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Curso Online de Filosofia OLAVO DE CARVALHO
Resumos de Aulas Vol. II Elaborado por Mário Chainho
Índice Aula 06 – 02/05/2009 (Especial Eric Voegelin) Aula 07 – 16/05/2009 Aula 08 – 23/05/2009 Aula 09 – 06/06/2009 Aula 10 – 13/06/2009
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Notas: 1) Este material é para uso exclusivo dos alunos do Curso Online de Filosofia. Estes devem sempre recorrer às gravações e transcrições das aulas, como fontes primárias, para limitar a propagação dos erros involuntários aqui contidos e colmatar as lacunas. 2) Os resumos foram escritos em português de Portugal.
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Aula 06 – 02/05/2009 (Especial Eric Voegelin) Sinopse:
Eric Vogelin procurou responder às questões fundamentais que se levantavam no seu tempo. Investigou a natureza dos movimentos de massas, o que o levou a iniciar linhas de estudo que não tinham paralelo. A sua metodologia recorria apenas a documentos auto-expressivos escritos em linguagem teorética, o que lhe permitia descobrir linhas de significado. Voegelin escreveu livros sobre a mente americana, a ideia de raça, as “religiões políticas” e um manual sobre a história das ideias políticas que foi abandonado, após a elaboração de 8 volumes, por ter percebido que não havia continuidade nas doutrinas. Iniciou, então, a sua grande obra, Order and History, uma história sobre os modelos de ordem, que era o terreno comum que ele tinha detectado nos seus anteriores trabalhos. Examinou primeiro as civilizações cosmológicas do oriente, que identificavam a ordem social com a ordem cósmica, e extraiam dessa ordem a sua representação existencial. A revelação hebraica vai consistir num primeiro salto no ser , , que introduz uma dimensão histórica e uma existência face a Deus, que é mediada pelo profeta, que começa por colocar ordem na sua alma, de acordo com a ordem divina, e depois é obedecido pela comunidade, que assim atesta o seu maior ou menor grau de fidelidade à recordação da intervenção divina. Um segundo salto no ser ocorreu com o nascimento da filosofia na Grécia, onde se vai tentar apreender algo da ordem divina, as leis não escritas, por meios noéticos. A revelação hebraica e a filosofia grega vão combinar-se no cristianismo mas já ao nível do indivíduo. O modelo de ordem da modernidade, para Voegelin, é caracterizado pela perda da existência face a Deus e por um conteúdo efectivo dado pelas seitas gnósticas. Voegelin não conseguiu dispor os vários modelos de ordem em sequência, como imaginara, pois estes apareciam simultaneamente em vários locais e até no mesmo local, e daí ele vai afirmar que a ordem da História é a história da ordem. Afasta-se assim definitivamente das concepções simplistas que modulam a História como se fosse uma biografia humana e lhe determinam um sentido e um fim, como aconteceu com Compte e Marx. Nos movimentos revolucionários de massas vão confluir duas linhas, a gnóstica e a messiânica, que Voegelin chamava de apocalíptica e não tinha no início considerado. Os movimentos messiânicos surgem do escândalo face à corrupção da Igreja, e da descrença da possibilidade da ordem ord em poder ser restaurada. r estaurada. Estes movimentos movime ntos vão manifestar-se ma nifestar-se na reforma protestante, onde irão aparecer alguns elementos característicos das ideologias de massas, nomeadamente em Calvino, que vai criar a militância, a propaganda e a noção de Estado totalitário, e com Thomas Cramer, Cramer , um precursor de António Gramsci, que criou a estratégia das mudanças graduais. Mais tarde estes movimentos infundem-se de gnosticismo e ocultismo e vão aparecer com um carácter radicalmente anticristão. Saber como isso aconteceu não podia ter sido feito por Eric Voegelin devido ao método por ele usado, já que os acontecimentos deram-se no seio de sociedades secretas ou discretas. Esta é uma primeira linha de investigação aberta que deve ser respondida. Outra linha de investigação prende-se como Islão e a necessidade de elaborar uma filosofia cristã da História. Eric Voegelin não se debruçou o suficiente sobre o Islão para perceber que se tratava de uma civilização eminentemente histórica, com uma filosofia da História pronta desde o início, algo
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Aula 06 – 02/05/2009 (Especial Eric Voegelin) Sinopse:
Eric Vogelin procurou responder às questões fundamentais que se levantavam no seu tempo. Investigou a natureza dos movimentos de massas, o que o levou a iniciar linhas de estudo que não tinham paralelo. A sua metodologia recorria apenas a documentos auto-expressivos escritos em linguagem teorética, o que lhe permitia descobrir linhas de significado. Voegelin escreveu livros sobre a mente americana, a ideia de raça, as “religiões políticas” e um manual sobre a história das ideias políticas que foi abandonado, após a elaboração de 8 volumes, por ter percebido que não havia continuidade nas doutrinas. Iniciou, então, a sua grande obra, Order and History, uma história sobre os modelos de ordem, que era o terreno comum que ele tinha detectado nos seus anteriores trabalhos. Examinou primeiro as civilizações cosmológicas do oriente, que identificavam a ordem social com a ordem cósmica, e extraiam dessa ordem a sua representação existencial. A revelação hebraica vai consistir num primeiro salto no ser , , que introduz uma dimensão histórica e uma existência face a Deus, que é mediada pelo profeta, que começa por colocar ordem na sua alma, de acordo com a ordem divina, e depois é obedecido pela comunidade, que assim atesta o seu maior ou menor grau de fidelidade à recordação da intervenção divina. Um segundo salto no ser ocorreu com o nascimento da filosofia na Grécia, onde se vai tentar apreender algo da ordem divina, as leis não escritas, por meios noéticos. A revelação hebraica e a filosofia grega vão combinar-se no cristianismo mas já ao nível do indivíduo. O modelo de ordem da modernidade, para Voegelin, é caracterizado pela perda da existência face a Deus e por um conteúdo efectivo dado pelas seitas gnósticas. Voegelin não conseguiu dispor os vários modelos de ordem em sequência, como imaginara, pois estes apareciam simultaneamente em vários locais e até no mesmo local, e daí ele vai afirmar que a ordem da História é a história da ordem. Afasta-se assim definitivamente das concepções simplistas que modulam a História como se fosse uma biografia humana e lhe determinam um sentido e um fim, como aconteceu com Compte e Marx. Nos movimentos revolucionários de massas vão confluir duas linhas, a gnóstica e a messiânica, que Voegelin chamava de apocalíptica e não tinha no início considerado. Os movimentos messiânicos surgem do escândalo face à corrupção da Igreja, e da descrença da possibilidade da ordem ord em poder ser restaurada. r estaurada. Estes movimentos movime ntos vão manifestar-se ma nifestar-se na reforma protestante, onde irão aparecer alguns elementos característicos das ideologias de massas, nomeadamente em Calvino, que vai criar a militância, a propaganda e a noção de Estado totalitário, e com Thomas Cramer, Cramer , um precursor de António Gramsci, que criou a estratégia das mudanças graduais. Mais tarde estes movimentos infundem-se de gnosticismo e ocultismo e vão aparecer com um carácter radicalmente anticristão. Saber como isso aconteceu não podia ter sido feito por Eric Voegelin devido ao método por ele usado, já que os acontecimentos deram-se no seio de sociedades secretas ou discretas. Esta é uma primeira linha de investigação aberta que deve ser respondida. Outra linha de investigação prende-se como Islão e a necessidade de elaborar uma filosofia cristã da História. Eric Voegelin não se debruçou o suficiente sobre o Islão para perceber que se tratava de uma civilização eminentemente histórica, com uma filosofia da História pronta desde o início, algo
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que ainda falta ao cristianismo. Por último, falta ainda desenvolver uma ciência, não nos moldes da ciência moderna, que possa estudar os milagres, pois estes são a intervenção de Deus na História e a força de expansão do cristianismo.
Primeiros trabalhos: metodologia e campo de estudos Eric Voegelin teve o privilégio de frequentar a Universidade de Viena, nas décadas de 20 e 30 do século XX, quando esta instituição tinha intelectuais de alto gabarito, que lhe ajudaram a definir metodologias e o campo de estudo. Seguindo a boa tradição filosófica, as suas áreas de interesse intelectual visaram sempre responder aos maiores fenómenos sociais da sua época, obrigando-o a iniciar linhas de estudo que não tinham paralelo e a ter que interromper essas linhas para iniciar outras que lhe pudessem dar uma maior proximidade à verdade dos acontecimentos. Os primeiros trabalhos de Eric Voegelin procuraram definir o campo de estudos das ciências sociais e saber se a própria sociedade existia ou se existiam apenas os seus elementos. Ele acabou por delimitar o campo da sociologia como aquele que estuda a tensão entre o indivíduo e a sociedade. Hans Kelsen e Othmar Span foram duas influências contrastantes que marcaram a sua formação e o levaram directamente a estas investigações. Hans Kelsen foi o criador da Teoria Pura do Direito, procurando responder a uma necessidade de delimitar o direito como ciência autónoma (pura). Ele acabou por definir o campo jurídico como contendo apenas a estrutura formal da lógica normativa, onde não entravam nem os valores nem as ideias políticas. Já Othmar Span, na sociologia, fez um esforço de concepção de uma visão holística da sociedade, onde a independência das partes ficaria submetida ao todo. Após o seu doutoramento, Eric Voegelin vai para os Estados Unidos, como bolseiro da fundação Rockefeller, estudar o caso concreto americano, de onde resulta o livro On the Form of the American Mind (segundo o índice das The Collected Works of Eric Voegelin, publicação da “University of Missouri Press”, que será aqui utilizado como referência bibliográfica). Ele vai supor que existe mesmo uma sociedade americana com uma unidade, não apenas o aglomerado de grupos e indivíduos, sem que essa sociedade chegue a ser uma substância no sentido aristotélico. Eric Voegelin começou aqui a desenvolver uma metodologia de estudo que iria utilizar muitas vezes. Por um lado, ele recorreu a uma medida simplificadora em relação às suas fontes, recorrendo apenas a documentos auto-expressivos escritos em linguagem teorética, ou seja, no caso concreto da mentalidade americana Voegelin vai tentar apanhar a sua unidade a partir das interpretações dos próprios agentes históricos envolvidos, identificando uma unidade no diálogo e, assim, uma unidade na mentalidade. A utilização dos factos brutos tornaria o estudo de uma dimensão incomportável, além de não serem documentos auto-expressivos. As obras literárias também não são utilizadas por carecerem de linguagem teorética. Eric Voegelin terá sido inspirado nesta metodologia, presumivelmente, por Aristóteles quando este diz que a dialéctica nunca parte do exame dos factos em bruto mas do exame das opiniões dos sábios, ou seja, uma síntese de nível superior é elaborada a partir de sínteses parciais. Esta metodologia teve também a influência do historiador Eduard Meyer, com quem Voegelin teve contacto em Berlim. Eduard Meyer defendia que a
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interpretação dos factos históricos tinha de partir da auto-interpretação feita pelos agentes, desde que elaborada em linguagem teorética. Este método utilizado por Eric Voegelin tem algumas limitações, como veremos, mas permitiu identificar linhas de significado pelo constante retorno das mesmas questões ao longo dos séculos, podendo mesmo falar-se de uma continuidade ao longo do processo mental. Outra parte do método utilizado por Eric Voegelin, já dentro da análise dos documentos, teve a influência de Paul Friedlander, especialista em Platão, com quem ele tinha mantido contacto em Viena. Friedlander queria tratar da história das pessoas reais, que tinham elaborado as concepções filosóficas, retirando da linguagem abstracta o fundo de experiência que as tinha desencadeado. Motivado pela situação vivida no início da década de 30, Voegelin escreveu dois livros sobre a ideia de raça ( Race and State e The History of the Race Idea: From Ray to Carus). Com a sua metodologia, ele vai descobrir que a doutrina racista deriva da cultura iluminista e não podia ter sido constituída sem o conceito biológico de raça. Até ao século XVIII o conceito de raça era usado no sentido cultural e religioso. A doutrina racista é um longo processo de falsificações que tem um propósito de autoidentificação ideológico, e nada diz sobre a raça do outro grupo ou do nosso. A perseguição que Eric Voegelin sofreu pelos nazis devido aos seus livros sobre raça levou-o a se interessar ainda mais pelos fenómenos de massas e, em 1938, ano do seu exílio para os Estados Unidos, publicou o livro Political Religions (The Collected Works of Eric Voegelin, 5.º volume, em conjunto com os livros The New Science of Politics e Science, Politics, and Gnosticism). Voegelin tinha vindo a se interessar por autores tomistas e neotomistas, como Hans Urs von Balthazar e Henri de Lubac, que o despertaram para as ligações das ideologias de massas às heresias gnósticas. Henri de Lubac mostra no livro O Drama do Humanismo Ateu que a figura de Cristo não era simplesmente rejeitada por certas escolas de pensamento, o que levaria a uma rejeição, mas sim motivo de inveja, o que levaria a querer tomar o seu lugar. A ideia de Voegelin no livro Political Religions era mostrar que algumas ideologias políticas eram religiões substitutivas. Sendo possível fazer uma analogia, ele percebeu que isso não era um princípio explicativo suficiente. Depois Voegelin foi contratado para fazer um manual com a história das ideias políticas, em três volumes. Mas já ia no oitavo volume quando percebeu que havia algo de errado. Uma história deste género pressuponha uma continuidade das ideias políticas e das doutrinas, o que não se verificava. Ele percebeu que as próprias doutrinas tinham que ser encaradas como documentos auto-expressivos, mas isso iria alterar tanto o projecto que ele simplesmente abandonou-o e começou algo novo, a sua obra principal, Order and History.
Civilizações cosmológicas e a representação Em Order and History, Voegelin vai elaborar uma história dos modelos de ordem, que lhe pareceu ser o terreno comum que tinha aparecido nos seus anteriores trabalhos. Estes modelos de ordem foram identificados pelos próprios intervenientes no processo histórico e depois utilizados para estruturar a vida humana. As primeiras civilizações abordadas foram as do oriente, China, Índia e Egipto, tendo Voegelin saltado por cima
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das culturas tribais por estas não terem fornecido documentos auto-expressivos como era requerido pelo método por ele utilizado. Estas civilizações orientais desenvolveram aquilo a que Voegelin chamava de sociedades cosmológicas. Os teóricos destas civilizações não defendiam apenas uma aproximação do modelo da sociedade à ordem cósmica, eram bem mais radicais e acreditavam que a sua sociedade já fazia parte dessa ordem e era um elemento que servia para preservá-la. Rituais não cumpridos pelo imperador da China poderiam causar não só desordem social mas cataclismos naturais, acreditava-se. Isto introduziu uma visão unitária e fechada do mundo, que condenava à inexistência quem não estivesse integrado na sociedade. A existência de outras ordens era motivo de crise. As outras ordens eram consideradas ilegítimas e representavam o caos. No livro The New Science of Politics (The Collected Works of Eric Voegelin , 5.º volume) surge a ideia de que a ordem vigente representa o povo. Não se trata de uma representação política mas existencial, em que a ordem fornece à sociedade, retroactivamente, o critério para distinguir o certo do errado, o verdadeiro do falso. Numa civilização cosmológica, onde a verdade como um todo é a ordem social, indistinta da ordem cósmica, nada fora dessa ordem pode ser considerado legítimo ou verdadeiro e a própria existência de outras ordens era um escândalo e uma ameaça. Esta tensão era eliminada quando os impérios, como nos casos do Egipto e de Roma, invadiam terrenos vizinhos e absorviam elementos dessas culturas, fazendo rearranjos simbólicos entre as ordens parciais, o que permitia manter a ordem global.
