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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS FACULDADE DE DIREITO
DIREITO E CULTURA POPULAR: O BATIDÃO DO FUNK CARIOCA NO ORDENAMENTO JURÍDICO
DENIS MOREIRA MONASSA MARTINS
Rio de Janeiro Dezembro de 2006
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DENIS MOREIRA MONASSA MARTINS
DIREITO E CULTURA POPULAR: O BATIDÃO DO FUNK CARIOCA NO ORDENAMENTO JURÍDICO
Monografia
de
conclusão
de
curso
apresentada à Faculdade de Direito da UERJ como requisito parcial para obtenção do título de bacharel em Direito.
Orientador: Professor Sérgio de Souza Verani
Rio de Janeiro Dezembro de 2006
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Folha de Aprovação
DENIS MOREIRA MONASSA MARTINS
DIREITO E CULTURA POPULAR: O BATIDÃO DO FUNK CARIOCA NO ORDENAMENTO JURÍDICO
Monografia de conclusão de curso apresentada à Faculdade de Direito da UERJ como requisito parcial para obtenção do título de bacharel em Direito.
Data de aprovação: ____/ ____/ _____
Banca Examinadora:
________________________________________________ Sérgio de Souza Verani – Presidente da Banca Examinadora Professor da Faculdade de Direito da Uerj – Orientador
________________________________________________ Álvaro Sagulo Borges de Aquino Prof. Ms. da Faculdade de Direito da Uerj
________________________________________________ Alexandre Magno Gonzalez de Lacerda Bacharel pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
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À minha família, como não? Sim, sou cinco letrinhas, todas bonitinhas, fáceis de dizer, ditas por vocês. Às amizades, as que ficam e também as que vão. Mas, se quiserem ir se demorando, o bar não está com cara de que vai fechar agora, a prosa é boa, o céu está limpo, sopra um ventinho de novidade pela estrada... A este ritmo maldito que ecoa na minha cabeça e que nunca esquecerei jamais.
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AGRADECIMENTOS
Aos pais, pelo carinho incondicional, por não terem me batido tanto quanto mereci e terem, em vez disso, me enchido de letras desde cedo: até que acertaram bastante por linhas tortas. À irmã, por não ter reclamado da luz e bater incessante de teclas durante as madrugadas varadas. À avó Lília, por ter gerado a melhor família que eu poderia escolher, apesar de serem (quase) todos botafoguenses fictos. À Cleonice, essa fã do Romário que adoro, pelos deliciosos sandubas que me alimentaram durante toda a minha vida acadêmica e geraram inusitadas esculturas em papel-alumínio. Aos amigos para a vida inteira da Federal de Química, companhias divertidas e agradáveis que topam qualquer parada. Como diria a chamada da Sessão da Tarde, “essa galerinha da pesada vai aprontar todas e arrumar altos agitos!”. Ao Balcão de Direitos, uma experiência de vida ímpar em todos os sentidos. A todos os amigos da UERJ, em especial aqueles gatos pingados que não perdiam um Plebeu. Aos Glamourosos, pregadores e operadores incansáveis do Direito das Galeras. Meu “boas noites” ao Dona Flor, este grupo gente boa que sempre encontrará abertas as portas do meu coração. À PGE, o estágio jovem por excelência, e seu gabinete de elite. A Milena, amigona do peito(!), mesmo que ela não tenha movido uma palha pra ajudar nesta tese. Agradeço mesmo assim, viu? A Fabio Peixoto, amigo de valiosas opiniões, sugestões e revisão da tese, fora as idas no Carro do Funk e no Messias aos lugares mais improváveis para fazer “pesquisa de campo” (era o que eu contava em casa quando chegava com o sol a pino). A Diana “Didi” Neves, essa adorável comunista subversiva que acaba me convencendo muitas das vezes, como fez com este trabalho. A Juliana Lessa, pela enorme ajuda durante a confecção desta, eterna disposição e empolgação sem fim com o nosso funk, sobretudo aqueles mais sujos que ninguém ousava tocar na jukebox da Caverna do Bin. A Paulo Neves, parceiro velho, nem sei por que, e seu inesquecível hamster de aquário Horácio (in memoriam) – mais uma pobre vítima da violência nesta cidade (tá bom, esse agradecimento era só pra falar do Horácio, confesso).
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A Daniel Guimarães, homem-de-letras que muito contribui estilisticamente (aspas com os dedos, por favor) para minha compleição literária. A Fernando Laplace, que me diverte incondicionalmente. A única pessoa capaz de sacrificar tudo, absolutamente tudo, pela piada. Te agradeço-lhe-te! Ao orientador Sérgio Verani, que tão gentilmente me acolheu e esteve à vontade com um tema não propriamente comum. Às linhas de ônibus da cidade (menos a Amigos Unidos, eca. Dedetizem as baratas!) que ligam meu itinerário e à vista do Aterro do Flamengo, inspiradoras de boa parte das elucubrações aqui expostas em texto. Afinal, não há momento em que me alheie mais de mim do que em um ônibus. A todos os camaradas funkeiros que, ao longo destes anos, ousaram bater bundinha até o chão ao som do pancadão mesmo sabendo que estavam fazendo uma coisa maldita e malvista por boa parte da sociedade e Estado. Ao homem-da-caverna primordial que descobriu que batucar dois pedaços de pau dava um som legal, chamou a galera e acabou dando nisso aqui.
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EPÍGRAFE
funk – 1. medo, susto, pânico, pavor; 2. medroso, covarde; ter medo de, temer; 2. aterrorizar, assustar, intimidar; 3. evitar, esquivar-se, fugir de, encolher-se, acovardar-se; funky – música de estilo e sentimento simples e rústico. Na gíria – batuta, bom. Dicionário Novo Michaelis, São Paulo, Melhoramentos, v.1, 1994
Que batida é essa que na balada é sensação? É claro que é o funk, meu irmão! Várias mulheres lindas rebolando até o chão Isso que é pura sedução Vem pra cá dançar Vem pra cá curtir Hoje a gente vai se divertir Dessa festa linda não vou mais sair Comigo vem cantando assim Eu tô tranquilão, Tô numa boa, tô curtindo o batidão Se liga nessa, vem sentir essa emoção e a mulherada vai descendo até o chão MC Sapão, Eu Tô Tranquilão
Se tu não curte o funk Pode crer, tá de bobeira Bote uma beca esperta e se junte à massa funkeira MC Marcinho, Glamourosa
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RESUMO MARTINS, Denis Moreira Monassa. Direito e cultura popular: o batidão do funk carioca no ordenamento jurídico. 2006. 130 f. Monografia (Graduação em Direito) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. O presente trabalho examina a relação travada entre sociedade e Estado, de um lado, e a manifestação cultural denominada funk carioca de outro. Analisa a influência do fenômeno da violência, no contexto do mundo funk carioca, na construção de um discurso marginalizante tanto do funk como dos segmentos sociais jovens e pobres, com os quais mais se identifica. Trata, ainda, da forma como este discurso é aplicado na atuação do Poder Público, via órgãos de segurança e produção legislativa acerca do funk. Palavras-Chave: Funk, cultura, mundo funk carioca, Estado, sociedade, violência, arrastão, baile funk, baile de corredor, segurança pública, CPI do funk, estigmatização, criminalização, marginalização.
ABSTRACT This study examines the relations between government and society, in one side, and the musical and cultural movement called funk carioca, on the other, regarding the influences that the phenomenon of violence operates in the world of funk carioca, and its consequences in the construction of a segregating ideology concerning funk and its followers, mostly young people among the poorest classes of society. It also analyzes how such ideology has influences in the acts of the public authorities concerning both security policies and the enactment of laws on the subject. Key words: Funk, culture, mundo funk carioca, society, government, violence, arrastão, baile funk, funk festivals, funk parties, baile de corredor, security policies, CPI do funk, segregating ideologies.
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SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO
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2 EM TERRA DE MARLBORO: uma breve incursão ao mundo funk
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2.1 Linha evolutiva do funk carioca: raízes históricas
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2.1.1 Do soul aos subúrbios cariocas
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2.1.2 A “nacionalização” do funk
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2.2 O funk como fenômeno econômico
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2.3 Funk é cultura?
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3 FUNK, ESTADO, MÍDIA, SOCIEDADE: QUEM É VIOLENTO?
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3.1 A violência no mundo funk nos anos 80
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3.2 A violência no mundo funk nos anos 90
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3.2.1 O arrastão
58
3.2.2 O baile de corredor
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3.3 Estigmatização e criminalização do funk
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4 PODER LEGISLATIVO E FUNK
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4.1 Lei municipal 2.518/1996
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4.2 CPI estadual do funk
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4.3 Projeto de lei estadual 1.075/1999
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4.4 Lei estadual 3.410/2000
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4.5 Lei estadual 4.264/2004
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4.6 Projeto de lei municipal 1.489/2003
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4.7 Outras iniciativas legislativas sobre funk
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5 CONCLUSÃO
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REFERÊNCIAS
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1 INTRODUÇÃO
O desenvolvimento deste projeto é uma vontade acalentada há muito que, de mera possibilidade, brincadeira quase jocosa, tomou força e conseguiu se transmudar em tese acadêmica (de como será recebida, ainda a conferir). Durante o acidentado percurso de confecção desta, o autor viveu a grata experiência de perceber como a temática aqui exposta e destrinchada tem o condão de inflamar ânimos e expor facetas por vezes radicais, quiçá inconciliáveis, de pessoas que julgaríamos ponderadas e esclarecidas; recebeu conselhos que vão da simples desistência ao estímulo incondicional. Pôde, enfim, imergir em um mundo que lhe era tão fascinante como mistificado.
O fato de este próprio autor ter encontrado resistência dentro de si, e ter conseguido progressivamente superá-la, chegando ao outro extremo do espectro – abraçar com algum orgulho sua escolha –, serve a exemplificar toda a sorte de preconceitos que cercam o tema.
A validade de abordar o funk carioca pode ser explicada das mais variadas formas. O interesse do autor, que certamente será o de muitos, em primeiro e destacado lugar. Por números: Hermano Vianna já estimava, em 1988, que “Em todos os fins de semana, no Grande Rio, são realizados, em média, 700 bailes onde se ouve música funk. [...] Fazendo as contas, por baixo, é possível afirmar que 1 milhão de jovens cariocas freqüentam esses bailes todos os sábados e
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domingos”1 – uma cifra por si só significativa. Um fenômeno cultural desta magnitude merece toda a atenção que, neste caso, não tem. O (quase-)ineditismo que cerca o tema é razão suficiente a motivar alguém a, com um grito isolado, romper o eloqüente silêncio acadêmico a respeito. O silêncio é tão mais opressor quanto mais povoado, escuro e amplo seja o quarto em cujas paredes reverbere. Pela carga de desinformação e preconceito subjacentes, o que estimula a ousar, esclarecer, trazer à luz.
Ainda, se couber a alguém desbravá-lo, com o perdão da carga de preconceito intrínseca ao termo, que seja um egresso da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, universidade pródiga em devolver à sociedade conhecimento e produção, plural por excelência, pioneira na implantação de ações afirmativas no país por meio de cotas para ingresso pelo Vestibular e de cujas janelas se vê o Morro da Mangueira, pedaço de exclusão social tão evidente que não lhe permite esquecer. Um tema tão candente merece acolhida de uma casa do saber à sua altura.
O enfoque escolhido sobre o tema – qual seja, a atuação social e estatal sobre uma manifestação cultural, notadamente em desfavor desta – se explica pela necessidade de compreender as peculiaridades desta relação. O que justifica – ou pretende justificar – a intervenção do Estado sobre uma expressão cultural a priori tão legítima como qualquer outra? Que características diferenciam o funk de outras manifestações culturais e o tornam alvo de atenção especial pela sociedade e autoridades públicas? A ordem jurídica vigente legitima este tipo de conduta repressiva dos órgãos estatais de segurança? Quais são os limites da atuação do organismo público? Pretende-se, neste trabalho, oferecer respostas às indagações apresentadas.
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VIANNA, Hermano. O Mundo Funk Carioca. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 13.
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Registre-se, de início, que se pretende abordar o funk carioca enquanto fenômeno cultural, sem prejuízo de sua visão strictu sensu como gênero musical. Trataremos, sempre que possível, funk carioca por funk tão-só, vez que, como adiante explicaremos, inexiste outra versão local/regional de funk de projeção nacional, de forma a podermos afirmar com relativa segurança que o funk carioca representa o funk brasileiro.
O segundo capítulo se destina a mostrar um breve panorama do que se convencionou chamar mundo funk. É proposta uma linha histórica partindo das raízes musicais do funk até os dias atuais; analisa-se o funk na qualidade de fenômeno econômico; e são feitas algumas considerações acerca do funk enquanto expressão cultural tão-só.
O terceiro capítulo se debruça mais detidamente sobre as relações travadas entre Estado, sociedade, mídia e o funk. A partir da visão do fenômeno da violência no mundo funk, busca-se compreender como este signo influiu no modelo relacional entre todos estes entes, determinando processos de estigmatização e criminalização do movimento funk.
No quarto capítulo, por fim, enxerga-se o movimento funk com os olhos do legislador. É oferecido um compêndio da atuação do Poder Legislativo quanto àquela expressão, com a análise da produção legislativa correspondente, no intuito de determinar o quanto a mesma se ajusta ao ordenamento constitucional e reflete os processos de exclusão tratados no capítulo anterior. Conclusões são oferecidas no quinto e último capítulo.
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2 EM TERRA DE MARLBORO: uma breve incursão ao mundo funk
É som de preto De favelado Mas quando toca ninguém fica parado (Amilckar e Chocolate, Som de Preto)
Ao se pretender realizar um estudo sobre determinado objeto, tem-se como natural a necessidade de defini-lo, ainda que sucintamente. Afinal, o que é funk? Neste trabalho, abordaremos funk como gênero musical e também como expressão cultural, aspecto indissociável da primeira definição adotada.
O escopo deste capítulo é traçar um panorama do que VIANNA tratou por “mundo funk carioca”, mas, hodiernamente, já transpôs as fronteiras da cidade. Analisar o fenômeno funk sob alguns aspectos variados e não-jurídicos, de forma a melhor ambientar o leitor e familiarizá-lo minimamente com o tema, para que possa adentrar as considerações posteriores com conhecimento de causa suficiente para processá-las adequadamente.
Antes que passemos a analisar a gênese do funk, cumpre fazer algumas breves observações.
Em primeiro lugar, não trata de um gênero autóctone, ou “puro”. Ao contrário, suas origens são precisáveis; é fruto da mistura e influência de uma série de gêneros e estilos ao longo do tempo. É preciso assinalar, todavia, que o funk é um fenômeno extremamente recente. Do soul ao hip-hop, do funk importado e sua nacionalização aos arrastões de 1992/93, da primeira
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explosão da geração do funk consciente em 95 ao breve ostracismo de fin-de-siècle, da erotização à progressiva aceitação, tem-se curtas quatro ou cinco décadas, quando muito.
Está sujeito, pois, a profundas mutações, motivo pelo qual é impossível afirmar qual a “cara” do funk carioca sob pena de se incorrer em erro ou se restringir a um instante histórico deveras restrito. Uma breve lista de seus subgêneros – melody, charme, erótico, pancadão, proibidão, comédia, neurótico – serve a exemplificar a constante transformação, expansão e capacidade de adaptação do funk, para o qual a metáfora possível é a de um camaleão: sempre disposto a amalgamar-se às novidades musicais com o batidão – a percussão sincopada e marcante – que lhe é característico, o funk não parece estar propenso a sair de cena tão rapidamente.
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2.1 Linha evolutiva2 do funk carioca: raízes históricas
2.1.1 Do soul aos subúrbios cariocas
O certo é seguir os mandamentos black, que são Dançar como dança um black Amar como ama um black Falar como fala um black Andar como anda um black Usar sempre o cumprimento black Viver sempre na onda black Ter orgulho de ser black Curtir o amor de outro black (Gerson King Combo, Mandamentos Black)
A origem do funk remonta às décadas de 30 e 40 do século XX, quando o blues – música negra norte-americana, de origem rural – migra para os grandes centros, transmudando-se em sua versão eletrificada, o rythm and blues. Do novo ritmo, surgem variações de grande sucesso comercial, como o rock, e uma impensada fusão sonora com a música protestante negra, o gospel – termo advindo de god´s spell, ou “a palavra de deus”, originando o soul.
Nascido desta união entre o profano e sagrado, o soul tem relevante participação na década de 60 como trilha sonora no movimento dos negros norte-americanos pelos direitos civis. Transmitindo o espírito da época, canta James Brown em 68: “Say it loud – I´m black and I´m proud”. Entretanto, o soul chega ao fim da década despido de seu significado revolucionário e 2
Termo atribuído a Caetano Veloso, utilizado no contexto do Tropicalismo sessentista para realçar os avanços e inovações estéticas em relação à tradição da música popular brasileira, ou MPB, que, segundo se depreende desta concepção, “progrediria”. Tal entendimento também suscita oposições humoradas como a de Raul Seixas, que niilistamente proclama em As Aventuras de RS na Cidade de Thor: “Acredite que eu não tenho nada a ver / com a linha evolutiva da música popular brasileira / a única linha que eu conheço / é a linha de empinar uma bandeira”. Discute-se a pretensa inserção do funk na música popular brasileira no tópico 2.3.
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contestador, sendo tomado por gênero puramente comercial, sinônimo de black music. O adjetivo funky, até então ofensivo, passa a símbolo do orgulho negro. Nas palavras de VIANNA3, “tudo poderia ser funky: uma roupa, um bairro da cidade, o jeito de andar e uma forma de tocar música que ficou conhecida como funk”.
A exemplo do que acontecera com o rock, apropriado pela juventude branca a partir da imitação dos jeitos de vestir, dançar e cantar o rythm n´blues negros, o soul torna-se palatável às massas, inclusive brancas, e chega ao mainstream, sendo tocado nas rádios.
O funk surge como versão mais radical do soul, fazendo uso de arranjos mais agressivos e ritmo mais “pesado”. Para uma minoria negra mais engajada, o funk seria capaz de retomar a verve revolucionária do soul, agora descaracterizada. Infelizmente para estes – e quiçá felizmente para muitos – o funk é o próximo ritmo a cair nas graças do grande público, passando pela inevitável etapa de comercialização/descaracterização, conforme a corrente que se adote. O marco é a chegada, em 75, ao primeiro lugar na parada norte-americana do LP That´s The Way of The World, do grupo Earth, Wind and Fire.
A manifestação cultural “verdadeiramente autêntica” seguinte da cultura black vinha sendo urdida desde o final dos anos 60: inicialmente na Jamaica, de cuja capital o disc-jockey Kool-Herc importou os sound systems – festas realizadas em praças públicas, em que, mais do que reproduzir mecanicamente os discos, construíam-se novas músicas a partir de aparelhos de mixagem; e posteriormente no Bronx, gueto nova-iorquino para onde a técnica foi levada e desenvolvida, com
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VIANNA, Hermano. O Mundo Funk Carioca. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p.20.
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adição de novos elementos, tais como o scratch (uso da agulha do toca-discos como instrumento musical, arranhando o vinil em sentido anti-horário) e o rap, surgido da prática de abrir o microfone a dançarinos para que improvisassem sobre as bases musicais, criando assim a figura do master of ceremony, ou MC.
À mesma época, outros elementos vão-se unindo mais ou menos harmoniosamente ao caldo cultural dos guetos afro-caribenhos, afro-americanos e porto-riquenhos da Big Apple: o break, forma de dança; a grafitagem de espaços públicos; um estilo de vestir calcado em marcas esportivas denominado b-boy, de modo a todos estes elementos associados formarem uma só manifestação cultural de várias vertentes conhecida como hip-hop.
A faceta musical do hip-hop, construída sobre ritmos funky, embora utilize todo o espectro da black music para mixagem, destaca-se pelo uso predominante das bases, resultando em um funk pesado e minimalista – apenas bateria, scratch e voz, ou rap, nome pelo qual ficaria conhecida tal vertente. Das festas realizadas no Bronx em prédios abandonados ou praças de bairro, o hip-hop e o rap progressivamente tomam as ruas de toda Nova York e chegam às metrópoles da Costa Leste estadunidense, virando modismo ao longo do fim da década de 70 – quando reinava a era disco – e começo dos anos 80. Novos elementos são incorporados à composição, como baterias eletrônicas. Mais uma vez, repete-se o fenômeno: um ritmo das minorias alcança estrondoso sucesso comercial.
Na cena musical carioca, no início dos anos 70, o discotecário Ademir Lemos e o locutor de rádio Big Boy, amparado no sucesso de seu programa na Rádio Mundial, organizaram os
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ecléticos Bailes da Pesada aos domingos, no Canecão, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Entretanto, com a oportunidade surgida para intelectualizar o espaço, privilegiando a MPB – de fato, hoje, passados quase quarenta anos, o Canecão é considerado palco nobre da música popular brasileira –, o baile foi desalojado, mudando seu endereço para os subúrbios e arrastando consigo multidões de dançarinos. Não obstante o fato de, nesta nova fase, se apresentar a cada fim de semana em um clube diferente, o Baile da Pesada reunia seguidores fiéis de todos os cantos da cidade, chegando a abrigar 5 mil dançarinos em uma única noite.
Gradualmente, o ecletismo inicial cedeu lugar nesses bailes à presença mais marcante do soul – a esta época já conhecido nos EUA como funk –, o que se explica, em parte, por ser um ritmo mais “marcado”, propício à dança. Em paralelo a isso, o crescimento da freqüência e movimento nos bailes não passou despercebido, despertando o interesse de pessoas envolvidas com a organização do “espetáculo funk”. Muitos investiram em caixas de som e equipamentos, fundando, no período, diversas equipes de som que organizavam seus próprios bailes de subúrbio, expandindo o circuito musical alternativo pela Zona Norte da cidade e adjacências.
Este curioso filão surgido nas entranhas do Rio era regido, ao menos inicialmente, sob a nota do improviso. A ausência de informações e dificuldade de acesso aos lançamentos nos EUA – explicada, em parte, pelas limitações do mercado nacional – levou ao surgimento de um mercado paralelo (para não dizer tráfico) de discos de funk. Com poucas lojas importando discos, com poucas ou apenas uma unidade de cada, e muitas equipes os procurando, não raro se recorria ao escambo. Dada a concorrência acirrada entre equipes, prática comum também foi a de adulterar ou rasgar a capa de um disco de sucesso, para que outras equipes não pudessem obtê-lo. Couriers
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faziam viagens de um dia a Miami e Nova York tão-somente para comprar discos em quantidade, mesmo sem conhecimento algum no assunto, para que depois um DJ pudesse selecionar os ritmos que poderiam fazer sucesso nas pistas e repassar os demais discos.
As diversas equipes de som, cada vez mais numerosas, circulavam pelos clubes do subúrbio – Ginásio do América, Cascadura Tênis Clube, CIEP de Pilares e tantos outros – realizando bailes diariamente, sendo seguidas por um público cativo, orientado pela preferência de som que cada equipe colocava na pista. A divulgação era realizada boca-a-boca e com base em faixas colocadas em locais de grande circulação, como ruas, praças e entradas de comunidades – até hoje, um dos principais meios de promoção de eventos nestes lugares.
A atenção da imprensa voltou-se pela primeira vez para o funk em 1975, alcunhando o fenômeno dos bailes de subúrbio, até então despercebido do grande público, como movimento “Black Rio”. Entrementes, uma ou outra equipe de som, notadamente a Soul Gran Prix, experimentou introduzir a militância negra em seus bailes como forma de conscientização da cultura negra pela juventude, que constituía a maioria dos freqüentadores, chegando a despertar a atenção da polícia política da ditadura militar, o DOPS. De toda sorte, despertou-se algum debate sério em torno do tema, sob o enfoque da suposta alienação ou colonialismo cultural. O funk deixava de ser diversão para, na visão dos engajados, se tornar um instrumento na superação do racismo e aculturação.
Antes que o interesse inicial de imprensa e público espectador se esgote, abriram-se portas no mercado fonográfico para uma primeira tentativa – em grande parte malfadada – de alçar
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nomes nacionais no segmento (Tim Maia, Tony Tornado, Gerson King Combo), bem como lucrar com lançamentos de coletâneas de sucessos, ao que a próprias equipes de som logo aderem. No entanto, a chegada da febre do disco enterrou quaisquer pretensões mais grandiosas que se pudesse ter de imediato. Deu-se o início de uma época de relativa baixa nos bailes e, via de conseqüência, no mundo funk carioca, enquanto a juventude da Zona Sul se enamorou em inícios de 80 pelo emergente rock nacional, ou BRock, e a Zona Norte se enfurnou em discotecas.
A retomada ao longo da década foi gradual e para esta contribuiu o sucesso dos ritmos funk nas rádios – todas as grandes equipes de som, a esta altura, tinham o seu próprio programa, também utilizado para divulgar os bailes. De início com o charme – um funk mais calmo e melodioso –, e logo em seguida com o hip-hop ganhando espaço na programação e nas pistas. Ainda nos anos 80, emergiriam o electro, e também o miami bass – de letras tão contestadoras quanto agressivas, batidas de grave profundo capaz de fazer reverberar as paredes, e capas de disco recheadas de mulheres seminuas, o que se convencionou chamar ideologia booty (ou popozão, em bom carioquês). Não à toa, o miami bass é a vertente do hip-hop com a qual o funk carioca mais se identifica.
Referindo-se às inovações musicais da década, o jornalista Silvio Essinger nota que “os subúrbios do Rio consumiam essa música eletrônica de vanguarda – batizada por aqui, enfim, de funk – que ainda demoraria um tanto a chegar aos ditos bairros nobres da cidade”4. A competição e a engenhosidade de DJs e produtores do funk carioca em ir buscar novidades onde estas efetivamente aconteciam, na cena internacional, fez com que os subúrbios do Rio, por muito
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ESSINGER, Silvio. Batidão – uma história do funk. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 66.
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tempo, ouvissem e dançassem o que de mais moderno havia no mercado, anos-luz à frente da juventude antenada da classe média carioca. A opção até certo ponto inusitada pelo funk, além de intrigante, suscitou diversos questionamentos.
