Nada de Especial Vivendo Zen
Charlotte Joko Beck Editora Saraiva 1ª edição, 1994 Capa de Ricardo de Krishna Digitalizado por ? OCR e formatação: SusanaCap
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ORELHAS: PREFÁCIO I. LUTA
4 5 7
RODAMOINHOS E ÁGUAS PARADAS O CASULO DA DOR SÍSIFO E O FARDO DA VIDA RESPONDENDO ÀS PRESSÕES A BASE DE APOIO
II. SACRIFÍCIO
7 14 20 27 33
41
SACRIFÍCIO E VÍTIMAS A PROMESSA QUE NUNCA É CUMPRIDA JUSTIÇA PERDÃO A FALA QUE NINGUÉM DESEJA OUVIR O OLHO DO FURACÃO
III. SEPARAÇÃO E VÍNCULOS
41 45 52 53 54 64
68
PODE ALGUMA COISA NOS FERIR? O PROBLEMA SUJEITO-OBJETO INTEGRAÇÃO OS TOMATEIROS RIVAIS NÃO JULGAR
IV. MUDANÇA
68 77 85 89 95
10 2
PREPARO DO TERRENO EXPERIÊNCIAS E VIVÊNCIAS O DIVÃ DE GELO DERRETENDO OS CUBOS DE GELO O CASTELO E O FOSSO
V. PERCEPÇÃO CONSCIENTE
102 106 110 120 126
13 4
O PARADOXO DA PERCEPÇÃO CONSCIENTE RECOBRANDO O JUÍZO ATENÇÃO SIGNIFICA ATENÇÃO FALSAS GENERALIZAÇÕES OUVINDO O CORPO
VI. LIBERDADE
134 143 152 158 165
16 9
OS SEIS ESTÁGIOS DA PRÁTICA CURIOSIDADE E OBSESSÃO TRANSFORMAÇÃO O HOMEM NATURAL
VII. DESLUMBRAMENTO
169 175 184 190
20 1
A QUEDA O SOM DE UM POMBO E UMA VOZ CRÍTICA CONTENTAMENTO CAOS E DESLUMBRAMENTO
VIII. NADA ESPECIAL DO DRAMA AO NÃO-DRAMA MENTE SIMPLES DOROTHY E A PORTA TRANCADA PEREGRINAR NO DESERTO A PRÁTICA É DAR
201 207 211 219
22 5 225 232 234 243 247
Orelhas: Viver o zen não é nada de especial: é apenas a vida como tal. O zen é a vida em si, nada mais. Quando buscamos no zen (ou em qualquer caminho espiritual) a realização de nossas fantasias, separamo-nos da terra e do céu, dos nossos seres amados, de nosso coração, pois tais fantasias nos colocam num isolamento temporário. A realidade, no entanto, se insinua de mil maneiras, e a nossa vida se torna uma correria desenfreada, um desespero mudo, melodramas confusos. Distraídos e obcecados, lutando por algo especial, buscamos outro lugar e outro tempo: não o aqui, nem o agora e tampouco o isto — tudo, menos a vida comum, esse... nada de especial. Em Nada de especial, Charlotte Joko observa: "As coisas são sempre o que são". Esse pensamento não é um conselho de desespero, mas um convite ao contentamento. Vivendo a partir do que somos, saímos de uma vida centrada em nós para uma vida centrada na realidade. Abandonando os pensamentos mágicos, despertando para a mágica do momento atual, damo-nos conta da graça do nada de especial... o zen vivido. As reflexões de Joko Beck sobre tópicos como luta, sacrifício, separação e vínculos, mudança, conscientização, liberdade e deslumbramento revelam de que maneira a verdadeira espiritualidade não implica uma vida reclusa, separada, mas um mergulhar nas vivências diárias — os sentimentos, os relacionamentos, o trabalho — com consciência, honestidade e integridade. Dotada de uma perspicácia e de um discernimento hoje célebres, esta consagrada mestra ocidental contemporânea apresenta novas dimensões para a simplificação de nosso viver. Com isso Charlotte Joko revela como quando nada é especial tudo pode sê-lo.
Nada de especial fala do atemporal e do perene, com metáforas simples e claras para as coisas comuns e os incidentes do dia-a-dia, iluminando com maravilhoso bom senso a nossa vida. CHARLOTTE JOKO BECK nasceu em Nova Jersey. Só depois dos quarenta e pouco anos, é que iniciou sua prática zen, em Los
Angeles. Desde 1983, mudou-se para o Zen Center de San Diego, onde mora e leciona nos dias de hoje. É autora de Sempre zen, publicado pela Saraiva.
Prefácio O zen vivo não é nada especial: é a vida como tal. O zen é a vida em si, nada mais, "Não ponha uma outra cabeça em cima da sua", declarou o mestre Rinzai. Quando buscamos no zen (ou em qualquer caminho espiritual) a realização de nossas fantasias, separamo-nos da terra e do céu, dos nossos seres amados, de nossos corações e de nossas costas que doem, das próprias solas de nossos pés. Essas fantasias nos colocam num isolamento temporário; no entanto, a realidade insinua-se de dez mil maneiras e nossas vidas tornam-se correrias desenfreadas, um mudo desespero, melodramas confusos. Distraídos e obcecados, lutando por algo especial, buscamos outro lugar e outro tempo: não o aqui, não o agora, não isto. Tudo menos essa vida comum, esse... nada especial. O zen vivo significa uma inversão de nossa fuga do nada, uma abertura para o vazio do aqui-agora. De maneira lenta e dolorosa reconciliamo-nos com a vida. O coração esmorece, a esperança morre. "As coisas são sempre o que são", observa Joko. Essa tautologia vazia não é um conselho de desespero, mas um convite ao contentamento. Ao morrermos para os sonhos do ego, ao abandonarmos o esforço de obter resultados, recuperamos a simplicidade da mente. No jardim das experiências cotidianas desenterramos tesouros inesperados. Ingenuamente, vivendo a partir do que somos, saímos de uma vida centrada em nós para uma vida centrada na realidade e aberta ao deslumbramento. Abandonando os pensamentos mágicos, despertando para a magia do momento atual, damo-nos conta, no vazio dinâmico, da graça do nada em especial... o zen vivo. Em sua vida e em seus ensinamentos, em sua própria presença, Joko Beck manifesta a ausência notável que é o zen vivo.
Como observa Lenore Friedman: "Em sua naturalidade absoluta, Joko encarna a qualidade zen do 'nada especial'. Ela está apenas ali, em cada simples momento" *, A clareza sem cerimônia de Joko vai longe. Suas idéias ecoaram num número incontável de leitores pelo mundo todo. Sempre zen: Como introduzir a prática do zen em seu dia-a-dia trouxe os ensinamentos e a clareza do zen para a vida diária numa forma sintonizada com os ritmos da vida ocidental contemporânea. Nada especial: o zen vivo amplia e aprofunda os ensinamentos de Joko. Sua elevada maturidade e bem próxima atenção da prática em si fazem deste livro um texto útil não só para aqueles que desejam compreender melhor o zen no Ocidente, como também para aqueles que estão determinados a transformar suas vidas. Como a anterior, esta obra é fruto não só das idéias de Joko, mas também do generoso apoio de muitos de seus dedicados amigos e alunos. Os leitores encontrarão aqui palestras que esses alunos amigos transcreveram ou sugeriram que fossem incluídas. Sem a ajuda que prestaram, este livro talvez não tivesse sido concluído. John Loudon, editor-chefe da Harper em San Franscísco, orientou este projeto com incentivos e sabedoria. Agradeço-lhe por sua liderança e sensatez. Poucos autores e editores podem ser mais afortunados que eu em termos de assistência editorial: com um bom humor inabalável, Pat Padilla trabalhou com rapidez e precisão em minhas geralmente desordenadas revisões. Mais uma vez, colaborar com Joko foi a maior de todas as alegrias. Com uma compaixão que a sabedoria tornou madura, ela continua servindo todas as vidas que toca. Steve Smith Claremont, Califórnia Fevereiro de 1993.
*
Meetings with remarkable women: Buddhist teachers in America, Boston: Shambala, 1987, p. 112
I. Luta RODAMOINHOS E ÁGUAS PARADAS Somos bem parecidos a rodamoinhos no rio da vida. Em seu fluxo, o rio ou riacho encontra pedras, galhos ou irregularidades de leito que levam ao aparecimento espontâneo de rodamoinhos aqui e ali. A água que passa por esses pontos rapidamente os atravessa e se reintegra ao rio, podendo mais adiante entrar em outro rodamoinho e prosseguir depois. Embora por curtos períodos ela pareça distinta, um evento separado, a água do rodamoinho é apenas o próprio rio. A estabilidade do rodamoinho é temporária. A energia do rio da vida forma as coisas vivas — o ser humano, o gato, o cachorro, as árvores e as plantas —, e, então, o que mantinha o rodamoinho no lugar sofre uma modificação e aquele torvelinho é desfeito e toma a entrar no fluxo maior. A energia que foi um certo rodamoinho se dissolve e a água prossegue, talvez para ser novamente retida e, por um momento, transformar-se em outro rodamoinho. Preferimos no entanto não pensar sobre nossas vidas dessa maneira. Não queremos nos ver como uma formação temporária e simples, um rodamoinho no rio da vida. O fato é que assumimos uma forma por um certo tempo e, quando as condições são propícias, saímos de cena. Não há nada errado em sair de cena; é uma parte natural do processo. Contudo, gostamos de pensar que esses pequenos rodamoinhos que somos não fazem parte do rio. Queremos nos ver como seres permanentes e estáveis. Toda a nossa energia é dirigida para nossas tentativas de proteger nossa suposta realidade em separado. Para proteger essa nossa separação, criamos limites fixos e artificiais. Em conseqüência disso, acumulamos excesso de bagagem, coisas que deslizam para o fundo do rodamoinho e não podem fluir de novo. Assim, as coisas vão entupindo nosso rodamoinho e o processo fica confuso. O rio precisa fluir naturalmente, sem empecilhos. Se o nosso rodamoinho particular está todo entulhado de coisas, acabamos também prejudicando o rio em si. Ele não conseguirá ir a parte nenhuma. Os rodamoinhos próximos terão menos água em virtude de nosso apego desesperado. O melhor que podemos fazer por nós e pela vida é manter a água de nosso rodamoinho fluindo e limpa
para que apenas continue seu curso. Quando fica represada, criamos problemas mentais, físicos e espirituais. A melhor maneira de servirmos outros rodamoinhos é permitindo que a água que entra no nosso tenha liberdade para escorrer através dele e ir em frente solta e rápida, para atingir qualquer outro ponto que precise ser mobilizado. A energia da vida busca uma rápida transformação. Se conseguirmos ver a vida dessa maneira e não nos apegarmos a nada, a vida simplesmente vem e vai. Quando detritos chegam ao nosso pequeno rodamoinho, e se seu fluxo for harmônico e forte, eles ficam girando por ali durante um certo tempo e depois seguem adiante. Não é assim porém que vivemos. Como não percebemos que somos simples rodamoinhos no rio do universo, consideramo-nos entidades separadas que precisam proteger seus limites. O próprio julgamento "Sinto-me magoado" estipula um limite ao nomear um "eu" que cobra ser protegido. Sempre que algum lixo flutua para dentro de nosso rodamoinho, fazemos de tudo para evitá-lo, para expulsá-lo, ou para, de alguma maneira, controlá-lo. Noventa por cento da vida é gasta na tentativa de criar limites em torno do rodamoinho. Estamos constantemente na defensiva: "Ele talvez me magoe"; "Isso pode dar errado"; "Não gosto dele de jeito nenhum". Esse é um completo mau uso da nossa função vital e, mesmo assim, todos nos comportamos dessa forma, em maior ou menor escala. As preocupações financeiras refletem nosso esforço para manter limites fixos. "E se o meu investimento fracassar? Talvez eu perca todo o meu dinheiro." Não queremos que nada ameace nosso suprimento monetário. Todos pensam que isso seria uma coisa terrível. Sendo protetores e ansiosos, apegando-nos aos nossos bens materiais, entulhamos nossas vidas. A água que deveria estar correndo, entrando e saindo, para poder servir, torna-se estagnada. O rodamoinho que ergue um dique à sua volta e se isola do resto do rio se torna estagnado e perde sua vitalidade. A prática consiste em não se estar mais preso ao que é particular, mas em enxergá-lo como realmente é — uma parte do todo. Apesar disso, gastamos a maior parte de nossa energia criando água parada. È isso o que acontece quando se vive no medo. O medo existe porque o rodamoinho não entende o que é — ou seja, nada além do próprio rio. Enquanto não tivermos um vislumbre dessa verdade, toda nossa energia estará indo na direção errada. Criamos muitos
pontos de estagnação que geram contaminação e doenças. Esses pontos estagnados em busca de proteção dentro de diques começam a brigar uns com os outros. "Você fede. Não gosto de você." Águas estagnadas causam muitos problemas. O frescor da vida está perdido. A prática do zen ajuda-nos a ver de que maneira criamos estagnação em nossa vida. "Será que eu fui sempre tão zangado e nunca reparei?" Assim, nossa primeira descoberta na prática é reconhecer nossa própria estagnação, criada por nossos pensamentos centrados em nós mesmos. Os maiores problemas são criados por aquelas atitudes que não conseguimos enxergar em nós. A depressão, o medo e a raiva que não são reconhecidos criam rigidez. Quando reconhecemos a rigidez e a estagnação, a água começa a fluir de novo, pouco a pouco. Sendo assim, a parte mais vital da prática é o desejo de ser a própria vida — que é apenas o conjunto das sensações que nos chegam — como aquilo que cria nosso rodamoinho. Ao longo de muitos anos, treinamo-nos para fazer o oposto: criar pontos de água estagnada. Essa é a nossa falsa conquista. Desse esforço incessante nascem todos os nossos problemas e o nosso distanciamento da vida. Não sabemos como ser íntimos, como ser um fluxo de vida. Um rodamoinho estagnado, com limites defendidos, não está próximo de nada. Prisioneiros de sonhos centrados em nós mesmos, sofremos, como dizem os votos diários de um de nossos centros de zen *. A prática é a lenta inversão disso. Para a maioria dos estudantes, essa inversão é trabalho para uma vida inteira. A mudança é em geral dolorosa, principalmente no início. Quando estamos habituados à rigidez e à inflexibilidade de uma vida defendida, não queremos dar permissão para que novas correntes de energia cruzem o espaço da consciência, por mais rejuvenescedoras que sejam. A verdade é que não gostamos muito de ar fresco. Não gostamos muito de água limpa. Leva muito tempo até conseguirmos enxergar nosso sistema de defesa e manipulação da vida em nossas atividades diárias. A prática ajuda-nos a enxergar tais manobras com mais clareza, e essas constatações sempre são *
Os votos são os seguintes: "Preso num sonho autocentrado: somente sofrimento / Apegado a pensamentos autocentrados: exatamente o sonho. / A cada momento, a vida é assim: a única mestra. / Ser somente este momento: o caminho da compaixão"
desagradáveis. Ainda assim, é fundamental que vejamos o que estamos fazendo. Quanto mais tempo praticarmos, mais prontamente poderemos reconhecer nossos padrões de defesa. O processo nunca é fácil ou indolor, porém, e aqueles que estão esperando encontrar um lugar fácil e rápido para descansar não deverão embarcar nessa viagem. Por esse motivo é que não me sinto à vontade com o crescimento do Centro Zen em San Diego. Um número excessivo de aprendizes está em busca de soluções fáceis e indolores para suas dificuldades. Prefiro um centro menor, limitado àqueles que estão prontos e dispostos a executar o trabalho. Claro que não espero de principiantes o mesmo que de praticantes mais experientes. Estamos todos aprendendo, cada vez mais. No entanto, quanto maior o centro, mais difícil é manter o ensino limpo e rigoroso. Não é importante o número de alunos que conseguimos atrair para o centro. Importante é manter forte a prática. Por isso estou exigindo cada vez mais nos ensinamentos. Este não é um lugar para quem está interessado numa paz ou num estado de graça artificiais, ou em algum outro estado particular. O que obtemos efetivamente da prática é tornarmo-nos mais conscientes, mais despertos, mais vivos. É reconhecer nossas tendências nocivas tão bem que não tenhamos necessidade de pôlas em prática com os outros. Aprendemos que nunca está certo berrar com alguém só porque estamos aborrecidos. A prática ajuda-nos a perceber onde nossa vida está estagnada. Diferentemente dos rios de montanha com sua maravilhosa água percorrendo vários lugares, somos às vezes levados a uma imobilização com pensamentos do tipo: "Não gosto disso... Ele de fato me magoa", ou "Minha vida é tão difícil...". Na realidade, só existe o fluxo incessante da água. Aquilo que chamamos de nossa vida nada mais é que um pequeno desvio, um rodamoinho que se forma para em seguida se desfazer. Às vezes, os desvios são pequeninos e muito curtos: a vida rodopia por um ano ou dois em um só lugar e depois é removida. Ás pessoas se indagam por que alguns bebês morrem quando ainda são tão novinhos. Quem sabe? Nós não sabemos por quê. Faz parte desse interminável fluxo de energia. Quando pudermos aceitá-lo, estaremos em paz. Quando todos os nossos esforços vão em direção oposta, não estamos em paz. ALUNO:
Em nossa vida, é uma boa idéia escolher uma direção específica e concentrar ali nossa atenção, ou é melhor apenas
aceitar as coisas como elas são? Estipular metas específicas pode bloquear o fluxo da vida, não é? JOKO:
O problema está não em termos metas, mas em nossa relação com elas. Precisamos ter algumas metas. Por exemplo, os pais se estipulam metas, como organizar suas finanças antecipadamente para pagar a educação de seus filhos. As pessoas com talentos naturais têm como meta desenvolvê-los. Não há nada de errado nisso. Ter metas é parte de ser humano. É como chegamos lá que cria transtornos. ALUNO:
O melhor caminho é ter as metas, mas não ficar na dependência do resultado final? JOKO:
É isso. A pessoa simplesmente faz aquilo que é preciso para atingir seu objetivo. Qualquer pessoa que se interesse em obter um grau acadêmico precisa matricular-se numa escola e assistir às aulas, por exemplo. A questão é incentivar o objetivo realizando-o no presente: fazendo isto, isso ou aquilo, conforme for se mostrando necessário, aqui, agora. Em algum momento iremos colar o grau, ou o que for. Por outro lado, se apenas sonhamos com um objetivo e deixamos de prestar atenção ao presente, é provável que não consigamos levar nossa vida adiante — e fiquemos estagnados. Seja qual for a nossa escolha, o resultado nos servirá como uma lição. Se estivermos atentos e despertos, aprenderemos o que é necessário fazer em seguida. Nesse sentido, não há decisão errada. No minuto mesmo em que tomamos uma decisão, somos confrontados com nosso próximo professor. Podemos fazer escolhas que nos deixem incomodados. Podemos ter remorso por certas coisas que fazemos — e aprender com essas experiências. Por exemplo, não existe uma pessoa ideal para se casar, nem um meio ideal de se viver. No instante em que nos casamos, estamos com todo um novo conjunto de oportunidades inéditas de aprendizagem, combustível para prática. Isso vale não apenas para casamentos, mas para qualquer relação. Enquanto estivermos praticando com o que chega a nós, o resultado final será quase sempre recompensador e terá valido a pena. ALUNO:
Quando estipulo uma meta para mim, minha tendência é usar o estilo "rápido e em frente", ignorando o fluxo do rio.
JOKO:
Quando o rodamoinho tenta tornar-se independente do rio, como um tornado que rodopia e sai do controle, ele pode causar muitos estragos. Mesmo que pensemos no objetivo como um certo estado futuro a ser alcançado, a verdadeira meta é sempre a vida deste momento. Não há como empurrar o rio para o lado. Mesmo que tenhamos construído um dique à nossa volta e tenhamos nos tornado um lago de água estagnada, alguma coisa acontecerá que não havíamos previsto. Talvez é a amiga e seus quatro filhos que se convida para vir nos visitar por uma semana. Ou morre alguém. Ou o trabalho muda de repente. A vida parece nos apresentar justamente aquilo que seria preciso para movimentar o lago. ALUNO: Em
termos da analogia dos rodamoinhos e do rio, qual é a diferença entre vida e morte? JOKO: O
rodamoinho é um vórtice, e em torno de seu centro a água gira. Conforme a vida da pessoa vai prosseguindo, o centro aos poucos vai ficando cada vez mais fraco. Quando enfraquecer o suficiente, desfaz-se e a água simplesmente se torna de novo parte do rio. ALUNO:
Desse ponto de vista, não seria melhor ser sempre apenas parte do rio? JOKO:
Nós sempre somos parte do rio, sendo rodamoinhos ou não. Não há como evitarmos ser parte do rio. Não sabemos disso, porém, porque temos uma forma delimitada e não enxergamos além dela. ALUNO:
Portanto é uma ilusão que a vida seja diferente da
morte? JOKO:
Em sentido absoluto isso é verdade, embora de nosso ponto de vista sejam momentos distintos. Em níveis diferentes, ambas as percepções são verdadeiras: não existe vida e morte e existe vida e morte. Quando só conhecemos essa segunda perspectiva, apegamo-nos à vida e tememos a morte. Quando vemos as duas, o aguilhão da morte é muito mais tênue. Se esperarmos o bastante, todos os rodamoinhos acabarão desfazendo-se com o tempo. A mudança é inevitável. Como vivo em San Diego há muito tempo, tenho observado os penhascos de La Jolla há anos. Eles estão mudando. A linha costeira que existe hoje não é a mesma que eu contemplava há trinta anos. Acontece o
mesmo com os rodamoinhos: eles também mudam e, com o tempo, vão enfraquecendo. Algo cede enfim, a água flui numa corredeira — e está tudo certo.
Quando enfim morremos, retemos alguma coisa do que fomos ou tudo se acaba? ALUNO:
JOKO:
Não vou responder a essa pergunta. Sua prática irá proporcionar-lhe um certo entendimento dessa questão. ALUNO:
Algumas vezes você descreveu a energia da vida como uma inteligência natural que nós somos. Essa inteligência teria algum tipo de limite? JOKO:
Não. Inteligência não é uma coisa; não é uma pessoa. Não tem limites. No instante em que estabelecemos limites para uma coisa, nós a reinserimos na esfera fenomênica das coisas, como um rodamoinho que se enxerga separado do rio. ALUNO: Um
de nossos votos comuns no Centro Zen fala de um "ilimitado campo de benesses" *. Isso é o mesmo que o rio, que a inteligência natural que nós somos? JOKO:
Sim. A vida humana é apenas uma forma temporária que essa energia toma. ALUNO:
Apesar disso, em nossas vidas existe de fato a necessidade de limites. Tenho uma grande dificuldade em juntar isso com o que você está dizendo. JOKO:
Alguns limites são simplesmente inerentes ao que somos; por exemplo, todos temos uma quantidade limitada de energia e de tempo. Precisamos reconhecer nossas limitações nesse sentido. Mas isso não quer dizer que tenhamos de estabelecer limites artificiais e defensivos que bloqueiam nossas vidas. Mesmo quando somos ainda pequenos rodamoinhos podemos já reconhecer que somos parte do rio — e não ficamos estagnados.
*
Francis Dojun Cook, How to raise an ox: Zen master Dogen's Shobogenzo, including ten newly translated essays, Los Angeles: Center Publications, 1978, p. 24 e s.
O CASULO DA DOR Quando nos inclinamos no zendo, o que estamos honrando? Uma maneira de responder a essa pergunta é indagar o que de fato honramos em nossa vida e que transparece naquilo que pensamos e fazemos. E a verdade dessa questão é que, em nossa vida, nós não honramos a natureza buda, nem o Deus que engloba todas as coisas, inclusive a vida e a morte, o bem e o mal, todos os opostos. A verdade é que não estamos interessados nisso. É certo não querermos honrar a morte, a dor e a perda. O que fazemos é erigir um falso deus. A Bíblia diz: "Não tens outros deuses antes de mim". Mas fazemos justamente isso. Qual é o deus que construímos? O que de fato honramos, a que damos realmente atenção, de momento a momento? Poderíamos chamá-lo de o deus do conforto, das amenidades e da segurança. Quando reverenciamos esse deus, destruímos a nossa vida. Quando reverenciam o deus do conforto e das amenidades, as pessoas literalmente se matam, com drogas, álcool, corridas de automóveis, raiva, imprudências. As nações reverenciam esse deus numa escala muito maior e destrutiva. Enquanto não enxergarmos de forma honesta que é disso que nossa vida trata, não seremos capazes de descobrir quem somos de fato. Temos muitas maneiras de lidar com a vida, muitas maneiras de reverenciar o conforto e as amenidades. Todas elas baseiam-se na mesma coisa: o medo de deparar com qualquer tipo de incômodo. Se devemos ter ordem e controle absolutos, estamos tentando evitar toda e qualquer fonte de incômodo. Se conseguimos fazer com que as coisas sejam do jeito que queremos e ficamos zangados quando isso não acontece, então pensamos que podemos sobreviver e deixar de lado nossa ansiedade a respeito da morte. Se conseguimos agradar a todas as pessoas, então imaginamos que as coisas desagradáveis não entrarão em nossa vida. Esperamos que, sendo a estrela do espetáculo, resplandecente, maravilhosa e eficiente, teremos uma platéia tão embevecida que não precisaremos sentir nada. Se conseguirmos nos afastar do mundo e entreter-nos apenas com nossos próprios sonhos, fantasias e distúrbios emocionais, pensaremos que conseguimos nos furtar aos incômodos. Se conseguirmos prever tudo antes, se conseguirmos ser tão espertos que nos seja possível
encaixar tudo em algum plano ou ordem, formulando um entendimento intelectual completo, então talvez não sejamos ameaçados. Se conseguirmos nos submeter a alguma autoridade, fazê-la ditar-nos como agir, então poderemos entregar a outrem a responsabilidade por nossa vida e não teremos mais que nos incumbir dela. Não teremos de sentir a ansiedade de tomar uma decisão. Se vivermos alucinadamente correndo atrás de todas as sensações agradáveis, de todas as excitações, de todas as formas de diversão, então talvez não tenhamos de sentir dor. Se conseguirmos dizer aos outros o que fazer, mantendo-os bem sob controle, sob nossos pés, talvez eles não consigam nos ferir. Se conseguirmos "viajar" num êxtase qualquer, se conseguirmos ser um "buda" inconseqüente, não teremos de assumir a responsabilidade pelos incômodos do viver. Poderemos apenas relaxar e ser felizes. Todas essas são versões do deus que realmente reverenciamos. É o deus do nenhum desconforto e do nenhum incômodo. Sem exceção, todo ser na Terra tem essa atitude, em maior ou menor grau. Enquanto a alimentamos, perdemos o contato com o que na verdade é. Nessa falta de contato, nossa vida desce em espiral. E aqueles mesmos incômodos que tanto desejávamos evitar conseguem, tomar-nos de assalto. Tem sido esse o problema da vida humana desde o início dos tempos. Todas as filosofias e religiões têm sido tentativas variáveis de lidar com esse medo básico. Apenas quando essas tentativas nos falham é que ficamos prontos para iniciar uma prática séria. E elas de fato falham. Porque os sistemas que adotamos não se baseiam na realidade, não podem dar certo, apesar de todos os nossos maiores esforços. Mais cedo ou mais tarde, constatamos que está faltando algo. Infelizmente, nós muitas vezes apenas aumentamos o nosso erro continuando com as mesmas tentativas ou revestindo nosso velho e débil sistema com um outro novo, também débil. É sedutor, por exemplo, entregarmo-nos a alguma falsa autoridade ou a um pretenso guru, que irá administrar a nossa vida por nós, enquanto tentamos encontrar algo ou alguém fora de nós que se incumba de nosso medo. Ontem uma borboleta entrou voando pela porta de minha casa e ficou esvoaçando pela sala. Alguém a apanhou e a soltou lá
fora. Fiquei pensando na vida de uma borboleta. Ela começa como uma lagarta, que se desloca muito devagar e não consegue enxergar muito longe. Depois de um certo tempo, ela faz um casulo e naquele espaço escuro e silencioso permanece muito tempo. Por fim, depois do que deve parecer uma eternidade de trevas, ela emerge como uma borboleta. A história de vida das borboletas é semelhante à nossa prática. Temos alguns preconceitos a respeito de ambas, porém. Podemos imaginar, por exemplo, que sendo as borboletas seres lindos, sua vida no casulo, antes de se tornarem borboletas, também é linda. Não percebemos tudo o que a lagarta deve suportar para tornar-se uma borboleta. Da mesma forma, quando começamos a praticar, não nos damos conta da longa e penosa transformação a que somos solicitados. Temos de enxergar através de nossa busca de coisas externas, dos falsos deuses do prazer e da segurança. Temos de parar de devorar isso e perseguir aquilo com nossa visão míope e simplesmente relaxar dentro do casulo, nas trevas da dor que é a nossa vida. Essa prática exige anos e anos. Diversamente das borboletas, não emergimos de uma só vez. Enquanto giramos dentro do casulo de dor, podemos ter vislumbres fugazes da vida, como uma borboleta esvoaçando ao sol. Nesses momentos, sentimos o absoluto deslumbramento do que é nossa vida — algo que nunca conhecemos como lagartinhas atarefadas, preocupadas apenas com nós próprias. Começamos a conhecer o mundo da borboleta apenas pelo contato com nossa própria dor, o que significa não reverenciar mais o deus do conforto e das amenidades. Temos de desistir de nossa servil obediência a qualquer sistema que evite a dor que tenhamos elaborado, constatando que não podemos nos esquivar do incômodo simplesmente correndo mais depressa e tentando mais um pouco. Quanto mais depressa nos afastamos de nossa dor, mais ela se apodera de nós. Quando não funciona mais aquilo de que dependíamos para dar sentido à nossa vida, o que fazer? Algumas pessoas jamais desistem dessa falsa busca. Com o tempo podem acabar morrendo de uma overdose, literal ou figurativamente. No esforço de adquirir controle movemo-nos cada vez mais rápido, damos tudo o que temos, tentamos com mais empenho, esprememos as pessoas ao máximo, esprememos nós mesmos ao máximo. No entanto, a vida nunca poderá ser de fato
submetida a um controle total. Quanto mais fugimos da realidade, mais a dor aumenta. Essa dor é nossa mestra. A prática sentada não trata de encontrar um estado feliz de graça e nele se esquecer. Esse estado pode inclusive ocorrer na prática sentada, quando já houvermos vivenciado nossa dor várias vezes seguidas, de modo que depois só resta o entregar-se. Essa entrega a essa abertura para algo novo e virgem é a conseqüência de se viver a dor, não o resultado de se encontrar um lugar onde podemos deixar a dor do lado de fora.
Sesshin * sentado e a prática diária são uma questão de nos embrulharmos naquele casulo de dor. Não o faremos senão de bom grado. Primeiro podemos ter apenas uma pequena faixa atandonos, e então nos livramos dela. Outra vez a enrolamos à nossa volta e mais uma vez nos soltamos, Depois de um tempo, sentimonos dispostos a sentar com uma parcela de nossa dor durante algum tempo. Então depois, talvez, dispomo-nos a tolerar duas ou três faixas nos apertando. Conforme nossa visão vai ficando mais clara, podemos simplesmente sentar dentro de nosso casulo e descobrir que é o único espaço sossegado que já tivemos na vida. E, quando estivermos dispostos a estar ali — em outras palavras, quando estivermos desejando que a vida seja o que ela é, englobando tanto a vida como a morte, tanto o prazer como a dor, tanto o bem como o mal, sentindo conforto em ser as duas coisas —, então o casulo começa a desfazer-se. Diferentemente da borboleta, alternamos entre o casulo e a borboleta muitas vezes. Esse processo se mantém por toda a nossa vida. Toda vez que deparamos com áreas não resolvidas dd nossa vida, temos que construir um outro casulo e repousar nele em silêncio até que tenha se completado o período de aprendizagem. Toda vez que o casulo se rompe e nós damos mais um pequeno passo, estamos um pouco mais livres. O primeiro e essencial passo para nos tornarmos uma borboleta é reconhecer que não chegaremos lá sendo lagartas. Temos que enxergar mais além de nossa busca pelo falso deus do conforto e do prazer. Temos que formular uma nítida imagem desse deus. Temos de abrir mão de nossa noção de que temos direitos, de que a vida nos deve isto ou aquilo. Por exemplo, temos de abandonar a *
Retiro para meditação zen intensiva.
noção de que conseguimos forçar os outros a nos amar fazendo coisas para eles. Temos de reconhecer que não temos condições de manipular a vida para nos satisfazer e que encontrar os defeitos em nós ou nos outros não é um caminho eficaz para se ajudar quem quer que seja. Aos poucos vamos abandonando nossa arrogância básica. A verdade é que a vida dentro do casulo é frustrante e dói muito e nunca fica inteiramente para trás. Não estou dizendo que da manhã até a noite sentimos algo como "Estou envolvido pela dor". Estou dizendo que estamos sempre acordando para o que de fato nos sentimos atraídos, para aquilo que estamos fazendo com a nossa vida realmente. E o fato é que isso é doloroso. Não existe possibilidade de liberdade, porém, sem essa dor. Ouvi há pouco tempo uma declaração de um atleta profissional: "Amor não é prazer compartilhado. É dor repartida". Eis uma boa percepção. Sem dúvida podemos gostar muito de passear com nosso marido ou namorado, por exemplo, quando saímos para jantar juntos. Não estou questionando o valor do prazer compartilhado. Mas, se queremos uma relação mais próxima e autêntica, precisamos compartilhar com nosso companheiro aquilo que mais nos assusta falar para outra pessoa. Quando fazemos isso, então o outro tem a liberdade de fazer a mesma coisa. Em vez disso, queremos ficar mantendo a nossa imagem, principalmente para alguém a quem estamos tentando impressionar. Compartilhar nossa dor não significa ficar informando o outro de que maneira ele nos irrita. Seria uma outra maneira de lhe estar dizendo "Estou com raiva de você". Isso não nos ajuda a quebrar nosso falso ídolo, nem a nos abrir para a vida como uma borboleta. O que de fato nos abre é falar de nossas vulnerabilidades. Às vezes vemos um casal que vem fazendo esse árduo trabalho durante toda sua vida. Ao longo desse tempo, envelheceram juntos. Podemos sentir o imenso conforto, a qualidade recíproca de bem-estar entre os dois. É maravilhoso e muito raro. Sem essa qualidade de abertura e vulnerabilidade, os pares não ficam se conhecendo de verdade; são uma imagem vivendo com outra imagem. Talvez tentemos nos esquivar do casulo da dor mergulhando num estado nebuloso e mal focalizado, como um boiar levemente agradável que pode durar horas. Quando nos damos conta de que
é isso que está acontecendo, qual seria uma boa pergunta para se fazer? ALUNO: "O
que estou evitando?"
ALUNO-. Eu
poderia perguntar: "O que estou vivenciando neste exato momento?". JOKO: Essas
são duas boas perguntas para se fazer. O curioso é que dizemos que queremos conhecer a realidade e ver a nossa vida como ela é; e, no entanto, quando começamos a praticar, ou freqüentamos os sesshin, encontramos imediatamente maneiras de evitar a realidade, refugiando-nos nesse estado nebuloso, sonhador. Essa é apenas uma outra forma de reverenciar o falso deus do conforto e do prazer. ALUNO:
Não é um certo desequilíbrio buscar o sofrimento e concentrar nele a atenção? JOKO:
Não temos que ir buscá-lo, ele já está em nossas vidas. A cada cinco minutos entramos numa espécie de dificuldade. Toda nossa "busca" é para evitá-lo. Existem incontáveis maneiras para se tentar escapar dele, ou para colocar uma concha de proteção a nossa volta. Apesar de todos os nossos esforços, essa concha se rompe. Então ficamos mais desesperados e nos esforçamos mais. Vamos trabalhar e descobrimos que o chefe teve uma noite difícil, ou que nosso filho acaba de ligar dizendo que está com problemas na escola. A concha está sendo o tempo todo invadida. Não existe maneira de nos assegurarmos de que ela permanecerá intacta. Nossas vidas se desmoronam porque não conseguimos tolerar nenhuma oposição ao modo como queremos que as coisas saiam. A dor está constantemente em nossas vidas. Sentimos não só a nossa própria dor, mas a das pessoas ao nosso redor. Tentamos erguer um paredão mais sólido que o anterior, ou evitar as pessoas que estão sofrendo; contudo, a dor sempre está presente, seja como for. ALUNO:
Vamos supor que estou praticando e que não estou sofrendo. Na verdade, estou me sentindo muito bem. É útil lembrar de momentos dolorosos pelos quais já se passou, ou retornar a situações que ficaram sem resolver e tentar trabalhar com essas coisas?
JOKO: Não
é necessário. Se estivermos alertas para o que está se passando em nossos pensamentos e em nosso corpo neste momento, teremos mais do que o suficiente com que trabalhar. Quando estamos plenamente despertos, neste momento, a prática também pode ser agradável. Mas não devemos ir em busca disso e tentar escapar da dor, pois assim estaríamos trazendo para a prática o faíso deus e nos recusaríamos a despertar para sua verdadeira natureza. ALUNO:
Com o tempo descobri que o que começa a aparecer durante a prática não é tanto prazer ou dor, nem algo entre esses dois, mas apenas interesse. A vivência pode ser vista como uma espécie de curiosidade, JOKO: Sim,
bem lembrado.
Estamos falando da diferença entre o absoluto e o relativo? Podemos dizer que o absoluto é prestar atenção em tudo e que o relativo é ir apenas atrás de prazer e conforto? Relaxar no casulo da dor seria então um meio de se chegar ao absoluto? ALUNO:
JOKO;
Eu não diria que é "um meio de chegar ao absoluto", pois sempre estamos nele. Porém, escolhemos não prestar atenção no fato de estarmos nele e deixarmos de lado parte de nossas vivências. O absoluto sempre engloba a dor e o prazer. Não há nada de errado com a dor em si: nós apenas não gostamos dela. Não existe algo chamado absoluto que seja maior do que o relativo. São os dois lados de uma mesma moeda. O mundo fenomênico das pessoas, das árvores e dos tapetes e o mundo absoluto do puro nada incognoscível, da energia, são a mesma coisa. Em vez de ir em busca de um ideal unilateral, precisamos nos curvar diante do absoluto no relativo, assim como do relativo no absoluto. Devemos honrar todas as coisas.
SÍSIFO E O FARDO DA VIDA A mitologia grega fala de Sísifo, rei de Corinto, condenado pelos deuses ao Hades em punição eterna. Para sempre ele tem que empurrar um rochedo imenso, colina acima, e, quando chega ao alto, o rochedo rola para baixo. Ele se esforça para empurrar a
pedra imensa colina acima apenas para vê-la descer tudo de novo, interminavelmente, interminavelmente, eternidade afora. Como todos os mitos, essa história contém um ensinamento. Como vocês vêem esse mito? Do que ele trata? Como um koan, tem muitos aspectos. ALUNO:
O mito sugere para mim que a vida é um ciclo. Existe um começo, um meio e um fim e então começa tudo de novo. ALUNO:
Isso me faz pensar na prática de ficar limpando e limpando o espelho. Temos de fazê-lo até desistir e viver o momento presente. ALUNO:
O castigo de Sísifo é horrível só se ele espera que um
dia termine. ALUNO:
Esse mito me recorda a ação obsessiva, quando estou preso num ciclo repetitivo de comportamentos e pensamentos. ALUNO:
Sísifo parece uma pessoa que está lutando com a vida e seus fardos, tentando livrar-se deles. ALUNO:
Essa história parece a nossa prática. Se vivemos cada momento, sem o pensamento de alguma meta, ou de chegar em algum lugar ou de finalmente obter alguma coisa, então nós apenas vivemos. Fazemos o que há em seguida: empurrar a rocha, ela rolar, e então empurrar de novo. ALUNO:
Penso que a história de Sísifo representa a idéia de que não existe esperança. ALUNO:
A natureza de minha mente é não ficar satisfeito com meus próprios feitos e ter mais interesse no desafio de chegar em algum lugar. Assim que consigo algo, ele não me diz mais muita coisa. ALUNO:
Sísifo é quem eu sou. Somos todos Sísifos, tentando fazer alguma coisa com nossas vidas e dizendo "Não posso". O próprio rochedo é o "Não posso". JOKO: A
questão que eu gostaria de colocar é o que quer dizer fazer o mal? É interessante que alguém tenha julgado Sísifo por ele ter feito o mal e que tenha sido condenado a um local especial chamado Hades. Deixando porém essas questões de lado, se pudermos ver que só existe este momento, momento, então empurrar a pedra colina acima ou vê-la rolar para baixo são, em certo sentido, a
mesma coisa. Nossa interpretação interpretação comum é que a tarefa de Sísifo é difícil e desagradável. Contudo só o que acontece é empurrar a pedra e vê-la voltar, um momento depois do outro. Como Sísifo, estamos todos apenas fazendo o que estamos fazendo, de momento a momento. Acrescentamos julgamentos a essas atividades, contudo, acrescentamos-lhes idéias. O inferno não está em empurrar a pedra, mas em pensar nisso, em criar idéias de esperança e desapontamento, em indagar-se se um dia será possível finalmente fazer com que a pedra fique lá em cima. "Trabalhei tanto! Talvez desta vez a pedra fique." Nossos esforços de fato fazem com que as coisas aconteçam aconteçam e, fazendo com que elas aconteçam, chegamos ao segundo seguinte. Talvez a pedra fique no alto por um certo tempo; talvez não. Nenhum dos dois acontecimentos é, em si, bom ou mau. O peso da pedra, 0 fardo, é o pensamento de que nossa vida é uma luta, de que deveria ser diferente do que é. Quando julgamos o fardo como algo desagradável, procuramos meios para escapar. Talvez uma pessoa se embebede para esquecer do que é empurrar a pedra. Outra manipula as pessoas para ajudá-la com isso. Muitas vezes tentamos empurrar essa carga para uma outra pessoa, para fugirmos do trabalho. Qual poderia ser o estado iluminado para o rei Sísifo? Se ele empurrar a pedra alguns milhares de anos, o que por fim irá compreender? ALUNO: Ser JOKO:
uno com o ato de empurrar, a cada momento.
Simplesmente empurrar a pedra e abandonar a esperança de que sua vida será outra coisa. A maioria de nós imagina que o estado iluminado será algo muito mais agradável do que empurrar pedras! Alguma vez você já acordou pela manhã resmungando: "Não quero nem pensar em todas as coisas que tenho pela frente hoje'' ? Mas a vida é como ela é. E nossa prática trata não de fazer a vida ser gostosa, mesmo que essa seja uma esperança muito humana. Todos gostamos das coisas que nos fazem sentir bem. Gostamos em especial dos companheiros que nos fazem sentir bem. Se isso não acontece, concluímos que as coisas precisam ser mudadas, que ele ou ela precisa mudar! Por sermos humanos, pensamos que nos sentir bem é o objetivo da vida. Mas, se apenas empurrarmos nossa pedra atual e praticarmos para tomar consciência do que acontece em nós
enquanto a empurramos, lentamente iremos nos transformar. O que significa transformar? ALUNO:
Mais aceitação, menos julgamentos, descontração descontração diante da vida, abertura para a vida.
mais
Abertura para a vida e aceitação estão um pouco fora do alvo, embora seja difícil encontrar palavras exatamente exatamente corretas. JOKO:
ALUNO:
A iluminação tem algo que ver com chegar ao zero, ao
"não-Iugar". JOKO: Mas
o que significa para um ser humano o "não-Iugar"? "não-Iugar"? O que é esse e sse "não-Iugar"? "não-Iugar"? ALUNO: O
agora, o já.
JOKO: Sim,
mas como o vivemos? Vamos supor que acordo de manhã com uma forte dor de cabeça e que tenho uma agenda lotada. Todos temos dias assim. O que significa "estar no zero" diante disso? ALUNO:
Significa estar ali com todos os meus sentimentos e com todos os meus pensamentos — simplesmente estar ali, sem acrescentar mais nada extra. JOKO:
Sim, e mesmo que acrescentemos algo extra isso também faz parte do pacote, parte da vida como ela é neste momento. Parte do pacote é: "Eu simplesmente não quero fazer tudo deste dia". Quando esse pensamento é o que reconheço como presente, então estou apenas empurrando a minha pedra. Passo por esse dia difícil e o que me resta para o dia seguinte? De alguma forma o rochedo deslizou de volta para baixo enquanto eu estava dormindo, de modo que lá vou eu de novo: empurrar, empurrar, empurrar. "Eu detesto isso... sim, eu sei que detesto. Gostaria que tivesse um jeito de sair, mas não tem ou pelo menos eu não enxergo nenhum agora." Perfeito sendo como é. Quando nós vivemos de verdade cada momento, o que acontece com o fardo da vida? O que acontece com nossa pedra? Se formos totalmente o que somos, a cada segundo, começamos a sentir a vida como algo feliz. Entre nós e uma vida feliz estão nossos pensamentos, nossas idéias, nossas expectativas, nossas esperanças e nossos receios. Não é que tenhamos que ter uma completa boa vontade com respeito a empurrar a pedra. Podemos ter má vontade desde que reconheçamos nossa má vontade e
simplesmente a sintamos. Má vontade não é problema. Uma parte fundamental de toda prática séria é "Não quero fazer isso". E não fazemos. Mas, quando nossa má vontade é carregada pelos esforços para escapar, a questão é outra. "Bom, vou comer outra fatia deste bolo de chocolate. Acho que sobrou uma"; "Vou telefonar para minhas amigas e falar de como tudo é terrível"; "Vou me enfiar num canto para poder realmente ficar me preocupando com minha vida horrível e com toda a pena que sinto de mim". Que outras maneiras existem para se escapar? ALUNO: Ficar
muito ocupado até me esgotar.
ALUNO: Ficar
adiando.
ALUNO: Fazer
planos e então refazê-los sem parar.
ALUNO: Meu
jeito é ficar doente algum tempo.
JOKO:
É verdade, costumamos fazer isso: ficar resfriados, torcer o tornozelo, pegar gripe. Quando rotulamos nossos pensamentos, ficamos conscientes de como escapamos. Começamos a ver as mil e uma formas pelas quais tentamos escapar de viver este momento, de empurrar a nossa pedra. Desde o momento em que nos levantamos pela manhã até a hora em que vamos dormir, estamos fazendo alguma coisa; empurramos a nossa pedra o dia inteiro. É o nosso julgamento a respeito do que estamos fazendo que causa a nossa infelicidade. Podemos nos julgar vítimas: "Estou trabalhando com alguém que não é justo comigo1';' 'Não consigo me defender''. Nossa prática é ver o que estamos empurrando — chegar nesse fato básico. Ninguém se dá conta disso o tempo todo; eu com certeza não. Mas reparo que as pessoas que estão praticando já há algum tempo começam a ter um certo senso de humor a respeito de sua carga. Afinal de contas, a idéia de que a vida é um fardo é só um conceito. Estamos simplesmente fazendo aquilo que estamos fazendo, segundo a segundo. A medida de uma prática frutífera é sentirmos que a vida é menos um fardo e mais um motivo de contentamento. Isso não significa que não existe tristeza, mas a vivência da tristeza é o que justamente traz contentamento. Se não percebermos essa mudança depois de algum tempo de prática, então ainda não teremos entendido o que é a prática; essa mudança é um barômetro muito confiável.
Os fardos sempre estão aparecendo em nossos caminhos. Por exemplo, vamos supor que preciso passar um certo tempo com alguém de quem não gosto, e isso me parece um fardo. Ou tenho uma semana difícil pela frente e fico desanimada com essa perspectiva. Ou as turmas que tenho neste semestre são de alunos despreparados. Criar filhos pode nos fazer sentir sobrecarregados. Doenças, acidentes, quaisquer obstáculos que nos venham pela frente podem ser sentidos como fardos. Não podemos viver como seres humanos sem encontrar dificuldades, que podemos resolver chamar de "fardos". A vida então começa a ser tão pesada. ALUNO:
Acabei de me lembrar de um conceito da psicologia que fala da "querida carga". JOKO:
Sim, embora a "querida carga" não possa permanecer apenas em nossas cabeças; ela deve transformar-se em nós. Existem muitos conceitos e noções maravilhosos, mas se eles não se tornarem nós, como somos, podem tornar-se os fardos mais hostis de todos. Entender uma coisa intelectualmente intelectualmente não basta; às vezes é pior do que não entender entender nada. ALUNO:
Estou com dificuldade para compreender a idéia de que estamos sempre empurrando a pedra colina acima. Talvez porque neste momento as coisas todas parecem estar a meu favor. JOKO:
É possível. Às vezes as coisas realmente vão ao nosso encontro. Podemos Podemos estar vivendo o auge de um novo e maravilhoso relacionamento. O novo emprego continua excitante. Mas há uma diferença entre as coisas nos serem favoráveis e o verdadeiro contentamento. Vamos supor que estamos num desses belos períodos em que temos um bom relacionamento ou um bom emprego, e tudo está uma maravilha. Qual é a diferença entre essa sensação boa, que se baseia em circunstâncias, e o contentamento? Como saber? ALUNO: Tememos JOKO: E
como esse medo se manifestaria?
ALUNO: Em JOKO:
que possa acabar.
alguma tensão corporal.
A tensão corporal sempre estará presente se nossa sensação boa for apenas aquela felicidade comum, centrada em si mesma. O contentamento não tem tensão, porque aceita tudo que é como é. Às vezes, empurrando a pedra colina acima, teremos
mesmo assim uma fase boa. Como é que o contentamento aceita essa sensação boa? ALUNO: Simplesmente Simplesmente
como é. é.
JOKO:
Sim. Sem sombra de dúvida, se estivermos num bom período de nossas vidas, vamos desfrutá-lo, mas sem nos apegarmos a isso. Nossa tendência é preocuparmo-nos com seu fim e então tentaremos nos agarrar agarrar a ele. e le. ALUNO:
É, eu percebo que, enquanto estou simplesmente vivendo e desfrutando isso, estou bem, E quando eu paro e penso "Isso está ótimo" que eu começo a me preocupar com "Quanto tempo isso ainda vai durar?". JOKO:
Nenhum de nós escolheria ser Sísifo, mas, em certo sentido, todos somos. ALUNO: Todos temos pedras na cabeça. JOKO:
Sim. Quando nos entretemos com a pedra que está sobre nossa cabeça, o rochedo da vida parece pesado. Mas, por outro lado, nossas vidas são apenas aquilo que estamos fazendo. O modo de ficarmos mais contentes em só viver nossa vida como ela é, em só tornar mais leve o fardo de cada dia, é ser essa vivência de constante aliviar. Essa é a forma de conhecimento que vem da experiência, experiência, e o entendimento intelectual pode decorrer dela. ALUNO:
Se eu soubesse que a pedra ia descer todas as vezes eu poderia pensar: *'Bom, vamos ver com que rapidez consigo levála até o alto desta vez. Talvez eu possa melhorar meu tempo". Eu transformaria isso num jogo ou criaria alguma espécie de significado em minha mente. JOKO:
Mas se estamos fazendo isso desde sempre, ou mesmo durante uma vida inteira, o que acontecerá com o significado que criarmos? Essa será uma criação puramente intelectual; mais cedo ou mais tarde, cairá por terra. Esse é o problema do "pensamento positivo" e das afirmações: não podemos mantê-las funcionando para sempre. Esses esforços nunca são o caminho da liberdade. Na realidade, nós já somos livres. Sísifo não era prisioneiro no Hades, vivendo em eterno castigo. Ele sempre estava livre porque estava fazendo o que estava fazendo.
