu,r.ïr,lrrcl.r Infunlis, quando o infans, aos dois anos tlc itlrtrlc, sttslcttlt lurul tcoria cloacal de acordo com a qual "tts trcbôs vônt tltt tttruttrìc. nrns slto paridos pelo ânus", deparamos corÌì qìrc, rrrltis quc ltnr ob.icl0. o que aí está em jogo ê uma iclcntiÍicuçtìo. Â qrreslrìo ó silrrlllcs, se pensamos que o infans se aclttt cltt;tlclttl clt;ln rrtrnl, rrrr t;rrul o ato de defecar lhe promove, por stttì vcz, n Írttrlrrsin (;lrrrzcrrlcirrr, l)()r certo) de estar produzindo ob.ictos-critltçus. l)cfilritivtrrrcrrtc, a fantasia cloacal nos infornia ito tÌlcstlttt tctttpo sobrc o oll.jcto rll catcxia, assim como sobre a corresponrlcn tc irlcn
tif
icaçito.
vultamos, agora, ao nosso grâfico, para pcnsar a dialética da pulsão e da catexia. Dissemos que a catexia é discreta; efetivamente, em nosso esquema, a catexia está representada por um traço descontínuo, enquanto que á relação pulsional com i identificação estâ representada por um traço cheio. Dissemos que esse traço cheio (ou contínuo) se funda na relação de constância decorrente da pulsão. Mas, em que consistem essas catexias discretas? Jâ desde 1905, emTrês Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade, Freud observava que nunca se elege objetos puros, que toda eleição de objeto estâapoiada sobre uma construção narcísica. A mesma linha é seguida em 1914, em rntrodução ao Narcisismo , quando afirma que toda a
libido objetal foi previamente libido narcísica 9u€, desligada
do
Ego, se objetiva. o objeto sofre, pois, uma determinaçío narcísica; conseqüentemente, cabe pensar que é, sem dúvida, em função desse narcisismo que a catexia nunca é contínua, nunca permanece
totalmente voltada para o objeto, e sim vai sendo regulada em freqüências sintonizadas de catexia objetal e catexia narcisista. A modo de exemplo: observam os pedagogos (ovidio Decroly, Maria Montessori...) que a atenção nunca é constante e, sim, se produz
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em freqüências alternadas de aproximadamentc l0 st:grrttrkrs rlc atenção e 10 segundos de desatenção. E sabidtl c coslttttt:l itc()tttecer gu€, em determinado ponto de uma exposição, ulgtttttit pitllvra, algum elemento, algum significante põe em jogo o rìrccilltisttto pelo qual a gente se põe a viajar... Para onde? Para os ttutt'cs tkr Se a catexia nunca é puramente objetiva senão solr () lx's() das inflexões narcísicas, o objeto é, em tudo isto, unì sotrt'ctlc terminado. Observe-se que o objeto de que estamos falando em lloss() esquema não é um objeto exterior ao aparelho e que a elegibiliclatlc objetal depende da adequaçáo dos objetos em questão a esse n odelo púmordial de objeto. Uma pergunta típica da psicanâlise é: Que faz um paciente com todas as catexias que não "descarrega"? Esta pergunta, no campo da Wâtica, se converte em: Que faz um paciente com todos os silêncios que entrega? Onde foi a catexia? Sabe-se que se alguém, nesse exato momento, solicita ao analisando associações ou indaga sobre o que estâ pensando, seguramente aparece uma fantasia de natureza sexual, concernente à figura do analista' É precisamente esta relação que pretendemos construir. Conforme dissemos, as freqüências não objetivadas têm como destino o retorno à identificação; esse retorno à identificaçlo ê francamente solidârio ou congruente com o retorno contra a própria pessoa, uffi dos quatro destinos da pulsão. Em Metapsicologia - a recordemos simplesmente como se fosse uma nota de rodapê - pulsão tem quatro destinos: retorno contra a prôpria pessoa, transformação no contrârio, repressão e sublimaçío.2 Vemos, então, que esse retorno contra a prôpria pessoa é francamente solidârio com as catexias que não conseggem objetivar-se e que, ao contrãno, instauraÍl'S€ naquilo que na sessão analítica se pode, empiricamente, dimensionar como silêncio. A esta alfura, começa-se a suspeitar de que falar identificação é flalar de algo mais que uma estrufura monolítica ou fechada. Antecipando-nos, recordemos 9u€, nos textos freudianos, a identificação é um complexo, um conjunto, como qucm cliz "complexo hidrelétrico de ltaipu", ou seja, um múltiplo
narcisismo.
2. lrrcud, Sigmund - "Los Instintos 1039.
cil., L l, p.
y Sus Destinos". In: Metapsicoktgíu, O. C. , ed.
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DA OBRA DE J. LACAN
articulado de quantidades de massa líquida e canalização dessas quantidades em relação a determinados destinos. Para Freud, a identificaçã,o ê, um conìplexo no qual se pode objetivar o Ego, o Superego, etc. Qual é, então, a estrutura da identificação, desde que parece ser o ponto de ancoragem das pulsões? Por ern<1tt:ttt{o, ttolertros unìáì coisa: se o complexo da identificttç:ão <:oinci
clenrcntos organiTados em cstrutura excede o Ego, o qual é um elenrcnlo míninro da mesma. Essc conjunto de elementos articulados enr estrutura (pulsão, identificação, catexia, objeto e fantasnra) é o mesmo sujeito que, em Lacan, recebe a denominação de "estrutura do sujeito" ov Je, e que nas traduções ao português figura como "Eu da enunciação", à diferença do Eu que receberâ o nome de Moi ou, em p'ortuguês, "Eu do enunciado", a instância da segunda tôpica freudiana. Esta ênfase que Lacan põe nessas duas formas pron
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constitui ao mesmo tempo e solidariamente o r:ott.irutlu tl:r t'slttt tura. É necessârio terminar com o mito de que as l)Ìrlsr'rt's srìrr rr "non plus ultra" da teoria. No caso Schreber podentos ltol:u' ('()nr() as pulsões que o regem são eminentemente anais, mas itrlicul:ttttlc -se em uma identificação feminina mediante o fantasnta rlc lr':rtts formação do prôprio corpo e em relação a um objet
Deus: "Dr. Schreber, por que você não defeca? Schreber.' "Porque sou demasiado tolo. Porque, cada vez que vcìì; defecar, expulso a matéria fecal, mas acontece que imediatarnetrte a empurro de novo, sujando-me as nâdegas. E por isso que sou tãc tolo que não posso defecar."
A menção desse parãgraÌo explica a organização anal das pulsões. Mas, se cotejarmos o caso acima com um outro, não mais de psicose e sim de neurose, veremos que a pulsão anal se dâ de formabem diferente. Tomemos o caso do Homem dos Ratos. Este articula suas pulsões em uma identificação conflitiva com o pai, em torno de um objeto igualmente conflitivo: o acesso à mulher. O problema do Homem dos Ratos, entre desposar Gisela Rubensky (de ricos dotes) ou a outra Gisela (estéril e sem dotes), revela uma repetição paradoxal da identificação com o pai, que também realizou uma eleição, em sua história, entre uma mulher pobre amada e uma mulher rica não amada. Em ambos os casos se trata da mesma pulsão e do mesmo conflito: a mulher. A diferença estâ em que Schreber encena o drama em seu prôprio corpo, enquanto que o Homem dos Ratos o faz num espaço ou cenârio muito mais amplo: o campo do outrE:" que diziar; Freqüentemente Freud parafraseava Napoleão "A histôria é o destino" çep a frase: "A anatomia é o destino""
A rigor, poderíamos talvez precisar um pouco mais esta questão; A rnatomia é o cenârio eo portanto, o campo de batalha clo clestino. lj, com efeito, a anatomia promove as exigências que a pr-rlsã'..r se encarregarâ de flazer chegarem à identificação.
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CURSO E DISCURSO
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DA OBRA DE J. LACAN
Pois bem, a constituição dessa identificação vai produzir-se no
curso de uma seqüência histôrica. Freud observa que, nessa histôria, que não é outra que a histôria do complexo de Édipo, vão constituir-se diversos subsistemas de identificação. Em primeiro lugar, f.az notar que a identificação estâ primordialmente constituída por uma cisão, um ronìpimento ou spaltung fundamental: a cisão ou rompimento quc funda o Ego ideal e oEgo afual. É esta estrutura a que analisa ent Inlntdução ao Narcisismo, de 1914. Aí, Freud observa quc cssc lìgo ideal corresponde à imagem de mâxima onipotência, iì cssn itlcntificação da criança com os pais idealizados, corrtrast:rrrtkr Ílagratrtemente com o Ego constituído em conscqüôrrcia rl:r castração. Esta cisão é sede de uma paratimia circular quc nos rcvclir unr ntovimento de opostos tal gu€, na csquiz.ofrcniir, sc cxl)rcssÍr rìos Íantasmas de "destruição do mun{l{)", "rcconstrrrçiìo tkl ltttttttlo", "tlcstruição do mundo"... num circuito altcnrarkr nrirs incorrtrolírvcl, irregulâvel, isto ê, nã;o simboliz,atlo. Na nrclancolia sc nranifcsta a mesma paratimia sob a forma tle ciclo lììártìia-rlcprcssão, quc c()rresponde às alternativas imaginárias de: fusão conì o objeto, perda do objeto... Na paranôia, se nos revela sob a forma da oposição constante amigo/inimigo... É como se a paratimia denunciasse a ausência de um mecanismo de auto-regulação nessas instâncias. Este mecanismo receberâ, em 1914, o nome de "consciência moral" e cumpriria a função de vigiar o Ego atual, fazendo-o notar constantemente sua separação do Ego ideal. Aqui se abre um campo paradoxal em Freud: ele nunca separou nem distinguiu claramente o Superego e o Ideal do Ego. Ao contrârio, os pressupôs sempre como uma mesma estrutura, e, com efeito, o são, mas caberia pensar que cada um desses pôlos (Superego e Ideal do Ego) tem funções diferenciadas. Em primeiro lugar, porque o Superego tem, como função, fazet notar ao Ego afual sua discrepância, sua distância, sua impossibilidade de acesso a esse máximo ideal de onipotência infantil. Porém, nas fases totêmicas ou no Carnaval, onde todo mundo brinca de pôr a mâscara que usa durante o resto do ano, o sujeito mostra a mâscara ainda que para isto deva esconder a face. Sabe-se que esse carnaval da cultura cristã foi homologado em substituição à festa totêmica, a qual, disse Freud, ser como um reencontro do Ego atual com o Ego ideal. Onde a alegria ou euforia deriva do reencontro de duas instâncias
II
PROFUNDIS
historicamente separadas no interior ckr str.iciltt' M:tl prt
e
pr..iru-ente o que obrigaria a pensar que o Ideal crttììl)l'('
('ssil
pcttoutra função de união da estrutura identificatória. Potlcr'-sc-i:r lìil manifcst:t se psicose também sar que a paratimia circular da SttPct'pelo equilíbrio regulada n"uròr., embora embastada ou lÌìiìs egs/Ideal do Ego. O neurôtico também se angustia e euforiz'a' A relativizaclas' estivessem (logo, ritmo) o é Jomo se as freãtiências que o podemos acrescentar rigor, tal como vimos formulando, a Ego do que Ideal o enquanto Superego cumpre a função de freio, dc funções das trata-se cle embreagem. Para ot q.t. lêem Lacan, sutura e ruPtura, Postas em jogo' (recalcamento), o Ideal Se o Suprrrgã cumpre a tarefa de freio em direção a um marcha em cumpre a tarefa de pôr o indivíduo
destino sexuado ( ProPiciação).
Ego ideal
Ideal do Ego Ego atual
Ora, se transportarmo-nos ao grâfico da estrutura do sujeito, monolíverificaremos qrrr^o aparelho de idãntificação, não sendo Superatual, Ego ideal, grupo: Ego tico, estâ constituído por este estâ que identificação a .go, Id.ul do Ego. Assim como observamos uma também ê que objeto o provar ,iganïzada em mosaico, vamos estrutura, composta, por sua vez' de subestruturas' A organizàçáop,rlrionul se funda no conceito de necessidade, sempre e tlcscle a óual o-infãns haverâ de pôr-se em marcha, que guie adulto por outro tlrranclo essa necessidade esteja veiculada o por indefeso, qu9, ser posto . srrìcito a um determinado objeto, pilotagem da A ele. até irrÍilns não pode dirigir-se autonomamente construção de uma identifilrtrlsr\rr gperada pelo Outro conduz à isto se demonstra que a Com passiva. caçã. (1.c, em princípio, é
1.2
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pulsão é um dos elementos que têm um peso específico (o da ancoragem no biológico e ancoragem simultânea no inconsciente), mas'não o privilégio de ser o fundador. Frêud costumava caractertzâ-la como "nossa metafísica", "as hipóteses mais gerais do edifício teórico", com o que não desconhece o valor do mãvimento pulsional, mas o inscreve num contexto teôrico. contexto teórico efir cujo seio a discriminação das nomenclaturas de trieb e de instinkt manifesta a pretensão de distinguir a pulsão do instinto, pretensão que fundamenta em Metapsicologia, onde insiste enr ïazer notar que essa pulsão é mais u.á rehçãlo entre o conjunto do biolôgico e o conjunto do inconsciente. Essa relação aiticula a necessidade à demanda, isto é, articula as excitaçôes físico_quí_ micas com a esfera dos represer tantes-representativos. sabemos que uma excitação físico-química da mucosa estomacal (leia-se simplesmente: fome) pode ter um destino absolutamente absurdo. um sujeito pode ter fome e, não obstante, colocar-se o dilema entre ir comer ou ir ao cinema. Então, que tem a ver a fome cóm a p,rtsao escôpica? Sabemos que a fome não se desdobra em cinemãr.op" netn em eastmancolor...
Voltemos ao gráfico inicial:
FANTASMA
DE
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de uma atitude a propôsito de um objeto, vai constituindo-sc mediante "cristalizações". Podemos tomar tais cristalizações onì sua dimensão histôrica. Por exemplo, uh menino que sofre deternrinada excitação: fome. O infans terâ necessidade de apreende r c compreender que se trata de um estímulo endôgeno; isto nos cxplica por que, em Metapsicologia, Freud afirma que são as pulsões as que permitirão ir estabelecendo uma diferença entre os chanra-
dos "mundo interior" e "mundo exterior". Assim sendo, o primeiro esboço de conduta do bebê é liquidar esse estímulo, mas com que, se não vem um outro para tirá-lo isto - é ôbvio - descobre do aperto em que estâ metido, não sai. Ao fim do complexo de Édipo, ao identificar-se com o pai ou a mãie, pode autonomizar, enquanto modelo, o que seus pais ïaziam por ele. Como se vê, a pulsão conduz à construção de um modo de identificação, assim como veremos que conduz a um modelo de objeto. Em outros termos, jâ podemos antecipar que o Édipo é o complexo em cujo curso se constitui um tipo de sujeito, assim como um tipo de produção de objetos sexuais. Nesse contexto, o Ego ideal se associa com a onipotência própria do narcisismo e das identificações primârias, enquanto que o Ego atual corresponde ao efeito pertinente ao complexo de castração. Esta cisão é equilibrada pelo Superego (encarregado de evitar os estímulos que lembrem a cisão cuja simbolizaçío ê a castração) e o Ideal do Ego (tentativa de estrategizar o Ideal de forma secundâria). Cada um desses pólos opera em relação ao outro, posto gu€, enquanto o Ideal ativa, o Superego restringe. A rigor, podemos jâ concluir que o Superego é o encarregado de recalcar, enquanto que o Ideal se encarrega não de levantar o recalcamento, mas de propiciar o desejo associado ao objeto recalcado. Porque, embora o Édipo proíba o incesto e embora esta sexualidade caia sob o peso da censura, isso não é obstâculo paÍa que um sujeito exerça suâ sexualidade. Como vemos, a noção de censura é útil e pertinente, embora insuficiente para explicar uma sexualidade que, apesar de trr clo, se materializa. Ê por isso que devemos cuidar muito de não confundir inconsclcrrte com pulsao e Ë,dipo com estrutura, assinalando que a pulsão ó rrttt dos elementos dessa estrutura e que o tempo em que a mesma se forja ó o chamado tempo ou fase de Édipo.
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DE
DA OBRA DE J. LACAN
É precisamente essa estrutura, a estrufura do sujeito,
que
pretendemos expor na construção deste esquema que se apôia na
articulação dos seguintes textos freudianos: As Pulsões e Suas Vicissitudes, para estudar a estrutura pulsional; Além do Princípio do Prazer, paÍa explicar a c
Correlativamente, quanto à catexia, insistimos que se tta-
ta de uma relação descontínua; descontinuidades ou rupturas
da vinculação libidinal com o objeto que correspondem a uma posição narcisista, fundando-nos, neste sentido, no pensamento de Freud, para quem toda catexia objetiva é um resto de catexia narcisista e com o que o cont(r)aÍo com o objeto nunca é constante ou pleno, mas um alternante de narcisismo/objetalidade. De igual modo, tampouco o objeto é unívoco, posto que também estâ construído. Ele é, vale dizer, multifacetado. O objeto, €h psicanâlise, é, pois, o resultado da operação pela qual à mãe fâlica é subtraida a mãe castrada: operação que lança um resto, isto é, um objeto parcial, então, determinante da eleição objetal ou mais precisamente do desejo: o objetopetit a. A sexualidade humana não é automâtica. Isto quer drzer que a tensão sexual estâ mediada em nossa espécie por uma série de conectores e disparadores que intervêm no jogo sexual da pose, do prazü visual, do ptazer oral, que precedem (causando-o e, ao mesmo tempo, excedendo-o) o prazer de ôrgão; tais jogos não são outra coisa que a manipulação desse objeto parcial tão peculiar. Não é, por acaso, isso o que demonstra Freud nos Trás Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade? Não é, por acaso, tese capital da psicanâlise considerar que a sexualidade humana se estende muito além dos estreitos limites do intercâmbio genital? A sexualidade humana estâ subordinada a determinados símbolos; e ê isso o que Freud, à medida que demonstra, tenta esclarecer. Sinteti-
PROFUNDIS
I.\
zemos a questão principal nos Três Ensaios ou enì (\mlribuil't)r'.s
para a Psicologia do Amor: Qual é o objeto da troc:r'/ () pt'ilo nutrício, o dedo substitutivo, o pênis da felação, its [t'zt's tlir coprofagia? Qual é o objeto do pênis? A vagina, a boca do ottlro, ir mão do outro, a prôpria, o olhar do outro?
Dizer que a sexualidade do homem não é automâtica rtittl:t mais é que uma maneira de assinalar que a mesma não é pré-fornral e sim construída, e que essa construção passa pelos desfiladeiros tla relação do infans com seus pais, sobre os quais se vão realizando os apoios libidinais que permitem a construção do objeto sexual. Os pais em questão são os pais do Édipo no qual se articulam e se associam à maneira dos complexos os pais reais, os pais imaginârios e os pais simbólicos. É precisamente a discordância que intervém entre a imagem e o símbolo o que funda a realidade psíquica e o que Freud tematiza na Novela Familiar do Neurótico, ao discorrer sobre a estrutura de um fantasma onde os pais ideais anteriores à castração são confrontados com os pais denegridos posteriores à mesma. Com isso vamos apontando à introdução da questão do status desse objeto que reçebeu, na conceptualização lacaniana, o nome de "objeto a", e que é o objeto-causa do desejo. Mas, ao mesmo tempo, estamos introduzindo-nos num tema capital: o registro do imaginârio, em cuja dialética se inscreve e exprime esse objeto.
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O SIMBÓLICO, O IMAGINARIO. O REAL AS IMAGENS Seria impossível abordar o tema do imaginârio se não aclarâssemos, de início, os valores postos em jogo no termo. O primeiro deles concerne à noção de imagem. A imagem, tal como aparece no ato perceptivo, é um composto de características visuais. Precisamente sobre o problema da imagem se elucida um questionamento e, portanto, üh debate que atravessa toda a filosofia e particularmente a teoria do conhecimento desde Platão até o Positivismo. Trata-se de indagar como é que um objeto "real" pode passar a inscrever-se. Como é que, estando fora, pode aparecer dentro. A resposta supõe uma impressão sensível que permite transcrever o objeto empírico no eidós aristotélico ou na memôria positivista. Não obstante, Freud se opõe a uma concepção desse tipo, cnì que a imagem é entendida como um "reflexo" unilinear, unívoco, de um objeto material. A imagem é captada e retomada, recuperada, assimilada e trabalhada, de acordo com um complexo cle imagens que precedem e permitem ao mesmo tempo metabolizar a nova impressão. A tese positivista é transformada sob o efeito da operação e somente se ê Írctrdiana: um objeto aparece impresso - osepercepto. rlcntro de um conjunto que torna possível Ilustremos c()m um exemplo: a atitude de um antropôlogo ante um ícone é substancialmente distinta da atitude do nativo da cultura em que tal ícone estâ inserto, mas, ao mesmo tempo, substancialmente
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O SIMBOLICO, O TMAGINÃRIO, O
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distinta da atitude do colecionador. É que o mesmo ícone, que para o antropôlogo é objeto'de estudo, para o nativo é objeto de culto e ritual, enquanto que para o colecionador é objeto de gozo estético, seja em sua f-orma visual ou possessiva. É que o registro simbôlico que cada um destes sujeitos dispõe para assimilar o objeto em questão varia segundo sua inscrição e sua prâtica. De fato, o objeto é assimilado de ttcordo com os prôprios esquemas de pertinência e uso. Com isso fica manifesto que a primeira dimensão do conceito de imaginârio, a dimensão da inragent, nos introduz em uma segunda dimensão: rede de imugt'zs. Antecipando-nos, podemos eSboçar o termo regislnt, segttndo tl qual todos os dados são mantidos e, ao mesmo tempo, retlrganizados de acordo com aqueleS que posteriormente se inscrevem no mesmo. Hâ uma dupla implicação: o registro constituído permite perceber a nova impressão e esta' ao ser metabolizada, modifica o registro. É sobre isso que Freud reflete em Análise Terminável e Inter' minável,l ao questionar-se acerca do valor e eficâcia do trauma. Haveria que perguntar-se o que entendia por trauma, em 1937, precisamente 39 anos depois de ter abandonado criticamente essa teoria. Não serâ que o conceito de trauma, nesse texto, estâ apontando a eficâcia do percepto em relação ao registro constituído? Quando, a propôsito do Homem dos Lobos (v. obra supra), Freud pergunta como é que, havendo esgotado seu primeiro tratamento, o paciente se torna novamente neurôtico, ele diz que isso ocorre porque, em primeiro lugar, havia um resto de transferência não iesoivido; e, depois, porque a psicanâlise não imunr:La. De fato, trata-se do caso de um sujeito cujo registro foi trabalhado, mas não ao ponto de poder metabolizaÍ vma experiência de natureza tão catãstrôfica como uma guerra, o que, no fim das contas, serviu à maneira de quase-causa na recaída do Homem dos Lobos. A noção de imaginârio nos remete, então, a este nível duplo: imagem e rede ou registro. Pelo lado da imagem' encontramos - é absolutamente ôbvio - o olho. Dizet olho ê nada menos que nomear o primeiro aparelho de coordenação do espaço. Se o bebê nasce premafuramente, com um processo de mielintzaçlo ainda
REAL
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inacabado, ê natural que o primeiro aparelho de apreensão e controle do espaço hâ de ser anterior à motilidade; tal aparelho não pode ser outro que o visual. Naturalmente, o aparelho auditivo vai ter muita importância; não obstante, pela força ou valor estrutural que lhe é prôprio, a visão tem a mâxima eficâcia no processo de construção de um "campo". Insistimos: o olho do infans de homem é um olho que começa aperceber, registrar e organizar desde muito antes que o organismo possa mobilizar-se e deslocar-se fisicamente nesse campo, com o que estâ cumprindo uma função de "antecipação" .''Ê, então, o primeiro aparelho de controle, de conexão e de contato com o chamado mundo exterior. Esse aparelho registra em sua histôria um momento fundamental: o estâdio do espelho. Que é o estâdio do espelho? Trata-se de um espelho e de um filhote de homem entre seu 69 e 189 mês, que se confrontam. Claro que, aqui, talvez convenha esclarecer que o espelho para o qual se orienta o olho do infans não é outra coisa que um olho... o olho da mãe, em posição especular. Assim, a imagem que nesse espelho se reflete é uma imagem que condensa - à maneira de rede - certas exigências, demandas, pedidos que se orientam ao nosso pobre diabo de sujeito, e cuja origem é remota, se encontra na histôria do desejo materno. Tomemos um exemplo: a mãe e seu filho. Ela, que o olha, lhe sorri, com o que recebe em resposta o sorriso do menino, do qual sabemos (demonstrado por R. Spitz) gu€, desde o 39 mês, percebe a gestalt de um rosto sorridente, ao que sabe responder. Essa mãe, pois, que recebe o sorriso em resposta, se maravilha e começa a supor que seu filho "quer dizer-lhe algo", que é "como se quisesse falar-me"; assim inicia um diâlogo sui generis e que pode chegar a durar toda a vida de nosso sujeito, no qual a única palavra Íormuladaê a da mãe. De toda forma, esse intercâmbio de palavras maternas com os ronrons e sorrisos do bebê tem um ponto de apoio Íundamental: o olho que se olha no olho que o olha. Neste espaço óptico se constitui um intercâmbio libidinal, gu€, no fundo, nada nrais é que um intercâmbio de fascinações recíprocas. Como corolârio, o olho não é tão-somente o primeiro aparelho rlc controle da realidade, mas sim o primeiro aparelho de apreensão 2. l,ucan, Jacques - "1* Stade du Miroir comme Formateur de la Fonction du Je". ht' l.|rrit,t.ltnris, Eclitions du Seuil, 1965, p. 93. Todas as citações de Ecrits referem-se a esta
1. V. O. C., ed. cit., t. III,
P. 540.
nr
llç âo.
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libidinal numa dimensão mediata com a mãe. Com efeito, o olho é herdeiro, a seu modo, do cordão umbilical. Mas essa herança não supõe uma mera troca ou um mero deslocamento de lugares, dado que, qualitativamente, o olho se acha inserido numa descendência. Esclareçamos isto dizendo que ao conector concreto e contínuo que é o cordão umbilical sucede o conector discreto do intercâmbio
peito-boca, e, agora, se trata de um conector cuja materialidade não é nem a do cordão e nem a do leite: ê a materialidade não perceptível a olho nu do raio ôptico. Deste raio não perceptível, a única coisa registrâvel são seus efeitos: o olho do outro (de fato, o olho da mãe). Para precisar a importância que reveste esse campo de problemas nos escritos freudianos, recordaríamos a elaboração com que Freud fecha seu estudo sobre a pulsão, €ffi As Pulsões e suas Vicissitudes.3 Ali, ao estudar o destino das pulsões, constrôi uma seqüência que vai desde a pulsão visual (voyeurismo-exibicionismo), passando pela pulsão oral e anal (sadismo-masoquismo), atê aforma final da organizaçlo pulsional (amor-ôdio). É evidente, nessa seqüência, a importância do olho como organizador pulsional, jâ que é ponto de partida de uma série cujos resultados serão a construção de uma identificação (na etapa anal onde se constitui o Ego) e a elaboração do conflito que distingue toda catexia com a marca da ambivalência. Podeúamos resumir: o olho se acha na base de toda identificação que necessariamente sempre supõe a presença do outro. Deste modo, quem dizimaginário, dizimagem e quem dizimagem pode dizer espelho e rede. Mas também é certo que quem diz ímagem pode querer dtzer ilusão. Que garantia temos sobre a "verdade" de uma imagem? Por exemplo: vemos levantar-se e pôr-se o Sol; mas, a rigor, o pobre Sol não faz nem trna coisa nem outra. Em outras palavras, dizer imagem obriga a precisar se se trata de uma imagem percebida ou de uma imagem produzida. É que o registro do imaginârio ê nada menos que a sede dos fenômenos da ilusão. Paraaclarat esta questão, devemos retomar alguns conceitos relativos ao estâdio do espelho. Nesse estâdio, o corpo se organiza atrat ês do olhar do outro que
3. In: Metapsicología,
O, C., ed. cit., t. I, p. 1039.
o stMgótlco, o tprlctNÃnlo, o
REAL
zt
A integração de seu corpo fragmentado será um resultado de sua coordenação motora e a antecipação que da mesnÌa realiza o fenômeno óptico especular. Esclareçamos, antes de prosseguir, que essa fragmentação resulta da "parcialidade" da informação orgânica, posto que a informação que o corpo fornece é necessariamente focal, daí que seja precisâvel. Uma dor nos molares é localtzãvel pelo percipiens em função de que as sensações são precisas, apesar da auréola que pode envolvê-las. O fato de que um sujeito possa transcender a informação corporcl ê conseqüência direta da constituição de uma "imago" (imago que também se verifica na psicologia animal; conf. K. Lorenz) que permita unificar numa gestalt todos os elementos em jogo. Com isto, cabe concluir que a constituição do Ego é absolutamente solidâria com a constituição de uma "imago" em que intervêm redes de significações alheias ao percepfum, como é o caso da exigência materna na fascinação especular. Assim, a percepção é absolutamente congruente com o fenômeno da ilusão, de onde se infere que falar de imagem, em psicanâlise, exige falar de uma imagem produzida, o organiza.
leia- se sobredeterminada.
Pois bem, quem dn ilusão pode tranqüilamente pensar em O Futuro de uma llusão, texto freudiano em que esta fica equiparada ao fantasma; e falar do fantasma é algo que remete novamente ao olho. Não é o fato de a fantasia ter uma disposição visual o que F'reud explica ao esfudar os mecanismos do sonho sob a denominação de "dramatizaçio' '? No devaneio diurno, a personagem associada a uma reprodução ideativa (seja a de um diâlogo ou a de uma situação) vá desfilar diante de si as imagens do acontecimento. atê, que, subitamente, surpreende a si mesma gesticulando, comLì se cstivesse dentro do acontecimento evocado. Não é este um cla.'o cxemplo da determinação que pode chegar a ter uma imagem sobr. o registro da motilidade corporal? Quanto ao fantasma inconsciente e ao sonho, não é necessârio insistir: sua disposição é sempre visual, sempre dramâtica. Mostrar a incidência do registro visual pode levar-nos agora a entender o grande drama de Freud com as fantasias, desde 1895 a 1915. Mas antes de abordar o drama teôrico de Freud, poderíamos tthrrrclar o drama da ilusão, com o infuito de entender sua equipat'tçikr com o fantasma. l'rra isso, suponhamos dois indivíduos num universo: o sujeito
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a, e o sujeito a'. Para evitar maiores abstrações, digamos que se ê absolutamente trata de uma mãe e seu filho. Nesta relação
possibilidades produzem-se intercâmbios e não hâ muitas claro paÍa se pensar no quc vai ser trocado. Tratando-se de mãe e filho, a troca ocorre no circtrito scio-boca. Porém, alénr
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IMAGINÃRIO, O REAL
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trata-se de seu complexo de castração, complexo no qual o sujeito aprende a ser tantõ sujeito de desejo como objeto do desejo do outro. Se o sacrifício materno se esboça em um destes pólos: ser
objeto do outro, no outro pôlo se reÍação ao outro. Neste contexto, não pode deixar de perceber que uma diferença de atributos, que sentada por ('):
ito em
o bebê mãe é repre-
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@ Assim,sendo, lhe bastarâ pensar que, dispondo dessa mesma murc4 poderâ igUalar-se à mãe... e é desta forma 9üe, no curso do tlesenvolvimento, o bebê tentarâ apropriar-se do atributo materno, l)rocesso que, em psicanâlise, recebe o nome de identificação. O rcsultado da operação é que, mediante a incorporação da marca, o
lrcbê, neste caso, apagou toda a distância ou diferença que o rlistingui a da mãe. O resultado da operação é, pois, uma ilusão.
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4* lìÍetivamente, se nos apresenta uni paradoxo' seggndo o qual, rorrrkra cliferente de c', ambos ficaram homologados: 4': a'. Esta llrrrlto ó formulada em todo discurso infantil, sob múltiplas formas: "c1 sos u mamãe", díz amiúde a menina; "eu sou o papai", diz o rrr
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Nessa igualação coexistem simultaneamente uma verdade e uma mentira.' Ê, a verdade e a mentira que Freud denuncia em Construções em Psicanâlise a e que subj azem em toda fantasia. Assim, todo fantasma registra um núcleo de verdade histôrica, e seu status não se limita a uma pura imaginação, uma pura iluso' riedade.
A esta altura,
se nos inrpõe a seguinte conclusão: falar de
ilusão ou de fantasia é falar cle uma relação com o outro, é também falar de uma rclação com esse objeto peculiar, o objeto a e, finalmente, falar do dcsejo. Precisamente, o outro remete à questão da
identificação soh seu matiz, ideal (ou ilusôrio), enquanto que o clesejo rcmete à relação que essa identificação estabelece com um objeto. Era isto que queríamos explicar quando, no capítulo anterior, dizíamos que, no fantasma, não aparece nem o objeto nem a identificação, e sim a relação catética que se estabelece entre ambos os pólos.
Nas teorias sexuais infantis podemos relevar esse aspecto. De acordo com a clâssica teoria cloacal, quando o menino diz que os nenês nascem pelo ânus, estâ informando que a sua é uma posição anal em termos pulsionais. Mas, ao mesmo tempo, estâ dizendo gu€, posto que é dotado de ânus, não lhe estâ vedadaa capacidade de procriar, com o que nos revela o fato de achar-se identificado com a mãe. E qual é o objeto dessa identificaçío? O filho. Mas se trata,
aqui, de um filho muito peculiar, jâ que é pensado em tudo igual a si mesmo. Trata-se, pois, de um outro, narcisista. Resumindo, a teoria cloacal nos informa de uma identificação com a mãe, em busca de um objeto narcisista, em posição anal. Não é, pois, um dado unívoco, senão plurívoco ou polissêmico. É isto o que queremos sublinhar quando, recorrendo a uma linguagem positivista, dizemos que a fantasia é uma variâvel dependente da identificação, do objeto e da relação de catexia que os une. "Eu sou mamãe", "eu sou papai" - dizem as crianças. Ainda que se trate de uma ilusão, nenhum analista duvida da verdade desse enunciado, a tal ponto que o interpretamos como a realidade específica do desejo. Em outros termos,.vemos nessa afirmação uma pretensão de suprimir a distância que medeia entre o sujeito e seus progenitores, uma afirmação do sujeito sobre a base de uma ilusão. 4. V. O. C.,
ed. cit., t.
III,
p. 573.
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IÌI:AI,
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Posto que mostramos a congruência do rcgislro inritgituirirl com o universo do fantasma, recorramos à histôria rkr lrcttsatttcttto freudiano. Desde 1895, desde Estudos e Psicoterupiu du IIi.strriu, l.'reud nos manifesta confrontal-se amiúde com fantasias tlc ciu'iilt't' visual ou de acentuado carâter perceptivo na etiologia das Itcttroscs pelas quais é consultado: Ana O, vê seus dedos transfornì:u'cnr-s(: cm serpentes; Catalina, doente depois de haver visto o que ela ttrìtr pode ïazet... Se recorrêssemos a todos os histôricos freudianos, tlesde o estudo da histeria em diante, poderíamos tranqüilamentc obseryar como o nôdulo em que Freud parece rodar no vazio é essc nódulo que tem que ver com uma experiência de carâter perceptivo c cinestésico na origem ou etiologia de todo o drama neurôtico. Desde as primeiras investigações, Freud faz notar a mâxima incidência que sobre a organizaçío do sujeito tem esse nôdulo ao qual deu o nome de traumc, mas encarregando-se (diferentemente rla noção kraepeliniana) de insistir em relação à sua natureza sexual, c encarregando-se, ao mesmo tempo, de assinalar que a forma tlessa sexualidade é a de uma "sedução por um adulto". Não obstante, essa teoria apresenta fissuras que o prôprio lìreud percebe. No histôrico de Catalina, ro curso da epícrise, observa:
"A doente aceitou como verossímil tudo o que eu interpolei em seu relato, mas não se achava em condições de s reconhecer se havia vivido tudo isso realmente." O dilema de Freud consiste em certificar-se do carâter perceptivo dos acontecimentos que Catalina situa na causa de seus sintumas. Dito em outros termoS, a mesma epícrise, aS mesmas prinrciras três frases da epícrise, revelam a crise da teoria de Freud na
de indagar se o trauma, cuja marca é evidentcntente perceptiva, corresponde a um percepto exato, e Freud, ncssa velha epícrise, tem a crise de uma suspeita, da qual ele nlcsmo fala: é provâvel que as crianças saibam sobre sexualidade tttuito antes do que os adultos supõem e muito mais do que elas nrcsmas acreditam. Em Freud, estâ ruindo uma teoria do trauma. Ou melhor, estâ l'rtittdo uma concepção segundo a qual o trauma é o resultado de
é1lrrca. Trata-se
5. ('f. LuHisteriq-2.HistorislesClínícos:Catalina.In:O' C.,ed. cit.,t. l,p'77'
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DA OBRÂ DE J. LACAN
um episôdio terrível, de características catastrôficas, inscrevendo-se da mesma forma terrível e catastroficamente no psiquismo. Simultaneamente com a crise dessa concepção começa a reivindicar algo que nela subjaz: o trauma fantástico. É gu€, a partir de 1g95, ãa
noite de 23 paÍa24 em que é produzido o sonho de lrma, o primeiro que recebe interpretação psicanalítica, Freud se dedica ao estudo dos sonhos. Em alemão: rraum. Que é, pois, o traum (leia-se sonho), senão uma mistura de restos diurnos e desejos inconscientes, uma espécie de coquetel batido de realidade e irrealid ade? O sonho é uma realiclade tratada irrealmente ou uma irrealidade tratada realmente... ainda que, talvez, convenha pensar - sugere a obra freudian a que se trata de uma realidade tratada realmente se tomamos -como real a realidade do desejo. porque, a rigor, se consultarmos um dicionârio alemão (o Langenscheidt) vamos encontrar que o termo traum alude apenas às realidades do sonho, da imaginação e da fantasia, nío flazendo alusão alguma à idéia de golpe ou impacto, com que geralmente se interp reta, desde uma velha concepção psiquiátrica que tende a confundir o efeito com a causa, o fantasma com o impacto, o traum com o percepto. O único golpe que se acha na teoria do traum é o golpe crítico que a psicanâlise dâ ao academicismo psiquiâtrico alemão. Ao abordar o traum (ou seja, a composição onírica) como objeto de estudo, descarta as regras com que a realidade do estímulo passa a ser tratada de acordo com a realidade do desejo do sujeito: deslocamento, condensação, dramatizaçlo e elaboração secundâria. Com isso, Freud começa a suspeitar que, mais que de um acontecimento, essa sexualidade nos fala de um sonho; mais que um acontecimento, é rlma construção de carâter sexual cuja foima é a de uma sedução. Ë assim que, na Autobiografia, r'reua recorda a primeira definição da etiologia da histeria, para criticâ-la: Não é uma sedução efetiva a que provoca a neurose, mas fantasias traumâticas de sedução. Insistimos: quem diz fantasias traumâticas diz fantasias de eïeito ilusório. São fantasias, imagens de efeito ilusôrio, o que se encontta na gênese de uma histeria, quando esta nos informa que o "papai a violou numa noite de lua cheia, contra um muro, à beira-mar... "
O SITVTBÔLICO, O IU.ICINÃRIO, O REAL
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OS FANTASMAS Em 1905, Freud escreve algo que lhe serve muito: Três Ensuios Sobre a Teoria da Sexualidade. Dizemos que lhe serve muito, porque, na realidade, é velha a observação segundo a qual na etiologia do drama neurôtico ou histérico articula-se toda a sexualidade. O problema radica na possibilidade de teorizâ-la, de explicar a razío da emergência dessa sexualidade. Em seguida a Três Ensaios, Freud parece jâ ter um background, isto é, um corpo teôrico de referências onde explicitar a natureza sempre sexual dos sintomas que analisa. Sobre este fundamento, Freud começa a escrever. O quê? Leiamos a seqüência de sua produção: 1905: Sonhos e Delírios na Gradiva de W. Jansen. 1907: Atos Obsessivos e Práticas Religiosas. Criação Literâria e Sonho Diurno. 1908: Teorias Sexuaís das Crianças. 1909: Novela Familíar do Neurótico. 1910-17: Contribuições para a Psicologia do Amor: Acerca de uma Eleição Especial de Objeto no Homem. Degradação Geral da Vida Erótica. O Tabu da Virgindade. l9l3: Totem e Tabu... A partir de Totem e Tabu, o fantasma é universal, e é esta runiversalidade eu€, definitivamente, vai apertâ-lo, pois para explicá-la se verâ obrigado a recorrer a uma débil teoria da filogênese e cla transmissão hereditâria do inconsciente. De qualquer modo, o que interessa essencialmente destacar no pensamento de Freud é cssa evolução que vai do traum à "fantasia traumâtica" e desta aos "protofantasmas", evolução pela qual a produção imaginâria não sô não fica limitada aos neurôticos, mas sim, além de ser universatizrcla, é estendida a toda a espécie desde o alvorecer da histôria. Em Totem e Tabu, apoiando-se na evidência clínica e na rvirlência antropolôgica, Freud propõe que os fantasmas são univcrsnis, tão universais como a prôpria histôria. Então, na verdade, olre chamado "núcleo de verdade histôrica" que Freud reconhece cttt ('rrn.rtruções em Psicanôlise tem a ver com a prôpria historit'klndc do homem. E que o fantasma é histôrico, desde que nenhum srrieilo afirma aos 25 anos de idade, salvo que interceda uma severa
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DA OBRA DE J. LACAN
patologia, gu€ os bebês nascem pelo ânus, apesar dessa teoria (a cloacal) ter sua mâxima eficâcia no complexo àe Éaipo. ' como fica a teoria da sedução depois de tudo isso? Notemos
6'
Lacan, Jacques
Nueva Visiôn. 197O,
p.
107
Las Formaciones del Inconsciente, -et seqs.
Buenos Aires, Editorial
O SIMBOLICO, O IMAGINÁRIO, O
REAL
29
de imagem, dissemos que quem dtz
imaginário du imagem e quem posto que o efeito de toda imagent ó diz imagem, dtz ilusão,
ilusôrio. Efeito ilusôrio que não tem vigência se não hâ um outr
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DA OBRA DE J. LACAN
O SIMBÓLICO,
briga com mamãe, fundamento do conteúdo da fantasia do coito parental sâdico. Penso que estes poucos elementos bastam pata deixar clata a noção de organwação e entrelaçamento nas redes do fantasma. Mas, se prosseguirmos, poderemos obseryar como essa trama se prorroga na evolução do registro imaginârio, mediante outro entrelaçamento: a típica e monótona fantasia Espancam uma criança. Por sua vez, essa estrufura se articularâ na Novela Familiar do Neurótico. Finalmente, esse entrelaçamento se reordenarâ nas fantasias que regem a sexualidade do adulto e que Freud descreve em seu trabalho: contribuições para a psicologia do Amor. Definimos, assim , a flantasia, como uma cena imaginâria na qual aparece figurado o sujeito, de múltiplas maneiras. É o caso de Espancam uma Criança. A formul ravés da anâlise é: papai bate num otttro, o rival. Onde estâ o sujeito da fantasia, ne que, ao não aparecer o sujeito, torna-se necessârio construir uma estrufura intermediânaentre o produto da anâlise (papai espanca o rival) e o produto da consciência (um pai anônimo, espanca um menino indeterminado). Sô a construção desse passo inìercalar e intermediârio pode explicar-nos a transformação que sofre a primeira versãÒ na qual o agente e o sujeito estão presentificados, numa versão final na qual todos os termos se anonimizarum. A construção freudiana revela gu€, no produto-interc alar, o sujeito espancado é o próprio menino. Definitivamente, Freud rãconstrbi o enlace do sujeito com a cena. E, agora que temos o enlace, como objetivâ-lo nas versões manifesta e latentõ? Como aparece o'sujeito nessa fantasia? De múltiplas maneiras: ou identificado com o pai espancador (sadismo) ou identificado com o menino ^É (masoquismo) ou identificado com o açoite (fetichismo)."span.ãdo nesta economia de identificações que fica reprimid a, e ê em função da censura que o enunciado se anonimiza encobrindo, como efóito, o lugar e a posição do sujeito na versão pós-edípica que ê o Espancam uma Criança. Dado que esse registro tem tanto a ver com o outro e com a imagem do semelhante, podemos inferir que falar de fantasia individual é uma utopia. A fantasia sempre se apóia no outro, nos outros. Moral da estôria: as formações do inconsciente têm uma ordem de realidade indissociâvel da ordem social; digamos sim-
o IMAGINÃRIo, o
REAI,
3I
plesmente: o fantasma é social e é por isso que sempre conccrno :ro socius.
Efetivamente, o problema que a fantasia registra é o rlc conro metabolizar o socius, de tal modo que se nos impõe a idéia tlc quc o fantasma ê conjuntural. A conjuntura em que emerge o Espurtt'unt uma Criança é a conjuntura do complexo de castração no curso rlo ÉOipo. Antes de tudo, convém insistir em que falar de castração implica falar da separaçio de uma mãe de seu filho, e convénr sublinhar que o instrumento com que é produzida essa separação é sempre um símbolo. É que nenhum pai amputa o pênis de seu filho, assim como nenhum filho mata literalmente a seu pai, ao menos no curso dos primeiros cinco anos de vida. Definitivamente, os fantasmas de castração, assim como os de morte do pai, traduzem uma situação mais simbôlica que concreta. O que acontece quando um pai não é simbolizado? Geralmente é representado por seus atributos mais literais e concretos: seu sadismo, sua brutalidade, sua impotência, ou, como no caso do pai do magistrado Schreber, poÍ sua postura pedante. E esta postura pedante a que se acha no fundamento do delírio schreberiano, que finalmente o conecta com Deus na mais flagrante das gozações . Espancam uma Criança é, pois, uma fantasia pertinente ao complexo de castração; é, definitivamente, uma simbolização desse complexo. Convém esclarecer, em tudo isso, que o lâtego aparece como instrumento de uma castração llteralizada, isto é, não simbohzada. Ora, neste contexto, não nos seria possível afirmar que o lâtego é um pênis, pela razáo de que "às vezes, um charuto é apenas um charuto", conforme diz Freud. No entanto, poderíamos convir em que o lâtego substitui o pênis, à medida que tanto aquele como este remetem a uma estrutura comum, o que nos introduziria na necessidade de operar com uma teoria correta do símbolo. Ou, para precisar mais a tendência de nossa formulação: uma teoria correta Bcerca da correspondência do registro imaginârio com o registro rlmbólico. A fantasia é, portanto, uma cena na qual aparece o sujeito sob dlversas formas. Isto se pode observar muito bem se tomamos o eromplo dos sonhos ou de determinadas formações marcadamente rojressivas em que o Ego do sujeito não estâ representado, e a imgtrcssão do sonhante é mais bem a de uma câmara que registra a cen&. Neste produto de matiz tão arcaico, a cena teria uma dimensão
I
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O SIMBOLICO, O IMAGINÃRIO, O REAL
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cujos versos se esgotam em inumerâveis séries de atributos femininos, onde o cabelo, os olhos, a boca, ficam ressaltados em sua
de quase anonimato, de dessubjetivização, não fosse pela impressão de o sujeito achar-se fortemente ligado ao drama. Isto é o que nos indvzapensar que o sujeito figura, mas sob formas não determinâveis de início e à primeira vista. Daí a dificuldade que, no trabalho e na aplicação clínica do método, geralmente se estabelece na interpre-
enômeno ilusôrio, o imaginârio ê erdade histôrica. É esta ordem de titui no símbolo. Seria necessârio tletermo-nos para refletir a respeito da expressão freudiana "verrlade histôrica". J^ não se trata de uma verdade factual como nas ópgcas herôicas da teoria traumâtica à kraepeliniana: trata-se da história e sua plena vigência no campo inconsciente. Como explicar essa verdade que acompanha toda a ilusão? Na tcoria cloacal afirma-se que as crianças nascem pelo ânus materno. A verdade do enunciado reside em que o infans estâ pensando o parto a partir do plano de sua etapa anal, posto que o material iitriainuf disponível é este: o processo anal e sua correspondência com o carãter. Em outras palavras, a criança pensa essa teoria com o ônus. Êi aaique deriva averdade de sua fantasia e é em direção a essa verdade que se orienta a interpretação analítica.
tação dos sonhos, se não se dispõe de uma teoria correta que permita admitir que o sujeito aparece "multiplicado" nos elementos e não representado num exclusivo elemento da composição onírica. Então esse registro imaginârio que se manifesta em produções anônimas nas quais o sujeito pode aparecer de múltiplas maneiras tem uma determinante que concerne fundamentalmente ao outro, mas ao mesmo tempo concerne ao desejo: Por quê? Porque ê precisamente mediante imagens, figuras, formas, que o inconsciente pretende traduzir esse inef ãvel, inexprimível de catexias, que é a vinculação da identificação com o objeto.? Este inefâvel ou inexprimível é o que recebe, na teoria de Lacan, o nome de fading do sujeito e cuja forma é: I O a. O termo fading, cuja origem é inglesa, ê tradvzível por desaparecimento ov apagamento. A fôrmula em questáo ê, pois, traduzível: apagamento do sujeíto. Este apagamento não é alheio à aparição que lhe é correlativa do "objeto a". Voltemos a este objeto peculiar, postó que se sabe que não é qualquer elemento que suscita o desejo, mas um atributo peculiar cifrado no olhar, no gesto, na expressão, um traço peculiar. É sobre o "saber" acerca desse objeto que se apôia a erudição (eros dicção) da histeria, que tranqüilamente pode desenvolver expressões, maneiras de se vestir, maneiras de parar, de sorrir, de piscar, mas nunca maneiras de deixar cair a roupa. É que a histérica sabe, melhor que ninguém, que, ao deixar cair a roupa, choca com sua desnudez, mas não fascina com uma ilusão. O sujeito desaparece frente ao objeto parcial. Que significa esta definição? Não se trata tanto de um desaparecimento, senão de um apagamento ou, melhor ainda, arrisquemos o termo: velamento. É a embriaglez do enamoramento frente ao objeto que se hipervaloriza, e cujo efeito é esse estado de embriaguez que consegue enumerar os atributos do objeto. Para exemplificar, bastaria lermos a poemâtica do amor,
7.
A VERDADE
A interpretação se orienta em direção à verdacle, em
cujo
vclumento labora o sintoma. No seminârio intitulado Encore, na Vll conferência, Lacanafirma: "Até agoÍa, nada do conhecimento Irumano foi conseguido sem que nisso participe o fantasma eninscrição de liame sexual." tluunto E
É como se Lacan formulasse não só uma tese da universalidade
rln fantasia (iâ fcrmulada por Freud)' mas também uma tese da lrrcvitabilidade, da inexcusabilidade da mesma. Isto contradiz certu ideologia analítica, segundo a qual a anâlise deveria promover rrrl ntaior ajuste do sujeito à realidade, para o qual é indispensâvel lrubulhar na dissolução das fantasias, que operariam à maneira de ugcntes obstaculizadores do conhecimento. Pelo contrârio' a experlêtrcia nos prova que uma anâlise não as cerceia e, sim, aS pro1lovc. É que as fantasias seriam indicativas dessa ordem de realill.
Cl. op. cit., p. 116.
I rllllottr
t-..Õ._
/,r' .ïr'nrinoire, lívre
rlrr Seuil, 1975, p. 76.
XX: "Encore"
CURSO E DISCURSO
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o sttvtgÔLlco, o ItvtlctNÃRlo, o REAL
DA OBRA DE J. LACAN
dade constituída pela pulsão que promove exigências no orga-
Mais adiante, comentando a teoria de Max Müller a prop(rsito da origem do fogo, que dizia: "O fogo é filho de dois pedaços tlc madeira" Bachelard, com fino humor, replica:
nismo.
Gaston Bachelard, cuias preocupações epistemolôgicas são bastante conhecidas, enì Psi<'unálise do Fogo se interroga sobre como ocorreu ao homeltt rkrrrrcsticar o fogo (o mais inapreensível de todos os elementos). É quc rrllo se trata de domesticar um bicho concreto, como íÌ v:rcír orr o cachorro, mas um fluido suficientemente instável piìra scr', ao rÌìesnì() tempo, sumamente perigoso...
-
"Haveria tantas coisas que contar sobre o fogo e eis aqui justamente a primeira: que era filho de dois pedaços de madeira. Por que filho? Quem foi seduzido por essa visão genética? O homem primitivo ou Max Müller? É necessârio admirar-se que esse fogo, fruto impuro de um amor solitârio, se veja marcado pelo complexo de Édipo."tr
"S
Bachelard, em sua concepção, afirma que é o fantasma quem participa como piloto do conhecimento humano. É um saber "pcrfeitamente íntimo", o saber sobre a caricia e a masturbação, o que funda o conhecimento do fogo. Não é, acaso, da carícia que brota a chama do amor? E não ê da masturb açáo que brota o chamado ao amor? A demonstração bachelardiana . insiste na
incendiada por um raio... em sua desnudez contra a intempérie pode ter corrido para esquentar-se com isso. Não teria sido melhor a fuga se fosse um animal como os demais animais? o aspecto do fogo espanta a maior parte dos animais, exceto aqueles cuja vida doméstica os haja acosfumado... Mas, inclusive, após ter comprovado os aspectos benéficos do fogo que lhe oferecia a natvreza, como pôde conservâ-lo? Uma vez extinto, como pôde saber acendê-lo novamente? " e
llreeminência do registro imaginârio.
Mas, então, acaso é fudo pura fantasia? Acaso é tuclo pura llusão? Acaso é tudo pura.imaginação? Não. Não totalmente. Já rlissemos que esse registro do imaginârio se distingue de uma ordem de fenômenos - a ordem do simbólico. Afirmamos, sem rudeios, que o fenômeno da fantasia excede a ordem imaginária. Assinalamos, também sem rodeios, que na base do fantasma existe um ponto de verdade. Para reforçar essa verdade, fizemos uma unôlise do processo pelo qual um sujeito a se torna anâlogo a um rqieito c', mediante a incorporação do atributo diferencial. Como cÍeito dessa incorporaçáo se produz vma ilusão pela qual o sujeito re acredita igual ao seu progenitor, mas ao mesmo tempo se produz unur verdade, o filho denuncia, deste modo, as fontes (poderíamos
E Bachelard, um leigo em psicanâlise, responde do seguinte
modo:
"Se tentâssemos sistematizat as indicações de uma psicanâlise especial das intenções calorígenas, seria fâcit convencer-nos de que a tentativa objetiva de produzir fogo mediante fricção é sugerida por experiências perfeitamente íntimas... "lo
p.44.
9'
Bachelard, Gaston
-
Psicoanôlisís del Fuego. Madrid, Alianza
Editorial,
ì5
rlizcr: a bibliografia) de sua identificação. Ê precisamente nesse sentido que se orienta o esforço da escola klcirriana, quando tenta estabelecer a diferença entre o objeto lrtlerno e o objeto externo. Estas categorias, sem serem errôneas, são IttsrrÍicicntes, devido ao fato de não nos explicarem nada acerca da rrnlurcz.a do objeto externo e a possibilidade de distingui-lo do 1966,
10. Ibidem.
ll l-iÊ"-
lhidem.
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CURSO E DISCURSO
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DA OBRA DE J. LACAN
"objeto interno". E que todo objeto, no psiquismo, é um objeto interno; mas, então, o problema é: como decidir se tal objeto se ajusta ou não ao objeto (pretensamente) real? Surgem, aqui, duas possibilidades: ou o critério de autoridade ligado à pessoa do analista, que estaria em condições de discriminar ambas realidades, em cujo caso estaríamos desconhecendo a existência do inconsciente na pessoa clo analista; ou a construção de um parâmetro teôrico que nos explique a coincidência e discrepância de ambas as orclens dc objetos. Retomemos nosso exemplo para tentar prosseguir nesta linha de produção do parâmetro explicativo. Em nosso exemplo do processo de igualação, formulâvamos que a ilusão se produz a partir da incorporação de um dos termos de determinado atributo que define o outro. Por este processo, dois diferentes se transformam em semelhantes:
a. p,.uJ
ï' t* ; "'ïÏ-Ï'".::ï,"'tas
Enr qüência, em seu registro simbólico, o gesto é interpretável ".,",:l com() uma proposta de intercâmbio de flores: o cravinho dela, pckr hotão dele. O gesto revela, deste modo, a latência de sua realidacle, quc se clefine precisamente no intercâmbio intervindo sobre o desejo. Já que estamos na palavra de amor, tomemos um significante privilegiado, no discurso de um homem na letra do amor. Trata-se do aparecimento, no discurso, de um sintagma sem aparente conexãcr com o resto do discurso: "Ah, conhecer Silvina". Nosso sujeito reconhece imediatamente o significante principal, Silvina, cuja ussociação lança os seguintes termos: Sibilina, Cibelina, Cibeles, ('eres e Eres. Deste modo, estamos diante de um sintagma, um de cujos significantes abre o eixo à cadeia paradigmâtilca. v:rção
"Ah,
conhecer Silvina"
Sibilina Cibelina
a*
Cibeles
Ilusão de igualação que responde à realidade do desejo
Eres...
Ceres
Nosso sujeito reconhece imediatamente que as profetisas (srái-
linus, em espanhol) são mulheres que adivinham o futuro, ainda t;uc de forma obscura, difícil de apreender. Cibelina aparece como luììa típica "ponte de palavta" Qâ, gu€, segundo nosso sujeito, ('nrcce de significado preciso) e cuja função, nesta cadeia, é a de.
Essa igualação ilusôria contém, não obstante, a realidade do desejo do sujeito de constituir-se à imagem e semelhança do outro. A ilusão tem seu nível de realidade, e é sobre ele que opera a interpretação analítica. É esta a verdade da sessão, a verdade do
irrlroduzir por homofonia o significante Cibeles. Cibeles, por sua va't,, personifica, na mitologia romana, a deusa da Terra e .{os rrrrirrrais, encarnando, em conseqüência, as forças naturais e, Lo nrcsrììo ternpo, era mãe de Ceres, deusa da agricultura e da fecunrlirlutlc. A série culmina com a menção daquela palavra em que as rlcrnais desaparecem: eres (em espanhol; és em português): purár ('onrt)rovação factual de uma presença... e renuncia, conseqüenlerrrcnte, a qualquer outra enumeração. Podemos concluir que a entlciu pcrmitiu desvelar uma contradição, ao estrategizã-la. Efetivurrrcnte, a transição existe a nível de oposição: "incerteza do olrscrrro p
inconsciente, a verdade da chamada "palavra plena" na teoria lacaniana. Esta realidade consistiu numa tranformação de nosso sujeito eu€, apropriando-se de um certo atributo, ê, agota o representante do outro. Converteu-se num símbolo do outro. Neste caminho, surge-nos a perspectiva segundo a qual todo registro imaginârio remete a uma ordem simbôlica. E, posto que tocamos no tema do amor, voltemos à questão para apoiar esses exemplos. Tomemos um gesto prôprio do amor galante, em que o namorado entrega uma flor à amada; a leitura do gesto, como sabemos, tem dois níveis. No primeiro nível (imaginârio), a entrega da flor alude a essa delicadeza que define o amor cortês. Mas, no segundo nível (simbólico), se ïaz patente a obser-
LÕ-
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DA OBRA DE J. LACAN
permite resolver a oposição: cortezalincerteza, e é esse o proceso de simbolização estabelecickr no significante de nossa cadeia. Neste sentido, coincidimos conì livi-Strauss, que define o mito como uma tentativa de estrategizar c resolver um enigma insolúvel em princípio. Embora adotatrrk) urììa postura analítica, sabemos que a interpretaçáo não se csgolaria ncsse nível. É que mal podemos interpretar o sintallnìír, a p:rrlir tlessa seqüência exclusiva, se não incluirmos os dernais signifit:anlcs: conhecer. Consultado, nosso sujeito associa o ternto t'onhec(r ao uso bíblico de tal verbo e cujos sentidos são tarrto o tla aprccnsão r':rcional como o da côpula carnal. Cotrtutkl, l)()r srra vc'r,, () tcrrrro Ciheles, do paradigma inaugurado cnt Silvinu, iltlrotluz, unrÍì lenrtrrança no discurso de nosso.sujeito; trata-sc da lcrtrtlr':Ìrìça rla fonte de Cibeles, em pleno centro cla cidadc de Madri. Isso nos vai introduzindo nuina certa noção do simbólico, posto que ao final do analisado, deparamos com uma dúvida cujos pontos de intersecção (pregas ou capitonnés) ligam as cadeias sintagmâticas às paradigmáticas :
.
. côpula
..CibËles
.
castração.
Nacena primária ouoriginal, o conteúdo enunciado é: papai
. . ere's (és)
e
mamãe rcalizamum coito que exclui de fato o sujeito da cena, redu-
zindo-o à meraparticipaçãovisual. Estes predicados concernem a um sujeito gramatical que, neste caso, não é outro senão o par: papai e mamãe. De fato, quem rcalaa o coito excludente? O pai e a mãe. Mas estes conteúdos que concernem - enquanto sujeitos - precisamente aos progenitores do infans aludem a um sentido ou enigma: o da origem das crianças. O infans sabe que tanto o papai como a maainda que não mÉe têm algo a ver com o assunto, desde que sabe possaexplicar- queéfilho de ambos. É, pois, como- se esse fantasma resultassedamise en scène (conceito de transposição: umstellunò do cnigma sobre a origem das crianças. Costuma acontecer que um menino de quatro a cinco anos se ponha a folhear um âlbum de fotos familiares e, vendo a do casamento dos pais, e reconhecendo-os, pergunte: "E onde estâ o nenê, onde estou eu?" "Não, você ainda não tlnha nascido" pode tranqüilamente ser a resposta que gere a mais tlesesperada explosão de choro. É que se trataria de um retorno ovidenciado, confirmado, do fantasma cujo eixo se centra na exclurlo do sujeito.
. Silvina
conhecer
n","1;ïï:"Ïïï"ïï:ïï"'
adcrc u., n,i,,,,rï horda protoprimitiva e seu cenário constituído pelo protopui, as protomulheres, e os protofilhos segregados da possibilitlt
.Fonte
.
Serâ, por acaso, esta a fonte sobre a qual a psicanâlise centra "A fonte do desejo?"
sua reflexão:
O SiMBOLO Com a tese segundo a qual o imaginârio se ilumina com o simbôlico, vamos flazer uma nova aproximação a Freud. Freud, conforme jâ vimos, prova que as fantasias são universais e, para tratar de explicar a razlo dessa universalidade, admite t:
__
I.'ANTASMA
SUIEITO
ENIGMA
Cena original
Pai-Mãe
Origem das crianças
Q
CLJRS()
l: l)ls('tll{S() t)A OBRA DE J. LACAN
o sltrtgÕLlco, o tulclxÃRlo, u KI,AL
sedução por um udulrtt ê um fantasma cuja expressão ê: Mamãe me seduziu na nrinrra precoce e primeiralnfância... Este enunciado é válido tarrt. par:r o nrenino como para a menina, pois sabe-se que tambénr .csr. . .b.iet. primeiro e primordial ê a mãe, posto que, no curso
SUJEITO
FANTASMA Sedução por um adulto
Mãe
Todavia, hâ algo mais. Que é esse questionamento senõo utÌì questionamento sobre a identificação, sobre r libido e, finalmente, sobre o modelo com que dar saída a esse fluxo libidinal'f Deste modo, a reflexão que estamos desenvolvendo poderia ccntrar-se no seguinte quadro:
ItvtlclxÃRto
o
Cena original Sedução por um adulto Castração
Castração
SUJEITO Pai
SUTEITO
ENIGMA
Pai-Mãe Mãe Pai
Origem das crianças Origem da sexualidade Origem da diferença sexual
Idenüficação
Libido Superego/Ideal
Se avançarmos mais um passo em nossa anâlise, notaremos que essa trama simbôlica, na qual o enigma do suieito se desdobra,
articula um plano peculiar e estrufura um campo prôprio. Digamos, então, que essa trama simbôlica supõe uma certa ordem espacial. Ela define uma topologia na qual o sujeito é sifuado ora no centro da questão, ora às margens da cena, ora excluído dela" É ôbvio que tal constatação modificaria nosso quadro, obrigando-nos a incorporar a dimensão topolôgica:
ENIGMA Origem da sexualidade
suJeito gramãtical da mesma ê,
obviamente, o p_1i. A questão que ofantaima, neste caso, pretende assediar ê a da diferença sexual anatômi ca. Trata-se de .*pli.". fro, sendo tão iguais ou semelhantes, existem dois gêneros .ona espécie: masculino e feminino. FANTASMA
srMsôr.rco
FANTASMA
o conteúdo do fantasma de castração é: se hâ diferença dos sexos é porque papai interveio amputando o pênis a certos indivíduos que são as mulheres.
4l
snrasÔLIco
IMAGIN ÃRIO
'ANTASMA FAN.
ENIGMA
('onr orginal orgir
Psi-Mãc
llerluçlo ;lo ppor um adulto
Ml€
('utrerçlo
Origem da diferença dos sexos
t-Õ.
SUTEITO
Pai
ENIGMA
Origem das crianças OrigÊm da scrualidade Origem da diÍerença
REFERENTE
TOPOLOGIA
IdcntiÍicação
Ex-cçntramcnt
Libido
Centramento Des-ccntramento
Superego/Idcal
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CURSO E DISCURSO
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O SITT'TBÔLICO, O IMAGINÃRIO, O
DA OBRA DE J. LACAN
Se agora, quiséssemos esgotar a questão da origem desses fantasmas, poderíamos tranqüilamente pensar que os sujeitos de nosso quadro(asaber: o par combinado do pai e da mãe, e os sujeitos paterno e materno por seu lado) gerarão no infans um enigma cujo referenteé precisamente uma indagação(como, de fato, é o caso da indagação analítica) a respeito de sua prôpria estrutura de sujeito, enigma que encontraria, neste sentido, resposta na formulação de um conteúdo cuja naturez.a nrítica, se bem responde ao questionamento, não o esgota e, sim, o vela. Novanrente nos encontramos, ao tratar desses fantasnras, reconhecendo uma estrutura mítica conforme a postulação lévi-straussiana. Para [évi-Strauss, os mitos são contos ou fâbulas que pretendem "explicar uma aparentemente insolúvel contradição".'3 Em nossa anâlise, efetivamente e mediante a aplicação do método lévi-straussiano, achamos uma estrutura latente sob o manifesto que os prôprios fantasmas constituem. Assim, as figuras de papai e mamãe constifuem um estímulo para o infans capaz de gerar um enigma enquanto lhe dizem respeito como sujeito e cuja resposta é uma fantasia. Julgamos que esta tese é capital: as fantasias são respostas. I-eiamos Freud nas Teorias Sexuais Infantis, onde diz: "Sob o peso dessas impressões, as crianças começam a cavilar sobre a origem do nascimento dos bebês".r4 E precisamente as respostas que o infans imprime são as teorias sexuais infantis, a saber: a teoria da premissa universal do
pênis, a'teoria da cloaca, a'teoria do coito parental sâdico, e a teoria geral da indeterminação paterna (couvade e outras). Precisamente gostaria de destacar a nomenclafura, isto é, destacar o fato de que Freud denominou as fantasias nem mais nem menos de "teorias". Com isto, vamos sublinhando o fato de que a fantasia não é um produto qualquer do inconsciente, mas uma resposta a um enigma formulado pela existência de funções díspares: disparidade gu€, em princípio e aparência, se apresenta à criança como contradição. As funções em questão não são outras que a função da mãe, a função do pai e a função de relação ou mediação. Esses enigmas, que não podem deixar de se apoiar nas pulsões, passam a intervir em termos da oposição entre um registro anal e o registro
43
mente genital; Por outro lado, um resmoaeto-Aa prôpria mãe. Esta cisão, dissociação ou spaltung'
ponde ao dilema formulado entre a pulsão de natlreza propriacarimente genital e uma tendência ou pulsão erôtica de natureza nhosa.
voltando, então, à nossa questão, as fantasias são respostas a enigmas gerados por estímulos, os quais incidem sobre uú referente nã ï"i.itõ psíquiôo. Estes referentes são, ao nosso ver' a identifipara sua execução' cação, ' a libido ëdao modelo observamos que esta opera à maidentifióação, A respeito parental: neira de uma interpelação operada desde a instância "Você ê...". Fulanoàe tal, João da Silva. A assunção desta interpelação se manifesta no cumprimento do princípio exogâm-ico segundo o qual este Da Silva se casarâ com uma Pereira, uma Silveira õu ,r-u t)üveira, mas nunca com outra Silva' Na realidade, é o cumprimento do princípio exogâmico na organtzaçío social. A questão dã sexualidade remete a um questionamento acerca problema da libido. como explicar essa força? Assim como o sou "Quem relativo à identifi."çáo pode expressar-se em termos de de termos ou?", o enigma relativã à übião pode expressar-se em "De onde me vem esta energia?". Finalmente, ao nível ielativo ao modelo, o dilema talvez se para trasintetizasse desta forma: "Como f.azer, sendo como eu, ou o masculino, balhar a energia que tenho? - Seguir o modelo Íeminino?" Hâ uma estreita solidariedade entre cada uma dessas colunas, a posto gue, efetivamente, uma identificação sempre tem a ver com pascatexias de iit,iao (desde que toda identificação é o resultado e visto que é impensâvel uma libido sem um ssdas. ou ".rr-.rìadas), nrodelo paÍa seu exefcício, seja este modelo de ordem homo Iteterossexual.
quadro a distância, podemos notar que "imagicstá dividido em dois grupos: o primeiro, denominado denominado que outro, o ruírrio", inclui uma sô cóluna, enquanto "simbôlico", dispõe das quatro restantes. Se, baseando-nos nas Se observarmos nosso
13. Lévi-Strauss, Claude Estructural. Buenos Aires, Siglo XXI - Antropología Editores, 1972. Especialmente capítulos X e XI. 14. Cf. O. C., ed. cit., t.l,p.ll72.