Por que funk? Não existe um complô da indústria fonográfica multinacional tentando impor o consumo de música negra norte-americana nos subúrbios do Rio. A maioria dos discos que fazem sucesso nos bailes, como já dissemos, não é lançada no Brasil. As rádios, a não ser algumas raras exceções (em horários determinados), não tocam hip-hop. O mundo funk carioca, principalmente os dançarinos, não pode ser considerado um mercado lucrativo de discos. [...] Seria mais fácil, mais ´natural´, ter baile de samba, baile de rock e outros tipos de música que são de fácil acesso para quem mora no Rio. Mas os discotecários optam pela raridade. De alguma forma, estamos diante de um exemplo daquilo que Oswald de Andrade chama de antropofagia: ´Só me interessa o que não é meu´. (Andrade, 1978:13). O funk chega ao Rio e é deglutido de maneira inédita. Não existem bailes como esses em nenhum outro lugar do mundo. 5
VIANNA, em seu pioneiro trabalho antropológico O Mundo Funk Carioca (1988), conclui que
Os grandes meios de comunicação de massa estão longe de controlar a realidade cultural de nossas grandes cidades. O mundo funk carioca escapa totalmente do que afirmam as teorias apocalípticas [...] da ´indústria cultural´. [de homogeneização da realidade cultural]6 [...] O mundo funk carioca também coloca em questão a idéia de que a classe média brasileira é dominada pelos modismos internacionais e que às ´classes populares´ cabe a preservação das autênticas ´raízes nacionais´.7 [...] O mundo funk é um mundo ´paralelo´ que se aproveita dos espaços deixados em branco pela indústria cultural (que não tem um projeto coerente e monolítico de dominação, sabendo lidar também com o heterogêneo), tornando-se mais uma opção de agrupamento metropolitano.8
5
VIANNA, Hermano. Op. cit. p. 101. Ibid. p. 102. 7 Ibid. p. 109. 8 Ibid. p. 110. 6
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No mesmo sentido se coloca Micael Herschmann, teórico da comunicação social, para quem
Também não se podia afirmar que o mundo funk carioca fizesse propriamente parte da cultura hip-hop. Pode dizer que, cada vez mais, o ´local reinterpretava o global´; estava em andamento um intenso processo de apropriação da cultura hiphop por parte dos consumidores cariocas que determinou similaridades mas, principalmente, diferenças entre o ´funk nacional´ e o ´hip-hop´ em geral, ressimbolizado no mundo inteiro9.
2.1.2 A “nacionalização” do funk
O funk do meu Rio se espalhou pelo Brasil Até quem não gostava quando viu não resistiu (MC Marcinho, Glamourosa) O natural do Rio é o batidão A playboyzada e os manos do morrão (MC Sapão, Diretoria)
A passagem do tempo, com a conseqüente explosão e evolução do “mundo funk carioca”, se responsabilizou por tornar algumas das primeiras observações feitas em 1988 por VIANNA datadas.
9
HERSCHMANN, Micael. O funk e o hip-hop invadem a cena. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000. p. 23. Como exemplo disto, destaque-se o processo de homofonia produzido nos bailes. Ainda que boa parte das letras de funks em inglês trouxessem forte carga política e de crítica social, não eram compreendidas pelo público, sendo adaptadas nos bailes para versões em português de acordo com a sonoridade. Assim, “you talk too much” transformou-se em “taca tomate”, e “I´ll be all you ever need”, “ravióli eu comi”. Talvez o melhor exemplo seja o refrão “uh, tererê!”, surgido de “whoomp!, there it is!”, entoado pelas torcidas em arquibancadas de estádios de futebol e depois pelo país como um todo, sendo mesmo usado em campanha publicitária do Guaraná Antarctica.
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Por exemplo: de “O Rio não devolve ao mundo outra maneira de se fazer hip-hop. Tudo termina no baile”10, escrito em 1988, tem-se, quase duas décadas após, o estrondoso sucesso internacional do funk carioca; igualmente, o transbordamento da cena dos subúrbios para nível nacional. Entretanto, talvez a modificação de maior relevância se encontre na seguinte passagem do antropólogo: “As tentativas de se fazer um funk brasileiro que também fosse consumido nas festas até hoje fracassaram. Musicalmente, os bailes nada produzem” .11
Este ponto de inflexão na trajetória do funk – a transição do “funk importado” para um embrionário processo de “nacionalização” do estilo –, que acabaria por desembocar afinal na produção nacional de funk, e ocorrido justamente pouco após a realização do trabalho de campo que daria origem ao pioneiro O Mundo Funk Carioca, pode ter seu início reconhecido no lançamento da coletânea Funk Brasil no112, em 1989, organizada e produzida pelo DJ Marlboro13, um entusiasta da idéia. O próprio DJ revela sua consciência à época da necessidade da transposição desta etapa:
Eu dizia para o Hermano [Vianna, antropólogo]: o funk só vai conseguir quebrar essa barreira do subúrbio quando ele se nacionalizar, tiver ídolos para poder estourar no Brasil inteiro.14 [...] eu via que o funk era um movimento popular, mais do que qualquer outro movimento musical. E no entanto ninguém falava do funk. Você via uma festa na 10
VIANNA, Hermano. Op. cit. p. 102. Loc. cit. 12 A coletânea contava, além dos sucessos Melô da mulher feia e Melô do bêbado, com o Rap das aranhas (versão de Rock das Aranhas, de Raul Seixas, que, no período imediatamente posterior ao fim da censura militar, causava furor com sua letra lúbrica), Entre nessa onda, Feira de Acari (que entrou para a trilha sonora da novela Barriga de aluguel, exibida no período), Rap do arrastão, Melô do bicho, Melô dos números e o Marlboro medley. 13 O DJ Marlboro enverga a justa alcunha de “pai do funk”: com uma vida dedicada ao tema como DJ, empresário, arauto do funk no Brasil e exterior e protagonista do pioneiro trabalho antropológico de Hermano Vianna sobre o mundo funk carioca, o DJ é assim conhecido por haver morado, no início de sua carreira, muito longe, ´na terra de Marlboro´, referência a um local idealizado tanto inexplorado quanto distante, metáfora esta também aplicável ao funk, como salientado no título deste capítulo. 14 ESSINGER, Silvio. Batidão – uma história do funk. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 84. 11
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Zona Sul com 200 pessoas – mídia, jornal, televisão falando – e por que do meu baile, com 10 mil pessoas, ninguém falava porra nenhuma? [...] Eu fui começar a analisar e vi que o funk só ia conseguir quebrar essa barreira de submundo quando começasse a ter os seus próprios artistas. Porque aí ia ter funkeiro na televisão, funkeiro na mídia, funkeiro no jornal.15
Gravando inicialmente a “Melô da mulher feia”, sucesso imediato em seu programa de rádio, Marlboro logo foi chamado à gravadora Polygram, onde, com infra-estrutura, logística e participações, foi gestado o disco. Ainda que o resultado final tenha desagradado à gravadora, não recebendo qualquer apoio em publicidade e divulgação, o Funk Brasil no1 alcançou vendagens inimagináveis para um gênero até então desconhecido da mídia, chegando a 250 mil cópias vendidas e assim abrindo as portas do mercado tradicional para mais iniciativas do tipo.
Ao mesmo tempo, outro fundamental acontecimento correlato tomava corpo nos bailes: a participação do público. Estimulados pelos DJs a escrever suas próprias letras e cantá-las para o público ao vivo sobre bases funk, não tardaram a surgir novos talentos e estrelas entre os jovens freqüentadores. A intenção dos organizadores de bailes, donos de clubes e das equipes de som era dupla: tanto atrair mais pessoas aos bailes, como também arrefecer o ânimo de conflitos entre galeras rivais – que começavam a acontecer com alguma freqüência nos bailes – por meio do engajamento das turmas locais (que se organizavam para ir aos bailes em bloco) em torno de seus representantes para cantar.
Os festivais de galeras foram em grande parte responsáveis pela explosão da primeira onda do funk carioca em sua fase nacional, no final dos anos 80 e início dos 90. Produzidos,
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Ibid. p. 93.
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gravados e assessorados pelas equipes de som, como Furacão 2000, Pipo´s, Som Gran Rio, Curtisom e Cashbox, vários MCs surgiram – e desapareceram, como sói ser em todo o mundo musical – da noite para o dia das mais diversas comunidades do Rio, com suas músicas “estouradas” nas rádios e conhecidas pelo público, mesmo pela parcela que até então sequer havia tomado conhecimento do outrora restrito mundo funk.
A lógica do funk funcionava – e ainda funciona – contrariamente à do tradicional mercado fonográfico: ao invés de os funks serem executados em primeiro lugar pelas rádios para então se tornarem conhecidos do público e sucessos nos bailes, eram estreados nos bailes e neles construíam sua fama, só indo às rádios quando já conhecidos e consagrados pelo mundo funk.
Percorrendo o infindável circuito de shows e bailes do Estado com inúmeras – e curtas – apresentações por noite, esta primeira geração de MCs atinha-se em suas letras àquilo que representava a realidade dos bailes então: ora exaltação de sua galera, local ou comunidade de origem – principal traço identificativo, e gerador de rivalidade, dos grupos nos bailes –, ora apelos pelo fim da violência – uma temática cada vez mais pertinente e preocupante, com a escalada da violência nos bailes.
Logo à frente, o funk, ainda profundamente mergulhado em transição, se depararia com uma série de acontecimentos que o trariam definitivamente à berlinda e determinariam significativamente a forma como seria percebido daquele momento em diante. O arrastão de 1992, ocorrido nas praias de Copacabana e Ipanema – templos do lazer de todas as classes sociais, em um dos únicos espaços verdadeiramente democráticos da cidade, embora estejam no coração da
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Zona Sul, zona nobre da cidade –, não tardou a ser identificado como fruto da continuação de um conflito, nas areias, de duas galeras rivais que haviam se enfrentado na véspera em um baile funk.
A partir deste instante, cristalizou-se cada vez mais a associação indelével entre funk e distúrbio. Intensa campanha dos meios de comunicação, premidos entre o fascínio e o estranhamento daquele grande fenômeno que vinha acontecendo nos bolsões de exclusão do Rio de Janeiro, dosada por sensacionalismo e pela incompreensão inicial, ditaram a tônica do que HERSCHMANN denominou de processo de demonização do funk pela mídia. Manchetes de jornais e capas de revistas eram freqüentemente estampadas com títulos sugestivos, nada abonadores do funk.
De fato, era um mau momento para o ingresso do funk no centro das atenções. A escalada da violência nos bailes os forçou à rotulação de bailes de comunidade e bailes de corredor. Os primeiros, organizados dentro de favelas e áreas carentes, sob vigilância e controle do tráfico local, e, paradoxalmente por isso, pacíficos: confusão não era tolerada, por atrair a polícia e atrapalhar a vendagem de drogas. Os segundos eram realizados em áreas neutras como os antigos clubes, propícias ao confronto de galeras rivais. O dito corredor, traçado no meio do salão, separava os grupos rivais – lado A e lado B – que se digladiavam conjuntamente, sob o frouxo controle dos seguranças, que intervinham em casos extremos ou mesmo para organizar a violência institucionalizada sob a batuta do DJ, que incitava o confronto. As repetidas ocorrências de mortes e confrontos nas saídas dos bailes, de depredações de ônibus e das vizinhanças dos clubes, abarrotavam as páginas policiais. Em uma época negra, os bailes funk passaram a ser assunto de polícia, transmitindo, via mídia, a impressão de que se tratava de um fenômeno do mal.
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Alguns anos têm o condão de catalisar o sentimento vigente em seu tempo, condensando acontecimentos relevantes e servindo de referência temporal a toda uma época. Assim foi, quanto ao funk, com o emblemático ano de 1995, que marcou o apogeu da explosão do estilo. O mundo funk seguia o vertiginoso passo de escalada do sucesso; diversas duplas de MCs atingiram o topo das paradas, como Wiiliam e Duda (Rap do Borel), Cidinho e Doca (Rap da Felicidade) e Junior e Leonardo (Rap das Armas, que lhes valeu indiciamento por apologia ao crime). O polêmico ritmo figurava nos idos de 1995 diariamente na grade de seis emissoras de rádio, chegando a alcançar a liderança no horário nobre pela rádio RPC, na qual o DJ Marlboro tinha seu programa. Na televisão, o matinal Xuxa Hits alçou à fama diversos nomes ao reservar quadro cativo para cantores e dançarinos de funk. Ao mesmo tempo, nascia um programa televisivo organizado pela Furacão 2000 – de início semanal – com o fito de cobrir o universo funk. Tendo passado por diversas emissoras, com altos e baixos, ainda é exibido em 2006 – agora, com freqüência diária.
A segunda metade da década de 90 assistiu ao declínio do estilo. A ojeriza despertada nas classes mais abastadas – influenciada pela cobertura da imprensa –, traduzida em pressão sobre as autoridades públicas para a tomada enérgica de providências, associada a uma postura do Estado ora repressiva, ora omissa em reconhecer, abrigar e entender esta manifestação cultural, contribuiu para a derrocada e ostracismo do movimento funk em grande parte da cidade, menos nas áreas pobres, onde desde sempre vinha sendo gestado. O território conquistado de forma efêmera em 1995 viria a ser recuperado, mas o momento era de baixa.
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A visão inicial distorcida do funk, projetada país afora, viria a se perpetuar, causando prejuízos. A repressão policial sobre bailes violentos transbordou mesmo para os bailes pacíficos, num arremedo de generalização. O baile do Chapéu Mangueira, dos mais tradicionais e populares – e que mais atraía os jovens de classe média e alta – sofreu tentativa de fechamento pelas autoridades, contra o que se insurgiu “como cidadã” a então senadora Benedita da Silva, moradora do morro. O ataque contínuo de virtualmente todos os segmentos sociais levou o funk ao isolamento e encastelamento em seu lugar de origem, a favela, sob a influência do poder local, o tráfico de drogas. VIANNA observa que
O ataque contínuo isolou o funk cada vez mais dentro das favelas, para o apoio – quem mais poderia dar apoio, já que todas as outras ´forças´ eram contra? – dos movimentos armados dos traficantes. Foi literalmente isto: o poder público, a mídia e os entendidos em cultura popular fizeram todo o possível para entregar o ouro (o ouro cultural produzido nas favelas) para o bandido.16
A última grande guinada nos rumos do funk de que se tem notícia, ou distanciamento histórico suficiente para se apreciar, é dada no estertor do século, circa 1999-2001. Dando início à superação da fase violenta, e abandonando a primeira vista as letras conscientes e pregadoras de justiça social, uma profusão de novos grupos e bondes, na trilha do sucesso comercial alcançado pelo Bonde do Tigrão, dá início à fase de erotização17 do funk. Não uma erotização sutil, como o
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VIANNA, Hermano. EM 2002, participei de um ciclo de debates. 2006. Disponível em: . Acesso em 01 dez. 2006. 17 A temática sexual e forma de abordagem explícita não são exatamente novidades na MPB, conquanto alguns queiram ver nisto uma inovação do funk. Chiquinha Gonzaga, no início do século XX, teve seu maxixe Corta-Jaca (“Ai, meu bem / que bom cortar a jaca / Ai, sim, meu bem, ataca / Ataca, sem descansar”), cuja dança era considerada indecente, vetado nos salões da elite carioca. “[...] a música popular brasileira desde as suas origens sempre teve um lado muito libertário, com danças e letras que sugeriam a maior sacanagem. Se 90% de nossas letras românticas eram para baixo até o advento da bossa nova, ou se as nossas canções mais sensuais, com uma abordagem mais suave do amor e do sexo, foram bastante raras, saiba que pelo menos nos 10% restantes, as letras e danças de apelo erótico ou pornô eram um fato público e vêm de muito, mas muito, mas muito longe. [...] Em nossos primeiros gêneros nacionais - a modinha e o lundu - já havia malícia. O sociólogo Gilberto Freyre, tratando deste
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soul de James Brown, denotada na dança insinuante ou letras provocativas, mas explícita e declarada, quiçá – ao (des)gosto de alguns – ultrajante. The Times, influente jornal inglês, sobre a forma de dançar o funk carioca, diz que “its central move involves women leaning forward, hand on knees, and jerking their behinds repeatedly in quick time to the music, usually to the appreciative whoops of men”18. Já Tati Quebra-Barraco, no que poderia ser considerado como um manifesto involuntário da vertente lúbrica do funk carioca, proclama em alto e bom som:
Eu fiquei três meses sem quebrar o barraco [fazer sexo] / sou feia mas tô na moda / tou podendo pagar hotel pros homens / isso é que é mais importante (Sou feia mas tô na Moda, Tati Quebra-Barraco)
As letras não mais teriam pudor em descrever ou enaltecer comportamentos sociais passíveis de serem considerados como desapropriados ou promíscuos, atos sexuais e similares. Os passinhos comportados e concertados dos bailes dariam lugar ao rebolado e coreografias excitantes. “Cachorras”, “tchutchucas” e “preparadas” se tornariam termos correntes. Mais uma vez o funk descia o morro – desta vez em definitivo – para ser o tema preferido da mídia. Muito se discutiu sobre a suposta liberalização sexual da mulher e o neofeminismo exercido pelas funkeiras nos bailes, agora também à frente dos microfones contestando a visão convencional de “sexo frágil”. Exagero? Para Denise Garcia, diretora do documentário Sou Feia Mas Tô na Moda19, sobre as mulheres no funk carioca, apenas o começo: “acredito que o funk falar de sexo
assunto, diz que as modinhas brasileiras possuíam o erotismo da casa-grande e da senzala.” (Rodrigo Faour, História Sexual da MPB) 18 RUDE revolution rocks Rio. The Times, Londres, Inglaterra, 31 mai.2005. Disponível em: . Acesso em: 01 dez. 2006. 19 Sou feia mas tô na moda, de Denise Garcia. 61 min / cor / 2005. O documentário teve seus direitos de reprodução comprados pela TV Jazeera, do Qatar – a mesma que se tornou famosa ao divulgar com preferência vídeos-comunicados de Osama Bin Laden –, em uma surpreendente demonstração do interesse despertado pelo funk carioca no exterior.
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sem romance é só o primeiro estágio, podem acontecer coisas muito mais revolucionárias depois de uma instigação como essa”20.
Vulgaridade e pastelão à flor da pele, o funk adentrou a década cada vez mais enraizado na cidade carioca e mundo, caindo definitivamente no gosto da juventude universitária. Polêmicas à parte, figurou em 2003 como convidado especial no TIM Festival, evento musical vanguardista que atraiu todas as atenções da mídia, recheado de atrações de peso, unindo sob os versos do Rap da Felicidade os estilhaços da cidade partida21. Pouco a pouco, a notoriedade conquistada com polêmica abrandaria as críticas, sob o argumento irresistível de que cada vez mais se evidenciava a permanência do funk enquanto música no circuito comercial “principal”, ou mainstream. Há alguns anos, o funk faz parte da trilha sonora das celebrações do Carnaval carioca e baiano e tantas outras folias regionais. Em 2005, o funk foi tema e trilha da novela América, no horário e canal de maior audiência da televisão brasileira, e um funk-rock (Popozuda Rock n´ Roll, da banda De Falla) figurou em campanha publicitária mundial da Coca-Cola. 2006 foi o ano do lançamento de Funk Brasil Bem Funk, nova coletânea da série do DJ Marlboro que atingiu vendagens estratosféricas carreado por pop-funks como Ela só pensa em beijar, sucesso do carnaval anterior.
O camaleão do funk está mais vivo do que nunca e estende suas garras para o rock, axé e MPB com sua indefectível batida, reinventando a si e outros ritmos.
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ELAS estão descontroladas. O Globo, Rio de Janeiro, 16 abr. 2004. Referência à obra paradigmática de Zuenir Ventura, que retrata no cenário imediatamente posterior à chacina de Vigário Geral, em 1993, os bastidores da mobilização da sociedade civil carioca na cidade partida entre morro e asfalto.
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2.2 O funk como fenômeno econômico
Eu sou pobre, pobre, pobre Pobre de marré Mas sou rico, rico, rico Rico de mulher (Claudinho e Buchecha, Rap do Salgueiro)
Entre os aspectos relevantes do mundo funk a serem abordados, não se poderia prescindir do viés econômico. Uma manifestação cultural de massas com lugar cativo na indústria fonográfica e produtora de objetos de consumo, marcas e imagens também exploradas em outros segmentos, capaz de movimentar centenas de milhares de pessoas a cada fim de semana, certamente envolve sólidos números. Entretanto,
[...] pouca ou nenhuma importância tem sido dada à economia do funk. Assim, se desconhece o montante de ocupação por ela gerado, as diferentes fontes de captação de recursos e o quantum arrecadado em cada uma, a distribuição destes recursos entre os diferentes agentes, suas formas de capitalização.22
Antes de se proceder a tal análise, cumpre percorrer brevemente a história do surgimento do funk como fenômeno econômico. A economista e antropóloga Jane Souto, comentando a transição do funk de um fenômeno restrito à juventude de baixa renda para o universo das classes médias, pondera que
[...] tal passagem só se tornou possível porque os grupos ligados ao funk deixaram de ser apenas produtores e consumidores de bailes para se transformarem em produtores e consumidores de uma nova e mais ampla rede de produção e comercialização, configurando o que apropriadamente se poderia chamar de uma invenção de mercado.23 22
SOUTO, Jane. Os outros lados do funk carioca. In: VIANNA, Hermano (Org.). Galeras cariocas: territórios de conflitos e encontros culturais. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997. p. 62. 23 Ibid. p. 60.
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A invenção de mercado referida envolve a transformação do mundo funk em um mercado de proporções significativas, ganhando contornos de indústria cultural. Novas ocupações profissionais daí surgiriam, bem como a ocupação cada vez mais significativa de espaço midiático, como veículos de divulgação.
Com a etapa de nacionalização do funk ocorrida ao final da década de 80, surgiu uma cadeia de produção, distribuição e consumo calcada inicialmente na juventude de estratos sociais pobres, mas que acabou por firmar seu referenciais estéticos no seio do imaginário jovem indistintamente, passando a incluir mesmo aqueles do asfalto. A produção e a distribuição do funk então se encontravam nas mãos de produtores oriundos dos bailes funk, dos subúrbios e favelas e a eles vinculados – não raro, donos de equipes de som ou associados –, que, por sua vez, utilizavam a recém-nascida produção musical dos jovens de favelas e comunidades carentes – também seus principais consumidores, então – para alimentar o universo funk com novas canções e ídolos, criando assim um círculo virtuoso. “[...] a escala do mercado se amplia, projetando nomes, impulsionando carreiras e multiplicando as oportunidades econômicas abertas pelo mundo funk [...]”.24
Alguns reflexos econômicos significativos da expansão da fronteira do funk são a chegada deste à programação televisiva e radiofônica, o surgimento de oportunidades profissionais e dos primeiros artistas do funk e a existência de eventos funk, ou com expressivo enfoque no funk, voltados para a classe média, nas tradicionais casas noturnas da Zona Sul carioca. À mesma época
24
Ibid. p. 64.
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de confecção desta tese, o funk consta do setlist de boa parte dos DJs atuante na noite carioca, quando não a ocupa significativamente, dependendo do perfil da boate ou evento. A tradução em números da realização de bailes e vendagem de discos, coletâneas e revistas especializadas explorando o “novo” filão de mercado é significativa. Mais relevante ainda talvez seja o advento de signos do funk, cujo exemplo mais evidente é a calça da gang25.
HERSCHMANN diz, em dados de 1997, levantados entre empresários do mundo funk carioca, que “o funk é uma indústria que hoje envolve a produção e o consumo de roupas, discos/CDs, aulas de dança em academias, programas de TV e rádio e até sites na Internet, chegando a gerar só nos bailes, direta e indiretamente, 20 mil empregos e movimentar 10,6 milhões de reais”26. Sem embargo disto, o baile funk – por excelência, o espaço de realização da festa – é um poderoso dínamo econômico, como observa Denise Garcia.
A diretora percebeu que a indústria do funk – um grande baile funk pode reunir entre 4 mil e 5 mil pessoas – serve como fonte de renda para várias famílias nas favelas, que acabam reinvestindo o dinheiro nas comunidades. ´Vai desde o cara que é dono da quadra onde o baile acontece, passando pela pessoa que aluga o sistema de som e vai até os barraqueiros e motoristas que lucram com as festas.27
A invenção do mercado funk abriu caminhos para muitos envolvidos diretos e indiretos com o fenômeno funk. VIANNA menciona toda a infra-estrutura que cercava a produção de um
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Trata-se de um grife de loja que comercializa um tipo homônimo de calça jeans com cós extremamente baixo, próximo à virilha, e modelagem que valoriza os glúteos. Na irreverência do funk, “calça da gang toda mulher quer / duzentos reais pra deixar a bunda em pé”. De início, não havia qualquer vinculação, ou tentativa desta, entre a calça e o movimento funk. Houve uma apropriação da primeira por freqüentadores de bailes funk, de modo que hoje estão associados: a calça da gang é a calça por excelência da funkeira. A calça tornou-se um signo do funk, reconhecível até mesmo por indivíduos estranhos ao meio. 26 HERSCHMANN, Micael. O funk e o hip-hop invadem a cena. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000. p. 247. 27 FILME sobre mulheres do funk terá estréia mundial em Londres. BBC Brasil, São Paulo, 10 mar. 2005. Disponível em: . Acesso em 01 dez. 2006.
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único baile em 1985/6 – quando realizou seu trabalho de campo –, que envolvia técnicos de som, seguranças, equipe de apoio, carregadores de equipamento e, claro, o DJ, ainda uma figura pouco relevante no baile.
Embora detivesse o poder de “controlar” as massas, influindo nos ânimos da multidão pela escolha da seqüência de músicas ou mesmo sua suspensão em momentos mais exaltados, o DJ tocava de costas e pouco ou nunca usava o microfone para se comunicar com a platéia, não sendo, portanto, uma atração à parte.
A todos estes se acrescente o MC, master of ceremony, responsável por cantar no palco, acompanhado ou não de dançarinos, a partir da fase de nacionalização do funk. A partir da década de 90, o binômio DJ e MC seria responsável pelo esforço visível do baile, recaindo sobre seus ombros o sucesso da noite – mais sobre o segundo do que o primeiro. Nos bastidores, ampliava-se a necessidade de uma vasta equipe de colaboradores com o progressivo aumento dos bailes – mais seguranças, para conter a violência – e inserção de novidades tecnológicas – efeitos visuais, como lasers e gelo seco; e táteis, como o banho de espuma.
