LIGAÇÕES PERIGOSAS CHODERLOS DE LACLOS
TÍTULO ORIGINAL: LES LIAISONS DANGEREUSES TEXTO INTEGRAL: EDITORES ASSOCIADOS TRADUÇÃO: JOÃO PEDRO DE ANDRADE E ALFREDO AMORIM
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PREFÁCIO DO REDATOR Esta obra, ou antes, esta coleção, que o público achará talvez ainda volumosa em demasia, não contém, todavia mais do que um pequeno número das cartas* que compunham a totalidade da c orr orrespo espo ndênc ia de ond e foi extr extraí aída da . Enc Enc arreg arreg ad o d e p ô-la ô-la em orde orde m pelas pessoas a cujas mãos chegou, e que eu sabia terem a intenção de publicá-la, pedi apenas, como prêmio dos meus cuidados, a permissão de suprimir tudo o que me parecesse inútil; e de fato conservei apenas as cartas que me pareceram necessárias, quer para a c om preensão preensão do s ac ontec ime ntos, ntos, quer pa ra o d esenvol esenvolvi vimento mento do s caracteres. Se acrescentarmos a este ligeiro trabalho o de repor por ordem as cartas que deixei ficar, ordem para a qual eu próprio quase sem p re seg seg ui a d a s d a ta s, e, enfim, algum a s not a s c urta urta s e rar ra ra s, e q ue, na sua sua m aior pa rte nã o tê m o utro utro o bjetivo bjetivo senão senão o d e indic indic ar a o rige m de algumas citações ou de motivar alguns cortes que me permiti fazer, ter-s ter-se-á inteira nteira me nte idé ia d a p a rte q ue tive ne sta ob ra . A minha m issã o nã o ia m a is long e. Eu tinha proposto alterações mais consideráveis, quase todas relativas à pureza de dicção ou de estilo, contra a qual se encontrarão muitas faltas. Desejei também ser autorizado a cortar diversas cartas demasiado longas, e das quais algumas tratam separadamente, e quase sem transição, assuntos absolutamente estranhos uns aos outros. Este trabalho, que não foi aceito, não seria bastante sem dúvida para d a r mé rito à ob ra , mas ter-l ter-lhe-ia he-ia p elo m eno s tira tira d o p a rte d os d efeitos. efeitos. Foi-me oi-me ob jeta d o q ue e ra m a s p róp ria s c a rta s q ue se se p rete nd ia . ...da r a c onhec er, er, e não ap enas uma ob ra feita feita seg undo a s c artas; artas; que seria tanto contra a verossimilhança como contra a verdade que, de oito á dez pessoas que colaboraram nesta correspondência, todas escrevessem com igual pureza. E à minha réplica de que, longe disso, não havia, pelo contrário, nenhuma que não tivesse cometido erros graves, foi-me respondido que todo o leitor razoável esperaria seguramente encontrar erros numa coleção de cartas de alguns particulares, visto que em todas as que se têm publicado de diferentes a utores estima estima d os, os, e m esmo esmo d e a lguns a c a d êm ic os, os, nã o se se e nc ontrava nenhuma totalmente ao abrigo desta censura. Estas razões não me persuadiram e achei-as, como as acho ainda, mais fáceis de dar que de rec eb er; er; ma s não me c om pe tia tia ma nda r, e subm subm eti-me eti-me . Som ente m e reservei o direito de protestar e de declarar que não era essa a minha op iniã niã o; o q ue faç o neste neste mo me nto. Qua nto a o m éri érito q ue e sta ob ra po ssa ter, ter, talvez talvez me não c aiba explic explic á -lo, -lo, pois a m inha o p iniã niã o nã o d eve ne m p od e ter infl influênc uênc ia sob sob re *Devo prevenir também que suprimi ou mudei todos os nomes das pessoas que intervêm nestas cartas; e que, se no número daqueles que lhes substituí, se encontrarem nomes que pertençam a alguém, terá sido unicamente por erro da minha p arte, e d o q ual não se d everá tirar tirar qua lque r c onc lusão usão . (N. (N. do A.) A.)
a de ninguém. Entretanto, todos os que, antes de começar uma leitura, fic fic am satisfei atisfeitos tos po r sab er aproxi aproxima da mente c om o q ue p od em c onta r, esses, dizia eu que continuem, os outros farão melhor em passar ime diata mente p ara a ob ra em si; sab sab em já o q ue lhes lhes ba sta. O que posso dizer antes do mais é que se a minha intenção foi, como reconheço, der a conhecer estas cartas, estou, todavia muito longe de esperar daí um êxito: e que não se tome esta sinceridade da minha parte pela modéstia fingida de um autor; pois declaro com a mesma franqueza que, se esta coleção não me tivesse parecido digna de ser oferec oferec ida ao púb lic o, eu não m e teria teria o c upa do de la. Tr Trate mo s de c onc ilia r esta esta a pa rente c ontra ontra diçã o. O mérito de uma obra compõe-se da sua utilidade ou do agrado que desperta, e mesmo duma coisa e doutra, quando disso é suscetível; mas o êxito, que não prova sempre o mérito, deve-se frequentemente mais à escolha do assunto que à sua execução, ao c onjunto onjunto d os mo tivos tivos que ap resenta esenta do que à ma neir neira c om o e les são tratados. Ora contendo esta coleção, como o seu título anuncia, as c a rta s d e to d a uma soc ied a d e, reina reina nela um a d iversi versid a d e d e interes interessse que e nfraq nfraq uec e o d o leitor leitor.. Além disso, sendo quase todos os sentimentos que aí se exprimem fingidos ou dissimulados, deixam de poder mesmo excitar um interesse que não seja o de curiosidade sempre muito abaixo do de sentimento, e que, sobretudo, conduz menos à indulgência e deixa tanto mais a perceber as faltas que se encontram nos pormenores, qua nto e stes se op õem c onstante onstante mente ao de sejo q ue unic unic am ente se quer satisfazer. Estes defeitos são talvez resgatados, em parte, por uma qua lida de que d o m esmo esmo m od o tem ori origem na naturez naturezaa d a o bra; é a va ried a d e d os estil estilos os;; mérito mérito q ue um a utor atinge d ific fic ilme nte, ma s q ue se apresentava aqui por si próprio, e que ao menos exclui o aborrecimento da uniformidade. Algumas pessoas poderão ainda esperar encontrar para seu proveito um número assaz grande de observações, ou novas ou pouco conhecidas, e que se encontram dispersas nestas cartas. E nisso se resume, segundo creio, tudo que se pode esperar como motivos de a g ra d o, usa usa nd o, a liá s, de um juíz uízo extrem extrem a me nte favo rá vel. A utili utilida de da ob ra, q ue p orventur orventuraa será erá ainda ma is c ontesta ontesta da , parece-me, todavia fácil de estabelecer. Julgo pelo menos que é prestar um serviço aos costumes divulgar os meios que empregam os q ue o s têm ma us p a ra c orrom orrom p er os q ue o s têm b ons, ons, e c reio q ue e sta s c a rta s p od erão c onc orrer orrer efic a zm ente ent e p a ra ess esse fim fim . Enc ontraron trar-sse-á tam b ém nelas nelas a prova e o e xemp lo d e d uas verd verd ad es imp ortante ortante s que dir-se-ia serem desconhecidas, tão pouco elas são praticadas: a primeir primeira, a, que tod a a mulher mulher que c onsente onsente e m rec eb er no seu seu m eio um hom em sem sem mo ra l a c a b a p or se to rna r a sua sua vítima; vítima; a o utra utra , q ue é p elo me nos imp rude nte tod a a mã e q ue ad mita que outra pe ssoa além d ela tenha a confiança de sua filha. Os jovens de um e de outro sexo
poderiam também aprender aqui que a amizade que as pessoas de maus costumes parecem dedicar-lhes tão facilmente não é mais que uma perigosa cilada, tão fatal à sua felicidade como à sua virtude. Parece-me, no entanto, muito de temer aqui o abuso, que anda sem p re tã o p erto da me d id a justa usta ; e, long long e d e a c onselhar onselhar esta esta leitura eitura à mocidade, parece-me mais importante afastar dela todas as deste gênero. A época em que tal leitura pode deixar de ser perigosa e tornar-se útil parece-me ter sido bem escolhida, para o seu sexo, por uma boa mãe não apenas inteligente, mas de inteligência bem guiada. "Julgo", me dizia ela, depois de ter lido o manuscrito desta correspondência, "que prestarei um bom serviço a minha filha, dandolhe este livro no dia do seu casamento." Se todas as mães de família p ensa ensa rem isto d a o b ra , felic felic ita r-me-ei ete rnam ente p or tê-la tê-la p ublic ublic a d o. Mas, partindo ainda desta suposição favorável, afigura-se-me sempre que esta coleção deve agradar a pouca gente. Os homens e as mulheres de costumes depravados terão interesse em denegrir uma ob ra q ue p od e serser-llhes p rejudicial; e c om o nã o lhes falta a stúc ia , ta lvez se lem b rem d e p ôr do seu lad o os rigo rista s, alarmad os p elo q ua d ro d e maus costumes que não houve receio de apresentar-lhes. Os que se julgam espíritos fortes não terão qualquer interesse por uma mulher devota, que por isso mesmo será para eles uma mulher sem imp ortânc ortânc ia, enq uanto que os de votos fic fic arão de sc ontentes p or verem verem suc umb ir a vir virtude , queix queixand o-se o-se d o frac frac o p od er com que é m ostr ostrad ad a a relig elig iã o. Por sua vez, as pessoas de gosto delicado hão-de enfastiar-se c om o estil estiloo d em a sia d o simp les e d efeituoso efeituoso d e a lgum a s d esta esta s c a rta s, enq uanto que o c om um d os leitores eitores,, sed sed uzi uzid o p ela ela id éia d e q ue tud o o q ue é imp ress esso é o fruto fruto d e um tra tra b a lho, jul julga ga rá ver em a lg uma s outras a maneira dificilmente conseguida de um autor que se mostra por de trás trás d a p ers ersona ge m q ue fala fala a seu ma nda do . Enfim, nfim, ta lvez venha a d izer-s er-se, na g eneralid eneralid a d e, que c a d a c oisa oisa não vale senã senã o no luga r ond e e stá c oloca da ; e que, se se o rd inariam nariam ente o estilo demasiado castigado dos autores tira de fato toda a graça às cartas de sociedade, as negligências destas se tornam verdadeiros erros erros e a s tor to rna m insup insup ortá veis ve is,, uma um a vez v ez ent reg ues à p ub lica ç ã o. Confesso com sinceridade que todas estas censuras podem ter fundamento; creio também que me seria impossível responder-lhes, e mesmo sem ir além da extensão de um prefácio. Mas deve c o m p ree nd e r-se -se q ue, ue , se se m e fo sse nec n ec ess essá rio rio resp resp o nd er a t ud o , seria seria iss isso sinal de que a obra não responderia a nada; e que, se eu assim o p ensa ensa sse, teria teria suprimido uprimido a o me smo tem p o o p refá c io e o livro. vro.
PRIMEIRA PARTE
CARTA I CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY* No c onv ento ent o d a s Usulina ulina s d e... Bem vês, vês, minha minha bo a a miga , que c ump ro a minha minha p a lavra, e q ue as toucas e laços não ocupam todo o meu tempo; sempre me há de ficar algum para ti. Mas olha que só hoje vi mais adereços do que nos q ua tro a nos q ue p a ssa mo s juntas; juntas; e c reio q ue a orgulhosa orgulhosa Ta nvill nvillel ter te rá maior aborrecimento com a minha primeira visita, em que eu conto perguntar por ela, do que ela pensou que nos causaria todas as vezes q ue vinha v er-nos er-nos em Fiorc iorc h. A Mamã consultou-me sobre todos os pormenores; trata-me muito meno s c om o p ensi ensionis onista do que noutro noutro te mp o. Tenho um a c riad a d e q ue d isp onho, e esc esc revo-te em uma secretária muito bonita, de que possuo a chave, e onde posso fechar tud o o q ue q uis uiser. A Ma mã d isse-me q ue a verei tod os os d ia s log o q ue ela se se levante; que b astará astará q ue eu e steja p entea da pa ra ja ntar, ntar, po rque esta esta rem os sem p re sós sós,, e q ue entã o e la m e d irá a ho ra e m q ue d eve mo s junta junta r-nos -nos à ta rd e. O resto resto d o te mp o e stá à minha d isp osi osiç ã o, e te nho a minha ha rp a , o m eu d esenho esenho e livros vros c om o no c onve nto; só só nã o e sta rá a madre Perpétua para ralhar comigo, e dependerá apenas de mim esta esta r sem p re sem sem fazer fazer nad a : mas c om o nã o te nho a minha Sofia Sofia p a ra c onve rsa r e p a ra rir, p refiro efiro e ntã o o c up a r-me d ela. Ainda Ainda não são c inco horas horas;; não d evo e star co m a Ma mã senã o à s sete : ora ora a q ui está está um grand e intervalo, p a ra o c a so em q ue t ivess vesse alguma c oisa oisa a dizer dizer-te! -te! Ma s ainda não me falara falara m d e na da ; e sem sem os prepa rativos que vejo fazer fazer,, e a qua ntida ntida de d e c ostur ostureir eiras as que vêm po r minha causa, julgaria que ninguém pensa em casar-me, e que é mais um d ispa rate d a bo a Josefi osefina. na. Mas a verdade é que a Mamã me disse tantas vezes que uma menina deve ficar no convento até casar, que julgo que Josefina tem ra zã o, visto visto q ue ela m e fe z sa ir d e lá. lá . Acaba de parar uma carruagem à porta, e a Mamã mandoume q ue fo sse te r c om ela ime d iata me nte . Se fo sse o senho r? Ainda não estou vestida, a minha mão treme e o meu coração bate. Perguntei erguntei à c riad a d e q uarto se se sab sab ia q uem e stava c om minha minha mãe: "Ora", disse ela, "é o senhor C..." e ria. Oh! Creio que é ele. Voltarei com certeza a contar-te o que se passou. O nome já eu sei. Não devo *Pens *Pensiionista onista d o m esmo esmo c onve nto .
fazer fazer esp esp erar. erar. Ad eus, eus, a té d a q ui a um mo me nto. Como te vais rir da pobre Cecília! Oh! Como fiquei envergonhada!
Mas tu terias caído como eu. Quando entrei nos aposentos da Mamã, vi um senhor vestido de preto, de pé, por detrás dela. Cumprimentei-o o melhor que pude e fiquei sem me poder mexer do me u luga luga r. Pod Pod es ima ginar c om o e u o e xam inava ! "Senhora", disse ele a minha mãe, saudando-me, "trata-se na verda verda de de uma menina menina enc antad ora, ora, e si sinto melhor melhor do q ue nunc nunc a o va lor d os vo ssos o b séq uios" uios". A esta esta s p a lavr lav ra s tã o p o sitivas itiva s to m o u-me um ta l trem trem or q ue nã o m e p od ia sus suster; ter; d ep a rei c om uma p oltrona oltrona e sente sente ime nela nela , tod a verme verme lha e c onfusa. onfusa. Ma l eu m e tinha senta senta d o, eis eis q ue o ho me m se se lanç a a me us p és. és. Então a tua pobre Cecília perdeu a cabeça; eu estava, como disse a Mamã, verdadeiramente espavorida. Levantei-me lançando um grito a g ud íssimo ;... ... Olha, co mo na que le d ia d o trovã o. A Mamã soltou uma gargalhada e disse-me: "Então, que tem? Sente-se e dê o seu pé a esse senhor." Na verdade, minha querida amiga, o senhor era um sapateiro. Não posso dizer-te como fiquei envergo envergo nhad a; po r feli felic ida de só a li estava estava a M am ã. Julgo que, quando for casada, não voltarei a servir-me daquele sapateiro. Hás-de convir que já sei muitas coisas! Adeus. São perto de seis horas, e a minha criada de quarto disse-me que tenho de me vestir. Ad eus, eus, minha minha q ueri uerida Sofia; ofia; go sto tanto d e ti c om o qua ndo estava estava no convento. P. S. - Não sei por quem enviar esta carta; por isso espero que Josefina venha. Pa ris, is, 3 d e Ag o sto d e 17* 17* *.
CARTA II A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT No c a stelo d e... e... Volte meu caro Visconde, volte; que faz o senhor, que pode o senho r fa fa zer em c a sa d e uma velha t ia c ujos ujos b ens lhe e stã o ga ra ntid ntid os? os? Pa rta ime d ia ta me nte; é-me p rec iso a q ui. ui. Tive um a exce lente id éia, e desejo confiar-lhe a execução. Estas palavras deveriam bastar-lhe; e, muito honrado pela minha escolha, devia vir, com solicitude, receber d e joelho jo elho s a s m inhas inha s ord ens en s. Mas o senhor abusa das minhas bondades, mesmo depois que de ixou d e a proveitá-l proveitá-las as;; e na alternativa alternativa d e um ód io ete rno ou d e uma excessiva indulgência, a sua felicidade quer que a minha bondade a conduza. Desejo pois instruí-lo sobre os meus projetos: mas jure-me que
como fiel cavaleiro não correrá nenhuma aventura sem que esta seja levada ao fim. Ela é digna de um herói: o senhor servirá o amor e a vingança; será enfim uma astúcia a mais a pôr nas suas memórias: sim, nas suas memórias, pois eu quero que elas sejam publicadas um dia, enc a rreg o-me d e e sc revê -la s. Ma s d eixem os isso, e vo ltemos a o q ue m e preocupa. Madame de Volanges vai casar a filha: é ainda um segredo; mas desde ontem que estou na posse dele. E quem julga que ela esc olheu p ara g enro? O Cond e d e G erc ourt. Quem d iria que eu viria a ser p rima d e Ge rc ourt? Sinto-me p ossuíd a d e ta l furor!... Pois bem! Não adivinhou ainda? Oh, inteligência lenta! Já lhe p erdo ou, po is, a a ventura d a Intend ente *? E eu, não tenho ra zõe s p a ra me queixar dele mais ainda, seu monstro? Mas vou-me acalmar, e a espe ranç a d e me vinga r lanç a a serenida de na m inha a lma . Decerto já se tem aborrecido cem vezes, tal como eu, com a imp ortânc ia que Gercourt atribui à sua próxima c onq uista, e c om a tola p resunç ã o q ue o d isp õe a c rer que ev ita rá a sorte inevitáve l. Conhece as suas ridículas prevenções a favor das educações claustrais, e o seu preconceito, ainda mais ridículo, em relação à mod éstia d a s loura s. Eu a p osta ria, de fa to, que , ap esa r da s sessent a mil libras de renda da pequena Volanges, ele nunca faria esse casamento se ela fosse morena, ou se não tivesse estado no convento. Provemoslhe, pois que é apenas um tolo; com certeza há de sê-lo um dia, não é isso que me preocupa: mas o agradável seria que ele começasse por aí. Como nós nos divertiríamos no dia seguinte ouvindo-o gabar-se, pois ele há de gabar-se; e depois, se o Visconde chegar a instruir essa ra p a rig uinha, será p rec iso muito p ouc a sorte se o Ge rc ourt não se tornar c om o q ua lq uer outro, a fá b ula d e Pa ris. Aliás, a heroína deste novo romance merece todos os seus cuidados: é na verdade bonita; tem apenas quinze anos, é um botão de rosa; acanhada, de fato, como já se não usa, e de modo nenhum a feta d a : ma s vós, os hom ens, não teme is isso; a lém d o ma is, é senho ra de c erto o lhar lang oroso q ue na verda d e p rom ete muito. Acresc ente a tudo isto que sou eu que a recomendo: não tem mais que agradecerme e obed ecer. Receberá esta carta amanhã de manhã. Exijo que amanhã às sete horas d a t a rd e esteja e m m inha c a sa . Não rec eb erei ningué m *Para entender esta passagem, deve saber-se que o Conde de Gercourt tinha deixado a Marquesa de Merteuil pela Intendente de..., que lhe tinha sacrificado o Visconde de Valmont, e que foi então que a Marquesa e o Visconde se ligaram um ao outro. Como esta aventura é muito anterior aos acontecimentos de que tratam estas cartas julgou-se dever suprimir toda a correspondência que com ela se liga. (N. do A.)
senão as oito, nem mesmo o Cavaleiro reinante: esse não tem cabeça para tamanha empresa. Bem vê que o amor não me cega. Às oito horas outorgo-lhe a liberdade, e as dez voltará para cear com o belo objeto, pois a mãe e a filha ceiam sempre em minha casa. Adeus; pa ssa do meio-dia, em breve d eixarei d e m e o c upa r d o Visc ond e.
Pa ris, 4 d e Ag osto d e 17* *.
CARTA III CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY Ainda não sei nada, minha boa amiga. A Mamã tinha ontem muita gente a cear. Apesar do interesse que tinha em examinar, os hom ens p rinc ip a lme nte, ab orrec i-me m uito. Tod a a g ente , hom ens e mulheres, olhava muito para mim, e depois punham-se a falar ao ouvido; e eu bem via q ue era d e mim que falavam. Isto fa zia -me c orar; era c oisa e m q ue eu nã o tinha m ã o. Bem queria impedi-lo, pois reparei que, quando olhavam para a s out ra s mulheres, ela s nã o c orava m; ou ta lvez fosse a p intura q ue nã o me deixava ver o seu embaraço, pois deve ser muito difícil deixar de c orar quand o um hom em nos olha fixam ente. O que mais me inquietava era não saber o que pensavam a me u resp eito. Creio, no enta nto ter ouvido d ua s ou três vezes a p a la vra bonita; mas ouvi muito distintamente dizer acanhada. E isso deve ser verdade, pois a senhora que pronunciava essa palavra é parente e amiga d e minha m ãe. Pareceu-me mesmo que de repente tinha sentido amizade por mim. Foi a única pessoa que falou comigo um pouco durante toda a noite. Ama nhã cea mos em c asa d ela. Ouvi ainda, depois da ceia, um homem que estou certa que falava de mim, e que dizia a outro: "É preciso deixar amadurecer, verem os este Inverno." Ta lvez seja esse q ue d eve c a sa r co mig o; m a s sendo assim, não será antes de quatro meses! Bem desejaria saber de q ue se trata . Chegou agora Josefina, e diz-me que está com pressa. Mas quero contar-te ainda uma das minhas acanhezas. Oh, creio que essa senho ra tem ra zã o! Depois da ceia puseram-se a jogar. Eu fiquei perto da Mamã; nã o sei c om o isso a c onte c eu, ma s a d ormec i qua se a seg uir. Acordou-me uma estrepitosa gargalhada. Não sei se riam de mim, mas assim o creio. A Mamã permitiu que me retirasse, e com isso deu-me grande prazer. Imagina que passava das onze horas. Adeus, minha q uerid a Sofia; a ma sem p re m uito a tua Ce c ília . Pod es esta r ce rta de que a soc ied ad e não é tão d ivertida c omo a imag inávam os. Pa ris, 4 d e Ag osto d e 17* *.
CARTA IV O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Em Pa ris As suas ordens são encantadoras; e a sua maneira de dá-las é ma is am áve l ainda . A minha a miga po d eria fazer ama r o d espo tismo . Não é a primeira vez, como sabe, que eu lamento não ser já o seu escravo; e por muito monstro que diga que eu sou, não recordo nunca sem prazer o tempo em que me honrava com epítetos mais doces. Muitas vezes mesmo desejo voltar a merecê-los, e acabar por dar, a seu lado, um exemplo de constância ao mundo. Mas outros interesses mais altos nos chamam: conquistar é o nosso destino. É p rec iso seg ui-lo. Ta lvez a o fim d o c a minho v oltem os a enc ont ra r-nos; pois, seja dito sem que se zangue, minha bela Marquesa, a verdade é q ue a senho ra me seg ue c om um p a sso p elo m eno s igua l. E visto q ue, sep arand o-nos pa ra a felic ida de do mundo, ca da um d e nós prega p or seu lado a sua fé, parece-me que, nesta missão de amor, a minha a miga faz ma is p rosélitos d o q ue eu. Co nheç o o seu zelo, o seu a rd ente fervor. E se Deus nos julgasse segundo as nossas obras, a senhora seria um dia a padroeira de alguma grande cidade, enquanto que o seu am igo seria qua ndo muito um santo de aldeia. Admira-se desta linguagem, não é verdade? Mas há oito dias que e u não o uço nem falo outra; e é p ara me ap erfeiç oa r nela q ue me vejo forç ad o a d esob ed ec er-lhe. Não se za ngue e o uç a -me. Depo sitá ria d e t od os os seg red os d o meu coração, vou confiar-lhe o maior projeto que jamais formei. Que me propõ e a minha am iga ? Sed uzir uma jovem que não viu nad a, que nã o c onhec e na d a ; que, po r a ssim d izer, me seria entregue sem d efesa ; que c om c erteza se em briag ará co m uma primeira homenag em, e q ue será levada mais pela curiosidade do que pelo amor. Há vinte homens que nessa empresa seriam tão bem sucedidos como eu. Já não acontece o mesmo com a empresa que me preocupa; o seu êxito valer-me-á tanto prazer como glória. O amor que prepara a minha coroa hesita ele próprio entre a mirta e o loureiro, ou antes os reunirá pa ra honrar o me u triunfo. Até a minha bo a a miga será to ma da de um santo respeito, e dirá com entusiasmo: "É este o homem segundo o meu coração." A m inha a miga c onhe c e a mulher d o Presidente Tourvel, a sua d evoç ã o, o seu a mo r conjuga l, os seus p rincíp ios a usteros. Eis o alvo do meu ataque; eis o inimigo digno de mim; eis o fim que eu p retend o a tingir: Et si de l'ob tenir c e n'emp orte le p rix, J'a urais d u moins !honneur de l'a vo ir entrep ris.*
É p ermitido c ita r ma us versos, q uand o sã o d e um g ra nd e p oe ta . Co mo d eve sa b er, o Presidente d e Tourvel está em Borgo nha , seguindo um grande processo (espero fazer-lhe perder outro mais imp ortante). A sua inc onsolável meta de d eve pa ssar aq ui tod o o tem po desta aflitiva viuvez. Uma missa por dia, algumas visitas aos pobres da região, orações de manhã e à noite, passeios solitários, piedosas c onve rsa s c om a minha ve lha tia, e uma vez p or outra um triste jog o d e whist, deviam ser as suas únicas distrações. Estou-lhe preparando outras ma is efica zes. O me u anjo b om c ond uziu-me a q ui pa ra a sua felic ida d e e p ara minha. Insensato! Eu lamentava as vinte e quatro horas que ia sacrificar em consideração aos respeitos familiares que são de uso. Como eu seria c a stiga d o se me ob riga ssem a volta r a Pa ris! Felizmente são precisas quatro pessoas para jogar o whist; e como não há aqui mais ninguém além do prior do lugar, a minha ete rna tia instou muito c om ig o p a ra q ue eu lhe sa c rific a sse a lguns d ia s. Já adivinhou que acedi. Não imagina os mimos que ela me prodigaliza d esd e esse insta nte, e p rinc ip a lme nte c om o ela e stá imp ressiona d a p or me ver a ssistir regularmente à s sua s ora ç õe s e à missa . Nem p or somb ras lhe pa ssa p ela c ab eç a q ual a divinda de que e u ali vou ad orar. E aqui estou eu, há quatro dias, entregue a uma paixão forte: A minha am iga sab e c om que forç a eu sei desejar, e c om o o s ob stác ulos pesam pouco para mim; mas o que ignora é quanto a solidão vem reforçar o ardor dos desejos. Apenas uma idéia me ocupa; penso nela de dia, sonho com ela de noite. É-me absolutamente necessário possuir essa mulher, para me salvar do ridículo de estar apaixonado por ela; pois aonde não conduz um desejo contrariado? Ó delicioso prazer! Eu te imploro para a minha felicidade, mas principalmente para o meu descanso. Como nós os homens somos felizes por as mulheres se defenderem tão mal! Sem isso, seríamos junto delas apenas tímidos escravos. Neste momento sinto-me possuído de reconhecimento pelas mulheres fáceis, o que, naturalmente, me conduz a seus pés. Ante eles me ajoelho para obter o meu perdão, e nessa postura termino esta longa c arta. *E se e u nã o c onseg uir o p rém io o b ter, Terei ao m eno s a ho nra d e o h ave r te nta d o. La Font a ine. (N. do A.)
Ad eus, minha a miga : long e d e m im q ua lq uer reserva. Do c a stelo d e..., 5 d e Ag osto d e 17 * *.
CARTA V
A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Sa b e, Visc ond e, que a sua c a rta é d e um a insolênc ia ra ra , e q ue eu poderia ter-me zangado? Contudo, ela provou-me claramente que o Visconde perdeu a cabeça e só isso o salvou da minha indignação. Amiga generosa e sensível, esqueço a injúria que me dirige para me ocupar apenas do perigo que corre; e embora seja muito aborrecido raciocinar, cedo à necessidade que tem neste momento dos meus raciocínios. O Visconde, possuir a Presidente de Tourvel! Mas que ridículo capricho! Reconheço bem a sua má cabeça que não sabe desejar senã o o q ue c rê nã o p od er ob ter. Que tem p ois essa mulher? Tra ç os regulares, se q uiser, ma s nenhum a exp ressã o; sofríve l de c orp o, m a s sem graça; vestida sempre de modo que faz rir! Com os seus molhos de lacinhos no pescoço e o corpete que lhe chega ao queixo! Digo-lho c om o a miga , nã o lhe seria p rec iso te r d ua s mulheres c om o a q uela p a ra perder toda a minha consideração. Lembre-se do dia da festa de c arida de em Sa int-Roc h, em q ue o Visc ond e ta nto me a grad ec eu po r eu lhe ter proporcionado tal espetáculo. Parece que ainda a estou vendo, da ndo a mã o à quele tranga lhad anç as de c ab elos c omp rido s, pronta a c air a c ad a pa sso, tendo semp re o c esto d e q uatro varas em cima da cabeça de alguém, e corando cada vez que a cumprimentavam. Quem lhe diria então que chegaria a desejar essa mulher? Vamos, Visconde, tenha a bondade de corar e voltar a si. Prom eto -lhe gua rd a r seg red o. E d ep ois, veja a série d e c oisa s d esa gra d á veis q ue o esp eram ! Que riva l terá a c om b a ter? Um m a rid o! Não se sente humilha d o só ante esta palavra? Que vergonha se for mal sucedido! E mesmo no c a so d e triunfar, q ue p eq uena glória o e sp era! Digo -lhe m a is: nã o c onte tirar dali nenhum prazer. É isso possível com as mulheres recatadas? Quero dizer com as que o são de, boa fé: reservadas até no meio do p ra zer, não p od em oferec er senã o m eios go zos. O a b a nd ono inteiro d e si mesma, o delírio da volúpia em que o prazer se depura pelo seu excesso, estas vantagens do amor não são conhecidas por tais mulheres. Aqui lho profetizo: na mais feliz das suposições, a sua Presidente julgará ter feito tudo pelo Visconde tratando-o como seu ma rid o, e na intimida d e c onjuga l, me smo a ma is terna, há sem p re d ois. Neste caso é muito pior ainda; essa virtuosa senhora é devota, e a sua de voç ão é d as que c ond ena m a uma eterna infânc ia. É po ssível que o Visconde venha a saltar o obstáculo, mas não se gabe de vir a d estruí-lo: venc ed or do a mo r d e Deus, nã o o será d o m ed o d o Dia b o; e qua ndo , tendo a sua am ante nos b raç os, tivesse c onhec id o m ais c ed o essa mulher, é possível que fizesse dela qualquer coisa; mas tem já vinte e dois anos e há cerca de dois que é casada. Creia-me, Visconde, qua ndo uma mulher se enc ond eu a ta l po nto, é p rec iso a ba ndo ná-la à sua sorte; nunc a há d e p a ssa r d e um a esp éc ie.
No entanto, é por esse belo objeto que o Visconde recusa obedecer-me; que se enterra no túmulo de sua tia, e que renuncia à aventura mais deliciosa e mais de molde a proporcionar-lhe honrarias. Por que fa talid ad e será que Gercourt tem semp re q ualquer vanta ge m sobre o Visconde? Falo-lhe sem má disposição, acredite: mas,neste momento,estou tentada a crer que o senhor não merece a sua reputação; estou tentada principalmente a retirar-lhe a minha confiança. Nunca poderei acostumar-me a dizer os meus segredos ao am ante d e Ma da me de Tourvel. Saiba no entanto que a pequena Volanges já fez andar uma c ab eç a à rod a.O jovem Danc eny está louco p or ela; e na verdad e ela c anta melhor do que é da do a uma pensionista d e c onvento. É q ua se c erto q ue e nsa ia m m uitos d ueto s e ia jura r q ue d e b om grado ela se prestaria ao uníssono; mas este Danceny é uma criança que perderá o seu tempo em galanteios sem chegar a nada de p ositivo. Pelo seu lad o a p eq ueno ta é b a sta nte a risc a ; e, seja o q ue for q ue a c onte ç a , sem p re há d e ser menos d ivertid o d o q ue se o Visc ond e se resolvesse a intervir. Por isso estou aborrecida e com certeza o Ca valeiro o uvirá ralhar à sua c hega d a. Eu aconselho-o a ser submisso, pois neste momento não me c usta ria na d a rom p er co m ele. Estou c erta d e q ue, se e u tivesse a b oa lem branç a de o de ixar neste m ome nto, ele fica ria c heio d e d esespe ro; e na da me diverte ta nto c om o um d esespe ro a mo roso. Chamar-me-ia pérfida, e essa palavra sempre me deu prazer; depois da palavra "cruel", é a mais doce para os ouvidos de uma mulher, e a que dá mais trabalho a merecer. Falando sério vou ocuparme d este rom pimento. Aqui está um ac ontec imento d e q ue o Visc ond e será o c a usa d or! Ponho-o sob re a sua c onsc iênc ia. Adeus. Recomende-me às orações da sua Presidente. Pa ris, 7 d e Ag osto d e 17* *.
CARTA VI O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL É pois certo não existir mulher alguma que não abuse do ascendente que conquistou! E mesmo a senhora, a quem tantas vezes c ham ei indulgente a miga , d eixou enfim d e o ser, e nã o rec eia a tac arme no objeto das minhas afeições! Com que traços ousou pintar Ma d a me d e Tourvel!... Que homem não teria pagado com a vida essa insolente audácia? Que outra mulher que não fosse a Marquesa teria podido enunciá-la sem suscitar da minha parte uma pequena vingança? Por favor, não me submeta a tão rudes provas; não garanto que as possa
suportar. Em nome da amizade, espere que eu possua essa mulher, se quiser dizer mal dela. Não sabe que só a volúpia tem o direito de d issip a r a c eg ueira d o a mo r? Ma s que digo eu? Ac aso M ad am e d e Tourvel tem nec essida de d e ilusã o? Não; pa ra ser ad orável ba sta -lhe ser ela p róp ria. Ce nsura -a a Ma rq uesa p or se vestir ma l; estou d e a c ordo : tod os os vestuários a prejudicam; tudo o que a esconde a desfeia. É no ab and ono d o trajo c aseiro q ue ela é verda deiram ente enca ntado ra. Graças aos calores opressivos que sofremos, um simples roupão d e p a no d eixa -me ver a s sua s forma s red ond a s e flexíveis. Uma ligeira musselina cobre-lhe a garganta; e os meus olhares furtivos, mas penetrantes, descobriram-lhe já as linhas sedutoras. O seu rosto , d iz a M a rq uesa , nã o te m ne nhum a e xp ressã o. E que poderia exprimir, nos momentos em que nada lhe fala ao c oraç ã o? Não , sem d úvid a , ela nã o te m, co mo a s p resumida s mulheres do nosso meio, aquele olhar mentiroso que nos seduz algumas vezes e nos engana sempre. Não sabe cobrir o vazio de uma frase com um sorriso estud a d o; e em b ora t enha os ma is b elos d ente s d o mund o, nã o c ostuma rir senã o d o q ue a d iverte. No enta nto é p rec iso ver co mo , nos jogos engraçados, ela oferece a imagem de uma alegria ingênua e franca! Como, junto de um infeliz que ela se apressa a socorrer, o seu olhar anuncia o c ontentamento puro e a bonda de c ompa dec ida ! É preciso ver, principalmente à menor palavra de elogio ou de afago, desenhar-se, no seu rosto celeste, o comovente embaraço de uma modéstia que não é fingida. Modesta e devota, é-o sem dúvida, mas daí a julgá-la fria e inanimada!... O que penso dela é bem d iferente. Que extra ordinária sensib ilid a d e nã o d eve ter pa ra b ene fic ia r com ela o marido, e para amar sempre um ser sempre ausente! Que p rova ma is forte se p od e d esejar? Tod a via, co nseg ui d esc ob rir ma is uma. Qua nd o há d ias sa ímos a p a ssea r, arra njei as c oisa s d e ma neira que nos foi necessário transpor um barranco; e, embora muito lesta, Ma d a me d e Tourvel é a ind a ma is tímida . É fác il d e ve r q ue um a mulher virtuosa tem sem p re rec eio d e sa lta r o b a rra nc o. Foi-lhe necessário confiar-se à minha pessoa. Tive nos meus braços essa mulher modesta. Os nossos preparativos e a passagem da minha ve lha tia tinham feito rir à s ga rga lhad a s a jovial de vota : ma s, no momento em que a agarrei, por um movimento propositadamente desastrado, os nossos braços enlaçaram-se mutuamente. Apertei o seu seio contra o meu; e, nesse curto intervalo, senti o seu coração bater mais rápido. O rosto coloriu-se-lhe de uma adorável vermelhidão, e no seu pud ibundo emb araç o p ude ver que o seu c oraç ão tinha pa lpitado de amor e não de receio. Entretanto minha tia enganou-se – como a minha amiga - e disse: "A criança teve medo"; mas a encantadora ingenuidade da criança não lhe permitiu a mentira, e fez que ela respondesse singelamente: Oh! Não, mas.... Esta simples palavra
esclareceu-me. Desde aquele momento, a doce esperança substitui a cruel inquietação. Possuirei esta mulher; hei-de arrebatá-la ao marido, que a profana: ousarei roubá-la ao próprio Deus que ela adora. Que delícia ser alternadamente o objeto e o vingador dos seus remorsos! Longe de mim a idéia de destruir os preconceitos que a rodeiam! Servirão para aumentar a minha felicidade e a minha glória. Que creia na virtude, mas que a sacrifique por mim; que as suas faltas a aterrem sem poder evitá-las; e que, agitada de mil terrores, ela não possa esq uec ê-los, venc ê-los senã o nos meus b ra ç os. Consentirei então que ela me diga: "Adoro-te" ; ela só, entre todas as mulheres, será digna de pronunciar essa palavra. Eu serei, verda d eira me nte, o Deus q ue ela p refere. Falemos de boa fé: nas nossas combinações tão frias como fáceis, aquilo a que chamamos felicidade é apenas prazer. Poderei confessar-lho? Pensava eu que o meu coração estava gasto, e, encontrando em mim apenas os sentidos, lastimava a minha velhice prematura. Ma d a me d e Tourvel restituiu-me a s enc a nta d oras ilusõe s d a juventud e. Junto dela, não tenho necessidade de prazer para ser feliz. A única c oisa q ue me m ete me do é o tem po que m e vai tomar esta a ventura; pois não ouso deixar nada ao acaso. Muito embora me lembrem as minhas audácias bem sucedidas, não posso resolver-me a pô-las em prática. Pa ra q ue e u seja verda d eira me nte feliz; é p rec iso q ue e la se d ê; e não é peq uena emp resa. Estou c erto d e q ue a Ma rquesa ad miraria a minha prud ênc ia . Ainda não pronunciei a palavra amor; mas já chegamos às palavras confiança e interesse. Para a enganar o menos possível, e principa lme nte p ara p revenir o e feito da s murmuraç ões que po de riam chegar aos seus ouvidos, descrevi-lhe eu próprio, como acusando-me, a lguns d os meus d efe itos ma is c onhe c ido s. A Marquesa havia de rir se visse a candura com que ela me faz sermões. Diz ela que quer converter-me. Nem ela imagina ainda o que lhe virá a custar tal tentativa. Está longe de pensar que defendendo, como ela diz, as infortunadas que eu levei à perdição, advoga de antemão a sua própria causa. Esta idéia veio-me ontem no meio de uma das suas prédicas, e eu não pude recusar-me ao prazer de a interromper, para lhe afirmar que falava como um profeta. Adeus, minha b ela a miga . Bem vê q ue nã o e stou p erdido sem rec urso. P. S . - A propósito, esse pobre Cavaleiro, matou-se de desespero? Em bo a verda de , a Ma rque sa é uma pe ssoa c em vezes pior do que eu, e sentir-me-ia humilhado se tivesse amor-próprio. Do Ca stelo d e..., 9 de A gosto d e 17 * *.
CARTA VII CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY Se nada te disse do meu casamento, é porque não estou mais ad ianta da do que no p rimeiro d ia. Ac ostumo-me a não p ensar nisso e sinto-me muito bem no meu gênero de vida. Estudo muito canto e ha rp a ; pa rec e-me q ue g osto ma is d esses estud os d esd e q ue nã o te nho professor, ou antes, desde que tenho um professor melhor. O Cavaleiro Danceny, aquele senhor de que falei, e com quem cantei em casa de Madame de Merteuil, tem a bondade de vir aqui todos os dias, e de c a nta r co migo horas inteira s. É extremamente amável. Canta como um anjo, e compõe lindas músicas para as quais escreve também as palavras. É pena que ele seja Cavaleiro de Malta! Acredito que, se ele se casasse, a mulher seria muito fe liz... É c a tivante a d oç ura d o seu trato . Diz c oisa s sem a r de galanteio, e no entanto tudo o que ele diz agrada. Conversa muito comigo, sobre a música e sobre outras coisas; mas sabe insinuar nas suas críticas tanto interesse e animação, que é impossível não lhe agradecer. Simplesmente, quando olha para nós, tem o ar de dizer qualquer coisa que nos prende. Além de tudo isto, é muito paciente. Ontem, por exemplo, tinha sido convidado para um grande concerto; preferiu ficar todo o serão comigo e com a Mamã. Isto deu-me muito prazer, pois, quand o ele nã o está, ninguém fala c om igo e a bo rreç o-me; ao passo que quando ele está presente, cantamos em conjunto e c onve rsa mo s. Tem sem p re a lgum a c oisa p a ra me d izer. Ele e Ma d a me de Merteuil são as duas únicas pessoas amáveis que encontrei. Mas tenho de dizer-te adeus, minha querida amiga: prometi que teria hoje estudada uma arieta de acompanhamento muito difícil, e não quero faltar à minha pa lavra. Vou la nça r-me ao estudo a té q ue ele venha. 7 de Ag osto d e 17 * *.
CARTA VIII A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE VOLANGES Ning uém p od e ser ma is sensível do q ue e u, senhora, à c onfia nç a que me testemunhais, nem ter maior interesse do que eu pelo futuro casamento de Mademoiselle de Volanges. De toda a minha alma lhe de sejo uma felic id ad e d a q ual não duvido q ue ela seja digna , e p ara a qual contribuirá sem dúvida a prudência de que tendes dado prova. Não c onheç o o senhor Conde de Gercourt; mas, honrad o c om a vossa
esc olha , só p osso ter de le uma idéia muito lisonjeira . Limito-me , senho ra , a desejar para esse casamento um resultado tão feliz como o do meu, que é igualmente obra vossa, e pela qual cada vez sinto maior reconhecimento. Que a felicidade de vossa filha seja a recompensa da que conseguistes para mim; e possa a melhor das amigas ser também a ma is feliz d a s mã es! Sinto-me verdadeiramente penalizada por não poder oferecervos de viva voz a homenagem deste voto sincero, nem travar conhecimento com Mademoiselle de Volanges tão cedo como desejais. Depois de ter beneficiado das vossas bondades verdadeiramente maternais, tenho o direito de esperar dela a amizade terna de uma irmã. Rogo-vos, senhora, que lhe façais este pedido da minha p a rte, esp erand o esta r à a ltura d e me rec ê-la . Conto ficar no campo durante todo o tempo da ausência do Senhor de Tourvel. Serve-me esse t em p o p a ra goza r e a p roveita r d a c om pa nhia de Ma d am e d e Rosemo nde . Esta senhora ma ntém semp re o seu encanto; a idade nada lhe fez perder. Conserva toda a sua me mó ria e a nima ç ã o. Só o seu c orpo tem oitenta e qua tro a nos; o esp írito tem a p ena s vinte. O nosso isolamento é alegrado por seu sobrinho, o Visconde de Valmont , q ue teve a b ond a d e d e nos sa c rific a r a lguns d ia s. Conhecia-o apenas pela sua reputação, a qual me não fazia de sejar c onhec ê-lo m elhor; mas pa rec e-me q ue va le m ais do que ela. Aqui, onde turbilhão do mundo não o prejudica, diz coisas razoáveis com uma espantosa facilidade e acusa-se do mal que tem praticado com uma candura rara. Fala-me sempre com muita confiança e eu p reg o-lhe os me us sermõ es c om muita severid a d e. Vós, que o conheceis, devereis convir que seria uma bela conversão a fazer: mas eu não tenho dúvidas de que, apesar das suas promessas, oito dias de Paris lhe façam esquecer todas as minhas prédicas. A sua estada aqui será pelo menos um intervalo na sua c ond uta ha bitual: e eu c reio que, atend end o à sua m a neira d e viver, o que ele p od e fa zer de m elhor é nã o fa zer nad a . Sa be ndo que estou ocupada a escrevermos, encarregou-me de vos apresentar as suas homenagens respeitosas. Aceitai também as minhas com a bondade que vos conheço, e não duvideis nunca dos sentimentos sinceros com que tenho a honra de ser, etc . Do c a stelo d e..., 9 d e Ag osto d e 17 * *.
CARTA IX MADAME DE VOLANGES A PRESIDENTE DE TOURVEL
Nunca duvidei nunca, minha jovem e bela amiga, nem da amizade que tendes por mim, nem do interesse sincero que tomais em tud o q ue m e d iz resp eito. Nã o é p a ra esc la rec er esse p onto , que esp ero esteja assente para sempre entre nós, que respondo à vossa resposta: mas julgo que não poderei dispensar-me de conversar convosco a resp eito d o Visc ond e d e Valmo nt. Co nfesso q ue nã o esp erava vir a enc ontrar o nom e d esse senho r na s vossa s c a rta s. De fa to, que p od e ha ver de c om um e ntre vó s e e le? Vê-se bem que não conheceis esse homem; pois onde poderíeis ter aprendido a fazer idéia do que é a alma dum libertino? Falais-me da sua rara c a nd ura . Ah, sim: a c a ndura d e Va lmo nt d eve ser de fat o m uito ra ra . Ele é ainda mais falso e perigoso do que amável e sedutor, e nunca, desde q ue a tingiu a id a d e viril, nunc a d eu um p a sso o u d isse um a p a la vra sem ter um projeto, e nunca teve um projeto que não fosse criminoso ou desonesto. Minha amiga, conheceis-me bem; bem sabeis que, entre as virtudes que me empenho em adquirir, a indulgência não é daquelas que mais prezo. Por isso, se Valmont fosse arrastado por paixões a rde nte s; se, c omo ta nto s outros, ele tive sse sido sed uzido p elos erros d a juventude, embora censurasse a sua conduta, eu lamentaria a sua pessoa, e esperaria, em silêncio, a hora em que um regresso feliz o fizesse reconquistar a estima das pessoas honestas. Mas Valmont não é capaz de tal: o seu comportamento é o resultado dos seus princípios. Sa b e fa zer o c á lc ulo d o q ue um ho me m p od e p ermitir-se d e horrores sem se comprometer; e para ser cruel e mau sem perigo, escolheu por vítimas as mulheres. Não perderei tempo a contar as que ele seduziu; ma s qua ntas d elas lanç ou na pe rdiçã o? Essas escandalosas aventuras não chegaram ao vosso c onhec imento , na vida rec ata d a e simp les que tend es leva d o. Pod eria contar-vos coisas que vos fariam estremecer; mas os vossos olhos, puros como a vossa alma, seriam conspurcados por semelhantes quadros. Estou c erta d e q ue Va lmo nt nã o será p a ra vós um p erigo , e p or isso não tendes necessidade de semelhantes armas para vos defenderdes. A únic a c oisa q ue t enho a d izer-vos é q ue, de tod a s a s mulheres q ue e le distinguiu, com êxito ou não, nenhuma deixou de ter motivo de queixa. Só a Ma rq uesa d e M erteuil fa z exce ç ã o a esta reg ra ge ra l; só e la soub e resistir-lhe e desarmar a sua maldade. Confesso que esse momento da vida da Marquesa é o que mais a honra a meus olhos: chega para justificar plenamente aos olhos de todos de algumas inconseqüências q ue ha veria a c ensura r-lhe q ua nd o d o p rinc íp io d a sua viuvez. Seja c om o for, minha b oa am iga , o q ue a id ad e, a experiênc ia e principalmente a amizade me autorizam a dizer-vos, é que na sociedade se começa a notar a ausência de Valmont; e que, caso se venha a sab er que ele fic ou a lgum tem po c omo terc eiro entre sua tia e vós, a vo ssa rep uta ç ã o fica rá entre a s mã os d ele.
E esta será a maior desgraça que pode acontecer a uma mulher. Aconselho-vos pois a conseguir da tia que o não retenha por mais tempo; e, se ele teimar em ficar, creio que não deveis hesitar em c ed er-lhe o luga r. Mas p or que há d e e le fica r a í? Que faz ele no campo? Se tivésseis alguém a espiar os seus passos, estou certa de que descobriríeis que ele apenas escolheu um asilo mais cômodo, para algumas negras ações que pensa praticar por esses luga res. Ma s, na imp ossibilida d e d e rem ed iar o ma l, c ont ent a mo nos em preservar-nos dele. Ad eus, minha bo a am iga . O ca sam ento d e m inha filha e stá um pouco retardado. O Conde de Gercourt, que esperávamos de um dia para o outro, mandou-me dizer que o seu regimento vai para a Córseg a; e, co mo há a inda a lgum a ag itaç ão d evid o à guerra, ser-lhe-á impossível ausentar-se antes do Inverno. Isso contraria-me; mas autorizame a e sp erar q ue teremo s o p ra zer de vo s ver na b od a , e a b orrec ia-me que tal acontecimento não tivesse a vossa presença. Adeus; estou, p a ra a lém d a s c onve nç õe s e sem reserva, inteira me nte a o vosso d isp or. P. S . - Lembranças minhas para Madame de Rosemonde, a quem ap rec io tanto co mo ela merece. 1 de Ag osto d e 17* *.
CARTA X A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Está amuado comigo, Visconde? Ou dar-se-á o caso que tenha mo rrid o? O u, o q ue se p a rec eria muito c om isso, não vive senã o p a ra a sua Presidente? Essa mulher, que o faz reviver as ilusões da juventude, d entro em p ouc o o fará reviver tam bé m o s rid íc ulos p rec onc eitos d essa idade. Eis o Visconde tímido e escravo; o que vale tanto como estar apaixonado. Renunciou às suas felizes temeridades. Ei-lo pois a conduzir-se sem princípios, deixando tudo ao acaso, ou antes, ao c ap ric ho. Não lhe oc orreu que o am or é, com o a med ic ina, som ente a arte de ajudar a Natureza? Bem vê que estou a batê-lo com as suas armas; mas não me sinto orgulhosa por isso, pois é bater num homem caído. É preciso que ela se dê, diz-me o Visconde; oh !, sem dúvida, é p rec iso. Ela há d e e ntreg a r-se c om o a s outras, c om a d iferença d e q ue o fará de má vontade. Mas, para que ela acabe por se entregar, o verdadeiro meio é começar por obrigá-la. A que ponto esta ridícula distinção é um verdadeiro despropósito do amor! Eu digo do amor: po rque o Visc ond e está ap aixona do .
Falar-lhe de maneira diferente seria traí-lo; seria esconder-lhe a sua doença. Diga-me, pois, ó langoroso amante, julga ter violado as mulheres que possuiu? Mas, por muito desejo que uma mulher tenha de se entregar, por muito apressada que esteja, ainda lhe é preciso um pretexto; e haverá algum mais cômodo para nós do que aquele que nos dá a a pa rência de c ede r à forç a? Por mim, confesso-o, uma das coisas que mais me lisonjeiam é um ataque vivo e bem feito, no qual tudo se sucede com ordem embora com rapidez; que não nos põe nunca naquela penosa confusão de termos nós próprias um desacerto de que ao contrário devíamos aproveitar; que sabe manter o ar de violência até nas coisas que concedemos, e lisonjear com habilidade as nossas duas paixões favo rita s, a g lória d a d efesa e o p ra zer da d errota . Convenho q ue e sse talento, mais raro do que se supõe, me deu sempre prazer, mesmo qua ndo não c hego u a sed uzir-me, e q ue a lgum as vezes me a c ontec eu rend er-me unic a me nte c om o rec om p ensa . Ta l c om o no s nossos a ntig os torneios, a Beleza d a va o p rém io do va lor e d a d estreza . Ma s o senho r, o senho r q ue já nã o é o m esmo , co nd uz-se c om o se tivesse medo de vencer. Oh! Desde quando é que viaja por pe que nas jornad a s e p or amigo, q uand o se q uer c hega r, emp reg am -se c a va los d e p osta e tom a -se a e stra d a p rinc ip a l! Ma s d eixem os esse a ssunto, q ue me a b orrec e ta nto ma is q uanto me priva do prazer de o ver. Pelo menos escreva-me mais vezes do que o faz, e ponha-me ao corrente dos seus progressos. Já reparou que há mais de quinze dias que esta ridícula aventura o preocupa, e que ab and onou todo o c onvívio? A propósito, o Visconde parece-se com aquelas pessoas que mandam regularmente saber notícias dos seus amigos doentes, mas que nunca esperam pela resposta. No final da sua última carta, perguntava-me se o Cavaleiro tinha morrido. Não respondi, e o Visconde não se inquietou mais por isso. Esqueceu porventura que o amante é seu amigo nato? Mas tranquilize-se, não morre; ou, se tivesse mo rrido , seria p or excesso d e a leg ria. Aquele pobre Cavaleiro, como ele é terno! como ele é feito pa ra o am or! com o ele sab e sentir vivam ente! Isto p õe-me a c a be ç a à roda. Falando sério, a felicidade perfeita que ele encontra em ser am ad o p or mim liga -me verda deiram ente a ele. No mesmo dia em que lhe escrevi dizendo que ia provocar o rompimento, a que ponto o tornei feliz! No entanto, estava-me ocupando dos melhores meios de o fazer desesperar, quando mo anunciaram. Fosse capricho ou raciocínio, nunca ele me pareceu tão bem. Recebi-o entretanto de mau humor. Ele esperava passar duas horas comigo, antes que a minha porta se abrisse para toda a gente. Disse-lhe que ia sair; perguntou-me aonde ia; recusei-me a dizer-lho. Ele insistiu. Ond e o senhor não
estiver, repliquei-lhe eu, com azedume. Felizmente para ele, ficou petrificado com esta resposta; pois, se ele tivesse dito uma palavra, seguir-se-ia infalivelmente uma cena que teria precisamente o romp imento q ue eu p rojetava . Ad mira d a c om o seu silênc io, la nc ei os olhos sob re e le sem outro p rojeto, juro-lhe, q ue o d e ver a expressã o c om q ue fica ra . Tornei a ve r naquele rosto encantador uma tristeza, ao mesmo tempo profunda e terna, à q ua l o p róp rio Visc ond e t em d e c onc orda r q ue é d ifíc il resistir. A mesma causa produziu o mesmo efeito; fui vencida pela segunda vez. Desde esse momento, só me ocupei da maneira de evitar que ele pudesse achar nas minhas palavras qualquer agravo. "Saio para tratar de um assunto", disse-lhe eu com um ar um pouco mais doce, "e esse assunto diz-lhe respeito; mas não me interrogue. Ceio em minha casa; volte, e sa b erá d e q ue se trata ." Foi entã o q ue ele rec up erou a p a la vra : ma s nã o lhe p ermiti que fizesse uso d ela. "Esto u c om muita p ressa ", c ont inuei. "Deixe-me ; até log o à noite." Beijoume a mã o e saiu. Nesse momento, para o recompensar, ou talvez para me recompensar a mim própria, resolvi dar-lhe a conhecer a minha c a sinha , de c uja existênc ia ele nã o susp eita. Cha mo a minha fiel Vitória . Veio-me a enxaq uec a ; d eito-me p a ra to d os os me us c ria d os; e, fic a nd o enfim só com a verdadeira, enquanto ela se vestia de lacaio, disfarceime d e c riad a de qua rto. Em seg uida ela ma ndo u vir um fiac re à po rta d o jard im, e pa rtimo s juntas. Chegada àquele templo de amor, escolhi o roupão mais galante. É um vestuário delicioso, de minha invenção: não deixa ver nada, e faz adivinhar tudo. Prometo dar-lhe o modelo para a sua Presid ente , q uand o o Visc ond e a tiver tornad o d ig na d e o usa r. Depois destes preparativos, enquanto Vitória se ocupava de outros po rme nores, li um c a pítulo d o Sofá , uma c a rta d e Heloisa e d ois contos de La Fontaine, para recordar os diferentes tons que eu queria tom ar. Entreta nto o Ca valeiro c hega à minha po rta, c om a pressa que tem sempre. O porteiro não o deixa entrar, e diz-lhe que adoeci: primeiro incidente. Entrega-lhe ao mesmo tempo um bilhete meu, mas não c om a minha letra, seg undo a minha regra d e p rudê ncia. Ele a breo, e encontra escrito pela mão de Vitória: "Às nove em ponto, no Boulevard, em frente dos cafés." Dirige-se para lá; e, ali, um pequeno lacaio que ele não conhece, que ele julga pelo menos não conhecer, pois é sempre Vitória, vem-lhe anunciar que é preciso mandar embora a carruagem e segui-lo. Todas estas peripécias romanescas lhe esquentavam a c ab eça , e uma c ab eça esquentad a nad a p rejudica . Por fim chega, e a surpresa e o amor causam nele um verdadeiro encantamento. Para lhe dar tempo a recompor-se pa ssea mo s um m om ento no pa rque; de po is enc am inho-o p ara c asa. Ele vê p rimeiro d ois ta lheres p ostos; dep ois uma c a ma feita .
Passamos ao quarto de vestir, que estava em todo o seu esplendor. Ali, meta d e p or reflexã o, me ta d e p or sentimento , pa ssei os me us b ra ç os em volta d ele e d eixei-me c a ir a seus p és: "Ó m eu a migo!", disselhe e u, "p a ra p od er prepa ra r-te a surp resa d este mo me nto, c ensuro-me por te ter afligido com a aparência do meu mau humor; por ter um insta nte v elad o o me u c oraç ã o a os teus olhares. Perdo a -me o s a gravo s; quero expiá-los à força de amor." O Visconde julgará do efeito deste d isc urso sentimenta l. O feliz Cavaleiro levantou-me, e o meu perdão foi selado sobre aquela otomana onde o Visconde e eu selamos tão alegremente e da me sma ma neira a nossa e terna sep a ra ç ã o. Como tínhamos seis horas para passarmos juntos e eu tinha resolvido que todo esse tempo fosse para ele igualmente delicioso, moderei os seus transportes, e a amável coqueteria veio substituir a ternura. Julgo que nunc a p us tanto e mp enho em ag rad ar, e q ue nunca estive tão satisfeita de mim própria. Depois da ceia, alternadamente criança e razoável, folgazã e sensível, por vezes mesmo libertina, aprouve-me considerá-lo como um sultão em meio do serralho, do qual eu era d e c a da vez uma favorita diferente. Na verda d e, ao p a sso q ue ele rep etia a s sua s hom ena gens, se e las eram sem p re d irigida s à me sma mulher, era sem pre uma nova am ante que as rec eb ia. Enfim, ao raiar do dia foi preciso separarmo-nos; e o que ele me disse, o que ele fez mesmo para me provar o contrário, tudo mostrava que a necessidade era maior que o desejo. No momento em que saíamos e por último adeus, tomei a chave daquele feliz refúgio, e pondo-lha entre as mãos, disse: "É só para si que a tenho. É justo que seja o seu dono. O sacrificador deve dispor do templo." Com esta habilidade preveni as reflexões que ele poderia fazer sobre a propriedade, sempre suspeita, duma casa pequena. Conheço-o b a sta nte p a ra esta r c erta d e q ue nã o se servirá d ela senã o p a ra mim; e se e u tivesse a fa nta sia d e lá ir sem ele, sem p re m e resta va outra c ha ve. Ele queria à viva força marcar data para lá voltarmos; mas eu amo-o a ind a d em a sia d o p a ra q uerer ga stá -lo tã o d ep ressa . Só d eve mo s p ermitir-nos exc essos c om a s p essoa s q ue c ed o q uerem os d eixa r. Ele nã o o sa b e; ma s, felizmente p a ra ele, eu sei-o p or d ois. Rep a ro a go ra q ue sã o três d a m a nhã, e q ue esc revi um volume, qua ndo forma ra o projeto d e esc rever ape nas uma pa lavra. Tal é o enc anto da am izad e c onfiante: é e la que faz que seja o Visc ond e q uem a mo ma is; ma s, na ve rda de , o C ava leiro é que m m ais me agrada . 12 d e Agosto d e 17* *.
CARTA XI
A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE VOLANGES A vossa severa carta ter-me-ia assustado, senhora, se, por felicidade, eu não encontrasse aqui mais motivos de tranqüilidade do q ue o s d e tem or que me ofe rec eis. Esse te mível senho r d e Va lmont , q ue deve ser o terror de todas as mulheres, parece ter deposto as suas a rma s mortíferas a ntes d e e ntrar neste c a stelo. Longe de vir aqui formar os seus projetos, nem mesmo trouxe quaisquer pretensões; e a qualidade de homem amável, que até os seus inimigos lhe concedem, quase desaparece aqui, para não deixar senão a de bom rapaz. Foi aparentemente o ar do campo que p rod uziu este mila gre. O que posso assegurar-vos é que, estando constantemente ao pé de mim, parecendo mesmo que isso lhe agrada, não lhe escapou ainda uma pa lavra q ue se p areça c om o a mo r, nem um a d essas frases que todos os homens se permitem, sem ter, como ele, o que é nec essá rio p a ra a s justifica r. Nunca ele obriga àquela reserva na qual hoje é obrigada a ma nter-se to d a a mulher q ue se respe ita , pa ra c onte r os hom ens q ue a rod eiam . Sa b e nã o a b usa r d a a nima ç ã o q ue insp ira . É ta lvez um p ouc o pródigo em louvores; mas é com tanta delicadeza que o faz, que ob riga ria a p róp ria m od éstia a ha b ituar-se a o e log io. Enfim, se e u tivesse um irmão, desejaria que ele fosse tal como o senhor de Valmont se mostra a q ui. Ta lvez muita s mulheres d eseja ssem d a sua p a rte um a galanteria mais marcada; e confesso que lhe estou infinitamente grata po r ele m e julga r de uma forma que lhe permite não me c onfundir c om elas. Este retrato difere muito sem dúvida do que me fizestes; e, a p esa r d isso, a mb os p od em esta r pa rec ido s, se fixa rmo s a s ép oc a s. Ele próprio concorda ter cometido muitos erros, e com certeza lhe terão atribuído alguns outros. Mas até agora encontrei poucos homens que falassem de mulheres honestas com mais respeito, direi quase entusiasmo. Sob esse aspecto, vós mesma me fizeste saber que ele não engana. A sua conduta em relação a Madame de Merteuil é disso prova. Fala-nos muito dela; e é sempre com tantos elogios e da ndo m ostras de uma de dica ç ão tão verda de ira, que c heguei a c rer, antes da recepção da vossa carta, que aquilo que ele chamava amizade entre os dois fosse realmente amor. Acuso-me desse julga me nto te me rário, o q ual foi tanto m ais errôneo qua nto é c erto que ele mesmo tomou a seu cargo, por várias vezes, o cuidado de a justificar. Confesso que tomei por delicadeza o que da sua parte era since rida de autêntica . Não sei; mas parece-me que aquele que é capaz de uma a miza d e tã o c ontínua p or uma mulher tã o e stimá vel, nã o é um lib ertino sem resgate. Ignoro, no entanto, se o comportamento reto que ele mantém aqui se deve a alguns projetos por estes lugares, conforme a
vossa suposição. É certo que por estas cercanias há algumas mulheres interessa ntes; mas ele sa i pouc o, exc eto d e m a nhã, e e ntã o d iz q ue va i caçar. É verdade que raramente traz caça; mas assegura que é desastrado nesse exercício. Demais, o que ele faz lá por fora inquieta-me pouco; e se eu desejasse sabê-lo, seria apenas para ter mais um motivo que me a p roxima sse d a vossa op iniã o o u q ue vos c ond uzisse à minha . Ac erc a d a vossa propo sta de tra ba lhar no sentido de ab reviar o tempo que o senhor de Valmont conta aqui estar, parece-me muito difícil ousar pedir a sua tia que não tenha o sobrinho junto dela, tanto mais que gosta muito dele. Prometo-vos, todavia, mas somente por de ferênc ia e nã o po r nec essida de , ap roveitar a p rimeira oc asião pa ra fazer esse pedido, quer a Madame de Rosemonde, quer a ele próprio. Qua nto a mim, o senhor de Tourvel é c onhec ed or do meu p rojeto d e ficar aqui até ao seu regresso, e havia de admirar-se, com razão, da ligeireza q ue m e fizesse m ud a r d e p rojeto. São bem longos, senhora, estes esclarecimentos; mas julguei d ever à verda de um te stem unho favorável pa ra o senhor de Va lmo nt, e do qual ele me parece ter grande necessidade junto de vós. Nem por isso sou menos sensível à amizade que ditou os vossos conselhos. É a ela que fico devendo também as vossas penhorantes informações sobre a demora do casamento de vossa filha. Agradeço-vos muito sinceramente: mas, embora me dê prazer a idéia de passar esses momentos convosco, sacrificá-los-ia de bom grado ao desejo de saber Ma d em oiselle d e Volang es ma is c ed o feliz, se é q ue e la p od e vir a sê-lo ma is do que junto de uma mã e tã o d igna de toda a sua ternura e d o seu resp eito . Pa rtilho c om ela o s d oc es sentiment os q ue m e p rend em a vós, e pe ç o-vos que ac eiteis a expressão de les c om bo nda de . Tenho a honra d e ser, etc . 13 d e Agosto d e 17* *.
CARTA XII CECÍLIA VOLANGES A MARQUESA DE MERTEUIL A Ma mã está inco mo da da , minha senhora; não po de sair hoje, e eu tenho de fazer-lhe companhia. Por esse motivo não terei a honra d e vo s a c om p anha r à Óp era. Asseg uro-vos que lam ento b em ma is não estar co nvosc o d o q ue o e spe tác ulo. Peço-vos que acrediteis. Tenho por vós tanta amizade! Tereis a bo nda de de d izer ao Cava leiro Danceny que não tenho a c oleç ão de que ele me falou, e que se ma puder trazer amanhã me dará grande
prazer. Se ele vier hoje, dir-lhe-ão que não estamos; mas é a Mamã que nã o q uer rec eb er ningué m. Esp ero que e la a ma nhã e steja m elhor. Tenho a honra d e ser, etc . 13 d e Agosto d e 17 * *.
CARTA XIII A MARQUESA DE MERTEUIL A CECÍLIA DE VOLANGES Fiquei muito aborrecida, minha linda, por ser privada do prazer de a ver, bem como pelo motivo dessa privação. Espero que outra ocasião se encontrará. Desempenhar-me-ei da sua comissão junto do Ca valeiro Danc eny, que c ertam ente fic ará muito ab orrec ido po r sab er sua Mamã doente. Se ela amanhã me quiser receber, irei fazer-lhe companhia. Faremos um ataque, ela e eu, ao Cavaleiro de Belleroche ao piquet, e, além de lhe ganharmos o seu dinheiro, teremos, por a c résc imo d e p ra zer, o d e a ouvirmo s c a nta r c om o seu a má vel mestre; enc a rreg o-me d e lhe fa zer o p ed id o. Se isso c onvier a sua Ma mã e a si, respondo por mim e pelos meus dois Cavaleiros. Adeus, minha linda; os me us c ump rime ntos à minha querida Ma da me de Volang es. Beijo-a muito te rna me nte. 13 d e Agosto d e 17* *.
CARTA XIV CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY Onte m não te e sc revi, minha q uerid a Sofia; ma s nã o fo i o p ra zer o motivo, posso jurar-te. A Mamã esteve doente, e não a deixei em todo o d ia. À noite, quand o me retirei, não tive ca be ç a p ara nad a ; e d eiteime muito depressa, para ter a certeza de que o dia tinha acabado. Nunca tinha passado nenhum tão comprido. Não é que eu não goste da Mamã, mas não sei o que era. Devia ir à Ópera com Madame de Merteuil; o Cavaleiro Danceny devia lá estar. Bem sabes que são as duas de quem eu mais gosto. Quando chegou a hora em que devia ir ter com eles, senti o c oraç ão ap ertad o, co ntra minha vontad e. Tudo me aborrecia, e chorei, chorei, sem conseguir impedi-lo. Felizmente a Mamã estava deitada, e não podia ver-me. Estou bem certa de que o Ca va leiro Danc eny ta mb ém fic ou a b orrec id o; ma s d eve te r-se d istra íd o co m o espetác ulo e c om toda age nte que o rodea va.
Foi muito d iferent e. Por felic ida de , a Ma mã está hoje m elhor, e Ma d am e d e Me rteuil virá c om outra pe ssoa e c om o Ca valeiro Danc eny; ma s c hega sem pre muito tarde, Madame de Merteuil; e quando se esteve tanto tempo sozinha, é muito aborrecido. São apenas onze horas. É verdade que tenho de tocar harpa; e depois levarei algum tempo a vestir-me e a a rra nja r-me, po is hoje q uero esta r muito b em p ente a d a . Pa rec e-me q ue ma dre Perpé tua tem razão e q ue uma pe ssoa se to rna ga rrida qua ndo vive em soc ied a de . Nunca tive tanto desejo de ser bonita como de há alguns dias pa ra c á, e ac ho q ue não o sou tanto c om o p ensa va; e dep ois, junto de mulheres que se pintam, fica-se a perder muito. Madame de Merteuil, po r exemp lo: vejo b em que tod os os home ns a ac ham ma is bo nita d o q ue e u. Não me imp orto muito, po rq ue ela é minha a miga . E a lém d isso ela afirma-me que o Cavaleiro Danceny me acha mais bonita do que ela. É muito honesto da sua parte ter-mo dito! Até parece que estava contente em mo dizer. Aí está uma coisa que eu não compreendo. É p orque ela g osta muito d e m im! E ele!... Oh!, foi uma coisa que me deu muito prazer! Por isso, até,me parece que só de olhar para ele uma pessoa fica bonita. Eu estaria a olha r sem p re p a ra ele, se nã o tivesse rec eio d e enc ontrar os seus olhos: pois, todas as vezes que tal me acontece, fico confusa, e parece que me d á p ena ; ma s isto na d a q uer d izer. Ad eus, minha q uerid a am iga . Vou-me p ôr diante d o espe lho. Continuo a go star de ti com o sem pre. Pa ris, 14 de Ag osto d e 17 * *.
CARTA XV O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL É muito honesto da sua parte não me abandonar à minha triste sorte. A vida que levo aqui é realmente fatigante, pelo excesso de rep ouso q ue m e p rop orciona e p ela sua insíp id a uniformida d e. Lendo a sua carta e os pormenores do seu dia encantador, estive vinte vezes tentado a pretextar um negócio, voar a seus pés e p ed ir-lhe, em m eu fa vor, uma infid elid a d e a o seu Ca va leiro, que , no fim de tudo , não merec e a felic id ad e d e q ue d esfruta. Sab e a Ma rque sa que me pôs ciumento dele? Por que me fala da eterna separação? Renego esse juramento, pronunciado em delírio: não seríamos dignos de o fazer, se fôssemos obrigados a mantê-lo. Ah! Que eu possa um dia vingar-me nos seus braços do ciúme involuntário que me causou a felic ida d e d o Ca valeiro!
Estou indignado, confesso, só de pensar que esse homem, sem raciocinar, sem se dar ao menor trabalho, limitando-se a seguir totalmente o instinto do seu coração, encontra uma felicidade que eu nã o a ting irei nunc a . Oh! Hei-d e p erturbá -la ... Prom eta -me q ue serei eu a p erturb á -la . A Marque sa me smo não se sente humilha d a ? Tem tra b a lho p a ra o e nga nar, e e le é d os d ois o mais feliz. Julga q ue o tem p reso na s sua s ma lha s! É a Marquesa que o está nas dele. Enquanto vela pelos seus prazeres, ele dorme tranquilamente. Que faria de mais se fosse sua escrava? Sa ib a -o, minha b ela a miga , enq ua nto se d ivid e e ntre vá rios, nã o sinto o mínimo ciúme: não vejo então nos seus amantes senão os sucessores de Alexandre, incapazes de conservar, todos juntos, aquele império onde eu reinei só. Mas que se entregue inteiramente a um deles! Que exista outro homem tão feliz como eu! Não posso sofrê-lo; não espere que eu o sofra. Ou readmita-me, ou pelo menos arranje outro; e não queira trair, por um capricho exclusivo, a amizade invioláve l que nos jura mo s mutua me nte. É o momento, sem dúvida, de lhe confessar as minhas queixas a morosa s. Bem vê q ue me p resto à s sua s idé ias, e q ue c onfe sso os me us erros: Na verdade, se estar apaixonado é não poder viver sem possuir o q ue se d eseja, sa c rific a r a essa idé ia o temp o, os p ra zeres; a vida , entã o é c erto q ue estou rea lmente a pa ixona d o. Não estou ma is ava nç ad o d o que e stava . Não teria me smo ma is na d a a c onta r-lhe a esse resp eito se nã o fosse um acontecimento que me dá muito que pensar, e que não sei a ind a se d eve insp ira r-me rec eio o u esp eranç a . A Marquesa conhece o meu criado, tesouro de intriga e verda de iro lac aio de c omé dia: e bem po de ima ginar que e ntre a s suas atribuições cabe a de se apaixonar pela criada de quarto, e a de p erturba r as p essoa s. O p a tife é ma is feliz d o q ue eu: já c onseg uiu uma vitória . Ac a b a de de sc ob rir que Ma d am e d e Tourvel enca rreg ou uma c riatura sua de tirar informações sobre a minha conduta, e mesmo de me seguir nos meus passeios de manhã, até onde possa, sem que alguém se aperceba. Que pretende esta mulher? Assim pois a mais modesta de to d a s ousa a rrisc a r-se a um p ont o q ue nós ma l ousa ría mo s p ermitir-nos! De que serve protestar?. . Antes de pensar em vingar-me desta a stúc ia fem inina , oc upe mo -nos d o m eio d e a p ôr ao nosso serviç o. Até agora esses passeios de que se suspeita não tinham qualquer objetivo; é preciso dar-lhes um. Isto merece toda a minha a tenç ã o, e vou find a r p a ra p ensa r nisso. Ade us minha b ela a miga . Sem p re d o C a stelo d e. . ., 15 de Ag osto d e 17 * *.
CARTA XVI CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY Ah, minha Sofia , tenho novida d es a d a r-te! Ta lvez nã o d evesse d izer: ma s é p rec iso q ue e u fale nisto a a lg uém ; é ma is forte d o q ue e u. Esse C a va leiro Da nc eny... Esto u tã o p erturb a d a q ue nã o p osso e sc reve r. Não sei por onde começar. Depois que te contei o lindo serão que passei com ele e com Madame de Merteuil junto da Mamã, não voltei a falar-te a seu resp eito: é que eu nã o q ueria falar dele a ningué m; ma s era nele que eu pensava sempre. Depois, tinha-se tornado tão triste, mas tão triste, tão triste, que me fazia pena. E quando eu lhe perguntava porquê, dizia-me que não: mas eu bem via que sim. Enfim, ontem ainda estava mais triste que de costume. Isso não impediu que tivesse a gentileza de cantar comigo, como das outras vezes; mas, sempre que olhava para mim, eu sentia apertar-se-me o coração. Depois de termos acabado de cantar, foi fechar a minha harpa no estojo; e, quando me trouxe a chave, pediu-me que tocasse ainda na q uela noite, log o q ue m e e nc ontrasse só. Eu não d esc onfiei d e na d a ; nem mesmo queria: mas ele pediu-me tanto, que lhe disse que sim. Ele tinha as suas razões. Efetivamente, quando me retirei para o meu quarto, e assim que a criada saiu, fui buscar a harpa. Encontrei nas c orda s uma c arta, simp lesmente do brad a, e nã o lac rad a; era de le! Ah! Se tu soub esses o q ue me d iz! Dep ois d e a ter lido senti tanto p ra zer que nem posso pensar noutra coisa. Reli-a quatro vezes seguidas, e depois fechei-a na minha secretária. Já a sabia de cor; e depois de deitada rep eti-a ta nta s vezes q ue ne m p ensa va em d ormir. Assim que fechei os olhos vi-o ao pé de mim, dizendo-me tudo qua nto eu a c ab ara d e ler. Só a d ormec i muito tard e; e ma l tinha ac orda do (era ainda muito c ed o), fui logo busc ar a c arta pa ra a tornar a ler à minha vontade. Levei-a para a cama e depois beijei-a como se... Ta lvez seja ma l feito b eija r uma c a rta c om o esta , ma s a verda d e é que nã o p ude imp ed ir-me de o fazer. Agora, minha querida amiga, sinto-me muito feliz, mas também muito emb araç ad a; pois é c erto q ue não d evo respo nde r a e sta c arta. Sei bem que isso não se deve fazer, no entanto ele pede-mo; e se eu não responder, estou certa de que se vai pôr ainda mais triste. É uma de sgraç a p ara ele! Que me aconselhas tu? É claro que a este respeito não sabes ma is do que eu. Tenho m uita vonta de de falar nisto a Ma da me d e Merteuil, que é tão minha amiga. Bem gostaria de o consolar; mas não quero fazer nada que seja mal feito. Recomendam-nos tanto que tenhamos bom coração! E depois proíbem-nos de seguir o que ele nos insp ira , q uand o se trata d e um hom em ! Isto ta mb ém nã o é justo. Por ac aso um home m não é o nosso próximo , com o uma mulher ou mais ainda? Pois enfim, não temos nós um pai, tal como uma mãe,
um irmão, tal como uma irmã? Além disso ainda fica o marido. Mas se eu fosse fazer qualquer coisa que não fosse bem feita, talvez o próprio senhor Danceny não ficasse com boa idéia a meu respeito! Oh! Isso então era o que me faltava. Prefiro que fique triste. E depois, enfim, estou sempre a tempo. Lá porque ele escreveu ontem, não sou ob riga d a a esc reve r-lhe hoje. Esta noite verei Madame de Merteuil, e se tiver coragem contolhe tud o. Se fizer só o q ue ela me d isser, na d a terei a c ensura r-me. Talvez ela me diga que lhe respo nda po uc oc hinho, para q ue ele nã o fique tã o triste! Oh! Estou num m om ento m uito d ifíc il. Ad eus, minha b oa a miga . Diz-me sem p re o q ue p ensa s. 19 d e Agosto d e 17 * *.
*A c arta e m q ue se fa la d este serão nã o foi enc ontrad a. Devemo s supo r que é o que Madame de Merteuil propõe no seu bilhete, e de que também se fala na preced ente c arta d e C ec ília Volang es.
CARTA XVII O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES Antes de me entregar, Mademoiselle, àquilo que chamo o prazer ou a necessidade de lhe escrever, começo por lhe suplicar que me ouç a . Sinto q ue, p a ra ousa r d ec la ra r-lhe o s me us sent iment os, tenho p rec isã o d e indulgê nc ia; se a p ena s tivesse d e justific á -los, ela ser-me -ia inútil. Que vou eu fazer, afinal, senão mostrar-lhe o meu íntimo? E que tenho eu a dizer-lhe que os meus olhares, o meu embaraço, a minha conduta e mesmo o meu silêncio lhe não tenham dito antes de mim? Por que se havia pois de zangar por um sentimento que fez nascer? Emanado de si, é sem dúvida digno de lhe ser oferecido; se é ardente c om o a minha a lma , é ta mb ém puro co mo a sua. Seria um c rime ter sabido apreciar a sua figura encantadora, os seus talentos sedutores, as suas graças fascinantes, essa comovente candura que acrescenta um p reç o inestimá vel a q ua lid a d es já tã o p rec iosa s? Não , sem d úvid a . Mas, mesmo não se send o c ulp a d o, po d e serse infeliz. E é a sorte que me espera, se se recusar a aceitar a minha home nag em. É a primeira q ue o m eu c oraç ão até hoje a oferec eu. Se a não tivesse visto eu seria ainda, não feliz, mas tranqüilo. Vi-a; o repouso fugiu para longe de mim, e o meu coração está inquieto.
Admira-se da minha tristeza; pergunta-me a causa. Algumas vezes julg uei ver q ue e la a a fligia . Ah! Diga uma palavra, e a minha felicidade será obra sua. Mas, antes de a pronunciar, pense que uma palavra pode ser também o cúmulo da minha tristeza. Seja pois o árbitro do meu destino. Por si vou ser eternamente feliz ou infeliz. Em que mãos mais queridas poderia eu d ep ositar um interesse ma ior? Ac ab arei, c om o c ome c ei, po r imp lorar a sua indulgê ncia. Pedi-lhe que me ouvisse; ousarei mais, pedir-lhe que me responda. Recusá-lo, seria deixar-me crer que ficou ofendida, e o meu c oraç ão é g arantia de que e m m im o respeito iguala o am or. P. S. - Poderá servir-se, para me responder, do mesmo meio de que me sirvo p a ra fazer c heg a r esta c a rta à s suas mã os; pa rec e-me igua lme nte seguro e c ômo do . 18 d e Agosto d e 17* *.
CARTA XVIII CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY Pois q uê, Sofia ! Tu c ensura s d e a ntemã o o q ue e u vo u fa zer! Tinha já bastantes inquietações; vieste tu agora aumentá-las. É claro, dizes tu, que não devo responder. Falas disto com todo o àvonta de ; ma s a ve rda de é q ue não sab es ao c erto d o q ue se trata : não está s a q ui p a ra v er. Estou certa de que se estivesses no meu lugar, farias como eu. Com c erteza que, d e m a neira ge ral, não se d eve respo nde r; e tu be m viste, pela minha carta de ontem, que eu própria não queria fazê-lo. Ma s é q ue nã o c reio q ue a lgué m se te nha visto a lgum a ve z na situa ç ã o em q ue me encontro. E a ind a ser ob riga d a a d ec id ir-me sozinha! Ma d a me d e M erteuil, que eu c onta va ver ontem à noite, não ve io. Tudo c onsp ira c ontra mim: foi ela q uem teve a c ulpa de e u o co nhecer. Foi qua se sem p re na p resenç a d ela q ue e u o v i, que lhe fa lei. É c la ro q ue nã o lhe q uero m a l p or isso: ma s o q ue é c erto é q ue me ab and ona no mo mento ma is difíc il. Oh! Sou na ve rd ad e d igna de lástima! Imagina que ontem ele veio como de costume. Eu estava tão perturbada que nem ousei olhá-lo. Ele não podia falar comigo, porque a Ma mã esta va p resente . Tinha q ua se a c erteza d e q ue e le se za nga ria , q ua nd o visse q ue e u não lhe tinha e sc rito. Eu não sa b ia o q ue ha via d e fazer.
Um momento depois perguntou-me se eu queria que fosse buscar a minha harpa. O coração batia-me tão fortemente que tudo quanto pude fazer foi responder-lhe que sim. Quando ele voltou é que foi pior. Só o olhei por um momentinho. Ele nem sequer olhou para mim; mas tinha um aspecto que toda a gente diria que estava doente. Isto dava-me muita pena. Pôs-se a afinar a harpa e, depois, quando ma trouxe, disse-me: "Ah! Mademoiselle!..." Não disse mais do que essas duas palavras; mas disse-as num tal tom que fiquei completamente tra nstornad a . Pus-me log o a toc a r sem sa b er bem o q ue fa zia . A Ma mã pe rguntou-me se nã o c antá vam os. Ele desculpou-se dizendo que estava adoentado; e eu, que não tinha qualquer desculpa, tive de cantar. Desejei então nunca ter tido voz. Escolhi de propósito uma música que não sabia, pois estava c erta d e q ue não po deria c antar nada , e assim d aria a perceb er que havia qualquer coisa. Felizmente entrou uma visita; e, logo que ouvi o ruíd o d e um a c a rruag em , d eixei de c a nta r e p ed i-lhe q ue fosse a rruma r a ha rp a . Tive m uito m ed o q ue ele se fosse em b ora a o m esmo tem p o; ma s voltou. Enquanto a Mamã e a senhora que veio visitá-la conversavam juntas, quis olhar para ele ainda um instante. Encontrei os seus olhos, e foi-me impossível desviar os meus. Um momento depois vi as suas lágrimas correram, e foi obrigado a voltar-se para não ser visto. Nesse momento não tive mão em mim; senti que ia chorar também. Saí, e ime diata me nte esc revi a lápis, num p ed a ç o d e p ap el: "Não e steja tã o triste, peço-lhe; prometo que lhe responderei." Com certeza não podes dizer que haja algum mal nisto; e depois, foi mais forte do que eu. Pus o papel nas cordas da harpa; como estava a carta dele, e voltei à sala. Sentia-me mais tranqüila. Já me tardava que a senhora se fosse em b ora. Felizme nte ; foi uma visita c urta ; d eixou-nos p ouc o d ep ois. Log o que ela saiu, eu disse que queria outra vez a minha harpa, e pedi-lhe q ue a fosse b usc a r. Vi b em , p elo seu a sp ec to, que nã o d esc onfiava d e nad a. Mas qua ndo voltou, oh!, c om o ele estava c ontente! Ao pôr a harpa na minha frente, colocou-se de maneira que a Mam ã não pod ia vê-lo, e tomou-me a mã o, que a pertou... mas de uma maneira!... Foi apenas um momento; mas eu sou incapaz de te dizer o prazer que isso me deu. No entanto, retirei a mão; por isso não tenho nad a a c ensurar-me. Agora, minha boa amiga, bem vês que não posso dispensar-me de lhe escrever, visto que lho prometi. E depois, não quero que volte a estar triste, pois eu sofreria mais do que ele. Se fosse alguma coisa de mal, eu não a faria. Mas que mal pode haver em escrever, principa lme nte q uand o é p ara imp ed ir que alguém seja infeliz? O q ue me a bo rrec e é sab er que nã o sou c a pa z de fazer uma c arta be m feita. Ma s ele há de p erc eb er que a c ulpa não é m inha. E de po is estou b em c erta d e q ue só p or ser minha lhe d a rá p ra zer.
Adeus, minha querida amiga. À medida que se aproxima o momento de lhe escrever, o meu coração bate de uma maneira inc onc eb ível. No enta nto é p rec iso, vis visto q ue o p rom eti. Ad eus. eus. 20 d e Ag A g osto osto d e 17* 17* *.
CARTA XIX CECÍLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY Estava ontem tão triste, senhor, e isso causava-me tanta pena, que não resisti a prometer-lhe que responderia à carta que me escreveu. Não é que eu sinta hoje menos que não o devia fazer; mas, c om o lhe prome ti, nã o q uero faltar à m inha p a la vra vra , e iss isso d eve p rova rlhe a amizade que sinto pelo senhor. Agora que já sabe, espero que não volte a pedir-me que lhe escreva mais. Espero também que não diga a ninguém ninguém que lhe esc esc revi, evi, porque porque c om c ertez ertezaa me c ensur ensuraa vam e isso podia causar-me muitos desgostos. Espero principalmente que não fique a fazer má idéia de mim, o que seria o maior desgosto que eu po dia ter. ter. Posso dar-lhe a certeza de que não teria essa complacência p a ra outro q ue nã o fo sse o senho r. D Des esejari ejariaa q ue tivess tivesse a b ond a d e d e não estar triste como estava, o que me tiraria todo o prazer que sinto em o ver. Bem vê q ue lhe lhe falo c om tod a a since rid ad e. Só peço que a nossa amizade dure sempre; mas, suplico-lhe, nã o to rne a esc esc reve r-me. Tenho a honr hon ra d e ser, ser, etc et c . 20 d e Ag A g osto osto d e 17* 17* *.
CARTA XX A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Ah, tra tra ta nte, faz-me faz-me festa festa s p orque rec eia a minha troç a ! Vamos, consinto em perdoar: escreve-me tantas loucuras, que realmente é preciso que eu lhe desculpe a prudência do seu procedimento em relação à sua Presidente. Não creio que o meu Ca va leiro eiro usa usa sse d e ta nta ind ulgê ulgê nc ia c om o eu; seri seriaa ho me m p a ra nã o aprovar a renovação do nosso contrato e para não achar nada de divertido na sua louca idéia. No entanto fez-me rir muito, e senti-me verdadeiramente aborrecida de ser obrigada a rir tanto sozinha. Se o Visconde estivesse próximo, não sei onde me poderia ter levado essa
a leg ria : ma s tive tem p o p a ra refletir efletir e a rme i-me d e seve seve rid a d e. Nã Nã o é o caso de recusar para sempre; mas vou adiando, e tenho razão. Poria nis nisso ta lvez va id a d e, e, uma vez entrad a no jog o, não se sa sa b e o nd e se se vai p arar. arar. Serei mulher p a ra o p rend er de novo , pa ra lhe fa zer esq esq uec er a sua Presidente; e se eu, ser indigno, o afastasse da virtude, veja que escândalo! Para evitar esse perigo, eis as minhas condições. Assim que tenha possuído a sua devota e me possa fornecer uma prova, venha, e serei sua. Mas não ignora que, nos negócios importantes, não se recebem provas senão por escrito. Por esta combinação, serei, por um lado, uma recompensa em vez de ser uma consolação, e essa idéia agrada-me mais; por outro lado, o seu êxito será ma is excitant exc itant e. Venha p ois, ois, venha o m a is c ed o p oss ossível trazertrazer-me me o p enho r do seu triunfo: triunfo: sem sem elha nte a os noss nossos esforç esforç a d os c a va leir leiros, os, que vinham depor aos pés das suas damas os frutos brilhantes da vitória. Seriamente, estou curiosa de saber o que pode escrever uma mulher virtuosa depois de um tal momento, e que véu porá nas suas palavras, depois de não ter deixado nenhum sobre a sua pessoa. Ao Visconde c ab e a valiar valiar se se eu m e c oloc oloc o num p reç o m uito uito a lto; mas previno-o previno-o de que não farei qualquer abatimento... Até lá, meu caro Visconde, achará bem que eu fique fiel ao meu Cavaleiro e que me divirta a to rná -lo -lo fe liz, iz, a p esa esa r d o p eq ueno d esg esg osto osto q ue iss isso c a usa usa . Entreta nto , se se os me us c ostum ostum es nã o foss fossem tã o reg ra d os, os, c reio que teria, neste momento, um rival perigoso; é a pequena Volanges. Estou louc a p or ess essa p eq uena ; é um a v erda d eira eira p a ixã o. Ou e u me m e e nga ng a no, ou e la virá virá a ser uma d a s noss nossa s mul mu lheres d a moda. Vejo o seu coraçãozinho desenvolver-se, e é um espetáculo encantador. É já com furor que ela ama o seu Danceny; mas por enquanto não percebe destas coisas. Quanto a ele, embora muito ap a ixona do , tem a inda a timidez timidez d a sua ida d e e não ousa ousa ensi ensinar-l nar-lhe demasiado. Os dois permanecem em adoração na minha frente. Principalmente a pequena tem grande desejo de me dizer o seu segredo; desde há alguns dias, em particular, vejo-a verdadeiramente sufocada por ele, e eu prestar-lhe-ia um grande serviço se a ajudasse um pouco. Mas não esqueço que é uma criança, e não quero c om promete r-me. Danc eny falou-me falou-me um p ouc o m a is c larame nte, ma s, pa ra ele, ele, o meu p artid artid o está está toma d o, não q uero uero o uvi-l uvi-lo. o. Quanto à pequena, sinto-me muitas vezes tentada a fazer dela minha d isc isc íp ula ula ; é um serviç erviç o q ue te nho vo nta d e d e p resta esta r a Ge rc ourt. Ele dá-me tempo para isso, porque está na Córsega até ao mês de Outubro. Tenho em mente em prega r tod o ess esse tem po , de mo do a podermos dar-lhe uma mulher inteiramente formada, em lugar da sua inocente pensionista. Na verdade, em que se baseia a insolente confiança desse homem, que ousa dormir tranqüilo, enquanto uma
mulher, mulher, que d ele tem mo tivos d e q ueixa ueixa , não se se vingo u a ind a ? Creia, Creia, se se a p eq uena estives estivessse a q ui nes neste te m om ento , nem e u sei sei o q ue lhe d iria . Adeus, Visconde; boa noite e bom êxito: mas, por Deus, veja se avança. Pense que, se não possuir essa mulher, as outras terão ver ve rg onha onh a d e terem t erem sido p oss ossuíd uíd a s. 20 d e Ag A g osto osto d e 17 * *.
CARTA XXI O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Enfim, minha bela amiga, dei um passo em frente, mas um grande passo, e que, se não me conduziu até ao fim, me fez pelo menos conhecer que estou no bom caminho, e dissipou o receio em que estava de me ter perdido. Declarei enfim o meu amor; e embora me tenha resp esp ond id o o silênc io m a is ob stina tina d o, ob tive a resp esp osta osta ta lvez menos equívoca e mais lisonjeira; mas não antecipemos os a c onte c ime ntos e vo ltem os ma is a trá trá s. A M a rq uesa uesa rec orda ord a -se -se q ue o s me us p a ssos eram esp esp iad os. os. Pois bem! Decidi que esse meio escândalo servisse para a edificação do público, e aqui está o que eu fiz. Encarreguei o meu confidente de me encontrar, nos arredores, qualquer infeliz que tivesse nec ess essida d e d e a uxí uxílio. Essa missão não era difícil de cumprir. Ontem de tarde, deu-me ele a notíc notíc ia d e q ue hoje, de m anhã , deviam ser penhorad penhorad os os mó veis de uma família inteira que não podia pagar a derrama. Assegurei-me d e q ue ness nessa c asa asa não havia nenhuma mulher mulher ou rap rap ariga ariga c uja uja ida d e pudesse tornar suspeita a minha ação; e, logo que fiquei bem informado, declarei à ceia o meu projeto de ir à caça no dia seguinte. Devo a q ui fazer fazer jus justiça tiça à minha Presi esid ente : sem sem d úvid úvid a teve ela a lguns remorsos das ordens que deu; e, não tendo força de vencer a sua c uri uriosi osid a d e, teve p elo me nos a d e c ontraria ontraria r o m eu d esejo. esejo. Devia ha ver ca lor em e xc ess esso; arri arrisc a va -me a fic fic a r d oe nte; não apanharia nenhuma caça e fatigar-me-ia em vão; e, durante este diálogo, os seus olhos, que falavam talvez mais do que ela queria, davam-me a conhecer que ela desejava que eu tomasse por boas as sua s m á s raz ra zõ e s. Como pode crer, eu não pensava em me render a tais razões, e resisti do mesmo modo a uma pequena diatribe contra a caça e os c aç ad ores ores,, e a uma p eq uena nuvem nuvem d e ma u humor humor que obsc obsc urec urec eu, durante todo o serão, esta figura celeste. Por um momento receei que as suas ordens fossem anuladas e que a sua delicadeza acabasse por me prejudica prejudica r.
Fiz um mau cálculo sobre a curiosidade duma mulher; por isso me eng a nei. O m eu c ria d o t ra nq uil uilizou-me ness nessa me sma noite, e d eiteime satisfeito. Ao romper do Sol, levanto-me e parto. Apenas a cinqüenta passos do castelo, vejo que o meu espião me segue. Entro no terreno da c aç a e c am inho através através do s c am pos pa ra a aldeia aldeia o nde p retendia dirigir-me; sem outro prazer, na minha jornada, além do de obrigar a correr o patife que me seguia, e que, não se atrevendo a deixar os caminhos, muitas vezes tinha de percorrer, a toda a velocidade, um espaço triplo do meu. De tanto o pôr à prova, eu próprio ia cheio de calor, e sentei-me junto de uma árvore. Pois não teve ele a insolência de deslizar para trás de uma moita, a menos de vinte passos de distância, e de se sentar também? Por um momento estive tentado a mandar-lhe um tiro, que, embora fosse apenas de chumbo, lhe teria dado uma lição suficiente sobre os perigos da curiosidade. Felizmente para ele, tornei a lembrar-me de que estava sendo útil e mesmo nec ne c ess essá rio a os m eus eu s p ro jeto s; esta esta reflexão sa lvou-o . Entretanto chego à aldeia; vejo que há movimento; avanço; interr nterrog o; co ntam -me o q ue se se p ass assa . Cham o o c ob rad or; or; e, ced end o à minha generosa compaixão, pago nobremente cinqüenta e seis libras, pelas quais cinco pessoas iam ser reduzidas à indigência e ao desespero. Depois desta ação tão simples, não imagina o coro de bênçãos que se ergueu à minha volta por parte dos assistentes! Que lág rima s d e reco nhec imento c orr orriam d os olhos olhos do velho velho c hefe d aq uela uela família, e embelezavam a sua figura de patriarca, que um momento antes a contração feroz do desespero tornava verdadeiramente hedionda! Eu examinava o espetáculo e logo outro camponês mais mo ç o, cond uzi uzindo p ela mã o uma mulher mulher e d uas c rianç a s, ava nça pa ra mim a passos precipitados, dizendo-lhes: "Ajoelhemo-nos todos aos pés desta imagem de Deus!"; e no mesmo instante fui rodeado por toda a família, prosternada perante mim. Confessarei a minha fraqueza; os meus olhos tinham-se molhado de lágrimas, e senti em mim um movimento involuntário, mas delicioso. Fiquei surpreendido do prazer que se experimenta ao fazer-se bem; e estive tentado a crer que aqueles a quem chamamos pessoas virtuosas não têm tanto mérito c om o g eralmente se se d iz. Foss osse c om o fo sse, ac hei que era justo justo p a ga r à q uela p ob re g ente o p ra zer que a c a b a va d e me d a r. Ti Tinha c om igo d ez luís uíses: es: de i-lhos -lhos.. Aqui recomeçaram os agradecimentos, mas já não tinham o mesmo grau de patético: o necessário tinha produzido o grande, o verdadeiro efeito; o resto resto era a p ena s uma simp les expres expresssã o d e rec onhe c ime nto e de espa espa nto p or uma uma dá d iva supérf supérfllua. Entretanto, no meio das bênçãos tagarelas daquela família, eu não deixava de me parecer um pouco com o herói de um drama, na cena do desenlace. Calculará decerto que entre a multidão se mantinha a pé firme o espião fiel. O meu fim fora atingido; separei-me d e tod os, os, e vo ltei p a ra o c a stelo. Deita Deita d os tod os os c á lc ulos ulos,, feli felic ito-me
da minha minha invençã o. Es Esta mulher mulher vale b em , sem sem dúvida , que eu m e d ê a tais cuidados; eles serão um dia os meus títulos junto dela; e tendo-lhe, d e a lgum mo do , pag o a ssim d e a ntemã o, terei terei o direito direito de dispo dispo r de la seg undo a minha fa nta sia , sem sem ter de me c ensur ensuraa r. Esquecia-me dizer-lhe que, para que tudo resultasse em meu favor, pedi àquela boa gente que rogasse a Deus pelo bom êxito dos me us p rojetos ojet os.. A Ma rq uesa uesa verá se o s seus rog os nã o fo ra m já em p a rte a tend id os. os... Ma s a nunc ia m-me q ue a c eia e stá servid ervid a e fa r-se-i -se-iaa ta rd e para mandar esta carta se eu não a fechasse ao retirar-me. Assim, o resto no próximo número. Aborrece-me isso, pois o resto é o melhor. Ad eus, eus, minha minha be la am iga . Ac ab a d e me rouba r um mom ento do praz prazer er de vê-l vê-la. 20 d e Ag A g osto osto d e 17 * *.
C A RTA XXII A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE VOLANGES Ficareis sem dúvida satisfeita, senhora, por conhecer um gesto do senhor de Valmo Valmo nt, que c ontras ontrasta ta e m m uito, uito, pa rec e-me, com tod os aqueles sob os quais vo-lo apresentaram. É uma coisa tão penosa pensar desfavoravelmente de quem quer que seja, tão aborrecido encontrar apenas vícios naqueles que podem ter todas as qualidades nec ess essá rias p a ra fa zer am a r a virtud virtud e! Enfim, gostais tanto de usar de indulgência que dar-vos motivo p a ra rep a ra r um juíz juízo d em a siad o rig rig oroso oroso é d ec erto servi servirr-vos. -vos. O senhor de Valmont parece-me ter as condições necessárias para esperar esse favor, direi quase justiça; e vou dizer-vos porque o penso. Esta ma nhã d eu e le um d a q ueles p a sseios q ue p od eria eria m leva r a supor qualquer projeto da sua parte nos arredores, conforme a idéia que vos veio; idéia que me acuso de ter partilhado talvez com demasiada vivacidade. Felizmente para ele, e sobretudo felizmente para nós, pois isso nos salva de sermos injustas, um dos meus servidores tinha de ir para os mesmos lados que ele; e foi por aí que a minha curiosidade repreensível, mas feliz, foi satisfeita. Contou-nos o criado que o senhor senhor de Va lmo nt, tendo enc ontrad ontrad o na aldeia d e... e... uma uma infeli nfeliz fa míli míliaa c ujos mó veis iam ser vend ido s, p or não p od er pa g a r os imp osto ostoss, não somente se apressara a solver a dívida daquela pobre gente, mas lhe d era era até uma imp ortânc ortânc ia em d inheir nheiro b astante astante c onsi onsid eráve eráve l. O m eu c riad o foi testemunha testemunha da que la vir virtuosa tuosa aç ão , e ma is me contou que os camponeses, conversando entre si e com ele, haviam dito q ue um c riad o q ue d esi esigna ram , e que o m eu jul julga ser o do senhor d e Va lmo nt, tinha tinha onte m id o t ira r informa nforma ç õe s sob re q ua is os hab ita ntes
d a a ld eia q ue p od eria eria m esta esta r nec ess essitad os d e a uxí uxílio. Se Se isto isto é a ssim, se se não é unicamente uma compaixão passageira e que a ocasião determina, então é o projeto formado de fazer bem; é a solicitude da beneficência; é a mais bela virtude das mais belas almas. Mas, seja acaso ou projeto, é sempre uma ação honesta e louvável, e de que a simples narração me enterneceu até às lágrimas. Acrescentarei ainda, e sem sem p re p or jus justiça tiça , q ue, qua nd o lhe falei d ess essa a ç ã o, da q ual ele ele nã o dizia palavra, começou por se defender e mostrou atribuir-lhe tão po uco valor que a sua m od ésti éstiaa lhe red red ob rava o m éri érito. Dizei-me agora, minha respeitável amiga, se o senhor de Val Va lm ont é na n a ver ve rd a d e um libe rtino sem sem rem iss issã o? Se Se e le é a p ena s iss isso e p roc ed e a ssim, que fica rá p a ra a s p ess essoa s hones ho nesta ta s? Pois q uê! Os O s m a us p a rtilha tilha riam c om os b ons o p ra zer sa sa g ra d o d a beneficência? Permitiria Deus que uma família virtuosa recebesse das mãos dum celerado os socorros que teria de agradecer à sua divina Providência? E p od eria eria ele sent sentir ir p ra zer em ouvir ouv ir,, de b oc a s p ura ura s, esp esp a lha rem se b ênç ã os sob re um rép rob o? Não . Prefiro acreditar que os erros, por durarem longo tempo, não são eternos; e não posso pensar que quem faz o bem seja inimigo da virtude. O senhor de Valmont é talvez um exemplo mais do perigo de certas ligações. Detenho-me nesta idéia que me parece a melhor. Se, por um lado, ela pode servir a justificá-lo no vosso espírito, por outro torna cada vez mais preciosa a terna amizade que me liga a vós por toda a vida vida . Tenho a honr hon ra d e ser, ser, etc et c . P. S. - Madame de Rosemonde e eu vamos, dentro de momentos, ver também a honesta e infeliz família, e juntar os nossos socorros tardios aos do senhor de Valmont. Levá-lo-emos conosco. Daremos ao menos a essa boa gente o prazer de tornar a ver o seu benfeitor; é, creio eu, tud o o q ue e le d eixou eixou p a ra nós fazermos fazermos.. 20 d e Ag A g osto osto d e 17 * *.
CARTA XXIII O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Tínha mo s fic fic a d o no me u reg reg ress esso a o c a stelo: te lo: retom et om o a minha narrativa. Mal tive tempo de me arranjar um pouco, e regressei à sala, onde a minha bela tecia um tapete, enquanto o cura lia a gazeta à minha minha velha velha tia. tia.
Sentei-me junto do tear. Alguns olhares, mais doces ainda do que o costume, e quase acariciantes, depressa me fizeram adivinhar que o c riad o tinha já d a do c onta d a sua m issão . De fato, a minha amável curiosa não pôde guardar por muito temp o o seg red o q ue me tinha rouba do ; e, sem rec eio de interrom pe r um venerável pastor cuja prédica no entanto se parecia com uma hom ilia, d isse: "Ta mb ém tenho a s minha s novida d es a d a r"; e imed iata mente c ontou a minha a ventura c om uma exatidão que fa zia honra à inteligência do seu historiador. A Marquesa pode imaginar como eu manifestei toda a minha modéstia; mas quem poderia deter uma mulher que faz, sem o susp eitar, o e log io d a q uele que a ma ? Tom ei po is o p a rtido d e a d eixa r c ontinuar. Dir-se-ia q ue e la p reg a va o p a neg íric o d e um sa nto. Dura nte esse te mp o e u ob servava , não sem espe ra nça , tudo o q ue p rom etiam a o a mo r os seus olhares c heios d e a nima ç ã o, os seus gesto s a gora ma is livres, e principalmente aquele tom de voz que, pela sua alteração já sensível, traía a emoção da sua alma. Logo que ela acabou de falar, Madame de Rosemonde disse-me: "Meu sobrinho, chegue ao pé de mim; quero a braç á-lo." Imed iata mente senti que a linda prega do ra não p od eria d efend er-se d e ser ab ra ç a d a p or sua voz. Quis fugir, entreta nto; mais depressa a atraí para os meus braços; e, longe de ter forças para resistir, a p ena s lhe resta va m a s b a sta ntes p a ra se m a nter d e p é. Qua nto ma is ob servo e sta mulher, ma is ela me p a rec e d esejá vel. Apressa nd o-se a voltar p a ra junto d o tea r, simulou, pa ra os p resente s, rec om eç a r a sua tarefa; mas vi be m que a sua m ão trêmula nã o lhe pe rmitia c ontinuá-la. Depois do jantar, as senhoras quiseram ir ver os infortunados que eu tã o pied osam ente tinha soc orrido ; ac om pa nhei-as. Poupo a minha boa amiga ao enfado desta segunda cena de reconhecimento e de louvores. O meu coração, impedido por uma rec orda ç ã o d elic iosa , a p ressa o mo me nto d o regresso a o c a stelo. Pelo caminho, a minha bela Presidente, mais pensativa que de costume, não dizia palavra. Eu pensava em encontrar os meios de ap roveitar o efeito que nela c a usara o ac ontec imento do d ia, e p or isso ma ntinha igua lme nte silênc io. Só Ma d a me d e Rosem ond e fa la va e apenas obtinha de nós respostas curtas e raras. Era quase certo que a estávamos aborrecendo: era precisamente o que eu desejava, e fui bem sucedido. Ao descer da carruagem, minha tia dirigiu-se aos seus aposentos, e deixou-nos frente a frente, a minha bela e eu, numa sala mal iluminada: obscuridade doce, que torna ousados os amores tímidos. Não tive o trab alho de o rienta r a c onversaç ão pa ra o p onto em que desejava conduzi-la. O fervor da amável pregadora serviu-me me lhor d o q ue não o teria feito a minha ha bilida de . "Quando se é digno de fazer o bem", disse-me ela, detendo sob re m im o seu d oc e o lha r, "c om o se p od e p a ssa r a v id a p ra tica nd o o mal?" "Não mereço", respondi-lhe, "nem esse elogio, nem essa censura; e não compreendo como, com a sua inteligência, não me adivinhou
ainda. Mesmo que a minha confiança viesse a prejudicar-me, a senhora é demasiado digna dela para que eu pudesse recusá-la. Encontrará a chave da minha conduta num temperamento infelizmente fácil em demasia. Rodeado de indivíduos sem moral, deime a imitar os seus vícios; talvez tenha posto algum amor-próprio em ultrapassá-los. Da mesma forma, senti-me seduzido aqui pelo exemplo das virtudes, e, embora sem esperança de poder igualá-la, procurarei a o m eno s seg ui-la. Ta lvez o a to p or que hoje m e louva p erde sse a seus olhos todo o valor, se conhecesse o seu verdadeiro motivo!" (A minha amiga bem vê quanto eu estava perto da verdade.) "Não é a mim", continuei, "que esses infelizes devem o auxílio que lhes prestei. Onde julga ver uma a ç ão me ritória, proc urei eu ap ena s um m eio de a grad ar. Eu era apenas, é forçoso dizê-lo, o frágil emissário da divindade que adoro." (Aqui ela quis interromper-me; mas eu não lhe dei tempo para ta l.) "Neste mo me nto me smo ", ac resc ente i, "o me u seg red o esc a p a -me devido a uma fraqueza. Prometera a mim mesmo calar-me; era para mim uma felicidade oferecer às suas virtudes e aos seus encantos uma homenagem que ficaria ignorada para sempre; mas, incapaz de enga nar, qua ndo tenho d eb a ixo d os olhos o exemp lo d a c and ura, não terei a c ensura r-me uma c ulp osa d issimulaç ã o. Nã o c reia q ue a ofend o por uma criminosa esperança. Serei infeliz, bem sei; mas os meus sofrimentos ser-me-ã o c a ros; prova r-me-ã o o exc esso d o m eu a mor. É a seus pés, é no seu seio que eu deporei as minhas mágoas. Aí encontrarei forças para sofrer de novo; aí encontrarei a bondade c om pa de c id a, e julga r-me-ei co nsolado , só po rque me lastimo u. Adoroa! Escute-me, lastime-me, socorra-me!". Entretanto eu estava a seus pés, e apertava as suas mãos nas minhas; ela, porém, desprendendo-as de repente, e cruzando-as sobre os olhos c om expressã o d e d esesp ero, excla mo u: "Ah, desventurad a !"; e d esato u a c horar. Por felic ida de , eu a ta l ponto m e tinha ab and onad o à emoç ão que chorei também; e, voltando a tomar-lhe as mãos, banhei-as de lágrimas. Esta precaução era muito necessária, pois ela estava tão oc upad a c om a sua d or que nã o se teria ap erc eb ido da minha, se eu não tivesse e nco ntrad o e ste m eio d e p ate nteá -la. Além disso, aproveitei o momento para contemplar à minha vontade aquele rosto encantador, embelezado ainda pelo poderoso atrativo d as lág rima s. Senti a c ab eç a que nte, e e stava tão po uco senhor de mim que m e senti tentad o a ap roveitar a quele mom ento. Que fraqueza é esta nossa?! A que ponto nos dominam as c irc unstâ nc ias, se eu p róp rio, esq uec end o os me us p rojeto s, me a rrisq uei a perder, por um triunfo prematuro, o encanto dos longos combates e os p ormeno res d e uma p eno sa d errota ? Se, sed uzid o p or um d esejo d e home m mo ç o, pe nsei expo r o venc ed or de Ma da me d e Tourvel a nã o recolher, como fruto dos seus trabalhos, senão a insípida vitória de p ossuir ma is um a mulher?!