A revelação hebraica e a inauguração da dimensão histórica na humanidade A revelação hebraica surge numa envolvente hostil dominada por grandes civilizações cósmicas que se viam a si mesmas como o centro do mundo, sendo tudo o resto uma periferia anormal e provisória. Esta nova ordem constituiu-se pela abertura de alguns indivíduos para uma ordem supra-cósmica, transcendente. A sociedade já não era ordenada directamente mas através dos profetas, que construíam primeiro a sua ordem interna e se tornavam juízes e reordenadores da sociedade. Esta ordem divina era superior à ordem cósmica, mas não tinha a estabilidade desta e vivia em permanente crise pois dependia da obediência do profeta a Deus e de que a sociedade se deixasse guiar pelo profeta. A relação entre Deus e o profeta é subtil. A revelação é gradual e pode ser incompreendida, e pode ainda existir infidelidade. A fidelidade do profeta à revelação não é uma mera compreensão mental, aquilo tem que se transformar num novo modo de existência e ele vai ter de incorporar essa ordem em si pois a revelação já não está mais presente, ao contrário da ordem cósmica, com uma presença sempre evidente no movimento dos astros e na sequência das estações. A nova ordem era mais exigente e subtil, aconteciam muitos percalços e episódios onde se evidenciava a tentação de voltar à ordem anterior, que sobrevivia sempre em resquícios. Sendo a revelação gradual e o processo de transmissão à sociedade complexo, mediado pelo profeta, a nova ordem teve uma implementação gradual. Isto é a inauguração da dimensão histórica na humanidade, marcada pela incerteza, pela dependência do elo frágil da fidelidade à recordação da revelação e onde o esquecimento de Deus é frequente, ao ponto de se tornar em tema recorrente na
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literatura universal. A nova dimensão inaugurada, segundo Voegelin no Êxodo para o Egipto, é a vida na incerteza histórica, onde não há um término pré-determinado e apenas umas promessas vagas de Deus a serem cumpridas em data incerta e por meios imprevisíveis.
Um novo Salto no Ser com o nascimento da filosofia na Grécia Quase ao mesmo tempo que ocorria a revelação hebraica, na Grécia nascia a filosofia, constituindo um segundo salto para dentro do ser . Estes saltos são novas dimensões para a consciência humana, onde antes apenas existiam vestígios. Os indivíduos das civilizações cosmológicas não chegavam ter consciência da sua existência histórica. Essa consciência de uma existência histórica apareceu em Israel, e implicava um dever em cumprir uma missão, sem garantias de isso ser possível nem o conhecimento dos meios a ser utilizados. Sendo a relação da fé muito mais legítima e profunda que a confiança total na ordem cosmológica fechada, não podemos dizer que anteriormente se vivia no erro total. As civilizações cosmológicas mais importantes duraram milénios e não podiam ter se baseado num conhecimento totalmente errado para obter esta longevidade. Só recentemente se tentou recuperar este conhecimento a partir dos seus próprios termos, com todas as dificuldades inerentes aos trabalhos pioneiros, em trabalhos como Temple de l’Homme e Le Miracle Egipcian, de Schwaller de Lubicz e Serpent in the Sky, de John Anthony West. Nem todos os elementos da ordem cosmológica foram eliminados, mantendo-se na própria cultura cristã na forma de ocultismo e esoterismo. O que as novas ordens vieram acrescentar foi uma percepção mais fina quando antes as coisas eram nebulosas e vistas de forma simbólica. O salto no ser ocorrido no mundo helénico, apesar de ter se dado por meios diferentes, teve um teor idêntico ao da revelação hebraica. A filosofia era também uma abertura à ordem divina, da qual se tentava descobrir alguma coisa através da razão ou logos. Essa ordem evidenciava-se nas leis não escritas, que se encontravam para além da ordem social ou cósmica. Um exemplo de uma lei não escrita, retirado da Antígona de Sófocles, é que não é decente recusar uma sepultura a um morto, o que se sobrepõe a um costume social de repudiar uma pessoa quando ela ter lutou por uma nação estrangeira. Inicialmente a razão não significava pensamento lógico, já que a própria lógica não havia sido criada. Para Eric Voegelin, a razão é a simples tendência da inteligência humana ir em direcção ao fundamento, que é a ordem divina. A lógica limita-se a absorver e desenvolver princípios universais provindos da ordem divina, que não dependem do próprio cosmos, como o princípio de identidade enunciado por Aristóteles. Quando os pré-socráticos tentaram descobrir o elemento fundamental da natureza, o que realmente procuravam era um factor transcendente estruturante de todo o cosmos. Era uma busca de uma intuição da ordem divina supra-cósmica, mas ainda estavam presos à linguagem cósmica porque faziam as primeiras aproximações a uma nova dimensão. Tanto no desenvolvimento da filosofia como na construção da lei hebraica há a necessidade de desenvolver meios expressivos adequados para a comunidade poder compreender e absorver a nova ordem. Ambos os saltos no ser têm a sua substância na ordem divina, mas diferem nos meios. A revelação hebraica é de ordem neumática, relativa ao espírito que inspira o profeta.
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A filosofia grega é de ordem noética, puramente cognitiva, mas os primeiros filósofos acabam por ter a estatura de profetas devido ao papel que desempenharam e à própria inspiração que acabou por ser também divina. Antes destes saltos no ser os homens não tinham consciência, eram como bonecos nas mãos de ventríloquos – os deuses cósmicos –, como alude Julian Jaynes no livro A origem da consciência na ruptura da mente bicameral. A dimensão histórica é uma dialéctica entre ordem e desordem; o homem está numa fronteira entre o finito e o infinito; a sua existência é a tensão do finito em relação ao infinito, uma tensão que nunca se acalma ou pode ser satisfeita. Não existe esta tensão na ordem cosmológica, que é estática e fechada. Os elementos de desordem tinham que ser explicados como fazendo parte intrínseca da própria ordem e por isso os deuses deles também eram meio demónios. A ideia de que a condição humana é a existência numa rede de tensões, a que Platão chamava metaxis, é um dos patamares da filosofia, os quais constituem a sua história como se degraus fossem que não podiam mais ser ignorados. O mecanicismo introduzido por Newton é um retrocesso, que apareceu como a restauração da ordem cósmica, e só no século XX o elemento tensional voltou a ser reintroduzido com o indeterminismo e a mecânica quântica. Começaram a proliferar os estudos sobre o caos, mas na verdade, nem caos nem ordem existem, apenas uma tensão entre ambos. Vão fundir-se no cristianismo os dois saltos no ser ocorridos no mundo hebraico e no mundo helénico, agora já ao nível da dimensão da vida de cada indivíduo. Cada indivíduo em particular, e não apenas a comunidade, vive na tensão histórica perante Deus. Existe aqui um nível cognitivo superior nesta descoberta de se ver a si mesma como uma civilização histórica, quando as outras ainda permaneciam de algum modo presas às concepções cíclicas anteriores. Para além do cristianismo, apenas o islamismo tem também esta concepção histórica de si mesmo.
O gnosticismo como modelo de ordem da modernidade Eric Voegelin questionou-se depois sobre o modelo de ordem da modernidade. A modernidade caracteriza-se pela perda de uma existência diante de Deus, mas o seu conteúdo efectivo, para Voegelin, tinha sido dado pelas seitas gnósticas. Ele achava que o modelo de ordem fundado na revelação hebraica e na razão grega era demasiado exigente e enervante, dependendo de uma contínua transmissão de geração para geração, por meios essencialmente discursivos e onde apenas alguns rituais poderiam dar alguma vivência da recordação original. Basta um pequeno enfraquecimento nessa transmissão e as pessoas vão logo procurar modos de existência anteriores que lhes dêem maiores certezas e estabilidade. Mas isso é impossível porque nem as civilizações cósmicas, nem o mundo greco-romano existem mais. O que subsistiu desse mundo antigo desaparecido são apenas resíduos, que se misturaram com elementos novos e se combinaram em fórmulas saídas da própria Igreja, originando comunidades heréticas, onde a principal era a gnóstica. O que há de comum na enorme quantidade de teorias gnósticas é a experiência do terror, do caos e da desordem. Esta experiência não é atenuada pela fé, pois os gnósticos já não têm a recordação da revelação diante deles; perderam a fé. A própria noção do que é a fé mudou totalmente de sentido e passou a ser a crença numa doutrina. A doutrina é apenas um elemento discursivo que tenta explicar por meios racionais os acontecimentos relatados. A fé
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significava anteriormente a fidelidade à recordação desses acontecimentos mas, originalmente, era a confiança numa presença, que podia ser a presença de Deus quando Moisés recebeu as tábuas da lei a Moisés, ou na divindade de Cristo realizando milagres. Os milagres foram se repetindo ao longo da História e nem tudo dependeu da recordação dos eventos primordiais. Mas quando já não há presença divina nem a sua recordação, restava apenas a doutrina que, por ser um discurso, sujeita-se a uma dialéctica que faz aparecer a sua negação e dá origem a uma discussão que se afasta cada vez mais dos factos originários, que eram os elementos realmente estruturantes da ordem. O gnosticismo é uma experiência do caos que tenta ser resolvida pelo domínio intelectual completo da situação e daí proclama uma ordem total, que é apenas hipotética e o indivíduo acaba por ficar ainda mais desesperado. As variantes do gnosticismo que apareceram traduzem este choque entre ordem hipotética e desordem real. As variantes “evasionistas” querem apenas sair deste mundo e ir para um mundo espiritual onde vigora a ordem e a paz. Mas também surgiram variantes activistas que projectam essa ordem ideal no futuro, e daí surge o ímpeto de criar um mundo melhor.
A ordem da História é a história da ordem Eric Voegelin imaginou que podia dispor os modelos de ordem ao longo da História para que a própria sequência fosse a ordem da História. Mas os vários modelos ocorriam em vários lugares e por vezes no mesmo lugar simultaneamente, e daí ele formulou a sua sentença final de que a ordem da História é a história da ordem. Nada mais existiria que uma sequência de buscas de ordem. Afastou-se assim definitivamente das visões simplistas que tentam encontrar um fio condutor na História que permitiria conhecer o seu percurso pré-determinado, como no caso de Compte, que preconizava uma sequência de três ordens (mítica, metafísica e positiva), ou da sequência inevitável apontada por Marx (comunidade primitiva, feudalismo, capitalismo e socialismo). Estas filosofias da História são falsas na base porque tentam ver desde fora a História como um objecto. Esta ordem que eles projectam na História é apenas a ordem por eles concebida, que não passa de um novo capítulo na história da ordem que não tem término pré-determinado nem sabemos onde vai dar. A História não pode ser vista como a vida de um indivíduo, que tem uma duração expectável. A História não tem um fim pré-determinado que possa ser conhecido por nós. O impulso de querer conhecer o fim da História não se iniciou com o gnosticismo mas nas primeiras gerações de cristãos que interpretaram mal o que S. Paulo quis dizer ao afirmar que a vinda do Cristo era iminente. Isso era para ser interpretado em termos da história individual de cada um, que iria ser confrontada com o Juízo Final “após” a morte. Mas foi entendido como um desígnio colectivo e histórico e, mesmo tendo sido reunido um concílio para explicar o assunto, permaneceu sempre a ambiguidade. Por outro lado, os saltos no ser ocorridos na Grécia e em Israel transferiram a identificação da sociedade, anteriormente com o cosmos, para a alma do profeta. Daí foi um passo para ver a História como a vida de um ser humano, porque a comunidade se identificava com o profeta. Santo Agostinho tentou colocar ordem nesta confusão ao afirmar que não existia uma História mas duas, a História terrestre e a História da salvação. A História terrestre não tinha um sentido definido muito menos um término pré-estabelecido, ao contrário da História da salvação que terminava com o Juízo
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Final. A própria Igreja tinha a sua História terrestre, caótica, e a sua História espiritual, que só poderia realizar-se na eternidade, já fora da dimensão temporal. Apesar da explicação de Agostinho, muitos continuaram a ver a História como a biografia de um indivíduo.
A formação dos movimentos de massas modernos Os movimentos de massas modernos tiveram origem em duas linhas, a gnóstica e a messiânica, a que Voegelin chamava de apocalíptica. Os movimentos messiânicos que se iniciaram no século XVI não tinham inspiração gnóstica, não surgiram de um desespero mas do escândalo face à decadência e corrupção da Igreja, sobretudo quando o papado de deslocou para Avignon. Os líderes messiânicos deixaram de acreditar que fosse possível restaurar a ordem a partir do interior da Igreja e decidiram fazer o trabalho no lugar do Cristo, como que forçando a sua segunda vinda, impondo a ordem a ferro e fogo. Nas reformas protestantes surgiram alguns elementos das ideologias de massas. O messianismo entrou sobretudo do final do luteranismo, na Suíça, com as reformas de Zuínglio e Calvino e, na Inglaterra, com a reforma de Thomas Cramer. Calvino criou a noção de um estado totalitário, que tudo controla na sociedade. Para ele não existia vida privada e tudo podia ser denunciado na vida pública. Criou também a militância, as manifestações, a propaganda e também a noção de actividade política capaz de animar um movimento para derrubar um poder e o substituir por outro. A reforma em Inglaterra não prometia ser uma ruptura em relação à substância, mas uma disputa de poder, onde o rei Henrique VIII se declarou ser chefe da Igreja no seu território mas ainda permanecia católico. As ideias mais radicais apareceram depois da sua morte, mas surgiram de forma gradual, primeiro com alterações no ritual da missa. Esta estratégia das pequenas mudanças, que ao longo do tempo provocam grandes alterações sem que as pessoas se apercebessem, mostra que António Gramsci teve um percursor em Thomas Cramer. Apenas quando restavam algumas comunidades resistentes, a Reforma investiu sobre estas e matou mais de 40 mil pessoas, mais que o resultado de quatro séculos de Inquisição. No século XVIII as várias reformas já haviam fracassado no objectivo de criar uma igreja melhor e a Igreja católica não tinha conseguido restaurar a sua autoridade. Os movimentos revolucionários, de origem messiânica, perderam a sua substância cristã e caíram no patamar menos diferenciado e que estivesse ao alcance, que era o gnosticismo (teoria do professor Olavo). Esta incorporação de ideias gnósticas nos movimentos revolucionários não podia ser explicada por Eric Voegelin porque a documentação que ele exigia não existia devido à natureza oculta dos movimentos, e é algo que ainda está por ser esclarecido. Inicialmente Voegelin só considerou relevante o elemento gnóstico, mas mais para o fim da vida perceberia que também existia o elemento messiânico, mas não conseguiu esclarecer a relação. Voegelin deixou várias linhas abertas para a investigação, pois a sua vida intelectual é um imenso programa de estudos para várias gerações.
