Digitalizado por: Pregador Bíblico
COMENTÁRIO BÍBLICO DE
1P E D R O Digitalizado por:
PREGADOR BÍBLICO
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Grudem, Wayne A. Com entário bíblico de 1Pedro / Wayne A. Grudem; tradução de James Reis e Mareio Loureiro Redondo. - São Paulo: Vida Nova, 2016. 240 p. ISBN 978-85-275-0641-0 Título srcinal: IPeter an introduction and commentary 1. Pedro, Apóstolo, Santo 2. Bíblia. N.T. Epístolas de Pedro Co men tários I. Títu lo II. Reis, James III. Redondo, Mareio Loureiro
15-0971
C D D 227.9207
Indices para catálogo sistemático:
1. Bíblia. N.T. Epístolas de Pedro - Comentários.
WAYNE GRUDEM CO M
TÁ RI O B Í B L I CO DE
1PEDRO Tradução James Reis (até lPe 1.12) Mareio Loureiro Redondo
VIDA NOVA
1998, d e Wayne A. Gru dem Título do srcinal: IPeter: an introduction a nd commentary (Tynda le Ne w Testament Commentaries), edição publicada pela I nter -Var si t y P r es s (Notting ham , Inglat erra) e pela IVP A cademic (Dow ners Grove, Illinois, EUA),
Todos os direitos em língua portuguesa reserva dos por S ociedade Rel igi osa E dições Vid a N o v a Caixa Postal 21266, São Paulo, SP, 04602-970 www.vidanova.com.br |
[email protected] 1.‘ edição: 2016 Proibid a a reprodução por quaisquer meio s, salvo em citações breves, com indicaç ão da fonte. Impresso no Brasil / Printed i n Brazil Todas as citações bíblicas sem indicação da versão foram extraídas da Almeida Século 21.
G er ênci a edi t or ia l
Fabiano Silveira Medeiros E dição
d e texto
Robinson Malkomes R evisão
d a tradução
Robinson Malkomes P r e par ação
d e texto
M auro Nogue ira R evisão
d e pr o v a s
Gustav o N . Bonif ácio C oordenação
d e pr o d u ç ã o
Sérgio Siqueira Moura D ia gr amação
Sand ra Reis Oliveira C a pa
Felipe Marques
PARA MARGARET. “Mulher virtuosa, quem a achará? vale muito mais do que joias preciosas. O marido confia nela totalmente” P r ovér bi os 31 . 10 , 11a
SUMÁRIO
Prefácio gera l.................................................................................................... 9 Prefá cio do au to r............................................................................................ 11 Reduções......................................................................................................... 15 Mapa: A circulaçã o de lP ed ro....................................................................... 21 Introdução A utor........................................................................................................ 23 Local de co mposição.............................................................................. 34 D ata.......................................................................................................... 37 Destino e leitores.................................................................................... 38 Propósito..................................................................................................40 Natureza e possíveis fontes de 1Pedro ................................................... 41 Temas proem inente s em 1Pedro ............................................................ 44 Esboço............................................................................................................ 45 C o m e n tá rio ................................................................................................... 49 N otas adic io nais As recompensas da nova aliança (1.4) ................................................... 62 “O tem po e as circunstâncias” ou “pessoa ou tem po ”? (l .11) .............75
.................................................... 104 Eleição e reprovação nas Escrituras (2.8) ............................................ 109 O lugar de habitação de Deus (2.5)
Cristo “carregou nossos pecados até a cruz”? (2.24) .......................... 133 Apêndice A pregação de Cristo por intermédio de Noé:
lPed ro 3.19 ,20
da perspectiva de temas dominantes na literatura judaica N otas adic ionais Podemos pressupor que os leitores de Pedro
................. 201
conheciam lE noque? ............................................................................ 218
PREFÁCIO GERAL
Os primeiros comentários Tyndale tinham como objetivo auxiliar o leitor comum da Bíblia. Eles se concentravam n o sentido do t exto sem se aprofun dar em aspectos técnicos e acadêmicos. Procuravam evitar os extremos de serem técnicos demais ou concisos a ponto de perderem a utilidade. A maioria dos que usaram os livros concorda que esse objetivo foi consideravelmente atingido. Mas os tempos mudam. Uma série que foi tão útil por tanto tempo pode já não ser tão relevante como na época em que foi lançada. Novos conhecimentos surgiram. A discussão de questões críticas evoluiu. Os hábitos de leitura da Bíblia mudaram. Quando a série foi iniciada, era possível presum ir que a maioria dos leitores de lín gua inglesa usava a Versão Auto rizada (King James), de modo que os comentários podiam ser escritos com base nela, mas tal cenário já não se mantém. Não foi fácil tomar a decisão de revisar e atualizar toda a série, mas no fim achamos que isso seria necessário na atual situação. Hoje há outras necessidades, e elas serão mais bem atendidas por novos livros ou por uma completa atualização dos livros antigos. O objetivo da série srcinal permanece inalterado. Os novos comentários não são nem minúsculos nem longos demais. São mais exegéticos que homiléticos. Não abordam todas as questões críticas, mas nenhum dos comentários foi escrito sem que se tivesse consciência dos problemas que mobilizam a atenção dos estudiosos de Novo Testamento. Qua nd o se percebe que tais questões devem re ceber um tratame nto mais formal, elas são discutidas na introdução e, às vezes, em notas adicionais. N o entanto, a índole principal desses comentários não é de natureza crític a. Eles foram escrit os para ajud ar o leitor sem conhecimentos técnicos a entender melhor a Bíblia. Eles não pressupõem conhecimento de grego, e todas as palavras gregas são transliteradas, mas os autores têm o texto grego diante de si e seus comen tários são feit os com base nos srcinais. Cad a au tor tem liberdade para escolher sua tradução da Bíblia, mas lhes pedimos que levassem em conta as várias traduções atualmente utilizadas. A exemplo de sua antecessora, a nova série de comentários Tyndale prossegue na esperança de que Deus, em sua graça, use esses livros para ajudar o leitor co mu m a comp reender o mais completa e clarame nte possível
a mensagem do Novo Testamento.
Leon Morris
PREFÁCI O DO AUTO R
Ao lon go d e q uatro anos trab alhei in tensamente co m o tex to de 1Pedro, tanto lecionando quanto escrevendo este comentário. Agora, ao completar o comentário, surpreende-me que, longe de estar cansado das palavras dessa carta, elas falam com ainda mais objetividade e urgência à minha própria vida, e ainda encontro alegria e refrigério espiritual nas diversas vezes que as leio. Pessoalmente, vejo que isso confirma ainda mais o caráter da carta como “palavra de Deus, que vive e permanece” (lPe 1.23). Não acredito que algum cristão possa estudar essa carta por m uito tempo sem ouvir a voz de Deus dirigir-se com poder às necessidades da igreja de hoje. Em apenas 105 versículos, lPedro trata de inúmeros conceitos da teologia e ética cristãs. Nessa carta, encontramos a grande dou trina da redenção, desde sua concepção a ntes da fundação d o m un do até sua consumação, quando receberemos nossa herança que jamais perecerá. Nela encontramos inúmeras exortações à santidade e à humilde confiança em Deus nas necessidades de cada dia. Encontramos também conselhos práticos sobre casamento, vida profissional, nossa relação com o governo, nosso testemunho perante os que não creem, uso dos dons espirituais e ministério como líder de uma igreja. Nessa carta também se en co ntram intenso consolo na aflição e, na medida do que Deus permite, a consciência dos profundos mistérios do sofrim ento e da reprovaçã o. Vemos nela a beleza majestosa da igreja co mo “templo espiritual”, onde diariamente oferecemos “sacrifícios espirituais” que agradam a Deus. E Jesus está nela: o pastor supremo que cuida de nós, o exemplo que seguimos, a pedra angular escolhida que nos une e consolida e o Salvador que levou sobre si nossos pecados na cruz; aquele que, sem jam ais termos vist o, amamos. A glória de C rist o brilha das páginas dessa carta para o coração dos que a leem. Para igrejas e indivíduos que procuram crescer em santidade, fé e amor por Cristo, as palavras de Deus em 1Pedro haver ão de com pensa r ricamen te o e stud o feito com seriedade, a memorização e a meditação. Os estudo s mais recentes sobre 1Pedro te nd em a salientar as tentativas de desco brir as fontes por trás da carta (Será que em sua ori gem ela era um ser
mão ou liturgia empregados no batismo? Teria sido influenciada por Paulo ou Tiago? Pelos primeiros catecismos ou pelos códigos morais comuns em
1PEDRO
uma sociedade pagã?). Outros estudos têm se concentrado no contexto em que lPedro foi escrita (Perseguição oficial? Culto de batismo? Liturgia da Páscoa?). N o en tanto, u ma exegese do tex to em si (que não seja par a respon der às perguntas acima) tem sido de certa forma negligenciada. Esses estudos sobre as srcens e o contexto não me convencem, prin cipalmente porque quase todos tentam tirar conclusões com base em uma quantidade ínfima de dados. Talvez seja hora de admitir que as evidências necessárias para respon der às perguntas acima simplesmente não se encont ram ao nosso alcance e que uma boa administração do tempo e das capacidades que Deus nos deu parece exigir maior atenção ao texto em si, não com o objetivo de determinar o contexto srcinal e suas srcens, mas de determi nar seu significado para Pedro e para o s prime iros leitores e , em seguida, su a correta aplicação em nossa vida. Este comentário provavelmente possui uma frequência de citações de outros textos antigos, tanto bíblicos quanto extrabíblicos, superior à média, bem como um a frequência inferior à média de citações de outros comentá rios. Isso foi intencional, pois creio ser de gran de imp ortâ nci a que os cristãos aceitem determinada interpretação de qualquer versículo não por força da opinião de algum especialista, mas porque verificaram por si mesmos as evidênciasque respaldam tal interpretação e foram por elas convencidos. Tais evidências podem ocorrer na forma de: (l) outros textos onde a
mesma palavra (ou construção gramatical) foi usada, exemplificando o significado da palavra (ou construção gramatical); (2) outros textos sobre o mesmo assunto tratado em 1Pedro, ou no contexto mais amplo d o N ovo Testamento ou da Bíblia como um todo, ilustrando o ensinamento de Pedro e de out ros autore s bíblicos sobre o ass unto; (3) argu mentos extraídos do raciocínio exibido na passagem e do papel que um trecho específico exerce como apoio ao propósito geral do autor no texto (“o contexto”). Na maioria dos casos, os três tipos de evidências podem ser encontrados, de forma que mesmo leit ores sem conh ecimen to de grego possam compreender e avaliar as evidências p or si mesmos. Em algun s casos, cito out ros textos que me convenceram; em outros, apenas menciono referências na expectativa de que os leitores que se interessarem venham a pesquisá-las. Alguns leitores desta série podem sentir que a autoridade exclusiva da Bíblia fica de algu ma forma com pro metida pela citação fre quente de litera tura extrabíblica, como Josefo, Filo, os livros apócrifos, a literatura rabínica, os pais apostólicos e outros autores cristãos antigos, além de autores gregos seculares. A esse respeito, porém, uma distinção deve ser feita. Não acho
12
PRE FÁC IO DO AU TOR que citações de quaisquer desses escritos possam provar que Pedro defendia determinada doutrina ou concordava com esta ou aquela opinião da época, independentemente da popularidade de tais posições no primeiro século, pois os autores bíblicos muitas vezes diferem entre si, tanto em relação a seus antecedentes judaic os como no que tange à cultura secular que os c erca. Eu, contudo, acredito que exemplos de palavras empregadas por autores cristãos e ju de us extrabíblicos, e mesmo po r autores se culares com o Estrab ão (textos de c. 20 a.C.-19 d.C.), Diodoro Sículo (c. 40 a.C.) ou Plutarco (c. 46-120 d.C.), podem ser de grande utilidade na compreensão das palavras do Novo Testamento, principalmente no caso de algumas com baixa frequência n o pró prio Novo Testamento ou na Septuaginta, tradução do Antigo Testamento para o grego. Fontes extrabíblicas também podem fornecer dados úteis sobre a situação histórica em que Pedro e seus leitores viveram, incluindo maneiras de pensar comuns entre os membros das sociedades que os cercavam. Com esse propósito em mente, a enorme quantidade de textos da antiguidade judaica, do cristianismo e da literatura grega secular até hoje preservados pode ser vista como um a bênção do cuidado providencial de Deus para que tivéssemos condições de compreender suas palavras com mais exatidão. Devo muito à ajuda que recebí de outras pessoas para este livro. Sou grato pelos comentários detalhados e pelo incentivo de Leon Morris, editor desta série, e de David Kingdon, editor de livros teológicos na Inter-Varsity Press, cuja leitura cuidadosa trouxe muitas melhorias, tanto de estilo quanto de conteúdo. Sou grato aos muitos amigos que, por meio de conversas e comentários escritos, ajudaram-me a compreender o texto, em especial George Knight III, Murray Harris, Stanley E. Porter, C. F. D. Moule, D. A. Carson e aos muitos alunos em minhas aulas na Trinity Evangelical Divinity School. Além disso, Sherry Kull, Marie Birkinshaw, Jane Preston e Sylvia Akhurs t ajudaram a dig itar com precisão diversas pa nes do livro ao longo do processo. Quero agradecer à direção da Trinity Evangelical Divinity School por me conceder a licença necessária para trabalhar nesta obra e à diretoria da Tyndale House por me dar acesso às excelentes instalações da biblioteca em Cambridge, onde foi escrita a maior parte deste comentário. Quero agradecer especialmente aos meus pais pela generosa provisão do apoio financeiro que me permitiu completar esta obra. E aos meus três filhos, Elliot, Oliver e Alexander, fontes contínuas de alegria e incentivo, mesmo quando ficavam perguntando se papai “terminou outro versículo de seu comentário hoje”. Acima de tudo, porém, quero agradecer à minha
esposa Margaret, que me incentivou quando a tarefa parecia longa e fez 13
1PEDRO
muitos sacrifícios em tempo e esforço, pois estava convencida de que agradaria ao Senhor que eu terminasse esta obra. A ela, que “tem muito valor diante de Deus” (lPe 3.4) e de mim, dedico este livro. Glória somente a Deus. Wayne Grudem
14
REDUÇÕES
Livros e periódicos A21
Almeida Século 21, 2010
ACF
Almeida Corrig ida e Revisada Fiel, 1994
Alford
Alford, H., The Greek Testament (Cambridge: Deighton, Bell, and Co, 31866), vol. 4.
ARA
Almeida Revista e Atualizad a, 1993
AR C
Almeida Revista e Co rrig ida , 1995
BA GD
Bauer, W ; Arnd t, W E; Gin grich , F. W ; Dan ker F. W , A GreekEnglish lexicon on the New Testament and other early Christian literature(Chicago: University of Chicago Press, 21979).
BAM
Bíblia Ave Maria
BD B
Bro wn, E; Driver, S. R.; Brigg s, C. A., Hebrew and English lexi
BD F
con of the Old Testament (Oxford: University Press, 1906). Blass, E; Debru nne r, A.; Funk, R. W , A Greek grammar o f the New Testament and other early Christian literature (Chicago:
University of Chicago Press, 1961). Beare
Beare, F. W , The First Epistle o f Peter (Oxford: Blackwell, 1970).
BEP
Bíblia Edição Pastoral, 2002
Best
Best, E., 1 Peter,New Century Bible (London: Oliphants, 1971).
Bigg
Bigg* C., A critical and exegetical commentary on the epistles of St. Peter and St. Jude, International Critical Commentary (Edinburgh: T. & T. Clark, 21910).
BJ
Bíblia de Jerusalém , 1980
Blum
Blum, Edwin A., “1 Peter”. In: Frank E. Gaebelein, org., The expo sitor’s Bible commentary(Grand Rapids: Zondervan, 1981), vol. 12.
BPT
Bíblia para Todos (Portugal)
Cal vino
Calvin, J., Calvin’s commentaries: the epistle o f Paul the apostle to Edição the Hebrews and the First and Second Epistles of St. Peter.
1PEDRO de D. W Tor rance e T. F. Torran ce; tr adu ção p ara o inglês de W B. Jo hn sto n (Grand Rapids: Eerdm ans, 1963).
CBQ
Catholic Biblical Quarterly
CIJ
Frey, J.-B., Corpus inscriptionum iudaicarum(Roma: Pontifício Istituto di Archeologia Cristiana, 1936, 1952), 2 vols.
Cranfield
Cranfield, C. E. B., 1 and 2 Peter and Jude, Torch Bible Com mentaries (London: SCM, I960).
Dalton
Dalton, W J., Christ’s proclamation to the spirits(Rome: Pontifical Biblical Institute, 1965).
Deissmann Deissmann, G A., Bible studies, tradução para o inglês de A. Grieve (Edinburgh: T. & T. Clark, 1901).
E xp T France
Expository Times France, R. X, “Exegesis in practice: two samples”. In: Marshall, I. H., org., New Testament interpretation (Grand Rapids: Eerd mans, 1977).
Grammar
Robertson, A. T, A grammar o f the Greek New Testament in the
light o f historical research (Nash ville: B ro ad m an ,41934). Hart
Hart, J. H . A., “The First Epistle General o f Peter”. In: Nico ll, W R., org., The expositor’s Greek Testament (1910; reimpr., Grand Rapids: Eerdmans, 1970), vol. 5.
HDB
Hastin gs, J., org., A dictionary o f the Bible (Edinburgh: T & T. Clark, 1898-1904), 5 vols.
Hort
Hort, F. J. A., The First Epistle o f St. Peter 1:1—2:11 (London: Macmillan, 1898).
Huther
Hu ther, J. E., The general epistles ofJames, Peter, John, and Jude, tradução para o inglês de P. Gloag et al., Meyer’s Commentary (New York: Funk and Wagnalls, ft1884).
IB
Buttrick, G. A. et al., orgs.,
Interpreter’s Bible (New York:
Abingdon-Cokesbury, 1952-1957), 12 vols. IBB
Versão Almeida revisada segundo os melhores textos (Imprensa Bíblica Brasileira)
IC C
International Critical Commentary series (Edinburgh: T. & T.
Clark). 16
REDUÇÕES IDB
Buttrick, G. A. et al., orgs., The interpreter’s dictionary o f the Bible (Nashville: Abingdon Press, 1962), 4 vols.
JB C
Jerome biblical commentary. Edição de Brown, Raymond et al. (London: Chapman, 1968), 2 vols.
JB L JE T S JT S Kelly
Journal o f Biblical Literature Journal of the Evangelical Theological Society Journal of Theological Studies Kelly, J. N. D., A commentary on the epistles o f Peter and Jude, Black’s New Testament Commentaries (London: Black, 1969).
KJV
King James Version (Rei Tiago), 1611
Lampe
Lampe, G. W H., Patristic Greek lexicon(Oxford: Oxford Uni
LCL
versity Press, 1961). Loeb Classical Library
Leaney
Leaney, A. R. G , The letters of Peter andJude. Cambridge Bible Co mm entary (Cambrid ge: Ca mb ridg e University Press, 1967).
Leighton
Leighton, R. (m. 1684),
Commentary on First Peter(reimpr.,
Grand Rapids: Kregel, 1972). Lenski
Lenski, R. C. H., The interpretation of the epistles oj St. Peter, St.
LSJ
John, and St.Jude (Minneapolis: Augsburg, 1966). Liddell, H. G.; Scott, R.; Jones, H. S., Greek-English lexicon (Oxford: University Press, 91940).
M HT
Moulton, J. H.; How ard, W E; Turner, N., A grammar o f New
MM
Testament Greek (Edinburgh: T. & T. Clark, 1908-1976), 4 vols. Moulton, J. H.; Milligan, G., The vocabulary of the Greek Tes tament illustrated jrom the papyri and other non-literary sources
NASB
(1930; reimpr., Grand Rapids: Eerdmans, 1972). New American Standard Bible, 1963
NE B
N ew English Bible: New Testament, 21970; Old Testament, Apocrypha, 1970.
N IC
New
International
Commentary
series
(Grand
Rapids:
Eerdmans). NIV
The Holy Bible, New International Version: New Testament,
2197 8; Old Testament, 1978. 17
1PEDRO N ovT
Novum Testamentum
NovTSup
Novum Testamentum, supplements
Τ Ι
Guthrie, D., New Testament introduction (Leicester: InterVarsity, 31970).
NTLH NTS
Nova Tradução na Lingu agem de Hoje, 2000 New Testament studies
NVI
Nova Versão Internacional, 2003
O CD
Hammon d, N. G. L.; Scullard,
. H., orgs.,The Oxford classical
dictionary (Oxford: University Press, 21970). ODCC
Cross, F. L.; Livingstone, E. A., orgs., The Oxford dictionary of the Christian church(Oxford: Oxford University Press, 21974).
O TP
Charlesworth, J., org., The Old Testament pseudepigrapha (Garden City: Doubleday, 1983, 1985), 2 vols.
Phillips
Phillips, J. B., The New Testament in modern English, 1958.
P1B
Pontifício Instituto Bíblico de Roma, 1967
Reicke
Reicke, B., The disobedient spirits and Christian baptism (Copenhagen: Munksgaard, 1946).
RSV
Revised Standard Version: New Testament, 21971; Old
RTR
Testament, 1952; Common Bible, 1973. Reformed Theological Review (Austrália)
RVP
Reina-Valera em Português
SBL
Society o f Biblical Literature
Selwyn
Selwyn, E. G., The First Epistle o f St. Peter (London: Macmillan, 1949).
Stibbs/
Stibbs, A. M.; Walls, A. E, The First Epistle General of Peter,
Walls
Tyndale New Testament Commentary series (London: Tyndale, 1959).
TPCR
Tradução Interconfessional em Português Corrente, 2000
TDNT
Kittel, G.; Friedrich, G., orgs., Theological dictionary o f the New Testament, tradução para o inglês de G. W Brom iley (Grand
Rapids: Eerdmans, 1964-1976), 10 vols. TEV
Today’s English Version, 1976 (= Good News Bible)
ThL
Theologische Literaturzeitung 18
REDUÇÕES TB TrittJ TynB UBS
UPZ VFL WTJ Zahn
Tradu ção Brasileira, 2011 TrinityJournal Tyndale Bulletin (anti go THB ) Unit ed Bible Societies, The Greek New Testament. Edição de Aland, K., et al., 31975. Urkunden der Ptolemãerzeit. Edição de Wilcken, U. (Berlin: W de Gruyter, 1927-1957 ), 2 vols. Bíblia Versão Fácil de Ler, 1999 Westminster TheologicalJournal Zahn, T , An introduction to the New Testament (El: Edinburgh: T. & T. Clark, 1909), vol. 2. Literatura extrabíbli
ca an tiga
Abraão Filo, Da vida de Abraão Ant. Josefo, Antiguidades dos judeus b. R.H. Talmud e Babilônico, Rosh Hashshana b. Sank Talmu de Babilônico, Sanhedrin [Sinédrio] Documento de Damasco de Qumran (Manusc ritos do Mar Morto) CD Diod. Síc. Diodoro Sículo Eo Eclesiástico (apócrifo) G.J. Josefo, Guerras dos judeus HE Eusébio, História eclesiástica Midr. Rab. Ct Midrash Rabá de Cântico dos Cânticos Midr. Rab. Ec Midrash Rabá de Eclesiastes Midr. Rab. Ex Midr. Rab. Gn Midr. Rab. Nm Moisés Nomes Or. sib. PG
Midrash Rabá de Êxodo Midrash Rabá de Gênesis Midrash Rabá de Nú meros Filo, Da vida de Moisés Filo, Da mudança de nomes Oráculos sibilinos Filo, Perguntas e respostas sobre Gênesis
T. Levi
Testamento de Levi (In: Testamentos dos Doze Patriarcas) 19
1PEDRO T. Naf.
Testamento de Naftali (In: Testamentos dos Doze Patriarcas) Reduções gerai s
c.
cerca de
EI
edição em inglês
Fs.
Festschrift
LXX
Septuaginta ( tradução pré-cristã do AT para o grego)
l.v.
leituravariante
marg.
margem
MS(S)
manuscrito(s)
ns, NS
nova série
Nas citações da LX X em que a numeração do capítulo/versículo das tradu ções em inglês/português não seja a mesma do texto grego, a referência das tradu ções é citada prim eiro, segu ida pela referência da LXX entre colchet es.
20
A circulaç ão d e 1Ped ro
s o rt e m lô i u Q
O T N O
INTRODUÇÃO
1. Autor a. E vi dê n ci as na carta O autor se identifica pelo nome nas primeiras palavras da carta: “Pedro, apóstolo de Jesus Cristo”. Isso é compatível com a prática de outros autores no Novo Testamento (cf. as palavras introdutórias de Paulo, Tiago, João e Judas; veja também 2Pe l.l). Em bora apresentemos mais adiant e ou tras evidênc ias da autoria petrin a, deve-se observar desd e o in ício que, m esmo c om apoio apenas histórico, es sa declaração confirma que a carta, desde que começou a circular na igreja, era conhecida e aceita como produto da autoria de Pedro. Em lPe dro 5.1, o auto r apresenta outro indício, pois re fere-se a si mesmo como “testemunha dos sofrimentos de Cristo”. Essa declaração é compatível com a presença de Pedro no julg am ento de Jesus (Mt 26 .58 ,67 -69 ; Mc 14.54; Lc 22.54,61). Isso também significa que lPedro 2.23 pode ser a lembrança de uma testemunha ocular: "... ao ser insultado, não retribuía o insulto, quando sofria, nã o ameaçava, mas entregava-se àquele qu e ju lg a co m justiça ”. Por fim, lPedro 5.13 aponta para dois fatos coerentes com a autoria de Pedro. O texto diz: “Aquela que é coeleita convosco, que está na Babilônia, vos cumprimenta, como também meu filho Marcos”. Se compreendermos “Babilônia” como uma referência a Roma (veja o comentário sobre 5.13), este versículo se harmo niza c om dados da igreja primit iva q ue coloc am Pedro em Roma no final de sua vida e vinculam Pedro a Marcos (veja adiante).
b. E vi dê n ci as f o r a da ca rta Uma antiga evidência da autoria de lPedro se encontra em 2Pedro 3.1, ond e o autor se refere ao seu texto como “a segu nda ca rta que vos escrevo”.1 *Zahn, p. 194-8, argumenta que 2Pedro 3.1,2 não pode se referir ao conteúdo de
lPedro, mas, sim, a outra carta de Pedro com conteúdo semelhante a 2Pedro. Essa visão, porém, baseia-se em um a interpretação bem limitado ra de 2Pedro 3.2, que de maneira
1PEDRO
Um pouco antes, o mesmo autor afirma ser Pedro (2Pe 1.1, 16-18). Quer se acredite que Pedro escreveu 2Pedro,2 quer não, 2Pedro 3. 1 pode ser entendido como um testemunho bastante antigo de que uma carta ainda mais antiga, que se afirmava de Pedro (e amplamente aceita como tal), era conhecida e estava em circulação na época em que 2Pedro foi escrita. Neste comentário, parto do princípio da autoria petrina de 2Pedro (pois esta é minha posição pessoal) e, portanto, cito 2Pedro como exemplo paralelo de temas e vocabulário em diversos pontos. Ademais, qualquer que seja a posição que se adote sobre a autoria, 2Pedro serve para ilustrar o uso do grego na comunidade cristã no fim do primeiro século d.C. ou início do segundo. A mais antiga citação inequívo ca de 1Pedro for a do N ovo Testamento
Epístola aos filipenses. encontra-se em Policarpo (m. 155 d.C.), em sua Policarpo cita lPedro diversas vezes: por exemplo, em 1.3, “em quem, sem vê-lo, credes com alegria inexprimível e gloriosa” (cf. lPe 1.8); em 2.1, “não devolvendo mal com mal nem ofensa com ofensa” (cf. lPe 3.9); e em 8.1, “que carregou nossos pecados em seu próprio corpo no madeiro, não cometeu pecado, nem foi achado engano em sua boca” (cf. lPe 2.24,22). Embora os escritos de Papias (m. 130 d.C.) tenham se perdido, Eusébio comenta que Papias “utilizava citações” da carta de Pedro.3 O primeiro escrito ainda existente que cita Pedro pelo nome é de autor ia de Irineu, Contra heresias(182-188 d.C.):4“Pedro diz em sua epístola: a quem, sem tê-lo visto, amais; em quem, sem vê-lo agora, credes, exultais com alegria indizível” (cf. lPe 1.8).
geral significa “recordar os textos do Antigo Testamento e os ensinos apostólicos”, alg o qu e cer tame nte p odería se aplicar a 1 Pedro com o a igreja pri mitiv a acredit ava ser o caso. 2Veja mais argum ento s em defesa da autoria p etri na de 2Pedro na abr ang ente dis cussão em Michael Green, 2Peter and Jude (Leicester: IVP, 1987), p. 19-74 [edição em português: II Pedro eJudas: introdução e comentário (São Paulo:Vida Nova, 1983)]; também Guthrie, N T I, p. 814-63 e 671-84. 3HE 3.39.17.
4Contra heresias 4.9.2 [edição em português: Ireneu de Lião, Contra as heresias, 2. ed. (São Paulo: Paulus, 1995)]; Ireneu também cita Pedro pelo nome em 4.16.5. Uma lista exaustiva de outras citações, algumas precisas, outras apenas possíveis (ou até imprová veis), pod e ser encontrada em Bigg, p. 7-15. As citações mais inequívocas se tomam mais
frequentes após Ireneu. 24
IN T R O D U Ç Ã O Parece que na igreja primitiva não restava dúvida de que lPedro foi escrita pelo apóstolo Pedro.5Escrevendo em 325 d.C., Eusébio inclui lPedro entre os livros ampla mente aceit os co mo parte do No vo Testamento .6 Em todos os lugares onde circulou, o texto foi reconhecido como autêntico.
c. O p a p e l de S tt va n o (5. 12) A questão da autoria complica-se um pouco em face de lPedro 5.12, que diz: “Por intermédio de Silvano, que considero nosso fiel irmão, escrevo de forma abreviada, exortando e testemunhando que esta é a verdadeira graça de Deus; nela permanecei firmes”. Muitos cheg aram à conclusão d e que esse versículo indica que Silvano era o secretário ou “amanuense” que registrou ou escreveu a carta sob orientação de Pedro (veja, por exemplo, Selwyn, p. 11-7, e a resposta de Beare, p. 212-6). Essa frase, porém, não oferece muito respaldo à visão de que Silvano participou da composição da carta em si. O trecho grego traduzido por “escrever a alguém por intermédio de outra pessoa” não se encontra em nenhum outro lugar com o claro sentido de “ditar uma carta com a ajuda de out ra pess oa”. Kümm el observa: “Nin gu ém jama is provou qu egraphõ dia tinos pode significar ‘auto rizar o utra pessoa a co mpo r um tex to’”.7 N o en tanto, encontramos exemplos claros onde essa mesma construção em grego é utilizada para designar o mensageiro que leva a carta para alguém; veja, por exemplo, Atos 15.23 (texto grego: “pelas mãos deles (judas e Silas]”.)8 Além disso, o fato de Pedro se referir a Silvano com as palavrasque consi dero nossofiel irmãoé forte indício de que Silvano era o portador da carta. Tal
’lPedro não é mencionado no Canon Muratoriano (aprox. 170 d.C.), mas também não são incluídos Hebreus, Tiago ou 2Pedro, provavelmente em virtude de uma corrup ção textual nesse ponto. Veja B. F. Westcott, A general survey o f the history o f the canon o f
the New Testament (London: Macmillan, 71896), p. 222-3. Ή Ε 3.25.2 [edição em português: Eusebio de Cesareia,
História eclesiástica (São
Paulo: Paulus, 2000)]. 7W G. Kümm el, Introduction to the New Testament, ed. rev., tradução para o inglês de H. C. Kee (Nashville: Abingdon, 1975), p. 424 [edição em português: Introdução ao Novo
Testamento, 2. ed. (São Paulo: Paulus, 1997)]. 8Entre outr os exemplos dessa con stru ção que des igna o men sageir o encontram -se, de Inácio, Romanos 10.1; Filipenses 11.2; Esmirna 12.1; e os subscritos (na tradição do Texto Biza ntino) de muitas cartas de Paulo (Rm, 1 e 2Co, Ef, Fp, Cl, Fm): veja os subscritos no
texto gr ego de Nestle-A land, e a abor dagem d e F. H. Chase, 25
HDB 3, p. 790.
1PEDRO expressão não teria função alguma se Silvano fosse apenas o secretário, mas seria extremamente adequada como recomendação pessoal se ele fosse o por tador (observe-se que Paulo recomenda de forma semelhante os portadores de suas cartas em IC o 16.10,11; E f 6.21,22; Cl 4.7-9; T t 3.12,13). Emb ora Tércio faça menção de si mesmo em Romano s 16.22, nen hum autor do Novo Testamento menciona ou recomenda de forma inequívoca um amanuense. Portanto, a expressão “através de Silvano” ou “por meio de Silvano” (RSV [e ARC], por Silvano), ainda que isolada, está provavelmente designando Silvano como o portador da carta, e sua recomendação como fiel irmão, a exemplo de muitas outras recomendações de mensageiros em cartas do Novo Testamento, toma muito provável que ele tenha levado a carta de Pedro a seus destinatários. Se admitirmos que 5.12 designa Silvano como o portador da carta, então a teoria do amanuense deve ser considerada simplesmente uma teoria sem nenhum respaldo de dados históricos. Pois, se 5.12 define Silvano como o portador da carta, não resta nada em 5.12 que também o defina como amanuense, nem se encontram em parte alguma dados históricos que indiquem ter ele cumprido essa função. O melh or é concluir que n ão há nenh um a evidênc ia segura na carta que indique que Silvano tenha desempenhado algum papel em sua composição. A autoria de Pedro, o apóstolo, significa simplesmente que o próprio Pedro escreveu a carta.
d. Ob jeç õe s à a ut or ia p e tr in a Embora muitos dos principais comentários sustentem a autoria petrina de 1Pedro,9 diversas objeções têm sido levantadas co ntra as evidên cias de dentro e de fora da carta acima mencionadas. Tais objeções parecem convincentes para alguns comentaristas (como Beare e Best) que negam a autoria petrina. Na realidade, Beare diz: “Não pode haver a menor dúvida de que ‘Pedro’ é um pseudônimo” (p. 29). As quatr o objeções à autori a petrina apresentadas a seguir são listadas por Kümmel,10e uma exposição mais extensa dessas objeções pode ser encontrada na introdução ao comentário de Beare (p. 28-50) e em Best (p. 49-63). 9Entre os comentaristas que sustentam a autoria petrina encontram-se Hort, Bigg, Selwyn, Stibbs-Walls, Cranfield e Blum. Kelly (p. 32-3) é neutr a Veja defesas mais extensas da autoria petrina em Guthrie, N TI, p. 773-90, e Stibbs-Walls, p. 15-68. Muitos que defen dem a autoria petrina creditam a Silvano uma grande influência no estilo do texto grega
10Introduction to the New Testament, p. 423-4. 26
IN T R O D U Ç Ã O
1. O grego é bom demais e não pode ser de Pedro. Argumenta-se que o estilo elegante e até meio sofisticado da carta não podería ser de um pesca dor galileu como Pedro, um homem qualificado em Atos 4.13 como “sem erudição” [NV1, “sem instrução”]. Ademais, Marcos é mencionado em Eusébio11 (também em Ire neu12) como “intérprete” (hermêneutês) de Pedro. Arg umenta-se que algué m qu e precisasse de u m “intérpre te” não podería se r muito fluente em grego. Beare escreve sobre Pedro: “É simplesmente impen sável que ele pudesse se trans form ar em um mestre em prosa g rega” (p. 47). 2. lPedro reflete dias posteriores à morte de Pedro, um período de intensa perseguição jamais visto antes das perseguições sob Domiciano (95 d.C.) ou Trajano (c. 112 d.C.). Pedro, contudo, m orreu sob Ne ro durant e a persegui ção local de cristãos em Roma, entre os anos 64 e 68. 3. Afirma-se que lPedro tem uma teologia tão paulinaque não pode ter srcem no apóstolo Pedro e revela excessiva influência dos escritos de Paulo. 4. O autor de lPedro não demonstra sinais de familiaridade com a vida terrena de Jesus e dá pouca ou nenhuma atenção aos ensinamentos de Jesus naquilo que escreve. Esse quadro, porém, seria improvável em relação a Pedro, que acompanhou Jesus em seu ministério na terra. Essas quatro objeções podem ser consideradas na ordem acima apresentada.
1. O grego é tão bom q ue Pedro não pode tê-lo escrito É verdade que lPedro foi escrito em um grego muito bom. Seu autor domina um extenso vocabulário e demonstra capacidade para usar com eficiência uma ampla v ariedade de form as verbais e estrutura s sintátic as.13 Mas a qualidade estilística pode ser superestimada: observem-se as alegações de Nigel Turner sobre as diversas partes com deficiências de estilo e afastamento dos pad rões literários m ais elevados em 1Pedra14Pode-se dizer que o grego é excelente, mas afirmar que é uma obra prima de literatura é provavelmente um exagero. Ainda assim, persiste a dúvida: Será que Pedro podería ter escrito em grego com tamanha qualidade?
"H E 3.39.15. i2Contra heresias,3.1.1 e 3.10.6. “ Veja a análise de estilo de E H. Chase em HDB 3, p. 781-2; veja MHT 2, p. 26-7.
I4MHT 4, p. 127-30. 27
1PEDRO
a. Pedro era analfab eto ou precisava de um tradutor? A palavra agrammatos, “iletrado”, é usada em Atos 4.13 em referência aos apóstolos Pedro e João. Os membros do Sinédrio perceberam que eles eram “homens simples e sem erudição” e ficaram admirados com a coragem e a sabedoria com que se defenderam. Isso significa que Pedro era incapaz de ler ou escrever? A palavra agrammatos pode, às vezes, significar “iletrado, incapaz de ler ou escrever”, mas tam bém pod e significar “ sem instr uçã o fo rmal ”15 e, em Atos 4.13, facilmente teria uma nuança próxima do sentido de idiotês, “homem comum, leigo, não especializado”. Além disso, o Sinédrio não teria como deduzir se Pedro e João sabiam ou não ler e escrever apenas com base numa rápida inquisição verbal, nem era esse o motivo de terem ficado admirados. O motivo da perplexidade era que pessoas sem instrução rabínica formal pudessem argumentar por conta própria com especialistas eruditos da nação, os quais, recordando como Jesus havia lidado com eles de fo rma sem elhante, “reconh eceram q ue eles haviam con vivido com Jesus” (At 4.13b; vejajo 7.15). Portanto, é melhor concluir que Atos 4.13 significa que Pedro e João “não possuíam instrução formal”, aparentemente porque não haviam estudado sob o rientação dos r abinos. Com respeito às referências a Marcos atuando como “intérprete” de Pedro, deve-se observar que hermêneutês, “intérprete”, nem sempre sig nifica “alguém que traduz um idioma estrangeiro”, mas também pode signifi car “exp ositor”,16 ou “alguém que expli ca um e nsinam ento” . O verbo relacionado, hermêneuõ, assume esse sentido na leitura variante em Lucas 24.27 (Jesus interpretou paraeles o que constava a seu respeito em to das as Escrituras); tam bém em Jos efo17 (“int erpr etan do ” as Escrituras). E m Cle men te de Alex andria,18 Moisés é cha ma do de “in térp rete ” ( hermèneus) das leis sagradas. As passagens mencionadas para alegar que Pedro precisava de um tra dutor fazem parte de contextos onde se discute o Evangelho de Marcos, e nesses casos ajudaria dizer que Marcos estava explicando ou expondo a mensagem d o ev angelho s egun do Pedr o, e este é o sent ido que devemos dar a essas passagens.
,5Veja BAGD, p. 13, e referências ali citadas. 16LSJ, p. 690 (cf. a entrada sob a grafia alternativa hermèneus); também Lampe, p. 549. 17Ant. 20.264.
18Slromata1.22 (final).
28
INTRODUÇÃO b. Será que Pedro podería ter bom conhecimento de grego? Ainda que cheguemos a conclusão de que Pedro não era iletrado e que, portanto, não precisava de um tradutor, a dúvida permanece: qual o nível de con hec ime nto da lín gua greg a que ele podería ter? Para responder a essa per gu nta precisamos conhecer o nível de greg o falado pe los ju de us na Palestina no primeiro século da era cristã. Quando Alexandre, o Grande, conquistou a Palestina em 332 a.C., ini cio u-s e um processo de “heleni zação ” (a imposição da cu ltura e do idioma gregos a povos não gregos) que continuou pelos quatro séculos seguintes. Assim, na época em que Pedro escreveu, a influência grega na Palestina já somava quase quatrocentos anos. Havia m uitas cidades gregas, especialmente na Galileia e na região q ue a cercava. A cidade costeira de Jope havia sido um centro de influência grega por muitos anos. As dez cidades gregas conhecidas co mo “Decápolis” po diam ser alcançadas em pouco tempo de viagem. Além disso, cidades mais novas co mo Cesareia (capital administrativ a da Judeia), Antipátride, Sebaste (antiga Samaria), Neápolis, Tiberíades (no mar da Galileia) e Cesareia de Filipe eram quase inteiramente gregas, povoadas principalmente por não judeus, cujo idioma do dia a dia era o grego. São abundantes as evidências do uso do grego na Palestina. Centenas de ossuários judeus (receptáculos de pedra) foram encontrados em Jerusalém e cer canias, todo s da tand o d o p rim eiro século d.C. ou de antes. Aind a assim, “Da s inscri ções em ossuá rios em Jerusalém m encionadas p or Frey, 97 estão em he braic o ou aramaico, 64 em g reg o e há 14 bi lín gu es”.19 Esses ossuários são d e g ran de im po rtân cia, pois é provável que os parentes, ao escrever no receptáculo de pedra o nome da pessoa falecida, usassem o idioma que conhecessem melhor ou o idioma em que geralmente se dirigiam à pessoa. Uma grande placa da entrada do templo em Jerusalém, escavada no século 19 e datada de ant es de 70 d.C., alertava que os não ju de us não deviam passar daquele ponto. A inscrição foi feita apenas em grego.20 Logicamente, é possível argumentar que tal inscrição não prova que os judeus falavam greg o, po is se destinava a n ão ju deu s que viviam em Jerusalém. Isso é verdade. Entretanto, ela indica que o grego era visto como um idioma que
19J. N. Sevenster, “Do you kn ow Greek? Ho w much Greek could th e first Jewish Christians have known?”, NovTSup 19 (Leiden: Brill, 1968), p. 146.
20Veja a fotografia emCIJ, 1400, vol. 2, p. 329. 29
1PEDRO
pelo menos todos os gentios em Jerusalém liam e entendiam. Portanto, se os ju deus em Jerusalém falavam com os gentios (o que certamente acontecia no dia a dia), é provável que fossem fluentes em grego. Ainda mais extraordinária é a inscrição encontrada na parede de uma sinagog a em Ofel, co lina ao sul da ár ea do templo em Jerusalém. A inscrição foi escrita apenas em grego, e nela se lê: Theodotos, filho de Vettenos, sacerdote e archisynagogos[chefe da sina goga], filho de um archisynagogos, neto de um archisynagogos, construiu a sinagoga para a leitura da lei e para o ensino dos mandamentos; além desta, o alojamento, os quartos e as instalações de água para a hospedagem de pessoas necessitadas que venham de fora. A pedra fundamental foi lançada por seus pais, pelos anciãos e por Simonides.21 O fato de uma placa comemorativa na parede de uma sinagoga em Jerusalém ser escrita em grego, im ortalizando assim o trab alho do chefe da sinago ga, q ue era tant o sacerdote (supostamente n o tem plo em Jerusalém) quanto filho e neto de chefes da sinagoga, demonstra como, na época do Novo Testamento ou mesmo antes, o uso do idioma grego havia chegado ao centro do judaísmo na Palestina. Tudo isso indica que seria natural que Pedro tenha usado o grego por mais de trinta anos na igreja em Jerusalém (bem como antes na Galileia, ainda mais permeada pelo idioma grego) e co nhecesse bem a Septuaginta, tradução grega do Antigo Testamento (como indicam a s citações do A ntigo T estamento em lPedro). Decretos e proclamações públicos também eram escritos em grego e exibidos on de pudes sem ser vistos po r todos.22 Uma passagem do Talmude Babilônico parece indicar um extenso conhecimento de grego na Palestina, na escola de Gamaliel no primeiro século d.C.: “Vede, o rabino Judá disse que Samuel declarou em nome do rabino Simeão ben Gamaliel [...] havia mil discípulos na casa de meu pai, quin hen tos estudav am a Torá e quinh ento s estudavam a sabedoria grega ”.23
21Veja a fotografia e a transcrição em CIJ, 1404, vol. 2, p. 333; a tradução aqui transcrita foi extraída da obra de E. Sukenik, Ancient synagogues in Palestine and Greece (London: British Academy, 1934), p. 70. 22Veja era Sevenster, op. cit., p. 117-21, discussão sobre uma placa de mármore de Nazaré.
y-'Sotah 49b. 30
INTRODUÇÃO Além disso, Josefb c omenta que em seus dias “até m esm o escravos que assim o quisessem” podiam a dqu irir flu ência em gr ego, e isso era “norm al” para o ho mem livre c omum .24 Parece ju sto concluir que o idioma grego era bem conhecido e normal mente utilizado(embora na Palestina doaico primeiro eraa verdade mesmoal i), em Jerusalém o a ram aindaséculo. fos se oIsso idiom mais utilizado mas principalmente na Galileia, onde Pedro cresceu cercado por cidades gregas e sob a influência de residentes e visitantes que falavam só grego. Sevenster escreve: Havia muitas regiões no território judaico que faziam fronteira com outras regiões onde o grego era o idioma principal ou até mesmo único. É óbvio que os habitantes tais regiões ao menos entendiam grego muitas vezes também falavam odeidioma, sendo, portanto, bilíngues. Issoeprovavelmente se aplica a todos os níveis da sociedade, não apenas às camadas mais intelectualizadas ou à classe alta.25 Joseph Fitzmyer faz uma afirmação parecida: O grego era amplamente utilizado nessa época, não apenas nas cidades cla ramente helenizadas, mas também em muitas outras. Aliás, há sinais de que, em algumas regiões, os judeus da Palestina podem ter usado somente grego. E acrescenta: Sustento que o idioma mais comum na Palestina do primeiro século d.C. era o aramaico, mas muitos judeus da Palestina, e não apenas os que viviam nas cidades helenizadas, mas também agricultores e artífices de regiões não tão he lenizadas, usavam o grego, pelo menos como segundo idioma [...] na realidade, há indícios [...] de que alguns habitantes da Palestina falavam apenas grego.26 2,Ant. 20.263. “ Sevenster, op. cit., p. 99. 26“The languages o f Palestine in the first century A.D.”, CBQ 32 (1970), p. 512, 531; veja C. F. D. Moule, “Once more, who were the Hellenists?”, ExpT 70 (1958-1959), p. 100-2; R. H . Gundry, “The language milieu o f first-century Palestine”,JBL 83 (1964), p. 404-8; também P. E. Hughes, “The languages spoken by Jesus”, in: Richard Longenecker; Merrill Tenney, orgs., New dimensions in New Testament study (Grand Rapids:
Zondervan, 1974), p. 127-43.
31
1PEDRO A. W Argyle obser va: Insinuar que um garoto judeu criado na Galileia não sabia grego seria o mesmo que insinuar que um garoto galês criado em Cardife não sabe inglês. Se José e Jesus quisessem que sua carpintaria prosperasse, teriam satisfação em atender tanto clientes gentios quanto judeus. Portanto, precisariam falar tanto grego quanto aramaico para conversar com todos os clientes [...] Em comparação com o passado, hoje se admite mais prontamente que Jesus e seus discípulos, todos galileus (At 2.7), eram bilíngues e falavam tanto grego quanto aramaico.2 7 Poderia alguém sem instrução formal ter aprendido a escrever em grego com qualidade sufi ciente para redigir lP edro? Se a falta desse tipo de in stru ção não foi um obstáculo ins uperável para Jo hn Bun yan, lato eiro de Bedford que escreveu O peregrino, podemos supor que Pedro não tinha condições de escrever a carta que leva seu nome? Aqueles que argumentam que greg o não era o prime iro idiom a de Pedro negligenciam o fato de que, em regiões bilíngues, como o País de Gales e cidades do Canadá onde se fala francês, é muito comum um alto nível de fluência em um segundo idioma. Também é possível, como demonstra o exemplo de Joseph Co nrad (1857-1924), torna r-se um escritor extremamente bem-sucedido em um segundo ou até terceiro idioma. O primeiro idioma de Conrad era o polonês; o segundo, que aprendeu ainda jovem, foi o francês. Ele começou a aprender inglês somente aos 21 anos de idade, quando se tornou marinheiro em um navio britânico; ainda assim, seu romance Lord Jim é reconhecido como um clássico da literatura inglesa. Aqueles que negam que Pedro poderia ter escrito lPedro provavelmente considerariam “inconcebí vel” que um marinh eiro polonês pude sse ter adqui rido a fluência e a elegância do inglês dos romances e contos de Conrad, principalmente sem os benefícios de um a instrução form al. (Certa vez, ele disse: “Jamais abri um a gramática de inglês em m inh a vida”.28) O fato de C onrad t er consegu ido isso pode ser “inconcebível”, mas ele conseguiu. Tamanha realização é muitas vezes mais incrível do que o feto de um líder da igreja primitiva, em uma cultura integralmente bilíngue, ser capaz de escrever uma carta com o lPedro. E inconcebível somente se não examinarmos com atenção as evidências.
27“Greek am ong the Jews o f Palestine i n New Testament times”, N T S 20 (1974), p. 87-9.
28Encyclopaedia britannica, edição de 1945, vol. 6, p. 278.
32
IN T R O D U Ç Ã O
2. A carta reflete uma época posterior à morte de Pedro Essa objeç ão parte da premissa de que 1Pedro reflete o ambiente da per seguição oficial do governo que se deu por todo o Império Romano. Essa premissa dificilmente pode ser justificada pelo texto em si. Na verdade, a instrução de Pedro com relação ao governo é simplesmente de submissão (lPe 2.13,14) e de honra ao rei (lPe 2.17). E ele não especifica nenhum tipo de sofrimento, mas avisa que seus leitores poderão ser afligidos por “várias provações” (1.6). Todas as demais menções de sofrimento em lPedro podem ser entendidas como instruções gerais dirigidas aos cristãos, onde quer que houvesse a possibilidade de perseguição localizada. Isso não seria nada incomum para o primeiro século na Ásia Menor. Desde a primeira propagação do evangelho, houve d emonstraç ões de hostilidade e at é de oposição violen ta em m uitos lugares (veja mais detalhes no comentário de 4.12).29 Por conseguinte, não se pode afirmar que a carta reflete claramente um período posterior à morte de Pedro, mas ela se encaixa perfeitamente em um contexto que perdurou durante toda a vida do apóstolo. 3. 1Pedro é tão paulina q ue não po de ter sido escrita por Pedro Essa objeção pressupõe necessariamente uma divergência de opiniões, ou mesmo conflito, entre as idéias paulinas e petrinas sobre o cristianismo. Essa visão tem sido amplamente criticada po r muitos e não é necessário tratá-la em detalhes aqui.30 Pelo contrário, se ria bastante surpreendente que uma carta escrita já perto do fim da vida de Pedro não revelasse muitas semelhanças de pensamento, e até de vocabulário, c om algumas cartas de Paulo. Se confiarm os nas tradições históricas relatadas por Eusébio e Tertuliano (veja abaixo), então Pedro, perto do fim da vida, ensinava com Paulo em Roma. Além disso, Silvano (também conhecido como Silas), que Pedro afirma ser o mensageiro que levaria sua carta (lPe 5.12), havia auxiliado e acompanhado Paulo em suas viagens por muitos anos. Isso também indica um vínculo estreito entre os dois apóstolos. Se necessário, podemos apresentar outros detalhes (veja em Stibbs-Walls, p. 39-48, uma discussão bastante útil), mas aqui basta observar 29C fi D. Moule, “The nature and purpose o f 1Peter”, N T S 3 (1956-1957), p. 7-9, mostra a corresp ondên cia entre referências a perseguições em 1Pedro e referências seme lhantes no restante do Novo Testamento. ’“Veja D. A. Carson, “Unity and diversity in the New Testament: the possibility of systematic th eology”, in: D. A. Carson; J. D. Woodbridge, orgs., Scripture and truth(Grand
Rapids: Zondervan; Leicester: InterVarsity, 1983), p. 71-2, com notas de outras obras. 33
1PEDRO que as afinidades com os textos de Paulo pesam mais a favor da autoria de Pedro do que contra ela.
4. 1Pedro não apresenta sinais de fam iliar idad e com a vida terrena de Jesus O grande ponto fraco dessa objeção é que ela não dá a devida importância à diferença entre um evangelho e uma breve carta. Pedro não estava es crevendo para recordar diversos detalhes da vida terrena de Jesus, mas para dar instruções a seus leitores sobre situações específicas que eles estavam vivendo. Com relação à perseguição, Pedro certamente emprega o exemplo de Cristo (2.21-23; 3.18; 4.1,2,13; 5.l). Essas alusões recorrentes aos sofri mentos de Cristo se aplicam de forma específica e adequada à situação dos leitores. Não seria preciso dar outros detalhes, principalmente se Pedro esti vesse partindo da premissa de que os elementos dos relatos dos evangelhos já eram bem conhecidos. Concluindo, as objeções à autoria de Pedro permanecem sem força de convencimento.31 Nã o existem evidências ir refutáveis que n os imp eçam de aceitar aquilo em q ue to da a igreja prim itiva cria e que a pró pria carta afirma claramente, a saber, que 1 Pedro foi escrita pelo apóstolo Pedro.
2. Local de comp osição Em lPedro 5.13, Pedro diz: “Aquela [...] que está na Babilônia, vos cumprimenta, como também meu filho Marcos”. Pedro dificilmente estaria se referindo à antiga cidade da Babilônia na Mesopotamia, capital do Império Babilônico, pois, no primeiro século, tratava-se de um lugar pequeno e pouco conhecido. N ão há nenhum indício de que Pedro, ou Pedro e Marcos, a tenham visitado. Também não há indícios de que lá existisse uma igreja cristã naquela época. Diodoro da Sicilia (escrevendo entre 56-36 a.C.) diz:
•’’Guthrie, N T l, acrescenta ou tro impo rtante ponto. Se o autor esta va usando o no me de Pedro como pseudônimo, parece impossível absolvê-lo da acusação de fraude intencio nal (p. 787-8). Aqueles que arg ume ntam que textos pseudônim os eram um estilo literário comum aceito no primeiro século não foram capazes de contestar a demonstração de Guthrie de que essa prática não se aplicava a cartas pessoais (p. 671-84). Ele observa que, se alguém realmente esc reveu sob o ps eud ônim o de Pedro, não se pod e conceber nenh um
motivo cabível que não envolva a intenção de enganar (p. 788). 34
IN T R O D U Ç Ã O
Quanto aos palácios e outros edifícios, o tempo os obliterou totalmente ou os deixou em ruínas. O fato é que apenas uma pequena área da Babilônia ainda é habitada, e a maior parte dentro de seus muros se destina à agricultura.32 De modo semelhante, Estrabão (m. 19 d.C.) escreve: A maior parte da Babilônia está tão deserta que ninguém hesitaria em dizer [...] a Grande Cidade é um grande deserto.33 N o entanto, em outros textos do Novo Testamento, o nom e “Ba bilôn ia” é usado co m referên cia a Ro ma (veja Apocalipse 16.19; 17.5; 18.2; e observe 17.9 co mo iden tificaç ão das “sete colin as” de Ro ma). Assim como a Babilônia do Antigo Testamento havia sido o centro do poder mundial e de oposição ao povo de Deus, também Roma, no tempo do Novo Testamento, era o centro de um sistema mundial de vida e governo que se opunha ao evangelho. Ao se referir a Roma como “Babilônia”, Pedro estava evocando a figura da igreja como o novo povo de Deus ou o novo Israel, figura por ele utilizada ao longo de toda a carta (veja comentário em 2.10). Além disso, existem dados históricos que dizem que, no fim da vida, Pedro estava em Roma.34 Em 203 d.C., Tertuliano escreveu: Visto que, além disso, estais tão perto da Itália, tendes Roma, de onde nos chega às mãos a autoridade dos próprios apóstolos. Como é feliz sua igreja, onde os apóstolos derramaram toda a doutrina deles juntamente com seu sangue! Onde Pedro suportou uma paixão semelhante à de 32Diod. Sic. 2.9.9. i3Geografia16.1.5 (C738). Em Geografia 17.1.30 (C807), Estrabão menciona outra "Babilônia” perto de Mênfis, no Egito, junto ao rio Nilo, que servia de base militar para uma legião romana. Tal cidade, porém, é ainda mais obscura que a Babilônia da Mesopotamia, e não há nenhum registro de influência cristã local no primeiro século. É extre mamente improvável que Pedro estiv esse se referindo a essa Babilônia sem fo rnecer mais detalhes no contexto de 1Pedro 5.13. 34Leia a análise completa acerca de Pedro em Roma na obra de O. Cullmann, Peter: disciple, apostle, martyr,tradução para o inglês de F. Filson (London: SCM, 1953), p. 70-152 [edição em português: Pedro, discípulo, apóstolo, mártir(São Paulo: ASTE, 1964)]. Uma análise mais recente das evidências, ainda que bem menos cuidadosa, pode ser encontrada na obra de Carsten Thiede, Simon Peter: from Galilee to Rome (Exeter:
Paternoster, 1986), p. 171-94. 35
1P ED RO
seu Senhor! Onde Paulo recebeu sua coroa em uma morte semelhante à de João !35 Esse testemunho é complementado por Eusébio, que escreveu em 325 d.C., falando sobre Pedro e Paulo: E quanto ao fato de que ambos foram martirizados na mesma época, Dionísio, Bispo de Corinto [c. 170 d.C], afirma nessa passagem de sua correspondência com os romanos o seguinte: “Por tão grande admoestação firmastes os alicerces de romanos e coríntios lançados por Pedro e Paulo, pois ambos ensinaramjuntos em nossa Corinto e foram nossos fundadores, e juntos também ensinaram na ”.36 Itália no mesmo lugar e foram martirizados na mesma época Eusébio dá continuidade à sua história com mais detalhes sobre Pedro e Paulo: Pedro parece ter pregado para os judeus da Dispersão no Ponto, na Galácia, na Bitínia, na Capadócia e na Ásia. Depois disso, veio para Roma e foi crucificado de cabeça para baixo, pois escolheu sofrer assim. O que se precisaria dizer sobre Paulo, que levou o evangelho de Cristo de Jerusalém àisso Ilíria, sendo depoisOrígenes disso martirizado Roma Nero?volume É exatamente o que declara [m. 254 em d.C.] no sob terceiro de seu comentário de Gênesis .37 Por fim, Eusébio declara de modo inequívoco que Pedro escreveu sua primeira carta em Roma: O bispo de Hierápolis, chamado Papias [c. 60-130 d.C.], [...] afirma que Pedro menciona Marcos em sua primeira epístola e que ele a compôs em Roma, o que, segundo dizem, o próprio Pedro indica, referindo-se à cidade metaforicamente como Babilônia com as palavras “a eleita na Babilônia vos cumprimenta, como também meu filho Marcos ”.38
35Contra heresias, 36. MH E 2.25.8.
37HE 3.1.2,3.
MH E 2.15.2.
36
IN T R O D U Ç Ã O Esses testemunho s, consider ados em conjun to, in dicam que tan to Pedro quanto Paulo morreram durante a perseguição promovida pelo imperador Nero. Essa perseguição começou logo após o grande incêndio em Roma, em 64 d.C. (que a maioria acreditava ter sido iniciado por Nero, mas pelo qual ele culpou os cristãos e os perseguiu violentamente), e continuou até a morte de Nero (por suicídio) em 9 de junho de 68 d.C. Por isso, podemos concluir que o nome “Babilônia” na carta e as evidências históricas de que Pedro estava em R om a com Paulo já perto do fim da vida integram -se para indic ar q ue 1Pedro foi escrit a em Roma.
3. Data Já discutimos as propostas de datas posteriores à vida de Pedro (veja a se ção sobre o “Autor”), mas se concordarmos que a carta foi escrita por Pedro, em que momento da vida ele a escreveu? E altamente improvável que a visão do governo civil que Pedro apresenta em 2.13-17, de forma geral positiva, pudesse t er sido escrita sem mais qualific ações se a persegui ção imposta por Nero já tivesse começado em Roma. A gravidade dessa perseguição ,39 aliada à opinião positiva quase incondicional sobre o gover no em 2.13-17, mais as tradições sobre a morte de Pedro sob Nero (veja a seção “Local de composição”), unem-se para indicar que a carta deve ter sido escrita antes de 64 d.C. No entanto, quando Eusébio relata que Pedro estava em Roma “no fim” (epi telei en rhõmê genomenos) e l e parece acreditar que Pe dro estava em Roma apenas no fim da vida. O livro de Atos, todavia, termina com Paulo em Roma (At 28.30,31) sem nenhuma indicação de que Pedro também estava presente. E ntret anto, se data rmos as cartas enviadas po r Paulo da prisão (Efésios, Filipenses, Colossenses, Filemom) entre 60 e 62 d.C., enquanto ele esteve preso em Roma, é curioso o fato de não haver menção de Pedro em nenhuma das quatro cartas. Se Pedro estivesse presente ali naquela época, seria difícil compreender declarações como Filipenses 2.20,21, referindo-se a Timóteo: “Porque não tenho nenhum outro com esse mesmo sentimento, que sinceramente cuide do vosso bem-estar. Pois todos buscam o que é seu, e não o que é de Cristo Jesus”. Além disso, em Colossenses 4.10,11, Paulo menciona apenas Aristarco, Marcos, primo de Barnabé, e Jesus, ”Veja Tácito,
Anais 15.44.
40HE 3.1.2. 37
1PEDRO
chamado Justo; então acrescenta: “Dentre a circuncisão, são só esses os meus cooperadores no reino de Deus, os qu ais me tê m sido consolo” . Ele também menciona “Lucas, o médico amado” e outros em Colossenses 4.2-14, mas não há nenhuma referência a Pedro (e é difícil imaginar que Paulo não considerasse um “cooperador”). De modoPedro semelhante, podemos supor que se Paulo estivesse em Roma na época em que lPedro foi escrita, Pedro teria mencionado sua presença e enviado cumprimentos de Paulo, visto que algumas das igrejas às quais ele estava escrevendo haviam sido fundadas por Paulo. Em lPedro 5.12,13, porém, ele menciona apenas Silvano e Marcos. Esses fatores se juntam para indicar que lPedro não foi escrita antes de Paulo sair de Roma, talvez em 62 d.C. (se aceitarmos que os eventos narra dos emde1 ele e 2Timóteo e Tito dizem que aconteceu depois ter sido libertado de suarespeito primeiraaoprisão em Roma com ) . 41 Paulo Isso nos deixa com uma data entre 62 e 64 d.C. para lPedro. Ademais, se também aceitarmos que 2Pedro foi escrita por Pedro após lPedro, será preciso atribuir algum tempo para a composição de 2Pedro, talvez entre 63 e 64 d.C. (ou 65-66, se Pedro morreu depois, durante a perseguição de Nero ).42Isso emp urraria a dat a de lPed ro para o início do período admitido, situa ndo -a em 62 ou 63 d.C. Todavia , apesar de 62 ou 63 p arecer a dat a mais provável de composição da carta, deve-se lem brar que as evidências utili zadas para definir 64 d.C. como a data mais tardia possível estão mais bem firmadas em dados históricos, ao passo que é preciso admitir que muitos argum entos a favor da data mais rem ota são base ados no silêncio. 4. Destin o e leitore s
O destino da carta é declarado n o prim eiro versículo: “... eleitos peregri nos da Dispersão no Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia”. Hort afirmou em 1898 que esses nomes descreviam a rota a ser seguida pelo portador da carta em sua viagem p or quatro proví ncias romanas ao su l do mar N egro, na região hoje chamada Ásia Menor, atualmente parte da Turquia .43 Sua
"Guthrie, NT7, p. 589-99. 42Ibidem, 850.
43“The provinces of Asia Minor included in St. Peter’s address”, in: Hort,
1 Peter,
p. 154-84, esp. p. 183-4. 38
IN T R O D U Ç Ã O
afirmação foi amplamente aceita ,44 embora tenha sido profundamente aprimorada e corrigida em detalhes por Colin Hemer .45 Hem er ar gument a que os únicos portos e rotas comerciais possíveis exigiríam que um mensag eiro seguisse uma r ota a part ir de Amiso (atual Samsun), p assando po r Amasia noeleste da Galácia, Zela, Cesareia na Capadócia, Icônio, Antioquia da Pisídia Laodiceia. Então, talvez, se o tempo permitisse, ele passaria por outras igrejas da Ásia (Colossos? até mesmo Éfeso?) e, finalmente, chegaria a Niceia, Nicomédia e Calcedônia. De lá, o mensageiro podería embarcar em um navio nas proximidades de Bizâncio e voltar a Roma. (Veja o mapa na p. 20 ). Essa rota circular signifi ca qu e todos os principais centros de i nfluência cristã na Ási a Men or seria m alcançados pel a carta. Além do mais, pod eríam ser feitas cópias a cada parada para distribuição às igrejas menores de cidades vizinhas. Contudo, se todas as igrejas da Ásia Menor em 62-63 d.C. foram alcançadas po r essa carta e eram seus principais destinatá rios, então a questão sobre Pedro estar escrevendo para cristãos gentios ou cristãos judeus já está respondida. A essa altura, mais de trinta anos após o Pentecostes, o rápido crescimento da igreja significaria a presença de cristãos tanto judeus como gentios em todas essas igrejas. Portanto, apesa r de Pedro usar um a term ino logia judaica em relação a seus leitores (por exemplo, observe a expressão “peregrinos da Dispersão” em 1.1), ele está apenas aplicando à igreja na era da nova aliança um vocabulário antes adequado ao povo da aliança com Deus, os judeus (veja o comentário em 2.10 e a argumentação sobre o tema da igreja com o o novo povo de Deus) . A carta traz várias indicações de que Pedro supunha haver um grande número de cristãos gentios entre seus leitores. Ele afirma “fostes resgatados da vossa man eira fútil de viver, receb ida p or tradição dos vossos pais” (1.18) e “antigamente, não éreis povo; agora, sois povo de Deus” (2.10), algo que ele dificilmente diria sobre judeus convertidos. Ele diz que a vida de seus leitores estava cheia de pecados atípicos dos judeus: “Porque basta que no tempo passado tenhais cumprido a vontade dos gentios, andando em libertinagem, prazeres, embriaguez, orgias, bebedeiras e idolatrias repulsivas” (4.3). Então acrescenta que os incrédulos “acham estranho que não vos juntais a eles na "“ Guthrie, N TI, p. 792-3, aborda algumas outras teorias, das quais nenhuma auferiu grande aceitação.
45“The address of 1 Peter”, ExpT 89 (1978), p. 239-43. 39
1PEDRO
mesma carreira desenfreada de licenciosidade” (4.4), algo que não causaria surpresa aos incrédulos se os cristãos fossem, anteriormente, judeus que se guiam os rigorosos padrõ es morais do jud aísm o do p rim eiro século. N o entanto, sem dúvida havia judeus convertidos nessas igrejas, pois até no Pentecostes estavam presentes pessoas que vieram da “Capadócia, do Ponto e da Ásia” (At 2.9). Portanto, o melhor que se pode af irmar é que essas igrejas eram congreg ações mistas formadas po r cristãos judeus e gentios. 5. Propósito
Visto que muitas exo rtações em 1Pedro dizem respe ito à fé e à obediência, pode-se dizer que o propósito da carta é encorajar os leitores a crescer em confiança e obediência a Deus em todos os aspectos da vida, mas principal mente em face do sofrimento. Pedro cumpre seu propósito apontando o que Deus fez por eles em C risto e, em seguida, aplica ndo isso à vida dos leitores. Esses temas serão estudados com mais detalhes ao longo da exposição do texto, mas aqui basta observar um versículo, que talvez seja o que melhor resuma tais preocupações em tod a a carta: “Portanto, os que sofrem segundo a vontade de Deus devem confiar a vida ao fiel Criador, praticando o bem” (4.19). Aqui se veem os temas do sofrimento (“os que sofrem”) e da confiança em Deus (o sofrimento ocorre “segundo a vontade de Deus”, devendo levar os leitores a sempre confiar a vida [ou alma] “ao fiel Criador”). Além disso, tal confiança em Deus deve ser acompanhada pela obediência, pois eles de veríam continuar “praticando o bem”. No início de seu valioso comentário de 1Pedro, o arcebispo Robert Leighton escreve: Essa excelente epístola (plena de doutrina evangélica e autoridade apostólica) épara umencorajar resumo breve, porém claro,em dassuaconsolações necessárias e orientar o cristão jornada parae oinstruções céu, elevando seus pensamentos e desejos em direção a essa felicidade, e fortalecendo-o contra todos os obstáculos no caminho, tanto da corrupção interior quanto das tentações e aflições que vêm de fora. Os tópicos doutrinários nela contidos são muitos, mas os principais, os mais enfatizados, são estes três:fé, obediência e paciência, a fim de firmá-los naquilo em que creem, dirigi-los no fazer e consolá-los no sofrer.46
46Leighton, p. 9. 40
INTRODUÇÃO 6. Na tureza e possíveis fonte s de 1 Pedro a. Um s er m ão ba tism al?
Dizer que o batismo é menci onad o apenas um a vez em lPe dro (3.21), e ainda assim de passagem, para alguns pode parecer o mesmo que afirmar o que todos já sabem, mas têm dificuldade em admitir. O índice do comentário de Kelly, por exemplo, lista não menos de 47 trechos onde ele estuda o batismo no curso de sua análise de lPedro. E muitos têm seguido a visão de Preisker de que lPedro é uma liturgia lida em um culto de batismo (o batismo em si ocorre entre 1.21 e 1.22).47O professor Moule, porém, lista diversas objeções decisivas à visão “litúrgica ”.48Resumindo, lPedro assume tão completamente a forma de uma carta endereçada a leitores distantes de qualquer culto local, que é difícil imaginar que em sua srcem o texto tivesse forma e propósito tão distintos. Guthrie observa: “As diversas ocorrências de ‘agora’ na epístola não precisam ser consideradas indícios de uma liturgia em curso (como supõe Preisker), mas a conscientização por parte dos cristãos da importância do presente em sua perspectiva escatológica ”.49 Contudo, ainda que 1Pedro não seja uma liturgia para uso no culto de adoração, será que existem na carta referências frequentes ao batismo? Pense nas seguintes declarações: 1.3 1.12
1.18 1.22
1.23 2 .2
nos regen erou para um a viva esperança... essas coisas, que agoravos foram anunciadas fostes resgatado s da vossa maneira fiitil de viver, recebida por tradi ção dos vossos pais... tende s a vossa vida purific ada pela obediência à verdade... Fostes regenerados... desejai o pu ro leite espiritual, como bebês recém-nascido s... (mas veja o comentário sobre esse versículo)
47A afirmação srcinal encontra-se em H. Windisch, Die katholischen Briefc, revisão de H. Preisker, Hand buc h zum Neue n Testament 15 (Tubi ngen: Mohr, 31951), p. 156-62. U m excelente enuncia do dos argumento s em favor do contexto batismal pode ser encontrado em F. L. Cross, 1 Peter: a Paschal liturgy (Oxford: Mowbray, 1954), p. 28-35 (Cross argumenta que o culto de batismo ocorria em celebrações da Sexta-Feira Santa.) 48C. E D. Moule, “Th e nature an d purpo se o f 1 Peter”, N T S 3 (1956-1957), p. 4-7;
veja também as objeções de Walls em Stibbs-Walls, p. 61-3. «NTI, p. 798. 41
1PEDRO
2.10
2.25 3.21
4.3
agora,recebestes misericórdia. Porqu e vivíeis como ovelhas desgarradas, mas agora retornastes ao Pastor e Bispo da vossa alma. o batismo, [que] agoratambém vos salva, o qual não é a remoção da impureza da carne, mas a promessa de uma boa consciência para com Deus, pela ressurreição de Jesus Cristo... Porque basta que no tem po passado tenhais cum prid o a vontade dos gentios...