Ah! Que ela se renda, mas que combata; que, sem ter a força d e ve nc er, tenha a d e resistir; q ue sa b oreie à vonta d e o sentime nto d a sua fraqueza, e seja obrigada a confessar a sua derrota. Deixemos o obscuro caçador furtivo matar o veado que surpreendeu numa cilada; o verda deiro c aç ad or deve forç á-lo. É sublime este p rojeto, nã o a c ha ? Ma s ta lvez neste m om ento eu lamentasse não o ter seguido, se o acaso não viesse em socorro da minha p rudê ncia. Ouvimos ruíd o. Alguém vinha d o sa lã o. Ma d a me d e Tourvel, horrorizada, levantou-se precipitadamente, agarrou um dos c a nd elab ros e sa iu. Tive d e a d eixa r proc ed er. Era a p ena s um c ria d o. Logo que me assegurei disso, segui-a. Apenas eu tinha dado alguns p a ssos, fosse p orque ela me rec onhec esse, fosse p or um sent iment o d e va go t error, ouvi-a p rec ipitar os p a ssos e lanç a r-se, em vez de entra r, no seu quarto, fechando a porta atrás de si. Fui junto da porta; mas a c have estava do lad o de de ntro. Tive o c uid a d o d e nã o b a ter; seria fo rnec er-lhe a oc a siã o d e uma resistênc ia d em a siad o fá c il. Tive a feliz e simp les idéia d e tenta r ver através da fechadura, e vi de fato essa mulher adorável de joelhos, banhada em lágrimas, rezando com fervor. Que Deus ousava ela invocar? Existirá algum com poder bastante contra o amor? É em vão q ue e la p roc ura a gora soc orros estranho s; só e u d ec idirei da sua sorte. Julga nd o te r já fe ito b a sta nte p a ra um só d ia , retirei-me ta mb ém pa ra o m eu q uarto e c om ec ei a esc rever esta c arta. Espe rava voltar a vê-la à c eia ; no e nta nto , ela m a nd ou d izer que se sent ira ind isp osta e se tinha d eitad o. Mad a me d e Rosem ond e q uis sub ir a o q uarto d ela, mas a maliciosa doente pretextou uma dor de cabeça que não lhe permitia ver ningué m. Como facilmente imagina, depois da ceia pouco tempo estivemo s à m esa, e tam bé m eu tive a minha d or de c a be ç a. Fec had o no m eu q uarto, esc revi uma longa c a rta pa ra me que ixa r de tal rigo r, e deitei-me, com o projeto de a entregar esta manhã. Dormi mal, como poderá ver pela data desta carta. Levantei-me, e reli a minha epístola. Verifiquei que nela eu me sujeitara a uma medíocre observação, que mo stra va ma is a rd or do q ue a mo r, e ma is c ontraried a d e d o q ue tristeza . É preciso refazê-la; mas necessitarei de estar mais calmo. O dia começa a romper, e espero que a frescura que o ac om pa nha m e trará o sono. Vou meter-me na c a ma ; e, seja q ual for o imp ério d esta mulher, prometo -lhe não me oc upa r d ela a ta l po nto q ue não fique tem po pa ra sonhar muito c onsigo . Adeus, minha b ela a miga . 21 d e A go sto d e 17* * , 4 hora s d a ma nhã.
CARTA XXIV
O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL Ah! Por piedade, senhora, dignai-vos acalmar a perturbação da minha a lma ; d igna i-vos d izer-me o q ue d evo esp erar ou rec ea r. Colocado entre o excesso da felicidade e o do infortúnio, a inc erteza é um tormento c ruel. Por que vos falei? Por que nã o p ude eu resistir ao encanto imperioso que vos entregava os meus pensamentos? Contente de vos ad orar em silênc io, eu go zava ao meno s do a mo r que sentia; e esse sentimento puro, que não era perturbado ainda pela ima ge m d a v ossa d or, b a sta va p a ra a minha felic id a d e. Mas essa fo nte de ventura transformou-se em fonte de desespero, desde que vi correrem lágrimas dos vossos olhos; desde que ouvi aquele cruel ah, desventurada! Senhora, aquelas duas palavras ressoarão por muito tempo no meu coração. Por que fatalidade o mais doce dos sentimentos não p od e insp ira r-vos ma is d o q ue horror? Que rec eio é e sse q ue sent is? Ah! Não é o receio de partilhar tal sentimento: o vosso coração, que conheci mal, não foi feito para o amor; o meu, que caluniais sem cessar, é dos dois o único sensível. O vosso não tem piedade. Se assim não fosse, não teríeis recusado uma palavra de consolação ao d esgra ç a d o q ue vos c ont a va os seus sofrimentos; não vos teríeis furta d o aos olhares de quem não tem outro prazer além de ver-vos; não vos teríeis d ivertid o c ruelmente c om a sua inquieta ç ã o, anunc ia nd o-lhe q ue estáveis doente sem lhe permitir que se informasse do vosso estado; teríeis sentido que essa mesma noite, que para vós representava doze horas d e rep ouso, ia ser pa ra ele séc ulo d e d ores. Por onde mereci, dizei-me, esse rigor implacável? Não tenho rec eio d e to ma r-vos p or juiz: que fiz eu, além d e c ed er a um sentimento involuntário, inspirado pela beleza e justificado pela virtude, sempre contido pelo respeito, e cuja inocente confissão foi o efeito da c onfianç a e não d a espe ranç a? Pois traireis essa confiança, que me pareceu vós mesma terdes permitido, e à qual me entreguei sem reservas? Não, não posso acreditá-lo; seria supor-vos capaz de malevolência, e o meu coração revolta-se só com a idéia de vos achar em semelhante falta. Retiro as minhas censuras: pude escrevê-las, mas não pensá-las. Ah! Deixai-me supor-vos perfeita, é o único prazer que me resta. Provai-me que o sois concedendo-me os vossos generosos cuidados. Que infeliz tereis já soc orrid o q ue t ivesse t a nta nec essid a d e d eles c om o e u? Não me ab and oneis no d elírio e m q ue m e lanç astes! Conc ed eime a vossa razão, já que me roubastes a minha! Depois de me ha verdes c orrigido , esc la rec ei-me p a ra terminard es a vossa ob ra ! Não desejo iludir-vos: não conseguireis vencer o meu amor; mas ensinar-me -eis a governá-lo: guia nd o os me us p a ssos, dita nd o a s minha s palavras, salvar-me-eis ao menos da horrível desgraça de vos desagradar.
Acima de tudo, dissipai este desesperador receio; dizei-me que me p erdo a is, q ue m e lame nta is; d a i-me a c erteza d a vo ssa indulgênc ia ! É certo que nunca disporeis de tanta como eu desejaria que tivésseis; mas reclamo aquela de que necessito. Podereis recusar-me? Adeus, senhora. Recebei com bondade a homenagem dos me us sentimento s; ela nã o imp ed e a d o m eu resp eito. 20 d e Agosto d e 17 * *.
CARTA XXV O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Aq ui lhe a presento o bo letim do dia d e onte m. As onze horas entrei nos a p osento s d e Ma d a me d e Rosem ond e; e, sob os seus a usp íc ios, fui introd uzido no q ua rto d a d oe nte fing ida , que p erma nec ia d eitad a . Tinha os olhos muito p isa d os; esp ero q ue tenha dormido tão mal como eu. Aproveitei um momento em que Madame de Rosemonde se afastara para entregar a minha carta; recusou-se a aceitá-la, mas deixei-a sobre a cama, e fui muito honestamente aproximar a poltrona da minha velha tia, que queria estar junto da sua q uerid a filha ; p a ra e vitar o e sc â nd a lo, teve d e g ua rd á -la . Sem convicção alguma, a doente disse que julgava ter um pouco de febre. Madame de Rosemonde intimou-me a que lhe tomasse o pulso, elog ia ndo muito os meus c onhec imento s d e m ed ic ina. A minha bela teve pois o duplo desgosto de ser obrigada a estend er-me o b ra ç o, e d e sentir q ue a sua me ntirola ia ser de sc ob erta. De fato, tome i a sua m ão que a pe rtei numa d as minha s, enq uanto q ue c om a outra p erco rria o seu b ra ç o fresc o e red ond o. A ma lic iosa p essoa não respondeu a nada, o que me fez dizer ao retirar-me: "Não tem seq uer a ma is ligeira p erturb a ç ã o." Ca lc ulei q ue o s seus olhares d evia m ser severos, e p a ra a c a stiga r nã o o s p roc urei. Após um instante, disse que desejava levantar-se, e deixámo-la só. Apareceu ao jantar, que foi triste; anunciou que não sairia para p a ssea r, o q ue e ra d izer-me q ue e u nã o t eria oc a siã o d e lhe fa la r. Senti bem que era o momento de soltar um suspiro e lançar um olhar doloroso. Ela esperava isso por certo, pois foi a única vez durante o dia q ue c onseg ui enc ont ra r os seus olhos. Apesar de toda a sua honestidade, tem os seus pequenos ardis c om o q ua lq uer outra. Enc ontrei o m om ento d e lhe p ergunta r "se tinha a bondade de me instruir sobre a minha sorte", e fiquei um pouco admirado de a ouvir responder-me: "Sim, senhor, escrevi-lhe." Eu estava muito apressado em receber a carta; mas fosse ainda por ardil,
desastramento ou timidez, ela só ma entregou à noite, no momento de se retira r p a ra o seu q ua rto. Aqui lha envio, juntamente com o rascunho da minha; leia e julgue: veja com que insigne falsidade ela afirma que não sente amor, quando eu estou convencido do contrário. E há de queixar-se se eu a enga nar dep ois, qua ndo ela não rec eia eng ana r-me ante s! Minha b ela a miga , o hom em ma is a visa d o c onseg ue a p ena s ma nter-se a o nível da mulher mais verdadeira. Será pois preciso acreditar em todo este contra-senso, e fatigar-me de desespero, porque apetece à senhora simular rigor! Como é possível evitar vingarmo-nos de tais perfídias?... Ma s pa c iênc ia... Ad eus. Tenho a inda muito p a ra esc reve r. A p rop ósito, devo lver-me -á a c arta d a de suma na; po de da r-se o caso que por diante ela pretenda dar valor a essas misérias, e é preciso esta r em reg ra . Não lhe fa lo d a p eq uena Vola nge s; fa la rem os d isso no utro dia. Do c a stelo, 22 d e Ag osto d e 17* *.
CARTA XXVI A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT Decerto, senhor, não viríeis a receber qualquer carta minha se a minha tola conduta de ontem à noite não me obrigasse a entrar hoje em explicações convosco. Sim, chorei, confesso-o: é possível também que me tivessem escapado as duas palavras que citais com tanto escrúpulo. Lágrimas e palavras, tudo notastes; é preciso, pois, explicar-vos tudo. Habituada a inspirar apenas sentimentos honestos, a ouvir apenas palavras que posso escutar sem corar, a gozar por conseqüência de uma tranqüilidade que ouso dizer que mereço, não sei d issimular nem c om b a ter a s imp ressõe s q ue expe riment o. O esp a nto e a confusão em que me lançou o vosso procedimento; não sei que receio, inspirado por uma situação que não foi feita para mim; talvez a idéia revoltante de me ver confundida com as mulheres que desprezais e tratada tão ligeiramente como elas; todas estas causas reunidas provocaram as minhas lágrimas e puderam fazer-me dizer, com razão segundo penso, que era desventurada. Esta expressão, que achais demasiado forte, seria certamente demasiado fraca se as minhas lágrimas e as minhas palavras tivessem motivo diferente; se, em vez de rep rova r sentiment os q ue m e ofend em , eu tivesse rec eio d e os p a rtilha r.
Não, senhor Visconde, não tenho esse receio; se o tivesse, eu fugiria para cem léguas de distância. Iria chorar para um deserto a d esgraç a d e vo s ter co nhec id o. Ta lvez me smo , a p esa r d a c erteza em que estou de nunca vos poder amar, talvez eu fizesse melhor em seguir os conselhos dos meus amigos: não deixar que vos aproximásseis de mim. Supus, e é esse o meu único erro, supus que respeitaríeis uma mulher honesta, que não pedia mais do que achar-vos igualmente hone sto e fazer-vos justiça ; que já vos d efend ia , enq uanto a ultra já veis com os vossos criminosos desejos. Bem se vê que não me conheceis; nã o, senhor Visc ond e, não me c onhe c eis. Se me conhecêsseis não teríeis querido transformar em direitos os vossos agravos: porque me dirigistes palavras que eu não devia ouvir, não vos julgaríeis autorizado a escrever-me uma carta que eu não devia ler. E pedis-me que guie os vossos passos, que dite as vossas palavras! Pois bem, senhor, o silêncio e o esquecimento, eis os conselhos que me apraz dar-vos, e que vos convém seguir: então tereis, na verdade, direito à minha indulgência. E só de vós depende obterdes me smo o m eu rec onhec ime nto... Mas não, não farei um pedido a quem não teve respeito por mim; não darei mostras de confiança a quem abusou da minha tranqüilidade. Sois vós quem me obriga a recear-vos, talvez a odiar-vos. Eu nã o o d esejava ; queria ver em vó s a p ena s o sob rinho d a minha m a is respeitável amiga: opunha a voz da amizade à voz pública que vos acusava. Vós destruístes tudo; e, já o prevejo, não fareis nada para rep a ra r o q ue d estruíste s. Me o fend em , q ue a c onfissã o d eles me ultra ja , e sob retud o q ue, long e d e p od er um d ia p a rtilhá -los, me fo rç a is a não tornar a ver-vos se não vos impuserdes a tal respeito um silêncio que me parece ter o d ireito d e e sp erar, e me smo d e vo s exigir. Junto a esta c a rta a q ue m e escrevestes e espero que fareis o favor de me devolver esta; ficaria verdadeiramente desgostosa se ficasse algum vestígio de um a c onte c ime nto q ue não d eve ria nunc a te r-se p rod uzido. Tenho a ho nra d e ser, etc . 21 d e Agosto d e 17 * *.
CARTA XXVII CECÍLIA DE VOLANGES A MARQUESA DE MERTEUIL Meu Deus, como sois boa, senhora Marquesa! Como compreendeste que me seria mais fácil escrever-nos do que falar-vos! Na verdade, o que tenho a dizer-vos é muito difícil. Mas sois minha am iga , não é verdad e? Oh! Sim, minha b oa am iga !
Vou fazer o possível por não ter medo; e, depois, tenho tanta precisão de vós, dos vossos conselhos! Sinto-me muito triste, parece-me que to da a gente a divinha o que e u penso; e principalmente q uando ele está presente, coro assim que alguém olha para mim. Ontem, q ua ndo me vistes c horar, foi p orque eu q ueria falar-vos e ha via nã o sei quê que me impedia; e quando me perguntastes o que eu tinha, saltaram-me as lágrimas contra minha vontade. Não teria podido dizer uma palavra. Se não fósseis vós, a Mamã saberia logo do que se tratava, e que iria ser de mim? E no entanto é assim que eu passo a minha vida , p rincipa lmente d e há q uatro d ias pa ra c á! Foi nesse dia, senhora Marquesa, sim, sempre vos digo, foi nesse d ia q ue o senho r Cava leiro Danc eny m e e sc reve u: oh!, p osso d a r-vos a certeza de que quando encontrei a carta eu não sabia do que se tra ta va ; ma s, p a ra nã o m entir, nã o ne go q ue senti muito prazer ao lê-la . Podeis acreditar, gostaria mais de; ficar triste toda a vida, do que se ele me nã o tivesse esc rito. Mas eu sabia bem que não devia dizer-lhe isso, e posso garantirvos que cheguei a dizer-lhe que tinha ficado zangada; mas ele disse q ue e ra ma is forte d o q ue e le e eu a c red itei; p ois tinha resolvid o nã o lhe resp ond er, e no enta nto nã o p ud e d eixa r d e o fa zer. Oh! Escrevi-lhe apenas uma vez, e mesmo isso foi em parte para lhe dizer que não voltasse a escrever-me. Mas apesar disso ele continua; e c om o eu não lhe resp ond o, vejo b em q ue e le está triste, e isso a flige -me a ind a ma is. De m a neira q ue nã o sei q ue fa zer; nem o q ue resolver, e o que é c erto é que sou d igna de lástima . Dizei-me, p eç o-vo s, senho ra Ma rq uesa , será ma l feito resp ond erlhe de tem po s a te mp os? Só a té q ue ele c om preenda que nã o d eve voltar a escrever-me, e ficarmos como dantes; pois, por meu lado, se isto c ontinua, não sei o q ue va i ser de mim. E estou b em c erta d e q ue se eu nã o lhe resp ond o, isso nos fa rá sofrer ao s d ois. Vou enviar-vos também a carta dele, ou uma cópia, e fareis o vosso juízo; vereis que o que ele me pede não é nada de mal. Mas se virdes que não é coisa que se deva fazer, prometo-vos que não continuarei; entretanto, creio que pensareis como eu e que em tudo isto não há na da de ma l. Enquanto aguardo o vosso parecer, permiti-me, senhora Marquesa, que vos faça ainda uma pergunta: têm-me dito que é feio am ar alguém; ma s po rque ? O q ue m e leva a pe rgunta r-vos isto é que o Cavaleiro Danceny pretende que não é feio tal e que quase todas as p essoa s a ma m a lgué m; se é a ssim, nã o v ejo p orque serei a únic a a nã o poder fazê-lo; ou será que só é feio para as meninas solteiras? Pois eu tenho ouvido a té à Ma mã dizer que Ma da me D... ama va o senhor M...; e quando ela falava a esse respeito não parecia referir-se a uma coisa má , ma s no enta nto tenho a c erteza de que ela se zang aria c om igo se susp eitasse d a minha a miza d e p elo senho r Danc eny. A Ma mã tra ta -me sempre como se eu fosse uma criança e não me diz nada. Eu julgava, qua ndo ela me fez sair do c onvento, que e ra pa ra me c asar; ma s ag ora
parece-me que não. Não é que eu tenha nisso interesse, asseguro-vos. Ma s, send o tã o a miga d a Ma mã , sa b eis ta lvez o q ue há a esse resp eito e, se o soub erd es, esp ero q ue mo d ireis. Ora aqui está uma carta comprida, senhora Marquesa, mas, como permitistes que eu vos escrevesse, aproveitei para vos dizer tudo e c onto c om a vossa a mizad e. Tenho a honra d e ser, etc . Pa ris, 23 de Ag osto d e 17 * *.
CARTA XXVIII O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES Pois q uê, Ma d em oiselle, c ont inua a rec usa r resp ond er-me ! Não há nad a que a po ssa c omo ver, e c ad a dia leva c onsigo a esperança que trouxera! Se consente que subsista entre nós uma amizade, que amizade é essa não bastante poderosa para a tornar sensível à minha má go a ? Se a d eixa fria e tra nqüila , enq ua nto eu p a sso p elos tormento s d um fog o q ue não p osso extinguir? Se, long e d e lhe insp ira r c onfianç a , nã o c heg a seq uer pa ra fazer nascer a sua piedade? Pois quê! O seu amigo sofre, e não faz nada p a ra o soc orrer! Ped e-lhe a p ena s uma p a la vra , e rec usa -lha ! E que r que ele se c ontente c om um sentime nto tã o frac o, e tem até rec eio de lho c onfirma r! Disse-me ontem que não desejaria ser ingrata. Ah!, creia-me, Ma de mo iselle, querer pa ga r am or c om am izad e não é tem er ap ena s a ingratidão, é amedrontar-se só da idéia de parecer ingrata. Entretanto, não ouso c ontinuar a fa lar-lhe d um sentime nto q ue nã o p od e d eixar de a a b orrec er, se nã o lhe interessa . É preciso pelo menos encerrá-lo dentro de mim mesmo, aguardando que possa um dia vencê-lo. Eu sinto quanto será penoso esse trabalho; não dissimulo perante mim próprio que terei necessidade d e tod a s a s minhas força s; tenta rei to d os os me ios: existe um q ue será o mais difícil para o meu coração, é o de repetir muitas vezes comigo mesmo q ue o seu é insensíve l. Terei de experimentar vê-la menos vezes, e penso já na maneira d e enc ontrar um p rete xto p la usível. Pois q uê! Terei de p erder o d oc e há b ito d e a ver tod os os d ias! Ah! Pelo menos não deixarei jamais de lamentá-lo. Uma perpétua angústia será o preço do amor mais terno; assim o terá querido, e essa será sua ob ra ! Ja ma is, sinto-o, torna rei a e nc ontrar a felic id a d e q ue hoje p erco ; só a Cecília era feita para o meu coração. Com que prazer farei o
juramento de não viver senão para si! Mas vejo bem que não quer receber esse juramento. O seu silêncio basta para me fazer compreender que o seu c oraç ão não lhe d iz nad a e m m eu favor; é a o m esmo te mp o a prova ma is seg ura d a sua indiferenç a e a m a neira m a is c ruel de m a a nunc ia r. Adeus, Mademoiselle. Já não ouso esperar uma resposta; o amor tê-la-ia escrito com solicitude, a amizade com prazer, a piedade mesmo com complacência; mas a piedade, a amizade e o amor são igualmente estra nhos a o seu c oraç ã o. Pa ris, 23 de Ag osto d e 17 * *
CARTA XXXIX CECíLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY Eu bem te tinha dito, Sofia, que havia casos em que se podia escrever; e asseguro-te que me censuro muito por ter seguido o teu c onselho, que nos de u tanta má go a, ao Ca valeiro Danc eny e a m im. A prova de que eu tinha razão é que Madame de Merteuil, que é uma mulher que com certeza o sabe muito bem, acabou por pensar como eu. Confessei-lhe tudo. Primeiro ela disse-me o mesmo que tu; mas q ua ndo eu lhe expliq uei tud o, co nc ordo u que e ra m uito d iferente. Exig e somente que eu lhe mostre todas as minhas cartas e todas as do Cavaleiro Danceny, a fim de estar certa de que eu não direi senão o q ue for nec essá rio. Por isso, sinto-me agora tranqüila. Meu Deus, como eu gosto de Madame de Merteuil! É tão boa! E olha que é uma senhora muito resp eitá vel. Por isso nã o há na d a a d izer. De que maneira vou escrever ao senhor Danceny e como ele vai fic ar co ntente! Vai fic ar ainda ma is c ontente d o q ue ele pe nsa, po is até a qui eu só lhe falava da minha am izad e, e ele q ueria sem pre q ue eu dissesse o meu amor. Julgo que é a mesma coisa; mas enfim eu não ousava, e ele teimava nesse ponto. Contei isso a Madame de Merteuil; ela disse-me que eu tinha razão, e que não convinha falar de amor, enquanto uma pessoa se pode impedir de o fazer. Ora eu tenho a c erteza de que não p od erei imp ed ir-me de o fa zer po r muito te mp o; no fim d e c onta s é a me sma c oisa , e isso a grad a r-lhe-á muito m a is. Madame de Merteuil disse-me também que ia emprestar-me livros que falam de tudo isso, e que me ensinariam a conduzir-me, e também a escrever melhor do que o faço; pois, como vês, ela diz-me todos os meus defeitos, o que é uma prova de que é muito minha a miga . Só m e rec om end ou q ue nã o d issesse na d a à Ma mã a resp eito
dos livros, porque podia parecer que ela julgava que a Mamã tinha descuidado a minha educação e isso fazer com que ela se zangasse. Oh ! Não lhe d irei nad a a ta l resp eito. Acho no entanto muito extraordinário que uma senhora que quase não é da minha família tenha mais cuidado comigo do que a minha mã e! Foi uma felic ida d e p ara mim tê-la c onhec ido ! Ela pediu também à Mamã que me deixasse ir com ela depois de amanhã à Ópera, para o seu camarote; disse-me que estaríamos sozinhas e que conversaríamos todo o tempo, sem receio de que alguém nos ouvisse: prefiro isso muito mais a ouvir a ópera. Conversaremos também a respeito do meu casamento, pois ela disseme que sempre era certo que eu ia casar-me; mas não pude saber ma is d o q ue isso. Ora não é na verda d e m uito d e a dm irar que a Ma mã não m e tenha d ito nad a a tal respe ito? Adeus, minha Sofia; vou imediatamente escrever ao Cavaleiro Danc eny. Oh! Como eu estou c ontente! 24 d e Agosto d e 17 * *.
CARTA XXX CECÍLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY Enfim, senhor, consinto em escrever-lhe, para que esteja certo da minha amizade, do meu amor, visto que, sem isso, se sentiria infeliz. Diz o senhor que eu não tenho bom coração; garanto-lhe que se engana e espero que de agora em diante não tenha dúvidas a esse respeito. Se se sentia triste por eu não lhe escrever, julga que isso não me fazia pena a mim também? Mas é que, por coisa nenhuma do mund o, eu d esejaria fazer qua lq uer co isa q ue m e fic a sse ma l; e m esmo nã o e sta ria tã o c erta d o m eu a mo r p or si se nã o tivesse sentido má go a p or não lhe esc reve r. Mas a sua tristeza custava-me muito. Espero que daqui por d iante já a nã o sinta e q ue irem os ser muito felizes. Conto ter o prazer de o ver esta noite e que virá tão cedo quanto possível; nunca será tão cedo como eu desejo. A Mamã ceia em casa, e creio que lhe dirá para ficar. Espero que não esteja comprometido como anteontem. Era então muito agradável a ceia a q ue ia a ssistir? O c erto é q ue fo i pa ra lá muito c ed o. Mas enfim, não falemos disso: agora que já sabe que o amo, espero que ficará junto de mim o mais tempo que possa. Pois eu não estou contente senão quando está ao pé de mim, e desejaria que o me smo a c onte c esse c om o senho r.
Aborrece-me muito que esteja ainda triste neste momento, mas não é minha a c ulpa . Log o q ue c hegue, ped irei para toc a r harpa , a fim de que rec eb a a minha c arta o ma is c ed o p ossível. Não p osso fa zer ma is d o q ue isto. Ad eus. Amo -o m uito, de tod o o c oraç ão . Qua nto ma is lho d igo , ma is me sinto sa tisfeita . Esp ero q ue o esteja ta mb ém . 24 d e Agosto d e 17 * *.
CARTA XXXI O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES Sim, sem dúvida, seremos felizes. A minha felicidade é certa, porque sou amado por si; a sua não terá fim, se tiver de durar tanto c om o o a mo r q ue m e insp irou. Pois q uê! Ama -me, e já nã o rec eia fa la rme do seu a mo r! Quanto mais mo diz, mais se sente satisfeita! Depois de ler aq uele e nca ntad or amo -o, esc rito p ela sua m ão , ouvi a sua linda bo c a confessar-mo de novo. Vi fixarem-se em mim esses olhos encantadores que a expressão de ternura embelezava ainda mais. Recebi a jura de viver sempre para mim somente. Ah! Receba a minha de consagrar a vida inteira à sua felic ida d e; rec eb a-a, e po de estar certa d e q ue não a tra irei nunc a . Que dia feliz passamos ontem! Ah! Por que é que Madame de Merteuil não tem segredos para dizer todos os dias à sua Mamã? Por que é necessário que a idéia do constrangimento que nos espera venha misturar-se à lembrança deliciosa que me prende? Por que não posso eu ter sempre segura essa linda mão que me escreveu amo-o? Co b ri-la d e b eijos, vinga r-me a ssim d a rec usa d e m e c onc ed er um fa vor maior? Diga -me , minha Cec ília: qua ndo a sua Ma mã voltou p ara junto de nós; quando fomos obrigados, pela sua presença, a não dirigirmos um ao outro mais do que olhares indiferentes; quando não podia já consolar-me, pela certeza do seu amor, da recusa de me dar provas d ele, não sent iu nenhum p esa r? Não d isse c onsigo mesma : "Um b eijo têlo-ia tornado mais feliz, e fui eu quem lhe roubou essa felicidade?" Prometa-me, minha adorável amiga, que na primeira ocasião será me nos severa. Co mo a uxílio de ssa p rom essa , enc ont ra rei co ra gem p a ra suportar as contrariedades que as circunstâncias nos preparam; e as privações cruéis serão ao menos suavizadas pela certeza de que a Ce c ília p a rtilha c om igo esse seg red o. Adeus, minha encantadora Cecília. Chegou a hora em que devo dirigir-me a sua casa. Ser-me-ia impossível deixá-la, se não fosse
para a tornar a ver. Adeus, ó ente que tanto amo e a quem amarei c ad a vez ma is! 25 d e Agosto d e 17**.
CARTA XXXII MADAME DE VOLANGES A PRESIDENTE DE TOURVEL Desejais pois, senhora, que eu acredite na virtude do senhor de Valmont? Confesso que não posso resolver-me a isso, e que farei tanto esforç o e m supô -lo hone sto, em fa c e d a únic a c irc unstânc ia de que me de stes pa rte, co mo em julga r vic ioso um home m d e b em rec onhec id o c omo tal, de quem tivesse c hega do ao meu c onhecimento uma falta. A humanida de não é perfeita e m nenhum gênero, nem no ma l nem no bem. O c elera d o te m a s suas virtud es, c om o o hom em hone sto te m a s sua s fraq ueza s. Esta verdade parece-me tanto mais necessária a ter presente quanto é dela que depende a necessidade de indulgência para os ma us c om o p a ra os b ons; e é ela q ue p reserva e stes d o o rgulho, e sa lva os outros d o d esâ nimo . Deve is sem d úvid a a c ha r q ue e u uso m uito ma l neste m om ento d aq uela indulgê nc ia que prec onizo; ma s não vejo nela senão uma fraqueza perigosa, se nos obrigar a tratar de igual modo o vicioso e o home m d e b em. Não me permitirei perscrutar os motivos da ação do senhor de Valmont; desejo acreditar que tais motivos são tão louváveis como a própria ação. Mas, por isso, deixou ele de passar a sua vida a levar a perturbação, a desonra e o escândalo ao seio das famílias? Escutai, se o e nte nd eis, a vo z d o infeliz q ue e le soc orreu; ma s q ue e la nã o vos p rive d e o uvird es os gritos d a s c em vítima s q ue e le imo lou. Ainda q ue e le nã o fosse, como dizeis, senão um exemplo do perigo de certas ligações, d eixa ria p or isso d e ser ele p róp rio uma liga ç ã o p erigosa ? Pod eis julgá -lo susc et íve l de um resga te feliz? Vamos mais longe: suponhamos que esse milagre se cumpriu. Não ficaria ainda contra ele a opinião pública e não basta ela para regular a vossa conduta? Só Deus pode absolver no instante do a rrep end ime nto; Ele lê no s c oraç õe s. Mas os hom ens nã o p od em julg a r os p ensa mentos senã o a travé s d os a to s; e ne nhum d e e ntre eles, d ep ois de ter perdido a estima dos outros homens, tem o direito de se queixar d a d esc onfianç a nec essá ria , q ue to rna essa p erda tã o d ifíc il d e repa ra r. Pensai sobretudo, minha jovem amiga, que, para perder essa estima, basta algumas vezes parecer atribuir-lhe pouco valor; e não chameis injustiça a essa severidade; pois, além de haver fundamento para crer que não se renuncia a esse bem precioso quando se tem o
direito de o pretender, quem assim procede está na verdade mais próximo de praticar o mal quando não é impedido por esse poderoso freio. Esse seria, entretanto, o aspecto sob o qual vos deveria aparecer uma ligação íntima com o senhor de Valmont, por muito inocente que ela p ud esse ser. Amedrontada pelo calor com que o defendeis, apresso-me a p reve nir a s ob jeç õe s q ue a nteve jo. Citar-me -eis Ma d a me d e M erteuil, a quem foi perdoada essa ligação; ides perguntar-me por que motivo o recebo eu em minha casa; dir-me-eis que, longe de ser repelido pelas pessoas honestas, ele é admitido, procurado mesmo pelo que se c ha ma a b oa soc ied a d e. Posso, seg undo c reio, resp ond er a tud o. Em primeiro lugar Madame de Merteuil, de fato uma pessoa muito estimável, não tem talvez outro defeito além de depositar demasiada confiança nas suas forças: é um guia muito hábil que se c om p ra z em c ond uzir um c a rro e ntre roc hed os e p rec ip íc ios e q ue só o êxito justifica. É justo que a louvemos, mas seria imprudente segui-la. Ela p róp ria e stá d e a c ordo e d isso se a c usa . À me d ida q ue o s seus olhos se foram abrindo, os seus princípios tornaram-se mais severos; e não tenho rec eio d e a firma r-vos que ela d eve pe nsar co mo eu. Quanto ao que me diz respeito, não me justificarei mais do que aos outros. Sem dúvida, recebo o senhor de Valmont, que é recebido em toda a parte; é uma inconseqüência mais a acrescentar a muitas outras que governam a sociedade. Sabeis tão bem como eu que passamos a vida a notá-las, a lamentá-las e a entregarmo-nos a elas. O senhor de Valmont, com um bom nome, uma grande fortuna, muitas qualidades amáveis, reconheceu muito cedo que, para dominar na sociedade, basta saber manejar, com igual destreza, o louvor e o ridículo. Ninguém como ele possui esse duplo talento: seduz com um e fa z-se teme r co m o out ro. Ning uém o estima ; ma s to d os o lisonjeiam. Ta l é a sua existência no meio de um mundo que, mais prudente que c orajoso, prefere p oup á-lo a c om ba tê-lo. Mas nem a própria Madame de Merteuil, nem nenhuma outra mulher, ousaria sem dúvida ir encerrar-se no campo, quase a sós com semelhante homem. Estava reservado a mais ajuizada, à mais modesta de todas as mulheres, dar o exemplo dessa inconseqüência; perdoaime e sta p alavra, que esc ap ou à m inha a mizad e. Minha b oa am iga , é a vossa p róp ria hone stida d e q ue está a tra ir-vos, em virtud e d a seg ura nç a q ue vo s insp ira . Pensai entretanto que tereis por juízes, por um lado, pessoas frívolas que não acreditarão numa virtude de que não encontram o modelo à sua volta; e, por outro, pessoas malévolas, que fingirão não a c red ita r em ta l virtud e, p a ra vos c a stiga rem d e a p ossuird es. Considerai que estais fazendo, neste momento, o que alguns homens não ousariam arriscar. De fato, entre as pessoas jovens, de q uem o senho r d e Va lmo nt se to rnou em exce sso o orác ulo, vejo que a s mais prudentes receiam parecer ligadas demasiado intimamente com ele; e vó s nã o te nd es q ua lq uer rec eio!
Ah! Pensai, pensai muito nisto, sou eu que vos peço... Se as minhas razões não forem suficientes para vos persuadir, cedei então à minha amizade; é ela que me faz renovar as minhas instâncias, é a ela que cabe justificá-las. Por certo a achareis severa eu desejo que ela seja inútil; mas prefiro que tenhais antes de vos queixardes da vossa solic itud e d o q ue d a v ossa ne gligê nc ia . 24 d e Agosto d e 17* *.
CARTA XXXIII A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Uma vez q ue rec eia ser bem suc ed id o, meu c a ro Visc ond e um a vez que o seu projeto consiste em fornecer armas contra si próprio, e que deseja menos triunfar do que combater, nada mais tenho a dizerlhe. A sua conduta é uma obra-prima de prudência. Seria uma obraprima de tolice na suposição contrária; e para lhe falar com franqueza, rec eio q ue o Visc ond e se e steja a ilud ir. O que eu lhe censuro não é o ter deixado de aproveitar o momento. Por um lado, não vejo muito claramente que ele se tivesse a p resenta d o; p or outro, sei sufic iente me nte, d iga m o q ue d isserem, q ue uma ocasião perdida se torna a encontrar, ao passo que não se resga ta nunca um p a sso precipitad o. Mas é de verdadeiro colegial o ter sido levado a escrever. Desa fio-o ne ste m om ento a p reve r ond e isso o p od e c ond uzir. Porventura esp era p rova r a essa mulher que d eve entreg a r-se? Afigura-se-me que nisso pode haver uma verdade de sentimento, não de demonstração; e que, para a fazer reconhecer, é preciso agir pelo enternecimento e não pelo raciocínio; mas de que lhe servirá enternecer por meio de cartas, visto que o Visconde não estaria lá para se aproveitar do momento? Mesmo que as suas belas frases produza m a emb riag uez d o a mo r, po d e o Visc ond e ter a p retensão de que essa embriaguez seja bastante durável para que a reflexão não venha a imp ed ir-lhe a c onfissã o? Depois, pense em tudo o que é necessário para escrever uma c a rta , em tud o o q ue se p a ssa a ntes d e a rem ete r; e veja-se, sob retud o uma mulher de princípios, como a sua devota, pode querer por tanto tempo o que ela procura não querer nunca. Esse procedimento pode dar resultado com crianças, que, quando escrevem "eu amo", não sabem que dizem "eu entrego-me". Mas a virtude raciocinadora de Ma da me d e Tourvel c onhec e m uito b em, seg undo c reio, o va lor das palavras. Por isso, apesar da vantagem que o Visconde tomara sobre ela na conversação que tiveram, ela venceu-o na carta que lhe
esc reve u. E d ep ois, sa b e o q ue a c onte c e? Só p elo m otivo d e se d isc utir, não se deseja ceder força de procurar boas razões, acaba-se por enc ontrá-las; dizem -se e ssa s ra zões, e d ep ois sente -se a p eg o a ela s, não tanto po rque são b oa s, co mo pa ra não se d esmentir. Além do ma is, uma ob servaç ão que me ad miro q ue o Visc ond e não te nha feito, é q ue não há nad a tã o d ifíc il em a mo r c om o esc rever o que se não sente. Quero dizer, escrever de maneira verossímil: não é que as palavras usadas não sejam as mesmas; mas não são arranjadas do mesmo modo, ou antes, são arranjadas, e isso basta. Releia a sua carta: reina nela uma ordem que a cada frase o denuncia. Quero a c red itar que a sua Presidente nã o te m instruçã o b a sta nte p a ra d isso se aperceber: mas que importa? Nem por isso o efeito deixa de frustrar-se. É este o d efeito d os rom a nc es; o a utor esforça -se e m v ã o p a ra eleva r a temperatura, e o leitor fica frio. Heloísa é o único que pode fazer exceção; e apesar do talento do autor, esta observação levou-me sem pre a c rer que o fund o e ra verd ad eiro. Não é o me smo qua ndo se fala. O hábito de trabalhar o seu órgão dá-lhe sensibilidade; a facilidade das lágrimas aumenta o efeito: a expressão do desejo confunde-se nos olhos com a ternura; enfim, o discurso menos seguido conduz mais facilmente àquele ar de perturbação e de desordem que é a verdadeira eloqüência do amor; e principalmente a presença do ob jeto a ma d o imp ed e a reflexã o e faz-nos d esejar sermos venc id os. Creia-me, Visconde: ser-lhe-á favorável não escrever mais: aproveite essa pausa para reparar a sua falta e espere a ocasião de falar. Sa b e q ue e ssa mulher tem ma is força d o q ue supunha ? A sua defesa é boa; sem a extensão da sua carta e o pretexto que ela lhe dá para voltar ao assunto na sua frase de reconhecimento, de nenhum mo do se te ria traíd o. O q ue me p arec e a inda que d eve c onvencê-lo d o triunfo, é que ela emprega demasiadas forças ao mesmo tempo; prevejo que ela acabará por as esgotar pela defesa da palavra e que nenhuma lhe fica rá p ara a do ato. Devolvo-lhe as duas cartas, e, se for prudente, serão essas as últimas até ao feliz momento. Se não fosse tão tarde falar-lhe-ia da pequena Volanges, que avança bastante depressa, o que muito me sa tisfaz. Creio q ue t ermina rei a minha t a refa a ntes d o Visc ond e, e d eve sentir-se feliz p or isso. Ad eus p or hoje. 24 d e Agosto d e 17* *.
CARTA XXXIV O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL
Fala maravilhosamente, minha boa amiga; mas para que se fatiga tanto a provar aquilo que ninguém ignora? Para avançar depressa no amor, vale mais falar do que escrever; a isto, creia, se resume, a sua carta. Pois sim! Ma s sã o o s elem ento s ma is simp les d a a rte d e sed uzir. Ob serva rei som ente q ue a Ma rque sa ab re a pe nas uma exc eç ão a este p rincípio; e que na verdade há duas. as crianças que seguem esse caminho por timidez e se entregam por ignorância, devemos acrescentar as mulheres espirituosas, que se deixam comprometer por amor-próprio, e que se deixam cair na ratoeira por vaidade. Por exemplo; estou bem certo de que a Condessa de B..., que respondeu sem dificuldade à minha primeira carta, não tinha então mais amor por mim do que eu por ela, e que viu apenas a ocasião de tratar um assunto que lhe faria honra. De qualquer mod o, um ad voga do diria à minha boa am iga que o p rincípio nã o se a plic a à que stão . De fa to, a Ma rquesa supõ e q ue eu posso escolher entre escrever e falar, o que não é o caso. Desde a história do dia 19, a minha desumana, que se mantém na defensiva, tem e vitad o os enc ontros c om uma ha bilida d e q ue de sarmou a m inha. A coisa chegou a tal ponto que, se isto continua, ela acabará por me obrigar a ocupar-me seriamente dos meios de recuperar a vantagem pe rdida ; pois seg uram ente nã o q uero ser vencido po r ela em qua lque r c am po . Mesmo as minhas c artas estão send o m otivo de uma pe que na guerra: não contente de lhes não responder, recusa recebê-las. Para cada uma é necessário pôr em prática uma nova astúcia, que nem semp re resulta . Deve rec orda r-se d o m eio simp les d e q ue usei pa ra lhe e ntreg a r a primeira; a segunda não ofereceu maior dificuldade. Ela pedira-me q ue lhe d evo lvesse a sua c a rta : dei-lhe a minha no luga r d a q uela, sem que ela tivesse a menor suspeita. Mas, fosse pelo despeito de ter sido apanhada, fosse por capricho, ou, enfim, por virtude, pois ela forçarme-á a crer nessa virtude, recusou-se teimosamente a receber a terc eira. Espero toda via que o emb araço em q ue ac ab ará por a lança r a ob stinaç ã o nessa rec usa lhe servirá d e c orretivo p a ra o futuro. Não me admirei muito por ela não querer receber a carta que eu lhe oferecia com toda a simplicidade; seria já conceder qualquer c oisa, e eu estou na expe c tativa d e uma de fesa m a is p rolongad a. Apó s esta tenta tiva, que nã o p a ssou d e um a experiênc ia p a ssa ge ira , pus um sobrescrito na minha carta; e, aproveitando o momento da toalete, quando Madame de Rosemonde e a criada de quarto estavam presentes, enviei-lha pelo meu criado, com ordem de lhe dizer que era o p ap el que ela m e tinha p ed id o. Eu ad ivinhara que ela teria rec eio da explicação escandalosa a que uma recusa obrigaria: com efeito aceitou a carta; e o meu embaixador, que tinha ordem de observar o seu rosto, e q ue te m b oa vista , enxergo u a p ena s uma leve vermelhid ã o e ma is emb araç o d o q ue c ólera.
Felicitei-me pois por ela ter guardado a carta, a menos que quisesse entregar-ma, o que só poderia fazer estando só comigo, dando-me ocasião de lhe falar. Cerca de uma hora depois, um dos seus criados entra-me no quarto e entrega-me, da parte da sua senho ra , um e mb rulho d e fo rma d iferente d o m eu, e em c ujo sob resc rito rec onhec i a letra tã o d esejada . Ab ro-o prec ipitad am ente... Era a minha própria c arta, por ab rir, e ap ena s do brad a ao me io. Suspeito que só o receio de que eu fosse menos escrupuloso do que ela sob re o esc ând alo a levou a emp reg ar esta astúcia d iab ólic a. A Marquesa conhece-me; não tenho necessidade de lhe descrever a minha cólera. Foi-me preciso no entanto recuperar o sa ngue-frio e p roc ura r novos me ios. Eis o único q ue e nc ont rei. Tod os os d ias a lguém va i d a q ui b usc a r a s c a rta s a o c orreio, que fic a a c erca d e três q ua rtos d e légua ; p a ra este fim, servem-se d e um a c aixa c obe rta p ouco ma is ou menos co mo um tronco , de que o c hefe do c orreio tem uma c have e Ma da me d e Rosemond e outra. Durante o dias as cartas são aí depositadas, a qualquer hora; à noite levam-nas para o correio, e de manhã vão buscar as que c hega ram . Tod os, mesmo o s estranhos a o c a ste lo, fazem esse serviço igua lme nte. Nã o e ra a vez d o m eu c ria d o; ma s ele enc a rreg ou-se d e lá ir, com o p retexto d e q ue tinha a fazeres pa ra aq uele lad o. Entretanto escrevi a minha carta. Disfarcei a letra para o end ereç o, e imitei muito b em , no sob resc rito, o c a rimb o d e Dijon. Esc olhi esta cidade porque achei mais engraçado; visto que eu me c a nd id a ta va a os me smo s d ireitos q ue o m a rid o, esc reve r d o luga r ond e ele se enc ontra, e tam bé m p orque a minha b ela falava durante tod o o dia do desejo que tinha de receber cartas de Dijon. Pareceu-me justo c onc ed er-lhe e sse p ra zer. Tom a d a s esta s p rec a uç õe s, era fá c il fa zer que esta c a rta se juntasse às outras. Com este expediente tive ainda a vantagem de ser testemunha da recepção, pois há aqui o uso de nos juntarmos para almoçar e esperar a chegada das cartas antes de nos separarmos. Che ga ra m enfim a s c a rta s. Madame de Rosemonde abriu a caixa. "De Dijon", disse ela, da ndo a c arta d e Ma da me de Tourvel. "Não é a letra d e me u ma rido ", replicou ela com voz inquieta, rompendo o lacre com vivacidade. O primeiro olhar deu-lhe a saber de que se tratava; e houve tamanha alteração no seu rosto, que Madame de Rosemonde, dando conta d isso, p erguntou: "Que tem?" Ap roxime i-me ta mb ém , dizend o: "É a ssim tã o terrível essa c a rta ?" A tímida devota não ousava levantar os olhos, não dizia palavra, e, para disfarçar o seu embaraço, fingia percorrer a epístola, que ela não estava em estado de ler. Eu gozava da sua perturbação, e não fiz c erimô nia em a a ume nta r: "O seu a sp ec to ma is tra nqüilo", ac resc ente i, "faz esperar que essa carta lhe tenha causado mais surpresa do que mágoa.” A cólera então inspirou-a melhor do que não o havia feito a
p rudê nc ia . "Esta c a rta c onté m c oisa s q ue m e o fend em ", resp ond eu ela, "e surp ree nd eu-me q ue a lguém ousa sse e sc revê -la s." "Que m foi ent ã o?", interrompeu Madame de Rosemonde. "Não está assinada", respondeu a bela encolerizada, "mas a carta e o seu autor inspiram-me igual desprezo. Obsequeiam-me não me falando mais nisto". Dizendo estas palavras, rasgou a audaciosa missiva, meteu os pedaços no bolso, leva nto u-se e sa iu. Apesar da sua cólera, não deixou de receber a minha carta; e eu confio bastante na sua curiosidade, que a obrigará a lê-la por inteiro. Os pormenores do dia levar-me-iam muito longe. Junto a esta na rra tiva os ra sc unho s d a s minha s d ua s c a rta s: assim a Ma rq uesa fic a rá tão instruída como eu. Se quiser estar ao corrente da minha correspondência, é preciso acostumar-se a decifrar as minhas minutas, pois por nada no mundo eu devoraria o aborrecimento de ter de as c op iar. Ade us, minha b ela am iga . 25 d e Agosto d e 17* *.
CARTA XXXV O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL É preciso obedecer-vos, senhora, é preciso provar-vos que, no meio dos agravos que vos comprazeis em atribuir-me, me resta ao menos bastante delicadeza para não me permitir uma censura e bastante coragem para me impor os mais dolorosos sacrifícios. Ordenais-me o silêncio e o esquecimento! Pois bem! Forçarei o meu amor a calar-se; e esquecerei, se for possível, a maneira cruel como o a c olhestes. Sem d úvid a o d esejo d e vo s a g ra d a r nã o d a va ta l d ireito, e c onfesso ainda que a nec essida d e q ue tenho da vossa indulgê nc ia não era um título p a ra a ob ter. Mas achais que o meu amor é um ultraje; esqueceis que se ele pudesse ser um agravo, seríeis ao mesmo tempo a causa e a justificação. Esqueceis também que, acostumado a abrir-vos a minha alma, mesmo quando essa confiança podia ser-me desvantajosa, já me não era possível esconder-vos os sentimentos de que estou penetrado; e o que foi a obra da minha boa fé, é por vós avaliado como o fruto da audácia. Como preço por amor mais terno, mais respeitoso, mais verdadeiro, expulsais-me para longe de vós. E, por fim, falais-me do vo sso ód io... Que outro se não queixaria de ser tratado assim? Eu, contudo, submeto-me: sofro tudo e não me lamento de nada; feris-me e eu adoro-vos. O inconcebível domínio que tendes sobre mim torna-vos
senhora absoluta dos meus sentimentos; e se só o meu amor vos resiste, se nã o o p od eis d estruir, é po rq ue e le é a vossa ob ra e nã o a minha. Não peço um regresso a um tratamento de que nunca pude gozar. Não espero mesmo aquela piedade que o interesse que algumas vezes me testemunhastes podia fazer-me esperar. Mas creio, confesso-o, poder reclamar a vossa justiça. Fizestes-me compreender, senhora, que alguém procurou diminuir-me no vosso espírito. Se tivésseis seguido o conselho dos vossos amigos, não teríeis deixado sequer que me aproximasse: são os vossos próprios termos. Quais são pois esses amigos oficiosos? Sem dúvida pessoas tão severas, e duma virtude tão rígida, consentem em ser nomeadas; sem dúvida não quererão cobrirse d e um a ob sc urid a d e q ue a s c onfund iria c om vis c a lunia d ores; e nã o ignorarei nem os seus nomes, nem as suas censuras. Pensai, senhora, que tenho o direito de conhecer uns e outros, pois que me julgareis seg und o e les. Nã o se c ond ena um c riminoso sem se lhe d izer qua l o seu crime, sem lhe nomear os seus acusadores. Não peço outra graça, e comprometo-me de antemão a justificar-me, a forçá-los a desdizeremse. Se d esp rezei dem a siad o, ta lvez, os vã os c lam ores d e um p úb lico que tive em pequena conta, não acontece assim com a vossa estima: e quando consagro a minha vida a merecê-la, não deixarei impunemente que ma roubem. Ela tornar-se-me-á tanto mais preciosa, quanto lhe deverei sem dúvida esta pergunta que temeis fazer-me, e q ue me d a ria , co mo d izeis, direitos a o vosso rec onhe c ime nto. Ah! Long e de o exigir, julgarei ficar-vos em dívida, se me concederdes a ocasião de vos ser agradável. Começai pois por me fazer mais justiça, não me deixando ignorar o que desejais de mim. Se eu pudesse adivinhá-lo, evitar-vos-ia a pena de o dizer. Ao prazer de vos ver, acrescentai felic ida d e d e vo s servir, e louva r-me-ei d a vossa ind ulg ênc ia. Que pode deter-vos? Não é, espero-o, o receio de uma recusa. Sinto q ue nã o p od eria p erdoa r-vos ta l rec eio. Desejo, ma is d o q ue vó s, senho ra , que ela d eixe d e m e ser nec essá ria : ma s a c ostuma d o a julga rvos uma alma tão doce, é nessa carta que eu posso encontrar-vos tal como quereis parecer. Quando formulo o voto de vos tornar sensível, vejo nessa carta que, em vez de consentirdes em tal, mais depressa fugiríeis pa ra c em lég uas d e d istânc ia d e m im; qua ndo tudo aum enta e justifica o meu amor, é ainda ela que me repete que o meu amor é rec eb ido c omo um ultraje; e q uand o, ao ver-vos, esse a mo r me pa rec e o bem supremo, tenho necessidade de ler essa carta, para sentir que ele é a pe nas um horrível tormento . Conce be i ag ora que a minha ma ior felicidade estaria em poder entregar-vos essa carta fatal; pedir-ma ainda seria autorizar-me a não acreditar no que ela contém; não d uvid a reis, esp ero, d a m inha p rontidã o e m d evo lvê-la . 21 d e Agosto d e 17 * *.
CARTA XXXVI O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL (ca rimb o de Dijon) A vossa severidade aumenta dia a dia, senhora; e se me é permitido dizê-lo, parece-me que receais menos ser injusta do que ser indulgente. Depois de me haverdes condenado sem me ouvir, deveis ter sentido, de fato, que vos seria mais fácil não ler as minhas razões que responder-lhes. Recusais as minhas cartas com obstinação; devolveis-mas com d esp rezo. Ob rig a is-me p or fim a rec orrer à a stúc ia , no p róp rio mo me nto em que o meu único fim é convencer-vos da minha boa fé. A necessidade em que me pusestes de me defender bastará sem dúvida para desculpar os meios que uso para tal fim. Convencido, aliás, pela sinceridade dos meus sentimentos, que para os justificar a vossos olhos me basta dá-los bem a conhecer, julguei poder permitir-me este ligeiro desvio. Ouso crer também que mo perdoareis; e que pouco vos deverá surpreender que o amor seja mais engenhoso a produzir-se do que a ind iferenç a a a fastá -lo. Permiti, pois, senhora, que o meu coração se vos descubra inteiramente. Pertence-vos, é justo que o conheçais. Ao chegar a casa de Madame de Rosemonde, eu estava muito longe de prever a sorte que aí me esperava. Ignorava que estivésseis aqui; e acrescentarei, com a sinceridade que me caracteriza, que, ainda que o soubesse, a minha tranqüilidade não se perturbaria. Não que a vossa beleza não me merecesse a justiça que é impossível recusar-lhe; mas, acostumado a sentir apenas desejos, e a entregar-me ap ena s àq ueles que era m a nima do s pe la e spe ranç a, eu não c onhec ia os tormento s d o a mo r. Fostes testemunha das instâncias de Madame de Rosemonde p a ra q ue eu m e d em orasse a lg um te mp o. Tinha já p a ssa d o um d ia a vosso lado; entretanto não me rendi, ou pelo menos julguei render-me apenas ao prazer, tão natural e tão legítimo, de dedicar algumas atenções a uma parenta respeitável. O gênero de vida que se levava aqui era sem dúvida muito diferente daquele a que estava acostumado. Nada me custou conformar-me a ele; e, sem procurar pe netra r a c ausa d a m uda nç a q ue se op era va em mim, atribuí-a ainda unic am ente à quela felic id ad e d e c aráter de que julgo ter-vos falado . Infelizmente (e por que é necessário que isto seja uma infelicidade?), conhecendo-vos melhor, depressa reconheci que essa figura encantadora, que simplesmente me havia impressionado, era o
menor dos vossos dotes; a vossa alma celestial surpreendeu, seduziu a minha. Ad mirava a be leza; fiquei a do rand o a virtude. Sem p rete nd er ob ter-vos, p reo c upa va -me em vos me rec er. Rec lam and o a vossa indulgê ncia pa ra o p assad o, am bicionava a vossa aprovação para o futuro. Procurava-a nas vossas palavras, espiava-a nos vossos olhares; nesses olhares donde partia um veneno tanto mais perigoso quanto era derramado sem intenção e recebido sem de sc onfianç a. Então conheci o amor. Mas como eu estava longe de me la me nta r! Dec id id o a sep ultá -lo num ete rno silênc io, entrega va -me sem rec eio e sem reserva a esse sent iment o d elic ioso. Cada dia aumentava o seu império. Depressa o prazer de vos ver se transformou em necessidade. Se vos ausentáveis por um momento, o meu coração sentia-se apertado de tristeza; e palpitava de alegria, ao ruído que me anunciava o vosso regresso. Eu já não existia senão por vós, e para vós. Entretanto, é a vós mesmo que suplico uma resposta: porventura na alegria dos jogos despreocupados, ou no interesse duma conversação séria, me escapou uma palavra que pudesse trair o segredo d o meu c oraç ão? Chegou enfim um dia em que devia começar o meu infortúnio; e por uma inconcebível fatalidade, uma ação honesta devia marcar esse começo. Sim, foi no meio dos infelizes que eu tinha socorrido, que vós, senhora, entregando-vos a essa sensibilidade preciosa que embeleza a própria beleza e aumenta o preço da virtude, acabastes de desvairar um coração inebriado já por excesso de amor. Lembraisvos, talvez, da preocupação que se apoderou de mim no regresso! Ai de mim! Procurava combater uma inclinação que eu sentia tornar-se ma is forte do q ue eu. Foi depois de ter esgotado as minhas forças nesse combate d esigua l, que um ac aso, que eu nã o p ude ra prever, me fez enc ontrar a sós convosco. Sucumbi nesse momento, confesso-o. O meu coração demasiado cheio não pôde reter as suas palavras e as suas lágrimas. Mas é isso um crime? E se o é, não sofreu já castigo bastante pelos to rme ntos horrorosos a q ue e stou ent reg ue? Devorado por um amor sem esperança, imploro a vossa pied ad e e enc ontro a pe nas o vo sso ó d io. Sem outra felic ida d e a lém de ver-vos, os meus olhos procuram-vos para além da minha vontade, e tremo de encontrar os vossos olhares. No estado cruel a que me reduzistes, passo os dias a disfarçar as minhas penas e as noites a entregar-me a elas; enquanto que vós, tranqüila e calma, não conheceis esses tormentos senão para os causardes e aplaudir-vos deles. Entretanto, sois vós que vos lamentais, e sou eu quem pede perdão. Aqui está, todavia, senhora, a narração fiel do que chamais os meus agravos, e que talvez fosse mais justo chamar os meus infortúnios.
Um amor puro e sincero, um respeito que jamais se desmentiu, uma submissão perfeita: tais são os sentimentos que me inspirastes. Não recearia apresentar semelhante homenagem à própria divindade. Ó vós, que sois a sua mais bela obra, imitai-a na sua indulgência! Pensai nas minhas penas cruéis; pensai sobretudo que, colocado por vós entre o desespero e a felicidade suprema, a primeira palavra que p ronunc ia rd es d ec id irá p a ra sem p re d a m inha sorte. 23 d e Agosto d e 17* *.
CARTA XXXVII A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE VOLANGES Submeto-me, senhora, aos conselhos que a vossa amizade me dá. Acostumada a tudo confiar nas vossas opiniões, creio firmemente que elas se fundam sempre na razão. Confessarei mesmo que o senhor de Valmont deve ser, na verdade, infinitamente perigoso, se p od e a o m esmo temp o fingir ser aq uilo q ue p arece aq ui, e fica r tal c om o o d esc reve is. De q ualque r mo d o v isto q ue o exig is, afa stá -lo-ei de mim; pelo menos farei para isso o que estiver ao meu alcance: pois, muitas vezes, as coisas que no fundo deveriam ser as mais simples tornam-se embaraçosas na prática. Continua a parecer-me impraticável fazer esse pedido a sua tia; seria igua lme nte d esc ortês, p a ra e la e p a ra e le. Ta mb ém nã o to ma rei sem alguma rep ugnâ ncia o p artid o d e m e a fastar eu p róp ria: p ois além das razões que vos comuniquei, relativas ao senhor de Tourvel, se a minha partida viesse a contrariar o senhor de Valmont, como é possível, não teria ele facilidade de me seguir a Paris? E o seu regresso, do qual eu seria, ou de que ao menos pareceria ser o objeto, não se afiguraria ma is estranho d o q ue um e nco ntro no c am po , em c asa de uma p essoa q ue se sa b e ser sua p a renta e m inha a miga ? Não me resta pois outro recurso senão obter dele próprio que se afaste. Sinto que esta proposta é difícil de fazer; entretanto, como me parece que ele toma a peito provar-me que é na verdade mais honesto do que o supõem, não desespero de o vir a conseguir. Não sentirei me smo q ua lq uer emb a ra ç o e m t entá -lo; e isso m e d a rá oc a siã o de ajuizar se, como ele diz muitas vezes, as mulheres honestas nunca tiveram e nã o te rão nunca mo tivo d e q ueixa do seu p roc ed imento . Se ele se afastar como eu desejo, será de fato por respeito à minha pessoa: pois não posso duvidar de que ele tivesse o projeto de passar aqui uma grande parte do Outono. Se ele recusar aceder ao meu pedido e se se obstinar em ficar, estarei a tempo de me afastar eu p róp ria, e prome to-vos q ue o farei.
Seg undo c reio, senho ra , é tud o o q ue a vossa a miza d e e xigia d e mim: apresso-me a dar-lhe satisfação, e a provar-vos que, apesar do c a lor que p orventura p us na d efesa d o senho r d e Va lmo nt, nem p or isso estou menos disposta, não somente a escutar, mas até a seguir os conselhos dos meus amigos. Tenho a honra d e ser, etc . 25 d e Agosto d e 17 * *.
CARTA XXXVIII A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT O seu enorme pacote chega-me neste instante às mãos, meu c a ro Visc ond e. Se a d a ta está e xa ta , d eve ria t ê-lo rec eb ido vinte e quatro horas mais cedo; de qualquer modo, se tivesse tempo de o ler, não teria já o de lhe responder. Prefiro pois acusar-lhe somente a recepção, e conversaremos sobre outro assunto. Não é que eu tenha alguma coisa a dizer-lhe a meu respeito; o Outono não deixa em Paris quase nenhum homem que tenha figura humana. Por isso, há um mês que me mantenho numa moderação desesperadora; e qualquer outro que não fosse o meu Cavaleiro estaria fatigado das provas da minha constância. Não tendo qualquer ocupação, distraio-me com a pe que na Volange s; e é d ela que lhe q uero fa lar. Sabe, Visconde, que perdeu mais do que supõe não querendo enc a rreg a r-se d essa c ria nç a ? É verda d eira me nte d elic iosa ! Não tem nem caráter nem princípios; imagine como a sua convivência será doce e fácil. Não creio que ela venha a brilhar pelo sentimento; mas tudo anuncia nela as sensações mais vivas. Sem esp írito e sem finura , ela tem tod a via c erta falsid a d e nat ura l, se se p od e d izer assim, q ue a lgum a s vezes a mim p róp ria me esp a nta e d e q ue e la virá a aproveitar tanto mais quanto o seu rosto oferece a imagem da candura e da ingenuidade. Ela é naturalmente muito meiga, e isso diverte-me algumas vezes. Aquela cabecita perturba-se com uma facilidade incrível; e é nesses momentos tanto mais graciosa quanto é certo que nada sabe, absolutamente nada, daquilo que tanto deseja sa b er. Tem à s vezes imp a c iênc ias muito engra ç a d a s; ri, a to rd oa -se, chora, e depois pede-me que a ensine, com uma boa fé realmente sedutora. Na verdade, quase me sinto ciumenta daquele a quem esse p ra zer está reservad o. Não sei se lhe ma nde i d izer que há q uat ro o u c inc o d ia s tenho a honra de ser a sua c onfide nte. Ima gina d ec erto q ue a o p rincípio a fetei severidade; mas logo percebi que ela julgava ter-me convencido com as suas más razões, comecei a fingir que as aceitava por boas; e ela
está intimamente persuadida de que deve o êxito à sua eloqüência: esta precaução era necessária para não me comprometer. Permiti-lhe q ue esc revesse e q ue d issesse e u a mo ; e ne sse m esmo d ia, sem q ue ela o suspeitasse, proporcionei-lhe um encontro a sós com o seu Danceny. Mas imagine que ele é tão tolo que ainda não conseguiu nem ao me nos um b eijo. No e nta nto esse rap a z fa z versos b em b onitos! Meu Deus! Como são estúpidas as pessoas de talento! Esse é-o a ta l p onto q ue m e em b a ra ç a ; p ois, enfim, a e le nã o p osso e u c ond uzi-lo! É neste momento que o Visconde me seria muito útil. Está ligado c om Danc eny o b a sta nte p a ra ob ter as suas c onfidênc ia s, e se e le lhas fizesse uma vez que fosse, iríamos a galope. Apresse-se por conseguinte com a sua Presidente, pois, enfim, não quero que Gercourt se salve: a liá s, falei ontem d ele à rap a riguinha, e d esc revi-o tã o b em , q ue, ainda q ue e la fosse sua mulher há d ez a nos, não o o d ia ria ma is d o q ue o fic ou od iand o. No enta nto, preguei-lhe muito a c erc a d a fide lida d e c onjuga l; nada iguala a minha severidade sobre este ponto. Por esse meio, restab eleç o junto d ela, po r um lado , a m inha rep utaç ão de virtude , que de ma sia da c ond esc end ênc ia po d eria d estruir; por outro, aum ento nela o ódio com que pretendo gratificar o marido. E, enfim, espero que, fazendo-lhe crer que não lhe é permitido entregar-se ao amor senão durante o pouco tempo que lhe resta de solteira, ela se decidirá mais de pressa a não pe rde r nad a . Adeus, Visconde; vou para o meu quarto de vestir onde lerei o seu volume . 27 d e Agosto d e 17 * *.
CARTA XXXIX CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY Estou triste e inquieta, minha querida Sofia. Chorei quase toda a noite. Não é que neste momento eu não seja muito feliz; mas prevejo q ue isso nã o d ura rá . Estive onte m na Óp era c om Ma da me de Merteuil; falamo s lá do me u c a sa me nto, e o q ue soub e a esse resp eito nã o foi bo m. É c om o senhor Cond e d e Ge rc ourt q ue eu d evo c asar, e d eve ser no mês de Outubro. É rico, é homem de qualidade, é coronel do regimento de... Até aí tudo vai muito bem. Mas, primeiro, é velho: imagina que tem pelo menos trinta e seis anos! E depois, Madame de Merteuil diz que é triste e severo, e receia que eu não seja feliz com ele. Vi me smo q ue ela e stá c erta d isso e q ue nã o q ueria d izer-mo p a ra nã o me afligir. Durante toda a noite quase não falou de outra coisa senão dos deveres das mulheres para com seus maridos: concorda que o senhor de Ge rc ourt não é na da am áve l e no e ntanto diz que é p rec iso
que eu o ame. Pois não me disse também que, uma vez casada, eu d evia d eixa r d e a ma r o C a va leiro Da nc eny? Com o se isso fo sse p ossível! Oh, podes ter a certeza de que o amarei sempre. Bem vês, gostava ma is d e nã o m e c a sa r. Esse senho r d e G erc ourt q ue se a rra nje, eu nã o o fui procurar. Ele está agora na Córsega, muito longe daqui; desejaria que lá ficasse dez anos. Se eu não tivesse medo de voltar para o convento, diria à Mamã que não quero aquele marido; mas seria pior ainda. Estou muito aborrecida. Sinto que nunca amei tanto o senhor Danceny co mo ag ora; e q uando pe nso q ue não me resta ma is do que um mês para ser como sou, vêem-me as lágrimas aos olhos imediatamente. Não encontro consolação a não ser na amizade de Ma d a me d e M erteuil. Tem tã o b om c oraç ã o! Pa rtilha a s minhas tristeza s c omo eu própria. E é tão amável que, quando estou com ela, quase nem penso em tais tristezas. Além disso é-me muito útil: pois o pouco que sei, foi ela quem mo ensinou. E é tão boa, que eu digo-lhe tudo quanto penso, sem me sentir nada envergonhada. Quando acha que não está bem, ralha-me algumas vezes; mas é muito brandamente, e depois eu abraço-a de todo o coração, até ver que ela não está zangada. Ao me nos essa , posso-a a ma r q uant o m e a p ete c e, sem q ue nisso ha ja ma l algum, o que m e d á muito p razer. Entreta nto c om binamo s que eu não d aria a p erc eb er diante d as outras pessoas que gosto dela como gosto, principalmente diante da Ma mã , pa ra q ue não d esc onfie nad a a respe ito d o Ca valeiro Danc eny. Posso garantir-te que se eu pudesse viver sempre como vivo agora, c reio q ue seria muito feliz. A minha única p ena é a q uele feio senhor de Gercourt!... Mas não quero falar-te mais dele, pois acabaria por ficar triste. Em vez disso, vou escrever ao Cavaleiro Danceny; só lhe falarei do me u a mo r e nã o d a s minha s tristeza s, pois nã o q uero q ue se a flija . Adeus, minha boa amiga. Bem vês que não tens razão de te queixar, e que o meu prazer é estar ocupada, como tu dizes, pois nem p or isso m e fa lta o te mp o p a ra ser tua a miga e te esc reve r. 27 d e Agosto d e 17 * *.
CARTA XL O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL É pouco para a minha desumana não responder às minhas c a rta s e rec usa r-se a rec eb ê-la s; quer-me p riva r d e a ver e e xige q ue e u me afaste. O que surpreenderá mais ainda a minha boa amiga, é que eu me submeta a tamanho rigor. Bem sei que vai censurar-me. Entretanto, julguei não dever perder a ocasião de deixar que me de ssem uma ordem: p ersuad ido , por um lad o, de que que m m and a se
compromete; e, por outro, de que a autoridade ilusória que nós simulamos deixar tomarem as mulheres é uma das ciladas que elas evitam mais dificilmente. Além disto, a habilidade que esta soube pôr em evitar encontrar-se comigo a sós colocava-me numa situação perigosa, da qual julguei dever sair custasse o que custasse; pois estando continuamente junto dela, sem poder ocupá-la do meu amor, havia lugar para o receio de que ela viesse a acostumar-se de me ver, p or fim, sem se p erturb a r; e é esta uma d isp osiç ã o d a q ual a Ma rq uesa sa b e b em c om o é d ifíc il sa ir. Adivinha, aliás, que eu não me submeti sem condições. Tive me smo o c uida do de p ôr uma imp ossível de c onc ed er; tanto pa ra fica r sempre senhor de manter a minha palavra, ou de faltar a ela, como para poder iniciar uma discussão, ou verbal ou por escrito, num momento em que a minha bela está satisfeita comigo, ou tem necessidade de que eu o esteja dela; sem contar que eu seria bem desastrado se não encontrasse meio de me compensar da minha d esistênc ia a esta p retensã o, p or insustentá vel q ue e la seja . Depois de lhe ter exposto as minhas razões neste longo preâmbulo, começo a história destes dois últimos dias. Juntarei como p eç a s justific a tiva s a c a rta d a minha b ela e a minha resp osta . A Marquesa há de convir que poucos historiadores haverá tão exato s c om o eu. Recorda-se do efeito que fez anteontem de manhã a minha carta de Dijon; o resto do dia foi muito tempestuoso. A linda hipócrita c hego u só à hora d e jantar e anunciou uma forte enxaq uec a; pretexto com que quis encobrir um dos violentos acessos de mau humor que uma mulher po d e ter. O seu rosto estava verdadeiramente alterado; a expressão de doçura que lhe conheço transformara-se num ar de rebeldia que lhe dava uma nova beleza. Prometo a mim próprio fazer uso mais tarde d esta d esc ob erta: substituir a lgum a s vezes a a ma nte t erna p ela a ma nte rebelde. Previ que o resto da tarde seria triste; e para me poupar o aborrecimento, pretextei cartas a escrever e retirei-me para o meu quarto. Voltei ao sa lã o p elas seis horas; Ma d a me d e Rosem ond e p rop ôs que passeássemos, o que foi aceite. Mas no momento de subir para a c a rruag em , a p rete nd id a d oe nte, po r ma líc ia inferna l, p rete xtou p or sua vez, e talvez para se vingar da minha ausência, um redobramento de dores, e obrigou-me a suportar sem piedade a companhia da minha velha parenta. Não sei se as imprecações que dirigi contra esse demônio fem inino foram exaltad a s, ma s enc ontrám o-la d eitad a no regresso. No d ia seg uinte a o a lmo ç o, não era a me sma mulher. Voltara a doçura natural, e tive razão para me julgar perdoado. Acabáramos apenas de almoçar, quando a doce criatura se levantou com ar d olente e se d irigiu ao p a rq ue; seg ui-a, c om o p od e c rer.
"Donde pode nascer esse desejo de passear?", perguntei-lhe ao abordá-la. "Escrevi muito esta manhã", respondeu-me ela, "e tenho a c a b eç a um p ouc o c a nsa d a ". "Não serei eu ba sta nte fe liz", tornei, "p a ra ter de me c ensura r de sse c a nsa ç o?". "Esc revi-vos", resp ond eu ela a inda , "ma s hesito em d a r-vos a minha c a rta . Essa c a rta c onté m um p ed id o, e não me acostumastes a esperar resposta favorável". "Ah! Juro que se me for possível..." "Nada há mais fácil", interrompeu ela, "e embora pudésseis talvez conceder-mo como justiça, consinto em obtê-lo como graç a ". Dizend o esta s p a la vra s, ap resento u-me a sua c a rta ; ao rec eb êla, tomei-lhe também a mão, que ela retirou, mas sem cólera, e com mais embaraço do que vivacidade. "Está mais calor do que eu sup unha ", disse e la ; "tenho d e vo lta r p a ra c a sa .” E retomou o caminho do castelo. Foram vãos os meus esforços para persuadi-la a continuar o seu passeio, e foi-me preciso recordarme de que podíamos ser vistos, para que nesse sentido empregasse apenas a minha eloqüência. Ela voltou sem proferir uma palavra e vi claramente que esse fingido passeio não tivera outro fim além do de me entregar a carta. Ao regressar, ela subiu para o seu quarto e eu retirei-me p a ra o me u, a fim d e ler a ep ístola, que a M a rq uesa fará b em em ler tam b ém , a ssim c om o a minha resposta , a ntes d e ir ma is long e...
CARTA XLI A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT A vossa conduta para comigo, senhor, faz crer que procuráveis apenas aumentar, dia a dia, as razões de queixa que eu tinha contra vós. Essa obstinação em querer continuar a falar-me, incessantemente, de um sentimento que eu não quero nem devo esc uta r; o a b uso q ue nã o te me stes fazer d a m inha b oa fé, ou d a m inha timidez, para me enviardes as vossas cartas; o meio, sobretudo, ouso d izer po uc o d elic a d o, d e q ue v os servistes d e uma surp resa q ue p od ia comprometer-me*; tudo deveria dar lugar da minha parte a censuras tã o vivas c om o justa me nte me rec id a s. *Ver Carta XXXV Entretanto, em vez de voltar a falar desses agravos, limito-me a fazer-vos um pedido simples como justo; e se o obtiver de vós, consinto em que tudo seja esque c ido . Vós mesmo me dissestes, senhor, que eu não devia recear uma recusa; e ainda que, por uma inconseqüência que vos é peculiar, essa mesma frase fosse seguida da única recusa que podíeis fazer-me, desejo crer que por isso não deixareis de manter essa palavra forma lme nte da da há p ouc os dias.
Desejo pois que tenhais a bondade de vos afastardes de mim; de deixar este castelo, onde uma permanência mais longa por vossa pa rte não po de ria d eixar de m e expor ainda ma is a o julga me nto d e um público sempre pronto a pensar mal dos outros, e que vós não tendes senão acostumado demais a fixar os olhos sobre as mulheres que vos ad mitem na sua soc ied ad e. Informad a já , há m uito tem p o, d esse p erigo p elos me us a migo s, negligenciei, combati mesmo a opinião deles enquanto a vossa conduta a meu respeito me levou a crer que não me tínheis querido c onfundir c om a multidã o d e m ulheres que , toda s elas, têm m otivo de queixa de vós. Hoje que me tratais como a elas, e que eu não posso ignorá-lo, devo ao público, aos meus amigos, a mim própria, a nec essida d e d e seg uir esta resoluç ã o. Poderia acrescentar aqui que nada ganharíeis se recusásseis ac ed er ao meu pe d ido , pois estou d ec idida a pa rtir eu p róp ria, se vo s obstinardes em ficar: mas não procuro diminuir o obséquio que vos ficarei devendo por essa bondade, e é meu desejo que saibais que, tornando necessária a minha partida, contrariaríeis as minhas combinações. Provai-me pois, senhor, que, como me dissestes tantas vezes, as mulheres honestas não terão nunca de queixar-se de vós; p rova i-me, pe lo m eno s, que q uand o lhes d a is mo tivos d e a g ra vo, sa b eis repará-los. Se eu julgasse ter necessidade de justificar o meu pedido a vossos olhos, bastar-me-ia dizer-vos que tendes passado a vossa vida a torná-lo necessário, e que, todavia, não foi nunca minha intenção vir a formulá-lo. Mas não recordemos acontecimentos que quero esquecer, e q ue me ob riga riam a julga r-vos c om rigo r, num mo mento em que vos ofereç o a oc asião de merec erdes todo o m eu rec onhecimento. Adeus, senhor; a vossa conduta me dirá quais os sentimentos c om que d evo ser, toda a minha vida , a vossa humilde , etc. 25 d e Agosto d e 17 * *.
CARTA XLII O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL Por muito duras que sejam, senhora, as condições que me impusestes, não recuso cumpri-las. Sinto que me seria impossível contrariar qualquer dos vossos desejos. Uma vez de acordo sobre este ponto, ouso supor que me permitireis, por meu lado, que vos faça alguns pedidos, bem mais fáceis de conceder que os vossos, e que tod a via não d esejo o b ter senã o p ela m inha p erfeita sub missã o à vossa vontade.
Um, que espero será feito pela vossa justiça, é o de me nomeardes os meus acusadores junto de vós; fizeram-me, ao que julgo, ba stante m al pa ra q ue eu tenha o d ireito de o s c onhec er. O outro, que espero da vossa indulgência, é o de permitirdes que renove algumas vezes a homenagem de um amor que mais do que nunc a va i merece r a vo ssa p ied ad e. Pensai, senhora, que me apresso á obedecer-vos, ainda mesmo quando não posso fazê-lo senão à custa da minha felicidade; direi mais, apesar de estar persuadido de que não desejais a minha partida senão para vos furtardes ao espetáculo, sempre penoso, do objeto da vossa injustiça. Deveis convir, senhora: é menor o vosso temor de um público demasiado acostumado a respeitar-vos para ousar formular sobre vós um juízo d esfavo rá vel, d o q ue o vosso a b orrec ime nto p ela p resenç a d e um ho me m q ue vo s é m a is fác il p unir q ue c ensura r. Afastais-me de vós como quem desvia os seus olhares de um d esgraç a d o q ue nã o se q uer soc orrer. Mas, enquanto que a ausência vai redobrar os meus tormentos, a que outra pessoa além de vós posso eu dirigir as minhas queixas? De quem poderei esperar consolações que me vão ser tão necessárias? Rec usa r-ma s-eis, qua nd o sois a c a usa única d a s minha s p ena s? Não vos admirareis, sem dúvida, que antes de partir eu me tenha imposto justificar-me junto de vós dos sentimentos que me inspirastes; como também que eu não encontre a coragem para me afa star senã o rec eb end o a orde m d a vo ssa b oc a. Esta dupla razão faz que vos peça um encontro de um momento. Inutilmente quereríamos substituí-lo por cartas: escrevem-se volumes e ficam mal explicadas as coisas que um quarto de hora de conversação basta para esclarecer. Encontrareis facilmente o tempo de mo concederdes: pois por muito empenho que eu tenha em obedecer-vos, sabeis que Madame de Rosemonde é conhecedora do meu projeto de passar junto dela uma parte do Outono, e será pelo menos necessário que eu espere uma carta para poder pretextar um a ssunto q ue m e fo rç a a p a rtir. Ad eus, senho ra ; ja ma is esta p a la vra me c ustou a esc reve r co mo neste momento, que me traz à idéia a nossa separação. Se pudésseis ima ginar o q ue ta l pa la vra m e fa z sofrer, ouso c rer q ue vos sent iríeis um pouco grata pela minha docilidade. Recebei, ao menos, com mais indulgência a certeza e a homenagem do amor mais terno e mais respeitoso. 26 d e Agosto d e 17 * *.
CONTINUAÇÃO DA CARTA XL
O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Ra c ioc inem os a g ora, minha b ela a miga . Sentis c om o eu q ue a o primeiro dos meus pedidos, e trair a confiança das suas amigas, nomeando os meus acusadores; assim, prometendo tudo sob esta condição, não chego a comprometer-me. Mas, como a minha amiga compreenderá também, essa recusa tornar-se-á um título para obter tudo o q ue resta; e nesse c aso, afastand o-me, fic a-me a vanta ge m de inic iar co m ela, e c om o seu c onsentimento , uma c orrespo ndê nc ia em regra: pois a entrevista que lhe peço pouco conta, e quase não tem outro o bjetivo q ue o d e a ac ostuma r de ante mã o a não rec usar outra s, quando me forem verdadeiramente necessárias. A únic a c oisa q ue m e resta fazer a ntes d a m inha p a rtida é sa b er quais são as pessoas que se ocupam em me prejudicar junto dela. Presumo que seja o pedante do marido; gostaria que assim fosse: além de uma ofensa conjugal ser um aguilhão ao, desejo, eu estaria certo que, desde o momento em que a minha bela consentisse em escreverme, nada mais teria a temer do marido, visto ela encontrar-se já na nec essid ad e d e o e nga nar. Ma s, se ela tem uma am iga c om a intimida d e b astante pa ra lhe fazer as suas confidências, e se essa amiga é contra mim, parece-me necessário fazer com que se zanguem, e conto ser bem sucedido na tentativa. Mas antes de tudo preciso ser informado. Cheguei ontem a pensar que o ia ser; mas essa mulher não faz nada como qualquer outra. Encontrávamo-nos nos seus aposentos, quando vieram dizer-nos q ue o ja nta r esta va servid o. Ela acabava de se arranjar, e ao mesmo tempo que se apressava e nos pedia desculpa, notei que deixava ficar a chave na sec retá ria; e eu sei que e la nã o c ostum a tira r a d o q ua rto . Pensa va nisso enquanto jantávamos, quando ouvi descer a criada: tomei ime d ia ta me nte o m eu p a rtido; fingi que sa ngrava d o na riz e sa í. Dirigi-me em seguida à secretária, mas encontrei todas as gavetas abertas, e nem um papel escrito. Contudo, não há ocasião p a ra o s q ueima r nesta e sta ç ã o. Que fa z ela d a s c a rta s q ue rec eb e? E o c erto é q ue rec eb e m uita s. Não t ive o m ínimo d esc uid o tud o estava ab erto, e p roc urei por tod a a pa rte: ma s nad a ga nhei c om isso, salvo o convencer-me de que esse depósito precioso está nos seus bolsos. Co mo c onseg uir tira r-lhe a s c a rta s? Desd e o ntem q ue m e o c up o inutilme nte a enc ontrar um m eio: entreta nto nã o p osso ve nc er o de sejo d e o fazer. La me nto nã o p ossuir o t a lento d os la rá p ios. Nã o é c erto q ue tal talento devia entrar na educação de um homem que não d esd enha a s intriga s? Não seria a g ra d á vel furta r a c a rta ou o retrato d um riva l, ou tira r dos bolsos de uma hipócrita o que bastasse para a desmascarar? Mas os nossos pais não pensam em nada; e eu, por muito que pense em
tudo, não posso deixar de me convencer de que sou um desajeitado sem rem éd io. De qualquer forma, acabei por voltar à mesa, muito descontente. A minha bela acalmou, contudo, um pouco o meu mau humor com o interesse que tomou pela minha fingida indisposição, e eu não deixei de lhe afirmar que, já há algum tempo, sentia perturbações violentas que alteravam a minha saúde. Persuadida como está de ser ela a c ausa d essas pe rturba ç ões, não é verda de que d evia, de a c ord o com a sua consciência, fazer por acalmá-las? Mas, com toda a sua devoção, é pouco caridosa; recusa toda a esmola de amor, e essa rec usa c hega be m, ao q ue p arece , pa ra a utorizar que lha roubem . Ma s adeus; pois embora conversando com a minha amiga, não penso senã o nessa s ma ldita s c a rta s. 27 d e Agosto d e 17 * *.
CARTA XLIII A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT Por que p roc ura is, senho r, d iminuir o m eu rec onhe c iment o? Por que desejais obedecer-me pela metade e de algum modo reg ate ais um p roc ed imento honesto? Não som ente pe dis muito, c om o p ed is c oisa s imp ossíveis. É c erto q ue a mig os me us me fa la ra m d e vós e se o fizeram foi apenas por interesse por mim; e ainda que se tivessem enganado, nem por isso deixariam de o fazer com boa intenção. E, seg undo a vossa propo sta, eu reco nhec eria essa prova d e d ed ic aç ão da sua parte, denunciando-vos o seu segredo! Eu não devia ter-vos fa la d o em ta l, fa zeis-me sentir neste m om ento! O que com qualquer outra pessoa seria uma ingenuidade, torna-se perante vós leviandade, que me levaria a cometer uma feia ação se acedesse ao vosso pedido. Apelo para vós mesmo, para a vossa honestidade: julgais-me capaz de semelhante procedimento? Achais em verdade que me deveríeis ter feito tal proposta? Não, sem dúvida; e estou certa de que, se refletirdes melhor, não voltareis a fazer esse pedido. O o utro p ed id o q ue m e fa zeis (o d e e sc reve r) não é ma is fác il d e conceder; e se quiserdes ser justo, não é de mim que podereis queixarvos. Não desejo ofender-vos; mas com a reputação que adquiristes, e que, segundo a vossa própria confissão, merecereis pelo menos em parte, que mulher poderia confessar que mantinha correspondência c onvo sc o? E q ue m ulher honesta p od e d ete rminar-se a fazer aq uilo q ue seria o b riga d a a esc ond er?
Ainda se as vossas cartas fossem de tal modo que nunca eu tivesse de lamentar-me delas, que pudesse sempre justificar-me a meus olhos d e a s ter rec eb id o! Ta lvez entã o o d esejo d e vo s p rova r q ue é a razão e não o ódio que me guia os passos me levasse a esquecer esses p od erosos mo tivos, e a fazer ma is d o q ue d evia p ermitindo-vos q ue m e escrevêsseis algumas vezes. Se na verdade o desejais tanto como o dizeis, de bom grado vos sujeitareis à única condição que me poderia levar a consentir-vos tal; e se sentis algum reconhecimento pelo que neste m om ento faç o p or vós, nã o a d ia reis ma is a vossa p a rtida . Permiti-me que a este respeito vos observe que recebestes esta manhã uma carta e que não a aproveitastes para anunciar a vossa pa rtida a M ad am e d e Rosem ond e, c om o me havíeis prometido. Espero que presentemente nada poderá impedir-vos de cumprir a vossa palavra. Conto principalmente que não esperareis, para isso, o enc ontro q ue m e p ed is, ao q ual não q uero a bsolutam ente p restar-me; e que, em vez da ordem que pretendeis ser-vos necessária, vos c onte nta reis c om a súp lic a q ue vos reno vo. Ad eus, senhor. 27 d e Agosto d e 17 * *.
CARTA XLIV O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Podeis partilhar a minha alegria, minha boa amiga: sou amado; triunfei daquele coração rebelde. É em vão que ele dissimula ainda; a minha bem sucedida astúcia surpreendeu o seu segredo. Graças à a tivid a d e q ue em p reg uei, sei tudo o q ue m e interessa : d esd e a noite, a feliz noite de ontem, encontro-me no meu elemento. Retomei o fio de toda a minha existência; descobri um duplo mistério de amor e de iniqüidade; gozarei dum e vingar-me-ei do outro; voarei de prazer em prazer. Só de o pensar sinto-me entusiasmado a tal ponto que é com algum custo que me lembro de quanta prudência me é necessária; a custo também conseguirei talvez pôr alguma ordem na narração que p a sso a fazer. Entreta nto , expe riment em os. Ontem mesmo, depois de lhe ter escrito a minha carta, recebi uma da c elestial devo ta. Aqui a junto: a m inha a miga ve rá q ue ela m e dá, o menos desajeitadamente que pode, a permissão de lhe escrever. No entanto apressa a minha partida e eu senti que não podia adiá-la po r ma is tem po sem d esvanta ge m p ara mim. Entretanto, atormentado pelo desejo de saber quem poderia ter-lhe escrito coisas desagradáveis a meu respeito, estava ainda inc erto q uanto a o p artido que tom aria. Tentei subo rnar a c riad a de quarto e pretendi obter dela que me facultasse os bolsos da sua ama,
de que ela poderia apoderar-se facilmente de noite, e que lhe seria fácil tornar a colocar no mesmo lugar de manhã, sem despertar a menor suspeita. Ofereci dez luízes por esse trabalho ligeiro. Mas vi-me diante de uma hipócrita, escrupulosa ou tímida, que nem a minha eloq üênc ia nem o m eu d inheiro c onseg uiram venc er. Continuava a prega r-lhe, qua ndo c hego u a hora d a c eia. Tive de a deixar, dando-me ainda por feliz por ela me prometer guardar segredo, com o q ual, como dec erto ima gina, eu não p odia c ontar. Nunca tive tamanho aborrecimento. Sentia-me comprometido; e a mim próprio censurei, durante toda a noite, a minha imprudente tentativa. Retirei-me pa ra o meu qua rto, não sem inquietaç ão , e fa lei co m o m eu c riad o, que, na sua qua lid ad e d e a ma nte feliz, devia, ter algum crédito. Prete nd ia eu, ou q ue e le o b tivesse d essa ra p a rig a a q uilo q ue e u lhe t inha p ed ido , ou p elo m eno s q ue se a sseg ura sse d a sua reserva : ma s ele, que de ordinário não duvida de nada, pareceu duvidar do êxito de ssa nego c iaç ã o, e a tal respe ito te ve uma reflexão que me espa ntou pela sua profundeza. Disse-me ele: "O senhor sabe com certeza melhor do que eu que dormir com uma rapariga é só a gente conseguir que ela faça aquilo que lhe agrada; de aí a conseguirmos que ela faça a q uilo q ue nós q ueremo s va i uma g ra nd e d istâ nc ia ." Le b on sens d u Ma ra ud q uelquefo is m'ép ouva nte.* "Eu nã o me resp onsa b ilizo p or esta ", ac resc entou ele, "ta nto ma is que tenho razões pa ra supo r que ela tem um a ma nte, e o q ue c onseg ui junto d ela foi po r nã o ha ver mais nad a q ue fa zer, a q ui no c a mp o. Se não fosse o meu apego ao serviço do senhor, só o teria conseguido uma vez". (É um verdadeiro tesouro este rapaz!) "Quanto ao segredo", acrescentou ele ainda, "de que serve fazer que ela o prometa, se não arrisca nada em nos enganar? Tornar a falar-lhe nisso é o mesmo que dar-lhe conta da importância da coisa, e daí dar-lhe mais vontade de me ter tudo no b ic o à senhora". Quanto mais eram justas estas reflexões, mais o meu embaraço *O bo m senso d e Ma raud alguma s vezes me a pa vorava.
aumentava; felizmente o maroto estava disposto para a conversa; e c om o e u tinha p rec isão d ele, deixei-o ta ga relar. Ao me smo tem po q ue me c onta va a sua história c om a ra pa riga , lá fui sab end o q ue o qua rto que ela ocupa é separado do da senhora só por um tabique, que podia deixar ouvir qualquer ruído suspeito e que era no dele que se enc ontrava m to d a s a s noites. Desde log o formei o m eu p lano , com uniq uei-lho, e executá mo lo c om êxito. Esperei as duas da manhã; e então dirigi-me, como tínhamos combinado, ao quarto do encontro, levando luz comigo e com o p rete xto d e te r toc a d o vá ria s vezes inutilme nte. O me u c onfidente , q ue desempenha os seus papéis à maravilha, simulou uma pequena cena de surpresa, de desespero e de desculpa, a que pus termo mandando-
o aquecer água, de que fingi ter precisão; isto enquanto a escrupulosa camareira estava tanto mais envergonhada, quanto é certo que o patife, indo muito além dos meus projetos, a obrigara a uma toalete que a estaç ão c omp ortava, mas que d e mod o algum desc ulpa va. Sentindo que quanto mais a rapariga fosse humilhada mais fac ilmente eu d ispo ria d ela, não lhe p ermiti mud ar de situaç ão nem de vestimenta ; e d ep ois d e ter ord ena d o a o m eu c ria d o q ue me esp erasse no meu quarto, sentei-me ao lado dela sobre a cama, que estava muito em d esorde m, e c ome c ei a minha c onversa. Eu tinha nec essid a d e d e m a nter o d om ínio q ue a s c irc unstâ nc ia s me davam sobre ela; por isso conservei um sangue-frio que teria feito honra à c astida de de Cipião ; e sem to ma r a m enor libe rda d e c om e la, o que, tod avia, a sua fresc ura e a oc asião pa rec iam da r-lhe o direito de esperar, falei-lhe de negócios tão tranquilamente como o poderia fazer c om um p roc urad or. As minhas c ond iç õe s foram q ue eu g uarda ria fielmente seg red o, c onta nto q ue no dia seg uinte, à m esma hora po uco ma is ou m enos, ela me confiasse os bolsos da sua senhora. "Além disso", acrescentei, "eu ontem tinha-lhe oferecido dez luíses; hoje mantenho a oferta. Não q uero a b usa r d a sua situa ç ã o". Tudo fic ou c om binad o, co mo po de ima ginar; retirei-me então e p ermiti a o p a r feliz que rec upe ra sse o t em p o p erdido. O m eu tem po , empreguei-o a do rmir; e a o d espe rtar, querendo ter um p retexto pa ra nã o respo nde r à c arta d a m inha b ela antes de ter revistado os seus papéis, o que só podia fazer na noite seguinte, decidime a ir à c aç a, no que oc upei quase todo o d ia. Na v olta, fui rec eb ido c om b a sta nte frieza . Tive ra zã o p a ra supo r que houvesse um pouco de melindre por eu mostrar tão pouco empenho em aproveitar o escasso tempo que me restava; principa lme nte d ep ois d a c arta m ais brand a que me tinha sido esc rita. Supu-lo assim, porque, tendo-me Madame de Rosemonde feito a lgum a s c ensura s p ela long a a usênc ia , a m inha, be la retruc ou c om um p ouc o d e a zed ume : "Ah! Nã o c ensurem os a o senho r d e Va lmo nt q ue se entreg ue a o únic o p razer que p od e enc ontrar." Lamentei-me da injustiça e aproveitei para assegurar às duas senhoras que me agradava tanto a sua companhia que por ela ia sacrificar uma carta de muito interesse que tinha a escrever. Acrescentei que, não podendo conciliar o sono desde algumas noites, q uisera e xp erime nta r se a fad iga faria q ue e u o rec upe ra sse; e o s me us olhares explicavam com suficiente clareza o assunto da minha carta e a c a usa d a m inha insônia. Tive o c uid a d o d e a p a renta r d ura nte o serão uma doçura melancólica que me pareceu cair bem, e sob a qual eu mascarava a impaciência de ver chegar a hora que deveria revelarme o segredo que se obstinavam em esconder-me. Separamo-nos por fim, e algum tempo depois a fiel criada de quarto veio trazer-me o preço c omb inad o do m eu segredo.
Uma vez de posse deste tesouro, procedi ao inventário com a prudência que a minha amiga me conhece; pois era importante que tudo voltasse aos seus lugares. Primeiro deparei com duas cartas do marido, mistura indigesta de pormenores de processos e de tiradas de am or c onjugal, que tive a p ac iência d e ler até ao fim e não enco ntrei uma palavra que me dissesse respeito. Pu-las no seu lugar, de mau humor; mas este a brando u qua ndo me vieram às mã os os pe da ç os da minha fam osa c a rta d e Dijon, c uid a d osa me nte reunido s. Felizme nte tive a fantasia de a reler. Imagine a minha alegria, distinguindo nela os sinais, bem visíveis, das lágrimas da minha adorável devota. Confesso, cedi a um movimento de rapaz e beijei essa carta com um transporte d e q ue já não me julga va susc etível. Co ntinuei o feliz exam e; enc ontrei todas as minhas cartas seguidas e por ordem de datas. E o que me surpreendeu mais agradavelmente ainda foi ter encontrado a primeira de todas, aquela que eu supunha ter-me sido devolvida por uma ingrata, fielmente copiada pela sua mão, e com uma ortografia alterad a e trêm ula, q ue te stem unhava c om sufic iente c la reza os do c es de ba tes do seu c oraç ão enq uanto d isso se o c upa ra. Até ali todo eu estava entregue ao amor; depressa este deu lugar à cólera. Quem imagina a minha amiga que queira perder-me aos olhos dessa mulher que eu adoro? Qual é a Fúria que supõe com maldade bastante para maquinar semelhante perfídia? A Marquesa conhece-a; é a sua amiga, a sua parenta; é Madame de Volanges. Não imagina que tecido de horrores a infernal megera lhe escreveu a meu respeito. Foi ela, ela unicamente quem perturbou a tranqüilidade dessa mulher angélica, é pelos seus conselhos, pelas suas opiniões p ernic iosa s, q ue eu m e vejo força d o a a fasta r-me; é a ela enfim, q ue eu sou sacrificado. Ah! Não d uvide q ue é p rec iso sed uzir-lhe a filha . Ma s isso nã o é o bastante, é preciso perdê-la; e já que a idade dessa maldita mulher a põe ao abrigo dos meus golpes, é preciso feri-la no objeto das suas afeições. Que r ela entã o q ue e u regresse a Pa ris! É ela q uem me ob rig a a isso! Seja, voltarei, ma s há d e g em er pe lo m eu reg resso. Ab orrec e-me q ue seja Da nc eny o he rói de sta a ventura. Tem um fundo de honestidade que será para nós um obstáculo. É certo que está apaixonado, e eu vejo-o muitas vezes; talvez se possa tirar partido dessas circunstâncias. A minha cólera fez-me esquecer que lhe devo a ind a a narra ç ã o d o q ue se p a ssou hoje. Rea tem os. Esta ma nhã voltei a ver a minha sensível d evo ta . Nunc a a tinha a c ha d o tã o b ela. Tinha d e ser assim; o m a is b elo mo me nto d uma mulher, o únic o e m q ue ela p od e p rod uzir emb riag uez de alma de que se fa la sem p re e q ue tã o raras vezes se e xp erime nta , é aq uele em q ue, seguros do seu amor, não o estamos dos seus favores; e era prec isam ente o c a so e m q ue me enc ontrava . Talvez tam bé m a idé ia de que ia ser privado do prazer de a ver servisse para a embelezar.
Enfim, à chegada do correio entregaram-me a sua carta de 27; e, enq uanto a lia , hesitava ainda em sab er se m ante ria a minha pa lavra; mas encontrei os olhos da minha bela, e ter-me-ia sido impossível recusar-lhe fosse o que fosse. Anunciei pois a minha partida. Um momento depois, Madame d e Rosem ond e d eixou-nos sós; ma s, esta va eu a inda a q ua tro p a ssos d a feroz c ria tura , já ela se leva nta va c om um a sp ec to horroriza d o, dizend ome: "Deixe-me, deixe-me, senhor; em nome de Deus, deixe-me." Esta súplic a fervorosa, que de nunciava a sua emo ç ão , teve a pe nas o e feito de ma is me enc orajar. Já eu esta va p erto d ela e lhe seg ura va a s mã os, q ue e la junta ra com uma expressão absolutamente comovente; já eu balbuciava ternas queixas, quando um demônio inimigo fez regressar Madame de Rosemonde. A tímida devota, que na verdade tem alguns motivos para rec eio, a p rove itou o m om ento p a ra se retira r. Ofereci-lhe todavia a mão, que ela aceitou; e, augurando bem esta benevolência, de que ela não usava havia muito tempo, ao mesmo tempo que recomeçava as minhas queixas procurava apertarlhe a sua. Primeiro ela quis retirá-la; mas, após uma instância mais viva, entregou-se sem grande resistência, ainda que sem responder nem a este gesto nem à s minha s p a la vras. Chegado à porta dos seus aposentos, quis beijar-lhe a mão a ntes d e a d eixa r. A d efesa c om eç ou p or ser fra nc a ; ma s um p ense q ue vou partir, pronunciado com muita ternura, tornou-a indecisa e frouxa. Ma l eu tinha d a do o b eijo, a mã o enc ontrou forç a p ara se esc ap ar, e a bela entrou nos seus aposentos onde a esperava a criada de quarto. Aq ui find a a minha história . Com o p resumo q ue a m inha am iga esteja am anhã e m c asa d a Marechala de..., onde com certeza não poderei encontrá-la; como suponho também que no nosso primeiro encontro teremos mais de um assunto a tratar, e principalmente o da pequena Volanges, que não pe rc o d e vista, tome i o p artido de me fazer prece d er po r esta c arta; e por muito longa que seja, não a fecharei senão no momento de a enviar ao correio, pois nas circunstâncias em que me encontro tudo pode depender de uma ocasião; e deixo-a agora para espiar o momento. P. S. - Às oito horas da noite. Nad a d e novo; nem o m ais peq ueno mome nto de libe rda de; houve a té a preocupação de o evitar. No entanto, tanta tristeza como a cedência permitia, pelo menos. Outro acontecimento que não pode ser indiferente é que estou encarregado dum convite de Madame de Rosemonde a Madame de Volanges para vir passar algum tempo ao castelo. Adeus, minha b ela am iga ; até am anhã o u dep ois de am anhã o mais tardar.
28 d e Agosto d e 17 * *.
CARTA XLV A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE VOLANGES O senhor de Valmont partiu esta manhã, senhora; pareceu-me que desejáveis tanto esse afastamento, que julguei do meu dever darvos conhecimento dele. Madame de Rosemonde lamenta muito seu sobrinho, cuja convivência, devemos convir, é agradável; passou toda a m a nhã a falar-me d ele c om a sensib ilid a d e q ue lhe c onhe c eis; nã o se c ansava de o e log iar. Julguei de ver-lhe a c om plac ênc ia d e a ouvir sem a contradizer, tanto mais que é preciso confessar que ela tinha razão sob re m uitos p ont os. Dem a is, eu sent ia q ue tinha a c ensura r-me ser a c ausa de sta sep araç ão , e não espe ro p od er com pe nsá-la do prazer de q ue a p rivei. Sa b eis q ue d e m eu na tura l tenho p ouc a a leg ria , e o gênero d e vida que va mos levar aqui não é d e mo lde a aumentá-la. Se eu não me tivesse conduzido em concordância com as vossas advertências, recearia ter procedido com um pouco de ligeireza, pois me sinto verdadeiramente penalizada com a dor da minha respe itável amiga ; c omoveu-me a um po nto que d e b om grad o te ria junta d o a s minhas lág rima s à s sua s. No p resente mo mento vivemo s na espe ranç a d e q ue a c eiteis o c onvite q ue o senhor de Valmo nt de ve fazer-vos, da pa rte d a M ad a me de Rosemonde, de virdes passar algum tempo em casa dela. Espero que não duvidareis do prazer que teria em ver-vos aqui; deveis-me na verdade essa recompensa. Ficaria muito contente de aproveitar essa ocasião para tomar conhecimento mais amplo com Mademoiselle de Volanges, e para de mais perto vos poder convencer dos sentimentos resp eito sos, et c . 29 d e Agosto d e 17 * *.
CARTA XLVI O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES Que foi que lhe aconteceu, minha adorável Cecília? Que c irc unstânc ia p ôd e c ausar em si uma m uda nç a tã o ráp ida e tão c ruel? Que fez d os seus jura me ntos d e nunc a mud a r? Ontem a ind a , rep etia-os com tanto prazer! Quem teria podido hoje fazê-los esquecer? Debalde faç o exame de c onsc iênc ia; não p osso a c har em m im a c ausa, e tenho horror em a procurar em si. Ah! não suspeito que a Cecília seja leviana
ou goste de enganar; e mesmo neste momento de desespero, nenhuma suspeita ultrajante conspurcará a minha alma. No entanto, po r que fata lida d e nã o é já a mesma ? Nã o, cruel, já nã o é a me sma ! A terna Cecília, a Cecília que eu adoro, e de quem recebi as juras, não teria evitado os meus olhares, não teria contrariado o acaso feliz que me colocou junto dela; ou, se qualquer razão que eu não posso c onc eb er a tivesse o briga d o a trata r-me c om tam a nho rigo r, não teria ao meno s de sd enhad o dizer-me o mo tivo. Ah! minha Cecília, não sabe, não saberá nunca o que me fez sofrer hoje, o que sofro ainda neste momento. Julga pois que eu possa viver e não ser amado por si? No entanto, quando lhe pedi uma p a la vra , uma únic a p a la vra , pa ra d issip a r os me us rec eios, em luga r de me responder, fingiu que tinha receio de ser ouvida; e esse obstáculo que então não existia, fê-lo a Cecília aparecer nesse momento, pelo luga r q ue e sc olheu entre os c onvida d os. Qua ndo , forç ad o a de ixá-la, lhe p erguntei a hora a que po d eria voltar a vê-la amanhã, fingiu ignorá-la, e foi preciso que Madame de Volanges ma indicasse. Assim esse momento sempre tão desejado que deve aproximar-nos, amanhã só fará nascer em mim inquietação; e o prazer de a ver, até agora tão caro ao meu coração, será substituído p elo rec eio d e lhe ser imp ortuno. Sinto q ue já esse rec eio m e d eté m, e nã o o uso fa la r-lhe d o m eu am or. Aque le a mo -o, que eu go stava tanto d e rep etir qua ndo o ouvia, essa palavra tão doce, que bastava para a minha felicidade, não oferece para mim agora, se a Cecília está mudada, mais do que a ima ge m d o d esesp ero et erno. Nã o p osso c rer tod a via q ue e sse t a lismã do amor tenha perdido todo o seu poderio, e experimento servir-me dele ainda,. Sim, minha Cecília amo-a. Repita pois comigo esta expressã o d a m inha felic ida d e. Pense que me habituou a ouvi-la, e que privar-me dela é condenar-me a um tormento que, tal como o meu amor, só acabará co m a minha vida . 29 d e Agosto d e 17 * *.
CARTA XLVII O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Não a verei ainda hoje, minha bela amiga, e aqui estão as minhas razões, que lhe peço receba com indulgência. Ontem em vez de fazer diretamente a viagem de regresso, parei em casa da Co nd essa d e..., c ujo c a stelo se e nc ontrava q uase no me u c a minho, e a quem pedi de jantar. Só cheguei a Paris por volta das sete horas, e d esc i na Ó p era, ond e p ensei que a Ma rq uesa p od eria e sta r.
