Comunidade imaginada: por quem?1
Partha Chatterjee Apresentação
Em 1983 apareceu, em inglês, o livro de Benedict Anderson sobre o nacionalismo, onde ele planta sua polêmica tese: as nações correspondem à uma construção 2. O resultado do livro de Anderson foi a proliferação de trabalhos sobre a temática nacionalista. Só em língua inglesa, até a segunda edição em inglês, em 1991, de onde foi traduzida a primeira versão em espanhol 3, dois Nationalism (1982), de J. A. Armtrong; NationalRevival anos mais tarde apareceram Nations Before Nationalism in Europe
(1985), de Miroslav Hrocha; The Etnic Origins of Nations (1986), (1986), de Anthony Smith;
Nationalist Thoughy and the Colonial World (1986), since 1780
de P. Chatterjee, e Nations and Nationalism
(1990), de Eric Hobsbawn – para mencionais apenas alguns dos textos chaves que por
seu alcance e poder teórico, têm feito caducar grande parte da bibliografia tradicional sobre o tema. Em parte, com base nestas obras, uma extraordinário proliferação de estudos históricos, literários, antropológicos, sociológicos, feministas e outros surgiram, unindo os objetos destes campos de pesquisa com o nacionalismo e a nação. Pouquíssimos fenômenos políticos provaram ser tão confusos e difíceis de compreender como o nacionalismo. Não existe um consenso estabelecido sobre sua identidade, origem ou futuro. Encontramo-nos, por exemplo, no processo de voltar ao século XIX cheio de grandes forças competitivas e agressivas e cheios de nacionalismos difusos. Será que o estado-nação perdeu sua pertinência e esgotou seu papel progressista e emancipatório? Ou será que o nacionalismo tem sido visto sempre envolto em uma lógica militarista e em uma função étnica exclusivista? ..... I
Novamente o tema do nacionalismo aparece na agenda de todos os assuntos mundiais. Quase que diariamente, os estadistas e os politólogos dos países ocidentais afirmam que com a queda do comunismo (provavelmente querem dizer colapso do socialismo soviético), o maior perigo para a paz mundial é o re-surgimento do nacionalismo em alguns países do mundo. Como atualmente qualquer fenômeno tem que ser primeiramente reconhecido como “problema” antes de chamar a atenção dos encarregados em decidir sobre o que deve interessar ao público, o nacionalismo parece 1 Texto Texto retirado de Gopal Balakrishnan (Editor), Mapping the nation, (introdução de Benedict Anderson), Verso, Verso, Londres, 1996, pp. 214-225. 2 Benedict Anderson, Imagined Communities; Reflections on the Origin and Spread Spread of Nationalism , London, 1983. 3 Anderson, B. Comunidades imaginadas, Reflexiones sobre el origen y la difusión del nacionalismo. Fondo de Cultura Económica, México. 1993.