REAL
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CLIRSO E DISCURSO
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o SIMBOLICo, o IMAGINÃRIO, o
DA OBRA DE J. LACAN
colunas denominadas simbólicas, refletíssemos um pouco, poderíamos formular toda uma série de perguntas que, ãfinal,'terminariam sendo profundamente esclarecedoras:
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existência do inconsciente. Como vemos, em seu conteúdo próprio, esses fantasmas constituem um fenômeno do registro imaginário; em sua latência, representam mais nitidamente um fenômeno que se inscreve na ordem do simbôlico: os prôprios limites do homem enquanto inconsciente, as prôprias premissas que regem seu destino. Trata-se, definitivamente, dadetermingção basilar do homem. Assim sendo, os fantasmas estão construídos sobre esse eixo. O fantasma clâssico do "self made man" (fiz-me por mim mesmo) constifui, por sva natureza imaginâria, uma transgressão a essa determinaçilo. De fato, se infere que o propriamente simbôlico no humano são os limites: limites fora dos quais não pode existir.
Desta maneira, ao considerarmos a topologia da posição
do sujeito, constataremos que para ele não hâ o,lttu opção, num dado espaço, que a de estar no centro, às margens oufora desse espaço. E,
se considerássemos a coluna do "referente", poderíamos perguntar se há alguém na face da Terra que, estando
.'
REAL
vivo, possa dar-se ao luxo de afirmar-se sem identificação (leia-se: isento de interpelações), sem sexualidade e, finalmente, sem um modelo pataexecutâ-la?
Assim como
a
transgressão
da dependência de um adulto se
expressa na noção de incesto edípico e a transgressão à determinação paterna se expressa no clâssico fantasma da "morte do pai". É a partir do narcisismo (como estrutura e não como estado) que surgem essas noções de transgressão. É que, a propôsito da cena original, ela nos formula exatamente uma das condições da reprodução humana: "são necessârios dois opostos pata criar um terceiro". Ë que a sexualidade humana não é cissípara como a ameba,
Quanto aos enigmas... Hâ alguém que possa dar_se ao luxo de pensar-se isento de origem, ou seja, cogitar-se
como estando desde a origem dos tempos sobre a face da Terra? ou que possa, por acaso, gabar-se de que a sexualidade de que dispõe não lhe foi outor gada? Prossigamos com a'coluna que denominamos "dos sujeitos". Hâ alguém que possa dar-se ao luxo de afirmar não haver nascido de união de homem com mulher? ou que possa dar-se ao luxo de dizer que não dependeu
mas copulativa e, para a execução desta côpula reprodutiva, ê totalmente ôbvio que se necessita de dois que cumpram funções diferenciais, cuja enunciaçío ê simplíssima: as funções do coito. Tudo isso nos introduz obliquamente na questão do simbôlico, a respeito do qual podemos, €h primeiro lugar, assegurar que estâ constifuído pelas condições que regem e determinam a existência do humano. Por exemplo, o mito de Robinson Crusoe não tem cabimento nem no inconsciente de seu autor Daniel Defoe. O prôprio Defoe se viu obrigado a incluir "sua" personagem num grupo - o grupo antagônico dos canibais paÍa finalmente acabar dando- como bem o denuncia Fonta-lhe um companheiro sexual narrosa - na pessoa do índio fugitivo, o Sexta-Feira. Tudo nos leva a pensar que o inconsciente não pode existir como "ente" indivldual. De fato, "o inconsciente existe, porquanto existe em Outro". E é este o fundamento do ensino lacaniano. Quando se diz quc o inconsciente é o discurso do Outro, se estâ dizendo, precittmente, que o inconsciente é um efeito do discurso social operando em relação a uma matéria-prima pura: o recém-nascido, que tlove ser moldado mediante propostas de identificaçío, mediante oxlgências, mediante investimentos libidinais e mediante um mo-
de um adulto na sua primeira infância? ou ainãa que possa dar-se ao luxo de assegurar que não estâ inscrito óm nenhum sistema, grupo ou cultura que prescreve e proscreve as prâticas do sujeito?
Assim pensadas, as protofantasias parecem um registro imaginârio que encobrisse, ao mesmo tempo que desvelassel a inevitabilidade destas três alternativas: ter uma identificação, dispor de vm quantum libidinal e dispor de um modelo para realizâ-la. E, precisamente, não é que estas alternativas circunscrevem em sua universalidade a prôpria "condição" do homem? Em outras palavras, a "condição" do homem gu€, por isso mesmo, é universal é o que se acha representado -nas fantasias originârias. Portanto, se os referidos fantasmas são universais, não é em função de uma herança genética, senão em função da prôpria univerialidade da condição sob a qual é possível pensar a existência humana. isto é. a
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(.I IITSO E I)ISCURSO
/ DA
o slÀagÓLlco, o tunctNÃnlo, o
OBRA DE J. LACAN
delo secundário. E que seria bom esclarecer na - nos - quando, pais, se estâ pensando teoria lacaniana, se pensa neles como representantes de um discurso gü€, sendo cultural, é, em última instância, social. Além de sua determinação social, o símbolo se define, na teoria lacaniana, por ser presença de uma ausência. Em termos muito
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Iaz a alimentação. O fumar efeito de uma nìarca tlo rlcsc.io -' ó propriamente funcional c :rlinrcrrl;rt' tlir diferença à capacidade uma boca. Tomemos outro exemplo. Sabe-se que a função clas pcrnils c,
precisamente, permitir a locomoção. Precisamente a rÌìarc:r rkr desejo inibe a função e isto fica magistralmente demonstrarlo pclo próprio Freud no curso da astasia-abasia de Isabel de R. De tudo isso se deduz que a noção de apoio nos é útil pitr':r pensar o suporte material do desejo, mas não sua naturez.a (' legitimidade específicas. Em que consiste essa legalidade interna'/ Precisamente em sua pretensão de diminuir toda tensão. Exatamente por isso ê capaz de imprimir objetos imaginârios - objetos inexistentes no campo do mercado, mas capazes de cumprir com essa função de supressão espontânea do estímulo. E, de todos os objetos, sabe-se que é impossível pensar algum que, efetivamente, suprima a estimulação. É que cada objeto suprime um estímulo, mas não todos ao mesmo tempo. O único objeto capaz de suprimir todos os estímulos simultaneamente é a morte. E não é precisamente a aspiração à morte uma tendência do aparelho na perspectiva freudiana? Não é em função dessa aspiração que Freud se vê obrigado a introduzir o conceito de pulsão de morte? Neste sentido, é preciso lembrar que, para Freud, o homem era o resultado de uma alteração na matéria inerte. Essa alteração tem uma seqüência de vida, cujo destino é precisamente o retorno ao estado inicial, à inércia. Freud costumava inquietar-se em dizer que o homem é um mero portador do plasma germinal da espécie. Assim vista, a busca da restituição de um estado ideal que suprima as tensões é uma categoria muito precisa da conceituação freudiana. Na realidade, o que se procura restituir é um estado inexistente (quer o denominemos princípio de nirvana ou objeto primordial). Assim, o aparelho funciona sem nenhuma falha ou discordância. O circuito existe enquanto algo lhe falta, e em direção a essa falta se orienta o apatelho, num intento de restituir o estado de não-estímulo anterior ao desequilíbrio. Ora, se introduzíssemos, aí, a categoria da morte, poderíamos perguntar: Que experiência ou currículo tem o vivente, a propôsito da morte? Evidentemente, nenhuma, razlo pela qual a noção de morte nos leva novamente ao problema do símbolo, dado gu€, tanto na dialética do símbolo como na experiência do sujeito, a morte estâ em jogo. No símbolo,
simples, trata-se da presença da mamãe no inconsciente do sujeito, quando de sua ausência no campo dos objetos. Em outros termos, para que o símbolo possa constituir-se, tem que estar morta a coisa e ser substituída por úm representante. A relação entre o represen-
tante e a coisa morta é uma relação simbôlica. Isto se aproxima muito do que se define, em Lacan, como desejo. Efetivamente, o desejo é, em última instância, o suporte material desse registro imaginârio. O desejo - definido como desejo sempre de "outra coisa" concerne àquelas experiências sensíveis eu€, jâ havendo passado, deixaram, não obstante, sua marca. Para tentar uma aproximação mais completa, poderíamos dizer que hâ algo inerente à natureza e condição do homem que consiste em estar constantemente estimulado mas, ao mesmo tempo, não tolerar tal estimulação. A tendência de todo organismo é precisamente a de achar, de qualquer modo, o meio para suprimir de maneira elicaz todo esúmulo que pretende aumentar a tensão do aparelho. Exatamente as marcas que agora regem o desejo, se bem hajam resolvido, em seu momento, a tensão da fome, geraram por sua vez um novo registro de tensões. Se a tensão da fome foi resolvida num bebê, é porque a mãe esteve presente; mas justamente a presença materna gerou um novo estímulo, posto que este representante gera agora, por assim dizer, fome libidinal. Poderíamos perguntar se, neste caso, não se perde a noção de apoio freudiano. A noção de apoio oferece a possibilidade de pensar um suporte ou substrato material para o desejo, mas de nenhum modo o explica. A nção de apoio oferece efetivamente um substrato material ao desejo, mas o curioso, em tudó isso, é que o desejo - a.a clínica deixa evidente diminui a função. Em outros termos, - implica uma subtração (um menos) da presença da pulsão oral função alimentar. Qual é a função da boca? A alimentação. Pois bem, que faz a marca do desejo? Transgride a boca, posto que agora a boca deve suprir o fumar, e este é evidentíssimo não
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CURSO E DISCURSO
/ DA OBRA DE J. LACAN
o
SIMBÓLICO. O IMAGINÁRIo.
o I{IlAI
mo-nos a um estilo de pensamento (pretensanrctrtc) psicatralítico, que consiste em ver, nas fantasias, algo assinr corììo glrotlrrçÕcs anârquicas, e em ver o inconsciente como um reservalílrio. A rigor, a investigaçã,o freudiana nos mostra que se pode f.az.er unra lristírria do fantasma e que esta é absolutamente congruente conr a lrist(rria do sujeito. Não pode ser de outro modo, posto que as fantasias seriam uma tentativa de representar a condição do homem, quc, i\ medida que se vai desenvolvendo numa circunstância particular, particulariza essas condições numa histôria concreta. Primeira premissa: os fantasmas são uma representação da condição universal do homem. Segunda premissa: como o sujeito se realiza em uma circunstância particular, os fantasmas se subjetivam.
a morte se acha no momento de sua constituição; no homem, se acha ao final, como prêmio pelo longo caminho. Na ordem do que é o símbolo, a coisa é bastante gritante, pois parece que o símbolo pode determinar mais clo que estaríamos dispostos a admitir. É gu€, a rigor, é uma discordância simbôlica a que estâ incidindo no organismo, e é uma carência simbíllica a que promove o desejo. Na realidade, o desejo é sempre desejo de algo que esteve e jâ não estâ. com o que diz e aqui fechamos nossa formulação Isto coincide Freud no Tema da Eleição do Cofrinho. Hâ três mulheres na vida de todo homem: a mãe, a mãe dos prôprios filhos e a mãe Terra. Cada uma delas atende a um nível de estimulação. Mas parece que a única com a qual o humano permanecerá até o fim dos tempos (é sabido que os tempos não têm fim) é a máe Terra, a que acolhe o corpo no sono (ou seja: o nirvana, o estado de não-estimulação) eterno. Retornando à nossa formulaçáo, ê necessârio esclarecer que, quando dizemos registro do imagínârio, não estamos significando nenhum produto em concreto, senão que aludimos a uma função. O fantasma dispõe de uma função imaginâria, isto é, ilusória; e dispõe, por outra paÍte, de uma função simbôlica, isto ê, desveladora. Parailustrar a preeminência dessa função simbôlica, observemos os estudos de Freud a propôsito da fantasia. Nas ?eorlcs Sexuais Infantis, podemos observar como se prorrogam os fantasmas originais ou primitivos. A cena primâria é representada no coito parental sâdico; a sedução por um adulto vai ser prorrogada na teoria cloacal e, finalmente, a questão do pai relativa ao complexo de castração é retematizada na teoria da couvade, teoria segundo a qual a função-do pai consiste em incubar o filho em cooperação com a mãe. É, bastante evidente que, nessa fantasia, sentindo a criança que (indefectivelmente, e ainda que não entenda por quê) o pai existe, o faça entrar na cena, nío iã pela frente (por onde se evidenciaria a diferença sexual anatômica no cotejo com a mãe) mas por trâs, recuando, fazendo-o incubar. Se rastreâssemos um pouco mais na obra freudiana, veúamos que essas teorias se proriogam no monôtono e clâssico Espancam uma Criança, cujo conteúdo se retematiza na Novela Familíar do Neurótico e que esta vai ser prorrogada nos grupos de fantasias que analisa em Contri' buições para a Psicologia do Amor. Insistimos em mostrar essa continuidade histôrica, paÍa opor-
Assim sendo, o fantasma é histórico ao mesmo tempo que ilusôrio. Precisamente por ser ilusôrio, aparece como subjetivo (e, portanto, imaginârio); e, por ser histôrico, aparece na dependência de um universal (e, portanto, simbôlico): dupla vertente que, definitivamente, rege a toda formação do inconsciente. De tudo isso se deduz que o inconsciente é universal, que estâ forjado segundo o universal (a saber: a sociedade através dos pais); opera sobre a matêúa-prima que é um bebê, o gu€, na teoria lacaniana, recebe o nome de Outro.
O SIMBOLICO, O IMAGINARIO, O REAL O fantasma tem uma função imaginâria e uma função simbôlica. Por função designamos tudo aquilo que permite um determinado destino ou uso. Assim, por exemplo, a função das quatro pernas da mesa na qual trabalho é sustentar a tâbua em posição elevada e horizontal, para permitir que sobre ela eu apôie os livros. Esta função de "sustentação" é indistinta à forma de perna, gu€ pode ser de estilo escandinavo, barroco, Luís XV. Todavia, independentemente dos modelos e preciosidade com que esteja adornada, o esquelético é sua função de "sustentação". A noção de função nos introduz à noção de destino ou uso; de onde parece, então, que função imaginãtia é aquela que cumpre um destino, ilusôrio ou tapador do fantasma, enquanto que função simbôlica é a que cumpre um destino ilustrador da fantasia. Não é
3,
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CURSO E DISCTJRSO
/ t)A OBRA DE J. LACAN
alheio ao registro do imaginírrio o fato de que todo sujeito acredite que o que lhe aconteceu, íÌcontcrccrr somente a ele, que se sinta, em suma, a mosca branca; a tarcrfa analítica consiste exatamente em demonstrar que, se hír:tlgtrnut rÌ'rosca branca, é porque todos o somos; quer diz.er, enr rlcnronslrar qus o sujeito do inconsciente estâ, em sua clinrcnsão sirrrb(rlic:r, inscrito no universo da lei, do desenvolvinrcttto scxrurl t' t;rrc t'slc sc irrtcrsccciona com o desenvol-
vimcnto
O STMBOLICO, O IMAGINÃRIO, O
RIìAI,
5I
resolução do núcleo patógeno estâ na expressão verhal rkr 1.1y111t:rirkr representacional e o afeto cindido no grupo seglcg:rrlo
palawa?
varo algo
.
,i,1ïïoï,::'ÉH:;1iJ#"1ii::
por outros. Detenhamo-nos nestes dois atributos ou qualidades que a definem. Quando se diz que a palavra ê um símbolo, a rigor o que se diz é que apalavra, como todo símbolo, estâ substituindo uma coisa ou objeto; representa-o sob seus caracteres mais diferenciais e mais salientes. Esboçamos algo neste sentido, apoiando-nos no símbolo dajustiça, 9u€ (depois que a Revolução Fra^ncesa de lT*gimpoe um ideal ldade e fraternidãae) se repre e rigor, com a balança como cobrindo os olhos como signo e prejulgamento das partes em consulta. Quando reunimos esses três aiributos numa gestalt, simbolizamos algo que não existe como coisa. Em última instância e onticamente falando, a coisa-justiça não existe. É ;;";.iuiao, não só isso, pois que paÍa enunciâ-la temos que representar através" de seus caracteres comuns reunidos num cúnpost'. Não devenros esquecer 9u€, quando concordamos em representar a rel.ção de justiça mediante esses atributos, estamos mãnejando um .àaigo o., convenção - a convenção de 1799. Nosso código resulta, pois, de
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CURSO E DISCURSO
/ DA
OBRA DE J. LACAN
algo que num determinado momento da histôria irrompe e se instala prcmovendo uma direção de sentido peculiar. Em conseqüência, quando nessa representação vemos uma alusão à relação jpúdica, estamos faz.endo uma equiparação em função de um código que nos permite rclacionar esses atributos com o conceito. E isto sucede porquanto os atributos são arbitrârios. São arbitrârios em função da prôpria arbitrariedade que estâ em jogo na história. Portanto, as leis quc nos permitem reunir o conceito com sua representação nos vão dar, conro conjunto, um côdigo de vinculações.
Vejanros unì exenrpkr, apoiandc)-nos numa idéia muito simplista da linguagenì que, na realidade, combateremos mais adiante, mas que agora talvez seja útil para apontar o conceito de arbitrariedade da relação do símbolo com a coisa representada. Suponhamos que, quando pequeno, um menino vê todos os dias, na cozinha de sua casa, uma mesa que definitivamente se relaciona com esse meio familiar. Suponhamos que esse menino aprende a denominar o objeto mesa, mas com o desenvolvimento (autonomizaçío de sua linguagem) aprende ao mesmo tempo a aplicar a categoria mesa a todo objeto que reúna os caracteres diferenciais daquele môvel: quatro pernas e tâbua de apoio. Vemos que, em primeiro lugar, os termos m-e-s-a substituem uma coisa que morreu no caminho, desapareceu na histôria. O sujeito de nosso exemplo teve de renunciar à mesa de sua cozinha familiar para permitir que, nessa categoria, entrem todos os objetos que the são pertinentes e não exclusivamente o registrado em sua vivência. Mas, ao mesmo tempo, nosso sujeito pode considerar o absurdo que é denominar o objeto em questlo, mesc, e não denominâ-lo, por exemplo, cachorro. Este absurdo é o absurdo da arbitrariedade da relação entre o significante e o referente. É que esta relaçío ê arbitrâria desde que depende de um côdigo, código gue, por sua vez, depende da língua. Com isso, estamos apontando de passagem à segunda característica que define a língua: o estar estruturada por outros. Não depende de qualquer um, mas desse Outro que a teoria lacaniana empenha-se em esclarecer. Sendo algo que recebemos estruturado desde o nascimento, trata-se de uma herança cultural que deixou fixado, até os últimos limites e com um mínimo grau de variabilidade, o uso desse instrumento.
o sltr,tsÓLlco. o tt'l,qr;tNÁHl() o
lÌtl^l
5.1
Por aqui nos introduzimos à clupla clinrcrtsãr) quc tettt it ptlavra: Ser símbolo, e estar estrutUrada por Outro.r" Qtrill i' ir ilÌìportância de tudo isso? Primeiramente, mostra-nos cottì() rtttt str.ieitt, se constitui em relação coÍn o Outro. Em Segundo ltrgilr, (ltl(' tltlì sujeito pode desenvolver-se somente se consegue transccttrler () empírico, a imediatez, o concreto de sua experiência scrrsívcl. É que, ao ficar ligado a essa imediatez, o menino ficaria "fixa
15. L,acan, Jacques - "1,e. Sens de ia Lettre". L'Instortce dt lu I c!trc duns I'lnxtns' rient, in L'crits, ed. cit., pp. 495-49t1.
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CURSO E DISCURSO
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posta de unr analista a seu paciente é sempre uma proposta de descentralizaçlo: "saia de sua certeza pessoal, imaginâria ou subjetiva, e confronte-se com sua verdade de sujeito". O que propõe um analista é sempre um confronto com a matrtz geral, com a conjuntura universal (a do símbolo) e cuja forma, em nossa prâúica, é a do complexo edípico. Para executar tal operação se requer, em primeiro lugar, um deslocamento da dimensão imaginâria. Pode suceder, no curso de uma sessão, que um paciente comunique seu temor: "Sinto que o senhorestâ aí atrâs, e não sei o que..." e que o analista replique: "Serâ que não teme?" O discurso analítico tende a denunciar essa dimensão imaginária que palpita no diâlogo analista-paciente. E, mais, a análise promove essas fantasias; não as cerceia, senão gu€, ao denunciá-las, tende a desenvolver, até sua última instância, sua manifestação. Mas, se desenvolve a experiência analítica nessa operação, nessa denúncia, nesse deslocanrento do imaginârio? Coincide, €h síntese, o imaginârio com o analisâvel: são puras imaginações as que se intercambiam em uma sessão analitica? Para responder à indagação anterior, digamos que Lacan ini-
cia seu desenvolvimento assinalando gu€, enr primeiro lugar, o sujeito percebe e registra imaginariamente seu mundo. E, mais, citando a Saussure (a M. de Saussure, o psicanalista, e não a F. de Saussure, o lingüista), alega Lacan: "Poderíamos concordar em que o sujeito, em parte, alucina seu mundo". É certo, o contacto com os objetos estâ mediado pela produção de fantasmas, tal como assinalamos ao recorrer a Gaston Bachelard em Psicanâlise do Fogo. Não obstante asseveta Lacan esses elementos imagi-
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-
nários obrigam o sujeito a seguir uma ordem absolutamente outra que v das necessidades. Dito em outros termos: o registro do imaginârio afasta o sujeito da ordem de suas necessidades. Assim, uma criança pode ter fome, chupar o dedo e, com isto, ter uma espécie de efeito imaginârio de estar saciando seu estímulo. Não obstante, não basta, posto que nenhuma fome ou sede se acalmam senão mediante a ingestão de alimento ou bebida. Dai, cabe perguntar-se sobre a incidência do registro do imaginârio, a respeito da ordem da necessidade. De início, Lacan responde: essa incidência participa na sexualidade. É curioso que uma chinela sirva, a um fetichista, paÍa saciar sua excitação sexual; deveríamos per-
O SIMBOLICO, O IMAGINÃRIO, O
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guntar que atributo hâ, na chinela, para permitir saciitr e xcilaçircs ao fetichista. O que uma chinela tem, neste caso, é sirnplcs rlt: achar: algo foi deslocado sobre ela, algo que tem a ver corÌì ir diferença sexual anatômica. A noção de deslocamento requer uma explicação, que porlc mos obter no campo da etologia. l-orenz observou o cerimonial rlrr cópula dos gansos, assinalando que o mesmo tinha um'"protocolo" ou ritual fixo. Consiste em o macho perceber a fêmea, lançar urrr grito de guerra, esperando que algum outro macho a venha dis' putar; se obtém resposta, brigarâ pela posse, caso contrârio se realiza um cerimonial chamado de "enlaçamento de pescoços", e logo depois o par se dirige paÍa a âgva, jâ se sabe para quê. l,orenz descobre que hâ gansos homossexuais que realizam todo o ritual. com a exceção de que, não dispondo o bicho de um registro do coitcr em posição homossexual, ambos os animais tentam montar um sobre o outro, de modo que o acasalamento resulta sempre impos^ sível. Estudando a questão e para explicar o fenômeno (neste caso: deslocamento de um ciclo reprodutor sobre uma prâtica que escapa ao marco da reprodução e, portanto, de sobrevivência da espécie)" L,orenz cunha o conceito de "imprinting". Trata-se de uma impressão de ordem perceptiva, tal que, impressa sobre o genótipo, clá o modelo sexual. Whittakcrró relataumaexperiência com macacos Rhesus. Nascido um grupo de macacos, dividia-se os mesmos em três subgrupos que eram assistidos respectivamente por: o primeiro, pelas mãe:'; naturais; o segundo, por mães (bonecas) forradas de pelúcia; c) terceiro, por mães de arame. Observou-se que o terceiro grupo nã<; pôde alimentar-se nem reproduzir-se, isto é, não pôde prover a sobrevivência do indivíduo nem a sobrevivência da espécie. O segundo grupo adquiriu capacidade para prover-se de alimento, mas desenvolveu comportamentos homossexuais, com o que pôde prr:ver a sobrevivência do indivíduo, mas não a da espécie. O primeircr grupo, em compensação, pôde sobreviver, seja como indivíduo ou como espécie; isto é, desenvolveu comportamentos de procura al'.iv;l da alimentação e se reproduziu. A primeira pergunta que surge concerne à incidência de rirrr
16. Whittaker, J. O.
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Psicología. Buenos Aires, Editorial Interamericane, 19b5
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('tll{So tr I)ISCURSO / DA OBRA
O SIMBÔLICO, O IMAGINÁRIO.
DH J. I-ACAN
()ITI:AI,
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de sua especificidade pata introduzir uma cspct'iÍit'irl:rrk' lol:rl mente distinta, como ê a da postura e exibiç:ìo rlo rrr;rt'lro nir
l){rí'(Ìl)lo, (lc uma gestalt perceptiva sobre a própria vida do indir,íni'ro: indivíduos que, em nosso exemplo, pertencem a outras cspécies, das quais é esperâvel que o instinto seja mais "fixo", r igrclo ou predeterminado que no homem, observando-se, no entanto, que tal predeterminação não existe. Outro exemplo se pode observar no desenvolvimento da gônada da pomba. Sabe-se que se realiza aproximadamente na 83 semana de vida do animal e que esse desenvolvimento depende de um percepto fundamentalmente visual. Outro exemplo se encontra no estudo dos insetos. Existem variedades cientificamente conhecidas com os nomes de Schistocerca, locusta, gu€ se manifesta de duas formas: peregrinas (isto é, não se acasalam e, portanto, não se reproduzem) ou gregârias (isto é, vivem em bandos, se acasalam e reproduzem). Pesquisas de laboratório provaram que, se logo depois de um certo período posterior ao processo larvârio, o inseto vê ìJma gestalt que reproduz (mesmo com arames) os movimentos de sua espécie, sexualiza-se e passa da forma peregrina à gtegânia; porém, se não ocorre essa gestalt nesse preciso momento de seu desenvolvimento, mantém a forma peregrina de mâneira irremo-
conquista sexual da fêmea. Assim formulada a questlo,Lacan atribui a exislôrrcr;r rk' rnrrir
rigorosa correspondência entre o registro do sexual c () r'r'gislro imaginârio. Ao mesmo tempo, assinala que esses clt:rrrt'rrlos rk' comportamentos instintivos deslocados no animal são susccplír't'is de alguma coisa que podemos denominar como "um estlr4*o rlt' t'orrr portamento simbôlico" . Que é um comportamento simbôlico? Ele mesmo Ír()s rcs ponde: "O que chamamos, no animal, de um comportanìrrrrlo simbólico é quando um desses segmentos deslocados assume vulor' socializado, servindo ao grupo animal de referência para certo comportamento coletivo." O vôo da abelha, que, segundo parecc. conforme seu ângulo de incidência, além de um deslocamento de conduta tem ao mesmo tempo um valor coletivo, informa à r:olmeia onde hâ matéria-prima para a produção de mel. Isto nos permite, ao mesmo tempo, introduzir-nos por outra via na definição do simbólico. Um comportamento pode ser imaginário quando sua oscilação sobre imagens toma, para um indivíduo, a finalidade cle tornâ-lo susceptível ao deslocamento fora do ciclo que assegura a satisfação da necessidade natural. Retomemos o exemplo de nosso fetichista: que um homem possa ejacular à vista de uma chinela é algo que não nos surpreende; mas que ninguém sonhe que a chinela possa senir para descarregar uma excitação extrema, pois senão caímos num erro, começamos a pensar no campo do imaginârio. posto que o dilema não estâ na própria chinela, mas sim no sujeitt-r. Lacan observa que não é raro que um paciente faça intervir no curso de sua anâlise um fantasma como o da felação do partner" analista. É algo que também faremos ingressar no ciclo do arcaicr', da biografia, de uma maneira qualquer, de uma maneira anterior ir subalimentação? É bem evidente que, seja qual for o carâter itrcor porativo que demos a esses fantasmas, temos que começar a perrsÍ -los em termos de que nos estão querendo dizer na orclenr rkr registro simbôlico. Isto significa que o imaginário está ntuito ktngc de confundir-se com o domínio do analisável, Inas ao rncsnlo tempo, que e.rrsle outrafunção além da imaginária. Não ó porqrre t, analisâvel coincida com o imaginârio, que o imaginário se conftrnrle e se esgota no analisâvel. O objeto da psicanâlise não é o irnaÍìi-
','ível.
A partir desses dados, Lacan passa a questionar acerca da iiriportância de certas gestalts que incidem até o mais íntimo da ileterminação biolôgica de um organismo. Além disso, seria como se essa gestalt tivesse uma certa capacidade de movimento: isto {luer dizer que é deslocâvel. Se observamos os galos em um ciclo de combate, é curioso, totalmente curioso que, num dado momento, os clois bichos se apartem da luta e comecem a assear-se as penas; quase ridículo! Trata-se de um segmento de comportamento deslocado a um ciclo de combate desde um ciclo de pausa, de exibição do macho frente à fêmea. Produz-se um salto, a partir de um estímulo disparador. Aqui, Lacan observa que todo elemento imaginârio é rigorosamente dependente de um disparador presente no campo, ou sucedido na história (como registro de memória sexual, inconsciente, etc.). Isto nos reintroduz ao problema do "percepto" em psicanâlise, que jâ tratamos neste capítulo, ao provar que o iïÌesmo é um "produzido" de deslocamentos, condensações, segundo as leis expostas em A Interpretação dos Sonhos. É um disparador o que põe em marcha um ciclo de comportamento e que distancia o indivíduo (no caso do ciclo de combate) --,t
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jogo. De
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símbolo? Se o registro do imaginârio se vincula iìs rroçõcs rlc irn:rg€ffi, rede, ilusão, espelho, outro, o simbôlico rentctc, t:nr pt'itttcir,' lugar, à noção de cultura. Formulada a noção de quc o sirrrlrírlit'tr concerne ao registro da cultura (a saber, a ordem social), tlcvc st: agregaÍ algo mais, ou seja, o fato de que a este simbólicr) corìccrnc um processo de trocas. O analista e o paciente estão realizanrlo intercâmbios de símbolos, isto ê, de palavras. Neste contcxto, podemos entender que um sintoma é o que nos dâ sempre algo equivalente a uma atividade sexual, mas nunca um equivalentc unívoco; trata-se mais de um equivalente plurívoco, superposto, sobredeterminado, construído sobre concorrências e superposições. Esta plurivocidade iâL havia sido notada por Freud quando alertou: cuidem de construir símbolos universais devido ao fato de que, às vezes, um charuto não é nada mais que um charuto. Tudo isso leva ao dilema de se perguntar quando um charuto é um pênis e quando um charuto não ê, nada além de um charuto. Em suma, nossa tese fundamental é que toda produção do inconsciente tem uma função imaginâria e uma função simbôlica;
" l)()derra drzer que o imaginârio é uma condição sine qua ti // l)resente, mas que definitivamente não se confunde com o que ;ic(ìírtece ao homem. A anâlise não se limita a esse fenômeno de dcslocamento que, segundo a definição freudiana em A Interpretaçuo dos Sonhos, ê umapassagem de cargas de um ponto a outro, é uÌna passagem da ênfase de um termo a outro, de uma represenl;:i ,
o sIMBôLICO, o luacrNÁnro, o
tação a outra, de uma idéia a outra. Restaria, então, resumir a noção de real. Para Lacan, o propriamente real é eminentemente: a
realiclade do inconsciente.rT Esta categoria tem dupla vigência: a; o real como o referente, como o objeto independente do sujeito ç 'n) o real colno o específico da dinâmica inconsciente do sujeito. A categoria de real pertinente à dinâmica do sujeito inconsc,r:nte é a noção de discurso (sendo seu substrato o desejo). Porém sena necessârio completar essa noção de real com outra: a correlativa e pertinente à do chamado objeto externo, que, em Lacan, rerceberâ a formalização de "objeto a". o imaginârio tem como características as de subjetividade, inriividualidade e particularidade, enquanto que o simbólico se rege pelos atributos de estruturalidade, convencionalidade e depenclência do grupo. Precisamente, no caso do fetichista, trata-se de um desloceit'ïrento a partir do símbolo efetuado sobre a chinela: o deslocatrÌriÍìlo do órgão feminino. Ora, se tal deslocamento é interpretá','el, é porque podemos registrar a passagem do símbolo à imagent. De fato, a interpretação esclarece enquanto elucida e põe de nia.nifesto o símbolo que a imagem pretende velar e encobrir. A este re:rpeito, dtz Lacan: "Entendo que qualquer fantasma, enquanto ciemento imaginârio, não tem estritamente mais que um valor sirnbôlico além do que quando chegamos a apreciar e compreender em função do momento da anâlise em que se inserta." Dito em outros termos, esse fantasma de felação do partner analista ou fantasma de deslocamento de um órgão genital feminino sobre uma clrinela estâ constituído para expressar-se, para ser dito, paÍa sìmbolizar alguma coisa, e alguma coisa num sentido absolutamente diferente, segundo o momento do diâlogo. Que é, então, o
funções que mantêm, entre opositiva.
si, uma relação
constitutivamente
Formação do inconsciente
/
Função imaginâria
Função simbôlica
Recordemos também que, paÍa Lacan, todo elemento imaginârio, por ser um deslocamento, remete, de fato, ao símbolo. E, se a rigor falamos neste terreno de plurivocidade, superposição, sobredeterminação, concorrência, não podemos deixar de observar que se trata das categorias que definem a linguagem. Isto nos obriga a introduzir-nos no estudo da língua como a ciência piloto que se acha em condições satisfatórias para explicitar o que seja um símbolo. A língua. Correto. Mas, de que perspectiva? "Naturalmente não poderíamos esclarecer a questão da origem afirma Lacan
17. Cf . Au delà du Principe de Réalité.ln: Ecrits, ed. cit., pp. 73 et seqs.
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CURSO E DIS( TJRSO
/ DA OBRA DE J. LACAN
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da linguagem aqui senão rnecliante um
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A OUESTÃO DO SIGNIFICANTE A questão do significante? Sim. Mas por quê? Em princípio, porque jâ demonstramos que toda função imaginâria de uma formação do inconsciente é decifrâvel em relação a uma ordem que denominamos "relativa ao símbolo" e, nesto èontexto, a lingüística é quem mais condições possui paÍa explicar o que é o símbolo. Por outro lado, definimos o simbôlico como algo de ordem coletiva, da cultuÍa e, neste contexto, o exemplo lacaniano é o da palavra de.passe e da contra-senha, onde não hâ nenhuma correspondência entre o que se diz e o que se quer dizer. Se uma contra-senha for, por acaso, em um grupo confabulado "a rosa branca", esta contra-senha tem o sentido de apresentar'os participantes do grupo e não o de aludir à coisa flor, ainda que a posteriorÍ o grupo em questão arme uma "flor de confusão". Então, nos deparamos com que, para Lacan, a palavra aparece sob sua matriz de contra-senha, como constitutiva do grupo e, neste sentido, se vincula ao
pondo em jogo é o suficientemente ampla para incluir, em sua dimensão de contra-senha e palavra de passe, significantes tais como o da circuncisão, posto que a circuncisão, por exemplo, não é, no ritual, outra coisa que um significante de pertinência a um grupo, sobre o modelo do primeiro pacto entre Deus e Abraão. Não é isso, por acaso, o que ocorre numa sessão: palavras trocadas como contra-senhas? Essas contra-senhas vão definindo posições de intercâmbio no curso do tratamento. É neste sentido que podemos notar como coincidem a dimensão assinala Lacan técnica e a dimensão teórica do conceito de "palavra" no campo da psicanâlise. Faz-se necessârio pensar teoricamente a língua, para aceder a um modelo de símbolo; mas, ao mesmo tempo, notamos que, se um símbolo tem como sentido o intercâmbio de posiçõesi a noção de posição.nos remete ao problema da identificação. E qual é o objetivo da terapia analítica senão o de trabalhar sobre as identificações? Ë por tudo isso que, ao pensar a língua, devemos pensâ-la em sua dimensão fundamentalmente constitutiva. É que, com a palavra de passe, ou seja, a contra-senha, se reconhecem os homens do grupo e é em função desse reconhecimento que o grupo se constitui. E, neste contexto, a noção de língua é indissociável das noções de "cultura, intercâmbio, identificação e grupo".
simbôlico pela preeminência dessa ordem social. É também neste sentido que se Íazlegitimo o recurso à lingüística que nos permita formalizar essa tese. Finalmente, uma terceira e última razío da necessidade de nos introduzirmos na lingüística surge do simples fato de que, se a palavra é o que constitui um grupo, se o intercâmbio de palavras é fundante e constitutivo, aqui se nos apresenta a questão do sentido. Não é casual que, nesta linha (digo, na linha do sentido), se faça necessârio esse recurso, e não é o primeiro intento dentro de toda a história da psicanâlise. Ao analisar os sentidos antitéticos das vozes
Lt
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CURSO E I)IS('TIRSO
A QUESTÃO DO
/ I)A OBRA DE J. LACAN
associação.
No trauma, a concepção nos apresenta um perccplo (lu(' s(' associa univocamente a uma sensação. Posteriornrentc, l;r't'rrrl demonstra que isto não é pensâvel porque o percepto solrt: unl "trabalho" de deslocamento e condensação; portanto, ternos r;rrt' rastreâ-lo com o único instrumento possível: a associação livrt'. Qual é o efeito de toda associação livre? Consiste numa tentativa de pôr em palavras o inefâvel: os afetos, as sensações, em resumo, as relações. Notemos que quando um sujeito tenta verbalizar esses afetos, não lhe cabe outro recurso que o metonímico, isto é, uma tentativa de recorrer palavra por palavra em seu vocabulârio, tentando transmitir a sensação, sem chegar por isso a sentir que a esgota. É um pouco o que acontece nas primeiras sessões em que o paciente tem a sensação de nunca poder chegar a transmitir fielmente seu estado de ânimo, ou o que viveu, etc... o que nos demonstra a impossibilidade de relações intrínsecas entre significante e significado. Em síntese, a necessidade do recurso lingüístico se nos faz patente a partir desta tríplice perspectiva: a) por um lado, a tentativa de pensar o que é um símbolo, para o que a lingüística parece estar em condições satisfatôrias de Íazê-lo; b) por outro, se a troca entre homens é uma troca de palavras, a lingüística nos pode dar uma idéia do papel e valor da palavra como fenômeno de intercâmbio; c) finalmente, se o problema ê a questão do sentido, a lingüística permitiria investigar como se produz o sentido - dizemo: como se produz o sentido, visto que, sabemos, este não preexiste Falar da questão do sentido nos leva a formular, antes de tudo, a tese de que todo sentido é sempre relacional.3 No entanto, a noção de relação é mais extensa. Retomando o último grâfico do capítulo anterior, recordemos que, segundo o mesmo, toda formação do inconsciente tem uma função imaginâria ao lado de unr:r função simbôlica:
ri nt i tt tt t i vu nt t' tt I t' -l
lrsse processo cle "discriminação" no infans demonstra claramente que não hâ relação intrínseca entre o simbolizado e o símbolo, porque necessariamente a relação entre um e outro estâ mediada por um terceiro (a saber: a mãe). O problema da psicanálise, assim como o do sentido, radica possibilidade na de objetivar o papel que cumpre esse terceiro na economia do indivíduo. Ou seja, nem sequer em Freud se poderia sustentar uma noção do tipo significante-significado em correspondência unívoca. E a formulação lacaniana está de acordo com essa tese. De fato, e para ele, o significante sofre uma dupla dependência com relação ao eixo do sintagma ao nível da frase e em relação ao eixo do paradigma ao nível da associação livre. Esse duplo eixo é o que nos permite decifrar o dilema do sentido, e na realidade nos impede de pensâ-lo como um enlace biunívoco. Senão, contradiríamos a Freud, quando observa, em A Interpretação dos Sonhos,' que estes não são interpretâveis de acordo com uma tabela de significados prefixados. Além disso, contradiríamos a regra fundamental da anâlise: a associação livre. Por que existe a associação livre, e por que Freud a chamou de a regra fundamental? Não seria, com certeza, porque não podemos pensar "intrinsecamente"? Porque pensar em relações intrínsecas entre o símbolo e o simbolizado ficou superado no
L. Lacan, pp.5M-505.
2.
Jacques
-
L'Instance de la Lettre dans I'Inconscient.ln: Ecrits, eá. cit.,
Cf . O. C. , ed. cit, , t.
l,
p"
(, I
pensamento freudiano, quando ele mesmo sulrlurrlou rr t'orrt't'11çÌro do trauma e a substituiu pela do sonho... o qual ó rlrrrrlil'it':rtlo por' ele como a Via Régia ao Inconsciente, e cujo recurs() tlt' :rt't'sso i' :r
primitivas, Freud recorrc :ìs teorias cle Abel, assinalando que os primitivos eÌnpregavanr rì rÌì(Ìsrììíì rlcnominação para o amor e parÈ o ôdio. A conclusão frcrrrliana cnr rlc que os primitivos não discriminavam entre o arÌìor c o ílrlio, scnão que pura e simplesmente sentiriam um impacto e rrrotivo. lslo lorna anâlogo - na leitura de o primitivo iro irr[:rrrs-'l'arnpotrct'r cliscrimina seus afetos, a Freud não ser por nreio rla rt:lirção t'orrr a rttãe . A partir dessa relação, e em função clos inlcrt'ârrrbios rcaliz,u
SIGNIÌ,'I('AN'Il.
3. Lacan, I84-88.
232.
L3
Jacques
-
Propos sur la Causalité Psychique.
In
ll<'rits., cd.
cit.,
p1l.
CURSO E DISCURSO
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./,/
/ DA
OBRA DE J. LACAN
A QUESTÃO DO SIGNIFICANTE
origem das crianças. Portanto, e tomada em si mesma, a itttitgcttt não teria senão um valor pictórico, criativo, artístico, da qtral lcriir que encarregar-se uma teoria da arte. Agora, se a teoria do incottsciente quer explicar esse produto, deve referi-lo única e exclusivamente à ordem simbôlica. Se falamos de sentido, é possível falar (e aqui fazemos um breve desvio) de resistência do sentido. A noção de resistência pode ser entendida neste contexto: resistência como oposição do sentido, o que se produz como efeito da intenção de separar a imagem do símbolo.
Formação do inconsciente
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Função imaginâria
Função simbólica
Pensamos que a formação se situa como uma discordância que resulta da função de velamento em oposiçãtl à função de desvelamento que lhe são constitutivas. Por conseguinte, quando dizemos que o sentido é relacional, estamos aludindo à relação de interjogo
Justamente, a manutençío, a rcalizaçã;o dessa imagem é que
impede e resiste ao acesso ao símbolo posto em jogo. Dwet, então,
resistência, ê aludir à manutenção do registro do imaginârio em detrimento do simbôlico e ao mesmo tempo aludir a um fenômeno que podemos chamar de realização da imagem. Quando resiste o sentido? Quando a imagem se realiza, quando o fantasma é inamovível no curso de um tratamento, quando o sujeito não admite descentralizar-se da produção imaginfuia que formulou. Ë justamente na descentralização dessa produção imaginâria que estaria a possibilidade de produzir o simbôlico. Simbôlico e resistência, portanto, se opõem, ê t forma da resistência (realizaçío da imagem) é o que classicamente se chama de projeção. A, produção do sentido serâ precisamente o contrârio: simbolizaçáo da imagem, ou seja, restabelecimento da conexão anulada pela resistência. Com isso nos introduzimos no conceito segundo o qual a palavra tem um papel de mediação. Média entre uma imagem e o que ela nos quer dtzet, ao qual nã;o ê, alheio o carâter relacional que tem a prôpria língua. Sintetizando as duas teses capitais que vamos trabalhar, enunciaremo-las: carâter relacional do sentido e carâúer mediador da palawa. Pata apoiar essa noção de relação, interessa recorrer a um exemplo que nos permita objetivâ-la: em nossa sociedade, cada vez que se trocam mercadorias, estâ presente o dinheiro. Porém, é necessârio que fique claro: o dinheiro não está nem em um nem em outro dos termos da troca, mas estâ presente como côdigo que permite relacionar entre si duas coisas que, em essência, são fundamentalmente díspares. Quase podeúamos dizer que o dinheiro é, nessa troca, uma convenção. É bem verdade que tal convenção estâ historicamente regulada, mas também ê, verdade eu€, uma vez formulada, as
estabelecida entre o registro imaginârio e o registro simbôlico. Retomemos um exemplo jâ trabalhado por nós. Do fantasma da felação do partner analista surge-nos uma "imagem" cujo sentido pode ser de degradação, asco, pÍazer etc. Contudo, desde que tal fantasma deva ser interpretado, não em função da imagem que põe em jogo mas do momento analítico em que surge' isto nos revelaria certa relação, certo intercâmbio entre os sujeitos da sessão. Trata-se de um intercâmbio centrado sobre o registro peniano e o oral, seguindo o modelo de uma alimentação. Porém, ãesde que toda iCentificação contém em sua base uma ordem oral e um matiz canibalesco, tal fantasma pode muito bem tematizar uma tentativa de identificação üom o analista. A complexidade do problema nos leva a pensar que o fantasma, em si mesmo, não pode ser entendido senão respectivamente ao fato de que o sentido surge da relação entre a imagem e o símbolo. Formação do inconsciente
Tgmemos, por exemplo, a cena primâria. Nela se afirma que papai e mamãe têm uma relação que exclui o sujeito. Porém, vimos que essa cena é entendível em relação ao seu sentido: o dilema da
lÕ.
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CURSO E DISCURSO
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A QUESTÃO DO
OBRA DE J. LACAN
I MercadoriaÂ-
Dinheiro
(I]
modo a estrutura de uso (o molde ou matriz em que serão empre_ gadas) também vem de fora impressa por t subjetiva. Em nosso diâlogo, por exemplo,
trocas se ajustam a ela. Nenhuma mercadoria porta o dinheiro como atributo ou característica diferencial. De fato, o dinheiro é um sistema alheio aos produtos permutados, mas, ao mesmo tempo e enquanto mediador, permite pô-los em contato, relacionar e comparar. De igual modo, a palavra no fenômeno de sentido é o que permite mediar entre dois sujeitos diferentes em relação, sem que a convenção seja propriedade exclusiva de um dos termos.
.í
SIGNIFICANTE
possa usar uma palavra que rão tenha c conceitual. Nenhuma das palavras que usamos sai da convenção nominal pertinente à teoria psic lnalíiica. E, se saíssemos de nossa convenção e fôssemos para outra disciplina por exemplo, a topologia e recorrêssemos ao conceito âe plano, teríamos que, ao trazê-lo à -psicanâlise, explicitar em q"r r*tido vamos utilizar o conceito em questão. Não sô as próprias palavras, mas também a e_strutura de pensamento, a estrutura de uso, são determinadas desde outra cena além do intercâmbio verúal homem_homem. É precisamente neste contexto que recorremos à lingüísti.a á. saussure, em que Lacan se apóia. vamos, então, trabalhar sobre a lingüística de Saussure. o Analisando esta questão, discrimin ar a fala (puro exercíc (estrutura independente do sujeit passa com o paciente gu€, deli sessão, decide não falar, ou seja, decide não fazer .so da língua. Pois bem, a língua existe, pese à sua boa ou nrâ vontade para usá-la, e, precisamente, porque existe é que o analista ?az-lhe notar: "ê falando"' por quê?" De :.^t"lli"uar da volição do ,tlï;-ïijpendentemente Essa porque sobre ela se centra o trabalho saussuriano: a diferença entre a iingtiística da língua e a lingüístic a da f.ala. A respeito da língua . ,.-p.. em relação com a fala, Saussure diz que, na realidaãe, ,,a língua não é mais que uma determinada parte da linguagem, ainda que uma parte essen_ cial". Precisamente a define-do-seguinte Àóao: ,,ê, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade de linguagem ; con_ junto de convenções necessârias adotad pero "; para as corpo sociar permitir o exercício dessa facurdade", a fãculdade de falar, dos indivíduos. Ë aqui onde intervém u uígu que permite dis_ -.rt.u
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_\ Ì MercadoriaB
Como é que, sendo tão díspares como coisas, possam, por exemplo, ser trocados uma yaca por 100 quilos de trigo? A teoria do valor nos prova que, a rigor, o que ambos têm em comum é efetivamente certa força de trabalho acumulada e objetiv ada, e é desta força de trabalho qtrc, histórica e socialmente processada, svtge e se estabelece uma convenção que, uma vez formulada, subordina o mercado de trocas às suas leis. Não poderíamos, portanto, cair na ilusão de que uma vaca "contém" mais dinheiro que, por exemplo, um saco de trigo, porque a lei ou regulamento que rege a troca estâ relacionada sempre com outra situação, é sempre relativa a outra ordem de determinação: obviamente, é a determinação formulada pela inscrição numa ordem social da força de trabalho. Ao pensar a palavra como mediação, damos urn marco teôrico paraÍazer notar que, posto que a palavra não é isolada nem alheia a um sistema lingüístico, o intercâmbio homem-homem na língua não é autônomo, desde que os intercambiantes estão regidos pela mesma língua em questão. É eu€, quando falamos, não podemos usar qualquer palavra. Não sô não podemos usar qualquer palavra,
como até o modo de uso estâ pré-indicado. Ao talar, devemos restringir-nos à estrutura da frase em sua forma codicial ou convencional: sujeito-verbo-objeto, sujeito-predicado. Por mais elementos que uma pessoa intercale entre um sujeito e seu predicado, a estrutura permanece incólume. Então, assim como as palavras que usamos na comunicação não são "livres", mas jâ estão historicamente cunhadas, do mesmo
4' Saussure, Ferdinand de I osrrrlrr, 1967, pp. 49-70.
,Õ.
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Curso
de Lingüística General. Buenos Aires, Editorial
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CURSO E DISCURSO
/ DA OBRA DE
J. LACAN
a língua da tinguir a língua da fala, porque, a rigor, ao separar do que que social ê o f.ala,Saussure explicitamente entende separar pode sujeito um e é individual. EfJivamente , a lala é individual, deterlivre dessa decidir falar o., .u1"., porém independentemente estrutura indeminação a língua vai continuar .*ittittdo em sua
pendente
,,___^_^t^ da Á^ * língua De fato, o sujeito pode produzir essa transgressão que é o ato falho, o laPsus convenção, sem alterar, Poré É que o fenômeno da fala anedótico e o individual, enqua essa convenção cujo substrato é porque' quando Saussure uáo q.r. seja soci"1, .os esfud í'la em seu duplo trata de pensar a língua seja, histôrico), podemos o1i* o, o verb o "fazeÍ' ' a partir "rn*i".^Seguindo sua histôria, como, por observar e da raiz latina factum, atê as derivações castelhan as facer/hacerem transformação inclusive a comunidade desta derivação com a e o italiano' faire e outras línguas àãig"uf origem latina, o francês fare 1 ou o Português, fazer'
I I
Eixodiacrônico + ---r> t-. trlxo I I sincrônico
Factum, facer, fazer
A QUESTÃO DO
SIGNIFICAN.IE
b9
ficar por mais que tente transgredi-la: o popô, a papa. o lele. :r lala, etc. Essa transgressão tem pernas curtas, visto que, finalnrcrrtc, na escola, a professora não ê a ntã;e, por mais que o nenê o deseje e por' mais q-ue se enarnore clela. E precisamente porque a professora não ê a máe, por mais que medeie muito amor, a língua estâ determi nandc tanto a professora como a criança de modo que ambos sc ajustem a ela. É curioso que ao pensar no fenômeno da língua, Saussure o considera basicamente como um produto histórico, como o resultado de uma série de transformações sincronizadas, acurnuiadas no curso da história. Não queremos, com isso, dizer que a língua jâ estâ definitivamente feita; estâ feita no momento em que aparece no indivíduo, e obviamente gu€, no curso da história de uma língua, surgem novos termos que ocupam um lugar determinante no côdigo, como seriam os casos dos termos alunissagem, amerissagem etc. Mas assim como uma andorinha não taz verlo, um indivíduo nío taz a língua, e, se temos que pensar em transformações (como é o caso do aparecimento de novos termos: ê um barato, pô!; tâ legal!; etc.), devemos pensar a tranSformação em termos de um grupo que realiza a mudança ou transgressão. Não poderíamos tampouco pensar numa língua que não fosse falâvel ou falada. Pensar numa língua não-falada é uma utopia; é o que acontece, por exemplo, nas chamadas línguas mortas. Estas persistem porque existe um rito que as mantém vivas; porém, uma vez desaparecido esse rito, a língua tende a desaparecer. Com isto
estamos simplesmente ratificando a tese saussuriana de que a língua integra os fenômenos de linguagem. Quais são esses fenômenos de linguagem? O exercície da língua, ou seja, a f.ala. Este exercício se verifica mediante o usc do aparelho fonador. Para Saussure, conseqüentemente, pensar to.'o o problema da linguagem é pensar em fonologia, uma teoria du aparelho acústico, do aparelho fonador, do aparelho auditivo, o problema físico do som, o fenômeno da transmissão de ondas etc De todos esses fenômenos de linguagem, Saussure perfila duas realidades possíveis de a iálise: r' fenômeno da língua como estrtrtura de signos independerrtes do sujeito e o fenômeno da fala conro exercício dessa estrutura por parte do sujeito. lntercaladamente, hâ uma série de ciências que ficariam no caminho e gu€, se se pusessem a desenvolver, dariam outra ordem complementar e não excludente de explicação.
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DA OBRA DE J. LACAN
A
Todos têm capacidade de linguagem; todo bicho humano e vivo tem capacidade de linguagem que se expressa no uso dos centros motores, fonadores, acústicos, produtores de imagens; porém esse uso (que não implica o fenômeno da fala) é relativo a uma estrutura: a língua. Podemos depreender, então, que existem dois níveis: o da língua, nível propriamente social; e o nível da Íala, individual. Lacan é quem introduz, como noção intermediâria, a noção de
euEsrÃo Do
stcNll:t('AN,t.lr
n
complemento de uma necessidade, com o quc o sirrrlrírtir.o st.r.iir que reintroduz na via da resolução dessa neccssirlirtlt.. At.r.t.st.crr
11
discurso. Língua
-
Social
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Individual
como discursos. Insistamos em que o recurso à lingüística que propõe Lacan ó o
DISCURSO
Fala
Isto é fundamental: as reflexões lacanianas não estão centradas sobre uma teoria da líneua, nem sobre uma teoria da flala, mas sobre uma teoria do discurso. Como definir, portanto, esse discurso? Visto que se coloca a meio caminho entre a f.ala e a língua, parece que participa das propriedades de ambos os fenômenos, isto é: ser social e ser individual. Um discurso é nem mais hem menos que determinado grupo de fala decantado e sedimentado pela histôria e, neste contexto, o Éaipo é um discurso. Quando dizemos que o Édipo é um discurso, estamos querendo dizer que o universal que f,az o homem (nível da língua) se inscreve individual, acidental, pessoal e subjetivamente (nível da [ala), porém com uma regularidade tal que se descobre formações comuns (nível de discurso). Uma definição mais abrangedora nos permitiria drzer que o discurso ê a realizaçãro individual de todo o social que hâ na língua. Se, a partir desta posição, voltâssemos para trâs, em nossos capítulos sobre o tema do fantasma, que efetivamente é um discurso porque tem um matiz de universalidade apesar de sua aparência de subjetividade, se verificaria nossa tese, visto que o fantasma realiza, em forma imagin ârta, algo que integra a ordem do simbôlico. Não devemos esquecer gu€, sob esses aspectos, definimos o imaginârio como o que indica a separação do sujeito do
A questão não estâ em centrar-se sobre o fenômeno da ïala, mas, sim, em poder pensar nos enigmas do sentido seguindo um modelo teôrico que nos permita confluir ao problema do simbôlico c ao do imaginârio, ou seja, ao duplo carâter de toda formaçãp do inconsciente.
Precisamente o que nos interessa enquanto psicanalistas, em
lrrtltr sonho, ê tratar de procurar não o nível puro da fala, de como nÍkr ns suas imagens pessoais, mas a formação intermediâria mais rrtttcreta que temos e que nos serve como ferramenta de trabalho: o Íirlip.. o complexo de Éaipo é um discurso que permite intercalar
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CI.JRSO E DISCURSO
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A QUEsTÃo Do SIGNIFICANTE
DA OBRA DE J. LACAN
fenômenos individuais inscritos numa lei universal; pode-se ana' lisá-lo atruvés cle ntúltiplas perspectivas; porém, aqui, nos interessa fazô-lo dcsrlc ulÌìa perspectiva psicanalítica, enlatizar esse discurso clo irrcorrscicnte cuja forma, maÍcaou efígie, é edípica. .Scri:r esgotando todas as formas possíveis do imaginârio que se cxíÌut'e unì recurso simbôlico. Não é casual que justamente a psicanálise promova as fantasias em uma primeira instância, pata posteriormente tratar de descenttalizâ-las, permeabilizâ-las, ver todas as fornras possíveis que assumem, e justamente no esgotamento dessas formas possíveis espontaneamente à consciência do paciente surge o que se denomina de insight de algo que lhe é prôprio, de determinado símbolo que lhe é constitutivo. A assunção do símbolo constituindo não mais uma mas um grupo de fantasias (noção de
discurso), como, por exemplo, os fantasmas de martirolôgio, gu€ freqüentemente aparecem no masoquismo, gera quase automaticamente a clâssica pergunta analitica: Como se inscreve esse símbolo no seu imaginârio? qual seu gozo, no martírio? Assim, essa clupla relação que podemos denominar imaginarização do símbolo, l)or unì lado, e simbolização da imagem, por outro, é o que permite a produção de sentido, já que o símbolo integra a ordem da imagem e csta o fenônreno do afeto: produto resistencial da projeção-introjcçao enÌ que, por finr, unì sujeito pretende assimilar-se a outro, suprinrir todas as diferenças e sustentar a ilusão segundo a qual "todos sonìos iguaizinhos". Ao dizer "todos somos iguaizinhos" o que se estâ negando é a exigência de relacionar-se com outros. Não é porque não sejamos iguais, mas porque, em primeiro lugar, todo o mundo tem que produzir e relacionar-se pata sobreviver no grupo. Daí se infere que somos diferentes desde que ocupamos diferentes posições na estrutura... trata-se da estrutura do grupo, da estrutura produtiva. O discurso psicótico é um discurso que estâ fracassando no nível simbôlico. O psicôtico pode, perfeitamente, confundir o significante com o efeito de sentido, evidenciando o fracasso da relação simbólica que lhe é constitutiva. E precisamente ao fracassar em seu nível simbôlico, em sua possibilidade de realizaçío simbôlica, nos estâ assinalando a necessidade, presente em toda anâlise, de centrar-se no símbolo para permitir sua constituição. Remetamo-nos ao exemplo freudiano da psicose, o caso Schreber. Daniel Paul Schreber é filho de Daniel Gottlieb (em alemão,
Gott
:
Deus, lieb
:
amor) Moritz Schreber. As estranhcz.as
73
cle
sua personalidade não o impedem de ascender na escala social ertó chegar ao cargo de presidente do Tribunal de Dresden, ocasião crrr que eclode sua psicose. Seu pai havia sido um eminente pediatra e
ginasta; homem reputado, no bom sentido, ocupava um importante lugar na pediatria de sua época, por ser autor de uma série dc aparelhos ortopédicos de correção: aparelhos para impedir a adoção da posição cuwa ao escrever, mecanismos de correias para forçar o menino a uma postura correta durante o sono, etc. Não é aleatôrio este centramento do pai sobre o "cotpo" das crianças, ao desencadeamento psicôtico do magistrado Schreber. Quando este começa a delirar, o faz sobre a figura do dr. Flechsig, atrâs da qual podemos imediatamente reconhecer um deslocamento da imago paterna. No decurso do delírio, a figura de Flechsig se combinaria com a de Deus, constifuindo ambos uma nefasta aliança destinada a transformar o cor?o de Schreber: transformâ-lo num corpo feminino. Notemos que Deus estâ presente nesse delírio, ainda que seja em nível puramente significante, desde o próprio nome do pai: Gottlieb (: amor a Deus). Podemos, com justiça, esboçar a hipótese de que, se o pai se chamasse de outro modo, outra seria a figura sobre a qual Schreber haveria canalizado seu delírio. A fixação na figura de Deus nos diz que algo falhou a propôsito do pai. Qual seria, então, a tendência de uma terapia no caso Schreber, se é que se pode formular objetivos na anâlise? Simplesmente a de permitir-lhe simbolizar que coisa é um pai. Não se trata tanto de interpretar como o delírio funciona no sentido de uma inadequação ou desajuste à realidade, posto que, neste sentido, todo sujeito se constitui inadequando-se em relação à realidade, rszío fundamental da sexualidade, desde que esta existe enquanto transgressão do real. Esta última tese é fundamental, em que pese a sua simplicidade. É quase a pedra angular da psicanâlise. Que tem de "apaixonante" um objeto qualquer de nossa cultura, por exemplo, um isqueiro? Nada. Não obstante, o indivíduo chega a apegú-se tanto & ele, gu€, se o perde, sofre. Isto quer dizer que o isqueiro tem uma forma sexual prôpria? Não. Significa simplesmente que a sexualiclade transgride a ordem do real; o isqueiro é um puro instrumento, um objeto de uso, e confudo ficou investido de uma sexualidade permitida pelo homem e que lhe confere poderes libidinais. A
74
CIJRSO
l, l)ls('tIl{S() / l)A OBRA DE
J. LACAN
realidade da coisa-isque iro sc esg()tÍt na coisa-isqueiro, e se compararmos um isqueiro parlit'rrlru'cotìì oulro de mais luxo, obviamente o mais luxuoso terá nraior grrcço; isto não impede que o proprietário do isqueiro em questão st' n('Hrrc a lrrtcá-lo por outro, simplesmente em nome de um ccrlo gr':ru rlt' t'niuììoráÌmento, digamos: familiari-
dade (conceito dc Ír'irttlich ft'crrrliitnt) em O Sinistro).s O valor Ìibidinal vern-llrc prt't'is:uncntt' rlcss:r transgressão sexual feita à coisa real. 'l':rlvcz
5.
Freud, Sigmund
-
Lo SiniesÍro. Buenos Aires, Ediciones Noé, 1973.
A QUESTÃo Do SIGNIFIcANTE
delaïaz Lacan. Trata-se da teoria da percepção, que iniciulrrrcrrlt' Freud categoriza como trauma, mas que, depois de revisar c cri ticar, descarta-a para,colocar em seu lugar a categoria do f:urlitsma. Que é, então, o trauma? O trauma é nada menos que urÌìir teoria destinada a explicar como é que uma experiência externa pode chegar a inscrever-se no interior do indivíduo. Ao trocar o trauma pelo fantasma, Freud estâ tentando agregaÍ a esse matiz de exógeno sua característica de transgressivo, jâ que o fantasma não é mais um correlato unívoco do acontecido. É por isso que postula, como fórmula paÍa explicar essa passagem do externo ao interno, a teoria da sedução por um adulto. Deste modo, a psicanâlise diria que a sexualidade provém de fora (dos pais) e como efeito de uma violação. Com que é violado, não obstante, um bebê? Digamos simplesmente: com símbolos, com uma economia libidinal, com investimentos, com apoios para a libido. Ë assim que, como efeito dessa violação, ficou constituída no sujeito uma ordem de realidade que não coincide com os pais senão na literalidade de sua inscrição no inconsciente de nosso sujeito. E esta teoria da percepção que estamos abordando numa tentativa de explicação do real é muito importante, posto que dela surge um critério de cura. A cura consiste, pata Freud, não em um melhor ajustamento ou adequação ao externo, mas na possibilidade de retroceder o fantasma e conhecendo as leis segundo as quais se constitui reentendê-lo. Como efeito dessa revisão, se obtém um novo fanlasma com maior grau de simbolizaçío, mas igualmente constiluído sobre deslocamentos e condensações, o que nos leva à necessidade, novamente, de sua revisão. É daí que surge a interminabilidade do processo analítico: a psicanâlise é interminâvel. Pode por chegar a ser esgotada tcrminar - uma relação analítica, processo nras não o de anâlise que o sujeito deveria poder prosseguir fazendo uso dos recursos de interpretação com que a experiência o dotou. Em função disso, podemos também assegurar que trm psicanalista vende. Vende um côdigo, o código com que se rlccifra o enigma do sujeito. A pergunta, então, poderia finalmente ser resumida na seguinte enunciação: "Existe a realidade, per se?" Não. A realidade sc define sempre numa relação na qual ela se inscreve como uma rlifcrença. Não se registra a coisa sô. Ela é registrada como um t'trtcio contoutrd coisa, o que nos leva, por fim, a observar que o
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CURSO tì DISCURSO
I
A QUESTÃO DO
DA OBRA DE J. LACAN
SIGNTFICANTE
núticas concernem a uma teoria do símbolo. Claro que
que se inscreve é uma diferença de quantidades ou intensidades. Se o real é relativo, a sua é uma relação que ocorre entre o imaginativo
parece ter formalizado
71
Lacan
mais exaustivamente essa noção de símbolo,
sistematizando-o numa teoria; quando dw símbolo estâ aludindo a algo absolutamente preciso. Isto é, o contrapõe a alguns freudianos ou psicanalistas gu€, apoiando-se na ambigüidade que o tema oferece às vezes sob a pluma de Freud, tendem a admitir uma tese do símbolo que não é sempre congruente ao restante da obra freu-
simbólico. Em função disso, interessa abordar certa ambigüidade de definições que, às vez,es, sc obscrva quando se recorre a conceitos lacanianos nraiores c que, no caso concreto do simbólico, interpretam-no conìo urÌl proccsso de abstração. Justamente no discurso jâ "O Sirnb(rlicrt, o Intitginário, rt Real" de 1953 - que comentarnos, Lacan assinala qrrc ttcnhunta necessidade se esgota fora da absorção clc alinrento ou bcbitla quc acalnìem o estímulo físico-quírnico que a gcrou. Diz.cr símhob pressrrpõe, então, pensar na relação existente entre a necessidade, por um lado, e, por outro (usando terminologias aproximativas), o esquema connportamental pertinente para a sua resolução. Aludir, então, ao símbolo ê aludir à relação que um organismo necessitado pode estabelecer com o objeto de sua necessidade. Dai que o real estâ sempre inscrito numa relação que determina o sujeito. A propósito desse aspecto do simbôlico, interessa insistir sobre also jâ comentado, ou seja na congruência que hâ entre o conceito de simbolizaçio em Piaget e o conceito de simbolização em Lacan. Notemos que, definitivamente, o deslocamento freudiano (isto é: a metonímia lacaniana) arremeda a passagem, termo a termo, na teoria piagetiana, na qual esse processo se opõe a uma simbolizaçío. Notemos, poÍ outro lado, que a condensação freudiana (metâfora, em Lacan) é congruente com as características de descentralização próprias ao símbolo de Piaget. Esta congruência leva a pensar que a maior diferença entre a produção de Piaget e a de Lacan se radica na concepção de sexualidade. Piaget a exclui ao pressupor a inteligência como uma estrutura autônoma, diferentemente de Lacan, gu€ entende - de acordo com Freud - que a inteligência é um puro remanescente da sexualidade. Aí estâ a grande diferença entre os dois textos, visto que efetivamente uma criança de três anos pensa. Mas, com quê? Para a psicanâlise, com a boca, com o ânus e com o pênis ou com o ,clitóris, segundo a etapa libidinal. Logo, as chamadas zonas erógenas, e assim se associa a libido, que lhe era concomitante, a uma imago; as imagos parentais, que curiosamente sempre estão na cabeça e não nas regiões erógenas restantes. Assinalemos que as polêmicas entre as diferentes escolas psicaeo
diana. É assim gu€, às vezes, embora desde A Interpretaçõo dos Sonhos Freud alerta no sentido de não se interpretar símbolos universais, algumas conentes admitem por sua própria conta a equivalência constante: ârvore : pênis. Isto não se deveria Í,azer nunca, ao menos até que se prove e demonstre. É essa diferença conceitual a respeito de uma teoria do símbolo o que vai ocorrer opositivamente em relação a Jung. A rigor, desde que Freud não estatuiu uma teoria do símbolo, cadaum de seus seguidores recotreu a uma teoria paÍa dar suportes Às suas investigaçCìes. É assim que JoneS cunha uma teoria, Melanie Klein outra, Lacan outra. Mas insistiremos, até a exaustão, que a importância relativa ao símbolo e à palavra concerne de perto ao problem a da interpretação. É que isto nos permite entender por que uma interpretaçío nunca deve ser automltica e, sim, fruto de uma construção. Em princípio, porque essa construção deve subordinar-se ao discurso do paciente e, de fato, porque todo discurso estâ organizado sobre um duplo eixo que vamos sistem atizat: paradigma e sintagma. Em outras palavras, uma teoria do símbolo não nos permite sustentar a existência de símbolos universais, visto que estes são sempre relativos; e são relativos a este duplo eixo que estamos assinalando: paradigma e sintagma. Todos esses conceitos nos introduzem à noção de significante' Saussure nota que a palavra é o fruto de uma combinação, de um conceito com uma imagem acústica:
coNcEITO Imagem
acústica
--> --r>
M-E-S'A
à combinação desse conceito com a imagem acústica, Sausstrre denominarâ signo. Assim, o signo é a relação entre o conceito
l^Ô,_
CURSO E DISCURSO
/ DA
OBRA DE J. LACAN
A QUESTÃO DO
(que denominaremos, mais adiante, significado) e a imagem acústica(signifícante). Em outros termos, quando utilizamos a palavra mesa, estamos combinando um conceito de mesa com os fonemas me-sa. Saussure, €ffi função desse acordo terminolôgico e para evitar maiores discrepâncias, denomin a signo à relação , significado (s) ao conceito e significunte (^t) à imagem acústica.
