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A educação dos golpistas: cultura militar, influência francesa e golpe de 1964
João Roberto Martins Filho Universidade Federal de São Carlos As aulas começaram no dia 31 de agosto de 1962, na sala do cinema do prédio do Estado-Maior do Exército (EME), no Rio de Janeiro. A partir daí, ocorreriam sempre às segundas, quartas e sextas-feiras, com início às 13 hs (no total, vinte e duas sessões de cinqüenta minutos). Dispensava-se a túnica, mas a freqüência era obrigatória. Havia um diretor, o general Aurélio Alves Ferreira, um instr instrut utor or chef chefe, e, o coron coronel el Mário Mário de Barro Barross Cava Cavalc lcant antii e três três inst instrut rutore ores, s, um tenente-coronel e dois majores (dos quais um parece ter sido promovido no decorrer do curso). O público-alvo eram sessenta oficiais das cinco seções do EME, vinte outros das quatro diretorias do Exército, além de cinco oficiais da Marinha e cinco da Força Aérea. Com algumas mudanças, as apresentações se basearam no currículo do Primeiro Curso de Guerra Contra-Revolucionária, que três oficiais brasileiros assistiram na Argentina no ano anterior. 1 Pouco mais de seis meses antes, o chefe do EME, general Humberto de Alencar Castello Branco, em palestra destinada a lançar simbolicamente a nova programação, explicou que esta foi resultado de decisão tomada pelo Estado-Maior do Exército, alguns meses atrás, no sentido de que todos os estabelecimentos de ensino daquela força promovessem um novo currículo que tratasse de “questões ideológicas, Guerra Revolucionária e outros problemas correlatos”. Na verdade, o estágio deveria ter sido realizado em 1961, mas, como lembrou o próprio general Castello Castello Branco, o Exército sofria “ainda de conseqüências da última crise política”. Referia-se ao epis episód ódio io da renú renúnc ncia ia de Jâni Jânio o Quad Quadro ros, s, em fins fins de agos agosto to de 1961 1961,, que que desnorteou a corrente militar anticomunista e atrasou um pouco os planos do EME. De todo modo, no segundo semestre de 1962, o curso podia começar, “com o objetivo de esclarecer, orientar e recomendar aspectos da conduta militar na Não há detalhes nas publicações brasileiras sobre a data do curso. No entanto, o pesquisador argentino Ernesto López, em sua excelente história das doutrinas militares daquele país, esclarece em nota de rodapé que o referido curso “com a participação de 14 países latino-americanos realiz realizouou-se se em Buenos Buenos Aires em outubr outubro o de 1961”. 1961”. Ver Seguridad nacional y sedición militar , Buenos Aires, Legaz, 1988, p.154. 1
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atual conjuntura brasileira”. Para tanto, era fundamental e indispensável entender a Guerra Revolucionária em curso no Brasil e no mundo. 2 Encerrado a 5 de novembro do mesmo ano, o ciclo marcou o início de um novo programa e, ao mesmo tempo, a consolidação de algo que começara alguns anos antes. Trata-se da recepção, recepção, no interior interior das Forças Armadas brasileiras, brasileiras, de uma doutrina militar que ajudou de forma decisiva a preparar o golpe de 1964 e, depois do golpe, teve efeitos importantes nas práticas da ditadura militar. Neste artigo artigo nos restri restringi ngirem remos os aos anos 1959-196 1959-1964. 4. Procura Procurarem remos os mostrar mostrar como, como, então, o meio castrense – principalmente a corrente anticomunista - foi capaz de desenvolver suas próprias doutrinas com surpreendente desenvoltura, criando uma cultura militar que vigoraria por mais de duas décadas. Para aprofundar o estudo estudo dessa dessass idéi idéias as,, porém porém,, é prec precis iso o enfre enfrent ntar ar já de iníc início io a conce concepç pção ão ampl amplam amen entte acei aceita ta de que o ideár deário io milita litarr do prépré-g golp olpe alim alimen enttou-s ou-se e fundam fundament entalm alment ente e da doutri doutrina na da segura segurança nça naciona nacionall origin originária ária dos Estado Estadoss Unidos. Comblin e o poder militar na América Latina
O exemplo mais acabado dessa tese é o livro do padre e professor de Teologi Teologia a em Harvard, Harvard, Joseph Joseph Combli Comblin n - A ideologia da segurança nacional . Publicado originalmente em francês, em 1977, e logo depois traduzido para o português, este tinha como alvo o papel dos EUA na implantação das políticas repressivas em vigor no Cone Sul. No entanto, no legítimo afã de mostrar as trágicas conseqüências das políticas de projeção de poder norte-americanas, Comblin construiu uma narrativa que acaba por simplificar em demasia a questão dos influxos doutrinários que alimentaram os golpes do Cone Sul (Brasil, 1964; Argentina, 1966 e 1976 e Uruguai, 1973). Nesse sentido, aqui e ali, Comblin toca na existência de doutrinas francesas nas escolas militares de comando do Cone Sul. No entanto, logo no início, após mencionar a publicação na Argentina, no início dos anos 70, dos principais escritos dos oficiais que teorizaram sobre a guerra da Argélia, ele deixa de lado Ver a diretriz do Estado-Maior do Exército E xército em EME, Mensário de Cultura Militar , número especial, ano XV, Out 1962 e, para as palavras de Castello Branco, Estado-Maior da Aeronáutica-2 a Seção, Noções básicas sobre guerra revolucionária – coletânea, 2a edição, outubro de 1963. As duas publicações têm basicamente o mesmo conteúdo, com exceção do s prefácios e da diretriz.
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atual conjuntura brasileira”. Para tanto, era fundamental e indispensável entender a Guerra Revolucionária em curso no Brasil e no mundo. 2 Encerrado a 5 de novembro do mesmo ano, o ciclo marcou o início de um novo programa e, ao mesmo tempo, a consolidação de algo que começara alguns anos antes. Trata-se da recepção, recepção, no interior interior das Forças Armadas brasileiras, brasileiras, de uma doutrina militar que ajudou de forma decisiva a preparar o golpe de 1964 e, depois do golpe, teve efeitos importantes nas práticas da ditadura militar. Neste artigo artigo nos restri restringi ngirem remos os aos anos 1959-196 1959-1964. 4. Procura Procurarem remos os mostrar mostrar como, como, então, o meio castrense – principalmente a corrente anticomunista - foi capaz de desenvolver suas próprias doutrinas com surpreendente desenvoltura, criando uma cultura militar que vigoraria por mais de duas décadas. Para aprofundar o estudo estudo dessa dessass idéi idéias as,, porém porém,, é prec precis iso o enfre enfrent ntar ar já de iníc início io a conce concepç pção ão ampl amplam amen entte acei aceita ta de que o ideár deário io milita litarr do prépré-g golp olpe alim alimen enttou-s ou-se e fundam fundament entalm alment ente e da doutri doutrina na da segura segurança nça naciona nacionall origin originária ária dos Estado Estadoss Unidos. Comblin e o poder militar na América Latina
O exemplo mais acabado dessa tese é o livro do padre e professor de Teologi Teologia a em Harvard, Harvard, Joseph Joseph Combli Comblin n - A ideologia da segurança nacional . Publicado originalmente em francês, em 1977, e logo depois traduzido para o português, este tinha como alvo o papel dos EUA na implantação das políticas repressivas em vigor no Cone Sul. No entanto, no legítimo afã de mostrar as trágicas conseqüências das políticas de projeção de poder norte-americanas, Comblin construiu uma narrativa que acaba por simplificar em demasia a questão dos influxos doutrinários que alimentaram os golpes do Cone Sul (Brasil, 1964; Argentina, 1966 e 1976 e Uruguai, 1973). Nesse sentido, aqui e ali, Comblin toca na existência de doutrinas francesas nas escolas militares de comando do Cone Sul. No entanto, logo no início, após mencionar a publicação na Argentina, no início dos anos 70, dos principais escritos dos oficiais que teorizaram sobre a guerra da Argélia, ele deixa de lado Ver a diretriz do Estado-Maior do Exército E xército em EME, Mensário de Cultura Militar , número especial, ano XV, Out 1962 e, para as palavras de Castello Branco, Estado-Maior da Aeronáutica-2 a Seção, Noções básicas sobre guerra revolucionária – coletânea, 2a edição, outubro de 1963. As duas publicações têm basicamente o mesmo conteúdo, com exceção do s prefácios e da diretriz.