A partir dessa lista, pode-se ver que a linguagem de Pedro faz várias alusões à nova vida dos crist ãos. Ela també m pode ser interpre tada c om o re ferência ao pri nc ípi o dessa nova vida, ou sej a, qua ndo eles creram. C ont udo, a simples menção do início da vida cristã não implica uma referência ao batismo. Ademais, vistas isoladamente, essas referências podem em princípio parecer que dizem respeito exclusivamente ao inicio da vida cristã, mas em um exame mais profundo, sobretudo n o contexto em que ocorrem, ne nhu ma delas seria inadequada se aplicada a todos os cristãos, incluindo muitos que eram cristão s já havia bastante tem po. As referências ao novo nascimen to em Cristo são lembretes oportunos da posse de uma vida espiritual que havia iniciado muito tempo antes. Em 1.3, Pedro se inclui entre aqueles a quem Deus “gerou de novo” (KJV [e ARC]). Assim, Walls observa: “O ato de gerar já foi praticado, e seus resultados foram desfrutados. Ele não po de se referir a algo que ocorresse após 1 .2 1 ”.50 A única referência clara ao batismo em 1Pedro (3.21) aparece apenas de passagem, cumpre uma função breve e certamente não é essencial para o argumento do apóstolo (veja o comentário em 3.21). A tese de que, em sua srcem , 1Pedro era um a liturgia o u uma pregação e m u m culto de batismo segue sem força de convencimento e não configura um contexto satisfatório para a composição da carta. E bem melhor interpretar a carta como um texto que Pedro escreveu para cristãos distantes que precisavam intensamente de seu ensino e incentivo.
b. Po ss ív ei s f o n te s do s en sin am en to s de P ed ro Uma questão remanescente diz respeito à possibilidade de identificação das fontes que Pedro teria utilizado na compilação de sua carta, quer se
“ Stibbs/Walls, p. 60. 42
IN T R O D U Ç Ã O encontrassem entre os ensinamentos tradicionais cris tãos qu e circulavam na igreja primitiva, entre códigos morais cristãos ou pagãos (“Haustafeln ”)51 que p od em ter si do emprestados e adapta dos po r Pedro, q uer se encontras sem talvez entre os ensinamentos e escritos do apóstolo Paulo, quer ainda na carta de Tiago .52 E digno de nota que, em seu comentário, Selwyn dedica mais de cem páginas (p. 365-4 66) à análise das fontes de 1Pedro. Ele não encontra nenhuma relação de dependência literária com outros escritos do Novo Testamento, mas depara com muitas indicações de padrões ou estruturas catequéticas comuns amplamente utilizadas na igreja primitiva. Segundo Selwyn, essas conhecidas estruturas foram modificadas e utilizadas por Pedro, Paulo, Tiago e outros. Entretanto, apesar de interessantes, as tabelas detalhadas de Selwyn contendo temas paralelos em Pedro e outras partes do Novo Testamento não conseguem demonstrar a existência de “estruturas” catequéticas anti gas. Muitas das supostas correspondências não configuram exatamente paralelos verbais nem paralelos conceituais. São apenas afirmações sobre tópicos afins de interesse geral, muitas vezes envolvendo questões éticas ou assuntos relacionados à natureza da vida cristã. Todavia, com base nesses dados, podemos concluir apenas que havia muitas idéias comuns e ensinamentos semelhantes na igreja do primeiro século. Tudo isso pode ser satisfatoriam ente explicado por m eio dos antecedentes veterotestamentários com uns a todos, dos ensinamentos de Jesus e dos conhecimentos compartilhados pelos apóstolos à medida que o Novo Testamento era formado. Postular a existência de estruturas catequéticas um tanto fixas (ou a adaptação de códigos morais pagãos, sem que se possa provar uma relação extensa e precisa com os mandamentos neote stamentários) não é algo que decorre naturalmente das evidências nem ajuda a entender os textos em si. Guthrie está correto quando afirma: “Até que ponto a catequese pode ser isolada dos escritos e que valor 51U m claro en unci ado da visão de que os códigos m orais n eotesta mentário s estão sob a influência de certos códigos morais comuns no mundo pagão pode ser encontrado
emj. W C. Wan d, The general epistles of St. Peter and St. Luke (London: Methuen, 1934), p. 3-9 (veja, em especial, a tabela na p. 7. As correspondências apontadas não têm clareza suficiente para convencer). 52Big g, p. 23, lista alguns paralelos bem p róximo s com Tiago , mas os argum ento s a favor da influência de um em relação ao outro são inconclusivos. Não dispomos de dados
suficientes para chegar a uma conclusão confiável. 43
1PE D RO
específico isso teria, caso tal separação fosse possível com algum nível de certeza, é algo que continua indefinido ”.53 Bu ltma nn e Boismard tamb ém tentaram identi ficar fragmentos de h inos antig os em 1Pedro, mas Gu thr ie te m razão qu ando observa que ele s não foram nada convincentes. Em outra questão, acerca da afirmação (feita por Perdelwitz em 1911) de que diversas partes de lPedro podem estar rela cionadas a elementos de ensinos oriundos de religiões de mistério gregas, Selwyn comenta acertadamente: “A afirmação de que o autor deve qualquer de suas principais idéias a religiões de mistério deve ser rejeitada por estar completamente desprovida de comprovação ”.54 Mais convincente é a iniciativa de R. Gundry, que tenta encontrar palavras de Jesus que ecoam em 1Pedro.55 Apesar de não apresentar muitas correspondências verbais exatas de qualquer tamanho, ele expõe um extraordinário número de paralelos em forma e conteúdo, os quais, considerados em conju nto, levam -nos a crer que Pedro es crevia com bastante conhecimento dos ensinos de Jesus, quer por lembrança pessoal, quer por contato com alguns dos primeiros relatos dos evangelhos.
7. Temas pro em inen tes em 1 Pedro Diversos assuntos aparecem com razoável frequência nessa breve carta, tais como santidade de vida, os sofrimentos de Cristo, o sofrimento do cristão, a soberania de Deu s na salvação e na vida, a graça de Deus, a ob ra do Espírito Santo, a igrej a com o o novo povo de Deus, a re alidade do m un do espiritual invisível e a confiança em Deus com relação às circunstâncias diárias. Esses temas podem ser apenas mencionados aqui, pois as limitações de espaço desta série de comentários e o desejo de dar um tratamento mais completo à interpretação de diversas passagens difíceis no texto impedem-nos de estudá-los nesta introdução.
5W T/, p. 807, com notas bibliográficas a dicionais. 54Selwyn, p. 311. 53R. Gundry, N TS 13 (1966-1967), p. 33 6-50 , e (resp ondendo a objeções ) Bíblica 55
(1974), p. 211-32. 44
ESBOÇO
1. SAUDAÇÃO: PEDRO , O AP ÓST OL O, AOS PEREG RINOS SOB OS CU IDAD OS ET ER NO S DE DEUS (1 .1,2) 2. D O UT R INA S GER AIS: A GRANDEZA DE VOSSA SALVAÇÃO (1.3—2.10) a. Como cristãos, cresceis por meio de uma fé radiante (1.3-12) 1. 2. 3. 4.
Alegria na futura recompensa celestial (1.3-5) Alegria apesar do sojrimento (1.6,7) Alegria inexprimível por conhecer o próprio Cristo (1.8,9) Profetas e anjos maravilhados com a viária da vossa salvação ( 1.10- 12)
b. Aplicação: deveis ser santos em todo vosso procedimento (l .13-25) 1. 2. 3.
Desejai a beleza de serdes como o Deus santo (1.13-16) Temei o descontentamento de um Pai que éJuiz imparcial (1.17-21) Amai-vos um aos outros agora e sempre (122-25)
c. Com o desenvolver a santidade (2.1-10) 1. 2.
Sede alimentadospelo Senhor por meio da Palavra (2.1-3) Permanecei em Cristo — juntos — como o novo templo de Deus (2.4-6) a. Os incrédulos rejeitam Cristo e tropeçam (2.7,8) b. Mas estais unidos com Cristo para serdes abençoados como o verdadeiro povo de Deus (2.9,10)
3. ENSINAM ENTO S ÉTIC OS ESPECÍ FICOS: CO M O SER SANTO N O ME IO DE INCRÉDU LOS (2. 11-5.11) a. Princípios gerais (2.11,12) 1. 2.
Abstende-vos de seguir as paixões pecaminosas (2.11) Tende bom procedimento entre os gentios (2.12)
b. A vida como cidadãos: sujeitai-vos às autoridades do governo por amor ao Senhor (2.13-17)
1PEDRO
c.
d.
e.
A vida co mo servos: sujeit ai-vo s a vossos senhores (2.18-25 ) 1. Mesmo aos que são maus (2.18-20) 2. Pois Cristo sofreu por vós, confiando em Deus (221-25) A vida com o cônjuge s (3.1-7)
1. Esposas: sujeitai-vos aos maridos (3.1-6) 2. Maridos: trataias esposas com consideração (3.7) A vida como cristãos em geral (3.8—4.19) 1. Sede humildes e unidos em espírito (3.8) 2. Retribuí com bênção quando vos fizerem mal (3.9-12) 3. Como agir quando sofrerdes por causa da justiça (3.13—4.19) a. Sabei que sois abençoados (3.13,14a) b. Confiai em Cristo (3.14b,15a) c.
d.
f.
Dai testemunho enquantofazeis o bem (3.15b-17) (i) Pois Cristo sofreu para vos levar a Deus (3.18) (ii) Outro exemplo: Noé deu testemunho quandoperseguido (3.1920) (iii) Deus vos salvará (comofe z com No é e Cristo) (3 2122) Decidi estar dispostos a sofrer pela justiça (4.1-6) (i) Pois um cristão que sofre por fazer o bem rompeu claramente com o pecado (4.12)
(ii) Há Nãoum mais dediqueis tempo pecado que (4.3)vos maltratam (iii) juízo vindouro paraao os gentios (4.4,5) (iv) Para salvá-los do juízo eterno, o evangelho foi pregado a cristãos que morreram (4-6) e. Esse ju ízo final está próximo; por isso, agi assim dentro da igreja... (4.7-11) (i) Oraí mais e amai ainda mais uns aos outros (4.7-9) (ii) Glorificai a Deus no uso de vossos dons (4.10,11) f. Não fiqueis surpresos com vossas tribulações, mas regozijai-vos (4.12-16) (i) Pois o julgamento de Deus está começando pela própria casa de Deus (4.17,18) (ii) Portanto, fazei o bem e confiai continuamente em Deus (4J9) A vid a como mem bro s e oficiais da igreja (5.1-7) 1. Presbíteros: pastoreai corretamente o rebanho de Deus (5.1-4)
2.
Os mais jovens (e os demais): sujeitai-vos aos presbíteros (5.5a) 46
ESBO ÇO
3.
Todos vós: tendeuma disposiçãohumilde uns para com os outros (5.5b) a. Humilhai-vos debaixo de Deus (5.6) b. Ganhai humildade, lanç ando toda vossa ansiedade sobre Deus (5.7)
g. A vida como cristãos em conflito espiritual (5.8-11) 1. 2. 3.
Cuidado com o Diabo (5.8) Resisti ao Diabo com umafé firme (5.9) Deus vos restaurará depois de terdes sofrido (5.10,11)
4. SA UD AÇ ÕE S FINAIS (5.1 2-14 ) a.
Envio esta carta pelo fiel Silvano (5.12a)
b. c. d. e.
Permaneceidafirmes descreví Saudações igrejana emgraça Romque a e de Marcos(5.12b) (5.13) Saudai-vos uns aos outros (5.14a) Paz a todo s os que estão em Cris to (5.14b)
47
COMENTÁRIO 1. SAUDAÇÃO : PEDR O, O APÓS TO LO, AOS PERE GRINOS SOB OS CUIDADO S ETE RN OS DE D EUS (1. 1, 2) 1. O autor se identifica como Pedro, apóstolo de Jesus Cristo. Antes do Novo Testamento, a palavra “apóstolo” (apostolos) era usada eventualmente e tinha o sentido geral de “mensageiro”. Segundo os evangelhos, porém, Jesus atri buiu um sentido mais rico ao termo ao designar doze de seus discípulos como “apóstolos” (Lc 6.13). Após o Pentecostes, aqueles que haviam sido discípulos (“alunos”) de Jesus assumiram o papel de apóstolos (At 1.25). A suprema importância dos apóstolos é indicada pelo fato de que “de Jesus Cristo” não é vinculado a nenhuma outra função no Novo Testamento. Em parte alguma se lê “mestres de Jesus Cristo”, “profetas de Jesus Cristo” ou “evangelistas de Jesus Cristo”, mas apenas “apóstolos de Jesus Cristo”. Os que exerciam tal função tinham autoridade ao menos equivalente à dos profetas do A nt ig o Testamento, pois os apóst olos falavam e escreviam as palavras do próprio Deus (At 5.3,4; Rm 2.16; ICo 2.13; 14.37; 2Co 13.3; Gl 1.8,9; lTs 2.13; 4.8,15; 2Ts 3.6,14; 2Pe 3.2), de modo que redigiram o que um dia se tornaria o Novo Testamento (lCo 14.37; 2Pe 3.16; conforme Ap 22.18,19; lTs 5.27; 2Ts 3.14). As palavras introdutórias, portanto, lembram aos leitores que Pedro está escrevendo no exercício de sua função de apóstolo de Jesus Cristo: suas pala vras também são palavras de Deus, e, como tais, devemos recebê-las. N o trecho seguinte, as palavras aos peregrinos da Dispersão traduzem lite ralmente a expressão grega. (A RSV [e a A2l] inclui a palavra “eleitos” no v. 2.) O termo “peregrinos”, parepidêmos, sempre se refere a um residente tem porário em local estrangeiro. Abraão referiu-se a si mesmo como “estrangeiro e peregrino” (parepidêmos) entre os heteus (Gn 23.4, LXX). Hebreus 11.13 diz que todos os heróis da fé, de Abel a Abraão, reconheceram ser “estrangeiros e peregrinos (parepidêmoi) na terra”. O verbo cognato é utilizado em um de creto do rei do Egito que determinava que visitantes não poderíam peregrinar (parepidêmeõ)por mais de vinte dias em Alexandria, pois muitos estavam se afeiçoando à vida confortável na próspera cidade e negligenciando as ativi dades agrícolas nas zonas rurais (Epístola de Arísteas, 110; lClemente 1.2).
Esses exemplos mostram que “peregrinos” é de fato a melhor tradução, em detrimento de “exilados” (RSV), pois a palavra não tem conotação de
1PEDRO
forçar alguém a habitar longe de su a terra na tal. Da mesma forma, o term o “estrangeiros” (KJV [e ARC]; NIV traz “estrangeiros no mundo”) pode dar a entender, incorretamente, que eles não eram conhecidos entre seus vizinhos, mas esse não era o caso, por exemplo, de Abraão (Gn 23.4,5) nem de outros santos do Antigo Testamento (Hb 11.13). Melhor é a opção da NASB, “aqueles que residem como estrangeiros”, que, em bora mais longa, capta a ideia de residência temporária fora do lugar de srcem. Não há nenhum outro exemplo na literatura judaica ou cristã em que o escritor qualifique “peregrinos” com o adjetivo “eleitos” ( eklektos), como Pedro faz aqui. No Novo Testamento (onde aparece 22 vezes), a palavra sempre se refere a pessoas escolhidas por Deus dentre um grupo de outras não escolhidas, para serem incluídas entre o povo de De us c om o beneficiárias de grandes bênçãos e privilégios (Mt 20.16; 24.31; Rm 8.33 etc.). Muitos dos leitores de Pedro haveríam de detectar nessa palavra ecos do uso que a LXX faz em referência a Israel, o povo “escolhido” de Deus (Sl 89.3 [LXX 88.4]; 105.6,43 [LXX 104.6,43]; 106.5 [LXX 105.5]; Is 42.1; 43.20; 45.4; 65.9,15,22 [LX X 23]), e con cluiríam que Pedro os c onsiderava detentores de uma condição privilegiada diante de Deus, ao menos equivalente à condição usufruíd a pelo povo esc olhido que Deus pr otegeu, preservou e abençoou no Antigo Testamento (veja lPe 2.4-10). modo, expressão “eleitos vale por umnão sermão de duasDesse palavras paraaos leitores de Pedro:peregrinos” eles são “peregrinos”, no sen tido secular (pois muitos certamente tinham morado em uma só cidade durante toda a vida), mas espiritual. Sua verdadeira pátria era o céu (veja Fp 3.20); por isso, qualquer residência na terra era temporária. Ademais, eles são peregrinos “eleitos”, a quem o Rei do universo escolheu para for mar seu próprio povo, para desfrutar de sua proteção e habitar em seu reino celestial. A Dispersão (diaspora) era um termo usado po r jud eus de idi oma grego para se referir ao povo judeu “espalhado” entre as nações, “disperso” de sua terra natal, Israel (veja Jo 7.35). Tanto aqui como em Tiago 1.1, o termo “Dispersão” se refere a cristãos, mas isso não implica que Pedro estivesse escrevendo apenas para cristãos judeus (veja na “Introdução”, “Destino e leitores”). Em vez disso, o termo possui aqui um novo sentido espiritual, referindo-se a cristãos que foram “dispersos” pelo mundo e vivem longe do lar celestial (mas com a esperança de um dia estar ali). A palavra assim reforça o sentido de “peregrinos” e acr escenta a ideia de que eles fazem pa rte
de uma dispersão de cristãos por “todo o mundo”. 50
1PEDRO 1.12
Os leitores moravam no Ponto, Galácia, Capadócia, Asia e Bitínia,cinco nomes associados a quatro províncias romanas ao sul do mar Negro, região conhecida como Ásia Menor, grande parte da qual fica hoje na moderna Turquia (veja o mapa na p. 20). (Naquele tempo, “Ásia” muitas vezes não se referia ao continente asiático, mas a uma única província a leste do mar Egeu.) Três nom es se referiam a três províncias rom anas (Galácia, Capad ócia e Ásia), mas “Ponto” e “Bitínia” eram duas regiões que formavam uma única provínc ia chamada “ Bitínia e Ponto”. O fato de os nomes aparecerem separados, na primeira e última posições na lista de Pedro, é mais bem explicado pela opinião de Hort 1 de que a lista descreve a rota a ser seguida pelo portador da carta (provavelmente Silvano, lPe 5.12; veja “Introdução”, p. 23-4). Detalhes da teoria de Hort foram corrigidos por Colin Hem er (veja “Introdução”, p. 36-7), que apresenta bons argumentos a favor da seguinte Ponto (Hemer rota :2 o portador da carta desembarcaria em um porto do argu menta q ue apenas Amaso, atual Samsun, propo rcion aria u ma rota viável para o interior a partir da costa), seguiría para a Galácia (com um a escala em Amasia, no leste da Galácia) e passaria por Zela até Cesareia na Capadócia; de lá, seguiria para o oeste pela grande rota comercial que atravessava o sul da Galácia (passando pelas igrejas paulinas de Icônio e Antioquia da Pisídia), rumando para Laodiceia na Asia, talvez passando em seguida por outras igrejas da Ásia (Colossos? até mesmo Éfeso?), e finalmente chegando às principais igrejas da Bitínia (Niceia, Nicomédia e Calcedônia). De Calcedônia ou de Bizâncio, no estreito de Bósforo, ele podería embarcar em um navio e seguir de vo lta para Roma. Assim, tod os os principais cent ros de influência cristã na Ásia Menor seriam alcançados. 2. Segundo a presciênciaé a tradução de kata prognõsin.O verbo cognato, “antever” ou “conhecer de antemão”, pode se referir não apenas ao conhe cimento que Deus tem de um fato (e.g., que os leitores de Pedro seriam peregrinos eleitos na Ásia Menor), mas também de pessoas, u m conhecimen to pessoal, amoroso e paternal (Rm 8.29; 11.2; lPe 1.20; cf. “conhecer” em Jo 10.14; ICo 8.3; 2Tm 2.19). Desse modo, “segundo a presciência” tem o sentido de “conforme o cuidado paternal de Deus por vós desde antes da formação do mundo”. 'Veja “The provinces of Asia Minor included in St. Peter’s address”, in: Hort, p. 154-84, esp.p. 183-4.
2Co lin Hemer, “The address o f IPe ter”, E xpT 89 (1978), p. 239-43. 51
1PEDRO
Mas o que é “segundo a presciência de Deus Pai”? A KJV a NIV e a NASB fazem a expressão modificar “eleitos”, dando a essa palavra uma ca racterística verbal. Todavia, no texto grego, “eleito” (ou “escolhido”) é apenas um adjetivo (“eleitos peregrinos”) e está a nove palavras de distância desse 1
segmento de frase. Visto que o versículo não contém verbo algum, é mais que natural que “segun do a presciênci a de Deus Pai” esteja modif icando to da a situação dos leitores mencionados no primeiro versículo: eles são “eleitos peregrinos da Dispersão no Ponto, Galácia [...] segundo a presciência de Deus Pai”. Isso indica que sua situação como peregrinos, seus privilégios como povo escolhido de Deus e até o ambiente hostil que enfrentavam no Ponto, Galácia etc. eram conhecidos por Deus desde antes do início do mundo. Significa que tudo havia ocorrido em conformidade com sua presciência e, portanto (devemos concluir), tudo estava de acordo com seu am or paternal por seu povo. Tal presciência traz grande conforto aos leitores de Pedro. O mesmo teor do versículo 1, ou seja, toda a situação atual dos leitores, é ainda modificado por mais duas locuções prepositivas :3 pela santificação do Espírito e para a obediência e a aspersão do sangue deJesus Cristo. Assim como a presciência de Deus está relacionada ao tempo passado, a “santificação do Espírito” fala de uma influência presente e upara a obediência [...] e [...] aspersão”espera uma meta ou atividade futura contínua. Além disso, o versículo menciona as três pessoas da Trindade: Deus Pai [...] Espírito [...]Jesus Cristo. Pedro especifica as diferentes ações de cada pes soa da Trindade, mas as vê unidas para alcançar um objetivo comum: a salvação integ ral e ete ma dos “eleitos peregrin os”. A ob ra santificadora do Espírito Santo, que ele real iza gradu almen te nos cristãos para livrá-los de pecados remanescentes e torná-los cada vez mais semelhantes a Cristo em santidade, fé e amor, é detectada nas palavras pela santificação do Espírito(literalmente, “em santificação de [o] Espírito”). A NIV e a NASB [e a NVI] se concentram demais no adjetivo “es colhidos” como ponto de referência para “segundo a presciência de Deus Pai” e, por isso, são obrigadas a seguir o mesmo padrão, produzindo um resultado incompreensível: “escolhidos [...] pela obra santificadora do Espírito”. Isso faz pouco sentido, se é que faz algum, pois: (l) é difícil imaginar como uma atividade (obra santificadora) podería desempenhar uma ação pessoal (escolher) e (2) a escolha de Deus, de acordo com as 3Assim tamb ém Beare: “Esse trech o trip arti te n ão pod e estar relacionado exclusiva
mente aos eklektois, ‘escolhidos’ [...]. Ele se relaciona à saudação como um todo” (p. 75). 52
1P EDR O L I?
Escrituras, aconteceu na eternidade passada, ao passo que a obra santificadora do Espírito, segundo o restante das Escrituras, é uma ação que se dá no presente. Contudo, como algo na eternidade passada (a escolha de Deus) pod e ser executado “po r” algo que tem início só n o prese nte (a obra santificadora do Espírit o)? (Kelly, p. 43, precisa imp or tar para o t exto um a ideia inteiramente nova: “Essa escolha predestinada [...] tornou-se eficaz por meio da [...] ação santificadora do Esp írito”.) Novamente é bem mais fácil entender “pela santificação do Espírito” como referência à condição dos leitores de Pedro como um todo. Isso permite que en tenha seu sentido comum, “em”: Pedro está dizendo que toda a existência de seus leitores, como “eleitos peregrinos da Dispersão” está sendo vivida “no” âmbito da obra santificadora do Espírito. A ação do Espírito Santo de Deus, que não pode ser vista ou ouvida, os envolve quase como uma atmosfera espiritual “na” qual eles vivem e respiram, transformando toda circunstância, aflição e adversidade em ferramenta para sua paciente obra santificadora (veja Jo 15.2; Rm 8.28; 2Co 4.16-18; Hb 12.10,11; Tg 1.2-4; lPe 4.14). Para a obediência aJesus Cristo [NVl] indica o propósito de Deus para a existência presente dos leitores co mo “eleitos peregrin os” em sua terra nat al: suas vidas deveríam estar voltadas “ para” (eis) uma obediê ncia cada vez maio r a Crisco (veja Ef. 2 . 10 ; lTs 4.3; Jo 14.15). Como Salvador exaltado e sobe rano Senhor, Cristo recebe o que o Pai planeja e o Espírito torna possível. Há quem argumente que obediência (hypakoe)aqu i significa a obediênci a inicial (salvífica) ao evangel ho, mas Pedro, em out ras partes, emp reg a hypakoè com referência à obediência diária dos crentes (1.14 e, provavelmente, 1.22; veja também hypakouõ em 3.6), à semelhança do que fazem Paulo (Rm 5.19; 6.16; 2Co 7.15; 10.5,6; Fm 21) e o autor de Hebreus (5.8). Não há exemplos claros de hypakoêcom o significa do de “resposta salvífica inicial ao evangelho” (pois Rm 1.5 e 15.18 são passagens ambíguas). Os leitores de Pedro certamente entendiam que sua obediência nesta vida era sempre incompleta, que mesmo o mais maduro dos cristãos tinha uma consciência dolorosa do pecado remanescente e que o propósito de Deus, “obediência a Jesus C risto ”, jam ais seria cu mprid o de m od o integral nesta vida. Então Pedro acrescenta que a vida dos leitores também estava voltada para (eis) a aspersão do sangue deJesus Cristo. N o Antigo Testamento, o sangue aspergido era u m lem brete visual para Deus e para seu povo de que uma vida havia sido derramada, um sacrifício havia sido pago. Na maioria dos sacrifícios veterotestamentários, porém, o
sangue era aspergido sobre o altar ou sobre o propiciatório (Lv 4.17; 5.9; 53
1PEDRO
16.14,15,19; Nm 19.4). Em apenas três casos o sangue foi cerimonialm ente aspergido sobre as pessoas: (l) na cerimônia do início da aliança no monte Sinai, quando Moisés aspergiu sobre o povo metade do sangue dos bois sacrificados (Êx 24.5-8; Hb 9.19; e talvez Is 52.15 [Áquila, cf. Teodócio (2) na cerimônia de ordenação de Arão e seus filhos como sacerdotes (Êx 29.21; provavelmente também Hb 10.22); e (3) na cerimônia de purificação de um leproso que havia sido curado da lepra (Lv 14.6,7). Se 1Pedro 1.2 faz refe rência ao primeiro caso, isso signi fica que o propósito de Deus para os leitores era que eles fossem admitidos em uma aliança com Deus e se tomassem seu povo, ao serem simbolicamente “aspergidos” com o sangue de Cristo. Tal “aspersão”, portanto, estaria se referindo ao início da vida cristã. Contudo, o fato de Pedro mencioná-la após opção a “santificação p elo Espaírit o” e apósà apreposição “obediê nciaeis a Jesus C risto” torna essa pouco provável, exemplo (“para, no sentido de”) em “para [...] a aspersão”. Se o texto se refere à segunda cerimônia, a ordenação de sacerdotes, isso significa que o propósito de Deus para os leitores era que eles deviam ser simbolicamente ordenados sacerdotes pela “aspersão” com o sangue de Cristo. Pedro, todavia, já os vê como sacerdotes, em v irtu de de sua condição de membros na nova aliança (“vós sois [...] sacerdócio real”, 2.9), a exemplo de Hebreus 10.22 (onde os ações verbosconcluídas “aspergidos” “lavados”, conjugados no pretérito perfeito, indicam no epassado); assim, tal contexto é improvável. A terceir a possibilidade, a aspersão com s angue para pur ificação da lepra, parece a mais adequada. Essa passagem (Lv 14.6,7) é menos obscura do que podemos imaginar, uma vez que a cerimônia servia para qualquer doença de pele (Lv 14.54-57) que exigisse que o enfermo fosse excluído da comuni dade: tal pessoa devia viver isolada e gritar “Impuro, impuro” (Lv 13.45,46). Desse modo, Levítico 14.6,7 é uma excelente passagem para representar a purificação de qualquer impureza que pudesse atrapalhar a comunhão entre Deus e seu povo. Parece que é a isso que Davi se refere em Salmos 51.7: “Purifica-me com hissopo, e ficarei limpo” (a LXX diz: “asperge-me com hissopo”, usando rhantizõ, cognato do substantivo empregado por Pedro, rhantismos, “aspersão”), referindo-se aqui não à impureza física da lepra, mas à impureza espiritual do pecado. Em ambos os casos, a comunhão era rom pida, mas a condição de m em bro do povo da aliança de Deus era preservada. Essa “aspersão do sangue” se encaixa em lPedro 1.2. Embora fosse in
tenção de Deus que esses “eleitos peregrinos” vivessem “para a obediência 54
1PEDRO 1.12
a Jesus Cristo”, eles muitas vezes eram “maculados” pelo pecado. Pedro os lembra que o futuro deles inclui a aspersão contínua com o sangue de Cristo, ou seja, a contínua restauração da comunhão entre Deus e seu povo por meio da aspersão simbólica do sangue sacrificial de Cristo sobre eles — um memorial permanente diante de Deus de que os pecados deles foram perdoados e de que eles são bem -vindos à presença de Deus e entre seu povo (veja ljo 1.7 acerca do conceito da aplicação contínua do sangue de Cristo à vida cristã). Portanto, para a obediência e a aspersão do sangue de Jesus Cristo significa que o p lano de Deu s para eles não era uma obediência desfigu rada pelo pecado não perdoado, mas obediência cujos tropeços são purificados pelo sangue de Cristo; significa “para obediência e perdão contínuos e diários”. E H. Chase afirma que Pedro descreve aqui “uma vida vivida de acordo com a vontade e o padrão divinos [...] continuamente purificada da mácula do pecado pela aplicação do sangue de Cristo que traz vida ”.4 Aqui temos ao mesmo tempo consolo e exortação, e ambos devem ser sempre mantidos em mente. Graça e paz vos sejam multiplicadas éuma forma mais longa da sauda ção que Paulo faz com bastante frequência; “Graça e paz a vós” (Rm 1.7; IC o 1.3; 2C o 1.2; Gl 1.3; E f 1.2; Fp 1.2; Cl 1.2; lTs 1.1; 2Ts 1.2; T t 1.4; Fm 3). Pedro também vincula a bênção veterotesta mentária da paz de Deus à bênção neotestamentária da graça (charts),oferecida gratuitamente por Deus como favor imerecido a seu povo. Pedro deseja que ambas sejam mul tiplicadaspara tod o o povo e qu e em todos os momen tos o povo se ja repleto de bênçãos espirituais imerecidas da parte de Deus.
*HDB, vol. 3, p. 796.
2. DOU TRINAS GERAI S: A GR AND EZA DE VO SSA SAL VAÇÃO (1. 3— 2. 10) a. Com o cristão s, cresceis por meio de um a fé radiante (1.3-12) 1. Alegria na fu tu ra recompensa celesti al (1. 3-5 ) 3. Bendito seja o Deus e Pai de nosso SenhorJesus Cristo ecoa uma expressão de louvor a Deu s com um no A ntig o Testamento (Gn 14.20; 24.27; Rt 4. 14; ISm 25.32; lRs 1.48; Sl 28.6; 31.21; 41.13) e a modifica para louvar a Deus com um no me que ele jamais revelou no An tigo Testame nto: “Pai de noss o Senhor Jesus Cris to”. O termo “Pai”, aplicado à primeira pessoa da Trindade, não sig nifica que o Pai tenha de alguma forma criado o Filho ou causado sua existência (pois o Filho sempre existiu e jamais foi criado: Jo 1.1-3; 8.58; 17.5, 24; Ap 22.13), mas que se relaciona com o Filho como um pai normalmente se relaciona com um filho: o Pai planeja e orienta, o Filho responde e obedece; o Pai “envia”, o Filho vem do Pai (Gl 4.4; Jo 3.16,18; 5.19,22,26,27,30). O Pai cria “por intermédio” do Filho. Todas as coisas “procedem” do Pai “por intermédio” do Filho 0o 1.3; IC 0 8 .6 ; Cl 1.16; Hb 1 .2 ). Pedro incentiva seus leitores a louvar a Deus, um remédio indicado para corações abatidos e desanimados em virtude dos sofrimentos. Ele então apresenta os motivos para louvar: ... nos regenerou [...] segundo a sua grande misericórdia.A palavra traduzida po r “regenero u” ( anagennaõ) tem um sentido bem ativo, pois a raiz da palavra (gennaõ)muitas vezes se refere ao papel de um pai no nascimento de uma criança (KJV [e AR C], “nos gerou de novo”), quer lit eralmente (Mt 1.2-20), quer de mo do figurado, no sentido espiritual (lC o 4.15). A traduç ão d a NASB, “ele nos fez nascer de no vo”, é provavelmente a melhor opção. Ao bendizer a Deus, Pedro pensa primeiro na nova vida espiritual que Deus concedeu ao seu povo . 1
'Alguns comentaristas veem nessa referência a um novo nascimento a indicação de que essa seção é um hino de ação de graças (ou trecho de uma liturgia) a ser usado em batismos.
1PEDRO Esse “nascer de novo” ocorre segundo a sua grande misericórdia,trecho com a mesma preposição (kata) de “segundo a presciência” (v. 2). Nem aqui n em em ne nh um a outra parte das Escrit uras se menciona a presc iênci a do fato de que viriamos a crer, tampouco a predição de algum valor ou merecimento nosso quando o assunto é a razão suprema de Deus para nossa salvação. Foi simplesmente “segundo a sua grande misericórdia” que ele nos deu nova vida. Fomos gerados de novo, diz Pedro, para uma viva esperança, ou talvez em (eis,na esfera ou no âmbito de) “uma viva esperança”. Essa esperança é a grande e confiante expectativa da vida do porvir, descrita com mais detalhes por Pedro no versículo seguinte. Ela é “viva”. Ao descrevê-la assim, Pedro sinaliza que ela cresce e se fortalece ano após ano. Se tal esperança cada vez maior é a consequência que se espera do novoem nascimento, entãov éindo possível que a intensidade des sa confiant e expectativa relação à vida ura seja um a boa forma de medir o progr esso ru m o à matur idade espir itual. N ão é de e stranhar que essa esperança seja especialmente nítida em mu itos cristãos mais velhos, à medida que se aproximam da morte. Deus promoveu esse novo nascimento pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos.De uma perspectiva gramatical, esse segmento de frase podería modificar o particípio “viva”, indicando que a esperança é viva “pela (força da) ressurreição” (Kelly, p. 48), mas não é provável que seja esse o sentido correto: (l) tal sentido teria sido expresso com mais clareza se Pedro tivesse usado uma oração relativa, “para uma esperança que é viva por meio da ressurreição” (eis elpida hê zõsan di’ anastaseós), ou mesmo “por causa da ressurreição” ( di’anastasin); (2 ) no versículo 23 encontramos um exemp lo análogo de Deus agin do por meio (dia) de algu ma ou tra pessoa ou coisa para nos dar o novo nascimento: “Fostes regenerados [...] pela (dia) palavra de Deus, que vive e permanece”; e (3) em Pedro é comum lermos sobre pessoas, principalmente Deus, fazendo coisas por meio ou intermédio (dia) de algo ou alguém (lPe 1.5,12,23; 2.5,14(?); 3.1,21; 4.11; 5.12; 2Pe 1.4).
Isso é improvável, não apenas porque o batism o não é mencionado, mas tamb ém porque tal posição ignora o fato evidente de que, ao se referir ao início da vida cristã, Pedro não está falando da cerimônia exterior (batismo), e sim da realidade espiritual interior (o novo nascimento): veja 1.3 e 23. Ele está falando aqui do início da vida cristã, não de uma ce rimônia que pode ou não ter ocorrido em um momento próximo a esse início. (Veja na
“Introdução”: “Natureza e possíveis fontes de IPedro”.) 58
1PEDRO 1.3-2.10
A ressurreição de Cristo dentre os mortos garante para seu povo um novo corpo ressurreto e uma nova vida espiritual. Os cristãos não recebem, nesta era, u m novo corpo, mas D eus lhes conce de, co m base na ressurreição de Jesus, um espírito renovado. Dessa forma, os crentes “ressuscitaram com Cristo” espiritualmen te (Cl 3.1; E f 2.6; veja Rm 6.4,11). 4.
Pedro explica que o objeto da “esperança viva” de seus leitores é u herança que não perece, não se contamina nem se altera. O Novo Testamento costuma usar a palavra “herança” (kleronomia) para se referir não apenas a uma heran ça terrena, mas também à “porção” do crente no reino celestial, sua futura recompensa no céu (Gl 3.18; Ef 1.14,18; 5.5; Cl 3.24; Hb 9.15). N o entanto, o Antigo Testamento refere-se à terra prometida de Canaã comoAta “herança” de Israel (Nm 32.19; 2.12; 12.9; Js 11.23; veja 7.5; Hb 11.8) e, muitas vezes, Dt emprega “herança” paraSlse105,11; referir à parte de Canaã que cabia a cada tribo ou família como sua “porção”: Números 26.54; 27.7-11; 36.3-12; Josué 13.14,23,28 etc. O contraste salta aos olhos: os leitores nasceram de novo não para re ceber uma herança de família no território de Canaã, mas para receber uma herança na cidade eterna de Deus (de onde ainda estão distantes, vivendo como peregrinos, v. l). Portanto, a “herança” é a porção deles na nova cria ção com todas as suas bênçãos.a palavra “para” (eis) muitas vezes assume o Em “para uma herança”, sentido de “em/para dentro de”, podendo aqui indicar que, já no presente, eles de certa forma desfrutam um pouco dessa herança celestial, “na qual”, no âmbito espiritual, os leitores nasceram. Essa herança celestial “nao perece”, o que significa que ela não está sujeita à deterioração, nem pode ser exaurida com a passagem do tempo. O Novo Testamento usa essa palavra apenas em referência a realidades celestiais eternas, com o o próprio D eus (Rm 1.23; l T m 1.17), a palavra de Deus (lPe 1.23) e nosso corpo ressurreto (lCo 15.52; veja ICo 9.25; lPe 3.4). Todas as posses terrenas, no final de tudo, estarão degradadas e destruídas (Lc 12.33; Rm 1.23; 2Co 4.16; Cl 2.22; lPe 1.18), pois a criação está agora no “cativeiro da degeneração” (Rm 8.2l). Essa herança também “não se contamina” (com o pecado, ou seja, é “imaculada”, Hb 7.26; 13.4; Tg 1.27). A LXX frequentemente usa o verbo cognato “contaminar” para falar da contaminação cerimonial, que toma uma pessoa ou objeto inadequado para estar diante de Deus em adoração
(Êx 20.25; Lv 11.24,43,44; 13.3,8,11; Nm 19.13,20), e da contaminação 59
1PEDRO
moral da terra por força do pecado (Nm 35.34; Dt 24.4; Jr 2.7; 3.2; cf. N m 5.13-29; D t 21.23; Os 5.3; 6.10). Pedro convida à contemplação de um a herança cel estial não contaminada pel o pecado e que não conté m nada ind ign o da total aprovaç ão de Deu s. Além disso, a herança “nem se altera”. Ao contrário das riquezas terrenas (Tg 1.11), ela jamais definhará, nem ficará desgastada, nem perderá sua beleza ou glória (cf. lP e 5.4). Por fim, tal herança está reservada nos céus para vós. A forma do verbo “reservada” (particípio perfeito passivo) indica uma atividade passada con cluída (por Deus) com resultados que perd uram no presente: o pró pri o Deus “guardou” ou “reservou” sua herança no céu para os crentes, e ela continua lá, “ainda reservada” para eles. (Compare o uso da mesma forma verbal, “reservada”, em 2Pe 2.17; cf. Jd 13.) A herança jamais lhes será negada, pois Pedro afirma que ela foi reser vada “para vós”. A surpreendente mudança para “vós”, em vez de “nós” (é a prim eira vez que Pedro usa o pronome na segunda pessoa do plural), torna a reserva de tal herança muito mais pessoal. Portanto, a “herança” do cristão da nova aliança demonstra-se muito superior à herança terrena do povo de Israel na terra de Canaã. Aquela terra não lhes foi “reservada”, mas tomada delesno exílio e, posteriormente, pela ocupa ção romana. o enqu anto mantiveram sse da declinou. terra, ela produ ziu recompensas que Mesm pereceram , recompensas cuja po glória A beleza da santidade da terra perante Deus vivia sendo contaminada pelo pecado (Nm 35.34; Jr 2.7; 3.2). 5. Os leitores de Pedro deviam estar ansiosos quanto a terem ou nã forças para permanecer fiéis a Cristo caso a perseguição e os sofrimentos se intensificassem. Ele os tranquiliza, dizendo que estão protegidos pelo poder de Deus, mediante a fé, para a salvação preparada para se revelar no último tempo. Protegidos (phroureõ)significa “mantidos a salvo, atentamente vigia dos”, e é muitas vezes empregado em contextos militares: o povo que concordou com os dez espias infiéis decidiu que os tesouros de Canaã estavam “ tão fortem ente protegidos” que não poderíam ser tomados (Filo, Moisés 1.235; cf. Ju dite 3.6; lEsd ras 4.56; Sabedoria 17.16). Em D amasco, o governador “vigiava” a cidade a fim de aprisionar Paulo ( 2 Co 11.32; a palavra é usada metaforicamente em Gl 3.23; Fp 4.7). Os contextos aci ma mostram que a palavra pode tanto significar “impedidos de escapar”
quanto “protegidos de ataques”, e talvez os dois tipos de guarda estejam 60
1PE DR O 1.3— 2.10
em vista aqui: Deus preserva os crentes de escaparem de seu reino e os protege de ataques externos. O particípio presente, utilizado por Pedro, transmite o sentido “vocês estão sendo continuamente protegidos”. Ele enfatiza que isso acontece pelo
poder Deus.sendo N o entanto, o pod er demediante Deus não f é pessoal les quedeestão protegidos, mas suaatua fé. sem (EmaPedro, “fé”,daqu pistis.eé normaím ente u ma ação dos crentes no nível indivi dual: lP e 1.7,9,21; 5.9; 2Pe 1.1,5; e de modo geral também no Novo Testamento.) Nos textos de Pedro, exemplos análogos de Deus operando “por meio” de alguém ou de algu ma coisa (lPe 1.3,23; 2Pe 1.4; e provavelmente também lPe 1.12; 2.14; 3.1) indicam que a confi ança ou fé do crente em Deus é o m eio u tilizado po r Deus para proteger seu povo. Assim, poderiamos transmitir o sentido do versículo dizendo que “Deus usa continuamente seu poder para proteger seu povo por interm édio da fé”, afirmação que parece subentender que o pod er de Deus, na verdade, estimula e sustenta contin uam ente a fé pessoal do indivídu o .2 Essa proteção não visa a um objetivo temporário, mas é para a salvação preparada para se revelar no último tempo. O termo salvação não é utilizado aqui no sentido da justificação no passado nem da santificação no presente (falando em categorias teológicas), mas no sentido da futura posse integral de todas as bênçãos de nossa redenção — em relação ao cumprimento com pleto e definitivo de nossa salvação (veja Rm 13.11; lPe 2.2). Embora já “preparada” ou pronta, ela não será revelada por Deus para a humanidade como u m to do antes do último tempo, o temp o do ju ízo final. Essa última expressão torna difícil, se não impossível, ver a ação prote tora de Deus chegando ao fim. Se a proteção de Deus tem o propósito de preservar os crentes até que eles recebam plenamente a salvação celestial, é seguro concluir que Deus consumará tal propósito e que eles de fato alcan çarão a salvação final. No fim das contas, é o poder de Deus que permite aos crentes obter a salvação definitiva. mediante a fé dos que Todavia, o poder de Deus atua continuamente creem. Querem eles saber se Deus os está guardando? Se perseverarem na confiança em Deus por meio de Cristo, Deus atuará e os protegerá, e eles devem-lhe dar graças.
’A tradu ção de Kelly, “como conseq uência da Fé”, é uma interp retação extremam ente improvável da construção bastante comum dia com genitivo (os poucos exemplos dessa construção com o sentido “como consequência de”, apresentados em
BAGD, p. 180, IV,
são todos ambíguos, e o próprio Kelly não apresenta nenhum exemplo). 61
1PEDRO
Nota adici onal: As recompensas da nova aliança (1 .4) Aqui (v. 4), Pedro lembra a seus leitores que, na nova aliança, as recompensas de Deus são menos materiais, físicas e terrenas. Há menor ênfase na presente prosperidade material como recompensa, pois Deus “escolheu os pobres para o mundo, a fim de fazê-los ricos na fé” (Tg 2.5, um a afirmação que não aparece nem podería aparecer no An tigo Testamento). O desfrutar de boa saúde física também é menos im portante, pois “ainda que o nosso exterior esteja se desgas tando, o nosso interio r está sendo renovado todos os dias” (2Co 4.16). Tam bém há menor ênfase no livramento da perseguição, pois “se sois insultados por causa do nom e de Cristo, sois abençoados, por que sobre vós repousa o Espírito da glória, o Espírito de Deus” (lPe 4.14). E, no Novo Testamento, um grande número de filhos também não é considerado sinal indispensável do favor divino, pois tanto o casamento como o celibato são dons de Deus (lCo 7.7). Os cristãos, contudo, não devem se desanimar diante dessa relativa falta de recompensas materiais no presente, pois a fé reconhece a recompensa da nova aliança como algo muito superior: o suprimento de todas as necessi dades materiais no presente (Fp 4 .19), uma co mun hão espiritual com Cristo no presente (lPe 1.8) e uma herança futura, tanto material quanto eterna, a qual “não perece, não se contamina nem se altera, reservada nos céus para vós” (lP e 1.4). Assim como, na velha aliança, Deus incentivava seu povo a aguardar com fé o futuro Messias, ele também agora incentiva a nós, para quem a vinda do Messias é um fato histórico, a aguardar com esperança nossa plena herança celestial. Aqui encontramos grande conforto para todos os crentes da nova aliança. “Por isso não nos desanimamos [...]. Pois nossa tribulação leve e pass ageira prod uz para n ós um a glória incom parável, de valor eterno, pois não fixamos o olhar nas coisas visíveis, mas naquelas que não se veem; pois as visíveis são temporárias, ao passo que as que não se veem são eternas” (2Co 4.16-18).
2. A le gr ia ap es ar do so fr im en to (1.6 ,7) 6.
A palavra nisso da expressão nisso exultais é mais bem compreendida como referência a toda a esperança futura tratada nos versículos 3 a 5. Ela não pode ser uma referência à “salvação”, pois isso exigiría um pronome feminino no texto grego, mas essa palavra admite apenas um pronome masculino
ou neutro. De uma perspectiva gramatical, a palavra traduzida por “nisso” 62
1PEDRO 1.3—2.10
também poderia ser traduzida por “nele”, referindo-se a Deus Pai ou a Jesus Cristo no versículo 3. No entanto, esses antecedentes estão muito distantes do “nisso”, de modo que ele não seria compreendido pelos leitores sem outras especificações. Além disso, a sequência de pensamentos no contexto faz com que a combinação de alegria na esperança do futuro (v. 3-5) com aflições no presente (v. 6-7) seja bastante adequada aqui. Exultais é a tradução de um verbo ( agalliaõ) não empregado por escri tores gregos seculares e que, no Novo Testamento, sempre tem o sentido de uma profunda alegria espiritual, um regozijar-se em Deus ou no que ele fez .3 Maria emprega esse verbo no Magnificat: “A minha alma engrandece ao Senhor, e o meu espírito exulta em Deus, meu Salvador” (Lc 1.46,47). Os crentes que sofreram vão “se alegrar e exultar na revelação da glória [de Cristo]” (lPe 4.13, RSV). O carcereiro filipense “ alegrou-se muito com toda a sua casa” por terem crido em Deus (At 16.34). Esse tipo de alegria poderia ser chamada “alegria da salvação”, pois é sempre uma alegria de causa espiritual. Aliás, a LXX usa um substantivo cognato para traduzir a oração de Davi: “ Re stitu i-m e a alegria da tua salvação” (Sl 51.12 [50.14]).4 Apesar da possibilidade de o verbo traduzido por exultais poder ser tanto indicativo (“nisso exultais”) quanto imperativo (“nisso exultai”), parece improvável que Pedro esteja ordenando aos crentes que se alegrem nas grandes bênçãos mencionadas nos versículos 3 a 5: a alegria seria uma reação natural a tais bênçãos. Além disso, todo esse trecho se concentra na declar ação d e fatos sobre a vida dos crentes, mas as ordens relacionadas à vida cristã não parecem começar antes do versículo 13. Portanto, é melhor optar pela tradução “nisso exultais” ou, ressaltando a força do tempo presente, “nisso estais sempre exult and o”. Qua nd o pensam sobre sua herança fu tura, os cr istãos a quem Pedro es creve reagem com intensa “alegria pela salvação”, que perdura durante toda 3A única ex ceção possível é Joã o 5.35, mas mesm o aqui o text o parece indicar um a alegria (ou prontidão para se alegrar) resultante da nova obra que Deus estava fazendo ao enviar João Batist a, enc errando assim um período de quatrocentos anos duran te os quais Deus não enviou pr ofeta algu m a seu povo. 4Entre outros exemplos no Novo Testamento encontram-se Mt 5.12; Lc 10.21; Jo 8.56; At 2.26; lPe 1.8; Ap 19.7. A LXX muitas vezes usa agalliaõ para falar da alegria no Senhor (Sl 90.14 [89.14]; Hc 3.17,18). O substantivo análogo é usado em Salmos 126.5,6 (125.5,6): “Os que semeiam em lágrimas colherão com cânticos de júbilo. Aquele que sai choran do a plantar a semente voltará com cânticos de júbilo, tra zendo consigo seu s
feixes”. Veja também Salmos 2.11; 16.9; 32.11; 51.8; 84.2. 63
1PEDRO
a vida na terra. Ele acredita que tal alegria causada pelas realidades celestiais é um elemento normal da vida c ristã. A vida cristã, contudo, não é apenas alegria, pois Pedro acrescenta: ainda que agora sejais necessariamente afligidos por várias provações por um pouco de
tempo. A expressão ainda quenão const a no tex to grego, mas é uma tradu ção aceitável do particíp io “ten do sido afligidos”. O sentido conce ssivo dado po r ainda queparece a alternati va mais adequada e m virtu de da diferença radical entre as emoções de alegria e aflição .5 Esses crentes se alegram ainda que venham a ser afligidos. O verbo traduzido por sofrer (RSV) é mais b em traduzid o po r “sejais [...] afligidos” ou por “ser entristecidos” [NVl]. O verbo ( lypeõ) sempre se refere à emoção da tristeza, não ao sofrimento que produz tristeza (veja Mt 14.9; 17.23; 18.31; 1Ts 4.13). Pedro, na verdade, apresenta de modo bastante genérico as circunstân cias que levam a tal tristeza. Em primeiro lugar, ele não afirma que todos os seus leitores estão sofrendo ou sofreram, mas que poderão necessariamente ser afligidos por várias provações (o texto grego diz, mais literalmente, “se for necessário ”).6 Pedro não precisa especificar o fato óbvio de que ele quer dizer “necessário aos olhos de Deus”, ideia esta que traria ânimo a seus leitores. Seu propósito era mostrar que Deus não prova seu povo dessa forma sem motivos, pois se ele nos afligisse sem uma causa, isso seria algo insuportável. Pedro, portanto, extrai um argumento consolador a partir dos desígnios de Deus, não porque seus propósitos sejam sempre visíveis para nós, mas porque precisamos estar plenamente convencidos de que é assim que deve ser, por se tratar da vontade de Deus.7
5Selwyn, p. 127, arg umenta contra a tradu ção do particí pio em u m sentido concessivo (“ainda que”) e prefere ver aqui o júbilo por causa do sofrimento. No Novo Testamento, porém, a alegria de modo geral não se baseia no sofrimento em si. Os crentes são instados a se alegrar por causa dos benefícios que resultam do sofrimento e em virtude das recompensas celestiais que virão depois dele (Mt 5.12). 6A estrutu ra g rama tical aqui (“condição de pr imeira classe”) não pe rmite afirmar que os fatos da oração adverbial condicional (com “se”) sejam verdadeiros (veja Robertson,
Grammar, p. 1008-9), mas apenas que o autor, para fund ame ntar seu argu men to, pressupõe
por um mom ento que eles sejam reais. 7Calvino, p. 235. 64
1PE DR O 1.3-2.10
Portanto, Pedro afirma que os cristãos experimentarão aflições apenas na medida neces sária, seg undo os sublime s e infinita men te sábios propósito s de Deus para eles. A expressão várias provaçõestambém deveria nos inspirar cautela ao procurar algum tipo específico de sofrimento ou provação como contexto histórico dessa carta. Um a vez que nã o se destaca n en hu m tip o de prova ção ou teste, as palavras de Pedro se aplicam a todas as provações que os cristãos experimentam (veja Tg 1.2). E m elho r interpretar a pa lavra agoraco mo referência à existência presente dos crentes, durante a qual, por um pouco de tempo, em comparação com o desfrutar da etern idade, eles podería m ter de sofrer. Ainda que alguns (e.g., Selwyn, p. 127) interpretem esse sofrimento como algo recentemente finalizado (com o sentido de “ainda que agora tenhais sido afligidos por várias provações por um pouco de tempo”), tal tradução é improvável, pois supõe que todos os leitores de Pedro, em todas as igrejas, haviam acabado de passar po r sofrimentos. E me lhor trad uzi r “ser entristecidos” (particípio aoristo) indicando um tempo simultâneo com a alegria ,8 pois o argumento de Pedro perdería grande parte de sua força se tais aflições já estivessem no passado. E bem mais contundente afirmar que eles atualmente estão se alegrando, ainda que agora (de tempos em tempos) sejam afligidos por várias provações. Isso traz o seguinte sentido: “Nessa esperança do fut uro vocês se alegram c ontin uam ente, a inda que dura nte essa vida, por um po uc o de tempo, se Deus cons iderar necessário, sejam afligidos por diversas provações”. Pedro, portanto, mostra que tristeza e alegria simultâneas são algo normal na vida cristã. A tristeza surge por causa das muitas dificuldades encontradas neste mundo caído, mas a fé enxerga uma realidade invisível além dessa breve existência e se alegra. 7. N o versículo 7, Pedro apresenta um a explicação com pleta dos pro pósitos divinos por trás dos sofrimentos que os cristãos agora enfrentam. Eles podem ter de ser afligidos por várias provações, para que a comprovação da vossa f é [...] redunde em louvor, glória e honra na revelação de Jesus Cristo.
“Especialmente quan do um particípio aoristo é colocado após o verbo princip al, como aqui, ele muitas vezes se refere a uma ação que ocorre simultaneamente com a do
verbo principal (veja, por exemplo, Mc 15.30; Lc 2.16; At 10.33; Fp 4.14; lTs 1.6; veja Robertson, Grammar, p. 1113). 65
1PEDRO
O termo tra duzi do por comprovação(dokimion) é encontrado fora no Novo Testamento com o sentido de “genuíno, provado ”;9 aqui, pre cedido po r um artigo definido, o sentido é “a comprovação da vossa fé” ou “a qualidade comp rov ada da vossa fé”. Essa palavra e termos cognatos são muitas vezes usados com relação ao teste ou ao refino de metais (veja Sl 12.6 [LXX 11.7]; Pv 27.21). Pedro emprega de propósito essa analogia para afirmar que situações de teste são ocasiões em que Deus refina e purifica a fé de seu povo, à semelhança do metal precioso refinado no fogo (veja Is 48.10: “provei-te na fornalha da aflição”). As provações incineram todas as impurezas na fé do crente. Uma vez concluídas, o que fica é uma fé purificada e genuína, comparável ao ouro ou prata puros que emergem do fogo do refinador. A fé genuína que surge após as provações é mais preciosa do que o ouro que perece, embora provado pelo Jogo.Há m uitos sé culos o ou ro é normalm ente reconhecido com o símbolo do mais precioso e du rado uro bem mate rial, mas a fé genuína é mais preciosa que o ouro (literalmente, “muito mais preciosa”) ou, po r consequênci a, ela vale mais do que qualquer o utr o b em mate rial. O ouro perece, ainda que refinado ou provado (dokimazõ , do mesmo grupo vocabular de dokimion, acima) pelo fogo — aliás, o ouro é uma das substâncias mais duráveis. Pedro, contudo, afirma que ele “perece” porque sabe que toda essa criação ru ma para a destru ição final (veja 2Pe 3.7,10- 12) . Para Deus, a fé verdadeira, genuína, é mais valiosa que o ouro, porque ele é um Deus que sente prazer quando nele confiam. E, visto que a avaliação de Deus sobre algo é o supremo padrão de sentido no universo, os leitores de Pedro dispõem de um fundamento seguro para perceberem o sentido máx imo e a importânc ia da vida de cada um deles. Pedro diz que seus leitores poderão ter de passar por tristezas em várias provações, a fim de que sua fé redunde em louvor, glória c honra na revelação deJesus Cristo. Ele não especifica se esse louvor é o louvor que Deus dará a seu povo no último dia (como em Rm 2.29; ICo 4.5; lPe 5.4), ou o louvor que o povo presta a Deus. Parece mais provável que o pensamento inicial se refira ao louvor que Deus dá a seu povo, uma vez que, neste contexto, Pedro está incentivando seus leitores a terem esperança em sua recompensa celestial
9Veja Deissmann, p. 260, c om a citação de um frag men to de papiro qu e me ncion a fivelas douradas de ouro bom ([dokimion]; veja p. 260-1; BAGD, p. 203). Assim, as traduções que enfatizam “autenticida de” (BJ; N TLH ) parecem melhores que aqu elas que
sublinham a ideia de “prova” ou “comprovação” (A21; NVI). 66
1P E D R O 1.3—2 .10
(v. 4). Além disso, é a genuinidade da fé que se afirma ser mais preciosa (aos olhos de Deus, aparentemente) que o ouro. No entanto, na presente era, a fé não recebe muitas recompensas visíveis e evidentes. Portanto, ela seria adequadamente recompensada com uma expressão da aprovação de Deus no dia do as ju íz o final. na revelação deJesus Cristo, Pedro se refere ao juízo do Com palavras último dia, quando os segredos de todos os corações serão revelados (cf. “a revelação de nosso Senhor Jesus Cristo” ou expressões semelhantes em ICo 1.7; 2Ts 1.17; lPe 1.13; 4.13; e o verbo “revelar” em Lc 17.30; lPe 1.5; 5.1 etc.). Assim, ele lem bra aos cristãos que os propó sitos de Deu s na aflição que enfrentam podem não ser totalmente conhecidos em uma semana, um ano, ou mesmo em uma vida. Na verdade, alguns dos propósitos de Deus não serão conhecidos nem qu and o os crentes morre rem e se reunirem ao Senhor. Alguns serão dados a conhecer somente no dia do juízo final, quando o Senhor revelará os segredos de todos os corações e honrará de forma especial aqueles que nele confiaram em m eio às tribul ações, ainda que não pudesse m ver razão para elas. Eles confiaram simplesmente porque ele era seu Deus e porque sabiam que ele era digno de confiança. E nos momentos em que não vemos razão para as aflições que a confiança somente em Deus parece se tornar mais pura e preciosa aos seus olhos. Ele não esquecerá uma fé assim, mas a guardará c om o uma jo ia de g ran de valor e beleza para se r exibida e apreciada no dia d o juízo.
3. Alegria inexprimível p o r conhecer o próprio Cristo (1.8,9) 8.
Pedro inicia com um a extraordinária declar ação acerca da natureza da vida cristã: Sem tê-lo visto, vós o amais.O verbo “amar” ( agapaõ)no tempo presente aponta para uma atividade continua ou regular. Os cristãos para quem ele está escrevendo tinham como parte de sua experiência normal um amor contí nuo por Jesus Cristo, ainda que nun ca o tivessem visto. Isso implica um relacionamento diário e pes soal co m o Senho r Jesus qu e ascendeu ao céu — por m eio da oração e da adoração e, sem dúvida, p or m eio da meditação nas palavras das Escrituras, por m eio das quais ele fala (veja abaixo lPe 2.2,3). O relacionamento pessoal do crente com Jesus Cristo no presente é descrito de forma mais completa por Pedro: Pois, [...] sem vê-lo agora, crendo, A palavra agora,que aparece exultais com alegria inexprimível e cheia de glória. aqui e no versículo 6 , indica a vida presente o u a era atual, an terio r à volta do
Senhor, tempo durante o qual não vemos Cristo com nossos olhos físicos. 67
1PEDRO
Apesar disso, o que Pedro fala sobre seus leitores também vale para todos os cristãos na presente era: nós cremos nele, a quem não vemos. O verbo traduzido por “crendo” (pisteuõ) significa “confiar”, “depositar a confiança em ” ou “depender d e”. Ele é sucedido por um a preposição (eis), a qual aparentemente não era usada co m esse verbo antes do Nov o Testam ento e, além disso, traz a surpreendente nuança de “para”, quase como se essa fé pessoal se dirigisse “para” o Senhor Jesus e nele repousasse ou permanecesse .10 Essa combinação de verbo e preposição implica um forte envolvimento pessoal no ato de crer e transm ite um sentido de descansar em Cristo. Assim como o verbo “crer em” transmite a ideia de uma atividade presente e contínua (particípio presente), o verbo “exultar” também está no presente e pode ser traduzido por “exultar continuamente”. Esse verbo (agalliaõ) também é usado no versículo 6 com referência à exultação pela futura recompensa celestial. No entanto, ao passo que, no versículo 6, Pedro usa a palavra isolada, ele aqui a fortalece ao acrescentar a expressão com alegria inexprimível e cheia de glória. O contraste é evidente: no versículo 6 , Pedro fala sobre a profunda exultação na esperança futura, mas aqui ele se refere à nossa comunhão diária e pessoal com o próprio Jesus Cristo como motivo para exultação ainda maior, com alegria inexprimível e cheia de glória. A palavra traduzida por inexprimível aparece somente aqui no Novo Testamen to e descreve um a alegria tão pro fun da q ue supera a capacidade de expressão por palavras. (Isso nos lem bra do valor do c anto e de outr as formas de música na adoração, pois a música muitas vezes proporciona um meio de expressão da plenitude da alegria no coração de um cristão de uma forma muito mais eficiente do que apenas as palavras faladas.) Essa alegria também é cheia deglória. No srcinal, a ideia é representada po r um verbo (doxazõ ) que corresponde ao substantivo “glória” ( doxa). Esses termos de pronto remeteríam os leitores de Pedro à frequente menção da glória de Deus n o Antig o Testamento, o gran de esplendor que cercava a pre sença do próprio Deus. O sentido da expressão cheia de glória (um particípi o perfeito passivo) poderia ser mais bem transmitido pela paráfrase: “alegria impregnada de glória celestial e que ainda possui o esplendor dessa glória”. Trata-se, portanto , de u ma alegria que result a de estar na presença do pr óprio Deus e que já compartilha do caráter celestial. E a alegria do céu antes do céu, experimentada agora em comunhão com o Cristo que não vemos. lnVeja E. D. Burton, Galatians, ICC (Edinburgh: T. & T. Clark, 1920),
480-1;
1,
. 67-8. 68
1PEDRO 1.3-2.10
9.
N o texto grego, no versículo 9, Pedro não inicia uma nova fras mas emprega ali um particípio presente: “alcançando o objetivo da vossa fé, a salvação da vossa alma” (NASB [e A21]). A NIV introduz a ideia de explicação ou motivação inserindo a palavra “pois”: "... pois vocês estão alcançando o alvo da sua fé, a salvação das suas almas” [NVl]. Apesar de gramaticalmente possível, tal tradução parece injustificável diante do contexto: el a afir ma que o m otivo da alegri a do crente é seu pró prio crescimento espiritual, algo que, sem dúvida, justifica a alegria, mas certamente não uma alegria inexprimível e cheia de glória.A NASB [e a A2l], porém, ao traduzir o particípio com um sentido bem comum (expressando circunstâncias concomitantes), preserva o caráter elevado dessa passagem, pois conserva nossa presente confiança pessoal em Cristo e nosso am or por ele como as razões de nossa maior alegria. Pedro diz que seus leitores estão recebendo ou “obtendo” [ARA], o objetivo ou “resultad o” de sua fé, enquanto creem em C rist o e nele se regoz ijam . Mais um a vez o verbo “obtendo” está n o particípio presente, dando ao versículo 9 o sentido de uma obtenção paulatina desse “objetivo” ou “resulta do”, ao qual sua fe os leva. O term o salvação,portanto, deve ser usado aqui com relação à plena posse de todas as bênçãos da salvação (veja o mesmo sentido no v. 5). O versículo 9 descreve todo o processo de crescimento na vida cristã, pelo qual as bênçãos da salvação são cada vez mais integradas à vida de um cristão. Pedro afirma que esse processo ocorre à medida que os cristãos creem continuamente em Cristo e continuamente se alegram por causa da confiança pessoal nele. Essa fé e essa alegria cotidianas produzem um benefício inesperado: o cresc imento con tínuo rum o à maturida de cristã.
4. P ro fe ta s e a nj os m ar av ilh ad os co m a gló ri a da vo ssa sa lv aç ão (1.1 0-1 2) 10. O pro pósito desse parág rafo é mo stra r aos leitores de Pedro que as bên çãos espirituais que agora eles têm são maiores que qua lqu er coisa jam ais imaginada pelos profetas veterotestamentários ou mesmo pelos anjos. Dessa forma, Pedro procura aumentar o apreço de seus leitores pela grande salvação que eles têm em Cristo. Os versículos 10 a 12 devem ser entendidos em associação com o versículo 9, porque as três primeiras palavras no texto grego do versículo 10 significam: “Com relação a tal salvação” (ou seja, a “salvação”
mencionada no versículo 9, a obtenção progressiva dos plenos benefícios 69
1PE D RO
da salvação daqueles crentes). Os profetas que profetizaram sobre a graça destinada a vós são os profetas do A ntig o T estamento em geral,11 e graça aqui faz referência às bênçãos da salvação experimentadas na nova aliança (veja charts, “graça”, usada de forma semelhante em 3.7; também em At 20.24; Rm 5.2; 6.14; Hb 12.15). Quanto a essa salvação, os profetas a examinaram e dela procuraram saber. Nenhum dos termos significa que eles apenas refletiram ou especularam, mas ambas as palavras subentendem que se esforçaram para encontrar algo. A prim eira palavra, examinaram (ekzêteõ), in dica pesquis a ou busca diligente e é muitas vezes usada com o sentido de buscar a Deus (At 15.17; Rm 3.11; Hb 11.6) ou de examinar as Escrituras (Sl 119.22,33,45,56,94,100,145,155 [LX X 118.22,33, 45,56, 94,100, 145,155 ]). O segundo termo, procuraram saber (exeraumõ ), ocorre apenas aqui no Novo Testamento, mas há 32 ocorrências na LXX, em Josefo e Filo. Na maioria das vezes, refere-se a uma busca feita em algum lugar, como uma casa, tenda, cidade ou país, com o fim de enc ontrar alguém ou algu ma coisa, mas a palavra também é usada no sentido de examinar as Escrituras (veja Sl 119.2,34,69,115,129). 11. Indagando não significa necessariamente que eles fizeram perguntas mas que “procuraram saber” (cf. NIV, “tentando encontrar” [cf. tb. NV1 e NTLH]). O que eles procuraram saber? Com o Pedro não diz nada a respeito, não podemos ter certeza. Ainda assim, essa palavra ( eraunaõ), a terceira com o sentido de “buscar” nesse período, é usada em outras passagens em relação ao exame das Escrituras (veja Jo 5.39; 7.52). Portanto, uma excelente sugestão é que eles teriam examinado os textos mais antigos das Escrituras, e provavelmente também suas próprias profecias, para se informar sobre a “salvação” e sobre a “graça” das quais profetizavam. Ademais, o fato de que "Selwyn, p. 259-68, argumenta que Pedro não se refere aqui a profetas do Antigo Testamento, mas aos profetas cristãos do pri me iro século. Todavia, ele não consegue apre sentar nenhum sentido linguístico válido para “predizer os sofrimentos que sobreviríam a Cristo” (ele precisa importar para o texto a ideia de que são pessoas, e não sofrimentos, que sobreviríam “a” [eis] Cristo). Além disso, procurar nas Escrituras as profecias sobre o Messias simplesmente não era u ma das principais atividades dos profetas neotestam entários (veja Wayne Grudem, The gift o f prophecy in ICorinthians [Washington: University Press o f America, 1982], p. 139-44; 181-5; 201-10; 219 -22 [edição em português: O dom de profecia (São Paulo: Vida, 2004)]). Outras objeções a essa visão de Selwyn encontram-se
em Best, p. 83-4; leia também a discussão abaixo sobre os “sofrimentos de Cristo” (v. 11). 70
1PEDRO 1.3—2.10
eles descobriram que suas profecias não eram para seu próprio tempo, mas para o futuro (“era para vós, e não para si mesmos, que eles ministravam essas coisas”, v. 12), indic a que eles tam bém examinaram e invest igara m sua época e suas circunstâncias, procurando saber se aquelas profecias haveríam de se cumprir nos eventos que testemunharam durante o tempo de sua própria existência (veja também nota adicional abaixo). O Espírito de Cristo, que estava neles, refere-se ao Espírito Santo,12 mas esse título dá a entender que predizer a vinda do Messias (termo hebraico equivalente ao grego “Cristo”) era o foco principal de sua atuação nos pro fetas do Antigo Testamento, tanto que Pedro refere-se a ele como “Espírito do Messias” ou “Espírito de Cristo”. A gramática do texto grego exige que “o Espírito de Cristo”, não os profetas, seja o sujeito do verbo predizer, u m p articí pio no srcinal. Predizer é em si uma palavra rara, mas os elementos que a formam esclarecem o sentido: “t estificar ou dar testem unh o de a ntem ão” [cf. ARA] . O Espírito Santo, falando por meio dos profetas, predisse os sofri mentos de Cristo,o que constitui um tema comum em todas as proclamações do Novo Testamento sobre Cristo (veja o uso que o próprio Pedro faz de Is 53 em 2.22-24), e a impressionante precisão dessas profecias tem, ao longo da história, convencido muitos da autoria divina das Escrituras. Pedro, contudo, afirma que o Espírito Santo nos profetas também predisse a glória que viría
depois. A palavra traduzida p or glória, na verdade, está no plural, fazendo com que “as glórias que viríam depois” seja uma tradução mais fiel. A expressão que viríam depois significa “após os sofrimentos de Cristo”; e a palavra “glórias” refere-se, necessariamente, não apenas à ressurreição e exaltação de Cristo (que jamais são chamadas “glórias” [plural] nas Escrituras), mas também a todas as glórias de seu reino, as quais nos chegam por meio de sua obra redentora. Alguns argumentam que os sofrimentos que sobreviríam a Cristo não diz respeito ao s sofrimentos do próp rio Cristo, mas aos sofrimentos dos cristãos, à medida q ue se tornam mais semelhantes a Cris to.13Mas a interpre tação de ta eis christon pathematacomo “os sofrimentos da estrada que leva a Cristo” 12Kelly acredita q ue isso significa “o pró prio C risto ente ndido co mo esp írito div ino ” (p. 60), mas em parte algum a a Bíblia se refere a C risto com o “o Espír ito de Cri sto”. Além disso, “Espírito de Cristo”, em Romanos 8.9, tem o mesmo sentido de “Espírito de Deus”, e “o Espírito de Jesus” em Atos 16.7 deve ser a mesma pessoa designada por “o Espírito Santo”, no versículo 6. Veja também 2Coríntios 3.17; Gaiatas 4.6; Filipenses 1.19. ’’Selwyn, p. 263-4; J . D un n, Christology in the making (London: SCM, 1980), p. 159;
N. Hillyer, TynB 21 (1970), p. 66; J. W Pryor, R T R 45 (1986), p. 2.
71
1PEDRO (segundo Selwyn, p. 263) ad ota um sentido que n ão teria sido compreendid o pelos leitores do texto grego do primeiro século. O Novo Testamento fala sobre sofrer como Cristo, segui-lo, seguir seus passos etc., mas nunca sobre sofrer em direçãoa ele (eis com acusativo) — uma ideia que não faz sentido.
pessoas que Para dar sentido, Selwyn precisa importar a ideia de que as sofrem (não os próprios sofrimentos) dirigem-se a Cristo, mas esse conceito não está presente no texto grego. Além disso, se os sofrimentos aqui são os sofrimentos dos cristãos para quem Pedro está escrevendo, então as glórias meta tauta (“que viriam depois desses sofrimentos”; literalmente “após essas coisas”) do versículo 11 viriam todas depois que os sofrimentos chegassem ao fim. Isso, porém, con tradiz 4.14, on de Pedro afirma que a glória já repousa sobre aqueles que sofrem. Portanto, a melhor interpretação desse segmento de frase é “os sofrimentos designados para (ou destinados a) Cristo”. Se quisermos procurar exemplos dessa atividade profética, poderemos observar todo o Antigo Testamento, pois os autores neotestamentários às ve zes se referem a todo o Antigo Testamento como escritos dos “profetas” (veja Lc 24.27; também At 2.30 sobre Davi como profeta). Nesse sentido, as predições dos sofrimentos do Messias começam com a profecia sobre a “semente” da mulher, que seria ferida no calcanhar pela serpente (Gn 3.15), e continuam ao longo de grande parte dos textos do Antigo Testamento (por exemplo, Sl 22.1,7,8,18; 34.19,20; 69.21; Is 50.6; 52.14,15; 53.1-12; Zc 12.10; 13.7 etc.). A futura glória do Messias é predita em Salmos 2; 16.10; 22.22; 45.7; 110.1,4; Isaías 9.6; 40.3 -5, 9-11; 42.1-4; 61.1- 3; Jeremias 33.14,15; Ezequ iel 34.23; Daniel 7.13,14; Malaquias 3.1-3 etc. E as “glórias” do povo do Messias são vistas em Isaías 51.11; 60.1-22; 62.2-5; Jeremias 31.31-34; Daniel 7.18,27; Oseias 2. 23; Joel 2.28-32; Amós 9.13-1 5; Hab acuq ue 2.14; Sofonias 3.14-2 0; Z acarias 14 etc. Mesmo assim, todos esses versículos são apenas um começo, pois não incluem as “profecias encenadas” vistas nos fatos históricos do Antigo Testamento, quando na vida de pessoas como Abraão, Isaque, Jacó, José, Moisés, Josué, Davi, Salomão e Jonas, e muitas vezes na nação de Israel em geral, Deus deu ocasião a acontecimentos que p renunciavam u m padrão de vida que mais tarde seria seguido por “aquele maior que Salomão”, aquele que foi o maior filho de Davi. Portanto, Pedro está dizendo que os profetas do Antigo Testamento examinaram e investigaram com grande expectativa suas próprias profecias, outros textos das Escrituras e a época em que viveram para tentar descobrir
“quem” ou “qual época” o Espírito de Cristo estava indicando quando ele 72
1PEDRO 1.3—2.10
(o Espírito que sobre eles agia) predizia os sofrimentos de Cristo e as glórias de seu reino. Como agora já sabemos as respostas às perguntas “Quem?” (Jesus) e “Quando?” (ao longo da vida de Jesus e da subsequente era da igreja), deveriamos ler os profetas do Antigo Testamento com entusiasmo, na expectativa de que nosso coração seja inspirado a louvar, quando ali des cob rirm os que o tem a central são os sofrimentos do nosso Salvador em nosso benefício e as glórias do consequente reino, do qual já somos membros. 12. A eles fo i revelado indica uma comunicação divina com os profeta pois o verbo apokalyptõ (“revelar”), usado 26 vezes no Novo Testamento, e o substantivo cognato apokalypsis (“revelação”), usado 18 vezes, jamais são empregados para falar de comunicação ou atividades humanas (nesse sentido, o N T geralmente usa ou tra pala vra, gnõrizõ , “dar a conhecer”). Esses termos sempre se referem à “revelação” dada por ação de Deus (Mt 11.25; 16.17; Fp 3.15), de Cristo (Mt 11.27; Gl 1.12), do Espírito Santo (lCo 2.10; E f 3.5), ou q ue resulte de eventos provocado s diretame nte p or eles (em especial a volta de Cristo: Rm 2.5; 8.19; lPe 1.7). Tal revelação, provavelmente srcinada pela atuação do Espírito Santo sobre os profetas, deu-lhes ao menos uma resposta parcial à procura deles, mostrando-lhes que suas profecias sobre o Messias e seu reino não diziam respeito à sua própria época, mas a alguma geração futura; era para vós, e não para si mesmos, que eles ministravam. O texto ori ginal tem outr o objeto dire to para o verbo, a palavra grega auta, “essas coisas”. Ela se refere às previsões sobre os sofrimentos de Cristo e sobre as glórias de seu reino. Mais clara mente, podemos traduzir: “Eles estavam ministrando essas coisas não para si mesmos, mas para vocês”. As profecias não foram irrelevantes para seus primeiros ouvintes, pois trouxeram conforto e esperança aos que esperavam na fé (veja Hb 11.13), mas foram dadas principalmente para ministrar a vocês, ou seja, aos crentes da nova aliança. (Declarações semelhantes, segundo as quais outras partes do AT foram escritas principalmente para benefício dos crentes da nova aliança, encon tram -se em Rm 15.4 e lC o 10.11; cf. Lc 24.25-27; 2Tm 3.16.) A palavra traduzida por ministravam (diakoneõ) é normalmente usada no Novo Testamento no sentido de ministrar ou servir a alg uém (Mc 10.45; Lc 10.40; At 6.2; l T m 3.10,13; lP e 4.10,11 etc.) e nos lembra de que os grandes profetas de Deus eram apenas servos dos outros, à semelhança de todos a quem ele confere importantes responsabilidades (cf. Mt 23.11), indicando também que somos grandemente privilegiados
por nos beneficiar do ministério desses profetas de antigamente. 73
1PEDRO
Tais profecias, diz Pedro, são as coisas, que agora vosforam anunciadas por aqueles que [...] vospregaram o evangelho.Ou seja, o con teúdo da pregação do evangelho que os leitores de Pedro tinham ouvido era a declaração dessas profecias e o anúncio de que elas tinham se cumprido em Jesus Cristo e no estabelecimento de sua igreja. (O próprio Pedro expressa esse mesmo ponto de vista em seu sermão no Pentecostes, em Atos 2.14-40.) Essas coisas — os mais importantes fatos na história — foram anun ciadas ou “proclamadas” (a palavra geralmente se refere a uma declaração de informação previamente desconhecida, a qual é de grande importância ou interesse para os ouvintes) aos leitores de Pedro “por meio daqueles que lhes pregaram o evangelho” (NASB [e NVI]). A tradução “por meio daqueles” é preferível a por aqueles, pois essa construção ( dia com genitivo) costuma ser usada por Pedro em referência à pessoa por meio de quem, ou à coisa por meio da qual, Deus faz algo (1.3,5, 23; 2.14; 3.1; 2Pe 1.3,4; cf. IPe 5.12).14 Pedro, dessa forma, deixa subentendido, mas não declara, que a proclamação veio efètivam ente de D eus,15que “pro clamou” as boas novas “po r meio daqueles” que pregaram o evangelho. E aqueles que pregaram o fizeram “no (poder e caráter do)” ou “por meio do” (os dois sentidos são possíveis) Espírito Santo enviado do céu.Essa expressão se refere ao envio do Espírito Santo, desde o céu, c om novo po der e plenitud e no Pentecostes (veja Lc 24.49; At 1.8; 2.33). Por fim, Pedro acrescenta que ess es fatos sobre o sofrim ento de C rist o e sobre as glórias posteriores de seu reino são coisas que mesmo os anjos desejam examinar. A palavra traduzida por desejam (epithymeõ) é usada no Novo Testamento e m referê ncia a desejos intensos, tan to b ons q uan to maus. Aqui (como em Mt 13.17; Lc 17.22; 22.15 etc.), ela se refere ao desejo positivo de anjos isentos de pecado. O verbo está no tempo presente e não pode ser limitado a um anseio dos anjos anterior à vinda de Cristo ou anterior ao primeiro sermão no Pentecostes, que lhes teria permitido ouvir o pleno evangelho cristão. O que Pedro está dizendo é que, mesmo enquanto ele escreve, os anjos ain da anseiam exa min ar essas coisas e aprend er mais sobre elas. Portanto, esse anseio deve incluir uma curiosidade santa de presenciar e de se deleitar nas glórias do reino de Cristo, à medida que, ao longo da história da igreja, elas se concretizam cada vez mais na vida dos cristãos com o indiví duos (veja Ef 3. 8-10). 14Com uma con stru ção diferente (hypo com genitivo), Pedro costuma se referir a uma ação praticada por alguém (veja lPe 2.4; 2Pe 1.17, 21; 3.2 etc.).