Significado- ----->s
I'I
Tomemos, então, o clâssico exemplo saussuriano da Ítrvore. Nele o significante constituído pelas letras â-r-v-o-r-e remeteriu tt um significante que Sraficamente representaríamos desta forma:
ÃnvoRB
)
-S )ì Signo
Significante
SIGNIFICANTE
Primeiramente, Í.acan observa, de acordo com Saussure: o signo não resulta da associação unívoca entre uma coisa e uma nomenclafura; não podemos aceitar que existia a "idêia' ' de âryore e, então, se concordou em denominar: "a lsso vamos chamar de ôrvore". Não podemos aceitar a idéia de que existem previamente os conteúdos de pensamento e que logo depois se lhes dão títulos. Estamos, pois, ante uma relação que não é unívoca e que definiti vamente ê, arbittâria, ou seja, convencional. Em segundo lugat, Lacan nota guo, ao falar do significado, Saussure utiliza a noção de conceito e não a noção de coisa. Sabemos que conceito é uma "elaboração" mental sobre a coisa. Sabemos, pois, que óonceito é uma relação particular, apreendida a respeito da coisa. Portanto, o termo inferior de nosso algoritmo estâ constituído, certamente, por um significado, mas que igualmente se define como uma relação:
-+ Saussure obserya que a relação no interior do signo - vale dizer, entre o significado e o significante é arbitrãna. Assim, se usamos os elementos acústicos m-e-s-a para designar o conceito de um objeto apoiado por três ou quatro eixos e cuja função ê a de sustentar objetos em formzi horizontal, ê, enquanto efeito, fruto ou resultado de uma convenção, acordo, pacto ou contrato. Não hâ nada intrínseco no objeto que exija que o denominemos de alguma forma em particular. Não hâ nada intrínseco ao objeto mesa que o f.aça, automâtica e inevitavelmente, denominâvel mediante o significante mesa. São destes rudimentos que parte Lacan para abordar
a questão, ainda que propondo uma primeira inversão que em princípio não é significativa no grâfico: Lacan proporâ colocar o significante na parte superior e o significado na parte inferior deste algoritmo: ó
Significante Conceito # Coisa
S ;
(Significante) (Significado)
De acordo com o nosso exemplo,
[o lugar de "significado"
esquematizamos graficamente uma gestalt, a forma de uma ârvore. Em nosso caso, trata-se, pois, da relação entre o grâfico e o conceito. Obviamente, o grâfico resulta da apreensão das formas fun6. Lacan, p.495.
Jacques
-
perceptivas em nosso exemplo clamentais ôruore. Assim, pois, a fórmula do exemplo serâ:
L'Instance de la Lettre dans I'Inconscient.ln: Ecrits, ed. cit.,
,}"
-
que definem a
80
/
CURSO E DISCURSO
DA OBRA DE J. LACAN
A QuEsrÃo Do sIcNrFtcAN't'tì
Notemos, pois, que o significante se "definc" lìrl oposiçikl significante. Em outras palavras, o significante não {. unìn sirnlllcs referência ao significado (como o era nas teses saussurianrs), nrns, antes de mais nada, uma diftrença. A propósito deste tcxlo rlc Lacan, assinala Jorge Jinkis:7 "debaixo da barra, o que há ó urrrn separação de lugares. Assim, pois, Cavalheiros-Dqmas sirrrlrotiz:r a diferença que a lei articula.. . " Isto nos devolve a um tôpico que jâ esboçamos, pois, visto assim, o significante instaura uma estrutura posicional e toda posição é sempre relativa a outras. Digamos que o significante, por seu carâter relativo, define um lugar de cuja confrontação cãm outros surge o sentido, última fonte de toda materialidade no inconsciente. Para melhor entender o problema das diferenças articuladas numa lei, obselremos de perto nosso exemplo. Notemos que, sob a barra, não desenhamos um banheiro, e sim bastou uma representação ou um grâfico que alude a ele. Mas se esse grâfico pode representar as portas dos banheiros, é porque o grâfico em questão compromete uma relação. É a relação que se articula entre õ signo e o ato (f.azer xixi); mas, além disso, não é que o xixi exige uma prâtica diferencial conforme sejam Damas ou Cavalheiros? Admitido isto, é simples aceitar que o significante é significante de uma diferença, a qual, paÍa ser admitida como tal, deve ser registrâvel como regularidade ou como lei. como resultado, podemos concluir que a opeiação lacaniana a propósito da lingüistica redunda numa subversão da posfura saussuriana. Jâ' náo se trata de um significante remetendo a um significado, e sim de um significante que remete a outro significaite, onde, além disso, é preciso esclarecer que o significante não é pensâvel senão em relação. Neste ponto jâ é forçoso introduzir a noção de cadeia significante, noção que nos permita objetivar as leis que regem essa relação. Desde Saussure, fica instaurado o conceito da linearidade do significante. Este aparece sempre numa seqüência que é linear, mas esta linearidade pode intervir num
Significante
Grâfico
*
Conceito
Deste modo, o significante é efetivamente arbitrârio e convencional, mas é uma arbitrariedade relativa a uma convenção conceifual. Não se trata, pois, do fato de que cada significante corresponde a um conceito, posto que precisamente o conceito âryore ê a categoria que resulta de englobar, sob um denominador comum, todas as variedades de árvores existentes: cardamomos, bananeiras, âlamos, nogueiras etc. Aqui intervém, pois, a noção de conceito. Mas, como se.constrôi um conceito? Precisamente comparando termos (relacionando termos). Com isto Lacan taz notar imediatamente que, no andar inferior desse algoritmo, no lugar do significado, há dois significantes comparados. Sem dúvida, toda nomenclatura surge de uma comparação de termos. E qualquer estudo sobre a origem das línguas avaliza esta definição. Isto ratifica a tese da arbitrariedade do signo, ainda que tal arbitrariedade não intervenha na relação palavra-coisa, e sim na comparação de termos que gera uma nomenclatura que pretende esgotar diftrenças entre termos comparados. Nosso algoritmo se transforma novamente, para adotar, agora, a seguinte estrutura:
Significante
Significante
-
Significante
O modelo que Lacan produz em Instôncia da Letra no Inconsciente é precisamente este: CAVALHEIROS
8t
DAMAS
7. Jinkis, Jorge "La Derivaciôn de un Término como Constnrcciôn de un Con('clìkì: el Significante". -In: Revista Imago, n9 2. Buenos Aires, Editorial Letra Viva, 1975,
p
4'.-
tt0.
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CURSO E DISCURSO
A QUESTÃO DO SrcNrFrCANTri
/ DA OBRA DE J. LACAN
de manejo não são outras que as leis de combinação quc rcgcrÌì o
duplo eixo: o eixo do sintagma (frase) ou o eixo do paradigma (asiociação). Ilustremos este cluplo eixo sobre o modelo de um 'I'rata-se do sintagma: "Eu conheço exemplo jâ trabalhado aqui. Silvina!" Vejamos os ptlssíveis paradigmas desse sintagma: - [']u conheço Silvina
4
I
bus<'o
r'ópula
(paradigma
l)
\
4
significante. Para apoiar o que dissemos aceÍca de como o sentitlo ó unr efeito, poderíamos recorrer a um último exemplo. Suponlìáuìros, neste caso, que alguma aluna se prestasse a ler esta frase quc v()u escrever no quadro negro:
(sintagma)
AI QUERIDO ASSIM NÃO PODEMOS CONTINUAR VIVENDO. Seria necessârio que fosse lida tantas vezes quanto eu lhe
aprender
pedisse, limitando-se a ler o que permanecer escrito no quadro. Isto quer dizet gue, a cada leitura, eu vou apagaÍ algum ou alguns dos
(paradigma 3)
I
toco
termos dessa frase. De acordo? Bem.
(paradigma 2)
Ai querido assim não podemos continuar vivendo Ai querido assim não podemos continuar Ai querido assim não podemos Ai querido assim não Ai querido assiÌn Ai querido Ai
+
No caso do eixo que denominamos "paradigma 1", figura um termo que jâ trabalhamos: trata-se da associação bíblica entre os verbos que aludem ao conhecimento e à face carnal que se opera no ,r,"rrno. No caso do "paradigma 2", o eixo de assoCiação estâ regido prima facie pelo deslocamento do fonema'co. Finalmente, tro .ato do "paradigma 3" , I associação estâ regida segUndo uma seqüência de sinônimos. Poderíamos, muito simplesmente, concluir que o significante conheço se acha sobredeterminado pelos eixos que a associação nos revela. O universo do sujeito é o universo do significante, onde
Bom, é indubitâvel que a supressão de termos permite, a partir de um determinado momento, a introdução de um sentido sexual. Ou seja, quando a frase começa a se reduztr, apartir de "ai querido assim não", o sentido é sexual. Obviamente, e pelas risadas, não é imprudente dizer que todo mundo coincidiu na percepção de tal sentido sexual. Ainda que alguém diga que pensou na lingüística, ou seja: o uso dalín8ua
Fica bem patente que, sem usar nenhum significante especíÍico, produzimos coÍno efeito de significação o aparecimento da sexualidade na série. Esclarecemos que hâ duas armadilhas nessa questão; trata-se de dois shifters: o primeiro é a yoz feminina que lê, e o outro ê, o shifter que denota que o sujeito aludido é um varão, no significante "querido". De fato, avoz feminina e o -o de querido produzem um efeito de diâlogo entre um homem e uma mulher. Mtrs, vistas essas duas armadilhas que não são mais que dois
formular-se em forma linear ou autom ítica. Neste contexto , Lacan não fala de significados, senão de sentido. E o sentido não preexiste aos significantes; é um efeito da combinatôria das cadeias. O sentido é produzido, é um produto e, como todo produto, se rege por um processo produtivo' por um trabalho que implica a colocação, em jogo, de uma matéria-prima e de uma lei de manejo da mesma. Em nosso caso, tratã-se da matéria-prima que é o prôprio significante e aqui as leis
t-
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CURSO E DISCURSO
/ DA OBRA
A QUESTÃO DO
DE J" LACAN
shifters, ou seja, dois referentes contextuais do disei.lrso, se nos evidencia eu€, subitamente, nessa relação entre uma voz fenninina e um aludido masculino, se filtra um efeito de sentido sexual; oìi, para brincar com os termos, se filtra um sentido literal, na litera^
lidade do leito. De onde surgiu esse novo sentido? Simplesmente das combinações no sintagma a respeito do qual conhecemos a seguinte lei: é retroativo. Cada elemento da frase retorna sobre o anterior e limita ou circunscreve suas possibilidades de efeitos de sentido. No enunciado: "ai querido assim não..." se instaura um sentido sexuai que não é possível manter quando a frase se completa: "ai querido assim não podemos continuar vivendo". E que os significantes finais, ao retornar sobre os precedentes, impedem toda possibilidade de equívoco (ou seja, limitam a polissemia própria do significante). Esse retorno do elemento terminal sobre os anteriores é o que Lacan vai teorizar sob a denominação de après-coup, isto é, efeito retroativo ou retrospectivo da cadeia, na produção das linhas de significação. O fato, pois, de que no enunciado "ai querido assim não" a cadeia não esteja limitada, leva-a a abrir-se pura e simplesmente para outra relação: a relação sexual. Isto nos conduz a drzer que o sentido é uma relação. A reiação de determinação que se articula entre um paradigma não-manifesto, Ro cruzamento com o sintagma. O resultado é um efeito de significação que todos, nesta reunião, percebemos. A prova estâ no fato de que todo mundo começou a rir maliciosamente a princípio, francamente, no fim... E a tal ponto esta determinação ê eficaz, que gerou um fenômeno coletivo de combinações múltiplas e novas criações de sentido, pois, quando perguntei se todos pensaram num sentido sexual, alguém na reunião declarou: "Não, de modo algum; eu pensava na lingüística". Obviamente que a lingüística ê, a ciência da língua, mas se continuamos com este tom festivo com que se ameaça concluir esta reunião poderíamos pensar que essa "ciência da língua" tem vârias possibilidades: a ciência da língua na
SIGNIFICANTE
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Nenhum significante remete a nenhuma coisa concreta senão a um conceito e, justamente, o conceito não pode resultar a nilo ser da oposição de outros dois novos significantes. Não existe a essência, se se quer utilizar o significante calor, do calorífico ou da calorosidade a que esse significante remeteria. Não. O significante calor remete a uma experiência de confrontação no registro térmico.
calor
s+s
calor
+
frio
Isto, que custa esclarecer quando se estâ manejando uma língua familiar como o ê, a própria, se pode, mais nitidamente, exemplificar com um regionalismo. Em Tucumân (Argentina), existem duas vozes paÍa aludir ao calor e ao frio:
chuy
(frio)
+
tuy (calor)
Notemos que não hâ nada no vocâbulo chuy, como não hâ nada no vocâbulo tuy que nos obrigue, forçosa e necessariamente, a
ligâ-los aos conceitos de frio e calor. Mas, por outro lado, curi,:rsa e paradoxalmente, a distinção entre frio e calor, nessa denominaç ão, se opera pela exclusiva diferença fonológica: ch # t.
tuy
felação?
S
Que serâ desses chistes e qual sua relação com o inconsciente?
*
S
tuy
*
chuy
Trata-se de uma relação de sentido. Não é casual, por certo, a emergência de tais sentidos num âmbito no quai ê tãro forte o privilégio da palavra, visto que é ela que garante e provê nossa
ch/t
relação.
uma construção de significantes opositivos. Não hâ uma substância
O efeito de sentido é possível em função da oposição fônica que permite únicos elementos diftrenciais na oposição
-
-
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CURSO E DISCURSO
/ DA OBRA DE
J. LACAN
do calor nem uma substância do frio, transmissível em forma independente ou autônoma, que a língua devesse aprisionar, visto que o que esta aprisiona é uma oposição ou diferença. Assim pensada a questão, Lacan conclui que um significante remete sempre a uma diferença que, no caso em anâlise, foi claramente posta em relevo.
Recuperemos um discurso já analisado por nós. Trata-se do sintagma "ah, conhecer a Silvina" e as respectivas cadeias.
(sintagma)
Ahl conhecer
a
Silvina I
Sibilina Cibelina
I
cópula
-
Cibeles Ceres
I
i
Eres I
I
(paradigmas)
Esquematizando a interpretação jâ rascunhada, observaríamos que aqui hâ um discurso que é francamente sexual, um pouco ao modo do "ai querido...", onde, não estando o verbo copular posto em jogo no sintagma, depois de se esclarecer os paradigmas e os novos sintagmas que surgem destes, obteúamos um discurso sexual facilmente esclarecível.
\-
-Conhecer
-cóplrrí-
Silvina -.
\'/ ,/\
/ \
\
Eres t t
'l
O importante que podemos sublinhar em fudo isso é a necessidade de ter em conta esses cruzamentos de cadeias na interpre-
a eupsrÃo Do SIcNIFTCANTE
87
tação, em franca oposiçío a uma concepção que subscreveria a formulação de interpretar termo a termo, em forma quase unívoca ou unilinear. Definitivamente, o sentido produzido é arbitrário, porém posicional e resulta do aparecimento (no caso de nosso exemplo) de quatro nôdulos de uma rede de cruzamentos, onde podemos notar uma distribuição de lugares com os quais é possível operar mediante combinações e permutações. Ao mostÍaÍ a dependência que sofre o significado com relação às combinações do significante, não estamos fazendo outra coisa que pondo em relevo essa dinâmica do significante que jâ sublinhamos e que consiste no fato de que todo significante remete auma oposição de significantes. Isto é o que pretendemos levar à sua máxima expressão, nas sucessivas leituras do exemplo: "ai querido assim não podemos continuar vivendo". A propósito, recordemos que o aparecimento de determinados aspectos de significação no discurso, à medida que íamos fragmentando a frase, gerou como conseqüência uma multiplicação dos efeitos de significação, materializada em chistes tais como a pergunta: "O que é a lingüística", ou a resposta "ê a ciência da língu a" . Ê ôbvio que esses efeitos de significação são plenamente relacionais como o é, em suma, a dinâmica do significante. É que o prôprio diâlogo "que é a lingüística?" /"é a ciência da língua" , nío estando precedido pelo discurso prévio, não teria tido o efeito de chiste, simplesmente se limitando a um diâlogo bastante conciso. Teria tido outro valor. Assim formulado, o que nos fica claro é que uma imagem representa determinado símbolo, de acordo com determinadas leis; leis que, paraLacan, se encontram relatadas com toda precisão na lingüística, e que a condensação e o deslocamento freudianos são pensâveis (ou seja: sistematizâveis) em termos de metâfora e metonÍmia. Disto podemos observar como determinado elemento se desloca (constituindo uma figura metonímica) e se condensa com outro (originando, assim, uma figura metafôrica) para produzir um cfeito que é puramente ilusório, a menos que retrocedamos no caminho até aceder às suas determinações. Dai a furiosa reivindicação da associação livre, como garantia de que ao menos o que se estâ interpretando é o discurso do paciente e não o discurso do nnalista refletido no outro. Daí a clâssica reação lacaniana contra ccrtas interpretações quase automâticas que, às vezes, se depreenrlem da formulação de alguns seguidores de Melanie Klein. Tais
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.a euBsrÃo Do
DA OBRA DE J. IÁCAN
sua "concepção". Qual é a importância desse recurso às noções de sintagma, de
paradigma e de ponto de cruzamento? O suposto analítico de trabalho é o de uma pretensa neutralidade terapêutica; neste marco, a única possibilidade ê a de construir as referências, tomando o próprio sujeito da experiência analítica como fonte. Mas, além desse benefício, a noção de sintagma e paradigma nos permite ilustrar um novo conceito. Em princípio, o discurso ê sempre polissêmico; o sujeito pode estar falando de uma fonte e estar, por exemplo, pensando numa vagina, ou também na fonte de Cibeles, de Madri, ou num filme de Bergman cujo título ê a A Fonte da Donzela, ou pode estar simplesmente pensando em uma fonte. Assim sendo, desde que o discurso é sempre polissêmico, nunca se sabe definitivamente, e com certeza, se não é pelo contexto, o que se nos estâ querendo daer. Mas um analista que tenha suprimido o contexto (no sacrifício da neutralidade) não saberia nunca o que o paciente lhe estâ querendo dwer. Daí que o único recurso teoricamente pensâvel é o da construção de pontos relacionais; é sua únicacerteza de não perder o contexto, visto que seu trabalho levaria precisamente a reconstruí-lo. A reconstruí-1o... Qual? O do paciente. Onde? No curso da sessão. Então, o problema não reside em conhecer, dispor de dados privilegiados a priori, seja concernentes à história do sujeito ou às suas desvenfuras. O problema consiste em conhecer seu contexto e este deve ser reconstruído, na sessão, por meio de seu prôprio discurso. Não obstante, certamente em algumas interpretações interyêm certos inefâveis, certos inapreensíveis, mas também é certo que esses inefâveis ou inapreensíveis são teorizâveis. Se assim não fosse, a experiência de supervisão de casos seria uma tarefa impossível ou careceria de toda
Pontos de
capltonné
Digamos, êtÌl'síntese, e para concluir, que essa cadeia reflete a existência de diversos discursos em diversos níveis, com seus respectivos enlaces e nos mostra a necessidade de tomar essa multiplicidade discursiv a, na interpretação. O capitonné ê uma técnica de tapeç aria para forrar môveis e consiste na aplicação de botões no recosto forrado duma poltrona, de modo que se formem esboços de linhas, como efeito das pregas. Precisamente, a concepção lacaniana do discurso do paciente é essa: a de uma superfície lisa, dentro da qual, por sucessivos deslocamentos, se obtém determinados pontos de intersecção, que são os que interessam, pois permitern fixar a superfície discursiva. Para que serve o capitonné numa tapeçaria? Paia conseguir um efeito decorativo que fixa visualmente a superfície. Igualmente, o
8. Jakobson, Roman
-
8e
discurso do paciente se oferece como uma superfície lisa que é necessârio fixar, mas mediante os pontos que o próprio paciente provê em sua "verbalizaçlo" e não os que o terapeuta propõe em
interpretações revelam um nível de automaticidade e pré'formalidade, no côdigo do analista em relação ao discurso do paciente, tão evidente que o diâlogo deixa de ser diálogo para tornar-se dois dis' cursos absolutamente paralelos que nunca, jamais, poderão coinci' dir na produção de um sentido. A reivindicação que Lacan faz da as' sociação livre é, exatamente, a reivindicação desse rastrear; rastrear as determinações que regem o discurso do sujeito. Claro queesse ras' trear se vai expressar num rastrear de cadeias dentro das quais ficam privilegiados os chamados "pontos de capitonné", de encontro, de conexão entre cadeias priradigmáticas e cadeias sintagmâticas.t
torial Ayuso, 1973.
srcNrFrcAN'rE
validade. Pois bem, como no sintagma a relação significante é linear, e como cada significante tem uma inscrição'peculiar no côdigo, isto nos obrigarta, cada vez que surge um termo, a procurar seu lugar no côdigo. Com isto estamos dizendo que, assim como o sintagma é um uso do côdigo (esse'arquivo, por assim dizet, esse tesouro do coqiunto de significantes de um sujeito), o paradigma é a linha que
"L8 Afasia". ln: Fundamentos del l*nguqje. Madrid; Edi-
t4.-
90
CURSO E DISCURSO
/
I
DA OBRA DE J. LACAN
nos permìte relacionar o uso com o código,
quei dizer, o nível em
que o côdigo estâ sendo usado na frase. Saussure esclarece o paradigm a na construção de famílias de palavras, por exemplo, tomemos o significante esposo: Esposo I
ï
Desposar I
QupsrÃO DO
SIGNIFICANTE
91
é o ponto de cruzamento de diversas cadeias. Os fenômenos de deslocamento e condensação são, ao que parece, os apoios materiais do discurso analítico. Na realidade, a associação livre é justamente um percurso no sentido inverso da produção de um discurso, seguindo as linhas de clivagem ou deslocamento, até chegar a um ponto terminal provisório. Nesse ponto é que o analista interpreta, sendo sua interpretação um assinalamento do tipo: "parece que suas associações associam tal nível manifesto a tais outros níveis latentes".
t Esponsais
t mas também poderíamos construir um paradigma absolutamente
arbitrârio:
Foi RÔiJ
[nomper I
Deste modo, paÍa Saussure, a importância do paradigma estâ no fato de permitir-nos aceder ao código de uso de cada significante no eixo do sintagh&, sendo a valoração desse eixo congruente com a reivindicação da associação livre. Ora, dissemos que, na f.ala, a seqüência ê linear. Quando, por exemplo, utilizamos o sintagma
Dito isso, poderíamos começar a pensar o primeiro grâfico do seminârio As Formações do Inconsciente.e Este primeiro grâfico tem a forma de duas cadeias que, partindo de dois pontos distintos e desenvolvendo-se em sentido contrârio, cruzam-se e se entrecortam em dois pontos. É um dos primeiros recursos topológicos que Lacan usa (uma topologia do discurso), segundo articulam duas cadeias.
"ai querido assim não podemos continuar vivendo", estamos deslo-
Mensagem
é, construindo metonímias - substituindo um termo - istoMas, por outro. igualmente, ao nível do paradigma prevalece o cando
deslocamento. É aa reunião de um deslocamento com outro que surge a condensação, e aqui temos sistematizados os conceitos freudianos de simbolizaçlo, deslocamento e condensação. Que é a condensação? Ao estudar um pouco esses esquemas que em estamos trabalhando, nos inteiramos de que a condensação
9.
Lacan, Jacques
Vlriôn, 1970, p. 69.
- IÃs Formaciones
o qual
se
Código
del Inconsciente. Btenos Aires, Ed. Nueva
92
CURSO E DISCURSO
/
DA OBRA DE I. IÁCAN
A QUEsTÃo Do
Estas duas cadeias não são mais que a cadeia da língua e a cadeia da tala, permitindo, mediante suas intersecções, criar um espaço no qual pensar uma teoria do discurso que, pelo que jâ
vimos, interessa primordialmente essas duas cadeias, veríamos que
a Lacan. Se desmontâssemos
a primeira recebe o nome
de
"cadeia do significante". Por que estâ constituída? Por fonemas, semantemas, palavras. Nesta cadeia poderia entrar o nosso "ai querido assim não podemos continuar vivendo". Este ê o nível da língua:
o
SIGNIFIcANTE
q.I
vetor 1 representa o nível da língua. Neste sentido, sua
direção é sempre linear, tendo por condição o desaparecimento de um significante para que possa surgir, no espaço, o seguinte. Numa frase qualquer, poÍ exemplo: a árvore verde, pode-se colocar num grâfico essa direção, com suma simpliciddrr--* . Mas também vimos que o significante não "leva" nenhum sentido. Em todo caso,
o produz como efeito, e vimos que a produção do sentido estâ regida por uma lei que denominamos "de retroação" (o chamado "efeito de après coup"). É esta lei que ilustramos, com o exemplo de "ai querido assim...", onde explicamos como é que o último significante da série inicia um movimento de retorno sobre os anteriores que, ao limitar a polissemia natural dos mesmos, permitia a produção de um sentido mais ou menos preciso. Agora, podemos colocar num grâfico esse efeito, mediante o seguinte
G- . Portanto, o sentido surge de forma diretamente oposta ao movimento de aparição do significante. Daí ser necessârio apelar a duas cadeias, paÍa explicar o sentido. Mas, além disso, como estas cadeias não funcionam de modo autônomo, mas se intercorrespondeh, ê intersecção das mesmas pretende explicar as relações que ocorrem entre ambas. Daí que o vetor I e o vetor 2 se cruzem vetor:
A outra cadeia explica o nível da fala. Representa o sujeito falante sem nenhuma outra particularidade ou especificidade.
em dois pontos que são os que o grâfico pretende sistematizar: o côdigo e a mensagem a saber, a estrutura social da língua e a
Em primeiro lugar, convém assinalar que o efeito de sentido surge do cruzamento dessas cadeias, quer dizer, da intersecção entre a língua e a fala. Esclareçamos esta questão. Para melhor entendê-la, desdobremos essas duas cadeias: obteremos dois vetores paralelos, de sentido contrário:
VETOR
1
VETOR
2
- da mesma. realizaçlo intersubjetiva Definitivamente, temos aqui o grâfico do sujeito falante, isto é, o sujeito que se dirige à língua. Convém sublinhar este conceito: se dirise à língua. É que, ao contrâtno, cairíamos na ilusão de supor que um sujeito tem os significados em sua mente e o que necessita são palavras que lhe permitam expressâ-los. Jâ demonstramos suficientemente o ilusôrio de tal suposição. E podemos contexfuâ-lo mediante, por exemplo, a tradução. obseÍTemos que o sentido se produz no contexto, e gue, afinal de contas, a tradução não é outra coisa que um modo de contextuar. Eu dizia que temos a impressão de ter significados e necessitar as palavras para expressâ-los, quando, a rigor, não há nenhurn significado independente das palavras de cuja interação aquele é produto, a ponto de que o termo Wiederholungszwang ê significâvel na interação de tal significante com o significante "compulsão à repetiçáo", significante que, por sua vez, é significâvel num contexto, por exemplo, [o confronto com o termopzlsão de morte, etc.
94
CURSO E DISCURSO
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A QUESTÃo Do
DA OBRA DE J. LACAN
Que nos quer dizer o que desenvolvemos atê agora? Em primeiro lugar, um indivícluo se dirige paÍa o côdigo lingüístico, toma dele determinados significantes, e é no uso desses significantes que pode produzir a mensagcm. Reiteramos que as palavras, em si mesmas, nada querem cliz,cr sc não relacionalmente, no curso de um uso. Note-se que, iÌo significante fonte, demos tantos sentidos quanto nos foi possívcl, tanto para aludir à vagina como para aludir a uma fontc, um filmc ou a um monumento arquitetônico. Portanto, as palavras sc defincnt por um uso; mas, ao mesmo tempo, esse uso não ó possívcl scnão em função de leis que o preestabelcçarn, quc o linritem: o cíldigo. Não pode haver mensagem se não houvcr côdigo, assim como não hâ côdigo senão em função da nìensagem. É no uso que podem aparecer os efeitos de sentido sob a forma
de mensagem. A necessidade de pensar que as duas cadeias se cruzam é bastante evidente: não estamos fazendo nem uma teoria da língua, nem uma teoria da ïala, mas uma teoria do discurso. Como se produz o sentido quando uma pessoa utiliza a língua existente, sendo que a língua é uma estrutura pré-formal, que preexiste ao homeh, € que a falc' ê uma prâtica absolutamente subjetiva que depende do falante? O discurso resulta, em relação ao sentido, da intersecção entre essa pura subjetividade e essa pura universalidade. Nosso sujeito, partindo da necessidade, se dirige para o código. Que é o côdigo? Poderíamos dlzer que o código é esse reservatôrio de significantes coletivos. Mas, quem provê o côdigo a um bebê senão a mamãe, através dessa paulatina introdução de significantes pré-digeridos, como: a papa, o popô, o pepé...? Com isto, achar um côdigo implica, no campo da psicanâlise, encontrar-nos com essa confluência particular de uma dependência lingüística e uma dependência libidinal do sujeito em relação a um Outro. Não é casual que este A ê o que se denominarâ, em Lacan, de Outro. Que
quer dizer isso? Em primeiro lugar, o nenê sente necessidades que não podem ser significadas senão pela provisão que a mãe realiza; provisão da qual lhe significa tal necessidade. É a partir da provisão que a mãe taz à necessidade que se pode produzir paÍa o nenê o efeito de sentido, do que é que necessitou, e como deve resolvê-lo no código. e Utilizo o verbo necessitar no passado, porque em psicanâlise
-
SIGNIFICANTE
i,.,
isto é importante
- a categoria de necessidade não tem vakrr pur'o, à medida que vai estar sempre mediada ou mediattzada por outro fenômeno: o fenômeno da demanda. Necessid26ls <---------> Deman da
Esclareçamos este aspecto, valendo-nos de um exemplo: suponhamos que João tem fome, e que é odiado por Pedro. Certamente, a última pessoa a quem João vai pedir comida ê a Pedro. Em
primeiro lugar, porque Pedro aproveitaria o fato de que João precisa dele para deixá-lo afogado em sua indefesa e não lhe significar, assim, sua necessidade na solução. Moral da estória: a necessidade, paÍa a psicanálise, leva inexoravelmente implícita a noção de reconhecimento, quer dizer, de um "algo ou alguém" que reconheça e signifique com seu reconhecimento, função que para a psicanâlise assim como para nossa organização social apoiada -fica na família conferida à mãe. Deste modo, nosso sujeito se dirige de sua necessidade parao código e o código se lhe significa: este é o ponto da cadeia que, no gráfico, indicamos com a letra grega 0 (beta). O que significa paraLacan? Significa o Eu, a saber, o Eu da enunciação, isto é, essa capacidade de falar de si mesmo
cm primeira pessoa; capacidade que não nasceu com ninguém e que, mesmo quando a criança jâ adquiriu alguns rudimentos de linguagem, não consegue utilizar senão após constituir uma matriz rle suas identificações.
E comum que os nenês, por volta dos dois anos de idade, Íalem de si mesmos na terceira pessoa: "o nenê fez dodói... " "O lrcnê" do qual estâ falando é ele mesmo. Que f.ez, entáo, o nenê? 'l'rocou de lugar; em vez de falar do lugar do Eu se colocou no lugar rla mãe, ou seja, se alienou e daí fala sobre si mesmo. "O nenê fez rkrdôi" - esta terceira pessoa revela a alienação de sua estrutura irlcntificatôria em absoluta e rigorosa solidariedade com a alietrlção e alteridade que rege sua estrutura de palavra. A possibilirlade de constituir um Eu ou seja, - no sentido lingüístico - pessoa, cssc lugar ao qual referir todos os discursos em primeira é rnrr cfeito da interação entre o sujeito e o côdigo (ou seja, a mãe). É rr partir daí que um sujeito pode atribuir-se um destino: "eu quero ser hombeiro", destino que, em nosso grâfico, se representa pela lclrt grega p'(beta, linha) e que ilustra os ideais (necessariamente rrlicrrados) de um sujeito. O que nunca se deveria omitir é que, para
CURSO E DISCURSO
/'DA OBRA DE J. LACAN
formular esse sintagma (eu quert) ser bombeiro), é necessârio
A QUESTÃO DO
SIGNIFICAÌ.ITE
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mas como um efeito da primazia desse côdigo, único capaz de converter toda mensagem possível em reallu,âryel. Pois bem, esse grâfico vai ser retomado a posteriori por Lacan, no seminârio seguinte, O Desejo e sua Interpretação.to Ali vai agregaÍ rnais um andar a esse esquema, pata, assim, explicar a emergência da significação inconsciente:
o
recurso ao côdigo e que o recurs(l ao código proveu os significantes necessârios de cuJa combinaçãtl surge uma mensagem. Conseqüentemente, essa mensagem ttão tlcpctrde da vontade do sujeito mas de sua sujeição ao código. lìsta capacidade de falar de si mesmo em primeira pessoa é solirlária rla constituição da estrutura do sujeito que grafamos Íìutn esqucnìa
na psicose ulÌìa rclaçãtl ctlnsigtl mesmo e, correspondentemente, unìa rclação com o universo, está denunciando a Correlativa dificuldade de constituir este lugar beta (P) em relação ao que a formulação não é errônea, mas côdigo A. Daí que - e pensomuito que a mãe melhor que haveria que teorizâ,-la - se diga esquizofrênica, na teoria comunicacionalista, ê aquela que emite mensagens em sentido duplo, paradoxal, irresolúvel, contraditôrio, não permitindo ao infans o estabelecimento de uma regularidade entre o universo e sua demanda, de tal modo que lhe impede a possibilidade de assignar-se objetos, na forma do mencionado uni-
ver-se
A parte que assinala a estrutura do desejo não é alheia à que indica a estrutura e incidência do significante. Por quê? Quando falamos pela primeira vez da palavra como símbolo, dissemos que um de seus matizes mais importantes era o de ser estruturada por Outro. A estrutura da língua é independente da boa vontade do Ego; é uma matnz herdada, a respeito da qual o Ego se limita a combinar seus respectivos elementos com alguns graus de liberdade relativa - nunca absoluta - em função de um uso. Ora, não é, então, que o desejo também preexiste, precede ao bebê que acaba de nascer? Não é certo que suas necessidades serão contempladas em função do desejo da mãe que o atende? Existe, pois, uma franca solidariedade entre a estrutura do desejo e a estrutura do significante que se faz necessârio formalizar. Creio que isto esgota praticamente uma primeira abordagem de As Formações do Incons-
verso.
Definitivamente, podemos concluir que, entre dois falantes, ocorre sempre uma relação mediada por um côdigo; côdigo ou convenção que intervém sempre em outro lugar com relação aos falantes, ou seja, no lugar em que a língua preexiste, de modo definitivo, na ordem social. Código
Ordem social
'
Não é um indivíduo quem pode mudar a língua. Poderíamos até afirmar o contrârio, isto é, que a língua é que muda os indivíduos, os transforma. É que, na medida que o falante pode Ïalat, depende de um côdigo ao qual estâ sujeito. Mal podemos pensar na comunicação como uma transmissão de Eu a Eu íde Ego a Ego),
ciente.
Mas, de qualquer modo, antes de dar por concluído este capífuIo, interessaria refrisar que o recurso à lingüística, em Lacan, tem por fundamento o de explicar como o efeito de sentido resulta das intersecções que podemos objetivar na construção da grade 10. Lacan, Jacques Vlsiôn, 1970, p. 130.
---li
- El Deseo y
Su Interpretaci6n. Büenos Aires, Ed. Nueva
98
CURSO E DISCIJRSO
/
T)A OBRA DE J. LACAN
significante. A função dessa grade radica precisamente na possibilidade de ler um discurso, sendo esta leitura uma conseqüência da preeminência do cócligo. 'l'onrcnìos um par na cama - a cama em pleno uso, como se rliz. o vcremos que esse casal troca significantes. O intercârnbio rlc pitlavráÌs, no coito, revela um descontínuo dialógico; isto ó, rcvcla ccrttl "tempo de escansão" entre mensagem e rcspost:t tlos fitlittttcs:
Iilc:
*ApËïLlt-o l\r
o ÉolPo coMo
le conìo
DISCURSO DO OUTRO
Elu: nte dá isso Ele: te mordo Ela: meu chuchuzinho, etc.
O ËDIPO: SUA DEFINIçAO
Nesse diâlogo (diâlogo entre aspas), é bastante curioso observar o uso de nomes que têm valor quase totêmico' como é o caso dos apelidos de um casal: ratinho, pato, chuchuzinho, etc. Além disso, sô mesmo alguém definitivamente louco para acreditar que, nesse
O complexo de Éaipo que reveste a mâxima centralidade no pensamento psicanalítico ê, náo obstante, uh conceito mais problemâtico do que à primeira vista se poderia pensar. Muitas das posições analíticas a respeito tendem a oferecer uma versão traumâtica do mesmo, onde ÉAipo seria, então, a soma das "marcas" que muito cedo teriam afetado um indivíduo, gerando-lhe, deste modo, uma espécie de estereotipia em suas relações vinculares. O problema reside no fato de que tal leitura não é sustentável. Jâ demonstramos, no segundo capítulo, que a imagem não é unívoca e, sim, um composto-construído, que denominamos complexo. Talvez de início deveríamos prevenir uma leitura demasiadamente ingênua da questão, em que o risco implícito seria o de reduzir o complexo medular (segundo costumava dizer Freud) a um esquema do tipo: amor a mamãe e ódio a papai, no qual a simplicidade do enunciado é absolutamente confundível com a tolice. Neste sinal de alerta que fazemos já no início do tema, estamos de acordo não somente com Freud mas também com Lacan, paÍa quem o Édipo é um mito.t Se é um mito, estâ - como todo mito tentando estrategizar, de acordo com o que jâ vimos, alguma
diâlogo, os dois estão falando de Ego a Ego, ou seja, um com o outro. Na realidade, cada um estâ falando com seu cada outro. E como se cada um dos falantes estivesse falando com um terceiro (comum a ambos), daí que, em que pese não se responderem mutuamente, mantém-se indene essa aparência de diâlogo assinalada antes. Trata-se de'um Outro, compartido, em função do qual atrevemo-nos a observar que, nessa cama, não hâ dois e, sim, três: os protagonistas e o respectivo objeto primordial que evidentemente coincide, posto que os sujeitos se acham, afinal de contas, na mesma cama.
Tudo isso leva a assinalar como a noção primeira na teoria lacanianaê anoção de côdigo; noção 9u€, como amatrlz, pode unir os opostos: a saber, os opostos sexuais que são um homem e uma mulher. É esse Outro (o côdigo) o que pode vincular dois verticais e instalâ-los paralelamente um sobre o outro' no mesmo leito. Claro que, neste sentido nunca poderíamos falar de síntese de opostos no curso de um ato (o ato sexual), do qual costuma surgir um efeito: o sentido.
1. Lacan, Jacques p, lM.
4L
-
"Propos sur la Causalité Psychique".ln: Ecrits, ed. cit.,
lOO
CURSO E DISCURSO
/
DA OBRA DE J. LACAN
o ÉDIpo coMo DISCURSo Do
contradição de base, algum elemento propriamente simbólico, articulando-se no manifesto. Para melhor entender isto, teríamos que recorrer à tese de que o fantasma tem, por um lado, um matiz imaginârio e, por outro, uma referência simbólica. Jâ demonstramos como as fantasias originais (cena original, sedução por um adulto e de castração) têm uma formulação em imagens, tal que impede ver os referentes aos quais o dilema remete: dilema da identificação, dilema da libido e dilema do modelo de - aparelho Superego /ldeal do Ego dilemas que são congruentes com a própria espécie, visto que -não hâ nenhum vivente que não disponha de uma identificação, de um quantum llbidinal e de um modelo para executâ-la. Com isto se nos impóe dizer que esses dilemas abordam a questão do limite da própria espécie. E estes limites passam por: a necessidade de todo humano de ser filho, a. necessidade de ser sexual, e a necessidade de estar inscrito num grupo paÍa o exercício dessa sexualidade.
1. Desejo incestuoso relativo
à
mãe
2. Tensão agtessiva relativa pai
ao
ou'r'Ro
l)t
No tocante ao terceiro dilema, digamos que esse quurttttrrt libidinal se realiza (isto é, se inscreve no real) no seio de unr grut)(), cuja metâfora na família é o pai - segundo se depreende dos escritos de Freud enquanto instaurador de proibições e permissões.
-
De acordo com essa anâlise, o Édipo tal e como tradicionalmente se vulgarizou (e estaríamos tentados a jogar com as equivalências fônicas entre tradição e traição), ou seja, amor à mãe e ôdio ao pai, não é senão uma formação irnagin ãria, uma colocação, em imagens, do drama do sujeito, colocação em imagens que se ap6ia sobre as imagos de incesto e morte do pai. Aqui, teríamos que deter-nos um pouco e perguntar se, efetivamente, alguma criança teve, alguma v\ez em sua vida, a ocasião de materializat o incesto com sua mãe, ao menos no curso de seus cinco primeiros anos, e, simultaneamente, matar a seu pai... isso nunca lhe pôde haver ocorrido, porquanto não tem condições materiais paÍa pensâ-lo. O menino carece de categorias libidinais para entender o sentido do ato sexual. Então, quando Freud diz "desejo incestuoso", & rigor estâ querendo acercar-se exemplarmente de um modelo; quando diz "fantasma da morte do pai", estâ tentando um modelo teôrico. Evidentemente, se trata de um modelo teôrico que nos remeteria a certo desejo vinculado à mãe e certa tensão agressiva vinculada ao pai. Insistimos, pois, que não hâ que tomar ao pé da letra tais moclelos aproximativos, e sim ver a que reÍììetem e o que é gu€, neles, Freud estâ querendo sublinhar. Essa forrnulação ê de tal modo chave que praticamente abrange todo o período pi'odutivo freudiano. Freud se depara c lm o Édipo em 1897; em carta cle setembro desse ano paÍa Flies.'2 confessaria que ele também descobre haver sentido uma forte attação por sua mãe e unÌ ódio terrível por seu pai. Em 1899, no caso Dora, volta à questão, ainda que tratando de ver a articulaçãrr desse complexo com os sonhos. Em 1905 e 1913, período em que F'reud elaborou e pôs em dia sua teoria sobre os fantasmas, volta sobre o tema, desta vez chamando a atenção para o fato de que não
1. Dilema da identificação 2. Dilema da libido 3. Dilema do modelo: Ideal/Superego
Para deixar mais clara essa referência simbôlica, notemos que todo homem é sempre fruto da confluência (leia-se encontro) de um homem com uma mulher. Não existe outra possibilidade de gênese na nossa espécie, desde que a genitalidade humana não é cissipara, como na ameba, mas copulativa. Isto, relativamente ao primeiro
dilema.
No que concerne ao segundo dilem a, ê 6bvio que é absolutamente indissolúvel o fato de estar vivo e dispor de um quantum libidinal, sendo este o segundo limite da espêcie.
2. F'reud, Sigmund curln n9 71, p" 785.
r&
-
Los Orígenes del Psicoanólrsrs.
In: O. C., ed. cit., t. III,
IO2
CURSO
F,
I)ISCURSO
/
O ÊDIPO COMO DISCURSO DO
DA OBRA DE J. LACAN
OUTRO
IOJ
registro imaginârio, isto é, que se trata de uma disposição em
é uma fantasia tão inccrta quanto ele havia suposto, mas assina-
imagens das figuras de pai e mãe e de um drama cujos conteúdos têm outra determinação. Esta hipótese é justamente o ponto de partida paÍaLacan. Nos.EscrrÍos, num texto intitulado "Propósitos Sobre a Causalidade Psíquica", de 1950, observa:
lando que se trata clc unra fantasia basal, no sentido de fundamental. Efetivamerìtc, rìos trabalhos de 1905 a 1913, Freud se familiariza com o fantasnr:r e, no curso dessa familiarização, descobre que os fanlasnurs siro redutíveis a uma matriz teórica configurada pelos chanrarlts pntktfuntasmas. Estes, por sua vez, expressam as três tarc[as ctlípicas: identificação, libidinizaçáo e modelo
"Regressando, então, à minha exposição sobre o conhecimento paranôico, tentava conceber a estrutura em rede, as relações de participação, as perspectivas em reuniões, em fios, os palâcios de imagens que reinam nos limbos desse mundo que o Edipo Laz sombrear no esqueci-
de execuçã<1.
Ao nrostriìr, l)or orrtro lado, que das Teorias Sexuais Infantís a Espurt<'unt unru ('riunç'u, a Novela Familiar do Neurótico e daí aos lexlos dc (\tntribuiçõc,s pura a Psicologiq do Amor havia um contírrrro solirlirrio, cstivcrrros demonstrando que a do fantasma é uma cstrrrtura histolizírvcl. rÌìíÌs que, ao mesmo tempo, podíamos reduz.il ttrrlas csslrs [orrnlçõcs a unìa matriz comum: as fantasias origirrírrias, eue clestc nrotkr se revelariam como construções psicanalíticas, eficazes párrár explicar as formações imaginârias. Tal historicidade foi explicada por nôs qu:tndo dissemos que um adulto, aos
mento. "
3
Acrescenta, nos par ãgratos seguintes
:
"Penso que o complexo de Édipo não apareceu com a origem do homem mas na origem da história, entendendo por histôria-histôrica os limites das culturas etnogrâficas.
25 anos, não vai sustentar uma teoria cloacal (isto é, crer que o nenê provém do ânus materno), salvo no caso de uma psicose severa. Não obstante, é provâvel que um aclulto mantenha um resto desse determinante anal de sua economia libidinal sob a forma da cisão entre a mulher para amar e a mulher propriamente genital. No curso dessa investigação, não só se familiariza com a fantasia mas aprende, também, que as imagens em que uma fantasia estâ colocada querem dizer algo, e que esse algo pode ser universalmente reduzido a uma matríz comum: cena primária, sedução por um adulto e castração. Ao descobrir que este é o fundamento pertinente a todas as fantasias, estâ descobrindo o último nó do fantasma. E ê aqui que se vê levado a explicar sua gênese e, para tanto, recorre a uma teoria genética que criticamos na ocasião. Quando criticamos o recurso à teoria genética da protofantasia, observamos que, na verdade, ela pode ser estudada como se se tratasse de um mito, o que nos permite descobrir sob sua formulação manifesta um latente que consiste numa contradição procedente dos enigmas gerados pelas figuras pai, mãe e da combinatória de ambos. Agora vamos voltar a essa anâlise paÍa revisâ-los, porgu€, a rigor, o fundamento de universalidade dessa protofantasia radicaria na universalidade do complexo de Edipo. Dissemos, ao iniciarmos este capitulo, que o Edipo ê um
(...) não pode, evidentemente, aparecer se não sob a forma patriarcal da instituição familiar, mas não tem menos valor liminar incontest ãvel." a
Em primeiro lugar, Lacan reconhece a capacidade que tem o ÉAipo de sombrear, isto é, obscureceÍ a estrutura de rede, de relações. Com isto, cabe pensar que o ÉCipo encobre uma estrutura latente de maior peso. Em segundo lugar, subordina o Édipo à cstrutura familiar ainda que não reduza esta à forma conhecida da [amília ocidental. Em última instância, o Édipo, enquanto sombrcia a rede de relações, varia segundo a estruturação social dessa rcrle de relações; estruturação social que pode assumir as formas da organização do clã, familiar, tribal, coletiva ou outras. Em nossa cultura, o complexo de Éaipo estâ subordinado à cxistência da instituição familiar e à presença de uma figura de t'orrtornos patriarcais, o que é certo. Mas, o que pensar de uma cslrutura que exceda a estrutura patriarcal que não a contenha,
,ì. l,ucan, Jacques "Propos 4. rd. ibid.
iE*--
sur la Causalité Psychique". In: Ecrits, ed.
cit., p.
84.
104
('URSO Fl I)ISCURSO
/
o ÉDIPO COMO DISCURSO DO OU'|'R('
DA OBRA DE J. LACAN
,,,.,
A pergunta que Lacan vai, então, formular ê a seguirrlt.: (Jrrr. relação tem o latente dos fantasmas esse jogo de oposiçòt:s - estrutura com o latente dos afetos amor-ôdio, essa libidinal ?
que não a inclua'/ Cabe pensar que o sujeito se gestaria, se organizarir cnquanto sujeito inconsciente, sob outros determinantes que os crlípicos, a menos que possamos encontrar esse valor liminar e inctmtestúvel que Lacan reconhece ao complexo de Ëdipo, que
Em terceiro lugar, e antes de abordar a resposta das questí\cs jâformuladas, pretendeesgotaroutro nível de obiervações. Ao esttrdar os fantasmas, observamos que os mesmos são organizâveis numa série: Teorias Sexuais Infantis, Espancam uma Criançu, Novela Familiar do Neurótico, e, finalmente, Contribuições para a Psicologia do Amor. Mas, se observarmos mais de perto a questão, chegaremos a descobrir a absoluta e extrema solidariedade existente entre a estrufura do mito e a estrutura dos fantasmas. Essa solidariedade levarâLacan, finalmente, a sustentar que esses fenômenos são reuníveis sob um campo comum: o campo do imaginârío. concluindo, afirma que o Édipo é um mito ou fenômeno de ordem imaginâria, do qual é necessârio esclarecer ci registro simbôlico que o organiza. Procurando esclarecer, pois, o latente das formações edípicas, Lacan recorre à teoria lévi-strâussiana, precisamente quando esta aborda uma questão aceÌca da natureza e função do mito. Em Antropologia Estrutural, Lévi-strauss realna uma anâlise do mito
possibilite entender qual é o universal de estrutura vâlido não só l)ara unla situação patriarcal ou estrutura familiar, mas para uma situação que exceda os limites da família tal como se conhece em nossas culturas e nas culfuras etnogrâficas, mais ou menos acessíveis à antropologia. Em outros termos, Lacan antecipa uma tese de relativizaçío do complexo de Édipo. Subordina-o à estrutura familiar. Mas esta estrutura familiar, a que estâ subordinada? Aí interrompe Lacan o seu desenvolvimento, paru, pensar a relação do Éaipo com a estrufura familiar, de modo a extrair certas conclusões com maior grau de universalidade. Nesse contexto, o que Lacan consegue provar é o seguinte: quando dizemos complexo de Edipo, entende-se, por isso, amor à mãe e ódio ao pai. Quem fala de ódio e de amor estâ falando de afetos. Os afetos são, paÍa Freud e desde Metapsicologia em diante, conscientes, visto que nesse texto demonstra que não hâ afetos inconscientes. Freud demonstra-o muito claramente quando em O Recalcamento Í.az notar que o que hâ no inconsciente são movimentos libidinais pulsionando representações. Com ist'o, Lacan observa que a formulação do ÉAipo em termos de "amor à mãe e ôdio ao pai" é um conteúdo manifesto (posto que alude a uma ordem de afetos cuja natureza é consciente), cujo latente estarâ ligado em "outra cena". Dito em outros termos, o amor e o ôdio são os manifestos de uma determinada estrutura (que teúamos que esclarecer) da organnaçío da libido. Em segundo lugar, Lacan observa que falar de complexo de Éaipo ê, na verdade, falar de fantasias edípicas; a manifestação, a forma concreta em que o Ëdipo nos aparece é sob a forma de fantasmas. Mas, ao mesmo tempo, formulamos, no capítulo II, que os fantasmas são respostas a um enigma expresso num conflito de base gu€, neste caso, representamos com a seguinte fórmula: o fantasma é aexpressão do conflito X * X':
de Édipo.s
Para isto, observa que todas as versões existentes sobre o mesmo são reuníi'eis num relato comum, e que esse relato dispõe e ordena certos temas que poderíamos separar no curso da anãlise.
Édipo casa-se com Jocasta
Édipomataal-aio
Ëdipovence àEsfinge
Ëdipo: pé-torto
Relações deparentesco
Relações de paren-
Origem alôctone do
Positivas
tesconegativas
homem
Origemautóctonedohomem
FANTASMA
x + x'
5.
AÕ.
Lévi-Shauss, Claude
-
Antropología Estntctural, ed. cit., cap. XI.
106
CURSO E DISCURSO
/
Esses conteúdos são, conseqüentemente, classificâveis num grupo de quatro colunas, de acordo com seus elementos comuns. Na primeira coluna, reúne os dados cujo fator comum é a alusão a relações de parentesco
o ÉoIpo coMo DISCLJRSo Do
DA OBRA DE J. LACAN
positivas. A segunda coluna inclui as narra-
ções que aludem às relações de parentesco negativas. A terceira colu-
na abarca dados relativos à origem alôctone (não-terrestre) do homem. Finalmente, a quarta coluna colige os dados relativos à origem autôctone (terrestre) do homem. Quando, na versão do mito, se diz que Edipo desposa Jocasta, ou que Édipo vai com sua filha Antígona para o deserto, o que se nos estâ manifestando são duas relações de parentesco,
valorizadas positivamente em franca oposiçlo a uma relação de parentesco valori zadanegativamente: Éaipo mata Laio. Quando o mito nos diz que Édipo vence a Esfinge, é possível interpretar uma derivação da clâssica luta do herói de qualquer mito com um dragão, bicho ou fera que dominava um planeta ou uma região. Alude, obviamente, à necessidade do homem de vencer a um dominador que, previamente a ele, acha-se instalado no controle da Terra. Nisso, Lévi-strauss vê uma manifestação de uma crença de determinação não-terrestre do homem, o que se associa com uma série de mitos de ordem teolôgica, segundo os quais, não sendo o homem originârio da Terra, deve lutar e vencer as feras, que, o havendo precedido, a ocupaÍÌ. Na mitologia judaico-cristã, apa' rece figurado, na versão bíblica, gü€ Deus (o alôctone), depois de Iazer um corpo de barro, insufla ar no indivíduo, conferindo-lhe assim uma alma extraterrestre instalada na Terra. Em síntese, essa faixa ou zona do mito articula a crença de que o homem não provém deste planeta, mas tem sua origem em outro lugar ao qual, a qualquer momento, deverá retornar, ou ao qual deve sua força (Topos Uranos, Paraíso Celestial etc.). Na quarta e última coluna, ao observar que a denominação nAipo remete ao sentido de "pé-torto", Iévi-Strauss afirma que a permanência de uma dificuldade no reflexo de marcha é indicativa do que podemos chamar de dependência infantil, visto que o homem não nasce andando, e sim precisa, em primeiro lugar, depender de outros que o ajudem a andar, para, finalmente, por aprendizagem, desenvolver- se.
ou'r'R()
ro
Agora, se as observâssemos de longe, veríamos que as r;rr;rlr' colunas articulam duas oposições: 19) relações de parentesco posi tivizadas versus relações de parentesco negativizadas; 29) origcrrr algctone (celestial ou não-terrestre) do homemversus origem aulóctone do mesmo. Notemos, por outro lado, a congruência que existe entre ambos os grupos de oposição, posto que, seguramente, haverâ alguma relação entre as relações de parentesco positivizadas com a suposição de uma origem não-terrestre e, finalmente, celestial. trm conseqüência, o mito é uma tentativa de elaborar duas contradições articuladas entre si e suas respectivas resultantes. Diante desse fato, a pergunta que Lacan formula é se o Édipo não é também um mito que articularia um grupo de contradições de base. Visto que se fala de relações de parentesco negativas, nas quais se poderia incluir o ódio ao pai, e relações de parentesco positivas nas quais se poderia incluir o amor à mãe - tomando o caso da versão modelo do Edipo ê ôbvio que o sujeito se está
perguntando a quem aderir. Psicanaliticamente, a quem eleger como modelo de identificação, a quem eleger como modelo clc objeto libidinal. Sobre este corpo de hipóteses, Lacan consolida sua dúvida de que o Édipo, tal como em geral é interpretado, seja congruentemente o fenômeno explicativo de base e, enì conseqüênque é o fundacia, tenta ajustando-se a esta estrutura - mito - explicar mental no melhor este aspecto, de Edipo. Para entender deveríamos esclarecer os paradoxos que às vezes são formulados nos textos freudianos. O primeiro paradoxo que nos interessa resolver é o que Freud formula em A Sexualidade Feminina, texto de 1931 , ó quando observa que a versão de "amor à mãe e ódio ao pai" é uma aversão. Aversão no sentido em que não explica nada. Justamente a anâlise
(r
V. O.
('.,
ed.
cit., t. III, p. 518.
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o ÉoIpo coMo DrscuRso Do ou'r'RO
DA OBRA DE J. LACAN
H
esse fenômeno através de figuras geométricas. Obviamente, a questão que intervém, aqui, ê a de uma mãe amada e um pai odiado, na primeira fase, e o de uma mãe odiada e um pai amado, na segunda.
Conseqüências Psíquicas da Diferença Sexuql Anatômicu t: crrr ()
Isto é igualmente vâlido tanto para o homern como paÍa a mulher, na tarefa de se constituir enquanto sujeitos do inconsciente. Por quê? Porque, para a mulher, a primeira etapa - assim como para é de exclusiva vinculação materna. Embora a terminoo homem logia varie (pois, o que para a mulher se chama Édipo negativo, para o homem recebe a denominação de Édipo positivo), convém lembrar que as "operaçóes" são as mesmas. Se expuséssemos, agota, num grâfico essa sucessão de ope-
homem para a mulher.
Final do Complexo de Ea;po, Freud observarâ que o objeto, rro final do Edipo, tem forma de mulher para o homem e fornra rlc Mas, visto que nos temos preocupado, neste curso, em distinguir a forma imaginâria de sua referência simbólica, cabe perguntar qual é o conteúdo de tais formas. A pergunta que Freud vai formular, se compararmos esses textos a propôsito do Édipo com outros a propôsito do objeto sexual (a saber: Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, Organização Genital Infantil, Introdução ao Narcisismo, Acerca de uma Eleição Especial de Objeto no Homem), é se, efetivamente, essas formas coincidem com os contextos de pai e mãe, ou se os conteúdos são, a rigor, os de uma contradição: narcisismo-objetalidade. Na verdade, na primeira fase, se trata de um amor narcísico, enquanto que, na segunda, se trata de um amor "objetal" no caso de haver um feliz acesso à
rações, poderíamos obter o seguinte esquema: 29 tempo
19 tempo
Mãe
Pai
Mãe
Pai
(relação
(relação negativa)
(relação negativa)
(relação
positiva)
questão. Isto é coerente comTrês Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, onde Freud diz que o objeto nunca é um objeto puro, tese sobre a qual já fizemos alguns comentârios. O objeto é sempre o resultado da contradição narcisismo-objetalidade. Na mulher, a forma primitiva é a mãe, a forma segunda é o pai, e a forma final é um objeto
positiva)
Sujeito
Sujeito
da 13 operação
da2? operação
cuja forma é o pai, mas cujo conteúdo não. Essa alternância narcisismo-objetalidade, que em A Feminilidade Freud pôde observar melhor, se define na figura do pai como deslocamento de conteúdos relativos à mãe. E por isso que, nesses mesmos textos, Freud observa que os primeiros casamentos das mulheres têm menos êxito que os posteriores; esclareçamos gu€, quando Freud diz "primeiros casamentos", estâ dizendo iniciação sexual, para scrmos precisos, e quanto à dificuidade da iniciação sexual da mulher é algo que tem que ver com um texlo de Contribuições para u Psicologia do Amor: O Tabu da VirgindaCe. Por isso, quando
A rigor, os resultados de ambas as operações são idênticas paÍa ambos os sexos, visto que a primeira promove a instauração do narcisismo, enquanto que a segunda promoveria sua relativizaçío. Efetivamente, a primeira operação (a pré-edípica, no caso do Ëdipo feminino) deverâ ser seguida pela operação propriamente edípica; na verdade, são duas tarefas que, por sua vez, promovem duas operações as quais terão uma estreita relação entre si. Digamos que o que na segunda tarefa se inscreve é o resultado da primeira operação. No texto que vamos comentar, A Feminilidade, Freud relativtza de certa forma essa questão, ao observar que o ódio do homem pela mãe nunca vai alcançar o grau de intensidade que alcança no caso da mulher e inversamente. Feitas essas relativizacões- aue no fim das contas vão ser comentadas om Alottmas
J;reud diz que o homem conserya o objeto enquanto que a mulher tlcve trocâ-lo, é preciso discernir se a coisa é realmente assim, ou se rrilo estarâ tratando de criar um modelo que explique a "forma" do ob.jeto.
Essas duas operações são complementares, e é nelas que se t'onstringe ou circunscreve o que, na leitura freudiana, se chama de trtmplexo de Edipo. Mas, embora as duas operações sejam solirlírrias (visto que, na primeira fase, o objeto sobredeterminado é a
rI-
1IO
CURSO E DISCURSO
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o ÉDIPO coMo DISCURSo t)() ()ttlt{(
DA OBRA DE J. LACAN
riãe e, na segunda, ê o pai), essa solidariedade reconhece, não obstante, a primazia da primeira operação.
B
Í
g
dïzer, simplesmente, que deve ser realizado no curso do Édipo e da latência, antes dos onze anos. Resumidamente, uma certa operação, cujo sentido é o vencimento à erogeneidade, deve produzir-se nesse tempo oficialmente denominado fase ov tempo de Edipo.
Em resumo, se trata de saber como é que se realiza a adoção de um modelo masculino ou de um modelo feminino para a execução da libido."7 Sendo esse nosso enigma, vamos orientar-nos para um setor da
a@e
feoria psicanalítica, que nos permite explicâ-lo, com as duas seguintes esperanças (teríamos que subs:ituir, neste texto, o termo
,/\
llt;
esperançc pelo termo hipótese). Vamos, então, a um setor da teoria
psicanalítica com as duas seguintes hipôteses: 13) que nunca a constituição coincida com a função; 23) que as viragens decisivas se tenham produzido antes da puberdade. Essas duas hipóteses (discrepância da constituição com a fune ção a da viragem antes da puberdade), fundamentais para Freud, requerem um comentârio exaustivo, a princípio porque nelas se define um dos pontos de partida da formulaçã.: lacaniana. Em primeiro lugar, o que quer dizet "constituição"? Quando Freud diz constituição, estâ pensando no suporte biolôgico, ro organismo. Sua tese é, pois, a de que um ser vivo, em sua determinação biolôgica, não coincide com a função. Mas, que função ê, essa? Trata-se da função sexual, isto ê, da erogeneidade. Assim,
Édipo: tempo e operação de vencimento da resistência
Teríamos, agora, que demonstrar o que devemos entender por "oposição, constituição e função", jâ que isso jâ foi traduzido e disposto na fórmula: oposição de um'organismo biotôgico a constituir-se em erógeno. A resposta estaria na dualidade pulsional: vida e morte. Mas poderíamos, inclusive, recorrer a outras ciências. para mostrar que, efetivamente, uffi organismo biolôgico se opõe, resiste, se contrapõe à erctizaçío. Por quê? Porque a matéria viva, por sua característica, sua constituição, tende a afastar todo estímulo que interrompa seu nível de equilíbrio. É neste contexto que podemos entender o recurso à teoria do arco reflexo, que Freud usa ao abordar o problema das pulsões em Os Instintos e Seus Destinos. Poroutro lado, a aludida função sexual que preferiremos citar: "o erógens" - se caracteriza pela capacidade de acumular estírrrrrlos visto que Freud demonstra, desde Três Ensaíos sohre a 'l'eoria da Sexualidade, que a função sexual não se esgota no (ìrgasmo, senão que, precisamente, o orgasmo depende de deter-
temos:
0*e Sabemos que a função sexual (a erogeneidade) é efeito de uma determinação erógena produzida sobre o corpo (o biolôgico) me-
C. , ed.
<-
----> Que significa: o vencimento da resistência do organisnro iì erogeneizaçã,o tem que ser produzido antes da puberdade? Quer
pode originar-se um ser sexuado: masculino ou feminino.
XXXIII, in O.
r
viragem mediante a qual se produz o vencimento de tal oposiç:ìo orr resistência (em nosso grâfico, a resistência estâ marcada conr :r letra "r") deve ser produzida antes da puberdade.
"Sendo nosso enigma e nossa dificuldade saber como de um ser sexualmente indeterminado (dado que a eleição sexual não estâ determinada pela disposição genital e dado que a libido não é nem inasculina nem feminina)
Conf .
n
diante uma organização peculiar da libido. A tcsc tlc l;r't'rrrl 1r'rtr. ria, agora, ser formulada nos seguintes termos: o c()rl)(), () (ìrt{rl nismo biolôgico em sua materialidade, se opõe à erotiz.uç:ìo, (. :r
Para explicar a primazia da primeira operação, isto é, do complexo da mãe, temos que recorrer a A Feminilidade, cuja abordagem Freud realtza mediante a seguinte tese:
7. Freud, Sigmund La Femineidqd. -
)
cit., t. II, p. 931.
b-
II2
CURSO E DISCURSO
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O ËDIPO COMO DISCURSO DO
DA OBRA DE J. LACAN
OUTRO
I I.]
sível, porquanto o estímulo se faz presente, persistente. Este estí-
minados disparadores ou antecessores da ereção do ciclo de desejo. Em outros termos, é unl deternrinado atributo que dispara a partida erôgena do sujeito para concluzi-lo ao coito e ao orgasmo. Em conseqüência, é ôbvio qtrc a ftrnção sexual (a ordem do erôgeno) se caracteriza pela capacirlarlc dc reter e acumular estímulos. Efetivamente, €ffi 'l'res l,.'trsuios, quando Freud analisa que hiL um Sem-número clc práticas qttc, ttilo sendo em si propriamente genitais, se organiz,anì cnì ttlrlttl tltl ctlittl, o que nos estâ demOnstrando é que o coito ó a resultantc c o ponto final de uma acumulação cada vez maior cle estírnulos quc, Íinalntcnte, são todos descarregados de fornra unívoca ntetliante unr attl. Obvianrente, se unìa nratéria viva sc caracteriza por sua oposição à acumulação de estímulos, cnquanto que um organismo erógeno se caract eriza por uma tendência à acumulação de estí-
mulo gera no indivíduo uma tendência a regulâ-lo e o primeiro recurso de regulação seria o homeostâtico, gu€, de fato, é ineficaz. Esta ineficâcia parece realimentar o circuito, pela pérmanência do estímulo, gerando no infans um comportamento de ordem epilética: começa a gritar, berrar, espernear. Dizemos um comportamento de ordem epilética porque, a rigor, é como uma catarse não "signific ada" relativa ao estímulo.