RESPONDENDO ÀS PRESSÕES Antes do serviço, recitamos o verso do Kesa: "Vasto é o manto da libertação, o campo informe de benefícios. Visto o ensinamento universal, salvando todos os seres sensíveis" *. A frase "campo informe de benefícios" é particularmente evocativa; traz à tona quem somos e qual é a função de um serviço religioso. O ponto da prática do zen é sermos quem somos — um campo informe de benefícios. Essas palavras parecem muito belas, mas vivê-las em nossa própria vida é difícil e confunde. Consideremos de que maneira lidamos com a pressão ou o estresse. Aquilo que para alguém é pressão para outro não é. Para uma pessoa tímida, pressão poderia ser atravessar uma festa apinhada de gente. Para outra, pressão poderia ser ficar sozinha, ou cumprir prazos. Há indivíduos para quem pressão seria ter uma vida lenta, monótona, sem nenhum prazo a cumprir. Um novo filho, um novo namorado, um novo amigo podem ser focos de pressão. O sucesso também. Há pessoas que lidam bem com o fracasso, mas não com o sucesso. Pressão é aquilo que nos faz ficar tensos, que nos desperta a ansiedade. Temas, diferentes estratégias. para. respondera pressões. Gurdjieff, intérprete do misticismo sufi, chamava nossa estratégia de "aspecto principal" **. Precisamos aprender qual é o nosso aspecto principal — a maneira mais comum de lidarmos com pressões. Quando está sob pressão, uma pessoa tende a recuar, outra se esforça para ser perfeita ou para ser mais estrela ainda. Há quem responde à pressão trabalhando mais, e há os que então trabalham menos. Alguns fogem, outros tentam dominar. Há os que se ocupam e falam bastante; e há os que se tornam mais calados do que o habitual. Descobre-se qual é o aspecto principal observando-se quando se está sob pressão. Todo dia quando acordamos, é provável que haja alguma coisa adiante naquele dia que irá nos causar alguma *
Francis Dojun Cook, How to raise an ox. Zen master Dogen's Shobogenzo, including ten newly translated essays, Los Angeles: Center Publications, 1978, p. 24 e S. ** Para maiores comentários sobre o conceito de um "aspecto central" ver Don Richard Riso, Personatity types: Using the enneagram for self-discovery, Boston: Houghton Mifflin, 1987.
pressão. Quando as coisas estão difíceis, não há senão pressão em nossa vida. Em outras épocas existe muito pouca pressão e então pensamos que as coisas estão indo bem. Mas a vida sempre nos pressiona de alguma maneira. Nosso padrão típico de responder a pressões é criado bem no início de nossas vidas. Quando enfrentamos dificuldades na infância, o macio tecido da vida começa a formar pregas. É como se essas pregas formassem uma pequena bolsa que usamos para esconder nosso medo. O modo como escondemos nosso medo — essa pequena bolsa, que é nossa estratégia para dar conta da situação — é nosso aspecto principal. Enquanto não enfrentarmos nosso "aspecto principal" e vivenciarmos nosso medo, não conseguiremos ser aquela totalidade contínua, o "campo informe de benefícios". Em vez disso estamos todos repletos de pregas, de calombos. Ao longo de uma vida inteira de prática, o aspecto principal da pessoa muda quase que inteiramente. Por exemplo, eu costumava ser tão tímida que, se tivesse de comparecer a uma sala onde estivessem dez ou quinze pessoas, por exemplo, ou a um coquetel para pouca gente, eu levaria uns quinze minutos andando de um lado para outro lá fora antes de conseguir reunir a coragem necessária para entrar. Hoje, no entanto, embora eu não prefira grandes festas, sinto-me à vontade nelas. Existe uma grande diferença entre sentir tanto medo que mal se consegue entrar na sala e sentir-se à vontade nessa situação. Não estou querendo dizer que a personalidade básica da pessoa mude. Eu nunca serei ''a alma da festa'', mesmo que viva até os 110 anos. Gosto de olhar para as pessoas que estão numa festa e de conversar com algumas delas; esse é o meu jeito. Muitas vezes cometemos o erro de supor que podemos apenas nos retreinar através de esforços e auto-analise. Podemos pensar na prática zen como um estudo de nós mesmos, para podermos aprender a pensar de maneira diferente, da mesma forma como poderíamos aprender aprender xadrez ou culinária francesa. Mas não é isso. A prática zen não é como aprender história da antigüidade, matemática ou culinária refinada. Esses tipos de aprendizado têm seu lugar, sem dúvida, porém quando se trata de nosso aspecto principal — o modo como mais comumente lidamos com a pressão — é nosso mau uso da mente individual que criou a contração emocional. Não podemos usá-la para se corrigir; não
podemos usar nossa pequena mente para corrigir a pequena mente. É um problema formidável: aquilo mesmo que estamos investigando é também o nosso meio ou instrumento de investigação. A distorção em nosso modo de pensar distorce nossos esforços para corrigir a distorção. Não sabemos como atacar o problema. Sabemos que algo em nós não vai bem porque não estamos em paz; tendemos a experimentar todas as espécies de falsas soluções. Uma dessas "soluções" é nos treinar a pensar de modo positivo. Essa é apenas uma manobra da pequena mente. Quando nos programamos para ter pensamentos positivos ainda não chegamos realmente a nos compreender e sendo assim continuamos a entrar em dificuldades. Se criticamos nossa mente e nos dizemos: "Você não pensa muito bem, então não vou forçá-la a pensar", ou "Você alimentou todos esses pensamentos destrutivos; agora você deve ter pensamentos agradáveis, pensamentos positivos", ainda estamos usando nossa mente para tratar de nossa mente. Esse ponto é sobretudo difícil para os intelectuais absorverem, uma vez que passaram sua vida inteira usando a mente para resolver problemas e, é natural, iniciam sua prática zen do mesmo modo. (Ninguém melhor que eu para saber como é assim!) A estratégia nunca deu certo e nunca dará. Existe uma única maneira de se escapar a esse laço fechado e nos enxergar com clareza: temos de dar um passo além do alcance de nossa pequena mente e observá-la. Essa que observa não é pensamento porque o observador pode observar o pensamento. Temos de observar a mente e reparar no que ela está fazendo. Temos de notar como a mente produz esses enxames de pensamentos autocentrados e cria, dessa maneira, a tensão corporal. O processo de dar um passo atrás não é complicado, mas se não estamos habituados a ele parece novo e desconhecido e talvez assuste. Com persistência, torna-se mais claro. Vamos supor que perdemos o emprego. Os pensamentos inundam a nossa mente, criando emoções variadas. Nosso aspecto principal irrompe em cena, encobrindo nosso medo para que não precisemos enfrentá-lo diretamente. Se perdemos nosso emprego, a única coisa a fazer é procurar outro, supondo que precisamos de dinheiro. Contudo, em geral não é isso que fazemos. Ou, se estamos procurando outro trabalho, podemos não agir com
eficiência porque ficamos muito ocupados com o nosso aborrecimento e com o transtorno causado pelo aspecto principal. Vamos supor que alguém nos criticou. De repente sentimos a pressão. Como lidar com isso? Nosso aspecto principal aparece no mesmo instante. Usamos qualquer truque mental que conseguimos encontrar: preocupações, justificativas, recriminações. Podemos tentar esquivar-nos do problema pensando em alguma coisa inútil ou irrelevante. Podemos usar alguma droga para silenciá-lo. Quanto mais observarmos nossos pensamentos e ações, mais nosso aspecto principal tenderá a desaparecer. Quanto mais se desfaz, mais sentimo-nos disponíveis para vivenciar o medo que apareceu antes de tudo. Durante muitos anos, a prática refere-se a fortalecer o observador. Com o tempo, estaremos disponíveis para fazer o que estiver pela frente, sem resistência, e esse observador desaparecerá. Não precisaremos então do observador para mais nada; podemos ser a própria vida. Quando esse processo estiver completo, a pessoa será um ser plenamente realizado, um buda — embora eu ainda não tenha conhecido ninguém cujo processo tenha ficado completo. Sentar para a prática é como nossa vida diária: o que aparece quando nos sentamos é o pensamento a que queremos nos apegar, o nosso aspecto principal. Se gostamos de fugir da vida, encontraremos em nossa prática sentada uma maneira de nos esquivar do sentar. Se gostamos de nos preocupar, ficaremos preocupados; se gostamos de fantasiar, iremos fantasiar. Aquilo que fazemos em nossa prática sentada é como o microcosmo do resto de nossas vidas. Nossa prática sentada mostra-nos como estamos levando nossa vida e nossa vida mostra-nos o que fazemos quando nos sentamos para a prática. A transformação não começa com a pessoa dizendo para si mesma: "Tenho que ser diferente". A transformação começa com a compreensão do que está dito no verso do Kesa: "Vasto é o campo da libertação". Nossas próprias vidas são um vasto campo de libertação, um campo informe de benefícios. Quando vestimos os ensinamentos da vida, observando nossos pensamentos, vivenciando as sensações que recebemos a cada segundo, então estamos nos dedicando a nos salvar e a salvar todos os seres sensíveis; apenas sendo quem somos.
ALUNO:
Meu "aspecto principal" parece mudar conforme a situação. Sob pressão em geral sou controlador, dominador e Fico com raiva. Em outra situação, no entanto, posso tornar-me retraído e calado. JOKO:
Mesmo assim, para cada pessoa, comportamentos diferentes em resposta à pressão advêm da mesma abordagem básica diante do medo, embora possam parecer diferentes. Existe um padrão intrínseco que está sendo expresso. ALUNO;
Quando me sinto pressionado — em especial quando me sinto criticado —, dou duro e tento fazer bem as coisas; tento não somente revidar, mas sentar-me na ansiedade e no medo. No ano passado, porém, cheguei à constatação de que, quando me sinto criticado, por trás de meus esforços para agir de forma correta está uma raiva enorme. O que realmente quero é atacar; sou um tubarão assassino. JOKO:
Essa ira esteve ali o tempo todo; ser uma boa pessoa e um bom profissional é seu disfarce. Existe um tubarão assassino em todo mundo. E é o medo que não se vivenciou. Seu modo de encobri-lo é parecer ser tão boa pessoa, fazer tantas coisas e ser tão maravilhoso que ninguém jamais consiga ver quem você de fato é — alguém morto de medo. Conforme vamos desenterrando essas camadas de fúria, é importante não deixá-la vazar para nossas condutas; não devemos infligir nossa fúria aos outros. Na prática genuína, nossa fúria é apenas um estágio que passa. Porém, por algum tempo, sentimo-nos muito mais incomodados do que quando começamos. Isso é inevitável; estamos nos tornando mais honestos e nosso falso estilo superficial está começando a se dissolver. O processo não dura para sempre, mas com certeza é muito desagradável enquanto dura. De vez em quando podemos até explodir, mas isso é melhor do que fugir ou mascarar nossa reação. ALUNO:
Freqüentemente, consigo enxergar os padrões das outras pessoas com muito mais rapidez do que o meu. Quando elas são importantes para mim, sinto a tentação de lhes dizer o que vejo. Sinto-me como se estivesse vendo um amigo se afogar e não lhe dou um salva-vidas. Quando de fato interfiro, porém, em geral me dá a sensação de que estou me intrometendo em suas vidas, o que não é em absoluto da minha conta.
JOKO: É
importante esse ponto. O que significa ser um campo informe de benefícios? Todos vemos as pessoas fazendo coisas que evidentemente lhes são prejudiciais. O que devemos fazer? ALUNO: Não
basta estar consciente e ser presente para elas?
JOKO:
Sim, essa é em geral a melhor resposta. De vez em quando as pessoas nos pedem ajuda. Se seu pedido for sincero, está certo responder. Mas podemos nos afobar muito, nos atirar em conselhos. A maioria de nós se compõe de consertadores. Uma antiga máxima zen aconselha a não responder enquanto não nos tiverem solicitado três vezes. Se a pessoa realmente quer sua opinião insistirá. Mas apressamo-nos em dar opiniões quando ninguém as quer. Eu sei: eu era assim. O observador não tem emoções. É como um espelho. Tudo apenas passa à sua frente. O espelho não julga. Sempre que julgamos, acrescentamos um outro pensamento que necessita ser rotulado. O observador não critica. Julgar não é algo que o observador faça. Ele simplesmente observa ou reflete, como um espelho. Se passa lixo à sua frente, ele reflete lixo. Se passam rosas à sua frente, ele reflete rosas. O espelho continua sendo um espelho, um espelho vazio. O observador nem mesmo aceita; só observa. ALUNO: O
observador não é de fato parte da pequena mente?
JOKO:
Não. O observador é uma função da percepção consciente que só surge quando temos o aparecimento de um objeto em nossa vivência no mundo fenomênico. Se não aparece um objeto (por exemplo, no sono profundo), o observador não está ali. O observador finalmente morre quando somos apenas a percepção consciente e não precisamos mais dele. Nunca conseguimos encontrar esse observador, por mais que o procuremos. No entanto, apesar de nunca conseguirmos localizálo, é óbvio que podemos observar. Poderíamos dizer que o observador é uma dimensão diferente da mente, mas não um aspecto da pequena mente, que existe no nível linear comum. Nós somos percepção consciente. Ninguém jamais observou a percepção consciente, no entanto é isso que somos — um "campo informe de benefícios". ALUNO:
Parece que uma sensação desagradável consegue me ancorar no presente e focalizar minha atenção no aqui-agora.
JOKO:
Temos o antigo ditado segundo o qual na última essência do homem está a oportunidade para Deus. Quando as coisas são agradáveis, tentamos nos apegar às amenidades. Em nossa tentativa de reter o prazer, nós o destruímos. Quando estamos sentados na prática e verdadeiramente parados, porém, o desconforto e a dor nos remetem de volta ao presente. A postura sentada torna mais óbvio nosso desejo de escapar ou de fugir. Quando estamos praticando bem, não há outro lugar aonde ir. Nossa tendência é não aprender isso a menos que sintamos desconforto. Quanto mais conscientes estivermos de nosso desconforto e de nossos esforços para escapar, mais transtornos serão criados no mundo fenomênico: desde guerras internacionais até discussões pessoais e brigas em nosso íntimo; todos esses problemas surgem porque nos separamos de nossas vivências. O desconforto e a dor não são a causa de nossos problemas; a causa é que nós não sabemos o que fazer com essas sensações. ALUNO:
Até mesmo no prazer tem um elemento de desconforto. Por exemplo, é um prazer ter um pouco de paz e silêncio, mas logo sinto um certo incômodo ao pensar que o barulho e o alarido podem recomeçar a qualquer instante. JOKO:
Prazer e dor são apenas pólos opostos. O contentamento está em ser disponível para que as coisas sejam como são. Com contentamento, não há polaridade. Se o barulho começa, ele começa. Ambos são contentamento. Uma vez que queremos nos apegar ao prazer e afastar a dor, porém, desenvolvemos uma estratégia de escape. Quando alguma coisa desagradável nos acontece enquanto somos crianças, desenvolvemos um sistema — um aspecto principal para lidar com as coisas desagradáveis — e vivemos desde então com base nisso em vez de ver a vida como ela é.
A BASE DE APOIO Na vida cotidiana estamos munidos do que podemos chamar de uma base de apoio imaginária: é elétrica e nos arremessa para cima toda vez que temos pela frente algo que nos parece um problema. Podemos imaginar que tem milhões de pontos de saída, todos ao nosso alcance. Toda vez que nos sentimos ameaçados ou
aborrecidos, acionamos esse dispositivo e reagimos à situação. Essa base de apoio representa nossa decisão fundamental a respeito do que temos de ser para sobreviver e obter da vida aquilo que queremos. Ainda quando éramos crianças descobrimos que a vida não era sempre do jeito que queríamos que fosse e que as coisas muitas vezes davam errado, do nosso ponto de vista pessoal. Não queríamos que ninguém nos contrariasse, não queríamos vivenciar coisas desagradáveis e, assim, criamos uma reação defensiva para bloquear a possível infelicidade. Essa reação defensiva é nossa base de apoio. Estamos ligados nela, mas damos-Ihe uma atenção especial em períodos de estresse e ameaça. Tomamos uma decisão a respeito da vida cotidiana — a vida como ela é realmente: ela é inaceitável. E tentamos nos contrapor ao que está acontecendo. Tudo isso é inevitável. Nossos pais não foram seres perfeitamente iluminados, nem budas, mas outros seres e circunstâncias também contribuíram. Quando éramos crianças pequenas, não tínhamos suficiente maturidade para nos haver com eles de maneira sábia. Por isso acionávamos nossa base de apoio e tínhamos acessos de birra, fazíamos escândalos, talvez ficávamos retraídos. Dessa época em diante, a vida não foi mais vivida pelo prazer de se estar vivo, mas para assegurar nossa base de apoio. Parece bobagem, porém é isso que fazemos. Assim que a base de apoio estiver construída, sempre que algo desagradável nos atingir — mesmo que seja só um olhar um pouco atravessado de alguém —, nós acionaremos essa base. Ela pode conter um número infinito de tomadas de acionamento e, durante o dia, podemos acioná-la infinitas vezes. Como resultado, desenvolvemos uma visão muito estranha da nossa vida. por exemplo, suponhamos que Gloria falou comigo com muita arrogância. Os fatos em si são ela ter dito uma coisa para mim. Ela e eu podemos ter uma pequena discussão para resolver, mas a verdade da questão é que ela simplesmente disse algo. Na hora, no entanto, sinto-me separada de Gloria. No que me diz respeito, tem algo de errado com ela. "Afinal de contas, veja só o que ela fez! Ela realmente é uma pessoa desagradável!" Agora estou com raiva dela. A verdade, porém, é que minha diferença não é com Gloria; ela não tem nada que ver com isso. Embora seja verdade que ela tenha dito algo, meu aborrecimento não vem dela, mas de ter acionado minha base de apoio. Vivencio essa base como uma espécie de
tensão, que é desagradável. Não quero ter nada que ver com essa sensação, então entro em guerra com Gloria. Todavia é a minha base de apoio que está causando o meu incômodo. Se o incidente for banal, num tempo relativamente curto eu o terei esquecido e acionarei minha base de apoio a respeito de alguma outra coisa. Se o incidente for significativo, no entanto, posso tomar um curso drástico de ação. Lembro-me de um amigo da família, durante a Grande Depressão, que foi despedido do emprego em que se havia mantido por quarenta anos. Correu para o telhado, atirou-se e assim se matou. Ele não entendia sua vida. Algo tinha ocorrido, é verdade, mas não era caso para suicídio. Ele estava com sua base de apoio funcionando a todo vapor e seu sofrimento era tão intenso que não conseguiu suportá-lo. Sempre que algo representativo acontece em nossa vida, levamos um intenso choque de nossa base de apoio. Não sabemos o que fazer com esse choque. Embora tenha vindo de dentro de nós, pensamos que vem de fora, "de lá". Alguém ou algo nos tratou muito mal. Somos vítimas. Com Gloria, me parece óbvio: o problema é Gloria. "Quem mais poderia ser? Ninguém mais me insultou hoje. Tem de ser ela." Para revidar, começo a planejar: "Como posso dar-lhe o troco? Talvez eu não fale com ela nunca mais. Se ela vai ficar fazendo isso, eu não quero que ela seja mais minha amiga. Já tenho problemas suficientes. Não preciso de Gloria". Na realidade, a verdadeira fonte de meu aborrecimento não é Gloria. Ela fez uma coisa de que eu não gostei, mas seu comportamento não é a fonte de minha dor. A fonte de minha dor é minha base de apoio fictícia. Quando nos sentamos para a prática, gradualmente tornamonos mais conscientes de nosso corpo e percebemos que está o tempo todo contraído. Em geral a contração é muito discreta e sutil, invisível para as outras pessoas. Quando ficamos de fato aborrecidos, a contração aumenta. Algumas pessoas estão tão fortemente contraídas que isso se toma evidente para os outros. Depende da história particular de cada um. Mesmo que a pessoa tenha tido uma vida relativamente fácil e feliz, a contração está sempre lá, como uma tensão marginal. O que podemos fazer com essa contração? A primeira coisa é tomar consciência de que ela existe. Isso leva em gera] alguns anos de prática. Nos primeiros anos em que nos sentamos para praticar,
lidamos em geral com os pensamentos mais ostensivos que ruminamos a respeito dos aparentes problemas que temos com o universo. Esses pensamentos mascaram a contração subjacente. Temos de lidar com eles e acalmar nossas vidas até que nossas reações emocionais não sejam tão destrambelhadas. Quando nossas vidas tiverem se tornado um pouco mais assentadas e normais, iremos nos conscientizar da contração marginal subjacente que sempre esteve ali, o tempo todo. A partir de então, podemos nos tornar conscientes da contração com mais intensidade do que quando algo dá errado do nosso ponto de vista. A prática não diz respeito aos eventos temporários de nossa vida. Ela se refere à nossa base de apoio. Esta registra os eventos temporários. Dependendo dos eventos e de como nossa base de apoio os registra, chamamos nossas reações de aborrecimento, raiva, depressão. Esse transtorno não é pelos eventos, mas por nossa base de apoio. Por exemplo, se um casal está discutindo, pensam que sua briga é de um com o outro, mas na realidade a discussão é de cada um com sua própria base de apoio. Acontece uma briga quando cada uma das pessoas sintoniza sua própria base de apoio numa reação a alguém. Por isso, quando tentamos resolver uma desavença lidando com nosso cônjuge de alguma maneira, não chegamos a parte nenhuma; não é essa a fonte do problema. Uma outra coisa que aumenta a confusão é que nós gostamos de nossa base de apoio. Ela nos confere importância própria. Quando não entendo minha base de apoio, então posso exigir muita atenção discutindo com a Gloria, desforrando-me dela, e assim ela fica sabendo com quem se meteu. Quando ajo assim, mantenho minha base de apoio, o que considero como minha proteção diante do mundo. Tenho confiado nela desde meus tempos de criança e não quero me livrar dela. Se eu fosse me desfazer dela, teria de encarar todo o meu terror; em vez disso, prefiro enfrentar a Gloria. E isso que constitui a prática sentada: encarar o terror e ser a tensão — secundária ou predominante — no corpo. Não queremos fazer isso. Queremos lidar com nossos principais problemas através de nossa base de apoio. Há muitos anos, trabalhei para uma grande companhia. Era a assistente do chefe de minha seção, um laboratório de pesquisa científica. Minha vaga no estacionamento ficava perto da entrada do laboratório. Era bom isso; quando chovia, eu podia saltar do
carro e entrar no edifício sem ficar muito molhada. Foi surgindo um problema com essa vaga, porque a porta conduzia também direto para o escritório do vice-presidente. Então a secretária do vice-presidente decidiu que aquela minha vaga era o melhor lugar para estacionar. Ela começou uma confusão e as comunicações internas começaram a voar para todo lado. Eram para o departamento de pessoal, para o meu chefe, para o chefe dela, e para alguns outros lugares. Ela estava muito contrariada porque no papel seu cargo era superior ao meu e no entanto a melhor vaga era a minha. Pensei: "Ela está tentando me tirar esta vaga. Eu sempre tive esta vaga. Legalmente, é minha". Meu chefe, a pessoa mais importante do laboratório de pesquisa científica, solidarizouse comigo e começou a lutar com o vice-presidente. Seus egos estavam envolvidos. Quem era mais importante? Não havia uma resposta clara. Nessa altura, em vez de estarmos apenas as duas batendo boca, nossos chefes estavam igualmente no conflito. Toda noite, quando saía da minha vaga, eu sabia que estava certa. Essa luta durou meses. As comunicações deixavam de ser expedidas e de repente — toda vez que essa secretária me via — elas começavam de novo a voar de um lado para outro. Finalmente, certa noite, num cruzamento, enquanto esperava que o sinal mudasse para verde, percebi o seguinte: "Não estou casada com aquela vaga. Se ela a quer, que a leve". Assim, no dia seguinte, comecei eu mesma a expedir as comunicações. Com permissão do departamento de pessoal, cedi minha vaga. Meu chefe ficou furioso comigo. Porém, como não era uma questão muito grave, acabou se acostumando com a situação. Uma semana mais tarde, a secretária me telefonou e convidou-me para almoçar. Nunca nos aproximamos muito, mas mantivemos uma relação cordial. A verdadeira questão não era entre mim e essa secretária. A vaga era apenas uma espécie de símbolo para outras espécies de lutas. Não estou querendo dizer que a gente deva sempre abrir mão de uma vaga no estacionamento. Nesse caso, porém, a questão era trivial: eu passei a ter de andar talvez quarenta ou cinqüenta passos, em vez de sete. Uma ou duas vezes no inverno fiquei realmente encharcada da cabeça aos pés. No entanto, enquanto essa controvérsia não foi resolvida, manteve muitas pessoas ocupadas durante meses. Nossas desavenças nunca são com os outros, mas com nossa própria base de apoio. Se temos uma base de apoio com muitas
tomadas prontas para nos ligarmos em qualquer uma delas, praticamente qualquer coisa será motivo. Nós gostamos de nossas bases de apoio; sem elas, iríamos sentir-nos aterrorizados, tal como nos sentíamos quando éramos muito pequenos. O objetivo da prática é tornarmo-nos amigos de nossa base de apoio. Não iremos nos livrar dela de uma vez por todas. Estamos muito apegados a ela para isso. Mas, conforme a mente for realmente se aquietando e tornar-se menos interessada em lutar com o mundo; quando desistirmos de nossas posições em algumas lutas sem sentido; quando não tivermos mais que brigar tanto porque chegamos a ver o que está por trás, então nossa capacidade de permanecermos sentados na prática aumentará. Nesse ponto, começamos a sentir que o problema real está naquela antiga criação constituída de dor — a dor da criancinha quando descobre que a vida não é aquilo que ela gostaria que fosse. Essa dor está revestida de raiva, medo e outros sentimentos parecidos. Não há meios de se escapar desse dilema, exceto voltando pelo mesmo caminho e tornando a sentir os sentimentos originais. Não estamos interessados nisso, porém, e é por isso que sentar na prática se torna tão difícil. Quando regressamos ao corpo, não é que desenterramos algum grande melodrama que se desenrola em nosso íntimo. Para a maioria das pessoas, a maior parte do tempo, a contração é tão secundária que nem conseguem perceber que está lá. Mas está. Quando simplesmente nos sentamos e mantemos uma aproximação cada vez maior da sensação dessa contração, aprendemos a descansar nela por períodos cada vez maiores: cinco segundos, dez segundos, depois trinta minutos ou mais. Uma vez que a base de apoio é nossa invenção e que não tem uma realidade fundamental, ela começa a se resolver um pouco aqui, um pouco ali. Depois de ficar em sesshin por algum tempo, talvez percebamos que ela sumiu. Depois ela pode voltar. Se entendermos a nossa prática, ao longo dos anos de prática essa base de apoio vai ficando cada vez mais fina e menos dominante. Podem ocorrer aberturas momentâneas, Em si mesmas, essas aberturas não são importantes, uma vez que a base de apoio em geral retorna imediatamente a funcionar assim que deparamos com uma nova situação desagradável com alguém. Não tenho um interesse especial em criar aberturas na base de apoio; o trabalho real está em dissolvê-la por completo, aos poucos. Sabemos que a
base de apoio está em ação quando nos sentimos contrariados com algo ou com alguém. Sem sombra de dúvida temos questões no mundo externo a serem resolvidas, algumas delas muito difíceis. Contudo essas questões não são o que nos contraria. O que nos contraria é estarmos funcionando a partir de nossa base de apoio. Quando isso acontece, não há serenidade, não há paz. Esta modalidade de prática — trabalhar diretamente com a base de apoio, com nossas contrações subjacentes — pode ser mais difícil do que a prática do koan * . Com a prática do koan, a pessoa sempre tem um pequeno incentivo ou recompensa para passar para o próximo koan. Não há nada de errado com isso, e eu às vezes trabalho com koans com meus alunos. No entanto, essa abordagem não é tão fundamental quanto o trabalho sobre a base de apoio, que está presente em cada um de nós. Estamos cientes dela? Sabemos o que significa praticar? Com que seriedade encaramos nossas dificuldades com as outras pessoas e com a vida? Quando estamos ligados nessa base, a vida é muito sem esperança. Todos estamos sintonizados nela, em graus variáveis, eu inclusive. Com o passar dos anos tornei-me mais hábil para reconhecer quando estou ligada nessa base de apoio. Não perco mais tanto esses momentos. Podemos nos flagrar ligando-nos na nossa base de apoio observando o modo como falamos conosco e com os outros: "Tem alguma coisa errada com ele. É culpa dele. Ele tinha que ser diferente"; "Eu deveria ser melhor"; "A vida simplesmente é injusta comigo"; "Eu realmente não tenho esperança". Quando executamos essas sentenças em nossa mente, sem questioná-las, estamos desencadeando uma falsa briga e terminamos lá onde acabam todas as falsas brigas: em parte alguma, ou em mais dificuldades. Temos de deflagrar a verdadeira luta: permanecer com aquilo com que não queremos permanecer. Praticar exige coragem. A coragem aumenta com a prática, mas não existe uma saída rápida e fácil. Mesmo depois de muito tempo sentados na prática, quando ficamos com raiva, temos também o impulso de atacar a outra pessoa. Procuramos formas de castigar os outros pelo que fizeram. Essa atividade é não vivenciar a nossa raiva, mas evitá-la através de algum drama. *
Koan: uma questão paradoxal tradicional, impossível de ser analisada racionalmente,
usada para aprofundar a meditação.
Muitas escolas de terapia incentivam que o cliente manifeste diretamente sua hostilidade. Quando a expressamos porém, nossa atenção dirige-se para fora, para uma outra pessoa ou coisa, e para o verdadeiro problema. Expressar nossos sentimentos é uma coisa natural e não algo terrível em si. Todavia em geral nos cria problemas. Quando verdadeiramente vivida, a raiva é muito silenciosa. Tem uma certa dignidade. Não há manifestações, não há teatralizações. Refere-se apenas a estar com aquela contração fundamental que denominei a base de apoio. Quando de fato ficamos com raiva, então os pensamentos pessoais e autocentrados se destacam do sentimento e ficamos diante da energia pura, que pode ser usada de um modo compassivo. Essa é a verdadeira história da prática. A pessoa que consegue fazer isso com grande consistência é alguém que chamamos de iluminado. Passar por uma experiência momentânea de estar sem a base de apoio não é a verdadeira iluminação. A pessoa realmente iluminada é aquela que consegue transformar energia quase o tempo todo. Não que a energia não apareça mais. A questão é o que fazer com ela? Se alguém dá uma trombada no nosso carro, sem ter prestado atenção, não iremos apenas sorrir com docilidade. Teremos uma reação: "Mas que droga!". Mas e então? Por quanto tempo permanecemos nessa reação? A maioria de nós prolonga essa reação e a amplia ao máximo. Um exemplo é nossa propensão a mover processos; não estou dizendo que um processo nunca seja justificado. Pode ser às vezes necessário para resolver uma pendência. No entanto muitos processos são na realidade a respeito de alguma outra coisa e são contraproducentes. Se manifesto minha raiva para Gloria, ela, de alguma maneira, irá devolvê-la para mim. Minha amizade com Gloria poderá acabar. Quando o elemento pessoal — o modo como me sinto quanto a ela — é afastado, então resta só a energia. Quando nos sentamos para a prática dessa energia, com dignidade, embora no começo seja doloroso, depois se transforma num lugar de grande descanso. Uma frase do coral de Bach me vem à mente: "Em Teus braços eu descanso". Isso significa descansar em quem eu realmente sou. "Aqueles que poderiam molestar-me não conseguem encontrar-me aqui." Por que é que eles não conseguem encontrar-me aqui? Porque não tem ninguém em casa. Não tem ninguém aí. Quando sou energia pura, não sou mais eu. Sou um funcionamento para o que é bom. Essa transformação é o motivo pelo qual estamos sentados na prática. Não é fácil. E não acontece
do dia para a noite. Mas, se praticarmos bem, iremos com o tempo nos envolver cada vez menos em equívocos interpessoais, prejudicando a nós e aos outros. Sentar para a prática incinera o elemento autocentrado e nos deixa com a energia de nossas emoções, sem a destrutividade.
Sesshins, a prática regular, e a prática na vida são os melhores caminhos para produzir essa transformação. Pouco a pouco, vai acontecendo uma mudança em nossa energia e mais um trecho de nossa base de apoio é incinerado. Conforme nossas preocupações autocentradas forem sendo deixadas de lado, não poderemos mais retornar ao modo como éramos. Uma transformação fundamental aconteceu. "Em Teus braços eu me descanso." Existe uma verdadeira paz quando descansamos dentro dessa contração fundamental, apenas vivenciando o corpo como é. Como diz Hubert Benoit em seu maravilhoso livro The supreme doctrine (A doutrina suprema) *, quando estou num desespero real, pelo menos deixe-me descansar nesse diva de gelo. Se eu conseguir verdadeiramente descansar aí, meu corpo irá conformar-se com ele e não haverá mais separação. Nesse ponto, alguma coisa muda. Como me sinto a respeito de Gloria agora? Oh, tivemos um pequeno desentendimento e daremos então um belo passeio a pé para conversarmos a respeito. Sem problemas.
II. Sacrifício SACRIFÍCIO E VÍTIMAS Ouvindo muitas pessoas falarem de suas vidas, fico impressionada pelo fato de a primeira camada encontrada, quando nos sentamos para a prática, ser nosso sentimento de sermos vítimas, nosso sentimento de que fomos sacrificados pelos outros. Fomos *
Hubert Benoit, The supreme doctrine: Psychologícal studies in zen thought, Nova York: Viking, 1955, p. 145.
sacrificados à cobiça, à raiva e à ignorância dos outros, à sua falta de conhecimento de quem são. Muitas vezes essa vitimação é cometida por nossos pais. Ninguém tem um par de budas como pais. Em vez de budas, temos pais como pais: falhos, confusos, irados, autocentrados — como todos nós. Eu fui maltratada pelos meus pais e com certeza maltratei meus filhos algumas vezes. Até mesmo os melhores pais maltratam seus filhos às vezes, porque são humanos. Com a prática tomamos consciência de termos sido sacrificados e nos aborrecemos muito com esse fato. Sentimo-nos magoados, manipulados, como se alguém não nos tratasse do modo como devíamos ser tratados — e isso é verdade. Embora inevitável, ainda é verdade e dói, ou assim parece. O primeiro estágio é simplesmente tornar-se consciente de ter sido sacrificado. O segundo estágio consiste em trabalhar com o sentimento que decorre de tal conscientização: nossa raiva, nosso desejo de ficar quites, nosso desejo de magoar aqueles que nos magoaram. Esses desejos variam muito quanto à sua intensidade: alguns são moderados, outros poderosos e persistentes. Muitas terapias tratam de desenterrar nossas vivências de vitimação; apresentam variadas abordagens a respeito do que fazer quanto a tais experiências. Na política parece que pensamos que devemos revidar. Podemos revidar, ou podemos fazer alguma outra coisa. Mas o que poderia ser? Conforme praticamos, tomamos consciência de nossa raiva por causa das coisas, de nosso desejo de descontar, de nossa confusão, retraimento e indiferença. Se continuamos praticando (mantendo a atenção, rotulando nossos pensamentos), então algo diferente — embora também doloroso — começa a despontar em nossa consciência. Começamos a ver não só como fomos sacrificados, mas também como sacrificamos os outros. Essa constatação pode ser ainda mais penosa do que a primeira. E, especialmente quando damos vazão à nossa raiva e ao nosso ressentimento e tentamos ficar quites, começa a nos parecer cada vez mais evidente que agora estamos sacrificando outras pessoas, da mesma forma como fomos sacrificados. E a Bíblia diz: o mal perpetua-se geração após geração. Quando a dor que sentimos diante do que fazemos aos outros e a dor pelo que nos fizeram começarem a ser do mesmo tamanho, então nossa prática estará amadurecendo.
Se estamos comprometidos com curar, queremos compensar. O que significa a palavra compensar ? Significa pensar * junto, sarar junto. Não podemos apagar o que fizemos no passado. Já está feito. Sentirmo-nos culpados por causa disso é uma maneira de nos sacrificarmos, porque no passado sacrificamos outras pessoas. A culpa não ajuda. Dizer que sentimos muito — desculpar-nos — nem sempre é compensar. Embora possa ser necessário, pode não ser suficiente. A prática religiosa trata de uma compensação, de praticar com a nossa própria vida, de enxergar o nosso desejo de sacrificar os outros porque estamos com raiva. Precisamos constatar esses desejos, mas não realizá-los. O processo de compensação leva a vida inteira. É disso que trata a vida humana: compensações intermináveis. Por outro lado, sentir culpa é uma expressão do ego: podemos sentir pena de nós (e nos sentirmos até nobres) se nos perdermos em nossa culpa. Na verdadeira compensação, em vez de focalizarmos nossa atenção na culpa, aprendemos a concentrá-la mais em nossos irmãos e irmãs, em nossos filhos, em quem quer que esteja sofrendo. Para que esses esforços possam ser genuínos, no entanto, devemos antes lidar com a primeira camada — que é a de tomar consciência de todos os nossos pensamentos, sentimentos e de nossa raiva por tudo o que nossa vida tem sido. Depois precisamos desenvolver a agudeza de visão e a sensação clara de nosso atual desejo de sacrificar os outros. Isso é muito mais importante: não o que nos foi feito, mas o que estamos fazendo com os outros. Alguém tem de parar o processo. Como interrompê-lo? Nós o interrompemos quando nos retiramos de nossos pensamentos amargos a respeito do passado e do futuro e começamos a esta. apenas no aqui e no agora, fazendo o melhor que podemos, observando o que fazemos. Assim que esse processo se toma mais claro, existe apenas uma coisa que realmente queremos fazer: romper a cadeia, amenizar o sofrimento do mundo. Se uma em cada dez pessoas do mundo se dispusesse a romper a cadeia, o ciclo inteiro desmoronaria; não teria força suficiente para se manter por si. O que tudo isso tem que ver com integridade, com iluminação? Uma pessoa iluminada estaria disposta, segundo a segundo, a ser o sacrifício necessário para se romper o ciclo do sofrimento. Estar disponível para o sacrifício não significa ser "mais santo que você"; *
Nota da Tradutora: No sentido de pensar as feridas. No original, atone, at one.
isso é puro ego. A disponibilidade para ser sacrificado é mais simples e mais básica. Quanto mais sentamos na prática, mais aumenta nosso conhecimento de nós mesmos e de nossa vida. Então temos uma escolha acerca do que iremos fazer; podemos escolher entre sacrificar ou não uma outra pessoa. Por exemplo, podemos escolher dar uma resposta atravessada para alguém. Isso pode parecer uma coisa trivial, mas não é. Nós escolhemos como nos relacionar com as pessoas de quem somos próximos. Não que nos tornemos mártires; escolher ser mártir é na realidade algo bastante autocentrado. E não é que desistamos do prazer que há na vida. (Com certeza não queremos conviver sempre com pessoas que nunca se divertem.) A questão principal é tornarmo-nos conscientes de termos sido sacrificados e então começarmos a ver como sacrificamos os outros. Esse é um estágio que precisa ficar claro. Freqüentemente ouço: "Por que é que eu não deveria revidar? Olha o que fizeram comigo!". ALUNO:
Às vezes, quando me sinto culpado, entro numa sintonia de autopunição. Como posso sair dessa sintonia? JOKO:
O autoflagelamento é apenas pensar. Podemos tomar consciência desses pensamentos e sentir a tensão corporal que os acompanha. Podemos nos perguntar o que conquistamos punindonos incessantemente. De certo modo, gostamos do autoflagelamento porque é autocentrado: torna-nos o centro do acontecimento. A viagem da culpa é uma atividade muito autocentrada. ALUNO:
E quanto a estar com pessoas a quem me habituei a estar perto e de quem não gosto mais? A raiva sobe como uma sombra. Quando penso nelas, minha sensação é que estou afundando. Fique apenas atento aos seus sentimentos; observe o que está pensando. Se houver um momento apropriado em que você precisa estar com essas pessoas, observe como é. E não evite as pessoas que mobilizam essa raiva. Não estou sugerindo que você necessariamente vá atrás delas, mas pelo menos não as evite. JOKO:
ALUNO:
Com freqüência sinto culpa por não estar usando com qualidade o tempo despendido junto aos meus pais. Tenho me observado fazendo isso várias vezes. No entanto, continuo na mesma.
JOKO:
Você está se avaliando segundo uma idéia mental. Quando você estiver com seus pais, esteja simplesmente com eles e veja o que acontece. É o que basta. O resto é fantasia a respeito de como você deveria ser. Quem sabe como você deveria ser? Nós apenas fazemos o melhor, sempre. Com o tempo, perderemos todo o interesse em nosso passado.
A PROMESSA QUE NUNCA É CUMPRIDA Nossos problemas decorrem do desejo. No entanto, nem todos os desejos criam problemas. Existem dois tipos de desejos: as exigências ("Tenho que ter isso") e as preferências. As preferências são inócuas; podemos ter tantas quantas quisermos. O desejo que exige ser satisfeito é que é o problema. É como se nos sentíssemos constantemente com sede e, para saciá-la, tentássemos ligar uma mangueira a uma torneira na parede da vida. O tempo todo pensamos que desta ou daquela torneira iremos receber a água que exigimos. Quando ouço o que meus alunos têm a dizer, todos parecem sentir sede de alguma coisa. Podemos conseguir um pouco de água cá e lá, mas isso apenas nos tortura. Sentir sede, bastante sede, não tem graça nenhuma. Quais são algumas das torneiras às quais recorremos para saciar nossa sede? Uma pode ser o emprego que achamos que devemos ter. Outra pode ser "o par ideal", ou "o filho que se comporta sempre como deve". Dar um jeito numa relação pessoal pode parecer ser o caminho para chegar naquela água. Muitos acreditam que por fim saciarão sua sede se enfim conseguirem dar um jeito em si mesmos. Não tem o menor sentido que o eu tente consertar o eu, mas insistimos em fazer isso. O que chamamos de nós mesmos nunca nos é muito aceitável. "Não consigo fazer o bastante"; "Não sou bem-sucedido o suficiente"; "Estou sempre com raiva, não valho nada"; "Sou mau aluno". Exigimos um número incontável de coisas de nós e do mundo; praticamente qualquer coisa pode ser vista como desejável, como um soquete ao qual nos atarrachamos para podermos enfim conseguir a água que acreditamos necessitar. As livrarias estão repletas de livros de auto-ajuda proclamando vários remédios para a nossa sede: Como fazer seu marido amá-la, Como aumentar sua auto-estima, e assim por diante. Quer pareçamos seguros de nós, quer não, por baixo
dessa camada todos nós sentimos que alguma coisa está faltando. Achamos que precisamos dar um jeito na nossa vida para saciar nossa sede. É preciso que criemos essa ligação, que instalemos nossa mangueira na torneira e recebamos a água para beber. O problema é que nada de fato funciona. Começamos a descobrir que a promessa que fizemos a nós mesmos — a de que, de alguma maneira, nossa sede seria resolvida — nunca é cumprida. Não estou querendo dizer que nunca gozamos a vida. Há muitas coisas na vida que podem ser intensamente desfrutadas: certos relacionamentos, certos trabalhos, certas atividades. Mas o que nós queremos é uma coisa absoluta. Queremos saciar nossa sede em caráter permanente, para que tenhamos toda a água que quisermos, o tempo todo. Essa promessa da completa satisfação nunca é cumprida. Não pode sê-lo. No instante em que conseguimos algo que quisemos, ficamos satisfeitos no momento e então nossa insatisfação aparece de novo. Tentamos durante anos a fio ligar nossa mangueira nesta ou naquela torneira e a cada vez descobrimos que não era o suficiente, e então vem um momento de profundo desânimo. Começamos a sentir que o problema não está em nossa incapacidade de ligar um receptor a algo lá adiante, mas em que nada externo pode jamais satisfazer essa sede. É nesse momento que temos mais chance de dar início a uma prática séria. Esse pode ser um momento horrível — perceber que nada irá jamais nos satisfazer. Talvez tenhamos um bom emprego, um bom relacionamento ou família, e no entanto continuamos com sede — e nos damos conta de que nada realmente consegue satisfazer nossas exigências. Podemos inclusive perceber que mudarmos de vida — mudar os móveis de lugar — não vai funcionar também. O momento desse desespero é, na realidade, uma bênção, o verdadeiro começo. Uma coisa estranha acontece quando abrimos mão de todas as nossas expectativas. Temos um vislumbre de outra torneira, que até então tinha permanecido invisível. Ligamos nossa mangueira a ela e, para o nosso prazer, descobrimos que a água vem jorrando com força. Pensamos: "Agora sim! Consegui!". E o que acontece? Mais uma vez, a água seca. Trouxemos para a própria prática todas as nossas exigências e de novo estamos com sede. A prática tem de ser um processo de intermináveis decepções. Temos de enxergar que tudo o que exigimos (e até obtemos) irá
depois nos decepcionar. Essa descoberta é nossa mestra. É por isso que devemos tomar cuidado com amigos que estão em dificuldades, para os quais não devemos demonstrar nossa simpatia acenando-lhes com falsas esperanças e promessas de tranqüilidade. Essa espécie de simpatia — que não é a verdadeira compaixão — simplesmente retarda mais seu aprendizado. Em certo sentido, a melhor ajuda que podemos oferecer a alguém é apressar seu desapontamento. Embora isso pareça cruel, não o é na verdade. Ajudamos aos outros e a nós mesmos quando começamos a enxergar que todas as nossas exigências habituais são mal direcionadas. Com o tempo, iremos nos tornar espertos o suficiente para antecipar qual será nossa próxima decepção, para saber que nosso próximo esforço de saciar a sede também fracassará. A promessa nunca é cumprida. Mesmo com muitos anos de prática, às vezes continuamos buscando soluções falsas, mas conforme vamos em seu encalço, reconhecemos a inutilidade desse empenho com uma rapidez maior. Quando ocorre essa aceleração, nossa prática está dando resultados. Uma boa prática inevitavelmente promove essa aceleração. Devemos notar a promessa que desejamos arrancar das outras pessoas e abandonar o sonho de que elas possam saciar nossa sede. Devemos nos dar conta de que essa é uma iniciativa inútil. Os cristãos chamam essa constatação de a "noite escura da alma". Já esgotamos todos os recursos de que dispomos e não vemos mais o que fazer a seguir. E então sofremos. Embora seja um período de aguda infelicidade, esse sofrimento é o ponto de mudança. A prática nos conduz a esse profícuo sofrimento e ajuda-nos a permanecer nele. Quando assim fazemos, em algum momento o sofrimento começa a se transformar, e a água começa a fluir. Para que isso aconteça, todos os nossos lindos sonhos a respeito da vida e da prática têm que se despedir, incluindo a crença de que uma boa prática — aliás, qualquer coisa — irá fazernos felizes. A promessa que nunca será cumprida se baseia em sistemas de crenças, em pensamentos centrados na própria pessoa que nos sustentam imobilizados e sedentos. Temos milhares deles. É impossível eliminá-los todos; não vivemos o bastante para isso. A prática não requer que nos livremos deles, mas que simplesmente enxerguemos além deles e os reconheçamos em seu vazio e em sua ausência de validade.
Jogamos esses sistemas de crenças para todo lado como arroz em festa de casamento. Aparecem por toda parte. Por exemplo, quando vai chegando perto do Natal, alimentamos expectativas de que essa seja uma época agradável e divertida, uma bela época do ano. Se esses dias de Natal não satisfazem nossas expectativas, ficamos deprimidos e contrariados. Na realidade, o Natal será o que for, quer nossas expectativas sejam realizadas, quer não. Da mesma maneira, quando descobrimos a prática zen, podemos alimentar a esperança de que isso irá solucionar nossos problemas e tornar nossas vidas perfeitas. Mas a prática zen simplesmente nos remete de volta à vida como ela é. A prática zen trata de sermos mais e mais as nossas vidas tais quais são. Nossas vidas são o que são, e o zen nos ajuda a reconhecer esse fato. O pensamento "Se eu cumprir essa prática com a paciência necessária, tudo será diferente" é um outro sistema de crenças, uma outra versão da promessa que nunca será cumprida. Quais são alguns outros sistemas de crenças? ALUNO: Se
eu trabalhar bastante, vou conseguir.
JOKO: Sim, ALUNO:
esse é um bom sistema de crença americano.
Se eu for simpático com as pessoas, elas não vão me
magoar. JOKO: Sim,
esse é um que em geral nos desaponta. As pessoas serão como serão, é tudo. Sem garantias. ALUNO:
Minha crença é que estamos todos fazendo o melhor que podemos. IOKO: Eu
também tenho a mesma crença.
ALUNO: Se
eu fizer exercícios diariamente, ficarei saudável.
JOKO:
Soube recentemente de um sujeito que fazia seus exercícios com regularidade, mas tropeçou e fraturou o quadril. ALUNO: Se
eu morasse em outro lugar, desfrutaria mais a vida.
ALUNO: Se
eu ajudar as pessoas, então sou uma pessoa boa.
JOKO:
É uma verdadeira armadilha essa crença. Um sistema sedutor que nos trará muitos problemas. Claro, devemos fazer o que é apropriado e necessário, mas num sentido mais profundo não podemos ajudar ninguém.
ALUNO: Já
faz tanto tempo que pratico sentado que acho que não devia mais me zangar. JOKO: Se
você está zangado, você está zangado.
ALUNO:
Se meu carro pega fácil de manhã, então o dia correrá sem problemas. ALUNO:
Se eu trabalhar por uma causa justa, o mundo será um lugar melhor. ALUNO: A
dor que eu sinto deve tornar-me uma pessoa melhor.
JOKO: Você
já é uma boa pessoa, assim como é.
É útil rever nossos sistemas de crenças dessa maneira, porque sempre existe uma que não vemos. Em cada sistema de crenças escondemos uma promessa. Quanto à prática zen: a única promessa com que podemos contar é que, quando acordarmos para nossas vidas, seremos pessoas mais livres. Se acordarmos para o modo como vemos a vida e lidamos com ela, aos poucos iremos nos libertando — não necessariamente mais felizes ou melhores, no entanto mais livres. Todas as pessoas infelizes que já conheci estavam prisioneiras de um sistema de crenças que alimenta alguma promessa, promessa que nunca foi cumprida. As pessoas que vêm praticando bem já há algum tempo são diferentes apenas pelo fato de que reconhecem esse mecanismo que gera infelicidade e estão aprendendo a manter-se conscientes disso — o que é muito diferente de tentar mudá-lo ou dar um jeito nele. Em si, o processo é tão simples quanto possível. Todavia, nós, seres humanos, consideramo-lo dificílimo. Não temos em absoluto o menor interesse em manter nossa percepção consciente. Queremos estar pensando a respeito de alguma outra coisa, de qualquer outra coisa. Por isso, nossas vidas oferecem-nos o desestímulo interminável, ou seja, o presente perfeito. Quando as pessoas ouvem isso, querem levantar-se e sair. No entanto, a vida as persegue. Seu sistema de crenças continua mantendo-as infelizes. Queremos nos agarrar aos nossos sistemas de crenças, mas, quando o fazemos, sofremos. Em certo sentido, tudo funciona com perfeição. Nunca me importo quando alguém começa a prática ou a interrompe. Isso não faz nenhuma diferença. O processo segue inevitavelmente adiante. É verdade que algumas
pessoas, mesmo que ao longo de uma vida inteira, nunca parecem aprender algo desse processo. Todos conhecemos pessoas assim. No entanto, o processo prossegue, mesmo quando elas o ignoram. A prática diminui nossa capacidade de ignorá-lo. Depois de uma certa dose de prática, mesmo que digamos "Bom, não vou fazer essa prática. É muito difícil", não podemos evitá-lo. Depois de algum tempo, nós simplesmente praticamos. Assim que a conscientização é despertada, não podemos jogá-la para dentro da caixa de novo. Os conceitos básicos da prática são de fato bastante simples. Porém, praticar a prática e chegar a um genuíno entendimento dela leva muito tempo. Muitos supõem, nos primeiros dois anos, que a entendem claramente. Na realidade, se praticarmos bem durante dez a quinze anos, estaremos indo bastante bem. Para a maioria, vinte anos é o tempo que leva. É nesse período que a prática se torna razoavelmente clara e a estaremos vivendo o tempo todo que pudermos, do momento em que acordamos pela manhã até a hora de ir dormir. Nessa altura, a prática até continua pela noite adentro, enquanto dormimos. Logo, não existe um "jeito rápido". Conforme vamos praticando, no entanto, vai se tornando cada vez mais agradável, mais engraçada. Nossos joelhos podem doer, podemos enfrentar toda espécie de adversidades em nossas vidas, mas a prática consegue ser divertida, mesmo quando é difícil, dolorosa e frustrante. ALUNO:
As vezes é muito estimulante. Sempre que fico livre da dor, na prática, começo a rir. JOKO: Por
que você viu uma coisa que não tinha visto antes?
aluno: Claro. ALUNO:
Você sugeriu que, em certo sentido, não existe isso de prática zen. Você poderia explicar? JOKO:
Existe a prática de manter a percepção consciente. Nesse sentido, a prática zen existe. Mas, enquanto estamos vivos, existe a questão da conscientização. Não podemos evitá-la. Assim, não existem meios de se evitar a prática, nem de fazê-la. Ela é apenas estar vivo. Embora existam algumas atividades formais que nos ajudam a despertar (e que chamamos de prática zen se quisermos), a verdadeira "prática zen" é apenas estar aqui agora e não acrescentar nada a isso.
ALUNO:
Retomando a analogia da parede com pequenas torneiras: quando encontramos uma torneira e nos ligamos a ela, conseguimos um pouco de água, não é? JOKO:
Sim, por algum tempo saciamos ligeiramente nossa sede. Por exemplo, suponha que durante seis meses você quis convidar uma moça para sair e que por fim você arrumou coragem para falar com ela e ela aceitou. Por um breve instante, existe uma sensação imensa de contentamento. A isso chamamos de conseguir água, embora você realmente estar satisfeito seja uma outra questão. Mais cedo ou mais tarde, essa relação diminui e a vida de novo parece que se nos apresenta com novos problemas. Estou falando de um modo de viver em que a própria vida não é problema. Temos problemas, mas não existe problema em lidar com eles. Talvez todos consigam ver isso, mesmo que rapidamente, de vez em quando. Em certo sentido, o zen é uma prática religiosa. Religião na verdade significa religar aquilo que parece estar separado. A prática zen ajuda-nos com isso. Mas não é uma religião no sentido de que existe algo fora de nós que irá tomar conta de nossas vidas. Uma grande parte das pessoas que entram na prática zen não tem uma filiação religiosa. Nada tenho contra a religião formal. Em todas as religiões existem algumas pessoas notáveis que verdadeiramente praticam e sabem o que estão fazendo. Todavia, também existem aquelas que não possuem nenhum vínculo com uma religião formal e que mesmo assim praticam igualmente bem. No fim, não existe prática, senão aquilo que estamos fazendo a cada segundo. Uma vez que a verdadeira prática e a verdadeira religião ajudam-nos a religar aquilo que parecia estar separado, toda prática tem que ser acerca da raiva. A raiva é a emoção que nos separa. Ela corta tudo em dois. ALUNO:
Essa não seria uma prática muito difícil para ser realizada inteiramente a sós? Quando um de meus sistemas de crenças se rompe, sinto-me traído e preciso de um certo apoio de outras pessoas. JOKO:
"Sentir-se traído" é, evidentemente, apenas um outro pensamento. É mais difícil praticar sozinho, mas não é impossível. É proveitoso ir até um centro zen e obter alguns fundamentos, depois manter um contato de longa distância e vir para praticar
com os outros, quando puder. Quando a pessoa pratica sozinha é como nadar contra a corrente. Numa comunidade de pessoas que se sentam juntas para praticar, temos uma linguagem comum e um entendimento comum do que é a prática. Mesmo assim, tenho alguns alunos excelentes que vivem bastante longe do centro zen e que falam comigo pelo telefone. Alguns deles estão indo muito bem. E, para alguns, o esforço de praticar com um apoio tão mínimo pode ser a coisa mais proveitosa de todas.