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A continuação dos estudos de Eric Voegelin Das várias linhas de investigação que Eric Voegelin deixou em aberto, a que tem primazia será saber como foi que os movimentos messiânicos absorveram o gnosticismo e se tornaram anticristãos. No século XVIII ocorreu uma infusão de gnosticismo e ocultismo nos movimentos messiânicos e no século seguinte esses movimentos já eram radicalmente anticristãos. Para descobrir como isso ocorreu não é possível seguir o método de Eric Voegelin porque não existem análises teóricas dos próprios agentes do processo. Pelo contrário, eles não tinham qualquer interesse em explicar as ocorrências pois estas deram-se no seio de sociedades secretas ou discretas. Apenas se assiste ao resultado final mas não se sabe onde está o agente. Para interpretar este tipo de situações é necessário utilizar métodos mais próximos da psicopatologia do que da análise histórica cultural ou ideológica. Uma segunda questão por esclarecer prende-se com o Islão, que Eric Voegelin não chegou a tomar em conta como sendo também uma civilização histórica com uma existência diante de Deus. Para ele apenas a civilização ocidental tinha atingido esse patamar de consciência. Depois da descoberta da visão da eternidade, o mundo cosmológico passa a ser o inferno, onde o indivíduo está à mercê dos demónios. A realidade humana é muito melhor expressa pela tensão entre História e Eternidade, onde a incerteza é contrabalançada pela caridade e pela fé, a fidelidade a uma recordação, que não dá o plano dos acontecimentos mas indica o próximo passo a seguir. Mas o Islão veio trazer também uma existência diante de Deus e é eminentemente uma civilização histórica, que engloba Jesus Cristo e as revelações anteriores, culminando no Juízo Final. O ingresso do indivíduo no Islão é progressivo, há uma imitação da vida do profeta que recebeu a revelação ao longo de 28 anos. A islamização da pessoa é feita com o auxílio de duas narrativas, a do Corão e a da vida do profeta, que consta em 40 mil ahadith. Esta islamização progressiva mas total do indivíduo seria idêntica ao que prevê a história do Islão, onde no culminar do Juízo Final já não restariam processos de vida por islamizar. Então, o Islão tem este elemento totalitário, de regulação completa da sociedade, característico das civilizações cosmológicas, com a diferença de o encarar como um processo dinâmico. Eric Voegelin percebeu que a incapacidade da Igreja em formular uma filosofia da História levou a que os movimentos de massas tomassem a iniciativa e fossem incorporados na sociedade. Mas quando as ideologias de massas pareciam dominar o mundo, o Islão apareceu na disputa, restando saber quem levará a melhor. Para o Islão, os movimentos de massas são um dos aspectos da decomposição do ocidente. Efectivamente, esses movimentos são apenas efectivos na destruição da civilização e não têm qualquer força organizativa, e quem pode aproveitar os destroços é o Islão, que tem os meios para isso porque desenvolveu uma filosofia da História. Uma terceira lacuna nos estudos de Eric Voegelin é a ausência de Deus como personagem histórica. O seu método apenas podia examinar as aberturas para Ele, mas não ver Deus como agente. Para isso era necessário ver não as aberturas do homem para Deus mas as intervenções directas de Deus na História através dos milagres. Eric Voegelin trabalhou no cenário das ciências físicas e estas não podem estudar os milagres. A ciência moderna só lida com fenómenos recortados segundo uma hipótese prévia. Para resultar, só pode estudar os fenómenos que efectivamente são regidos pela
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uniformidade posta como hipótese, o que implica que ela só possa estudar aspectos e não fenómenos concretos. Mas no fenómeno miraculoso confluem factores heterogéneos inseparáveis. O milagre é eminentemente concreto, não pode ser enquadrado dentro de nenhuma das classificações admitidas pela ciência. Inevitavelmente, o método determina o alcance do que se pode estudar, algo que Voegelin criticava mas acabou por cair na mesma limitação. Ele não chegou a colocar em cima da mesa o problema da existência objectiva de Deus, também por influência de William James, quando este dizia que o sujeito e o objecto não existiam separadamente e se auto-constituem e distinguem no próprio processo da relação. Então considera-se que Deus é apenas é um objecto alcançado no salto no ser , por meios neumáticos ou noéticos e apenas se terá em conta aquilo que os homens apreenderam sobre Deus. Voegelin definiu a quaternidade da ordem do real como Deus, o homem, o mundo e a sociedade. O Mundo, a sociedade e o homem são, na perspectiva da revelação cristã, apenas a criação, finitos e irrisórios face a Deus. Esta quaternidade só existe na escala da História humana, sendo um cenário que exclui uma multidão de fenómenos que nós sabemos ser reais, a começar pelos milagres. Voegelin chegou à limitação natural do método, mas quando percebeu isso estava velho demais para continuar, mas não fez como Kant, que caiu na idolatria do método e definia o objecto de acordo com o método. A expansão islâmica não se baseia na intervenção divina, como no cristianismo, mas na acção política e social, usando os meios mais banais, frequentemente desonestos, e com grande investimento de dinheiro, tudo baseado numa grande auto-consciência colectiva numa forma de existência histórica diante de Deus. Já a civilização cristã não poderá ignorar a acção divina ou irá cai na fé metastática, que é uma expectativa, meio messiânica, meio gnóstica, de poder transformar totalmente a sociedade mediante um acto de fé. Esta expectativa é característica das ideologias de massas e vai contra a estrutura da realidade, que pode apenas ser transfigurada por Deus e não pela fé. Deus pode nos salvar mesmo se não tivermos fé, como aconteceu com S. Paulo, mas é uma heresia pensar que Deus pode agir em nosso lugar e não connosco.
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Aula 07 – 16/05/2009 Sinopse: O
ser humano vive num sistema de virtualidades e estaria reduzido a um estado de quase inconsciência se a sua existência estivesse limitada aos estímulos sensoriais. A rede de virtualidades desenvolve-se através da linguagem, que permite que coisas que não estão mais presentes se possam efectivar. Mas o crescimento da linguagem pode não acompanhar o desenvolvimento do mundo virtual e a pessoa cria uma auto-imagem muito simplista. O descompasso entre a linguagem e experiência devia ser colmatado pela educação, que começaria por fornecer os meios de expressão linguísticos. Nesse âmbito iremos começar por imitar os grandes escritores de língua portuguesa para absorver os seus recursos linguísticos e aprender a modular o nosso tom expressivo. A passagem da literatura para a filosofia, entrando no reino da dialéctica, faz-se através da retórica, que medeia toda a sociedade humana. Por isso a filosofia é uma actividade para pessoas maduras, cidadãos habituados a fazer escolhas e com poder de persuasão baseado no conhecimentos dos valores que é suposto os outros possuírem. Só podemos conhecer o possível através da imaginação. Uma forma de exercitar esta capacidade é assistir a ficção dramática, que é tomada como realidade fazendo a suspensão da descrença, ou pela ficção simbólica, assistida como um sonho, onde histórias aparentemente impossíveis exprimem possibilidades reais. Mas muita da ficção moderna paralisa a imaginação, que é usada apenas para colorir hipóteses racionais realmente impossíveis. A modernidade faz um culto de um realismo imediato que separa a vocação dos deveres. Contudo, os ideais só podem ser realizados por quem cumpre as suas obrigações e ame o seu trabalho. A filosofia é uma técnica e uma tradição, e ambas se desenvolvem por mútua realização. A filosofia deve ser estudada por problemas e no início existe uma tarefa bibliográfica para apurar o status quaestionis. O milenarismo, apesar de ter sido proibido por Cristo e desautorizado por Santo Agostinho, incorporou-se fortemente na mentalidade ocidental e deu a fórmula da inversão do tempo presente nas ideologias de massas, por partir do erro de conceber a História como um objecto que pode ser visto desde de fora e análogo à história de um indivíduo.
A vivência num sistema de virtualidades O seminário de filosofia é uma comunidade dita virtual. Em geral, quando dizemos que algo é virtual estamos a fazer um comentário pejorativo. Virtual vem do latim virtus, que significa potência, ou seja, algo que não está efectivado. Mas um mundo concebido apenas segundo o que está efectivamente presente ficaria drasticamente reduzido. Estaríamos como um doente que saiu do coma, sem qualquer memória, apenas com os estímulos sensoriais físicos, o que seria um estado de quase inconsciência, abaixo da consciência de um cão ou um gato porque estes animais se orientam num mundo virtual, como uma certa recordação do passado e expectativa de futuro. A biografia ou a personalidade de uma pessoa, tomadas como um todo, apenas existem virtualmente, não há nenhum lugar físico onde residam. O reconhecimento que fazemos de algo efectiva-se na memória e não está presente fisicamente. O código penal rege as relações entre as pessoas, mas é apenas um cenário hipotético que não
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está efectivado. Mas existe toda uma série de regras de conduta que nem escritas estão mas usamo-las para orientação, contamos com elas, criamos expectativas e fazemos avaliações tendo-as por base. O ser humano vive, então, num sistema de virtualidades e não num universo físico, que é apenas uma componente minoritária. A existência humana, composta de alegrias, tristezas e expectativas não está presente fisicamente, é virtual, e os indícios físicos podem significar coisas distintas para diferentes pessoas. O que realmente nos orienta é uma rede virtual de sinais do passado e expectativas do futuro e estas coisas, mais a nossa história e a pressão do meio, oprimem-nos muito mais que os obstáculos físicos. Por isso, uma visão do mundo centrada no mundo físico é falsa. O real é uma rede imensa de possibilidades anunciadas por sinais ou símbolos a que chamamos de virtual.
A construção do mundo virtual e a imitação dos grandes escritores O crescimento do ser humano caracteriza-se por uma passagem gradual do actual para o virtual. De início o bebé vive quase só em função do que está manifesto, mas aos poucos começa a entrar no universo do possível. A rede de virtualidades abre-se através da linguagem, que permite efectivar coisas que não estão mais presentes. Podemos assim contar a nossa história pois fizemos uma conquista do passado e da própria memória. Mas a linguagem pode não conseguir acompanhar o crescimento do mundo virtual e o indivíduo não conseguirá raciocinar sobre a sua experiência porque lhe faltam os símbolos adequados. A educação deveria servir para corrigir este descompasso entre linguagem e experiência, porque se ele não é suprimido a pessoa vai banalizar-se e criar uma auto-imagem demasiado simplista e afastada da realidade. Mesmo a mente mais simplória é enormemente complexa porque tem uma história e uma memória, e descrevê-la é um enorme desafio mesmo para grandes escritores. A educação devia começar por fornecer, em primeiro lugar, os meios de expressão, sobretudo os linguísticos. O importante é saber usar a linguagem e não tomá-la como objecto de estudo, porque assim estaremos logo a separá-la de nós. Iremos adquirir os instrumentos expressivos tomando posse das obras literárias da mesma forma que as crianças aprendem a falar, ou seja, pela imitação. Os escritores exprimiram algo que tinham em memória ou imaginaram, ou então o que estão sentido. Os instrumentos que utilizaram também podem ser utilizados por nós para situações análogas. Fazendo esta apreensão, vamos começar a modelar o tom conforme as necessidades. Em termos práticos, devemos começar a imitação por um só escritor e ler o maior número de obras dele. Faremos uma imitação servil, não vamos querer obter logo originalidade, que é uma conquista e não uma obrigação. Os males da imitação serão corrigidos pela própria imitação, já que ao ir mudando de autor vão começar a aparecer tantas influências que já teremos uma linguagem própria. Podemos começar por um autor com uma técnica simples, como Graciliano Ramos, mas há outros que utilizam todas as palavras da língua, como Camilo Castelo Branco ou Aquilino Ribeiro. A ideia é acumular recursos sem ganhar vícios. Há várias qualidades que podemos obter, como a sobriedade, mas algumas delas são incompatíveis entre si e isso implica uma escolha.
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Devemos ler os diários de Herberto Sales onde ele foi apontando as coisas que aprendia sobre a arte de escrever. Uma lista de autores fundamentais, em língua portuguesa, inclui, entre os poetas portugueses, Camões, Bocage, Antero de Quental, Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro. Na literatura histórica são imprescindíveis Alexandre Herculano e Oliveira Martins. Na ficção temos Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco, Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, Vergílio Ferreira e Lobo Antunes. Poetas brasileiros: Gonçalves Dias, Cruz de Sousa, Manuel Bandeira, Carlos Drumond de Andrade, Jorge de Lima, Murilo Mendes e Bruno Tolentino. Ficção brasileira: Machado de Assis, Roberto Pompeia (livro Ateneu), José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Marques Rebelo, José Geraldo Vieira e Herberto Sales. Devemos procurar ler o máximo de cada um. Lima Barreto serve para entender o Brasil mas não para aprender a escrever. Guimarães Rosa é para esquecer, artificioso, bobo, apesar do talento, criou vício de linguagem a muita gente. Devemos ainda ter conhecimentos de outras línguas. O inglês é fundamental porque os americanos traduziram tudo. O francês, o espanhol e o italiano também nos ajudarão a melhorar o português numa segunda fase. O latim tem uma importância própria para a filosofia, e permite-nos também ler os discursos de Cícero, que são imperdíveis.
A transição da literatura para a filosofia A filosofia é uma busca da verdade partindo da expressão e só depois passa à reflexão. Vai utilizar todos os recursos expressivos da literatura e mais alguns que esta desconhece, e vai levá-los muito mais além até os tornar quase numa ciência. Não é coincidência que o primeiro filósofo, Sócrates, apenas se expressasse oralmente e o segundo, Platão, fosse um poeta. Até chegar à perfeição científica de Aristóteles foi necessário um certo trajecto, que será refeito aqui no curso. A literatura propriamente dita não procura explicar o que está exprimindo, o que é tarefa da filosofia e das ciências teoréticas. A passagem da literatura para a filosofia não é directa e dá-se através da retórica. Segundo a teoria dos quatro discursos, a expressão directa da experiência é dada pela poética, o primeiro andar, que conta aquilo que podia ter acontecido. A poética é uma contemplação das possibilidades de escolha, reais ou hipotéticas, mas não há tomada de posição. Mas na vida é necessário fazer escolhas, e para isso temos de nos persuadir a nós mesmos e, muitas vezes, outros também. Aí estamos no segundo andar, a retórica. A dialéctica só é possível depois de feitas muitas escolhas e percebido as contradições entre elas, pois ela é a confrontação ente os vários discursos retóricos. A sequência dos quatro discursos segue o percurso natural da educação humana. Primeiro aprendemos a imaginar o mundo e conquistamos uma linguagem que possa exprimir a nossa experiência real. Depois entramos na esfera da moralidade, das escolhas pessoais, onde surge o problema do certo e do errado, do preferível e do preterível, do melhor e do pior, não justificados em termos abstractos e universais mas usados como legitimação das próprias acções e escolhas. E só depois de ter aprendido a usar a linguagem como instrumento para influenciar as outras pessoas é que podemos reflectir. A reflexão filosófica só pode surgir depois da conquista do poder
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inerente à retórica, o poder de nos justificarmos com base nos valores que acreditamos que os outros possuem. Antes de chegarmos à filosofia temos de conseguir fazer alguma mediação dentro da sociedade, o que implica entrar nas escolhas pessoais, no poder, na propaganda, na influência, na política. Por isso a filosofia não é uma actividade para crianças mas apenas para quem já pode agir como cidadão.
O conhecimento do possível Só através da imaginação podemos conhecer o possível. Essa representação não tem que ser exacta e pode ser condensada em símbolos que formam uma história aparentemente impossível mas que expressa possibilidades reais. Na literatura vai ainda ocorrer uma compactação de experiências que normalmente se encontram separadas. A imaginação trata ainda da experiência concreta, quer ela recorra à memória ou seja elaborada em conjunção com a auto-consciência e, como num sonho, poderá expressar compactamente coisas que estão muito afastadas entre si mas cuja junção faz sentido. A capacidade expressiva não será assim perdida quando se trata de um filme dramático, que se sente como sendo real pela suspensão da descrença, ou num filme como O senhor dos anéis, que se assiste como um sonho. Mas muita ficção moderna é elaborada em cima de hipóteses realmente impossíveis, como o exterminador que vem do futuro, as pessoas que trocam de corpo ou a quase omnipotência do super-homem. A imaginação vai ficar paralisada com hipóteses idiotas. Há aqui um problema de coerência imaginativa. As hipóteses impossíveis não entram no enredo como elementos oníricos mas como premissas logicamente inventadas. A razão construtiva consegue criar hipóteses que vão muito além do que aquilo que a imaginação pode conceber. A imaginação vai apenas colorir com imagens hipóteses racionais que já se afastaram da realidade. Já não se trata do conhecimento do possível mas de uma simples transição entre hipóteses idiotas que nos emburrece. Devemos desconfiar dos produtos imaginativos que estão logicamente muito estruturados. Na imaginação e na linguagem onírica e dos mitos existe uma contínua transformação dos símbolos. Mas numa ficção como o super-homem há uma regra imutável, não é um produto do imaginário humano mas um jogo disfarçado com imagens. O culto modernista do realismo imediato Citando o poeta Jorge de Lima, a propósito do movimento modernista brasileiro:
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Devemos recordar a influência do grande Graça Aranha, que foi o maior animador do movimento. Ele pretendia impor normas filosóficas à revolução com a sua estética da vida. Pretendia que o homem brasileiro atingisse a unidade vencendo a natureza que o esmagava. Era chavão repetir: “No Brasil só o homem é pequeno dentro da colossalidade da Natureza”. Aconselhava o reformador que o homem vencesse o terror, o medo metafísico, a compreensão subjectiva impregnada de supostos atrasos que a deturpavam. Aconteceu, porém, o contrário. Os modernistas brasileiros compreenderam que, ao invés do que aconselhava Graça Aranha, o homem devia se entregar às suas tendências naturais, às suas pretendidas deficiências, identificar-se com a exuberância da sua natureza, à sua metafísica mesmo que saturada de superstições, a essa amalgama de inferioridades.