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essa questão e passa à sua tese central: “É incontestável” - afirma - que a doutrina que inspirou os golpes militares “vem diretamente dos Estados Unidos. É nos Estados Unidos que os oficiais dos exércitos aliados aos EUA aprendem-na”. 3 No deco decorr rrer er do livr livro, o, fica fica clar claro o que que para para Comb Comblilin n o proc proces esso so hist histór óric ico o de construção da mentalidade ditatorial é basicamente simples. Para ele, os chefes militares latino-americanos não tinham – e nem precisavam ter - idéia do tipo de sociedade e de governo que iriam fundar, e sequer sabiam que iriam criar um novo regime. O que importava importava eram os processos processos objetivos, vale dizer, “a coesão e a força dos fatores históricos que estavam em ação, a coesão e a força do modelo de segurança nacional”, que “se realiza, de certo modo, por si mesmo, graças a seu dinamismo interno: utiliza os generais e seus conselheiros civis e os leva a fazer coisas com as quais jamais haviam sonhado”. Nessa mecânica, “toda a força do sistema forjado nos Estados Unidos entra em ação”. 4 Desnecessário dizer que tal explicação dispensa dispensa o estudo dos processos internos de construção construção da ment mental alida idade de mili milita tar. r. Na verd verdade ade,, na visão visão de Combl Comblin in,, a dire direitita a lati latino no-americana americana aparece como uma simples marionete marionete ideológica, sem história história política política ou capacidade de gerar seus próprios mitos, doutrinas ou ideologias. Nas palavras desse autor: “Há certamente uma doutrina muito rígida que vem dos Estados Unid Unidos os e é tran transm smititid ida a quas quase e sem modi modifificaç cações ões nas nas escol escolas as de segur seguranç ança a nacional da América Latina”.5 Vários analistas perceberam os problemas colocados por essa perspectiva. Assim, para Carina Perelli, nela as Forças Armadas nativas aparecem como “um robô armado, seguindo cegamente as ordens originárias de um centro de poder em Washington, DC”. 6 Já para Ernesto López, “A DSN é convertida, convertida, por essa via, num produto parecido às roupas que se vendem nas lojas: um modelo do qual o Brasil usaria, por exemplo, o tamanho 44, a Argentina o 42, o Chile o 40, etc”. 7 Por outro lado, a tese de Comblin parecia a mais lógica e natural. natural. Como salientou um
A ideologia da segurança nacional. O poder militar na América Latina, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980. 3a ed., p.14. Idem, ibidem, p.71. Idem, ibidem, p.22. “From counterrevolutionay warfare to political awakening: the Uruguayan and Argentine Armed Forces in the 1970s”, Armed Forces & Society , Fall1993: 25-49, p.27. Ernesto López, op. cit., p.14. 3
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sofisticado historiador das idéias militares, “o centro do pensamento militar tende normalmente a seguir o centro do poder militar” 8 Nada mais natural, assim, que os EUA fossem o pólo de difusão da nova doutrina militar. Contudo, há alguns problemas básicos nesse tipo de explicação. Em primeiro lugar, ele parte de uma definição excessivamente genérica do ideário da segurança nacional, tanto na forma como foi construído nos Estados Unidos, no início da guerra fria, como na que tomou nas escolas de guerra de países como Brasil e Argentina. Além disso, essa análise tende a perder especificidades nacionais dos processos de construção do golpismo militar, que teriam conseqüências importantes na própria configuração das ditaduras que se seguiram. Assim, tudo se passa como se a importação da ideologia da segurança nacional explicasse por si só o aparecimento de Estados de segurança nacional e a coesão interna desses regimes fosse dada pela doutrina que lhes deu origem. Para alguns autores, a raiz dessa confusão estaria na própria indistinção, presente no livro de Comblin, entre ideologia e doutrina. No sentido em que a usamos aqui, doutrina significa aquilo que se aprende nas escolas militares. Como lembra Samuel Ficht, o termo “implica num conjunto de ensinamentos, com freqüência um conjunto de princípios ou um credo. No jargão militar, usa-se tipicamente doutrina num sentido mais limitado, para referir-se a princípios estratégicos ou táticos particulares, como a doutrina de retaliação maciça. Por outro lado, define-se comumente ideologia como um conjunto generalizado de idéias políticas, uma visão de mundo, como o liberalismo e o comunismo. Tratar doutrina, especialmente doutrina militar, e ideologia, como termos mais ou menos intercambiáveis obscurece a questão da relação entre os dois”.9
Uma das expressões mais características da doutrina assim entendida seria a doutrina da guerra. Para Comblin, a “doutrina” de segurança nacional funda-se na concepção de guerra total e tem três componentes: a guerra generalizada, a guerra fria e a guerra revolucionária. Na sua visão, “todos os conceitos são americanos, pelo menos quanto a sua origem imediata. Quanto às origens Azar Gat, A history of military thought. From the enlightenment to the cold war, New York, Oxford University Press, 2001, p.107. J. Samuel Fitch, The Armed Forces and Democracy in Latin America, Baltimore/London, The Johns Hopkins University Press, 1998, p.107 e 110. 8
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longínquas, seria necessário remontar à Alemanha e à França”.10 Conforme aquele autor, “foi também nos Estados Unidos que se formou a idéia de guerra revolucionária”, que para ele “é o resultado das meditações dos elementos de segurança nacional sobre os escritos de Mao Tse-tung, Ho Chi-minh, Giap e Che Guevara”. Aos teóricos franceses coube apenas a função secundária de “orientar a leitura e as conclusões”. Finalmente, há na análise até aqui examinada uma proposta de periodização. Para Comblin, “1961/1962 são os anos em que o conceito (de guerra revolucionária, JRMF) inicia sua carreira triunfal nas Américas”.11 Mais adiante, ele afirma que essa “estratégia contra-revolucionária (...) serviu sobretudo para formar uma escolástica militar rígida, um manual de guerra revolucionária, que se tornou, desde 1961, a base do ensinamento dado aos exércitos latino-americanos”.12 The French Connection
Na verdade, pelo menos no caso das Forças Armadas de dois dos mais importantes países latino-americanos, Brasil e Argentina, não foi assim que as coisas se passaram. Se marcamos a data de nascimento da era kennediana da contra-insurreição em 18 de janeiro de 1962, quando o presidente promulgou o Memorando de Ação de Segurança Nacional 124 (NSAM-124),13 podemos afirmar com certeza que, nessa data, alertar os militares argentinos e brasileiros para a urgência de desenvolver uma doutrina de combate à guerra subversiva seria o Joseph Comblin, op. cit., p.33. Idem, ibidem, p.44. Idem, ibidem, p. 47. Uma outra vertente da literatura também ignora a influência das idéias que analisaremos aqui e, embora mencionando a questão da doutrina da guerra revolucionária, prefere atribui-la à influência americana. Ver Alfred Stepan, The Military in Politics. Changing Patterns in Brazil , Princeton, Princeton University Press, 1971, p .174-183; Gerald Haines, The Americanization of Brazil. A study of U.S. Cold War diplomacy in the Third World, 1945-1954 , Wilmington, SR Books, 1989, p.39-60 e Sonny B. Davis, A Brotherhood of Arms. Brazil-United States Military Relations, 1945-1977 , Niwot, University Press of Colorado, 1996, p.93-115. O documento recomendava às várias agências de governo o reconhecimento da insurreição subversiva (“guerras de libertação nacional”), como “uma forma fundamental de conflito políticomilitar tão importante como a guerra convencional”, ao mesmo tempo em que procurava garantir que essa nova importância se refletisse na “organização, treinamento, equipamento e doutrina” das Forças Armadas e outras agências externas dos EUA. Foi seguido pelo NSAM-182, que oficializou o documento U.S. Overseas Internal Defense Policy, datado de agosto de 1962, considerado o guia básico da política governamental de contra-insurgência daí em diante. Ver o artigo de Charles Maechling, Jr. “Counterinsurgency: the first ordeal by fire”, in Michael T. Klare & Peter Kornbluh (eds.), Low Intensity Warfare. Counterinsurgency, Proinsugency, and Antiterrorism in the Eighties, New York, Pantheon Books, 1988, p.21-48, p.27-28. O autor ocupou o posto de diretor de defesa interna, subordinado diretamente ao Secretário de Estado, no governo Kennedy. 10 11 12
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mesmo que ensinar o padre-nosso ao vigário. Antes mesmo do triunfo da Revolução Cubana, os oficiais de ambos países tinham buscado, por conta própria, uma doutrina de guerra mais adaptada às suas necessidades e que os EUA não pareciam em condições de oferecer. Como disse um especialista, até o início do governo JFK, “o Pentágono, tinha, em poucas palavras, uma doutrina de contraguerrilha rudimentar (isto é, uma doutrina de combate armado a organizações guerrilheiras), mas não uma doutrina de contra-insurreição abrangente (isto é, uma estratégia político-militar destinada a vencer uma luta revolucionária ideologicamente dirigida)”.14 Não por acaso, um oficial brasileiro dizia em texto de 1959: “A bibliografia francesa sobre a GR é, pode-se dizer, a única existente. A bibliografia de origem norte-americana não deu até agora ao assunto a importância merecida”.15 No processo de importação das idéias francesas, a Argentina saiu na frente. Como mostrou o trabalho pioneiro de Ernesto López, o então coronel Carlos J. Rosas, que acabava de regressar da França, assumiu em 1956 a subdireção da Escuela Superior de Guerra, em Buenos Aires, dando início a um processo de redefinição doutrinária calcado nos ensinamentos de veteranos franceses da Indochina e da Argélia. Em 1957, o referido oficial trouxe para a ESG argentina, na qualidade de professores e assessores da direção, quatro militares com experiência nas guerras coloniais: os tenentes-coronéis Badie, de Naurois, Bentresque e Nougues, que aí permaneceram até 1962. 16 Segundo Carina Perelli, que entrevistou alguns deles, estes eram pagos pelo governo argentino e gozavam de licença de suas funções no Exército francês. 17 Entre 1958 e 1959, a Revista de la Escuela Superior de Guerra publicaria uma série de artigos de
autoria desses assessores e de um grupo de oficiais argentinos que havia estagiado na Europa, cujo tema central era a doutrina da guerre révolutionnaire.18 Idem, ibidem, p.26. Ver Presidência da República, Estado-Maior das Forças Armadas, Escola Superior de Guerra, Introdução ao Estudo da Guerra Revolucionária, Augusto Fragoso, Coronel, 1959, p. 5. Ver Ernesto López, op. cit., p. 137-38. Ver op. cit., nota 44, p.45. Idem, ibidem, p.144. A influência doutrinária francesa começou e se completou, assim, bastante antes do que admite Samuel Ficht, que prefere usar como referência o Boletin de Educación del Ejército, para propor que, até 1966, permaneceu o foco preponderante na doutrina de guerra convencional (op. cit., p.110). Recorrendo a documentação muito mais minuciosa, López mostra que, já em 1962, estava “virtualmente completa a elaboração doutrinária básica de caráter antisubversivo”. Ver López, op. cit., p. 157. 14 15
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Em 1959, “realizou-se na E.S.G. a Operação Ferro, um curso de pós-graduação constituído de uma série de conferências sobre a guerra anti-subversiva, destinado à atualização de oficiais de Estado-Maior já formados”. No ano seguinte, o já general Rosas reuniu na Chefia do Estado-Maior do Exército “uma equipe de mais ou menos 15 destacados oficiais recém saídos da E.S.G. e constituiu uma equipe com a qual realizou a Operação Ferro Forjado”, uma “adaptação da organização e procedimentos do Exército à doutrina anti-subversiva”. 19 No caso do Brasil, o coronel Augusto Fragoso pronunciou em maio de 1959, no curso de Estado-Maior e Comando da Escola Superior de Guerra a histórica palestra “Introdução ao estudo da guerra revolucionária”, fruto aparentemente de seus próprios estudos diretos da produção francesa, que evidentemente começaram algum tempo antes.
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Em 1958, o Estado-Maior da
Armada brasileira publicara Alguns estudos sobre a guerra revolucionária, coletânea de quatro artigos traduzidos da Revue Militaire d’Information e um da Revue de Defense Nationale (“A técnica da insurreição” do general L-M. Chassin).