JUSTIÇA Conforme vamos nos tornando cada vez mais sensíveis a nós e às experiências transitórias de nossas vidas — nossos pensamentos, nossas emoções e sensações —, torna-se óbvio para nós que o estrato subjacente de nossas vidas é a raiva. Quando alguém insiste "Eu nunca sinto raiva", não acredito. Uma vez que a raiva e seus subconjuntos — a depressão, o ressentimento, o ciúme, a calúnia, a intriga etc. — dominam a nossa vida, precisamos investigar o problema todo da raiva com bastante cuidado. Pois, uma vida livre da raiva seria a terra prometida do leite e do mel, o nirvana, uma existência em que o nosso próprio valor e o dos outros são uma realidade abençoadamente confirmada. Para a pessoa psicologicamente madura, os males e as injustiças da vida são enfrentados pela contra-agressão, na qual é feito um esforço para se eliminar a injustiça e criar a justiça. Com freqüência esses esforços são ditatoriais, repletos de raiva e de uma rígida convicção das próprias certezas. Na maturidade espiritual, o oposto da injustiça não é a justiça, mas a compaixão. Não eu contra você, não eu endireitando a situação agora adversa, lutando para chegar a um resultado justo para mim e para outros, mas a compaixão, uma vida que não se opõe a nada e cumpre tudo. Toda espécie de raiva é fundamentada em julgamentos, seja de nós, seja de terceiros. A idéia de que nossa raiva deve ser expressa para que sejamos mais saudáveis não passa de fantasia. Precisamos deixar que esses pensamentos irados e condenatórios
passem diante de nosso Eu impessoal, testemunha. Nada ganhamos expressando-os. É um equívoco supor que nossa raiva inexpressa nos fere e que devemos expô-la e, dessa forma, ferir as outras pessoas. A melhor resposta para a injustiça não é a justiça, mas a compaixão, ou o amor. Você pergunta: "Mas o que é que eu faço nessa situação difícil? Tenho de fazer alguma coisa!". Sim, mas o quê? Nossa prática sempre deve ser a base de nossos atos. Uma reação apropriada e compassiva não advém de uma luta pela justiça, mas da radical dimensão da prática que "ultrapassa todo entendimento". Não é fácil. Talvez tenhamos de viver semanas, meses em agonia, na prática. Porém a resolução virá. Ninguém pode nos proporcionar essa resolução; ela só pode vir de nosso Eu verdadeiro — se nos abrirmos sem reservas à prática. Não adotemos uma visão fácil e psicologicamente estreita de nossas vidas. A dimensão radical da qual falo exige tudo o que somos e temos. O contentamento, não a felicidade, é seu fruto.
PERDÃO O amor perfeito significa amar aquele por meio de quem tornamo-nos infelizes. Soren Kierkegaard
Quem é a pessoa que você não consegue perdoar? Cada um de nós tem uma lista que pode incluir nós mesmos (em geral os mais difíceis de perdoar) e também acontecimentos, instituições e grupos. Não é natural que nos devamos sentir assim por causa de uma pessoa ou um acontecimento que nos feriu — de maneira talvez grave e irreparável? Do ponto de vista comum, a resposta é sim. Do ponto de vista da prática zen, a resposta é não. Precisamos formular o seguinte voto: irei perdoar, mesmo que custe praticar a vida inteira. Por que uma declaração tão forte? A qualidade de toda a nossa vida está em jogo. Deixar de perceber a importância do perdão é sempre parte de um relacionamento falho e um fator em nossa ansiedade, em nossas depres-
sões, em nossos males, em todos os nossos problemas. Nossa incapacidade de conhecer o contentamento é um reflexo direto Então por que apenas não o fazemos? Se fosse fácil, seríamos todos budas realizados. Mas não é fácil. Não tem proveito nenhum dizer "Devo perdoar. Eu devo. Eu devo. Eu devo...". Esses pensamentos desesperados ajudam muito pouco. Análises e esforços intelectuais podem produzir um certo abrandamento da rigidez do não-perdão. Mas o perdão genuíno, completo, está num outro plano. O não-perdão está alicerçado em nossos pensamentos habitualmente centrados em nossa própria pessoa. Quando acreditamos neles, são como uma gota de veneno em nosso copo de água. A primeira e monumental tarefa consiste em rotular e observar esses pensamentos até que o veneno possa evaporar. Então o trabalho maior pode ser efetuado: o vivenciar ativo, como sensação física corporal, do resíduo da raiva no corpo, sem nenhum apego aos pensamentos autocentrados. A transformação em perdão, que está intimamente relacionada com a compaixão, pode ocorrer porque o mundo dualista da pequena mente e seus pensamentos foi abandonado pelo vivenciar não-dual, não-pessoal, que é a única maneira de sairmos de nosso buraco infernal do não-perdão. Só a nítida constatação da necessidade crítica de uma espécie de prática como essa pode capacitar-nos a realizá-la com força e determinação ao longo de muitos anos. A prática madura sabe que não existe nenhuma outra escolha. Então, quem é que você não consegue perdoar?
A FALA QUE NINGUÉM DESEJA OUVIR Se formos honestos, teremos de admitir que o que de fato queremos da prática — especialmente no começo, mas em algum grau o tempo todo — é um maior conforto em nossas vidas. Esperamos que, com uma prática suficiente, o que nos incomoda agora não nos incomode depois. Existem na verdade duas maneiras de abordarmos a prática, e que precisam ser citadas. A primeira perspectiva é o que a maioria de nós pensa que é a prática (quer o admitamos, quer não), e a segunda é aquilo que a
prática na verdade é. Conforme nossa prática vai se desenvolvendo com o tempo, aos poucos passamos de uma perspectiva para outra, embora nunca abandonemos por completo a primeira. Estamos todos em algum ponto desse continuum. Quando agimos movidos pela primeira perspectiva, nossa atitude básica é que empreenderemos essa prática difícil e exigente porque esperamos obter determinados benefícios pessoais dela. Podemos não esperar tê-los todos ao mesmo tempo. Podemos ter uma certa limitação de paciência, mas depois de alguns meses de prática podemos começar a sentir que fomos ludibriados caso nossa vida não tenha melhorado. Entramos na prática com uma certa expectativa ou exigência de que ela, de alguma forma, irá incumbir-se de nossos problemas. Nossas exigências básicas são que nos sintamos bem e nos tornemos felizes, que tenhamos mais paz e serenidade. Esperamos não ter mais que aturar aqueles horríveis sentimentos de contrariedade, e iremos conseguir tudo o que desejamos. Esperamos que, em vez de ser insatisfatória, nossa vida se torne mais gratificante. Esperamos ficar mais saudáveis, mais à vontade. Esperamos ter melhor controle de nossa vida. Imaginamos que seremos capazes de tratar os outros melhor sem que isso seja inconveniente. Exigimos que a prática nos deixe confiantes e que obtenhamos cada vez mais aquilo que queremos: se não dinheiro e fama, pelo menos algo próximo. Embora talvez não queiramos admiti-lo, exigimos que uma outra pessoa tome conta de nós e que as pessoas que nos são próximas atuem em nosso benefício. Esperamos ser capazes de criar condições de vida que nos sejam agradáveis, como o relacionamento certo, o trabalho certo, o melhor programa de estudos. Para aqueles com quem nos identificamos, queremos ser capazes de consertar suas vidas. Não há nada de errado em querer qualquer uma dessas coisas, mas, se pensarmos que alcançá-las é do que trata a prática, então ainda não a teremos entendido. As exigências são todas a respeito do que nós queremos: queremos ficar iluminados, queremos paz, queremos serenidade, queremos ajuda, queremos controle sobre as coisas, queremos que tudo seja maravilhoso. A segunda perspectiva é bem diferente: cada vez mais queremos ser capazes de criar harmonia e crescimento para todas as pessoas. Estamos incluídos nesse crescimento, mas não somos
o centro dele; somos apenas uma parte do quadro. Conforme essa segunda perspectiva vai se fortalecendo em nós, começamos a desfrutar o serviço que prestamos aos outros e temos menos interesse em saber se servir aos outros atrapalha nosso próprio bem-estar. Começamos a ir em busca de condições de vida — como um emprego, saúde, um namorado — que mais favoreçam esse serviço. Talvez elas não nos sejam sempre agradáveis. O que mais nos importa é que tais condições nos ensinam como servir bem a vida. Uma relação difícil pode ser extremamente proveitosa, por exemplo. Conforme adotemos a segunda perspectiva mais e mais vezes, aprendemos a servir a todos, e não só as pessoas de quem gostamos. Cada vez mais, temos interesse em ser responsáveis pela vida, e não nos importa mais tanto se os outros se sentem ou não responsáveis por nós. Na realidade, nós inclusive nos tornamos dispostos a ser responsáveis pelas pessoas que nos maltratam. Embora possamos não o preferir, tornamo-nos mais propensos a vivenciar situações difíceis para aprender. À medida que nos aproximarmos mais da segunda perspectiva, iremos continuar conservando — muito provavelmente — aquelas preferências que definiam a primeira perspectiva. Continuaremos preferindo ser felizes, sentir-nos bem, estar em paz, obter o que queremos, mantermo-nos saudáveis, ter um certo controle sobre as coisas. A prática não nos leva a perder nossas preferências. Porém, quando uma preferência entra em conflito com aquilo que é mais proveitoso, então sentimo-nos dispostos a desistir da preferência. Em outras palavras, o centro de nossa vida está mudando, da preocupação conosco para a atenção à própria vida. A vida nos inclui, sem dúvida; não fomos eliminados da segunda perspectiva, mas não somos mais o centro. A prática diz respeito a deslocar-se da primeira para a segunda perspectiva. Existe uma armadilha inerente à prática, porém: se praticarmos bem, muitas das exigências da primeira perspectiva podem ser satisfeitas. Temos mais probabilidade de nos sentir melhor, de ficar mais confortáveis. Podemos nos sentir mais à vontade com nós mesmos. Uma vez que não estamos punindo nossos corpos com tanta tensão, nossa tendência é nos tornarmos mais saudáveis. Essas mudanças podem causar em nós a equivocada noção de que a primeira perspectiva é correta: que a prática é tornar a vida melhor para nós. Na realidade, os benefícios
que auferimos pessoalmente são incidentais. A verdadeira razão da prática é servir a vida da maneira mais plena e produtiva que pudermos. E isso é muito difícil para a nossa compreensão, sobretudo a princípio. "Você quer dizer que devo tomar conta de alguém que acabou de me destratar? Isso é loucura!" "Você está dizendo que devo desistir do que é conveniente para mim para servir alguém que nem gosta de mim?" Nossas atitudes centradas em nosso ego têm raízes profundas e levam muitos anos de árdua prática para afrouxá-las um pouco. E estamos convencidos de que a prática diz respeito à primeira perspectiva, de que iremos conseguir alguma coisa dela que seja maravilhosa para nós. A verdadeira prática, contudo, é muito mais voltada para enxergarmos como nos ferimos e magoamos os outros com pensamentos e atos iludidos. É enxergarmos de que maneira magoamos os outros, talvez por estarmos simplesmente tão perdidos em nossos próprios pensamentos que nem sequer conseguimos vê-los. Não acho que de fato causemos danos aos outros; é só que não vemos muito bem o que estamos fazendo. Posso saber como está indo a prática de uma pessoa vendo se seu interesse pelos outros está aumentando, interesse que vai além do que meramente EU quero, do que está ME ferindo, de como a vida é terrível, e assim por diante. Esse é o sinal de uma prática que está avançando. A prática sempre é uma batalha entre aquilo que queremos e aquilo que a vida quer. É natural ser egoísta, querer o que se quer, e somos inevitavelmente egoístas até que enxerguemos uma alternativa. A função de lecionar num centro como este é ajudar a enxergar a alternativa e incomodar-nos em nosso egoísmo. Enquanto estivermos presos na primeira perspectiva, governados pelo desejo de nos sentir bem ou em estado de graça, ou iluminados, nós precisamos ser incomodados. Precisamos ser contrariados. Um bom centro e um bom instrutor trabalham para isso. Afinal de contas, a iluminação é apenas a ausência de todo interesse ou preocupação por si. Não venham a este centro para se sentirem melhor; este não é o lugar para isso. O que quero são vidas que cresçam para que possam tomar conta de mais coisas e de mais pessoas.
Hoje de manhã recebi um telefonema de um antigo aluno que tem câncer no pulmão. Numa operação anterior, foram removidos três quartos de seus pulmões e ele está se dedicando a sentar e praticar. Algum tempo depois da operação, ele começou a ter problemas de visão e dores de cabeça muito fortes. Alguns testes revelaram dois tumores cerebrais — o câncer tinha se espalhado. Está de volta ao hospital para fazer tratamento. Conversamos a respeito do tratamento e de como ele está indo. Eu lhe disse: "Sinto realmente muito que tudo isso tenha acontecido com você. Quero apenas que você se sinta confortável. Espero que as coisas melhorem". Ele respondeu: "Não é isso que quero de você. Eu quero que você exulte de satisfação. É assim para mim — e é maravilhoso. Vejo o que a minha vida é". E depois acrescentou: "Não quer dizer que não sinta muita raiva e medo e fique subindo pelas paredes. Todas essas coisas continuam acontecendo e agora eu sei o que é a minha vida. Não quero nada de você exceto que partilhe de meu regozijo. Eu gostaria que todos pudessem se sentir do jeito que estou me sentindo". Ele está vivendo dentro da segunda perspectiva, aquela na qual acolhemos as condições de vida — emprego, saúde, amor — que nos serão as mais proveitosas de todas. Ele conseguiu isso. Quer viva dois meses, dois anos, quer um longo tempo, em certo sentido não importa. Não estou sugerindo que ele é um santo. Ele passa por dias de uma imensa dificuldade: dor, raiva, revolta. Essas coisas acontecem agora com ele; apesar disso, não era sobre essas coisas que ele queria falar. Se pudesse recuperar-se, ainda teria todas as lutas e dificuldades que qualquer pessoa tem, as exigências e os sonhos de seu ego. Essas coisas nunca desaparecem de fato; só o que muda é nosso modo de lidar com elas. A mudança da primeira para a segunda perspectiva é difícil para nós compreendermos, em especial no princípio. Tenho notado, nas conversas com as pessoas novatas quanto à prática, que muitas vezes as minhas palavras simplesmente não são registradas. Como um gato num teto de zinco quente, ou gotas de água numa frigideira em ponto de fritura, as palavras tocam só por um momento a superfície e depois esvaecem-se. Com o tempo, porém, as palavras não irão mais salutar e sumir com tanta facilidade. Alguma coisa começa a afundar, a assentar. Conseguimos sustentar por mais tempo que a vida é muito diferente daquilo que
achamos que poderia ou deveria ser. Com o tempo, aumenta a capacidade de simplesmente sentar-se com o que a vida na verdade é. Essa mudança não acontece de um dia para outro. Somos obstinados demais para isso. Ela pode ser acelerada por uma grande enfermidade ou um forte desapontamento, por uma perda grave ou outro problema sério. Apesar de eu não querer que crises assim aconteçam para ninguém, elas em geral proporcionam o aprendizado necessário. A prática zen é difícil sobretudo porque cria desconforto e nos coloca cara a cara com os problemas que temos em nossas vidas. Não queremos fazer isso, embora nos ajude a aprender e nos incentive a ir em frente, rumo à segunda perspectiva. Sentar em silêncio quando estamos contrariados e gostaríamos realmente de estar fazendo alguma outra coisa é uma lição que assenta pouco a pouco. Quanto mais reconhecemos o valor da prática, mais aumenta nossa motivação para praticar. Começamos a sentir algo. Ganhamos força para sentar e praticar dia após dia, para participar de sessões de um dia inteiro de prática sentada, para fazer um sesshin. O desejo de fazer essa prática árdua aumenta. Lentamente começamos a compreender aquilo que meu antigo aluno estava querendo dizer com a frase: "Agora eu sei o que é a minha vida". Estamos equivocados se sentimos pena dele. Talvez ele seja um dos felizardos. ALUNO:
Você disse que, na segunda perspectiva, exigimos que nossas vidas sejam mais produtivas. Você quer dizer produtivas para a prática da pessoa ou o quê? JOKO: Produtivas
para a vida. Produtivas para a vida em geral, incluindo tanto da vida quanto for possível. Essa parece uma afirmação bastante geral, mas, quando acontece em nossa vida, nós a compreendemos. Por exemplo, talvez ajudamos um amigo com sua mudança mesmo quando estamos muito cansados e não queremos trabalhar. Deixamo-nos de lado, impomos uma inconveniência a nós mesmos, não para sermos nobres, mas porque é necessário. ALUNO:
Quando ouço esse tipo de história, quero imediatamente começar a fazer planos para realizar coisas produtivas. JOKO:
Sim, podemos tornar qualquer coisa um ideal a ser buscado. Porém, se agirmos assim, rapidamente iremos deparar
com nossa própria resistência — o que nos dá algo com que trabalhar. Tudo é útil para nós. Não temos de nos forçar até o ponto de nos arrebentarmos. Não deveríamos nos considerar como mártires; esse é um outro ideal, apenas isso, uma imagem de como deveríamos ser, em contraste com o que de fato somos. ALUNO;
Quando planejo como posso tornar minha vida mais segura e confortável, imagino que ela irá tornar-me feliz no final. Mas então surge uma questão: "Serei realmente feliz?". Percebo em mim uma ansiedade de agarrar a segurança e a felicidade e, por trás desse ideal, está uma sensação de insatisfação, porque de alguma maneira eu seí que também não será isso. JOKO:
Há um certo valor em nós perseguirmos tais sonhos porque, quando alcançamos o que pensávamos querer, enxergamos com mais clareza que isso não nos dá a satisfação pela qual ansiávamos. É assim que aprendemos. A prática não é para mudar aquilo que fazemos; ela se refere mais a tornarmo-nos grandes observadores e a vivenciarmos aquilo que está se passando conosco. ALUNO:
O processo de perseguir interminável. Algum dia desaparece?
os
sonhos
parece
JOKO: Desaparece
sim, mas somente depois de anos e anos de prática. Durante muito tempo, eu começava cada sesshin com uma sensação de resistência. "Não quero fazer isso porque sei o quanto estarei cansada no final." Quem quer ficar cansado? Hoje essa resistência já desapareceu para mim. Quando o sesshin começa, ele começa. Se estamos praticando, os programas antecipados do ego aos poucos desaparecem. Mas também não devemos fazer desse desaparecimento um outro programa antecipado. Não deveríamos pensar a prática como um modo de chegar em alguma outra parte. Não há lugar nenhum para onde ir. ALUNO:
Neste momento de minha vida, estou fazendo muitas amizades novas, muitos novos contatos. É excitante. Não sei quem está ajudando quem — se sou eu quem está dando para eles, ou se são eles que estão dando para mim. Isso tem relação com a prática? JOKO:
A prática muda aquele padrão de amizade calcado em cálculos da razão custo/benefício para cada envolvido; tornamonos simplesmente mais genuínos. Em certo sentido, não podemos
ajudar os outros; não sabemos o que é melhor para eles. Praticar com a nossa própria vida é o único meio de podermos ajudar alguém; naturalmente servimos os outros tornando-nos cada vez mais quem somos. ALUNO:
Se queremos atuar dentro da segunda perspectiva, fazendo o que é mais proveitoso para a vida, como saber o que fazer? Como poderemos saber se é este emprego ou esta relação que corresponde a isso? JOKO:
Quando vivemos dentro da segunda perspectiva, não levamos conosco ideais nem programas antecipados. É mais uma questão de enxergar claramente o que está à nossa frente. Agimos sem ficar girando a questão em nossas mentes, como uni disco riscado, sem parar. Sentar-se para praticar com essa questão ajuda; prestamos atenção aos nossos pensamentos e à tensão em nosso corpo, e começamos a ver com mais nitidez como agir. A verdadeira prática de sentar é sempre um pouco embaralhada. Se nos mantivermos sentados para praticar, por um tempo longo o bastante, porém, as coisas vão se tornando pouco a pouco mais claras. Existe um continuum, e sentar-se na prática é avançar ao longo desse continuwn. Não que cheguemos em algum lugar; apenas que, cada vez mais, tornamo-nos apenas nós mesmos. Não me refiro a sentar-se numa almofada apenas. Se estamos praticando bem, estamos fazendo zazen o tempo todo. ALUNO:
Sonhamos que iremos chegar a saber qual é a coisa certa a fazer, quando de fato, em algum ponto, nós apenas começamos a agir e então, seja como for, aprendemos com essa ação. Se cometemos erros e magoamos as pessoas, desculpamonos. Quando observo minha mente e permaneço atento ao meu corpo, decorre dessa prática de atenção uma maneira de agir. Pode ser um curso de ação muito confuso, Se me atenho à minha prática, porém, de alguma maneira aprenderei com esses comportamentos e isso é o melhor que posso fazer. Não posso esperar saber sempre o que é melhor para a vida. Só posso fazer o que posso fazer. JOKO:
Sim. A idéia de que deverá chegar o momento em que ficaremos sabendo o que fazer é parte da primeira perspectiva. A caminho da segunda, dizemos: "Irei praticar, vou fazer o melhor que posso e aprenderei com os resultados".
ALUNO:
A respeito da questão de ajudar os outros, penso que, conforme formos enxergando cada vez melhor os nossos sentimentos e as nossas tendências para manipular uma situação, nessa mesma medida começaremos a agir com mais harmonia, ou pelo menos a criar menos confusão. Por isso não temos de ir longe para ajudar os outros. Apenas enxergar o que estamos fazendo conforme interagimos ajuda naturalmente as pessoas, sem que nem estejamos de fato nos esforçando para isso. JOKO:
Sim. Por outro lado, se vemos alguém além de nós como uma pessoa para ajudar, podemos estar certos de que arranjamos um bom problema. Se sentarmos para praticar, acerca de nossas confusões e limitações, sem tentarmos fazer mais nada, com o tempo fazemos algo. ALUNO:
Às vezes, o mais valioso para alguém não é o que fazemos por ele, mas o que não fazemos. JOKO:
Certo. Muitas vezes, o curso mais acertado de ação é apenas permitir que as pessoas sejam o que são. Por exemplo, seria um erro se eu tentasse fazer alguma coisa por aquele meu antigo aluno que tem câncer. Posso apenas ouvi-lo e ser quem eu sou. Ele está passando pelo que tem de passar; esse é seu aprendizado. Não posso fazer nada a respeito. ALUNA: Descobri
em mim recentemente uma maior disponibilidade. Parece que estou menos autocentrada e mais aberta, mais disponível para os outros. Parte disso está em encontrar-me mais relaxada. As pessoas me procuram com suas preocupações. Não é que estejam pedindo ajuda. Em geral só querem alguém que as escute. Tudo o que tenho de fazer é simplesmente ser eu mesma e estar disponível, digamos, para a pessoa do outro lado da linha que está me dizendo: "Quero te dizer uma coisa...". JOKO: É
isso.
ALUNO: Joko, JOKO: Nem
você parece disponível o tempo todo, desse jeito.
sempre. Às vezes, desligo o telefone.
ALUNO:
Não acho que você aja assim para o seu próprio bem. Existem algumas pessoas que realmente se aproveitam de você. JOKO:
Mas esse é o meu trabalho. E, lembrem-se, ninguém pode "aproveitar" de mim.
ALUNO:
Você está dizendo que sempre que alguém grita pedindo ajuda você deve sempre responder? O que fazer com aquelas pessoas que ligam e se queixam o tempo todo? JOKO:
Eu digo algo como "Estou escutando o que você está dizendo. Talvez você pudesse praticar com isso. Como você praticaria com isso?". Não me importo se alguém se queixa. Todos nos queixamos, embora possamos não admiti-lo. Todos gostamos de nos queixar. No entanto, me incomodo se as pessoas querem apenas contar suas histórias, sem parar, sem o menor espaço para refletir sobre o que poderiam estar trabalhando em sua vida. Não tenho lugar nesses enredos. Talvez essas pessoas tenham de sofrer até estarem dispostas a acordar um pouco. ALUNO:
Fiquei muito comovido com sua história do aluno com câncer. Tenho uma tremenda resistência a reconhecer que todo esse sofrimento está certo. JOKO:
Não nos cabe dizer que todo esse sofrimento está certo. Também não quero que ele sofra. Mas é o que ele diz que importa. A vida nos apresenta lições o tempo todo. É melhor se pudermos aprender cada uma delas, incluindo as pequeninas. Porém, nós não queremos aprendê-las. Queremos colocar a culpa pelo problema em outra pessoa, simplesmente colocá-lo de lado, tirá-lo de nossa vista. Quando nos recusamos a aprender com os problemas menores, somos forçados a aprender com os maiores. A prática trata de aprender com cada pequena coisa que emerge de modo que, quando grandes questões nos confrontam, somos mais aptos a lidar com elas. ALUNO: Tornei
a me familiarizar recentemente com o fato de que, quando começo a me afastar do caminho em que vinha vindo e me dirijo mais para onde preciso estar seguindo, todas as espécies de caos aparecem. Não vai ser fácil. JOKO:
Certo. Quando começamos uma prática séria e, por algum tempo a partir do início, a vida parece piorar em vez de melhorar, estamos numa parte da conversa que ninguém deseja ouvir.
O OLHO DO FURACÃO Segurança é, principalmente, uma superstição. Não existe na natureza, nem os filhos dos homens experimentam-na por completo. A longo prazo, evitar perigos não é mais seguro do que atirar-se e arriscarse. A vida é ou uma audaciosa aventura, ou nada. Helen Keller
Alguns alunos aqui trabalham com koans, porém não são todos. Embora haja muito a se aprender com o estudo de koans, acredito que depender apenas disso pode ser limitante. Se entendemos as nossas vidas, entendemos os koans. E trabalhar diretamente com a nossa vida é mais valioso e difícil. Os que trabalham com koans por um certo tempo podem começar a interessar-se em saber do que trata um koan, mas saber não é necessariamente o mesmo que ser. Embora a prática do koan esteja baseada na idéia de que se virmos o que é verdade nós seremos essa verdade, isso nem sempre acontece. Apesar disso, os koans podem ser muito úteis. Comecemos com um extraído do Gateless gate (Portão sem porteira) *, o Homem no Alto da Arvore, de Kyogun. Mestre Kyogun disse: "É como um homem no alto da árvore, pendurado de um galho pela boca; suas mãos não conseguem pegar um ramo sequer, seus pés não alcançam outro galho. Vamos supor que um outro homem embaixo da árvore lhe pergunte: 'Qual é o significado de Bodhidharma vir para o Ocidente?'. Se ele não responde, contraria o desejo do interrogante. Se responde, perde a vida. Nessa situação, o que ele deveria fazer?". Poderíamos reformular esse koan perguntando: "Qual é o significado da vida?". Não responder é não cumprir com a nossa responsabilidade; responder é perder a nossa vida. Para trabalhar com esse koan contarei uma outra história. Há muitos anos eu vivia em Providence, em Rhode Island. Um furacão enorme subia pela costa e destruía a Nova Inglaterra. Empurrei o berço do meu bebê para perto da parede e o cobri para que, se as janelas quebrassem o vidro, este não o atingisse, e tomamos *
Gateless gate, newly translated with commeníary by zen master Koun Yamada, Los Angeles: Center Publications, 1979, p. 35.
outras providências necessárias. Estávamos diretamente no caminho do furacão e ele era muito intenso. Em frente à casa víamos árvores enormes, antigas, quebrando e caindo para todo lado. Os ventos atingiam uma velocidade média de 200 km horários. Depois de três ou quatro horas, numa questão de minutos, tudo ficou quieto de novo. O sol apareceu e os pássaros começaram a cantar. O vento parou. Estávamos no olho do furacão. Dentro de uma hora mais ou menos, o olho se deslocou, os ventos recomeçaram e atravessamos o outro lado da massa rodopiante de ventos. Embora não tão poderoso quanto o primeiro lado, também era muito intenso. No final tinha sobrado uma gigantesca confusão para ser arrumada. Fiquei sabendo mais tarde que às vezes os pilotos são acidentalmente apanhados pelos furacões, sujeitando a si e ao avião a momentos de um terrível estresse. Quando isso acontece, eles em geral tentam voar para o olho do furacão, o centro, para terem uma mínima chance de recuperar-se. A maioria das pessoas é como o homem no alto da árvore, ou o piloto dentro do avião, apenas agarrados, esperando conseguir sair da tempestade. Sentimo-nos aprisionados nas oscilações da vida. Podem ser ocorrências naturais, como enfermidades sérias. Podem ser dificuldades nos relacionamentos, que sempre parecem injustos. Do nascimento à morte, ficamos prisioneiros desse rodopio de ventos que é a realidade da vida: uma energia enorme, deslocando-se e modificando-se, Nossa meta é como a do piloto: proteger a nós e a nosso avião. Não queremos ficar onde estamos. Por isso fazemos o máximo possível para preservar as nossas vidas e salvar a estrutura do avião, para podermos escapar do furacão. Existe essa coisa poderosa e enorme que chamamos de nossa vida e estamos em algum ponto, sentados bem no meio de nosso avião, esperando conseguir encontrar uma saída sem nos machucarmos. Vamos supor que, em vez de estarmos num avião, estamos num planador no meio do furacão, sem o controle e o poder do motor. Somos arrastados pelos ventos arrebatadores. Se temos alguma idéia de sair vivos disso, somos tolos. Mesmo assim, enquanto vivermos dentro daquela enorme massa de ventos, temos uma excelente carona. Apesar do medo e do terror, pode ser excitante e delicioso — como deslizar montanha abaixo. O homem no alto da árvore, agarrado para salvar sua vida, é como o piloto do avião, esperando em desespero conseguir salvar-
se das oscilações da vida. E depois lhe perguntam: "Qual é o significado da vida?". Como é que ele responde? Como é que nós respondemos? Ao vivermos nossas vidas, assim como ao fazermos zazen, estamos tentando proteger-nos. Essa mente que pensa, imagina, se excita, se emociona, culpa os outros e se sente vítima é como o piloto do avião tentando desesperadamente. sair do furacão. Numa vida de tantas tensões e agruras, jogamos com tudo o que temos apenas para sobreviver. Toda a nossa atenção está em nós mesmos e em nosso painel de controles; quando tentamos nos salvar, não prestamos atenção em mais nada. Contudo quem estiver no planador pode desfrutar tudo — os relâmpagos, a chuva quente, o uivo do vento. Ele pode passar momentos indescritíveis. O que acontecerá no final? Ambos morrem, é claro. Mas qual conhece o significado da vida? Quem conhece o contentamento? Como o primeiro piloto, passamos a vida inteira tentando proteger a nós mesmos. Quanto mais nossa intenção é nos proteger das oscilações de nossa atual situação, mais estresse sentimos, mais infelizes nos tornamos e menos vivemos realmente a nossa vida. Devemos ignorar o cenário que nos rodeia se estamos obcecados com os painéis de controle, que cedo ou tarde irão nos faltar, de qualquer modo. Quando estamos no zazen, podemos observar nossos .mecanismos de proteção prestando atenção à nossa mente. Podemos notar como tentamos explicar nossa dor e assim afastá-la, jogando a culpa de nossas dificuldades em outrem. Conseguimos perceber nossas impiedosas e vãs tentativas de nos salvar. Nossos esforços não adiantam de nada, é claro. Quanto mais tentamos, mais tensos e nervosos ficamos. Existe apenas uma coisa para finalmente resolver o problema; ninguém quer ouvir qual é, porém. Pense no homem que está no planador. Será que ele de fato queria estar lá? Desde o primeiro instante, ele não tem nenhuma chance. Ele está ali só para ser levado na maior carona do mundo. Nossas próprias vidas são como essa carona, que termina inevitavelmente em nossa morte. Estamos tentando fazer o impossível, salvar-nos. Não podemos fazê-lo. Aliás, estamos todos morrendo neste exato minuto. Quantos minutos mais temos? Como o planador, talvez tenhamos só mais um minuto, talvez uma centena deles. Não importa quantos: no final, caímos todos. Mas aquele que pode perguntar "Qual é o significado da vida?" é o piloto do planador, não o do avião. O
primeiro saberá que no instante seguinte irá colidir, e o segundo só saberá quando gritar. Vamos ao sesshin na esperança de que, dentro do furacão de nossos tumultos, iremos encontrar o pequeno olho, o pequeno nirvana. Pensamos: "Deve estar em algum lugar. Onde? Onde está?". Às vezes, alcançamos um pontinho de sossego, de bons sentimentos. Então tentamos apegar-nos a ele. Todavia não podemos nos agarrar ao olho do furacão. O furacão segue correndo em frente. O nirvana não está em encontrar aquele pequeno espaço de calma onde ficamos protegidos e abrigados por algo ou alguém. Isso é uma ilusão. Nada no mundo irá jamais nos proteger: nem nosso companheiro, nem nossas circunstâncias de vida, nem nossos filhos. Afinal de contas, as outras pessoas estão todas ocupadas se protegendo. Se passarmos a vida procurando o olho do furacão, teremos vivido de maneira estéril. Morreremos sem termos vivido de fato. Não sinto pena do piloto no planador. Quando ele morrer, terá pelo menos vivido. Sinto peita daqueles que estão tão cegos por seus procedimentos defensivos e protetores que nunca sequer chegam a viver. Quando estamos em sua companhia, podemos sentir o medo e a inutilidade. No sesshin, podemos enxergar esse equívoco com mais clareza: não estamos tentando viver plenamente nossa vida; estamos tentando encontrar o olho do furacão, o lugar onde por fim ficaremos a salvo. Ninguém pode saber o que é a vida, mas podemos experimentá-la de maneira direta. Só isso nos é dado, como seres humanos. Porém, não aceitamos o presente. Não vivemos nossas vidas diretamente. Em vez disso, vivemos protegendo-nos. Quando nossos sistemas de proteção falham, culpamos alguém ou nós mesmos. Temos sistemas para encobrir nossos problemas; não estamos dispostos a encarar a dor da vida de frente. Aliás, quando a encaramos de frente, a vida se torna uma grande viagem. Claro que é interessante comprar seguro de vida e verificar que os freios em nosso carro funcionam. Mas, no final, até mesmo mo esses expedientes não nos salvarão. Cedo ou tarde, todos os nossos mecanismos de proteção falharão. Ninguém consegue resolver completamente o koan da vida, embora em nossa imaginação o outro sujeito talvez tenha conseguido. Culpamos as outras pessoas porque pensamos que elas deveriam já ter compreendido
tudo a respeito da vida. Nós não, mas ainda achamos que os outros nunca deveriam ser confusos a respeito de como vivem. Na verdade, somos todos confusos porque todos estamos imersos nesse jogo de autoproteção, em vez de no verdadeiro jogo da vida. A vida não é um espaço seguro. Nunca foi e nunca será. Se conseguimos chegar no olho do furacão por um ano ou dois, ainda assim não se pode contar com isso. Não existe lugar seguro para o nosso dinheiro, para nós, para aqueles que amamos. E não nos diz respeito preocuparmo-nos com isso. Enquanto não enxergarmos mais além desse jogo que não funciona, não estaremos jogando o jogo real. Algumas pessoas jamais enxergam mais além e morrem sem jamais terem vivido. E é uma grande pena. Podemos passar nossa vida culpando as outras pessoas, as circunstâncias ou o azar, pensando que a vida deveria ser de outro jeito. Podemos morrer assim se quisermos. É nosso privilégio, mas não é muito divertido. Temos de nos abrir para o enorme jogo que está em andamento e do qual fazemos parte. Nossa prática deve ser cuidadosa, meticulosa, paciente. Temos de encarar todas as coisas.
III. Separação e Vínculos PODE ALGUMA COISA NOS FERIR? Uma aluna do zen telefonou-me há poucos dias para queixarse da ênfase sobre a dificuldade da prática. Ela disse: "Penso que você comete um erro quando insiste com os alunos para que levem sua prática tão a sério. A vida deveria ser divertir-nos e passar bons momentos". Eu perguntei para ela: "Alguma vez essa abordagem já deu certo para você?". E ela respondeu: "Bom, na verdade não... Mas tenho esperanças!". Entendo sua atitude e simpatizo com todo aquele que acha que a prática é realmente um trabalho muito duro. É mesmo. Mas também fico triste por aqueles que não estão ainda dispostos a fazer esse tipo de trabalho sério, porque serão os que mais sofrerão. Apesar disso, as pessoas têm de fazer suas próprias escolhas e
algumas delas não estão prontas para uma prática séria. E eu disse para a aluna do zen: "Apenas faça sua prática de acordo ou não com suas próprias idéias e eu a apoiarei". Seja o que for que as pessoas estejam fazendo, quero dar-lhes apoio — porque é nesse ponto que elas se encontram e está tudo bem. O fato é que, para a maioria das pessoas, as nossas vidas não estão indo bem. Enquanto não nos dedicarmos a uma prática séria, nossa visão básica de vida em geral permanecerá em grande parte intacta. Aliás, a vida continua a nos fazer sentir pior e chega mesmo a piorar por si. Uma prática séria é necessária para que consigamos enxergar essa falácia bem no fundo de quase todas as ações, idéias e emoções humanas. Sendo humanos, vemos a vida através de um determinado aparato sensorial e, porque as pessoas e os objetos parecem ser externos a nós, vivenciamos muita infelicidade. Essa infelicidade decorre da concepção equivocada de que somos separados. Certamente essa é a impressão — parece que sou separada das outras pessoas e de tudo o mais que existe no mundo fenomênico. Essa concepção equivocada de que somos separados cria todas as dificuldades da vida humana. Enquanto pensarmos que somos separados, iremos sofrer. Se nos sentimos separados, iremos também sentir que temos de nos defender, que temos de tentar ser felizes, que temos de encontrar algo no mundo à nossa volta que irá tornar-nos felizes. A verdade dessa questão, no entanto, é que não somos separados. Somos todos expressões ou emanações de um ponto central — se quiser, chame-o de energia multidimensional. Não podemos imaginar qual seja sua forma; o ponto ou a energia central não tem tamanho, espaço ou tempo. Estou falando metaforicamente a respeito daquilo que não pode na realidade ser mencionado em termos comuns. Levando essa metáfora um pouco mais adiante, é como se esse ponto central irradiasse em bilhões de raios, cada um deles pensando que é separado de todos os outros. Na verdade, cada um de nós é sempre o centro, e o centro é cada um de nós. Uma vez que todas as coisas estão conectadas nesse centro, todos somos apenas uma coisa só.
Não enxergamos essa unidade, porém. Talvez se conhecermos bastante teoria da física contemporânea, poderemos entender intelectualmente a questão. Conforme vamos praticando ao longo dos anos, contudo, fragmentos dessa verdade começam a insinuarse em nossas vivências, cá e lá. Não nos sentimos mais tão separados dos outros. Conforme essa sensação vai assentando em nós, a vida, tal como acontece à nossa volta, deixa de ser tão frustrante. As situações, as pessoas, as dificuldades começam a impor-se a nós de um modo um pouco mais leve. Uma mudança sutil está acontecendo. Ao longo de toda uma vida de prática esse processo aos poucos se fortalece. Podem ocorrer breves momentos nos quais temos vislumbres de percepção de quem realmente somos, embora em si esses momentos não sejam muito importantes. É mais importante a lenta e crescente constatação de que não somos separados. Em termos comuns, ainda parece que existimos separados, mas não nos sentimos mais tão separados. Em conseqüência; não esperneamos mais tanto contra a vida: não temos de lutar contra ela, não temos de agradá-la, não temos de nos preocupar com ela. Esse é o caminho da prática. Se não brigamos com a vida, isso significa que ela não irá nos ferir? Existe algo além de nós que pode nos ferir? Na qualidade de alunos zen, podemos ter aprendido a dizer — no mínimo intelectualmente — que a resposta é não. Mas o que é que de fato pensamos disso? Há alguma pessoa ou situação que pode nos ferir? Claro que pensamos que sim, No meu trabalho com os alunos, ouço inúmeras histórias de como estão magoados ou contrariados. Todos esses relatos são versões de "Isso aconteceu comigo". Nossos parceiros amorosos, nossos pais, nossos filhos, nossos animais de estimação — "Isso aconteceu e me contrariou". Todos fazemos isso, sem exceção. Isso é a nossa vida. Talvez as coisas corram razoavelmente mansas durante algum tempo e depois, de repente, algo acontece que nos contraria. Em outras palavras, somos vítimas. Bom, essa é a nossa visão geral das coisas. Está profundamente entranhada em nós, quase inata. Quando nos sentimos' vitimados pelo mundo, procuramos por alguma coisa além de nós para levar essa dor embora. Pode ser uma pessoa, pode ser conseguir algo que queremos, pode ser alguma mudança em nossa posição profissional, algum reconhecimento talvez. Uma vez que não sabemos onde procurar, e estamos magoados, buscamos conforto em outro lugar.
Enquanto não percebermos que não somos separados de nada, iremos lutar contra nossas vidas. Quando lutamos, entramos em dificuldade. Ou fazemos bobagens, ou nos sentimos contrariados, insatisfeitos ou como se alguma coisa estivesse faltando. É como se a vida nos apresentasse uma série de indagações que não podem ser respondidas. E, por falar nisso, não podem mesmo. Por quê? Porque são falsas indagações. Não estão baseadas na realidade. Sentir que algo está errado e procurar meios de consertálo — quando começamos a sentir o erro desse tipo de padrão, começa a prática séria. A jovem que me telefonou ainda não chegou nesse ponto. Ela continua imaginando que algo externo irá torná-la feliz. Talvez US$ 1 milhão? Por outro lado, já com as pessoas que praticam, a armadura treme um pouco, acontecem pequenos lampejos de verdadeira compreensão. Pode ser que não queiramos reconhecer esses lampejos. Mesmo assim, é fato que começamos a compreender que existe um outro meio de viver, além de se sentir acossado pela vida e sair atrás de remédio contra isso. Desde o começo dos começos, não há nada errado. Não há separação: tudo é um único conjunto que irradia. Ninguém acredita nisso e enquanto não houvermos praticado por muito tempo é difícil de captar. Mesmo com seis meses de uma prática inteligente, contudo, começa a haver um pequeno abalo na falsa estrutura de nossas crenças. A estrutura começa a desmanchar aqui e ali. Conforme praticamos ao longo dos anos, a estrutura enfraquece. O estado iluminado existe quando essa estrutura rui por inteiro. Sim, temos de ser sérios a respeito de nossa prática. Se você não estiver pronto para ser sério, tudo bem. Continue simplesmente levando sua vida em frente. Você precisa ser empurrado de um lado para o outro por mais algum tempo. Está certo. As pessoas não devem estar num centro zen enquanto não sentirem que nada mais há para ser feito: é nesse momento que devem vir. Voltemos à nossa pergunta: será que algo ou alguém pode nos ferir? Consideremos alguns desastres reais. Vamos supor que perdi meu emprego e que estou seriamente enferma. Vamos supor que todos os meus amigos me deixaram. Vamos supor que um terremoto destruiu minha casa. Posso ficar ferido por todas essas
coisas? Claro que eu penso que sim. E seria terrível se todas essas coisas acontecessem. Porém, será que podemos realmente ser atingidos por tais eventos? A prática nos ajuda a ver que a resposta é não. Não é objetivo da prática evitar os sentimentos que nos ferem. Aquilo que chamamos "mágoa" ainda acontece. Posso perder meu emprego, um terremoto pode destruir minha casa, mas a prática ajuda-me a dar conta de crises, a mantê-las dentro do meu controle. Enquanto estivermos mergulhados em nossa mágoa, seremos um poço de lamentações de pouca serventia para qualquer um. Se não estivermos emaranhados em nosso melodrama de dor, por outro lado, mesmo durante uma crise po'demos ser úteis. Então o que acontece quando nós de fato praticamos? Por que é que a sensação de que a vida pode nos ferir começa a diminuir com o tempo? O que ocorre? Só um ego centrado em si, um ego apegado à sua mente e ao seu corpo pode ser atingido. Esse ego é na realidade um conceito formado a partir de pensamentos nos quais acreditamos. Por exemplo, "Se eu não conseguir isso ficarei infeliz", ou "Se isso não der certo para mim, será horrível", ou "Se eu não tenho uma casa para morar, isso é realmente terrível". Aquilo que chamamos de ego não é mais do que uma série de pensamentos aos quais estamos habituados. Quando estamos envolvidos por inteiro em nossos pequenos egos, a realidade — a energia básica do universo — dificilmente é sequer percebida. Vamos supor que eu acho que não tenho amigos e estou muito sozinha. O que acontece se sento para praticar sobre isso? Começo a ver que meu sentimento de solidão se compõe, na verdade, apenas de pensamentos. A realidade é que estou apenas sentada aqui. Talvez eu esteja sentada a sós em minha sala, sem mais ninguém. Ninguém me telefonou. Sinto-me só. Mas a realidade é que estou só sentada. A solidão e a infelicidade são meus pensamentos, meu julgamento de que as coisas deveriam ser diferentes do que são. Não enxerguei através delas. Não reconheci que minha infelicidade é fabricada por mim. A verdade da questão é que estou sentada em minha sala. Leva um bom tempo antes de conseguirmos ver que apenas ficar sentada na prática é bom, está
bem. Fico apegada ao pensamento de que sem uma companhia agradável, que me dê apoio, sou infeliz. Não estou recomendando uma vida em que nos distanciamos do convívio social para ficarmos livres de apegos e dependências. Apegos dizem respeito não ao que temos, mas a nossas opiniões acerca do que temos. Não há nada de errado com o fato de se possuir algum dinheiro, por exemplo. Apego é quando não conseguimos mais ver a vida sem ele. Da mesma forma, não estou dizendo para se desistir de estar com os outros. Estar com as pessoas é muitíssimo agradável. Às vezes, porém, talvez tenhamos de passar seis meses fazendo uma pesquisa em algum ponto do deserto. Para a maioria isso seria muito difícil. Todavia, se estou fazendo uma pesquisa no meio do nada, durante seis meses, a verdade da questão é que é isso mesmo, é apenas isso que estou fazendo. A lenta e difícil mudança da prática alicerça a vida e torna-a genuinamente mais pacífica. Sem nos esforçarmos para ser pacíficos, percebemos que cada vez mais as tempestades da vida nos atingem mais de leve. Estamos começando a nos desvencilhar de nosso apego aos pensamentos que pensamos ser nós mesmos. O ego é um conceito que enfraquece com a prática. A verdade é que nada pode nos ferir. Mas nós com certeza pensamos que estamos sendo atingidos e que podemos lutar para remediar as idéias de mágoa usando meios bastante improdutivos. Tentamos remediar um falso problema com uma falsa solução e sem dúvida isso cria o caos. Guerras, danos ao meio ambiente — tudo decorre dessa ignorância. Se nos recusamos a realizar esse trabalho — e não o faremos senão quando estivermos prontos —, teremos algum tipo de sofrimento, e tudo à nossa volta sofrerá também. Praticar ou não não é uma questão de bom ou mau, certo ou errado. Temos de estar prontos. Mas, quando não praticamos, pagamos o preço. Sem dúvida, a unidade original — o centro da energia multidimensional — permanece intacta. Não há como conseguirmos perturbá-la. Ela sempre existe; só isso. Isso é o que somos. Do ponto de vista da vida fenomênica que levamos, porém, existe um preço a ser pago.
Não estou tentando criar sentimento de culpa em ninguém. Esse sentimento em si não passa de pensamentos. Não estou criticando a moça que não queria levar a prática a sério. Ela está exatamente nesse ponto, porém, e para ela é perfeito. Conforme praticamos, no entanto, nossa resistência à prática diminui. Mas sem dúvida isso leva tempo. ALUNO:
Consigo ver como podemos ser unos com as outras pessoas, mas para mim está difícil entender o que seria ser uno com uma mesa ou coisa assim. JOKO:
Uno com uma mesa? Acho que com a mesa é muito mais fácil do que com as pessoas! Nunca ouvi ninguém relatar conflitos com uma mesa. Nossas dificuldades quase sempre envolvem pessoas, individualmente ou em grupos. ALUNO: Talvez
eu não tenha entendido o que você quer dizer
com "ser uno". JOKO: "Uno
com" é a ausência de qualquer coisa que divida.
ALUNO: Mas
eu não me sinto uma mesa.
JOKO;
Você não tem de sentir que é uma mesa. Com essa frase "ser uno com a mesa", estou querendo dizer que não existe senso de oposição entre você e a mesa. Não é uma questão de um sentimento especial; é uma falta ou ausência da sensação de distância, em sentido emocional. As mesas em geral não despertam emoções. Por isso é que não temos problemas com elas. ALUNO:
Digamos que uma pessoa tem artrite e sente dor o tempo todo; você diz que isso não dói? JOKO:
Não. Se sentimos uma dor persistente, devemos sem dúvida fazer o que nos for possível para lidar com ela. Mas depois, se ainda resta um pouco de dor, tudo o que podemos fazer é vivenciar esse resíduo. Não adianta nada acrescentar à dor julgamentos do tipo "Mas que coisa terrível! Coitada de mim! Por que é assim?". A dor simplesmente é. Considerada dessa forma, a dor é um ensinamento. Segundo a minha experiência, a maioria das pessoas que já passou por uma enfermidade séria e que aprendeu a usá-la terminou descobrindo que aquilo foi a melhor coisa que poderia ter acontecido para elas. ALUNO:
Se alguém não pode nos ferir e nós não podemos ferir o outro, isso não nos dá necessariamente autorização para
falarmos tudo o que temos na cabeça porque não podemos ferir ninguém. JOKO:
Certo. Se entendemos erradamente esse ponto e dizemos "Vou falar tudo agora para você porque não posso feri-lo", isso já é uma separação. Nós não atacamos os outros a menos que nos sintamos separados deles. Toda prática séria presume uma devoção a preceitos e princípios morais básicos. ALUNO:
E quanto à ética samurai, histórica no Japão? Por exemplo, um guerreiro samurai pode dizer "Uma vez que sou uno com tudo, quando decepar a cabeça de uma pessoa inocente não há assassinato; essa pessoa sou eu". JOKO: Em
senso absoluto não há assassinato nenhum porque somos todos — "vivos" e "mortos" — apenas manifestações daquela energia central que é tudo. Porém, em termos práticos, não concordo com a ética samurai. Se vemos que não somos separados das outras pessoas, simplesmente não atacamos. Os guerreiros samurais estavam confundindo o relativo e o absoluto. É claro que, por certo, não há um que mate e um que seja morto, mas na vida que vivemos, sim, existe. E por isso não o fazemos. ALUNO:
Em outras palavras, se confundimos o absoluto e c relativo poderíamos usar o absoluto para justificar o que fazemos no relativo? JOKO:
Sim, mas só se vivemos na cabeça. Se consideramos que a prática é uma postura filosófica, podemos ficar realmente confusos. Se sabemos que a verdade da prática está em nossos ossos — sem sequer pensar a esse respeito — não cometeremos esse erro. ALUNO:
Antes de eu começar a sentar para praticar, eu não achava que as coisas pudessem me ferir, porque eu não as sentia. JOKO:
Isso é muito diferente. Você está falando de dormência psicológica. Quando estamos entorpecidos, não estamos unos com a dor; estamos fingindo que ela não está ali. ALUNO: Quando
por fim me sintonizo e percebo o quanto estou me magoando de variadas maneiras, fica muito mais fácil interromper o comportamento contraproducente. Até que esse momento chegue, como você disse, estaremos fazendo o que estamos fazendo. Se vamos estragar as coisas, é isso que iremos fazer.
JOKO:
É isso mesmo. E não estou dizendo jamais criticar aos outros e suas condutas. Se alguém fez algo para mim — roubou todo o meu dinheiro para as compras —, posso precisar negar e tomar alguma atitude. Se os outros me tratam mal ou me causam dor, talvez devam saber que fizeram isso. Mas, se falarmos com eles com raiva, nunca aprenderão aquilo que precisam aprender. Jamais sequer nos escutarão. A atitude ou o conhecimento interno de que não somos separados cria uma mudança fundamental em nossa vida emocional. Esse conhecimento significa que, independentemente do que acontecer, não somos perturbados por isso. Ter o conhecimento não significa que não nos incumbiremos dos problemas conforme forem surgindo. No entanto, não estaremos mais dizendo em nosso íntimo: "Mas que coisa horrível. Ninguém tem todas as dificuldades que eu tenho". É como se nosso entendimento cancelasse essas reações. ALUNO:
Portanto, sentir-se ferido são só nossos pensamentos a respeito da situação? JOKO:
Sim. Quando não nos identificamos mais com esses pensamentos, lidamos com a situação e não ficamos mais emocionalmente envolvidos nela. ALUNO: Mas
a pessoa pode se sentir ferida.
JOKO:
Sim. E não estou dizendo para evitar esse sentimento. Na prática, nós trabalhamos com o complexo de sensações físicas e pensamentos que constituem "Eu me sinto ferido". Se vivenciarmos totalmente as sensações e os pensamentos, então o "sentir-se ferido" evapora. Eu nunca diria para não nos sentirmos do jeito que nos sentimos. ALUNO: Você JOKO:
está dizendo para se abrir mão do apego à mágoa?
Não. Não podemos nos forçar a abandonar esse apego. O apego é pensamento, mas não podemos apenas dizer "Vou desistir disso". Não funciona. Temos de entender o que é o apego. Temos de experimentar o medo — a sensação corporal — que está por trás do apego. Então esse apego irá simplesmente fenecer. Um erro comum no ensinamento zen é nos obrigar a "deixar ir". Não podemos nos forçar a "deixar ir". Temos de vivenciar o medo subjacente.
Vivenciar o apego ou o sentimento também não significa dramatizá-lo. Quando dramatizamos nossas emoções, simplesmente as encobrimos. ALUNO:
Você está dizendo que se sentirmos nossa tristeza de verdade, por exemplo, não teríamos mais necessidade de chorar? JOKO:
Podemos chorar. No entanto, existe uma diferença entre apenas chorar e dramatizar a nossa tristeza, o medo ou a raiva. A dramatização, muitas vezes, é mais um disfarce. Por exemplo, as pessoas que brigam, atiram coisas, berram e gritam ainda não estão em contato com sua raiva. ALUNO:
Voltando à moça que pensava que a prática deveria ser menos séria e que não queria vir para sentar-se e praticar aqui: você está equacionando a prática séria com praticar com regularidade num centro zen? JOKO: Não,
embora essa prática regular seja muito útil. Tenho alguns alunos que moram longe e praticam bastante. Apesar da distância, eles encontram um jeito de vir aqui de vez em quando. A moça simplesmente ainda não está pronta para fazer isso. E é ela quem sofre, o que é o mais triste.