15Assim tam bém H ort, p. 59. 74
1PE DR O 1.3—2 .10
A palavra parakyptõ, “observar” [NVl], é bem adequada, pois significa espiar ou olha r às escondidas um a situação da perspecti va de u m observador, geralmente alguém que não é visto pelos que são observados (veja Gn 26.8, Abim eleque observando pel a janela; lC r 15.29, Mical, observando Davi por uma janela; em lEnoque 9.1, a palavra é usada com referência a anjos que observam do céu). Esses versículos dem ons tram que a palavra não transmite necessariamente a ideia de alguém se “esticando” para olhar alguma coisa (embora possa ser usada dessa forma) nem de alguém que dá uma rápida olhada, com o alguns têm suposto ao examinar ap enas uma ou duas ocorrê n cias de seu uso (veja também Pv 7.6; Ct 2.9). O parágrafo inteiro te m u m sabor acentuado da novidade e da ex celência da era da igreja. Pedro diz a seus leitores: os profetas do passado predisseram a graça que seria destinada “a vós” (v. 10); vocês vivem em um maravil hoso “tem po” de “glórias” (v. l l ) há m uito profetiz ado; os profetas na ve rdade ministravam “para vós” (v. 12b); e eventos que transformam o mundo “agora vos foram” proclamados por meio da atuação do Espírito Santo “enviado” do céu com um novo poder que transforma as épocas (v. 12b). Embora o m un do pudesse pensar que tais cristãos eram insigni ficant es e dig nos de pena ou desprezo (veja 3.14-16 ; 4.4), os anjos, que e nxerga m a realidade suprema da perspectiva de Deus, consideram-nos objeto de profundo interesse (v. 12c), pois sabem que, na realidade, esses crentes que estão na luta são os beneficiários das maiores bênçãos de Deus e ilustres participantes em um grande drama no ponto crítico da história universal. Nós também podemos considerar nossa vida cristã igualmente privilegiada e interessante para os santos anjos tanto quanto a vida dos leitores de Pedro.
Nota adicional: “O tempo e as circunstâncias” ou “ pes so a ou tem po ”? ( l . l l ) O ponto central do grande interesse dos profetas era qual pessoa ou tempo (RSV) era indicado pelo Espírito que estava neles. A tradução desse trecho tem sido objeto de grandes discussões, mas a RSV (e a NASB) traz “qual pessoa ou tempo”, que é preferível a “o tem po e as circunstâncias” (NIV) ou “que tempo ou ocasião” (KJV). O trecho controverso é tina e poion kairon. A primeira palavra, tina, pode ser tanto “quem?” quanto “o que?”, deixando o contexto como a única possibilidade de diferenciação. A segunda, ê, “ou”, não causa polêmica, a
exemplo da última palavra, kairon, “tempo”. 75
1PEDRO
A terceira palavra, poion, pode significar tanto “o que” quanto “que tipo de?”, e isso tem dificultado a interpretação do versículo. (Os leitores que aprenderam que uma breve definição de poios é “que tipo de?” podem se surpreender a o descobrir que, dentre a s 32 ocorrências do term o n o Novo Testamento, a simples acepção “o que?” é um pouco mais comum do que “que tipo de?”.) Nesse versículo, se poios significa “que tipo de?”, as duas últimas pala vras significam “que tipo de tempo?”. Isso permite que a primeira palavra também modifique “tempo” e signifique simplesmente “que tempo?”, pro duzindo o sentido literal “que tempo ou que tipo de tempo?” (cf. NIY “o tempo e as circunstâncias” [NVl]). Mas se poios significa apenas “o que?”, então as duas últimas palavras significam “que tempo?”. Isso exige que a primeira palavra, tina, signifique “quem?” (pois “que tempo ou que tempo?” seria redundante). Então, o sen tido literal seria “quem ou que tempo?” (cf. RSV, “que pessoa ou tempo”). Apesar de ambas as traduções, a princípio, parecerem gramaticalmente possíveis, u m exame mais aprofimdado do uso do idioma grego nos obriga a decidir a favor do sentido “ qu em ou que te mp o?”. (1) N o Nov o Testamento, a s outras qu atro ocorrências de poios co m um termo relacionado ao temp o usam poios no sentido de “em que?” ou “qual?” e não “que tipo de?”: observe “ qual dia?” (Mt 24.42) ; “qual vigília da no ite? ” (Mt 24.43); “ qual hora?” (Lc 12.39); “qual hora?” (Ap 3.3). (2) Cinco outros exemplos de poios usado com expressões relacionadas ao tempo na literatura extrabíblica seguem todos o mesmo padrão: Paralipomena Jeremiou 5.33 {“Que mês é esse?”) e 9.13 (“A que horas ele surgirá?”); Testamento de Salomão(texto D) 4.10: “Em que dia ele morreu?” (M cC ow n,16 p. 93, linha 8) ; U PZ 65 [154 a.C.], linhas 4-7 (“Envie-me um relatório, quanto Peteusorpios possui, e desde que tempo”); e provavelmente Filo, Nomes 264, “quep eríod o?”. O Apocalipse Grego de Esdras 2.26 (Tisch endo rf,17 p. 26, linha 2) pod ería ser trad uz ido de q ualq uer das duas formas. (Não consegui encontrar exemplo algum de poios com uma expressão de tempo que significasse "que tipo de tempo?”.) (3) Apesar de tis (forma lexical de tina) ocorrer 552 vezes no Novo Testamento, não é jamais usado para perguntar qual tempo, qual dia, qual hora etc. Ju nt o c om os outros dois grup os de exem plos cita dos aci ma, onde 16C. C. McC ow n, The testament o f Solomon (Leipzig: Hinrichs, 1922).
17C. Tischendorf, Apocalypses apocryphal (Leipzig: 1966). 76
1P ED RO 1. 13 -25
poios com palavras relacionadas ao tempo significa “o que?” (não “que tipo
de?”), esse fato indica que a forma comum de alguém do primeiro século perguntar “que tempo?” era poios kairos, não tis kairos.n (4) Considerando o caráter da situação, profecias sobre “os sofrim en tos do Messias e as glórias posteriores” levariam naturalmente qualquer profeta a procurar descobrir não apenas “quando?”, mas também “quem?” (cf. Mt 11.3). A pergunta “Quem é o Messias?” seria de tal modo atraen te que é difícil imaginar qualquer profeta do Antigo Testamento que não pensasse sobre ela. Essas considerações se combinam para indicar que a tradução da RSV (e NASB), que pessoa ou tempo,reflete melhor o sentido pretendido por Pedro e o sentido que seus leitores lhe teriam atribuído. b. Aplicação: d eveis ser santos em todo vosso procedimen to (1.13-25 )
1. D eseja i a beleza de serdes como o Deus santo (1.1 3-16 )
13. Portanto diz respeito às grand es bênçãos da “salvação” explicadas nos ver sículos 3 a 12. Por causa da posse dessas bênçãos, os leitores de Pedro devem pensar determinadas com 0 formas. entendimento pronto para entrar em açãoé, Noe agir textodegrego, literalmente, “cingindo os lombos do vosso entendimento” (KJV [e ARC]). Trata-se de um trecho quase incompreensível para leitores modernos não acostumados com o antigo costume oriental de o indivíduo recolher seu manto, puxando-o entre as pernas para então enrolá-lo e prendê-lo em torno da cintura, como se estivesse se preparando para correr, para andar mais rápido ou para outra atividade árdua (veja lRs 18.46; 2Rs 4.29; 9.1). A tradução da NIV [e tb. da NVI e da A2l] transmite o sentido geral desse trecho, mas perde os ricos ecos dos versículos do Antigo Testamento, que admoestavam os leitores a se preparar para ver Deus atuar e para responder a ele com imediata obediência (veja Êx 12.11; Jó 38.3; 40.7; Jr 1.17; cf. Lc 12.35). Tal prontidão espiritual é adequada à vida na era da nova aliança, caracterizada pela poderosa operação de Deus no coração das pessoas. "“No Novo Testamento, vemos uma tendência de poios se tornar o adjetivo corres pondente ao pronome tis” (G. D. Kilpatrick, “lPeter 1:11 tina cpo ion kairon”, N o v T 28:1
(Jan., 1986), p. 92.
77
1PEDRO
Tende autocontrole[“sede sóbrios”, ARA] n ão proíbe apenas a em bri agu ez física (visto que tod os os trechos antes e depois se relaciona m a mentalidades ou posturas), mas também deixar os pensamentos sujeitos a qualquer outro tipo de embriaguez ou vício que iniba a vigilância espiritual, ou qualquer indolência mental que seduza o cristão e o leve a pecar por descuido (ou por omissão). Pedro usa a mesma palavra em 4.7 e 5.8 para incentivar a vigilância espiritual na oração e na resistência ao Diabo. Ele sabe com que facilidade os cristãos se desconcentram espiritualmente por estar “mental mente embriagados” com as coisas deste mundo (veja Mc 4.19; Cl 3.2,3; 1Jo 2.15-17). H oje, nós tam bém devemos le var em conta os perigos apres en tados p or coisas basicam ente “boas” com o profissão, bens materiais, diversão, prestígio, amizades, erudição ou autoridade. Esperai inteiramente reflete o termo do Novo Testamento normalmente tradu zido po r “esperança” , elpizõ, que se refere a uma expectativa bem mais forte que o simples sentido de “desejar algo” ou “sonhar com algo”. Embora “esperança” no Novo Testamento não implique o sentido de certeza (veja Rm 8.24-25; l T m 3.14), a palavra transm ite o senti do de expe ctativa con fiante, forte o bastante para fundamentar os atos de alguém (veja Lc 6.34; 23.8; Pp 2.19,23). A palavra inteiramente encerra uma grande e confiante expectativa, uma profunda esperança. Tal esperança em relação às grandes bênçãos quando Cristo voltar não apenas dá ânimo aos cristãos mais abatidos, mas também desperta para uma reorganização de prioridades conforme os planos de Deus (Mt 6.19-21,24) e inevitavelmente l eva a mud anças ética s na vida (ve ja l jo 3.3). C om o Pedro está prestes a começar uma seção de orden anças morais (p artind o do v. 14 e prosseguindo pelo resto da epístola com apenas poucas interrupções), essa exortação à fé faz uma boa transição para o resto da carta. Se os leitores de Pedro conhecessem as grandes verdades sobre sua salvação (v. 1-12) e então adquirissem o hábito de se visualizar em um caminho de vida que leva inexoravelmente a uma recompensa celestial inimaginável (v. 13), eles estariam mental e emocionalmente prontos para lutar por uma vida de santidade diante de Deus (v. 14-16 etc.). A graça que vos é oferecida na revelaçã o de Jesus Cristo quer dizer o depósito adicional de bênçãos imerecidas que Deus derramará sobre eles quando Cristo voltar. (Compare “graça” no v. 10 com a herança mencio nada no v. 4; quanto à expressão “a revelação de Jesus Cristo”, veja o v. 7 e as passagens citadas ali.) O particípio presente pheromenèn (literalmente,
“aquilo que está sendo levado a vós”) é incomum aqui. (Um particípio 78
1PEDRO 1.13-25
futuro, como em 3.13, ou uma oração subordinada transmitiríam com mais clareza o sentido “que vos será oferecida”.) Provavelmente é neces sário entender que essa forma verbal transmite a ideia de uma expectativa mais acentuada da s bênçãos futuras ou até mesmo indica alguma experiên cia an tecipad a dessas bênçãos. A estrutura gramatical do versículo inteiro sugere uma sequência de ações. O primeiro mandamento, cingindo [ARA], está em uma forma gra matical (particípio aoristo anteposto ao verbo principal) que quase sempre indica uma ação que acontece antes da ação do verbo principal da oração (neste caso o verbo “esperar”). O segundo mandamento, tende autocontrole, tem uma forma (particípio presente) que neste contexto indica ação simul tânea com a do verbo principal. Poderiamos parafrasear: “Primeiro, cingi vossa mente — estai prontos para pensar nas obras de Deus e obedecer-lhe imediatamente. Então, ao mesmo tempo que continuais espiritualmente alertas, começai a esperar intensa e confiantemente que, quando Cristo vol tar, recebereis grandes bênçãos de Deus”. 14. A expressão comofilhos obedientes vê os leitores de Pedro como filho na família de Deus cuja vida se caracteriza pela obediência ao Pai celeste.19 A ideia de obediência a Deus domina o pensamento de Pedro enquanto ele escreve (a mesma palavra traduzida por obediência também ocorre nos v. 2 e 22 deste capítulo), e, tendo introduzido aqui a ideia de obediência no relacionamento entre pai e filhos, Pedro a manterá no horizonte de sua análise até 2.3. Não vos amoldeis20 emp rega u ma palavra que no restante do Nov o Testamento ocorre apenas em Romanos 12.2. Significa “moldar as ações ou a vida de acordo com” e lembra esses cristãos de que a obediência a Deus e a santidade no viver (veja o v. 15) são radicalment e distintas de uma vida q ue segue os desejos “naturais” (isto é, a dos não cristãos) aonde quer que estes levem. Fazer a vontade de Deus é o contrário de fazer aquilo que a natureza pecaminosa nos leva a “querer” fazer (Rm 6.12; Gl 5.16-24).
19A expressão grega é literalmente “co mo filhos da obe diên cia”, um a con stru ção que, mediante o uso de um genitivo de definição, ecoa o estado construto da língua hebraica (veja M H T 3, p. 44 0-1 , e observe expressões semelhantes e m E f 2.3 e 5.8). 20Esta é a prime ira de várias vezes em que Pedro usa um par tic ípio com o imperativo: cf. 2.18; 3.1,7-9; 4.8-10; David Daube, “Participle and imperative in 1 Peter”, in: Selwyn,
p. 467-88. 79
1PEDRO
Pedro se refere ao estado pré-cristão como tempos passados na vossa ignorância— ignorância a respeito de Deus e de seus caminhos (cf. At 3.17; 17.30; E f 4.18). Naq uela época, os desejosdominavam o modo de vida deles. Em bora essa palavra (epithymia) seja usada em um sentido positivo (Lc 22.15; F p l .23; lT s 2.17), Pedro sempre a usa com o sentido negativo de dese jos pecaminosos que levam as pessoas à desobediência direta às leis de Deus (2.11; 4.2,3; 2Pe 1.4; 2.10,18; 3.3). O cristão deve ter plena noção do que esses dese jos representam (alguns estão relacionados em Gl 5.19-21 e ljo 2.16) e, então, se esforçar por não deixar que sua vida seja influenciada por eles. Phillips faz a seguinte paráfrase: “Não deixem que seu caráter seja moldado pelos desejos dos seus dias de ignorância”. O fato de Pedro dar esse mandamento deixa implícito que ele sabia que tais desejos ainda existem e exercem infl uência no coração de cristãos verdadeiros. Mas também deixa implícito que ele concor dava com Paulo (Rm 6.11,14; Gl 5.24) que a obra de regeneração do Espírito Santo qu ebro u a força controladora e dom inado ra daqueles desejos e que para os cristãos é possível ter um grau importante de vitória sobre eles. 15. Mas sinaliza um forte cont raste co m o com por tamen to qu e se amol da “aos desejos que tính eis e m temp os passados na vossa ig norân cia”. Assim como é santo aquele que vos chamou significa: “Conforme o modo como Deus é santo, vós mesmos deveis ser santos, moldando vossa santidade de acordo com a dele”. Aquele que vos chamou é especificamente Deus Pai (veja 5.10; e cf. Rm 8.28,30; ICo 1.9; Fp 3.14). Ao mencionar o “chamado” aqui e em mais quatro ocorrências na carta (2.9,21; 3.9; 5.10; cf. 2Pe 1.3), Pedro lembra os leitores de que foi Deus quem deu início à salvação deles, quando o evangelho lhes veio com poder, ordenando que saíssem das trevas (2.9) para a comunhão com ele. Foi um chamado poderoso e eficaz, convocando à vida cristã e a tudo que ela encerra — um chamado para viver com Deus e ser como ele.21 Dizer que Deus é santo é dizer que ele está separado do pecado e se de dica a busc ar sua própria honra.22 Assim, coisas que eram “santas” no Antigo 2lVeja John Murray, R edem ption accomplished an d ap plied (Edinburgh: Banner of Truth, 1961; Grand Rapids: Eerdmans, 1955), p. 88-94 [edição em português: A redenção consumada e aplicada, tradução de Ivan G. Grahm Ross; Valter Graciano Martins (São Paulo: Cultura Cristã, 1993)]. 22Veja Louis Berkhof,Systematic theology (Edinb urgh: Ban ner o f Truth, 61971; Grand Rapids: Eerdmans, 1939, 1941), p. 73-4 [edição em português:
Teologia sistemática (São
Paulo: Cultura Cristã, 2013)]. 80
1PEDRO 1.13-25
Testamento tanto estavam separadas do uso comum ou mau quanto estavam dedicadas ao uso na glorificação de Deus (Êx 19.4-6; 20.11; 26.34; 29.44; Sl 24.3; Zc 14.20,21). O próprio Deus é o Santo (Sl 71.22; 78.41; 89.18; 99.9; Is 1.4; 5.19,24; 6.3). A ideia de santidade par a o povo de Deu s inclui não apenas um conceito de “separação” em geral, mas um sentido especificamente moral de separa ção do mal e de dedicação a uma vida de retidão.Isso fica claro no contraste “não [...] mas” nos versículos 14 e 15 e também em outras passagens em que substantivos cognatos definem “santidade” em claras categorias morais (Rm 6.19; 2Co 7.1; Hb 12.10). Sede vós também santos em todo vosso procedimento fala de um padrão de vida que transforma cada dia, cada momento, cada pensamento, cada ação. A palavra procedimento (anastroplte) éfrequente em Pedro (das treze ocorrências no NT, oito estão em 1 e 2Pedro). Ele a emprega para se referir ao padrão de vida iníquo dos incrédulos (1.18; 2Pe 2.7) e ao padrão de vida correto dos crentes, cujo pr opósito é cond uzir à salvação de outro s que os observam (2.12; 3.1,2,16; 2Pe 3.11). Ser santo “como [Deus] é santo” inclui uma santidade plena e abrangente que atinge cada aspecto de nossa personalidade. Significa não apenas evitar o pecado exterior, mas também manter, como tendência do coração e da mente ao longo de todo o dia, um deleite instintivo em Deus e em sua santidade. 16. Pois (dioti; também significa “porque”) introduz o motivo ou fun damento que sustenta a afirmação precedente. Por que os cristãos devem ser santos? Porque está escrito(isto é, encontra-se nas Escrituras e hoje continua válido): Sereis santos, porque eu sou santo(Lv 11.44,45; 19.2; 20.7 [LXX]; e 20.26). Assim, a santidade de Deus é em ambos os Testamentos a base de sua exigência de que seu povo seja santo. Esse é apenas um dos exemplos de co mo o Novo Testam ento pressu põe que a imitação do caráter moral de Deus é o supremo fundamento para a ética. A grande razão por que algumas coisas são certas e outras são erradas e por que há absolutos morais no universo é que Deus se deleita nas coisas que refletem seu caráter moral (e, desse modo, refletem sua excelência) e odeia o que é contrário a seu caráter. Portanto, devemos imitá-lo (Ef 5.1; Mt 5.48; Lc 6.36; Cl 3.9,10; ljo 3.2,3; 4.11,19; cf. Ef5.2; lPe 2.21; IJo 2.6) e, dessa maneira, glorificá-lo. Neste contexto (v. 14,17), é oportuno Pedro trazer à lembrança o tema
pai-filho, pois é da natureza dos filhos querer imitar os pais. Os cristãos 81
1PEDR Ο
devem ter praze r em imita r a Deus, tanto porqu e ele é seu Pai quan to porque a excelência moral divina é intrinsecame nte bela e desej ável — ser co mo ele é a melhor maneira de ser (cf. Sl 34.8; 73.25).
2. Tem ei o de sc on te nt am en to d e um P a i que é Ju iz imparcial (1.1 7-2 1) 17. Agora Pedro acrescenta out ra motivação para uma vida de santidade: o temor da disciplina paternal de Deus. Invocais [ARA] é tradução tecnica mente correta, mas um tanto obscura de epikaleõ (na voz média), que quer dizer “clamar por ajuda, recorrer a” (At 25.11,12; Rm 10.13; ICo 1.2; 2Tm 2.22). Chamais de pai é compatível com a voz ativa, mas aqui o verbo está na voz média, com a qual o sentido de “chamar de” não é atestado no Novo Testamento (veja BAGD, p. 294 ). O tem po presente indica a ideia de clamar regular ou hab itualmente a Deus em busca de ajuda , algo que caracteriza o cristão (veja ICo 1.2; 2Tm 2.22). Se introduz uma construção grega na qual Pedro pressupõe que os lei tores de fato oram regularmente a Deus e o conhecem como Pai (veja NIV, “Uma vez que”). Agora Pedro os lembra de que seu Pai também é o Juiz do universo. Este é o sentido: “Se clamais a um Pai que tam bém é o Juiz qu e não demonstra nenhum favoritismo (e, portanto, não demonstrará favoritismo a seus amigos nem a seus filhos) e sempre julga e recompensa cada pessoa de acordo com o que ela faz, então vivei com temor (isto é, temendo sua disciplina) vossa vida na terra”. Ser membro da família de Deus é um grande privilégio, mas isso não deve levar à presunção de que a desobediência pas sará em branco ou sem receber disciplina. Aquele que julga imparcialmente as obras de cada um [NVI] pode ser en tendido como referência ao futuro juízo final em que os crentes não serão excluídos do céu, mas serão julgados e recompensados de acordo com seus feitos nesta vida (como em Rm 14.12; ICo 3.10-15; 2Co 5.10 etc.). Mas é melhor interpretar essas palavras básica ou exclusivamente como uma refe rência ao juízo e à disciplina na vida presente porque: (l) esta construção grega ( ton krinonta, particípio presente precedido de artigo) transmitia na turalmente o sentido de “aquele que está julgando”; e (2) se o assunto era o juíz o final, não seria apropriado exortar os cristãos a “tem er”, pois estes não precisam ter medo algum da condenação final. Cabe aqui uma referência à disciplina de Deus na vida de agora,
pois em outras passagens Pedro reconhece que Deus atua no presente 82
1PE D R O 1. 13- 25
abençoando e disciplinando os cristãos (4.14,17 [com a palavra cognata k r i m a ]; cf. Hb 12.5-11; Mt 6.12). Cada um é um lembrete de que esse juízo não se restringe apenas a não cristãos, ou apenas a cristãos, ou a alguns cristãos que viveram em outra época ou um juízo individual para todas as pessoas (embora neste contexto quelugar. estejaÉsendo visado é a disciplina dos crentes). Imparcialmente [NVl] é umao palavra rara que significa “sem demonstrar favoritismo” (expressões semelhantes encontram-se em Lc 20.21; At 10.34; Rm 2.11; Ef 6.9; Cl 3.25; T g 2.1,9). P r o c e d e i c o m t e m o r (RSV) refere-se de novo a todo o padrão de vida dos cristãos — a n a s tr e p h õ , “proceder”, é o verbo cognato do substantivo a n a s t r o p h ê , “procedimento”, do versículo 15. Neste contexto, t e m o r significa basicamente “temor à disciplina de Deus”. (A tradução “tem or reverente” [NIV] é agradável demais para leitores de nossos dias, pois sugere princi palmente a ideia de admiração durante a adoração e faz com que evitem a noção de “temor da disciplina”.) Por considera r o tem or a Deus um a noção veterotestament ária que não faz parte da nova aliança, muitas pessoas o rejeitam nos dias de hoje, ne gligenciando diversas passagens do Novo Testamento e levando sua vida espiritual ao empobrecimento. O t e m o r (phobos ) da disciplina de Deu s é uma postura boa e adequada, sinal de uma igreja neotestamentária que cresce em maturidade e experimenta a bênção de Deus (At 5.5,11; 9.31; 2Co 7.1,15; Cl 3.22; lT m 5.20; lPe 2.17; e provavelmente l Pe 2.18; 3.2 ,15). Além do mais, em outras pas sagens do N ovo Testamento o t em or a Deus está ligado ao crescimento em santidade (2Co 7.1; Fp 2.12; cf. Rm 3.18). Não existe incoerência em temer a Deus e também amá-lo ou saber que ele nos ama.23 Se existisse, seríamos obrigados a dizer que, na época do Antigo Testamento, os crentes que temiam a Deus não poderíam amá-lo (o que é claramente falso) ou dizer que Deus não os amava (o que também é claramente falso). Pelo contrário, o temor de desagradar nosso Pai é a contrapartida de amá-lo. O temor aqui recomendado é [...] uma santa suspeita de si mesmo e o receio de ofender a Deus, o que pode não apenas ser condizente com a segurança “ Observe que , n o contexto de ljo ão 4.18, “o perfeito am or elimina o m edo ” se refere ao ju íz o eterno: veja o v. 17, bem co mo o term o kolasis, “retribuição divina, punição”, no v. 18. O “perfeito amor” elimina todo o medo de punição eterna, mas não afasta o temor
piedoso essencial à santidade (cf. Ap 11.18; 15.4; 19.5).
83
1PEDRO
da salvação, com a fé, com o amor e com a alegria espiritual, mas também é sua companhia inseparável [...]. Esse temor não é covardia: ele não avilta, mas eleva os pensamentos, pois suprime todos os temores menores e gera força e coragem verdadeiras para enfrentar todos os perigos, por causa de uma boa consciência e da obediência a Deus.24 O tempo da vossa peregrinação [“tempo do vosso exílio”, Bj] refere-se a esta vida presente, durante a qual os leitores de Pedro são “residentes temporários” na terra. No Novo Testamento, a palavra traduzida por “peregrinação”, paroikia, é usada só aqui e em Atos 13.17 (que se refere ao povo como “estrangeiros na terra do Egito”), mas tem sentido semelhante ao de parepidêmos, “peregrinos”, em 1.1 — observe os comentários ali sobre a traduç ão da palavra e sobre o propó sito de Pedro com o uso desses termos. 18. Algumas versões iniciam neste pon to uma nova oração principal [“Saibam que ”, TP CR; “Pois vocês sabem”, NTLH e NVl], mas na realidade o texto grego continua o mesmo período gramatical, empregando uma oração participial, sabendo que,que pode ser traduzida de várias maneiras, dependendo do sentido do contexto. Embora Pedro não o deixe explícito, parece que o sentido é: “Conduzi vossa vida com temor da disciplina de porque Deus sabeisvos queredimiu por um de altoum preço — de o sangue precioso de Cristo (v. (v. 17), 18,19) — Deus modo vida pecaminoso”. (Portanto, Pedro deixa suben tendido, D eus não se agradará se tratardes com pouco caso os propósitos éticos da sua redenção.) Fostes resgatadosé uma tradução elucidadora do verbo lutroõ, pois esse verbo tem o sentido distinto de “adquirir a liberdade de alguém mediante pagamento de resgate” e era usado em contextos seculares de aquisição da liberdade de um escravo ou de um refém mantido por um ini migo .25 A palavra “redim idos” (NIV [e NV l]) tam bém que r dizer is so (espe cialmente com o term o té cnic o em teologia sistemátic a), mas deve se 2,Leighton, p. 85, 87. 2:,Veja a análise completa de lutroõfeita po r Leon Morris, The apostolic preaching o f the cross(London: Tyndale Press, '1965), p. 11-27, 39; e acerca do conceito de “redenção” em geral, veja ibid., p. 11-64, e, em uma apresentação um pouco mais popular, seu livro The atonement (Leicester: IVP, 1983), p. 106-31. Beare, p. 104, contrapõe que, se Pedro tivesse em mente o pagamento de um preço, teria usado o genitivo de preço em vez do dativo instrumental, mas essa objeção não convence: o dativo instrumental de preço pago pode
ser encontrado em Êxodo 34.20, em 1 Crônicas 21.24 e em Apocalipse 5.9.
84
1PE D RO 1. 13- 25
observar que o termo grego é muito mais específico que o sentido vago e geral (mais ou menos igual a “salvos”) que hoje se costuma associar ao vocábulo “redimidos”. O ambiente do qual os leitores foram resgatados é a possa maneirajútil
de viver, recebida por tradição dos vossos pais. A preposição de (ek, na expressão ) não transmite a mera ideia de “afastar de”, mas resgatados da vossa maneira de “sair de”, evocando a expressiva imagem de pessoas sendo fisicamente removidas de um “lugar” (a esfera de padrões de vida pecaminosos) para outro (a esfera de obediência a Deus). Maneira é mais uma vez anastrophê, “padrão de vida” (veja comentários no v. 15). Esse padrão de vida era fútil — vazio, imprestável, sem nenhum resultado significativo nem duradouro (compare com essa mesma palavra em lCo 15.17; Tt 3.9; e com o substantivo cognato, que aparece treze vezes na LXX de Ec 1—2). A mudança notável produzida pela conversão a Cristo se vê no fato de que os antigos padrões de vida pecaminosos haviam sido herdados dos vossos antepassados [PIB], uma influência que adquiriu muito peso com o acúmulo de tradição durante gerações de uma sociedade que valorizava essa sabedoria ancestral. “A antiga tradição da família e da nação é rompida [...] em virtude da obra de Jesus Cristo, que os havia libe rtad o”.26 Efésios 2.10 e T ito 2.14 declaram um propósito semelhante para a redenção. A corrente hereditária do pecado é rompida por Cristo (cf. Ex 20.5,6). De novo, Pedro mostra o valor extraordinário das realidades espirituais ao chamar os metais mais preciosos e duradouros de coisas perecíveis, como prata ou ouro. “Perecível”, phthartos, é sempre um vocábulo empregado no Novo Testamento para designar coisas que se deterioram ou se estragam (Rm 1.23; l C o 9.25; 15.53, 54; lP e 1.23), porqu e pert ence m a este mun do ou a esta era (veja observações sobre “imperecível ”, aphtartos, no v. 4). 19. Mas [...] pelo precioso sangue de Cristo declara que o sangue de Cristo é muito mais “precioso” ou “valioso” ( tímios é usado para designar pedras preciosas em lC o 3.12; cf. “precioso fruto da terra” em T g 5.7) que ouro ou prata — o que, aparentemente, tem o sentido de precioso aos olhos de Deus e, portan to, encerra valor i ntrínseco.
2r,W C van U nnik , no resumo de um levantamento det alhado sobre o uso de patroparaáotos na literatura e xtrabíblica, em seu artigo “The critique o f paganism in 1 Pet. 1:18”, in: £. Ellis; M. Wilcox, orgs., Neotestamentica et semitica (Festschrift M. Black)
(Edinburgh: T. & T. Clark, 1969), p. 141. 85
1PEDRO
O sangue de Cristoé a prova clara e visível de que seu sangue vital foi derramado quando ele sofreu uma morte sacrificial como preço de nossa redenção — “o sangue de Cristo” quer dizer sua morte em seus aspectos salvíficos.27 Embora pudéssemos pensar que o sa ngue de Cristo como prova da entrega de suaDeus vida — fosse exclusiva àprimária remoção do de sangue nossa culpa judicial perante poisreferência essa é a referência — os autores do Novo Testamento também atribuem a ele vários outros efeitos. Pelo sangue de Cristo nossa consciência é purificada (Hb 9.14), ganhamos acesso intrépido a Deus em adoração e oração (Hb 10.19), somos paulatinamente purificados de nossos pecados (ljo 1.7; cf. Ap 1.5b), somos capazes de vencer o acusador dos irmãos (Ap 12.11) e resgatados de um estilo de vida pecaminoso (lPe 1.19). Faríamos bem se recuperássemos essa ênfase neotestamentária em nossa pregação nos de hoje. Junto com a ideia de pagamento de dias resgate encontra-se a idéia de que Cristo é sacrifício substitutivo, que sofre o castigo que era nosso (cf. lPe 2.24). Isso fica enfatizado nas palavras como de um cordeiro sem defeito e sem mancha. Conquanto seja possível defender que a referência primária é ao cordeiro imaculado da Páscoa em Êxodo 12.5 (veja Hort, p. 77), é mais provável que a alusão seja à frequente exigência de “cordeiro sem defei to ” para muit os sacrifícios do A ntig o Testam ento (Nm 6.14; 28.3,9 etc.)28 e, po r conseguinte, à interpretação cristã de Jesus com o o perfeito “Cordeir o de Deus, que tira o pecado do mundo” (jo 1.29; cf. ICo 5.7; Hb 9.14; Ap 5.6, 12; Is 53.7). Aos olhos de Deus, essa morte e o sangue que a repre senta são tão preciosos que jamais deveriamos tê-los em pouca conta. Nem podemos subestimar seu valor: só o sangue de Cristo conseguiu pagar o preço de nossa redenção. Conhecidotraduz progindsko, acom panhando a tradução do subs tan 20. tivo cognato prognosis (traduzido por “eleitos” no versículo 2). Embora em seu uso normal a palavra signifique simplesmente “conhecido de antemão” (veja At 26.5 e 2Pe 3.17), aqui no versículo 20 várias versões a traduzem por alguma palavra que subentende a predestinação: “destinado” (KJV
27Também Leon Morris, The apostolic preaching of the cross, p. 112-26. 28Quanto à expressão “o Cordeiro de Deus” em João 1.29, Leon Morris examina vários possíveis antecedentes (John, NIC [Grand Rapids: Eerdmans, 1971], p. 143-18) e conclui: “Tudo o que os antigos sacrifícios prenunciavam se cumpriu perfeitamente no
sacrifício de Cristo” (p. 148). 86
1PEDRO 1.13-25
[e TPCR]), “predestinado” (NEB [e PIB]), “escolhido” (NIV [e NTLH]). São três as razões para isso: (l) a percepção de que, quando Deus sabe algo de antemão, é certo que isso acontecerá (e parece que a única alternativa à ideia não cristã de uma certeza de acontecimentos ocasionados por um destino impessoal e mecanicista é supor que o acontecimento foi, portanto, ordenado por Deus); (2) o fato de que, quando aplicada a Deus, a palavra é encontrada em contextos que subentendem a predestinação (At 2.23; Rm 8.29; 11.2); (3) a constatação de que nesse contexto não faria praticamente nenhum sentido Pedro apenas dizer que Deus Pai conheceuCristo antes da fundação do mundo. Aliás, com sua ênfase na morte redentora de Cristo, o contexto imediatamente anterior sugere que foi como Salvador sofredor que o Filho foi “conh ecido de antem ão” ou pond erado po r Deus an tes da funda ção do mundo. O conjunto dessas considerações indica que a “presciência” foi realmente um ato de Deus na eternidade passada, mediante o qual ele determinou que seu Filho viria como Salvador da humanidade. Fundação do mundoé uma expressão neotestamentária equivalente a “criação do mundo” (veja seu uso em Mt 25.34; Lc 11.50; Jo 17.24; Ef 1.4; Hb 4.3; 9.26; Ap 13.8; 17.8). De novo, Pedro enfatiza o papel central que os cristãos da nova aliança ocupam na história da redenção, ao observar que o plano eterno de Deus de enviar seu Filho permaneceu não realizado até que foi manifestado (ou revelado) no fim dos tempos, isto é, no fim das eras da história da criação não redimida, as “eras” ou “tempos” (cf. At 17.30; Rm 16.25) que precederam a atual era final da redenção. Pedro diz a seus leitores que essa aparição tão aguardada do Messias foi em vosso favor (veja acima, no v. 12, o com entário sobre a posiç ão dos leitores na hist ória da rede nção).29 21. Mas Pedro vai além de especificar o priv ilég io dos leitores e acres centa que é por intermédio dele (isto é, por intermédio de Cristo) que credes em Deus, aqui se referindo a Deus Pai (que é a referência mais comum no Novo Testamento quando se usa o termo theos, “Deus”). O Deus que planejou a redenção deles é agora o objeto de sua confiança. A palavra traduzida por credes (pistos) também pode significar “fiel, fided ign o”, mas aqui não po de ter es se sentido porqu e, n o final do período,
29Este é um dos vários versículos que alguns af irma m serem trech os de u m hino ou credo antigo. Mas os indícios em favor dessa afirmação não são convincentes: não há dúvida de que o trecho grego tem simetria e um estilo elegante — mas isso não é de
surpreender, pois toda a carta está bem escrita. 87
1PEDRO
Pedro sintetiza essa confiança como dependência de Deus: de modo que vossa fé e esperança estejam em Deus. Quando diz que é “por intermédio de” Cr isto que os cri stãos confi am em Deus, Pedro descarta qua lque r ideia de que “devem temer a Deus, mas confiar em Cristo”. Antes, quando
por os cristãos confiam em Cristo, também estão confiando em Deus intermédio de Cristo. A oração subordinada que o ressuscitou dentre os mortos e lhe deu glória refere-se à ressurreição de Cristo, à sua ascensão ao céu e a seu acolhimento com ho nra e gló ria pelo Pai (cf. Fp 2.9; E f 1.20-23). De modo que vossa fé e esperança estejam em Deus conduz Pedro à con clusão e t ambém à ideia pr inc ipal dos versículos 20 e 21.30 Depois de dizer a seus leitores que vivam uma vida santa (v. 14-16) e temam a disciplina e o desprazer de Deus no caso de desobediência (v. 17) — pois por um alto preço Deus os redimiu do pecado (v. 18,19) —, Pedro conclui, lem brando-os de que o Deus a quem devem temer com o Juiz é também o Deus em quem confiam como Salvador: ele planejou sua redenção nos conselhos eternos (v. 20a), enviou seu Filho por causa deles (v. 20b), ele é aquele em quem agora se fiam (v. 21a), ele ressuscitou Cristo dentre os mortos e o glorifi cou (v. 21b) e, desse modo, é aquele em quem colocam toda confiança e esperança (v. 21c). O Deus a quem os cristãos temem também é o Deus em quem confiam para sempre, o Deus que desde a eternidade planejou e fez só o bem para eles.
3. A m ai -v os un s a os ou tr os ag or a e s em p re (1.2 2-2 5) 22. Tendo purificado a vossa alma, pela vossa obediência à verdade[ARA] pode ser entendido como referência à conversão (caso em que “obediência à ver dade” significaria “crer no evangelho”) ou ao crescimento na pureza moral após a conversão (caso em que “obediência à verdade” significaria “obediên cia aos mandamentos de Deus na vida diária”). TDNT, vol. 6, p. 208) pode parecer gramaticalmente possível, mas um levantamento de usos concretos mostra que é muito improvável que algum leitor do século primeiro interpretasse o tre gramcord cho desta maneira: uma busca (feita no banco de dados , da Trinity Evange lical Divinity School, em Deerfield, nos Estados Unidos) em todos os 656 casos de kai adverbial no NT não detectou nenhum outro exemplo da sequência kai com predicado nominativo com eimi ou ginomai. Esse sentido também é conceitualmente improvável, '"“De modo que vossa fé é a esperança em Deus” (tb. R. Bultmann,
pois, embora relacionadas, “fe ” e “esperança”, n ão são equivalentes no N T (cf. Hb l l .l ) . 88
1PEDRO 1.13-25
Tendo purificado (hêgnikotes, particípio perfeito) pode se referir à conver são inicial como um acontecimento concluído no passado com efeitos que continuam no presente, mas, visto que em outras passagens Pedro emprega o tempo perfeito para aludir a acontecimentos no processo de santifica ção (4.1; 2Pe 1.12), não é possível ter certeza de que ele está pensando na conversão inicial. Mais convincentes são os argumentos em favor da ideia de que Pedro tem em mente o crescimento na pureza moral após a conversão: (l) obe diência (hypakoe) ocorre quinze vezes no Novo Testamento e nunca tem claramente o sentido de “fé salvífica inicial”;31 (2) nos versículos 2 e 14, Pedro usa obediência (hypakoe)para designar a obediência na conduta; (3) puri ficar (hagnizõ), quando empregado metaforicamente em outras passagens do Novo Testamento, refere-se à purificação moral posterior à conversão (T g 4.8; ljo 3 .3);32 (4) o conte xto é o ch am ado à san tidade feito pelo apóstolo em 1.15, o que indica que a obediência purificadora que ele está visando é resultado de uma resposta ativa a esse chamado; (5) essa “puri ficação” é algo que os próprios leitores fizeram (“tendo purificado a vossa alma”), mas o Nov o Testamento n unc a diz que os crist ãos são agentes a tivos na purificação inicial que Deus realiza na alma por ocasião da con versão. N o entanto, o Novo Testamento declara que eles têm participação ativa na obra progressiva de santificação (cf. 2Co 7.1; T g 4.8; ljo 3.3). Essa “purificação” significa, então, algum avanço visível na obtenção de mais pureza contra a poluição moral do pecado, um conceito muito seme lhante ao de Tiago 4.8 e ljoão 3.3. Vossa alma enfatiza a natureza interior e espiritual dessa purificação. Embora “alma” (psychê) seja usado para designar a pessoa como um todo (e.g., 3.20; 2Pe 2.14), caso fosse isso que Pedro quisesse dizer, o mais provável é que teria usado heatous, “vós mesmos” (como em ljo 3.3). Psychê tam bém pode ter o sentido de “natureza espiritual interior” (Mt 10.28; 2Pe 2.8; ^'Romanos 1.5 e 16.26 são ambíguos, mas veja BAGD, p. 837; veja também os co mentários sobre 1.2, acima. 52Beare (p. 110), Stibbs/Walls (p. 93) e Mounce (p. 22) afirmam que o particípio perfeito necessariamente se refere a um ato específico no passado, não a um processo. N o entanto, o particípio perfeito pode se referir a u m processo com pletado no passado: observe Hebreus 4.15 (temos um sumo sacerdote que, “à nossa semelhança, foi tentado em todas as coisas”); 5.14 (“... o alimento sólido é para os adultos, os quais, pelo exercício constante, tornaram-se aptospara discernir tanto o bem quanto o mal” [NVI 12.3,11;
Tiago 5.15; IPedro 4.3; 2Pedro 3.2; Judas 17 etc. 89
1PEDRO
cf. BAGD, p. 893, c.). A proximidade de um chamado a amar “de todo coração” indica ser essa a maneira como se deve entender a expressão. Pela obediência à verdadetambém pode ser traduzido por “na [vossa] obediência à verdade” (NASB [e ARC, ACF]) — “pela” e “na” são linguise teologicamente “pela” “purifica” é preferível, pois éticamente medianteaceitáveis um processo de obediência válidos. ativa queMas o cristão a alma. (Aqui, “a verdade” carrega a ideia da verdadeira maneira de agradar a Deus, o que inclui não apenas a mensagem do evangelho, mas a totalidade do ensino cristão que envolve as doutrinas e a vida — cf. 2Jo 4; 3Jo 3,4; 2Pe 1.12; 2.2.) Não é provável que essa “purificação” seja uma etapa já concluída no processo de santificação, pois a ideia de uma etapa ímpar já finalizada não está presente no Novo Testamento, nem seria possível a Pedro supor que um número tão grandenível de cristãos em inúmeras e diferentes igrejas tivesse atingido determinado de santidade. É mel hor entender o trecho co mo o próx imo passo no desenvolvimento do argumento de Pedro. Assim, obediência teria o sentido de “obediência às exortações recém-mencionadas”. Poderiamos parafrasear: “Então, tendo purificado a vossa alma mediante a obediência a esses mandamentos de san tidade [...] amai-vos sinceramente uns aos outros”. Assim, Pedro espera que o crescimento em santidade conduza a um amor mais profundo entre os cristãos. (Aliás, essa conclusão seria verdadeira qualquer que fosse a interpre tação que alguém desse à expressão “tendo purificado a vossa alma”.) Amor fraternal não fingido significa amor genuíno, não uma mera expressão externa ou afirmação de amor. E provável que Pedro veja esse “amor fraterno” (philadelphia) como algo um pouco menos intenso que agape (observe o desenvolvimento deste versículo e a análise de agapaõ no próximo trecho; cf. tb. 2Pe 1.17, que indica alguma diferença). Com a tradução para o amorfraternal, nãofingido, a RSV [e ACF] entende que o amor fraterno é o propósito da obediência à verdade. Mas no Novo Testamento o amor pelos irmãos em Cristo é visto como um componente ou um resultado da santificação e não como seu objetivo. Então, é preferível entender que essa construção ( eis com acusativo) indica resultado (como na NIV e na NEB [e tb. na A21 e ARA], Phillips; cf., em 1.3; 2.9,21, a mesma construção usada dessa maneira): “até que vos afeiçoeis sinceramente por vossos irmãos em Cristo” (NEB). Amai-vos, de coração, uns aos outros ardentemente [ARA] ordena algo que vai além do sincero afeto fraternal do trecho anterior. Aqui, Pedro
passa da raiz phileõ- (“afeto, amor”) usada no segmento anterior para agapaõ 90
1PEDRO 1.13-25 (“amor, especialmente o am or fo rte e pro fu ndo”).33 Ele acrescenta ektenõs, “ardentemente”, termo usado em outras passagens para designar emoções ou desejos fortes, p rofu ndo s e até mesm o arrebatadores (LXX, Jl 1.14 e Jn 3.8; tb. At 12.5; 26.7). Co m um “cor ação puro” (KJV, N IV marg. [e ARC, N TLH]; veja NASB marg.) parece ser uma leitura melhor, visto que a maioria dos melhores e mais antigos manuscritos gregos inclui o adjetivo katharos, “puro, limpo”, e em face da naturalidade dessa leitura em um período gramatical que vinha falando da purificação interior. Portanto , o sentid o do versículo é: “Uma vez que começastes a crescer em santidade de modo que tendes uma afeição genuína uns pelos outros, tomai ardente, profundo e forte vosso amor”. Essa é a primeira aplicação específica que Pedro faz das exortações gerais à santidade encontradas nos versículos 13 a 21. E um lembrete de que um dos primeiros sinais de que indivíduos e igrejas estão crescendo em santidade é o amor ardente pelos irmãos em Cristo. Longe de a personalidade humana ser determinada no início da vida sem possibilidade de m udança, ela po de ser radical e permanen temen te tran s formada pelo poder do evangelho, e essa é um a realidade animadora. 23. Em bora a RSV inicie aqui um novo período gramatical, Fostes rege nerados...,o texto grego continua o versículo 22 com um particípio, “tendo sido regenerados”, o que provavelmente dá razão ou fundamento para o versículo anterior: “pois fostes regenerados” [ARA], Esse “novo nascimento” dá início a uma nova vida espiritual (vejajo 3.3-15; cf. Jo 1.12,13; Ef 2.1,5; Cl 2.13; T t 3.5; T g 1.18; IPe 1.3).34 Aqui Pedro em pre ga o m esm o verbo (anagenwõ) de 1.3 (veja comentários ali). A forma verbal (particípio perfeito) destaca os resultados ininterruptos daquele novo nascimento. Não de semente perecível, mas imperecível afirma a natureza permanente e até mesmo indestrutível da “semente” que deu início a essa nova vida nos leitores. (Veja, em 1.4, os comentários sobreque não perecee pereceram.) A palavra grega traduzida por semente (spora) pode ter o sentido de “semeadura” (a ação de semear), além de “semente” (a coisa plantada ou semeada; veja IMacabeus MN o entanto, existe considerável sobreposição de sentido entre os dois grupos de pa lavras, e a maneira como agapaõàs vezes é usado não justifica totalmente a noção popular de que agape éamor puro como o de Deus (veja 2Pe 2.15; Jo 3.19). Além do mais, phileõ também é usado para designar o amor de Deus (vejajo 5.20; 11.3,3(5; 16.27; 20.2; Ap 3.19). 34Ac]ui tam bém muitos pressupõem uma referência ao batismo, mas sem base sufi
ciente (veja o v. 3 tratado anteriormente, p. 55-6, nota 1). 91
1PEDRO
10.30; Josefo, Ant. 2.306; BAGD, p. 763), mas “semente” é bem mais provável aqui, pois não faz praticamente sentido algum dizer que uma atividade é “imperecível” (cf. ljo 3.9). A palavra de Deus, que vive e permanece35 é a palavra de Deus falada (na proclamação do evangelho), ou a palavra de Deus escrita (na Bíblia), ou ambas, pois a citação de Isaías 40.6-8 no versículo seguinte se refere às palavras de Deus faladas e/ou escritas pelos profetas de A ntigo Testamento. É provável que não devamos tentar estabelecer uma distinção exageradamente nítida, pois a passagem de Isaías é uma declaração sobre a natureza das palavras de Deus em geral, sem se referir a nenhum a form a específica em que ocorrem. Será que a “semente imperecível” era a palavra de Deus (cf. Lc 8.11)? Ou será que Pedro quis dizer que a “semente” era a atuação do Espírito Santo com a palavra de Deus e por meio dela? Ele diz que seus leitores nasceram outra vez “de” (ek, “para fora de”) uma semente imperecível “mediante” (dia, “através, por meio de”) a palavra de Deus viva e duradoura. A mudança de preposições pode indicar uma nuança, mas a distinção não tem grande im portância teológica, pois de qualquer maneira o Espírito Santo está agindo e trazendo regeneração (cf. Jo 3.5-8; Tt 3.5), e a palavra de Deus é o meio que Deus usa para despertar nova vida em um incrédulo (cf. Rm 10.17; Tg 1.18). Contudo, neste texto não há nenhuma menção inequívoca do Espírito Santo. Além do mais, a ênfase de Pedro no fato que a palavra de Deus vive (cf. Hb 4.12) indica seu poder de despertar nova vida, ao contrário de quaisquer palavras meramente humanas. E o fato de que ela permanece (cf Mc 13.31) reforça a ideia da persistência da nova vida por ela gerada. Por fim, os versículos 24 e 25 con tinu am martela ndo o tem a da permanê ncia da palavra de Deus, algo que seria irrelevante se a ideia central do versículo 23 fosse a permanência da obra regeneradora do Espírito Santo, mas não se for a permanência do efeito da palavra de Deus que vivifica. Conquanto nunca devamos tentar separar a palavra de Deus do Deus que profere essa palavra, essas considerações indicam que Pedro está pensando especifica mente na palavra de Deus como “semente” que vivifica. As implicações para a evangelização são óbvias: em últim a instância, o que trará nova vida a um incrédulo não são nossos argumentos nem nosso exemplo de conduta, mas “ “Mediante a Palavra do De us vivo e eterno” [BJ, nota] é gramat icalm ente possível, mas deve ser descartado por razões contextuais: a ideia central de Pedro é a permanência da palavra de Deus (veja E. A. LaVerdiere, “A grammatical ambiguity in 1 Pet. 1:23”,
CBQ 36 [1974], p. 89-94).
92
1PE D RO 1. 13- 25
as palavras poderosa s d o p rópri o Deu s — palavras que aind a estão prese rva das nas Escrituras. E lendo ou ouvindo essas palavras que as pessoas recebem nova vid a. Portanto, o arg um ento é este: (1) amai uns aos outros de todo coração (v. 22) (2) porquefostes regenerados de semente imperecível (v. 23) Mas de que maneira o versículo 23 fundamenta o 22? Talvez Pedro esteja afir mando que o novo nascimento lhes dá o pod er de amarem un s aos outros. Mas isso não explicaria a ênfase petrina na natureza “imperecível” e “permanente” da palavra de Deus. Além do mais, mesmo que o poder de amar seja uma razão válida para a afirmação de que eles são capazesde amar (e.g., “Sois capazes de amar uns aos outros, pois fostes regenerados”), é uma razão bem menos convin cente para o real conteúdo do versículo 22, a saber, um mandamento para amar. Uma interpretação correta do versículo 23 tem de explicar sua função de uma maneira que esclareça o destaque de Pedro para a natureza perma nente da nova vida dada por meio da palavra de Deus. Essa ênfase torna muito provável que Pedro esteja dest acando a natureza eterna da com unh ão que seus leitores passaram a compartilhar: “Amai uns aos outros (v. 22), pois todos vós nascestes de novo, sendo inseridos na comunhão do povo de Deus, a qual durará eternamente (v. 23)”.36O crescimento cristão não pode ser ego cêntric o e individual ista, pois ocorre no contexto de com unh ão, u ma com unh ão que tem de se aprofundar e continuar por toda a et ernidade. 24,25. A permanência da palavra de Deus, mencionada no versículo 23, é enfatizada nestes dois versículos. Pedro cita Isaías 40.6-8 para contrastar a fragilidade da natureza humana com a permanência das palavras de Deus. Toda carne[A21, marg.] quer dizer “toda existência humana natural” ou talvez “todas as pessoas”37— o sentido é quase o mesmo. Relva é uma palavra genéric a para grama (Mt 6.30; 14.19) ou feno ( lC o 3.12), que dura po r uma estação e desaparece. Toda sua glória éreferência a toda a beleza, esplendor ou 36Assim também Beare: “Justamente porque é imortal em sua essência, a nova vida tem de se expressar no am or pelos irmãos co m que m a partilham os” (p. 111). 37A expressão grega pasa sarx, que na LXX é a tradução da expressão hebraica kol-bãsãr, é encontrada com o sentido de “todas as pessoas” em Lc 3.6; Jo 17.12; At 2.17. Contudo, na expressão “toda sua glória” Pedro insere “sua” (gr., antes) em lugar de “ do ho mem”, que é como aparece na LXX; essa inserção torna difícil uma referência a “todas as
pessoas” e, portanto, torn a mais provável a referência a “toda existência huma na natural”.
93
1PEDRO
fama humanos. Assim como seca-se a relvae a flor perde o viço e morre, da mesma maneira a glória e a grandeza do homem rapidamente desaparecem (cf. Tg 1.10,11). Então, o que pode dar esperança de permanência ou sentido? A palavra (rhéma,palavra realmente falada ou escrita) do Senhor permanece pa ra
sempre,e é essa [...]palavraque os leitores de Pedro ouviram e na qual creram. Essa palavra — que aparentemente inclui as Escrituras do Antigo Testamento, a proclamação apostólica do Novo Testamento e a apresentação de ambas na mensagem dos evangelistas do primeiro século — é a palavra que ativou nova vida dentro deles. Portanto, em contraste com a temporalidade da relva que murcha e da flor que perde o viço, os crentes têm uma natureza que permanece etemamente (cf. ljo 2.17). (Aqui Pedro emprega rhêma, “palavra”, para se referir à mesma coisa que logos,“palavra”, no v. 23, o que indica que ele não via quase nenhuma diferença de sentido entre elas.) Esses versículos intensificam a ideia da permanência da palavra de Deus, ao contrastá-la com a glória evanescente das realizações humanas. Força, poder, ri queza, beleza, fama — toda a “glória” do homem — rapidamente desaparecerão. Os cristãos, que foram “regenerados” (v. 23), viverão com Deus para sempre.
c. Como desenvolver a santidade (2. 1-10)
1. Sed e ali mentados p e lo Sen hor p o r meio da Palavra (2. 1-3 ) 1. Portanto, deixandoretoma a linha de raciocínio interrompida pelos versí culos 23 a 25. A palavra portanto, ou “pois”, remonta ao man dam ento “ama i uns aos outros” no versículo 22. Esse versículo explica com mais detalhes o que significa amar “ardentemente” uns aos outros: é preciso deixar (aban donar, livrar-se de) atitudes e hábitos prejudiciais aos outros. Esse mesmo verbo ( apotithêmi) é usado para se referir à ação de se despir (At 7.58), mas também metaforicamente para exortar cristãos a “deixar de lado” práticas injustas (Rm 13.12; E f 4.22,25; Cl 3.8; Hb 12.1; T g 1.21). Faz pou quíssima diferença se o verbo, que no grego é um particípio, é traduzido 3SKelly, p. 84, vê aqui outra referência ao batismo, o qual, ele alega, na igreja primitiva significava “despir-se totalmente”. No entanto, os indícios mais antigos disso (em Cirilo de Jerusalém) são de aproximadamente 350 d.C., e não existem indícios suficientes para dizer que a prática era dis seminada. N ão existe ne nhu m indício dess a prática na época do N T nem bons motivos para pensar que, para os leitores de Pedro, o mandamento “deixai
de lado toda maldade” significava batismo.
94
1PED RO 2. 1- 10
como imperativo (RSV NIV [e NVI, NTLH, CNBB]) ou como particípio dependente do mandamento desejai,do versículo 2 (NASB [e A 2lj), pois em ambos os casos está expressa a autoridade de um mandamento. O am or ge nu íno exige q ue a pessoa se livre de toda maldade([“tod a ma lícia”, ARC ]; o termo grego kakia tem sentido amplo, in cluind o não apen as a intenção maléfica, mas também quaisquer ações prejudiciais aos outros), todo engano(i.e., dissimulação que prejudica os outros mediante fraude ou falsidade), fingimento (ou hipocrisia, o mascaramento do mal íntimo me diante uma aparência de retidão — observe essa palavra em Mt 23.28; Mc 12.15; Gl 2.13), inveja (o contrário de gratidão pelo bem que acontece aos outros) e toda difamação(qualquer declaração que prejudique ou tenha a in tenção de prejudicar outra pessoa em sua posição, reputação etc. — o verbo cognato é empregado em 2.12; 3.16; Tg 4.11). Todos esses pecados visam ao pre juízo das outras pessoas, ao passo que o am or busca o be m dos outros. 2. O texto grego não inicia aqui nenhum novo período gramatical [cf. NVI e NTLH], e é provável que a NASB [e A2l] preserve melhor a ligação que Pedro estabelece entre as orações: Portanto, deixando [...](v. l) desejai...(v. 2). Pedro deixa subentendido que “deixar” práticas destituídas de am or (v. l) é necessário para o c rescim ento espiritual (v. 2), pois os dois versículos fazem parte de u m ún ico e long o mandam ento. Alg uém que vive na prática do “engano” ou da “inveja” ou da “difamação” não será capaz de desejar de verdade o “puro leite espiritual”. Como bebes recém-nascidos não implica que Pedro pensasse que seus leitores fossem cristãos jovens ou imaturos, p ois alguns eram cristãos havia trinta anos (veja Introdução, p. 36-7).39A ideia é que eles devem ansiar por leite espiritual,
MDizer que esse versículo vê os leitores como novos cristãos (conforme pensam Beare, p. 114; Kelly, p. 84) seria semelhante a dizer que o autor do salmo 42 imagina ser um cervo ou uma corça quando exclama, “Assim como a corça anseia pelas águas correntes, também minha alma anseia por ti, ó Deus!” (SI 42.1). O que se quer co mparar é apenas a intensidade do desejo. (Selwyn, p. 154, menciona a expressão semelhante, rugindo como leão[5.8], a qual não implica que o d em ônio seja um leão.) Recém-nascidos não conota a ideia de “recém-batizados” (como alguns têm alegado), pois (l) é preciso repetir que aqui, assim com o em outras passagens, Pedro fala de novo “nascimento” e não de “batismo”, e (2) os mandamentos para “deixar” e “desejar”, tal como se encontram no texto, são dirigidos a todos os leitores de Pedro em muitas igrejas diferentes, até mesmo aos que já eram crentes havia trinta anos. Além do mais, (3) “portanto” ou
“pois”, no v. 1, remonta a 1.22, “amai-vos uns aos outros”; assim, 2.1,2 é necessariamente 95
1PEDRO
à semelhança de bebês que anseiam por leite (com avidez e frequência) — um a metáfora facilmente entendida por qualquer pai ou mãe cujo sono tenha sido interrompido pelo choro de um bebezinho faminto por leite. Neste contexto, leite não simboliza o ensino elementar cristão (ao contrário de outra metáfora em ICo 3.2 e Hb 5.12,13, em que o leite é contrastado com carne ou alimento sólido), mas um nutriente profundamente desejado. Os leitores devem desejar esse leite espiritual puro. O verbo indica um desejo pessoal inte nso (observe seu uso em Sl 42.1 [LXX 41.2] em referência ao anseio por Deus; Sl 84.2 [LXX 83.3], onde designa o anseio pelos átrios do Senhor; tb. Fp 1.8; 2.26; 2Tm 1.4). Puro (adolos), quando aplicado a objetos como trigo ou vinho, tem o sentido de “puro, não adulterado” (MM, p. 10, oferece vários exemplos extraídos de papiros gregos), de modo que o leite espiritual aqui visado está livre de toda impureza. (Se esse “leite puro” é a palavra escrita de Deus — conforme defendido abaixo —, então esse adjetivo implica que as Escrituras estão livres de impurezas ou imperfeições, não enganarão nem desencaminharão seus leitores e não dirão nen hu ma mentira.) Espiritual (logikos), embora muitas vezes usado com o sentido de “razoá vel, racional”, pode significar “mental, apenas na esfera do pensamento, i.e., figurado, não literal” (cf. T. Levi 3.6 e Corpus Hermeticum 1.31, que falam de sacrifícios ou ofertas “espirituais” [não literais]). Parece que essa é a força do sentido de logikos em Rom anos 12.1, a únic a ou tra ocorrên cia da p alavra no Novo Testamento: “vosso culto espiritual”.Assim, aqui o termo parece ter o sentid o de “ansia r por leite puro, figurado (não literal)”.40 Mas o que é esse leite espiritual puro? Várias considerações contextuais favorecem uma referência à palavra escrita de Deus, as Escrituras (sejam lidas, sejam ouvidas, c f. Cl 4.16; lT m 4.13): ( l) a palavra de Deu s acabou de ser mencio nada nos três versículos anterio res (v. 23-25), e assim não é preciso introduzir no contexto nenhuma ideia nova; (2) dizer que a palavra de Deus é “viva” (v. 23) está em c onsonância não apenas com a ideia de qu e é gera dora de vida (v. 23), mas também com a ideia de que é doadora de vida e capaz de alimentar e sustentar a vida, capacitando os cristãos a crescerem “para a
dirigi do às mesmas pessoas a quem se dirig e o m anda men to de 1.22 — todos os membros das igrejas às quais ele escreve. 40A tradução “o leite puro da Palavra” (NASB [e BEP], cf. KJV) não parece ter base
em usos conhecidos de logikos e aparentemente se baseia em uma suposição equivocada de semelhança de sentido com a palavra cogna ta logos, “palavra”. 96
1PEDR O 2.1- 10
salvação” (v. 2); (3) a idéia de q ue a palavra de D eus alim enta esp iritu almente cond iz co m declarações em outra s passagens das Escrituras que deveríam ser conhecid as po r Pedro e seus leitores ( Dt 8.3; M t 4.4); (4) a pureza da palavra de Deus é um conceito veterotestamentário que eles também deveríam conhecer (Sl 12.6; 18.8; 119.96) e se encaixaria, melhor do que qualquer outra opção, na imagem de leite “puro”; (5) a ideia de “ansiar” pela palavra de Deus também é um conceito do Antigo Testamento, ideia expressa duas vezes com o mesmo verbo ( epipotheõ) usado por Pedro (Sl 119.20,131 [LXX 118.20,131]) (6) ler ou ouvir a palavra de Deus implica o processo de levar informações para dentro de si, algo mais diretamente representado pela metáfora de beber leite (levando-o para “dentro” do corpo) do que por outras atividades — tais como orar ou adorar — que mais claramente implicam a “exterio rização” de palavras de oraçã o ou louvor.41 Ao ingerir o puro leite espiritual, aqueles a quem Pedro se dirige crescerão para a salvação, isto é, rumo à maturidade cristã (“salvação” é usado com sentido semelhante em 1.5; v. comentário ali). Cresceré usado em outras passagens para designar o crescimento físico (Lc 1.80; 2.40) e espiritual (Ef 4.15; Cl 1.10; 2P e3.1 8). 3. Pois42 já provastes que o Senhor é bom [CNBB] constitui mais uma razão para o man dam ento de desejar o pu ro leite espiritua l. As palavras “que o Senhor é bom” é uma citação exata da LXX de Salmos 34.8 (LXX 33.9): “Oh! provai e ve de que o S enhor é bo m ”. (Pedro usa o m esmo verbo tam bém com o sentido de “provar”, mas em outro tempo verbal; em ambos os casos a palavra é usada como uma poderosa metáfora com o sentido de “vir a conhece r por experiência”; veja M t 16.28; Jo 8.52; H b 2.9; 6.4.)43 O contexto
4lBeare, p. 116, diz que o “puro leite espiritual” pode ser a eucaristia (a ceia do Senhor), mas, por causa do v. 3, é mais provável que seja uma referência ao p róp rio Cristo. Ele acertadamente rejeita “da Palavra” como tradução de logikos, mas não considera a possibilidade de que “pu ro leite espiritual” seja uma descrição metafórica das Escrituras, sem concretamente chamá-la de “a palavra”. (Veja abaixo uma posição alternativa sobre a relação com o v. 3.) 42A palavra grega é ei, muitas vezes traduzida por “se”, mas aqui (como em 1.17) o modo indicativo do verbo mostra que Pedro está pressupondo que o fato seguinte é verdadeiro; assim, “pois” [NTLH, CNBB, BEP] e “uma vez que” [VFL] são traduções adequadas (veja BAGD, p. 219,1.l.a; também III). 4,Kelly, p. 87, vê aqui uma referência à participação na ceia do Senhor, porque Salmos
34.8 foi usado em cultos de ceia mais tarde na história da igreja. Mas isso de modo algum 97
1PE D RO
do salmo incentiva o deleite no Senhor, pois ele diariamente atende às ne cessidades dos que nele confiam, além do fato de que o Senhor é “bom” ou “benigno” ( chrestos, também usado em Lc 5.39; 6.35; Rm 2.4; Ef 4.32), o que enfatiza seu hábito de conceder todo tipo de bênção para a vida de seu povo. comodas a bondade do (v. Senhor 3) pode ser um motivo pelasMas palavras Escrituras 2)? A(v.ligação é mais natural dopara que ansiar parece à primeira vista. Pedro está partindo do princípio de que as palavras das Escrituras são as palavras do Senhor, de modo que ler ou ouvir as Escrituras é o mesmo que escutar o Senhor falar, receber no coração suas palavras, que são boas e alimentam. Beber o leite da Palavra é “provar” repetidas vezes como ele é, pois, ao ouvir as palavras do Senhor, os crentes experimentam a alegria da comunhão pessoal com o próprio Senhor. Além do mais, essas palavras conduzem a seus “bons” caminhos para a vida (cf. SI 34.12-16, citado em lPe 3.10-12) e prometem sua “bondade” contínua em tempos de necessidade (cf. Sl 34.7-10 e 2Pe 1.4). É digno de nota que o “Senhor” de Salmos 34.8 é visto aqui como aquele a quem os crentes se achegam com fé e adoração (v. 4), a “pedra viva” (v. 4), o Senhor Jesus Cristo (v. 5): desse modo, o Senhor, fonte de deleite espiritual para os santos do Antigo Testamento, agora é visto na nova aliança como o Senhor Jesus Cristo, em quem nossa alma tem prazer.