Por sua vez, o Relatório do Seminário de Guerra Moderna , também de 1958, publicara as recomendações dos Grupos de Estudos reunidos na ECEME, constituídos por oficiais instrutores da escola, no sentido de que se incluísse no currículo escolar “assuntos relativos à guerra insurrecional ”.21 O contexto mais geral em que se deu a entrada dessas idéias no Brasil é lembrado por um oficial do Exército: “Nesse momento, estávamos profissionalmente perplexos, sem saber que direção tomar. (...) Então começamos a tomar conhecimento de novas experiências (...). Nessa ocasião, a literatura militar francesa (...) começa a formular um novo tipo de guerra. Era a guerra infinitamente pequena, a guerra insurrecional, a guerra revolucionária. (...) Isso entrou pelo canal da nossa ESG, e foi ela que lançou as idéias sobre as guerras insurrecional e revolucionária e passou a nelas identificar o quadro da nossa própria possível guerra. Para nós ainda não havia guerra nuclear, a guerra convencional já estava ultrapassada. Mas Idem, ibidem, p.158. Segundo alguns autores, a evolução do processo político argentino deixou os ensinamentos franceses em compasso de espera até 1975, quando ocorreu o chamado Operativo Independencia e seus desdobramentos, conhecidos como a “passagem à ofensiva”. Após o golpe militar de março de 1976, a doutrina entrou em plena operação. Ver Carina Perelli, op. cit., p.46, nota 48. A palestra foi repetida nos cursos Superior de Guerra, Informações e Mobilização Nacional em 31 de agosto do mesmo ano. Ver Introdução ao Estudo da Guerra Revolucionária, cit.. O dois textos são mencionados nas notas bibliográficas de Idem, ibidem, p.58. 19
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havia uma guerra que nos parecia estar aqui dentro. (...) Isso tudo contribuiu para a formulação da nossa própria doutrina da guerra revolucionária, que resultou no movimento militar de 64”.22
Outra fonte aponta no mesmo sentido. Em A FEB por um soldado , Joaquim Xavier da Silveira dizia: “os centros de estudos militares brasileiros passaram a atentar para esse novo fenômeno social-militar, o que talvez venha a explicar o movimento antiinsurrecional de março de 1964. A tão decantada influência americana, nesse movimento político-militar, foi praticamente nula. O historiador do futuro, no exame sereno desse episódio, irá certamente encontrar uma certa influência francesa, pelo menos no campo doutrinário”.23
O apelo da guerre révolutionnaire
Não parece haver dúvidas de que a influência dos doutrinários franceses na Argentina e no Brasil, deveu-se, antes de tudo, ao seu pioneirismo. Como já dissemos, no final dos anos 50, antes mesmo da eclosão da Revolução Cubana, os franceses eram os únicos a tratar do tema da guerra revolucionária. Desde meados dos anos 50, após a fragorosa derrota em Dien-Bien-Phu e a eclosão da rebelião na Argélia, fortaleceu-se no Exército francês a idéia de que a principal razão da derrota na Indochina fora o fato de que a doutrina militar não estava preparada para enfrentar um novo tipo de guerra. A principal característica desta forma de conflito era a indistinção entre os meios militares e os não militares e a particular combinação entre política, ideologia e operações militares que ela punha em funcionamento. Nesse quadro, a nova doutrina “oferecia um diagnóstico e um remédio para aquilo que um influente grupo de militares de carreira franceses viam como a doença principal do mundo moderno – a falência do Ocidente em enfrentar o desafio da subversão comunista atéia”. 24 Em 1955 o Exército francês inaugura o primeiro centro de ação psicológica, à mesma época em que surgiam na Argélia os bureaux psycologiques, com a Ver o depoimento do general Octavio Costa em D’Araújo et alii, Os anos de chumbo. A memória militar sobre a repressão, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1994, pp.77-78. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1989, p.264. Agradeço à minha aluna Amanda Mancuso a menção a essa fonte. John Shy e Thomas W. Collier, “Revolutionary War”, in Peter Paret (ed.), Makers of Modern Strategy , Princeton, Princeton University Press, 1986, p.852. 22
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função de instruir os militares nos aspectos políticos da guerra colonial. Em abril de 1956, o Ministério da Defesa Nacional estabelece o Service de Action Psycologique et D´Information, que passa a ser a principal usina de produção do ideário da guerre révolutionnaire, sob o comando do coronel Lacheroy. 25 Mais do que isso, os adeptos da nova doutrina colocaram como uma das suas tarefas políticas principais espalhar suas idéias onde quer que encontrassem uma audiência atenta. Não espanta, assim, que em maio de 1959, o coronel Augusto Fragoso explicasse à sua audiência da Escola Superior de Guerra brasileira: “a bibliografia francesa sobre a GR é, pode-se dizer, a única existente. A bibliografia de origem norte-americana não deu até agora ao assunto a importância merecida: nos catorze últimos números consultados da Military Review (de janeiro de 1958 a fevereiro de 1959) não há nenhum estudo, artigo ou tópico que fale, no título, de Guerra Revolucionária, Guerra Insurrecional ou Guerra Subversiva”.26
Por outro lado, mesmo depois do surgimento da doutrina americana da contra-insurreição, parece difícil negar que o Exército (ou os marines) dos EUA não podiam ocupar na mesma medida a condição de role model gozada pelos oficiais franceses junto a seus colegas argentinos e brasileiros. Isso, em primeiro lugar, porque a doutrina americana do começo dos anos 60 nunca deixou de ser um artigo de exportação e de restrito consumo interno no interior das Forças Armadas americanas, apesar da obsessão de Kennedy pelo tema. Já o aparelho de Estado civil não podia contar com agências como os serviços coloniais britânicos e franceses, indispensáveis para integrar os aspectos políticos e militares da guerra revolucionária. Por sua vez, o Exército do EUA “desconfiava de um grupo treinado para operações irregulares”, o que se expressou anos depois, no Vietnã, nos desencontros entre essas tropas – que operavam em estrito contacto com a Central Intelligence Agency - e o comando do Exército. 27 O Em 1957 os bureaux psycologiques foram oficializados com a denominação de 5es Bureaux , passando a fazer parte integrante dos estados-maiores das unidades de combate e dos comandos territoriais. Ver Paret, p.55. Ver Introdução ao estudo da guerra revolucionária, cit., p.5. Ver John Shy e Thomas W. Collier, op. cit., p.855. Esses autores lembram a prisão por elementos do Exército do oficial que comandava as forças especiais no Vietnã. Collier serviu no Vietnã. No mesmo sentido, Charles Maechling, Jr afirma que “havia resistência nos altos escalões do Pentágono à sobrevalorização da guerra de guerrilha: esse enfoque, temia-se, geraria imagens de unidades de ‘elite’, que poderiam perturbar o moral e despertar expectativas não autorizadas de 25
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Exército francês, ao contrário, instalou a guerre révolutionnaire no centro de seu pensamento militar e de sua doutrina operacional. Como reconhecem dois especialistas americanos, um deles ex-oficial no Vietnã, “no seio do corpo de oficiais franceses, surgiu uma preocupação obsessiva no sentido de aprender as lições da guerra da Indochina, de modo que as futuras guerras revolucionárias, já iminentes em outras partes do Império Francês, pudessem ser vencidas”. 28 Em segundo lugar, e talvez mais importante, um dos pressupostos fundamentais da doutrina francesa era a idéia de que, se o controle das informações é o elemento decisivo da guerra revolucionária, é impossível combater esse tipo de inimigo sem um comando político-militar unificado. Assim, essa doutrina entra, com um tempero francês, no caldo apimentado das relações da guerra com a política. Ao fazê-lo, não hesita em afirmar que se a sociedade democrática é incapaz de fornecer ao Exército o apoio necessário, então é necessário mudar a sociedade, não o Exército. Na expressão um de seus principais teóricos, o comandante Hogard, “é tempo de perceber que a ideologia democrática tornou-se impotente na França atual”. 29 Desse modo, desde o início, a doutrina da guerra revolucionária continha um programa de alteração das relações civis-militares da sociedade francesa, a fim de alcançar a unidade do país no apoio à luta de seu Exército para conservar a Argélia, entendida como parte integrante do território nacional. Tal objetivo só seria possível se fossem superados os obstáculos a essa unidade existentes na Quarta e depois na Quinta República francesas. Nesse contexto, entre 1957 e a insurreição dos colonos de janeiro de 1960, os 5es Bureaux do Exército francês encarregados da guerra psicológica na Argélia – agiram “quase completamente livres do controle de Paris”. Mesmo depois da ascensão de de Gaulle ao poder, eles “puderam desenvolver seus próprios métodos de ação psicológica e guerra psicológica e foram capazes também de assumir uma parcela crescente na formulação da ideologia e do programa político que esses métodos haveriam de avançar. De uma agência subordinada promoção rápida. Abriria também a porta a missões não-combatentes, que poderiam desviar recursos de missões militares regulares”. Ver op. cit., p.26. John Shy e Thomas W. Collier, op. cit., p.852. Citado Peter Paret, op. cit., p.28. 28 29
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do governo e das Forças Armadas, action psychologique tornou-se um corpo de execução de políticas cujos membros mostravam crescente aptidão para interpretar e mesmo adaptar políticas, a fim de beneficiar sua visão sobre as exigências operacionais na Argélia. Dada sua visão de que o choque entre revolução e contra-revolução exigia total unidade da base contra-revolucionária e de suas forças Armadas, estenderam suas atividades para a França metropolitana: as forças tinham que ser treinadas não apenas para lutar contra uma guerra revolucionária, como a própria sociedade francesa tinha que ser purificada e orientada”.30