O PROBLEMA SUJEITO-OBJETO Nosso problema básico como seres humanos é a relação su jeito-objeto. Na primeira vez que ouvi essa afirmação, anos e anos atrás, pareceu abstrata e irrelevante para minha vida. Apesar disso, toda a nossa desarmonia e dificuldade decorrem de não sabermos o que fazer a respeito da relação entre sujeito e objeto. Em termos comuns, do dia-a-dia, o mundo está dividido em sujeitos e objetos. Eu olho para vocês, vou para o trabalho, sento-me numa cadeira. Em cada um desses casos, penso em mim como o sujeito em relação com os objetos: vocês, meu trabalho, a cadeira. Intuitivamente, no entanto, sabemos que não somos separados do mundo e que a divisão sujeito-objeto é uma ilusão. Para chegar a esse conhecimento intuitivo é que praticamos. Se não entendermos o dualismo sujeito-objeto, veremos os objetos em nosso mundo como a fonte de nossos problemas: vocês são o meu problema, meu trabalho é meu problema, a cadeira.
(Quando me considero como o problema, tornei-me objeto.) Dessa forma, afastamo-nos dos objetos que consideramos como os problemas e vamos em busca de outros, que para nós são nãoproblemas. Desse ponto de vista, o mundo consiste em mim e nas coisas que agradam ou desagradam a mim. Historicamente, a prática zen e a maioria das outras disciplinas de meditação têm tentado resolver o dualismo sujeito-objeto esvaziando o objeto de todo conteúdo. Por exemplo, trabalhar no Um * ou em grandes koans esvazia o objeto do condicionamento que vinculamos a ele. Conforme o objeto vai se tornando cada vez mais transparente, somos um sujeito contemplando um objeto virtualmente vazio. Esse estado é às vezes chamado de samadhi. Esse é um estado de graça porque o objeto vazio não me incomoda mais. Quando atingimos esse estado, tendemos a nos parabenizar por todo o progresso que já fizemos. Esse estado de samadhi, porém, ainda é dualista. Quando o atingimos, uma voz interna diz: "Deve ser isso!" ou "Agora estou de fato indo bem". Permanece existindo um sujeito oculto, observando um objeto virtualmente vazio, no que acaba sendo uma separação entre sujeito e objeto. Quando nos damos conta dessa separação, tentamos acionar o sujeito também e esvaziá-lo de seu conteúdo. Quando fazemos isso, tomamos o sujeito em outro objeto ainda, com um sujeito ainda mais sutil a observá-lo. Estamos assim criando uma regressão infinita de sujeitos. Esses estados de samadhi não são precursores da verdadeira iluminação porque um sujeito finamente velado está separado de um objeto virtualmente vazio. Quando voltamos ã vida diária, aquele estado de graça se dissipa e mais uma vez estamos num mar de sujeitos e objetos. Prática e vida assim não se encontram. Uma prática mais límpida não tenta livrar-se do objeto, mas, antes, tenta enxergá-lo tal qual é. Aos poucos, aprendemos o que é ser ou vivenciar, e nesse estado não existe sujeito nem objeto. Não é que eliminemos alguma coisa; antes, reunimos as coisas. Ainda há a mim e ainda há você, mas quando sou apenas minha vivência de você, não me sinto separado de você. Sou uno com você.
*
Mu — literalmente "não" ou "nada" — é normalmente proposto para os iniciantes como um meio de focalizar sua atenção.
Esse tipo de prática é porém muito mais lento porque, em vez de concentrar-se num único objeto, trabalha com tudo em nossa vida. Qualquer coisa que nos aborreça ou contrarie (que, para sermos honestos, inclui quase tudo) se torna farelo para o moinho da nossa prática. Trabalhar com tudo leva a uma prática que permanece viva em cada segundo de nossa vida. Quando aparece raiva, por exemplo, a maioria das práticas zen tradicionais nos levaria a ignorar essa raiva e a nos concentrar em alguma coisa, como a respiração. Embora desse jeito a raiva seja posta de lado, ela voltará toda vez que formos criticados ou ameaçados de alguma forma. Por outro lado, nossa prática é nos tornarmos a própria raiva, vivenciando-a plenamente, sem separação ou rejeição. Quando trabalhamos dessa maneira, nossas vidas se aquietam. Aos poucos, aprendemos a nos relacionar com os objetos problemáticos de uma forma diferente. Nossas reações emocionais gradualmente se minimizam; por exemplo, objetos que temíamos vão perdendo seu poder sobre nós e podemos lidar com eles com mais presteza. É fascinante observar a mudança que ocorre; vejo-a acontecer nos outros e em mim também. Esse processo nunca está completo; no entanto, estamos nos tornando cada vez mais livres e despertos. ALUNO:
Como é aquilo que você descreve como diferente da prática shikantaza * tradicional? JOKO:
Corretamente entendido, é muito parecido com o shikantaza, mas existe uma tendência a esvaziar a mente. É possível entrar numa espécie de experiência bruxuleante na qual o sujeito não está incluído. Essa é apenas uma outra forma de falso samadhi. Os processos de pensamento foram eliminados da percepção consciente e cancelamos nossa experiência sensorial da mesma forma como seria feito com qualquer outro objeto da percepção consciente. ALUNO:
Você disse que o verdadeiro propósito da prática é experimentarmos nossa unidade com todas as coisas, ou apenas sermos nossas próprias vivências de modo que, por exemplo, esta-
*
Shikantaza — "apenas sentar'': uma forma pura de meditação sentada, sem a ajuda da contagem da respiração ou da prática do koan, na qual a mente mantém-se bastante
concentrada, alerta e calmamente cônscia do presente.
mos só lixando as unhas se for isso que estivermos fazendo. Mas não é um paradoxo tentar chegar até nisso? Concordo com você: não podemos tentar ser unos com o lixar. Se tentarmos nos tornar unos com esse movimento, separamo-nos dele. O próprio esforço se derrota. Existe uma coisa, porém, que podemos fazer: podemos reparar nos pensamentos que nos separam de nossa atividade. Podemos estar cônscios de não estarmos completamente engajados naquilo que estamos fazendo. Isso não é tão difícil. Rotular nossos pensamentos ajuda-nos nesse sentido. Em vez de dizer "Vou me unir com o ato de lixar", o que é dualista — pensar a respeito da atividade em vez de só executála —, sempre podemos observar que não o estamos fazendo. É tudo quanto se torna necessário. JOKO:
A prática não tem que ver com passar por certas experiências, com vivenciar grandes conclusões, nem com chegar em alguma parte ou tornar-se algo. Somos perfeitos como somos. Com "perfeitos" quero dizer que é isso, só. A prática é simplesmente manter a percepção consciente — de nossas atividades e também de todos os pensamentos que nos separam de nossas atividades. Quando lixamos nossas unhas ou nos sentamos para praticar, nós apenas lixamos as unhas ou nos sentamos para praticar. Uma vez que nossos sentidos estão abertos, ouvimos e sentimos outras coisas também: sons, odores e assim por diante. Quando os pensamentos surgem, observamos que surgiram e regressamos à nossa experiência direta. A percepção consciente é nosso verdadeiro ser. E o que somos. Por isso, não temos que tentar desenvolver a percepção consciente; nós apenas precisamos observar como bloqueamos nossa conscientização, com pensamentos, fantasias, opiniões e julgamentos. Ou estamos na percepção conscientizadora, que é o nosso estado natural, ou estamos fazendo alguma outra coisa. O sinal do aluno maduro é que, na maior parte do tempo, ele não faz outra coisa. Ele está apenas ali, vivendo sua vida. Nada especial. Quando nos tornamos uma percepção consciente aberta, nossa habilidade para os raciocínios necessários torna-se mais aguda, e todo o nosso input sensorial se torna mais claro, mais intenso. Depois de algum tempo sentados na prática, o mundo parece mais brilhante, os sons são mais intensos, e há uma riqueza da captação sensorial que é apenas o nosso estado natural
se não estivermos bloqueando o acesso às experiências com nossas mentes rígidas e preocupadas. Quando começamos a prática, podemos manter a percepção consciente só por intervalos muito breves e logo desviamos a nossa atenção do presente. Prisioneiros de nossos pensamentos, não reparamos nem que estamos divagando. Então nos apanhamos de volta e recuperamos a atenção na prática sentada. A prática inclui tanto a percepção consciente de nossa postura sentada como a percepção consciente de termos divagado. Após anos de prática, essas divagações diminuem até quase desaparecerem, embora isso nunca ocorra de forma radical. ALUNO:
Os sons e odores e também as nossas emoções e pensamentos são todos partes da nossa prática sentada? JOKO:
Sim. É normal que a mente produza pensamentos. A prática é tomar consciência de nossos pensamentos sem nos perdermos neles. Caso nos percamos, preste atenção nisso também. O zazen na realidade não é complicado. O verdadeiro problema é: nós não queremos fazê-lo. Se meu namorado começa a olhar para as outras mulheres, por quanto tempo permanecerei simplesmente disposta a vivenciar isso? Todos temos problemas constantes, mas nossa disponibilidade para somente ser está nos últimos itens, em nossa lista de prioridades, até termos praticado o suficiente para termos fé em apenas sermos de modo que as soluções possam aparecer naturalmente. Um outro indicador de uma prática em fase de amadurecimento é o desenvolvimento dessa confiança e dessa fé. ALUNO:
Qual é a diferença entre permanecer totalmente absorvido no lixar das unhas e em estar consciente de estar totalmente absorvido no lixar das unhas? JOKO: Estar
consciente de estar absorvido em lixar as unhas é ainda um dualismo. Você está pensando "Estou totalmente absorvido lixando as minhas unhas". Essa não é a verdadeira presença atenta. Na verdadeira presença atenta, a pessoa está só fazendo. A conscientização de que se está absorvido numa dada experiência pode ser um passo útil no caminho, mas ainda não é ter chegado efetivamente lã, porque ainda há o pensar sobre isso. Ainda há uma separação entre a percepção consciente e o objeto
dessa percepção consciente. Quando estamos lixando as unhas, não estamos pensando em prática. Numa boa prática, não estamos pensando "Estou na prática". Uma boa prática é fazer o que estamos fazendo e observar quando divagamos. Quando já estamos nessa prática há muitos anos, percebemos quase de imediato quando começamos a divagar. Focalizar a atenção em algo chamado "prática zen" não é necessário. Se, da manhã até a noite, formos tomando conta de uma coisa após a outra, de maneira completa e cabal e sem pensamentos concomitantes do tipo "Sou uma boa pessoa por ter feito isso", ou "Não é maravilhoso eu poder tomar conta de tudo?", então isso será suficiente. ALUNO:
Minha vida parece consistir em camadas sobre camadas de atividades, todas desenrolando-se ao mesmo tempo. Se eu fizesse apenas uma coisa por vez e depois passasse para a seguinte, eu não conseguiria dar conta de tudo que realizo normalmente durante um dia. JOKO:
Duvido. Fazer uma coisa de cada vez e entregar-se por completo a essa execução é o meio mais eficaz de se conseguir viver, porque não há bloqueio nenhum no organismo. Quando vivemos e trabalhamos dessa maneira, somos muito eficientes sem nos afobarmos. A vida é sem acidentes. ALUNO:
Mas e quando uma das coisas é ter de refletir sobre um assunto, outra é atender o telefone, uma terceira é uma carta para se escrever... JOKO:
Mesmo assim, toda vez que nos voltamos para uma outra atividade, se estivermos completamente presentes, apenas fazendo o que estamos fazendo, a tarefa será concluída muito mais depressa e melhor. Em geral, no entanto, incluímos na atividade vários pensamentos subliminares como "Preciso conseguir fazer todas essas coisas também — ou minha vida simplesmente não serve". A atividade pura é muito rara. Quase sempre existe uma sombra, um filme sobre ela. Podemos não estar conscientes disso, mas perceber apenas uma certa tensão. Não existe tensão na atividade pura, além da contração física exigida para que a atividade em si seja executada. Há muitos anos, num sesshin, eu costumava ter a experiência de apenas tornar-me o cozinhar, o arrancar as ervas daninhas,
ou o que fosse que eu tivesse que fazer, mas ainda existia um assunto sutil ali. E sem a menor hesitação, assim que o sesshin tinha evaporado um pouco que fosse, eu voltava completamente a toda a mesma história de sempre. Eu não me havia tornado una com o objeto. ALUNO:
De volta ao exemplo de lixar as unhas: se realmente estamos apenas fazendo isso, então não estamos em absoluto cientes de nós, ao passo que, se lembramos de que estamos fazendo isso, retornamos ao dualismo sujeito e objeto e não estamos mais entregues à pura atividade. Isso não significa, no entanto, que quando estamos só lixando as unhas não estamos absolutamente ali? Não existimos mais? JOKO:
Quando estamos entregues à pura atividade, somos uma presença, uma percepção consciente. Mas isso é tudo o que somos. E isso não se parece com nada. As pessoas supõem que o estado iluminado é inundado de sentimentos amorosos e emoções calorosas. Porém, o verdadeiro amor, ou a verdadeira compaixão, é simplesmente estar não-separado do objeto. Em essência, é um fluxo de atividade na qual não existimos como um ser separado de nossa atividade. Sempre existe um certo valor na prática que tem características dualistas. Um certo treino e um descondicionamento desenrolam-se em qualquer situação de prática sentada. Mas, até que tenhamos superado esse dualismo, não conseguiremos conhecer a liberdade final. Não existe uma liberdade final enquanto não houver apenas um só, ali. Podemos achar que não nos importamos com a liberdade final nesse sentido. A verdade, no entanto, é que nós a desejamos. ALUNO: Se
uma pessoa está sentindo amor e outra pessoa está sentindo ódio, existe uma diferença em como devem praticar? JOKO:
Não. O amor ou a compaixão genuína é uma ausência dessas duas emoções concebidas em nível pessoal. Somente uma pessoa pode amar ou odiar no sentido usual. Se não existe pessoa, se estamos apenas absorvidos no viver, essas emoções estarão ausentes. Na prática de concentração que descrevi primeiro, uma vez que o sentimento de raiva é um objeto, o que fazemos é simplesmente ignorá-lo. Empurramos a emoção para o lado e esvaziamos
o koan de seu conteúdo. O problema dessa abordagem é que, quando voltamos à vida diária, não sabemos o que fazer com as nossas emoções, porque elas não foram resolvidas. São um território desconhecido pela prática zen clássica. Na prática da conscientização, nós apenas vivenciamos o pensamento e a emoção e suas sensações concomitantes. Os resultados são muito diferentes. Na prática shikantaza que me ensinaram, as emoções fazem parte da prática: elas aparecem e nós nos sentamos para praticar com elas. ALUNO:
Sim, a prática shikantaza pode ser entendida dessa maneira. Temos apenas que nos acautelar quanto às armadilhas. JOKO:
Nos sesshins mais longos e difíceis, às vezes me sinto como Gordon Liddy, com minha mão sobre a chama de uma vela para saber quanta dor consigo suportar. No velho estilo da prática do samadhi, eu penso que o teste do samadhi da pessoa era sua capacidade de não sentir a dor mediante o estado de graça e a concentração. ALUNO:
JOKO: Certo.
Então o objeto é cancelado.
Nesse estilo de prática, o sesshin torna-se urna espécie de prova de resistência. Você poderia comentar como a dor funciona nesse sistema para não ser masoquismo? ALUNO:
JOKO:
Uma dor moderada é um bom mestre. A vida mesma apresenta a dor e também inconveniências. Se não sabemos como lidar com a dor e com a inconveniência, não sabemos muito a nosso próprio respeito. Uma dor extrema não é necessária, no entanto. Se a dor for excessiva, pode-se usar um banco ou a cadeira, ou até mesmo pode-se deitar. Mesmo assim, existe um certo valor em a pessoa dispor-se a ser a dor. A separação sujeitoobjeto ocorre porque não estamos dispostos a ser a dor que associamos com o objeto. E por isso que nos distanciamos dele. Se não nos entendemos em relação à dor, corremos dela quando aparece, e perdemos esse imenso tesouro de conscientização com a vivência direta da vida. De modo que, até certo ponto, é útil sentarse com a dor para podermos recuperar uma consciência mais plena de nossa vida tal qual ela é.
Quando atendo alunos em daisan * , a maior parte do tempo meus joelhos ficam doendo. Então estão doendo: é só isso. Sobretudo quando ficamos mais velhos, é útil ser capaz de estar com a nossa vivência e viver plenamente a vida. Parte do que viemos aqui aprender é como estar com o desconforto e a inconveniência. De certa forma, a dor é um grande mestre. Sem um certo grau de desconforto, a maioria das pessoas aprenderia muito pouco. Dor, desconforto, dificuldade e até mesmo a tragédia podem ser grandes instrutores, em especial quando ficamos mais velhos. ALUNO:
Dentro da consciência ordinária, tudo o que esteja além de nós é um objeto? JOKO:
Se pensarmos no eu da pessoa como um objeto entre outros, até mesmo ele pode ser um objeto. Posso observar a mim mesma, posso ouvir a minha voz, posso cutucar as minhas pernas. Desse ponto de vista, sou um objeto também. ALUNO:
Então, objetos incluem sentimentos e estados de ânimo, além das coisas do mundo? JOKO:
Sim. Embora pensemos em nós como sujeitos e em tudo o mais como objetos, isso é um erro. Quando nós separamos as coisas umas das outras, tudo se torna um objeto. Só existe um único sujeito verdadeiro — que é o absolutamente nada. O que é? ALUNO: A
percepção consciente.
JOKO:
Sim, a percepção consciente, embora a palavra seja inadequada. A percepção consciente não é nada e, no entanto, o mundo inteiro existe através dela.
INTEGRAÇÃO Há uma história tradicional a respeito de um instrutor zen * que estava recitando sutras ** quando foi abordado por um ladrão * *
Daisan: uma entrevista formal entre aluno e instrutor no decurso da prática meditativa.
Ver Paul Reps, compilador, Zen flesh, zen bones: A collection of zen and pre-zen writings, Garden City, NY: Anchor, Doubleday, sem data, "O homem que se tornou um discípulo", p. 41.
que exigiu seu dinheiro ou a vida. O instrutor disse ao ladrão onde estava o dinheiro, e pediu que ele apenas deixasse o suficiente para pagar seus impostos e que quando estivesse prestes a sair agradecesse ao instrutor pelo presente. O ladrão concordou. Uns dias depois foi capturado e confessou vários crimes, inclusive o assalto ao instrutor zen. Mas este insistiu que não havia sido vítima de roubo porque havia dado ao homem o seu dinheiro e este agradecera por isso. Depois de o ladrão ter terminado de cumprir a pena, voltou até o instrutor e tornou-se um de seus discípulos. Essas histórias parecem românticas e lindas. Mas vamos supor que alguém nos peça emprestado dinheiro e não nos devolva. Ou que alguém roube o nosso cartão de crédito e o utilize. Como reagir? Uma dificuldade das histórias clássicas do zen, como essa, é que elas parecem antigas e muito distantes. Por estar distante de nossa época, podemos deixar de entender o "x" da questão. A questão não é que alguém levou o dinheiro ou o que o mestre fez. A questão é que o mestre não julgou o ladrão. Isso não quer dizer que a melhor coisa seja sempre dar ao ladrão aquilo que ele quer; pode ser que às vezes essa não seja a melhor maneira de reagir. Estou certa de que o mestre considerou a situação, viu quem era o homem (talvez um garoto que apanhou uma espada e esperava com ela conseguir um dinheirinho rápido) e intuitivamente soube o que fazer. Não é tanto o que o mestre fez, mas a maneira como agiu. A atitude do mestre foi crucial. Em vez de fazer um julgamento, ele simplesmente lidou com a situação. Se a situação tivesse sido diferente, sua resposta poderia ter sido outra. Não percebemos que somos todos professores. Tudo o que fazemos, de manhã até a noite, é um ensinamento: o modo como falamos com alguém, na hora do almoço, o modo como fazemos nossas transações bancárias, nossa reação quando o artigo que apresentamos é aceito ou rejeitado — tudo o que fazemos e dizemos reflete nossa prática. Mas não é possível querermos ser simplesmente como Shichiri Kogen. É uma armadilha do treino concluir: "Oh, eu deveria ser desse jeito". Os alunos causam um grande dano quando arrastam esses ideais para a prática. Eles imaginam que "deveriam ser altruístas, generosos e nobres como o grande mestre zen". O mestre em cada uma dessas histórias foi eficiente porque foi o que ele era. Ele não pensou duas vezes a **
Sutra: texto budista tradicional, em geral falado em voz alta.
respeito. Quando tentamos ser uma coisa que não somos, tornamo-nos escravos de uma mente rígida e fixa, que segue regras a respeito de como as coisas têm de ser. A violência e a raiva que existem em nós continuam despercebidas porque nos mantemos aprisionados em nossas imagens de como deveríamos ser. Se conseguimos usar as histórias de forma correta, elas são maravilhosas. Entretanto, não deveríamos apenas tentar copiá-las em nossas vidas. Somos intrinsecamente perfeitos do jeito que somos. Somos iluminados. Mas, enquanto não compreendermos isso, iremos nos iludir a respeito das coisas. Os centros zen e outros locais de prática espiritual costumam ignorar o que tem de ocorrer com um ser humano para que aconteça a verdadeira iluminação. A primeira coisa que tem de acontecer — ao longo de muitas etapas, superando muitos desvios e armadilhas — é a nossa integração como seres humanos, para que a mente e o corpo tornem-se uma coisa só. Para muitas pessoas, esse empreendimento leva a vida inteira. Quando o corpo e a mente são um só, não somos mais constantemente puxados para cá e para lá, para frente e para trás. Enquanto formos controlados por nossas emoções autocentradas (e a maioria de nós tem milhares dessas ilusões), não teremos ainda superado essa etapa. Pegar a pessoa que ainda não integrou corpo e mente e forçá-la a passar pelo estreito e concentrado portão da iluminação pode sem dúvida produzir uma poderosa experiência de vida, mas essa pessoa não vai saber o que fazer com isso. Vislumbrar por um instante a unidade última do universo não significa necessariamente que daí em diante nossas vidas serão mais livres. Pois, enquanto nos preocupamos com o que alguém nos fez, como roubar o nosso dinheiro por exemplo, não estamos verdadeiramente integrados. De quem é o dinheiro afinal de contas? E o que torna nosso um pedaço de terra? Nosso senso de propriedade aparece porque temos medo e somos inseguros e por isso queremos ter coisas. Queremos possuir as pessoas. Queremos ser os donos das idéias. Queremos ter nossas próprias opiniões. Queremos ter uma estratégia para viver. Enquanto estivermos fazendo todas essas coisas, a idéia de que poderíamos agir com naturalidade como o mestre Kogen é completamente sem sentido. O importante é quem somos a cada momento dado e de que modo lidamos com aquilo que a vida nos oferece. Quando mente e corpo tornarem-se mais integrados, o trabalho paradoxalmente irá
ficar muito mais fácil. Nossa tarefa é integrarmo-nos com o mundo todo. Como disse o buda: "O mundo todo são meus filhos". Assim que estivermos relativamente em paz conosco, a integração com o resto do mundo se tornará mais fácil. O que custa mais tempo e dá mais trabalho é a primeira parte. Assim que isso estiver quase alcançado, existem muitas áreas da vida que têm a qualidade de uma vida iluminada. Os primeiros anos são mais difíceis do que os últimos. O mais difícil é o primeiro sesshin; os meses mais difíceis da prática estão no primeiro ano; o segundo já é mais fácil, e assim por diante. Mais tarde pode irromper uma nova crise, talvez depois de cinco ou dez anos de prática, quando começamos a entender que não iremos ganhar nada com tanto tempo sentado — absolutamente nada, O sonho acabou, o sonho da glória pessoal que pensávamos obter a partir da prática. O ego está desfazendo-se; esse pode ser um período árido, difícil. Conforme vou lecionando, percebo os programas pré-preparados da pessoa se desfazendo. Isso acontece na primeira parte da viagem. É mesmo lindo, embora seja a parte difícil. A prática deixa de ser romântica: não se parece mais com aquilo que lemos nos livros. Então começa a prática real: de um momento para o outro, apenas encarando cada momento. Nossas mentes não se impõem mais tanto a nós. Não nos dominam mais. Tem início uma genuína renúncia de nossos programas antecipados, embora mesmo nessa época tal etapa possa ser interrompida por todas as espécies de episódios difíceis. O caminho nunca é direto e suave. Alíás, quanto mais pedregoso, melhor. O ego precisa de obstáculos que o desafiem. Conforme nossa prática progride, observamos que os episódios — os obstáculos em nosso caminho — não são tão difíceis quanto poderiam ter sido. Não temos mais tantos programas antecipados a respeito de tudo, nem o mesmo impulso para nos tornarmos importantes ou grandes juizes. Se sentamos para praticar com até 40% de percepção consciente, pequenas fagulhas saem de nossas programações antecipadas. Quanto maior for o tempo em que permanecemos sentados praticando, menos coisas vão acontecer durante a prática. Por quanto tempo aturamos enxergar toda a obstrução de nosso ego? Por quanto tempo conseguimos observá-lo antes de largar mão e simplesmente retornar ao aqui? Trata-se de um lento processo de desgaste — e
não de uma questão de ganhar virtudes; é mais ganhar entendimento. Além de rotular nossos pensamentos, precisamos permanecer com as sensações de nosso corpo. Se trabalharmos com essas duas questões com toda a paciência possível, iremos aos poucos abrindo-nos para uma nova visão de vida. Queremos uma vida que seja tão rica e ampla — e benéfica — quanto seja possível. Todos temos a possibilidade de viver assim. Inteligência ajuda. As pessoas que vêm a um centro zen são, de maneira típica, muito inteligentes. Mas elas também tendem a cair nas malhas de muitas racionalizações e análises. Seja qual for a disciplina — arte, música, física, filosofia — podemos modificá-la e usá-la para evitar a prática. Porém, se não o fazemos, a vida nos dá um chutinho após o outro até aprendermos aquilo que precisamos aprender. Ninguém pode fazer essa prática por nós. O único teste para saber se estamos fazendo a prática é a nossa própria vida.
OS TOMATEIROS RIVAIS Há alguns instantes recebi um telefonema de uma amiga da costa leste que está morrendo. Ela disse que talvez tenha mais três ou quatro dias de vida e que estava telefonando para dizer adeus. Depois dessa ligação, lembrei-me da preciosidade desta jóia que chamamos vida — e de quão pouco sabemos a seu respeito ou a apreciamos. Mesmo que saibamos um pouco, como é pouco o quanto cuidamos dela! Algumas pessoas, em especial as que pertencem a comunidades espirituais, podem imaginar que a jóia da vida nunca tem conflitos, discussões ou transtornos — que é só calma e paz. Esse é um grande engano porque se não entendemos como o conflito é gerado, podemos fazer com que a nossa vida entre em rota de colisão com a vida dos outros. Primeiro, precisamos ver que todos sentimos medo. Nosso medo básico é o de morrer, e este está na base de todos os outros. Nosso medo de sermos pessoalmente aniquilados leva-nos a condutas inúteis, entre as quais o esforço de proteger nossa auto-imagem, o ego. Dessa necessidade de
proteção vem a raiva. Da raiva nasce o conflito. E o conflito destrói nossos relacionamentos com os outros. Não estou querendo dizer que uma boa vida não tenha acaloradas discussões, desacordos; isso é bobagem. Quando eu era menina conheci muito bem dois senhores e suas famílias. Estas eram amigas e era comum sairmos juntos para passeios de fim de semana. Esses dois homens competiam em todas as oportunidades, mas mais especialmente na temporada do tomate. Apresentavam suas safras na feira local. Suas discussões a respeito de seus tomates eram clássicas: iam erguendo a voz até as paredes começarem a tremer. E, na realidade, os dois ganhavam o prêmio de "O Melhor Tomate da Feira". Era uma delícia vê-los porque os dois sabiam que aquele bate-boca era só para brincar. O teste de um bom conflito, de uma boa troca de opiniões, é que quando o conflito termina não resta frieza ou amargor, nenhum apego à idéia do "eu ganhei, você não". Tudo bem discutir, mas apenas se for por diversão. Se temos uma discussão com alguém que nos é próximo, mas, depois de tudo supostamente perdoado e esquecido, continuamos frios e distantes, então está na hora de olharmos mais de perto essa situação. Um verso do Tao Te Ching * afirma: "O melhor atleta quer que seu adversário esteja em sua melhor forma. O melhor general entra na mente de seu inimigo. O melhor negociante serve ao bem comunitário. O melhor líder segue a vontade do povo"*. Todas essas pessoas entendem o que é a competição. Não é que evitem competições, mas competem com espírito esportivo. Nesse sentido são como as crianças, em harmonia com o Tao. Se nossas discussões se dão nesse sentido, tudo bem. Mas quantas vezes isso acontece? Suzuki Roshi foi interpelado certa vez se a raiva poderia ser como um vento puro que varre e deixa tudo limpo. Ele disse: "Sim, mas não creio que você precise se preocupar com isso". Ele disse que nunca tinha sentido uma raiva que fosse como o vento puro. E a nossa raiva com certeza não é pura também porque existe medo por trás dela. Enquanto não entrarmos em contato com o nosso medo e o vivenciarmos por inteiro, nossa raiva será capaz de causar danos. *
Tao Te Ching: A new English version, with foreword and notes, por Stephen MitchelI, Nova York: Harper & Row, 1988, p. 68.
Um bom exemplo está em nosso esforço para sermos honestos. A honestidade é a base absoluta de nossa prática. Mas o que isso quer dizer? Vamos supor que dizemos para alguém: "Quero ser honesto com você. Quero lhe contar como vejo o nosso relacionamento". O que dissermos pode ser proveitoso. Porém, muitas vezes nossos esforços de honestidade não vêm da verdadeira honestidade, mas de um espírito de brincar, de incluir o outro — mesmo que possamos fingi-lo. Enquanto tivermos a menor intenção que seja de ter razão, de mostrar ou ensinar algo para o outro, precisamos nos acautelar. Enquanto nossas palavras tiverem a menor ligação que seja com o ego, serão desonestas. As palavras verdadeiras vêm quando entendemos o que é saber que estamos com raiva, saber que estamos com medo, e esperar. Dizem as antigas palavras: "Você tem a paciência de esperar até que sua mente aquiete e a água fique clara? Você consegue se manter imóvel até que a ação correta apareça por si?". Esse é um modo maravilhoso de apontar o "x" da questão: será que conseguimos ficar em silêncio por um momento até que as palavras justas apareçam por si — palavras honestas, que não magoam os outros? Essas palavras podem ser muito francas. Podem comunicar exatamente o que queremos dizer. Podem inclusive ser as mesmas palavras que teríamos falado a partir de nosso ego, mas haverá uma diferença. Viver desse jeito não é fácil. Ninguém consegue fazê-lo o tempo todo. Nossa primeira reação vem da autopreservação e do medo, e então a raiva salta bem no meio da cena. Nossos sentimentos foram feridos, estamos com medo, ficamos com raiva. Se tivermos paciência de esperar até que a lama (nossa mente) decante e a água fique límpida, se permanecermos imóveis até que a ação correta surja por si, ás palavras certas aparecerão, sem que precisemos pensar nelas. Não precisaremos justificar aquilo que estamos dizendo usando múltiplas razões; não teremos quaisquer razões. As palavras certas se farão dizer se tivermos nos aquietado. Não conseguimos isso sem uma prática sincera. Pode não ser uma prática formal; às vezes, apenas respiramos fundo, esperamos um minuto, sentimos como vão as coisas bem no meio de nossa barriga e então é que falamos. Por outro lado, se estamos tendo um grande conflito com uma pessoa, talvez precisemos de mais tempo. Pode ser melhor às vezes não dizer nada durante um mês.
Meus velhos amigos que discutiam por causa dos tomates não tinham nenhuma intenção de causar dano. Apesar de todo o barulho, não havia realmente a participação de seus egos. Já vinham jogando aquele jogo havia anos. Muitas vezes ouço dos alunos histórias a respeito de seus amigos, do que deu errado, e do que querem fazer para "acertar" a situação. "Meu amigo fez uma coisa ruim. Meu amigo não me ajudou. Vou mostrar para ele como é que estou me sentindo." Acerca de tais situações Jesus disse: "Que atire a primeira pedra aquele que não tiver pecado". Todos temos falhas. Eu tenho falhas; você também. Todos temos falhas. Contudo, o nosso ego nos diz que só o outro está errado. Grande parte daquilo que chamamos de comunicação com os outros durante nossos conflitos acaba sendo, no fundo, dizer-lhes como são falhos. Então eles, muito naturalmente, querem nos dizer como nós temos falhas. E assim vai, de lá para cá, de cá para lá. Nada de útil está sendo comunicado. As pessoas que estão falando são como dois navios que passam um pelo outro à noite. As pessoas se negam a esperar até que a lama assente, porém. Temos medo de que os outros se aproveitem de nós. Mas será que isso pode mesmo acontecer? ALUNO:
Não podem se aproveitar de nós, mas com certeza nos sentimos assim uma grande parte do tempo. JOKO:
Sim, é comum sentirmos que estão se aproveitando de nós. Vamos supor uma pessoa que nos deve dinheiro e não paga. Ou que alguém deixa de cumprir uma promessa que nos fez. Ou que alguém fala de nós pelas costas. E por aí vai; todos nós fazemos essas coisas. Será que essas condutas são suficientes para se abandonar um amigo, um marido ou mulher, um filho, ou pai ou mãe? Teríamos nós a paciência de esperar até que nossa lama assentasse e a água estivesse clara? Conseguiríamos manternos imóveis até que a ação adequada aparecesse por si? Às vezes, ficamos com raiva de nós. Quando isso acontece, costumamos empregar palavras falsas e que brotam de nossa propensão a nos sentirmos magoados ou prejudicados. Em vez de dirigir a alguém a nossa ira, nós a reencaminhamos para nós mesmos. Mas só segundo o Tao — o vazio, o silêncio — é que as palavras justas e a ação justa podem aparecer. As palavras e condutas justas são o Tao. Quando leciono, tenho menos interesse nos conflitos que os alunos vivem e mais no caráter de suas palavras e de onde elas
procedem. No caso das pessoas que têm praticado por algum tempo, as palavras podem parecer melhores, mas ainda vêm do lugar errado. "Eu sei que é tudo eu. Eu sei que não tem nada que ver com você. Não pretendo ser ranzinza nem intrometido, mas..." O julgamento ainda está presente, apenas disfarçado. Poderiam ter apenas dito: "Mas que droga! Por que é que você não pega e arruma suas roupas?". Embora seja bom que as roupas estejam arrumadas, não é desse jeito que se faz isso acontecer. Conseguiríamos nos manter imóveis, de boca fechada, até que a ação e as palavras justas aparecessem por si? A maior parte do tempo não há perigo em não se fazer nada. Quase tudo o que fazemos não faz muita diferença, de qualquer maneira, nós apenas achamos que faz. Somos pessoas zangadas porque estamos todos assustados. Felizmente, temos em geral a oportunidade de praticar com a raiva, com as pessoas que são difíceis para nós. Podemos tentar lidar com elas eliminando-as de nossas vidas. Por que fazemos isso? ALUNO: Para ALUNO:
facilitar a nossa vida.
Porque pensamos que elas são a causa do nosso
problema. ALUNO: Porque
elas não fazem o que queremos que façam.
ALUNO:
Porque talvez elas nos mostrem algo a nosso respeito que não queremos enxergar. ALUNO: Para
evitarmos a nossa própria culpa.
ALUNO: Poderíamos
estar querendo puni-las.
ALUNO: Talvez
na última vez em que estivemos juntos tenha sido tão confuso e doloroso que não queremos nos aproximar outra vez. JOKO:
Precisamos estar dispostos a descansar na confusão e no incômodo, deixando a lama assentar até conseguirmos ver com mais nitidez. Com essa espécie de prática, podemos descobrir a jóia preciosa de nossa vida; haverá então uma ausência de altercações. Ainda poderemos ter discussões, como os tomateiros rivais — mas por espírito esportivo. Quando estudamos a raiva a fundo, ela desaparece. Como disse Dogen Zenji, estudar o budismo é estudar o eu, e estudar o eu é esquecer o eu. Quando nossa raiva se dissipa num nada, não há problema. A ação correta aparece por
si. Em retiros intensivos, esse processo é acelerado. O eu autocentrado torna-se mais transparente, mais nítido, e assim podemos nos assentar bem no meio dele. Conforme a lama decanta e a água fica límpida novamente, podemos enxergar a jóia — quase como se estivéssemos em águas tropicais e conseguíssemos olhar bem no fundo e ver as plantas e os peixes coloridos. Então podemos falar as palavras verdadeiras, em oposição às autocentradas, que sempre criam desarmonia. ALUNO: Joko,
o que você diz para alguém que está morrendo?
JOKO:
Não muito, ou "eu amo você". Mesmo quando estamos morrendo ainda queremos fazer parte da experiência humana. ALUNO:
Algumas vezes, quando tenho um conflito, se consigo sair e dizer algo da melhor maneira possível, mesmo quando não sai perfeito, aprendo muita coisa a meu respeito que não queria saber e isso é muito valioso. Então posso ser honesto a respeito disso, em vez de esperar. JOKO:
Sim, eu entendo. Quando eu digo para esperar, não estou falando de uma fórmula. Estou falando de uma atitude de aprendizagem. Às vezes é útil dizer algo antes que a lama assente; depende da atitude, do espírito das palavras. Mesmo que o espírito esteja um pouco torcido, se estamos aprendendo depressa enquanto agimos, isso também pode ficar bem. Se agimos de maneira imprópria, então nos desculpamos. Deveríamos estar sempre prontos para nos desculpar. Todos temos coisas de que pedir desculpas. ALUNO:
Eu muitas vezes penso que estou sendo honesto e só mais tarde é que percebo que estava enganando a mim mesmo. JOKO: Sim.
O teste de um bom conflito — em contraste com o conflito que causa dano — é que não restam resíduos depois. Todos se sentem bem mais tarde. Está tudo claro. Acabado. O clima fica agradável. É maravilhoso, mas raro. ALUNO:
Parece que existem algumas coisas, no entanto, que simplesmente não conseguimos consertar. JOKO:
Não estou falando de consertar coisas; isso é tentar controlar o mundo, dirigir o universo.
ALUNO:
Às vezes permito que as pessoas abusem de mim. Quando faço isso, é importante falar e colocar um limite. Quando faço isso costumo obter bons resultados. JOKO:
Tudo bem falar e esclarecer, se o fizermos com as palavras verdadeiras. E se sentimos que abusaram de nós, precisamos reconhecer que talvez tenhamos consentido com esse abuso. Quando vemos isso, pode vir a ser desnecessário dizer qualquer coisa. Em vez de tentar educar ou salvar a outra pessoa (o que nunca é algo que nos diz respeito), podemos apenas aprender.
NÃO JULGAR Existe a seguinte passagem no Dhammapada, verso 50: "Que ninguém encontre defeitos nos outros. Que ninguém enxergue as omissões e as fraquezas alheias. Mas que cada um veja seus próprios atos, feitos ou não". Esse é um aspecto central de nossa prática. Embora a prática possa nos tornar mais cônscios de nossa tendência a julgar os outros, na vida comum ainda agimos assim. Por sermos humanos, julgamo-nos uns aos outros. Alguém faz algo que nos parece grosseiro, indelicado ou insensato, e não podemos deixar de reparar nisso. Muitas vezes por dia vemos pessoas fazendo coisas que parecem de alguma maneira defeituosas. Não é que todos ajam o tempo todo da maneira apropriada. As pessoas em geral apenas fazem aquilo que não queremos. Quando fazem o que fazem, no entanto, não é necessário que as julguemos. Não sou imune a isso; percebo-me julgando os outros também. Todos fazemos isso. Por isso recomendo uma prática para nos ajudar a nos flagrar no ato de julgar: sempre que pronunciarmos o nome da outra pessoa devemos observar o que acrescentamos a esse nome. O que dizemos ou pensamos acerca da pessoa? Que espécie de rótulo usamos? Inserimos a pessoa em alguma categoria? Ninguém deveria ser reduzido a um rótulo e, no entanto, em razão de nossas preferências e aversões, fazemo-lo assim mesmo. Suspeito que se você entrar nessa prática descobrirá que não consegue passar cinco minutos sem julgar. É surpreendente. Queremos que o comportamento da outra pessoa seja apenas
aquilo que queremos — e quando não é, nós a julgamos. Nossa vida em vigília é repleta desses julgamentos. Poucos de nós agredimos fisicamente os outros. O meio mais comum de agredir é com a nossa boca. Como alguém disse: "Existem dois momentos em que se deve manter a boca fechada nadando e quando você está zangado". Quando julgamos que os outros estão errados, acabamos estando com a razão — e gostamos disso. Como diz a passagem, deveríamos atentar para o nosso próprio comportamento em vez de julgar. "Mas que cada um veja seus próprios atos, feitos ou não." Em vez de olhar à volta constantemente e julgar todo mundo, vejamos as nossas próprias condutas: o que fizemos e o que não fizemos. Não precisamos nos julgar, mas basta observar o ato. Se começamos a nos julgar, estipulamos um ideal, um certo modo que pensamos deva ser o nosso. Isso também não ajuda. Precisamos enxergar nossos verdadeiros pensamentos, tomar consciência do que é de fato verdadeiro para nós. Se fizermos isso, iremos notar que, sempre que julgamos, nosso corpo se tensiona. Por trás do julgamento está um pensamento autocentrado que produz tensão no corpo. Com o tempo, essa tensão torna-se-nos prejudicial e, indiretamente; prejudica os outros. A tensão não é a única capaz de causar danos; os julgamentos que expressamos a respeito dos outros (e de nós também) causa igualmente seus danos. Toda vez que dissermos o nome da pessoa é útil notar se afirmamos mais do que um fato. Por exemplo, o julgamento "ela é desatenta" vai além dos fatos. Os fatos são que ela fez o que fez — por exemplo, disse que ia me telefonar e não telefonou. Dizer que ela é desatenta é meu julgamento pessoal negativo, acrescido ao fato. Iremos reparar que ficamos incessantemente fazendo essa espécie de julgamento. A prática significa tomar consciência dos momentos em que agimos assim. É importante não negligenciar grandes áreas de nossa vida e boa ALUNO:
Está certo dizer: "Ela disse que ia telefonar e não tele-
fonou"? JOKO:
Depende de como é dito. Se "apresentamos os fatos" de modo acusador, estamos sem dúvida emitindo um julgamento, mesmo que as palavras pareçam apenas descrições de fatos.
ALUNO:
Quando notamos os erros dos outros, é útil saber o que não fazer. De certo modo, deveríamos ser gratos por seus erros. JOKO:
Sim, é útil ver professores nas outras pessoas. Mas, se nosso aprendizado implica ver os outros como "errados", ainda estamos nas malhas do julgamento. Se nos mantemos acordados e nos despimos de nossas emoções, nossa tendência é aprender. Quase sempre, porém, o que fazemos é nos contrariar de alguma maneira. Em nossa contrariedade julgamos os outros e nós mesmos. Ambas as atitudes são nocivas e infrutíferas. ALUNO:
Minha tendência é ficar de bico fechado a respeito dos outros. Mas observo que, quando fico com raiva ou contrariado, meus julgamentos aparecem de forma indireta, numa atitude que tomo ou em comportamentos passivo-agressivos. Para mim isso é realmente muito difícil de trabalhar. JOKO:
A frase central para isso é: "Que cada um veja seus próprios atos, feitos ou não". Isso simplesmente quer dizer observar nossa atitude, nossos pensamentos, nosso comportamento. E retornar à vivência corporal básica da raiva, de fato senti-la. ALUNA:
Às vezes começamos a nos queixar e fazer intrigas a respeito do patrão, lã no trabalho. Se eu me recuso a participar, é como se eu fosse alheia ou arrogante e acreditasse que sou melhor que os outros. JOKO:
Essa é uma situação difícil de se trabalhar. Um dos sinais da prática habilidosa é estar presente sem participar de ações prejudiciais. Para você, isso poderia significar estar num grupo que julga e é crítico, mas permanecer acrítica e cuidar para não agir de modo a ser diferente ou superior. Pode acontecer. De que maneira isso poderia ser feito? O que seria útil? ALUNO: Bom JOKO:
Sim, o bom humor ajuda. O que mais?
ALUNO: Não JOKO:
humor.
julgar os outros que estão tendo atitudes críticas.
Sim. Se todos os outros estão fazendo fofoca e nós decidimos que não vamos agir assim, provavelmente estaremos nos sentindo superiores, "mais santos" que eles. Pode ser que também haja raiva contra eles. Se nossa atitude contiver raiva e sensação de superioridade, esse julgamento aparecerá. Se hou-
vermos praticado honestamente com a nossa raiva, no entanto, ele talvez seja mínimo e não crie problemas. Podemos apenas estar presentes no grupo de modo natural. ALUNO: Já
notei que, quando estou num grupo onde se faz intriga ou se critica alguém e eu simplesmente deixo que falem sem me envolver em suas opiniões, é comum eles acabarem dando a volta e vendo o outro lado da questão. Quando tento interferir já no começo da situação, porém, as críticas apenas aumentam. Se discuto e tento apontar as boas qualidades da pessoa na berlinda, fica tudo uma confusão. JOKO;
Sim. Conforme vamos nos tornando mais esclarecidos em função de nossa prática, nossa tendência é encontrar maneiras mais habilidosas de lidar com qualquer coisa que apareça. ALUNO:
Em lugar de falar a respeito da pessoa criticada, é útil retomar o fio da conversa com a pessoa que está julgando e mostrar um pouco de compreensão por seus sentimentos. Por exemplo, se alguém diz "Essa pessoa sempre se atrasa", podemos dizer "Talvez seja difícil para você ter de esperar. Vejo que você parece contrariado", ALUNO:
E quanto a julgamentos positivos? Existe uma escola de pensamento a respeito de como trabalhar com crianças que afirma que não é saudável para elas rotulá-las de modo algum, seja positiva, seja negativamente. Quando dizemos "Como você é um menino legal!" ou "Mas que esperto!", estamos colocando-as numa caixinha. JOKO:
O melhor é não julgar o outro de jeito nenhum. Podemos no entanto aprovar suas condutas. Para uma criança poderíamos dizer: "Que lindo desenho!". Quanto mais específicos pudermos ser, melhor. Em vez de "Belo trabalho o seu!", podemos comentar "A introdução está realmente boa", ou "Seus exemplos de sustentação do argumento são muito pertinentes". As crianças são menos ameaçadoras para nós do que os adultos. Esperamos deles que saibam o que estão fazendo e por isso estamos sempre prontos a julgá-los e encontrar seus defeitos. Da mesma forma conosco: pensamos que deveríamos saber aquilo que estamos fazendo. ALUNO: O
que faz«r quando me perceber julgando os outros?
JOKO:
Quando nos flagrarmos julgando, precisamos reparar nos pensamentos que constituem esse julgamento, como por exemplo "pensar que é um idiota" e sentir a tensão no corpo. Por trás de nossos julgamentos está sempre a raiva ou o medo. É útil sentir a raiva ou o medo em vez de permitir que essas emoções governem nossos comportamentos. O problema é que gostamos de falar de modo crítico dos outros, e isso causa sempre problemas. Se algo acontece que nos inspira uma neutralidade imparcial, em geral lidamos muito bem com a situação. Porém, a respeito de quase todas as coisas não mantemos uma neutralidade especial. È por isso que nossa prática tem tanta importância. ALUNO:
Observo que, se julgo a pessoa em meu primeiro contato com ela, esse julgamento colore a partir de então todo o meu relacionamento com essa pessoa. Minha tendência é depender desse julgamento e simplesmente esquecer de praticar com ele. JOKO:
Sim. Formulamos uma noção fixa. Na próxima vez que virmos essa pessoa, nossa noção já estará fixa e poderemos observar ainda menos aspectos a respeito de como ela realmente é. ALUNO:
Criticar a pessoa para alguém parece tornar o julgamento ainda mais forte. Se, por exemplo, uma outra pessoa e eu concordamos que alguém é desatento, esse julgamento torna-se sólido e difícil de ser abalado. JOKO:
Sim. Uma grande parte daquilo que denominamos amizade redunda em julgamentos e atitudes críticas que temos em comum, relativos a outras pessoas e acontecimentos. ALUNO:
Os julgamentos não são sempre falsos? Vemos tão pouco da outra pessoa. JOKO:
Não diria que nós estamos sempre equivocados. Somos incompletos. Por exemplo: todas as pessoas são, uma vez ou outra, desatentas. Simplesmente não refletimos sobre uma coisa do começo ao fim; não prestamos toda a atenção possível. Mas, quando rotulamos alguém de "desatento", não enxergamos essas outras centenas e milhares de coisas que ele faz. Nossa tendência é nos interessarmos apenas pelo que nos afeta de maneira direta. É por isso que, quando nos lembramos de nossa infância, sempre lembramos do que foi ruim. Não temos o mesmo interesse pelas coisas boas que fizeram para nós. Nossa tendência é recordar
qualquer coisa que pareça ter sido ameaçadora. Se alguém nos agride, não temos interesse pelas outras coisas que ela faz. No que nos diz respeito, essa pessoa torna-se inaceitável. Se nos queixamos dela para os demais e eles concordam conosco, está criada uma sólida rede de transmissão de julgamentos. A atitude negativa que formamos a respeito dela envenena o modo pelo qual ela é recebida pelos outros, inclusive por aqueles que não têm dela uma experiência direta. Por terem ouvido a fofoca, também a rejeitam. Esse julgamento cumulativo é a coisa mais perniciosa que os seres humanos fazem uns com os outros. Julgamos as pessoas e as rejeitamos sem conhecê-las em absoluto. Alguma vez vocês já passaram pela experiência de ouvir alguém descrevendo uma pessoa que vocês nunca tinham visto na vida? Sentimos como se já a conhecêssemos antes mesmo de vê-la pela primeira vez. Quando a encontramos, consideramo-la totalmente diferente da descrição. É surpreendente. ALUNO:
Às vezes é terapêutico conversar com uma pessoa amiga a respeito de uma situação difícil que existe entre mim e uma pessoa. Isso sempre pode ser bom? JOKO:
Só se essa conversa for estritamente confidencial. E, mesmo assim, é melhor apenas descrever o comportamento da outra pessoa em termos que se refiram aos fatos, para então mencionar seus sentimentos pessoais a respeito. Precisamos tomar muito cuidado. Se conseguirmos permanecer no "Observo que estou pensando que ela é insensata", ou "Sinto-me realmente contrariado e tenso", ótimo. Mas quando escorregamos para "Ela é mesmo uma desmiolada, não é?" perdemos a prática de vista. ALUNO:
Penso que é importante lembrar o que você assinalou quando falamos realmente mal de alguém, pois assim estamos agredindo a nós mesmos. Há uma contração que ocorre quando falo mal de alguém ou mesmo só penso mal. JOKO:
Sim, nosso corpo e nossa mente ficam contraídos. Sempre pagamos por isso, de muitas maneiras. As outras pessoas também pagam. Sugiro que, no minuto em que o nome de alguém escapa de sua boca, você preste atenção no que acrescenta a esse nome. O que dissemos foi um fato? Ou é um julgamento? Por exemplo, se Lisa deixou alguma coisa no caminho e eu posso tropeçar, podemos dizer "Lisa deixou uma coisa no chão onde posso talvez tropeçar. É melhor eu tomar cuidado", podemos dizer
"Lisa é um problema. É tão descuidada!". Esse não é um fato, é um julgamento. ALUNO:
Meus julgamentos parecem muito persistentes. Atravesso períodos nos quais tenho pensamentos negativos a respeito de uma pessoa vezes e vezes seguidas. Parece que rotulo esse pensamento um milhão de vezes e continuo perdendo-o outro milhão de vezes. JOKO: Sim.
Talvez seja preciso que o façamos muitas e muitas vezes antes que essa tendência se desfaça. ALUNO;
Estou intrigado pela diferença entre fatos e julgamentos. Vamos supor que alguém realmente me atormente o tempo todo. Se eu disser: "Ela está sempre me atormentando", isso é um fato ou um julgamento? JOKO:
A diferença está em como o dizemos e no sentimento que está ali atrás. Se estamos observando: "É verdade, sim. Ela me atormenta", isso é um fato. Se nos queixamos, é um julgamento. O tom da voz é uma das pistas. ALUNO:
Se nos flagramos justo naquele momento em que íamos começar a julgar uma outra pessoa e não dizemos nada, parece que nossa disposição é, naquele momento, sermos nada. JOKO:
Isso é verdade. Quando julgamos, reforçamos nossa identidade especial como pessoa que julga. Quando mantemos a boca fechada, temos de desistir dessa identidade por um momento. E por isso que a técnica que sugeri é realmente treinar com aquilo que o budismo chama de "não-eu". ALUNO:
Percebo que, quando encontro pessoas que desconheço, se eu não disser nada de propósito a respeito delas, não parece que eu consiga me aferrar a opiniões a respeito delas. Isso me permite perceber como é importante falar para formular julgamentos. JOKO:
Sim, embora também possamos formular julgamentos sem dizer uma só palavra. Mais uma vez, precisamos observar os julgamentos que tivermos formado. Precisamos lembrar que a maior parte da prática pode ser resumida no termo delicadeza. Em qualquer situação, o que é delicadeza?