ter recuperado notoriedade suficiente para se livrar das práticas arcaicas dos “especialistas da área” e se converter novamente em um tema de debate geral. Contudo, considero que esta maneira de voltar à agenda política mundial tem desafortunadamente descriminado a discussão a respeito. Nos anos 1960 e 1970, todavia se considerava o nacionalismo como um estandarte das lutas anti-colonialistas na Ásia e na África. Mas simultaneamente, na medida em que as novas práticas institucionais políticas e econômicas nos estados pós-coloniais se normalizaram e se regularam sob as rubricas conceituais da “modernização” e do “desenvolvimento”, o nacionalismo foi relegado ao campo de histórias específicas deste e de outro império. E nessas histórias especializadas definidas pelos conteúdos pouco agradáveis dos arquivos coloniais, os fatores emancipatórios do nacionalismo se viram diminuídos pelas inumeráveis revelações sobre acordos tácitos, manipulações e sobre os propósitos perversos de alguns interesses privados. Nos anos 1970, o nacionalismo se converteu em tema de política racial, um das razões pelas quais as pessoas do terceiro mundo se matavam entre si. Algumas vezes em guerras entre exércitos regulares, outras vezes lamentavelmente em cruéis guerras promovidas por exércitos civis e parece que, constantemente, por atos de terrorismo tecnologicamente sofisticados e virtualmente inevitáveis. Os líderes das lutas africanas contra o colonialismo e o racismo têm visto suas imagens serem deterioradas ao se converterem em corruptos, divisionistas e amiúde partidários de regimes brutais. Gandhi tem sido tachado por seu culto marginal ao pacifismo e ao vegetarianismo. Ho Chi Minh, em seus melhores momentos, se viu preso nas irrefutáveis polarizações da guerra fria. Parecia que não tinha ficado nada do nacionalismo que fez o Ocidente se sentir bem. Esta recente genealogia sobre o tema explica por que o nacionalismo é considerado como uma força obscura, simples e imprevisível que ameaça a sossegada ordem da vida civilizada. O que alguma vez tinha sido adequadamente relegado às periferias, agora é visto como se houvesse retornado até a Europa por meio das largamente esquecidas regiões dos habsburgos, dos czaristas e dos impérios otomanos. Como as drogas, o terrorismo e a imigração ilegal são outros dos produtos do terceiro mundo que o Ocidente rechaça, mas que se sente impotente para proibi-los. À luz das discussões atuais nos meios de comunicação, é surpreendente observar que há poucos anos se considerava o nacionalismo como um dos presentes mais significativos da Europa para o resto do mundo. Tampouco se recorda a miúde que as duas grandes guerras do século XX, que envolveram quase todo o globo, foram ocasionadas pela incapacidade da Europa em manejar seus próprios nacionalismos raciais. Uma grande variedade do nacionalismo “mal” foi completamente um produto da história política da Europa. Apesar da celebração das diversas tendências unificadoras atuais na Europa, existe na recente amnésia sobre as origens do nacionalismo mais do que uma amostra da ansiedade em estabelecer se o seu lugar de nascimento
tem sido bem evitado. Em todo este tempo, “os especialistas”, os historiadores do mundo colonial, realizando seu trabalho nos arquivos administrativos e na correspondência oficial dos arquivos coloniais em Londres, Paris ou Amsterdam, não se esquecem obviamente como chegou o nacionalismo nas colonias. Todos concordam que se trata de um importação da Europa. Os debates dos anos 1960 e 1970 nas historiografias da Índia, África ou Indonésia são do mesmo teor e têm claro quem são os responsáveis. Estes debates entre uma geração nova de historiadores nacionalistas e aqueles que apelidavam de “colonialistas” eram fortes e, a miúde, quentes, mas foram se relegando com o tempo a espaços especializados de algumas “áreas de estudo” e as pessoas os foi esquecendo. Faz dez anos, um desses especialistas da área foi quem uma vez mais formulou a pergunta sobre a origem e a expansão do nacionalismo dentro da estrutura de uma história universal. Benedict Anderson mostrou com muita originalidade e sutileza que as nações não eram o produto de condições sociológicas dadas como a língua, a raça ou a religião. Foram na Europa, como em todas as partes, imaginadas em sua existência. 4 Ele também descreveu alguns dos principais formatos institucionais por meio dos quais estas comunidades imaginadas adquiriram uma forma concreta, especialmente essas instituições que engenhosamente se denominou “capitalismo impresso”. Também afirmou que a experiência histórica do nacionalismo na Europa ocidental, na América e na Rússia proporcionou aos posteriores nacionalismos um conjunto de formatos modulares dos quais as elites africanas e asiáticas escolheram os que preferiram. Considero que o trabalho de Anderson é o mais influente nos últimos anos para gerar novas bases teóricas sobre o nacionalismo, uma influcencia que obviamente pertence quase exclusivamente aos trabalhos acadêmicos. Contrário à desinformação quase exótica sobre o nacionalismo no Ocidente, nos meios de comunicação, a tendência teórica de Anderson trata com toda segurança de abordar o fenômeno como parte da história universal do mundo moderno. Mas tenho uma objeção a fazer a Anderson: se os nacionalismos no resto do mundo tinham que escolher sua comunidade imaginada entre certos formatos modulares que Europa e América lhes proporcionavam, então o que eles faziam de sua imaginação? Parece que a historia já tinha estabelecido que nós, no mundo pós-colonialista, somos meramente uns consumidores perpétuos da modernidade. Europa e América, o únicos sujeitos verdadeiros da história, têm elaborado já em nosso nome, não só o roteiro da ilustração e da exploração colonial, mas também o da nossa miséria e resistência anti-colonialista. Parece que nossa imaginação também deve permanecer colonizada para sempre. Objeto esta proposta não por razões sentimentais. O faço porque não posso reconciliá-lo com a evidência de um nacionalismo anti-colonial. O mais poderoso e também o mais criativo acontece 4 ANDERSON, Benedict. Imagined Communities; Reflections on the Origin and Spread of Nationalism , London, 1983.