No grâfico acima, simbolizamos a relaçío do infans com o estímulo: N representa o bebê, e representa o estímulo. Ambos os pôlos entram numa relação que podeúamos definir como de recíprocidade, em circuito fechado. É que a abertura do circuito correrâ por conta da mãe. É preciso, pois, ficar muito claro que um bebê, em seus primeiros dias, não chora para chamar a atenção da mãe, mas como mecanismo de reação contra o estímulo que, no caso que estamos exemplificando, estâ constituído pela fome. Não existe intenção alguma de pedir socorro, jâ que o seu é um tête-à-têÍe, um duelo mortal que pretende reduzir o estímulo pela via catârtica de descarga do pranto. Entretanto, essa relação mortífera entre o bebê e o estímulo tem uma testemunha que não é muda e que, em resumo, intervirá para mediar: trata-se da mãe. Embora o pranto não seja dirigido à mãe como um pedido de ajuda, ela corre em socorro da criança. Notemos que é a mãe quem, ao perceber o choro, o interpreta de acordo com o clâssico aforismo lacaniano que pretende que todo sujeito receba sua prôpria mensagem em forma invertida. A rigor, é pois a mãe quem preenche, com sua própria intencionalidade, esse
mulos, perguntaríamos qual é a operação que permite vencer a resistência de uma matéria viva a aceitar estímulos. Esta operação, é uma operação que Édipo à qual demos um nome arbitrârio pré-edípica ou fâlica e, reconhece, como primeira fase, a chamada como primeiro operador, a mãe. Que é uma mãe? Para entender o que é uma mãe, teríamos que recorrer à parafernâlia das pulsões. Primeiramente' sabemos que o recém-nascido se acha em estado de indefesa e prematuração: não esgotou seu ciclo de maturação e, portanto, não pode veicular-se em direção aos objetos que satisfariam suas necessidades. Diferentemente do filhote de cechorro, PoI exemplo, 9u€ desde o nascimento ê capaz de orientar-se e dirigir-se em direção ao alimento, o filhote de homem não pode. E não precisamente por-
que as mães de nossa espécie tenham os seios cobertos e não passem a vida no chão de suas casas esperando que os filhotes engatinhem até o seio. Na realidade, a principal limitação em questão estâ no filhote: é ele quem não poderia deslocar-se em direção ao seio, por mais prôximo que este estivesse. Hâ, pois, uma primeira limitação, 9ü€ alicerça uma séria contradição. Nosso sujeito não pode locomover-se em direção a seu objeto, mas tampouco pode esquivar-se nem evitar seus estímulos
Mãe
(a fome, por exemplo). Este estímulo interrompe o equilíbrio
natural de homeostase que era caracteústico no interior da bolsa de parto, visto gue, durante o processo de gestação, os estímulos foram todos reduzidos homeostaticamente, o que agora é impos-
(: ^--
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CURSO E DISCURSO
/ DA
OBRA DE J. LACAN
O ÉDIPO COMO DISCURSO DO
pranto, e é em função desse "recheio" que O chorO Se Converte num pedido de auxílio, sem que seja este seu sentido inicial. Deste modo, a mãe acha que provém do bebê um "sentido" que, na realidade, surgiu e foi atribuído por ela. E assim que a mãe, ao "escutar" o choro do bebê, está, na verdade, escutando "seu prôprio sentido, seu prírpritt pranto". É em função dessa atribuição de sentido que a ntãe se ltlcomove, pondo-se em marcha para prover uma soluç11; à ncccssidade de seu filhote. E com que a provê'/ Corn outro estínrulo que ptlderia vencer o primeiro: o seio. Porénr é prcciso convir quc, ent princípio, o seio é, neste casg, um estíntulo. Dito em outros termos, o seio é um estímulo que lhe oferece uma vantagem, a de vencer o outro; mas nem por issO deixa de ser estímulo, isto é, de representar e significar um montante de trabalho. Assim, ao sujeito deste exemplo, se apresenta a alternativa de escolher entre dois estímulos em seu campo perceptivo: o estímulo e, ou seja, a fome, ou o estímulo e', ou seja, o seio em
OUTRO
I 15
jeto que satisfaz sua necessidade; se observásssemos a questão em um segundo tempo, veríamos que o bebê começa a chorar (agora, intencionalmente). Aqui, hâ uma peculiaridade. Em primeiro lugar, o bebê chora, apelando pata o seio, frente à fome; entretanto, iã nío é um choro contínuo, ininterrupto, e sim, ao cabo de um certo tempo, cessa um pouco, permanecendo em silêncio para logo voltar às suas reclamações. Se fôssemos interpretar esse silêncio, veríamos gu€, em sua latência, o que ocorre é um chupar in vacuo.
Esse chupar no vazio é um recurso gu€, no grâfico acima, chamamos de estímulo e', ou seja, a ele podemos também chamar de "vestígio" do seio. É por essa operaçío que um organismo biolôgico assume certa
acumulação de estímulos que são os que posteriormente o introduzem numa ordem erôgena, numa função sexual. Aqui, é preciso esclarecer certos aspectos dessa questão, porque o fato de a míe atender ao choro do bebê é algo que vai depender da importância que o bebê tem para ela. Suponhamos que um pediatra recomendou a uma mãe recente que desse ao bebê 30 gramas de mamadeira a cada quatro horas. Regida por esse conselho (chamemo-lo código e relacionemo-lo com o que desenvolvemos acerca do côdigo como matriz das significações), a mãe administrarí, com uma periodicidade de quatro horas, 30 g de leite ao seu bebê. Havendo alimentado às 12, calcula que deverâ voltar a alimentâ-lo às 4. Suponhamos que, às 2, o bebê se ponha a chorar. É certo que a mãe vai tentar embalâ-lo, brincar com ele, trocâ-lo, pôr remédio no ouvido, ficar temerosa por suas gengivas, chamar os vizinhos, sua prôpria mãe, seu marido e o médico, antes de supor gu€, talvez, o nenê tenha fome. Com isso, é ôbvio que a relação de uma mulher com o filho estâ mediada pelo que estamos denominando de código e que, no caso deste exemplo, é o côdigo muito simples de uma periodicidade proposta por um mé-
questão.
Nosso sujeito deverâ eleger entre a alimentação ou a anorexla.
f)e qualquer modo, importa esclarecer que, neste caso, "eleger" parece mais um eufemismo. Pois, cabe desconfiar que, no exemplo em questão, quem o elege é o estímulo. Dependerâ do inconsciente eê este o caso damãeomodopelo qualéoferecidooseio, jâque pode ser oferecido o seio em determinadas psicoses de puerpério que o estímulo da de tal modo que pareça tanto ou mais sinistro
fome.
dico.
Então, nosso bebê que nasce indefeso e como uma simples
O que podemos jâ antecipar é que a relação de testemunho que a mãe estabelece com o choro de seu bebê e as condutas operativas
matéria biológica ( 0 ) estâ, mediante esse processo, metabolizando estímulos, os quais, sabemos, vão ativar sua função sexual ou erógena (e). Essa função, por sua vez, se independentïzarã do estímulo da fome, visto que o recurso da chupeta vai posteriormente autonomizar-se e integrar-se em sua relação com a mãe. A rigor, o que acontece é que, com o choro, o bebê obtém o ob-
pertinentes (ou seja, oferecer-lhe um objeto de satisfação) depenclem de algo que estamos denominando de códiso. No mesmo texto que estamos comentando, A Feminilidade, Freud demonstra que o côdigo que rege uma mãe é a equivalência: criança por pênis. Sabe-se gü€, para toda mulher, seu filho é um equivalente do pênis;
--.
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DA OBRA DE J. LACAN
mas não de um pênis qualquer, e sim o mesmo que outrora - ema sua primeira infância ela teria gostado de ter. Convém insistir respeito: não é que a forma de um filho corresponda à forma de um pênis, senão que o valor libidinal com que a criança estâ investida é o mesmo valor libidinal que outrora possuiu o anseio feminino do pênis. Estâ claro, pois, que a operação pela qual um organismo biológico se faz erôgeno é uma operação que supõe a mediação da mãe e, particularmente, da mãe enqtranto Outro. Mais precisa-
mente ainda, diremos que tal operação ê mediada pelo Outro operando desde a posição materna. Assim formulada, nossa questão excede o estreito limite que significa pensar a primeira operação edípica como sendo uma efusão amorosa relativa à mãe, posto que o amor (como é o caso de todo afeto) é uma dimensão consciente e manifesta daquela operação. Pensemos no caso de uma mãe em surto de psicose puerperal, da qual se sabe que não consegue alimentar-se e, portanto, não pode alimentar o bebê. Sabemos que ela não pode fazê-lo, por razões que têm a ver com esse côdigo ou, melhor ainda, com a ausência desse código. Além de todos os observâveis que a clínica registra, o temor radical de promover a sexualizaçío da relação com o filho deixa a máe em situação de não poder promover um objeto prazeroso capaz de ajudar o bebê a vencer o estimulo da fome, mas sim, ao contrârio, os objetos que ela consegue promover
fator de ansiedade. A incerteza, assim promovida, dependerâ centralmente da constelação sexual da mãe, posto que uma psicose de puerpério é inteiramçnte determinada pela sua atitude a propôsito da castração, reeditada no decorrer da gravidez e do parto. É que o parto revela muito cruamente um registro da castração em função do que a míe fica impossibilitada de metabolizar no simbólico o produto de seu trabalho de parto. Em resumo, a primeira operação edípica consiste em vencer a resistência de um organismo biolôgico em transformar-se em erósão
geno; vencimento que ê realizado pela função materna como agente
concreto de um código. Assim sendo, a relação mãe-filho, que no observâvel parece ser uma relação de dois, é de fato uma relação que comporta três termos: a mãe, o filho, e o código que os determina. A conclusão a que interessa che gar ê que tudo isso não com-
o Éolpo coMo DIScuRso Do
ourRo
tIt
porta amores ou ôdios senào à medida que esses amores e ódios sà,, efeito de algo que estâ no seu substrato: uma operação de trans formação. Segundo se cumpra essa função, ela gerará amor ou ôdio, sendo estes afetos a forma rnaterial que assume o complexo jâ constituído. A função da mãe promove a instância do falo. Com isto já nos estamos antecipando, e fazendo constar que o falo nada tem a ver com o pênis, ou seja, com o pênis procriativo, posto que concerne a um pênis inscrito no desejo materno. É que, ao desejar o pênis, a menina não o deseja como objeto, mas como atributo ou prova de carinho dos pais. Por outro lado, não o deseja como pênis procriador, mas como pênis da masturbação açã;o - da masturb infantil como esse pedacinho a mais para masturbar-se, visando esse pedacinho a mais de prazer. Nada mais.
AS FUNçoES PARENTA|S NO COMPLEXO DE ËDrpO No trabalho até agora exposto, enfatizamos a diferença existente entre o Édipo enquanto mito, fantasma ou anedota a respeito do Édipo como operação. Para esclarecer esta noção, recorremos a l-évi-Strauss e a Freud; recurso este último que centramos na
frase que introduz ao desenvolvimento principal de A I'eminiIidade, onde Freud propõe o estudo da sexualidade feminina partindo de duas hipôteses, a primeira relativa à discordância que separa a constituição da função sexual, e a segunda relativa a certa
viragem que deve ocorrer antes da puberdade. Neste contexto, notamos que o Edipo é a estrutura que rege a passagem do biolôgico ao erôgeno, da natureza à cultura. Igualmente nesse contexto, o Êdipo é uma operação muito mais complexa que o que a anedota pretende insinuar. No latente da anedota encontramos uma operação em ïunção da qual um "pedacinho de carne com boca e olhos" assume uma forma erógena, isto é, libidinal, isto é, humana. Neste plano podemos apoiar-nos em R. Spitz, o qual, ao pretender exaurir a importância do complexo materno, nos permite reunir dados sobre sua eficâcia. Notemos que a observaçío de Spitz recai sobre bebês que nunca completam a passagem da natureza à cultura, desde que não dispõem da referência do adulto. O processo do hospitalismo e marasmo que ele
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OBRA DE J. LACAN
o ÉoIpO COMO DISCURSO DO OUTRO
observa é conseqüência de um abandono que não tange somente à pessoa da mãe.E Isto nos abre caminho a outra questão, à noção de função que parece ser bastante independentizâvel da pessoa. Inde-
A referência do grâfico acima nos obriga a pensar que a ntiìc luìo é uma entidade unívoca. A mãe, cuja tarefa é a de tomar a pulsittr infantil e associâ-la a um objeto ligado ao seu corpo, não é só a unidade subjetiva que se nos oferece perceptivamente, visto que atrâs dessa aparência de unidade estâ conjugada uma cisão ou desdobramento. O desdobramento em questão é simples se pensamos gu€, além de ser sujeito em relação ao qual o bebê é objeto, a míe êum objeto (seio) Parao bebê. Sabemos eü€, neste caso, o bebê deverâ "eleger": o seio ou a fome. Esta alternativa de eleição concerne a um objeto que estâ na
pendentemente de que uma mãe tenha bom ou mau temperamento, seja paciente ou impaciente, o central de sua intervenção estâ na possibilidade de realizar e permitir ao sujeito realizar essa passagem que vai do puro pedacinho de carne com boca e olhos à assunção de sua erogeneidade. Ë a concreção dessa operação e seus fracassos que Spitz explica. Assim, poÍ trás da mãe como personagem sensível, hâ algo que perfila se e que denominaremos função da mãe. A formulação é bastante interessante, porque sô assim se pode entender como, tendo Ínães tão díspares, sujeitos diferentes podem chegar a assumir um mesmo processo neurótico; é como se a tarefa de erogeneizaçáo se tivesse produzido de acordo com os mesmos cânones gerais. Portanto, além da máe, estâ em jogo a função que consiste na realização da operação de vencimento da enunciada resistência. 'No parâgralo anterior deste mesmo capítulo, relatamos o circuito que aqui se constitui: a criança começa a perceber determinada necessidade, que funciona como estímulo para ela - e que, obviamente, não percebe como tal tornando-se indiscriminâvel de início; Afigura-se-lhe, mais exatamente, a algo que rompe seu equilíbrio e, assim, inicia-se uma dialética cuja resolução ê a de uma catarse: a crise do choro que não tem intencionalidade nenhuma. Insistimos em que a criança, neste caso, carece de intencionalidade, porque amiúde esse choro é mal interpretado como um pedido à mãe. Ê, rigor, a mãe gu€, ao testemunhar a ^ dialética criança-estímulo, propicia o objeto da resolução.
mãe, que não é unicamente a mãe. Por que não é unicamente a míe? Porque, por pouco que sigamos observando essa dialética (criança-estímulo), veremos que a máe ingressa nela na função de código. Mas, então, se existe um côdigo em função do qual o sujeito-mãe administra o objeto que ela mesmo é, isso nos remete a pensar no fundamento de tal côdigo. Na realidade, o fundamento do mesmo é o ÉAipo materno que lhe permite manejar-se com essa cisão que a marca como sujeito desejante (de seu filho, neste caso) e objeto do desejo (enquanto seio). Então, atrâs da mãe como pessoa sensível ocorre uma função: a capacidade de vencer a resistência do organismo a erogeneizar-se. Essa função depende de uma cisão (a saber, da castração), ou seja, o mesmo processo pelo qual a mãe foi ela mesma um organismo biológico, gu€ teve que tornar-se um esboço erógeno. Insistir sobre a noção de função estâ em correlação com insistir sobre a noção de operação. É que a operação de vencimento é produzida pela função e inversamente: a função permite o vencimento da resistência. Dissemos que o organismo biolôgico tem resistências porque justamente é essa a lei com a qual funciona toda matéria viva: a lei ão reflexo, pela qual todo estímulo é afastado segundo a tendência 6o aparelho à supressão do estímulo. Justamente neste contexto, ser erôgeno implica nada menos que aceitar acumular estímulos. As dinâmicas são absolutamente opostas; a lei segundo a qual funciona um pedaço de carne é opositiva à lei pela qual funciona um indivíduo sexuado. Se o Éaipo intervinha nessa oposição, P€Ímitindo sua mediação, é porque articula o corpo à bagagem erôgena. da carne ao símbolo, da matéria ao significante, mediante lma dupla operação. Sabemos que a primeira operação concerne à lrite, sobre isto já insistimos. Mas por que acontece assim? Porque,
CÕDIGO
8. Spitz, R. - El Prímer Arto de Vida, cap. XII, Madrid, Ed. Aguilar,
1968.
4-
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DA OBRA DE J. LACAN
O ÉDIPO COMO DISCURSO DO
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A propôsito dessa questão, seria preciso tentar pensar
é ôbvio que se trata de um efeito da necessidade da relação do menino com a mãe em suáì inclefensabilidade e em sua dependência. A dependência e indefensabilidade da criança a situa em dependência direta cont rclitção à mãe, que, definitivamente, é a supressora de tockrs os scus cstínrulos. Mas, então, pata a criança, a mera presença
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que
além da dimensão do desejo incestuoso e do desejo de matar o pai (essa é a formulação imaginâria) estâ a operação pela qual se constitui o falo, a operação pela qual este é rompido , e z operação de. encontrar uma solução a esse desejo ameaçado. A alternativa falo-castraçío deve ser mediada pela função do pai e a operação de
tal função consiste precisamente em introduzir a proposta que permita ao sujeito uma instância do desejo. Para notar a incidência desse ideal, tomemos o caso do Homem dos Ratos. É um caso importante porque, em primeiro lugar, todos os seus sintomas estão presentes no âmbito do complexo do pai. Se, quando jovem, o pai teve que eleger entre uma mulher rica não amada e uma mulher pobre porém amada, o Homem dos Ratos reproduz o mesmo dilema: no momento da consulta a Freud, tem que eleger entre uma Rubensky (rica, porém não amada) e outra mulher, Gisela (pobre, porém amada). Sem ir mais longe, no desencadeamento de sua neurose - nas manobras de Galizia - surge a idêia sintomâtica de um tormento com ratos. No momento da cristalização de seu delírio, acha-se sob a dupla impressão: dever uma determinada quantia à encarregada do correio, e a mensagem errada que lhe transmitem, de que deve ao tenenteZ. Ou seja, ele sabe muito bem que deve as 3,80 coroas à funcionâria do Correio, nìas constrôi uma folie de doute em torno de quem é seu credor. É curioso que todos os seus sintomas estejam construídos como que para ir e posteriormente regressar à Galizia, para pagaÍ ao tenente Z, diante da funcionâria... Além disso, sabe-se que o Homem dos Ratos ficou muito lisonjeado ao saber que a estafeta havia pago a dívida postal de seus ôculos, alegando que, "seguramente, o oficial seria um homem gentil, que não esqueceria sua dívida". O Homem dos Ratos interpreta essas palavras como elogio, com o gu€, cabe supor, a origem desses delírios concerne à idéia de ter uma liaison com a funcionâria. Mas, poÍ que não o ïaz? É que a questão não termina aí. Também havia gostado da cantineira, uma moça acessível; e havia6e feito o propôsito de regressar ali no fim das manobras, para ficà com ela a sôs... Por que não o faz? Porque, agora, está preso num dilema que contempla duas mulheres, e que repete o dilema do pai: a funcionãria do correio, rica, e a cantineira pobre. Por que essa necessidade de repetir a histôria do pai de forma quase literal? Serâ que o pai não agiu de modo a poder ..Õ*
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tirâ-lo do complexo da mãe, isto é, de oferecer-lhe uma alternativa à contradição falo-castração, propondo-lhe um destino no campo dos objetos sexuais que se ofereçam ao indivíduo? Que curioso! Parece que esse pai estâ dotado de atributos tais que o Homem dos Ratos não pode capturar o modelo paÍa realizar sua sexualidade. É que, além do Superego e da repressão, cujas funções restritivas são fartamente conhecidas na teoria, o complexo paterno intervém com a finalidade de propiciar a realização sexual. É precisamente este aparelho o que fracassou no Homem dos Ratos, o que é manifesto em sua escassa e limitada prâtica sexual: um breve período masturbatório e uma sô experiência sexual plena. O Edipo, enquanto formação do inconsciente, inclui, pois, estas três operações: a operação de produção do falo (que instaura uma função de dependência ou imediação, pois é efeito da imediatez da relação com a mãe), uma função de separação que compete ao complexo de castração, e uma função de mediação: obtendo através do pai o modelo que permita mediar o desejo.
No esquema lacaniano, a única que mantém o seu valor é a mãe; valor que hâ de ser relativizado no curso do complexo. Em compensaçáo, o pai mantém valores oscilantes: a) Na primeira fase do Édipo, quando o falo é o objeto, o pai representa, frente ao infans, a ausência da mãe. Pois, sabenros que o que o sujeito não toleraria são as ausências maternas. Ë assim gu€, em função do seu desejo, se erige o mito de uma mãe onipresente: a mãe fâlica. Neste contexto e enquanto a presença do pai implicaria uma ausência da mãe, o pai é equivalente à falta materna. Em outras palavras, nessa fase, o pai é igual a "menos mãe". á) Na segunda fase se formula o complexo de castração no qual o sujeito postula a alternativa da impossibilidade edípica. Nesse momento, o pai, assim como o irmão, é percebido como um rival. Moral da histôria: na segunda fase do Édipo, o pai é igual a um rival ou irmão. Aqui, vale observar que, se o pai ê um rival narcisístico, é esta a condição de possibilidade do fantasma de "morte do pai"
c) Finalmente, na terceira fase do Édipo, o pai equivale ao padrão ouro. Em outras palavras, sua imago ê a de um modelo (o Ideal do Ego).
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O ÉDIPO COMO DISCURSO DO OUTRO
Mãe (relação positiva) \J \Mãe/
Pai (relação negativa)
tati., / \ \,/ \, 13 operação
Mãe (relação negativa)
Pai (relação positiva)
cAsrRAçÃo 2? operaçío
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Portanto, o Édipo estâ constituído por estas operações: falo-castração-Ideal (ideal que vem a ser um modelo de resolução secundâria do falocentrismo narcisista). Estes operadores são os que vemos funcionar eficazmente na consulta analítica. O que, agora, conviria perguntar é como essas três operações se recobrem com essas formações míticas do tipo "amor à mãe e ôdio ao pai", transformando-se numa estorinha. Teríamos que recorrer, então, novamente a Freu d, a A Interpretação dos Sonhos , paraobservar como ele define que, sob todo manifesto, subjaz uma latência em meio a qual hâ privilegiadas lembranças encobridoras da operação edípica. Neste texto, Freud demonstra que a marca das operações edípicas se manifesta através de um determinado trabalho: o chamado trabalho do sonho, o qual, mediante condensação, deslocamento, dramatizaçío e elaboração secundâria, produz o conteúdo manifesto. Assinalemos que esses quatro trabalhos oníricos são redutíveis a dois grupos: condensação e deslocamento, por um lado, e dramat\zaçáo e elaboração secundâria, por outro. E que a dramatização não é mais do que uma forma de cleslocamento de uma forma verbal a uma pré-verbal, enquanto que a elaboração secundâria não é senão uma tentativa de condensar, à sua maneira, esse manifesto com o resto da consciência, criando elos para compatibilizar o produto com o resto do consciente, de modo que aquele não apareça sob forma discordante. Em conseqüência, os mecanismos privilegiados de toda formação do inconsciente são a condensação e o deslocamento. Na operação edípica, o falo ê príma facie deslocado e a posteriori condensado em diversos outros materiais-lembranças, episódios, fantasmas que, por império da censura, se transformarão num conteúdo manifesto anônimo, não desvelador, inas sim velador do
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Que paradoxo! A fonte de água e a ârvore são, na estepe alricana, dois índices fundamentais da existência da vida, porque onde hã â'gua pode haver culturas e ârvores. eue no Édipo.airicano a mesma operação se apóie sobre outras figuras vitais por assim - dìmonstra dizer como são a ârvore e o manancial, reflete ou -
Çt' Ortigues, Lg72
M.-C. ,e E.
-
Oedípe Africaine. Paris, Union Généraie d'Editions,
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um mito que, como todo mitoi é um ordenamento dos fantasmas, que como todo fantasma requer ser interpretado naquilo que o infraestrutura, naquilo que o sustenta, naquilo que o determina. O que o sustenta, em última instância, é essa universalidade do homem; se o homem vive é porque tem uma identificação que está alimentada por certo quantìtn de energia sexual. Quantum que não se esgota nessa identificação, mas se exige uma exsudação em direção a um objeto parao qual é necessârio um modelo. Se o Édipo é universal, náo ê porque a família seja universal; a família é exclusiva de um modo de organização social; mas, o que hâ de universal ou universalizâvel no Édipo não é a familiaridade de sua distribuição ou triangulação de seu ordenamento, mas a inevitabilidade das referidas operações. Entrando em outras instituições, por exemplo, as africanas relatadas em Edipo Africano, nas quais não rege um ordenamento monogâmico e, sim, poligâmico cruzado, cujo ordenamento social estâ em dependência direta do grau de desenvolvimento da cultura, nos deparamos com o fato de que os consulentes têm uma alteração na identificação ou no modelo paÍa a realização de sua sexualidade. E isto acontece em um grupo social no qual a família, como instituição, não existe, e onde, portanto, as imagos da neurose não se associaram às figuras retôricas parentais, e sim a outras figuras promovidas pelo contexto étnico, geogrâfico e cultural da mesma. Moral da estória: o Edipo é o registro simbôlico que permite entender a constituição destes três fundamentos do sujeito inconsciente: identificação, sexualidade e modelo para seu exercício. Fundamentos gue, oportunamente, são os que se condensam e deslocam, metaforizam em toda produção do sujeito. Neste contexto, enquanto o Édipo é uma estrutura, estamos transcendendo as figuras concretas de pai e mãe, e estamos, portanto, definindo-o como uma operação relativamente independente das pessoas que intervêm nessa tarefa a respeito da criança. Relativamente independente, dizemos, posto gu€, conforme a observação de Spitz, o dramâtico, para a criança, ê a ausência de um lugar de referente constante durante seu primeiro ano de vida, onde pouco importa que esse lugar seja coberto pela mãe biolôgica ou a mãe substitutiva, contanto que cumpta a função de figura referencial permanente ou estâvel. E mais: demonstramos que atrâs da mãe e do tratamento que ela brinda à criança estâ presente um
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código. O código maior que rege a relação da mãe com a criança é o
código constituído pela equivalência criança-pênis, a partir do complexo de castração materno. Isto nos obriga a repensar o triângulo edípico no qual temos os pais como sujeitos e a criança como objeto do trabalho ou operação a realízar, ao mesmo tempo que como sujeito da passagem da natureza à cultura. Isto nos obriga, por sua vez, apensar a operação em questão em termos de funções. Mas, como definir essas funções? Assim como provamos a sujeição da mãe a um côdigo (algo que estâ além dela e que rege sua relação com a criança). assim poderíamos provar a existência de um côdigo ainda além do pai, regendo a relação deste com a criatura e a relação deste com a mãe. Assim, pois, a esta altura podemos depreender que: 1) a. relação da criança com a função da mãe vai ser uma relação de dependência ou imediatez;2) a relação que vincula o menino à função do pai vai ser de mediatez, mediação ou o que também por certo poderíamos - chamar de indepen' - didaticamente, dentização; e3) o que ocorre entre ambas as funções é uma relação, relação que permite, por sua vez, pensar a relação da criança com ambas as funções.
Ora, tentamos desenvolver estes três termos: dependência, mediatez e relação. Em primeiro lugar, é absolutamente ôbvio que uma criança nasce em total dependência dos adultos e que essa dependência é múltipla: temo-la sublinhado, em diversas ocasiões, indicando que se trata de uma dependência material, alimentar, fundada na indefesa biolôgica do infans, mas assim mesmo em sua indefesa simbólica, porque não poderia entender o que a estâ aborrecendo (no caso do fenômeno da fome), jâ que, para ela, se trata de um estímulo que não pode metabolizar e diante do qual não sabe como reagir, a menos que a mãe interfira. Em conseqüência, a relação da criança com sua mãe se define pelo atributo fundamental da dependência (mas insistamos: dependência em relação à função da mãe), função que, na observação lacaniana, recebe o nome de Outro absoluto. É OUvio que à criança a míe apareça como um outro, como um alheio a seu próprio co{po, enquanto que o percebe e, portanto, registra como tal. Mas também é ôbvio que o registre como absoluto, pois essa mãe intervém, quase de modo pleno, em relação às suas necessidades em função da falta de defesa que o circunscreve.
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A função do pai, por sua vez, provê outro mattz à relação da criança. Primeiramente, haveria que recordar que, desde Freud, a constituição do Superego é a bateria identificatôria com a qual - oe aparentemente se independentiza o sujeito. Sabe-se que Superego é quase uma enteléquia narcísea que, apoiando-se sobre a
imago do pai, se internaliza e autonomiza para vincular-se, a posteriori, com o grupo social. É ôbvio, então, que a relação da criança com o pai ê, mais mediada que com a mãe. Com o pai, os intercâmbios são de ordem mais mediata, visto que, uma vez que se identifica com o pai - e isto é observâvel empiricamente - costuma afirmar: "eu vou ser como meu pai"; aqui, o que se substituiu foi uma imago (imago que relativizaoutra imago produzida no intercâmbio com a mãe: a do estâdio do espelho), que intervém com o exercício da sexualidade. Esta função do pai que nos introduz à constituição de uma certa mediatez é o güe, na teoria lacaniana, recebe a denominação de Nome-do-pai ou Lei. Aqui nos detemos um pouco, para esclarecer o termo lei gu€, geral, em estâ tão carregado de noção de sanção ou juízo que que teúamos descolori-lo, lavâ,-lo, paÍa entender em que contexto estâ usado. Quando se diz lei, se estâ dizendo regularidade, regularidade que define relações. Observemos que a lei da gravidade não é algo que esteja taxativamente estipulado no côdigo moral ou normativo, mas é o enunciado de uma relação regular entre um objeto largado a seu próprio peso e a Terra; assim, pois, nos enuncia uma constante, uma relação regular. Assim, então, a lei alude a que a criança constitui leis mais ou menos constantes, que definem sua conduta, e, de fato, a lei que essencialmente destaca a psicanâlise é a lei do comportamento sexual. Observe-se que um indivíduo, na identificação com o pai, consegue ajustar uma imago por certo, sexual que daí em diante estabelece uma constância para repetitiva com os objetos sexuais. - em seu comportamento Tomemos o caso do Homem dos Ratos: identificado com o pai, assume uma imago tal que lhe permite relacionar-se com mulheres... Esta relação êtío regular que se repete, e, porque se repete, se pode objetivâ-la e, assim, se pode interpretã-la. Sabe-se que a lei que rege a relação do Homem dos Ratos com os objetos sexuais é a dúvida. Faltar-nos-ia um terceiro termo que definisse a bateria completa de relações: papai-mamãe, mamãe-nenê, papai-nenê. A
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de mamãe noção de relação se apóia sobre as imagos combinadas
e
mente com papai. Observa-ot â.t., aqui, terâ que ão um efeito de cena primâria ó.t o permieste esclarecer-se no curso do process jogo campo. no Quando postos em tiria simbolizar os elementos relações essa simbolização não é eficaz., o sujeito deve imaginarizar pleno seu em (imagin arizar, com os elementos que tem à disposição simbonão o explicar-se para tentar sentido: imaginar, fabular), de lizado. Este terceiro termo, que se expressa na figura combinada o nome recebe lacaniana, ambos os pais, é o que, na categorização defalo.
mãe - Dependência - outro absoluto Funçãodopai_Mediatez-Nome-do-pai(lei)
Função da
Função da figura
combinada -Relação
-Falo
Revisemos estas fôrmulas: A função da mãe, segundo nosso enunciado (função que pode "Idiscomo diz Dan Genzburg, ellÌ Como Ser uma ser execu tada Sevilha)' de pelo Barbeiro cheMamrttê",- tanto por uma mãe como
dependência que instaura no sujeito uma Áatrizsimbôlica: o Outro absoluto, cuja expressão' no imaginârio, geralmen te ê, afigura de Deus. A rigor, a função do pai impõe leis a da mãe õsse absolutismo, ou seja, limita o efeito criado na relação relação em (aparentemente) com a criança, onde a mãe, onímoda narcisismo. o ao infans, promove neste um símbolo de onipotência: Recordemos, de passagem, 9u€ para Freud o narcisismo das crianefetivizada do narcisismo ças não é outra õoisa que a conjugação numa ãos pais. Em Introdução ao Narcisismo,t0 dizia Freud 9ue, filho no que pais, recriariam iu.itiu, os únicos quqbrincam são os
promove uma ordem
dì
as imagos daquilo q.t. eles gostariam de.ter realizado' Isto ê .orrgr.rãrte (para quem tenha lido Mannoni) com o fenômeno do ,.jâiei, mas não obitante". Mannoni observa que os adultos neces-
,itu-
áos nenês para sustentar, neles, a ingenuidade de uma crença
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que eles mesmos alimentam: papai-noel, etc. Neste contexto, o infans aparece como um suporte de relações que estão ligadas a outra cena: a cena Parental. A função inequívoca do pai ê a de promover um aparelho de mediatez, permitir a função do indivíduo desde a experiência sensível até um universo simbôlico. Assim pois, a função do pai, para permitir a constituição dessa mediatez, deveria propiciar a separação nesta estrutura diâdica que conforma a célula narcísea. A função do pai - dizíamos - eta a de mediar, e efetivamente um pai, apenas por sua presença, separa. E 9üe, na estrutura da célula narcísea em que a mãe e o nenê se embelezam, mediante mútuos enlaçamentos, a presença do pai interrompe a estrutura, pois exige uma atitude da mulher em relação ao seu homem, e uma atitude do infans com relação ao "estrangeiro". Não obstante, essa interrupção tem histôria, em virtude da qual o infans vai transitando de uma imediatez primeira (no ventre materno, unido por um cordão umbilical) a uma imediatez relativa (a relação descontínua ou discreta: seio-boca) que passa a transformar-se em uma mediatez (a do olhar mútuo e recíproco do estâdio do espelho) para, finalmente, ser cabalmente mediada pelo pai enquanto este propõe ideais aos quais identificar-se. Esta função, que permite transcender em direção a objetos sexuais no futuro, é o que denominamos /eí. É que, efetivamente, uma mãe não seduz seu filho materialmente, isto é, introduzindo os dedos onde não deve, e sim introduzindo-lhe simbolos mediante certa ordem de intercâmbios, mimos, carícias, beijos, armadilhas e atrações.
O CONCEITO DE FALO Primeiramente, antecipemos a tese de que o falo não tem nada
a ver com o pênis, e ê ôbvio, posto que o definimos como a simbolização de uma relação. Esta categoria de falo, como cate-
goria de relação, tem histôria em Freud; neste sentido, não poderíamos omiti-la, visto que, para ele, a questão foi bastante dilemâtica atê t933, quando, €h A Feminilidade, consegue desenvolvê-la. Desde muito cedo, havia-lhe chamado a atenção' na experiência do material, a observação de fantasias femininas de haverem
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lanço que, em psicanâlise, sabemos, assume a forma de um duelo. O balanço, para o homem, implica em abandonaÍ a mãe para conservar o pênis. Para a mulher, implica em abandonat a máe para ficar com o... clitôris; mas, aqui, surge precisamente o drama feminino, pois se descobrirâ que é de conformação diferente. E se é de conformação diferente, é porque a mãe (Outro absoluto ao qual alude toda a dívida) dotou-a mal, isto é, deu-lhe menos. Com isto nos reintroduzimos no conceito central: o conceito da inveja. De fato, o pênis, neste momento, vale tanto quanto esses chocolates pelos quais as crianças brigam, acreditando que o seu é o maior. E claro, observemos que, aqui, intervém algo da ordem do tamanho, que incide na ordem da qualidade. E como (recorrendo a Piaget para ilustrar este conceito) se a menina dissesse: "eu toco aqui procurando prazer, mas eis que vejo que ali onde eu toco, ele (o menino) tem mais para tocar"; e se tem mais (regulação termo a termo), goza mais. Vejam que o infans - segundo observou Piaget não pode descentrar a noção de capacidade e volume da noção -de tamanho e qualidade. Neste discurso feminino, hâ duas transposições (a Umstellung de Freud, deslocamento) articuladas: a primeira, gu€ assimila o outro a si mesmo; a segunda, que atribui a essa diferença de tamanho uma dimensão qualitativa. Assim vista a questão, no momento da diferença sexual, anatômica, a menina percebe essa diferença e a registra. A murca em questão tem um valor traumâtico por ser a marca de uma diferença, e o que estâ figurando como diferença não é o pênis em si mesmo, mas o pênis como símbolo do que o Outro deu ao sujeito e ao seu outro rival. De fato, o problemâtico da questão tem a ver com a inveja infantil que aqui se esboça: "quem é o preferido?". O narcisismo infantil fica, aqui, taxativamente lesado. Moral da estória: no momento da diferença sexual anatômica, o pênis importa tanto quanto um chocolate e este importa tanto quanto um pênis. Chocolate - pênis, assim como quem diz criança : pênis. Mas, se a criança é igual ao pênis, do mesmo modo que o chocolate é igual ao pênis, estamos esboçando, então, um sistema comparativo, o qual requer, como tarefa prévia, a existência de um sistema classificatôrio. Trata-se de um símbolo comum que permite cotejar os termos da comparaçáo, e este símbolo comum é o que a função da mãe lega no inconsciente do sujeito. Assim, pois, o conceito de falo concerne bem de perto ao conceito de relação em psicanâlise.
sido dotadas de pênis até que, em certo momento, o perderam por
intervenção de um adulto. Estc ntaterial chama a atenção de Freud, não tanto por ser um nratcrial novo (posto que é um dado longamente reiterado na clínica), nÌas por sua dificuldade em explicâ-lo. Freud manténr, entlÌo, urÌìiÌ longa discussão em diversos momentos (que poderíamos vcrificar cnì Introdução ao Narcisismo, Disposição à Neurose Ohscr.!rl'a, I',sltttrtt'um uma Criança, O Sinístro, Problema Econôntico do Mu,sotltti.srntt), tlnde pesquisa a questão da posição passivit c u qucstão tla inveja fâlica da mulher, atê eu€, finalnrente, ctÌì 1933, cotìscgr.rc csclarccê-la, demonstrando taxativamentc que o quc a ntulher invcja é, efetivamente, o pênis; não o pênis clo macho, nìas o pênis que, na idade do complexo de castração, ela quisera ter obtido das mãos da mãe. Neste sentido, bastante central é a questão da rivalidade e da inveja infantil, questão que não é exclusiva de Freud (a da relação entre as crianças, marcada pela inveja e rivalidade), pois Melanie Klein também assinala gu€, entre as emoções bâsicas, junto à voracidade e à gratidão se encontra a inveja. Não obstante, é necessârio situar essa invej a. Ê ôbvio que, no momento do desenvolvimento a que estamos aludindo, jâ se haja constituído a função do Outro enquanto absoluto. Neste contexto, o infans jâ sabe que é filho e que, portanto, o que tem o endivida. Isto é, deve tudo aproquanto é, seu prôprio corpo, e deste corpo hâ uma parte que é saliente: o ximamo-nos, aqui, ao complexo de castração procura porque permite de prazer uma clitôris ou o pênis. Saliente, a mãe, cujas que culminarâ na formulação de uma alternativa: ou que, também é de fato, carícias são agradâveis; ou a masturbação, que, nessa conjuntura, agradâvel. Essa alternativa surge do fato de o sujeito não possa identificar-se com o objeto, e deva, portanto e pela primeíra vez, eleger um objeto (recordemos que, anterior a esta operação não existe escolha alguma de objeto, mas pura e simplesmente identificação com o objeto). E QU€, de fato, esse processo se inscreve no marco de uma ausência: a ausência materna geÍa essa estr atêgia a que, semelhante ao exemplo de Fort-D a -denominada narcisismo. Nesse momento, 9u€ clinicamente denominamos nsrcisismo e cuja manifestação é a masfurbação, perfila-se no indivíduo uma eleição: a masturbação ou a mãe, jâ que se trata de dois conjuntos não-coincidentes. Tal eleição, como qualquer outra, exige um ba-
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Sistematizemos essa rcflcxr-ro lnccliante um corpo conceitual de quatro teses:
messas. ordens, presentes, prêmios e as clâssicas negociações entre mães e filhos.
o Outro.
Tese 3?: De todos os suportes há um que é superprivilegiado por seu duplo caráter diferencial e agradável.
Tese 13: O intttrt,sr'it'rtlt' st' /itrju na relação com
É óbvio er,rc r) irrconscierrlc sc forja sempre na relação com o Outro, rlcsrlc t;rrc ruìo cxislc o irrcorrsciente individual, jâ que este não é cfcito rlc urìì:Ì lrct'iutçu gcnótica. Demonstram-no, graficanrcntc, os trabalhos tlc lÌ. Spitz,, utn empirista lôgico. Pois, segundo obscrvu cstc cierrlista, rnìì bt:bô satisfeito em todas as necessidades clitas biológicas, nìas carente de um referente estâvel ou permanente (a mãe ou um substituto), não consegue constituir seu inconsciente ao não poder reahzar a deflexão pulsional. Assim, pois, o inconsciente se forma na relação com o Outro. Esta relação é fundamental.
De todos os suportes permutados, o suporte pênis tem o máximo privilégio nessa estrutura. Em outras palavras, o pênis é o suporte privilegiado (por seu duplo carâter pïazeroso e diferencial) da relação com o Outro. Ou, aincla, o pênis é importante enquanto registro de uma diferença. E que, notemos, este suporte dispõe da qualidade de ser prazeroso. Se o mesmo não fosse uma estrutura de pÍazeÍ, nada disto que estamos enunciando teria lugar. Importa, pois, dizet que, prima facie, o registrado é uma diferença libidinal. Isto não impede resumir que se trata de uma diferença, e sim leva a assinalar que não se trata de uma diferença qualquer. Trata-se, em suma, de uma diferença libidinal concernente à mãe, de quem se tem tudo quanto se é, e se é tudo quanto se
Tese 2?: No marco da relação do inconsciente com o Outro se int e rc am b iam supo rtes.
tem.
forja na relação com o Outro, nesse marco relacional constituem-se todas as matrizes daquilo que é nosso objeto de estudo; mas, como o mesmo é meramente ideal (jâ que, por mais virtual que pareça, tem materialidade; uma materialidade que se expressa em efeitos, a saber: sintomas, conteúdos maniSe o inconsciente se
Tese 4?: O superprivilégio do p,ênis se produz no curso de uma conjuntura.
O pênis, enquanto suporte, não vai privilegiar-se senão em determinado momento do desenvolvimento: na conjuntura da masturbação. E esta conjuntura, jâ explicamos, ê importante porquanto é a conjuntura pela qual um menino se separa da mãe. É gu€, sabemos, a masfurbação é uma recuperação narcísea das catexias originalmente orientadas para um objeto (a mãe), cujas ausências obrigam a esse retorno das cargas ao Ego e que se expressa claramente na masturbação. Dessas quatro teses, surge a inequívoca conclusão de que (-' falo é uma estrutura simhôlic a da qual o pênis é um elemento parcial. (Confrontar com n teoria do objeto parcial.) Assim, pois, o pênis que as mulheres "invejam" não é o pênis que os homens têm, mas o que elas (entre dois e quatro anos) gostariam de ter recebido das mãos do Outro. É essa, efetivamente, a reprovação que subjaz Freud - na clâssica reclamação infantil de haver sido - observa pouco tempo amamentado com os seios. A tradução que Freud faz
festos), então cabe pensar que essa relação não é abstrata mas, sim, se trata de uma relação de intercâmbios. Efetivamente, se intercambiam suportes; o leite que uma mãe dâ ao filho é um suporte da relação pela qual a criança vai constituindo seu inconsciente, mediante a simbolizaçáo do que se lhe provê. E dizemos que o leite é um suporte, porque é indiferente que se trate de leite de cabra, de vaca ou humano, ou ainda leite sintético. Bastarâ que cumpra uma dupla função: a) a função alimentar, b) a função de ser um símbolo. Neste sentido, tem o mesmo valor um seio ou uma lata de leite Ninho, embora não seja indiferente quem o administra, visto que é sabido que o sujeito compromete a função. De qualquer modo, os suportes do intercâmbio não se restringem à função biologicamente alimentar, mas se estendem à função simbolicamente alimentar, pois são, igualmente, suportes desta relação: beijos, carícias, pro-
Â-
134
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O ÉDIPO COMO DISCURSO DO
DA OBRA DE J. LACAN
I.Ì5
Não poderíamos abandonar esse tema sem referir-nos à dialética mãe-filho, e a um momento primordial na mesma: o estâdio do espelho, no qual, ao estatuir-se a matriz de todas as identificações do sujeito, se estatui a primeira objetivação (encarnada materialmente no infans) deste registro simbôlico. Sabemos, em primeiro lugar, gu€, quando uma mãe tem um filho, não o tem senão em função de um côdigo segundo o qual a criança equivale a um pênis, ainda que recordemos que esse pênis é o objeto parcial de uma estrutura cujo limite é mais amplo. E em função disso que se inicià uma série de intercâmbios mãe-filho. Mas, insistimos no fato de que os termos em jogo nessa relação que aparentemente é de dois, são três: o côdigo, amíe e o filho; ou, dito de outro modo, o côdigo expresso materialmente na presença da mãe na relação com seu filho. Assim, embora o côdigo não se ache literalmente presente no campo, estâ simbolicamente implicado na relação. Em função de tudo isso, os intercâmbios efefuados terão uma certa peculiaridade, jâ que a mãe esperarâ de seu filho muita coisa: que seja gordo, são, bonzinho, que mame, que seja tranqüilo, que não ttaga muitos problemas, que cresça bem, que não tenha dificuldades e, finalmente, que se pareça com seu prôprio pai, com seu marido ou com Clark Gable. A enunciação desses desejos culmina perfilando um lugar: a mãe gostaria que o nenê fosse tsso, esse espaço perfilado pelos desejos concretos que, por sua vez, se organizam no código desejante que acabamos de exPlicar.
clara: "amamentou-me pouco" alude a "dotou-me mal"; ou seja: "dotou-me insuficientemente", logo, "não me proveu de pênis". Insistimos, pois: o pênis não importa por si, mas por seu valor; e seu valor não deriva dele mesmo, jâ que o valor se articula em "outra cena" (a relação do sujeito com o Outro). Nela, a mãe, por sua função e pela promoção de uma ordem de dependência, aparece como absoluta e, portanto, como a que ê capaz de dar o pênis, tanto como a que ê capaz de não clá-lo. Estamos, assim, quase tocando esse ponto tão sensivelmente medular da psicanâlise que é a relação da nrulher com a mulher; ponto tão problemâtico que justanrente incide em todo quadro feminino. Como nôdulo central e que, enfim, ê o tema primordial da histeria... "Que coisa é a mulher?" A saber: "Que coisa é a míe?", definitivamente "É absoluta ou não é?" Em franca conexão com tudo isso, observemos gu€, em A Significação do Falo,tt Lacanobserva, por um lado, que o falo não intervém senão na ocasião do complexo de castração e, por outro, assinala que o complexo de castração é importante enquanto compromete a mãe. Assim, a problemâúica da castração é o fato de que recaia sobre a mãe. Em outros termos, o problemático ê essa necessidade de revisar uma imago atê, agora percebida como absoluta, porque há algo, nela, que a relativiza. O grande drama infantil se define aqui, pois, se a mãe não é absoluta, o infans pressupõe a existência - no caminho - de um engano. E aqui que o infans se separa dela para orientar-se em direção ao aparente.vencedor dessa "aposta", que, em princípio, supostamente, é o pai. De qualquer maneira, não deixemos de notar que esse pai resume já, sobre si, toda a agressividade que o sujeito infantil lhe prodigara quando, no cume de seu narcisismo, aquele aparecia apenas como um incômodo rival. Formuladas, pois, as resistências que tem todo organismo biolôgico para constituir-se em erôgeno, o Édipo se define como a estrutura que permite a tarefa de realizar o vencimento dessas resistências mediante a produção dos três termos simbólicos que sublinhamos: o Outro, o falo e o Nome-do-pai (capaz de instaurar uma lei). dessa reclamação é sensivelmente
ll.
OUTRO
Côdigo da tunção
materna
fCti"ttçu-Pênis
\r
t
t'tÃE\ Exigência libidinal materna igurado Pelo materno
Im INFANS
,,,-
Pluralidade natural
La Signification du Phallus. In:.Ecríts, ed. cit., p. 685.
l-
do inÍans
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O ÉDIPO COMO DISCURSO DO OUTRO
DA OBRA DE J. LACAN
Não hâ muitas alternativas para a criança a respeito
desse
desejo, ou praticamente nenhuma, posto gu€, como dissemos no princípio, ao infans não cabe outra opção que a identificação com o objeto. Em conseqüência, a relação da criança é de direta identificação com esse lugar proposto pela mãe. Ora, analisemos cletalhadamente a estrutura dessa identifi-
cação. Notamos, €ffi primeiro lugar, que ela se consolida num marco que é o da falta de defesa infantil, tanto material quanto simbólica. Falta cle defesa material, porquanto carece de autonomia motora paÍa, por exemplo, chegar-se ao seio. Sabe-se que isto é fruto do inacabado processo de maturação em que nascem os filhotes em nossa espécie. Mas, em concomitância com isso, ttata-se de uma falta de defesa simbólica jâ que, como efeito, o infans não pode simbolizar seu corpo como uma unidade, mas como um resto de deslocamentos motores fragmentârios. A rigor, pois, o infans percebe-se como deslocado, deslocamento do qual o humano não fica isento em nenhuma de suas experiências. Tomemos, ao acaso, o exemplo de Romeu e Julieta. Suponhamos Romeu cantando, bandolim na mão, sob o terraço da graciosa Julieta, e suponhamos que, subitamente, a Romeu sobrevenha essa exaltação da mucosa intestinal, que é sinal de que precisa ir ao banheiro. Notemos é - ea não que esse indício interrompe toda necessârio muita sutileza composição visual do par amoroso. Algo de grotesco interronpe a cena, que, de fato, é parcial isso porque a pulsão - introduz um efeito de fragmentação (digamos, natural) num composto no qual é condição fundamental a manutenção da unidade libidinal. O que vem a interromper essa gestalt que estâ sustentando o amante Romeu é a pulsão parcial que, isolando-se do composto gestâltico, introduz uma ruptura. E que essa fratura corporal é constitutiva do sujeito do inconsciente, visto que nosso corpo nos informa "parcialmente". Quando alguma zona do corpo dôi, a dor é plenamente parcial. Este é, precisamente, o estado permanente do infans, até que, coincidentemente com a assunção identificatôria do desejo materno, se completa. Trata-se, como no caso do Romeu, de uma gestalt que permite reunir a fragmentariedade corporal. Este completar-se consiste simplesmente em que, regido por esses esboços de "corpo fragmentado", assume, através de uma identificação, uma unidade que é cultural. Em outras palavras, a pluralidade natural que é a criança assume a forma de uma unidade cultural (o desejo da mãe).
13 fase
29 fase
Estado de pluralidade
Estado de unidade
natural
cultural
Para acercarmo-nos metaforicamente do fenômeno, poderíamos descrevê-lo como o investimento, por meio de um banho libidinal, gue a mãe faz sobre o corpo infantil, permitindo-lhe, graças a essa cobertura, perceber-se como unidade. É aqui que vemos materializar-se o falo (que definimos como relação); se o inconsciente se forja na relação com o Outro, um bebê nascido de determinada mãe não tem remédio senão assumir o desejo promovido por ela, sob o risco de perecer. Assim, pois, a condição graças à qual sobrevive é a assunção do desejo materno, assunção que realiza - reiteramos - pelas vias da identificação. Sem dúvida, aqui nos deparamos com o sutil paradoxo de que o infans se identifica com um lugar que tem ele prôprio como referente e que, ao mesmo tempo, configura sua possibilidade de sobreviver a essa falta de defesa motora que o marca e limita. Em síntese, ele se identifica com um lugar para o qual estão plenamente orientadas suas catexias; a esta reunião de identificação e catexia denominamos, no campo da psicanâlise, de narcisismo. Ê, daqui que poderíamos partir para entender por que o narcisismo infantil é derivado rigoroso do narcisismo parental. Trata-se Ínlando de outra forma - da materializaçío encarnada das "exigôncias libidinais" dos pais. Essa confluência que define o narcisismo expressa-se numa Hcst:rlt. Deveríamos recordar, aqui, os conceitos de imagem, imagi, rrÍrrio, ilusão, espelho, rede e Outro, visto que os temos aqui colot'rrrkrs na assunção de uma imagem como própria, quando, a rigor, d' provida do Outro, e quando é remetida em espelho, criando-se a lÕ-
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ilusão de uma unidade, sendo que, na realidade, o corpo do infans responde a uma ordem dc pluraliclaclel2 É precisamente essa unirladc que romperia o complexo de castração. E é essa rupturír quc pocleria ser salva pela função do pai, mediante a intro
impede que o dcstino tlcsta prinrcira unidade seja romper-se. A conquista dessa unitlatlc ó o quc dcnominamos estádio do espelho, no qual hâ algo nrais quc unr sujeitt) e um espelho, visto que se trata de unt e[eito cxprcsso cnr tcrnros de uma identificação narcísica, quc tcrtt o nratiz ilus(rrio que reconhecemos em todo registro do imaginário. Sem dúvida, por esta via se introduz, ao mesmo tempo, uma dimensão simbólica que não podemos desconhecer. É que a constituição da gestalt é diretamente proporcional ao investimento materno, o qual propicia a conquista de dois parâmetros fundamentais: Parâmetro do espaço Visto que o infans assume,- então, uma unidade referencial de todos os estímulos que daqui pata a frente o fustigarão, coisa que antes era impossível Í.azer. É que antes dessa conquista, os estímulos careciam de refe-
rente. Esta unidade gu€, por si, é uma unidade corporal, como gostava de repetir Freud introduz, pelo eixo da identificação, um parâmetro de referência no espaço do
sujeito. Notemos, de passagêh,
que a categoria do espaço
ê
sistematizada, em psicanâlise, pela categoria da identifica-
ção.
12. Lacan, Jacques
-
Parâmetro temporal É que, logo depois de haver assumido essa identificaçáo, a criança consegue perceber (num ordenamento retrospectivo, tal como aquela frase-exemplo: "Ai
r39
I
Parâmeho espacial
ANTES
AGORA
DEPOIS
Assim, pois, no estâdio do espelho se constifui essa matriz espacial, cujo resultado é a constifuição do Eu. Mas, ao mesmo tempo que sua inscrição no espaço, essa matriz lhe permite a inscrição no tempo, a partir da dimensão da angústia da qual o Ego é a sede. Esta aparece constitutivamente ligada ao fenômeno da dependência que o sujeito jâ registra, registrando ao mesmo tempo que a manutenção da unidade conquistada é solidôria com a manutenção da provisão libidinal materna. O desassujeitamento (a desindividualização) dessa posição é o que recebe o nome de complero de castração.
querido assim não podemos continuar vivendo") sua condição anterior como dramâtica. Assim, pois, se constifui simultaneamente um parâmetro de temporalidade: antes estava desagregado, agoraunificado... e depois? Este depois, este amanhã se caffega e se tinge de um sinal de interrogação, configurando o temor de que a bolsa se rompa, introduz a dimensão da angústia.
Prcpos sur la Cnusalíté Psychique.
ln:
Ecrits, ed. cit., p. 87.
o coNceiro
DE
cAsrRAçAo
A rigor, podeúamos dizer que o tema que agora abordamos é, antes de tudo, um paradoxo: trata-se do complexo de castração. Para introduzirmo-nos, pois, neste paradoxo, conviria fazê-lo formulando certas teses que permitam ampliar o campo de estudo. De início, digamos gü€, se o complexo de castração alude a um ôrgão (o pênis), é porquanto concerne à estrufura na qual aquele se inscreve.
Para explicar esse aspecto, é fundamental cientificar-se de güo, na teoria freudiana e para Freud, não podemos conceifuar complexo como um gnlpo ideaüvo encistado (como na concepção traumâtica), € sim convém conceituâ-lo como um grupo de relaÇõ€s, razlo pela'qual seria necessârio dispor de um critério sufino sentido de permitir-nos categocientemente relacionalista
-
r4O
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DA OBRA DE J. LACAN
nzat as relações postas em jogo - segundo o qual o complexo de castração concerne ao que o precede (o complexo de mãe), onde se constifui o falo como objeto. Por tudo isso, quando dizemos castração, estamos falando de um complexo que atua em relaçlo a outro: o fâlico. Claro que o falo é tal como o definimos objeto mítico - um promovido na relação-com a nrãe, relação esta que se situa no interior de uma célula e na qual é instaurado um objeto que responde à insaciabilidade libidinal do sujeito. Precisamente por sua exigência de responder à insaciabilidade libidin al, trata-se de um objeto impossível, desde que nenhum objeto pode satisfazer todas as exigências libidinais simultaneamente: o único objeto que pode cumprir esta tarefa ê a morte, por ser a grande supressora radical de todas as exigências do estímulo ao sujeito. Na formul4ção desse objeto mítico que é o falo (que tem formas episôdicas entre o nascimento e a morte, tais como o seio materno, a relação com os pais, a rclaçilo com o objeto sexual e a relação com os filhos), mas cuja forma final é a morte, vemos operar a tendência do aparelho psíquico que Freud descrevia sob o princípio de Nirvana, o qual, por sua tendência à redução de todo e qualquer estímulo, imita, como modelo, o modelo da morte. Com base nessa reflexão reiteramos: o falo não é um pênis. Por conseguinte, insistimos, o falo é uma estrutura com uma tendência que é a nirvânica e o pênis é um ôrgão com uma tendência (ou ereção) que é o objeto, objeto substitutivo, mas, afinal de contas, não menos objeto por isso. Com base nisso recordemos que demos estrutura a essa forma a de um complexo sumarizável num "corpo" de quatro teses: -
1) O inconsciente se forja na relação com o Outro. 2) No marco dessa relação se intercambiam suportes. 3) De todos os suportes intercambiados hâ um, em particular, que se superprivilegia; é o suporte-pênis, por sua dupla atribuição: a) ser prazeroso, e b) ser diferencial pata ambos os sexos.
4) Esse superprivilégio do suporte-pênis se produz no ('urso de uma conjuntuta: a conjuntura que'a rnasfurhnr'ão infantil introduz.
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comentemos essas teses. Dizemos que o inconsciente se forja na relação com o outro. Na realidade, aludimos à mãe ou a um substitutivo que cumpra tal função; daí que o termo .,outro" não se limite à pessoa da mãe biolôgica. portãnto, cabe agÍegaÍ que a constituição do inconsciente se foda mediante o intõrcãmbià ae elementos concretos que denominamos suportes, entendendo por suporte todo objeto intercambiado, sejam alimentos, beijos, càricias, promessas, ordens ou negociações pai-filhos. categãrizamos todos estes instrumentos de intercâmbio como suportes; pãrque são precisamente isso: "instrumentos de intercâmbió". Em outi", p"_ lavras, não têm valor por si mesmos, a não ser no marco de uma relação libidinal peculiar. o fato de que nenhum desses suportes valha por si mesrno é muito grâfico na seqüência de pedidos infantis: compra-me uma bala, um chiclete, uma bola, um carrinho, um trem de pilha, uma bicicleta... numa série tão infinita que parece que nenhum objeto serve como prova ou garantia de serem amados. os suportes são nada mais nada menos que provas, garantias, relativas a uma relação. ora, de todos os suportes que se intercambiam (suportes que vão reconhecer marcas orais, anais e genitais), hâ um em particular que resulta superprivilegiado: trata-se do suporte-pênis. sabemos da importância peculiar desse suporte na elaboração da percepção da diferença sexual anatômica. Definitivamente, opênis r" irrr.r.". como uma diferença; mas por quê? Em primeiro e fundamental lugar, porque se trata de uma zona capaz de produ zir prazer. Isto é o que definimos por dupla atribuição do pênis: ser piu"".oro, por um lado, e diferencial, por outro. Mas conviria articular ambas as noções, porque, como resultado de tal articulação, chegaríamos à conclusão de que se ttata de uma diferença de prazer. -E- outras palavras, a diferença quantitativa tem vigência qualitativa, de tal modo que "essa massa a mais" ou "essa massa u arnor" equivale a "esse pÍazeÍ a mais" ou "esse pÍazeÍ a menos". Se recoidamos, neste sentido, que o ptazer é um dom materno (confrontar: com a mãe como essa figura erogeneizadora), o pênis também o é. Sem dúvida, por sua presença, o pênis é um dom eÍetivizado, e, por sua ausência, üÍÌ dom negado; é esta negação do dom o 'qï. nos introduz ao problema do desmentido narcisista. Sern aúìiaa, o pênis se inscreve como uma diferença, como uma diferença a propósito do gozo.
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Pana entender essa diferença, é necessârio recordar certas premissas fundamentais da obra freudiana. Estas afirmam que o inconsciente é produto da rcpressão e que a repressão concerne à sexualidade, mas à sexualidarle inÍantil. No limite da sexualidade infantil, o pênis é privilegiatlo lìtrtììa conjuntuta da chamada fase anifcstaçã
rtura. Hm ttutras Palavras, ctrjo latente se inscreve na relaçãO siltttlnra, unì um manifesto,
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Igualmente sabemos que a mãe não é um objeto à disposição permanente da criança, na medida que se acha regida por outros interesses que a reclamam fora dessa relação. pouco importa o status desses interesses, que podem ser seu próprio esposo, seu pai, sua profissão, o exercício das artes, a beneficência ou tomar conta da casa. o importante, aqui, é que esses interesses a requerem, a exigem libidinalmente - e, também, em função desse requerimento,- ela sai deste campo.
mãe-filho. Essa relação ó cspccialntente peculiar, pois é sabido que' no Seu curso e a() atender às necessidades do menino, ela gera um montante erógeno, inscrito na própria capacidade erôgena do infans:
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r (interesses)
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c É em frrnção
grâfico, repre- que, no que o infans orienta sua catexia à mãe.
desse quantum erógeno
sentamos com a letra e
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Cuidados maternos
no do no
para o infans,
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-assumi mos corretament a culfura que os forma do pai, pois, em outra esfera cultural não familiarista, serâ outra a figura que informará (no sentido de dar forma) tais interesses problemâticos. De acordo com nossa leitura de Edipo Afri ceno, a forma, nas etnias senegalesas, seria a alfarrobeirã (como ârvore representante dos ancestrais), assim como em outras culturas serâ o totem pertinente. Digamos, para concluir, que, naquelas culturas em que as figuras do pai e da mãe não estão produzindo essa combinatôria que denominamos Edipo, serão o.rt.o, o, agentes encarregados de tais lugares. A partida da mãe deixa o infans sem apoio, obrigando-o a enfrentar uma ausência. A este momento corresponde a angústia do 89 mês, observada por Spitz, que não poderemos deixar de vincular à angústía da castração freudiana, porquanto aqui aparece o elemento-chave que permite apontar a questão: trata-se da ausência do outro, afalta do objeto primordial.
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/ DA
OBRA DE J' LACAN
o ereito
:ï'ïïff"
;ï:rbação,,," ;.
acabamos"b.td" de explicar e que poderíamos definir como a estrutura que determina a prâtica da masturbação revela-nos que a mesma seria uma tentativa de separação da mãe realizada com o duplo apoio: ofantasma materno e a zona erógena É precisamente nessa conjuntura que o complexo de castração
manifesta sua eficâcia. Dissemos que a castração se expressarâ num corte, a saber: uma separação. Separa-se ou da mãe ou da zona erógena.
Como vemos, a masturbação infantil cumpre um papel necessârio: trata-se da elaboração necessâria do desprendimento da
a angústia? Que alterna..u.tdo a imago da mãe (e soa da mãe, mas de sua u fantasma), o strjeito recupera a te circuito o que Freud Pretende a formallzaôa em AIém do Prin-
cípkldarojogodeaparecimentoe clesapaquesetratadeumatentativa de ausência da mãe' na qual o de elab imago materna' carretel ocupa o papel de suporte da
medida em que a mãe P.rónr o circuito não u.ubu aqui. úa
hajaertlgcnciz,aclo()infans,esteretornodascatexiasaoEu, carícias maternas' reaümenta e seguindu a linha cla lembrança das modo de prazer colocada no corpo' É deste
reaviva a capaciclacle a um apoio no ôrgão de que o apoio n., runtusma é concomitante prazer ProPri anlente dito' I
M
AGO
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ATERNA
(Como teal:u;açáo da presença frente à ausência)
busca.
O complexo de castração é, neste sentido, inevitâvel, se entendemos por castração a simbolizaçío da separação, posto que o infans deve, necessariamente, separar-se ou da mãe ou de seu pênis.
M ?
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mãe. Isto é congruente com Freud, que assinala a existência de três tipos de masturbação: a) a infantil, na qual vemos uma tentativa do sujeito paÍa sair da célula narcísica; b) a puberal e adolescente, que estarâ determinada pela reativação do complexo edípico dado, portanto, uma reedição desta disjunção: "o.u o Eu, ou a mãe", "ou Eu ou o outro"; c) finalmente, a adulta, na qual Freud via indícios de patologia; estes indícios consistiriam nada menos que na permanência dessa alternativa sem solução, dado que a saída idônea do complexo edípico seria a busca de um objeto exogâmico e dado que a manutenção da masturbação não conduz precisamente a tal
I
pênis ou um clitôris (no grâfico' Seja esse órgão óe prazer um qualirlade de prazer)' a letrâ P, paraaludir à sua
representado.oÃ
N
o Grafado esse paradoxo, podeúamos dizer que se tratam de dois vetores de sentido diferente, duas linhas de forças discordantes. Em geral, o sintoma costuma ser uma transação. Efeti-
146
CURSO E DISCURSO
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O ÉDIPO COMO DISCURSO DO
DA OBRA DE J. LACAN
linhas de força' Mas' se vamente, é uma transação entre essas duas colocadas em jogo além disso pudêssemos pensar nessas linhas cartesiano, estariamos reicomo as coordenadas de um quadrante espelho, visto que terando u proUi..àti.u descrìta no estâdio do enquanto que o outro (o um é o vetor que explica a identificação, relativo ao pênis) representa a angústia'
Identificação/ ESPAçO
Angústia/TEMPO
Sujeito I
o são tão simPles' Jâ que qui Para a frente, o custo renúncia ao Pênis' o que desejo no sujeito; desapa
tasma da mãe devorador ;;õ úplicaria em separar
temor corre-
lativo de perde; ;" "b-olsa" este temor é resolvido pela i resultado é a instalação de uma permitiria ao sujeito o acesso a
sabemos que
pai' cujo que Ego' do sexual' e do do
Como"'-o',ocomplexodecastraçãonãoserefereexata. que é a ,as remete a
uma estrutura
na mulher, não é causa necesir que tal forma seja a medulà do na afirmação do problema. É que, na afirmação âo pênis ou
OUTRO
147
menino, estâ contido o dilema da afirmação de um destino para o narcisismo assim ameaçado ou desestabilizado. Formuladas todas essas questões paÍa a introdução ao problema, ratificamos que a castração é um paradoxo. Para maiores dados: um inevitâvel paradoxo. Temida, ao mesmo tempo que desejada, sua eficâcia serâ sempre problemâtica. Quanto à sua eficâcia, ou seja, quanto à sua realwaçío, esta se resolve no dilema: ou me separo do Outro, ou me separo de mim. A separação. Até podeúamos dizer que a separação ê, a operação pela qual o sujeito pâra. Pois, se o inconsciente é o discurso do Outro, ao sujeito cabe a seguinte pergunta: quem sou eu? Sou, por acaso, o Outro? Isto conduz à inevitâvel pergurlta: quem é, então, o outro? E obviamente é muito difícil responder, se o outro não estâ constifuído como tal, ou seja, se o outro não estâ constituído como distinto e separado do prôprio sujeito. De tudo isso resulta que, embora seja inevitâvel que na relação mãe-filho se produza uma separação, sua efetivação depende, em grau supremo, do regime simbólico que determina à mãe em qúestão. A elaboraçío desse complexo por parte da mãe permitirâ uma entrada aceitâvel ao pai (o Outro), na relação com "seu" bebê. Sabemos que a introdução do pai favorece o desaparecimento da célula como estrutura de relações; favorece, pois, uffi corte, enfim, uma saída. O complexo de castração é um paradoxo. Jâ o dissemos. É gue, embora toda nossa insistência em afirmar que se trata de uma estrutura, a evidência clínica insiste em mostrar o conflito como um conflito peniano. Os meninos temem perder seu pênis. As meninas insinuam tê-lo perdido. Os meninos indagam por que se amputou os pênis às meninas. Estas supõem que é porque se comportam mal. Os meninos esperam que o pênis cresça nas meninas. Elas puxam o clitôris, esperando ver sair dali o tão ansiado pênis. É que a castração concerne, de qualquer modo, a um ôrgão. Trata-se, nada menos que do ôrgão que se manifesta como capaz de suportar toda essa estrutura, pata o que invoquemos a terceira tese a propósito do complexo fâlico. Portanto, se deduz: ê, percmptôrio indagar as relações formuladas entre o ôrgão pênis e o falo; essas relações são isomôrficas às relações que articulam o suporte e a estrutura. Dito em outras palavras, o pênis é, para o falo, o que o suporte é pata a estrutura.
14E
CURSO E DISCURSO
/ DA
OBRA DE J' LACAN
'falo, r,-ata explicar o quatro teses esboçamos Assim como pata descreïer a castração' As teses sobre a
façamos o mesmo castração seriam
(o pênis)'
1) A castração concerne a um ôrgão 2) Ttata-se de um ôrgão fantasmfticg: deriva do fan-
do pênis' tasma que sustenta a premissa universal relação: a 3) Essa premissa é produzida dentrci de uma
castração ê ef\caz relação mãe-filho. bevido a isto, a à relação quanto ao ôrgão, e o fantasma ê eÍicaz'quanto que os suPorta. produto da rela4) A castração concerne' finalmente' ao Entennarcisismo' ção mãe-filiro, isto é, concerne ao a confluênc de oPeraria-s o ca catexia da ca objeto).