Em outras palavras, a doutrina da guerre révolutionnaire trazia subjacente um projeto de intervenção militar na sociedade – que resultaria nas crises militares de 1958, 1960, 1961 e 1962. O mesmo não ocorria na sociedade norteamericana.31 Profundamente enraizada na história militar e política francesa, desde as reflexões de general Lyautey sobre o papel do Exército na administração das colônias, no final do século XIX, até a militância antibolchevique de círculos importantes do Exército que desembocaria no regime de Vichy, o ideário francês sobre a função dos militares na política – que, apesar de sua variedade de fontes, encontrava um ponto comum na insatisfação com a democracia e o governo parlamentar e na adesão a um acentuado elitismo - parecia familiar aos militares latino-americanos, ao mesmo tempo em que os adulava, ao demonstrar que suas pulsões intervencionistas não eram uma anomalia típica de países atrasados. 32 Não por acaso, um autor como Peter Paret, escrevendo na primeira metade dos anos 60, encontrava nos escritos do general Lyautey , datados de 1891, o “anseio por uma elite regeneradora, que testa e prova a si própria no serviço militar antes de liderar sua nação rumo a uma nova grandeza”.33 Uma mensagem que devia soar como música aos ouvidos das correntes militares conservadoras, Idem, ibidem, p.76-77. Nesse ponto, a referência é Samuel Huntington, The Soldier and the State. The Theory and Politics of Civil-Military Relations, Cambridge/London, Harvard University Press, 1998, 13 th printing. Ver principalmente a Parte III. Para a França, ver Paret, French Revolutionary Warfare, cit., p.2629. Referindo-se às relações entre colonialismo e política no século XIX, este autor lembra que “o sonho de regenerar a metrópole a partir do esforço de ultramar não esteve sempre ausente entre os imperialistas anglos-saxões, mas um grupo influente de oficiais franceses levou esse pensamento mais longe e o ambiente político consideravelmente menos estável em que viviam conduziu a sérios desdobramentos de suas idéias”. Ver p.106-107. Para as relações entre o pensamento militar colonialista e a doutrina da guerre révolutionnaire, ver Peter Paret, op. cit., p.103 e segs. Ver op. cit., p.108. 30 31
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no Brasil e na Argentina do final dos anos 50. Trocando em miúdos, enquanto os militares e civis americanos pareciam dizer “façam o que digo e não o que eu faço” (ou, no máximo, “não posso fazer”) a doutrina francesa rezava simplesmente “façam o que digo e o que eu faço”.34 Há ainda um detalhe que pode ser importante. Em exércitos modernos como os da Argentina e Brasil nos anos 50, envolvidos, cada um à sua maneira, na criação de uma ideologia militar abrangente e ambiciosa, caía como luva o exemplo francês dos intelectuais militares que pensavam por conta própria, em pé de igualdade com seus colegas e aliados civis, que de resto nunca faltaram. 35 Não menos importante, o romantismo e a mística quase religiosa que acompanhava a doutrina francesa também funcionaram como atrativo adicional para oficiais em busca de uma missão para seus exércitos, no apogeu da guerra fria. 36 Enfim, a doutrina militar francesa oferecia aos militares dos países acima uma definição flexível e funcional do inimigo a enfrentar, ao mesmo tempo em que, no plano geopolítico, valorizava o Terceiro Mundo como cenário do confronto mundial da guerra fria, aspecto antevisto na declaração do general Octavio Costa. Afinal, ocupava o centro dessa doutrina a idéia de que, “enquanto os Estados Unidos e seus aliados estavam hipnotizados pela perspectiva da guerra nuclear, o comunismo flanqueava as defesas do Ocidente a partir do Sul, e se não fosse contido destruiria, ao fim, a civilização ocidental”. 37 Nesse quadro, o inimigo era Já em 1957, um panfleto anônimo de cerca de 145 páginas com o título Contre-révolution, stratégie et tactique constituía-se num verdadeiro manual para a preparação de um golpe militar. 34
Seu alvo principal era o comunismo internacional, mas seus alvos operacionais eram as autoridades constituídas e as forças de esquerda na metrópole. Da teoria, os oficiais franceses passaram à prática. O general Chassin, já citado como autor de um dos artigos divulgados na Marinha brasileira em 1958, foi personagem central na tentativa de golpe ocorrida nesse mesmo ano. Os generais Zeller e Challe foram condenados a quinze anos de prisão pela participação na revolta de abril de 1961. O já citado coronel Lacheroy foi condenado a morte in absentia por seu papel na mesma revolta, assim como os coronéis Broizat, Gardes e Godard. Broizat e Godard tornaram-se, depois de 1961, chefes da terrorista Organization de l’Armée Secret (OAS) - que, como se sabe, tentou assassinar o próprio general de Gaulle. Diante desses exemplos, o coronel Bonnet e o teórico civil Claude Delmas, amplamente lidos no Brasil do final dos ano 50 e nos anos 60, podiam ser vistos como moderados. Ver Peter Paret, op. cit., p.112 e segs. Sabe-se que a doutrina da contra-insurreição foi criada principalmente por teóricos civis, como Walt Rostow e Robert McNamara. Ver David Halberstam, The Best and the Brightest , New York, Ballatine Books, 1992, 20th-anniversary edition. Assim, Paret fala na tradição colonial que gerou no pensamento francês “essa mistura peculiar de romantismo e obstinado auto-interesse” (op. cit., p.106), enquanto John Shy e Thomas W. Collier falam da influência de um “catolicismo místico” associado a uma “lógica quase cartesiana” (op. cit., p. 852). John Shy e Thomas W. Collier, op. cit., p.852. Nesse sentido, a doutrina militar oficial no governo Eisenhower (1953-1960) era a da “retaliação maciça”, que ameaçava a URSS com um ataque 35
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definido de forma ampla o suficiente para servir às mais variadas situações nacionais. A idéia geral era que a civilização cristã estava envolvida numa guerra permanente e mundial, onde não apenas as distinções tradicionais entre guerra e paz passavam a ser insignificantes, como – na expressão de um analista - “as diferenças entre anticolonialismo, nacionalismo anti Ocidente e comunismo” passavam a ser insignificantes. Vale dizer, o esquema francês era genérico o suficiente para permitir que o Exército argentino definisse como seu principal inimigo o peronismo, que nada tinha a ver com o comunismo, enquanto dava ao Exército brasileiro uma justificação a mais para combater os nacionalistas ou os católicos radicais, além dos comunistas de várias feições.38 Resumo da ópera
Neste artigo, partimos da idéia de que a ampla produção sobre a Guerre revolutionnaire pode ser tomada como uma doutrina única. 39 A partir daí, faz-se nuclear em caso de incursões não-nucleares da União Soviética na Europa e outras regiões. O governo Kennedy contrapôs a essa doutrina a da “resposta flexível”, proposta inicialmente pelo general Maxwell Taylor, em 1960, cuja ênfase recaía na capacidade de reagir ao longo de todo o espectro de possíveis ameaças, da guerra geral à guerra limitada. Michael T. Klare e Peter Kornbluh, “The New Interventionism: Low-Intensity Warfare in the 1980s and Beyond”, in Klare & Kornbluh, op. cit., p. 10-11. De resto, a confusão existente nos próprios Estados Unidos quanto ao que fazer com o poder atômico era patente. Ver Lawrence Freedman, “The First Three Generations of Nuclear Strategists”, in Makers of Modern Strategy , cit., pp.735-78. Para a resposta flexível, ver Michael Carver, “Conventional Warfare in the Nucle ar Age”, idem, ibidem, pp. 779-814. Ver Ernesto López, op. cit., p.155. Este autor procurou mostrar como, depois do golpe que derrubou Perón, os chefes militares passaram a buscar uma nova doutrina e voltaram-se para idéia da guerra interna. Para ele, a guerre révolutionnaire francesa foi ideal para o esforço castrense de apagar a memória da doutrina peronista de defesa nacional - e como instrumento de combate às forças sociais que se agrupavam em torno do peronismo. “O problema que efetivamente pretendia enfrentar a redefinição doutrinária era o da sobrevivência do peronismo no interior do Exército”, defende López. E complementa: “mas, além disso, o peronismo era um problema fora do Exército: também dissemos que se procurava a desperonização da sociedade e a prevenção de qualquer reação peronista no plano político”. Uma interpretação diferente aparece no texto de Carina Perelli, para quem o antiperonismo nunca foi suficiente para unificar as Forças Armadas argentinas, mesmo depois do golpe militar de 1976. Em suas palavras, “embora a situação na Argentina em março de 1976 fosse percebida como suficientemente ameaçadora para levar as Forças Armadas a agir como um só corpo, era muito difícil para uma organização com tal história de divisionismo gerar e adotar um relato justificatório comum”. Nesse contexto, na sua perspectiva, “a doutrina foi adotada como um código de interpretação do mundo apenas por certas facções e grupos operacionais na organização militar. Sempre foi forçada a competir com outras doutrinas e influências”. Como afirmou um importante historiador da doutrina francesa, “analisar um corpo de teoria que não é obra de um único homem, mas de muitos, pode apresentar dificuldades; nesse caso, porém, esse problema dificilmente existe. Os numerosos escritos dos adeptos da teoria mostram naturalmente discordâncias em pontos menores, mas há uma unanimidade em tudo que é essencial, e a unidade de concepção se estendia à sua aplicação prática”. Peter Paret, op. cit., p. 8. Antes desse livro, datado de 1964, Paret publicara o artigo pioneiro “The French Army and La Guerre Révolutionnaire”, em Journal of the Royal United Service Institution, February 1959. O texto 38
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necessário entender em que consistia, em suas linhas gerais, a doutrina a que vimos nos referindo. Nesse sentido, para usar a definição de um sociólogo francês simpatizante da guerre révolutionnaire, essa seria “uma doutrina internacional capaz de efetivamente se opor às teorias marxistas-leninistas [...] um sistema de valores suficientemente forte para unir e estimular as energias nacionais”. 40 O coronel Georges Bonnet resume a questão numa fórmula simples: “guerra partisan + guerra psicológica = guerra revolucionária”. Trata-se, assim, de uma
doutrina que extrai seu nome do fenômeno que visa combater - a guerra revolucionária. Esta, por sua vez, é definida como “uma doutrina de guerra