2. P er m an e ce i em Cr isto — ju n t o s — co mo o n ov o t em pl o de D eu s (2. 4- 6)
4. Este versículo inicia um a nova seção (v. 4-10) em que Pedro faz extenso uso de figuras do Antigo Testamento para mostrar que os crentes do Novo Testamento (tanto judeus quanto gentios) são, de fato, um novo “povo de Deus” que passou a possuir todas as bênçãos do Israel do An tigo Testamento, mas em medida muito maior. Cheguem perto dele[NTLH] emprega um verbo (proserchomai)muitas vezes usado na LXX para designar a ação de “aproximar-se” de Deus, seja para ouvi-lo falar (Lv 9.5; Dt 4.11; 5.27), seja para buscar sua presença no tabemáculo, a fim de oferecer sacrifícios (Êx 12.48; 16.9; Lv 9.7,8; 10.4,5 etc.). Também é usado em Hebreus com o sentido específico de “aproximar-se” de subentende que Salmos 34.8 deveria ser usado dessa maneira nem que Pedro estava fazendo esse mesmo uso: com certeza o sentido srcinal do salmo não pode ter sido esse. Stibbs/ Walls têm razão ao assinalar “a referência explícita [de Pedro] à palavra e a ausência de
qualquer referê ncia ao sacrament o com o m eio adeq uado de nutriçã o espiritual” (p. 96). 98
1PED RO 2.1- 10
Deus e m adoração (H b 4.16; 7.25; 10.1,22; 11.6; 12.18,22). A escolha do term o por Pedro pode ter sido motivada pelo uso em Salmos 34.5 (LXX, “aproximai-vos dele”). Com essa expressão, Pedro deixa entrever, em um tema que será esclarecido mais adiante no período, que todos os crentes desfrutam agora do grande privilégio, reservado no Antigo Testamento apenas para os sacerdotes, de “aproximar-se” de Deus em adoração. Mas, em vez de se dirigir ao altar ou mesmo ao lugar santo no templo de Jerusalém, eles agora se dirigem “a ele”, em quem “habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (Cl 2.9). Embora algumas versões optem por um imperativo, “Cheguem perto dele” [NTLH], “Aproximem-se do Senhor” [TPCR], a forma verbal é na realidade um particípio, e sua relação com o verbo principal no versículo 5 tem de ser determinada pelo contexto. E melhor entender o verbo no versículo 5 como indicativo (“estais sendo edificados”; veja análise abaixo), e, por isso, a relação entre os versículos 4 e 5 é bem expressa pela NASB, “E, achegando-se a ele, [...] estais sendo edificados” (veja NIV, “Quando vos achegais a ele [...] estais sendo edificados”, o que c apta a na ture za simu ltâne a de “achegar-se” e “ser edificado”, mas perde de vista a ideia de ação contínua do particípio presente). Isso confere o seguinte sentido: “A medida que con tinu ame nte vos achegais a Crist o (com fé inicial e, depois, co m ado ração e oração), vós mesmos estais sendo edificados em uma casa espiritual”. O verbo “ser edificado” tem o sentido de “estar sendo edificado, estar crescendo”, quando se refere à edificação da igreja: Atos 9.31; ICoríntios 8.1; 10.23; 14.4,17; ITessalonicenses 5.11. A devoção pessoal a Cristo por me io da palav ra tamb ém aumenta a integração coletiva na igreja. Cristo é chamado pedra viva — uma metáfora ousada (pois pedras não têm vida), mas já sugerida p or Jesus qu ando aplicou Salmos 118.22 (“a pedra que os construtores rejeitaram, essa se tornou a pedra angular”) a si mesmo (Mt 21.42; Mc 12.10; Lc 20.17;,cf. a declaração de Pedro em At 4.11). Pedro está em via de citar três profecias do Antigo Testamento que falam de “pe dra ” e aplicá-las a Cristo (Is 28.16 n o v. 6; Sl 118.22 no v. 7; Is 8.14 no v. 8), e as metáforas aqui usadas por ele devem ser entendidas à luz desses versículos,4-1 O fato de que Cristo é a pedra viva mostra de imediato sua superioridade em
J4N. Hillyer, “‘Ro ck-stone’ ima gery in 1 Peter”, TynB 22 (1971), p. 58-81, analisa extensamente os antecedentes veterotestam entários e extrabíblicos de ssa metáfora n o ju daísmo. C. F. D. Moule, “Some reflections on the ‘stone tesdmonia’ in relation to the name Peter”, N T S 2 (1955-1956), p. 56-9, pro põe que aqui o tema pode estar ligado ao própri o
nome Pedro (“pedra”). 99
1PEDRO
relação ao templo veterotestamentário feito de pedras sem vida e lembra os cristãos de que eles não podem desejar aquela velha maneira de se aproxi mar de Deus , pois a maneira atual é mu ito melhor. Embora rejeitada pelos homens,a pedra (i.e., Cristo) é eleita e preciosa
para Dem. “Rejeitado”, “eleito” e “precioso” são palavras extraídas do vocabulário da LXX (Sl 118.22 e Is 28.16). A oração contrasta a avaliação que o mundo faz de Cristo com a avaliação feita por Deus e adverte os leitores de que, em bo ra achegar-se a Cris to seja ficar do lado de D eus, iss o significa enfrentar a oposição de “homens” (aqui Pedro fala de “homens” em geral, permitindo uma aplicação mais ampla às igrejas do mundo gentílico, ao passo que Jesus havia aplicado o termo especificamente a judeus incrédulos: M t 21.45). O term o eleito ecoa o uso petrino do mesmo term o aplicado aos cristãos em 1.1 (veja com entári o ali). Preciosa significa “tida em elevado apreço ou estima”, termo apropriado para descrever a avaliação que D eus faz de seu Filho e tamb ém para ind icar co mo os crentes sempre devem estimar seu Senhor. 5. A expressão como pedras vivasinclui de maneira notável os leitores de Pedro na metáfora da “pedra”, agora retratando não apenas Cristo, mas tam bém os cristãos, como “pedras” que vivem (cfi E f 2.19-22; IC o 3.10-15; Hb 3.2-6; e M t 16.18 — passagens que co mp aram a igreja a um prédio). O texto grego começa o versículo com duas palavras, as quais querem dizer “até vós mesmos” (como pedras vivas estais sendo edificados em uma casa espiritual), enfatizando ainda mais o fiito surpreendente de que esses humildes crentes tam bém se tor nar am , a exemplo de Cristo, pedras vivas preciosas para Deus . Essas “pedras humanas” estão sendo edificadas como casa espiritual. A palavra “casa” (oikos) é muitas vezes empregada em referência à casa de Deus, o templo de Jerusalém (lRs 5.5; Is 56.7; Mt 12.4; 21.13; Mc 2.26; Lc 11.51; Jo 2.16), e a menção do sacerdócio, dos sacrifícios e do “achegar-se” (a Deus em adoração; veja comentário sobre o v. 4) — tudo nessa mesma frase — to rna quase certo q ue Pedro tem em mente a casa ond e Deus habita, seu templo (cf. tb. lT m 3.15). Desse mod o, a NE B [e a NTLH] traduz corretamente: “construção de um templo espiritual” (veja Phillips, “edificados casa espiritual de Deus”). (Veja também abaixo a nota adicional.) Assim, Pedro motiva os cristãos a pensarem em si mesmos como pedras vivas do novo templo de Deus. Mas qual figura corresponde a essa metáfora? Talvez tentemos nos imaginar transformados, pensando em nós
mesmos como pedras semelhantes a blocos, mas que receberam vida, sendo 100
1PEDRO 2.1-10 ajustadas na forma de um grande templo retangular. Mas essa figura não ajuda a entender como os cristãos podem ser tanto as pedras do templo quanto os sacerdotes que oferecem sacrifícios. E melhor mudar nossa figura do templo, de maneira que não pensemos mais em um edifício retangular feito de pedras,mutantes mas em do umpovo “edifício” amorfo que continuamente as dimensões reunido de Deus. A beleza desseassume novo e vivo “tem plo feito de pessoas” não mais deve se r our o e joia s preciosas, mas a beleza imperecível da santidade e fé na vida dos cristãos, qualidades que refletem bem m elho r a glória de D eus (cf. lP e 3.4; 2 Co 3.18). A palavra espirituais (pneumatikos), quando aplicada a “casa” e a “sacrifícios”, não significa “imateriais” (pois os crentes não são pessoas “imateriais”!), mas, sim, “influenciados ou dominados pelo Espírito Santo, de cujo caráter el es com pa rtilha m” (Rm 1.11; IC o 2.13,15; 12.1; Gl 6.1; Cl 3.16). Os cristãos são um novo templo de Deus sob a influência e o poder do Espírito Santo. O verbo principal dessa oração pode estar no modo imperativo (“sede edificados”, com o na RSV e na NE B [cf. RVP; cf. tb. N T L H , BJ, CN BB ]) o u no indicativo (“sois edificados”, como na N1V, NASB e KJV [cf. A21, ARA]). Uma vez que as formas verbais seriam NIV, NASB e KJV [e iguais em am bos os casos, o sentido te m de ser decidido com base no contexto. O indicativo é preferível aqui por duas razões, (l) E difícil ter um a ideia coerente daquilo que Pedro pretendia que as pessoas fizessem em resposta a um mandamento para “serem edificadas”.45Mas a declaração factual, “sois edificados”, faz perfeito sen tido e incentivaria os leit ores a valorizarem seu estado espiritual como “pedras vivas”. (2) Para dar sentido ao mandamento “sede edificados”, a NEB e a RSV [e RVP, NTLH, BJ, CNBB] têm de retroceder a força imperativa principal ao particípio do versículo 4 e traduzi-lo por algo com a ideia de “chegai-vos a ele”. Mas, se o mandamento principal de Pedro era chegar-se a Cristo (e, desse modo, ser edificado), isso teria sido transmitido com muito mais cla reza com o verbo no imperativo. (Observe o contraste com os v. 1,2, em que a força principal não está no particípio “deixando”, mas no imperativo “desejai”.)
450 verbo oikodomeisthe apresenta-se sob uma forma que pode ser passiva ou média. Mesmo sendo voz média, dificilmente teria o sentido de “vos edificais” (NASB marg.; comp. BJ, CNBB, BEP), que, por amor à clareza, exigiría um pronome reflexivo (veja ICo 14.4; lTs 5.11), mas significaria “edificais para benefício próprio ou com vosso intenso envolvimento”, sentido este que mal se distingue da voz ativa. (No NT não há
nenhuma ocorrência indiscutível desse verbo na voz média.)
101
1PEDRO
Assim, esses versículos conferem ânimo no seguinte sentido: “À medida que (continuais) vos achegando a Cristo (em adoração, oração e louvor), sois (contin uamente) edificados como templo espiri tual, um lug ar em que Deus habita com plenitude cada vez maior”. sacerdócio santo,expressão que com atuando binaEles duastambém palavrasestão da LXX de como Êxodo 19.6, em que Deus havia prometido que, se os israelitas fossem fiéis, seriam para ele “um sacerdócio real e uma nação santa” (cf. Êx 23.22; Is 61.6). Como sacerdotes, os crentes não oferecem os sacrifícios de animais da antiga aliança, mas sacrifícios espirituais,os quais, em outras passagens, o Novo Testamento identifica como; a oferta de nosso corpo a Deus, para seu serviço (Rm 12.1); a entrega de ofertas que viabilizavam a disseminação do
evangelho (Fp 4.18);deo nossas cântico posses de louvor 13.15); do variados bem e o compartilhamento (Hb (Hb 13.16). Essesa prática exemplos nos incentivam a pensar que qualquer coisaque fazemos para servir a Deus pode ser vista como “sacrifício espiritual” aceitável a Deus,um aroma suave que sobe continuamente a seu trono e lhe dá prazer. Com essa perspectiva neotestamentária do “sacrifício”, todas as passagens do Antigo Testamento sobre o tema podem ser lidas sob uma nova configuração. “Sacrifícios espirituais” têm de ser oferecidos por meio de Jesus Cristo, pois só por meio dele os cristãos são habilitados a ser sacerdotes para Deus — ou a fazer qualquer coisa agradável aos olhos de Deus. Assim, este versículo apresenta uma declaração inequívoca sobre a doutrina do “sacerdócio dos crentes”.46 Visto que todos os que se chegam a Cristo são agora um sacerdócio santo,continuamente capazes de “se achegar” à presença do próprio Deus e oferecer sacrifícios espirituais aceitáveis a Deus, por meio deJesus Cristo, já não pode existir um sacerdócio elitista com pre tensões de acesso especial a Deus ou de privilégios especiais na adoração ou na comunhão com ele. Tentar perpetuar tal “sacerdócio” distinto dos demais crentes é tentar manter uma instituição veterotestamentária que Cristo aboliu de uma vez por todas. Cada cristão pode agora, sem exceção, “aproximar-se com confiança do trono da graça” (Hb 4.16), e a adoração coletiva dos cristãos sempre deve ser um maravilhoso ato de entrada na presença do próprio Deus. 46J. H . Elliott, “Th e elect and the h ol y”,N o v T S u p 12 (Leiden: Brill, 1966), gasta bas tante tempo tentando negar (mas sem convencer) que essa passagem ensina o sacerdócio universal dos crentes, defendendo que as idéias de eleição e santidade são em si mesmas
suficientes para explicar os temas “sacerdotais” de 2.4-10.
102
1PED RO 2. 1- 10
6. Pedro ago ra sustenta sua afirmação dos versículos 4 e 5 com várias citações do Antigo Testamento. Ele declara Por isso, a Escritura diz, ind ican do que aquilo que o Ant igo Testamento disse era prova conclus iva de um argumento e podia receber todo crédito. Escritura é tradução de graphê, palavra empregada como termo técnico pelos autores do Novo Testamento para se referir aos escritos do nosso Antigo Testamento canônico (as 51 ocorrências da palavra no Novo Testamento se referem às escrituras do An tig o Testamento, e nen hu ma vez o term o é usado para se referir a qualq uer escrito dos apócrifos nem a qualquer outro texto fora da Bíblia; no entanto, em 1Timóteo 5.18 e 2Pedro 3.16, alguns escritos do Novo Testamento são incluíd os co m o Anti go Testamento d entro dessa catego ria).47 A primeira citação é de Isaías 28.16, em que Deus promete que rejeitará os líderes rebeldes de Jerusalém e, para servir de “fundamento seguro”, estabelecerá uma pedra angular, eleita e preciosa. O fato de que seria a pedra angular, a primeira pedra assentada como esquina do “fundamento” (Is 28.16), indica que a profecia srcinal era uma predição do início de uma nova obra a ser realizada por Deus, a qual estaria em oposição aos líderes rejeitados por ele (Is 28.14,15,17-22). O fato de que a pedra é assentada como pedra fundamental em Sião, local do templo de Jerusalém, dá a entender que essa nova obra substituiría o templo de Jerusalém, algo que Pedro já deixou claro nos versículos 4 e 5. (Acerca das palavras eleita e preciosa, veja os comentários no v. 4.) Ao incluir nele [IBB, TB; nela, A 2l] 48ju nto a quem crer,Pedro acompa nha o texto da LXX (maioria dos manuscritos), não o texto hebraico, mas, assim que se entende que essa “pedra” é uma pessoa, a ideia não é estranha
47S elw yn defende (p. 163) que aqui aexpressãocn graphê significa necessariamente “por escrito”, em vez de “na Escritura”, porque, quando querem se referir às Escrituras, os autores do N T empregam o artigo definid o antes de graphê. Mas a base do argumento de Selwyn está incorreta: graphê sem artigo definido quer dizer “Escritura” em João 19.37; Romanos 1.2; 16.26; 2Timóteo 3.16; 2Pedro 1.20. Além do mais, em outras 50 ocor rências no NT graphê sempre significa “Escritura”, e isso quer dizer que qualquer outro sentido exigiría que o contexto apresentasse indícios contrários muito fortes — mas aqui as citações logo a seguir são claramente da “Escritura” do AT e não apenas algum outro “escrito”. Por fim, o artigo é muitas vezes omitido em expressões com preposição comuns ou estabelecidas (BDF, seção 255). 48N o grego, “pedra”, luthos, é substantivo masculino, o que permite ler o pronome como uma referência tanto a Cristo quanto a pedra. Como Cristo é a própria pedra, tra
duzir por “nele” ou “nela” não afeta o sentido. (N. do T.) 103
1PEDRO
ao contexto. Paulo tam bém inclui “nele” quand o cita a mesm a passagem em Romanos 9.33 e 10.11 e, de igual modo, aplica a palavra a Cristo. O fato de que “quem nele crer” não será desapontadoindica que para os que confiam nessa pedra angular segura, o próprio Cristo, não haverá decepçã o ne m constrang imento (ning uém lhes provará que creram em vão ). Nota adicional: O lugar de habitação de Deus (2.5)
A longa história do lugar da habitação de Deus no meio de seu povo termina no Novo Testamento com o próprio povo de Deus. Sob a forma de coluna de nuvem durante o dia e de coluna de fogo à noite, a glória de Deus, demonstração visível de sua presença, havia conduzido o povo para fora desobEgito (Ex 13.21,22). glória de Deus haviae,enchido tabernáculo a liderança de MoisésA(Êx 33.8-13; 40.34-38) tempos o depois, encheu o templo de Salomão (lRs 8.10,11). Mas, no tempo de Ezequiel, havia se afastado do templo em razão dos pecados do povo (Ez 10.4,18,19; 11.23). Com referência ao templo construído após a volta do exílio, Deus prometeu que “a glória deste novo templo será maior que a do primeiro” (Ag 2.9), mas a glória divina nunca chegou a descer para enchê-lo como havia acontecido sob a liderança de Salomão. Os fiéis em Israel entãodeaguardaram quatrocentos anos para obuscais cumprimento da profecia Malaquias;mais "... dederepente o Senhor, a quem [...] virá ao seu templo” (Ml 3.1). O cumprimento dessa profecia foi testemunhado pelo justo Simeão e por Ana, quando Maria e José levaram o menino Jesus ao templo de Jerusalém (Lc 2.22-38), o Salvador que era o “Messias, o Senhor” (Lc 2.11, NASB marg. e NIV marg. [NVI marg.j). A presença de Jesus foi a glória maior daquele templo (Lc 19.47,48), mas Jesus também o julgou e predisse sua destruição (Jo 2.13-17; Lc 21.5,6), pois seu próprio corpo era o templo maior e mais perfeito de Deus (jo 2.19-21 ), aquele em quem “foi da vontade de Deus que nele habitasse toda plenitude” (Cl 1.19). Por isso, João declara sobre a vida de Jesus que “o Verbo se fez carne e habitou [literalmente, ‘viveu em tenda’ ou ‘tabernaculou’] entre nós, p leno de graça e de verdade; e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai” (Jo 1.14). No Novo Testamento, o próprio Jesus é o novo e melhor templo de Deus, lugar da habitação de Deus entre os homens. No entanto, depois do Pentecostes, o lugar da habitação de Deus não
é apenas o próprio Jesus, mas também o seu povo. Ele promete estar “no 104
1PEDRO 2.1-10 meio” do povo (Mt 18.20), estar sempre com ele (Mt 28.20), e diz que ele mesmo, junto com o Pai e o Espírito Santo, habitará dentro de seu povo 0o 14.17,23). De maneira que agora, na era da igreja, o povo de Deus éo verdadeiro templo de Deus, lugar onde Deus habita. Quando Cristo voltar e houver novos céus e uma nova terra, o templo de Deus será a terra toda, pois a glória de Deus, irradiada do trono de Deus na nova Jerusalém, encherá toda a terra, e todas as nações andarão à luz da glória de Deus (Ap 21.11,23-25; 22.5; SI 72.19). Então, Deus será Rei sobre toda a terra (Zc 14.9), e a terra toda virá adorar perante Deus (Is 66.23). Numa antecipação desse grande apogeu de toda a história, agora a igreja recebe a tarefa de declarar a glória de Deus entre todas as nações (lPe 1,9; cf. Sl 96.13; 108.5; Mt 5.14-16).
a Os incrédulos rejeitam Cristo e tropeçam (2.7,8) 7. Pedro coloca seus leitores na categ oria de “aqueles qu e nele cre em” (v. 6 [IBB, TB]) e conclui que, assim, eles “não serão envergonhados”, mas, pelo contrário, com a pedra angular, em quem confiam, partilharão da condição de “eleita e preci osa”; em outras palavras, para vós, os que credes, ela nã o é ver gonh a, mas “ho nr a”. Esse contras te indica u ma m elho r traduç ão da prime ira oração do versículo 7: “A vós, pois, que credes, é honra”. A tradução A vós, portanto, que credes, ele é precioso da RSV (baseada na KJY inesperadamente seguida pela NIV e, pelo que parece, também pela NASB) é uma interpretação bastante improvável do texto grego e criticada por quase todos os principais comentaristas.49 A oração no grego não con tém ne nh um verbo e diz li teralmente: “ Portanto, a hon ra a vós, os crentes”. O verbo “ser” pode estar subentendido (como é comum em orações gregas), de mod o que o sentid o seria este: “Portanto, a hon ra é para vós, os crentes”. Mas a tradução da RSV exi ge que se interprete time como “pensamento de honra ou preciosidade”, resultando no seguinte sentido: “Portanto, o pensamento da preciosidade (de Cristo) é para vós, os crentes”. N o entanto, a palavra time nu nca adquire es se signific ado em suas 41 ocorrências no No vo Testame nto (veja, e.g., Jo 4.44; Rm 2.10; 9.21; 13.7; lC o 12.23; 2Tm 2.20; lP e 3.7; 2Pe 1.17; e Bigg, p. 131, diz que a tradução “preciosidade” “dá a time um sentido
49Beare, por exemplo, diz que “é impossível” fazer sentido da palavra hytnin,“vós”, exigida pela tradução“para vós ele é precioso” (p. 124); veja B ig g, p. 131; Selwyn, p. 164;
Huther, p. 249; Blum, p. 230. [A objeção também é válida para traduções que encerram a ideia de “ela é preciosa”. (N. do T.)] 105
1PEDRO
que a palavra não pode ter”).50 N o entant o, a trad ução “a vós que credes é (a) honra” cria um contraste que se poderia esperar como consequência do fato de que os crentes “não serão envergonhados”. Um possível motivo para a tradução da RSV é a suposta impropriedade de dar honra aos cristãos em vez de dá-la a Cristo, mas tal noção não é estranha no contexto (em que a posição de honra dada por Deus aos crentes é contrastada com a desonra e a vergonha infligidas a incrédulos hostis, v. 8,9,15,20; cf. a análise de “louvor” em lPe 1.7; observe tb. lPe 3.16; 4.5,13-16,18; 5.6,10). Em contrapartida, para os descrentes, Cristo é, como Salmos 118.22 e Isaías 8.14 predisseram, a pedra que os construtores rejeitaram, pedra de tropeço e rocha que causa a queda (v. 8). Em M ateus 21.4 2 e Atos 4.11, os “construto res” eram os líderes judeus que rejeitaram Cristo, mas agora Pedro escreve com maior abrangência sobre todos os que o rejeitam. Não há necessidade alguma de ver um a mistura ou mudança de metáforas na expressão de Pedro a [pedra] principal da esquina [ARC; “a principal, a pedra angular”, A21; gr., kephalêngõnias], uma vez que kephalê,“cabeça”, pode ter o sentido de “ponto extremo, extremidade mais distante” e também de “ponto mais alto”.51 Esse termo se encaixa bem no contexto, pois oferece o mesmo sentido de “pedra angular” (do alicerce) da citação anterior, de Isaías 28.16, e significa que aqui certamente não é necessária a tradução adotada pela NIV, “capstone” (“pedra que fica no alto, por cima”). Além do mais, no versículo seguinte, a pedra em que as pessoas “tropeçarão” e será causa da “queda” não pode estar em um ponto elevado, mas tem de ser uma pedra de alicerce que está no chão. O objetivo da citação é mostrar que a exaltação de Cristo, pela qual Deus lhe deu o lugar de maior proeminência, colocando-o como pedra principal, a pedra angular, provou que aqueles que rejeitaram C risto esta vam totalmente errados. 8. Pedro agora cita Isaías 8.14, passagem seg und o a qual o Senho r nã apenas se tornará um “santuário” para aqueles que o seguem, mas também time como predicado e suprir o sujeito “ele”, 50É ainda mais injustificável interpretar o que de novo resulta no sentido “ele é precioso”. Se fosse um predicado, time não seria precedido pelo artigo definido, e seria necessário exprimir o sujeito “ele”. 5'Quanto a esse sentido, presente emkephalê (versão grega) e emrãs (no hebraico), palavras usadas em Salmos 118.22 e citadas por Pedro, veja, por exemplo, IReis 8.8 e 2Crônicas 5.9; veja também W Grudem, “Doeskephalê (‘head’) mean ‘source’ or ‘autho
rity over’in Greek literature? A survey o f 2, 33 6 examples”, TrinJ 6, N S (1985), p. 43-5, 51. 106
1PED RO 2. 1- 10
dem onstrará ser “pedra de trope ço e [...] roc ha de escând alo” aos desobedientes das “duas casas de Israel”. Visto que Isaías 8 diz que o próprio Senhor é a pedra, este versículo é outro exemplo de quão prontamente os primeiros cristãos aplicaram a Cristo muitas passagens do Antigo Testamento que falavam sobre “o Senhor” (Yahweh ou Jeová). Pedro então acrescenta eles tropeçam napalavra,por serem desobedientes;mas para isso tambémforam destinados. O propósito de Pedro com esse comentário é consolar seus leitores. Ele mostrou que a rejeição de Cristo e até mesmo a incredulidade hostil que de todos os lados confrontava esses cristãos foram preditas por Deus muito tem po antes no Antigo Testamento (v. 7,8a). Agora ele diz que não apenas foram preditas, mas também planejadas por Deus (v. 8b) e, portan to, estão dentro do escopo de seu plan o soberan o e sábio para o mundo. A incredulidade não deve aterrorizar cristãos contra osequais é dirigida, pois Deus, Paihostil daqueles cristãos, mantémostudo sob controle dará um fim a ela quando considerar melhor. Por mais surpreend ente que possa pa recer, até o tropeço e a desobediência de incrédulos foram destinadospo r Deus. Tropeçarpode ter o sentido literal de desequilibrar-se com algo e cair (Jo 11.9,10), mas aqui tem um sentido mais figurado, “rejeitar algo/alguém por sentir-se ofendido” (BAGD, p. 716), ou talvez “cair e perder-se do caminho de Deus” (cf. a mesma palavra em Rm 9.32; 14.21; e o substantivo cognato em Rm 14.13; ICo 8.9). Embora ser desobediente(apeitheõ) muitas vezes signifique apenas “não obedecer”, pode também ter a conotação de oposição ativa ou ferrenha à pa lavra de Deus (cf. At 14.2; 19.9; Rm 2.8; 10.21; 11.30,31; 15.31; Hb 3.18; lPe 3.20; 4.17; tb. Hort, p. 122, que diz: “De modo geral [...] a acepção bíblica é mais bem expressa com ‘rebelar-se’ ou ‘ser rebelde’”). Embora alguns defendam que esse ter mo pode significar apenas “descrer, ser incré dulo” (especialmente e m jo 3.36), esse sentido não é ob rigatório em nen hum a das ocorrências da palavra.52Assim, porque desobedecem à palavra (RSV) significa não apenas que 52BA GD aceita o sentido “não crer” em João 3.36; Atos 14.2; 19.9; Romanos 15.31, mas acrescenta que tal sentido é “muito questionado” e “não é encontrado fora de nossa literatura” (p. 82). Além do mais, deve-se assinalar que, no NT, “desobedecer ao evangelho” pode significar não apenas “não crer”, mas realmente “desobedecer”; isto é, recusar-se a aceitar a ordem de se arrepender e crer em Cristo (observe hypakouõ, “obedecer”, com esse sentido em 2Ts 1.8; tb. At 6.7; Rm 10.16). Joio 3.36, “quem, porém, mantém-se em desobediência ao Filho”, é facilmente compreensível com esse sentido, em especial diante da tendência de João de considerar a obediência um indício da fé verdadeira e a desobe
diência um indício da falta de fé (ljo 2.4-6,9; 3.6-10; 4.8,20,21; 5.18). 107
1PEDKO
se recusam a crer no evangelho — embora certamente inclua isso —, mas também que levam uma vida de desobediência e rebelião gerais contra Deus. (Esse sentido mais amplo de “desobedecer à palavra” também se harmoniza melh or co m o c ontex to das citações do Ant igo Testamento.) A relação entre “tropeçar” e “desobedecer à palavra” tem de ser estabe lecida a partir do sentido da passagem, pois “desobedecer” é um particípio presente, que possibilita várias relações lógicas. A tradução que simplesmente afirma que os dois acontecimentos são concomitantes (“eles tropeçam en quanto estão desobedecendo à palavra”) não é errada e, sem dúvida alguma, apresenta uma parte do sentido (é comum particípios presentes indicarem uma ação concomitante com o verbo que modificam). Mas, uma vez que aqui Pedro provavelmente está afirmando mais do que apenas os dois fatos, parece melhor a tradução da RSV, tropeçam, porque desobedecem à palavra (tb. N VI, NASB). Ela indica que m uitos qu e rejeitam C risto agem assim em virtude da desobediência moral a Deus na vida. Uma tradução mais literal de mas para isso também foram destinadosé “para o que também foram destinados”. “O que” (ho) podería se referir ao tropeço, à desobediência ou a ambos. Uma vez que as ações estão interliga das e não foi uma ação, mas, sim, as pessoas (“eles”) “que foram destinadas”, não faz quase nenhuma diferença para o significado da passagem qual deles escolhemos. Não obstante, esse pronome relativo neutro singular (ho), sem outra especificação e sem nenhum substantivo neutro específico que possa servir de antecedente, é mais naturalmente interpretado como referência a toda a ideia anterior — o tropeço devido à desobediência à palavra. (Vários comentaristas pressupõem que “o que” se refere necessariamente ao verbo principal, “tropeçar”, em vez de modificar o particípio “desobedecendo”, mas a gramática grega não exige isso.) A palavra destinados é tithimi,termo empregado em outras passagens no sentido da ação divina de designarou predestinar um acontecimento ou situação em particular com grande antecedência (At 1.7; Rm 4.17; lTs 5.9; Hb 1.2; pro vavelmente também Jo 15.16; At 13.47), ou de colocaralguém em certa situação, não com muita antecedência, mas em determinado ponto no tempo (veja Mt 22.44; 20.28; Rm 9.33; IC o 12.18,28). Aqui a palavra é usada na forma passiva (“foram destinados”) sem mencionar Deus, mas refere-se claramente à atividade divina (a exemplo do que fez em lT m 2.7; 2T m 1.11; e Hb 10.13). Pedro a em prega em contraste direto com o uso no versículo 6: ali Deus estabelece(“Estou colocando ”, RSV [ponho, A2l]) Cristo como pedra angular eleita em Sião, mas
aqui Deus estabelece(ou “destina”) os rebeldes ao tropeço e à desobediência. 108
1PEDRO 2.1-10
A RSV (junto com as principais traduções) apresenta corretamente essa designação para a obediência como um acontecimento completado no passado {foram destinados),pois esse é o significado do aoristo do indicativo aqui. Exegeticamente é impossível afirmar que não foram as pessoas, mas, sim, o fato de tropeçar que Deus designou como castigo para a desobediên cia (como entende Bigg, p. 133), pois o verbo está no plural {“elesforam designados”), e o sujeito é necessariamente as pessoas que estão descrendo (v. 7), tropeçando e desobedecendo (v. 8). O momento dessa destinação não é especificado, mas em outras passa gens bíblicas que ta mbém trata m de pre destinação ela ocorre antes da criação, ou “antes da fundação do mundo” (Ef 1.4; cf. 2Pe 2.3; Jd 4; At 13.48; Rm 8.29,30; 9.14-24). Assim, o sentido do texto é que aqueles que rejeitam Cristo e desobe decem à palavra de Deus também foram destinados para isso por Deus. Para nós, tal ensino das Escrituras nunca é fácil, mas a nota a seguir pode ajudar um pouco a compreender o assunto.
Nota adicional: Eleição e reprovação nas Escrituras (2.8) (l) Essa passagem deixa em aberto, para os incrédulos, a possibilidade de arre pendimento e fé salvadora em Cristo. Os três verbos cruciais estão no tem po presente e, literalmente, podem ser assim traduzidos: “Mas para aqueles que no presente não estão crendo [...] que no presenteestão tropeçando porque no pre sente estãodesobedecendo à palavra, para o que também foram destinados”. E claro que isso não significa que chegarã o à fé salvadora, mas tam bém não sig nifica que sua condenação etem a já está ordenada. An tes, o texto afirma que a rebelião e a desobediência no presente foram ordenad as po r Deus e não indica se elas continuarão por toda a vida. Aliás, o texto não poderia indicar que elas seguiríam po r tod a a vida, pois Pedro af irma de mo do inequ ívoco a esperança de que muitos desses incrédulos chegarão à fé (2.12; 3.1,15; 2Pe 3.9). (2) Apesar disso, o texto não nos perm ite co nc lui r que, no final, to dos ser ão salvos.53 Pedro reco nhe ce co m b astante clareza que haverá uma
53Hort (p. 124) chega a esta conclusão: “Se era um pensamento surpreendente que o próprio Deus os havia designado para tropeçar, era em última instância o único pensa mento satisfatório, pois dessa maneira tinha-se a segurança de que estavam em suas mãos e sob seus cuidados para sempre”. Isto é afirmar quase exatamente o contrário do que Pedro diz: neste versículo ele fala de “destinar” para a desobediência, não de predestinar
para a salvação final. 109
1PEDRO
condena ção definitiva para todos os que persist em na incr edulida de (4.5,17; 2Pe 2.1,3,4,6,9,12,17,20,21; 3.7,16). (3) Não parece possível escapar da conclusão de que aquilo que o texto afirma (os incrédulos foram “destinados” à presente desobediência) também implica que toda desobediência que tragicamente persiste até o fim da vi da (e eternidade adentro) foi “destinada” por Deus (cf. At 4.27,28; Jd 4; Gn 45.5 com 50.20; Êx 10.20 com 8.15; 2Sm 16.11; At 2.23; Rm 9.17-23; 11.7; 2Ts 2.11). (4) Podemos objetar que, em se tratando de Deus, isso não nos parece moralmente certo, embora pareça ser o sentido inevitável do texto. A única resposta que as Escrituras apresentam a ess a objeçã o é nã o respond er a todas as nossas perguntas sobre “como” ou “por que”, mas apenas apontar para o fato de que, em última instância, até a condenação de incrédulos resultará em maior glória para Deus, no louvor de sua justiça, poder e misericórdia para aqueles a quem ele demonstra misericórdia (Rm 9.14-25). Assim, Deus pode ordenar algo que em si mesmo lhe seja desagradável porque sabe que, no final, isso trará um bem maior (a morte de Cristo é o exemplo supremo disso). Quando não conseguimos entender plenamente como isso é possível, devemos simplesmente permanecer em silêncio diante de nosso Criador e aguardar uma compreensão mais completa na eternidade (Rm 9.19,20; Jó 38.1—42.6). (5) Temos de observar que, conquanto as Escrituras estejam dispostas a afirmar que, em última instância, é Deus quem “destina” ações injustas (veja referências bíblicas no ponto [3] acima), a culpa por tais ações sempre é atribuída às criaturas morais (homens e anjos) que por vontade própria resolvem praticar o mal; a culpa nunca é atribuída a Deus (cf. Jó 1.22). Se indagarmos como Deus pode “destinar” que algo aconteça por meio da ação espontânea de suas criaturas, ao passo que ele mesmo permanece isento de culpa (e não é o “autor” do pecado no sentido de, como pessoa, praticar o mal de forma concreta), então estamos próximos das perguntas de Paulo em Romanos 9.19: “Por que Deus ainda se queixa? Pois, quem pode resistir à sua vontade?”. Contudo, aqui as Escrituras não nos dão resposta alguma, a não ser dizer: “Mas quem és tu, ó homem, para argumentares com Deus?” (Rm 9.20).54 54Observe a análise muito útil no l ivro 1, cap. 18, de John Calvin [João Calvino], Institu tes o f the Christia n religion, intitulado “God so uses the works of the u ngodly, and
so bends their minds to carry out his judgments, that he remains pure from every stain”
110
1PEDRO
2.1- 10
Portanto, se nosso entendimento do texto sempre nos leva a culpar a Deus pelo mal e não a nós mesmos (algo inconcebível nas Escrituras) ou faz que nos envolvam os em “discussões sem pro pósito a lgu m” (lT m 1.6), que não edificam, então podem os ter cer teza de q ue nossa interpretação ou aplicação do texto é contrária a seu pro pósito srcin al. (ó) Eleger alguns para a vida eterna e ignorar outros nunca é visto da mesma maneira nas Escrituras. A eleição para a salvação é vista como motivo de alegria e louvor a Deus, que é digno de ser louvado e de receber todo crédito pela nossa salvação (veja lPe 1.1-3; Ef 1.3-6). Deus é visto como alguém que toma a iniciativa de nos escolher para a salvação e tem prazer em assim fazê-lo. Mas a “reprovação” (ignorar aqueles que não são escolhi dos e co m justiça deixá-l os em sua rebelião) é vista com o motivo de tristeza para Deus, não de prazer (observe Ez 33.11, e cf. a tristeza de Paulo em Rm 9.1,2), na qual a cul pa sempre é atribuída a homen s ou anjos que se rebelam e não a Deus 0o 3.18,19; 5.40). (7) O propósito de Pedro com esse texto era consolar os cristãos em meio à perseguição perpetrada por incrédulos hostis (veja acima). Hoje esse texto também pode ser bem aplicado (à semelhança de Rm 8.28 e lPe 1.7) por qualquer cristão subm etido a maus tratos por não cristãos (observe a resposta de Davi quando Simei o amaldiçoou em 2Sm 16.10-12).
b. Mas estais unidos com Cristo pa ra serdes abençoados como o verdadeiro povo de Deus (2.9,10) 9. Pedro reto rna ao deta lham ento das bênçãos destinadas a seu s leitores. Mas vós — em contraste com aqueles que desobedecem — sois raça eleita[ARA]. A palavra eleita pode po r si mesma indicar uma p articipação nas bênçãos do povo “eleito” de Deus no Antigo Testamento (veja a análise dessa palavra em l.l), bem como uma participação na condição privilegiada de Cristo, a pedra “eleita” (lPe 2.4,6). Mas quando “eleita” faz parte da expressão raça eleita, a alusão a Israel, raça que Deus escolheu como sua, é inevitável (veja [Deus usa as obras dos ímpios e lhes dobra a mente para executarem os juízos divinos de tal modo que ele permanece limpo de toda mácula] (tradução para o i nglês F. L. Battles [Philadelphia: Westminster, 1960], vol. 1, p. 228-37), com análise de muitos outros exemplos bíblicos [edições em português:As institutas, tradução de Waldyr Carvalho Luz (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), 4 vols.; A instituição da religião cristã, tradução de Carlos Eduardo Oliveira; José Carlos Estêvão (São Paulo: UNESP 2008), 2 vols.]. Sobre Romanos 9.1-23, veja John Piper, The justification o f God: an exegetical and
theological study o f Romans 9:1-23 (Grand Rapids: Baker, 1983). Ill
1PEDRO
Is 43.20, em que ambas as palavras são usadas). Deus escolheu uma nova raça de pessoas, os cristãos, que obtiveram o direito de serem membros dessa nova “raça eleita”, não por descenderem fisicamente de Abraão, mas por irem a Cristo (v. 4) e crerem nele (v. 6,7). Eles também são sacerdócio reaf'5e nação santa,duas expressões citadas exatamente como aparecem na LXX de Êxodo 19.6 (e 23.22), em que Deus promete essa condição a todos em Israel que mantiverem a aliança com ele. (Veja comentário em 2.5 sobre essa condição sacerdotal dos crentes.) Assim como os crentes são uma nova raça espiritual e um novo sacerdócio espiri tual, da mesma forma constituem uma nova naçãoespiritual, que agora não se baseia em identidade étnica nem em fronteiras geográficas, mas antes na lealdade a seu Rei celestial, Jesus Cristo, que é verdadeiramente Rei dos reis e Senhor dos senhores (Ap 19.16). A expressão seguinte, povo de [...] Deus, é literalmente “um povo para posse” (“dele” fica subentendido). Essa expressão não se encontra no Antigo Testamento, mas vemos uma linguagem bem parecida em Êxodo 19.5, Isaías 43.21 e Malaquias 3.17. O contexto de Isaías provavelmente de modo que domina o pensamento de Pedro, visto que a oração seguinte, proclameis as obras maravilhosas (RSV [veja BEP, VFL]), também ecoa Isaías areias 43.21, “proclamar o meu louvor” (em Isaías, a palavra “louvor”, [LXX], é aé mesma que pois Pedropromete usa, traduzida “obras maravilhosas”). O contexto apropriado, redençãopor do cativeiro na Babilônia (Is 43.14) e, várias vezes, enfatiza que por amor a si mesmo Deus perdoa e redime seu povo, para que sua glória seja proclamada (is 42.8,12; 43.7; 43.25; 44.23). Da mesma forma, não foi da Babilônia que Deus redimiu os cristãos e os chamou para si, mas das trevas,levando-os não de volta a Jerusalém, mas para sua maravilhosa luz (veja 2Co 4.6; Ef 5.8; Cl 1.12,13; lTs 5.4,5; ljo 2.8-11). A palavra areias tem sido traduzida por “obras maravilhosas” (RSV [e BEP, VFL]) ou “louvores” (NIV KJV [“grandezas”, A21, TB]) ou “virtu de.s”(NASB [e ARA]). Em suas outras acepções no Novo Testamento, aretê significa “excelência, m erecimento de aprovação e louv or” (Fp 4.8, “se existe alguma excelência”; 2Pe 1.3,5), e esse significado é com certeza adequado 55Ao usar a expressão “sacerdócio real”, Pedro cita a LXX em vez do texto hebraico, que traz “um reino de sacerdotes”. A diferença não é de grande importância, pois tanto
em um em casoApocalipse quanto em1.6; outro privilégios régios e sacerdotais estão ligados, como também ocorre 5.10; 20.6. 112
1PEDRO 2.1-10 ao contexto: é certo que o povo de Deus anuncie todas as suas excelências — as perfeições de seu ser.56 Aliás, o propósito de Deus em nos redimir não é apenas nosso prazer, mas que o gloriíiquemos, conforme Pedro indica com a locução “para que” na oração para que anuncieis (cf. Is 43.7,25; 48.9-11; Ap 4.11). Procurar nosso bem -estar eterno — em bo ra seja certo — jama is podería propo rcion ar um objetivo de vida verdadeiramente satisfatório. A resposta à nossa busca de sentido último está em “anunciar as excelências” de Deus, pois só ele é infinitamente digno de glória. Em última instância, o centro da redenção não é o homem, mas Deus. Anunciar as excelências de Deus é falar de tudo o que ele é e tem feito. A palavra que Pedro emprega e é traduzida por “anunciar” não é usada em nenhuma outra parte no Novo Testamento, mas surge várias vezes em Salmos para designar o ato de louvar a Deus (Sl 9.14; 71.15; 73.28; 79.13; 107.22; 119.13,26). Esse propó sito da redenção é com demasiada frequência frustrado por nosso sil êncio ou or gu lho autoelogioso, ma s mesmo u m breve contato com um cristão cujas palavras cumprem esse propósito invariavel mente revigora nosso espírito. 10. Pedro conclui com idéias e palavras emprestada s de Oseias (l.6 , 2.1,23), as quais mostram aspectos ainda mais completos dos grandes be nefícios de seus leitores. A semelhança de Israel quando foi rejeitado por Deus, no passado esses cristãos não eram povo e não tinham recebido mi sericórdia— estavam sob sentença de condenação pelo pecado. Mas agora
'■'’“Virtudes” é d e longe o significado mais comu m da palavra (BAGD, p. 105, diz que seu “significado habitual” é “excelência moral, virtude”; cf. LSJ, p. 238, “bondade, excelência, de qualquer esp écie”; também Hort, p. 129). O me sm o sentido aparece algu mas centenas de vezes em Filo e Josefo. O significado “louvor” é encontrado na LXX (Et 4.17, fim; Is 42.8; Zc 6.13) e é possível aqui, mas seria de esperar a palavra epainos (lPe 1.7; 2.14) ou talvez ainesis (Hb 13.15), caso Pedro quisesse dizer“louvor”. Além do mais, o sentido “virtudes” parece ser o significado do hebraico fh illâ , que está por trás dearet ê e m Isaías 43.21 e 42.12 (veja BDB, p. 240). Há quem alegue que nos papiros existem vários casos com o s entido de “manifestação de poder divino, milagre” (veja BAGD, p. 105, 3), mas muitos casos são ambíguos, e nas cinco coleções de literatura com linguagem mais próxima do Novo Testamento (o próprio NT, a LXX, Filo, Josefo e os Pais Apostólicos) não há nenhum exemplo claro com esse significado. Assim, “virtudes” (NASB [e ARAj) é o sentido mais provável; “louvores” (NIV, KJV [“grandezas”, A21, NV1, TB]) é possível,
porém menos provável; e “obras maravilhosas” (RSV [VFL, BEP]) é bastante improvável.
113
1PEDRO haviam recebido o privilégio mais elevado do universo: agora, sois povo de Deus — não por algum mérito próprio, pois eram merecedores apenas de julgam ento. Todos os privilégios acima devem ser atribuídos apenas ao favor imerecido da parte de Deus: agora, recebestes misericórdia. Então, nos versículos 4-10, Pedro diz que Deus outorgou à igreja quase todas as bênçãos prometidas a Israel no Antigo Testamento. O lugar da habitação de Deus não é mais o templo de Jerusalém, pois agora os cristãos são o novo “templo” de Deus (veja comentários sobre o v. 5). O sacerdócio capaz de oferecer sacrifícios aceitáveis a Deus não descende mais de Arão, pois agora os cristãos são o verdadeiro “sacerdócio real”, com acesso perante o trono de Deus (v. 4,5,9). Não mais se diz que o povo escolhido de Deus descende fisicamente de Abraão, pois agora os cristãos são a verdadeira “raça eleita” (v. 9). A nação abençoada por Deus não é mais a nação de Israel, pois agora os cristãos são a verdadeira “nação santa” de Deus (v. 9). Não mais se diz que o povo de Israel é o povo de Deus, pois agora os cristãos — tanto ju deu s quanto gentios — são o novo “povo de Deus” (v. 10a), aqueles que “receberam misericórdia” (v. 10b). Além do mais, Pedro extrai essas citações de contextos que várias vezes advertem que Deus rejeitará seu povo, se este persistir em rebelião contra ele, se rejeitar a preciosa “pedra angular” que ele estabeleceu. Q ue mais seria necessário para dizer com se gurança qu e a igreja se tornou o verdadeiro Israel de Deus?57
”Blum, p. 231, diz que esses privilégios concedidos à igreja não significam que ela seja Israel ou que o substitua, afirmando ainda que Romanos 11.13-16,23,24 nos resguarda contra tal idéia. Com certeza podemos concordar que Romanos 9—11 afirma o interesse contínuo de Deus pelo Israel étnico e prediz para o povo judeu um grande tempo de bênçãos, quando muitos serão incorporados à igreja (“enxertados de novo na oliveira a que pertencem”, Rm11.24 [VFL]). As declarações de Pedro não anulam essa promessa. Mas lPedro2.4-10 claramente afirma que as bênçãos da aliança com Deus são hoje desfrutadas apenas pelos que estão em Cristo, assim como Romanos 9—11 afirma
que o futuro desfrutar das bênçãos da aliançavirá somente por mei o da união com Cristo. 114
3. ENSINAMENTOS ÉTICOS ESPECÍFICOS: COM O SER SANTO N O M EI O DE INCRÉDULOS (2.11—5.11) a. Princípios gerai s (2.1 1,12) I. Abstende-vos de seguir as paix ões pecaminosas (2.11) II. Aqui Pedro começa o que é estruturalmente a segunda metade da carta. Enquanto o foco da primeira parte é principalmente teológico, com aplicação ocasional à vida, em geral a ênfase desta segunda parte é prática, com declarações teológicas mais breves incluídas em muitos pontos importantes. A primeira metade contém exortações gerais à santidade (1.15), ao amor (1.22) e à confiança em Deus (relacionada com a esperança em 1.13 e subentendida em 1.5,7-9,21; 2.7), mas esta metade dá instruções muito específicas, mostrando como os crentes devem praticar a santidade e a confiança em Deus em situações reais de vida. Embora simplificando demais, pode-se dizer que 2.11—5.11 oferece aplicações específicas aos ensinamentos gerais de 1.1—2.10. Ao u sar a palavra amados, Pedro lembra seus leitores de que, embora os exorte como apóstolo, também se preocupa com eles como irmãos e irmãs amados na família do Senhor. Embora “amado” seja uma palavra menos usada hoje em dia, “queridos amigos” (NIV [NTLH, VFL]) parece fraco demais. A paráfrase de Phillips é provavelmente melhor: “Eu lhes imploro, com o aquel es a quem amo ”. Exorto-vos também é linguagem um tanto ou quanto em desuso, mas “peço-vos” (NIV NASB [e ARC, ACF]) não tem força suficiente. A palavra (parakaieõ)tem o sentido “eu vos suplico intensamente, eu vos imploro com toda força”. Pedro dirige-se aos leitores como peregrinos e estrangeiros, empregando duas palavras (encontradas juntas tanto em Gn 23.4 quanto em Sl 39.12) que enfatizam a condição do cristão como residente temporário em um mundo que não é seu lar, pois sua verdadeira pátria está no céu. Quanto à
palavra estrangeirose à razão por que Pedro a emprega, veja os comentários
em 1 .1 .0 te rm o peregrino (paroikos) é um sinôn imo próx imo que quer dizer
1PE D RO
“aquele que vive em um lugar que não é seu verdadeiro lar” (observe o uso do vocábul o em At 7.6,29; E f 2.19, e o substantivo co gna to “peregrinação ” em 1Pe 1.17), Saber que os cristãos não têm nenhum verdadeiro lar aqui na terra tem sido um consolo, em especial para aqueles que passam anos e até mesmo a vida inteira longe do lar a serviço de Cristo. Pelo fato de serem “peregrinos e estrangeiros”, eles devem se abster d o s d e s e j o s c a r n a i s . Essas “paixões” [ARA] desejos intensos (veja, em 1.14, comentário sobre essa palavra, epit hym ia) , característicos da natureza pecaminosa, não são apropriados à pátria celestial de um cristão. Exemplos desses desejos encontram-se em Gálatas 5.19-21 e ljoão 2.16 (a análise de “a carne” como a natureza pecaminosa em Gl 5.13-25 é um bom comentário sobre a expressão), mas na realidade quaisquer desejos de coisas contrárias o u
à vontade de Deus são proibidos aqui. Pedro já disse a seus leitores que não deix em a vida ser moldad a po r tais desejos (1.14); aqui ele diz que não devem deixar que esses desejos sequer atuem em suas vidas. O verbo traduzido por significa “manter-se longe de, evitar” (observe a ocorrência em vos absterdes At 15.29; ITs 4.3; l T m 4.3), e o tem po p resente 1dá o sentido de “vos man ter c o n t i n u a m e n t e longe de desejos pecaminosos, não vos deixar levar por eles em momento algum”. Esse mandamento implica que desejos íntimos não são incontroláveis, mas podem ser intencionalmente nutridos ou contidos — uma censura necessária à nossa sociedade moderna, que considera que sentimentos são um “fato” moralmente neutro e despreza qualquer um que diga que alguns sentimentos e desejos são errados. Esses desejos pecaminosos c o m b a t e m , palavra (s t r a t e u õ ) que quer dizer “servir como soldado” (veja ICo 9.7; 2Tm 2.4; e, em uma passagem parecida, T g 4.1). Aqui, o tempo presente dá ao verbo o sentido “que continuamente fazem guerra” c o n t r a a a l m a . Embora a l m a ( p s y c h e ) possa significar “pessoa” (como em 3.20), aqui se refere à “parte espiritual, não física, da pessoa” (veja comentário em 1.22). Alimentar esses desejos pode parecer atraente no momento e inteiramente inofensivo, visto que em geral os desejos não irrompem em ações erradas, mas na realidade são inimigos que infligem dano à “alma” do cristão, tornando-o espiritualmente fraco e ineficaz. Não ter consciência desse prejuízo espiritual indica um baixo nível de percepção espiritual. texto grego da UB S (31975) traz um infinitivo no presente, mas o presente do imperativoapechesthe tem excelentes manuscritos a apoiá-lo (p72 A C L P 33 81 Cipriano)
e talvez seja a melhor leitura. As duas leituras parecem ter força de imperativo contínuo. 116
1P ED R O 2. 11 ,12
2. Tende bom procedim ento entre os gentios (2.12) 12. N o texto gre go não se inicia aqui nen hum novo per íodo, poi s o versículo 12 é o lado positivo do 11: os leitores não devem apenas se abster de desejos pecaminosos (v. 11), devem também continuar a ter correto [...] procedimento entre os gentios.Aqui, procedimento se refere a um padrão de vida diária (veja comentário sobre a palavra em 1.15). Pedro chama os incrédulos de gentios não porque pensa que seus leitores sejam todos cristãos jud eu s, mas porq ue mais um a vez pressupõ e que os cristãos (aqueles que estão dentro d o co rpo de Crist o, qu er judeu s, quer gentios no sentido literal dos termos) são o “verdadeiro Israel”. Portanto, todos os que n ão são cristãos (quer jud eus , qu er gentios no sentido literal) são verdadeiramente “gentios” (cf. 4.3). Diante desses incrédulos, os cristãos devem ter “correto procedimento”, para que naquilo de que falam mal de vós, como se fôsseis praticantes do mal, ao observarem as vossas boas obras, glorifiquem a Deus no dia da visitação. A vida correta de um cristão, mesmo em face de calúnias e falsas acusações contínuas, ainda pod e result ar na sal vação do inc réd ula No dia da visitação (RVS; da mesma forma na NASB, NIV, KJY NEB [e ARC, ARA]) induz a erro porque o artigo definido “o” dá a entender o derradeiro dia da “visitação” de Deus, o juízo final. Mas no texto grego não há nenhum artigo definido, e “em um dia de visitação” é com certeza um a tra du ção válida ( a meno s qu e se possa provar q ue “visitação” signifi ca ju ízo final).2 Com entaristas tê m se deixado levar pela suposta influência de Isaías 10.3, que na LXX fala de “o dia d a visitação” (usando dois artigos definidos, algo que Pedro não faz) como tempo de juízo de Deus. Mas a expressão de Pedro não é tão parecida nem tão longa que se possa provar uma alusão a Isaías 10.3. Visitação (episkopê) pode se referir tanto a um tempo quando Deus visita para julgar (Jó 7.18; Is 10.3; 29.6) quanto a um tem po qua nd o visita para conceder bênção o u libertação (Gn 50.24 ,25; Ex 13.19; Is 23.17; Sab 3.7; ressalte-se que, em Lc 19.44, a palavra se refere a “uma visitação para trazer salvação”). A expressão exata de Pedro [en hêmera episkopês)não aparece em nenhuma outra parte do Antigo ou 2Ped ro não usa o artigo d 2.9; 3.7, mas usa-o na expressão
efinido n
a express ão
lês ton theou hêmeras
hêmera kriseõs
(di a de juízo ) em 2Pedro
(“o dia de D eu s” ) em 2Pedro 3. 12;
vej a IJ o 4.17. Parec
e qu e n ão é pos sí vel cheg ar a nen hu m a conc lusão d efi nit iva ap enas
co m base no
arti go, e é necessár
uso do
io de scob rir o sent ido a pa rti r da s outras pal
avr as
na expres são. 117
.
1PEDRO
do Novo Testamento e, por isso, não é bom pressupor que se trate de um a expr essão técnica q ue designa juí zo : é m elhor entender ap enas que o sentido é “em um dia quando Deus visita” (o objetivo — trazer bênção ou juíz o — é algo a ser determinad o pelo contexto). Nesse dia da visitação , os incrédulos q ue estiverem ca lun ian do os cristãos haverão de glorificar a Deus.Essa glorificação quase certamente é uma refe rência às pessoas que foram convertidas e prestam louvor voluntário, e não (com o H ort aparentemente al ega, p. 137-8) aos incrédulos que reconh ecem à força que Deus está certo. (O verbo doxazõ, “glorificar”, ocorre 61 vezes no Novo Testamento, mas nunca é usado para falar de incrédulos que a contragosto admitem que Deus ou seu povo estão com a razão — aliás, Ap 16.9 diz que eles se recusam a fazê-lo.)3 Eles são convertidos e glorifi cam a Deus porque veem as vossas boas obras 4 (veja M t 5.16; lPe 3.15,16). Pedro dá um exemplo específico disso em 3.1,2, onde diz que os maridos podem se converter quando veem o bom procedimento das esposas cristãs. (A palavra incomum traduzida por “ver”, epopteuõ, “examinar, observar”, ocorre no Novo Testamento apenas aqui e em 3.2. A palavra traduzida por “pro cedime nto” tamb ém é a mesma aqui e em 3.2.)5 Dessa maneira, os versículos 11 e 12 constituem um breve prólogo à segunda metade da carta e, na verdade, apresentam de forma resumida aquilo que Pedro explicará em detalhes em 2.13—5.11: os cristãos que vivem em um a sociedade incrédula precis am evitar des ejos pecaminosos e m anter co n tinuamente padrões exemplares de vida, a fim de que os incrédulos sejam salvos e Deus seja glorificado. Não há nenhum motivo para duvidar de que tal estratégia de evangelização ainda funcio ne hoje.
30 reconhecimento forçado do senhorio de Cristo que resulta na glória de Deus, em Filipenses 2.11, é diferente da glorificação ativa de Deus indicada por doxazõ. 4A expressão no grego é “por meio de vossas boas obras” e modifica o verbo “glorifiquem”. Exemplos semelhantes de ck com genitivo usado para designar o instrumento ou meio para fazer algo encontram-se em Romanos 3.20; 4.2; Tiago 2.18,21; 3.13; lPedro 4.11 etc. 5Beare, p. 138, pressupõe sem justificativa que “em um dia de visitação” se refere ao ju íz o final e diz que o versículo apresenta a “atraente ideia” de que incrédulos poderão mudar de opinião no juízo final — um pensamento que não existe neste texto nem em qualquer outra parte das Escrituras. Ainda que a expressão seja entendida como referência ao ju íz o final, estaria se referindo aos que já haviam s e convertido e, então, no dia do ju íz o
glorificaram a Deus por sua graça (cf. uma ideia parecida em Lc 16.9).
118
1PEDRO 2.13-17
b. A vida como cid adãos: sujeitai-vos à s autoridad es do governo por amor ao Senhor (2.13-17)
13. Sujeitai-vos significa submeter-se a uma autoridade, e em geral isso subentende obediência a essa autoridade (observe essa palavra em Lc 2.51; 10.17; Rm 13.1; ICo 15.28; Ef 5.24; Tt 2.9; Tg 4.7; lPe 2.18; 3.1,5,22; e veja adiante a análise em lPe 3.1). Mas existem ocasiões registradas nas Escrituras em que o povo de Deus desobedeceu a um governo humano e foi aprovado por Deus por agir assim (Êx 1.17; D n 3.13-18; 6.10-24; At 4.18-20; 5.27-29; Hb 11.23). O princípio a ser extraído dessas passagens é “obedecer exceto quando o cum prim ento da orde m envolve pecado ”. Essa é a responsabilidade do cristão diante de todas as formas de autoridade humana legítima, quer o cristão concorde com as políticas dessa autoridade, quer não. A expressão toda instituição humana[ARA; “toda autoridade humana”, A2l] dá ao versículo uma aplicação mais ampla do que apena s a um govern o secular (quer adotemos essa tradução, quer adotemos a RSV marg., “toda instituição ordenada para os homens”.) Aliás, Pedro passa a explicar essa declaração geral, aplicando-a não apenas ao governo secular (v. 13b,14), mas também para motivar os servos a se sujeitarem aos senhores (2.18) e as esposas a se sujeitarem aos maridos (3.1). Nos três casos ele emprega o mesmo verbo ( hypotassõ) para exprimir a ideia de “sujeitar-se a”. Assim, ele também vê relaçãoem entre e servoé eexigida a relação matrimonial “instituições huamanas” quesenhor a submissão “por causa do Scomo enhor”. A natureza inclusiva da palavra toda faz com que, portanto, seja apropriado aplicar essa declaração a outras autoridades humanas legítimas (pais/filhos, oficiais da igreja/membros e também a estruturas de autoridade em empresas, institu ições educacionais , organizaç ões voluntárias etc. ). Deus estabeleceu esses padrões de autoridade para o funcionamento ordeiro da vida humana, e ele tanto se compraz quanto é honrado quando nós nos sujeitamos às autoridades. Também não devemos pensar que a necessidade de autoridade seja resultado apenas do pecado, pois existe autoridade entre os anjos sem pecado (iTs 4.16; Jd 9), entre os redimidos no céu (Lc 19.17,19; veja ICo 6.3) e até entre os membros da Trindade por toda a eternidade (ICo 11.3; 15.28). A palavra traduzida por “instituição” é ktisis, que geralmente quer dizer “criatura, coisa criada”. Mas o contexto (v. 13b, 14,18-20; 3.1-6) deixa claro que não é a todo ser human o no mundo que devemos nos submeter (um signi ficado que, de qualquer maneira, o verbo hypotassõnão podería ter, visto que
trata da sujeição a uma autoridade), mas, sim, a toda “autoridade instituída” 119
1PEDRO
ou “estabelecida”. Esse sentido de ktisis não seria intrigante para os leitores de Pedro, porquanto a palavra é muitas vezes empreg ada na literatura extrabíblica para designar o ato de criar um órgão governamental ou de fundar uma cidade. Josefo usa ktisis para se referir aos “assentamentos” que os judeus estabeleceram depois de sair da Babilônia (Ant. 18.373); em Moralia 435D, Plutarco (c. 50 d.C.-12 0 d.C.) diz que os Oráculos de Delfos trouxeram muito s benefícios para os gregos “tanto em guerras quanto na fundação de cidades” ( ktisesi poleõn; veja BAGD, p. 456, 2; tam bém a proveitosa análise em H ort, p. 139-40 ).6 Por causa do Senhorou “por amor do Senhor” [ARC] confere uma base teológica para essa submissão. Nossa submissão à autoridade deve imitar o Deus Filho e, desse modo, glorificá-lo (Pedro afirma a ideia com clareza em 2.21-23). Além do mais, visto que Deus estabeleceu essas estruturas de autoridade (cf. Rm 13.1-7), ele tem prazer em que nos submetamos a elas. Seja ao rei, como soberano, aplica o man dam ento geral a um oficio espe cí fico. Na época em que Pedro escreveu, o imp erado r rom ano era Nero (reinou entre 54 e 68 d.C.), sob cuja persegu ição ele viria a mo rrer (veja “Introdução”, p. 33-5). Deus espera que os cristãos se sujeitem até mesmo a autoridades humanas que não são crentes nem moralmente corretas. A palavra traduzida pela RSV por “imperad or” (basileus) geralmente signi fica “rei” (como na NI V NASB [e A21, NV l]), mas o contraste com “governa dores” (v. 14) e a desig nação “co mo soberano, em posição de alta auto ridade ”, torna “imperador” mais provável. Existem outros exemplos de basileus usa dos para se referir a um imperador romano (BAGD, p. 136). Mas, qualquer que seja o sentido adotado, a força da passagem é a mesma: Sujeitai-vos às autoridades seculares, qu er sejam mais im portant es, quer menos. 14. Seja aosgovernadores, como porele enviados,refere-se aos governad ore de províncias romanas: o título “governador” ( hêgemõn) designa, por exem plo, Pilatos (Mt 27.2) e Félix (At 23.24). A expressão por ele aparece no texto da RSV [e A2l] e se refere ao imperador que enviava os governadores. Mas “por intermédio dele” (NASB marg.) é uma tradução mais provável e deixa 'Contra Kelly, p.108-9, ej. Jeremias, TDNT 1, p. 366, que afirmam que o versículo ensina submissão a toda criatura humana, mas sem apresentar nenhum indício de que hypotassõ tenha chegado a assumir um significado tão amplo e sem dar tratamento adequado à análise de Hort sobre o uso de ktisis para se referir a órgãos governamentais. Entre outros exemplos dektisis com esse sentido encontram-se Diod. Sic. 13.59.4; 13.90.3;Políbio 10.21.3; veja o verboktízõ, usado para designar não apenas a fundação de cidades, mas também de
um templo (Políbio9.27.7); e também a “colonização” de um país (Heródoto1.149; 2.44).
120
1PEDRO 2.13-
subentendido que os governadores “foram enviados (por Deus) por intermé dio do imperad or”7para pun ir malfe itores e honra r os que fazem o bem. O propósito da autoridade secular é brevemente definido como punir os praticantes do mal e honrar os quefa zem o bem. A palavra ekdikêsis (“punição”) tem a conotação de vingar-se, fazer um malfeitor pagar pelo mal cometido (observe a palavra em Rm 12.19; 2Ts 1.8; Hb 10.30). Embora algumas teorias de sanção penal sustentem que reformar o criminoso e proteger a sociedade de mais crimes sejam os únicos propósitos legítimos da punição, Pedro inclui aqui a retribu ição — infligir castigo ju sto ao que causou mal a outros — com o um propósito le gítim o (observe uma declar ação semelhante em Rm 13.4: a autoridade secular é “serva de Deus e agente de punição de ira contra quem pratica o mal”). No entanto, o que Pedro espera que os governos façam é proibido aos que não atuam como representantes de governos, m as com o indivíduos: n ão devem r etri buir o mal sof rido (v. 19-23; comp. Rm 12.19-21; Mt 5.38-48). Em contrapartida, governos que deixam de p un ir malfeitores desobedecem ao prop ósito d ivino p ara sua existência. Os governos também devem honrar os que fazem o bem como recom pensa pelo procedimento correto e como exemplo e incentivo aos outros. O critério de ve ser o co mp ortam ento moral, não a c ondição econôm ica nem o favoritismo polí tico. Para impedir o uso indevido do p ropó sito div ino par a o governo, os cristãos devem orar por governos que agem de acordo com a vontade de Deu s e trabalh ar para eles (l T m 2.1-4 ; cf. Sl 82.1-4; 125.3). 15. Quan do incrédulos acusam íàlsamente os cristãos de praticarem mal (veja o v. 12), cometem uma calúnia irracional, pois ela brota da igno rânciados que talvez pensem ser sábios, mas na realidade são insensatos.Essa atitude, porém, deve ser impedida, pois desonra a Deus. A maneira de Deus impedi-la, a vontade de Deus,é pelo procedimento exemplar dos cristãos: fazendo o bem." Visto que essa oração é a justificativa para os versículos 13 e 14, 7Muitas vezes, Pedro emprega a mesmaconstrução em grego encontrada na expressão “por meio dele”(dia com genitivo) para se referir à pessoa ou coisa por me io tia qual Deus fez algo (1.3,5,23; 2.14; 3.1; 2Pe 1.3,4; cf lP e 5.12). Aqui o rei não aparece como fonte da auto ridade do governador, mas como canal de transmissão da autoridade divina (Hort, p. 141). “Hort (p. 145), seguido por Selwyn (p. 173), diz que, no texto grego,houtõs, “assim” (lit., “pois assim é avontade de D eu s”), aponta para os v. 13,14, pois houtõs deve sempre se referir ao que o precede. Mas BAGD, p. 598, 2, dá muitos exemplos em quehoutõs se refere ao que vem em seguida. Hort, depois de excluir 24 “exceções”, simplesmente chega
a uma conclusão forçada com base nos exemplos restantes.
121
ÍPEDR O na mente de Pedro a maneira específica de “fazer o bem” é a submissão às autori dades hum anas — em últim a instância, tal submissão à auto rid ade será usada por Deus para silenciar a calúnia.
16. Seus leitores poderiam pensar que essa abrangente submissão à autoridade seria uma restrição opressiva, mas Pedro explica que a verdadeira liberdade cond iz co m a obe diência à vonta de de Deus. Ele lh es assegura que podem viver como hom ens livres.9 Não se especifica o tipo de liberdade que Pedro tinha em mente, mas com certeza as grandes liberdades da vida cristã são estar is ento da ob riga ção impossível de, por m eio de obediên cia perfeita, obter mérito diante de Deus (GI 5.1-14; At 13.39; Rm 6.23), estar isento de culpa (G1 3.13; Ap 1.5b) e estar livre do poder dominador do pecado (Rm 6.6,7,14,17,18,20-23; Jo 8.31-36) . Apesar disso, os cristãos não têm liberdade de fazer o mal! Embora bem mais livres do que qualquer pessoa sem Cristo consegue ser, em outro sentido os cristãos ainda são servos de Deus ou “escravos de Deus”, pois lhe devem toda sua vida e a totalidade de seu ser. A liberdade verdadeira, a real capacidade de escolher e fazer aquilo que realmente se deseja fazer, vem paradoxalmente com a total submissão a Deus como servos obedientes (cf. T g 1.25; ljo 5.3). Por isso, como “servos livres” de Deus, os cristãos nunca devem usar da liberdade para encobrir ou esconder malfeitos (como pretexto para o mal [RSV] é menos exato do que “para encobrir o mal” [NTLH]): a liberdade precisa resultar na grande alegria de fazer o que é certo. 17. Aqueles que desejam viver “como servos de Deus” (v. 16) têm obriga ções variadas com os hom ens em geral, com outro s cristãos, co m D eus e com o imperador. A primeira oração, Honrai a todos, pode ser interpretada como um mandamento de um total de quatro (RSV NASB [e A21, ARA]) ou como uma declaração em forma de sumário que será explicada pelas outras três a seguir (NIV [e NV I], “Tratem a todo s co m o devido respei to: ame m os irmãos, temam a Deus e honrem o rei”; da mesma forma, NEB [e CNBB]). Por vários motivos não é convincente a interpretação, dada pela NIV [e NVI], de que a oração é uma declaração em forma de resumo, (l) As
9Hort, p. 145, entende que “como livres” [ARA; “já que sois livres”, A2l] modifica “sujeitai-vos” no v. 13, sendo o v. 15 um parêntese. Isso é gramaticalmente possível e não é incompatível com a interpretação adotada aqui, embora enfatize a natureza voluntária
da submissão do cristão. 122
1PEDRO 2.13-1 7
categorias “irmãos”, “Deus” e “o rei” não incluem “todos” (gr., pantas), pois omitem incrédulos, e isso no próprio contexto em que as relações com os incrédulos são proeminentes (v. 12,15). Assim, nessa leitura da NIV [e NVI], as três declarações seguint es não explicam totalm ente a prim eira, ao contrário do que deveríam fa zer. (2) Todavia, parecería um tan to forç ado o gre go pantas (“todos") incluir Deus na mesma categoria de homens — nenhum exemplo como esse é encontrado nos 1.244 casos de “todos” no Novo Testamento. (3) O verbo honrar {timão)não parece ter uma gama tão ampla de sentidos, a ponto de significar “ter de várias maneiras o devido respeito” e incluir tanto “amar” quanto “temer”: por exemplo, alguém pode muito bem “honrar” um rei fraco e mau ou “demonstrar-lhe o devido respeito”, sem amá-lo nem temê-lo. Além do mais, essa interpretação necessariamente dá ao verbo timaõ do final do período um sentido diferente do sentido que ele tem no início, o que é improvável cas o a prim eira oco rrên cia sirva com o sum ário da segunda. Portanto, é melhor interpretar esse versículo como quatro mandamen tos distintos. Honrai a todos significa “honrai todas as pessoas”. O uso da palavra todos {pantas) é comum quando se refere a todas as pessoas em geral (veja Mt 10.22; Lc 2.3; Jo 1.7; Rm 3.23; Tg 1.5). Coerentes com seu bom procedimento entre os incrédulos (v. 12-16), os cristãos devem ser educados e respeitosos com todas as pessoas. Esse princípio condena boa parte do tratamen to dispensado pelo ho mem a seus semelh antes no mun do político e empresarial (Stibbs/Walls, p. 112). Am ai os irmãos indica uma obrigação maior para com os irmãos em Cristo (observe o uso de “irmãos” também em 5.9), não apenas de respeitá-los, mas também de demonstrar por eles um amor forte e profundo (veja o comentário sobre agapaõ,“amar”, em 1.22). Temei a Deus indica uma obrigação ainda maior. Os cristãos devem não apenas honrar a Deus e amá-lo (1.3,8; 2.5,9), mas devem também temê-lo, algo que não se aplica à relação com incrédulos (3.14) nem com outros crentes (veja, em 1.17, o comentário sobre o temor a Deus). Agora Pedro retorna ao verbo “honrar”, o mesmo com que o versículo começou: Honrai o rei [“respeitem o Imperad or”, N T L H ]. 10 Naquilo que
10Mas o tem po verbal é diferente. O primeiro “honrai” é um imperativo aoristo, que aqui não especifica o início de uma ação e com certeza também não especifica uma ação a ser praticada uma única vez; em vez disso, trata-se de um aoristo “sem identificação” de tempo, empregado quando o autor queria apenas ordenar a ação sem especificar qualquer
outra coisa sobre ela. N o seg un do caso, “honrai o imperador”, emprega-se um imperativo
123
1PE D RO
é aparentemente uma ironia discreta, Pedro coloca o imperador no mesmo nível de “todos”. Parece que a progressão é a seguinte:
Temei a Deus. Amai os irmãos. Ho nra i a todos. Ho nra i o imperador. Ao declarar de modo taxativo a obrigação de honrar o imperador (mantendo coerência com os v. 13-15), Pedro também deixa subentendido que, em oposição às alegações dos imperadores romanos de que eram deuses, o imp erador n ão er a de mo do algum igual a Deus nem m erec edor do temor devido apenas a Deus. Os cristãos têm obrigações com o estado, mas suas obrigações com Deus e com os irmãos são maiores.
c. A vida como s ervos: sujeitai-vos a vossos senhores (2.18-25) 1. M esmo aos que são maus ( 2.18-2 0) 18. Pedro se dirige aos servos, empregando uma palavra menos comum, oiketês. O termo é quase sinônimo de doulos, palavra comumente traduzida por “servo” no Novo Testamento (TDNT 2, p. 2 6l ), mas oiketês sugere uma nuança de serviço na esfe ra da família (LSJ, p. 1202). Ambos os term os tam bém têm sido traduzidos por “escravos” [NVI], mas o terrível aviltamento de escravos no século 19 de nossa era confere à palavra “escravo” uma conotação muito pior do que a exata situação reinante na maior parte da sociedade para a qual Pedro estava escrevendo." Em bora os escravos pudessem sofrer presente e enfatiza-se, portanto, a natureza continuada do dever: “Honrai e continuai a honrar o imperador”; veja C. F. D. Moule, A n i d io m - b o o k o f N e w T e s ta m e n t G r e e k , 2. ed. (Cambridge: Cambridge University Press, 1959), p. 135-6; mas BDF, seção 337 (2), atribui, sem necessidade, a abrangente categoria “complexivo” para alguns imperativos aoristos que são simplesmente “sem identificação” no que diz respeito à natureza da ação (lPe 1.17a; Tg 5.7 etc.). n“A maioria das pessoas em regime de escravidão era bem tratada, geralmente nascia na casa de seu senhor e era preparada para executar importantes tarefas domésticas, indus triais, comerciais ou públicas ” (S. Scott Bartchy, :f i r s t - c e n tu r y s la v e r y a n d t h e mallon chrésai SBL Dissertation Series 11 [Missoula: SBL, 1971], p. int erpre tat ion o f 1 Cor inthians 7:21, 174). A descrição de Bartchy sobre a escravidão no primeiro século (em especial p. 38-7)
é um ótimo resumo recente dos dados. Veja tambémI D B , volume suplementar, p. 830-2; 124
1PED RO 2. 18- 25
maus tratos, deve-se lembrar que, no século primeiro, os escravos eram em geral bem tratados. Não eram apenas trabalhadores despreparados, mas, muitas vezes, administradores, supervisores e profissionais preparados para atuar em diversas áreas (médicos, enfermeiros, professores, músicos, artesãos especializados). Havia uma extensa legislação romana que por regulamentava o tratamento dos escravos. Normalmente eram remunerados seus serviços e podiam esperar no final comprar a própria liberdade (OCD, p. 995; também p. 793, verbete “Peculium”). Não obstante, o serviço deles não era voluntário (num período mais antigo da história romana, escravos eram obtidos por meio de guerra ou de rapto cometido em terras estrangeiras, mas já no século primeiro a maioria dos escravos simplesmente nascia em famílias de escravos). Sua situação legal, sua posição social e a oportunidade de independência econômica eram claramente inferiores em comparação com outras pessoas na sociedade romana. Então, aqui é necessária uma palavra mais forte que “servo”, porém mais fraca que “escravo” — algo com o sentido de “empregado semipermanente sem liberdade legal ou econômica”. Embora “servo” e “criado” [BEP] sejam as palavras que mais se aproximam da ideia, não existe uma palavra isolada que a exprima de modo adequado — talvez porque na moderna sociedade ocidental não exista nenhuma instituição comparável. Por isso, ainda que não haja na sociedade moderna nenhum paralelo exato com essa condição de “servo”, o fato de que no mundo antigo esse era de longe o tipo de relação mais co mum entre emp regad or e empregado e de que essa relação abrangia uma ampla gama de níveis de liberdade funcional e econômica, significa que a aplicação das diretrizes de Pedro aos “empre gados” de hoje é bem apropriada. (Homens livres que trabalhavam como diaristas para outros eram o que existe de mais próximo com “trabalhadores autônomos” de hoje em dia, visto que pareciam resistir a toda ideia de que seus empr egado res po diam lhes dizer o que fazer.)12 Aliás, o vocábulo “em pregado”, embora não transmita a ideia de ausência de liberdade, reflete sim a cond ição eco nômic a e o nível de destreza des ses “escravos” antig os m elho r do que o sentido hoje conferido às palavras “servo” e “escravo”. Servos, sujeitai-vos com todo temor aos vossos senhores motiva os servos a terem uma mentalidade permanente de aceitação da autoridade legal e e A.