A explosão dos anos 90 implicou na profissionalização de carreiras do funk, às quais foram somadas algumas, como coreógrafos, dançarinos, técnicos de iluminação, publicitários e jornalistas, entre outras. As mais relevantes seguiriam sendo as dos DJS e MCs, que oferecem maior visibilidade – logo, fama, – remuneração e possibilidade de ascensão social. Mais do que a profissionalização, o reconhecimento do funk como filão econômico e atividade social trouxe uma identidade aos envolvidos com o mesmo, como Denise Garcia observa: “Se as pessoas não têm
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um emprego, não é só o dinheiro que falta. Elas não têm uma identidade, uma função social. Eles (os funkeiros) conseguiram criar um lugar para elas”28.
As primeiras gerações de DJs, compostas em sua maioria por autodidatas sem formação teórica ou técnica, passaram a conviver com novos talentos surgidos de cursos profissionalizantes ministrados em comunidades carentes, muitas vezes pelos próprios DJs veteranos, ou nascidos da experiência prática das equipes de som, inicialmente como estagiários de DJs praticantes a quem a expansão do circuito dos bailes significou uma oportunidade para ascender na categoria.
Os MCs, cantores-compositores, apresentam-se sozinhos ou em dupla. Neste início da fase nacional, surgiram de bailes locais nos quais já se faziam bem conhecidos ou concursos entre galeras defendendo canções que exaltam sua galera ou local de origem – Rap do Borel, Rap da Cidade de Deus etc –, facilitando assim sua identificação e fixação de suas marcas.
A dinâmica do mundo funk alterou-se sensivelmente na passagem de décadas. De bailes fixos com DJ sediados em grandes clubes e centros recreativos a atrair multidões, passou-se à multiplicidade e fragmentação como regra, sem que isso significasse o fim dos primeiros.
Uma série de fatores poderia explicar o relativo esvaziamento dos grandes bailes em meados de 90, entre os quais a estigmatização e dificuldade em organização pela violência crescente. Fato é que os MCs, assessorados por equipe e empresário – responsável por contatos, agendar eventos e respectivo trato financeiro, com quem travam conflituosa relação – passaram a
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Loc. cit.
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percorrer numa mesma noite grande quantidade de bailes, sitos em lugares tão díspares quanto distantes e opostos entre si na cidade, de favelas a boates, cantando poucas músicas em cada29 e partindo para o baile seguinte, madrugada adentro. “Muitos deles chegam a fazer de dez a quinze bailes por semana, recebendo cachês que, no caso dos mais famosos, podem alcançar cifras de R$ 500 a R$ 1000, por apresentação”.30
Tal informação se encontra relativamente superada: o cachê de um nome consagrado do funk pode, hoje, chegar a R$ 5 ou 10 mil por apresentação – o que, por suposto, limita o âmbito de locais em que este pode se apresentar, forçando-o a negociar. Em outro relato, encontramos que “[...] não são raros os funkeiros que se desdobram em nove shows por semana, por R$ 400 a cada baile – mais que R$ 14 mil mensais”31. Este modus operandi de shows curtos em grande quantidade se mantém sem grandes alterações nos dias atuais.
Eventualmente o MC canta gratuitamente, seja por interesse próprio de divulgação de seu trabalho ou por deferência a comunidades ou lideranças locais, o que desperta a polêmica da suposta imbricação entre o funk e o tráfico de drogas instalado em áreas pobres, não raro financiador dos bailes de comunidade em que o MC atua. A este respeito, dá-se conta de que
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A questão do repertório e direitos autorais no mundo funk é também complexa e interessantíssima, esperando por autor que a trate. Assim como na fase do “funk importado”, cantado em inglês, o público desconhece a autoria de muitos funks em português. È praxe o uso pelos MCs de canções de outros cantores no repertório para “encher” suas apresentações, visto que o recente surgimento do gênero não possibilitou a formação de um cânone musical – muitos MCs possuem apenas uma ou duas canções de reconhecido sucesso – e a intermitência e limitações naturais do mercado funk restringem a produção autoral. A informalidade reinante no meio atrapalha a atribuição e arrecadação de direitos autorais. Finalmente, o Direito desconhece ainda solução adequada para a questão dos samplers – “colagens” de trechos de músicas para formar uma nova música. Nesta seara, a evolução social tem andado a passadas mais largas do que a ciência jurídica. 30 SOUTO, Jane. Os outros lados do funk carioca. In: VIANNA, Hermano (Org.). Galeras cariocas: territórios de conflitos e encontros culturais. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997. p. 67. 31 O FUNK sai da sombra. Carta Capital, Rio de Janeiro, 20 jul. 2005.
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[...] o responsável pela promoção dos bailes funk no Morro do Chapéu Mangueira afirmava em entrevista que ´nós não convidamos MCs, eles é que para nossa alegria aparecem por aqui´ (Pancadão do Funk, ano 1, n. 4, julho/95). Integrado ao mercado, o funk não deixa de estar também integrado a um intenso circuito de trocas simbólicas, a uma rede de reciprocidade [...]32
É curiosa a observação de que outros estilos musicais de fortes raízes populares, como o pagode e o axé, alcançam exposição comercial maior do que o funk, em abrangência e números absolutos, embora esbarrem na mesma barreira social de suposta “pobreza cultural”. Tal fato poderia ser explicado por fatores como temática – o funk aborda assuntos polêmicos, como sexualidade e violência, o que restringe as possibilidades de oferecê-lo como produto; outros estilos se atêm à vertente romântica-pop – e a já referida associação midiática entre funk e violência. A reforçar este último argumento, temos que tal “preconceito social”, além de relativo – pois, se há sucesso comercial, há por conseqüência uma massa de consumidores do produto –, parece não se traduzir em atuação social concreta contra o pagode e axé. Não há notícia de bailes de pagode ou axé interditados por tumulto ou sob intervenção de autoridades públicas, ao contrário do funk.
Ainda, há certa rivalidade, ou ressentimento, entre os próprios executores dos estilos populares de música. A crítica, retratada no documentário Sou feia mas tô na moda, parte dos próprios funkeiros, que alegam discriminação dentro do próprio meio empresarial e musical: em shows em que participem ambos os estilos, a divulgação é sempre feita em detrimento do funk, e os cachês dos funkeiros, menores. Não que a preferência do público se incline necessariamente por um ou outro, e é justamente isto o que causa espécie aos artistas “discriminados”: parece ser
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SOUTO, Jane. Op. cit. p. 68.
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uma preferência arbitrária, sem justificativa mercadológica, uma vez que ambos concorreriam em iguais proporções para o sucesso do baile.
Contudo, ainda que discriminados, os MCs conseguem alçar posição econômica e social bem mais elevada que a dos demais moradores das comunidades carentes, despertando, em zonas de exclusão social, o interesse pelas oportunidades de trabalho inerentes ao mundo funk, “sobretudo para os jovens dos segmentos populares, abrindo, por essa via, perspectivas profissionais criativas e atraentes, especialmente se levarmos em conta as oportunidades de trabalho que são oferecidas à maioria desses jovens no País”.33 Frisa HERSCHMANN que
[...] vários jovens dos segmentos populares continuam identificando nesta atividade uma opção, uma via de ascensão social neste país marcado por um modelo sociopolítico e econômico excludente e autoritário. É possível afirmar que o funk, ao lado do futebol e do mundo do crime, apresenta-se como alternativa de vida mais atraente a esses jovens do que se submeter a um estreito mercado de trabalho que lhes impõe empregos ´sem futuro´, com tarefas massacrantes e monótonas. Este tipo de ´carreira´ parece promover, em um contexto marcado pela experiência cotidiana árdua, uma difícil sintonia entre as expectativas das famílias e as aspirações juvenis.34
De fato, avulta a opção representada pela música, sobretudo o funk, em alternativa à falta de caminhos convencionais, ou mesmo à cooptação de jovens pelo tráfico de drogas – comumente apontado como a saída mais fácil para aqueles que não têm acesso a educação formal ou oportunidades de emprego.
A renda mínima dos homens da quadrilha desde 1995 era motivo de orgulho para Juliano. Os 15 vapores e os 12 homens da contenção armada recebiam o
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HERSCHMANN, Micael. O funk e o hip-hop invadem a cena. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000. p. 248. Ibid. p. 256.
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equivalente a 500 dólares por mês. Os iniciantes, olheiros e aviões, eram os que ganhavam menos, 300 dólares [...] Nos dias de pagamento eles eram obrigados a ouvir os discursos de Juliano, que costumava comparar o menor valor pago aos homens na boca com o salário mínimo dos trabalhadores do Brasil. - Aí, rapaziada. Os putos dos patrão da cidade só qué pagá menos de cem. E eu, que sô bandido, consigo pagá trezentos! Ou eu sô otário ou esses patrão são um bando de filho da puta, é ou não é?35
Entretanto, é uma “opção” que precisa ser enxergada com reservas e ponderação. Embora louvável, certamente poucos terão chance – ou talento – para construir uma “carreira” no funk. É preciso cuidado para não ceder ao discurso da "salvação" da juventude pobre através da música.
É pensamento corrente que o tráfico é, muitas das vezes, a única solução àqueles a quem a sociedade formal exclui pela falta de meios e oportunidades de inclusão. Gostaríamos de imaginar, pois, que o funk representa uma via alternativa – ainda que severamente limitada, frente às dificuldades inerentes ao mercado e ao enorme universo de jovens sem perspectiva nestas áreas pobres – dada a sua identificação com a população de baixa renda, sobretudo jovens, aliada ao oferecimento de oportunidades como cursos profissionalizantes ligados à música e laboratórios de novos talentos.
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BARCELLOS, Caco. Abusado: o dono do morro Dona Marta. Rio de Janeiro: Record, 2003. p. 329
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2.3 Funk é cultura?
O funk não é modismo É uma necessidade É pra calar os gemidos que existem nessa cidade (Bob Rum, Rap do Silva)
É necessário frisar logo de início: a pergunta do título acima é manifestamente retórica. Não se pretende aqui adentrar em análises, considerandos e conceituações de cunho antropológico. As implicações culturais do movimento funk são muito maiores do que o escopo deste trabalho. Coloca-se a pergunta pelo singelo motivo de que a mesma é formulada freqüentemente no calor das discussões sobre o funk. Pretende-se respondê-la indiretamente, aludindo a um debate público pretérito e abordando interessantes fenômenos sociais intimamente relacionados à cultura funk. Deixa-se a cargo do leitor a interpretação de tais aspectos, permitindo a cada um que formule conclusões próprias a respeito da intensa presença do funk no cotidiano social.
VIANNA alerta para a já largamente demonstrada fragilidade do conceito de cultura popular, entendida esta como “um todo formado pela música, dança, crendices, artesanato e outras manifestações artísticas iletradas que exprimem o ´espírito de um povo determinado´” e trazendo em seu bojo pressupostos ingênuos como o primitivismo, comunitarismo (noção de que a cultura popular seria uma criação coletiva, não passível de interferências) e purismo36.
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VIANNA, Hermano. Funk e cultura popular carioca. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 3, n. 6, 1990, p. 245.
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Com efeito, desde o final da década de 80, com o advento da “nacionalização” do funk, a partir da qual criou-se uma forma única bem carioca – e por conseguinte brasileira – de se fazer funk e devolvê-lo ao mundo, cada vez menos é cabível o debate sobre ser o funk um produto cultural externo, imposto, fonte de aculturação local, estranho à cultura popular carioca/brasileira e que atentaria contra esta. Mesmo quando ainda pertinente o tópico, o antropólogo ressalvara o perigo de entender a cultura popular monoliticamente como tudo aquilo aceito pelas massas, ou tão-só pelo que seria “autêntico”. Segundo ele,
O baile funk carioca é um exemplo bastante rico de como elementos culturais de procedências diversas, ´autênticos´ ou não (´artificiais´ ou não, ´impostos pela indústria cultural´ ou não), podem se combinar de maneiras inusitadas, gerando novos modos de vida e afastando a hipótese apocalíptica da homogeneização cultural da humanidade.37
O autor também detecta um curioso componente de preconceito subjacente à recepção do funk desde seus primórdios.
Essa adoção do funk por jovens suburbanos (principalmente os mais pobres entre os suburbanos) e favelados do Rio parece dificultar a penetração dessa música entre os jovens das camadas médias cariocas. [...] No caso do Rio, a divisão da cidade em grupos [...] que pretendem estabelecer entre si tantas marcas de distinção parece também dividir a cidade em territórios musicais excludentes, que raras vezes [...] dançaram os mesmos ritmos.38
O funk nasce nos anos 60 e 70, como já exposto, nas áreas pobres e carentes das grandes cidades. Na peculiar geografia carioca, representa este espaço a favela, quase sempre instalada em morros que não respeitam fronteiras sociais, existindo tanto à beira-mar, ao lado de bairros nobres, como na periferia propriamente dita. Uma rixa social pretérita, calcada em motivos sociais de 37 38
Ibid. p. 244. Ibid. p. 249.
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desigualdade, entre outros, seria motivo suficiente a erigir uma barreira entre o funk e a totalidade da cidade. O funk, muito bem recepcionado primeiro pelas camadas mais carentes da população, teria sido identificado com estas por parte das classes mais abastadas e assim estigmatizado, como o locus e seus habitantes. Em uma frase, funk passou a ser “coisa de favelado”.
Ainda que o funk encontre nos dias de hoje progressiva aceitação de público39, caminhando a passos largos para uma vertente mais comercial, o sentimento ainda persiste, dissimulado, mesmo porque, retirada a carga depreciativa da afirmação, contém muito de verdade: é, de fato, um gênero identificado com a favela40, produzido em larga escala na favela mais do que em qualquer outro lugar, por seus habitantes, os “favelados”, que não raro fazem das letras instrumento para retratar a sua realidade circundante, com “um português que tanto pode apontar para o nascimento de uma nova língua quanto para a falência do sistema educacional brasileiro”41 No entanto, comum se faz, muitas vezes partindo da associação entre funk e favela, pensar o funk como manifestação cultural “menor”, “secundária”, incapaz de ombrear com gêneros musicais outros como o samba ou a MPB.
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Entre os dados que nos permitem concluir pela crescente estabilização do funk como hype, isto é, “na moda”, estão: o enorme sucesso internacional, sobretudo nas pistas européias, fazendo com que DJs estrangeiros venham buscar know-how no Brasil e se abra mercado externo para os DJs nacionais; o número crescente de bailes, festas, eventos e casas noturnas a adotar o funk (a ponto de se poder afirmar com alguma margem de certeza que o funk, hoje, é imposto pelo público consumidor da vida noturna, isto é, eventos ecléticos que queiram garantir sucesso de precisam dedicar substancial atenção ao funk); a existência de representantes legislativos surgidos no mundo funk carioca, com plataforma de defesa do mesmo, cujo exemplo mais evidente é a vereadora Verônica Costa, a “mãe loura do funk”; a existência de plataformas midiáticas duradouras – programas de rádio e TV – dedicados exclusivamente ao funk; entre outros. 40 A favela, por sua vez, também tem sido alvo crescente de atenção por parte do seu contraponto, o “asfalto”, a cidade “oficial”, sob o império das leis e atuação do Poder Público: o que é desconhecido encanta e simultaneamente assusta. Isto explica em parte a constante exposição midiática e a profícua produção cultural a respeito, podendo-se mesmo arriscar em falar em uma “estética da favela” - a exemplo das inauguradas estéticas “da fome” e “da violência” - com o sucesso mundial do filme Cidade de Deus e o seriado televisivo Cidade dos Homens. 41 ESSINGER, Silvio. Batidão – uma história do funk. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 14.
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Em enquete online de 2005 do jornal O Globo – cujo público é em maior parte oriundo das classes A e B –, o financiamento pelo Ministério da Cultura da ida de Tati Quebra-Barraco, ícone do funk carioca, a um festival internacional de música eletrônica em Frankfurt a que esta havia sido convidada na qualidade de representante brasileira foi veementemente reprovado. O “não” venceu com considerável vantagem na pergunta feita pelo jornal, “funk é cultura?”, a despeito do fato de Tati haver sido escolhida pelos organizadores, parecendo crerem os leitores que pouca ou qualquer diferença haveria se fosse enviado um representante de samba ou MPB, em vez do funk, a um festival de música eletrônica. O questionamento dos gastos públicos com cultura, tão-somente por se tratar de funk, explicita certa má-vontade da intelligentsia para com o gênero.
Entre as possíveis interpretações para o episódio, destaca-se enxergá-lo como uma tentativa de oficializar o estigma que se tenta impingir ao funk: pugnar pela negativa de financiamento público do Ministério da Cultura a uma manifestação do movimento funk seria, por vias oblíquas, negar-lhe caráter cultural. Se assim se entender, a tentativa é, de toda forma, risível. Seja qual for o conceito adotado para cultura, o enquadramento de manifestações sociais como culturais ou não, embora intrinsecamente subjetivo (por ser o próprio conceito, ou sua adoção entre tantos, subjetivo em si), obedece ainda assim a parâmetros previamente conhecidos extensíveis e aplicados às demais manifestações; destarte, não haveria como manipular o conceito a posteriori de forma a ver excluído um específico fenômeno. Em exemplo altamente reducionista e simplificador: se, com o advento do funk, se lhe nega caráter cultural por nascer na favela e ser cantado com pobreza lírica e harmônica por favelados, assim se estaria, por extensão deste novo
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conceito de cultura, excluindo igualmente o samba, o pagode e a música eletrônica como um todo, pelas razões elencadas na ordem respectiva.
Às manifestações culturais não se pode negar este título ao sabor das impressões populares momentâneas sobre as mesmas, se mais ou menos benquistas. Com efeito, sempre haverá manifestações culturais de gosto ou qualidade duvidosa, de acordo com o critério valorativo adotado. Até mesmo houve, e há, manifestações culturais proscritas, seja pela força ou pelo ostracismo; não perdem, entretanto, sua natureza cultural pelo banimento ou aceitação que encontram.
Oferecem-se dois argumentos em contrário ao apequenamento do funk: o primeiro, de natureza histórica. Na transição do século XIX para o XX, e primeiras décadas deste, entre os diversos ritmos em voga, tanto nacionais – modinha, lundu, maxixe, marcha – como estrangeiros – charleston, mazurca, fox-trot –, destaca-se um que, surgido dos cortiços e habitações pobres – embriões das atuais favelas – do Centro do Rio de Janeiro, então distrito federal, vinha encontrando progressiva aceitação entre a população da cidade. A confluência de zonas residências e comerciais, de classes ricas e pobres no mesmo espaço físico do Centro carioca, notadamente antes das reformas de Pereira Passos, facilitou sua difusão e propagação.
Desde cedo foi categorizado como “música de malandros” e outros tipos de baixo substrato social, a merecer a reprovação das elites. Eram tempos em que violeiros e capoeiras42
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Desde 1821, era comum a aplicação de punições a escravos praticantes da capoeira, como castigos físicos e mesmo degredo em ilhas como Fernando de Noronha. A prática da capoeira era coibida pela autoridade policial e vista como
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eram tidos como “desocupados” e perseguidos nas ruas pela polícia. Segundo Sérgio Cabral, o samba foi “um gênero tão execrado pelas classes dominantes das primeiras décadas do século que a polícia prendia quem o cantasse, dançasse ou tocasse”43. Cartola atesta igualmente a perseguição: “no meu tempo, as rodas de samba... muitas vezes eram dissolvidas pela polícia, visto que o samba naquela época era coisa de malandro e marginal”44.
O gênero era oficiosamente proscrito, mas foi caindo gradualmente no gosto de todos, populares e abastados. Dois trechos servem a exemplificar a ambigüidade no trato com este ritmo, o samba.
ameaça à ordem pública, notadamente após o advento da Lei Áurea, em 1888, logo após a qual passou de mera contravenção à categoria de crime, como se vê abaixo. Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil (Decreto 847, de 11.10.1890) [...] Capítulo XIII -- Dos vadios e capoeiras Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação capoeiragem: andar em carreiras, com armas ou instrumentos capazes de produzir lesão corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal; Pena -- de prisão celular por dois a seis meses. Parágrafo único. É considerada circunstância agravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta. Aos chefes ou cabeças, se imporá a pena em dôbro. Art. 403. No caso de reincidência será aplicada ao capoeira, no grau máximo, a pena do art. 400. Parágrafo único. Se fôr estrangeiro, será deportado depois de cumprida a pena. Art. 404. Se nesses exercícios de capoeiragem perpetrar homicídio, praticar alguma lesão corporal, ultrajar o pudor público e particular, perturbar a ordem, a tranqüilidade ou segurança pública ou for encontrado com armas, incorrerá cumulativamente nas penas cominadas para tais crimes. 43
apud SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro, 1917-1933. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 111. 44 Apud loc. cit.
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O pandeirista João da Baiana também era convidado a animar as festas do então senador Pinheiro Machado. Em 1908, não pôde comparecer a uma dessas festas pois a polícia apreendera seu pandeiro (´o samba era proibido, o pandeiro era proibido´) quando tocava nas ruas da Penha. Sabendo do ocorrido, no dia seguinte Pinheiro Machado deu de presente a João da Baiana um novo pandeiro com a inscrição: ´A minha admiração, João da Baiana, senador Pinheiro Machado.´ 45 Nós éramos muito perseguidos pela polícia. Chegavam no Estácio, a gente corria pra Mangueira, porque lá havia o Nascimento, delegado que dava cobertura e a gente sambava mais à vontade”.46 (grifo nosso)
Estava em jogo um complexo processo de negociação entre grupos sociais distintos que levou afinal à “invenção” do samba como símbolo da identidade nacional47, o que veio a ser referendado com a Revolução de 1930 e permanece até os dias atuais. Longe de pretensões equiparativas, a História apenas ensina a lição de que sua “linha evolutiva”, assim como a da música popular brasileira, é isenta de impressões momentâneas acaloradas, tendendo à perenidade. Há nove décadas, o samba encontrava tanta resistência quanto o funk hoje, e não tinha lugar em qualquer uma das duas “linhas evolutivas”. O funk, pela repercussão que encontra, já parece ter garantido ao menos sua nota de rodapé na primeira e, pela recepção popular, parece pretender exigir seu lugar na segunda.
O segundo argumento se presta a combater a suposta pobreza lírica do funk. Em que pese a profusão de transgressões à norma culta nas letras, há que se reconhecer que o funk, enquanto voz
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VIANNA, Hermano. O Mistério do Samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. p. 113. LOPES, Juvenal, apud SANDRONI, Carlos. op. loc. cit. 47 VIANNA, Hermano. Op. cit. Ver também, dando conta da passagem gradual do samba de maldito a cânone, Tempos Idos (Cartola e Carlos Cachaça): “Os tempos idos / Nunca esquecidos / Trazem saudades ao recordar / É com tristeza que eu relembro / Coisas remotas que não vêm mais / Uma escola na Praça Onze / Testemunha ocular / E perto dela uma balança / Onde os malandros iam sambar / Depois, aos poucos, o nosso samba / Sem sentirmos se aprimorou / Pelos salões da sociedade / Sem cerimônia ele entrou / Já não pertence mais à Praça / Já não é mais samba de terreiro / Vitorioso ele partiu para o estrangeiro / E muito bem representado / Por inspiração de geniais artistas / O nosso samba, humilde samba / Foi de conquistas em conquistas / Conseguiu penetrar o Municipal / Depois de atravessar todo o universo / Com a mesma roupagem que saiu daqui / Exibiu-se para a duquesa de Kent no Itamaraty” 46
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das classes menos instruídas, veicula as paulatinas transformações da língua portuguesa, urdidas em sua maioria justamente na periferia cultural. Justiça seja feita, nenhuma manifestação cultural recente teve o condão de incorporar mais neologismos e gírias ao vocabulário nacional: tchutchucas, cachorras, boladão, “tá dominado”, “demorou”, “já é”, “se liga”, “chapa quente” entre inúmeros outros neologismos, provavelmente surgiriam com ou sem o funk, mas sem este jamais transporiam as fronteiras sociais do morro e cairiam na boca e gosto de toda a população. Quanto a desvios mais peculiares – que às vezes são hilários frutos de tentativas de forçar uma rima ou enquadrar um verso à métrica –, como “equipara pra pensar”, pleonasmos como “momentos que eu nunca esquecerei jamais”, contradições lógicas como “todo mundo dizia que era um cara maneiro / outros o criticavam porque era funkeiro”, “eu quero que tu repete” e outras dificuldades recorrentes com o gerúndio, é de se conceder que são, em última análise, reflexo das precárias condições de ensino vigentes no país. Novamente, a questão: uma manifestação cultural é menos válida porque retrata fidedignamente a realidade que a circunda?
Finalmente, uma nota curiosa. Em meados de 2005, surge nas paradas americanas e resto do mundo um pancadão deveras intrigante, cantado por uma voz que obviamente conhecia pouco ou nada da língua-mãe do funk carioca, a julgar pela pronúncia claudicante do português em que se aventura: “gatinha, sai do chão, vai descendo o popozão”, que a letra se encarrega de explicar que significa “big ass”, em bom inglês. O dono da voz é Kevin Federline, ou K-Fed, o marido de Britney Spears, musa mundial do pop. À procura de um nicho de mercado em que se lançar nos EUA, carreado pela fama da esposa, o cantor escolheu justamente o filho pródigo e ultramarino do hip-hop, trazendo-o de volta à terra de onde veio – isso se considerarmos como exitosa a canhestra tentativa de K-Fed de cantar o funk carioca, ou algo parecido. Seja como for, é digno de nota que
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um americano tenha tentado a sorte grande no mercado fonográfico mais concorrido e fechado a novidades externas do mundo cantando em português. Antropofagismo às avessas: estamos sendo deglutidos. Fenômeno semelhante da música brasileira no plano internacional não se verifica desde que Tom Jobim, João Gilberto e cia. arranharam os primeiros acordes da levada bossanovista em histórico show no Carnegie Hall, Nova York, em 1962, para deleite do mundo. Seria o funk carioca a nova bossa nova?
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3 FUNK, ESTADO, MÍDIA, SOCIEDADE: QUEM É VIOLENTO?