Finda a ó p era, fui a o sa lã o p a ra v olta r a v er as minha s a mig a s; lá encontrei a minha velha Emília, rodeada de uma corte numerosa, tanto de mulheres c om o d e hom ens, a que m e la da va d e c ea r nessa mesma noite em P... Mal eu me tinha reunido à sociedade, fui rogado para assistir à ceia, por aclamação. Aos rogos de todos juntaram-se os de uma figurinha g orda e b aixa q ue me a lga raviou um co nvite em franc ês da Holand a, e q ue rec onhec i c omo verda d eiro herói da festa. Ace itei. Pelo caminho, soube que a casa a que nos dirigíamos era o preço convencionado das bondades de Emília para aquela figura grotesc a, e que a c eia era um verda de iro ba nquete d e núpc ias. O homenzinho não cabia em si de contente, na expectativa da felic id ad e que ia go zar. Parec eu-me tão satisfeito, que me d eu vo ntad e d e p erturb a r a sua a leg ria ; o q ue d e fa to fiz. A única d ific uld a d e q ue tive foi de c id ir Emília , a q uem a riq ueza d o b urgo me stre to rnav a um p ouc o esc rupulosa . Ac a b ou p or se p resta r, contudo, depois de algumas combinações, ao projeto, que lhe comuniquei, de encher de vinho aquele pequeno tonel de cerveja, e de o p ôr assim fora de c omb ate po r toda a noite. A idéia sublime que tínhamo s forma d o d e um be be d or holand ês fez que empregássemos todos os meios conhecidos. O êxito foi tão grande, que à sobremesa já ele não tinha força para segurar o copo; ma s a c a rid osa Emília e e u eng orgitáva mo -lo o ma is q ue p od ía mo s. Por fim caiu para debaixo da mesa, numa bebedeira tal que deve pelo me nos d ura r oito d ias. Decidimo-nos então a recambiá-lo para Paris; e como ele não tinha levad o a sua c a rruag em , mand ei-o p ôr na minha, e fiquei em seu lugar. Recebi em seguida os cumprimentos da assembléia, que se retirou p ouc o d ep ois, e me d eixou senhor do c am po d e b ata lha. Tod a a q uela a leg ria , e ta lvez o me u longo retiro, fizeram -me achar Emília tão desejável que lhe prometi ficar com ela até à ressurreiç ã o d o holand ês. Esta c omp lac ência da minha pa rte é o preç o da que ela a c ab a d e te r, servind o-me d e sec retá ria p a ra e sc reve r à m inha b ela d evo ta , a quem achei divertido enviar uma carta escrita na cama e quase entre os braços de uma prostituta, interrompida mesmo por uma infidelidade completa, e na qual lhe fiz uma narração exata da minha situação e d o m eu p roc ed ime nto. Emília , que leu a e p ístola, riu c om o um a louc a , e espe ro que a Ma rque sa rirá tam b ém. Como é necessário que a minha carta leve o carimbo de Paris, envio-lha; deixo-a aberta. A minha amiga fará o favor de a ler, lacrar e ma nda r p ôr no c orreio. Sob retud o nã o e sq ueç a q ue nã o d eve servir-se do seu sinete, nem mesmo de qualquer emblema amoroso; um cunho q ua lquer serve. Ad eus, minha be la a miga. P. S. - Torno a a b rir a minha c a rta ; convenc i Emília a ir a o Tea tro d os Ita lia nos... Ap roveita rei esse intervalo p a ra ir ver a minha a miga . Esta rei
em sua casa às seis horas o mais tardar; e, se isso lhe convier, iremos juntos por volta das sete horas a casa de Madame de Volanges. Será de ce nte que eu não dem ore o c onvite que tenho a fazer-lhe da pa rte de Madame de Rosemonde; além disso, serei feliz de voltar a ver a pe que na Volang es. Ad eus, ó b elíssima d a ma . Desejo te r ta nto p ra zer em a b ra ç á -la , q ue o C a va leiro p ossa sentir c iúmes. De P..., 30 d e A g osto d e 17 * *.
CARTA XLVIII O VISCONDE DE VALMONT À PRESIDENTE DE TOURVEL (Correio d e Pa ris) É d ep ois de uma noite te mp estuosa, e d urante a qua l não pud e conciliar o sono; é depois de ter estado sem cessar ou na agitação de um a rdo r febric itante , ou no tota l aniquila mento de tod as as fac uld ad es da minha a lma , que venho proc urar junto d e vó s senhora, uma c a lma de que tenho necessidade, e da qual todavia não espero poder gozar ainda. Na verdade, a situação em que me encontro ao escrever-vos dá-me a conhecer mais do que nunca o poder irresistível do amor. A custo consigo manter domínio suficiente sobre mim para pôr alguma ordem nas minhas idéias; e desde já prevejo que não terminarei esta carta sem ser obrigado a interrompê-la. Pois quê! Não poderei esperar que partilheis algum dia a perturbação que experimento neste instante? Ouso crer entretanto que, se pudésseis fazer uma idéia do que sinto, não ficaríeis inteiramente insensível. Podeis crer, senhora; a fria tranqüilidade, o sono da alma, imagem da morte, não levam à felic ida d e; só a s p a ixõe s vivas p od em c ond uzir lá . E apesar dos tormentos que me fazeis suportar, posso assegurarvos sem receio que, neste momento, sou mais feliz do que vós. Em vão sobre mim pesam os vossos rigores implacáveis: não impedirão que eu me a ba ndo ne inteiram ente a o a mo r e q ue esque ç a, no delírio q ue em mim causa, o desespero a que me entregais. É assim que eu me quero vingar do exílio a que me condenastes. Nunca tive tanto prazer em escrever-vos. Nunca senti, nesta oc upa ç ão , uma em oç ão tão d oc e e tod avia tão viva. Tudo pa rec e a umenta r a minha exaltaç ão : o a r que respiro é pleno de volúpia; até a mesa sobre que vos escrevo, consagrada pela primeira vez a este uso, se torna para mim o altar sagrado do amor.
Como vai embelezar-se a meus olhos, por ter traçado sobre ela o jura me nto d e vo s a ma r sem p re! Perdoai, suplico-vos, a desordem dos meus sentidos! Eu deveria talvez abandonar-me menos a transportes que não partilhais. Preciso deixar-vos por um momento para dissipar uma embriaguez que aum enta a c ad a instante , e q ue se to rna m ais forte d o q ue eu. Volto a vós, senho ra , e volto sem d úvid a c om o m esmo fervor. Entreta nto o sentime nto d a felic id ad e fugiu pa ra longe de mim, dando lugar ao das privações cruéis. De que me serve falar-vos dos me us sentiment os, se p roc uro em vã o os me ios d e vos c onve nc er? Apó s tanto s e tã o repetidos esforç os, a c onfianç a e a fo rç a a ba ndo nam -me ao mesmo tempo. Se imagina ainda os prazeres do amor, é para sentir mais vivamente o pesar de ser deles privado. Não vejo outro recurso q ue o d a vo ssa indulgê nc ia , e sinto d em a sia d o, neste m om ento , q uant o dela tenho necessidade para esperar obtê-la. Entretanto, nunca o meu amor foi mais respeitoso, nunca ele deveu ofender-vos menos. É de tal maneira, ouso dizê-lo, que a virtude mais severa não poderia ter qualquer receio dele; mas eu próprio temo falar-vos por mais tempo do sofrime nto q ue sinto. Certo de que o e nte q ue o c ausa não o pa rtilha, não devo ao menos abusar das suas bondades; e seria fazê-lo se empregasse mais tempo a descrever esta dolorosa imagem. Não tomo ma is d o q ue o d e suplic a r-vos uma resp osta , e que nã o d uvid eis nunc a d a verda d e d os me us sentime ntos. Esc rita d e P..., d a ta d a d e Pa ris, 30 de Ag osto d e 17* *.
CARTA XLIX CECíLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY Sem ser leviana nem gostar de enganar, basta-me, senhor, ser esc larecida sob re o meu p roc ed imento pa ra sentir a nec essid ad e de o mud a r; prom eti esse sa c rifíc io a Deus, até p od er oferec er-lhe ta mb ém o dos meus sentimentos por vós, que o estado religioso em que vos enc ont ra is torna ma is c riminosos a inda . Sinto bem que isso me fará sofrer, e não vos esconderei mesmo que desde anteontem tenho chorado todas as vezes que penso em vós. Mas espero que Deus me fará a graça de me dar a força nec essária pa ra vos esque c er, c om o lhe p eç o d e m anhã à noite. Espero mesmo da vossa amizade, e da vossa honestidade, que nã o te nta reis p erturb a r-me na b oa resoluçã o q ue me insp irou, e na q ua l procuro manter-me. Peço, por conseqüência, que tenhais a bondade de não voltar a escrever-me, tanto mais que vos previno de que não responderei, e que me forçaríeis a avisar a Mamã de tudo o que se p a ssa : o q ue m e p riva ria a b solutam ente d o p ra zer de vos ver.
Não deixarei de conservar por vós toda a dedicação que se p ossa t er sem q ue nisso ha ja a lgum ma l; e é d e to d a a minha a lma q ue vos desejo toda a espécie de felicidade. Sinto bem que deixareis de am ar-me tanto , e q ue em breve a ma reis talvez outra me lhor do que eu. Ma s isso será m a is uma p enitênc ia d a falta q ue e u c om eti ao d a r-vos o meu coração, que eu devia dar só a Deus, e a meu marido quando o tiver. Espero que a misericórdia divina tenha piedade da minha fra q ueza , e que nã o m e d ê sofrime ntos q ue e u nã o p ossa supo rta r. Adeus, senhor; posso assegurar-vos que, se me fosse permitido amar alguém, não amaria outro além de vós. Mas eis tudo o que eu p osso d izer, e t a lvez seja ma is d o q ue d eve ria. 31 d e Agosto d e 17 * *.
CARTA L A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT É entã o d esta ma neira , senho r, que c orresp ond eis à s c ond iç õe s que vos pus para receber algumas vezes cartas vossas? E posso eu não ter de que me queixar, quando nelas não me falais senão de um sentimento ao qual eu recearia ainda entregar-me, mesmo que o p ud esse fa zer sem ferir to d os os meus d ev eres ? Aliás, se eu necessitasse de novas razões para conservar esse receio salutar, parece-me que as poderia encontrar na vossa última c arta. De fa to, no próprio m om ento e m q ue julga is fazer a ap olog ia do amor, que fazeis, pelo contrário, senão mostrar-me as temíveis tem pe stad es a q ue ele dá luga r? Quem p od erá d esejar uma felic ida d e adquirida à custa da razão, e cujos prazeres pouco duráveis são pelo me nos seg uido s p elos p esa res, qua nd o o nã o sã o p elos rem orsos? Vós próprio, em quem o hábito desse delírio perigoso deve d iminuir-lhe o efe ito, não sois ob riga d o a c onfe ssa r q ue e le se to rna ma is forte que vós, e não sois o primeiro a queixar-vos da perturbação involuntária que ele em vós causa? Que horrível devastação não produziria ele num coração jovem e sensível, que aumentaria o seu p od er p ela grand eza d os sa c rifíc ios q ue seria ob riga d o a fazer-lhe? Julga is, senho r, ou fing is julg a r, que o a mo r c ond uz à felic ida d e; e eu pe rsuad o-me a ta l po nto de que e le me to rnaria d esgraç ad a, que d esejaria nã o o uvir nunc a p ronunc ia r o seu nom e. Afigura-se-me que só o falar dele altera a tranqüilidade; e é tanto po r go sto c om o p or dever que vos pe ç o q ue g uardeis silênc io a ta l resp eito. No fim de contas, deve ser-vos fácil presentemente concederme o q ue vos p eç o. De reg resso a Pa ris, enc ontrareis a í b a sta s oc a siões de esquec er um sentimento que de ve o seu na sc ime nto ta lvez ap ena s
a o há b ito d e vo s oc upa rd es d e ta is a ssuntos, e a sua forç a à oc iosid a d e do campo. Nesse mesmo lugar onde estais, não me vistes tantas vezes com indiferença? Podereis dar aí um passo sem encontrardes um exemplo da vossa facilidade em mudar, e não estais aí rodeado de mulheres, que , tod a s ma is a má veis d o q ue e u, têm ta lvez ma is d ireito à s vossas homenagens? Não tenho a vaidade que é censurada ao meu sexo; tenho ainda menos essa falsa modéstia que é apenas um refinamento do orgulho; e é de muito boa fé que vos digo aqui que reconheço em mim muito poucos meios de agradar: mas ainda que dispusesse de todos, não os julgaria suficientes para vos chamar a atenção. Pedir-vos que não vos ocupeis de mim é apenas rogar-vos q ue fa ç a is hoje o q ue já fizestes o q ue c om tod a a c erteza faríeis d entro de po uco temp o, aind a que eu vos pe disse o c ontrário. Esta verdade, que eu não perco de vista, seria, por si só, uma ra zã o b a sta nte forte p a ra nã o q uerer ouvir-vos. Tenho m il out ra s ra zõe s ainda: mas sem entrar nessa longa discussão, limito-me a suplicar-vos, como já fiz, que não volteis a falar-me num sentimento que eu não de vo a tende r, e a o q ual devo a inda meno s respo nde r. 1 de Setem b ro d e 17* *.
SEGUNDA PARTE
CARTA LI A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Na ve rd a d e, Visc ond e, é insupo rtá vel. Tra ta -me c om ta nta ligeireza como se eu fosse sua amante. Sabe que acabei por me za nga r, e que estou ne ste m om ento c om um hum or horrível? Como! O Visconde precisa ver Danceny amanhã de manhã; sabe como é importante que eu lhe fale antes dessa entrevista; e sem se inquietar muito, deixa que eu o espere todo o dia, para correr atrás sei lá de quê! É o senhor o causador de que eu tenha chegado indecentemente tarde a casa de Madame de Volanges e de que tod a s a s senho ra s d e c erta ida d e m e te nham a c ha d o m a ra vilhosa . Foime necessário estragá-las com mimos toda a noite para as apaziguar: p ois ningué m se d eve za nga r c om a s mulheres d e c erta ida d e; sã o e la s que fa zem a rep utaç ã o d as nova s. Deu já uma hora da manhã, e em lugar de me deitar, e morro de vontad e d e o fazer, é p rec iso q ue lhe esc reva uma longa c arta, que vai redobrar o meu sono pelo aborrecimento que ela me vai causar. Pod e d a r-se p or feliz d e e u nã o t er temp o p a ra lhe ralhar mais. Nã o v á
julgar por isso que lhe perdôo; é só porque estou com muita pressa. Esc ute, pois, q ue vo u desp a c ha r-me. Por pouco que o Visconde seja hábil, tem de ouvir amanhã as c onfidênc ias de Danceny. O m omento é favorável pa ra a c onfianç a: é o m om ento d a de sgraç a . A peq uena foi à c onfissão ; disse tud o, co mo uma criança; e depois ficou atormentada a tal ponto com medo do diab o, que q uer rom pe r ab solutam ente. Contou-me todos os seus pequenos escrúpulos, com uma vivac ida de que m e d eu a perceb er qua nto o med o lhe tinha subido à cabeça. Mostrou-me a carta de rompimento, que é um verdadeiro sermã o. Ta ga relou uma hora c om igo , sem me d izer uma p a la vra q ue tivesse senso c om um. Ma s nem p or isso me d eixou meno s c onfusa ; po is o Visconde imagina que eu não podia falar abertamente a uma c ab ec inha a tal ponto transtornad a. Pude entretanto entender, no meio de toda aquela tagarelice, que ela não go sta me nos d o seu Danc eny; notei mesmo que ela lanç a mão de um daqueles recursos que ao amor nunca faltam, e a que a rapariguinha se presta de boa vontade, enganando-se a si mesma. Atormentada pelo desejo de se ocupar do seu namorado, e pelo receio de ser condenada ocupando-se dele, imaginou rogar a Deus que lho faça esquecer e, como renova esse rogo a cada instante do dia, enco ntra o m eio de pe nsar nele c onstante mente . Com qualquer que estivesse mais usado que Danceny, este pe que no a c ontec imento seria talvez ma is favorável que c ontrário, ma s o rapaz é tão lamecha que, se não o ajudarmos, ser-lhe-á necessário tanto tempo para vencer os mais ligeiros obstáculos que não nos d eixa rá o d e e fetua rmo s o no sso p rojeto. O Visconde tem razão; é pena, e estou tão aborrecida com isso como o senhor, que seja ele o herói desta aventura. Mas que quer? O que está feito está feito; e a culpa é sua. Pedi que me mostrasse a resp osta d ele; fez-me p ena . Danc eny a p resenta -lhe ra zõe s a té p erder o fôlego, para lhe provar que um sentimento involuntário não pode ser um crime; como se não deixasse de ser involuntário, no momento em que se d eixa de o c omb ater! Esta id éia é tã o simp les, que a té à p eq uena oc orreu. Ele q ueixa se da sua infelicidade de uma forma bastante comovente, mas a sua do r é tã o d oc e e pa rec e tã o forte e tã o since ra, que julgo po ssível que uma mulher que encontra ocasião de desesperar um homem a tal ponto, e com tão pouco perigo, não seja tentada a divertir-se com semelhante fantasia. Por fim explica-lhe que não é monge, como a pequena supõe; e não há dúvida que é o que ele faz de melhor: pois, se chegassem tão longe na perfeição que se dessem inteiros ao amor monástico, seguramente os senhores Cavaleiros de Malta nos me rec eriam a p referênc ia. De qualquer forma, em vez de perder o meu tempo em raciocínios que poderiam comprometer-me, e talvez sem conseguir persuadi-la, aprovei o projeto de rompimento; mas disse-lhe que era
ma is honesto , em sem elhante c a so, d izer a s sua s ra zõe s d o q ue esc revê las; que era também de uso entregar as cartas e as outras bagatelas q ue p ossa m ter-se rec eb ido . E simuland o a ssim p a rtilha r os p a rec eres d a peq uena, dec idi-a a ma rc ar um enc ontro c om Danc eny. Comb inamos imediatamente a maneira, e encarreguei-a de resolver a mãe a sair sem a filha ; é p a ra a ma nhã à ta rd e o insta nte d ec isivo. Da nc eny já e stá instruíd o; ma s, po r Deus, se o Visc ond e a c ha r oc a sião , de c ida esse b elo pastor a ser menos lânguido; e ensine-lhe tudo, que a verdadeira ma neira de venc er os esc rúpulos é nã o d eixar nad a a pe rde r a que m o s tem. Dep ois, pa ra q ue e ssa ridíc ula c ena nã o se renova sse, não d eixei de levantar algumas dúvidas no espírito da pequena sobre o segredo de confissão; e garanto-lhe que neste momento ela paga o medo que me meteu c om o q ue ela tem d e q ue o c onfessor vá d izer tudo à mã e. Espero que depois de eu ter podido falar com ela mais uma vez ou d ua s, já nã o irá c ont a r a ssim a s sua s to lice s a o p rimeiro q ue a p a rec er.* * O leitor deve ter ad ivinhad o há muito te mp o, pe los c ostumes de Mad am e d e M erteuil, como ela respeitava pouco a religião. Poderia ter-se suprimido todo este parágrafo, mas julgo u-se q ue, mo strando os efeitos, não se d evia d eixar d e d ar a c onhec er as c ausas.
Ad eus Visc ond e; tom e p osse d e Danc eny, e seja o seu guia. Seria vergonhoso que não fizéssemos o que nos apetece de duas crianças. Se isso nos for mais difícil do que ao princípio supusemos, lembremo-nos, para animar o nosso zelo, o Visconde, que se trata da filha de Madame de Volanges, e eu, que ela virá a ser a mulher de Gercourt. Adeus. 2 de Setem b ro d e 17* *.
CARTA LII O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL Proibis-me, senhora, que vos fale do meu amor; mas onde encontrar a coragem necessária para vos obedecer? Ocupado unic am ente p or um sentime nto q ue d everia ser tão, do c e, e q ue tornais tão cruel; entristecendo no exílio a que me condenastes; vivendo a p ena s d e p riva ç õe s e d e sa ud a d es; entregue a sofrimento s ta nto m a is dolorosos quanto me recordam sem cessar a vossa indiferença; ser-meá necessário ainda perder a consolação única que me resta? E posso eu ter outra que não seja a de vos abrir algumas vezes uma alma que encheis de perturba ç ão e d e a ma rgura? Desviareis os vossos olhos para não ver as lágrimas que me obrigais a derramar? Recusareis até a homenagem dos sacrifícios que exigis? Não seria , no ent a nto , ma is d igno d e vó s, da vossa a lma hone sta e meiga, lamentar um infeliz, que o é apenas por vossa causa, em vez
de pretenderes agravar as suas penas, por uma defesa ao mesmo temp o injusta e rig orosa ? Fingis recear o amor, e não quereis ver que sois vós unicamente a c a usa d ora d os ma les q ue lhe c ensura is. Ah! este sent iment o é p eno so, p or ce rto, qua nto o o b jeto q ue o insp ira nã o lhe co rresp ond e; ma s ond e encontrar a felicidade, se um amor recíproco não for bastante para a conseguir? A amizade terna, a confiança tranqüila e sem reserva, as penas suavizadas, os prazeres aumentados, a esperança exultante, as recordações deliciosas, onde encontrar tudo isso senão no amor? Ca lunia is esse sent iment o, vó s q ue, p a ra goza r d e t od os os b ens q ue ele vos oferece, não tendes mais que cessar de vos furtardes a ele; quanto a mim, esqueç o a s pe nas que sofro, pa ra me oc upa r em de fendê -lo. Obrigais-me também a defender-me a mim próprio; pois ao p a sso q ue eu c onsa g ro a minha vida a a d orar-vos, vós p a ssa is a vossa a p roc ura r em mim m otivos d e a gravo ; supúnhe is-me já leviano e fa lso; e abusando, contra mim, de alguns erros que eu próprio vos confessei, de leitais-vos a c onfundir o q ue eu era entã o c om o o que eu sou a go ra. Não c ontente d e me ha verd es entreg ue ao to rme nto de viver longe de vós, acrescentais a isso uma zombaria cruel sobre prazeres aos quais sabereis bem a que ponto me tornastes insensível. Não acreditais nem nas minhas promessas, nem nos meus juramentos. Pois bem! Resta-me uma ga ra ntia a oferec er-vos, que a o me nos não se vos tornará susp eita: sois vós me sma . Nã o vos p eç o senã o q ue v os interrog ueis d e b oa fé; se não acreditais no meu amor, se duvidais por um momento de ser a única a reinar na minha alma, se não estais segura de terdes conquistado este coração, até aqui demasiado volúvel, consinto em expiar a pena que cabe a este erro; soltarei gemidos, mas não farei q ua lq uer súp lica . Ma s se, ao c ont rá rio, fazend o justiça a nós d ois, fordes obrigada a convir no vosso foro íntimo que não tendes, que não tereis nunca uma rival, não volteis a obrigar-me, suplico-vos, a combater quimeras, e deixai-me a consolação de saber que não duvidais dum sentimento que, na verdade, não acabará, não pode acabar senão com a minha vida. Permiti-me, senhora, que vos rogue uma resposta po sitiva a este p onto d a m inha c arta. Se eu ab and ono entretanto a quela é po ca da minha vida que p a rec e p rejudica r-me tã o c ruelmente a vossos olhos, nã o é p orque, em c a so d e ne c essid a d e, me fa lta ssem ra zõe s p a ra a d efend er. Que fiz eu, no fim de contas, além de não oferecer resistência ao turbilhão que me envolvia? Entrei no mundo, jovem e sem experiênc ia ; pa ssei, p or assim d izer, d e m ã o em mã o, p or uma multid ã o de mulheres, que se apressaram todas a antecipar pela sua facilidade uma opinião que elas sentiam dever ser-lhes desfavorável. Deveria ser eu pois a dar o exemplo de uma resistência que me não era oposta? Ou deveria castigar-me a mim próprio por um momento de irreflexão, e que em muitos casos fora provocado, por uma constância deveras inútil, e na q ua l tod os veria m um mo tivo d e rid íc ulo? Pois q ua l é o me io
para justificar a vergonha de uma escolha senão um pronto rompimento? Mas, posso dizê-lo, essa embriaguez dos sentidos, talvez mesmo esse d elírio d a vaida d e, nã o p enetrou o meu c oraç ão . Nascido para o amor, a intriga poderia distraí-lo; não bastava para tomar inteira posse dele; rodeado de seres sedutores, mas desprezíveis, nenhum deles ia até à minha alma. Ofereciam-me prazeres, eu buscava virtudes. E, porque era delicado e sensível, eu p róp rio p or fim me julgue i inc onsta nte. Foi a o ver-vos q ue me senti iluminad o; d ep ressa c om p ree ndi q ue o encanto do amor se enraizava nas qualidades da alma; que só elas podiam causar-lhe o excesso e justificá-lo. Senti enfim que me era igua lme nte imp ossível de ixa r de vos a ma r e a ma r outra q ue nã o fôsseis vós. Eis, senhora, como é este coração ao qual temeis entregar-vos e sobre a sorte do qual tendes de pronunciar-vos. Mas qualquer que seja o destino que lhe reserveis, não mudareis nada aos sentimentos que o p rend em a vós; sã o ina lterá veis c om o a s virtud es q ue o s fizeram na sc er. 3 de Setem b ro d e 17* *.
CARTA LIII O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Estive c om Danc eny, ma s ap ena s ob tive d ele m eia c onfidê nc ia; teimou, sobretudo, em calar-me o nome da pequena Volanges, de quem me falou como de uma mulher muito atilada, e até um pouco de vota ; a p rop ósito, contou-me c om b a stante verda d e a sua a ventura, e sobretudo o último acontecimento. Excitei-o o mais que pude e grac ejei b a sta nte a c erca d a sua d elic a d eza e d os seus esc rúpulos; ma s ele pareceu manter-se firme, não posso responder por ele. A este respeito poderei dizer alguma coisa mais depois de amanhã. Levo-o a ma nhã a Versa illes e d ura nte o c a minho oc up a r-me-ei em o sond a r. O encontro marcado para hoje dá-me também alguma esperança; pode dar-se o caso de tudo se passar como desejamos; e talvez no presente momento nos reste apenas arrancar-lhe a confissão e rec olher a s resp ec tivas p rova s. Esta ta refa será ma is fác il à Ma rq uesa do que a mim, po is a peq uena é ma is c onfiante, ou, o q ue vem a da r no m esmo , ma is ta ga rela d o q ue o seu d isc reto a p a ixona d o. Entreta nto fa rei o q ue me for possível. Adeus, minha bela amiga, estou com muita pressa; não a verei nem esta noite, nem amanhã. Se por seu lado souber alguma coisa, escreva-me uma palavra no meu regresso. Virei com certeza dormir a Paris.
3 de Sete mb ro d e 17* *, à noite.
CARTA LIV A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Oh! sim! é de fato junto de Danceny que há alguma coisa a saber! Se ele lha disser, gabou-se. Não conheço ninguém tão tolo em c oisas de a mor e c ad a vez me c ensuro m ais pe las bo nda d es que temo s pa ra e le. Saiba o Visc ond e q ue c heguei a julga r-me c om prometida po r culpa dele. E pensar que tudo resultou em pura perda! Oh! Hei-de vinga r-me, prome to-lho. Quando cheguei ontem a casa de Madame de Volanges para a levar comigo, ela não queria sair; sentia-se incomodada. Foi-me necessária toda a minha eloqüência para a persuadir, e via chegar o mo me nto d e Da nc eny a p a rec er sem q ue tivéssem os sa íd o, o q ue seria tanto mais aborrecido quanto Madame de Volanges lhe dissera na véspera que não estaria em casa. Eu e a filha estávamos sobre brasas. Sa ímo s po r fim; e a pe que na a pe rtou-me a mã o tã o a fetuosa mente ao despedirmo-nos que apesar do seu projeto de rompimento, de que ela julga va d e b oa fé o c upa r-se a ind a , a ugurei ma ra vilha s p a ra essa noite. Não tinha chegado ao fim das minhas inquietações. Havia apenas meia hora que estávamos em casa de Madame de..., quando Madame de Volanges se sentiu de fato mal, mas seriamente mal; e, como era razoável, quis voltar para casa. Eu desejava-o tanto menos quanto receava, se surpreendêssemos os dois jovens, como tudo indicava, que as minhas instâncias junto da mãe para que saísse se lhe tornassem suspeitas. Tomei o partido de a assustar sobre o seu estado d e sa úde , o q ue fe lizme nte não é d ifíc il; e c onseg ui retê -la d ura nte ho ra e meia, sem consentir em levá-la a casa, fingindo ter medo do mo vime nto pe rigo so d a c arruag em . Regressamos por fim à hora combinada. Pelo ar envergonhado que notei ao chegar, confesso que esperei que ao menos as minhas c a nseira s nã o tivessem sido b a ld a d a s. O d esejo q ue eu tinha d e ser informa d a fe z q ue fic a sse a o p é d e Madame de Volanges, que se deitou logo, e depois de termos ceado junto do seu leito, deixámo-la muito cedo, com o pretexto de que ela necessitava repousar; e passamos aos aposentos da filha. Esta fez tudo o q ue e u esp erava d ela; esc rúpulos d esva nec id os, nova s jura s d e a mo r eterno, etc., de boa vontade executou o programa; mas o parvo do Danceny não avançou de uma linha o ponto em que antes se enc ontrava . Oh! c om aq uele p od e ha ver am uos; as rec onc ilia ç ões não sã o p erigo sa s.
A pequena assegura todavia que ele queria mais, mas que ela soube defender-se. Ia jurar que ela se gaba, ou que o desculpa; tenho mesmo quase a certeza. De fato, tive a fantasia de querer saber por experiência própria de que defesa é ela capaz; e, simples mulher, de conversa em conversa, dei-lhe volta à cabeça a um ponto... Enfim, o Visconde pode crer, não conheço ninguém mais suscetível de uma surpresa dos sentidos. É na verdade digna de ser amada, esta querida pequena! Merecia outro amante; terá pelo menos uma boa amiga, pois estou-lhe sinceramente dedicada. Prometi-lhe instruí-la e creio que c ump rirei a minha p a la vra . Muita s vezes sinto a nec essid a d e d e ter uma mulher por confidente, e gostaria mais que fosse esta que qualquer outra; mas nada posso fazer, enquanto ela não for... aquilo que é preciso que seja; e esta é mais uma razão para estar aborrecida com Danceny. Adeus, Visconde; não venha a minha casa amanhã, a menos que seja d e m anhã . Cedi à s instânc ia s do Ca valeiro p a ra uma noita da no nosso ninho. 4 de Setem b ro d e 17 * *.
CARTA LV CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY Tinhas razão, minha querida Sofia; as tuas profecias são mais c erta s d o q ue o s teus c onselhos. Da nc eny, c om o tinhas p revisto , foi ma is forte que o confessor, que tu e do que eu própria; e eis-nos voltados exata mente a o p onto em que e stáva mos. Ora! Não me arrependo disso; e se tu me censurares, será por nã o sa b eres o p ra zer que se sente em a ma r Danc eny. A ti é m uito fá c il dizeres o que se deve fazer, nada to impede; mas se tivesses experimentado como nos faz mal a tristeza de alguém que se ama, como a sua alegria se torna nossa e como é difícil dizer não quando é sim que se deseja dizer, não te admiravas de nada; eu mesma, que o senti, e que o senti vivamente, não compreendo ainda. Julgas tu, por exemplo, que eu possa ver chorar Danceny sem chorar eu também? Afirmo-te q ue isso m e é imp ossível; e q ua nd o e le e stá c ont ente, sou feliz c om ele. Pod es d izer o q ue e ntend eres; o q ue se d iz não a ltera o q ue é , e e u estou c erta d e q ue é a ssim. Queria ver-te no meu lugar... Não, não é isso que eu quero dizer, pois com certeza não desejaria ceder o meu lugar a ninguém; mas queria que tu amasses assim alguém; não seria só para que me entendesses melhor, e me ralhasses menos; mas porque assim tu serias mais feliz, ou, para melhor dizer, só então começarias a ser feliz.
Os nossos divertimentos, os nossos risos, tudo isso, bem vês, são b rinc a d eira s d e c ria nç a s; d elas na d a fic a d ep ois d e p a ssa rem . Mas o amor, ah! o amor!. . uma palavra, um olhar, somente o sabermos que ele está ali, crê: isso é a felicidade. Quando vejo Danc eny, não d esejo ma is nad a ; quand o nã o o vejo, só o d esejo a ele. Não sei porque isto é assim; mas dir-se-ia que tudo de que eu gosto se lhe assemelha. Quando ele não está comigo, penso nele; e quando estou sozinha, p or exemp lo, sou a inda feliz; fec ho os olhos, e log o julg o q ue o estou vendo; lembro-me das suas palavras, e creio ouvi-lo; isto faz-me suspirar; e depois sinto um fogo, uma agitação... Não posso estar no mesmo lugar. É como um tormento, e esse tormento dá um prazer inexprimível. Julgo até que quando uma vez se sente amor, esse sentimento se e spa lha até sob re a am izad e. No e ntanto, a que eu tenho po r ti nã o mud ou; é sem p re c om o no c onve nto: ma s isto q ue eu d igo , sinto-o c om Madame de Merteuil. Parece-me que a minha amizade por ela se pa rec e ma is c om o a mor que sinto po r Danceny do que c om a minha amizade por ti, e algumas vezes desejaria que ela fosse ele. Isto vem talvez de não ser uma amizade de infância como a nossa; ou talvez de os ver tantas vezes juntos, o que faz com que me engane. Enfim, o que é certo é que os dois me tornam muito feliz; e no fim de contas, não creio que haja grande mal no que eu faço. Por isso só peço que me d eixem fic a r c om o e stou; e só a idéia d o m eu c a sa me nto m e fa z sofrer; p ois se o senho r d e G erco urt é c om o m e d isseram , e nã o d uvid o d e q ue o seja , nã o sei o q ue será d e m im. Ad eus, minha Sofia; sou sem p re a tua a miga muito te rna . 4 de Setem b ro d e 17 * *.
CARTA LVI A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT De que vos serviria, senhor, a resposta que me pedistes? Crer nos vossos sentimentos não será uma razão mais para os temer? E sem atacar nem defender a sinceridade deles, não me basta, não deve b a sta r-vos a vós me smo , sa b er que nã o d evo nem q uero c orresp ond erlhes? Supo nho q ue me tend es am or verda d eiro (e é ap ena s pa ra não volta r a fa la r neste a ssunto q ue e u c onsinto ne sta sup osiçã o); seria m p or isso menos insup eráve is os ob stá c ulos q ue nos sep a ra m? E te ria eu outra coisa a fazer que desejar-vos uma rápida vitória sobre esse amor, e principalmente ajudar-vos com todo o meu poder, apressando-me a tira r-vos tod a a esp eranç a ?
Vós me smo c onc orda is q ue e sse sentimento é p eno so q uand o o objeto que o inspira não lhe corresponde. Ora, sabeis suficientemente q ue me é imp ossível c orresp ond er-lhe e, a inda q ue e ssa infelic id a d e me acontecesse, eu seria mais digna de lástima, sem que fôsseis por isso mais feliz. Espero que me estimareis o bastante para que não duvideis disso por um momento. Deixai pois, rogo-vos, deixai de pretender perturbar um coração ao qual a tranqüilidade é tão necessária; não me ob rigue is a lam enta r ter-vos c onhe c id o. Querida e e stima da po r um m arid o q ue a mo e respe ito, os meus d everes e o s meus p ra zeres reúne m-se num a só p essoa . Sou feliz e tenho obrigação de o ser. Se existem prazeres mais vivos, não os d esejo; não q uero c onhe c ê-los. Ha verá a lgum a c oisa ma is doce que estar em paz consigo mesma, ver decorrer dias serenos, a d orme c er tra nq üila e d esp ertar sem rem orsos? Aquilo a que chamais felicidade é apenas um tumulto dos sentidos, uma tempestade das paixões, cujo espetáculo horroriza, me smo q uand o o c ontem plam os da ma rge m. Pois be m! Como a fronta r tais tempestades? Como haverá quem possa aventurar-se a um mar coberto dos despojos de mil e mil naufrágios? E com quem? Não, senhor Visconde, eu fico na terra firme; são-me caros os laços que a ela me prendem. Poderia cortá-los, e não o faria; se eles não existissem, apressar-me-ia a forjá -los p a ra q ue m e p rend essem . Por que seguis os meus passos? Por que vos obstinais nesse caminho? As vossa s c a rta s, que d evia m ser ra ra s, suc ed em -se c om ra p ide z. Deviam ser prudentes, e nelas só falais do vosso louco amor. Envolveis-me na vossa idéia, mais do que o fazeis da vossa pessoa. Afa sta d o sob uma forma , rep rod uzis-vos sob out ra . As c oisa s q ue se vos p ed e q ue nã o d iga is, volta is a d izê-las d e o utra m a neira . Tend es p ra zer em me confundir com raciocínios capciosos; mas furtais-vos às minhas ra zõe s. Nã o quero volta r a resp ond er-vos, não vos resp ond erei... De q ue maneira tratais as mulheres que seduzistes! Com que desprezo falais delas! Desejo acreditar que algumas o merecem: mas serão todas elas a tal ponto desprezíveis? Ah! sem dúvida, pois traíram os seus deveres para se entregarem a um amor criminoso. Desde esse momento, perderam tudo, até a estima daquele a quem tudo sacrificaram. É justo esse sup líc io, ma s só a sua idé ia fa z treme r. Que me imp orta , afina l? Por que me ocuparei delas ou de vós? Com que direito perturbais a minha tranqüilidade? Deixai-me, não volteis a ver-me; deixai de me escrever, peçovos; exijo-o. Esta c a rta é a última q ue rec eb ereis d e m im. 5 de Setem b ro d e 17 * *.
CARTA LVII O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Encontrei a sua carta ontem à minha chegada. A sua cólera deu-me um prazer absoluto. A minha amiga não sentiria mais vivamente os desastres de Danceny, se estivesse diretamente interessada neles. É sem dúvida por vingança que habituais a enamorada Cecília a fazer-lhe pequenas infidelidades. A Marquesa é uma terrível pessoa! Sim, encanta-me esse modo de ver, e não me a d mira q ue se lhe resista me nos q ue a Danc eny. Enfim, sei tud o o q ue d iz resp eito a esse b elo he rói d e rom a nc e! Deixou de ter segredos para mim. Tantas vezes lhe disse que o amor honesto era o bem supremo, que um sentimento valia mais que d ez intriga s, que e u p róp rio, nesse m om ento , era um a p a ixona d o tímido ; mostrei-lhe, enfim, uma forma de pensar tão conforme à dele, que, encantado com a minha candura, disse-me tudo, e jurou-me uma amizade sem reservas. No entanto, não estamos mais avançados por isso c om o nosso p rojeto . Primeiro, pareceu-me que, segundo o seu sistema, uma menina merece mais que a poupem do que uma mulher, porque tem mais a perder. Acha, sobretudo, que nada pode justificar um homem de pôr uma rap ariga na nec essida d e d e c asa r c om ele ou d e viver d esonrad a, qua ndo a rap ariga é infinitam ente ma is ric a d o q ue o home m, com o no c aso e m q ue ele se e nco ntra. A severidade da mãe, a candura da filha, tudo o intimida e o detém. A dificuldade não está em combater os seus raciocínios, por muito verda de iros que seja m. Com um p ouc o d e hab ilida de e ajuda do pela paixão, depressa se conseguirá destruí-los; tanto mais que se prestam ao ridículo, e que se tem a seu favor a autoridade da expe riênc ia. Ma s o q ue impe de que se c onsiga c om ele alguma c oisa, é que ele se considera feliz como está. De fato, se os primeiros amores parecem, em geral, mais honestos, e, como é costume dizer-se, mais puros; se pelo menos são mais lentos na sua marcha, não é, como se pensa, por delicadeza ou timidez, é porque o coração, surpreso ante um sentimento desconhecido, se suspende por assim dizer a cada pa sso, pa ra go zar do enc anto que expe rimenta , e p orque esse e nca nto tem ta nto pod er sobre um coraçã o jovem, que o preenche a p onto de lhe fazer esquecer todo o prazer diferente. Isto é tão verdadeiro, que um libertino apaixonado, se um libertino o pode ser, desde o momento em que se apaixona, torna-se menos ávido de gozar; e que, enfim, entre o comportamento de Danceny com a pequena Volanges, e o me u co m a severa Ma da me d e Tourvel, há a pe nas a d iferenç a d o m ais ou m eno s.
Seria necessário, para excitar o nosso jovem, maior número de obstáculos do que os que ele tem encontrado; sobretudo que lhe tivesse sido preciso rodear-se de mais mistério, pois o mistério conduz à audácia. Não ando muito longe de crer que a Marquesa nos prejudicou ao servi-lo tão bem; a sua manobra teria sido excelente com um hom em usa d o, q ue tivesse a p ena s d esejos; ma s a minha a miga d eve ria ter previsto que para um homem novo, honesto e apaixonado o maior favor que lhe concedem é fazer dele a prova do amor; e que, por conseqüência, quanto mais ele está certo de ser amado, menos ativo será. Que fazer agora? Não sei; mas não creio que a pequena seja conquistada antes do casamento, e trabalhamos em pura perda. Isto ab orrec e-me, ma s não lhe ve jo reméd io. Enquanto eu uso aqui a minha eloqüência, a Marquesa em p reg a me lhor o seu te mp o c om o C a va leiro. Isso fa z-me p ensa r q ue me prometeu uma infidelidade em meu favor, tendo a sua promessa por escrito, e não quero servir-me dela como de um bilhete de La Châtrel. Concordo que o vencimento ainda não tenha chegado: mas seria ge neroso d a sua p a rte nã o e sp erar p or ele e p or meu lad o, pe d irlhe-ei juros. Que d iz a isto, minha b ela a miga ? Não está fat iga d a d a sua constância? Esse Cavaleiro é assim tão maravilhoso? Oh! deixe-me entrar em funções; desejo forçá-la a concordar que, se lhe encontra algum m érito, é po rque me esque c eu. Adeus, minha bela amiga; beijo-a tal como a desejo; desafio tod os os d esejos d o C a va leiro a terem ta ma nho a rd or. 5 de Setem b ro d e 17 * *.
CARTA LVIII O VISCONDE DE VALMONT À PRESIDENTE DE TOURVEL Que fiz eu p a ra merec er, senho ra , as c ensura s q ue me d irigis e a cólera que me testemunhais? A dedicação mais viva e todavia mais respeitosa, a submissão mais completa às vossas menores vontades; eis em d uas p a la vra s a história d os me us sentimento s e d a minha c ond uta . Acabrunhado pelos sofrimentos dum amor infeliz, não tinha eu outro consolo além de poder ver-vos; haveis-me ordenado que me privasse dele: obedeci sem me permitir um murmúrio. Como preço desse sacrifício, haveis-me permitido que vos escrevesse, e hoje pretendeis tirar-me esse único prazer. Deverei deixá-lo arrebatar-me, sem tentar defendê-lo? Não, sem dúvida; pois não será caro ao meu c oraç ão send o o único q ue me resta, e tend o-o rec eb ido de vós? As minhas cartas, dizeis, são demasiado freqüentes! Pensai, peço-vos, que há dez dias que dura o meu exílio, que durante esse
tempo não passei um momento sem me ocupar de vós, e que entretanto recebestes apenas duas cartas minhas. Nelas só vos falo do me u a mo r! Pois q ue p osso e u d izer, senã o o q ue p enso? Tudo o q ue p ud e fa zer foi mod erar-lhe a expressã o; e, po d eis c rer, nã o vos d eixei ver senã o o q ue m e foi imp ossível esc ond er-vos. Ame aç ais-me po r fim d e nã o voltar a respo nde r-me. Deste modo, ao homem que vos prefere a tudo, e que vos respeita mais ainda do que vos ama, não satisfeita de o tratardes com rigor, quereis ainda juntar a isso o desprezo! Porquê tais ameaças e tal cólera? Por que necessitais de tais sentimentos? Não estais segura de ser obedecida, mesmo nas vossas ordens injustas? Porventura me é possível contrariar qualquer dos vossos desejos, e não o provei já? Abusareis do domínio que tendes sobre mim? Depois de me terdes feito desgraçado, e de vos terdes tornado injusta , ser-vos-á a ssim tã o fá c il goza r d essa tranq üilida d e q ue d ec la ra is ser-vos tã o nec essá ria? Nã o vireis a d izer um d ia: "d eixou-m e senho ra d o seu destino, e fiz a sua desgraça; implorava os meus socorros, e olhei-o sem pieda de "? Sab eis até ond e p od e c hega r o m eu d esesp ero? Não. Para calcular a extensão dos meus males, seria preciso saber a que p onto vos am o, e não c onheceis o me u co raç ão . Sacrificais-me a quê? A quiméricos receios. E quem vo-los inspira? Um homem que vos adora; um homem sobre quem não deixareis nunca de exercer domínio absoluto. Que receais, que podeis recear dum sentimento que sereis sempre senhora de dirigir como vos aprouver? Mas a vossa imaginação cria monstros, e atribuís ao amor o horror q ue eles vos c a usa m. Um p ouc o d e c onfianç a , e esses fanta sma s d esa p a rec erão . Um sábio disse que quem queira dissipar os seus receios não tem mais que aprofundar-lhes a causa. É principalmente no amor que esta verdade encontra a sua aplicação. Amai, e os vossos receios desvanecer-se-ão. No lugar dos objetos que vos horrorizam, encontrareis um sentimento delicioso, um amante terno e submisso; e todos os vossos dias, marcados pela felicidade, não vos deixarão outro pesar além de terdes perdido alguns na indiferença. Eu próprio, depois que, distanciado dos meus erros, existo apenas para o amor, lamento um t em p o q ue sup unha ter pa ssa d o no m eio d e p ra zeres; e sinto q ue só a vós pertence tornar-me feliz. Mas, suplico-vos, que o prazer que encontro em escrever-vos não seja perturbado pelo receio e vos desagradar. Não quero desobedecer-vos: mas ajoelho-me perante vós, e reclamo a felicidade que quereis tirar-me, a única que me haveis deixado; e grito-vos: escutai as minhas súplicas, concedei um olhar às minha s lá g rima s. Ah! senho ra , rec usa r-me-eis tã o p ouc o? 7 de Setem b ro d e 17 * *.
CARTA LIX O VISCONDE DE VALMONT À MARQUESA DE MERTEUIL Diga -me, se sa b e, o q ue signific a este d esa tino d e Da nc eny. Que foi que aconteceu, e que perdeu ele? A sua bela aborreceu-se talvez do seu eterno respeito? É preciso ser justo, por menos qualquer pessoa acabaria por se aborrecer. Que vou eu dizerlhe esta noite, no encontro que ele me pediu, e que eu lhe concedi p a ra ver o q ue d a í resulta ria ? Seguramente não perderei o meu tempo a ouvir os seus la me nto s, se isso nã o nos c ond uzir a na d a . As queixas de amor não são boas de ouvir senão em recitativos ob rig a tórios, ou e m á ria s d e grand e estilo. Diga -me p ois d e q ue se tra ta e que devo fazer; ou acabo por desertar, a fim de evitar o aborrecimento que prevejo. Poderei falar com a minha amiga esta ma nhã? Se estiver oc up a d a , p elo me nos esc reva -me uma p a la vra , e forneç a-me as d eixas do meu p ap el. Ond e e steve a Ma rquesa ontem ? Não c onsigo voltar a vê-la. Na verdad e, não m e va lia a pe na te r fic ad o em Paris no m ês de Setem bro. Dec ida -se, co ntudo, po is ac ab o d e rece be r um c onvite muito insistente da Condessa de B... para a visitar no campo; e, como ela m e m a nd a d izer de m od o b a sta nte a grad á vel, "seu ma rid o p ossui o mais belo bosque do mundo, que conserva cuidadosamente para os prazeres dos seus amigos". Ora, a minha amiga sabe que eu tenho a lguns d ireitos a d q uirido s sob re esse b osq ue; e irei vê -lo d e nov o se nã o lhe posso ser útil. Adeus; pense que Danceny estará em minha casa pelas quatro horas. 8 de Setem b ro d e 17* *.
CARTA LX O CA VALEIRO DANCENY AO VISCONDE VALMONT (Inclusa na prec ed ente) Ah! senhor, estou desesperado, perdi tudo. Não ouso confiar ao papel o segredo das minhas mágoas: mas tenho necessidade de as expa nd ir no seio d e um a migo fiel e seg uro. A q ue ho ra s p od erei vê-lo, e p roc ura r junto d o Visc ond e c onsolaç õe s e c onselhos? Eu era tã o fe liz no dia em que lhe ab ri a m inha a lma !
Ag ora, que d iferenç a ! Tud o m udo u pa ra m im. O que e u sofro por mim próprio é ainda a menor parte dos meus tormentos; a minha inquietação sobre um objeto bem mais querido, eis o que não posso suportar. Mais feliz do que eu, o Visconde pode vê-la, e espero da sua a miza d e q ue nã o m e rec usa rá e ste fa vor: ma s é p rec iso q ue eu lhe fale, q ue lhe d iga d e q ue se trata . Há d e lam enta r-me, soc orrer-me ; só t enho esperança no meu a migo. Sei que é sensível, q ue c onhe c e o a mo r; e é o únic o a q uem eu p osso c onfia r-me; não me rec use o seu a uxílio. Ad eus, senhor; o únic o a lívio q ue e xp erime nto na minha d or é o de pe nsa r que m e resta um am igo c om o o Visc ond e. Mande-me dizer, peço-lhe, a que horas poderei encontrá-lo. Se nã o fo r esta ma nhã , d esejaria q ue fo sse à s p rimeira s horas d a ta rd e. 8 de Setem b ro d e 17* *.
CARTA LXI CECíLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY Minha q uerid a Sofia, la me nta a tua C ec ília , a t ua p ob re Ce c ília , que é muito infeliz. A Mamã sabe tudo. Não percebo como pôde ela desconfiar de alguma coisa, mas a verdade é que descobriu tudo. Ontem à noite, a Ma mã pa rec eu-me estar d e ma u humo r; ma s não d ei ao ca so g rand e a tençã o; e até, enquanto esperava q ue ela ac ab asse a sua paciência, conversei muito alegremente com Madame de Merteuil, que tinha ceado conosco, e falamos muito de Danceny. Mas p a rec e-me q ue ninguém nos ouviu. Log o q ue e la se fo i emb ora, retireime p ara o m eu quarto. Estava a despir-me, quando a Mamã entrou e mandou sair a minha criada de quarto, pedindo-me em seguida a chave da minha secretária. O tom com que ela me fez esse pedido causou-me um tremor tão forte q ue ap enas me po dia ter em pé. Fingi que não a encontrava, mas por fim tive de obedecer. A primeira gaveta que ela abriu foi precisamente aquela onde estavam as cartas do Cavaleiro Danceny. Eu estava tão perturbada, que quando ela me perguntou o que aquilo era, não soube responder-lhe outra c oisa senã o q ue não era na da ; ma s qua ndo a vi co meç ar a ler a que estava ao d e c ima , só tive temp o p ara ir até uma po ltrona , e sentime tã o ma l que p erdi o conhec imento. Logo que voltei a mim, minha mã e, que tinha c hama do a c riad a d e q uarto, retirou-se, d izend o-me q ue me d eitasse. Tinha leva d o tod a s a s c a rta s d e Da nc eny. Trem o tod a s a s vezes q ue p enso q ue é p rec iso a p a rec er d ia nte d ela. Tod a a noite nã o fiz outra c oisa senã o c horar.
Escrevo-te ao romper do dia, na esperança de que Josefina venha. Se eu puder falar-lhe sozinha, pedir-lhe-ei que leve a casa de Madame de Merteuil um bilhetinho que lhe vou escrever; se o não c onseg uir, me tê-lo-ei na tua c a rta e tu fa rá s o fa vor de lho enviar c om o sendo teu. É só dela que eu posso receber alguma consolação. Ao menos, falaremos dele, pois não espero voltar a vê-lo. Sou muito infeliz! Ela terá talvez a bondade de se encarregar de uma carta para Danc eny. Nã o o uso c onfiar-me a Josefina p a ra esse fim, e a ind a me nos à minha criada de quarto; pois talvez tenha sido ela quem disse a minha mã e q ue eu tinha c artas na minha sec retá ria. Hei-de escrever-te mais longamente, pois quero ter tempo para escrever a Madame de Merteuil, e também a Danceny, para ter a minha c a rta p ront a , se ela q uiser enc a rreg a r-se d e a fa zer seg uir. Dep ois disso, voltarei a deitar-me, para que me encontrem na cama quando entrarem no me u q uarto. Direi que estou d oe nte, pa ra me d isp ensa r d e ir a o p é d a Ma mã . Não será grande a me ntira; c om c erteza sofro m ais d o q ue se t ivesse fe b re. Os olhos ardem-me por ter chorado tanto; e tenho um peso no estôma go que me imp ed e d e respirar. Qua ndo pe nso q ue não voltarei a ver Danceny, desejaria estar morta. Adeus, minha querida Sofia. Não p osso d izer-te ma is na d a ; as lá grima s sufoc a m-me. 7 de Setem b ro d e 17* *.
Nota - Suprimiu-se a c arta de Cec ília Volang es à Ma rque sa, p orque c ontinha ap ena s os mesmos fatos da carta precedente, e com menos pormenores. A carta para o Cavaleiro Danceny não foi encontrada; ver-se-á qual a razão na Carta LXIII, de Mad ame de Merteuil ao Visco nde.
CARTA LXII MADAME DE VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY Depo is de terde s ab usad o, senhor, da c onfianç a d e uma mã e e da inoc ênc ia de uma c rianç a , não fic areis surpreendido, p or certo, d e não voltar a ser recebido numa casa onde não correspondestes às p rova s d a a miza d e ma is sinc era, senã o esq uec end o tod os os p rec eitos. Prefiro pedir-vos que não volteis a minha casa, a dar ordens que nos comprometeriam a todos igualmente, pelos reparos que os criados não d eixa ria m d e fa zer. Tenho o d ireito d e e sp erar que não me ob riga reis a rec orrer a esse meio. Previno-vos também de que, se no futuro fizerdes a menor tentativa para manter a minha filha no desvairamento em que a lançastes, um recolhimento austero e eterno a subtrairá às vossas perseguições. A vós compete, senhor, saber se receais tão pouco c a usa r o seu infortúnio c om o rec ea stes p ouc o t enta r a sua d esonra. Quanto a mim, a minha escolha está feita, e disso lhe dei participação. Encontrareis junto o maço das vossas cartas. Conto que me devolvereis em troca todas as de minha filha; e que vos prestareis a apagar qualquer vestígio de um acontecimento de que não poderemos lembrar-nos, eu sem indignação, ela sem vergonha, e vós sem rem orso. Tenho a honra d e ser, etc . 7 de Setem b ro d e 17**.
CARTA LXIII A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Claro que sim, que lhe explicarei o bilhete de Danceny. O acontecimento que o levou a escrevê-lo é obra minha, e é, creio, a minha o bra-prima . Não p erdi o me u temp o d ep ois da sua última c arta, e d isse c om o o a rq uiteto a teniense: "O q ue e le d isse, eu o farei."
São pois necessários obstáculos a esse belo herói de romance; que se deixa dormir na felicidade! Oh! que venha ter comigo, eu lhe da rei que fa zer; e, ou eu m e e nga no, ou o seu sono te mp o, e g ab o-me de que no p resente ele lam ente o q ue pe rd eu. Era p rec iso, d izia o Visc ond e, q ue ele sentisse a nec essida d e d e mais mistério; pois bem! Essa necessidade não lhe vai faltar. Eu tenho isto de bom: é que basta apenas chamarem-me a atenção para os meus erros; não descanso enquanto não tiver posto tudo certo. Saiba p ois o q ue eu fiz. Ao e ntrar em c asa a nteontem de ma nhã, li a sua c a rta; ac hei-a luminosa. Convenc ida d e q ue o Visc ond e indic ara m uito b em a c ausa da doença, não me ocupei senão de encontrar maneira de a curar. Comecei todavia por me deitar; pois o infatigável Cavaleiro não me tinha deixado dormir um momento e eu julgava ter sono. Mas enganava-me; toda entregue a Danceny, o desejo de o tirar da sua indolência, ou de lha castigar, não me permitiu fechar os olhos, e só depois de ter concertado o meu plano é que pude achar duas horas d e rep ouso. Nessa mesma noite fui a casa de Madame de Volanges, e, conforme o meu projeto, confidenciei-lhe que julgava estar certa de existir entre a sua filha e Da nc eny um a lig a ç ã o p erigo sa . Esta mulher, tão clarividente no caso do Visconde, estava cega a ponto de me ter respondido primeiro que com certeza eu estava enganada; que sua filha era uma criança, etc. Eu não podia dizer-lhe tudo quanto sabia a tal respeito; mas citei os olhares, os ditos, que tinham a larmad o a minha virtude e a m inha a mizad e. Enfim, falei quase tã o b em c omo o p od eria fazer uma de vota , e, para vibrar o golpe de misericórdia, cheguei a dizer que supunha ter visto entregar e receber uma carta. "Isto faz-me recordar", acrescentei "que um d ia e la a briu diante de mim uma g ave ta d a sec retá ria, na qua l vi muitos p a p éis, que c om c erteza ela c onserva. Conhe c eis-lhe a lg uma c orresp ond ênc ia freq üente ?". Aqui o rosto de Madame de Volanges mudou, e vi algumas lágrimas nos seus olhos. "Agradeço-vos, minha digna amiga", disse ela, a p ertand o-me a mã o;" eu p orei tud o isso a limp o". Dep ois d esta c onve rsa , de ma sia d o c urta p a ra se tornar susp eita, aproximei-me da pequena. Deixei-a pouco depois, para pedir à mãe que não me comprometesse junto da filha, o que ela me prometeu de bom grado, tanto mais que lhe observei quanta vantagem haveria em que essa criança tivesse bastante confiança em mim para me abrir o seu coração e me pôr ao alcance de lhe dar os meus prudentes c onselhos. O que me d á a c erteza d e q ue ela c ump rirá a sua p rom essa é que não tenho dúvidas de que ela considere um ponto de honra exerc er a sua p enet ra ç ã o junto d a filha. Enc ontrava -me, po r esse lad o, autorizada a conservar o meu tom de amizade com a pequena, sem parecer falsa aos olhos de Madame de Volanges, o que desejava evitar. Tive a inda a va ntag em d e c ontinuar po r muito temp o e tã o
secretamente como eu desejava junto da rapariguinha, sem que a mã e tivesse q ua lq uer susp eita . Aproveitei aquele mesmo serão; e depois de terminar a minha paciência, arrastei a petiza para um canto, e levei-a a falar de Danc eny, assunto em q ue e la é inesgo tá vel. Diverti-me a d a r-lhe vo lta à cabeça sobre o prazer que ela teria em vê-lo no dia seguinte; não houve louc ura q ue eu nã o a ob riga sse a d izer. Era preciso dar-lhe em esperanças o que lhe tirava em rea lida d e; a lém d isso, tud o isso a torna ria ma is sensível ao golpe, e estou convencida de que quanto mais ela sofrer, mais ansiosa ficará de na primeira ocasião tirar a desforra. É bom, aliás, habituar aos grandes a c ont ec iment os a s p essoa s q ue se d estinam à s gra nd es a venturas. No fim de contas, não é justo que ela pague com algumas lá g rima s o p ra zer de p ossuir o seu Danc eny? Está d oid a p or ele! Pois be m, prom eto-lhe q ue o há d e ter, e a té ma is c ed o d o q ue o conseguiria sem este contratempo. É um sonho mau cujo despertar será delicioso; e, bem feitas as contas, parece-me que ela me deve estar reconhecida. De fato, mesmo que eu tenha posto no caso um p ouc o d e m a líc ia , é p rec iso d ivertirmo -nos. Retirei-me p or fim, muito sa tisfeita d e m im p róp ria. "Ou Da nc eny", dizia eu comigo, excitado pelos obstáculos, vai redobrar de amor, e então servi-lo-ei em tudo o que possa; ou, se não passa de um tolo, como algumas vezes sou tentada a crer, ficará desesperado e c onsid erar-se-á venc id o; ora, neste c a so, p elo m eno s ter-me -ei vinga d o dele, na medida em que o posso fazer; ao mesmo tempo terei aumentado para mim a estima da mãe, a amizade da filha e a co nfiança de amb as. Quanto a Gercourt, primeiro objeto dos meus cuidados, muito infeliz seria eu, o u m uito iná b il, se, d om inand o o esp írito d e sua mulher, o que acontece já, e nesse sentido mais conseguirei ainda, eu não enc ontrar mil ma neira s d e fa zer de la o q ue e u q uiser que ela seja". Deitei-me acalentando estas doces idéias; o que me permitiu d ormir, e d esp ertar muito t a rd e. Ao a c orda r, enc ontrei d ois b ilhete s, um d a m ã e, outro d a filha ; e não pude impedir-me de rir, encontrando em ambos literalmente a mesma frase: É apenas de vós que espero alguma consolação. Não é engraç a do , de fato, co nsolar c ontra e a fa vor, e ser o únic o a ge nte d e d ois interesses d ireta mente c ontrários? Eis-me como a divindade: recebendo os votos opostos dos c eg os mo rta is e nã o m ud a nd o na d a a os me us d ec reto s imutá veis. Abandonei todavia esse augusto papel, para tomar o de anjo consolador; e, segundo os preceitos, fui visitar os meus amigos na sua aflição. Comecei pela mãe; encontrei-a numa tristeza que já em parte vinga o Visc ond e d a s c ontraried a d es q ue e la lhe fez sofrer po r p a rte d a sua b ela hipóc rita . Tud o c orreu à ma ra vilha . A minha única inq uieta ç ã o era que Madame de Volanges não aproveitasse esse momento para
conseguir a confiança de sua filha; o que teria sido muito fácil, desde que empregasse junto dela a linguagem da doçura e da amizade, e dando conselhos cheios de razão, com o ar e o tom da ternura ind ulge nte. Por felic id a d e, a rmo u-se d e seve rid a d e; enfim, po rtou-se tã o ma l, q ue só tive oc a siã o d e a p la udir. É c erto que esteve p a ra d eitar por terra todos os nossos projetos, pensando em fazer voltar a filha para o convento; mas eu aparei o golpe; e consegui que apenas fizesse a am ea ç a, no c a so e m que Danc eny c ontinuasse a imp ortuná-las, a fim de obrigar as duas a uma moderação que julgo necessária para o êxito. Em seguida estive com a filha. O Visconde não pode imaginar como a dor a embeleza! Mesmo que venha a usar pouco de coqueteria, garanto-lhe que há de chorar muitas vezes; por esta vez, c horava sem ma líc ia ... Surpreendida por aquele motivo de agrado que eu não lhe conhecia, e que me sentia feliz de observar, só lhe dei a princípio consolações ineptas, que aumentam mais as mágoas do que as aliviam; e, por este meio, levei-a a ponto de estar verdadeiramente sufocada. Deixou de chorar, e por um momento temi as convulsões. Aconselhei-a a deitar-se, o que ela fez; servi-lhe de criada de quarto. Não se tinha vestido , e e m b reve os c a b elos esp a rsos lhe c a ía m sob re o s om b ros e o p esc oç o inteira me nte d esc ob ertos. Abrac ei-a ; ela d eixou-se embalar nos meus braços, e as lágrimas recomeçaram a cair-lhe sem esforç o. Deus! co mo ela e sta va b ela! Ah! se Madalena era assim, deve ter sido bem mais perigosa penitente q ue pec ad ora. Qua ndo a be la de solad a se d eitou, pus-me a c onsolá-la de bo a fé . Tra nq uilizei-a p rimeiro sob re os rec eios d o c onvent o. Fiz nascer nela a esperança de ver Danceny secretamente. "Se ele estivesse aqui...", disse-lhe eu, sentando-me na cama; depois, fantasiando sobre esse tema, levei-a, de distração em distração, a esq uec er-se d e q ue esta va a flita. Ter-nos-ía mo s sep a ra d o perfeitamente satisfeitas uma com a outra se ela não tivesse querido encarregar-me de uma carta para Danceny, o que eu recusei firme me nte. Ap rova rá c om c erteza os mo tivos, que p a sso a expo r. Primeiro, seria comprometer-me junto de Danceny; e, se foi esta a única razão de que pude servir-me junto da pequena, havia muitas out ra s q ue no s d izem resp eito. Nã o seria a rrisc a r o fruto d o m eu tra b a lho d a r tão d ep ressa a os nossos jovens um me io tã o fá c il d e sua viza r as sua s mágoas? E depois, não me descontenta obrigá-los a meterem alguns criados nesta aventura; porque, enfim, se ela for levada a bom fim, como espero, é preciso que seja conhecida imediatamente depois do casamento; e poucos meios mais seguros do que esses existem para que tod os o venha m a sab er. Mas se, por milagre, os criados não falassem, falaríamos nós, e sem pre é ma is c ôm od o que as inco nfidê ncias fiquem a c a rgo de les.
É necessário pois que o Visconde dê hoje essa idéia a Danceny; e c omo não estou segura da c riad a de qua rto d a peq uena Volange s, d e q uem ela p róp ria p a rec e d esc onfiar, ind iq ue-lhe a minha fiel Vitória . Tom arei prec auç ões pa ra que esta d iligê nc ia seja c oroa da de bo m êxito. Esta idéia agrada-me tanto mais, quanto a confidência só nos será útil a nós, e nunca a eles; não cheguei ainda ao fim da minha narração. Enquanto eu me furtava a e nca rrega r-me d a c arta d a p eq uena, tem ia a tod o o mo me nto q ue ela m e p rop usesse p ô-la no c orreio, o q ue eu não poderia recusar. Felizmente, ou por estar muito perturbada, ou p or ig norânc ia d a sua p a rte, ou ainda p orque d esse me nos imp ortânc ia à carta que à resposta, a qual ela não poderia ter por esse meio, o certo é que não me falou em tal; mas para evitar que lhe viesse semelhante idéia, ou pelo menos que pudesse servir-se dela, tomei imediatamente o meu partido; e voltando a falar à mãe, decidi-a a afastar a filha por algum tempo, a mandá-la para o campo... E para onde? Não lhe bate de alegria o coração, Visconde?... Para casa de sua tia, a velha Rosemonde. Hoje mesmo Madame de Volanges escreverá nesse sentido: assim, eis o Visconde autorizado a voltar a ver a sua d evota , que já não terá a ob jeta r o e sc ând alo d o c onvívio a sós, e, graças aos meus cuidados, Madame de Volanges terá ocasião de rep a ra r o a g ra vo q ue lhe fez. Mas ouça-me, e não se ocupe tão vivamente dos seus assuntos q ue a c a b e p or perde r este d e vista ; p ense q ue e le m e interessa . Desejo que o Visconde se torne o correspondente e o conselheiro dos dois jovens. Comunique pois a Danceny esta viagem, e ofe reç a -lhe o s seus serviç os. Que a sua única d ific ulda d e seja a d e fa zer chegar às mãos da bela a sua credencial; e suprima esse obstáculo imediatamente, indicando-lhe a minha criada de quarto como intermediária. Não tenho qualquer dúvida de que ele aceite; e como prémio das suas canseiras, terá o Visconde as confidências de um c oraç ã o jovem , o q ue é sem p re interessa nte. Pobre pequena! Como ela há de corar ao entregar-lhe a sua primeira c arta! Na verd ad e, este p ap el de c onfide nte, contra o q ual se erguem preco nce itos, parece -me um lindo pa ssate mp o q uand o se tem out ra s oc up a ç õe s; e será e ste o seu c a so. Dep end e a go ra d os seus c uid a d os o d esfec ho d esta intrig a . O c am po oferec e mil oc asiões; e Danc eny, c om tod a a c erteza , estará pronto a seguir logo que o Visconde lhe faça o primeiro sinal. Uma noite, um disfarce, uma janela..., que sei eu? Mas, enfim, se a rapariguinha continuar na mesma, ao Visconde pedirei contas. Se a c ha r q ue ela p rec isa q ue eu a enc oraje, ma nde -mo d izer. Creio te r-lhe dado uma boa lição sobre o perigo de guardar cartas, para ousar escrever-lhe agora; e continuo com a intenção de fazer dela minha discípula.
Parece-me ter esquecido dizer-lhe que as suspeitas da pequena no que respeita à denúncia da correspondência caíram primeiro sobre a c riad a d e q uarto, e eu d esviei-as p a ra o c onfessor. Cha ma -se a isto m ata r do is c oelhos de uma c ajad ad a. Adeus, Visconde; estou há muito tempo a escrever-lhe e atraseime pa ra o janta r; ma s o a mo r-próprio e a am izad e d itaram esta c arta, e a mb os sã o ta ga relas. O que é p rec iso é q ue a c a rta esteja e m sua c a sa às três horas. Agora queixe-se de mim, se se atrever, e volte a ver, se lhe ap etec e, o b osque do Cond e d e B... Diz o Visc ond e q ue ele o gua rda para prazer dos seus amigos! Esse homem é então amigo de toda a ge nte? Ma s ad eus, tenho fome . 9 de Setem b ro d e 17 * *.
CARTA LXIV O CAVALEIRO DANCENY A MADAME DE VOLANGES (minuta junta à Ca rta LXVI, do Visc ond e à Ma rq uesa ) Sem procurar justificar a minha conduta, senhora, e sem me queixar da vossa, só me resta afligir-me por um acontecimento que faz a infelicidade de três pessoas, todas dignas de um destino mais feliz. Ma is sensível a inda à tristeza d e lhe te r sido a c a usa d o q ue à d e ter sido a vítima, tentei muitas vezes, desde ontem, ter a honra de vos resp ond er, sem p od er enc ontrar forç a s p a ra ta l. Tenho , no enta nto, tantas coisas a dizer-vos, que me é necessário fazer um grande esforço sobre mim próprio; e se esta carta for um tanto desordenada, devereis sentir quanto a minha situação é dolorosa, para me concederdes alguma indulgência. Permiti-me p rimeiro q ue p roteste c ontra a p rimeira fra se d a vossa carta. Eu não abusei; ouso dizê-lo, nem da vossa confiança nem da inocência de Mademoiselle de Volanges; respeitei uma e outra nas minhas ações. Só elas dependem de mim; e quando me tornásseis responsável por um sentimento involuntário, não recearia acrescentar que o que me foi inspirado por vossa filha pode desagradar-vos, mas nunc a o fend er-vos. Sob re este a ssunto, q ue me inte ressa ma is d o q ue eu p osso d izervos, só a vós, senhora, desejo por juiz, e às minhas cartas por testemunhas. Proibis-me de me apresentar de futuro em vossa casa, e sem dúvida terei de sujeitar-me a tudo o que vos aprouver ordenar a este resp eito: ma s esta a usênc ia súbita e tot a l não d a rá luga r aos murmúrios que quereis evitar, tanto c om o a orde m q ue, pe lo m esmo mo tivo, não
quiseste dar aos vossos criados? Insistirei tanto mais sobre este ponto, quanto é certo que ele é mais importante para Mademoiselle de Volang es do que p a ra m im. Suplico-vos pois que peseis atentamente todas as razões, de mo d o a nã o p ermitir q ue a vossa seve rid a d e a ltere a vo ssa p rud ênc ia . Persuadido de que só o interesse de vossa filha ditará as vossas resoluç õe s, a g ua rd a rei nova s orde ns d a vossa p a rte. Entretanto, no caso em que me permitísseis freqüentar a vossa casa algumas vezes, comprometo-me (e podeis contar com o cumprimento da minha promessa) a não abusar dessas ocasiões para tentar falar em particular com Mademoiselle de Volanges, ou entregarlhe q ualquer c arta. O receio de pôr em perigo a sua reputação leva-me a este sa c rifíc io; e a felic id a d e d e a ver alguma s vezes me c om p ensa rá . É esta a única resposta que posso dar ao que me dizeis sobre a sorte que destinais a Mademoiselle de Volanges, e que quereis tornar dependente da minha conduta. Prometer-vos mais seria enganar-vos. Um vil sedutor pode adaptar os seus projetos às circunstâncias e calcular segundo os acontecimentos; mas o amor que me anima p ermite-me a p ena s d ois sentimento s: a c orag em e a c onstâ nc ia . Eu, consentir em ser esquecido por Mademoiselle de Volanges, ou esquecê-la eu mesmo? Não, nunca! Ser-lhe-ei fiel; ela recebeu o juramento, e eu renovo-o agora. Perdão, minha senhora, eu desvairo, tenta rei reag ir. Resta-me outro assunto a tratar convosco: o das cartas que me pedistes. Fico verdadeiramente penalizado por ter de acrescentar uma recusa aos agravos que tendes de mim; mas suplico-vos, atendei as minhas razões, e dignai-vos lembrar-vos, para as apreciardes, que a únic a c onsolaç ão pa ra a de sgraç a d e ter perd ido a vo ssa a mizad e é a esp eranç a d e c onservar a vossa estima . As cartas de Mademoiselle de Volanges, sempre tão preciosas p a ra mim, muito m a is p rec iosa s se t ornara m neste mo me nto. São o único bem que me resta; só essas cartas me recordam ainda um sentimento que constitui todo o encanto da minha vida. Entretanto, podeis crer-me, não hesitaria um instante em fazer-vos esse sacrifício; e o pesar de ser privado delas cederia ao desejo de vos provar a minha deferência respeitosa; mas considerações poderosas me tolhem o impulso, e estou certo de que vós mesma não podereis censurá-las. É c erto q ue e ntra stes na p osse d o seg red o d e M a d em oiselle d e Volanges; mas, permiti que vos diga, estou autorizado a crer que foi o efeito da surpresa e não da confiança. Não pretendo censurar-vos um a to q ue a solic itude m a terna ta lvez a utorize. Respeito os vossos direitos, mas não ao ponto de me dispensar dos meus deveres. O mais sagrado de todos é o de nunca trair a c onfianç a que a lguém nos c onc ed e. Seria faltar a ela expo r ao s olhos de outrem os segredos de um coração que desejou confiá-los só aos
meus. Se vossa filha consente em vo-los confiar, a ela compete falar; as sua s c a rtas ser-vos-ia m inúteis. Se, p elo c ontrário, ela q uer enc erra r o seu segredo em si própria, não esperareis, por certo, que seja eu quem vos instrua a tal respeito. Quanto ao mistério no qual desejais que este acontecimento fique sepulto, podeis ficar tranqüila, minha senhora; sobre tudo o que interessa Mademoiselle de Volanges, posso desafiar mesmo o coração de uma mãe. Para vos tirar todo o motivo de inquietação, previ tudo. O p rec ioso d ep ósito, q ue a té a q ui tinha insc rito: p a p éis p a ra q ueima r, tem agora: papéis pertencentes a Madame de Volanges. Esta resolução q ue to me i deve p rova r-vos a ssim q ue a minha rec usa não se b a seia no receio de que encontreis nessas cartas um único sentimento de que p essoa lme nte tenha is d e q ueixa r-vos. Eis, minha senhora, uma bem longa carta. Não o seria ainda b a sta nte se vo s d eixa sse a me nor dúvida sob re a hone stida d e d os me us sentimentos, do pesar muito sincero de vos ter desagradado, e do profund o respe ito c om que tenha a honra de ser, etc. 9 de Setem b ro d e 17 * *.
CARTA LXV O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES (Envia d a a b erta à Ma rq uesa d e M erteuil na Ca rta LXVI d o Visc ond e) Ó minha Cecília, que vai ser de nós? Que Deus nos salvará das d esgraç as q ue nos am ea ç am ? Ao me nos, que o a mo r nos dê c orag em p a ra a s supo rta r! Com o d esc reve r-lhe o me u esp a nto, o me u d esesp ero à vista das minhas cartas, ante a leitura do bilhete de Madame de Volanges? Quem nos terá traído? Sobre quem recaem as suas suspeitas? Teria a Cec ília c om etido alguma imp rudênc ia? Q ue fa z ag ora? Q ue lhe têm d ito? Ta nto eu d esejava sa b er tudo, e tud o ignoro. Ta lvez mesmo a Ce c ília nã o sa ib a m a is d o q ue eu. Envio-lhe o b ilhete d a sua M a mã , e a c óp ia d a m inha resp osta . Espero que aprovará o que eu lhe disse. Preciso muito que aprove também as diligências que fiz desde aquele fatal acontecimento, pois que todas têm por fim conseguir notícias suas e dar-lhe as minhas; e, quem sabe?, talvez voltar a vê-la, e com maior liberdade do que nunca. Põe na sua idéia, minha Cecília, que prazer seria voltarmos a encontrar-nos, podermos jurar-nos de novo um amor eterno, e ver nos nossos olhos, sentir nas nossas almas que esse
juramento não será desmentido? Um momento tão doce, que mágoas nã o fa rá esq uec er? Pois b em ! Tenho e sp eranç a d e q ue ta l mo me nto surja , e d evo -a a essa s mesmas diligências para que suplico a sua aprovação. Que digo; eu? Devo essa esperança aos consoladores cuidados do mais; terno dos am igo s; e o únic o p ed ido que lhe faç o é que pe rmita; que esse a migo seja ta mb ém o seu. Talvez eu não devesse confiar tanto sem o seu consentimento; mas tenho por desculpa a má sorte e a necessidade. Foi o amor que me c ond uziu*; é ele que rec la ma a sua indulgê nc ia, que lhe p ed e q ue perdoe uma confidência necessária, e sem a qual ficaríamos talvez separados para sempre. Conhece o amigo de que lhe falo; é-o também da mulher de quem a Cecília tanto gosta. É o Visconde de Valmont. O meu projeto, ao dirigir-me a ele, era primeiro o de lhe pedir que c onseg uisse d e M a da me d e M erteuil enc arreg ar-se d e um a c arta p a ra a Ce c ília . Nã o julg ou e le q ue e sse m eio fosse b em suc ed id o m a s, na falta da Marquesa, responde pela sua criada de quarto, que lhe deve obrigações. Será ela quem lhe entregará esta carta e a Cecília p od erá d a r-lhe a resp osta . Este a uxílio nã o nos será d e q ua lq uer utilida d e, se, c om o sup õe o Visconde, a Cecília partir em breve para o campo. Mas nesse caso ele próprio deseja servir-nos. A dona da casa é parente dele, que a p roveita rá esse p retexto p a ra a visitar ao me smo te mp o. E será p or seu intermédio que poderemos trocar a nossa correspondência. Deu-me mesmo a certeza de que, se a Cecília o consentir, ele conseguirá a rra nja r ma neira d e no s vermos sem o p erig o d e se c om p rom ete r. Ag ora, minha Ce c ília ; se te m a mo r p or mim, se lam enta a minha má sorte, se, c om o esp ero, tom a p a rte na s minhas má g oa s, rec usa rá a sua confiança a um homem que será o nosso anjo tutelar? Sem ele, fica rei red uzido a o d esesp ero d e ne m m esmo p od er sua viza r a s tristeza s que lhe causei. Elas terão fim, espero-o; mas, minha terna amiga, prometa-me que não se entregará demasiado a tais tristezas, que não se d eixa rá venc er po r elas. A idéia d a sua d or é pa ra mim um tormento insupo rtá vel. Daria a minha vida para a fazer feliz! Bem o sabe. Possa a certeza de ser adorada levar alguma consolação à sua alma! A minha tem necessidade da certeza de que perdoa ao meu amor os males que a ob riga a sofrer. Ad eus, minha C ec ília , a d eus minha te rna a miga . 9 de Setem b ro d e 17 * *.
*O Ca valeiro Da nc eny nã o fa la verda de . Tinha já fe ito e ssa c onfidê nc ia ao senhor de Valmo nt an tes d esse a c onte c ime nto . Ver Ca rta LVII .
CARTA LXVI O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Lend o a s d uas c a rta s q ue junto, a m inha b ela a miga verá se m e de semp enhei be m ou ma l da missão de que m e enc arreg ou. Embora ambas sejam datadas de hoje, foram escritas ontem, em minha c asa, e d eb aixo d os meus olhos. A ca rta pa ra a pe quena d iz tudo o que nós desejávamos. Perante a profundeza dos planos da minha b oa a miga , e a julg a r p elo êxito d os seus em p ree nd ime ntos, nã o posso senão humilhar-me. Danceny está em brasa; e, seguramente, na p rime ira oc a siã o d eixa rá d e ser digno d a s c ensura s q ue lhe te m d irig id o. Se a b ela ingênua q uiser ser dóc il; tud o e sta rá t ermina d o p ouc o te mp o depois da sua chegada; tenho cem maneiras preparadas. Graças aos c uid ad os da Ma rque sa, eis-me de c idida mente o am igo de Danc eny; a ele, nã o lhe falta ma is senã o ser Prínc ipe. É ainda muito novo, esse Danceny! Acredite, minha amiga, que não consegui obter dele que prometesse à mãe a renúncia ao amor p ela filha; c om o se fo sse m uito d ifíc il prom ete r, qua nd o se e stá d ec idido a nã o c ump rir! Seria e nga na r - rep etia-me e le c ontinuam ente . Não é verdade que é um escrúpulo edificante, principalmente q ua nd o se trata d e sed uzir a p eq uena ? E sã o a ssim o s home ns! Tod os igualmente celerados nos seus projetos, quando fraquejam na exec uçã o, c ham am a isso probida de . Pertence à minha amiga impedir que Madame de Volanges se enfureça pelas pequenas liberdades que o nosso jovem se permite na sua carta; livre-nos do convento; e consiga também que a senhora d esista d o p ed id o d a s c a rta s d a p eq uena . Em p rime iro luga r, ele não a s entrega rá , e nisso sou d a me sma op iniã o; neste p onto o a mo r e a ra zã o estão d e a c ordo . Li todas essas cartas, devorei o tédio que elas destilam. Podem vir a ser úteis. Eu me explico. Apesar da prudência de que usaremos, pode acontecer o imprevisto; isso faria que o casamento falhasse, e todos os nossos projetos concernentes a Gercourt cairiam por terra, não é assim? Mas c om o, por meu lad o, tenho de me vinga r da mã e, reservo-me o direito de desonrar a filha. Fazendo uma escolha habilidosa nessa correspondência e dando a público apenas uma parte, a pequena Volanges ficaria suspeita de ter dado os primeiros passos e ter-se absolutamente atirado de cabeça. Algumas dessas cartas poderiam
mesmo c omp rometer a mã e e deixá-la-iam ma c ulad a pelo menos de uma impe rdo áve l negligê nc ia. Sei bem que o escrupuloso Danceny se sentiria revoltado às primeiras impressões; mas como seria atacado pessoalmente, creio que acabaria por se recuperar. Existem mil probabilidades contra uma de q ue a s c oisa s não siga m este c a minho; ma s é p rec iso p reve r tudo. Adeus, minha bela amiga; seria muito amável se aceitasse o convite da Marechala de... para cear amanhã em sua casa; por mim, não pud e recusar. Julgo nã o ser nec essá rio rec om end a r-lhe seg red o, em relaç ã o a Madame de Volanges, no que respeita ao meu projeto de férias no c am po ; ela teria o c uida d o d e fic a r na c ida de . Assim, uma vez que nos encontraremos, com certeza não partirá no dia seguinte. E se ela nos d er som ente oito d ia s, resp ond o p or tudo . 9 de Setem b ro d e 17 * *.
CARTA LXVII A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT Não desejaria responder-vos, senhor, e talvez o embaraço que sinto neste momento seja uma prova de que não o deveria fazer. Entretanto, não quero deixar-vos um único motivo de queixa contra mim. Desejo convencer-vos de que fiz por vós tudo quanto poderia fazer. Dizeis que vos permiti que me escrevêsseis? Convenho; mas quando me lembrais essa permissão, julgais que me esqueci das condições em que ela foi dada? Se eu tivesse sido tão fiel a tal concessão quando vos afastastes dela, teríeis recebido uma única resp osta minha? No e nta nto, esta já é a terce ira ; e enq uant o fa zeis tud o o que é preciso para me obrigardes a terminar esta correspondência, sou eu q ue me oc upo do s me ios de a c ontinuar. Existe um, mas é o único; e se recusais aceitá-lo, seja o que for q ue d iga is, será p rova r-me o p ouc o a p reç o q ue lhe d a is. Deixai pois uma linguagem que não posso nem quero ouvir; renunciai a um sentimento que me ofende e me horroriza, e ao qual talvez vos sentísseis menos ligado se pensásseis no obstáculo que nos separa. Será esse o único sentimento que possais conhecer, e o amor te rá a meus olhos ma is esse d efeito d e e xcluir a a miza d e? Tereis, vó s próprio, a ma lda de de não querer por amiga aq uela em quem de sejais sentimento s ma is te rnos? Não quero acreditá-lo; essa idéia humilhante revoltar-me-ia, e a fasta r-me-ia d e vós sem rem éd io.
Oferecendo-vos a minha amizade, senhor, dou-vos tudo o que me pertence, tudo aquilo de que posso dispor. Que podereis querer ma is? Para m e e ntreg ar a esse sentimento tão do c e, tão à me dida do meu coração, espero apenas o vosso acordo, e a palavra que de vós exijo, de q ue e ssa a miza d e b a sta rá p a ra vos fazer feliz. Esq uec erei tud o o que pudestes dizer-me; deixar-vos-ei o cuidado de justificar a minha escolha. Vedes a minha fraqueza; ela deve provar-vos a minha confiança. Dep end e d e vó s a ume ntá -la ; ma s p revino-vos d e q ue a p rime ira palavra de amor a destruirá para sempre, ressuscitando todos os meus receios; que marcará para mim o início de um silêncio eterno para convosco. Se, como dizeis, estais distanciado dos vossos erros, não achais p referível ser ob jeto d a a miza d e d e um a m ulher hone sta , q ue c a usa d or d os rem orsos d e um a mulher c ulp a d a ? Adeus, senhor; deveis sentir que, depois de ter falado assim, na d a p osso d izer-vos a q ue nã o me tenha is já resp ond id o. 9 de Setem b ro d e 17 * *.
CARTA LXVIII O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL Como responder, senhora, à vossa última carta? Como ousarei ser verdadeiro, quando a minha sinceridade pode perder-me a vossos olhos? Não imp orta , é ne c essá rio; terei essa c orag em . A mim próprio digo e repito que vale mais merecer-vos do que obter-vos; e, embora me recuseis uma felicidade que desejarei inc essa ntem ente , é p rec iso a o m eno s p rova r-vos q ue o m eu c oraç ã o é digno dela. Que pena que, como dizeis, eu esteja distanciado dos meus erros! Co m q ue transp ortes d e a leg ria eu te ria lid o e ssa me sma c a rta à qual tremo hoje de responder! Falais-me nela com franqueza, testemunhais-me confiança, ofereceis-me por fim a vossa amizade: tantas ofertas, senhora, e que pesar eu tenho de não poder aproveitar d elas! Por que nã o c ontinuo e u a ser o m esmo ? Se de fato o fosse, se sentisse por vós apenas uma afeição vulgar, aquela afeição ligeira, filha da sedução e do prazer, à qual, no entanto, se dá hoje o nome de amor, apressar-me-ia a tirar vantagem d e tud o o q ue p ud esse o b ter. Pouc o d elic a d o sob re os me ios, c onta nto que eles me garantissem o êxito, daria ânimo à vossa franqueza pela
necessidade de vos adivinhar; desejaria a vossa confiança com o fim de a trair; aceitaria a vossa amizade, na esperança de a desencaminhar... Pois quê, senhora! horroriza-vos este quadro?... No entanto, seria essa a minha obra se vos dissesse que consinto em ser a p ena s vosso a migo... Pois consentiria eu partilhar com alguém um sentimento em a nad o d a vossa a lma ? Se a lgum a vez eu o d isser, nã o o a c red iteis. Desde esse momento procuraria enganar-vos; poderia desejarvos a ind a , ma s seg ura me nte já nã o vo s a ma ria . Não é o caso que a amável franqueza, a doce confiança, a sensível amizade não tenham a meus olhos certo valor... Mas o amor! o amor verdadeiro, e tal como vós o inspirais, reunindo todos esses sentimentos, dando-lhes maior energia, não poderia prestar-se, como eles, a essa tranqüilidade, a essa frieza da alma, que permite c om p a ra ç õe s, q ue sup orta me smo p referênc ias. Não, minha senhora, não serei vosso amigo; amar-vos-ei com o a mo r ma is terno, e m esmo o ma is a rd ente , emb ora o ma is resp eitoso. Podereis tirar-lhe toda a esperança, mas não aniquilá-lo. Com que direito pretendeis dispor de um coração de que recusais as homenagens? Por que requinte de crueldade me disputais até a felicidade de vos amar? Essa felicidade pertence-me, é independente de vós; saberei defendê-la. Se é ela a fonte dos meus ma les, é-lhes ta mb ém o remé d io. Não, ainda uma vez, não. Podeis persistir nas vossas cruéis recusas; mas deixai-me o meu amor. Comprazeis-vos em tornar-me infeliz! Está bem; seja! Experimentai cansar a minha coragem; saberei forçar-vos ao menos a decidir a minha sorte. E talvez um dia me façais maior justiça. Não é que eu espere tornar-vos alguma vez sensível; mas sem serdes persuadida, ficareis convencida, e direis a vós mesma: "Tinha-o julg a d o ma l." Dizendo melhor, a vossa injustiça recai sobre vós. Conhecer-vos sem vos amar, amar-vos sem ser constante, eis duas coisas igualmente imp ossíveis; e a p esa r da mod éstia q ue é vosso timb re, d eve ser-vos ma is fácil queixar-vos do que admirar-vos dos sentimentos que fazeis nascer. Por mim, cujo único mérito é o ter sabido apreciar-vos, esse não quero perdê-lo; e longe de consentir nas vossas traiçoeiras ofertas renovo a vossos p és o jura me nto d e vos a ma r sem p re. 10 d e Setem b ro d e 17 * *.
CARTA LXIX CECÍLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY (Bilhete esc rito a lá p is e c op ia d o p or Da nc eny)
Pergunta-me o que faço; amo-o e choro. Minha mãe não me fala; tirou-me papel, penas e tinta; sirvo-me dum lápis, que por felic ida de me fic ou, e e sc revo-lhe num b oc ad o d e p ap el da sua c arta. É-me forçoso aprovar tudo o que fez; amo-o demasiado para não aproveitar todos os meios de receber as suas notícias e dar-lhe as minhas. Eu não gostava do senhor Valmont, e não supunha que ele fosse t ã o seu a migo ; tenta rei hab itua r-me a ele, e a go sta r d ele p or sua c a usa . Não sei que m fo i q ue no s traiu. Não pode ter sido senão a minha criada de quarto ou o meu c onfe ssor. Sou m uito infeliz. Pa rtimo s a ma nhã p a ra o c a mp o; nã o sei por quanto tempo. Meu Deus! Não mais o ver! Não haverá meio de o conseguir. Adeus; tente ler este bilhete. Estas palavras escritas a lápis virão talvez a apagar-se, mas nunca os sentimentos agravados no meu coração. 10 d e Setem b ro d e 17* *.
CARTA LXX O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Tenho um a revelaç ã o imp ortante a fa zer-lhe, minha q uerid a amiga. Ontem, ceava eu, como sabe, em casa da Marechala de..., q ua nd o se fa lou d a minha a miga , e a proveitei pa ra d izer a seu resp eito não tod o o b em q ue pe nso, mas tod o a quele que nã o p enso. Tod a a ge nte p arecia ser da minha op iniã o, e a c onversa ia afrouxand o, co mo acontece sempre que se diz apenas bem do próximo, quando se ergueu a voz d e um c ontrad itor: era Préva n. "Deus me defenda", disse ele levantando-se, "de duvidar da seriedade de Madame de Merteuil! Mas ousaria crer que ela a deve ma is à sua ligeireza d o q ue a os seus p rincíp ios. É ta lvez ma is d ifíc il seg uila que agradar-lhe; e como, quando se corre atrás de uma mulher, acontece sempre aparecerem outras no caminho, como, em suma, as outras podem valer tanto ou mais do que ela; uns são distraídos por um gesto novo, outros desistem por cansaço; por isso ela é talvez a mulher de Paris que menos tenha tido de se defender. Por mim", acrescentou ele (encorajado pelo sorriso de algumas mulheres), "não acreditarei na virtude de Madame de Merteuil senão depois de ter rebentado seis c a va los a fazer-lhe a minha c orte". Este mau gracejo caiu bem, como todos os que se baseiam na maledicência; e, enquanto duravam os risos que ele excitou, Prévan retomou o seu lugar e a conversação geral mudou de rumo. Mas as
duas Condessas de B..., junto das quais estava o nosso incrédulo, tiveram com ele uma conversa particular, que felizmente estava ao alca nce d o meu ouvido. Préva n g a ra ntiu q ue d esp ertaria a sua sensib ilid a d e, minha b oa amiga, e o desafio foi aceito, com a sua palavra de contar tudo; e de todas as palavras que viriam a dar-se nessa aventura, essa seria seguramente a mais religiosamente guardada. Mas agora está prevenid a, e conhec e o p rovérbio. Resta-me dizer-lhe que esse Prévan, que a Marquesa não conhece, é infinitamente amável, e ainda mais habilidoso. Se alguma vez me ouvir dizer o contrário, foi simplesmente porque não gosto dele, porque me apraz diminuir os seus êxitos e por que não ignoro o peso da minha o p iniã o junto d e trinta , p elo me nos, da s mulheres d a mo d a . De fato, manifestando-me de tal modo, impedi-o por muito tempo de fazer figura no que chamamos os grandes meios; podia fazer p rod ígios: nem p or isso a ume nta va a sua rep uta ç ã o. Mas o ruído da sua tríplice aventura, chamando as atenções sob re ele, de u-lhe a quela c onfia nça que até então lhe faltava e tornouo verdadeiramente temível. Enfim, é hoje, talvez, o único homem que eu rece aria enc ontrar no m eu c a minho; à pa rte o interesse q ue a minha amiga nisso possa ter, prestar-me-ia um verdadeiro serviço se o expusesse, d e p a ssa gem , a q ua lq uer ridíc ulo. Deixo-o em boas mãos; e tenho a esperança de que no meu reg resso será um hom em liquida d o. Prom eto -lhe, em troc a , leva r a b om fim a a ventura d a sua p up ila e o c upa r-me de la tanto c om o d a minha b ela e virtuosa Presid ente. Esta a c a ba de me enviar um projeto d e c ap itulaç ão . Tod a a sua carta anuncia o desejo de ser enganada. É impossível oferecer um me io m ais c ôm od o e tam bé m ma is usa do . Quer que eu seja seu a migo. Mas eu, que gosto dos processos novos e difíceis, não quero possuí-la po r tão ba ixo p reç o; e seg uram ente nã o me ob riga ria a tanto trab alho c om ela p a ra te rminar po r uma vulga r sed uçã o. O meu projeto, pelo contrário, é que ela sinta bem profundamente o valor e a extensão de cada um dos sacrifícios que virá a fazer por mim; não a conduzirei tão rapidamente que não possa ser seguida pelo remorso; fazer expirar a sua virtude numa lenta agonia; obrigá-la a ter sempre presente esse desolador espetáculo; e não lhe conceder a felicidade de me apertar nos seus braços senão depois de a t er força d o a não d issimular o d esejo. Na verda d e, valho muito po uc o se não valho o esforço de ser solicitado. E poderei desejar menor vingança de uma mulher altiva, que parece envergonhar-se de c onfessa r a sua a d oraç ã o? Recusei pois a preciosa amizade e fixei-me firmemente no meu título de amante. Como não me iludo sobre esse título que, parecendo à primeira vista uma disputa de palavras, é todavia de uma imp ortânc ia rea l a o b ter, p us tod os os c uid a d os na m inha c a rta , e tratei de introduzir nela aquela desordem que constitui o único meio de
descrever os sentimentos. Fui, enfim, tão pouco razoável quanto me foi possível; pois sem ausência de raciocínio não há ternura; e creio que é p or esta ra zã o q ue a s mulheres nos sã o a ta l po nto sup eriores na s c a rta s de amor. Terminei a m inha c a rta p or um ga la nteio, e fi-lo a ind a em resultado das minhas profundas observações. Quando o coração de uma mulher é posto à prova durante algum tempo, tem necessidade de repouso; e tenho observado que um galanteio constitui, para todas, o travesseiro m a is ma c io que lhes p od em os ofe rec er. Adeus, minha bela amiga. Parto amanhã. Se tiver ordens a darme pe la Cond essa de ..., farei pa rag em em c asa d ela, p elo m enos pa ra jantar. Aborrece-me ter de partir sem a ver. Dê-me parte das suas sublimes instruções e ajude-me com os seus sábios conselhos, neste momento decisivo. Sobretudo, defenda-se de Prévan; e possa eu um d ia rec om p ensá -la p or esse sa c rifíc io! Adeus. 11 d e Setem b ro d e 17* *.
CARTA LXXI O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL O pateta do meu criado deixou a minha pasta em Paris! As cartas da minha bela, as de Danceny para a pequena Volanges, tudo lá fic ou, e te nho p rec isã o d e t ud o. Tive d e o ma nd a r reg ressa r, pa ra reparar a sua tolice; e enquanto ele sela o cavalo, vou contar-lhe a minha história d esta noite: pois d ec erto não va i supo r q ue p erco o m eu tempo. A a ventura, em si me sma , é p ouc a c oisa ; tra ta -se a p ena s d e um caldo requentado com a Viscondessa de M... Mas interessa pelos pormenores. Por outro lado sinto-me feliz por lhe mostrar que, se possuo o talento de perder as mulheres, não possuo menos, quando quero, o de as salvar. O partido mais difícil, ou o mais alegre, é sempre o que eu tomo; e nunca tenho de m e c ensurar por uma b oa aç ão , c ontanto que ela me p onha à prova ou me divirta. Deu-se p ois o c a so d e e nc ontrar aq ui a Visc ond essa , e c om o e la juntava as suas instâncias às que me faziam para passar a noite no castelo, disse-lhe: "Está bem! Consinto, com a condição de a passar a seu lado." "Isso é impossível", respondeu-me ela. "Vressac está aqui." Até ali eu pensava que lhe fazia uma proposta honesta; mas aquela palavra "impossível" revoltou-me, como de costume. Senti-me hum ilha d o p or ser sa c rific a d o a Vressa c e resolvi nã o o sup orta r. Tive p ois d e insistir.
As circunstâncias não me eram favoráveis. Esse Vressac c om eteu a tolic e d e d espe rtar suspe itas no Visc ond e, de mo do que a Viscondessa não pode recebê-lo em sua casa; e a visita de ambos à boa Condessa tinha sido combinada entre eles, de maneira a aproveitarem algumas noites. O Visconde chegou até a mostrar-se ab orrec ido po r a li enc ontrar Vressac ; mas c omo é a inda ma is c aç ad or do que ciumento, nem por isso deixou de ficar. E a Condessa, sempre ig ual a si me sma (a m inha a miga c onhe c e-a!), d ep ois d e te r insta la d o a mulher num q uarto d o c orred or princ ipa l, pôs o m a rido de um lad o e o amante do outro, e deixou-os arranjarem as coisas entre si. A má sorte d os d ois hom ens q uis q ue e u fica sse insta la d o e m frente. Nesse mesmo dia, quer dizer, ontem, Vressac, que, como pode imaginar, estraga o Visconde com mimos, foi à caça com ele, apesar de pouco gostar de caçar, e esperava consolar-se à noite, entre os braços da mulher, do aborrecimento que o marido lhe causara todo o d ia. Eu, porém, a c hei que ele teria nec essid a d e d e rep ouso, e p roc urei ma neira d e d ec id ir a a ma nte a d eixar-lhe temp o p ara tal. Ob tive o q ue pretendia e consegui que ela arranjasse uma zanga com motivo naquela mesma caçada, à qual ele, evidentemente, se sujeitara por ela. Não poderia haver pior pretexto; mas nenhuma mulher tem, como a Viscondessa, o talento, comum a todas, de pôr no lugar da razão o mau humor, e de ser tanto mais difícil de apaziguar quanto menos motivos tem de agravo. O momento aliás não era cômodo para explicações; e como eu só pretendia uma noite, consenti que eles fizessem a s p a zes no d ia seg uinte. Vressa c teve p ois d e a turar à volta os a rrufos d a Visc ond essa . Quis saber o motivo, obteve ralhos. Tentou justificar-se; o marido, que estava presente, serviu de pretexto para acabar a conversa. Procurou ainda aproveitar um momento em que o Visconde se ausentara para pedir audiência noturna: foi então que a Viscondessa atingiu o sublime. Indignou-se contra a audácia dos homens, que, só po rque p õem à prova a bo nda de de uma mulher, julga m ter o d ireito d e c ontinuarem a ab usar, me smo qua ndo ela tem mo tivos d e q ueixa; e tendo mudado de tese com esta habilidade, falou tão bem de delicadeza e de sentimentos, que Vressac ficou confuso e mudo. Eu próprio estive tentado a crer que ela tinha razão; pois deve supor que, c omo am igo de am bo s, eu era testemunha do diálogo . Por fim, a Viscondessa declarou que não acrescentaria as fad iga s d o a mo r às da c a ç a , pa ra não ter de se c ensurar por perturba r tão doces prazeres. O marido voltou. O desolado Vressac, que já não tinha liberdade de responder, dirigiu-se a mim; e depois de por muito tem po me ter c onta do as suas razões, que eu c onhec ia tão be m c om o ele, pediu-me que falasse à Viscondessa, e eu prometi-lho. De fato, falei-lhe; mas foi para lhe agradecer, e combinar com ela a hora e a ma neira d e no s enc ontrarmos. Disse-me ela que, instalada entre o marido e o amante, achara mais prudente ir ao encontro de Vressac do que recebê-lo no seu
quarto; e, já que eu estava instalado em frente dela, julgava mais seg uro uro ta mb ém vir vir a o m eu enc ontro. Vir Viria a ssim q ue a c ria d a d e q ua rto a d eixa eixa sse só; só; eu só só tinha tinha d e d eixa eixa r a p orta e ntrea ntrea b erta e esp esp erá-la erá-la . Tudo se e xec utou c om o tínham tínham os c om binad o; pela um a hora hora da mad rugada chegou ela ela a o meu quarto. quarto. D'une D'une b ea uté q u'on vient vient d 'arra 'arra c her au som som me il. il.* Como não sou vaidoso, não lhe descreverei os pormenores da noite; ma s a Ma rq uesa uesa c onhe c e-me , e e u fiq fiq uei sa sa tisfeito tisfeito c om igo . Ao raiar do dia, foi necessário separarmo-nos. Aqui começa a coisa a ser interessante. A estouvada julgou que tinha deixado entreab entreab erta erta a po rta do seu qua rto; enco ntrám ntrám o-la o-la fechad a, e a c have tinha ficado do lado de dentro. Não faz idéia da expressão de desespero com que a Viscondessa me disse então: "Ah! Estou perdida!" É p rec iso c onvir q ue te ria sid o d ivertid vertid o d eixá eixá -la -la na q uela si situa ç ã o; ma s p od ia eu sup sup ortar que uma mulher fic fic a sse p erdida p a ra mim, sem sem o ser ser po r mim? E d evia evia eu, com o o c om um d os home ns, ns, deixardeixar-me me do minar p elas ela s c irc irc unstâ unstâ nc ias? ias? Era p rec iso p ois enc ontrar um m eio. Que t eria eria feito a minha b ela a miga ? Ei Eis o p a rtido q ue to me i, e q ue resul resultou tou c om êxito. êxito. Depressa verifiquei que a porta em questão podia ser arrombada, desde que se pudesse fazer muito barulho. Consegui pois d a Vis Visc ond ess essa , não sem c usto usto , que ela solta sse g ritos a g ud os d e ter te rror, como Acudam! um ladrão! um assassino! etc. E combinamos que, ao p rime iro g rito, eu a rrom b a ria a p orta, e ela ela c orreri orreriaa a m ete r-se -se na c a ma . Não pode imaginar o tempo que foi preciso para a decidir, mesmo d ep ois d e ela ter co nsentido nsentido . No entanto , ac ab ou-se ou-se p or cump rir o c om binad o, e ao primeir primeiroo po ntap é a po rta c ed eu. A Vis Visc ond ess essa fez be m em não p erd erd er tem po , p ois no m esmo esmo insta nsta nte o Vis Visc ond e e Vres Vresssa c a p a rec eram no c orred orred or, e a c ria da de qua rto a c orr orreu tam bé m a o q uarto da senhor senhora. a. Só Só eu mantinha o sangue-frio, e aproveitei a circunstância para ir apagar uma lam pa rina que estava estava ainda ac esa esa e d err errubá -la po r terr terra; p ois faz b em id éia q ua nto seria eria rid íc ulo ulo fingir fingir a q uele terror terror pâ nic nic o, tend o luz no quarto. Em seguida repreendi o marido e o amante pelo seu sono letá rgic o e d ei-l ei-lhes a c erteza erteza d e q ue os g ritos a q ue eu tinha a c udid o e os meus esforços para arrombar a porta tinham durado pelo menos cinco minutos. A Viscondessa, que recuperara a coragem logo que se meteu na cama, jurava com a máxima sinceridade que nunca tivera tanto medo na sua vida. Procurávamos por toda a parte sem nada encontrar, quando fiz notar a lamparina derrubada, e concluí que, sem dúvida, um rato tinha causado o dano e o terror; a minha opinião foi *Com um a b eleza eleza d os que a c ab am de de spe rtar. (N. (N. do R.)
aprovada por unanimidade e, depois de alguns gracejos à custa dos ratos, o Visconde foi o primeiro a ir-se deitar, pedindo à esposa que de futuro fut uro tive t ivessse rato rat o s m a is so sse g a d o s. Vressac, ficando só conosco, aproximou-se da Viscondessa para lhe dizer ternamente que era uma vingança do amor, ao que ela
resp esp ond eu o lha ndo -me: "Nes "Nessse c a so o a mo r d evia e sta r muito za za nga d o, pois se vingou cruelmente; mas", acrescentou ela, "estou cheia de fad iga e q uero uero d ormir ormir.." Eu estava num momento de bondade; em conseqüência, antes de nos separarmos, advoguei a causa de Vressac e preparei a reconciliação. Os dois amantes beijaram-se e, por minha vez, fui b eija eija d o p or a mb os. os. Os b eijos eijos d a Vis Visc ond ess essa d eixa eixa ra m-me ind iferente ferente ; mas confesso que o de Vressac me deu prazer. Saímos juntos; e depois de ter rec rec eb ido os seus prolonga prolonga d os ag rad ec ime ntos, ntos, ca da um d e nó s foifoi-se m eter na c am a. Se achar que esta história é engraçada, não lhe peço que gua rd e seg seg red o. Agora q ue já m e d iverti verti,, é justo justo q ue o púb lic o te nha a sua vez. Neste momento falo-lhe só da história; talvez dentro em pouco tenha mo s d e. falar da sua heroína heroína . Adeus; há uma hora que o meu criado está à minha espera. Tomo ap enas o tem po pa ra lhe ma nda r um a braç braç o, e lhe lhe rec rec omend ar sob retud o q ue tenha c uid uid ad o c om Pr Préva n. Do C a stel te lo d e...,1 e...,133 de Setem et em b ro d e 17 * *.
C A RTA LXX XXIIII O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES (Entreg (Entregue ue som som ent e e m 14) 14) Ó minha Cecília! como invejo a sorte de Valmont! Amanhã ele vê-la vê-la -á. É ele q uem lhe e ntreg ntreg a rá esta esta c a rta ; e eu, long long e d e si si, entreg entreg ue às minhas mágoas, arrastarei a minha penosa existência entre as sa uda d es e a do r. Minha a miga , minha minha terna a miga , la la stime-me p elos me us ma les; es; lastimo-me sobretudo pelos seus; é contra estes que a coragem me abandona. Quanto me é penoso causar a sua infelicidade! Sem mim seria feliz e tranqüila. Perdoa-me? Diga! Ah! Diga que me perdoa; diga-me tam bé m q ue me tem am or, or, que há d e a ma r-me sem pre. Sinto nec ess essid ad e q ue mo rep ita. Nã Nã o é q ue eu d uvid uvid e; mas pa rec e-me q ue quanto mais se tem essa certeza mais doce é ouvi-lo dizer. Ama-me, não é verda verda d e? Si Sim, ama -me c om to d a a sua a lma . Não esqueç esqueç o q ue foi a última palavra que lhe ouvi pronunciar. Como a recolhi no meu coração! Como ela se gravou ali profundamente! E com que transp transp ortes o m eu lhe c orres orrespp ond e! Ai! Nesse momento de felicidade, estava eu longe de prever a sorte horrorosa que nos esperava. Ocupemo-nos, minha Cecília, dos
meios para a suavizar. A crer no meu amigo, bastará, para que o c onsi onsiga mo s, que a Cec ília de po site nele a c onfianç onfianç a que merec e. Fiq uei co ntri ntrista d o, co nfess nfesso-o, co m a id éia p ouc o va nta josa osa q ue parece ter a seu respeito. Reconheço aí as prevenções da sua Mamã: foi para me submeter a elas que descuidei, durante algum tempo, a soc ied ad e d ess esse hom em verd verd ad eiram eiram ente a má vel, vel, que hoje hoje tud o fa rá por mim; que, enfim, trabalha para nos reunir, quando a sua Mamã nos separou. Peço-lhe, querida amiga, veja-o com olhos mais favoráveis. Pense que ele é meu amigo, que o quer ser seu, que pode proporcionar-me a felicidade de voltar a vê-la. Se estas razões a não convencem, minha Cecília, é porque me não ama tanto como eu a amo, é porque porque me não ama tanto quanto amou já. já. Ah! Se alguma vez vier a ter-me menos amor... Mas não, o c oraç oraç ão da minha minha C ec ília p ertenc ertenc e-me; é me u por tod a a vid vid a; e se se eu tenho a tem er as p ena s d um a mo r infeli nfeliz, a sua sua c onstâ onstâ nc ia p elo me nos me sa lva rá d os tormento s d um a mo r tra tra íd o. Ad eus, eus, minha minha enc anta d ora ora am iga ; não não esqueç esqueç a que eu sofr sofro, o, e que só a si cabe tornar-me feliz, perfeitamente feliz. Escute os votos do me u c oraç ã o, e rec rec eb a o s ma is ternos b eijos eijos d e a mo r. Pa ris, is, 1111 de d e Se tem te m b ro d e 17 * *.