com o fato de que a imaginação nacionalista na Ásia e na África fixa não somente em uma identidade, mas em uma diferença com os formatos modulares das sociedades nacionais propagadas pelo Ocidente moderno. Como podemos ignorar isto sem reduzir a experiência do anti-colonialismo a uma caricatura de si mesma? Para ser justo com Anderson, ele não é o único que tem culpa. O problema reside, estou convencido agora, em que temos tomado a bandeira do nacionalismo como movimento político demasiado literalmente e demasiado sério. Na Índia, por exemplo. A história normatizada nacionalista começou em 1885 com a formação do congresso nacional hindu. Poderia-se inferir que a década precedente foi um período de preparação, quando se instituíram várias associações políticas regionais. Anteriormente, dos anos 1820 aos 1870, existiu um período de “reforma social” quando a ilustração colonial começou a “modernizar” os costumes e instituições de uma sociedade tradicional, e o espírito político era de muita colaboração com o regime colonial; quer dizer, o nacionalismo ainda não havia aparecido. Esta história, quando se submete à uma análise sociológica sofisticada não pode concordar com as explicações de Anderson. Em realidade, como busca imitar sua própria história, a história do estado moderno na Europa, a representação do nacionalismo inevitavelmente reafirmará a decodificação de Anderson do mito do nacionalismo. Penso, contudo, que como história, a autobiografia do nacionalismo se encontra fundamentalmente debilitada. Segundo minha leitura, o anti-colonialismo forja seu próprio espaço de soberania dentro da sociedade colonial, muito antes de iniciar sua batalha política dentro do poder imperial. O faz dividindo o mundo das instituições e das práticas sociais em dois campos: o material e o espiritual. O material é o campo do “exterior”, da economia e do estatal, da ciência e da economia; um campo no qual o Ocidente tem ratificado sua superioridade e onde o Oriente tem sucumbido. Então, neste campo, a superioridade ocidental tem sido reconhecida e suas conquistas cuidadosamente imitadas. Por outro lado, o espiritual é um campo “interior” que aponta aos aspectos essenciais da identidade cultural. Se há algo de triunfo em imitar as conquistas ocidentais no campo material, maior é então a necessidade de preservar as características da própria cultura espiritual. Considero que a formula se converte em um dos fatores básicos dos nacionalismos anti-coloniais na Ásia e na África. 5 Existem diversas implicações. Primeiramente, o nacionalismo declara ao campo do espiritual o seu território soberano e se nega a aceitar que o poder colonial intervenha nesse campo. Retomando o exemplo hindu, o período “das reformas sociais” esteve conformado por duas fases. Na primeira, os reformadores hindus buscaram por meio da ação estatal que as autoridades coloniais reformaram as instituições e costumes tradicionais. Na segundo, ainda que não se discutia a necessidade de mudança, se apresentou uma forte resistência que não permitiu que o estado 5 Este é o argumento central do meu livro Nationalist Thought and the Colonial World: A Derivative Discourse? London, 1986.