Tumulto Corra que o tumulto está formado Vem cá, vem ver Que dentro do tumulto pode estar você (O Rappa, Tumulto)
Dedica-se, neste capítulo, a estudar as relações travadas por alguns órgãos, setores e instituições – notadamente a mídia, sociedade e Estado – com o movimento funk., sem prescindir de um olhar mais detalhado a respeito do fenômeno da violência dentro do mundo funk e suas implicações, bem como os modos e razões pelas quais este processo dialético de influências culminou na estigmatização e mesmo criminalização do funk e das classes sociais menos abastadas que mais se identificam com o mesmo.
De início, façam-se algumas observações de cunho antropológico sobre a festa – categoria na qual se enquadram as manifestações da cultura funk tais como os bailes.
Em seu pioneiro trabalho sobre o mundo funk carioca, VIANNA dedica substancial atenção à festa enquanto instituição ao traçar uma rica etnografia do baile, tecendo considerações relevantes. Anota que “para Durkheim e muitos outros autores, as principais características de todo tipo de festa seriam: 1) a superação das distâncias interindividuais; 2) produção de um estado de efervescência coletiva; 3) transgressão de normas sociais”.48
48
Idem. O Mundo Funk Carioca. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 51.
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Sublinha ademais o antropólogo que o coletivo se sobrepõe ao indivíduo no divertimento grupal, e que tais rituais são importantes para a constante reafirmação dos laços sociais, das crenças em comum e das regras que possibilitam a vida em grupo. A oposição entre diversão e seriedade estaria sempre presente, sendo certo que a utilidade da festa consistiria em oferecer um escape momentâneo à vida de responsabilidades, revigorando os indivíduos para logo retornarem à mesma.
Entretanto, a festa, enquanto representação de uma crise mimética (onde “os homens disputam entre si todos os objetos normalmente proibidos”49), está sempre sujeita a ultrapassar a barreira da simples representação do caos e se transformar em reprodução do caos, em crise real: “[...] a festa pode deixar de ser um freio contra a violência e passar e ser uma aliada das ´forças maléficas´ que desejam a desintegração social [...]. Girard tem uma expressão curiosa para esses (realmente) violentos acontecimentos: ´la fête qui tourne mal´”.50
Fenômenos de massa apresentam uma tênue fronteira entre ordem e caos, festa e tumulto. Mais: a fonte da diversão da festa parece consistir nesta perigosa proximidade. Não haveria tanta entrega, agito, catarse, caso não houvesse tensão subjacente, o iminente perigo do possível descontrole.
As massas buscam essa unidade delirante. Mas, ainda como outros autores que tratam da festa, [Elias] Canetti não perde uma oportunidade para falar dos perigos que tornam sempre breves estes estados de igualdade entre os indivíduos. A intensidade da descarga pode ser fatal: o pânico, a desintegração repentina e furiosa, sempre ameaça a todas as massas, mesmo as mais domesticadas. Essa 49 50
GIRARD, René, apud ibid. p. 54. VIANNA, Hermano. O Mundo Funk Carioca. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 55.
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intensidade deve ser manipulada com todo cuidado. Mesmo assim, a violência é sempre iminente.51 Qualquer organização, qualquer mecanismo para a contenção da violência, não esconde sua fragilidade. Os organizadores de bailes têm plena consciência da precariedade da ordem nesse tipo de manifestação coletiva, por isso estão sempre atentos a qualquer sinal de algo que possa vir a perturbar a “tranqüilidade” do baile. Mas todos reconhecem sua impotência. É impossível manter a calma no baile sem destruir o que ele tem de melhor: a euforia, a diversão explosiva, o delírio das massas.52
Entretanto, há que se ter sempre em vista a faceta deletéria deste flerte com a confusão: as manifestações violentas, de certo modo inevitáveis, ao menos em algum grau. Como veremos, o funk, ainda debutante, foi pródigo nestas. Em algum momento de sua expansão, a festa desandou.
51 52
Ibid. p. 61. Ibid. p. 84.
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3.1 A violência no mundo funk nos anos 80
A violência no mundo funk da década de 80 ainda não adquirira caráter de endemia, ou mesmo fora institucionalizada, como nos futuros bailes de corredor. De fato, o funk era então enxergado não como ameaça à ordem pública, mas como forma de lazer da juventude suburbana e pobre, como relatava a revista Veja: “Para uma parcela considerável da juventude carioca, funk é bem mais que isso – é uma palavra mágica sob a qual se abriga um ritual. Esses jovens [...] formam uma comunidade com códigos de conduta próprios na maneira de se vestir, falar, se divertir e namorar.”53
A violência era tida como um acontecimento marginal na festa. Entretanto, já era um elemento e uma preocupação presentes no cotidiano do mundo funk, como é possível extrair do trabalho etnográfico de Vianna.
As brigas começam quase que por acaso. Um dançarino esbarra no outro e não pede desculpas. Conseqüência: socos, pontapés, vários amigos tentando separar ou acalmar os dois briguentos. Às vezes esses amigos também começam a brigar. Os outros dançarinos também se afastam rapidamente. A massa se comprime em algum canto da pista de dança, o mais longe possível da briga. Nesta situação, é fácil irromper mais violência. Todos querem fugir da confusão ao mesmo tempo. Os seguranças são sempre muito rápidos: abrem caminho no meio da massa, empurram quem está na frente. A atitude também violenta dos seguranças pode ser motivo para outras brigas. Quase sempre as lutas corporais acontecem entre dois homens ou entre duas mulheres. As mulheres brigam tão freqüentemente quanto os homens. Os motivos são os mesmos [...]. Outras vezes o motivo da briga vem de fora do baile, é uma disputa antiga que teve início no bairro dos dançarinos. Alguns informantes me disseram que quem briga já vem com a ´cabeça quente ´de fora do baile. Falam 53
Cf. Veja, São Paulo, 11.05.1988, apud HERSCHMANN, Micael. O funk e o hip-hop invadem a cena. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000. p. 92.
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que muita gente que freqüenta o mundo funk não tem ´educação´, não quer se divertir e sim fazer ´arruaça´. Outras pessoas acham que o hip hop incita à violência. Se a música fosse mais calma haveria menos brigas. Mas todos acabam sempre por dizer que ´festa com tanta gente e pouco espaço é assim mesmo, tem que ter briga´.54
Como se vê, os próprios freqüentadores reconheciam a violência como inevitável em ambientes de multidão, ainda que os motivos que a deflagrassem fossem em larga medida personalíssimos. Neste momento, a violência dos bailes funk ainda não difere substancialmente daquela verificada em qualquer outro acontecimento de massas. A proporção e freqüência crescentes com que passa a ocorrer nos bailes, contudo, se tornam motivos de perplexidade, a qual não se opunha de imediato uma solução plausível.
A banalização da violência, isto é, sua percepção como cotidiana – neste primeiro momento, apenas entre os freqüentadores do mundo funk, com excepcional repercussão no “mundo exterior” – é o começo de um processo que a entronizaria cada vez mais nos bailes e no imaginário popular.
[...] a violência é um tema, uma preocupação e uma realidade constante em todos os momentos do baile. Existe toda uma organização (a revista na porta, os seguranças que observam a pista de dança, a habilidade do DJ etc.) que tenta evitar o aparecimento da violência, mas é raro um baile que não tenha pelo menos uma briga. O DJ, os membros da equipe e os dançarinos conversam muito sobre essas brigas, ou sobre notícias de morte em determinado baile. Esse é um assunto constante, e quem escuta uma dessas conversas sai com a impressão de que os bailes são praças de guerra, com assassinatos o tempo todo. Os DJs mais antigos falam, em tom nostálgico, dos “bons velhos tempos” em que os bailes eram pacíficos. Alguns deles acusam o hip hop de ser uma música violenta cuja entrada nos bailes cariocas iniciou um período de confusões freqüentes. Todos, jovens e veteranos, parecem concordar com a seguinte afirmação: os bailes estão cada vez mais violentos e essa situação já está passando dos limites suportáveis. Já ouvi
54
VIANNA, Hermano. Op. cit. p. 77.
54
muitos freqüentadores de baile dizerem que é preciso fazer alguma coisa para conter as brigas, mas nunca dizem o que deve ser feito.55
O início da percepção da violência fora das fronteiras então suburbanas do mundo funk causou alguma consternação entre os organizadores de bailes. Temiam eles que a imagem do funk saísse prejudicada – não por altruísmo ou amor ao movimento, mas por temor de represálias da autoridade policial. Já à época, irrompiam os primeiros registros de que o funk se tornaria caso de polícia.
Algumas reportagens que saíram sobre os bailes nos jornais cariocas provocaram uma reação curiosa por parte de seus organizadores. Muitos deles se mostraram ofendidos porque suas festas haviam sido descritas como violentas. Não conseguia entender a lógica da argumentação: eles mesmos falavam o tempo inteiro sobre a violência dos bailes, mas não queria quem os jornalistas tocassem no assunto, com medo de que as reportagens pudessem ´queimar a imagem dos bailes´. Minha hipótese de que o discurso sobre a violência tinha como ´função´ afastar os estranhos perdeu o sentido. As equipes e os DJs queriam passar uma imagem ´limpa´ de suas festas para o resto da população, talvez com medo de que as reportagens ´realistas´ pudessem desencadear uma reação policial contra os bailes. As brigas existem, mas não devem ser matérias de jornal.56 (grifo nosso) O que mais preocupa, porém, a equipe de som e a direção do clube é a saída do baile. A massa ainda está eufórica e anda em grupos de dezenas pelas ruas da redondeza quebrando portões, invadindo edifícios e causando problemas nos ônibus que tomam para voltar para suas casas. As confusões com motoristas e trocadores de ônibus são incontáveis. Tanto que várias linhas, conhecendo o horário do final dos principais bailes, fazem questão de mudar suas rotas ou de não parar nos pontos de ônibus onde a multidão que sai das festas se aglomera. Os dançarinos têm que esperar horas se quiserem ou tiverem que voltar de ônibus para casa. Mas geralmente os freqüentadores de determinado baile moram perto do local da festa. Por isso voltam andando em bandos para suas ruas. É óbvio: são também incontáveis as reclamações dos moradores das áreas vizinhas aos clubes, que sempre tentam encontrar uma forma de terminar com os bailes, reconquistando assim o sossego perdido. Para grande parte da população suburbana, baile funk é sinônimo de confusão, violência ou “reunião de desocupados”.57 (grifos nossos)
55
Ibid. p. 84. Ibid. p. 88. 57 Ibid. p. 87. 56
55
O discurso dos envolvidos com o mundo funk não passa incólume à influência do fenômeno: percebem-se desde distorções como DJs demonstrando orgulho e fascínio pela violência, até organizadores de bailes referindo-se a seu público depreciativa e desconfiadamente.
E, em outras ocasiões, parece existir até uma competição para saber qual é o baile mais violento. Numa conversa entre DJs, ouvi alguns deles demonstrarem até certo orgulho por seu baile ser considerado violento.58 [...] Mais interessante é ver que alguns dos organizadores desses bailes se referem ao seu público com o mesmo desdém e com o mesmo medo [demonstrado pela população vizinha dos bailes].59
Os mecanismos de controle variavam de baile para baile. A responsabilidade por contratar e organizar o serviço de segurança recaía comumente sobre os proprietários dos espaços onde os bailes eram realizados. Entretanto, como anteriormente visto, nenhum sistema se revelou plenamente eficaz. A própria segurança institucional tornou-se, por vezes, parte do problema da violência.
Muitas vezes é contratada uma equipe de seguranças profissionais que nada tem a ver com o mundo funk. São constantes as reclamações dos dançarinos contra a violência desses seguranças que nem mesmo sabem diferenciar uma dança mais animada de uma briga, e que tratam os dançarinos com socos e pontapés, desencadeando novos conflitos. Algumas equipes contratam os dançarinos mais fortes para fazer a segurança de seus bailes, o que melhora a relação com o público. Em poucos clubes, como no Renascença, não existe uma equipe de seguranças contratada e são as próprias turmas de dançarinos que cuidam da tranqüilidade do baile.60
58
Ibid. p. 84. Ibid. p. 87. 60 Ibid. p. 37. 59
56
Ademais, datam deste período os primeiros registros de ingerência dos poderes locais, como o tráfico de drogas, sobre os bailes funk, às vezes por iniciativa dos próprios organizadores, conforme documentado.
Outra estratégia também utilizada pelas equipes de som com certa freqüência é deixar que os próprios ´chefes de morro´ das redondezas, geralmente ´bandidos´, tomem conta da segurança dos bailes.61
A passagem da década denotou ainda mais o quadro de disseminação da violência no mundo funk, como passava a notar mesmo a imprensa, até então alheia a um movimento caracteristicamente periférico.
Em 20 de maio de 1990, o jornal O Globo publicou reportagem [...] que dava a dimensão do que acontecia na saída dos bailes funk. O título: ´Gangues de rua aterrorizam o subúrbio´. [...] Todos os ingredientes explosivos estão reunidos na matéria: traficantes de drogas mandando os brigões sossegarem, seguranças dos bailes fazendo vista grossa, líderes de galeras que andam armados e vários assaltos e espancamentos nos ônibus da madrugada. Tudo isso, fora o som estridente, que não deixa a vizinhança dormir. Essa era a dura realidade apontada pela reportagem nos bairros cortados pela Avenida Suburbana, onde estavam os bailes freqüentados, em sua maioria, por jovens moradores de favelas. A ordem por lá era não sair de casa domingo à noite. Histórias relativas ao funk continuaram a ser publicadas pelos jornais nos meses seguintes – caso das constantes brigas entre os jovens que iam do baile do Mourisco, quase todos habitantes dos morros Chapéu Mangueira, Dona Marta e Santo Amaro. Em novembro de 1991, registrou-se pancadaria no Maracanãzinho durante o baile que lançava o LP Funk Brasil 3. Em fevereiro seguinte, o prefeito Cesar Maia reclamava dos problemas de violência nos bailes funk do Império Serrano, organizados pela Furacão 2000. [...] As reuniões da Furacão 2000 para tentar promover a paz entre as galeras e os festivais (em que o vencedor ganhava dinheiro e um baile em sua comunidade) já não conseguiam mais conter a violência. Assim, em março de 1992, a Defesa Civil interditou cinco quadras onde ocorriam bailes funk.62
61
62
Ibid. p. 87. ESSINGER, Silvio. Batidão – uma história do funk. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 118.
57
O relato acima serve a desmistificar uma errônea percepção de que os arrastões de 1992 são o marco inaugural da violência associada ao mundo funk. Ao contrário, são o marco da associação entre funk e violência, notadamente através de uma espécie de discurso elitista e segregador propagado irrestritamente pela mídia a partir deste episódio, a seguir analisado. ESSINGER dá conta do ambiente nos meses que antecederam o arrastão inaugural de 1992.
De volta a 1992, a alegria dos freqüentadores dos bailes funk era algo que preocupava muito a polícia. Ainda mais quando eles saíam pelas ruas fazendo arrastões – descritos nos manuais como uma ´modalidade de assalto em que ladrões se lançam em bando sobre as vítimas, arrancando elas tudo o que vêem´. Começava-se também a falar sobre a associação entre essas ações e as grandes organizações criminosas das favelas: o Comando Vermelho e o Terceiro Comando. No esforço de resistência do funk, Rômulo Costa [empresário funk; dono da equipe de som Furacão 2000] convocou em abril uma passeata de protesto contra a proibição dos bailes, marcada para a Cinelândia, em pleno Centro do Rio. Em agosto, proibido pela polícia de realizar seu baile na Associação Atlética Vicente de Carvalho, ele fez a festa na rua mesmo, ligando o som a todo o volume. No mesmo mês, o Clube do Balanço [agremiação de diversas equipes de som] [...] protestou contra a interdição de bailes pelo Estado-Maior de Segurança do Estado do Rio de Janeiro. [...] Mas tudo ainda era pouco diante do que estava por chegar, no dia 18 de outubro [o arrastão].63
Ante a crescente onda de violência nos bailes funk – a que o arrastão fez visível como tudo o mais associado ao funk –, prenunciadora de uma fase mais conturbada cujo auge se deu na segunda metade da década de 90, significativa a pergunta: “Mas, então, a violência é a parte podre dessa suculenta maçã que é o baile? É possível extirpar a podridão?”64
63 64
Ibid. p. 123. VIANNA, Hermano. O Mundo Funk Carioca. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 89.
58
3.2 A violência no mundo funk nos anos 90
Minha cara autoridade, eu já não sei o que fazer Com tanta violência eu sinto medo de viver Pois moro na favela e sou muito desrespeitado A tristeza e a alegria que caminham lado a lado Eu faço uma oração para uma santa protetora Mas sou interrompido a tiros de metralhadora Enquanto os ricos moram numa casa grande e bela O pobre é humilhado e esculachado na favela Já não agüento mais essa onda de violência Só peço à autoridade um pouco mais de competência Eu só quero é ser feliz Andar tranqüilamente na favela onde eu nasci E poder me orgulhar E ter a consciência que o pobre tem seu lugar (Cidinho e Doca, Rap da Felicidade)
3.2.1 O arrastão
Rapidamente as gangues tomam conta da areia... Uma parede humana avança sobre os banhistas... pavor e insegurança... Sem que se saiba de onde... começa uma grande confusão... O pânico toma conta da praia... As pessoas correm em todas as direções... São mulheres, crianças, pessoas desesperadas à procura de um lugar seguro... A violência aumenta quando gangues rivais se encontram... Este grupo cerca um rapaz que cai na areia e é espancado... A poucos metros dali outro bando avança sobre a quadra de vôlei... Os jogadores se afastam da quadra e correm para proteger as barracas, mulheres e crianças... Dois policiais... apenas dois... chegam até a areia... Eles estão armados mas parecem não saber o que fazer com tanta correria... Perto dali, rapazes ignoram a presença dos policiais e aproveitam para roubar...65
Dezoito de outubro de 1992, Rio de Janeiro. Naquele domingo de sol, uma série de distúrbios ocorridos em diversos pontos das praias da orla viriam a fundar um marco na memória urbana carioca, na história do funk e no desenvolvimento da percepção da violência e de suas causas. Cenas de jovens brigando entre si e com banhistas, dependurando-se a janelas de ônibus
65
Jornal Nacional de 18.10.1992, apud HERSCHMANN, Micael. O funk e o hip-hop invadem a cena. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000. p. 13.
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lotados, fugindo da polícia; gritos, tumulto, correria e conflitos; tudo isto foi, mais tarde, narrado e exibido em imagens em todos os programas jornalísticos, alcançando repercussão internacional.
Os eventos acabaram rotulados sob a denominação de arrastão, termo já existente mas que, a partir de então – associando-se indelevelmente a tais ocorridos e tanto os definindo como sendo definido no processo – assume a expressão emblemática de um tipo de tumulto, saque ou pilhagem promovido por jovens pobres. Um grande grupo de jovens, agindo em bloco de forma compacta, “pega tudo o que pode pelo caminho”. As imagens produzidas são impressionantes e reificam a sensação de medo no imaginário coletivo. Atualmente, emprega-se o termo para qualquer ação coletiva radical ou violenta de segmentos populares urbanos.66
Os jornais dos dias seguintes traziam editoriais virulentos contra o abalo à ordem estabelecida e violação da paz dos “cidadãos de bem”, como se transcreve abaixo, ainda sem menção ao movimento funk. Logo em seguida houve a identificação dos envolvidos como “funkeiros”, depreendendo-se a causa do confronto nas areias como a continuação de um estranhamento entre galeras em um baile funk na véspera. O fato foi explorado em manchetes com chamadas sensacionalistas como “Galeras do funk criaram pânico nas praias” e “Movimento funk leva à desesperança”.
O que aconteceu no domingo em praias da Zona Sul não foi simples perturbação da ordem, e seria temeridade considera-lo episódio isolado. As hordas que se derramaram em corrida alucinada por toda a extensão da areia não roubaram apenas bolsas e relógios; principalmente arrancaram do cidadão carioca e dos visitantes da cidade o bem precioso da paz dominical. Ir à praia é direito inalienável e histórico do morador do Rio [...] Tudo isso foi espezinhado nos 66
HERSCHMANN, Micael. O funk e o hip-hop invadem a cena. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000. p. 27.
60
acontecimentos afrontosos de domingo [...] Vamos agora aceitar passivamente que o prazer de ir à praia seja substituído pelo medo de ir à praia? As famílias serão obrigadas a se fechar em casa nas manhãs de sol – porque a praia tem novos donos? Os turistas serão mais uma vez afugentados, desta vez definitivamente? As cenas mostradas pela televisão não permitem dúvidas quanto ao caráter organizado dos ´arrastões´. Apenas grupos com estrutura de comando e planos bem traçados são capazes de tal concentração, infiltração, ação simultânea e dispersão – e tudo isso se viu, nas praias, domingo. 67 (grifo nosso) A Zona Sul do Rio transformou-se ontem numa praça de guerra, com arrastões promovidos por gangues de adolescentes vindos de bairros do subúrbio e da Baixada Fluminense, armados com pedaços de madeira. A Polícia Militar, com 110 homens munidos de revólveres, metralhadoras e escopetas, teve dificuldade em reprimir a violência dos diversos grupos de assalto. Até uma polícia paralela, formada pelos Anjos da Guarda – grupo voluntário que se propõe a defender a população –, entrou em ação. Banhistas e moradores em pânico tiveram que procurar refúgio em bares, padarias e embaixo das lonas dos camelôs. A ação dos assaltantes começou por volta do meio-dia, na Praça do Arpoador, onde várias linhas de ônibus da periferia fazem ponto final. À medida que desembarcavam, as gangues iam formando os arrastões, cuja ação se espalhou por Copacabana, Ipanema e Leblon. Revoltados, moradores pediram pena de morte e a presença do exército nas ruas.68 (grifos nossos)
Questiona-se, contudo, a visão dominante sobre o que teria acontecido naquele dia. HERSCHMANN, fazendo uso de depoimentos e alguns dos poucos relatos não-criminalizantes então publicados, propõe uma interpretação diversa dos fatos:
Mesmo alguns transeuntes que testemunharam o ocorrido, e até agentes de segurança pública, indagam-se se o que assistiram no Arpoador, naquele dia 18 de outubro, foi mesmo um acontecimento violento, criminal. Isto é, alguns perguntam-se: sendo essa uma das praias preferidas pelos funkeiros, aquilo não só parecia não ter acontecido ali pela primeira vez, como também alguns olhares mais atentos indagavam-se se o ocorrido não seria uma tentativa frustrada das galeras de diferentes morros cariocas, dentre elas os funkeiros, de encenar o ´ritual de embate´ que esses jovens inventaram nas pistas de dança dos inúmeros bailes realizados semanalmente no Rio.69
67
HORDAS na praia. O Globo, Rio de Janeiro, 20 out. 1992. A ZONA Sul do Rio transformou-se ontem numa praça de guerra. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 19 out. 1992, Caderno Cidade. 69 HERSCHMANN, Micael. O funk e o hip-hop invadem a cena. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000. p. 95. 68
61
VIANNA concorda, aduzindo para os fatos a explicação de uma “tentativa das galeras de diferentes favelas cariocas (vejam bem, não falo galeras de funkeiros) de encenar na areia da praia o ´teatro da violência´ que inventaram nas pistas de dança das centenas de bailes funk [...]”.70 O próprio conceito de galera funk, ou “funkeiros”, construído com o intuito de equipará-los a gangues, quadrilhas de jovens delinqüentes e desordeiros, é questionável.
O funk não produz galeras. São turmas de adolescentes, vizinhos de morros ou de bairro suburbano. O funk é só uma de suas atividades coletivas, talvez nem a mais importante. A turma também vai à praia, ao futebol, ao pagode. E o funk não é o elemento central para a construção de sua identidade como grupo social. [...] O local de moradia é muito mais importante. [...] Até as rivalidades entre as galeras são anteriores ao aparecimento do funk no Rio. [...] ninguém identifica um funkeiro na rua como identifica um punk. A não ser que passe a chamar de funkeiro todo jovem pobre e escurinho carioca. O que é preconceito que a mídia teima em veicular.71
Indo além, o antropólogo pensa aquele não haver sido o primeiro “arrastão”, levantando questões políticas (a eleição municipal próxima) para tamanha repercussão e apontando ali o início de um processo de marginalização do funk.
[...] nada será suficiente para mudar as imagens que ficaram gravadas na memória urbana carioca: aquilo foi mesmo um perigoso arrastão e os dançarinos de baile funk, da noite para o dia (como ´comprovaram´ as manchetes de todos os jornais de segunda-feira), se viram transformados numa espécie de inimigos públicos ´número um´ pelas forças que queriam encontrar bodes expiatórios para as inumeráveis ´crises´ que, diziam e ainda dizem, fazem do Rio um fim do mundo social, ou início do fim da própria possibilidade de vida social no mundo.72
70
VIANNA, Hermano. O funk como símbolo da violência carioca. In: ALVITO, Marcos; VELHO, Gilberto. Cidadania e Violência. Rio de Janeiro: UFRJ e FGV, 1996. p. 180. 71 VIANNA, Hermano, apud ESSINGER, Silvio. Batidão – uma história do funk. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 131. 72 VIANNA, Hermano. Op. cit. p. 181.
62
Nem só de repúdio e incompreensão viveu o funk. Em tempos difíceis, servindo de contraponto à visão predominante excludente da mídia e dos setores conservadores, proliferaram seminários e reuniões, organizadas pelo governo e sociedade civil, se propondo a entender melhor aquela manifestação cultural chamada funk. Foi o caso do Seminário “Barrados no Baile – Entre o Funk e o Preconceito”, promovido pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ, em que o então secretário de Justiça e de Polícia Civil, Nilo Batista, defendeu o movimento funk: “é mais fácil ter medo de um garoto de 16 anos do que do sistema. Jogamos sobre nossos pobres e destituídos os nossos medos. Os funkeiros pagam uma taxa de toda a violência urbana”.73
Na mesma vertente, houve o workshop “Galeras: uma manifestação cultural? Uma ameaça? Um problema da cidade?”, idealizado pelo urbanista Manoel Ribeiro com a chancela da recém-fundada organização não-governamental Viva Rio, ela mesma uma reação da sociedade civil aos tempos violentos por que a capital fluminense passava. Manoel Ribeiro defendia a não confinação geográfica das galeras, sob pena de se incorrer no mau exemplo de Los Angeles, em que “ao contrário do que pretendia, isso acabou tornando as gangues confinadas mais organizadas, mais zelosas dos limites de áreas de influência, mais bem armadas e mais violentas”74. Um ano antes, ocorrera o “I Seminário sobre Violência – a Questão Funk”, com presença de autoridades estaduais e representantes de todos os segmentos.