exposta pelos teóricos marxistas-leninistas e explorada por movimentos revolucionários de várias tendências”.41 Esse efeito de espelho é uma das características mais particulares da doutrina francesa. 42 Para esta, a guerra revolucionária é diferente da guerra convencional porque coloca o recurso às armas no final e não no começo do conflito. Ela se constitui de um processo diversificado e prolongado, cuja evolução pode ser dividida em cinco etapas. A primeira seria a da preparação cautelosa do terreno que se pretende conquistar, ou seja, a população. Nessa etapa, os militantes agem sem declarar seus objetivos. A segunda fase se expressa na constituição de uma rede de organizações subversivas, controladas pelos militantes. Nesse estágio, formam-se bases que subvertem a capacidade de ação governamental. Surgem as manifestações, tumultos e atos de sabotagem. A terceira etapa marcase pela constituição de grupos armados, que iniciam ações de menor escala, destinadas a corroer os poderes constituídos. É a fase do terrorismo como principal método de ação. A penúltima etapa é a do estabelecimento de zonas liberadas ou bases d’appui , onde o Exército regular não consegue mais entrar. O passo seguinte é a formação de um governo provisório, que procura reconhecimento externo. Forma-se um exército regular revolucionário. A quinta foi publicado em seguida em Survival , vol. I, 1959, 25-32. Uma questão adicional é a do grau de apoio de que gozou no Exército francês a doutrina em questão. O sociólogo é Raoul Girardet. Citado em Peter Paret, French Revolutionary Warfare, cit., p.27. Raoul Girardet, citado em idem, ibidem, p.143. Como afirmou Peter Paret: “O que é surpreendente no caso da guerre révolutionnaire é que seu conceito detalhado da contra-revolução deriva diretamente de sua visão vaga da revolução; o reflexo no espelho é nítido, enquanto a coisa refletida permanece embaçada”. Ver French Revolutionary Warfare, cit., p.20. 40 41 42
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etapa é a da conquista do poder numa ofensiva final. É fundamental notar que essas fases se sucedem muitas vezes sem fronteiras nítidas, pois a fluidez é a principal característica da guerra revolucionária. De todo modo, a guerre révolutionnaire fornecia uma régua com a qual se podia medir o agravamento da
ameaça revolucionária.43 O único modo de evitar a progressão desse processo seria derrotar os revolucionários com suas próprias armas. Assim, no centro da doutrina da guerre révolutionnaire aparece a idéia de guerra psicológica.44 Com esse breve resumo, indispensável para fundamentar a parte subseqüente, podemos passar ao exame do caso brasileiro. Quando o Sena desemboca no Rio
Talvez porque se constituíram num raro momento de paz nos quartéis, os anos de 1959 e 1960 configuram uma lacuna nos estudos sobre o pensamento militar brasileiro.45 Contudo, no aspecto que vem nos interessando aqui, os dois anos finais do governo Juscelino Kubitscheck foram de intensa atividade na Escola Superior de Guerra.46 Como registrou um historiador dessa instituição, “o estudo da Guerra Revolucionária, na ESG, teve início em 1959, através de uma conferência do então coronel Augusto Fragoso, que a reproduziu, em termos semelhantes, porém ampliados, no ano seguinte, já como general e assistente do comando”.47 De nossa perspectiva, essa aula pode ser considerada um marco divisório, na medida em que coloca um ponto final no período de acentuada indefinição no Idem, ibidem, p.12-15. Paret se baseia nos escritos do comandante Hogard. Idem, ibidem, p.21-25. Nesse sentido, ao examinar as relações entre as atividades da Escola Superior de Guerra e a “Revolução de 1964”, Alfred Stepan afirmava: “O sentido de crise sistêmica e especialmente de radicalização da política entre 1961 e 1964 fez com que as doutrinas de contra-insurgência da ESG aparecessem a muitos militares como muito mais relevantes e urgentes do que o tinham sido no período de alto crescimento e relativa paz política de 1956 a 1958”. A frase contém imprecisões. Antes de mais nada, porque a ESG não dispunha de nenhuma doutrina de contra-insurgência de 1956 a 1958 e o próprio termo – um anglicismo evidente - só passou a circular a partir do governo Kennedy. Em seguida, porque a afirmação deixa o leitor intrigado quanto ao que ocorreu no campo das doutrinas militares entre 1959 e 1960. Ver The Military in Politics . Changing Patterns in Brazil , Princeton/London, Princeton University Press, 1971, p.185. Ganha sentido aqui a declaração de Golbery do Couto e Silva a Alfred Stepan: “Como a ESG é organizada para analisar os problemas do país e elaborar soluções, é bastante natural que se um governo for fraco a ESG será contra ele. Porque os governos de Vargas, Kubitschek – o melhor deles - e Goulart foram fracos, a ESG era naturalmente contra eles, do ponto de vista intelectual. Nunca assumimos uma posição contra Quadros”. Alfred Stepan op., cit., p. 184. Antônio de Arruda, ESG. História de sua doutrina, São Paulo, GRD/INL-MEC, 1980, p.245. 43 44 45
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debate sobre as formas de guerra na ESG. 48 Sua idéia-força foi a tese de que os militares brasileiros deviam concentrar-se, daí em diante, num “novo” tipo de guerra: “hoje, o estudo da guerra revolucionária deve merecer, mormente em países em desenvolvimento como o nosso – importância paralela, quando não maior, ao da guerra nuclear. É sob a forma de GR – afirma o Cel Lacheroy – que o destino do mundo se decide na hora atual, e vai se decidir nos próximos 20 anos!”.49 E, mais adiante: “Ao estudo da GR, muito mais que ao da chamada guerra nuclear total, mormente nos países subdesenvolvidos, deve se dar a máxima importância”.50 Em seu aspecto mais geral, a aula do coronel Augusto Fragoso constituiuse numa apresentação da literatura francesa sobre a guerra revolucionária, sem menção aos estudos que se faziam à mesma época na Argentina. Suas fontes principais são o documento Contribution a une étude sur la guerre révolutionnaire , publicado pela Escola Superior de Guerra de Paris (1955-1956); o livro do coronel Gabriel Bonnet, Les Guerres Insurrectionelles et Révolutionnaires (1958);51 de Pierre Debray, La Troisiéme Guerre Mondiale (1958); de Claude Delmas, La guerre révolutionnaire (1959) e artigos de J. Hogard, Lacheroy, Ximenes, Berteil,
Cailloux, Renaud e outros, que vieram à luz nas revistas militares francesas, além de uma edição em francês da obra de Mao Tsé-Tung, Os problemas estratégicos da guerra revolucionária na China (1957, escritos de 1936).52
Nesse quadro, a exposição na ESG inicia com uma tentativa de distinção entre guerra insurrecional e guerra revolucionária, na qual, com base em J.Hogard, define-se que a GR é: 1) “a guerra da Revolução para a conquista do Em 1953, falava-se apenas em guerra total (que integra todos os meios do país) e guerra global (em que o mundo, apesar de dividido, é seu cenário), admitindo como formas de conflito: guerra fria, guerra psicológica (no sentido clássico de atuação sobre as forças de um inimigo externo), guerra biológica e guerra atômica. No ano seguinte, a escola discutiu sete tipos: guerra política. guerra psicológica, guerra econômica, guerra militar, guerra química, guerra biológica e guerra atômica. Em 1955, propôs-se a classificação em três formas – guerra total, guerra global e guerras atenuadas, que incluíam, por sua vez, a guerra colonial, guerra civil e guerra “por procuração”. Só em 1959, discutiu lado a lado as doutrinas de guerra americana e francesa, atribuindo a esta última os seguintes tipos: nuclear, revolucionária e convencional. Ver Idem, ibidem, p.257. Introdução ao Estudo da Guerra Revolucionária, cit., p. 12. Idem, ibidem, p.48. Publicado no Brasil, em 1963, pela Biblioteca do Exército em parceria com a editora de esquerda Civilização Brasileira, em tiragem de 9 mil exemplares, particularmente alta para a época. O coronel agradece a colaboração de dois diplomatas brasileiros, o ministro Ouro Preto e o secretário Roberto Assunção, na escolha e aquisição dessa “esplêndida” bibliografia para a Divisão de Assuntos Militares da ESG. Ver. p.1. 48
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mundo”, enquanto as GIs podem se restringir a um país e 2) a GR tem uma doutrina: a marxista leninista, ao passo que as GIs “tem processos empíricos”. O marco histórico da GR é a Revolução Chinesa de 1949 e seu teórico principal, Mao Tsé-tung. Ainda com base em Hogard, Fragoso enfatiza a ruptura da GR com a guerra clássica, na medida em que a primeira não é puramente militar e, ao invés de ser uma continuação da política, funciona como um apoio da política. Além disso, a GR tem um caráter basicamente insidioso e subliminar, tendo como elemento chave a atuação sobre as idéias, vale dizer, a ação psicológica. Citando Bonnet, o coronel brasileiro retorna à já citada fórmula que define a GR como a combinação entre guerra partisan e guerra psicológica. A GR é uma guerra particular, na medida em que nela o meio principal, o objetivo e a arma mais importante da GR são a própria população do país-alvo. Nesse sentido, não há GR sem a atuação de uma minoria militante e organizada e, em geral, apoio externo. A GR tem duas fases: a destrutiva, centrada na dissolução física e moral do corpo social e a construtiva, na qual surge a sociedade totalitária. Enfim, Fragoso retoma de Hogard o esquema já citado da cinco fases da GR. O aspecto que mais nos interessa na palestra de 1959 é a tentativa de inserir o Brasil no quadro geral da guerra revolucionária mundial. Com base em C. Montirian, a idéia mais ampla é a de que a GR atua em círculos cada vez maiores, que se afastam das fronteiras dos países socialistas. Nesse movimento, teria soado a hora da América Latina. Voltando ao esquema da Hogard, Fragoso lembra que a GR pode ser dividida em duas fases maiores: a pré-revolucionária, ou clandestina e a revolucionária, ou ostensiva. A primeira fase é a mais perigosa, porque nela as instituições vêem-se despreparadas para enfrentar a ameaça subversiva. Na visão do coronel Fragoso, o Brasil do final dos anos 50 já viveria o estágio pré-revolucionário. 53 A partir de uma leitura particular de documentos do partido, o texto da ESG prefere ver na estratégia pacifista e legalista do Partido Comunista a ante-sala da revolução violenta, distinguindo-se apenas por seu caráter subliminar, em que se procura arregimentar o movimento nacionalista para a Revolução.