colonial intervisse em assuntos que afetavam “a cultura nacional”. A segunda fase, segundo mia arguição, já constituía a parte do período nacionalista. Em outras palavras, o estado colonial se mantem fora do campo “interior” da cultura nacional, mas isso não quer dizer que o chamado campo espiritual permaneça inalterável. De fato, a partir daqui o nacionalismo lança seu projeto mais poderoso, criativo e historicamente significativo: modelar uma cultura “moderna” nacional que não é de nenhuma maneira ocidental. Se a nação é uma comunidade imaginada, é aqui aonde começa a apresentar uma razão de ser. Este é seu verdadeiro e básico espaço, a nação já é soberana ainda quando o estado continua em mãos do poder colonial. A dinâmica deste projeto histórico é completamente esquecida nas histórias convencionais nas quais “o conto” do nacionalismo começa pela conquista do poder político. Desejo ressaltar vários aspectos dentro do chamado campo espiritual que o nacionalismo transforma no transcurso deste périplo. Me remeterei às minhas ilustrações de Bengala, cuja história me é mais familiar. O primeiro destes aspectos é a língua. Anderson acerta ao afirmar que é o “capitalismo impresso” o que provê o novo espaço institucional para o desenvolvimento da nova língua “moderna”6. Contudo, as peculiaridades da situação colonial não permitem uma transposição tão simples dos padrões europeus de desenvolvimento. Em Bengala, por exemplo, por iniciativa da East India Company e dos missionários europeus se editaram os primeiros livros no final do século XVIII e publicaram as primeiras prosas narrativas em começos do século XIX. Ao mesmo tempo, na primeira metade deste século, o inglês desloca o persa como língua da burocracia e se mostra como o meio mais poderoso de influência intelectual sobre a nova elite bengalês. Apesar disso, o momento crucial no desenvolvimento da língua bengali moderna é a metade do século, quando a elite bilíngue desenha um projeto cultural para proporcionar a língua nativa o aparato linguístico necessário para se converter no idioma apropriado da cultua “moderna”. Em meio a este projeto é gerado toda uma rede institucional de imprensa, editoras, jornais, revistas e grupos literários, por fora da
responsabilidade e da autorização do estado e dos missionários europeus, através dos quais,
a nova, modernizada e padronizada vai tomando forma, a intelligentsia bilíngue começa a assumir sua língua com um sentido de pertencia dentro do campo da identidade cultural e de modo a manter separada do colonizador intruso. Por consequência, a língua se converte em um espaço sobre o qual a nação tem primeiramente que reafirmar sua soberania para então a transformar e a adaptá-la ao mundo moderno. Aqui as influências formais das línguas e das literaturas europeias modernas não produziram efeitos similares. Por exemplo, no caso dos novos gêneros literários e das convenções estéticas nos quais as influências europeias delineavam indubitavelmente o discurso explícito crítico, também se 6 Anderson, Imagined Communities, pp.17-49.
considerava que as convenções europeias não era as adequadas para avaliar a produção literária em bengali. Até hoje ainda existem alguns vazios evidentes entre os termos da crítica acadêmica e os do exercício literário. Para dar um exemplo, analisarei um grama bengali. O drama constitui o gênero literário moderno menos elogiado no campo estético pelos críticos da literatura bengali, ainda que é o gênero com maior audiência dentro da elite bilíngue. Quando apareceu em sua forma moderna em meados do século XIX, o drama bengali possuía dois modelos: o drama moderno europeu como o desenvolvido de Shakespeare até Moliere, e o virtualmente esquecido corpus do drama sânscrito, o qual tem recuperado atualmente sua excelência clássica devido aos elogios dos estudiosos orientalistas europeus. Os critérios literários que presumivelmente incluíram o novo drama dentro do domínio privilegiado da cultura nacional moderna era, por tanto, delineados pelos formatos modulares provenientes da Europa. Mas as práticas representativas de uma nova instituição como o público teatral não permitiram que esses critérios se aplicassem para obras escritas para o teatro. As convenções que permitiriam que um drama triunfasse nos cenários de Calcutá eram muito diferentes das aprovadas pelos críticos segundo as tradições do drama europeu. Até hoje essas tensões não foram resolvidas. O que exerce como a corrente teatral pública em Bengala Ocidental ou em Bangladesh é o teatro urbano moderno, nacional e claramente diferenciável do teatro “popular”. O primeiro é produzido e consistentemente patrocinado pelos literatos urbanos da classe média. Ainda assim, suas convenções estéticas não cumprem com os padrões