O ser humano ficará em isolamento total se ficar apegado ao mundo sensorial directo, ao telúrico, pois isso o colocará numa impotência completa face à natureza. A força humana reúne-se no mundo virtual, a começar pela linguagem. O livro Cangaceiros, de José Lins do Rego, mostra o nascimento da civilização através da linguagem. Aqueles dados do mundo físico recebidos pelos sentidos não têm qualquer unidade, que só é obtida no mundo virtual mediante a transferência efectuada pela linguagem. É preciso fazer um certo sacrifício do mundo sensorial, do carnaval, do sensualismo imediato. Não significa eliminar estas coisas mas enquadrá-las num cenário mais alargado onde vão adquirir a justa proporção. Se passarmos de um sensualismo imediato para um sensualismo virtual estamos subindo na camada de personalidade, abrindo-nos para critérios superiores de integração da personalidade que nos colocam na rota de objectivos mais elevados e abrangentes. O culto modernista prestado a um realismo imediato, dos instintos, é para alguém que permaneceu na segunda camada. Nenhum instinto manifesta-se em contínuo, e uma vida neles baseada revela uma ausência de personalidade. A realidade do ser humano é um trajecto em direcção ao ideal, mas as pessoas são pressionadas a ignorar que as suas vidas decorrem num mundo virtual. A linguagem fica orientada apenas para a experiência física e as pessoas ficam com uma forma diminuída de existência onde acham natural fracassar. A atitude face ao trabalho desliga o mundo das necessidades do mundo dos sonhos. A necessidade de trabalhar é vista como a imposição de um mundo mau; o dever e a vocação são opostos inconciliáveis e a justiça é ser alimentado por outros. Esta é uma temática presente no livro O feijão e o sonho, de Orígenes Lessa. Há aqui uma moralidade invertida, que se recusa a ver o trabalho como um dever moral e que, feito com amor, nos dará energia para a vida intelectual. Há que modificar a relação entre o ideal e o real. Quem tem uma carreira baseada na fraude e na exploração do próximo não tem direito a ter um ideal. Conquista-se esse direito cumprindo as nossas obrigações, em primeiro lugar vendo-as como um dever de bondade para com os outros. A cruz é também um símbolo para a estrutura da realidade. A noção de um plano de vida está condicionada à existência de uma cruz a carregar; esse plano não é necessário no paraíso. Mas para
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conceber esse plano temos de ter uma correcta visão moral, que não se compadece com o desprezo pelo trabalho e pela realidade.
A tarefa bibliográfica e a tradição filosófica O artigo “Quem é filósofo e quem não é”, publicado no Diário do Comércio (disponibilizado em http://www.olavodecarvalho.org/semana/090507dc.html) lida com a tarefa de elaborar uma bibliografia essencial, e foi escrito a pensar nos alunos do COF. Não devemos receber uma lista de livros, temos de ser nós a elaborar uma, e esta tarefa vai criar em nós uma capacidade quase instintiva de discernimento acerca dos autores realmente valiosos. Isto terá que ser feito por tentativa e erro, socorrendo-nos de tudo que esteja ao nosso alcance, dicionários e enciclopédias de filosofia, incluindo muita coisa valiosa da Internet. Se ao fim de 2, 3 anos conseguirmos elaborar uma lista crítica de livros sobre uma data área da filosofia, mesmo sem ter lido livro algum, já saberíamos mais do que alguém que tivesse passado o tempo a ler os livros. Um novo campo de estudos deve ser para nós como um território inexplorado que tem que ser cartografado e, para isso, devemos adquirir uma paixão pela informação, pela sua ordenação e classificação. O padre Stanislavs Ladusãns utilizava o seguinte método, que demonstrava o poder da dialéctica: para um novo problema filosófico ele começava a análise segundo os métodos e perspectivas dos vários filósofos que o tinham abordado. Seguindo uma direcção cronológica, simplesmente assumia a postura de um discípulo fiel de cada filósofo, sem ainda entrar numa postura crítica. As dificuldades e polémicas apareciam por si mesmas, e eram depois ordenadas, analisadas e, no final, articuladas para produzir a melhor solução considerando os elementos mais sólidos apresentados. Esta era uma forma de chegar ao status quaestionis, baseada na emulação do pensamento dos filósofos passados. Esta prática fazia chegar à conclusão de que a filosofia é uma tradição e uma prática, e que o domínio da técnica ocorre pela absorção da tradição e esta, por sua vez, é absorvida pela prática da técnica. Tradição vem de traditio, com o significado de “trazer”, “entregar”, e a tradição filosofia significa revivificar os filósofos passados e as experiências interiores que os motivaram, o que se afasta definitivamente da aquisição de informação filosófica, que é uma busca de erudição que encerra os filósofos passados como se fossem peças de museu. O culto da opinião própria leva muitas pessoas a repudiarem a entrada nesta tradição, por medo de serem influenciadas. Mas é próprio da dialéctica fazer esta integração para que as várias influências se melhorem. Mesmo as piores coisas ajudam-nos a chegar longe por nos alertarem para os erros naturais que obstaculizam a progressão da inteligência. A partir daqui obtemos um critério para julgar outros filósofos. Devemos verificar se eles conseguiram incorporar mentalmente o percurso dos filósofos do passado. Obtemos também uma orientação para os estudos filosóficos. Estes devem ser regidos por problemas e não abordando os autores. E os problemas escolhidos têm de ter real interesse e importância para nós, mas não devemos estranhar se a formulação do problema se alterar, o que é normal no decurso da pesquisa. Em seguida vamos procurar os textos clássicos que abordaram o problema, e vamos lê-los por ordem cronológica procurando reconstruir mentalmente a história daquela discussão. As
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lacunas devem ser preenchidas com uma nova pesquisa bibliográfica até termos obtido um desenvolvimento histórico contínuo o suficiente. Antes de montarmos a discussão numa ordem lógica temos de classificar as opiniões segundo os pontos de concordância e discordância, sem nos iludirmos com discordâncias de pormenor que podem ocultar um profundo acordo relativo às categorias essenciais em discussão. Quando a discussão é montada logicamente, ela irá aparecer como uma única hipótese, que poderá conter ainda muitas contradições internas e perguntas por responder. Só daqui em diante podemos dar a nossa própria contribuição para o esclarecimento do problema, se tal for possível.
O milenarismo Jesus Cristo proibiu formalmente a especulação sobre as datas dos planos de Deus para o futuro ( Actos dos Apóstolos, Cap. I, versículo 7). A expectativa milenarista, de mil anos de paz com a vinda de Cristo, é uma especulação à volta destas coisas. Santo Agostinho iniciou uma filosofia cristã da História que pretendia encerrar esta questão. Para ele havia apenas duas formas de entender as profecias do Apocalipse e o símbolo mil. Podia relacionar-se com o destino espiritual da história da Igreja e o seu governo no mundo. Esse milénio já haveria começado, e desde o século IV de Agostinho até 1400 a Igreja espalhou por toda a parte o senso da imortalidade da alma, o senso da sacralidade da pessoa humana, a caridade, inventou os hospitais, os orfanatos, as escolas, aboliu a escravidão; pelo que esta interpretação será válida. Uma segunda interpretação, que não é incompatível com a primeira, via o milénio, o símbolo mil, como totalidade, nem seria um número mas a designação de algo fechado. A salvação das almas é a tarefa da Igreja e para isso de nada servem expectativas milenaristas, nunca existiu uma sentença papal baseada no milenarismo. Especular sobre o fim da História implica simular uma posição existencial situada na eternidade, que permite ver a História e Deus como objectos na nossa mente, quando eles só podem ser concebidos como participação. Deus só pode ser concebido como força agente em nós. Mesmo uma pessoa só pode ser conhecida como uma virtualidade, com as suas potencialidades, tensões, e não como objecto. Só podemos conhecer uma coisa de acordo com o seu modo real de existência, e isto nada tem a ver com cepticismo. A ignorância do fim dos tempos é parte da nossa constituição, e o cristianismo realçou muitas vezes esta incerteza constitutiva. Mas depois de Agostinho a Igreja abandonou a filosofia da História, talvez por ele ter uma visão muito realista que não via sentido na História fora do cristianismo. Mas a Igreja também abandonou os estudos sobre a filosofia da natureza e as suas forças ocultas, sobre alquimia e astrologia, e estas coisas passaram a ser monopólio das sociedades secretas com todo o tipo de disparates associados. As especulações milenaristas continuaram e trouxeram um elemento essencial da mentalidade revolucionária, que foi a inversão do tempo. O milenarismo entrou violentamente na mentalidade ocidental e todos nós temos algo desta concepção. Ela tem o erro fundamental de conceber a História da humanidade como se fosse a de um indivíduo. Mas, ao contrário da vida do indivíduo, a História não tem um fim expectável nem uma unidade, é composta de narrativas de sociedades sem contacto
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entre si. Apenas existe unidade histórica perante a eternidade ou na cabeça dos historiadores. À medida que os vários historiadores vão tentando captar alguma ordem na História, a sucessão desses esforços é a única ordem da História, e por isso Eric Voegelin dirá que a ordem da História é a história da ordem. Fora disto existe a ordem divina, que pode ser conhecida miticamente através da visão dada pela revelação, mas o mito é compactado, confuso e pode não nos esclarecer.
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Aula 08 – 23/05/2009 Sinopse: Esta
aula sintetiza as aulas anteriores e traça algumas linhas para o curso e para a restante vida intelectual. Existe uma série de blocos a serem desenvolvidos na vida intelectual, de acordo com o espírito do COF e tendo em conta o estado actual da sociedade. Esses blocos são independentes mas terão de ser trabalhados em paralelo e articulados. A própria filosofia é o modelo da vida intelectual, na senda de Sertillanges, onde as indicações práticas são emanadas da visão unificada dos princípios mais gerais. A vida intelectual consiste em vencer as dificuldades e os empecilhos com que nos defrontamos, que não devem ser vistos como meros acidentes de percurso mas componentes essenciais. O primeiro bloco trata do Adestramento do Imaginário , baseado no longo convívio com a literatura de ficção, o romance, a poesia, o teatro e o cinema. Apenas através da imaginação podemos conhecer pessoas diferentes de nós e que viveram em contextos diferentes. O segundo bloco é o Adestramento Linguístico e terá de ser articulado com o anterior. Compreender e saber utilizar a linguagem, juntamente com a imaginação, são condições necessárias para retirar o fundo de experiência que se encontra por detrás da linguagem filosófica. Quando entramos no terceiro bloco, o Adestramento da Auto-consciência , procuramos dar um sentido ao nosso trabalho intelectual. O senso do ideal é um elemento unificante que dá à nossa consciência um padrão que permite absorver cada situação real da vida à sua luz. No quarto bloco entramos na tarefa de pesquisa erudita, que segue de perto, em técnicas e métodos, a investigação histórica. No quinto bloco entramos, finalmente, na técnica filosófica propriamente dita, que se sustenta nos quatro blocos anteriores. Na técnica filosófica partimos da opinião dos sábios , como dizia Aristóteles, e vamos também incluir o conhecimento por presença. A razão hipotética é um tipo especial de imaginação, que foi formalizada e petrificada para permitir a repetição exacta. A crítica literária é a primeira disciplina filosófica e permite criar um consenso sobre as obras com real valor, enquadrando-as culturalmente e historicamente. Respeitar todas as opiniões é desrespeitar a verdade.
O Adestramento do Imaginário Só através da imaginação podemos compreender pessoas diferentes de nós, que terão sempre um ponto de contacto connosco mesmo tendo vivido em épocas passadas ou em contextos totalmente diferentes e mesmo que sejam personagens de ficção, como Antígona, Ulisses ou Hamlet, já que não existe o totalmente heterogéneo. Na nossa vida cotidiana só podemos compreender o próximo através da imaginação, e se não fizermos o exercício de nos colocarmos na situação do outro, a base do amor ao próximo, iremos julgá-lo baseados num qualquer estereótipo. O adestramento do imaginário é feito pela longa convivência com a literatura de ficção, a poesia, o romance, o teatro e o cinema. Tudo isto é por nós fruído como um sonho acordado dirigido que permite nos identificarmos com aquelas personagens retratadas. Mais tarde, com a incorporação de novos dramas, conflitos, tensões, situações, estaremos habilitados a criar as nossas próprias personagens e situações, mesmo que estas fiquem apenas no nosso imaginário e não sejamos capazes de as transpor para o papel.
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Também a experiência é importante para a filosofia mas ela nos compromete e vai pesar no nosso futuro. Não é possível experimentar “de tudo” apenas para aumentar o nosso arsenal experiencial sem assumir as devidas responsabilidades. Para conhecer alguém com inteligibilidade é necessário enquadrar a pessoa num padrão geral e abstracto. Mas o ajustamento ao caso concreto que a pessoa configura só pode ser feito através da imaginação. Esse ajustamento imaginário é facilitado se já tivermos uma galeria suficiente de personagens e situações dramáticas que se possam combinar para formar uma imagem da pessoa real. A boa ficção isola eventos pertinentes e intensifica-os para ganhar nitidez. Mas na vida real existe uma pluralidade de dramas desconexos. Como os problemas aparecem todos mesclados, torna-se quase impossível às pessoas dar inteligibilidade ao seu sofrimento. O sofrimento só pode ganhar sentido se integrado num projecto biográfico. É preciso ganhar discernimento com o adestramento do imaginário para, retroactivamente, articular as situações vividas com os nossos objectivos mais elevados. Neste adestramento as obras de literatura têm que ser vistas como documentos da vida humana, depoimentos e não textos que vamos logo analisar. Essa análise faz parte da vida intelectual mas ficará para mais tarde. O adestramento do imaginário pode ainda prosseguir com o estudo da psicologia, tendo em vista a compreensão dos seres humanos reais e não como disciplina teorética. Os livros de filosofia não devem ser lidos como teses das quais devemos concordar ou discordar. A primeira tarefa a realizar é a reconstituição do drama cognitivo e humano ali presente. Antes de vermos estes livros como verdadeiros ou falsos, a proclamar ou a impugnar, temos de os perceber como expressões de uma busca humana. A fase crítica não pode chegar antes de termos revivido experiências análogas às vividas pelos autores que lemos. Nos livros de filosofia há o drama humano, que é o primeiro a ser entendido, as respostas a outros filósofos, por exemplo, e existem os dramas puramente cognitivos que advêm da luta contra a opacidade dos factos e dos fenómenos. Não são estes dramas sangrentos como certos dramas que ocorrem nas relações entre as pessoas, mas a longo prazo são determinantes para a humanidade.
Adestramento Linguístico Juntamente e articulado com o adestramento do imaginário, terá de ser desenvolvido um segundo bloco respeitante ao adestramento linguístico, mais concretamente, sobre a compreensão e utilização da linguagem. A obra literária veicula a experiência concreta, segundo Benedetto Croce, e terá de ser esse o nosso foco e não entrar logo na linguagem abstracta da filosofia e das ciências. Às experiências intelectuais correspondem experiências existenciais concretas que temos de refazer imaginariamente para saber realmente do que se está a falar. Se recorrermos a um dicionário filosófico teremos acesso apenas a definições de termos, atitudes ou correntes esquematizados, que não correspondem à realidade dos dramas intelectuais que foram vivenciados longamente. A mera evocação do conceito abstracto não permite evocar esse drama, mas se nos atermos a isso faremos como a criança que usa a imitação de palavras sem perceber o contexto. Precisamos de lastro imaginário e linguístico para retirar a situação existencial efectiva da linguagem filosófica. Por isso o adestramento da linguagem tem de vir junto ao adestramento do imaginário.