. M. Jones, “Slavery in the ancient world ”, in:
A n ti q u it y (Cambridge: Heffer, 1960), p. 1-15.
Slavery in classical . I. Finley, org.,
12VejaJones, “Slavery inthe ancient world”, p. 2. 125
1PEDRO
econômica sobre eles e uma pronta obediência às diretrizes dadas por seus donos ou “senhores”. O mesmo verbo usado no versículo 13 para ordenar a submissão às autoridades humanas em geral (hypotassõ) é aqui empregado para instar à submissão às autoridades especificamente na esfera econômica (veja, em 3.1, análise do significado desse verbo). O verbo tem a forma de um parricípio, mas é usado co mo impera tivo (com o em 2.1; 3.1, 7). N o Novo Testamento, a palavra traduzida por “respeito” ([CNBB, N TLH , VFL; temor, A21]; gr., phobos) geralmente tem o sentido de “temor” (como em 1.17; 3.14), mas parece que, quando empregada para designar relacionamentos com autoridades humanas, não tem o significado tão forte de “temor de castigo ou de sofrer dano” (algo que, pelo visto, é desnecessário Pedro ordenar), mas antes “um desejo saudável de evitar o descontenta mento das autoridades” (esse também é o sentido de phobos em Rm 13.7; lPe 3.2,16; e do verbo cognato em Ef 5.33). Em geral, “respeito” é considerado o equivalente mais próximo, mas isso dificilmente explica seu uso em um contexto bem parecido em Efesios 6.5, “com temor (phobos) e tremor (tromos)”.(“Tem or a D eus ” pode ser indicado com o o sentido em t odo s esses contextos, co m exceção de E f 5.33, onde se especifica que “o m arido” é quem deve ser temido.) O sentido provável é “com receio saudável de deixá-los des contentes”. Pedro afirma que esse sentimento é apropriado e, por isso, adverte contra tratar a autorid ade co m po uc o caso ou desdém (veja l T m 6.1,2).13 E mais fácil (mas de modo algum automático) submeter-se a senhores bons (gr., agathos) egentis,mas bem mais difícil fazê-lo co m o autoritário (RSV; a palavra skolios significa literalmente “tortuoso” [veja Lc 3.5]; contudo, tem o sentido metafórico de “desonesto, mo ralmente m au”, com o em At 2.40; Fp 2.15; Dt 32.5, LXX; Sl 78.8 [LXX 77.8]; Pv 4.24; 8.8; 16.28; 28.18). Tanto “autoritário” (RSV) quanto “duro” (NIV [e BEP; “severo”, BPT]) baseiam-se em uma suposta necessidade de apresentar o sentido opo sto de “bons e gentis” na expressão anterior, mas ( l) não foi encon trado ne nh um ou tro exemplo do termo com esse sentido (BAGD, p. 756, 2 não cita nenhum); (2) com isso se perde a ideia de perversidade moral, que é essencial ao uso metafórico do termo; e (3) no versículo, o contraste não é apenas entre dois termos, mas entre dois tipos de sen hores, o m elh or e o p ior — de u m lado o “bo m e gentil”
l3No entanto, meu aluno Jonathan Lunde observa que alguns argumentos de peso favorecem aqui o sentido de “temor a Deus”: (l) “Todo temor” dirigido ao senhor parece forte demais; (2) o versículo anterior diz que se deve “temer a Deus”; (3) em outra
passagem, Pedro diz que não se deve temer os homens (3.6,14).
126
Í P E D R O 2 .1 8 - 2 5
e de outro o “tortuoso” ou “perverso”. A natureza “tortuosa” desses senhores subentend e não apenas maus tratos fís icos, mas tamb ém desonesti dade qua nto ao salário, às condições de trabalho, às expectativas etc. “Por causa do Senhor”, mesmo a esses senhores exigem-se a submissão e a obediência nela implícita (v. 13; observe o exemplo de Jacó em Gn 31.6-9). Mas o servo não deve obedecer, caso receba ordens de peca r (veja análise no v. 13). Em bora em um mundo caído as pessoas no exercício da autoridade sejam necessariamente pecadoras, essas linhas de autoridade foram estabelecidas por Deus e têm de ser respeitadas. 19. Pois introduz um motivo para a submissão, e Pedro o explicará nos versículos 19a 25: Deus se agrada quando, imitando o exemplo de Cristo, seu povo co nfia nele n o m eio de so frimen to injusto. (Es se é mais um motivo para aproveitar a oportunidade de testem unho mencionada no v. 12.) Digno de louvor significa “aprovado por Deus” como aquele que recebe seu favor (charts; quanto à palavra com o sentido de “favor de Deus”, veja Lc 2.52; 6.32-34). A pessoa que agrada a Deus suporta dores por sofrer injustamente [VFL], embora a palavra traduzida por “dores” ( seja mais bem traduzida por “tristeza” ou “pesar” (veja, em 1.6, comentário sobre o verbo cognato “sofrer”; cf. BAGD, p. 482: o termo é usado para designar a dor mental ou “pesar, tristeza”, mas no Novo Testamento nem o substantivo [16 ocorrências] nem o verbo [26 ocorrências] são usados para designar a dor física em si). A ênfase de Pedro está em suportar os vários tipos de angústia mental (na realidade a palavra está no plural, “tristezas”) que acom panham o sofrimento injusto. Mas ele não afirma ser agradável a Deus que o cristão apenas suporte o sofrimento inju sto e a tristez a que o ac omp anha. Antes, isso só é suportado quando o cristão leva Deus em conta(RSV), ou, para ser mais exato, “por ser cônscio de Deus” (NIV [e IB B, TB ]). 14 Nã o se trata de u ma tenacidade uO texto grego tem dia com acusativo, que tem o sentido específico de “porque”. A tradução da NASB [e A2l], po r causa da consciência para com D eus , interpreta a palavra syneidêsis em um sentido comum (pode significar “consciência” ou “percepção”), mas a tradução é improvável porque (l) necessariamente interpreta o genitivo lheou, “de Deus”, com um sentido artificial e talvez sem precedentes (um autor usaria pros ou eis com acusativo para dizer “para com Deus, em relação a Deus”), e (2) muda a ênfase do contexto, que deixa de ser confiar em Deus e passa a ser esforçar-se para obedecer a Deus, uma ideia que não é estranha em Pedro, mas estranha à mentalidade que Pedro defende nessa passagem (observe
o modelo da mentalidade de Cristo no v. 23, “confiava àquele que julga com justiça"). 127
1PEDRO
estóica automotivada que resiste a toda oposição, mas o contrário: a cons ciência confiante da presença de Deus e de seu cuidado infalível é a chave para o sofrimento justo. No final, Deus corrigirá todos os males, e essa confiança capacita o cristão a se submeter a um senhor injusto sem ter res sentimento, sem rebeldia, autocomiseração ou desespero. 20. Aqui Pedro diz às claras o que deixou subentendid o no versículo 19 a saber, o que Deus aprova não é simplesmente supo rtar qu alquer sofrimento, mas suportar o sofrimento injusto (observe o mesmo tema em 3.14,17; 4.14-16). Pois que mérito há(i.e., não existe aprovação ou honra que vos sejam devidas) em ter de suportar sofrimento se cometeis pecado e sois esbofeteados por isso?Suportar com paciência o castigo merecido não é notável nem especialmente louvável — muitos malfeitores sabem que estão recebendo o que merecem e sem queixa suportam o castigo. Bem diferentes são as ocasiões em quesuportais sofrimento quando fazeis o bem (lit., “ao fazer o que é certo e sofrer por isso”). Embora Pedro talvez esteja pensando especificamente no sofrimento pelo “bem” que a pessoa faz, as palavras por isso não se encontram no texto grego, e é melhor entender a oração como referência geral à prática do bem que causa sofrimento (seja sofrimento espe cífico pelo bem praticado, seja sofrimento decorrente de outra coisa). É nessas ocasiões que o sentido de justiça e a autoproteção do homem natural talvez busquem vingança ou recorram à insubordinação e ao ódio contra seu senhor. A reação inesperada do cristão é sofrer com paciência ([TB, IBB]; literalmente, “continuais suportando”, mas o tipo de persistência que Pedro tem em mente, o suportar paciente enquanto confia em Deus, pode ser inferido da ideia de “levar Deus em conta”, no v. 19). Esse tipo de persistência é algo que se toma possível apenas quando o cristão está “cônscio de Deus” (v. 19, NIV [TB, IBB]) e confia continuamente que Deus cuidará dos direitos desrespeitados pelos ou tros. Nessas ocasiões não é fácil confiar em Deus, pois isso vai contra nossas inclinações naturais. Mas é nesse momento que a fé se revela autêntica, algo que aos olhos de Deus é “mais precioso do que o ouro” (1.7; cf. 3.4). Então,tendes a aprovação de Deus (i.e., tendes “favor”[charts,veja o v. 19] aos olhos de Deus). 2. P oi s Cr isto s of re u p o r vós, co nfi an do em D eu s (2. 21 -25 )
21. Para isso fostes chamados indica a condição à qual os cristãos foram convocados por Deus por ocasião da conversão. Embora o foco específico
da preocupação de Pedro seja os “servos”, os princípios gerais sobre o 128
1PED RO 2.18-
25
sofrimento nos versículos 19 a 25 se aplicam facilmente a todos os demais que se encontram sob autoridade superior, seja nas relações profissionais, seja no casamento ou na família, quer na educação, quer no que diz respeito ao governo. Principalmente nos versículos 21-25, os ensinamentos são expressos de tal maneira que diz se aplicam aos cristãos emchamados geral. Em outro trecho, Pedro que os cristãos foram por Deus “das trevas para sua maravilhosa luz” (2. 9), ou cham ados a retri bu ir m aldição com bênção (3.9), ou chamados “em Cristo [...] à sua eterna glória” (5.10). Mas aqui — em uma expressiva mudança de sua opinião sobre sofrimento registrada em Mateus 16.22 — Pedro diz que eles foram chamados a sofrer injustamente: na oração adverbial para isso fostes chamados, o “isso” neces sariamente se refere à já mencionada confiança em Deus enquanto o cristão sofre por fazer o bem, tema dos versículos 19 e 20. Em outras passagens, o Novo Testamento afirma que os cristãos podem esperar ser tratados injus tamente (lPe 5.9; Jo 15.18-20; 16.33; At 14.22; lTs 3.3; 2Tm 3.12; cf. Sl 34.19). Mas por que somos chamados a sofrer? Porque esse sofrimento fez parte da vida de Cristo, a qual fomos chamados a imitar: pois Cristo também sofreu por vós, deixando-vos exemplo, para que sigais os seus passos. Pedro emprega sojreu (paschõ ) em vez de “morreu” para destacar, como modelo para os cristãos, os sofrimentos da vida de Cristo e, em especial, os sofrimentos que culminaram com sua morte. Mais tarde, Pedro afirma que Cristo suportou o castigo que nos cabia em virtude de nossos pecados (v. 24). Mas aqui Pedro faz um destaque ligeiramente diverso. A maneira como Cristo sofreu por vós é explicada pela oração gramatical deixando-vos exemplo; ou seja, Pedro não se refere aqui principalmente ao ato de Cristo suportar o castigo do pecado (aquilo qu e os teólogos cham am de obediênci a “passiva” de Cristo), mas à sua perfeita obediência a Deus em meio à mais difícil oposição e dificuldade (a chamada obediência “ativa” de Cristo). Além do mais, conquanto em outras passagens se diga que a obediência perfeita de Cristo obteve para nós a aprovaçã o divina que Adão não conseguiu ob ter e que não conseguiriamos obter por nós mesmos (cf. Rm 5.18,19), aqui Pedro enfatiza que a obediência de Cristo em meio ao sofrimento injusto nos deixou um exemplo a ser imitado, um exemplo do tipo de vida perfeitamente agradável aos olhos de Deus. Quando alguém sofre de forma injusta, a confiança em Deus e a obediência a ele podem não ser fáceis, mas são aprofundadas pela aflição imerecida, e dessa maneira a glorificação de Deus é mais plena (cf. 1.6,7 e comentário s ali; tam bém 4 .13,16,19; T g 1.2-4;
Lc 24.26; Fp 3.10; Hb 2.10; 12.2-4). 129
1PEDRO
Embora isso possa inicialmente nos desalentar, saber que fomos cha mados a uma vida que incluirá algu m sofrimento injusto n ão deve, em última instância, inquietar nossa mente. E claro que não devemos buscar o sofri men to (Mt 6.13), mas, quan do ele chega, pode mo s até mesm o “nos alegrar” (lPe 4.13; Tg 1.2), sabendo que com ele Deus nos atrairá para si, conhece remos a comunhão de Cristo, que entende nosso sofrimento, e “o Espírito da glória e de Deus” (4.14, [ARA]) repousará sobre nós. 22. Pedro explica com mais detalhes o padrão de vida que Cristo deixou para nós: ele não cometeu pecado, nem engano algum foi achado na sua boca (citação de Is 53.9). Em várias passagens o Novo Testamento afirma a total ausência de pecado em Cristo (Mt 27.4; Jo 8.29,46; 18.38; 2Co 5.21; Hb 4.15; ljo 3.5); aqui se menciona em especial a ausência de engano ou ardil (observe comentário sobre “engano” em 2.1). “Este versículo oferece um test em un ho notável da tot al ausênci a de pecado em Jesus, teste mun ho dado por alguém que teve a mais profunda intimidade com ele” (Stibbs/Walls, p. 118). A exigência de Deus a todas as pessoas é total ausência de pecado mesmo quando debaixo da mais intensa pressão para pecar, exigência que Cristo satisfez e nos serve de exemplo e motiv ação (comp. Hb 12.3,4). Os quatro versículos deste trecho se baseiam em Isaías 53. O versículo 22 cita Isaías 53.9, e o versículo 23 aparentemente faz alusão a Isaías 53.7. O versículo 25 ecoa Isaías 53.6 (“Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas”). Da mesma forma, o versículo 24 não inclui uma citação exata, mas apresenta palavras e expressões evidentemente extraídas de Isaías 53.12 (“ele levou sobre si o pecado [‘pecados’, LXX] de muitos”; cf. Is 53.4,11) e de Isaías 53.5 (“por seus ferimentos fomos sarados”). 23. A reação de Cristo ao tratamento injusto era tal que, ao ser insultado, não retribuía o insulto, quando sofria, não ameaçava. Insultado se refere a ultrajes e ofensas (observe o m esm o term o na LX X de N m 20.3, em qu e os israelitas “insultaram” Moisés de tal maneira que ele respondeu com aspereza e bateu na pedra com raiva; veja Nm 20.10,11; cf. tb. Jo 9.28; ICo 4.12). Cristo foi insultado de modo especialmente intenso durante seu julgamento e crucifi cação (Mt 26.67,68; 27.12-14,28-31,39-44; Lc 22.63-65; 23.9-11). Quando assim maltratados, a reação instintiva dos seres humanos é tentar se vingar, ferir por ter sido ferido. Ou, caso isso seja impossível, as pessoas ameaçamdar o troco mais tarde, tentando pelo menos deixar seus inimigos preocupados
com a possibilidade de vingança em algum mo mento futuro. 130
1PED RO 2. 18- 25
Mas essas reações são naturais só para as pessoas que dependem de si mesmas e acreditam que Deus não está no controle da situação. Para a pessoa sofredora que confia profundamente em Deus e crê que ele está de fato no controle de cada situação, existe outra resposta, perfeitamente exemplificada por Jesus: ele se entregava àquele que julga com justiça(RSV). A palavra “confia va” (paradidomi) significa “transferia, entregava, su bm etia ”. O texto grego não especifica o que Jesus confiava a Deus, mas, visto que as opções de retribuir com ameaças e insultos afetam tanto os malfeitores quanto aquele que sofre, é incorreto limitarmos o pensamento apenas a “entregar-se a Deus” (como na NIV). Ele entregava “àquele que julga com justiça” não apenas a si mesmo, mas também os malfeitores, aqueles que o seguiam e, aliás, a situação toda. O tempo imperfeito subentende ação repetida no passado, que fica bem traduzido pela NASB: “continuava entregando”. Mais uma vez a fé é vista como a atitude necessária no sofrimento ju sto . E m vez de depe nder de sua pró pria capacidade de retaliar (bem maior que a capacidade de seus adversários), quando sofria, Jesus continuava entregando a situação a Deus Pai, sabendo que este seria justo e imparcial, pois é o único que julga com justiça. E importante assinalar que Pedro não recomenda nem o suposto valor terapêutico de expressar raiva quando se é prejudicado nem a contenção pura e simples da ira e a tentativa de suprimi-la (ambas as soluções dependem do esforço da própria pessoa), mas, sim, a entrega repetida e continuada da situação nas mãos de Deus. Quando Pedro se refere a Deus como aquele que julga com justiça, está sugerindo que Jesus tinha consciência de que, na condição de juiz, Deus retribu iría co m justi ça ao malfeito r (cf. 4.5) ou perdoaria, po rque o castigo seria recebido por ele mesmo na cruz (v. 24). Esse conhecimento de que, no final, Deus corrigirá todos os erros é essencial à reação cristã diante do sofriment o, pois Deus colocou den tro todos nós u de m sentimento de justiça que não permite que simplesmente nosdeesqueçamos injustiças sofridas, para cujos responsáveis achamos que não haverá punição. Mas entregar a situação a Deus, sabendo que no final “quem faz injustiça receberá a pag a da injustiça que fez, não importa quem seja” (Cl 3.25; cf. 2Ts 1.5,6; Tg 5.7,8), significa qu e nossa sensação de inju stiça sofrida po de ser apazigu ada e então nos ca pacitar a im itar Jesus na oração: “Pa i, perdoa-lhes, pois n ão sabem o que fazem” (Lc 23.34). Dessa maneira procuramos para os malfeitores não um perdão sem custo (algo impossível no universo justo de Deus), mas um
perdão pago ao elevado preço do sangue de Cristo (lPe 1.19). 131
1PEDRO 24. Aqui se encontra um a declaração explíci ta do âmag o do evangelho Ele mesmo levou nossos pecados em seu corpo sobre o madeiro. O fato de que Cristo levou nossos pecados significa que Deus Pai pôs nossos pecados na conta de Cristo e, de uma maneira que não entendemos plenamente, “fez cair a maldade de todos nós sobre ele” (Is 53.6). Na mente do Pai, nossos pecados pertencem a Cristo; “daquele que não tinha pecado Deus fez um sacrifício pelo pecado” (2Co 5.21) e então o castigou com a ira contra o pe cado, com a separação de Deus e co m a consequente m orte que merecíamos. Dessa maneira Cristo foi um substituto de seu povo, cujo lugar ele assumiu. Madeiro também podería ser traduzido por “cruz”, pois a palavra não é dendron, “árvore” (RSV), mas xylon , “madeira, objeto feito de madeira”, e é traduzida de várias maneiras de acordo com o contexto (“pedaços de pau” em Mt 26.47,55; “tronco” em At 16.24; “árvore” em Ap 22.2). Parece que Pedro faz uso da palavra xylon no lugar de stauros, “cruz”, em uma tentativa intencion al de tra zer à lembr ança dos leitores a figura de maldição assoc iada às punições judiciais do pecado em Deuteronômio 21.23 (cf. Gl 3.13; tb. At 5.30; 10.39; 13.29). A palavra é trad uzid a po r “made iro”, pois to rna mais óbvia a a lusão a Deu tero nô mio 21.23. Levou traduz uma palavra (anapherõ)que tem o sentido de “carregou”, e, se esse é o sentido aqui, significaria que Cristo “carregou” nossos pecados em seu corpo “até” ( epi) a cruz (veja NASB marg., RSV marg., NEB). Mas anapherõ também pode significar “suportar, aguentar, resistir” (sofrimentos, perigos, dificuldades), e, uma vez que esse é o sentido em Isaías 53.11,12 (e em H b 9.28, que cita Is 53.12), é melho r tam bém interpretá-la aqui com o sentido de “ele suportou nossos pecados”. (Veja adiante nota adicional.) Pedro diz que o prop ósito de C risto suportar nosso pecado fo i que, mortos para os pecados, pudéssemos viver para a justiça. O verbo morrer está em uma forma (particípio aoristo antes do verbo principal) que muitas vezes indica ação an terior à do verbo prin cipal (aqui, “viver”). O sentido seria este: “para que nós, tendo morrido para o pecado, vivamos para a justiça”. Essa decla ração tão notável é parecida com o ensino de Paulo em Romanos 6.1-23 de que, por ocasião da conversão, os cristãos morrerampara o (poder dominador do) pecado (Rm 6.2-11,14) e são capazes de desenvolver a santificação na vida. Pelas suas feridas fostes sarados é extraído de Isaías 53.5. Pedro faz aqui uma aplicação moral das palavras: pelas feridas de Cristo fomos “curados” do pecado. Aqui aparece de novo a idéia do castigo de um substituto: Cristo tomou sobre si o castigo merecido por nós e, desse modo, nos curou
(espiritual e moralmente). 132
1PEDRO 2.18-25 Porque vivíeis como ovelhas desgarradas 25. lembra Isaías 53.6: “Todo nós andávamos desgarrados como ovelhas, cada um se desviava pelo seu caminho”. Isso ficou no passado, pois agoraeles retornaram(pela conversão) a Cristo, o Pastor, e po r isso devem seg ui-lo com uma vida de “justiça” (v. 24). Ele é também o Bispo ou “Guardião” [BEP] que lhes observa todas as ações, protege-os e deles espera que vivam um a vida de justiça. Retornastes não significa que tinham estado com Cristo antes de se des viarem, pois em outras passa gens o verbo ( epistrephõ) é usado para designar a ação de “virar-se” ou “converter-se” do pecado (At 3.19; 9.35; 11.21; 14.15; lTs 1.9). Ao especificar aquele para quem se voltaram, Pedro declara que virar as costas para o pecado inclui o ato de virar-se para Cristo e submeter-se à sua liderança como “Pastor e Guardião”.
Nota adicional: Cristo “carregou nossos pe ca do s até a cr uz ”? (2.24)
De modo surpreendente, BAGD, na p. 63,3, nega que anapherõ possa ter o significado de “suportar”. Mas o vocábulo ocorre com esse sentido em Políbio (segundo século a.C.) 1.36.3 (suportar durante algum tempo calúnia e falsa acusação); 4.45.9 (suportar, resistir ao peso da guerra); Tucídides (quinto século a.C.) 3.38.3 (a cidade suporta, resiste aos perigos); cf. LSJ, p. 125, 3: “sustentar, levar sobre si” (com referência específica a Is 53.12; Hb 9.28 e ou tras passagens de autores clássicos).15 Neste caso, o prefixo ana- obviamente transmite a nuança de “permanecer firme sob” (um peso). É esse o sentido da LXX de Isaías 53.11,12, que diz que o Servo do Senhor suportou os pecados dos transgressores (veja o v. 4, em que pherõ, “suportar”, é usado com o m esmo senti do). Citan do Isaías 53.12, Hebreus 9.28 tam bém emprega a palavra com o m esmo sentido: “ Tendo sido ofer ecido um a única vez para su porta r os pecados de muitos” (RSV). Deissmann, p. 88-91, defende que anapherõ seguido de epi com acusativo (como em lPe 2.24) não pode ter o sentido de “suportou (pecados) sobre omadeiro”, pois isso exigiría epi com dativo. Ele sugere que a oração significa que Cristo carregou nossos pecados “até a cruz”. E conclui: “Dessa maneira, a expressão significa em termos bem gerais que, com sua morte, l5Meu aluno T. Matthew Arnold chamou minha atenção para outros dois exemplos claros de anapherõ com o sentido de “suportar” (censura ou pecado), na LXX de Números
14.33 e de Ezequiel 36.15.
133
1PEDRO Cristo levou nossos pecados: não há indício das idéias especiais de subs tituição ou sacrifício” (p. 90). Aliás, ele em seguida defende que, em vez de dizer que C risto “su po rto u” ele mesm o os pecados dos ho mens, 1Pedro 2.24 emprega anapherõ com o sentido de “carregou e colocou sobre outra pessoa”, significando que levou para nossos pecados a cruz e ali os colocou, transferindo-os nãoCristo dos homens si, mas para até a cruz (p. 9l). N o entanto, (l) Deissman está errado quan do diz que “sobre o ma deiro” exigiría epi com dativo, porque epi com acusativo com certeza pode significar “sobre” sem ser necessária nenhuma ideia de “movimento para uma posição acima de/sobre” (veja lPe 4.14: “porque sobre vós repousa o Espírito da glória, o Espírito de Deus”; cf. 3.12; Mc 4.38: “dormindo sobre uma almofada”; veja exemplos também em BAGD, p. 288, Ill.l.a. [zêta]; cf. o comentário em Beare, p. 149-50). O uso do acusativo (em lugar do ge nitivo que se encontra na LXX de Dt 21.23) pode ser apenas uma mudança estilística ou resultar do fato de se tratar de uma citação feita de memória — o que não surpreende, pois em vários pontos Pedro faz citações não textua is da LX X. (2) Isaías 53 enc ontr a-se tão claramente p or trás de 1Pedro 2.22-25, que precisaríamos de um ótimo motivo para interpretar anapherõ com um sentido bem diferente do sentido que ele tem em Isaías. (3) Isaías 53 indica de forma inequívoca o ato de “suportar” nosso pecado quando diz “mas o Senhor fez cair a maldade de todos nós sobre ele” (v. 6; cf. v. 4,5,8,10). (4) Embora Colossenses 2.14 de fato diga que a “escrita de dívida” contra nós foi cravada na cruz, nessa passagem é Deus Pai quem pratica a ação e certamente isso não substitui a aplicação do castigo sobre a pessoa de Cristo (pois a figura paulina de “pregar” ou “cravar” podería lembrar somente a crucificação de Cristo e implica que a escrita de dívida contra nós foi cancelada quando Cristo suportou nosso castigo ao ser ele mesmo pregado na cruz). (5) N os ensinamentos do restante do Novo Testamento, o ato de Cristo levar nossos pecados até a cruz (e sobre ela colocá-los em vez de ele próprio suportá-los) seria algo tão ineficaz quanto pôr pecados sobre um “bode expiatório” no regime da antiga aliança: só uma pessoa, alguém “em tudo [...] semelhante a seus irmãos” podia ser o sacrifício que faria de verdade “propiciação pelos pecados do povo” (Hb 2.17, NASB marg. e KJV marg.; cf. 7.27; 9.14,22,26,28; 10.4,10; Rm 4.25; 2Co 5.21). E melhor então rejeitar a ideia de que lPedro 2.24 significa que Cristo “carregou” nossos pecados até a cruz. O versículo afirma, na verdade, que “ele suportou nossos pecados em seu corpo sobre o madeiro”, sofrendo o
castigo que merecíamos por nossos pecados. 134
1PE D RO 3. 1- 7
d. A vida com o cônjuges (3.1-7)
1. Espo sas: sujeitai-v os aos ma ridos ( 3.1- 6) 1. Assim como to dos os cristãos devería m se sujeitar às autor idade s gover namentais (2.13-17), e os servos se submeter a seu senhores (2.18-25), Pedro agora exorta as esposas a se sujeitarem aos maridos (3.1-6). Ao contrário das duas seções anteriores , esta conté m instruçõ es tam bém para aqueles que têm autoridade sobre o grupo ao qual Pedro se dirige, a saber, os maridos (v. 7). O fato de Pedro dirigir seis versículos às esposas e só um aos maridos não deve ser usado para defe nder (como Kelly faz, p. 127) que entre os leitores de Pedro havia mais mulheres que homens: a extensão de uma argumentação é determinada pelo número de palavras que o autor considera necessárias para deixar clara sua mensagem e não pelo número de leitores ou ouvintes! A locução do mesmo modo (homoiõs) geralmente significa “de modo parecido”, mas o grau de semelhança pode variar bastante (cf. Lc 10.32,37; 16.25; ICo 7.22; Tg 2.25). E possível que aqui a palavra signifique: (l) semelhante ao exemplo de Cristo em 2.21-25; ou (2) semelhante ao tipo de submissão dos servos em 2.18; ou (3) outra possibilidade é que homoiõs simplesmente signifique “também”, além do mais”, introduzindo um novo assunto na mesma área (relacionamento com as autoridades), sem subenten der alguma semelhança de conduta (veja BAGD, p. 568, e 3.7; 5.5). A segunda opção é melhor aqui. Do mesmo modo modifica seja sub missa, e o leitor naturalmente faria a associação com 2.18, a última vez em que Pedro usou o verbo “ser submisso” ( hypotassõ): Servos, sujcitai-vos (2.18) [... e] Mulheres, do mesmo modo, cada uma de vós seja submissa (3.1). (A forma de expressão é exatamente a mesma n o texto gr ego, c om o uso relativamen te raro de um particípio para expressar uma ordem em ambos os casos.) Não obstante, Pedro não emprega o termo mais forte kathos, “exatamente da mesma maneira”, nem diz “em todas as coisas ( kata panta, Hb 4.15) sede semelhantes aos servos em vossa submissão” (pois é claro que as esposas não se relacionam com os maridos do mesm o mo do que os servos se relacionam com os senhores!). A semelhança pretendida está aparentemente no motivo (“por causa do Senhor”, 2.13), no alcance da aplicação (aos senhores, 2.18, ou aos maridos, 3.1, bons ou maus), na postura (temendo de modo saudável deixá-los descontentes [ou com temor a Deus], 2.18 e 3.2) e no conceito básico de submissão à autoridade (2.18 e 3.1). (Veja, em 2.13, comentário sobre o ensino
das Escrituras no que diz respeito à obediência às autoridades em geral.) 135
1PEDRO
Cada uma de vós seja submissa ao marido significa se submeter de bom
grado à autoridade ou liderança do marido no casamento. A ideia de obediência espontânea está envolvida nessa submissão, como fica claro nos versículos 5 e 6. Ali, Pedro ilustra o “sujeitar-se aos marid os” com o exemplo de obediência de Sara diante de Abraão, mostrando assim que obedecer (hypakouõ) é a man eira pela qual Sara era submissa ( hypotassõ, mesma palavra usada no v. l). Às vezes, o vocábulo hypotassõ (“ser submiss o”) é inter pretado no sentido de “ser cuidadoso e atencioso; a gir com am or” (em relação a outr a pessoa).16 Mas esse não é um significado legítimo do termo, que sempre subentende relacionamento de submissão a uma autoridade. Ele é usado em outras pas sagens do Novo Testamento para desig nar a submissão de Jesus à autoridad e dos pais (Lc 2.51), submissão de demônios aos discípulos (Lc 10.17 — é claramente impossível encaixar aqui o sentido “agir com amor, ser aten cioso”), submissão de cidadãos às autoridades governamentais (Rm 13.1,5; Tt 3.1, lPe 2.13), submissão do universo a Cristo (iCo 15.27; Ef 1.22), submissão de poderes espirituais invisíveis a Cristo (lPe 3.22), submissão de ' uso do verbo em Efésios 5.21 (“sujeitan do-vos uns aos outro s”) em geral tem sido citado em apoio a essa ideia, e a expressão “submissão mútua” tem sido usada para descrever a suposta relação versículo. No o contexto seguinte define aquilo que Paulo quer defendida dizer com pelo “sujeitando-vos uns entanto, aos outros” em Efésios 5.21: ele quer dizer “sujeitando-vos aos que na igreja estão em posição de autoridade sobre vós”. A explicação para isso é a seguinte: as esposas devem se sujeitar aos maridos (5.22-24), mas os maridos nunca recebem ordem de se sujeitar às esposas. As crianças devem se sujeitar aos pais (“sede obedientes” a eles, 6.1-3), mas os pais nunca recebem ordem de se sujeitar aos filhos. Os servos devem se sujeitar (“obedecer”) a seus senhores; mas não os senhores aos servos. O equívoco com esse versículo surgiu devido à pressuposição de que “uns aos outros” ( cillelous) tem de ser totalmente recíproco (i.e., significa necessariamente “cada um ao outro”). Mas há muitos casos em que a palavra não assume esse sentido, mas antes significa “alguns a outros”: por exemplo, em Apocalipse 6.4, “de modo que os homens matassem uns aos outros” significa “de modo que alguns homens matassem outros”; em Gálatas 6.2, “levai os fardos uns dos outros” não quer dizer “todos devem trocar os fardos com todos”, mas “aqueles que são mais capazes devem ajudar a levar os fardos dos menos capazes”; em lCoríntios 11.33, “quando vos reunis para comer a ceia, esperai uns pelos outros” significa “os que estão prontos devem aguardar os atrasados” (cf. Lc 2.15; 12,1; 24.32). Da mesma forma, em Efésios 5.21, tanto o contexto seguinte quanto o significado de hypotassõ exigem qu e a oração tenha o sentido de “o s que estão deba ixo de autoridade
devem se sujeitar aos outros que têm autoridade sobre eles”.
136
1PE D RO 3. 1- 7
Cristo a Deus Pai (lCo 15.28), submissão de membros da igreja aos líderes eclesiásticos (lCo 16.15,16 [com lClemente 42.4]; lPe 5.5), submissão das esposas aos maridos (Cl 3.18; Tt 2.5; lPe 3.5; cf. Ef 5.22,24), submissão da igreja a Cristo (Ef 5.24), submissão de servos a seus senhores (Tt 2.9; lPe 2.18) e submissão dos cristãos a Deus (Hb 12.9; Tg 4.7). Nenhum desses relacionamentos é jamais invertido; ou seja, nunca se diz aos maridos que devem se sujeitar ( hypotassõ) às esposas, nem ao governo que deve se sujeitar aos cidadãos, nem aos senhores que devem se sujeitar aos servos, nem aos discípulos que devem se sujeitar aos demônios etc. (Aliás, o termo é usado fora do NT para descrever a submissão e a obediência de soldados no exército àqueles de posto superior; veja Josefo, Guerras 2.566,578; 5.309; cf. o advérbio em lClemente 37.2; também LSJ, p. 1897, que define hypotassõ [passivo] no sentido de “ser obediente”). Mas é preciso lembrar que, muitas vezes, a submissão à autoridade é coerente com a igualdade em importância, dignidade e honra — Jesus era submisso tanto aos pais quanto a Deus Pai, e os cristãos, tidos em elevada consideração aos olhos de Deus, assim mesmo recebem ordens para se sujeitar às autoridades governamentais e aos senhores incrédulos. Assim, jamais se deve interpretar que a ordem às esposas para que se submetam aos maridos subentende que elas sejam inferiores, tenham uma espiritualidade inferior ou menos importância. Na realidade, Pedro afirma justamente o contrário: as esposas são, junto com os maridos, herdeiras da graça da vida (v. 7). Além do mais, o princípio bíblico geral de obediência às autoridades, “exceto quando o cumprimento da ordem envolve pecado” (veja comentário em 2.13), também se aplica aqui. É claro que a submissão à autor idade do marid o den tro de um casamento saudável talvez não envolva obediência frequente a ordens (embora às vezes envolva), pois o marido talvez prefira pedir, procurar orientação e dialogar sobre o curso de ação a seguir (veja Fm 8,9). Não obstante, uma atitude de submissão à autoridade do marido se revela a cada dia por numerosas palavras e ações que refletem respeito à sua liderança e um reconhecimento de sua responsabilidade final — depois de um diálogo, sempre que possível — pelas decisões que afetam a família inteira. O propósito mencionado por Pedro para essa submissão é este: se alguns deles não obedecem à palavra, sejam ganhos sem palavra alguma pela conduta de sua mulher. Alguns comentaristas afirmam que muitas das esposas a quem
Pedro estava escrevendo, ou até a maioria delas, tinham maridos incrédulos,
mas o texto grego subentende justamente o contrário. O texto diz “para 137
1PEDRO
que, mesmo que alguns não obedeçam à palavra”, e a locução “mesmo que” (kai ei) dá a entender uma real idade inespe rada ou inco mu m, ficando implí cito que Pedro esperava que no meio de seus leitores a maioria das esposas cristãs tivesse marido cristão. Aqueles que não obedecem à palavra são maridos incrédulos; o verbo no tempo presente ( apeithousin) dá a entender um padrão de vida caracterizado por desobediência não apenas ao evangelho, mas também aos padrões de Deus em outras áreas da vida. O verbo não significa apenas que eles “não criam na palavra” (NIV [e BJ; cfi NTLH]), mas tem um sentido muito mais forte de desobediência ativa aos padrões das Escrituras e até mesmo de rebelião contra eles (veja, em 2.8, comentário sobre apeitheõ, “desobedecer”). Alguns deles (mas nem todos) deviam ser ríspidos e nada gentis com as esposas cristãs, mas Pedro diz que até mesmo esses maridos podem ser ganhos ou “conquistados” para o reino de Deus (observe os cinco usos da mesma palavra em ICo 9.19-22; tb. Mt 18.15 e, em um sentido comercia l, em M t 16.26; 25. 20,22; T g 4.13). Maridos incrédulos podem ser ganhos sem palavra alguma— isto é, não pela pregação contínua do evangelho nem por conversas afins, mas ape nas pela conduta de sua mulher,17 pelo padrão de vida cristã (veja, em 1.15, comen tário sobre anastrophc,“procedimento, conduta”). Essa ênfase no pro cedimento em lugar das palavras também é aplicável a outras situações em que cristãos se veem no contato regular diário com incrédulos (no trabalho, na família ou na república de estudantes etc.). Embora não diga exatamente que as mulheres cristãs nunca devem conversar sobre a mensagem do evan gelho com o marido ou com amigos e amigas incrédulos, Pedro indica que o meio geralmente usado por Deus para “ganhar” essas pessoas não são as palavras, mas a conduta. Ter conhecimento disso deve levar a pessoa a orar mais, tan to para receber gra ça para vi ver corretamente qua nto para qu e Deus atue no coração do marido. 2. Quando eles veem vosso comportamento reverente e casto (RSV) também podería ser traduzido como “porque veem [...]” ou “ao verem
170 texto gre go nã o traz a palavra “sua” (que estaria clara cas o Pedro tivesse usado o possessivo autõn), deixando aberta a possibilidade de que Pedro quer dizer que maridos incrédulos serão ganhos não apenas porque veem o comportamento submisso de suas próprias esposas, mas observando o padrão de casamento cristão exemplificado pelas
esposas em geral dentro da com unida de cristã . 138
1PED RO 3. 1- 7
[.. .]”.18 O versículo enfatiza ainda ma is o co mp orta me nto observável com o o segredo para gan har o incrédulo. Em temor é tradução d e ett phobõ (ou “com temor”). Veja, em 2.18, o comentário sobre “temor” — o mesmo sentido, “com receio saudável de deixá-los descontentes”, tam bé m se encaixaria aqui, embora “temor de Deus” (como em 1.17 e 2.17) não seja inadequado ao contexto, de modo que é difícil che gar a uma conclusão cla ra. Mas, visto que no versículo 6 Pedro adverte as esposas a não terem medo ou pavor (de serem maltratadas), é necessário excluir d aqu i qualq uer dessas nuanças. A palavra pura (hagnos) transmite a ideia de “isenta de corrupção moral”, e é mais um lembrete de que a submissão ordenada por Pedro nunca chega ao ponto de incluir uma obediência que envolva a prática de algo moralmente errado. A atração que o comportamento submisso de uma mulher exerce até sobre um marido incrédulo dá a entender que Deus gravou no coração de toda a humanidade que a distinção de papéis no casamento é algo certo e belo. Os papéis distintos incluem a liderança ou direção pelo homem e a aceitação des sa liderança pela mulh er co m um a reação positiva da parte del a. Alguém talvez objete que a submissão feminina é atrativa para o marido incrédulo apenas porque ele está egoisticamente interessado em conquistar poder ou porque essa submissão se encaixa na percepção vigente em sua cultura no que diz respeito às relações apropriadas entre homem e mulher, mas tanto em um caso quanto em outro (segundo o raciocínio dessa posi ção) essa distinção de papéis ainda seria errada ou incoerente com o plano ideal de Deus para o casamento. No entanto, essa objeção não convence, pois Pedro não incentivaria que um padrão de comportam ento pecam inoso (seja da cultura, seja do próprio marido) fosse mantido para levar alguém à fé: é comportamento “puro” e não pecaminoso que atrai os incrédulos a Cristo. E Pedro diz que esse com portam ento “pu ro ” envolve especialmente a submissão da esposa ao marido. O mar ido incrédulo vê esse com portam ento e lá no fund o percebe sua beleza. D entro de seu coração há u m testem unh o de que isso é certo, de que é assim que Deus quis que homens e mulheres se relacionassem como marido e mulher. Portanto, o marido conclui ser verdadeiro o evangelho em que sua mulher crê.
180 texto g rego da UBS te m um particípio aoristo, mas a variante textual epopteuontes (particípio presente) é encontrada em alguns dos melhores manuscritos (p72, Sinaítico etc.). Isso parece colocar mais ênfase no observar a conduta da esposa cristã ao longo de
um período de tempo. 139
1PEDRO 3. Agora a atenção se volta para a beleza da mulher, que não consiste em coisas visíveis e externas, que perecem, mas em realidades espirituais invisíveis, que são eternas. O que vos toma belas não deve ser o enfeite exteriorreflete bem o sentido do texto srcinal e prepara o leitor para o contraste com o “enfeite interior ” no versículo 4. Enfeitar se refere àquilo que se quer destacar na atratividade de alguém, aquilo que a pessoa usa para se fazer bela para os outros. Para serem atraentes, as mulheres cristãs não devem depender de coisas externas, tais como as tranças dos cabelos, as joias de ouro ou o luxo dos vestidos, mas de qualidades interiores de vida, em especial “um espírito gentil e tranquilo” (v. 4). Em bora a R SV [e A2 l] fale de luxo dos vestidos (a NIV [e NVl] emprega expressão parecida), o texto grego não inclui adjetivo ou locução adjetiva para modificar vestidos (himation) e diz literalmente: “Que vosso enfeite não seja o enfeite externo de trançar os cabelos, usar ouro ou vestir roupas”. Por isso, é incorreto usar esse texto para proibir as mulheres de fazer tranças no cabelo ou usar joias de ouro, pois, pelo mesmo raciocínio, seria necessário proibir “vestir roupas”. O que Pedro quer dizer não é que essas coisas sejam proibidas, mas que não devem ser o “enfeite” da mulher, sua fonte de beleza. 4. O íntimo do coração (lit., “o homem escondido no coração” [veja TB]) é a natureza interior da mulher, sua verdadeira personalidade. N ão é visível em si, mas se revela mediante palavras e ações que refletem posturas do íntimo. Que não pereceé no g rego um adjetivo que o Novo Testamento sempre usa para falar de realidades celestes, coisas que não se desvanecerão com o desaparecimento do mundo presente (veja, em 1.4, comentário sobre essa palavra). Visto que Pedro emprega esse adjetivo sem um substantivo que o acompanhe, o leitor é obrigado a provê-lo com base no contexto. Várias sugestões têm sido feitas (“joia imperecível”, RSV; “beleza incorruptível”, NIV; “qualidade imperecível”, NASB; “ornamento incorruptível”, NEB [incorruptível trajo”, ARA; “pureza incorruptível”, BAM; “enfeite inalterável”, BEP]), mas a ideia é aproximada mente a mesma em todas elas: a beleza de um espírito gentil e tranquilo durará por toda a eternidade, em contraste com a beleza fugaz de joias ou roupas. O adjetivo gentil (praüs) ocorre apenas três outras vezes no Novo Testamento (Mt 5.5; 11.29; 21.5), duas vezes referindo-se a Cristo, mas o substantivo cognato, traduzido por “brandura” [“amabilidade”, A2l] ou “mansidão” [“humildade”, A2l], é mais frequente (Gl 5.23; 6.1; Tg 3.13 etc.). Esse adjetivo tem o sentido de “alguém que não insiste em fazer prevalecer seus próprios direitos” ou “alguém não insistente, não exigente
de modo egoísta”, “alguém que não exige tudo a seu modo”. Esse 140
espírito
1PEDRO 3.1-7
gentil e tranquiloserá belo aos olhos de outros seres humanos, até de maridos incrédulos (v. 1,2), mas, ainda mais importante, isso é algo que tem muito valor diante de Deus.Por quê? Sem dúvida porque esse espírito é resultado de uma confiança tranquila e contínua de que Deus suprirá as necessidades, e Deus se alegra quando confiam nele (cf. 1.5,7,8,9,21; 2.6,7,23; 3.12; 5.7).
5. Para ressaltar a preciosidade da confiança íntima em Deus, Pedro recorre à vida de santas mulheres que esperavam em Deus. Embora mencione especificamente Sara no versículo 6, o plural “mulheres” é uma referência geral às mulheres piedosas do Antigo Testamento. “Esperando em Deus” (o particípio presente indica uma esperança que dura por um período de tempo), elas se enfeitavam “dessa m aneira” ou “assim” (houtds, “desse modo”, que indica enfeitar-se com um espírito gentil e tranquilo). O verbo enfeitar é cognato do substantivo “enfeite” no versículo 3, e o pretérito imperfeito indica ação contínua ou repetida ao longo do tempo no passado, isto é, “elas repetida ou continuamente se enfeitavam” dessa maneira. E estavam submissas ao marido nos traz de volta ao tema dos versículos 1 e 2 e indica que existe relação entre uma atitude submissa e a beleza interior dos versículos 3 e 4. Em uma mulher, a confiança tranquila em Deus produz a beleza imperecível de um espírito gentil e tranquilo, mas também a capa cita a se submeter à autoridade do marido sem medo de que no final essa autoridade seja prejudicial ao seu bem-estar ou à sua pessoa. 6. Sara é um exemplo específico de submissão piedosa. As esposas de vem ser submissas aos maridos (v. 5) da mesma maneira como Sara obedecia a Abraão, chamando-lhe senhor. N ão parece que a qui Pedro estej a se referindo a qualquer in ciden te específico, pois o verbo principal e ambo s os particípios do versículo 5 indicam um padrão continuado de procedimento durante a vida de alguém (veja acima).ly 190 tem po a orist o aqui t radu zid o p or “obedecia” nâo precis a se referir a apenas um episódio, pois muitas vezes o aoristo do indicativo é usado em um sentido “constativo” e diz simplesmente que algo “aconteceu”, sem especificar se aconteceu em um momento ou durante um período bem longo de tempo (cf. os aoristos do indicativo em Efésios 5.25, “Cristo amou a igreja”; Romanos 5.14, “a morte reinou de Adão até Moisés”; Apocalipse 20.4, “Eles [...] reinaram com Cristo durante mil anos”; também BDF, seção 332). Selwyn (p. 185) e Kelly (p. 131) dizem qu e Pedro está se referindo a Gênesis 18.12, mas isso não é nada provável, visto que a passagem não menciona nenhuma obediência a
Abraão e Sara está falando consigo mesma e não com ele. 141
IP E D R O
O exemplo de obediência de Sara devia ser um bom incentivo às mu lheres a quem Pedro estava escrevendo, pois Sara se tornou a mãe de todo o povo de Deus na antiga aliança (Is 51.2; cf. Gl 4.22-26), ainda que seguir Abraão lhe havia significado muitas vezes confiar em Deus em situações incertas, desagradáveis e até mesmo perigosas (Gn 12.1,5,10-15; 13.1; 20.2-6 [cf. v. 12]; 22.3). Mas Pedro diz: delas soisfilhas, os verdadeiros membros da família espiritual de Sara, o que indica (como em 1.1 e 2.4-10) que Pedro vê a igreja — e não aqueles que descendiam fisicamente de Abraão e Sara — como a verdadeira descendência de Abraão e, desse modo, o verdadeiro povo de Deus. Ser filha de Sara é ser coerdeira das promessas e da honra dadas a ela e a Abraão. A condição para ser filha de Sara é assim declarada: se fizerdes o bem sem nenhum temor. N o texto grego, ambos os ve rbos são mais uma vez particípios, o que indica um padrão de vida mantido ao longo de um período de tempo: “Se estais fazendo o bem e nada vos deixa assustadas”, então sois (para ser mais exato, “vos tornastes”) filhas de Sara. A insistência de Pedro em “fazer o bem” é um lembrete de que nenhum dos atos de desobediência na vida de Sara deve ser imitado pelas esposas cristãs (cf Gn 16.2,6; 18.15; talvez 20.5); o qu e Pedro elogia é a submissão ao m arid o e a confiança em Deus. A condição “se [...] sem nenhum temor” é outra maneira de expressar a fé. Uma mulher com “um espírito gentil e tranquilo” que “continua esperando em Deus” não ficará apavorada com as circunstân cias nem com um marido incrédulo ou desobediente (cf Gn 20.6).
2. M ar id os : tr a ta i as es po sa s co m co ns id er aç ão (3.7) 7. Agora Pedro fala rapidamente aos maridos, mas faz uso do mesmo vigor. Aqui a expressão da mesma fiormatem o sentido de “também” ou “continuando a tratar do mesmo assunto” (BAGD, p. 568; comp. lPe 5.5), pois a ideia de semelhança de submissã o está excluída pelo fa to de que a qui (ao con trário de 2.18 e 3.1) Pedro não ordena a submissão, mas o uso sensato da autoridade. A expressão vivei com não tem nenhuma nuança especial além de seu sentido comum, exceto pelo fato de ser usada várias vezes na LXX para se referir a marido e m ulh er q ue “vivem ju nto s”.20
“ Kelly, p. 132, diz que o verbo synoikeõ refere-se especificamente a relações sexuais, mas nem BAGD (p. 791) nem LSJ (p. 1721) indicam tal sentido, e ele é impossível em De utero nôm io 25.5 (“se dois irmãos mo rarem jun to s”); Sabedoria 7.28 (“Deus ama [...] o
homem que vive com sabedoria”); Eclesiástico 25.16. 142
1PEDRO 3.1-7 Vivei com [...] elas com entendimento é, literalmente, “vivendo juntos de acordo com o conhecimento” (quanto ao uso do particípio como impe rativo, veja o comentário em 1.14). Pedro não especifica em que tipo de conhecimento ele está pensando ao usar a expressão “de acordo com o conhecimento”, de maneira que alguma expressão genérica como “com compreensão” (NASB [e VFL]) é uma boa tradução. O segmento de fra se “mostrando consideração” (RSV [e BEP]; de modo parecido a NIV) dá demasiada ênfase a uma atitude atenciosa ao mesmo tempo que ignora o destaque par a o “conh ecim ento ” ou informaçã o concreta tamb ém subenten didos na palavra de Pedro. O “conhecimento” em que Pedro está pensando pode incluir qualquer informação benéfica ao relacionamento entre ma rido e mulher: conhecimento dos propósitos e princípios de Deus para o casamento; conhecimento dos desejos, objetivos e frustrações da mulher; conhecimento de seus pontos fortes e pontos fracos nas esferas física, emo cional e espiritual etc. O marid o qu e vive de acordo com esse conhe cimento enriquecerá seu relacionamento matrimonial — mas tal conhecimento só pode ser obtido mediante estudo regular da Palavra de Deus e com momen tos regula res de co mun hão sem pressa com o mari do e esposa.21 Dando honra à mulher como parte mais frágil declara um tema encontrado várias vezes no Novo Testamento, a saber, que com fre quênc ia Deus se agra da de ho nrar os mai s fracos ou meno s honrad os aos olhos do mun do (cf. Mt 5.3-12; ICo 1.26-30; 12.22-25; Tg 2.5; 4.6; lPe 5.5). Nesse caso, a honra deve inc luir palav ras amáveis e de apo io expressas tan to e m particu lar q uan to em público e alta prioridade concedida à esposa na ho ra de decidir como usar o tempo e o dinheiro. (A tradução “com respeito”, NIV [e NTLH], é fraca demais — é possível tratar alguém com “respeito” formal e distante, sem dar nenhuma honra especial à pessoa.) Por outro lado, assim como as esposas não devem obedecer ao marido quando recebem ordens de desobe decer a Deus (veja comentários em 2.13 e 3.1), da mesma forma os maridos nunca devem permitir que o amor pela esposa se torne desculpa para pecar — u m princípio tragicamente ignorado por Salomão (lRs 11.3-8), Acabe (lRs 21.25), Abraão (Gn 16.2) e talvez até Adão (Gn 3.6).
21
Um livro que m erece ser men cionado aqui (simplesmente porq ue encerra mu ita
sabedoria prática sobre esse assunto) é James Dobson, M an to ma n a bout w omen (Eastbourne: Kingsway, 1976 = What wives wish their husbands knew about women [Wheaton: Tyndale, 1977]) [edição em português: O que as esposas desejam que seus maridos saibam a respeito
das mulheres (São Paulo: Vida, 1996)].
143
1PEDRO
Mulher é tradução de uma palavra rara (que tem o sentido mais literal de “do sexo feminino”). O vocábulo dá a entender que Pedro olha para a natureza própria da feminilidade e sugere que o próprio “estado feminino” da esposa deve levar o marido a honrá-la. Pedro não especifica como entende ser a mulher a parte mais frágil, mas o contexto deve tê-lo feito pensar em algum tipo de fragilidade da qual os maridos não deviam tirar proveito. Com certeza isso incluía a ideia de que, de modo geral, as mulheres são fisicamente mais frágeis que os homens (i.e., se os homens tentassem, de modo geral conseguiríam dominar fisicamente a e sposa). Mas o conte xto tamb ém mostra q ue no casamento as mulheres são mais “frágeis” no que diz respeito à autoridade (v. 1,5,6); por isso, Pedro orienta os maridos a darem honra às esposas em vez de abusarem de sua autoridade com fins egoístas. Mas tamb ém pode haver um terceiro sentido de “fragilidade” que se encaixaria no contexto (porque é algo de que os maridos não devem tirar proveito), a saber, uma sensibilidade emocional mais pronunciada. Embora isso também seja um ponto fone, assim mesmo significa que é provável que as es posas sejam, com maior frequência, feridas por conflitos dentro do casamento ou por comportame ntos impensados da parte d o marido. Sabendo disso, os ma ridos cristãos não devem ser “ásperos” (Cl 3.19) nem encher o relacionamento conjugal com críticas e conflitos, mas, pelo contrário, devem ser positivos e dar apoio, “com compreensão”, “dando honra à mulher como parte mais frágil”. A palavra traduzida por parte na expressão “parte mais frágil” é skeuos, que muitas vezes significa “vaso, jarro, recipiente”, mas também é usada no Novo Testamento para designar seres humanos como “vasos” criados por Deus com o propósito de serem usados por ele (At 9.15; Rm 9.21; 2C o 4.7; 2T m 2.21). N ão há nen hu ma nuan ça depreci ativa aqui, po is o fato de a mulher ser chamada “vaso mais frágil” implica que o homem também é visto como “vaso”. O termo relembra que Deus criou todas as pessoas, tanto homens quanto mulheres, um lembrete da fragilidade humana e do dever para com Deus, nosso Criador. Deve-se assinalar que também é possível que “mulher” e “parte mais frágil” tenha m relação com o m anda men to “vivei com elas” e não com “dando honra”. Nesse caso, o sentido seria: “vivei com elas segundo o conhecimento, co mo parte mais frágil, o sexo femin ino” (cf. NASB, TEV). Apenas com bas e na gram ática não é possível de cidir q ual a leitur a certa — se esta leitura o u a da RSV (e NIY KJV [e A21, NTLH]) —, e os argumentos que apelam para o contexto também não parecem ser conclusivos a favor de nenhum lado.
Mas no final não existe muita diferença, visto que os mandamentos de viver 144
1PEDRO 3.1-7 ju nto s e conceder honra fazem parte de um ún ico grande mandamento, e o fato de o marido saber que Pedro chama a esposa de “mulher ou aquela do sexo feminino” e “vaso mais frágil” deve mudar todo o conjunto de ações incluídas em “vivei com elas [...] co m entendime nto” e em “dan do ho nra ”. Porque sois,juntamente, herdeiros da mesma graça de vida [ARA] lembra os maridos de que, embora tenham recebido mais autoridade dentro do casa mento, suas esposas são iguais a eles em privilégios espirituais e importância eterna: elas são “coerdeiras” [NVl], Aqui e em outras passagens os autores do Novo Testamento combinam a análise das diferenças de papel de marido e esposa com uma declaração implícita ou explícita de igualdade em posição e imp ortân cia (cf. I C o 11.2,3,7- 12; E f 5.22-33; Cl 3.1 8,19). Embora alguns defendam que Paulo elimin ou as diferenças de papel ou autorid ade ao d ecla rar que homens e mulheres são “um em Cristo Jesus” e “herdeiros conforme a promessa” (Gl 3.28,29), chama a atenção o fato de que Pedro não enxerga aqui dificuldade alguma em declarar que as esposas são “coerdeiras” em um sentido que inclui submissão à autor idade dos maridos. O porque na RSV [e ARA] expressa uma possível relação entre essa declaração e o restante do versículo, mas a tradução também podería ser “dando honra à mulher como [...] herdeira convosco” [A21]. Isso daria um pouco mais de ênfase à maneira como a honra é concedida e não ao motivo de concedê-la, mas a diferença entre os sentidos não é grande. Por fim, Pedro acrescenta uma advertência: para que as vossas orações não se refere apenas às ocasiões sejam impedidas.Alguns pensam que vossas orações em que o m arid o e a esposa oram junto s, mas essa ideia não convence, porque Pedro está dirigindo as palavras desse período apenas aos maridos e não a maridos e esposas indistintamente. “Vossas” necessariamente se refere ao “vós” a quem Pedro está escrevendo, a saber, os maridos; portanto, a referência é às orações dos maridos em geral. Esse “impedimento” de orações é uma manifestação da disciplina paternal de Deus, a qual é “para nosso bem”, com o nos lem bra Hebreus 12.3-11, e é a plicada a quem Deus “ama ”. (A NI V [e NTLH] infelizmente obscurece a óbvia referência à disciplina de Deus presente no uso da voz passiva [“sejam impedidas” n o grego] e transmitem outra ideia, “para que nada atrapalhe as orações de vocês” — dando talvez a entender que se trata de uma interferência humana proveniente de conflito interpessoal ou intranquilidade emocional etc.) Deus tem tanto interesse que os maridos cristãos vivam de maneira compreensiva e amorosa co m as esposas, que “interro mpe” o relaciona mento
com eles quando não procedem assim. Nenhum marido cristão deve pensar 145
1PEDRO
que sua vida trará a lgum b em espiritual sem um ministério eficaz de oração. E nenhum marido pode esperar uma vida de oração eficaz a menos que viva com a esposa “com compreensão, dando honra” a ela. Investir tempo desenvolvendo e mante ndo um bom casamento é a vontade de Deus; é servir a Deus; é uma atividade espiritual agradável aos olhos dele.
e. A vida como cristãos em geral (3.8— 4.19)
1. Se de humildes e unidos em espirito (3.8 ) 8. Esta seção conclui com algumas instruções gerais sobre o relacionamento com os outros, espec ialmente os que po de m ser hostis. Finalmente, tende todos
vós o mesmo modoOde pensar; mostrai amor fraternal, sede misericor diosos e humildes. termo traduzido porcompaixão o mesmoe modo de pensar[“unidade de espírito”, RSV] significa “compartilhar os mesmos pensamentos e pos turas, pensar com harmonia” — objetivo alcançado com pouca frequência nas igrejas cristãs. O amor fraternal se refere ao amor pelos outros dentro da igreja (com a traduç ão “amem com o irm ãos ”, a NIV perde a ênfase principal no ato de amar os outros irmãos em Cristo). Um coração terno(RSV [“miseri cordiosos”, A2l]) é uma tradução esclarecedora de uma palavra que significa “cuidadoso, compassivo”, não apenas em ações, mas até nos sentimentos ou emoções (observe a mesma palavra em E f 4.32). Uma mente humilde (RSV [humildes, A2l]) refere-se não apenas a idéias, mas também à postura e à mentalidade em geral, contrastada com o orgulho em Provérbios 29.23.
2. R e tr ib u í co m b ên çã o qu an do vo s f iz e r e m m a l (3.9 -12 ) 9. C ontinu and o com mais ações que procede m de um coração que confia que Deus cuidará de suas necessidades e que imita o exemplo supremo da vida de Cristo, Pedro diz a seus leitores, muitos dos quais já sofrem oposição: não retribuam mal com mal, nem ofensa com ofensa; pelo contrário, bendigam (RSV; veja, em 2.23, o comentário sobre o verbo cognato “insultar”; o termo se refere a ofensas e ultrajes, “falar mal" de alguém). Os cristãos não devem retribuir ofensas com outras ofensas, mas, pelo contrário, seguir tanto o ensino quanto o exemplo de Cristo (Mt 5.44; Lc 6.27-29,35; 23.34; veja Rm 12.14,17-21; ICo 4.12). A razão apresentada nos evangelhos é que eles devem imitar a bondade de Deus até mesmo com pecadores que não merecem (Mt 5.45,48;
Lc 6.35,36), bondade que tem o propósito de conduzi-los ao arrependimento 146
1PED RO 3.8— 4.19
(Rm 2.4; cf. At 14.17). Aqui também há motivo suficiente para fazer o bem a todas as pessoas, mesmo àquelas que nos fazem o mal. (No entanto, é preciso assinalar que, em 2.14, a responsabilidade que o governo tem de punir os malfeitores significa que haverá ocasiões quando, não por vingança pessoal, mas por representar o governo secular, o cristão retaliará o mal com energia; observe a mesma distinção entre a proibição de vingança pessoal e o endosso do castigo enérgico pe lo governo em Rm 12.14,17-21 ju nto com R m 13.1-5.) Aqui Pedro apresenta outro motivo para as ações e atitudes que ordena: elas fazem parte da vida cristã e são um meio de obter bênção da parte de Deus: para isso fostes chamados, a fim de receber bênção como herança. Gramaticalmente, isso pode se referir a algo já dito (a ideia de retribuir maldição com bênção ou todo o comportamento correto dos v. 8,9a) ou a algo que será dito (a oração “a fim de receber bênção como herança”). (A TEV, NASB e NEB [e BPT, CNBB, BEP, NTLH] traduzem o versículo excluindo a referência a algo já dito; outras versões [como a RSV NIV (e A21, NVI e TB)] corretamente mantêm ambígua a tradução, refletindo as duas possibilidades encontradas no texto grego.) No entanto, o sentido da passagem exige que isso se refira ao que foi dito antes, ao procedimento correto que, nos versículos 8,9a, Pedro lhes ordenou que m anifestassem. A razão disso é que (l) o paralelo c om 2.21 (“para isso fostes chamados”) é muito próximo em vocabulário, conteúdo e propósito. Ali o “isso” aponta claramente para algo dito antes, o comportamento justo (e, portanto, uma construção semelhante em um contexto tão semelhante seria natural para Pedro). E (2) Salmos 34.12-16, citado nos versículos 10-12, promete claramente a bênção de Deus (seu cuidado e disposição em res ponder à oração, v. 12) como resposta ao comportamento justo (não falar mal e fazer o que é bom, v. 10,11, e ser “justo”, v. 12). Por isso, os versículos 10-12 são um bom alicerce para o versículo 9, caso ele esteja defendendo o com portamen to ju sto com o m eio de obter uma bênção d e Deus . Mas, se o versículo 9 simplesmente diz que os cristãos foram chamad os para ob ter um a bênção (sem nenhuma ligação direta com o comportam ento justo), então os versículos 10-12 n ão são um bom alicerce para ele.22
22Esses dois argu men tos são extraídos d e u m estu do exaustivo de Jo hn Piper, “Hope as the motiva tion o f love: 1 Peter 3. 9-12 ”, N T S 26 (1980), p. 212-31. A análise que Piper faz do desenvolvimento do argu me nto é excelen te, mesmo que ele, por incríve l qu e pareça, deixe de d ar m uita atenção à possibilidade bastante provável de que a “bênção” do
v. 9 é a bênção de Deus na vida presente e não a salvação final. 147
1PEDRO Portanto, podemos descrever da seguinte maneira o argumento geral dos versículos 8-12: “Finalmente, tod os vós, sede da mesma o pinião, amand o uns aos outros, compassivos e humildes (v. 8), não retribuindo mal com mal nem insulto com insulto, mas, pelo contrário, abençoando, pois fostes cham ados de a essa vida , a fim de (v. q ue9).median esse viver juDeus sto obten hais a bênção Deus emjusta vossa vida” “Pois teem Salmos promete bênçãos aos que vivem justamen te” (v. 10-12). Por fim, a bênçãose refere à bênção final de salvação eterna ou à bênção de Deus na vida presente? A favor da primeira possibilidade temos o fato de que o verbo receber é klêronomeõ (“herdar, adquirir, obter”), verbo que muitas vezes se refere à herança celeste e é cognato do substantivo “herança” em 1.4 (que é obviamente futura, “reservada nos céus para vós”). Mas klêronomeõ pode ser usado simplesmente no sentido de “obter” algo nesta vida (veja Hb 12.17; e, quanto ao substantivo, Mt 21.38; Lc 12.13; Hb 11.8). Aqui o uso que Pedro faz do termo pode ter sido influenciado por sua acepção no Antigo Testamento (e.g., Sl 37.9,11,22,29), onde se refere às bênçãos que os justos que “confiam no Senhor e fazem o bem ” (Sl 37.3) experimentam na presença dos ímpios (tema muito pertinente à preocupação de Pedro neste contexto). Além do mais, as bênçãos especificadas no versículo 12 têm clara relação com esta vida: “Porque os olhos do Senhor estão sobre os justos, e os seus ouvidos, atentos à sua súplica”. Isso fica ainda mais claro no contexto da citação do salmo 34, que fala diversas vezes sobre o cuidado de Deus nesta vida com aqueles que confiam nele e lhe são fiéis (Sl 34.4,6,7,10,17,19). Embora Pedro mencione a futura recompensa celeste (1.4-7,13; 4.13; 5.4), não lhe seria estranho enfatizar as bênçãos presentes resultantes de ações justas. Aliás, l Pe dro conté m vários exemplos de bênçãos nesta vida prometidas como consequência de uma conduta justa:
Versículo 1.8 1.9 1.17 2.2 2.19,20
Bênção resultante nesta vida alegria indizível maisbenefíciosdasalvação evitar a disciplina paternal de Deus crescimento para a salvação beber do leite espiritual confiar em Deus e faze r o aprovação divina bem enquanto sofre
A conduta justa amar a Cristo fécontínua vida santa com t emo r
148
1PEDRO 3.8—4.19 3.1,2 3.7 4.14 5.7 5.9,10
submeter-se ao marido viver com consideração com a esposa suportar insultos po r causa de Cristo lançar a ansiedade sobre Deus resistir ao Diab o
maridos gan hos para Cristo orações não impedidas o Espírito da glória e Espírito de Deu s repou sa sobre vós ele (subentendido) cuidará de vossas necessidades Deus vos restaurará, firmará e fortalecerá
Portanto, os versículos 8-12 ensinam que um das motivações corretas para um a vida ju sta é o conhecimento de que essa conduta trará bênçãos da parte de Deus nesta vida. Essas bênçãos podem assumir diferentes formas, mas, em face da citação do salmo 34, pode-se supor que entre elas estejam amar a vida, ter “dias bons”, ter os “olhos de Deus sobre nós” para cuidar de nossas necessidades e ter seus “ouvidos abertos” para ouvir nossas orações e responder a elas (veja Tg 5.16; ljo 3.21,22). Não obstante, no contexto maior de toda a epístola de lPedro, tais bênçãos não incluem ausência de oposição nem de sofrimento — as bênçãos da era do Novo Testamento são em geral mais espirituais, psicológicas e interpessoais e menos materiais ou físicas do que no Antigo Testamento (veja, em 1.4, nota adicional “As re compensas da nova aliança”, p. 60). 10-12. A função dos versículos 10-12 foi analisada acima na relação com o versículo 9: com uma citação de Salmos 34.12-16, eles fornecem um “alicerce” ou base para sustentar os versículos 8 e 9. Resta agora comentar somente algumas expressões específicas. Am ar a vida n ão q uer dizer que a pessoa tenh a um a vida sem problemas, seja no contexto de 1Pedro (pois o versículo anterior pressupõe “mal” e “ofensa”), seja no do salmo 34 (pois Sl 34.19 conclui com “As aflições do ju sto são muitas” antes de acrescentar “mas o Senhor o livra de todas elas”). Pelo contrário, a expressão sugere um desfrutar da vida e uma satisfação na vida que Deus deu, não importando quais sejam as circunstâncias exteriores (ve ja E f 5.20; Fp 4.4,7,11; lT s 5.1 6-18). Acerca de engano, veja o comentário em 2.1. Busque a p az e nela insista lem bra a afirmação de Jesus “Bem-av enturado s os pacificadores” (Mt 5.9). Trabalhar pela reconciliação e harmonia entre as
pessoas (em vez de retribuir mal com mal) é agradável a Deus. 149
1PEDRO A expressão os olhos do Senhor estão sobre osjustos subentende n ão apenas que Deus vê o que os justos fazem (pois esse privilégio em nada seria maior do que o experim entado p or todas as pessoas), mas que to ma con ta deles para sempre, reconhecendo e suprindo suas necessidades (observe as declarações sobre o cuidado de Deus na hora certa em S l 34.7,8,10, 17,18,19, 20,22). Em contrapartida, a declaração mas o rosto do Senhor está contra os que praticam o mal é, no contexto do salmo 34, um claro ve redicto de ju ízo , pois o versí culo contin ua: “para elim ina r a m emó ria deles da terr a” (Sl 34.16). Vistos como um todo, os versículos 8-12 não devem ser interpretados como prova de salvação final pelas boas obras, pois são dirigidos aos que já são cristãos e têm uma “herança” imperecível guardada no céu para eles (1.4). Mas a passagem apresenta uma declaração ousada sobre a relação entre o viver ju sto e a bên ção de Deus n esta vida. Des sa forma ela fornece um corretivo necessário para cristãos descuidados e mornos de qualquer época e uma forte motivação para o tipo de vida santa à qual Pedro diz que todos os cristãos foram “chamados” (v. 9).
3. Co mo a gi r qu a n do so fr er de s p o r ca us a d a ju s ti ç a (3 .13 — 4.19) a. Sabei que sois abençoados (3.13,14a) 13. Aqui Pedro começa uma nova seção que examina especificamente o problema da perseguição por incrédulos. Em bora haja indícios desse tema em 1.6; 2.12,15,19; 3.1,9, esta é a prim eira vez que Pedro abo rda a persegui ção como assunto principal e a examina mais a fundo. N o primeiro trecho, a pergunta quem uos fará mal é retórica e tem o sentido de “Há de fato alguém que fará mal aos que estiverem ansiosos por fazer o bem?”. Ela deixa implícito que o mal não é o que normalmente se espera, pois em geral aqueles que fazem o que é certo são recompensados e não castigados. (Isso dá testemunho da influência restritiva da “graça comum” de Deus concedida a todas as pessoas e manifestada na consciência e no governo humano.) 14a. Apesar d isso, n em sempre é assi m. Em bora a perseguição dos jus tos seja anormal, ela de fato acontec e, de m od o que Pedro reconhece a possibi lidade de que cristãos venham a sofrerpor causa da justiça. A forma de verbo (optativo) é aquela que um escritor empregaria para falar de um aconteci ment o que considerasse improvável, e a expressão ainda quecon tribu i para a
ideia de improbabilidade aqui subentendida. (Embora sofrimentos de todo 150
1PEDRO 3.
8-4 .19
tipo possam estar pr esentes em toda parte, o sofrimento por causa da justiça é mais raro.) Ainda assim, Pedro reconhece que essa “rara” possibilidade está presente na realidade de alguns de seus leitores e precisa lhes dizer como devem reagir. Sereis abençoados(ou, “sois abençoados”; o texto grego não contém um verbo, mas um adjetivo no plural que se aplica aos leitores, “se sofrerdes [... vós] abençoados”, e, muito naturalmente, indica a bênção que vem junto com o sofrimento, não depois). Essa bênção inclui o favor de Deus em geral, mas os leitores pensariam principalmente na bênção prometida aos “justos” no ver sículo 12. A palavramakaríos(“abençoados”) tem o sentido de “bem-aventurados”, “felizes”, com ênfase na bênção que procede de Deus (veja Mt 5.11,12). b. Confiai em Cristo (3.14b, 15a)
14b. Pedro faz referência especí fica aos perseguidores qu ando diz: Não temais suas ameaças[lit., “não temais o medo deles”]. A passagem é uma citação quase exata de Isaías 8.12,13 (LXX), que (pelo menos no texto hebraico) é uma advertência a não temer aquilo que as pessoas sem fé temem (veja NIV [e NVI, BEP]). Mas esse contexto não diz respeito aos temores infundados que os incrédulos experimentam; pelo contrário, aconselha os cristãos a não terem medo quando enfrentam oposição hostil. Por esse motivo o sentido “não tenhais medo deles” ou “não os temais” é preferível e, certamente, uma form a aceitável de tra duzir as palavras de Pedro.2’ Embora de modo geral seja melhor entender que as citações que o Novo Testamento faz do Antigo têm o mesmo sentido em ambos os lugares, quando o contexto do Novo Testamento favorece claramente uma leve mudança de sentido ou de referente, temos de adotar uma interpretação fiel ao novo contexto (em especial quando, como neste caso, não há nenhuma citação formal, mas apenas uma duplicação de várias expressões). Ao que parece, Pedro está tomando emprestado uma expressão familiar do Antigo Testamento, mas usa ndo-a em um contexto diferente e com aplicação distinta. Nem vos alarmeis emprega um termo ( tarassõ) que significa “ser abalado, perturbado, am ed ro ntad o” e, muitas vezes, implica intranqu ilida de em o cional (observe o uso em Mt 2.3; 14.26; Jo 13.21; 14.1 etc.).