estabelecidos pelos formatos literários adotados da Europa. Ainda com a novela, esse famoso artifício nacionalista dentro do qual a comunidade está feita para viver e amar dentro de um tempo “homogêneo” 7, os formatos modulares tampouco passam bem. A novela foi o principal gênero por meio do qual a elite bilíngue bengali criou uma nova prosa narrativa. Era óbvia a influência no desenho desta prosa dos modelos do inglês moderno e do Sânscrito clássico. Também, na medida em que o gênero tem ganhado popularidade, é de se observar a frequência com que os novelistas bengalês tem mudado das formas convencionais autorais até o uso do discurso corrente em suas obras. Ao ler a alguns dos novelistas de Bengala, a miúde é difícil determinar se se está lendo uma novela ou um drama. Tendo criada uma linguagem moderna para sua prosa de acordo com os formatos modulares convencionais, os autores, na busca pela verdade artística, evidentemente se viram na necessidade de se separar, na medida do possível, da rigidez dessa prosa. O desejo de construir uma forma estética moderna e nacional, e que as vezes se diferenciava da ocidental, se viu refletida nas formas um pouco exageradas e sofisticadas do começo do século XX, na chamada Escola de Arte de Bengala. A partir destas iniciativas se criou, na primeira 7 Ibid., pp. 28-40.
instancia, um espaço institucional para os artistas profissionais modernos hindus para divulgação, exibição e impressão das obras de arte e para a formação de um público versado nas novas normas estéticas. Esta agenda também se viu acompanhada pela construção pela construção de um espaço artístico modernizado impregnado de um calor ideológico e quente para uma arte que era “indiscutivelmente” hindu e muito diferente da “ocidental” 8. Ainda que o estilo peculiar desenvolvido pela escola de Bengala para uma nova arte hindu não tardou muito, o proposto fundamentalmente por esta iniciativa todavia tem vigência no que concerne a criar uma arte que pudesse se considerar moderna e ao mesmo tempo se reconhecer como hindu. Junto com as instituições do capitalismo impresso, se fundou uma rede de escolar secundárias. Uma vez mais, o nacionalismo buscou manter sob sua tutela este espaço muito antes de que o poder estatal tivesse se convertido em um assunto de discórdia. Em Bengala, desde a segunda metade do século XIX, a nova elite foi a encarregada de realizar um esforço “nacional” para abrir escolar em toda a província e criar assim uma literatura conforme. Junto com o capitalismo impresso, as escolas secundárias provinham os espaços necessários para gerar uma literatura e uma linguagem novas, generalizadas e normatizadas, por fora do controle estatal . Só assim, ao ase abrir estes espaços fora do controle estatal e dos missionários europeus, foi que se permitiu às mulheres ir à escola. Durante este período, final do século, a Universidade Calcutá também deixou de ser uma instituição de educação colonial e se converteu em uma instituição marcadamente nacional com seu próprio currículo, faculdade e recursos9. A família também era outro dos espaços do campo interior na cultura nacional. O planejamento aqui da autonomia e das diferenças era muito mais dramático. A crítica europeia que considerava a “tradição hindu” como selvagem foi centrada durante muito tempo em suas práticas e crenças religiosas, especialmente no que se relacionava com o tratamento às mulheres. A fase inicial das “reformas sociais” por meio dos controles coloniais também se concentrou nesses aspectos. Durante esta fase, este espaço foi considerado “básico” para a “tradição hindu”. O movimento nacionalista começou a lutar pelo controle disso. Diferente dos primeiros reformadores, os nacionalistas não estavam dispostos a permitir que o poder colonial legislasse sobre as reformas da sociedade “tradicional”. Afirmavam que somente a nação poderia ter o direito de intervir em tais aspectos fundamentais de sua identidade cultural. E ocorreu que o seio familiar e o papel da mulher sofreram mudanças substanciais no ambiente nacionalista da classe média. Indubitavelmente se formou um novo tipo de ordem patriarcal, mas que exigia explicitamente que fosse diferente à ordem da família “ocidental”. A 8 A história deste movimento artístico tem sido estudado recentemente em detalhe por Tapati Guha-Thalkurta, The Making of a New “Indian” Art: Artists, Aesthetics and Nationalism in Bengal , 1850-1920, Cambridge 1992. 9 Ver Anilchandra Banerjee, ‘Years of Consolidation: 1883-1904’; Tripurari Chakravarti, ‘The University and the Goverment: 1904-24’, and Pramathanath Banerjee ‘Reform and Reorganization: 1904-24’, in Niharranjan Ray and Pratulchandra Gupta, (eds.) Hundred Years of the University of Calcutta , Calcutta 1957, pp. 129-78, 179-210 e 211-318.