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O Adestramento da Auto-consciência e o Senso do Ideal A nossa tarefa intelectual tem que ter uma real importância para nós. Mas para determinar isso a nossa vida tem que ter uma unidade, que só pode existir mediante a adquirição de sentido. Ao desenvolver um senso do ideal, o que remete para o Exercício do Necrológio, temos um padrão para a nossa auto-consciência que permite que a nossa vida se torne numa sucessão de esforços que têm o objectivo de dar sentido à miríade de coisas que nos chegam desconexas. Não podemos achar que a nossa vida, daí em diante, passou a ser como um mito onde tudo decorre da providência divina. As coisas continuarão a chegar-nos sem ligação entre elas e é o nosso trajecto que será unificado na medida em que damos sentido às coisas e reaproveitamos os obstáculos como instrumentos para desenvolver em nós certas qualidades e habilidades necessárias para realizar a nossa vocação. Deixamos uma posição onde encarávamos o mundo como estando contra nós ou sendo indiferente à nossa existência, para outra posição em que nos vemos como uma tensão entre a circunstância e a idealidade para a qual devemos tender. Ortega y Gasset complementou a frase “Eu sou eu e a minha circunstância”, afirmando depois que “A reabsorção da circunstância é o destino concreto do homem”. No mesmo sentido, Goethe dizia que o talento se desenvolvia na solidão mas o carácter na agitação do mundo. As dificuldades e os obstáculos devem ser encarados com o máximo de boa vontade, seguindo o exemplo de Leon Bloy, pois assim iremos fortalecer o nosso carácter e dar conteúdo humano ao nosso trabalho intelectual. Não nos podemos preservar da nossa própria experiência ou a boa vida irá tornar-se num elemento corruptor. A falta de densidade humana não pode ser compensada por uma grande abrangência dos estudos. Algumas ideias em voga são um empecilho para a unificação da auto-consciência, como achar que o “eu” não existe ou que temos uma multiplicidade de “eus” que aparecem consoante o papel social que estamos desempenhando. Raul Seixas dizia que “Eu sou a metamorfose ambulante”, e isto descreve a realidade da condição humana, em que uma personagem se forma através da sucessão contínua de transformações. O “eu” real só pode ser descrito num drama, e não de forma estática num quadro ou numa escultura. Mas se esse “eu” não existisse também não poderíamos contar a nossa biografia. Mesmo sendo a nossa personalidade constituída por uma data de fragmentos, ela também tem um elemento unificante, sem o qual não seria possível fazer a transição entre os vários papéis. Alguém que tenta realizar algo está fazendo um esforço para unir a sua consciência. Este terceiro bloco será aqui denominado de adestramento da auto-consciência, que remete para a compreensão de cada situação real vista à luz de um senso do ideal. As principais dificuldades surgem dos nossos antagonismos internos. É preciso um cuidado especial com a formação de uma auto-imagem, que acaba por ser o oposto do auto-conhecimento. Formamos a nossa auto-imagem a partir de supostos defeitos e qualidades nossos, que surgem de um discurso interior de defesa e acusação. Mas trata-se de uma armadilha porque não revela efectivamente o que somos. A nossa consciência não tem uma forma determinada e só existe na tensão entre um senso do ideal perseguido e os recursos que nos são fornecidos. Nós somos apenas um operante
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sem forma, um foco de luz que ilumina o que está obscuro à nossa volta e no nosso interior. Apenas o observador omnisciente nos conhece verdadeiramente e tudo o que podemos dizer sobre nós são auto-imagens provisórias e, na melhor das hipóteses, apenas parcialmente verdadeiras. Desistir da auto-imagem e atermo-nos apenas a um núcleo de auto-consciência pode nos desorientar por momentos e nos criar uma sensação de falta de identidade, mas isso é provisório. Temos de chegar a uma fase onde não seremos mais um retrato mas uma acção, seremos uma auto-criação permanente que se substitui a uma auto-contemplação passiva e viciosa. O Necrológio, antes de ser uma auto-imagem, é o antagónico dela. É um projecto para o qual temos de achar os meios para o realizar, e à medida que o vamos concretizando vai deixando de ser uma meta para passar a ser um dever. Queremos ter uma autoimagem porque desejamos expressar na perfeição o mundo dos nossos pensamentos. Mas a extinção e o desaparecimento fazem parte da natureza das coisas temporais, o que permite nos libertarmos de uns pensamentos para dar espaço a outros melhores. Mas aquilo que desaparece da escala temporal não vai para o mundo do não-ser , não pode tornar-se num nada, porque o nada nunca foi nada. Tudo o que alguma vez existiu não se perde na escala da eternidade, onde tudo é eterno e Deus pode colocar em nós o conhecimento perdido as vezes que quiser. É esta a memória espiritual a que se refere Platão quando fala da anamnese. Só quando começamos a perceber a permanência da eternidade por detrás da impermanência é que teremos um terreno firme, como dizia S. Paulo apóstolo, n’Ele nos movemos, vivemos e somos. A visão da individualidade fechada, do ego cartesiano, serve para paralisar a inteligência. Quando acreditamos que tudo é um estado subjectivo nosso, incluindo pensamentos e percepções elementares, passamos a dar substância a essa subjectividade e negamos a existência de algo fora dela. O eu subjectivo na verdade não existe, limita-se a ser uma sucessão de estados impermanentes, mas se o considerarmos como um recipiente fechado, ele deixa de conseguir fazer a ponte entre os nossos estados interiores e o mundo exterior, que é a outra sucessão de impermanências. Penso, logo existo, tem implícita, como a primeira e fundadora certeza das restantes, a existência do próprio ser cognoscente. Mas a própria formulação da frase implica a utilização de uma linguagem que veio de fora, ou seja, a afirmação da nossa existência não pode ser uma certeza fundadora mas já necessita da certeza da existência do mundo exterior. Só que a frase é dita para sugerir o contrário. O ser com verdadeira substância só existe na escala eterna, quando já adquiriu a sua forma fechada, e na escala temporal tudo é precário e impermanente. Mas também não pode existir uma impermanência absoluta, que reduziria as coisas a nada, pelo que as coisas no mundo temporal estão num estado intermédio, são semi-naturezas, semisubstâncias em permanente estado de fluxo que só adquirem a verdadeira substancialidade vistas desde a eternidade. Ao invés de nos encerrarmos sobre o nosso eu subjectivo, o nosso processo de auto-construção consiste em nos darmos e prestarmos atenção a coisas incomparavelmente mais importantes que nós, e depois podemos passar a personificar esses valores para outras pessoas, não por os termos em nós mas por abrirmos a porta para eles. Muita gente não quer ver essas portas abertas e irá odiar o nosso exemplo. Ninguém foi mais odiado que Cristo. Mas isso é uma posição alienada que está contra a estrutura da realidade e não podemos temer as reacções de pessoas como essas.
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A tarefa de pesquisa Apenas quando chegamos ao quarto bloco, relativo às ferramentas de pesquisa erudita, o ensino moderno vai dedicar alguma atenção, se bem que deficitária. Devemos nos documentar sobre as questões que nos interessam. A investigação filosófica segue de perto a investigação histórica, partilhando técnicas e métodos. Um livro sugerido quanto a isto é The Modern Researcher , de Jacques Barzun, mas como devemos adequar a investigação ao país e momento vivido, devemos também considerar os livros de José Honório Rodrigues, Teoria da História do Brasil e Pesquisa Histórica no Brasil. Depois de reunir o máximo de documentação possível há que interpretar esse material e relacioná-lo, seguindo na linha do historiador da filosofia ou das ideias. Para saber mais sobre como trabalhar estes assuntos devemos ler a apostila “Problemas de métodos nas ciências sociais”. O artigo “Quem é filósofo e quem não é”, publicado no Diário do Comércio (disponibilizado em http://www.olavodecarvalho.org/semana/090507dc.html), aconselha que, em primeiro lugar, se faça uma pergunta que nos desperte real interesse. Segue-se depois uma tarefa bibliográfica e depois todo aquele material será montado como se fosse uma teoria única, ou seja, a partir da história do problema é composta a sua estrutura. Normalmente os livros fazem uma apresentação sistemática que não revela a investigação histórica que esteve por detrás. Este processo está ilustrado de forma magistral no livro de Joseph Marechal, Le Point de Départ de la Métaphysique. Neste livro é colocado de início o problema da afirmação metafísica e depois é visto como este problema foi evoluindo ao longo do tempo nos pontos que interessavam ao autor. Na filosofia não é seguida a investigação histórica estritamente, que avalia todos os problemas. Há uma criação de foco na escolha de pontos considerados essenciais. A técnica filosófica e o conhecimento por presença Apenas no 5.º bloco vamos chegar à técnica filosófica propriamente dita. O 5.º bloco é suportado pelos blocos anteriores, como se fosse o tampo da mesa suportado pelos 4 pés, que representam os outros blocos. Existe uma ponte com o bloco anterior, relativo à tarefa documental, que é efectuado pelo livro de Joseph Marechal já referido, onde é seguida a ordem da pesquisa. Um filósofo merecedor de atenção é aquele que coloca problemas que são mortalmente sérios para si e envolve toda a sua experiência para recriar o drama passado pelos outros filósofos que fizeram esforços no mesmo sentido. A linguagem que ele utiliza terá de mostrar todo o seu arsenal memorativo e imaginário, onde reside a substância da vida intelectual. Isto os distingue daqueles que usam esquemas verbais e intelectuais com uma certa habilidade mas apenas na base da imitação. A técnica filosófica sintetiza uma série de esforços, que deve ser vista como um drama a se desenrolar em nós e não como fenómeno histórico, desenvolvidos com vista a lançar alguma luz sobre certos problemas. Todos os filósofos seguiram a sugestão de Aristóteles de que se devia partir das opiniões dos sábios, que eram opiniões qualificadas que já tinham resolvido os problemas elementares. Quando entrarmos na
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técnica filosófica iremos usar dois livros, Manual de Metodologia Dialéctica, de Louis Lavelle (a ser traduzido e disponibilizado no COF) e Logique de la Philosophie, de Eric Weil. Na técnica filosófica será incluído o conhecimento por presença, algo negligenciado na história da filosofia mas cujas elaborações científicas das últimas décadas tornaram possível desde que se começou a estudar a comunicação não verbal, a ressonância mórfica descrita por Rupert Sheldrake, juntando ainda a obra de António Damásio, se bem que sofrendo de alguma confusão de terminologia. A nossa orientação no mundo depende de muito mais conhecimento que aquele que sabemos que sabemos. O conhecimento por presença está sempre presente e preenche os espaços vazios. Ele advém do aparato de percepção que nasceu connosco, trazendo a marca da perfeição divina; todas as crianças sabem que vivem no mesmo mundo sem terem disso sido informadas. Esse conhecimento permite que nos orientemos sem qualquer problema no mundo da mutação e da permanência, e sabemos instintivamente o que há de aparente e real tanto na mutação como na aparência. Mas quando tentamos transferir este mundo da percepção para o mundo da razão, apenas uma pequena fracção do que sabemos é comunicável. Os filósofos pré-socráticos tinham a mesma experiência do mundo, mas Heraclito realçava o fluxo de mutações, enquanto Parménides achava que existia um ser absoluto e imutável por detrás das mutações, e Zenão de Eleia, com os seus famosos paradoxos, punha em dúvida a própria realidade do movimento e da transformação. Eles sabiam que viviam no mesmo mundo e não em mundos diferentes, viam o mesmo mundo mas expressavam-no de forma diferente porque a razão é muito limitada em comparação com o mundo da percepção. O que nós conhecemos deles resume-se apenas àquilo que eles conseguiram transmitir e não o que eles efectivamente sabiam. O conhecimento por presença está por baixo do efectivamente percebido, estando mesmo por baixo do inconsciente, que só pode ter origem na memória ou em algum processo interno, que é a própria presença no real, pressuposto de tudo. O esforço filosófico consiste em transferir uma pequena parcela da riqueza infinita da percepção real para o mundo da razão, onde as coisas são humanamente comunicáveis e podem ser discutidas. A crítica moderna do conhecimento, iniciada por Hume, seguido por Kant, criou a ideia de que tudo o que não era absorvido pelos sentidos era criação mental, existindo assim o mundo natural e o da criação cultural. Como suposta prova disto temos as diferentes imagens do mundo presentes em culturas diferentes. Estas imagens são realmente diferentes mas isto não implica que a percepção do mundo também acompanhe estas diferenças. Aquilo que as civilizações passadas nos deixaram não foi a sua visão do mundo mas apenas o que conseguiram transmitir dessa visão em símbolos que a condensaram. A própria aquisição do património cultural pode se tornar tão pesada que vá encobrir o anterior conhecimento do mundo real, e depois passamos a confundir as representações simbólicas com o próprio mundo. Levando isso ainda mais adiante, podemos começar a acreditar que a nossa vivência imediata já é ela mesma uma criação cultural quando ela é a base de construção das criações culturais.
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A diferença entre a imaginação e a razão hipotética A razão hipotética segue o esquema descrito por Aristóteles. Primeiro temos as percepções, das quais guardamos na memória os esquemas dos factos e dos entes. A partir desses esquemas é extraído o esquema idético, o esquema intelectual, que é o esquema racional que se pode retirar dos factos e permite obter conceitos, que depois se podem combinar na esfera racional. A imaginação precede sempre a razão, não têm uma diferença de natureza. A razão é um tipo especial de imaginação; uma imaginação formalizada e petrificada para permitir a repetição exacta. A simples imaginação lida apenas com estados empíricos e nunca chegaria a um conhecimento geral e universal. O processo de construção da razão já indicia claramente qual devia ser o processo de leitura de obras filosóficas. Esta leitura deve seguir o procedimento inverso de construção da razão e reverter para a criação de imagens que recriem experiências análogas às tidas pelos filósofos. O trabalho fica muito incompleto se ficarmos apenas nos conceitos e nos restringirmos aos seus significados estabilizados em dicionários. Estaremos assim a esquecer que a razão construtiva é imaginação estabilizada e padronizada, mas ainda imaginação. Por outro lado, quando a literatura se empobrece e deixa de veicular a experiência real, deixa de ser possível transmutar em conceitos a experiência, e esta torna-se opaca. Resta apenas o uso de símbolos convencionais, que não transmitem nada dos dramas e problemas da vida real, e servem apenas para a identificação de sentimentos grupais. O delírio auto-lisonjeiro é a única linguagem pública existente, e quando alguém aponta este facto será visto como pertencendo a um grupo contrário. A crítica literária A crítica literária é a primeira disciplina filosófica por ser a expressão intelectual mais imediata da experiência literária. Sem a crítica literária seria difícil saber por onde começar a estudar. Os críticos literários são leitores privilegiados, por vezes grandes escritores, que conseguem exprimir algo da sua experiência de leitura e fazer a inserção das obras num quadro cultural e histórico maior. Desta forma vão formando um consenso sobre o que tem valor. Sainte-Beuve foi um grande crítico do século XIX que enfatizava a experiência psicológica. Mathew Arnold tem um grande valor educativo e pedagógico. Entre os críticos portugueses destacaram-se Adolfo Casais Monteiro e Fidelino Figueiredo. Entre os brasileiros, Álvaro Lins, Augusto Maier e, sobretudo, Otto Maria Carpeaux. O relativismo opinativo É comum a confusão, ou a hipocrisia assim disfarçada, entre o direito em cada um opinar de sua livre vontade com a ideia de que todas as opiniões têm valor idêntico, isto feito em nome da liberdade. Este medo em violar um dos preceitos do politicamente correcto deprime a inteligência. Pensar é pensar que se está certo. Não faz sentido ter uma opinião achando que outras são melhores ou de idêntico valor. Se estivermos nesse ponto simplesmente estamos na indecisão. Respeitar a opinião manifestamente errada é cuspir na verdade.