Outras iniciativas de conscientização foram o projeto Rio Funk, do Centro Brasileiro para Infância e Adolescência – CBIA, da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social e da 73 74
ESSINGER, Silvio. Batidão – uma história do funk. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 127. Ibid. p. 129.
63
Prefeitura, com bailes comunitários, oficinas de DJ, de dança e de teatro para jovens. O prefeito Cesar Maia, revelando-se um entusiasta do funk, teve participação ativa na cena, bem como outras figuras públicas.
Os políticos não esperaram muito para acordar e perceber o potencial da massa funkeira. Apesar de algumas confusões, como a de fevereiro de 1993, durante uma festa da Furacão 2000 no Maracanãzinho para comemorar a liberação dos bailes, Nilo Batista seguia sua lua-de-mel com o funk, tratando-o como uma manifestação necessária das camadas mais carentes – ao ponto de Rômulo Costa aproveitar e pedir permissão para realizar seus bailes nos Cieps, as escolas populares construídas durante o primeiro governo de Leonel Brizola (1982/1986). Em abril, o prefeito César Maia, aparentemente convencido de que o funk era o único movimento jovem sistemático e permanente do Brasil, foi ao clube Boêmios de Irajá para assistir a um concurso de galeras. Em reuniões posteriores com os funkeiros, ele prometeu ceder espaços da Prefeitura, como a Praça da Apoteose, para os bailes. ´A partir de agora, o funk é um movimento cultural reconhecido pela Prefeitura. Queremos levar as galeras, com o seu balé aprimorado, para as portas de hotéis´, delirava César. Para ele, a política de diversificar os locais para realização dos bailes era a melhor opção para se acabar com a violência das galeras.75 (grifo nosso)
Analisando a reação das autoridades públicas frente ao funk neste momento inicial pósarrastão, poder-se-ia descrevê-la como algo dúbia: um misto de estranhamento e fascínio, tentativa de compreendê-lo sem, entretanto, baixar a guarda. Talvez assim se explique a abordagem e tratamento a partir dali dispensados: repressão ora intermitente, ora esporádica sobre os bailes, policiados duplamente pelo aparelho de segurança pública e pela sociedade civil. Com uma mão se afagava o funk, chamando-lhe “movimento cultural”; com a outra, não se hesitava em interditar bailes sob o menor sinal de episódios violentos, ainda que não se originassem propriamente do baile, mas sim de seus freqüentadores, e muitas vezes fora do ambiente daqueles.
75
Ibid. p. 127.
64
3.2.2 O baile de corredor
Atenção, guerreiros do corredor! Chegou a hora de mostrar quem é o melhor Pois só os mais fortes sobreviverão. Atenção, Lado A! Atenção, Lado B! Preparem suas macas Pois, a partir de agora, A porrada vai comer! (funk proibidão, autoria desconhecida)
É possível afirmar que, na segunda “onda” de criminalização e estigmatização do funk, – que se inicia no primeiro período de massiva evidência do funk pós-arrastão, no ano de 1995, e se estende por um continuum de declínio até meados de 1999, com a “erotização” do funk e volta às paradas de sucesso comerciais – as atenções se concentraram sobre os bailes.
Com efeito, havia e há bailes realizados em dois tipos de lugares, grosso modo: em comunidades ou favelas, e em clubes. Os bailes de comunidade sofrem a ingerência das forças políticas locais, como o tráfico de drogas e organizações criminosas, fazendo com que sejam freqüentados principalmente pelos habitantes da área e, por isso e pela baixa tolerância dos poderes locais com qualquer ordem de tumulto, muito menos sujeitos a enfrentamento de galeras – que, como dito, são agrupamentos fluidos com forte identificação no local de origem de seus integrantes. Os bailes em clubes76, a seu turno, por não se situarem em comunidades – ergo, em território neutro – atraem público maior e de diversas áreas, propiciando mais atrito, rivalidade e embates de grupos.
76
“Clubes”, aqui, em distinção a comunidade, quer significar qualquer espaço, não necessariamente fechado, como ginásios, quadras de escolas de samba e outros.
65
Observa-se, mormente a partir da segunda metade da década de 90, a paulatina transformação de grande parte do circuito de bailes de clube em bailes de corredor. Por estes, entendam-se os bailes em que a violência, ou ritualização desta, adquiriu caráter institucional, tornando-se um evento por si só, incorporado ao baile. O corredor da morte, ou simplesmente corredor, é encarado como a radicalização extrema das brigas em bailes, a ponto de adquirir contornos de tradição, com regras claras de funcionamento e execução garantida em alguns bailes durante este curto período de maior violência nos bailes.
A principal diversão do baile, que servia a atrair freqüentadores, era brigar. Não se tratava de um confronto generalizado e desregrado, mas um espetáculo strictu sensu, com regras implícitas e organização. Assentava-se um corredor dividindo o salão do baile em dois; de cada lado, uma galera. Organizando e mantendo aberto o corredor, e cuidando de coibir excessos, os seguranças do baile. Animando a massa com uma seleção de músicas aceleradas para “criar o clima”, o DJ. Membros de uma galera não poderiam freqüentar sem risco o outro lado do salão. Postados ao longo do corredor, os combatentes tratavam de agredir os oponentes à mão livre, sem objetos, com mãos, pés e golpes de artes marciais.
É um fenômeno sem explicação ou origem precisa. Pode-se aventar como tal a progressiva ampliação dos “quinze minutinhos de alegria”, momento ao fim da festa em que o DJ toca as músicas mais agitadas e de maior sucesso entre o público, provocando um efervescimento quase orgástico na massa – que, como explica a teoria antropológica da festa, é o momento mais propício à transgressão e desbordamento de limites, quando a festa flerta perigosamente com a possibilidade de sair de controle. É a opinião de Fátima Cecchetto, para quem “[...] essas
66
montagens, que se constituíam apenas como parte da programação do baile [...] progressivamente começaram a predominar em alguns bailes que consagraram a briga como um ´ingrediente necessário´ da festa”.77
Oferecem-se duas descrições sobre o corredor da morte, cada qual de acordo com as visões ideológicas distintas que sustentam.
Os funkeiros mantêm-se em posição de ataque, sempre pulando conforme a música. A violência do confronto aumenta de acordo com o ritmo. Os adolescentes ficam com os olhos fixos para tentar agarrar um dos funkeiros do outro lado. Quando conseguem, o alemão [rival, inimigo] é agredido a socos e pontapés até ser resgatado por seguranças. Vale também pegar do adversário qualquer objeto que, como troféu, é jogado no segundo andar.78 Primeiro, a vista tem que se acostumar àquela semi-escuridão pontuada pelo piscar de luzes estroboscópicas. O ar úmido e abafado lembrava o de uma sauna barulhenta. [...] Por enquanto não se distinguem contornos, só movimento. Os sentidos se mostram inúteis: se o olhar não enxerga direito, o ouvido também não ouve palavras. A intensidade e a estridência do som tornam impraticável a voz humana. Agora, sim, começa a aparecer no meio do salão uma espécie de corredor vazio, móvel, cortando a massa humana ao meio. Ele se estreita e se alarga rapidamente. Desenha o movimento sinuoso de um rio cujas margens, e não o leito, se movessem. No meio, correndo de uma ponta a outra, alguns gigantes de camisa vermelha agitam porretes e distribuem golpes à esquerda e à direita, tentando manter aberto aquele único espaço vazio do salão. São precisos mais segundos para se perceber que as paredes daquele corredor são formadas por pessoas da mãos dadas ou braços entrelaçados. Se o baile naquela noite tinha cerca de 2 mil pessoas, pelo menos quatrocentas estavam ali naquela linha de combate, duzentas de cada lado. Porque se trata de um combate – ou, mais propriamente, um embate. O jogo consiste em desferir golpes no outro lado, com os pés ou com as mãos, rápidos, de tal maneira que o combatente possa voltar logo ao seu campo. Se escorregar e cair no território inimigo, se não for arrastado a tempo, ele corre o risco de ser trucidado. Por isso, os golpes de mão são os mais ousados. Usando os pés, o combatente terá sempre a proteção dos companheiros: ele pode ´voar´ na
77
CECCHETTO, Fátima Regina. As galeras funk cariocas: entre o lúdico e o violento. In: VIANNA, Hermano (Org.). Galeras cariocas: territórios de conflitos e encontros culturais. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997. p. 101. 78 Jornal O Globo, apud ESSINGER, Silvio. Batidão – uma história do funk. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 191.
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linha inimiga seguro pelos braços. Já os golpes de mão exigem desprender-se dos aliados para fazer a perigosa incursão guerrilheira. [...] dá às vezes para ouvir o ruído de um tapa ou de um pontapé. Há lances de audácia quase suicida. É quando um combatente, transgredindo as regras de segurança e correndo paralelo à linha inimiga, vai de uma ponta a outra do corredor, golpeando um, dois, quase todos os adversários, para retornar veloz e impunemente ao seu território. [...] Um combate selvagem entre hordas – mas só à primeira vista. O espetáculo se apresenta mais complexo à medida que se demora na observação. A constatação mais inesperada é que nessa luta não se usa arma, a não ser as mãos vazias e os pés calçados de tênis – nada de pau, soco inglês, corrente e muito menos faca ou punhal. Talvez isso explique o fato de que, após horas de combate, não seja comum ver-se um combatente sangrando.79
A ritualização da violência nos bailes é um jogo, que tem o objetivo de divertir, de “marcar território” em nome da galera que se representa: “[...] as galeras parecem regidas por uma ´disputa territorial´, que indica um desejo, uma busca por espaços sociais na cidade. Essa disputa é travada não apenas com as chamadas galeras rivais, mas com os órgãos de segurança pública e uma estrutura social excludente que os oprime de modo geral”.80
Mais do que isso, a violência apresenta aqui um papel cultural estruturante, de afirmação de laços e pertencimento a grupos, uma vez que “o baile e as galeras certamente não se organizam apenas em função da violência; no entanto, ela se constitui num elemento cultural capaz de estruturar laços sociais e códigos de valores.” É importante destacar que aqui se trata da violência sob regras, administrada – fora de discussão sobre se menos ou mais válida ou eticamente reprovável –, que tem alcance limitado, nunca se destinando a eliminar o adversário e, justamente por ter limites definidos e instâncias de controle, mais estimula uma competitividade saudável.
79 80
VENTURA, Zuenir. Cidade Partida. Rio de Janeiro: Objetiva, 1994. p. 122. HERSCHMANN, Micael. O funk e o hip-hop invadem a cena. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000. p. 178.
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Os corredores assumiram a berlinda nestes bailes nos quais a violência se incorporou à festa, virtualmente eliminando o espaço para apresentação de MCs. Também DJs que não concordavam com a prática do corredor encontravam dificuldades para trabalhar, haja vista a proliferação deste fenômeno pelos bailes. Em certo sentido, pode-se dizer que a música e as mensagens contidas nas letras deixaram de ser relevantes nestes espaços. Empresários e donos de equipe sofriam acusações por parte das autoridades de lucrar com a violência, inclusive a organizando nos bailes que promoviam. Alguns negavam qualquer envolvimento; outros alegavam ser impossível erradicar o corredor, mas que não o estimulavam.
A percepção de um crescente sentimento de que o funk era sinônimo de violência orientou a produção da maior parte dos MCs da geração surgida em 1995. Também premidos pela pressão do Estado, mídia e sociedade pela interdição dos bailes, preocuparam-se em louvar em suas letras a paz e união das galeras e exortar o bom comportamento da massa funkeira no baile.
Foram a mídia e o Estado, através de seus representantes, que identificaram nestas tensões e confrontos um elemento impeditivo [da realização dos bailes], iniciando um processo que culmina quase sempre na criminalização e/ou estigmatização do funk. E foi sob a ameaça da interdição total que se incorporou um discurso que solicitava a ´pacificação dos bailes´. Vários MCs e empresários se engajaram nessa campanha que visava, antes de mais nada, preservar o funk como expressão cultural e mercado.81
Assim, paradoxalmente, enquanto a música funk ouvida nos rádios e ruas exortavam à paz e fraternidade, nos bailes de corredor montagens e proibidões de temática diametralmente oposta animavam e emulavam o confronto físico. Em uma macabra paródia, alguns destes hinos ao fim 81
Ibid. p. 176.
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da violência eram utilizados como trilha sonora dos corredores, gerando o efeito inverso: incomum empenho nos combatentes.
Denúncias da violência nos bailes de corredor, entre acusações outras como consumo de drogas e freqüência de menores de idade a bailes, motivaram a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito na Assembléia Legislativa estadual do Rio de Janeiro em 1999 – a CPI do funk, que chegou a interditar uma série de bailes violentos e propôs lei tendente a organizar os bailes funk – a lei estadual 3.410, de 2000 (debatida no tópico 4.4). Sobre a interdição ampla de bailes de corredor e também de comunidade, HERSCHMANN opina que
Hoje [1996], com os bailes interditados, constata-se que simplesmente o tráfico continua e o resultado foi que se conseguiu acabar com uma das raras formas de lazer dos jovens das favelas. Claro que sempre haverá a alegação de que o som era alto, os ambulantes não tinham licença para comercialização de bebidas e de que o funk aliciava jovens para o mundo das drogas, etc. Entretanto, é inegável a grande dose de intolerância e preconceito presente neste tipo de acusação.82
Todavia, da mesma forma como os corredores da morte surgiram e vieram a se impor como realidade no mundo funk, deixaram de estar em voga, em parte por toda a exposição negativa que tiveram e despertaram e a repressão estatal. Trata-se, hoje, de um fenômeno em vias de extinção, existente apenas excepcionalmente e nunca nos moldes e proporção aqui expostos.
82
Ibid. p. 178.
70
3.3 Estigmatização e criminalização do funk
Nos últimos três anos, mais de 50 jovens morreram em combates entre funkeiros. Centenas ficaram feridos. O mundo funk agasalha em seu espaço paus, pedras e armas de fogo. Grupos de jovens, em busca de divertimento, espalham muito mais terror do que alegria. Transformou-se num ritual de vida ou morte. Só por milagre a tragédia não tem sido maior entre um milhão de jovens que se espremem nos fins de semana em clubes, quadras, galpões e ruas de terra do Rio e da Baixada Fluminense, para dançar e brigar ao som do funk [...] Não há distinção entre funk, favela e tráfico de drogas no Rio. A maioria dos funkeiros não é vinculada ao tráfico, mas se divide ´filosoficamente´ entre Comando Vermelho e Terceiro Comando e vê como heróis os líderes do crime organizado. Um sociólogo definiu-os como ´juventude sem perspectivas´, uma espécie de reprise tupiniquim da ´juventude transviada´ dos anos 50 que tinha James Dean como ícone. [...] Os arrastões que levaram pânico às praias da Zona Sul são reflexo desta luta sem quartel. Sentindo-se frustrados, enfrentam-se para extravasar a raiva. A sociedade paga o pato, enquanto a polícia e o Juizado de Menores lavam as mãos. [...] Basta dar uma olhada perpendicular ao perfil dos funkeiros para perceber como falta espessura ao universo deles. Atividade profissional dominante: camelô ou office-boy. Heróis: artistas funk e traficantes das comunidades onde moram. Anti-heróis: policiais militares. Drogas: maconha é preferida pelo preço e é raro o consumo de cocaína. Idade: de 10 a 25 anos, mas a maioria tem 15. Origem: favelas, subúrbio e Baixada Fluminense. Filmes preferidos: enlatados de terror e violência [...] Não é difícil prever que por trás da violência se esconde um desespero que se desata com facilidade, salta para as ruas e atinge os bairros infelicitados pela presença dos bailes funk fora do controle policial. A presença do tráfico de drogas nos bastidores reafirma a convicção de que os bailes funk são um caso de polícia.83 (grifos nossos)
No ínterim entre os arrastões de 1992 e o auge dos bailes de corredor, na segunda metade da década de 90, o mundo funk cresceu e se expandiu, sob os atentos e desconfiados holofotes da mídia. E, com ele, a cifra da violência: em reportagem investigativa do jornal O Dia de fevereiro de 1994, entrevê-se a contabilidade dos conflitos urbanos, da violência diária que se infiltrava nos bailes funk: “[...] dos 153 clubes que promoviam bailes, apenas 59 ainda insistiam no funk. Os
83
JUVENTUDE transviada. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 05 jun.1995.
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confrontos entre galeras, por sua vez, tinham deixado, nos três anos anteriores, cerca de 50 mortos. E 269 depredações de ônibus tinham sido registradas no ano de 1993.”84
Uma nova fonte de preocupações surge para os setores sociais que pretendiam combater o funk à medida que este passa a penetrar o universo das classes mais abastadas, propiciando uma nova fronteira de interação entre os jovens de diferentes classes sociais. Segundo nos narra HERSCHMANN, “Neles [bailes realizados em favelas da Zona Sul], durante o período de 1993 a 1995, produziu-se aquilo que muitos freqüentadores e simpatizantes consideravam um ´novo armistício cultural´, mas que os setores conservadores consideravam uma ´perigosa´ aproximação de classes, uma promiscuidade entre segmentos sociais.”85 Os excertos adiante são significativos desta alteração de paradigmas.
O fato é que, nos primeiros meses de 1995, a aproximação da juventude do asfalto com o mundo funk já era uma realidade – e das mais vistosas, difícil de negar. A onda da garotada em busca de emoções – ao menos aquelas que as boates da moda não podiam oferecer – era ir ao baile [...] Não era raro ver carros de luxo na entrada das favelas, cheios de garotões rumo aos bailes. E, para o terror dos pais, tampouco era incomum ver meninas branquinhas namorando os funkeiros pretinhos das comunidades.86 Sexta-feira à noite. O garotão se despede da mãe e avisa que está indo para um baile funk. Para onde? A mãe fica de cabelo em pé só de imaginar o filho subindo o morro e gritando uh! tererê! [que é como ficara conhecido entre os funkeiros e as torcidas de futebol o refrão do miami bass ´Whoomp! (There it is)´, do grupo Tag Team]. Começa aquela discussão em casa. Situações como esta já se tornaram corriqueiras nos apartamentos da classe média [...] a aparição cada vez mais freqüente destes bailes nas páginas policiais – sobretudo pelas ´mensagens´ passadas pelo Comando Vermelho nas letras de muitas canções – está levando pânico às famílias de classe média e transformando o funkeiro numa espécie de versão maldita do roqueiro dos anos 50.87 84
HERSCHMANN, Micael. Op. cit. p. 131. Ibid. p. 103. 86 ESSINGER, Silvio. Batidão – uma história do funk. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 134. 87 O MEDO do funk. O Globo, Rio de Janeiro, ? jul.1995. 85
72
A reação a episódios como os apresentados pode ser resumida sintomaticamente na já mencionada interdição, em junho de 1995, do baile do Chapéu Mangueira, freqüentado por mais de cinco mil pessoas à época, devido a reclamações sobre o volume do som partidas de moradores do Leme e Copacabana – o asfalto – e sobre o tráfico de drogas. A então senadora Benedita da Silva assim se manifestou a respeito: “O tráfico na Vieira Souto não é diferente do que se vê no Chapéu Mangueira. [...] Todo mundo sabe onde funciona a boca-de-fumo. É uma desfaçatez do Poder Público, que não dá jeito no tráfico.”88
O projeto de isolamento acústico do baile só se tornou realidade em dezembro, quando o fechamento prolongado e a saída de evidência do “baile da paz” haviam sufocado em definitivo o baile como fora conhecido: a coqueluche do verão de 1994, para onde todas as classes sociais confluíam harmonicamente. Inevitável aventar e elencar a intolerância social e insensibilidade das autoridades policiais como causa para o desfecho nada favorável do episódio. Em seguida a isto, uma chacina ocorrida na fronteira do funk – morro do Turano, na Tijuca – com dez mortos, em setembro de 1995, levou o prefeito Cesar Maia a declarar que fecharia os bailes funk a qualquer pedido do secretário de Segurança, general Nilton Cerqueira, também sob a justificativa de que os traficantes estariam patrocinando bailes funk com vistas a criar um ambiente favorável ao consumo de drogas.
A cobertura da imprensa, espelhando a opinião de setores conservadores, pautou-se pela equiparação dos funkeiros a criminosos, identificando o baile como espécie de “câncer social” que
88
ESSINGER, Silvio. Op. cit. p. 135.
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precisa ser extirpado para dar fim aos “atos de selvageria” em seu interior cometidos. Assim, foram proibidos os bailes de comunidade e interditados muitos dos de clube, sobretudo os de corredor, sob o pretexto de irregularidades e perturbação à ordem – volume alto que incomodava a vizinhança do asfalto –, fatores estes, entretanto, que não foram os decisivos – por exemplo, como visto, negociou-se a construção de uma concha acústica no Chapéu Mangueira –, mas sim a suposta associação com o narcotráfico acima mencionada.
A associação imediata e acrítica entre bailes funk e tráfico de drogas é um argumento falacioso que deve ser combatido a todo custo. Embora forçoso reconhecer que os poderes locais, em um contexto de assunção em áreas carentes do papel de autoridade – isto é, substituição do Poder Público em prover serviços essenciais como segurança, “justiça” e lazer – possam financiar eventos como bailes de funk, pagode e outros ritmos – às vezes sob a fachada das associações de moradores –, esta “atribuição” em nada se relaciona com a essência da festa. A festa se destina a entreter a comunidade, não a atrair pessoas de fora para aumentar o consumo de drogas. É a conclusão de HERSCHMANN, em seu trabalho de campo junto ao baile do Chapéu Mangueira:
No íntimo, a presença daqueles meninos [“soldados” do tráfico, observando a entrada do morro] reforçava a sensação de que o baile do Chapéu e outros de ´comunidade´ estavam com os dias contados e que a classe média se encontrava suficientemente assustada para pressionar o Estado no sentido de impedir este tipo de manifestação cultural. [...] Ataques na imprensa eram constantes e contrastavam com a tranqüilidade do evento. O tráfico nada tinha a ver com o baile. Uma atividade tinha sua autonomia em relação à outra; afinal, o tráfico já fazia parte da economia e da estrutura social local muito antes do funk.89
89
HERSCHMANN, Micael. O funk e o hip-hop invadem a cena. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000. p. 129.
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Ainda que assim o fosse, cumpre ao Poder Público policiar e reprimir eventuais irregularidades, não proibir uma atividade legal. E, encarada a venda e o consumo de drogas nestas localidades como um fato corriqueiro, necessário estender a observação a eventos voltados às classes mais ricas. Orlando Zaccone, delegado titular da 19a Delegacia de Polícia (Tijuca) e Mestre em criminologia e Direito Penal, observa: “O Rock in Rio [evento de rock que reuniu, ao longo de alguns dias, mais de 1 milhão de pessoas] foi questionado: como é que tantas pessoas estavam ali juntas usando drogas e a polícia não fazia nada? Só que as pessoas são mais condescendentes com as práticas criminosas quando o evento é voltado mais para as classes médias e altas”.90
Freqüentes, também, são as alegações de que o funk prestaria suporte ideológico ao tráfico de drogas. Em verdade, seleciona-se uma pequena – e clandestina – parte da produção musical do funk e se a apresenta como representativa do total, convenientemente esquecendo os “funks de denúncia”, de conteúdo social justamente oposto, e as músicas sem conteúdo ideológico, que são a maioria – de conteúdo bem-humorado e pornográfico. Quanto a esta parcela clandestina, parece lícito supor que, em suas versões mais inocentes, pretendem apenas lidar com naturalidade com um dado fático do cotidiano dos moradores de áreas pobres. Longe de constituírem apologia ao crime, retratam a realidade da favela, dos morros e comunidades. Não significam adesão ao tráfico; muitas das vezes, seus compositores sequer sabem explicar o que os motivou a assim se expressar: se a pura diversão, o “gosto do proibido”, a vontade de desenvolver uma boa relação com a comunidade e os poderes locais etc. Todas estas possíveis justificativas passam a segundo plano quando se constata que, para muitos MCs, as circunstâncias de criminalidade e pobreza que
90
ESSINGER, Silvio. Op. cit. p. 243.
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lhes cercam lhes são tão naturais e onipresentes que estes não as diferenciam a priori, ontologicamente, dos demais elementos estruturantes de suas canções. A um habitante de áreas pobres, pareceria estranho raciocinar em termos de não poder mencionar livremente o tráfico, a violência policial e a ausência do poder público ao retratar sua comunidade.
VIANNA sugere que a temática da violência, retratada com fidedignidade nas letras de funk, insere-se no seio do movimento por circunstâncias históricas. A apropriação dos símbolos e signos da violência, quando o funk começava a ser cantado e composto em português, se dá paralelamente a um grande crescimento do tráfico de drogas nas favelas cariocas, em fins da década de 80, tempo em que a questão da violência se faz mais presente.
Especificamente, o samba tem uma tradição sobre o que ele vai falar, ali, [no funk] não, vai sendo criado um novo estilo de música [...] mas o tipo de realidade que eles vão descrever ainda não está definida. Não tem as histórias padrão que o samba gosta de contar. Foi sendo criada. Então, aí teve um filão, evidente, para os primeiros compositores de usar essas imagens [da violência, do tráfico], de falar uma realidade muito presente para eles.91
A mídia em geral – impressa e falada – assume um papel de destaque na construção da realidade social, e, como tal, nos processos de estigmatização e criminalização de grupos e culturas minoritárias. Os meios de comunicação de massa fornecem um relato com pretensões de objetividade, porém interpretativo dos fatos, estimulando e veiculando um discurso social que traduz a opinião de segmentos restritos, em verdade. No caso do funk, criou-se o discurso de sua demonização, que também, ao lhe abrir espaço, assentou as bases para a sua glamourização.
91
DEBATE 7 – Organizações comunitárias, cultura popular e violência II. In: ALVITO, Marcos; VELHO, Gilberto. Cidadania e Violência. Rio de Janeiro: UFRJ e FGV, 1996. p. 359.
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HERSCHMANN demonstra este processo em números, atestando um processo de criminalização dividido em duas etapas: verão de 1992 e final de 1994 a 1995; e uma paralela afirmação midiática do funk econômica e culturalmente. Se em 1992, 18 matérias sobre funk foram publicadas na mídia impressa nos cadernos policiais e cidade, e apenas uma em cadernos culturais, em 1994 e 1995 a proporção fora para 18/13 e 26/14, respectivamente.