IV. Mudança PREPARO DO TERRENO De tempos em tempos, um de meus alunos passa por uma discreta reviravolta, uma pequena percepção especial ou kensho. Alguns centros zen concentram-se nessas experiências e dão-lhes muita ênfase. Isso aqui não acontece. As vivências são interessantes: se, por um momento, alguém entra no presente absoluto, ocorre uma mudança. Essa mudança não dura, sempre escorregamos de volta para os nossos meios usuais de fazer as coisas. Mas, por um certo tempo, talvez um segundo, talvez uma hora, talvez semanas, tudo o que era um problema não o é mais. Enfermidades perturbadoras e lutas de todos os tipos de repente serenam. Por um instante, a vida ficou de ponta-cabeça. Vemos as coisas como elas de fato são. Ter essas experiências não significa muito em si. Mas pode assinalar-nos o caminho para estarmos no presente absoluto cada vez mais. Estar no presente é o ponto central da prática sentada e da prática em geral: ajuda-nos a ser mais sensatos diante da vida, mais compassivos, mais orientados rumo ao que precisa ser feito. Tornamo-nos mais eficientes em nosso trabalho. Esses resultados são maravilhosos; não obstante, não podemos nos empenhar em consegui-los ou fazê-los acontecer. O máximo que nos é possível é preparar as condições necessárias. Precisamos ter certeza de que o solo está bem preparado, de que está rico, solto e fértil, para que, quando a semente cair, brote rapidamente. A tarefa do aluno não é caçar resultados, mas estar no preparo do caminho. Como diz a Bíblia: "Prepara o caminho para o Senhor". Esse é o nosso trabalho. Em certo sentido, o nosso caminho não é nenhum caminho. O objetivo não é chegar em nenhuma parte. Não há grandes mistérios, na verdade. O que precisamos fazer é algo direto e objetivo. Não quero dizer com isso que seja fácil; o "caminho" da prática não é uma estrada livre. Está entulhada de pedras pontiagudas que podem fazer-nos tropeçar ou rasgar nossos sapatos. A vida em si é repleta de obstáculos. Encontrá-los é o que em geral faz as pessoas irem aos centros zen. O caminho da vida
parece ser principalmente composto por dificuldades, por coisas que nos dão trabalho. Apesar disso, quanto mais tempo praticamos, mais começamos a entender que aquelas pedras pontiagudas do caminho são de fato jóias preciosas, pois nos ajudam a preparar as condições adequadas para nossas vidas. As pedras são diferentes conforme a pessoa. Uma pode precisar desesperadamente de mais tempo sozinha; outra pode precisar desesperadamente de mais tempo com as outras pessoas. A pedra pontiaguda pode ser trabalhar com uma pessoa desagradável, ou viver com alguém difícil de se levar. As pedras pontiagudas podem ser seus filhos, seus pais, qualquer pessoa. Não se sentir bem pode ser sua pedra pontiaguda. Perder o emprego, arrumar outro, preocupar-se com isso. Existem pedras pontiagudas em todo lugar. O que muda com os anos da prática é chegar a saber alguma coisa que você não sabia antes: que não existem pedras pontiagudas, a estrada está coberta de diamantes. Quais são outras pedras pontiagudas que, na realidade, são diamantes? ALUNA: A
morte do meu marido.
ALUNO: Prazos. ALUNO: Doenças. JOKO:
Sim, muito bem. O que é necessário para nós, seres humanos, nos darmos conta de que as pedras pontiagudas de nossas vidas são na realidade diamantes? Quais são algumas das condições que nos tornam possível praticar? Quando somos bem novatos em termos de prática, pode ser impossível que enxerguemos um grande trauma como um presente, a pedra pontiaguda como um diamante. Em geral é melhor começar a prática numa época em que a vida da pessoa não está muito revirada. Por exemplo, quando a mulher acabou de ganhar um bebê, o primeiro mês não é uma boa hora para começar a prática — como eu mesma bem me lembro. É aconselhável começar a praticar num período mais calmo. É melhor estar em condições de saúde razoáveis. Uma saúde um pouco precária não elimina a possibilidade da prática, mas enfermidades graves tornam-na muito difícil de começar. Ajuda também a pessoa estar em condições razoavelmente boas de condicionamento físico. A prática é fisicamente cansativa.
Quanto maior o tempo de nossa prática, menos importantes são esses pré-requisitos. Mas sem eles, no início, as pedras tornam-se grandes demais. Desse jeito não conseguimos enxergar caminho nenhum para praticar. Quando a pessoa ficou a noite inteira acordada com um bebê chorando e só conseguiu dormir duas horas, essa não é uma boa hora para se fazer zazen, Se o corpo da pessoa está se despedaçando ou se ele está infeliz, também não está num bom momento para começar. Quanto mais praticarmos, mais as dificuldades da vida que se nos apresentam podem ser consideradas verdadeiras jóias. Cada vez mais, os problemas não cancelam a prática, mas, em vez disso, estimulamna. Em lugar de pensar que é a prática que é difícil demais, que temos mais problemas do que suportamos, vemos que os problemas em si são as jóias, e dedicamo-nos a começar com eles um trabalho que nunca antes pudemos sonhar. Em minhas entrevistas com os alunos, ouço constantes relatos a respeito dessas mudanças: "Há três anos, eu não teria conseguido de jeito nenhum dar conta desta situação, já hoje...". Essa é a reviravolta, o preparo do terreno. Isso é o que o corpo e a mente precisam para de fato acontecer a transformação. Não é que o problema desapareça ou que a vida "melhore"; a vida transforma-se lentamente — e as pedras pontiagudas que odiamos se tornam jóias bem-vindas. Pode ser que não exultemos quando virmos que elas aparecem em nosso caminho, mas valorizamos a oportunidade que representam e, sendo assim, acolhemo-las em vez de nos esquivarmos delas. É esse o fim de nossas queixas a respeito da vida. Até aquela pessoa difícil, que critica você, que não respeita a sua opinião, ou o que for — todos têm alguém ou alguma coisa que é a pedra no caminho. Essa é uma pedra preciosa: é uma oportunidade, uma jóia para recolher. Ninguém enxerga a jóia logo de cara. Ninguém a vê por completo. Às vezes podemos enxergá-la numa área, mas não em outra. ,As vezes vemos a jóia e em outras não conseguimos localizá-la. Podemos nos recusar de modo taxativo a vê-la; pode ser que não queiramos ter nada que ver com ela. Mesmo assim devemos nos haver o tempo todo com esse problema básico. Porque somos humanos, uma grande parte do tempo nós nem queremos ficar sabendo dela. Por quê? Porque havermo-nos com ela significa uma vida aberta para as dificuldades em vez de fuga diante das adversidades. Em geral, estamos
tentando substituir alguma coisa pela dificuldade. Quando estamos cheios dos filhos, por exemplo, gostaríamos de devolvê-los e receber outros novos. Mesmo quando continuamos com eles, encontramos maneiras sutis de "devolvê-los", em lugar de permanecer com a realidade de quem são. Lidamos com todos os outros problemas da mesma forma: temos maneiras sutis de "devolver" quase tudo, de escolher não lidar com aquilo. Engalfinharmo-nos com a realidade de nossa vida faz parte da interminável preparação do terreno. Às vezes preparamos bem um pequeno setor do terreno. Podemos ter breves vislumbres de iluminação, momentos que acontecem de repente. Ainda assim, existem muitos mais acres de terra que não foram cultivados — então continuamos indo adiante, abrindo mais e mais a nossa vida. É isso tudo que de fato importa. A vida humana deveria ser como um voto, dedicado à descoberta do significado de se viver. O significado do viver não é de fato complicado, mas nos aparece como que envolto por um véu que é feito do modo como enxergamos nossas dificuldades. É preciso a mais paciente das práticas para começarmos a enxergar isso, para descobrirmos que as pedras pontiagudas são verdadeiras jóias. Nada disso tem algo que ver com julgamentos, com sermos "boas" ou "más" pessoas. Apenas fazemos o melhor que podemos, a cada momento dado. O que não vemos, não vemos. Esse é o "x" da prática: ampliar o "buraquinho da fechadura" que por vezes encontramos, para que se torne cada vez mais largo. Ninguém o localiza o tempo todo. Eu com certeza não. Assim, continuamos tentando enxergar do mesmo jeito. De certo modo, a prática diverte: olhar para a minha própria vida e ser honesta a respeito dela é divertido. É difícil, humilhante, desencorajador; em certo sentido, porém, é engraçado, porque é estar viva. Ver a mim e à minha vida como são realmente é engraçado. Depois de todo o empenho, a evitação, a negação e os desvios por outros caminhos, é profundamente satisfatório que, por um só segundo, estejamos com a vida tal como ela é. Essa satisfação é o próprio cerne que nos constitui. A pessoa que somos está além das palavras — apenas o poder aberto da vida, manifestando-se sempre em todas as espécies de coisas interessantes, mesmo que seja em nossa própria infelicidade e através de lutas. As adversidades são ao mesmo tempo terríveis e curativas. Isso é o que significa preparar o terreno. Não precisamos
nos preocupar a respeito dos pequenos momentos ou aberturas que irrompem. Se tivermos um solo fértil e bem preparado, podemos semear qualquer coisa, que crescerá. Quando efetuamos esse trabalho com toda a paciência, chegamos numa sensação diferente de nossas vidas. Há pouco tempo ouvi de um aluno que mora longe e falava comigo ao telefone que não conseguia acreditar no que estava acontecendo. "Quase o tempo todo a minha vida é uma gostosura." Pensei comigo mesma, sim, que bom, mas... a vida é muito agradável. Uma vida agradável inclui padecimentos afetivos, decepções, luto. Faz parte do fluxo da vida permitir que tais momentos transcorram. Eles vêm e vão, e o luto finalmente se transforma em alguma outra coisa. Mas, se ficarmos nos queixando, apegados e rígidos (que é como gostamos de fazer), então teremos muito pouco que desfrutar. Se temos sido conscientes do processo de nossas vidas, inclusive dos momentos que odiamos, e temos então a consciência desse ódio — "Não quero fazer isso, mas vou fazê-lo do mesmo jeito" —, a própria tomada de consciência é a vida em si. Quando permanecemos nessa percepção consciente não temos aquela sensação reativa a respeito da vivência — estamos simplesmente vivenciando. Então, num dado momento, começamos a enxergar: "Oh, mas que coisa terrível — e ao mesmo tempo que delícia". Vamos apenas seguindo adiante, preparando o terreno. É o quanto basta.
EXPERIÊNCIAS E VIVÊNCIAS A cada segundo, estamos numa encruzilhada entre a inconsciência e a percepção consciente, entre estar ausente e estar presente, ou entre as experiências e o vivenciar. A prática diz respeito a sair do âmbito das experiências e entrar no das vivências. O que queremos dizer com isso? Nossa tendência é nos exceder com o termo experiência e, quando dizemos "Fique em sua experiência", estamos falando de maneira descuidada. Pode não ser proveitoso seguir esse conselho. Em geral vemos nossas vidas como uma série de experiências. Por exemplo, tenho a experiência de uma ou outra pessoa, de meu almoço ou de meu escritório. Desse ponto de vista, minha vida
nada mais é que ter uma experiência após a outra. Envolvendo cada experiência pode haver um discreto halo ou véu emocional neurótico. Em geral, esse véu assume a forma de memórias, fantasias, esperanças para o futuro — as associações que fazemos com a experiência, como resultado de nossos condicionamentos anteriores. Quando fazemos zazen, nossas experiências podem ser dominadas por nossas recordações, as quais podem ser arrebatadoras. Algo errado com isso? Os seres humanos realmente têm recordações, fantasias, esperanças, isso é natural. Quando revestimos essas experiências com tais associações, no entanto, elas se tornam um objeto: um substantivo em lugar de um verbo. Sendo assim, nossa vida se torna encontrar um objeto depois do outro: pessoas, o almoço, o escritório. As recordações e as esperanças são algo parecido: a vida se torna uma série de "issos" e "aquilos". Costumamos ver nossa vida como encontros com coisas que existem "lá fora". A vida torna-se dualista: sujeitos e objetos, eu e as outras coisas. Não há nada de errado com esse processo — a menos que acreditemos nele, pois, quando de fato acreditamos que estamos o dia inteiro encontrando objetos, tornamo-nos escravizados. Por nuê? Porque qualquer objeto "lá fora" terá um discreto revestimento de tonalidade emocional. E então reagimos em termos de nossas associações emocionais. No ensino zen clássico, somos escravos da cobiça, da raiva e da ignorância. Ver o mundo exclusivamente por esse prisma é escravizador. Quando nosso mundo consiste em objetos, dirigimos nossa vida segundo aquilo que esperamos de cada objeto: "Será que ele gosta de mim?"; "Isso me beneficia de alguma forma?"; "Devo temê-la?". Nossa história e nossas recordações assumem o comando, e dividimos o mundo em coisas a serem evitadas e coisas a serem alcançadas. O problema com esse tipo de vida é que aquilo que me beneficia agora pode ferir-me depois e vice-versa. O mundo está em constante mudança e por isso nossas associações nos desorientam. Não há a menor segurança num mundo de objetos. Estamos sempre em estado de alerta e desconfiando até mesmo daquelas pessoas que dizemos amar e de quem nos mantemos próximos. Enquanto a outra pessoa for um objeto para nós, podemos estar certos de que não haverá amor ou compaixão genuínos entre nós.
Se ter experiências é o nosso cotidiano, qual é o outro mundo, o outro braço da encruzilhada? Qual é a diferença entre experiências e vivências? Qual é o ouvir, o tocar, o saborear, o ver etc. genuínos? Quando ocorre a vivência, naquele momento não se dá algo num tempo e num espaço. Não pode ser assim, pois, quando ocorre tempo e espaço, foi criado um objeto da experiência. Quando tocamos, olhamos e ouvimos, estamos criando o mundo do tempo e do espaço, mas a vida em si — aquela que vivemos não está no espaço e no tempo, ela é só vivências. O mundo do tempo e do espaço acontece quando o vivenciar se reduz a uma série de experiências. No preciso momento em que se escuta algo, por exemplo, existe só o ouvir, que cria o som do avião, ou do que seja. Tâp, tâp, tâp, tâp... existe espaço entre cada batida e cada uma delas é um ouvir absoluto. Essa é a nossa vida, e assim criamos o nosso mundo. Estamos criando-o com todos os nossos sentidos e com tanta rapidez que não nos é possível acompanhar o processo. O mundo de nossas experiências está sendo criado do nada, segundo a segundo. No serviço que atendemos diz uma das dedicatórias: "Mudança incessante faz girar a roda da vida". Vivenciar, vivenciar, vivenciar — mudança, mudança, mudança. "Mudança incessante faz girar a roda da vida e assim a realidade é exibida em todas as suas múltiplas formas. O habitar sossegadamente enquanto muda a si mesmo liberta todos os seres sensíveis sofredores e proporciona-lhes grande contentamento." "O habitar sossegadamente enquanto muda a si mesmo" quer dizer sentir a pulsação da dor em minhas pernas, ouvir o som do carro: apenas o vivenciar. Apenas habitar na própria experiência. Até mesmo a dor está mudando minusculamente, segundo a segundo. "O habitar sossegadamente enquanto muda a si mesmo liberta todos os seres sensíveis sofredores e proporciona-lhes grande contentamento." Se esse processo fosse claríssimo, não teríamos a menor necessidade de praticar. O estado de iluminação é não ter experiências; em vez disso é uma ausência de todas as experiências. O estado de iluminação é o vivenciar puro e intacto. Isso é inteiramente diferente de se "ter uma experiência de iluminação". A iluminação é a demolição de todas as construídas experiências de pensamentos, fantasias, recordações e esperanças. Francamente, não estamos interessados em demolir nossas vidas tal como a
conhecemos. Demolimos as falsas estruturas de nossas vidas rotulando nossos pensamentos, dizendo pela milésima vez "Pensamento de que isso e aquilo vai acontecer". Depois de o termos tido mil vezes, acabamos enxergando o que é. É apenas energia pura rodopiando a partir de nosso condicionamento sem a menor realidade. Não existe uma verdade intrínseca nisso; é pura mudança. Para nós é fácil falar desse processo, mas não existe nada em que estejamos menos interessados que na demolição de nossas estruturas de fantasia. Temos o medo secreto de que se as demolirmos todas seremos nós mesmos demolidos. Existe uma antiga história sufi a respeito de um homem que deixou cair suas chaves no lado escuro da rua certa noite, cruzando para a outra calçada onde havia luz, onde poderia enxergar as chaves. Quando um amigo perguntou por que estava procurando debaixo do facho de luz, em vez de no lugar onde tinha deixado as chaves caírem, ele respondeu; "Estou olhando aqui porque tem mais luz''. É isso o que fazemos com a nossa vida: referência conhecida é aquela que nos serve para olhar, Se temos um problema, seguimos trajetos familiares de solução: pensar, remoer, analisar,- manter a loucura de nossas vidas em ordem porque é isso que estamos acostumados a fazer. Não tem nenhuma importância que não dê certo. Apenas ficamos ainda mais determinados a continuar procurando embaixo do poste de luz. Não estamos interessados naquela vida que está fora do espaço e do tempo, constantemente criando o mundo do espaço e do tempo. Não estamos interessados nisso; aliás, isso nos assusta. O que nos impele a abandonar esse melodrama, a sentar com essa confusão em praticar? No fundo, trata-se enfim do incômodo com que temos de nos haver na maneira como levamos a nossa vida. Além da vida de experiências que se têm, existe a vida vivenciada, uma vida de compaixão e contentamento. Pois a verdadeira compaixão como o verdadeiro prazer não são coisas a serem experimentadas. Nosso verdadeiro instrutor é apenas este: mudar, mudar, mudar; vivenciar, vivenciar, vivenciar. O mestre não está no espaço e no tempo — e nada mais é que espaço e tempo. Nossa vivência da vida também é criar a própria vida. "Mudança incessante faz girar a roda da vida e assim a realidade é exibida em suas muitas formas."
Um poema de W. H. Auden capta a essência de quase tudo que constitui nosso estado habitual: Preferiríamos nos arruinar a mudar, Preferiríamos morrer em nosso pavor A subir pela cruz do momento E deixar nossas ilusões morrerem.
Preferiríamos antes nos arruinar a mudar * — mesmo que mudar seja a essência do que nós somos. Preferiríamos morrer em nossa ansiedade, em nosso medo, em nossa solidão a subir pela cruz do momento e deixar que ali nossas ilusões morressem. E a cruz é também a encruzilhada, a escolha. Estamos aqui para fazer essa escolha.
O DIVÃ DE GELO Quando vivenciamos, perdemos nosso relacionamento aparentemente dualista com as outras coisas e pessoas que é "Eu vejo você, comento a seu respeito, tenho pensamentos acerca de você e de mim", ou o que seja. O relacionamento dualista não é difícil de ser comentado, mas o relacionamento não-dual — o vivenciar — é mais difícil de descrever. Quero considerar como nos eximimos de viver de maneira empírica, como nos expulsamos do jardim do Éden. Enquanto cresce, todo ser humano decide que precisa de uma estratégia porque não podemos crescer sem deparar com oposições que procedem de fontes que para nós são "não-eu", de fontes que nos parecem ser externas. Muitas vezes somos contrariados por pais, amigos, parentes e outras pessoas. Algumas vezes essa aparente oposição é intensa; em outras, é moderada ou suave. Mas ninguém cresce sem desenvolver uma estratégia para lidar com essa oposição. *
W. H. Auden, extraído de "The Age of Anxiety", in Collected Poems, ed. por Edward Mendelson, Nova York: Random House, 1976, p. 407.
Podemos decidir que a melhor opção para se conseguir uma sobrevivência agradável é tornar-se uma pessoa adaptável, "agradável*'. Se isso não parece funcionar, podemos aprender a atacar os outros antes que eles nos agridam, ou bem recuamos. Existem, portanto, três estratégias principais para lidarmos com a oposição: conformar-se em agradar, atacar ou recuar. Todo mundo emprega uma ou mais dessas estratégias de alguma maneira. Para conseguirmos manter nossa estratégia, temos de pensar. Sendo assim, a criança vai cada vez confiando mais em seus raciocínios para elaborar essa estratégia. Toda situação ou pessoa em seu caminho começa a ser avaliada do ponto de vista da estratégia escolhida. Depois de algum tempo tratamos o mundo todo como se estivesse em julgamento e perguntamos: "Essa pessoa ou acontecimento irá me ferir?". Embora possamos formulá-la com sorrisos e civilidade, essa questão nos ocorre diante de tudo que encontramos. Com o tempo acabamos aperfeiçoando a nossa estratégia a tal ponto que não a identificamos mais conscientemente; agora está no corpo. Por exemplo, vamos supor que desenvolvemos uma estratégia de recuo. Quando deparamos com algo ou com alguém, tensionamos o corpo; essa é a resposta habitual. Podemos tensionar nossos ombros, nosso rosto, nosso estômago ou alguma outra parte do corpo. O estilo particular é único de cada pessoa. E nem sequer sabemos que estamos fazendo assim porque, tão logo a contração se dê, desenrola-se em cada célula de nosso corpo. Não temos de saber a respeito disso; está simplesmente ali. Embora a resposta seja inconsciente, torna nossa vida desagradável porque é um recuo diante da vida e um distanciar-se dela. A contração dói. Mesmo assim, todos se contraem. Mesmo quando pensamos que estamos num momento de relativa felicidade, podemos ser capazes de detectar uma leve tensão pelo corpo. Não é nada de extraordinário e pode ser muito discreta. Quando tudo está a nosso favor, não nos sentimos mal, mas a leve contração nunca cessa. Está sempre ali, em todas as pessoas que existem sobre a face da Terra. As crianças aprendem a elaborar suas estratégias incorporando tudo o que lhes acontece nessa referência para seu sistema pessoal. Nossas percepções tornam-se seletivas, incorporando os
eventos que se ajustam ao nosso sistema e eliminando os que não. Uma vez que o sistema tem a pretensão de nos manter a salvo e seguros, não temos nenhum interesse em enfraquecê-lo com informações contraditórias. Na época em que atingimos a maturidade, esse sistema é nós mesmos. É aquilo que denominamos ego. Vivemos a partir dele, tentando localizar pessoas, situações, empregos que venham a confirmar nossa estratégia, evitando aqueles que a ameacem. Tais manobras, no entanto, nunca são completamente satisfatórias porque enquanto vivermos jamais conseguiremos saber com exatidão o que irá acontecer em seguida. Mesmo que tivéssemos a maior parte de nossa vida sob controle, nunca saberíamos como alcançar esse conhecimento — e nós sabemos que não sabemos. Assim, sempre existe um elemento de medo. Ele tem de estar presente. Sem saber o que fazer, a pessoa normal busca em toda parte por uma resposta. Temos um problema e, na realidade, não sabemos do que se trata. A vida se torna para nós a promessa que jamais é cumprida porque a resposta não nos satisfaz. E nesse ponto que podemos começar a prática. Só uns poucos felizardos na face deste planeta começam a enxergar o que precisa ser feito para se recuperar o jardim do Éden, que é o nosso Eu em funcionamento genuíno. Talvez consigamos arrumar um companheiro que é simplesmente maravilhoso (em particular nos relacionamentos, a ilusão reina soberana). Casamo-nos ou vamos viver com essa pessoa e... epa! Se estamos praticando, esses "epas!" podem ser muito interessantes e instrutivos. Se não estamos praticando, podemos dispensar o companheiro e ir atrás de algum outro. Parece que a promessa não foi cumprida. Ou começamos um novo emprego, ou novo projeto. No início vai tudo muito bem, mas depois começamos a perceber algumas ásperas verdades, e a desilusão começa a infiltrar-se. Se estamos vivendo segundo as diretrizes de nossa estratégia, nada parece que vai funcionar, porque a vida fenomênica é, por definição, uma promessa que nunca se cumpre. Se satisfazemos um desejo, ficamos felizes por um breve instante, mas a natureza da satisfação de um dado desejo é encontrar imediatamente o desejo seguinte, e depois mais um e depois outro, e depois outro... Não há como ficar livre da pressão ou do estresse. Não conseguimos assentar. Não encontramos paz.
Quando nos sentamos, o rodamoinho incessante em nossa mente revela-nos nossa estratégia. Se rotularmos nossos pensamentos por muito tempo, iremos reconhecer nossa estratégia. É essa própria estratégia que gera os pensamentos renitentes. Só uma coisa em nossa vida não é aprisionada por essa estratégia — a vida orgânica, física, do corpo. Claro que o corpo está recebendo punições porque reflete nossa autocentração. O corpo tem de obedecer à mente; por isso, se ela está dizendo que o mundo é um lugar terrível, o corpo diz "Ai, como estou deprimido!". No mesmo instante em que as imagens aparecem — como pensamento, fantasia ou esperança — o corpo tem de responder. Tem uma resposta crônica e, às vezes, essa resposta exacerba-se em depressão ou enfermidade. O principal professor que tive em toda a minha vida foi um livro. Talvez seja o melhor livro sobre zen que já foi escrito. É uma tradução do francês, porém, e o texto não está bem encadeado; as sentenças não constituem parágrafos inteiros. Depois de ler uma dessas sentenças é possível que nos perguntemos aturdidos: "Mas o que foi que ele disse ?" Por isso é um livro difícil; mesmo assim, é a.melhor explicação do problema humano que já encontrei. Numa certa época comecei a estudar seus ensinamentos e o fiz durante dez ou quinze anos. Meu exemplar parece que foi parar na máquina de lavar roupa. Trata-se de A doutrina suprema de Hubert Benoit, um psiquiatra francês que passou por um gravíssimo acidente que o deixou incapaz por muitos anos. A única coisa que podia fazer era ficar imóvel, deitado. O problema humano era seu interesse insaciável e, por isso, usou aqueles anos de recuperação para mergulhar profundamente nessa questão. A expressão de Benoit para a contração emocional que procede de nossos esforços para nos proteger é "espasmo". Ele chama a falação incessante do nosso diálogo interno de "o filme imaginário". O ponto de transição para ele veio quando se deu conta de que "esse espasmo que vinha chamando de anormal está no caminho que leva ao satori (iluminação)... Poder-se-ia inclusive dizer que aquilo que deve ser percebido, dentro do filme imaginário, é uma certa sensação de cãibra profunda, de um aperto paralisante, de um frio imobilizador... e que é neste diva duro, imóvel e gelado que nossa atenção deve permanecer fixa, como se estivéssemos tranqüilamente estirados contra uma rocha dura,
mas acolhedora, que fosse moldada exatamente para receber o nosso corpo" *. O que Benoit está dizendo é que, quando descansamos sossegados dentro de nossa dor, esse repouso é o "portão sem porteira". Esse é o último local em que queremos estar; não é agradável, e todo o nosso impulso estratégico volta-se para as amenidades. Não; queremos alguém que nos conforte, que nos salve, que nos dê paz. Nossos pensamentos, planejamentos e projetos estratégicos incessantes tentam justamente isso. Apenas quando permanecemos com aquilo que está por trás do filme imaginário e ali descansamos é que começamos a ter pistas. Costumo explicar do seguinte modo: em lugar de permanecermos com os nossos pensamentos, nós os rotulamos até que se aquietem um pouco e então fazemos o melhor possível para permanecer com aquilo que de fato é — a não-dualidade que é a sensação de nossa vida neste exato momento. Isso contraria tudo aquilo que queremos, tudo o que nossa cultura nos ensina, mas é a única solução real, o único portão de saída. Quando assentamos em nossa sensação de dor, achamos que ela é tão apavorante que nos agitamos tudo de novo. No instante em que aterrissamos na sensação de incômodo, saltamos de volta para o filme imaginário. Simplesmente não queremos estar na realidade daquilo que somos. Isso é humano, nem bom nem mau, e são necessários vários anos de prática para se tocar cada vez mais a realidade, com conforto ao parar por ali, até que por fim, como diz Benoit, é apenas uma rocha dura, mas acolhedora, moldada para ajustar-se ao nosso corpo e, enfim, é aí que podemos descansar e ficar em paz. Às vezes podemos descansar por um curto período, mas, por estarmos muito habituados, logo voltamos para o mesmo falatório mental de sempre. E, assim, atravessamos o processo vezes e vezes. Com o tempo, é esse incessante processo que nos leva à paz. Se estiver completo, pode ser chamado de satori, ou iluminação. O filme imaginário gera o espasmo e o espasmo gera o filme imaginário. É um ciclo interminável que só se romperá quando estivermos dispostos a descansar em nossa dor. A capacidade para *
Hubert Benoit, The supreme doctrine: Psychological studies in zen thought, Nova York: Viking, 1955, p. 140 e 145.
fazer isso significa que nos sentimos até certo ponto desiludidos, que não esperamos mais que nossos pensamentos e sentimentos sejam a solução para alguma coisa. Enquanto alimentarmos a esperança de que a promessa deverá ser cumprida, não iremos descansar em meio às dolorosas sensações corporais. Portanto, a prática compõe-se de duas partes. Uma é a decepção interminável. Tudo em nossa vida que nos decepciona é um amigo dedicado. E estamos todos sendo desapontados, de um modo ou de outro. Se não estamos decepcionados, nunca desistimos de nosso desejo de pensar e de nos recolocar no alto como vitoriosos. Ninguém ganha no fim; ninguém irá sobreviver. Porém esse ainda é o nosso impulso, o nosso sistema. Ele só pode ser desarticulado com anos e anos de prática e com o desgaste natural que a vida traz. Por isso é que nossa prática e nossa vida têm de ser a mesma coisa. Temos a ilusão de que as outras pessoas irão nos fazer felizes, que elas irão fazer com que a nossa vida funcione. Até que nos livremos dessa ilusão, não haverá uma solução real. As outras pessoas existem para nos alegrarmos e não para qualquer outro propósito. Elas fazem parte da maravilha que a vida é; não estão aqui para fazer qualquer coisa por nós. Enquanto essa ilusão não começar a se desfazer, não iremos nos contentar em permanecer no espasmo, na contração emocional. Rodopiaremos imediatamente para longe disso, retornando logo aos nossos pensamentos: "Sim, mas se eu fizer isto as coisas vão melhorar...". A vida é uma série de intermináveis decepções e é maravilhoso que seja assim apenas porque ela não nos dá aquilo que queremos. Percorrer esse caminho requer coragem, e muitas pessoas, nesta vida, não o farão. Estamos todos em diferentes momentos do caminho, o que está muito bem. Só alguns poucos, dotados de uma persistência enorme e que não entendem as coisas todas da vida como insultos e sim como oportunidades, é que finalmente compreenderão. Assim, se investirmos toda a nossa energia tentando fazer com que a nossa estratégia funcione melhor, então estamos apenas girando em cima de nossos calcanhares. Nossa infelicidade nos perseguirá até o nosso último suspiro. Portanto, na vida não há senão oportunidades, só oportunidades. E isso inclui qualquer coisa em que consigamos pensar. Até que nos sintamos desiludidos com o filme imaginário que
passamos incessantemente diante dos olhos (mal os abrimos pela manhã e já começa a primeira sessão), não nos manteremos assentados na cãibra. Faremos passar mais algum trecho do filme. Suponho que seja isso que se esteja dizendo quando se menciona a roda do carma. Bem, não estou pedindo a ninguém que adote essa descrição como alguma espécie de sistema de crença. A única maneira de conhecermos a realidade dessa prática é executando-a. Depois de algum tempo, para algumas pessoas (às vezes intermitentemente, mas depois quase o tempo todo), ocorre o que os cristãos chamam de "a paz que ultrapassa todo o entendimento". Muitas vezes me ajudou em momentos difíceis pensar naquele divã gelado e imóvel e, em vez de lutar e brigar, apenas dispor-me a descansar ali. Com o tempo acabamos descobrindo que o divã é o único lugar tranqüilo, a fonte das ações transparentes. Enquanto palestra sobre dharma, tudo isso soa proibitivo. No entanto, as pessoas que praticam o tempo todo são aquelas que estão desfrutando a vida. É esse o portão sem porteiras para o contentamento. As pessoas que entendem e têm a coragem de fazer isso são aquelas que eventualmente ficam conhecendo o que é o contentamento. Não estou falando de uma felicidade interminável (porque não existe isso), mas de contentamento. ALUNO;
É comum que as pessoas escolham uma dessas estratégias, mas conforme o tempo passa elas podem adotar uma outra? As pessoas que escolheram, digamos, recuar e não participar podem, ao se tornarem, mais fortes, decidir algo como "Bom, talvez agora eu vá me conformar um pouco e agradar aos outros". As pessoas alguma vez saem de cima do muro e entram no fluxo da calçada? JOKO:
Muitas vezes observei que as pessoas que antes eram dependentes e conformistas começam a assumir ares de uma falsa independência. Isso é natural, um estágio antes de conseguirmos ser realmente nós mesmos. Quanto mais praticamos a cãibra, mais a transformação se acelera. Do ponto de vista do mundo fenomênico fazemos progressos embora, em senso absoluto, estejamos sempre bem do jeito que somos.
ALUNO: Quando
descansamos em nosso desconforto, descobrimos que não é assim tão assustador e que conseguimos nos aventurar um pouco? JOKO:
Certo. Por exemplo, podemos aprender que conseguimos estar deprimidos e ainda assim funcionar. Simplesmente continuamos em frente e agimos. Não temos de nos sentir bem para funcionar. Quanto mais nós formos contra nosso sistema rígido, melhor. ALUNO:
Quando você fala a respeito da cãibra, isso parece fazer parte do sistema rígido. JOKO:
Não, ela é produzida pelo sistema rígido, mas é a única parte do sistema aberta a oferecer-lhe uma solução. Por exemplo, se temos pensamentos raivosos, o corpo tem de tensionar. Não conseguimos ter um pensamento de raiva a respeito de alguém sem nos tensionar. E, se habitualmente temos uma estratégia que é a raiva e o ataque, o corpo permanecerá contraído quase que o tempo todo. Todavia essa é a única parte desse sistema que nos fornece uma saída porque podemos vivenciar a cãibra e deixá-la intacta e, com isso, ela pode se abrir. Pode custar cinco anos, mas vai abrir. ALUNO:
Outro dia eu li que, seja qual for nosso aspecto principal, é bom exagerá-lo. Para mim, porém, isso seria o mesmo que ficar com muita raiva e agredir os outros. JOKO: Você
pode fazê-lo a sós.
ALUNO:
Mas se eu realmente exagerar a raiva e atacar para torná-la mais consciente isso não iria agredir alguém? JOKO:
Não. Por favor lembrem-se de que o único meio de exagerar é exagerar a sensação de que a cãibra está lá. Não deveríamos exagerar nossos comportamentos irados. Esse sistema é totalmente inconsciente, por isso, ao vivenciarmos de maneira consciente a cãibra, ela pode se dissolver por si. ALUNO:
Por experiência própria descubro que estou nesta cãibra terrível e, de repente, ela muda. Alguma coisa se abre e estou num espaço onde me sinto livre e aberto; depois, sem nenhuma razão aparente, retorno para a minha contrariedade. JOKO:
Evidentemente, você volta para o seu sistema habitual de pensamentos autocentrados.
ALUNO: Às
vezes parece como se fosse um músculo que estava contraído e agora está relaxando. JOKO:
Sim, mas a causa real não é uma questão muscular. Nosso desejo básico de sobreviver está na base de todos os nossos problemas. Se houvesse alguma maneira de lidar com os músculos, então todos aqueles que trabalham corporal mente seriam sujeitos iluminados. ALUNO: Percebo
que a sensação desagradável não é um estado estático. Está sempre fluindo, mudando o tempo todo. Então estou dentro e fora, pelo lugar inteiro, porque é energia pura, não é estático. JOKO:
A única coisa que interfere no fluxo é o fato de acreditarmos de novo em nossos pensamentos. E isso é praticamente um de nossos maiores hábitos. Precisamos praticar sentados por muitos e muitos anos antes de não acreditarmos mais em nossos pensamentos. Precisamos de fato. ALUNO:
Enquanto não desgastarmos a força do projeto de nos proteger da vida e de lutar contra o modo como as coisas nos são apresentadas a cada momento, iremos sempre voltar ao estado de contração que é "Não gosto disso!". Acontece o tempo todo. ALUNO: Onde
se situa a cãibra?
JOKO:
Onde você a sentir. Pode ser no rosto, nos ombros, em qualquer parte. Em geral é embaixo, nas costas, na linha da cintura. ALUNO:
Estou cada vez mais consciente de que alguns de meus pensamentos parecem simplesmente coisas dadas, imagens que tenho de mim e que não parecem pensamentos, ou que são tão agradáveis que não os rotulo. Então acontecem pensamentos que não são rotulados porque parecem como uma boa prática zen. JOKO:
Sim. É o pensamento que não captamos que fica dirigindo o espetáculo. ALUNO:
Uma boa parte do meu condicionamento parece inconsciente ou subconsciente. Por isso posso sentir-me conscientemente muito claro e leve e, no entanto, o condicionamento ainda está lá e acaba me levando de volta para a cãibra ou o leito duro, o espasmo, muito embora eu não constate nada acontecendo no plano consciente.
JOKO: Certo.
Lembrem-se de que, em certo sentido, não existe inconsciente nenhum e o que é revelado pode ser muito sutil. Uma boa parte do que estamos falando não é uma grande cãibra do tipo que se descreve como "contração muscular depois de excessos físicos". ALUNO:
Você disse que na boa prática o companheiro de rotular pensamentos é vivenciar. Isso quer dizer que o pensamento que você não capta pode se revelar se você estiver realmente vivenciando a cãibra? JOKO:
Sim. Quanto mais praticarmos e tornarmos as coisas conscientes, mais e mais começará a boiar à beira d'água o pensamento de que não tínhamos consciência antes. Subitamente ele nos atinge. "Oh, nunca tinha pensado nisso antes." Ele simplesmente emerge. ALUNO:
O que é o espasmo ou o tremor corporal repetitivo que costuma aparecer às vezes nesse tipo de prática? JOKO:
Se permanecermos com o espasmo muitas vezes, o corpo vai tremer, as lágrimas podem brotar, porque se realmente pusermos nossa atenção no corpo e lhe dermos liberdade para ser quem é, ele começará a abrir-se e a energia que estava bloqueada começará a emergir. Pode adotar a forma de choro, tremor, ou outro movimento involuntário. ALUNO: Você JOKO:
poderia falar mais a respeito de sentimentos?
Sentimentos são apenas pensamentos mais sensações
corporais. ALUNO: E
se um sentimento aparece?
JOKO:
Fragmente-o. Ou perceba quais são os pensamentos, entre na sensação corporal. ALUNO: Ao
vivenciarmos algo, a vivência pode efetivamente desencadear recordações ou vislumbres de total entendimento? JOKO:
Sim, às vezes. Se nos mantemos na vivência, a cãibra às vezes se desfaz. Então veremos certas imagens do passado, mas eu não me preocuparia com isso. Deixe apenas que venham e sumam. A prática não trata de analisar essas recordações, porque ali não há um "eu". No entanto, na prática que se assenta sobre vivências, nossa vida emergirá mais e mais do não-eu, como uma
vida de funcionamento direto e efetivo e — sim! — de pensamentos válidos e claros. Vivenciar é a chave.
DERRETENDO OS CUBOS DE GELO É útil compreender o aspecto técnico da prática, a base teórica do sentar para praticar. Mas os alunos costumam ter aversão pelas explicações técnicas e querem analogias concretas. Às vezes, o melhor meio de explicar é usando metáforas simples e até tolas. Assim, gostaria de falar da prática zen como "o caminho do cubo de gelo". Vamos imaginar, por um instante, que os seres humanos são grandes cubos de gelo com mais ou menos 60 cm em cada lado, dotados de cabecinhas e pés pendurados. Nossa vida humana é assim quase que o tempo todo, correndo de um lado para o outro como cubos de gelo, dando poderosas trombadas entre si. É freqüente atingirmo-nos uns aos outros com força suficiente para quebrar nossas arestas. Para nos proteger, congelamos o máximo que nos for possível e esperamos que, quando entrarmos em colisão com os outros, eles quebrem antes de nós. Congelamo-nos porque sentimos medo. Nosso medo nos faz ficar rígidos, fixos e duros e criamos grandes confusões quando damos um encontrão em alguém. Qualquer obstáculo ou dificuldade inesperada tem a probabilidade de nos despedaçar. Cubos de gelo doem. Cubos de gelo passam grandes apuros. Quando somos duros e rígidos, independentemente do quanto possamos ser cuidadosos, nossa tendência é escorregar e sair de controle. Temos arestas pontiagudas que causam danos, e ferimos não só os outros como nós mesmos também. Uma vez que estamos congelados, não temos água para beber e com isso sentimos sede o tempo todo. Nos coquetéis, costumamos nos suavizar um pouco e bebemos, mas essas bebidas em geral não são de fato satisfatórias porque há o nosso medo latejando e mantendo-nos congelados e ressecados. Esse abrandamento é só temporário e superficial; por baixo, ainda sentimos sede e ansiamos por alguma satisfação.
Alguns cubos de gelo mais inteligentes buscam outras maneiras de sair de suas vidas miseráveis. Quando percebem suas arestas agudas e suas dificuldades no trato com os outros, tentam ser agradáveis e colaborar. Essa atitude ajuda um pouco; no entanto, um cubo de gelo é um cubo de gelo e permanece intacta a existência de arestas pontiagudas. Uns sortudos, no entanto, acabam encontrando um cubo de gelo que realmente tenha derretido e se tornado uma poça. O que acontece se um cubo de gelo encontra uma poça? A água mais quente da poça começa a derreter o cubo de gelo. A sede é cada vez menos um problema. O cubo de gelo começa a perceber que não tem de ser duro, rígido e frio, que existe outro modo de se estar no mundo. O cubo de gelo aprende como criar seu próprio calor pelo simples processo da observação, O fogo da atenção começa a derreter sua dureza. Ao observar de que maneira tromba com os outros e fere, ao ver suas próprias arestas pontiagudas, o cubo de gelo começa a se dar conta de como foi frio e duro até aí. Começa então a acontecer algo estranho. Quando os cubos de gelo começam a perceber suas próprias atividades, a observar sua "natureza legada em cubos", tornam-se mais suaves e macios e sua compreensão aumenta, simplesmente observando o que são. Os resultados são contagiosos. Vamos supor que dois cubos de gelo tenham se casado. Cada um está protegendo a si mesmo e tentando mudar o outro. Contudo nenhum deles consegue realmente mudar ou "consertar" o outro, uma vez que ambos são rígidos e duros com arestas pontiagudas. Porém, se um deles começa a derreter, o outro cubo de gelo — se se aproximar o mínimo que seja — tem também de começar a derreter. E também ele começa a ter um pouco mais de sabedoria e visão. Em vez de considerar o outro cubo de gelo como um problema, ele começa a tomar consciência de sua própria natureza gelada. Ambos então aprendem que a testemunha, a percepção consciente de sua própria atividade individual, ê como o fogo. O fogo não pode ser aumentado com esforços; não nos é possível tentar nos derreter. Derreter é resultado da testemunha, Que, em certo sentido, não é absolutamente nada e, em outro, é tudo — "Não eu, mas o Pai em mim", como disse Cristo. A percepção consciente, a testemunha é o "Pai" — que é a nossa verdadeira natureza. A fim de permitirmos que a testemunha efetue seu trabalho, devemos não nos permitir aprisionar no enrijecimento e no endurecimento de nós mesmos,
jogando o nosso peso para todo lado, dando trombadas nos outros e tentando modificá-los. Se fazemos essas coisas, precisamos tomar consciência para que a testemunha possa fazer seu trabalho. Alguns cubos de gelo começam a perceber a idéia e a fazer o trabalho necessário. Podem inclusive tornar-se um pouco mais macios. A primeira coisa que observo a respeito dos alunos zen que estão praticando é que sua expressão de rosto muda. Tornam-se mais suaves. Riem de um jeito diferente. Estão um pouco "macios". Entretanto o trabalho é difícil e alguns cubos de gelo, até mesmo os que começam a amolecer, cansam-se do processo. Dizem: "Eu quero mesmo é voltar a ser um cubo de gelo confortável. É verdade que é uma vida solitária e fria, mas, pelo menos, não sinto tanto incômodo. Não quero mais simplesmente tomar consciência de nada''. A verdade, no entanto, é que depois de a pessoa ter começado a suavizar-se ela não consegue mais endurecer de novo. Você pode dizer que essa até é uma das "leis dos cubos de gelo" (com as devidas desculpas à física). Um cubo de gelo que tenha começado a ficar macio nunca mais consegue esquecer essa maciez. É por isso que digo às pessoas: "Não entre na prática enquanto você não estiver pronto para o próximo estágio". Não há como retroceder. Uma vez iniciado o processo da prática, tão logo tenhamos amolecido um pouco, somos um pouco mais macios e é isso que existe. Podemos inclusive pensar que conseguiremos retornar à vida que tínhamos antes e até tentar fazê-lo, mas não temos condições de violar o processo, a "lei básica dos cubos de gelo". Depois de termos nos tornado um pouco mais macios, seremos para sempre um pouco mais macios. Alguns cubos de gelo, por fazerem uma prática apenas esporádica, mudam apenas um pouco ao longo de uma vida toda e se tornam só um pouco mais macios. Aqueles que realmente entendem o caminho e praticam com afinco, porém, se tornam de fato poças d'água. O engraçado a respeito dessas poças é que, quando os outros cubos de gelo as atravessam, começam a derreter e a tornar-se um pouco mais macios. Mesmo que derretamos só um pouco, os outros à nossa volta amolecem também. É um processo fascinante. Muitos alunos meus são macios. Na maioria das vezes detestam passar pelo processo. Quando vamos até o fundo dele, no entanto, o trabalho de um cubo de gelo é enfim derreter. Enquanto estamos congelados e perfeitamente sólidos pensamos que o nosso
trabalho é sair por aí batendo nos outros cubos de gelo ou sendo agredidos por eles. Numa vida como essa ninguém jamais consegue derreter o outro. Como pára-choques, batemos e ricocheteamos, afastando os outros, e depois vamos adiante. É um modo muito solitário e frio de viver. Aliás, o que de fato queremos é derreter. Queremos ser poças. Talvez tudo o que se possa dizer sobre a prática é que estamos aprendendo como derreter. A certos intervalos dizemos: "Me deixe em paz. Fique longe. Quero apenas ser um cubo de gelo". Mas assim que começamos a derreter um pouco que seja, não conseguimos mais esquecer. Com o tempo, aquilo que é em nós o cubo de gelo fica destruído. Mas, se o cubo de gelo tiver se tornado uma poça, ela é realmente destruída? Podemos dizer que não é mais um cubo de gelo, mas sua natureza essencial está realizada. A comparação de uma vida humana com um cubo de gelo é sem dúvida tolice. Porém, vejo as pessoas se batendo entre si na esperança de que com tantos ataques alguma coisa seja alcançada. Nunca acontece isso. Alguém tem de parar com os ataques e começar a sentar e praticar com sua natureza gelada e cúbica. Precisamos apenas sentar, observar e sentir como é ser o que somos — vivenciando isso de verdade. Não podemos fazer muito mais pelos outros cubos de gelo. Aliás, não é nem essa nossa incumbência. A única coisa que podemos fazer é convocar cada vez mais a presença da testemunha. Quando nos tornamos essa testemunha, começamos a derreter. Se derretemos, outros cubos de gelo também o fazem, pouco a pouco. Assim que tivermos começado a derreter é perfeitamente natural resistir ao derretimento e querer retomar o estado congelado, tentando controlar e manipular todas as outras criaturas congeladas que conhecemos. Nunca me preocupo com isso porque, para qualquer pessoa que venha praticando já há algum tempo, é muito o que há para se saber. Não podemos tornar-nos rígidos de novo porque bem no fundo sabemos de uma coisa que antes desconhecíamos. Não podemos retroceder. Na próxima vez que falarmos com aspereza, que nos queixarmos, ou tentarmos consertar o outro, ou analisá-lo, estamos brincando inutilmente de ser cubo de gelo. Esse esforço não dá em nada. O que funciona é cultivar a atenção, que sempre está ali, embora não consigamos percebê-la se estamos muito ocupados dando pancadas nos outros cubos de gelo. Mesmo que não
abramos espaço em nossas vidas para a testemunha, ela sempre está presente. É quem somos. Apesar de todos tentarmos evitá-la, não o conseguimos. Ao nos tornarmos mais macios, descobrimos que ser uma poça atrai muitos outros cubos de gelo. Às vezes até a poça preferiria ser um cubo de gelo. Quanto mais poça nos tornarmos, maior o trabalho a ser feito. A poça atua como um ímã para os cubos de gelo que querem derreter. Assim, quanto mais pingamos, mais e mais atraímos trabalho para fazer — e é isso mesmo. ALUNO: Gostei
da analogia porque quando a poça estiver limpa conterá o todo em seu reflexo. Você poderia falar mais de como nasce a testemunha? JOKO:
A testemunha sempre está presente. Mas assim como um cubo de gelo não consegue ver nada exceto dar trombadas em outros cubos de gelo, ou evitá-los, é como se essa atenção da testemunha não pudesse funcionar. É preciso que haja uma mudança no cubo de gelo para permitir-lhe tomar consciência de sua própria atividade. Enquanto nossa capacidade de conscientização estiver totalmente voltada para o que os outros cubos de gelo estão fazendo, a testemunha não pode aparecer, mesmo que esteja lá o tempo todo. Quando começamos a ver — "Oh, o problema não é com os outros cubos de gelo, acho que preciso olhar para mim mesmo" —, a testemunha aparece automaticamente. Começamos a perceber que o problema não está "lá fora", mas sempre esteve e estará aqui dentro. ALUNA: No
estado de cubo de gelo, posso alimentar a ilusão de que nada pode entrar nem sair, e assim me sinto protegida. Quando o amaciamento começa, contudo, ocorre-me que tudo se interpenetra com tudo — incluindo a poluição, a guerra, o desamparo e assim por diante. Perceber claramente essa interpenetração pode ser assustador e desestimulante. Você poderia falar obre o medo e os outros estados emocionais que.aparecem quando a pessoa está entre ser um cubo de gelo e uma poça? JOKO:
É verdade, o estágio intermediário até a maciez implica muito medo e resistência. De certo modo, ser um cubo de gelo funciona ou parece que funciona. É só que o cubo de gelo se sente solitário e sedento. Quando somos macios, somos mais vulneráveis aos outros. Se não vemos o que está acontecendo, vivenciamos
mais medo. Sendo assim, esse estado macio, que é o início do derretimento, é sempre acompanhado de resistência de medo de que o mundo se abata sobre nós. Queremos nos enrijecer de novo porque estamos começando a receber um tipo de solicitação para o qual não estamos preparados. Essas solicitações podem não ser bem-vindas. Nossa resistência tentará se solidificar. Mesmo assim, a resistência não conseguirá durar. Às vezes as pessoas me dizem: "Já estou praticando há seis meses e tudo em minha vida ficou pior". Antes de praticar tinham a ilusão de saber o que eram. Agora, estão confusas e isso não é agradável — e pode ser horrível. Mas é absolutamente necessário. A menos que percebamos esse fato, podemos nos sentir totalmente desencorajados. A prática, às vezes, é muitíssimo desagradável. A idéia de que tudo só vai melhorar, sem recuos, apenas elevando-se e adiantando-se, é equivocada do começo ao fim. ALUNA:
Nas primeiras vezes em que me sentei para praticar, era como estar morta do pescoço para baixo. Sinto-me exatamente como o cubo de gelo que você descreveu: uma cabeça em cima, pés embaixo e um computador morto e ambulante no meio. A prática liberou dentro de mim muito do sentimento; por exemplo, já chorei muito e parece que estou derretendo e me tornando uma poça. JOKO:
Muito bom. Tenho observado o derretimento na maioria dos meus alunos. Em geral não é agradável, mas de certo modo e maravilhoso também. Sentimos que estamos nos tomando mais aquilo que somos verdadeiramente. Sempre existe resistência também. Os dois aspectos andam sempre juntos. As pessoas acham que resistência é uma coisa terrível. A própria natureza da prática é resistir. Não é uma coisa extra. ALUNA:
Ser mãe faz a gente amaciar? Minha idéia é que as mães têm de se abrir para os seus filhos e isso tenderia a fazer o cubo de gelo derreter. JOKO:
Ser mãe pode ser um treino excelente. Mas conheci mães que eram uns grandes cubos de gelo — inclusive eu, numa certa época.
O CASTELO E O FOSSO Desde que comecei como instrutora encontrei muito poucas pessoas que não estavam de alguma maneira mergulhadas naquilo que consideravam como um problema. É como se suas vidas estivessem enterradas numa densa e enorme nuvem, ou como se estivessem num quarto escuro às voltas com nossa nêmese. Quando estamos nas malhas desse conflito, fechamos o mundo do lado de fora. Francamente, não temos tempo para ele porque estamos muito ocupados com nossas preocupações. Nosso único interesse é solucionar nosso problema. Não vemos mais além do que essa ilusão, em que o problema com que nos preocupamos não é o problema real. Ouço um sem-número de variações sobre esse tema: "Estou tão sozinha"; "A vida é vazia e sem sentido"; "Tenho de tudo, e no entanto...". Não enxergamos que nosso problema superficial é apenas a pontinha do iceberg. Na realidade, o que consideramos como nosso problema é, na verdade, um pseudoproblema. Para nós com certeza não parece que sejam só pseudoproblemas. Se, por exemplo, sou casada e meu marido vai embora sem dúvida não acho que esse seja um pseudoproblema. Vai passar muito tempo antes que eu consiga ver que aquilo que estou chamando de o meu problema não é a dificuldade real. Apesar disso, o problema real não é a parte que podemos enxergar, como algo pendurado no ar; o verdadeiro problema é o iceberg que está embaixo da água. Para uma pessoa, o iceberg pode ser uma crença generalizada e entranhada do tipo "Tenho tudo sob controle"; para outra, pode ser "Preciso fazer as coisas com perfeição". Mas, na verdade, não consigo controlar o mundo sendo prestativa, não consigo controlá-lo sendo desprotegida, não consigo controlá-lo com meus encantos, ou meu sucesso, ou minha agressividade, não consigo controlá-lo pela suavidade ou pela doçura, ou pelo melodrama da vítima. Logo abaixo do problema emergente está um padrão mais fundamental que devemos reconhecer e com o qual nos familiarizar. Trata-se de uma atitude crônica e abrangente perante a vida, uma decisão muito antiga decorrente de nossos temores infantis. Se não conseguirmos enxergá-la e, em vez disso, nos perdermos tentando lidar com o pseudoproblema que se apresenta, continuaremos cegos aos acontecimentos e às pessoas.