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Aula 09 – 06/06/2009 Sinopse: Nesta
aula são estabelecidos alguns princípios da ética da vida intelectual. O primeiro princípio da vida intelectual foi enunciado por Jean Guitton: “Cave onde você está.” Isto contraria a principal motivação para entrar na vida intelectual nos últimos séculos, que tem sido obter a suprema beatitude do entendimento (Burckhardt), que teve o seu paroxismo no eu transcendental de Kant. Ao proibir as especulações milenaristas, Cristo já estava a indicar a limitação do conhecimento como sendo estrutural à vida humana. A vida humana decorre no seio do mistério, mas o mistério pode dar-se a conhecer um pouco quando aceitamos totalmente a nossa condição e fazemos a técnica da confissão de Agostinho. A diferença entre saber e não saber só será realmente apreendida depois de muito se meditar sobre a presença do mistério, do desconhecido e do incognoscível. A confiabilidade dos conhecimentos é medida pelo grau de proximidade que os nossos conhecimentos têm relativamente à certeza que temos sobre o nosso legado auto-biográfico. Quando a vida intelectual não se norteia por estes princípios, o indivíduo vai deixar-se seduzir por falsos enigmas lógicos, onde é colocada uma escolha entre possibilidades que nunca se verificam na realidade, como altruísmo ou egoísmo, determinismo ou livre arbítrio. A filosofia não pretende obter um conhecimento universalmente válido mas obter um esclarecimento suficiente para a nossa orientação na realidade. O público espera do intelectual um exemplo de seriedade e não alguém que apenas está ali para agradar. Na vida humana, mas não na História, o futuro é um elemento dinâmico do presente que dá retrospectivamente um sentido ao passado. O ser humano vive com o trauma da emergência da razão porque nasce com o dom de criar estruturas racionais universalmente explicativas mas estas só serão adequadas à experiência da realidade após um longo processo de apropriação da razão, cujo afastamento provoca inúmeras neuroses. Para compreender os processos históricos não podemos atribuir a eventos explicáveis pela acção humana deliberada uma causa derivada de forças históricas genéricas, e temos de saber que todos os agentes têm um horizonte limitado e algo pode ter agido através deles.
As motivações para entrar na vida intelectual A filosofia não deve ser abordada de forma cronológica ou pela importância histórica mas por temas. Isso leva-nos directamente a um trabalho bibliográfico e de pesquisa, facilitado hoje em dia pela Internet, onde sites como o www.questia.com poderão ser de grande valia. Os temas da nossa escolha não devem ser seleccionados por motivações académicas mas por interesse real, seguindo o conselho de Jean Guitton “Cave onde você está”. O objectivo mais comum para entrar na vida intelectual passa por atingir aquilo a que Jacob Burckhardt chamou de suprema beatitude do entendimento (ou conhecimento), que é uma ascensão imaginativa onde se passa a ter uma visão geral e organizada das coisas, da História, da natureza, da ciência, etc. Para Burckhardt esta posição de contemplação, como um deus, pretende estar acima das coisas sem as influenciar, o que pode provocar boas sensações pelo escapismo que proporciona. Mas existe uma variação activa desta suprema beatitude do
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entendimento, especialmente adaptada aos marxistas, que não se contenta com uma contemplação passiva mas quer influenciar o fluxo das coisas; quer transformar o mundo e moldá-lo à sua imagem e semelhança. A motivação básica para entrar na vida intelectual nos últimos séculos tem sido alcançar um destes dois pontos, ou de compreensão ou de transformação. Em comum tem um recuo cognitivo, que até certo ponto é um artifício necessário para obter alguma objectividade. Kant vai levar este recuo ao extremo do eu transcendental, que é um ponto de observação onde compreendemos o mundo da experiência e ainda a nossa própria compreensão aí envolvida. O eu transcendental é uma espécie de consciência da consciência por estar colocado num plano onde lhe são reveladas as condições ocultas que permitem a experiência, reveladas no próprio decorrer da experiência. Se as exigências técnicas obrigam a que, de facto, seja feito um certo recuo, nunca nos podemos iludir de que alguma vez seja possível estar numa posição acima da realidade e a possamos observar como um deus. Assim perdemos a perspectiva espiritual de que acima de nós existe sempre o observador omnisciente, não vendo isto em termos religiosos. A busca humana de um ponto de vista privilegiado não é verdadeira, nunca estaremos acima de nós mesmos. Santo Agostinho tinha uma atitude completamente diferente. Ele pretendia compreender-se a si mesmo, não como ego transcendental ou sujeito do conhecimento, mas como sujeito humano no mundo da acção, da incerteza, do pecado, onde está envolvido um eu real, temporal e histórico e não há nenhum intermediário entre ele e Deus. Esse intermediário é representado pelo eu transcendental, que é um pseudo-deus que apareceu com Descartes como muleta para obter a certeza absoluta, que ele acreditava ser a consciência da consciência. Há aqui a ilusão de dar substância de realidade ao eu como puro conhecedor , quando se trata apenas de um papel desempenhado, por momentos, pelo eu real. Nos últimos séculos tem crescido a crença neste “eu” que tudo observa e, até, pode decidir, o que configura um processo de auto-divinização que atingiu um paroxismo no século XX na escola esotérica do Gurdjieff. Ele considerava o eu cotidiano ilusório e ensinava o desenvolvimento de um eu observador que não participava nos acontecimentos, não tomava partido, era totalmente neutro. Mais que uma doutrina era uma prática onde as pessoas perdiam a identificação consigo mesmas na construção do eu neutro, chegando a um estado totalmente amoral e cínico. Era um processo de estupidificação que ao mesmo tempo dava às pessoas uma grande sensação de poder porque os iniciados imaginavam estar infinitamente acima dos restantes seres humanos. Nada pode ser mais irrealista do que ver o eu real como ilusório e o eu observador , que é uma coisa declaradamente criada, como real. Se fizermos isto estamos a negar a própria história, a fazer uma anti-confissão onde fugimos à responsabilidade dos nossos actos. A fuga à realidade e a negação da condição histórica são marcas da inspiração gnóstica, de alguém que não aguenta o mundo e então finge que está acima dele. O princípio número um da vida intelectual foi delineado por Jean Guitton: Cave onde você está. Temos de compreender que a elevação acima do fluxo dos acontecimentos é um exercício temporário e não corresponde à nossa condição existencial. Agostinho é o nosso exemplo e ele sempre cavou no local onde se encontrava pois sabia que a realidade da sua vida concreta, por mais humilhante que fosse, era algo precioso porque aconteceu mesmo, não era mero pensamento. Este é um terreno firme que mais
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tarde servirá de critério para avaliar todo o tipo de conhecimentos. Agostinho sabia ainda que acima dele existia o observador omnisciente que não era ele mesmo. Sem esta consciência podemos ter a tentação de reduzir tudo ao nosso teatro mental. Este teatro é uma ferramenta importante na busca do conhecimento mas, se esquecermos que é um artifício temporário, ficaremos como o sujeito na peça de Pirandello que acreditava ser o rei Henrique IV e obrigava as pessoas à sua volta a serem a sua corte. Esta parábola representa muito bem os tempos modernos e aquilo que são os movimentos de massas, onde uma pessoa doente, maligna, incapaz de suportar a miséria da sua realidade, tenta escapar para um mundo idealizado. Aí vai desempenhar um novo papel com uma intensidade, uma verosimilhança e uma devoção tais que fará outros acreditarem nele e entrarem também naquele teatro e fugirem à realidade das suas vidas. Os movimentos marxistas falam do proletariado mas são compostos quase que só de pessoas das classes média e alta. A instituição académica oferece também um convite desse género para todos os estudantes, a promessa arrebatadora de realizar a suprema beatitude do entendimento.
As especulações milenaristas e a limitação do conhecimento O milenarismo é uma esperança de um reino futuro de paz, ordem e justiça que decorrerá da vinda do Cristo. Também no Islão existe uma esperança milenarista sobre um futuro governante que venha trazer ordem e justiça. O fenómeno é antigo na humanidade se pensarmos na religião judaica, que em certa medida é um milenarismo mas que não tenta se extrapolar para o mundo mas apenas para o povo judeu. Nos primeiros séculos do cristianismo os elementos milenaristas voltaram a evidenciar-se, até que Santo Agostinho colocou um término no assunto. Uma nova vaga milenarista só aparecerá muito mais tarde quando a autoridade do papa decaiu, sobretudo com a transferência do papado para Avignon. Roma ficou ingovernável, apareceram muitos movimentos rebeldes e a pressão islâmica no exterior fez-se sentir. Neste estado de miséria surgiram novamente as especulações milenaristas. A Igreja sempre condenou o milenarismo com base no texto dos Actos dos Apóstolos, quando Cristo diz que não é para nós conhecermos o prazo do fim. Está aqui já implícita uma inevitável limitação do conhecimento. Cristo alerta para que, efectivamente, não iremos conhecer o futuro a longo prazo, não se limita a fazer uma proibição. Não nos é efectivamente possível saber quando será o fim dos tempos, nem qual contexto que o encerra; não sabemos, assim, qual o sentido da História. Kant e os praticantes da ciência moderna falam das limitações do conhecimento mas é um flatus vocis. Para eles, esta limitação é uma deficiência da realidade e acreditam que a humanidade está no caminho da perfeição do conhecimento. Mas a humanidade não conhece nada, apenas os seres humanos. Estes não podem ter um conhecimento infinito pois têm uma existência finita, e mesmo a vida eterna não promete o conhecimento total. A limitação do conhecimento é inerente à limitação da vida humana e não aceitar isso constitui uma fuga à estrutura da realidade. Na actualidade surgiram alguns movimentos com um forte carácter milenarista, como são os casos do movimento ecológico e do que preconiza a criação de um Estado Mundial. Eles fazem previsões catastróficas para o futuro que apenas podem ser
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evitadas pelas suas propostas de paz e ordem, onde se arrogam saber mais que todos. O conceito de Estado Mundial não faz sentido porque um Estado é organizado não só por motivos de organização interna mas também para efeitos de representação face a outras comunidades. O que realmente está em causa é a criação de um papado suprareligioso, uma pretensão já antiga que visava instrumentalizar a Igreja para que ela deixasse de ser católica e criar uma religião sincrética. Mas o que é característico dos movimentos ecuménicos é a ausência de espaço conferido a Deus, é apenas acção humana e masturbação mental.
O mistério como elemento constitutivo da realidade A limitação dos nossos conhecimentos não é algo a ser vencido mas a ser aceite. O desconhecido e o mistério fazem parte da estrutura da nossa existência e parte intrínseca do terreno onde temos de cavar . Mas se o mistério está presente de forma permanente, por vezes ele revela-se um pouco e isso é precioso. Estes momentos de abertura ficarão perdidos para nós se não aceitarmos a presença do mistério e acharmos que há apenas um obstáculo a ser vencido. A abertura do mistério não tem que ser vista no sentido religioso, pode ser apenas uma abertura que nos permita compreender algo pertinente para nós, porque proporciona que nos instalemos melhor na realidade e teremos uma antecipação do conhecimento pelos sentidos. É o conhecimento por presença, não verbal, válido apenas para os momentos seguintes, essencial para nos orientar na realidade e que se perde quando queremos ir para a posição do eu transcendental. O importante não é vencer o desconhecimento, que é um dos pilares da nossa existência, mas encontrar um modus vivendi com o mistério que nos permita reagir de forma adequada e responsável às situações porque as nossas acções e pensamentos foram elaborados com base num coeficiente de luminosidade suficiente. A realidade vai abrir-se para nós quando nos entregarmos a uma inteligência infinita mediante a técnica da confissão de Agostinho, onde aceitamos a nossa condição humana na plenitude. Cristo disse também que cada um deve pegar na sua cruz e segui-lo. A cruz simboliza, entre muitas coisas, o cruzamento das condições de espaço, tempo e número que nos limitam e definem, ou seja, a nossa realidade naquele momento, o local onde temos de cavar . Mas carregar a cruz é também arcar com os próprios pecados, o que significa contar a nossa própria história. Mas como a mente humana é dialéctica, precisa de um elemento de contraste e não pode se ater apenas aos pecados, o que seria dar uma força aos demónios que eles não têm. Aqui já está delineada a confissão como o relato de uma tensão entre os anjos e os demónios. A sinceridade integral é exigida pela presença do observador omnisciente, e era aquilo que dava força a Santo Agostinho e a São Paulo apóstolo, que falavam com a sua própria voz um discurso que os instalava na realidade. Normalmente Deus é visto como um objecto a ser analisado de forma teológica. Mas o fundamental é ver Deus como presença real actuante. Uma pessoa apresenta-se a nós porque no momento anterior estava noutro lugar, mas como Deus é omnipresente não pode fazer isso, a sua presença na nossa vida é abrangente e total e não singular e localizada. Para notar essa presença temos de aceitar os limites do nosso conhecimento como um dado da realidade, perceber a nossa existência no meio do mistério mas ainda assim continuamos perfeitamente seguros, porque os elementos do mistério
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estão ali para nos esclarecer e ajudar. Só podemos notar esta presença se fizermos como Agostinho e estivermos em total concordância com a nossa condição e não se nos quisermos colocar na posição de juiz e tentar tomar o lugar de Deus. A confissão permite-nos obter novas percepções da realidade e é o método correcto do autoconhecimento, mas o objectivo último terá de ser fazer a vontade de Deus e não o auto-conhecimento pois nós não temos substantividade suficiente para dizer que somos isto ou aquilo. Nós tomamos forma aos poucos ao deixarmos que Deus nos molde gradualmente na medida em que lhe damos o que temos, por pior que isso seja.
A confiabilidade dos conhecimentos Só meditando continuamente sobre a presença do mistério, do desconhecido e do incognoscível será aberta a porta para o cognoscível, e aí perceberemos a diferença entre saber e não saber. Saber que não se sabe é o que marca a diferença entre a esperança cristã e a perspectiva gnóstica. Só é possível realizar a confissão se não estivermos perdidos numa rede de pensamentos e argumentos e tivermos uma noção clara do que é uma certeza imediata, uma percepção imediata. Vai ser esse senso de certeza a base de todos os conhecimentos possíveis. A confiabilidade dos conhecimentos é medida pela proximidade ou afastamento do nosso legado autobiográfico, na medida em que nos iremos interrogar se temos tanta certeza naquele conhecimento como na nossa própria história, que não podemos nunca desprezar já que é constituída por uma série de dados da realidade. Aquilo que não tiver o mesmo grau de certeza que a nossa própria história terá um menor grau, não será uma certeza imediata e evidente mas algo com alto grau de probabilidade, ou então algo verosímil ou apenas possível. Esta graduação dos conhecimentos também é básica para a vida intelectual. Este assunto foi tratado também na apostila “Inteligência e verdade” (disponível no endereço http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/intver.htm). A certeza cartesiana do “penso, logo existo” não afere a credibilidade, apenas a confissão do que já sabemos pode fazer isso, especialmente daquilo que só nós sabemos porque não podemos apelar a uma autoridade exterior, estaremos sós com o observador omnisciente, e o nosso relato sincero é retribuído com um pouco mais de conhecimento. Também cavar onde estamos permite que o imenso reservatório do conhecimento por presença suba à nossa consciência. A sedução dos enigmas lógicos Quando a aquisição de erudição descura a ética da vida intelectual, o processo torna-se patológico para o indivíduo, que irá apenas interessar-se por enigmas lógicos criados por ele ou por outros. Esses enigmas, quase sempre, são problemas sem saída, mas uma vez colocados em circulação originam jogos mentais infindáveis e estéreis. O verdadeiro espírito filosófico, ao invés de se perder em jogos abstractos, pretende criar conceitos que possam descrever ou explicar a realidade da experiência. Existem propostas filosóficas sedutoras que se afastam disto e prometem a resposta última para questões metafísicas mediante um afastamento para uma altura teorética hipotética. Sócrates, nos diálogos, traz sempre os seus interlocutores desde essa altura de volta à realidade, para as centrar naquilo que elas efectivamente sabem, mostrando que, em
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certos casos, elas sabem mais do que imaginam, como no caso do diálogo Ménon com o escravo analfabeto. Um exemplo de um enigma lógico é a questão do determinismo e do livre arbítrio. Para evitar sermos iludidos pela questão temos de avaliar os conceitos envolvidos à luz da realidade da experiência para saber ao que eles efectivamente se referem. A escolha entre determinismo e livre arbítrio está a pressupô-los como absolutos, e assim só poderiam ser aplicados em seres com dimensão infinita. Deus, sabendo tudo o que vai acontecer e o que vai fazer poderia parecer pré-determinado, mas como não há quem o possa coagir a isso, Ele simplesmente é determinado. E para ter sentido em falar da liberdade de Deus era preciso supor a existência de uma entidade externa que O pudesse coagir, o que não faz sentido. Então não faz sentido aplicar os conceitos de livre arbítrio e determinismo a Deus. Também não faz sentido aplicar estes conceitos como absolutos aos seres humanos. A liberdade absoluta de um único indivíduo implicaria a pré-determinação de todos os outros seres em volta. E a total prédeterminação implicaria que os nossos pensamentos também estariam prédeterminados e não poderíamos sequer colocar esta questão. Na vida real não existe a possibilidade de aplicar conceitos extremos como estes, e se estes conceitos não servem para descrever a realidade devem ser abandonados numa verdadeira filosofia. No diálogo Crátilo, de Platão, há um exemplo do uso da técnica filosófica para resolver um cenário onde é colocada uma falsa alternativa e as coisas são esclarecidas para trazer os intervenientes de volta à realidade. A discussão anda à volta das palavras e de saber se os símbolos verbais são arbitrários ou naturais. Sócrates mostra que ambas as alternativas são falsas e o importante é conhecer a natureza das coisas. Vários enigmas lógicos são criados a partir da identificação dos seres existentes com as suas definições. A definição omite todos os elementos acidentais e não reside em lado algum, mas os seres reais estão sempre em algum lado e apenas existem dentro de uma rede de acidentes, não podendo ser unicamente compostos de essências lógicas. Outro problema absurdo é a oposição entre egoísmo e altruísmo, que vigora na “psicologia prática” de Ayn Rand. Estes também não são conceitos filosóficos pois referem-se a hipóteses extremas que nunca se verificam na realidade. Precisamos de arranjar outros que possam descrever a realidade com sinceridade, que é o começo da veracidade. Sinceridade é veracidade subjectiva.