VIANNA acha plausível afirmar que o desconhecimento da realidade do movimento funk e dos bolsões de pobreza latu sensu, por parte de alguns atores e grupos sociais, contribuiu diretamente nos primeiros tempos para que o mesmo fosse transformado em estereótipo de criminalidade. “O desconhecimento tanto de jornalistas como de leitores, para continuar falando da mídia impressa – que teve um papel decisivo na imagem que muitos grupos sociais cariocas hoje têm do funk, criou as condições necessárias para a fixação da imagem violenta (mas poderia ter sido qualquer outra imagem, mais menos fiel à complexidade da realidade) do baile funk.”92 Sem embargo disto, aponta a incapacidade do movimento nos instantes pós-arrastão em produzir mediadores culturais (que afinal surgiram) que houvessem facilitado a interação entre elite e classes populares, a exemplo do que fez no início do século XX o samba – em sua opinião, outro movimento que poderia ter adquirido uma imagem principalmente violenta.
A construção de uma imagem negativa sobre o funk se opera mediante a aplicação do discurso da associação de violência a grupos e cenários, porventura vistos como sinônimo de criminalidade.
92
VIANNA, Hermano. O funk como símbolo da violência carioca. In: ALVITO, Marcos; VELHO, Gilberto. Cidadania e Violência. Rio de Janeiro: UFRJ e FGV, 1996. p. 184.
77
Pode-se afirmar que o funk, na medida em que alcançou destaque inusitado no cenário midiático, foi imediatamente identificado como uma atividade criminosa, uma atividade de gangue, que teve nos arrastões e na ´biografia suspeita´ dos seus integrantes a ´contraprova´ que confirmaria este tipo de acusação. Ora, mesmo que se levem em conta os conflitos e os delitos produzidos efetivamente pelas galeras funk, seja em maior ou menor intensidade, e até a necessidade de cada grupo de se identificar com ´protetores locais´ do crime organizado, poder-se-ia afirmar que os cenários de representação da violência urbana se encontram associados de forma reducionista ou determinista a esse grupo social. Os seus integrantes são personagens típicos das áreas carentes da Cidade, espaços que compõem o cenário tradicionalmente identificado com a criminalidade e com a violência e, sendo assim, é muito comum que a mídia acabe produzindo uma imagem monolítica desse cenário, no qual todos os personagens aparecem mais ou menos envolvidos com a criminalidade.93
A estigmatização do funk se associa intimamente à reificação de preconceitos socioeconômicos e étnicos. HERSCHMANN identifica a substituição do termo “pivete” por “funkeiro” em relatos criminalizantes na mídia a partir de 1992, assim como a caracterização do funkeiro em um estereótipo em que uma das marcas identitárias fundamentais é a cor negra ou não-branca, não por acaso a mais comum entre os segmentos populares habitantes de áreas carentes. Por fim, buscou-se construir “uma argumentação que provasse a associação desta expressão cultural juvenil com as organizações criminosas da Cidade, como o Comando Vermelho e o Terceiro Comando”94. Vale dizer, o funk foi atacado por todas as frentes: disse-se ser associado ao crime e apreciado por delinqüentes e potenciais criminosos. Não surpreendem os resultados alcançados, pois.
Assim, emergiu nos últimos anos, com o sucesso do funk no mercado, um discurso promovido tanto pelo aparato de segurança pública quanto pelos setores conservadores da classe média, apregoando a necessidade de interdição imediata dos bailes, os quais são não só o epicentro desta expressão cultural, mas também espaço de reunião [...] de jovens de diferentes segmentos sociais. A argumentação, em geral, era de que ali estes jovens estariam a mercê dos criminosos da cidade. Este tipo de narrativa tornou-se bastante freqüente na imprensa e reifica outras tão 93 94
HERSCHMANN, Micael. O funk e o hip-hop invadem a cena. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000. p. 50. Ibid. p. 65.
78
recorrentes que ´naturalizam´ a criminalidade nas áreas carentes das grandes cidades [...]95
As abordagens sobre violência não raro partem de uma perspectiva reducionista ou determinista, associando-a sem maiores esforços à criminalidade – em que são alimentadas pela profusão de “dados sobre crimes ou pela abundância estatística que sustenta as projeções tão caras aos órgãos de segurança pública e termina por associar invariavelmente a ´violência´ à pobreza e à criminalidade”96. Portanto, não a consideram como “uma prática recorrente e fundamental para a dinâmica social, sempre presente em distintas sociedades e diferentes contextos”, isto é, para além de uma situação de exceção, de anomia, que considera idealizadamente a sociedade como pacificada, também um recurso de renovação social.
Ainda segundo o autor, a violência gerada por grupos sociais é costumeiramente tida como ilegítima, “a parte ´maldita´ do cotidiano”, em contrapartida à gerada pelo Estado, detentor legal do monopólio da violência. Todavia, na medida em que se evidencia a falência do modelo de orquestração do bem-estar social pelo Poder Público e o abuso e corrupção da máquina estatal, mais se contrapõe a necessidade de uma concepção mais ampla de violência, como denotam o surgimento de manifestações culturais denunciadoras da desigualdade social e de uma realidade marginal.
Neste sentido, a experiência recente brasileira reflete a incapacidade do Estado em construir uma sociedade unificada e equilibrada, a exemplo de inúmeras manifestações violentas da primeira metade dos anos 90, como as chacinas da Candelária e de Vigário Geral, o massacre 95 96
Ibid. p. 66. Ibid. p. 42.
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do Carandiru, invasões e conflitos de sem-terra e outros. Tais episódios são indício tanto de certa desordem urbana como erupções da “insatisfação diante de uma estrutura autoritária e clientelista que promove sistematicamente a exclusão social.”
Sobre as formas de se lidar com a questão social, em contraposição a uma corrente mais conservadora, que acredita incumbir aos órgãos de segurança pública resolvê-la, clamando, pois, por seu reaparelhamento, reforço, reforma e por medidas de impacto como forma de combater o crime e melhor mediar a vida social, levanta-se uma corrente mais humanista, que propugna por uma saída para as injustiças sociais como caminho inescapável de solução da criminalidade.
Como vem de concluir HERSCHMANN, sinalizando a prevalência do posicionamento autoritário, “em um país cujo modelo político tradicional está saturado, em que o aparato jurídicolegal, na ´prática´, só é capaz de punir as camadas menos favorecidas da população, podemos conceber a violência como uma forma de ruptura da ordem jurídico-social, como uma forma de ´resposta´ concreta da sociedade.”97
O arrastão, diante do exposto, pode ser concebido como uma “resposta” social dos desfavorecidos – ainda que não intencional, haja vista não haver qualquer planejamento a respeito. Notável que tal segmento social, de jovens oriundos de classes baixas, ganhe relevo junto à mídia e autoridades justamente pela contestação, isto é, por se tornarem uma “ameaça à ordem”, mesmo que não aspirassem a tal.
97
Ibid. p. 46.
80
Tal visibilidade inaudita alcançada pelas galeras, neste instante ainda identificadas sob o rótulo de funkeiros, gera reações em ambos os sentidos. Surgiram em médio prazo iniciativas governamentais destinadas a promover e incentivar melhores condições para este grupo; entretanto, a contra-resposta inicial, seja da sociedade ou do Estado, parece sempre ser agressiva.
Como demonstração, no primeiro excerto abaixo vemos a mobilização dos segmentos sociais “atingidos” pelo arrastão em desenvolver ações que impeçam a repetição do fenômeno e, no segundo, a reação dos órgãos de segurança pública, que, como o trecho revela, revela ser o meio ineficaz para o resultado pretendido, que acaba sendo alcançado de forma inusitada.
Os reflexos dessa cobertura do arrastão se fariam sentir claramente na tentativa de impedir a circulação de ônibus que ligam os bairros da Zona Norte às praias da Zona Sul nos fins de semana e na formação de pequenas milícias anti-funkeiros formadas por militares reformados com suas armas de fogo e lutadores de jiu-jitsu com seus cães ferozes.98
Caio muda de assunto e pergunta [a Boi, chefe da galera de Vigário Geral] quais foram para ele as conseqüências dos tumultos de outubro no Arpoador. - Fala a verdade: o Homem [chefe do tráfico] deu a maior bronca em vocês, não deu? Ele ri, concorda com a cabeça e fica repetindo o gesto de bater a palma de uma das mãos na face interna da outra fechada. ´Foi foda´, diz mais para ele do que para nós. - Mas o que ele disse? – pergunto. - Ele disse que se a gente fizesse de novo, oh, aqui! – e ficou repetindo o gesto. Pouco antes, Maria do Socorro , mulher de Djalma e cunhada de Negão, me contara a tal reunião. Segundo esta versão, seu cunhado ficara muito irritado porque os incidentes ´queimaram a imagem de Vigário´. [...] No mesmo dia, outras reuniões semelhantes foram realizadas, mas com punições em lugar de advertências. Em Parada de Lucas, Robertinho colocara os garotos em fila e chegara a quebrar a mão de alguns com palmatórias. Em Acari, Parazão fizera o mesmo com seus jovens vassalos.
98
ESSINGER, Silvio. Batidão – uma história do funk. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 125.
81
No fim de semana seguinte, reinava a paz nas praias cariocas. A Polícia Militar atribuiu a mudança ao reforço de policiamento.99 (grifo nosso)
Curioso observar que uma potencial reação repressiva do Estado sobre as comunidades originárias das galeras que cometeram o arrastão desencadeia a reação preventiva de repreensão por parte do próprio poder local do tráfico, que pune os jovens de forma a não ver futuramente prejudicada sua atividade ilícita pela intervenção oficial na localidade.
A prática deste discurso estigmatizante e excludente, que prevaleceu com larga vantagem durante a década de 90, se traduziu na segregação social do funk e seu encastelamento nas áreas mais pobres, sujeitas à influência do tráfico de drogas. VIANNA fala em uma “linha antiga de combate contra o funk, combate protagonizado por grupos de todos os matizes ideológicos, da extrema direita à extrema esquerda, mesmo aquela que se diz popular [...]”, responsável por “entregar o ouro cultural produzido nas favelas para o bandido”.
[...] as festas [em meados de 80] eram realizadas em clubes como o CCIP de Pilares, o Cassino Bangu ou o Canto do Rio. A música, quando começou a ser produzida na cidade, era totalmente independente dos ´comandos´. Poderia ter continuado assim, se o poder público (com polícia também armada, algumas vezes dando tiros nos equipamentos) não tivesse fechado os bailes dos clubes, se os críticos musicais e gravadoras não tivessem amaldiçoado o estilo (fortalecendo a pirataria), se o asfalto, por puro preconceito contra ´som de pretos e pobres´, não tivesse tentado destruir a cultura que favelados estavam criando por eles mesmos. O funk muitas vezes pediu socorro. Ninguém ouviu os discursos do DJ Marlboro, mesmo em reuniões dentro da Secretaria de Segurança Pública [...], pedindo apenas que o funk fosse considerado cultura e não problema policial. Se o poder público tivesse escutado suas palavras, o funk carioca poderia ser hoje a música da paz na cidade.100
99
VENTURA, Zuenir. Cidade Partida. Rio de Janeiro: Objetiva, 1994. p. 137. VIANNA, Hermano. EM 2002, participei de um ciclo de debates. 2006. Disponível em: . Acesso em 01 dez. 2006.
100
82
Por fim, cabe dar voz à indagação de HERCSCHMANN, a evidenciar um velado conflito de classes como pano de fundo à polêmica sobre o movimento funk. Afinal, o que tanto temem as altas classes? Seria mesmo o funk a grande ameaça que alguns pretendem enxergar?
Fica no ar a seguinte pergunta: quando parte da sociedade e os órgãos de segurança pública clamam pela interdição dos bailes funk, ou quando se estigmatiza o funkeiro nos meios de comunicação de massa, o que se combate realmente: o funk ou o segmento social que o toma como importante forma de expressão social? É preciso repensar as representações da violência correlacionando-as à forma como tem sido representada a juventude hoje, especialmente a juventude oriunda dos segmentos menos privilegiados da população.101
101
HERSCHMANN, Micael. O funk e o hip-hop invadem a cena. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000. p. 50.
83
4 PODER LEGISLATIVO E FUNK
Se tu falas muitas palavras sutis E gostas de senhas, sussurros, ardis A lei tem ouvidos pra te delatar Nas pedras do teu próprio lar Se trazes no bolso a contravenção Muambas, baganas e nem um tostão A lei te vigia, bandido infeliz Com seus olhos de raio-x Se vives nas sombras, freqüentas porões Se tramas assaltos ou revoluções A lei te procura amanhã de manhã Com seu faro de dobermann E se definitivamente a sociedade só te tem Desprezo e horror E mesmo nas galeras és nocivo És um estorvo, és um tumor A lei fecha o livro, te pregam na cruz E depois chamam os urubus Se pensas que burlas as normas penais Insuflas, agitas e gritas demais A lei logo vai te abraçar, infrator Com seus braços de estivador (Chico Buarque, Hino de Duran)
A atividade de legislar representa a conformação da vida social por meio de regras e normas. É fato notório que nem sempre ambos andam à mesma velocidade. Em alguns momentos, a realidade evolui mais aceleradamente, tornando o arcabouço jurídico construído à sua volta obsoleto e mesmo um entrave ao desenvolvimento da vida em sociedade. Outras vezes, o legislador consegue se antecipar aos tempos, consagrando no texto legal dispositivos que ainda levarão tempos a serem plenamente entronizados e assimilados por todo indivíduo como regramento da vida em sociedade.
No caso do funk, seria de se prever que um fenômeno cultural de sua magnitude e reflexos viesse a despertar a necessidade de conformá-lo às normas. Como enquadrar o funk ao
84
ordenamento jurídico vigente, se sequer se soube – ou, ao menos, havia se tentado – até aqui defini-lo objetiva e adequadamente? Sobre estas questões, com o estímulo e urgência decorrentes de toda a celeuma, superexposição e intensa associação à violência criadas em torno do funk, o legislador se debruçou ao longo de uma curta década, gerando uma prolífica produção.
Este capítulo se dedica a analisar a curta e intensa relação entre o Poder Legislativo e o funk, através, mormente, de seu principal produto: as leis. A observação atenta das circunstâncias em que foram geradas permite concluir que, em um processo dialético de construção do texto legislativo, em que tendências repressoras e liberais estiveram presentes e representadas pelo legislador em números por vezes desiguais, a deliberação a respeito do funk representa algum avanço, conquanto não alcance ainda a melhor definição possível sobre o tema. Na expressão barrosiana, podemos afirmar que ainda não foram percorridos todos os ciclos do atraso. Consenso, então, seria exigir demais de uma Casa que, neste mister, espelha fielmente a sociedade que representa.
Passa-se, pois, à análise crítica da atuação legislativa a respeito do movimento funk.
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4.1 Lei municipal 2.518/1996
O advento da lei municipal 2.518/96 deve ser entendido no contexto de sua época, como reação a acontecimentos como o emblemático episódio de tentativa de fechamento do baile funk do morro do Chapéu Mangueira – a coqueluche do verão de 1994/1995, que atraía a juventude de classes média e alta em peso –, no qual interveio, em defesa do baile e da comunidade, a então senadora Benedita da Silva, moradora do referido morro.
Por meio da resolução 127 de 1995102, organizou-se uma CPI municipal que visava a investigar a suposta ligação do funk com o tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Não logrando êxito em provar esta ligação, houve mobilização política para regulamentar os bailes e garantir esta forma de lazer da juventude oriunda dos segmentos populares, culminando na propositura do seguinte projeto de lei.
O projeto de lei 1.058/95 foi apresentado à Câmara Municipal do Rio de Janeiro em 30.05.1995, pelo então vereador Antônio Pitanga – não por acaso marido da então senadora. Foi a primeira iniciativa legislativa em todas as esferas federativas no sentido de normativizar os bailes funk.
Com pareceres favoráveis de todas as Comissões, foi convertido – com veto parcial – na lei municipal 2.518/96. O escopo da lei restou bastante limitado com o veto a cinco dos nove 102
Segundo HERSCHMANN, p.181. Entretanto, não nos foi possível verificar tais registros junto à Câmara Municipal do Rio de Janeiro.
86
artigos constantes da proposição original, limitando-se a lei a “regulamentar no Município a atividade cultural de caráter popular denominada Bailes Funk” (art. 1o), bem como atribuir ao Município a competência para “garantir a realização dessa manifestação cultural de caráter popular, em cumprimento ao art. 346, inciso VII, da Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro” (art. 2o).
Cumpre ressaltar que o art. 4o da referida lei atribui “aos organizadores a adequação das instalações necessárias para a realização dos bailes sob sua responsabilidade, dentro dos parâmetros estabelecidos na legislação vigente”. Posteriormente, legislação estadual viria a ser instaurada no mesmo sentido, ampliando inclusive as hipóteses de responsabilização e encargos dos organizadores de bailes, no intuito de melhor fiscalizá-los.
Em que pesem as limitações da norma, deve-se reconhecer nesta o pioneirismo em reconhecer o funk, e sua realização em bailes, como atividade cultural pela qual a Administração Pública deveria zelar, e não reprimir, justamente no período mais turbulento e violento por que passou o movimento funk. Com efeito, nada melhor, para defender uma expressão cultural que se pretendia reprimir por conta de irregularidades ocorridas em seu interior, do que legalizá-la e regulamentá-la.
A Constituição Federal garante a todos o acesso às fontes da cultura nacional e o apoio e incentivo do Estado às mesmas, assim como a Constituição do Estado do Rio de Janeiro, nos seguintes termos e respectivamente.
87
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, a apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
Art. 322 – O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura nacional, estadual e municipal, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais, através de: [...] III – criação e manutenção de espaços públicos devidamente equipados e acessíveis, à população para as diversas manifestações culturais, inclusive através de uso de próprios estaduais, vedada a extinção de espaço público, sem criação, na mesma área, de espaço equivalente;
A Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro, por seu turno, estabelece, em seu art. 346, VII, que constitui obrigação do Município resgatar, incentivar e promover manifestações culturais de caráter popular, competindo à Secretaria Municipal de Cultura a formulação de políticas públicas voltadas para o desenvolvimento de ações que visem ao incentivo cultural no Município.
Parece claro estarmos frente a normas programáticas, isto é, comandos constitucionais que orientam toda a atuação dos Poderes Públicos, firmando juridicamente um programa político de ação e princípios que deverão dirigir e nortear a máquina pública. Sobre o tema, leciona o professor Luis Roberto Barroso que
As normas constitucionais programáticas, dirigidas que são aos órgãos estatais, hão de informar, desde o seu surgimento, a atuação do Legislativo, ao editar leis, bem como a da Administração e do Judiciário ao aplicá-las, de ofício ou contenciosamente. Desviando-se os atos de quaisquer dos Poderes da diretriz lançada pelo comando normativo superior, viciam-se por inconstitucionalidade, pronunciável pela instância competente. Delas não resulta para o indivíduo o direito subjetivo, em sua versão positiva, de exigir uma determinada prestação. Todavia, fazem nascer um direito subjetivo “negativo” de exigir do Poder Público que se abstenha de praticar atos que contravenham os seus ditames. Em verdade, as normas programáticas não se confundem, por suas estrutura e projeção no ordenamento, com as normas
88
definidoras de direitos. Elas não prescrevem, detalhadamente, uma conduta exigível, vale dizer: não existe, tecnicamente, um dever jurídico que corresponda a um direito subjetivo. Mas, indiretamente, como efeito, por assim dizer, atípico (v. supra, cap. IV, nota 25), elas invalidam determinados comportamentos que lhes sejam antagônicos. Nesse sentido, é possível dizer-se que existe um dever de abstenção, ao qual corresponde um direito subjetivo de exigi-la. Objetivamente, desde o início de sua vigência, geram as normas programáticas os seguintes efeitos imediatos: [...] (B) carreiam um juízo de inconstitucionalidade para os atos normativos editados posteriormente, se com elas incompatíveis. Ao ângulo subjetivo, as regras em apreço conferem ao administrado, de imediato, direito a: (A) opor-se judicialmente ao cumprimento de regras ou à sujeição de atos que o atinjam, se forem contrários ao sentido do preceptivo constitucional; (B) obter, nas prestações jurisdicionais, interpretação e decisão orientadas no mesmo sentido e direção apontados por estas normas, sempre que estejam em 103 (grifos nossos) pauta os interesses constitucionais por elas protegidos.
Coadunando a lei municipal com os comandos constitucionais federal e estadual e com a lei orgânica, tem-se forçosamente que os bailes funk, na condição de atividade cultural assim reconhecida pelo
Poder
Público,
não
poderão
sofrer
qualquer
ação deletéria
que
injustificadamente os reprima, interdite ou restrinja. A Carta Magna estadual, em precioso detalhismo, chega à minúcia de garantir o acesso às fontes da “cultura nacional, estadual e municipal”.
No âmbito municipal ainda, a questão funk foi discutida publicamente em uma Comissão Especial, instaurada pela resolução 886, de 2001, “para proceder a estudos, discussões e análises dos diferentes aspectos que envolvem o movimento funk, como manifestação cultural de caráter popular.”
103
BARROSO, Luis Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas. 6 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 121-2.
89
4.2 CPI estadual do funk
Frente a graves denúncias de todo tipo de irregularidades e ilícitos cometidos em bailes funk, a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro instaurou, por meio da resolução 182/99, uma Comissão Parlamentar de Inquérito com o objetivo de “investigar os ´bailes funk´ com indícios de violência, drogas e desvio de comportamento do público infanto-juvenil” (art. 1o).
Pairavam ainda sobre os bailes, em grande medida clandestinos, acusações como a de promover apologia ao crime com a execução de proibidões104 e de institucionalizar e incitar a violência, permitindo a formação dos chamados corredores da morte, nos quais galeras rivais confrontavam-se. No projeto da resolução, apresentou-se como justificativa para a investigação o que segue.
Estamos assistindo freqüentemente pela imprensa, a violência gerada neste segmento social. É notório nestes bailes, a ingestão de bebidas alcoólicas vendidas a adolescentes, e o consumo de drogas. O comissariado de menores recentemente apontou estes fatos, sem falar na violência nestes recintos. A sociedade espera que o Poder Público apure estes desvios comportamentais causando graves lesões corporais e até mortes. Recentemente num clube na zona da Leopoldina, em Ramos, houve morte de um adolescente de 12 anos, e foi constatada a irregularidade de alvará de licença autorizando o funcionamento desta atividade. Estamos cumprindo o nosso papel, esperamos contar com o apoio da sociedade, imprensa e membros de Casa.
A Comissão, presidida pelo deputado Alberto Brizola, reuniu-se de novembro de 1999 a maio de 2000. Ao longo de seus trabalhos, convocou para depoimento os principais promotores do 104
Músicas funk com letras que, ao retratar direta e cruamente a realidade das favelas e favelados, por supostamente (e às vezes assumidamente) fazerem apologia ao crime, não podem ser executadas ou vendidas no circuito comercial oficial, conquanto o sejam em bailes e CDs piratas.
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funk e as autoridades que ofereceram denúncias, bem como elaborou uma lista com cerca de trinta bailes que sofreram intervenção de quarenta dias “para manter a integridade física de seus freqüentadores”.
Como resultado prático, o principal feito da CPI foi o de propor projeto de lei tendente a disciplinar a organização de bailes funk, que viria a ser convertido na lei estadual 3.410/00 (discutida no tópico 4.4). Em verdade, ao se encerrar a CPI, em 2000, o movimento funk já se encontrava em um processo de superação da fase violenta, em parte por conta de toda a exposição negativa da mídia. Os bailes de corredor não mais estavam tão em voga, e a fiscalização severa das autoridades se encarregou de inibir qualquer estímulo das equipes de som e produtores a estes.
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4.3 Projeto de lei estadual 1.075/1999
Proposto à mesma época da instauração da CPI do Funk, o projeto de lei 1.075/99 é um reflexo direto da forma como alguns segmentos sociais vinham encarando a questão funk e, por conseguinte, pretendiam lidar com a mesma. De viés manifestamente autoritário, o projeto do deputado Sivuca tinha como objetivo proibir – sem nuances, sem exceções – a realização de bailes funk em todo o território estadual, com o seguinte texto.
PROJETO DE LEI Nº 1075/99 PROÍBE A REALIZAÇÃO DE BAILES TIPO FUNK NO TERRITÓRIO FLUMINENSE E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS. Autor(es): Deputado SIVUCA A ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO RESOLVE: Art. 1º - Fica proibida a realização de bailes e/ou quaisquer eventos do tipo funk no território fluminense. Art. 2º - Considera-se baile ou evento do tipo funk, para a aplicação do que dispõe o artigo anterior, toda a atividade animada por ritmos derivados de outros similares estrangeiros e remixados, áudios e imagens que incitem à violência. Art. 3º - Esta lei se aplica às chamadas equipes de som que arrendam clubes e salas de espetáculos para a realização das atividades referidas no caput da presente lei. Art. 4º - Estende-se a proibição de que dispõe o artigo 1º aos eventos realizados em áreas públicas. Art. 5º - As instituições subordinadas à Secretaria de Estado de Segurança Pública adotarão providências para a aplicação do que trata a presente lei. Art. 6º - A não observância à esta lei implica no encerramento das atividades dos clubes, agremiações e salas de espetáculos e no cancelamento dos respectivos e alvarás e licença de funcionamento.
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Art. 7º - Cabe ao Poder Executivo regulamentar esta lei, a partir da sua publicação. Art. 8º - Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário. Sala das Sessões, 09 de novembro de 1999.
JUSTIFICATIVA As ocorrências registradas durante e após a realização dos chamados bailes funk em clubes e salas de espetáculos, por si só, indicam a necessidade de se proibir a realização desse tipo de evento no Estado do Rio de Janeiro. As mortes de jovens freqüentadores, exigem a proibição e punição dos seus realizadores. Os objetivos comerciais dos promotores e patrocinadores dos bailes funk, que transformam os clubes sociais em casas comerciais e verdadeiras arenas para o confronto de gangs, podem ser qualificados simplesmente como criminosos. A incitação à violência é o empurrão inicial para que esses jovens se transformem em futuros bandidos.
