Contraponto de espécies a duas vozes no paradigma polifónico vocal de meados do séc. XVI Princípios gerais – Texto de apoio ao 1º ATC – Eurico Carrapatoso [ Unidade de Cantus Firmus: Semibreve | Compasso 2/1 ou 4/2 ]
1ª ESPÉCIE 1. 2. 3. 4. 5. 6.
Nota de contraponto contraponto contra nota do Cantus Cantus Firmus (CF) Começa e acaba em consonâncias perfeitas Todos os intervalos são consonantes consonantes (u, 5ª, 8ª, 3ª e 6ª) Privilegiar o movimento contrário entre as duas vozes Não repetir sons (a 2 vozes); esta restrição restrição não se coloca coloca a 3 ou mais mais vozes Não fazer mais que 2 saltos melódicos de 3ª numa dada direcção. Este princípio aplica-se a todas as espécies. 7. Compensar em sentido contrário os intervalos melódicos iguais ou superiores à 4ª, preferencialmente por grau conjunto; este princípio aplica-se também a todas as restantes espécies 8. Usar numa primeira fase apenas sons naturais (sem sustenidos nem bemóis); este princípio aplica-se a todas as espécies subsequentes, subsequentes, excepto à 5ª, onde a re-introdução da musica ficta contribuirá para a elevação do mero exercício académico das primeiras espécies à qualidade idiomática da música quinhentista propriamente dita
Ex. 1: realização de 2 exercícios em 1ª espécie
2ª ESPÉCIE 1. Duas notas de contraponto contra nota do CF 2. Começa e acaba em consonâncias perfeitas 3. Define-se nesta espécie a pulsação principal e a secundária, ou seja, o Tactus Principal ( TP), correspondente à 1ª e 3ª mínima de cada compasso, articuladas simultaneamente com Cantus Firmus; e o Tactus Secundário ( TS), correspondente à 2ª e 4ª mínima de cada compasso
Ex. 2: sucessão de TP e TS
4. A carga métrica de TP é [++]; a carga métrica de TS é [+] 5. Nas interpretações mais qualificadas da música quinhentista disponíveis em suporte discográfico, o valor metronómico médio do batimento da mínima oscila entre 80 e 104 1 [ Contraponto de Espécies a 2 vozes – texto de apoio – Eurico Carr apatoso © ]
6. Todos os intervalos em Tactus Principal (TP), ou seja, a 1ª e 3ª mínimas de cada compasso, são consonantes (u, 5ª, 8ª, 3ª e 6ª) 7. A 2ª e 4ª mínimas (TS) podem ser consonantes ou dissonantes. Se forem dissonantes terão de estar, contudo, precedidas e sucedidas por grau conjunto, configurando o caso ou de nota de passagem , ou o caso de ornato (superior ou inferior) 8. Nos exercícios futuros a 3 ou mais vozes todas as mínimas serão consonantes 9. Não repetir sons 10. A última duração é igual à do CF e articulada simultaneamente
Ex. 3: realização de 2 exercícios em 2ª espécie
3ª ESPÉCIE 1. Quatro notas de contraponto contra nota do CF 2. Começa e acaba em consonâncias perfeitas 3. A 1ª, 3ª, 5ª e 7ª semínimas de cada compasso (ímpares), articuladas em [++] e [+], são sempre consonantes 4. A 2ª, 4ª, 6ª e 8ª semínimas de cada compasso (pares), articuladas em [-] e [- -], podem ser consonantes ou dissonantes. Se forem dissonantes terão de estar, contudo, precedidas e sucedidas por grau conjunto, configurando o caso ou de nota de passagem ou o caso de ornato (superior ou inferior) 5. Para garantir a suavidade do contorno melódico vocal, não formar o salto em direcção de [-] para [+] e, principalmente, de [- -] para [++] (NB que bastam 2 semínimas para formar uma dada direcção)
Ex. 4: salto em direcção (errado)
6. A Nota Cambiata (NC) é uma célula melódica constituída por 4 sons, com um contorno sempre estável (2ª descendente, 3ª descendente, 2ª ascendente), muito característica do idioma quinhentista, e que contém as únicas excepções às normas dadas no ponto 4 e 5 (dissonância sucedida por salto e, ao mesmo tempo, salto em direcção de [-] para [+]
Ex. 5: Nota Cambiata, idiomaticamente característica (e, por essa razão, correcta)
7. Não repetir sons 2 [ Contraponto de Espécies a 2 vozes – texto de apoio – Eurico Carr apatoso © ]