A experiência real na génese das questões filosóficas As perguntas que fazemos, tal como os conhecimentos positivos, têm de nascer da experiência, onde se legitimam e provam a sua importância efectiva, e não podem ser apenas um elegante jogo mental. Vai entrar aqui novamente a técnica da confissão. Quase invariavelmente as pessoas não conseguem contar a história das suas ideias, apenas conseguem argumentar em seu favor. Se não existe a noção do contexto onde as questões e as ideias nasceram, como se desenvolveram, então nada daquilo tem real importância para nós. Uma filosofia assim desenvolvida é uma filosofia sem consciência, no sentido em que Maurice Pradine definia a consciência como a memória do passado preparada para as tarefas do presente. As construções teoréticas que se venham a construir enquadram-se numa estratégia de entendimento e não de aprisionamento da realidade. Quando o objectivo passa a ser a obtenção de
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conhecimento universalmente válido, a especulação dos conceitos abstractos será vista como um teatro estéril. O objectivo deve ser a busca de um esclarecimento suficiente para a nossa própria orientação na realidade e a abstracção que se venha a utilizar servirá para ajustar o foco da inteligência ao foco da nossa existência, o oposto da paralaxe cognitiva.
A armadilha educacional e a necessidade do exemplo da seriedade Para quem já se apercebeu do estado da educação, surge o dilema sobre como se pode proteger os filhos. É impossível impedir a contaminação da sujeira do mundo contemporâneo e isso seria também uma fuga à experiência que nos tornaria indefesos. O que podemos fazer é confessar permanentemente este estado de degradação e permitir que Deus nos limpe. Trata-se da confissão interior e não da confissão ritual, que é apenas a oficialização da primeira. Este exemplo, de paciência e não de revolta, vai ser percebido pelos filhos, que entenderão que a miséria do meio está em nós mesmos e temos de nos limpar continuamente, tal como acontece com o nosso ritual de higiene diária. A confissão tem também a vantagem de, aos poucos, nos permitir adquirir a voz própria porque a sinceridade é o equivalente, no plano moral, à verdade. Adquirir esta voz própria é essencial porque as pessoas que querem combater a mentalidade revolucionária estarão a usar a linguagem do inimigo. A nossa linguagem ficará corrompida até ao tutano se tememos as reacções adversas e imitamos o nosso adversário para ele não pensar mal de nós. Podemos nos justificar de que queremos apenas odiar o pecado e não o pecador, mas é impossível parar um crime sem deter o criminoso. O objectivo da punição não é a restituição da perda ou a regeneração, é apenas uma forma de lidar com uma situação que não se consegue lidar de outra forma. No intelectual, o exemplo de seriedade é também um dever para com o público, algo que ele precisa e estava a contar, como notou Sertillanges. Se procuramos apenas aprovação pública estamos a retirar ao público uma força com a qual ele contava. Não há justificações a dar quando se falou na justa medida. A ética da vida intelectual deve incidir apenas em aspectos como “cavar onde estamos”, a confissão e encontrar a própria voz. Voegelin também falava numa linguagem que se comunica com a tensão vital da existência humana, porque ele compreendia o que Sócrates já sabia, que não é importante criar doutrinas com uma perfeição lógica que escondam toda a sujeira por debaixo, mas permanecer fiel à verdade da existência com todas as suas tensões e contradições. Tempo de estudo diário O estudo formal, onde se lê e tira notas com alguma finalidade ou se aprende uma língua estrangeira, não deve ultrapassar as 2, 3 horas por dia ou há o risco de não se conseguir assimilar. Este tempo pode ser estendido se existir uma transição entre assuntos, mas nem todas as pessoas estão vocacionados para isto e há quem se sinta melhor focando-se apenas num tema. Ver filmes ou peças de teatro, ler romances ou
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ficção, são coisas que devem ser incluídas na rotina de estudo, mas não contam como estudo formal, apesar de retirarmos delas, por vezes, coisas mais preciosas que as obtidas do estudo formal.
A estrutura da vida biográfica O Exercício do Necrológio obriga-nos a lidar com o futuro como sendo um componente dinâmico da nossa vida actual, o que é fundamental para captar a dimensão do tempo. Na vida humana a ideia do futuro ajuda a determinar o significado do passado. O passado adquire retrospectivamente um sentido com base numa meta ideal para onde nos dirigimos. Mas só é possível fazer esta articulação na vida humana porque esta tem um tempo de vida espectável, ao contrário da História da humanidade que tem o horizonte em aberto. Há vários exemplos de pessoas que criaram objectivos de vida e moldaram a partir daí o seu percurso. Santo Agostinho tinha o objectivo de estar dentro de Deus e, devido a isso, ele teve uma vida de transformações onde fez de tudo para conseguir lidar com dificuldades e contradições. Napoleão, apesar de ter tido uma vida curta e ter sido derrotado no fim, acabou por ter uma vida bem sucedida à luz do seu objectivo de criar um império. Leon Bloy teve uma vida extremamente difícil, foi rejeitado, odiado, chegou a ficar na miséria total, mas fez uma obra maravilhosa e a sua vida acabou por ser bem sucedida porque o seu objectivo era chegar a uma verdadeira sinceridade numa vida cristã e ele aceitou “pagar o preço” que isso continha. O trauma da emergência da razão O ser humano tem a capacidade de criar estruturas racionais universalmente explicativas, mas isso acaba por ser um fardo que carregamos porque essa capacidade nasce connosco mas não temos os materiais para a sua construção e não sabemos como utilizar essa capacidade. Temos as ideias e temos os factos, mas o que interessa é a ideia embutida nos factos. Durante muito tempo as nossas construções racionais são falsas porque não foi feita a articulação com a experiência da realidade. A apropriação do dom da razão é morosa porque a experiência aparece caótica e não vem com as estruturas racionais identificadas. São necessários muitos anos para aprender a lidar com a razão, o que implica muito sofrimento mas, se o processo for vivido com consciência de causa e dedicação, passa a ser uma tarefa. Desde criança que o ser humano quer agir como se fosse omnisciente, mas as estruturas que ele possui são falsas. Poucas pessoas se beneficiam do dom da razão e muitas delas desenvolvem neuroses por não saberem arcar com essa capacidade. A própria elaboração intelectual não pode surgir no início. Antes de sabermos dizer a realidade em termos filosóficos temos de a saber expressar em termos poéticos e narrativos. As motivações da acção humana Conhecer as motivações da acção humana devia ser a grande ambição do historiador, porque no limite há sempre um mistério que levou as pessoas a agir como agiram. Disse Ortega y Gasset que nunca ninguém escreveu um livro explicando exactamente
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a razão de alguém ter feito alguma coisa. Para compreender algo em História precisamos de saber duas coisas. Em primeiro lugar, não é legítima a atribuição a forças históricas genéricas (classes sociais, tendências económicas, etc.) aquilo que pode ser explicado pela acção humana deliberada. Em segundo lugar, todos os agentes têm um horizonte limitado e algo pode ter agido através deles, passando por cima de suas consciências. Sobre a acção humana, podemos começar a construir uma biblioteca sobre algumas fontes: Na introdução do livro Economia e sociedade Max Weber discute as condições da acção humana; Human Action, de Ludwig von Mises também trata do assunto na parte introdutória; Psicologia da motivação, de Paul Diel; Julian Marias escreveu coisas muito boas sobre a estrutura da acção humana, sobretudo no livro La estrutura social; Ortega y Gasset também discorreu sobre o assunto; Viktor Frankl e Szondi são outras fontes que nos podem ajudar bastante.
Os limites da imaginação Algo pode ser construído matematicamente mas não ser concebível, pois pode nem ser real. As teorias podem estar completamente erradas e já nada terem de real. Temos de lidar com a realidade concreta tal como se apresenta, com o seu conjunto de acidentes. Na elaboração de uma teoria científica a primeira coisa a ser feita é eliminar esses acidentes, ou seja, está a tratar-se de aspectos e não de realidades. O recorte desses aspectos pode criar um isolamento tão grande que o que sobra é apenas uma possibilidade abstracta, impossível de conceber. O adestramento do imaginário através das artes plásticas Existe uma grande proximidade do método utilizado no desenho natural, com todas as medidas tomadas sobre várias perspectivas, ao método da investigação filosófica, que pretende prender o assunto a uma malha de conceitos que o localize na realidade e não o extraia dela. É necessário criar um conjunto de polaridades que se cruzem num certo ponto e vão prendendo aquele objecto. Também é um bom exercício observar um quadro e tentar perceber o que pretendia o autor realizar.
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Aula 10 – 13/06/2009 Sinopse:
A classe letrada é assim designada por estar habilitada a receber a produção intelectual e artística e, pela avaliação que faz desse material, a criar um senso comum superior. No Brasil não existe mais essa classe, nem existe um grupo de verdadeiros intelectuais; apenas existe um grupo activista militante, ignorante, mas que desempenha, para aqueles ainda mais ignorantes, o papel e a autoridade de uma verdadeira classe letrada. Vladimir Safatle é aqui examinado como um dos representantes dessa nova “classe letrada” superior, longe de ser dos mais incapazes. As suas marcas características passam pela utilização de um jargão ideológico copiado dos seus gurus, a incompreensão de fenómenos elementares, a “compreensão invertida” como técnica de análise, levando a que faça a atribuição de culpas aos seus adversários quando estas lhe pertencem. Comete, ainda, abusos metodológicos, como atribuir a entidades abstractas a responsabilidades de eventos que têm agentes grupais e individuais perfeitamente identificados e mostra desconhecer a relação íntima entre inteligência e sinceridade. Estes exemplos são fornecidos para nos prevenirmos do ambiente de contaminação e paralisação intelectual e termos consciência da necessidade de procurar alternativas de outros lugares e de outros tempos onde existia uma verdadeira cultura superior. No Exercício de Leitura Lenta cada frase é transformada num objecto de meditação de forma a evocar a experiência interior a que o autor se refere. O processo é exemplificado com um parágrafo do livro de Louis Lavelle, A presença total , onde é referido que a experiência da presença do ser está implícita em todas as outras, sendo o que lhes confere gravidade e profundidade. Para a compreensão disto são sugeridos vários exercícios, que pretendem invocar a “experiência do nada”, exercícios de percepção e construção mental. O amor pela ciência não pode substituir o amor à realidade porque a ciência é como um jogo, uma construção mental que não pode conter o universo. A realidade é um complexo de latências, que sabemos estarem presentes mas não se manifestam aos nossos cinco sentidos. Não é possível progredir nas camadas da personalidade saltando por cima de algumas delas, porque cada camada é construída sobre a anterior. A tradição cultural é o legado acumulado naquelas pessoas que fizeram a descodificação do conhecimento, incorporando-o na sua pessoa, não se podendo confundir com a acumulação de registos, também estes com a obrigação de serem descodificados. A música pode ajudar a enriquecer o nosso imaginário ao desenvolver o senso de continuidade e a evocação de experiências interiores sem a utilização de imagens visuais.
A nova “classe letrada” A classe letrada é constituída por um círculo de pessoas que, pela sua cultura e informação, estão habilitadas a receber a produção dos intelectuais – o topo desta classe – e pela selecção e classificação do material vão criar um senso comum superior da sociedade. No Brasil não existe mais essa classe letrada a que nos possamos dirigir, nem sequer existe o restrito grupo dos intelectuais. Existe apenas um grupo activista militante que ocupou todos os espaços nas universidades e instituições de cultura
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mediante a revolução cultural gramsciana. Apesar deste grupo militante não ser letrado nem minimamente preparado, para quem é ainda mais ignorante, incluindo os estudantes que chegam à universidade, ele desempenha a autoridade que seria de uma verdadeira classe letrada e a sua produção é vista como sendo a expressão da cultura superior. Mas essa cultura superior não existe mais e nem sequer existe algum professor universitário na área das ciências humanas que seja alfabetizado, abundando nos seus artigos erros gramaticais primários. Isto criou uma situação de paralisia cultural que nunca se verificou em mais lado algum, porque noutros países, apesar de também existir uma ocupação de espaços por esquerdistas, estes efectivamente receberam alguma informação, podendo ser desonestos mas não incultos. Precisamos de ter consciência deste ambiente para que ele não nos corrompa, deprima e desencoraja. A construção da nossa personalidade intelectual e moral é mais importante que os conhecimentos positivos que vamos obter. É muito importante escolher um professor e segui-lo por muitos anos e não sair logo dando palpites depois de aprender duas ou três coisas. Os alunos do COF têm a vantagem de ter um compromisso formal assumido, que no fundo é um compromisso com nós mesmos e nos obriga a atingir certos resultados intelectuais, existenciais e morais.