“nova mulher” tinha que ser moderna, mas mantendo todos os caracteres da tradição nacional e, por tanto, ser diferente da mulher “ocidental”. A história do nacionalismo como movimento político tendeu a se centrar principalmente na luta pelo domínio do exterior, no domínio material do estado. Isto é algo diferente do que tenho sublinhado. É também uma história na qual o nacionalismo não tinha outra opção se não escolher um formato da galeria dos “modelos” apresentados pelos estados-nação europeus e americanos. Por consequência, a “diferença” aqui não constitui um critério válido no domínio do material. No campo material, o nacionalismo iniciou seu percurso (recordemos que já tinha proclamado sua soberania no campo espiritual) se inserindo em uma nova esfera pública conformada pelos processos e formas do estado moderno (neste caso colonial). No começo, a tarefa do nacionalismo consistia em vencer a insubordinação das classes médias colonizadas, isto é, desafiar as normas das “diferenças coloniais” no âmbito do estado. Devemos recordar que o estado colonial não foi a instituição que ativou os formatos modulares do estado moderno nas colonias; melhor seria dizer que se encarregou de nos permitir a “normalização” dos propósitos do estado moderno já que uma de suas premissas de controle consistia em manter as normas da diferença colonial; em outras palavras, preservar a alienação dos grupos de controle. Como as instituições do estado moderno foram desenhadas durante a colonia, especialmente na segunda metade do século XIX, a classe dominante europeia achou necessário estabelecer – por meio da promulgação de leis, da burocracia, da administração da justiça e do reconhecimento pelo estado de um espaço legítimo da opinião pública – as precisas diferenças entre governantes e governados. Se iria permitir os hindus legislar, poderiam eles julgar os europeus? Era bom o fato dos hindus ingressarem no serviço civil aprovando os mesmos exames que os britânicos graduados? Se os periódicos europeus na Índia possuíam liberdade de imprensa, poderia se aplicar o mesmo aos periódicos locais? Ironicamente, se converteu em uma tarefa histórica do nacionalismo, apesar de insistir em suas próprias marcas distintivas no cultural com respeito ao Ocidente, exigir que não podiam existir regras diferenciadoras no controle do estado. Eventualmente, com acrescente influência dos políticos nacionalistas, este controle se tornou mais extensivo e internamente diferenciado, finalmente assumindo as características formais de um estado nacional, pós-colonial. Os fatores predominantes desta autodefinição, pelo menos na Índia pós-colonial, provem da ideologia do estado moderno liberal e democrático. De acordo com esta ideologia liberal, agora o público se distinguía do privado. Se era exigido ao estado que protegesse a inviolabilidade de sua própria idiossincrasia com respeito às características dos demais, a legitimidade do estado ao desempenhar estas funções tinham que versar garantida por sua neutralidade em estabelecer diferenças pessoais, raciais, de língua, religiosas, de classe, de casta, etc.