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Nesse quadro, é impossível escapar à conclusão de que algo precisava ser feito a fim de preparar o Estado e as Forças Armadas para enfrentar a ameaça do inimigo interno. O problema é que as autoridades responsáveis, “em face do direito”, não dispõem “senão de campo de iniciativa muito limitada quanto à escolha das técnicas e dos meios legais a aplicar, enquanto os revolucionários consideram válidos todos os meios imagináveis de luta”. 54 Em tal contexto, haveria urgência, “para combater a subversão, para enfrentar a guerra revolucionária, desde o seu período clandestino, de uma legislação adequada”, na medida em que “não se pode manter em relação aos militantes da guerra revolucionária, o respeito das liberdades individuais asseguradas aos demais cidadãos e as medidas de proteção que beneficiam, na ação judiciária, os delinqüentes do direito comum”. Diante disso, a conclusão é simples: “O regime democrático característico do mundo livre, e tão prezado por todos nós, não favorece, pelo abuso de liberdades que, via de regra, propicia ao adversário, nem a parada preventiva, nem a resposta enérgica”.55 Por sua vez, as Forças Armadas, “organizadas, essencialmente, em função das servidões da guerra clássica contra um inimigo exterior” enfrentam sérios obstáculos para adaptar, uma vez que eclode a violência, “sua organização para a luta contra o terrorismo urbano e os bandos guerrilheiros nos campos”.56 Dada dessa situação, um dos problemas mais difíceis no combate à GR seria o papel a ser desempenhado diretamente pelas Forças Armadas. Algumas conclusões, no entanto, servem de ponto de partida: de um lado, é preciso criar serviços de informação capazes de antecipar os movimentos do inimigo interno; por outro, cabe às Forças Armadas construir uma organização de defesa interna do território, ao mesmo tempo em que cria unidades especialmente adestradas na luta anti-revolucionária. Porém, mais do que tudo, é preciso reconhecer que a preparação para a guerra anti-subversiva supera as atribuições tradicionais das Forças Armadas. A ação contra-revolucionária exigiria uma ação conjunta decidida de todos os poderes do Estado.
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Idem, ibidem, p.22. Idem, ibidem, p.40. Idem, ibidem, p.40.
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Como se vê, paralelamente à defesa da importância dessa nova forma de guerra, aparecem em embrião nas reflexões abrigadas na ESG brasileira, já em 1959, alguns temas caros à literatura francesa. A cautela exigida à ação do grupo militar conservador nos quadros do regime vigente no Brasil em 1959, ao lado da evidente particularidade do contexto colonial da luta do Exército francês na Argélia, pareciam impedir uma apropriação mais direta das lições francesas, bastantes explícitas quanto ao papel protagonista das Forças Armadas na guerra psicológica e na guerra de informações. No entanto, como se percebe pela síntese acima, a doutrina francesa veio consolidar a antiga desconfiança que as correntes militares anticomunistas nutriam face à democracia A ação psicológica: o público interno
Neste ponto, antes de prosseguir, vale registrar que os estudos sobre o processo político-militar dessa fase parecem perder aspectos fundamentais da evolução do quadro político das Forças Armadas. Mesmo trabalhos que se destacam pela importância que conferem à questão militar, centram-se basicamente em seus altos escalões, principalmente nos ministérios (da Guerra, da Aeronáutica e da Marinha) e nas chefias dos quatro exércitos. 57 Ficam de fora, assim, os processos atuantes no campo onde, por excelência, se define a cultura militar dominante, vale dizer, as escolas de comando e estado-maior, onde efetivamente se transmitem as idéias que perpassam toda a instituição e onde é possível medir a temperatura ideológica da organização militar. 58 Nossa tese aqui é clara. No final da década de cinqüenta, apesar do quadro de divisão militar, evidenciado pela luta de personalidades e pelas disputas no Clube Militar, os corações e as mentes de parte relevante do Exército, da Marinha e da Aeronáutica começavam a pender decididamente para uma doutrina cujo desenlace natural era, ou um governo civil que incorporasse as visões das Forças Armadas, ou um golpe militar. Para entender esse processo, convém voltar à história especificamente militar do período. 57
Veja-se, por exemplo, a competente narrativa de Edgard Carone, A República Liberal. II
evolução política (1945-1964), Sâo Paulo, Difel, 1985.
Um exemplo é a ênfase atual das Forças Armadas brasileiras na defesa da Amazônia, com a correlata doutrina da resistência. 58
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É verdade que uma palestra na ESG não significava necessariamente o início de uma mudança doutrinária importante. Contudo, a conferência do coronel Augusto Fragoso teve conseqüências institucionais difíceis de superestimar. Já a 2 de setembro de 1959, um ato do Chefe do Estado-Maior do Exército nomeava uma comissão para estudar a programação e a coordenação da instrução sobre guerra moderna, considerada aí sob dois aspectos: guerra atômica e guerra
insurrecional.59 Há indícios de que esse processo começara antes na Marinha. De todo modo, a evolução iniciada no final do governo JK teve continuidade até que, a 27 de julho de 1961, sob o breve governo de Jânio Quadros, o Estado-Maior das Forças Armadas consolidou em doutrina as definições esboçadas dois anos antes. Nessa data, ato do general Oswaldo Cordeiro de Farias, então Chefe do EMFA, aprova e recomenda a conceituação de guerra insurrecional, de guerra revolucionária, de subversão (guerra subversiva), de ação psicológica, de guerra psicológica e de guerra fria, constante no documento FA-E-01/61. 60 Já em sua primeira frase, o documento estabelecia que “a doutrina militar francesa enquadra três formas básicas de guerra” - convencional, nuclear e subversiva -, esclarecendo a seguir que era “vasta a literatura militar francesa sobre a última das três guerras acima”. E continuava: “Sob o peso dos acontecimentos na Ásia e na África do Norte, os pensadores militares franceses tiveram necessidade de se embrenharem no conhecimento desta forma de guerra que, embora possuindo raízes profundas na História, passara a ostentar uma nova fronde, alimentada pela seiva que lhe foi ministrada, principalmente, por Karl Marx, Lenine e Mao Tse-Tung”.61
Segundo ainda o texto do EMFA, apesar de constituir “uma excelente fonte de estudo e de consulta”, essa literatura ainda se ressentia de “uma terminologia básica uniforme”, o que vinha dando margem a divergências, “algumas vezes sérias”. O trabalho se referia em seguida à doutrina militar norte-americana com sua definição de três formas de guerra – convencional, nuclear e não convencional 59
Introdução ao Estudo da Guerra Revolucionária, cit., p.5, nota 1.
Presidência da República, Estado-Maior das Forças Armadas, 1961. Daqui em diante mencionado com a sigla acima. FA-E-01/61, p.1. 60
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– apenas para concluir que “a literatura militar norte-americana propor ciona parcos ensinamentos” sobre a última. Na continuação, a partir dos estudos da “literatura militar mundial, particularmente da francesa”, efetuados pela comissão mencionada acima, o documento expunha as idéias de vários autores – classificadas em dois grupos. As “doutrinárias” cotejavam, basicamente, as definições sobre guerra subversiva e guerra revolucionária, encontradas em autores como Boulnoie, Bonnet, Hogard, Étienne e Souyris, ao lado da documentação da Escola Superior de Guerra de Paris e de alguns autores norteamericanos.62 Já as “lexicológicas” compreendiam apenas as definições sobre insurreição, subversão e revolução encontradas nos principais dicionários da época. Em ambos os tópicos apareciam também definições de guerra fria, ação psicológica e guerra psicológica. A partir daí, o EMFA recomendava definir a guerra revolucionária nos seguintes termos: “È a guerra interna, de concepção marxista-leninista e de possível adoção por movimentos revolucionários diversos que – apoiados em uma ideologia, estimulados e, até mesmo, auxiliados do exterior – visam à conquista do poder através do controle progressivo, físico e espiritual, da população sobre que é desencadeada, desenvolvendo-se segundo um processo determinado, com a ajuda de técnicas particulares e da parcela da população assim subvertida”.63
Em contraste, a guerra insurrecional era caracterizada como a guerra interna que obedecia a processos geralmente empíricos, vale dizer, não estava apoiada numa ideologia. A subversão (também chamada de guerra subversiva) corresponderia ao estágio pré-revolucionário ou de preparação da guerra revolucionária. Enfim, definia-se a ação psicológica como o conjunto de ações de caráter defensivo centradas na formação moral e cívica da população, a fim de fornecer-lhe meios de fazer face à ofensiva da subversão ou da guerra psicológica. Esta era definida como o conjunto de ações de caráter ofensivo, com o alvo de minar a moral das tropas e da população inimiga. Assim, seis meses antes do ato do governo Kennedy que inaugurou a era da contra-insurreição – o NSAM 124 -, o EMFA já dispunha de uma conceituação 62 63
Principalmente George A. Kelly. FA-E-01/61, p.21.