Cogita-se de verdadeira situação sui generis que se criaria com a aprovação do mesmo, tamanhas são as questões que avultariam. Desde logo se reconheça, no entanto, que a lei nasceria inescapavelmente eivada de inconstitucionalidade, à vista do exposto no tópico 4.1.
Como vimos de analisar, ao Poder Público é vedado atuar em sentido contrário às diretivas estabelecidas em norma programática constitucional. Ora, a Lei Maior tanto da federação como do Estado e do Município reconhecem o direito à cultura e a obrigação do Estado de defendê-la, difundi-la e estimulá-la, e o ordenamento infraconstitucional, os bailes funk como atividade cultural. Assim sendo, o presente projeto pretende veicular norma em flagrante descompasso com o sistema jurídico, não merecendo guarida deste.
Incompatibilidade jurídica à parte, por amor ao debate, assinale-se tão-só o flagrante conflito lógico entre a norma estadual e a já mencionada lei municipal 2.518/96, que reconhece
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caráter cultural ao baile funk e, mais, diz competir ao Município “garantir a realização dessa manifestação cultural de caráter popular”. Como uma atividade cultural reconhecida por um ente federativo poderia estar proscrita por outro ente federativo cujo território abrange o daquele primeiro ente? Estaria, nesta hipotética situação, o funk legitimado e simultaneamente proibido? Seria uma atividade cultural alijada de sua principal manifestação e espaço de realização, o baile funk?
A tentativa de definição de “baile funk” também causa espécie. O art. 2o se refere a “toda a atividade animada por ritmos derivados de outros similares estrangeiros e remixados, áudios e imagens que incitem à violência”. O conceito é suficientemente amplo para abarcar toda e qualquer música eletrônica, e até mesmo o pop e o rock, gêneros que, em shows e apresentações ao vivo, também como em reprodução mecânica em festas e boates, já serviram de trilha sonora a inúmeros e lamentáveis episódios violentos.
Entretanto, não se alega que pop e rock sejam estilos musicais intrinsecamente violentos, ou se cogita de proibir a realização de shows de rock, nos quais os espectadores armam rodinhas – encenações de violência ritualizada em nada diferentes dos corredores de bailes funk, mas que não causam perplexidade social, o que poderia ser explicado pela diferença de classes entre os freqüentadores de uns e outros.
De acordo com HERSCHMANN, “tanto no enunciado jornalístico, quanto no imaginário coletivo, certas atitudes dos funkeiros são tratadas quase como expressão de um ´mal absoluto´
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que deve ser ´reprimido´e ´extirpado´”105 – o que ocorre em sentido contrário com integrantes das classes média e alta: tenta-se justificar seus comportamentos de forma a mostrar que, mesmo quando transgridem, não são naturalmente “maus”. O autor também se indaga sobre “essa perspectiva que lê a violência produzida por jovens de classe média como uma situação de exceção, ou seja, como casos isolados [...], e aquela promovida por jovens dos segmentos populares como indícios de uma conduta padrão, coletiva.”106
Até aqui, a mera execução de música eletrônica e pop/rock em qualquer atividade – pública ou não, com intuito de lucro ou não – bastaria a configurar um baile funk. A diferenciação residiria, portanto, na alegada incitação à violência que o ritmo funk provoca. Ora, não se pode atribuir à música em si, ou estilo musical, a nota do estímulo à violência. Ninguém se torna violento ou assim age única e exclusivamente de acordo com a música que ouve, seja funk ou qualquer outra. Concorre neste sentido um quadro muito maior de fatores psicossociais, internos e externos.
O uso desvirtuado da música funk como trilha sonora em bailes violentos, sim, pode configurar um estímulo à violência – já mencionamos como o DJ tem o poder de comandar o ânimo das massas por meio da escolha das músicas a tocar; sua ordem, tipo e momento de inserção no baile –, mas isto não torna a música um elemento reprovável em si.
Se, em um esforço interpretativo, se pode extrair do projeto de diploma legal que a mens legis é a de reprimir o uso do funk como incitador da violência (com a nota de que este, ainda 105 106
HERSCHMANN, Micael. O funk e o hip-hop invadem a cena. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000. p. 102. Ibid. p. 280.
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assim, é um fator pequeno no resultado final: outros tipos de música serviriam ao mesmo fim com iguais resultados) e não o funk em si, agiria muito melhor o legislador em atuar sobre os fatores de incitação: tanto a divulgação e organização de bailes cujo objetivo é permitir o confronto entre galeras, como o uso do microfone no baile para insuflar as massas para o embate.
Ao invés disto, o projeto de lei prefere investir contra o baile, que, longe de ser uma entidade autônoma, um organismo vivo corrompedor e violento, é apenas o espaço físico e social de realização da festa. A discussão é pertinente para se ter em conta, em última análise, não só que bem jurídico ameaçado a lei pretende resguardar, mas o que o ameaça de fato e precisa ser contido. Segundo HERSCHMANN, a carapuça não serviria nem à música, nem ao baile: a seus freqüentadores, sim.
Pode-se afirmar também que o estigma do funk não se dirige exatamente contra o baile (apesar de ele ser o objeto central do debate entre Estado, sociedade e órgãos de segurança), mas contra o setor social que o assumiu como forte referencial identitário. De uma hora para outra, o funk passou a ser visto como um dos alicerces de uma ´visão de mundo/ideologia´ que vem alimentando o crescimento da violência urbana.107
Por evidente, é mais viável (ou menos visível, logo, passível de controle pela opinião pública ou pelo próprio Estado) atuar repressivamente sobre o baile do que sobre o setor social que o alimenta – como pretenderam alguns, ao calor do primeiro momento pós-arrastão, com medidas flagrantemente discriminatórias das classes pobres, como a restrição em fins de semana da circulação de linhas de ônibus que ligam favelas às praias.
107
Ibid. p. 99.
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Quanto aos demais artigos do projeto de lei, sublinha-se a redundância dos arts. 3o e 4o, pois o interdito, de caráter erga omnes, já abrangeria quaisquer sujeitos e locais. Os arts. 5o e 6o atribuem responsabilidade fiscalizatória aos órgãos policiais e prevêem penalidades, respectivamente.
Finalmente, atente-se para a desproporcionalidade gritante entre o fim pretendido pela lei – coibir a violência – e os meios de que faz uso – a proibição irrestrita dos bailes funk. Ainda que a ordem e segurança públicas sejam fins legítimos a serem perseguidos e um direito social consagrado no art. 6o, caput, da Constituição Federal , a medida esbarraria em princípios constitucionais outros, tais como a livre iniciativa (art. 170, caput e § ú, CRFB/88), liberdade de expressão (art. 5o, IX) e isonomia (art. 5o , caput).
Destarte, uma lei nos moldes da aqui exposta, que limitasse sobremaneira o funcionamento de eventos funk a ponto de proibi-los, não poderia subsistir em nosso ordenamento jurídico, além dos motivos já elencados, por também não atender ao princípio da razoabilidade/proporcionalidade, tanto em sua vertente da exigibilidade – verificação da inexistência de meio menos gravoso para atingir o fim – quanto da proporcionalidade em sentido estrito – a relação custo/benefício da medida é desfavorável –, padecendo de vício de inconstitucionalidade.
O projeto em comento recebeu, em redação lacônica para a importância da matéria tratada e valores em jogo, parecer favorável da Comissão de Constituição de Justiça da Câmara Municipal: “A proposta autoral é louvável, não contendo vício de inconstitucionalidade”. Seguiu
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para a Comissão de Educação, Cultura e Desportos, onde, com dois votos para cada lado, prevaleceu o entendimento contrário ao projeto, com parecer nos seguintes termos.
Os bailes “funk” são uma manifestação popular, fazem parte da nossa cultura, com forte poder de atenção sobre a nossa juventude e uma de suas expressões. Num estado que não valoriza a cultura popular, proibir esta manifestação é ferir a liberdade de expressão, um dos princípios básicos de uma sociedade democrática. É verdade que há casos de violência em bailes “funk”, mas ela não se origina ali, nem se limita aos eventos, que necessitam não de proibição, mas de disciplina e tratamento acústico dos locais onde ocorrem. Isto revela a deficiência da política de segurança pública e de entretenimento e lazer. Estas políticas devem ser cobradas dos órgãos competentes.
Posteriormente apreciado pela Comissão de Segurança Pública e Assuntos de Polícia, esta se manifestou pela prejudicabilidade, uma vez que, a esta altura, já fora aprovada a lei estadual 3.410/00, a regulamentar a mesma matéria. O autor do projeto o retirou posteriormente de pauta, indo a arquivo.
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4.4 Lei estadual 3.410/2000
Fruto dos trabalhos da CPI do Funk, o projeto de lei 1.392/2000 foi oferecido com requerimento de urgência em 29.03.2000 e levado a discussão única, sem debates, em 03.05.2000. Recebeu parecer favorável em plenário de todas as comissões temáticas – Comissão de Constituição e Justiça; Comissão de Educação, Cultura e Desportos; Comissão de Economia, Indústria, Comércio e Turismo; Comissão de Assuntos Municipais e de Desenvolvimento Regional; Comissão de Segurança Pública e Assuntos de Polícia; e Comissão de Assuntos da Criança do Adolescente e do Idoso.
Em sua justificativa, estão apostas resumidamente as razões já fartamente apontadas pela mídia – verificação de irregularidades, ilícitos e violência em bailes funk.
A conclusão dos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito, instituída pela Resolução nº 182/99 para investigar os chamados bailes Funk, indica a necessidade da edição de legislação para esses tipos de eventos. As audiências realizadas com responsáveis pelos bailes tipo Funk e com pessoas envolvidas com os seus atos, além da avaliação dos procedimentos verificados leva os parlamentares nomeados pelo ato E /GP/Nº 95/99, a constatar inícios de violência, a existência de drogas e desvio de comportamentos entre os jovens freqüentadores dessas promoções – em determinados casos, induzidos por seus responsáveis -, fatos que justificam a presente proposição assinada pelos deputados que compõem a referida CPI.
Aprovado como lei estadual 3.410/00, disciplina a realização de bailes funk no estado fluminense, com a seguinte redação.
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LEI Nº 3410, DE 29 DE MAIO DE 2000 DISPÕE SOBRE A REALIZAÇÃO DE BAILES TIPO FUNK NO TERRITÓRIO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS A ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO DECRETA: Art. 1º - São diretamente responsáveis pela promoção e/ou patrocínio de eventos Funk os presidentes, diretores e gerentes das entidades esportivas, sociais e recreativas e de quaisquer locais em que eles são realizados. Art. 2º - Os clubes, entidades e locais fechados em que são realizados bailes Funk ficam obrigados a instalar detetores de metais em suas portarias. Art. 3º - Só será permitida a realização de bailes Funk em todo o território do Estado do Rio de Janeiro com a presença de policiais militares, do início ao encerramento do evento. Art. 4º - Os responsáveis pelos acontecimentos de que trata esta lei deverão solicitar, por escrito, e previamente, autorização da autoridade policial para a sua realização, respeitada a legislação em vigor. Art. 5º - A Força Policial poderá interditar o clube e/ou local em que ocorrer atos de violência incentivada, erotismo e de pornografia, bem como onde se constatar o chamado corredor da morte. Art. 6º - Ficam proibidos a execução de músicas e procedimentos de apologia ao crime nos locais em que se realizam eventos sociais e esportivos de quaisquer natureza. Art. 7º - A autoridade policial deverá adotar atos de fiscalização intensa para proibir a venda de bebidas alcoólicas a crianças e adolescentes, nos clubes e estabelecimento de fins comerciais. Art. 8º - Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário. Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, em 29 de maio de 2000
Apesar dos esforços envidados na regulamentação dos bailes e repressão a ilicitudes, nunca houve maciça aplicação prática da lei, que restou prejudicada em parte porque a grande maioria dos bailes se realizava de forma clandestina. Segundo Roberto de Carvalho, chefe de
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gabinete do presidente da CPI, Alberto Brizola, “o deputado entrou com uma representação no Judiciário pedindo o cumprimento da Lei do Funk. A lei está com o governador para ser colocada em prática e, até agora, nada”.108 Um reflexo disto é o art. 2o, que determina a instalação de detectores de metal na entrada dos estabelecimentos, nunca cumprido pela totalidade destes.
A lei teve o mérito de fixar peremptoriamente a responsabilidade por ocorridos nos bailes, em seu art 1o: “São diretamente responsáveis pela promoção e/ou patrocínio de eventos Funk os presidentes, diretores e gerentes das entidades esportivas, sociais e recreativas e de quaisquer locais em que eles são realizados”. Desta forma, findava uma discussão que parecia eterna entre donos de estabelecimentos e equipes de som que promoviam a festa, cada qual se eximindo de sua parcela de responsabilidade. Eleger um responsável legal – mais: um que fosse facilmente identificável – significou um grande passo no combate contra a impunidade. Ainda que algo arbitrária a escolha unicamente pelos dirigentes de clubes, aos olhos do ordenamento civil não estaria excluída eventual responsabilização das equipes de som por qualquer ato para o qual houvessem concorrido.
Questiona-se, todavia, o âmbito de incidência da lei e a ausência de critérios objetivos a fixá-lo – que mesmo o projeto de lei 1.075/99, com todas as suas vicissitudes, buscou adotar. Por que motivo deve servir como critério para a maior fiscalização de um evento o fato de este reproduzir música funk, se não é a música a responsável pela violência e irregularidades? Qualquer evento que faça uso de música funk, em maior ou menor quantidade, é um baile funk, ou somente os em cujo interior ocorrem ilícitos? Afinal, o que define um baile funk? Acaso não há 108
RIO DE JANEIRO cria e esquece lei que regulamenta os bailes funk. Disponível em . Acesso em: 1 dez. 2006.
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ilícitos no interior de outros eventos não-funk, inclusive os de presença das classes média e alta – saliente-se o consumo indiscriminado de drogas e freqüência e consumo de bebidas por menores de idade, largamente noticiados pela mídia, a título de exemplo, – a merecer fiscalização?
Novamente, a opção pela restrição dos efeitos da lei somente aos bailes funk parece revelar uma opção ideológica, haja vista que em nada prejudicaria o interesse social que a lei incidisse sobre todo e qualquer evento. Muito pelo contrário, seria um ganho à segurança da coletividade, bem como uma questão de isonomia.
Os arts. 6o e 7o se dedicam a estabelecer interditos até louváveis, mas redundantes. Com efeito, a incitação e apologia a crime ou criminoso já se encontram previstas no Código Penal nos tipos dos arts. 286 e 287, respectivamente, como crimes contra a paz pública, com pena de detenção, de três a seis meses, ou multa. Logo, inócua a previsão na Lei do Funk (“Ficam proibidos a execução de músicas e procedimentos de apologia ao crime nos locais em que se realizam eventos sociais e esportivos de quaisquer natureza”), que sequer determina penalidade. Da mesma forma, a proibição de venda de bebidas alcoólicas a crianças e adolescentes se encontra positivada no art. 81, II, do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal 8.069/90).
O art. 5o, que assinala que “a Força Policial poderá interditar o clube e/ou local em que ocorrer atos de violência incentivada, erotismo e de pornografia, bem como onde se constatar o chamado corredor da morte”, força a exercícios interpretativos. Não há óbice legal expresso a práticas de “erotismo e pornografia” em lugares freqüentados tão-só por maiores de idade, como se pode inferir do Código Penal:
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Art. 247. Permitir alguém que menor de 18 (dezoito) anos, sujeito a seu poder ou confiado à sua guarda ou vigilância: [...] II – freqüente espetáculo capaz de pervertê-lo ou de ofender-lhe o pudor, ou participe de representação de igual natureza; [...] Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) meses, ou multa.
É uma conseqüência lógica do princípio da legalidade que ao indivíduo é permitido tudo aquilo quanto a lei não lhe vede. Destarte, o que a lei obsta tão-somente ao menor de idade é facultado ao maior de idade. Assim sendo, é apta a lei estadual a estabelecer tal veto, passível de interdição pelas autoridades, em matéria que a legislação federal tacitamente optou por não excluir da legalidade? Entendemos que não, por força da Carta Magna e princípios tais como a livre iniciativa e liberdade de expressão. Entretanto, decorre do princípio de presunção de constitucionalidade das normas que entendamos o art. 5o como válido, restringindo a possibilidade de interdição àqueles bailes com ocorrência das práticas referidas na presença de menores de idade.
Por fim, analisam-se as condicionantes dos art. 3o e 4o. A lei descarta a possibilidade de que a própria organização do baile se encarregue da segurança, elegendo como requisitos para a realização do evento a prévia autorização da autoridade policial109 e a presença de policiais militares, nos seguintes termos.
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A Portaria 02/2001 do Juizado da Infância e da Juventude, que “disciplina a entrada e permanência de crianças e adolescentes em ´bailes funk´ ou qualquer outro gênero musical”, viria a estabelecer ainda a obrigatoriedade de autorização judicial por intermédio de alvará, assim como a proibição de ingresso e permanência de menores de 16 anos.
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Art. 3º - Só será permitida a realização de bailes Funk em todo o território do Estado do Rio de Janeiro com a presença de policiais militares, do início ao encerramento do evento. Art. 4º - Os responsáveis pelos acontecimentos de que trata esta lei deverão solicitar, por escrito, e previamente, autorização da autoridade policial para a sua realização, respeitada a legislação em vigor.
A presença de agentes públicos oferecendo segurança ao baile é sem dúvida uma iniciativa digna de nota, desde há muito requerida pelos próprios produtores e envolvidos com o mundo funk. A série de episódios violentos por que passaram os bailes funk pode ser explicada em parte pela atuação meramente repressiva das autoridades, que, ao invés de oferecerem segurança aos freqüentadores, se limitavam a interditar os bailes, confundindo a vítima com o problema.
Entretanto, a lei acaba por restringir a iniciativa privada, ao excluir qualquer possibilidade de que os donos de bailes cuidem da segurança. Embora muitos bailes sejam organizados em total precariedade, fazendo jus à presença do aparelho policial como única forma de garantir a segurança do evento, é de se considerar que outros eventos funk são dotados de excelente infraestrutura e organização, sendo dispensável a escolta policial.
A necessidade de autorização policial para a realização de eventos funk exorbita da razoabilidade. A começar, importa em odiosa discriminação entre bailes funk e eventos de qualquer outro tipo, em flagrante violação à isonomia. Em segundo lugar, a lei dá o mesmo tratamento tanto a bailes funk organizados como a bailes clandestinos, em claro prejuízo àqueles. Mais, não lista requisitos objetivos a serem cumpridos de forma a garantir a autorização – sem
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prejuízo de futura regulamentação neste sentido –, preferindo reservar à subjetividade da autoridade a concessão do aval.
A nosso sentir, a margem de discricionariedade deixada pelo legislador abre um preocupante caminho para o cometimento de arbitrariedades, principalmente se considerado o histórico da atuação policial repressiva quanto aos bailes funk. À ausência de critérios objetivos, seria possível à autoridade pública negar autorização sem qualquer justificativa, plausível ou não, ou à simples motivação de que o baile não oferece condições de realização, ou, ainda, em consonância com o art. 3o, afirmando não haver efetivo policial suficiente a atender aquele baile – algo nada surpreendente, considerando que, em finais de semana, centenas de bailes são realizados todo o Rio de Janeiro, o que importaria no deslocamento de alguns milhares de agentes todas as noites tão só para policiar bailes funk110.
As lacunas normativas deixadas pela lei 3.410/00 não deixaram de ser percebidas mesmo no âmbito do Poder Legislativo estadual, casa originária da norma. A este respeito, destaque-se o requerimento de informações 553/2002, endereçado à Secretaria de Segurança Pública para esclarecimento de alguns pontos aqui suscitados. Confira-se.
REQUERIMENTO DE INFORMAÇÕES Nº 553/2002
SOLICITA INFORMAÇÕES A SECRETARIA DE ESTADO DE SEGURANÇA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 110
A Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro conta, em 2006, com efetivo ativo de 38.594 agentes (dado disponível em ), trabalhando em turnos – logo, não todos disponíveis ao mesmo tempo –, e nem todos destacados para o policiamento ostensivo.
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SOBRE OS PODERES, DIREITOS E DEVERES DA POLICIA MILITAR E DA POLICIA CIVIL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, NO RELACIONAMENTO COM ENTIDADES (CLUBES, AGREMIAÇÕES E AFINS) PRIVADAS PARA A REALIZAÇÃO DE EVENTOS EM SUAS PRÓPRIAS DEPENDÊNCIAS. Autor(es): Deputado ANDRÉ LUIZ Requeiro à Mesa Diretora com fulcro no Art. 101 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, que se oficie ao Exmoº Sr. Secretario de Estado do Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, as informações consubstanciadas nas questões a seguir: Considerando que as atividades de lazer desenvolvidas no Estado do Rio de Janeiro devem estar devidamente sintonizadas com os aspectos legais, estabelecidos nas obrigações previstas nas Leis, Decretos Lei, Decretos Estaduais, Portarias, Regimentos e Normas que versam sobre o assunto, solicitamos: 1 - Os eventos promovidos pelas Entidades Privadas (clubes, agremiações e afins), em suas dependências próprias, devem ser autorizados, fiscalizados, policiados e apoiados por qual das Instituições Policiais; 2 - Qual a Lei, o Decreto Lei, o Decreto Estadual, a Portaria o Regimento ou a Norma, que estabelece a atuação das Entidades Policiais, devendo ser informado distintamente cada atuação; 3 - Especificamente à cultura Funk, ou como queira denominar, quais as proibições legais estabelecidas para realização de eventos em locais públicos e privados. 4 - Nosso Pais é extremamente rico em culturas de ritmos musicais, o Samba nossa marca registrada universalmente confunde-se diretamente com o pagode, pergunta-se: a - Qual o instrumento mecânico, eletrônico, ou de qualquer origem utilizado para definir um evento como Funk; b - Sendo possível a identificação como Funk, não sendo percebido transgressão das Leis, da moral e dos bons costumes, qual o direito de mandar parar, e se existe, quem tem o dever de exercê-lo; c - Quando em um evento percebe-se o exercício de ritmos como o Samba, o Pagode, o Axé, o Forró, o Charme, o Melodi, e o Funk, como é considerado o mesmo pelas autoridades constituídas; 5 - Entendemos que dentre as atividades constitucionais da Policia Militar do Estado do Rio de Janeiro, está o policiamento ostensivo e preventivo, porém,
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conforme os preceitos legais a Instituição ou melhor seus representantes não podem pautar suas atitudes ao bel prazer de seus conceitos pessoais, sendo assim perguntamos: a - Havendo a exorbitação da função de um representante da Instituição, quando no exercício da mesma, qual o caminho a ser percorrido por quem se sentir prejudicado. b - Por se tratar de um Comandante de Batalhão, qual seria o procedimento correto a ser adotado, se porventura fosse identificado o local como problema iminente à ordem constitucional, 6 - A Lei 3410/00, datada de 29 de maio de 2000 em vigor, que trata da matéria, mencionada no Boletim da PM nº 014 de 29 de abril de 202, com o título "CONDIÇÕES LEGAIS", está sendo cumprida, mal entendida ou mal interpretada, quando uma entidade privada como o Cassino Bangu, um Clube Localizado no bairro do mesmo nome, entidade considerada de Utilidade Pública por Lei Estadual [grifo no original], com mais de 109 (cento e nove) anos de existência responsável por gloriosos acontecimentos sociais, esportivos, culturais e políticos, está fadado a cerrar suas portas, tendo em vista suas promoções estarem sendo proibidas. Plenário Barbosa Lima Sobrinho, 07 de maio de 2002 [grifos nossos]
O Requerimento toca em uma série de questões sensíveis. No tópico 5 são abordados o abuso e exorbitação da função policial, e indagadas as possíveis respostas, em manifestação de que se trata de situação corriqueira. O tópico 6 faz menção a interdições repetidas de bailes em um clube, o Cassino Bangu, mostrando uma possível situação de aplicação repressiva desmedida da lei, haja vista se tratar de uma casa de tradição, com presunção de existência de suporte e organização para grandes espetáculos. No tópico 4, encontramos registrada a falta de critérios para se definir um “evento funk”, assim como o descompasso da lei em não atribuir tratamento semelhante, ou qualquer tratamento, a outros gêneros musicais. Finalmente, em 3; 4-b; 2; e 1, são levantadas quais seriam as proibições diretas ao funk e limites à atuação repressiva da autoridade pública. Questões de respostas imprecisas e limites fluidos, a julgar pelos fatos.
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Em linha de conclusão, percebe-se que a lei em comento, por elaborada no calor de um momento conturbado da história do movimento funk, exposto à exaustão em seus piores aspectos na mídia, disciplinou a matéria com demasiada rigorosidade e pouco apuro técnico. Estabelece desabonadora e criticável diferenciação entre o funk e demais gêneros musicais. Faltam-lhe critérios de definição mesmo quanto ao objeto que pretende regulamentar, assim como quanto à atuação das instituições a seu respeito. Algumas destas vicissitudes viriam a ser sanadas com a promulgação da lei 4.264/04, como a seguir exposto.
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4.5 Lei estadual 4.264/2004
A lei estadual 4.264/04, proposta pelo deputado Alessandro Calazans e publicada em 05.01.2004, retoma a direção adotada pela lei municipal 2.518/96, reconhecendo os bailes funk como “atividade cultural de caráter popular”, desta vez em âmbito estadual. Não obstante, disciplina em maiores detalhes a divisão da responsabilidade pelo evento.
Sua exposição de motivos é deveras elucidante, servindo de contraponto à histeria de alguns setores sociais e reconhecendo a ausência do Poder Público – que, frise-se ainda uma vez, deveria garantir e incentivar o pleno desenvolvimento desta atividade cultural, de acordo com o texto constitucional – como um dos principais fatores para os tumultos associados a bailes funk.