8. Privilegiar o grau conjunto. Ter consciência que os saltos, desde que usados com moderação (e compensados, sempre que necessário), podem enriquecer a melodia, tornando-a eventualmente mais expressiva e de contorno provavelmente mais carismático (sugestão: ~90% de grau conjunto para ~10% de saltos) 9. Um problema que pode ficar exposto nesta espécie rápida é o da falsa relação de trítono melódico, também designado como trítono melódico por movimento directo. Por isso, dar particular atenção ao contorno das melodias formado pelo intervalo de 4ª aumentada entre os vértices Fá e Si (ou Sol e Dó#, no caso de se utilizar musica ficta): nesta situação, o trítono que delimita o ambitus da melodia fica forçosamente exposto, sendo considerado errado à luz do paradigma melódico quinhentista
Ex. 6: Trítono melódico exposto (errado)
10. O problema do trítono melódico fica resolvido a partir do momento em que os sons da envolvente tritónica não formem o vértice melódico (nenhum dos sons, idealmente: nem o Fá, nem o Si sobre esse Fá)
Ex. 7: Trítono melódico contido num ambitus maior, formado pelo contorno de 6ª entre os vértices Mi e Dó (correcto)
11. Esta situação delicada do idioma melódico quinhentista não se coloca na posição invertida: descendo de Fá para o Si. Desta maneira não se forma o TríTono, uma palavra que significa, etimologicamente, TrêsTons inteiros melódicos (na mesma direcção). Descendo de Fá para Si, forma-se uma sequência intervalar absolutamente pacífica para esta época: ½ tom, 1 tom, 1 tom e ½ tom, na alternância característica, aliás, do diatonismo das escalas em uso 12. A última duração é igual à do CF e articulada simultaneamente
Ex. 8: realização de 2 exercícios em 3ª espécie
4ª ESPÉCIE 4ª Espécie A - livre 1. Semibreve articulada em TS contra semibreve do CF 2. Síncopa apenas métrica 3. A 1ª duração em TP é substituída pela pausa de mínima 4. TS é sempre consonante 5. Na 4ª Espécie A, o TP também é consonante 3 [ Contraponto de Espécies a 2 vozes – texto de apoio – Eurico Carr apatoso © ]
6. Começa e acaba em consonâncias perfeitas 7. A última duração é igual à do CF e articulada simultaneamente
Ex. 9: realização de 2 exercícios em 4ª espécie livre
4ª Espécie B – não livre: RETARDO 1. Semibreve articulada em TS contra semibreve do CF. A 1ª duração em TP é substituída pela pausa de mínima 2. Síncopa métrica e também harmónica 3. Começa e acaba em consonâncias perfeitas. A última duração é igual à do CF e articulada simultaneamente 4. O TS é sempre consonante 5. Na 4ª espécie B, o TP é dissonante, situação designada por retardo 6. O retardo tem 3 momentos. 1º: Preparação - forma-se no TS imediatamente anterior, em consonância harmónica (u, 3ª, 5ª, 6ª e 8ª)
2º: Retardo propriamente dito , isto é, dissonância em TP [+ +] que se constituiu como um recurso expressivo e muito distintivo da música renascentista (relativamente à música de épocas anteriores, como a da Ars Nova, por exemplo, em que as dissonâncias são sempre não-acentuadas na métrica); é o retardo, ainda, um elemento fundamental da forma, desenhando o gesto cadencial e fazendo dele parte intrínseca ( Norma: não há cadência na música renascentista sem retardo) 3ª: Resolução – forma-se no TS subsequente, sempre por grau conjunto descendente , em consonância harmónica. Se houver uma sucessão de retardos, a resolução transforma-se na preparação do próximo retardo
Ex. 10: realização de uma 4ª espécie b) [retardo]
7. Os paradigmas principais do retardo são: 7 6 ; 4 3 ; 98* ; 2u*
Ex. 11: paradigmas de retardos renascentistas [sobre o CF] 4 [ Contraponto de Espécies a 2 vozes – texto de apoio – Eurico Carr apatoso © ]
8. Os 2 últimos casos assinalados com asterisco ( ser muito expressivos a 3 ou mais vozes:
98* ; 2u* )
são débeis a 2 vozes, mas podem
Ex. 12: nesta situação, o 98 não é pobre. Pelo contrário, é forte, na medida em que se formam 2 tensões: a já referida tensão 98, entre o tenor e o baixo (NB que esta é a única tensão que se exprime na análise, porque é aquela que se forma com o baixo), mas também a tensão 23 que se forma entre o alto e o tenor, o que torna a situação sofisticada. Por isso é muitas vezes procurada pelos mestres do Renascimento. O exemplo expande-se até à cadência em Ré de uma forma paradigmática do séc. XVI: cadência perfeita no baixo, designada por basizans (Lá Ré), cantizans 1 ficto no tenor (Dó# Ré) e tenorizans no alto (Mi Ré). Esta é apenas uma pequena amostra da riqueza da matéria a 3 vozes que abordaremos mais tarde nesta disciplina.