CARTA LXXIII O VISCONDE DE VALMONT A CECÍLIA VOLANGES (Jun (Junta ta à preced ente) O amigo que a serve soube que lhe faltava tudo que é necessário para escrever e remediou essa falta. Encontrará na antecâmara do aposento que ocupa, debaixo do grande armário à esquerda, uma provisão de papel, de penas e de tinta, que ele renovará quando quiser e que lhe parece poder ficar no mesmo lugar se nã o e nc ont ra r out ro m a is seg uro. uro. Esse amigo pede-lhe que não se ofenda, se simular que não lhe dá nenhuma a tenç ã o na s reuniões euniões e q ue a olha olha c om o uma c ria nça . Tal procedimento parece-lhe necessário para inspirar a segurança de que ele precisa e poder trabalhar mais eficazmente na felicidade do seu a m igo e na sua . Pr Proc ura ura rá susc usc itar as oc a siões d e lhe fa lar, q ua nd o tiver alguma coisa a comunicar-lhe ou a entregar-lhe; e espera consegui-lo, se a menina tiver tiver o c uida uida d o d e o sec unda r. Aconselha-a também a entregar-lhe as cartas à medida que as for rec eb end o, a fim de a a rrisc a r me nos a c om p rom ete r-se. -se. Termina por lhe dar a certeza de que, se quiser depositar nele confiança, porá os seus cuidados em suavizar a perseguição que uma
mãe demasiado cruel faz sofrer a duas pessoas, das quais uma é já o seu m elhor a migo , e a outra lhe p a rec e m erec er o m a is terno interes interessse. Do C a stel te lo d e..., e..., 14 14 de Setem et em b ro d e 17 * *.
C A RTA LXX XXIV IV A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Desde quando, meu amigo, se assusta tão facilmente? Esse Prévan é assim tão temível? Veja como eu sou simples e modesta! Tenho-o enh o-o e nc ont ra d o m uitas vezes vezes,, a ess esse sob sob erbo venc ve nc ed or; e m a l o tenho olhad olhad o! Faltava só a sua carta para que eu lhe desse atenção. Reparei onte m a minha injus injustiça tiça . El Ele e sta va na Óp era, qua se na minha frente, e entretive-me com ele. É bonito ao menos, mesmo muito bonito; que traços finos e delicados! Deve ganhar em ser visto de perto. E diz o Vis Visc ond e q ue e le m e q uer po ssuir! uir! Seg ura ura me nte far fa r-me-á honr hon ra e p ra zer. Fa Fa la nd o sério, ério, te nho ess essa fantasia, e confio-lhe aqui que dei para isso os primeiros passos. Não Nã o sei se se t erã o êxito. Pa Pa sso a na rra rra r-lhe r-lhe o c a so. Ele estava a dois passos de mim, à saída da Ópera, e eu marquei encontro, em voz alta, à Marquesa de... para cear sexta-feira em casa da Marechala. É, segundo creio, o único lugar onde posso enc ontrá ontrá -lo. Nã Nã o d uvid uvid o d e q ue ele ele m e tenha ouvido ouvido ... E se e sse ingrato lá nã o foss fosse? Diga -me: -me : ac ha q ue ele irá irá ? Saiba que, se não for, ficarei aborrecida toda a noite. Bem vê que ele não terá assim tanta dificuldade em seguir-me; e o Visconde vai admirar-se mais quando souber que terá ainda menos dificuldade em a g ra d a r-me. -me . El Ele q uer, seg und o d iz, iz, reb reb enta ent a r seis c a va los a faz fa zer-me er-me a sua sua c orte! Oh! eu salvarei a vida a esses cavalos. Nunca eu teria a paciência de esperar tanto tempo. O Visconde sabe que não está nos meus princípios fazer sofrer quando me decido por alguém, e a verda verda d e é que me de c idi p or ele. ele. Oh! convenha , Vi Visc ond e, que senti sentiuu prazer prazer em m e p reg ar um ser sermã mã o! A sua sua revelaç ão imp ortante ortante não teve um grande êxito? Que quer o Visconde! Há tanto tempo que eu vegeto! Há mais de seis semanas que não me permito uma aventura. Ap resent esent a -se-m -se-mee e sta ; p oss osso rec usá usá -la -la ? A pes p esssoa nã o va le a p ena ? Have rá alguém ma is a grad áve l, em q ualquer sentid entid o q ue tom e a p alavra. alavra. O próprio Visconde é obrigado a fazer-lhe justiça; faz mais que elogiá-lo, tem ciúmes dele. Pois bem! serei eu o juiz entre ambos. Mas primeiro é preciso tomar conhecimento da causa, e é o que desejo fazer. Serei juiz íntegro, e ambos serão pesados na mesma balança.
Quanto ao Visconde, tenho já as suas memórias, e a sua causa está perfeitamente instruída. Não será justo que me ocupe agora do seu a d versá versá rio? Va Va mo s, p reste-s este-see d e b om grad o à justiça ustiça ; e, pa ra c om eç a r, c onte -me, pe ç o-lhe, o-lhe, ess essa trí tríp lic e a ventura d e q ue e le foi herói. herói. Fa la -me d iss isso c om o se se e u nã o c onhe c ess esse o utra utra c oisa oisa , e nã o sei sei uma p a la vra vra a ta l res respp eito. eito . O caso deve ter-se passado durante a minha viagem a Genebra, e o seu ciúme tê-lo-á impedido de mo contar. Repare esta falta o m a is c ed o p oss ossível; p ense ense q ue na d a d o q ue lhe diz resp esp eito m e é indiferente. Creio bem que se falava ainda no assunto quando regressei; mas eu tinha outros motivos de preocupação, e raramente dou ouvidos a coisas desse gênero quando não são do próprio dia ou da véspe véspe ra. Me smo q ue o c ontrarie ontrarie um p ouc o o q ue lhe lhe p eç o, não será será ess esse o m enor preç preç o q ue o Vis Visc ond e d eve a os c uid uid ad os que po r sua c a usa usa tenho tido? Não foram esses cuidados que o aproximaram da sua Presidente, quando as suas tolices o tinham afastado dela? Não fui a ind a eu q ue p us na s suas mã os o m eio d e se se vinga r d o a ma rgo zelo d e Ma d a me d e Volang es? es? Ta nta s vezes vezes o Vis Visc ond e lam ento u o tem p o q ue p erdia a p roc ura ura r a venturas! venturas! Presentemente, tem-nas à mão. O amor, o ódio, só tem o trabalho de escolher, tudo está debaixo do mesmo teto. E pode até, fazendo existência dupla, afagar com uma das mãos e ferir com a outra. A sua sua a ventura ventura c om a Visc Visc ond ess essa é ainda a m im q ue a d eve. Deu-me muita satisfação; mas, como o Visconde diz, é preciso que se fale no caso; pois se a ocasião foi de molde a que preferisse o mistéri mistérioo a o ruíd uíd o, e c om p ree ndo q ue a ssim foss fosse, d eve mo s no enta nto c onvir onvir que ess essa mulher mulher nã nã o m erec erec ia um p roc ed ime nto tã o honesto. honesto. Além do mais, tenho motivos de queixa de tal criatura. O Ca valeir valeiro de Bell elleroc eroc he a c ha-a ma is bo nita nita do que eu d esejar esejariia; e, po r muitas ra zõe s, fic fic a ria b em c onte nte se tivess tivesse um p rete xto p a ra rom p er com ela. Ora não há nada mais cômodo do que poder dizer: "Já ninguém recebe essa mulher." Adeus Visconde; pense que, no lugar onde está, o tempo é precioso; precioso; vou emp reg a r o m eu a o c upa r-me d a feli felic id ad e d e Pr Préva n. Pa ris, is, 1155 de d e Se tem te m b ro d e 17 * *.
CARTA LXXV CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY Está a qui uma uma bo a a miga d a Ma mã , que eu não c onhecia, que parece também não gostar muito do senhor de Valmont, embora ele
tenha muitas a tenç õe s p a ra ela. Tenho Tenho rec eio q ue ele se se a b orreç orreç a depressa da vida que levamos aqui e que regresse a Paris; isso seria la mentá vel. vel. Deve Deve ter muito muito b om c oraç oraç ão p ara te r vindo vindo expres expresssam ente a fim de prestar um serviço ao seu amigo e a mim! Bem desejaria testemunhar-lhe o meu reconhecimento, mas não sei como fazer para falar; e mesmo que achasse ocasião para isso, ficaria tão enve rgo nhad a q ue não sa b eria eria q ue dizerdizer-llhe. É só com Madame de Merteuil que eu falo livremente, quando falo d o m eu a mo r. Ta lvez me smo c ontigo , a q uem d ig o tud o, eu fic fic a sse enve rgo nhad a , se se fo sse a c onve rsa rmo s. Com o p róp rio Da nc eny te nho muitas vezes sentido, contra minha vontade, certo receio que me imp ed ia d e d izer tudo o que p ensava ensava . Estou bem arrependida agora, e daria tudo para encontrar o mo me nto d e lhe dizer dizer uma uma vez, vez, uma uma únic únic a vez, vez, quanto o a mo ... O senhor de Valmont prometeu-lhe que, se eu me deixasse conduzir, arranjaria maneira de nos tornarmos a ver. Eu farei tudo o que ele q uiser; uiser; ma s nã o p oss osso c onc eb er q ue ta l seja seja p oss ossível. Ad eus, eus, minha minha b oa a miga , não p oss osso esc esc reve r ma is.* Do c a stel te lo d e...,1 e...,144 de Setem et em b ro d e 17* *. Nota - Nes Nesta ta c arta, Ce c ília Volang Volang es narra narra c om muitos po rmeno res tudo o q ue lhe d iz respeito nos acontecimentos que o leitor conhece do fim da Primeira Parte, Carta LXI e seguintes. Julgou-se oportuno suprimir essa repetição. Por fim, fala do Visconde de Valmont, e expri exprime -se -se d o seg uinte uinte mo do : Afirmo-te que é um homem extraordinário. A Mamã diz muito mal dele; mas o Cavaleiro Danceny diz muito bem, e creio que é ele quem tem razão. Nunca vi homem mais expedito. Quando me entregou a carta de Danceny, estava muita gente e ninguém viu nada. certo que tive bastante medo porque não tinha sido prevenida; mas agora estou sempre à espera. Já compreendi muito bem o que ele que r que eu fa ç a pa ra lhe entrega r a respo espo sta . É muito fác il entend ermo-nos c om ele, pois tem um olhar que diz tudo o que ele quer. Não sei o que ele faz para isso: dizia- me no bilhete de que te falei que diante da Mamã fingira sempre não me ligar importância. Na verdade, dir-se-ia que não pensa nisso; mas todas as vezes que p roc uro uro o s seus olhos, olhos, esto esto u c erta d e en c ont rá -los -los imed iata me nte. *Tend *Tend o Ma de mo iselle elle de Volang es, es, po uc o tem po d ep ois, ois, mud ad o de c onfide onfide nte, c om o se se verá p ela c ontinuaç ontinuaç ão de sta s c artas, artas, não virá virá a e nco ntrarntrar-sse nesta nesta c oleçã o nenhuma das que continuou a escrever à sua amiga do convento, pois nada reve la ria m a o leitor.
CARTA LXXVI O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Ou a sua c arta arta é um g rac ejo, ejo, que não c heguei a co mp reender, ou e sta va , qua nd o m a esc esc reve u, num d elír elírio m uito uito p erig erig oso. oso.
Se eu a conhecesse menos, minha bela amiga, ficaria verda d eira me nte horroriza d o; e seja o q ue fo r que p ossa d izer, não me horrorizo fa c ilme nte. Deb a ld e li e reli a sua c a rta , não fique i ma is a d ia nta d o; po is não há m ane ira de a tom ar no sentid o na tural que e la ap resenta . Que quis a minha amiga dizer? Apenas que era inútil ter tantos c uid a d os c ontra um inimigo tã o p ouc o te mível? Ma s, nesse c a so, po d e não ter razão. Prévan é realmente amável; é-o mais ainda do que sup õe . Tem sob retud o o ta lent o d eve ra s útil d e interessa r muita g ente nas suas relações amorosas, pela habilidade que desenvolve ao falar sob re ta l a ssunto e m soc ied a d e, diante d e to d a a ge nte, servind o-se d a primeira conversação que topa a jeito. Poucas mulheres há que se salvem da armadilha de lhe dar réplica, visto que, tendo todas p rete nsõe s d e inteligê nc ia , nenhum a q uer perde r oc a siã o d e a mo stra r. Ora, sabe muito bem a minha amiga que toda a mulher que consente em falar de amor, cedo acaba por tomar parte nele, ou pelo menos por se conduzir como se o sentisse. Prévan tira ainda vantagens do processo, que ele realmente aperfeiçoou, de chamar frequentemente as próprias mulheres em testemunho das derrotas que lhes inflige. E falolhe d isto p orque o p resenc iei. O segredo veio até mim em segunda mão, pois nunca estive ligado a Prévan; éramos por fim seis a escutá-lo: a Condessa de P..., julgando-se muito inteligente, tomou os ares de quem sustenta uma conversação geral e foi contando aos que nada sabiam, até aos mínimos pormenores, de como se tinha entregado a Prévan e tudo o que se passara entre ambos. Fazia a narração com tal segurança, que nem se sentiu perturbada por um riso louco que nos tomou os seis ao me smo temp o; e hei-de rec orda r-me semp re d e q ue, a um d e nós que, para se desculpar, quis fingir que não acreditava no que ela dizia, ou antes, no que ela parecia querer dizer, respondeu ela gravemente que com certeza nenhum de nós estava tão bem informado como ela; e não receou mesmo dirigir-se a Prévan, para lhe perguntar se tinha enga nad o numa só p alavra. Pude então considerar aquele homem perigoso para toda a ge nte; ma s p a ra si, Marque sa , não b a sta va q ue e le fo sse b onito, muito bonito, conforme as suas próprias palavras? Ou que ele lhe fizesse um desses ataques que lhe agrada algumas vezes recompensar, sem outro motivo do que achá-los bem feitos? Ou que achasse agradável entrega r-se p or uma ra zã o q ua lq uer? Ou... que sei eu? Posso porventura adivinhar os mil e um caprichos que governam a cabeça de uma mulher, que só por si a liga m a o seu sexo? Ago ra que está prevenida d o p erigo , não duvido que se livrará d ele fac ilme nte: tod a via era nec essá rio p reve ni-la . Volto a o m eu a ssunto : que q uis d izer na sua c a rta ? Se é apenas um gracejo sobre Prévan, além de ser demasiado long o, não era a mim q ue d evia d irig i-lo, po r inútil; é à soc ied a d e q ue se
de ve o ferec er um bo m mo tivo d e rid íc ulo p ara e sse ho mem , e renovolhe o meu p ed ido a tal respe ito. Ah! Julgo ter enc ontrad o a c have d o enigma ! A sua c arta é uma profecia, não do que virá a fazer, mas do que ele a julgará pronta a fazer no m om ento d a qued a que lhe p rep ara. Aprovo esse p rojeto; no enta nto, ele e xige grande s prepa rativos. A minha a miga sab e tã o b em c omo eu que, para a opinião públic a, ced er a um home m ou a c eitarlhe a c orte é a b solutam ente a m esma c oisa , a m eno s q ue esse ho me m seja um tolo; e Prévan está muito longe de o ser. Se ele tiver as aparências a seu favor, irá gabar-se, e está tudo dito. Os tolos acreditarão nele, os maus fingirão que acreditam; quais serão então, Marquesa, os seus recursos? Creia, tenho medo. Não é que eu duvide d a sua ha b ilid a d e; ma s sã o o s b ons na d a d ores q ue se a fog a m. Eu não me julgo mais estúpido que qualquer outro! Quanto a meios de desonrar uma mulher, tenho encontrado cem, tenho enc ontrad o m il: ma s q uand o p roc uro a ma neira d e ela se sa lva r, nunc a vejo tal possibilidade. Mesmo na minha bela amiga, cuja conduta é uma obra-prima, cem vezes tenho eu julgado ver mais sorte do que simulação perfeita. Mas no fim de tudo, estou talvez a procurar uma razão ao que não existe. Adm iro c om o, há uma bo a hora, eu tra to c om seried ad e o que não passa, com certeza, de uma brincadeira da sua parte. Vai troç ar d e mim! Pois seja! Seja; mas apresse-se, e falemos de outra coisa. De out ra c oisa ! Enga no-me, é sem p re a me sma ; sem p re m ulheres a p ossuir ou a p erde r, e m uitas vezes a mb a s a s c oisa s. Como a minha amiga muito bem notou, tenho aqui com que me entreter nos d ois gê neros, ma s não c om a me sma fac ilid a d e. Preve jo q ue a vinga nç a irá m a is d ep ressa d o q ue o a mo r. A pequena Volanges está rendida, respondo por ela; depende apenas da ocasião, e encarrego-me de fazer que ela apareça. Mas c om Ma da me d e Tourvel não é a mesma c oisa: esta mulher é de solado ra, não c hego a c om preendê -la. Tenho c em provas d o seu amor, mas tenho mil da sua resistência; e, na verdade, receio que ela me esc ap e. O primeiro efeito produzido pelo meu regresso animou-me a esperar maiores vantagens. Imagina decerto que era meu intuito julgar por mim próprio; e para ter a certeza de apreciar os primeiros movimentos, não mandei ninguém à minha frente e calculei o tempo d e viag em d e mo d o a c hega r qua ndo estivessem à me sa. De fato , c aí do céu, como uma divindade de ópera que prepara o desenlace. Fa zend o a o e ntrar ba sta nte ruíd o, p a ra fixa r os olha res sob re m im, pud e ver num só golpe de vista a alegria da minha velha tia, o despeito de Ma da me d e Volanges e o prazer desmed ido de sua filha. A minha b ela, pelo lugar que tinha à mesa, estava de costas para a porta. Ocupada nesse momento a servir-se de qualquer coisa, nem sequer voltou a cabeça. Mas eu dirigi a palavra a Madame de Rosemonde; e, tendo
reconhecido a minha voz às primeiras palavras, um grito escapou à sensível devota, no qual julguei reconhecer mais amor do que surpresa ou susto. Eu avançara já o bastante para poder ver o seu rosto: nele se esp elhara m, d e v inte ma neira s d iferente s, o tum ulto d a sua a lma , a luta d a s sua s idéias e d os seus sentime ntos. Sente i-me à me sa a o lad o d ela; fic ou sem sa b er positivam ente o q ue ha via d e fa zer ou de d izer. Tento u c ontinuar a c om er; nã o houve maneira. Por fim, não tinha ainda passado um quarto de hora, tornandose m a is fortes d o q ue e la o seu e mb a ra ç o e o seu p ra zer, não ima ginou nada melhor do que pedir licença para se levantar, e saiu para o parque, sob o pretexto de ter necessidade de tomar ar. Madame de Volanges quis acompanhá-la; a terna hipócrita não lho permitiu; d em a siad o feliz, sem d úvid a , po r enc ontrar um p rete xto p a ra esta r só e se e ntreg a r livrem ente à s d oc es em oç õe s q ue e xp erime nta ra . Ab reviei o ja nta r o m elhor que me foi p ossível. Mal tinham servid o a sobremesa, a infernal Volanges, apressando-se sem dúvida a tirar-me qualquer vantagem, levantou-se do seu lugar para ir ao encontro da enc a nta d ora d oe nte; ma s eu tinha p revisto e sse p rojeto e p rejudiquei-o. Fingi pois tomar esse movimento isolado pelo movimento geral, e, tendo-me levantad o a o m esmo tem po, a p equena Volange s e o c ura deixaram-se levar por esse duplo exemplo; de maneira que Madame de Rosemonde se encontrou só à mesa com o velho comentador de T..., e a mb os tom a ra m t a mb ém o p a rtido d e se leva nta r. Fom os p ois todos juntar-nos à minha bela, que encontramos no pequeno bosque perto do castelo; e como ela necessitava de solidão e não de passeio, ta nto va leu p a ra ela regressa r c ono sc o c om o fa zer-nos fic a r junto d ela. Quando tive a c erteza de que Ma da me d e Volange s não teria ocasião de lhe falar a sós, pensei em executar as suas ordens e ocupeime d os interesses d a sua p up ila . Log o a p ós o c a fé, subi a o me u q uarto, e entrei também nos dos outros, para reconhecer o terreno; tomei as minhas disposições para assegurar a correspondência da pequena; depois desse primeiro ato de benemerência, escrevi uma palavra para lhe dar instruções e lhe pedir a sua confiança e juntei o meu bilhete à c arta d e Danc eny. Voltei ao salão. Aí encontrei a minha bela instalada numa c ad eira d e enc osto num ab and ono d elic ioso. Este espetáculo, à medida que despertava os meus desejos, a nima va os meus olha res; senti q ue este s d eviam ser te rno s e insiste nte s, e coloquei-me de maneira a fazer uso deles. O primeiro efeito conseguido foi o de obrigar os grandes olhos modestos da celeste c ria tura a b a ixa rem -se. Contemplei por algum tempo essa figura angélica; depois, p erco rrend o to d a a sua p essoa , diverti-me a a d ivinha r os c onto rnos e a s formas através de um vestuário ligeiro, mas sempre importuno. Depois de ter descido da cabeça aos pés, tornei a subir dos pés à cabeça... Minha b ela am iga , o d oc e o lhar estava fixo e m m im; de rep ente b aixou
de novo, e eu desviei os olhos, a fim de favorecer o regresso dos seus. Então estabeleceu-se entre nós aquela conversação tácita, primeiro tratado do amor tímido, que, para satisfazer o desejo mútuo da vista, p ermite a os olhares suc ed erem-se e sp erand o q ue se c onfund a m. Persuadido de que a minha bela se entregara inteiramente a esse novo prazer, encarreguei-me de velar pela nossa comum segurança; mas, convencendo-me de que um diálogo vivo nos salvaria de sermos notados pelos que nos rodeavam, tratei de obter dos seus olhos que falassem uma linguagem franca. Para esse efeito tomei primeiro alguns olhares de surpresa, mas com tanta reserva que a modéstia não poderia ficar alarmada; e para pôr mais à vontade a tímida pessoa, eu próprio afetei tácita confusão como ela. Pouco a p ouc o os nossos olhos, ac ostum a d os a enc ont ra rem -se, fixa ra m-se m a is longamente; por fim não se deixaram mais; e surpreendi nos seus olhos aquela doce languidez, sinal feliz do amor e do desejo. Mas foi apenas por um momento; depressa voltando a si, mudou, não sem alguma vergo nha, a p osiç ão e o olhar. Não querendo que ela tivesse alguma dúvida de que eu houvesse notado os seus diversos movimentos, levantei-me com vivacidade e perguntei-lhe, fingindo-me assustado, se se sentia mal. Nesse momento toda a gente veio rodeá-la. Deixei que todos passassem à minha frente; e como a pequena Volanges, que tecia um tapete perto da janela, levasse algum tempo a desembaraçar-se do trabalho, aproveitei a ocasião para lhe entregar a carta de Danceny. Eu estava um pouco afastado dela, lancei-lhe a epístola sobre os joelhos. Ela fic ou sem sa b er q ue fa zer. A minha amiga teria rido do seu ar de surpresa e embaraço; todavia eu não ri, temendo que tanta falta de jeito acabasse por nos trair. Mas um olhar e um gesto imperiosos fizeram-lhe enfim c om preende r que e ra p rec iso g uarda r a c arta no b olso. O resto do dia não teve nada de interessante. O que depois se passou dará talvez lugar a acontecimentos de que a minha amiga ficará satisfeita, pelo menos no que diz respeito à sua pupila; mas vale mais empregar o tempo a executar projetos do que a contá-los. Além disso, é esta a oitava página que escrevo, e sinto-me fatigado. Por isso lhe d ig o a d eus. Adivinha decerto, sem que eu lho diga, que a pequena respo nde u a Danc eny. Eu tive ta mb ém respo sta d a minha be la, a quem escrevera no dia seguinte ao da minha chegada. Envio-lhe as duas cartas. Leia-as ou não as leia; pois essa perpétua maçada, que já não me diverte muito, deve ser muito insípida para qualquer pessoa desinteressada. Ainda uma vez, adeus. Continuo a amá-la sempre; mas, peçolhe, se vo ltar a fa lar-me de Préva n, faç a-o d e m ane ira que eu entend a. Do C a stelo d e...,17 de Setem b ro d e 17 * *.
CARTA LXXVII O VISCONDE DE VALMONT À PRESIDENTE DE TOURVEL De ond e p od erá vir, senhora, o e mp enho c ruel que mo stra is em fugir-me? Como pode dar-se que a mais terna dedicação da minha pa rte o b tenha da vossa um p roc ed imento que ap ena s seria pe rmitido para o homem de quem tivésseis os maiores motivos de queixa? Pois quê? O amor conduz-me a vossos pés; e, quando um feliz acaso me coloca a vosso lado, apraz-vos fingir uma indisposição, alarmar os vossos amigos, em vez de consentirdes em ficar ao pé de mim ! Qua nta s vezes d esviastes ont em os olhos p a ra me p rivar do fa vor de um olha r? E se p ud e ver neles me nos severid a d e p or um único insta nte, esse momento foi tão curto que parece ter sido menos vosso intuito dar-me algum prazer do que fazer-me sentir o que eu perdia em ser dele privado. Não é e sse, ouso d izê-lo, nem o tra ta me nto q ue m erec e o a mo r, nem o que pode permitir-se a amizade; e todavia, desses dois sentimentos, bem sabeis se um deles me anima, e eu estava, pareceme , a uto riza d o a sup or que nã o vo s rec usa ríeis a o o utro. Essa amizade preciosa, da qual sem dúvida me julgastes digno, visto que ma quisestes oferecer, que fiz eu para a ter perdido depois? Ter-me -ei p rejudica d o p ela m inha c onfianç a , e te r-me-eis p unid o p ela minha franqueza? Não receais ao menos abusar de uma e de outra? Não foi, verdadeiramente, no seio da minha amiga que eu depus o segredo do meu coração? Não foi perante ela só que eu pude julgarme obrigado a recusar condições que me bastaria aceitar, para me dar a facilidade de não as manter, e talvez para delas abusar com va nta g em ? Querereis, enfim, p or um rigo r tã o p ouc o m erec id o, ob riga rme a supor que teria sido suficiente enganar-vos para obter mais indulgência? Não me arrependo de um procedimento que vos devia, que devia a mim próprio; mas por que fatalidade cada ação louvável se torna p ara m im o sinal de um a nova infelic ida de ? Foi depois de ter dado lugar ao único elogio que vos dignastes ainda fazer ao meu procedimento que tive, pela primeira vez, de gemer pela desgraça de vos ter desagradado. Foi depois de vos ter provad o a minha subm issão p erfeita, privand o-me d a felic ida d e d e vo s ver, unicamente para tranqüilizar a vossa delicadeza, que quisestes romper toda a correspondência comigo, tirar-me essa frágil compensação de um sacrifício que havíeis exigido, e arrebatar-me até o amor que unicamente vos poderia dar tal direito. É enfim por vos ter falado com uma sinceridade que o próprio interesse desse amor não pô de enfraq uec er, que hoje me fugis c om o a um sed utor pe rigo so, de q ue tivésseis rec onhe c ido a p erfíd ia.
Não vos cansareis nunca de ser injusta? Dizei-me ao menos que novos mo tivos d e a gravo p ude ra m leva r-vos a tanta severid ad e e não recuseis ditar-me as ordens que quereis que eu siga; pois que me comprometo a executá-las, não é pretender demasiado procurar conhecê-las. 15 d e Setem b ro d e 17 * *.
CARTA LXXVIII A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT Pareceis, senhor, surpreendido pela minha conduta, e pouco falta mesmo para me pedirdes contas, como se tivésseis o direito de censurá-la. Co nfesso q ue m e julga ria ma is a utoriza d a d o q ue vó s a a d mira rme e a queixar-me; mas, depois da recusa contida na vossa última carta, tomei o partido de me fechar numa indiferença que não deixa lug a r às ob servaç õe s nem à s c ensura s. Entretanto, como me pedis esclarecimentos, e como, graças ao Céu, não sinto nada em mim que possa impedir-me de os dar, desejo entrar ainda uma vez em explic aç ões c onvosc o. Quem lesse as vossas cartas julgar-me-ia injusta ou caprichosa. Julgo merecer que ninguém forme essa idéia de mim; pareceme sobretudo que, menos do que ninguém, estejais no caso de a formar. Sentistes, sem dúvida, que necessitando justificar-me me forçaríeis a recordar tudo o que se passou entre nós. Aparentemente supusestes que teríeis tudo a ganhar com esse exame; como, pelo meu lado, julgo não ter nada a perder, pelo menos aos vossos olhos, não rec eio sujeita r-me a ele. Ta lvez seja e sse, na v erda d e, o único me io d e c onhe c er qua l de nós d ois tem o d ireito d e se q ueixa r do outro. A contar do dia da vossa chegada a este castelo, devereis confessar, senhor, segundo creio, que pelo menos a vossa reputação me a utoriza a usa r de alguma reserva c onvosc o, e q ue eu te ria po dido , sem recear ser acusada de um excesso de pudor, manter-me nas expressões da mais fria delicadeza. Vós próprio me teríeis tratado com indulgência, e teríeis achado natural que, uma mulher tão pouco formad a nã o tivesse me smo o mé rito nec essá rio p a ra a p rec ia r o vo sso. Era esse precisamente o partido da prudência; e ter-me-ia custado tanto menos segui-lo, que não vos esconderei que, quando Madame de Rosemo nde me veio da r pa rte d a vossa c hega da , tive nec essida de de recordar a minha amizade por ela, e a que ela tem por vós, para nã o lhe de ixa r ver qua nto e ssa notíc ia me c ontraria va .
Convenho de vontade que vos mostrastes primeiramente sob um aspecto mais favorável do que eu tinha imaginado; mas convireis p or vosso lad o q ue esse a sp ec to d urou b em p ouc o e q ue d ep ressa vo s c ansastes de uma ob riga ç ão , de q ue a pa rentem ente vo s não julga stes c om p ensa d o p ela idéia va nta josa q ue p or ela forme i a vo sso resp eito. Foi então que, abusando da minha boa fé, da minha tra nqüilida d e, não rec ea stes c om unic a r-me um sentime nto d o qua l nã o poderíeis duvidar que eu me sentisse ofendida; e, enquanto não vos ocupáveis senão de aumentar os vossos agravos, eu procurava um mo tivo pa ra os esq uec er, oferec end o-vos a oc a siã o p a ra os rep a ra rd es, pelo menos em parte. O meu pedido era arvorando a minha indulgência como um direito, aproveitastes dela para um pedido ao qual, sem dúvida, eu não deveria aceder, e cuja permissão todavia obtivestes. Das condições que foram impostas, não cumpristes nenhuma; e a vossa c orrespo ndê nc ia era tal que c ad a uma da s vossa s cartas me punha no dever de não lhe responder. Foi no próprio mo me nto em que a vossa ob stinaç ão me forç ava a afa sta r-vos de mim que , por uma c ond esc end ênc ia talvez c ensuráve l, tentei o único meio que podia permitir-me a vossa aproximação; mas que valor tem aos vossos olhos um sentimento honesto? Desprezais a amizade; e, na vossa louca embriaguez, desdenhando por completo a desgraça e a vergonha , proc ura is a p ena s p ra zeres e vítima s. Tã o lige iro no vo sso p roc ed ime nto c om o inco nseq üente nas vossas censuras, esqueceis as promessas, ou antes, comprazeis-vos em violá-las, e, depois de terdes consentido em afastar-vos de mim, voltais aqui sem que fôsseis chamado; sem respeito pelas minhas súplicas, p elas minhas ra zõe s, sem terde s me smo a a tenç ã o d e me p reve nir, não tivestes rec eio d e m e e xp or a uma surp resa c ujo e feito, em b ora d ec erto bem natural, teria podido ser interpretado desfavoravelmente para mim, pelas pessoas que me rodeiam. Esse momento de confusão que fizestes nascer, longe de procurar distraí-lo ou dissimulá-lo, parecestes pôr todos os vossos cuidados em aumentá-lo. À mesa, escolhestes precisamente o vosso lugar ao lado do meu; uma ligeira indisposição obrigou-me a sair antes dos outros: em lugar de respeitardes a minha solid ã o, arra sta stes tod a a gent e a vir p erturb á -la . Voltando ao salão, se dou um passo; encontro-vos a meu lado; se digo uma palavra, sois sempre vós quem me responde. O dito mais indiferente serve-vos de pretexto para conduzir uma conversação que eu não desejaria ouvir, que pode mesmo comprometer-me; pois, enfim, senhor, por muita inteligênc ia q ue ha ja no s vossos p rop ósitos, creio q ue os outros pod em tamb ém c omp reender aq uilo q ue eu c omp reendo . Forçada assim por vós à imobilidade e ao silêncio, nem por isso deixais de perseguir-me; não posso levantar os olhos nem encontrar os vossos. Sou constantemente obrigada a desviar os meus olhares; e, por uma inco nseq üênc ia b em inco mp ree nsível, fazeis q ue t od os os olhos se fixem em mim, num momento em que até aos meus próprios olhos eu d esejaria furtar-me .
E queixais-vos do meu procedimento! E admirais-vos do meu empenho em vos fugir! Censurai-me antes a minha indulgência, admirai-vos de que eu não tenha partido no momento da vossa chegada. Talvez eu devesse tê-lo feito, e obrigar-me-eis a essa solução violenta ma s nec essá ria se nã o c essa rd es a vossa ofe nsiva p erseg uiçã o. Não, não esqueço, não esquecerei nunca o que devo a mim própria, a os la ç os q ue fo rme i, que resp eito e a mo ; e p eç o-vos q ue a c red iteis: se alguma vez me encontrar reduzida à escolha infeliz de os sacrificar ou me sa c rific a r a m im me sma , não hesita rei p or um insta nte. Ad eus, senhor. 16 d e Setem b ro d e 17 * *.
CARTA LXXIX O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Conta va ir à c aç a e sta m anhã , ma s está um te mp o d etestáve l. Com o leitura, tenho a pe nas um rom anc e novo q ue ab orrec eria até um colegial. O almoço será daqui a duas horas, nunca menos. Assim, ap esar da minha long a c arta d e o ntem, vou d e no vo c onversar com a minha amiga. Estou certo de não a aborrecer, pois vou falar-lhe d o lind o Préva n. Como é possível que não conheça a sua famosa aventura, a q ue sep a rou a s insep a rá veis? Aposto que se recordará dela às primeiras palavras. Sempre vou c ontá -la , visto q ue o d eseja. Há de lembrar-se de que todo Paris se admirava que três mulheres, todas três bonitas, tendo todas três os mesmos talentos, e p od end o ter a s me sma s p rete nsõe s, co ntinuassem intima me nte liga d a s entre si apó s o m ome nto d a sua e ntrad a na soc ied ad e. Julgou-se primeiro encontrar a razão na sua extrema timidez; mas logo, rodeadas por uma corte numerosa de que elas partilhavam as homenagens, e conhecendo o seu próprio valor pelo calor e pelas atenções de que eram objeto, a sua união tornou-se ainda mais forte. Dir-se-ia que o triunfo para uma era sempre o das duas outras. Esperava-se pelo menos que o momento do amor trouxesse também o de alguma rivalidade. Os nossos jovens namoradores disputavam-se a honra d e ser o p onto d e d isc órdia; e eu p róp rio m e te ria p osto na s sua s fileiras se os grandes favores que a Condessa de... me concedia por esse tempo me tivessem permitido ser-lhe infiel antes de obter a liberdade que solicitava. Entretanto as nossas três belezas, no mesmo Carnaval, fizeram a sua escolha como por combinação prévia; e essa escolha, longe de proporcionar a tempestade que se esperava, teve apenas como
resultado tornar a amizade delas mais interessante pelo encanto das confidências. A multidão dos pretendentes infelizes juntou-se então à das mulheres ciumentas e a escandalosa constância foi submetida à censura pública. Uns pretendiam que, na sociedade das inseparáveis (assim lhe chamavam então), a lei fundamental era a comunidade de bens e que até o amor lhe estava submetido; outros asseguravam que os três amantes, livres de rivais masculinos, não o eram de rivais femininos; chegou mesmo a dizer-se que só por decência eles tinham sido a d mitid os, e haviam ob tido a p ena s um título sem funç õe s. Estes rumores, verdadeiros ou falsos, não tiveram o efeito que se esperava. Os três pares, pelo contrário, sentiram-se que estavam perdidos se se separassem naquele momento, e tomaram o partido de enfrentarem a tempestade. O público, que se cansa de tudo, depressa se c a nsou d e um a sá tira infrutuo sa . Leva d o p ela sua ligeireza na tural, oc up ou-se d e out ros a ssunto s; depois, voltando a este com a sua inconseqüência habitual, transformou a notícia em elogio. Como tudo se passa consoante as modas, o entusiasmo venceu; tornou-se um verdadeiro delírio, quando Prévan tomou a peito verificar aqueles prodígios e fixar sobre eles a op inião púb lic a e a sua. Proc urou p ois ta is mo d elos d e p erfeiçã o. Ad mitid o fa c ilme nte na sua sociedade, daí tirou um augúrio favorável. Ele sabia bem que as p essoa s felizes nã o sã o d e fá c il a c esso. Dep ressa viu, d e fa to, que uma tão louvada felicidade era, como a dos reis, mais invejada que desejada. Notou que, entre os pretendidos inseparáveis, se começava a p roc ura r os p ra zeres d o exterior, q ue já se oc upa va m d e d istra ç õe s; e concluiu que os laços de amor e de amizade começavam a afrouxar ou a rom p er-se e q ue só o s d o a mo r-próp rio e d o há b ito c onservava m a sua força . Entretanto as mulheres, que a necessidade reunia, conservavam entre elas a aparência da mesma intimidade; mas os homens, mais livres no seu comportamento, reencontravam deveres a cumprir ou negócios a seguir. Soltavam ainda alguns queixumes, mas já não se d isp ensa va m d eles, e raram ent e o s serõe s eram c om p letos. Este procedimento foi proveitoso ao assíduo Prévan, que, colocado naturalmente junto da abandonada do dia, ia oferecendo alternadamente, e segundo as circunstâncias, a mesma homenagem à s três a miga s. Fa c ilme nte c om p ree nd eu q ue fa zer uma esc olha e ntre e la s seria perder-se; que a falsa vergonha de se considerar a primeira infiel encheria de susto a preferida; que a vaidade ferida das duas outras as tornaria inimigas do novo amante e que não deixariam de brandir c ontra e le a seve rid a d e d os g ra nd es p rinc íp ios; enfim, q ue o c iúme p or c erto c ham aria as ate nçõ es d um rival que p od ia ser ainda pa ra teme r. Tud o se to rna ria ob stá c ulo; tud o fica va fác il no seu tríp lic e p rojeto: c a d a
mulher seria indulgente porque estava interessada, cada homem, po rque julga va não o e star. Prévan, que então tinha apenas uma mulher a sacrificar, teve a felic ida de de ver a sua a ma nte cé leb re d e um m omento p ara o o utro. A sua qualidade de estrangeira e a homenagem de um grande príncipe recusada com bastante desenvoltura tinham fixado sobre ela as atenções da corte e da cidade; o seu amante partilhava essas honras, e delas aproveitou junto das suas novas amantes. A única dificuldade estava em levar avante as três intrigas, cujo d esenvo lvime nto tinha forç osa me nte d e regular-se p ela m a is ta rd ia; de fat o, vim a sa b er po r um d os seus c onfidente s q ue a sua ma ior pe na foi a de ter de suspender uma, que esteve prestes a atingir o êxito cerca d e q uinze d ias a ntes d a s out ra s. Enfim, o grande dia chegou. Prévan, que tinha obtido as três confissões, achava-se já senhor dos acontecimentos, e ordenou-os c om o va i ver. Dos três ma rid os, um e sta va a usente , o o utro p a rtia no d ia seg uinte muito c ed o, o terc eiro e stava na c id ad e. As inseparáveis amigas deviam cear em casa da futura viúva; ma s o nov o senho r nã o tinha p ermitido q ue os a ntigo s servid ores fossem convidados. Na manhã desse mesmo dia, fez três coleções das cartas d a sua b ela, juntou a uma de las um retrato que de la tinha rece bido , à segunda juntou uma cifra amorosa que ela própria pintara, à terceira um a nel dos seus c ab elos; ca da uma rec eb eu p or com pleto esta terç a pa rte d e sac rifíc io, e c onsentiu, em troc a , em e nvia r ao am ante c aíd o em d esgraç a uma retumba nte ca rta d e romp imento. Era muito; não o era bastante. Aquela cujo marido estava na cidade só podia dispor daquele dia; combinaram que uma fingida indisposição a dispensaria de ir cear a casa da amiga e que o serão seria reservad o a Préva n; a noite foi de stinad a p a ra a q uela c ujo m a rid o estava ausente; e o romper do dia, momento da partida do terceiro esp oso, foi ma rc a d o p a ra a última, pa ra o s go zos d o a mo r. Prévan, que não descuida nada, corre em seguida a casa da bela estrangeira, inventa um estado de espírito que suscita o mau humor de q ue e le nec essitava , e sa i dep ois d e c onseg uir uma d isc ussã o q ue lhe asseg ura vinte e q uat ro ho ra s d e lib erda d e. Assim tomadas as suas disposições, entra em casa, contando rep ousa r um p ouc o; outros a ssunto s o e sp erava m. As cartas de rompimento tinham sido um súbito clarão para cada um dos amantes caídos em desgraça; nenhum deles podia duvidar de que o seu sacrifício aproveitava a Prévan. E o despeito de ter sido joguete, junto à imitação que traz quase sempre a pequena humilhaç ã o d e se ser ab a ndo na d o, de u ao s três, sem se c om unic a rem , mas como se estivessem combinados, a resolução de pedirem uma sa tisfaç ã o a o seu a fortuna d o riva l. Este encontrou em casa os três desafios; aceitou-os lealmente; ma s, não q uerendo p erder nem os p ra zos nem o b rilho d esta a ventura, fixou os encontros para o dia seguinte de manhã, e indicou aos três o
mesmo lugar e a mesma hora. Foi a uma das portas do Bosque de Bolonha. Chegada a noite correu a sua tríplice aventura com um êxito igual; pelo menos gabou-se depois de que cada uma das suas novas a ma ntes rec eb era três vezes o p enho r e o jura me nto d o seu a mo r. Aqui, como está vendo, faltam provas à história; tudo o que o historiador imparcial pode fazer é observar ao leitor incrédulo que a vaidade e a ima ginaç ão exa ltad as po de m o brar prodígios, ta nto ma is que a ma nhã que devia seguir-se a uma brilhante noite parecia dever dispensar reservas para o futuro. De qualquer modo, os fatos que se seguem insp ira m m a ior c erteza . Prévan dirigiu-se à hora exata ao encontro que marcara; no local viu-se em presença dos seus três rivais, um tanto surpreendidos do mútuo enc ontro, e ca da um d eles talvez já c onsolado em p arte, vendo se no me io d e c om p a nheiros d e infortúnio. Abordou-os com ar afável e cavalheiresco, e dirigiu-lhes esta fala, que me foi reproduzida fielmente: "Senhores", disse-lhes ele, "uma vez que vos encontro reunidos aqui, adivinhantes sem dúvida que tendes os três o mesmo motivo de queixa contra mim. Estou pronto a dar-vos razão. Que a sorte decida, entre vós, qual dos três tentará primeiro uma vingança à qual tendes um direito igual. Não trouxe padrinho nem testemunhas. Não os instituí para a ofensa; não os exijo para a reparação". Depois, cedendo ao seu caráter de jogador, acrescentou: "Eu sei que raramente se ganha em jogos de azar; mas, seja qual for a sorte que me espera, já se viveu sempre bastante qua ndo se te ve tem po d e a dq uirir o a mo r da s mulheres e a estima do s homens." Enquanto os seus adversários estupefatos se olhavam em silêncio, e na sua delicadeza calculavam talvez que o triplo amante impedia que a partida fosse igual, Prévan retomou a palavra: "Não vos esc ond o", continuou ele, "que a noite q ue a c a bo d e p assar me fatigou cruelmente. Seria generoso da vossa parte que me permitísseis reparar as minhas forças. Dei as minhas ordens para que tivessem aqui pronto um almoço; dai-me a honra de o aceitar. Almocemos juntos e, sobretudo, almocemos alegremente. Podemos bater-nos por semelhantes bagatelas; no entanto elas não devem, creio eu, alterar o no sso hum or". O almoço foi aceito. Segundo se disse, nunca Prévan foi mais a má vel. Teve a ha b ilida d e d e nã o hum ilha r nenhum d os seus rivais, d e os persuadir e que todos teriam conseguido facilmente os mesmos êxitos, e sob retud o d e o s p ôr de a c ordo e m q ue nenhum d eles d eixa ria escapar as ocasiões, tal como ele, Prévan. Uma vez confessados estes fatos, tudo se arranjou por si mesmo. Ainda o almoço não tinha terminad o, já ha via m rep etido d ez vezes q ue sem elhante s mulheres nã o me rec iam q ue hom ens hone stos se b a tessem p or elas. Esta idé ia trouxe a cordialidade; o vinho fortificou-a; tão bem que, poucos momentos
depois, já não era bastante não haver entre eles rancor, juraram-se a miza d e sem reserva. Prévan, que sem dúvida gostava tanto deste desenlace como do outro, não desejava todavia perder ali a sua celebridade. Em conseqüência, submetendo habilmente os seus projetos às c irc unstâ nc ias, disse a os três ofe nd ido s: "De fa to, não é d e m im, ma s d a s vossas infiéis amantes que deveis vingar-vos. Ofereço-vos a ocasião. Como vós próprios, sinto já uma injúria que dentro em breve partilharei: po is se c ad a um d e vó s não c onseg uiu c onservar a fidelid ad e d e uma só, posso porventura esperar á fidelidade das três? A vossa ofensa tornou-se minha. Aceitai para esta noite uma ceia em minha casa, e espero que a vossa vingança não ficará adiada por muito tempo.” Quiseram q ue e le se e xp lic a sse; po rém ele, co m o tom d e supe riorid a d e que as circunstâncias o autorizavam a tomar: "Senhores" respondeu, "creio ter-vos provado que sei como conduzir-me; tende confiança em mim". Tod os c onsentira m; e, de p ois d e te rem a b ra ç a d o o seu no vo a migo , sep a ra ra m-se a té à noite, esp erand o o efeito d a s p rom essa s. Sem p erda d e tem p o, Préva n reg ressa a Pa ris, e va i, c onsoa nte o uso, visitar as suas novas conquistas. Obtém das três que viriam naquela me sma noite c ea r a sós c om ele em sua c a sa . Duas delas opuseram algumas dificuldades; mas que fica para recusar no dia seguinte? Marcou os encontros com uma hora de distância, tempo necessário aos seus projetos. Depois desses p rep a ra tivos, retirou-se, m a nd ou a visa r os out ros três c onjura d os, e tod os q ua tro foram a leg rem ente e sp erar as sua s vítima s. Ouviu-se chegar a primeira. Prévan apresenta-se só, recebe-a com ar de solicitude, conduz-la até ao santuário de que ela se julgava a divindade; depois, desaparecendo sob um ligeiro pretexto, faz-se sub stituir ime d ia ta me nte p elo am a nte ultra ja d o. Como decerto imagina, a confusão de uma mulher que não tem ainda a experiência das aventuras tornava, em tal momento, o triunfo muito fá c il. Tod a a c ensura q ue nã o foi feita fo i c onta d a p or uma graça; e a escrava fugitiva, entregue de novo ao seu antigo senhor, sent iu-se m uito feliz p or pod er esp erar o seu p erdã o, retom a nd o a s sua s p rimeira s a lg em a s. O tra ta d o d e p a z ra tific ou-se num luga r ma is solitá rio, e a cena, ficando vazia, foi alternadamente ocupada pelos outros atores, mais ou menos da mesma maneira, e sobretudo com o mesmo desfecho. Tod a via , ca d a uma d a s mulheres julga va -se a ind a só e m campo. O seu espanto e o seu embaraço aumentaram quando, no mo me nto d a c eia, os três p a res se reunira m; ma s a c onfusã o c heg ou a o cúmulo quando Prévan, que reapareceu no meio de todos, teve a crueldade de apresentar às três infiéis umas desculpas que, divulgando o seu segredo, lhes revelaram inteiramente até que ponto elas tinham sido b urlad a s. Entretanto puseram-se à mesa e pouco depois a moderação volto u: os hom ens ent reg a ra m-se, a s mulheres sub me tera m-se.
Tod os tinha m o ód io no c oraç ã o; ma s a s p a la vra s troc a d a s não eram por isso menos ternas. A alegria despertou o desejo, que, por seu turno, lhe e mp resto u novo s enc a nto s. Esta esp a nto sa orgia d urou a té d e manhã; e, quando se separaram, as mulheres julgaram-se perdoadas. Mas os homens, que tinham conservado o seu ressentimento, proced eram no d ia seguinte a um romp imento q ue não teve a pelo; e, não contentes de deixar as suas levianas amantes, terminaram a sua vinganç a d and o a p úblic o a a ventura. Desde então, uma delas está num convento, e as outras duas d efinha m exila d a s na s sua s te rra s. Aqui está a história de Prévan; cumpre-lhe, Marquesa, julgar se deseja aumentar a sua glória e atrelar-se ao seu carro de triunfo. A sua carta causou-me verdadeira inquietação e espero com impaciência uma resp osta ma is a juiza d a e ma is c la ra à última q ue lhe esc revi. Adeus, minha bela amiga; desconfie das idéias divertidas ou excêntricas que tão facilmente a têm seduzido sempre. Pense que, na trajetória que a minha amiga segue, a inteligência não basta, e que uma única imprudência pode tornar-se um mal sem remédio. Suporte enfim que a prudente amizade seja algumas vezes o guia dos seus prazeres. Adeus. Apesar de tudo, continuo a gostar de si como se fosse razoável. 18 d e Setem b ro d e 17* *.
CARTA LXXX O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES Cecília, minha querida Cecília, quando virá o tempo de voltarmos a ver-nos? Que m me ensinará a viver long e d e si? Que m me dará para isso força e coragem? Nunca, sinto que nunca poderei suportar esta fatal ausência. Cada dia aumenta o meu sofrimento, e nã o p osso ver-lhe um termo! Va lmo nt, que me tinha p rom etido soc orros, consolações, Valmont descuida-se, e esquece-me talvez. Está junto daquela que ele ama; não sabe quanto sofre aquele que está afastado. Ao enviar-me a sua última carta, não me escreveu. No entanto é ele quem deve dizer-me quando poderei vê-la e por que me io. Nad a terá p ois a d izer-me ? A C ec ília me smo nã o me fala em ta l; será p or não p a rtilhar esse desejo? Ah! Cecília, sou muito infeliz. Amo-a mais do que nunca: mas esse a mo r, q ue fa z o e nc a nto d a m inha vida , torna-se o to rme nto d ela. Não, não posso mais viver assim, é preciso que eu a veja, é preciso, nem que seja por um momento. Quando me levanto, digo a
mim mesmo: "Não a verei." Deito-me dizendo: "Não a vi." Os dias tão longos não têm um mo mento p ara a felic ida de . Tudo é p rivaç ão , tud o é saud ad e, tudo é de sespe ro; e tod os estes ma les me vêm d e o nd e e u esp erava tod os os meus p ra zeres! Acrescente a estas penas mortais a minha inquietação sobre as suas, e fará uma idéia da minha situação. Penso em si a todo o momento, e nunca penso sem perturbação. Se a vejo aflita, infeliz, sofro por todas as suas tristezas; e se a vejo tranqüila e consolada, são as minhas q ue red ob ra m. Por tod a a p a rte enc ontro o sofrime nto. Ah! não era assim, quando habitava os mesmos lugares do que eu! Tudo entã o e ra p ra zer. A c erteza d e a ver emb eleza va me smo os momentos da ausência; o tempo que era preciso passar longe de si ap roxima va-me da Cec ília enqua nto ia p assand o. O emprego que eu fazia dele nunca era estranho à Cecília. Se cumpria deveres, estes tornavam-me mais digno de si; se cultivava algum talento, espe rava ag rad ar-lhe c ad a vez ma is. Mesmo qua ndo as distrações da sociedade me levavam para longe de si, nunca estávamos separados. Nos espetáculos, procurava adivinhar o que lhe teria agradado; um concerto recordava-me os seus talentos e as nossas tão doces ocupações. Na sociedade, como nos passeios, aprendia a mais ligeira semelhança. Comparava-a a tudo; por toda a parte era a Cecília quem levava a palma. Cada momento do dia era marcado por uma home nag em nova , e c ad a noite eu lhe leva va o tributo a seus pé s. Agora, que me resta? Dolorosas saudades, privações eternas, e uma lig eira e sp eranç a d e q ue o silênc io d e Va lmo nt d iminua, que o seu se mude em inquietação. Dez léguas somente nos separam, e este espaço, tão fácil de transpor, só para mim se torna num obstáculo invenc ível! E qua ndo , pa ra me ajuda r a venc ê-lo, imp loro o me u a migo, a minha amada, ambos ficam frios e tranqüilos! Longe de me soc orrerem, nem me smo me resp ond em . Que é feito da amizade ativa de Valmont? Que é feito, sobretudo, minha Cecília, dos seus sentimentos tão ternos, que a tornava m tã o e ngenhosa pa ra enc ontrar ma neira de nos vermo s tod os os dias? Algumas vezes, recordo-me, sem deixar de o desejar, via-me obrigado a sacrificar esse desejo a considerações, a deveres. O que não me d izia entã o a Cec ília? Por qua ntos pretextos não c om ba tia as minhas razões? E lembre-se de que as minhas razões cediam sempre a os seus d esejos. Nã o p ret end o e xtrair d a í um mérito ! Nem me smo tinha o d o sa c rifíc io! O q ue a Ce c ília d esejava ob ter, a rd ia eu e m d esejos d e concedê-lo! Ma s, enfim, ca be -me a go ra a vez de pe d ir; e q ue pe ç o eu? Vêla por um momento, renovar e receber o juramento dum amor eterno. Pois já nã o e stá a í a sua felic id a d e, c om o e stá a minha?
Repito essa idéia desesperadora, que poria o cúmulo aos meus males. A C ec ília a ma -me, a ma r-me-á sem p re; c reio-o, estou c erta d isso, não quero duvidar jamais. Mas a minha situação é horrorosa e não p osso sup ortá -la p or ma is temp o. Ad eus, Cec ília . Pa ris, 18 de Set em b ro d e 17* *.
CARTA LXXXI A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Com o o s seus temo res me c ausam pieda d e! Com o m e p rova m a minha superioridade sobre o Visconde! E quer ensinar-me, conduzirme ! Ah! me u po bre Valmont, q ue d istânc ia vai ainda de si a m im! Não, todo o orgulho do seu sexo não seria suficiente para preencher o intervalo que nos separa. Porque não poderia executar os meus p rojet os, julga -os imp ossíve is! Ente orgulhoso e fraco, fica-te bem quereres calcular os meus meios e julgar dos meus recursos! Na verdade, Visconde, os seus c onselhos c onseg uira m irritar-me, e nã o p osso esc ond er-lho. Que p ara m asc a rar a sua inac red itáve l falta d e jeito e m relaç ão à sua Presidente o Visconde ostente como um triunfo o fato de ter c onfundido po r um mo mento essa mulher tímida e q ue o am a , consinto; ter obtido dela um olhar, um único olhar, sorrio e passo adiante. Que sentindo, a seu pesar, o pouco valor das suas diligências, espere furtála s à minha a tenç ã o, lisonjea nd o-me p elo esforç o sublime d e a p roxima r duas crianças que ardem no desejo de se ver, e que, diga-se de passagem, devem a mim somente o ardor desse desejo; admito-o a inda . Que, enfim, a si me smo a uto rize essa s a ç õe s b rilha nte s, pa ra me dizer num tom doutoral que vale mais empregar o tempo a executar projetos do que a c ontá -los; essa vaida d e nã o m e p rejudica , e pe rdo olha. Mas que possa supor que eu tenho necessidade da sua prudência, que eu poderia perder-me se não escutasse as suas op iniõe s, que d evo sa c rific a r-lhes um p ra zer, uma fanta sia ; na verda d e, Visc ond e, é exorb ita r d a c onfianç a q ue d esejo ter em si! Que tem o Visconde feito que eu não tenha ultrapassado mil vezes? Seduziu, perdeu mesmo muitas mulheres: mas que dificuldade teve a vencer? que obstáculos a ultrapassar? Onde está o mérito que verdadeiramente lhe caiba? Uma bela figura, puro efeito do acaso; maneiras graciosas, que o hábito dá quase sempre; espírito, na verdade, mas o qual uma certa gíria de salão substitui em caso de
necessidade; um impudor muito louvável, mas talvez devido unicamente à facilidade dos seus primeiros êxitos. Se me não engano, eis tod os os seus d ote s; po is, pa ra a c elebrid a d e q ue p ôd e a d q uirir, não exigirá, creio, que conte por muito a arte de suscitar ou aproveitar a oc asião d um esc â nda lo. Qua nto à prudênc ia, à finura , nã o fa lo d e m im: ma s que; mulher não as possui de melhor qualidade que o Visconde? Oh! a sua Preside nte leva-o c om o um a c ria nça . Creia-me, Visconde, raramente se adquirem as qualidades sem as quais se pode passar. Combatendo sem risco, deve-se; agir sem precaução. Para vós, os homens, as derrotas são apenas êxitos a menos. Neste combate tão desigual, a nossa sorte está em não perder e a vossa infelicidade em não ganhar. Ainda que eu concedesse aos homens tantos talentos como a nós, mulheres, em quantos teríamos nós ainda de ultrapassá-los, pela necessidade em que estamos de fazer d eles um uso c ont ínuo! Suponhamos, admito, que vocês põem tanta habilidade em vencer-nos como nós a defender-nos ou a ceder; convirá ao menos q ue e la se lhes torne útil a p ós a vitória . Unic a me nte o c upa d os d o sa b or que achais na nova ligação, entregais-vos a ela sem receio, sem reserva; o te mp o q ue e la p od erá d ura r nã o v os interessa . De fato, esses laços reciprocamente dados e recebidos, para falar na gíria do amor, só vós podeis, à vossa escolha, estreitá-los ou rompê-los; felizes ainda se na vossa ligeireza, preferindo o mistério ao ruído, vos contentais com um abandono humilhante e não fazeis do íd olo da véspe ra a vítima d e ma nhã. Mas que uma mulher infortunada sinta primeiro o peso da sua cadeia que riscos não terá a correr se tentar subtrair-se a ela, se ousar somente soerguê-la? Se experimenta afastar de si o ! homem que o seu coração repele com esforço, é tremendo que o faz. Se ele se obstina em ficar, é forçoso entregar ao medo o que antes era concedido ao amor. A sua prudência deve desatar com destreza aqueles mesmos laços que vós teríeis desfeito. À mercê do seu inimigo, ela fica sem recursos, se ele não tiver generosidade; e como esperar tal sentimento, quando, se algumas vezes o louvam quando o tem, nunca todavia o c ensura m p or ele lhe faltar? Os seus braços abrem-se ainda, quando o seu coração está fechado. O Visconde não negará, sem dúvida, estas verdades, cuja evidênc ia a s tornou trivia is. Se, entreta nto , a lg uma vez me viu, d isp ond o d os a c ont ec iment os e d a s op iniõe s, fazer d esses hom ens tã o temíveis o joguete dos meus caprichos ou das minhas fantasias; tirar a uns a vontade, a outros o poder de me serem nocivos; se eu soube, pouco a pouco, e consoante a variedade dos meus gostos, juntar ao meu séqüito ou expulsar da minha beira; se, em meio dessas revoluções
freqüentes, a minha reputação apesar de tudo se conservou pura; não deverá o Visconde concluir que, nascida para vingar o meu sexo e d om ina r o seu, eu soub e inventa r p a ra o me u uso m eios d esc onhec id os até de mim p rópria? Ora! guarde os seus conselhos e os seus receios para certas mulheres delirantes, das quais se diz serem sentimentais; cuja imaginação exagerada levaria a supor que a Natureza lhes pôs os sentidos na cabeça; que, não tendo nunca refletido, confundem sem c essa r o a mo r e o a ma nte; que , na sua louc a ilusã o, ac red itam q ue só o homem com quem procuraram o prazer é o seu único depositário; e q ue, verda d eira me nte supe rsticiosa s, têm p elo sa c erdot e o resp eito e a fé que se d eve a pe nas à d ivinda de . Pod e a ind a ter rec eio p or aq uelas que , ma is sup erfic iais d o q ue prudentes, não sabem consentir, se for necessário, em serem abandonadas. Deverá tremer principalmente pelas mulheres ativas na sua ociosidade, a quem o Visconde chama sensíveis, e das quais o amor se apodera tão facilmente e com tamanha força; que sentem a nec essida de d e se oc upa rem a inda do am or, me smo q uand o d ele não po de m já extrair prazer algum; e que, ab and ona ndo -se à fermenta ç ão das suas idéias, inventam para si próprias cartas tão doces, mas tão perigosas de escrever, e que não receiam confiar essas provas da sua fraqueza ao próprio objeto que lhes deu causa. Imprudentes que, no seu a tua l a ma nte, não sa b em ver o seu futuro inimigo ! Ma s q ue te nho e u d e c om um c om essa s mulheres irrefletida s? Quando me viu o Visconde afastar-me das regras que a mim própria determinei, e faltar aos meus princípios? Os meus princípios, repito-o, e digo-o deliberadamente, pois eles não são, como os das outras mulheres, colhidos ao acaso, aceites sem análise e seguidos por há b ito; sã o o fruto d a s minhas p rofund a s reflexões. Criei-os, e p osso d izer que são a m inha ob ra. Entrand o na soc ied ad e num temp o e m que, crianç a ainda , as circunstâncias me condenavam ao silêncio e à inação, delas soube tira r prove ito p a ra ob servar e refletir. Enqua nto me julga va m estouva d a ou distraída, não dando ouvidos à verdade dos ensinamentos que me dispensavam, eu recolhia cuidadosamente tudo o que procuravam esconder-me. Essa curiosidade útil, ao mesmo tempo em que servia para me instruir, ensinava -me a d issimular. Ob riga d a muita s vezes a esc ond er d os olhos do s que m e rod eava m o s motivos que m e c hama vam a atenç ão , experimentei pousar os meus no que me agradasse; o resultado desde log o foi ter ad ota do a quele olhar sem c onstrang ime nto q ue o Visc ond e ta nta s vezes me g a b ou. Animada por este primeiro êxito, tratei de regular, pelo mesmo processo, os diversos movimentos do meu rosto. Se sentia qualquer apreensão, estudava-me até assumir um ar de serenidade ou mesmo de alegria; levei o meu zelo ao ponto de a mim própria causar dores
voluntárias, para durante esse tempo procurar a expressão do prazer. Com o mesmo cuidado e maior custo, exercitei-me a reprimir os sintom a s d e um a a leg ria inesp erad a . Foi assim que consegui tomar sobre a minha fisionomia aquele d om ínio q ue a lgum a s vezes a d mirou e m m im. Eu era ainda muito nova e quase sem interesse; mas só tinha de meu os próprios pensamentos, e indignava-me à idéia de que mos p ud essem roub a r ou surp ree nd er co ntra m inha vo nta d e. Munida d essa s p rime ira s a rma s, expe rimente i servir-me d ela s. Não me sa tisfazia o nã o me d eixa r pene tra r: divertia-me mo stra rme sob formas diferentes. Dominando os meus gestos, observava as minhas fa las. Uns e outras eram regulados segundo as circunstâncias, ou me smo seg und o a s minhas fanta sia s. Desd e entã o, a minha ma neira d e pensar pertenceu-me a mim só, e não mostrei nunca senão o que me era útil d eixa r ver. Este trabalho sobre mim própria fixou a minha atenção sobre a expressão dos rostos e o caráter das fisionomias; e adquiri esta mirada penetrante, na qual a experiência todavia me ensinou a não me fiar inteira me nte, ma s q ue, em to d os os c a sos, ra ra me nte m e e nga nou. Ainda não tinha quinze anos, possuía já os talentos a que a ma ior pa rte d os nossos p olítico s d eve m a sua rep uta ç ã o, e enc ontrava me ainda nos rudimentos da c iênc ia que pretendia ad quirir. Como pode calcular, procurava, como todas as raparigas, adivinhar o amor e os seus prazeres; mas, não tendo passado pelo c onvento, não po ssuindo um a a miga seg ura, e guarda da po r uma m ã e vigilante, tinha apenas idéias vagas e que não podia fixar. A própria natureza, da qual mais tarde, seguramente, só tive de me louvar, não me dava ainda qualquer indício. Dir-se-ia que trabalhava em silêncio pa ra a pe rfeiç oa r a sua ob ra. Só a m inha c ab eç a ferme ntava ; o me u desejo não era gozar, era saber. O desejo de me instruir sugeriu-me os meios. Senti que o único homem com quem podia falar sobre esse a ssunto , sem me c om p rom eter, era o m eu p rofe ssor. E logo tomei o me u partido. Passei por cima dessa pequena vergonha; e, gabando-me duma falta que não tinha cometido, acusei-me de ter feito tudo o que fazem as mulheres. Tal foi a expressão de que usei; mas, falando assim, eu não sabia na verdade que idéia exprimia. A minha esperança não foi de todo iludida, nem inteiramente realizada; o receio de me trair imp ed ia-me d e me e sc larece r. Mas o bom do padre pintou-me o mal tão grande que eu concluí que o prazer devia ser extremo; e ao desejo de o conhecer suc ed eu o de o sa bo rea r. Não sei ond e e sse d esejo me teria c ond uzid o; e, fa lta nd o-me p or completo a experiência, uma única oportunidade ter-me-ia talvez perdido.
Felizmente para mim, minha mãe anunciou-me alguns dias depois que eu ia casar-me. A certeza de que ia saber extinguiu imediatamente a minha curiosidade, e cheguei virgem aos braços do senhor enh or d e Me rteuil te uil.. Era c om tranqüili tranqüilida de que e spe ra va o m om ento q ue tudo d evia evia ensinar-me e foi-me preciso refletir para mostrar confusão e receio. A primeira noite, de que geralmente se tem uma idéia tão cruel ou tão doce, apresentava-me apenas uma ocasião de experiência: dor e prazer, tudo eu observava com exatidão, e nessas diversas sensações via ap ena s fat os p a ra rec olher e m ed ita r. Este gênero de estudo depressa começou a agradar-me; mas, fiel aos meus princípios, e sentindo, talvez por instinto, que ninguém devia estar mais longe da minha confiança do que o meu marido, resolvi, pelo simples fato de que era sensível, mostrar-me impassível a seus olhos. Esta frieza aparente foi, ao longo do tempo, o fundamento inabalável da sua cega confiança. Juntei-lhe, após uma segunda reflex eflexão ão , o aspe aspe c to e stouvad o q ue a minha minha ida de a utori utorizava ; e nunc a ele me julgou mais criança do que nos momentos em que com mais aud ác ia eu o iludi iludia. a. Entretanto, devo confessá-lo, deixei-me primeiro arrastar pelo turbilhão do mundo, e entreguei-me inteiramente às suas distrações fúteis. Mas ao fim de alguns meses, tendo-me o senhor de Merteuil levado a partilhar as suas tristes férias no campo, o medo do aborrecimento fez com que me voltasse o gosto do estudo; e encontrando-me rodeada apenas de pessoas cuja distância de mim me p unha ao ab rigo d e tod a a suspe uspe ita, ap roveitei a o c asi asiã o p ara d ar um c a mp o m a is va sto à s minha s expe riênc ias. ias. Foi ali, ali, pri princ ipa lme nte, que ob tive tive a c ertez ertezaa de que o a mo r que nos louva m c om o a c a usa usa d os noss nossos p ra zeres é a p ena s, qua nd o muito, o seu pretexto. A doença do senhor de Merteuil veio interromper tão d oc es oc up a ç õe s; foi nec ess essá rio seg seg ui-l ui-loo à c id a d e, onde ele ia ia p roc ura ura r socorros. Morreu, como sabe, pouco tempo depois; e embora, no fim de contas, eu não tivesse de me queixar dele, nem por isso senti menos vivamente o preço da liberdade que a minha viuvez ia proporcionarme , e a mim p róp ria prometi a proveita proveita r be m ess essa libe rda de . Minha mãe contava que eu entrasse num convento, ou voltasse a viver viver c om ela ela . Rec usei usei uma uma e outra solu soluçç ã o; e tudo o q ue c onc ed i à decência foi voltar ao mesmo lugar no campo, onde me restavam a ind a a lgum a s ob servaç õe s a fazer. fazer. Essas observações ganharam força com o auxílio da leitura; mas não julgue que foram todas do gênero que supõe. Estudei os nossos costumes nos romances; as nossas opiniões nos filósofos; procurei mesmo nos mais severos moralistas o que eles exigiam de nós, e soube a ssim o q ue se se p od ia fazer, fazer, o q ue se se d evia p ensa ensa r e o q ue e ra p rec iso parecer. uma vez fixada sobre esses três pontos, só último apresentava
a lgum a s d ific fic uld uld a d es na sua exec uç ã o; esp esp erei venc ê-la ê-la s e m ed irei nos meios. Começava a aborrecer-me dos meus prazeres rústicos, demasiado monótonos para a minha imaginação; sentia uma necessidade de coquetismo que me reconciliasse com o amor; não p a ra verda v erda d eira eira m ente ent e o sent sent ir, ir, ma s p a ra o insp insp ira ira r e o fing ir. ir. Em vão me haviam dito e eu tinha lido que não se podia fingir esse sentimento; eu via, no entanto, que para o conseguir bastava juntar à inteli inteligê ncia d e um a utor o ta lento d e um c om ed iante . Experimentei os dois gêneros, e talvez com algum êxito; mas em lug a r d e p roc ura ura r os vã os a p la usos usos d o te a tro, resolvi esolvi em p reg a r na m inha feli felic ida de o q ue ta ntos outros outros sac rific fic a vam à vaida de . Um a no se p a ssou ness nessa s d ivers iversa s oc up a ç õe s. Com o o me u luto já me permitia voltar a aparecer, regressei à cidade com os meus grand es p rojeto s; nã nã o e sp erava o p rime iro iro o b stá c ulo ulo q ue a í enc ontrei. ontrei. Aquela longa solidão, aquele retiro austero tinham lançado sob re m im um a a p a rênc ia d e virtud virtud e q ue a me d ronta va os noss nossos ga lã s; mantinham-se afastados e deixavam-me entregue a uma multidão de aborrecidos senhores, que pretendiam todos a minha mão. O embaraço não estava em recusá-los; mas várias dessas recusas desagradavam à minha família, e eu perdia nessas questões internas o tempo que prometera a mim mesma gastar tão agradavelmente. Fui pois obrigada, para atrair uns e afastar os outros, a pôr em relevo algumas inconseqüências e a empregar em prejudicar a minha rep utaç ão , o c uid uid ad o q ue p ensava ensava ap lic ar em c onser onservá-l vá-la. a. Conseg Conseg uiui-o fac ilme nte, c om o p od e ima ima ginar. ginar. Ma s não m e senti sentindo ndo a rreb ata da po r nenhuma p a ixã o, fiz fiz só o q ue julg julg uei nec ess essá rio, e m ed i co m p rudê nc ia a s d oses oses d a m inha leviand a d e. Logo que atingi o fim que me propusera voltei ao ponto de partida e fiz promessas de emenda a algumas daquelas mulheres que, não podendo ter pretensões a agradar, se pavoneiam com as do mé rito e d a vir virtude . Foi Foi um lanc lanc e d e d ad os que me valeu ma is d o q ue eu esperava. Aquelas reconhecidas donas arvoraram-se em minhas apologistas; e o zelo cego que empregaram para louvar o que elas c hama vam a sua sua ob ra cheg ou ao po nto de, à menor fr frase ase q ue alguém alguém se permitisse a meu respeito, todo o partido da virtude gritar contra o escândalo e a injúria. Pelo mesmo processo consegui ainda a aprovação das mulheres que pretendiam agradar, as quais, persuadidas de que eu renunciava a seguir carreira idêntica à sua, me escolheram para alvo dos seus elogios, todas as vezes que queriam provar provar que não d iziam ma l de toda a g ente. Entretanto, a minha anterior conduta tinha atraído os apaixonados; e, para me equilibrar entre eles e as minhas infiéis protetoras, mostrei-me como uma mulher sensível, mas difícil, a quem o exc exc ess esso de de lic ad eza eza fornec fornec e armas c ontra ontra o am or. or. Então comecei a desenvolver no grande teatro os talentos que de ra a mim p róp ria . O meu p rimeiro meiro c uida uida do foi o d e a dq uir uirir o renome
de invencível. Para chegar a isso, os homens que não me agradavam foram sempre os únicos de quem simulei aceitar as homenagens. Empreguei-os utilmente em alcançar por meio deles as honras da resistência, enquanto me entregava sem receio ao amante preferido. Ma s a ess esse a m inha fingid a timide z nã o p ermitiu nunc a q ue m e seg seg uiss uisse na sociedade; e os olhares do mundo fixaram-se, desse modo, no am ante recusad recusad o. Sab e, meu a migo, que levo levo p ouc o tem po a d ec idirdir-me; é po r ter ob servad o q ue sã sã o q uase uase sem sem p re o s c uid uid a d os a nteriores nteriores q ue revelam o seg red o d a s mulheres mulheres.. Por Por muito q ue se se fa ç a , o tom nunc a é o me smo , antes e depois do acontecimento. Esta diferença não escapa ao ob servad ervad or atento , e a c hei menos pe rigo so e nga nar-me nar-me na esc esc olha olha d o que deixar-me penetrar. Ganho ainda com esse procedimento afastar a s evidê nc ia s, que fornec fornec em os únic únic os eleme ntos p a ra nos julga ulga rem . Estas precauções, e ainda a de nunca escrever, não entregar nunca uma prova da minha derrota, poderiam parecer excessivas; a mim nunca me p a rec eram eram sufic ufic ientes. entes. Desc Desc i ao fundo d o m eu c oraç oraç ão , e nele estud estud ei o d os outros. outros. Soub Soub e a ssim q ue nã o há ningué ningué m q ue nã o conserve aí um segredo que não deve ser revelado; eis uma verdade que a Antigui Antiguida da de pa rec e ter conhecido m elhor elhor do que nós, nós, e d a qual a his história tória d e Sa nsã nsã o p od eria eria ser ap ena s uma eng enho sa a leg oria oria . N Nova ova Dalil Dalila , emp reg uei sem sem p re, c om o ela, o m eu p od er em surp urp ree nd er ess esse imp orta orta nte seg red o. Qua ntos Sa nsõe nsõe s mo d ernos nã o t ive e u já já c om a c a b eleir eleira sob a minha tesoura! E a esses, deixei eu de temer; são os únicos que me tenho permitido humilhar algumas vezes. Mais subtil com os outros, a arte de os tornar infiéis para evitar parecer-lhes volúvel, uma fingida amizade, uma aparente confiança, alguns rasgos generosos, a idéia lisonjeir onjeiraa que c ad a um c onser onserva va de ter sisid o o meu únic únic o a ma nte, tud tud o serviu erviu p a ra ob ter te r o seu seu silênc ilênc io. Por fim, quando esses meios me faltaram, soube, antes de romper, abafar de antemão, sob o ridículo ou a calúnia, a confiança q ue ess esse s hom ho m ens en s p erigo so s p ud ess esse m o b te r. O que lhe estou dizendo, tem-me o Visconde visto praticar constantemente; e duvida da minha prudência! Pois bem: evoque o temp te mp o em e m q ue m e d isp isp ensou ensou a s sua s p rimeira imeira s a tenç te nç õe s. Nunca uma homenagem me lisonjeou tanto; desejava-o antes d e o ter vis visto. Sed Sed uzi uzid a p ela sua sua rep uta ç ã o, pa rec ia -me q ue fa zia falta à minha glória. Ardia no desejo de o combater corpo a corpo. Foi o único dos meus prazeres que teve algum império sobre mim. Entretanto, se o Vis Visc ond e tivess tivesse q uerid uerid o p erder-me erder-me , que me ios teria teria enc ontrad o? Palavras vãs que não deixam sulco atrás de si, que a sua própria reputação teria ajudado a tornar suspeitas, e uma sucessão de fatos sem verossimilhança, cuja narração sincera teria o ar de um romance ma l ur urdido .
É certo que, mais tarde, vim a entregar-lhe todos os meus segredos; mas o Visconde sabe os interesses que nos unem, e se, de nós d ois, ois, sou sou e u que m d eve c ulp ulp a r-se -se d e imp rud ênc ia .* Já q ue e stou e m m a ré d e lhe p resta esta r c onta s, desejo desejo fa zê-lo ê-lo c om exatidão. Daqui ouço-o dizer-me que estou, pelo menos, à mercê da minha criada de quarto; de fato, se ela não possui o segredo dos meus sentimentos, possui o dos meus atos. Quando o Visconde em tempos me fal fa lou a ess esse resp resp eito, eito , resp esp ond i-lhe i-lhe ap ena s q ue e sta va seg ura ura d ela; ela ; e a prova de que esta esta respo espo sta ba stou entã o p ara a sua tranq üil üilid ad e é que depois disso lhe confiou, por sua conta, segredos bastante perigosos. Mas agora que Prévan lhe faz sombra, e que a cabeça lhe anda à roda, tenho dúvidas de que me acredite sob palavra. Vou pois edificá-lo. Em primeiro lugar, essa rapariga é minha irmã de leite, e esse *Virá a saber-se na continuação, Carta CLII, não o segredo do senhor de Valmont, ma s ap roxima oxima da me nte d e q ue g ênero ele era; e o leitor sentirá entirá que não foi poss possível esclarecê-lo melhor sobre este assunto.
laç o q ue ap arentemente arentemente nad a va le não deixa deixa d e ter imp ortânc ortânc ia p ara ara pessoas dessa categoria. Além disso, conheço o segredo dela, e mais ainda: vítima duma loucura de amor, estaria perdida se eu não a tivesse salvo. Os pais dela, todos eriçados de honra, queriam nada me nos d o q ue interná interná -la -la . Dirigiram-se a mim. Vi, num relance, quanto a sua cólera me p od eria eria ser útil. útil. Secundei essa cólera, e solicitei a ordem de internamento, que ob tive. tive. Dep Dep ois, ois, pa ssand o subitame subitame nte a o p artido artido d a c lemê ncia, pa ra o qual atraí os pais, e aproveitando do meu crédito junto do velho ministro, levei-os a consentir que me deixassem depositária dessa ordem, e senhora de pedir ou deter a sua execução, consoante o mé rito d o p roc ed ime nto d ess essa ra p a riga . El Ela sa b e q ue te nho a sua sorte na s minhas mã os e a ind a q ue, po r a b surd urd o, ess esse p od eroso eroso m eio nã o a detivesse, não é evidente que a sua conduta desregrada e a sua p uniç uniç ã o a utêntica tira tira ria m to d o o c réd ito à s suas p a la vra vra s? A e ssa s p rec a uç õe s q ue c ham o fund a me nta is, junta junta m-se m-se m uita uita s outras, locais ou ocasionais, que a reflexão e o hábito farão encontrar, caso seja necessário, e que seria fastidioso pormenorizar, mas cuja prática é importante. Se quer chegar a conhecê-las, Visconde, dê-se ao trab trab alho de c onsi onsid erar erar o meu c om po rtam ento no seu seu c onjunto. onjunto. Mas pretender que eu me tenha entregue a tantos cuidados p a ra não retira etira r d eles o fruto; fruto; que d ep ois d e ta nto m e te r eleva d o sob sob re outras mulheres pelos meus penosos trabalhos eu consinta em rastejar como elas, entre a imprudência e a timidez; que sobretudo eu possa temer um homem a ponto de não ver salvação a não ser na fuga? Não, Visconde; nunca. É preciso vencer ou morrer. Quanto a Prévan, q uero tê-lo tê-lo e hei-d hei-d e t ê-lo; ê-lo; ele q uererá uererá d ivulg vulg á -lo, -lo, e nã o o d ivulga vulga rá . Em Em d ua s p a lavras, lavras, eis o noss nosso rom a nc e. Adeus.
20 d e Set Setem em b ro d e 17* *.
CARTA LXXXII CECÍLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY Meu Deus, como a sua carta me fez pena! E tinha eu tanta imp ac iênc ia d e a rec eb er! er! Es Espe rava enc ontrar ontrar nela nela c onsolaç onsolaç ão e a final final fiquei fiquei muito ma is a fli flita d o q ue a ntes de a ter rec rec eb ido . Cho rei muito e nqua nto a lia . Ma s nã o é iss isso q ue e u lhe lhe c ensur ensuro; o; já tenho corado muitas vezes por sua causa, sem que isso me faça p ena . Mas, Mas, d esta esta vez, vez, nã o é a me sma c oisa oisa . Que é que quer dizer quando escreve que o seu amor se torna um to rme nto, que nã o p od e viver a ssim; nem sup sup ortar por ma is tem p o a sua situação? Será o caso que vai deixar de amar-me, só porque isso não é tão a grad grad ável co mo noutro noutro temp o? Parece-me que eu não sou mais feliz, bem pelo contrário; e no entanto,amo-o cada vez mais. Se o senhor de Valmont não lhe escreveu, a culpa não é minha; não lhe pude pedir, porque nunca estive só com ele, e combinamos que não nos falaríamos diante das outras pessoas; e isso é ainda por si, para que ele possa fazer o mais c ed o p oss ossível aq uil uilo q ue d eseja. eseja. Não Não digo que o nã o d eseje eseje tam bé m, e d iss isso p od e e sta r c erto; ma s q ue q uer q ue e u faç a ? Se Se julga julga q ue é fá c il, enco ntre ntre o meio, que e u não peç o m elhor elhor.. Julga que me é agradável ser repreendida pela Mamã, que ante s não me ralhava ralhava nunca , be m p elo elo c ontrári ontrário? o? Ago ra é pior do que se eu estivesse no convento. Ainda me consolava pensando que era p or si; si; hav ia a té o c a siõe s em q ue e u me d a va p or feli felizz. Mas quand o vejo que ta mb ém está está zanga zanga do sem que ha ja da minha parte culpa nenhuma, fico mais triste do que estava por tudo quanto ac onteceu até aq ui. ui. Só p a ra rec eb er as a s sua s c a rtas rta s sã o uns u ns trab tra b a lhos, lhos, que se o senho en horr de Valmo Valmo nt não foss fosse tã o b om e tão expe expe dito c om o é, eu não não sab ia o q ue ha via d e fa zer. E p a ra lhe e sc rever ev er é a inda ma is d ifíc ifíc il. il. De manhã nã o me atrevo, atrevo, po rque a Mam ã está está m uito uito p erto erto d e mim, e a cada momento entra no meu quarto. Algumas vezes posso fazê-lo de tarde, com o pretexto de cantar ou tocar harpa; e mesmo assim é preciso interromper-me a cada linha para que ouçam que esto estouu a e stud a r. Felizmente a minha criada de quarto adormece algumas vezes ao serão, e eu digo-lhe que me deito muito bem sozinha, para que ela se vá em b ora e me d eixe eixe luz. luz. Depo is, tenho tenho d e m e p ôr deb aixo aixo d os c orti ortinad nad os, os, para q ue nã o se p oss ossa ver a c la rid a d e, e p a ra q ue a o m eno r ruíd uíd o e u po ssa esc esc ond er tudo na cama, se vier alguém. Sempre queria que estivesse no meu
luga r, p a ra v er o q ue fa zia ! Bem Bem vê q ue é p rec iso a ma r muito p a ra fa zer isto. Enfim, o certo é que faço tudo o que posso; e eu desejava poder fa zer aind a m a is. is. É claro que não recuso dizer-lhe que o amo e que o amarei sempre; nunca lho disse tão do fundo do coração; e ainda está zangado! No entanto, tinha-me dado a certeza, antes que eu lho dissesse, que isso bastava para o tornar feliz. Não pode negar o que d iss isse : es e stá na s sua s c a rta s. Emb ora e u já já a s não tenha , lem b ro-me d isso c om o q ua nd o a s lia todos os dias. E só porque estamos longe um do outro já pensa de maneira diferente! Mas esta ausência não há de durar sempre. Meu Deus, Deus, com c om o e u so so u infeliz! infeliz! E p o r sua c a usa usa , só só p or sua sua c a usa usa ! A p rop ósi ósito d a s suas c a rta s, esp esp ero q ue te nha gua rd a d o a s q ue a Ma mã me tir tirou, para lhas lhas entreg entreg ar; há d e vir um tem po em que não estej estejaa tã o vigiad vigiad a c om o a go ra, e então to rnar-me nar-me -á a d ar tod tod a s. Com o serei feliz, quando puder guardá-las sempre, sem que ninguém tenha nada a ver com isso! Agora é ao senhor de Valmont que as entrego, porque seria muito arriscado proceder de outra maneira; apesar disso nunca nunca lhe dou nenhu nenhuma ma que não me faça pena. Adeus, Adeus, meu q ueri uerido am igo. Amo-o de tod o o m eu co raç ão . Am á -lo-ei -lo-ei toda a m inha inha vida . Esp ero que já nã o esteja esteja za za nga d o; e se estivesse certa disso, também já o não estaria. Escreva-me o mais d ep ress essa q ue p ud er, p ois sinto q ue a té lá esta esta rei sem sem p re tris triste. te . Ca stel te lo d e. . .,., 21 21 de Setem et em b ro d e 17 * *.
CARTA LXXXIII O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL Suplico-vos, senhora, reatemos o nosso diálogo tão desgraçadamente interrompido! Que eu possa acabar de vos provar quanto sou diferente do odioso retrato que vos tinham feito a meu respeito; que eu possa, principalmente, gozar ainda dessa amável c onfianç onfianç a que c om eç áve is a testemunhartestemunhar-me me ! Que de enc anto s sab eis dar à virtude! De que maneira embelezais e tornais queridos todos os sentimentos honestos! É essa a vossa sedução; é a mais forte, a única, ao mesmo mesmo tem po po de rosa osa e respe respe itáve l. Sem dúvida basta ver-vos para que se deseja agradar-vos; ouvirvos em meio dos indiferentes, para que esse desejo aumente. Mas aquele que teve a felicidade de vos conhecer melhor, que pôde algumas vezes ler na vossa alma, depressa cede a um entusiasmo mais nobre, nobre, e, penetrad penetrad o d e a dm iraç ão e d e a mor, mor, ad ora ora e m vós a ima gem d e t od a s a s virtud virtud es. es. Ta lvez ma is p red estinad estinad o q ue o utros p a ra a s a ma r e as seguir, mas alheado delas por alguns erros que me haviam
arrastado, fostes vós que me aproximastes, que de novo me fizestes sentir tod o o seu enc a nto. Achais que é um crime esse novo amor? Condenareis a vossa obra? Censurareis a vós própria o interesse que por ela podereis sentir? Que m a l se p od e rece ar dum sentime nto tã o p uro, e q ue d elíc ia s não po de rá e le p rop orc iona r? Assusta -vos o me u a mo r p orque o a c ha is violento , arreb a ta d o? Podereis temperá-lo por um amor mais doce; não recuseis o d om ínio q ue vo s ofereç o, a o q ual, juro, ja ma is d eixa rei d e sub me ter-me , e que, ouso crê-lo, não será inteiramente perdido para a virtude. Que sacrifício poderia parecer-me penoso, com a certeza de que o vosso c oraç ão sab eria da r-lhe o preç o? Onde está o hom em tão de sgraç ad o que não saiba extrair prazer das privações que se impõe; que não prefira uma palavra, um olhar concedidos, a todos os gozos que p od eria roub a r ou surp ree nde r! E pudestes supor que era eu esse homem! E tivestes receio de mim! Ah! Por que nã o d ep end e d e m im a vossa felic ida d e? Co mo eu m e vinga ria d e vós, tornand o-vo s feliz! Ma s esse sua ve jugo nã o é a estéril a miza d e q ue o imp õe ; pa ra p rod uzi-lo, só o a mo r. Esta p a la vra intimid a -vos! E p orquê? Uma d ed ica ç ã o ma is terna, uma união mais forte, um único pensamento, a própria felicidade, os próprios sofrimentos, que há em tudo isso de estranho à vossa alma? Todavia, é isso o amor! Pelo menos esse que inspirais e que eu sinto! É ele principalmente que, calculando sem interesse, sabe apreciar as ações pelo seu mérito e não pelos seus resultados; tesouro inesgotável das almas sensíveis, tudo que é feito por ele ou através dele se torna precioso. Estas verdades tão fáceis de compreender, tão doces de p ra tica r, que têm d e a ssusta d or? Que a p ree nsõe s p od e c a usa r-vos um homem sensível, a quem o amor já não permite outra felicidade que nã o seja a vossa ? É esse hoje o me u único d esejo: sa c rific a rei tud o p a ra o realizar, exceto o sentimento que o inspira; e se consentirdes em partilhar esse sentimento, dirigi-lo-eis como vos aprouver. Mas não sup ortem os q ue e le no s d ivid a , q ua nd o no s d eve ria reunir. Se a a miza d e que me oferecestes não é uma palavra vã, se, como ontem me dissestes, é o sentimento mais doce que a vossa alma pôde conhecer, seja ela que regule as condições entre nós, não me furtarei aos seus mandatos. Mas, chamada a julgar o amor, que ela consinta em ouvi-lo; uma rec usa torna r-se-ia um a injustiça , e a miza d e nã o é injusta . Um segundo encontro não terá mais inconvenientes do que o p rime iro: o a c a so p od e a ind a fornec er-nos a oc a siã o. Pod ereis me smo ainda indica r o mo mento próprio. Admito que e u não tenha razão ; não gostaríeis mais de convencer-me do que de combater-me? E duvidais da minha docilidade? Se um importuno não tivesse vindo interromper-
nos, talvez eu já me tivesse rendido inteiramente à vossa opinião; quem sa be a té ond e po de c hega r o vosso p od er? Deverei dizê-lo? Esse poder invencível, ao qual me entrego sem ousar calcular a sua extensão, esse encanto irresistível, que vos torna soberana dos meus pensamentos como das minhas ações, aconteceme a lguma s vezes rec eá -los. Pob re d e m im! Ta lvez eu d eva a ntes temer esse enc ont ro q ue vo s p eç o! Ta lvez depois, cativo das minhas promessas, eu me veja reduzido a abrasarme num a mo r q ue e u sinto b em q ue nã o p od erá extinguir-se, sem ousa r mesmo implorar o vosso socorro! Ah! senhora, suplico-vos, não abuseis do vosso domínio! Mas quê! Se assim vos sentirdes mais feliz, se por isso eu vos dever parecer mais digno de vós, que mágoas não serão suavizadas por essas consoladoras idéias? Sim, bem o sinto; falar-vos ainda é dar-vos armas mais fortes contra mim; é submeter-me mais inteiramente à vossa vontade. É mais fácil a defesa contra as vossas c a rta s; as p a la vras sã o a s me sma s, ma s fa lta a vossa p resenç a p a ra lhes dar força. Entretanto, o prazer de vos ouvir faz que eu arroste o perigo: terei ao me nos a felic ida de de tudo tentar po r vós, mesmo c ontra mim; e o s meus sa c rifíc ios torna r-se-ã o um a home na gem . Co nsid ero-me fe liz p or vos p rova r de mil mane ira s, co mo d e mil modos o sinto, que sois vós e sereis sempre o objeto mais caro ao meu coração. Ca stelo d e..., 23 de Setem b ro d e 17* *.
CARTA LXXXIV O VISCONDE DE VALMONT A CECÍLIA VOLANGES Viu bem como ontem fomos contrariados. Durante todo o dia não pude entregar-lhe a carta que tinha para si; não sei se hoje será ma is fá c il. Receio comprometê-la, pondo nisso mais zelo do que habilidade; e não perdoaria a mim próprio uma imprudência que lhe seria fatal e causaria o desespero do meu amigo, tornando-a a si eternamente infeliz. No entanto, conheço as impaciências do amor; sei q ua nto d eve ser peno so, na sua situa ç ã o, sup ortar qua lq uer dem ora na únic a c onsolaç ão que po ssa expe rimenta r neste m om ento. À forç a de me ocupar do processo de afastar os obstáculos, encontrei uma cuja exec uç ã o será fá c il, se nisso p user algum em p enho . Julgo ter repa rad o q ue a c have d a po rta d e seu qua rto, que d á pa ra o c orred or, está semp re sob re a c ham iné d a sua M am ã. Tud o se t ornaria fác il co m essa c ha ve, c om o está vend o; ma s, à falta d ela, proc ura rei arra nja r-lhe uma p a rec id a e q ue a sub stitua.
Bastar-me-á, para isso, ter a outra uma hora ou duas à minha disposição. Devo achar facilmente ocasião de a tirar, e para que ninguém dê pela falta, junto aqui uma, muito parecida, e ninguém notará a diferença, a menos que a experimentem, o que é pouco provável. Será preciso a pe nas que tenha o c uid ad o d e lhe pô r uma fita azul igua l à que tem a outra. Deve ter essa chave em seu poder amanhã ou depois de amanhã, à hora do almoço, porque lhe será mais fácil dar-ma nessa altura, e poderá voltar a pô-la no seu lugar à noite, que é quando sua Mamã poderá dar-lhe mais atenção. Posso entregar-lha na altura do ja nta r, se c onc orda r c om isto. Como sabe, quando vamos do salão para a sala de jantar, é sem p re M a d a me d e Rosem ond e q ue ve m e m último luga r. Eu da r-lhe-ei a m ã o. Terá a p ena s d e d eixa r o seu tea r va g a rosa me nte, ou entã o deixar cair qualquer coisa, de maneira a ficar atrás de todos; nesse mo me nto a ga rrará a c have, que eu lhe estend erei. Não se esquecerá, logo que tenha a chave, de vir junto da minha velha tia, fazend o-lhe a lgum a s c a ríc ia s. Se p or ac a so d eixa r ca ir a chave, não lhe cause isso embaraço; eu fingirei que é minha e resp ond o p elo resto. A falta de confiança da sua Mamã e a maneira dura como a trata autorizam-na a esta pequena fraude. Além do mais, é a única ma neira de c ontinuar a rec eb er as c artas d e Danc eny, e d e fa zer que ele receba as suas; qualquer outro meio é realmente demasiado perigoso, poderia perder-vos aos dois sem recurso; e a minha prudente am izad e nã o se c onsola ria d e o ter emprega do . Uma vez d e p osse d a c ha ve, resta r-nos-ão a lgum a s p rec a uç õe s a tomar para evitar o ruído da porta e da fechadura; mas será coisa fácil. Por baixo do mesmo armário onde pus o papel, encontrará óleo e uma pena. Como vai ao seu quarto algumas vezes a horas em que está sozinha, aproveite para olear a fechadura e os gonzos. Só deve ter cuidado em não deixar nódoas, que fariam desconfiar. Por isso será me lhor fazer esse trab a lho à noite, po rq ue, se o fizer co m a a tenç ã o d e que a julgo c a pa z, no dia seg uinte de ma nhã não se nota rá na da . Se apesar de tudo alguém notar alguma coisa, não hesite em dizer que foi o serralheiro do castelo. Nesse caso, será preciso espe c ific ar o tem po e a té a s c onversas que ele teve c onsigo ; com o, po r exemplo, que ele toma esse cuidado, para evitar a ferrugem, com todas as fechaduras de que se não faz uso; pois está vendo que não seria verossímil ouvir esse b a rulho tod o sem p ergunta r a c a usa . Sã o e ste s p eq ueno s p ormeno res q ue d ã o verossimilha nç a , e a verossimilhanç a faz que as mentiras não tenham conseqüências, tirando o desejo de as verificar. Depois de ter lido esta carta, peço-lhe que volte a lê-la, e, mesmo, que a estude em pormenor: primeiro, porque é preciso saber
bem o que se quer fazer bem; em seguida, para ter a certeza de que não om iti nad a. Pouco habituado a usar por minha conta destas habilidades, nã o te nho feito d elas grand e uso. uso. Foi Foi prec iso a té a minha viva a miza miza d e p or Danc eny, e o interess interesse q ue me insp insp ira ira , pa ra me resolver esolver a servir ervir-me d este estess p roc ess essos, os, a liá liá s b em inoc ent es. es. Tenho enh o ó d io a tud o q ue se se p a reç a com enganar o próximo; é este o meu caráter. Mas as vossas infelicidades tocaram-me a tal ponto, que tentarei tudo para suavizálas. Como deve imaginar, depois desta combinação entre nós serme-á mais fácil conseguir, com Danceny, o encontro que ele deseja. Mas por agora não lhe fale nisto; não faria senão aumentar a sua impaciência, e não chegou ainda o momento de a satisfazer. Deve antes, segundo creio, empregar os seus cuidados em acalmá-la, de p referênc ia a a gravá -la -la . A este este resp resp eito, co nfio nfio na sua d elic elic a d eza eza . Adeus, minha bela pupila. Ame um pouco o seu tutor, e sobretudo empregue com ele docilidade; será bem recompensada por isso. Ocupo-me da sua felicidade e pode crer que nela encontrei tamb ém a minh minha. a. 24 d e Set Setem em b ro d e 17 * *.