Só quando nossa abordagem de cegos diante da vida começar a apresentar defeitos é que passaremos a sentir vagos lampejos de que nosso pseudoproblema é um castelo assombrado no qual estamos como prisioneiros. O primeiro passo de qualquer prática é saber que somos prisioneiros. A maioria das pessoas não tem a menor suspeita disso: "Oh, comigo vai tudo bem". Porém, quando começamos a reconhecer que estamos como prisioneiros, podemos começar a encontrar uma porta que nos leve para fora da prisão. Estaremos então despertos o suficiente para saber que estamos aprisionados. É como se meu problema fosse um castelo sombrio e tenebroso, cercado de água por todos os lados. Encontro-me num pequeno bote e começo a remar para ganhar distância. Conforme remo, olho para o castelo que vai ficando para trás, e quanto mais me afasto, menor fica. O fosso é imenso, mas finalmente o atravesso e chego na outra margem. Agora, quando olho de novo para o castelo, ele parece muito pequeno. Por ter recuado, não tem mais o mesmo interesse que um dia despertou em mim. Assim, começo a dar mais atenção para o lugar onde agora me encontro. Olho para a água, as árvores, os pássaros. Talvez existam pessoas passeando de bote pela água, apreciando o ar livre. Algum dia desses, enquanto estiver desfrutando o cenário, vou olhar para onde estava o castelo e verei que ele terá sumido. A prática é como o processo de remar pelo fosso. Primeiro estamos nas malhas de nosso pseudoproblema. Em algum ponto, contudo, damo-nos conta de que aquilo que parecia ser o problema não é, afinal de contas. Nosso problema é algo muito mais profundo. Uma luz começa a brilhar. Somos capazes de encontrar uma porta de saída e ganhar uma certa distância ou perspectiva em nossos esforços. O problema poderá ainda continuar nos atormentando, como um imenso castelo mal-assombrado, mas pelo menos estaremos do lado de fora, olhando para ele. Quando começamos a remar e nos distanciar, a água pode estar encapelada e dificultar o avanço. Até mesmo uma tempestade pode nos arremessar de volta à beira do lago, de modo que não conseguimos ir embora ainda por mais algum tempo. No entanto, continuamos tentando e, em algum momento, conseguimos colocar alguma distância entre nós e o castelo tenebroso. Começamos a desfrutar um pouco a vida do lado de fora do castelo. Depois de algum tempo, podemos estar gostando tanto dela que o castelo em
si agora parece apenas um outro resto de alguma coisa flutuando na água, tão sem importância. Qual é o seu castelo? Qual é o seu pseudoproblema? E qual é o iceberg lá embaixo, o problema mais profundo que dirige a sua vida? O castelo e o iceberg são uma e a mesma coisa. O que são para você? A resposta, para cada pessoa, é diferente. Se começamos a ver que o problema atual que nos contraria não é a verdadeira questão de nossas vidas, mas simplesmente um sintoma de um padrão mais profundo, então estamos começando a conhecer nosso castelo. Quando o conhecermos bastante bem, estaremos começando a encontrar a direção da saída. Poderíamos perguntar por que continuamos presos no castelo. Permanecemos presos porque não reconhecemos o castelo, nem como conquistar a nossa liberdade. O primeiro passo na prática é sempre ver e reconhecer nosso castelo ou prisão. As pessoas são feitas prisioneiras de muitas e variadas maneiras. Por exemplo, um castelo pode ser a busca constante de uma vida excitante e movimentada, repleta de novidades e divertimentos. As pessoas que vivem assim são estimulantes, mas difíceis de conviver. Viver num castelo, portanto, não significa necessariamente uma vida de preocupações, ansiedade e depressão. As prisões mais sutis não parecem em nada com isso. Quanto maior o nosso sucesso no mundo externo, mais difícil pode ser identificar o castelo onde estamos como prisioneiros. O sucesso em si é ótimo; contudo, se não nos conhecemos, pode ser uma prisão. Conheci pessoas famosas em seus campos de atividade e que apesar disso eram prisioneiras de seus castelos. Tais pessoas só partem para a prática quando alguma coisa começa a não dar mais certo em sua vida — embora o sucesso externo em geral torne mais difícil reconhecer e admitir a desintegração. Quando as primeiras rachaduras concretas aparecerem na parede do castelo, talvez comecemos a investigar nossas vidas. Os primeiros anos de prática consistem em chegar a conhecer o castelo do qual somos prisioneiros e começar a encontrar onde está o bote a remo. A viagem através do fosso pode ser tortuosa, especialmente no princípio. Talvez nos aconteçam tempestades e águas agitadas quando nos separamos de nosso sonho de como somos e de como pensamos que a nossa vida deveria ser. Um só elemento realiza por nós essa travessia: a percepção consciente do que está acontecendo. A capacidade de manter a
percepção consciente quando pseudoproblemas aparecem é algo que aos poucos se desenvolve pela prática, embora não por esforços deliberados nesse sentido. Quando se dão acontecimentos dos quais não gostamos, criamos pseudoproblemas e ficamos seus prisioneiros: "Você me insultou! Claro que estou com raiva!"; "Estou tão sozinha. Ninguém realmente se importa comigo"; "Minha vida foi muito dura. Abusaram de mim". Nossa viagem não termina (e talvez numa única vida humana nunca chegue ao fim) enquanto não virmos que não existe castelo e que não existe problema. A quantidade de água que atravessamos em nosso bote é sempre aquilo que ela é. Como poderia existir algum problema? Meu "problema" ê que não gosto disso. Não gosto disso, não gosto desse jeito, a vida não me serve. Assim, partindo de minhas opiniões, reações e julgamentos construo um castelo no qual me faço prisioneiro. A prática ajuda-me a compreender esse processo. Em vez de me perder em meio a contrariedades, observo meus pensamentos e a contração do meu corpo. Começo a ver que o incidente que me transtornou não é o problema real; em vez disso, minha contrariedade deriva de minha particular maneira de olhar a vida. Escolho esta parte e começo a demolir o meu sonho. Pouco a pouco, vou construindo uma certa distância em perspectiva. Meu bote a remo afasta-se do castelo que ergui e não sou mais prisioneiro ali dentro. Quanto mais tempo praticamos, mais rapidamente avançamos por esse processo, a cada vez que ele emerge. O trabalho é lento e desencorajador no começo, mas, conforme vão aumentando nosso entendimento e nossas habilidades, ele acelera cada vez mais e chegamos depois a ver que não existem problemas. Podemos desenvolver doenças e perder o pouco dinheiro que tínhamos; apesar desses transtornos, não há problema. Porém, "nós não enxergamos a vida dessa maneira. No minuto em que se impõe a nós algo de que não gostamos, temos, do nosso ponto de vista, um problema. Assim, a prática zen não trata de nos ajustarmos ao problema, mas de vermos que não existe problema nenhum. É uma estrada muito diferente daquela a que estão acostumadas quase todas as pessoas. A maioria apenas tenta consertar o castelo, em vez de ver mais além dele e encontrar o fosso que nos separa dele — e isso é o que a prática nos leva a reconhecer.
Na verdade, a maioria não quer sair do castelo. Podemos não percebê-lo, mas adoramos os nossos problemas. Queremos continuar como prisioneiros de nossas construções, girando e revolvendo no mesmo ponto como vítimas, sentindo muita pena de nós. Depois de algum tempo, pode ser que cheguemos a ver que essa vida na realidade não funciona muito bem. É quando talvez comecemos a procurar pelo fosso. Mas mesmo então, continuamos a nos iludir, buscando soluções que mantêm o castelo intacto e a nós como prisioneiros. Por exemplo, se um relacionamento parece ser o problema, talvez nos atiremos em outro em vez de descobrir a questão que está na base, e que é a nossa fundamental decisão sobre a vida, o castelo que erguemos. "Minha perna quebrou." "Estou aborrecido com a minha namorada." "Meus pais não me compreendem." "Meu filho usa drogas." E assim por diante. O que, neste exato minuto, é o fator que nos separa da vida e nos impede de enxergar as coisas como elas são? Só quando a vida for apreciada em todos os seus momentos é que poderemos dizer que sabemos algo de uma vida religiosa. Compreender é a chave. Ainda assim, são precisos anos e anos de prática para começarmos a entender o que estou descrevendo e é preciso coragem para nos aventurarmos na travessia do fosso, distanciando-nos do castelo. Enquanto ficamos dentro dele, conseguimos sentir que somos importantes. É preciso um interminável treinamento para cruzar aquele fosso com rapidez e eficiência. Não somos muito propensos a sair do castelo. Se estamos terrivelmente deprimidos, a depressão é, apesar de tudo, aquilo que conhecemos; que Deus não permita que nós devamos abandonar nossa depressão. É assustador entrar no nosso pequeno bote e deixar para trás todas as coisas que até então chamávamos de a nossa vida. Aprisionados no castelo, ficamos constringidos a um espaço reduzido, apertado. Nossa vida é sombria e assustadiça, quer o percebamos, quer não. Felizmente, a liberdade (o nosso ser verdadeiro) nunca cessa de nos chamar. ALUNO:
Para mim parece que não há como entrar no bote e começar a travessia do fosso enquanto a magia da prática não começar a surtir efeito, depois de meses, talvez um ano. JOKO: Algumas
pessoas vêm para a prática quando suas vidas estão caindo aos pedaços e seu sonho pessoal está ruindo. Elas
estão geralmente prontas para começar a demolição do castelo. Para outras, o processo acontece mais devagar. O processo de sentar e praticar coloca nosso castelo pessoal sob ataque cerrado; não demora muito e começamos a ver rachaduras aqui e ali, mesmo que antes a construção parecesse muito sólida. Tomamos consciência — talvez chocados — dessas primeiras rupturas. Se um problema parece um problema, ele não é real? O que faz dele um falso problema? ALUNO:
JOKO:
Vamos supor que alguém que eu amo foi mandado trabalhar na Europa por dois anos e minhas obrigações me forçam a ficar aqui. Isso parece que é um problema para mim. A minha vida tem sido um entrelaçamento com a vida dessa pessoa e fico muito infeliz com essa separação. Do meu ponto de vista, esse é um problema real; porém, do ponto de vista da vida em si meu namorado vai para a Europa e eu fico aqui. Ponto. O único "problema" é a minha opinião sobre isso. ALUNO: Você
está dizendo que é para não fazer nada a respeito, só aceitar passivamente qualquer coisa que aconteça? JOKO:
Não, em absoluto. A questão não é essa. Se eu tenho a opção de me mudar para a Europa para ficar com ele e se isso vai ser bom para todos os envolvidos, ótimo. Mas em geral nos encontramos em situações a cujo respeito não há o que se possa fazer. Nem sempre podemos refazer o mundo para que se ajuste as nossas preferências. A prática ajuda-nos a lidar com as coisas como elas são, e não acrescentar mais nada a elas. ALUNO:
Como é que descobrimos o que é o nosso castelo? Qual é a estratégia? JOKO:
A chave está em notar o que nos deixa contrariados. O castelo é construído de emoções pessoalmente centradas. Quais são alguns exemplos de contrariedades? ALUNO: Raiva,
alguém dizer algo de que não gosto.
ALUNO: Depressão. JOKO: A
depressão é em geral um sinal de que a vida não está indo pelo caminho que gostaríamos. ALUNO:
ela.
Ciúme. Não gosto do jeito que ele está olhando para
ALUNO:
Ressentimento, porque fiz tudo e eles não me deram
valor. JOKO:
Esse é um elemento comum nos comentários feitos pelos pais: "Fiz tudo por você e qual é o agradecimento que recebo? Dediquei a você os melhores anos de minha vida!". Todo castelo implica um conjunto pessoal de programas já estabelecidos. O castelo pode ser construído em cima do que parecem ser nobres intenções e, mesmo assim, ocultar pensamentos autocentrados. Por exemplo, trabalhar para os sem-teto pode ser um caminho para mostrarmos aos outros e a nós mesmos como somos bons, como nos importamos. (A questão não é se devemos ou não ajudar os sem-teto, mas o motivo que nos leva a essa ação.) ALUNO:
Alguma coisa que nos dá felicidade pode também ser parte do castelo? Por exemplo, se escutamos um lindo trecho musical para tentar lidar com a contrariedade? JOKO:
Sim, se a música for usada como escape, faz parte do
castelo. ALUNO:
Para quem mora dentro deles, os castelos sempre parecem que estão baseados na realidade, não é? JOKO: Certo,
mas não estão. Nossa decisão profunda de que a vida é assim é que cria o castelo. Toda vez que essa decisão é questionada de alguma maneira, nosso castelo balança. ALUNO: A
decisão que tomamos decorre de alguma experiência que já tivemos no passado, certo? JOKO:
Sim, embora talvez nós não lembremos mais dessa
experiência. ALUNO:
Podemos ter mais de um castelo? Ou cada pessoa vive em um só castelo geral? JOKO:
A maioria vive num só, mas com muitos aposentos. Para a maioria, o castelo aparece em decorrência de uma decisão básica com respeito à vida, embora essa decisão possa aparecer de muitas maneiras diferentes. Temos de descobrir as várias formas pelas quais empreendemos no concreto as nossas decisões. Temos de conhecer bem o nosso castelo.
ALUNO:
Conhecer o nosso castelo significa tomar consciência da tensão em nosso corpo? JOKO: Sim
— e ver e rotular os nossos pensamentos. Ao fazermos isso, nós vamos lentamente destrancando a porta do castelo e encontrando o caminho até o bote que nos levará através do fosso. É um processo gradual: não há uma linha demarcatória visível. E não é que saímos do castelo de uma vez por todas. Às vezes, ele parece estar distante e então algo acontece que não havíamos visto antes e eis-nos de volta, dentro dele. Ninguém conhece por completo todos os aposentos do castelo. ALUNO:
A analogia do castelo e do fosso é útil, mas eu sei que no instante em que paro de praticar e volto para o resto de minha vida perco a minha clareza. JOKO:
A virtude de praticar e de estar conversando como agora é esclarecer os problemas que encaramos quando voltamos para o resto de nossas vidas; essas atividades ajudam-nos a lidar com isso. Com uma boa prática, essa capacidade de fato aumenta com o tempo. É verdade que podemos ser facilmente sugados de volta para os nossos velhos padrões. Em si, um colóquio como este nada pode fazer; a única coisa que importa é aquilo que as pessoas farão com ele. Conseguimos olhar com franqueza para nossas áreas de contrariedade e observarmo-nos contrariados? Conseguimos olhar para isso de uma certa distância, com alguma perspectiva? Esse é o alvo do fosso: olhar por cima do ombro para o castelo que ficou lá atrás e enxergá-lo com mais nitidez. Embora soe fácil, é dificílimo, em particular no começo. A dificuldade não é uma coisa ruim; é só do jeito que é. ALUNO:
Você diria que o castelo é o conjunto da personalidade do indivíduo? Ou apenas suas opiniões pessoais e suas idéias preconcebidas?
Personalidade sugere uma estrutura interna permanente ou rígida. Nossa personalidade é a estratégia que elaboramos para lidar com a vida. Nesse sentido, o castelo é nossa personalidade. Ao praticarmos durante um certo tempo, os aspectos predominantes de nossa personalidade dissolvem-se. Nas pessoas que vêm praticando bem por muito tempo, a personalidade tende a desaparecer e dar lugar à abertura. De certo modo, quanto mais sentarmos para praticar, menos personalidade teremos. JOKO:
ALUNO:
Conheço você já faz muitos anos e me parece que agora você tem mais personalidade do que em qualquer outra época de sua vida. JOKO: Com
o tempo, a boa prática nos torna mais sensíveis ao que está acontecendo. Em vez de uma resposta invariável, respondemos de maneira mais livre e condizente com a situação. A prática alimenta nossa capacidade de reagir apropriadamente. A personalidade então não atrapalha mais.
V. Percepção Consciente O PARADOXO DA PERCEPÇÃO CONSCIENTE Quando nos sentamos para a prática é importante manter uma imobilidade tão absoluta quanto possível: estar consciente da língua no seu espaço, dos globos oculares, da inquietação dos dedos. Quando eles de fato se movimentam, é importante tomar consciência do movimento. Quando queremos pensar, nossos globos oculares se movimentam. Temos maneiras muito sutis de escapar de nós mesmos. A imobilidade absoluta é para muitos uma instrução restritiva e desagradável. Para mim, é. Depois de ter ficado na prática, sentada por vários períodos, quero fazer alguma coisa, consertar algum objeto, tomar conta do que tiver pela frente. Não deveríamos nos manter tensos ou duros, mas simplesmente manter a imobilidade tanto quanto pudéssemos. Sermos apenas o que somos é a última coisa que queremos fazer. Todos nós temos grandes desejos: de conforto, de sucesso, de amor, de iluminação, de chegar ao estado búdico. Quando vem o desejo, empenhamonos, tentando tornar nossa vida algo que ela não é. Por isso, a última coisa que queremos é ficar parados. Na imobilidade absoluta tomamos consciência de nossa falta total de disponibilidade para sermos o que somos, neste próprio segundo. E isso é uma coisa muito aborrecida: nós, enfim, não queremos fazê-la, de jeito nenhum. O mestre Rinzai disse: "Não desperdice um pensamento sequer na perseguição do estado búdico". Isso significa que devemos ser como somos, a cada momento, de um
momento para outro. É tudo o que jamais precisaremos fazer, mas o desejo humano é ir em busca de algo mais. Atrás do que nos empenhamos quando sentamos para praticar? ALUNO: Conforto. ALUNO: Tentar
parar de pensar.
JOKO:
Estamos tentando parar de pensar em vez de tomarmos consciência de nosso pensar. ALUNO: Ter
alguma espécie de experiência corporal intensa, um estado alterado de consciência. aluno: Paz. ALUNO: Ficar
mais acordado, menos sonolento. Ou livrar-se da raiva. "Assim que conseguir me livrar desta raiva, chegarei mais perto do estado de buda." JOKO: Ou
podemos nos lembrar de uma fase de nossa vida em que as coisas corriam bem, para tentarmos então recuperar essa sensação. Se não tivermos uma única idéia de ir no encalço do estado búdico, o que estaríamos fazendo? ALUNO: Não JOKO: Não
nos apegando.
nos apegando e sendo propensos a ser...
ALUNO: Quem
somos e onde estamos.
JOKO: Sim
— quem somos e onde estamos, exatamente aqui e agora. Quando nos sentamos para praticar, estamos nos dispondo a fazer isso por mais ou menos três segundos. Depois, quase que imediatamente, já está ali o desejo de movimento, de agitação, de pensar, de fazer alguma coisa. Nos termos mais simples que consigo encontrar, existem dois tipos de prática. Um é a tentativa de nos aperfeiçoarmos rapidamente. Aumentamos nossa energia, comemos melhor, purificamo-nos de alguma maneira e forçamo-nos a ter uma mente clara. As pessoas pensam que iluminação é o resultado desses esforços, mas não é. Claro, é bom alimentar-se de maneira adequada, praticar exercícios, fazer aquelas coisas que nos tornarão mais saudáveis. E esse esforço de vivermos melhor, de seguir por um caminho que nos levará a alguma parte, pode produzir pessoas que parecem muito santificadas, muito calmas, muito impressionantes.
Do ponto de vista do segundo tipo de prática, no entanto, essa noção de nos transformarmos em algo diferente e melhor não tem sentido. Por quê? Porque sendo apenas como somos está bem. Uma vez, porém, que sermos como somos não parece bom, ficamos confusos, transtornados, raivosos. Essa declaração de que estamos bem sendo como somos e pronto não faz para nós o menor sentido. Podemos esclarecer essa questão de uma outra maneira. Se estamos conscientes de nossos pensamentos, a tendência deles é desaparecer. Não podemos estar conscientes de pensar sem que o pensar comece a minguar, a dissolver-se. Um pensamento é simplesmente um tantinho de energia, mas a ele acrescentamos nossas crenças condicionadas e tentamos depois nos apegarmos ao pensamento. Quando o consideramos da perspectiva de nossa percepção consciente impessoal, ele desaparece. Quando olhamos para uma pessoa, porém, ela desaparece? Não, ela permanece. E essa é a diferença entre realidade e a visão ilusória da realidade que temos, quando vivemos em nossos pensamentos: quando verdadeiramente considerados com atenção, aquela permanece, esta desaparece. A versão pessoal da vida simplesmente se desfaz. O que nós queremos é ser uma vida real. Isso é diferente de se viver como um santo. Todos nós somos seduzidos pelo fascínio deste tipo de prática: queremos nos tornar outra coisa que não somos. Pensamos que, quando nos sentamos em sesshin, estamos nos transformando em alguma coisa que é uma edição aperfeiçoada. Mesmo quando despertamos para a verdade das coisas, o desejo, bem no fundo, é querer alguma outra coisa que simplesmente não está ali. Não temos de nos livrar de nossos pensamentos; basta que nos mantenhamos olhando para eles. Se procedermos assim, eles se desmancharão no nada. Qualquer coisa que se desmancha no nada não é real. Mas a realidade não desaparece apenas porque estamos olhando para ela. ALUNO:
Não haveria a necessidade de algum tipo de objetivo para que pudesse acontecer um processo afinal, para que se chegasse em algum resultado? JOKO:
O que você quer dizer com "processo1*?
ALUNO: Processo
é fazer alguma coisa.
JOKO:
A percepção consciente é um fazer? Existe uma diferença entre fazer alguma coisa — por exemplo, "Vou ser uma boa pessoa" — e a simples percepção consciente do que estou fazendo. Vamos supor que estou fazendo uma fofoca. Fofocar é fazer alguma coisa, mas a percepção consciente disso não é um fazer, um levar coisas a acontecerem. A base do fazer é o pensamento de que as coisas deveriam ser diferentes do que elas são. Em vez de dizer a mim mesma "Tenho de me tornar uma pessoa melhor" e tentar fazer isso, eu deveria simplesmente tomar consciência do que estou fazendo — por exemplo, observar que toda vez que encontro uma determinada pessoa eu a coloco de fora. Quando eu tiver me acompanhado fazendo isso uma centena de vezes, algo acontece. O padrão se desarticula, e torno-me uma pessoa melhor, embora eu não tenha agido segundo a instrução da sentença para ser uma pessoa melhor. A percepção consciente não tem sentenças, não tem pensamentos nesse sentido. É apenas percepção consciente. É isso o sentar na prática: não ficar preso na mente, não entrar na armadilha de esforçar-se para chegar em alguma parte, para tornar-se um buda. ALUNO:
Parece um paradoxo. Num nível, nossa mente está fazendo algo de forma ativa e, num outro, estamos conscientes do que nossa mente está fazendo. Em que consiste a percepção consciente? JOKO:
No pensamento comum, a mente sempre tem um objetivo, alguma coisa que irá obter. Se nos atolamos nesses projetos do que obter, então some a percepção consciente da realidade. Teremos substituído a percepção consciente por um sonho pessoal. A percepção consciente não anda, não se enterra em sonhos; ela apenas permanece onde está. A princípio, a distinção entre o pensamento corriqueiro e a percepção consciente parece sutil e esquiva. Conforme praticamos, contudo, a distinção se torna cada vez mais nítida: começamos a notar cada vez mais como nossos pensamentos são ocupados com a tentativa de chegarmos em algum lugar, e como ficamos prisioneiros deles, de tal modo que não conseguimos mais reparar no que está realmente presente em nossas vidas.
ALUNO:
A impressão que dá é que ou estamos observando o que está acontecendo, ou ficamos atolados no conteúdo de nossos pensamentos. Certo. Não há nada de errado com um pensamento em si. É apenas uma dose de energia. Mas quando nos prendemos em seu conteúdo, nas palavras do pensamento, então o teremos arrastado para nossos domínios pessoais e quereremos ficar apegados a ele. JOKO:
ALUNO: Ficar
apegado a um pensamento exige uma crença. Na noite passada, enquanto ia para um certo lugar, minha mente estava repleta de pensamentos e sentimentos. Eu acreditava que estava praticando: eu sabia que estava com raiva, que estava tenso, que estava apressado, e minha pista era eu estar com uma raiva cada vez maior, cada vez mais contrariado. De repente eu disse para mim mesmo: '*Qual é a prática neste exato momento?". E um milhão de pontos de luz iluminou o que estava acontecendo na minha mente. De uma perspectiva completamente impessoal ainda havia o mesmo conteúdo — raiva, pressa, tensão física —, mas nada tinha que ver com a minha pessoa. Era quase como observar uma barata no chão da cozinha. JOKO: Quando
começamos a observar os pensamentos e sentimentos, eles começam a se dissolver. Não conseguem manter-se sem a sustentação de nossa crença neles. ALUNO:
Quando nos atolamos desse jeito nos nossos pensamentos, nosso mundo fica mais estreito. Não temos mais uma perspectiva do todo. Quando levamos nossa percepção consciente para nossos pensamentos, essa estreiteza alarga e os pensamentos restritivos começam a sumir. JOKO:
Sim. Se nossas vidas não estão mudando enquanto vamos praticando, então alguma coisa errada está ocorrendo com o que estamos fazendo. ALUNO;
Quando nos atolamos em nossos pensamentos, geramos ansiedade, não é? JOKO: Sim.
A ansiedade é sempre uma distância entre o modo como as coisas são e o modo como pensamos que elas teriam de ser. A ansiedade é algo que se estende entre o real e o irreal. Nosso desejo humano é evitarmos aquilo que é real e, em lugar dele, estarmos no domínio de nossas idéias a respeito do mundo: Sou
terrível"; "Você é terrível"; "Você é maravilhosa". A idéia é separada da realidade, e a ansiedade é a distância entre a idéia e a realidade de que as coisas são apenas como elas são. Quando paramos de acreditar no objeto que criamos — que está por assim dizer deslocado para um só dos lados da realidade —, as coisas rapidamente se realinham de volta no centro. É isso que significa dizer que algo ou alguém é centrado. A ansiedade então desaparece de vista. ALUNO:
Parece que fico extremamente tenso com essa tentativa de me ater à percepção consciente. JOKO:
Se você está tentando ater-se à percepção consciente, isso é um pensamento. Nós usamos uma palavra como percepção consciente e em seguida as pessoas tornam-na algo especial. Se não estamos tentando (tente por apenas dez segundos parar de pensar), nosso corpo relaxa, e conseguimos ouvir e observar tudo o que está se passando. No instante mesmo em que paramos de pensar, estamos conscientemente perceptivos. A percepção consciente não é algo que tenhamos de ser — é uma ausência de alguma coisa. O que é a ausência de uma coisa? ALUNO: Não
é que estamos só mudando aquilo de que estamos cônscios? Não acabamos de decidir que sempre estamos conscientes? Minha premissa é que a vida é sempre percepção consciente. Sempre estamos cientes de alguma coisa. Quando nos sentamos na prática (em certo sentido, isso é um paradoxo), temos um objetivo nesse sentar: estamos refocalizando a nossa percepção consciente, talvez tornando-a mais aguda a respeito de algo. JOKO:
Não, isso toma a percepção consciente fazer alguma coisa. A percepção consciente é como o calor que sobe num dia de verão: as nuvens no céu apenas desaparecem. Quando estamos conscientes, o irreal simplesmente desaparece e não temos de fazer nada. ALUNO:
Há mais percepção consciente depois de um sesshin
que antes? JOKO:
Não, a diferença é que não a estamos bloqueando. A percepção consciente é o que somos, mas nós a bloqueamos com pensamentos autocentrados: sonhando, fantasiando, fazendo tudo aquilo que queremos fazer. Tentar ser consciente é só o pensamento comum, não é a percepção consciente. Tudo o que
precisamos fazer é tomar consciência de nossos pensamentos autocentrados. Finalmente, eles desaparecem na distância e nós restamos apenas ali. Embora se possa dizer que estamos fazendo uma coisa, a percepção consciente não é uma coisa nem uma pessoa. A percepção consciente é a nossa vida quando não estamos fazendo mais nada. ALUNO:
A simples percepção consciente não tem mais nada. Não tem espaço, tempo, nada. JOKO:
Certo, a percepção consciente não tem espaço, tempo, nem identidade — e, apesar disso, é quem somos. No mesmo instante em que falamos dela ela já se foi. Em termos de prática, não temos de tentar ser conscientes. O que temos de fazer é observar nossos pensamentos. Não devemos tentar ser conscientes; sempre somos conscientes, a menos que estejamos aprisionados em nossos pensamentos autocentrados. Essa é a finalidade de rotularmos nossos pensamentos. ALUNO: Então
às vezes estamos conscientemente percebendo e
não notamos isso. joko: É. ALUNO: Talvez
a diferença entre os pensamentos comuns nos quais acreditamos e a percepção consciente é que um pensamento em que se acredita não se sustenta na percepção consciente, ele não é reconhecido como um simples pensamento. JOKO:
Certo. Ele não é visto apenas como o fragmento de energia que é de fato. Nós o consideramos real, e acreditamos nele. Então ele começa a dirigir o espetáculo, em vez de a percepção consciente desempenhar esse papel, que é o que deveria acontecer. ALUNO:
Costumo notar a percepção consciente de maneira mais acentuada quando não estava sendo consciente. Por exemplo: de repente me dou conta de que estou no trabalho e nem sei como cheguei lá — e então acordo. JOKO:
Exceto o buda, todo mundo flutua para dentro e para fora da percepção consciente. Mas quanto mais tempo de prática tivermos, maior a porcentagem de tempo de nossas vidas que será levada na percepção consciente. Duvido que alguém consiga um dia viver totalmente na percepção consciente.
ALUNO:
Você disse "quanto mais tempo de prática tivermos", mas na realidade você estava se referindo à forma com que colocamos a atenção no presente? JOKO:
Sim. É possível praticar sentado por vinte anos e mesmo assim não ter noção do que é essa prática. Mas, se estamos sentando e praticando com a totalidade de nossa vida, então sem sombra de dúvida o montante de percepção consciente aumenta. Eu costumava passar metade da vida devaneando. Era "agradável''. ALUNO: Durante
muitos anos, minha prática sentada consistiu em primeiro me desligar do meio ambiente e depois do meu corpo e depois recitar Mu sem parar. Eu era totalmente consciente de nada. JOKO:
Sim, essa é uma forma de prática concentrada que, para algumas pessoas, produz efeitos rápidos e intensos, muito agradáveis. Não ajuda muito a vida dessa pessoa. De todo jeito, o Mu não tem de ser praticado dessa forma. ALUNO:
Quando focalizo a atenção na percepção consciente, parece que observo mais dor em meu corpo. Mas se eu simplesmente "viajar" não tenho mais problema de dor, nem sinto dor. Depois acordo e tomo consciência, e lá está a dor de novo. Por que a dor desaparece quando eu "viajo"? JOKO:
Bom, nossos sonhos são narcóticos poderosos. Por isso é que gostamos tanto deles. Nossos sonhos e nossas fantasias são viciantes, da mesma forma como as substâncias causadoras de vícios. ALUNO:
Não existe uma separação da realidade se sentimos
dor? JOKO: Não,
se a sentirmos totalmente.
ALUNO:
Se eu realmente me tomo a dor, essa dor simplesmente desaparece. Porém, assim que tenho um pensamento a respeito, sofro. Quando observo a dor e tenho o pensamento que diz que é dolorida, o sofrimento permanece, mas se eu simplesmente a observo como uma sensação intensa, o sofrimento some. JOKO:
Quando conseguimos ver a dor como apenas uma sensação estável com muitas variações mínimas, torna-se interessante e até mesmo bela. Todavia, se nos aproximamos dela
com a idéia de que iremos fazê-la sumir, isso é só um outro jeito de ir atrás de um estado búdico. ALUNO:
Quando começo a prática, torno-me consciente em geral de estar muito tenso, com uma dor de aperto por todo o corpo. Sinto-a como algo que está simplesmente ali do outro lado de minha percepção consciente. Durante anos as pessoas viviam me dizendo: "Você está tão tenso!" e eu respondia "Não estou tenso". Hoje percebo que eu simplesmente não percebia essa tensão, mas estava lá. Eu usava meus pensamentos para bloquear a percepção consciente dela. A tensão e a dor estavam lã, apenas despercebidas. JOKO:
A tensão e a dor são reais? Algo está lá, mas o que é? Uma noite dessas eu estava andando ao longo da costa, enquanto o luar brilhava sobre a água do mar. Eu conseguia ver um lampejo brilhante de luz sobre o oceano, ou era o luar que realmente estava ali? O oceano realmente tem algo sobre sua superfície? Qual é essa cor? E real ou não? Nenhuma das indagações é correta. De minha perspectiva, o luar estava sobre a água. Mas, se eu tivesse me aproximado mais da tona d'água, não teria visto luar nenhum sobre sua superfície. Eu teria visto qualquer coisa que ali houvesse para se ver. Não existe isso de luar sobre a água, literalmente falando. Quanto às nuvens do céu: quando estamos numa nuvem, chamamo-la de névoa. Da mesma forma, emprestamos um tipo de falsa realidade a nossos pensamentos. É verdade que sempre vivemos dentro de uma determinada perspectiva. A prática diz respeito a aprender a viver nessa realidade relativa, desfrutando-a, mas enxergando-a como de fato é. Como o luar sobre a água, está lá — segundo uma certa perspectiva relativa — e não é real, não é o absoluto. Até mesmo a água em si tem apenas uma realidade parcial. Quando não há luz sobre a água, vemos que ela é preta. Um dia eu estava jantando num restaurante que ficava na orla marítima e a vi mudar de cor, de azul para azul-escuro, para púrpura ainda mais escuro e finalmente não consegui mais vê-la. O que é real? Em termos absolutos, nada disso é real. Em termos de nossa prática, no entanto, devemos começar com nossas experiências, com este trabalho meticuloso sobre a percepção consciente. Precisamos retornar à realidade de nossas vidas. Temos dores e padecimentos, temos adversidades, gostamos das pessoas ou não: esse é o conjunto de coisas que compõe a nossa vida. É aí que começa nosso trabalho com a percepção consciente.
RECOBRANDO O JUÍZO Todos nós desejamos a inteireza, a totalidade. Queremos ser pessoas completas; queremos uma sensação de completamento; queremos ficar em paz em nossas vidas. Tentamos solucionar esse problema, pensar num jeito de chegar na totalidade. Vamos supor que estamos numa caminhada por uma montanha e que nos sentamos à margem de um riacho. O que significa ser "inteiro" nesse momento? ALUNO:
Ser inteiro significaria sentir o ar em minha pele e ouvir os sons. JOKO:
Sim...
ALUNO: Pensar
em mim.
JOKO:
Quando pensamos em nós, separamo-nos experiência que estamos vivendo e não somos mais inteiros.
da
ALUNO:
Sentir-me sentado no chão, em contato com as folhas e o solo. Observar-me pensando a meu respeito. JOKO: Sim,
essa é a percepção consciente.
ALUNO:
Ver o riacho, sentir os odores naturais da terra, sentir o sol nas minhas costas. JOKO: Sim,
isso também é parte da experiência.
ALUNO:
Sentir o que não está presente. Por exemplo, quando estou num lugar tranqüilo posso sentir a ausência de dor. Essa é uma sensação boa: não existe dor. JOKO:
Esse é um tipo de pensamento que nos afasta da percepção consciente ou totalidade. Não há nada de errado com ele, mas ainda é algo extra. É como se, no meio de um pôr-do-sol magnífico a que estejamos assistindo, disséssemos: "Mas que pôr-dosol maravilhoso!". Teríamos nos distanciado um pouco. Enquanto estivermos sentados à margem do riacho, provavelmente não teremos sensações de sabor. Mas vamos supor que estamos num jantar de Ação de Graças: é surpreendente como poucas pessoas realmente sentem o sabor do que estão comendo.
ALUNO: Quando
estou sentado perto de um riacho às vezes me dá a impressão de conseguir quase sentir esse riacho em meu corpo. JOKO: Talvez
você esteja falando acerca não de uma sensação, mas de um pensamento muito sutil, daquele tipo que leva as pessoas a escreverem livros a respeito do que é estar na natureza. Se estamos apenas sentados à margem do riacho, sentindo tudo o que há para ser sentido, não há nada aí de sensacional: estamos apenas sentados ali. Vamos supor, no entanto, que começamos a pensar a respeito de nossos problemas na vida. Tornamo-nos absorvidos em nossos pensamentos, debruçando-nos sobre como nos sentimos a respeito desses problemas e do que podemos fazer a respeito deles — e de repente esquecemo-nos de tudo o que estávamos sentindo há um minuto apenas. Não vemos mais a água, nem sentimos o cheiro da madeira, nem o nosso corpo. As sensações sumiram. Nesse momento, teremos sacrificado a nossa vida para podermos pensar a respeito de coisas que não estão presentes, que não são reais, aqui, agora. Na próxima vez que estiverem num jantar de Ação de Graças, ou em qualquer refeição, aliás, pergunte para você mesmo se está verdadeiramente saboreando sua comida. Para a maioria, a experiência de comer uma refeição é, na melhor das hipóteses, parcial. Sem a percepção consciente de nossas sensações, não estamos plenamente vivos. A vida é insatisfatória para a maioria das pessoas porque elas estão ausentes de suas vivências, quase o tempo todo. Se estamos praticando sentados há alguns anos, fazemo-lo um pouco menos. Não conheço ninguém completamente presente o tempo todo, porém. Somos como o peixe que está nadando de um lado para outro, olhando para o grande oceano da vida, mas inconsciente do que o cerca. Como o peixe, indagamo-nos sobre o sentido da vida, sem percebermos a água à nossa volta e o oceano em que estamos mergulhados. O peixe finalmente encontra um professor que compreende e lhe pergunta: "Qual é o grande oceano?". E o professor apenas ri. Por quê? ALUNO:
Porque o peixe jã estava no oceano e simplesmente não o havia percebido,
Sim. O oceano era sua vida. Separe um peixe da água e não há mais vida para ele. Da mesma forma, se nos separarmos de nossa vida, que se compõe daquilo que vemos, ouvimos, tocamos, aspiramos e assim por diante, teremos perdido o contato com o que somos. JOKO:
Nossa vida é sempre apenas esta vida. Nosso comentário pessoal sobre a vida — todas as opiniões que temos dela — é a causa de nossas dificuldades. Não conseguiríamos nos aborrecer se não estivéssemos deixando de fora a nossa vida. Se não estivéssemos deixando de fora o ouvir, o ver, o sentir sabores, odores, a sensação cinestésica de simplesmente estar sentindo nosso corpo, não conseguiríamos nos aborrecer. Por que é assim? ALUNO; Porque
estamos no presente.
Sim. Não podemos nos aborrecer, a menos que nossa mente nos tenha removido do presente e levado para pensamentos irreais. Sempre que estamos contrariados estamos literalmente * 'de fora'': deixamos algo de fora. Somos como um peixe fora d'água. Quando estamos no presente, plenamente conscientes, não conseguimos ter uma idéia do tipo: "Oh, essa vida é tão difícil. Tão sem sentido!". Se fazemos isso, deixamos alguma coisa de fora. Só isso! JOKO:
Um bom aluno reconhece quando se distanciou e retorna à vivência imediata. Às vezes apenas balançamos a cabeça e restabelecemos a base de nossa vida, os alicerces da vivência. Desses alicerces brotam pensamentos, ações e uma criatividade perfeitamente adequados. Tudo isso nasce desse espaço da vivência, em que os sentidos simplesmente se encontram abertos. Quando estava com dezesseis, dezessete anos eu gostava de tocar os corais de Bach no piano. Um que me agradava em especial era chamado "Em Teus Braços Eu Me Descanso". A tradução prossegue assim: "Os inimigos que me atacariam não conseguem encontrar-me aqui". Embora seja da tradição cristã, em geral dualista, esse coral trata do estar presente e desperto. Existe um lugar de repouso em nossas vidas, um lugar onde devemos estar para podermos funcionar bem. Esse lugar de descanso — os braços de Deus, se quiserem chamá-lo assim — é simplesmente aqui e agora: ver, ouvir, tocar, sentir odores e sabores, sentir a vida como ela é. Podemos até acrescentar * 'pensar" a essa lista, se entendemos o pensar como apenas o funcionamento natural e não
como as reflexões do ego que se baseiam em medo e apego. Apenas pensar, no sentido funcional, inclui o pensamento abstrato, o pensamento criativo, ou planejar o que temos para fazer hoje. Com excessiva freqüência, porém, acrescentamos pensamentos não funcionais, baseados no ego, que nos levam às dificuldades e nos retiram dos braços de Deus. Uma vida que funciona descansa sobre esses seis alicerces: os cinco sentidos mais o pensamento funcional. Quando nossas vidas estiverem apoiadas nesses seis pontos de sustentação, nenhum problema ou contrariedade pode nos alcançar. Uma coisa é ouvir uma palestra dharma sobre essas verdades, contudo, e outra viver segundo esses ensinamentos. No instante em que algo nos contraria, subimos imediatamente para nossa cabeça e tentamos resolvê-lo. Tentamos recuperar nossa segurança pensando. Perguntamos como podemos nos modificar ou mudar alguma coisa fora de nós — e estamos perdidos. Para restabelecermos nossa vida em fundamentos firmes, temos de retornar àquelas seis pernas da realidade várias vezes seguidas. Essa é toda a prática de que precisamos. Se me ocorre o mais sutil pensamento de irritabilidade a respeito de alguém, a primeira coisa que faço não é começar a pensar num jeito de consertar essa situação, mas apenas perguntar para mim mesma: "Estou mesmo conseguindo escutar os carros no beco?". Quando recuperamos completamente um dos sentidos, como o da audição, então os restabelecemos todos, pois todos funcionam no momento presente. Assim que recuperamos a percepção consciente, vemos o que fazer a respeito da situação. A ação que decorre da vivência desperta quase sempre é satisfatória. Dá certo. Vocês podem dizer: "Isso pode ser verdade com os problemas simples, mas duvido que dê certo com os grandes e complicados problemas que tenho de enfrentar". Esse processo na realidade funciona, porém, quão "sério" seja o problema. Pode ser que não encontremos a solução pela qual estamos procurando, e a resolução pode também não ser imediata, mas enxergaremos qual o próximo passo a ser dado, Com o tempo, aprendemos a confiar no processo, a ter fé que as coisas irão funcionar da melhor forma possível diante de suas circunstâncias. A pessoa com quem contávamos não apareceu, furou o emprego que queríamos, doenças físicas nos importunam: em vez de ficarmos girando em círculos em nossos pensamentos, preocupando-nos com os
problemas, quando restabelecemos os alicerces de nossa vida na experiência imediata, vemos como agir de maneira apropriada. Não estou sugerindo que devamos agir às cegas, por meros impulsos. Precisamos nos informar, conhecer as coisas óbvias a respeito do problema; precisamos usar nossa inteligência natural, nosso pensamento funcional. Por exemplo, vamos supor que estou com dor de dente. Se começo a pensar em como odeio ir ao dentista, com suas brocas e agulhas e todo o incômodo, fico girando em círculos dentro da minha cabeça e crio um imenso, problema para mim mesma. Se regresso aos alicerces de minha vida, nas minhas experiências diretas, por outro lado, posso me dizer: "Bom, agora é só uma pontada. Vou ficar de olho e continuar com o que estou fazendo. Se essa pontada insistir, ou ficar pior, telefono para o dentista e marco uma consulta". Com essa espécie de abordagem tudo entra nos eixos. ALUNO:
O perigo de eu retornar às minhas sensações comuns é que eu posso estar bloqueando a percepção de minha ansiedade ou preocupação de uma maneira até radical, como se essas coisas não existissem. JOKO:
Ansiedade nada mais é que certos pensamentos e uma sensação concomitante de tensão ou contração no corpo. Retornar aos nossos sentidos significa observar os pensamentos em sua realidade e tomar consciência da tensão no corpo. A percepção consciente da tensão é, afinal de contas, só uma outra sensação física, ao lado de ver, sentir odores etc. Parece uma coisa louca dizer que, quando temos um problema, deveríamos escutar o tráfego. Mas, se realmente ouvimos, nossos outros sentidos também cobram vida. Sentimos a contração em nosso corpo também. Quando fazemos isso, alguma coisa muda, e fica mais clara a atitude que tomaremos como resposta. ALUNO:
Os sentidos não funcionam numa espécie de "tempo repartido"? Se estamos totalmente mergulhados na audição de um som, não estamos bloqueando os cheiros, sabores etc? Ouvir realmente o barulho dos carros pode significar que estou ignorando o resto do meu corpo. JOKO:
Essa espécie de atenção exclusiva a um só modo sensorial é o resultado de um pensamento sutil, talvez ansioso, do
tipo "Tenho de fazer isso" ou "Estou em perigo". Se estamos completamente abertos, envolvemo-nos em todos os nossos sentidos ao mesmo tempo. ALUNO:
Nem sempre volto logo para os meus sentidos. Se estou preocupado com alguma coisa, posso pensar sobre isso durante uma semana, apesar de meus esforços para prestar atenção no trânsito ou no que for. JOKO:
Sim, dependendo de há quanto tempo e com quanta firmeza estamos praticando, esse processo leva tempo. A capacidade de deslocar-se com rapidez é o sinal distintivo de uma prática que já está acontecendo há muitos anos. Algumas pessoas conseguem apegar-se à sua infelicidade durante anos. E realmente gostam disso. Há pouco tempo alguém estava me dizendo como ela aprecia sua sensação de estar sempre certa. Quem quer ficar prestando atenção no barulho dos carros se pode desfrutar essa sensação de ser quem tem sempre razão? Não queremos abandonar os nossos padrões, os pensamentos de quem somos, mesmo quando reconhecemos intelectualmente que eles nos causam problemas. Por isso apegamo-nos a eles e voltamos para onde estão, mesmo depois de nos havermos recordado que é para recuperarmos o contato com os nossos sentidos. Não estamos então ainda prontos para confiar inteiramente no processo, para ter fé em nossa vivência direta. ALUNO:
Tenho uma outra dúvida a respeito da questão do "tempo repartido". Você incluiu o pensamento funcional como uma das seis pernas da experiência real. Vamos supor que estou trabalhando num computador ou consertando um relógio; é natural bloquear a atenção das outras sensações para dar uma atenção completa ao que estou fazendo? JOKO:
Sim, pode haver um estreitamento mecânico da atenção em prol de uma atividade específica. Isso é diferente do estreitamento psicológico, que vem dos pensamentos autocentrados geradores de uma sutil rigidez. ALUNO:
Então, se uma das tarefas que tenho enquanto me sento à margem do riacho é planejar o que fazer naquele dia, tudo bem? JOKO:
Sim, supondo que planejar o dia é uma tarefa apropriada para aquele momento, em vez de algo que vem de
pensamentos ansiosos a respeito de si mesmo. Apenas fazemos o que tem de ser feito, quando é necessário fazê-lo. Assim que tivermos nos desincumbido da tarefa, voltamo-nos para o que mais estiver acontecendo. Não há problema em estreitar a atenção quando isso for necessário para realizar uma tarefa. É muito diferente de fechar nossa vida porque estamos pensando em nós, que então se torna um impedimento psicológico desnecessário. A distinção diz respeito à falsa emoção versus a emoção verdadeira. Se um comentário que nos fizeram há alguns dias ainda está nos aborrecendo, essa emoção é falsa. Uma emoção verdadeira é imediata em relação à situação: talvez alguém me agride ou vejo que uma pessoa está aflita. Por um instante fico contrariada e faço alguma coisa — e depois acaba. As emoções são uma resposta a um acontecimento real; quando esse acontecimento não está mais se desenrolando, então as emoções assentam de novo. Essa é uma resposta natural à vida. Não há nada de errado com a verdadeira emoção. A maioria das pessoas vive à base de emoções falsas, porém. Carregam lembranças do passado ou preocupações quanto ao futuro e com isso criam transtornos para si mesmas. Esse transtorno não tem relação com o que está acontecendo naquele momento. Estamos ruminando sobre o que aconteceu na semana passada e não conseguimos dormir. ALUNO:
Mesmo que a recordação esteja gerando falsas emoções, existe uma sensação no corpo que é presente. A emoção está entalada em mim; posso senti-la. JOKO:
Sim- Portanto observamos os pensamentos concomitantes e sentimos a tensão do corpo. Quando fazemos isso um número suficiente de vezes, esse bloqueio cessa. E alguma coisa muda. ALUNO:
Se meu dia está especialmente ocupado, pode acumular-se uma boa dose de ansiedade e dá a impressão de ser mais agradável ficar então devaneando. Isso é errado? JOKO:
Se é isso que você faz, faça isso. O problema é que, ao devanear, nós nos afastamos da vida. Quando estamos alienados da vida, ignoramos as coisas e nos metemos em apuros. É como estivéssemos flutuando num rio de águas revoltas. Aqui e ali existem pedras e tocos de árvore que se projetam para fora d'água. Olhar para essas coisas pode nos tornar ansiosos. Mas ignorá-las, e em vez disso contemplar as lindas nuvens no céu, irá fazer com
que mais cedo ou mais tarde nós nos afoguemos. Prestar atenção à água branca e suas pedras pode parecer assustador, mas é uma idéia muito boa, apesar de tudo, ALUNO.
Contemplar o céu me dá a ilusão de que posso controlar as coisas. Quando retorno aos meus sentidos, em geral tenho medo de perder o controle. Dá uma sensação de tranqüiíização permanecer nos antigos condicionamentos e tentar resolver tudo só na cabeça. JOKO:
Sim. Toda prática evoca medo. Por isso alternamos entre vivenciar o medo e voltar para dentro da cidadela dos pensamentos. A maior parte da vida das pessoas consiste numa rápida alternância entre o contato e o distanciamento com a experiência direta. Não espanta que a vida tanto pareça uma corda bamba. ALUNO:
Voltar para a experiência direta parece como assentar os pontos de sustentação da vida da pessoa. JOKO:
Sim. No instante em que atentamos para o que vem pelo nosso conjunto de órgãos dos sentidos, estamos bem plantados. Se ainda continuamos contrariados, isso quer dizer que não estamos sentindo plenamente os alicerces, que ainda resta algum pensar. ALUNO:
Quando eu estava aprendendo a jogar tênis, o professor dizia o tempo todo; "Você não consegue bater direito na bola se seus dois pés não estiverem bem apoiados no chão. Se uma perna estiver no ar, você não está equilibrado". JOKO:
Se não mantemos nosso apoio centrado nas pernas e nos pés, nossa tendência é não enxergar o que acontece à nossa volta e dar uma trombada numa árvore ou tropeçar numa pedra, ou qualquer coisa assim. Uma vida desperta não é uma coisa sem pé nem cabeça. É muita ligada na realidade. ALUNO:
Quando eu morava no alto de uma montanha em Maui era muito fácil deitar na terra e religar-me com minhas sensações, mas quando estou no meio de uma sala de aula barulhenta com todas as crianças berrando, não quero vivenciar isso de jeito nenhum, nem o barulho nem a tensão em meu estômago.
JOKO:
Certo. Apesar disso, a questão continua sendo: para negociar nossas vidas de maneira eficiente, precisamos estar em contato tanto quanto possível. ALUNO:
Antigamente, em vez de apenas me abrir para a experiência que me ocorria, minha tendência era exagerar o processo afundando nas sensações, indo atrás delas de qualquer maneira, como um cão atrás do próprio rabo. JOKO:
Há um pensamento por trás de tanto empenho: "Tenho de entrar no meu roteiro". ALUNO:
Agora, estou começando a aprender uma outra maneira: eu me pergunto onde está a tensão em meu corpo. Sem forçar nada, apenas acompanho as sensações. Com o tempo aparece uma suave difusão e uma sensação de afundar por dentro, e tomo mais consciência ainda de minha ligação com todas as coisas. JOKO:
Ótimo; quando isso acontece, temos um espaço muito claro para agir. Simplesmente sabemos o que fazer, sem fazer cálculos nem conjecturas. O grau de clareza que encontramos é uma função do tempo e da consistência com que tivermos praticado. E importante, porém, não criar um outro ideal em nossa cabeça ("Preciso fazer com que isso aconteça") e nos esforçar para atingi-lo. Estamos onde precisamos estar. Como dizia a letra daquele coral, existem alicerces em nossa vida, um lugar em que nossa vida se assenta. Esse lugar nada mais é que nosso momento presente, quando vemos, ouvimos, vivenciamos o que é. Se não voltarmos para esse lugar, viveremos nossas vidas em função do que estiver em nossa cabeça. Culpamos os outros, queixamo-nos, sentimos pena de nós. Todos esses sintomas mostram que estamos atolados em nossos pensamentos. Estamos fora de contato com o espaço aberto que está exatamente aqui. Só depois de anos e anos de prática é que somos capazes de viver no espaço aberto e desperto, a maior parte do tempo. ALUNO:
Minha tendência é ir em busca de lugares calmos, silenciosos, onde seja mais fácil abrir-me para o presente e evitar lugares como salas de aula barulhentas, onde fico tenso e distraído. JOKO:
Sim, esse é um impulso natural e não há nada de errado nisso. Mesmo assim, é uma espécie de evitação. Conforme nossa prática vai ficando mais forte, tornamo-nos capazes de
manter a abertura e a consistência naquelas situações em que anteriormente as teríamos perdido. A coisa importante é aprender a nos abrir para o que for que a vida nos traga, onde quer que estejamos. Se estivermos alertas o suficiente, observaremos nosso impulso de evitar e poderemos regressar à percepção consciente do presente, sem hesitação. Essas incessantes pendulações da atenção são a prática em si. Quando estamos tentando evitar ou escapar de alguma coisa, voltamos aos pensamentos em vez de às experiências diretas. ALUNO: As
vezes, quando tento concentrar-me em minha experiência — digamos um sentimento de raiva, ou a tensão no queixo —, parece que isso se expande e enche a sala toda. Todas as minhas outras sensações desaparecem. JOKO:
Há algum pensamento velado por trás dessas experiências e não simplesmente uma sensação aberta. Se vivenciamos por completo um órgão do sentido, vivenciamos todos os outros também. Se denominamos a nossa raiva e concentramonos nela excluindo tudo o mais, não teremos ainda encontrado a nossa vida. ALUNO:
E que tal simplesmente observar as próprias
sensações? JOKO:
Há valor nisso. Mas é transitório; ainda resta um elemento de pensamento, de dualidade sujeito-objeto. Se de fato escutamos o barulho dos carros, estamos absorvidos nele. Não há eu, não há tráfego. Não há observador e não há objeto da sensação. Retornamos ao que somos, que é simplesmente a vida em si.