9. O único caso de retardo no baixo usado efectivamente pelos mestres do Renascimento é o 23 (ou, com o deslocamento de 8ª, o 9 10 ), apesar de outros casos teoricamente possíveis
Ex. 13: 23 recurso muito expressivo pelo facto de estar aplicado à voz do baixo, e precioso na justa medida em que é o único caso de síncopa métrico-harmónica aplicada ao baixo no Renascimento
10. Eis uma realização de 2 exercícios de 4ª espécie não livre:
Ex. 14: realização de 2 exercícios com retardo. Nota: pela própria imposição das leis que regem o retardo, estes exercícios académicos são sequenciais / repetitivos, por força da demonstração académica do caso em estudo. É comum associar-se repetição à monotonia. Se por um lado é compreensível, por outro lado devemos convir que tudo depende das intenções composicionais e do dedo-de-mestre do compositor. Este carácter sequencial / repetitivo foi, aliás, muitas vezes procurado pelos compositores do Renascimento. Já observável em Josquin des Prés (~1440 - 1521), por exemplo, ou na música do mestre castelhano Tomás Luis de Victoria (1548 - 1611), que anteviu um dos mecanismos clássicos de tensão discursiva da música posterior dos períodos Barroco, Clássico, Romântico e Moderno (Vivaldi, Bach, Mozart, Beethoven, Mahler, Schoenberg): a Sequência. Este recurso fundamental firma-se na acumulação de energia que resulta da repetição, precisamente. Melhor ainda: da reiteração, que é uma repetição em espiral de um dado gesto musical. Essa energia acumulada em vórtice é conducente, por norma, ao clímax, ou seja, ao ponto culminante, de tamanha importância para a experiência catártica da música. É nestes espasmos expressivos e nestas secções de ouro [ sectio aurea], cozinhados pela repetição (e consequente acumulação de energia que tal repetição de processos acarreta), que, tantas vezes, vivemos o êxtase artístico e a verdadeira plenitude estética.
5 [ Contraponto de Espécies a 2 vozes – texto de apoio – Eurico Carr apatoso © ]
5ª ESPÉCIE 5ª Espécie a) – estilizada 1. Mistura das 4 espécies anteriores, justapostas. Por norma segue um dos padrões mais habituais da frase quinhentista: arranca lenta, acelera em seguida eventualmente (mas não necessariamente) e trava em síncopa (retardo) na cadência 2. Observam-se as leis de cada espécie anteriormente dada 3. Começa e acaba em consonâncias perfeitas e a última duração é igual à do CF, articulada simultaneamente 4. As cadências usam habitualmente a musica ficta para formar o ½ tom em cantizans 1 (aquele que ascende à 8ª) 5. A musica ficta para formar o ½ tom em cantizans 2 (aquele que ascende à 5ª) entrou, todavia, em desuso já na 2ª metade do séc. XV, sendo um arcaísmo raro em princípios de séc. XVI e praticamente inexistente na 2ª metade desse século, já considerado então e teoricamente como uma falsa relação harmónica de trítono
Ex. 15: utilização de cantizans 1 (Dó #Ré): correcto
Ex. 16: utilização de cantizans 2 (Sol #Lá): incorrecto: a falsa relação harmónica de trítono estabelece-se entre o Sol # no tenor e o Ré subsequente do baixo
5ª Espécie b) – livre ou contraponto florido – NOVAS POSSIBILIDADES 1. O 1º caso de novas possibilidades ao nível do ritmo, é o uso de durações maiores que a unidade de CF: o dobro, o triplo e o quádruplo: breve, breve pontuada (ou ligada a semibreve) e a longa, respectivamente
Ex. 17: a breve e a breve ligada à breve (a longa), são recursos preciosos de enriquecimento da textura polifónica do ritmo. É necessário esclarecer que qualidade melódica não implica necessariamente quantidade melódica. Longe disso. Por vezes, as melodias mais carismáticas e expressivas são formadas por notas comuns entre acordes sucessivos, seja no Renascimento, seja em Mozart (linha de tenor da 1ª frase do Ave Verum, por exemplo), ou em Fauré (vd. 1ª intervenção do barítono solista em Hostias do Requiem); também em Antônio Carlos Jobim (vd. Eis aqui este sambinha feito numa nota só); ou mesmo em Ligeti (vd. as notas longas de Lontano, para grande orquestra, sobre uma textura movediça, cheia de pequenas melodias micro-polifónicas, às dezenas, sobrepostas: nesse contexto são as notas longas, curiosamente, que imperam, incomparavelmente mais importantes na textura que as outras dezenas de melodias mais agitadas e sobrepostas. Essas notas longas tornam-se o verdadeiro hauptstimme (do alemão: voz principal) do discurso musical.