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básica que orientaria a evolução posterior de sua doutrina da defesa interna. No plano doméstico, menos de um mês depois da publicação do documento do estado-maior brasileiro, a crise militar em torno da renúncia de Jânio Quadros, a resistência da Campanha da Legalidade e a posse de João Goulart contribuiriam para consolidar as visões que aqui vimos examinando. Na verdade, como já mencionamos, a renúncia apenas atrasou os planos em curso, no sentido de disseminação da doutrina da guerra revolucionária nas escolas de comando e estado-maior. O terreno para a semeadura já estava preparado pela publicação regular de artigos sobre o tema em periódicos de distribuição restrita aos estadosmaiores de cada força. Entre estes se destacavam Mensário de Cultura Militar , Boletim de Cultura Militar, Cultura Militar e Boletim de Informações, de
responsabilidade do Estado-Maior do Exército. 64 Em setembro de 1961, o primeiro desses periódicos lançou uma segunda edição especial – a primeira fora publicada em novembro/dezembro de 1960 dedicada à temática da guerra revolucionária. Composta aparentemente de palestras proferidas no âmbito do EME, a coletânea de cem páginas anunciava “trabalhos selecionados para servirem de base às ações educacional e de instrução necessárias para enfrentar a Guerra Revolucionária – caracterizada por uma base ideológica, materialista e pela utilização de uma técnica marxistaleninista”. Num passo a mais na definição doutrinária, destacava-se o artigo do contra-almirante Murilo Vasco do Valle e Silva, que apresentava o já mencionado esquema de J. Hogard sobre as cinco fases da guerra revolucionária, “que será adotado nos trabalhos referentes ao assunto”.65 O importante nesta altura é notar que a publicação dos textos sobre a guerra revolucionária não apenas tinha a função de divulgar a doutrina, mas já configurava o exercício da ação psicológica, destinada, seguindo o exemplo dos 5es Bureaux do Exército francês, a preparar ideologicamente as próprias forças, além de “assegurar a coesão do conjunto da nação e a desenvolver em cada um a vontade de lutar”. 66 Para uma lista desse artigos ver o panfleto de Pedro Brasil (certamente um pseudônimo), Livro Branco sobre a guerra revolucionária no Brasil , Porto Alegre, Livraria do Globo, 1964, pp.52-54. 64
Note-se a participação de uma das principais editoras brasileiras na época. Como se verá, isso abria caminho para a classificação mais precisa do estágio em que se encontrava a guerra revolucionária no Brasil após a posse de Goulart. Ver Mensário de Cultura Militar , Ano XIV, setembro de 1961. Peter Paret, op. cit., p.57. 65
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É essa a motivação mais geral do estágio sobre guerra revolucionária de agosto de 1962, do qual participariam noventa oficiais, principalmente do Exército, que usamos como abertura deste artigo. Na introdução ao novo número especial do Mensário de Cultura Militar que publicou seu conteúdo,67 ressaltava-se: “A importância da Ação Educacional e de Instrução contra a Guerra Revolucionária tem sido ressaltada pelo Estado-Maior do Exército, através de Diretrizes, Programas e Conferências, com o objetivo de preparar o Exército, psicológica e materialmente para opor-se a qualquer tipo de ação subversiva”. Ao mesmo tempo, salientava-se que as Forças Armadas estavam “alertas e vigilantes, irmanadas pelo mesmo ideal democrático”, mas era “imprescindível que estejam esclarecidas sobre as bases da ideologia comunista e sobre os processos e técnicas utilizados para a consecução de seus objetivos”. Nesse quadro, o objetivo desse tipo de estágios seria o de elevar o padrão de instrução, “com a criação de reflexos e atitudes adequadas”.68 Vale reproduzir na íntegra o programa:
Abertura do Curso (General Aurélio Alves de Souza Ferreira) Aspectos básicos da teoria marxista Aspectos essenciais da teoria econômica do comunismo e do socialismo Técnicas construtivas e destrutivas Propaganda Lavagem cerebral A arma psicológica Guerrilha Atividades logísticas na guerrilha Terrorismo e contraterrorismo Conquista da população e destruição da OPA Subversão Greves, sabotagem e contra-sabotagem 67 68
Ano XIV, Out 1962. Idem, ibidem, página de abertura, sem numeração.
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Contraguerrilha O Estado-Maior misto Estratégia revolucionária e contra-revolucionária Operações na guerra revolucionária Liderança na guerra revolucionária Um exemplo nacional A guerra revolucionária no Brasil Cooperação da Marinha Cooperação da Aeronáutica
Já vimos que o conteúdo foi baseado nos ensinamentos do Primeiro Curso de Guerra Contra-Revolucionária que oficiais brasileiros assistiram na Argentina, em outubro de 1961, juntamente com colegas de outros treze países latinoamericanos.69 No entanto, as aulas começam com a observação “coordenação e adaptação de” ou “coordenação e compilação de documentação existente no EME”, o que supõe acréscimos nacionais. 70 A palestra sobre guerra psicológica é uma exceção, pois, proferida por um almirante, baseia-se em textos norteamericanos. Por sua vez, a aula sobre “Guerra Revolucionária no Brasil” destinase a lembrar a versão do Exército sobre a “Revolução de 1935 no Nordeste”, tomada evidentemente como evidência das profundas raízes do comunismo no país.71 Aparentemente, o estágio conseguiu os objetivos almejados, pois foi repetido em 1963, com audiência ampliada e a participação de professores de Os três oficiais-instrutores que mencionamos no início do artigo são o major e depois tenentecoronel Valter Mesquita de Siqueira, o tenente-coronel Danilo da Cunha e Mello e o major Paulo Campos Paiva. As aulas sobre “Propaganda soviética”, “A estratégia revolucionária no quadro mundial”, “As operações na guerra revolucionária” foram atribuídas, respectivamente, aos tenentes-coronéis Walter Mesquita de Siqueira, José de Sá Martins e Carlos de Meira Mattos. Outras palestras tiveram colaboração do general Moacir Araújo Lopes (“Liderança na guerra revolucionária”), do almirante Murilo Vasco do Vale e Silva (“Guerra psicológica”) e do major Gustavo Morais Rego Reis (“Um episódio da guerra revolucionária no Brasil”). Aparentemente, a urgência que assumiu, aos olhos das Forças Armadas brasileiras, a luta contra o comunismo, explica a importação de um curso ministrado na Argentina, tradicional rival militar brasileiro. Afinal, no ano anterior, o já mencionado documento do Estado-Maior destinado à conceituação das formas de guerra dizia que “a Grã-Bretanha e a Argentina seguem em grandes linhas, a orientação sobre o assunto consubstanciado no pensamento francês”. Ver FA-E-01/61, p.2. Vários autores discordariam da equiparação entre as doutrinas inglesa e francesa. Ver, por exemplo, John Shy e Thomas W. Collier, op. cit. e Larry E. Cable, Conflict of Myths. The development of American Counterinsurgency Doctrine and the Vietnam War , New York/London, New York University Press, 1986. Note-se a caracterização do episódio do levante comunista como “revolução”, para adaptá-lo melhor à doutrina francesa, e não “intentona comunista”, termo oficial do discurso militar. 69
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Filosofia civis, para aprofundar temas que fugiam à doutrina militar propriamente dita.72 Além dos estágios, a documentação publicada nos periódicos acima era enviada “regularmente para os Estados-Maiores Regionais, servindo de base para a instrução de oficiais, ao longo do ano”. Assim, os ensinamentos franceses desceram das alturas da Escola Superior de Guerra até chegar a tenentes e sargentos – a estes, evidentemente, com os devidos cuidados, dada a situação de efervescência política vigente nesses escalões em 1962-64. 73 Aparentemente, a confiança no “esquema militar” de Goulart impediu a esquerda brasileira de avaliar a fundo a gravidade do panorama ideológico militar nessa fase. 74 De toda maneira, a importância da disseminação institucional da doutrina que aqui analisamos para a unificação das forças golpista parece difícil de superestimar. Vale reproduzir o testemunho de um oficial que ocupou cargos importantes no regime do pós-64: “No início de 1964, já sentíamos que o confronto era inevitável. Do Rio de Janeiro, em suas novas funções, o general Taurino mantinha conversações com seus pares. Em carta que me enviou, de próprio punho, o general Taurino dava notícia de um memorial a ser dirigido ao Presidente da República, por intermédio do ministro da Guerra, e que seria assinado por todos os generais da ativa dispostos a expressar sua preocupação com os rumos que a nação estava tomando”.
E continua:
Como registrou em suas memórias o então coronel Jarbas Passarinho “em face do êxito obtido, o Estado-Maior do Exército empreendeu, em 1963, um novo curso, já agora com a participação maior de oficiais das três Forças Armadas, e com a colaboração de mestres civis, como Emerson Nunes Coelho, Temístocles Brandão Cavalcanti e Alfredo Lamy, que desenvolveram temas como: A doutrina social da Igreja, Fundamentos do Marxismo e Ações Jurídicas para a Preservação da Democracia”. Ver Um híbrido fértil , Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 1996, p.163. A colaboração civil é mencionada como fundamental também no curso ministrado na Argentina, que contou, segundo o major Paiva, com a colaboração de professores da Universidade de Buenos Aires “homens versados e habituados à matéria”. Ver Mensário de Cultura Militar, Ano XIV, Out 1962, aula “Aspectos básicos do marxismo”. Na França, como mostra o já mencionado Raoul Girardet, o mesmo ocorreu. Jarbas Passarinho, op. cit., p.164. O autor, que era oficial de estado-maior no Pará, lembra: “Cabia-me, como oficial de operações, propor o programa de instrução dos oficiais e sargentos separadamente. Aproveitando o material que vinha do Estado-Maior do Exército, programei algo semelhante, ou seja, um estudo objetivo das diversas fases e formas da Guerra Revolucionária, mas dei ênfase ao estudo das doutrinas sociais contemporâneas em conflito”. Ver op. cit., p.165. Para Edgard Carone, em fins de 1963, “o preparo do golpe vai se tornando tão acintoso que os seus reponsáveis civis, contando, evidentemente, com a simpatia militar, tomam atitudes cada vez mais agressivas e de despudonor total”. Ver op. cit., p.203. 72
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“No Estado-Maior do Exército, seu chefe, o general Castello Branco, encerrara um novo simpósio sobre Guerra Revolucionária. Comunicando-me o evento, o coronel Curvo diziame que o encerramento fora ‘a portas fechadas e com aviso prévio de que o assunto seria secreto, com recomendações de não se comentar o assunto’. O coronel Curvo me adiantava, porém, que ‘o general Castello botara o dedo na moleira, falando claramente sobre o que estava acontecendo no país’”.75
A ação psicológica: o público externo
O progressivo fechamento interno foi acompanhado pela abertura da ação psicológica ao público civil, como parte da ação psicológica golpista. Assim, a partir de 1961, começam a ser publicados livros e panfletos destinados a um público mais amplo, cujo primeiro exemplo foi, talvez, Democracia e comunismo , coletânea de artigos extraídos de A Defesa Nacional , editada como “publicação autorizada pelo Estado-Maior do Exército”, sem indicação de editora ou local de publicação. O livro de 174 páginas tinha como ilustração de capa um mapa do Brasil sobre o qual avançava no horizonte uma garra vermelha de unhas afiadas, contida por um soldado que, de baioneta em riste, a feria na carne. Os dez artigos da coletânea procuravam divulgar a cartilha das técnicas da guerra psicológica comunista. Na introdução, “Como vencer o comunismo”, o coronel Ayrton Salgueiro de Freitas afirmava “o comunismo só pode existir na obscuridade e o meio mais eficaz que temos para combatê-lo é expô-lo, onde ele exista. Tragam a conspiração para a luz, revelem os defeitos de sua filosofia, mantenham pressão sobre ela, obrigando-a a retirar-se”.76 Já em 1964, o folheto de 54 páginas, Livro Branco sobre a guerra revolucionária no Brasil , reproduz quase literalmente as
discussões militares sobre a doutrina francesa – técnicas destrutivas, técnicas construtivas, fases de desenvolvimento, guerra psicológica, parada e resposta, etc – para em seguida demonstrar, numa longa lista de trinta e oito episódios relativos às greves e crises do período, que a guerra revolucionária já existia no país. O texto se encerra com um apelo: “Faz este livro circular”. O fundamental a notar aqui é o trânsito das idéias de dentro para fora das Forças Armadas, o que contraria teses até hoje muito influentes, que enfatizam a dependência intelectual e política dos oficiais conservadores em relação a seus 75 76
Idem, ibidem, p.176.