ATENÇÃO SIGNIFICA ATENÇÃO Segundo uma antiga história zen * um aluno teria dito ao mestre Ichu: "Por favor, escreva-me algo com grande sabedoria". O mestre Ichu tomou de seu pincel e escreveu uma só palavra: "Atenção". O aluno indagou: "É tudo?". O mestre escreveu então: "Atenção. Atenção". O aluno ficou irritado. "Não me parece que seja Philip Kapleau, ed., The three piliars of zen: Teaching, practice, enlightenment, Boston: Beacon, 1967, p. 10-11. *
profundo nem sutil." Em resposta, o mestre escreveu simplesmente: "Atenção. Atenção. Atenção". Frustrado, o aluno exigiu: "O que significa essa palavra atenção!". E o mestre Ichu disse: "Atenção significa atenção". Em lugar de atenção poderíamos usar percepção consciente. Atenção ou percepção consciente é o segredo da vida, o cerne da prática. Como o aluno nessa história, consideramos esse ensinamento uma decepção; é árido e desinteressante. Queremos algo excitante em nossa prática! A simples atenção entedia! Perguntamos: a prática é só isso? Quando os alunos aparecem para falar comigo, ouço queixas e mais queixas: o horário do retiro, o alimento, o serviço, eu mesma, e assim por diante. Mas as questões que as pessoas estão me trazendo não são mais relevantes ou importantes do que um evento "trivial" como esfolar um dedo. Como colocamos as nossas almofadas? Como escovamos os nossos dentes? Como varremos o chão ou fatiamos uma cenoura? Pensamos que estamos aqui para dar conta de questões "mais importantes", como os problemas que temos com nossos cônjuges, nossos trabalhos profissionais, nossa saúde etc. Não queremos nos incomodar com as "pequenas" coisas, por exemplo como seguramos nossos talheres ou onde pomos a colher. Mesmo assim, são esses atos que constituem o estofo de nossa vida, de um momento a outro. Não é uma questão de importância; é uma questão de prestar atenção, de estar conscientemente perceptivo. Por quê? porque cada momento na vida é absoluto em si. E isso é tudo o que existe. Não existe mais nada além deste momento presente; não existe passado, não existe futuro, não existe nada além disto. Por isso, quando não prestamos atenção a cada pequeno isto, perdemos tudo. E o conteúdo do isto pode ser qualquer coisa. Isto pode ser endireitar nossos colchonetes de praticar, fatiar uma cebola, visitar alguém que não desejamos visitar. Não importa o conteúdo do que seja o momento; cada momento é absoluto. É só isso que existe e que jamais existirá. Se conseguíssemos prestar totalmente atenção, nunca ficaríamos contrariados. Se estamos contrariados, é axiomático que não estamos prestando atenção. Se perdemos não apenas um só momento, mas um momento depois do outro, estamos em apuros. Vamos supor que fui condenada a ser decapitada na guilhotina. Agora estou caminhando e subindo os degraus que levam ao
cadafalso. Consigo manter minha atenção no momento? Consigo estar consciente de cada passo, passo a passo? Consigo colocar minha cabeça na guilhotina cuidadosamente para assim servir bem ao algoz? Se eu conseguir viver e morrer dessa maneira, não surgem quaisquer problemas. Nossos problemas aparecem quando subordinamos este momento a alguma outra coisa, a nossos pensamentos autocentrados: não é só este momento, mas o que eu quero. Revestimos o momento com nossas prioridades pessoais, o dia inteiro. E é assim que começamos a ter dificuldades. Uma outra história antiga diz respeito a um grupo de ladrões que invade o estúdio de um mestre zen e lhe diz que iam decepá-lo. Ele comentou: "Por favor, aguardem até amanhã de manhã. Preciso concluir um certo trabalho". Assim, passou a noite completando o trabalho, bebendo chá e desfrutando. Escreveu um poema simples no qual comparava sua cabeça decepada a uma brisa primaveril e o entregou aos ladrões como um presente quando eles voltaram. O mestre entendia bem o que era praticar. Temos dificuldade em compreender essa história porque temos todos um imenso apego à nossa cabeça, que queremos que permaneça sobre nossos ombros. Não é nosso desejo particular que nossas cabeças sejam decepadas. Estamos determinados a que a vida prossiga do jeito como nós queremos que prossiga. Quando isso não acontece, ficamos com raiva, confusos, deprimidos, ou de alguma forma contrariados. Não é ruim em si ter esses sentimentos, mas quem quer uma vida comandada por eles? Quando a atenção ao momento presente é desviada para alguma versão de "Eu tenho de conseguir as coisas ao meu modo", cria-se uma distância entre nossa percepção consciente e a realidade tal como é, neste momento preciso. Nessa distância ou fosso despejamos todos os males de nossa vida. Criamos uma distância atrás da outra, em seqüência, o dia inteiro. A finalidade da prática é anular essas distâncias, é reduzir o tempo que passamos ausentes, prisioneiros de nosso sonho autocentrado. No entanto, cometemos um erro se pensamos que a solução está em que eu presto atenção. Não é "EU varro o chão", "EU fatio a cebola", "EU dirijo o carro". Embora essa prática seja necessária nos estágios preliminares, ela continua alimentando os pensamentos autocentrados ao denominar a pessoa como um "EU"
para o qual a experiência está presente. Um jeito melhor de entender é a simples percepção consciente: apenas vivenciar, vivenciar, vivenciar. Na simples percepção consciente, não há distância, não há espaço para pensamentos autocentrados aparecerem. Em alguns centros zen, os alunos são solicitados a se envolver em ações em câmera exageradamente lenta, por exemplo abaixando objetos e erguendo-os muito devagar. Essa atenção autoconsciente é diferente da simples percepção consciente, do apenas fazer o abaixa-levanta. A receita para se viver é simplesmente fazer o que estamos fazendo. Não estando autoconsciente do que faz; só fazendo. Quando ocorrem os pensamentos autocentrados, então erramos de bonde e aparece a distância. Essa distância ou fosso é o local de nascimento dos problemas e transtornos que nos atormentam. Muitas formas de prática, comumente chamadas de meditação concentrativa, buscam estreitar a percepção consciente de alguma maneira. Os exemplos incluem recitar mantras, concentrar-se numa imagem visual, trabalhar com o Mu (de maneira concentrada) e até mesmo acompanhar a respiração se isso for feito de modo a deixar de fora os demais órgãos dos sentidos. No processo de afunilamento da atenção, essas práticas rapidamente criam certos estados agradáveis. Podemos sentir que nos esquivamos de nossos problemas porque nos sentimos mais calmos. Quando nos instalamos nesse foco tão estreito, podemos depois de um certo tempo até entrar em transe, com aspectos de torpor e sossego, num estado em que tudo nos escapa. Apesar de esses momentos serem úteis, toda prática que afunila nossa percepção consciente é limitada. Se não levarmos em conta tudo em nosso mundo, tanto de natureza física como mental, perderemos alguma coisa. Uma prática estreita não se transfere bem para o resto de nossa vida; quando a levamos para o mundo, não sabemos como agir e podemos ainda nos sentir bastante constrangidos. Uma prática de concentração, se fôssemos muito persistentes (como eu costumava ser), pode momentaneamente nos forçar a atravessar nossa resistência, e então ter um vislumbre do absoluto. Essa abertura forçada não é realmente autêntica; algo fica de fora. Embora tenhamos um vislumbre do outro lado do mundo fenomênico, captando o nada ou o puro vazio, ainda existe um eu
realizando isso. A experiência continua sendo dualista e limitada em sua aplicabilidade. Por outro lado, a nossa percepção consciente como prática é tal que recebe tudo o que acontece. O "absoluto" é simplesmente tudo em nosso mundo, esvaziado do conteúdo emocional pessoal. Começamos por esvaziar-nos nós mesmos desses pensamentos autocentrados, ao aprendermos a estar cada vez mais conscientemente perceptivos em todos os nossos momentos. Embora uma prática de concentração possa focalizar a respiração e bloquear o som dos carros ou o falatório de nossa mente (o que nos deixa perdidos quando permitimos que qualquer espécie de experiência penetre na consciência), a prática da percepção consciente está aberta a qualquer experiência presente — em todo este incômodo universo — e ajuda-nos a irmos aos poucos nos desemaranhando de nossas reações e apegos emocionais. Toda vez que temos uma queixa a respeito de nossas vidas, estamos naquele tipo de distância de que falei. Na prática da percepção consciente, observamos nossos pensamentos e a contração de nosso corpo recebendo tudo isso e voltando para o momento presente. Esse é o tipo mais árduo de prática. Preferiríamos com certeza fugir dessa cena ou então permanecer mergulhados em nossos pequenos transtornos. Afinal de contas, todas as nossas adversidades nos mantêm como o centro das coisas ou pelo menos assim acreditamos. A atração de nossos pensamentos autocentrados é como pisar na lama: nosso pé consegue a custo se despregar e já está preso de novo. Podemos nos libertar lentamente, mas, se pensarmos que é fácil, estaremos nos enganando. Toda vez que estivermos aborrecidos, estaremos nessa distância; nossas emoções autocentradas, o que nós queremos de nossa vida, predominam. No entanto, nossas emoções do momento não são mais importantes do que encostar a cadeira de volta no lugar ou recolocar a almofada no lugar certo. A maioria das emoções não decorre do momento imediato, como quando presenciamos a cena de uma criança sendo atropelada por um carro, mas são geradas por nossas exigências autocentradas de que a vida seja como nós queremos que ela seja. Embora não faça mal ter essas emoções, aprendemos pela prática que elas não têm importância em si. Endireitar o lápis sobre a carteira é tão importante quanto se sentir abandonado ou solitário,
por exemplo. Se conseguimos vivenciar o sentir-se solitário e enxergar nossos pensamentos a respeito de estarmos solitários, então conseguimos sair do fosso dessa distância. A prática é esse movimento, vezes e vezes seguidas. Se nos lembramos de algo que aconteceu há seis meses e com essa recordação surgem sentimentos de aborrecimento, nossos sentimentos devem ser vistos com interesse, e nada mais. Embora possa parecer uma coisa fria, é necessária essa atitude para que nos tornemos pessoas genuinamente afetivas e compassivas. Se nos percebemos pensando que nossos sentimentos são mais importantes do que aquilo que está acontecendo num dado momento, precisamos observar a presença desse pensamento. Varrer a calçada é realidade; nossos sentimentos são uma coisa que nós criamos, como uma teia que fiamos e na qual nos enredamos. É um processo surpreendente esse em que nos metemos — em certo sentido, somos todos malucos. Quando vejo meus pensamentos e observo as sensações do meu corpo, reconheço a minha resistência para praticar com essas vivências e depois volto para terminar de escrever a carta que estava fazendo, então estou me arrancando do fosso da distância e entrando na percepção consciente. Se formos de fato persistentes, dia após dia, iremos gradualmente descobrir nosso caminho para sair dessa insensata confusão que é a nossa vida pessoal. A chave é atenção, atenção, atenção. Preencher um cheque é tão importante quanto o angustiante pensamento de que não veremos um ente querido. Quando não trabalhamos com o fosso criado pela desatenção, todos os outros pagam um preço. A prática é necessária para mim também. Vamos supor que eu anseio pela visita de minha filha na época do Natal, e ela me telefona para dizer que não vem. A prática ajuda-me a continuar a amá-la em vez de me sentir contrariada porque ela não fará o que eu queria que fizesse. Com a prática, posso amá-la com mais plenitude. Sem a prática, eu me sentiria uma velhinha solitária e desamparada. Em certo sentido, amor é simplesmente atenção, simplesmente percepção consciente. Quando me mantenho conscientemente perceptiva, posso lecionar bem, o que é uma forma de amar; posso colocar menos expectativas nos outros e servi-los melhor; quando vir minha filha outra vez, não trarei antigos ressentimentos para esse encontro e serei capaz de vê-la com olhos
novos. Assim, a prioridade é aqui e agora. Aliás, existe uma só prioridade e é a atenção ao momento presente, seja qual for seu conteúdo. Atenção significa atenção.
FALSAS GENERALIZAÇÕES Nasrudin, sábio e tolo sufi, estava um dia em seu jardim espalhando farelo de pão por todo lado. Quando um vizinho lhe perguntou por que o fazia, ele disse: "Para manter os tigres a distância". O vizinho então comentou: "Mas não existem tigres num raio de 2.000 km ao redor daqui!". E Nasrudin concluiu: "Eficaz, não é?". Rimos porque temos certeza de que as duas coisas — tigres e farelo de pão — não têm nada que ver uma com a outra. No entanto, como acontece com Nasrudin, nossa prática e nossas vidas costumam basear-se em falsas generalizações que nada têm que ver com a realidade. Se nossa vida está alicerçada em conceitos generalizados, podemos agir como Nasrudin, espalhando farelo de pão para manter os tigres afastados. Dizemos, por exemplo, "Eu amo as pessoas", ou "Eu amo meu marido". A verdade é que ninguém ama ninguém o tempo todo e ninguém ama o marido ou a esposa o tempo todo. Essas generalidades obscurecem a realidade específica e concreta da nossa vida, daquilo que está acontecendo conosco neste dado momento. Claro que posso amar o marido quase o tempo todo. Ainda assim, a generalização em si deixa de fora a realidade mutável e cambiante de uma relação real. Da mesma maneira, dizer "Eu amo o meu trabalho", ou "A vida é dura comigo". Quando começamos a praticar, em geral acreditamos em opiniões generalizadas e as expressamos. Podemos pensar, por exemplo, "Sou uma pessoa atenciosa", ou "Sou uma pessoa terrível". Porém, na realidade, a vida nunca é uma generalidade. A vida sempre é específica: é o que está acontecendo neste exato momento. A prática sentada ajudanos a enxergar em meio ao nevoeiro das generalizações acerca de nossas vidas. Conforme vamos praticando, nossa tendência é abandonar nossos conceitos generalizados em favor de observações mais específicas. Por exemplo, em lugar de "Não consigo tolerar meu marido", observamos "Não consigo suportar o meu marido
quando ele não se cuida", ou "Não consigo me suportar quando faço isso ou aquilo". Em vez de conceitos generalizados, vemos com mais clareza o que está se passando. Não ficamos mais revestindo os acontecimentos com grandes pinceladas de verniz. Nossa experiência de uma outra pessoa ou situação não é apenas uma coisa só. Pode incluir milhares de pensamentos e reações menores. Um pai pode dizer "Amo a minha filha", e, no entanto, essa generalização ignora momentos tais como ' 'Por que ela é tão imatura?", ou "Ela está sendo ignorante". Quando nos sentamos para praticar, observando e rotulando nossos pensamentos, tornamo-nos mais familiarizados com o incessante transbordamento de nossas opiniões ã respeito de tudo e de nada. Em vez de apenas nivelar por baixo o mundo todo em generalizações vazias, tornamo-nos cônscios de nossos conceitos e julgamentos mais específicos. Ao nos familiarizarmos mais com o nosso pensamento, descobrimos que estamos mudando, de um momento para o outro, assim como nossas idéias mudam. Escutemos o que diz uma certa moça. Ela está saindo com um rapaz há algum tempo. Ela pensa que as coisas estão indo bem. Se lhe perguntassem, ela diria que realmente se importa muito com ele. Neste momento ele lhe telefona. Vamos ouvir não só o que ela diz para ele, mas também o que ela está pensando para si: — Que bom que você está ligando para mim. Você parece ótimo ("Mas devia ter telefonado mais cedo"). — Ah, então você foi almoçar com fulana, É sim, ela é encantadora. Tenho certeza de que você gostou muito da companhia dela ("Eu te mato!"). — Você está achando que estou meio sem assunto? Que não sou muito de falar? Bom, obrigada por sua opinião ("Você mal me conhece! Como ousa fazer essa espécie de generalização a meu respeito!"). — Você foi bem no exame? Fico feliz por isso. Que bom para você! ("Mas está sempre pensando nele! Será que teria algum interesse pela minha vida?") — Você gostaria de sair amanhã à noite para jantar? Eu adoraria ir. Seria ótimo vê-lo de novo! ("Finalmente me convidou! Só queria que não tivesse deixado para o último instante!")
Essa é uma conversa perfeitamente corriqueira entre duas pessoas, aquela espécie de farsa que passa por comunicação. Essas pessoas provavelmente gostam uma da outra. Mesmo assim, ela estava formulando um conceito após o outro sobre ele e sobre si mesma. A conversa foi um verdadeiro mar de material conceituai; foi como dois grandes navios que se cruzam em alto-mar à noite — total ausência de contato. Dentro da prática zen costumamos debater conceitos ilusórios o tempo todo: "Tudo é perfeito sendo como é"; "Todos estão fazendo o melhor que podem"; "Todas as coisas são uma só"; "Sou una com ele". Chamamos tudo isso de a falação inútil do zen, embora as outras religiões também tenham as suas próprias versões. Não é que as declarações sejam falsas. O mundo é uno. Eu sou você. Tudo é perfeito sendo como é. Todo ser humano na face do planeta está fazendo o melhor que pode neste momento. É sem dúvida verdade. Mas, se pararmos nisso, teremos feito da nossa prática um exercício sobre conceitos e teremos perdido a percepção consciente do que está acontecendo conosco neste exato segundo. A boa prática sempre implica analisar nossos conceitos. Conceitos são às vezes elementos úteis na vida diária; temos de usá-los. Todavia precisamos reconhecer que um conceito é só um conceito e não a realidade, e esse reconhecimento ou conhecimento lentamente se desenvolve conforme vamos praticando. Aos poucos paramos de "comprar" nossos conceitos. Não formulamos mais julgamentos gerais do tipo: "Ele é uma pessoa terrível", ou "Eu sou uma pessoa terrível". Observamos nossos pensamentos: "Preferia que ele não a tivesse levado para almoçar". Então temos de vivenciar a dor que acompanha esse pensamento. Quando conseguimos ficar com a dor como uma pura sensação física, em algum momento ela se dissolverá e então iremos nos adiantar até a verdade, que é tudo ser perfeito do jeito que é. Todos estão fazendo o melhor que podem. Mas temos de partir da vivência, que freqüentemente é dolorosa, e entrar na verdade em vez de revestir nossas vivências com uma camada de pensamentos. As pessoas de natureza intelectual são particularmente propensas a cometer este erro: elas pensam que o mundo racional dos conceitos é o mundo real. O mundo racional dos conceitos não é o mundo real, é apenas uma descrição dele, um dedo apontando para a lua.
Vamos ilustrar com a experiência de alguém ter sido agredido. Quando somos criticados ou tratados de maneira injusta, é importante observar os pensamentos que temos e nos deslocar até o nível celular de nossa mágoa, para que nossa percepção consciente se torne as sensações nuas e cruas, e nada mais: nosso queixo que treme, a contração no peito, ou o que for que possamos estar sentindo nas células de nosso corpo. Esse vivenciar puro é zazen. Quando permanecemos nele, nosso desejo de pensar vem várias vezes à tona: julgamentos, opiniões, recriminações, respostas atravessadas. Então rotulamos os nossos pensamentos e mais uma vez voltamos ao nível celular de vivências, que é praticamente indescritível, talvez apenas um lampejo de energia, talvez alguma coisa mais forte. Nesse espaço não há "eu" ou "você". Quando somos essa vivência não-dual podemos enxergar a nossa situação com mais clareza. Podemos ver que "ela está fazendo o melhor que pode". Conseguimos ver que nós estamos fazendo o melhor que podemos. Se dizemos essas sentenças sem o componente corporal da vivência, no entanto, não saberemos qual é a verdadeira prática. Uma perspectiva calma, fria, racional, deve fundamentar-se naquele puro nível celular. Temos necessidade de conhecer nossos pensamentos, mas isso não significa que devemos pensar que eles são reais, nem que devemos agir com base neles. Após observar nossos pensamentos autocentrados, momento após momento, as emoções tendem a se equalizar. Essa serenidade nunca poderá ser encontrada se revestirmos o que está realmente acontecendo com uma camada de conceitos filosóficos como se fosse uma demão de verniz. Só quando nos embrenhamos pelo nível vivencial é que a vida tem sentido. É isso que os judeus e os cristãos estão dizendo quando falam em estar com Deus. Vivenciar é algo fora do tempo: não é o passado, não é o futuro, não é nem o presente no seu sentido usual. Não podemos dizer o que é; podemos apenas sê-lo. Em termos budistas tradicionais, essa espécie de vida é ser a própria natureza búdica. A compaixão brota dessas raízes. Todos temos nossos conceitos favoritos. "Sou sensível. Magôo-me com facilidade." "Sou do tipo de pessoa que força as coisas." "Sou um intelectual." Nossos conceitos podem ser úteis no nível cotidiano, mas precisamos enxergar sua natureza genuína. Conceitos que não foram vivenciados são uma fonte de confusão,
de ansiedade, de depressão; a tendência deles é produzirem comportamentos que não são bons para nós nem para os outros. Para realizar o trabalho da prática, precisamos de uma paciência inesgotável, que também significa reconhecer quando não temos paciência. Sendo assim, precisamos ser pacientes com a nossa falta de paciência; reconhecer quando não queremos praticar faz também parte da prática. Nossos momentos de evitação e resistência fazem parte do quadro conceitual que ainda não estamos preparados para examinar. Tudo bem não estarmos preparados. Enquanto vamos nos preparando, pouco a pouco, abre-se um espaço e estaremos aptos a vivenciar um pouco mais e depois um pouco mais. Resistência e prática andam de mãos dadas. Todos resistimos à nossa prática, porque todos resistimos às nossas vidas. E se acreditamos em conceitos em vez de na experiência daquele momento, somos como Nasrudin: estamos espalhando farelo de pão sobre as jardineiras para manter os tigres afastados. ALUNO:
Às vezes, os conceitos são necessários. Qual a diferença entre um conceito que me serve e um que me confunde? Por exemplo, "olhe para os dois lados da rua antes de atravessar" é uma generalização útil. JOKO:
Esse é um bom exemplo, um uso sensato da mente humana. No entanto, uma grande parte do que se passa em nossas cabeças não tem relação com a realidade. ALUNO: Se
a generalização ou o conceito surge de uma emoção autocentrada então pode não ser proveitosa. JOKO:
Na conversa pelo telefone daquela moça, os julgamentos vinham de emoções e opiniões ocultas; eram centradas em seu ego. Seus julgamentos a respeito do rapaz eram expressões de sua própria necessidade e nada tinham que ver com ele. Falsas generalizações — conceitos prejudiciais — sempre têm uma tonalidade emocional pessoal. Por outro lado, observações sobre como conseguir efetuar com eficácia um certo trabalho, ou sobre como resolver um problema de matemática podem não ter quase nenhum contexto emocional. São pensamentos úteis, esses. ALUNO: Para
mim está tão encoberto o nível vivencial, celular...
JOKO: Lembre-se
de que o nível vivencial não é uma coisa exótica e estranha. Pode ser um forrnigamento na pele ou uma
contração no meio do peito, um rosto crispado — o nível vivencial é bastante básico e nunca está muito distante. É aquilo que somos exatamente agora. O nível vivencial não é aJgo especial e quanto mais nos sentarmos para praticar, mais básico nós o reconheceremos. Nos primeiros anos de prática, contudo, há mais por vivenciar porque vivemos num tumulto de emoções que gera muitas e muitas sensações. Nunca evitamos por completo o nível celular. Mesmo que acompanhemos a nossa respiração por apenas um fragmento de segundo, entre pensamentos, estamos todos no nível celular em algum nível. Quanto mais rotulamos nossos pensamentos e continuamos voltando para aquilo que estiver acontecendo em nossas vivências, melhor. Passar a viver uma vida mais vivencial é algo que pode às vezes demorar um pouco e às vezes ser muito rápido, dependendo da intensidade da prática. Quando nos damos conta de que precisamos praticar 24 horas por dia é impossível evitarmos o nível vivencial. ALUNO:
Um conceito que num certo momento é para mim muito carregado de emoção, num outro momento pode não me abalar em absoluto. Por exemplo, posso ficar me preocupando a respeito de encontrar emprego. Antes da entrevista, estarei realmente preocupado com isso e vou generalizar a respeito da situação da minha carreira profissional. Depois que a entrevista estiver concluída, quando penso de novo aquela mesma coisa, não consigo imaginar como aquilo pôde ter me aborrecido. JOKO:
Todos os pensamentos ocorrem em contextos específicos. Esta é a questão: enxergar o contexto específico e não só o pensamento geral. Nossa reação a uma pessoa ou a um pensamento será diferente hoje da que teremos na semana que vem, dependendo de cada uma das situações. Se você tivesse um milhão de dólares no banco, provavelmente não se importaria de conseguir aquele emprego ou não. Apenas entraria calmamente na situação e desfrutaria a entrevista. Toda realidade é específica, imediata. Podemos encontrar as mesmas pessoas e ter um pensamento a respeito delas hoje, e já na semana que vem (dependendo das móveis situações pessoais) elas nos parecerão diferentes. ALUNO:
Se eu estou sempre prestando atenção às sensações do meu corpo, como posso prestar atenção nas coisas que estão à
minha volta, ou na tarefa que preciso executar? Por exemplo, como posso jogar cartas ou dirigir e ainda assim prestar atenção nas sensações de meu corpo? JOKO:
Podemos focalizar numa determinada atividade enquanto continuamos receptivos a um âmbito mais amplo de sensações. Por exemplo, enquanto estou falando agora com vocês, também estou muito ciente de tudo o que está se passando comigo. Isso não quer dizer que não estou prestando total atenção em vocês. "Prestar atenção em vocês" faz parte da informação sensorial total que recebo agora como a minha vida neste preciso momento. Se tenho uma plena percepção consciente de minha vida, esta tem de incluir tudo. Quando um aluno e eu estamos conversando em daisan, minha atenção está totalmente voltada para ele, mas eu estou sempre consciente de minha vida. Minhas ações decorrem desse contexto total e não somente de minha cabeça. ALUNO:
A concentração naquilo que estou fazendo neste exato momento não é exclusiva. Quando estou analisando dados no computador, lá no trabalho, minha mente está repleta dessa análise de dados, mas consigo ter uma plena percepção consciente do meu corpo. Não é que eu fique só no meu corpo. Não tenho tempo para fazer isso. Minhas sensações corporais não são o foco principal do que estou fazendo. Mas é importante a cada momento estar percebendo conscientemente as sensações físicas e também as minhas reações a tudo o que está acontecendo. Assim, posso estar no meio de uma análise estatística e, no entanto, ao mesmo tempo, estar cônscio de outras coisas. Às vezes, é claro, me envolvo de tal maneira numa determinada atividade que me esqueço de tudo o mais. Porém, quase o tempo todo, minha percepção consciente não está focalizada e não é exclusiva. JOKO:
A essência da prática zen é ser totalmente o que você está fazendo. Mas nós não somos muito assim. Quando não somos, então nosso foco precisa regressar para o nosso corpo. Quando conseguimos isso, toma-se mais fácil entrar por inteiro no que estamos fazendo. Podemos estar totalmente concentrados numa certa atividade ou conscientes de várias. A questão é vivenciar o que quer que esteja acontecendo. Um grande mestre de xadrez, por exemplo, tem um imenso acúmulo de aprendizado e formação intelectual; no entanto, no meio do jogo, sua percepção consciente está totalmente no momento presente, e aparece o movimento
exato a ser feito. O aprendizado técnico está lá, mas subordinado à sua intensa percepção consciente, que é o verdadeiro mestre. ALUNO:
Quando se pratica música, é importante tomar consciência de todos os níveis da nossa vivência. Quando estou praticando algo novo no piano, se ignorar meu corpo, é possível que me aconteça uma tendinite, por exemplo. Isso acontece muitas vezes com os alunos novos. E, se eu estiver apenas prestando atenção aos meus pensamentos emocionais, fico descuidado em termos das notas que estou executando. JOKO:
Até mesmo uma mínima percepção consciente de quanto tempo passamos "comprando" os nossos pensamentos autocentrados é uma prática útil. Claro que em poucos instantes nós estaremos fazendo a mesma coisa de novo.
OUVINDO O CORPO A prática não diz respeito a ajustar este eu fenomênico que nós pensamos ser para a nossa vida. De certo modo, somos eus fenomênicos, mas, em outro sentido, não o somos. Poder-se-ia dizer que somos as duas coisas — ou nenhuma. Enquanto não compreendermos esse aspecto, nossa prática será vacilante. Rotular nossos pensamentos é uma prática preliminar. No nível fenomênico, uma boa parte de nosso eu psicológico é revelada pelo rotular. Começamos a observar onde ficamos atolados em nossas preferências e aversões, em todos os nossos pensamentos habituais a respeito de nós e da vida. Esse trabalho preliminar é importante e necessário — mas não tudo. Rotular é um primeiro passo, mas enquanto não soubermos o que significa permanecer na nossa vivência não iremos saborear os frutos da prática. Se não os saboreamos, não enxergamos o que é a prática e iremos nos queixar: "Não compreendo bem a prática; não consigo ver do que se trata". O fato é que não posso lhes dizer do que ela trata, pois aquilo que estou tentando explicar na realidade não pode ser posto em palavras. Fundamentalmente, a prática é diferente de aperfeiçoar uma habilidade como saber jogar tênis ou golfe; uma parte grande dessas atividades pode ser transposta para as palavras. Mas não podemos explicar nossa prática zazen em palavras.
Em virtude desse dilema, a prática pode ser hesitante durante alguns meses, durante anos. Se for muito vacilante, o aluno acaba abandonando-a — e continua a sofrer —, sem no entanto apreender o que é sua vida. Por isso, embora a prática não possa realmente ser posta em palavras, podemos ser ajudados por um entendimento mínimo da mesma — apesar de intelectual e confuso —, assim permitindo-nos evitar uma parte de nossas inúteis divagações. Melhor inclusive do que esse entendimento confuso é a simples disponibilidade para persistir praticando, mesmo quando não vemos a razão disso. Através do processo de rotular os pensamentos chegamos a ver que não queremos desertar de nosso próprio drama psicológico particular — composto por aquilo que pensamos de nós e dos outros e do que sentimos a respeito das coisas que estão acontecendo. Realmente queremos passar nosso tempo com nos-so drama pessoal, até que meses depois de termos começado a rotular os pensamentos sua natureza estéril seja revelada. Quando esse estágio do rotular está já em andamento há algum tempo, precisamos realizar uma prática que não oferece, aparentemente, nenhum tipo de gratificação posterior: a vivência de nossas sensações corporais, de nosso ouvir, ver, sentir pelo tato, perceber odores, sabores. Uma vez que essa prática parece-nos monótona e sem sentido, costumamos relutar em persistir nela. Por causa disso, nossa prática pode ser fraca, intermitente e, em geral por muito tempo, ineficaz. Achamos que temos coisas mais importantes a fazer. Como passar nosso tempo em atividades monótonas, entediantes, como ficar sentado sentindo, vendo, saboreando etc? É verdade que não parece estar acontecendo nada de importante quando nos sentamos para praticar. Percebemos sensações nas pernas e nos joelhos, tensão na face, coceiras; mas por que diabos iríamos realmente querer fazer isso ? Os alunos costumam reclamar para mim: "Mas que chato! Não quero fazer isso". Apesar disso, se persistirmos, em algum momento haverá uma mudança e, por um segundo, não haverá eu e o mundo, mas apenas... não há palavras para isso porque é uma vivência nãodual. É aberto, espaçoso, criativo, compassivo e, do ponto de vista habitual, chato. Cada segundo que passamos nesse vivenciar não-dual transforma a nossa vida. Não conseguimos enxergar a transformação porque não existe drama aí. O drama sempre está em nossas
criações mentais autocentradas. Não existe drama numa boa pratica sentada. Não gostamos dessa falta de excitação — até que de fato passemos a saboreá-la. Enquanto isso não acontecer, confundiremos prática com alguma espécie de empreendimento psicológico. Embora uma prática forte inclua elementos psicológicos, não é disso que ela se compõe. Quando digo aos alunos que vivenciem seu corpo, as pessoas falam: "Oh, sim, estou sentindo meu corpo. Rotulo meus pensamentos e depois sinto meu corpo. Mas isso não adianta nada"; "Sim, eu sinto um aperto no meu peito, e simplesmente me centro nisso e espero que desapareça". Esses comentários revelam uma programação pessoal já montada, uma espécie de ambição. No fundo, o pensamento é: "Vou ficar nesta prática para que eu — meu euzinho — possa conseguir algum benefício dela". Na realidade, enquanto nosso euzinho estiver falando desse jeito, não estamos de verdade vivenciando. Nossa prática estará contaminada por programas pessoais desse tipo e todos nós temos coisas assim às vezes. Podemos chegar mais perto de um entendimento acurado do vivenciar usando a palavra ouvir. Não "vou fazer essa vivência", mas "eu vou simplesmente ouvir as minhas sensações corporais". Se eu realmente ouvir aquela dor do lado esquerdo, existe um elemento de curiosidade, de o que é isso? (Se eu não sou uma pessoa curiosa, sempre serei escravizada por meus pensamentos.) Como um bom cientista que está só observando, sem noções preconcebidas, nós apenas observamos, olhamos, ouvimos. Se nossa mente é mobilizada por interesses de ordem pessoal, não conseguimos ouvir — ou melhor, não queremos ouvir. Queremos pensar. É por isso que rotular, observar a mente e suas atividades, é em geral necessário por um tempo bastante longo antes que esse segundo não-estado do vivenciar, ou ser, possa sequer começar. Esse não-estado é o que faz com que a nossa prática seja religiosa. Vivenciar é o reino do não-tempo, do nãoespaço, da verdadeira natureza. Só o ser, o existir só Deus. No princípio, nosso desejo de pensar a nosso respeito é poderoso e sedutor. Parece acenar-nos com infinitas promessas. Esse desejo é tão poderoso que, dependendo da pessoa, pode levar um, cinco, dez anos ou mais antes que esse desejo enfraqueça e nós consigamos de fato apenas sentar. Essa forma de sentar é
entrega, é rendição, porque não tem um eu ali. É a entrega ao que é, é uma prática religiosa. Essa prática não é primariamente empreendida em nosso benefício pessoal. A boa prática é simplesmente sentar-se ali — é desprovida de acontecimentos. Do ponto de vista habitual, é uma chateação. Com o tempo, no entanto, aprendemos em nossos corpos que aquilo que costumávamos chamar de "entediante" é puro contentamento, e esse contentamento é a fonte, o solo fértil, de nossa vida e de nossos atos. Às vezes, é chamado de samadhi; é o próprio não-estado no qual deveríamos viver toda a nossa vida: quando damos aula, quando atendemos um cliente, quando cuidamos de um bebê, quando tocamos um instrumento. Quando vivemos nesse samadhi não-dualista, não temos problemas porque não há nada separado de nós. Conforme nossa mente vai perdendo uma parte de sua obsessão com o pensamento autocentrado, aumenta nossa capacidade de permanecer na não-dualidade. Se formos pacientes e persistentes, acabaremos depois de um tempo aprendendo muito a respeito da não-dualidade. Mas, enquanto não saborearmos realmente essa não-dualidade, nossa prática; ainda não terá se tornado madura. Podemos promover nossa integração psicológica através dos estágios iniciais da prática, porém, enquanto o vivenciar não se tornar o fundamento essencial de nossa existência, ainda continuaremos sem saber o que a prática é. É algo muito sutil. Por isso é que a prática é difícil: não posso oferecer-lhes um mapa detalhado e descrever para onde vocês estão se encaminhando. Diversos alunos deixam de praticar depois de cinco anos mais ou menos. É uma pena, porque suas vidas ainda são um mistério para eles. Até que o valor do vivenciar se torne claro e óbvio, é difícil permanecer naquilo em que temos de permanecer. Só um certo número de pessoas efetivamente o consegue. Mas, por favor, não desistam. Quando conseguirmos "ouvir' ' o corpo por períodos cada vez mais longos, nossa vida irá se transformar na direção da paz, da liberdade e da compaixão. Livro algum poderá ensinar-nos isso, somente a nossa prática direta. Sim, isso pode ser feito. Muitos já o conseguiram.
VI. Liberdade OS SEIS ESTÁGIOS DA PRÁTICA O caminho da prática é claro e simples. No entanto, quando não o entendemos, ele pode parecer confuso e sem sentido. É um pouco como aprender a tocar piano. Logo no início de meu aprendizado, um professor disse-me que, para me tornar uma pianista melhor, eu deveria praticar a seqüência C (dó), E (mi), G (sol), várias vezes seguidas, até cinco mil. Ele não me deu nenhum motivo; só me disse que o fizesse. Já que eu era uma boa menina quando pequena, provavelmente fiz isso mesmo sem entender por que era necessário. Mas nem todos somos bons meninos e meninas. Por isso quero apresentar-lhes o "porquê" da prática elucidando os passos do caminho que precisamos percorrer — por que é necessário todo esse tedioso e repetitivo trabalho. Todas as minhas aulas falam dos aspectos desse caminho; esta é uma revisão, com a finalidade de pôr as coisas em ordem, segundo uma certa perspectiva. A maioria daqueles que não se entregaram a nenhuma espécie de prática (existem muitas pessoas praticando a seu próprio modo, sejam ou não discípulas do zen) está naquilo que denomino o pré-caminho. Isso com certeza se aplicou a mim antes que eu começasse a praticar. Estar no pré-caminho significa estar inteiramente cativo de nossas reações emocionais diante da vida, adotando a visão de que a vida está acontecendo para nós. Sentimo-nos fora de controle, atolados no que parece uma confusão estonteante. Isso pode ser verdade para quem também está praticando. A maioria dos adeptos volta para esse estado de dolorosa confusão às vezes. A seqüência do homem montado num touro * ilustra esse aspecto; podemos estar trabalhando perto dos estágios finais e de repente, perante uma situação de estresse, regredir de repente a estágios anteriores. Às vezes, saltamos de *
Essa é uma seqüência tradicional de imagens em que um homem doma aos poucos um touro selvagem, assim aludindo ao progresso da prática, que da desilusão chega à iluminação.
volta para o período do pré-caminho, onde nos vemos totalmente tomados por nossas reações. Essa reversão não é nem boa, nem ruim, apenas algo que fazemos. Estar totalmente à mercê do pré-caminho, no entanto, é não ter a menor idéia de que existe um outro caminho para se ver a vida. Adentramos o caminho da prática, porém, quando começamos a reconhecer nossas reações emocionais; por exemplo, que estamos sentindo raiva e começando a criar caos. Começamos a descobrir quanto medo sentimos ou com que regularidade temos pensamentos mesquinhos ou invejosos. O primeiro estágio da prática é esse processo de tornar-me consciente de meus sentimentos e de minhas reações internas. Rotular os pensamentos ajuda nesse sentido. É importante ser firme nessa fase, porém, caso contrário perderemos uma boa parte do que se passa em nossos pensamentos e sentimentos. Precisamos observar tudo o que se passa. Nos primeiros seis a doze meses de prática podemos sofrer muito porque começamos a nos enxergar com mais nitidez e a reconhecer o que realmente estamos fazendo. Rotulamos os pensamentos, por exemplo: "Eu queria que ele sumisse do mapa!", ou "Não consigo mais agüentar o jeito como ela arruma os travesseiros!". Num retiro intensivo, esses pensamentos têm a tendência de se multiplicar conforme vamos ficando cansados e irritadiços. Nos primeiros seis a doze meses, abrirmo-nos para nossa vida interior pode ser um grande choque. Embora esse seja o primeiro estágio da prática, resíduos dele permanecem nos dez ou quinze anos seguintes, conforme continuamos a nos conhecer cada vez mais. No segundo estágio, que começa de maneira típica no segundo ano e se estende até o quinto, começamos a romper os elos dos estados emocionais, decompondo-os em seus componentes físicos e mentais. Conforme prosseguimos rotulando pensamentos, e quando começamos a saber o que significa vivenciar a nós, nosso corpo e aquilo que chamamos de o mundo externo, os estados emocionais lentamente começam a se desfazer. Nunca desaparecem por completo, porém. A qualquer momento, podemos voltar com tudo para o estágio anterior — e isso nos acontece com grande freqüência. Mesmo assim, estamos começando um novo estágio. A demarcação entre estágios nunca é precisa, claro. Cada um flui no seguinte. É mais uma questão de ênfase.
O estágio um é o começo da conscientização do que está se passando e do mal que isso causa. No estágio dois, somos motivados a desfazer os elos das reações emocionais. No estágio três, começamos a encontrar alguns momentos de puro vivenciar sem os pensamentos autocentrados: apenas o puro vivenciar em si. Em alguns centros zen, esses estados são às vezes chamados de experiências de iluminação. No estágio quatro, de maneira lenta e firme nos encaminhamos para um estado não-dual de vida em que a base do existir é vivencial, em vez de ser dominado por falsos pensamentos. É importante lembrar que são anos e anos de prática implicados em todos esses estágios. No estágio cinco, 80 a 90% da vida é vivida de maneira vivencial. Agora viver é algo muito diferente do que costumava ser. Podemos dizer que essa é uma vida do não-ego, porque o pequeno eu, aquele preenchimento emocional através do qual víamos a vida e que nos fazia despencar, praticamente se foi. Nessa fase, é impossível o discípulo viver como no pré-caminho, ficando prisioneiro de tudo e nas malhas de suas reações emocionais. Mesmo que a pessoa quisesse reverter do estágio cinco para o précaminho, ela não o conseguiria. No estágio cinco, estão muito mais fortes a compaixão e a valorização da vida das outras pessoas. Nesse estágio, é possível ser professor e ajudar os outros que se encontram em outros momentos do caminho. Os que chegaram no estágio cinco provavelmente já são professores de um jeito ou de outro. Frases como "Eu não sou nada" (e "Portanto sou tudo") não são mais destituídas de sentido, como frases literárias de efeito, mas coisas que a pessoa sabe intuitivamente. Esse conhecimento não é nada especial ou exótico. Do ponto de vista teórico, existe um sexto estágio, o estado de buda, em que a vida transcorre toda em estado vivencial puro. Não o conheço e duvido que alguém o atinja por completo. De longe o mais difícil de tudo é saltar do estágio um para o dois. Primeiro, devemos tomar consciência de nossas reações emocionais e de nossa tensão corporal, de como nos desincumbimos de tudo em nossas vidas, mesmo que ocultemos as nossas reações. Temos que nos encaminhar para a mais nítida conscientização possível, rotulando os nossos pensamentos e começando a sentir a tensão no corpo. Resistimos a realizar esse
trabalho porque ele começa a dilacerar quem nós pensávamos ser. Nesse estágio, é útil tomar consciência de nosso temperamento básico, de nossa estratégia para enfrentar a pressão de nossas vidas. A psicoterapia também pode ser proveitosa nesse estágio se for inteligente. A boa terapia ajuda-nos a aumentar nosso campo de consciência. Infelizmente, terapeutas bons de verdade são até certo ponto raros e a maior parte das terapias não é inteligente e inclusive incentiva a jogar culpa em outros. Nesse cenário de lutas que é a transição do estágio um para o dois, começamos a nos dar conta de que temos escolha. Qual é essa escolha? Uma é a recusa de praticar: "Não vou mais rotular esses pensamentos; é um tédio. Vou só me sentar e ficar sonhando com alguma coisa agradável". A escolha é permanecer atolado e continuar sofrendo (o que, infelizmente, significa que faremos os outros sofrer também) ou encontrar a coragem para mudar. Onde encontrar essa coragem? Ela aumenta conforme nossa prática continua e começamos a tomar consciência de nosso próprio sofrimento e (se formos de fato persistentes) do sofrimento que causamos às outras pessoas. Começamos a perceber que, se recusarmos a batalhar aqui, causaremos danos à vida. Temos de fazer uma escolha entre viver uma vida dramática e autocentrada e outra baseada na prática. Adiantar-se de maneira firme do estágio um para o dois implica que nosso drama tem, lentamente, de chegar ao fim. Do ponto de vista do pequeno eu, esse é um sacrifício tremendo. Quando estamos nos debatendo entre o estágio um e o dois, fazemos julgamentos morais: "Ele realmente me deixa irado!"; "Sinto-me rejeitada!"; "Sinto-me magoado"; "Estou aborrecida e ressentida"; "Sinto vontade de me vingar". Essas sentenças brotam de nossas emoções. Todas são muito saborosas e até sedutoras: elaboramos um drama de primeira em cima de nossa posição de vítimas da vida, do que aconteceu conosco, de como tudo é dificílimo. Apesar de nosso sofrimento todo, na verdade adoramos ser o centro de tudo isso: "Sinto-me deprimida"; "Sinto-me entediada"; "Sinto-me aborrecido"; "Sinto-me irritado"; "Sinto-me excitada". Esse é o nosso drama pessoal. Todos temos versões de um drama pessoal, e são necessários anos de prática antes de nos sentirmos dispostos a considerar seriamente abandoná-lo. As pessoas deslocam-se em velocidades diferentes devido a diferenças de histórico pessoal, de força, de determinação. Ainda assim, se
formos persistentes, começaremos a mudar do estágio um para o dois. Quanto mais clara for a inserção no estágio dois, começam a suceder cada vez mais períodos em que nos encontramos dizendo: "Oh, tudo bem. Não sei por que pensei que isso fosse um grande problema". Descobrimos que vemos tudo com uma compaixão crescente. Esse processo nunca chega a ficar completo ou a finalizar. Em qualquer momento podemos mergulhar de volta no estágio um. Mesmo assim, no geral, nossa capacidade de apreciação aumenta e descobrimos que podemos valorizar pessoas que antes não conseguíamos nem sequer suportar. Numa boa prática, existe um movimento quase que inexorável, mas devemos estar dispostos a passar tanto tempo quanto seja preciso em cada passo. O processo não pode ser apressado. Enquanto insistirmos nos julgamentos emocionais que mencionei (e pode haver infinitas variações dos mesmos), podemos estar seguros de que não estamos instalados com firmeza no estágio dois. Se ainda acreditamos que uma outra pessoa nos faz sentir raiva, por exemplo, precisamos reconhecer exatamente qual é o nosso trabalho. Nosso ego é muito poderoso e insistente. Quando nos deslocamos para o estágio três, estamos aos poucos deixando para trás o estágio dualista dos julgamentos — ter pensamentos, emoções, opiniões a respeito de nós e dos outros, de tudo e do mundo — e nos encaminhamos para uma vida menos dualista e mais satisfatória. Os casais discutem menos entre si, começamos a deixar mais em paz os filhos; os problemas que estamos enfrentando se atenuam quanto mais rápido percebemos o que é apropriado para ser feito. Alguma coisa está de fato mudando. Quanto tempo isso tudo leva? Cinco anos? Dez anos? Depende da pessoa. O continuum da prática poderia ser dividido de diferentes maneiras. Poderíamos simplificar a análise com uma analogia: primeiro, existe o solo, que é aquilo que somos neste momento do tempo. O solo pode ser de argila ou areia, rico em húmus" e adubo. Pode atrair quase nenhuma minhoca, ou muitas minhocas, dependendo de sua fertilidade. O solo não é nem bom, nem mau; é aquilo com que deparamos como ponto de partida para trabalhar. Não temos praticamente nenhum controle sobre o que os nossos pais nos deram em termos de hereditariedade e condicionamento.
Não podemos ser nada além do que somos neste preciso momento. Temos coisas por aprender, sem dúvida; mas a qualquer ponto do processo somos quem somos. Pensar que deveríamos ser qualquer outra coisa é ridículo. Simplesmente praticamos com aquilo que somos. Esse é o solo. Ao nos entregarmos ao trabalho de cultivo do solo estamos cobrindo aqueles que denominei estágios dois a quatro. Trabalhamos com o que é o chão — as sementes, o adubo, as minhocas —, arrancando as ervas daninhas, podando, usando métodos naturais para produzir uma boa safra. Do solo que foi cultivado vem uma colheita que começa a mostrar-se bem evidente no estágio quatro e aumenta daí em diante. A colheita é a paz e o contentamento. As pessoas queixamse para mim dizendo: "Ainda não sinto contentamento em minha prática", como se ela lhes fosse proporcionar essa vivência. Quem nos dá esse contentamento? Nós nos oferecemos essa vivência por meio de uma prática incansável. Não é algo que possamos esperar ou exigir. Aparece quando aparece. Uma vida de contentamento não significa que estejamos sempre felizes e nada mais. Significa apenas que a vida é rica e interessante. Podemos até detestar certos aspectos do viver, mas cada vez mais é algo satisfatório de se viver, num plano geral. Não nos engalfinhamos mais com a vida. Resumindo: o primeiro estágio consiste em nos conscientizarmos do que somos emocionalmente, incluindo nosso desejo de controlar. O segundo estágio é. decompor as reações em seus componentes físicos e mentais. Quando esse processo começa a tornar-se um pouco mais adiantado, começamos — no terceiro estágio — a passar alguns momentos em puro vivenciar. Agora o primeiro estágio parece bastante remoto. No quarto estágio, movimentamo-nos com mais liberdade no sentido de viver vivencialmente, afastando-nos dos esforços para tanto. No quinto estágio, a vida vivencial está agora instalada com firmeza. De 80 a 90% do tempo, a pessoa está vivenciando seu viver. O tempo do pré-caminho — cativo das emoções pessoais e transferindo-as para os outros, pensando que a culpa de nossas dificuldades é alguém que não nós — agora é impossível de ser retomado. A partir do estágio dois em diante, a compaixão e a apreciação dos outros começam a crescer.
ALUNO: A
sua descrição dos estágios da prática é muito útil. É como um mapa: não nos diz como chegar ao fim, mas nos permite saber onde nos encontramos ao longo do percurso. JOKO:
Como alguém "chega ao fim" depende de cada pessoa. Todos somos diferentes e os padrões de ego variam de pessoa a pessoa. Ainda assim, é útil ter uma imagem do padrão geral. O que descrevi é bastante parecido com as dez figuras clássicas da seqüência do touro e do homem, mas veio apresentado em termos mais psicológicos porque essa forma de abordagem é mais conhecida hoje em dia. No fundo, porém, prática é prática; precisamos entrar com tudo o que somos. Temos simplesmente de fazê-la. C, E, G. C, E, G. C, E, G.
CURIOSIDADE E OBSESSÃO Um de meus alunos disse-me, há pouco tempo, que para ele a motivação toda que sentia para sentar e praticar era a curiosidade. Ele estava achando que eu iria discordar dele e desaprovar essa forma de praticar. A verdade é que eu concordo plenamente. Uma grande parte de nossa vida passamos presos em nossos pensamentos, obcecados com isto ou aquilo, e não verdadeiramente no presente. Mas às vezes nos intrigamos a nosso próprio respeito e a respeito de nossas obsessões: "Por que sou tão ansioso, deprimido ou afobado?". Dessa sensação intrigante vem uma curiosidade e uma disponibilidade para apenas observar a nós e a nossos pensamentos, para ver como nos levamos a ficar tão contrariados. O arco repetitivo do pensamento recua para segundo plano e tomamos consciência do momento presente. Sendo assim, a curiosidade é, em certo sentido, o coração da prática. Se formos curiosos de verdade investigaremos sem nenhum preconceito. Suspenderemos nossas crenças por algum tempo e apenas observaremos, apenas notaremos. Queremos investigar a nós mesmos, de que modo levamos nossa vida. Se fizermos isso de maneira inteligente, experimentaremos a vida mais de perto e começaremos a vê-la como é. Por exemplo, estamos aqui sentados. Vamos supor que, em vez de nos preocuparmos com uma coisa ou outra, nós dirigimos nossa atenção para a nossa experiência imediata. Prestamos atenção no que estamos escutando. Sentimos
nossos joelhos doloridos e outras sensações em nosso corpo. Depois de algum tempo, perdemos nosso foco, e nossos pensamentos começam a fervilhar e formar arcos de repetição, um atrás do outro, Quando nos damos conta de que nos desviamos, voltamos a prestar atenção. Esse é o padrão normal da prática sentada. O que estamos de fato fazendo é investigar a nossa pessoa, os nossos pensamentos, a nossa vivência: ouvimos, sentimos, percebemos o odor das coisas. Nossas sensações acionam pensamentos e nossa mente se lança num outro arco. Então percebemos esse arco repetitivo. Nosso foco de investigação muda um pouco e começamos a considerar: "O que é todo esse pensar?"; "O que é que eu faço?"; "No que estou pensando?"; "Como é que eu estou constantemente pensando a respeito disso e não daquilo?". Se observarmos o nosso pensamento em vez de corrermos com ele, com o tempo a nossa mente se aquietará e nós investigaremos o momento seguinte. Essa percepção consciente poderia ser: "Estou sentada aqui há horas e o meu corpo todo está começando a doer". Então investigamos isso. O que dói? O que é realmente isso? Depois de algum tempo tomamos consciência não só de nossas sensações físicas, mas de nossos pensamentos a respeito delas também. Observamos o fato de que não queremos ficar de jeito nenhum sentados aqui. Observamos nossos pensamentos rebeldes: "Quando será que vão tocar o sino para que eu possa me movimentar?". Reparar é uma forrna de curiosidade, uma investigação do que é. Apenas prestamos atenção naquilo que está implicado em nossa vida ou em nossa prática sentada. Esse processo pode ocorrer não só quando nos sentamos para praticar, mas em outras oportunidades. Vamos supor que estou no consultório do dentista para obturar uma cárie. Observo meus pensamentos a respeito do trabalho do dentista: "Eu não gosto de levar uma injeção na gengiva!". Observo a suave tensão que acontece assim que o dentista entra na sala. Enquanto nos cumprimentamos educadamente — "Olá, como vai?" — observo que meu corpo está contraindo. Então chega a agulha. Apenas sinto e fico com essa sensação. O dentista ajuda com algumas instruções: "Continue apenas respirando. Respire fundo...". É como treinar para um parto natural: quando acompanhamos a respiração, não pensamos na dor. Simplesmente somos a dor.