’’Observe urna construção muito parecida em 3.6, “não temendo nenhum temor”; veja tb. Mc 4.41, “temeram um grande temor” (isto é, “ficaram apavorados”); Mt 2.10. Essa é uma expressão idiomática comum em hebrf’co (“acusativo cognato”) muitas vezes encontrada tb. na LXX; veja BD F, seção 153, e Robertson, Grammar, p. 477-9. 151
1PEDRO 15a. A alternativa para o medo é concentrar a atenção em outra pessoa: Antes, reverenciai a Cristo como Senhor no coração. Reverenciai traduz hagiazõ, que normalmente quer dizer “santificar, tornar santo”, mas aqui parece ter o sentido de “tratar como santo, tratar com reverência” (o verbo tem um sentido parecido em Mt 6.9, “santificado seja o teu nome” ou “que teu nome seja reverenciado”). A expressão também é uma adaptação de um trecho de Isaías 8.13: “Ao Senhor dos Exércitos, a ele santificai; tende temor e medo dele”. Assim, é reforçado o sentido de tem or do S enhor ou reverência po r ele em vez de medo de hom ens — no entanto, Pedro nã o chega a aplicar a Cristo as exortações para “temer” ao Senhor em Isaías 8.13. Reverenciai a Cristo como Senhor quer dizer crer de verdade que Cristo é quem está no controle dos acontecimentos e não os adversários humanos. Ter essa reverência no
coração émanter uma confiança íntima arraigada continuamente em Cristo como o Senhor que governa e como Rei, a quem já agora estão sujeitos “os anjos, as autoridades e os poderes” (3.22). c. Dai testemunho enquanto fazeis o bem (3.15 b-17) 15b. Entretanto, a postura dos cristãos diante dos incrédulos nunca deve ser meramente passiva ou neutra, e Pedro não se limita a uma advertência para que eles não tenham medo. Ele passa a incentivar o preparo para o testemunho ativo que ganhará o incrédulo para Cristo. Pedro contempla a necessidade de responder às acusações de transgressão que os cristãos enfrentam da parte de seus oponentes e, por isso, diz: Estai sempre preparados para responder a todo o que vos pedir a razão da esperança que há em vós [lit., “sempre preparados para uma resposta”]. A palavra resposta [ apologia] quase sempre tem o sentido de “resposta a uma acusação” (veja At 22.1; 25.16; ICo 9.3; Fp 1.7,16). Embora alguns sustentem que o texto está falando de acusações legais formais (como Beare, p. 164), Kelly percebe bem que sempre e a todo o que são extremamente gerais (p. 143): sejam denúncias formais, sejam acusações informais, os cristãos devem estar preparados para dar uma resposta (Kelly assinala usos não técnico de apologia em ICo 9.3; 2Co 7.11; Platão, Político285e). N o entanto, visto que o questionamento diz respeito à esperança que há em vós, Pedro deve estar partindo do princípio de que a esperança íntima dos cristãos resulta em vidas tão notavelmente distintas, que os incrédulos são levados a perguntar do porquê de tanta diferença (veja 4.4). Portanto, os cristãos devem estar sempre prontos (preparados) para dar uma resposta.
Paulo deu um bom exemplo de como tomar a frente e dar testemunho de 152
1PED RO 3 .8-4.19
Cristo q uand o estava sendo julg ad o (At 22.1-2 1; 2 4.10-24; 2 6.1-23,25b-29). Em situações hostis, as oportunidades de testemunhar de Cristo surgem muitas vezes de forma inesperada, e o cristão que não estiver sempre pronto para responder acabará por perdê-las. 16. Mas esse testemunho deve ser dado com mansidão e temor,sem que se tente dominar o incrédulo com a força da personalidade humana nem com agressividade, mas confiando que o próprio Espírito Santo convencerá com calma o ouvin te. (A palavra mansidão e o adjetivo cognato “manso” são analisados no com entário e m 3.4). Ter boa consciência (ou consciê ncia limpa, “moralm ente c orr eta”: apathos) exige bem mais do que mera moralidade exterior. Isso não significa que a perfeição sem pecado seja possível, mas, sim, que um cristão deve procurar ter uma “boa consciência” perante Deus. E possível manter isso (l) evitando a cada dia a desobediência consciente ou intencional a Deus e (2) mantendo a prática do arrependimento imediato e da oração para pedir perdão (e, por tanto, a limpeza da consciência) sempre que se tenha percepção de qualquer pecado na vida. Outros trechos do Novo Testamento mencionam a eficácia da oração ( 1 J o 3.21,22) e a confiança do acesso a Deus em adoração (Hb 10.22) como benefícios de uma consciência limpa, mas aqui o motivo é o teste munho diante dos outros. Os cristãos devem manter limpa a consciência para que os que caluniam o vosso bom procedimento em Cristo fiquem enver gonhados naquilo de que falam mal de vós. (Motivo semelhante para uma cond uta ju sta é apre senta do em 2.12,15 ; cf. 3.1,2.) O verbo tradu zido p or falam mal de é katalaleõ (o mesmo termo é usado em 2.12 e três vezes em Tg 4.11). Caluniam subentende insultar ou falar com ameaças, ao passo que procedimento é anastrophê, palavra que Pedro usa muitas vezes para designar a conduta ou padrão de vida (veja comentário em 1.15). A es perança de que os adversários serão envergonhados não dá a entender que a vergonha deles seja algo bom em si, mas que resultará no silenciar da calúnia e, depois, os fará refletir sobre o evangelho e nele crer (cf. 2.12,15; Mt 5.16; Rm 12.20,21). 17. Desenvol vendo u m tema que já havia abordado q uan do se diri giu aos servos (2.19,20), Pedro de novo enfatiza o valor do sofrimento injusto. Embora a RSV [e A2l] traduza é melhor que sofrais Jazendo o bem [...] do que
o mal, o texto grego não deixa claro que o sofrimento seja especificamente 153
1PEDRO
por causa do bem que alguém pratica; esse sentido precisa ser extraído do contexto mais amplo (veja o v. 14, em que Pedro fala sobre sofrer “por causa da justiça”). A expressão se a vontade de Deus assim o decretar usa de novo (como no v. 14) o modo optativo, que é bem incomum, indicando algo que Pedro achava possível, mas incomum, e não algo que devia ser normalmente esperado. Mas por que é melhor sofrer por fazer o bem do que por fazer o mal? Neste contexto, é porque o sofrimento injusto suportado com paciência é tão notável que se torna um forte testemunho, conduzindo os incrédulos à salvação (veja 2.12; 3.1,2). Esse entendimento é confirmado pelo versículo seguinte, que mostra que o próprio Cristo também sofreu injustamente “para levar-nos a Deus”. (O versículo 18 começa com um hoti, “pois, porque”, indicando que o versículo apresenta um motivo em apoio ao v. 17.) O raciocínio de Pedro é que assim como Cristo suportou sofrimento injusto para nossa salvação, da mesma forma seremos abençoados por Deus se suportarmos sofrimento injusto para a salvação dos outros. É claro que o paralelo não é perfeito em cada detalhe, pois o sofrimento de Jesus não apenas deu testemunho, mas também conquistou nossa salva ção, uma vez que ele morreu como nosso substituto (veja comentários em 1.19; 2.24). Em contrapartida, não podemos em nenhum sentido suportar a ira de Deus contra os pecados de terceiros. Assim mesmo, o exemplo da disposição de Cristo de sofrer por nossa causa oferece uma forte motivação para estarmos dispostos até a sofrer enquanto testemunhamos, a fim de que outros possam ser salvos (veja Cl 1.24). Esse tipo de sofrimento é muito “melhor”, porque dificilmente o sofrimento merecido por causa de uma transgressão serviría de testemunho para os outros. (i) Pois Cristo sofreu para vos levar a Deus (3.18)
18. Quanto ao propósito deste versículo, veja acima a análise do versículo 17. Em lugar de morreu (apothncskõ) muitos manuscritos trazem “sofreu” que torna mais explícita a ligação com “sofrer” no versículo 17. Mas, visto que o sofrimento de Cristo pelos pecados resultou em sua morte, é provável que isso não faça quase nenhuma diferença de sentido (as evi dências textuais favorecem claramente “morreu”, mas alguns acham que o verbo é muito inesperado para o contexto). A diferença entre levar-nos a Deus (RSY NASB [e A21, TB]) e “conduzir-vos a Deus” (NIV [e ARA]) também se baseia em uma diferença entre manuscritos gregos antigos e, de (paschõ),o
novo, não causa nenhum gran de impacto sobre o sentido ger al da passagem. 154
1PED
RO 3. 8-4.
19
Pedro diz que Cristo morreu uma única vez (gr., hapax, que quer dizer “um a vez, um a ocasião”), e isso, ju n to com o tem po verbal de morreu, indica que o sofrimento e a morte de Cristo pelos pecados foram completos. A morte de Cristo foi pelos pecados, u ma forma co ndensada de dizer que ele pagou a penalidade dos nossos pecados. Isso fica mais claro quando Pedro acrescenta o justo pelos injustos. Exatamente por não ter culpa alguma pela qual pagar (ele era “ju sto ”), Cristo pôd e ser o sub stituto que morreu em nosso lugar, suportando o castigo que merecíamos. Morto na carne indi ca o fato d e que a “carn e”, ou corpo físico, de Jesus foi mo rta (d esse mod o a NIV [e NV l], “f oi mo rto no corp o” [N TL H , “ele morreu no co rpo ”]). Em bora “carne” ( sarx) tenh a uma gama de signi ficados no Novo Testamento, sempre que a palavra é contrastada com “espírito” (pneuma), como aqui, o contraste é entre coisas visíveis e físicas, que pertencem a este mun do presente, e coisas invisíveis, que p odem existir no m un do “espiritu al” invisível do céu e da era vindoura. (Veja 4.6; cf. Mt 26.41; Mc 14.38; Jo 3.6; Rm 8.4-6; l T m 3.16 etc.) Levando em conta o contraste assinalado acima, mvifcado no espírito[ARA] significa necessariamente “vivificado na esfera espiritual, na esfera de ação do Espírito”. Aqui a expressão faz referência específica à ressurreição de Cristo, porque “vivificado” é o oposto de “morto na came” na expressão anterior. “Na esfera espiritual, na esfera da atividade do Espírito, Cristo foi ressuscitado dos mortos”. Isso é importante porque no Novo Testamento essa esfera “espiritual” é em geral a esfera de tu do o que é durado uro, permanente, eter no. A tradução da NIV [e A2l], mas vivificado pelo Espírito(como na KJV [e ARC]), também é possível, visto que em grego não existe nenhuma dife rença entre “espírito” e “Espírito”. Mas seria meio incomum esperar que os leitores do grego vissem a mesma estrutura gramatical em trechos paralelos do mesmo período e ao mesmo tempo soubessem que Pedro queria que os dois trechos fossem entendidos de modos distintos (morto no corpo, mas vivificado pelo Espírito). O contraste morto, sim, na carne, mas vivificado no espírito [ARA] está em harmonia com a ênfase de toda a carta na importância relativamente pequena do sofrimento neste m undo em comparação co m um a herança eterna desfrutada no mundo vindouro (cf. 1.6,7,8,11,13,23; 2.11; 3.3,4,14; 4.1,2,6,13,14,16,19; 5.1,4,10). De livre e espontânea vontade, o Senhor so freu maus tratos físicos, até mesmo a morte, por causa do ganho espiritual eterno — para levar-nos a Deus. Por isso, os leitores de Pedro não devem ficar
surpresos por se verem “seguindo seus passos”. 155
1PEDRO (ii) Outro exemplo: Noé deu testemunho quando perseguido (3.19,20) 19. No qual é uma referência qu e remete a “no espírito” no versículo 18.24 Significa “em cuja esfera, a saber, a esfera espiritual”. Não significa necessa riamente “no corpo da ressurreição”25 (se essa fosse a intenção de Pedro, ele facilmente poderia expressá-la), mas, sim, “na esfera da atividade do Espírito” (a esfera em que Cristo foi ressuscitado dos mortos, v. 18). Muitas vezes, Pedro faz a transição de uma seção para outra com o uso de u m pro nome relativo com o esse (“o q ual” ou “qu em ”), e isso deve indicar que, ainda que relacionadas com o argumento geral da seção, as declara ções seguintes podem introduzir um assunto diferente. Exemplos em que assuntos relacionados, porém distintos, são assim introduzidos (às vezes com preposição, às vezes sem), encontram-se em 1.6,8,10; 2.4,22; e 3.21; tran sições para assuntos não muito distintos, porém com diferenças, podem ser encontradas em 1.12; 3.3,6b; 4.4; e 5.9.2 Depois de no qual, o texto grego traz a palavra kai (“e”, “também”), dando o sentido “no qual também foi...”. Isso simplesmente aumenta a impressão de que se está intro duz indo um assunto dist into: Cris to foi vivificado na esfera espiritual (v. 18) e também fez algo nessa mesma (v. 19,20). E foi isto o que ele fez: ele foi e pregou aos espíritos em prisão. O signifi cado dessa expressão é objeto de muito debate. As questões em tomo dela são estas: 24Selwyn, p. 197, 315, 317, diz que “no qual” {en hõ) não pode ser referência a “no espírito” no v. 18, porque no NT não existe nenhum outro caso em que um pr onome relativo (que aqui é hõ, “o qual”) tenha um “dativo adverbial” como ante cedente. Mas essa objeção não convence nem corresponde aos fatos (veja análise no Apêndice, p. 221). 25Confor me defendido p or France, p. 268 -9. France está certo ao ver o contraste no v. 18 entre a “esfera humana natural da existência” e o “estado espiritual eterno da existência” (p. 267), mas depois (p. 268) limita demais a “esfera espiritual eterna” ao sen tido do estado ressurreto de Cristo apenas. O contraste “carne-espírito” no v. 18 está, na verdade, entre duas esferas de atividade e não entre o estado pré-ressurreição e o estado pós-ressurreição de Cristo. 26Reicke, p. 110-1, entende que en hõ não significa “no qual”, mas “em cuja ocasião” (como em 2.12; 3.16). Mas as palavras e a expressão em si são tão comuns, que não existe nenhuma razão para pensar que Pedro as usou somente em um sentido bem especiali zado: é necessário entender que os pronomes relativos se referem a qualquer antecedente (gramaticalmente correto) que faça mais sentido em cada contexto em particular. Aqui, “espírito” está bem próximo e faz mais sentido; é o antecedente que os leitores de Pedro
naturalmente teriam entend ido. 156
1PEDRO 3.8- 4.1 9
1.
Q uem são os espíritos em prisão? • incréd ulos que morreram? • crentes do Antig o Testamento que morreram? • anjos caídos?
2.
O que Cristo pregou? • um a segunda oportun idade de arrependimento? • a conclusão da obra redentora? • a condenaçã o final? Qua nd o ele pregou? • nos dias de Noé? • entre sua morte e ressurreição? • depois de sua ressurreição?
3.
Várias respostas têm sido dadas a essas perguntas; as cinco posições mais comuns são expostas no Apêndice, na p. 200. A análise a seguir defenderá a primeira posição, isto é, que Cristo pregou por meio de Noé quando a arca estava sendo construída. (Para uma análise mais profunda desses dois versículos, veja o Apêndice, p. 199s.)27 Interpreta da isoladamente a expressão espíritos em prisãopoderí a se referir a espíritos humanos no inferno ou a espíritos de anjos caídos que estão no inferno. Os ao textos de que 2Pedro 2.416.23,24 e Judas 6e falam anjos pecadores presos e castigados, passo Lucas 2Pedrode2.9 se referem a incrédulos que morreram e estão em um lugar de castigo. A palavra espíritos podería se referir a espíritos de anjos, bons e maus (Mt 8.16; Hb 1.14) ou a espíritos de pessoas que morreram (Mt 27.50; Lc 23.46; Jo 19.30; At 7.59; ICo 5.5; Hb 12.23; Ec 12.7). O mesmo se vê na literatura extrabíblica. (Por exemplo, em lEttoque , que Selwyn e Dalton apresentam como prova principal a favor da quinta posição [veja apêndice, p. 203], pneuma se refere vinte vezes a espíritos de anjos e dezessete vezes a espíritos humanos, e em todos os casos os espíritos estão presos e aguardam o juízo final.) Alguns sustentam que, quando a palavra “espírito” se encontra desacompanhada de uma expressão definidora (co mo “de hom em ” etc.), ela tem o sentido de espírito de anjo ou de espírito de demônio, mas nunca de espírito de homem. Mas esse argumento não é válido, pois em si o vocábulo pneuma é ambíguo, e o contexto é o que indica se o sentido é “ espírito de a njo ” ou “espírito de h om em ”.
examino m ais fundo os argumentos paro ”com umApêndice amplo levantamento daa literatura extrabíblica.de Sel wyn e Dalton e os com -
157
1PEDRO
20. Os espíritos em prisão são aqueles que, noutro tempo,foram rebeldes (a palavra tem um sentido de rebelião ativa), quando a paciência de Deus esperava enquanto a arca era construída nos dias de Noé. Essas orações subordinadas indicam que o texto só pode estar falando de espíritos humanos, pois em ne nh um momento e em nen hum a parte da B íblia ou da litera tura judaica extrabíblica se diz que os anjos desobedeceram “durante a construção da arca”. Gênesis 6.5 -13 ressalta claramente o pec ado humano que le vou Deus a in und ar a terra em juízo. Além do mais, os textos extrabíblicos, dos quais havia alguns que provavelmente eram conhecidos pelos leitores de Pedro, descrevem muitas vezes a zombaria que Noé teve de suportar de seus contemporâneos como, por exemplo: “Eles zombavam dele e diziam, ‘Velho, para que serve essa arca?’” (b. Sank 108b). Quando a paciência de Deus esperava [...] nos dias de Noétambém subentende humana e não de anjos. paciência Deus esperou que desobediência os seres humanos se arrependessem antesA de trazer o de juízo do dilúvio (tema também c om um na literatura extrabíblica), mas não há nen hum indício de que anjos caídos tenham alguma oportunidade de se arrepender — esta é concedida somente a seres humanos pecadores (veja 2Pe 2.4; Jd 6). Entretanto, por que Pedro se refere a “espíritos” se está pensando em de sobediência de se res huma nos , que não eram apena s “espíritos”, mas també m corpos? A melhor maneira de explicar isso é dizer que o texto tem o sentido de “espíritos que estão agora em prisão” (i.e., na época em que Pedro estava escrevendo), mas que eram pessoas que estavam vivas na terra no tempo de Noé, quando Cristo pregou a elas. (A NASB traduz por “espíritos agora em prisão”.) Expressão semelhante é encontrada poucos versículos adiante, em 4.6: “Pois é por isso que o evangelho foi pregado também aos mortos”, mais bem entendido no sentido de “o evangelho foi pregado aos que agora estão mortos” (mas que estavam vivos quando lhes foi pregado; veja a aná lise adiante). E possível falar da mesma maneira em português: “a rainha Elizabeth nasceu em 1926” é uma declaração adequada, ainda que ela não fosse rainha quando nasceu; o que queremos dizer é: “aquela que agora é a rainha Elizabeth nasceu em 1926”. A expressão os quais, noutro tempo, foram rebeldesfica melh or se traduzida por “quando noutro tempo foram rebeldes”,28 especificando dessa maneira tratar-se da época em que Cristo pregou “em espírito” a essas pessoas, isto é, “quando noutro tempo foram rebeldes quando a paciência de Deus estava aguardando nos dias de Noé, durante a construção da arca”. Em outro
28Veja nas p. 228-31 um a análise da questão gramatical. 158
1PED
RO 3. 8-4.
19
trecho, Pedro menciona idéias parecidas com o pensamento de que Cristo “em espírito” pregou por intermédio de Noé, pois 1.11 diz que o Espírito de C risto atu ou nos prof etas dos dias do A ntigo T estamento (ve ja IC o 10.4). Em bora Pedr o, em 2Pedro 2 .5, não chame N oé especificamente de pr o feta, ele se refere a ele como “pregador da ju stiça” e usa o substant ivo (kêryx), cog nato do verbo “ prego u” (keryssõ) em 3.20. Ao dizer que Cristo foi e pregou, em vez de simplesmente dizer que “pregou”, Pedro dá a entender que Cristo não permaneceu no céu, mas “foi” até onde as pessoas estavam desobedecendo e ali pregou a elas pelos lábios de Noé. O conteúdo dessa pregação não foi uma mensagem de condenação definitiva (veja a terceira e quinta posições, p. 200) nem a finalização da redenção (veja a quarta posição, p. 200), mas dizia respeito à necessidade de se arrependerem e de se voltarem para Deus para dele receber a salvação. Isso é o que Noé teria pregado àqueles à sua volta (mesmo sem a literatura extrabíblica poderiamos chegar a essa conclusão com base em 2Pe 2.4). E a mensagem certa para pregar quando as pessoas estão desobedecendo “enquanto a paciência de Deus espera” (veja 2Pe 3.9). Essa interpretação s e enquadra be m no contexto mais amplo de 3.13-22. O paralelo entre a situação de Noé e a situação dos leitores de Pedro está claro em vários pontos: (1) Noé e sua família eram um a m ino ria cercada po r incrédulos hosti s; o mesmo acontecia com os leitores de Pedro (v. 13,14; 4.4,12,13). (2) N oé era ju sto no meio de u m mun do ímpio. Ped ro exorta seus lei tores a serem justos no meio de incrédulos ímpios (v. 13,14,16,17; 4.3,4). (3) Noé deu testemunho ousado àqueles ao seu redor. Pedro incentiva seus leitores a serem boas testemunhas diante dos incrédulos que os cercam (v. 14,16,17), dispostos, se necessário for, a sofrer para conduzir outros a Deus (assim como Cristo esteve disposto a sofrer e a morrer “para levar-nos a Deus”, v. 18). (4) Noé percebeu que logo o juízo viria sobre o mundo. Pedro lembra seus leitores de que o juízo de Deus certamente está a caminho, talvez chegue logo (4.5,7; 2Pe 3.10). (5) N a esfera “espiritual” invisível, C risto p rego u po r interm édio de Noé aos incrédulos a seu redor. Com essas palavras, Pedro faz com que seus leito res se lembrem da realidade da obra de Cristo na esfera espiritual invisível e do fato de que Cristo tam bém está neles, tornando -lhes o teste mu nho pod e
roso e espiritualmente eficaz (veja 1.8,11,12,25; 2.4). Por isso, eles não devem 159
1PEDRO temer (v. 14), mas devem “reverenciar a Cristo como Senhor” no coração e “estar sempre preparados” para falar da esperança que neles existe (v. 15). (ó) N a época de N oé , Deus, antes de trazer juí zo, esperou com paciência o arrependimento dos incrédulos. A situação dos leitores de Pedro é seme lhante: Deus, antes d e trazer ju íz o ao m und o (cf. 2Pe 3.10), está esperando pacientemente que os incrédulos se arrependam (ct. 2Pe 3.9). (7) N o fim, N oé foi salvo ju nto com outras “poucas pessoa s”. Assim Pedro incentiva seus leitores, dizendo que, embora talvez em pequeno número, no final eles também serão salvos, pois Cristo triunfou, e todas as coisas se sujeitaram a ele (3.22; 4.13,19; 5.10; 2Pe 2.9). Uma vez isenta de interpretações errôneas, essa passagem também deve funcionar hoje como incentivo para sermos nossopoucos, testemunho (à semelhança de Noé), confiantes de que, ousados embora em sejamos Deus certamente nos salvará (como fez com Noé), lembrando-nos de que, assim como é certo que o dilúvio finalmente chegou, é igualmente certo que o juíz o final também chegará a nosso mundo e que, por fim, Cristo triunfará sobre todo o mal no universo. N o final do versículo 20, Pedro menciona que na arca poucas pessoas, isto Embora essa seja a tradução comum, é, oito, salvaram-se nela por meio da água. é mais provável que o sentido seja “ dentro da qual [i.e., da arca] poucas pes soas, isto é, oito, escaparam por meio da água”.29 Esse é um sentido com um dessa forma do verbo diasõzõ (passivo/depoente aoristo: como em Gn 19.19; Js 10.20; Jz 3.26; 2Rs 19.37 (LXX, 4Rs 19.37), texto A; Is 37.38 [todos com diasõzõ mais a preposição eis, com o sentido de “escaparam para...”]; At 27.44; 28.1,4), e a ideia de que Noé e família “escaparam por meio da água” é coerente com Gênesis 7.13, que especifica que Noé e família entraram na arca no “mesmo dia” em que o dilúvio ch egou (v. 11). A vantag em dessa tradução é que ela utiliza a preposição dia em seu sentido bem comum, “por meio de”, “através de”, permite que eis assuma o sentido “para dentro de” (seu sentido mais comum) em vez de apenas “em” (caso em que seria de esperar a preposição en) e corresponde ao sentido da construção usada em outros lugares. A menção de “oito pessoas” é um dos muitos exemplos neotestamentários em que detalhes aparentemente pouco importantes do Antigo
29Aqui acom panho a análise perspicaz de Da vid C ook , JT S 31 (1980), p. 72- 8. C ook relaciona vários outros exemplos paralelos de escritores gregos seculares em que essa
construção tem o sentido de “escaparam para dentro de.. 160
1PED RO 3.8—4. 19
Testamento são citados como historicamente confiáveis. Pedro apanha o detalhe de Noé entrar na arca com a esposa, os três filhos e suas esposas (Gn 6.10; 7.7) e declara que é verdadeiro. Deus mostra sua misericórdia à família de um ho mem ju sto (inclu indo até os que se havi am u nid o à família pelos laços do casamento), capacitando cada um a dar ouvidos à pregação de Noé e ser salvo, apesar da impiedade extrema (Gn 6.5) ao redor.30
(iii) Deus vos salvará (como fe z com Noé e Cristo) (3.21,22) 21. “Por me io da água” (v. 20) leva Pedro a fazer um a transição pa ra o batismo: “o batismo, que corresponde a isso, agora vos salva” (RSV). A gramática do texto grego é intrigante, mas a tradução da RSV apresentada aqui oferece uma boa compreensão do sentido das palavras. Se nossa interpretação de “esca param por meio da água” no versículo 20 estiver correta, então a palavra que (ho) no com eço do versículo remete a “escapar por meio da água ”. O batismo corresponde aescapar pela águ a porque a água do batismo equivale em alguns aspectos às águas do dilúvio. Pois, como é praticamente certo quando Pedro escreveu, se o batismo acontecia por imersão (submersão total na água — observe como seria incoerente mencionar a “remoção da impureza da carne” se Pedro pensasse que somente algumas gotas de água eram aspergidas sobre a cabeça), então descer às águas do batismo simbolizava o descer à sepultura na morte. (Cf. “fomos sepultad os com ele na m orte pelo batismo ”, Rm 6.4.) As águas do batismo são como águas de juízo — são semelhantes às águas do dilúvio e mostram com clareza o que merecemos por causa de nossos pecados. Sair das águas do batismo corresponde a ser protegido em meio às águas do dilúvio, as águas do juízo de Deus sobre o pecado, e emergir para viver em “novidade de vida” (veja Rm 6.4). Desse modo, o batismo nos mos tra claramente que, em um sentido, nós “morremos” e “fomos ressuscitados”, mas em outro sentido emergimos das águas sabendo que ainda estamos vivos e, *As vezes, os versículos 18 e 19 são usados para apoiar a ideía de que entre a morte e a ressurreição Cristo “desceu ao inferno”. A expressão está no Credo Apostólico (“sofreu sob Pôncio Pilatos, foi crucificad o, mo rto e sepultado, desceu ao inferno; ressuscitou dos mo rtos ao terceiro dia...”), ao passo que se encontrou base bíblica para essa ideia principalmente em lPe 3.18,19, junto com At 2.27,31; Rm 10.7; Ef 4.8,9; e lPe 4.6. No entanto, muitos questionam se qualquer desses textos apoia claramente a ideia; e a expressão em si é um acréscimo posterior — ela não aparece em nenhuma versão do Credo Apostólico ancerior a 390 d.C. e, depois, desaparece até 650, quando volta a ocorrer (veja Phillip Schaff, Creeds
of Christendom [New York: Harper, 1882], vol. 2, p. 54). Contra a ideia de que Cristo
desceu ao inferno, podem-se mencionar Lucas 23.43,46 e João 19.30. 161
1PEDRO incólumes, passamos pelas águas do juízo de Deus. Assim como Noé fugiu para a arca, nós da mesma maneira fugimos para Cristo e nele escapamos do juízo. Mas o que Pedro quer dizer com batismo [...] agora vos salva? O que vos salva não [é] a remoção da imundícia da carne 31 ([ARA]; i.e., não é um ato físico e exterior que lava a sujeira do corpo — essa não é a parte que vos salva), mas [...] pedir a Deus uma consciência limpa (RSV; i.e., um ato espi ritual e interior entre Deus e a pessoa, simbolizado pela cerimônia exterior do batismo). Poderiamos parafrasear: “O batismo agora vos salva — não a cerim ôni a física exterior do batismo, mas a realidade espiritual inte rior que o batismo representa”. Assim, Pedro evita qualquer ideia “mágica” de batismo que atribua poder de salvação à cerimônia física em si. Pedir a Deus uma consciência limpa (RSV [a promessa de uma boa consciência para com Deus, A2l]) equivale a “um pedido de perdão de pecados e de um novo coração”. Quando Deus dá ao pecador uma consciência limpa, a pessoa tem a segurança de que todos os pecados foram perdoados e de que ela está em um relacionamento correto com Deus (Hb 9.14 e 10.22 falam desse modo sobre a purificação da consciência por meio de Cristo). Ser batizado corretamente é fazer este pedido a Deus: “Deus, por favor, ao entrar neste batismo que limpará exteriormente m eu corpo, eu te peço que purifiques interiorm ente meu coração, perdoes meus pecados e me tornes justo diante de ti”. Dessa maneira o batismo é um símbolo adequado do início da vida cristã. Uma vez que o entendamos assim, podemos reco nh ec er po r que as palavras “arrependei-vos, e cada u m de vós seja batizado [...] para o perdão de vossos pecados” (At 2.38) eram um mandamento evangelístico na igreja primitiva. Alguns afirmam que “promessa” (“a promessa de uma boa consciência para com Deus”, N1V [e A2l]) [ou “comprom isso”, CNBB, BEP, NVl] é uma opção melhor do que “pedido” [RSV; cf. BAM, VFL]. Isso se deve ao fato de eperõtêma,que geralmente significa “indagar”, não ter sido encon trado em nenhum outro texto com o sentido de “pedido”. A palavra tem o sentido de “promes sa” em papiros g regos posteriores (ma s nen hu m da época do N T — o mais antig o é do se gun do século; cf. LSJ, p. 618); por isso, o sen tido de “pedido” foi defendido aqui (tb. em Selwyn, p. 205-6). No entanto,
31Kelly (p. 161-2) aco mpanh a Dalto n (p. 215-24) na interpret ação de que “a rem o ção da imundícia da carne” é uma referência à circuncisão. Mas eles não apresentam ne nh um paralelo lingu ístico direto, apenas algumas expre ssões conceitual mente semelhantes
em certos pontos, mas diferentes em outros, e o argumento não convence.
162
1PE DR O 3. 8— 4.19
“promessa” é um sentido derivado que pode ter entrado em uso depois da época do No vo Testamento. Ademais, embora nenhum exemplo do substantivo tenha sido desco berto com o significado de “pedido”, o verbo cognato é usado no sentido de “fazer “pedir algo”que (Mté 16.1, “pediram-lhe lhes tenha mostrasse algum um sinalpedido”, do céu”), de modo bem possível que aque palavra sido facilmente compreendida pelos leitores do Pedro no sentido de “pedido”. O mais importante é que “promessa” introduz um problema teológico. Se o batismo é uma “promessa a Deus” de manter uma boa consciência (ou uma promessa — de viver uma vida obediente — que procede de uma boa consciência), então a ênfase não está mais na dependência de Deus que concede salvação, mas na dependência do esforço próprio ou da força de vontade. E, uma vez que a expressão aparece tão claramente ligada ao início da vida cristã, pois relaciona-se com o batismo que “vos salva”, a tradução “promessa” parece ser incoerente com o ensino neotestamentário da salvação apenas pela fé; este seria o único lugar em que se diri a qu e u m a promessa de ser ju sto é o qu e “vos salva”. Com o os dados lexicais são inconclusivos para ambos os sentidos (na medida em que dão a entender que ambo s são per feitamente possíveis), é melho r adotar a tr adu ção “pedido” com o sentido m uito mais compatível com o restante do Novo Testamento. Aqueles que apoiam a ideia de que só deve ser batizado quem tem idade suficiente para professar a fé em Cristo, podem muito bem ver nesse versículo algum apoio à sua posição: pode-se defender que o batismo é corretamente ministrado a qualquer um que tenha idade suficiente para “pedir a Deus uma boa consciência”. Mas o que estabelece a base de nossa salvação não é nem mesmo pedir a Deus uma boa consciência. Em última instância, essa salvação nos foi obtida po r Cristo, e tu do o que o b atismo repr esenta chega até nós não pel os méritos de algu ma resposta de nossa parte, mas pela ressurreição deJesus Cristo. A ressurreição de Cristo assinalou sua saída definitiva da esfera da morte e do julgam en to do pecado, e nossa união com ele em sua ressurreição é o meio pelo qual Deus nos dá nova vida (veja comentário em 1.3). O ato de nos erguermos das águas do batismo é uma ilustração de nossa ressurreição com Cristo; ao sermos trazido s em segura nça através dessas “águas de ju íz o ” por meio da ressurreição de Cristo, Deus nos dá de fato uma boa consciência. (O sentido de “promessa” não se encaixaria tão bem nessa ideia de uma boa
consciência como dádiva de Deus.) 163
1PEDRO
22. Pedro conclui essa análise fazendo menção da ascensão de Cristo ao céu. Jesus Cris to subiu ao céue agora está à direita de Deus.Embora pensa dores modernos em grande parte rejeitem essa noção, os escritores do Novo Testamento não hesitam em falar do céu em termos espaciais. A ascensão de Jesus céunão também ocasião em recebeu nova autoridade e novo poderaoque tinhafoinaa condição deque Deus-homem. (Embora, na condição de Deus Filho, ele possuísse poder infinito por toda a eternidade, ele não havia exercido e sse poder no papel da pessoa que era tanto Deus quanto homem.) Pedro enfatiza isso quando diz que Jesus está à direita de Deus. No mundo antigo, sentar-se à direita de um rei significava que a pessoa agia com a autoridade e o poder do rei (veja Sl 110.1 e Ef 1.20,21, com semelhante ênfase na autoridade). Esse tema do “assentar-se” de Cristo (i.e., à destra de Deus) é mencionado várias vezes no Novo Testamento (Mt 22.44; 26.64; At 2.33,34; 5.31; 7.56; Rm 8.34; Cl 3.1; Hb 1.3,13; 10.12; 12.2; cf. Sl 110.1). É usado pelos escritores do Novo Testamento para indicar a presente autoridade universal de Cristo, a condição definitiva de sua obra de redenção concluída e seu incomensurável mérito de receber nosso louvor (observe Fp 2.9; lT m 3.16; Ap 5.12). Além do mais, a ascensão de Cristo prenuncia nossa ascensão e governo com ele no futuro (lTs 4.17; Ap 2.26,27; 3.21). Aqui Pedro se concentra na autoridade de Cristo no mundo espiritual invisível: e a ele sujeitaram-se os anjos, as autoridades e os poderes. Em outras passagens das Escrituras, os três termos podem ser aplicados a seres espirituais, tanto bons quanto maus, e na falta de restrições específicas do contexto é melhor entendê-los como referências a todos os seres espirituais do universo, bons e maus indistintamente. Quando Paulo diz que fomos não apenas res suscitados com Cristo, mas também que Deus “nos fez assentar nas regiões celestiais em Cristo Jesus” (Ef 2.6), isso indica que mesmo agora os cristãos participam da autoridade espiritual que pertence a Cristo, autoridade que se expressa em nossa vida especialmente na f orma de poder para a batalha espiri tual (2Co 10.3,4; Ef 6.10-18), na liberdade de não temer poderes demoníacos (Ef 6.13; Tg 4.7; lPe 5.9; ljo 4.4) e na autoridade para, caso necessário, repreender as forças demoníacas que se opõem a nós (Lc 10.17-20; At 16.18). d. Decidi estar dispostos a sofrer pela justiça (4.1-6) (i) Pois um cristão que sofre po r fa ze r o bem rompeu claramente com o pecado (4.1,2) 1. Portanto, uma vez que Cristo sofreu na carne resume o tema que Pedro
havia iniciado em 3.18, a saber, o valor de imitar o exemplo de Cristo: 164
1PEDRO 3.8—4.19
a disposição para, caso nece ssário, sofrer a fim de cu mpr ir a vontade de Deus. Mas, conquanto ali sua preocupação fosse incentivar os leitores a prestar um bom testem unho cristão, aqui sua ênfase muda para o tema relacionado da disposição de sofrer a fim de evitar o pecado.
Armai-vos também desse mesmo pensamento signifi ca pensar com o C risto pensou sobre a obediência e o sofrimento: estar convicto de que é melhor fazer o bem e sofrer por isso do que fazer o mal (veja 3.17,18). Aqui a pala vra pensamento não tem tanto o sentido de mentalidade, mas de percepção obtida sobre a natureza das relações de Deus com as pessoas. Há um motivo para isso: elas devem estar dispostas, tal como Cristo, a sofrer por fazer o bem, pois aquele que sofreu na carne já está livre do pecado. Como declaração de caráter geral, sem as devidas ressalvas, isso não seria verdade, pois há muitas pessoas que sofrem fisicamente e ainda pecam muito. E Pedro também não está simplesmente dizendo que o sofrimento físico de alguma maneira purifica e fortalece as pessoas — fortalece alguns, mas outros se tornam rebeldes com Deus e amargurados. Pelo contrário, temos de ler a frase da perspectiva do tema do sofrimento por fazer o bem, tema encontrado no contexto anterior (3.14,16-18). O tipo de sofrimento na carne a que Pedro se refere é definido em 3.17: “Porque, se a vontade de Deus assim o decretar, é melhor que sofrais fazendo o bem do que o mal”. Portanto, aquele que sofreu na carne já está livre do pecado significa “todo aquele que sofre por fazer o bem e continua a obedecer a Deus, a despeito do sofrimento que isso implica, rompeu claramente com o pecado”. A expressão já está livre do pecado nã o p ode ter o sent ido de “não peca ma is de mod o al gu m”, pois com certeza isso não se a plica a todos os que se dispõem a sofrer por fazer o b em e, além disso, várias passagens das Escrituras e xcluem a ideia de que nesta vida alguém consiga estar totalmente isento de pecado (lR s 8.46; Pv 20. 9; Ec 7.20; T g 3.2; l jo 1.8). Antes, a expressão significa que a pessoa “rompeu claramente com o pecado”, “agiu decididamente de um a form a qu e revela que obedecer a Deus, em vez de ev itar as dificuldades, é a motivação mais importante de sua ação”. Assim, ir até o fim com a decisão de obedecer a Deus, mesmo que isso signifique sofrimento físico, tem um efeito moralmente estimulante em nossa vida: leva-nos a, com mais determinação, adotar uma conduta em que a obediência é ainda mais importante do que nosso desejo de evitar a dor. 2. Pedro agora explica com mais detalhes o que significa “estar livre
do pecado”. O propósito é levar uma vida regida não por sentimentos 165
1PEDRO humanos, mas pela vontade de Deus: a pessoa rompe claramente com o pecado para que, no tempo que ainda vos resta na carne (i.e., o tempo que ainda resta de vida neste mundo), não continueis a viver para os desejos dos homens, mas para a vontade de Deus. (Veja, em 1.14, comentário sobre a palavra traduzida por desejos.) E natural qu e em certo sent ido o arrependimento inicial do pecado, que faz parte de qualquer conversão genuína a Cristo, também seja uma “clara ru ptu ra com o pecado ” e um a resolução de vive r “não [... segu ndo os] desejo s humanos, mas para a vontade de Deus”. Mas parece que aqui Pedro está dizendo que obedecer a Deus, ainda que o preço seja o sofrimento físico, implica um compromisso moral ainda mais profundo do que a primeira decisão da vontade. N o entant o, temos de ter o cuidado de não transformar isso em algum tipo de “segunda experiência” invariável que todos os crentes maduros têm de experimentar de igual maneira. Em vez disso, Pedro está falando de algo que pode acontecer muitas ou poucas vezes na vida do cristão e com muitos e diferentes graus de intensidade. Para cristãos que vivem debaixo de governos hostis, o sofrimento suportado pode ser realmente grande; para aqueles que vivem em outros lugares, esse sofrimento “na carne” pode ser visto com menor intensidade no cansaço físico ou em ou tro desconforto que suportem a fim de obedecer à vontade de Deus .
(ii) Não mais dediqueis tempo ao pecado (4.3) 3. No passado voces já gastaram tempo suficiente [NVI] não é a melhor tradução, pois omite a conjunção “porque” com que Pedro inicia a oração. Esse versículo fornece um motivo para viver não “para os desejos dos homens”, mas “para a vontade de Deus” (v. 2). Por que os leitores de Pedro não devem viver de acordo com os desejos (pecaminosos) dos homens? Porque eles viveram bastante dessa maneira “no tempo passado”. Pedro não apenas os incentiva a deixar que o tempo passado seja experiência suficiente de pecado; ele lhes diz sem rodeios que aquela experiência passada de pecado é suficiente! Eles não devem mais desejar levar o tipo de vida que se inclinava a satisfazer os desejos pecaminosos humanos. Ao cristão que fica imaginando se algum dia no futuro poderá se entregar a mais um período de pecado sem limites, cumprindo novamente a vontade dos gentios,a resposta de Pedro é clara: O “tempo passado” é “suficiente”, “chega” de viver daquela maneira. Aliás, aqueles que vivem assim terão um dia de prestar contas a Deus (v. 5). Ele então explica o que quer dizer com cumprir a vontade dos gentios.
(Visto que nesta carta [veja o resumo em 2.10] Pedro costuma apresentar os 166
1PEDR.O 3 .8-4 .19
cristãos como o novo povo de Deus, o verdadeiro Israel, é natural que ele mantenh a essa terminologia e empreg ue o termo “ gentios” não para se referir aos não jud eus , mas aos não cristãos.) Cumprir a vontade dos gentiosé passar o tempo andando em vários tipos de pecado citados por Pedro. Libertinagem (aselgeia)é viver sem ter considera ção pelos limites morais, em especial entregar-se a atos de imoralidade sexual ou atos de violência física (a mesma palavra é usada em Rm 13.13; Gl 5.19; Ef 4.19; 2Pe 2.7 [sobre Sodoma]; 2.18; Filo, Moisés 1.305). Paixões (epithymia, RSV) são desejos humanos pecaminosos que podem exercer uma profun da influência no comportamento de alguém (veja comentário em 1.14). A embriaguez (oinophlygia) também é característica de uma vida voltada para a satisfação dos desejos físicos, à semelhança de orgias (kõmos; banquetes e (potos festas dedicados à práticaNo frenética imoralidades) e bebedeiras ; [“cri festas consagradas às bebidas). grego, de a expressão “idolatria ilegal” (RSV minosas idolatrias”, BAM; “idolatrias repulsivas”, A2l]) está na realidade no plural (athemitoi eidõlolatriai)e tem o sentido de “atos ilegais de culto aos ídolos”. A palavra ilegal não pode significar “contrária à lei de Deus”, pois todo culto aos ídolos é contrário à lei de Deus . Em vez disso, ilegal aqui significa necessariamente “contrária às leis civis” — subentendendo tipos par ticularmente maus de culto aos ídolos que envolviam atos imorais proibidos até pelas leis de governos humanos ou que incentivavam as pessoas a cometer tais atos. Isso dá a entender que a vida sensual está muitas vezes ligada ao culto aos ídolos e às forças demoníacas por trás desses ídolos e incita as pessoas a cometerem pecados ainda maiores (veja ICo 10.20, em que, em uma análise sobre a adoração de ídolos, Paulo, usa a mesma palavra, eidõlolatreia,e diz “as coisas que [os pagãos] sacrificam, sacrificam-nas a demônios, e não a Deus”). (iii) Há um ju ízo vindouro para os gentios que vos maltratam (4.4,5) 4. Esse com po rta mento fazia parte da vida normal daqueles cr istãos antes de se converterem, pois seu s conh ecido s acham estranho que não vos juntais a eles A expressão juntar-se a eles é na mesma carreira desenfreada de licenciosidade. literalmente “correr com eles”, expressão que reflete bem o ritmo frenético de uma busca sempre decepcionante do verdadeiro prazer. A mesma carreira desenfreada de licenciosidade é literalmente “o mesmo extravasar acelerado de permissividade desenfreada” ou “a mesma torrente de devassidão” (NIV [eN V l];“quevocêsnão se lance mc om elesnam esma torrentede imoral idade”). A palavra traduzida po r licenciosidade(asõtia) se refere à permissivid ade descon
trolada na busca d o praze r (a mesm a palavra é usada em E f 5.18, e o advérbio 167
1PEDRO cognato é empregado para indicar a “vida dissipada” do filho pródigo em Lc 15.13, o que sugere desper dício, talvez tan to de din heir o q uanto da vida). O qu adro geral é de pe ssoas correndo impetuosamente para a dest ruição. O fato de que incrédulos acham estranhoque os cristãos não participem de sua licenciosidade dá a entender que entre os leitores de Pedro havia não apenas muitos convertidos do judaísmo, mas também muitos que haviam sido conquistados de um ambiente gentílico, pois não seria motivo de surpresa que antigos judeus, que anteriormente levavam uma vida moralmente correta, não participassem da vida dos pagãos. Mas o fato de cristãos não participarem dos pecados dos incrédulos não era causa apenas de surpresa. Os incrédulos se tornavam hostis, pois Pedro diz que eles vos difamam.O texto está indicando violência verbal e calúnia, pois o termo quer dizer “falar mal de, difamar, ferir a reputação de alguém ” (como em Mt 27.39; Lc 22.65; 23.39; Rm 3.8; 14.16; ICo 10.30; Tt 3.2; 2Pe 2.2). Por que isso acontecia? Sem dúvida porque muitas vezes a não participação silenciosa no pecado subentende condenação do pecado, e, em vez de mudarem seus caminhos, os incrédulos caluniam aqueles que lhes atorm entam a consciê ncia ou justificam sua própria imoralidade espalhando boatos de que os cristãos “justos” também são imorais.
5. N o entanto, os incrédulos não po de m escapar tão facilmente da res ponsabilidade por seus atos, pois um dia Deus os declarará responsáveis: Terão de prestar contas àquele que está pronto para julgar os uivos e os mortos. A expressão prestar contas é usada para designar a responsabilidade do ser hu man o diante de um em preg ado r (Lc 16.2) ou de autoridades governament ais (At 19.40) e também a responsabilidade dos homens diante de Deus no ju íz o final (Mt 12.36; H b 13.17). O fato de que Deus está pronto para julgar sugere a possibilidade de que o juízo aconteça de repente, sem aviso (cf. v. 7;
os vivos que Tg 5.9; 2Pe Não são serão julgado também os mortos —3.10). declaração queapenas deixa claramente subentendido ques,amas morte não dará a ninguém condições de escapar do juízo, mas que naquele dia todos estarão conscientes diante de Deus. (iv) Para salvá-los do juízo eterno, o evangelho fo i pregado a cristãos que morreram (4.6) 6. Aliás, Pedro com eça neste pon to a falar do destino dos crentes que já haviam morrid o. Seus leitores pod em estar ima gin ando que benefícios há para os cris-
tãos que já estavam morto s. Essa situação pod ia estar relacionada a alguns que 168
1PE D RO 3. 8-4.
19
haviam morrido como consequência direta de perseguição, mas o texto não nos permite limitar a aplicação a isso; ele simplesmente fala sobre “os mo rtos”. Ele diz: Pois é por isso que o evangelho foi pregado também aos mortos. A palavra isso reporta ao assunto do trecho anterior, o juízo final. Em outras palavras, “era por causa do ju íz o final vindouro que o evangelho foi pregado até mesmo àqueles que creram em Cristo e depois morreram ”. Dessa maneira, os mortossignifica “aqueles que agora estão mortos” (no momento em que Pedro estava escrevendo), embora, quando o evangelho lhes foi pregado, ainda estivessem vivos. (Veja, em 3.19, a análise sobre a expressão parecida “os espí ritos em prisão”.) A NIV [e VFL] traz “os que agora estão mortos”. O fato de que eles morreram não deve incomodar os que permanecem vivos, pois, a não ser na segunda vinda de Cristo, o evangelho nunca teve o propósito de salvar da morte física. Todos, sejam cristãos, sejam não cristãos, ainda têm de morrer fisicamente (e esse é o sentido aparente dejulgados segundo os homens quando na carne).Mas, embora julgados na carne como homens (RSV; o juízo de morte que veio com o pecado de Adão ainda os afeta, a exemplo do que acontece com todos os homens), o evangelho de Cristo foi pregado a eles para que vivam no espírito como Deus(RSV). Por causa do ju ízo final (“por essa razão”, remetendo ao v. 5) o evangelho foi pregado, e isso os salvará da condenação final. As expressões como homem e como Deus são tradu ções legítimas (BAGD, p. 407, II.5.b; cf. lP e 1.15), mas tam bém é possível traduzi-las p or “segundo os homens” e “segundo Deus” (NIV [e A2lJ), isto é, “segundo a maneira como os homens geralmente são julgados” e “segundo a maneira como Deus vive, na esfera espiritual”. Não há muita diferença entre essas duas formas de tra duzir, pois em amb os os casos as expressões se referem à mo rte física e à vida espiritual continuada. (No entanto, as traduções “segundo os homens” e “segundo Deus” não podem ser usadas para defender o sentido “na opinião de homens” e “na opinião ou avaliação de Deus”, pois o grego kata com acusativo não pode assumir o sentido específico de “na opinião de”; veja BAGD, p. 407, II.5.) Visto que, no texto grego, “espírito” [ARA; Espírito, A2l] está sem o artigo definido, pode ser traduzido por “na esfera espiritual” (veja a análise em 3.18). Aqui recebemos a certeza de que os crentes que morreram estão assim mesmo vivendo e desfrutando bênçãos na esfera “espiritual” e eterna invisível, que se caracteriza pela atividade do Espírito Santo. Segundo essa interpretação, aqui no versículo 6 a palavra mortos significa “crentes que m orreram”, mas no versículo 5, “todos os que morreram”. Alford
fez forte o bjeçã o a essa proposta, dizen do que, se a mesma palavra usada logo 169
1PEDRO
em seguida pode significar duas coisas diferentes, então “a exegese não tem mais nenhuma regra fixa, e é possível usar as Escrituras para provar qualquer coisa” (p. 374). Mas no versículo 5 ele interpreta “julgar” krinõ ( ) como refe rência ao juízo final, e no versículo 6 ele diz que krinõ significa outra coisa, a saber, a morte física. Em nenhum idioma existe uma regra que determine que, sempre que a mesma palavra é usada duas vezes em seguida, ela deve obrigatoriamente ser usada com o mesmo sentido em ambas as ocorrências. E melhor simplesmente escolher, dentre os possíveis sentidos, aquele que em cada caso melhor se encaixa no contexto. Além do mais, nesse caso os sentidos “todos os que morreram (fisicamente)” e “crentes que morreram (fisicamente)” não estão muito distantes, e na mente dos leitores a transição não seria difícil. Alguns defendem que nesse versículo o evangelhofoi pregado também aos mortos significa “os espiritualmente mortos, ou incrédulos”. Mas isso não con vence porqu e deixa sem sentido a palavra “tam bém” e não se harm oniza co m o tem po pretérito de “foi prega do” (pregar aos “espiritualmente m ortos” era algo que ainda acontecia qu ando Pedro escreveu e nã o estava restrito ao passado). Outra posição comum em relação a esse versículo é aquela segundo a qual ele quer dizer que o evangelho foi pregado às pessoas depois que morreram, dando-lhes a “segunda oportunidade” de se arrepender e crer no evangelho. Mas esse significado não se encaixa no contexto, pois que tipo de advertência seria dizer que Deus está pronto para julgar as pessoas pela impiedade (v. 5) para depois acrescentar que, na realidade, não importa muito o que elas fazem nesta vida, porque haverá outra oportunidade de serem salvas após a morte? Além do mais, dificilmente os leitores de Pedro, que estavam debaixo de perseguição, seria m incentivado s a perseverar com o cristãos no difícil caminho da obediência se a estrada fácil da devassidão pudesse ser abandonada e perdoada após a morte. Por fim, toda a atividade missionária da igrej a p rimitiva bem com o algun s textos es pecíficos do Novo Testamento (Lc 16.26; Hb 9.26-28; Mt 25.10-13) vão contra essa posição. e. Esseju ízo final está próximo; por isso, agi assim dentro da igreja... (4.7-11) (i) Orai mais e amai ainda mais uns aos outros (4.7-9) 7. Está próximo ofim de todas as coisas significa que todo s os acontecimentos importantes no plano divino de redenção já ocorreram e agora todas as coisas estão prontas para que Cristo volte e reine. Em vez de pensar na história mundial como reis e reinos terrenos, Pedro a vê como “história da
redenção”. Com base nessa perspectiva, tod os os atos anteri ores n o dram a de 170
1PEDRO 3.8-4.19
redenção foram completados — Criação, Queda, o chamado de Abraão, o Êxodo do Egito, o reino de Israel, o Exílio e a volta do Exílio na Babilônia, o nascimento de Cristo, sua vida, morte e ressurreição, sua ascensão ao céu e o derramamento do Espírito Santo para estabelecer a igreja. Quando Pedro escreveu, o grande a era de igreja, haviaa qua sidolquer iniciado fazia cerca de trinta anos. “último Assim, aato”, cortina podería se fechar mo mento, introduzindo a volta de Cristo e o fim da era. Todas as coisas estão prontas: ofim de todas as coisas (o “objetivo” para o qual “todos” esses acontecim entos estão conduzind o) está próximo. Os cristãos que percebem que o fim da era pode acontecer a qualquer momento devem agir de certa maneira: portanto, tende bom senso e estai alertas em oração. A palavra traduzida por bom sensosignifi ca “ter uma mente sensata, refletir sobre as situações, avaliando-as com maturidade e do modo correto” (a mesma palavra e seus cognatos são usados em Lc 8.35; Rm 12.3; 2Tm 1.7; Tt 1.8). Quanto a alertas, veja comentários sobre “autocontrole” em 1.13. Essas posturas da mente são de várias maneiras o oposto dos peca dos mencionados nos versículos 3-5. A razão para bom senso e para estar alertas é possas orações [ARA]; o plural subentende orações individuais e específicas ao longo de cada dia. A ideia não é simplesmen te “para que possam ora r” (NIV [e NT LH]), mas “para orarem com mais eficácia, mais pertinência”, lembrando os cristãos de que devem estar alertas aos acontecimentos e avaliá-los com acerto, orando assim com mais inteligência. As palavras de Pedro também deixam implícito que a oração baseada no conh ecimen to e na avaliação madura de um a situação é mais eficaz (caso contrário, não havería nenhuma relação entre, de um lado, ter “bom senso” e “estar” alerta e, de outro, as orações da pessoa). O que este versículo ensina pode muito bem ser posto em prática q uan do lemos o jorn al, escutamos as notícias, vamos para o trabalho e assim por diante. 8. Antes de tudo, tende profiundo amor uns para com os outros (veja, em 1.22, comentários sobre o verbo cognato “amar” [agapaõ]).Em lugar de profiundo, a RSV traz “constante”, tradução inadequada de ektenês, que aqui tem a força adverbial de “sinceramente”. Por isso, seria melhor a tradução “continuai a vos amar sinceramente/fervorosamente” (veja, em 1.22, comentário sobre o vocábulo cognato ektenõs).Deve-se p roceder assim porque o amor cobre um grande número de pecados. Se o amor transborda em uma comunhão de cristãos, muitas pequenas ofensas e até mesmo algumas grandes
são facilmente ignoradas e esquecidas. Mas onde falta amor cada palavra é 171
1PEDRO
vista com suspeita, cada ato é passível de incompreensão e sobram conflitos — para a perversa satisfação de Satanás (veja Hb 12.15; em contrapartida, lC o 13.4-7). Provérbios 10.12 expressa um a ideia semelhante: “O ó dio causa brigas, mas o amor cobre todas as transgressões”. 9. O amo r sincero, que pro cura o bem dos outros ant es do bem próprio, é colocado em prática quando se é hospitaleiro (v. 9) e quando se usa cada dom “para o benefício mútuo” (v. 10). A hospitalidade, embora um dever cristão, deve ser praticada sem má vontade, sem rancor pelo tempo e pelos custos que podem estar relacionados a ela. A expressão traduzida como sem vos queixar é literalmente “sem resmungar” ou “sem murmurar” (o termo é empregado em referência a palavras repetidas de queixa, muitas vezes pro feridas aos outros e trazendo como resultado a rebelião: Ex 16.7-9; At 6.1; Fp 2.14; veja o verbo em lC o 10.10). Em ú ltima instânci a, essa mu rmu ração é uma queixa contra Deus e contra o ordenamento de nossas circunstâncias feito por ele, o que traz como consequência o afastamento da fé, das ações de graças e da alegria. Embora a hospitalidade dirigida a todos certamente agrade a Deus, a ênfase de Pedro na hospitalidade de uns para com os outros — isto é, para com outros cristãos da família da fé — mantém coerência com o restante do Novo Testamento (veja Gl 6.10).
(ii) Glorificai a Deus no uso de vossos dons (4.10,11) 10. Den tro da com un hão da igreja, o amor sinc ero de uns para com os outros (v. 8) se expressa com o uso dos dons espirituais, não para proveito pessoal nem para cham ar a atenção, mas para benefício dos outros: Servi uns aos outros conforme o dom que cada um recebeu, como bons administradores da muitiforme graça de Deus. Cada um significa que cada pessoa na comunidade dos crentes — em cada igreja para a qual Pedro escrevia — tin ha recebido u m “do m espiritu al” (charisma)para uso na vida da igreja (Paulo ensina isso com toda clareza em lC o 12.7-11). A palavra conforme pode significar “na medida em que”, “de acordo com o grau” ( BA G D , p. 391, 2), mas a ideia de “receber” um do m não se harmo niza bem co m a ideia de proporcional idade nem de graus variados (ou a pessoa recebe ou não recebe o dom). E melhor interpretá-la no sentido de “do me smo modo pelo qu al” cada pessoa recebeu um dom (i.e., gratuitamente, pela graça, não por mérito), “usai-o uns para com os outros”. Com certeza esse sentido se encaixa no contexto de amor de uns para com os
outros (v. 8) e no contexto da boa administração dos dons da graça de Deus. 172
1PEDR.O 3.8-4.19 N o grego, o term o dom é indefinido e subentende “pelo menos um dom”, mas não deve ser interpretado no sentido de que cada pessoa recebe um dom e apenas um (veja IC o 12.31; 14.1,13,39). Um dom espiritual ( charisma, mesma palavra traduzida em ICo 12—14 por “dons espirituais”) é qualquer habilidade ou talento recebido por capacitação do Espírito Santo e que pode ser empregado no ministério da igreja. N o Novo Testamento há cinco listas diferentes de dons espirituais (Rm 12.6-8; IC o 12.7-11; 12 .28-30; E f 4.11; lPe 4.10) . Um a vez que as listas são todas diferentes (não existe um só dom que apareça em todas as listas e ne nh um a lista inclui tod os eles) e um a vez que IC orín tio s 7.7 inclui dois dons que não se encontram em nenhuma lista (casamento e celibato, que Paulo chama de charismata), é válido concluir que as listas não são exaustivas. Aliás, uma vez que existem variações dentro de determinado dom (as pessoas que têm o dom de evangelização podem diferir no tipo de evangelização que fazem melhor; o mesmo pode ser afirmado com relação aos dons de ensino, ajuda etc.), pod e-se dizer que há um a variedade quase ilimitada de dons espirituais distintos, sendo todos manifestações da variada e abundante graça de Deus. Mul tiforme (poikilos) significa “multifacetada, com muitos aspectos diferentes ou com muitas variações” (observe o uso da palavra em Mt 4:24, “várias doenças”; lPe 1.6, “várias provações”). Assim como a graça de Deus é muito variada, o mesmo se pode dizer dos dons que fluem dessa graça. No entanto, para que todos esses vários dons sejam usados para benefício mútuo (“uns aos outros”) as igrejas devem estar dispostas a receber uma grande variedade de ministérios e formas de usar os dons. Bons administradores do dom de Deus não o esconderão, mas o empre garã o para o b enefício dos outro s (veja a parábola dos ta lentos, M t 25.14-30; da mesma forma, Lc 19.11-27). A regra de Deus para nossos dons é que os usemos com a certeza de que os recursos despendidos na administração fiel serão repostos por um Senhor igualmente fiel.
11. Aquilo que alguém fala inclui não apenas ensino ou pregação, mas muitos tipos de dons que envolvem a fala: evangelizar, ensinar, profetizar e talvez cantar ou captar palavras de louvor e testemunho na congregação reunida. Em todos esses casos, o cristão tem de fazê-lo como quem comunica as palavras de Deus. Palavras([“oráculos”, ARA]; gr., logia) éum termo aqui relacionado principalmente com o que Deus diz ao ho mem (o term o é usado
em At 7.38 e Rm 3.2 para se referir às Escrituras do Antigo Testamento). 173
1PEDRO
Mas isso não pode ter o sentido de “como quem alega que as palavras que profere são palavras do próprio Deus”, porque isso só seria verdade no caso das Escrituras, não no caso de cada palavra proferida durante uma reunião da igreja. A oração tem antes o sent ido de “com a seriedade de prop ósit o que teria se estivesse falando as palavras de Deus”. Mais um a vez, aquilo c om que alguém serve éum a categoria bem ampla e inclui qualquer tipo de ministério de ajuda ou encorajamento para o beneficio de outros na igreja (ou, por extensão da ideia, qualquer serviço ou ministério dirigido a quem está fora da igreja). A fonte desse serviço (literalmente, “a partir de, com base em”) é a força que Deus concede ; o ser viço realizado apenas por meio da energia humana e para o bem de nossa posição aos olhos de terceiros logo pode se torn ar uma atividade cansativa (veja Gl 6.9; 2Ts 3.13) e aumentar o orgulho, em vez de fortalecer a fé. Embora o serviço seja voltado para ajudar outros crentes (e não crentes) e para edificar a igreja, seu propósito último é que em tudo Deus seja glorificado por meio deJesus Cristo (cf. ICo 10.31). A tradução “para que em tudo Deus seja louvado” (NIV [e NTLH]) encerra uma conotação quase exclusivamente oral; glorificado se aplica não apenas a palavras, mas também a posturas e ações que honram a Deus. Por fim, Pedro con clui esse trecho co m sua doxologia. A Jesus Cristo, a quem conheceu na carne como homem, Pedro escreve palavras de louvor adequadas apenas a alguém que também é totalmente Deus: a quem perten cem a glória e o domínio para todo o sempre. Amém. A palavra traduzida por domínio também pode significar “poder”; se aqui o sentido for esse, não é possível que Pedro deseje que Cristo (que é todo-poderoso) tenha mais poder em si mesmo, mas, sim, que os poderes da criação e em especial os poderes do homem sejam colocados mais plenamente a serviço de Cristo (veja Ap 4.11; 5.12; 7.12). Mas de qualquer maneira esse sentido é muito parecido com o de domínio.
f. Não fiqueis surpresos com vossas tributações, mas regozijai-vos (4.12-16) Alguns entendem que o versículo 12 inicia um trecho separado da carta, ou até um a carta ind ependente acrescentada depois a 1Pedro, mas a doxolo gia e o “amém” no final do versículo 11 não exigem isso (veja Rm 1.25; 9.5; 11.36; Gl 1.5; E f 3.21; lT m 1.17). Co ntu do, será que o assunto é tão diverso que precisamos pensar que este trecho foi escrito para uma situação diferente, na qual a perseguição não era apenas um a possibilidade, mas algo que de fato
estava acontecendo? 174
1PEDRO 3.8—4.19
Para responder a essa pergunta, temos de ter em mente que 1Pedro é dirigida a cristãos de dez ou mais igrejas importantes (sem dúvida com outros leitores em muitas outras comunidades locais que haviam surgido a partir daquelas igrejas) dispersas por quatro províncias da Ásia Menor (veja 1.1 e “Destino e leitores”, na Introdução). Desde a primeira dissemi nação do evangelho houve hostilidade e até oposição violenta em muitos lugares — às vezes, oposição alimentada por judeus incrédulos (At 4.1-3; 5.17,18,40,41; 7.57-60; 8.1-3, em Jerusalém; 13.50-52, em Antioquia da Pisídia; 14.4-6, em Icônio; 14.19, em Listra; 17.5-9, em Tessalônica; 17.13, em Bereia; 18.12-17, em Corinto ; 20.3, provavelmente outra vez em Corinto; 21.27-36, em Jerusalém) e, às vezes, perseguição das autoridades locais, quer por motivos políticos (At 12.1-3), quer por falsas denúncias de gentios cujos lucros com o pecado estavam ameaçados (At 16.19-25, em Filipos; cf. At 19.23—20.1, em Éfeso). Assim, temos provas específicas de oposição violenta ao evangelho desde a época e m que ele cheg ou pela prim eira vez a alguma s cidades para as quais Pedro estava escrevendo (pelo menos Antioquia da Pisídia, Icônio e a vizinha Listra, e também Éfeso — caso Éfeso seja considerada uma provável destinatária da carta), e é lógico que oposição semelhante pode ter surgido de tempos em tempos nas outras cidades para as quais Pedro também estava escrevendo. Em face desses antecedentes históricos, temos de indagar se Pedro teria escrito a tantas e diferentes igrejas (l) como se nenhuma delas estivesse debaixo de perseguição, (2) como se algumas estivessem enfrentando perseguição ou (3) como se todas estivessem sendo perseguidas. Mesmo que ele não tivesse recebido notícias recentes de perseguição real sofrida no momento e m que estava escrevendo, n ão causaria surpresa se, em uma carta geral para grupos de igrejas espalhadas, o apóstolo escrevesse como se níveis variados de perseguição oficial e não oficial fossem uma possibilidade para alguns leitores e realidade para outros. Aliás, issoé o que encontramos em 1Pedro com o u m todo. Algumas pa s sagens consideram a perseguição somente uma possibilidade (1.6,7; 2.12,21; 3.14; 4.1,2,14,16). Outras dão a entender que alguns leitores estão de feto passando por perseguição ou pelo menos por algum tipo de tratamento injusto (2.15,18-20; 3.9,14,16; 4.4,17,19; 5:9,10). E é importante destacar que duas afirmações muito claras sobre a perseguição que estavam sofrendo não restrin gem o fenô meno a uma localidade, mas antes o universalizam, dizendo
tratar-se de uma experiência caracterí stica da igreja em geral: 4.17 e 5.9. 175
1PEDRO
Assim, embora a perseguição receba tratamento específico nos versículos 12-19, não é necessário entender que eles tratem de uma situação diferente dos trechos anteriores da carta. Esta seção continua a longa análise, iniciada em 2.11, sob re viver com o cristão em um mundo hostil. Sofrer com o cristão é um tema que está em destaque desde 3.13, e somente os versículos 7-11 do capítulo quatro fazem um parêntese menor sobre a vida dentro da igreja no fim dos tempos. 12. Sofrer como cristão não é algo que deve ser considerado incomum ou estranho: Amados, não estranheis a provação que como fogo vos sobrevem, como se vos estivesse acontecendo alguma coisa estranha. A palavra traduzida por fogo significa tamb ém “incên dio ” (com o em Ap 18.9,18), mas é provável que Pedro esteja pensando na acepção da palavra em Prové rbios 27.21 (LXX): “É pelo fogo que se testam a prata e o ouro”. Por causa desse sentido, a pala vra também pode ser traduzida por “fogo refinador”. A figura é semelhante àquela usada em 1.7. A figura do fogo de um ourives dá a entender que esse sofrimento pu rifica e fortalece os cristãos. Essa ideia é reforçada pelo fato de que o fogo vos sobrevêm (ou “surge no meio de vós” [ARA]) para vos provar [ARA]. Aqui ele usa a mesma palavra (peirasmos)empregada em 1.6 (“provações”) em seu sentido positivo de provação ou tribulação que normalmente traz um resultado favorável. Os leitores são incentivados a ver o bom propósito de Deus por trás das dificuldades experimentadas, dando-lhes capacidade para serem mais fortes na fé e para glorificarem mais a Deus. Pedro explica isso nos versículos seguintes, mostrando que não se deve pensar que essas provações sejam incom uns ou estranhas,pois são parte n orm al da vida cristã. 13. Em vez de ficar perplexos com as provações, os cristãos devem se alegrar por serem[i.e., na medida em que são] participantes dos sofrimentos de Cristo. Ambos os verbos subentendem continuidade ao longo do tempo: “A medida que estais participando dos sofrimentos de Cristo, continuai vos alegrando”. E surpreendente pensar que o aumento dos sofrimentos parece apenas aumentar a alegria do crente no Senhor, mas as Escrituras dão teste munho de que isso é fato (At 5.41; cf. 16.25; Rm 5.3; Cl 1.24; Hb 10.34). Além do mais, sofrer como cristão traz a confirmação de que realmente pertencemos a Cristo: “Portanto, participar aqui dos sofrimentos de Cristo é estar na estrad a certa que conduz à partici paçã o de sua glória na vida futu ra”
(Stibbs/Walls, p. 159). Isso é assim porque a união com Cristo implica não 176
1PEDRO 3.8—4.19 apenas união com ele em sua morte e ressurreição (Rm 6.5), mas também união com ele em seu modelo de vida como um todo, incluindo o sofri ment o po r causa da jus tiça (lP e 2.20,21; 3.17,18; Rm 8.17; Fp 3.10; Cl 1.24; 2Tm 3.12; ljo 2.6). Assim, alegrar-se agora no sofrimento por causa de Cristo levará com certeza a uma grande alegria em sua presença quando ele voltar: “Alegrai-vos por serdes participantes dos sofrimentos de Cristo, para que também vos alegreis e exulteis na revelação da sua glória”(cf. Rm 8.17). As palavras vos ale greis e exulteis é traduzida com mais vivaci dade po r “vos alegreis com g ran de regozijo espiritual”, pois Pedro acrescenta a essa oração o verbo agalliaõ, “alegrar-se com regozijo espiritual, regozijar-se no Senhor” (veja, em 1.6, comentário sobre esse termo). 14. Ago ra se apresenta um exemplo específico de sofrime nto do cristão: Se sois insultados (injuriados, maltratados, caluniados) por causa do nome de Cristo. De novo os verbos indicam continuidade ao longo do tempo: “Se estais sendo insultados [...] sois abençoados [...] o Espírito [...] está repousando sobre vós”.32 A bênção mencionada no versículo 13 era futura; a bênção mencionada aqui é presente. As palavras sobre vós repousa o Espirito da glória, o Espírito de Deus indicam uma plenitude incomum da presença do Espírito Santo para abençoar, fortalecer33 e dar um a antevisão da glória celeste. (A RSV traz “espírito”, mas “Espírito”, como na NIV, NASB, TEV [e A21, ARA], é melhor, visto que, com certeza, a referência é ao Espírito Santo, o Espírito de Deus.) As palavras ecoam a profe cia messiân ica de Isaías 11.2, que fala do ramo dejessé: “O Espírito do Senhor repou sará sobre e le” (a mesma palavra traduzida por “repousar”, anapauõ , é usada na LXX e também aqui). Pedro entende que essa bênção messiânica também se estende aos que sofrem pelo nome do Messias (ou “Cristo”) — veja alguns exemplos em Atos 5.41; 6.15; 7.55,59,60; 16.25. Mas nesse versículo a palavra glória também aponta para outro tema: é na habitação do Espírito Santo dentro dos crentes em Cristo 32Aqui a con stru ção gr amatic al (con junçã o ei mais indicativo) não significa que Pedro pensa que os leitores realmente estão sendo censurados, mas apen as que, para efeito de raciocínio, faz essa concessão por um instante (veja, em 1.6, comentário sobre “ainda que a gora sejais necessariamente afligido s”). 33A ideia do fortale cimen to co ncedi do pelo Espírito Santo estaria press uposta ou mesmo declarada, p ois é de força que a pessoa precisa em tem pos de provação. A variante
textual “e de poder”, que é bem atestada, tornaria inequívoca a ideia. 177
1PEDRO
que devemos ver o cumprimento neotestamentário da nuvem da glória de Deus referida no Antigo Testamento (a “glória shekiná”)(veja acima em 2.5, p. 102, a nota adicional “O lugar da habitação de Deus”). 15,16. Contudo, essa bênção não é concedida para qualquer tipo de sofrimento: Mas nenhum de vós sofra como homicida, ladrão, praticante do mal (termo genérico que se refere a qualquer um que “faz o mal”), ou como quem se intromete em negócios alheios. O últim o term o é extremamente raro (há apenas mais uma ocorrência conhecida; veja BAGD, p. 40), e vários sentidos foram propostos. O sentido dado pela NIV, “intrometido” [“quem se se intromete em negócios alheios, A21; “quem se intromete na vida dos outros”, VFL], parece melhor do que o encontrado em algumas versões ([e.g., “cobiçador do alheio”, BAM; “intrigante”, CNBB; “delator”, BEP, BJ]), pois, juntos, os diferentes elementos que formam o substantivo allotriepiskoposencerram o sentido de “aquele que examina atentamente os negócios dos outros” (ou os bens dos outros), e a ideia geral seria então “agir mal devido à intromissão em assuntos que não são de sua conta”. Todavia, se sofrer como cristão, não se envergonhe disso. O mundo pode pensar que é vergonhoso alguém sofrer por se manter fiel ao cristianismo, mas, na realidade, aos olhos de Deus isso é uma honra e deve ser tam bém aos olhos dos cristãos. A palavra cristão éachada no Novo Testamento somente aqui e em Atos 11.26 e 26.28; quer dizer “seguidor de Cristo” — não “pequeno Cristo”, como algumas explicações populares defendem (pois a palavra é formada com o a palavra “herodiano”; veja Mc 3.6; 12.13, que quer dizer “seguidor ou apoiador de Herodes”). Em vez de se envergonhar, Pedro sugere uma alternativa: pelo contrário, glorifique a Deus com esse nome.O sentido é que aquele que está sendo insultado como cristão deve agir e falar de tal maneira que Deus seja continuamente honrado em sua vida. A ideia de viver de maneira que em tudo Deus seja glorificado é visivelmente declarada no versículo 11, mas também está muitas vezes subentendida nos versículos anteriores (veja comentários sobre 1.7,16; 2.5,9; 3.4). Com esse nome(ou, mais literalmente, “ness e nom e”) parece t er o sentido de “agindo em nome de Cristo, como aquele que representa Cristo perante os outros”. É difícil fundamentar a NIV (“mas louvem a Deus por levardes esse nome”) com base no texto grego, a menos que se apele para uma rara acepção da palavra “nome”) ( onoma) com o sentido de “categoria” (BAGD,
p. 573, II) que nesse caso seria ampliado para significar “louve a Deus nessa 178
1PEDRO 3
. 8-4.19
que stão” (a que stão de leva r o nome de Cristo). Mas iss o é muito difícil por que (l) a presença da palavra “cristão” na frase toma provável que onomati esteja sendo usado com seu sentido normal, “nome”, e não com o sentido de “questão”; (2) a nuança do presente do imperativo ( doxazetõ , “que ele glorifique ou louve”) faz mais sentido como “que ele glorifique continuamente” (em vida) e não como “que ele continuamente louve a Deus” (pelo fato de carregar aquele nome); e (3) o processo disciplinador do juízo de Deus (v. 17, que c om eça c om “po rque ”) é um a boa razão para q ue e m tud o se viva de uma man eira que glorifi que a Deus, mas carregar o no me “crist ão” não é nem de longe um motivo tão claro para louvar a Deus.