CARTA LXXXV A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Vai enfim tranquilizar-se, e, sobretudo, fazer-me justiça. Esc ute, e nã o m e c onfund a c om a s outras mulheres mulheres.. Cheg uei ao fim fim d a minha minha ventura ventura c om Préva n; ao fim! fim! Com preende be m o que isto quer dizer? Agora o Visconde vai julgar qual de nós, eu ou ele, se poderá gabar. A narração não é tão agradável como a ação; por outro la la d o, não seria eria justo usto q ue, enq ua nto o Vis Visc ond e na d a ma is fez q ue raciocinar bem ou mal sobre este assunto, extraísse dele tanto prazer c omo eu, que em preguei preguei tempo e trab trab alho. alho. Entretanto, se tem algum grande golpe de audácia a executar, se pretende tentar qualquer empreendimento em que esse rival perigoso lhe faça sombra, pode vir. Ele deixou-lhe o campo livre, pelo menos por algum tempo; talvez mesmo não torne a erguer-se da prostr prostraç aç ã o em que o lanc ei. Como o Visconde é feliz em ter-me por amiga! Sou para si uma fad a be nfazeja! nfazeja! Enqua Enqua nto va i de finhand finhand o longe d a b eleza eleza que o a trai, trai, eu d igo uma pa lavra, e d e no vo se se e nco ntra ntra junto d ela. ela. Deseja Deseja vinga vinga rse de uma mulher que lhe furta; eu marco o lugar onde deve feri-la, e entrego-a à sua mercê. Por fim, para afastar do combate um c onc orrente orrente tem ível, sou a ind a eu q ue o insp nsp iro e o p onho no m a is a lto
lugar. Na verdade, se não passa a vida a agradecer-me, é porque é um ingrato . Ma s volto à minha a ventura, desd desd e o iníc níc io. O enc ontro, ontro, marca do em voz alta, à saí saídd a d a Óp era, era, foi ouvid ouvid o, c om o eu tinha tinha espe espe rad o*. Préva n co mp arece u; e qua ndo a Ma rec hala lhe disse delicadamente que se sentia feliz por o ver duas vezes seguidas nas suas recepções, ele teve o cuidado de responder que desde a tarde de terça-feira tinha desfeito mil compromissos para p od er a ssim d ispo r d a q uela noite. A bom ente nd ed or... or... No entanto , c om o e u de sejava ter a c ertez ertezaa se era ou nã o o *Ve r Ca rta LXXIV*Ver Ca C a rta LXXIV
verdadeiro objetivo daquela lisonjeira solicitude, quis obrigar o novo apaixonado a escolher entre mim e o seu gosto dominante. Declarei que não joga va; de fato , ele enco ntrou, ntrou, po r seu lad lad o, mil pretextos pretextos p a ra nã o jog a r. E o m eu p rimeiro imeiro triunfo triunfo fo i sob re o la nsq nsq uené . Tom ei a m eu c a rgo o b ispo de ... pa ra ter com quem c onvers onversar; escolhi-o em virtude da sua ligação com o herói do dia, a quem eu queria dar toda a facilidade de me abordar. Ao mesmo tempo, sentiame à vontade por ter uma testemunha respeitável que, em caso de necessidade, poderia depor sobre o meu comportamento e os meus p rop ósi ósitos. tos. E Essta c om b ina ç ã o d eu resul esulta ta d o. Depois das conversas vagas do costume, Prévan, tendo-se tornado o guia da conversação, foi tomando diversos tons, para experimentar o que me poderia agradar. Recusei o do sentimento, c om o nã o a c red itand o nele; com o m eu a spe c to sér sériio, fiz fiz d eter a sua sua joviali ovialida d e, que me pa rec eu d em asi asiad o lige ira pa ra um iníc níc io; ba ixou de tom , tom and o o d a a miza miza de d isc reta ; e foi sob sob esta esta b a ndeira ndeira vulgar que c om eç am os o noss nosso rec rec íproc o a taq ue. Na altura da ceia, o bispo não descia; Prévan ofereceu-me o braço e à mesa tomou naturalmente o lugar a meu lado. É preciso ser justo: soube sustentar com habilidade a nossa conversa particular, parecendo no entanto ocupar-se da conversa geral, da qual aparentemente ocupava o posto central. À sobremesa, falou-se de uma peça nova que na segunda-feira seguinte devia ir à cena no Tea tro tro Fr Fra nc ês. ês. Afetei algum p esa esa r p or não ter ma rc a d o o me u camarote; ele ofereceu-me o seu, que recusei, como é da praxe; ao que ele respondeu muito agradavelmente que eu não tinha ouvido be m; que c om c ertez ertezaa não faria faria o sac rifíc fíc io d o seu seu c a ma rote a alguém que ele não c onhec ia, ma s que som ente m e a vis visa va d e q ue a senhora enhora Marechala disporia dele. Ela p resto esto u-se u-se a este este g ra c ejo e e u ac eitei. Qua ndo subimos ao salão, ele ele p ed iu, c om o p od e ima ginar, ginar, um um lugar nesse camarote; e como a Marechala, que o trata com muita bondade, lho prometeu se ele tivesse juízo, aproveitou a ocasião para uma daquelas conversações de duplo sentido, para as quais tem um talento q ue o Vis Visc ond e já m e g ab ou. De De fa to, tendo -se p osto osto d e joelhos joelhos diante da Marechala, como uma criança submissa, dizia ele, sob o pretexto de lhe pedir a opinião e de implorar o seu auxílio, disse ainda
muitas coisas lisonjeiras e ternas, as quais me era fácil supor que se d irigiam a mim. Como havia ainda várias pessoas que não tomavam parte no jogo depois da ceia, a conversa foi mais geral e menos interessante; mas os nossos olhos falaram muito. Os nossos olhos, disse eu; mas deveria dizer os dele, pois os meus tiveram só uma linguagem, que foi a da surpresa. Ele teve ocasião para pensar que eu o admirava e me oc upa va exc exc ess essivam ente do efeito prodigioso prodigioso q ue c ausava ausava sob re m im. Julgo ulgo q ue o d eixei eixei muito sa sa tisfeito; tisfeito; p elo me u la la d o, eu não esta esta va me nos contente. Na seg seg und a -feira -feira seg uinte, fui a o Tea Tea tro Fr Fra nc ês, ês, c om o tí t ínha m os combinado. Apesar da sua curiosidade literária, caro Visconde, nada posso dizer-lhe do espetáculo, a não ser que Prévan tem um talento maravilhoso para o galanteio, e que a peça caiu; eis tudo o que lhe p oss osso d izer. Era c om p ena q ue e u via finda r o serão, serão, q ue rea lme nte me agradava muito. E para o prolongar, convidei a Marechala a vir cear c omigo; o que m e fornece fornece u pretex pretexto to pa ra propor o m esmo esmo ao am ável galanteador, que pediu apenas o tempo para ir, correndo, a casa das Condessas de B..., a fim de se libertar de um compromisso. Este nome reavivou toda a minha cólera; vi claramente que ele ia começar as confidências. Recordei-me dos seus prudentes conselhos e prometi a mim própria... continuar a aventura. Estava certa de que o emendaria de tão perigos perigosaa tendênc ia. Estra tra nho a o me u grup grup o, que na q uela noite era era p ouc o nume roso, oso, ele devia-me as atenções que são de uso neste caso. Por isso, quando fomo s c ea r, oferec oferec eu-me a mã o. Eu Eu tive tive a ma líc ia, ao a c eitá-la, eitá-la, de pô r na minha um ligeiro frêmito, e de conservar, enquanto andávamos, os olhos b a ixos ixos e a resp esp ira ira ç ã o a lta . Tinha o a sp ec to d e p ress essentir a minha d errota errota e d e te me r o m eu venc ed or. or. El Ele noto u-o u-o à ma ravilha; avilha; e log log o o tra tra ido r mud ou d e to m e de ma neira neira . De g a la ntea d or, tornou-s tornou-se me igo. Os p rop ósi ósitos q ue m e d irigia eram mais ou menos os mesmos: as circunstâncias forçavam-no a isso. Mas o seu olhar, que se tornara menos vivo, era mais acariciador; as inflexões da sua voz, mais doces; o seu sorriso já não era o da finura, ma s o d a sa sa tisfaç tisfaç ã o. Enfim, nas palavras, em que pouco a pouco se extinguia o fogo de início, o espírito deu lugar à delicadeza. E agora quero perguntarlhe: fa ria m elhor do q ue isto isto ? Pelo me u la la d o, de i-me a res d e p ensa ensa tiva, a ta l p onto q ue, send send o forç forç ad o a notá -lo, mo c ensur ensurou. ou. Tive e ntão a hab ilid ad e d e m e defender desastradamente e de lançar sobre Prévan um olhar rápido, mas tímido e confundido, de propósito para o levar a crer que todo o me u rec rec eio era era q ue ele ele a divinhas divinhassse a c ausa ausa d a m inha p reoc upa ç ão . Depois da ceia, aproveitei a ocasião em que a boa Marechala contava uma das histórias que conta sempre, para me recostar na otomana, naquela atitude de abandono que se presta aos sonhos ternos. Não me desagradava que Prévan me visse assim; de fato, ele
honrou-me com uma atenção particular. O Visconde imagina decerto q ue o s me us tímido tímido s olhares nã o ousa ousa va m b usc usc a r os d o me u venc ed or; mas, dirigidos para ele da maneira mais humilde, logo me deram a certeza de que eu obtinha o efeito que pretendia produzir. Faltava ainda persuadi-lo de que o mesmo encantamento me penetrava; por isso, quando a Marechala anunciou que ia retirar-se, exclamei numa voz terna e indolente: "Oh! Meu Deus! E eu estava aqui tão bem!" Tod a via leva ntei-me ntei-me ; ma s, ante s d e me sep a ra r dela, p erguntei-l erguntei-lhe q ua is os seus p rojetos ojet os p a ra ter te r um p retexto et exto d e lhe d izer izer os me us e d e d a r a sa b er que esta esta ria em minha c a sa no d ia p osteri osterior or ao seg uinte. uinte. Sep a rá mo -nos p or fim. fim. Então, pus-me a refletir. Não duvidava que Prévan aproveitasse a espécie de entrevista que eu acabava de lhe marcar; que viesse bastante cedo para me encontrar só, e que me atacasse com vivacidade. Mas estava certa também de que, dada a minha reputação, ele me não trataria com aquela ligeireza que, por pouco hábito que se tenha, se emprega apenas com as mulheres dadas à ave ntura ntura ou c om a s que não têm exp exp eri eriênc ia ; e tinha tinha a vitór vitóriia c erta erta se ele pronunciasse a palavra amor, ou sobretudo se tivesse a pretensão de a ob ter de m im. É tã o c ôm od o ter de lid a r c om a s p ess essoa s d e p rinc íp ios! os! Algumas vezes é um pobre diabo apaixonado que nos desconcerta pela sua timidez, ou nos atordoa com os seus fogosos transportes; é uma febre que, como a outra, dá ardor e calafrios, e algumas vezes varia nos sintomas. Mas adivinha-se tão facilmente quando o plano plano é traç traç ad o d e a ntemão! ntemão! A chega da , a a titu titude, de, o tom, a s p a la vra vra s, tudo isso eu c onhe c ia d esd esd e a vésp vésp era. Não lhe descreverei por isso a nossa conversação, que o Visconde adivinha facilmente. Note apenas que, na minha fingida defesa, eu ajudava-o tanto quanto podia; embaraço, para lhe dar tempo a que falasse; razões más, para que pudessem ser combatidas; receio e desconfiança, para provocar os protestos; e da sua parte o perpétuo estribilho; peço-lhe apenas uma palavra; e da minha um silêncio, comunicando-lhe uma expectativa que fazia crescer o seu desejo; e, através de tudo isso, a mão que se toma cem vezes, que se retira sempre e nunca se recusa. Poderia passar-se assim um dia: passamos uma hora mortal. Estaríamos talvez ainda nisso se não ouvíssemos o ruído de uma carruagem entrando no pátio. Esse feliz c ont ra tem te m p o to rnou, nou , c om o é na tural, a s sua s instâ instâ nc ias ma is vivas; vivas; e e u, vendo chegado o momento em que já nada me podia surpreender, de po is d e m e te r prepa rad o pa ra um longo suspir uspiro, o, co nc ed i a p rec iosa osa palavra. Começaram a ser anunciadas as visitas e pouco depois rodeava-nos numerosa sociedade. Prévan pediu-me para vir no dia seguinte de manhã e eu c onsenti onsenti;; mas, mas, c uida uida ndo d a minha minha d efesa, efesa, ord ord enei à c ria da d e q uarto que durante a visita ficasse no meu quarto de dormir, donde, como
sabe, se vê tudo o que se passa no quarto de vestir, e foi neste que o recebi. O diálogo correu livremente, e como ambos tínhamos o mesmo desejo, breve nos pusemos de acordo; mas era preciso desfazer-nos da quele espe espe c tad or imp ortuno; ortuno; era era a í que eu queria queria c hega r. Então , pintand pintand o-lhe o-lhe a me u be lo p razer azer o qua d ro d a minha minha vida vida interior, nterior, p ersua ersua d i-o fac ilme nte d e q ue nã o c heg a ría mo s a e nc ontrar um momento de liberdade, que devíamos olhar como uma espécie de mila mila gre a q uele de q ue tínham tínham os go za d o na vésp vésp era, e q ue a ind a a ssim tivera p erig erig os exc ess essivos p a ra q ue eu m e e xp uses usessse a eles, eles, po is a to d o o instante alguém poderia entrar no salão. Não me esqueci de acrescentar que os hábitos da minha casa estavam assim estab estab elec elec ido s po rque, a té a o p resente, esente, nunc nunc a me tinham tinham c ontra ontra riad o; e insisti ao mesmo tempo na impossibilidade de os mudar, porque seria comprometer-me aos olhos dos meus servidores. Ele simulou entristecer, ficar amuado, dizer-me que era bem frágil o meu amor; e o Visconde adivinha quanto tudo aquilo me comovia! Mas, querendo vibrar o go lp e d ec isivo, c ha me i as lá grima grima s em me u soc soc orro. orro. Foi ex e xa ta me nte o Za ire, ire, vo us p leurezl eurezl. Julga Julga nd o d om inar-s inar-se, e na esperança, afetou estar possuído de todo o amor de Orosmane. Passado o lance teatral, voltamos às combinações. Não podendo ser durante o dia, pensamos escolher uma noite. Mas o meu porteiro tornava-se um obstáculo intransponível e eu fui de opinião que não se p od ia p ensa ensa r em sub orná-lo. orná-lo. Ele propôs-me a pequena porta do jardim: mas eu tinha-o previsto e inventei um cão que, manso e silencioso de dia, era um verdadeiro demônio durante a noite. A facilidade com que eu entrava em tod os aq ueles ueles po rmeno res era era de molde a exc exc itá-lo, tá-lo, o q ue d eu em resultado propor-me o expediente mais ridículo, e foi esse que eu aceitei. Primeiro falou-me dum criado dele, que era tão discreto como ele p róp rio: nis nisto nã o m e e nga na va Préva n, p ois, ois, em ta l ma téria téria , p a trã trã o e c ria do valiam valiam o m esmo esmo . Eu da ria uma grande c eia em minha minha c asa asa , à qual ele seria convidado. Chegado o momento, despedir-se-ia, simula imu land nd o sa ir só . O há bil c onfid onfid ente c ham aria aria a c arruag arruag em , a brir briria a po rta; e ele, ele, Prévan, em vez de subir, esquivar-se-ia com destreza. O cocheiro não chegaria a dar por nada; deste modo todos julgariam que ele tinha saído, e entretanto, reentrando em minha casa, tratar-se-ia apenas de conhecer o caminho mais curto para o meu quarto. Confesso que a minha primeira dificuldade foi de encontrar, contra tal projeto, razões suficient em ente ent e má s p a ra q ue ele t ivess ivesse a p retens et ensãã o d e a s d estrui estruirr. El Ele respondeu dando-me exemplos; segundo ele, não havia processo mais vulgar. Já várias vezes se servira dele. Era mesmo o de que fazia mais uso, uso, c om o o m eno s p erigo erigo so. Subjugada por estas razões irrespondíveis, revelei-lhe, cheia de candura, que havia uma escada secreta que conduzia perto do meu quarto de vestir; eu deixaria ficar a chave na porta e ser-lhe-ia possível
entrar e esperar, sem grandes riscos, que as criadas se recolhessem; e, para dar maior verossimilhança ao meu consentimento, exigia que o m om ent o d o e nc ont ro fo sse, sem sem d isc isc uss ussã o, de d e um a sub m iss issã o p erfeita . Era p rec iso iso te r juí juízzo , oh! m uito juíz juízo ! Enfim, Enfim, eu e u q ueri ue riaa a p ena en a s p ro va r-lhe -lhe o m eu a m or, ma s nã o sa tisfa tisfa zer o seu. A saída, esquecia-me dizer-lhe, seria pela pequena porta do ja ja rd im; ba sta va esp esp erar o romp er do d ia , o c ã o nã o d a ria si sina l. Àquela hora não passava vivalma, os criados estariam no sono mais profundo. Não se admire de tanto raciocínio disparatado; pense na nossa situação recíproca. Que necessidade tínhamos de uma me lhor co mb inaç ã o? El Ele q ueria ueria a p ena s q ue tud o viess viesse a sa b er-s er-se, eu estava certa de que ninguém o saberia. Combinamos para o dia p oste osterrior ao seg uinte. Repare o Visconde que era um assunto combinado, e que ninguém tinha ainda visto Prévan na minha companhia. Encontro-o a cear em casa de uma das minhas amigas, ele oferece-me o seu c am arote para uma p eç a nova , eu ac eito eito nele nele um lugar. lugar. Convido Convido a minha minha a miga miga a c ea r, durante durante o espetá espetá c ulo ulo e diante d e Préva n; qua se nã o p oss osso d isp ensa ensa r-me d e o c onvida r. El Ele a c eita e, d ois d ias d ep ois, ois, faz-me faz-me a visita visita exig exig ida p elas ela s b oa s norma s. É c erto q ue volta a visi visita r-me no d ia seg uinte uinte d e m a nhã; ma s, além além d e q ue a s vis visita s d e m anhã não c onta m, só só eu p od ia julga ulga r esta esta de ma siad o a press pressad a. De fat o, c oloc o-o no núme ro d a s p ess essoa s q ue m e e stã o m eno s lig a d a s, com um convite escrito para uma ceia de cerimônia. Posso bem dizer c omo Annette Annette e, toda via, via, eis eis tudo! Chega do o d ia fatal, o d ia em que eu devia perder a minha virtude e a minha reputação, dei as minhas instr nstruç uç õe s à fiel fiel Vitóri Vitóriaa e e la p ô-la ô-la s em exec uç ã o c om o va i ver. ver. Entreta ntreta nto, c heg ou a noite. Ti Tinham já entrad o m uitos uitos convidados, quando anunciaram Prévan. Recebi-o fazendo notar a polidez que havia entre nós. Coloquei-o ao lado da Marechala, como ac entuand o q ue era era p or interméd nterméd io d ela ela q ue nos tínhamo tínhamo s c onhec ido . A ceia não produziu mais do que um bilhetinho, que o discreto apaixonado encontrou meio de me entregar, e que queimei conforme o meu costume. Anunciava-me que podia contar com ele; e esta palavra essencial era rodeada de todas as palavras parasitas, como a mo r, felic felic id a d e, etc ., q ue nunc a fa lta m a festa festa s d esta esta na turez turezaa . À meia-noite, terminados os jogos, propus uma curta macedônia*. O meu duplo projeto era favorecer a evasão de Prévan e ao mesmo mesmo temp o torná-l torná-laa notad a, o que não p odia d eix eixar de a c ontece r, dada a sua reputação de jogador. Por outro lado, todos viriam a lem b ra r-se -se d e q ue eu e u não nã o tivera p ress essa d e fica r só. O jog jog o d urou urou ma is do que e u pensa pensa ra. O diab o tenta va-me e e u suc umb ia a o d esejo esejo d e ir co nsolar nsolar o imp a c iente p risione iro. Encaminhava-me para a minha perda, quando refleti que, logo que inteiramente me rendesse, deixaria de ter sobre ele o domínio bastante para o manter vestido com a decência necessária aos meus
p rojeto s. Tive a força d e resistir. Retroc ed i e voltei, b a sta nte a b orrec ida ; *Algum as pe ssoa s igno ram ta lvez que uma ma c ed ônia é um c onjunto d e vá rios jog os de azar, entre os quais cada jogador tem o direito de escolher quando lhe pertence d a r c a rta s. É uma d a s invenç õe s d o séc ulo.
a retomar o meu lugar naquele jogo que não findava mais. Por fim lá ac ab ou, e tod os se fora m em bo ra . Ficando só, chamei as criadas, despi-me muito depressa, e despedi-as. Está a ver-me , Visc ond e, vestid a ligeira me nte, c a minhand o c om passo tímido e circunspeto, e com a mão mal segura abrir a porta ao meu vencedor? Mal que me viu, o relâmpago não seria mais rápido. Que d igo eu? Fui venc ida , absolutam ente ve ncida , antes de ter pod ido dizer uma palavra para o deter ou me defender. Ele quis em seguida tom ar uma situaç ão ma is c ôm od a e m ais ad eq uad a às c irc unstânc ias. Amaldiçoava o vestuário que, dizia ele, o afastava de mim, e queria combater-me com armas iguais. Mas a minha extrema timidez opôs-se ao projeto, e as minhas ternas carícias não lhe deram tempo. Ocupouse d e o utra c oisa . Os seus d ireito s eram a d ob ra r e a s sua s p rete nsõe s vo ltara m. Então eu disse-lhe: "Escute: até aqui teve assunto para uma agradável narrativa a fazer às duas Condessas de B... , e a muitas outras; mas eu gostaria de saber como lhes vai contar o fim desta aventura." Ao falar assim, puxei o cordão da campainha com toda a força. Chegara a minha vez e o gesto foi mais rápido do que a sua resposta. Mal tinha ainda balbuciado, quando ouvi Vitória acudir, e chamar os criados que escondera no seu quarto, como eu lhe ord enara. Então , toma ndo o m eu tom de ra inha, co ntinuei, elevando a voz: "Saia, senhor, e não torne a aparecer diante de mim." Neste mo me nto, o grup o d os c ria d os entrou. O p obre Prévan p erde u a c ab eç a e, julga ndo ver uma c ilad a no que e ra no fundo ap enas um grac ejo, levou a mã o à espa da . Foi o mal que fez, pois um dos meus criados, vigoroso e valente, agarrou-o pelo meio do corpo e derrubou-o. Confesso que senti um terror mortal. Gritei-lhes que parassem e ordenei que lhe deixassem livre a retira d a , ce rtific a ndo -se a p ena s se e le sa ía d a minha c a sa . Os c riad os obedeceram, mas entre eles era grande o rumor. Indignavam-se que a lguém tivesse fa lta d o a o resp eito à sua virtuo sa senhora. Tod os acompanharam o infeliz cavaleiro, com algazarra e escândalo, como eu desejava. Só Vitória ficou e ocupamo-nos durante esse tempo a rep arar a d esorde m d o m eu leito. Os criados tornaram a subir sempre em tumulto; e eu, ainda muito emocionada, perguntei-lhes por que felicidade estavam ainda todos levantados; respondeu-me Vitória, contando que tinha dado de cear a suas das suas amigas, que tinham feito festa no quarto delas, enfim, tudo o que tínham os c om binad o. Ag ra d ec i a to d os e ma nd ei-os retira r, ordena nd o a um d eles q ue fosse imediatamente chamar o meu médico. Pareceu-me que estava
autorizada a temer o efeito do meu susto mortal; além disso, era um me io seg uro d e d ar curso e c eleb rida d e à ave ntura. O m éd ic o veio de fato, lam entou-me, e ordenou-me rep ouso. Depois, ordenei a Vitória que logo de manhã fosse tagarelar c om a vizinhanç a. Tudo d ec orreu tã o b em q ue, antes d o m eio-dia e a ssim q ue consenti que abrissem as janelas do meu quarto, já tinha à cabeceira uma das minhas vizinhas, muito devota, para saber a verdade e os pormenores daquela horrível aventura. Fui obrigada a desolar-me com ela, dura nte um a ho ra , sob re a c orrupç ã o d estes tem p os. Um m om ento depois recebi da Marechala o bilhete que junto aqui. Por fim, antes das c inc o horas, vi c heg a r, c om g ra nd e esp a nto me u, o senhor*... Vinha, segundo me disse, apresentar-me as suas desculpas, por um oficial do seu regimento ter podido faltar-me ao respeito a tal ponto. Soubera-o quando estava jantando em casa da Marechala e tinha imediatamente mandado ordem a Prévan para que se entregasse à prisão. Pedi que lhe perdoasse e ele recusou. Pensei então que, para lhe d a r a minha c ump lic ida d e, era preciso resigna r-me pe lo meu lad o e afetar uma atitude rígida. Mandei fechar a minha porta e dizer que estava incomodada. É à m inha solid ã o q ue o Visc ond e d eve e sta long a c a rta . Esc reverei uma a Ma da me de Volang es, que c om c erteza há d e fazer leitura pública, e onde verá esta história tal como deve ser contada. Esquecia-me de dizer que Belleroche está indignado, e quer absolutamente bater-se com Prévan. Pobre rapaz! Felizmente terei tempo de lhe acalmar os nervos. Enquanto espero, vou repousar os me us, que estã o fa tiga d os d e e sc reve r. Ad eus, Visc ond e. 25 d e Setem b ro d e 17* *, à noite.
*O c om and ante do reg iment o no qua l servia o senhor Préva n.
CARTA LXXXVI A MARECHALA DE... À MARQUESA DE MERTEUIL (Bilhete junto à p rec ed ente ) Meu Deus! Que me contais, minha querida amiga? É possível que Prévan seja capaz de semelhantes abominações! E logo com a minha amiga! Ao que uma pessoa se expõe! Mas então nem em sua casa uma pessoa está em segurança? Na verdade, tais acontecimentos consolam-me de ser velha. Mas do que nunca me po de rei co nsolar, é de ter sid o e m pa rte c a usad ora de terd es rec eb ido semelhante monstro em vossa casa. Prometo-vos que, se o que me d isseram é ve rd a d e, ele não tornará a p ôr os p és em minha c a sa . Tod a s as pessoas honestas procederão assim com ele, se fizerem o que é devido. Disseram-me que estáveis muito doente, e estou inquieta pela vo ssa sa úd e. Peç o-vo s q ue m e d eis a s vo ssa s d eseja d a s notíc ias; ou q ue mas mandeis dar por uma das vossas criadas, se vós mesma o não puderdes fazer. Não vos peço mais do que uma palavra para minha tranqüilidade. Se não fossem os meus banhos, que o médico não me permite interromper, teria ido esta manhã a vossa casa; e esta tarde tenho d e ir a Versa illes, sem p re p or c a usa d o a ssunto d o m eu sob rinho. Adeus, minha querida amiga; conte com a minha sincera am izad e po r toda a vida. Pa ris, 25 de Set em b ro d e 17* *.
CARTA LXXXVII A MARQUESA DE MERTEUIL A MADAME DE VOLANGES Escrevo-vos do meu leito, querida e boa amiga. O mais d esa grad á vel d os a c onte c ime ntos, e o ma is imp ossível d e p reve r, pô sme doente de susto e de tristeza. Não é que eu tenha de me censurar por algum motivo; mas é sempre tão penoso para uma mulher honesta, e que conserva a modéstia que convém ao seu sexo, fixar sobre si as ate nç ões púb lic as, que e u da ria tud o no mund o p ara ter po dido e vitar esta infeliz aventura, e não sei ainda se decidirei ir para o campo, espe rar que tudo tenha esque c ido .
Vou c onta r-vos d e q ue se trata . Encontrei em casa da Marechala de... um tal senhor de Prévan, que decerto conheceis de nome, e que eu não conhecia de outro modo. Mas, encontrando-o nessa casa, estava bem autorizada, pa rec e-me, a julgá -lo b oa c om pa nhia. Tem c erta e leg ânc ia d e figura e pa rec eu-me intelige nte. O a c aso e o ab orrec imento d o jogo d eixaramme só entre ele e o bispo de..., enquanto todos os outros convidados jog a va m o la nsq uené. Co nversa mo s os três a té à hora d a c eia. À m esa falou-se de uma novidade teatral, o que lhe deu ensejo a oferecer o seu camarote à Marechala, que aceitou; e ficou combinado que eu teria lá um lugar. Era para segunda-feira passada, no Teatro Francês. Como a Marechala vinha c ea r c omigo à saída do espetá c ulo, prop us à q uele senho r que a a c om p a nhasse, o q ue e le fez. Dois d ia s p a ssa d os fez-me uma visita que se passou nas conversas do costume, sem que houvesse absolutamente nada a notar. No dia seguinte veio ver-me de manhã, o que me pareceu um pouco apressado; mas julguei que, em vez de lho fazer sentir pela minha maneira de o receber, valia mais adverti-lo pela minha delicadeza de que não estávamos ainda tão intima me nte liga do s c om o e le p arecia supo r. Para isso enviei-lhe, nesse mesmo dia, um convite muito seco e muito cerimonioso para uma ceia que dei anteontem. Não lhe dirigi a palavra quatro vezes em toda a noite; e ele pelo seu lado retirou-se log o q ue ac ab ou de joga r. Have is de c onvir que a té a li nad a ha via q ue p a rec esse c ond uzir a uma a ventura. Depois do jogo, houve ainda uma macedônia que durou até p erto da s d ua s horas; e fina lme nte fui p a ra a c a ma . Havia pelo menos uma mortal meia hora que as minhas criadas esta va m rec olhid a s, q ua nd o ouvi ruíd o no m eu q ua rto. Ab ri o c ortina d o c heia d e susto e vi um hom em entrar p ela p orta que conduz ao quarto de vestir. Soltei um grito agudo; e reconheci, à luz da minha lamparina, esse senhor de Prévan, que, com uma ousadia inconcebível, me disse que não me alarmasse; que ia esclarecer-me o mistério d a sua c ond uta e m e sup lic a va q ue nã o fizesse ruíd o a lgum . Ao falar assim, ac end ia uma vela. Eu estava a tal ponto assustada que nem podia falar. O seu desembaraço e tranqüilidade petrificavam-me ainda mais, se é possível. Mas não tinha ainda dito duas palavras, já eu vira qual era o pretendido mistério; e a minha única resposta foi; como podeis crer, puxar o cordã o d a c amp ainha. Por uma incrível felic ida d e, tod os os c riad os se tinham reunid o no quarto de uma das minhas criadas, e não estavam ainda deitados. A minha criada de quarto, que, dirigindo-se aos meus aposentos, me ouviu falar com exaltação, ficou horrorizada, e chamou toda aquela gent e. Pod eis ima g inar o esc â nd a lo! Os c riad os esta va m furiosos; houve um momento em que um deles queria matar Prévan. Confesso que, nesse momento, me senti feliz por ter quem me auxiliasse. Refletindo agora, gostaria mais que só a minha criada de quarto tivesse acudido;
teria sido suficiente, e talvez se pudesse ter evitado o ruído, que me aflige. Em vez disso, o tumulto despertou os vizinhos, os criados falaram, e desde ontem a novidade corre todo Paris. O senhor de Prévan está preso por ordem do comandante do seu regimento, que teve a honestidade de passar por minha casa para me apresentar desculpas. Esta prisão vai ainda aumentar o ruído; mas não pude conseguir que fosse de outra maneira. A cidade e a corte inscreveram-se à minha porta, que está fechada para toda a gente. As poucas pessoas que vi d isseram -me q ue m e fa zia m justiça e q ue a indigna ç ã o c ontra o senho r de Prévan tinha chegado ao cúmulo. É certo que ele o merece, mas nem p or isso a a ventura d eixa d e ser muito d esa grad á vel. Além do mais, esse homem tem com certeza alguns amigos, e esses amigos devem ser maus; quem sabe, quem poderá saber o que irã o inventa r p a ra me u p rejuízo? Me u Deus, co mo uma mulher jove m é infeliz! Sem ter feito na d a , tem d e se p ôr ao a b rigo d a m a led ic ênc ia ; e é p rec iso a ind a sob rep or-se à c a lúnia . Dizei-me , pe ç o-vo s, o q ue te ríeis feito se estivésseis no meu luga r; enfim, tudo o que pensais. É sempre de vós que recebo as mais doces consolações e os mais prudentes conselhos; por isso é de vós que mais go sto d e o s rec eb er. Adeus, minha querida e boa amiga; conheceis os sentimentos q ue p a ra sem p re m e p rend em a vós. Beijo a vossa a d oráve l filha . Pa ris, 26 de Set em b ro d e 17* *.
TERCEIRA PARTE
CARTA LXXXVIII CECÍLIA VOLANGES AO VISCONDE DE VALMONT Apesar de todo o prazer que tenho, senhor, em receber as c artas do Ca valeiro Da nce ny, e se b em que não d eseje meno s d o q ue ele q ue nos p ossa mo s volta r a ver, sem q ue no s p erturb em , não ousei no enta nto fa zer que m e ha veis prometido. Em primeiro lugar, é demasiado perigoso: a chave que quereis que ponha no lugar da outra assemelha-se-lhe bastante na verdade: contudo, não deixa de haver certa diferença, e a Mamã repara em tud o, dá p or tudo. Pa ra ma is, se b em q ue a ind a nã o te nha sid o utiliza d a desde que aqui estamos, bastava uma falta de sorte; e se dessem por isso, esta ria p erdid a p a ra sem p re. Depois, isso parece-me muito mal; mandar fazer uma chave dupla é demasiada ousadia! É certo que teríeis a bondade de vos enc a rrega rd es d isso; m a s, me smo a ssim, se o viessem a sa b er, a c ensura e a falta recairiam sobre mim, visto que seria por mim que o teríeis feito. Enfim, tentei duas vezes apoderar-me dela, e certamente teria sido bastante fácil se se tratasse de outra coisa; mas não sei porquê de ambas as vezes me pus a tremer e nunca tive coragem. Por isso creio que é m elhor fic ar c om o e stam os. Se tiverdes a bondade de continuar tão prestável como até a q ui, sem p re enc ontrareis p roc esso d e m e e ntreg a r uma c a rta . Mesmo quando da última, sem o azar que num certo momento vos ob rigou a a fa sta r-vos d e rep ente, ter-nos-ia sido muito fá c il. Sinto bem que não podeis, como eu, ocupar-vos disso apenas; mas prefiro ter paciência e não arriscar tanto. Estou certa de que o senhor Danceny pensaria como eu: porque sempre que ele desejava qua lquer co isa que me c ustasse d ema siad o, ac ab ava po r c ed er. Entregar-vos-ei, ao mesmo tempo que esta carta, a vossa, a do senhor Danceny e a vossa chave. Não vos estou menos reconhecida por todas as atenções para comigo e suplico-vos que continueis a dispensá-las. É bem verdade que sou muito infeliz, e sem vós sê-lo-ia ainda muito mais: mas, apesar de tudo, trata-se de minha mãe; é preciso ter paciência. E desde que o senhor Danceny continue a amarme , e vó s nã o m e a b a nd one is, ta lvez venha m te mp os ma is felizes. Entretanto, tenho a honra de ser, senhor, cheia de rec onhec ime nto, a vo ssa m uito hum ild e e o b ed iente serva. 26 d e Setem b ro d e 17 * *.
CARTA LXXXIX O VISCONDE DE VALMONT AO CAVALEIRO DANCENY Se o seu caso não progride tão depressa como deseja, meu a migo , não é c om ig o q ue se d eve za nga r. Tenho m a is d e um o b stá c ulo a venc er. A vigilânc ia e a severida d e d e Ma d am e d e Volang es não são os únicos; a sua jovem amiga também me cria alguns. Seja frieza ou timidez, nem sempre faz o que lhe aconselho; e creio no entanto saber me lhor do que ela o que se d eve fazer. Tinha enc ontrad o um me io simp les, cô mo d o e seg uro, d e lhe entregar as cartas e até de facilitar, mais tarde, as entrevistas que o me u am igo d eseja; ma s nã o p ud e d ec idi-la a utilizá -lo. Estou ta nto m a is a flito, q uanto é c erto que nã o ve jo o utro p a ra o a p roxima r d ela; e que, até p or ca usa d a vo ssa c orresp ond ênc ia , rec eio inc essa ntem ente q ue nos c om p rom eta mo s os três. Ora, deve imaginar que não quero correr esse risco, nem que am bo s a ele se e xpo nham . Contudo ficaria verdadeiramente penalizado se a falta de c onfianç a d a sua a miguinha m e imp ed isse d e vo s ser útil: talvez o m eu amigo fizesse bem em lhe escrever nesse sentido. Vejo o que deseja fazer, é a si que cabe decidir; porque não basta ser prestável aos amigos, é também preciso sê-lo da maneira que lhes agrada. Poderia ser também um processo de se assegurar dos sentimentos que ela lhe dedica; porque a mulher que teima numa opinião não ama tanto c om o d iz. Não que suspeite da inconstância a sua eleita; mas é muito nova; tem muito medo da Mamã que, como sabe, procura apenas prejudicá-lo; e seria talvez perigoso deixar passar muito tempo sem a oc upa r a seu resp eito. No entanto , não se inquiete m uito c om o q ue lhe d igo . No fundo , não tenho nenhum motivo de desconfiança; é apenas a solicitude da amizade. Não me alongo mais porque tenho alguns assuntos meus a c uida r. Não estou tão a diantad o c omo o meu a migo; ma s am o c om a me sma força , e isso c onsola; e m esmo q ue nã o t enha êxito p ela m inha p a rte, se c onseg uir ser-lhe útil, da rei sem p re p or be m em p reg a d o o me u tempo. Ad eus, meu a migo. Ca stelo d e..., 26 de Setem b ro d e 17 * *.
CARTA XC A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT
Desejo m uito, senho r, que esta c a rta nã o vos fa ç a sofrer; ma s, se assim não for, que ao menos a vossa dor seja suavizada pela que experimento ao escrevê-la. Deveis conhecer-me o bastante, presentemente, para estardes bem certo de que o meu desejo é não vos magoar; mas vós, sem dúvida, não quereríeis também mergulharme num d esesp ero et erno. Sup lic o-vos p ois, em nom e d a terna a miza d e que vos prometi; em nome até dos sentimentos porventura mais vivos, mas certamente não mais sinceros, que tendes por mim, que não voltemos a ver-nos; deveis partir. E até lá, evitemos sobretudo essas conversas particulares e demasiado perigosas, durante as quais, por qualquer força inconcebível, sem nunca conseguir dizer-vos o que q uero, p a sso o te mp o a esc uta r o q ue nã o d eve ria o uvir. Ainda ontem, quando viestes juntar-vos a mim no parque, eu tinha c om o único p rojeto d izer o q ue ho je vo s esc revo ; e q ue fiz, afina l, senão ocupar-me do vosso amor?... do vosso amor, ao qual nunca p od erei c orresp ond er! Ah! por pied a d e, afa sta i-vos d e m im! Não receeis que a ausência altere os meus sentimentos por vós: como conseguiria vencê-los, quando já nem tenho coragem para os c om b a ter? Co mo ved es, d igo -vos tud o; temo me nos c onfessa r a m inha fra q ueza d o q ue suc umb ir a e la . Perdi o d om ínio d os sentiment os, ma s conservarei o das ações; sim, conservá-lo-ei, estou resolvida a isso; me smo à c usta d a vida . Ai! Não vai longe o tempo em que julgava que nunca teria tais combates a sustentar! Felicitava-me talvez demasiado. O céu puniu cruelmente este orgulho; mas, cheio de misericórdia, no próprio momento em que fere, adverte-me ainda antes da queda; e eu seria duplamente culpada se continuasse a ser imprudente, prevenida já da minha pouc a forç a. Haveis-me dito cem vezes que não queríeis uma felicidade comprada com as minhas lágrimas. Ah! não falemos já de felicidade; d eixa i-me rec up erar um p ouc o d e sosseg o. Se atenderdes ao meu pedido, que novos direitos não tereis sobre o meu coração? Mas desses, assentes na virtude, não precisarei d efend er-me . Co mo serei feliz no m eu rec onhec ime nto! Ficarei a dever-vos a doçura de gozar sem remorsos um sentimento delicioso. Neste momento, assustada com os meus sentimentos e pensamentos, receio igualmente ocupar-me de vós e de mim; só de pensar em vós me assusto: quando não posso fugir à vossa ima ge m, co mb ato -a ; não a afa sto, expulso-a. Não será m elhor p a ra a mb os c essa r este e sta d o d e p erturb a ç ã o e de ansiedade? Vós, cuja alma sempre sensível, mesmo no meio dos erros, se conservou amiga da virtude, tereis certamente piedade da minha dolorosa situação; sei que não rejeitareis a minha súplica! Um interesse mais doce, e não menos terno, sucederá a estas agitações violentas; então, devendo-vos a vida, a existência ser-me-á cara, e na
alegria do meu coração direi: esta tranqüilidade, devo-a ao meu amigo. Parece-vos que este pequeno sacrifício, que vos não imponho, mas peço, é um preço demasiado caro para dar termo aos meus tormentos? Ah! se para vos tornar feliz bastasse aceitar a infelicidade, p od eis c rer, nã o he sita ria um m om ento ... Mas c om ete r uma falta !... Não , me u a mig o, nã o, a nte s mo rrer mil vezes. Assaltada pela vergonha, à beira dos remorsos, temo os outros e a mim própria; coro quando estou acompanhada, e tremo na solidão; a minha vida é apenas dor; só por vossa vontade terei paz. As minhas resoluções mais louváveis não bastam para me tranqüilizar; formulei esta orde m e no enta nto p a ssei a no ite b anha d a em lág rima s. Eis a vossa amiga, aquela que amais, a pedir-vos confusa e sup lic a nte o rep ouso e a inoc ênc ia . Ah! meu Deus! sem vós, nunca ela teria sido obrigada a pedido tão humilhante. Nada vos censuro; sinto demasiado por mim própria como é difícil resistir, a um sentimento imperioso. Uma queixa não é um murmúrio. Fazei por generosidade o que faço por dever; e a todos os sentimentos que me haveis inspirado ac resc enta rei uma eterna g ratidã o. Ad eus, ad eus, senho r. 27 d e Setem b ro d e 17 * *.
CARTA XCI O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL Consternado pela vossa carta, ignoro ainda, senhora, como lhe poderei responder. Sem dúvida, se for preciso escolher entre a vossa infelicidade e a minha, sacrifico-me e não hesito; mas assuntos tão importantes merecem, se bem me parece, ser antes de mais nada discutidos e esclarecidos; mas como consegui-lo, se não nos devemos fa la r, nem ver? Pois quê! Apesar de nos unirem os sentimentos mais doces, um vã o terror b a sta rá p a ra nos sep a ra r, talvez irrem ed ia velmente ! Debalde a terna amizade, o ardente amor, reclamarão os seus direitos; essas vozes não serão escutadas; e porquê? Que perigo tão premente vos ameaça então? Ah! acreditai, tais receios, tão ligeira mente c onc eb ido s, sã o, só p or si, fortes motivos d e seg ura nç a . Permiti que vo-lo diga, reencontro aqui o vestígio das impressões desfavoráveis que a meu respeito vos deram. Não se treme junto do homem que se estima; não afastamos, principalmente, quem julgamos digno de alguma amizade; tememos e evitamos apenas o homem perigoso.
No entanto, existiu jamais alguém tão respeitador e submisso como eu? Como notais, tomo já cautelas com as palavras, já não me pe rmito aq ueles nome s tão do c es, tão c aros a o- meu c oraç ão , que em seg red o nã o c essa d e vo-los d irigir. Já não sou o amante fiel e infeliz, recebendo consolações e conselhos duma amiga terna e sensível; sou o réu perante o juiz; o esc ra vo p erante o senho r. Estes novos títulos imp õe m sem d úvida novos deveres; assumo o compromisso de os cumprir a todos. Escutai-me, e, se depois me condenardes, submeto-me e parto. Prometo ainda mais; preferis o despotismo que julga sem ouvir? Tendes a coragem de ser injusta ? Ordena i e ob ed ec erei sem p re. Mas, ao menos, que essa sentença ou essa ordem a ouça da vossa boca. "E porquê?", perguntais. Ah! se fazeis tal pergunta, c onhec eis po uco o a mo r e o m eu c oraç ã o! Então o ver-nos ainda uma vez não significaria nada? E quando finalmente a vossa boca lançar o desespero sobre a minha alma, talvez um olhar consolador a impeça de sucumbir. E se for obrigado a renunciar ao amor e à amizade para que vivo, ao menos podereis ver a vossa obra, e ficar-me-á a vossa piedade; mesmo que não mereça este pequeno favor, arrisco-me, parece-me, a pagá-lo bem caro, na esperança de o obter. Será possível que me afasteis de vós? Permitis então que nos tornemos dois estranho s? Que d igo? Assim o desejais; e enquanto me afirmais que a minha ausência não alterará os vossos sentimentos, apressais-me a partida para mais fa c ilme nte os d estruir. Pois se já dizeis que a gratidão os substituirá! Assim, o sentimento que obteria de vós um desconhecido pelo mais leve serviço, ou até o vosso inimigo d esd e q ue já vo s nã o a fronta sse, eis o q ue m e o ferec eis! E quereis que o coração se me alegre. Interrogai o vosso: se o vosso a ma nte, se o vosso a migo , um d ia vos falassem em g ra tidã o, nã o d iríeis indigna d a : "Ret ira i-vo s, ing ratos?" Aqui me detenho e suplico a vossa indulgência. Perdoai a expressão duma dor de que sois autora; não será obstáculo à minha submissão total. Mas peço-vos em nome desses sentimentos tão doces, que vós própria vos atribuís, aceitai ouvir-me; e por piedade ao menos pelo tormento mortal em que me haveis lançado, não retardeis o momento. Adeus, senhora. 27 d e Setem b ro d e 17 * *, à noite.
CARTA XCII O CAVALEIRO DANCENY AO VISCONDE DE VALMONT
Oh! meu am igo ! a sua c arta g elou-me de rec eio. Cec ília... Meu Deus, será possível! Cecília já me não ama. Sim, vejo esta verda de terrível através d o véu c om que a sua a mizad e a c erc a. Quis-me p rep a ra r p a ra rec eb er esse g olpe m ortal; a g ra d eç o-lhe a s c a utelas, ma s p od em os imp ô-la s a o a mo r? Ele a ntec ip a -se e m tud o o q ue o interessa , não p rec isa q ue lhe d iga m a sua sorte, ad ivinha -a. Da minha já não duvido; fale-me sem rodeios, pode fazê-lo, suplico-lhe. Conte-me tudo: o que fez nascer as suas suspeitas, o que as confirmou. Os mínimo s p ormenores sã o p rec iosos. Esforce-se, principalmente, por se recordar das palavras dela. Uma palavra em vez de outra pode transformar toda uma frase; a mesma tem às vezes dois sentidos... O meu amigo pode ter-se eng a na d o: a i! proc uro iludir-me a inda . Que lhe d isse e la ? Fez-me alguma censura? Não se defende ao menos dos seus erros? Eu devia ter previsto esta mudança pelas dificuldades que, de há um temp o pa ra c á, ela e ncontra em tudo. Ora o a mor não c onhece ta nto s ob stá c ulos. Que d evo fa zer? Que m e a c onselhais? Se e u tenta sse vê -la ? Será impossível? A ausência é tão cruel, tão funesta!... E ela recusou um meio de me ver!... O Visconde não me explica do que se tratava; se o perigo era demasiado grande, ela bem sabe que não quero que se arrisque muito. Mas como conheço também a sua prudênc ia, nem po sso pa ra minha infelic ida d e a c red itar em tal. Que vou eu fazer agora? Como hei-de escrever-lhe? Deixá-la suspeitar dos meus receios? Talvez a desgostem, e, se são injustos, nunca me perdoaria o tê-la afligido. Escondê-los? É enganá-la, e não sei dissimular p era nte ela . Oh! se e la soub esse o q ue sofro, o me u ma l c om ovê-la -ia . Sei que é sensível, tem um coração excelente e possuo mil provas do seu amor. É demasiado tímida, algumas vezes indecisa, e tão jovem! A mãe trata-a com tanta severidade! Vou escrever-lhe; saberei c onter-me ; ped ir-lhe-ei som ente q ue c onfie p lena mente no m eu a migo. Mesmo que recuse mais uma vez, não poderá zangar-se com o meu p ed id o; e ta lvez c onsinta . A si, meu a migo , peç o-lhe m il perdõ es, por ela e p or mim. Asseguro-lhe que ela aprecia o valor dos seus cuidados, pelos quais lhe está grata. Não é por desconfiança, é por timidez. Seja indulgente; é a ma is be la fac e d a am izad e. A sua é -me prec iosa e nem sei como ag rad ec er tudo o que tem feito p or mim. Adeus, vou escrever-lhe já... Sinto que todos os meus receios voltam; quem me diria que alguma vez me custaria escrever-lhe! Ai! ainda ontem era o meu mais do c e p razer. Ad eus, meu a migo; co ntinue a p roteg er-nos e tenha pied ad e d e mim.
Pa ris, 27 d e Set em b ro d e 17 * *.
CARTA XCIII O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES (Junta à preced ente) Não lhe p osso e sc ond er co mo fiq uei aflito a o sa b er por Valmont a escassa confiança que continua a ter nele. Não ignora que é meu a migo , a únic a p essoa q ue nos p od e a proxima r: julgue i que estes títulos bastariam; vejo com mágoa que me enganei. Poderei ao menos esperar que me diga as suas razões? Não haverá ainda outras dificuldades que a impeçam de ter confiança nele? Não posso no entanto, sem que mo diga, perceber o mistério da sua conduta. Não ouso pôr em dúvida o seu amor, sei ta mb ém q ue nã o o usa ria tra ir o m eu. Ah ! Cec ília !... É então verdade que recusou um meio* de me ver? Um meio simples, cô mo d o e seg uro? E é a ssim q ue m e t em a mo r! Uma tã o c urta a usênc ia p ôd e a ltera r a t a l p ont o o s seus sentiment os! Mas para quê enganar-me? Para quê repetir que continua a amar-me, e cada vez mais? A sua Mamã, ao destruir o seu amor, destruiu-lhe também a candura? Se ela lhe deixou ao menos alguma p ied a d e, nã o será sem d or que a Ce c ília sa b erá o s tormento s horríveis q ue m e c a usa . Ah ! sofreria me nos a o m orrer. Diga-me pois: o seu coração fechou-se definitivamente para mim? É certo que me esqueceu inteiramente? Graças à sua recusa, não sei quando ouvirá as minhas queixas, nem quando lhes responderá. A a miza d e d e Va lmo nt tinha a sseg ura d o a nossa c orresp ond ênc ia: ma s a Cecília não quis; achava-a difícil, preferiu que ela fosse mais rara. Não , não a c red itarei ma is no a mo r, na b oa fé. Em q uem a c red ita r, se a Cec ília m e enga nou? Responda-me pois: é certo que já não me tem amor? Não, isso não é possível; a Cecília ilude-se a si própria; calunia o seu próprio coração. Um receio passageiro, um momento de desânimo, que o amor depressa fez desaparecer: não é verdade, minha Cecília? Ah! Sem dúvida, e faço mal em a acusar. Como eu seria feliz se me tivesse enganado! Como gostaria de pedir ternas desculpas, de compensar este mo mento d e injustiç a c om um a e ternida de d e a mo r! Cecília, Cecília, tenha piedade de mim! Consinta em me ver; a c eite tod os os me ios! Veja o q ue p rod uz a a usênc ia: rec eios, susp eita s, ta lvez frieza ! Um só olha r, uma só p a lavra , e serem os felizes. Ma s q uê! Posso eu ainda falar de felic ida d e? Talvez esteja p erdida pa ra mim, perdida p ara sem p re. Tortura d o p elo rec eio, c ruelmente a p ertad o entre a susp eita
injusta e a mais cruel das verdades, não me posso agarrar a nenhum pe nsam ento; o p ouc o q ue c onservo d e vida é p ara sofrer e a ma r. Ah! Cecília! É a única pessoa que tem o direito de me embelezar a existência, de ma tornar cara; e espero das suas palavras o regresso à felic ida de ou a c erteza dum de sespe ro e terno. Pa ris, 27 de Set em b ro d e 17* *.
* Dance ny não sab e d e q ue me io se trata ; rep ete ap ena s a e xpressão de Valmont.
CARTA XCIV CECÍLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY Nada percebo da sua carta, a não ser a dor que me causa. O que lhe contou então o senhor de Valmont e o que é que lhe pôde fa zer crer que já nã o o a ma va ? Ta lvez isso fo sse b em me lhor pa ra mim,
porque certamente estaria menos atormentada; e é muito duro, am and o-o de tal ma neira, ver c om o julga sem pre que nã o tenho razão , e q ue, em vez d e m e c onsolar, seja d e si que m e vê m sem p re a s d ores que ma is ma go am . Julga que o e nga no e m into! Fa z uma linda idé ia d e mim, não ha ja d úvid a! Mas mesmo que mentisse como me censura, que interesse teria nisso? Ce rta me nte, se já o nã o a ma sse, ba sta va -me d izê-lo, e to d os me elogiariam; mas, por infelicidade, este amor é mais forte do que eu; e ainda por cima por alguém que não tem qualquer obrigação para comigo! Que fiz eu para tanto se zangar? Não ousei roubar uma chave, porque receei que a Mamã desse por tal e isso me trouxesse mais dissabores, e a si também por minha causa; e, além disso, parece-me uma coisa muito feia. Mas fora apenas o senhor de Valmont quem me falara nisso; não podia adivinhar se estava de acordo ou não, pois supus que de nada sabia. Agora sabendo o que deseja, recuso por acaso roubá-la? Fá-lo-ei amanhã mesmo; e veremos então se ainda tem a lgum a c oisa a d izer. O senhor de Valmont pode muito bem ser seu amigo; mas julgo que o meu a mo r vale be m a am izad e d ele; e no enta nto é sem pre ele quem tem razão e nunca a minha pessoa. Afirmo-lhe que estou muito za nga d a . Ta nto lhe faz, é c la ro, po is sa b e q ue me a c a lmo log o d e seguida: mas desde que tenha chave, posso vê-lo quando bem me ap etec er; e ga ranto -lhe q ue nã o hei de querer qua ndo me tra tar assim. Prefiro sofrer p or minha c ulp a d o q ue p ela sua : veja b em o q ue fa z. Podíamo-nos amar tanto, se quisesse! E ao menos as únicas penas que teríamos, seriam as provocadas pelos outros! Asseguro-lhe que, se fosse dona do meu destino, nunca lhe daria motivo de queixa: mas se não acredita em mim, seremos para sempre infelizes e a culpa não será minha. Espero que nos poderemos ver em breve e que então nã o te rem os oc a siã o d e no s irrita rmo s c om o a go ra . Se p ude sse p reve r tud o isto, teria log o roub a d o a c ha ve: ma s na verdade julgava proceder bem. Não se zangue pois comigo, peço. Não esteja triste e ame-me tanto quanto eu o amo: dessa forma ficarei muito c ontente. Adeus, querido amigo. Ca stelo d e. .., 28 de Setem b ro d e 17 * *.
CARTA XCV CECÍLIA VOLANGES AO VISCONDE DE VALMONT
Peço-vos, senhor, a bondade de me entregardes de novo a c have que me tínheis da do pa ra pô r no luga r da outra ; visto q ue tod os o q uerem, sou ob riga d a a c onsentir. Não sei por que haveis c onta d o a o senhor Danc eny que eu já o não amava; creio que nunca vos dei lugar a pensar tal coisa; tudo isso o fez sofrer e a mim ta mb ém . Sei b em q ue sois a migo d ele; ma s isso nã o é razã o p a ra o fa zer infeliz, nem a mim tã o p ouc o: Dar-me-íeis p ra zer se lhe ma nd á sseis d izer o c ontrá rio, da p róxima vez q ue lhe esc reve rd es, e que te nde s be m a c erteza: po r que é em vó s que e le tem c onfianç a; e eu, quand o d igo uma c oisa e não me ac red itam, não sei já o q ue faç a. Acerca da chave, podeis estar tranqüilo; lembro-me bem do que me rec om end áve is na vo ssa c arta. No e ntanto, se a inda a tend es e m a quiserde s da r de novo, prome to relê-la c om ate nç ão . Se pudesse ser amanhã à hora do jantar, dar-vos-ia a outra chave depois de amanhã ao almoço, e devolver-ma-íeis da mesma maneira que a primeira. Desejava que tudo isto não demorasse muito, porque nos arriscaríamos menos a que a Mamã desse por qualquer coisa. E depois, assim que tiverdes a chave, tereis a bondade de a utilizar para receber as minhas cartas; dessa forma, o senhor Danceny terá mais frequentemente notícias minhas. Na verdade será mais cômodo que no presente; mas a princípio tive muito medo. Peço-vos q ue m e d esc ulp eis e e sp ero que não d eixeis d e ser tão a tenc ioso c om o d a ntes. Fica r-vos-ei sem p re m uito g ra ta . Tenho a honra de ser, senhor, vossa muito humilde e obediente serva. P. S. - Assim que tiverdes a chave, peço-vos que tenhais cuidado e que ningué m a veja, po rq ue seria muito p erigo so. 28 d e Setem b ro d e 17 * *.
CA RTA XCVI O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Aposto que, depois da sua aventura, espera todos os dias os me us c ump rime ntos e e log ios; nem seq uer duvido q ue e steja um p ouc o ab orrec ida c om o m eu longo silênc io; ma s que quer? Sempre pensei que, quando já não há senão elogios a dar a uma mulher, podemos estar descansados a seu respeito e ocuparmonos sossegadamente de outra coisa. No entanto agradeço-lhe pela minha parte e felicito-a pela sua. Para a tornar verdadeiramente feliz, c onc ordo até q ue, desta vez, ultrap assou a minha expe c tativa. Depois d isto, vejam os se p ela m inha p a rte terei ao me nos c orresp ond id o à sua .
Não é d e M a d a me d e Tourvel q ue lhe que ro fa la r; o seu p a sso lento desagrada-lhe. A minha amiga só gosta dos casos arrumados. Aborrecem-na as cenas que se vão lentamente desenrolando; e eu nunc a t inha a p rec iad o o p ra zer que sinto nesta s p retensa s lentidõ es. Sim, gosto de ver, de apreciar, esta mulher prudente, lançada, sem d isso se a p erce b er, num c a minho q ue nã o p ermite reg resso e c uja la de ira ráp id a e p erigo sa a leva a seg uir-me, mesmo c ontra vonta de e à força . Assustada com o perigo que corre, gostaria de parar, mas não pode. As cautelas e a habilidade podem tornar-lhe os passos mais c urtos; ma s eles suc ed er-se-ã o inevitavelme nte . Às vezes, nã o ousa nd o fitar o perigo, fecha os olhos e, deixando-se guiar, entrega-se aos meus cuidados. Muitas vezes um novo terror fá-la redobrar de esforços. Num pavor mortal, quer ainda voltar atrás; gasta as forças para subir penosamente um curto espaço; e em breve um mágico poder a coloca de novo mais perto daquele mesmo perigo de que em vão pretendera fugir. Então, tendo em mim o único guia e apoio, sem pensar em me censurar pela queda inevitável, implora-me que a retarde. As preces fervorosas, as humildes súplicas, tudo o que os mo rtais, no seu m ed o, oferec em à Divinda de , rec eb o-o eu d ela; e q uer a minha amiga que, surdo aos seus pedidos e destruindo eu próprio o culto que ela me presta, me sirva, para a aniquilar, do poder que ela invoca para a amparar! Ah! deixe-me ao menos o tempo de observar estes toc a ntes c om b a tes entre o a mo r e a virtud e! Pois q uê! Esse m esmo e sp etá c ulo q ue a fa z c orrer ao tea tro c om ardor, e que aí aplaude com entusiasmo, julga-o menos fascinante na vida real? Os sentimentos duma alma pura e terna, que teme a felicidade que deseja e não para de se defender, mesmo quando deixa de resistir, escuta-os com exaltação; não serão eles sem preço p a ra a q uele que os fez na sc er? Eis no enta nto os p razeres d eliciosos q ue esta mulher celestial me oferece todos os dias! E censura-me que lhes saboreie as delícias! Ah! Cedo virá o momento em que, degradada pela queda, ela não será pa ra mim ma is do que uma mulher vulga r. Ma s esq ueç o, ao falar de la , que o nã o q ueria fazer. Não sei que forç a me prende e sem c essar me atrai a e la, me smo qua ndo a ultrajo. Afastemos essa imagem perigosa; recuperemos a calma para tratar dum assunto mais alegre. Trata-se da sua discípula, presentemente minha, e espe ro q ue ago ra m e rec onheça em a çã o. Desde há a lguns dias, mais be m trata d o p ela terna d evota , por conseguinte menos ocupado com ela, notara eu já que a pequena Volanges é com efeito muito bonita; e que, se era parvoíce estar ap a ixona do po r ela c om o Da nc eny, talvez não o fosse m enos da minha parte não procurar junto dela a distração que a solidão me tornava necessária. De resto pareceu-me justo pagar-me dos trabalhos que
tinha tido por ela; lembrava-me além disso que a minha amiga ma tinha oferecido, antes que Danceny tivesse qualquer pretensão; e considerava-me autorizado a reclamar alguns direitos sobre um bem que ele possuía apenas devido à minha recusa e abandono. A cara gentil da rapariguinha, a boca tão fresca, o ar infantil, o próprio embaraço, fortificavam estas sábias reflexões; resolvi portanto agir, e a em presa foi c oroa d a d e êxito. Tenta já a d ivinhar o m eio p elo q ual sup la ntei tã o d ep ressa o ente querido; qual a sedução conveniente para esta idade e inexperiência. Evite tanto trabalho; não me servi de nenhuma. Enquanto que, ma nejand o c om hab ilid ad e a s a rma s d o seu sexo, a m inha c ara a miga triunfava pela sutileza; eu, devolvendo ao homem os seus direitos imprescritíveis, subjugava pela autoridade. Seg uro d a p resa se p ud esse e sta r a sós c om ela, nec essitava d e astúcia apenas para me aproximar, e a de que me servi quase nem me rec e e sse no me . Ap roveitand o-me d a primeira c a rta que Danc eny envia ra à sua be la e d ep ois de a ter prevenido p or um sinal co mb inad o e ntre nós, em vez de a minha habilidade servir para lha entregar, serviu-me apenas para não encontrar um meio de o fazer: a impaciência que fiz nascer, fingi compartilhá-la, e depois de ter provocado o mal, indiquei o remédio. A donzela dorme num quarto que tem uma das portas para o corredor; mas, como mandam as regras, a Mamã guardara a chave. Queria a pe nas ap od erar-me d ela. Nad a ma is fác il; ba stava -me d ispo r d ela p or dua s horas e trata ria d e ob ter outra igua l. Entã o, c orresp ond ênc ia, entrevista s, enc ont ros noturnos, tud o se tornava cômodo e seguro: no entanto, será capaz de acreditar? A virge m tímida teve m ed o e rec usou. Outro q ua lq uer fic a ria d esolad o; eu vi apenas a oportunidade para um prazer mais picante. Escrevi a Danceny queixando-me da recusa, e fiz tanto e tão bem que o nosso tonto não descansou enquanto não conseguiu, exigindo até, que a receosa apaixonada acedesse ao meu pedido e se entregasse tot a lme nte a os me us c uid a d os. Agradava-me, confesso, ter assim mudado de papel e que o jovem fizesse por mim aquilo que esperava que eu fizesse por ele. Esta idéia duplicava, a meus olhos, o valor da aventura, assim, logo que possuí a preciosa chave, apressei-me a utilizá-la. Foi a no ite p a ssa d a . Depois de me ter certificado de que tudo estava tranqüilo no castelo, armado de lanterna de furta-fogo e com o vestuário que a hora permitia e a circunstância exigia, fiz a primeira visita à sua pupila. Tinha m and ad o p rep arar tudo (e a té p or ela própria), para p od er entrar sem ruíd o. Esta va no p rime iro sono , aq uele q ue é p róp rio d a id a d e d ela, de forma que pude chegar até ao leito sem a acordar. A princípio estive tentado a ir mais longe e a fazer-me passar por um sonho; mas
temendo o efeito da surpresa e o barulho que se lhe seguiria, preferi acordar com precaução a bela adormecida, e consegui com efeito evitar o g rito q ue rec ea va. Depois de lhe ter acalmado os primeiros receios, e como afinal nã o esta va a li p a ra c onv ersa r, a rrisq uei algum a s liberd a d es. Sem dúvida não lhe ensinaram bem no convento a quantos perigos está exposta a tímida inocência e tudo o que ela deve resguardar para não ser surpreendida; porque, juntando toda a ate nç ão e tod as as forç as pa ra se d efend er d um b eijo, que era ap ena s um falso a taq ue, tod o o resto era ab a ndo nad o sem d efesa; co mo nã o me aproveitar! Alterei então a táctica e num ápice ocupei o meu posto. Aqui pensamos ambos estarmos perdidos; a pequena, toda assustada, quis gritar de verdade; felizmente as lágrimas tinham-lhe roubado a voz. Procurara também o cordão da campainha, mas a minha hab ilida de seg urou-lhe o b raç o a tem po . "Que queres fazer", disse-lhe então, "perderes-te para sempre?” Que m e impo rta se vier alguém. A q uem c onvenc erás que não estou a qui co m o teu c onsentime nto? Quem m e teria fornec id o o meio d e e ntra r senã o t u? E c om o e xp lic a rá s a existênc ia d esta c ha ve q ue só pude arranjar por teu intermédio, que não arranjaria sem a tua ajuda?" Este c urto d isc urso nã o a c a lmo u nem a d or, nem a c ólera ; ma s trouxe a sub missã o. Não sei se o tom lhe d a va eloq üênc ia ; na ve rd a d e, nã o seria com certeza embelezado pela postura em que me encontrava. Uma das mãos empregada na força, a outra no amor, que orador em semelhante posição pretenderia ser gracioso? Se está a ver bem, c onco rda rá que em troc a era prop ícia a o a taq ue; ma s sou um p ateta , como diz, e a mulher mais simples, uma colegial, me leva como a uma criança. Esta , se b em q ue d esolad a , p erce b ia q ue era p rec iso to ma r uma decisão, e negociar. Encontrando-me inexorável aos pedidos, foi preciso passar às ofertas. Julga se calhar que vendi bem caro um posto avançado tão importante: não, prometi ceder tudo por um beijo. É verdade que depois dele, não cumpri a promessa; mas tinha boas razões. Porventura tínhamos combinado se o beijo seria passivo ou ativo? À força de negociar, acabamos por concordar num segundo; e este, assim foi combinado, seria passivo. Então, tendo-lhe guiado os tímidos braços em torno do meu corpo, e apertando-a amorosamente com um dos meus, o doce beijo foi com efeito dado; mas perfeita e belamente dado; de tal forma enfim que o próprio amor não poderia ter feito m elhor. Ta nta b oa fé me rec ia rec om p ensa , p or isso a c ed i imediatamente ao pedido. A mão retirou-se; mas não sei por que a c a so, enc ontrei-me e u p róp rio no luga r d ela. Supõ e-me já a p ressa d o e ativo, não é verda d e? De forma nenhuma. Tom ei o g osto d a lentidã o, digo-lhe. Certo d e c hega r, pa ra quê ap ressar a viag em ? A sério, tinha todo o vagar para observar por uma vez o poder da ocasião, e encontrava-a aqui despida de toda a ajuda alheia. Ela
tinha no entanto de c omb ater o a mor; e o a mor ap oiad o p elo p udor ou p ela vergonha ; e fortific a d o sob retud o p ela ira q ue eu p rovo c a ra . Tud o o que havia entre nós era a ocasião; mas estava ali, oferecida, p resente , e o a mo r esta va long e. Para certificar as minhas observações, tive a malícia de emp rega r ap enas a d ose d e força que a do nzela p od ia c omb ater. Somente, se a encantadora inimiga, abusando da minha bondade, se encontrava pronta a escapar-se-me, continha-a pelo me smo temo r, que já a nte s tã o felizes resulta d os d era. Pois b em ! Sem mais trabalho, a terna amorosa, esquecendo os juramentos, começou por ceder e acabou consentindo; não sem que após o primeiro momento as censuras e as lágrimas não tivessem voltado simultaneamente; ignoro se eram verdadeiras ou fingidas; mas, como sucede sempre, cessaram logo que me conduzi de maneira a justificála s d e no vo. Finalmente, de concessão em censura, e de censura em concessão, só nos separamos depois de satisfeitos e de acordo quanto ao enc ontro d esta no ite. Só me retirei para os meus aposentos ao raiar do dia, e estava exausto de fadiga e sono, no entanto sacrifiquei ambos ao desejo de assistir de manhã ao pequeno almoço; adoro loucamente o aspecto d elas no d ia seg uinte. Não faz id éia d o a r d esta . Era um embaraço na maneira de estar! Uma dificuldade no andar! Olhos sempre baixos, tão inchados e batidos! O rosto redondo tão comprido! Nada de mais agradável. E, pela primeira vez, a mãe, alarmada com tão grande transformação, lhe testemunhava um interesse assaz terno! E a Presidente também se desvelava em volta dela! Oh! Estes cuidados são por agora dispensáveis; um dia virá em que ela os me rec erá de verda d e, e esse d ia não está longe . Ad eus, minha be la a miga. Ca stelo d e..., 2 d e Outub ro d e 17**.
CA RTA XCVII CECÍLIA DE VOLANGES A MARQUESA DE MERTEUIL Ah! Meu Deus, senhora, c om o esto u a flita! C om o sou infeliz! Quem me consolará na minha dor? Quem me aconselhará na d ific uld a d e e m q ue m e e nc ontro? Este senho r d e Va lmo nt!... E Danceny! Não, a lembrança de Danceny lança-me no desespero...
Co mo c ont a r? Co mo ousa r d izer-vos?... Nã o sei c om o o fa zer. No entanto o meu coração transborda... Preciso de desabafar com a lguém e vó s sois a única a q uem p osso e sc rever. Tem sid o tã o b oa p a ra mim! Ma s nã o e sp ero q ue o sejais a go ra ; nã o sou d igna d isso; c om o d izer-vos? Já não o d esejo. Hoje fo ra m tod os a q ui muito c a rinhosos p a ra c om igo , ma s só c ontrib uíra m p a ra a ume nta r o meu sofrimento . Senti profunda me nte q ue nã o merec ia tanta atenção! Vós, pelo contrário, ralhai-me; severamente, porque tenho ime nsa c ulp a , ma s d ep ois sa lva i-me; se nã o tiverd es a b ond a d e d e m e a c onselhar, mo rrerei de d esgosto. Vergonha. Pois bem! Suportá-la-ei; será o primeiro castigo da minha falta. Sim, dir-vos-ei tudo. Sabei pois que o senhor de Valmont, que me entregara até ag ora a s c artas de Danc eny, de sc ob riu de rep ente q ue era de ma siad o difícil; quis ter uma chave do meu quarto. Garanto-vos que não queria, mas ele escreveu a Danceny e este concordou; e a mim custa-me tanto recusar-lhe qualquer coisa, sobretudo desde que a minha ausência o torna tão infeliz, que acabei por consentir. Não previa a d esgraç a q ue d a í resulta ria . Ontem, o senhor de Valmont serviu-se dessa chave para entrar no meu quarto, enquanto eu dormia; estava tão longe de esperar semelhante coisa que me assustei ao acordar; mas como falou imediatamente, reconheci-o e não gritei; e além disso veio-me logo a id éia d e q ue ta lvez trouxesse uma c a rta d e Danc eny. Nad a d isso. Pa ssa d o um mo me nto q uis b eija r-me; e e nqua nto eu me defendia, como era natural, insinuou-se de tal forma junto de mim, que não quereria por coisa alguma deste mundo que ele continuasse naquela posição. Mas exigiu um beijo primeiro. Forçoso foi; que fazer?, tanto m ais que tenta ra toc ar, ma s além de não ter po dido, amea ç oume que, se viesse alguém, lançaria toda a culpa sobre mim; e com efeito seria muito fácil, por causa da chave. Mas depois nem por isso se retirou. Quis um seg undo ; e d esta vez, não sei p orquê, p erturb ou-me d e tal forma... e em seguida foi ainda pior. Oh! Não se faz uma coisa destas. Enfim, depois..., dispensar-me-eis de dizer o resto; sou tão infeliz q ua nto é p ossível sê-lo. Aquilo de que mais me acuso, forçoso é que vo-lo diga, é o receio de não me ter defendido quanto podia. Não sei como foi, não amo o senhor de Valmont, bem pelo contrário; mas houve no entanto momentos em que foi como se o amasse. Bem sabeis que isso não me impedia de ir repetindo que não; mas senti que não estava agindo como dizia; e tudo isto independentemente da minha vontade; e de po is tam bé m, ora, estava tão p erturba da ! Se é assim tão difícil a gente defender-se, grande prática é preciso! Tam bé m é verda d e q ue este senhor de Valmo nt tem um as maneiras de falar que não se sabe como responder-lhe, enfim, quer
ac reditar que q uando pa rtiu eu estava de c erto mo do zanga da , e q ue apesar disso tive a fraqueza de consentir que voltasse esta noite; o que me d esola a ind a m a is q ue tud o o resto. Oh! Ap esa r d isso, prom eto-vo s q ue o imp ed irei de e ntrar. Ma l ele sa íra , já sentia c om o t inha erra d o a o c onsentir. O resto d o t em p o nã o fiz senão chorar. Sobretudo a recordação de Danceny fazia-me sofrer! Cada vez que pensava nele, as lágrimas aumentavam ao ponto de sufocar, e não podia deixar de pensar nele... E ainda agora, vede o efeito; eis o papel todo molhado. Não, nunca mais me consolarei, quanto mais não seja por causa dele... Estava exausta, e no entanto não dormi um minuto. Esta manhã ao levantar-me, perante o espelho, me tia m ed o, d e transtornad a q ue estava . A Ma mã rep arou assim q ue m e viu, e p erguntou-me o que tinha. Desatei logo a chorar. Julguei que me ia ralhar, o que talvez me tivesse c usta d o m eno s, ma s nã o. Fa lou-me c om d oç ura ! Não o m erec ia , de forma nenhuma . Disse q ue nã o m e a fligisse! Ignorava o motivo do meu desespero. Como me sentia mal! Há momentos em que desejo a morte. Não resisti. Lancei-me nos braços dela aos soluços, e dizendo: "Ah! Mamã, a vossa filha é tão infeliz!" A Mamã não pôde deixar de chorar um pouco; o que só teve como conseqüência aumentar a minha dor, felizmente não perguntou por q ue razã o e u era tã o infeliz, p ois nã o sa b eria q ue resp ond er. Suplico-vos, senhora, escrevei o mais cedo que puderdes, e dizei-me o que devo fazer, porque não tenho coragem de pensar em nada, não faço outra coisa senão afligir-me. Enviai a carta pelo senhor de Valmont; mas, peço-vos, se lhe escreverdes ao mesmo tempo, não lhe fa leis no q ue vo s c ont ei. Tenho a honra d e ser, minha senhora, c om imensa a miza d e, a vossa muito hum ild e e ob ed iente esc ra va ... Não ouso a ssinar esta c a rta . Ca stelo d e..., 1 d e O utubro d e 17 * *, à no ite.
CA RTA XCVIII MADAME DE VOLANGES A MARQUESA DE MERTEUIL Ainda há bem poucos dias, minha encantadora amiga, fostes vós a p ed ir-me c onsolaç õe s e c onselhos; hoje, é a minha v ez; faç o-vos o mesmo pedido que então me fizestes. Estou muito preocupada e rec eio não ter sa b id o evita r o d esg osto q ue me a flige . Cecília é a causa da minha inquietação. Desde a nossa vinda que a vejo sempre triste e desgostosa; mas já o esperava e tinha esc uda do o c ora ç ã o c om a severid ad e q ue julga ra ne c essá ria.
Esperava que a ausência e as distrações destruiriam depressa um amor que me parecia mais uma fantasia infantil do que uma verdadeira paixão. No entanto, em vez de se ter restabelecido com a estada aqui, apercebo-me de que a minha filha se entrega cada vez mais a uma perigosa melancolia; e temo, até, que a sua saúde se ressinta. Pa rticula rme nte nos último s d ias ela mud a a olhos visto s. Onte m, sobretudo, comoveu-me, e todos aqui ficaram sinceramente alarmados. O q ue me revela até q ue po nto ela e stá p rofunda mente ferida é o vê-la pronta a deixar a timidez que sempre mostrou para comigo. Ontem de manhã, ao perguntar-lhe apenas se estava doente, precipitou-se nos meus braços dizendo-me que era muito infeliz; e chorou abundantemente. Não posso exprimir quanto isto me tocou; vieram-me logo as lágrimas aos olhos; e só tive tempo para me voltar, para impedir que ela o visse. Mas felizmente tive a prudência de não lhe fa zer nenhuma p ergunta , e ela nã o o usou d izer ma is na d a : ma s vejo c larame nte q ue é a sua p aixão infeliz que a ato rmenta . Que fazer se isto c ontinua? Serei a c a usa d ora d a infelic id a d e d a minha filha? Estarei a voltar contra ela as qualidades mais preciosas da a lma , a sensib ilida d e e a c onstâ nc ia ? É a ssim q ue c ump ro o me u pa p el de mãe? E se abafar em mim este sentimento tão natural de desejar a felicidade da minha filha; se considerar como uma fraqueza o que creio, pelo contrário, o primeiro e mais sagrado dos nossos deveres; se forço a sua escolha, não serei a responsável pelas conseqüências funestas que possam seguir-se? Que mau emprego de autoridade ma terna, co loc ar a p róp ria filha e ntre o c rime e a infelic id ad e! Não, minha amiga, não imitarei o que tantas vezes tenho censurado. Ao tentar escolher em vez da minha filha, pretendia ajudá-la com a minha experiência; não exercia um direito cumpria um dever. Mas faltarei a um se, pelo contrário, dispuser dela desprezando uma afeiçã o q ue eu não soub e impe dir de nasc er e d e q ue nem eu nem ela podemos conhecer a duração e a força. Não, não posso admitir que case com este para amar aquele, prefiro comprometer a minha auto rida de a pô r em pe rigo a sua virtude. Ac ho q ue vou to ma r a d ec isão ma is ajuizad a , retom ar a p a lavra que dei ao senhor de Gercourt. Expus-vos as razões parecem-me mais imp ortante s d o q ue a minha p rom essa . Dig o m a is: no e sta d o e m q ue a s coisas estão, cumpri-la seria, na verdade, violá-la. Porque enfim, se devo à minha filha o não revelar o seu segredo ao senhor de Gercourt, devo também não abusar da ignorância em que o deixo e fazer em vez d ele o q ue c reio q ue ele fa ria se soub esse. Irei, pe lo c ontrá rio, tra í-lo indignam ente, e, enq uanto e le c onfia e m m im e m e honra e sc olhendo me para segunda mãe, enganá-lo na escolha da mãe dos seus filhos? Estas reflexões, tão verdadeiras e às quais me não posso furtar, a la rma m-me m a is d o q ue d eixo tra nsp a rec er.
Às desgraças que receio, comparo a minha filha, feliz com o esp oso q ue o seu c oraç ã o e sc olheu, p resa a os d eve res só p ela d oç ura que encontra em cumpri-los; o meu genro também satisfeito e felicitando-se sempre pela sua escolha; cada um deles encontrando a felicidade na felicidade do outro, e a de ambos conjugando-se para aumentar a minha. A esperança dum futuro tão doce deve ser sacrificada a vãs considerações? E quais são elas? Unicamente as ditadas pelo interesse. Para que terá servido à minha filha ter nascido ric a , se te m d e ser do m esmo mo d o e sc ra va d o d inheiro? Concordo que o senhor de Gercourt é um partido melhor do que eu poderia esperar para a minha filha; confesso até que fiquei extremamente lisonjeada com a escolha dele. Mas enfim Danceny é d um nom e igua lmente ilustre; não lhe é em nad a inferior em q ualida de s pessoais; tem sobre o senhor de Gercourt a vantagem de amar e ser amado. Não é rico, na verdade; mas não o é minha filha o suficiente para ambos? Ah! Porquê tirar-lhe a satisfação tão doce de enriquecer aq uele que ela a ma! Estes casamentos arranjados, em vez de entregues ao livre arbítrio do coração, e a que chamamos de conveniência, nos quais tudo se ajusta de fato, menos os gostos e os caracteres, não serão eles a nasc ente ma is fec unda d essa s rupt ura s esc a nd a losa s hoje e m d ia tã o freq üente s? Prefiro a d iar; pe lo me nos terei tem p o p a ra estud a r melhor a minha filha, que nã o c onheç o. Sinto-me c om c ora ge m d e lhe c ausar um desgosto passageiro, se ele puder contribuir para uma felicidade mais sólida, mas arriscar-me a arrastá-la para um desespero eterno, isso não me e stá no c oraç ão . Eis, querida am iga , as idé ias q ue m e a torme ntam e a c erc a d as quais vos peço a opinião. Estas preocupações sérias contrastam muito c om a vossa a leg ria g entil e nem sã o p a ra a vossa id a d e; ma s vós esta is muito acima dela! A amizade juntar-se-á de resto à vossa prudência; e sei que uma e outra se não recusarão à solicitude maternal que as implora. Ad eus, enc anta do ra am iga ; não duvideis nunca d a sinc erida de d os meus sentime nto s. Ca stelo d e..., 2 d e O utub ro d e 17* *.
CARTA XCIX O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Apenas pequenos incidentes, minha bela amiga; mas só cenas, nada de ações. Deste modo, arme-se de paciência; mesmo muita, porque enquanto a minha Presidente avança com lentidão, a sua p up ila rec ua , o q ue é muito p ior. Pois b em ! Tenho b om humo r p a ra me
divertir com estas catástrofes. Na verdade acostumei-me muito bem à minha e sta d a a q ui e p osso a firma r q ue no triste c a stelo d a minha ve lha tia não experimentei um momento de tédio. Pois não tenho aqui prazeres, privações, esperança, incerteza? Que se tem a mais num tea tro ma ior? Esp ec ta d ores? Ah! Esp erem os, eles nã o fa lta rã o. Se nã o me vêe m e ntreg ue a o trab a lho, mo stra r-lhes-ei a ta refa p ronta ; só te rã o d e a d mira r e a p la ud ir. Sim, a p la udirã o; po rq ue p osso fina lme nte p reve r, com exatidão, o momento da queda da minha austera devota. Assisti esta tarde à ag onia d a virtude . A do c e fraq ueza reinará a go ra . Prevejo esse mo me nto p a ra a nossa p rime ira entrevista , ma s já a ouç o a c usa rme d e orgulho. Anuncia a vitória, ga ba -se a ntec ipa da me nte! Bom , ac alme-se! Para lhe provar como sou modesto, vou começar pela história da minha d errota. A sua pupila é de fato uma criaturinha ridícula! É uma criança que deveria ser tratada como tal e a quem não faríamos mais que perdoar se nos limitássemos a pô-la de castigo ! Acredita que, depois do que se passou anteontem entre ela e mim, depois do modo amigável como nos despedimos ontem de manhã, quando eu quis voltar à noite, como combináramos encontrei a porta fechada por d ent ro? Q ue d iz a isto? Aturam-se à s vezes infantilida d es d esta s na vésp era; m a s no d ia seguinte! Não a cha c ômico? Ma s nã o ri log o, nunca sentiria d e ta l forma o p eso d o m eu m a u gênio. Asseguro-lhe que ia àquela entrevista sem prazer, apenas por d elib eraç ã o. O me u leito, de q ue m uito ne c essita va , p a rec ia -me, nesse momento, preferível ao de outrem, e afastara-me dele com pena. No entanto, logo que encontrei um obstáculo ardi por o vencer; e acima de tudo senti-me humilhado por uma criança me ter ludibriado. Retireime então de muito mau humor e com o projeto de nunca mais me oc upa r da q uela c ria nç a estúp id a , nem d os seus p rob lem a s, esc revi-lhe imediatamente um bilhete que pensava entregar hoje, em que a a p rec ia va no seu justo va lor. Ma s, co mo c ostuma d izer-se, a noite é b oa c onselheira ; p ensei esta ma nhã q ue, não t end o a q ui a p ossibilid a d e d e escolher distrações, não devia perder aquela: destruí pois o severo bilhete. Depois refleti, espantei-me de ter tido a idéia de acabar uma aventura sem ter na minha mão com que perder a heroína. Onde nos po de c ond uzir um prime iro mo vime nto! Felizes aqueles que desde sempre se acostumaram como a minha bo a am iga a nunca lhe c ed er! Enfim, ad iei a minha vinga nç a; fiz esse sa c rifíc io à s sua s intenç õe s em relaç ã o a Ge rc ourt. Ago ra que já não estou zang ad o, vejo só o ridíc ulo na c ond uta da sua pupila. Gostaria na verdade de descobrir o que espera ela ganhar deste modo! Confesso-me incapaz; se é só para se defender, concordemos que se acautela demasiado tarde. Um, dia ela explicarme-á este enigma! Anseio por conhecê-la. Seria somente por se
encontrar fatigada? Francamente acho possível, porque, sem dúvida, ela ignora ainda que as flechas do amor, como a lança de Aquiles, trazem consigo remédio para os golpes que fazem. Mas não, pela expressã o d ela d ura nte tod o o d ia, iria a p osta r q ue há a li rem orsos... uns resq uíc ios d e v irtud e... Virtud e! Bem p rec isa d ela. Ah! Que a d eixe m a s é p a ra a mulher nascida na realidade para ela, a única que a sabe embelezar e seria capaz de no-la fazer amar... Perdão, minha bela amiga, mas foi esta tarde que se p assou entre mim e M ad am e d e Tourvel a c ena que quero narrar-lhe e d e q ue ainda c onservo a e mo ç ão . Preciso fazer um esforço para sacudir a impressão que me causou; é para me livrar disso que me pus a escrever-lhe. Deve-se de sc ulpa r este m ome nto d e fraq ueza. Há já a lguns d ias q ue nó s, Mad a me d e Tourvel e e u, esta mo s d e acordo sobre os nossos sentimentos; discutíamos apenas acerca de palavras. Era sempre a sua amizade que respondia ao meu amor, mas essa linguagem de convenção não modificava o fundo das coisas; e mesmo que assim nos tivéssemos mantido, eu teria certamente avançado mais devagar, mas não menos seguramente. Já não se tratava de me afastar, como ela queria primeiro; e, quanto às conversas que temos tido diariamente, se ponho os meus esforços em lhe oferece r a oc asião , ela põ e o s de la em a ag arrar. Como é habitualmente nos passeios que se dão as nossas conversas, o tempo terrível que fez hoje todo o dia não me permitia ter esperança, estava muito contrariado; não previa quanto lucraria com este co ntrate mp o. Não se p od end o p a ssea r, p usem o-nos a jog a r q uand o d eixa mo s a me sa; c om o nã o jogo be m, e não era ne c essária a minha presenç a, aproveitei para subir ao meu quarto, com o projeto de esperar pouco ma is ou m enos o fim d a pa rtida . Voltava para me juntar ao grupo, quando encontrei a encantadora dama que entrava nos seus aposentos e que, por imp rud ênc ia ou fra q ueza , me d isse c om voz d oc e: "Aond e ide s? Nã o há ninguém no salão." Não foi preciso mais para eu, como deve calcular, experimentar entrar com ela; encontrei menos resistência do que espe rava . É c erto q ue eu tivera a preca uçã o d e c om eç ar a co nversa à porta, e de a começar com um tom indiferente, mas assim que nos sentamos, voltei ao que me interessava e falei do meu amor à minha amiga. A primeira resposta dela, embora simples, pareceu-me expressiva: "Oh!, não", disse-me, "não falemos disso aqui"; e tremia. Pobre mulher! Julga morrer. No entanto não havia motivo para temer. Já há algum tempo que, certo do sucesso mais cedo ou mais tarde, e vendo-a gastar as forças em combates inúteis, tinha resolvido economizar as minhas e esp erar sem esforç o q ue e la se e ntreg a sse p or ca nsa ç o. Vê b em c om o exijo um triunfo completo e nada quero dever às circunstâncias. Foi
mesmo de acordo com o plano assim elaborado, e para poder insistir sem me empenhar muito, que voltei à palavra amor, tão obstinadamente recusada, certo de que ela me julgava demasiado ardoroso, tentei um tom mais terno. A recusa já não me fazia zangar, afligia-me apenas; não me devia a minha sensível amiga algumas consolações? Enquanto me consolava, deixara uma das mãos na minha; o lindo corpo apoiava-se no meu braço, e estávamos estreitamente unidos. Já reparou como nesta situação, à medida que a defesa enfra q uec e, os p ed idos e a s rec usa s sã o fe itos d e m a is p erto; a c a b eç a afasta-se, os olhares baixam-se, enquanto que as palavras ditas em murmúrio se tornam raras e entrecortadas? Estes sintomas preciosos anunciam de modo inequívoco o consentimento da alma, mas raramente este chega aos sentidos; creio mesmo que é sempre perigoso ousar demasiado, visto que este estado de abandono é ac om pa nhad o p or um d oc e p razer e nã o é p ossível a rranc ar alguém a ele, sem causar um estado de espírito que se torna infalivelmente favorável à d efesa. Mas, no caso presente, a prudência era-me tanto mais necessária quanto eu tinha sobretudo a recear o susto que este esq uec ime nto d e si p róp ria nã o d eixa ria d e c a usa r à t erna sonha d ora. Não exigia q ue a c onfissã o q ue suplic a va fosse p ronunc iad a ; um olhar ba sta va ; um só o lhar e seria fe liz. Minha amiga, aqueles belos olhos ergueram-se de fato para mim; a que la b oc a c eleste p ronunc iou a té: "Bom ! Sim eu..." Mas de súbito extinguiu-se-lhe o olhar, faltou-lhe a voz e esta mulher a d oráve l c a iu nos me us b ra ç os. Mal tivera te mp o d e; a seg ura r e já ela, libertando-se com uma força convulsiva, o olhar perdido, as mãos elevadas para o céu... "Deus, ó Deus, salvai-me!", gritou; e, no mesmo instante, mais rápida do que um relâmpago, caiu de joelhos a d ez p a ssos d e m im. Sentia-a p restes a sufoc a r. Ava nc ei p a ra a soc orrer, ma s, tom and o-me a s mã os que b anha va d e lá grima s e a braç a ndo -me por vezes pelos joelhos, disse: "Sim, sereis vós que me salvareis! Se não quereis a minha morte, deixai-me; salvai-me, deixai-me por amor de Deus, deixa i-me!" E out ra s p a la vras ent rec orta d a s ma l se o uviam a travé s de soluços redobrados. Entretanto prendia-se-me com uma força que me não permitia afastar-me; então, juntando as minhas, elevei-a nos meus braços. No mesmo momento cessaram as lágrimas, deixou de fa la r, os me mb ros inteiriça ra m-se-lhe, e violenta s c onvulsõe s suc ed eram a e sta tem pe stad e. Eu estava, confesso, violentamente comovido, e creio que teria acedido aos seus rogos, mesmo que as circunstâncias não me forçassem a tal. Depois de lhe ter dado algum amparo, deixei-a c onforme me p ed ia, e felic ito-me p or isso. Em b reve rec eb erei o p rêm io. Esperava que, tal como no dia da minha primeira declaração, ela nã o a p a rec esse à noite. Ma s, ce rc a d a s oito ho ra s, desc eu a o sa lã o e limitou-se a d ec la ra r q ue estivera m uito inco mo d a d a .
Tinha o rosto a b a tido, a voz sumida , e os mo d os eram a feta d os; ma s o o lha r era d oc e e muitas vezes me fixou. Co mo se rec usou a jog a r fui obrigado a substituí-la e veio sentar-se a meu lado. Durante a ceia fic ou sozinha no sa lã o. Qua nd o vo lta mo s, rep a rei que c horara ; p a ra me certificar, disse-lhe que me parecia que ela ainda se ressentia do seu mal-estar; ao que respondeu delicadamente: "Este mal não se vai tão de pressa c om o vem!" Quando finalmente nos retiramos, dei-lhe a mão; e à porta dos seus aposentos apertou a minha com força. É certo que este movimento pareceu-me ter qualquer coisa de involuntário, mas tanto me lhor; é m ais uma prova d o m eu p od er. Apostaria que neste mo mento e la está e nca ntada c om o p onto a q ue c hega mo s, ac ab ou-se o trab alho! Gozem os ag ora. Ta lvez, no mo me nto e m q ue lhe esc revo , ela se o c upe já d esta doce idéia! E mesmo que pelo contrário ela se ocupasse dum novo projeto de defesa, não sabemos já no que resultariam todos esses projetos? Acha que isto pode ir além da nossa próxima entrevista? Sei be m q ue se fará rog ad a p ara a c onc ed er, ma s enfim! Sab erão estas beatas austeras conter-se uma vez franqueado o primeiro passo? O a mo r de la s é uma verda d eira explosã o; a resistênc ia d á -lhes ma is força . A minha fanática devota correria atrás de mim, se eu deixasse de a perseguir. Enfim, minha b ela a mig a , em b reve irei junto d e si, p a ra lhe e xigir o cumprimento da sua palavra. Não esqueceu sem dúvida que p rom ete u, ap ós o suc esso, uma infid elid a d e a o seu C a va leiro? Está preparada? Pelo meu lado, desejo-a como se nunca a tivesse conhecido. Ou antes, conhecê-la é talvez uma razão para a desejar ainda mais. ...je suis juste , et ne suis point g a lant... * Será a p rime ira infid elid a d e q ue fa rei a esta seve ra c onq uista ; e prometo-lhe aproveitar o primeiro pretexto para me afastar dela por vinte e q ua tro horas. Será o c a stig o p or me ter ma ntid o ta nto te mp o long e d e si. Sa b e q ue há ma is d e d ois me ses q ue e sta a ventura m e p rend e? Sim, dois meses e três dias; já incluo na verdade o dia de amanhã, pois ela só entã o se c onsuma rá . Isto faz-me lembrar que Mademoiselle de B... resistiu três meses inteiros. Estimo verificar que a coqueteria pura e simples tem mais d efesa q ue a a ustera virtud e. Adeus, minha bela amiga; tenho de a deixar porque é muito tarde. Esta carta levou-me mais longe do que esperava; mas como a envio amanhã de manhã a Paris, quis aproveitar, para a fazer partilhar um d ia ma is c ed o d a alegria d este seu a migo. Ca stelo d e..., 2 d e O utubro d e 17**, à no ite.
*..Sou justo , e nã o sou g alan tea d or... Voltaire. Co mé d ie d e Na nrne.(N. d o A .)
CARTA C O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Minha amiga, fui ludibriado, traído, abandonado; estou d esesp erad o; Ma d a me d e Tourvel p a rtiu. Pa rtiu e eu não o soub e! E não estava lá para me opor à sua partida, para lhe censurar tão indigna traiçã o! Ah! Não julgue que a de ixaria fugir; ela teria fic ad o; teria fica d o nem q ue fosse força d o a rec orrer à violênc ia . Mas quê! Na minha crédula tranqüilidade, dormia sossegadamente: dormia e o raio fulminou-me. Não, não compreendo este a b a nd ono ; d eve mo s renunc ia r a c om p ree nd er as mulheres. Quando me lembro do dia de ontem! Que digo! Da noite até! Aquele olhar doce! Aquela voz tão terna! E a mão que apertou a minha! E d ura nte tod o esse t em p o p rojeta va fugir d e m im! O h! Mulheres, mulheres! Queixais-vos depois se alguém vos engana! Sim, toda a p erfíd ia q ue em p reg a mo s é um roub o q ue vos fazem os. Que p ra zer terei em vinga r-me! Tornarei a e nc ont ra r essa p érfid a mulher e retom a rei o m eu d om ínio sob re e la . Se o a mo r me b a stou p a ra de sc ob rir o c am inho, que nã o farei guiad o p ela vinga nça . Ainda a heide ver a meus pés, tremendo e banhada em lágrimas, pedindo-me pe rdã o c om a quela voz enga nad ora; serei sem p ied ad e. Que fa z a gora, q ue p ensa ? Ta lvez se reg ozije p or me ter eng a na d o e, fiel a os go stos d o seu sexo, este p ra zer lhe p a reç a o ma is
doce. O que não pôde a tão louvada virtude, conseguiu-o a manha sem esforç o. Insensa to ! Eu tem ia a sensa tez d ela; de via a ntes tem er a m á fé. E ser obrigado a engolir o meu ressentimento! Ousar apenas mo strar uma terna d or, qua ndo te nho o c oraç ão c heio d e ra iva! Ver-me red uzid o a sup lic a r outra ve z a uma mulher reb elde , que se furtou a o m eu p od er! Merec ia e u ser humilhad o a este p onto ? E p or quem ? Por uma mulher tímid a , sem p rá tica d esta s luta s. De que me vale ter-lhe conquistado o coração, tê-la abrasado pelo fogo do amor, ter elevado até ao delírio a perturbação dos sent ido s, se, tranq üila no seu refúg io, ela p od e hoje o rg ulha r-se ma is d a sua fuga d o q ue eu d a s minhas vitória s? Sup orta rei isto ? A minha amiga não pode acreditar em tal; não tem de mim id éia tã o humilhante! Mas que fatalidade me liga a esta mulher? Não há centenas que desejam as minhas atenções? Que se apressariam a corresponderme? E mesmo que não se comparem a esta, a atração da variedade, o encanto de novas conquistas, o prestígio do seu número, nã o o ferec erão ta mb ém d oc es p ra zeres? Por que c orrer a trá s d e q uem nos fog e e d esp reza r os q ue no s p roc ura m? Ah! Porquê?. .. Ignoro-o mas não posso sentir de maneira d iferente . Nã o e xiste p a ra mim fe licida d e o u rep ouso se nã o p ossuir esta mulher que odeio e amo com fúria igual. Só poderei suportar a minha vida a p artir do mo mento e m q ue dispo nha d a sua. Então, tranqüilo e satisfeito, vê-la-ei, por sua vez, entregue aos tormento s q ue m e sa c od em nesta hora; e c ria rei ainda mil outros. Quero que a esperança e o temor, a desconfiança e a tranqüilidade, todos os males inventados pelo ódio, e todos os bens concedidos pelo amor, possuam o seu coração, e aí se alternem segundo o meu desejo. Há de chegar esse momento... Mas quantos trabalhos ainda! Como ontem estive perto e hoje me sinto afastado! Como aproximar-me? Não ouso tentar qualquer movimento; para tom a r uma d ec isã o seria p rec iso esta r ma is c a lmo , e o sa ngue ferve-me nas veias. O q ue aumenta o m eu tormento é o sangue-frio c om q ue todo s respondem às minhas perguntas sobre este acontecimento e sobre a c ausa, e tudo o q ue me pa rec e tã o extrao rdinário. Ninguém sabe nada nem procura saber, nem teriam falado nisso, se eu consentisse que se falasse doutra coisa. Madame de Rosemonde, que visitei no seu quarto logo de manhã quando soube a notícia, respondeu-me, com a calma da sua idade, que se tratava da c ontinuaç ão natural d a indispo siç ão que Ma da me d e Tourvel tivera ontem; que ela receara uma doença e preferira ir para casa. Achava muito na tura l e te ria feito o me smo , afirmo u-me.
Como se pudesse haver qualquer coisa de comum entre ambas!, entre esta, a quem não resta senão a morte, e a outra, enca nto e tormento da minha vida ! Madame de Volanges, que julguei primeiro cúmplice, parece a fina l ofend id a p or não te r sid o c onsulta d a sob re esta p a rtida . Estou sa tisfeito, c onfe sso, p or ela nã o t er tid o o p ra zer de me d a r um desgosto. Isto prova que ela não possui inteiramente, tal como eu tem ia, a c onfianç a d a am iga ; sem pre é uma inimiga a m enos. Com o se felicitaria se soubesse que era de mim que fugiam! Como estaria inchada de orgulho se isso tivesse acontecido devido aos seus c onselhos! Como se sent iria imp orta nte! Meu Deus, como a odeio! Oh, recomeçarei com a filha; quero moldá-la segundo a minha fantasia; e creio que ficarei aqui algum tempo. Pelo menos, as poucas reflexões que fiz levam-me a esta conclusão. Não acha que; depois desta decisão tão viva, a ingrata deve recear a minha presença? Se pensou que podia segui-la, certamente me p roibiu a e ntra d a ; e nã o q uero ne m a c ostumá -la a isso, nem sofrer a humilhação. Prefiro dizer-lhe que fico aqui; rogar-lhe-ei que volte; e quando estiver persuadida da minha ausência, apresentar-me-ei; veremos c om o rea ge a esta entrevista. Mas é preciso adiá-la para lhe aumentar o efeito, e não sei se terei paciência para isso. Abri umas vinte vezes a boca durante o dia para pedir os meus cavalos. Mas conseguirei dominar-me; comprometo-me a receber a sua resposta aqui; peço-lhe só, minha bela amiga, que ma não faça esperar. O que me poderia contrariar mais seria não saber o que se passa; mas o meu criado, que está em Pa ris, tem p ossib ilid a d e d e a c esso junto d a c ria d a d e q uarto e p ortanto poder-me-á ser útil. Vou-lhe enviar instruções e dinheiro. Não se imp ortará que e u junte a mb os a esta c arta e que lhe p eç a o c uida do de lhos enviar por um dos seus, com a ordem de lhos entregar pessoalmente. Tomo esta p rec auç ão porque o tolo tem o háb ito d e nunca receber as cartas que lhe escrevo, quando elas lhe ordenam qualquer c oisa que o ma c e; e, neste mo mento, não me p arec e tã o a pa ixonad o pe la sua c onq uista c om o eu o de sejaria . Adeus, bela amiga; se tiver idéia feliz, qualquer meio de apressar a marcha, diga-me. Já mais de uma vez senti quanto a sua amizade me pode ser útil, sinto-o ainda neste momento, porque fiquei mais calmo enquanto lhe escrevia; pelo menos, falo a alguém que me compreende, e não aos autômatos junto de quem vegeto desde ma nhã. Na verda d e, qua nto m a is p enso m a is a c red ito q ue só e xistimos voc ê e e u no mundo , que te nham os qua lque r valia. Ca stelo d e..., 3 d e O utub ro d e 17 * *.
CARTA CI O VISCONDE DE VALMONT A AZOLAN, SEU CRIADO (Junta à preced ente) Deves ser muito imbecil para, tendo partido daqui esta manhã, não teres de sc ob erto que Ma da me de Tourvel tam bé m pa rtia ; ou, se o soubeste, para me não teres prevenido. De que serve gastares o meu dinheiro a be be r c om os c riad os, e que e m vez de em prega res o tem p o a servir-me o desperdices a fazer a corte às criadas de quarto, se apesar disso não fico mais bem informado acerca do que se passa? Ta nta negligê nc ia! Ma s previno-te d e q ue, se te a c ontec er uma que seja neste c a so, será a última q ue t erás a o m eu serviç o. Informar-me-ás de tudo o que se passar em casa de Madame de Tourvel, da saúde dela; se dorme; se está triste ou alegre; se sai muitas vezes e aonde vai; se recebe visitas, e quem; em que passa o tempo, se se zanga com as criadas, especialmente com a que veio com ela; o que faz quando está só; se quando lê, lê seguidamente ou se interrompe a leitura para meditar; e o mesmo quando escreve. Procura tornar-te amigo do criado que leva as cartas para o correio. Oferece-te até para fazer esse recado em vez dele; e quando aceitar não mandes senão as que te parecerem indiferentes, e envia-me as outras, sobretudo as endereçadas a Madame de Volanges, se alguma houver. Procura ser ainda por algum tempo o amante feliz da tua Júlia. Se ela tem outro, como julgaste, que consinta em se dividir; e não te aflijas com escrúpulos ridículos, estarás no caso de muitos outros, que valem mais do que tu. Se no entanto o teu rival se tornar importuno, se, por exemplo, vires que ele ocupa demasiado a Júlia durante o dia, e que por isso ela está menos tempo junto da senhora, afasta-o de qualquer modo; ou procura uma questão com ele; não temas as conseqüências, responderei por ti. Não deixes essa casa. É pela assiduida de que se nota e p erc eb e tud o. Se p or um a c aso a lgum do s c ria d os for desp ed id o, ap resenta -te p a ra o substituir c om o se já m e nã o pertencesses. Pod es d izer nesse c a so q ue m e d eixa ste p a ra p roc ura r uma c a sa ma is tranq üila e reg ra d a . Fa z o p ossível p a ra q ue te a c eitem. Fica rá s d o me smo mo d o a o m eu serviç o durante esse te mp o; será c om o em c a sa d a Duquesa d e...: e, ainda po r c ima , Ma d a me d e Tourvel te virá a recompensar. Se tivesses jeito e zelo estas instruções deviam bastar, mas para sup rir a a mb os envio-te d inheiro. O b ilhete junto a utoriza -te c om o verás a levantar vinte e cinco luíses do meu administrador; porque tenho a c erteza d e q ue e stá s sem d inheiro. Emp reg a rá s d esta q uant ia o q ue fo r
nec essá rio p a ra d ec id ir Júlia a esta b elec er co rresp ond ênc ia c om ig o. O resto será para beberes com os criados. Quando o fizeres, não esqueças que não são os teus prazeres que eu quero pagar, mas os te us serviços. Acostuma Júlia a observar e a contar-te tudo, mesmo o que lhe pareça demasiado minucioso. Vale mais que ela escreva dez frases inúteis do que omita uma com interesse; e muitas vezes o que parece indiferente não o é. Como é necessário que possa ser informado imediatamente, se acontecer qualquer coisa que te pareça importante, assim que tenhas recebido esta carta mandarás Filipe fixarse em ...* com um c a valo; a í fic a rá a té nova ord em; haverá um a m uda em caso de necessidade. Para a correspondência corrente, bastará o correio. Tem c uid a d o e m nã o p erder esta c a rta . Relê-a to d os os d ia s, não só para te certificares de que não te esqueceste de nada, mas também para teres a certeza de ainda a possuíres. Faz enfim tudo o que é preciso, qua ndo se tem a honra da minha c onfianç a. *Alde ia a me io c am inho d e Paris ao c astelo de Ma da me d e Rosem ond e.(N. do A.)
Não terás d e q ue te a rrep end er se e u fic a r sa tisfeito c ontigo . Ca stelo d e..., 3 d e O utub ro d e 17 * *.
CARTA CII A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE Ficareis muito admirada, senhora, ao saberdes que parto de vossa casa assim tão precipitadamente. Parecer-vos-á extraordinária esta a titude, ma s a vossa surp resa a ume nta rá a ind a , qua ndo soub erdes q ua is os mot ivos! Ac hareis ta lvez q ue, a o c onfiar-vo-los, não resp eitei c om o d evia a tranqüilidade tão necessária à vossa idade; que me afasto até dos sentimentos de veneração que a tantos títulos vos são devidos. Ah! senhora, perdão, mas o meu coração está oprimido, e precisa de expandir a sua dor no seio duma amiga simultaneamente doce e prudente: quem poderia ele escolher senão vós? Considerai-me como vossa filha. Tend e p ara c om igo tod a a bo nda de ma ternal; imp loro-vos. Os meus sentimento s p or vós ta lvez p ossa m justifica r as minhas súp lic a s. Onde está o tempo em que, inteiramente devotada a sentimentos louváveis, não conhecia ainda aqueles que, lançando a alma na perturbação que sinto agora, nos roubam a força de os c omb ater no mom ento exato em que imp õem esse d ever? Ah!Esta via ge m fata l perde u-me ...
Que vos posso dizer? Amo, sim, amo loucamente. Ai! Esta p a la vra q ue esc revo p ela p rime ira ve z, esta p a la vra t a nta v ez d esejad a sem ser ob tid a, pa ga ria c om a vid a a d oç ura d e a p od er dizer uma só vez àquele que ma inspira; e contudo devo sem cessar abster-me de ta l! Ele va i ainda d uvida r d os me us sent iment os; julga r-se-á c om d ireito a queixar-se. Sou tão infeliz! Por que não lê ele no meu coração com a mesma facilidade com que aí reina? Sim, seria menos infeliz, se ele soubesse como sofro; mas mesmo vós, a quem o revelo, não fazeis senão ainda uma leve id éia da minha d or. Dentro de poucos momentos vou fugir e afligi-lo. Julgar-se-á ainda perto de mim, e já eu estarei longe, à hora a que nos costumávamos ver todos os dias, estarei num local aonde nunca veio, a ond e nã o d evo p ermitir q ue ve nha. Os p rep a ra tivos estã o to d os feitos; tenho t ud o e m frente d os meus olhos; não os p osso rep ousa r sob re na d a que não me anuncie a cruel partida. Está tudo pronto, exceto eu. E quando mais o coração se recusa, mais me prova a necessidade de me subm ete r a e sta d ec isã o. Subm ete r-me-ei sem d úvid a ; antes mo rrer do q ue viver culpa d a . De resto, sinto que já o sou; salvei apenas a sensatez, a virtude já d esa p a rec eu. Nã o é p rec iso c onfessa r-vos; o que a ind a me resta , devo o a pe nas à ge nerosida de d ele. Entontec ida c om o p razer de o ver, de o ouvir, com a doçura de o sentir junto de mim e com a felicidade de poder fazer a dele, encontrava-me sem recursos e sem forças; mal podia ainda lutar, já não resistia; estremecia com o perigo sem conseguir fugir-lhe. Pois bem! Viu a minha dor e teve piedade de mim. Como nã o o ad orar? Devo-lhe m ais do que a vida . Ah! Se ao ficar junto dele eu tivesse apenas que temer por ela, podeis crer que nunca me afastaria. De que me serve a vida sem ele? Não seria pa ra mim uma felic ida de pe rdê-la? Cond enad a a provoc ar eternamente a infelicidade de ambos; a não ousar queixar-me, nem consolá-lo; a defender-me todos os dias dele e de mim própria; a pôr todos os meus cuidados em fazer-lhe mal, quando afinal desejaria c onsa grá-los à sua felic id a d e. Viver assim, não serão mil mortes? Eis todavia o meu destino. Suportá-lo-ei no entanto, não me faltará a coragem. Recebei vós, a q uem e sc olho po r mã e, este jura me nto. Recebei igualmente aquele que faço de nunca vos ocultar nenhuma das minhas ações; recebei-o, suplico-vos; peço-vo-lo como um auxílio precioso: obrigada assim a dizer-vos tudo, sentirei como se estivesse sempre na vossa presença. A vossa virtude substituirá a minha. Nunca consentirei, sem dúvida, em corar diante de vós, e retida por esse freio poderoso, ao mesmo tempo que adorei em vós a amiga tolerante e confidente da minha fraqueza, venerarei ainda o anjo tutela r que m e há d e salvar d a ve rgo nha.
É já sentir muita o ter de fazer este pedido. Fatal efeito duma presunço sa c onfianç a! Por que não temi ma is c ed o e sta inclinaç ão que senti nascer? Por que me lisonjeei de a poder dominar ou vencer à minha vontade? Insensata! Muito mal conhecia eu o amor! Ah! Se a tivesse combatido com mais cuidado, talvez tivesse adquirido menos poder! E então talvez esta fuga não fosse necessária; ou, submetendome embora a tão dolorosa decisão, poderia não romper inteiramente uma ligação que bastaria tornar menos freqüente! Mas perder tudo duma só vez, e para sempre! Ó minha amiga...! Mas quê? Mesmo ao escrever-vos, desvairo ainda em desejos criminosos? Ah! Partamos, partamos, e que ao menos estes erros involuntários sejam expiados p elos meus sa c rifíc ios. Ad eus, respe itáve l am iga ; ama i-me c om o filha, ad ota i-me c om o tal; e podes estar certa de que, apesar da minha fraqueza, preferiria mo rrer a tornar-me ind igna d a vossa esc olha. 3 de Outubro de 17* *, à um a ho ra d a ma nhã.
CARTA CIII MADAME DE ROSEMONDE A PRESIDENTE DE TOURVEL Fiq uei, minha q uerid a a miga , ma is a flita c om a vossa p a rtida d o q ue surp ree ndid a p ela c a usa ; uma long a experiênc ia e o interesse q ue me inspirais bastaram para me esclarecer quanto ao estado do vosso coração; e, para dizer tudo, nada me dissestes na carta que eu não soubesse já. Se só por ela tivesse tomado conhecimento, ignoraria ainda quem é a quele que a ma is; po rque , em bo ra m e faleis de le tod o o tempo, não lhe escrevestes o nome uma só vez. Mas não era preciso, sei bem de que m se trata . Noto-o a p ena s, po rq ue m e lem b rei que é sem p re esse o e stilo d o am or. Vejo q ue é a inda tal com o no p assad o. Pensei que nunca mais voltaria a recordações tão longínquas e tão estranha s à minha ida de . No e ntanto, de sde ontem , tenho p ensad o muito ne la s, pe lo d esejo q ue sentia d e e nc ontrar algo q ue vo s p ude sse ser útil. Mas que posso fazer além de vos admirar e lamentar? Acho louvável a sensata decisão que tomastes, mas assusta-me, porque concluo que a julgastes necessária; e quando se está nesse ponto é difícil mantermo-nos afastadas daqueles que o nosso coração chama sem c essa r. No enta nto nã o d eve is p erder a c orag em . Na d a sei imp ossível à vossa bela alma; e mesmo que um dia tivésseis a infelicidade de sucumbir (que Deus não o permita!), acreditai-me, minha querida amiga, ficar-vos-á ao menos a consolação de ter lutado com todas as
forças. E depois, o que a sensatez humana não consegue, opera-o a graç a d ivina q uando quer. Talvez em breve sejais socorrida; e a vossa virtude, experimentada nestes penosos combates, sairá mais pura e brilhante. A força que não tendes hoje, podeis recebê-la amanhã. Não deveis ter esp eranç a nela p a ra vos rep ousa rd es, ma s a ntes p a ra vos enc orajar a usa r to d a s a s d e q ue já p od eis d isp or. Deixando à Providência o encargo de vos socorrer dum perigo c ontra o q ual nad a p osso, reservo-me o d e vo s a jud a r e c onsolar tanto q ua nto me for p ossível. Não a livia rei a s vossa s p ena s, ma s c om p a rtilhá las-ei. É com esse fim que receberei de boa vontade as vossas confidências. Sinto q ue o vosso c oraç ã o d eve ter nec essid a d e d e se e xp a nd ir. Abro-vos o meu; a idade ainda não o gelou a ponto de ser insensível à amizade. Encontrá-lo-eis sempre pronto para vos receber. Podeis vir com confiança repousar-vos de cruéis agitações. Será fraco alívio para as vossas dores, mas pelo menos não chorareis sozinha; e quando esse amor infeliz, dominando-vos demasiado, vos obrigar a falar, ma is va le q ue seja c om igo d o q ue c om ele. Eis q ue fa lo c om o vó s e creio que ambas não chegaremos a nomeá-lo; de resto compreendemo-nos. Não sei se faço bem em dizer-vos que ele me pareceu muito atingido pela vossa partida; talvez fosse mais sensato não vos falar nisso, ma s nã o g osto d essa sensa te z q ue fa z a fligir os a migo s. Sou forçada a não vos falar mais longamente. A vista débil, a mã o va c ilante não me c onsentem long as c artas, qua ndo é p rec iso q ue eu p róp ria a s esc reva . Adeus, então, minha querida amiga; adeus, minha filha adorável; sim, adoto-vos de boa vontade como minha filha; tendes tudo o q ue é p rec iso p ara fazer o o rgulho e o p razer duma mã e. Ca stelo d e..., 3 d e O utub ro d e 17 * *.
CARTA CIV A MARQUESA DE MERTEUIL A MADAME DE VOLANGES Em ve rda d e, minha q uerida e b oa am iga , c ustou-me a evita r um mo vimento d e orgulho, a o ler a vossa c a rta . Quê! Pois honrais-me c om a vossa inteira confiança! E ides mesmo ao ponto de me pedir c onselhos! Ah! Sentir-me -ia muito fe liz, se soub esse m erec er uma op iniã o tão favorável da vossa parte, e não devê-la apenas à indulgência da amizade. De resto, qualquer que seja o motivo, esta não é menos
preciosa p ara o me u co raç ão ; e tê-la o btido , é em m inha op inião ma is uma razão pa ra proc urar merec ê-la. Vou deste modo (mas sem pretender dar-vos um conselho), d izer-vos livrem ente a minha ma neira d e p ensa r. Desc onfio d ela p orque é diferente da vossa, mas depois de vos expor as minhas razões vós as julga reis; e se a s c ond ena rd es subm eto -me a ntec ip a d a me nte a o vosso juízo. Terei pe lo m eno s a sensa tez d e m e nã o julga r ma is p ond erad a d o q ue vó s. Se no entanto, e por uma só vez, a minha opinião fosse preferível, a causa disso seriam as ilusões do amor maternal. E este sentimento, visto que é louvável, encontrar-se-á por certo no vosso coração. Foi ele com certeza que vos ditou a decisão que estais a tom a r! Se a lg uma vez vos a c onte c er erra r é a p ena s na e sc olha d a s virtude. A prudência é, ao que me parece, a que se deve preferir, quando temos nas nossas mãos o destino dos outros; e sobretudo quando se trata de o fixar por um laço indissolúvel e sagrado como o casamento. É então que uma mãe, simultaneamente sensata e terna, d eve, c om o tã o be m dizeis, ajuda r a filha c om a sua e xpe riênc ia. Ora , pergunto-vos, que deve fazer para o conseguir, se não distinguir, para ela, entre o q ue ag rad a e o que c onvém? Não será rebaixar a autoridade materna, não será reduzi-la a na d a , sub ordiná-la a um g osto frívolo, filho d o c a p ric ho e p a i d o d elírio, c ujo po d er ilusório d om ina só o s que o te mem , e d esap arec e logo que o d esp reza m? Por mim, co nfesso, nunc a a c red itei nessa s p a ixõe s a rreb a ta d oras e irresistíveis c om q ue, seg undo me p a rec e, se c onve nc iono u d esc ulp a r de modo geral os nossos desregramentos. Não concebo como um go sto, que na sc e num mo me nto e log o m orre, pod e ter ma is forç a que os princípios inalteráveis do pudor, da honestidade e da modéstia; e nã o c om p ree nd o q ue um a mulher que o s tra i po ssa ser ma is justific a d a pe la sua p seud op aixão , que um lad rão pe la pa ixão do dinheiro, ou um assassino pela da vingança. Oh! Quem se pode gabar de nunca ter tido que resistir? Mas sempre tentei persuadir-me que para resistir basta querê-lo; e até aqui, p elo me nos, a m inha e xp eriênc ia c onfirmo u esta op iniã o. Que seria a virtude sem os deveres que impõe? O seu culto está nos nossos sacrifícios e a recompensa nos corações. Estas verdades só p od em ser nega d a s p elos q ue tê m interesse e m a s d esc onhe c er; e q ue, já depravados, esperam iludir-se um momento, tentando justificar a sua má c ond uta c om má s razões. Ma s po d ê-lo-emos rec ea r qua ndo se trata dum a c rianç a simp les e tímida, duma criança que é vossa filha, e cuja educação modesta e pura fortificou as já felizes tendências naturais? É no entanto a este temor, ouso dizer humilhante para vossa filha, que quereis sacrificar o vanta joso c asam ento que a vossa prudênc ia prepa rara p ara e la ! Gosto muito de Danceny; e há muito tempo, como sabe, que pouco vejo o
senhor de Gercourt, mas a amizade por um e a indiferença que sinto pelo outro não me impedem de sentir a enorme diferença que existe entre esses dois partidos. O nascimento é igual, concedo; mas um não tem fortuna, e a do outro é tal que, mesmo sem o nascimento, teria bastado para lhe a b rir tod a s a s p ortas. Confesso q ue o d inheiro nã o faz a felic id a d e; ma s de vemo s c onfessar tam bé m q ue a juda muito. Mademoiselle de Volanges é, como dizeis, rica por dois, no entanto, as sessenta mil libras de renda de que ela gozará não são já tanto quando se traz o nome de Danceny e quando se tem de pôr e manter uma casa que lhe corresponda. Já não estamos no tempo de Ma d a me d e Sévigné . O luxo a b sorve tud o; c ensura mo -lo, ma s é p rec iso imitá-lo; e o sup érfluo a c a b a p or nos p rivar do ne c essá rio. Quanto às qualidades pessoais que tendes, com razão, em tão grande c onta , nad a há c om c erteza a c ensurar ao senhor de Gerco urt; e, qua nto a ele, as p rova s estã o fe ita s. É-me a grad á vel c rer, e c reio d e fato, que Danceny em nada lhe é inferior; mas poderemos ter absoluta certeza? É certo que até aqui me pareceu isento dos defeitos próprios da sua idade e, apesar das tendências da época, mostra um gosto pelas boas companhias que parece ser de bom augúrio; mas quem sa be se nã o d eve esta ap arente sensate z à med ioc rida d e d a fortuna? Mesmo que se não tema ser corrupto ou devasso, é preciso dinheiro para se ser jogador ou libertino, e até se podem amar os defeitos de que tememos os excessos. Enfim, não seria o único que procuraria as boas companhias unicamente por não poder ocupar-se mais a seu gosto. Não digo (Deus me livre!) que creia tudo isto a seu respeito, mas semp re seria c orrer um risc o; e q ue c ensuras nã o fa ríeis a vó s mesma , se o a c ont ec iment o nã o fo sse fe liz! Que resp ond eríeis à vossa filha q ua nd o ela vos dissesse: " Mãe, eu era jovem e sem experiência, era arrastada por um erro perdoável na minha idade; mas o céu, prevendo a minha fraqueza, dera-me uma mãe sensata, para tudo remediar e me acautelar desse mal. Por que foi então que, esquecendo a vossa prudência, consentistes na minha infelicidade? Seria eu que deveria escolher marido, quando nada sabia do estado de casada? Mesmo que eu o quisesse não tínheis o dever de mo impedir? Mas nunca tive esse louco desejo. Decidida a obedecer-vos, esperei a vossa escolha com respeitosa resignação; nunca me afastei da submissão que vos d evia , e hoje sup orto o s ma les q ue só c a em sob re o s filhos reb elde s. A vossa fraqueza perdeu-me." Talvez o respeito lhe sufocasse estas queixas, mas o amor materno adivinhá-las-ia e as lágrimas da vossa filha; apesar de disfarçadas, correriam do mesmo modo sobre o vosso coração. Ser-vos-ia possível então encontrar consolações? Seria possível enc ontrá-la s nesse a mo r louc o, c ontra o q ual vo s d eve ríeis ter a rma d o e p elo q ua l ao c ont rá rio vo s d eixa stes a final sed uzir?