O movimento FUNK constitui-se hoje em uma atividade de lazer e cultura popular das mais importantes do país, reunindo em torno de 1 milhão de jovens apenas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Assim como ocorreu com o rock, a capoeira, o reggae, o samba e a hoje considerada inocente valsa que é, à época, chegou a ser motivo de escândalos, o FUNK enfrenta toda ordem de discriminação e tentativas de desmobilização por parte de segmentos da sociedade que vêem este movimento como inúmeros outros, nascidos das chamadas classes subalternas. [grifo no original] Há uma tentativa de associar o movimento FUNK à violência, sem nenhuma base de realidade consistente. Os atos porventura ocorridos à saída dos bailes têm sua origem na ausência do Poder Público e em ocorrências sem quaisquer relações com os bailes, como tem sido apurado quando a investigação desses fatos é séria. O movimento FUNK mobiliza um grande grupo de pequenos empresários, produtores de música, discos, equipes de som, revistas e programas de rádio e TV, ligados a esta manifestação cultural de caráter popular, constituindo-se em atividade econômica importante como fonte geradora de novos empregos. Contudo, o Poder Público tem estado ausente nas suas responsabilidades, especialmente na questão da segurança e do transporte, contraditoriamente às posturas adotadas frente a eventos de semelhante porte e mobilização de público. Há inclusive, um sem número de exemplos de tentativas de
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proibição de bailes Funk, seja por parte de Prefeituras e Câmaras Municipais, seja por parte de organismos policiais ou órgãos do Poder Judiciário. Acreditamos que os conflitos de interesses que possam surgir entre os organizadores dos bailes e a vizinhança local podem ser perfeitamente solucionados, através de uma negociação pacífica entre as partes, tendo como mediadores representantes credenciados do Poder Público e dos moradores locais. Neste sentido, com o presente Projeto, pretendemos oferecer soluções para a problemática enunciada e garantir a realização harmoniosa desta que é hoje uma importante atividade de caráter popular. [grifos nossos]
LEI Nº 4264, DE 30 DE DEZEMBRO DE 2003. REGULAMENTA OS BAILES FUNK COMO ATIVIDADE CULTURAL DE CARÁTER POPULAR, E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS. A Governadora do Estado do Rio de Janeiro, Faço saber que a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1º - Fica regulamentada no Estado do Rio de Janeiro a atividade cultural de caráter popular denominada “BAILE FUNK”. Art. 2º - O exercício da atividade cultural de caráter popular denominada Baile Funk ficará sob a responsabilidade e a organização de: I – Empresas de produção cultural; II – Produtores culturais autônomos; III – Entidades ou associações da sociedade civil. Parágrafo único – A realização dos Bailes Funk será regulada através de um contrato previamente assinado entre os organizadores e a entidade contratante, e este contrato ficará disponível para ser apresentado, sempre que solicitado, à autoridade pública fiscalizadora. Art. 3º - Compete aos organizadores a adequação das instalações necessárias para a realização dos bailes sob sua responsabilidade, dentro dos parâmetros estabelecidos na legislação vigente. Art. 4º - Compete aos organizadores, bem como às entidades contratantes dos eventos, a garantia das condições de segurança da área interna dos bailes, seja em ambientes fechados ou abertos. Parágrafo único – Deverá haver também classificação prévia do Juizado de Menores, que se pronunciará quando à idade e ao horário, não podendo, no entanto, o horário se estender após as 04 (quatro) horas.
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Art. 5º - Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário. Rio de Janeiro, 30 de dezembro de 2003.
De início, a questão intertemporal. A superveniência da lei ora tratada, com simples previsão genérica de revogação das disposições em contrário em seu art. 5o, não teve, em nosso entender, o condão de revogar a lei estadual 3.410/00. É que o novel diploma adiciona hipóteses de responsabilidade, não substituindo aquelas previstas na lei original. Não tratam, a rigor, da mesma matéria de forma excludente.
Com atraso de oito anos em relação ao Município do Rio de Janeiro, o Estado homônimo veio a reconhecer o caráter cultural dos bailes funk em seu art. 1o, elidindo de vez qualquer alegação de não-aplicabilidade das normas constitucionais programáticas quanto ao funk.
Dessarte, acrescentam-se ao rol de responsáveis e organizadores pelos bailes funk as empresas de produção cultural, produtores autônomos e entidades civis, rótulos amplos que podem ser abrigados sob uma mesma denominação genérica de “produtores”. O art. 2o, caput, veio a complementar a previsão do art. 1o da lei estadual 3.410/00, tornando, finalmente, todos aqueles diretamente envolvidos na organização do baile seus responsáveis. O art. 4o é expresso em afirmar a responsabilidade dos mesmos pelas garantias de segurança da área interna do baile, bem como pelas adequações do espaço físico.
Inicialmente mais ampla, a lei 4.264/04 sofreu veto a alguns de seus artigos, deixando de tratar de questões-chave na problemática dos bailes. Se aprovados os artigos, teriam tornado a lei
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um instrumento ainda mais eficaz na disciplina e organização deste fenômeno social. Ei-los, conforme a numeração original constante do projeto de lei 553/1999.
Art. 2º - Compete ao Poder Executivo, garantir a realização desta manifestação cultural de caráter popular. Art. 5º - O Poder Executivo garantirá a disposição dos serviços públicos necessários para a realização dos bailes em ambientes abertos, através de seus órgãos da administração direta ou indireta, ou concessionárias de serviços públicos. Art. 7º - O Poder Público garantirá efetivo policial suficiente para a segurança externa da atividade, durante todo o período solicitado pelos organizadores dos bailes, observando-se a necessidade de reforço deste efetivo nos horários de término dos eventos. Art. 8º - As empresas, companhias e concessionárias de transportes coletivos, garantirão a disponibilidade de veículos em perfeitas condições de segurança, em quantidade suficiente para o atendimento aos freqüentadores dos bailes, principalmente nos horários de maior demanda do evento.
Interessante ressaltar que todos os artigos se referem, de alguma forma, à responsabilidade do Poder Público para com o funk, à exceção do art. 8o que, ainda assim, obrigaria concessionárias de um serviço público, o de transporte. Neste diapasão, sintomático o desinteresse da casa legislativa, em contrariedade a norma programática insculpida na Lei Maior que determina o incentivo a atividade culturais, em fornecer meios à afirmação de uma atividade cultural às voltas com o problema da segurança. Para além da inércia, o parlamento estadual articulou-se para atuar negativamente, isto é, suprimir importantes, quiçá essenciais, artigos do projeto, na prática desobrigando o Estado de qualquer compromisso.
O art. 2o diria competir ao Poder Executivo garantir a realização da manifestação cultural cognominada baile funk. Sua supressão, entretanto, não infirma o comando que se pretendia
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positivar, haja vista que a própria Carta Estadual dispõe em mesmo sentido em seu art. 322. Por ser uma cláusula genérica, entretanto, resta despida de aplicabilidade prática. Não cria obrigações ou deveres para o Administrador, sendo, a rigor, determinação programática.
Os arts. 5o, 7o e 8o, por seu turno, trariam aplicabilidade prática direta à norma, vinculando a autoridade, por si mesma e suas concessionárias, a prestar os serviços de segurança e transporte que, como assinalamos, quando ausentes, estiveram na origem dos tumultos associados aos bailes funk. Dariam efetividade, traduzida em prestação positiva, à determinação programática das normas máximas das três instâncias federativas de apoiar manifestações culturais. Fossem aprovados e estar-se-ia dando concretude à intenção do texto político, criando exigibilidade do disposto na lei por parte do indivíduo, exigibilidade esta inclusive sindicável pela via judicial. Além do que, ao legislador do futuro obstar-se-ia excluí-los do texto legal, ou minorar seu espectro, no sentido da “abstenção do Poder Público” em contradizer a intenção da norma programática de que fala BARROSO.
A lei 4.264/04, aprovada em sua integralidade, poderia ter significado uma decisiva vitória do movimento funk contra um sentimento social, a nosso sentir equivocado, que confunde uma manifestação cultural com questões sociais incômodas, como violência e marginalidade, que lhe são próximas e decorrem em larga medida justamente da segregação social e descaso estatal de que é vítima. A lei teria contribuído para a progressiva oferta de melhores condições de realização do baile funk, desonerando organizadores, obrigando o Poder público a oferecer segurança e transporte e revitalizando toda a atividade econômica ínsita ao circuito funk. Não fossem os vetos do legislador estadual.
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4.6 Projeto de lei municipal 1.489/2003
O projeto de lei municipal 1.489/2003 se assemelha em muitos aspectos à lei estadual 4.264/04, inclusive na repetição literal de algumas disposições e artigos. Foi aprovado no ano de 2006 pela Câmara Municipal, tendo sido em seguida vetado pelo Chefe do Executivo municipal. Não está, portanto, em vigência.
PROJETO DE LEI Nº 1489/2003 Dispõe sobre a manifestação cultural, de caráter popular, denominada “funk” e dá outras providências. Autora: Vereadora Verônica Costa A CÂMARA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO Decreta: Art. 1º A manifestação cultural, de caráter popular, denominada “funk” será tratada e seguirá os termos da presente Lei. Parágrafo único. A manifestação cultural mencionada no caput se caracteriza como festa popular, não se aplicando, portanto, a sua classificação como baile, promoção dançante, evento artístico-cultural e/ou festividade carnavalesca. Art. 2° A realização da festa popular “funk”, assim definida no Parágrafo único do artigo anterior, ficará ao encargo de: I – organizações e/ou instituições de produção cultural; II – organizadores e/ou produtores culturais autônomos; III – organizações, entidades e/ou associações da sociedade civil. Parágrafo único. A realização da festa popular “funk” será regulada através de contrato previamente assinado entre os organizadores e a entidade contratante, o
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qual ficará disponível para apresentação, sempre que assim o solicite a autoridade pública competente. Art. 3° Compete aos contratantes a adequação das instalações necessárias a realização da festa popular “funk” sob sua responsabilidade, obedecendo o disposto na legislação edilícia sobre esse assunto. Art. 4° Compete aos organizadores, em conjunto com os contratantes, obedecer todas as normas de segurança, bem-estar e acessibilidade dos participantes em relação à festa popular “funk” na área interna destinada a sua realização. Parágrafo único. Fica vedada a participação de crianças na festa popular “funk”, sendo tolerada a entrada e permanência de adolescentes, desde que acompanhados pelos pais e/ou responsáveis, durante toda a realização da festa. Art. 5° A festa popular “funk” pode ser realizada a qualquer tempo, não estando vinculada a nenhuma data específica ou a nenhum calendário de eventos de qualquer natureza. Art. 6° Fica o Poder Executivo autorizado a promover ações que garantam a segurança, o bem-estar e o conforto dos participantes nas áreas externas à realização da festa popular “funk”, e a realizar os acordos, convênios e outros necessários à implementação do disposto neste artigo. Art. 7º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em
de junho de 2006.
São poucas as diferenças para a supracitada lei estadual. Entre elas, podemos apontar, no art. 3o, a responsabilidade atribuída aos “contratantes”, e não mais aos “organizadores” tãosomente: sem dúvida, uma melhoria da redação. A vedação à participação de crianças (art. 4o, § ú) é também uma inovação no tratamento dado à matéria, bem como a menção à possibilidade de sua realização a qualquer tempo, independentemente de datas ou calendários de eventos (art. 5o), que a própria Carta Federal já resguarda, de todo modo.
Como principais distinções, temos o uso do vocábulo “autorizado”, no art. 6o, para se referir às atribuições do Poder Executivo quanto à festa popular funk. Nesta seara, a lei andou mal: a lei estadual 4.264/04 trazia o mérito, em seus artigos vetados, de vincular a atuação da
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Administração, obrigando-a a atuar positiva e concretamente nos moldes do que as Cartas Magnas dispõem. É induvidoso que instituir mera autorização é legislar no vazio, eis que não gera obrigação alguma ao administrador; ademais, a discricionariedade própria de sua atuação já lhe conferiria tal prerrogativa de assim agir, se convencido da conveniência e oportunidade para tanto.
Por fim, devemos estar atentos à proposta de conceituação de funk que faz o projeto de lei. “Parágrafo único. A manifestação cultural mencionada no caput se caracteriza como festa popular, não se aplicando, portanto, a sua classificação como baile, promoção dançante, evento artísticocultural e/ou festividade carnavalesca.”
É nossa opinião de que a proposição deve ser interpretada no sentido de que o funk não pode ser resumido, ou restringido, àquelas formas de manifestação expressas no texto. De fato, a categorização de festa popular serve melhor ao vasto leque de símbolos, acontecimentos e fenômenos em que se pode traduzir o movimento funk. Desta forma, o escopo de toda a legislação pretérita abrangeria não só mais os bailes, mas todo o funk, o que se afiguraria benéfico.
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4.7 Outras iniciativas legislativas sobre funk
O movimento funk, embora indiretamente, levou o Parlamento estadual a deflagrar processo legislativo ainda duas vezes. Não se tratam de projetos de leis destinadas a regular especificamente o funk, mas um breve relance de olhos lançado às motivações esclarece que a razão fundamental de suas existências é, sim, provocar efeitos com relação a ele.
O projeto de lei 2.647/01, do deputado Blandino Amaral, assim propunha em seu art. 1º: “Todas as emissoras de rádio do Estado do Rio de Janeiro ficam proibidas de tocarem músicas cujas letras façam alusão ao sexo e que contenham letras com palavras de baixo calão (palavrões), entre 6 horas e às 23 horas, todos os dias da semana”. Como justificativa, apôs-se que
Músicas Funk que falam de sexo foram veiculadas sem nenhuma restrição na Rádio 94 FM, veículo oficial do Poder Executivo. Para evitar que tal fato volte a acontecer, torna-se prioritário a (sic) aprovação da presente Lei. Não se trata de uma censura prévia do conteúdo da programação das emissoras de rádio do Governo do Estado e sim uma maneira de impedir que famílias descentes (sic) sejam bombardeadas por músicas com letras ofensivas e que podem desvirtuar nossas crianças e jovens.
Segundo se depreende, aos olhos do parlamentar parece absurdo que uma rádio oficial veicule “músicas funk que falam de sexo”. Não temos informações sobre de que forma o assunto teria sido tratado (se na forma de uma campanha educativa voltada ao púlbico jovem, por exemplo), tampouco se a perplexidade do deputado se estenderia a outros gêneros musicais nos quais o sexo também é tema fecundo e recorrente.
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Ainda segundo o propositor do projeto, o objetivo da lei é impedir o desvirtuamento de crianças e jovens e o bombardeio de famílias decentes, razão salvaguardada pela Constituição Federal no art. 221, IV, que determina que a produção e programação das emissoras de rádio e televisão atenderão ao princípio do respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família. Embora lícita a intenção, mister observar os demais dispositivos constitucionais pertinentes.
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. [...] § 3o. Compete à lei federal: [...] II – estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.
Salienta com precisão BARROSO que
O dispositivo constitucional permite que a lei venha a criar meios específicos de defesa, dos quais a pessoa ou a família poderão fazer uso para se defenderem de programas de rádio e televisão que violem os princípios do art. 221 [...] Note-se que a norma constitucional inscrita no art. 220, § 3o, II, transcrito, não autoriza uma ação direta do Estado para a defesa dos referidos princípios. Cabe-lhe apenas criar o mecanismo e colocá-lo à disposição dos indivíduos. Tanto assim que quando o constituinte pretendeu autorizar o Estado a fazer algo mais, diferente da mera criação de mecanismos de defesa, dispôs de forma expressa, como se vê do § 4o acima.111
Assim, percebe-se que o projeto de lei estadual não só viola a iniciativa legislativa da União como exorbita da esfera de atuação permitida ao Poder Público. A regra de conduta ao
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BARROSO, Luis Roberto. Liberdade de expressão, censura e controle da programação de televisão na Constituição de 1988. In: Temas de direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p 376.
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Administrador na situação em tela é a da inação, não lhe cumprindo restringir a liberdade de expressão fora das permissões constitucionais.
Longe de se defender aqui a veiculação irrestrita de conteúdo duvidoso, apenas se salienta que o meio escolhido aqui – edição de lei tendente a abolir músicas de certo conteúdo – revela-se inadequado à pretensão. Nada obsta que se busque a tutela judicial cabível, se se entender pela violação dos princípios atinentes, entre eles os valores éticos e sociais da pessoa e família. Apenas não se pode admitir a restrição prévia de conteúdo, tanto mais da forma vaga e fluida como feita.
A Comissão de Constituição e Justiça, em parecer, apontou a inconstitucionalidade da proposta, tendo em vista o princípio da liberdade de expressão (art. 5o, IX, CRFB/88), após o que o projeto de lei foi arquivado em março de 2002.
A proposição que o ilustre Deputado Blandino Amaral submete à apreciação desta Casa de Leis, posto que plena de lúcidos propósitos, infelizmente não poderá prosperar. Feliz a idéia, porém, esbarra em óbice constitucional intransponível, qual seja o inciso IX, do art. 5º, da Carta Republicana, com sua letra fria e incontestável. Ei-lo, litteratim: “IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.” (Itálicos meus) Assim, meu parecer é PELA INCONSTITUCIONALIDADE do Projeto de Lei nº 2647/2001, sugerindo sua rejeição.
O projeto de lei 2.939/02, por seu turno, pretendia estabelecer a obrigatoriedade a “dirigentes de clubes – sociais e esportivos –, boates, danceterias, casas de shows e similares” de instalar em suas dependências setores de assistência médica e de primeiros socorros (art. 1º). A
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intenção seria a de atender ao público freqüentador destes locais, vítima da violência ocorrida em seu interior (art. 2º).
Oportuno lembrar que, em alguns bailes dedicados à violência, a existência de instalações médicas por iniciativa dos próprios responsáveis pelo estabelecimento se destinava menos ao atendimento dos freqüentadores do que a evitar que os feridos fossem a hospitais, onde haveria registro de denúncia e apuração pelas autoridades. Entre notícias de feridos e mortos em bailes violentos no período mais conturbado de sua história, destaca-se que corpos de vítimas chegavam a ser “desovados” longe dos bailes, para evitar qualquer associação com os mesmos.
Também se pretendia reprimir a suposta omissão dos responsáveis pelos estabelecimentos, obrigando-os a “a informar às Delegacias Policiais da respectiva jurisdição sobre as ações ilícitas praticadas em suas áreas internas” (art. 3º) e estabelecendo penalidades de multa e, em reincidência, cancelamento de registro (art. 4º, caput e § ú).
Como se lê da justificativa, não resta dúvida de que os acontecimentos em bailes funk motivaram a propositura do projeto.
As ações de violência e o uso de drogas vêm se registrando com mais freqüência nos clubes, boates, danceterias e locais onde se realizam os chamados “bailes funk”. O atendimento às vítimas tem sido prejudicado pela ausência de setores de assistência médica e de primeiros socorros nesses estabelecimentos e instituições. A falta de responsabilidade dos responsáveis pelos estabelecimentos comerciais e sociais que permitem a utilização de drogas, durante a realização de shows, bailes e outras atividades, contribue (sic) ainda para o crescimento desse tipo de atividade com graves seqüelas para os usuários. A omissão impede a reação e o procedimento da Polícia.
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Justifica-se, pois, a presente proposição para que se iniba o crescimento do consumo de drogas no Estado do Rio de Janeiro e, conseqüentemente, o número de vítimas por falta de atendimento médico em caráter de urgência.
Mesmo com pareceres favoráveis das Comissões de Constituição e Justiça; Economia, Indústria, Comércio e Turismo; e Esporte e Lazer, o projeto foi arquivado com o final da legislatura e não-reeleição do deputado propositor.
Além destes, alguns outros projetos envolvem o movimento funk, direta ou indiretamente. O projeto de lei 1.123 de 2003, do então deputado estadual Albano Reis, se propõe a criar o “Dia do Funk” na data de 20 de julho – curiosamente, sem explicar o motivo da escolha desta específica data – , não tendo sido ainda levado a votação.
Os projetos de lei estadual 2.077 de 2001 e 2.755 de 2005 tratam da obrigatoriedade de autorização dos órgãos de segurança pública para a realização de eventos de diversão pública, englobando, pois, não só os bailes funk mas festas de todo gênero. A deliberação sobre ambos ainda não é finda, cabendo levantar aqui a discussão acerca do termo “autorização” – de um viés repressor pouco adequado a nosso ordenamento constitucional –, discussão esta inclusive suscitada no Parlamento em propostas de emenda em que se substitui o termo por “informação”.
O projeto de lei 834 de 2006, de autoria da vereadora Verônica Costa, na presente data em tramitação na Câmara Municipal, se destina a instituir e regulamentar o programa Cidade do Funk, visando a implementar ações afirmativas e criar uma “rede de serviços de caráter público direcionados aos segmentos da população que declaradamente se identifiquem com os propósitos primordiais dessa manifestação cultural popular [o funk]; modificar a realidade dos setores mais
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oprimidos da população carioca” através dos órgãos municipais e parcerias com outras esferas de governo e com o terceiro setor.
Menciona-se, finalmente, a iniciativa da mesma vereadora em homenagear, no Plenário da Câmara Municipal, a classe dos produtores musicais funk com uma moção de congratulação e louvor. A cerimônia, realizada no dia 28.09.2006, infelizmente contou com a presença de somente metade dos 87 homenageados. Agentes policiais compareceram à solenidade intentando intimar alguns dos homenageados, contra os quais são atualmente movidos inquéritos por cantar músicas que fariam apologia ao crime e suposta associação com o tráfico de drogas. A vereadora, que afirmou ter sofrido muita pressão para não realizar a entrega dos diplomas na Câmara, se manifestou sobre o episódio: “Convidei todos os vereadores, o Poder Judiciário, mas ninguém veio. Alguns até me ligaram e disseram: ´Verônica, não posso me queimar´”.112
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CANTORES indiciados por tráfico faltam à entrega de diploma. O Dia, Rio de Janeiro, 28 set. 2006.
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5 CONCLUSÃO
Expõem-se algumas considerações a título de conclusão deste trabalho. O funk, um gênero musical de expressão cultural mais abrangente, tem suas raízes musicais precisáveis no estrangeiro; mais especificamente, no soul e outras manifestações da cultura negra e dos guetos pobres de grandes cidades. Trazido ao Brasil na década de setenta, identifica-se fortemente com o subúrbio carioca, servindo de trilha sonora a um enorme circuito de bailes. No final da década de oitenta, passa por um processo de “nacionalização”, em que se começa construir uma música funk com letras em português e incorporação de outros elementos às bases e mixagens. Desde então, com altos e baixos, vem-se firmando no cenário nacional e mesmo internacional.
Irrupções de violência ocorridas no mundo funk, de início restritas a este próprio universo, vão tomando vulto e por fim transbordam para a sociedade no emblemático episódio dos arrastões de outubro de 1992 nas praias cariocas. Ainda que se pudesse aventar uma explicação não-criminalizante para o episódio – a encenação, nas areias, dos “embates” rituais ocorridos entre galeras em bailes funk –, surge na mídia, alimentando e sendo alimentado por um sentimento social dos segmentos mais conservadores, um discurso de demonização do funk que serviu a justificar a intervenção do Estado, via órgãos de segurança pública, sobre esta expressão cultural.
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Como parte deste discurso marginalizante, assinala-se a rotulação de jovens oriundos de segmentos pobres como funkeiros – identificação ideológica esta que nunca houve por parte dos freqüentadores do mundo funk – e sua equiparação a delinqüentes, individualmente; e a gangues, coletivamente. Bailes funk foram acriticamente interditados, sob alegações as mais variadas – e nem sempre verificadas – como associação com o tráfico de drogas, incitação e prática da violência e ilícitos outros.
Em não havendo elementos ou características que permitam entender o funk como ontologicamente diferente das demais expressões culturais vigentes, sobretudo as musicais, forçoso concluir que a identificação do funk como elemento oriundo e praticado pelos segmentos pobres, em um cenário social de gritantes disparidades jamais assimiladas pacificamente, assumiu papel central em sua rejeição pelas elites, resistência esta que outras manifestações culturais, como o samba e a capoeira, já haviam encontrado e vencido décadas antes.
Como resultado da atenção especial e práticas repressivas desenvolvidas por setores da sociedade e autoridades públicas quanto ao funk, buscou-se construir e legitimar, na ordem jurídica, este tipo de ação de controle. Entretanto, o discurso monolítico da repressão incondicional não predominou no âmbito do Poder Legislativo. Representando a divisão de opiniões que há a respeito do tema, a produção legislativa sobre o funk oscilou ao sabor das pressões, acontecimentos e do sentimento social.
Assim é que, em momentos de maior evidência na mídia, uma Comissão Parlamentar de Inquérito investigou o funk, assim como se tentou proibir por meio de diploma legal a realização
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de bailes. Outras leis regularam rigorosamente as festas, consignando a necessidade da vigilância permanente e aval das autoridades policiais. Em outros momentos, puderam surgir projetos de viés não autoritário, no afã de reconhecer esta atividade de caráter cultural como tal e criar condições inclusivas quanto aos segmentos menos abastados de que se origina.
Enxergada à luz dos mandamentos constitucionais, a ordenação legal sobre o funk delimita os limites da atuação do organismo público. Concluiu-se pelo reconhecimento legal do funk como atividade cultural e, assim, por sua proteção sob o pálio das normas constitucionais programáticas a respeito de cultura, existentes em todas as esferas federativas, que determinam uma atuação positiva, de estímulo, do Estado. Veda-se a possibilidade de ação deletéria da Administração Pública quanto ao funk – o que, na prática, não se verifica com plena eficácia. Finalmente, as normas infraconstitucionais sobre o funk falharam em dar concretude à intenção das Cartas Políticas, ao não positivar a responsabilidade do Estado em oferecer prestações positivas, como segurança aos bailes funk.
Entende-se necessário envidar esforços no sentido de uma desconstrução do discurso da criminalização e estigmatização do funk, inserindo-se esta iniciativa em um contexto mais amplo de inserção social da juventude pobre, e tentativa de compreensão de o que realmente representa o fenômeno da violência oriunda deste segmento. Como os fatos demonstram fartamente, a atuação meramente repressiva dos órgãos de segurança pública suplantou em muito quaisquer iniciativas positivas efetivamente adotadas, que, de todo modo, se circunscreveram quase de todo ao plano teórico. A imagem construída e entronizada pela mídia como sinônimo de delinqüente ainda se perpetua em alguma medida no imaginário social, com enormes prejuízos, embora se perceba
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daquele setor – não à toa alcunhado “o quarto poder” –, superada a fase violenta, uma progressiva tendência à isenção quanto ao funk.
Espera-se que a “aceitação final” do funk se dê não por sua desvinculação da sua área de origem e primeira casa, as favelas, como se se pretendesse olvidar suas origens e fazer dele o próximo gênero “roubado” às minorias, mas pela reversão do discurso criminalizante de que foi vítima. Congregar, não discriminar: quiçá assim se contribua para a minoração e eliminação do abismo social brasileiro.
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