(i) Pois o julga men to de Deus está começan do pela própria casa de Deus (4.17,18) 17. Porque chegou a hora de começar o julgamento pela casa de Deus coloca os versículos 12-16 em um contexto teológico mais amplo. “O que está acon tecendo no mundo?” — os leitores talvez se perguntem. “Por que o povo de Deus está sofrendo e os malfeitores estão ficando impunes?” Pedro explica que o “fogo ref inad or” do versículo 12 é na realidade um fogo do julgamento de Deus. Mas essa palavra traduzida por julgamento (krima) não tem neces sariamente o sentido de “condenação” (que seria hatakrima), mas é um term o mais amplo que pode se referir a um julgamento que resulta em avaliações boas e más, um julgamen to que pode redundar em aprovação ou em dis ciplina, bem como em condenação. A cena é que Deus começou a julgar dentro da igreja e mais tarde sairá para julgar os que estão fora da igreja. O fogo refinador não está deixando ninguém intato, mas os cristãos estão sendo purificados e fortalecidos po r ele — pecados estão sendo elimi nado s e crescem a confiança em Deus e a santidade de vida. A tradução família de Deus (RSV [e VFL; “povo de Deus”, NTLH) enfatiza a natureza familiar da igreja. Mas parece que ela dificilmente é jus tificável em face da expressão grega oikos tou theou (“casa de Deus”). Dennis Johnson34 consegu e convencer q uando diz que, n a LX X, essa expressão nunca se refere à “casa” do povo de Deus, mas sempre ao templo, a “casa de Deus” em termos do prédio em que ele habita. Assim, é provável que também aqui ela deva ser traduzida por “casa de Deus”.
14Dennis E. Johnson, “Fire in God ’s house: imagery from Malachi 3 in Peter’s theology o f suffering (l Peter 4:12-19 )” J E T S 29:3 (Sept., 1986), p. 291-2. O. Michel diz que “na
LXX, oikos theou é um termo estabelecido e se refere ao santuário” (TDNT 179
5, p. 120).
1PEDRO Esse argumento gan ha força qua ndo nos lembramos da única outra vez em que Pedro usa a palavra oikos, “casa”, em 2.4,5: “Chegando-vos a ele [...] estais sendo edificados casa espiritual” (veja, em 2.5, comentário sobre a referência ao templo aqui). Além do mais, o texto não diz literalmente “com” (RSV), mas “a partir de” (apo):“Porque chegou a hora de começar o ju lg amento a partir da casa de Deus” [começar [...] pela casa de Deus, A2l]. Essa tradução permite que Johnson interprete corretamente o versículo sob a perspectiva de duas outras passagens do Antigo Testamento, Ezequiel 9 e Malaquias 3. Ezequiel 9 retrata o Senhor chamando os “executores” [ARA]do julgamento a se achegarem (9.1) para trazer juízo sobre Jerusalém por seus horríveis pecados. Um mensageiro de Deus coloca um sinal na testa de tod os os que f oram encontrados “ suspirando e g em en do ” po r causa das “abominações” cometidas em Jerusalém (9.4,5). Então os “executores” do julgamento recebem ordem de matar todos os que não têm o sinal na testa (9.5,6). Destaque-se que D eus diz aos carrascos “come çai pelo35 meu santuário” e que Ezequiel acrescenta “Então começaram pelos anciãos que estavam diante do templo” (9.6). As palavras “começar por”, usadas duas vezes aqui, são as mesmas que Pedro usa para dizer que é hora de o julgamento “começar pela ( archomai apo)casa de Deus”. “Casa” (oikos) tam bém é a mesma palavra nas duas pa ssagens. Tant o 1Pedro 4.1 7 quanto Ezequiel 9.6 me ncionam a glória de Deus antes e depois de las (lPe 4.14 e 5.T, Ez 9.3 e 10.4). Por fim, enq uan to o ju íz o de Ezequiel com eça “pelos anciãos” que estão na casa de Deus, Pedro inicia sua próxima seção de advertências com as palavras “Portanto, suplico aos presbíteros que há entre vós...” (5.1; em ambas as passagens a palavra é presbyteroi). Parece muito provável que, enquanto escreve, Pedro esteja pensando na cena de juízo de Ezequiel 9, indicando que o juízo de Deus começará pela casa de Deus (que agora é a igreja; veja comentário em 2.5) e, em seguida, se estenderá para fora para destruir todos osaincrédulos. Entretanto, menção do fogo refinador (v. 12) que não destrói, mas purifica o povo de Deus, traz à mente uma segunda passagem do Antigo Testamento, cujas figuras marcantes podem ter sido juntadas com as de Ezequiel 9 enquanto Pedro escrevia. Malaquias 3 prediz que o próprio Senhor “de repente [...] virá ao seu templo” como “o mensageiro da aliança” que “é como o fogo do ourives” (3.1,2; na LXX, “fogo” é pur, que não é a
’’’Aqui ofereço minh a própria tradu ção da LXX para dei xar claros os paralelos verbais com lP e 4.17.
180
1PEDRO 3.8—4.19
mesma palavra de “fogo ardente”, pyrosis, em lPe 4.12, mas um cognato). Malaquias acrescenta: “Ele se assentará como refinador e purificador de pra ta; purificar á os levitas e os refinará co mo ou ro e c om o prata, até q ue levem ao Se nhor ofertas co m justi ça” (Ml 3.3). “E irei a vós co m ju ízo ...” (contra o s incrédulos; Ml 3.5). Joh nson acertadamente sal ienta que, emb ora a linguagem de Pedro possa ter sido mais influenciada por Ezequiel 9, em lPedro 4.12-19 os conceitos estão mais próximos da cena de Malaquias 3: o próprio Senhor está agindo com o fo go refinador, purific and o os sacerdotes (“os levitas”; veja lP e 2.5,9) a fim de que possam oferecer sacrifícios agradáveis ao Senhor (veja lPe 2.5). Então o julgamento que começou pela casa de Deus (o templo, Ml 3.1) se dirigirá da li para os i ncrédulos, nã o mais com o fogo purifi cador, mas com o juíz o de condenação — que no leva diretamente de volta a 1Pedro 4.17: e se “Porque chegou a hora de começar o julgamento pela casa de Deus; começa por [gr., apo, “a partir de”] nós, qual será fim o daqueles que desobedecem ao evangelho de Deus?"“A mensagem é simplesmente esta: ‘Se para aqueles que estão unidos com Cristo, o fogo purificador da visitação escatológica de Deus [...] implica uma aflição como essa que os leitores de Pedro estão sofrendo, o que a consumação dessa divina presença purificadora haverá de significar para aqueles que rejeitaram as boas novas de Deus, senão a confla gração de uma destruição plena?’”.36 A aplicação dessa passagem aos leitores de Pedro deve estar clara: se o Senh or já está no meio de seu novo t emp lo (i.e., seu povo), est e “não deve estranh ar o fogo ardente que surge n o me io de vós (gr., en humin, ‘no meio de vós’), destinado a provar-vos [...] porque sobre vós repousa o Espírito da glória e de Deus” (v. 12,14). Ele é “o mensageiro da aliança, a quem desejais” (Ml 3.1); por isso podem “se alegrar” (v. 13) na sua presença. Mas com ele tamb ém vem u m fogo refinador, e eles têm de se purifi car de todas as iniquidades a fim de evitar o sofrimento d o ju íz o divino disciplin ador, ao mesmo tempo que continuam confiando naquele que é o único que pode capacitá-los a estar em sua presença (v. 19).37
“Johnson, op. cit., p. 292. 37Os leitores de tradu ções mo dernas men os literais não têm como des cobr ir esses paralelos com o AT que to m am a passagem compreensível, pois os dois termos-chave se perdem em traduções que mantêm uma associação apenas geral das idéias: a NIV [e TPCR] traz “duras provações” no v. 12, perdendo a ideia de fogo, e “família de Deus”
no v. 17, perdendo a ideia de “casa de Deus”. 181
1PEDRO
18. Este versículo tem o mesm o tem a de Provérbios 11.31 (LXX), mas desta vez expresso com palavras citadas com exatidão: Se para o justo é difícil ser salvo, onde comparecerá o ímpio pecador? O fogo da sant idade de Deus é tão intenso, que até o justo sente a dor da dis ciplina do fog o. C om o conseq uên cia, o ímpio [pessoa irreligiosa, alguém sem reverência verdadeira por Deus] e o pecador[ARC] descobrirão que esse fogo é fogo de destruição eterna.
(ii) Portanto, fazei o bem e confiai continuamente em Deus (4.19) 19. O que os cristãos devem fazer em tais circunstâncias? Eles devem praticar o bem, mantendo a pureza moral na vida (veja 1.15 etc.), e continuar não confiando em si mesmos, mas confiar a vida ao fiel Criador.Neste versículo resume-se o ensinamento de toda a carta. Os cristãos não sofrem por aci dente nem devido às forças irresistíveis de um destino cego; antes, sofrem segundo a vontade de Deus. Conquanto à primeira vista isso pareça severo (pois implica que às vezes é da vontade de Deus que soframos), quando se reflete sobre o que está acontecendo, não se pode encontrar consolo melhor no sofrimento do que este: trata-se da boa e perfeita vontade de Deus. Pois aí reside o conhe cimento de que existe um limite para o sofrimento tanto em intensidade quanto em duração, limite estabelecido e mantido pelo Deus que é nosso criador, nosso salvador, nosso sustentador, nosso Pai. E aí também reside o conhecimento de que esse sofrimento visa apenas ao nosso bem: ele está nos purificando, colocando-nos mais perto de nosso Senhor e tornando-nos mais semelhantes a ele em nossa vida. Em tudo isso não estamos sozinhos, mas podemos depender do cuidado de um Criador fiel; podemos nos rego zijar na companhia de um Salvador que também sofreu (v. 13); podemos exultar na presença constante de um Espírito de glória que tem prazer em repousar sobre nós (v. 14). Há quem pense que a expressão segundo a vontade de Deusse refere à maneira com o os cristãos agem enq uan to estão sofr endo e n ão à razão pela qual sofrem. No entanto, essa interpretação não é possível porque tornaria redundante a expressão praticando o bem: em suma, o versículo estaria dizendo: “Q ue pratiqu em o bem aque les que sof rem enqua nto pratica m o be m”. Mas essa é uma repetição sem sentido. Portanto, é necessário interpretar a frase com o sentido de “Que pratiquem o bem aqueles que sofrem porque Deus desejou que sofram...”. A expressão encomendar a alma(RSV [e ARA; “confiar a vida”, A2l]) não
traduz a palavra normal correspondente a “confiar em” Deus, mas um verbo 182
1PED RO 5. 1- 7
(paratithêmi)que significa “entregar à guarda de alguém, buscar o cuidado de alguém” (veja Lc 23.46, “Pai, nas tuas mãosentregoo meu espírito”, citação de Sl 31.5; veja também At 14.23). A menção de alma aqui (veja comentários
em 1.22), junto com o possível eco das palavras de Jesus na cruz (Lc 23.46), sugere a ideia da alma do crente, que continua viva mesmo depois da destruição do corpo, e dá um a perspectiva adequada à questão do sofrim ento temporário. f. A vida como m embros e ofi ciais da igreja (5.1-7)
1. Presbíteros: pa sto rea i corretamente o rebanho de De us (5. 1-4 )
1. Em princípio, as palavras Portanto, suplico aospresbíteros que há entre vós(lit., “exorto” [CNBB]) parece não ter relação com a seção anterior, mas a palavra portanto (oun) sugere que este trecho tem relação lógica com o anterior. É provável que a ideia de o julgamento começar pela casa de Deus (4.17) levou Pedro a se concentrar na necessidade de pureza de coração perante Deus nos relacionamentos entre aquel es que estão na igreja, com eçando pelos líderes. Esse padrão pode até mesmo ter sido inspirado em Ezequiel 9.6, de onde Pedro tom ou empresta do expressões que se referem ao julga mento que começa “pela casa de Deus”; em Ezequiel 9.7 lemos: “Então, começaram pelos anciãos [presbíteros] que estavam diante da (LXX: na) casa” [ARA], A ligação é esta: o julgamento purificador está começando pela casa de Deus, em especial com seus líderes; portanto, suplico aos presbíteros que há entre vós. Para não parecer arrogante demais com essa predição de julgamento, Pedro imediatamente se coloca entre os presbíteros: eu que sou presbítero com eles. Eles são assim informados de que Pedro se vê como um daqueles com quem começará o julgamento — até ele, um apóstolo, não está isento, e também nenhum de seus leitores deve imaginar-se importante ou santo de mais e assim achar que está isento. Além do mais, como Pedro está prestes a incentivá-los a serem “exemplos” para o rebanho (v. 3), então demonstra na expressão seguinte que ele também está pronto a ser exemplo para os líderes a quem escreve. Embora seja admirável que, ao falar aos presbíteros, o apóstolo Pedro adote o título menos destacado de “presbítero com eles”, mais admirável ainda é o fato de ele se referir a si mesmo como testemunha dos sofrimentos de Cristo. Se ele dissesse “testemunha da ressurreição”, estaria fazendo uma declaração da veracidade de sua mensagem (como em A t 2.32; 3.15; cf. 1.22).
Até mesmo “testemunha da transfiguração” teria sido uma reivindicação 183
1PEDRO de autenticidade (veja 2Pe 1.16-18). Mas “testemunha dos sofrimentos de Cristo” traz diretamente à lembrança, de Pedro e de qualquer um que conhecesse os detalhes da crucificação de Cristo, o episódio mais doloroso da vida de Pedro — pois nos lembram os exatamente do tipo de “testem un ha” que Pedro foi : alguém a qu em faltou cora gem e que três vezes ne go u que ele próprio conhecesse Cristo (Mt 26.69-75). Por que Pedro traz essas coisas à lembrança? Provavelmente para demons trar que, co m Cristo, torna-se possível a restauração até do pecado mais grave (veja, em lT m 1.16, um uso semelhante que Paulo f az ao menc ionar sua his tória co mo exemplo de restauração totalm ente pela graça), assim incent ivando os presbíteros a terem a humilde disposição de se arrepender dos pecados, em vez do orgu lho hip ócrita e da relutância em adm itir os próp rios erros. O fato de que Pedro também é participante da glória que será revelada mostra que a restauração plena do pecado está certamente disponível por meio de Cristo. Essa expressão podería ser referência à presença de Pedro no monte da transfiguração, quando a nuvem da glória de Deus encobriu aqueles qu e estavam co m Jesus (Mt 17.1-8; veja 2Pe 1 .16-1 8), mas, se quisesse mencionar esse fato, provavelmente ele teria dito “bem como testemunha da glória que foi revelada”. Ele menciona essa participação na glória depois de mencionar que testemunhou os sofrimentos de Cristo, e também diz que a glória será revelada,fortes indícios de que Pedro está pensando na glória futura da qual os crentes participarão quando Cristo voltar (observe esse tema em 1.7; 4.13; 5.4,10). Pedro é um “presbítero” que pecou, arrependeu-se, foi restaurado e participará da glória com Cristo. Ele assim reúne as condições necessárias para “exortar” [CNBB] qualquer presbítero cuja vida esteja em pecado a também se arrepender e ser restaurado antes que o fogo refinador da disciplinada de Deus o alcance. Em outro nível, a referência aos sofrimentos de Cristo também pode servir de lembrete para os presbíteros de que, assim como Cristo se dispôs a sofrer por eles, da mesma maneira eles devem estar prontos a suportar dificuldades e sofrimentos por aqueles que estão em suas igrejas (veja o comentário sobre a função de 3.18 no contexto). Contudo, no contexto em que Pedro fala de si mesmo como alguém que, junto com os demais, é presbítero/testemunha/participante da glória, a ênfase básica da expressão não parece estar no exemplo de Cristo, mas na pr ópria experiência de Pe dro. 2.
Pedro exo rta os presbíteros: pastoreai o rebanho de Deus que está entr
vós. Aqui há um jogo de palavras, pois o verbo 184
pastorear (poimainõ, “servir
1PE D RO 5.1-7
como pastor, servir como aquele que apascenta”) e o substantivo rebanho (poimnion) derivam da mesma raiz. Poderiamos traduzir assim: “Pastoreai o pastoreio de D eus”38. O v erbo emp reg ado p or Pedro é o mesmo que Jesus usou quando disse a Pedro “Pastoreia (poimainõ) as minhas ovelhas” (Jo 21.16). A expressão “que vos é confiado” [BAM; cf. CNBB, NTLH, NVI] é, mais literalmente, que está entre vós. Neste ponto, algumas traduções [e.g., TB, IBB, ARA] omitem cuidando dele, expressão que traduz o verbo episkopeõ, “atuar como bispo (ou super visor)”. Mas a expressão deve ser incluída aqui no texto (os três principais manuscritos que a omitem procedem de uma única região geográfica, ao passo que aqueles que a incluem são de diferentes lugares, e vários são bastante antigos). A combinação do termo “presbítero” com os verbos relacionados à atividade de “pastor” e “bispo” (“supervisor”) de maneira tão próxima nos versículos 1 e 2 é um bo m indício de que os termos “past or” e “bispo” eram usados com o sinô nimos du rante o período do No vo Testamento. Pedro passa a falar aos presbíteros como devem agir, relacionando três pecados aos quais os presbíteros estão especialmente vulneráveis e três antí dotos para os quais devem dar atenção. Calvino introduz essa seção com uma sinopse perspicaz: Ao exortar os pastores em seus deveres, ele destaca principalmente três vícios encontrados com frequência, a saber, a preguiça, o desejo de lucro e a cobiça do poder.39
Não por obrigação, mas espontaneamente significa realizar o trabalho não porque “alguém tem de fazê-lo”, mas porque o presbítero, de livre e espontânea vonta de, decidiu execu tar esse trabalho valioso (ve ja l T m 3.1). O segmento de frase segundo a vontade de Deus(literalmente, “de acordo com Deus”) é omitido em algumas versões, mas também é bem atestado em manuscritos antigos e deve ser incluído no texto (como na NIV e na NASB). Nin guém deve ser pressionado a aceitar um ofício eclesiástico que não deseje — Deus quer nosso serviço sem relutância e dará outra solução. O presbítero deve servir não por interesse em ganho ilícito, mas de boa vontade. A palavra traduzida por de boa vontadecoloca um pouco mais de ênfase na 1KA palavra pastoreio é usada como regionalismo no Brasil no sentido de “gado pastoreado”. (N. do E.)
39Calvino, p. 314.
185
1PEDRO emoção positiva de fazer o trabalho, ao passo que, na expressão anterior, a palavra “espontaneamente” concentra-se apenas no elemento da escolha espon tânea e livre, a decisão da vontade da pessoa qu e realizará o trabalho. Pode-se questionar se a proibição de servir por interesse em ganho ilícito significa que nunca devemos nos envolver em um trabalho relacionado à igreja a fim de ganhar dinheiro ou se o sentido é que não se deve ganhar dinheiro “de modo ilícito” (i.e., com motivação gananciosa ou egoísta ou media nte práticas desonesta s ou injustas). A se gun da ideia parece prefer ível, porque Pedro se refere a ganho ilícito e não somente a ganho e ta mbém por que em outra passagem as Escrituras indicam que, pelo menos para alguns presbíteros (provavelmente aqueles cuja fonte de renda ou cujo trabalho de tempo integral são suas atividades como presbítero), é lícito receber pelo trabalho qu e realizam (l T m 5.17,18) — portan to, o desej o de contar com essa renda tam bém te m de ser correto, pelo meno s com o pa rte da motivação. Mas o contraste não é entre “interesse em ganho ilícito” e “ganho honesto”; antes, é em relação a algo muito mais elevado; é entre “interesse em ganho ilícito” e “boa vontade ”. A ganância e o interesse egoísta encontram-se tão próximos do coração humano, que especialmente nessa obra é preciso estar sempre atento ao risco de sua influência. 3. Nem como dominadores dos que vos foram confiados, mas servindo de exemplo ao rebanhoretira o foco da motivação íntima e o dirige ao com portamento exterior. Mas mesmo aqui a postura é determinante, pois um presbítero que tem ganância de poder sobre os outros “dominará”, tendo prazer no uso da autoridade e procurando aumentá-la, conservá-la ou ostentá-la. Em contrapartida, o presbítero que não busca prestígio, mas a edificação dos outros (veja Fp 2.3,4,5-8,20,21; Mt 23.11) sempre se esforçará por tornar sua vida um “exemplo” para os outros, um modelo a ser seguido. O termo tra duzido por dominadores (katakyrieuõ ) significa “govern ar pela força, sub jug ar” e pode trans miti r a ideia de em preg o severo ou ex agerado da autoridade (observe seu uso em Mt 20.25; Mc 10.42; At 19.16; cf. também LX X G n 1.28; 9.1; no contex to de conquistas mi litares, N m 21.24; 32.22,29; Sl 110.2 etc.). A palavra parece sempre envolver a ideia de sujeitar algo mediante o uso de força, seja física, militar ou política. Pedro está proibindo aqui o domínio arbitrário, arrogante, egoísta ou excessivamente restritivo. Ele dá a entender que os presbíteros não devem liderar fazendo uso de ameaças, intimidação emocional ou ostentação de poder, nem de modo geral pelo
uso de força “política” dentro da igreja, mas, sempre que possível, mediante 186
1PEDRO 5.1-1
o poder do exemplo. Não obstante, o versículo 5, ao ordenar que os outros “se sujeitem” aos presbíteros, implica que estes detêm autoridade genuína para liderar a igreja e às vezes podem dar instruções às quais a igreja deve obedecer. (O uso que Paulo faz de sua autoridade como apóstolo, em especial em 2Coríntios e Filemom, é um ótim o exemplo par a estudo.) Embora reconheçamos que o próprio Deus é nosso exemplo a ser imitado (Ef 5.1) e que Jesus é nosso exemplo perfeito de vida humana que agrada a Deus (lPe 2.21; ljo 2.6 etc.), é possível que fiquemos surpresos ao perceber a frequência com que os primeiros cristãos esperavam que todos os seus líderes vivessem de tal maneira que os outros também pudessem imitá-los: eles não precisavam ser perfeitos para dar exemplo ao rebanho.Muitas vezes, Paulo reco men da qu e os outros sig am seu exemplo (lC o 4.16; 11.1; Fp 3.17; 4.9; 2Ts 3.7-9) e diz a Ti m ót eo (lT m 4.12) e a Tito (T t 2.7,8) que devem ser exemplos de vid a cristã para os ou tros (veja H b 6.12; 13.7). Assim, todos os que ocupam cargos de liderança na igreja devem compreender que a exigência de viver uma vida digna de ser imitada não é opcional — é u ma parte im porta nte do trabalho, em bo ra tal respo nsabilidade possa ser desafiadora. Além do mais, aqueles que escolhem os líderes da igreja devem compreender que excelência acadêmica e competência administra tiva ou financeira não h abilitam autom aticamen te para a liderança na igreja (como habilitariam para a liderança no meio universitário ou no mun do dos negóci os). Reconhecer que se tem essa responsabilidade nunca deve gerar orgulho, mas, sim, uma humildade contínua que dá consciência de que o pecado que segue existindo no coração ainda é odioso e que qualquer crescimento em santidade de vida acontece só pela graça de Deus. Aliás, orgulhar-se do próprio desenvolvimento espiritual seria dar exatamente o exemplo errado para os outros. E provável que o melhor exemplo seja dado por aqueles que, à semelhança de Paulo, exclamam: “Quem, porém, é suficiente para estas coisas?” (2Co 2.16b [ARA]), pois, como Pedro mesmo diz neste contexto, “Deus se opõe aos arrogantes, mas dá graça aos humildes” (v. 5b). Alguns pensam que os que vos foram confiados indica que cada presbítero tinha sob seus cuidados certas pessoas que lhe haviam sido confiadas, mas não existem dados suficientes para chegar a essa conclusão. E possível que a expres são tenha apenas o sentido de “vossa parcela de responsabilidade” perante Deus. 4.
Pedro não prom ete ne nh um a recompens a terrena, mas instrui os
presbíteros a olharem para além do mundo presente: Quando o Supremo 187
1PEDRO
Pastor se manifestar , recebereis a imperecivel coroa de glória (RSV). Quando, a exemplo do que acontece aqui, os presbíteros são vistos como pastores, é natural que Cristo seja chamado o Supremo Pastor (no NT, o termo ocorre só aqui, mas cf. 2.25; tb. Hb 13.20; Mt 26.31; Jo 10.11-16). Quando [ele] se manifestar “quandoaoele se tornardavisível, quandodeaparecer” e, por esse motivo, ésignifica uma referência momento volta visível Cristo à terra. Pedro diz que, naquela ocasião (nem mesmo por ocasião da morte: veja com entário e m 1.7), recebereis a imperecivel coroa de glória. Coroa (stephanos) designa a coroa das provas de atletismo ( lC o 9.25), ou a coroa dourada entregue pelo general romano aos soldados mais valentes na batalha (josefo, Guerras 7.14) ou a coroa usada pelo rei (2Sm [LXX 2Reinos] 12.30; cf. Ap 6.2; 14.14). Em cada um desses casos, é um sinal de honra especial, conferida não a todos, mas apenas aos merecedores de reconhecimento público específico, em geral como recompensa por algum tipo de atividade que encerra um grande mérito. Tal ideia se encaixa neste versículo, no qual Pedro faz menção específica da imperecivelcoroa de glória ao falar a “presbíteros” e em que faz referência a uma recompensa a ser dada na era vind oura, após descrever o procedim ento correto no exercício do ofício de presbítero durante esta vida. Além do mais, o termo glória transmite a ideia de uma demonstração visível de honra. Por fim, os “vinte e quatro anciãos [gr., presbyteros]” de Apocalipse tê m sobre a cabeça “ coroas de ouro ” (Ap 4.4), as quais eles lançam perante o trono de Deus (Ap 4.10) — embora não sejam os mesmos presbíteros ou anciãos a quem Pedro escreve, as “coroas” ali também são sinais de honra que, de acordo com o texto, eram possuídas por pessoas específicas, e não por todos. Nas Escrituras há outras passagens que sugerem algum tipo de “coroa” que será entregue a todo s os crentes (2 Tm 4.8; T g 1.12; Ap 2.10; 3. 11). Mas parece que nessas passagens a “coroa” é uma metáfora da vida celeste em geral. Em 2Timóteo 4.8, a “coroa de justiça” que o Senhor dará não apenas a Paulo “mas a todos os que amarem a sua vinda” (i.e., todos os crentes) provavelmente significa “justiça, que será como uma coroa”. Da mesma forma, a “coroa da vida” em Tiago 1.12 e em Apocalipse 2.10 (cf. Ap 3.1l) é provavelmente “vida eterna no céu, uma recompensa com parável a uma coroa recebida no final de uma corrida”. Em IC oríntios 9.25, está subentendido que todos os crentes devem se esforçar por obter uma coro a “que nã o se acaba”; entretanto, no contexto, a palavra “coroa” també m pode ser entendida como uma recompensa celeste não para todos os crentes,
mas só para aqueles que ao longo da vida permaneceram fiéis e obedientes 188
1PEDRO 5.1-7 a Deus de alguma maneira digna de recompensa especial (veja ICo 9.24 e observe os graus de recompensa em ICo 3.12-15). Assim, lPedro 5.4 parece indicar que os presbíteros em igrejas locais devem desempen har seu ofíci o de formas agrad áveis a Deus, não para obter honra nem riqueza nesta vida, mas para obter uma recompensa especial, uma imperecível coroa de glória , quando Cristo voltar (veja comentário em 1.7). Nas igrejas de hoje, essa deveria ser a recompensa pela qual os presbíte ros trabalham, mas não é isso que costuma acontecer.
2. Os m a is jo v e n s (e os de m ai s) : s uj ei ta i-v os ao s p r e s b ít e r o s (5.5 a) 5a. Pedro emprega a expressão do mesmo modo para dirigir o foco de aten ção a um grupo diferente de pessoas, mas ainda dentro do mesmo assunto, a exemplo do que fez em 3.7 (veja ali, e em 3.1, os comentários sobre homoiõs). Em ambas as passagens, a expressão do mesmo modo não significa “agi da mesma maneira”, mas “continuando no mesmo assunto” (em 3.7, as relações dentro do casamento; aqui, em 5.5, as relações entre os oficiais e outras pessoas na igreja). Vós, os maisjovens, sujeitai-vos aos presbíteros ordena submissão à auto ridade da liderança dos presbíteros dentro da igreja. Sujeitai-vos indica uma disposição geral de apoiar as instruções dos presbíteros (veja, em 3.1, comentário sobre hypotassõ), exceto se instruírem alguém a pecar (veja comentário em 2.13). N o Novo Testamento, a palavra presbíteros (presbyteroi) pode significar “pessoas mais idosas” ou “aqueles que têm o ofício de presbítero”, e o sentido exato pode ser determinado somente pelo contexto. Pbr isso, alguns pensam que neste versículo presbíteros tem necessariamente o sentido de “pessoas geralmente mais idosas” na igreja (como na NIV [e ARA]: “os que são mais velhos”), pois Pedro n ão diz “todos vós, sujeitai-vo s aos presbíteros”, mas fala diretamente a vós, os maisjovens. Afirma-se que o contraste entre mais jove m e presbíteros indica um contraste de idade, não uma função na igreja. No entanto, algumas considerações tornam mais provável que, assim como no versículo 1, devamos aqui entender presbíteros como referência aos que exercem o ofício de “presbítero” dentro da igreja, não às pessoas mais velhas em geral, (l) As palavras iniciais do versículo 5, “do mesmo m od o”, indica m q ue Pedro est á con tin ua nd o a análise iniciada no s versículos
1-4, assim como “da mesma forma” em 3.7 indica a continuação da análise 189
1PEDRO iniciada em 3.1-6. E, visto que o assunto nos versículos 1-4 é aqueles que têm o ofício de “ presb ítero”, o versículo 5 deve ser visto com o u ma instr ução sobre como se relacionar com aqueles que têm o ofício. Entretanto, se essa fosse uma instrução comum sobre relações entre pessoas mais velhas e mais jovens em geral, seria introduzido um assunto inteiramente novo (sobre relaciona mentos ). (2) A menos que houvesse clar as indicações c ontex tuais em contrário, aqueles qu e lessem o versículo 5 atri buiría m à palavra “presbíteros” o mesmo sentido que teve como assunto da análise nos versículos 1-4. (3) A palavra hypotassõ, “sujeitar-se”, implica submissão a uma autoridade, e não apenas deferência ou respeito (veja comentário em 3.1), e pessoas mais idosas geralmente não tinham autoridade de liderança nas igrejas, mas, sim, os que cumpriam o ofício de “presbíteros”. Assim mesmo, permanece a pergunta: por que, ao ordenar submissão aos presbíteros, Pedro se dirigiu apenas a vós, os mais jovens,e não à igreja toda? E provável que os mais jovens geralmente fossem os que mais preci savam de um lembrete para serem submissos à autoridade dentro da igreja (e não há necessidade de restringir o termo aos “homens mais jovens” [NASB], visto que o substantivo masculino plural também seria usado para se referir a um grupo misto de homens e mulheres). Isso não significa que os demais estavam livres para se rebelar contra os presbíteros, mas bem o contrário: se aqueles que provavelmente têm a mentalidade mais indepen dente e às vezes até se rebelam con tra os líderes da igreja recebe m a ordem de sujeitar-se aos presbíteros,então certamente todos os demais também devem se sujeitar aos anciãos. Essa ideia é confirmada pelo fato de que a Epístola de Policarpo,em 5.3, empregando as mesmas palavras usadas por Pedro e tra duzidas por “mais jovens” ( neõteroi) e por “sujeitar-se” ( hypotassõ), ordenou que os “mais jov ens” “se sujeitassem aos presb íteros e diácon os como se fosse a Deus e a Cristo”, e o contexto indica com clareza que ele está tratando de oficiais da igreja (observe a expressão “presbíteros e diáconos”; também as instruções aos diáconos em 5.2 e aos presbíteros em 6.1).
3. Todos vós: te nd e um a dis po siç ão hu m ild e uns para com os outros (5.5b) 5b. A frase Tende todos uma disposição humilde(lit., “revesti-vos todos de humildade” [CNBB]) uns para com os outros, porque Deus se opõe aos arrogantes, mas dá graça aos humildes deveria iniciar um novo versículo e um
novo parág rafo. Isso se deve ao fato de Ped ro estar passando de u ma análise de 190
1PEDRO 5.1-7 relacionamentos entre presbíteros e outras pessoas na igreja para uma seção distinta (v. 5b-7) que trata de forma mais geral de todos os relacionamentos interpessoais na igreja. (A divisão em versículos foi introduzida pelo editor Stephanus em 155140 e não existia quand o Pedro escreveu. Divisões modernas por parágrafo são ainda mais recentes, visto que são decididas de acordo com cada tradutor moderno e variam de tradução para tradução.) Pedro empr ega a metáfora de “vestir” ou de prende r a veste ju nto ao corpo [“cingi-vos”, ARA] para falar da atmosfera de humildade mútua que deve caracterizar os relacionamentos entre os cristãos. Ninguém está isento, pois, ao se dirigir a todos, Pedro inclui oficiais e não oficiais da igreja, jovens e idosos, crentes novos e cristãos maduros. O termo disposição humildefala de uma atitude que coloca os outros em primeiro lugar, priorizando os desejos, necessidades e idéias de terceiros. Esta palavra (tapeinophrosyne) é bem definida por Filipenses 2.3,4: “Nada façam por ambição egoísta ou por vaidade, mas humildemente considerem os outros superiores a vocês mesmos. Cada um cuide, não somente dos seus interesses, mas também dos interesses dos outros” (RSV [e NVI]; o próprio Cristo é o grande exemplo disso em Fp 2.5-8). O motivo de vestir a humildade é que Deus se opõe aos arrogantes, mas dá graça aos humildes,uma citação de Provérbios 3.34 (também citado em Tg 4.6). Por que Deus age assim? Aparentemente porque os arrogantes (altivos ou orgulhosos , que se acham mais imp ortantes do que todos os outros) confiam em si mesmos, ao passo que os humildes confiam em Deus, e Deus tem prazer na confiança que as pessoas nele depositam. Além do mais, os arrogantes buscam glória para si enquanto os humildes dão glória a Deus — e glória pertence legitimamente a Deus, não a nós (lCo 4.7; tb. ICo 1.26-31; Ap 4.11). A graça éo favor imerecido de Deus para conosco, é necessária não apenas para nos salvar do ju ízo eterno, mas també m para nos capacitar a viver a vida cristã. A citação inteira se aplica bem à vida diária do cristão, visto que os verbos no tempo presente dão o sentido de “Deus está continuamente se opon do aos arrogantes, mas contin uam ente d and o graça aos humildes” .
. Humilhai-vos debaixo de Deus (5.6) б , Pedro passa da humil dade perante os outros para a humildad e perante Deus: Portanto, humilhai-vos sob a poderosa mão de Deus. “Portanto” liga essa decla ração à citação no versículo 5: se Deus se opõe aos arrogantes, humilhar-se perante ele é demonstrar a verdadeira sabedoria. Entre outras coisas, isso
4°ODCC, p. 1308.
191
1PEDRO inclui curvar-se perante a sabedoria de Deus, aceitando as voltas e revira voltas de sua providência e confiando a ele todas as nossas preocupações. Embora isso possa muito bem significar desvantagem pessoal nesta vida, para o crente sempre será benéfico humilhar-se perante Deus, para que ele a
seu tempo vos exalte. Não se especificam nem o mom ento nem o tipo de “exaltação”; por isso, é melhor entender a declaração em termos gerais: “para que na hora que Deus considerar melhor, quer nesta vida quer na vida por vir, ele vos levante de vossa humilde condição e vos ‘exalte’ da maneira que melhor lhe parecer” — talvez apenas com acréscimo de bênçãos espirituais e com o aprofundamento da comunhão com ele, mas talvez também incluindo res ponsabilidade, recompensa ou honra que também serão vistas pelos outros.
b. Ganhai humildade, lançando toda vossa ansiedade sobre Deus (5.7) 7. Lançando sobre ele toda vossa ansiedade, pois ele tem cuidado de vós. No texto grego não há nenhum novo período começando aqui, e as versões (tais como RSY NIV [e NVI, NTLH]) que iniciam um novo período no versículo 7 perdem uma importante ligação entre os versículos 6 e 7. Pedro continua com a ordem do versículo 6 (“Humilhai-vos...”) com uma oração participial que diz como isso deve ser feito. A devida humildade é alcançada, “lançando sobre ele toda vossa ansiedade, pois ele tem cuidado de vós”. Pedro reconhece que a preocupação humana consigo mesmo (“mas quem cuidará de mim?”), ainda que legítima, é um grande obstáculo que torna difícil pôr os outros em primeiro lugar e pensar neles como mais importan tes. A respos ta é que o pr óp rio Deu s cuidará de nossa s necessidades. Ele é capaz de fazê-lo muito melhor do que nós (sua mão é “poderosa”, v. 6) e quer fazê-lo, pois tem cuidadocontinuamente de seus filhos. Portanto, lançar toda vossa ansiedadesobre ele é o caminho para a humildade, pois liberta a pessoa da constante preocupação consigo mesma e a capacita a verdadeiramente se preocupar com as necessidades dos outros. Lançar significa jogar algo sobre alguém ou sobre alguma outra coisa (como e m Lc 19.35). O contexto des sa declara ção é o uso do m esmo termo na LXX de Salmos 55.22, “Lançai vossa carga sobre o Senhor , e ele vos sustentará” . Além do mais, a palavra tradu zida po r “ansiedade” é usada com o sentido de “carga” em Salmos 55.22 (LX X 54.23) . Ela significa “ cuidados, preocupações, coisas com as quais alguém está ansioso ou apreensivo”
(observe seu uso em Lc 21.34; 2Co 11.28). 192
1PEDRO 5.8-11
g. A vida como cristãos em conflito espiritual (5.8-11)
1. Cuidado com o Diabo (5.8) 8. Neste po nto co meça uma nova se ção em que se faz uma adver tência à vigilância espi ritual. Assim com o alg uém que percorre uma estrada perigosa talvez seja aconselhado a estar alerta e a ser cuidadoso, da mesma forma os leitores de Pedro são advertidos: “sede sóbrios e vigilantes” (RSV [e ARA]; veja, em 1.13, comentário acerca da sobriedade [ nêphõ]; em 4.7, a mesma vigilância da mente e a mesma firmeza de discernimento, as duas de caráter espiritual, são recomendadas juntamente com a oração). Sóbrios traduz uma palavra (grêgoreo)que também indica vigilância espiritual, talvez com mais ênfase no foco da atenção (“ficar à espreita” do pecado, dos ataques do maligno: a palavra é usada para se referir a Jesus e aos discípulos no Getsêmani, Mt 26.38,40,41; veja tb. At 20.31; Cl 4.2; tb. é traduzida por “acordar” [N TLH ] em Ap 3.2,3 ; 16.15). O contrá rio dessa vigilância sób ria é a sonolência espiritual com que a pessoa enxerga as situações e reage a elas, em nada diferindo dos incrédulos, e raramente ou mesmo nunca cada acontecimento é considerado da perspectiva de Deus. Um bo m motivo para a vigilância é o perigo re al de ataques do Inimigo: O Diabo, vosso adversário, anda em derredor, rugindo como leão que procura a quem possa devorar.A metáfora é adequada, pois um leão que anda à espreita ataca de repente e com violência, geralmente quando a vítima, sem nada suspeitar, está envolvida em atividades rotineiras. Devorar traduz um termo que encerra a ideia de “engolir algo” (o mesmo termo é usado em referência ao gr ande peixe que engoliu Jonas, em Jn 1.17). O Diabo (diabolos) é um ser espiritual pessoal que se encontra ativo em rebelião contra Deus e está na liderança de muitos demônios como ele (Mt 4.1-11; 13.39; 25.41; Ap 12.9 etc. — na LXX, esse termo grego traduz dezoito vezes a palavra hebraica sãtãn, “Satanás”). Mas quando diabolos não é usado para se referir a um ser específico (o Diabo), o termo surge como substantivo com o sentido de “caluniador, f also acusador” (como em lT m 3.11; 2T m 3.3; T t 2.3; a palavra é aplicada a Ham ã na L XX de Et 8.1). Aqui, Pedro vê Satanás com o u m ser astut o e ma u que te m capacidade e disp osição para atacar os cristãos (possivelmente causando-lhes danos). Um levantamento dos resultados da influência demoníaca em todo o Novo Testamento indicará certas características que um cristão “sóbrio” e
“vig ilant e” pode suspeitar s erem causadas, pelo meno s e m parte, pelo Dia bo 193
ÍPEDRO ou p or demôni os: m au co mportam ento extremament e irrac ional ou esqui sito, principalmente em oposição ao evangelho ou aos cristãos (Mc 1.24; 5.2-5; 9.18; At 16.16-18; Ap 2.10); calúnia maldosa e mentiras (Jo 8.44; ljo 4.1-3); escravidão cada vez maior a um comportamento autodestruidor (Mc 5.5; 9.20); defesa obstinada de falsas doutrinas (ljo 4.1-6); crises emo cionais repentinas e inexplicadas (tai s como medo, ódio, depressão, ansi edade, furia etc.) que são contrárias à vontade de Deus e inadequadas à situação (observe os “dardos em chamas do Maligno” em Ef 6.16); e simplesmente a profunda inquietação espiritual que pode ser chamada “discernimento” (veja ICo 12.10) do mal espiritual. Contudo, é bom ter cautela neste ponto, pois no mundo existem mui tos males que não procedem diretamente de Satanás nem de demônios, mas simpl esment e do pecado que perm anece em nosso coração ou na vida de incrédulos que nos cercam. E o excesso de curiosidade sobre a atuação do Diabo também é nocivo — “quanto ao mal” devemos ser “como crian cinhas” (ICo 14.20).
2. R e si s tí ao D ia bo co m um a f é f ir m e (5.9)
9. Longe de dizer que os cristãos devem temer um adversário tão impres sionante, Pedro diz: Resisti-lhe firmes na fé. Esse é um versículo ani mador, pois dá esperança de que a resistência cristã aos ataques do Diabo será bem-sucedida. Conquanto seja errado ignorar a existên cia do demônio, também é errado acovardar-se diante dele: Resisti-lhe. A expressão firmes na fé deixa implícita a confiança de que Deus intervirá e dará vitória ao cristão, não derrota. Assim também, Tiago diz aos cristãos que devem resistir ao Diabo e promete que “ele fugirá de vós” (Tg 4.7). Em ambas as passagens a palavra resistir implica uma oposição ativa e determinada, muitas vezes mediante enfrentamento (é usada em 2Tm 3.8 para se referir aos magos egípcios que se opuseram a Moisés; veja a acepção em At 13.8; Rm 13.2; Gl 2.11; 2Tm 4.15). Como os cristãos devem resistir ao Diabo? Pedro não nos diz, mas a análise que Paulo faz do equipamento para a batalha espiritual em Efésios 6.10-18 é um bom comentário sobre esta passagem. Em termos práticos, todos os recursos positivos da vida cristã devem ser usados — oração, a palavra de Deus, louvor, a ajuda de irmãos em Cristo, repreensão verbal do inimigo (Lc 10.17-20; At 16.18), uma renovada santidade de vida (observe
“justi ça” em E f 6.14); em suma, “tod a a arma dura de D eus” (Ef 6.1l). 194
1PEDRO 5.8-11 Portanto, a ordem Resisti-lhe firmes na f é significa que a derrota não é inevitável. Os cristãos têm de resistir, esperando que o inimigo fuja, que o reino de Deus avance, que eles cresçam na fé e na santidade por meio do conflito e que Deus use os planos malignos de Satanás e os transforme para o b em d os cristãos. Quando Pedro acrescenta sabendo que os mesmos sofrimentos estão acon tecendo entre(ou: “estão sendo exigidos de”, “estão sendo experimentados por”) nossos irmãos no mundo,ele pro cura lhes dar ânimo, mo strand o que as circunstâncias deles não são raras, mas que na verdade devem ser esperadas pelos cristãos de toda parte.
3. D eu s vo s r es ta ur ar á d ep oi s d e ter de s so fr id o (5.1 0,11 ) 10. A transiç ão para este versículo fica mais bem assinalada com “mas” [NTLH, VFL] do que com e (RSV [e A21, ARA]), porque Pedro emprega com regularidade (28 vezes em sua primeira epístola) essa conjunção (de) para destacar um contraste bem definido com alguma declaração anterior.41 O sentido é que o sofrimento e os ataques do Diabo que acompanham o sofrimento — e são a causa de parte dele — podem parecer difíceis, mas não durarão p or mu ito tempo. Aliás, depois de haverdes sofrido um pouco— expressão intencionalmen te vaga quan to à duraçã o, o que p ermite q ue a restauração se dê ne sta vida ou mais tarde —, o Deus de toda graçaos haverá de reabilitar ou “os tornará plenamente preparados e completos” no que diz respeito a qualquer recurso ou capacidade que tenham perdido no meio desse sofrimento. Ele os haverá de confirmar em qualquer posição, privilégio legítimo ou responsabilidade dos quais tenham sido privados pelo sofrimento. Ele os haverá de fortalecer de qualquer fraqueza que tenham sido obrigados a suportar, de qualquer incapacidade que possam ter experimentado para vencer o mal. E ele os haverá de alicerçar(ou, fundamentar, estabelecer, colocar com firmeza) em qualquer lug ar legítimo de ond e o sofrimento inju stamente os tenha tirado. Em resumo, toda perda logo será corrigida, e por toda a eternidade. Esse pensamento consolador é fortalecido pelo lembrete de que Deus é o Deus que em Cristo vos chamou à(ou “para dentro da”, eis) sua eterna glória. Esse é o âmbito que realmente conta, pois dura para sempre. Nessa esfera, a multiform e excelência do caráter de Deu s se expressa de fo rma espetac ular 4!Veja 1.7,8,12,20,25 (duas vezes); 2.4,7,9,10 (duas vezes), 14,23;3.8,9,11,12,14,15,18;
4.6,7,16 (duas vezes), 17; 5.5 (duas vezes), 10. 195
1PEDRO
em sua eterna glória— algo que geralmente nos levaria a permanecer de longe com temor reverente. Contudo, Deus decidiu que não devemos permanecer distantes, mas devemos ser chamados para estar no meio de sua própria glória — sim, devemos até mesm o vir a participar dela em Cristo (i.e., em u nião com Cristo ),42parcialmente a gora e de m od o mais c om pleto na vida do porvir. Temos aqui uma promessa de graça abu nd ante suficiente para superar qualquer sofrimento nesta vida. 11. Um a breve doxologia conclusiva contempla de mod o adequad o o poder e o dom ínio de Deus sobre um mundo em que existe tanto mal, um mun do com tanta neces sidade do reinado ju sto de Deus: A ele seja o domínio para todo o sempre. Amém.
“ Observe o mesmo conceito em 2Pe 1.3. 196
4. SAUDAÇÕES FINAIS (5.12-14) Pedro termina a carta com um trecho de conclusão. No versículo 12, ele começa assinalando o papel de Silvano, mas logo passa para outra palavra de exortação. Os versículos 13 e 14 trazem saudações pessoais e uma bên ção de paz.
a. Envio esta carta pelo fiel Silvano (5.12a) 12a. Silvano também está intimamente ligado ao ministério de Paulo (men cionado em 2Co 1.19; lTs 1.1; 2Ts l.l), e Lucas se refere a ele pelo nome de “Silas” em Atos (mencionado doze vezes entre At 15.22 e 18.5). Aliás, Atos 15.22 menciona Silas como um mensageiro que levou a carta apostólica de Jerusalém. (A. T. Robertson, Grammar, p. 172-3, apresenta uma longa lista de nomes gregos que tinham formas longas e também curtas a exemplo de Silas/Silvano.) Com base nas palavras Por intermédio de Silvano, que considero nosso fiel irmão, escrevo de forma abreviada alguns comentaristas veem Silvano como um mensageiro que levou a carta de Pedro; já para outros, elas indicam que ele atuou como “amanuense” (secretário), o qual escreveu a carta enquanto Pedro ditava (veja Rm 16.22; o uso de um amanuense explica o hábito de Paulo acrescentar um pós-es crito pessoal “assinando de pró pri o p unho”: ICo 16.21; Gl 6.11; Cl 4.18; 2Ts 3.17; Fm 19). Os dados apresentados na Introd ução clarament e favor ecem o pon to de vista de que Silvano foi “men sageiro” e não “amanuense” (veja p. 23s.). (A tradução da NIV [e NVl], “Com a ajuda de Silvano [...] eu escrevi resumidamente”, parece se basear na opinião de que ele foi o amanuense.) Além do sentido da expressão “po r inte rmé dio de Silvano” ( veja p. 23-4), outra prova de que esse trech o apresenta Silv ano apenas com o m ensageiro se enco ntra no fato de que Pedro diz: [eu o] considero nosso fiel irmão. Esse elogio ao porta do r de um a carta é com um e necessário (aparenteme nte encontrado, por exemplo, em IC o 16.10,11; E f 6.21,22; Cl 4.7-9; T t 3.12,13), mas não existe nen hu m exemplo cl aro de el ogio a um amanuense que tenh a ajudado a escrever uma carta, nem parece haver um bom motivo para Pedro fazê-
-lo. (Embora Tércio se apresente em Rm 16.22, nenhum autor do NT faz menção de algum amanuense nem o elogia.)
1PEDRO Alguém pode sustentar, naturalmente, que, embora esse versículo indique Silvano como o portador da carta, ele também podería ter sido o amanuense que a escreveu sob a orientação de Pedro e que (talvez) tenha aprimorado o estilo da composição. Mas, se a única explicação desse versículo é a de que Silvano é ali indicado como portador da carta (veja análise na Introdução), não sobra nada no versículo que também o indique como amanuense, nem existem dados históricos em outros lugares ou em outra parte capazes de indicar esse papel para Silvano. Portanto, é melhor concluir que não existe na carta prova clara de que Silvano participou de sua composição. b. Perm anecei f i rmes na graça que descreví
(5. 12b)
12b. Escrevo de forma abreviada é uma afirmação semelhante à expressão de concisão en contrada e m Hebre us 13.22. Reflet ind o sobre He breu s e 1Pedro, é impossível não ficar surpreso diante da quantidade de coisas que os autores conseguiram dizer em um espaço tão curto: muitos leitores de hoje talvez vejam nesse fato mais uma prova da autoria divina e também humana da carta (certamente essa é a experiência deste autor enquanto trabalhou pro fundam ente na carta po r muito s meses). Pedro diz que estava exortando e testemunhando que esta é a verdadeira graça de Deus,dessa forma resumindo a carta como uma combinação de mandam entos morai s ( exortando) e ensino d ou triná rio fact ual (testemunhando A me lhor man eira de enten der a palavra que esta é a verdadeira graça de Deus). esta é vê-la como referência à totalidade do estilo de vida descrito na carta co mo um todo. A vi da cristã é na su a totali dade uma vida de graça — a divina concessão diária de bênçãos, força, ajuda, perdão e comunhão com Deus, elementos dos quais necessitamos, mas não merecemos. Tudo é pela graça, dia após dia. Os cristãos não devem se afastar da confiança contínua nessa graça nem da obediência permanente que ela torna possível: pelo contrário, eles precisam nela permanecerfirmes — até o dia da morte. c. Saudações da i
grej a e m R om a e de M arcos (5. 13)
13. Babilônia dificilmente é a antiga cidade da Babilônia, na Mesopotâmia, proem inente no Antigo Testamento, pois por volta do primeiro século era um lugar pequeno e obscuro (veja Introdução, p. 32s.), e não há indício
algum de que tenha sido visitada por Pedro (nem por Marcos; veja o final 198
1P ED R O 5 .1 4 a
deste versículo) ou mesmo da existência de uma igreja cristã ali. Mas fora do Novo Testamento, existem bons indícios de que Pedro estava em Roma por volta da época em que a carta foi escrita (veja Introdução, p. 32s.), e é melhor entender Babilônia como uma referência a Roma (assim como em Ap 16.19; 17.5; 18.2). Pedro não está tentando disfarçar sua localização, mas está dando continuidade ao uso de figuras da igreja como o novo povo de Deus, o verdadeiro Israel (veja comentário em 2.10), conforme vem fazendo desde o uso da palavra “Dispersão” em 1.1. Assim como no Antigo Testamento a Babilônia era o centro de poder e oposição mundanos ao povo de Deus, na época do Novo Testamento Roma é o centro terreno de um sistema mundial de governo e vida que se opõe ao evangelho. No entanto, Pedro está ali no meio dele. E Pedro não está sozinho. Aquela que é coeleita convosco, que está na Babilônia, signi fica neces sariamente a igrej a em R om a — porq ue nen hum a pessoa específica seria tão bem conhecida por todas as igrejas dos leitores de Pedro a ponto de poder ser identificada a partir de uma referência tão anônima. A igreja inteira em Roma vos cumprimenta. Como também meu filho Marcos são palavras que indicam a presença de Marcos com Pedro e que apontam para um relacionamento bem próximo com o autor do segundo evangelho. Filho não significa filho legítimo do ponto de vista físico, mas “filho” espiritual, companheiro próximo e auxiliar no serviço de Cr isto (ve ja lT m 1.2; 2T m 1.2).
d. Sa ud ai- vos uns aos outros (5. 14a )
14a. Cumprimentai-vos uns aos outros com beijo de santo amor parecido é com uma exortação final encontrada em várias cartas de Paulo (Rm 16.16; ICo 16.20; 2Co 13.12; lTs 5.26). Esse beijo não tinha nenhuma conotação romântica, pois Paulo sempre o chama “beijo santo”. Embora talvez des consideremos a prática como mero costume da cultura do primeiro século, seria bom reconhecermos nos relacionamentos interpessoais os benefícios que proced em de expre ssões físicas tão íntimas de amizade e co mun hão em Cristo. E muito mais difícil ficar bravo com alguém que você acabou de abraçar ou beijar, e muito mais fácil sentir-se aceito em um grupo que lhe deu boas-vindas tão calorosas! “Cumprimentem-se uns aos outros com um aperto de mãos” (Phillips) é distante e formal demais — provavelmente um “abraço santo” chegaria muito mais perto do objetivo de Pedro. E ele deveria
ser uma expressão genuína de amor em Cristo. 199
1PEDRO e. P az a todos os que estão em Cristo (
5.14b)
14b. Paz seja com todos vós que estais em Cristo é oque aqueles crentes precisavam — paz interior para mentes e corações atribulados e paz exterior quando Deus lhes conceder descanso de seus sofrimentos (veja “paz” em 1.2b). Estar em Cristo é estar unido com ele no que diz respeito a todos os benefícios da redenção: é a condição de todos os verdadeiros crentes desde que se convertem; e eles permanecem em Cristo p or tod a a etern idade .
200
APÊNDICE A P REGAÇ ÃO DE CRI STO POR INTERMÉD I O DE NO É: 1PED RO 3. 19, 20 DA PERSPE CTIVA DE TEMAS DOM I NANTES NA LI TERATURA JUDAICA Perto do fim do capítulo 3 de sua primeira carta, Pedro escreve: 18Porque também Cristo morreu uma única vez pelos pecados, o justo pelos injustos, para levar-nos a Deus; morto na carne, mas vivificado pelo Espírito,igno qual também foi e pregou aos espíritos em prisão,2IJos quais, noutro tempo, foram rebeldes, quando a paciência de Deus esperava enquanto a arca era construída nos dias de Noé; poucas pessoas, isto é, oito, salvaram-se nela por meio da água. As dificuldades desta passagem têm dado srcem a inúmeras interpreta ções, em especial no que diz respeito ao significado do versículo 19: no qual também joi e pregou aos espíritos em p risã o . As questões sobre as quais os comentaristas divergem, conforme disse mos nas p. 154s., são pelo menos as seguintes: 1.
2.
3.
Quem são os espírito s em prisão? • incrédulos que morreram? • crentes do Antig o Testamento que morrer am? • anjos caídos? O que Cristo pregou? • um a segunda op ortu nida de de arrependimento? • a conclusão da obra redentora? • a conde nação final? Qua nd o ele pregou? • nos dias de Noé? • entre sua morte e ressurreição? • depois de sua ressurreição?
Entre todas as possíveis respostas a essas perguntas, as cinco posições a
seguir têm sido as mais defendidas (as palavras em itálico indicam quem são “os espíritos em prisão” em cada posição):
1PEDRO
Primeira posição:Quando
Noé estava construindo a arca, Cristo estava “em espírito” em Noé pregando arrependimento e justiça por intermédio dele a incrédulos que na época estavam na terra, mas agora são “espíritos em prisão” (pessoas no inferno).1 Segunda posição:Depois que Cristo morreu, ele foi e pregou aos que se encontravam no inferno, oferecendo-lhes uma segunda oportunidade de salvação.2 Terceira posição: Depois que Cristo morreu, ele foi e pregou aos que se encontravam no injerno,proclamando-lhes que havia triunfado sobre elas e
que sua condenação era definitiva.3 Quarta posição:Depois que Cristo morreu, ele proclamou libertação aos que haviam se arrependido logo antes de morrer no dilúvio e os retirou da prisão (no purgatório), levando-os para o céu.4 Quinta posição: Depois que Cristo morreu (ou depois que ele ressus citou, mas antes de subir ao céu), ele foi ao inferno e proclamou vitória sobre os anjos caídos que haviam pecado se casando com mulheres antes do dilúvio.5 'Agostinho, carta 164, cap. 15—17; Tomás de Aquino, Summa theologica, parte 3, pergunta 52, artigo 2, resposta à objeção 3; Leighton, p. 354-66; Zahn, p. 289; W. Kelly, Christ preaching to the spirits in prison (London: Morrish,1872), p. 3-89; D. G. Wohlenberg, D er erste und zw e il e Petrusbriejc und der J u d a sb rie f (Leipzig: Deichert,1923), p. 106-15; Guthrie, N T T , p. 842; recentemente, P. Patterson, A pilgrim priesthood
(Nashville: Nelson,1982), p. 134-46, 195-99, com várias objeções teológicas a outras posições. 2Reicke, esp. p. 90-1, 118, 120-2, 130-1 (inclui pregação também a anjos de sobedientes); Cranfield, p. 84-6 (mas indeciso); A. M. Hunter, IB , vol. 12, p. 132-3 (pregação à geração rebelde do dilúvio); Hart, p. 68-9 (pregação a anjos desobedien tes, que se arrependeram); Bigg, p. 162-3; Beare, p. 170-3; Best, p. 140-7; outros alistados em Reicke, p. 47-9 e em Dalton, p. 21, nota 34; A. T. Hanson, E x p T 93 (1981-1982), p. 100-15. ’Reicke, p. 44-5, relaciona vários que defenderam essa posição no século 17, que ele chama de “teoria luterana ortodoxa”; recebe forte apoio de Lenski, p. 160-9. 4Essa posição começo u com Roberto B elarmin o em 1586 e tem sido com um entre intérpretes católicos; assim também H. Willmering, em B. Orchard, org., A Catholic commentary on Holy Scripture (London: Nelson, 1953), p. 1179; outros são alistados em Reicke, p. 42-4, e Dalton, p. 30-1. 5É provável que essa posiçã o seja a que pred omina nos dias atuais, princip almente po r causa da influência do comentário de Selwyn, p. 197-203, 314-62, e em seguida do trabalho minucioso de Dalton, esp. p. 135-201. (Dalton entende que a pregação ocorreu durante uma “ascensão invisível” de Cristo na manhã do domingo da ressurreição, logo
após sua aparição [)o 20.17] a Maria no jardim: veja p. 185-6). 202
A P Ê N D IC E Existem outras posições além dessas, mas em geral são combinações diferentes dos detalhes listados acima (oferta de salvação a incrédulos e a anjos, ou proclamação da vitória sobre os pecadores e a plena redenção para os crentes etc.).6 Para nossos objetivos, a presente lista é suficiente. A análise a seguir defenderá a primeira posição (pregação de Cristo por meio de Noé enquanto a arca era construída), que tem recebido apoio de poucos comentários e que muitas vezes é desconsiderada em análises da passagem porque Agostinho, o primeiro a propô-la, interpretou em prisão como referência às “trevas da ignorância” em que os incrédulos viviam — evidentemente em um sentido metafórico (ou “alegórico”, para usar o termo de Dalton) de “prisão”, sentido não pretendido por Pedro. Mas esse sentido de “em prisão” não é de modo algum essencial à posição de que Cristo pregou nos dias de Noé, e uma interpretação mais co mum (“espíritos no inferno”) é certamente compatível com ela (veja a seguir). A outra objeção comum a essa posição é que ela não tem relação clara com o contexto, mas veremos que, em uma análise mais cuidadosa, o contexto dá mais apoio a essa posição do que talvez a qualquer uma das outras. Embora a maioria das posições mencionadas se baseie em contextos de modo geral conhecidos pelos leitores da Bíblia, talvez seja necessário dar uma explicação sobre a quinta posição. Ela defende que certas tradições ju daicas extrabíblicas, em especial a tradição no livro de lEnoque segundo a qual Eno que vai e proclama uma mensagem de condenação a anj os desobe dientes, eram bem conhecidas pelos leitores de Pedro. Portanto, quando Pedro diz que Cristo foi e pregou ao “espíritos em prisão”, seus leitores teriam imediatamente reconhecido a alusão a lEnoque e saberíam que Pedro estava retratand o C risto com o um “segun do En oq ue ” que, de maneira mu ito superior, “foi e proclam ou ” sua vitó ria sobre anjos caídos e lhe s anu nc iou , tal como Enoque havia feito muito tempo antes, que eles estavam eternamente condenados por causa do pecado que eles haviam cometido. Assim, fica Entre outros que favorecem essa posição (mas situam a pregação em vários momentos, seja antes da ressurreiçãode Cristo, seja imediatamente depois dela, sejano momento da ascen são) encontram-se: Kelly, p. 151-8; J. Fitzmyer,JBC , vol. 2, p. 366-7; Stibbs/Walls, p. 142-3; Blum, p. 241-3; Leaney, p. 50-2; France, p. 264-81 (uma boa apresentação recenteda posição). 'Quanto à posição de R. Harris (1902), E. Goodspeed (1945) e outros de que o texto deve ser emendado para ler “Enoque foi e pregou...”, veja objeções em Reicke, p. 41-2. A maioria dos comentaristas não se convenceu dessa posição, preferindo interpretar o texto tal como está em vez de tentar alterá-lo mediante a inserção do nome “Enoque”, proposta
que não encontra apoio em nenhum manuscrito antigo. 203
1PEDRO
enten dido que as palavras “no utro tem po foram rebeldes” são um a referência ao pecado dos anjos que se casaram co m esposas hum ana s em Gênesis 6.2,4, relato b em confirmado n a literat ura extrabíbli ca.7 Dalton prestou um valioso serviço com seu cuidadoso levantamento da história a partir de diferentes posições e co m sua avaliação respeitosa daquelas que ele rejeita. Seus extensos argumentos têm convencido muitos estudiosos de um amplo espectro de posições teológicas e, por isso, na análise a seguir haverá um pou co mais de inte ração com o argum ento de Dalton. Examinarei as três perguntas mencionadas acima na ordem apresentada: I. Quem são os espíritos em prisão? II. O que Cristo pregou? III. Quando ele pregou?
I. QUEM SÃO OS ESPÍRITOS EM
PRISÃO?
a. O s igni fi cado de “espírit o” (pneuma) 1. O significado ge ral: anjos ou espíritos hum anos? Se a expressão “espíritos em prisão” aparecesse no texto sem n enhu ma outr a especificação, ela podería se referir a espíritos humanos ou a espíritos de anjos, dependendo do contexto mais amplo, porque na Bíblia, assim como na litera tura extrabíblica, a pala vra espíritos {pneumata,pl., ou pneuma, sing.) pode ser usada para se referir a espíritos humanos ou a anjos (ou demônios). Ocorrências da palavra na acepção de espírito humano encontram-se, por exemplo, em Eclesiastes 12.7 (“e o espírito volte a Deus, que o deu” é uma descrição da morte; nessa passagem a LXX traz pneuma); Mateus 27.50 (Jesus “entregou o espírito”); Lucas 23.46 (“Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”);8João 19.30 (Jesus, “inclinando a cabeça, entregou o espírito”); 7A apresentação mais completa dessa posição está em Dalton, p. 135-201, mas uma versão mais curta, porém ainda bastante clara, encontra-se em France, p. 264-81, ou em Kelly, p. 151-8. sAlguns sugerem que esse versículo quer dizer simplesmente “Nas tuas mãos eu me entrego” (como Dalton, p. 146). No entanto, sob a luz de expressões muito semelhantes em Mateus 27.50, João 19.30 e Ato s 7.59, em que esse sentido não é possível, tal sugestão
não convence. 204
A P Ê N D IC E
Atos 7.59 (ao morrer , Estêvão o rou: “Senh or Jesus, recebe o meu esp írito ”); ICoríntios 5.5; 7.34; 14.14; Hebreus 12.23; Tiago 2.26; cf. Números 16.22; Josefo, Guerras 7.185 etc. Ocorrências da palavra com o sentido de “anjo” (ou “anjo mau, de môn io”) encontram -se em M ateus 8.16 (“com a sua palavra ele expulsou os espíritos”); 10.1 (“deu-lhes autoridade para expulsar os espíritos impuros”); 12.43,45; Marcos 1.23; Lucas 10.20; Atos 23.8 etc.
2. S er á q u e p n eu m a , “es pí rit o ”, te m um sig ni fic ad o espec ial quando usado de modo “ab so luto ”? Aqueles que entendem que os espíritos em prisão são anjos caídos (quinta posição acima) afirmam que a palavra “espírito” nunca é usada de modo “absoluto” (ou sem “uma locução genitiva de definição”) para se referir a espíritos hum ano s (ao que parece a objeção teve src em em Selwyn, p. 199, e é repetida por Dalton, p. 147, e France, p. 269). Aqueles que fazem essa objeção afirmam que pneuma é usado de modo “absoluto” para se referir a espíritos de anjos bons ou maus. N o entanto, esse é apenas mais um caso entre muitos de um erro de método exegético que ocorre muitas vezes no comentário de Selwyn — ele tira conclusões sobre o sentido de palavr as ou expressões com base em dados insuficientes ou em distinções estilísticas criadas de forma artificial, o que, na realidade, não exercem nenhuma influência importante sobre o sentido das palavras usadas. Neste caso, a objeção é inválida por três razões: (a) Pneuma é usado “sem um genitivo de definição” para se referir a um espírito humano “morto” (o espírito que deixou Abel depois de Caim matá-lo) em lEnoque 22.6 e de novo em 22.7; outro exemplo se encontra em lEnoque 20.6 (texto grego).9 Esses exemplos são importantes porque Selwyn, Dalton e France enfatizam que lEnoque está por trás da passagem em 1Pedro. Outros exemplos de pneuma usados de mo do “absoluto” para designar u m espírito hu mano são Eclesiastes 12.7; Mateus 27.50 (texto grego); João 19.30 (texto grego). (b) Mas a questão que mais i mp orta não é se pod emos encontrar exem plos de pneuma usado sem “genitivo de definição” (“de homens” etc.) para 9Texto g reg o em M. Black, Apo calypsis Henochi graece , e A.-M. Denis, Fragmenta pseudepigrãphorum quae supe rsun t graeca (Leiden: Brill,1970), p. 32. Uma recente tradução
para o inglês feita p or E. Isaac se encontra em OTP, vol. 1, p. 13-89.
205
1PEDRO se referir a espíritos humanos, pois isso não passa de uma distinção artificial. O verdadeira questão é se o contexto especifica com maior clareza o tipo de espírito. Se com pneuma usado de modo “absoluto” Selwyn e Dalton referem-se a pneuma usado sem nenhuma outra especificação ou sem defi nição pelo contexto, então deve-se destacar que também não se encontrou nenhum exemplo de pneuma com o sentido de “espíritos de anjos” sem de finição pelo contexto. Aliás, os três exemplos de uso “absoluto” citados por Dalton (p. 147) — Mateus 8.16; 12.45; Lucas 10.20 — são mais adiante definidos pelo con texto imediato: no trecho anterior, Mateus 8.16 menciona os que estavam “endemo ninh ados ”; Mateus 12.45 está em u m parágrafo em que o versículo 43 havia definido o sujeito co mo “um espírito im pu ro”; Lucas 10.2 0 é uma resposta ao versículo 17, “Senhor, até os demônios se submetem a nós em teu nome”. Estes três não são casos em que, sem outras indicações pelo contexto, pneuma tem o sentido geral de “espíritos maus” — pois todos eles têm um a definição contextual pré via. Mas isso acontece simplesmente por causa de um fato linguístico óbvio: pneuma tem uma gama de significados e pode se referir a espíritos humanos, a espíritos de anjos, ao Espírito Santo de Deus etc. Por isso, se o autor deseja com unic ar ao leitor o senti do em q ue está usando o termo, n o co ntexto semp re haverá uma especificação a mais sobre o tipo de espírito que ele tem em mente. (c) Em terceiro lugar, 1Pedro 3.19 não é em si mesm o um exemplo de pneuma usado sem definição pelo contexto, pois a própria expressão define o tipo de “espírito” que se tem em mente. São espíritos “em prisão” que “foram rebeldes, quando a paciência de Deus esperava enquanto a arca era construída nos dias de Noé”.
3. “Es pí ri to s ” em lE n o q u e Tem sido afirmado que, para os leitores de Pedro, a expressão “espíritos em prisão” evocaria de imediato a acepção de pneuma em lEnoque, a saber, “anjos que pecaram e foram destinados a um lugar de castigo à espera do juízo final” (Dalton, p. 166-8). Mas, ainda que, para efeito de raciocínio, se admita que todos os leitores de Pedro tivessem lido lEnoque na noite anterior à chegada da carta de Pedro, não se pode deduzir que, para Pedro ou seus leitores, “espíritos em prisão” teria o
sentido de “anjos caídos”. 206
APÊNDICE Os trechos em grego remanescentes de lEnoque empregam pneuma 37 vezes.10 Destas, a palavra é usada 20 vezes para d esig nar espíritos d e anjos ou espíritos demoníacos. Mas é usada 17 vezes para se referir a espíritos humanos (lEn 9.10; 20.3,6 [duas vezes]; 22.3,6,7,9 [duas vezes],11 [duas vezes],12,13 [duas vezes]; 98.3,10; 103.4). Por isso, esses dados não servem de fund am ento para nen hum a conclusão conf iável sobre o que os leitores de Pedro teriam entendido ao ler a expressão “espíritos em prisão”. Além do mais, entende-se em algumas passagens que os espíritos humanos daqueles que morreram estão presos ou confinados a um lugar de espera até que enfrentem o ju ízo final (lEn 22.3-13, que usa pneuma dez vezes com esse sentido; cf. 98.3), e sem dificuldade se podería dizer que estavam “em prisão”.
4. Os e sp ír ito s es tã o “em p r is ã o ” ag or a ou es ta va m quando Cri sto pre gou a eles? Embora em uma leitura inicial talvez pareça que “espíritos em prisão” se refere aos que estavam encarcerados na época em que houve a pregação, isso pode não ser bem assim. O versículo 19 pode ser igualmente bem entendido no sentido de “ele pregou aos espíritos que agora estão em prisão”, isto é, os espíritos que estão no inferno na época em que Pedro está escrevendo, mas que na época do dilúvio eram seres humanos sobre a face da terra. (A NASB traduz: “Ele foi e proclamou aos espíritos agoraem prisão, que outrora foram desobedientes, quando a paciência de Deus o fez esperar nos dias de Noé, duran te a construção da arca”.) E bastante natural falar da perspectiva da condição atual da pessoa quando se descreve algo que ocorreu quando ela não estava nessa condição. Por exemplo, seria perfeitamente correto dizer que “a Rainha Elizabeth nasceu em 1926”, embora ela não tenha se tomado rainha senão bem depois de 1926. Aliás, a grande maioria dos comentaristas, não importando qual a posição assumida em torn o de 3.19,20, interpreta 4.6 de modo parecido, entendendo que o evangelho foi pregado àqueles que estavam mortos na época em que 1Pedro foi escrita. O evan gelho lhes foi anu nc iado para que fossem salvos no juízo final, embora não tenham sido poupados da morte física. Então, “o evangelho foi pregado também aos mortos” em 4.6 significa que o evangelho foi pregado “aos que agora estão mortos” "’Essa contagem foi feita com base na concordância presente em C. Wahl,
Clavis
librorum veteris lestamenti apocryphorum philologica(Graz: Akademische Druck- und
Verlagsanstalt, 1972, p. 548), e exclui as leituras variantes. 207
1PEDRO
(na época em que Pedro estava escrevendo), embora estivessem vivos na terra quando o evangelho lhes foi pregado (veja p. 166s.). Portanto, ao interpreta r 1Pedro 3.19,20 , não se pode exc luir a poss ibilidade de que as palavras pregou aos espíritos em prisão signifiquem que “ele pregou aos que agora são espíritos no inferno, mas que na época da pregação eram seres humanos vivos sobre a terra”. 5. Conclusão sobre a expressão “espíritos em prisão ”
Temos de conc luir que, e m si mesma, a expressão “espíritos em prisão” pode se referir a espíritos humanos ou a espíritos de anjos, e o contexto mais amplo tem de ser decisivo. O termo “espírito” é muitas vezes usado para se referir tanto a espíritos humanos quanto a espíritos de anjos. Uma vez que os dados de lEnoque são ambíguos, é impossível chegar a uma conclusão clara com base neles. Além do mais, a curta expressão “espíritos em prisão” podería significar “espíritos que estavam no inferno quando Cristo lhes pregou” ou “os que agora são espíritos no inferno, mas que, na época da pregação de Cristo, eram pessoas vivas sobre a terra”. Assim, a expressão em si não fica clara sem definição pelo contexto mais amplo. É para um exame desse contexto que agora nos voltamos. b. E vidências
de outros quatr
o segm ento s defi nidores
A expressão “espíritos em prisão” não está isolada, mas é seguida por outras quatro expressões definidoras: os quais, noutro tempo, joram rebeldes
(melhor do que “não obedeceram”; veja p. 105s., 156)11 quando a paciência de Deus esperava enquanto a arca era construída nos dias de Noé
"A esta altura da análise, para efeito de raciocín io, parti rei do pressuposto da validade da tradução comum em inglês [e em português] “os quais noutro tempo foram rebeldes”, ainda que mais adiante eu passe a defender com fundamentos gramaticais e contextuais a
tradução “quandonoutro tempo foram rebeldes”. 208
A P Ê N D IC E Ao examinar essas quatro expressões, percebe-se que todas indicam que os “espíritos em prisão” têm de ser entendidos como espíritos humanos, não espíritos de anjos. Isso pod e ser confirm ado mediante um exame das evidên cias bíblicas e extrabíblicas pertinentes a essas expressões.