O problema estava no fato de que a liderança moral e intelectual da elite nacionalista operava no campo constituído por um conjunto bastante específico de diferenças: entre o espiritual e o material, o interior e o exterior, o básico e o superficial. Esse espaço tão controvertido onde o nacionalismo tinha proclamado sua soberania e dentro do qual tinha imaginado sua verdadeira comunidade, não era coextensivo nem coincidente com o espaço construído pela distinção entre o público e o privado. No primeiro campo, o projeto hegemônico do nacionalismo à duras penas podia fazer das diferenças de língua, religião, classe ou casta um assunto de imparcialidade em si mesmo. O projeto era de que uma “normatização” cultural, como Anderson explicava; projetos hegemônicos em toda parte, mas com uma grande diferença: tinha que escolher seu espaço de autonomia a partir de uma posição de subordinação à um regime colonial que tinha de seu lado recursos justificatórios mais universais gerados pelo pensamento social posterior à Ilustração. O resultado destes formatos autônomos da imaginação da comunidade foi, e continua sento, absorvido pela história do estado pós-colonial. Neste radicam as causas de nossa miséria póscolonial: não é nossa incapacidade para desenhar novos formatos de comunidade moderna, senão nossa submissão ante as novas formas de estado moderno. Se a nação é uma comunidade imaginada e se as nações devem assumir os papéis de um estado, então nosso aparato retórico nos deve permitir falar de comunidade e de estado ao mesmo tempo. Mas considero que nosso aparato teórico atual não nos permite. Um pouco antes de sua morte, Bipinchandra Pal (1858-1932), o grande líder do movimento Swadeshi em Bengala e protagonista do congresso pré-gandiano, descreveu a residência onde se alojavam os estudantes em Calcutá durante sua juventude: As residencias dos estudantes em Calcutá, nos meus tempos de estudante que faz cinquenta ou sessenta anos, eram como pequenas repúblicas e se manejavam com normas notadamente democráticas. Tudo era decidido pelo voto da maioria. Mensalmente se elegia o diretor para todo “o méson” e ele se encarregava de tramitar todos os deveres dos residentes junto com a administração dos alimentos e dos utensílios da residência... Com frequência se rogava à um bom administrador que aceitasse sua re-eleição, enquanto que os bagunceiros tinham que pagar do seu próprio bolso por uma má administração, então evitavam ocupar esta posição honrosa. … qualquer disputa entre os membros era resolvida por uma “Corte de residentes” e nos sentávamos, lembro, noite atrás de noite para analisar ocaso. E nunca a decisão desta “corte” se viu desobedecida ou questionada. E todos faziam cumprir a decisão ao residente culpado. Todos ameaçavam esse membro com a expulsão e se ele se negasse, o faziam pagar com toda a mesada... E tal era a força da decisão do grupo que soube de casos de castigo a um residente que depois de uma semana de ter sido expulso, seu semblante parecia como se estivesse recuperado de uma grave enfermidade... O grupo de residentes estava composto dos chamados ortodoxos, os brâmanes, e outros heterodoxos comprometidos com a nossa “república”. Se fosse estabelecido uma norma que proibisse trazer alimentos à residência, os membros da ortodoxia hindu cumpriam, ainda que ficava muito claro que fora da residência se podia comer e fazer qualquer coisa. Assim nos sentíamos livres ainda para ir ao Great
Eadtern Hotel, aonde muitos de nós começamos a frequentar.10
O interessante desta descrição não é a visão exageradamente romântica de um esquema em miniatura de autogovernar a nação, senão o uso reiterativo de expressões institucionais da cívica e moderna Europa política (república, democracia, unanimidade, eleição, corte...) para descrever um conjunto de atividades em aspectos materiais e a miúde incongruentes com este tipo de sociedade civil. O tema de uma “compromisso” nos hábitos alimentícios se baseava realmente não em um princípio de delimitação do “público com respeito ao privado”, e sim na cisão entre o “interior” e o “exterior”; o espiritual como um espaço onde a unanimidade tinha que prevalecer, enquanto que o exterior era só uma amostra da liberdade individual. Apesar do “voto unânime de toda a residência”, a força que determinava a unanimidade no campo interior não era o procedimento de