Talvez, querida am iga , eu tenha c ontra a pa ixão uma prevenção demasiado grande, mas julgo-a temível, mesmo no casamento. Claro que não desaprovo que um sentimento honesto e doce venha em be lezar o laç o c onjuga l e suavizar de algum m od o o s d everes que impõem; mas não é a ele que compete criar este último; não é à ilusão dum momento que cabe fazer a escolha de toda a nossa vida. Com efeito, para escolher, é preciso comparar; e como é isso possível quando um só objeto nos ocupa; quando nem esse podemos c onhec er, mergulhad os c om o e stam os na e mb riag uez e na c eg ueira? Encontrei, como podeis supor, várias mulheres atingidas por esse p erigo so ma l; ouvi a s c onfidênc ia s d e a lgum a s. De ouvi-la s, c onve nc ernos-emos que não há nenhuma que não tenha como amante um ser p erfeito, ma s essa s p erfeiçõ es q uiméric a s existem só na ima g inaç ã o d elas. A sua c a b eç a exaltad a só vê a tra tivos e virtud es; a d ornam à sua vontade aqueles que amam; é o vestuário dum Deus, envergado muitas vezes por um modelo abjeto, mas não importa o que ele é, de po is de o te rem ornad o, enga nad a s pe la sua própria ob ra prostram se p ara o ad orar. Ou a vossa filha nã o a ma Danc eny, ou é vítima d esta ilusã o; que é comum a ambos, se o seu amor é recíproco. O vosso motivo para os unir para sempre reduz-se afinal à certeza de que eles se não conhecem, se não podem conhecer. Mas, responder-me-eis, o senhor d e Ge rc ourt e minha filha c onhe c em -se me lhor? Não , sem d úvid a ; ma s p elo m eno s nã o se e nga na m a si próprios, ig noram -se a p ena s. O q ue a c onte c e neste c a so entre d ois esp osos, que julgo hone stos? Ca d a um e stud a o o utro, ob serva-se e m relaç ã o a ele, procura e depressa encontra em que deve ceder nos seus gostos e vontade s pa ra a tranqüilida de c omum. Esses ligeiros sacrifícios fazem-se sem esforço, porque são recíprocos e já previstos; em breve fazem nascer uma mútua benevolência; e o hábito que fortifica todas as tendências que não destrói, conduz pouco a pouco a essa doce amizade, a essa terna confiança, que, juntas à estima, formam, ao que me parece, a verda d eira e sólida felic ida de . As ilusões do amor podem ser mais doces, mas não sabemos b em q ue sã o t a mb ém me nos d urá veis? E q ue p erigo s não tra z c onsigo o momento que as destrói! É então que os mínimos defeitos parecem c hoc antes e insupo rtáve is, pelo c ontra ste q ue forma m c om a id éia d e perfeição que nos seduzira. Cada um dos esposos pensa que só o outro mudou, e que ele é ainda o mesmo que o outro apreciara afinal num mo me nto de de svario. Espanta-se de já não fazer nascer o encanto que ele próprio já não sente; isto humilha-o, a vaidade ferida azeda os espíritos, aumenta os agravos, produz o mal-estar, faz nascer o ódio; e os frívolos prazeres sã o p a g os p or longos infortúnios.
Eis, minha querida amiga, a minha opinião sobre o assunto que nos ocupa; não a defendo, exponho-a apenas; é a vós que cabe d ec idir. Ma s se p ersistis no vosso p arec er, p eç o-vo s q ue m e c om unique is as razões que venceram as minhas; ficarei radiante por me esclarecer junto d e vó s, e sob retud o p or fic a r d esc a nsa d a q ua nto à sorte d a vossa adorável filha, para quem desejo ardentemente a felicidade, não só pela a mizad e q ue tenho por ela, mas tam bém pela q ue me une p ara sem p re a vós. Pa ris, 4 d e O utub ro d e 17 * *.
CARTA CV A MARQUESA DE MERTEUIL A CECÍLIA DE VOLANGES Ora bem, minha pequena, eis-te muito zangada e cheia de vergo nha! E o senhor de Va lmo nt é um home m m au, não é? Pois ent ã o! Ousa trata r-te c om o à mulher que ma is a ma sse! Ensina-te aquilo que morrias de desejo por saber! De fato, essas coisas não se fazem. E tu, pelo teu lado, querias guardar a tua pureza para o teu amado (que não abusa dela); do amor só apreciavas os males e não os prazeres! Nada de melhor para dar uma bela figura de romance. Paixão, infortúnio, virtude ainda por cima, que belas coisas! Por vezes no meio desse cortejo aborrecemo-nos deveras, mas rep resent a -se b em a nossa p a rte. Vejam c om o a po bre pe que na é d e lame ntar! Tinha o s olhos pisados no dia seguinte! E que dirás quando forem os do teu amante? Co nsola-te, be lo a njo, não os terá s sem p re a ssim; nem to d os os hom ens são Valmonts. E depois, não ousar levantar esses olhos! Oh! Tiveste razão, toda a gente leria neles a tua aventura. Mas crê-me, se assim fosse, a s nossa s mulheres e ra p a riga s te riam o o lhar ma is mod esto . Apesar dos louvores que sou forçada a fazer-te, como vês, concordemos no entanto que falhaste a tua obra-prima; devias contar tudo à tua M am ã! Tinhas c om eç ad o tã o b em ! Eis-te já lanç a da , soluça ndo , nos seus b ra ç os; ela c horaria ta mb ém , q ue c ena p a tétic a ! E que pena não a teres levado até ao fim! A tua terna Mamã, arrebatada de contentamento, para reforçar a tua atitude, ter-te-ia enclausurado para toda a vida num convento; e aí amarias Danceny enquanto te agradasse, sem rivais nem pecado, poder-te-ias desolar à tua vonta de , e Valmont nã o iria , seg uram ente, perturba r a tua do r c om p razeres imp ortuno s. Seriamente, admiro-me que, já feitos os quinze anos, se possa ser tã o c ria nç a ! Tens ra zã o em d izer q ue nã o m erec es a m inha a tenç ã o. Go sta ria no enta nto d e ser p a ra t i uma a miga , terás nec essid a d e ta lvez duma amizade com a mãe que tens, e o marido que ela te quer dar!
Mas se não progrides, que queres que façam de ti? Que se pode esp erar, se o q ue c ostum a d esp erta r o e sp írito à s ra p a riga s p a rec e, pe lo c ont rá rio, tira r-to? Se fores capaz de raciocinar um momento, depressa verás que te deves felicitar em vez de te queixares. Mas és uma envergonhada e isso inibe -te! Bem ! Tra nq uiliza -te; a ve rg onha q ue o a mo r c a usa é c om o a dor que ele desperta, experimentamo-la uma só vez. Podemos ainda fingi-la , ma s nunc a ma is a sentimos. No entanto fica o prazer e já é alguma coisa. Julgo ter depreendido, através da tua tagarelice, que para ti valerá mesmo muito. Vamos, um pouco de boa fé. Então essa perturbação que te impedia de agir, como dizias, que te fazia achar tão difícil defender-te, que te fez ficar de certo modo zangada quando Valmont partiu, era a vergonha q ue a c a usa va , ou era o p ra zer? E a s suas ma neira s d e falar às quais não se sabe como responder, não provinha tudo isso da maneira de ele agir? Ah, menina, mentes e mentes à tua amiga! Isso nã o e stá b em . Ma s d eixem o-lo. O q ue p ara to da a ge nte seria um p razer, e p od eria ser ap ena s isso, torna-se na tua situa ç ã o um a verda d eira felic ida d e. Com efeito, colocada entre uma mãe por quem te convém fazeres-te amada, e um apaixonado pelo qual desejas sê-lo sempre, c om o nã o vê s q ue o único me io d e ob ter estes p rop ósitos tã o c ontrários é ocupar-te duma terceira pessoa? Distraída por uma nova aventura, enq uant o d ia nte d e tua mã e te ns o a r d e sa c rific a r à sub missã o p or ela um gosto que lhe desagrada, adquires perante o teu amado a honra d uma b ela d efesa . Asseg ura nd o-lhe sem c essa r o te u a mo r, nunca lhe concederás as últimas provas. Estas recusas, tão pouco difíceis na situaç ão em que te enc ontras, não de ixará ele de a s tom ar à c onta de virtud e; ta lvez se q ueixe, ma s a ma r-te-á a ind a ma is; e p a ra ter o d uplo mérito , ao s olhos d e um d e sa c rific a r o a mo r, ao s d o o utro d e lhe resistir, terá s a p ena s d e fa zer o sa c rifíc io d e lhe sa b orea r os p ra zeres. Oh, quantas mulheres perderam a reputação, quando com cuidado a poderiam ter conservado se se tivessem podido servir de semelha nte s p roc essos! Esta solução que proponho não te parece a mais razoável, a mais doce? Sabes o que ganhaste com a que tomaste? A tua mãe atribuiu a redobrada tristeza a um redobrado amor, está indignada e espera apenas ter a certeza para te castigar. Acaba de me escrever; tenta rá tud o p a ra ob ter de t i me sma a c onfissã o. Ta lvez vá a té, segundo me disse, propor-te Danceny como esposo, e isso só para te fazer falar. E se te deixasses seduzir por essa enganadora ternura, respondendo segundo o teu coração, em breve enclausurada por muito tempo, talvez para sempre, chorarias com vagar a tua cega credulidade. É preciso opor um outro a este ardil que ela quer empregar c ontra ti.
Deves começar por mostrar menos tristeza e fazer-lhe crer que pensas menos em Danceny. Ela persuadir-se-á tanto mais facilmente, quanto é esse efeito habitual da ausência; e ficar-te-á muito grata porque encontrará uma ocasião para aplaudir a sua prudência, que lhe sugeriu este processo. Mas se, conservando ainda dúvidas, ela persistisse no entanto em experimentar-te, se viesse a falar-te de casamento, deverias encerrar-te, como filha bem educada, numa inteira submissão. Afinal que arriscas? Para aquilo de que nos serve um marido, tanto faz um como outro; e o mais incômodo é ainda menos imp ortuno do que uma m ãe. Uma vez c ontente c ontigo , a tua m ãe c asa r-te-á enfim; e entã o, mais livre nas tuas ações, poderás, a teu gosto, deixar Valmont para to ma r Danc eny, ou me smo c onservar os d ois. Porque, toma atenção, o teu Danceny é gentil, mas é um homem que se tem quando se quer e enquanto se quer; podemos deste modo estar à vontade com ele. Não acontece o mesmo com Valmont: é difícil guardá-lo; perigoso deixá-lo. Deve-se usar com ele de muita habilidade, ou, quando a não temos, de muita docilidade. Mas se conseguisses prendê-lo como amigo, seria uma sorte. Colocar-te-ia na p rime ira fila d a s mulheres d a mo d a . É a ssim q ue se a d q uire um a p osiç ã o no mund o, e nã o a c orar e a c horar, c om o q uand o a s religiosa s te o b riga va m a ja nta r d e joelhos. Procura, se és sensata, reconciliar-te com Valmont, que deve estar muito zangado contigo; e como é preciso saber emendar os nossos erros, não receeis tomar a iniciativa; e aprenderás logo que, se são os homens que ousam primeiro, somos quase sempre nós as ob riga d a s a a traí-los em seg uida . Tens um p retexto, não d eves gua rd a r esta carta; peço-te e exijo-te que a entregues a Valmont assim que a tiveres lido. Não te esqueças de a tornar a lacrar antes. Primeiro, é preciso deixar-te o mérito do gesto que vais fazer, e que não deve p a rec er ter-te sid o a c onselhad o; e d ep ois, porque és tu a únic a p essoa no mundo de quem sou suficientemente amiga para te falar como o faço. Adeus, meu anjo; segue os meus conselhos, e dir-me-ás se foram úteis. P. S. - A p rop ósito, esque c ia -me... uma p a la vra a ind a . Cuida ma is d o teu estilo. Esc reve s a ind a c om o um a c ria nç a . Vejo b em q ual a c a usa ; dizes tudo o que pensas e nada do que não pensas. Isso não tem imp ortânc ia entre nós, que nad a de vemo s esc ond er uma à outra, ma s c om os outros, e sob retud o c om o te u a ma do , pa rec erás semp re um a tontinha. Pensa que quando escreves a alguém, é para essa pessoa e não para ti, deves antes procurar dizer aquilo que lhe agradará, de p referênc ia à q uilo q ue p ensa s. Adeus, meu coração; beijo-te em vez de te ralhar, na esperança de q ue te torna rá s ma is ra zoá vel.
Pa ris, 4 d e O utub ro d e 17* *.
CARTA CVI A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Ma ra vilhoso, Visc ond e, e, p elo seu ê xito, a d oro-o p erdida me nte! De resto, após a sua primeira carta, a continuação era de esperar; por isso, não me espantou; e enquanto que, já orgulhoso dos futuros sucessos, solicitava a devida recompensa, e me perguntava "se eu estava pronta", percebi bem que não havia necessidade de me apressar. Sim, por minha honra; lendo a bela descrição dessa terna cena, que o tinha tão "violentamente emocionado"; vendo o seu comedimento, digno dos mais belos tempos da nossa cavalaria, repeti vinte ve zes: "Eis um c a so fa lhad o!" Ma s é q ue não po dia ser d outra forma! Que q uer que fa ç a um a po bre mulher que se lhe e ntreg a, e d e q uem nã o se a po de rou? Por minha fé, num caso desses, é preciso ao menos salvar a honra; foi o que fez a Presidente. Proponho-me, vendo o efeito do procedimento dela, utilizá-lo por minha conta, na primeira ocasião que se m e a presente, ma s prometo que se, tal co mo o m eu a migo, aq uele por quem eu fizer toda a cena não souber aproveitar-se dela, pode renunc ia r a m im p a ra sem p re. Ei-lo pois reduzido a nada, e isto entre duas mulheres uma já vencida, e outra que não pedia senão a mesma sorte! Pois bem! Vai crer que me gabo, e dizer que é fácil profetizar depois do acontecimento, mas juro-lhe que já o esperava. É que realmente não tem o gênio próprio da condição de libertino; sabe apenas o que aprendeu e não é capaz de inventar. Assim, desde que as circunstâncias não se adaptam às manhas usuais e é preciso seguir c am inho novo, fic a d esarmad o c om o um rap azinho. Enfim, criancice dum lado, regresso ao pudor do outro em virtude de não acontecerem todos os dias, bastam para o desconcertar; e nem sequer os sabe evitar ou remediar. Ah! Visconde, Visconde, ensina-me a não julgar os homens pelos seus êxitos; e em breve se dirá a seu respeito: outrora teve mérito." E depois de ter feito asneira sobre asneira, recorre a mim! Parece que eu não tenho outra coisa a fazer senão dar-lhe remédio. Seria na verdade trabalho de sobra. Dessas duas aventuras, uma foi iniciada contra a minha vontade, e por isso não me intrometo nela; quanto à outra, como a ac eitou po r am ab ilida de pa ra c omigo, enc arrego -me e u dela. A ca rta que envio junto, e que entregará à pequena Volanges depois de a ter lido, é mais do que suficiente para a fazer regressar aos seus braços; mas, peço-lhe, dê alguma atenção a esta criança, e façamos dela, de
comum acordo, o desespero da mãe e de Gercourt. Não receemos forçar as doses. Vejo claramente que a garota não se assustará; uma ve z rea liza d os os nossos d esígnios, que se a rra nje c omo p ud er. Desinteresso-me inte ira me nte d ela. Tive d esejo d e a to rna r ao meno s uma intriga nte inferior, que rep resenta ria o s seg und os p a p éis sob a minha direção, mas não tem estofo; sofre duma ingenuidade estúpida que não cedeu sequer ao específico que o Visconde empregou, e contudo costuma dar resultado, é na minha opinião, a d oe nç a ma is p erigo sa q ue um a mulher possa ter. Ela ind ic a , sob retud o uma fraq ueza d e c aráter quase semp re inc uráve l e q ue se op õe a tudo ; d e m a neira q ue, se p roc urá ssem os formar a ra p a riguinha p a ra a intriga , criaríamos apenas mais uma mulher fácil. Ora, não conheço nada mais vulga r d o q ue a fac ilid a d e d a e stup id ez, q ue se ent reg a sem sa b er nem c om o nem po rquê, unic am ente p orque a ata c am e nã o sab e resistir. Mulheres d esta esp éc ie sã o p ura s má q uinas d e p ra zer. Dir-me-á que não há outra coisa a fazer dela e que isso basta para os nossos projetos. Seja assim! Mas não esqueçamos que cedo toda a gente descobre as molas e os motores dessas máquinas; assim, para nos servirmos desta sem perigo, é preciso apressarmo-nos, parar op ortunam ente e d estruí-la em seg uid a . Na verdade, não nos faltarão os meios para nos desfazermos dela, e Gercourt fá-la-á enclausurar quando quisermos. De fato, quando ele já não puder duvidar do seu infortúnio, quando este for bem público e notório, que nos importa que se vingue, contanto que não se console? O que digo do marido, pensa-o sem dúvida da mãe; p or isso m ã os à ob ra . Esta p osiç ã o, que julgo a me lhor, d ec id iu-me a c ond uzir a jove m um pouco mais depressa, como verá pela minha carta; importa nada d eixa r nas sua s mã os q ue nos p ossa c om p rom eter. Atente nisto, pe ç o-lhe. Tom ad a esta prec auç ão , enca rreg o-me eu do moral; o resto é consigo. Contudo, se virmos que a ingenuidade se corrige, estaremos sempre a tempo de mudar de projeto. De q ua lq uer forma seria p rec iso, ma is d ia me nos d ia , oc up a rmo -nos d o q ue va mos fa zer, em q ua lque r d os c a sos, a s c a nseira s nã o serã o inúte is. Sabe que as minhas quase o foram, e que a boa estrela de Gercourt ia levando a melhor sobre a minha ciência? Madame de Volang es teve um m om ento d e fra queza ma ternal! Queria d ar a filha a Danceny! Eis o que anunciava esse interesse mais terno que o meu amigo notara "no dia seguinte". Seria ainda o Visconde o causador de sem elhante o b ra -prima ! Felizmente a mãe carinhosa escreveu-me e espero tê-la dissuadido. Na minha carta falo tanto de virtude, e sobretudo lisonjeei-a tanto, que ela deve ac har que tenho razão . Tenho pena d e não ter tempo p ara co piar a c arta a fim d e o edificar quanto à austeridade moral. Veria como desprezo as depravadas capazes de terem um amante! É tão cômodo ser-se
rigorista nas palavras! Só pode ser prejudicial aos outros e não nos estorva de forma alguma... E depois, não ignoro que essa "virtuosa" mulher teve a s sua s fra q ueza s c om o q ua lquer outra, nos seus temp os, e não me desagradou humilhá-la ao menos na sua consciência; isso c onsolou-me um p ouc o d os elog ios q ue lhe fiz à c usta d a minha . Foi isso que , na m esma c arta, a idéia d e fazer ma l a G erc ourt me d eu c orag em pa ra dizer be m d ele. Adeus Visconde; aprovo a decisão de permanecer aí. Não tenho meios para apressar a sua marcha; mas convido-o a distrair-se c om a nossa c omum aluna. Quanto a mim, ape sar da delica da c itaç ão que usou, bem vê que ainda é preciso esperar; e concorda, sem dúvida , que não é minha a culpa . Pa ris, 4 d e O utub ro d e 17 * *.
CARTA CVII AZOLAN A O VISCONDE DE VALMONT Senhor: Obedecendo às vossas ordens, fui, logo que recebi a vossa carta, a casa do senhor Bertrand, que me entregou os vinte e cinco luíses, como vós lhe havíeis ordenado. Ainda lhe pedi mais dois para Filipe, a quem mandara partir imediatamente, como o senhor tinha ordenado, e que estava sem dinheiro; mas o vosso administrador não quis, afirmando que não recebera tal ordem da vossa parte. Fui obrigado a dar-lhos do meu bolso, e espero que o senhor terá a bo nda de de leva r isso em c onta . Filipe partiu ontem à tarde. Recomendei-lhe muito que não d eixa sse a esta la ge m, p a ra o p od ermos enc ontrar se for prec iso. Fui logo a seguir a casa da senhora Presidente para ver a Júlia, mas ela tinha saído e só falei ao La Fleur, por quem nada consegui saber, porque desde a chegada que não vai ali senão à hora das refeições. E o segundo criado que faz todo o serviço, e o senhor sabe bem que a este eu não o c onhecia. Mas c omec ei hoje. Voltei esta ma nhã a esta r co m a Júlia e e la fic ou m uito sa tisfeita por me ver. Interroguei-a sobre a causa do regresso da patroa; mas respo ndeu-me q ue nad a sab ia , e julgo que falava ve rd ad e. Censurei-a po r me não ter avisa do d a pa rtid a e e la afirmo u-me que só soubera naquela noite, quando fora deitar a senhora; tanto a ssim q ue p a ssa ra tod a a noite a a rra nja r a s c oisa s e a p ob re rap a riga nã o c heg ou a d ormir d uas horas. Sa íra nessa noite d o q ua rto d a p a troa d ep ois d a um a ho ra , e q uand o a d eixou p unha-se esta a esc reve r.
De ma nhã, Mad am e d e Tourvel, ao p artir, entreg ou uma c arta a o p orteiro d o c a stelo. Júlia nã o sab ia p a ra q uem : disse q ue ta lvez fosse p a ra o senho r, ma s o senho r nã o m e fala nisso. Durante toda a viagem a senhora tinha um grande capuz na c a b eç a , o q ue imp ed ia q ue se lhe visse o rosto, ma s Júlia julga q ue e la chorou muito. Não disse uma palavra durante o caminho, e não quis p a ra r em ...*, c om o fizera à id a ; o q ue d esa g ra d ou a Júlia , q ue nã o tinha almoç ad o. Mas, tal co mo eu lhe d isse, mand a q uem p od e. *Ainda a m esma aldeia a meio do c am inho.
À chegada, a senhora deitou-se; mas só ficou duas horas na cama. Quando se levantou, mandou chamar o porteiro e deu-lhe orde m d e nã o d eixa r entrar ningué m. Nem seq uer se a rra njou. Sento u-se à me sa p a ra ja nta r, mas só c om eu um p ouc o d e sop a e levantou-se logo. Levaram-lhe o café ao quarto, Júlia entrou ao mesmo tempo. Viu que a patroa arrumava os papéis da secretária e reparou que eram cartas. Apostaria que são as do senhor; e das três que recebeu durante a tarde, houve uma que conservou diante dela até à noite. Tenho a c erteza de que se trata ainda de alguma vossa. Mas por que regressou ela deste modo? Espanta-me! Mas, enfim, com c erteza q ue o senhor o sa b e, e não tenho na d a c om isso. A senhora Presidente foi à tarde à biblioteca e escolheu dois livros para o tocador, mas Júlia afirma que ela não leu nem um quarto de hora em tod o o d ia e q ue não fez outra c oisa senã o ler a ta l c arta, e pensar apoiada a uma mão. Como julguei que o senhor ficaria contente por saber de que livros se trata, e Júlia não sabia, consegui ir hoje à b ibliotec a, co m o p retexto de a ver. Só estava vazio o lugar de dois livros: um é o segundo volume dos Pensées Chrétiennes; e o outro o primeiro dum livro que tem por título C la risse. Esc revo ta l co mo lá esta va : o senho r sa b erá ta lvez d o q ue se tra ta . Ontem à noite, a senhora não jantou: só tomou chá. Chamou cedo esta manhã; pediu logo os cavalos e foi antes das nove a Feuillants, onde ouviu missa. Quis confessar-se mas o seu confessor estava ausente e só voltará dentro de oito a dez dias. Pensei que o senho r gosta ria d e sa b er isto . A senhora voltou logo, almoçou, e pôs-se a escrever, e assim esteve q uase a té à uma hora. Aproveitei a oc asião pa ra fazer o que o senho r tanto d esejava : fui eu q ue levei a s c a rta s a o c orreio. Não ha via nenhuma p ara Ma da me d e Volang es; ma s envio-lhe uma que era para o senhor Presidente: pensei que seria a mais interessa nte . Havia tam bé m uma p ara Ma d am e d e Rosemo nde , ma s ac hei que o senhor a conseguiria ler quando quisesse, e deixei-a seguir. De resto, o senhor sa b erá tud o p orque a senho ra Presid ente ta mb ém lhe e sc reve . Verei d e futuro todas as cartas que eu quiser; porque é a Júlia que as entrega aos criados, e ela prometeu-lhe que por amizade por mim, e pelo senhor, fará d e b oa vontad e o que eu lhe p ed ir.
Ela nem seq uer quis o d inheiro q ue lhe o ferec i, ma s a c ho q ue o senho r d eve rá q uerer rec om p ensá -la c om a lgum p resente ; se o d esejar e se for da sua vontade que eu me encarregue disso, saberei achar fac ilmente a lgo que lhe a grad ará. Espero que o senhor não ache deste vez que mostrei negligência em servi-lo e desejo lavar-me das censuras que me fez. Se nã o soub e d a p a rtida d a senhora Presidente , foi po r c a usa d o m eu zelo em servir-vos, pois foi devido a ele que parti às três da manhã; desse modo não vi Júlia na véspera à noite, como de costume, visto que fui d ormir a Tournebrid e, pa ra não a c orda r no c a stelo. Quanto ao que o senhor me censura de estar muitas vezes sem dinheiro, em primeiro lugar é porque gosto de me vestir convenientemente, como o senhor pode ver, depois porque preciso corresponder ao fato que se traz, bem sei que devia economizar um pouco para o futuro, mas confio inteiramente na generosidade do senhor, que é tã o b om p atrão. Qua ndo entra r pa ra o serviç o d e Ma da me d e Tourvel, fic a ndo na mesma no do senhor, espero que não o exigirá de mim. Era muito diferente em casa da senhora duquesa; eu não poderia usar uma libré, e para mais uma libré de nobreza de toga, depois de ter tido a honra d e ser vosso c riad o. Para tudo o resto, o senhor pode dispor daquele que tem a honra de ser, com muito respeito e consideração, vosso humilde servidor. Roux Azolan, c riad o. Pa ris, 5 d e Outub ro d e 17* * à s onze horas d a noite.
CA RTA CVIII A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE Oh, minha indulgente m ãe! Com o vos ag rad eç o e c omo me era necessário a vossa carta! Li-a e reli-a sem cessar; não podia arrancarme dela. Devo-lhe os únicos momentos menos penosos que passei desde a minha partida. Como sois boa! A sensatez e a virtude sabem p ois c ond oe r-se d a fra q ueza ! Tend es p ieda d e d os meus ma les! Ah, se o s conhecêsseis!... São terríveis. Julgava ter experimentado os males do amor; mas o tormento inexprimível, que é preciso ter sentido para o poder avaliar, é separarmo-nos daquele que amamos, separarmo-nos para sempre!... Sim, a dor que hoje sinto voltará amanhã, depois de amanhã, toda a minha vida! Meu Deus, como sou jovem ainda, e que long o te mp o m e resta p a ra sofrer! Sermos nós próprios os autores da nossa infelicidade; rasgar o coração com as próprias mãos; e enquanto sofro dores insuportáveis,
sentir a cada instante que as posso fazer cessar com uma palavra, e q ue essa pa la vra é um c rime ! Ah, minha a miga !... Quando tomei esta decisão tão penosa de me afastar dele, espe rava que a ausênc ia m e a umenta ria a c orag em e as forç as, c om o me eng a nei! Pa rec e-me q ue p elo c ontrário a c a b ei po r d estruí-la s. Precisava de combater mais, é verdade, mas mesmo resistindo, nem tudo era privação; ao menos via-o algumas vezes; muitas vezes, mesmo sem ousar olhá-lo, sentia os olhos dele fixos em mim; sim, minha am iga , sentia-os, pa rec ia que me aq uec iam a a lma ; e m esmo sem me atravessarem os olhos, chegavam-me ao coração. Agora, na minha triste solid ã o, isolad a d e tud o o q ue m e é c a ro, frente a o m eu infortúnio, todos os momentos da minha triste existência são regados de lágrimas, e nada me suaviza a amargura; nenhuma consolação se junta aos meus sacrifícios; e os que até hoje fiz só serviram para tornar mais d olorosos os q ue m e resta fa zer. Ontem ainda, senti-o vivamente. Nas cartas que me trouxeram, havia uma dele; estavam ainda a dois passos de mim e já eu a reconhecera entre as outras. Levantei-me involuntariamente; tremia, a c usto esc ond ia a minha e moç ã o; e este estad o nã o d eixava de me ser agradável. Quando fiquei só no momento seguinte, essa enganadora d oç ura d ep ressa se d esva nec eu, e fic ou-me a p ena s ma is um sa c rifíc io a fazer. Com efeito, poderia eu abrir essa carta que tanto ansiava por ler? Pela fatalidade que me persegue, mesmo as consolações que p a rec em a p resenta r-se-me imp õe m-me p elo co ntrá rio nova s p riva ç õe s; e estas tornam-se mais cruéis ainda pela idéia de que o senhor de Valmo nt a s c om pa rtilha. Ei-lo e nfim, esse no me q ue m e o c upa sem c essa r e q ue ta nto me custou a escrever; a quase censura que me fazeis a este propósito, alarmou-me deveras. Suplico-vos que acrediteis que uma falsa vergonha não alterou a minha confiança em vós; e por que temeria nomeá-lo? Coro dos meus sentimentos e não do objeto que os causa. Ah! Quem é m a is d igno d o q ue e le d e o s insp ira r! E contudo não sei por que me é tão difícil escrever esse nome; e me smo d esta vez, foi delib erad a me nte q ue o esc revi. Volto a ele. Contais-me que vos pareceu vivamente afetado com a minha p a rtida . Que fez ele? Q ue d isse? Fa lou em volta r a Pa ris? Peço-vos que o afasteis dessa idéia tanto quanto puderdes. Se ele me interpretou bem, não deve ter levado a mal a minha partida, ma s d eve sentir tam b ém que é um a de c isã o sem ap elo. Um do s meus maiores tormentos é não saber o que ele pensa. Ainda conservo a c a rta ...; ma s sois seg ura me nte d a minha o piniã o, não a d evo a b rir. É a vós, minha indulgente amiga, que devo não estar inteiram ente sep arad a de le. Não quero a busar da vossa bo nda d e; vejo bem que as vossas cartas não podem ser longas, mas não negareis duas palavras à vossa filha; uma para lhe manter a coragem, a outra pa ra a c onsolar. Ad eus, minha resp eitáve l am ig a .
Pa ris, 5 d e O utub ro d e 17* *.
CARTA CIX CECÍLIA DE VOLANGES A MARQUESA DE MERTEUIL Foi só hoje, senhora, que entreguei ao senhor de Valmont a carta que me destes a honra de escrever. Guardei-a durante quatro dias, apesar do terror de que fosse encontrada, guardei-a com muito c uid ad o; e q uand o a tristeza me assaltava , fec hava -me p ara a reler. Vejo q ue o q ue julga va uma tão grand e infelic ida de não o é; e d evo c onfessa r a té q ue m e d á m uito p ra zer; d e m od o q ue isso já q uase me não aflige. Some nte a idé ia de Danc eny ainda me a tormenta às vezes. Mas há muitos momentos em que nem sequer penso nisso e o senhor de Valmo nt é tã o a má vel! Fiz as pazes com ele há dois dias; foi-me muito fácil; porque a ind a ma l eu p ronunc ia ra d uas p a la vra s, já ele me d izia q ue se e u tinha qualquer coisa a dizer-lhe iria nessa noite ao meu quarto, e só tive de responder-lhe que me agradaria muito. E depois, logo que entrou, pa rec eu-me tão c ontente c om igo c omo se e u nad a lhe tivesse feito. Só d ep ois é q ue m e ra lhou, ma s muito d oc em ente ; e d uma ma neira ... Ta l como vós; isso provou-me que ele também tem muita amizade por mim. Não seria c a p a z d e d izer-vos q ua nta s c oisa s eng ra ç a d a s ele m e contou, coisas que nunca teria acreditado; especialmente sobre a Mamã. Agradecer-vos-ia muito se me dissésseis se tudo aquilo é verdade. O que é certo, é que eu não podia impedir-me de rir; duma vez mesmo às gargalhadas, o que nos causou grande medo, porque a Mamã podia ter ouvido; e se tivesse vindo, que me teria acontecido? Desta ve z é q ue me m and aria p a ra o c onvento! Como devemos ser prudentes e o senhor de Valmont me disse que por nada deste mundo queria correr o risco de me comprometer, c om b ina mo s q ue d e o ra a va nte e le viria só a b rir a p orta e iría mo s p a ra o seu q uarto. Aí nad a há a rec ea r; já lá estive o ntem, e no mo mento em q ue vos esc revo a gua rd o q ue me venha b usc a r. Ag ora, minha senho ra , esp ero q ue m e nã o ralheis ma is. Há no entanto uma coisa que me surpreendeu muito na vossa carta; é o que me mandais dizer acerca de Danceny e do senhor de Valmo nt qua ndo eu estiver c asad a. Parece -me q ue um d ia, na Óp era, me dissestes, pelo contrário, que, uma vez casada, não poderia amar senã o o meu ma rid o, e q ue d evia me smo esquec er Danc eny; d e resto, talvez não tenha percebido bem, e prefiro que não seja assim, porque
então, já não terei tanto receio de me casar. Desejo-o até visto que terei mais liberdade; e espero então arranjar maneira de pensar só em Danc eny. Sinto b em q ue só c om ele serei verda d eira me nte fe liz, porque a sua lembrança agora atormenta-me sempre, e só tenho felicidade quando consigo não pensar nele, o que é muito difícil; e logo que p enso, volto a fic a r d esgostosa . O que me consola um pouco é a certeza que me dais de que Danceny me ficará amando mais devido a isto, mas tendes bem a certeza... Oh, sim, seríeis incapaz de me enganar. É engraçado que seja Danc eny que eu a me , e q ue seja o senhor de Va lmo nt... Ma s, p elo q ue m e d izeis, é ta lvez um a sorte ! Enfim, veremos. Nã o compreendi bem o que me dizeis a respeito da minha maneira de escrever. Parece-me que Danceny acha as minhas cartas bem tal c om o são . No e ntanto, sinto q ue nad a lhe d evo d izer ac erc a do q ue se pa ssa c om o senhor de Va lmo nt; nad a tend es a tem er. A Mam ã a inda me nã o falou do m eu ca sam ento, ma s não nos preocupemos; quando me falar, visto que é para me apanhar, p rom eto -vos q ue sa b erei mentir. Adeus, minha boa amiga, agradeço-vos, e prometo-vos que nunca esquecerei todas as bondades que tendes para comigo. Devo ac ab ar, é q uase uma hora e o senhor de Valmo nt não ta rd a. Ca stelo d e..., 10 d e O utub ro d e 17 * *.
CARTA CX O VISCONDE DE VALMONT À MARQUESA DE MERTEUIL "Poderes do céu, eu tinha uma alma para a dor; dai-me outra para a felicidade." Creio que é assim que se exprime o terno Saintpreux. Mais bem dotado do que ele, possuo simultaneamente as duas existências. Sim, minha amiga, sou ao mesmo tempo muito feliz e muito desgraçado; e visto que lhe dou inteira confiança, devo-lhe a dupla histó ria d a s minhas d ores e d os meus p ra zeres. Saiba pois que a ingrata devota continua a ser severa para comigo. Já estou na quarta carta devolvida. Quarta, digo mal; porque, tendo adivinhado desde a primeira devolução que outras se lhe seguiriam, e não querendo desperdiçar tempo, tomei a decisão de esc rever os me us q ueixumes em lug a res-com uns, e d e nã o d a ta r, d esd e o segundo correio, é sempre a mesma carta que vai e vem; mudo ap ena s o sob resc rito. Se a minha b ela ac ab a r c om o a c a ba m geralmente as belas, e se se enternecer um dia, pelo menos de c a nsa ç o, gua rd a rá enfim a m issiva, e entã o será a a ltura d e m e p ôr em
dia. Bem vê que, com este novo gênero de correspondência, não posso estar nem mais avançado, nem mais informado do que no p rime iro d ia . Descobri contudo que a volúvel criatura mudou de confidente, tenho a certeza de que, desde a partida daqui, não veio nenhuma carta dela para Madame de Volanges, ao passo que já vieram duas pa ra a velha Rosem ond e; e c om o e sta nad a nos d iz, c om o já nã o a bre a boca sobre "a sua querida filha", de quem antes falava sem cessar, concluí que fora ela quem recebera a confidência. Presumo que por um lado a necessidade de falar de mim; e por outro lado a vergonha de expor, perante Madame de Volanges, um sentimento há tanto tempo renegado, produziram esta grande revolução. Receio ter perdido com a troca, porque as mulheres quanto mais velhas, mais ríspidas e severas se tornam. A p rime ira d ir-lhe-ia ma l de mim, ma s esta d ir-lhe-á a ind a p ior d o a mo r; e a sensível e p udib unda d a ma tem ma is terror do sentiment o d o que de mim. A única maneira de saber o que se passa é, como vê, interceptar a correspondência clandestina. Já dei ordem ao meu c ria do ; e a gua rd o a exec uçã o d e d ia p ara d ia. Até lá , só p osso a gir ao acaso, assim, há oito dias, revejo inutilmente todos os processos conhecidos, os dos romances e os das minhas memórias secretas; não encontro nenhum que convenha às circunstâncias da aventura ou ao caráter da heroína. O difícil não seria introduzir-me em casa dela, me smo d e no ite, ad ormec ê-la e transformá -la numa nova Clarisse, ma s depois de mais de dois meses de cuidados e de trabalhos, recorrer a meios que me são estranhos, arrastar-me servilmente pelo caminho dos outros, e triunfa r sem glória !... Não, ela não terá "os prazeres do vício e as honras da virtude". Não me b a sta p ossuí-la , quero q ue ela se entregue . Ora, para tal não basta penetrar até junto dela, mas sim fazê-lo com o seu consentimento; encontrá-la só e na disposição de me escutar; sobretudo fechar-lhe os olhos quanto ao perigo, porque, se o vê, saberá vencê-lo ou morrer. Mas quanto melhor sei o que é preciso fazer, mais rec onheç o a s dific uld ad es, e a inda que a minha am iga faç a outra vez troç a de mim, c onfesso-lhe q ue o m eu em ba raç o a umenta à med ida que me o c upo c ad a vez ma is do c aso. A cabeça ficar-me-ia tonta, creio, sem as felizes distrações que me dá a nossa comum aluna; é a ela que devo o ter ainda alguma c oisa a fazer que nã o e leg ia s. Acredita que a rapariguinha estava de tal modo furiosa, que se passaram três longos dias antes que a sua carta produzisse efeito c om p leto ? Eis c om o um a só idé ia fa lsa p od e estra g a r o m a is a grad á vel dos temperamentos! Enfim; só no sábado é que veio andar à roda de mim, e balbuciar-me algumas palavras; pronunciadas no entanto tão baixo e
abafadas de tal maneira pela vergonha, que era impossível ouvi-las. Ma s o rubo r q ue c a usa ra m fez-me a d ivinha r o sentido . Até aqui tinha-me mantido sobranceiro, mas amaciado por um tão agradável arrependimento, consenti em encontrar-me nessa mesma noite com a linda penitente; e esta graça da minha parte foi recebida com todo o reconhecimento devido a uma tão grande mercê. Como nunca perco de vista os seus projetos e os meus, resolvi aproveitar a ocasião para conhecer ao certo o valor desta criança e também para lhe apressar a educação. Mas, para continuar este trabalho com mais liberdade, tive necessidade de mudar o local dos nossos encontros; porque um pequeno gabinete, que separa o quarto d a sua aluna do da mã e, não lhe inspirava sufic iente seg uranç a pa ra a d eixa r ma nifesta r-se à vonta d e. Prometera a mim mesmo provocar "inocentemente" algum ruído susc etível de lhe c a usa r o rec eio b a sta nte p a ra a d ec id ir a esc olher, de futuro, um a silo ma is tra nqüiliza d or; ela p oup ou-me o tra b a lho. A pequena gosta de rir; e, para lhe agradar, decidi-me, nos intervalos, a contar-lhe todas as aventuras escandalosas que me passavam pela cabeça; para as tornar mais picantes e prender-lhe a ate nç ão , atribuí-a s tod as à Ma mã de la, q ue me d elic iei desta forma a ga lardo a r d e víc ios e d e rid íc ulos. Não era sem motivo que tinha tomado esta decisão, de fato não havia melhor maneira de encorajar a tímida aluna e de lhe inspirar ao mesmo tempo o mais profundo desprezo pela mãe. Já há muito tinha notado que, se este meio nem sempre é necessário para seduzir uma rap a riga , é indisp ensá vel, e m uitas vezes a té o ma is efic a z, q ua nd o a queremos depravar; porque aquela que não respeita a mãe não se resp eitará a si p róp ria; verda d e m oral q ue a c ho tã o útil, q ue m e foi bem fác il fornec er um exem plo em a po io d o p rec eito. No entanto, a sua aluna, que não pensava na moral, sufocava de riso a cada instante; e enfim, uma vez, ia quase rebentando às gargalhadas. Não tive d ific uld a d e e m lhe fa zer crer q ue tinha sid o "um b a rulho horrível". Fingi um grand e m ed o q ue e la fac ilme nte c om p a rtilhou. Pa ra q ue e la se lem b ra sse b em , não p ermiti que o p ra zer nasc esse d e no vo, e de ixei-a três horas ma is c ed o que d e c ostume; c om binamo s tam b ém, ao despedir-nos, que a partir do dia seguinte seria no meu quarto que nos enc ont ra ría mos. Já a q ui a rec eb i dua s vezes; e neste c urto intervalo a a p rend iza to rnou-se q ua se tã o sa b ida c om o o me stre. Sim, na verda d e, ensinei-lhe tudo , até mesmo as c omp lac ênc ia s! Omiti ap ena s as preca uçõ es. Ocupado toda a noite, ganho desta forma o benefício de dormir uma grande parte do dia; e como não há neste momento no castelo companhia que me atraia, limito-me a aparecer no salão d ura nte uma hora.
Tom ei mesmo , a p artir de hoje, a de c isão de c om er no me u q ua rto, e nã o te nc iono d eixá -lo a nã o ser pa ra p eq ueno s p a sseios. Esta s excentricidades são levadas à conta do meu estado de saúde. Declarei que estava ligeiramente indisposto; anunciei também um po uco de febre. Tenho ap enas de falar com uma voz lenta e ap ag ad a. Quanto à alteração do meu rosto, confie na sua aluna. "O amor p rovide nc ia rá ." * Ocupo o ócio pensando nos meios de reconquistar à minha ingra ta as vanta ge ns que pe rd i, e ta mb ém a esc rever uma e spé c ie d e catecismo da depravação para uso da minha pupila. Divirto-me a designar tudo pelo termo técnico, e rio antecipadamente da interessa nte c onve rsa q ue d a q ui resulta rá entre ela e Ge rc ourt, na noite de núpcias. Nad a ma is ag rad ável do que a ingenuida de c om que e la se serve já d o p ouc o q ue sa b e d esta língua ! Ela não ima gina q ue se p ossa falar d outra fo rma . Esta c ria nç a é realmente sedutora! O contraste entre a ingênua candura e a linguagem descarada não deixa de fazer efeito, e, não sei porquê, a g ora só m e a grad a m a s c oisa s extra va g a ntes. Talvez me ab and one de ma siad o a esta, visto q ue c om prometo o tempo e a saúde, mas espero que a minha fingida doença, além de me salvar do tédio do salão, ainda me possa ser de qualquer utilidade junto da austera devota, cuja virtude de tigre se alia contudo à doce sensibilidade! Não duvido que já esteja instruída de ste g rand e a c ontec imento , e gostava imenso de saber o que ela pensa; tanto mais que apostaria de bom grado que não deixará de se atribuir as honras. Regularei o me u esta d o d e sa úd e p ela imp ressã o q ue p rod uzir sob re e la . Ei-la, minha bela amiga, ao corrente dos meus problemas como se fora eu p róp rio. Desejo ter em b reve not íc ias ma is interessa nte s p a ra lhe transmitir, e, peço-lhe que o creia, no prazer que prometo a mim me smo , conto muito c om a rec om pe nsa que espe ro d e si. Ca stelo d e..., 11 d e O utub ro d e 17* *.
*Regnard, Folies Amoureuses.
CARTA CXI O CONDE DE GERCOURT A MADAME DE VOLANGES Parece que tudo está tranqüilo nesta região, minha senhora; e espe ram os, dum d ia pa ra o o utro, a lic enç a d e vo ltar a Franç a. Espero que não duvidareis que desejo sempre com o mesmo ardor regressar e atar os laços que me deverão unir a vós e a Mademoiselle de Volanges. No entanto o duque de..., meu primo, a que m sab eis be m q ue de vo ob riga ç ões, ac ab a d e me p artic ipa r a sua c hama da a Nápoles. Ma nd a -me d izer que te nc iona visita r Rom a e ve r, no c a minho, a parte da Itália que lhe falta conhecer. Exorta-me a acompanhá-lo nessa viagem que durará aproximadamente seis semanas ou dois meses. Não devo ocultar-vos que me seria agradável aproveitar esta oc asião , po is be m vejo que um a ve z c asad o não terei tem po pa ra m a is ausências do que as exigidas pelo serviço. Talvez seja, aliás, mais c onveniente ad iar o c asa mento pa ra o Inverno; pois só entã o to d os os meus parentes estarão reunidos em Paris, e principalmente o marquês de..., a quem devo a esperança de vir a pertencer à vossa família. Apesar destas considerações, os meus projetos a este respeito subordinar-se-ão inteiramente aos vossos; e se preferirdes o que combinamos em primeiro lugar, renunciarei a estes meus planos. Peçovos somente que me façais saber o mais depressa possível as vossas intenções a este respeito. Esperarei a vossa resposta aqui e só por ela reg ularei o m eu p roc ed imento . Sou com todo o respeito, minha senhora, e com todos os sentime ntos q ue c onvê m a um filho, o vo sso muito hum ild e, etc . Conde de Gerco urt Ba stia, 10 d e Out ub ro d e 17* *.
CARTA CXII MADAME DE ROSEMONDE A PRESIDENTE DE TOURVEL (Ditada)
Só a go ra rec eb i, minha q uerid a filha , a vossa c a rta d e 1/ 11, e as doces censuras que contém. Confessai que tivestes vontade de me fazer ainda mais; e que se vos não tivésseis lembrado de que éreis minha filha , ter-me -íeis ra lha d o a va ler. Teríeis sido no ent a nto b em injusta! Era o desejo e a esperança de vos poder responder eu própria que me faziam adiar todos os dias; e vedes que ainda hoje sou obrigada a servir-me da mão da minha criada de quarto. O maldito reumatismo voltou-me; anichou-se desta vez no braço direito e estou mesmo ma neta . Eis d e q ue vos serve, jovem e fresc a c om o sois, ter uma a miga tã o ve lha! Pa g a is p elos me us inc ôm od os. Logo que as dores me dêem um pouco de descanso, prometo conversar longamente convosco. Entretanto dir-vos-ei apenas que recebi as vossas duas cartas, que teriam duplicado, se tal fosse possível, a minha terna amizade por vós; e que nunca deixarei de compartilhar intensa me nte tud o o q ue vos d iz resp eito. O meu sobrinho também está um pouco indisposto, mas sem gravidade, nada de inquietante; um ligeiro incômodo, que, ao que me p a rec e, lhe a feta ma is o e sp írito d o q ue a sa úd e. Qua se nã o o ve mo s. O a fasta me nto d ele e a vossa p a rtida tira ra m a a leg ria a o no sso grupo. A pequena Volanges sobretudo não diz uma palavra e boceja d esalma da me nte d urante tod o o dia. Espe c ialmente d e há alguns dias para cá, dá-nos a honra de adormecer profundamente logo após o jantar. Adeus, minha querida filha; serei sempre para vós a amiga, a mã e, e a té a irmã , se a ava nça d a ida d e m e p ermitisse ta l título. Enfim, esto u-vos liga d a p elos ma is te rnos sentimento s. Assinad a : Ad elaide , em nome de Ma da me de Rosem ond e. Ca stelo d e..., 14 d e O utub ro d e 17* *.
CARTA CXIII A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Creio que d evo p reveni-lo, Visc ond e, que c om eç am a falar de si em Pa ris; rep a ra m na sua a usênc ia e já se c om eç a a a d ivinha r a c a usa . Assisti onte m a um janta r muito c onc orrido , ond e se d isse p ositiva mente que estava preso na aldeia por um amor romanesco e infeliz; logo a alegria se pintou no rosto de todos os invejosos dos seus êxitos e de to d a s a s mulheres q ue d esp rezou. Se me acreditar, não deixará aumentar estes murmúrios p erigosos e virá d estruí-los imed iata me nte c om a sua p resenç a . Pense que, se uma vez deixar perder a idéia de que se lhe não resiste, em breve sentirá que lhe resistem com efeito mais facilmente; e
que os seus rivais lhe perdem o respeito e ousam combatê-lo: qual de ent re e les se nã o julga ma is forte q ue a virtud e? Sobretudo pense que, na multidão de mulheres de que se vangloriou, todas as que não possuiu vão tentar elucidar o público, enq uant o a s outras p roc ura rã o e nga ná-lo. Enfim, c onte c om ser julga d o tão ab aixo d o seu valor, c omo até ag ora o foi ac ima . Volte, Visconde, não sacrifique a reputação a um capricho pueril. Cumpriu todos os nossos planos em relação à pequena Volanges; quanto à sua Presidente, não será, parece-me, p erma nec end o a d ez lég ua s d ela q ue se lib ertará d essa fanta sia . Julga que ela o irá procurar? Talvez já se se não se lembre de si, ou só se rec orde p a ra se felic itar d e o t er humilha d o. Ao menos aqui, poderá achar ocasião para reaparecer com brilho, e bem precisa disso; e mesmo que se obstine na sua ridícula aventura, não vejo em que o seu regresso o possa prejudicar; antes pelo contrário. Com efeito, se a sua Presidente o "adora" como tantas vezes me disse, e tão poucas provou, a sua única consolação e prazer deve ser agora falar de si, saber o que faz, o que diz, o que pensa, tudo enfim que lhe diga respeito. Estas misérias tornam-se importantes em relação às privações que se sofrem. São as migalhas de pão que caem da me sa d o ric o: este d esd enha -as; mas o p ob re rec olhe-as a vid a me nte e alimenta-se delas. Ora, a pobre Presidente recebe agora todas essas miga lha s, e q uant a s ma is tiver, meno s p ressa terá e m c ed er ao a p etite d o resto. Para mais, visto que lhe conhece a confidente, não duvidará que c ad a c arta c ontenha um p equeno sermã o, e tudo o que ela julga p róp rio p a ra c orrob orar a sensa tez e fortific a r a virtud e. Pa ra q uê, po is, d eixa r a uma rec ursos p a ra se d efe nd er e à o utra pa ra o prejudica r? Não que eu seja da sua opinião quanto à perda que julga ter sofrido c om a m uda nç a d e c onfide nte. Em p rime iro luga r, Ma da me de Volang es od eia-o, e o ó d io é sem p re m a is eng enhoso e c la rividente d o que a amizade. A virtude da sua velha tia não se empregará nem um só insta nte a d ene grir o q uerid o sob rinho; po rq ue a virtud e ta mb ém tem fraquezas. Para mais os seus receios partem duma observação a b solutam ente falsa . Não é verdade que as mulheres quanto mais velhas, mais ríspidas e severas se tornam. É dos quarenta aos cinqüenta anos que o desespero de ver no rosto fanar-se, a raiva de se sentirem obrigadas a a b a nd ona r as p rete nsõe s e p ra zeres a q ue e stã o a ind a p resa s, torna m q ua se to d a s a s mulheres a zed a s e hipó c ritas. Prec isa m d esse long o intervalo p a ra fa zer p or inteiro esse g ra nd e sa c rifíc io, ma s uma vez c onsuma d o, d ivid em -se t od a s em d ua s c la sses. A mais numerosa é a das mulheres que, nunca tendo tido mais do que beleza e juventude, caem numa apatia imbecil de que só
ac orda m p or causa do jogo ou d e a lguma s prática s de de voç ão ; estas são sempre ameaçadoras, muitas vezes impertinentes, às vezes um p ouc o intriguista s, ma s ra ra me nte má s. Nem se pode dizer se essas mulheres são ou não severas, sem idéias e sem consistência, repetem, sem compreender e indiferentemente, tudo o que ouvem dizer e conservam-se por si p róp rias a b soluta me nte nula s. A o utra c la sse, muito ma is ra ra , ma s verda d eira me nte p rec iosa , é a das mulheres que, tendo tido um caráter e não desprezando a lime nta r a ra zã o, sa b em c ria r-se um a existênc ia q ua nd o a d a nat ureza lhes falta; e tomam o partido de enfeitar o espírito com os ornatos que da ntes emp rega vam p ara o co rpo . Estas têm geralmente uma sã maneira de julgar, o espírito ao mesmo tempo sólido, alegre e gracioso. Substituem as graças sedutoras po r uma b onda de que p rende, e ainda po r uma a legria c ujo enc anto aumenta em proporção com a idade, é assim que conseguem aproximar-se de juventude e fazer-se amar por ela. Mas então, em vez de serem, como o seu amigo diz, ríspidas e severas, o hábito da indulgência, as longas reflexões sobre a natureza humana, e enfim, as recordações da juventude, os únicos laços que ainda as prendem à vida , coloc á-las-iam talvez de ma siad o p erto d a fac ilida de . O que lhe posso dizer é que tendo sempre procurado as senhoras idosas, de quem cedo achei útil a aprovação, encontrei muitas pa ra que m m e a traía tanto a inclinaç ão c om o o interesse. Fico por aqui; porque como o meu amigo agora se inflama tão depressa e de forma tão moralona, tenho medo que se apaixone subitame nte p ela sua ve lha tia e q ue vá c om ela a sep ultar no túmulo ond e a fina l o Visc ond e já vive de há uns tem po s a e sta p a rte. Volto p ois a o q ue m e interessa . Ap esar do e nca ntam ento em que e stá c om a c olegialzinha, não c reio q ue e la p ese q ua lq uer co isa nos seus p rojeto s. Acho u-a à mã o d e semear, apossou-se dela: ainda bem! Mas não se trata verdadeiramente duma inclinação. Nem sequer é, vendo bem, um verda d eiro p ra zer: o m eu a migo p ossui-lhe a p ena s o c orpo! Já nã o fa lo do coração, pois duvido que se preocupe com isso, mas nem sequer lhe o c up a o e sp írito. Não sei se d eu c onta d isso, ma s tenho a p rova na última c arta q ue ela m e e sc reveu; envio-lha pa ra que veja c om os seus próprios olhos. Repare que, quando fala de si, é sempre o senhor de Valmont; que todas as idéias, mesmo as que lhe faz nascer, conduzemna sempre a Danceny e a este não chama senhor, mas simplesmente Danc eny *. É a ssim q ue e la o d istingue d e tod os os out ros; e me smo q ua nd o se entrega a si, é apenas dele que se torna íntima. Se tal conquista lhe parece sedutora, se os prazeres que ela oferece o prendem, é certamente modesto e pouco exigente! Admito que a guarde para si; ent ra a té nos nossos p rojetos. Ma s a c ho q ue isso nã o va le q ua lq uer *Ver Carta CIX.
espécie de incômodo; deveríamos ter também algum domínio sobre ela e não permitir, por exemplo, que se aproxime de Danceny senão d ep ois d e lho termos feito esq uec er um p ouc o. Antes de deixar de me ocupar de si, para chegar à minha vez, quero ainda dizer-lhe que esse processo de se desculpar com uma do ença me pa rec e d ema siad o c onhecido e usad o. De fato, Visc onde, que falta d e ima ginaç ã o! Tam b ém me rep ito à s vezes, com o irá ter ocasião de ver; mas procuro variar os pormenores, e, o que é mais imp ortante , o ê xito d á -me razã o. Vou tenta r ob ter ma is um e c orrer uma nova ave ntura. Co nco rdo que esta não será uma d istraç ão , e morro d e tédio. Não sei porquê, mas desde a aventura de Prévan que Belleroc he se m e tornou insup ortá vel. Está d e ta l forma a tenc ioso, te rno e cheio de veneração, que já não posso mais. A cólera dele, no primeiro momento, agradou-me; no entanto tive de o acalmar, porque de ixá-lo a gir seria c om promete r-me, não haveria ma neira de o c ham a r à razão. Decidi pois mostrar-lhe mais amor para pôr ponto final no assunto, mas ele tomou-me a sério, e desde essa altura exaspera-me c om o seu enca ntamento eterno. Noto p rincipa lmente a insultante c onfia nça que vai de po sitand o em mim e a segurança com que me considera sua para sempre. Sintome verdadeiramente humilhada. Deve apreciar-me bem pouco, para se julgar com bastante valor para me prender! Pois não me dizia ultimamente que eu nunca amara ninguém além dele? Oh, naquele mom ento foi preciso a pelar pa ra toda a minha p rudênc ia pa ra o nã o d esilud ir, c onta nd o-lhe a ve rd a d e. Eis ma is um c a va lheiro q ue p retend e d ireito e xc lusivo! Conc ord o q ue é elega nte e tem um b elo rosto, mas no fundo é apenas um recruta nestas coisas do amor. Chegou finalmente o mo me nto, é p rec iso q ue no s sep a rem os. Há já quinze dias que experimento, e tentei sucessivamente a frieza, o mau humor, as discussões; mas o sujeito é tenaz e não larga a presa facilmente, é preciso portanto tomar uma decisão mais violenta; por isso levo-o para a minha casa de campo. Partimos depois de amanhã. Irão conosco apenas algumas pessoas desinteressadas e pouco perspicazes, e teremos quase tanta liberdade como se estivéssemos sós. Então, sobrecarregá-lo-ei a tal ponto de amor e carícias, viveremos de tal modo unicamente um para o outro, que ap osto q ue ele d esejará ainda ma is do que eu o fim d esta estad a, que a g ora c onsid era um a tã o g ra nd e fe lic id a d e; se nã o regressa r ma is farto de mim d o q ue eu já estou d ele, pod erá dizer, ca ro Visc ond e, que nã o pe rc eb o m ais d isto q ue o m eu am igo . O pretexto para esta retirada é ter de me ocupar seriamente com o meu processo, que irá finalmente a tribunal no começo do Inverno. O que sem dúvida me convém, porque é muito desagradável ter assim t od a a fortuna em p erig o. Não c heg o a esta r inquieta : prime iro porque a razão está do meu lado; todos os meus advogados mo
asseguram. E mesmo que assim não fosse, era preciso ser bem inábil se não soubesse ganhar um processo em que tenho por adversários a p ena s me nores e o velho tuto r! Mas como é preciso não descurar nada num assunto tão importante, terei efetivamente comigo dois advogados. Parece-lhe triste esta viagem? No entanto, se ela me fizer ganhar o processo e pe rde r Belleroc he, não lam entarei o me u tem po . E agora, Visconde, adivinhe-lhe o sucessor; aposto cem contra um. Ora! Como se eu não soubesse já que nunca acerta em nada... Pois bem, é Danceny. Admirado? Porque, enfim, ainda não estou reduzida à educação de crianças! Mas este merece que se lhe faça exceção; tem todas as graças da juventude e de forma nenhuma a frivolidade. A sua grande reserva é de molde a afastar todas as suspeitas, e não se pode imaginar nada de mais agradável na intimidade. Não que tenhamos chegado já a vias de fato, por enquanto sou apenas a confidente; mas sob o véu da amizade, creio ver-lhe uma grande simpatia por mim, e sinto que vou retribuir. Seria na verdade grande lástima que tanto espírito e delicadeza se fossem sacrificar e embotar junto dessa imbecil da Volanges! Espero que ele se engane quando julga amá-la, ela está tão longe de o merecer! Não que tenha ciúmes dela; mas seria um crime e quero salvar Danceny. Peç o-lhe po is, Visc ond e, evite q ue d ura nte a minha viag em ele se p ossa encontrar com a sua Cecília, como tem ainda o mau hábito de a chamar. Um primeiro amor tem sempre maior poder do que julgamos, e não respondo por nada se ele a tornasse a ver agora; sobretudo durante a minha ausência. Depois do meu regresso, tratarei de tudo e responsabilizo-me pelo êxito. Ainda p ensei levá -lo c om igo , ma s sa c rifiq uei este p la no à minha hab itual prudê ncia; e de po is tive m ed o que pe rc eb esse qua lquer c oisa ent re m im e Belleroc he; fica ria d esesperad a se e le tivesse a me nor id éia do que se passa. Quero pelo menos que me imagine pura e sem má c ula ; enfim, ta l c om o seria p rec iso ser pa ra o m erec er. Pa ris, 15 de Outub ro d e 17* *.
CARTA CXIV A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE Minha querida amiga, cedo a uma viva inquietação; e sem saber se estareis em estado de me responder, não posso impedir-me de vos interrogar. O estado do senhor de Valmont, que vós considerais "sem perigo", não me deixou tão tranqüila como pareceis estar. Não é ra ro q ue a me la nc olia e o d esejo d e solid ã o sejam sintom a s p rec ursores
d e a lgum a g ra ve d oe nç a ; os sofrime ntos d o c orpo , c om o o s d o esp írito, fazem desejar o isolamento; e muitas vezes censuramos o mau humor d e q uem d eve ría mo s a ntes la me nta r os ma les. Pa rec e-me q ue ele dev ia p elo meno s c onsulta r a lg uém . Como é que estando também tão doente, não tendes um mé dico ao pé d e vós? O me u, que já hoje vi, e nã o vos esc ond erei que o consultei indiretamente, é de opinião que nas pessoas ativas essa espécie de apatia súbita não deve ser deixada sem vigilância; e acentuou que as doenças só cedem quando tratadas a tempo. Por q ue d eixa r c orrer esse risc o a a lgué m q ue vo s é tã o c a ro? O q ue faz aumenta r a minha inquietaç ão é q ue há q uatro d ias nã o rec eb o no tíc ia s d ele. Me u Deus! Nã o m e e sta reis a eng a nar qua nto ao seu estad o? Porque teria de ixad o d e m e e sc rever tão de rep ente? Se fosse somente o efeito da minha teimosia em lhe devolver as cartas, c reio q ue e le t eria tom a d o ma is c ed o essa d ec isã o. Enfim, me smo sem crer em pressentimentos, desde há uns dias pesa sobre mim uma tristeza q ue me a ssusta . Ah, talvez eu e steja na vésp era d a ma ior da s infelic id a d es! Não p od eis c alcular, e tenho vergonha d e vo-lo c onta r, quanto me custa não receber essas mesmas cartas, que afinal me recusaria a ler. Tinha a o m enos a c erteza de que ainda pe nsava em mim, e toc ava q ua lq uer co isa vind a d ele. Nã o a b ri essa s c a rta s, ma s c horava olhand oas, as minhas lágrimas eram mais doces e mais fáceis; e só elas dissipavam um pouco a constante opressão que sinto desde o meu regresso. Suplico-vos, minha indulgente amiga,escrevei-me assim que p ud erde s; e entreta nto enviai-me to d os os d ias not íc ias vossa s e d ele. Apercebo-me de que mal escrevi uma palavra em especial para vós, mas conheceis os meus sentimentos, a dedicação sem reservas, o terno reconhecimento que dedico à vossa amizade; perdoareis a perturbação em que estou, devida às penas mortais, ao terrível tormento de recear males de que sou talvez a causadora. Meu Deus! Esta idéia desesperante persegue-me e dilacera-me o coração; faltava-me esta infelicidade, e sinto que estou destinada a sofrê-las todas. Adeus, minha querida amiga: não me falteis com a vossa a miza d e, e lam enta i-me. Rec eb erei hoje c a rta vossa ? Pa ris, 16 de Outub ro d e 1 7* *.
CARTA CXV O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL É inconcebível, minha bela amiga, como as pessoas deixam de se compreender assim que se afastam. Enquanto estive ao pé de si,
tivemo s sem p re a s me sma s rea ç õe s, a m esma ma neira d e ve r; e p orque já não vos vemos há três meses, não chegamos a acordo sobre nada. Quem tem a culpa? Certamente a Marquesa não hesitaria em responder, mas eu, mais prudente, ou mais delicado, prefiro calar-me. Resp ond erei a p ena s à sua c a rta , e c ontinuarei a c onta r-lhe o q ue faç o. Em primeiro lugar, quero agradecer-lhe o conselho que me dá acerca dos boatos que correm a meu respeito; mas não me inquieto por enquanto; tenha a certeza de os fazer cessar em breve. Esteja tranqüila; reaparecerei mais célebre do que nunca e cada vez mais d igno d e si. Esp ero até q ue venha m a a trib uir q ua lq uer mé rito à a ventura d a pequena Volanges, que despreza tão facilmente, como se não fosse nada roubar, numa noite, uma rapariga ao bem-amado, em seguida servir-se d ela c om o d e c oisa sua , e sem q ualque r em b a ra ç o; ob ter de la aquilo que nem sequer se ousa exigir a todas as profissionais, e isto, sem a perturbar no seu terno amor, sem a tornar inconstante, nem mesmo infiel - porque, com efeito, não lhe ocupo apenas a cabeça -, de ma neira q ue, dep ois de me pa ssar a fanta sia, a c oloca rei de novo no s braç os do be m-am ad o, sem que ela te nha d ad o p or nad a. Será isto um feito vulga r? E, além d isto , creia-me, uma vez sa íd a d a s minhas mã os, os princípios que lhe revelei continuarão a desenvolver-se; e profetizo que a tímida aluna se lançará em breve em largos vôos, capazes de honrarem o me stre. No entanto, se alguém preferir o gênero heróico, mostrarei a Presidente, esse modelo de todas as virtudes, respeitada mesmo pelos ma is libe rtinos, a ta l po nto q ue se tinha pe rdido a té a idé ia de a ata c ar! Mostrá-la-ei, digo, esquecida dos deveres e da virtude, sacrificando rep utaç ão e d ois ano s d e p rudê ncia, pa ra c orrer atrás d a felic ida de d e me ag rad ar, pa ra se em bria ga r c om a d e m e q uerer be m; julga ndo -se p a g a d e ta ntos sa c rifíc ios, c om uma p a la vra , um o lha r, q ue nem seq uer obterá sempre. Farei ainda mais, abandoná-la-ei; e ou não conheço esta mulher ou nã o terei suc essor. Ela resistirá à necessidade de consolação, ao hábito do prazer, ao desejo de vingança. Enfim, terá vivido apenas para mim; e quer a sua vida seja longa ou não, terei sido o único a abrir e a fechar a b a rreira. Rea liza d o este triunfo , direi aos meus rivais: "Eis a minha ob ra , e proc urem um seg undo exemp lo e m to do o séc ulo!" Vai-me perguntar donde me vem hoje este excesso de confiança? É que de sde há oito d ias sou c onfid ente d a minha be la; ela nã o me diz os seus segredos, mas eu surpreendo-lhos. Duas cartas dela para Ma d a me d e Rosem ond e b a sta ra m p a ra me instruir, e só lerei as outras por curiosidade. Aproximar-me dela será mais do que suficiente para alcançar o êxito, e os meios para tal já os encontrei. Vou imed iata mente p ô-los em aç ão. Está curiosa, suponho? Mas não, para a castigar de não acreditar nas minhas invenções, não as saberá. Merecia que lhe
retirasse radicalmente a minha confiança, pelo menos nesta aventura; e, co m e feito, sem o d oc e p rém io a trib uíd o p or si a o m eu b om suc esso, nã o lhe volta ria a falar nela . Bem vê que estou zangado. No entanto, na esperança de que se venha a c orrigir, limitar-me-ei a esta ligeira p uniçã o; e, reg ressa nd o à indulgê nc ia, esq ueç o p or uns mo me nto s os me us gra nd es p rojetos, p a ra c onversa r c onsigo a c erca d os seus. Ei-la portanto no campo, enfadonho como o sentimento e triste como a fidelidade! E esse pobre Belleroche! Não se contenta em o obrigar a beber a água do esquecimento, necessita ainda de o a tormenta r! Com o está ele? Supo rta b em a s náusea s d o a mo r? Divertirme-ia se ele ainda por cima se prendesse mais a si; teria curiosidade de ver que rem éd io m a is efica z c onseg uireis em p reg a r. La me nto-a d e fa to por ter sido obrigada a recorrer a esse. Só uma vez, na minha vida, utilizei o a mo r c om o p roc esso. Tinha c ertam ente um fo rte m otivo, visto q ue se trata va d a Condessa de...; e vinte vezes, nos braços dela, tentei dizer-lhe: "Minha senhora, renuncio ao lugar, que solicito, e permita-me que abandone aquele que ocupo." E também, de todas as mulheres que possuí, a únic a de que m te nho verd ad eira mente prazer em d izer ma l. Quanto ao seu motivo, acho-o, para dizer a verdade, dum ridículo raro; e tinha razão em crer que não conseguiria adivinhar o sucessor. Pois quê? É por Danceny que está com esse trabalho todo? Ah! Ca ra a miga , deixe-o lá a d orar a sua virtuosa Ce c ília e nã o se m eta nessas brincadeiras de crianças. Deixe-as educarem-se junto das criadas, ou entregarem-se a pequenos jogos inocentes umas com as outras. Pa ra q ue se va i oc upa r d um no viço q ue nã o sa b erá ne m p ossuíla nem deixá-la, e a quem será preciso ensinar tudo? Digo-lhe muito a sério, desaprovo a escolha, e por muito secreta que venha a ficar, humilhá-la -á p elo m eno s a me us olhos e p erante a sua c onsc iênc ia . Diz que começa a tomar interesse por ele, ora vamos, vamos, enga na-se c ertam ente, e c reio a té q ue já d esc ob ri a c a usa do seu erro. O seu fastio por Belleroche veio num tempo de escassez e, não lhe oferecendo Paris por onde escolher, as suas idéias, sempre demasiado vivas, concentraram-se sobre o primeiro objeto que lhe apareceu. Mas p ense q ue, no reg resso, pod erá e sc olher entre mil; e se e nfim rec eia c a ir na inaç ão ad ia ndo , ofereç o-me p ara a distra ir. Daqui até ao seu regresso, os meus grandes afazeres terão terminado duma maneira ou doutra; e, certamente, nem a pequena Volang es, nem a própria Presid ente m e o c upa rão d e ta l mo do que não p ossa esta r ao p é d e si sem p re q ue a minha a miga o d esejar. Ta lvez me smo que , daq ui até lá, já eu tenha rep osto a rap ariguinha na s mã os do seu discreto apaixonado. Sem concordar, por mais que a Marquesa diga, que não seja um gozo atraente como tenho em projeto que ela guarde de mim toda a vida uma idéia superior à de todos os outros homens, lancei-me com ela num ritmo que não poderei manter por
muito tempo sem prejudicar a saúde; e já apenas me prende a ela o interesse d evido a os a ssuntos d e fa mília ... Com preende -me , não é verda d e?... É que espe ro um a seg unda época para confirmar a minha esperança, e assegurar-me de que realizei plenamente os meus projetos. Sim, bela amiga, já possuo um indíc io d e q ue o ma rido d a minha aluna não c orrerá o risc o d e m orrer sem posteridade; e que o futuro chefe da casa de Gercourt será ap ena s um rebe nto d a de Valmont. Mas de ixe-me te rminar seg undo a minha fantasia esta aventura que encetei a seu pedido. Pense que, se fizer de Danceny um inconstante, tirará todo o picante à história. Considere finalmente que, oferecendo-me para o representar junto de si, tenho, pa rec e-me , a lguns d ireitos à p refe rênc ia. Como estou certo dela, não receei contrariar os seus objetivos, concorrendo eu próprio para aumentar a terna paixão do discreto ap aixona d o p elo p rimeiro e d igno ob jeto d a sua e sc olha. Tend o onte m enc ontrad o a sua a luna oc upa da em lhe esc rever, e tendo-a primeiro arrancado desta doce ocupação para outra mais do c e a inda d ep ois pa ra ler a c arta; e c om o a a c hei fria e c onstrang id a, fiz-lhe sentir que não era assim que ela consolaria o seu namorado, e de c idia-a a esc rever outra ditad a po r mim; na q ual, imitando o m elhor que pude o seu tom disparatado, tratei de alimentar o amor do jovem com uma esperança mais certa. A pequena estava toda encantada, disse-me, por se ver a escrever tão bem, e daqui em diante serei eu o encarregado da correspondência. Que não terei eu sido para Danc eny? Fui, suc essiva me nte, a migo , c onfiante, riva l e a ma nte! Ainda neste momento, presto-lhe o serviço de o salvar dos perigosos tentáculos da minha amiga. Sim, sem dúvida, perigosos; porque possuíla e perdê-la, é comprar um momento de felicidade por uma eternid ad e d e saud ad es. Adeus, bela amiga; tenha a coragem de liquidar Belleroche o ma is d ep ressa q ue p ud er. Deixe Da nc eny sosseg a d o, e p rep a re-se p a ra me reencontrar e me dar de novo os deliciosos prazeres da nossa primeira ligação. P. S. Felic ito-a pela p róxima d ec isã o do grand e proc esso, e agra d a rme -ia imenso q ue e sse fe liz a c ont ec iment o se d esse sob o m eu reinad o. Ca stelo d e..., 19 d e O utub ro d e 17* *.
CA RTA CXVI O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES
Madame de Merteuil partiu esta manhã para o campo; assim, minha encantadora Cecília, eis-me privado do único prazer que me resta va na sua a usênc ia , o d e fa la r d e si à no ssa a miga . Permitiu-me há pouco tempo que lhe desse este título; apresseime a servi-me d ele, pois p a rec ia -me q ue a ssim m e a p roxima va ma is d e si. Meu Deus, como essa mulher é amável! E que encanto lisonjeiro ela sabe dar à amizade! Na Marquesa parece que este belo sentimento se em b eleza e se fortific a c om tud o o q ue ela rec usa a o a mo r. Se soubesse como ela gosta de si e como gosta de me ouvir falar a seu respeito!... É sem dúvida isso o que me prende a ela. Que felicidade poder viver unicamente para ambas, passar incessantemente das delícias do amor à doçura da amizade, consagrar-lhes toda a minha existência, ser de qualquer forma o ponto de encontro da vossa rec íproca afeiçã o; e sentir semp re q ue, oc upa ndo -me c om a felic id ad e d uma , trab a lho igua lme nte p ara a da outra! Tem o d ever de g ostar muito, muito, encantadora amiga, desta mulher adorável. A afeição que tenho por ela, deve a Cecília dar-lhe ainda mais valor, compartilhando-a comigo. Depois de ter experimentado o encanto da amizade, desejo que o conheça também. Os prazeres que não compartilhamos juntos, parece-me que os gozo apenas por metade. Sim, minha Cecília, gostaria de cercar o seu coração dos mais doces sentimentos; que cada uma das suas palpitações a fizesse experimentar uma sensação de felicidade; e julgaria ainda retribuir-lhe apenas uma pa rte d a felic ida de que rec eb eria d e si. Por que é que estes encantadores projetos são apenas uma quimera da minha imaginação, e a realidade não me oferece senão privações dolorosas e indefinidas? A esperança que me tinha dado de nos vermos nesse castelo, compreendo que é preciso renunciar a ela. Só me resta a c onsolaç ão de me pe rsuad ir de que na rea lida d e ta l lhe não é possível. E esquece-se de mo dizer, de chorar comigo! Já por duas vezes as minhas queixas a este respeito ficaram sem resposta. Ah! Cecília! Cecília! Creio que me tem amor com todas as forças da sua alma, mas a sua alma não é ardente como a minha! Por que não me c a b e a mim a fasta r os ob stá c ulos? Por que não são os meus interesses que devo proteger, em vez d os seus? Em b reve lhe p rova ria q ue na d a é imp ossível a o a mo r. Tam bé m nã o m e informa qua ndo de ve terminar esta c ruel ausência. Ao menos aqui, ver-nos-íamos algumas vezes. Os seus olhos maravilhosos reanimariam a minha alma abatida; a enternecedora expressão deles tranqüilizaria o meu coração, que algumas vezes bem o precisa. Perdão, minha Cecília; este receio não é uma suspeita. Ac red ito no seu a mo r, na sua c onstâ nc ia . Ah, muito infeliz seria se duvidasse. Mas tantos obstáculos, e sempre renovados! Minha amiga, estou triste, muito triste. Parece que a pa rtida de Mad am e d e Merteuil avivou em mim o sentimento d e tod as a s minhas d ores.
Adeus, Cecília; adeus, minha bem-amada. Pense que o seu a ma d o se a flige , e q ue e stá na sua mã o fazê-lo fe liz. Pa ris, 17 de Outub ro d e 17* *.
CA RTA CXVII CECíLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY (Ditad a po r Valmo nt) Acredita pois, meu bom amigo, que é preciso censurar-me para eu e sta r triste, q ua ndo sei que se a flige ? E d uvid a q ue sofra ta mb ém p or todas as suas dores? Compartilho consigo mesmo as que lhe causo voluntariamente; e ainda por cima me entristeço por ver que não me faz justiça. Oh! Isso não está certo. Bem vejo o que o aborrece; é que nas duas últimas vezes em que me pediu para vir aqui, nada lhe respondi a esse respeito; mas será essa resposta tão fácil de dar? Julga que não sei que o que de seja não me fic a be m? E no enta nto, se m e é tão penoso recusar de longe, que seria se estivesse presente? E depois, por o ter querido consolar um momento, ficaria infeliz toda a minha vida. Rep a re, nad a lhe e sc ond o p or minha p a rte, eis a s minhas ra zõe s; julgue a gora p or si. Teria ta lvez feito o q ue q uer se nã o fo sse o q ue lhe contei, que o senhor de Gercourt, causador de todas as nossas dores, não chegará tão cedo; e que, como, de há um tempo para cá, a Ma mã me testemunha muito ma is a mizad e e eu, pe lo lad o, a a c arinho quanto posso, nem sei o que não será possível obtermos dela. E se pudermos ser felizes sem que eu nada tenha a censurar-me, não será muito melhor? A acreditar no que me dizem, os homens gostam menos das suas mulheres quando elas os amaram muito antes de o serem. É esse temor que me contém ainda mais que tudo o resto. Meu amigo, não está seg uro d o m eu c oraç ão , e nã o será semp re tem po ? Escute, prometo-lhe que, se não puder evitar a infelicidade de c a sa r c om esse senho r d e G erco urt, que já ta nto o d eio me smo a ntes d e o c onhecer, nad a me imp edirá dep ois de me d edica r a si tanto q uanto puder e de o amar acima de tudo. Como só me interessa ser amada po r si, e sa be rá be m q ue se p roc ed o m al não é po r minha c ulpa , nad a mais me importará; contanto que me prometa amar-me sempre tanto como agora. Ma s, me u a migo , a té lá, de ixe-me c ontinuar a p roc ed er assim; e não insista mais numa coisa que tenho razões para não fazer, e no enta nto me p ena liza rec usa r-lhe.
Go sta ria ta mb ém q ue o senhor d e Va lmo nt nã o fo sse tã o solíc ito p or si; isso torna -me a inda ma is triste Oh! Tem a li um g ra nd e a migo, a sseg uro-lhe! Tud o o q ue fa ria se a q ui estivesse, ele o fa z. Mas adeus, querido amigo; comecei a escrever-lhe demasiado tarde e passei nesta tarefa uma parte da noite. Vou-me deitar e rec up erar o tem p o p erdido . Beijo-o, ma s nã o m e ralhe ma is. Ca stelo d e..., 18 d e O utub ro d e 17* *.
CA RTA CXVIII O CAVALEIRO DANCENY A MARQUESA DE MERTEUIL Se a c red itar no c alendá rio, ad oráve l amiga , há a pe nas d ois dias que estais ausente; mas, se acreditar no meu coração, há dois séculos. Ora, sei-o p or vós, é sem p re no c oraç ã o q ue d eve mo s a c red ita r; é p ois já te mp o q ue reg resseis, tod os os vo ssos a ssunto s d ev em esta r ma is q ue tratados. Como quereis que me interesse pelo vosso processo, se, perdido ou ganho, devo do mesmo modo pagar-lhe as custas pelo téd io da vossa a usênc ia? Oh! Que vontade eu tenho de ralhar! E como é triste, com um tã o b elo pretexto pa ra e sta r za nga d o, não te r o d ireito d e o m ostra r! Não vos parece que é uma verdadeira infidelidade, uma negra traição, deixar este amigo longe de vós, depois de o ter habituado à vossa presença? Por mais que consulteis os advogados, nunca enc ontrarão justific a ç ã o p a ra este m a u p roc ed ime nto; e, de resto, essa gente só dá razões, e não bastam razões para responder aos sentimentos. Por mim, tanto me assegurastes que era a razão que vos ordenava essa viagem, que me indispusestes com ela. Já não a quero ouvir; mesmo q ue m e ordene q ue v os esq ueç a . E no enta nto essa ra zã o é bem razoável; e na verdade não seria tão difícil como pensais. Bastaria apenas desabituar-me de pensar em vós: e nada aqui, a sseg uro-vo s, me faria rec orda r d e vós. As nossas mais belas mulheres, as que são consideradas mais desejáveis, estão tão longe de vós que só dariam uma pálida idéia da vossa beleza. Creio mesmo que com olhos mais experimentados, quanto mais parecidas convosco as julgamos a princípio, maiores diferenças se acham depois; por mais que façam, por mais que empreguem tudo o que sabem, falta-lhes sempre o serem vós, e é aí que reside po sitivam ente o enc anto . Infelizmente, quando os dias são longos, e se está desocupado, sonha -se, c onstroem -se c a stelos d e a reia , inventa m-se q uimeras; po uc o a pouco a imaginação exalta-se, quer-se embelezar a obra, junta-se tudo o que p ode ag rad ar, atinge-se p or fim a perfeiç ão ; e q uando aq ui
se chega, o retrato conduz-nos de novo ao modelo, e fica-se esp a nta d o p or ver q ue a fina l não se fa zia outra c oisa senã o p ensa r em vós. Neste m esmo mo me nto, sou a ind a vítima d um e rro idê ntic o. Pensais talvez que foi para me ocupar de vós que me pus a esc reve r-vos? Na d a d isso: fo i pelo c ont rá rio, pa ra vos esq uec er. Tinha c em c oisa s a d izer-vos, de q ue nã o é reis o ob jeto , e q ue, c om o o sa b eis, me interessam vivamente; foi contudo destas que acabei por me de svia r. Desde qua ndo o enc anto da am izad e suplanta o d o a mo r? Ah! Se eu observasse melhor, talvez tivesse uma pequena censura a fazerlhe! Ma s c hiu! Esq ueç a mo s esta lig eira falta c om me d o d e ne la rec a ir; e que a minha p róp ria a miga o ignore. Ta mb ém , porque nã o e sta is a q ui p resente p a ra me resp ond er, para me conduzir ao bom caminho se me perco, para me falar da minha Cecília, para aumentar, se é possível, a felicidade que experimento ao a má-la, com a idéia tão d oc e a o meu c oraç ão de que é a vossa amiga que amo? Sim, confesso, o amor que ela me inspira tornou-se-me a ind a ma is p rec ioso, d esd e q ue tivestes a b ond a d e d e ser minha confidente. Gosto tanto de vos abrir o coração, de ocupar o vosso com os meus sentimentos, de os depositar nele sem reserva! Pa rec e-me q ue o s a c a rinho m elhor d esd e q ue vo s d ig nastes a c olhê-los; e depois, olhando-vos, digo para comigo: "É nela que está guardada toda a m inha felic ida de. Nad a tenho d e novo a c om unic ar-vos sob re a minha situaç ão . A última carta que recebi dela aumenta e confirma a minha esperança, mas retarda-a ainda. No entanto as razões dela são tão ternas e tã o hone sta s, que nã o p osso nem c ensurá -la nem q ueixa r-me. Ta lvez nã o vo s seja p ossível c om p ree nd er muito b em o q ue vo s d igo; mas porque não estais aqui? Conquanto se diga tudo à amiga, nem tud o se ousa esc reve r. Os segredos do amor, sobretudo, são tão delicados que não é possível confidenciá-los de qualquer maneira. Se algumas vezes p ermitimos q ue se nos esc a p em , é p rec iso nã o os p erder d e vista e, d e c erto m od o, vê-los entra r no seu novo a silo. Ah, reg ressa i po is, ad orável amiga; bem vedes que o vosso regresso é necessário. Esquecei finalmente as mil razões que vos retêm onde vos encontrais ou então d a i-me uma q ue m e ensine a viver onde nã o esta is. Tenho a honra d e ser, etc . Pa ris, 19 de Outub ro d e 17* *.
CARTA CXIX MADAME DE ROSEMONDE A PRESIDENTE DE TOURVEL
Se b em que ainda sofra muito, que rid a a miga , tento no enta nto escrever-vos eu própria, a fim de poder falar do que vos interessa. O meu sobrinho continua na sua misantropia. Manda regularmente saber notícias minhas todos os dias; mas nem uma única vez veio ele próprio informar-se, se bem que lho tivesse pedido, de forma que não o vejo mais do que se ele estivesse em Paris. Encontrei-o no entanto esta ma nhã, onde meno s o e spe rava . Foi na capela, aonde desci pela primeira vez depois da minha d olorosa d oe nç a . Soub e hoje que há q uat ro d ia s ele vai reg ula rme nte ouvir missa . Deus q ueira q ue isto d ure! Qua nd o e ntrei, d irigiu-se-me e fe lic itou-me a fetuo sa me nte p elas minhas melhoras. Como a missa começasse, abreviei a conversa que tencionava retomar depois, mas desapareceu antes que o pudesse encontrar. Não vos esconderei que o achei um pouco mudado. Mas, q uerid a filha , não me faç a is a rrep end er d a c onfianç a na vossa sensa tez com inquietações demasiado vivas; e sobretudo podeis estar certa de q ue p refe riria a fligir-vos a eng a na r-vos. Se o meu sobrinho continuar a evitar-me, tomarei a decisão, assim que estiver melhor, de o visitar no seu quarto e tratarei de ad ivinhar a c ausa de sta singular ma nia, que c reio be m te nha a lgo a ver convosco. Informar-vos-ei do que tiver sabido. Deixo-vos, já não posso mexer os dedos, e além disso, se a Adelaide soubesse que escrevi, ralhar-me-ia tod a a noite. Ad eus, querid a am iga . Ca stelo d e..., 20 d e O utub ro d e 17* *.
CARTA CXX O VISCONDE DE VALMONT AO PADRE ANSELMO (Bernard o d o c onve nto d a Rua Sa int-Hono ré) Não tenho a honra d e ser co nhec id o p or vós, senhor, ma s sei d a inteira c onfia nç a q ue e m vós tem a senho ra d e Tourvel e sei, a lém d isso, qua nto essa c onfianç a é d ignam ente me rec ida . Creio portanto poder, sem ser indiscreto, dirigir-me a vós, para obter um favor essencial, verdadeiramente digno do vosso santo mister, e no q ua l o interesse d a senho ra d e Tourvel se e nc ontra a lia d o a o me u. Tenho em me u p od er pa p éis imp ortante s q ue lhe d izem resp eito, que nã o p od em ser c onfiad os a ninguém e que nã o q uero nem de vo entregar senão nas próprias mãos dela. Não tenho maneira de a informar disto, porque certas razões, que talvez conheçais por ela, mas que não me julgo autorizado a comunicar-vos, a levaram a tomar a de c isão de rec usar toda a c orrespo ndênc ia c om igo : dec isão que hoje
voluntariamente confesso não poder censurar, visto que ela não podia prever ac ontec imento s que eu p róp rio e stava be m longe de espe rar e que apenas foram possíveis pela força sobre-humana que é forçoso rec onhe c er neles. Peço-vos, pois, senhor, vos digneis informá-la das minhas novas resoluções, e pedir-lhe da minha parte uma entrevista particular, durante a qual possa, pelo menos em parte, reparar os erros com as desculpas; e, com este último sacrifício, destruir a seus olhos os únicos vestígios ainda existentes dum erro ou duma falta que me tornou culpa do p ara c om ela. Só após esta expiação preliminar ousarei depor a vossos pés a humilhante confissão das minhas imensas loucuras; e implorar a vossa mediação para uma reconciliação bem mais importante ainda, e infelizmente mais difícil. Posso contar, senhor, que não me recusareis as vossas atenções, tão necessárias e tão preciosas? E que vos dignareis enc orajar a m inha fra q ueza e guiar os me us p a ssos num c a minho no vo que desejo sinceramente seguir, mas que confesso, corando, não c onhecer ainda ? Esp ero a vo ssa resp osta c om a imp a c iênc ia d o a rrep end id o q ue deseja reparar o mal feito, e peço-vos que me acrediteis tão rec onhe c id o q uão vene ra d or, Vosso muito humild e, etc . P. S. - Autorizo-vos, senhor, caso o julgueis conveniente, a comunicar esta c a rta p or inteiro a Ma d a me d e Tourvel, a q uem m e c onsiderarei toda a vida no dever de respeitar e em quem não deixarei jamais de vene ra r a q uela d e q uem o C éu se serviu pa ra rec ond uzir a minha a lma à virtude , po r meio d a toc ante visão da sua. Ca stelo d e..., 22 d e O utub ro d e 17* *.
CARTA CXXI A MARQUESA DE MARTEUIL AO CAVA LEIRO DANCENY Recebi a vossa carta, meu jovem amigo; mas antes de vos agradecer é preciso que vos ralhe e vos previna de que, se não vos corrigirdes, não obtereis resposta para a próxima vez. Se quereis ter a minha c onfianç a, ab and ona i po is esse tom ga lante ad or, que é ap ena s gíria do amor, desde que não seja a expressão dele. É esse o estilo da am iza de ? Não , me u am igo , c ad a sentime nto tem a lingua ge m q ue lhe é peculiar; servir-se de outra, é disfarçar o pensamento que se exprime. Bem sei q ue a s mulheres vulga res na d a ent end em d o q ue se lhes d iz se não for traduzido, de qualquer maneira, na gíria do costume; mas julgava merecer, confesso-o, que me distinguísseis delas. Estou
verdadeiramente zangada, talvez mais do que deveria, por me terdes ava liad o m al. Encontrareis pois na minha carta tudo o que falta na vossa, franqueza e simplicidade. Dir-vos-ei de boa vontade, por exemplo, que teria um grand e p ra zer em vos ver, e q ue e stou c ontraria d a p or só te r à minha volta pessoas que me aborrecem, em vez de outras que me a g ra d a m; ma s vó s, a esta mesma frase, tra d uzi-la-eis a ssim: ensinai-me a viver onde não estais; de maneira que quando estiverdes, suponho, junto da vossa amada, não vos sentiríeis bem se eu não estivesse presente como terceiro elemento. Que pena! E essas mulheres, a quem falta sem p re serem eu, a c ha is p or a c a so q ue isso ta mb ém falta à vossa Cecília? Eis no entanto aonde conduz uma linguagem que, pelo abuso que dela se faz hoje em dia, está ainda a baixo da gíria dos cumprimentos, e se transforma cada vez mais num simples protocolo em q ue se a c red ita ta nto c om o no "muito hum ild e servid or" ! Meu amigo, quando me escreverdes, que seja para me dizer a vossa maneira de pensar e sentir, e não para me enviar frases que enc ontrarei, sem p rec isa r de vós, ma is ou me nos b em d ita s no rom a nc e em moda. Espero que não vos zangareis com o que vos digo, mesmo que verifiqueis um pouco de mau humor; porque não nego que o tenha, mas para evitar até a suspeita do defeito que vos censuro, não vos direi que este mau humor seja talvez um pouco aumentado pelo afastamento em que me encontro de vós. Parece-me afinal de contas q ue va leis ma is q ue um p roc esso e d ois a d vog a d os, e ta lvez a té d o q ue o a tenc ioso Belleroc he. Vede como em vez de vos desolardes com a minha ausência, vos d eve ríeis felic ita r; po rq ue nunc a vos tinha feito um tã o b elo elog io. Creio que o exemplo me contagia e que desejo também dizer-vos galanteios, mas não, prefiro continuar na minha franqueza; é pois a p ena s ela q ue vo s a sseg ura d a terna a miza d e q ue tenho p or vós, e d o interesse que ela me inspira. É maravilhoso ter um jovem amigo cujo c oraç ão está oc upa do junto d e outra. Não é o sistema de todas as mulheres; mas é o meu. Parece-me q ue nos entrega mo s c om ma is p ra zer a um sentimento d o q ua l na d a se pode ter a recear, foi por isso que desde muito cedo passei convosco a o p a p el de c onfident e. Ma s esc olhei a s vossa s a ma d a s tã o jovens, que pe la p rimeira vez me a pe rc eb i de que c om eç o a e nvelhec er, prepa raivos assim para uma longa carreira de constâncias, e sinceramente d esejo q ue seja rec íp roc a . Tendes razão em vos submeterdes às razões ternas e honestas que, segundo dizeis, retardam a vossa felicidade. Uma defesa prolongada é o único mérito que resta às que não resistem sempre; e aquilo que eu acharia imperdoável em qualquer outra, exceto numa c ria nça c om o a pe quena Volang es, seria o nã o sab er evitar um p erigo , de que já foi suficientemente advertida pela confissão que ela própria fez do seu amor. Vós, os homens, não avaliais o que é a virtude, e q ua nto c usta sa c rific á -la ! Mas p or pouc o q ue uma mulher ra c ioc ine, ela
deve saber que independentemente da falta que comete, um momento de fraqueza é para ela a maior das infelicidades; e não pe rc eb o c om o p od e have r alguma que se d eixe c onq uistar, de sd e q ue tenha um m om ento p ara refletir. Não deveis combater esta idéia, porque ela é que me prende principalmente a vós. Salvar-me-eis dos perigos do amor; e se bem que até aqui tenha sabido defender-me sem vós, consinto em estar-vos rec onhe c id a p or tal, e a ma r-vos-ei ma is e m elhor. E após isto, caro Cavaleiro, peço que Deus vos tenha na Sua santa e d igna guarda. Ca stelo d e. . ., 22 d e O utub ro d e 17* *.
CARTA CXXII MADAME DE ROSEMONDE A PRESIDENTE DE TOURVEL Esperava, querida filha, poder finalmente acalmar as vossas inquietaç ões; e vejo c om pe sa r q ue vou pe lo c ontrário aum entá -las de novo. Sossegai, no entanto; o meu sobrinho não está em perigo; não se pode mesmo dizer que esteja verdadeiramente doente. Mas passa-se certamente qualquer coisa de extraordinário nele. Não compreendo absolutamente nada; mas saí do quarto dele com um sentimento de tristeza , talvez a té d e m ed o, q ue m e c ensuro d e v os fazer c om p a rtilha r, e acerca do qual não posso no entanto impedir-me de conversar convosco. Eis o que se passou: podeis estar certa que sou fiel, porque mesmo que eu viva ainda outros oitenta anos, não esquecerei a imp ressã o q ue m e fez essa c ena tã o triste. Fui p ois esta ma nhã a os a p osentos d o m eu sob rinho, enc ont rei-o a escrever, e cercado por uma multidão de montes de papéis, que pareciam ser o objeto do seu trabalho. Estava de tal forma entretido, que já eu estava no meio do quarto, ainda ele não tinha voltado a cabeça para saber quem entrara. Assim que me viu, notei que enq uanto se levantava se esforç ava p or da r uma c erta c om po stura ao rosto, e talvez tenha sido isso mesmo que me fez reparar com mais atenção. Para dizer a verdade, não se tinha arranjado nem empoado; mas achei-o pálido e magro, e sobretudo com a fisionomia tra nstornad a . O o lha r, que vimos já tã o vivo e t ã o a leg re, esta va triste e abatido; enfim, aqui entre nós, não gostaria que o tivésseis visto assim, po rque tinha um aspe c to c om ovente, e m uito p róp rio, seg undo c reio, a inspirar essa terna piedade, que é uma das mais perigosas armadilhas do amor. Se b em q ue ab alada pelo que ob servava, co mec ei no entanto a conversa como se não me tivesse apercebido de nada. Inquiri p rime iro d a sua sa úd e, e sem me d izer que era b oa , não se lam ento u no
enta nto q ue fosse m á . Entã o q ueixei-me d a sua a usênc ia , que tinha um po uco o aspec to de ma nia, e proc urei juntar um p ouco de bo m humor ao meu "sermão"; mas respondeu-me apenas, e num tom compenetrado, ah mais um erro, confesso... mas será reparado c onjuntam ente c om os outros. A expressã o d o rosto, a ind a ma is d o q ue as palavras, desconcertou-me, e apressei-me a dizer-lhe que estava a dar demasiada importância a uma simples censura ditada pela amizade. Começamos então a conversar tranquilamente. Declarou-me, pouco depois, que talvez um assunto, "o caso mais importante da sua vida", o chamasse em breve a Paris, mas como tive medo de adivinhar o que era, querida, e que este intróito levasse a uma confidência que não queria ouvir, não lhe fiz perguntas, e contentei-me em dizer que esperava que as distrações lhe fossem úteis à saúde. Acrescentei que d esta vez nã o lhe fa ria nenhum p ed id o, visto a ma r os me us a migo s p or eles próprios; a esta simples frase, cerrando-me as mãos e falando com uma veemência que não consigo reproduzir: "Sim, minha tia", disse-me, "amai, amai muito um sobrinho que vos respeita e vos adora; e, como d izeis, am a i-o p or ele p róp rio. Não vos p reo c upe is c om a sua felic id a d e, e não perturbeis com nenhum remorso a eterna tranqüilidade que espera fruir em breve. Repeti que me perdoais e amais; sim, haveis de perdoar-me; conheço a vossa bondade; mas como esperar a mesma indulgência daqueles que ofendi tantas vezes?". Então curvou-se um po uco , para m e e sc ond er, creio, os traç os de do r que o timbre da voz traía c ontra a vontade dele. Mais comovida do que posso dizer-vos, levantei-me precipitadamente; e sem dúvida notou o meu susto, porque imediatamente, retomando a compostura, disse: "Perdão, perdão, senhora; sinto que me perturbo contra minha vontade. Peço-vos que esqueçais as minhas palavras e recordeis apenas o meu profundo respeito. Não deixarei", acrescentou, "de ir junto de vós renovar as minhas homenagens antes de partir". Pareceu-me que esta última frase me c onvida va a terminar a v isita ; e d e fa to retirei-me . Mas quanto mais reflito, menos percebo o que ele quis dizer. Que a ssunto é e ste, q ue c onsidera "o m a is imp orta nte d a sua vida " ? Por que me pedia perdão? Donde lhe veio este enternecimento involuntário com que me falava? Já formulei mil vezes estas interrogações, sem conseguir responder-lhes. Nada vejo nelas que se relacione convosco, no entanto, como os olhos do amor são mais clarividentes que os da amizade, quis que nada ignorásseis do que se p a ssou e ntre mim e meu sob rinho. Tive de me interromper quatro vezes para escrever esta longa c a rta , que seria a ind a ma is long a se m e nã o sentisse tã o fa tiga d a . Ad eus, minha q uerid a filha . Ca stelo d e..., 25 d e O utub ro d e 17* *.
CA RTA CXXIII O PADRE ANSELMO AO VISCONDE DE VALMONT Recebi, senhor Visconde, a carta com que me honrastes; e ontem dirigi-me, conforme os vossos desejos, a casa da pessoa em questão. Expus-lhe o objeto e os motivos da diligência que me havíeis pedido para desempenhar junto dela. Apesar de achar demasiado presa à sensata decisão que tomara, depois de lhe ter demonstrado que se arriscava com a sua recusa a pôr um obstáculo ao vosso feliz regresso e a opor-se assim aos projetos misericordiosos da Divina Providência, acabou por consentir na vossa visita, com a condição de que seria a última, e encarregou-me de vos anunciar que estaria em casa na próxima quinta-feira, 28. Pede-vos que se esse dia vos não convier, a informeis e lhe indiqueis um outro. A vossa carta será recebida. No entanto, senhor Visconde, permiti-me que vos peça que não adieis sem fortes razões, para que mais cedo vos possais consagrar inteira mente à s louv á veis d isp osiçõ es q ue me a firma stes. Pensai que o que se não apressa a aproveitar o momento da graça se arrisca a que ela lhe seja retirada; que embora a bondade divina seja infinita, a sua aplicação é regulada pela justiça; e pode haver um momento em que o Deus de misericórdia se transforme em Deus de vinga nç a. Se continuardes a honrar-me com a vossa confiança, peço-vos q ue a c red iteis q ue esta rei à s vossa s orde ns sem p re q ue o d esejard es, e por maiores que sejam os meus afazeres, a minha importante tarefa será sempre cumprir os deveres do santo ministério a que me dediquei inteiramente; e o momento mais belo da minha vida seria aquele em q ue visse o s me us esforç os serem rea lça d os p ela b ênç ã o d o Tod oPod eroso. Som os fra c os e p ec a d ores e na d a p od em os p or nós p róp rios! Mas o Deus que vos chama tudo pode; e devemos também à sua bondade, vós, o desejo constante de vos unirdes a Ele, e eu, os me ios d e a í vos c ond uzir. E c om o Seu soc orro, esp ero c onvenc er-vos d e que só a santa religião pode dar, mesmo neste mundo, a felicidade sólida e durável que vãmente se procura na fogueira das paixões humanas. Tenho a honra d e ser, c om resp eitosa c onsideraç ã o, etc . Pa ris, 25 de Outub ro d e 17* *.
CARTA CXXIV
A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE Toma da ainda do espa nto em q ue se lanç ou a nova d e q ue ontem c onhec ime nto, não e squeç o, senhora, a satisfaç ão que ela vos deve causar, e apresso-me a dar-vos parte dela. O senhor de Valmont já se não ocupa de mim nem do seu amor; agora pretende apenas em end a r, co m uma vid a ma is ed ific a nte, a s faltas, ou a ntes, os erros d a juventud e. Fui informa d a d essa resoluçã o p elo p a d re Anselmo, a q uem se dirigiu para de futuro o guiar, e também para lhe conseguir um encontro comigo, que segundo julgo terá como principal objetivo d evo lver-me a s minhas c a rta s q ue c onservara a té a q ui, a p esa r d o m eu ped ido em co ntrário. Só me resta, sem dúvida, aplaudir esta feliz transformação, e felic itar-me se, tal com o d iz, pud e d e a lgum mod o c onc orrer pa ra ela. Mas por que havia de ser eu o instrumento, e por que me custaria isso o repouso da minha vida? Por que motivo seria o meu infortúnio o preço da felic id ad e d o senhor de Valmo nt? Oh, minha indulgente amiga, desculpai este queixume. Sei que não me cabe perscrutar os desígnios de Deus, mas enquanto eu lhe suplico sem cessar, e sempre em vão, força para vencer este meu desgraçado amor, Ele prodigaliza-a a quem a não pedia, e deixa-me sem soc orro, inteira me nte e ntreg ue à minha fra q ueza . Mas abafemos murmúrios tão culpados. Bem sei que o filho pródigo recebe, no regresso, mais graças do pai do que o filho que nunca se ausentara. Como poderemos pedir contas Àquele que nada nos deve? E mesmo que gozássemos perante Ele de alguns direitos, q ua is p od eria m ser os meus? Ousa rei va ng loria r-me d uma sensa te z q ue só d evo a Va lmo nt? Sa lvou-me c om o p od eria q ueixa r-me p or sofrer p or ele? Não: ser-me-ão caros os meus sofrimentos, se são o preço da sua felicidade. Era necessário que ele regressasse ao Pai. O Deus que o formou ama com certeza a sua obra. Não criou esse ser encantador pa ra fazer dele um rép rob o. Devo supo rtar a do r da minha aud ac iosa imp rudê ncia; po is não d evia eu c om preende r que , se m e e ra interdito a má -lo, nem seq uer me d evia p ermitir-me vê -lo? O meu erro ou a minha desdita foi não ter aceitado durante muito tempo esta verdade. Sois testemunha, minha querida e digna amiga, de que me submeti a esse sacrifício, assim que o reconheci necessário; mas para que ele fosse completo, faltava só que o senhor de Valmont o não compartilhasse. Ousarei confessar-vos que esta idéia é a gora a que m ais me a tormenta? Insuportável orgulho, que adoça os males que experimentamos com aqueles que fazemos sofrer! Ah! Hei-de vencer este coração reb elde e a c ostumá -lo à s humilha ç õe s. Foi sobretudo para conseguir isso que consenti em receber, na p róxima q uinta -feira , a p eno sa visita d o senhor d e Va lmo nt. Será, então, o próprio a dizer-me que já não represento nada para ele, que a frágil passageira emoção que nele despertara se
extinguiu inteiramente! Verei o seu olhar pousar-se sobre mim, sem comoção, enquanto o medo de denunciar a minha me obrigará a baixar os olhos. E receberei da sua indiferença essas mesmas cartas que rec usou d ura nte ta nto temp o à s minha s insistentes súp lica s; devolvê-lasá como objetos inúteis que já lhe não interessam; e as minhas mãos trêmulas, ao receber esse despojo vergonhoso, sentirão que ele lhe é entregue por uma mão firme e tranqüila! Enfim, vê-lo-ei afastar-se, afastar-se para sempre, e os meus olhos segui-lo-ão, sem verem os seus voltarem-se p a ra mim. Era p rec iso q ue sup orta sse ta nta humilha ç ã o! Ah! Tenta rei a o menos torná-la útil, deixando-me penetrar pelo sentimento da minha fraqueza. Sim, conservarei precisamente essas cartas de que ele já não faz caso. Impor-me-ei a vergonha de as ler todos os dias, até que as lágrimas lhes apaguem os últimos traços; e as dele, hei-de queimá-las, porque estão contaminadas com o perigoso veneno que corrompeu a minha alma. Oh! Mas que é o amor, que nos faz até ter saudades dos perigos a que nos expõe; e que sobretudo tememos sentir ainda, quando já o não inspiramos! Deixemos esta paixão funesta, que só pe rmite a esc olha entre a vergo nha e a de sgraç a, e q ue p or vezes as reúne; que p elo me nos a p rudê nc ia substitua a virtud e. Como quinta-feira ainda está longe! Que pena não poder consumar imediatamente esse doloroso sacrifício e esquecer-lhe em seg uid a a c a usa e o d esejo! Esta visita imp ortuna-me; a rrep end o-me d e ter ac ed ido . Oh! Para q ue p rec isa ainda ver-me? Que rep resentam os a go ra um p a ra o o utro? Se m e o fende u, p erdo o-lhe. Felic ito-o e louv o-o p or que rer em end a r a s sua s fa lta s. Farei mais, imitá-lo-ei; e visto que fui seduzida pelos mesmos erros, o exem p lo d ele a jud a r-me-á. Ma s se p rojeta fugir d e mim, po r q ue começa por me procurar? Não está cada um de nós empenhado em esquecer o outro? Ah! Será esse de hoje em diante o meu único cuidado. Se o permitirdes, minha respeitável amiga, será junto de vós que me irei ocupar desse difícil trabalho. Se necessito socorro e até mesmo consolação, só de vós os quero receber. Só vós sabeis ouvir-me e falar ao meu coração. A vossa preciosa amizade preencherá toda a minha existênc ia . Nad a m e p a rec erá d ifíc il p a ra sec unda r os c uid a d os q ue me dispensardes. Dever-vos-ei a tranqüilidade, a felicidade, a virtude; e o fruto d a s vossa s b ond a d es será o d e m e t ornard es d igna d e tud o isto. Julgo que me dispersei muito nesta carta; presumo-o pela perturbação em que estive sempre enquanto vos escrevia. Se nela se encontrar algum sentimento de que eu deva corar, cobri-lo com a vossa indulgente amizade. Confio inteiramente nela. De vós não esco nderei nenhum movimento d o m eu c oraç ão . Adeus, minha respeitável amiga. Espero dentro de poucos dias anunc iar-vos a m inha c hega da . Pa ris, 25 de Outub ro d e 17* *.