1. Evidên cias de des obediência de anjos a . O s fi l h o s d e D e u s e m G ê n e s i s 6 . 2 , 4
Aqueles que defendem a quinta posição (os espíritos em prisão são anjos caídos) apontam para os muitos lugares na literatura judaica extrabíblica onde se interpreta que, em Gênesis 6.2,4, os “filhos de Deus” que se casaram com “as filhas dos homens” e tiveram filhos com elas são anjos pecadores que se casaram com mulheres humanas. Essa interpretação de Gênesis 6 é comum na literatura extrabíblica e confirmada pelo menos em nove textos: Josefo, Antiguidades dos judeus 1.73; Filo, Gigantes 6; Perguntas e respostas sobre Gênesis 1.92; Documento de Damasco 2.18; lEnoque 6.2,6; 106.13,14; Jubileus 5.1; 10.1-6; 2Baruque 56.12-15. N o entanto, muitas vezes falta reconhecer que essa interpretação de Gênesis 6 está longe de ser un ân im e na tradiçã o ju da ica . A lista a segu ir traz mais nove textos em que se defendem interpretações que descartam os anjos: O próprio Filo, que se refere a esses “filhos de Deus” como anjos em uma passagem, depois os chama de “homens bons e excelen tes” (PG 1-92).12 Além do mais , os targuns e a literatura rabínica são unânim es em consider ar “filhos de Deus” como seres humanos. O Targum Onqelos de Gênesis
l2Em bora o significado de G n 6.2,4 ain da seja amplamen te debatido, algo pr óxim o dessa afirmação de Filo parece ser a interpretação mais satisfatória: observe que a ênfase na filiação inclui a semelhança com o pai em Gn 5.3 e que a linhagem de descen dentes vai de Deus por intermédio de Adão até muitos “filhos” em todo o capítulo 5A estrutura da narrativa acompanha o desenvolvimento paralelo da linhagem piedosa (em última instância, messiânica) de Sete e dos descendentes ímpios do restante da humanidade. Assim, “filhos de Deus” são (como em Dt 14.1) as pessoas que pertencem a Deus e, como ele, andam em retidão (observe Gn 4.26 como introdução a Gn 5), e “filhas dos homens” são as esposas ímpias com quem se casam. Veja o argumento de H. C. Leupold, Exposition of Genesis (Grand Rapids: Baker, 1953), vol. 1, p. 249-54; tb. j. Murray, Principles of conduct(Grand Rapids: Eerdmans,1957), p. 243-9. (Mas tb. observe a posição de Meredith G. Kline, W TJ 24 [1961-62], p. 187-204, que interpreta
“filhos de Deus” como reis humanos.) 209
1PEDRO
6.2,4 traz “filhos de príncipes” (ou grandes homens, rbrby), e o Targum de Pseudo-Jônatas traz a mesma expressão. O Targum Neofiti traz “filhos dos Juizes” ( dyyny’) em ambos os versículos.13 A Toseftá Sotah 3.9a14 interpreta “fi lhos de D eus ” com o hom ens da geração do dilúvio. Na Midrash Rabá, eles são interpretados como “filhos de juizes” ( dyyn ) e como “líderes” ( Midr. Rab. Gn 26.5, sobre Gn 6.2, citando o rabino Simeon ben Yohai, c. 140 d.C.), ou como a geração de homens da época do dilúvio (Midr. Rab. Nm 9.24, sobre 5.27). Em Sanhedrin 108a, o Talmude Babilônico os interpreta como homens da época do dilúvio. Símaco traduz Gênesis 6.2 como “os filhos dos governantes” ( tõn dynastcuontõn). Embora se reconheça esse material um pouco posterior a lEnoque e Jubileus, devendo ambos ser datados do século segundo a.C., com certeza as citações de Filo e dos targuns são pertinentes para a exegese do Novo Testament o — na verdade, o material ra bíni co de m odo geral repre senta uma vertente da tradição judaica certamente importante como contexto para os estudos de Novo Testamento. E as citações nesse segundo grupo são dife rentes e comuns o bastante para con stituíre m fortes indícios de que, ant es do tempo do Novo Testamento ou durante esse período, existia no judaísmo, em especial no judaísmo mais ortodoxo, uma linha que não identificava os “filhos de Deus” com anjos. A maneira como entendemos esse ponto não é crucial, pois é possível ter convicção de que todos os leitores de Pedro pensavam que Gênesis 6.2,4 se referia a anjos caídos que tiveram esposas humanas e mesmo assim sustentar que 1Pedro 3.19,20 trata de seres humanos que desobedeceram durante a construção da arca. (É claro que Pedro não diz “ele pregou aos espíritos em prisão que desobedeceram, casando-se com mulheres humanas”, mas, sim, “espíritos [...] que desobedeceram enquanto a arca estava sendo cons truída”.) Mas, assim mesmo, esses dados são úteis, pois mostram que não se pode simplesmente pressupor que os leitores de 1Pedro tivessem na mente uma interpretação “angélica” de Gênesis 6.2,4. Aliás, Pedro também não teria partido da premissa de que seus leitores defendiam uma interpretação “angélica”, pois é impossível provar que no primeiro século d.C. havia uma interpretação uniforme dessa passagem. 13N o entanto, uma glosa marg inal d e data de sconhec ida em Targum Neofiti sobre Gêneses 6.4 traz “filhos dos anjos”.
IJNeusner, vol. 3, p. 156.
210
A P Ê N D IC E
b. O u tr a s r e f e r ê n c ia s à d e s o b e d iê n c ia d e a n jo s
Mesmo qu e n ão haja nenhu ma inter pretação uniform e de Gêne sis 6.2,4 no que diz respeito ao pecado dos anjos, será que assim mesmo não existe na literatura jud aica alguma ou tra evidênci a que mostre u ma tradição comu m de interpretação que diga que os anjos pecaram “nos dias de Noé” ou “quando a paciência de Deus esperava” ou “enquanto a arca era construída”? Algo parecido com essa ideia se vê em Jubileus 10.4,5, em que Noé, falando de espíritos maus (denominados “guardiões”), diz a Deus: “Tu sabes o que teus guardiões [...] fizeram em meus dias, e também esses espíritos que estão vivos. Tranca-os e leva-os para o lug ar de ju íz o”. Em referência ao motivo do dilúvio, o Testamento de Naftali diz que “os guardiões se afastaram da ordem da natureza; o Senhor pronunciou uma maldição sobre eles por ocasião do dilúvio. Por causa deles determinou que a terra fique sem morador ou fruto” ( T. Naf.3.5). Aqui se diz especificamente que o dilúvio foi causado pelo pecado de anjos. Além disso, lEnoque 67.8-13 declara que as águas do dilúvio primeiro ficarão quentes — para castigar anjos pecadores — e depois ficarão frias — para punir homens pecadores. N o entanto, a tradição judaica não vincula de maneira uniforme o pecado de anjos ao dilúvio. Esse pecado é geralmente situado nos dias de Enoque e Matusalém, duas e três gerações antes de Noé (Jubileus 4.22; veja 4.20; 20.8), ou no tempo de Jarede, quatro gerações antes de Noé (lEn 6.6 [texto grego]; 106.13). Para o leitor de hoje, que talvez tenha só uma vaga ideia da genealogia anterior ao nascimento de Noé, uma diferença de duas a quatro gerações pode parecer insignificante, mas com certeza isso tinha im portância para os autores ou leitores desses textos, pois entravam em muitos detalhes ao narrar os acontecimentos da vida de pessoas como Enoque, seu filho Matusalém, seu neto Lam eque e seu bisn eto N oé.15 Ainda mais importante é que, mesmo nesses três textos que estabelecem uma ligação entre pecado de anjos e o dilúvio, não há nenhuma menção de dois elementos que Pedro inclui: a espera paciente de Deus (pelo arrependi mento) e a desobediência “enquanto a arca era construída”. A última linha de evidências a favor da ideia de pecado de anjos co m o co ntex to de 1Pedro 3.19 talvez se encon tre den tro d o p róp rio
l5Veja as detalhadas cronologias em outros textos judaicos, tais como Josefo, A n t.i. 81-88 (com uma extensa nota na edição de L C L , vol. 4, p. 38-9); também Talmude Babilônico, 'Abodah Zarah 9a (edição de I. Epstein, com comentário na tradução em inglês
[London: Soncino, 1961], Nezkin, vol. 4, p. 44).
211
1PEDRO
Novo Testamento: pode-se alegar que em 2Pedro 2.4,5 (e talvez e m jd ó) 0 pecado de anjos e o consequente julgamento estão vinculados a Noé e ao d ilúvio o u talvez vinculad os ao pecado relativo às “filhas dos ho mens ” em Gênesis 6.2,4. No entanto, depois de um exame cuidadoso de 2Pedro 2.4-7, não é possível sustentar essa conclusão, pois ali Pedro menciona no mesmo período não apenas o pecado de anjos e o dilúvio, mas também “as cidades de Sodoma e Gomorra” e o resgate de Ló (v. 6,7). Contudo, dificilmente Pedro pensa que o juízo sobre Sodoma e Gom orra aconteceu ao mesmo tempo que o dilúvio! Isso quer dizer que, longe de entender que o pecado de anjos e o dilúvio foram acontecimentos da mesma época, ele está simplesmente apan hando três exemplos dis tintos de pecado e julg am ent o m encionados no Antigo Testamento para enfatizar que o julgamento do pecado virá e que Deus salvará o justo dessa conden ação (v. 9,10). Judas 6 convence menos ainda. Mencio na pecado e julgamento de anjos, mas não especifica o pecado, com exceção de uma declaração genérica de que anjos “não mantiveram sua própria posição” (RSV; uma provável referência à rebelião contra a autoridade de Deus). E não existe nenhuma ligação com a época do dilúvio, mas, sim, a seguinte sequência: v. 5: êxodo do Egito; julgamento de incrédulos (Êx 14; Nm 14) v. 6: pecado de anjos; julgamento v. 7: Sodoma e Gomorra; juízo (Gn 19). Não há nenhum a ordem cronológica subentendida; Judas, assim como Pedro, simplesmente escolhe três exemplos notáveis de juízo mencionados no Antigo Testamento. Em nenhum dos textos se insinua pecado de anjos na época do dilúvio ou pecado de anjo s com mulheres humanas. Não obstante, mesmo que não houvesse outra referência indicando uma tradição de desobediência humana logo antes do dilúvio, ainda assim seria possível imaginar que, embora não sejam exatamente um paralelo da decla ração de Pedro sobre os espíritos em prisão, esses três textos, extraídos de pseudepígrafes e que fazem breve menção geral da desobediência de anjos (jubileus 10.4,5; Testamento de Naftali 3.5; e lEnoque 67.8-13), oferec em um contex to esclarecedor com base no qua l os leitores de Pedro teriam entendido 1 Pedro 3.18-20. No entanto, antes de chegar a essa conclusão, é necessário examinar o testemunho de uma tradição de desobediência humana, não de
anjos, “enquanto a arca era construída”. 212
A P Ê N D IC E
2. E vi dê n ci a s de de so be di ên ci a h um an a a . Q u e m d e s o b e d e c e u “e n q u a n t o a a r c a e r a c o n s t r u í d a ” ? ( i ) E vidên cias do An ti go Test am ent o
A narrativa do A ntig o Testamento indica que seres hu mano s desobedece ram a Deus “qu an do a paciê ncia de D eus esperava enquant o a arca era constru ída nos dias de Noé”, mas não há indicação de desobediência de anjos durante esse período (veja Gn 6.5-7,12,13). Embora haja posições diferentes sobre Gênesis 6.1-4 estar ou não se referindo ao pecado de anjos quando fala sobre os “filhos de Deus” (veja acima), é inquestionável que todo o trecho imediatamente anterior à ordem de construir a arca (Gn 6.5-13) enfatiza clara e exclusivamente o pecado humano como motivo de Deus enviar o dilúvio sobre a terra. Deus não se arrependeu de ter feito os anjos, mas de ter feito o homem (v. 6). Ele não decide acabar com os anjos caídos, mas com o homem (v. 6,13); o que provoca sua ira não são a violência e a corrupção de anjos, mas a violência e a corrupção do homem (v. 5,11,12,13). A esta altura é possível diver gir da ideia de que, às vezes, a desobediê ncia humana é vista como consequência da desobediência anterior de anjos e que, portan to, as duas e stão intima men te ligadas. E mb ora p arte da literatura extrabíblica estabeleça essa ligação, certamente essa interpretação não é uniforme, e é claro que tal vínculo não é estabelecido pelo texto bíblico. Ademais, 1Pedro 3 n ão se refere aos que desobedeceram muito tem po antes do dilúvio (como no caso dos anjos), mas aos que desobedeceram exatamente quando a arca estava sendo construída. (i i ) E vidênc ias do N ovo Test am ent o
N o Novo Testamento, 2Pedro 2.5 menciona N oé com o “pre gador da justiça” no meio do “mundo dos ímpios”. Da mesma forma, em Mateus 24.37-39 e Lucas 17.26,27, Jesus enfatiza claramente o descaso dos homens diante do juízo iminente nos dias de Noé. Além disso, ele diz que uma situação semelhante tornará a ocorrer: “Pois a vinda do Filho do homem se dará à semelhança dos dias de Noé” (Mt 24.37). Nesse contexto, o aviso sobre a necessidade de vig ilân cia hum ana e os paralelos com a atividade nos dias de N oé significam que a d eso bediên cia dos homens nos dias de Noé está claramente em foco. De novo a desobediência de anjos nun ca é vinculada de m od o específ ico ao ju íz o
do dilúvio em si. 213
1PEDRO
(Hi ) E vidên cias extrab íbli cas
Oráculos sibilinos 1.171,172 diz que as pessoas que ouvira m as exortações de Noé a que se arrependessem de sua vida ímpia o ridicularizaram: “Quando o ouviram, zombaram dele, cada um chamando-o demente, um homem que enlouqueceu” (essa zombaria acontece no meio da pregação de Noé sobre os pecados deles, após a construção da arca: observe as linhas 190191, 205).16Da mesma f orma, em Sanhedrim 108b, o Talmude Babilônicodiz que aqueles que observavam Noé “escarneciam dele”, dizendo: “Velho, para que serve essa arca?”. A Rabá de Gênesis 30.7 (sobre 6.9) diz que Noé foi ridicularizado pelos que o observavam construir a arca. Eles zombavam e o chamavam de “velho desprezível”. Além do mais, quando Noé derrubou as árvores para construir a arca e lhes disse que um dilúvio estava a caminho, eles responderam: “Ele virá somente sobre a casa de teu pai”. Em Rabá de Eclesiastes 9.14 (seção l), quando Noé adverte as pessoas, dizendo “Amanhã virá um dilúvio, por isso arrependei-vos”, elas se recusam a ouvir e o ridicularizam: “Se começarem castigos, começarão pela tua casa”. Essas citações específicas falam com bastante clareza de desobediência humana “enquanto a arca era construída” e devem ser vistas como contraponto da falta total de referências ao pecado de anjos durante a construção da arca. Além do mais, a literatura judaica menciona muitas vezes o pecado humano, não de anjos, como motivo pelo qual Deus trouxe o dilúvio so bre a terra. Os textos são numerosos demais para serem aqui reproduzidos, mas basta citar as referências: Targuns Onqelos, Pseudo-Jônatas, Neofitie Fragmentáriosobre Gênesis 6.5 e 6.11-13; Rabá de Gênesis 26.5 (sobre 6.2); 26.7 (sobre 6.4); 28.8 (sobre 6.7); 31.1-5 (sobre 6.13); 31.6 (sobre 6.13); Rabá de Eclesiastes sobre 2.23, seção 1; Rabá de Números 5.3 (sobre 4.18); 9.18 (sobre 5.21); 9.24 (sobre 5.27); Rosh Hashshana 123; Sanhedrin 108a; Filo, Perguntas e respostas sobre Gênesis 1.99,100; 2.13; Da vida de Abraão 40,41; Josefo, Antiguidades dos judeus 1.74,75, 98; Documento de Damasco 2.20,21; lEnoque 65.6, 10,11; 67.8-10; 2Enoque 70 A-S; 3Enoque 4.3; Jubileus 5.2-4,7-9; Apocalipse de Adão 3.3; Pseudo-Filo, Antiguidades bíblicas 3.2,6; Oráculos sibilinos1.130,131,150-179; 3Macabeus2.4. E a expressão “a geração do dilúvio” é usada com frequência em escritos rabínicos como paradigma de extrema maldade humana: Mishná Sanhedrin 10:3; Rabá de Eclesiastes
I6J. J. Collins, concordando com A. Kurfess, atribui a essa seção dos Oráculos sibilinos uma data no final do prim eiro século a.C. o u bem no início do pr ime iro século d.C.: veja
J. J. Collins, “Sibylline oracles”, in: OTP, vol. 1, p. 331. 214
APÊNDICE sobre 2.23, seção 1; Rabá de Cântico dos Cânticos sobre 1.4, seção 3; Rabá de Números 9.18 (sobre 5.21); 14.6 (sobre 7.54); 20.2 (sobre 22.2) etc. Todos esses textos (aqui foram relacionados 45, de todas as vertentes da tradição judaica) devem ser vistos como contraponto dos leves indícios de um a tradição de pecado de anjos ne de ssaNoé época : um( texto que (Jubileus menciona pecado de anjos nos dias e dois 3.5; lE10.4,5) T. Naf. n 67.8-13) que dizem que anjos foram castigados por ocasião do dilúvio (um deles, T. Naf.3.5, também diz que a terra ficou “sem morador ou fruto” por causa do pecado dos anjos). Nem um só texto de qualquer vertente da tradição judaica menciona anjos desobedecendo “enquanto a arca era construída”. O peso esmagador da tradição extrabíblica — assim como os testemunhos bíblicos em si — enfatiza seres humanos pecadores, e não anjos, como aquilo a que mais provavelmente Pedro se refere com as orações os quais, noutro 17 [...] enquanto a arca era construída nos dias de Noé. tempo, foram rebeldes b. P o r q u e m a p a c iê n c i a d e D e u s e s p e r a v a ?
O fato de qu e mais adiante se afirma qu e os “espíritos em pris ão” são aqueles que foram rebeldes,18 quando a paciência de Deus esperava, forte é indício de que Deus esperava que se arrependessem, pois, de outra forma, não haveria razão por que Pedro mencionar a paciência de Deus. Ademais, a palavra apekdechomai,“esperar”, tem a nuan ça de ag uard ar com esperança ou expec tativa que a lgo aconteç a.19 A interpretação dessa passagem como referência a anjos não parece adequada, pois nem o Antigo nem o Novo Testamento ensinam que anjos caídos podem ter alguma oportunidade de arrependimento (cf. 2Pe 2.4; Jd 6). Mas, se Pedro está se referindo a seres humanos que desobedeceram, a declaração é coerente com repetidos exe mplos em to da a Bíblia em que Deus espera com paciência pelo arrepend iment o antes de trazer ju íz o (Gn 6.3; Sl 103.7-12; 106.43-46; Os 11.8,9). Também na literatura judaica extrabíblica a paciência de Deus tem re lação direta com os anos que culminam com o dilúvio. O Targum Neofti sobre Gênesis 6.3 relata que Deus disse a Noé “Eis que te dei cento e vinte anos, esperando que eles possam se arrepender”. A mesma ideia é repetida no Targum Onqelos,no Targum de pseudo-Jónatase no Targum Fragmentário
l7Quanto a “foram rebeldes”, veja p. 105s., 156. 18Quan to a “foram rebeldes”, veja p. 105s., 156.
19BAGD, p. 83: “esperar ansiosamente”.
215
1PE DR O
sobre Genesis 6.3. Mekilta Shirata 5.38,39 (sobre Êx 15.5,6)20 diz que Deus concedeu uma extensão de tempo “à geração do dilúvio para que pudesse se arrepender”. A Mishná (Abot 5.2) diz que todas as gerações de Adão a Noé contin uaram pr ovocando Deus, demo nstrand o co mo D eus é “paciente” , até que por fimesperando trouxe sobre eles as águas do dilúvio. Declaraçõesemsemelhantes Rahá de sobre Deus o arrependimento humano encontram-se Gênesis 32.7 (sobre 7.10) e Rabá de Números 14.6 (sobre 7.54). Filo (PG 2.13 sobre Gn 7.4,10), ao analisar a demora do dilúvio, diz que Deus “possibilita arrependimento de pecados [...] a fim de que, ao verem a arca [...] creiam na proclamação (to kêrygmati) do dilúvio [...] e voltem da impiedade”.21 Assim, no que diz respeito ao contexto da expressão de Pedro quando a paciência de Deus esperam, a literatura extrabíblica dá testemunho frequente e variado sobre a espera divina pelo arrependimento humano, mas não fala nada de nenhuma espera pelo arrependimento de anjos — e o Novo Testamento parece até m esmo ne gar tal possibilidad e (2Pe 2.4; Jd 6). c. Noé como pregador em sua geração Resta outra vertente de tradição judaica extrabíblica relevante para determ inar o contexto que se encontra por trás da passagem que Pedro estava escrevendo. Essa tradição diz respeito a um testemunho bastante difundido sobre os esfor ços de Noé como “pregador da justiça”. E claro que essa evidência tem valor básico apenas para confirmar as conclusões das duas seções anteriores, a saber, (a) eram seres humanos que estavam pecando naquela época, pois é a eles que Noé diz que se arrependam, e (b) a paciência de Deus estava esperando pelo arrependimento dos seres humanos a quem Noé prega. Mas o fato de que muitas vezes se diz que Noé foi “pregador” de arrependimento e justiça aos que estavam ao redor durante a construção da arca deve nos levar a pelo menos considerar a possibilidade de que, quando fala de pregar “aos espíritos em prisão, os quais, noutro tempo, foram rebeldes [...] enquanto a arca era construída”, Pedro esteja de algum a maneira alud indo à atividade de pregação de Noé, algo com que seus leitores de tradição judaica estavam familiarizados. O que é interessante é a frequência com que Noé é chamado de “pre gador” ou “arauto” mediante o uso de kèryx e termos afins, palavras cognatas de kêryssõ em 1Pedro 3.19 (Cristo “pregou” aos espíritos em prisão). Por 20Lauterbach, vol. 2, p. 39-40. 21Aqui Filo usa o substantivokêryyma, “anúncio, proclamação”, cognato do verbo
kêryssõ, “pregar, proclamar”, usado por Pedro em lPedro 3.19. 216
APÊNDICE exemplo, n o texto mais antigo de Oráculos sibilinos,livro l , 22descobrimos que as linhas 150-198 contêm duas longas falas de Noé conclamando ao arrepen dimento aqueles ao seu redor e advertindo que o dilúvio estava a caminho. Aliás, Oráculos sibilinos1.128,129 registra a seguinte ordem de Deus a Noé: “Proclama arrependimento a todas as pessoas [...] para que possam ser salvas”. O verbo “proclam ar” é kêryssõ, o m esm o verbo usado em 1Pedro 3.19. Filo faz uso do substantivo co gn ato kêrygma para se referir a advertências sobre o dilúvio, conforme há pouco mencionado (veja acima). Josefo não emprega esse termo com relação a Noé, mas diz que ele “os instou a que buscassem uma mentalidade melhor e emendassem seus caminhos” (Ant. 1.74, referindo-se a pecadores humanos). Em relação à pregação de Noé, Rabá de Gênesis 30.7 (sobre 6.9) cita a seguin te afirmação o Abbap (terceiro século Santo, ito seja, disse: ‘U m araudoto rabin se levantou or m im na geraçd.C.?): ão d o “O dilúvio, e ebend sse era N oé’”. (A palavra aqui traduzida por “arauto” é kãrôz, um estrangeirismo aramaico srcinado do grego kêryx, cognato de kêryssõ em lPe 3.19; veja BDB, p. 1097.) Há outros exemplos da pregação de Noé em Rabá de Eclesiastes9.14, seção 1; Sanhedrin 108a,108b. Além do mais, na literatura cristã mais antiga lemos que “Noé pregou arrependimento, e os que obedeceram foram salvos” (lClemente 7.6) e que Noé proclamou um “novo começo para o m undo” (lClemente 9.4). Em ambos os casos, Clemente (escrevendo em 95 d.C.) usa kêryssõ para se referir à atividade de pregação de Noé. Aqui também é relevante assinalar que Noé é chamado arauto, “prega dor [ou kêryx ] da justi ça ” em 2Pedro 2.5. Assim, na tradição judaica e na tradição cristã antiga, é bastante disse minada a atividade de Noé como pregador aos que estavam ao seu redor antes do dilúvio. Além disso, o verbo usado por Pedro, kêryssõ, e seus cognatos são empregados com surpreendente frequência nessas tradições, e até mesmo uma vez pelo próprio Pedro. 3. Co ncl us ão ba sea da em um lev an ta m en to de an te ced en tes
Quando Pedro definiu os “espíritos em prisão” como aqueles que “foram re beldes, quando a paciência de Deus esperava enquanto a arca era construída 22Essa seção foi escrita talvez cinquenta anos antes da época do NT: veja, acima,
p. 212, nota 16. 217
1PEDRO
nos dias de Noé”, é muito improvável que ele esperasse que seus leitores os identificassem como anjos desobedientes. Nem na literatura bíblica nem na extrabíblica há indício que deixe subentendido que anjos desobedientes se encaixam nessas características. Nossa conclusão é que os “espíritos em prisão” são os seres humanos que desobede ceram na época em que N oé estava constru indo a arca e foram destruídos no dilúvio. Será possível evitar esta conclusão, som ente se despre zarmos as expressões definidoras cmciais em 1Pedro 3.20. c. N ota adi ci onal: Pod em os pressup or que os l ei tore s de Pedro conheci
am l E no q u e?
Há outra consideração que talvez seja digna de menção aqui. Aqueles que interpretam os “espíritos em prisão” como anjos caídos têm de defender que lEnoque , texto básico de um relato detalhado de pecados cometidos pelos anjos e de sua consequente prisão, era conhecido no m undo antigo, e tão amplamente conhecido que Pedro pôde fazer alusão a um de seus trechos sem mencionar a obra pelo nome e ainda pressupor (se quisesse ser competente na comunicação) que todos os seus leitores dispersos em quatro províncias da Ásia Menor entenderíam a alusão e interpretariam corretamente sua frase sob a luz dessa alusão. (Defendi acima que, ainda que lEnoque fosse amplamente conhecido, os leitores não pensariam autom aticam ente em anjos qua ndo lessem “espírito s em prisão”. Con form e vimos, mesmo em lEnoque existem espíritos humanos bem como espíritos de anjos aprisionados à espera de julgamento e há também desobediência de homens e de anjos, sendo que o pecado dos seres humanos estava mais próximo da época em que a paciência de Deus esperava durante a construção da arca. No entanto, essa pergunta ainda é relevante, pois trata de uma parte importante do argumento de Dalton.) Parece que temos de alimentar sérias dúvidas sobre lEnoque ser tão conhecido e sobre a existência de uma razão para Pedro fazer tal alusão. Uma coisa é concordar que Judas 14,15 cita lEnoque pelo nome e o faz de tal maneira que mesmo leitores que nunca ouviram falar de lEnoque conseguem entender a significado do que Judas está dizendo. Outra coisa bem diferente é dizer que Pedro faria alusão a lEnoque sem mencioná-lo pelo nome, de tal maneira que leitores que não conheciam lEnoque seriam totalmente incapazes de entender o que Pedro queria dizer. Mas é isso que os
defensores da posição da “pregação a anjos caídos” são obrigados a afirmar. 218
APÊNDICE
Contra essa afirmação é preciso apresentar o fato de que, embora lEnoque seja citado em Judas 14,15, ninguém jamais provou que lEnoque era bem conh ecid o pela gran de maio ria das igrejas para as quais Pedro estava escrevendo nem mesmo que elas tinham algum conhecimento desse texto. Em uma recente introdução a lEnoque, E. Isaac escreve: As informações acerca do uso e da importância da obra nas comunidades judaica e cristã são, com exceção da igreja etíope, esparsas [...] Apesar disso, parece claro que lEnoque era bem conhecido de muitos judeus, em particular dos essênios, e de cristãos antigos, em especial o autor de Judas.23 Mas essa declaração não diz se lEnoque era conhecido entre os gentios da Ásia M para eno r— realidade,nto. elaH deixa subentendi do qu e não tem os alusões prova que aponte ta l na conhecime á citações de lEnoque e também ao texto em vários escritores cristãos antigos a partir do segundo século d.C., mas de novo isso não nos dá m otiv o para pensar que ele era con hec ido pelos leitores de Pedro no primeiro século, pois esses leitores estavam geográfica e culturalmente bem distantes das srcens judaico-palestinas do livro. N o entanto, se esse fato crucial for simplesmente pressuposto em vez de provado por aqueles que defendem a posição de que Cristo pregou a anjos caídos, então isso deverá ser considerado mais uma fragilidade fundamental da posição. Além do mais, surge uma pergunta hermenêutica e até certo ponto teológica para o intérprete moderno: será que os textos do Novo Testamento têm uma natureza tal que obrigaria que seus primeiros leitores tivessem conh ecim ento de um a obra especí fica da literatura extrabíbli ca para que lhes fosse possível entender o sentido (não a srcem histórica, mas o sentido) de uma passagem específica? Existe outro texto no Novo Testamento do qual os leitores simplesmente não teriam entendido o significado a menos que conhecessem determinado texto extrabíblico? Pelo menos eu não tenho conhecimento de nenhum. Não é preciso ir longe para ver por que isso raramente ou mesmo nunca acontece: os escritores do Novo Testamento estavam escrevendo para se comunicar com clareza com um público amplo de diferentes ambientes. Em uma situação assim, é claro que podiam pressupor o conhecimento do Antigo Testamento, pois essa era a “Bíblia” para todos os cristãos. Mas, fora
“E. Isaac, “1 Enoque”, OTP, vol. 1, p. 8.
219
1PEDRO
isso, não havia nenhuma obra da literatura cujo conhecimento por parte de todos os seus leitores pudesse ser pressuposto. E se não podiam pressupor tal conhecimento, então parecería irresponsável se escrevessem algo que, para ser entendido, exigisse conhecimento prévio de outro texto. E claro que para o intérprete de hoje a literatura extrabíblica muitas vezes fornece dados que permitem melhor compreensão de detalhes específicos sobre o significado de uma passagem, e em muitos textos (como neste) ela pode acrescentar c erteza no tocante à exatidão de um a interpretação. Mas os que defendem a posição dos “anjos caídos” vão bem mais a fundo em suas afirmações: estão afirmando que o conhecimento de trechos específicos de lEnoque é necessário hoje (e, po r tabela, tam bém para os prim eiro s leitores) para que se possa chegar, mesmo que de modo aproximado, a um a compreensão correta do significado da passagem. Por outro lado, e de nov o a favor da posição da “desobediên cia de ho mens ”, temos de levar em conta o fato de que os autores do Novo Testamento costumam pressupor um conhecimento do Antigo Testamento por parte de seus leitores. No caso de 1Pedro 3.19,20 isso significa que, em se tratando da compreensão pelo leitor, é preciso atribuir mais peso aos antecedentes veterotestamentár ios do que a quaisquer antecedentes da literatura extra bíblica. E para leitores que tivessem conhecimento apenas do Antigo Testamento, quando a paciência de Deus esperava enquanto uma referência à desobediência a arca era construída não seria ambígua, nem exigiría explicação oriunda da literatura extrabíblica. Os trechos seriam compreensíveis e apontariam de forma inequívoca na direção de se res huma nos qu e pecaram nos dias de Noé. Então, quem são os espíritos em pr isão? U m quantidade en orm e de textos bíblicos e extrabíblicos parece exigir a conclusão de que não eram anjos pecadores, mas seres humanos que pecaram enquanto Noé construía a arca.
I I . O QU E CRIS TO P ROC LAM OU?
As menções da pregação de Noé na seção anterior indicaram que o verbo usado por Pedro, kêryssd, era muitas ve zes emp rega do em relação à pregação pela qual Noé chamava as pessoas ao arrependim ento e à fé. Esse significado de kêryssd não é obrigatório, pois a palavra significa simplesmente “proclamar”, e a mensagem proclamada tem de ser entendida a partir de outro s elementos do contexto. N o entant o, é preci so assinalar que, n o Novo Testamento e na LXX, é bem comum o verbo ser usado para se referir à
pregação evangelística — pregar o evangelho de Cristo ou chamar pessoas 220
A P Ê N D IC E
ao arrependimento e à fé. Além do mais, o uso que Pedro faz do substantivo cognato ( kêryx ) em 2Pedro 2.5 é muito importante. Quer esse versículo seja enten dido com o sentido de que N oé pregou justiça, q uer com o sent ido de que No é era um preg ador ju sto (uma posição menos pro vável, mas gramaticalmente possível), o que está sendo visado em ambos os casos é que Noé pregou arrependimento aos que estavam à sua volta. Além do mais, já assinalamos que, juntamente com “os quais, noutro tempo, foram rebeldes”, a oração “quando a paciência de Deus esperava” é um forte indício de que essa pregação exige arrependimento por parte dos que desobedecem — caso contrá rio, nã o haveria razão para menc ionar a paciência de Deus que agu arda “com expectativa ou ansiedade”. Se Pedro tivesse em mente apenas uma proclamação de condenação (conforme Dalton defende), teria de deixar isso claro sendo mais específico no contexto. E, em oposição a isso, os marcadores contextuais que apontam para uma pregação de arrependimento são muito fortes. Portanto, se Pedro quisesse declarar que algo com o a terceira posição (C risto procl amo u co ndenação definitiva à s pessoas no inferno) ou a quinta posição (Cristo pro clamo u condenação definitiva aos anjos no inferno), ser ia necessário dizer algo co mo “proclamou condenação” ( katakrima) ou “proclamou juízo” ( krisin), caso contrário seus leitores não teriam entendido o que ele queria dizer. Além do mais, se o texto está se referindo à pregação de condenação, é difícil explicar de forma satisfatória por que a condenação definitiva foi proclamada apenas a esses pecadores específicos (ou a anjos caídos) e não a todos os que estavam no inferno. Por que apenas aqueles que desobedeceram durante a construção da arca foram escolhidos? E claro que tanto na literatura bíblica quanto na extrabíblica eles são vistos como pecadores especialmente ímpios, mas isso não explica por que só eles recebem essa condenação peremptória por ocasião do momento decisivo de toda a história, a saber, a morte e ressurreição de Cristo. Seria possível responder que Pedro os menciona como representantes de todos os anjos caídos (ou de todos os pecadores). Mas, se Pedro quisesse dizer “todos”, por que mencionou apenas alguns? Para entender que o autor queria dizer “todos”, o leitor precisaria de alguma indicação do tipo “a todos aqueles, à semelhança dos espíritos em prisão que desobedeceram quando [...] (etc.)” ou “aos espíritos em prisão que no utro tem po foram rebeldes [...] e a todos os que, assim como eles, pecaram [...] (etc.)”. Mas como não há nenhuma indicação desse tipo, é melhor entender que a pregação de Cristo
foi dirigida apenas àqueles mencionados de modo específico. 221
1PEDRO
A quarta posição, que sustenta que Cristo proclamou a conclusão da redenção aos crentes do Antigo Testamento, também não faz justiça ao contexto. A menção de “prisão” e desobediência, bem como da espera da paciência de Deus e o comentário de que só oito foram salvos, tudo isso aponta para a pregação dirigida a pecadores que necessitam de arrependimento, não a santos justos que aguardam ouvir um feliz brado de vitória. De novo, com tantos indicadores contextuais apontando em outra direção, caso quisesse dizer que a pregação proclamou a vitória de Cristo, Pedro precisaria especificar esse fato escrevendo “proclamou vitória [nikos ou algum termo semelhante]”; na falta dessa especificação, os leitores de Pedro não deduziríam que “pregou” tinha esse sentido. Além do mais, de novo não há motivo convincente pelo qual a proclamação da conclusão da redenção devia ser feita apenas àqueles espíritos que desobedeceram durante a construção da arca, e não a todos os crentes do Antigo Testamento. Assim, o conteúdo da proclamação é deve ser entendido como uma proclamação a pecadores acerca de sua necessidade de se arrepender e de confiar em Deus. Esse significado também se harmoniza melhor com o contexto mais amplo de 1Pedro 3. A seção inteira de 2.11 até este pon to se oc upo u da vida dos cristãos no meio de um mun do incrédulo, e v árias vezes Pedro chamou a atenção para a necessidade de um bom testemunho aos incrédulos hostis em relação aos leitores cristãos de Pedro (veja 2.12,15; 3.1,2,15,16). Em 3.15,16, o chamado ao testemunho (“estai sempre preparados para responder”) tem importância especial e oferece o contexto imediatamente anterior para 3.19, 20.
I I I . QU AND O CRISTO
PREGO U?
A análise anterior concluiu que os espíritos em prisão são pessoas que desobedeceram nos dias de Noé e que a pregação dirigida a elas as chamou ao arrependimento. Caso corretas, essas conclusões descartam a terceira, quarta e quinta posições alistadas no início desta análise. No entanto, elas são compatíveis com a primeira posição (Cristo pregou por intermédio de Noé na época em que a arca estava sendo construída) e com a segunda (Cristo pregou entre sua morte e ressurreição, dando aos que desobedeceram antes do dilúvio uma segunda oportunidade de salvação). Se for possível fixar a época em que aconteceu a pregação, conseguiremos decidir
entre essas duas posições. 222
A P Ê N D IC E
. A li ga ção entre os ver sículos
18 e 1 9
O momento da pregação de Cristo no versículo 19 poderá ser determinado somente depois de entendermos o final do versículo 18, morto [...] na carne, mas vivificado no espírito[ARA]; então, com base nesse final, poderemos entender o sentido de no qual (en ho)do início do versículo 19. Morto na carne indica o fato qu e a “ca rne ” de Jesus foi m orta , ou seja, seu corpo físico (assim também a NIV [e NVl]: “foi morto no corpo” [NTLH: “ele morreu no corpo”]). Embora “carne” ( sarx) tenha uma considerável gama de significados, sempre que “carne”, a exemplo do que ocorre aqui, é contrastado com “espírito” (pneuma), esse contraste é entre coisas físicas, visíveis e transitórias, pertencentes a este mundo, e coisas invisíveis e eternas do mundo “espiritual”, do céu ou da era vindoura. Em 4.6, temos um exemplo desse contraste: “... para que, embora julgados na carne como homens [i.e., morreram fisicamente], vivam segundo Deus no espírito [i.e., ganhem vida espiritual no céu]” (RSV). (Veja também Mt 26.41; Mc 14.38;Jo 3.6; 6.63; Rm 8.4-6,9 ,13; 1Co 5.5; 2C o 7.1; Gl 3.3; 4.29; 5.16,17; б. 8; Cl 2.5; l T m 3.16, cujo conteú do marca certo parale lo com lPe 3.1 8; e Hb 12.9, texto grego.) Sob a luz desse contraste, “vivificado no espírito” [ARA] significa necessariamen te “vivificado na esfera eterna e espiritua l, na esfera da atividade do Espírito”. Aqui a expressão se refere especificamente à ressurreição de Cristo, porque “vivificado” é o oposto de “morto na carne” da expressão anterior. “Na esfera espiritual, na esfera da atividade do Espírito, Cristo foi ressuscitado dos mortos.” A tradução da NIV [e A2l], vivificado pelo Espírito (de modo seme lhante, KJV [e CNBB]), também é gramaticalmente possível: no grego não há distinção entre “espírito” e “Espírito”, e a forma do termo aqui (caso dativo) pode ser traduzida por “no” ou “pelo”. Todavia, seria meio estranho se a mesma estrutura gramatical usada em trechos paralelos do mesmo período devesse ser entendida de modos diferentes (i.e., morto no corpo, mas vivificado pelo Espírito). Além do mais, uma construção gramatical diferente (hypo com genitivo, como em 2Pe 1.21, “movidos pelo Esp írito San to” [ARA]; tam bém em lP e 2.4; 2Pe 1.17; 3.2) teria sido mais comum — e certamente mais clara — se Pedro quisesse dizer “vivificado pelo E spírito” . Se essa é a interpretação correta de morto na carne, mas vivificado no
espírito no versículo 18, a expressão “no qual”, no início do versículo 19, 223
1PEDRO deve ser entendida co mo referên cia a “no esp írito” do versículo ante rior, 24 no sentido de “em cu ja esfera (espiritual) Cri sto pre gou aos espíritos e m prisão”. Isso não significa necessariamente “no corpo ressuscitado”,25 mas, sim, “na esfera da atividade do Espírito, a esfera espiritual eterna” (a esfera em que Cristo foi ressuscitado dos mortos, v. 18). E possível sustentar que en ho (“no qual”), no versículo 19, significa “na nova era escatológica, a esfera da atividade característica do Espírit o Santo após a ressurreição de C risto”. Alg uém poderá dizer que isso é evidente pelo fato de que os escritores do Novo Testamento sempre usam ptteuma, “espírito”, com esse sentido fortemente escatológico. N o entanto, conquanto esse sentido de pneuma seja comum em Paulo, não é claramente o caso nos textos de Pedro. Entre as acepções não escatológicas d e ptteuma encontram-se 1.11 (“o Espírito de Cristo” falando pelos profetas do AT) e 2Pedro 1.21 (“hom ens falaram da parte de Deus, impelidos pelo Espírito Santo” [NVI]). E a frequente ênfase que Pedro dá à realidade da esfera “espiritual” invisível (veja 1.4,8,12; 2.5; 3.7,12,22; 4.14; 5.5,8) torna provável que “na qual” (esfera espiritual) signifique apenas na dimensão invisível da existência, no mundo “espiritual”. Selwyn (p. 197, 315, 317) sustenta que “no qual” (ai ho) não pode estar se referindo a “no espírito” do versículo 18, porque no Novo Testamento não existe nenhum outro caso em que um pronome relativo tenha como antecedente um “dativo adverbial”. Ele considera essa dificuldade gramatical a “mais séria de todas” (p. 317) as objeções à posição de que Cristo pregou por intermédio de N oé antes do dilúvio. N o entanto, apesar da afirmação de Selwyn, no Novo Testamento existem vários casos de “dativo adverbial” como antecedente de um pronome relativo: 24Reicke, p. 110-1, entende que en ho n ão sign ifica “nos quais”, m as “em cu ja ocasião” (com base em significado semelhante em 2.12; 3.16, e, conforme ele defende, em outras passagens de IPe). Mas as palavras e a expressão em si são tão comuns, que não existe razão para pensar que Pedro as tenha empregado com um só sentido bem especializado: é necessário entender que os pronomes relativos se referem a qualquer antecedente (gramaticalmente correto) que faça mais sentido em cada contexto em particular. Aqui, “espírito” está bem perto e faz mais sentido; é o antecedente que os leitores de Pedro haveríam naturalmente de entender. 25Com o defendido po r France, p. 268-9. France tem razão ao ver o contraste no v. 18 entre a “esfera humana natural da existência” e o “estado espiritual eterno de existência” (p. 267), mas depois (p. 268) limita demais a “esfera espiritual eterna” ao estado ressurreto de Cristo. O contraste “carne-espírito" no v. 18 é, na verdade, entre duas esferas de atividade e não entre as duas coisas mencionadas naquelas esferas no v. 18, o estado
pré-ressurreição e o estado pós-ressurreição de Cristo. 224
APÊNDICE Versículo At 2.8
Pronome relativo a qual (hê)26
Dativo adverbial antecedente em sua própria linguagem
(tê idia
dialektõ) E f 2. 2
as quais (hais)
em vossas transgressões e pecados (tois
E f 2.3
os quais ( hois)
paraptõmasin tais hamartiais nos filhos da kai desobediência (toishymõn) huiois tês apeitheias)
2Pe 1.4
as quais (hõn)
2Pe 3.16
as quais (hais)
para sua própria glória e excelência (idia doxê kai arete) (Sinaítico, A, C etc.) em todas as suas cartas (pasais epistolais)
Assim, a objeção de Selwyn não é válida. No entanto, mesmo sem esses exemplos, a ideia de Selwyn não convencería, porque exegeticamente não é legítimo exigir exemplos paralelos tão próximos para os quais não seria normal encontrar muitas ocorrências ou até mesmo nenhuma. (Seria semelhante a dizer que hõn, “das quais”, em 3.3 não pode se referir a “esposas” porque não há nenhum outro exemplo de um pronome relativo que tenha como antecedente um vocativo plural feminino precedido de artigo — aliás, uma afirmação que por meio de exemplos seria mais difícil de desmentir do que esta)! Na natureza do Novo Testamento grego nada exige que pronomes relativos tenham antecedentes que só funcionem de determinadas maneiras e não de outras em suas próprias orações. Portanto, Selwyn baseou seu julgamento exegético em uma distinção artificial que não tem significado real no uso concreto da linguagem. Estamos agora em condições de examinar as duas principais possibilidades interpretativas sobre quando Cristo pregou aos espíritos: em algum momento após sua morte (ou ressurreição) ou durante a época de Noé. b. En tre sua m orte e a re ssurrei ção — ou depoi s da ressurreição
A favor da posição de que a pregação aconteceu entre a morte e a ressurreição de Cristo, ou talvez mesmo depois de sua ressurreição, está o fato de que sua morte e ressurreição são mencionadas de forma bem 26Veja o texto grego, ou NASB, KJV [e ARA, ARC]. O texto é literalmente “na sua
própria língua, na qual ele nasceu”. 225
1PEDRO
específica no versículo 18, imediatamente anterior a esta seção. Parece que Pedro está colocando a pregação de Cristo aos espíritos em prisão bem próxim a do te m po em que ele foi “m orto na carne, mas vivificado no espírito” (v. 18). N o entanto, essa observação perde muita força quando se percebe que, em outro s trechos da carta, Pedro u sa com bastante frequência u ma palavra ou ideia no fin al de um a seção como trampolim para um trecho novo com um assunto claramente diverso. Ele faz isso com regularidade, usando um pronom e relativo (“qu e”, “o/a qual” ou “os/as quais”), às vezes com preposi ção antecedente, às vezes sem ela. Isso pode ser visto no texto grego de 1,6 (“no que exultais”, assinalando uma transição para a análise sobre o sofrimento); 1.8 (“o qual, não vendo” [ARA], assinalando uma transição para a análise sobre a presente co munhão com Cristo); 1.10 (“acerca de cuja salvação” [ARC], assinalando uma transição para a análise sobre profetas do AT); 2.4 (“ao qual achegando-vos”, assinalando uma transição para a análise sobre a igreja como o novo povo de Deus); 2.22 (“que não cometeu pecado algum”, assinalando uma transição para a análise sobre os sofrimentos e a obra redento ra de Cristo ); e 3.21 (“que ag ora ta mbé m vos salva”, assinalando um a transição para uma anál ise sobre o batismo). Observe o mesm o tipo de transição, mas para assuntos não tão diferentes, também em 1.12; 3.3; 3.6b; 4.4 e 5.9. E sse recurso estilístico recorren te em tod a a epíst ola significa que não se pode simplesmente defender que a expressão “no qual” no início do versículo 19 significa que o versículo dá necessariamente continuidade ao mesmo assunto ou à mesma linha de pensamento (ou à mesma sequência cronológica) do versículo 18 — Pedro emprega esse recurso literário com grande frequência ao mudar de assunto. Além disso, é difícil ver como a posição de que Cristo proclamou a mensagem de salvação aos espíritos em prisão em algum momento após sua morte na cruz realmente se encaixa no contexto. Pedro está exortando seus leitores a serem testem unh as fiéis de Cristo ainda q ue tenh am de sofrer. Mas, se Pedro então passa a lhes dizer que até os piores pecadores de toda a história, a geração do dilúvio, tiveram outra oportunidade de se arrepender depois da morte, então ele estaria sabotando seu propósito em escrever: que necessidade h averia de crentes suportarem sofrime nto n o presente se a queles que se recusam a se converter agora por causa do preço envolvido poderão se arrepender depois da morte? E para que suportar sofrimento como cristão
no presente se há outra oportunidade de salvação depois da morte? 226
APÊNDICE
Além do mais, é difícil explicar por que apenas pecadores que deso bedeceram durante a construção da arca recebem outra oportunidade de arrependimento. Por que outros também não receberam, especialmente os que não tiveram nenhuma possibilidade de ouvir as advertências para que se arrependessem? Além disso, é difícil conciliar a ideia de uma oportuni dade de salv ação pós-m orte co m outr as passagens do N ovo Testamento (ve ja Lc 16.26; Hb 9.27). É improvável que em uma questão de tal importância a posição de Pedro tenha divergido tanto do pensamento do restante da lide rança da igreja primiti va. Essas considerações nos deixam com a primeira posição; a pregação aos espíritos em prisão foi feita na época em que Noé estava construindo a arca. c. N os dias de Noé
1. Pedro pod ería ter pens ado niss o?
Ao considerar a primeira posição (Cristo pregou por intermédio de Noé quando ele estava construindo a arca), é preciso i ndagar se era possível Pedro ter imaginado Cristo pregando por intermédio de Noé. Com certeza isso parece possível à luz do fato de que Pedro chama Noé “pregador [ou arauto] da justiça” (2Pe 2.5) e do fato de que Pedro entende que o “espírito de Cristo” agiu durante o período do Antigo Testamento, levando os profetas a predizer “os sofrimentos que sobreviríam a Cristo e a glória que viria depois desses sofrimentos” (l.ll). Sob essa perspectiva, embora Pedro não descreva Noé como profeta, para ele não teria sido difícil pensar que o espírito de Cristo estava ativo enquanto Noé pregava à geração do dilúvio. 2. A relação com o contexto mais amplo (em especial lP e 3.13-22) a. A p r e g a ç ã o d e C r i s to p o r in t e r m é d i o d e N o é
Um a objeção levantad a por Dal ton contra a primeir a posição é que el a não tem clara ligação com o contexto mais amplo. N o entanto, o que acontece é justamente o contrário. Se entendermos que Pedro está se referindo à prega ção de Cristo por intermédio de Noé, então a passagem faz mais sentido no contexto imediato de 3.13-22 e no contexto mais amplo da carta toda. Aliás, existem vários paralelos notáveis entre a situação de Noé antes do dilúvio e
a situação dos leitores de Pedro. 227
1PEDRO
(1) N oé fazia parte de um a pequena m inoria de crentes cercados po r um grupo de incrédulos hostis (que talvez até os estivessem perseguindo). Os leitores também são uma pequena minoria e estão cercados por incrédulos hostis que tornam bastante real a ameaça de perseguição (3.13,14; 4.4). (2) Noé era justo (Gn 6.22; 7.5; 2Pe 2.5). Pedro exorta seus leitores a serem justos em uma situação igualmente difícil (3.10-12,13,16,17; 4.1-3). (3) Noé deu testemunho corajoso aos incrédulos à sua volta, pregando arrepen dimen to e advert indo sobre o ju íz o que logo viria (veja 2Pe 2.5,9). Da mesma forma, Pedro exorta seus leitores a não temerem (3.14), mas a darem testemunho com coragem (3.15,16), mesmo com sofrimento, caso necessário (3.16; tb. 4.16), para levar outros a Deus — assim como Cristo esteve disposto a sup orta r sofrimento para no s cond uzir a Deus (3.18). Pedro tamb ém faz uma clara advertência de juízo vindouro (4.5,17,18; veja 2Pe 3.10), o que to ma a situação do leitor antes do ju ízo semelhante à de Noé . (4) Cristo, embora em uma “esfera espiritual” invisível, pregava por intermédio de Noé aos incrédulos à sua volta (3.19,20). Assim também, Cristo está atuando de uma forma espiritual invisível na vida e no coração dos leitores de Pedro (3.15; cf.1.22; 4.11,14). Assim, inferimos que Pedro está lemb rand o a seus leitores que , se Cristo p rego u p or in termédio de Noé, certamente também prega por intermédio deles enquanto dão testemunho aos incrédulos que os cercam. (5) Na época de Noé, Deus esperou com paciência o arrependimento dos incrédulos, mas por fim trouxe juízo. Da mesma forma, na época em que Pedro escreve, Deus está esperando com paciência o arrependimento da parte dos incrédulos (veja 2Pe 3.9), mas certamente trará ju íz o sobre os que não se arrependerem (4.5; veja 2Pe 3.10). (6) Por fim, Noé foi salvo com alguns outros (3.20). De igual maneira, Pedro lembra seus leitores de que eles também serão salvos, ainda que sejam em pequen o nú mero, pois Cristo certament e triu nfou (3.22), e eles também partilharão de seu triunfo (4.13,19; 5.10; veja 2Pe 2.9). A força de atração da primeira posição é, dessa maneira, alimentada em vários pontos por sua clara compatibilidade com o contexto. Ela se harmoniza bem com o propósito de Pedro de levar ânimo aos crentes que estão sofrendo, mas que não devem temer por serem justos nem por darem test em un ho fiel aos inc rédulos hostis que os cercam, pois Cri sto está atuando neles assim como amou em Noé, e eles, à semelhança de Noé, certamente
serão salvos do ju ízo vindo uro. 228
A P Ê N D IC E
Aliás, a notável semelhança entre a situação de Noé e a dos leitores de Pedro é o que melhor explica a razão de Pedro, ao buscar no Antigo Testamento um exemplo de coragem, escolher o episódio de Noé prepa rando a arca. Longe de ser surpreendente ou incomum, esse exemplo é bem adequado ao contexto. b. D ific u ld a d e s c o n te x tu a is n a p o s i ç ã o d e D a lto n
O fato de essa posição se r bem adequada ao contexto oferece ou tro argum ento a favor da superioridade da prim eira posição sobre a q uin ta (a proclamação de vitória sobre os anjos caídos feita por Cristo), pois, tomando-se por base a quinta posição, a compatibilidade com o contexto não seria absolutamente tão grande quanto a primeira. Para efeito de raci ocínio, suponhamos po r um m om ento que a pre gação de Cristo aos espíritos em prisão se refira à sua proclamação de condenação aos anjos caídos, seja entre sua m orte e ressurreição, seja depois de ressurreto. E suponhamos que Dalton e outros estejam certos ao afirmar que lEnoque é o contexto, de modo que Cristo imita e cumpre o padrão estabelecido pela pregação de Enoque de condenação aos anjos caídos. O fato de que Cristo proclamou sua vitória serviría então, de maneira geral, de incentivo aos crentes que estavam sendo perseguidos. Assim, na posição de Dalton existe uma ligação com o contexto mais amplo. Há, no entanto, vários pontos em que a ligação não é exata nem coerente. Primeiro, na posição de Dalton, Cristo proclama se u triu nfo sobre anjos caídos ou espíritos maus. No entanto, embora Pedro mencione a oposição do Diabo aos crentes (lPe 5.8), a carta como um tod o e o con texto imediato s e concen tram em fontes de perseg uição humanas, não demoníacas (3.13-16;4.3,4 etc.). Além disso, no único lugar em que Pedro menciona as atividades do Diabo, ele não chama atenção para sua derrota no passado, mas para sua perigosa atuação no presente, pois “anda em derredor, rugindo como leão” (5.8). Em segundo lugar, o paralelo com a situação dos leitores não é tão pró ximo, visto que nem Cristo nem Enoque (em lE n ) estão sendo perseguidos por aqueles a quem proclamaram a condenação definitiva, ao contrário dos leitores de Pedro, que, na época em que a carta foi escrita, ainda estavam debaixo de perseguiçã o. Em terceiro lugar, embora, de acordo com essa posição, Enoque e Cristo tenham ambos ido declarar condenação aos anjos no inferno, os lei tores não veríam niss o u m exemplo a se r imitado, pois certamente n ão iriam
ao inferno proclamar condenação a anjos pecadores. 229
1PE D RO
Em quarto lugar, o testemunho aos incrédulos, algo que Pedro pro cura frisar nessa passagem (3.14,16,17; veja “levar-nos a Deus” no v. 18), na realidade não é fomentado; trazer à mente dois exemplos de procla mação de condenação final a anjos pecadores não incentiva a pregação de arrependimento a seres humanos pecadores!
3. A t ra du çã o “quando nout ro tempo fo ra m rebeldes” Uma consideração final a favor da primeira posição é que ela viabiliza uma tradução gramaticalmente preferível de “noutro tempo foram rebeldes” (apeithesasin pote) no início do versículo 20. A expressão é geralmente traduzida por “os quais, noutro tempo, foram rebeldes”, mas no texto greg o não exist e u ma palavr a especí fica que se tradu ziría p or “os quais”; essa tradução depende de entender que o particípio apeithesasin tem função adjetiva e modifica “espíritos” no versículo anterior. A dificuldade para entendê-lo dessa maneira se explica por um detalhe da gramática grega. Para deixar claro que queria que a expressão fosse entendida como um adjetivo que modifica “espíritos”, Pedro deveria, de acordo com o padrão da língua grega, ter escrito tois apeithesasin, colocando o artig o definido na frente do particípio (e, assim, em “posição atributiva”). Isso é geralmente necessário no caso de adjetivos (incluindo particípios) que modificam substantivos precedidos de artigo definido. Assim, BDF, seção 270, diz: Quando usado com substantivo precedido de artigo definido, o adjetivo (particípio) atributivo deve, a exemplo do grego clássico, participar da força do artigo, tomando uma posição intermediária [...] ou, se posposto (algo a que o particípio com outros adjuntos é especialmente susceptível),
tem de ter seu próprio artigo [grifo meu]. BDF cita dois tipos de exceção a essa regra: (a) (BDF, seção 269) Um substantivo com dois ou mais adjetivos ou locuções adjetivas não precisa ter todos eles entre o artigo definido e o substantivo (o que pode ficar estranho), e aqueles adjetivos ou locuções que seguem o substantivo não precisam ter o artigo, mas apenas quando
necessário para dar ênfase ou evitar ambiguidade. 230
APÊNDICE Um exemplo disso é genomenên em Atos 13.32. Mas observe que em todos os exemplos apr esentados em BDF, quase não há risco de am bigu idade porque o adjetivo (ou particípio) vem imediatamente após o substantivo e não é separado po r um verbo prin cipa l interveniente c om o em 1Pedro 3.20. (b) (BDF, seção 416.) Particípios suplementares que vêm após verbos de percepção ou cognição (conhecer, ver, ouvir etc.) não têm artigo definido. Exemplos: Marcos 5.30; Lucas 10.18; 2Pedro 1.18. Mas, com exceção dessas categorias em que se permite a ausência do artigo definido, n o N ovo Testamento não parece existir algum exemplo c laro de particípios s em artigo definido q ue tenham ao mesmo tem po u m antece dente com artigo definido e função adjetiva (por modificar um substantivo que é seu antecedente). Mesmo entre os exemplos que se encaixam nas ca tegorias excepcionais assinaladas em BDF na maioria dos casos o particípio adjetivo sem artigo definido virá logo após o substantivo que modifica, e 2Pedro 1.18 (com o verbo de percepção “ouvimos”) é o único exemplo, mesmo entre aqueles das categorias de exceção, em que encontrei o parti cípio separado de seu antecedente pelo verbo principal do período, como acontece em 1Pedro 3.19,20. Dessa maneira, é possível que em nenhuma outra parte do Nov o Testamento exi sta algum exemplo clarament e paralelo que justificasse a tradução “os quais, nou tro tempo, foram rebeldes”.27 A dificuldade de traduzir dessa maneira é sentida por pelo menos uma gramática, que se refere ao particípio em 1Pedro 3.20 como “grego inculto” (MHT, vol. 3, p. 153) e como “grego ruim” (MHT, vol. 4, p. 129). Por outro lado, a maneira comum de traduzir particípios sem artigo de finido que aparecem no tipo de construção encontrada em 1Pedro 3.19,20 é entendê-los adverbialmente (como modificadores do verbo da oração, e não como modificadores do substantivo que o antecede). Tais particípios adverbiais podem ser traduzidos de várias e diferentes maneiras de acordo com o contexto. 27Lucas 2.5; 16.14; Atos 24.24; e lPed ro 4.12 tê m partic ípios q ue talvez alguém imagine serem exceções, mas na realidade todos são particípios adverbiais (de circunstân cia concomitante), mesmo que possam ser traduzidos livremente com o uso de adjetivo. Pode haver uma exceção em 2Coríntios 11.9, mas aqui o particípio vem de novo ime elthontes, em diatamente após o substantivo, ao contrário de lPedro 3.20; além do mais, 2Coríntios 11.9, pode muito bem ter função adverbial em vez de adjetiva [a A21 traduz adverbialmente]: “quando os irmãos vieram da Macedonia”; veja P. Hughes,
Paul’s Second
Epistle to the Corinthians, NIC (Grand Rapids; Eerdmans,1962), p. 386. 231
1PEDRO
Assim, caso o contexto permita, uma tradução gramaticalmente bem adequada de apeithesasin potepodería ser “porque noutro tempo desobedeceram”, ou “embora noutro tempo desobedeceram” ou “quando noutro tempo desobedeceram”: em cada caso a expressão modificaria a ideia do verbo “pregou”. Tal modificação ad verbial de um a oração p or um p articí pio é claramente possível mesmo quando o antecedente do particípio é um substantivo que não é o sujeito do verbo principal (como n o caso d e lPe 3.20). Os exempl os a seguir são paralelos bastante próximos de lPedro 3.20: Marcos 16.10 (l.v.) João 1.36
penthousi
Atos 7.2
onti
Atos 7.26
machomenois
Atos 8.12 Atos 11.17 2Coríntios 5.14
euaggelizomenõ pisteusasin krinantas
Hebreus 7.1
hypostrephontí
peripatounti
temporal: “quando lamentavam” circunstanc ial: “enq uan to andava” temporal: “qua nd o estava na Mesopotamia” circunst ancial: “ enq uan to brigavam” temporal: “quando pregava” tempora l: “quan do cremos” causai: “porque estamos convencidos” temporal: “quando regressava”
Essas considerações gramaticais tornam pelo menos possível e talvez bem provável que, em 1Pedro 3.20, devamos traduzir adverbialmente apeithesasin pote — “quando noutro tempo foram rebeldes”. Agora, sob a luz da análise anterior, a tradução “quando noutro tempo foram rebeldes” se encaixaria bem no contexto. E é preciso dizer que ela não é apenas gramaticalmente possível, mas preferível à tradução “os quais noutro tempo foram rebeldes”. Seria possível levantar a objeção de que é improvável que o particípio tenha um sentido temporal (“quando”) porque a expressão seguinte dá mais uma indicação de tempo, a saber, quando a paciência de Deus esperava. A presença de mais um a oração subordinada tem poral tornaria então desnecessário, talvez até redundante, um sentido temporal para apeithesasin pote. N o entanto, contra essa objeção existem outros exemplos de construções semelhantes c om duas ou mais referências temp orais sucessivas. Há exemplos em Colossenses 3.7 (com um a co mb inaçã o de tem pos aoristo e imperfei to
em um paralelo bem próximo de lPe 3.19,20); Filo, 232
Dos querubins 58;
APÊNDICE
Do Decálogo 58; Das leis especiais 3.1; cf. Barnabé 7.9 (manuscritos aleph e V trazem pote). Aliás, mesmo em lPedro 3.20 já existe mais de uma referência temporal: quando a paciência de Deus esperava , em seguida enquanto a arca era construída e em seguida nos dias de Noé. O acréscimo de “quando noutro tem po foram rebeldes” a essa sequência não ficaria es tran ho ne m seria difícil de entender. Ademais, “noutro tempo” {pote) ajuda a deixar claro o que Pedro quer dizer, pois de imediato indica ao leitor que a “rebeldia” não é simultânea ao momento em que Pedro escreve, mas está em um momento anterior, “noutro tempo” [“outrora”, BPT], A tradução “quando noutro tempo foram rebeldes” também responde à objeção de Dalton (p. 148) de que, se Pedro quisesse se referir a espíritos de pessoas que foram rebeldes, teria escrito pneumasin tõn apeithêsantõn, “espí ritos dos que foram rebeldes”. Se nossa interpretação estiver correta, Pedro escreveu com toda clareza, a saber, Cristo pregou aos espíritos que estão agora em prisão, mas o fez “quando noutro tempofora m rebeldes”.
4. Ob je çõ es re m an es ce nt es a. O verboporeutheis ( “fo i ”) Restam algumas outras objeções a esta posição. Primeira, Dalton (p. 35) levanta a objeção de que o verbo poreutheis (“foi”) não pode ser usado para descrever a atividade divina de Cristo na época do Antigo Testamento. Mas essa objeção não é forte, porque muitas vezes o Antigo Testamento fala de alguma atividade divina como se Deus “fosse” a certo lugar (Gn 3.8; 11.7; 18.21 etc.; cf. ICo 10.4, que fala que Cristo acompanhava os israelitas enquanto viajavam pelo deserto). Além do mais, o mesmo verbo (poreuomai) é usado em 1Pedro 3.22 para falar da ida de Cristo para o céu. Aliás, para o propósito de Pedro, o uso de poreutheis em 3.19 é necessário, pois, se ele tivesse escrito apenas que “na esfera espiritual” Cristo “pregou”, isso poderia sugerir uma atividade distante em que estaria falando do céu, ao passo que “foi e pre gou ” implica o envolvimen to mais pessoal de se dirigi r ao lug ar dos ouvintes e, portanto, pregar por intermédio de Noé. b. A sequência morte-ressurreição-ascensão Também seria possível contestar que a sequência morto [...] vivificado [...] tendo subido ao céuem 3.18-22 mostra que os acontecimentos que se dão entre os versículos 18 e 22 ocorrem necessariamente entre a ressurreição e a
ascensão de Cristo. 233
1PEDRO
Alguém que levante tal objeção podería sustentar que os três particípios aoristos mostram a estrutura da passagem: thanatõtheis (“morto”) e zõopoiêtheis (“vivificado”) em 3.18 e poreutheis (“tendo subido”) em 3.22. Portanto (alguém talvez conclua), o particípio aoristo poreutheis (“subindo” ou “tendo subido”) ementre 3.19atem de se encaixar nessa estrutura e se referir a algum acontecimento ressurreição e a ascensão de Cristo. Respondendo a isso, com certeza podemos concordar que há uma clara ligação entre morto e vivificado em 3.18, visto que ambos são particípios aoristos em expressões adjacentes no mesmo período e visto que a ligação se torna explícita mediante a construção men [...] de(“por um lado [...] por outro lado”) nesta parte do período. Contudo, uma questão bem diferente é tendo subido ao céu.A oração não aparece em uma expressão adjacente, mas sessenta palavras (ou dez orações) depois de vivificado no espírito.Leitores (e ouvintes) comuns naturalmente decidiríam por um sentido de poreutheis, “foi”, que fosse apropriado a seu contexto imediato em 3.19 muito antes de chegarem a “tendo subido ao céu” em 3.22. E de modo algum todos os acontecimentos entre 3.18 e 3.22 se deram entre a ressurreição e a ascensão de Cristo (observe “dias de Noé” e “batismo agora vos salva” como itens parentéticos). Até mesmo em 3.22 essa sequência não é obedecida, porque no grego está à direita de Deusé colocado antes de tendo subido ao céu,embora em uma lista cronológica das atividades de Cristo a ideia de subir ao céu viria primeiro e estar à direita de Deus viria em segund o lugar. Então a ideia de um a sequência nos pa rticípio s aoristos não deve se r vista como forte argumento contra a posição de “Cristo pregar por intermédio de Noé”, mas como um argumento que pode ter certo peso para leitores que de alguma maneira “veem” a passagem por essa perspectiva. É preciso dizer que tal estrutura não é explicitada por nenhum indicador contextual claro nem exigida pelo contexto. E possível que essa sequência tenha sido o propósito de Pedro, mas provavelmente não foi. E, mesmo que fosse, 3.19 ainda pode ser entendido como uma declaração parentética fora da sequência cronológica (assim como 3.20,21). Além do mais, um a explicaçã o provavelment e melho r para a menç ão da ascensão de Cri sto e m 3.22 é o fato de que a ascensão é o aconte cimen to que vem naturalmente na sequência e que deve ser incluído após a menção da ressurreição de Cristo no final de 3.21 (não no final de 3.18). Por fim, o uso frequente que Pedro faz de um pronome relativo
para introduzir um novo assunto (veja p. 224) indica que há uma forte 234
A P Ê N D IC E
possibilidade de que nesta seção não haja nenhuma sequência cronológica muito clara. Certamente não se deve insistir nisso, se outros fatores no contexto apontam para outra direção. c. Por que Pedro não disse que Cristo pregou "por intermédio de Noé ’’?
Finalmente, se era isso que ele de fato queria dizer, alguém poderá se perguntar por que Pedro não foi mais claro, dizendo simplesmente que Cristo “ prego u por intermédio de Noé aos espíritos em prisão q uand o n outro tempo foram rebeldes”. E claro que não podemos dizer com certeza por que um autor deixou de dizer algo mais. No entanto, devemos pelo menos reconhecer que os leitores de Pedro, sendo falantes nativos da língua grega, teriam lido nas palavras de Pedro o sentido de “quando noutro tempo foram rebeldes” com muito mais facilidade do que nós, em especial por que nosso pensamento está obstruído por traduções que dizem “os quais noutro tempo foram rebeldes”. Além desse fator gramatical, a abundância de testemunhos extrabíblicos sobre a pregação de Noé aos incrédulos rebeldes durante a construção da arca permitiría que o sentido aqui proposto fosse compreendido bem mais rapidamente. Aliás, se pudéssemos fazer a qualquer judeu ou cristão do primeiro século a pergunta “Quem pregou aos que foram rebeldes nos dias de Noé, quando a paciência de Deus esperava enquanto a arca era construída?”, certamente a resposta seria uma só: foi Noé quem pregou. Para um gru po de cristãos que e ntendia dessa manei ra a narrativa bíb lica, Pedro então escreveu que Cristo pregou aos rebeldes da época de Noé. É possível que não fosse pedir muito de seus leitores que eles percebessem que Pedro estava dizendo que foi por intermédio de Noé que Cristo pregou. Em resumo, a frase talvez não tenha sido tão obscura para os primeiros leitores como pareceu ser por tanto tempo aos intérpretes que vieram depois deles. IV. CONCLUSÃO
Nossas conclusões sobre essa passagem podem ser agora expressas em uma paráfrase mais longa: “Na esfera espiritual da existência, Cristo foi e pregou por intermédio de Noé aos que agora são espíritos na prisão do inferno. Isso aconteceu quando noutro tempo eles foram rebeldes, nos dias de Noé, quando a paciência de Deus esperava enquanto a arca era construída”. Em seu contexto, essa passagem tem assim a função de: (l) incenti-
var os leitores a darem testemunho corajoso em meio a incrédulos hostis, 235
1PEDRO
à semelhança do que fez Noé; (2) tranquilizá-los com a certeza de que, emh ora sejam poucos, Deus os salvará; (3) lemb rar-lhes da certeza do ju ízo final e da vitória definitiva de Cristo sobre todas as forças do mal que se opõem a eles. Assim interpretada, essa passagem pode também encher com a mesm a coragem os leitores de Pedro nos dias de hoj e.28
28Depo is de c oncl uir este Apêndice, obtive u ma cópia d o art igo de Jo hn S. Feinberg, “1 Peter 3:18-20, ancient mythology, and the intermediate state”,
W TJ
48 (1986), p.
303-36. Estou satisfeito por ver que o Dr. Feinberg e eu, trabalhando em completa independência e empregando métodos bem diferentes de tratar desse texto, chegamos a conclusões muito parecidas. Os argumentos dele nas p. 327-36 são bem convincentes quando mostram várias dificuldades contextuais e teológicas ainda não solucionadas enfrentadas por qualquer posição que defenda um a “prega ção de co nden ação”, seja a seres
humanos, seja a anjos (terceira e quinta posições acima). 236
A carta de 1Pedro aos “eleitos peregrinos da Dispersão” trata de vários temas: santidade, os sofrimentos de Cristo, o sofrimento do cristão, a soberania de Deus na salvação, a graça de Deus, a obra do Espírito Santo, a igreja como novo povo de Deus, a realidade do mundo espiritu que nãovemos ea confiança em De us em meio às circunstâncias do dia a dia. É o sofrimento, como mostra Wayne Grudem, que costura esses temas aparentemente desconexos, sobretudo o sofrimento como forma de imitação de Cristo, o qual, ao levar nossos pecados na cruz, dá sen e consolo aos cristãos em todos os aspectos da vida. 0 Comentário bíblico de 1Pedro é um recurso confiável para o estudo dessa do Novo eTestamento foi projetado para ajudar o leitorimportante a entendercarta o significado o ensino dee 1Pedro. Wayne Grudem oferece explicações claras, confiáveis e relevantes para o seu estudo. A introdução oferece dados sucintos mas completos sobre a autoria, a data e os antecedentes históricos da carta de Pedro. 0 comentário examina o texto seção por seção, extraindo seus temas principais. Além disso, comenta quase todos os versículos da carta separadamente e lida com
problemas Oobjetivo clara geral aos é chegar aode verdadeiro sentido de 1Pedro interpretativos. e tornar sua mensagem leitores hoje.
Wayne Gr udem é prof essorpesqui sador deTeologi a e Bíblia pelo Phoenix Seminary,noArizona. Foi professor tular ti do depa rtamentodeTeologia Bíbl ica e Sistemática da Trinity Evangelical Divinity School durante vi nte anos. Égraduado em Harvard,mestre emteologia pelo W estminster Theologi cal Seminary e doutor pela Un iversidade de Cambridge. Éautor de Teologia sistemática. Entenda a fé cristã, Política segundo a Bíblia, Economia e política na cosmovisão cristã e A pobreza das nações, publicadospor V ida Nova.
□·
VIDA NOVA
vi danova.c om.br