6 [ Contraponto de Espécies a 2 vozes – texto de apoio – Eurico Carr apatoso © ]
2. O 2º caso de novas possibilidades ao nível do ritmo é o uso do ponto de aumentação que se aplica a 3 durações: a) ponto de aumentação aplicado à breve
Ex. 18: a breve pontuada aparece aqui decomposta (breve ligada à sua metade, a semibreve), em virtude de, ao invés da escrita rítmica mensural usada no Renascimento, usarmos hoje o conceito da barra de compasso. No Renascimento, os valores rítmicos exprimem sempre a sua duração intrinsecamente. Seria esta uma apresentação mais próxima à moda da época:
Ex. 19: notação mensural
b) ponto de aumentação aplicado à semibreve: só na condição da semibreve ser articulada em TP [+ +]; o ponto de aumentação nunca se aplica à semibreve articulada em TS, ou seja, em [+], pois formar-se-ia uma síncopa descompensada
Ex. 20: semibreve pontuada articulada em TP (correcto) e semibreve pontuada articulada em TS (errado)
c) ponto de aumentação aplicado à mínima, possível, indiferentemente, em TP e TS; este último caso é bem expressivo e cinético em termos do impulso rítmico resultante
Ex. 21: mínimas pontuadas, ora articuladas em TP, ora articuladas em TS: o efeito é sempre dinâmico e expressivo. Repare que, devido aos acentos resultantes da mínima pontuada e à sua colocação, de 3 em 3 pulsações, se pode sentir uma métrica 3/2 dentro do compasso 4/2. O efeito ternário só desaparece na 4ª mínima do 4º compasso. Essa ambiguidade é típica do Renascimento.
d) O ponto de aumentação não se aplica à semínima (1/4 da unidade de CF) ou a qualquer duração menor.
7 [ Contraponto de Espécies a 2 vozes – texto de apoio – Eurico Carr apatoso © ]
3. Só se liga uma duração a outra que tenha um valor igual ou metade do seu valor . Nunca se liga uma duração a outra maior, bem como a qualquer fracção menor que a metade (¼ ou menor) 4. O valor mínimo unitário da síncopa é a semibreve, o caso mais recorrente. Também se usam síncopas com o valor de breve. Não há, contudo, síncopas com o valor de mínima, ou menor.
Ex. 22: vários casos de síncopas (a síncopa com o valor unitário de semibreve é a base, aliás, da 4ª espécie) [errata: no 1º caso deste Ex. 22, onde se lê sincopa com valor unitário de semibreve , deve ler-se sincopa com valor unitário de breve]
5. O ritmo trocaico é usado livremente: semibreve pontuada seguida de mínima (vd. 1º comp. do ex. 20); ou mínima pontuada seguida de semínima (vd. vários casos no ex. 21) 6. O ritmo jâmbico não é usado : mínima seguida de semibreve pontuada; ou semínima seguida de mínima pontuada, por exemplo
Ex. 23: ritmos jâmbicos errados (curtolongo: síncopa descompensada)
7. O ritmo dáctilo é usado livremente: mínima seguida de 2 semínimas; ou mínima pontuada seguida de 2 colcheias, por exemplo 8. O ritmo anapesto não é usado : 2 semínimas seguidas de mínima; ou 2 colcheias seguidas de mínima pontuada, por exemplo
Ex. 24: ritmos dáctilos e anapestos
9. O anapesto pode ser usado, contudo, se compensado em síncopa . Este gesto rítmico é, aliás, muito característico da polifonia vocal do Renascimento, frequentemente associado ao uso do retardo, provocando até a sua ocorrência como se fosse um catalisador. O anapesto, visto noutro ângulo, consiste na interrupção do fluxo da 3ª espécie (o mais desmultiplicado e acelerado dos ritmos renascentistas) em TS, ou seja, na pulsação não principal; se não for compensado em síncopa, ficaremos sempre com uma sensação de paragem abrupta de algo 8 [ Contraponto de Espécies a 2 vozes – texto de apoio – Eurico Carr apatoso © ]
que vinha lançado; se compensado em síncopa, pelo contrário, é palpável o seu efeito amortecedor, deixando a frase, em termos rítmicos, satisfatoriamente equilibrada e bem mais elegante