Comonáaêonossocasoandarporestescaminhosdomundo sua demonsformulando teses sem demonstrâ-lãs, abordemos tração. um ôrgão' Isto é o que a Dizemos que a castração concerne a quase em forma evidência clínica nos manifesta cotidiaoamentepequeno Hans, as do ;;il;i;; É ;-õ; ,,o, Àanifestou o tenor.de Schreber"' Sem dúfantasias do Homem dos R";;;-; deúrio idade de corPo, é ôbvio que essa o"ttut palavras: nenhuma mulher é a fobia e á irto o sabem as neuroses' que menino um âÍIÌ€âças todas 4s tem nino isamente
recebido 4... masj
ou de ter
s'
que o órgão em questão Portanto, não é muito descabido supor é um ôrgão fantasiado.'Como o entendimento infantil, f'oï efetiv nino, como aos olhos do menin apôia paÍa admitir a Possi inexistência na mulher, é
castração,
"lun"Ïï:ffiï'ï: ".,-' l,.no ,..,,ri,oï
muitos) se trata do pênis da mãe. Trata-se, digamos diretamente, do sucumbimento da mãe fâlica. Trata-se correlativamente do sucumbimento da premissa universal do pênis. Isto nos introduz à anâlise da terceira tese. Porque o fantasma da mãe iâlica não é outra coisa que um efeito da relação narcísica mãe-filho, e porque o sucumbimento desse bendito fantasma é concomitante ao sucumbirnento dessa bendita relação. A relação em questão sucumbe pelo aparecimento desses interesses que convocam a mãe fora de sua relação com a criança; coisa que serâ possível enquanto nela esteja inscrita a castração como tal. Mas isto é inevitâvel, visto que é inevitâvel que uma mulher adulta não se esgote na relação com o produto de seu ventre; no mínimo, requer a procura de alimentos (através de sua profissão ou através de seu marido) e, no mínimo, requer outras exigências libidinais que não poderiam ser cobertas pelo bebê" O sucumbimento da relação conduz ao sucumbimento de um resultado da mesma: o narcisismo. Sucurnbe a flatal e fatídica conjunção da identificação com a catexia. Esta separação da identificação e catexia se expressarâ no efeito tipicamente edípico observado por Freud: daqui para a frente, um sujeito toma como objeto de catexia um progenitor e, como objeto de identificação, o outro.r3
Afinal de contas, podemos concluir que a castração historiza o sujeito. Insere-o no dilema edípico. Assinala-lhe (marca-lhe) um desejo. Afinal de contas, a castração não é essa ameaça paterna "vamos cortâ-io" tal que se os pais não a proferissem a criança não se veria enfrentando esse conflito. É gu€, profiram ou não a ameaça, o menino enfrenta esse conflito que lhe exige separar sua identificação cle sua catexia. Como vemos, na base dessa formação fâlica se situa uma crença (ou fantasma?) de absoluta complementaridade, cuja matriz localizaremos na relação mãe-filho, na qual qualquer necessidade da criança é interpretada e resolvida pela mãe. Mas, bastarâ que a mãe tenha outro interesse fora da criança, bastarâ que a 13. Freud, Sigmund
ln: O. C., ed. cit., t. III, p. 482.
Algunas Consecuencias Psíquicas de la Diftrencia Sexual.
150
CURSO E DISCLJRSO
/
DA OBRA DE J. LACAN
deixe à mercê de si mesma, para que o infans se veja obrigado a produzir substitutos da presença mqterna. Precisamente, é a produção desses substitutivos a que se vê determinada pelo complexo de relação que constitui o complexo de castração. É aqui que se nos apresentam os elementos que permitem definir a noção de conflito na teoria de Lacan: trata-se do conflito entre o falo e a castraçã,o.
FALo(p)
l.
Relação com tl Outro
2. Intercâmbio de suportes 3. Privilégio do suporte-pênis 4. Conjuntura da masturbação
CASTRAçÃO
l.
(é)
Ameaça do órgão
2. Sucumbimento
da premissa uni-
versal do pênis 3. Ruptura na relação mãe-filho 4. Rompimento do narcisismo
Poderíamos enunciar menos esquematicamente o conflito em questão, dizendo que se trata do conflito acerca de "Como relacionar-se com o outro, mediante um intercâmbio de suportes que podem cair ameaçados, sendo que esta ameaça pode arrastar o fantasma, ao sucumbir a relação mãe-filho que o sustinh a, f.azendo ao mesmo tempo sucumbir o narcisismo que o substratava". Em outras palavras, se a instância do falo é a promoção do narcisismo, a instância da castração ê a de seu sucumbimento. Contudo, convém observar que não se trata de uma supressão radical, jâ que, em que pese a vigência da castração, sabemos que toda eleição de objeto (necessariamente posterior à castração) é um resíduo de eleição narcísica. Freud qualifica tais eleições objetais como "eleições objetivadas de libido narcísica". O fato de que a eleição sexual de um objeto propriamente sexual ou de um - seja responda objeto sublimado à dialética nascisismo-objetalidade demonstra que o narcisismo não fica absolutamente liquidado no complexo de castração, e, sim, simplesmente desmentido, o que não impede que o narcisismo em questão prossiga gerando efeitos. E os gera, porquanto deixa uma "marca". É deste modo gu€, assim como os tangos lembram nostalgicamente a estreita Corrientes (rua de Buenos Aires), o sujeito recordarâ, pela via das marcas, a instância Ìâúica.
o ÉoIpo CoMo DIScURSo Do oUTRo
151
Ve'.jarnos , agora, a histôria dessa descoberta de Freud. A princípio, l;rcud se depara - desde 1905 - com o fantasma infantil da l)!'r'rìrissa universal do pênis. Jâ no caso do pequeno Hans e nos crrsrrios de 1908, Teorias Sexuais Infantis, Freud descobre que se Ir':rla de um clâssico fantasma que ele simplesmente descreve t)()r'(lue a evidência clínica o mostra, mas que não pode explicar. I'osteriormente, descobrirâ que esse fantasma é a expressão da t'slrutura edípica. Ao mesmo tempo, descobriria que essa estrutura t'
t'uções: Superego, Ideal do Ego.
Sem dúvida, no texto freudiano, o complexo de castração consiste na operação pela qual o pai separa o menino da mãe, rnediante a clâssica sentença paterna que diz ao menino: "não rlormirâs com tua mãe", e à mãe "não recuperarâs o produto de teu
ventre". Claro gu€, por tudo o que vimos, a separação não ê produzível mediante tão-somente uma ameaça. Intervêm vârios outros elementos e, bastante centralmente, os outros interesses da mãe. Ora, a forma clâssica que esses outros interesses assumem na observação freudianaêprecisamente apresença de outros rivais: pai e irmãos. Neste sentido, a separação da mãe é temida porque indicaria uma primazia do rival narcísico sobre o sujeito. Mas, ao mesmo tempo, a castraçáo ê querida. E o é, pelo trâgico destino implícito no narcisismo; destino que não é outro senão a morte do sujeito, ou desaparecimento do sujeito no desejo do outro, jâ que a existênciaflâúica - ser objeto do desejo do outro - obriga o sujeito a adequar-se ao que o outro deseja. Portanto e enquanto separa, a castração é querida, jã que permite ao sujeito motorizar-se em sua prôpria histôria; entendamos por motorizar-se em sua própria história a historiz açã'o do prôprio desejo. Em síntese, a castração apresenta um duplo valor, porquanto,
ao mesmo tempo que desej ada, aparece como temida. Temida porque desestabiliza o narcisismo, e desejada porquanto o sujeito requer sair da alternativa ferrenha que o falo lhe impõe. Em tudo isso, o pai ocupa um lugar primordial como agente da castração. Mas, ao mesmo tempo, é sabido gu€, paÍa que um
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CURSO E DISCURSO
/ DA
O EDIPO COMO DISCURSO DO
OBRA DE J. LACAN
pai intervenha como agente de castração, é necessârio o cumprimento de vârios requisitos. Em primeiro lugar, que esse pai figure no desejo da mãe, porque, se o inconsciente é o efeito do discurso do Outro, enquanto o pai não figure como lugar não poderâ, certamente, aparecer no discurso do sujeito. Em segundo lugar, convém notar que o pai ocupa um lugar não Somente no discurso materno, conìo tanrbém no discurso do grupo familiar. E finalmente, cnt terceiro e último lugar, notemos 9U€, quando um pai intervém, o laz cont tleterminados atributos; atributos de sua personalidacle, quc na tcoria lacaniana são definidos como emblemas. E são precisanrentc cssr:s atributos, emblemas, peculiaridades, 9u€ definenr, por assitn dizer, o porte, a postura e a imagem do pai, pontos sobrc os quais o sujeito se apôia paÍa constituir uma identificação cuja forttta ó a clo ldeal do Ego/Superego' e que teorizarenìos adiatrte, quandtl analisarmos o complexo do pai. Tudo isso vem a sublinh aÍ a necessidade de uma teoria do valor para a psicanâlise, tanto quanto para deixar demarcada a questão do valor do pênis, que não vale por si mesmo, e, Sim, no contexto de uma relação. Concluiremos com a.idéia de que o complexo de castração é relativo à dialética que define o valor, é relativo à dialética mãe-filho que define o valor do pênis. Deste modo, a castração seria o ponto final na simbolizaçio da separação da mãe. Esta simbolizaçío estâ seqüenciada. E o estâ, porque, ao conector contínuo que é o cordão umbilical no ventre materno, sucede o conector discreto que é a relação seio-boca. Esta relação discreta serâ posteriormente substituída por uma relação distante: a relação olho-olho no estâdio do espelho. A fascinação recíproca que instaura a imago promovida serâ rompida pelo complexo de castração, que deste modo assume o papel constituinte na formação do inconsciente. De qualquer modo, não podemos omitir o fato de 9u€, na experiência clínica, o material nos oferece reiteradamente uma versão de tal complexo que Se reveste na forma de uma amputação. Mas, nos equivocaríamos ao tomar a amputação como tal, se-m entender o cãrãter simbóiico de que a mesma se estâ revestindo. Ë, que, através cle uma correta leitura dos textos, fica muito claro que, para Freud, não hâ primazia genital (e o diz explicitamente em Organização Genital Infanti[) e, sim, prim azia do falo; entendendo por primazia út fulo uma suposição, premissa ou fantasma, de universalidade do
OUTRO
I53
pi'nis. Insistir sobre esse aspecto é insistir sobre o fato de que a lrsiciurálise não é uma teoria penicentrada, mas falocentrada, e ê irrsistir também sobre o fato de que o falocentrismo é uma estrufura rlrr tlual o pênis é um elemento. A ameaça de castração concerne à t'strtrtura toda, e não ao elemento parcial, razã,o pela qual é uma rrììeaça tão problemâtica que define ao sujeito do inconsciente ('orììo taI, atê, suas ressonâncias mais íntimas.
O DESENLACE DO DRAMA EDIPICO OU A RESOLUçAO DO CONFLTTO FALO-CASTRAçAO Se, de acordo com a formulação que estamos levando a cabo, tomamos nota da incidência do simbôlico, chegaremos à conclusão tlt'que a inragem não vale por si mesma, e, sim, enquanto e portlranto remete a um símbolo. Isto nos leva a formular uma proposta: rr de revisar as imagens de incesto e morte do pai, como os elementos
. complexo da mãe
( no qual o manifesto é amor à mamãe papai paÍa e ôdio ao ambos os sexos); , 1
2.
complexo de castração (que implica numa "passagem" primeiro do complexo da mãe a uma nova fase, o ccxnplexo do pai), e 3. complexo do pai propriamente dito (onde o manifesto é amor ao pai e ôdio à mãe, paÍaambos os sexos). Analisemos essas etapas: I . Jâ assinalamos que, na primeira fase, ou complexo da mãe, se cunha o "falo". Mas, que é o falo? Basicamente, o falo é um
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OBRA DE J. LACAN
objeto mítico. A respeito da gênese desse objeto mítico, é importante assinalar que surge no curso de uma relação peculiar, a do infans com amíe, em que esta provê o abastecimento de todas as necessidades do primeiro. Mas, convém esclarecer que não se ttata sô de necessidades, definíveis no campo biolôgico, visto que, entre computaremos a necessidade e quase fundamentalmente elas que é, de fato, puramente libidinal. Neste da presença, necessidade contexto, a ausência materna tem um matiz catastrófico, como é classicamente sabido. Ora, o caso estâ em que o infans atribui todas as ausências maternas a "certa outra coisa" que, lentamente, vai adquirindo uma forma paulatinamente mais precisa e nítida. Essa "outra coisa" que privaria o infans da presença materna assumirâ, primeiro, a forma do rival narcísico, depois, a do pai. Nesta conjuntuÍd, na qual o infans se acha ante a alternativa da presença e ausência maternas, ele acode à construção de um objeto mítico: uma mãe sempre presente, sempre à sua inteira disposição' Neste sentido, essa construção que recebe o nome de falo é um objeto mítico, ou ainda ilusório e, como toda ilusão, sô tem um futuro: desvanecer-se. Mas assinalemos também que' em sua determinação simbôlica, esse objeto mítico responde a uma relação. Assim, pois, cabe concluir que o falo é um objeto mítico, expressão de uma relação. da segunda fase, a da castração, demonstramos que concerne ao desvanecimento da ilusão. A castração - reitenão alude, pois, à ameaça de corte do pênis, e, sim, é ramos nada menos que o processo de simbohïzaçío pelo qual fica deses-
2. A respeito
tabilizado esse objeto mítico. É o processo pelo qual o infans conseguiria desprender-se do desejo da mãe, simbolizando sua ausênóia mediante a recuperação de sua presença que agora teria a materialidade de uma "marca libidinal".
3. A terceira e última
fase, o complexo do pai, ê o objeto de
desenvolvimento que agora vamos abordar.
Notemos, €41 primeiro lugar, que é comum, em toda a literatura de Lacan, a alusão ao complexo do pai, com um termo: a lei. É um termo que se presta a equívocos, por esse matiz imaginârio
O ÉDIPO COMO DISCURSO DO
OUTRO
(luc o conota com um algo de inexorâvel, com uma idéia
I55
de
sanção e castigo, etc. Contudo, se nos dedicamos a uma leitura lrropriamente simbôlicàda questão, salta à vista que quem drzlei
cstá dizendo relação, regularidade. Por exemplo: o câlculo de probabilidades nos demonstrou que a saída de uma determinada t'ifra sobre uma quantidade de cifras provâveis numa série eslÍr subordinada a uma lei que denominamos de "periodicidade". Ncste sentido, o conceito de "lei" nos introduz a uma idéia rlc periodização e de mediação. Neste caso, o conceito de lei :rlude a uma relação existente entre a probabilidade e o sucesso, tt possível sobre a base do factual jã acontecido. A reimportação tleste conceito ao campo teôrico da psicanâlise nos permitirâ falar
Em outras palavras, a intervenção da lei no sujeito inconsciente quer dizer exatamente que, na desestabilização dessa relação primeira do infans com a função materna, cujo saldo é o narcisismo, surge a possibilidade de mediar atê outros destinos. Daí () tão consagrado enunciado, no discurso de Lacan, que afirma que a construção propicia ao sujeito um destino ao expulsá-lo da célula narcísica, porquanto lhe permite ir construindo esse destino. Esclareçamos gu€, nessa definição, entendemos por destlno os avatares da identificação em função do regime catexias. Ora, essa mediação que se esboça na expulsão do seio da r:élula narcísica que o infans hâ de sofrer é executada pelo pai rle acordo com a investigação de Freud e na medida que este estuda os fenômenos em determinada sociedade, de cujos elementos prirnordiais um é a família . Lacan, de quem dissemos que questiona'a lripôtese segiundo a qual o Édipo fica reduzido à família, obsela que a função da castração não é exercida pela pessoa do pai. Em realidade, o exercício da função de castração pela pessoa do pai é o que se observa em qualquer'leitura superficial que se faça da questão. Mas, qualquer leitura um pouco séria nos levaria a outras tleduções. Notemos que, no caso de uma mãe solteira ou viúva, a :rusência física do pai é subsütuível por certos ideais que têm a ver com o "desejo da mãe". E ainda naqueles casos em que o pai se :rcha fisicamente presente, assinalemos gue, não necessariamente,
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CURSO E DISCURSO
/ DA
o Éppo coMo DrscuRso Do
OBRA DE T. LACAN
o "desejo da mãe" tem a ele como referente. Em função disso, podemos afirmar que a função de castração não é exercid a pela pessoa do pai, e, sim, por um lugar (prefigurado no desejo materno), e que tal lugar pode ser coberto pelo pai da criafura, um tio, um avô, em suma, todo aquele que seja capaz de converter-se em
ideal de identificação do sujeito, por estar investido pelo desejo materno.
É curioso notar que esta função de castração também
se
cumpre em culturas nas quais a Íamilla não existe ou não ocupa o lugar de preponderância que tem na nossa. Nestes casos, o lugar em questão é ocupado pelo totem, ou pelos ancestrais (não deveríamos esquecer que o totem é a forma imaginâria que os ancestrais assumem), formulando às novas crias da tribo uma exigência de identificação com um ideal que concerne a todos e a cada um dos sujeitos. É o que nos relata as pesquisas de Marie-Cécile e Edmond Ortigues, €r seu'estudo Edipo Africano, ao mostrarem a preponderância simbôlica que tem a alfarrobeira (enquanto ârvore representante do espírito dos ancestrais) nas etnias marginais e nativas
ourRo
a) nível mítico mito da horda primitiva; b).nível antropolôgico compilação das
ts7
observações
antropolôgicas relativas à festa totêmica; c) nível sociológico observação de que a organizaçío social repousa sobre -o preceito de proibição do incesto; e d) nível clínico observação da primazia da questão do pai nas psicoses-(o magistrado schreber), nas perversões (Leonardo da vinci), nas neuroses obsessivas e fôbicas (o Homem dos Ratos e o pequeno Hans, respectivamente).
a) O nível na formulação do mito darwiniano da em Totem e Tabu, de 1913, e, depois ..., de lg21, Esse mito nos informa sobre um pai mitolôgico, gerador da primeira organizaçío coletiva de acordo com um princípio de exclusão de terceiros da propriedade e uso da mulher. Recordemos que jâ demonstramos que esse mito é um recurso teôrico didâtico: se o tomássemos no
do Senegal.
Em conclusão, não podemos supor que esse lzgcr simbôlico se refira ao pai fisiolôgico, desde que a função de castração é pertinente a um lugar, gue, paÍa diferenciâ-lo da pessoa do pai, Lacan denomina de Nome-do-pai, que, então, é o que propicia a mediação por meio da instauração de uma lei. Esta lei implica um pacto: "se cumpres determinados requisitos, amanhã poderâs usufruir de tudo aquilo que hoje desejas". De qualquer maneira, o fato de que a função de castração coÍTesponda a um lugar nos obriga a nío desconhecer que o mesmo não é um lugar abstrato, jâ que alguém o exerce materialmente. Nas tribos primitivas, esse exercício é efefuado pelo totem, o qual, por sua vez, ê, sustentado pelo discurso dos adultos. Na família afual, tal exercício é conferido ao referente constituído pelo desejo materno. Conseqüentemente faz-se necessârio abordar a questão, indagando quais são as condições e exigências que o lugar em apreço formula ao agente da castração. Para isso', poderíamos sistematrzar a obra freudiana a propôsito do pai, e logo que iniciâssemos tal tarefa, notaríamos que a mesma estâ desenvolvida em quatro níveis deferenciais:
b)Onível seguindo 1917, seguindo 1912,
,de
,
de
a de
rituais relativos todos a uma figura totêmica. Esses rituais teriam um nível de observacionalidade concreta, e uma inscrição igualmente concreta nas prâticas tribais, e não se teriam reduzido às culturas em que emergiram, jâL que a festa totêmica sobrevive em nossa cultura sob a forma do carnaval. Jâ O Tabu da Virgindade mantém sua eficâcia mediante o ritual da cerimônia matrimonial de nossas sociedades.
c) Ao nível sociolôgico, podemos observar como qualquer teoria das sociedades prova que toda organização social se apôia sobre um ordenamento que leva fundamental e primordialmente em conta a "proibição do incesto"
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CURSO E DISCURSO
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O ÉDIPO COMO DISCURSO DO
DA OBRA DE J. LACAN
d) Finalmente, o último nível em que Freud aborda a leitura da questão do pai é no campo da prâtica clínica.
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'l'anrbém a observação clínica nos manifesta a centralidade ,/r',r,\(' Iugar através dos produtos da neurose, da perversão e da I
Notanros, conseqüentemente, uma certa congruência entre a leitura mitológica e antropolôgica com a leitura clínica. No centro do relato nritológico, relato que alude a um ritual antropologicamente observâvel, acha-se o cerimonial da festa totêmica a respeito do qual Freud observa que consiste num a repetição de sentido simbôlico da execução (sacrifical) e ingestão do corpo de um animal totêmico, isto é, de um animal de alta importância simbólica no discurso do clã. Uma leitura psicanalítica do cerimonial assinala Freud levaria-nos à inexorâvel conclusão de que-essa festa totêmica é uma ilusão simbolizante da "morte do pai" e posterior transformação dos filhos à imagem e semelhança do mesmo pela via da alimentação. (Recordemos que, no complexo da mãe, se cunha uma certa equação segundo a qual o infans, para ser sujeito, hâ de ser alimentado por um Outro.) A explicação, assim obtida, do ritual, se associa - segundo Freud ao mito da horda primitiva, mito que, originalmente, não está -assinado por Freud e, sim, por Darwin, a quem aquele adere. Esse ritual perdura nas sociedades modernas e contemporâneas. A comida totêmica sacrifical sobrevive no cristianismo sob a forma da comunhão, no islamismo sob a forma da comida ritual depois da execução sacrifical de um cordeiro, ao término do mês de jejum do Ramadam, e no judaísmo sob a forma de uma ceia (também cerimonial) depois do jejum do Kipur. Ainda uma observação superficial dos costumes leigos indicam a importância da comida, como prâtica central de toda celebração. É evidente que a sobrevivência do ritual não advém do ritual em si, e, sim, de certo valor que nele se acha realizado, e é de se pensar que esse valor é o mesmo valor inconsciente que Freud detecta e que, por fim, resulta associado com o complexo da "morte do pai e sua substituição simbólica pelo sujeito". Sem dúvida, uma diferença é observâvel. Se, no mito ou no cerimonial, seja em sua versão antropolôgica ou na forma atual, se conjuga um complexo que poderíamos definir de "substituição", na observação dos usos e costumes de toda organizaçã,o social, e na medida em que ela repousaria sobre a interdição do incesto, vemos conjugar-se um complexo de natvreza bastante diferente: o complexo de "proibição".
OUTRO
ì\l('()se:
t ,r
,n
clitemos o caso do Homem dos Ratos, onde se manifesta, como tt) capital da problemâtica do sujeito, o relativo ao complexo do
r,.ri, que deste modo se nos faz presente, através da sintomatologia ,
'lrsc:ssiya.
citemos o pequeno Hans (sempre no canìpo cla evidência um quadro que manifesta claranrente a rt'litção entre o conrplexo do pai e csse unirrritl quc, rìrrs tribos lrrirlritivas, recebe forma totêmica. O elemento totênrico está pler:rnrente realizado no cavalo da fobia de Hans, e esta realização , Iínica), dado que a fobia é
concerne ao complexo paterno. Citemos I-eonardo da Vinci, um caso de homossexualidade no (tual Fre correlação existente entre a imago rrraterna no enigmâtico sorriso da Gioconda) t' u imag s esse delírio que aparece em Leo:;rbe mos
rr:rrdo quando,
à morte de seu mecenas (evidente substituto paIt'rno), se dirige por carta ao rei do Egito, oferecendo seus serviços t t)tÌto "engenheiro militar". citemos o caso do magistrado Daniel p. Schreber, uma estrutru'ação paranóica clínica , t3 qual o delírio concerne a Deus, .rrlotando as formas combinadas da fragmentação corporal e a t'xpr€SSão homossexual, e onde a figura de Deus reconhece a Flech\rg como antecedente, sendo este, por sua vez, um efeito do t'ornplexo paterno. Formuladas essas questões, cabe perguntar se os quatrg níveis (:tntropológico, mítico, sociológico e clínico) têm alguma articulrrção entre si. Assim que observemos esse aspecto, notaremos que , rs dois primeiros níveis antropolôgico e mítico - manifestam ;rlgo que tem a ver com a morte do pai. Em compensação, os outros ,ltris sociolôgico e clínico concernem proibição a uma eà t'orrelâtiva incidência de uma lei. 1.
2.
Antro pologia Mito
3. Sociologia 4.
clínica
Festa
=--ì>
totêmica )
_
Horda primitiva I Morte do Pai Proibição do incesto ì, Interdição do objeto matern o Ìu'
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CURSO E DISCURSO
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O ÊDIPO COMO DISCURSO DO OUTRO
DA OBRA DE J. LACAN
"Morte do pai" e "Iei"... Existe alguma correlação entre
estes
161
Morte do pai
dois níveis? Antropologia/ M ito
Morte do pai
Sociologia/Clínica
L,ei
^ Limite das gerações
Narcisismo
\.
Princípio deexogamia
,,
Paradoxo dos paradoxosl Depois de matar o pai, na versão do mito, obseryamos realizado um astuto cumprimento do preceito paterno, segundo o qual ficava limitado e restrito a uma série de normas o gozo da rnulher. É curioso observar que o pai morto termina funcionando como "lei" também na observação freudiana. É que poderíamos narrâ-lo como numa seqüência segundo a qual o infans, no topo de seu
rtarcisismo, promovesse a. fantasia da morte do pai. Mas teríamos que esclarecer que seu desejo não concerne à morte do outro, e sim, mais precisamente, à morte do outro no desejo da mãe. A impossibilidade material de tal desejo o leva à inevitabilidade de ter que aceitar a existência desse terceiro, no desejo materno. Como conclusão, notemos que a estrufura que nos permilirá explicar a correlação entre os dois níveis (morte e lei) é o narcisismo e sua desestabtlnaçío no complexo de castração. Para poder definir, por fim, o alcance dessa quebra narcísica, lcmbremos que definimos o narcisismo como uma estrutura diretamente vinculada (enquanto efeito) à incidência do falo. Este falo nilo é um ôrgão e, sim, uma relação de intercâmbio do sujeito com o Outro; a castração, ao atentar contra essa estrutura, a desestahiliza através de seus pontos mais fracos: atentando contra o órgão, cujo valor deriva do fantasma promovido na relação com a mãe, da quul sai como um efeito ou saldo o narcisismo. O complexo de custração alteraria o ôrgão, o fantasma, a relação mãe-filho e o trnrcisismo concomitante. Em outras palavras, a castração deses-
r62
CURSO E DISCURSO
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DA OBRA DE J. LACAN
tabiliza o narcisismo (entendendo poÍ narcisismo essa estrufura na qual coincide a idenüficação com a catexia), exigindo a orientação da identificação para um pólo e a orientação da catexiapara outro. É o avatar narcisístico que nos permite ter em conta a correlação entre as duas estruturas: morte do pai e lei. Detenhamo-nos
O ÉDIPO COMO DISCURSO DO
lil: lì
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cia vemos
OUTRO
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ra-..r4^ r- pr resultado,
t: um objeto
163
ma
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nessa correlação. Demonstramos que
o narcisismo dâ alicerce ao pai. tempo, notamos que o mesmo Mas, ao do morte fantasma da que, na quaüpsíquica pai realidade é uma morte do da fantasma qual o pai ê na realidade, à outra superpõe tal, não se dade de quanto em sua qualidade sujeito diferenciado, de sua tanto em qualidad e de lugar do desejo da mãe bastante independente do que em nossa refleteríamos considerar, seja, infantil. Ou fantasma xão, o fato de que o pai real não coincide com o pai morto; diferença que propomos representar da seguinte forma: PR
[r"i n
* pai fl, -------------.ur ki \\
Agressividade \
\
\ Narcisismo
+ PI
Essa diferença entre oBai real e pai morto é primordial para os fins da constituição do Superego e do Ideal do Ego. Porque a promoção de um desejo de morte orientado para o pai e o descobrimento da sobrevivência deste pai (tanto como sujeito no real, quanto como objeto no desejo da mãe) o levam a inteirar-se da
existência de uma estrutura independente, alheia a seu desejo e que se materialnaem algo concreto a respeito do qual nosso sujeito não pode decidir; este algo é esse lugar de terceiro que aparece na estrutura e intervém a propósito da relação mãe-filho. Intervenção
que grafamos como um "corte" efetuado pela função paterna (P) na díade narcisísüca.
Neste sentido, faz-se presente ao infans a mediação de um terceiro, a presença inexorâvel de algo em relação ao qual ele deve situar-se. Mas, insistamos em que isto é unicamente possível no caso da perdurabilidade do pai com respeito à agressividade infan'
o sintoma nos fala permanentemente do fracasso desta 1r'ção' No fantasma da infância d" ú;;;;
dis_
.sta estrutura, posto que reco.a"-or-i;';;;"dos Ratos, observa_se o pequen o Lorenz ê ('ornum sentirque "se desejo.al.so,--àu óJ -o.reÍâ,,.Esta idéia 't';sessiva manifesta a difiãig{Ë g;lïit.;, no sentido prri não sobreviveria de que o à ugr"rri"iaua"-iniiiìii _", isto sucede pordós Ratos-t;i;ti""ã.,,te, muito rràg' no "r:t:;":omem Então, nío ê o pai real que opera eficazmente nessa estrutura. r :r.an fara do Nome-do-p;i, ï irtn ;";;;i; que não é o pai rear o t t't'cptor da agressividade infantil .-o .*."úr da castração. Ë isto r)r'rÌcrsamente o que acontece nas neuroses. o Home;-ã;;'Ratos, ,.r eX€rÌplo, tem uma tendênciu --ra esse tipo upo de tsubsti_ lrrição, visto que deslo"u ""iã;;l;ì" u-;as9 "rr. pai do rrrkrlescência, e depois o, de juvenfu no rnomento de consultar da "o "Àìgo frzuO) e ainda n r'r'r'uito delirante u p.opãrilo á"r manobras militares, vemo, rrrr deslocamento do pai oo"jl sobre a figura do-capitão que narta a l'r'lura dos ratos. Também isso acontece precisamente na psicose r'r I)r. Daniel p_. schreber, o.ra" ,e ,r-À-a,nítida substituição: l';ri -Flechsig-Deus. ou uínã" "ê em Leonurão o" vinci, ao restituir ,r nnírgo paterna (a do mestre pietro) il-fir";; de César Bórgia. O
:j::il
164
CURSO E DISCURSO
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O ÉDIPO COMO DISCURSO DO OU1'RO
DA OBRA DE J. LACAN
o levarâ à corte de outro mecenas (franco o substituto paterno), o rei da França, Francisco I. Ou .sei1' Nome-
fracasso dessa saída
-do-pai é um lugar que pernìanece atê, a morte do indivíduo. E um f.rguì simbôlico" quË perdura por sua eficâcia simbôlica. O nó fundamental em tuOn isstr radica na instabilidade do fantasma da morte do pai, e no porquê da inevitabilidade do complexo de castração. Diganlgs, neste caso, que a inevitabilidade do fantasma instauda moite do pai depende cliretamente da inevitabilidade da do que, topo no ração do naicisismo. Digamos que é inevitâvel que presenças narcisisnìo, o sujeito sinta que existem determinadas presença capaz lhe disputant a presença da mãe, que lhe tiram essa gozo total, absoluto' como o exige a ã;i;rgar-lhe um imaginârio preúd ê insaciâvel. (Esta insaciabilibido infantil que - pátu tidade é a que vemos operar nos inesgotâveis pedidos infantis de "uma outra volta" no cárrinho, uma bala, uma mamadeira, a lua' todos os pedidos que uma criança pode formular infinitamente' num breve prazo àe cinco minutos e como se nenhum objeto a satisfizesr" pl.numente.) A inevitabilidade do complexo de castraçáo ê, pó. ,"u vez, ditetamente dependente dessa inevitâvel da disjunção, ã.rr. inevitâvel hiato que surge entre a insaciabilidade Poderíamos objeto. tibido infantil e a limitada satisfação de todo também d;y1er que o complexo de castração é inevitâvel na medida q". c inevitâvól o fato de que a criança perceba as ausências pulmaternas; ausências que a deixam à mercê de suas prôprias para simser Sões, formulando-se, ãssim, uma medida necessâria bolizada. A castruç/1o seria, então, a simboltzaçáo necessitada de todas essas Perdas.
essa disjunção colocada trata de teorizar fôrmula entre o pai real e o pai morto. Assim, sua aconteceria neurose gerais, na a questão, provandô que, em linhas pai morto, o com o sèguinte: na medida que o pai real se confunde jâ infantil, narcisismo fica anulada a eficáci a-da lei a respeito do
A reflexão de Lacan tem por centro
que não o castra (no sentido de que não o separa do desejo da mãe)'
a deixando-o solto ao fantasma de um retorno permanente contra para o orientada prôpria pessoa, da agressividade originalmente pai. Reiteramos, então, QU€ a eficâcia da lei estâ em dependência direta da descoberta infantil de que o pai (como sujeito e como que lugar) é independente de seu desejo. Essa independência é o
rì
[Pai R
: Pai i]
--l
Iri +
*
A
Agressìvidade I
I I
Narcisismo
pretendemos esquematizar, no gráfico, ao situar
a discordância:
parreal/pai morto. Aqui se faz necessârio aguçar nossa observação e perguntar: que é que faz com que um pai real não coincida com o pai morto? O primeiro elemento que encontraríamos numa investigação exaustiva dos históricos freudianos é o desejo da mãe. Havíamos postulado que, se no limite da célula mãe-filho, a míe não tem outros interesses fora a criança, não pode oferecer-lhe um destinc de identificação, não pode oferecer-lhe uma saída. Neste caso, o infans fícaria submetido a uma grave confusão: o não poder simbolizar as separações que, efetivamenten ocorrem na díade. Assim colocada a questão, o desejo da mãe r',ío ê o primeiro vetor que abre a célula narcísica em direçâc a outra instância, êfl direção àquilo que estamos ,ienotr-rinandc lugar. eruja frirma material é o Nome-do-pai, e cuja função concreta é a de permitir. no sujeito, os instrunrentos de mediação para conceder a unì objeto sexual exogâmico. Um segunrio fundam.r:nto que faz à questão do pai é detectado por Lacan Ro que ele denomin a o mil.o familiar, mas que preferirnos dentxrin ar ruído familiar. Em linhas gerais, poderíamos rlefini-lo como o conjunto de discursos familiares entre os quais aparece sublinhada a importância do lugar que o pai ocupa. Observe-se ílue, na relação mãe-filho, o pai tende a aparece,r (airrda que esteja J-isicamente ausente) sob a forma de ameaças ou permissões: "Você vai ver, quando o papai chegar, .j surra que você vai levar". ou "Pede iicença para o papai"... A incidência ou pouca inci,.jância, a presença ou a ausência, as repetições ou omissões que o significante paí tenha no discurso materncr intervêm, perfilando ou apagando esse lugar do pai, eu€, jâ subiinhamos, se acha apoiado pelo clesejo materno. Ao mesmo ternpo, csse ruído familiar não ó exclusivamente materno na medida em rlrrc {ocla a família intervém na sua enunciação. A eficâcia desta
CURSO E DISCURSO
r66
/
DA OBRA DE J. LACAN
o Éntpo coMo DIScURSo Do
inscrição familiar (inscrição que' de fato, é social) se expressa numa eficâcia de inscrição inconsciente, o que se manifesta na fantasia da Novela Familiar. Hâ finalmente um terceiro elemento 9ü€, de acordo com a Par, enam terminologia I que têm Pr tendendo por omPlexo um valor. Des
Âssirrr, a dupla vertente gerada a rr rcr
li:t t l:t
ourRo
i67
partir da castração é agora
:
Ego ideal Superego
-.._.-Ideal do Ego
Ego atual
 respeito dessa dupla estrutura, que tantos efeitos produz ao rrivt'l rlas identificações secundârias, recordemos gu€, embora f 'r't'rrrl nunca as distinguiu como uma dualidade (JâL que seus enforlucS tendem a analogar o Ideal ao Superego), não obstante é dado r lrs I ingui-las à medida que podemos discriminar duas funções plenarrr.rrlc diferenciais. Em primeiro lugar, destacamos a função da res-
ou proibição, função que estaría realizada pelo Superego mediante .r irrrposição de certas restrições, pelo perigo narcísico que acarIr rç':ìo
( ( )n
rcl:tria.
estes três níveis:
1) pelo desejo da mãe; 2) pelo mito ou ruído familiar que fala de uma incidência do pai;
3) pelos emblemas (traços ou propriedades exatas) que próprios do sujeito que realiz,a atunção suportada pelo desejo materno e o discurso familiar. são
Poderíamos, então, assinalar que o desejo da mãe índica a
o o s
te aq t€,
realizam a cobertura do lugar em questão
Esta oper sujeito, eistô a desestab iliza a
l()rme esta instância procura a preservação narcísica
'
eodisodetal do Pai
relação ao e castração
relação do
materialnadana constituição do superego e Ideal do Ego.
Ora, se o Superego proíbe a realização sexual (pelo perigo r'.ncotrìitante) um sujeito deixa, por isso, de ter relações sexuais? Ã rrrt'rlida que uma observação superficial nos daria como evidente r('sl)osta "não", cabe pensar que a esta função de restrição ou lrroibição se soma outra função, que teria um sentido diamelr':rlrnente oposto: o da permissão ou da propiciação. Tarefa de cabe dizê-lo ao Ideal do Ego. l,ropiciação que - competiria Retornando,-agora, ao complexo edípico, se no complexo da rruìc se instaura o falo (a saber: um objeto mítico cujo efeito no rr('()ÍÌsciente é a promoção do narcisismo), no complexo do pai se rrrslaura o Ideal do Ego, cuja incidência é a de uma estrutura rrlcrrtificatôria e cujo sentido é o da procura secundarizada do tt.tr('1,\$mO.
CAPITULO V
O OUTRO: DEFTN|çÃO E CAMPO A TDENTTFTCAçAO Antes de abordar o tema "O Outro: Definição e CamPo", gostaria de resumir brevemente a direção e organização de nossas formulações.
O capítulo I é uma introdução na qual
esboçamos aquele grâfico segundo o qual fica bastante manifesta a nossa intenção teôrica de articular os conceitos capitais da obra de Freud: pulsão, identificação, catexia, fantasma e objeto. O capítulo II concerne a "O Simbôlico, o Imaginârio, o Real". Neste, efetuamos uma desmontagem do fantasma, que resulta ser como um conector da identificação com o objeto e na sua qualidade de conector expressa a catexia. Vimos que uma imagem não é inteligível senão em relação a um símbolo. Para reiterar um clâssico aforismo que usamos com freqüência nesses capítulos, poderíamos dlzer que o fato de que um charuto seja às vezes um charuto, e às
um pênis, depende de outras coisas além do charuto em si mesmo. Neste sentido, justifica-se plenamente o fato de recordarmos as advertências de Freud para que cuidemos de certos linearismos na interpretação. Com tudo isso, se a interpre-
vezes
tação de uma imagem é possível em relação ao símbolo que nela estâ realizado, temos que pensar na noção de símbolo. E para à seguindo Lacan esgotar essa noção de símbolo recorremos precisamente Epistelingiiística saussuriana. à lingüística, mais mologicamente falando, esse recurso se denomina importação e
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CURSO E DISCURSO
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DA OBRA DE J. LACAN
consiste em recorrer a um campo científico isomôrfico para desenvolver, com maior precisão, aquela bateria de conceitos que é de difícil formulaçã,o e anâIise no campo específico da psicanâlise. Em nosso caso, demos uma especial importância ao conceito de srstema. O conceito de sistema, em lingüística, é o conceito segundo o qual nenhum significante existe senão em relaç ão a outros significantes. Ao mesmo tempo, e de acordo com essa anâlise, o sentido é um efeito de oposição fiogo opositivo) dos significantes. Feita esta importação, nos deparamos com eu€, para a psicanâlise, nenhuma imagem é inteligível senão em relação a uma rede de imagens, que, ao mesmo tempo que relativize a imagem inicialmente libertada no curso da análise, mostre todas as suas possibilidades de ação. Neste contexto, uh charuto pode ser efetivamente um cigarro (posto que pode apontar para uma pulsão oral); mas também pode, em contrapartida, integrar-se a uma cadeia onde os demais significantes remetem a uma sexualidade posta, poÍ exemplo, ro registro genital. ' Simbólico, imaginârio, real... Onde situar o real, aqui? O real ê precisamente o fato de que a imagem realiza o símbolo; símbolo ou conflito que, de outro modo, não seria expressâvel senão pela mediação da imagem que permite sua expressão. Claro estâ que estamos tratando de uma realidade particular, a realidade do inconsciente, ou a realidade deste campo virtual que define o inconsciente. No estudo que intitulamos "o Edipo como Discurso do outro", nos interessou (apoiando-nos na distinção imaginârio/ /simbôlico) assinalar como determinadas leituras do complexo de Edipo estão centradas no imaginârio, omitindo, portanto, o carâter propriamente simbôlico posto em jogo. Neste sentido, nos importou particularmente assinalar que os conceitos de "incesto e morte do pai" constituem uma aproxim açío a um modelo teôrico, interessando-nos o fato de que esse modelo haja sido justamente tomado ao pé da letra. Nenhuma criança pode aspirar, por mais que este seja seu desejo, à realização do incesto, desde que não tem elementos materiais para pensar a questão, posto que não maneja a diferença sexual anatômica. O desejo que vincula o infans à mãe é um desejo de outra ordem que propriamente a genital. Concluiríamos, então, que a criança não tem uma sexualidade à maneira do adulto, e, sim, que a sexualidade do adulto reitera o modo
I
o ouTRo: pertNtçÃo
E
cAMPo
irrÍnntil. A subversão freudiana não radica no descobrimento rlir scxualidade infantil; isso se sabia desde 1871, pelo menos, segundo ns lcses do pediatra Lindner, em cujas observações Freud se apôia. Â subversão de Freud radica precisamente em mostrar que a sexualirlude adulta não é outra coisa que um intento de rcalização da sexualidade infantil. Deveria-se perguntar, neste ponto, quais fo-
nlrìl os bemôis na história da psicanâlise que se mesclaram e lcvaram à pretensão de se pensar a sexualidade infantil de acordo com os cânones da genitalidade adulta.
Dentro desse tema, observamos que o Édipo é definível como
unl processo de transformação erôgena, como um processo de l)Írssagem da natureza à cultura. Para isso, se produzftia uma operação cujo efeito é um objeto mítico (o falo), que posteriormente scrâ desmentido. Essa alternativa falo-castração é a que historiciza o sujeito outorgando-lhe uma identidade e destino sexuais. O tema que agora nos interessa tratar é: "O Outro: Definição c Campo" . Para situar esse tema em nosso grâfico original vamos
centrar-nos no estudo das relações entre a pulsão e a bateria de identificações.
Fantasma
Identificação Campo do
Outro
Que é o Outro? Vale dizer, de início, gue o problema do Outro tem a ver com o outro e essa articulação tem fundamental e primordialmente a ver com o problema da identificação. O problema do outro, a questão da alteridade, tem preocupado desde sempre e muito centralmente a psicanâlise. Citemos, l)or exemplo, os trabalhos de R. Spitz; ern sua teoria, os organi-
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OBRA DE J. LACAN
zadores não são outra coisa que os organizadores da diferenciação Eu/não-Eu com base em: 1) reconhecimento do outro no sorriso-
-gestalt, 2) diferenciação do outro familiar que é a mãe e o outro não familiar que é o estrangeiro ante cuja presença se desencadeia a angústia, e 3) a simbolizaçío do não.
Igualmente, citemos, por exemplo, os trabalhos de J. Bleger esboçados em Simbiose e Ambigüidade. Neles, o que preocupa centralmente é a questão da diferenciação Eu/não-Eu, sob a forma da discriminação do núcleo aglutinado inicial (um núcleo glishocârico) cujo fracasso conduziria aos estados confusionais que constituem o nô último de toda a simbiose e ambigüidade. Ademais, mencionemos os trabalhos de M. Klein, onde a teorização da posição depressiva ê, em última instância, uma elaboração da diferenciação que se instala entre o bebê e a mãe, graças à integração do seio bom e mau, mãe boa e mâ; integração gu€ -r assinalemos - sô é possível se estiver rcahzada uma diferenciação entre o Eu e o outro. Citemos, finalmente, os trabalhos de Winicott acerca do objeto transicional, objeto que se acharia na metade do caminho justamente em seu entre o Eu e o objeto propriamente dito e que carâter de transicional - revelaria essa instância de diferenciação Eu-outro, necessâria à relação Eu-objeto. A questão da alteridade tem preocupado desde sempre e muito centralmente a psicanâlise. Não somente a teoria nos revela essa preocupação. Também a clínica, a sintomatologia, nos revelam as incidências e peculiaridades ocorrentes ao nível dessa diferenciação, como resultado de sua realizaçlo ou fracasso. Tomemos a neurose obsessiva como quadro exemplar no grupo das neuroses, em que se manifestaria esse fracasso: na neurose obsessiva, o sintoma aparece como "corpo estranho" instalando-se no sujeito e assumindo a forma de mandato e ordem gu€, proveniente de um Outro, colocarâ o neurôtico ante uma alternativa de obedecer ou desacatar o mandato. A questão do outro também se íaz presente, de maneira dramâtica, nos estados confusionais; estados gü€, é sabido, têm a ver com um peculiar manejo da angústia, a qual é efeito da castração realizada pela presença de um terceiro outro no triângulo edípico. Definitivamente, a questão do outro remete ao problema da identificaeão. Para demonstrâ-lo, recordemos todo o trajeto teôrico
o ouTRo: oErnlçÃo
E
cAMPo
t7.3
rcrsli2ads. No rastreio que fizemos ao longo deste seminârio, mosIrtrnos gu€, se partíssemos de uma formação qualquer do inconst'icnte e seguíssemos suas linhas associativas, chegaríamos a uma irrstância última, a um nô exo de
fìrlipo. É certo que vimos discrirninar o Ëdipo fantasia do discrirninação, centramos nosso objeto de estudo no Édipo como operrrção; operação que reconhece, em última instância, uma oposição, a qual se cifra na contradição formulada entre o falo (objeto rnítico na primeira relação edípica) e a castração (operação de rlesmentir o objeto mítico em questão). Essa oposição reconhece, ao nresmo tempo, três pilares fundamentais: a função da mãe, a função do pai e o narcisismo do infans. A função da mãe, através tla instauração do seu desejo; a função do pai, através de emblemas como referentes a esse desejo; e o narcisismo do sujeito, como efeito tla relação com ambas funções combinadamente à - conduzem produção desse conflito que acabamos de descrever. Antes de prosseguirmos com nossa demonstração, notemos que falar do narcisismo é falar de um peculiar efeito de identificação do complexo edípico. Se, portanto, definimos o falo como uma organização narcisística, estamos definindo-o como uma organtzação da identificação. Ao mesmo tempo, ao assinalar que o narcisismo, através de seu sucumbimento pela castração, tem como recurso rcalizar o enfeixamento nos emblemas do pai, estamos nada menos que dizendo que o trajeto da identificação, desde o seu grau narcísico até o seu grau edípico, é secundârio. Ë o necessârio gradiente que vai do narcisismo à identificação secundâria. Isto explicaria nossa fôrmula de partida segundo a qual o problema do outro estâ estritamente vinculado com o problenta da identificação. Da formulação anterior se depreende que o Éaipo culmina com a instalação do sujeito numa bateria de identificações. poderíamos deixar a questão formulada neste nível... mas também poderíamos desenvolvê-la mais e recordar outra forma: o Édipo traz como produto uma bateria de significantes. Como pensar, pois, essa congruência colocada entre a bateria de significantes e a bateria de identificações? São as crenças de que um sujeito manipula efeitos do significante, ou são efeitos da mecânica da identificação? Se, pelo lado da identificação, desembocamos no problema da ilusão, pelo lado do significante desembocamos no pro-
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OBRA DE I. LACAN
opeblema da ilusão do sentido. É que vimos que o significante, que relação Esta l."rrdo, se manifesta em efeitos; efeitos de sentido' ao menos nos questão, a esgota não se evidência, pusemos em da problemâtica permite esgotar um certa concomitância entrè a identificação e a teoria do significante' exposição de Se a esta altura nos detivermos e recorrermos à segpinte sína hoje com vistas retrospectivas, poderíamos.esboçar e esta tem tese: o problema do Outro tem ã ver com a identificação f""-"r"fiïÉaipo. A conclusão evidente nesse silogismo é, portanto, a de que o Édipo tem a ver com o Outro' i-ìoìtância da alteridade em psicanâlise, vejamos Vista "rru como ela se apresenta em nosso enfoque:
1)Aprimelravezqueapareceuesseproblemafoiao
do abordar a dialéticu Co imãginârio e sua dependência modelo: simbólico. Nesse momento salientamos o seguinte existindo um indivíduo denomin ado a em relação com s observar a seoutro indivíduo Procurar o atrigPinte tendência e a' de modo a 6uto (linha), qu transformar-se à imagem e semelhança do outro em cuja efeito relação se achava insúto, produzindo à maneira de diferença' uma suPressão da I
a.
o ourRo: nprlNtçÃo
E
cAMPo
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obscrvado essa peculiaridade, teria como brincadeira pretlileta o de tomar um lâpis e, Iazendo como se fosse um
cigarro, simularia fumar. O efeito obtido é o sentir-se igual ao pai. Hâ, pois, no registro imaginârio um efeito de arralogia que, no nível simbólico, êlegivel como o efeito de upropriação de um emblema e, por fim, uma tendência à supressão de uma díferença.
2) A segunda oportunidade em que apareceu a questão do Outro foi no curso do desenvolvimento do complexo de Édipo. Aí, ao fazermos notar a inevitâvel e necessâria dependência que sofre o infans de seus maiores e ao observarmos como essa dependência não se limita ao campo da necessidade, mas, fundamentalmente concerne ao campo do desenvolvimento libidinal, situamos a constituição do inconsciente em direta relação com a dialética presença-ausência.
3) Em terceiro e último lugar, o outro
aparece ao abordar a tese do falo. Dissemos que o falo não é um ôrgão - e que, neste sentido, não pode ser confundido com o pênis mas uma organização cuja estrutura esgotamos num corpus teôrico de quatro teses, a primeira das quais afirma que "o inconsciente se forja na relação com o Outro".
ì
I
a Na referida oportunidade enfatizamos o carâter ilusôrio fato ào efeito obtiáo, efeito que poderia expressar-se no atributo havendo incorporado um ã; õ; (lintia) de"-rr.rrê'(o), seus maiores Pai e m (c)' De eles a igual tudo -t. .que um de trata-se Pai exemplo:
Tudo isso nos formula um enigma que conviria enunciar muito claramente: o Outro ê um sujeito (uma pessoa concreta, ufr agente), ou é um lugar? Ao insistir sobre o fato de que o inconsciente se forja na relação com um Outro, insistimos simultaneamente sobre o fato de que esse Outro não devia necessariamente ser a míe biolôgica do infans, jâ que essa tarefa poderia ser realizada com igual eficâcia por uma mãe substifutiva. Portanto, esse Outro é a função da mãe. Ao mesmo tempo, no estudo das provas de Spitz, chegamos à evidência de que esse Outro deve fundamentalmente estar presente como uma referência com um certo grau de constância, ou como uma referência estâvel, jâ que no atendimento e provisão de cuidados marcadamente episódicos estâ uma das causas do hospi-
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OBRA DE
I. LACAN
talismo. Em conclusão, esse Outro tem duas condições: 1) trata-se de um lugar e, neste sentido, é anônimo, importando pouco que pessoa o ocupa; 2) o que, sim, é de suma importância, não obstante, na cobertura desse lugar, é o cumprimento de uma função, a do referente estâvel. Essa referência estâvel ê precisamente o que denominamos função da mãe, na qual importa pouco que pessoa realiza a função em questão, sendo essencial que a mesma seja executada. Ao distinguir a função da mãe de pessoa da mãe, introduzimos precisamente uma diferença: a função ê um lugar; tratar-se-ia de um papel e, portanto, de um lugar, ainda que um lugar a ser preenchido ou ocupado por alguém concreto. E gu€, se bem estejamos precisando essa noção de lugar, convém insistir no fato de que não se trata senão de lugares ocupados por suieitos concretos, os quais manifestariam sua eficâcia no exercício da função, o que se torna evidente através do emblema capfurado no sintoma. Trata-se de emblemas que dão alicerces a determinadas outras - não - formações imaginârias. Para entender a eficâcia desse Outro que estamos definindo como plenamente simbôlico e ao mesmo tempo como um lugar, poderíamos recorrer ao seminârio .4 Carta Roubada e particularmente à anâlise que nele Í.azLacan acerca da diferença existente entre "a pessoa do rei" e "o lugar do rei".1 O relato de Edgar Allan Poe fala de uma rainha que, havendo recebido uma carta comprometedora, se vê ao mesmo tempo obrigada a receber a visita do rei, que chega acompanhado por seu primeiro-ministro à câmara real. Ante o compromisso que significaria achar-se em posse de tão comprometedora carta e ante a surpresa da visita, a rainha não encontra melhor modo de ocultâ-la que deixâ-la displicentemente à vista ainda que virada. O ministro, havendo visto - olho de lince - o gesto da rainha, concebe e executa no ato o propôsito de apropriar-se daquela carta, deixando um fac-símile, vendo nisto a possibilidade de obter (daí em diante) um elemento de pressão sobre a rainha. O que segue é uma histôria de intrigas. Buscando reapropriar-se da catta, a rainha contrata os serviços de um delegado de polícia, que se limita a buscar, ro campo do real-ôtico, ou melhor ainda, no campo do real-positivo.
1. Lacan, Jacques
-
Le Seminaire sur Ia Lettre Volée. ln:. Ecrits, ed. cit., p. 12.
o oUTRO: DEFTNIçÃo E CAMPO
t77
l;rente a seu fracasso, o delegado recorre aos serviços de Dupin, r)ersonagem enigmâtico, amante de livros e sem profissão definida, r qual, ao ouvir a histôria, constrôi aeauiivamente a hipótese sobre rnde encontrar atar carta, seguro de achâ-ra em poder do ministro c oculta do mesmo modo pelo qual a ocultoú a rainha, ou seja, oculta iì vista. Efetivamente, Dìni1 acha u i^iti, posto que realmente o ministro a havia ocultado ónde b.rsc Lacan cifra sua anârise dessa-histôrìa "ingoe--iria no â-Ia:à luz do dia. estudo dos lugares que o relato vai perfilando; nessa anâlise, algo fica fundamentalmente assinalado: a questão da imUecitiaua, ao ."i. po, qrr. sustentar que o rei é um imbecil., quando á t"uiao que ele concentra sobre si um poder absorutol Ë q*;;;i, que imbecil, esse seu poder ê talvez temíver à medida q"ï poà"ïlcidir a vida ou a morte de qualquer de seus súditos; preèisament. ó q.r. estâ colocado em .iogo nesse relato é uma ameaçade morte sobre a cabeça da rainha no caso de que tão comprometedora carta .ìrgu. às m'ãos ão rei, e uma ameaça de morte sobre a cabeça do minïstd üt" i.re este pode chantage ar. a rainha, mas não contar ao rei, já que, para salvar seu prestígio, o ,.í o mataria testemunho da infidelidade de que foi objeto. De pass digamos que o ministro está comprometendo-se ao comprometei a rainïa e que talvez seja por isso que utilizou o mesmo mecanismo de ocultação. Esse relato_ nos apresenta uma constante defasagem entre o poder oriundo do rei e o escárnio de q.r.-pJ. ser ob.ieto; escárnio que constantemente desmente tar poãe.iì..-. onímoão .iã.,unto rei, é imbecil enquanto homem. o ìuga. ao rei e o do sujeito que ocupa tal lugar não são a mesma coisa. Basta considerar que, morre, não morre_ o poder e, sim, o sujeito que o que é substituíver na função. a io"çaó-ãá ,ei é, do exercício do poder, mas qualquer que a ocupe imbecil em crer que é o poder. à t""ôa" ã, neste caso' um lugar; um lugar preciso ìo .tp"ãià a. todas'as relaçoes em jogo, mas, afinal, um tugar. como se manifesta a eli.â.ia do rugar na questão lingüística? Em primeiro lugar, em função da leí, da retroação do significante na produçao ão sentido na cadei a Ílabda. vimos que não é indiferente que se corte um enunciado ,- uÃãr, outro ponto, já que cada lugar implicava diferentes signiri.uni.r-e, por fim, um diferente efeito de sentido (é o caso de nosso exempro: ,.Ai querido
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DA OBRA DE J. LACAN
o oUTRO: nerrNlçÃo
E
CAMPO
assim não podemos continuar vivendo"). O resultado do corte é uma mensagem que varia segundo o corte. Mas, ao mesmo tempo, a mensagem não se produz pelo corte, senão em função de um côdigo que arbitraria as possibilidades de operar o corte na cadeia. E justamente nesse sentido o código não é exercido por nenhum sujeito em particular, posto que, pode alguém por venfura arrogar-se proprietário de uma língua?
À medida que ninguónr pode arrogar-se proprietârio da língua, senão que, pelo contrário, tockr nrundo deve adequar-se a ela para poder entender-se com seus pares, essa língua se parece com uma estrutura ulte,ra, distinta do sujeito e capaz em sua eficâcia de determitrar o sujeilo ent questão Definitivamente, o Outro é um lugar (enquanto tal, anônimo), é uma função (enquanto tal, precisa no que diz respeito a um papel mas indeterminada quanto ao sujeito) e, finalmente, ê um código (enquanto tal, impessoal). O Outro se define por ser: um lugar, uma função, um côdigo. E tudo isto concerne ao problema da identificação... Ao identificar-se, o sujeito está capturando os emblemas de outra pessoa. Isto, porém, é relativo e aparente, já que, embora seja certo que captura os emblemas de um outro, também é certo que isso é porquanto esse outro ocupa um determinado lugar: tomemos, por acaso, o da paternidade. Assim formulada a questão, haveria que perguntar como é que a pessoa se inscreve no lugar. Ao fazer essa pergunta, estamos formulando praticamente a mesma pergunta que fizemos em outra oportunidade acerca de como é que um pai pode exercer a função de castração. Com fudo isso estamos circunscrevendo a questão do Outro, mediante a abordagem de uma teoria da identificação, que é explícita em Freud, ainda que sem deixar de assinalar a congruência que o tema pode ter com a teoria do significante, e uma teoria topolôgica do espaço inconsciente, teorias essas formuladas por Lacan. De qualquer modo, citemos um exemplo: quando um sujeito de sobrenome Mendieta tem um filho e este assume os emblemas do pai, não é comum dizer "Nota-se que é um Mendieta"? E não é então certo que essa identificação o converte em um significante para outros? Assim introduzido,nosso tema, vamos abordar o esfudo da identificação. Mas, como defini-la? Poderíamos esboçar uma apro-
"Dueloy Melancolía". In: r t,p.r'órÏ:"to'Sigmund -
Metapsicología. O. C., ed. cit.,
ns
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CURSO E DISCURSO
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catexia e identivemos nesse caso, ainda que separados no tempo, se apôia no ficação coincidem no mesmo lugar: a mãe. Este matlz
que podemos denominar de segunda lei da identificação, cujo ,,ali onde houve .r.u catexia, haverâ uma identifienunciado é: ou denegacação". Por que denominar a este matrz de "regressivo que se manifesta tôrio"? Em piincípio, por sua orientação narcísica que um efeito dramaticamente nu -ôtutrcolia, que não é outra coisa porque essa é a extremo desse tipo ae identificaçáo. Por outro lado, nos (entendendo-o, mecânica posta ãm jugo na gênese cl. Superego que pai)' E o ,.r^ traços mais g.iuir, como uma identificação com A identifia identificação opera conìo unìa restritora da catexia' Digamos que cação com o païéa saícla para não realizaÍ a catexia' A rigor, toda se trata, aqui, de um purecer-sc, para não acasalar'se. relamovimento a estrutura da iclentificação se àpôia nesse duplo que' tivo cla pritrteira c scgtrntla leis da dilânlica da identificação' moviduplo em última instância, poderíamos clefinir como um mento: de aceitação e repúditl da castração' pois bem, seria difí;il deixar esse tema sem tocar num aspecto que nele estâ diretamente comprometido e que se torna numa que estaeìaboração de uma epistemologia psicanalitica' Notemos no espacial, mos falarrdo n,rm .rpuço tôpico ou de uma dimensão noção uma de caso da primeira lei de identificação, assim como desentemporal, no caso da segunda lei. Poderíamos vincular esse obserJâ volvimento com as observações do estâdio do espelho' não corporal vamos como, nesse estâdio, o estaCo de fragmentação unidade da é probtemâtico enquanto não se logrou a concreção matiuiainat do .nrpo. unidade produzida pelo investimentoque a unidade i;;;;. É imediaiamente após a concreção dessa na Bem' terrorífica' percepção de um corpo a existência de um .orr..ãóao da unidade c dessa unidade se rda parâmetro espacial. No temor que que o sucesso dessa abre uma seqüência temporal. Mas, notemos sucesso da seqüência temporal é frãncamente consubstancial ao unidade esPacial.
o ouTRo: oerrxrçÃo
OBRA DE J' LACAN
Trata-se, portanto, da simultaneidade de duas dimensões (tempo e espaço) que concorrem para constituir amatru das identi' conseguida a ficações ao ,.rj"itó ao inconsciente. Assim, uma vez (libidinalmente distinção Eu/não-Eu, uma vez limitado o campo seja falando) do sujeito, podemos falar de uma unidade espacial,
E
cAMPo
181
csta coincidente com o corpo material ou não, dado que a estruturação da imago do corpo se ajusta ao clâssico refrão: "cada um lrode f.azer de suas nâdegas um pênis", Esses dois parâmetros de espaço e tempo são os que reencon-
lramos agora na dupla articulação das leis de identificação. A primeira lei, espacial, alude a um matiz progressivo, enquanto que a segunda, temporal, se refere a um matiz repressivo. Não é casual nem aleatôrio que a maneira na qual o espaço se f.az presente na teoria psicanalítica seja a identificação, assim como a maneira na qual o tempo se Íaz presente seja a dimensão de angústia. Se cada ciência, na medida em que progride no seu desenvolvimento, modifica de acordo com a peculiaridade do seu campo de estudo as categorias de tempo e de espaço, também a psicanâlise as altera. A partir daí, é possível pensar o "espaço ilusôrio da histeria" e "o tempo infinito da neurose obsessiva". Sendo essa uma definição da identificação: "uma operação pela qual um sujeito se transforma à imagem e semelhança de um objeto", e sendo que esta transformação tem dois matizes (progressivo e regressivo), matizes que têm um nô comum num momento candente do sujeito que denominamos narcisismo, seria bom distinguir os diversos tipos de identificação que Freud esboça. Sigamos Freud em toda sua linha de trabalho a propôsito da identificação:
l9I4 , I9l7 -
1919 l92l 1923-
Introdução ao Narcisismo. Sobre a Disposíção à Neurose Obsessíva. Luto e Melancolia. O Sinistro. Psicologia das Massas e Anâlíse do Ego.
OEsoeoId.
Ao segui-lo, nos inteiramos de que Freud não Í,ala da identificação em geral e, sim, distingue diversos tipos de identificação. Notaríamos que a identificação histérica é efeito da identificação edípica, e que esta, por sua vez, ê efeito da identificação narcísica, assim como esta, por outro lado, é efeito da identificação primâria. Nessa seqüência fica formulada a história da identificação que vamos retomar neste intento de definir o Outro. O ponto de partida deste esclarecimento é a fórmula que Freud esboça em O Ego e o Id, a qual diz que "Wo es er, soll ich werden", gue poderíamos
182
CURSO E DISCURSO
/
DA OBRA DE J. LACAN
traduzirpor"Onde o Id era, o Ego terâ de vir". Onde o Id era... Quem era esse Id, senão o Outro? A tradução ficaria com a
pìoposta esboçada como se segue: "Onde o Outro era, ali o Eu hâ de
vir".
AS IDENTIFICAçoES Interessa-nos, agoÍa, orientar nossa investigação para essa seqüência progressiva das estruturas da identificação: identificação prirnâria narcísica, edípica e, finalmente, histérica. Geralmente, a identificação prim âria ê sumamente problemâtica, e o é porquanto Freud lhes confere, em sua formulação, um grau tal de arcaísmo, porém ao mesmo tempo tão impreciso, tão imemorâvel que, afinal, não se sabe a que estâdio da constituição do inconsciente referi-lo. Dizemos "estádio" por respeito à hipôtese cronolôgica ou eventualmente evolutiva em Freud, pois, se a rigor adotâssemos uma perspectiva estrutural da questão, notaríamos que essas identificações primârias, junto com as fantasias primârìut . a repressão prim ãtia, configuram a matriz estrutural do inconsciente. É gu€, na realidade, as identificações primârias não são "dados clínicos". Não hâ nenhuma comunicação da prática analítica que mostre operando e funcionando in sítu tais identificações primârias, isto porque os fracassos da estrutura identificatôria, os sintomas que na anâlise se observam, são sintomas da identificação edípica ou ainda secundâria; neste sentido, os sintomas concernem ao Superego, 3o Ego, ao ldeal do Ego etc. Em conseqüência, a segunda nota específica que define a identificação primâria é como que a de um "inobseryâvel clínico". Ora, Se reunimos aS duas notas - arcaísmo, por um lado, e inobservabilidade, PoÍ outro - cabe pensar que se trata de uma construção teôrica semelhante à do mito da horda primitiva definido igualmente como arcaico e inobserv âxel. Concebida como uma construção teôrica, é preciso assinalar que assim o ê, para se poder compreender o sujeito inconsciente, a matriz simbôlica das identificações que operaram no curso edípico e pôs-edípico, algo assim como o crisol capazde reunir, numa estrutura, as identificações do sujeito, as quais seriam, necessariamente, parciais e fragmentârias. Essas identificações primârias, definidas como crisol ou matriz
o ou'rRo: DEFINIÇÃO
E CAMPO
183
('o que em Lacan vai ser denominado de instância do (r'rr l,' cstnrtura do sujeito inconsciente) nitidamente diferenr r,r\r'l tlo Mtti (ou Ego-instância da segunda tôpica freudiana). f 'ois bcnr, se se trata de uma construção teôricaparaexplicar a r',,tr ulrrnr inconsciente do sujeito, notemos que tais identificações l,nnr;iri:rs cstariam situadas a meio caminho entre o simbôlico e a , r'n\liltriçlìo do falo. E que à medida que essas identificações tr nnru'ius são a matrtz das futuras identificações do sujeito e que o l,rlo i' urÌì organizador das primeiras identificações efetivas (e efeti\,un('rrtc observâveis), precederiam a constituição do falo, mas seniun lrosteriores ao simbôlico. Isto entendendo-se que, ao dizer "grostcriores ao simbôlico", significa que o simbólico precede a t)r'ol)r'ia existência do sujeito, dado que é, em suma, esse conjunto ,,rrrrlr,rlrr'lr.
,lt'r'cl:tçõesestabelecidas entre o complexo de castração da mãe e o ,'orrrplcxo de castração do pai; pela lôgica, esse conjunto de relações I'r't'ccde o nascimento do infans: O simbôlico
------------ I
dentificações primârias
Falo
---->
Podemos, portanto, concluir que as identificações primârias ;rlrrrlem à estrufura do sujeito, que elas constituem um conector t"shifter") entre o simbólico que precede e excede o sujeito (preccrle porque lhe é anterior e excede porquanto o determina) e o falo ,1rre, afinal de ccintas, é o primeiro conjunto onde se precipita a t t t uterialização do sujeito. Em O Ego e o Id,3 Freud procura analisâ-las a partir de uma tlupla perspectiva: em função de sua estrutura e em função de seu ob.jeto.
Vamos retomar o estudo que Freu d f.az com rel;:Çãr-r à estruIura das identificações primârias. Para isso, recordenìos que defirrimos a identificação como "a transformação de um sujeito à irnagem e semelhança de um modelo; transformação que ustaria rcgulada por duas leis em interação, sendo a primeira de exclusão cntre os pôlos de identificação e da catexia, enquanto que a segunda é de inclusão dos mesmos". Recordemos que a referida primeira lei pressupõe a exclusão espacial, enquanto que a segunda
3. Freud, Sigmund
-O.
C., ed. cit., t.
II, p.
12.