votação que estabelecia que os indivíduos se comportavam como um todo, e sim o consenso de uma comunidade – institucionalmente inovadora (porque depois de tudo, a residência de Calcutá era algo sem precedentes na “tradição”) e internamente diferenciada e sem dúvida uma comunidade que se impunha sobre os membros individuais. Mas o uso de Bipinchandra dos termos parlamentares para descrever as atividades “comunitárias” dessa residencia como se fosse uma nação, não devem se entender como uma informalidade. Sua linguagem constitui um indicativo das implicações reais do dois discursos e dos dois campos da política. Esta tentativa se nota na recente historiografia hindu para abordá-los como os domínios da política de “elite” e da política dos “subordinados” 11. Mas uma das consequências relevantes deste enfoque historiográfico tem sido precisamente a mostra de que cada domínio não somente atuava em oposição e limitado pelo outro, e sim que através desta confrontação, também se configurava o esquema político do outro. Por tanto, a presença do populista ou dos elementos comunitários na ordem liberal constitucional do estado pós-colonial não se assume como um signo da inautenticidade ou desonestidade da elite política; seria bem mais um reconhecimento por parte da elite dominante da presença tangível de um espaço da política dos subordinados sobre a qual devia se impor ou também negociais de acordo com suas propostas, com o fim de conseguir alguns acordos. Alem disso, o campo da política dos subordinados se convertia com o tempo ou se adaptava aos formatos característicos institucionais da elite dominante. Por consequência, o relevante aqui não é a simples demarcação e identificação de dois espaços em sua própria delimitação que é o que primeiramente se requeria para romper com os clamores totalizantes de uma historiografia nacionalista. A tarefa agora é determinar, em suas historicidades mutuamente condicionadas, os esquemas específicos que surgiram, por um lado, no espaço definido pelo projeto 10 Bipinchandra Pal, Memories of My Life and Times , Calcutta 1932, reprinted 1973, pp. 157-60. 11 Representado pelos vários ensaios em Ranajit Guha, ed., Subaltern Studies, vols 1-6, Delhi 1982-90. The programmatic statement of this approach is in Ranajit Guha. ‘On Some Aspects of the Historiography of Colonial India.’ In: Guha, (ed) Subaltrn Studies vol.1, Delhi 1982, pp. 1-8.
hegemônico a modernidade nacionalista; e por outro, nas inúmeras resistência fragmentadas até esse projeto normalizador. Este é o exercício que desejo realizar. Como problema poderia ser o de estabelecer limites dessa suposta universalidade do regime moderno de controle e com as disciplinas do conhecimento da pós-ilustração, poderia parecer que este trabalho tenta ressaltar mais uma vez um ceticismo hindu (ou oriental). Não obstante, o propósito de meu trabalho é muito mais complexo e consideravelmente mais ambicioso. Inclui não só a identificação dos esquemas discursivos que tornaram possível essas teorias sobre o ceticismo hindu, e sim também uma demonstração de que as condições apresentadas realmente implicam em alguns fatores forçadamente limitados ainda nos formatos supostamente universais do regime moderno de poder. Esta última demonstração nos possibilita estabelecer que os clamores universalistas da filosofia ocidental moderna se encontram também limitadas pelas contingências do controle global. Em outras palavras, “o universalismo Ocidental” como o mesmo “ceticismo Oriental” só podem ser assinalados como uma forma particularmente mais rica, diversa e diferenciada da conceitualização de uma nova ideia universal. Isto nos permite conceber não só a possibilidade de pensar em uma forma nova de comunidade moderna, que, como expliquei, a experiência asiática e africana tem tentado desde seu começo, mas decididamente pensar em novos formatos de um estado moderno. O projeto então, consiste em reclamar para nós, aqueles uma vez colonizados, a liberdade de imaginação. Clamores, como sabemos bem, só podem se fazer como resposta em um espaço de poder. As investigações apontarão necessariamente a campos específicos disciplinários a marca de uma pergunta não contestada. Alem disso, advogar por algo fragmentário a este respeito é também, ainda que não surpreendente, gerar um discurso fragmentado. É redundante fazer uma apologia a isto.