QUARTA PARTE
CARTA CXXV O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Eis venc ida essa mulher orgulhosa q ue o usa ra c rer que me p od ia resistir! Sim, minha amiga, tive-a, possuí-a inteiramente; e desde ontem que nad a m ais tem a c once der-me. Estou ainda d ema siad o c heio d a m inha felic ida de p ara a p od er ap rec iar: espa nto-me do enc anto d esc onhec id o q ue expe rimente i. Será po is verda de que a virtude aum enta o valor dum a mulher, até no momento em que deixa de a ter? Mas não, releguemos essa id éia p ueril p a ra a s a lma s simp lória s. Nã o se e nc ontra q ua se p or tod a a p a rte uma resistênc ia ma is ou m eno s b em fingid a a o p rime iro t riunfo? E já alguma vez tinha eu enc ontrad o o enca nto de que falo? Contudo, não é o do amor; porque, enfim, se junto desta mulher espantosa tive
p or vezes mo me ntos d e fra q ueza q ue se a ssem elhava m a essa p a ixã o p usilâ nime, soub e sem p re venc ê-los e volta r ao s me us p rincíp ios. Mesmo que a cena de ontem me tenha, segundo suponho, levado um pouco mais longe do que contava; mesmo que tenha partilhado por um momento a perturbação e a embriaguez que inspirava, essa ilusão passageira estaria dissipada presentemente; e, no ent a nto , o mesmo e nc a nto sub siste. Exp erime nta ria a té, co nfesso-o, um prazer assaz doce em me entregar a ele, se isso não me causasse uma certa inquietação. Seria eu, na minha idade, dominado como um principiante por um sentimento involuntário e desconhecido? Não: é preciso, antes d e tud o, c om ba tê-lo e a profundá -lo. De resto, ta lvez já tenha entrevisto a c a usa ! Com p ra zo-me p elo me nos c om esta id éia, e g osta ria q ue fo sse ve rd a d eira . Na multidão de mulheres junto das quais desempenhei até hoje o papel e as funções de amante, não tinha ainda encontrado nenhuma que não tivesse pelo menos tanta vontade de se entregar como eu de a isso a forçar; tinha-me até habituado a chamar pud ibund a s às que fa ziam ap ena s meta d e d o c am inho, po r op osiç ão a tantas outras, cuja defesa provocante cobria imperfeitamente os p rime iros favo res q ue tinham c onc ed id o. Aqui, pelo contrário, encontrei a princípio uma prevenção desfavorável, fundamentada depois nos conselhos e nas informações duma mulher odienta, mas sagaz; uma timidez natural e extrema que fortificava um pudor lúcido; um apego à virtude, conduzida pela religião, e que contava já dois anos de triunfo; e, para finalizar, iniciativas súbitas, inspiradas por estes diferentes motivos, tendo por fim furta r-se à minha p erseg uiç ã o. Não se trata, pois, como nas minhas outras aventuras duma simples c a p itula ç ã o m a is ou m eno s va nta josa , da q ua l é m a is fác il tira r proveito d o q ue vaidad e; é uma vitória co mp leta, arranc ad a por uma campanha penosa e resolvida definitivamente por sábias manobras. Nada de espantar pois que este êxito, devido apenas a mim, me seja mais precioso; e o acréscimo de prazer que experimentei no triunfo, e que ainda sinto, é a doce impressão do sentimento da glória. Acarinho esta ma neira d e ver, que me po upa a humilhaç ã o d e p ensa r que po ssa depender de qualquer maneira da escrava que submeti: que não detenho apenas em mim a plenitude da minha felicidade; e que a faculdade de ma fazer gozar em toda a sua força esteja reservada a ta l ou ta l mulher, c om exclusã o d e q ualque r outra. Estas sensatas reflexões regularão toda a minha conduta nesta importante ocasião; e pode estar certa de que não me deixarei prender de maneira a não poder, a todo o momento, quebrar a meu b el-prazer estes nov os la ç os. Fa lo-lhe já d a rup tura, e ig norais a inda p or que meios a ela adquiri direitos; leia, pois, e veja a que se expõe a sa be do ria qua ndo tenta soc orrer a loucura.
Estudava tão atentamente as minhas palavras e as respostas, que obtinha, que espero reproduzi-las com uma exatidão que, satisfaça. Verá, pelas duas cópias de cartas aqui juntas, qual o medianeiro* que escolhera para me aproximar da minha bela, e com que zelo a santa criatura se empenhou em nos unir. O que é preciso sa be r tam bé m, e que eu tinha d esc ob erto p or uma c arta, interc ep tad a como de costume, é que o receio e a pequena humilhação de ser abandonada tinham perturbado um pouco a pudicícia da austera de vota; e tinham-lhe enchido o c oraç ão e a c ab eç a de idéias que, lá por não terem sentido, nem por isso deixavam de ser interessantes. Foi depois destes preparativos indispensáveis que ontem, quinta-feira, 28, dia marcado e concedido pela ingrata, me apresentei, escravo tímido e a rrep end ido , em c a sa de la, pa ra sair ma is tarde c oroa d o venc ed or. Eram seis horas da tarde quando cheguei a casa da bela reclusa; porque, desde o regresso, a sua porta tem estado fechada a toda a gente. Tento u leva nta r-se q ua ndo fui anunc ia d o; m a s os joe lhos trêm ulos não lho p ermitira m: voltou a senta r-se ime d ia ta me nte. Co mo o criado que me tinha introduzido tivesse qualquer serviço a fazer na sala, pareceu impacientar-se e preenchemos este intervalo com os cumprimentos usuais. Mas para não perder tempo numa ocasião em que todos os instantes eram preciosos, examinei cuidadosamente o local; e marquei logo qual seria o teatro da minha vitória. Poderia ter escolhido um mais cômodo: porque neste mesmo quarto havia uma otomana. Mas notei que em face dela estava um retrato do marido; e receei, confesso-o, que, com esta mulher tão singular, um simples olhar *Cartas CXX e CXXIII.
la nça do po r ac aso p ara a quele lad o b astasse p ara d estruir num á pice o resultado de tantos esforços. Ficamos finalmente sós e entrei no assunto. Dep ois d e e xp lic a r, em p ouc a s p a la vra s, q ue o p a d re Anselmo a devia ter informado do motivo da minha visita, queixei-me do tra tam ento rigo roso a que fora subm etido; e a c entuei pa rtic ularmente o d esp rezo q ue m e tinha sid o te stem unhad o. Defendeu-se, como esperava; e, como certamente calcula, ap resentei co mo provas a d esc onfianç a e o med o q ue eu inspirara; a fuga escandalosa que se seguira, a recusa de responder às minhas cartas, de as receber até, etc., etc. Quando começou a justificação, que seria bem fácil, julguei dever interrompê-la; e para me fazer perdoar por esta brusquidão, cobri-a logo de lisonjas. "Se tais encantos", recomecei eu, "produziram uma impressão tão profunda sobre o meu coração, as vossas virtudes não fizeram menos sobre a minha alma. Seduzido, sem dúvida, pelo desejo de me aproximar, atrevi-me a julgar-me digno delas. Não vos censuro por terdes sido de opinião diferente; mas castigo-me pelo meu erro. Como
o embaraço a forçasse ao silêncio, continuei: "Desejei, senhora, ou justificar-me aos vossos olhos, ou obter o vosso perdão pelos erros que me atribuís, a fim de poder ao menos terminar com alguma tranqüilidade uma vida a que já não dou valor, desde que vos recusastes embelezá-la." Aqui tentou responder. "O meu dever não me permitia..." E a dificuldade de terminar a mentira que o dever lhe exigia não a deixou ac ab ar a frase. Rec om ec ei então no to m ma is terno: "É entã o ve rd ad e que foi de mim que fugistes?" - "Aquela partida era necessária." - "E também que me afastais de vós?" - "Assim é preciso." - "E para sempre?" - "É o meu dever." Desnecessário se torna dizer-lhe que, durante este c urto d iá log o, a voz d a terna d evo ta esta va op ressa e q ue o s seus olhos não se erguiam pa ra mim. Julguei dever animar um pouco esta cena esmo recente; assim, levantando-me com ar de despeito, disse então: "A vossa firmeza devolve-me a minha. Pois bem, senhora, ficaremos separados sim; mais separados até do que pensais, e tereis então todo o tempo para vos felicitardes da vossa obra." Um pouco, surpreendida por este tom de censura, quis replicar. "A resolução que haveis tomado", disse ela... "É apenas o efeito do desespero", acrescentei com ímpeto. "Quisestes fazer-me infeliz; provar-vos-ei que o haveis conseguido para além mesmo dos vossos desejos." "Desejo a vossa felicidade", respondeu. E o tom da voz começava a anunciar uma emoção assaz forte. Assim, lançando-me aos seus pés, e com o tom dramático que me, conhece, exclam ei: "Ah, cruel! Co mo p od e e xistir p a ra mim um a felic ida d e se vó s a não compartilhardes? Como encontrá-la longe de vós? Ah, nunca, nunca !" Confesso que , ab and ona ndo -me a este p onto, c onta ra ime nso c om o a uxílio da s minhas lá grima s; ma s, ou p or má d isp osiçã o, ou ta lvez ap enas por efeito d a atenç ão penosa e c ontínua q ue prestava a tudo, foi-me impossível chorar. Por felicidade recordei-me que para subjugar uma mulher todos os meios são bons; e que bastava impressioná-la com um forte arrebatamento, para que a impressão permanecesse profunda e favorável. Supri então a falta de sensibilidade pelo terror; e para tal, mudando apenas a inflexão da voz, e mantendo a mesma atitude, continuei: "Sim, faço este juramento a vossos pés: ou vos possuo ou morro." Ao pronunciar estas últimas palavras, os nossos olhares encontraram-se. Não sei o que a tímida criatura viu ou julgou ver nos meus; ma s leva nto u-se c om a r a ssusta d o e esc a p ou-se d os meus b ra ç os que a rodea vam. Verda d e seja q ue na da fiz p ara a reter, po rque já nota ra várias vezes que as cenas de desespero, conduzidas com demasiada vivacidade, caem no ridículo quando se tornam longas ou quando só deixam saídas verdadeiramente trágicas, coisa que eu estava muito longe de desejar. Entretanto, enquanto ela se esquivava, acrescentei num to m b a ixo e sinistro, ma s d e m a neira a p od er ser ouvid o: "Pois b em ! A mo rte!"
Levantei-me então; e, guardando um momento de silêncio, lançava sobre ela, como por acaso, olhares selvagens, que lá por parecerem alucinados nem por isso eram menos clarividentes e observadores. O porte pouco seguro, a respiração apressada, a contração dos músculos, os braços trêmulos e meio levantados, tudo me p rovava que o efeito fora ta l c omo o d esejava ma s, c omo no am or só d e p erto a lgo se c onc retiza, e c om o e stá vam os um p ouc o a fastad os um do outro, era necessário antes do mais que nos aproximássemos. Para o conseguir, passei o mais rapidamente possível a uma aparente tranqüilidade, propícia para acalmar os efeitos desta situação violenta, ma s sem lhe e nfra q uec er a imp ressã o. A minha transição foi: "Sou um infeliz. Quis viver para a vossa felicidade, e estraguei-a. Consagrei-me à vossa tranqüilidade, e p erturb o-a." Em seg uid a , co m um a r c a lmo ma s c onstra ngido : "Perdã o, senhora, po uc o ha b ituad o à s temp esta d es d a s p a ixõe s, nã o sei rep rimirlhes os ímpetos. Se fiz mal em deixar-me levar por eles, pensai ao menos que é a última vez. Ah, acalmai-vos, acalmai-vos, peço-vos.. E durante esta longa frase, aproximei-me insensivelmente. "Se quereis que me acalme, respondeu a bela amedrontada, "estai também mais tranqüilo". "Pois bem! Sim, prometo-vos", disse-lhe eu. E acrescentei com uma voz ma is fra c a : "Se o esforç o é g ra nd e, ao me nos nã o será longo . Ma s", a c resc ente i log o c om um a r a luc inad o, "vim, nã o é ve rd a d e, pa ra restituir as vossas cartas? Por piedade, dignai-vos aceitá-las. É mais um sacrifício que me resta fazer; não me deixeis nada que me possa diminuir a coragem. E tirando do bolso a preciosa coleção, disse: "Eis o enganador testemunho das afirmações da vossa amizade! Era o que me prendia à vida; tomai-o. Dai pois vós mesma o sinal que nos deve sep a ra r p a ra t od o o sem p re." Aqui, a amante receosa cedeu inteiramente à sua meiga inquietação. "Ma s, senho r de Valmo nt, q ue tend es, que q uereis d izer? O p a sso que hoje destes não é voluntário? Não é o fruto das vossas próprias reflexões? E não são elas que vos levaram a aprovar a atitude a b solutam ente ne c essá ria q ue tom ei por deve r? "Pois bem!", disse eu, "essa atitude impede-me uma decisão." "Qua l!?" - "A únic a que po de , ao m esmo tem po que me sep ara d e vó s, pôr fim aos meus tormentos." - "Mas, respondei-me, que decisão é?" Neste p onto , ap ertava -a no s me us b ra ç os, sem q ue ela se d efend esse; e calculando, por este esquecimento do decoro, quanto a emoção devia ser forte e poderosa: "Mulher adorável", disse eu, ousando o entusiasmo, "não fazeis idéia do amor que inspirais. Nunca sabereis até que ponto fostes adorada, e como este sentimento me era mais caro que a minha existência! Que os vossos dias sejam afortunados e tra nqüilos; que se em be lezem c om tod a a felic ida de de que me ha veis privado! Retribuí ao menos este desejo sincero com um remorso, uma
lágrima; e crede que o último dos meus sacrifícios não será o mais do loroso p ara o meu c oraç ão . Adeus." Enquanto falava assim, sentia o seu coração palpitar com violênc ia ; observava -lhe a a lteraç ã o d o rosto; sob retud o via a s lá g rima s sufocá-la, e no entanto só corriam raras e penosas. Só então tomei a decisão de fingir afastar-me; mas agarrando-me com força: "Não, escutai-me", disse ela vivamente. "Deixai-me", respondi. "Tendes de me esc uta r, q uero q ue m e e sc uteis." "Devo afastar-me de vós!" - "Não!", gritou ela... Com esta última palavra lançou-se, ou antes, caiu desmaiada nos meus braços. Como d uvid a va a ind a d e t ã o fe liz êxito, fingi um g ra nd e susto; ma s a o m esmo tempo, conduzi-a, ou melhor, levei-a ao colo para o local precedentemente escolhido como terreno da minha glória; e com efeito, quando voltou a si já estava abandonada e submetida ao seu feliz vencedor. Até a qui, minha be la am iga , ac har-me -á, c reio, dum a pureza de método que lhe agradará; e verá que não me afastei em nada dos verdadeiros princípios desta guerra, que já muitas vezes notáramos ser tão pa rec id a c om a o utra. Com pa re-me p ois c om Turenne ou Frederico. Obriguei a combater um inimigo que queria apenas contemporizar; consegui, por meio de sábias manobras, escolher o terreno e a disposição das forças; inspirei confiança ao inimigo para mais facilmente o poder alcançar no seu esconderijo; nada deixei ao acaso, considerando o valor que teria o triunfo e a necessidade de reservar uma saída em caso de derrota; finalmente, só abri as hostilidades quando já tinha uma retirada assegurada, de forma a poder proteger e conservar tudo o que conquistara anteriormente. Eis, creio, tudo o que é possível fazer; mas receio agora ter-me deixado amolecer, como Aníbal pelas delícias de Cápua. Eis o que aconteceu depois. Esperava evidentemente que um tão grande acontecimento não se passaria sem as lágrimas e o desespero do costume; ora notei a princípio sobretudo um estado de confusão e uma espécie de recolhimento; mas atribuí ambos à sua pudicícia, assim, sem me preocupar com estas ligeiras diferenças, que supus meramente locais, enveredei pela grande estrada das consolações, convencido de que, c om o d e c ostume , a s sensa ç õe s a juda ria m o sentiment o, e q ue um a só ação fazia mais do que todas as palavras, que eu, porém, não deixava de lado. Mas encontrei uma resistência verdadeiramente assustadora, me nos pe la sua força do que pe la forma que revestia. Imagine uma mulher sentada, rígida, rosto imóvel; sem aspecto de pensar, ouvir ou compreender; de cujos olhos fitos as lágrimas deslizam continuamente e sem esforço. Assim estava Madame de Tourvel enq uant o e u lhe fa la va ; mas se e u tenta va c ham a r-lhe a atenção para mim por meio duma carícia, mesmo pelo gesto mais inocente, a esta aparente apatia sucedia imediatamente o terror, a sufocação, as convulsões, e alguns gritos entrecortados, mas sem artic ular uma pa lavra.
Estas crises repetiram-se várias vezes, e cada vez mais fortes; a última foi mesmo tão violenta que fiquei inteiramente desanimado, e rec ee i p or mom ento s ter ob tido um a vitória inútil. Rec orri entã o a os lug a res-co muns d o c ostum e, entre o s q ua is se encontrava este: "Desesperais-vos porque me haveis feito feliz?" A estas palavras, a adorável mulher voltou-se para mim; e o rosto, se bem que ainda um pouco alucinado, já tinha no entanto retomado a sua expressão celestial. "Sois pois feliz?" Afirmei com mais força ainda. "E feliz por minha causa!" Multipliquei as lisonjas e as meiguices. Enquanto eu falava os membros distenderam-se-lhe; tombou com moleza, apoiada contra o sofá; e abandonando-me uma das mãos de que ousara a p ossa r-me , disse: "Sinto q ue essa idé ia m e c onsola e a livia." Calcula certamente que uma vez colocado no bom caminho, não o voltei a a ba ndo nar; era realmente o q ue tinha a fazer. Assim, quando quis tentar um segundo êxito, encontrei a princípio certa resistência, e o que se passara anteriormente tornou-me circunspeto. Mas chamando de novo em meu auxílio aquela mesma id éia d a minha fe lic id a d e, verifiq uei log o o seu e feito b ené fic o: "Tend es razão", disse-me a meiga criatura; "só posso suportar a minha existência na medida em que ela servir para vos fazer feliz. Vou-me consagrar inteiramente a isso: a partir deste momento entrego-me, e nunca mais encontrareis da minha parte nem recusas, nem remorsos." Foi com esta ingênua e sublime candura que me abandonou a sua pessoa e os seus enc anto s, e a umentou assim a minha felic ida de ao c om pa rtilhá-la. A embriaguez foi completa e recíproca; e, pela primeira vez, a minha sobreviveu ao prazer. Ao sair dos braços dela caía-lhe aos pés, jura nd o-lhe a mo r ete rno; e, é p rec iso c onfessá -lo, eu a c red ita va no q ue dizia. Enfim, mesmo depois de nos termos separado, a sua lembrança não me de ixava , e tive d e fa zer um e sforç o p ara a esquec er. Ah, po r que não está aq ui p ara eq uilib rar o mé rito d a aç ão pe lo da rec om pe nsa? Ma s não pe rd erei nada po r espe rar, não é verda de ? E esp ero p od er c onsid erar co mo a ssente entre nós o fe liz a c ordo q ue lhe propus na minha última carta. Bem vê que cumpro a minha parte, e que, como lhe prometi, os meus assuntos estarão suficientemente ava nça d os pa ra lhe p od er d ed ic ar uma pa rte d o me u temp o. Apressese a despachar esse estorvo do Belleroche, e deixe em paz o dulçoroso Danceny, para se ocupar apenas de mim. Mas o que faz no campo, q ue nem seq uer me resp ond e? Sabe que tenho vontade de lhe ralhar? Mas a felicidade predispõe à indulgência. E não esqueço, aliás, que ao colocar-me de novo no número dos seus apaixonados, devo submeter-me às suas pequenas fantasias. Lembre-se, porém, de que o novo amante nada q uer pe rd er do s a ntigos d ireitos d o a migo ... Adeus, como outrora... Sim, adeus, meu anjo! Envio-te todos os b eijos d o a mo r.
P. S. - Sabe que Prévan ao fim do seu mês de prisão foi obrigado a ab and ona r o regimento? É a novid ad e d o d ia em Pa ris. Na verda d e, eilo cruelmente punido por uma patifaria que não cometeu, e a minha am iga ob teve um êxito c omp leto! Pa ris, 29 de Outub ro d e 17* *.
CA RTA CXXVI MADAME DE ROSEMONDE A PRESIDENTE DE TOURVEL Ter-vos-ia resp ond ido ma is c ed o, minha a má vel filha , se a fad iga da minha última carta me não tivesse provocado dores que me imp ed ira m d ura nte e stes d ia s d e p od er utiliza r o b ra ç o. Esta va d esejand o a grad ec er-vos a s b oa s notíc ia s q ue m e d estes d o me u sob rinho, e d e vos d a r, a vós, as minha s since ra s felic itaç õe s. Tem os d e ve r nisto um go lp e d a Providê nc ia , q ue, toc a nd o um , salvou o outro. Sim, minha querida filha, Deus que queria apenas experimentar-vos, socorreu-vos no momento em que as vossas forças estavam esgotadas; e apesar do vosso queixume, deveis, creio, prestarLhe a ç ões de graç as. Não é q ue eu nã o veja m uito b em que seria ma is a g ra d á vel pa ra vós q ue tivésseis sido a p rimeira a toma r essa resoluç ã o, e q ue a de Valmo nt fosse a pe nas a seq üênc ia; pa rec e-me a té, faland o humanamente, que os direitos do nosso sexo teriam sido assim mais resgua rd a d os, e nó s nã o q uerem os p erde r nenhum! Ma s q ue interessa m essas considerações ligeiras perante os importantes objetivos que se encontram realizados? Vemos alguém que se salva dum naufrágio q ueixa r-se p or não ter po d id o e sc olher o m eio? Sentireis em breve, minha querida filha, que as penas que temeis se hão-de aligeirar por si próprias; e mesmo que subsistissem sempre e com a mesma agudeza, não deixaríeis por isso de sentir que seriam ainda mais fáceis de suportar que os remorsos do crime e o desprezo p or si próp ria . Inutilme nte vo s teria falad o m a is c ed o c om esta a p a rente severidade: o amor é um sentimento independente, que a prudência pode fazer evitar, mas que não sabe vencer; e que, uma vez nascido, morre apenas ou de morte natural, ou pela ausência absoluta de esperança. É este último caso, no qual vos encontrais, que me dá a ousadia e o direito de vos dizer livremente a minha opinião. É cruel assustar um doente desesperado, a quem só se devem consolações e paliativos, mas é sensato esclarecer um convalescente sobre os perigos que correu, para lhe inspirar a prudência de que necessita e a sub missã o a os c onselho s q ue lhe p od em ser nec essá rios. Visto q ue m e esc olhestes c om o m éd ic o, é c om o ta l q ue vos falo, e que vos digo que os incomodozinhos que sentis agora, e que talvez necessitem ainda alguns remédios, nada são comparados com a
d oenç a alarma nte d e q ue está ag ora asseg urad a a c ura. E em seg uida como amiga, amiga duma mulher razoável e virtuosa, permitir-me-ei acrescentar que essa paixão, que vos subjugou, paixão tão infeliz em si própria, era-o ainda mais pelo seu objeto. A acreditar no que se diz, o meu sobrinho, que confesso amar talvez com fraqueza, e que reúne muitas q ua lid a d es louvá veis e o utros ta nto s a trativos, é p erigoso p a ra a s mulheres e culpado perante elas, e para ele seduzi-las e desgraçá-las é o mesmo. Creio que o teríeis convertido. Nunca alguém foi mais digno disso, mas já tantas se gabaram do mesmo, vendo depois essa esperança desenganada, que prefiro não vos ver reduzida a esse recurso. Pensa i a g ora, minha q uerid a filha, q ue e m ve z d e ta ntos p erig os que correríeis, tereis, além do repouso de consciência e da tranqüilidade, a satisfação de ter sido a principal causa da feliz tra nsforma ç ão de Valmont. Por mim, não duvido que seja grande parte trabalho da vossa corajosa resistência, e que um momento de fraqueza da vossa parte teria deixado o meu sobrinho numa danação eterna. É-me agradável pensar assim, e desejo ver-vos pensar da mesma maneira; encontrareis assim as primeiras consolações, e eu terei razões para vos amar ainda mais. Espero-vos aqui dentro de poucos dias, minha amável filha, tal como anunciais. Vinde encontrar de novo a calma e a felicidade nos mesmos lugares em que as perdestes, vinde principalmente regozijarvos com a vossa terna mãe, de terdes tão fielmente cumprido a pa lavra q ue lhe ha víeis da do de nad a fazer que nã o fosse d igno de la e d e vós! Ca stelo d e..., 30 d e O utub ro d e 17* *.
CA RTA CXXVII A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Se ainda não respondi, Visconde, à sua carta de 19, não foi por falta d e te mp o; ma s simp lesme nte p orque ela me irritou e a não ac hei ra zoá vel. Tinha p ensa d o q ue o me lhor era d eixá -la no e sq uec ime nto; mas visto que insiste, que parece empenhado nas idéias que sugere, e que toma o meu silêncio por um consentimento, urge que lhe exponha c larame nte a minha op inião . Tive por vezes a pretensão de substituir sozinha um serralho inteiro; ma s nunc a a c eitei fazer pa rte d e um . Pensa va q ue o m eu a migo sabia isso. Pelo menos, neste momento, já não o ignora e julgará fac ilmente qua nto m e p arec eu ridíc ula a sua p rop osta.
Pois q uê! Pod eria eu sa c rific a r uma inc lina ç ã o, e p a ra ma is uma inc linaç ão rec ente, pa ra m e oc upa r d e si? E oc upa r-me c om o? Esperando a vez, como escrava submissa, dos sublimes favores de Sua Alteza. Quando, por exemplo, se quiser distrair por um momento desse encanto desconhecido que a adorável, a celeste Madame de Tourvel foi a única a fazer-lhe sentir, ou qua nd o t em er co mp rom ete r perante a atraente Cecília a idéia superior que ela conserve de si; então, descendo até mim, virá procurar prazeres, na verdade menos vivos, mas sem conseqüências; e as suas preciosas bondades, embora um p ouc o raras, ba starão p ara a minha felic ida de . Vejo que está cheio de si, mas eu também não sou modesta; e po r ma is que m e olhe, não me a c ho de c aída até esse p onto. Ta lvez seja d efe ito d a m inha p a rte, ma s p revino-o d e q ue p ossuo a inda muito s out ros. Em primeiro lugar o de acreditar que o colegial, o dulçoroso Danc eny, só se oc up a nd o d e mim, sa c rific a ndo -me, sem se fazer valer, uma primeira paixão, ainda antes de a ter satisfeito, e amando-me enfim c om o se a ma na id a d e d ele, p od eria , a p esa r d os seus vinte a nos, contribuir bem mais do que o Visconde para a minha felicidade e os meus prazeres. Permito-me mesmo acrescentar que, se me desse na fantasia a idéia de lhe dar um adjunto, não seria certamente o Visc ond e, pe lo m eno s p or ag ora. Por que razões?, perguntará. Em primeiro lugar poderia não haver nenhuma, porque o capricho que me faria preferi-lo, pode igualmente excluí-lo. Mas quero, por delicadeza, dar-lhe o motivo da minha decisão. Parece-me que teria de me fazer demasiados sa c rifíc ios, e e u, em vez de mo stra r o rec onhe c ime nto q ue esp eraria d e mim, seria capaz de julgar que ainda merecia mais! Bem vê que, tão afastados um do outro pela nossa maneira de pensar, de nenhum modo nos podemos unir; e temo que me seja necessário muito tempo, me smo muito, ante s d e m ud a r d e sentime ntos. Prometo avisá-lo quando estiver corrigida. Até lá, creia-me, p od e a rra njar outras a venturas e g ua rd a r os seus b eijos; tem m uito ond e em preg á -los melhor!... Adeus, como antigamente, diz? Antigamente, porém, fazia muito mais caso de mim; não me limitava aos terceiros papéis e esp erava q ue eu d issesse sim, p a ra e sta r c erto d o meu c onsent iment o. Aceite pois que em vez de lhe dizer também adeus, como antiga mente, lhe diga ad eus c omo ag ora. A sua serva , senhor Visc ond e. Do c a stelo d e..., 31 d e O utub ro d e 17* *.
CA RTA CXXVIII
A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE Só ontem recebi, senhora, a vossa resposta tardia. Ter-me-ia causado imediatamente a morte se a minha existência me p ertenc esse, ma s out ro a p ossui; e esse outro é o senho r de Valmont . Vede que nada vos escondo. Considerareis talvez que já não sou d igna d a v ossa a miza d e, ma s p refiro p erdê -la a ilud i-la . Tud o o q ue vo s p osso d izer é que , ob riga d a p elo senho r d e Valmo nt a esc olher entre a sua mo rte e a sua felic ida de me d ec idi po r esta. Não me envaideço, nem me acuso: digo simplesmente o que se passou. Pod eis ima ginar fac ilme nte, d ep ois d isto , c om o m e fe z imp ressã o a vossa carta e as severas verdades que contém não julgueis que ela tenha feito nascer em mim o remorso ou que possa transformar os meus sentime ntos ou c ond uta . Nã o é q ue eu nã o p a sse p or mom ento s c ruéis; mas quando sinto o coração despedaçado, quando temo já não poder suportar os tormentos, penso: Valmont é feliz; e tudo desaparece p erant e e ssa idé ia ou a ntes, tud o se transforma em p ra zer. Dediquei-me pois ao vosso sobrinho; foi por ele que me perdi. Tornou-se o c ent ro único d os meus p ensa me nto s, sent iment os e a ç õe s. A vida ser-me-á preciosa enquanto for necessária à sua felicidade, e considerá-la-ei sempre venturosa. Se algum dia ele pensar doutro modo.... não terá da minha parte nem queixas nem censuras. Já ousei ima ginar esse m om ento fa tal, e a minha de c isão está tom ad a. Já ved es quã o p ouc o me p od e a fetar o temo r, que p arece is ter, de que um dia o senhor de Valmont me desgrace, porque, antes de o q uerer, terá c essa d o d e a ma r-me; e q ue m e imp ortarão a s vã s c ensura s q ue nã o ouvirei? Só ele será o meu juiz. Como terei vivido só para ele, será ele o detentor da minha memória; e se se vir obrigado a reconhecer que o amava, sentir-me-ei sufic iente me nte justific a d a . Acabais, senhora, de ler o meu coração. Preferi a desgraça de perder a vossa estima, pela minha franqueza, à de me tornar indigna dela pelo aviltamento da mentira. Pensei que devia esta inteira c onfianç a à s vossa s a ntiga s b ond a d es p a ra c om igo . Se a c resc enta sse uma palavra poder-vos-ia levar a suspeitar que tenho o orgulho de c onta r ainda c om e la, quand o p elo c ontrário me faç o justiç a d eixand o de pretendê-la. Sou com respeito, senhora, a vossa muito humilde e obediente serva. Pa ris, 1 d e Nove mb ro de 17* *.
CARTA CXXIX
O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Diga-me pois, minha bela amiga, donde vem esse tom de azed ume e d e sarca smo que predo mina na sua última c arta? Que crime cometi eu, aparentemente sem dar por isso, e que tanto a irrita? Acusa-me de me ter dado ares de contar com o seu consentimento antes de o ter obtido, mas julguei que o que para os outros poderia parecer presunção, seria sinal da confiança que deposito em si; e desde quando este sentimento prejudica a amizade ou o amor? Unindo a esperança ao desejo, cedi apenas ao impulso natural que nos leva a colocar-nos sempre o mais perto possível da felicidade que buscamos; e tomou como efeito do orgulho o que era ap ena s o reflexo d a minha ansied ad e. Bem sei que é costume, nestes casos, aparentar uma dúvida respeitosa, mas sabe perfeitamente que é apenas uma fórmula, um simples p roto c olo; e a c hei-me a utoriza d o a supo r q ue e ssa s p rec a uç õe s minuciosas não eram necessárias entre nós. Parec e-me a té q ue esta a titude franc a e livre, quand o funda da sobre uma antiga ligação, é preferível às insípidas meiguices, que tão freq uente me nte to rnam o a mo r d esenxab id o. De resto, o va lor que vejo nesta atitude talvez resulte apenas daquele que atribuo à felicidade que ela me lembra, mas por isso mesmo, ser-me-ia penoso vê-la d isc orda r d e mim. Eis o único erro que suponho ter cometido: porque não imagino que pudesse ter pensado seriamente que existisse uma mulher no mundo que me parecesse preferível a si; e, ainda menos, que tenha po dido a prec iá-la tão ma l c omo finge c rer. Diz-me a este respeito que olhou para si própria e que não se encontrou decadente a esse ponto. Disso estou certo, e prova apenas que o seu espelho é fiel. Mas não poderia ter concluído, com mais fa c ilida d e e justiça , que eu nã o iria p ensa r isso d e si ? Procuro em vão a causa de tão estranha idéia. Parece-me no entanto que ela resulta, mais ou menos, dos elogios que fiz a outras mulheres. Deduzo-o pelo menos da sua afetação em salientar os ep íteto s d e a d oráve l, c eleste, atrae nte, de q ue m e servi a o fa la r-lhe e m Ma da me de Tourvel e na pe que na Volange s. Mas não sabe que estas palavras, mais escolhidas ao acaso que por reflexão, exprimem menos a opinião que se tem da pessoa, do que a situaç ão em que nos enc ontram os qua ndo d ela falamo s? E se, no próprio momento em que me sentia tão vivamente a feta d o, que r p or uma q uer p or outra , eu nã o a d esejava me nos; se lhe da va a preferênc ia sob re a mb as, visto q ue e nfim não po d eria renova r a nossa ligação senão em prejuízo das outras duas, não vejo que isso fosse m otivo d e g ra nde c ensura . Não me será mais difícil justificar-me do encanto desconhecido, com que parece ter ficado também um pouco chocada, porque, antes do mais, nem sempre as sensações desconhecidas são as mais
fortes. Oh, que m p od eria leva r a me lhor sob re o s d elic iosos p ra zeres q ue só a minha amiga sabe tornar sempre novos, e cada vez mais vivos? Quis portanto apenas dizer que aquele encanto era dum gênero que ainda não tinha experimentado; mas sem pretender atribuir-lhe qualquer classificação; e acrescentei, o que hoje repito, que o saberei c omb ater e vencer. E nisto a p lica rei to d o o me u zelo, se vir nesse ligeiro trab a lho um a home nag em a oferece r-lhe. Quanto à pequena Cecília creio inútil falar dela. Foi a seu pe d ido que me enc arreg uei dessa c rianç a, e só e spe ro a sua o rd em d e partida para me pôr ao largo. Notei a ingenuidade e a frescura dela; achei-a atraente por momentos porque nos comprazemos sempre na nossa obra, mas não possui consistência suficiente para prender as atenções. Agora, minha bela amiga, apelo para o seu senso de justiça, para as suas primeiras bondades para comigo; para a longa e perfeita am iza de , pa ra a inteira c onfianç a que de po is estreitaram ainda ma is os la ç os q ue nos unia m, merec i p orventura o tom rigoroso q ue to mo u pa ra comigo? Mas como lhe será fácil compensar-me quando quiser! Uma palavra sua apenas, e verá se existem encantos e afeições que me rete nham um só m inuto. Voaria para os seus braços, e provar-lhe-ia, mil vezes e de mil maneiras, que é, que será sempre, a verdadeira soberana do meu coração. Adeus, bela amiga; espero a sua resposta com toda a ansiedade. Pa ris, 3 d e Nove mb ro de 17* *.
CARTA CXXX MADAME DE ROSEMONDE À PRESIDENTE DE TOURVEL Por que motivo, minha querida, já não quereis ser minha filha? Por que é que pareceis comunicar-me que vai acabar a c orresp ond ênc ia entre nós? É p a ra m e c a stiga r d e nã o te r a d ivinha d o o que era tão pouco verossímil? Ou desconfiais que vos afligi voluntariam ente? Não , c onheç o d em asiad o o vosso c oraç ão pa ra c rer que assim possa julgar o meu. Desta forma o desgosto em que me mergulhou a vossa carta é muito menos por minha causa do que por vós! Ó minha jovem amiga! Digo-vos com tristeza; mas sois demasiado digna de ser amada, para que alguma vez o amor vos to rne feliz.
Ah! Qual foi a mulher verdadeiramente delicada e sensível que não encontrou o infortúnio nesse mesmo sentimento que lhe parecia anunciar tanta felicidade! Saberão os homens apreciar a mulher que possuem? Alguns haverá honestos no procedimento e constantes na afeição, mas, mesmo entre esses, quão poucos se sabem elevar à altura do nosso coração! Não penseis, minha querida filha, que o amor d eles seja igua l ao nosso. Exp erimenta m a me sma louc ura ; muitas vezes entrega m-se-lhe c om ma is a rreb a ta me nto; ma s d esc onhe c em este zelo inquieto, esta delicada solicitude, que nos obriga a cuidados ternos e contínuos, cujo único fim é sempre o objeto amado. O homem goza com a felicidade que sente, e a mulher com a que proporciona. Esta diferença, tão importante e tão pouco notada, influi no entanto, de mo do be m p alpá vel, na tota lida d e d as respe c tivas c ond utas. O prazer d e um c onsiste em sa tisfa zer os seus d esejos, o d a outra , princ ipa lmente, em os fazer nascer. Agradar é para ele um meio de chegar ao triunfo; enquanto para ela é o próprio triunfo. E a coqueteria, tantas vezes censurada às mulheres, representa apenas o exagero desta forma de sentir e prova a sua verdade. Enfim, o gosto exclusivo, que caracteriza particularmente o amor, é no homem apenas uma preferência, que serve, quando muito, para graduar um prazer, que um outro objeto enfraqueceria talvez mas não destruiria; enquanto nas mulheres é um sentimento profundo, que não só destrói todo o desejo estranho, mas que, mais forte do que a natureza, e independente até do domínio d ela, só a s d eixa e xp erime nta r rep ugnâ nc ia e d esg osto, ond e p a rec eria dever nascer a voluptuosidade. E não deveis pensar que as exceções, mais ou menos numerosas, que seja possível citar, se oponham com êxito a estas verdades comuns! Estão até confirmadas pelo consenso geral, que distinguiu, apenas para os homens, a infidelidade da inconstância, distinção de que se orgulham, em vez de por ela se sentirem humilhados; e que, no nosso sexo, só foi adotado por essas mulheres depravadas que fazem a vergonha dele, e para quem todos os processos são bons, a fim de se salvarem da penosa sensação da sua baixeza. Julguei, minha querida filha, que podia ser-vos útil ter estas reflexõe s a op or às id éias q uimé ric a s d uma felic id a d e p erfeita, c om q ue o amor ilude sempre a nossa imaginação; esperança enganadora, a que nos conservamos presas, mesmo quando nos vemos forçadas a abandoná-la, e cuja perda agrava e multiplica os desgostos já d em a siad o rea is d uma viva p a ixã o! Este p a p el de vo s sua viza r a s d ores, de lhes diminuir o número, é o único que quero, que posso d esem p enha r neste mo me nto . Nos ma les sem rem éd io, os c onselhos só podem incidir sobre o regime a seguir. Peço-vos somente que vos lembreis que lamentar um doente não é censurá-lo. Oh, quem somos nós para nos censurarmos uns aos outros? Deixemos o direito de julgar Àquele que lê nos corações; e tenho a ousadia de acreditar que, aos
seus olhos paternais, uma multidão de virtudes pode resgatar uma fraqueza. Mas, suplico-vos, minha querida amiga, evitai sobretudo essas resoluções violentas, que não mostram força mas antes um desânimo completo, não esqueçais que, tornando um outro possuidor da vossa existência, para me servir da vossa expressão, não pudestes contudo privar os vossos amigos do que já antes possuíam, e que nunca c essa rã o d e rec la ma r. Adeus, minha querida filha, lembrai-vos às vezes da vossa terna mãe, e crede que sereis sempre, e acima de tudo, o objeto dos seus ma is q uerid os p ensa mentos. Ca stelo d e..., 4 d e Nove mb ro d e 17* *.
CARTA CXXXI A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Até q ue e nfim, Visc ond e; d esta vez estou ma is c onte nte c onsig o d o q ue d a outra; e a go ra, falem os am iga velme nte, esp ero c onvenc ê-lo de que, tanto para si como para mim, o acordo que parece desejar seria um a v erda d eira louc ura . Nunca reparou que o prazer, que é com efeito o único fim de reunião dos dois sexos, não basta no entanto para os unir? E que, se é preced ido do desejo q ue ap roxima , é ta mb ém seguido do alhea mento que afasta? Uma lei da natureza, que só o amor pode transformar; e o a mor; é p ossível senti-lo q ua nd o se q uer? No entanto é sempre necessário; e seria na verdade embaraçoso, se se não tivesse notado que felizmente bastava que existisse dum lado. A dificuldade tornou-se de metade do tamanho, e nem sequer há muito a perder; com efeito um goza a felicidade de amar, o outro a de agradar, um pouco menos viva na verdade, mas a q ue se junta o p ra zer de tra ir, o q ue p rovo c a o e q uilíb rio; enfim, tudo se arranja. Ma s, diga -me, Visc ond e, q ual d e nós d ois se e nc a rreg a rá d e t ra ir o outro? Conhece a história dos dois batoteiros, que se reconheceram d ura nte o jog o, na d a c onseg uirem os, disseram p a g uem os a s d esp esa s a meias; e abandonaram a partida. Sigamos, creia-me, este exemplo prudente, e não percamos juntos um tempo que podemos empregar tão be m a lgures. Pa ra lhe p rova r q ue p enso t a nto no seu interesse c om o no me u, e q ue não proc ed o a ssim nem po r irritaç ão nem p or c ap ric ho, não lhe recuso o prémio combinado entre nós, de resto bem vejo que uma únic a noite nos ba stará; e tenho a c erteza de que sab erem os tão be m embelezá-la, que a veremos findar com pena. Mas não esqueçamos
que essa mágoa é necessária à felicidade; e por mais doce que seja a nossa ilusã o, nã o va mo s a c red itar que p ossa ser d urá vel. Como vê, resigno-me, e isto sem que o Visconde tenha ainda c umprido a ob riga çã o q ue tinha p ara c omigo, porque enfim, devia terme dado a primeira carta da celeste pudibunda; e no entanto, ou po rque ela rep resenta algo pa ra si, ou po rque esque c eu a s c ond iç ões do contrato, que talvez o interesse menos do que me pretende fazer crer, não recebi nada, absolutamente nada. No entanto, ou me enga no m uito, ou a te rna d evota de ve esc rever ba stante, po is em que se há de oc upa r qua ndo está só? Certamente que não tem ânimo para se distrair. Como vê, teria se q uisesse a lgum a s c ensuras a fa zer-lhe; ma s d eixo-as em silênc io, pa ra compensar um pouco da irritação que pus talvez na minha última carta. E agora, Visconde, só me resta fazer-lhe um pedido; e é tanto por si como por mim: é o de adiar o momento que também desejo muito, mas que me parece dever ser retardado até ao meu regresso à cidade. Por um lado, aqui não teríamos a necessária liberdade; e, por outro, eu correria um risco: porque bastaria um pouco de ciúme para prender sem remédio este triste Belleroche, que no entanto agora parece estar por um fio. Vejo bem que ele já se esforça para continuar a amar-me; e eu ponho por vezes tanta malícia como prudência nas c a ríc ia s c om q ue o sob rec a rreg o. Ao mesmo temp o, be m vê q ue nã o seria um sac rifíc io d igno de si! Uma infide lida de rec íproc a da rá um enc anto be m m a is pica nte. Sabe que às vezes lamento que estejamos reduzidos a estes recursos? No tempo em que nos amávamos, porque creio que era amor, eu era feliz; e o Visconde? Mas porque ocupar-me ainda duma felicidade que não volta? Não, por mais que diga, o regresso é impossível. Em primeiro lugar, exigirei sacrifícios que não poderia ou não quereria fazer-me, e que eu talvez não mereça; e depois, como prendê-lo? Oh, não, não, nem quero pensar nisso; e apesar do prazer q ue a c ho e m e sc reve r-lhe, prefiro d eixá -lo b rusc a me nte. Ad eus, Visc ond e. Ca stelo d e..., 6 d e Nove mb ro d e 17* *.
CA RTA CXXXII A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE Comovida pelas vossas bondades para comigo, senhora, teria repousado inteiramente nelas se me não retivesse de algum modo o receio de as profanar, aceitando-as. Por que motivo é que sou forçada
a considerá-las tão preciosas, no próprio momento em que já não me sinto digna delas? Ah, mas ousarei pelo menos testemunhar-vos o meu rec onhec ime nto; ad mira rei, sob retud o, essa ind ulgê nc ia d a virtud e, que só conhece as nossas fraquezas para se apiedar, e cujo poderoso enc anto exerc e sob re o s c oraç ões uma influênc ia tão do c e e tão forte, mesmo c ompa rad a c om o enca nto do a mor. Mas essa amizade, merecê-la-ei ainda quando já não basta para a minha felicidade? Posso dizer o mesmo dos vossos conselhos; aprecio-lhes o valor e não os posso seguir. E como não acreditar numa felicidade perfeita, quando a experimento neste momento? Sim, se os homens são tal como dizeis, é necessário fugir-lhes, são odiosos; mas c om o Valmo nt e stá longe d e se lhes a ssem elhar! Se t em c om o e les essa violência da paixão, a que chamais arrebatamento, é nele ultra p a ssa d a p elo exc esso d a sua d elic a d eza ! Oh, minha a miga , fala isme de partilhar as minhas penas, regozijai-vos então com a minha felic ida de ; é a o a mo r q ue a d evo, e o objeto d ele aum enta -lhe o valor. Am a is o vo sso sob rinho, d izeis, ta lvez p or fra q ueza . Ah, se o c onhec êsseis como eu! Amo-o idolatradamente, e muito menos do que ele merece. Deixou-se sem dúvida arrastar para alguns erros, ele próprio concorda; mas quem conheceu como ele o verdadeiro amor? Que mais posso d izer? Sente -o c om a me sma forç a c om q ue o insp ira . Irei julg a r q ue e sta é um a d a s id éias q uimé ric a s c om q ue o a mo r ilude sempre a nossa imaginação, mas nesse caso, por que se teria tornado mais terno, mais solícito, agora que nada mais tem a obter? Confesso que antes lhe notava um ar de reflexão de reserva, que raramente abandonava, é que muitas vezes me recordava, mesmo sem querer, as falsas e cruéis impressões que me haviam dado acerca dele. Mas desde que se pode entregar sem constrangimento aos movimentos do seu coração, parece adivinhar todos os desejos do me u. Que m sa b e se nã o na sc em os um p a ra o o utro? Se m e nã o e sta va reservada a felicidade de lhe ser necessária? Ah, se é uma ilusão, que eu mo rra a ntes que ela ac ab e. Mas não ; quero viver pa ra o a ma r, pa ra o adorar. Por que deixaria de amar-me? Que outra mulher o poderia tornar ma is feliz d o q ue e u? E, sinto-o p or mim, a felic id a d e q ue d a mo s é a ma is forte ca d eia, a únic a q ue p rend e verda d eira me nte. Sim, é este sentimento delicioso que enobrece o amor, que o purifica e o torna digno de uma alma terna e generosa, co mo a de Valmont. Ad eus, minha q uerid a , resp eitáve l e ind ulge nte a miga . Quereria demorar mais tempo a escrever-vos; mas chegou a hora em que ele me p rom eteu vir, e q ualquer outra idéia me ab and ona . Perdã o! Ma s sei que d esejais a minha fe lic id a d e; e é t ã o g ra nd e neste mom ento que me a ba ndono tota lmente a e la. Pa ris, 7 d e Nove mb ro de 17* *.
CA RTA CXXXIII O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Quais são pois, minha bela amiga, esses sacrifícios que me julga inc a p a z d e fa zer, e c ujo p rém io seria a final ag ra d a r-lhe? Ah! Dê-mos somente a conhecer, e, se hesitar em lhos oferecer permito-lhe que recuse as minhas homenagens. Que julga de mim desde há algum tempo, se, mesmo quando é indulgente, ainda continua a duvidar dos meus sentimentos ou da minha energia? Sacrifícios que eu não poderia ou não queria fazer! Supõe-me então apaixonado, dominado? E o valor que dei ao triunfo, suspeita que o a trib uo à p essoa ? Ah, graç a s a o Cé u, nã o e stou a ind a red uzid o a isso, e guardo-me para lho provar. Sim, prová-lo-ei, mesmo que seja com Ma d a me d e Tourvel. Seg ura me nte , d ep ois d isso, não lhe fic a rã o dúvidas. Foi-me possível, julgo que sem me comprometer, conceder algum te mp o a uma mulher, que tem pe lo m enos o m érito d e ser dum gê nero q ue raram ente se e nco ntra. Talvez tam bé m a estaç ão mo rta em que veio esta a ventura me tenha levad o a entrega r-me c om m ais entusia smo ; e ag ora q ue o grande mo vimento m al rec om eç a, não é d e ad mira r que ela m e o c upe a inda q uase inteiram ente. Pense no entanto q ue a ind a não há o ito d ia s q ue g ozo o fruto d e três me ses d e trab a lhos. Ta nta s vezes me d em orei ma is tem p o c om o q ue va lia muito m eno s e nã o m e c usta ra t a nto! E nunc a a minha a miga me julgo u ma l p or isso. Mais ainda, quer saber a verdadeira causa da solicitude que em p reg o? Ei-la . Esta mulher é na turalmente tímida ; durant e o s p rimeiros dias duvidava sem cessar da sua felicidade, e essa dúvida bastava pa ra a pe rturba r, de forma que só ag ora c om eç o a p od er ob servar até onde vai o meu poder nesse campo. Eis uma coisa que ardia em curiosidade por saber; e a oportunidade não é tão fácil de encontrar c om o se julga . Em primeiro lugar, para muitas mulheres, o prazer é apenas o prazer e nada mais do que isso; e para essas, seja qual for o título que nos concedam, somos simples criados, puros moços de recados, cujo mérito reside apenas na atividade, e entre os quais o que mais faz é sem p re o q ue fa z me lhor. Numa outra classe, talvez hoje a mais numerosa, a celebridade do amante, o prazer de o ter arrebatado a uma rival, o receio de que por sua vez lhe seja roubado, ocupa quase inteiramente as mulheres, nós contribuímos, claro, mais ou menos para esta felicidade de que gozam; mas ela depende mais das circunstâncias do que da pessoa. Vem -lhes p or nós, ma s nã o d e nós. Precisava por isso de encontrar, para as minhas observações, uma mulher d elic a d a e sensível, q ue se d ed ic a sse unica me nte a o a mo r, e q ue, no p róp rio a mo r, visse só o a ma nte; c uja em oç ã o, não seg uindo o caminho habitual, partisse sempre do coração para os sentidos; já a
vi, p or exem p lo (e nã o fa lo d o p rime iro d ia ), sa ir d o p ra zer tod a c horosa , e um instante de po is reenc ontrar a voluptuosid ad e num a pa lavra q ue resp ond ia à sua a lma . Enfim, era necessário ainda acrescentar essa natural candura, tornada invencível de tanto se lhe entregar, e que lhe não permite esc ond er nenhum d os sentimento s d o c oraç ã o. Ora, c onc orda rá q ue ta is mulheres sã o raras; e julgo m esmo q ue, sem esta, nunca me teria sido d ad o enc ontrar nenhuma. Não será pois de estranhar se ela me prender mais tempo do q ue q ua lq uer outra ; e se a ob servaç ã o q ue q uero fazer sob re e la exige q ue a torne feliz, inteira me nte feliz, po r que me rec usa ria eu a ta l, tanto mais que isso serve os meus planos, em vez de os contrariar? Mas por que o espírito se encontra ocupado, segue-se-lhe que o coração seja esc ra vo? Nã o, sem d úvid a . Mas o va lor que nã o d eixo d e a trib uir a esta aventura não me impedirá de me entregar a outras, ou mesmo de a sacrificar a algumas mais agradáveis. Sinto-me de tal modo livre que nem sequer descurei a pequena Volang es, a q uem a final dou tã o p ouc a imp ortânc ia. A mã e trá -la p a ra a cidade dentro de três dias; e desde ontem que arranjei maneira de assegurar as minhas comunicações: uma gratificação ao porteiro, e umas bugigangas à mulher, resolveram o assunto. E imaginar que Danceny não soube encontrar um processo tão simples! E ainda dizem q ue o a mo r nos torna inventivos! Pelo c ontrário, em b rutec e a q ueles q ue domina. E pensa que me não saberei defender? Ah! Esteja tranqüila. Vou já, de ntro d e p ouc os d ia s, enfra q uec er, p a rtilha nd o-a, a imp ressã o talvez demasiado viva que experimentei; e se uma só partilha não bastar, multiplicá-las-ei. Mas estarei pronto a entregar a jovem colegial ao seu discreto am ante , log o q ue a m inha a miga o julgue o po rtuno. Parec e-me que já não tem razões para o impedir; e eu consinto em prestar esse insigne serviç o a o p ob re Da nce ny. É, na verda d e, o m ínimo que lhe d evo po r todos os que me prestou. Está agora numa grande inquietação por saber se será recebido em casa de Madame de Volanges. Vou-o acalmando o melhor que posso, assegurando-lhe que, dum ou doutro modo, o tornarei feliz na primeira oportunidade, e enquanto espero, continuo a ocupar-me da correspondência, que ele quer recomeçar logo após a chegada da sua Cecília. Já tenho seis cartas dele, e ainda receberei mais uma ou duas antes desse dia feliz. É preciso que o rapaz esteja muito desoc upa do ! Mas deixemos esse par infantil, voltemos a nós; que eu possa ocupar-me unicamente da tão doce esperança que me deu a sua carta. Sim, prender-me-á, sem dúvida; nem lhe perdoaria se duvidasse. Algum a vez d eixei de lhe ser consta nte ? Os nossos laç os foram d esfeitos, mas não quebrados; a nossa pretensa ruptura foi um erro da nossa imaginação, os nossos sentimentos e interesses mantiveram-se unidos. Ta l c om o o viajante q ue reg ressa d eseng a na d o, rec onhe c erei q ue
deixara a felicidade para perseguir a esperança; e direi como d 'Ha nc ourt: -Plus je vis d 'étrang ers, plus j'a ma i ma p a trie.* Não fuja mais à idéia, ou antes, ao sentimento que a reconduz até mim; e depois de termos provado todos os prazeres nas nossas diversas incursões, regozijemo-nos com a felicidade de sentir que nenhum deles é comparável ao que experimentáramos e que ree nc ontraremo s ma is d elic ioso a ind a . Adeus, encantadora amiga. Acedo em esperar pelo seu reg resso, ma s a p resse-o e nã o e sq ueç a q ue o d esejo m uito. Ca stelo d e..., 11 d e Novem b ro d e 17* *.
*Qua nto m ais vi o e strang eiro, ma is a me i a m inha p á tria .
CA RTA CXXXIV A MARQUESA DE MERTEUiL AO VISCONDE DE VALMONT Na verdade o Visconde é como as crianças, diante de quem não se p od e d izer nad a e a q uem nã o se p od e mo stra r nad a, que nã o desejem imediatamente! Bastou passar-me uma simples idéia pela cabeça, à qual, aliás, o preveni de que não queria prestar atenção, e foi o bastante para que tentasse prender-me a ela, quando eu a procurava esquecer, querendo, por assim dizer, obrigar-me a compartilhar os seus estouvados desejos! Acha generoso da sua parte d eixa r-me c a rreg a r sozinha o fa rd o d a p rud ênc ia? Torno a d izer-lho, e repito-o a mim própria mais frequentemente ainda, o acordo que me propõe é realmente impossível. Ainda que o Visconde pusesse no assunto toda a generosidade que me mostra neste momento, não a c red ita q ue eu te nha t a mb ém a s minhas susc etibilid a d es, e nã o q ueira a c eitar sa c rifíc ios q ue p rejudiquem a sua felic id a d e? Ora, não será verdade, Visconde, que se ilude quanto ao sentime nto q ue o p rend eu a Ma d a me d e Tourvel? É a mo r, ou esse sentime nto nunc a existiu: nega -o d e c em ma neira s ma s p rova -o d e m il. O que é, por exemplo, esse subterfúgio de que se serve para consigo mesmo, porque acredito que seja sincero comigo, e que o leva a atribuir ao prazer de observar, o desejo, que não pode esconder nem c om b a ter, d e c onservar essa mulher? Não pa rec erá que nunca fez nenhuma outra feliz pe rfeitam ente feliz? Ah! Se d uvid a , tem a m em ória b em c urta ! Mas nã o, não se trata de nada disto. Muito simplesmente o coração ilude-lhe o espírito, e obriga-o a recorrer a fracas justificações; mas eu, que não tenho
nenhum interesse em enganar-me a mim própria, não sou tão fácil de contentar. É o caso que, notando embora a delicadeza que o levou a suprimir cuidadosamente todas as palavras que imaginou pudessem ter-me desagradado, vi no entanto que, talvez sem dar por isso, c onservava a s me sma s id éias. Com efeito, já nã o se trata d a a d oráve l, d a c eleste Ma d a me d e Tourvel, ma s é a ind a um a m ulher esp a ntosa , uma mulher de lic a d a e sensível, e isto , c om exc lusã o d e to d a s a s out ra s; uma mulher rara, enfim, e como não se encontra outra igual. O mesmo se passa com o tal encanto desconhecido, que não é o mais forte. Pois be m, seja: mas visto q ue a té a qui nunca o tinha e nco ntra do , é b em d e crer que não o volte a encontrar no futuro, e que a sua perda seja irreparável. Ora, ou isto são sintomas infalíveis de amor, ou então temos de renunciar a e nco ntrá -lo em pa rte a lgum a. Tenha a c erteza q ue d esta vez lhe fa lo sem ma u humo r. Prometi a mim mesma nunca mais me deixar assaltar por ele; reconheci que se podia tornar uma armadilha perigosa. Creia-me, sejamos amigos, e fiquemos por aí. Agradeça-me a coragem que mo strei em d efend er-me : sim, c orag em ; porque à s vezes é b em p rec isa , até pa ra nã o se tom ar uma de c isão que se sab e errad a . É po is ap ena s pa ra o p ôr de a c ordo c om igo po r pe rsuasão que vou responder à sua pergunta sobre os sacrifícios que eu exigiria e que o Visconde não poderia fazer. Sirvo-me de propósito da palavra exigir, porque tenho a certeza de que, dentro em breve, irá achar-me, com efeito, demasiado exigente: mas tanto melhor! Em vez de me zangar com as suas recusas, agradecer-lhas-ei. Olhe, não é consigo que quero dissimular, embora o devesse ta lvez fa zer. Exigirei pois, veja a crueldade!, que essa rara, essa espantosa Ma d a me d e Tourvel nã o seja p a ra si ma is d o q ue um a mulher vulga r, uma mulher como ela é, afinal, porque, não nos deixemos enganar, esse encanto, que supomos achar nos outros, é em nós que existe; é ap enas o a mor a emb elezar o objeto ama do . Mesmo que este sacrifício lhe seja impossível, tem no entanto que mo prometer, jurar até; mas, aviso, não acreditarei em falsas promessas. Só me deixarei convencer pelo conjunto do seu procedimento. Mas ainda não é tudo; sou muito caprichosa! O sacrifício da pequena Cecília, que me oferece com tão boa vontade, não me interessa. Pedir-lhe-ei, pelo contrário, que continue esse penoso serviço, até nova ordem da minha parte; talvez porque goste de abusar do meu poder ou talvez porque, mais indulgente ou mais justa, me baste dispor dos seus sentimentos, sem querer prejudicar os seus prazeres. De qualquer forma, quero ser obedecida; e as minhas ordens serão rigorosas!
Conside rar-me -ia entã o o briga da a ag rad ec er-lhe; quem sab e? Ta lvez a té a rec om p ensá -lo. Por exem p lo, a b reviaria uma a usênc ia q ue se me tornaria insuportável. Encontrar-nos-íamos finalmente, Visconde, enc ont ra r-nos-ía mo s... de que m a neira ?... Mas lembre-se de que isto é apenas uma conversa, o simples relato d um projeto imp ossível, e nã o q uero ser a únic a a esq uec ê-lo... Sabe que o meu processo me inquieta um pouco? Quis finalmente conhecer ao certo quais eram as minhas armas; os advogados citam-me as leis, e sobretudo autoridades, como eles lhes c ham am : ma s já nã o me a c ho tão forte c om o supunha. Quase lam ento não ter ac eitad o o ac ordo . No entanto tranquilizo-me, pensand o q ue o proc urad or é háb il, o a dvo ga do eloqüente e a d ema ndista b onita . Se estes três argumentos não bastassem, seria preciso alterar toda a seq üênc ia d o a ssunto, e q ue viria a a c onte c er ao resp eito p elos a ntigo s costumes? O p roc esso é atua lmente a únic a c oisa que me retém aq ui. Belleroche, acabou-se: desistiu; trabalho compensado. Chegou ao po nto d e se lame ntar por não te r ido ao ba ile d esta noite q ueixume d esoc up a d o! Restituí-lo-ei à lib erda d e q ua nd o reg ressa r a Pa ris. Ao fa zer este doloroso sacrifício, consolo-me com a generosidade que ele me atribui. Adeus, Visconde, escreva muitas vezes, os pormenores dos seus p ra zeres c om p ensa m-me e m p a rte d os a b orrec ime ntos q ue enfrento . Ca stelo d e...11 de Novem bro d e 17* *.
CARTA CXXXV A PRESiDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE Tento escrever-vos, sem saber ainda se serei capaz. Ah! Meu Deus Quando penso que na minha última carta era o excesso de felicidade que me impedia de a continuar! É o de desespero que me p esa a go ra ; só m e d eixa força p a ra sentir a s d ores, e rouba -ma q ua nd o tento exprimi-las. Valmont ... Valmont já me nã o a ma , o seu a mo r nunc a existiu. O amor não desaparece assim. Ele engana-me, trai-me, ultrajame. Suporto todos os infortúnios e humilhações que é possível reunir, e é d ele que me vêm! E não julgueis que é uma simples suspeita: estava bem longe de as sentir. Nem tenho a sorte de poder duvidar. Vi-o: que me poderá dizer para se justificar?... Mas que lhe importa! Nem sequer tentará... Infeliz! Que lhe interessarão as tuas censuras e lágrimas? Não é de ti que ele se oc up a !...
É p ois verda d e q ue m e sa c rific ou, me a b a nd ono u me smo ... E por quem? Por uma vil criatura... Mas que digo? Ah! Já nem tenho o direito de a desprezar. Ela traiu menos deveres, é menos culpa da d o que eu. Oh! Como é doloroso o desgosto, quando é fruto do remorso! Sinto q ue o s me us to rme nto s red ob ra m. Ad eus minha q uerida am iga ; po r muito indigna d e pied ad e q ue me tenha tornado, senti-la-íeis certamente por mim, se pudésseis fazer uma idé ia do que sofro. Acabo de reler a carta e apercebi-me de que em nada vos pode elucidar; vou pois tentar a coragem de vos contar este cruel acontecimento. Foi ontem; eu devia, pela primeira vez desde o meu regresso, cear fora da minha casa. Valmont veio ver-me às cinco horas; nunca me pa rec era tão terno. Deu-me a entend er que o m eu p rojeto d e sair o contrariava, e, como imaginais, tive logo a idéia de ficar em casa. No entanto, duas horas depois, e de repente, o seu ar e tom mudaram sensivelmente. Não sei se me escapou qualquer coisa que lhe tenha desagradado; pelo quer que fosse, pouco tempo depois, afirmou lembrar-se de uma ocupação que o obrigava a deixar-me, e foi-se embora, mas não o fez sem manifestar uma muito viva pena, que me p a rec eu c a rinhosa , e q ue entã o julg uei sinc era. Entregue a mim própria, achei mais conveniente não faltar aos meus primeiros compromissos, visto que estava livre agora. Acabei por me arranjar e parti na carruagem. Infelizmente o cocheiro fez-me passar diante da Ópera, e vi-me envolvida no tumulto d a sa íd a ; uns q uat ro p a ssos à minha frente, e na fila a o lad o d a minha, vi a c arruage m d e Valmont. O coraçã o b ateu-me logo co m m ais força , mas não de temor; e a única idéia que me ocupava era o desejo de que a minha c a rruag em a vanç asse. Em v ez d isso, foi a d ele q ue fo i ob riga d a a rec ua r, e que fic ou a o lado da minha. Debrucei-me imediatamente: qual não foi o meu espa nto qua ndo vi a seu lad o uma prostituta, bem c onhec id a c om o ta l! Afastei-me, como podereis supor, e era já bastante para me afligir o c oraç ão ; mas o q ue vos d eve c ustar a ac red itar, é q ue essa rap ariga , ap a rentem ente instruída po r algum a od iosa c onfidê ncia, não de ixara a portinhola, nem cessara de me olhar, com gargalhadas capazes de provoca rem uma cena. No acamrunhamento em que me encontrava, deixei-me no entanto conduzir à casa onde devia cear; mas foi-me impossível ficar; sentia-me a c a d a insta nte p restes a d esma ia r, e sob retud o c usta va -me rete r as lág rima s. Assim q ue reg ressei esc revi ao senhor Va lmont e enviei-lhe logo a carta; não estava em casa. Querendo, por qualquer preço, sair do estado de morte em que me achava, ou confirmá-lo para sempre, reenviei-a com ordem de o esperar; mas antes da meia-noite o meu
criado voltou, com a notícia de que o cocheiro, que recolhera, lhe dissera que o patrão não voltaria nessa noite. Esta manhã julguei nada mais ter a fazer do que tornar a pedir as minhas cartas, e dizer-lhe que não voltasse a minha casa. Dei ordens nesse sentido; mas eram, c ertam ente , inúteis. Passa do meio-dia; ainda não apareceu, nem recebi qualquer reca do d a p arte dele. Agora, querida amiga, nada mais tenho a acrescentar: eis-vos instruída e conheceis o meu coração. A minha única esperança é de que não tenha m uito tem po pa ra a fligir a vo ssa de lic ad a a mizad e. Pa ris, 15 de Novem b ro d e 17* *.
CA RTA CXXXVI A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT Co m c erteza , senhor, q ue, de p ois d o q ue o ntem se p a ssou, não esperais voltar a ser recebido em minha casa, e com certeza que nem sequer o desejais! Este bilhete é pois menos para vos pedir que não volteis, do que para vos solicitar essas cartas que nunca deveriam ter existido; e que, se puderam interessar-vos um momento, como provas da cegueira que tínheis procurado fazer nascer, só poderão ser-vos indiferentes agora que ela se dissipou, visto que exprimem um sentimento q ue d estruíste s. Reconheço e confesso que errei ao depositar em vós uma c onfianç a d e q ue t a nta s outras a ntes d e mim t inham sid o vítima s; nisto só te nho d e m e a c usar a mim p róp ria: ma s julga va que pe lo m enos não merecia ser abandonada por vós ao desprezo e ao insulto. Julgava que, tendo-vos sacrificado tudo, e renunciando por vós aos direitos, à estima dos outros e à minha própria, podia esperar todavia não ser julgada por vós mais severamente que pelo público, cuja opinião separa ainda, por um imenso intervalo, a mulher fraca da depravada. Estes erros, que são os de toda a gente, são os únicos de que vos falo. Calo os queixumes de amor; o vosso coração não compreenderia o meu. Ad eus, senhor. Pa ris, 15 de Novem b ro d e 17* *.
CA RTA CXXXVII O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL
Ac ab am ag ora, senhora , de m e e ntreg ar a vossa c arta; tremi ao lê-la, e mal me deixou forças para lhe responder. Que idéia horrível faz d e mim! Ah, sem d úvid a t enho d efeitos; e ta is q ue nunc a m os p erdo a rei em tod a a vida , mesmo q ue o s c ubrísseis c om a vossa ind ulg ênc ia . Mas os de que me acusais estiveram sempre bem longe da minha alma! O quê, eu! humilhar-vos! Aviltar-vos! quando vos respeito tanto como vos amo; quando só conheci o orgulho, no momento em que me julgastes digno de vós. As aparências iludiram-vos; e confesso que eram contra mim, ma s não tínheis no c oraç ão o q ue b astava pa ra as c om ba ter? E ele não se revoltou só com a idéia de que poderia ter razões para queixar-se do meu? Contudo acreditastes! Assim, não só me julgastes capaz desse delírio atroz, mas haveis até receado ser vítima d ele em virtud e d a s vossa s b ond a d es p a ra c om igo . Ah, se vos julgais degradada a esse ponto pelo vosso amor, é p orq ue eu p róp rio sou a os vo ssos olhos b em vil! Oprimido pelo sentimento doloroso que esta idéia me causa, pe rc o a a fastá-la o te mp o q ue d evia em prega r a d estruí-la. Confessarei tudo; ainda uma outra consideração me retém. É então preciso recordar fatos que queria aniquilar, e fixar a vossa atenção e a minha sobre um momento de erro que quereria resgatar com o resto da minha vida, de que procuro ainda a causa, e cuja lembrança deve fazer para sempre a minha humilhação e o meu desespero? Ah, se acusando-me excito a vossa cólera, não tereis ao me nos q ue p roc ura r long e a ving a nç a ; b a sta r-vos-á d eixa r-me entregue a os meus rem orsos. E no enta nto, quem a c red itará? Este a c ontec imento teve c omo causa primeira o poderoso encanto que sinto junto de vós. Foi ele que me fez esquecer por tempo excessivo um assunto importante, que não p od ia ser ad ia d o. Deixei-vos d em a sia d o ta rd e e nã o e nc ontrei a p essoa que procurava. Esperava avistá-la na Ópera, mas a minha tentativa foi também baldada. Encontrei aí Emília, com quem me relacionei num tempo em que estava bem longe de vos conhecer ou de conhecer o amor; não tinha levado carruagem e pediu-me que a deixasse em c a sa , b em p erto d a li. Nã o vi nenhum p erigo nisso e a c ed i. Mas foi entã o q ue vos enc ontrei; senti log o q ue seríeis leva d a a julga r-me c ulp a d o. O temor de vos desagradar ou de vos afligir é tão forte em mim, que deveria ser e foi com efeito logo notado. Confesso mesmo que me levou a tentar evitar que a rapariga se mostrasse; este esforço de delicadeza voltou-se afinal contra o amor. Habituada, como todas as d a sua esp éc ie, a só se sentir seg ura d um p restígio sem p re usurp a d o p or meio de abusos a que se atrevem, Emília não quis deixar escapar uma oc asião tão retumba nte. Quanto mais via aumentar o meu embaraço, mais fazia por se mostrar; e a sua louca alegria, de que coro que tenhais podido julgarvos ob jeto , tinha a p ena s p or mo tivo a d or cruel que e u sentia, d or essa proveniente a inda do meu respe ito e d o me u amo r.
Até aqui sou sem dúvida mais infeliz do que culpado; e estes erros, que são os de toda a gente, e os únicos de que me falais, estes erros, não existindo, não me podem ser censurados. Mas calais em vão os queixumes do amor; não poderei guardar sobre eles o mesmo silêncio; um interesse demasiado vivo obriga-me a rompê-lo. Não é que, na confusão em que fui lançado por este inconcebível equívoco, possa, sem uma dor aguda, dedicar-me a evocar lembranças. Compenetrado dos meus erros, consentirei em supo rtar o c astigo , ou espe rarei c om o te mp o o pe rd ão me rec ido pe la minha c onstante ternura e p elo meu a rrep end ime nto. Ma s c om o me p od erei c alar, q uand o o q ue me falta d izer é tão imp ortante p a ra a sensibilid a d e d e t od o o vo sso ser? Não penseis que procuro um subterfúgio para desculpar ou a livia r a m inha falta; c onfesso q ue sou c ulp a d o. Ma s nã o c onfesso, nem c onfessa rei nunc a , que este erro hum ilha nte p ossa ser enc a ra d o c om o um ultraje feito ao amor. Oh, que pode haver de comum entre uma surpresa dos sentidos, entre um momento de esquecimento de nós p róp rios, log o seg uid o p ela ve rgo nha e p elo remo rso, e um sentime nto puro, que só pode nascer numa alma delicada, manter-se pela afeição, e ter como fruto a felicidade! Ah, não profaneis assim o amor! Evita i sob retud o p rofa na r-vos, reunindo no m esmo p onto d e vista o q ue nunca se pôde confundir. Deixai as mulheres vis e degradadas recearem uma rivalidade que sentem que contra elas se pode estabelecer, e sofrer os tormentos duma inveja igualmente cruel e humilha nte: ma s vós! Afa sta i os olhos d esses ob jetos q ue ma c ula riam os vossos olhares; e, pura c om o a Divind a d e, p uni co mo ela a ofensa sem a sentird es. Ma s q ue p ena me p od ereis imp or que m e seja m a is d olorosa d o que a que sinto? Que possa ser comparada ao remorso de vos ter desagradado, ao desespero de vos ter afligido, à idéia insuportável de me ter tornad o me nos d igno d e vó s? Proc ura is c a stiga r-me! E eu p eç ovos consolações. Não porque as mereça, mas porque me são nec essá rias, e só m e p od em vir d e v ós. Se d e repente , esquec end o o nosso a mo r de ixand o d e d ar valor à minha felicidade, quiserdes pelo contrário arrastar-me para uma dor et erna , tend es esse d ireito: fe ri; ma s se, m a is indulge nte ou ma is sensível, vos lembrais ainda dos sentimentos tão ternos que uniam os nossos corações; dessa voluptuosidade da alma, sempre renascente e de c a d a vez ma is vivam ent e sent ida ; desses d ias tã o d oc es, tã o fe lizes q ue c a d a um d e nó s d eve a o o utro; de t od os esses b ens d o a mo r q ue só e le pode dar; preferireis talvez fazê-los renascer a destruí-los. Que mais poderei dizer? Perdi tudo, e por minha culpa, mas tudo posso reaver pe la vossa bo nda de . Comp ete-vos de c id ir ag ora. Acrescento só uma palavra. Ainda ontem me juráveis que a minha felicidade estava segura enquanto dependesse de vós! Ah! senho ra , ab a nd ona r-me-eis hoje a um d esesp ero et erno?
Pa ris, 15 de Novem b ro d e 17* *.
CA RTA CXXXVIII O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Insisto, minha bela amiga: não estou apaixonado; e não tenho culpa se as circunstâncias me forçam a representar esse papel. Basta q ue c onsinta, e volte; verá c om os seus p róp rios olhos c om o sou since ro. Prestei ontem as minhas provas, e estas não podem ser anuladas pelo q ue se p a ssa . Estava eu ontem em casa da meiga e pudica dama, e não tinha mais nenhum assunto a tratar, porque a pequena Volanges, ap esar do seu estad o p rema turo, de via pa ssar tod a a noite no b aile d e Ma da me V... A d esoc upa ç ã o fizera-me de sejar prolonga r o e nco ntro; e exigira até para isso um pequeno sacrifício, mas apenas me fora c onc ed id o, e já tod o o prazer que espe rava tinha sido pe rturba do pe la idéia desse amor que se obstina em atribuir-me; ou pelo menos em censurar-me; de forma que só sentia o desejo de poder simultane am ente c ertific ar-me e c onvenc ê-la de que era da sua p arte pura c alúnia. Tom ei então uma de c isão violenta; e, alega ndo um p retexto bastante inconsistente, abandonei a minha bela, algo surpreendida, e sem d úvid a b a sta nte a flita. Eu, po rém , fui tra nquila me nte ter c om Emilia à Ópe ra; e ela po der-lhe-ia c ontar que, até à ma nhã d e hoje em q ue nos sep a ram os, nenhum rem orso p erturbou os nossos p razeres. No entanto eu teria uma grande causa de inquietação, se a minha p erfeita indiferenç a me não tivesse sa lvo: ima gine q ue e sta nd o a uns quatro prédios de distância da Ópera, com Emília na minha carruagem, veio a da austera devota arrumar-se exatamente ao lado da minha, e a dificuldade de circulação deixou-no perto dum quarto de hora ao lad o um do outro. Via-se tã o b em c om o se fosse m eio-dia e não havia ma neira de esc ap ar. Ma s nã o foi tudo ; de c id i dizer a Emília q ue se t ra ta va d a senho ra da carta. (Lembra-se talvez dessa loucura e de que Emília era a mesa.) Ela, que o não tinha esquecido, e que é zombeteira, não descansou enquanto não examinou à vontade esta virtude, como ela dizia, e isso c om grand es e irrita ntes g a rga lhad a s. Mas também ainda não foi tudo; pois a dama ciumenta não mandou logo uma carta a minha casa nessa mesma noite? Eu não estava , mas, na sua o bstinaç ão , tornou a ma nda r c om orde m p ara me esperarem. Eu, como estava decidido a ficar com Emília, mandara emb ora a c arruage m, com ordem ao c oc heiro d e voltar a b usc ar-me esta manhã; e quando ao chegar encontrou o mensageiro do amor, achou bem dizer-lhe simplesmente que eu já não regressava naquela
noite. Imaginará o efeito desta notícia; na volta encontrei-me de sped ido c om toda a dignida de que e xigia a c irc unstânc ia! Assim esta aventura, que acha interminável, teria podido, como vê, acabar esta manhã; se não acabou, não foi, como irá talvez pensar, porque dê muito valor à continuação, mas antes porque, por um lad o, não ac hei dec ente d eixar que outrem rom pe sse; e, por outro, p orque q uis reservar-lhe a hom ena gem d esse sa c rifíc io. Respondi pois ao severo bilhete com uma longa epístola sentimental. Expus longas razões, e contei com o amor para as fazer passar por boas. Êxito total. Acabo de receber um segundo bilhete, ainda muito severo, que confirma a eterna ruptura, como é das regras; ma s já num tom d iferent e. Insiste e m q ue nã o q uer volta r a ver-me: essa decisão é enunciada quatro vezes repetida da maneira mais irrevogável. Concluí que não tinha um momento a perder para a p a rec er. Enviei já o me u c ria d o p a ra e ntrete r o p orteiro; e de ntro d um momento irei eu próprio fazer assinar o meu perdão: porque nas questões desta espécie, só há uma fórmula capaz de obter a a b solviçã o g eral, e e ssa só se e xec uta p essoa lmente. Adeus, minha encantadora amiga; parto para tentar este grand e golpe. Pa ris, 15 de Novem b ro d e 17* *.
CA RTA CXXXIX A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE Como me acuso, minha sensível amiga, por vos ter falado demasiado, e demasiado cedo,de males passageiros! Sou a causa de que vos aflijais neste momento; esses desgostos que vos vêm de mim duram ainda, e eu sou já de novo feliz. Sim, tudo está esquecido, perdoado; digamos antes sanado. Ao estado de dor e angústia sucederam a calma e as delícias. Oh, alegria do meu coração, como p osso exprimir-vos! Valmont está inoc ente ; não se é c ulp a d o q uand o se ama tanto. Esses erros graves e ofensivos que eu lhe censurava com tanta amargura, não os cometera; e se, num só ponto, precisei de indulgência, não é certo que também eu tinha injustiças a serem perdoadas? Não vos falarei pormenorizadamente dos fatos ou das razões que os justificam; talvez até o espírito os apreciasse mal, só ao coração é q ue c om p ete senti-los. Mas se m e a c usa rd es d e fraq ueza , cha ma rei a vossa op iniã o p a ra a p oiar a minha. Em relaç ã o a os hom ens, vós p róp ria o d issestes, a infid elid a d e nã o é inco nstâ nc ia. Não é que eu não sinta que esta distinção, aprovada pelo consenso geral, fere ainda a delicadeza; mas de que se queixaria a
minha, q ua nd o a d e Va lmo nt sofre ma is a ind a ? Esse erro q ue e sq ueç o, não penseis que ele o perdoe a si próprio ou se console; e no entanto, já rep a rou b em essa lige ira falta p elo exce sso d o seu a mo r e d a minha felicidade! Ou a minha felicidade é maior, ou aprecio-a mais desde que receei tê-la perdido, mas o que vos posso dizer é que, se ainda me sentisse com força para suportar desgostos tão cruéis como os que acabo de sofrer, não julgaria pagar assim demasiado caro o acréscimo de felicidade que depois saboreei. Oh, minha terna mãe! Repreendei a esta vossa filha irrefletida por vos ter afligido com tanta precipitação; ralhai-lhe por ter julgado temerariamente e caluniado aquele que ela não devia cessar de adorar, mas ao mesmo tempo que a reconheceis imprudente, contemplai-a feliz e aumentai-lhe a alegria compartilhando-a. Pa ris, noite d e 16 de Nove mb ro d e 17* *.
CARTA CXL O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Que se p a ssa , minha b ela a miga , q ue nã o rec eb o resp osta sua? A minha última c arta p arec ia-me no enta nto m erec ê-la; já há três d ias q ue a d evia te r rec eb id o e e sp ero ainda ! O meno s q ue lhe po sso d izer é que estou zangado; deste modo nada lhe contarei das minhas aventuras. Ac erc a do be líssimo efeito da rec onc iliaç ão ; d e ter da do luga r a novas ternuras, em vez de censuras e desconfiança; de ser eu agora quem recebe as desculpas e reparações devidas à minha candura c aluniad a, nad a lhe d irei; e sem o a c ontec ime nto imprevisto d a última noite, nem sequer lhe escreveria. Mas como diz respeito à sua pupila, e como naturalmente ela não estará capaz de lhe escrever durante a lg um tem p o, enc a rreg o-me e u disso. Por motivos que facilmente adivinhará ou não, de há uns dias pa ra c á q ue Mad am e de Tourvel não m e po dia oc upa r o temp o; e como essas razões não podiam existir na pequena Volanges, tornarame mais assíduo junto dela. Graças ao amável porteiro, não precisava de vencer quaisquer obstáculos; e levávamos, a sua pupila e eu, uma vida cômoda e regrada. Mas o hábito conduz à negligência; nos primeiros dias, achávamos sempre as precauções insuficientes para a nossa segurança; tremíamos ainda detrás dos ferrolhos. Ontem, uma distração inacreditável causou o acidente que lhe quero contar; e se pe lo m eu lad o a p anhei um susto, a d onzela p ag ou m ais c aro. Não dormíamos, mas estávamos no repouso e no abandono que se seguem à voluptuosidade, quando ouvimos a porta do quarto
abrir-se de repente. Agarrei logo a espada, tanto para minha defesa como para da nossa comum pupila: avancei e não vi ninguém, mas com efeito a porta estava aberta. Como tínhamos luz, fiz uma busca, mas não encontrei vivalma. Lembrei-me então que nos esquecêramos das precauções habituais; e que a porta, apenas encostada, ou mal fec had a , se a b rira p or si própria . Voltei para me juntar à minha tímida companheira e tranqüilizála, mas não a encontrei no leito; caíra ou tentara esconder-se na alcova: enfim, estava desmaiada e sem outro movimento a não ser fortes c onvulsõe s. Ima gine o m eu em b a ra ç o! Ainda consegui deitá-la na cama, e até fazê-la voltar a si, mas ferira -se na q ued a , e a s c onseq üênc ia s não ta rd a ra m. Dores de rins e cólicas violentas, outros sintomas ainda menos eq uívoc os, dep ressa me esc la rec eram q ua nto a o seu e sta d o, ma s, pa ra a elucidar, foi preciso revelar-lhe primeiro que se encontrava grávida; porque não fazia a mínima idéia. Nunca ninguém, antes desta pequena, conservou tanta inocência, fazendo ao mesmo tempo tão bem tudo o que é preciso para se desfazer dela! Oh, esta não perde tem p o a refletir! Ma s la me nta va -se e vi que era p rec iso to ma r uma d ec isã o. Fic ou então c omb inad o q ue eu iria imed iata mente a o m édico e a o c irurg iã o d a c a sa , e q ue o s p reve niria d e q ue a lg uém os viria b usc a r, contando-lhes tudo, sob segredo; que ela, por seu lado, chamaria a criada de quarto logo que eu saísse; que lhe confidenciaria tudo ou não, como quisesse; mas que a mandaria buscar socorro, e proibiria sobretudo que acordassem Madame de Volanges, delicada e natural atenç ão duma filha q ue teme inquietar a mã e. Fiz as duas diligências e as duas confissões o mais depressa que pude, e voltei para casa, donde não saí ainda, mas o cirurgião, que eu aliás já c onhec ia, veio a o m eio-d ia relatar-me o estad o d a do ente. Nã o me enganara; mas ele espera que, se não sobrevier qualquer c omp lic aç ão , ninguém lá em c asa da rá p or nad a. A criad a d e q uarto está no segredo; o médico deu um nome à doença; e este assunto arrumar-se-á como milhares de outros, a não ser que mais tarde nos p ossa ser útil que d ele se fa le. Ma s ha verá a ind a interesses c om uns entre a minha a miga e e u? O seu silêncio deixa-me dúvidas; já nem acreditaria nisso, se o meu de sejo não proc ura sse a tod o o c usto m anter-me a espe ra nça . Ad eus, minha b ela a miga : b eijo-a, ma l-gra d o o seu ra nc or. Pa ris, 21 de Novem b ro d e 17* *.
CARTA CXLI A MARQUESA DE MARTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT
Meu Deus! Visc ond e, com o m e ma ç a c om a sua o bstinaç ã o! Que lhe importa o meu silêncio? Pensa talvez que o mantenho p or falta d e razõe s p a ra me d efend er? Ah! Prouve ra a Deus! Ma s nã o, é a nte s p orque me c usta d izer-lhas. Fale-me francamente; ilude-se a si próprio ou procura enganarme? A diferença entre as suas palavras e ações deixa-me hesitar a p ena s ent re esses d ois sent iment os: qua l é o verda d eiro? Que q uer que lhe d iga , quand o e u própria não sei que p ensar? Parece que dá grande valor à sua última cena com a Presidente; mas o que é que ela prova a favor da sua opinião e contra a minha? Com certeza que eu lhe não disse que amava essa mulher o bastante para não a enganar, para não aproveitar todas as ocasiões que lhe parecessem agradáveis ou fáceis; nem sequer duvido de que para si seja quase a mesma coisa satisfazer com outra, com a primeira q ue a p a reç a , os d esejos q ue a q uela lhe te m feito na sc er; e nem seq uer me surp ree nd e q ue, po r uma lib ertina ge m d e e sp írito q ue é inútil neg a rlhe, tenha uma vez feito por deliberação o que fez mil outras por acidente. Quem sabe se isso não é moda do tempo, e o que fazem todos, desde o perverso ao mais idiota dos inocentes? Hoje o que se abstém passa por romanesco, e não é esse, parece-me, o defeito de que o a c uso. Mas o que disse, o que pensei, o que penso ainda é que nem por isso deixa de amar a Presidente; não, com certeza, com um amor puro e terno, mas c om o q ue lhe é da do sentir; c om aq uele q ue faz, po r exemplo, ver numa mulher atrativos ou qualidades que ela não tem; que a coloca num lugar à parte, e todas as outras abaixo; que o conserva preso a ela, mesmo quando a ultraja; tal como um sultão pode sentir pela favorita, o que não o impede de preferir muitas vezes uma simples odalisca. Esta comparação parece-me tanto mais certa, qua nto é verda de que, tal c omo ele, o Visc onde nunca é nem o am igo, nem o amante duma mulher; mas sempre ou o seu tirano ou o seu escravo. Por isso estou bem certa que se humilhou e aviltou, para voltar a estar nas graças desse belo objeto! E demasiado feliz por tê-lo c onseg uid o, a ssim q ue julgo u cheg ad o o m ome nto de o bte r o p erdã o, de ixa-me po r virtude de sse g rand e a c ontec imento . Ainda na sua última carta, se me não fala unicamente dessa mulher, é porque nada me quer dizer das suas grandes aventuras; são para si tão importantes, que julga o silêncio que faz sobre elas uma punição para mim. E é depois de mil provas da sua acentuada preferência por uma outra, que me pergunta tranquilamente se há a inda interesses c om uns ent re nó s! Tom e c uida d o, Visc ond e! Qua nd o eu responder, a minha resposta será irrevogável; e recear pronunciá-la neste momento é já talvez esclarecer demasiado. Deste modo, não q uero fa lar nisso.
O m a is q ue p osso fa zer é c onta r-lhe um a história. Nã o te rá ta lvez temp o pa ra a ler, ou pa ra lhe p restar a nec essária ate nç ão ? Isso é consigo. Será afinal, supondo o pior, apenas uma história deitad a a o mar. Um dos meus conhecidos tinha-se deixado prender, tal como o me u am igo , po r uma mulher que não esta va à sua a ltura . Ma s ao me smo tem po tinha a lucide z d e ver que, ma is tarde ou mais cedo, aquela aventura o prejudicaria; e corava de vergonha por não ter coragem para romper. O seu embaraço era tanto maior, quanto se gabara aos amigos de se manter inteiramente livre; e não ignorava que o ridículo aumenta à medida que procuramos fugir-lhe. Passava assim a vida a fazer tolices e a dizer depois: não tenho culpa. Este homem tinha uma amiga que por um momento esteve tentada a revelá-lo a todos nesse estado de embriaguez, e a tornar assim o seu ridículo perpétuo, mas, mais generosa do que maliciosa, ou talvez por qualquer outro motivo, quis tentar um último recurso, para poder, em qualquer caso, dizer como o amigo: não tenho culpa. Remeteu-lhe então, sem mais palavra, a carta que segue, como um remédio cujo uso p od eria ser útil p a ra d eb elar o ma l. "De tudo nos aborrecemos, meu anjo, é uma lei da natureza; não tenho culpa . Se a gora me a bo rreç o d uma a ventura q ue me oc upou inteira me nte d ura nte q uat ro longo s me ses, nã o te nho c ulp a . Se tive tanto amor como tu virtude, e já é afirmar muito, não é para admirar que um tenha acabado ao mesmo tempo que a outra. Não tenho culpa . Resulta disso, que desde há algum tempo te engano: mas tam b ém a tua implac áve l ternura a isso m e ob riga va! Não tenho c ulpa . Hoje, uma mulher que a mo louc am ente exige que te sac rifique. Não tenho culpa . Bem vejo que julgarás chegado o momento de me chamares p erjuro, ma s se a na tureza c onc ed eu a os hom ens a p ena s a c onstâ nc ia , e lego u às mulheres a o b stina ç ã o, não te nho c ulp a . Crê-me; tal como eu, escolhe outro amante. Este conselho é bo m, muito b om; se o a c has ma u, não tenho c ulpa . Ad eus, me u a migo , tive-te c om p ra zer, d eixo-te sem p ena ; ta lvez volte a ind a . É a ssim o mund o. Não tenho c ulp a . " Não é o mo me nto p a ra lhe d izer, Visc ond e, o efeito d esta última tentativa, e o que se lhe seguiu, mas prometo que lho direi na próxima carta. Nela encontrará também o ultimatum sobre a renovação do tra ta d o q ue m e p rop õe . Até lá, simp lesme nte a d eus... A propósito, agradeço-lhe todos os pormenores sobre a pequena Volanges; é um artigo que se deve guardar até ao dia seguinte ao casamento, para a gazeta de maledicência. Entretanto, a p resento -lhe o s me us p êsa me s p ela p erda d a sua d esc end ênc ia . Boa noite, Visc ond e.
Ca stelo d e..., 24 d e Novem b ro d e 17* *.
CARTA CXLII O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Palavra, minha bela amiga, não sei se li mal ou se não compreendi a sua carta, a história que me narra e o modelo epistolar que continha. O que lhe posso dizer, é que este último me pareceu orig inal e p róp rio pa ra o e feito, p or isso c op iei-o simp lesme nte e, ma is simp lesme nte a inda , enviei-o à c elestial Presidente . Não perdi um momento, pois enviei ontem à tarde a terna missiva. Preferi assim, em primeiro lugar porque prometera com efeito escrever-lhe ontem; e também porque pensei que toda a noite não seria demais para ela se recolher e meditar sobre esse grande a c onte c ime nto, mesmo q ue p ela seg unda vez me c ensure a e xp ressã o. Esperava poder enviar-lhe esta manhã a resposta da minha be m-am ad a, ma s é q uase m eio-d ia e a inda nad a rec eb i. Espe rarei até à s três horas, e se a té entã o nã o tiver notíc ias, irei eu p róp rio p roc urá -la s; p orque, q uand o se t ra ta d e d ec isõe s, só o p rime iro p a sso é q ue c usta . Agora, como pode imaginar, estou ansioso por saber o fim da história d esse seu c onhe c id o, tã o c ruelmente susp eitad o d e não sa b er, em c a so d e nec essida d e, sa c rific a r uma mulher. Ter-se-á c orrigido ? E a ge nerosa am iga ter-lhe-á pe rdo ad o? Anseio também por receber o seu ultimatum: como diz tão p olitica me nte ! Tenho c uriosida d e e m sa b er se, me smo nesta última diligência, ainda encontrará amor. Oh, sem dúvida, há, e muito! Mas por quem? No entanto, não quero pôr nada em realce, e espero tudo da sua bonda de. Adeus, minha encantadora amiga; só fecharei esta carta às d ua s horas, na esp eranç a d e lhe p od er junta r a d esejad a resp osta . Duas horas da tarde. Não veio nada, o tempo urge; só posso a c resc enta r uma p a la vra : rec usa r-me-á a ind a d esta vez os ternos b eijos de amor? Pa ris, 27 de Novem b ro d e 17* *.
CARTA CXLIII A PRESIDENTE DE TOURVEL A MEDAME DE ROSEMONDE Minha senhora, d espe da ç ou-se o véu em que estava pintad a a ilusão da minha felicidade. A funesta verdade alumia-me, e só me
deixa esperar uma morte certa e próxima, cujo caminho está traçado entre a vergonha e o remorso. Segui-la-ei e bendirei os meus tormentos se eles me a b reviarem a existênc ia . Envio-vos a c a rta q ue o ntem rec eb i; não acrescentarei nenhuma reflexão, não o necessita. Não é já altura para queixas, resta-me sofrer. Não p rec iso d e p ied ad e, ma s de forç a . Recebei pois, minha senhora, o meu único adeus, e atendei o meu último pedido; é que me deixeis entregue à minha sorte, que me esq ueç a is inteira me nte, que nã o c onte is ma is c om igo . Há um limite na infelicidade, para além do qual até a própria amizade aumenta os sofrimentos e não os pode sarar. Quando as feridas são mortais, todo o socorro se torna desumano. Qualquer sentimento que não seja o desespero me é alheio. Nada me pode convir mais do que a noite profunda em que vou ocultar a minha vergonha. Chorarei as minhas faltas, se é que ainda posso chorar, pois desde ontem que não deito uma lágrima. O meu coração seco já as não c onsente. Adeus, minha senhora. Não deveis responder-me. Jurei sobre essa c a rta c ruel q ue nã o rec eb eria m a is nenhum a o utra . Pa ris, 27 de Novem b ro d e 17* *.
CARTA CXLIV O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Minha bela amiga, ontem às cinco horas da tarde, impaciente por não ter notícias, apresentei-me em casa da bela abandonada; disseram-me que saíra. Vi, nesta frase, uma recusa de me receber que me não zangou, nem surpreendeu; e retirei-me, na esperança de que esta diligência da minha parte levaria pelo menos uma dama tão educada a honrar-me com uma palavra de resposta. O desejo que tinha d e a rec eb er fez-me p a ssa r d e p rop ósito p or minha c a sa p or volta d a s nove horas, ma s na d a enc ontrei. Espantado com este silêncio, que não esperava, encarreguei o meu criado de ir buscar informações, e saber se a sensível criatura estava morta ou moribunda. Enfim, quando voltei informou-me que Ma d a me d e Tourvel sa íra d e fa to, às onze horas d a ma nhã, c om a criada de quarto; que mandara seguir para o convento de..., e que às sete da tarde reenviara a c arruag em e o s c riad os, dizend o q ue a não esperassem em casa. Evidentemente, tomou a grande decisão. O convento é o refúgio próprio para uma viúva; e se persiste numa tão louvável resolução, acrescentarei, a todas as obrigações que já lhe de vo, a d a c eleb rida d e que va i ter esta a ventura.
Bem lhe dizia, há já algum tempo, que, apesar das suas inquietações, eu reapareceria na sociedade brilhando com um novo esplendor. Que se mostrem, pois, esses críticos severos, que me acusavam dum amor romanesco e infeliz; que façam rupturas mais rápidas e mais brilhantes, ou antes, exijo melhor: que se apresentem c om o c onsolad ores, o c a minho e stá -lhes a b erto. Pois b em ! Que ousem tenta r a c a rreira q ue p erco rri até a o fim; e se um d eles ob tiver o m ínimo êxito, cedo-lhe o primeiro lugar. Mas todos sentirão que, quando me em p reg o a fundo , a imp ressã o q ue d eixo é inap a g á vel. Ah! Esta sê-lo-á, sem dúvida; e deixarei de me vangloriar de todos os meus outros triunfos, se a lgum d ia tiver junto d esta mulher um rival prefe rido . Concordo que esta decisão que ela tomou lisonjeia o meu amor-próprio; mas custa-me que ela tenha encontrado em si força suficiente para se separar de mim. Não haverá pois, entre nós ambos, outros ob stá c ulos a lém d os q ue e u p róp rio c oloq uei! O quê! Se eu ansiasse pela reconciliação, ela poderia não a querer; que digo? Não a desejar, não a considerar a suprema felicidade! E entã o é assim q ue se a ma ! Acha , minha b ela am iga , que d evo permitir isto? Não poderei eu, e não seria preferível tentar conduzir de novo esta mulher a enc a rar a po ssibilida de de uma rec onc iliaç ão , tão desejada quanto esperada? Poderia tentar esta diligência sem lhe atribuir qualquer importância; e, deste modo, sem que representasse q ua lq uer menosp rezo e m relaç ã o a si. Seria , p elo c ont rá rio, uma simp les experiência que tentaríamos de acordo; e mesmo que obtivesse êxito, seria um p roc esso d e renova r, à sua vonta d e, um sa c rifíc io q ue lhe d eve ter sido agradável. Agora, minha bela amiga, resta-me receber o p rém io, e faç o voto s p elo seu reg resso. Volte d ep ressa p a ra ree nc ontrar o seu amante, os seus prazeres, os seus amigos, e a continuação das aventuras. A da pequena Volanges correu maravilhosamente. Ontem como a minha inquietação me não permitia permanecer em lado nenhum, passei, nas minhas diversas saídas, pela casa de Madame de Volanges. Encontrei a sua pupila já no salão, ainda com trajos de doente, mas em plena convalescença, e cada vez mais fresca e interessante. Vós, mulheres, num tal caso, ficaríeis um mês num sofá: palavra, vivam as raparigas! Esta, na verdade, deu-me desejo de me c ertific a r se a c ura fora p erfeita! Devo a inda dizer-lhe q ue este a c ide nte d a me nina qua se to rnou louco o seu sentimental Danceny. Primeiro de desgosto; hoje de alegria. A sua Cec ília estava do ente! Como d eve imaginar, a c ab eç a a nda à volta c om uma ta l desg ra ç a . Três vezes p or dia ma nda va sa b er notíc ia s, e não deixava passar nem um sem se apresentar ele próprio; enfim pediu, numa bela missiva à mãe, licença para a ir felicitar pela convalescença dum ente tão querido; Madame de Volanges consentiu; de modo que encontrei o rapaz instalado como noutro
tempo, apenas com um pouco mais de familiaridade que ele não ousa va a inda p ermitir-se. Foi mesmo por ele que soube pormenores; porque saímos ao me smo tem p o e o fiz ta ga relar. Nã o ima gina o efeito q ue esta visita lhe causou. Uma alegria, desejos e transportes impossíveis de exprimir. Eu, que go sto d a s grande s inic iativas, ac ab ei de lhe fazer perder a c ab eç a, ga rantindo-lhe q ue d entro d e p ouc os dias lhe a rranjaria ma neira d e ve r ainda d e m ais pe rto a sua b ela. Estou, de fato, decidido a entregar-lha, logo que faça a minha experiência. Quero consagrar-me inteiramente a si; e depois valeria a pena que a sua pupila fosse também minha aluna, se não soubesse enganar senão o marido? A obra-prima é que engane também o amante, e sobretudo o seu primeiro amante; porque eu, por mim, não tenho q ue me a c usa r de a lgum a vez ter pronunciado a p alavra a mo r. Adeus, minha bela amiga; volte logo que possa para gozar do seu p od er sob re mim, rec eb er a s hom ena ge ns e p a g a r-me o p rém io. Pa ris, 28 de Novem b ro d e 17* *.
CARTA CXLV A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Seriamente, Visconde, abandonou a Presidente? Enviou-lhe a carta que redigi para ela? É na verdade encantador; e ultrapassou as minhas esperanças! Confesso com sinceridade que esse triunfo me lisonjeia mais do que todos os que até agora tenho obtido. Achará talvez que avalio muito alto essa mulher, que antes apreciava tão p ouc o; nad a d isso; é que nã o foi sob re ela q ue a lc a nc ei esta vitória ; foi sobre o Visconde. Eis o que me diverte, e que é verdadeiramente delicioso. Sim, Visc ond e, sei que a ma va muito M a d a me d e Tourvel e q ue a ama ainda; ama-a como um louco, mas porque eu me divertia a envergo nhá -lo, sa c rific ou-a c orajosa mente. Teria sa c rific a d o mil p a ra nã o ser vítima d um g ra c ejo. Ao q ue nos c ond uz a v a id a d e! Le Sa ge tem razão qua ndo diz que e la é inimiga da felic ida d e. Como ficaria agora, se eu tivesse querido apenas pregar-lhe uma pa rtida ? Mas sou inc ap az de enga nar, be m o sab e; e me smo que , por minha vez, ficasse agora reduzida ao desespero e ao convento, c orro tod os os risc os, e entrego -me a o venc ed or. No entanto, se capitulo é por pura fraqueza; porque, se eu quisesse, quantas brincadeiras não teria ainda para fazer! E talvez o Visconde o merecesse! Admiro, por exemplo, a sutileza ou a falta de jeito co m q ue do c eme nte me p rop õe q ue o d eixe rec onc ilia r-se c om a
Presidente. Convinha-lhe muito, não é assim, vangloriar-se dessa ruptura sem p erd er os p ra zeres d a p osse? E como então esse aparente sacrifício nada significaria para si, oferece-se para o renovar segundo a minha vontade! Por esta infeliz c om binaç ão , a c eleste d evota julga r-se-ia semp re a únic a eleita d o seu coração, enquanto eu me orgulharia de ser a rival preferida; seríamos ambas enganadas, mas o meu amigo estaria contente, e o resto que importa? É pe na q ue c om ta nto ta lento p ara os projetos, tenha tã o p ouc o para a execução; e que por uma só diligência inconsiderada tenha leva nta d o um ob stá c ulo invenc ível a o q ue ma is d eseja. O q uê! Tinha a idé ia d e te ntar uma rec onc ilia ç ão e o usou escrevê-lo na minha carta! Supôs-me inábil a esse ponto! Creia-me, Visc ond e, qua ndo uma mulher que r ferir o c oraç ão de outra, rarame nte deixa de encontrar o ponto mais sensível, e o ferimento é incurável. Enquanto feria esta, ou antes, dirigia os seus golpes, não esqueci que esta mulher era minha rival, que por um momento a preferiu a mim, e que enfim m e c oloca ra ab aixo d ela. Se fa lhei na vinga nç a, c onsinto em pa ga r o erro. Por isso, Visconde, acho que deve tentar todos os meios; insisto me smo , e prometo não me a bo rrec er com o seu êxito, se o alca nç ar. Estou tã o d esc a nsa d a a este resp eito q ue nem p enso ma is nisso. Falemos doutra coisa. Por exemplo, da saúde da pequena Volanges. Dar-me-á notícias seguras no meu regresso, não é verdade? Muito estimarei recebê-las. Depois disso, compete-lhe a si decidir do que mais convirá: entregar a menina ao namorado, ou tentar ser pela segunda vez o funda do r dum novo ramo do s Valmo nt, sob o nom e d e Ge rc ourt. Esta id éia d iverte-me m uito; d eixo-lhe a esc olha, ma s p eç o-lhe q ue nã o tom e um a d ec isã o d efinitiva sem q ue c onve rsem os a mb os. Nã o se trata d e a d ia r uma d a ta long ínq ua, po rq ue b reve me nte esta rei em Pa ris. Não lhe p osso d izer prec isa me nte o d ia ; mas tenho a c erteza q ue, log o q ue eu c heg ue, será o p rime iro a ser informa d o. Adeus, Visconde; apesar das minhas disputas, partidas e c ensura s, amo -o sem p re m uito, e p rep a ro-me p a ra lho p rova r. Até à vista, me u am igo . Ca stelo d e..., 29 d e Novem b ro d e 17* *.
CARTA CXLVI A MARQUESA DE MERTEUIL AO CAVALEIRO DANCENY Parto enfim, meu jovem amigo, e amanhã à tarde estarei de volta a Paris. No meio de toda a confusão que acarreta uma viagem, não receberei ninguém. No entanto, se tiverdes alguma confidência
urge nte a fazer-me , ab rirei uma exce ç ã o à reg ra g eral; ma s só p a ra vós; por isso, peço-vos segredo da minha chegada. O próprio Valmont não será informa d o. Se alguém me tivesse dito, há uns tempos atrás, que dentro em p ouc o te ríeis a m inha e xc lusiva c onfianç a , nã o o a c red ita ria . Mas a vossa foi a causa da minha. Quase estou tentada a acreditar que usastes de muita habilidade, direi mesmo sedução. E isso seria muito m a l! Tod a via nã o seria p erigo sa a g ora; tend es d e fa to ma is com que vos ocupar! Quando a heroína está em cena, esquece-se a confidente. Por isso não tivestes tempo de me contar os vossos últimos triunfos. Qua nd o a vossa C ec ília e sta va a usente , o te mp o nã o c heg a va p a ra e sc uta r as vo ssa s te rnas q ueixa s. Tê-las-íeis feito p a ra o ec o, se nã o existisse eu para as escutar. Quando, depois, ela esteve doente, ainda fui honrada com o relato das vossas inquietações, tínheis necessidade de alguém a q uem a s c ontar. Mas agora que ela está em Paris, que recuperou a saúde, e sobretudo que a vedes às vezes, ela basta-vos, e os vossos amigos já não valem nad a. Não vos repreendo; a culpa é dos vossos vinte anos. Desde Alcibíades até vós, não sabemos já que os jovens só recorrem à amizade nos desgostos de amor? A felicidade torna-os às vezes indiscretos, mas jamais confidentes. Direi tal como Sócrates: gosto que os meus amigos venham até mim, quando se sentem felizes, mas, na sua qualidade de filósofo, passava bem sem eles quando não a p a rec iam . Nisso, nã o sou tã o sensa ta c om o ele, e sent i o vo sso silênc io c om tod a a fraq ueza duma mulher. Não penseis que sou exigente: estou muito longe de o ser! O me smo sentiment o q ue m e leva a nota r esta s p riva ç õe s faz c om q ue a s suporte c om c orag em, quand o são a c ausa ou a prova da felic ida de dos meus amigos. Conto convosco amanhã à tarde, contanto que o a mo r vos d eixe livre e d esoc upa d o: p roíb o-vos d e m e fa zerdes o m ínimo sacrifício. Adeus, Cavaleiro; terei muito prazer em ver-vos: vireis? Ca stelo d e..., 29 d e Novem b ro d e 17* *.
CARTA CXLVII MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE Ficareis certamente tão aflita como eu, minha digna amiga, qua ndo soub erde s do estad o e m q ue se enc ontra Ma da me d e Tourvel; está doente desde ontem; a doença atacou-a profundamente, e a p resenta sintom a s tã o g ra ves q ue estou verda d eira me nte a la rma d a .