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CURSO E DÍSCURSO
/ DA
OBRA DE
J
LACAN
pressupõe uma inclusão temporal; em outras palavras, observamos
que, num mesmo tempo (na simultaneidade ou na sincronia), identificação e catexia tomam objetos diferenciados, enquanto q'ue, em tempos diferentes (sucessão ou diacronia), identificação e catexia tendem a coincidir nos mesmos objetos. A primeira lei é a que podemos verificar no complexo de Édipo, à medida que a criança orienta a catexia paÍa a mãe, havendo-se identificado com o pai. A segunda lei, que podemos obseryar com toda a nitidez no processo do luto em que, havendo perdido seu objeto de catexia, o sujeito tende a identificar-se com ele para, de alguma forma, conservâ-lo, e neste sentido vemos que, numa seqüência temporal, sobre um mesmo objeto recaíram primeiro a catexia e, depois, a identificação. Quanto ao objeto das identificações primârias, Freud assinala que se trataria do pai por um lado e da mãe por outro, e de ambos na forma indiferenciada, à medida que, sendo anteriores ao falo como são, excluiriam toda a possibilidade de diferenciação do sexo. A partir desses elementos, vamos fazer uma espécie de genealogia da identificação, onde poderemos ver que as identificações primârias são o ponto de partida daquilo que, no período fâlico na identificação narcísica começa a separar-se. Dissemos que seu objeto é o pai e/ou a mãe na forma indiferenciada, posto que não haveria áinda diferenciação sexual, a qual aparece constituída no complexo de castração. Dissemos que sua estrutura ê, a de uma coincidência no tempo e no espaço; efetivamente. na identificação primâria, o sujeito tomaria como objeto de identificação o mesmo objeto da catexia num mesmo momento. Como vemos, essa estrutura é anterior à posta em marcha e à intervenção das leis da identificação que jâ assinalamos e cuja nota primordial é a exclusõo, seja no espaço ou no tempo. A primeira coisa que podemos observar é que, nesse tipo de identificação, definitivamente não hâ um objeto (objeto diferenciado, por certo), posto que não hâ diferenciação Eu/não-Eu. Mas sabemos que, no Édipo, aparece jâ um objeto diferencial que toma a forma da mãe ou do pai. Concluindo, hâ algo entre esses dois tempos que permitiu o aparecimento do objeto. Em outras palavras, digamos que entre a identificação primâria e. catexia - confluência de identificação - e a edipica discriminação de ambas tem que haver um operador capaz -de produzir a deflexão entre- ambos os pôlos. Esse operador é nada
O OUTRO: DEFINIçÃO E
CAMPO
185
rrrrris nada menos que o narcisismo, à medida que é no narcisismo (luc se produz a constítuição do Ego frente a uma posição nãorgóica, o que definitivamente cria as condições materiais de possilrilidade de aparecimento do objeto. Insistamos quanto a esse aspecto. A identificação e a catexia, rcunidas na identificação primária, requerem de um operador que rrs discrimine, permitindo a constituição do Ego, constituição em Iunção da qual surge o objeto, sendo o narcisismo aquele operador,
t)or seu efeito de clivagem. Se dissemos que as identificações primârias são inobservâveis na clínica, convém agora assinalar que o narcisismo é observável; é um grupo de identificações observâveis em seus efeitos (expansão do Ego, magia da palavra, magia do contato, magia do pensamento, animia, etc.). Precisamente, é a partir de sua observabilidade que podemos deduzir que a mesma se acharia regida pelo seguinte movimento: o infans toma como objeto de catexia, assim como objeto dê identificação, a mãe (de acordo com a estrutura de identificação primária), contudo, ante os sucessivos "abandonos" da mãe, recuperaria a catexia (retornando-a ao Ego). Visto que
catexia e identificação coincidiram no objeto, o retorno da catexia ao infans a separa da identificação que ficaria encravada na mãe. Como se vê, é uma clivagem que dâ origem à constituição de um primeiro objeto: se a catexia chega ao infans, o seu primeiro objeto é ele mesmo, desde sua identificação com a mãe. Isso é o que precisamente aconteceria na estrutura das perversões. Tomemos o caso da homossexualidade, onde se sabe que o homossexual elege como objeto a um "outro" de acordo com o menino que gostaria de ter sido, identificando-se com a mãe anterior ao complexo de castração. Podemos resumir: a identificação primâria é uma reunião massiva da identificação e a catexia, e, como efeito dos sucessivos abandonos, ausências, frustrações, se gera um desligamento da
catexia que recai sobre o infans de acordo com o princípio de "retorno contra a própria pessoa" na dinâmica pulsional. Esse retorno deixa feita uma clivagem entre ambos os pôlos e gera um objeto sexual primeiro: o prôprio sujeito. A partir daí, começam a operar os mecanismos de recuperação da primeira unidade (de catexia, de identificação) para o qual se põe em marcha o mecanismo esclarecido pela segunda lei: onde houve uma catexia, ha-
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DA OBRA DE J. LACAN
verâ uma identificação. Conseqüentemente, a identificação se constituirá em herdeira dessa catexia orientada para o próprio sujeito, do qual resulta a constituição do Ego.
Essa identificação conduz, como resultado, à discriminação Eu/não-Eu, e, aqui, como efeito desse esboço de discriminação, se forma o dualismo observado por Freud em O Sinistro. Neste sentido, a constituição do Ego exige do infans a tarefa de metabolizar certos atributos que são registrados como alheios, visto que o ponto
de apoio para aquela constituição do Ego estâ localizado no outro, desde onde se produz a re-flexão da catexia; então, o Ego aparece como uma estrufura álter ou alheia, como uma instância de alteridade instalada no prôprio sujeito. Trata-se desses esboços de conduta que o infans reconhece como prôprios, ao mesmo tempo que os desconhece por serem não-próprios, pelo desdobramento do Ego ou clivagem e que integram os fenômenos do sinistro (unhe iml ic h) . Pois bem, esse retorno da catexia ao indivíduo que é fundante do narcisismo não pode ficar aí enquistado; tem que encontrar um destino que permita a elaboração do conflito Eu/não-Eu, do conflito Ego-âlter, do conflito o próprio/o alheio, que define precisamente a fase narcísica. Justamente a elaboração desse conflito é produzida pelo mecanismo descrito pela segunda lei de identificação: "ali onde houve catexia, haverâ uma identificação". O acesso da identificação do lugar da mãe com o lugar do infans em que se achava localizada a catexia resolve essa questão criando um pôlo de separação Ego, que resolve o dilema Ego-álter. Porém, - oque, para isso é necessârio previamente, a catexia haja desalojado o Ego (posto que, a partir da clivagem, catexia e identificação se excluem) e esse desalojamento é realizado seguindo os eixos providos pela função materna de quem o sujeito jâ sabe que tem outros interesses que, aos olhos da criança, poderiam reunir-se na pessoa do pai. Em síntese, o indivíduo identificado com o Ego (que é uma reunião de sua passada identificação com a mãe, com seu recém-constituído lugar do Ego) toma, como objeto de catexia, o pai num procedimento que Freud define como de Eaipo negativo para o varão e Eaipo propriamente dito ou Edipo positivo paÍa a mulher. Se analisarmos a seqüência supradescrita poderemos observar que se trata de um contínuo que vai da identificação primâria à narcísica, e desta à edípica:
O OUTRO: DEFINIçÃO E CAMFO
Identificaçãoprimória
I de nt ifr c oç ão n ar c ís i co
Eu: não-Eu Identificação
Eu # nãoEu ldentificaçõo
:
Catexia
* Catexia
Identiftcoçõo edípica Eu (objeto da identiÍicação) Objeto(objeto da catexia)
De acordo com esse quadro, poderíamos resumir os dados que obtivemos, da seguinte forma:
Eu
Identificação
não-Eu Catexia
"O Ego estâ para a identificação como o não-Eu estâ para o objeto (isto é, a catexia)." Tudo isso nos remete à necessidade de revisar esse processo das identificações e das catexias. Em primeiro lugar, convém assinalar que o termo catexia cuja traduçllo para o francês é "investissement" e cuja máxima aproximação para o português é "investimento" - vem do alemão besetzung, cujo sentido mais preciso ê ocupação. O conceito de catexia, desta perspectiva, comporta uma concepção tôpica das relações, contrariamente ao gue sugerem as versões porfuguesas que enfatizaram uma noção energética da questão ao traduzir o termo freudiano besetzung, por "cargas". Com efeito, a noção de "caÍga" induz a pensar num dilemâtico enÍoque econômico. Não queremos com isso afirmar que o termo cat*ia seja inteiramente alheio à questão econômica; apenas queremos sugeriÍ que tal economia estâ subordinada a uma concepção tópica das relações entre sujeitos. Assim, pois, notemos que, à medida que as traduzimos como catgas, estamos dando-lhes um carâter energético que não estava tão claramente sublinhado em Freud, em detrimento do carâter espacial que estava mais nitidamente enÍatizado. Neste sentido, a tradução mais apropriada para esse conceito é a de "ocupação, iuvestimento, instalação". Insistamos: a concepção de Fôrmula que leremos do seguinte modo:
IE8
CURSO E DISCURSO
Freud sobre a questão é quase militar: as cargas ocupam o objeto. Isto nos leva a pensar que, se as cargas ocupam o objeto, uma vez produzida a deflexão de identificação e catexia (a partir da ameaça que o terceiro formula ao narcisismo), esta se exclui, mas numa exclusão tôpica impedindo o acesso da identificação ao mesmo. Efetivamente, é o que acontece no complexo edípico; uma vez que a catexia ocupa o objeto-pai, a identificação que jâ estâ inscrita no Ego (de uma passada identificação com a mãe) se acharâ impedida de aceder ao pai. Mas, uma vez que a catexia libere o pai e se oriente para um objeto (no caso do pequeno Hans, a vizinha ou pequena amiga de Gmunden), a identificação acederâ desde o Ego até o lugar do pai no processo em que objetivamos a gênese do Superego.
Pois bem, nesse processo intervém tanto a pulsão de vida quanto a pulsão de morte. Traduzamos esses conceitos a um esquema triangular simples. Suponhamos um espaço em que o nenê tomou, como objeto de catexia, o pai. Neste sentido, colocou todas as suas expectativas sobre ele; à medida que o pai o frustre (e se sabe que necessariamente o pai hâ de frustrá-lo, pois a libido infantil é insaciâvel), às ditas catexias positivas - que se traduzem em expectativas de satisfação no bebê se irão somando catexias negativas. Neste processo, observamos a gênese da ambivalência; ambivalência que, em determinado momento, assinala Freud em,4 Feminílidade, haverã de ceder totalmente seu lugar à catexia negativa, desalojar o objeto paterno para voltar a um outro destino: um substituto. Ficando livre o lugar do pai, as identificações o tomam como objeto.a Em tudo isso, poderíamos pensar o referido movimento como o de um trenzinho em que a catexia opera como uma locomotiva e a identificação como um vagão de cauda. Mas faltaria um detalhe.
Assinalamos o destino da catexia positiva (ou seja. da pulsão de vida que se expressa como um desejo de réunião de estímulos). Que acontece com a catexia negativa (cujo sentido é a pulsão de morte enquanto desejo de supressão)? A rigor, atrás do desalojamento da catexia positiva do lugar do pai, a catexia negativa fica livre e
4. Freud, Sigmund
tInl0Âr
-
o oul'Ro: DEFINIÇÃO E CAMPO
/ DA OBRA DE J. LACAN
"Duelo y Melancoüa". ln: Metapsícología. O. C., ed. cit.,
llìq
llrrtrr:rntc sob a forma de uma experiência de frustração e associada rìre(nÌoobjeto sobre o qual se haverá de instalar a identificação. \ssirrr, pois, à catexia negativa fica associada à identificação, ou o ( tu(' (li.i Ìl() rììesmo: a identificação é a ancoragenì da pulsão de ntorte rr,' irrtlivíduo. Eis aí a gênese do Superegoe o ntotivo da indissolúvel rirreulação do Superego com a morte. Também é daí que, não lrrwcndo registro nenhum da morte no inconsciente, seja o Super,'go o agente da ameaça e da morte no sujeito. É que no inconsciente não hâ a instância de morte, posto que tlcsconhece a negativa, posto que desconhece o "não". Não obstrrnte, há clínicos que nos falam de uma crise de angústia a partir rle Lrura inrinência espacial ou temporal de perigtl. Então o incons.r()
t'iente nào tem conhecimento do tempo nem da morte, quando a r igor certos sintomas do indivíduo se vinculam à tenlporalidade e à rnorte (medo de envelhecer, medo de uttlrrer etc.). A única via possível pela qual o tempo e a morte se instalam no aparelho psíquico é o Superego. A identificação, ao ocupar o objeto, incorpora os valores negativos que lhe ficaram associados como efeito da experiência de frustração. É esse o mecanismo pelo qual a identificação aparece solidariamente vinculada ao fenômeno observado na clínica de: "identificação com o agressor", conforme testemunha o típico fantasma de Espancam uma Criança. De fato, a partir dos dados que reunimos, podemos concluir que a identificação clessexualiza o objeto. Dessexualiza-o porque inrplica nunt desaÌojanlelìto da pulsão de vida, uma interação da pulsão de nlorte. uma trausfornraçãcl clo objeto em atributo do sujeito. Dessexualização e agressividade são ao mesmo tempo as notas diferenciais e características da identificação que cttnhecenrtts p()r Sr.rperegtl. Por estas r ias i' que o Superego assumc o exercício da dessexualização clo ob.jeto e a cottcomitante instauração da iìnÌeaçiì de tttorte pcttdendo como uma espada de f)ânrttcles sttbre a cabeça... (do pêrris) cltr sujeito. Resunrindo nossa seqüência, concluiríanlos conì suma facilidade que a identificação primâria consistiria na produção de unla rnatriz das identificações. Matriz que haverá de operar pelo efeito cla clivagem no curso da fase narcísica. Clivagem que produzirá unr objeto, utilizando para isso, e à maneira de bússola, a identificação cdipica.
CI.]RSO E I)ISC'I.]RS()
190
' I)A OBRA DE J. LACAN
Até agora estudamos esse proccsso em função de sua estrutura, embora Freud abordc sua urrírlise ao mesmo tempo em função de seu objeto.
Qual é o objeto cia itlerrtificrção primária? Sabemos que se trata de uma identificaçiìo c()rìì o pui, a mãe e, finalmente, com a figura combinada de irrnbos. Essa identificação prirrrírria c()rÌì .Ì mãe é a matriz do Outro absoluto que, por vi:rs
o ouTRo: DEFINIçÃO
E CAMPO
l9l
que o que abordamos era o estudo de uma operação. Operação pela
qual, em suma, se constituía,n determinados símbolos primordiais do sujeito. Esses símbolos primordiais eram: a) o símbolo de sua relação com o Outro; b) o símbolo da própria relação: o falo; e c) o símbolo da legalidade de toda a relação: lei. Ora, achamos que esses elenrentos que integram o simbôlico o inscrevem numa primeira matriz no sujeito por meio das identificações primárias. Simbólico
NP r
I de n t ific aç ão
-------_r> Função
prim ária
paterna )*Narcisisffio-Édipo - -
.------------- Funçãode relaçãof
mãe. IrlentiJ'icuç'ão printária com a mãe ---------->Outro absoluto (A)
A identificação primâria com o pai é a matriz das funções de mediação, passagem ao universal, lei, nome-do-pai, metaforização; funções todas que permitirão ao indivíduo transcender a relação de imediatez forJnulada no Outro. Identificação primária com
o
pai ->Nome-do-pai (NP)
Finalmente, a identificação primária com
a figura combi-
nada de ambos é a identificação com a relação que os une: com o
falo, visto que o falo é o princípio de relação que conduziria à complementaridade absoluta, e dado que a figura combinada dos pais (a cena primâria) é a figura de um sujeito mítico auto-suficiente. Identificação primária a ambos os pais -----Fato (ç)
Em função do acima exposto, é ôbvio concluir que o falo, enquanto objeto ontológico, não existe, já que em si é uma relação ou estrutura de relações. Tratar-se-ia, pois, de uma estrutura de relação de termos em que o Outro ficaria relativizado pela intervenção da lei (NP). Com isso, estamos aproximando-nos de algo familiar. Quando abordamos a questão do Édipo, insistimos em
A partir daí se pode tentar uma histôria do sujeito. A estrutura simbólica, que se escreveria sob a forma de identificações primárias. começa a historicizar-se com o narcisismo na seqüência: auto-
-erotismo, narcisismo, eleição de objeto. A eleição de objeto se formularia de acordo com os cânones do objeto edípico, sendo sua manifestação o trbjeto histérico. Com isto estamos repetindo algo que jâ formulamos, mas que, de qualquer modo, vale reiterar: é a partir do narcisismo que podemos empiricamente (na experiência clínica) observar o resultado dessa matriz sob uma primeira deflexão que conduz a um destino que não é outro que o destino do pequeno ambicioso: Edipo. Trata-se da histôria da histeria. Pois bem, voltemos ao estudo de nossas identificações primárias. À medida que as definimos como uma estrutura, podemos asseverar que carecem de elementos imaginârios. Enquanto estrutura, podeúamos também descrevê-las como exigências impostas ao Id, impostas ao Outro (o Outro talvez não seja mais que o Id). Sabemos que o narcisismo é que primeiro inscreve os elementos imaginârios na estrutura através do estâdio do espelho, que definimos como constituição de uma primeira gestalt imaginária. naturalmente através da qual, não obstante, a -pluralidade do infans assume- a forma de unidade cultural, com determinados matizes ilusôrios e visuais. A estrutura simbôlica começa a perfilar-se na constituição imaginâria.
192
CURSO E DISCURSO
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DA OBRA DE J. LACAN
Conforme vemos, o conceito de narcisismo ocupa um lugar central não sô na teoria de Freud mas nas reflexões de Lacan, posto que, na teoria deste, o elemento central é a incidência do narcisismo na constituição do sujeito do inconsciente. Essa constituição não deixa de ser problemâtica. No narcisismo reside o paradoxo maior de toda a teoria psicanalítica, e o mais fabuloso a que deva ïazer frente o sujeito. O narcisismo se define por duas exigências: a exigência um e a exigência dois. A primeira, conforme o nome indica, é a exigência de ser um; a segunda, ao contrário, e de acordo igualmente com seu nome, é a exigência de ser dois. Mais seriamente, digamos que a exigência um vincula-se à exigência narcisística de ser único: esse ideal de mâxima perfeição (que se resume no Ego ideal), de plenitude, de onipotência, que assume a forma material do falo. Esse desejo de ser um, único e, o que é mais importante, ser absolutamente (posto que a libido infantil é insaciâvel), é, em última instância, uma exigência do sujeito. A exigência um estâ marcada por sua impossibilidade interna, posto que se choca, em sua formulação, com a exigência diametralmente oposta, a dois. Isto leva a observar o seguinte, que é constitutivo da exigência dois. Como nenhum sujeito se constitui senão mediante um referente, o paradoxo se lhe apresentarâ à medida que todo referente ê bifrontal: olha para dois lados diametralmente opostos; tem em mira a criança (um dos pôlos da equivalência simbólica) e o pênis (o outro pólo, que tem a forma material de seu marido, de seu pai e de outros interesses, como sua profissão, etc.). Em conseqüência, se o nosso sujeito quer ser único deve ocupar simultaneamente dois lugares: ser ele mesmo, e ser o Outro que interessa à mãe; ser ele mesmo, e ser seu pai. Eis aqui a exigência dois, prôpria do conflito narcísico, pela qual se instala a clivagem (o desdobramento) que alicerça o fenômeno do duplo. A exigência um é própria do inconsciente. A exigência dois é prôpria da estrutura. Afirmamos que a exigência dois é prôpria da estrutura. Isto é evidente no caso que formulamos de uma estrutura familiar onde a mãe ê bifrontal, ou seja, olha para dois lugares opostos. Mas, o que ocorrerâ naquelas organizações nas quais não há uma ordem familiar, mas um grupo inteiro que se encarrega dos bebês, como seria o
O OUTRO: DEFINIçÃO E
CAMPO
I93
easo de um clã ou tribo? É inerente a todo
grupo social ser bifrontal. Pois, ainda que o grupo tome a seu cargo o cuidado dos bebês, não evita a experiência do desdobramento, porquanto o gÀpo questão olha para dois pôlos opostos: para "_ os rãcém-nasãidos que representam o futuro, e para os ancestrais ou os mortos l,r" a"i*ucomo legado um m-odelo de comportamento sob a formì dos pre_ ceitos do totem ou do tabu. Assim, pois, excedend-o toda a estrutura familiarista, a exigência dois se acha presente. À criança se apresenta a exigência de ser uma criança, ao mesmo tempo que a de olhar para oJ,"u. ances_ trais para respeitar o seu modelo. É este o proceaimento pelo qual indubitavelmente as crianças se convertem em velhos. Ao mesmo tempo, podemos assinalar que a exigência dois, a de-ocupar um duplo lugar com a esperança de ser o único para a Tãr (seu lugare o do pai) é o q.r. ò introduz no processo identificatôrio. Recordemos' agora' haver definido as identificações primârias
nima de permutações; seriàm, pois, servável em si mesma) que permite vai do narcisismo à construção das
rH"ïnï; "iï::ïff.;l':*:
não é mais que uma estratdìf prôprio de o sinistro. o Ëoipó seiia, então, a provisão de destinos para manejar essa dualidade de rugares q.r" o ,úirito r" uã1*úioo ocupar. Dualidade de lugares que terminarâ converterral-r"'rrr-"" dualidade de pôlos: o da identificação e o da catexia. Definimos o narcisismo como operador da clivagem. Defi_ nimos_.a identificação edípica como o'indicador de um destino a essa clivagem: um destino sexuado e sexual. Ora, como definir a identificação histérica?
. "A identificação histérica pica, mas
ca
sualmente não
diferença?
o é.
se parece com a identificação edí-
" e ,h
ea
casualidad. q,r"
,rru
"uurà Tomemos o caso Dora. Nele, o material assume uma forma triangular: o pai, a mãe e Dora.s
,. I,
o.;i3:ttud'
Sigmund
-
Análisis Fragmentorio de una Histeria. In:
o. c,
ed. cit.,
t94
CURSO E DISCURSO
/ DA
OBRA DE
I. LACAN
O OUTRO: DEFINIÇÀO E CAMPO
r95
ignorado a transferência homossexual que marca o discurso de Dora. Para ela, a "aproximação" ao senhor K tinha um sentido enquanto existisse um triângulo formado e que esse triângulo incluísse a senhora K. É por isso que a identificação histérica parece ser a identificação edipica, mas casualmente não é, e não o é
Triangulação que imediatamente se estende e repete em outras relações: as da senhora K com o pai, e as da senhota K com o senhor K.
porque justamente responde às marcas de uma repetição. Então, o que é que se repete aqui? O que aqui se repete (e, portanto, não se elabora) é a função do pai, o lugar do pai a propósito da mulher,
em correspondência com o conflito que daí surge: "o que é ser mulher"? Definitivamente, o que em Dora não estâ elaborado é a noção de relação; noção que, de acordo com nosso trabalho, tem por simbolizador o falo. Assim é como o falo não simbolizado passa a ser atuado no sintoma histérico. A histeria é definitivamente um insight da relação. É por isso que a identificação histérica se parece com a identificação edipica, mas casualmente não é. Não o é posto que algo falha; falha a identificação que deveria dar um destino à catexia.
À primeira vista, a impressão é de que Dora saiu da família tomando a senhora K como modelo de identificação. Mas é tão-sô uma aparência. Freud detecta a aparência de que na gênese dos sintomas não estâ o beijo que lhe deu o senhor K, mas a proposta de formar um par com ele alegando "minha mulher não significa nada para mim". É que o senhor K havia pura e simplesmente suprimido o elo libidinal que unia essa relação ao pai, e é óbvio que, liquidado esse elo, fica üquidada a possibilidade de manter essa seqüência articulada de relações triangulares, tão concordantes com o fantasma da histeria. Por que Dora esbofeteia o senhor K, quando este alega que sua mulher "não significa nada para mim"? Porque justamente ele suprime o elo que permite manter todo o jogo perverso relativo ao pai e à senhora K. E Freud, em sua autocrítica, reconhece haver
Para Dora, o problema parecia estar resolvido; e o estava na presença da senhora K. Daí que, quando o senhor K alega que ela "não significa nada para mim" e lhe propõe substituí-la (trata-se de substituir o substituto materno), ela reage, esbofeteando-o. É que o temor também pode associar-se à fantasia cle, a qualquer momento, deixar de "significar algo para o senhor K". Assim mesmo o interpreta Fretrd, quando observa que essas mesmas palavras que o senhor K diz- a Dora haviam sido ditas por ele poucas semanas antes a uma professora com a qual manteve relações sexuais, despedindo-a logo de seu serviço e, portanto, ficando fora da série. Para Dora, então, a garantia de não ficar fora da série reside no fato de que não afastem a senhora K. Indo, então, até a medula do problema, deparamo-nos com que, ao término do Edi-
po, o sujeito deveria ter consolidado (por assim dizer) estes três símbolos: o falo, como representante da relação; o Outro, como reconhecimento do outro; e a Lei, como um simbolizador da regularidade de toda a relação. À medida que a lei fracassa - relativamente - na histeria, o acento fica posto no falo, o segundo dos organizadores. A partir dai, a histeria tentaria investigar qual é a regularidade - que é precisamente o não-simbolizado das relações humanas. Dai também que a histeria seja uma perfeita intrigante.
196
cuRso E DrscuRso / DA OBRA DE
o ouTRo: DEFINIçÃO
J. LACAN
Em conseqüência, podemos concluir que a Freud se coloca a necessidade de pensar as identificações primárias não mais como um dado relativo ao observável na prâtica analítica, não como um dado que permita ilustrar de forma direta a propôsito da nosograf.ia, mas como uma exigência teôrica para explicar algo assim como a matriz simbôlica do sujeito inconsciente' Não queremos deixar este tema sem fazer antes uma última reflexão. Se definimos o narcisismo como um operador de clivagem nas identificações primárias, a identificação narcísic a náo ê primâria, mas, ao contrârio, é o resultado de uma primeira operação sobre as nresnìiÌs. Ctlnt isto chegaríantos à conclusão de que, integrando a identificação primâria, o narcisismo é sempre secundârio. formulam a Freud, inclusive Sem dúvida, alguns autores pois, o primário. Assim, narcisismo um de hipôtese da existência grupo por identificações de pertenceria, lado, ao um narcisismo primârias e, por outro, seria ao mesmo tempo a primeira operação sobre elas. Poderíamos esquematizar esta questão numa série:
Edipo
Identífìcação
Narcisismo
prìmária
Narcisismo secundório
Complero
prtmarto
Comopai
posição indiscrimi-
narcisismo do Ego
com a mãe com ambos
nada: Eu/não-Eu
elaboração do objeto de identificação e do objeto dacatexia
de
DENTI FICAçOES PRI MARIAS: ESTRUTU RA DO SUJEITO E TOPICA DO ËDIPO I
Dada a equivalência criança-pênis, a mãe deseja uma criança não como matéria biológica que ela é, mas enquanto estâ inscrita e registrada naquela equivalência. É condição básica para que se instaure numa mulher o desejo do filho o fato de que tenha podido resignar o desejo de ter um pênis, desejo do qual a criança é um substituto.
E
CAMPO
197
Mas, assim como o desejo feminino não é relativo à criança tal, coisa que nos demonstra de uma maneira mais clara a histeria ao defini-lo como "Essa coisa tão feia que serye para urinar e que, além disso, ó tão suja". Não é o pênis do homem propriamente desejado, mas aquele outro pênis que, na idade aproximada de dois a quatro anos - para situâ-lo numa cronologia - ela gostaria de receber das mãos da mãe; e, nesse momento, o pênis se inscreve no seio da rivalidade narcisistica infantil, cujo eixo é a busca do sinal de preferência. Precisamente o pênis se inscreve como um sinal de preferência materna. É por isso que o nenê, ao descobrir-se dotado de pênis, converte-se num fanfarrão; hâ algo - diz Lacan"Eu - nao pose de todo homem, que o aproxima da fanfarronice: tenho..." A seu modo, o homem é uma tautologia, uma repetição como matéria biológica, tampouco o é ao pênis como
de si mesmo, uma repetição de sua posse. Em relâção ao pênis da mãe, tal como o formulamos, se trata. de uma atribuição da criança, para quem sua ausência (a do pênis) é altamente dramâtica porquanto traz a evidência de que ela não é absoluta. Trata-se, portanto, da evidência de ter ludibriado seu destino numa mentira. Em torno desse problema" articula-se o que
na literatura lacaniana é o tema da mentira, do engano, da mãe enganadora. Aqui entra em jogo um objeto velado: o pênis materno. Esse pênis revela um elevado nível de compromisso por parte do indivíduo, que, até esse momento, afirma "ser o pênis da mãe", com o que, se amíe carece de pênis, o indivíduo "não é nada ou, no mâximo, é urna carência". O pênis ryaterno é um objeto velado que aparece e desaparece fugazmente, como a máe que desaparece e aparece no campo de registro do infans. Em conseqüência, a maternidade exige de uma mulher que tenha resignado seu desejo de pênis e aceito um substitutivo. Sabe-se que não há melhor substitutivo para uma mulher do que uma criança. Primeiramente, porque não hâ nada que lhe traga igual sensação de máxima importância como a que lhe traz o Ìilho e como o ilustra Boris Vian em sua novela L'Arrache-Coeur. Essa sensação de onipotência é algo assim como uma negação da ferida narcísica, da carência de pênis, cuja marca jâ historiamos. O filho é, então, o melhor substituto desse objeto não tido, em primeiro lugar, pela sensação de reivindicação que existe implícita na ques-
CURSO E DISCURSO
r98
/ DA OBRA DE J. LACAN
tão: ela o produziu no seu prôprio corpo e, neste sentido, ela pode decidir a vida e a morte. Ela é a possibilidade de üda do outro, e sua ausência é a possibilidade de morte para o outro. Mas, além disso, nesse circuito, o bebê responde, jâ que sem a mãe ele morre, e na mãe, ele acha sua garantia de vida. A resposta do infans oferece à mãe um retorno: ser o mais pata alguém' O velho anelo e desejo infantil de ser o mais para a mamãe (sendo, em seu momento, o pênis o testemunho da preferência) fica agora realizado na realização da própria maternidade. Tudo isso nos demonstra a existência de um côdigo, de um antecedente regendo a relação da mãe para com a criança, e em função do qual a criança não importa (pobre diabo, afinal), a não ser pelo valor que lhe atribui a mãe, de acordo com a direção preexistente no côdigo que a determina. NP
Mãe
.-\
Infans --/
Lugar constituído pela conjugação dos desejos mater' nos, ao qual o infans é obrigado a adequar-se.
Bem, conforme o gráfico acima nos patentiza (sob a forma de um desenho), hâ a seguinte discordância: o infans deve adequar-se a um lugar tal que, se vamos à questão que nos interessa objetivar' lhe é absolutamente alheio. Toda mulher, mesmo quando não tenha o projeto concreto, imediato, de uma gravidez, expressa a existência desse lugar através de discursos como o seguinte: "quando tiver um filho, jamais vou tratâ-lo como me trataram"; ou então: "não vou permitir que os outros se metam na educação de meu filho". Claro que parece que se trata de discursos que têm como referentes puras enteléquias (filhos inexistentes). Sem dúvida, trata-se de enteléquias que têm uma eficácia erógena porque determinam o exercício erótico da maternidade no âmbito do discurso, no espaço da fantasia. Isso nos evidencia que, antes do aparecimento da criança, existe um lugar que lhe é predestinado e ao qüal o infans deverâ adequar-se. Ou seja:
O OUTRO: DEFINIÇÃO E CAMPO
não. -
O lugar existe, e o bebê não.
O projeto está, a matéria-prima que deverâ executír-lo, O projeto está, sua objetivação falta.
Ai deparamos com um lugar que não é onticamente
obser-
vâvel, mas que se manifesta em efeitos. Sobre esses efeitos, nos vem a seguinte pergunta teôrica: não será precisamente isso o que Freud trata de teor\zar com a identificação primâria? Ao mesmo tempo (e com a finalidade de articular várias problemâticas), nãb definimos o alcance desse lugar como a incidência do simbólico no sujeito? Porque, neste caso, poderemos chegar a afirmar que a identificação primária é o âmbito da incidência do simbôlico, entendendo por simbólico esse registro que, em última instância, tem três articuladores bâsicos - Outro, lei e falo - e que é anterior à existência do sujeito. Neste sentido, as identificações primârias estariam a meio caminho entre a ordem do simbôlico e sua materialização do narcisismo (entendo que o narcisismo é a materializaçào - sob a forma de um dos termos simbôlicos: o falo). de uma identificação
-
Registro dosimbólico
I den t ífic
Outro Falo
Lri
oç ão
p rim
ó
Mãe Pai-mãe Pai
ria
Narcisismo (
Inscrição do falo como iden-
tiÍicação)
Definimos melhor esse lugar prefigurado como desejos. Em primeiro lugar, se expressam em formulações imaginárias; o desejo de que o filho seja presidente da nação, parecido com Frank Sinatra ou Clark Gable, jâ nos revela a incidência de um viés do imaginário cuja instância simbólica é precisamente a existência de uma relação que se manifesta como exigência e que, em sua desnudez, é desejo de que seja. Esse registro simbólico (que preexiste ao sujeito) vai expressar-
-sc como exigências, as identificações
primârias, que deverão con-
2OO
CURSO E DISCURSO
a assunção de uma duzir e desembocar em seu desenvolvimento do falo no narciassunção a identificação específica e concreta: sismo.
O fato de que as identificaç
camente observâveis nos leva a P mentação ePistemolôgica da quest
em efeitos objetivos: qualquer
elação. Na a relação condições
ria que
se
para pensar o inconsciente que mediação de seus efeitos' Prec mas rÍoúr, e' poÍ isso mesmo' não são observâveis' integram
"rr" efeitos: a-identificação narcísica tem um grau de sim os seus ( grandiloqüência' magia observabilidud", pois
t"ut lututtt'í'titut
ã;;1";;;, i"u"^a" contato, animismo) tiveis.
o ouTRo:
/ DA OBRA DE J' LACAN
são diretamente percep-
modelo plano Formuladas as identificações neste - ser um teórico - nos suÍge a tarefa de objetivâ-lo' segundo o capitulo III A estrutura d"id;;ìifituçao pti-aria é' e a identificação no mesmo óe O Ego e o Id, uma reunião da catexia objeto: os Pais' a sendo uma estruão. É, em Parte, o mina núcleo glisho' confusionais' informa que desde as identificações catexia e a identificação' edípicas existe uma clivagem entre a em que tal clivagem pnmâria' na contrariamente ao que acontece ambas a existência de entre portu{tà;i-f""áu-"ntal não existe. cisao de ambos os pôlos de catexia e algum operador q*;;lãa identilicação.
DEFINTÇÃO E
CAMPO
2Or
A identificação primâria, vale repetir, consiste numa reunião
tlc catexia e identificação, enquanto que na identificação edipica jâ cstâ fundada uma disjunção. Em conseqüência, é ôbvio pensar que cxiste uma estrutura intercalar que produz a operação de disjunção. Tal estrutura é o narcisismo. O narcisismo opera em duas luses, de acordo com a seguinte mecânica: primeira fase catexia
c identificação coincidem no objeto; segunda fase ameaçada a catexia por uma série de danos imaginârios, promovidos pelas :rusências do objeto, o sujeito recupera a catexia que recai sobre si rÌìesmo e precipita a constituição do Ego. Por este princípio a catexia se instala no Ego, enquanto que a identificação ficou encravada no objeto no qual se produziu a clivagem. Assim formulado, o narcisismo é o operador da separação da identificação e a catexia. A esse respeito, existe um aspecto que conviria abordar para esgotar todo o espectro da questão. Como articular, aí, o dualismo das pulsões? A instalação da catexia é a objetivação da pulsão de vida (cujo sentido é a reunião de estímulos) e à medida que a catexia expressa o estabelecimento de uma relação com um estimulo erôgeno. O dano imaginário que a dialética da relação do sujeito com o estímulo leva implícito introduz a necessidade de desalojar o objeto, e a concomitante busca de outros objetos que cumpram com a expectativa de satisfação. O abandono do objeto se realiza sob o signo do ódio, das reprovações infantis. Em outras palavras, o ôdio fica localizado no objeto enquanto que a expectativa de satisfação migra para outros destinos. A localização do ôdio no objeto é equivalente à localização da pulsão de morte no objeto (cujo sentido é a separação do estímulo). É que, deste modo, ficando o ódio localizado, náo são necessârias maiores preocupações que manter-se a distância do objeto para evitar o dano imaginârio a que nos referimos. A pulsão de morte fica, pois, associada ao objeto. Mas, se justamente a identificação é identificação a esse objeto, a operação de identificação contém elementos de pulsão de morte. Digamos mais corretamente: a identificação é uma operação sob uma base da pulsão de morte relativa ao objeto. Daí que, em geral, toda identificação se inscreva nos marcos gerais de uma identificação com o agressor.
A identificação opera com a instauração da pulsão de morte. Daí que a identificação dessexualiza a rèlação com o objeto, tendo
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CURSO E DISCURSO
/ DA OBRA DE
O OUTRO: DEFINIçÃO E
J. LACAN
CAMPO
203
como uma figura mítica: um monstro auto-suficiente, dotado de
felação.
Assim, a primeira conclusão é de que a identificação dessexualiza. Em segundo lugar, essa dessexualização da identificação
por preeminência da pulsão de morte é o que nos explica a natureza do Superego e a dinâmica da melancolia. Frecisamente o Superego e a melanc,rlia são dois 1enômenos
aos quais tipicamente recorreria a interpretação freudiana para explicar a lôgica da identificação. A melancolia se define por ser um retorno da catexia ao Ego e' por conseguinte e ao mesmo
técnicos da psicanâlise. De acoido com nossa reflexão, podemos deduzir que a
identi
ficação primâria é uma estrutura da qual o narcisismo é a repetição. Mìs, sendo ao mesmo tempo inobservável - como de fato o retornamos a um beco sem saída, do qual unicamente podeé mos sair reconhecendo-lhe o status de ser um momento teoricamente necessârio, clinicamente não determinâvel, e como causa de um fenômeno clinicamente registrâvel que opera e produz efeitos.
pênis e vagina. Esse não é um achado teórico exclusivo de Freud. Melanie Klein também fala de fantasmas de introjeção do pênis, de coitos orais, de amamentação mútuá e recíproca. Em que pese essa discriminação, convém notar que os pôlos realmente intervenientes narelação são dois: além da estrutura mítica (que nos foi conveniente denominar estrutura do falo), a presença da mãe, por si, introduz a dimensão do Outro e a presença do pai introduz a dimensão simbôlica da lei. Função da mãe, função do pai, função da relação... Que
significam essas funções? Função da mãe é a função de dependência pela indefesa biolôgica do infans que o leva a registrar o outro (a mãe, neste caso) como
absoluto, onímodo, onipresente... Sua experiência lhe indica claramente que basta sentir uma,necessidade para que o outro o proveja. Trata-se quase do modelo de Deus mateÃalizado na imago materna. Por essa via, a mãe se constitui em modelo de Deus mateiallzado na imago materna. Igualmente por essa via, a mãe se constitui em modelo de um Outro absoluto, e absoluto não somente em termos biolôgicos, mas fundamentalmente (posto que este é o nível que nos interessa) em termos simbôlicos. A mãe (enquanto Outro absoluto) é esse objeto que o bebê sempre levarí à boca; se sai leite, estâ bem, e se não sai leite, azat; serâ o seio mau, a não-mãe, o vazio.
Afunção do paí é uma função de metaforizaçáo, independentizaçáo, ideação e "passagem" ao universal. E função pela qual o infans ssí da esfera do Outro absoluto. Precisamente a função do
pai tem por sentido colocar as leis ao absolutismo da primeira relação.
Afunção de relação é precisamente a que permitiria explicar as ligações entre as restantes funções, tareta de simbolização que desenvolvemos ao aludir ao falo enquanto organizador.
maior ou menor nitidez, como uma figura combinada, portanto,
Daí podemos extrair, como primeira conclusão, que uma anâlise dos objetos dessa identificação primâria é coincidente com a anâlise de sua estrutura, no sentido de que ambas avalizam a tese de que a ídentificação prirnária é a matriz símbólica do sujeito do inconsciente.
N4
CURSO E DISCURSO
/
Ç DA OBRA DE J. LACAN
omodelodarelaçãocomooutroabsolutoéoalimento.Neste e sosentião, podeúamos óstipular que "um sujeito é sujeito se' de mente ta, ftâ um outro que o alimente como tal"' Anotemos -
não é mais que uma repetição da
que essa cónclusão norru fô.-ula segundo a qual o inconsciente se lorja na relação do ã; Outro, a qual, por r.rã vez, ê uma transformação didâtica Outro". do pãri"fuOo lacaniano d" q.r" "o inconsciente é o discurso '---o ú.ito é sujeito se o outro o alimenta como tal... Trata-se
passagem
do do enunciado teôrico construído sobre a base da observação que vimos que' sem um .Outro primeiro ano de vida' já que não se constitui. Sublio sujeito libidinalment", ã atmente
nhemos,nestesentido,ocarâterlibidinaldoalimento'porque positiva conduzida por Spitz não é o alimento "ã-."pé.i6ncia ãu fo." o que fàltava, mas outro alimento: o alimento da'alma, que são os mimos, as carícias. Isso conduz à premissa
'.
interzubjetiva - em toda a relação peta quaL o sujeitó se relaciona sob a exclusiva condição de ser ieconhecido. Em outras palavras, o sujeito se relaciona unicamente que se com quem esteja disposto a reconhecer - antes de tudo ,,alguém" e, além do mais, de "alguém importante". Esta trata àe mas sempre presente na relação analítica; áu "onaiçaJinexplícita, reóebe o nome de transferênctc, causa eficiente e condição'que mateúal dó todos os sintomas da neurose transferencial, cujo enundores, ciado bem poderia ser o seguinte: "eu lhe conto minhas paciente da o mas se, e somente se' as aplácar". Com base nisto, na indícios experiênçia analítica se aclía sempre à mercê dos de reconhecimento ou de descop"ìuu.u e nos gestos do outro
-
nhecimento.
Ohumanonãoéhumanoseooutronãooalimentacomotal.
É pre.irumente neste campo que se define um sintoma neurótico perceber o pênis cuja mâxima expressão noi dâ-u histeria, que' ao qUe estabelece o problema á. ,.., companhêiro sexual (instn mento ã" ait.r.r,çã em relação ao outro), deve exclamar: "Era isto?", ou melhor,,por isso tania confusão?" Aléú.de tudo o que poderíamos pensar sobre o papel quase totêmico que têm essas denominações ^num que' casal (nhoque, patinho, ratinho, gato"'), assinalemos por outro lado, o resultado é que o objeto nomeado se converte em i'outra coisa". Na histeria quadro no qual o pênis pode conobservamos uma intenção que pode resunhoque
";;:.;".
-
O OUTRO: DEFINIçÃO E
CAMPO
205
mir-se no desejo de desrealizar o pênis, de situâ-lo em outra cena. Trata-se da cena oral a que tanto se inclina a histeria. Mas, 4o mesmo tempo, ela é uma desrealização que o degrada. Degrada-o não quanto a seu valor, não enquanto um pênis valha por si mais que um nhoque, mas o degrada no sentido que Freud formula a degradação da fase genital, a fase anal ou oral. É curioso observar que seja precisamente a histeria - quadro em que o central é o problema do reconhecimento do outro - o que mais propende à degradação do outro. Feita essa reflexão acerca da função alimentar do Outro, observemo-la como ocorre na consulta anaütica. Observemos, em primeiro lugar, que, como efeito disso, se esboça a tendência geral de perceber o analista (curiosamente em posição de ser demandado) como um Outro absoluto que poderia adivinhar tudo. Em segundo lugar, a expectativa do sujeito (em congruência com sua posição) ê a de ser alimentado; sabe-se que o alimento em questão é o "manâ" do narcisismo, por isso o primeiro pedido (ou demanda) do paciente poderia assumir perfeitamente a seguinte disposição discursiva: "Diga-me lisonjas, canta-me um tango, dança-me um samba, alegra-me a vida"... Daí o terrível efeito de frustração que gera a primeira resposta do analista: "Eu o escuto". Como conclusão final a respeito desse problema das identificações primârias, podemos estabelecer que as mesmas são a matriz do que, posteriormente, no decurso evolutivo, deverâ historicizar-se no sujeito, e deverâ, portanto, preencher-se mediante a. produção de conteúdos imaginârios. Conteúdos imaginârios que derivam da função diretamente empírica e sensível dos atributos captados na relação com o outro (fumar, posturas, gestos...). O primeiro elo nesse processo de preenchimento é cumprido pela identificação narcisica. Em primeiro lugar, conceptualizamos o narcisismo como operador da clivagem, ou cisão entre a identificação e a catexia. Definimos essa clivagem como um retorno da catexia ao Ego e uma manutenção da identificação com o objeto. Aqui se define, então, uma primeira separação que estâ elaborada num plano tópico, espacial: lugar do sujeito/lugar do objeto, lugar da catexia/lugar da identificação. E é em função dessa primeira separação tópica ou espacial que é eficaz a primeira lei da identificação: "catexia e identificação ocupam lugares polares".
(]I.JRSO E DISCURSO
/
Formulado em termos de separação, de desdobramento de lugares, falar de narcisismo exige falar do duplo: "Ou sou o objeto, ou sou o Ego". E um duplo diretamente remetido a uma dualidade de lugares cuja teorização Freud realiza em O Sinislro. Seu efeito, na observação clínica, é esse tratamento grandiloqüente do objeto, como se este fora um apêndice do prôprio sujeito. Esse desdobramento tópico deverâ expressar-se num fantasma: o fantasma temido do outro em O Sinistro, e deverâ ter dois destinos: 1) ou não se elabora e, neste caso, sobrevém a morte psiquica, tal como observa Spitz; 2) elabora-se, neste caso, se constitui o sujeito. Não obstante, da peculiaridadc cla elaboração deverá surgir o estilo do sujeib: a) elabora-se com pânico neste caso sobrevém a psicose; b) elabora-se com angústia - neste caso sobrevém a neurose. Esta última observação nos permite esboçar uma crítica. Às vezes se concebe o fato segundo o qual a psicose seria um efeito de fracasso das identificações primârias. Em princípio (sem que isto queira desmenti-lo), observamos que, a rigor, a psicose é um efeito da elaboração do narcisismo e que, em conseqüência, sua etiologia não é tão misteriosa como sugerem as formulações das identificações primârias, sobretudo se estas, como vimos, não são observáveis.
Definitivamente, o narcisismo é a primeira operação propriamente tangível. Por certo, o é na ordem de tangibilidade que a psicanálise trata. Essa tangibilidade está formulada na alternativa de um desdobramento. Pois bem, de onde vem o duplo? De onde vem a exigência de elaboração dos dois lugares? Por que esses dois lugares? No narcisismo (enquanto identificação com o falo), se acham írnplícitas duas exigências de caráter absolutamente oposto. Trata-se da exigência um e da exigência dois, que jâ comentamos, mas que interessa agora sublinhar. A primeira, é a exigência de ser um. Que quer dizer isso? Trata-se da exigência de ser único, primordial. Essa exigência se acha implícita no sujeito desde que, de acordo com a definição freudiana, a libido infantil é insaciâvel. Esclareçamos que não sô a libido infantil o é, mas inclusive a do adulto, e essa insaciabilidade é uma das notas que definem primordialmente o desejo. Posto que a libido é insaciâvel, não bastarâ uma relação sexual para reduzir a zero a tensão. Reduzi-la-â por um momento, mas imediatamente se renovarâ a
207
O OUTRO: DEFINIÇÃO E CAMPO
DA OBRA DB J. LACAN
pois' .'it'lrrgcm pela qual se registrarâ o aumento da tensão' Assim' da desejo do unicidade' da ;r exigência um nos fai*a do desejo da pela insaciabilidade único e ì,,i *iiru perfeição, de ser exclusivo porsendo, ideal, Ego do ii;ìà;, e^essa éxigência é fundamento llnto, uma exigência constitutiva do sujeito' dois é a exigência de ser dois. Não se trata, aqui, Á que se acha "*igênú .1" uÁa eiigência do sujeitã, mas da estrutura em a famítranscende por (que, certo' irrserido. Falamos da estiutura espénossa porquanto em iujeito' do lia) que define a constituição
um cie é^ absolutamente necessârio que o filhote dependa de i,ó.rtro,, que faça as vezes de refeiente. Na cultura cujo eixo é a das família, eisa função do Outro se acha realizada' na maioria o acha se cargo cujo a outro o ó"f" mãe' Neste contexto, para o olha "ãr"., como assim porquanto, fii;;1; é bifrontat. É bifrontal que o em cena' outra para uma olha filhote, ao mesmo tempo olha mãe a como Assim presente. iiih;a;'não estâ formalmente que olha para outra cena que' furu o seu filhote ao mesmo tempo
código (criança-pênis), esboça seu objeto de.desejo' que olha para Oo"tn"t-o modo o.la olhu o filhote ao mesmo tempo (concerne à mãe seus ancestrais. Essa bifrontalidade da estrutura
i;ú; pãt.""
ao mesmo ou ao clã) perfila lugares diferentes e opostos: a mãe' que o pênis' enquanto para o olha i"-po q.t" àlhu putu o filhote, para os anclã, ao mesmo tempo que olha para o filhote' olha cestrais.
Outro
Ml" Filhote
t''t t
Clã-
--Ancestrais/Totem -Pênis/Pai -
e tabu
208
CURSO E DISCURSO
/ DA OBRA DE
J, LACAN
o ouTRo: DEFINIçÃO
E
CAMPO
2@
ele deve ser ao mesmo tempo ele mesmo e o ancestral (que perfila os moldes do totem e do tabu).
gcra energia e esta produz matéria. Em nosso caso, a catexia gera identificação e esta promove catexias.
Estamos de volta, então, ao problema do duplo, que Freud teotua em O Sinistro, e cuja causa se encontra no carâter paradoxal que resulta da união dessas duas exigências (a subjetiva propriamente dita, e a estrutural que o determina). É em função dessa bifrontalidade da estrutura que a exigência dois encarna, no sujeito, sob a forma de uma clivagem ou cisão. Neste ponto, formulamos que a identificação narcísica é uma tentativa de produção da dublagem. Dublagem que, por sua vez, deve ser elaborada de uma maneira ou de outra, isto é, com pânico ou'com angústia. Dissemos que a elaboração no âmbito do pânico introduziria a psicose; e assim é, porquanto esse pânico impediria o acesso à dialética edípica, onde finalmente hâ de recuperar a forma simbólica, a presença do terceiro, a presença desse outro a quem a bifrontalidade da mãe-se orienta. Por outro lado, sua elaboração no marco da angústia introduz a simbolização do desdobramento da identificação edípica. Por definição, podemos, pois, dizer que a identiÍicação edípica é uma defesa do desdobramento. Seria, então, uma defesa contra o duplo. Por quê? Basicamente, porque as notas diferenciais da identificação edípica residem precisamente em que catexia e identificação ocupam lugares polares. A cobertura de ambos os lugares êrcalizada por dois pólos diferentes. Um dos pólos da estrutura é coberto pela identificação do sujeito, enquanto que o outro é coberto por sua catexia. Contudo, na identificação edípica intervém outra nota que é praticamente definidora: o pôlo da identificação coincide com a instalação da ambivalência. Para demonstrar esta última afirmação, vamos realizar um longo percurso. Primeiramente, notemos que a definição da identificação se assemelha à que podemos dar do capital, posto que a identificação se caracteriza poÍ ser "catexias passadas, acumuladas e objetivadas". O fato de que a identificação seja a objetivação de uma catexia passada e acumulada nos leva a pensar que, em última instância, a catexia sofreu um processo de transformação pelo qual uma pura exigência, uma pura tensão, um puro movimento energético se transformou em matéria. De passagem, assinalamos nesta formulação uma manifestação da epistemologia freudiana segundo a qual o ciclo da vida seria redutível ao ciclo da energia: a matéria
Vejamos perfilar-se esse movimento. O sujeito orienta suas catexias para um objeto, entendendo, neste caso, que a catexia é, substancialmente, libido e que a expectativa de toda libido ê a de ser satisfeita. Sabemos do impossível dessa expectativa, jâ que, por definição, a libido é insaciável, de modo que nenhum objeto poderá cobrir sua exigência. Definitivamente, não há objeto que convenha ao humano cujo desejo, em síntese, é histérico e que termina, por esses avatares do destino, parecendo-se demasiado com a gata de dona Flora... A insaciabilidade libidinal e, ao mesmo tempo, sua aspiração a ser realizada por um objeto conformam um espetacular paradoxo, configuram o conflito inconsciente, efeito do qual é essa intrínseca problematicidade, essa intrínseca paradoxalidade da sexualidade humana. Assim, pois, a expectativa de satisfação deverâ ser inevitavelmente desmentida e isso por razões alheias à boa vontade dos participantes (mãe e filho), ou seja, por razões de estrutura, que jâ definimos sob o conceito de "bifrontalidade da estrutura", e pelo qual se exigiria do sujeito cobrir simultaneamente dois lugares opostos. A impossibilidade de o sujeito realizar essa cobertura se materialna na limitação, na fronteirização que e-statui o corpo. O corpo, como materialidade, prefigura um limite. É por isso que, em Freud, o Ego é antes de tudo um Égo corporal, é por isso que toda expectativa (ou fluxo libidinal) que dele partahât de fazê-lo de acordo com certas leis que o regulam e o ajustam. Definitivamente, a expectativa de satisfação hâ de ser inevitavelmente desmentida e, definitivamente, o sujeito deverá orientar sua catexia para novos objetos (objetos que forçosamente serão substitutivos), iniciando-se, assim, um ciclo que Freud analisa em Acerca de uma EIeíção Especial de Objeto no Homem. Sem dúvida, antes de observar a seqüência das substituições, nos interessa estudar como se produz o desalojamento da catexia do objeto primordial para o substitutivo que inaugura a série. Desmentida como é a catexia, ésta desaloja o objeto, deixando aberta, assim, a porta para que em tal objeto ingresse a pulsão de morte, pulsão que, digamos de passagem, funda a agressividade. Sabemos que a separação, na relação mãe-filha, da mãe realiza-se paÌa a menina sob o signo extremo da hostilidade; hostilidade que, finalmente, é
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o ouTRo: DEFTNIçÃO
E
CAMPO
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porquanto se tratam de ordens que exigem compulsiva obediência. Obediência que não reconhece limites, nem entre vivos nem entre mortos, nem no aqui nem no além. "Se eu desejar algo, deverâ ocorrer alguma desgraça ao meu pai (que jâ estâ morto) no mais além"... pensa o Homem dos Ratos. Mas, acontece que, estando o pai morto, nada se deverâ temer por ele. Sem dúvida, a ordem louca persiste, com o que o neurótico, para adequâ-la à, realidade, agtega racionalmente esse "mais além", devido ao qual, sendo originalmente ateu, deve transformar-se num crente. Um crente muito sui generis, posto que não o move senão uma loucura: a loucura da ordem compulsiva. Essa loucura, inerente ao Superego, é certamente o resultado da dessexualizaçío, da incidência da pulsão de morte, da instalação da ambivalência. Em função disto, se entende claramente a definição que Freud nos dá do Superego: trata-se dessa estrutura pela qual a sexualidade - ameaçada de morte - obriga o sujeito a converter-se em tudo idêntico ao agressor, como um modo de preservar o interesse narcísico. Em síntese, a identificação edípica é uma estratégia relativa à duplicidade narcísica. Neste sentido, se trataria de uma defesa do duplo narcisístico, ou melhor, se trata de um manejo defensivo da angústia do duplo. Em termos mais claros: trata-se de uma estratégia de defesa da exigência dois do narcisismo, que exigiria do sujeito uma ruptura (cisão) para ocupar dois lugares polares. A resolução da questão acha-se implícita na saída edípica: assunção de um dos pólos por via da identificação, e busca do outro por via da direcionalidade impressa à catexia. A identificação histérica é uma falha no manejo da identificação edípica. É por isso que poderíamos defini-la do seguinte modo: "a identificação histérica se parece com a identificação edipica, mas casualmente não é". Trata-se, obviamente, da tipica casualidade, do típico acidente que tão recorrentemente paira sobre a histeria. Realmente, o Ëdipo teria de culminar permitindo ao individuo a instauração do que denominamos "identificações propiciatórias", as quais viriam a ser identificações que permitem ao sujeito a orientação da catexia para um tipo particular de objeto. Mas, também, assinalamos a presença de identificações de caráter radi-
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calmente oposto e que receberiam o nome de "aspectos denegatórios da identificação". Estes consistiriam no manejo patogênico da duplicidade narcisística pela qual a catexia fica inibida de todo o acesso ao objeto, devendo retornar ao sujeito (efeito do narcisismo), mas reencontrando-se, portanto, com a pulsão de morte, própria da identificação, com a ambivalência, gerando-se assim um descomunal curto-circuito. Justamente a identificação histérica imita uma emergência propiciatôria, mas, em seu desenvolvimento e no seu desenlace, termina sendo denegatôria. E o que justamente acontece com Dora, que aparentemente se orienta para o homem (Sr. K), mas termina elegendo ( ?) à mulher (Sra. K). A histeria, como quadro, imita tanto um ËAipo consagrado, que é preciso esclarecer que justamente não o é. Não o é porque, no preciso momento em que o senhor K declara seu amor a Dora, esta lhe aplica uma bofetada, apôs o que retorna a catexia à senhora K de quem capta um traço (sobre a base de sua fantasia de felação de seu pai e a Sra. K), situado na garganta e expresso na afonia. Precisamente é o que - para citar outro caso - acontece com Isabel de R., que capta como objeto sexual um traço: a perna do pai apoiando-se em sua própria perna. Este traço funciona concomitantemente como limite do sintoma, dado que a histeria não poderia imitar qualquer sintoma (e dizemos isto para desmistificar certo cavalo de batalha, supostamente clínico, que circula por aí, acerca do carâter imitativo da histeria), a não ser única e exclusivamente aqueles traços que catexizou previamente no outro. É por isso que a histeria não é um quadro irrestritamente imitativo, e por aí podemos esboçar uma categoria diferencial entre ela e outros quadros de imitação mais pronunciada, como é o caso do travestismo na peryersão, ou o caso da crise confusional. Na confusão, na mimese, a identificação com o outro é massiva. Jâ na histeria, apresenta um limite: um limite de sintoma que, por sua vez, estâr definido por um traço. Ë o traço captado do objeto (outro) da catexia e repetido compulsivamente como se se tratasse de um tique. A identificação histérica se parece com a edípica, mas casualmente não é... Trata-se de uma falha do Édipo enquanto manejo do duplo, posto que os dois lugares da exigência dois (sujeito e objeto) são parcialmente realizados, visto que não se instala o
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E CAMPO
objeto como tal, instalando-se, em compensação, uma dua' rju,t' do tipo sujeito-traço. A identificação primâria não é observâiel. A identificaçao secundâria, sim, o é, E o é na seqüência que conduz à sua consli" tuição: narcisismo, Édipo, identificação secundâria... Nesta se' qüência, obseryamos que se poderia historicizar a identificação, porque se pode observâ-la. Ao contrârio, a primária não é observâvel, e jâ levamos vá-rias pâginas trabalhando com base no fato de que se trata de uma exigência teôrica de Freud para explicar como o simbôlico se mate. rializa num corpo de exigências. Estas exigências conduzeur à identificação. Simplesmente porque são exigências de que o sujcito se identifique a algo que lhe é proposto como modelo. Neste senticlo, temos longamente definido as identificações primârias como a mattiz da estrutura do que posteriormente deverâ inscrever-se na história do sujeito. No falo se inscreve uma relação, mas com o Outro enquant(J absoluto que, no curso do Édipo, deverâ relativizar-se pela incidência de uma lei que instaura o Nome-do-pai. Esta lei proporâ intercâmbios que podemos reduzir a um esquema muito simples de um pacto: "se não deitares com mamãe e te esforçares em parecer-te com papai, amanhã terás uma mulher conro papai tenr a mamãe, ainda que se tratará de uma mulher diferente". Como vemos, os termos que integram o simbólico (Outro, falo e lei) deverão assumir, por meio da identificação primâria, a forma da mãe, da figura combinada e do pai. Estas figuras deverão inscrever-se no curso do drama edípico. O Outro deverâ inscrever-se por meio da mãe O falo, através da figura combinada, e a lei, por meio do pai. A conclusão que se impõe, diante de tudo isso, é a de que a identificação é o modo no qual o simbólico se inscreve no sujeito. Neste sentido, poderíamos dizer que o sujeito, o pretenso homem, (r um texto, um livro, um discurso, uma página escrita em letras cujo côdigo não se sabe quern o tem. O homem é uma pâgina escrita cuja compaginação está sempre na "outra cena". A letra com que * homem foi escrito é a identificação. Estas letras, enquanto letras mortas, deverão ser reestudadas pela psicanâlise para permítir romper o texto, recompô-lo, tornar a rompê-lo, para recompô-lc numa disposição sempre distinta, num ordenamento sempre dife-
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rente que permite uma sempre maior e mais ampla leitura do sujeito, até que este possa chegar à Terra Prometida. O sujeito é um texto. Daí que, quando abordamos antes o estudo da lingüística como modelo, dissemos que se tratava de um modelo teórico para explicar o sentido. Ora, vemos que o sentido é o sujeito. A lingüística, pois, nos explica o sentido à medida que
O OUTRO: DEFINIçÃO E CAMPO
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Edipo
explica o sujeito.
Insistiremos em que o sujeito é um texto, uma pâgina escrita pelo simbôlico através do punho e letra dos pais (podem escrever tanto em letra de fôrma, como em gótica, como em cursiva inglesa) e que deverâ definir-se num estilo... Por isso é que "o estilo é o homem".
LOCALTZAçÃO DA TDENTTFTCAçÃO pRTMARTA Para estudar essa localizaçío, teríamos que considerar o seguinte: 1) em primeiro lugar, definimos as referidas identificações primârias como a matriz simbôlica da estrutura do sujeito inconsciente; 2) em segundo lugar, por seu objeto poderíamos distinguir que concernem à mãe, ao pai e à figura combinada de ambos; 3) finalmente, embora a título de hipótese, assinalamos a possibilidade de pensar num narcisismo primârio, ainda que não tenha o mesmo status teórico das identificações primârias. Esclarecemos que esse narcisismo primârio não teria o mesmo status teórico que as identificações primârias porque tem um certo nível de observabilidade no empírico, o que de modo algum acontece com outras identificações primârias. Definitivamente, pois, esse narcisismo primário estaria como que a meio caminho entre as identificações primârias e o desenvolvimento edípico; participaria das identificações primârias, à medida que parte da fusão da identificação com catexia para produzir a deflexão, e participaria do Ëdipo enquanto causa, porquanto é a deflexão que no narcisismo se inaugura a que permite a abertura dos pôlos de catexia e identificação que, no curso do Édipo, se elabora. Qual é a localizaçáo tôpica das identificações primârias na topologia que Freud desenha em O Ego e o Id, isto é, que se acham inscritas no Ego, no Superego ou, finalmente, no Id?
Caberia, em primeiro lugar (e posto que se trata de identificações), supor que elas estão localizadas no Ego, jâ que o Ego é um registro de identificações. Para prosseguir com esta linha, não obstante, deveríamos esclarecer certa multiplicidade de definições relativas ao Ego enquanto sua natureza e sua função. Isto porque, no texto de Freud, o Ego aparece duplamente definido: a) como um sistema perceptivo, por um lado, e b) como estrutura libidinal, por outro. Enquanto sistema perceptivo, o Ego tem uma função de percepção da motilidade do sujeito numa instância consciente. Isto quer dizer que alguém pode não ter consciência de determinados movimentos que estâ realizando, porém, se se dispuser a tanto, seria possivel tal consciência. Com efeito, o indivíduo pode achar-se absorto e logo levantar-se de seu assento e começar a caminhar e não estar focalmente atento a esse procedimento. Isso não quer dizer que não hâ consciência do deslocamento, e sim que a mesma é liminar, ou melhor, periférica. Mas, além disso, quer dizer que o indivíduo poderia, se requisesse, ter plena consciência do seu movimento. Em função disso, enquanto sistema perceptivo, o Ego é antes de tudo um Ego motor, funcional. Em outras palavras, é motor e funcional enquanto percebe a motricidade e sua função, seja a motricidade e a função da musculatura estriada (relativa aos deslocamentos motores conscientes e voluntârios) como da musculatura lisa (relativa a movimentos de equilíbrio neurovegetativo). Discriminamos ambas possibilidades porque, embora a musculatura estriada tenha uma inscrição nitidamente consciente e voluntâria, o mesmo não ocorre com a musculatura lisa; ela regula esses processos digestivos, cardiovasculares etc. que não são tão dependentes de um propôsito consciente; não obstante, os movimentos da musculatura lisa são possíveis de percepção mais ou menos precisa e focal, mais ou menos difusa, mas afinal não deixa de ser per-
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o ouTRo: oernlçÃo
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do Ego, é condido sujeiPção, se
constitui sobre a base da percepção da motricidade, para que as identificações primârias estejam inscrita integrem a motricidade. Isto implicari cações primârias estão biologicamente critas e corporalmente marcadas' Mas nos reformularia a mesma pergunta que surgiu ao tocarmos no gene estão localizadas? de transmissão? Jâ de-
primitiva, a imPossibifazer extensivas aquelas conclusões a essa formulação. É que o modelo de herança biolôgica nunca foi central nas formulações de Freud. Se bem que em 1912,
em Totem e Tabu, ele chega a formulâ-las em termos de um 921 relativiza muito mais, jâ que em a.questão não mais como um modelo modelo didâtico para explicitar um observâvel.
identificações primârias no Ego motor funcional. Deveríamos tomar uma outra definição de Ego, que Freud
pectiva libidinal, a definiçãq do Ego é contraditôria: a) reseryatôrio de libido narcisista e b) destino das catexias do Id. Essa contradição radica no fato de que ser reservatôrio supõe
E
cAMPo
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que o Ego é quem administra e orienta as cargas libidinais, enquanto que ser destino supõe admitir que é a estação terminal de um processo gerado em "outra ceÍIa". Nesta contradição estão lançadas as raízes que explicam a polêmica que Lacan iria travar com os psicanalistas do Ego (Hartman e L,oewens...), posto que precisamente a investigação lacaniana orienta-se no sentido de demonstrar o carâter determinado da constituição do Ego, em demonstrar a incidência desta função do Ego: ser destino das catexias geradas no [d, incidência radicalmente desconhecida pela psicanâlise do Ego-centrismo. Em última instância, Lacan observa que, se o Ego é reservatôrio de libido, o é à medida que é destino de catexias; portanto, tais catexias não lhe são próprias, e, sim, derivadas. Esta tese é congruente com a postura de Freud, que não admitia a existência de um Ego preexistente, mas afirmava que o mesmo é resultado de um processo. São derivadas. Observemos esse processo e seu resultado no pensamento freudiano. A princípio, Freud situa a instância do Id, de onde partiriam as catexias para os objetos. Sabemos que esses objetos têm a ver, em última instância, com a mãe fâlica; mãe construída sobre a base da dupla provisão de alimento e alimento libidinal que permite a constituição de nosso sujeito no simbólico. Pois bem, sabemos que as múltiplas experiências de privação, imposições, ordens e as'coações gerais relativas à educação conduzem ao abandono do objeto. De qualquer maneira, esse abandono do objeto exige do sujeito uma recuperação da catexia, o que se realiza no retorno da catexia ao Ego. Jâ demonstramos como esse retorno conduz a uma identificação, germe, por sua vez, da constituição do Ego. Deduzimos, então, que, se a catexia que inicialmente estava voltada para o objeto retorna ao Ego, constituindo-o, em conseqüência, na sua própria constituição, o Ego é um substituto do objeto perdido. O resultado (imaginârio, por certo) desse processo é o que tão reiteradamente temos assinalado: o Ego fica igualado ao objeto primordial. Neste sentido, o Ego se oferece ao Id como objeto e, nesse mecanismo, vemos operar a fonte do que denominamos narcisismo. Portanto, é possível concluir que o Ego é destinatârio das catexias do Id e que, precisamente, enquanto pode ser destinatârio é que se pode constituir em reservatório libidinal. Sua
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capacidade de ser reservatôrio, e, portanto, agente, estâ diretamente subordinada à sua capacidade de ser destino e, portanto, sujeito assujeitado (isto é, submetido à estrutura). Na constituição do Ego, assim resumida, vemos operar algo que na teoria lacaniana é descrito como: dinâmica ou dialética da presença-ausência. Por império da dita dialética, a ausência do objeto primordial geraria a presença - por substituição - do mesmo no sujeito mediante a instauração da estrutura do Ego. De maneira mais simples, a coisa ficaria mais ou menos assim: o Ego presentifica o objeto ausente. Se quiséssemos acriolar mais a coisa podíamos enunciâ-la assim: "o Ego é, em última instância, o substitutivo da mãe operando agora como símbolo". Trata-se, neste caso, ao dizer símbolo, da presença real de um objeto virtual cuja eficâcia é visivel no campo dos efeitos: o narcisismo e suas manifestações (ecolalia, grandiloqüência da palavra' onipotência da palavra, onipotência do contato). Se descrevêssemos esse processo, podeúamos reduzi-lo ao seguinte: 1) o Id toma um objeto de catexia (mãe fâlica); 2) o objeto é geranabandonado - isto implica o retorno da catexia ao sujeito, do-se nesse retorno a constituição do Ego; 3) o Ego, portanto, se converte em herdeiro do objeto perdido; 4) o Id toma um objeto de catexia (o Ego como substitutivo da mãe fâlica), originando, assim, o narcisismo. Como resultado desse breve esquema, é ôbvio concluir que o Ego é um efeito do Id, na dialética da presença-ausência com o objeto. Mas se quiséssemos integrar um nível a mais na explicação diríamos que, em O Ego e o'Id,lemos o seguinte: "a transformação da libido objetivada em libido narcísica implica o abandono dos fins sexuais, sendo, pois, este o caminho de toda dessexualização e sublimação". Jâ demonstramos que a dessexualização se produz por meio da liberação da pulsão de morte que fica associada à identificação em função do que se constitui essa relação de objeto que definimos pertinente à ordem do parecer-se para não acasalar-se. Precisamente o fato de que o narcisismo seja, em última instância, o operador de toda dessexualização e sublimação por transformação da libido objetal em narcísica, nos permite entender por que o Ego é reservatôrio. Não é reservatório porque dele partem as catexias, mas, sim, porque é uma estação importante, um trans-
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formador das tendências promovidas no Id. Essa estrutura (o Ego), de que Freud disse claramente que se oferece como objeto ao Id em substituição ao objeto originariamente perdido, é o que denominamos narcisismo; sabemos que este, por efeito da deflexão da identificação e da catexia, hâ de produzir uma instância dupla: Ego ideal e Ego atual. Esse desdobramento é precursor de outro que se produzirá ao término do complexo edípico e do Superego e Ideal do Ego. Isto nos introduz à seguinte primeira conclusão: não só as identificações primârias não estão localizadas no Ego, mas também que o Superego e Ideal do Ego são cabe suspeitar - à medida que tampouco estão localizadas nesta insformações do Ego tância edípica, cabendo, como saída, situâ-las no Id. As identificações primârias não estão situadas no Ego, se entendemos por Ego o sistema de percepção-consciência, nem no sistema de percepção da motricidade, porquanto, para aceitar isso, teríamos que aceitar que tais identificações estão geneticamente, bioquimicamente, localizadas no corpo. Como esta tese não é sustentâvel nem demonstrâvel, pensamos que o conceito de herança, em Freud, é unicamente trabalhâvel em termos de herança libidínal. O fato de que o Ego seja destinatãrio de tal herança o avalizaria, mas isto nos obriga a pensar qual é a função de intermediação do Id entre os pais do indivíduo e sua instância egóica. Concluindo, poCeríamos esboçar que qualquer investigação com o mínimo de seriedade da questão nos prova que: 1) o Ego é efeito do ld; 2) não podemos localizar as identificações primârias do Ego - se este é efeito do Id e se as identificações primárias são constitutivas, então essas se localizariam mais congruentemente no Id; e 3) o destino desse Ego é a construção do Superego, como instância capaz de mediatizar o desdobramento narcísico. Um último silogismo como despedida seria: se as identificações primârias formulam exigências ao Ego e se o Id formula exigências ao Ego. Então, provavelmente, as identificações primârias e o Id sejam uma mesma coisa: integram um mesmo conjunto. Expusemos que as identificações primârias têm por objeto o pai, a mãe e a figura combinada, e por função a instauração dos símbolos: Outro, falo e lei. Expusemos, também, que esses símbolos se expressam ou se realizam no desenvolvimento edípico, no narcisismo, por um lado, e no campo das identificações edipicas,
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que se vinculasse às primeiras posições auto-erôticas e cuja resolução fosse a instauração de um narcisismo do Ego (narcisismo que seria, portanto, secundário). Esse narcisismo culminaria no processo edípico cujas notas diferenciais são duas: 1) separação dos pólos de catexia e de identificação; 2) triangulação das posições do sujeito. E, finalmente, esse processo edípico culminaria com a instauração do Superego.
outro. Ao término do processo edípico, se constitui o Superego: sabemos que este é o resultado de uma identificação com o pai e
.r,()r
eom a mãe (enquanto restritores) e, por fim, algo assim como o destino das identificações edípicas, ainda que em forma jâ constituícla ou, mais exatamente, estabilizada. Em conseqüência, o Supe.ego abre caminho à identificação secundâria. A simples observação dessa reflexão sugere a idêia de um processo iniciado pelas identificações primârias, seguido de deflexão narcísica, do conflito edípico, e sua resolução mediante o Superego nrÌma bateria de identificações secundárias. Em outras palavras, a nìera observação da reflexão acima sugere a idéia de que a identificação primária e o Superego são os pólos opostos de rniciação e ápice, respectivamente, desse processo identificatôrio. [io<ìrúamos, inclusive, representar essa questão através do seguinte rÌsqÌÌema seqüencial: ìdr:rr1ìficaçào primária .-* Identificaçilo narcísica +Identificação edípica ----* ldenti ficação secundâria
CAMPO
l9 momento (mítico) I
Auto-ero(isnìo
tlcnl i Íicaçào
I
+ rrarcísit'l
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t
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sectrrrdária
NarcisismodoE.go Catexia,'lrlcntiÍicaçào 1'riarrgu Iaçào
Itleal do Ego Su
pcrego _l
Assim formulado,
-/Superego/
o Superego é uma estrutura de estabili-
zação. Precisamente por sua definição de estabilizador, cabe ques-
Pois bem, sabemos que a identificação edípica é altamente instâvel, pois sabemos que é um período de elaboração de um r:onflito no qual se mesclam diferentes alternativas posicionais do sujeito. Sabemos, por outro lado, que as identificações secundárias ":,ho altamente estáveis, no sentido de que têm um grau de permaaência porquanto jâ haja uma assunção posicional. Posto que a ìnstância que diferencia ambos os tipos de identificações é o Superego. cabe pensar que este é um estabilizador. Formulando-o em termos cibernéticos, poderíamos sugerir que o Ego é a fonte energética e o Id é o operador das acumulações e descargas, enquanto que o Superego seria o estabilizador das quantidades acurnuladas e das quantidades descarregâveis. Ã luz do exposto anteriormente, poderíamos construir um primeiro marco de referência, segundo o qual o Édipo seria o debate dessas primeiras identificações primárias; debate que, mediante o Superego, se estabilizaria num resultado de relativa permanência. Então, a partir desse marco de referência, esboçaríamos rs'n modelo. Snponhamos um primeiro momento mitico de identificações i,ri:tránnç momento aparentemente ahistórico. anterior ao sujeito
tionar a clâssica definição segundo a qual o Superego não é nada mais que um restritor ou proibidor. E que, embora no Edipo se constituam fixações, cuja saída o Superego proíbe, não é menos certo que dessa sexualidade fixada surjam derivados, substitutos. Tanto e a tal ponto que a própria prâtica analítica é justamente a prática da anâlise dos substitutos e dos mecanismos de substituição.
l
Portanto, embora o Superego proíba, é preciso pensar que nele existe outra função de igual dinâmica (identificação com o pai e com a mãe), mas cujo sentido seria o de permitir o acesso a objetos sexuais. Isto, porquanto ao término do complexo de Edipo - vale repetir o sujeito não armazena e engorda com sua libido, mas, sim, ao mesmo tempo busca determinado tipo de objetos para os quais orientar o referido campo libidinal. Concluindo: o Superego é uma estrutura dupla, de duas faces (Ideal do EgolSuperego), exercendo tanto funções de restrição como de propiciação. Isso, por sua vez, nos leva a fechar uma formulação iniciada no estudo do estâdio do espelho, onde assinalamos que a identificação com o falo por impacto da castração gera uma dupla instância: a) o Ego ideal e b) o Ego atual. Estas instâncias, à medida
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que a primeira é sede de toda onipotência e idealizaçâo primârias e
a segunda a subestrutura à qual Freud conferiu a tarefa de perceber e reconhecer a realidade da castração, necessitam do estabilizador. Cabe, agora, perguntar se o Superego tem a ver com as identificações primârias. Poderíamos retomar o silogismo com que fechamos a discussão a propósito do Ego: se as identificações primârias formulam exigências ao Ego, e se o Superego formula exigências ao Ego.