Ex. 25: ritmos anapestos compensados com um efeito elegante muito característico
10. As colcheias, 8ª parte da unidade de CF, são sempre usadas com efeito ornamental e nesta tripla condição: a) Articuladas sempre em posição métrica [-] e [- -], ou seja, na articulação correspondente à das semímimas fracas ou pares (2ª, 4ª 6ª e 8ª de cada compasso) b) Sempre aos pares, duas a duas, em virtude do ponto de aumentação não se aplicar à semínima c) Sempre antecedidas, articuladas e sucedidas por grau conjunto
Ex. 26: uso das colcheias, a 8ª parte do CF e a duração mais curta da música polifónica vocal quinhentista
11. As colcheias devem ser usadas com moderação, devido ao seu efeito carismático e exuberante. Deve evitar-se o uso sequencial / repetitivo das colcheias nesta linguagem, podendo o resultado ganhar uma dimensão caricatural 12. As colcheias são características na ornamentação do retardo:
Ex. 27: uso das colcheias na ornamentação do retardo: 2 exemplos com a versão simples e com a versão ornamentada (a ornamentação das colcheias não se costuma exprimir na análise, na medida em que as colcheias nada acrescentam à dimensão estrutural do raciocínio; o exemplo original e o exemplo ornamentado são, estruturalmente, a mesma coisa)
13. Conclusão: eis um exemplo de um contraponto de 5ª espécie ou de contraponto florido, usando algumas das novas possibilidades rítmicas e seguindo um paradigma de frase bem recorrente no Renascimento e já referido atrás: o ritmo começa lento, ganha energia seguidamente (mas não necessariamente, pois, muitas vezes, pode prevalecer uma opção 9 [ Contraponto de Espécies a 2 vozes – texto de apoio – Eurico Carr apatoso © ]
sóbria e enxuta), e acaba lento, com a presença de, pelo menos, um retardo: o da cadência. As frases não devem ser longas para não falirem de exaustão. Por norma têm entre 4 e 8 compassos 4/2 (se a unidade de CF ou de ritmo harmónico for a semibreve)
Ex. 28: exemplo de uma frase equilibrada (6 compassos 4/2), com uso de vários casos dados nas novas possibilidades (repare, entre outros, no uso da nota cambiata no 4º compasso, vinda ligada de trás, de uma mínima pontuada sobre a barra de compasso: muito idiomático)
A propósito do risco de falência da frase por exaustão, observe o Ex. 29:
Ex. 29: exemplo de uma frase que começa da mesma forma que a do Ex. 28, mas agora expandida, com mais 4 compassos, ganhando um tamanho talvez desequilibrado (10 compassos 4/2): o resultado é pouco proporcionado; a frase chega exausta ao fim e, apesar de ser forjada num material correcto (tecnica e idiomaticamente falando), acaba por perder força, em vez de ganhá-la.
Com estas novas possibilidades dadas, chegámos a uma grande porção do universo rítmico da música polifónica vocal quinhentista . O próximo objectivo é fazer contraponto a 3 vozes e apreender o estilo imitativo (o estilo dos estilos do séc. XVI). Para a reconstituição da teia estética quinhentista é necessário ir ouvindo essa música para que, aos poucos, se insinue na nossa memória afectiva. Não há melhor forma de compreender um estilo. É fundamental ouvir música de Josquin, de Palestrina, de Lassus, de Victoria, de Frei Manuel Cardoso: estes são, nesta matéria, os melhores professores, insubstituíveis. A música instrumental começava por esta altura a dar passos cada vez mais firmes, e já inovava bastantes aspectos do ritmo que não estão aqui consagrados. Pouco tempo mais tarde, ao longo do séc. XVII, a composição conheceria uma evolução dramática que daria à história da música um rosto novo, com o triunfo dos estilos instrumentais. Até aqui tinham sido mais ou menos subservientes do modelo polifónico vocal. A partir daqui, não mais.
10 [ Contraponto de Espécies a 2 vozes – texto de apoio – Eurico Carr apatoso © ]