Uma febre ardente, um delírio violento e quase contínuo, uma sede que se não sacia nunca, eis tudo o que se observa. Os médicos dizem que não podem diagnosticar ainda; e o tratamento será tanto ma is d ifíc il qua nto é c erto q ue a d oente recusa c om o bstinaç ã o tod a a espécie de remédios; a ponto que foi preciso agarrá-la para a sangrar; e d e d ua s out ra s vezes foi nec essá rio usa r do me smo p roc esso p a ra lhe tornar a pô r a liga dura, que e la pretendia a rranc ar no m eio d o d elírio. Vós que a conhecestes como eu, tão fraca, tão tímida e tão doce, podereis imaginar que quatro pessoas mal a possam conter, e que logo que lhe tentem falar razoavelmente se lance numa ira inexp rimível? Por mim, creio q ue nã o seja ma is d o q ue d elírio, e q ue nã o se tra te d uma verda d eira a liena ç ã o d o esp írito. O que aumenta os meus receios a esse respeito é o que se passou anteontem. Nesse dia, ela chegou pelas 11 horas da manhã, com a criada de quarto, ao convento de... Como foi educada nessa casa e conservou o hábito de aí voltar às vezes, foi recebida como habitualmente, e pareceu a todos tranqüila e de boa saúde. Aproximadamente duas horas depois, perguntou se o quarto que ocupara quando era pensionista estava vago, e como lhe resp ond essem q ue sim, pe d iu pa ra o ir ver; a sup eriora e out ra s relig iosa s acompanharam-na. Foi então que declarou que voltava a viver nesse quarto, que, afirmava, nunca deveria ter abandonado; e donde só sa iria p or mo rte; foram a s p a la vras d ela. Primeiro ninguém soube que dizer; mas, passado o primeiro espanto, expuseram-lhe que o seu estado de mulher casada não autorizava a que a recebessem sem permissão especial. Nem essa razão, nem mil outras conseguiriam nada; e a partir desse momento obstinou-se, não só a não sair do convento, mas até a não deixar o quarto. Enfim, impotentes, às sete horas da tarde, consentiram que passasse lá a noite. Mandaram embora as carruagens e os criados, e ad iaram p ara o d ia seg uinte a d ec isão . Certific a m q ue d urante o serão o seu a r e p orte na da tinham d e alucinados, ambos eram modestos e refletidos; apenas caiu quatro ou c inc o ve zes num c isma r tã o p rofund o q ue nã o c onseg uira m d esp ertá-la falando-lhe; e que, cada vez que saía dele, levava as mãos à fronte como se a apertasse com força; e por isso, como uma das religiosas presentes lhe perguntasse se lhe doía a cabeça, olhou-a longamente antes de responder, e disse por fim: "Não é aí que está o mal!" Um momento depois pediu que a deixassem só, e que de futuro lhe não fizessem mais perguntas. Tod a a ge nte se retirou, exc eto a c ria da de qua rto, que felizmente devia dormir no mesmo quarto que a senhora, por falta de lugar. Conforme a na rraç ão d a rap ariga , a a ma esteve m uito tranq üila até às onze da noite. Disse então que se queria deitar, mas, antes de estar co mp leta mente de spida , pôs-se a and ar pelo q uarto, c om muitos
movimentos e gestos. Júlia, que fora testemunha de tudo o que se passara durante o dia, não ousou dizer nada e esperou em silêncio durante p erto d e um a hora. Por fim, Ma da me d e Tourvel cha mo u-a d uas vezes seg uid a s; só teve tem p o d e a c ud ir, e a senhora c a iu-lhe no s braços dizendo: "Não posso mais." Deixou-se conduzir até ao leito, mas não quis tomar nada, nem que alguém fosse buscar socorro. Mandou som ente p ôr ág ua p erto d ela, e orde nou a Júlia q ue se d eitasse. Esta assegura que esteve sem dormir até às duas da manhã, e q ue nã o o uviu, d ura nte e sse te mp o, nem m ovime ntos nem q ueixa s. Ma s afirma que foi ac ord ad a à s c inco horas pe lo d elírio d a a ma , que falava em voz alta e forte; e que tendo-lhe então perguntado se não precisava de nada, e não obtendo resposta, acendeu o castiçal e foi ao leito de Ma d am e d e Tourvel, que a nã o rec onhec eu; ma s que, interrompendo de repente a conversação sem seguimento que ia discorrendo, gritou vivamente: "Deixem-me só, deixem-me nas trevas; são as trevas que me convêm." Eu própria notei ontem que esta frase lhe volta muitas vezes. Enfim, Júlia aproveitou-se desta ordem para sair e ir procurar ge nte e soc orro, ma s Ma d a me d e Tourvel rec usou a mb os, co m ira s e delírios que depois se repetiram frequentemente. A confusão em que isto fez mergulhar o convento decidiu a supe riora a m a nd a r proc ura r-me onte m à s sete d a m a nhã... Ainda não era dia. Acudi imediatamente. Quando me anunc iaram a M ad a me d e Tourvel, pa rec eu retom ar o conhec imento , e respondeu: "Ah, sim, que entre." E assim que me aproximei do leito, olhou-me fixamente, tomou-me a mão, que apertou, e disse com voz forte, mas triste: "Morro por vos não ter acreditado." Mas logo em seguida, escondendo os olhos, voltou à sua frase mais freqüente: "Deixem-me só, etc ."; e p erd eu p or co mp leto o c onhec imento . Estas palavras que me dirigiu, e ainda outras que deixou escapar no seu d elírio, fazem -me te me r q ue esta c ruel d oe nç a t enha uma c a usa mais cruel ainda. Mas respeitemos os segredos da nossa amiga, e limitem o-nos a la stima r a sua infelicida d e. Tod o o dia d e o ntem foi muito a gitad o, e dividido entre aterradores acessos de delírio e momentos de abatimento letárgico, os únicos em que tem e dá algum repouso. Deixei a sua cabeceira só às nove da noite, e voltarei esta manhã para todo o dia. Claro que não abandonarei a minha amiga tão infeliz; mas o que é desolador é a ob stina ç ã o d ela em rec usa r tod os os c uid a d os e soc orros. Envio-vos o boletim desta noite, que acabo de receber, e que, c om o ve reis, é um p ouc o c onsolad or. Terei o c uid a d o d e vo s tra zer inteiram ente a p a r de tudo . Adeus, minha digna amiga, vou para junto da doente. A minha filha, que felizmente está quase inteiramente restabelecida, cumprimenta-vos. Pa ris, 29 de Novem b ro d e 17* *.
CARTA CXLVIII O CAVALEIRO DANCENY A MARQUESA DE MERTEUIL Ó vó s q ue e u a mo ! Ó tu q ue e u a d oro! vós q ue fizestes a minha felic id a d e! Tu q ue a c umulaste! Am ig a sensível, terna a ma nte, po r que é que a lembrança da tua dor vem perturbar o encanto que experimento? Ah! acalmai-vos, é a amizade que vo-lo roga. Oh! minha a miga , sed e fe liz! É a súp lica d o a mo r. Ah! Que censuras tendes a fazer-vos? Crede-me, a vossa d elic a d eza eng a na -vos. Os rem orsos q ue vo s c a usa , os erros d e q ue m e acusa, são igualmente ilusórios; e sinto no meu coração que houve entre nós um sedutor único: o amor. Não temas entregar-te aos sentimentos que inspiras, deixar-te penetrar pelo fogo que fazes nascer. O quê! Seriam os nossos corações menos puros por só tarde terem sido esclarecidos? Não, com certeza. É só a sedução que, agindo sempre c om um fim, pod e c om binar a ma rc ha e os me ios, e p rever de longe o s acontecimentos. Mas o verdadeiro amor não permite meditar e refletir; afasta-nos dos projetos por meio dos sentimentos; o seu poder é tanto mais forte quanto nos é desconhecido, e é na sombra do silêncio que nos p rend e p or la ç os q ue sã o imp ossíveis d e c onhec er ou d e romp er. Deste modo, ainda ontem, apesar da viva emoção que me causava a idéia do vosso regresso, do prazer intenso que senti ao vervos, julgava no entanto ser chamado e conduzido apenas pela tranqüila amizade, ou antes, inteiramente entregue aos doces sentimentos do meu coração, bem pouco me preocupava em esc la rec er-lhes a orig em ou a c a usa . Ta l c om o e u, minha t erna a miga , ta mb ém tu sentias, sem o sa b er, esse e nc a nto p od eroso q ue e ntreg a va as nossas almas às doces impressões da ternura; e ambos só reconhecemos o amor ao sair da embriaguez em que esse deus nos mergulhara. Mas é isso que nos justifica em vez de nos condenar. Não, não traíste a amizade, nem eu abusei da tua confiança. Ambos, é certo, ignorávamos os nossos sentimentos; mas essa ilusão experimentávamola a p ena s, nã o a p roc urá va mo s fazer nasc er. Ah, em vez de a lamentarmos, pensemos na felicidade que nos trouxe; e sem a perturbarmos com injustas censuras, dediquemo-nos antes a aumentá-la ainda com o encanto da confiança é da segurança. Oh, minha amiga! Como esta esperança é cara ao meu coração! Sim, de ora em diante, livre de todo o temor, inteiramente dada ao amor, partilharás os meus desejos, os meus êxtases, o delírio dos meus sentidos, a embriaguez da minha alma; e cada instante dos nossos d ias a fortuna d os será a ssinalad o p or uma nov a volup tuosida d e. Ad eus, a d oro-te! Ver-te-ei esta ta rd e, ma s enc ont ra r-te-ei só?
Não ouso e sp erá-lo. Ah! Tu nã o o d esejas ta nto c om o eu. Pa ris, 1 d e Dezem b ro d e 17* *.
CARTA CXLIX MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE Ontem d ura nte tod o o d ia tive espe ranç a s, minha d igna am iga , de vos poder dar esta manhã notícias mais favoráveis da saúde da nossa querida doente; mas desde ontem à tarde que essa esperança foi de struíd a , e só m e resta a p ena d e a ter pe rd id o. Um acontecimento, bem indiferente na aparência, mas bem cruel pelas conseqüências que teve, tornou o estado da doente tão la stimá vel co mo antes, se é que o nã o ag ravo u. Nad a teria c om preendido d esta súbita transforma ç ão , se ontem nã o tivesse rec eb ido a s c onfid ênc ias d a no ssa infeliz a mig a . Como ela me não deixou ignorar que também estáveis informada de todos os seus infortúnios, posso falar sem reserva sobre a sua triste situa ç ã o. Ontem de manhã, quando cheguei ao convento, disseram-me q ue a d oe nte d ormia há m a is d e três horas; e o sono e ra t ã o p rofund o e tra nq üilo, que p or um m om ento rec ee i q ue fosse letárgico . Algum tempo depois acordou, e abriu ela própria as cortinas do leito. Olhou-nos a todos surpreendida; e quando me levantei para ir junto dela, reconheceu-me, chamou-me e pediu-me que me aproximasse. Não me deu tempo para a interrogar, e perguntou-me onde estava, o que fazíamos ali, se estava doente e por que não se encontrava em casa. Primeiro pensei que se tratava dum novo delírio, em bo ra ma is tranq üilo q ue o prece d ente, mas vi que ela c om preendia muito b em a s minhas resp osta s. Tinha c om efeito rec up erad o a ra zã o, ma s não a m em ória. Interrogou-me, com muitos pormenores, sobre tudo o que lhe acontecera desde que chegara ao convento, para onde não se lembrava de ter vindo. Respondi com exatidão, suprimindo apenas o que teria podido assustá-la, e quando pelo meu lado lhe perguntei como estava, respondeu-me que não sofria nesse momento; mas que tinha sido muito atormentada durante o sono, e que ainda se sentia fatigada. Exortei-a a acalmar-se e a falar pouco; depois disto, fechei em parte as cortinas, que deixei somente entreabertas, e sentei-me perto do leito. Ao mesmo tempo, ofereceram-lhe um caldo que tomou e ac hou bom. Fic ou a ssim c erca d e m eia ho ra , d ura nte a q ual não fa lou senã o para agradecer os cuidados que eu lhe dispensara; e pôs nos agradecimentos a gentileza e a graça que lhe conheceis. Em seguida
guardou durante algum tempo um absoluto silêncio, que só rompeu para dizer: "Ah, sim, lembro-me de aqui ter vindo"; e um momento depois, gritou dolorosamente: "Minha amiga, minha amiga, lamentaime; reencontro os meus infortúnios." Como nesse momento me aproximei dela, agarrou-me na mão e, apoiando nela a cabeça, continuou: "Grande Deus, não poderei então morrer?" A sua expressão, mais ainda que as palavras, enterneceu-me até às lágrimas; compreendeu-o pela minha voz, e disse-me: "Lamentais-me! Ah, se soubésseis..." E depois interrompendo-se: "Ordenai que nos deixem sós, e d ir-vos-ei tud o. " Tal como julgo ter-vos indicado, tinha já suspeitas sobre qual d eve ria ser o assunto d esta c onfidê nc ia ; e te me nd o q ue esta c onve rsa , q ue p revia d ever ser longa e t riste, prejudic a sse o esta d o d a nossa infeliz amiga, recusei-me a princípio, sob o pretexto de que ela necessitava de repouso, mas insistiu e acedi às suas instâncias. Assim que ficamos sós, contou-me tudo o que já vos narrou, e que por essa razão vos não repetirei. Falou-me enfim da maneira cruel como foi sacrificada e acrescentou: "Estava certa de que morreria por causa disso e tinha coragem; mas sobreviver ao infortúnio e à vergonha, é-me impossível." Tente i co mb a ter este d esâ nimo , ou a ntes, este d esesp ero, co m a s armas da religião, até então com tanto poder sobre ela; mas senti logo que não tinha força suficiente para essas augustas funções, e propuslhe entã o q ue se c ham a sse o p a d re Anselmo, q ue sei ser de p ositá rio d e toda a sua c onfianç a. Consentiu e pareceu mesmo desejá-lo muito. Mandamos com efeito buscá-lo, e ele veio imediatamente. Permaneceu muito tempo com a doente, e disse ao sair que, se os médicos pensassem como ele, julga va p od er a d ia r a c erimô nia d os sa c ra me ntos, e q ue voltaria no d ia seguinte. Eram cerca das três horas da tarde, e até às cinco a nossa amiga esteve muito tranqüila, de modo que todos voltáramos a ter esp eranç a . Por d esgraç a , trouxera m-lhe entã o uma c a rta . Quando pretenderam entregar-lha, respondeu não querer receber nenhuma e ninguém insistiu. Mas a partir desse momento, ficou muito agitada. Pouco depois, perguntou donde vinha a carta. Não estava selada. Quem a trouxera? Ninguém sabia. Da parte de quem vinha? Não o tinham dito ao porteiro. Em seguida guardou silêncio durante algum tempo; depois disto, recomeçou a falar, mas as suas fra ses sem seg uiment o só nos indic a ra m q ue o d elírio vo lta ra . Contud o houve a inda um intervalo tra nqüilo, até q ue p ed iu que lhe entregassem a carta que haviam trazido para ela. Assim que lhe lançou um olhar gritou: "Dele! Meu Deus!", e depois com uma voz forte, ma s ab afa da : "Tome m-na, tome m-na." Mandou imediatamente fechar as cortinas do leito e proibiu todos de se aproximarem, mas pouco depois fomos obrigados a voltar
junto dela. O delírio recomeçara mais violento do que nunca, e era acompanhado de convulsões verdadeiramente assustadoras. Estes acidentes não cessaram em toda a tarde; e o boletim d esta ma nhã informa -me d e q ue a noite nã o foi meno s ag itad a. Enfim, o seu estad o é ta l, que me espa nto q ue não tenha já sucum bido ; e nã o vos esc ond o q ue m e resta m p ouc a s esp eranç a s. Suponho que essa funesta carta seria do senhor de Valmont, ma s q ue o usa rá ele d izer-lhe a ind a ? Perdã o, minha c a ra a miga ; evitarei qua lque r reflexão , mas é m uito c ruel ver perece r tão d esgraç ad am ente uma mulher, até a go ra tão feliz e tã o d igna de o ser. Pa ris, 2 d e Dezem b ro d e 17* *.
CARTA CL O CAVALEIRO DANCENY A MARQUESA DE MERTEUIL Enquanto espero a felicidade de te tornar a ver, minha terna amiga, entrego-me ao prazer de te escrever; e é ocupando-me de ti que atenuo a pena de estar afastado. Expor-te os meus sentimentos, rec orda r-me d os teus, é pa ra o m eu c oraç ão um ve rda d eiro p razer; e é através dele que mesmo o momento das privações me oferece ainda mil bens preciosos. No entanto, segundo disseste, não receberei resposta tua, mesmo esta carta será a última; e privar-nos-emos duma correspondência que, quanto a ti, é perigosa, e de que não temos necessidade. Claro que, se insistes, te acreditarei, pois que podes tu querer que por essa mesma razão eu não queira também? Mas antes d e d izer a última p a la vra, não c onsent irá s q ue fa lem os sob re isso? Quanto aos perigos, deves tu decidir, nada posso prever, e limito-me a pedir-te que olhes pela tua segurança, porque não posso estar tranqüilo sabendo-te inquieta. No que respeita a este assunto, não som os nós a mb os q ue fo rma mos um, és tu q ue és nós a mb os. Não é o mesmo quanto à necessidade, aqui temos de pensar d o m esmo mo d o, e se te mo s op iniõe s d iferente s, é c om c erteza p or não nos explicarmos ou compreendermos. Eis pois o que julgo sentir. Sem dúvida que uma carta parece muito pouco necessária quando nos podemos ver livremente. Que poderá ela dizer, que uma palavra, ou olhar, ou mesmo um silêncio, não exprimissem cem vezes melhor? Isto parece-me tão verdadeiro que, no momento em que me falaste de não mais nos escrevermos, essa idéia deslizou facilmente sob re a minha a lma ; perturb ou-a t a lvez, ma s nã o a a feto u. Ta l c om o qua ndo , que rend o b eijar-te sob re o c oraç ão , enc ontro uma fita o u um véu; afa sto-o a p ena s, sem c heg a r a t er o sentime nto d e um o b stá c ulo. Mas depois separámo-nos; e logo que deixaste de estar presente, essa idéia da carta voltou a atormentar-me. Porquê,
murmurei, mais essa privação? Pois quê! Por estarmos afastados nada mais teremos a dizer-nos? Suponhamos que, favorecidos pelas c irc unstâ nc ias, pa ssa mos juntos um d ia inteiro; será p rec iso q ue o temp o p a ra c onve rsa r seja roub a d o a o d o p ra zer? Sim, ao do prazer, minha terna amiga; porque ao pé de ti, me smo os mo me ntos de rep ouso fo rnec em ainda uma voluptuo sid ad e d elic iosa . Enfim, mesmo q ue tenha mo s muito tem p o, ac a b a mo s p or nos separar; e, depois, fica-se tão só! É então que uma carta se torna p rec iosa ! Se a nã o lem os, pelo m eno s olha mo -la ... Ah! Sem d úvid a , p od e-se o lha r uma c a rta sem a ler, ta l c om o d e noite sinto q ue te ria a ind a p ra zer em to c a r o te u retrato ... O teu retrato, digo? Mas uma carta é o retrato da alma. Não tem, como a fria imagem, essa fixidez que tão distante é do amor; presta-se a todos os nossos movimentos: alternadamente anima-se, goza, repousa-se... Todos os teus sentimentos me são tão preciosos! Privar-me-á s d um meio d e os c olig ir? Tens a c erteza d e q ue a nec essid a d e d e m e e sc reve r nunc a t e a tormenta rá ? Se na solid ã o o teu c oraç ã o se d ila ta ou se a flige , se um movimento de alegria agita a tua alma, se uma involuntária tristeza a vem perturbar por um momento, não será então no seio do teu amigo que exp and irás a tua felic ida d e o u o te u d esgo sto? Terás entã o um sent iment o q ue ele nã o p a rtilha rá ? Deixá -lo-á s entã o, sonha d or e solitá rio, va gue a r long e d e ti?... Minha amiga!... Minha terna amiga!... Mas é a ti que compete decidir. Quis somente debater o assunto e não seduzir-te; só te a p resent ei ra zõe s, ouso c rer que seria ma is c onvince nte c om súp lica s. Procurarei, se persistes, não me afligir; farei esforços para dizer a mim próprio o que me terias escrito, mas escuta, di-lo-ias melhor do que eu; e sob retud o ser-me -ia muito m a is a grad á vel de ouvir. Adeus, minha encantadora amiga; aproxima-se a hora em que te poderei ver, abandono-te com pressa, para te reencontrar mais cedo. Pa ris, 3 d e Dezem b ro d e 17* *.
CARTA CLI O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL Sem dúvida, Marquesa, me não julga tão inexperiente, a ponto de pe nsar que me pud e d eixar iludir qua nto a o e nco ntro a sós em que a surpreendi esta tarde, e ao espantoso acaso que conduzira Danceny a sua c asa! Não é q ue a sua fisionom ia tão treina da não tenha sab ido assumir às mil maravilhas uma expressão calma e serena, nem que se tenha traído por alguma das frases que às vezes escapam à
perturbação ou ao pesar. Concordo até que os seus olhares dóceis a serviram perfeitamente; e se se tivessem feito acreditar tão bem como compreender, eu estaria longe de sentir ou conservar a mínima susp eita, e nem p or um mo me nto d esc onfiaria d o d esgo sto e norme q ue lhe causava esse estranho importuno. Mas, para não ostentar em vão tão grandes talentos, para obter o êxito que desejava, para conseguir enfim a ilusão que procurava fazer nascer, seria preciso em primeiro luga r instruir o seu c â nd id o a ma nte c om ma is c uid a d o. Visto que se começa a dedicar à educação, ensine os seus alunos a não c ora rem e a não se d esc onc ertarem a o m ínimo grac ejo; a não negarem tão vivamente, quanto a uma só mulher, as mesmas c oisa s d e q ue se d efend em tã o d eb ilme nte q uant o a outras. Ensine-lhes ainda a saberem escutar o elogio da sua amante, sem se julgarem obrigados a prestar-lhe as homenagens; e se permite que a olhem em soc ied a d e, que a o m eno s sa ib a m d isfarç a r esse o lhar de p osse t ã o fá c il de reconhecer, e que confundem tão inabilmente com o do amor. Então pode mandá-los comparecer aos exames públicos, sem que a sua conduta deixe mal a sábia professora; e eu próprio, muito feliz por concorrer para a sua celebridade, prometo-lhe elaborar e publicar os p rog ra ma s d esse no vo c olégio. Mas até lá espanto-me, confesso, que fosse a mim que experimentasse tratar como um colegial. Oh, com qualquer outra mulher, de p ressa me vinga ria! E teria nisso um tã o gra nd e p ra zer! Co mo esse p ra zer ultra p a ssa ria fac ilme nte o q ue ela m e julga ra fazer perder! Sim, é só para si que prefiro a reparação à vingança; e não julgue que esteja preso pela mínima dúvida ou pela mais ligeira ince rteza ; sei tud o. Está em Pa ris há q ua tro d ias; e to d os os d ias rec eb eu Da nc eny, e só ele. Ainda hoje a sua porta estava fechada; e só faltou ao porteiro, pa ra me imp ed ir d e c hega r a si, uma seg uranç a igua l à sua. No e ntanto eu podia ter a certeza, como me mandou dizer, de ser o primeiro informado da sua chegada; dessa chegada de que ainda me não podia informar o dia, enquanto me escrevia na véspera da partida. Negará estes fatos ou tentará desculpar-se? Uma e outra coisa são igualmente impossíveis; e no entanto ainda me contenho! Por aqui reconhecerá o seu poder; mas creia-me, satisfeita por o ter experimentado, não deverá abusar dele mais tempo. Conhecemo-nos b em , Ma rq uesa ; esta s p a la vra s d eve m b a sta r-lhe. Disse-me que amanhã estará fora de casa todo o dia? Oxalá que saia de fato; pode ter a certeza de que o saberei. Mas, enfim, voltará ao fim da tarde; e para a nossa difícil reconciliação, não teremos tempo de sobra até ao dia seguinte. Mande-me dizer se será em sua casa, ou na outra, que se farão as nossas numerosas e recíprocas expiações. Sobretudo, acabou-se o Danceny. A sua má cabeça estava cheia dele, não posso ter ciúmes desse delírio da ima ginaç ão , ma s pe nse q ue a p artir d este mo mento , o q ue era a pe nas
uma fantasia tornar-se-á uma nítida preferência. Não me julgo feito p a ra e ssa hum ilha ç ã o, e não q uero rec eb ê-la d e si. Conto até que esse sacrifício não vos pareça tal. Mas mesmo que lhe c ustasse um tanto , pa rec e-me q ue já lhe d ei um b elo exemp lo! Uma mulher simultaneamente sensível e bela, que só vivia para mim, e que neste momento morre talvez de amor e remorso, vale bem um jove m c oleg ia l, a q uem , po d eremo s d izer, nã o fa lta figura ne m esp írito, ma s que não tem nem prática nem seguranç a. Adeus, Marquesa; nada lhe digo dos meus sentimentos por si. Prefiro neste momento não sondar o meu coração. Espero a sua resposta. Medite bem nela, pense bem que tanto quanto lhe é fácil a ind a fazer-me esq uec er ofensa q ue m e inflig iu, tanto ma is uma rec usa da sua parte, um simples adiamento, a gravará no meu coração em tra ç os ina p a g á veis. Pa ris, noite d e 3 d e Dezem b ro d e 17* *.
CARTA CLII A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Tenha c uid a d o, Visc ond e, po upe ma is a minha e xtrem a timidez! Como quer que eu suporte a idéia deprimente de incorrer na sua indignação; e sobretudo que não sucumba ao terror da sua vinga nç a ? Ta nto ma is q ue, c om o sa b e, se m e fizer uma infâm ia ser-me á impossível retribuí-la. Seria escusado que eu falasse, a sua existência nã o seria nem me nos b rilhant e, nem m eno s tra nq üila . Na verda d e, que teria a temer? Ser obrigado a partir, se lhe dessem tempo. Mas não se vive no estrangeiro tão bem como aqui? E afinal de contas, contanto q ue a Co rte d e Fra nç a o d eixa sse tranq üilo ond e se fixa sse, p a ra si seria a p ena s mud a r o c ená rio d os seus triunfos. Apó s ter tenta d o c ha má -lo à razão por meio destas considerações morais, voltemos ao nosso problema. Sabe, Visconde, por que é que não tornei a casar? Não foi com certeza por não ter encontrado partidos vantajosos; mas unicamente para que ninguém tenha o direito de censurar as minhas ações. Nem sequer foi por medo de não poder fazer o que me apetecesse, pois sem pre ac ab aria po r o c onseg uir, ma s p orque m e teria inco mo d ad o a idéia de que alguém se julgasse com direito a queixar-se; e, enfim, porque só gosto de atraiçoar por prazer, e não por necessidade. E eis que o Visconde me escreve a carta mais conjugal que se possa ima ginar! Só m e fa la d e e rros do me u lad o e de be nevolênc ia do seu! Mas como se pode faltar àquele a quem nada se deve? Não sou c ap az de o sab er!
Vejamos: afinal de que se trata? Encontrou Danceny em minha casa, e isso desagradou-lhe? Pois bem: e que concluiu daí? Ou que se trata va dum ac aso, co mo eu lhe d isse, ou que fora po r minha vonta de , a o c ontrário d o q ue lhe d izia . No p rime iro c a so a sua c a rta é injusta ; no seg undo , rid íc ula ; não va lia a p ena esc revê -la ! Ma s está c om c iúme s, e os c iúme s nã o ra c ioc ina m. Pois b em! Pensa rei eu p or si. Ou t em rival, ou nã o. Se t em , dev e a grad a r p a ra ser preferid o; se não tem , de ve a grad ar ainda ma is pa ra evitar vir a tê-lo. Em ambos os casos, deve seguir a mesma conduta; assim, para q ue a tormenta r-se! Pa ra q uê, sob retud o, ato rme nta r-me a mim! Já não sabe ser amável? Já duvida do seu êxito? Vejamos, Visc ond e, é injusto p a ra si próp rio. M a s nã o é isso; é q ue, ao s seus olhos, eu não mereço tanto trabalho. Deseja muito menos as minhas bondades, do que abusar do seu poder. Vamos, o Visconde é um ingrato. E aqui estou eu a ficar sentimental! E por pouco que eu continuasse neste tom, esta carta podia tornar-se muito terna, mas o senhor não o m erec e. Ta mb ém nã o m erec e q ue eu m e justifiq ue. Pa ra o c a stiga r d a s suas suspeitas, deixo-o ficar com elas, deste modo, nada direi sobre a d a ta d o m eu reg resso, nem sob re a s visitas d e Da nc eny. Teve muito trab a lho p a ra se informa r, nã o é verda d e? Pois b em ! Já está ma is a d ia nta d o? Esp ero q ue te nha tido muito p ra zer nessa t a refa ; q uant o a mim, em na d a e stra go u o me u. O q ue p osso resp ond er à sua a me aç ad ora c a rta, é q ue ela não teve nem o do m d e me ag rad ar, nem o p ode r de me intimidar; e q ue neste m om ento não estou na d a d isp osta a a c ed er aos seus p ed id os. Pa ra falar verda d e, a c eitá-lo ta l co mo hoje se mo stra , seria fazerlhe rea lme nte uma infid elida de . Não era rec om eç ar com o me u antigo am ante ; mas ante s arranjar um no vo, e que nem d e longe va le o outro. Ainda não esqueci bastante o primeiro para assim me enganar. O Valmont que eu ama va era enc antad or. Conc ord o me smo q ue não enc ontrei home m ma is a grad áve l. Ah, suplico-lhe, Visconde, se o encontrar, traga-mo; esse será sem pre bem rec eb ido . Contudo previna-o de que, em qualquer caso, não será nem para hoje nem para amanhã. O seu Menechmel* prejudicou-o; e, apressando-me demasiado, temo enganar-me. Ou talvez já eu tenha d a d o a p a la vra a Danc eny p a ra esses d ois d ia s? E a sua c a rta mo stroume q ue se zanga va q uando faltava m à pa lavra. Bem vê q ue é p rec iso esp erar. Mas que lhe importa? Acabará por se vingar bem do seu rival. Ele nã o fa rá p ior à sua a ma nte d o q ue o Visc ond e já fez à d ele; e a fina l, não vale uma mulher o mesmo que outra? São estes os seus princípios. Mesmo aquela que fosse terna e sensível, que existisse só para si, que morresse por fim de amor e remorso, seria do mesmo modo sacrificada
à primeira fantasia, ao terror de ser troçado por um momento; e quer q ue no s mo rtifiq uem os? Ah, isso não é justo. Adeus, Visconde; volte de novo a ser amável. Escute, só quero achá-lo outra vez encantador; e desde que esteja certa disso, c om prometo -me a provar-lho. Sou na verda de d ema siad o indulge nte. Pa ris, 4 d e Dezem b ro d e 17* *.
*Alude à comédia de Plauto Os Menechmes, que trata de dois irmãos gêmeos, inteiramente semelhantes. (N. do T.)
CARTA CLIII O VISCONDE DE VALMONT À MARQUESA DE MERTEUIL Respondo imediatamente à sua carta, e procurei ser claro; o que não é fácil em relação a si, quando por vezes toma a decisão de não c omp reender. Não eram necessários longos discursos para estabelecer que, tendo cada um de nós na mão tudo o que é preciso para destruir o outro, temos igual interesse em nos pouparmos mutuamente: não é
d isso q ue se trata . Ma s, entre a d ec isã o violenta d e nos d estruirmos, e a outra, sem d úvid a me lhor, d e fic a rmo s unid os c om o tem os sid o, d e no s tornarmos ainda mais íntimos reatando a nossa antiga ligação; entre esta s d ua s d ec isõe s, dizia eu, há mil out ra s a to ma r. Não é ridíc ulo d izerlhe, rep etir-lhe q ue, a p a rtir d e ho je, serei seu a ma nte ou seu inimigo . Bem vejo que a necessidade da escolha a importuna; que lhe agradaria mais tergiversar; e não ignoro que nunca foi do seu agrado ser assim c oloc a d a entre o sim e o nã o, ma s d eve sentir ta mb ém q ue a não posso deixar sair desse círculo estreito sem me arriscar a ser iludido; e d evia prever que o nã o supo rtaria. Compete-lhe pronunciar-se: deixo-lhe a decisão, mas não posso fic a r na inc erteza . Já a previno de que me não enganará com os seus raciocínios, bons ou maus; que me não seduzirá com lisonjas a enfeitar recusas; e que enfim chegou o momento da franqueza. Desejo até dar-lhe o exemplo; e declaro com prazer que prefiro paz e união, mas se é p rec iso q ueb ra r a mb a s, quero te r o d ireito e os me ios p a ra ta l. Acrescento até que o mínimo obstáculo levantado do seu guerra, bem vê que a resposta que lhe peço não exige frases largas e b elas. Ba sta m d ua s p a lavras. Pa ris, 4 d e Dezem b ro d e 17* * Respo sta d a Marquesa de Merteuil esc rita no fim d a me sma c arta. Pois bem : guerra.
CARTA CLIV MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE Os boletins informar-vos-ão melhor do que eu poderia fazer, minha c ara am iga , ac erc a do estad o g rave d a nossa doe nte. Inteira me nte entregue a os c uid a d os q ue lhe d isp enso, só roub o tempo para vos escrever, quando há outros acontecimentos além dos d a d oe nç a . Eis um, que e u esta va b em long e d e esp erar. Trata -se d uma c arta d o senhor de Va lmo nt, a que m a prouve escolher-me como confidente e mesmo como intermediária junto de Ma da me de Tourvel, pa ra q uem juntara uma c arta à minha. Devolvi uma ao mesmo temp o q ue respo ndia à outra. Ma nd o-vos esta última e p enso q ue julga reis, co mo eu, que nã o podia nem devia fazer o que ele me pede. Mesmo que o tivesse querido, a nossa infeliz amiga não estaria em estado de me compreender. O delírio é contínuo. Mas que dizeis deste desespero do
senhor de Valmont? Em primeiro lugar, devemos acreditá-lo, ou quererá ele som ente iludir tod os e a té a o fim? Se d esta vez é sinc ero, bem p od e d izer que c onstruiu ele p róp rio a sua infelic id a d e. Creio q ue te rá fic a d o pouco satisfeito com a minha resposta, mas confesso que tudo o que me faz pensar sobre esta funesta aventura me revolta cada vez mais c ontra o seu a utor. Adeus, minha querida amiga; volto às minhas tristes funções, e pouca esperança tenho de as ver coroadas de êxito. Conheceis os me us sentime ntos p a ra c onvo sc o. Pa ris, 5 d e Dezem b ro d e 17* *.
N. d os T. - Na e d içã o Cla ssique s Ga rnier", de 1952, ela b ora d a sob re o ma nusc rito autó grafo, dá -se em nota a c arta referida po r Ma da me de Volang es, que Lac los teria esc rito e de po is suprimido, e d e q ue d am os a trad uçã o:
O VISCONDE DE VALMONT A MADAME DE VOLANGES Sei, minha senho ra , que nã o g osta is d e m im; ta mb ém nã o igno ro que fostes sempre contrária à minha pessoa junto de Madame de Tourvel, e d o m esmo mo d o nã o te nho d úvida s d e q ue, mais d o q ue nunc a , exp erime nte is os me smo s sentimentos a me u resp eito. Convenho a té q ue p ossa is julga r justo s esses sentime ntos. Entretanto, é a vós que me dirijo, e não receio pedir-vos que entreg ueis a Ma da me de Tourvel a c a rta que junto a qui pa ra ela, e ainda solicitar-vos que consigais que a leia e a disponhais a isso dandolhe a certeza do meu arrependimento, do meu pesar e sobretudo do meu amor. Sinto que esta diligência poderá parecer-vos estranha; a mim p róp rio ela a d mira . Ma s o d esespe ro a p od era-se d os me ios sem os calcular, e, por outro lado, um interesse tão grande, tão caro e que nos é comum deve afastar qualquer outra consideração. Madame de Tourvel está à morte; Madame de Tourvel é infeliz; é necessário restituirlhe a vida , a sa úd e e a felic id a d e. Eis o ob jetivo a c ump rir. Tod os os meios são bons, desde que possam assegurar ou apressar o êxito. Se rejeitardes este que vos ofereço, ficareis responsável pelo a c onte c ime nto d a sua m orte, o vo sso p esa r e o m eu d esesp ero ete rno, tudo será obra vossa. Sei que ultrajei indignamente uma mulher digna de toda a minha adoração; sei que só as minhas torpes ofensas são a causa de todos os males que ela suporta. Não pretendo diminuir as minhas faltas nem desculpá-las. Mas vós, senhora, deveis temer tornarvos cúmplice impedindo-me de as reparar. Mergulhei o punhal no c oraç ã o d a vossa a mig a , ma s só e u posso retira r o ferro d a ferid a , só e u conheço os meios de a curar. Que importa que eu seja culpado, se p osso ser útil? Sa lvai a vo ssa a miga , sa lvai-a! É d o vo sso soc orro q ue e la nec essita, e nã o d a vossa vinga nç a .
Pa ris, 4 d e Dezem b ro d e 17* *.
CARTA CLV O VISCONDE DE VALMONT AO CAVALEIRO DANCENY Pa ssei d ua s vezes p or sua c a sa , me u c a ro Ca va leiro, m a s d esd e que a ba ndonou o p ap el de ap aixonad o p elo d e a ventureiro g alante, é imp ossível enc ont rá -lo. Tod a via o seu c riad o d e q ua rto a sseg urou-me que voltaria a c asa esta tarde, e q ue tinha o rd em pa ra o e spe rar; ma s eu, que estou ao par dos seus projetos, bem vi que o meu amigo não voltaria senão por um momento, para vestir o trajo apropriado, e que imed iata me nte rec om eç a ria a s sua s c orrida s vitoriosa s. Ainda b em , e só devo aplaudi-lo, mas talvez, para esta noite, seja tentado a mudar de direção. Ignora ainda o caminho que tomaram metade dos assuntos que lhe dizem respeito; devo pô-lo ao corrente daquele que de sc onhec e, e de po is de c id irá. Dedique a lgum tem po a ler esta c arta. Não será a fastá -lo d os seus p ra zeres, po is, pe lo c ontrário, ela tem c om o ob jetivo p ermitir-lhe a esc olha. Se fosse eu o depositário de todas as suas confidências, se tivesse sabido por si a parte dos segredos que fui forçado a adivinhar, a elucidação teria vindo a tempo; e o meu zelo, menos hábil, não entravaria agora os seus movimentos. Mas partamos do ponto em que estamos. Qualquer que seja a decisão que tome, nunca deixará de fazer a felic ida de de a lguém . Tem um enc ontro p ara esta no ite, nã o é ve rda de ? Com uma mulher encantadora e a quem adora? Pois na sua idade, que mulher não adoramos, pelo menos nos oito primeiros dias! O cenário deve contribuir também para o prazer. Uma casinha deliciosa, que existe só para si, deve aumentar a voluptuosidade com os encantos da liberdade e do mistério. Está tudo combinado, esperam-no e o meu amigo arde no desejo de chegar! Eis o que ambos sabemos, se bem que nada me tenha dito. Agora, eis o que não sabe, e de que devo informá-lo. Desd e o me u reg resso a Pa ris q ue m e o c up a va c om os me ios d e o pôr em contato com Mademoiselle de Volanges, tal como lhe prometera; e ainda da última vez que lhe falei, tive ocasião de julgar pelas suas respostas, direi até pelo seu entusiasmo, que contribuía para a sua felicidade. Sozinho não conseguiria eu resolver esta questão tão d ifíc il, ma s, d ep ois d e te r p rep a ra d o o s me ios, d eixei o resto e ntreg ue a o zelo d a sua jovem ap aixona d a. Ela encontrou, no seu amor, recursos que faltavam à minha experiência, enfim, para mal do meu amigo, ela conseguiu o que
d eseja va . Há d ois d ias, disse-me ela esta ta rd e, que t od os os ob stá c ulos estã o ve nc id os e q ue a vossa felic id a d e d ep end e só d e si. Há d ois d ias q ue a nseia p or tra nsmitir-vos ela p róp ria a not íc ia, e, a p esa r d a a usênc ia d a m ã e, não d eixa ria p or isso d e ser rec eb id o, ma s nem seq uer ap arece u! E, para lhe nã o e sc ond er nad a, ou p or ca pric ho ou a valer, a c riaturinha p arece u-me um ta nto zang ad a po r essa falta de ardor da sua parte. Encontrou enfim um meio de me mandar chamar e obrigou-me a prometer que lhe enviaria o mais cedo possível a carta que junto. Pelo zelo que mostrou, iria apostar que se trata dum encontro para esta noite. Seja o que for, prometi, pela honra e pela a miza d e, que lhe fa ria c heg a r à s mã os a terna m issiva d ura nte o d ia, e não po sso ne m que ro faltar à minha pa lavra. E agora, jovem, que tenciona fazer? Colocado entre a coqueteria e o amor, entre o prazer e a felicidade, qual vai ser a sua escolha? Se eu falasse ainda ao Danceny de há três meses, ou mesmo de há o ito d ias, c onhec ed or do c ora ç ão de le, sê-lo-ia tam bé m d as suas decisões; mas o Danceny de hoje, arrastado pelas mulheres, entregando-se a aventuras, e tornado, como é costume, um tanto nervoso, preferirá ele uma donzela tímida, que só tem por si a beleza, a inoc ênc ia e o a mo r, a os a tra tivos d uma mulher experiente ? Por mim, meu caro amigo, parece-me que, mesmo dentro dos seus novos princípios, que confesso serem também um pouco os meus, as circunstâncias far-me-iam decidir pela jovem amante. Primeiro, será ma is uma , e d ep ois a novid ad e, e ainda o tem or d e p erde r o fruto d os seus c uida d os d esp reza nd o c olhê-lo; p orque, enfim, po r esse la d o, seria de fato uma oportunidade falhada, que nem sempre volta, sobretudo se se trata duma primeira fraqueza, muitas vezes, neste caso, basta um momento de zanga, uma suspeita de ciúme, menos ainda, para impedir o mais belo triunfo. A virtude que se afoga agarra-se às vezes aos ramos; mas uma vez salva, mantém uma certa reserva e não é já fác il de surp ree nde r. E do outro lado, afinal que se arrisca? Nem sequer uma ruptura; qua ndo muito uma d isputa , que , c om alguns c uid ad os, pa ga rá o p razer duma reconciliação. Que mais resta a uma mulher que se entregou, a não ser á indulgência? Que poderá ganhar com a severidade? A p erda d os p ra zeres, sem p rove ito p a ra a sua rep uta ç ã o. Se, como suponho, seguir o caminho do amor, que me parece ser também o da razão, creio que será prudente não se desculpar pela falta do encontro; deixe simplesmente que o esperem, se se arrisca a dar uma desculpa é muito possível que tentem verificá-la. As mulheres são curiosas e obstinadas; tudo se pode descobrir, acabo, como sabe, d e ser vítima d e um exem p lo d isso. Mas se lhe deixar a esperança, como será alimentada pela vaida d e, só mo rrerá m uito tem po d ep ois do mo me nto propíc io p ara a s informações, e então amanhã o meu amigo só terá de escolher o obstáculo intransponível que o reteve; esteve doente, morto até se for
preciso, ou qualquer outra coisa com que estará igualmente d esesp erad o, e tud o se a rra nja rá . De resto, qualquer que seja a decisão que tome, peço-lhe só que me informe; e como não tenho qualquer interesse, acharei sempre que fez be m. Ad eus, meu c a ro a migo. Ac resc ento a ind a q ue lastimo Ma d a me d e Tourvel; estou desesperado por estar separado dela; daria metade da minha vida p ela felic id a d e d e lhe co nsa g ra r a resta nte. Ah! Ac red ite-me , só o a mo r nos p od e fa zer felizes. Pa ris, 5 d e Dezem b ro d e 17* *.
CARTA CLVI CECíLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY (Junta à preced ente) Por que é que a c ontece , meu c aro a migo, que d eixo d e o ver, qua ndo nã o d eixo d e lhe querer? Não o d eseja tanto c om o eu? Ah! Agora é que estou triste! Mais triste do que quando estávamos completamente separados. O desgosto que os outros me fa ziam sofrer é a gora d e si que me vem, e isso c usta -me muito m a is. Desde há uns dias que a Mamã nunca está em casa, bem o sabe; e esperava que procurasse aproveitar esse tempo de liberdade, ma s já nem seq uer p ensa em mim; sou muito infe liz! Ta nta vez me d isse que era eu q ue a ma va me nos! Eu be m sab ia que era o c ontrário, e eis a prova. Se tivesse vindo ver-me, ter-me-ia visto de fato, porque eu não sou como o Cavaleiro; penso só no que nos pode reunir. Merecia que eu na d a lhe d issesse d o q ue fiz p a ra isso, e q ue m e d eu ta nto tra b a lho, ma s am o-o de ma siad o e te nho tanta vonta de de o ver, que nã o p osso fugir a d izer-lhe tud o. E d ep ois, verei se rea lme nte me tem a mo r! Trab alhei tão be m q ue c onvenc i o p orteiro, o qua l me promete u q ue o d eixa rá entrar co mo se o nã o visse tod a s a s vezes q ue venha , e po de mo s c onfiar nele, po rque é m uito b oa pe ssoa . Tra ta -se a p ena s d e e vitar q ue o veja m e m c a sa ; e isso será m uito fác il, se só vier à no ite, qua nd o já nad a há a tem er. Por exem p lo, de sd e que a Mamã sai todos os dias, deita-se todas as noites às onze horas; a ssim terem os temp o d e sob ra . O porteiro disse-me que quando quiser vir deste modo, em vez de bater à porta, deve bater à janela dele e que ele abrirá imediatamente; e, depois, achará a escada interior; e como não pode usar luz, deixarei a porta do meu quarto entreaberta, o que sempre o
iluminará um po uco . Toma rá c uida do em não fazer ba rulho, principa lme nte ao pa ssa r pe la p orta d a Ma mã . Quanto à da minha criada de quarto, não faz mal, porque me promete u que não ac ord aria; é tam bé m m uito b oa rap ariga ! E pa ra se ir em b ora, será o me smo . Ago ra , verem os se ve m. Meu Deus, por que é que sinto o coração bater tão forte enq uanto lhe esc revo? É po rque me vai ac ontec er alguma infelic id ad e, ou é a espe ranç a de o ve r q ue a ssim m e p erturba ? O q ue sinto é que nunc a o a me i ta nto, e nunca d esejei ta nto d izer-lho. Venha, meu amigo, meu querido amigo; para que lhe possa rep etir c em vezes q ue o a mo , q ue o a d oro, q ue só o a ma rei a si. Achei um meio de mandar dizer ao senhor de Valmont que precisava falar-lhe; e ele, como é um bom amigo, virá com certeza am anhã , e vou pe d ir-lhe que lhe mand e log o a minha c arta... Esperá-lo-ei pois amanhã à noite, e virá sem falta se não quiser q ue a sua Ce c ília seja muito infeliz. Ad eus, meu c aro am igo ; be ijo-o co m tod o o a mo r. Pa ris, 4 d e Dezem b ro d e 17* *.
CARTA CLVII O CAVALEIRO DANCENY AO VISCONDE DE VALMONT Não d uvide, meu c aro Valmont, nem d o me u co raç ão , nem d o meu procedimento: como poderia eu resistir a um desejo da minha Cec ília? Ah! É c ertam ente e la a únic a que am o, que semp re a ma rei! A sua ingenuidade, a sua ternura, têm para mim um encanto de que pude ter a fraqueza de me deixar afastar, mas que nada apagará. Metido noutra aventura, por assim dizer sem dar por isso, muitas vezes a lembrança de Cecília me veio perturbar mesmo nos mais doces prazeres; e talvez nunca o meu coração lhe tenha rendido home nag ens ma is verda d eiras d o q ue no p róp rio m om ento e m q ue lhe era infiel. Contudo, meu amigo, respeitemos a delicadeza dela, e escondamos-lhe os meus erros; não para a iludir, mas para a não afligir. A felicidade de Cecília é o mais ardente voto que formulo; nunca me p erdo a ria um a fa lta q ue lhe tivesse c usta d o um a lág rima . Mereci, bem o sinto, as zombarias que me dirige, sobre o que c ha ma os me us novo s p rinc íp ios, ma s p od e c rer que nã o é p or eles q ue me g uio neste mo me nto; e a p artir de a ma nhã estou de c id ido a p rová lo. Ir-me-ei acusar àquela que foi a causa do meu desvario e o p a rtilhou; dir-lhe-ei: "Led e no me u c oraç ã o; ele te m p or vós a ma is terna amizade; a amizade unida ao desejo parece-se tanto com o amor!... Enganámo-nos ambos; mas, suscetível de erro, sou incapaz de má fé." Conheç o a minha a miga ; é tã o honesta c om o indulge nte; fará ma is d o
que perdoar, aprovar-me-á até. Ela própria muitas vezes se censurava por ter traído a amizade; muitas vezes a sua suscetibilidade perturbava o amor. Mais sensata do que eu, fortificará na minha alma esses temores que eu temerariamente procurava sufocar na sua. Ficar-lhe-ei d evend o o ter-me t ornad o m elhor e a si o ser ma is feliz. Ó me us a migos! Partilhem o meu rec onhec imento . A idéia d e q ue lhes d evo a felic ida de aum enta -lhe o va lor. Adeus, meu caro Visconde. O excesso de alegria não me imp ed e d e p ensa r nas sua s p ena s, e d e a s c om p a rtilha r. Se lhe p ud esse ser útil! Ma d a me d e Tourvel co ntinua entã o inexorá vel? Dizem -na d oe nte. Meu Deus, c om o te nho p ena d e si! Oxa lá q ue ela recupere simultaneamente a saúde e a indulgência, e o faça eternamente feliz! São os desejos da amizade; espero que o amor os escute. Gostaria de falar mais tempo consigo; mas o tempo urge, e ta lvez já Ce c ília me esp ere. Pa ris, 5 d e De zem b ro d e 17* *, à noite.
CARTA CLVIII O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL (Ao d esp ertar) Então, Marquesa, que tal os prazeres da noite passada? Um pouco fatigada? Concorde que Danceny é encantador! Faz prodígios, esse rapaz! Não esperava isto dele, não é verdade? Vamos, quero ser justo para comigo mesmo; semelhante rival merecia bem que eu lhe fosse sacrificado. A sério, é um rapaz cheio de boas qualidades! Mas sob retud o de am or, co nstânc ia, d elic ad eza! Ah! Se c onseg uir que ele a am e c om o a ma a sua C ec ília, nunca ma is terá rivais a teme r: ele p rovou-lhe esta noite. Ta lvez, à fo rç a d e coqueteria, outra mulher possa roubá-lo por um momento; os jovens não sabem resistir a fosquinhas provocantes; mas esteja tranqüila, uma palavra só do objeto amado basta, como agora vê, para dissipar as ilusões; assim só lhe falta vir a ser esse objeto para ser perfeitamente feliz. Certame nte a Ma rque sa não falhará; po ssui um tato d ema siad o seguro para que se possa recear tal. No entanto, a amizade que nos une, tão sinc era d a m inha p a rte c omo rec onhec ida d a sua, levou-me a desejar-lhe a experiência desta noite; foi obra do meu zelo, que teve um belo êxito, mas nada de agradecimentos; não vale a pena, nada p od ia ser ma is fác il.
No fundo, que me custou? Um ligeiro sacrifício e um pouco de ha b ilid a d e. Consenti em p a rtilha r c om esse jovem os favo res d a a ma d a dele; mas enfim, ele sempre tinha tantos direitos como eu; esquecerame disso! A carta que ela lhe escreveu, fui eu que a ditei, mas foi só pa ra g anha r temp o, porque b em sab íam os em q ue o em prega r. A que eu p róp rio enviei, oh!, não era na d a , qua se na d a ; alguma s reflexõe s d a am iza de pa ra guiar a esc olha do novo a ma nte, mas, po r minha honra, eram inúteis; a ve rd a d e d eve d izer-se, ele nã o he sitou um mo me nto. E de po is, com tod a aq uela c and ura, irá hoje a sua c a sa c onta rlhe tudo; e certamente essa narrativa lhe agradará ! Começará assim: "Led e no m eu c oraç ão " é o que ele m e esc reveu, e be m vê que d esta forma tudo se remedeia. Espero que, ao fazer essa leitura, compreenda finalmente que os amantes demasiado jovens têm os seus perigos; e ainda que m ais vale ter-me c omo am igo do que c omo inimigo. Ad eus, Marquesa ; até à p rime ira oc a sião. Pa ris, 6 d e Dezem b ro d e 17* *.
CARTA CLIX A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT Não gosto que se acrescentem graças de mal gosto a atitudes d eseleg a nte s; e isso nã o está ma is nos me us há b itos q ue no me u g osto . Quando tenho motivos de queixa de alguém, não o escarneço; faço melhor: vingo-me. Por muito contente que esteja neste momento, não se esqueça de que não seria a primeira vez que se aplaudiria antecipadamente, na esperança dum triunfo que lhe escaparia no próprio m om ento e m que se felic itava . Adeus. Pa ris, 6 d e Dezem b ro d e 17* *.
CARTA CLX MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE Escrevo do quarto da nossa infeliz amiga, cujo estado é mais ou menos o mesmo. Hoje à tarde haverá uma conferência de quatro médicos. O que, como sabeis, costuma ser mais uma prova de perigo do que um soc orro. Parec e no enta nto ter rec uperad o um p ouc o d e lucidez d urante a noite p assa da . A cria da de qua rto informo u-me esta m anhã que, po r
volta d a m eia-noite, a sua a ma a c ha mo u; q uis fic a r sozinha c om ela, e d itou-lhe um a c a rta a ssa z long a . Júlia a c resc ento u que , q ua nd o e sta va ocupada a preencher o sobrescrito, o delírio se apossou de novo de Ma da me d e Tourvel de forma que a rap ariga fic ou sem sab er a q uem o remeter. Admirei-me a princípio de que a própria carta não bastasse para lho revelar, e tendo-me ela respondido que receara enganar-se e que a Presidente lhe recomendara que enviasse a carta ime diata me nte, tom ei a d ec isão de a a brir. Mando-vos justamente o que encontrei, e que na verdade não se dirige a ninguém, visto que se dirige a toda a gente. Creio no entanto que foi ao senhor de Valmont que a nossa infeliz amiga quis primeiro escrever, mas acabou por ceder, sem dar por isso, à desordem das idéias. Como quer que seja, pensei que esta carta não devia ser rem etida a ningué m. É a vós q ue a envio, p ois a ssim pod ereis ver me lhor os pensamentos que ocupam o cérebro da nossa doente. Enquanto permanecer tão vivamente afetada, não terei esperanças. O corpo d ific ilme nte se resta b elec e q uand o o esp írito e stá tã o p ouc o tranq üilo. Ad eus, que rid a e d ig na a miga . Felic ito-vos p or esta rd es a fasta d a d o triste e sp etá c ulo q ue te nho d iaria me nte d eb a ixo d os olhos. Pa ris, 6 d e Dezem b ro d e 17* *.
CARTA CLXI A PRESIDENTE DA TOURVEL A... (Ditad a p or ela e esc rita p ela c riad a d e q uarto) Ente cruel e malfazejo, não deixarás de me perseguir? Não te b a sta te res-me tortura d o; deg ra d a d o, a vilta d o, queres a ind a rouba r-me a p a z d o túm ulo? Pois c om o! Nesta ma nsã o d e treva s ond e a igno mínia me obrigou a enterrar-me, as dores não dão tréguas e a esperança é desconhecida? Não imploro um perdão que não mereço, para sofrer sem me queixar, bastará que os sofrimentos não excedam as minhas forças. Mas não tornes os tormentos insuportáveis. Deixa-me as dores, apaga-me a cruel memória dos bens que perdi. Depois de mos roubares, não traces de novo diante dos meus olhos a sua desoladora imagem. Eu era inocente e tranqüila; foi por te ter visto que perdi o rep ouso; foi a o esc uta r-te q ue me to rnei c riminosa . Autor d os me us erros, q ue d ireito tens d e o s p unir? Onde estão os amigos que me adoravam, onde estão eles? O meu infortúnio horroriza-os. Nenhum ousa aproximar-se. Sinto-me op rimida , e e les d eixa m-me sem a uxílio! Mo rro, e ningué m me la me nta . Tod a a c onsola ç ã o m e é recusad a. A pieda de de tém-se nas ma rge ns d o a b ismo ond e o c riminoso m ergulha.
Os rem orsos d ila c eram-no, e os seus grito s nã o sã o ouvid os! E tu, a quem ultrajei; tu, cuja estima aumenta o meu suplício; tu, que serias afinal o único a ter o direito de te vingares, que fazes longe de m im? Vem p unir uma mulher infiel. Que eu sofra finalmente tormento s merecidos. Já me teria submetido à tua vingança; mas faltou-me a c orag em d e te revelar a tua de sonra. Não foi por dissimulação, foi por respeito. Que ao menos esta carta te informe do meu arrependimento. O céu assumiu a defesa da tua c a usa e vinga -te dum a injúria q ue ignorava s. Foi ele que me prendeu a língua e me reteve as palavras; rec eo u que me p erdoa sses uma falta q ue ele q ueria p unir. Subt ra iu-me à tua ind ulg ênc ia , que teria ferid o a sua justiça . Implacável na sua vingança, abandonou-me àquele que me d esgraç ou. Este último é simultane a me nte o c a usa d or do me u d esva rio e o c a rra sc o q ue m e c a stiga . Em vã o lhe q uero fugir; perseg ue-me ; está sempre presente, obceca-me sem cessar. Mas como está mudado! Os olhos exprime m a p ena s ód io e d esp rezo. A b oc a só p rofe re insultos e c ensura s. Os b ra ç os, que d a ntes me abraçavam, querem despedaçar-me. Quem me salvará do seu b á rb a ro furor? Mas quê? É ele... Não me engano; é ele que volto a ver. Oh, meu adorável amigo! Acolhe-me nos teus braços; esconde-me no teu seio: sim, és tu, és tu mesmo! Por que funesta ilusão não te tinha rec onhec id o? Co mo sofri c om a tua a usênc ia ! Oh ! Não no s sep a rem os outra vez. Nunca mais nos separemos. Deixa-me respirar. Vê como o meu c oraç ão ba te! Ah! Já nã o é d e rec eio, ma s sim d a d oc e em oç ão d o a mo r. Por que t e rec usa s à s minha s terna s c a ríc ias? Mo stra-me o teu olhar tão doce! Que laços procuras desta maneira romper? Para quem p rep a ra s esse c a d a falso? Que é q ue te transto rna a ssim a fisionom ia? Que fa zes? Deixa-me: tremo! Deus! É outra ve z esse monstro! Minhas amigas, não me abandoneis. Vós que me aconselháveis a evitá-lo, ajudai-me a combatê-lo; e vós que, mais indulgente, havíeis p rom etido d iminuir as minhas d ores, vinde p ois p a ra junto d e mim. Ond e esta is a mb a s? Se já nã o é p ermitido ver-vos, resp ond ei a o m eno s a esta c arta; dizei ao me nos que a vossa am izad e é ainda a me sma . Larga-me, cruel! Que nova fúria te anima? Receias que um sentimento suave penetre até à minha alma? Duplicas os meus tormentos; obrigas-me a odiar-te. Oh! Como o ódio é doloroso! Como c orrói o c oraç ã o q ue o d estila ! Por que m e p erseg ues? Que podes ter ainda para me dizer? Não me colocaste na impossibilidade de te escutar e de te responder? Não esperes mais na d a d e m im. Ad eus, senho r. Pa ris, 5 d e Dezem b ro d e 17* *.
CARTA CLXII O CAVALEIRO DANCENY AO VISCONDE DE VALMONT Estou informa d o, senho r, do vosso p roc ed imento p a ra c om igo. Sei também que, não contente por me terdes indignamente enganado, não receais vangloriar-vos e aplaudir-vos. Vi a prova da traição escrita por vosso punho. Confesso que senti o coração compungido, e que tive vergonha de ter contribuído para o odioso abuso que fizestes da minha cega confiança, contudo não vos invejo este vergonhoso triunfo; tenho apenas curiosidade de saber se o conservareis no campo da honra. Espero ter a resposta amanhã de manhã, entre as oito e nove horas, se quiserdes aparecer na porta do bosque de Vincennes, aldeia de Saint-Mande. Encarregar-me-ei de aí fazer aparecer tudo o que for necessário para os esclarecimentos que me resta m o b ter de vós. Ca valeiro Da nc eny. Pa ris, 6 d e De zem b ro d e 17* *, à noite.
CARTA CLXII O SENHOR BERTRAND A MADAME DE ROSEMONDE Minha senhora, É c om grand e p ena que c umpro o do loroso d ever de anunciar uma notíc ia que vos vai c ausar um tã o grande d esgo sto. Permiti que exorte em primeiro lugar essa piedosa resignação que todos admiram por vós, e que é o único sentimento capaz de nos ajudar a suportar os males de que está semeada a nossa miserável vida. O senhor vosso sobrinho... Meu Deus! Ver-me obrigado a afligir uma tão respeitável dama! O vosso sobrinho teve a infelicidade de suc umb ir num c om ba te singula r que teve e sta ma nhã c om o C ava leiro Danceny. Ignoro inteiramente a causa da disputa; mas afigura-se-me, pe lo bilhete que enc ontrei ainda na algibe ira do senhor Visc ond e e que tenho a honra de vos enviar, afigura-se-me, dizia, que não era ele o a g ressor. E foi justa mente ele q ue o c éu p ermitiu que suc umb isse! Estava eu em casa do senhor Visconde, esperando-o, no próprio mo me nto em que o trouxeram . Ima ginai a m inha p erturb aç ão , ao ver o vosso sob rinho c ond uzid o p or do is c ria d os e to d o b a nhad o e m sa ngue . Recebera dois golpes, e já se encontrava muito fraco. O senhor
Danc eny estava tam bé m p resente, e c horava . Ah! Sem dúvida que deve chorar, mas de que serve derramar lágrimas quando se causou uma de sgraç a irrep a ráve l! Eu por mim não me contive; e apesar do pouco que sou, disselhe o que pensava do caso. Mas foi então que o senhor Visconde se mostrou verdadeiramente grande. Ordenou que me calasse; agarrou na mão do assassino, chamou-lhe amigo, beijou-o diante de todos, e d isse-nos: "Orde no-vo s q ue tra teis este senho r c om to d a a c onside ra ç ã o devida a um homem valente e de brio." Mandou ainda que lhe entregassem, diante de mim, uns papéis volumosos que não conheço, ma s d e q ue sei terem p a ra ele muita imp ortânc ia . Em seg uid a , quis q ue os d eixa ssem sós p or um m om ento . Entreta nto eu m a nd a ra sem d em ora buscar todos os socorros, tanto espirituais como temporais, mas, ai!, o ma l nã o tinha remé d io. Meno s d e m eia ho ra d ep ois, o senho r Visc ond e perdera o conhecimento. Só pôde receber a extrema-unção; e mal a c erimô nia a c a b a ra , d a va e le o último susp iro. Me u Deus! Quand o rec eb i nos b ra ç os à na sc enç a este p rec ioso esteio duma ilustre casa, poderia eu prever que seria nos meus braços q ue ele expira ria e q ue te ria d e c horar a sua m orte? Uma morte tão precoce e tão infeliz! As lágrimas deslizam-me mesmo sem eu querer. Peço-vos perdão, minha senhora, de ousar misturar a minha dor à vossa, mas em todas as classes se pode ter coração e sensibilidade; e seria muito ingrato se não chorasse toda a vida um senhor que tantas atenções tinha para comigo, e que me honrava c om a m áxima c onfianç a. Amanhã, depois do funeral, mandarei selar tudo e podeis descansar inteiramente nos meus cuidados. Não ignorais certamente, minha senhora, que este infeliz acontecimento anula o vosso te sta mento e torna a s vo ssa s d isp osiçõ es inteiram ente livres. Se vos puder ser de qualquer utilidade, peço-vos que me queirais dar as vossas ordens, porei todo o meu zelo em as executar pontualmente. Sou, com o mais profundo respeito, minha senhora, vosso muito humild e, etc . Bertrand Pa ris, 7 d e Dezem b ro d e 17 * *.
CARTA CLXIV MADAME DE ROSEMONDE AO SENHOR BERTRAND Recebi a vossa carta mesmo agora, meu caro Bertrand, e por ela soube do terrível acontecimento de que o meu sobrinho foi a infeliz
vítima. Sim, sem dúvida que terei ordens a dar-vos; e só elas me farão p ensa r noutra c oisa q ue nã o seja a minha m ortal afliç ã o. O bilhete do senhor Danceny, que me enviastes, é prova c onvincente d e q ue foi ele o provoc ad or do duelo, e a minha intençã o é q ue a presenteis que ixa imed iata mente em me u nome . Perdoando ao seu inimigo, ao seu assassino, o meu sobrinho p ôd e sa tisfazer a sua nat ura l ge nerosid a d e; ma s c a b e-me a mim vinga r ao mesmo te mp o a sua m orte, a humanida d e e a religião. Nunca será demais excitar a severidade das leis contra este resto de selvajaria que ainda infecta os nossos costumes; e não creio que o perdão das injúrias nos possa ser prescrito num caso destes. Espero pois que seguireis esta questão com todo o zelo e toda a atividade de que vos sei capaz, e que deveis à memória do meu sob rinho. Tra ta reis, a nte s d e tud o, de ir ter d a m inha p a rte c om o senho r Presid ente d e..., e d e c onferenc ia r c om ele. Não lhe escrevo, apressada como estou de me entregar inteira mente à minha d or. Apresent a reis a s minhas d esc ulpa s, e m ostrarlhe-eis esta c a rta . Adeus, meu caro Bertrand; louvo e agradeço os vossos bons sent iment os, e e stou p a ra sem p re a o vosso d isp or. Ca stelo d e..., 8 d e Dezem b ro d e 17* *.
CARTA CLXV MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE Sei que já estais informada, minha querida e digna amiga, da perda que acabais de sofrer; conhecia a vossa ternura para com o senho r de Valmo nt, e p a rtilho sinc eram ente a a fliç ã o q ue d eve is sentir. Custa-me imenso na verdade ver-me forçada a acrescentar novas dores às que já sofreis, mas só vos resta também verter lágrimas pela nossa infeliz a miga . Perde mo -la ont em , às onze horas d a noite. Por uma fatalidade ligada ao seu destino, e que parecia troçar de toda a prudência humana, o curto intervalo que sobreviveu ao senhor de Valmont foi o bastante para tomar conhecimento da morte dele; e, c om o e la p róp ria o d isse, pa ra suc umbir sob o p eso d a s sua s d esgra ç a s, só d ep ois da med ida estar c om pletam ente c heia. Com efeito, já vos informara de que havia dois dias que ela estava ab solutam ente inc onsc iente; e ainda ontem d e ma nhã, qua ndo o médico chegou e nos aproximamos do leito, não nos reconheceu e não pudemos obter nem uma palavra, nem o menor sinal. Pois bem! Mal nos tínhamos aproximado da chaminé, e enquanto o médico me informava do triste acontecimento da morte do senhor de Valmont, aquela infeliz mulher recuperou a lucidez, ou porque a natureza sozinha
tivesse produzido essa transformação, ou porque fosse causada pelas repetidas palavras de "senhor de Valmont" e de "morte", que talvez tenham rec orda d o à do ente a s únic as idé ias de que e la se oc upa va d e há m uito temp o a esta p arte. Seja como for, abriu precipitadamente as cortinas do leito, gritand o: "O q uê! Que d izeis? O senho r d e Va lmont mo rreu?" Ainda tive esperanças de lhe fazer crer que se enganara, e assegurei-lhe a princípio que tinha ouvido mal, mas, longe de se deixar convencer, exigiu que o médico recomeçasse a cruel narrativa; e vendo que eu procurava ainda dissuadi-la, chamou-me e disse-me em voz baixa: "Para quê querer enganar-me? Ele já tinha morrido para mim!" Foi forç oso c ed er. A nossa infeliz amiga escutou primeiro com um ar bastante tranqüilo; mas logo interrompeu a narrativa, dizendo: "Basta, já sei o suficiente." Pediu imediatamente que se fechassem as cortinas; e q ua ndo o m éd ic o lhe quis p resta r os c uid a d os q ue o seu esta d o e xig ia , nã o c onsentiu que e le se a p roxima sse. Assim que ele saiu, mandou também embora a enfermeira e a c ria d a d e q uarto; e qua nd o já está va mo s sós, p ed iu-me q ue a a jud a sse a p ôr-se d e joelhos sob re o leito, e q ue a seg ura sse. Permaneceu algum tempo em silêncio, e sem outra expressão que a da s lág rima s que c orria m ab unda nteme nte. Por fim, juntand o as mãos e elevando-as ao céu: "Deus Todo-Poderoso", disse ela com voz fra c a ma s fervorosa , "sub me to-me à Tua justiça ; ma s p erdoa a Valmo nt. Que as minhas desgraças, que reconheço merecidas, não lhe sejam motivo de censura, e bendirei a Tua misericórdia!". Permiti-me, minha q uerid a e d ig na a miga , entrar em p ormeno res sob re um ta l a ssunto q ue bem vejo deve renovar e agravar as vossas dores, apenas porque p enso q ue este rogo d e Ma d a me d e Tourvel será d e g ra nd e c onsolo p a ra a vossa a lma . Depois de ter proferido estas poucas palavras a nossa amiga deixou-se cair nos meus braços; e mal voltara a deitá-la, veio-lhe uma prolong ad a fraq ueza, q ue no enta nto c ed eu a os trata me ntos hab ituais. Assim que voltou a si, pediu-me que mandasse chamar o padre Anselmo, e acrescentou: "Neste momento é o único médico de que preciso; sinto que os meus males vão em breve terminar." Dizia sentir uma op ressão e falava c om d ific ulda d e. Pouco depois mandou-me entregar, pela criada de quarto, o cofrezinho* que vos envio; disse-me que continha papéis pessoais, e enc arreg ou-me d e vo -lo enviar log o ap ós a sua mo rte. Em seguida falou-me de vós, e da vossa amizade por ela, tanto q ua nto o seu esta d o lho permitia , e c om muita te rnura . O padre Anselmo chegou por volta das quatro horas, e ficou p erto de uma hora sozinho c om ela. Quand o entram os d e novo , o rosto da do ente estava c almo e sereno; mas era fá c il pe rc eb er que o pa dre Anselmo tinha chorado muito. Ficou para assistir às últimas cerimônias da igreja. Este espetáculo, sempre tão imponente e doloroso, foi-o
ainda mais pelo contraste que formava a tranqüila resignação da doente com a dor profunda do seu venerável confessor, que se desfazia em lágrimas ao lado dela. A comoção tornou-se geral; e aq uela que tod os c horava m foi a únic a a não c horar. O resto do dia passou-se nas habituais rezas, que só foram interrompidas pelos freqüentes desmaios da doente. Finalmente, por volta d a s onze d a no ite, pa rec eu ma is op rimida e a flita . Avancei a mão para procurar o braço dela; ainda teve forças para a agarrar, e colocou-a sobre o coração. Já não o senti bater; e, c om efe ito, a nossa infeliz a miga expirou ne sse m esmo mo me nto . Recordais-vos, minha querida amiga, que quando da vossa última viagem aqui, há menos de um ano, ao falarmos de algumas pessoas cuja felicidade nos parecia mais ou menos assegurada, nos detivemos com prazer sobre o destino desta mesma mulher, de quem hoje choramos simultaneamente as desventuras e a morte? Virtudes, qualidades louváveis, graças; um caráter tão doce e fácil; um marido que e la am ava , e por quem era a do rad a, um c írc ulo d e a migos onde ela se sentia bem, e de que fazia as delícias; beleza, juventude, fortuna; tantos dons reunidos e perdidos por uma só imprudência! Oh, Providência! Sem dúvida que devemos adorar os teus decretos; mas como são incompreensíveis! Fico-me por aqui; receio aumentar a vossa tristeza , ao entrega r-me à minha. Deixo-vos e vou ve r a minha filha q ue e stá um p ouc o ind isp osta . *Este cofrezinho continha todas as cartas relativas à sua aventura com o senhor de Valmont.
Ao informá -la esta ma nhã d a mo rte tã o rápida d e d uas pe ssoa s sua s c onhec ida s, sentiu-se ma l e ma nd ei-a d eita r-se. Espero no entanto que este ligeiro incômodo não terá conseqüências. Naquela idade ainda não se está habituado aos desgostos, e a imp ressã o q ue c a usa m é p or isso m a is viva e forte. Esta sensibilidade tão à flor da pele é sem dúvida uma qualidade louvável; mas como aquilo que vemos todos os dias nos ensina a tem ê-la ! Ad eus, que rid a e d igna a miga . Pa ris, 9 d e Dezem b ro d e 17* *.
CARTA CLXVI O SENHOR BERTRAND A MADAME DE ROSEMONDE Minha senhora,
Em conseqüência das ordens que me haveis feito a honra de dar, encontrei-me com o senhor Presidente de..., comuniquei-lhe a vossa carta, prevenindo-o de que, segundo os vossos desejos, eu nada faria a não ser pelos seus conselhos. O respeitável magistrado encarregou-me de vos observar que a queixa que tendes a intenção de fazer contra o senhor Cavaleiro Danceny comprometeria igualmente a memória do senhor vosso sobrinho, cuja honra ficaria inevitavelmente manchada pela sentença da corte, o que seria sem dúvida uma grande infelicidade. A sua opinião é, pois, que se deve evitar semelhante diligência; e que, se houvesse alguma coisa a fazer, seria pelo contrário tratar de evitar que o Ministério Público tomasse c onhe c ime nto d esta infeliz a ventura, que já fe z d em a sia d o ruíd o. Estas observações pareceram-me cheias de sabedoria, e tomo a d ec isã o d e e sp erar nova s d a vossa p a rte. Peço-vos, minha senhora, que tenhais a amabilidade de, ao enviar-mas, acrescentar algumas linhas sobre o vosso estado de saúde, de que rece io extrem am ente a rea ç ão a ta ntas d esgraç as. Esp ero que p erdoa reis esta lib erda d e à minha d ed ic a ç ã o e zelo. Sou c om resp eito, minha senho ra , vosso, e tc . Pa ris, 10 de Dezem b ro d e 17* *.
CARTA CLXVII ANÔNIMA AO SENHOR CA VALEIRO DANCENY Senhor, Tenho a honra d e v os p reve nir d e q ue se fa lou, esta ma nhã, no tribunal da corte, entre os funcionários de El-Rei, do duelo que travastes nestes últimos dias com o senhor Visconde de Valmont, e é de recear q ue o Ministério Púb lico a p resent e q ueixa . Pensei q ue e ste a viso vos p od ia ser útil, que r p a ra q ue fa ç a is a g ir os vossos p rotetores a fim d e e vitar c onseq üênc ias d esa gra d á veis; que r, no caso de isso não ser possível, para estardes em posição de vos defenderdes. Se me permitis um conselho, creio que faríeis bem, durante algum tempo, em aparecerdes menos vezes em público do que o tendes feito ultimamente. Se bem que geralmente se seja indulgente para com casos destes, deve-se ao menos esse respeito pa ra c om a lei. Esta precaução torna-se tanto mais necessária quanto me chegou aos ouvidos que uma certa Madame de Rosemonde, que me afirmam ser tia o senhor de Valmont, queria apresentar queixa contra vós, e e ntã o o Ministério Púb lic o nã o p od eria d eixa r de tom a r o a ssunto
em mã os. Ta lvez fosse c onveniente q ue c onseg uísseis intervir junto d essa dama. Mo tivos p a rticulares imp ed em -me d e a ssina r esta c a rta . Mas espero que, ignorando embora donde ela vos vem, não d eixa reis a o m eno s d e p resta r justiça a o sentimento q ue a d itou. Tenho a honra d e ser, etc . Pa ris, 10 de Dezem b ro d e 17* *.
CARTA CLXVIII MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE Espa lham -se p or aq ui, minha q uerida e d igna am iga , ac erc a de Ma d a me d e M erteuil, bo a tos b a sta nte e stra nhos e m uito la stimá veis. Evidentemente estou bem longe de os crer, e apostaria até que não passam de horríveis calúnias; mas sei demasiado bem como este gênero de maldades, mesmo as menos verossímeis, adquirem facilmente consistência, e como a impressão que deixam se apaga dific ilme nte, pa ra não estar alarma da c om estas, emb ora eu julgue fác il destruí-las. Desejaria, sobretudo, que fosse possível sustê-las desde já, e antes que se tivessem espalhado mais. Só ontem soube, demasiado tarde, os horrores que se começam por aí a dizer; e quando mandei esta ma nhã um criad o a ca sa d e Ma da me d e Merteuil, ac ab ara ela d e partir para o campo, onde deve passar dois dias. Não me souberam dizer para casa de quem tinha ido. A criada, com quem falei, disse-me que a sua ama lhe ordenara que só a esperasse na próxima quintafeira; e nenhum dos criados que ela aqui deixou sabia mais qualquer c oisa . Eu p róp ria não sou c a p a z d e a d ivinha r ond e p ossa esta r; não me rec ordo d e nenhum d os seus c onhec ime ntos que esteja no c am po até tão tarde. Como quer que seja, podereis, assim o espero, conseguir-me, daqui até ao seu regresso, os esclarecimentos que lhe podem ser úteis, porque fundamentam estas odiosas histórias sobre as circunstâncias da morte do senhor de Valmont, das quais suponho deverei ter sido informada se são verdadeiras, ou que pelo menos vos será fácil esc la rec er, favo r q ue muito vo s p eç o. Eis o que espalham; ou, pelo menos, o que por enquanto se murmura ap ena s, ma s que nã o ta rd ará c ertam ente a da r ma is brad o. Diz-se que a querela surgida entre o senhor de Valmont e o Cavaleiro Danceny é obra de Madame de Merteuil, que os enganava igualmente a ambos; que, como quase sempre acontece, os dois rivais começaram por se bater, e só depois é que, entre si, descobriram a verda d e, daq ui resultou uma rec onc iliaç ão sinc era; e que p ara a c ab ar de revelar a ve rda d eira M ad a me d e Me rteuil ao Ca valeiro Danc eny, e
também para se justificar inteiramente, o senhor de Valmont juntou às suas palavras um grande maço de cartas, constituindo a correspondência que mantinha regularmente com ela, e em que esta conta sobre si própria, e no mais audacioso dos estilos, as anedotas ma is esc a nd a losa s q ue se p ossa m ima g inar. Acrescenta-se que Danceny, na sua primeira indignação, entrego u a s c a rta s a q uem a s q uis ver, e q ue c irc ula m a go ra p or Pa ris. Citam -se p a rticularme nte d ua s*: uma ond e e la na rra a inteira história d a sua vida e dos seus princípios, e que dizem ser o cúmulo do horror; a outra, que iliba totalmente o senhor de Prévan, de cuja história certamente vos recordais, pela prova que contém de que ele apenas cedeu a nítidas provocações de Madame de Merteuil, e que o enco ntro estava c omb inad o c om ela. Tenho felizmente fortes razões para crer que estas acusações são tão falsas como odiosas. Primeiro, sabemos ambas que o senhor de Valmont não se ocupava com certeza de Madame de Merteuil, e tenho todo o motivo para crer que Danceny não lhe dava mais ate nç ão , pa rec e-me a ssim d em onstrad o q ue ela não po dia ser nem o motivo, nem a autora da desavença. Não compreendo igualmente que interesse teria tido Madame de Merteuil, que supõem de acordo com Prévan, em fazer uma cena que só poderia ser desagradável pelo seu escândalo, e que poderia vir a ser muito perigosa para ela, visto q ue *Cartas LXXXI e LXXXV desta coleção.(N. do A.) arranjava assim um inimigo irreconciliável que ficava senhor de uma parte do seu segredo, e que possuía então muitos partidários. No entanto, é caso para pensar que, depois desta aventura, não se tenha levantado uma única voz a favor de Prévan, e que, mesmo da sua pa rte, não tenha havido qualquer reaç ão. Estas reflexões levar-me-iam a suspeitá-lo de ser o autor dos boatos que correm, e a considerar estas infâmias como obra do ódio e da vingança dum homem que, vendo-se perdido, esperava por este me io e sp a lha r p elo m eno s d úvid a s, e d esvia r a s a tenç õe s, o q ue ta lvez lhe c onve nha. Ma s q ualque r q ue seja a orig em d esta s ma ld a d es, o m a is urgente é destruí-las. Cairiam por si próprias se se descobrisse, como é verossímil, que os senhores de Valmont e Danceny não se falaram após o infeliz due lo, e q ue nã o houve nenhuma entreg a de pa pé is. Na minha impaciência de verificar os fatos, enviei esta manhã um criado a casa do senhor Danceny; mas também não se encontra em Paris. Os seus criados disseram ao meu que ele partira nessa noite, por causa dum aviso que recebera ontem, e que se encontrava em lugar secreto. Aparentemente receia as conseqüências da questão. É pois só por vós, minha querida e digna amiga, que posso obter os p orme nores q ue m e interessa m, e que tã o ne c essá rios p od em vir a ser a Mad am e d e Me rteuil. Reno vo o s me us p ed id os p a ra q ue m os faç a is c heg a r à s mã os o mais cedo possível.
P. S. - A indisposição de minha filha não teve conseqüências; ela a p resenta -vos os seus resp eitos. Pa ris, 11 de Dezem b ro d e 17* *.
CARTA CLXIX O CAVALEIRO DANCENY A MADAME DE ROSEMONDE Minha senhora, Ta lvez a c heis a d ec isã o q ue ho je to mo um p ouc o e stra nha; ma s, suplico-vos, escutai-me antes de me julgar, e não vejais audácia e teme rida de ond e só existem respe ito e c onfia nça . Nã o ignoro a c ulpa de que sou réu a vossos olhos; e nunca ma perdoaria a mim próprio, se pudesse pensar por um momento que me teria sido possível evitá-la. Podeis mesmo ter a certeza, minha senhora, de que o fato de me considerar isento de censura não me inibe de desgostos; e posso ainda ac resc enta r c om since rida d e q ue a que les que vos c auso c onta m m uito entre os que sinto. Para que acrediteis nestes sentimentos que ouso expor diante de vós, deve bastar-vos que vos preste justiça, e que sa ib a is q ue, sem ter a ho nra d e ser por vós c onhec id o, tenho no e nta nto a de vos c onhecer. Contudo, quando gemo sob a fatalidade que causou simultaneamente os vossos desgostos e a minha infelicidade, querem fazer-me rec ea r q ue, inteira me nte e ntreg ue à vinga nç a , vós p roc ura reis os me ios d e a sa tisfa zer, rec orrend o a té à seve rida d e d a lei. Permiti que vos observe que a este respeito a vossa dor vos engana, visto que neste ponto o meu interesse está essencialmente ligado ao do senhor de Valmont, que se encontraria envolvido ele próprio na c ond enaç ão que teríeis provoc ad o c ontra mim. Julga ria eu, minha senho ra , po d er pe lo c ontrário c onta r ma is c om o vosso a uxílio d o que com a vossa oposição, nos cuidados que eu poderia vir a ser obrigado a tomar para que este infeliz acontecimento permanecesse envolto em silêncio. Ma s este recurso d e c ump lic id ad e, que c onvém igua lmente ao culpado e ao inocente, não satisfaz a minha delicadeza; e desejando afastar-vos como parte, reclamo-vos como juiz. A estima das pessoas que respe itam os é d em asiad o p rec iosa pa ra que eu m e d eixe e xpo liar d a vossa sem a d efend er, e c reio q ue p ossuo o s me ios p a ra ta l. De fato, se c onc orda is q ue a vinga nç a nos é p ermitid a, diga mo s melhor, que temos a obrigação de a exercer, quando se foi traído no seu amor, na sua amizade, e, sobretudo, na sua confiança; se c onc orda is c om isto , os meus erros vã o d esa p a rec er a vossos olhos. Não acrediteis nas minhas palavras; mas lede, se para tanto tiverdes
coragem, a correspondência* que deposito em vossas mãos. A quantidade de cartas aí incluídas em original parece dar o direito de supor como autênticas as de que só existem cópias. De resto, recebi estes papéis, tais como tenho a honra de vo-los enviar, do próprio senho r d e Va lmo nt. Nad a a c resc ente i, e tirei ap ena s d ua s c a rta s q ue m e a utorizei a publicar. Uma era nec essá ria à c om um vinga nç a do senhor de Va lmo nt e minha, à qual ambos tínhamos direito, e de que ele me encarregara expressamente. Achei, de resto, que era prestar um verdadeiro serviço à soc ied ad e d esma sc a rar uma mulher tão rea lme nte p erigo sa c om o é Madame de Merteuil, e que, como podereis ver, é a única, a verdadeira causadora de tudo o que se passou entre mim e o senhor de Valmont. Um sentimento de justiça levou-me também a publicar a seg unda , pa ra justific aç ão do senhor de Préva n, que m al c onheç o, ma s que não merecia de forma alguma o tratamento rigoroso que acaba *Foi com esta c orrespo ndê nc ia, c om a entregue igua lme nte p or oc asião d a m orte de Mad am e d e Tourvel, e c om as ca rtas co nfiad as tamb ém a Mad am e d e Rosemo nde p or Ma d a me d e Vo lang es, que se fo rmo u a p resente rec olha, c ujos origina is sub siste m nas mã os do s herdeiros de Ma da me de Rosem ond e.
de sofrer, nem a severidade dos juízos do público, mais temível ainda e sob a qua l gem e d esde então, sem na da ter c om que se d efenda. Encontrareis pois apenas as cópias destas duas cartas, de que me vejo forçado a guardar os originais. Quanto ao resto, não creio poder colocar em mãos mais seguras um depósito que me interessa não seja destruído, mas de que me envergonharia de abusar. Creio, minha senhora, ao confiar-vos estes papéis, servir tão bem as pessoas a quem dizem respeito, como se os tivesse enviado a elas próprias; e poupo-lhes o embaraço de os receberem de mim, e de me saberem informa d o d e a venturas q ue, sem d úvid a , d esejam q ue tod os igno rem . Parte duma coleção bem mais volumosa, donde o senhor de Valmont a tirou na minha p resenç a , e q ue e nc ontrareis q ua nd o o s selos forem tira d os, sob o título, que eu vi, d e C onta a b erta e ntre a Ma rq uesa de Merteuil e o Visc ond e d e Va lmo nt. Tom a reis, a e ste resp eito, a d ec isã o q ue a p rud ênc ia vo s sugerir. Sou c om resp eito, m inha senho ra , o vo sso, etc . P. S. - Alguns avisos que recebi e os conselhos dos amigos decidiram-me a ausentar-me de Paris por algum tempo, mas o meu esconderijo, sec reto p ara tod a a ge nte, não o será pa ra vós. Se me honrardes com uma resposta, peço-vos que a envieis para a Comendadoria de..., por intermédio de P..., e ao cuidado do senhor Com end ad or de... É de c a sa de le q ue tenho a honra d e vos esc rever. Pa ris, 12 de Dezem b ro d e 17* *.
CARTA CLXX MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE Caminho, cara amiga, de surpresa em surpresa, e de desgosto em d esg osto. Só uma mã e p od e ima ginar o que o ntem sofri d ura nte toda a manhã; e embora as mais cruéis inquietações se tenham ac almad o dep ois, resta-me a inda uma grand e a fliç ão a que não vejo o fim. Ontem , pe las de z d a m a nhã, a dm irad a p or a m inha filha nã o ter ainda ap arecido , ma nde i a minha c riad a de qua rto d esc ob rir qua l seria a causa do atraso. Veio um momento depois muito assustada, e assustou-me ainda mais, comunicando-me que a minha filha não estava nos seus aposentos; e que desde manhã que a criada dela a não encontrava. Imagine a minha situação! Mandei reunir todos os c ria do s e o po rteiro, e tod os me jura ram não sa be r nad a e na da p od er dizer-me sobre o acontecimento. Passei pelo quarto da minha filha. A desordem que aí reinava mostrou-me claramente que só saíra de manhã, mas não encontrei mais nenhum esclarecimento. Examinei os armários e a secretária; enc ontrei tudo no luga r e to do s os trajos, com exc eç ão do vestido c om q ue sa íra . Nem seq uer leva ra o p ouc o d inheiro q ue tinha c om ela. Como só ontem ela tivera conhecimento do que se diz acerca de Madame de Merteuil, e lhe era dedicada, a ponto de ter chorado durante todo o serão, lembrei-me que ela ignorava que Madame de Merteuil estava no campo, e a minha primeira idéia foi que tivesse querido ir ver a amiga, e cometido a loucura de ir sozinha. Mas o tempo, que corria sem que ela voltasse, mergulhou-me de novo em terríveis inquietações. Cada instante aumentava a minha aflição; e, ardendo por saber a verdade, não ousava tentar informar-me, com terror de dar a conhecer uma diligência que, talvez, depois preferisse ter esc ond ido de tod os. Não , nunc a sofri ta nto na minha vida . Enfim, já passava das duas, quando recebi ao mesmo tempo uma carta da minha filha e outra da Superiora do convento de... A carta de Cecília dizia apenas que temia que eu me opusesse à sua vocação religiosa, e que não ousara falar-me em tal; o resto eram só de sc ulp as po r ter toma do , sem minha lic enç a, a que la de c isão , que e u nã o d esa p rova ria d ec erto, ac resc enta va , se lhe c onhe c esse o s mo tivos, que no enta nto me pe dia q ue não tentasse d esc ob rir. A Superiora c onta va-me que , tendo visto c hega r uma jovem só, se recusara primeiro a recebê-la; mas que, depois de a interrogar e saber quem ela era, julgara prestar-me um serviço, começando por dar asilo à minha filha, para a não obrigar a novas diligências, a que parecia estar resolvida. A Superiora, oferecendo-se como era razoável para me entregar a minha filha, se eu a reclamar, exorta-me, como
c onvém à sua p osiç ão, a não me o por a uma voc aç ão que c onsidera tão decidida; dizia-me ainda que não me pudera informar mais cedo do sucedido, devido à dificuldade que tivera em conseguir que a minha filha me escrevesse, porque o projeto dela era, segundo me informa, que todos ignorassem para onde se retirara. É bem cruel a ob stinaç ã o d os jove ns! Dirigi-me ime d ia ta me nte a esse c onve nto; e d ep ois d e te r visto a sup eriora, p ed i-lhe que m e d eixa sse ve r a minha filha ; esta c onsent iu em vir a muito custo, e toda trêmula. Falei-lhe diante das religiosas, e só, tudo o que consegui arrancar-lhe, entre muitas lágrimas, é que nunca poderia ser feliz senão no convento; tomei a decisão de a deixar ficar, ma s ainda sem fazer pa rte d a s noviç as c om o m e p ed ia. Rec eio que a mo rte d e Ma d am e d e Tourvel e a d o senhor de Valmo nt tenham afetado de algum modo esta cabeça tão jovem. Por muito respeito que tenha pela vocação religiosa, não veria sem pena, e até sem temor, a minha filha tomar um tal caminho. Parece-me que temos já bastantes deveres a cumprir, mesmo sem procurarmos mais; e ainda que nã o é naq uela ida de que sab emos o q ue nos c onvém. O que aumenta o meu embaraço é o próximo regresso do senho r d e G erco urt; será p rec iso rom p er este c a sa me nto tã o v a nta joso? Como dar a felicidade aos filhos, se não basta desejá-la e dispensar-lhe to d os os c uida d os? Fica r-vos-ia muito a g ra d ec ida se me d issésseis c om o precederíeis no meu lugar; não posso tomar nenhuma decisão. Nada me aterroriza tanto como ter de decidir do destino dos outros, e temo igualmente empregar nesta ocasião a severidade do juiz e a fraqueza da mãe. Acuso-me de aumentar os vossos desgostos falando-vos dos me us; ma s c onhe ç o o vo sso c oraç ã o, a c onsolaç ã o q ue d a is a os outros torna-se p a ra vós na ma ior que p od eríeis rec eb er. Adeus, querida e digna amiga; espero as duas respostas com grand e imp ac iência. Pa ris, 13 de Dezem b ro d e 17* *.
CARTA CLXXI MADAME DE ROSEMONDE AO CAVALEIRO DANCENY Depois do que me deu a conhecer, senhor, resta-me chorar em silêncio. Lamentamos vivermos ainda, quando sabemos semelhantes horrores; coro de ser mulher quando vejo uma capaz de semelhantes excessos. Concordo, senhor, em pelo meu lado deixar no silêncio e esquecimento tudo o que possa referir-se ou dar seguimento a estes tristes acontecimentos. Desejo até que eles vos não causem mais
nenhuns desgostos além dos resultantes da infeliz vitória que tivestes sobre meu sobrinho. Apesar dos erros que sou forçada a reconhecer nele, sinto q ue nunc a me c onsolarei d a sua p erda , mas a minha e terna mágoa será a única vingança que me permitirei sobre vós; cabe ao vosso c oraç ã o a p rec ia r-lhe a g ra nde za . Se p ermitis à minha id a d e uma reflexã o q ue se nã o fa z na vossa , é que, se estivéssemos esclarecidos quanto à nossa verdadeira felicidade, não a procuraríamos fora dos limites prescritos pelas leis e p ela relig iã o. Podeis estar certo de que guardarei fielmente o depósito que me c onfiastes, ma s p eç o-vos q ue m e a utorizeis a nã o o d a r a ningué m, nem a vós, senhor, a não ser que seja necessário para vossa justificação. Ouso crer que vos não recusareis a esta súplica, e que sentis que muitas vezes se sofre por nos termos deixado arrastar, mesmo p ela m a is justa ving a nç a . Não me atardo mais em pedidos, de tão persuadida que estou da vossa generosidade e delicadeza; seria digno de ambos depositar ta mb ém na s minhas mã os a s c a rta s d e M a d em oiselle d e Volang es, q ue p a rec e q ue c onservais e q ue c ertam ente vos nã o interessa m já . Sei que esta menina cometeu muitas faltas para convosco; mas não julgo que penseis em a castigar, e, pelo menos por respeito por vós próprio, não a vilta reis um o b jeto q ue ta nto a ma stes. Nem p rec iso a c resc enta r q ue a c onside ra ç ã o q ue a filha nã o m erec e é de vid a à mã e, essa respe itáve l da ma , em relaç ão à qua l algo tende s a rep arar, p orque, enfim, mesmo que procuremos justificar-nos por uma pretensa delicadeza de sentimentos, aquele que primeiro tenta seduzir um coração ainda honesto e simples torna-se o primeiro incitador à sua corrupção, e para semp re resp onsá ve l do s d esva rios e e xce ssos q ue se lhe seg uem. Não vos a d mireis, senho r, de enc ontrar tanta seve rid a d e d o m eu lado; é a maior prova que vos posso dar da minha inteira estima. Esta aumentará ainda se aceitardes, como desejo, guardar um segredo, cuja repercussão vos prejudicaria e traria a morte a um coração maternal, que já feristes. Enfim, senhor, desejo prestar este serviço à minha a miga ; e se rec ea sse q ue m e rec usá sseis esta c onsolaç ã o, ped irvos-ia q ue m ed itásseis p rimeiro q ue é a única q ue m e d eixa stes. Tenho a honra d e ser. etc . Do c a stelo d e..., 15 de De zem b ro d e 17* *.
CARTA CLXXII MADAME DE ROSEMONDE A MADAME DE VOLANGES Se t ivesse sid o ob riga d a , minha q uerid a a miga , a m a nd a r vir e a esperar de Paris os esclarecimentos que me pedis a respeito de
Madame de Merteuil, ainda não me seria possível dar-vos-los; e sem dúvida só teria recebido informações vagas e incertas, mas vieram-me d ond e a s nã o esp erava , do nde me nos a s p od eria esp erar; e esta s sã o absolutamente certas. Oh, minha amiga! Como essa mulher vos enganou! Repugna-me entrar em pormenores sobre este amontoado de horrores; ma s, seja o q ue fo r q ue se d iga , p od eis ter a c erteza q ue a inda se está longe da verdade. Espero, minha querida amiga, que me conheçais o suficiente para acreditar na minha palavra; que não exigireis d e mim nenhuma p rova ; que vos b a sta rá sa b er que existem em ab undâ ncia, e q ue a s tenho neste m om ento e ntre m ão s. É com uma imensa dor que vos peço que não me obrigueis a justificar o conselho que me pedis, relativamente a Mademoiselle de Volanges. Rogo-vos que não vos oponhais à vocação que ela mostra. Certamente nenhum motivo vos pode autorizar a forçar alguém a tomar semelhante decisão, quando o interessado não se sente c ham ad o, ma s às vezes é um a grande felic id ad e q ue ele sinta o ap elo divino; e bem vedes que a vossa própria filha vos diz que não a desaprovaríeis, se soubésseis os motivos dela. Aquele que inspira os nossos sentimentos sabe melhor que a nossa vã sabedoria o que convém a cada um, e muitas vezes o que parece um ato da sua severid ad e, é, pelo c ontrário, uma ma nifestaç ão de c lem ênc ia . Enfim, a minha opinião, que bem sei que vos afligirá, e por isso me smo d eve is c rer que nã o vo -la d ou sem ter refletid o, é d e q ue d eixeis Mademoiselle de Volanges ficar no convento, visto ser essa a sua esc olha; que e nc orajeis, em vez d e c ontrariar, o p rojeto q ue ela p a rec e ter forma do ; e q ue, enqua nto se espe ra p ela exec uçã o d o m esmo , não d eve is hesita r em rom p er o c a sa me nto q ue tínheis c om b ina d o. Depois de ter preenchido estes penosos deveres da amizade e na impossibilidade em que me encontro de acrescentar qualquer c onsolaç ã o, resta-me, querida am iga , ped ir-vos a graç a de nunca ma is me interrogardes sobre nada que esteja relacionado com estes tristes acontecimentos,deixemo-los esquecer, como merecem; e sem procurar inúteis e terríveis esclarecimentos submetamo-nos aos decretos da Providência, confiemos na sabedoria das suas decisões, mesmo qua ndo ela não permite q ue as c omp reenda mos. Ad eus, minha q uerida a miga. Ca stelo d e, 15 d e Dezem b ro d e 17* *.
CARTA CLXXIII MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE
Oh, minha amiga! Com que véu assustador envolveis o destino d a minha filha! E p a rec eis tem er que e u tente leva ntá -lo! Que me esconde ele pois, que possa afligir ainda mais o coração de uma mãe do que as horríveis suspeitas a que me abandonais? Quanto mais conheço a vossa amizade, a vossa indulgência, mais os tormentos redobram, vinte vezes, desde ontem, quis sair desta c ruel ince rteza e p ed ir-vos q ue m e informá sseis sem c onsidera ç õe s nem desvios; e de cada vez tremi de medo, pensando no pedido que me haveis feito de não vos interrogar. Enfim, tomo uma decisão que me deixa ainda alguma esperança; e espero que a vossa amizade não se recusará ao meu pedido: é que me informeis se compreendi aproximadamente o que me queríeis dizer; que não receeis revelar-me tudo o que a indulgência materna pode cobrir, e que não seja impossível de emendar. Se as minhas desgraças excedem esta medida entã o c onsinto c om até ond e o s meus rec eios po de m ir. Minha filha mo strou te r c erta simp a tia p elo Ca va leiro Da nc eny, e fui informa d a d e q ue c hego u a rec eb er c artas de le, e até a respo nde rlhe; mas supunha ter conseguido impedir que este erro de criança tivesse conseqüências perigosas; hoje, que tudo receio, concebo que teria sid o p ossível eng a na r a minha vigilâ nc ia , e tem o q ue a minha filha, sed uzida , tenha leva d o os seus d esva rios a o c úmulo. Recordo-me ainda de certas circunstâncias que parecem fortificar este receio. Informei-vos de que minha filha se sentiu mal ao receber a notícia da desgraça acontecida ao senhor de Valmont; talvez esta reação tivesse apenas por causa a idéia dos riscos que o senhor Danc eny tinha c orrido no c om ba te. Dep ois, quand o ela c horou tanto ao sab er o q ue se d izia a respe ito d e M ad a me de Merteuil, talvez o que interpretei co mo send o a do r da am izad e fosse a pe nas o efeito do ciúme ou da pena de descobrir que o seu amado lhe era infiel. A sua última decisão pode também, parece-me, explicar-se pelo mesmo mo tivo. Muita s vezes sup om o-nos c ham a d a s p a ra Deus, ap ena s p orque nos sentimos revoltadas contra os homens. Enfim, supondo que estes fatos sejam verdadeiros, e que os conheci, será possível, sem dúvida, que os acheis suficientes para justificar o conselho rigoroso que me haveis da d o. Contudo, se assim fosse, e embora censurando minha filha, pensaria no entanto dever tentar ainda todos os meios para a salvar dos tormentos e dos perigos inseparáveis duma vocação ilusória e pa ssag eira. Se o senhor Danc eny não pe rde u po r c omp leto a noç ã o d a hone stida d e, não se rec usa rá a rep a ra r um e rro d e q ue só e le é a utor; e creio enfim que o casamento com minha filha seja suficientemente va nta joso p a ra q ue e le e a família se sintam lisonjea d os. Eis, querida e digna amiga, a única esperança que me resta; apressai-vos a confirmá-la, se tal é possível. Adivinhais como anseio pela vo ssa resp osta , e g olpe te rrível significa ria o vo sso silênc io.
Ia fechar a carta, quando um cavalheiro meu conhecido me veio visitar e me contou a cena cruel por que Madame de Merteuil passou anteontem. Como não recebi ninguém nestes últimos dias, de nada sabia até este momento; eis a história, tal como ma narrou uma testemunha ocular. Madame de Merteuil, ao chegar do campo, antes de ontem, q uinta -feira , dirig iu-se à "Co mé d ia Ita lia na ", ond e t inha o seu c a ma rote ; estava sozinha, e, o que lhe deve ter parecido estranho, nenhum home m a foi cump rime ntar durante tod o o espe tác ulo. À saída, entrou, como era seu costume, no pequeno salão que já estava c heio d e g ente; ime diata mente se levantou um rumor, de que aparentemente não se supôs objeto. Avistou um lugar vago num dos b a nc os, e sentou-se; ma s log o tod a s a s mulheres q ue a í se e nc ont ra va m se levantaram como de acordo e deixaram-na absolutamente só. Este nítido movimento de indignação geral foi aplaudido por todos os hom ens e fe z a ument a r os murmúrios, que , dizem , fora m a té à s va ias. Para que nada faltasse à sua humilhação, teve o azar de o senhor Préva n, que ainda não tinha a pa rec id o em pa rte a lgum a d ep ois d a sua a ventura, entrar nesse m om ento no p eq ueno sa lã o. Assim q ue o vira m, tod a a g ente , home ns e m ulheres, o c erco u e aplaudiu; achou-se, por assim dizer, transportado para diante de Madame Merteuil, pelo público que fazia círculo em volta deles. Afirmam que Madame de Merteuil conservou o ar de quem não vê nem ouve coisa alguma, e que nem sequer o rosto se lhe alterou, mas c reio que é exag ero. De q ua lq uer forma , esta situaç ã o, verd a d eira me nte igno miniosa para ela, durou até ao momento em que anunciaram a sua carruagem; à partida, os apupos escandalosos redobraram. É horrível ser-se ainda parente desta mulher. O senhor de Prévan foi, nessa mesma noite, muito bem acolhido por todos os oficiais do seu reg ime nto q ue a í se enc ontrava m, e ninguém duvida que em b reve lhe restituirã o o c a rg o e o p osto. A mesma pessoa que me contou tudo isto disse-me que Ma da me de Merteuil teve, na noite seg uinte, um forte ata que d e feb re, que se supôs a princípio ser o efeito da situação violenta em que se encontrava; mas já se sabe, desde ontem à noite, que se declarou um ata que de varíola, c onfluente e c om grande virulênc ia . Na verda de c reio que mo rrer seria pa ra ela uma felic ida d e. Diz-se ainda que toda esta aventura a prejudicará muito no seu processo, que está prestes a ser julgado e no qual se pretende que ela tinha ne c essid a d e q ue a favo rec essem . Adeus, minha querida e digna amiga. Vejo que os maus foram castigados, mas não encontro nisso nenhum consolo para as infelizes vítimas. Pa ris, 18 d e Dezem b ro d e 17* *.
CARTA CLXXIV O CAVALEIRO DANCENY A MADAME DE ROSEMONDE Tendes razão, minha senhora, e certamente não vos recusarei nad a q ue de pe nda de m im e a que p a rec erde s atribuir qua lque r valor. O maço que tenho a honra de vos enviar contém todas as cartas de Mademoiselle de Volanges. Se as lerdes, vereis com espanto como se pode reunir tanta ingenuidade e tanta perfídia. É, pelo menos, o que ma is me imp ressiono u na última leitura q ue a c a b o d e fa zer. Ma s, pod em os sob retud o d eixa r d e sentir a ma is viva indigna ç ã o contra Madame de Merteuil, quando nos recordarmos do horroroso prazer com que aplicou todos os cuidados em abusar de tanta inocê ncia e ca ndura? Não, já não amo. Nada conservo dum sentimento tão indignamente traído; e não é ele que me leva a procurar justificar Mademoiselle de Volanges. No entanto, esse coração tão simples, esse caráter tão doce e fácil, não se deixariam levar para o bem, mais fac ilmente ainda d o q ue o foram p ara o m a l? Que outra jovem, saindo do mesmo convento, sem experiência e quase sem idéias, e trazendo pa ra o m undo, com o q uase semp re a c ontece , uma igual ignorânc ia do bem e do mal; que outra, dizia eu, teria podido resistir melhor a tão c ond ená veis a rtifíc ios? Ah, para ser indulgente, basta refletir a quantas circunstâncias independentes de nós se encontra ligada a alternativa assustadora da d elic a d eza ou d a d ep ra va ç ã o d os nossos sentimento s. Fa r-me -íeis p ois justiç a , minha senhora , pe nsa nd o q ue os erros d e Mademoiselle de Volanges, que sem dúvida senti vivamente, não me inspira m c ontudo qua lque r idé ia de vinga nça . Já ba sta ser obriga do a renunc ia r a a má -la ! Custa r-me-ia d em a sia d o od iá -la . Não precisei de refletir para desejar que tudo o que lhe diz respeito, e que a poderia prejudicar, ficasse para todo o sempre igno rad o p or tod a a ge nte. Se na a pa rênc ia a d iei durante algum tempo a realização dos vossos desejos a este respeito, creio poder revelar-vos o motivo; quis esperar até ter a certeza de que não seria inc om od a d o p elas c onseq üênc ia s d este infeliz c a so. Na a ltura em que pe dia a vossa indulgê nc ia, a que ousava c rerme me smo c om alguns direitos, rec eei ter o aspe c to d e a c om prar por esta condescendência da minha parte; e certo da pureza dos meus motivos, tive, confesso-o, o orgulho de querer que não pudésseis duvidar deles. Espero que me perdoareis este escrúpulo, talvez demasiado suscetível, pela veneração que me inspirais e pela imp ortânc ia q ue e sta me leva a a trib uir à vossa estima .
O mesmo sentimento me faz pedir-vos, como última graça, que me informeis se achais que preenchi todos os deveres que me imp useram a s infelizes c irc unstâ nc ias em q ue m e e nc ont rei. Uma vez tra nq üilo a este resp eito, a m inha d ec isã o e stá tom a d a ; p a rto p a ra Ma lta . Irei c om p ra zer, e a í gua rd a rei religiosa me nte os voto s que m e sepa rarão d um mundo do qual, tão novo ainda , já tenho tanto a queixar-me; irei enfim procurar esquecer, sob um céu estrangeiro, a lembrança de tantos horrores acumulados, e cuja recordação só p od eria entristec er e tortura r-me a a lma . Sou c om resp eito, minha senho ra , etc . Pa ris, 26 de Dezem b ro d e 17* *.
CARTA CLXXV MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE O de stino d e Ma d am e de Merteuil pa rec e c ump rir-se finalmente, minha querida e digna amiga; e é de tal sorte que os seus maiores inimigos estão divididos entre a indignação que ela merece, e a p ied a d e q ue insp ira . Tinha ra zã o a o d izer que seria p a ra ela um a felicidade morrer da varíola. Curou-se, é verdade, mas ficou horrivelmente desfigurada; por cúmulo, perdeu um olho. Não a voltei a ver; ma s d isseram -me q ue está verda d eira me nte he d iond a . O Marquês de..., que não perde ocasião para uma maldade, dizia ontem, falando dela, que a doença a virara do avesso, e que tinha agora a alma estampada no rosto. Infelizmente todos acharam q ue a expressã o era justa . Um outro acontecimento vem acrescentar-se às desgraças e aos erros dela. O processo foi julgado anteontem, e perdeu-o por unanimidade. Coube-lhe o pagamento das custas, danos e juros, e foi forçada a restituir os bens aos menores; de forma que o pouco da fortuna d ela que não estava c om prometido no p roc esso foi ab sorvido , e a té p a ra ma is, pe la s d esp esa s. Assim que soube esta notícia, embora ainda doente, fez os seus p rep a ra tivos e p a rtiu de noite, sozinha e p ela m a la -posta . Os criados dizem hoje que nenhum a quis seguir. Crê-se que tomou o c am inho da Holand a. Esta partida ainda fez mais barulho que todo o resto; visto que levou os diamantes, coisa de muito valor, e que deviam ser integrados na herança do marido; as pratas, as jóias; enfim, tudo o que pôde, d eixa nd o p erto d e 50000 libras d e d ívida s. Uma verda de ira b anc arrota . A família deve reunir-se amanhã para chegar a acordo com os c red ores. Se b em q ue p a rente m uito a fasta d a , oferec i o me u co nc urso;