Radiografia intelectual de um professor da USP Vladimir Safatle é um professor de filosofia na USP que, no artigo “A universidade não é caso de polícia”, defendeu os alunos que provocaram distúrbios e destruição nesta instituição. A sua produção académica está recheada de um vocabulário retirado da Escola de Frankfurt, Jacques Lacan, Foucault e outros na mesma linha, a que se juntam vários erros gramaticais elementares e uma inconsciência e incompreensão do mundo digna de um adolescente. O uso do jargão dos seus gurus ideológicos faz o sujeito achar que está a falar de algo sério. Apesar do mau gosto que revela a sua escrita, Vladimir Safatle revela muito mais capacidade que a maioria dos seus colegas. Nesta análise feita a Vladimir Safatle não serão discutidas as suas ideias, apenas será demonstrado que ele não está qualificado para ensinar filosofia ou opinar sobre seja o que for. Ele dá um duplo exemplo de inversão psicótica entre sujeito e objecto, tanto na sua reacção aos eventos ocorridos na USP como na análise que fez de transformações sociais mais profundas e duráveis. No artigo em que defendeu os alunos que fizeram uma “manifestação pacífica”, segundo ele, dá logo mostras da sua iliteracia ao classificar a intervenção policial como “brutalidade securitária”, ignorando que assim se está a referir à indústria de seguros e não a questões de segurança policial. Veremos que ele acerta quando classifica os causadores de distúrbios de bons alunos porque estes, de facto, aprenderam aquilo que este professor ensina. No seu site (http://www.geocities.com/vladimirsafatle) está reproduzido o artigo, do campo da sociologia da publicidade, intitulado “Certas Metamorfoses da Sedução: Destruição e Reconfiguração do Corpo na Publicidade Mundial dos Anos 90”. Ele leva páginas atrás de páginas, em estilo intragável e com frequentes erros gramaticais, para apenas observar as mudanças ocorridas na imagem do corpo humano, na publicidade ao longo da década de 90, onde se partiu de uma imagem positiva e estável da pessoa para outra imagem fluida e ela mesma reflexo da destruição. Para ele, o fenómeno é causado por um astuto mecanismo da lógica de
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mercado, que originou novos processos de mercantilização da negatividade, com a introdução de rupturas internas controladas, que vieram substituir as imagens anteriores de beleza e integridade que supostamente teriam esgotado o seu potencial. Ele chega a esta conclusão seguindo Lacan, quando este diz que a imagem do corpo nada tem de próprio e é construída, numa alienação de si, pela introjeção de padrões estereotipados vindos de fora. O “capitalismo tardio” teria apostado numa lógica de ruptura interna na publicidade, pegando naquilo que era inicialmente uma crítica cultural e, pela sua instrumentalização, transformou-a em “novos processos de mercantilização”. Existe uma inversão psicótica em Lacan quando este diz que a imagem do “eu” formase pela introjeção de padrões exteriores e isso é uma alienação. A não ser que existisse um eu metafísico, algo que todos os materialistas rejeitam, é impossível que a formação da imagem pela introjeção de padrões exteriores configure uma alienação pois nada haveria de prévio sobre o qual a alienação se reportaria. Mas se essa imagem é uma alienação, então só resta mesmo destruí-la, fim a que se propõe Lacan e os seus seguidores que preconizam ataques à sociedade, fonte de alienação do “verdadeiro eu” que existe no bom selvagem, algo contraditório com a teoria da introjeção. Hegel já tinha previsto que o único objectivo que pode subsistir aqui é o da própria destruição (para mais explicações, ver artigo “Uma lição de Hegel”, disponível em http://www.olavodecarvalho.org/semana/081114dc.html). Para quem carrega a herança de Lacan e da Escola de Frankfurt, o “capitalismo tardio” é algo tão infernal que a destruição torna-se num dever moral, e causa abominação ver essa querida destruição se tornar também num bem de consumo. A ideia de uma imagem introjectada a partir de fora é apelativa para as pessoas com um mundo interior pobre, que não têm convivência consigo mesmas e então vivem da exterioridade. O conceito de “capitalismo tardio” revela em si a inversão milenarista da percepção do tempo (mais explicações no artigo “A História segundo Godot”, disponível em http://www.olavodecarvalho.org/semana/030816globo.htm). Por outro lado, configura um abuso metodológico atribuir a uma entidade abstracta, como o “capitalismo tardio”, algo cujos agentes individuais e grupais estão claramente identificados, neste caso a classe publicitária, sobre a qual devemos avaliar o conjunto de crenças e disposições. Imediatamente se chega à conclusão que os publicitários não mudaram a imagem do corpo segundo uma lógica mercantilista mas foram incutidos a isso nos bancos escolares, numa lógica lacaniana de destruição do corpo. Ao contrário do que defende o prof. Safatle, não foi o capitalismo que instrumentalizou a destruição, foi a destruição que se impôs como padrão dominante da sociedade ao se apoderar dos instrumentos de cultura de massas. Comprova isso a enorme biblioteca de “estudos culturais” que visam destruir a cultura do capitalismo, ao passo que material necessário para a estratégia subtil de dominação capitalista do mecanismo da destruição a seu favor, uma tarefa hercúlea, é algo inexistente. Está aqui um caso evidente de paralaxe cognitiva – deslocamento entre o eixo da construção teórica e o eixo da experiência real – que produziu uma total inversão entre sujeito e objecto, levando aqueles que produziram uma acção fazerem a sua atribuição à entidade abstracta do “capitalismo tardio”.
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Os professores da USP, de filosofia e ciências humanas, moldam a cabeça dos seus alunos segundo o seu padrão de alienação. O que eles ensinam aos seus alunos não passa de uma forma de ignorância activa. À medida em que eles dominam todas as instituições de cultura, eles vão reduzindo tudo ao seu nível de inépcia, mas continuam a desfrutar da autoridade de uma verdadeira classe letrada de topo. O que eles defendem politicamente acaba por ser secundário, porque é apenas um sintoma do divórcio entre pensamento e realidade; a sua principal actividade é a ocultação, não deixam que nem eles nem mais ninguém saiba o que está acontecendo. Não temos força para retirar estes sujeitos dos lugares que ocupam. Então só resta fugir desta contaminação e apostar numa formação que seleccione o que há de melhor em outras culturas e noutros tempos, onde e quando existia uma cultura superior de verdade. Não é necessário fazer da filosofia uma prática ascética. Não há ascetismo em Sócrates, apenas a dedicação a um dever assumido e isso é suficiente para a construção da personalidade. As técnicas ascéticas podem funcionar, mas se falharem podem destruir o indivíduo por completo.
A destruição da inteligência A inteligência humana não é uma função especializada mas tem um carácter sistémico. Ela é a parte superior da nossa personalidade, que condensa toda a nossa experiência e unifica tudo. Se tentarmos isolar pedaços para lhes vedar a entrada da inteligência, vamos sair lesados. Para manter a inteligência é preciso, em primeiro lugar, aprender a sinceridade porque inteligência é a capacidade de perceber a verdade. A verdade não pode aparecer nas altas ideias se ela está oculta na nossa existência. Quem não diz a verdade para si mesmo destrói a sua inteligência, e é esse o grande erro dos farsantes que usurparam o papel dos intelectuais. Exercício de Leitura Lenta – Exposição Este exercício vai levar muito tempo, talvez mais que a duração do curso, e pretende nos marcar para o resto da vida. O acto de leitura deve ser incorporado não apenas na nossa memória mas na nossa pessoa. Cada frase que vamos ler deve ser incorporada em nós até se transformar num novo mecanismo de percepção. Para este exercício vamos pegar num livro de filosofia, não importa qual apesar de alguns serem mais aconselháveis. Como vamos conviver muito tempo com o livro é preferível escolher um que nos faça bem, e para isso os livros de Louis Lavelle são aconselháveis. É fundamental ler apenas algumas frases do livro por dia, uma parte que tenha alguma unidade e nunca mais que um parágrafo. Cada frase será transformada num objecto de meditação, ou seja, será confrontada de forma aprofundada de modo a reconhecer nela a experiência interior a que o autor se refere. Neste processo teremos de usar elementos de memória, imaginação, associação de ideias e todos os outros recursos que temos. Apenas nos podemos dar por satisfeitos quando a frase, que inicialmente chegou como ideia, tenha se transformado em percepção. É como refazer o percurso de alguém que nunca tenha visto uma vaca e vai ler a definição no dicionário e depois tenha procurado as vacas e as tenha observado até que “vaca” já não seja o enunciado mas a experiência real com as vacas.
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Quando a leitura ficar interessante é natural o impulso para continuar, mas devemos nos refrear. Quando se passa para o segundo parágrafo, adicionado ao esforço anterior de absorção imaginativa existencial, é necessário fazer a articulação com o primeiro parágrafo. No final teremos a sequência exacta das ideias que já se terão transformado em recordações e percepções, porque os conceitos abstractos que fomos encontrando já foram transformados em exemplos concretos vivenciados e reais. Podemos ter a tentação de ir escrevendo à medida que vamos fazendo a leitura, mas devemos, no início, conter esse ímpeto. Primeiro temos de aprofundar a experiência e depois, quando a colocarmos por escrito, já será algo mais definitivo e útil para outros.
Exercício de Leitura Lenta – Exemplo prático: A presença total O exercício vai ser exemplificado a partir do livro La Présence Totale, de Louis Lavelle. Este livro é apropriado ao exercício por ser um resumo (do livro La Dialectique de l´Éternel Présent ), e a brevidade opõe-se frequentemente à clareza devido à compactação. O exemplo será dado a partir do primeiro parágrafo do livro, após a introdução: Há uma experiência inicial, que está implícita em todas as outras, e que dá a cada uma delas a sua gravidade e a sua profundidade: é a experiência da presença do ser. Reconhecer essa presença, é reconhecer, no mesmo ato, a participação do eu no ser.
Existe uma experiência anterior a todas as outras, que dá às restantes a profundidade e gravidade. Essa é a experiência da “presença do ser”, e o ser é tudo quanto existe. Para meditar sobre isto são sugeridos alguns exercícios. Primeiro vamos tentar suprimir a presença do ser, imaginar que não há nada, e temos de repetir isto vezes sem conta para perceber que nunca tivemos a experiência do nada. Temos de fazer este tipo de prática para que as frases que lemos sejam como algo que nos tivesse ocorrido a nós, e não estamos logo a pensar se é certo ou errado. Iremos constatar que, por mais que tentemos suprimir imaginariamente tudo, há sempre algo que sobra, nomeadamente a nossa própria presença, a nossa respiração. Numa segunda etapa vamos mesmo tentar imaginar que não existimos. Depois de passar algum tempo nestes exercícios que tentam suprimir o ser, vamos partir numa nova direcção e tentar perceber conscientemente a presença do ser, que é algo tão óbvio que nunca pensamos nisso, apenas admitimos de passagem, mas frequentemente o nosso raciocínio desmente a presença do ser e aí estamos a romper a ligação entre pensamento e experiência, ou seja, estamos aprendendo a mentir. Os exercícios seguintes são extraídos do livro Controle Cerebral e Emocional, de Narciso Irala. Vamos deitar, fechar os olhos, relaxar, e ganhar consciência dos ruídos em torno, próximos e distantes. Há uma infinidade de sons que não estavam na nossa consciência, não eram importantes para a nossa acção imediata, mas estavam presentes no fundo. Vamos perceber que existe o cenário próximo onde nos movemos, e depois o ambiente prolonga-se por uma série de círculos concêntricos onde os ruídos se
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tornam cada vez mais inaudíveis mas ainda estão lá. Este não é um exercício de análise, é só para fazer uma colecção de ruídos trazendo para a frente o que se encontrava no fundo. O exercício descrito anteriormente é de percepção e vamos passar agora a outro de construção mental. Novamente de olhos fechados imaginamos um fundo preto onde traçamos, da esquerda para a direita, uma linha branca. Da ponta direita da linha branca, traçamos outra linha branca para baixo, perpendicular à primeira e do mesmo tamanho. Traçamos uma terceira perpendicular branca do mesmo tamanho para a esquerda e, finalmente, uma quarta que fechará o quadrado. Sem esta capacidade construtiva não poderíamos conceber, mas se passarmos por cima da consciência de percepção vamos substituir a realidade pelo mundo das ideias, mas o mundo real é incomparavelmente mais rico que o mundo do pensamento, mesmo para um Aristóteles. Primeiro temos de aprender com o universo real, que é matéria de percepção. No exercício de percepção nós sabemos que os ruídos saem sempre de algum lugar, por isso não percebemos apenas os ruídos mas presenças, e elas são uma nossa referência permanente que assinala onde estamos e o que fazemos, mesmo se não lhes prestarmos atenção. Um ruído percebido como estando longe, longe não é ruído, é uma referência espacial, por isso existe implícita a presença do espaço. Estes exercícios pretendem puxar a presença de fundo para a frente e incorporá-la na nossa pessoa. A nossa atenção vota-se habitualmente para o que nos interessa, e essa escolha é uma actividade construtiva, que separa alguns aspectos, mas o universo é constituído de uma infinidade de coisas. É a presença do universo, que trazemos para a frente, que vai garantir que os nossos pensamentos não fujam muito à realidade. O foco da nossa atenção, que incide no objecto recortado, não pode ser separado do fundo permanente daquilo a que não prestamos atenção. O senso de presença do ser dá-nos também o senso de continuidade, que não pode ser obtido pela memória ou na mente, que são todas fragmentadas. O sentido da comunicação não-verbal torna-se claro quando entendemos que a mensagem verbal é apenas um recorte dentro do mundo da experiência real e a nossa presença física é o seu suporte. Para além do mundo da experiência existe o mundo que não é objecto de experiência mas está ali presente. Se pensarmos nas pessoas a quem nos dirigimos como sendo meras formas ocas sem interior, isso parece macabro porque o nosso senso de presença faz que, sem pensarmos, contemos que elas tenham órgãos internos em funcionamento. Devemos ver os livros de filosofia como pautas de música, que só podem ser compreendidas quando executadas, mesmo que interiormente. A leitura tem que ser lenta de início, e pode ser útil um livro não traduzido que nos refreia a vontade de avançar. Depois o ritmo de leitura poderá aumentar sem prejuízo porque já fizemos muitas evocações, que se acumularam como experiências interiores e ficaram no fundo da memória e já as poderemos evocar novamente com maior rapidez e facilidade. Ao fim de muitos anos a nossa experiência de leitura aprimorou-se ao ponto de cada frase descortinar para nós um mundo inteiro, como se os livros fossem comidos e não lidos. Todos os grandes leitores do passado leram desta forma; foi assim que os grandes romancistas entenderam outros grandes romancistas e tudo o que eles escreviam já tinha implícitos os universos dos escritores passados que haviam sido incorporados. Isso exaspera alguns autores que querem se libertar do legado passado, às vezes do
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próprio legado, mas não é possível fazer isso porque o que foi absorvido transformouse num instrumento de percepção e é fonte para novas associações de ideias e analogias. Mas não podemos esquecer que aquilo que um escritor ou um filósofo conseguiram transmitir foi apenas uma pequena parte do seu imaginário. O Exercício de Leitura Lenta , por um lado, é um exercício de percepção e memória, mas também é um exercício de construção, já que é necessário reconstruir os nexos entre as experiências interiores à medida em que se avança nos parágrafos. Quando a nossa capacidade de leitura for aumentando é natural ficarmos intolerantes ao palavreado vazio que muitos exibem ao falar de filosofia, pois perceberemos que eles não perderam um minuto tentando evocar as experiências que estão por detrás das palavras. Um intelectual sério, por cada palavra que diz tem muitas mais que não podem ser enunciadas devido à riqueza do seu património, em larga medida inexprimível.
O amor à realidade O Imbecil Colectivo é resultado da disseminação das técnicas, criadas por pessoas como Jacques Lacan, que habilitam os sujeitos a entender tudo de forma invertida. Apesar de serem técnicas de “emburrecimento”, estas só podem ser apreendidas por pessoas com alguma cultura e inteligência. Os elementos da mentalidade revolucionária tiveram origem em fontes não revolucionárias, e foram incorporando-se nos hábitos culturais de tal forma que é quase impossível lhes escapar se não existir um verdadeiro amor à realidade, demonstrado por Lavelle, Husserl ou Voegelin. Isto não pode ser substituído pelo propalado amor à ciência, pois esta não passa de uma construção humana, um jogo; mas o universo não é um jogo, é algo que não sabemos exactamente o que é mas para o qual devemos ter uma abertura. Somente a abertura para a presença total do ser garante o valor das nossas ideias, ou estas não passarão de mera construção mental. Uma classe verdadeiramente letrada percebe instintivamente a valia do material intelectual, por exemplo, a densidade de um poema. Um grande poeta, como Bruno Tolentino, era ele mesmo um grande leitor de poesia, com milhares de referências incorporadas, e isso colocava-o na linhagem dos poetas. A realidade como um complexo de latências A realidade não é um complexo de possibilidades mas de latências, entendidas como algo que sabemos estar presente mas que não se apresenta manifesto aos nossos cinco sentidos. Sabemos que algo está vivo não por conclusão lógica, o que obrigaria a pensar em incontáveis detalhes, mas pela percepção de latência, ou seja, não percebemos uma presença física estática mas sim com o seu potencial e o conjunto de impossibilidades. Se encontrarmos um cachorro, sabemos que ele pode nos morder ou abanar o rabo, mas sabemos que não sairá voando. Latência não é possibilidade, é um poder que já está pronto a se manifestar. A percepção de latência está por detrás da percepção da presença. As possibilidades só se abrem a partir daqui, mas elas não são objecto de percepção e só são percebidas por construção mental. Já as latências são percebidas como coisas imediatas e são indispensáveis até para saber onde estamos, algo que o mundo do pensamento, por si só, não nos consegue esclarecer. A