Entào, haveria congruência entre o Superego e as referidas identificações. De qualquer maneira, essa congruência não é sustentável, já que, conforme formulamos, as identificações primârias e o Superego ocupam os pólos opostos do esquema que traçamos. Por outro lado, se bem é certo que o Superego formula exigências ao Ego, não podemos desconhecer que se trata de uma estrutura secundária, tal que, evolutivamente estudada, surge como efeito de certos desenvolvimentos e não como sua causa. Isto é nitidamente discordante com a identificação primâria que aparece como causa do sujeito. Em princípio e quase por exclusão, digamos que as identificações primârias teriam que estar localizadas no ld. Mas... Que é o Id?
Para Freud, o Id é um reservatôrio instintual, libidinal e de cargas. Insistiu-se tanto sobre essa definição que, finalmente, a tendência geral que se observa entre os psicanalistas é a de pensá-lo como um reservatório de instintos sem que afinal se saiba muito bem que quer dizer isso... O Id é um reservatôrio de instintos... O Id é um fervedouro instintual. A caçarola onde fervem e borbulham os instintos. Serâ possível destapâ-la? Pois, quem sabe, a única coisa que contém essa caçarola seja uma comida caseira, comum e simples, um desses guisados maternos normalmente perfumados com o "inquietante familiar" aroma do conhecido. "Inquietante familiaridade" é uma forma de traduzir o heimlich freudiano. De repente, essa caçarola mítica, essa marmita onde ferve a poção dos instintos se converte na marmita onde a bruxa cozinha as crianças que não se comnaturalmente, para comê-las -portam psicanalistas, afinal bem. A desgraça, neste caso, é que as mãos... E os contos com um conto de fadas entre -de ficaríamos que se expresse' permitem fadas não explicam; simplesmente
O OUTRO: DEFINIçÃO E
mas não explicam
-
CAMPO
definitivamente, não
-
o inconsciente.
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Os
contos de fadas são bons; são bons para que, na véspera do sonho, a criança adormeça. São bons para que, ao sonhar com eles, a criança elabore a dialética do bem e do mal, do amo e do escravo, do Eu e do outro. São bons, no curso de uma anâlise, como material a ser interpretado, mas, agora que estamos aqui sentados na quietude de nosso gabinete, agora que nos é dado pensar o material, construir as hipôteses explicativas, decifrâ-lo, os contos de fadas deveriam dar passagem à elaboração propriamente cien-
tifica. O que nos diz a ciência sobre essa panela? Em primeiro lugar diz que, no meio do ensopado e flutuando no caldo com as coisas do cozido, estão as identificações primârias. Jâ demonstramos a congruência entre o Id e tais identificações. Por tudo isso, o Id se definiria como segue:
'.<;ï:'":::ï:ï::, Aqui, convém recordar algo que assinalamos nas pâginas anteriores: as identificações primârias são solidârias com as fantasias primârias e integrariam idêntico status teôrico, porquanto constituem o mesmo problema de ser igualmente universais, igualmente herdadas e igualmente ilocalizáveis. Moral: o Id contém identificações primárias, fantasias primârias, além dos tão falados instintos:
Na Metapsícologia, mais precisamente no ensaio Os Instíntos e seus Destinos, Freud observa que a pulsão ê um conceíto-límite entre o psíquico e o somátíco. Participaria do somâtico enquanto
fonte, e do psíquico enquanto refere a um objeto, mas isto não anula o fato de que a pulsão em si mesma (o tão falado instinto) não
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DA OBRA DE J. LACAN
ingresse no inconsciente. Para que a pulsão ingresse no inconsciente, é necessârio que se associe a um representante, que Freud qualifica de representante-representativo. Ë o conceito freudiano deVorstellung-Repraesentanz, e consiste em algo assim como uma marca que nomeia uma pulsão no inconsciente. Em outras palavras, temos uma pulsão, que, detida no umbral do inconsciente (ao qual não ingressa), nomeia um representante que cumpre a função de representação.
Inconsc Representante-representativo Pulsão (detida no limite do inconsciente e representada nele por uma marca)
Em conseqüência, o Id se definiria pelos seguintes caracteres:
pulsão Como vemos, os instintos - ou, mais precisamente, a não ingressam ao inconsciente. A panela do Id, uma vez destapada, deixa de ser panela e assume seu papel na ciência de ser um conceito. De qualquer modo, gostaríamos de trabalhar mais intensamente este último conceito pelo qual as pulsões não participariam
do Id. Recordemos, neste sentido, que os exemplos que Freud utilizava com maior freqüência no curso de suas conferências correspondem, grosso modo, ao seguinte: suponhamos que haja uma
O OUTRO: DEFINIÇÃO E
CAMPO
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personagem inconveniente nessa reunião e que alguém - na verdade, o guardião a expulsa, deixando-a fora e impedindo-lhe a entrada. A personagem em questão, deixada fora, não teria outro remédio, se quisesse fazer-se notar, que o de armar um grande escândalo lâ fora. Como resultado, ocorre que, mesmo que não entrasse na sala, algo em nome dessa personagem entraria: o escândalo armado por ela. O exemplo com que Freud tenta definir de forma aproximativa a relação da pulsão com o representante (é ôbvio que tal relação está constituída pela repressão ou recalcamento) nos importa à medida que, definindo o Id como a instância psiquica, nos vemos obrigados a excluir os instintos de sua esfera, na qual, em compensação, entrariam os representantes, sendo a relação destes últimos com aqueles uma relação de recalcamento. O processo pelo qual uma pulsão é representada é precisamente a repressão (ou recalcamento) que, ao associar a pulsão ao representante, permite que este cumpra a função de presença no inconsciente. Com isto, afirmaríamos que o representante ê a presença de uma ausência e, neste sentido, responde a uma finalidade da identificação (que também realiza a presença da ausência do objeto). O representante torna presente no inconsciente uma pulsão que estâ ausente; a identificação torna presente no inconsciente um objeto que estâ ausente. Moral: os representantes têm uma dupla função: a) presentificam o objeto (sob a forma de identificações), e b) presentificam a pulsão (sob a forma de marcas). O fato é que, do "conjunto" (no sentido que lhe conferem, na formulação matemática, as teses de Euler Vehn) do Id não participam as pulsões e, sim, os seus representantes, mediados pelo recalcamento primârio.
-,fantasias I
d
€----
primárias
iAentificação primâria
\representante primârio
(como efeito
do recalcamento primârio)
Nesse ponto, convém determo-nos para pensar mais pausadamente o fenômeno do recalcamento. Jâ que a elaboração deste
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conceito nos evitaria sucumbir, em nossa reflexão, ante um obstâculo epistemolôgico. Freqüentemente, tende-se a definir o recal-
camento como uma instância ontologicamente existente que se opõe à outra. Segundo essa combinação, haveria um conteúdo inconsciente ao qual se oporia uma barreira materialmente existente (como uma parede) impedindo a saída. Em síntese, o obstâculo parece derivar de certa "substancialização" do recalcamento correlativo a uma "substancializaçâo" dos conteúdos inconscientes. E que, se lermos toda a obra freudiana acerca da defesa, desde Projeto de Psicologia Científíca para Neurólogos até os artigos técnicos, veremos que a definição do recalcamento como barreira é uma definição operativa; operativa, no sentido de que precisamente esse é seu modo de funcionamento. Mas, o que notaríamos ao mesmo tempo é que, além dessa definição operativa, em nenhum desses textos se afirma que a natureza, a substância - por assim dizer - da repressão seja o ser barreira, a barreirez... Em b[etapsicologia, em Os Instintos e seus Destinos, em O Inconsciente e em O Recalcamento, Freud esboça uma definição de recalcamento no sentido de explicar não apenas sua mecânica ou modo de funcionamento, mas, ao mesmo tempo, sua natureza. Paradoxalmente, ao abordar a questão (nesses textos), assinala que a pulsão tem quatro destinos: 1) transformação no contrârio, 2) retorno contra a própria pessoa, 3) repressão e 4) sublimação. Esses quatro destinos são independentes entre si? São relacionáveis? E, em tal caso, como? Qual seria a relação? Por razões não só didâticas mas também estruturais, situemo-nos na anâlise da pulsão visual. Digamo-lo, mais simplesmente: o olhar. Em princípio, o olhar consiste num raio ôptico que avança unidirecionalmente para o infinito, trajeto que unicamente pode ser interrompido pela interposição de um objeto em seu curso. O raio ôtico fica freado ao topar com a matéria sensível: o objeto. Pois bem, esse freamento (estamos teorizando o estancantento do estâdio do espelho) traz dois efeitos: 1) O primeiro é a evidência da existência da visão. E que, por sua natureza, a visão não é perceptível ao olho. O raio ôptico, por sua vez, não é visível em si mesmo, e sim porque ao chocar-se contra um objeto duro o sujeito obtém como efeito uma "visão" do processo. 2) O segundo efeito é a construção ou configuraçõo do objeto, que não sô surge como o que
o oUTRO: DEFINIÇÃo
E CAMPO
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J. LACAN
devido à instauração (primeiro, no real e, depois, no virtual) de um objeto. Por esta via poderíamos chegar a conclusões muito interessantes. Tanto é que se pode afirmar que, assim como o objeto se converte em repÍesentante da pulsão, da mesma forma o espelho se converte em representante do sujeito. Digamo-lo, mais detalhadamente: o "outro do espelho" (ou seja, os olhos da mãe) serão o representante do sujeito no estâdio do espelho. Então, aqui há uma trapaça! Se o representante do sujeito é um "outro", o sujeito não é senão outro. E este o conflito a ser desarticulado no narcisismo. Na elaboração do âlter e da questão da alteridade cujos matizes srnrs-
tros (heimlrcft) se realizam no fantasma do duplo e do desdobramento. Reencontramo-nos com heimlicà... Reencontramo-nos com a panela do Id, onde a bruxa mexe um caldo que não se pode tomar: as exigências. As exigências, o mais indigesto de todos os pratos, o menos digeúvel, e, não obstante, a mais presente de todas as comidas no cotidiano menu do infans. Porém, agora, as coisas mudaram porque, assim como o processo de recalcamento consiste na ligação de uma pulsão a uma marca (entendo por marca a realizaçío presente de um objeto ausente), do mesmo modo se trata de um processo pelo qual o objeto é substituído mediante uma identificação: o Ego. Portanto, essa panela não é senão a estrutura na qual deverâ precipitar-se o sujeito. E por isso que o Id mal definido como um fervedouro de instintos é, a rigor, uma matriz de representantes-representativos primârios da pulsão à qual se associa por meio da repressão primâria, originando deste modo as identificações primárias cuja manifestação ou expressão(überbau) são as fantasias primârias. E é por isso que do Id não participam os instintos.
,,ELES" SAO O
"ID"
O recalcamento primârio é constitutivo do Id. O recalcamento primârio é a fixação de um objeto (sob a forma material de uma marca) à pulsão. E precisamente as marcas primârias são as que, na teoria lacaniana, deverão ser conceptualizadas como os "significantes primordiais", a primeira bateria significante.
o oUTRO: DEFTNTÇÃo E CAMPO
22g
bateria significante? euem pro-
tes? Ou ainda, dito de forma mais dores das primeiras marcas?
pod
o rd são os pais? Não vermos acaÍa de surpresa
muito à cara de surpresa
ïl,r,Xïi#ijâ[Hjï1ï"r:; ns, ante esta afirmaiãã.
pu."""-r.
a criança quando finalmente lhe pais". De qualquer modo, não colocação, mas, ao contrârio, o a que doa... o Id são os pais.
o'ì:i"r::iï:tãJ
mesmo modo o rd exige. também, outra congruência: tão eiterno e álte tão familiar e conhecido é o Id ao E!o, como claramente: coloquem âgoa a iÀçao, a esse caldeirão onde ferve... l'sso. "sra Essa categoria parece, entã
m e semelhança dos significan_ , dito de passagem, bern podeO infans deve transformar_se à também tiveram que transformar ld loy relação) com seus próprio de Edipo ampliado. . o Éaipo ampliado é uma exigência teórica que se depreendc do anteriormente exposto p"r" r*pìi"", o inconsciente não é filogeneticamente hèrdadô no "o-o biológico, mas simbolica.
""õo a.
reud, um conceito montado no modo, a relação dos pais com o no psíquico. EStá montada no basta olhar o ventre de uma e convença. Também está mon_ as linhas de identificação para
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o ouTRo: DEFINIÇÃO E
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entender o alcance desta tese; porque, a rigor, a identilicaçlo ê identificação com a figura e a exigência dos pais. Portanto, a identificação primâria tem a yer com o simbólico dos pais, e, por sua vez, este registro simbôlico paterno tem a ver com o simbôlico dos respectivos pais. Se abússemos o campo, teríamos que dizer que é a sociedade toda que, havendo exigido dos pais a tarefa de criar a prole, fala pela boca deles no curso da criação. Retomando a idéia de que a pulsão se constitui por recalcamento, encontramo-nos - na estrutura do sujeito - com o mesmo paradoxo que define a estrutura da relação intersubjetiva no Edipo. Pois, podemos estabelecer facilmente a analogia seSundo a qual, assim como quando se recalca surge a neurose e quando não se recalca se propicia a psicose, do mesmo modo, se a mãe erotiza o sujeito, o expõe à neurose e, se não o erotiza, condena-o à psicose. Dito à maneira de refrão: se uma mãe erotiza seu filho, mal; se não o erotiza, pior; se uma pulsão é reprimida, mal; se não é, pior. A sexualidade humana é problemâtica. Dizia Freud que, afinal, ê como se houvesse ttm desamanjo constitutivo na sexualidade do ser humano. E assim é. É o desarranjo dessa primeira indefensabilidade infantil, é o desarranjo do Id, é o desarranjo do Outro, é o desarranjo do simbôlico. Agora, cuidado porque, sem esse desarranjo, não hâ humano. Sem esse desarranjo, a única coisa que obtemos são esses "pedaços", retalhos, restos de humanidade que se materializam no marasmo,'no hospitalismo, nos estados crônicos que denunciara René Spitz. Trata-se do mesmo paradoxo que detectamos na dinâmica interna do complexo de Edipo, segundo o qual, se o sujeito é erotizado, mal, porque fica condenado à repetição do sintoma, e se não é erotizado, pior, pois fica condenado a não ser, ou seja, à psicose. Esse desarranjo constitutivo tem um momento que é primordial, o momento do narcisismo. O narcisismo é essa estrufura pela qual o Id toma como objeto de catexia o Ego, à medida que o Ego substitui o objeto (perdido) da pulsão. Portanto, a identificação seria uma substituição do objeto perdido. Portanto, a identificação é congruente com o destino da pulsão: 1) transformação no contrário (ativo-passivo, como posições de identificação); 2) retorno contra a própria pessoa (narcisismo); 3) repressão (constifuição do objeto); e 4) sublimação (operação de idealização desse objeto).
CAMPO
23t
A marca que representa a pulsão no inconsciente se expressa numa idenlificaçao. Uma u., q.," a pulsão constitui a identificação, cristaliza-se a instância do Ego. No curso do conflito edípico, o Ego gerarâ, por reação defensiva, o Superego. Os mecanismos de defesa que Ana Freud descreve são secundârios, são mecanismos de defesa do Ego, gerados na relação do Ego com o outro, do Ego com o Superego, da pulsão com o inconsciente, do sujeito com o Outro. Sabemos que, em última instância, não podemos ver operar na clínica a relação da pulsão com o representante. Sem dúvida, podemos ver operar o efeito dessa relação na defesa secundâria, defesa que embloca o sintoma, repetindo, na esfera da relação do Ego com o outro, a mesma dinâmica que se produz na esfera do Id com o Ego.
Voltando ao tema central são os pais - odeIderotização) - demonstramos que a operação da mãe (operação consiste em pilotar as pulsões de um bebê associando-as a determinados objetos, num circuito no qual a marca é cortelativa ao objeto da pulsão. Nessa operação, se define o modo pelo qual se produz uma marca. Agreguemos, agora, que se trata de uma marca do objeto da pulsão. Mas recordemos, ao mesmo tempo, que quem significou a pulsão para'o infans foi a função materna através do seu código (criança-pênis). Sendo, pois, a mãe que fixa as representações primárias à pulsão, e sendo que o Id se define pelas representações primârias, o Id estâ diretamente subordinado ao código que rege a mãe.
Assim, abre-se a grande via, ou "via régia" de onde se pode chegar ao entendimento do Outro, do simbólico, do real.
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CAPITULO VI
O SENTIDO DA PRATICA ANALíTICA: ANALISE DA PRATICA DO SENTIDO Talvez seja dem4siado redundante assinalaÍ, agora, que tudo quanto temos refletido e analisado tem seu momento mais crítico,
referencial, no prôprio ato da interpretação. A interpretação é a instância na qual, no exercício da prôpria anâlise, todas essas questões assumem a materialidade de um diâlogo. Porém, é necessârio observar que esse diâlogo, não sendo um diâlogo do acaso, se realiza dentro de um marco referencial, que, catalogado às vezes como contexto analitico, às vezes como enquadre. explicita a dimensão e o alcance da prática analítica. Por essa razáo, interessa-nos recuperar a postura com que Lacan inicia sua primeira conferência do seminârio Os Escritos Técnicos de Freud: "Se considerarmos que estamos aqui para inclinarmo-nos com admiração sobre os textos freudianos e maravilharmo-nos com eles, seguramente obteremos plena satisfação. e a franqueza do tom são jâ, por si sós, uma espécie de lição. Em particular, a soltura com que é tratada a questão das regras prâticas nos faz ver quanto se tratava para Freud de um instrumento, no sentido de quem diz um martelo. Bem ajustado à minha
(...) A simplicidade
mão
-
nos diz
-
eis aqui como tenho o cosfume de
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DA OBRA DEJ. LACAN
segurâ-lo. Talvez outros preferirão um instrumento um tanto diferente, mais adequado à sua prôpria mão."t
A citação tem um duplo valor. Por um lado, mostra como o "retorno a Freud" que Lacan invoca não é um retorno ao dogma do texto, mas à legalidade'da teoria. Por outro lado, mostra uma concepção da teoria em psicanálise, na qual o trabalho sobre a teoria importa porquanto ela é nosso instrumento de trabalho. Se a teoria é um instrumento e se à medida que a revisamos vamos aperfeiçoando nossa ferramenta, então, trabalhar teoricamente significa nada mais nada menos que esgotar certas incôgnitas que nos permitam utilizar nosso instrumento - a capacidade de interpretar com a maior eficâcia e soltura possíveis. - Em função de tudo isso, entenderemos que não se pode questionar uma técnica (se queremos falar e se é possível falar de uma técnica psicanalítica) por si mesma e, sim, em função da legalidade teórica que a sustenta. Por fim, tomar partido, em psicanâlise, não significa tomar partido contra, mas significa simplesmente partir da definição do inconsciente freudiano. E justamente, na discussão das reflexões teôricas em psicanâlise, Lacan assinala a existência de teorias com as quais de modo algum transa. Trata-se da teoria da adaptação da escola americana sustentada em parte por Ernest Chris, Loewenstein, e certas concepções traumatistas que aparecem ainda na obra de Jones mesmo. Dito de passagem, essas concepções traumatistas afirmam que o neurôtico é efeito de determinados episódios críticos que teriam marcado a fogo um indivíduo no curso de sua primeira infância. Isto contradiz Freud, que demonstrou que o "complexo" é universal, isto é, que todo mundo estâ organizado segundo um determinado complexo ao qual se deu - comodeé o caso de toda terminologia um nome arbitrário: complexo Edipo. E, desde que o complexo é universal, náo ê, tratando de indagar que tipo de experiência pode marcar a fogo, mas organizando uma correta teoria do complexo, que podemos resolver a
questão.
Ao abordar o problema do simbólico, o imaginârio e o real,
Conf.
1. Lacan, Jacques - I* Seminaire, Livre I - Les Ecrìts Techniques de Freud. du Seuil, 1975, pp. 15-16.
l: Introduction.
Paris, Editions
t
O SENTIDO DA PRÃTICA ANALITICA: ANÃLISE DA PRÁTICA DO
SENTIDO
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pretendemos abordar uma definição de complexo. A primeira coisa que podemos dizer é algo tão simples como dizer que complexo significa múltiplo. Um múltiplo de percepções, ou de restos percep-
tivos
-
em geral de diferente fonte
único.
-
reunidos, num conjunto
Dessa forma, chegamos às seguintes conclusões:
1) O percepto não é unívoco. Freud mesmo nos diz que não é um trauma o que ocorre na etiologia da neurose. Mas isto não é novidade. Desde 1895, a escola da gestalt, com Kofka e Kõhler, proyaram que a percepção é sempre percepção de um conjunto, e o que aparece como elemento o faz enquanto integre uma gestalt organizada. Isto foi suficientemente demonstrado quando abordamos o tema da imagem, onde concluímos que não é uma imagem senão uma trama de imagens o que se processa no sujeito. Isto deve importar muito na abordagem prâtica da questão já que, se o trauma não opera univocamente, pelas mesmas razões a interpretação não deverâ operar de forma unívoca, exigindo, portanto, de nossa parte uma concepção da interpretação que pressupõe não mais um diâlogo de Ego a Ego, mas, sim, um diâlogo cujos lineamentos têm que discernir necessariamente o Outro do sujeito. 2) Tratando-se de uma trama de imagens de diferente fonte, cabe perguntar se essa gestalt é captada de Íora, ou produzida no sujeito. Em Freud, trata-se da discussão em torno do problema do trauma e do fantasma. Alguém poderia, de início, afirmar que essa gestalt tem sua origem "fora", mas a própria escola da gestalt, em sua última formulação (o New Look), desmente isso ao mostrar que existe uma série de fenômenos do tipo da lei da abertura diafragmâtica (as cinco leis do processo de percepção, segundo o New Look) que faz com que, a rigor, o sujeito veja tão-sô aquilo que tem disposição para ver.
Ou seja, o complexo se constifui pela concorrência de: a) matéria-prima fornecida pela percepção, b) um processo de trabalho provido pela pulsão. Com isto, nos introduzimos na idéia de que o complexo é um misto de fantasmagoria e de real, que, definitivamente, é o que na obra de Freud começa a ser denominado de fantasía ort fantasma. A força de transformação do percepto e a força de permanência do conjunto rcalizada pela pulsão levam Freud a inclinar sua anâlise no sentido de ver como trabalha essa força pulsional; daí que, no curso de uma sessão, nosso obje-
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DA OBRA DEJ. LACAN
tivo é a investigação de como o sujeito (pulsional) trabalha repetitivamente, ainda que com diferentes materiais. 3) Os mecanismos de trabalho que, providos por essa força, operam sobre os perceptos, não são outros que os que a investigação freudiana descobre no trabalho sobre os sonhos: condensação e deslocamento.
Em 1937, em Anôlise Terminâvel e Interminável, Freud situa a questão da cura no vetor que se esboça entre a relação de provisão de matéria do Outro e a posição de força do sujeito. Precisamente, a tentativa de Lacan é a de sistematizar a análise dessa relação do Outro com o sujeito. O Outro intervém na constituição do sujeito, não sô provendo perceptos, mas proyendo simultaneamente a organização dos mesmos, aspecto que demonstramos ao explicar que a pulsão se apóia em certa relação articulada do código materno, que opera sobre o corpo do infans; corpo que - é necessârio ressaltar não está dotado de pulsões, nem de representações. - No parágrafo oitavo de Inibição, Sintoma e Angústia, ao questionar a teoria de Oto Rank, diz Freud: "o recém-nascido não tem nenhuma percepção de significação do nascimento. Hâ, com efeito, uma catarse forte no nascimento que seguramente é registrada, mas como um forte desequilíbrio ou comoção do organismo".2 Assim pois, a pulsão requer uma operação de educação, no sentido de que a mãe realiza uma.operação de condução ou pilotagem das necessidades do infans, que ela realiza associando as necessidades a determinados objetos primordiais que lhe são assinalados pelo código que a rege. A mãe opera como um universo simbôlico (no sentido com que as teorias dos conjuntos definem o "conjunto universal"), sendo o infans um subconjunto que, estando pré-definido simbolicamente no universo, estabelece com ele um diâlogo do qual surge um gnrpo de transformaçóes. Essas transformações se expressarão na constifuição de uma bateria significante. Na articulação dessas transformações incluímos, por certo, a função que também - assim como as identificações, fatasmas, etc. - ê construída.
2 rr Sì
Freud, Sigmund
-
Inhibición, Síntomo y Angustia, In: O. C., ed. cit.,
t. II,
t
o SENTIDo DA PRÁTICA
ax^e.LITTCn: ANÃLISE DA PRÃTICA DO
SENTIDO
23./
Então, falar do inconsciente se reduz af alar de uma relação que é fundamentalmente de intercâmbio no âmbito da cultura. Pois, não sendo assim, poderíamos licitamente falar de um psiquismo testicular e até de um psiquisrrro ovular, com base no fato de que o ôvulo é um organismo que tem um comportamento observâvel em segmentos de conduta... o comportamento pré-menstrual e o comportamento pós-menstrual. E preciso haver uma epistemologia muito severa que deslinde o que é pertinente ao campo da biologia e o que é pertinente ao campo da psicanâlise. Pois, é certo que o espermatozôide é um organismo vivo que tem um ciclo de vida e um comportamento "complexo" a propôsito do ôvulo (busca-o, rodeia-o, trata de penetrâ-lo, etc.); mas, inferir daí que o espermatozôide "eÍotiza e tem práticas sexuais" com o óvulo (do mesmo modo que o homem se erotiza em relação à mulher) é uma formulação extremista; teoricamente, um abuso. Assim, pois, o fundante na ordem inconsciente é a noção de relação e intercâmbio. Intercâmbio em cujo curso se manifestarão certas inscrições pré-natais concernentes ao infans e que nos conduzem à evidência de que há uma "determinação anterior ao sujeito", mas não um psiquismo biologicamente conjugado no suporte do sujeito. Há, então, uma determinação pré-natal, mas não um psiquismo pré-natal, e essa determinação pré-natal estâ colocada no Outro, ao qual o infans se assujeita. Na leitura do Edipo - como discurso do Outro - impõe-se-nos a radical dependência que tem o infans em relação à sua mãe, ainda que convenha insistir - seja assim até o cansaço - que não se trata da pessoa real concreta, mas da função que compromete a mãe: provei a subsistência do sujeito. Até aqui, pois, impõe-t"-nos a radical dependência do sujeito de um código; côdigo que, em última instância, define o sujeito pela mesma razão que o assujeita. É precisamente esse assujeitamento que nos explica a anâlise do complexo de Edipo, e as estrufuras que de sua operação resultam, sob a forma da inibição ou do sintoma. Por isso, nos interessa objetivar o papel que cabe à estrutura edípica e em particular à estrutura narcísica na determinação de todo o sintoma e, por conseguinte, na prâtica analitica. Definimos o Édipo como a operação de constituição do sujeito de acordo com o discurso do Outro. O fundante, então, é essa relação com o Outro; relação que determinaria certa dinâmica no
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desenvolvimento libidinal, a qual geraria fixações que redundariam, em última instância, numa dialética de afetos: amor-ódio. Assinalamos que essa estratificação vai do maior ao menor grau de determinação, na qual o propriamente reprimido é a relação com o Outro; é precisamente esse Outro que operaria no sujeito a partir da chamada posição do Id.
Pois bem, se toda a evolução libidinal (libido que deverâ orientar-se na procura de objetos) depende da relação com o Outro, a relação com o outro tem um momento candente, fundante, que deverá cristalizar-se num efeito: o narcisismo. O narcisismo é o operador que faz com que o discurso do Outro, deflexionado desde uma posição de sujeito, possa orientar-se para determinados objetos. Isto é o que representamos graficamente naquela seqüência que vai do auto-erotismo ao narcisismo, e deste à eleição de objetos.
Se bem que a investigação desse processo libidinal não nos oferecia maiores complicações, a observação do mesmo no campo das identificações não exigia um trabalho muito mais complexo. Exigia pensar o narcisismo como deflexionador das identificações primârias e estas como a materialização de uma exigência que, no simbôlico, estâ situada no discurso do Outro. Esse discurso do Outro, materializando-se em exigências mais ou menos concretas, determinaria a partir do narcisismo a condição de possibilidade das identificações edípicas, as quais, estabilizadas através do Superego, conduzem à identificação secundária. O resultado da identificação secundâria faz com que o sujeito (por exemplo, o menino) identificado com o pai tome por objeto alguém dotado do genital comple-
mentar em função da diferença sexual anatômica. De qualquer modo, o acesso ao objeto não implica que admitamos a existência de um objeto puro, e, sim, que se trata de um objeto condicional: o objeto a. Essas fixações geram um espectro de condicionalidades que são as que definitivamente nos levam com tanta insistência a assi-
nalar que a sexualidade humana não é automâtica. Sua condicionalidade fica objetivada plenamente nos artigos freudianos sobre a fantasia, nos quais se vê como o desejo assume um papel retor e hegemônico da sexualidade, modelando-a, perfilando-a, outorgando-lhe sua peculiaridade. O aspeeto central de tudo isso estâ no narcisismo, ou seja: a
o SENTIDo DA PRÃTICA ANALITICA: ANÃLISE DA PRÁTICA Do SENTIDo
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estrutura modal dessas fixações da libido. É que, à medida que o objeto primordial é substituído, importa observar que a substituição, prima facie, se produz por retorno das catexias ao Ego, o qual nesse momento surge como substituto do objeto perdido. Digamos que o "Ego" é o primeiro símbolo da ausência do objeto libidinal. Digamos, em conseqüência, que, se essa primeira substituição propicia a produção de um modelo de objeto, as condições às quais deverâ ajustar-se todo objeto dependem do Ego. Noutros termos, trata-se de achar um objeto que se pareça com o Ego do sujeito. Qual é, em tudo isso, o papel do Ego? Causa de toda a eleição, ao lado do efeito de uma ausência, o Ego parece ter uma estrutura intercalar. Essa intersticialidade do Ego não deveria obs- não parecer uma novidade. Observamo-la em outro tante contexto - formulamos que seu papel na distribuição libidinal é no qual duplo: ser reservatôrio da libido, ao mesmo tempo que destinatârio da libido distribuída pelo Id. Na mesma oportunidade, deixamos estabelecido que o Ego é reservatôrio enquanto é destino das catexias emanadas do Id. E precisamente enquanto definimos o Id como essa organização que se estafui por mediação do discurso materno, a operação que descrevemos poderia também ser descrita como: um movimento de adequação, por parte do infans, a um lugar proposto pela mãe. Estamos falando do Ego, do narcisismo, da adequação (leia-se: identificação) do infans a um lugar proposto pela mãe. A rigor, estamos falando do estâdio do espelho no qual o infans obtém uma imagem que é produto da reflexão de si mesma nos olhos maternos. A peculiaridade das reflexões e refrações estâ definida pela peculiaridade do côdigo materno. Sem dúvida, o processo não culmina aqui com a procura dessa imagem de unidade que conhecemos como imago narcísica. Não termina aqui, pois, essa unidade é mítica, posto que estâ fundada na relação com o Outro, que não é contínua e, sim, discreta (discretq quer dizer descontínuai e descontínua quer dizer que estâ configurada por alternâncias de presença e ausência). Em última instância, essa imago deverâ ser cotejada com a castração. Precisamente uma das alternativas frente ao dilema que a castração formula é a de manter essa estrutura de forma enquistada: a identificação centrada na mãe e a catexia dirigida para o Ego. Nesta dinâmica, vemos a gênese das perversões estruturadas sobre a intersubjetividade (seria o caso da homosse-
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xualidade e do sadomasoquismo). Nelas, se sabe que o sujeito identificado com o pai (sadismo) ou com a mãe (homossexualidade) toma como objeto alguém narcisicamente semelhante ao Ego. Definitivamente, a imagem com que o sujeito elege o parceiro sexual (no caso da homo ou da heterossexualidade) não é uma imagem formal, mas uma imagem libidinal diretamente advinda da imagem narcísica do estádio do espelho. Eis a via por onde o narcisismo opera de forma determinante na eleição do objeto. E o objeto, a esta altura, se nos relativiza, pois, tal como no tango o indivíduo poderia cantar: "Si yo siempre anduve en amores,/iqué me van a hablar de amor!" Poderíamos dizer que os atributos que o objeto deverâ ter estão
pré-definidos pelas determinações narcisicas, a tal ponto que a eleição, no homem, é formulada de acordo com quatro condições, enquanto que a mulher elege o homem de acordo com duas condições.
As quatro condições narcisicas da eleição, no homem, foram isoladas por Freud em Eleição Especial de Objeto no Homem,3 e são:
l) Prejuízo do terceiro. - Esta condição exige que, ao eleger a mulher, o homem prejudique um terceiro. E ôbvia a determinação edipica dessa condição, no sentido de uma realizaçâo dos impulsos agressivos com relação ao pai. Também é óbvio que o sentido desse prejuízo estâ diretamente vinculado à manutenção do narcisismo do sujeito. De qualquer modo, o prejuizo do terceiro (ou triunfo sobre o rival) não pressupõe necessariamente que o homem eleja na qualidade uma mulher comprometida com outro homem - não já que esse "outro homem" de casal, mas na qualidade de imago bem pode ser o pai, ou irmão da mulher em questão. 2) Que a mulher prorolu" ciúmes. Esta condição exige que a mulher tenha outros interesses que -provoquem os ciúmes do indivíduo. Ora, como se combina esta condição com a anterior? Não são condições contraditôrias? Sobretudo se considerarmos o fato de que os ciúmes introduzem um descrédito ao narcisismo. É
3. Freud, Sigmund - Acerca de uno Especial Eleccíón de Objeto en el Hombre. In: O- C., ed. cit., t. l, p. 963.
O SENTIDo DA PRÃTICA ANALITICA: ANÁLISE DA PRÃTICA
Do SENTIDO
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que uma mulher que não tivesse outros interesses estaria diretamente centrada sobre o homem, exigindo-lhe que cobrisse toda a gama de suas necessidades; e isto seria demasiado parecido com a "mãe devoradora", na qual o indivíduo ficaria preso.
3) Que seja um objeto vqlioso. - Esta condição é o resultado das anteriores. O fato de que ela permita a ereção do narcisismo no sujeito, mas ao mesmo tempo tenha outros interesses (por conseguinte, um objeto que possa ser perdido), obrigaria a uma estratégia de permanente "conquista".
4) Que a mulher possa ser salva. - Sabe-se que o indivíduo salva a mulher dotando-a do substituto do velho desejo infantil feminino de possuir um pênis. Tal substituto é o filho. Em correspondência com essas quatro condições masculinas, mencionamos a existência de duas condições femininas, objetivadas por Freud em O Tabu da Virgindade.a
7) O objeto deverá ser um substituto paterno: é que, afetada no curso do complexo de castração por uma penosa carência de pênis que atribui à mãe, a menina se distancia desta relação "impossível", achando no pai um verdadeiro porto de salvação, uma posição de descanso.
2) O homem deve redundar num filho: ao mesmo tempo, a mulher hâ de ver no seu homem um filho. Freud mesmo assinala que a mulher não se enamora enquanto não possa ver no homem ao mesmo tempo que um substituto do pai, um substituto de seu desejo de um filho. A síntese feminina é, pois, ârdua: que seu homem seja um pai e que seu homem seja um filho. Essa síntese deve caminhar para a resolução na maternidade: seu homem é pai de seu filho. Para fundamentar este último aspecto, esta última afirmação, recordemos que, à medida que o homem reformula o velho dilema da diferença sexual anatômica e a problemâtica da castração, ele mesmo se situa na herança de uma marca que tem um alto peso na
4. Freud,
Sigmund
- El
Tabú de la Virgindad. In: O. C., ed. cit.,
t. I, p.
973.
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função dela estrutura da mulher. Esta marca ê a óacastração' e em da agressi esquivar-se Para o t orn"- apareceria como castrador' fazer uma deve gera' homem o posição vidade feminina que essa que conecta se face outra manobra: acriançar-se, isio é''oferecer da resolutiva face que a ê (o e filho), desejo feminino ;;;
" castração.
apaAssim formulado o problema, é ôbvio que o narcisismo toda sentido' Neste objeto' de rece como operador de tôda eleição ica' S objeial é sintomâtica. a sã "i"iça. i;1. ;"t .úo.u em franca contra ndo já que, d como ;ì;irã; d" a me van "bjeto", amores'/iqué en anduve yo siempre o iu.,go, exclãmar'-'Si hablar de amor!" p-odemos Tudo isso nos conduz ante evidências pelas quais não nos anâlise A objetal' amor do -"rro, que questionar a teoria preciMais é construído. que objeto o demonstra constantemente a um mosaico, a samente a "subjes inibe de toda a o, um modelo de amor objetal, hâ imPlícita uma quando-.o indi' concepção segundo a qual a "cura" é conseguida Afinal de relação' de modelo um uíO.ro^"o.rr"grr" uaú.tãr-se a identificação certa numa implica for-ulaçao a cura contas, t "r.ã pt"t.npotto pelo analista' mas convém não equicom um modelo uma assunção vocar-se no fato de que uma identificação responde a cura se pretensa que a pois, notar de um ideal narcísico. Convém, narcisismo' resume numa "atuação" do relativas Estamos precisamente disc rtindo todas essas noções psicanalíticas nosografias das maioria a à eleição objetãl porquanto função do ãú"i"" oi qrruãtoi (neurose, perversão e psicose)a em de fragilidade sublinhar então, iip" Oã eleiçãó objetal. eueremoi, clínicos' quadros estabelecer pretendendo uma tat noiografia que, eleição objeo faz com absoluta olnissao da peculiaridade de toda pois' o Assim' narcísico' padrão de tuit- t"t, afinal de contas, (embora tampouco eleito objeto de p.oUt.-u não radica no tipo da queremos asseYerar que istó não importe), mas na peculiaridade estrutura da eleição. a eviFreqüentemente, na observação analítica se nos impõe
o SENTIDO DA PRÁTICA ANALITICA: ANÃLISE DA PRÁTICA DO SENTIDO
243
dência de que o parceiro sexual é um apoio. Neste sentido, a noção de apoio assume sua mâxima validade; trata-se, definitivamente, da noção de suporte. O partner, o outro, é o suporte do narcisismo
do sujeito. O conceito de apoio freudiano se reduz, em última instância, a isto: que o sujeito apôia sobre o objeto sua libido, com a finalidade de fazê-la retornar sobre si. Mas, então, por que se apóia em determinados objetos e não em determinados outros? Seguramente porque oferece as condições idôneas de reflexão, ou de retorno à prôpria pessoa, daí que tampouco o objeto eleito seja um qualquer, jâ que não é qualquer objeto que estâ apto para exercer uma correta reflexão. Um outro acento no qual recai a teoria do amor objetal é precisamente sobre a noção de amor. O amor! Que palavrinha, hein! Sem dúvida, quando Freud se avizinha, em Os Instintos e seus Destinos, à investigação do amor, termina descobrindo que não pode sifuâ-lo no aparelho pulsional, mas como uma peculiar "síntese" de pulsões. O amor também é uma construção... construção formulada sobre as pulsões parciais; e esta reunião das pulsões parciais, sim, tem a ver com a existência do Outro. Esta síntese estâ regida pelo Outro cuja forma material é assumida pelos pais e se realiza em função das fixações (leia-se: marcas), que o Outro vai instaurando na constituição do sujeito. E por isso que é sempre possível assinalar o "ôrgão" na pulsão parcial, mas não o ôrgão do amor. As pulsões parciais partem de órgãos. A pulsão oral é gerada da boca, e a genital dos genitais. Confudo, não hâ zona alguma que gere o amor. Em todo caso, não hã zona exclusiva. Um pouco aqui corresponde às palavras de Fuenteovejuna: Son todas las zonas
Y no es ninguna Pues ha sido Fuenteovejuna Todos a una.*
. "São uma'(N.
da T.).
todas as zonas/
E
não
é nenhuna/
Pois
foi
Fonteovejuna/ Todos
a
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de O ôrgão do (a)mor... É precisamente o ôrgão mais difícil localizâdeterminar. Ainda que' por momentos, talvezpudéssemos -lo no estômago. O amor sai do estômago porque se expressa como partido fàme: mais, mais, mais... Contudo, seria difícil tomar amor: do ôrgão exclusivamente pelo estômago. Também a mãe é o
ma(is) ma(is).
Finalmente, o último acento da teoria objetal recai sobre a proposição da genitalidade. A cura consistiria, então' em assumir ',r-^u-or genitãl adulto. Os fetichistas estarão de parabéns... Porqr", ,rrr, íetichista que toma um sutiã como objeto sexual' não áeixa por isso de manejar-se genitalmente' isto é, penianamente' Então, se deveria admitir que hâ genitalidades muito suspeitas. Citemos o caso daquele indivíduo que mantinha relações sexuais com sua esposa, com sua secretâria e ainda com uma amante' obscaso típico de uma aparente genitalidade cumprida"' Não dessas libidinal propriamente tante, ó que resulta ê que o elemento relações ie radicava no uso que, mediante a entrega ou não entrega da ãã ai.rn.ito, exercia o individuo na sua tríplice relação. Sabe-se então, caberia, determinação anal em quem faz o uso do dinheiro. pergUntar se essas pretènsas relações genitais não estavam isentas ãe ãeterminação anal alguma. A crítica ao triplo ponto de apoio oú:"io, u.or ã genitalidãae - sobre os quais se assenta a teoria das e relaçoás objetais, nos leva a insistir sobre o carâter determinante de relação na tanto o papel fundamental que coloca o narcisismo objeto como na construção do sintoma' Definitivamente' o narcisis no é o ponto de apoio do sujeito ponto de inconsciente. E assim como Arquimedes reclamava um
apoio"omoquallevantaromundo,osujeitodoinconscientese
que bãsta com o nárcisismo para cumprir tão ambiciosa tarefa. Daí processo partida um ponto de toda eclosão sintomâtica tenha como a" p.tau de objeto. É que, assim visto' a perda de objeto é' em última instância, ,r,,'u p"ìdu do ser; dai o carâter de luto' o carâter de ritual e cerimonial funebre de todo sintoma' Recordemos esse processo de perda' Num primeiro tempo' as a catexias se orientam para um objeto' Num segundo momento' num E" Ego' ao perda de objeto e*ige o retorno- das
-catexias terceiro momento, é quando se formula o dilema: encontrar um ao objeto substitutivo. Esie dilema é o outro aspecto (concomitante sintomâtica' aspecto de luto) que acompanha a eclosão
o SENTILìo DA PRÃTICA ANALITICA: ANÃLISE DA PRÃTICÁ
f,IO
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Precisamente o sintoma se desencadeia no processo de substituição, já que as chaves de substituição estão preestabelecirias peìtn
narcisismo. De como foi resolvido o problema do duplo: neurc" ticamente (com angústia), ou psicoticarnente (com pânico), deperrderá o teor e o alcance da sintomatologia. Na busca clo objct'.; substituto, se esboça esse movimento de restituição (jâ que tocl'., sintoma é uma restituição) que não só substitui no manifestc algo perdido na noite do latente, mas ao mesmo tempo cl mantém sempre vivo e presente.
Para estudar tal "presença", teremos que cilligir-nos a ìrniâ releitura dos casos freudianos.
O CASO SCHREBER
O texto sobre o qual vamos basear nosso trabatrho
ê, Obser-
um Caso de Parunòic (Denrentia?ara.noides) Autobiograficamente Descrito, isto é, a histôria e toda a documentação que Freud consegue reunir sobre * ;nagistrado Daniel Paul Schreber, oncle aborda a interpretaçãc rir,. caso com base em duas hipóteses-chaves: a relaliva à homossexualidade e a relavações Psicsnalíticas sobre
tiva à projeção.s
Num trabalho intitulado "De unra quesÌào preliminar a todo tratamento possível da psicose", de .l 957, l.acan retoma o caso Schreber tratauclo de observar trs elenrentt)s ciuc scriam sensíveis a todas as psicoses, c()m a finalidade de prcicluzir rrnla teorìa explicatil'a da mesma. Além dessas duas biografias, corrviria usar, conìo elemento le consulta. a compilação putrlicada pela ecti{ora Nueva Visiôn, de Buenos Aires. particularme nte n artigo cle Niederland, pelos dados que traz acerca da vida pessoai, da histôria familiar, das relações de parentesco e do papel do pai no desencadeamento da crise psicôtica de Schreber.ó
5. Freud, Sigmund p.661.
-
Análísis de un Caso de Paranoia.
6. Vârios autores - El Prest
--
1as
ú'uso,ç
[n:{). C., ed. cir., t. ll,
5
Freud, n.o 2- Buenos
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O SENTIDO DA PRÁTICA ANALITICÂ: ANÁLISE DA PRÃTICA DO
SENTIDO
Daniel Paul Schreber ê filho de Daniel Moritz Gottlieb Schreber. dado que jâ citamos, mas que serâ de primordial importância. Em primeiro lugar, pela semelhança existente entre o nome do pai e o nome do sujeito: Daniel. Em segundo lugar, porque o outro nome do pci, Gottlieb, significa nada menos que "Deus amado" (Golt : Deus; Iíeb : amado), elemento que se reveste de alta importância se consideramos que a fase final do delírio de Schreber assume um caráter mistico, cujo conteúdo é o da transformação do corpo de Schreber num corpo feminino para poder procriar, com a intervenção divina, uma nova geração que salve a humanidade.* Daniel Paul Schreber é advogado, um advogado bem-sucedido na Alemanha de fins de século. Tinha algumas originalidades (segundo informam Niederland eFranz Baumayer em sua reconstrução da histôria), mas nenhuma particularmente relevante aos olhos da fanrília. Era de carâter irascivel, irritâvel, mas, no fundo, tenaz e constante. Essas particularidades haveriam seguramente permitido esboçar uma reconstrução da pré-história da enfermidade, porém o fato de que a família não lhe dâ maior importância obriga-nos a tomar como ponto de partida a primeira crise, ainda que sempre tendoem conta a existência de certos precedentes, de carâter aparenternente anôdino. A primeira crise ocorreu no outono de 1884. Segundo Schreber, se trataria de um esgotamento (isso que hoje se costuma disfarçar desurmenage, estafa), conseqüente da luta concomitante com o processo eleitoral para o acesso a uma assembléia parlamentar. Deste modo, se viu obrigado a internar-se numa clinica de Leipzig, cujo diretor era o Dr. Flechsig e da qual sairia curado em . Quero voltar à questão do nome do pai do magistrado Daniel Paul Schreber porquanto me interessa reconhecer que existe uma certa discrepância quanto ao mesmo. Portanto: há polêmica. De fato, enquanto W. G. Niederland aceita o registro de Daniel Gottlieb Montz Schreber, a Biogrophicol Enciclopaedia of the Eminent Doctors of All Tímes iníorma que o nome do mesmo seria Daniel Gottlob Morib Schreber. Em conseqüência, obseno que há discrepância nada menos que a propósito do nome, que, segundo a nossa análise, funciona como ponto de apoio, isto é, como pivô do delírio schreberiano. É preciso obsenar que o nome que liga - na materialidade Íônica da língua - o pai com Deus esú em pé de discussão. Apoiamos nossa análise do nome "Gottlieb", cuja tradução bem podia ser a de "Amadeu", desde que lreá significa amado, e Gott, Deus. No entanto, importa dizer que a outra possibilidade não é, de modo algum, alheia à nossa análise e, em conseqüência, não contradiz nossas conclusões, posto que a traduçao de Gottlob ê "louvor a Deus".
Outono de 18g4, sendo vê_se obrigado a internar_se na l8' na qual é atendido por um at Em fins de 1885, obtém alta. Sua vida corre normalmente e, como magistrado, segue escalando posiçoes nás-ãe_ graus de sua carreira. Em junho de 1893, lhe comunicam que foi nomeado na máxima hierarquia que lhe por.iu"l alcançar na car_
".u
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reira jurídicar ser nomeado presidente do Tribunal de Dresden. A partir dessa nomeação tem uma série de sonhos e idéias hipnagôgicas nas quais sobressai um suposto de transformação em mulher no momento da côpula. Em outubro de 1893, assume a presidência. Em fins de 1893, é acometido por uma crise delirante de carâter psicôtico. E reinternado na clínica de Paul Flechsig.
Em abril de 1894, deve abandonar a clínica de Flechsig para ser internado na clínica Sonnenstein, na localidade de Pirna, sob a direção do Dr. Weber, médico que deverá também intervir, na qualidade de coadjutor de Flechsig, nesse processo de transformação em mulher que é o conteúdo essencial de seu delírio.
Qual é a sintomatologia desse segundo acesso ou crise? O primeiro elemento a assinalar é o estado de insônia permanente que se instala em fins de outubro de 1893, acompanhado de um profuso material, tal como: idéias hipocondríacas que contêm, entre outras, a idéia de que o seu cérebro estâ amolecendo; e idéias de perseguição acompanhadas de estados de hiperestesia e hipersensibilidade tâtil, além de hipersensibilidade à luz e ao ruído. Nesse momento é quando se produz sua mudança da clínica de Flechsig para o sanatório de Sonnenstein, passando ao cargo do doutor Weber. A partir de então, as idéias de perseguição assumem a forma de alucinações auditivas e verbais; seu conteúdo é o de supor-se morto e putrefato; de estar enfermo de peste, e de crer-se submetido a repugnantes manipulações e espantosos tormentos por "uma causa sagrada". Vemos, aqui, a ocorrência já de um esboço de seu sistema delirante no qual o "sagrado" começa a assumir um papel de protagonista. O agravamento geral do quadro o introduz num estado geral de estupor que, segundo o diagnôstico de Weber, é qualificado de estupor alucinatôrio. A saída desses estados é de caráter catârtico, dado que contém tèntativas múltiplas de suicídio. Vârias vezes assinala Weber tentou afogar-se no banheiro; freqüentemente pedia, aos gritos, o âcido pússico que lhe estava destinado. Final-
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mente, aparece uma fase de delírio que é a que deveria ocupar a maior parte do tempo que durou sua internação em Sonnenstein, na qual começa a insultar vârias pessoas aoi gritos, mas particularmente a Flechsig, ao Sol e a Deus. Posteriormente, o delírio assume a forma que o Dr. Weber descreve, num informe de 1899, do seguinte modo:
"Atualmente, o Dr. Schreber, à parte alguns sintomas -ãir superfúal reconhece como patolôgicos, não demonstra qualquer sinal de demência nem inibição psíquica tu.pou"oï.ru inteligência parece visivermente diminuída. " Rehete beÃ, sua memôria é excelente, dispõe de um considerâvel acer_ vo de conhecimentos não sô em questões ju4ídicas, mas também em muitos outros setores, poAe expô_lo, pro_ cessos mentais perfeitamente ordenados, se interessa "- por política, ciência, arte etc. e se ocupa continuamente de tais matérias sem que o observadoi _ igno.ante de sua psicomotores que inclusive o observado.
enfermidade reconhecer, em suas palavras sobre - possa tais temas, sinal algum de perturbação. Cãntutlo, o pa_ ciente se acha invadido por representações patotogüa_
mente condicionadas que formam um sistèma tãtal
acham-se mais ou menos fixadas e nao pa.ec";;";;;;i: veis a retificação por apreensão objetiva ou ajuiru-"ntt da circunstância real.
"
Em 1900, Schreber começa a apelar contra uma cláusura de o decrara inabilitado para o exercício de sua profissão e' além disto, inabilitado pu.u ò convívio social.la psuspensão que
época, Weber teve que reconhecer o seguinte:
"Este que subscreve teve, por nove meses, ocasião contí_ nua de conversar diariamente, durante ô almoço na mesa redonda da clínica, com o Dr. Schreber sobre tódo tipo de questões, qualquer que seja o tema da conversaçaó e, à parte é claro de suas idéias delirantes, o Dr. Schre_ ber revela, tanto em questões políticas como nas refe_ rentes à administração .l,a justiça, arte e literatura, in_
"r.u
2.50
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tenso interesse, profundos conhecimentos, boa memôria, excelente juízo e idéias morais sãs. Também na conver' sação superficial, se mostra sensível, amável, cortês etc.; inclusive quando faz piadas, não sai do tom." Não obstante, o Dr. Weber se opõe à suspensão da clâusula de inabilitação profissional e à alta de Schreber até 1902, em que este recupera sua habilitação social e profissional, embora não o seu posto no Tribunal de Dresden. Neste sentido, jâ havia observado Weber que seu paciente exercia com muita lucidez o assessoramento legal e judicial dos bens de família desde os tempos de sua internação, administrando- os judicialmente. Em 1902, Schreber é considerado apto para o exercício de sua f unção e então recebe alta daclinica de Sonnenstein. Esta restituição tem, sem dúvida, um ponto frâgil; é o ponto frágil relativo às suas idéias delirantes, que prosseguem em sua atividade, simultaneamente com a atividade aparentemente "adaptada" e normal de suas outras capacidades. Tal sistema delirante se apôia na premissa da convicção de Schreber de achar-se chamado a redimir o mundo e a devolver à humanidade a bem-aventurança perdida. Tal destino lhe havia sido comunicado por revelação divina como as que ocorrem aos profetas, e tudo isso graças ao fato de que nervos superexcitados durante muito tempo como os seus têm certa permeabilidade para çrerceber tais tipos de revelações. O conteúdo de delirio reside em que Schreber deve tornar-se mulher (não se trata de um desejo, mas de uma exigência coercitiva fundada na ordem universal), operação que se haveria realizado mediante a destruição de certas zonas corporais. (Seria interessante notar que essas zonas concernem a toda a região torâcica, já que é exatamente no tôrax - mais exatamente no pulmão - onde a autôpsia focalizaria a causa da morte de Schreber bastante tetnpo depois.) Nos primeiros anos da enfermidade, havia sofrido, nos distintos ôrgãos de seu corpo, modificações que teriam acarretado a morte de qualquer outro indivíduo. Havia vivido muito tempo sem estômago, sem intestinos, quase sem pulmões, com o tubo digestivo dilacerado, sem bexiga e com as costelas destroçadas. Algumas yezes, ao comer, havia tragado sua prôpria laringe, mas milagres divinos ou raios reconstituíam permanentemente seu corpo. Tais fenômenos haviam desa-
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STjN.I.IDo DA PRÁTICA nNnLITTCn: ANÃLISE DA PRÃTICA DO
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parecido tempos atrâs, surgindo, em compensação e em primeiro plano, sua feminilidade. Isso nos leva a assinalar que a hipocondria diagnosticada por Flechsig é uma primeira fase cuja re-significação, no curso do período de incubação, conduziria a esse grande sistema delirante. Em outras palavras, a hipocondria de 1884 é re-significada num delírio de 1893, como um antecedente de seu processo de feminização. Tal processo deveria abarcar decênios inteiros, se não séculos, para chegar a seu definitivo aperfeiçoamento, cuja concreção não presenciaria seguramente nenhum de seus contemporâneos. De qualquer modo, experimentava a sensação de que seu corpo era integrado jâ por nervos femininos, dos quais surgiriarn por meio de uma fecundação divina novos homens. Até aqui, sintetizamos o processo de cuja interpretação se ocupa Freud. Não obstante, a história prossegue e se conhece seu desenlace. Neste sentido, hâ uma ironia do destino, jâ que Freud escreve a anâlise em 1911, introduzindo-a com as seguintes palavras: "No momento em que publicamos este histôrico, esperamos que o doutor Schreber - inteiramente recuperado de sua doença saberá reconhecer, em nosso trabalho, não tanto uma intenção crítica ou malevolente, mas uma tentativa de elucidação científica". E a ironia estâ em que é precisamente em 1911 que Daniel Paul Schreber morria, depois de ter sido reinternado desde 1907. A história clínica de seu último mês de vida nos diz: Março de 1911: angina acompanhada de um estado geral gravemente alterado (notem a focalização na zona torâcica). Tratamento local com Pilsinase. Melhoria moderadamente râryida, com exceção de dois nôdulos linfâticos axilares que têm, cada um, o tamanho de uma noz. Novamente sobe a temperatura. Hâ edema das amídalas. 10 de abril: macicez cardiaca e respiração debilitadas. 12 de abril: aumenta amacicez cardíaca. O pulso é mais débil e irregular. Melhora com Digitalina. 13 de abril: uma pulsão pleural produz um líquido esbranquiçado, opaco, putrefato e de mau odor.
14 de abril: morte com sintomas de dispnéia e insuficiência cardíaca.
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i DA OBRA DE J. LACAN
Um relatório prtst-mortem incltti o seguinte: "pleurite exsudativa crônica. Fibrose do pulmão esquerdo. Colapso do lôbulo pulmonar superior esquerdo. Pericardite fibrilosa aguda. Miodegenatio conis. Esclerose das artérias coronárias. Hemorragias do bulbo cerebral. " -r'inha 68 anos.
De qualquer modo, a histôria que Freud conhece e sobre a qual trabalha é a que culmina em 1902. Precisamente, com relação aessa fase, Freud observa que a atitude de Schreber com relação a Deus é tão singular e tão cheia de circunstâncias contraditôrias que é preciso grande confiança para conservar a esperança de achar em sua demência um método. Reiteremos: Freud se interessa por indagar o método próprb da loucura. Nesta tentativa de detectar a legalidade da psicose, Freud se orienta sobre o sistema ideológico-psicolôgico das opiniões de Schreber com relação aos nervos, à bem-aventurança, à hierarquia divina e às qualidades de Deus. Para isso, é necessârio operar com um instrumento analítico, o qual consiste numa captura de material. De qualquer modo, essa captura de material não é nem ingênua, nem cega, porquanto a teoria pressupõe uma hierarquização de certos materiais. Essa hierarquização advém daquelas fortes hipôteses que a prática analítica tem ratificado ao ponto de convertê-las em teses. As teses das quais Freud registra o material concernem à questão da homossexualidacle e c1a projeção. Hoje, uma releitura do material nos permitiria adotar um ângulo e uma perspectiva de maior nível de abstração ao situar um eixo da análise no campo da identificação. E que o delírio homossexual de Schreber nos revelaria um fracasso na identificação e, portanto, um fracasso na operação paterna. Isto estaria de acordo com o fenômeno da projeção, jâ que este é um mecanismo constitutivo da agressividade prôpria do estâdio do espelho, e da constituição das imagos identificatôrias. ìsso nos permite reler o caso e tratar de estudar no que consiste efetivamente a homossexualidade em Schreber. Sobretudo porquanto se trata de uma homossexualidade muito particular, que não se expressa numa eleição homossexual do objeto. Aqui, se faz necessário recordar a diferença existente entre o rflgi5l1ç imaginârio e o registro simbôlico de toda a formação do inconsciente. Segundo essa distinção. o material se acha sempre
0 SENTIDO DA PRÁTICA ANALITICA: ANÃLISE DA PRÃTICA Do SENTIDO
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rlisposto em imagens (ou estruturas representacionais), nas quais se
ltla de uma transformação paulatina do corpo graças a raios rlivinos, incluindo uma transformação do sexo através dos neryos. l:ssas imagens nos falam, pois, de uma crescente feminização, de rrma fragmentação corporal coerente com a projeção), de uma intenção redentora prôpria da onipotência narcísica. Mas, como :rrticular todos esses elementos entre si? De imediato, não podemos tomar as imagens em si mesmas. A imagem de uma côpula com l)eus fala de homossexualidade, mas na histôria de Schreber essa homossexualidade não ê a de uma eleição de objeto (conforme jâ tlissemos) e, sim, a de um delírio. Em outras palavras, essas imagens não são legíveis senão remetendo-as ao símbolo. Assim como cm determinado momento questionamos esse gosto pela interpretação linear que às vezes se manifesta em certas tendências psicanalíticas (?), e questionamos essas interpretações unívocas do tipo bastão-pênis, xícara-vagina, do mesmo modo, agora, poderíamos cluestionar uma interpretação do tipo delírio de feminilizaçlo : Iromossexualidade.
Por outro lado, também dissemos que o símbolo reflete sua cficâcia, enquanto bateria associativa, como o efeito da interação cntre os elementos que definem o conjunto de uma gestalt. Em outras palavras, nenhum significante dispõe de um sentidoper se e, sim, em relação a outros significantes. Isto nos quer dizer, no caso, que nenhum dos componentes do delírio é interpretâvel de forma isolada e, sim, em relação aos demais.