Democracia e comunismo, p.7.
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aliados civis. Não por acaso, já em outubro de 1961, ao substituir na chefia do Estado-Maior das Forças Armadas o general Oswaldo Cordeiro de Farias, o general Osvaldo de Araújo Mota assim colocou a questão de forma um tanto cifrada: “A política social do mundo influi na doutrina militar a eleger e determinar uma atitude a manter. Assim, se não nos faltam a nós, militares, inteligência, observação e conhecimentos, para formular, oportunamente, aquele conceito, dentro de nossas reais possibilidades e dos compromissos internacionais, n ão nos deve faltar e nos conforta saber que não nos faltará a constante vigilância de uma ideologia e a contaminação de uma doutrina, que, cerceando a liberdade e ameaçando a paz, repugna o espírito cristão de nossa gente”.77
A frase tem sintaxe confusa, mas sentido claro. Inteligência, observação e conhecimentos tinham levado os militares a buscar em suas próprias doutrinas a justificativa para a intervenção na política. A crise da renúncia e a posse de Goulart sob um regime parlamentarista, a volta do presidencialismo e o debate sobre as reformas de base, tudo isso serviu para confirmar as visões doutrinárias sobre o avanço da guerra revolucionária no Brasil. Faltava apenas traduzir a árida linguagem dos documentos militares para o mundo civil, se possível com o brilho da retórica parlamentar. No começo de 1964, isso se fez pela voz nada menos que do presidente da União Democrática Nacional (UDN), o partido mais importante da oposição a Goulart – e o mais próximo dos militares. Assim, embora a crônica política da época insistisse em que “o Sr. Bilac Pinto, Presidente da UDN, assegura que restringe seus contatos à exclusiva área política civil, jamais mantendo conversas com generais ou outras patentes das Forças Armadas”,78 em discurso proferido na Câmara dos Deputados a 23 de janeiro de 1964, aquele político conjurou os heróis intelectuais dos militares para aguçar seus argumentos contra o que considerava o avanço do golpismo do presidente da República e de seu cunhado, o deputado federal Citado a partir de matéria de O Estado de S. Paulo , de 17-10-1961 em Edgard Carone, op. cit., p.177-78. Carlos Castello Branco, Introdução à Revolução de 1964, A queda de João Goulart, Tomo 2, Rio de Janeiro, Artenova, 1975, p. 146, nota de 13 de dezembro de 1963. 77
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Leonel Brizola.79 Sem maiores escrúpulos, citou profusamente nomes e fontes militares já nossos conhecidos. Em seu discurso de janeiro de 1964 e nos que fez em seguida, a guerre révolutionnaire saiu dos currículos das escolas militares e entrou diretamente, como arma da guerra psicológica, no processo de agitação civil-militar que desembocou no golpe.80 Tudo indica que o oficial de ligação entre a cúpula do Exército e a ala mais radical da UDN foi o general Antonio Carlos Murici. De todo modo, O jornalista Carlos Castello Branco, do Jornal do Brasil , dizia em nota publicada no mesmo dia em que o parlamentar faria seu primeiro discurso sobre o tema na Câmara: “O sr. Bilac Pinto, cuja atualização em matéria de terminologia política é louvada pelo sr. Pedro Aleixo, está com a pasta abarrotada de literatura sobre a guerra revolucionária. São Livros de Mao Tsé-Tung sobre guerrilhas, estudos do EstadoMaior do Exército brasileiro, revistas militares norte-americanas e uma tese do general Murici [...]”. 81 A leitura da série de discursos de Bilac Pinto sobre a guerra revolucionária em curso no Brasil permite supor que a pasta do deputado continha justamente os documentos que analisamos neste artigo. Na abertura de sua primeira intervenção na Câmara, o líder da UDN, conspirador histórico e aliado antigo da corrente militar conservadora,82 alegou que “estudos de oficiais superiores das nossas Forças Armadas, a respeito da marcha da guerra revolucionária no Brasil” tinham despertado sua “apreensão relativamente à normalidade da vida constitucional do país”.83 A partir daí, o parlamentar usou livremente os teóricos franceses como fonte para sua pregação já francamente golpista. Nesse sentido, o argumento central do discurso de 23 de janeiro era que a guerra revolucionária entrara em sua fase aguda no Brasil, a terceira etapa da
A estratégia dos golpistas civis de associar Brizola e Goulart – atribuindo ao governo federal uma dupla personalidade - foi inaugurada pelo próprio Bilac Pinto em discurso proferido na Câmara em 25 de junho de 1963. Ver o pronunciamento em Bilac Pinto, A guerra revolucionária, São Paulo, Forense, 1964, livro publicado depois do golpe de março, com patrocínio oficial. Note-se que outra importante editora brasileira associava-se aqui às forças que derrubaram Goulart. Para a repercussão dos discursos, ver Edgard C arone, op. cit., p. 203. Ver Carlos Castello Branco, op. cit., p.168. Cf. Thomas Skidmore, Brasil: de Getúlio a Castelo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982, 7 a edição, p.283. Bilac Pinto, op. cit., p.63. 79
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escala criada pelo coronel J. Hogard, do Exército francês.84 Com olhos na divulgação de seu pronunciamento na imprensa, assegurada pelo apoio de vários grandes jornais à mobilização golpista, Bilac Pinto descreveu em detalhe as cinco fases de Hogard, na versão que recebeu de um artigo militar recém-publicado. 85 Em seguida, apresentou documentos referentes aos “grupos dos onze” de Leonel Brizola como prova de que as duas etapas da GR – consolidação da infraestrutura e organização da rede de resistência - já tinham sido vencidas. Diante disso, citando outro texto militar 86, pregou a necessidade de organizar os civis da frente anticomunista. Ao mesmo tempo, com base em denúncia que ele próprio formulara em entrevista amplamente divulgada nos maiores jornais do país, o deputado afirmou que o governo estava fornecendo armamentos aos sindicatos para uso no momento do golpe comunista que se preparava. 87 Isso fundamentou seu diagnóstico de que o Brasil já ingressara na terceira etapa da guerra revolucionária, que ele complementou com os seguintes traços: “1) ampla infiltração comunista em toso os escalões do governo; 2) infiltração comunista nas Forças Armadas; 3) ampla e ostensiva infiltração comunista nos partidos”. A tudo isso ele acrescia a “promoção de greves, com motivação política ostensiva” e o “controle das organizações estudantis e trabalhistas”. Seu argumento final vinha em seguida: no Brasil, a guerra psicológica estava em estado avançado e sua mensagem central eram as reformas de base. 88 Para os fins deste artigo, parece que essas evidências já são suficientes. À guisa de epílogo, poderíamos lembrar a nova intervenção do presidente da UDN na Câmara dos Deputados, em 26 de fevereiro de 1964, quando voltou ao tema e reproduziu literalmente, para o plenário e para a opinião pública nacional, a definição de guerra revolucionária do já citado documento FA-E-01/61. 89 Por sua Uma evidência interessante de como essas idéias ainda eram desconhecidas dos civis é o erro do geralmente muito bem informado Carlos Castello Branco, que referiu-se à denúncia de Bilac Pinto sobre a “terceira etapa na seriação formulada por Togard” (grifo do próprio jornalista). Op. cit., p.168. “Tenho em mãos o estudo do Tenente-Coronel Antônio Fonseca Sobrinho, publicado pelo Estado-Maior do Exército”, explicou o deputado. Op. cit., p.67. “A guerra revolucionária e a participação dos civis”, de Antonio Carlos Murici. Op. cit., p.68. A denúncia mostrou-se depois totalmente infundada e, na ocasião, foi o principal alvo das críticas do líder do governo, o deputado Doutel de Andrade, que exigiu repetidas vezes em plenário para que Bilac dissesse onde estavam as armas. Ver, por exemplo, op. cit., p. 71 Idem, ibidem, p.73-76. Idem, ibidem, p.112. 84
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folha de serviços, Bilac Pinto ganhou do regime militar, depois do golpe de 31 de março, a presidência da Câmara dos Deputados, por intervenção direta do presidente Castello Branco. O fato ocorreu em fevereiro de 1965. 90 Sete meses depois, o próprio general Castello decretou, com a Ato Institucional número dois, o fim do sistema partidário e da própria UDN. A partir daí, Bilac Pinto e seus colegas da UDN perderam definitivamente qualquer veleidade de influenciar os rumos políticos do país. Uma leitura mais atenta do comandante Hogard (“é tempo de perceber que a ideologia democrática tornou-se impotente na França atual”) talvez tivesse alertado o arauto civil do golpe para a visão que os militares tinham dos políticos em geral e da democracia liberal em particular. De um modo ou de outro, em outubro de 1965, o feitiço enfim matou o feiticeiro. Considerações finais
Neste artigo, procuramos enfocar o processo que levou ao golpe de 1964 por um ângulo diferente, a partir da evolução da cultura militar e sua influência na unificação do campo golpista nas Forças Armadas. Essa perspectiva, a nosso ver, permite alguns ganhos historiográficos. Por um lado, possibilita corrigir a visão dominante sobre a influência americana no campo das idéias militares. Sem negar o apoio americano ao golpe, procuramos mostrar como as idéias francesas entraram antes no Brasil e na Argentina e revelaram-se mais úteis às necessidades dos grupos militares anticomunistas. Depois do golpe, essa influência permaneceu forte até pelo menos o final dos anos 70 e a análise do papel das idéias da guerre révolutionnaire na criação do aparato repressivo, na justificação interna da tortura e, finalmente, no combate à guerrilha do Araguaia é um tema que não procuramos enfrentar aqui mas ao qual pretendemos voltar no futuro. Por outro lado, o estudo dos processos militares no pré-golpe consolida a visão de que os militares anteciparam-se aos civis na definição de uma visão de mundo e de um ideário que conduzia fortemente à necessidade de um golpe de Estado, ou à eventualidade de um Executivo civil que implementasse a política militar da guerra revolucionária. Em agosto de 1961, a renúncia de Jânio afastou esta última possibilidade. Por último, o estudo da evolução da doutrina francesa no Ver Thomas Skidmore, Brasil: de Castelo a Tancredo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989, 3 a edição, p. 93. 90