Qual é o modo como se cristaliza essa bateria do simbôlico? Jâ rrssinalamos que se dâ através do complexo de Edipo. Sabemos que
Outro, o Falo, e o Nome-do-pai. Este contexto teórico (ao mesmo tempo que explicito) rros permite formular as seguintes hipóteses em relação ao material. A primeira coisa que obseryamos é que Schreber não tinha filhos, quando, enquanto único varão sobrevivente de sua familia, l)urece pesar sobre ele a responsabilidade de gerar para manter vivo ,r sobrenome. Sem dúvida, Schreber não tem filhos. Pouco se pode tlize r sobre o porquê de não ter filhos. Certo é que, anteriormente à prirneira crise, sua mulher teve vários abortos espontâneos. Igualrrrcnte é certo que sua brusca queda ocorre por volta dos 50 anos, ,rrr seja, no início (senão em pleno momento) de sua perda da grolôncia viril e simultaneamente com a assunção da máxima hie('ssa operação ocorre mediante três símbolos: o
CLi RSO tr DÍSCURSO
/ t)A OBIÌ^ t)ti J' I A('^N
(
) SIlN't'IDO DA PRÃTICA
1) o problema dos nervos; 2) a questão da bem-aventurança; 3) o problema da hierarquia divina; e 4) o problema sobre as qualidades de Deus'
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l)cus que o possa entender como ser vivo. Portanto, este ponto do lírio é uma interrogação sobre o status do sentido, a importância, ,r porquê, o como e para quê de um pai. A questão sobre o status do pai não ê solúvel, à medida que não é solúvel o quarto e o último nível. O problema das qualidades tlc Deus é, em última instância, o problema acerca dos atributos ou propriedades (digamos, emblemas) do pai. A primeira conclusão que obtemos, pois, acerca da psicose é que em seu centro encontramos o problema do pai. Porém, neste ponto, se nos impõe o fato de que precisamente na neurose subjaz o rììesmo problema, como ilustra tão bem o caso do Homem dos Iìatos. Que quero dizer com isso? Que não hâ diferença entre rìeurose e psicose? Se bem que em alguns textos da escola kleiniana algo nesse sentido se deduz com base na hipôtese de uma contirruidade entre ambos os quadros, a posição de Freud a respeito é lrastante oposta. Em Psicose e Neurose e em Perdq da Realidade na Neurose e Psicose, Freud afirma que se tratam de duas estruturas cxcludentes. Neste sentido, a formulação lacaniana é coincidente. Se o inconsciente estâ constituído como uma linguagem (no sentido rle uma bateria interativa), o discurso neurótico tem uma narrativa, um estilo discursivo, nitidamente diferente do estilo discursivo psicôtico. Esta precisão é fundamental, porque salta à vista que o referente, no caso Schreber (uma psicose) como no Homem dos lÌatos (uma neurose obsessiva), é o mesmo: o pai. A distinção entre iÌ neurose e a psicose deve ser situada numa outra ordem que a do "objeto" ou tema: na ordem do estilo. Isto coincide com a distinção lreudiana; Freud situava sua distinção no que, na prática, podemos tlcnominar texturq. A diferença entre o discurso psicôtico e o neurótico estâ situado na textura; o obsessivo quer, a todo custo, rlu€ S€u delírio tenha um grau de verossimilhança pelo qual produz trnra série de conexões que dão o aspecto de "forçada coerência" e tle constante racionalização. Em contrapartida, Schreber não se l)r'eocupa nem um pouco com a verossimilhança de seu discurso; ,lrando depara com uma crítica que lhe indique a impossibilidade rlo mesmo, reagirâ: "Essa transformação deverâ levar decênios e súculos, de modo que é provável que você não perceba e que tir lnpouco chegue a ver seu processo final". Podeúamos sustentar a idéia de que, na neurose obsessiva, hâ urìì grau de elaboração do "outro", enquanto um outro diferenrle
grupos básictls de idéias delirantes:
ANALITICA: ANÃLISE DA PRÃTICA DO SENTIDO
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CURSO E DISCURSO
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DA OBRA DE J' LACAN
que esse alocutor creia ciado, em função do qual é muito necessârio de elaboii ni" ele díz' Em compe"sação, na psicose' a ausênciaposto que' tuçáoi"uu a que o alocutor não importe absolutamente' vincular no.uro de qúe ele exista, não se sabe o que é"' Podemos curso do ;i;;úü.uìao oo outro com a elaboração do duplo no outro na do centando que, se a elaboração persecutôrio pânico, isto explica o carâter àm geral e do delírio paranóico em parti-
cular. -- -
É ôbvio que a não-elaboração do que é o outro estâ.francasujeito de mente associaãa à não-elabo.uçao do outro enquanto esta conclusão' da função paterna' Em uma função e, portanto, -hâ deúrio lse do o estilo no estilo: de expressa nãà-"tuUorução psicôtico.
o SENTIDo DA PRÃTICA aNnLIIcn: ANÃLISE DA PRÃTICA Do SENTIDo N7
sobre o funcionamento do mesmo na poltrona, na locomotiva, na mesa, na girafa, na mamãe... Sob este aspecto, hâ um matiz de delírio no discurso infantil: o pênis de uma poltrona, o pênis de uma locomotiva, pode parecer a alucinação de um objeto inexistente, mas a observação do material mostra que não existe essa pretensa alucinação, e, sim, se trata .da preeminência de uma posição fâlica. O mesmo podemos dizer de Schreber: trata-se de uma indagação; indagação formulada desde uma posição. Essa posição é a que nos convém examinar, para aceder à decifração de todo esse material. Muito nos ajudarâ, paÍa entendermos a posição de Schreber, o esclarecimento do objeto que essa indagação quer examinar. Em relação a esse objeto, sabemos, jâ, que se trata do papel do pai. Não deixemos de observar que o lugar que o delirio reconhece para o pai (sob a forma de seu enunciado: Deus) é de não entender os vivos e, sim, os mortos. É como se o delírio dissesse: "à medida que estou vivo, meu pai não me entende". Como corolârio, depreende-se que Schreber, à medida que estâ vivo, tampouco pode entender o pai. Em outras palavras, Schreber não pode entender o que é um pai. "O papel do pai ê, matar" - poderia dizer Schreber, no caso de haver podido restituir e simbolizar os conteúdos de seu delírio. Neste fantasma de morte, se revela - em toda sua magnitude - o fracasso da castração. Uma castração cuja incidência reconheceria três vetores: o desejo materno, o mito familiar e os emblemas paternos propriamente ditos. O completo fracasso do complexo de castração nos obriga, então, a precisar nesses vetores, de maneira a poder definir a etiologia do delírio schreberiano, do qual temos insistentemente assinalado que toma, como ponto de apoio, a questão paterna. Quem foi esse Daniel Moritz Gottlieb Schreber? Quem foi esse Daniel Maurício Amado Deus Schreber, para assinalar o delírio a seu filho Daniel (como seu pai), Paul (como seu médico), Schreber? Qual foi o lugar ocupado pelo pai no desejo da mãe de Schreber, no discurso familiar, e quais foram seus emblemas? São numerosas as
abordagens de autores psicanalíticos que situam a etiologia da psicose no que se denominou "pai ausente". De qualquer modo, poderiamos pensar em que consiste essa ausência. Suposto que, se
pai presente. Talvez demasiado "presente", era médico pediatra, ao mesmo tempo se tratasse de presença, Schreber teria um
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O SENTIDO DA PRÃTICA ANALITICA: ANÃLISE DA PRÁTICA DO
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nervos e mensagens, de pâssaros e cadâveres numa incessante confusão. Em seu delírio, Schreber pergunta: que é que define um pai, de maneira que, cumprindo com esses requisitos da definição, possa eu também, por minha vez, ser pai?
sexual.
Definitivamente, Schreber não se preocupa com a "importância" (lugar no mito) de seu amado Deus e, sim, com seu "lugar" . i.for-u".-Dai sua fantâstica topologia de salas e ante-salas, de
E Schreber, "um tenaz e constante trabalhador" (como o definira a recordação familiar da irmã), resolve, enfim, a questão no seio de seu delírio. Ë que o delírio tem uma função restitutiva. Iniciado em 1893, em 1902 (ao cabo de nove anos) Schreber dâ por terminado o processo de reordenação da questão, podendo reintegrar-se à sua vida em casa e à sua função de advogado. Em 1902, o enigma do pai ttca resolvido. Schreber não tinha constrangimento algum em dizer: "Eu tive uma doença em cujo curso tive de elaborar a questão do pai e, agora que jâ estâ resolvida, exijo que não me retenham mais, e me permitam sair". Efetivantente, a palavras do prôprio questão fica resolvida e Schreber - segundo Weber era inteligente, ameno, de conversação agradâvel, cortês, respeitoso com as damas, interessado pela arte, pela literatura e pela política. Mas hâ um ponto no qual Weber não estâ de acordo. Weber não pode colocar-se de acordo com Schreber em religião. E que este é o ponto fraco schreberiano que levarâ Weber a dízer: "O paciente é normal, salvo suas idéias delirantes, é claro". Em religião, Schreber tem uma concepção bastante particular e não aceita questionamentos. Questionar-lhe o sistema delirante seria questionar nada menos que uma solução que lhe tomou nove longos runos de ârduo trabalho. Sem dúvida, a solução duraria muito pouco: cinco anos depois, em 1907, Schreber se reinternaria. Assinalemos que, nesse írrterim, sua mulher adotou uma criança, uma menina, e, deste ruodo, as circunstâncias o obrigaram a exercer uma paternidade, rrincla que por meio da adoção. Seu fracasso, em 1907, deveria ser r rrbricado em 1911, com a morte, aos 68 anos de idade. O delírio estruturado entre 1893 e 1902 tinha por função t'laborar a questão da paternidade e da autoridade. Cabe, pois, l)('llsíÌr que Schreber teria vivido "normalmente", salvo essas pepor'lilclì:Ìs estranhezas que sublinharam suas irmãs, se não fosse (lu(', cnì 1884, se viu obrigado a assumir um cargo no qual era rrrt'vitirvel o exercício da agressividade narcísica, se não fosse por(lu(', crÌì 1893, se visse obrigado a assumir uma posição na qual era rrrlvilírvcl a simboliza-ção da autoridade e do pai, e também porque,
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relação unívoca. O percepto seria a transcrição exata do objeto. As criticas a essa noção jâ comentamos em Freud, quando descrevemos a autocrítica q\e Íaz à sua postura "traumatista". Comentamos também quando, ao analisar o registro do simbôlico, do
imaginârio e do real, observamos que não podemos falar de imagem em termos unívocos e, sim, em última instância, de rede de ímagens. A partir daí, estabelecemos, com bastante ênfase, que c-' percepto não se inscreve na forma isolada e, sim, numa cadeia de perceptos. Em conseqüência, toda produção de um sujeito assume a forma de uma cadeia de restos perceptivos que, articulando-se e reformulando-se, aparece como fantasia. Mas eis que, precisamente, a neurose ê, a re-iteraçaìo de um
objeto em sua ausência. Na neurose, a produção da fantasia se define por ser a articulação de um objeto ausente. Parece, então, que essa nota distintiva (ausência do objeto) não esgota o problema e parece que o acento tônico deve recair sobre o caráter da articulação. Isto coincide com o que observa Lacan, pois, quando falamos da relação sujeito-objeto, a ênfase, em último caso, cleveria estar posta na questão do significado. Sabemos que uma pessoa não percebe fatos que não sejam significativos, e aqueles fatos que não são significativos não são registrâveis, ficam desconsiderados.
7. Lacan, Psychose".
ln:
Jacques Ecrits, ed' cit'
de la "D'Une Question Préalable à Tout Traitement Possible
p
531'
A relação do sujeito com o objeto põe sempre em primeiro plano a questão do significado. Porém, ao mesmo tempo, este não aparece senão apoiando-se sobre um referente. Não existem significados por si mesmos e, sim, significados realizados em determinados objetos. Por exemplo, um automóvel é um objeto que tem significado em nossa cultura e em nosso meio, mas careceria de todo sentido no meio dos cumes nevados do Everest, no mei.r do deserto do Saara, ou em plena selva. Neste sentido, o significado é uma espécie de resultante da interação estabelecida entre o autu. rnôvel e o sujeito de nossa cultura, na qual o primeiro ocorreria como referente. O objeto funciona como referência desse jogo cl,: significações. Isto induz Lacan a formular a relação sujeito-objetcr em outros termos que os utilizados pelo pensamento positivista. L.eva-o a afirmar que, em toda alucinação, o tematizado é a peculiar relação na qual se inscreve o sujeito. Toda a produção delirante de Schreber se orienta no sentido rlo significado da paternidade. Contudo, como a paternidade em si rììesma não é mais que um símbolo (uma relação, neste caso, de
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paternidade, sua enfermidade, sua relação com Flechsig, seu prôprio pai, constituindo assim uma particular bateria associativa de tal teor que, ante uma exigência não concordante com a mesma (neste caso, exigência de adequação a um lugar paterno), obrigarâ o sujeito a reformulâ-la com base no material de que dispõe. Necessitando elementos para realizar sua tarefa, Schreber apelou a certos substitutos: Deus. Pois bem, como é essa peculiar combinação significante na produção do sentido? Sublinhamos que a produção do sentido se efetua a partir do último termo de forma retroativa. Isto pressupõe que o momento de corte é o momento primordial na produção do sentido. Notemos, em conseqüência, que, ao falarem, as pessoas tendem a cortar a mensagem com certa racionalidade e método. A ninguém ocorreria dizer: "eu penso que... eu penso que..." Manter o corte em repetição se estâ visando a produção de uma mensagem. E a possibilidade do corte estâ sistematizada no que podernos denominar de código.
Língua
O côdigo arbitraria a freqüência do corte como se para que a rÌìcnsagem seja inteligível. E à medida que as possibilidades de scrrtido dependem do código, a mâxima importância recai sobre o eírtligo como lugar a ser investigado. Quais são as notas que definem o côdigo? Em primeiro lugar,
ri unônimo, porque ninguém pode erigir-se em "proprietário da lirrgua". O côdigo é transindividual, leia-se social, e pelo mesmo rrrolivo não é algo que depende do sujeito. Não sô é transindividual social, mas, por sua vez, cletermina o sujeito, pois cada um deve
t
irrlctluar-se à língua para possibilitar o entendimento: o sujeito
se
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/ DA OBRA
é anônimo e' como tal' ajusta à lingua. Neste sentidÓ' o côdigo Por fim' esse código tem a alheioao sujeito qr''" u "t" " subordina' um Outro que de forma de
resulta da oPeração da língua é a mãe no curso da educação
' e a "operação dos Pais" são
ar que oi Pais se definem Pela ação ao infans' A questão da
necessidade de Perguntar o que Outro. Nisto, tem sô duas oPções: É o que se debate na neuÍose Homem dos Ratos se Pergunta ão mandato do Pai (e, então' des
Pois bem, à medida que a côdigo de Schreber estâ roto' se carência. Portanto, observemos falar e não encontrasse um luga
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"Os raios divinos são vínculos que realiza Deus por meio dos nervos", "Os homens têm que estar mortos para serem
entendidos por Deus".
Na verdade, é como se constantemente Schreber funcionasse como um dicionârio. Efetivamente, na construção desse "dicionârio", veríamos uma manifestação de sua tentativa de re-constrzir o côdigo. Fenômenos de mensagem: O discurso de Schreber geralmente apresenta a seguinte inflexão constante: "Quero defecar. Mas não posso. Por quê? Porque sou demasiado tolo... Quero defecar. Mas não posso. Etc. ..." Trata-se de mensagens nas quais não se predica absolutamente nada. Seriam mensagens nas quais não é possível terminar a frase, nas quais não é possível cortâ-la para produzir um efeito de sentido. do côdigo, por um lado, e da Esses dois tipos de fenômenos por mensagem, outro são as fontes básicas da análise lacaniana. Primeiramente, todo o discurso de Schreber estâ orientado para re-
-
a Paterna)' nção do pai não se constitui, o
Lacan
que teal\za undamentais de oPerações' Schreber
-
ambas
côdigo que estamos assinalando:
no delírio Fenômenos de código: O idioma utilizado toÀiosto de expressões antigas e recebia Schreber e o de
"iíngua fundamental"' Correlativamente' o nome de"Ã "Deus'está discurso de SchÃber consiste em definições: maior"' sala a" l'Àu ante-sala menor e uma composto
o SENTIDO DA PRÃTICA ANALITICA: ANÃLISE DA PRÃTICA Do SENTIDO
DE J' LACAN
-
produzir, restituir, reconstituir um côdigo que estâ falhado, que se define pela ausência. Como efeito dessa falha ou ausência constinão pode dizer: tutiva do código, não pode emitir mensagens "Eu". As frases de Schreber ficam suspensas -numa repetição de reticências onde não se enuncia nada, ou, em todo caso, o enunciado é a própria impossibilidade de enunciar. Voltemos a citar o c:xemplo de que alguém dissesse: "Claro, eu penso que... Claro, eu l)enso que..." e não dissesse nada mais. Algo fracassa na emissão rlessa mensagem, através da qual não é possível produzir sentido rrlgum, salvo a da prôpria impossibilidade de todo sentido. O fracasso desses dois lugares em Schreber - a saber: o do ()trlro e o clo sujeito são primordiais, sobretudo se considerirrmos o que expomos como dialética da identificação, segundo a tlrrll o lugar do sujeito se constitui pela captação de emblemas do ( )rrtro representado na pessoa dos pais. A primeira conclusão a que st' chega, então - assinala Lacan - é que as alucinações de St'lrrcber não são a reprodução de um objeto em sua ausência, mas .r lcntativa de produção de um lugar que estâ falhado em sua ,'rgirrrização simbôlica. Essa produção surge ao yer-se na neces-
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LACAN
O SENTIDO DA PRÃTICA ANALITICA: ANÃLISE DA PRÁTICA
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se ajusta a- uma imagem Porém, ao mesmo tempo' o sujeito pelo olhar materno e ia"uii"ï-rnãr*o tri,-q"t rï"'é preligurada cujo referente é o Pai (P)'
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o
Por sua vez, ambos
tanto
o objeto Primordial e a imagem
ainda que de Passagem' que essa de castração inscrito o nos pais.
"o-Pìt*o
Notemos que esse lugar ,4 é plenamente simbólico porquanto permite a articulação (é a "articulação" o que fracassa em Schreber), entre o objeto e a imagem do sujeito. Aqui, temos uma tôpica de quatro termos: o sujeito, o objeto primordial, a imagem com a qual identificar-se e a dependência que sofrem tanto o objeto como a imagem do símbolo ,4. O inconsciente é o discurso do Outro. Como efeito desse discurso, se constitui o Ego, que "elege" os objetos, os quais são satisíatôrios segundo a condição do sujeito: neurose ou psicose. O percurso tem, como ponto de partida, como centro axial, o Outro. A medida que o desejo do infans é o de adequar-se ao desejo da nrãe - ou ao olhar da mãe - dela depende a constituição clo Ego. O complexo de castração ê a elaboração desse lugar para o qual se orienta o olhar materno e que conhecemos com o nonìe de lugar do pai. Sua importância ê tal que, se o traço distintivo de um pai for o de fumar, veremos que o pequerrucho, no curso da elaboração do complexo de castração, gosta de brincar de fumar, usando como cigarro um lâpis nessa ficção de "como se" que tão bem isola Octave Mannoni em seu ostudo "Je sais bien mais quand même".8 A realidade estâ circunscrita, então, pelo símbolo e aparece aos olhos do individuo sob a forma de uma imagem. Que aconteceria na psicose? À medida que, na psicose, fracassa a construção desse Outro, o sujeito deverãproduzi-Io. A mãe, enquanto objeto primordial, lhe rleterminará (a partir do estâdio do espelho) uma imagem ou ideal
8. Mannoni, Octave - "Je Sais Bien Mais Quand Même". rtrtire ttu I'Autre Scène. Paris, Editions du Seuil, 19ó9.
ln:
Clefs
pour l'Imagi'
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DA OBRA DE J. LACAN
de identificação; mas, enquanto o pai não ingresse como instância que oferece seu suporte a esse ideal, o indivíduo deverâ produzi-lo,
produzindo o lugar do pai, produzindo o ideal com seus prôprios meios e recursos.
Assim vista a questão, para Lacan se produzirâ, na psicose, uma "degeneração" (e sublinhamos as aspas) dessa estrutura onde não haveria registro simbôlico, nem por conseguinte o registro imaginârio que dele deriva para ordenar a realidade. A realidade, pois, aparece, em conseqüência, como uma eclosão de fatos brutos, não significâveis. É o caso da "ausência de sentido" na psicose: - Por que você não pode defecar? - pergunta Deus a Schreber. Este responde: - Porque sou demasiado tolo. A psicose é, de qualquer modo, o efeito da impossibilidade de circunscreveÍ uma realidade de acordo com uma trama simbólica. lsto seria propriamente indicativo na psicose, onde essa "degeneração" estrutural deriva numa degeneração do discurso cujos referentes ficam absolutizados. Jâ nâo é Daniel Paul Schreber quem fala, posto que ele não sabe quem é ele, como também quem ser e que é o que se exige dele. Que é, pois, o que fracassa no caso de Schreber? E o pai? Não. A questão não é tão simples. O pai estâ presente. Até diriamos que
demasiado presente. Como, então, pode aparecer como unr lugar ausente segundo o discurso do indivíduo? Tratar-se-ia de um pai qusente no simbólico, à medida que sua intervenção não sô não o separa do desejo materno como também não tem figuração na
constituição da trama do sujeito. A partir daí, tudo se esclarece, porque, não havendo constituído o lugar do pai, toda a vida de Schreber se reduz a uma tentativa de construção desse lugar. O fracasso de tal construção se evidencia quando as exigências (presidente do Tribunal de Dresden, idade crítica) o conduzem à inevitâvel necessidade de pensar a falha; ante a impossibilidade de abordar o problema, se produz um delírio no quai o sujeito é feminilizado, um delírio cuja nota básica é aprimaz\a da projeção e cujo conteúdo é a homossexualidade. Sabemos que a função do complexo de castração concerne à resolução da problemâtica da relação do sujeito com o Outro. Neste contexto, o agente de castração se define por ser um lugar capaz de inten'ir .omo terceiro discordante na célula mãe-criança. e de
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ofcrecer ao mesmo tempo uma saída a essa dimensão louca pela qual o infans se vê subordinado ao desejo materno ao qual, de qualquer modo, lhe é impossível adequar-se total e plenamente. O complexo de castração implicaria a elaboração da função de separação.
Embora a separação seja temida, a fusão não o é menos; daí que a elaboração da castração é espreitada como a única saída possível. Sendo tal saída impossivel, a Schreber cabe apenas formular-se um lugar: Deus. Deus que, por outro lado, não é unívoco. nem unimorfo, posto que, como um verdadeiro "quebra-cabeças", estâ armado com elementos provenientes do pai real, de Flechsig, da teologia e da mitologia. Trata-se, em Schreber, de um passo impossível de elaborar. Restituído em 1902, deverâ reingressar em 1907. E que a restituição por organizaçào delirante tem pernas curtas. Como não deveria tê-las, se o delírio não chega a cobrir a trama do simbôlico que é constituinte? Em resumo, o caso Schreber se define por um fracasso constitutivo na formulação simbôlica do lugar do pai, o que refletirâ nitidamente na história clinica, na emergência das crises delirantes. Todo o fracasso em relação à função do pai deverâ expressar-se como fracasso no sistema de identificações do sujeito. Mas, ao mesmo tempo, a estrufura da identificaçã,o é isomórfica da estrutura do significante. Voltando ao exemplo jâ trabalhado, o de um pai chamado Mendieta, cujo filho assume as expectativas parentais (ou seja, tudo o que é constituinte de seu desejo); o pai costuma dizer: "Nota-se que é um Mendieta..." Em que se deve notar que é um Mendieta? No fato de que assume todos os caracteres daquilo que, para o pai, significa ser Mendieta. A partir dai, esses atributos têm o valor de ser significantes aos olhos de terceiros.
Em franca conexão com tudo isso, podemos assinalar que a possibilidade de dialogar redunda da possibilidade de compartilhar um côdtgo, em razío do qual é possível o intercâmbio significante. A noção de código nos permite descentrar a idéia de que todo significante remete a um significado. Para insistir em relação a essa discordôncia entre significante e significado, citaria o exemplo daquele menino que, havendo ouvido de um amiguinho um pouco maior a locução "por exemplo", começou a utilizâ-la de forma
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LÀCAN
se ajustava ao seguinte esrepetitiva. Seu discurso geralmente passear"' e vão compraÍ-me quema: "Por exemplo, agora vamos vamos brincar no parque' uma bexiga, por "*trnpIo' e depois por exemplo." na repetição de um O fundamental, nesse discurso' radica prôprios olhos o reivindica atributo ("por exemplo"), que a-.seus da è um efeito' um produto como adulto. Em tt;;";;;únificado
amos, ao acaso: efeca?
ado tolo'
do diâlogo' em cu1o curso Isto nos remete a pensar a estrutura do indagador' por um lado' e do se esboça u^ "ro""'ïo"iïtiit""t indagado, Por outro' que tal. ' ' Como vai? - Bem... Bem' -O esPectro Posicional em qu um dos termos intercambiantes A assunção de um Pôl "áÀtio. absolutamente ligada É que, desde hâ mu fazer com a Palavra partição Posicional determina a' "atitude" a assumir na resPost o aã"iõ " dúvida dã que fazer a' ;;;;; 'ã Possibiliàade de o simbolização do outro' Simb comPlexo que liga o Outro com O indivíduo Percebe a real nização simbô sentação imag exigiria do in
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II)0 I)A PRÁTICA ANALITICA: ANÁLISE DA PRÃTICA Do SENTIDo
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rrrica; elaboração que permitiria ao indivíduo enunciar-se corrro homem ou como mulher. Não obstante, o definir-se como Iromem ou como mulher pressupõe a reivindicação de determirrados atributos de masculinidade ou de feminilidade. É precisumente essa ordem simbôlica o que fracassa em Schreber; daí que ir realidade se inscreve como um episôdio bruto. Em Schreber, a rcalidade brutal é a de uma inexercível paternidade. A falha na simbolização é coadjuvante com a impossibilidade rlc constituir uma lei; lei que, na fala, se expressa como regularidade. E uma regularidade (por exemplo, gramatical) de todo cnunciado é a utilização do sujeito, verbo e objeto, tal como na scguinte frase: "Eu vou comer pão", na qual hâ um sujeito (eu), uma ação (vou comer) e o objeto de tal ação (pão), enunciados. Itaradoxalmente, as frases de Schreber não enunciam "eu vou..." Não enunciam, parecendo antes um circuito fechado que tratasse
cmpurro de novo, sujando-me as nâdegas. É por isso que sou tão olo que não posso defecar Schreber. - responde O discurso, em Schreber, carece de regularidade, legalidade. ,'\o não haver legalidade, as relações ocorrem ao mais puro acaso. Âqui, se trata do acaso da intenção do Outro, do acaso do desejo do Outro. Para pôr termo a esse acaso, é necessârio um código, e a isso se dedica Schreber. A grundsprache (lingua fundamental) do delírio cle Schreber imita um dicionário. Deus: ante-sala menor e irnle-sala maior; cacatuas: mensageiros de Deus; cadaverina: men\agem emitida pelas cacatuas, etc. Ao fracassar a regularidade, ao fracassar o côdigo, fracassa o sentido. É assim que Schreber chega à conclusão de que o vivente rriro é entendido por Deus. Pois bem, se o vivente não é entendido por Deus (porque este unicamente entende os mortos), para ser t'rrtendido, então, ele teria de morrer. É ôbvio. Por que, com quem e stá identificado Schreber? Talvez sua única possibilidade seja a rr orte'/ Então, se pode pensar que o lugar de Schreber é precisamente ,r lugar do morto. E que outra alternativa para Schreber cujo pai I
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J. LACAN
o SENTIDo DA PRÁTICA ANALITICA: ANÁLISE DA PRÃTICA DO SENTIDO
sssedíava o corpo do infans, senão com uma transformação do próprio corpo no delírio ou na morte? Como definir agora essas falhas, essas ausências, essas carências? Para Lacan, se trata de uma forclusdo. O termo jâ foi proposto por Freud: Verwerfung. Alguns tendem a confundir verwer' fung (forclusão) com verleugnung (repúdio); verdriingung (recal-
camento) e unterdrückung (supressão), A tradução precisa que introduz Lacan concerne a uma precisão conceptual. E que não podemos fazer equivaler o recalcamento à forclusão, por tratar-se de dois mecanismos estruturalmente distintos que concernem a duas estruturas fundamentalmente diferentes. Jâ definimos a idéia do recalcamento (verdrdngung) como não aludindo a uma instância ontologicamente existente que se oporia como um obstâculo contra um conteúdo inconsciente, mas se trata de um processo ou operação pela qual ficanr ligadas uma pulsão à sua marca (ou representante) de um objeto. Se por recalcamento entendemos, então, ligação de uma pulsão a um objeto, mal poderíamos falar de recalcamento no caso de Schreber, onde todos os dados conduzem à evidência de um objeto demasiado bizarro, ou até de um objeto impossível como evidenciam seus enunciados impossíveis: "Vou a... vou a... vou a...". Schreber não pode constituir um objeto sexual. Imerso num espectro de relações das quais não tem simbolizada a regularidade que lhe é própria, não sabe quem ser para quem. Seus delírios esboçam a transformação de um corpo masculino em feminino. No interior do mesmo e sobre a base dessa anâlise de seu discurso, se observa não sô a impossibilidade de constituir um côdigo e, sim, de constituir ao mesmo tempo um objeto sexual. Schreber, enquanto caso, é o caso que trata da verwerfung, da forclusão. Costuma assinalar Mario Levin que o termo forclusão ê de origem jurídica. Poderíamos supor um trâmite judicial que tivesse de atravessar quatro instâncias; o trâmite teria cumprido corretamente a primeira instância, perdendo-se neste ponto o expediente, chegando (sem os selos correspondentes à segunda e terceira) à última instância, onde por algum motivo haveriam selado o expediente, o qual apareceria como um expediente completo. Daí em diante, o mandato ou sentença pode sofrer diversos controles sem problema algum, sempre e quando se atenha ao último selo. Mas todo controle rigoroso que revive exaustivamente o processo
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refutaria a validez do expediente por não se haver adequado às normas processuais. E precisamente o que acontece na psicose, onde o sujeito, enfrentandô esse suposto controle (paternidade, presidência do Tribunal, etc.), se visse impedido de prosseguir todo o destino e, como na literatura kafkiana, devessè retornar à busca de um "PÍocesso" ininteligível, impossível, esquivo, nos labirintos de O Castelo, cuja topologia não é conhecida. A ausência desses processos é o que parece impedir ao sujeito a
I
constituição de um objeto cuja marca recalque (retorne à pulsão significada ao sujeito), propiciando, assim, um enlace cuja mecânica é a da fixação. Cabe, então, perguntar o que se passou na psicose. Sabemos que a constituição do inconsciente se realiza mediante a associação da pulsão a determinados objetivos, que são propostos pelos pais. Este último não é mais que uma reiteração da fôrmula jâ enunciada: "o inconsciente é o efeito do sentido do discurso do Outro". Em outras palavras, afunção parental piloteia as pulsões, ligando a necessidade à satisfação. Desta pilotagem e desta ligação da necessidade à satisfação se depreende um rerto correspondente à constituição do objeto. Portanto, deduzimos que a constituição de um objeto sexual é simultâneaàorganização das pulsões, e aorganizaçào das pulsões é um efeito da operação do Outro. A ausên cia de tal operação deve deixar suas m arcas na or ganização pulsional. É esta justamente a temática que desvela o delírio schreberiano. Comoconclusào, temos a seguinte fórmula: se o Outro, enquanto simbôlico, é uma matriz de relações, e se a psicose é como expressão nosogrâfica uma restituição, o delírio de Schreber é uma tentativa de redefinição (com todos os matizes de repetição) da matriz em questão.
Finalmente, interessaria determo-nos num último ponto antes Um grande número de ruutores, que vão desde as formulações de Laing e Cooper até Octave e Maud Mannoni, remetem a possibilidade de tratamento tle uma psicose à sua elaboração no marco de uma terapia comurritária. Podeúamos pensar que isso não é alheio à peculiaridade da psicose; definida esta como uma tentativa de simbolização da legalirlade das relações (entendo por legalidade a regulação das mesrrras), é possível que o grupo ou comunidade são o marco factual rrrais próximo para a produção da tal elaboração, entendendo que, rro rneio de um grupo ou comunidade, se intercambiam funções. A rle dar por terminada a anâlise da psicose.
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0 \IIN,I.II)O DA PRÁTICA ANALITICA: ANÁLISE DA PRÃTICA Do SENTIDo
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rli[crcnça da homossexualidade que se traduz numa eleição homosscxual de objeto, a feminilização se traduz numa posição narcísica rr:r qual o Ego se oferece ao Superego como objeto sexual. Hâ, pois, cnlrc ambas, uma diÍerença estrutural que surge da diferente função que nelas cumpre o Superego. No caso específico da femini liz:rção, o Superego intervém exigindo a passividade do Ego, passivirlade extensiva a todas as versões imaginárias que esta assume. A t'ilação de Espancam uma Criança (trabalho de 1919) nos diz, lcxtualmente, no capítulo VI:
"O menino escapa à sua homossexualidade pela repressão tfansformação da fantasia inconsciente. O mais singular de sua fantasia ulteriormente consciente é que apresenta
e
uma atitude feminina sem uma eleição homossexual de objeto. "
O HOMEM DOS RATOS para nós' A importância do caso do Homem dos Ratos radica' se evidencia um ,ro tuto áá que também aqui (como em Schreber) i.u.u.ro estiutural relativó à constituição do complexo e da função em paterna, o que nos obriga a estudar a diferença estrutural no diagnôstico ambos de maneira a elaboiar um critério diferencial da neurose e da Psicose.
de Trata-se d" uma neurose obsessiva, segundo o diagnôstico Freud. Mas, como defini-la? recoA primeira nota diferencial que a tradição psicanalítica quadro relativo à nhece paÍa a n"t ror"-àúsessiva ê a de ser um Schreber ho-ori"*rrulidade. úu., ,. recordarmos que o delírio de presença de.idéias te a também apres ;.ïoÃor.q5""i como critério diferenque analisemos muito cial, não tem lue' em ambos os casos' a homosdetidamente e expressa numa eleição de objeto' se questão não sexualidade em Criança' Nao hâ, aqui, um contra-senso? Em Espancam uma a jrecessi recordar útil extremamente Freud formula - seria - E que à feminilizaçío. da dade de diferenciar ho-o.r"*uulidade
e
Ao precisar esta questão, se nos evidencia o carâter ambíguo tlue tem todo conteúdo manifesto de carâter homossexual no ('iÌrnpo da neurose. Trata-se, em suma e definitivamente, de uma Iromossexualidade que não conduz a uma concordante eleição de ,rlr.ieto e, sim, a um sintoma: a feminilização. Que é, pois, essa Ícminilização? Na história do Homem dos Ratos, vemos que ocupa urrr lugar preeminente em sua relação com os amigos - aaquele primeiro amigo de quem se desilude quando descobre que finalitlade de sua aproximação se reduzia a um desejo de aproximar-se ,lc sua irmã; aquele outro amigo que, no momento da consulta, ('urììpre o papel de tranqüilizante. Em ambos os casos, se trata de alguém que não ocupa o valor rlc objeto sexual e, sim, de ideal. E nisto sabemos que as relações ( ()rìì o Ideal do Ego não são sexuais e, sim, precisamente ideais. Nt'ste ponto é impossível desconhecer que o ldeal do Ego integra (t orno estrutura) o pôlo propiciatório da identificação ao pai. l'.selarecido este aspecto, convém precisar que, ao mesmo tempo, rr,' rrqui-e-agora como convém e corresponde que se diga ao falar
-
rr,r prâtica analítica da situação transferencial a - Freuddaocupa p'sição de herdeiro dessas relações. O desenvolvimento anâlise
')
Freud, Sigmund
-PeganaunNião.ln:O.
C., ed. cit., t.
I,p.ll92.
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eleger uma mulher rica (Gisela Rubensky), aparentada com a mãe do paciente, seu sintoma o induz a rechaçar tal eleição e a eleger uma mulher pobre... e esta alternativa vemo-la reiterar-se na histôria, quando, na ocasião das manobras militares, o doutor Lorcnz
volta a oscilar entre a mulher "rica" (a estafeta que lhe pagara a dívicla postal) e a mulher pobre (tão assediada e acessivel cantineira). Custe o que custar, a dívida deve ser para com o homem; sob nenhum preço a dívida pode ser para com a mulher. Essa dívida para com o pai assume a forma de uma repetição literal da histôria paterna. Assim como o pai havia tido um amigo salvador em sua passagem pelo exército e uma "dúvida" entre uma mulher pobre (e amada) e outra rica (mas não amada), o Homem dos Ratos reitera as circunstâncias de um amigo salvador logo apôs a sua passagem pelo exército e uma "dúvida" quanto a que muiher eleger. Em que pese tudo isso, a repetição não traz solução alguma, pois, como resolver um problema cuja premissa é uma. dívida impossível?
impossível o coloca.
ln.duza a Por outro lado' embora a determinação paterna o
O terceiro dado de grande peso na história do Homem dos lÌatos é sua vida sexual. Poderíamos dizer que a vida sexual do lìomem dos Ratos ocorre com intermitências. A masturbação adolescente e tardia dura um breve período para logo desaparccer. Tambêm a sua iniciação sexual é tardia, no curso de um verão numa estação balneâria, sem que por isso o doutor Lorenz lique motivado a desenvolver ulteriores possibilidades, a tal ponto (l:-re, um ano depois, regressaria à nresma estação balneâria e .,:piraria ocupar o meslnÒ quarto, com a esperança de repetir a t'xperiência inicial. No curso do tratamento, essa sexualidade develia aflorar, ainda que em f,,,rma desdobrada, onde o carinho fica-ia ,'rientado pal'a a mulher de seus pensamentos (Gisela) e o exercícro ,:e nital orientado na relação com a costureira de que nos informa a lristória clínica. Os antecedentes da sexualidade infantil, segundo o relato do paciente, se centram nurn desejo predominantemente visual: o rlcsejo da criança é o de.;ejc de ver uma mulher nua. Poderiamos rlcter-nos neste dado, perguntando-nos se esse desejo não integra I'rccisamente um desejo de ver a diferença sexual anatômica; neste scrrtido, podeúamos muito claramente ver como o complexo de ( irstração vai moldando um objeto peculiar que não deveria ceder ,'rrr nada sua eficâcia no exercício da genitalidade. E que, tomando
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um pouco a distância e olhando com perspectiva a estrutura do sintoma do Homem dos Ratos, não pode surpreender-nos o fato de que o delírio relativo à dívida no curso das manobras militares na
Galizia tem, como ponto de partida, uma perda das lentes, que vêm a ser nada menos que o apêndice da pulsão visual ou o instrumento ortopédico da mesma. Finalmente, na estrutura do sintoma então desettvolvido, vemos construir as três características que atê, agora temos assinalado: a pulsão visual operando sobre a perda das lentes como ponto de partida; a problemâtica da dívida com um homem, assumindo a forma de uma dívida para com o tenente Z; e a problemâtica da transferência sobre a figura do amigo que faz as vezes de tranqüilizador. Quanto à leitura da sexualidade infantil, não deixa de ser altamente eloqüente, porquanto tem os mesmos caracteres distintivos que definem o panorama afual que traçamos em relação ao paciente. É que ao desejo inicial de ver uma mulher nua se haveria posteriormente agregado (de forma aparentemente casual, mas, não obstante, monotonamente repetitiva como uma idéia obsessiva) a crença de que o mesmo poria em perigo a vida de seu pai. Assim, aidêia inicial: "desejo ver uma mulher nua, mas o cumprimento de tal desejo acarretarâ a morte de meu pai", assumiria pouco depois a forma classicamente obsessiva "se tenho um desejo, algo deverá ocorrer a meu pai". Mais adiante, quando o pai efetivamente morre, o Homem dos Ratos agrega à tal fôrmula um elemento que tem as marcas da racionalizaçáo: "...no mais além". Racionalizaçáo bastante paradoxal se considerarmos que, paÍe admiti-la, o doutor Lorenz se haveria visto na necessidade de crer no mais além; justo ele, que outrora não acreditava. As marcas dessa crença são suÍicientemente fortes para internar o doutor Lorenz na superstição. Ao retornar ao balneârio em que teve lugar a sua iniciação sexual, aspira a ocupar o mesmo quarto, como se a sexualidade dependesse do lugar. Ao inteirar-se de que tal coisa não é possível por estar ocupado o quarto por um homem velho, exclama: "Oxalâ morra". Quis o destino que o homem morresse. A partir daí, Lorenz teme ser vidente... do mais além. Não termina aqui a estrutura, posto que a mesma se fecharia com a observação de que também aqui se verifica a presença de um desejo conectado com o fantasma da morte do pai.
() SENTIDO DA PRÃTICA ANALITICA: ANÁLISE DA PRÃTICA DO SENTIDO 279
Qual é, pois, a relação entre o desejo do sujeito e a morte do lrai? De que natureza é a morte que, serÌpre presente - como uma nunca se concretiza, nem no mais aquém, cspada de Dâmocles -, rìem no mais além? Em que consiste essa morte que, de fato, se diferencia tanto da morte efetiva e real ante a qual o pai (no moménto da consulta) sucumbiu?
O quarto e último elemento destacado, nesse caso, é a peculiaridade da relação que o doutor Lorenz mantém com a dama de seus pensamentos: Gisela. São reiteradas as oportunidades no curso da histôria em que Gisela é homologada ao pai. Alguns autores vêem nisso uma prova suplementar do carâter homossexual da eleição de objeto. Jâ esboçamos uma crítica a essa colocação; pelo mesmo motivo, não veríamos tão simplesmente nessa homologação entre a mulher e o pai do sujeito uma evidência a mais da mencionada determinação homossexual. Inclinar-nos-emos mais sensivelmente paÍa a observação de que a igualdade entre a mulher e o pai hâ de consistir em certo "traço comum" (atributo) aos olhos do doutor jâ que estamos falando de olhos recordar Lorenz. (Seria bom que o doutor Lorenz ê, à sua maneira, um vidente.) Esse atributo, que tanto concerne à posição do sujeito, deve aludir à relação de parentesco. Em outras palavras, esbocemos a idéia de que, assim como o problema do pai se reduziria a uma impossibilidade de elaboração de seu lugar de filho, do mesmo modo o problema de relação com Gisela se reduz a uma impossibilidade de elaborar seu lugar de pai, porquanto Gisela é estéril devido a uma intervenção ovârica conhecida pelo paciente. A mulher
coincide com o pai num bastante preciso ponto comum; ambos coincidem enquanto e em quanto lhe impedem toda a ulterior elaboração de sua posição de filho em relação ao pai, como em sua posição de ser pai na produção de impossível como sua dívida tum filhó. A reunião de todos esses elementos e de todas essas notas criticas numa unidade que explique teoricamente o caso exige uma claboração, e esta não pode radicar-se numa justaposição de dados, iú que é óbvio que nem todos são concordantes ou coerentes. Uma solução esboçada pela teoria objetal assinalaria um certo tléficit, no campo da genitalidade, de resultados de uma dificultosa claboração de sua pulsão genital, em concordância com uma excessiva ambivalente eleição de objeto. Ambivalência que seria, de fato,
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reforçada pela presença de impulsos hostis diretamente derivados de sua analidade e da concomitante homossexualidade. Dito de outro modo, a caÍga de hostilidade instaurada pela determinação anal alteraria o quantum de amor que pela via genital une o sujeito com seu objeto, daí resultarido que a relação é plenamente ambivalente. Essa formulação coincide com os postulados da teoria libidinal sistematizados por K. Abraham, o qual assinala que as relações de objeto na etapa edípica s-ão plenamente ambivalentes, enquanto que, uma vez superado o Edipo, ficaria superada a referida ambivalência, dando, assim, base para a instauração de relações de objeto pôs-ambivalente. Mas... que ocorrerâ se tomarmos mais de perto a teoria da pulsão genital? De acordo com .4 Sexualidade e a Neurose Moderna, sob a perspectiva de Freud, as pulsões genitais são uma construção, uma organizaçã,o das puisões parciais. Essas pulsões parciais não se reúnem por si mesmas, mas em função de uma organizaçáo inconsciente. Essa organização de eficâcia simbolizante ê precisamente o Édipo. A pulsão genital é uma construção, tanto como a elaboração do masculino e o feminino no fragor do complexo de-castração. Essa construção assume a forma da constn$fu rh um rhodelo de objeto. O mesmo, ao concentrar sobre si as palsões parciais, determinaria (e aqui estâ o conceito de fixação) toda ulterior eleição do sujeito. Como resultado dessa elaboração, temos que a pulsão genital não é um dado ontogenético (e muito menos filogenético) e, sim, por exemplo: visuais, uma peculiar síntese. Síntese de pulsões auditivas, vocâlicas, orais, anais, uretrais, tâteis... Voltemos ao nosso ponto de partida. A reunião de todos esses elementos e todas essas notas críticas numa unidade que explique teoricamente o caso exige uma elaboração e esta não pode radicar-se numa justaposição de dados, pois é ôbvio que nem todos são coerentemente.concordantes. Convém, pois, abordat o caso, não pelo lado da analidade, mas da organização que a sustenta. Convém abordar o caso não pelo lado da homossexualidade, mas mediante a observação das partes que conformam esse todo. Se nos ativermos à prôpria experiência do paciente, os episôdios homossexuais certamente ocorreram numa adolescência precoce, por voita dos quatorze anos, com um amigo: Braun. O conteúdo de tais
0 SENTIDo DA PRÃTICA AxALITIca: ÂNÃLISE DA PRÁTICA Do SENTIDo 28I cpisôdios centrou-se nun a exibição recíproca dos genitais, em que se detecta nitidamente a determïnação visual do desejo infantil.l0 Tal
determinação (o desejo de ver) havia assumido a forma material concreta do desejo de ver suas preceptoras: Frâulein Peter e Frâulein Lina. Poderíamos concluir que essa construção, regedora, por sua vez, da organização pulsiona{, tivesse um carâter visual em nada alheio ao estâdio do espelho. Se coubessem dúvidas a este respeito, o material insiste ressoando desde o fundo da própria histôria do paciente. Concretamente, se trata do episôdio que poderíamos
denominar de o fantasma paterno. Havendo-se o - conforme desejo do pai e apôs a morte deste transformado num bom estudante, costumava abrir as portas do quarto em que se instalava para estudar, e cosfumava acender as luzes à espera (crédula) de que o fantasma do pai regressaria por volta da meia-noite e haveria de vê-lo estudando, comprazendo-se com isto. Trata-se de uma complacente obediência post-mortem. Nío obstante e ao mesmo tempo, é como se não pudesse respeitar a intenção inicial, jâ que, uma vez aberta a porta, ficava sem roupa ante o espelho: "Preocupava-o o fato de que seu pênis fosse demasiado pequeno, mas durante esses episôdios teve certo grau de ereção, o que o tranqüilizou. (...) Às vezes colocava também um espelho entre as pernas." 1r Na prôpria estrutura desse episôdio, observamos que o sujeito estâ detido num ponto, a meio caminho entre o espelho e o pênis; o sujeito se constifui num hiato, na brecha que separa a imagem do espelho da imagem que o Ideal do Ego lhe deveria prover. É por
isso que o Ideal (precisamente falto em nosso sujeito) aparece substitutivamente realizqdo no outro; outro crtja forma rnaterial (ou melhor, imaginâria) assumirâ o amigo da adolescência, o amigo atual e, na transferência, a pessoa de Freud. O desejo, pois, de ter uma dívida para com o homem desejo
-
Ir
10. Freud, Sigmund - Original Records. ln: Los Casos S. Freud, n9 3 las Ratas. Buenos Aires, Ed. Nueva Visión, 1973, p. 42. 11. Freud, Sigmund cit.,p.67.
-Op.
-
El Hombre
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o pai - é um (a do ldeal do o Homem dos transferência' Ratos busca-a avidamente em su ser pai? Poderíamos resumir: que é ser filho? Que significa esses por vez' sua e responder' Qual é a imagem capaz de resumir
que propomos ler literalmen ã;*,ï.; ã'" .t oiniaor-lhe uma Ego) que, em nosso sujeito,
dois enigmas?
pacto (nglc3 realizado) Situado entre a imagem especular e o seus labirintos imagiperde em com o pai, o Ho-em àos"Ratos se
que se ;t;i";, .- .u", idas e voltas, marchas'e contramarchas' em conquista de uma
assemelham ao passo forçado de um exército essa terra é a paternidade' l".o i"uf.unçâvel. No doutor Lorenz, problema do dinheiro assugeral o Assim visto, em seu panorama
-. Àuio. ,iur"ru. - o seguinte:
O ,n"r*o paciente teria dito
-
segundo Freud
"Portanto, ele economizava para não ter que trair seu dinheiro amor. Por essa tazlo, também, entrega todo seu pertence lhe isso dela; quer nada ter à mãe, porque não e não hâ mérito nisso' "
12
é sem conseEssa marcada atitude para com o homem não de objeto eleição especial r.,u."tuçao.o- u mulher'.4 qtiêrr"iu. não é por complexo; "rn esse .oUt.aéterminada do doutor Lorenz firme e "ttu tenaz mantém pobre se e em vão que elegeu uma muther complexo ordem-do na qúe algo hâ nessa tessitura. Insistimos em notas de Freud recolhem em sua que as ausência, ;;;;;t;,;a textualidade: qui"O pai gostava que lhe pedissem permissão' como se a sesú abusar de seu podlr, embora talvez' na realidade' que de única coisa que fazia era desfrutar da sensação tudo Provinha dele."t'
12. Freud, Sigmund.- OP. cit', P' 63 13. Ibidem.
() SI]N'I'IDO DA PRÃTICA ANALITICA: ANÃLISE DA PRÃTICA DO SENTIDO
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Evidentemente, nesse pai hâ algo de impostura. Ciente de que tudo provém da mulher, se compraz em produzir a sensação de que
tudo provém dele. É lôgico, conseqüentemerite, que sua intervenção, que deveria conduzir o Homem dos Ratos à concreção de um ideal, seja impossível. Em outras palavras, é um pai que se confunde demasiado com a mãe; como conseqüência bastante lôgica, seu filho fica a meio caminho entre o espelho materno e o impossível ideal paterno. Freud sublinha, ao longo de todo esse caso, a estreita relação existente entre o fantasma da morte do pai e o fantasma do dinheiro; ainda mais, situa na gênese dessa relação uma histôria resgatada do esquecimento pelo "insistente" mito familiar. Trata-se da história segundo a qual o pai do doutor Lorenz usou o dinheiro de sua companhia no exército; na ocasião, é um amigo quem o salva da desonra emprestando-lhe um dinheiro que jamais devolveria. O mito não culmina ai, e cruamente prossegue denunciando o pai: na ocasião de eleger a esposa, esse homem deveria
optar por abandonar uma mulher pobre por uma mulher rica. Esboça-se, em todo esse material, uma conclusão bastante inexorável: no centro desse caso se acha a questão do valor. Efetivamente, qual é o valor do filho nesse casal? A pergunta não pode deixar de gerar angústia, sobretudo se a incógnita do valor recai sobre o mesmo sujeito. Quem sou eu e para quem?
poderia perfeitamente ser a fôrmula que resume o enigma do Homem dos Ratos. A resposta a esse enigma não tem outra possibilidade que pelas vias do sintoma. Como o pai não pode mentir, o doutor Lorenz ajusta suas condutas à literalidade das palavras do pai (pai que o mito familiar denuncia como mentiroso). Paradox:rlmente, o sintoma que deveria tentar responder esse enigma o nrantém sempre vivo e, em conseqüência, sempre irresolvido. Finalmente, o Homem dos Ratos estâ detido na diacronia; não pode saber o que é ser filho, nem poderâ - por sua especial eleição rle objeto saber o que é ser pai. Na etiologia desse estancamento, observamos a falha dos emblemas paternos radicâveis na mentira, rra palavra débil, no interesse pelo dinheiro. O ideal do Homem dos l{atos estâ falhado e se faz necessário reconstituí-lo. Reconstrução rlrre tem, por um lado, dois caminhos possíveis: a restituição ou a t
onstrução. Schreber manifesta um típico caso de restituição, no qual a
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função paterna não pode materializar-se em absoluto. E por isso que a restituição, na questão, reveste a forma material do delírio, à maneira de uma "novela familiar". No Homem dos Ratos, a falha é a mesma e concerne à mesma função. Sem dúvida, o doutor Lorenz não se vê solicitado a produzir uma "novela familiar". Bastar-lhe-â escorar o pai real. E é ôbvio que o escoramento estâ feito pelo sujeito mesmo. O Homem dos Ratos tem qve ter uma dívida para com o tenente Z de 30,80 coroas... deste modo não "teÍã" razões para criticar seu pai. A diferença entre Lorenz e Schreber salta à vista. Em Schreber se trata de uma função que não se materializou, em absoluto. Jâ no caso do doutor Lorenz, se trata de uma função que se constituiu de forma falida. Na repetição literal que o sujeito faz, no paralelismo que este formula entre o pai e a mulher eleita, enfim, nas suas transferências, podemos ver que o sistema de identificações repousa sobre a falha no Ideal do Ego. Isto nos obriga a precisar a diferença entre oldealeoSuperego. O Ideal é uma identificação com os "emblemas" parentais, sendo a sua uma função de estabilização. Esses emblemas deverão cumprir o papel de suportes da sexualidade do sujeito,e, em conseqüência, das identificações secundârias. Por sua vez, o Superego também é uma identificação - que não se ajusta aos emblemas, mas ao mandato paterno, literalmente. E pois uma identificação literal e, neste sentido, não cumpre com a função de estabilização, mas de, digamos, emblocamento. Precisamente é o emblocamento que vemos instalado na vida e obra do Homem dos Ratos. Essa dupla identificação certamente tem a ver com a estrutura da função paterna. Ã medida que essa função estâ escorada pela presença material concreta de certos emblemas, torna-se imprescindível pensar o emblema como tal; uma observação do mesmo nos manifesta sua dupla estrutura: o emblema é tanto um valor quanto uma significação, e precisamente aqui é onde se inicia o drama de Lorenz, já que o sentido nã,o sabido é o valor e a significação da paternidade e da filiação, ambos territôrios nos quais o sujeito se perde... enquanto sujeito.
EAP|TULO VII
MOTUS No estudo de um caso de neurose'e de um de psicose que lealizamos nos capítulos prececlentes, à luz da bateria teórica previamente exposta, nos deparamos com uma primeira nota que se rlestaca. A diferença entre a psicose e a neurose pode ser reduzida a ruma difrrença de estiìu, e iìão â uma diferença cle objetos, jâ que lin arnbos os casos o objeto é o mesmo. Na psicose, o traïamenlo do objeio paterno responde ao modelo ilc um esrrondoso 'liotejo cujo se ;:iid:: seria o desassujeitamento ou r irirtura tlo ligame paterno crrjas erxigências simbolizadas - não Por .rs:;r-it:lenr a forma rle i;m icrtorífic; mandato. sua vez, a ,;úirr'ose se dcfìne Doï rrÍi!' !er:iâ1iva rlu rigorosa submissão à pala',r;r do çrai. É,sta sô inijir;rçÀr, nos introduziria diretamente na rrrrrilula rlo probìema, posio qlr(l a neurose e a psicose se diferent,i:n peln Íato de que a r!'ruÌr:r r."r)rìr â qual a psicose elabora as ,;r-restões não resolvidas (eoncclne ntes ao complexo materno, de t::tsÌrar;ão. oc paterno) é i1istinta da trama com que a neurosc crnatiza suas questões. Insistimos nesse ponirr. visto que, desde a perspectiva de observação fenomênica. i-,t"r,:rvâ.rnos que enquanto o doutor l,arenz não pode nem sequer ei'.rbelecer uma relação de acasalamento, Schreber materializou a srÌa.., ') que não subtrai a Schreber de ser sujeito de uma psicose paranóica" f)esde uma perspectiva bastante sirnplista e linear, a partir de unla teoria objetal, o doutor Schreber se costuma dizer l,arece haver concretiza'Ja "mais êxitos" - como * que o doutor Lorenz. Conforme podemos observar, uma avat
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liação diagnôstica estabelecida com base nos êxitos do paciente não é, em absoluto, indicativa e, sim, excessivamente paradoxal. Dizemosparadoxal, posto que é ôbvio que'um quadro neurôtico cuja resolução se tenha reestruturado sobre a base da inibição, seguramente que no descritivo e no Ìenomênico aparecerá como mais "paup etizado" (como se diz) que uma estrutura psicótica na qual a inibição não intervém. Depreende-se, com base nessas observações, que uma aproximação à estrutura do sujeito deve partir de um conhecimento
da estrutura e não dos fatos fenomênicos que nenf sempre são decisivamente determinantes. Se compararmos a psicose e a neurose que analisamos, chegaremos à conclusão de que, em ambas, o referente dos respectivos delírios é o mesmo: o pai. O que varia é a trama com que em cada
uma dessas estruturas é abordada a elaboração do conflito. Ë a partir desta observação que podeúamos entender a recorrência de Lacan à estilística e ao estudo - num discurso - das primazias metafôricas ou metonímicas. É que, afinal de contas, à psicose the são formuladas as mesmas tarefas a efetuar que à neurose, posto que ambas habitam um mesmo universo. Esta premissa nos torna inteligível a introdução que Lacan f.az a seus escritos: "O estilo é o homem". A universalidade da tarefa, a universalidade dos objetos, apresenta uma assombrosa congruência com os comentârios que desenvolvemos a propôsito dos fantasmas originais, que apresentam precisamente o mesmo grau e atributo de universalidade, cujos conteúdos (cena primâria, sedução por um adulto, castração) encobrem uma estrutura relativa à intervenção do Outro na constituição do sujeito. Esta intenirenção deveria colocar um espectro de enigmas enunciâveis como enigmas relativos à origem das crianças, à origem da sexualidade e, finalmente, à origem da diferença sexual anatômica. Finalmente, esses enigmas definem o sujeito sob a forma material de identificações, de formações libidinais e de um modelo de ldeal do Ego capaz de organizar a emergência sexual. No fantasma original, o sujeito é representado pelos seus limites. O sujeito não se inscreve enquanto personagem (recordemos, sim, o anonimato que as catactenza), mas por suas condições universais que limitam sua experiência. O limite biolôgico, sociolôgico, antropolôgico e inconsciente da espécie são, aqui, os "protagonistas", os sujeitos gramaticais. No fantasma original, se nos
MOTUS
2E7
p:rlcrrliza
a discordância, a distância e diferença que cinde o sujeito: eslnrtura determinante, o sujeito determinado. Ii assim que esboçamos a suspeita de que o "individuo" não é orrlnt coisa que um suporte. Suporte da estrutura e determinado por cla, o homem é homem enquanto e em quanto fica assujeitado rro limite cuja natureza e função jâ descrevemos. Contudo, e apesar rkr tleterminismo aparentemente implicito na questão (coincidente, por outro lado, com o fatalismo freudiano), convém sublinhar que o suporte não é ingênuo; a saber: hâ razões que explicam a relação rlc suportância e essas razões prefiguram aconexãopela qual é resolvirla a discordância entre a estrutura e o suporte. Essas conexões rlcfinidas no campo da lingüística, por R. Jakobson, como shifters - definem uma rede de metâforas e metonímias que são as formas rnateriais de ligação e conexão no discurso de um sujeito. A partir daí fica claro que o homem seja o estilo. O homem se rlcfiniria por essa rede de metâforas e metonímias. O homem é suf eito... sujeito da intersecção das relações paradigmâticas com as sintagmâticas. No esquema esboçado por Lacan em seu seminârio sobre ás Iirmações do Inconsciente, encontramos material para produzir a claboração. Tal esquema se reduz a dois vetores que, partindo de pontos diferentes, se cortam em dois momentos muito precisos: o significado e o fecho.
ir
O vetor AA' rcpresenta, em sua linearidade, a seqüêncià "antes-depois" que define toda frase, toda comunicação. Mas, justamente, o significado se produz do fecho da frase para trâs, ou
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seja, retroativamente (conforme demonstramos no exemplo de "Ai querido..."), o!9e estâ representado precisamente na direciona-
lidade do vetor,B.B'. Mesmo à maneira de repetições, podemos exemplificar. Na frase "A casa verde", é evidente que o significante tem uma disposição unilinear que configura uma direção progressiva. Também é evidente que a mensagem é entendida quando do término do enunciado, jâ que, se nos limitâssemos a dizer "Ã...", ou melhor, "A casa.. . ", não enunciaríamos nenhum sentido preciso. Isto ratifica o carâter retroativo que tem toda mensagem na emergência do significado. Podemos reforçar nossa reflexão com um novo exemplo. Se disséssemos "A casa verde, de Mario Vargas Llosa", é claro para quem estâ informado que estamos aludindo à novela desse escritor peruano, e é ôbvio que teríamos produzido uma mensagem distinta. A conclusão a que chegamos é que o fecho ocupa um papel preeminente e predominante na produção do significado. Como resultado dessa dinâmica opositiva na seqüência antes-depois do enunciado e do retorno na produção do sentido, podemos assinalar que o sentido é um efeito ccnseqüente do fecho da cadeia. Em resumo: o sentido é o efeito do fecho. Pois bem, notemos que o fecho é algo que também podemos conceber como um "corte" na cadeia. Convém, de qualquer modo, não nos deixarmos levar pela sinonímia das palavras e pressupor que esse conceito de corte que ora estamos usando é o mesmo que o conceito de corte no interior do complexo de castração, embora certamente hâ aqui uma certa confluência conceptual. O sentido é dependente da freqüência do corte na mensagem. Isto é fundamental porque, definitivamente, erradicaria toda crença de uma certa consubstancialidade entre o significante e o significado, recaindo.o peso da significânci a na organização dos cortes. Com isto, estamos ao mesmo tempo reforçando a noção segundo a qual o corte não é casual e, sim, se acha inscrito numa certa ordem organizativa. Qual é, pois, a materialidade dessa organização? Essa organizaçào se expressa na capacidade de ir freqüenciando as mensagens e esta, por sua vez, estâ diretamente subordinada sobre a base da teoria da comunicação - por exemplo, a discriminação da diferença entre o processo de emissão e de recepção de uma mensagem. Segundo a teoria da comunicaçáo teoria que Jakobson
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utiliza teria a seguinte - um diâlogo atravês de râdio, por exemplo,Aqui disposição: "Aqui 29 transmitindo... Câmbio. X8 falando. - diâlogo, Atenção 29, recepçã,o perfeita. .. Câmbio... " Neste o termo câmbio opera como um significante cuja função ê a de definir o corte na comunicação. Trata-se de um corte que define duas posições diferentes: a posição de emissão e a posição de recepção. Insistimos em que o significante "câmbio" importa, neste caso, pela troca posicional que introduz no diâlogo, troca graças à qualo diâlogo é possível. Concluindo, o significante é sempre relacional; seu sentido surge da relação em que se inscreve e não de alguma lorma de mística ou misteriosa consubstancialidade do significado. Assim como os filhos não preexistem aos pais, assim como o parto não preexiste ao coito, o significado não precede nem preexiste à relação significante. O fato de que o significante "câmbio" opere como urri indicador e disparador de uma mudança de posições nos permite estabelecer uma relação com a psicanâlise, jâ que o conceito de posição tem conteúdo psicanalítico. Posição inconsciente do sujeito... ou posição do sujeito do inconsciente. Deste modo, concluiremos que o conceito de fecho ou de uprès-coup lingüístico (retroação), o conceito de fecho e organi't,açã.o de fecho proveniente da teoria da comunicação (conceito de côdigo) e o conceito de posição da teoria psicanalítica são isomôrficos e congruentes. Pois bem, o privilégio que Jakobson atribui ao conceito de código para entender a organizaçáo dos cortes induziu Lacan a rctomar esse conceito. E assim que seus primeiros seminários, entre rrs quais se acha o de 1954, As Formações do Incon'sciente, definem o côdigo como um lugar (topos) que permite a produção de fechos e cortes dos quais o significado é efeito. Posteriormente, Lacan observaria que a fonte de onde deriva o c.nceito de código são as ciências informâticas, cuja especificidade r':rdica no fato de que os significados são precisos e rigorosos. Mas (lue pensar se tomarmos um código não-formal, um côdigo inforrrral como é o caso da língua Lalada? Precisamente, o conceito de lírrgua exclui toda possibilidade de uniformidade e artificialidade, rlcsde que nela rege, de forma bastante determinante, a arbitrar icrlade na relação significante (em função da qual todo o signi-
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o conceito de ficante é polívoco), com o que entra em contradição côdigo. -Nao ," tratando de côdigo, se tratarâ de língua - conclui de I.a""n. O carâter môvel da paúvra deverâ gerar um movimento isso' Por sentidos' de movimento posições e, em conseqüência' um XX, intituãnr ì.ìr rffiimos seminârios, concretamente o de número (em francês' alíngua conceito: lado Encore, introduz um novo e.studo seu de objeto o definir lolaneu"): esia peculiar maneira de (a lingüística da estudo de i;ffi;;i visa dìscriminâ-lo do objeto
língua)' -
puro movrm ento; ,nloÁcq q qlinorta?: Que é que caractenza a alingaa? Ser um a um critério uníresponder não estar èm permanente mudança, movimento' o desse função Em a prè-formal de indicações. pode agora mudar' sentido, ""* um tinha mesmo termo que outrora mudança no uma de função em revestir-se de outros matizes, jâ vimos pois contexto' de noção contexto. E insistimos sobre essa que se sua fundamental importância no efeito do chiste da frase seminârio: este todo de principal em^ exemplo constituiu quase,,Ai querido assim...", na qual o contexlo assume trata-se da fìase r. p"p"f preponderante ttu construção do significado' Mas reiteremos'então,queaimportânciadessecontextoestâincidindona da àúngua, cujo marco é a relação do infans com o "onst-çeo ôutro, na qual opapa, o iela, o lelo, o tutu, são significantes de uma língpa Primordial.
Em outìas palavras, o conceito de alingua alude a esse internas câmbio verbal entre mãe e filho que se produz com base transgressões: "O nenê come apapa""' perõ conceito de alíngua alude à fala que, enquanto tal, édesloe por condensações constituída manentemente cambiante, camentos ou metâforas e metonimias' de Por outro lado, o conceito de alíngua alude a um sistema da retradução e elaboração da que resulta posiçães do sujeito, noçao de côdigõ sobre a qual se apoiara Roman Jakobson'
Evidentemente, surge, como conceito primordial' o conceito teórica de de posição, e simultaneamente surge uma possibilid.ade erro da clâssico um evita Isto conìeptualizar sua constifuição. o qual hipostasiava se na pôs-freudiana tit"t"tttu psicanalitica a objetal relação e saúde de ideal um sujeito. O sujeito nao é deslocamentos e condensações das cãïct"ti"at, t ru., sim, o efeito
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outra que sua história materializada numa orgaização inconsciente. Por esta via, não sô obtemos uma teoria não-hipostasiada do srr.ieito, mas, sim, ao mesmo tempo podemos explicar sua constiIuição, constituição que amiúde é remetida a não se sabe bem que crr.ja fonte não é rr
ohscura transmissão hereditâria filogenética. Em todo caso, se trata de uma herança culfural cujas vias de transmissão são obvianrente diferentes das genéticas. Esta reflexão nos colocaria ante rrma teoria quase intersticial, posto que a determinação das vias na Ircrança cultural leva a teorizar o papel da Iamília. A língua e a posição do sujeito no inconsciente resumem, :rssim, os problemas primordiais da teoria psicanalítica. Entretanto, também a prâúica ficaria por esta formulação cnunciada. É'que a posição do sujeito e a alíngua do sujeito diferem na psicose e na neurose. O obstâculo teôrico da psicanâlise vislumbra, assim, sua resolução: o obstâculo do quantum, o qual distinguiria a neurose da psicose de forma bastante confusa e que não hâ balança alguma para pesar, nem regra alguma para medir, esse bendito quantum que termina vestindo-se com as vaporosas roupagens do indefinível. A distância estrutural e qualitativa que separa a neurose da psicose assume, assim, ao menos um marco no qual resulta teonzâryel. Sempre importou mais em psicanâlise o explicar que o medir. A produção de posições do sujeito é correlativa com a constituição da linguagem. Ambas apontam pata a elaboração do problema: Eu-outro. A elaboração da alteridade, a discriminação do âlter, o registro de o outro, ê a tarefa primordial que deverá definir os caminhos que conduzem a uma psicose, a uma perversão ou a uma neurose mais além de todo quantum, qtJe, embora intervenha, não o faz a título de fator definitivo ou decisivo. A elaboração da alteridade conduz à construção das identificações. Daí que resulta tão isomórfica a tese posicional com o cstudo da identificaçã,o, a tal ponto que poderíamos afirmar que as identificações são o manifesto de uma estrutura latente: a posição do sujeito; posição que, definitivamente, se reduz a uma estrutura organizativa dos cortes e fechos que determinam o sentido. E é por cssa via que ingressa o Outro no indiúduo para batizâ-lo de sujeito. Bm outras palavras, é por essa via que vemos a determinação do Outro no assujeitamento dos filhos. Assujeitamento inevitâvel, em
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função do qual o humano é hurnano. e scm o qual o humano fica reduzido ao nada do marasmo ou dn hospitalismo crônico, conforme nos ensinou o positivismo fecunrio do Dr. Spitz. O humano é humano enquanto é assujeitado. Mais exatamente, sujeito (e, por conseguinte, determinado) de uma estrutura que funciona como esse Outro que é a própria sociedade, com esse outro que ê alingua, ou com esse Outro que é a família e os laços de parentesco numa enunciação antropológica do problema. Não é o sacerdote quem decide a forma do rito, e, sim, o rito é que decide a forma do sacerdote. Por isso, Lacan observa que o rei é um imbecil que se crê ser o lugar que ocupa, já que o mesmo, enquanto pessoa, não é o poder, e, sim, sua representação. A identificação nos oferece uma evidência empírica das manifestações concretas que assume esse assujeitamento. Assujeitamento em relação ao qual são os que - insistimos - poucos que tenha) recoduvidam, jâ que qualquer um (por pouca leitura nhece sua existência ao reconhecer a existência de uma estrutura de determinações, sejam sua forma gramatical, os deuses, a fatalidade, o destino, as horas ou a morte. O homem é o estilo... estilo de assujeitamento, estilo de reconhecimento do outro, estilo de desconhecirnento do Outro. Outro, que diz ao homem: "Aut motus, aut mutis".
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SUMARIO Epílogo, VII Epílogo à edição brasileira, IX
Capítulo I Capítulo II -
DE PROFUNDIS,
1
O SIMBOLICO, O IMAGINARIO, O REAL, 17
As imagens, 17 Os fantasmas, 27 A verdade, 33 O simbôlico, o imaginârio, o real, 49
CAPíIUIO
III -
capitulo IV
A QUESTÃO DO SIGNIFICANTE,
- o ÉDIPO COMO
61
DISCURSO DO OUTRO, 99
O Edipo: sua definição, 99 As funções parentais no complexo de Edipo, 117 O conceito de falo, 729 O conceito de castração, 139 O desenlace do drama edípico ou a resolução do conflito falo-castração, 153
Capítulo V - OOUTRO: DEFINIÇAOECAMPO, A identificação,
169
As identificações, 182
169
Identificações primârias: estrutura do sujeito tôpica do Édipo, 196 l,ocalização da identificação primâria, 2L4 "Eles" são o "Id", 228
capítulo
vI - o SENTIDO DA PRÃTICA ANALÍTICA:
e
ANÃLISE DA PRÃTICA DO SENTIDO, 233
O caso Schreber, 245 O Homem dos Ratos, 274 Capítulo
VII
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Bibliografia, 293
MOTUS, 285
Como definir o trabalho de Jacques Lacan? Oualfoi sua teoria, qual sua especif icidade, o que nos ensina e o que acrescenta ao desenvolvimento da teorla psicanalítica? Não é alheio a isso o título do nosso curso: "Curso e Discurso/ da Obra de J. Lacan", porque quem diz curso está dizendo ditado, mas também está dizendo caminho. Caminho que, quando formulado em palavras, se denominará discutso. Com isso, estamos simplesmente fixando uma posição: a obra de Lacan é um paSso no desenvolvimento da teoria psicanalítica; todaúia, trata-se de um passo capital, fundamental, necessário.