Ou talvez estejamos no nosso ambiente de trabalho. Já delineamos nossas tarefas para a parte da manhã. Então o chefe entra e diz: "Temos um prazo apertado agora. Deixem o que estavam fazendo. Preciso disto pronto antes do resto. Daqui a uma hora". Se temos praticado sentados, observamos de imediato as nossas reações corporais, no mesmo instante em que começamos a fazer nossa tarefa. Observamos que o corpo começa a contrair-se e que alimentamos pensamentos ressentidos: "Se ele mesmo fosse fazer isso não esperaria que ficasse pronto em uma hora". Observamos nossos pensamentos e então os abandonamos, voltando para o que temos diante de nós e precisa ser feito, Mergulhamos nisso. Podemos investigar toda a nossa vida dessa maneira. "O que estou sentindo? O que acontece comigo quando a vida faz o que ela faz?'' As abruptas exigências do chefe são apenas algo que a vida faz para mim. Da mesma forma, precisar obturar um dente é o que a vida faz comigo. Tenho sentimentos e pensamentos a respeito de cada incidente. Quando permaneço com os sentimentos e pensamentos, assento-me em apenas estar aqui, em apenas estar com as coisas que acontecem do jeito que acontecem, indo simplesmente até a coisa seguinte. Na hora do almoço, o chefe volta e pergunta: "Você ainda não terminou aquilo?". Ele não disse: "O que há de errado com você?", mas recebemos essa mensagem. Sentimos nosso corpo outra vez tensionar. Observamos nossos pensamentos ressentidos a respeito dele. Fazemos um almoço rápido em vez da hora inteira que tínhamos planejado levar almoçando. Depois corremos de volta para o trabalho. Quando temos a grande sorte de fazer um trabalho do qual gostamos de verdade, também observamos as reações. Observamos que o corpo relaxa mais. Observamos que entramos com mais facilidade na tarefa. Ficamos absorvidos, o tempo passa mais depressa, e nossos pensamentos são mais infreqüentes porque gostamos não é mais importante do que aquilo que detestamos, porém. E quanto mais tempo praticamos, mais o fluxo de momento a momento preside nosso viver, independente de nossas preferências e aversões. Temos consciência da situação conforme ela flui por nós e nos deixa para trás. Estamos só fazendo o que estamos fazendo. Estamos cientes do fluxo da experiência. Nada especial. Mais e mais o fluxo instala-se e promove uma vida bastante boa.
Não é que tudo passe a ser agradável. Não podemos antecipar o que a vida irá nos proporcionar. Quando nos levantamos pela manhã, não sabemos que às 14 horas iremos quebrar a perna. Nunca sabemos o que está por acontecer. É parte do prazer de se estar vivo. A prática nada mais é que essa atitude de curiosidade: "O que está acontecendo aqui, agora? No que estou pensando? O que estou sentindo? O que a vida está me apresentando? O que estou fazendo com isso? Qual é a coisa inteligente para se fazer a este respeito? O que é a coisa inteligente de se fazer com um chefe que já está irritado e fora do bom senso? O que faço quando obturar um dente se torna uma dor insuportável?". A prática diz respeito a essas formas de investigação. Quanto mais chegamos a um acordo com nossos pensamentos e reações pessoais, mais podemos simplesmente estar naquilo que precisa ser feito. É isso que compõe em essência a prática zen: funcionar de um momento para o outro. Tem uma mosquinha nesta sopa, contudo. A mosca é que muitas vezes não somos curiosos acerca da vida, nem abertos para ela. Em vez de examinar com interesse esse chefe difícil, vemo-nos aprisionados em pensamentos e reações a essa situação. Atolamonos em desvios mentais obsessivos, em arcos repetitivos de pensamentos. Se nunca praticamos o zen, podemos ficar nesses arcos repetitivos quase que 95% do tempo. Se estivemos praticando bem já há alguns anos, talvez permaneçamos nesses arcos entre 5 e 10% do tempo. Com respeito àquele chefe difícil, o arco de pensamentos pode ser: "Mas quem ele pensa que é? Ele acha que vou fazer isso tudo em uma hora? Mas é ridículo!". A resistência aparece. "Vou dar uma lição nele!" Podemos chegar até a sabotar o serviço que precisa ser feito. Se não o sabotamos, podemos fazer isso conosco, mantendo-nos atolados em nossos pensamentos e em nossa raiva. Perto do final do dia, iremos para casa esgotados e falaremos para quem está lá como hoje o chefe estava impossível. "Ninguém consegue trabalhar com ele. Ele está arruinando a minha vida." Nessas acaloradas reações pessoais não vemos a presença de uma postura curiosa e investigativa. Em vez dela, mantemo-nos atados pelo laço da obsessão mental. Não observamos apenas nossos pensamentos a respeito do chefe: em lugar disso, acreditamos que alguma validade existe para termos rodopiado o dia todo em torno
de nossos pensamentos enraivecidos, em vez de enxergá-los em sua simples natureza, sentindo a contração corporal que apareceu em função deles, e, tanto quanto nos fosse possível, voltar para o trabalho fazendo algo que solucionasse aquele problema. A prática sentada é exatamente isso: estamos investigando a nossa vida. Mas, quando nos perdemos em nossos fios autocentrados de pensamentos, não estamos mais investigando coisa nenhuma. Estamos pensando em como tudo é ruim, ou culpando alguém de alguma coisa, ou nos recriminando. Cada pessoa tem seu estilo próprio, que é como justificamos nossa existência. Gostamos que nossos arcos repetitivos de pensamentos cresçam. Sentimos prazer nisso de verdade — até começarmos a perceber que eles arruínam a nossa vida. As pessoas se perdem em muitos tipos diferentes de arcos de pensamentos. Para algumas é: "Não consigo fazer nada enquanto não tiver entendido tudo". Por isso recusam-se a agir até terem analisado tudo. Outras respondem a chefes difíceis dizendo: "Vou fazer o trabalho, mas do meu jeito. E não vou mexer nisso a menos que possa sair perfeito". Um perfeccionismo obsessivo pode ser o laço que nos ata. Este também pode ser de natureza filosófica, e então precisamos constelar uma imagem completa de como as coisas se encaixam umas nas outras. Esse laço é no fundo uma tentativa de tornar segura a nossa vida: pensamos que, entendendo tudo, teremos mais segurança. Uma outra espécie de laço é tornar-se obsessivamente ocupado e trabalhar o tempo inteiro. Um estilo correlato é fazer muitas coisas ao mesmo tempo, Nossos arcos repetitivos de pensamentos são o nosso estilo pessoal e descobrimos o que são quando rotulamos os nossos pensamentos. É por isso que rotular pensamentos é tão importante. Temos de saber onde e como gostamos de nos enredar em pensamentos; temos de conhecer nosso próprio estilo pessoal de fazer esses arcos e laços de nos atar. Quando nos sentamos para praticar, nos inteiramos de como é que preferimos nos ludibriar. Quando estamos nos enganando, presos em nossos arcos e laços, não estamos sendo curiosos, apenas mecânicos, apenas seguindo os ditames de uma decisão básica inconsciente que tomamos em outra época: "Preciso ser desse jeito e fazer aquilo". Não conseguimos perceber nenhuma mensagem e não conseguimos enxergar o que está acontecendo de verdade. Não existe uma verdadeira curiosidade acerca de como
estamos funcionando e acerca de outros possíveis meios de se agir. O laço dos pensamentos obsessivos e autocentrados a tudo aperta e bloqueia. Nossa abertura e curiosidade básicas a respeito da vida foram-se com o vento. Sentar-se e praticar não é algo que se baseie em esperanças. Baseia-se em não saber, ern uma postura de simples abertura e curiosidade. "Não sei, mas posso investigar." Todos nós temos o nosso estilo particular de fracassar nesse sentido. Gostamos de pensar de forma circular e repetitiva; gostamos desses arcos mentais mais do que de nossa própria vida. Esses arcos é quem nós achamos que somos: "Sou esse tipo de pessoa". Gostamos desses pensamentos e atividades de fortalecimento das nossas crenças, mesmo que sejam estéreis. Quanto mais nos sentamos para praticar e realmente nos tornamos mais familiarizados conosco, mais dispostos vamos ficando para só enxergar esses arcos mentais e deixar que se vão, que se desfaçam. Começamos a passar um tempo cada vez maior na parte essencial da prática sentada, que é apenas estar aberto e curioso, apenas deixando a vida fluir em paz. Do ponto de vista de um principiante, praticar dessa forma é a coisa mais tediosa do mundo. Quando sentamos, nada está acontecendo, exceto que ouvimos um carro passando longe, que nosso braço esquerdo deu um leve tremor e que sentimos o ar. Do ponto de vista de uma pessoa apegada a seus próprios arcos pessoais de pensamentos, é natural que surja a questão: "Para que você quer fazer isto*! Que importância isto tem?". Apesar disso, essa prática é de importância crucial porque é nesse espaço que a vida assume o comando. A vida — a inteligência ou o funcionamento natural das coisas — sabe o que fazer. ALUNO:
Quando me sinto deprimido gosto de formar uma visualização onde eu me sinta bem. JOKO:
Isso é um laço. Achamos que não interessa o modo como estamos nos sentindo, que existe alguma coisa errada com a sensação que estamos tendo de nós. Então substituímos isso por algo "melhor" que inventamos. Se, em vez disso, apenas investigarmos o que é sentir-se abatido ou deprimido, e termos interesse nessa pesquisa, iremos descobrir certas sensações corporais e certos pensamentos que serviram para compor aquela sensação geral. Quando agimos interiormente dessa maneira, a depressão
tende a desaparecer e não sentimos mais necessidade de visualizar ou fantasiar um outro estado. ALUNO:
A investigação em si não pode ser um laço obsessivo? Debruçar-se sobre a vida interna como um detetive que se debruça sobre uma evidência com uma lupa: "Eu fiz isso e depois aquilo, o que me levou a fazer aquilo outro...". JOKO: É uma coisa simplesmente observar o nosso processo interior como um fato, e outra ficar preso em por que o fazemos, no que pode estar errado com isso. Se estamos tentando rastrear as coisas como um detetive em busca de desvendar um crime, não estamos fora do laço. ALUNO:
Há algum perigo em observar o laço e segui-lo por onde ele levar? Esse processo poderia desenrolar-se para sempre? JOKO:
Não. Se estamos realmente apenas observando nossas obsessões sem nos aprisionarmos nelas, elas tendem a desfazer-se, a morrer. Em geral, nós perseguimos nossos arcos repetitivos de pensamentos porque de fato queremos retornar para nosso estilo autocentrado de pensar. No mesmo instante em que simplesmente observamos os nossos pensamentos, esse apego autocentrado é cortado, e o arco perde força, ^ão temos de nos preocupar com uma observação interminável de pensamentos. Quando começamos a praticar sentados, nossos pensamentos ou arcos mentais obsessivos têm muita energia, mas esse ímpeto se dissipa conforme vamos aumentando os períodos de prática. Cada vez mais nossos pensamentos irão morrendo, e nós simplesmente seremos nossas sensações corporais, a vida como ela é. Não quero que as pessoas aqui apenas engulam o que estou falando em simples boa-fé. Quero que investiguem o que estou dizendo por si mesmas. É isso que é a prática: um processo de descoberta para nós mesmos, a respeito de como funcionamos e pensamos. ALUNO:
Algumas atividades parecem exigir que se siga uma seqüência de pensamentos. Por exemplo, a profissão de escritor ou uma pesquisa filosófica. Essas atividades parecem depender da capacidade de sustentar um "arco" ou uma linha de idéias tanto quanto possível. JOKO:
Claro, tudo bem. Isso é muito diferente, entretanto, de pensamentos autocentrados e obsessivos. A função criativa de um
escritor ou de um filósofo só pode acontecer se a pessoa não estiver escravizada por seus próprios pensamentos pessoais ansiosos. Observar como nossa própria mente trabalha, enxergar nossos arcos mentais obsessivos, em sua natureza real, pode libertar-nos para um uso mais imaginativo de nossa mente, sem ficarmos atolados. ALUNO:
Há alguma espécie de pensamento a respeito de si mesmo que não seja autocentrado? JOKO:
Sim. Em geral temos de pensar a respeito de nossa pessoa. Por exemplo, uma cárie aparece em um dente. Preciso me organizar para uma ida ao dentista. Isso é pensar em mim, mas não necessariamente de uma maneira obsessiva e autocentrada. ALUNA : Às
vezes, pensar sobre a prática pode ser um laço. Posso formar uma fantasia de como minha vida vai ser maravilhosa se eu sempre estiver atenta aos meus pensamentos e sentimentos. JOKO:
Sim. Nesse caso, nós não estaremos simplesmente investigando os nossos pensamentos, mas acrescentando esperanças ou expectativas. Não se trata mais de uma pesquisa aberta e curiosa. Como dizia o mestre Rinzai: "Não ponha outra cabeça acima da sua". Essa é uma cabeça extra. Com uma prática sentada consistente, cuidadosa, começamos a desemaranhar esses laços e a reconhecer do que são feitos. ALUNO: Quando
estou às voltas com alguma tarefa mental, em geral me enredo num poderoso laço de autocrítica. Por exemplo, quando estou escrevendo, é fácil para mim interromper meu fluxo criativo de pensamentos com juízos críticos a respeito do que estou fazendo. Então o processo inteiro entra em curto-circuito e fico paralisado. JOKO: Sim.
Como você poderia praticar com isso?
ALUNO:
Apenas observando meus pensamentos autocríticos e continuando com a atividade. JOKO: Certo. ALUNA:
Percebo que para mim é aterrorizante a perspectiva de meus pensamentos autocentrados realmente desaparecerem. Meu medo é que talvez eu nem existisse mais sem esse apego fundamental a mim mesma.
JOKO:
Sim. Apenas observe isso. Quanto mais observamos que não queremos que essa mudança ocorra mais, paradoxalmente, tornamo-nos livres para permitir que se efetue. Ela não pode ser forçada. Não há nada a ser forçado. Estamos apenas sendo conscientemente perceptivos, com abertura e curiosidade. ALUNO: Algumas
pessoas dizem que meditação demais é deprimente e que precisa ser equilibrada com outras atividades mais felizes, como celebrações. O que você pensa a esse respeito? JOKO.
Em si, não há nada na vida que seja bom ou ruim. O que é apenas é o que é, A depressão não é mais que certas sensações corporais acompanhadas de pensamentos, os quais podem ser ambos investigados. Quando nos sentimos deprimidos, precisamos tão-somente observar a sensação e rotular os pensamentos. Se deixamos a depressão de lado ou nos esquivamos dela, tentando substituí-la por algo como ir a uma festa, não teremos investigado nem entendido a depressão. Ir a festas pode encobrir a depressão por um certo tempo, mas ela voltará. Disfarçar nossos sentimentos e pensamentos é apenas um outro tipo de laço. ALUNO:
Um dos meus laços é preocupar-me com o trabalho e as questões de dinheiro: "Será que terei dinheiro suficiente para as necessidades? Consigo sustentar a minha família? Meu emprego é seguro?". Minha tendência é manter-me emaranhado nesses pensamentos ansiosos e preocupados. JOKO:
Certo. Ao investigarmos nossos pensamentos obsessivos, não os abandonamos nem banimos. Mas aos poucos eles perdem o poder que exercem sobre nós, conforme vamos vendo do que se compõem e sentindo qual é o medo básico que lhes está por baixo. Lentamente eles se desmancham. ALUNO:
Percebo que acho que as atividades são em si deprimentes ou capazes de alegrar e que minha tendência é esquecer que isso que chamamos de depressão ou contentamento é só um bando de pensamentos e sensações que temos como resposta diante das coisas. Em geral, o que consideramos como "alegre" é só uma fuga momentânea do que está se passando dentro de nós. Então temos medo de parar e nos permitir realmente sentir.
JOKO: É
isso mesmo. O contentamento genuíno é ser este momento, apenas como ele é. Vivenciar o momento pode ser sentir a contração que chamamos de depressão, ou pode ser sentir a contração que chamamos receber boas notícias. Sendo assim, o verdadeiro contentamento está por baixo tanto daquilo que chamamos de depressão como do que chamamos de elação. Existe uma espécie de qualidade impessoal, ou visão divina das coisas, que aparece naqueles que se sentam para praticar por muitos anos a fio. Não estou falando de tomar-me fria e insensível ou cruel. Não sou uma pessoa indiferente, embora tenha desenvolvido essa qualidade impessoal em minha vida. ALUNA:
Há anos eu já a conheço e tenho uma sensação a respeito disso que você falou. Na minha opinião, conforme você se tomou mais "impessoal", você se tornou mais afetiva, mais receptiva à aproximação dos outros. JOKO:
Numa certa época eu tinha medo demais para permitir que as pessoas chegassem perto. Hoje vejo o que costumava ser tão perturbador e digo: "Oh, isso é que está acontecendo. Que interessante". É simplesmente uma questão de investigação ou de curiosidade: "O que está acontecendo agora?". Essa é a nossa vida. Por exemplo, outro dia meu carro levou uma batida. A outra motorista não estava olhando e eu também não — então demos uma trombada. Eu não tive a menor reação de qualquer espécie. Não estou dizendo que é bom ou ruim, mas com certeza é mais fácil para as supra-renais. Se alguém tivesse se machucado eu poderia ter tido uma outra resposta, mais forte, embora esteja certa de que seria bem diferente daquela que seria a minha reação há alguns anos. Tudo é simplesmente a vida, um presente que nos é dado vivenciar.
TRANSFORMAÇÃO Na região sul da Califórnia jogamos de um lado para outro palavras que descrevem o crescimento pessoal, como mudança e transformação. Duvido que no Kansas vocês ouvissem tantas vezes essa espécie de conversa. Uma grande parte do que se ouve é bobagem, refletindo um reduzido nível de entendimento da questão. "Crescimento pessoal" é com freqüência só uma mudança
superficial, como pôr mais uma poltrona na sala de estar. Na verdadeira transformação, por outro lado, existe uma implicação de que algo genuinamente novo apareceu. É como se aquilo que existia antes tivesse desaparecido e algo diferente tivesse ocupado seu lugar. Quando ouço a palavra transformação penso naqueles desenhos onde figura e fundo se alternam e, onde primeiro parece que existem vasos, surgem faces. Isso é transformação. A prática zen é às vezes chamada de o caminho da transformação. Muitos dos que o iniciam, contudo, estão apenas buscando, com a prática zen, uma mudança aditiva; "Quero ser mais feliz"; "Quero ficar menos ansiosa". Espera-se que da prática zen venham esses novos sentimentos. Mas, se nos transformamos, nossa vida desloca-se para uma base inteiramente nova. É como se tudo pudesse acontecer — uma roseira dar lírios, uma pessoa de natureza áspera, corrosiva e mal-humorada se transformar em alguém delicado. Cirurgias superficiais não adiantam nada para isso. A verdadeira transformação implica que até mesmo o objetivo do "eu" que quer ser feliz é transformado. Por exemplo, vamos supor que eu me veja como uma pessoa basicamente deprimida, atemorizada, ou o que seja. A transformação não está em eu apenas lidar com o que chamo de a minha depressão; significa que o "eu", o indivíduo como um todo, a síndrome completa que chamo de "eu", é transformado. Essa é uma visão de prática muito diferente daquela que é adotada pela maioria dos discípulos zen. Não gostamos de lidar com a prática dessa maneira porque isso significa que, se quisermos sentir um contentamento genuíno, teremos de nos dispor a ser qualquer coisa. Temos de nos abrir à transformação que a vida nos pede que vivamos. Tenho de estar preparada para a possibilidade de vir a me tornar uma mendiga, por exemplo. Agora, eu não quero realmente ser uma mendiga. Nossa fantasia é que, quando praticarmos, nossa vida irá ser muito fácil e sentiremos muito conforto sendo quem somos. Achamos que iremos ser versões novas e maravilhosas de quem somos agora. No entanto, a verdadeira transformação significa que talvez o próximo passo seja virar uma mendiga na rua. Com certeza não é isso que traz as pessoas a um centro zen para praticar. Estamos aqui para conseguir dar uma ajeitada na pintura externa de nosso atual modelo. Se o carro de nossa vida é cinza-chumbo, queremos que se torne verde-água ou rosa. Mas transformação significa que o carro talvez desapareça por completo.
Talvez em lugar de um carro seja uma tartaruga. Não queremos nem ouvir falar dessas possibilidades. Esperamos que o professor nos ensine alguma coisa que dê um jeitinho no presente modelo. Um monte de terapias apenas manipula técnicas para a melhoria do modelo. Fazem a funilaria aqui e ali e podemos inclusive sentirnos muito melhor. No entanto, isso não é transformação. Transformação é algo que decorre de uma disponibilidade que se desenvolve muito devagar, ao longo do tempo, para virmos a ser aquilo que a vida pede que sejamos. A maioria das pessoas (eu entre elas) é como um bando de crianças: queremos que algo ou alguém nos dê aquilo que a criancinha quer de seus pais. Queremos ter paz, atenção, tranqüilidade, compreensão. Se nossa vida não nos oferece isso, pensamos: "Uns aninhos de prática zen poderão oferecer-me essas coisas". Não, não é assim. Não é disso que trata a prática. A prática é abrirmo-nos para que esse "euzinho" que quer sem parar uma coisa atrás da outra — que na realidade o mundo inteiro seja seus pais — enfim cresça. Crescer não nos interessa muito, porém. Um monte de alunos meus tenta fazer de mim uma mãe substituta. Esse não é o meu papel. Discípulos em apuros em geral vêm correndo atrás de mim; tanto quanto possível, encaminho-os para que eles mesmos lidem com suas dificuldades. Assim que os alunos têm alguma idéia de como poderiam lidar com o problema, a melhor coisa a fazer é deixá-los lutar. É então que existe alguma possibilidade de transformação. Transformação é permitir-nos participar de nossa vida, neste exato segundo. Eis um negócio tremendamente assustador. Não há nenhuma garantia de conforto, de paz, de dinheiro, de coisa nenhuma. Temos de ser o que somos. A maioria de nós, contudo, tem outras idéias. É como se fôssemos urna árvore que produz folhas e frutos de uma certa espécie. Queremos produzir isso porque é confortável. A transformação, contudo, é produzir o que a vida escolhe produzir através de nós. Não podemos saber o que isso irá ser. Poderá significar qualquer tipo de transformação — no trabalho que fazemos, no modo como vivemos, em nosso estado de saúde (inclusive com o risco de ficar pior e não melhor). Ainda assim transformação é contentamento. Transformação significa que, seja como a vida for — difícil, fácil, tranqüilizadora ou inquietadora —, ela é contentamento. Com essa palavra eu não
estou querendo dizer felicidade. Contentamento tem mais afinidade com curiosidade. Pensemos em bebês de mais ou menos nove meses a um ano, engatinhando por todo lado, conhecendo todas as espécies de maravilhas: podemos enxergar a curiosidade e o deslumbramento em seus rostinhos. Não estão engatinhando por toda parte para absorver informação, nem estão tentando ser melhores bebês que podem engatinhar com mais eficiência; na realidade não estão engatinhando por nenhuma razão específica. Estão simplesmente engatinhando pelo puro prazer e curiosidade de fazê-lo. Precisamos recuperar a capacidade de sentir curiosidade a respeito de tudo em nossa vida, até mesmo dos desastres. Por exemplo, vamos supor que nosso companheiro de muitos anos nos abandone de uma hora para outra. Esse trágico evento pode nos fazer mergulhar num melodrama de reações. Você pode se imaginar conseguindo ver essa situação com curiosidade, em vez de com sofrimento? O que significaria considerar esse desastre com curiosidade? ALUNA: Estar
num possível estado de deslumbramento.
JOKO:
É isso mesmo. Teríamos interesse pela situação, pela coisa toda, inclusive por nossas reações emocionais: nossos gritos, nossas oscilações de humor, nossas sensações físicas — só curiosidade, de um segundo para o seguinte. Isso pode soar frio, mas não é; significa que, pela primeira vez, estamos abertos para a situação e podemos aprender com ela e lidar com ela. Essa curiosidade também faz parte do contentamento, um estado de deslumbramento. No entanto, não nos importamos com curiosidade e deslumbramento. Preferimos em vez disso consertar coisas para virmos a nos sentir bem. Mas a curiosidade da qual estou falando pode estar lá, quer estejamos nos sentindo bem, quer mal. Há vários anos tive uma sociedade com um cientista de grande renome. Perguntei-lhe o que significava ser um cientista. Ele disse: "Se há um prato numa mesa perto de você e você sabe que alguma coisa está debaixo do prato — mas você não sabe o que é —, ser um cientista significa que você não vai conseguir descansar dia e noite até ter visto o que está embaixo do prato. Você tem de saber". A prática deveria cultivar essa espécie de postura. Através de nossas medidas de autoproteção, porém, perdemos uma grande parte de nossa curiosidade a respeito da vida. Quando estamos deprimidos, queremos apenas fazer com que a depressão pare. Da mesma maneira, quando estamos
preocupados, solitários ou confusos. Em vez disso, precisamos enfrentar nosso estado de ânimo com curiosidade e aberto deslumbramento. Esse ouvir aberto e curioso do que a vida nos envia é contentamento — independentemente de qual seja o estado de ânimo de nossa vida. Esse é o caminho da transformação. Ficamos menos emaranhados em nossas medidas de autoproteção para ver a vida — querer o que se quer —, menos apegados às imagens ou fantasias de como nossa vida deve ser. A prática, o caminho da transformação, é um lento deslocamento pelo tempo até a consolidação de um novo modo de se estar no mundo. Com certeza esse será um caminho terapêutico, mas essa não é sua finalidade primeira. Uma pessoa totalmente curiosa não é nem feliz nem infeliz. Um bebê na fase de engatinhar que descobre um copo para medir ingredientes, colocado no chão, não está nem feliz nem infeliz. Em vez de "feliz" o bebê está absorvido pelo exame do objeto. Não é ambicioso; não é um bebê bom ou mau; está apenas absorvido no deslumbramento daquilo que está vendo. Infelizmente, os bebês tornam-se adultos. Não que a melhor prática seja ser como um bebê. Num plano ideal, conservamos a abertura e a disponibilidade de um bebê, porém temos mentes maduras e capacidades de adultos. Em vez de ver o mundo com curiosidade e deslumbramento, aproxi mamo-nos da vida com uma programação autocentrada, querendo que tudo se conforme a nós e nos faça sentir bem. As pessoas de quem gostamos são as pessoas que nos transmitem boas sensações. Os amigos que de fato queremos por perto são aqueles que nos fazem sentir que somos boas pessoas. Os sujeitos que consistentemente nos fazem sentir mal vão para outra lista. Uma pessoa que só é curiosa e aberta, porém, não age assim, pelo menos não no mesmo nível. Como escreve Carlos Castaneda *, nossa prática precisa ser impecável Isso significa estarmos tão conscientes quanto nos for possível a cada momento, para que nossa "personalidade", que é composta de nossas estratégias de autoproteção, comece a se desarticular e possamos assim reagir de uma maneira cada vez mais simples ao momento. Uma prática impecável significa, por exemplo, trabalhar com um ou dois projetos na prática e sim*
Carlos Castaneda, Journney to Ixtlan: The lessons of Don Juan, Nova York: Simon and Schuster, 1972.
plesmente ater-se a isso, sem desistência ou desvio. Vamos supor que temos um hábito de acreditar em pensamentos como "Não valho nada". A prática impecável significa que quase nunca deixamos de perceber todas as vezes em que esse pensamento ocorre. Mesmo que um ou outro escape de repente, prática impecável é aquela que sustenta a pressão sobre nós. Não se trata de estarmos tentando ser melhores, ou de sermos piores caso não consigamos. Mesmo assim, precisamos ser meticulosos. Prática impecável significa que nunca paramos. O caminho da transformação não significa "Oh, já pratiquei bastante por hoje; acho que vou sair para me divertir". Não há nada de errado em se passar bons momentos, mas prática impecável é ter consciência disso também. De outro modo, estamos apenas nos ludibriando. Apesar de meticulosa, a prática madura não tem esforço. Nos primeiros anos, contudo, não há meios de evitarmos as lutas. Aos poucos, ao longo dos anos, a luta torna-se menor. A prática não é também algo para se deixar de lado quando as coisas se tornam difíceis. Em vez de "As coisas estão tão complicadas agora que vou praticar na semana que vem", precisamos praticar exatamente agora, com essa dificuldade que estamos atravessando. Se não for assim, a prática é só mais um brinquedinho que estamos usando para nos divertir, uma simples perda de tempo. O caminho da transformação requer um guerreiro impecável — que não é o mesmo que ser um guerreiro perfeito. Em vez disso, estamos sempre fazendo o melhor que podemos, trabalhando com um cuidado específico. Em lugar de decidir "Vou tomar consciência", precisamos decidir "Quando eu fizer isso ou aquilo vou tornar-me em especial consciente". Em vez de tentar trabalhar com tudo de uma vez, trabalhamos com um ou dois assuntos por vez, talvez por dois ou três meses, e apenas nos mantemos consistentemente atentos a esses assuntos. Se deixamos que apenas um só pensamento desses escape, como "Mas eu sou mesmo uma pessoa que não tem jeito", sem tomarmos consciência dele, senão bastante tempo depois, então iremos querer praticar e sentar com ainda mais firmeza e tentar outra vez. É preciso que nos apliquemos com constância, que consolidemos a resistência muscular para a longa e árdua jornada. No final, percebemos que não é uma longa e árdua jornada, mas não enxergaremos isso até o dia em que enxergarmos isso.
Quando estou longe do centro zen de San Diego, as pessoas às vezes combinam uma prática de dois dias e realizam-na. Isso é bom. Nem todos podem participar; alguns têm filhos pequenos, por exemplo. Mesmo assim, entrar numa prática desse tipo — sentarse durante dois dias, lutando para manter-se conscientemente perceptivo — é do que estamos falando, Numa prática séria não há como evitar essa espécie de esforço. Há lutar e esforçar-se durante um longo tempo. Não há como fugir disso. Lutar e esforçar-se desenvolve força. Significa crescer, amadurecer. Quando nos queixamos, quando nos sentimos amargos a respeito do que alguém fez para nós, amargos pelo que a vida nos fez, então estamos sendo criancinhas. Deve haver um grande seio em algum lugar ao qual estamos tentando nos agarrar. A pratica zen trata de crescer e amadurecer. Não deveríamos iniciar uma prática assim enquanto não a quiséssemos muito. Devemos querer de verdade uma vida que se irá transformar.
O HOMEM NATURAL Não importa há quantos anos venhamos praticando, nossa tendência é compreender de maneira errada a natureza da prática. De um jeito ou de outro nós supomos que a prática diz respeito a corrigir um erro. Imaginamos que, se fizermos isto ou dominarmos aquilo, por fim conseguiremos superar o erro que há em nós. Nossas vidas serão "ajeitadas" e de alguma maneira agiremos melhor. Muitas formas de terapia começam pelo suposto de que existe algo de errado com a pessoa que busca terapia, e que esse trabalho serviria para consertar o que está errado. Transpomos essa atitude — tão difundida em nossa cultura — para nossa própria prática espiritual. Presumimos que algo não está certo com nossas vidas porque não nos sentimos contentes conosco. De nosso ponto de vista pessoal, algo está errado. O que precisa ser entendido a respeito desse dilema? Pensemos num furacão. Do ponto de vista do furacão em si, não há o menor problema em destruir milhares de árvores, em destruir o sistema de encanamento, em matar pessoas, em des-
truir as praias etc. É isso o que os furacões fazem. Do nosso ponto de vista, contudo, sobretudo se a nossa casa foi destruída por um furacão, algo está muito errado. Se pudéssemos, daríamos um jeito nos furacões. Só que ainda não conseguimos ver o que pode ser feito. Infelizmente, quando tentamos dar um jeito nas coisas, na maioria das vezes criamos um conjunto todo novo de problemas. O automóvel é uma bela invenção que facilita nossas vidas de inúmeras maneiras, porém, como todos nós sabemos, trouxe consigo todo um arsenal de grandes problemas. Entregue a si mesma, a natureza faz toda espécie de confusão, mas essa parece ser uma confusão curativa, e o processo natural se restaura por si. Quando alimentamos a idéia de que precisamos resolver todos os problemas da vida, porém, não nos saímos tão bem. A razão de nosso fracasso está em que nossos pontos de vista são limitados ao que nosso ego necessita, ao que "eu quero". Se aquilo que está acontecendo em nossa vida fosse aceito, nada nos perturbaria. Será que deveríamos apenas nos tornar passivos e permitir que tudo fosse como é, sem fazer nada a respeito? Não. Mas nos metemos em apuros pelos contextos emocionais que acrescentamos, pela atitude de que existe uma coisa errada que precisa ser ajeitada. Em particular, queremos que nossos eus pessoais sejam diferentes do que são. Por exemplo, queremos nos tornar "iluminados". Imaginamos que um eu iluminado é de alguma forma glorificado, diferente, destacado do resto dos meros mortais comuns. Iluminação parece-nos ser uma grande conquista, a realização excelsa do ego. Essa ânsia de tornar-se iluminado penetra muitos centros espirituais como uma corrente subterrânea de excitação a respeito da prática espiritual. Na realidade, isso é ridículo. Mesmo assim, quando nos sentimos infelizes, gostamos de imaginar que podemos encontrar algo que nos conserte, de modo que nossos relacionamentos sempre sejam maravilhosos. Imaginamo-nos sempre nos sentindo bem, fazendo trabalhos que nunca dão momentos de sofrimento, que nunca nos apresentam reveses.
Vejamos o que poderíamos chamar de "o homem natural". (Poderíamos falar igualmente da "mulher natural", mas neste exemplo falemos do homem.) Na Bíblia, o homem natural seria o Adão antes de ser expulso do jardim do Éden, ou seja, antes de ter tomado consciência de si como um eu separado. Como era esse homem natural? O que seria ser um homem natural? ALUNO: O
homem natural seria pleno de deslumbramento.
JOKO:
E verdade, embora ele não soubesse que era pleno de deslumbramento. ALUNO:
Não haveria senso de separação entre ele e o mundo à
sua volta. JOKO:
Mais uma vez isso é verdade. Ele também não teria consciência dessa ausência de separação. ALUNA: Ele simplesmente seria. JOKO:
Sim. Ele seria, simplesmente. Como se comportaria? Por exemplo, ele seria santo, ou de vez em quando sairia para caçar? ALUNO; Ele
faria o que fosse preciso para viver.
JOKO:
Ele faria o que fosse preciso para sobreviver. Se necessário, ele caçaria, como os nativos americanos que faziam oferendas aos animais que tinham de matar. ALUNO: Ele
faria guerra com o povo de sua tribo?
JOKO:
Possivelmente, embora eu duvide que se tratasse de uma matança. Talvez desacordos eventuais. ALUNO:
Penso que um homem natural seria como o meu gato: come, dorme, faz o que precisa ser feito a cada momento sem tomar nenhuma consciência disso, ou pensar a respeito. JOKO: É
muito isso. Os cães são um mau exemplo porque nós fazemos deles o que queremos que eles sejam. Já os gatos são mais independentes, mais como o homem natural. O estado natural é do que trata a prática. Ser uma pessoa natural não quer dizer que nos tornemos uma espécie de santo. Sem uma noção de separação entre nós e o mundo, porém, sempre existe uma bondade e uma propriedade inatas em nossas ações.
Por exemplo, nossas duas mãos não se comportam de maneira imprópria entre si porque fazem parte do mesmo corpo. O homem natural aprecia alimentos. Ele aprecia amar. De vez em quando fica contrariado e provavelmente não por muito tempo. Pode sentir medo quando sua sobrevivência é ameaçada. Em contraste com esse quadro, nossa vida é muito antinatural. Sentimo-nos seres separados do mundo e isso nos afasta do jardim do Éden. Quando nos destacamos do mundo, também destacamos o bem do mal, o satisfatório do insatisfatório, o agradável do doloroso. Depois de termos separado as coisas dessa maneira, permaneceremos para sempre tentando dirigir-nos para um dos lados, evitando o outro, de modo a só encontrarmos aquelas partes da vida que nos convêm. A natureza é como o furacão. Seja o que for que aconteça, acontece. Não queremos isso em nossa vida, porém. Queremos um furacão que arrase as outras casas, mas a nossa não. Estamos sempre atrás de um pequenino nicho de segurança em meio ao furacão da vida. Contudo esse lugar não existe. A vida diz respeito a apenas viver e apreciar aquilo que vier. Porque nossas mentes são egocentradas, porém, pensamos que a vida se trata de protegermo-nos. Isso nos mantém cativos. Uma mente egocentrada é autocentrada. Passa todo o seu tempo pensando em como irá sobreviver e manter-se a salvo, confortável, entretida, satisfeita, não ameaçada, a cada encruzilhada. Quando vivemos assim, perdemos o bonde. Perdemos nosso centro. Quanto mais nos afastamos do centro, mais ansiosa e excêntrica — quer dizer, longe do centro — nossa vida se torna. Desde nossos primeiros momentos de vida, estamos desenvolvendo uma mente egocentrada. Viver dessa forma é apenas olhar a vida de uma determinada maneira. Não existe nada intrinsecamente errado com isso; é só que vemos a vida apenas de nosso próprio ponto de vista. Nossa natureza essencial permanece inviolada em todos os momentos. Não podemos vê-la, porém, porque estamos agora sempre enxergando a partir de uma perspectiva limitada e unilateral. Estamos longe de "só viver" como um homem ou uma mulher naturais provavelmente viveriam. Estamos pensando sobre o viver, o tempo todo. Talvez passemos de 80 a 90% do nosso tempo fazendo isso. E nos espantamos de que nada parece estar certo, de
que nada é certo. De nosso ponto de vista, estamos sempre muito incomodados. Entregue a seus próprios recursos, o homem natural é essencialmente bom. Caça quando precisa. Faz o que precisa. Por não se sentir separado, no entanto, causa muito pouco dano. Basta olharmos para nós para vermos o quanto estamos distantes dessa espécie de vida. Nossa tarefa essencial na prática não é tentar alcançar alguma coisa. Nossa verdadeira natureza — nossa natureza buda está sempre aí. Sempre inviolada. É presente. Reconhecemos que estamos simplesmente bem quando entramos em contato com ela. No entanto, não estamos em contato com ela porque nos desviamos para um dos lados, somos unilaterais. E isso cria os problemas de nossas vidas. Diz-se com muita freqüência que a essência de qualquer prática religiosa é a renúncia do eu. Muito verdadeiro, desde que entendamos corretamente essas palavras. Ao que é que temos de renunciar então? ALUNO: Aos JOKO:
apegos.
Sim. Os apegos assentam-se no quê?
ALUNO: Nos
pensamentos autocentrados?
JOKO:
Pensamento autocentrado. Suponhamos que alguém me diz: "Joko, você é uma estúpida". Essa pessoa está só me dando sua opinião. Eu devolvo com outra: "Não sou estúpida. Você é quem não sabe o que está fazendo''. E com isso ficamos de bateboca. Entramos nesses jogos em razão de nossas mentes autocentradas, egocentradas. Desse ponto de vista, sempre existe algo de errado com o mundo. Na realidade, porém, a vida em si vai bem, bastante tranqüila. O que causa as perturbações são as nossas opiniões. A prática não diz respeito a encontrarmos alguma coisa. Não temos de encontrar a iluminação. Não temos de encontrar a nossa natureza buda. É o que somos. O que precisamos fazer é remover nossa cegueira, para podermos novamente voltar a vê-la. Quais são algumas maneiras práticas de remover nossa cegueira? ALUNO: Rotular nossos
pensamentos.
JOKO:
Sim, podemos rotular nossos pensamentos para vê-los apenas como pensamentos, como algo que nós mesmos engendramos. Precisamos ver que eles não têm uma realidade essencial. ALUNO:
Penso que a pessoa tem de aceitar o fato da cegueira. Não consigo rotular nada enquanto não me dispuser a olhar para isso. JOKO:
É verdade. Em geral não temos disposição para fazer esse trabalho de ver enquanto não estivermos sofrendo. O que provavelmente acontece em qualquer vida autocentrada: sofrer, em mim e nas pessoas à minha volta. Nossa pequena mente produz queixas. Produz amargura e a sensação de ser vítima. Produz saúde precária. Não é a única causa de uma saúde precária; mesmo assim, um corpo constantemente tenso tem uma dupla batalha para enfrentar. A pequena mente produz artifícios e arrogância. Impede-nos de estar em contato com as sensações de nosso corpo e com a vida em si. Quando estamos em contato, por outro lado, nossas vidas são mais como a do homem natural. O que isso significa? ALUNO: Significa JOKO: Sim.
uma noção do ato apropriado.
Algo mais?
ALUNO:
Uma maior abertura. A inteligência natural absorve informação através dos órgãos dos sentidos e funciona como uma parte de tudo o mais. JOKO:
Nossa tendência é enxergarmos com mais clareza. Nossa tendência é saber como equilibrar as coisas e o que fazer numa determinada situação. Nossa tendência é permanecermos calmos porque não nos transtornamos diante de cada coisinha. Nossa tendência é sermos mais divertidos. Mais espontâneos. Mais cooperativos. Tendemos a ver o outro com mais plenitude em vez de como uma coisa a ser manipulada. Esses resultados não nos chegam com facilidade. O trabalho que realizamos sobre a almofada é às vezes bastante árido. Ficamos cansados de rotular nossos pensamentos e de voltar às sensações do nosso corpo. Mas esse não é um trabalho sem sentido, embora leve anos. Somos obstinados e não queremos fazer nada que não seja necessário. Quando não agimos assim, no
entanto, a vida é dura conosco e com todos à nossa volta. Mesmo então, costumamos não fazer o trabalho que é preciso. Renunciar ao eu parece exótico. Imaginamos Cristo na cruz ou alguma outra ação notável. Mas renúncia do eu é, basicamente, algo muito simples e essencial. Renúncia do eu é o que acontece toda vez que vemos nossos pensamentos rodopiando e os rotulamos e abrimos mão de nosso pequeno eu — pois os pensamentos são isso — e voltamos ao que está acontecendo. Voltamos a captar as sensações corporais, o som dos carros, o odor do almoço. É isso que significa renúncia do eu. Quando nos sentamos durante uma semana, fazendo retiro, deveríamos fazer isso dez mil vezes: rotular nossos pensamentos, enxergar a fantasia, retornar à percepção consciente do que é, o que é renunciar ao pequeno eu em favor do eu maior. Resultado: apenas a vida vindo. Nada há nisso de maravilhoso: é o que fazemos talvez dez vezes a cada período de prática sentada. Se estivermos realmente alertas, talvez vinte ou trinta vezes. Se nos perdemos em nossos pensamentos durante quinze minutos, perdemos uma parte de nosso trabalho. Ninguém se apressa em nos dar uma medalhinha de ouro por termos feito esse tipo de trabalho. Ninguém. Para tanto, precisamos entender o que está implícito aí. Tudo — a nossa vida inteira — está implicado. Tudo o que de fato queremos está envolvido nesse monótono trabalho que realizamos várias vezes seguidas. Depois surgem fases em nossa vida em que simplesmente não temos disponibilidade para fazer esse trabalho durante algum tempo. "Não importa o que a Joko diga, vou entrar neste devaneio," Então passamos o filminho de nossa pequena fantasia e depois voltamos ao trabalho. Nossa mente sai de sua fantasia autocentrada e retorna para a sensação que está em nossos joelhos, para perceber a tensão de nosso corpo, para apenas deixar acontecer o que está acontecendo. Nesse segundo, renunciamos a nós. Esse é o estado iluminado: estar simplesmente aí. Sempre retornamos ao nosso pequeno eu. Quando nos sentamos para praticar, porém, aos poucos aumenta o intervalo em que
permanecemos simplesmente com a vida como ela é, enquanto as interrupções de nossa autocentraçao se tornam um pouco menores, um pouco mais breves. As interrupções não duram mais tanto e não as levamos mais tão a sério. Cada vez mais, elas são como nuvens que vagueiam pelo céu: nós as vemos, mas somos menos controlados por elas. Com o tempo, esse processo produz uma acentuada diferença em nossa vida. Sentimo-nos melhor. Funcionamos melhor. Depois de um retiro intensivo, por exemplo, a maioria acha que as coisas que eram um problema antes agora são triviais, quando não engraçadas. O "problema" não mudou, mas a mente está diferente. A finalidade de minhas aulas — e a do próprio sesshin — está nesse retorno à vida diária. Quando voltamos para as exigências mais complexas de nossa vida de todo dia, no entanto, costumamos esquecer de continuar praticando. Em vez de permitir que nossa mente se perca, temos de continuar atentos, observando. Se não fazemos isso, a clareza que tínhamos conquistado começa a esfumaçar-se. Isso não tem de ocorrer; não temos de lutar com alguém no dia seguinte ao sesshin. Quanto mais tempo nos mantivermos praticando e mais os hábitos da prática tornarem-se simplesmente quem somos, mais tempo durarão os benefícios do sesshin. Depois de um período, chegamos num ponto em que não há mais diferença entre o sesshin e a vida diária. É importante nos lembrarmos de que não estamos consertando nada. Não estamos tentando ser diferentes do que somos. Aliás, a prática é apenas retornar àquilo que sempre somos. Não estamos fazendo nada especial. Não estamos tentando ficar iluminados. Manterno-nos apenas voltando, renunciando ao pequeno eu, vezes e vezes seguidas. Conforme fazemos esse trabalho, começamos a sentir a vida de uma maneira diferente, e essa é a única coisa que pode na verdade nos ensinar algo. Palavras como estas vêm e vão: se não fazemos o trabalho, as palavras não significam nada. Ler um livro ou ouvir uma aula não é em si suficiente. É o trabalho que executamos que nos dá uma idéia de uma maneira diferente de sentirmos nossa vida. Conforme essa idéia se torna mais firme, descobrimos que não podemos mais voltar para casa, mesmo que o quiséssemos. Quando nos transformamos cada vez mais em quem nós somos, verdadeiramente, os efeitos instalam-se e nossas vidas mudam.
Alguma pergunta? ALUNA:
Você descreveu a prática como retomar a cada momento aos sons ou às sensações corporais, mas e se eu estiver praticando com uma emoção forte, como luto ou ira? JOKO:
O que é uma emoção? Uma emoção é simplesmente uma combinação de sensações corporais e pensamentos. Os pensamentos são autocentrados. "Mas como é que ele ousa sair com outra mulher? Ele disse que me amava!" Esses pensamentos apoderam-se de nós como um fogo. "Mas como ele ousa fazer isso!" Nossos pensamentos rodopiam e giram. "Ele não deveria agir assim!" E continuam sem cessar. Bem, enquanto estamos tendo esses pensamentos, o corpo está se tensionando. Vamos supor, porém, que começamos a rotular os pensamentos. Pode custar "dias, mas, em algum momento, nossos pensamentos começam a cair por terra e resta-nos apenas este corpo tenso e sofredor. Se apenas permanecemos com este corpo tenso e sofredor, sem pensamentos, o que acontece? A tensão aumenta e então cai por terra — e a emoção acabou. O fato é que não existe nada de real numa emoção autocentrada. Todos pensamos que nossas emoções são importantes; no entanto, não existe nada menos importante que uma emoção autocentrada. A emoção é apenas tensão e pensamentos que cozinhamos todos juntos. Os pensamentos são essencialmente irreais, não estão vinculados à realidade. Por exemplo, posso achar que o furacão não é justo, que não deveria me atingir. Esse é um pensamento inútil, desvinculado do real. Não é importante. Minhas sensações corporais são apenas o que são, nem boas nem más. Quando entendemos a emoção autocentrada, vemos que é desnecessária. ALUNO:
Quando estou rotulando pensamentos, e um pensamento se ergue e começa a caminhar por minha cabeça, e a meio caminho eu paro e digo: "Epa, é um pensamento", tenho de voltar na hora para minhas sensações corporais ou é melhor primeiro observar o pensamento completamente antes de deixá-lo de lado?
JOKO:
Se esse pensamento tiver uma importância decisiva para sua vida, ele voltará. Você não precisa se preocupar em não tê-lo visto até o fim. ALUNA: O
que é uma verdadeira emoção?
JOKO:
Uma verdadeira emoção é uma resposta à realidade. Vamos supor que um amigo tem um ataque cardíaco e cai no chão. Com certeza eu estaria tendo uma emoção ao saltar para tentar fazer alguma coisa. Por outro lado, quando estou com raiva de algo que aconteceu há cinco minutos, essa não é uma emoção real. Se alguém me ofendeu há cinco minutos, não quero saber que a minha emoção a respeito desse insulto é irreal. Em lugar disso, quero permanecer no "Ele não devia ter feito isso. Mas que sujeito horrível!". Quando levo minhas pequenas emoções a sério, então reforço minha idéia de mim mesma para que eu possa me manter jogando essa espécie de jogo. ALUNO: A
raiva pode ser uma verdadeira emoção?
JOKO.
Pode, mas é raro. Se eu vejo alguém espancando uma pessoa e me intrometo para fazer alguma coisa, para parar com aquela agressão, talvez sinta em mim alguma raiva. Mas isso é mais como uma pequena tempestade do que como aquilo que normalmente chamamos de raiva. Quase sempre, quando pensamos que estamos manifestando a verdadeira raiva, na realidade estamos é nos enganando. ALUNA: Existe
uma verdadeira emoção na empatia?
JOKO:
A verdadeira empatia ou compaixão não é em si uma emoção. Pode conter emoções como o amor. Porém, em si, a compaixão é apenas abertura ao que é. Por ser completamente aberta, será receptiva e capaz de ver o que é melhor de se fazer e o fará. A compaixão talvez seja o resultado final da prática. Ninguém é sempre compassivo, mas, se nossa prática for real, iremos nos tornar mais compassivos. Tornamo-nos mais conscientes dos outros como pessoas, não só como coisas a serem controladas, ou manipuladas, ou consertadas, mas como centros de real percepção consciente. Essa capacidade aumenta com a prática. Se não aumenta, então estamos entendendo a prática, ou simplesmente não a estamos realizando. Não tenho de investigar o que alguém está fazendo na almofada se enxergo seu comportamento no resto de sua vida. É
óbvio quando uma prática está amadurecendo. A sensação de ser vítima, de "coitadinha de mim", desaparece. A pessoa tem muito mais percepção consciente das necessidades das outras pessoas e uma disponibilidade cada vez maior para satisfazê-las — o que é muito diferente de ser um "bonzinho na vida". ALUNA:
Então a compaixão não necessariamente se parece com alguma outra coisa? JOKO:
Não. Se nós estamos de fato ouvindo com compaixão a outra pessoa, podemos não sentir muito coisa nenhuma; simplesmente ouvimos e agimos com propriedade. Confundimos compaixão com amor. Compaixão pode conter amor, o que pode ser uma emoção, mas em si a compaixão não é amor. Na verdadeira compaixão não existe separação, o que quer dizer que não há pensamentos autocentrados entre mim e a pessoa com a qual eu esteja. Nenhuma separação é compaixão. definição do dicionário para empatia é sentir o que o outro está sentindo. Isso não significa necessariamente reagir ao que estão sentindo ou simpatizar. Compaixão significa estar com a experiência que estão tendo, mas não na experiência. ALUNO: A
JOKO:
A pessoa verdadeiramente compassiva nunca nem pensa a respeito. É algo natural. Não resulta de sua tentativa de ser compassiva. Tentar ser compassivo é como tentar ser espontâneo. Ou somos ou não somos. Se não somos, podemos estar certos de que estamos aprisionados num sonho autocentrado de alguma espécie. Quando estamos aprisionados em nossos pensamentos, não somos compassivos. Assim, o cerne da prática é investigar o sonho autocentrado de que tanto gostamos. Se não estivermos apegados a ele, seremos compassivos. ALUNA: Amor
e compaixão são a mesma coisa?
JOKO:
Às vezes, o amor tem uma conotação emocional por breves períodos. Verdadeiramente, amar alguém não significa que nos sentimos emotivos a respeito dele, porém. Podemos amar nossos filhos e querer que eles limpem os sapatos no capacho antes de entrar em casa. Sentir irritação porque eles não fazem isso é uma emoção, mas o amor que está lá, embaixo da raiva, não é. O amor pelos próprios filhos permanece estável. No caso do amor romântico, quase sempre existe um elemento de necessidade, um pensamento de que iremos obter algo
dele: "Fico tão excitada por estar com você"; "Me sinto tão bem quando estou perto de você"; "Você me faz sentir tão feliz"; "Quando estou com você me sinto completa"; "Você satisfaz todas as minhas necessidades". Quando algo então acontece para destruir nossa fantasia, as palavras mudam: "Eu realmente o detesto! Não sei nem o que um dia enxerguei nele!". Na realidade, ninguém nos torna felizes ou tristes; nós é que fazemos isso conosco. O amor romântico está repleto de ilusões. O amor genuíno, ou compaixão, não tem ilusões. É simplesmente quem somos.
VII. Deslumbramento A QUEDA Houve certa vez um homem que subiu ao topo de um edifício de dez andares e saltou. Quando passava pelo 5° andar em seu mergulho rumo ao chão ouviram-no dizer:' 'Até aqui, tudo bem!". Rimos desse homem porque sabemos o que o espera em poucos instantes. Como é que ele pode dizer que tudo está indo bem até ali? Qual é a diferença entre o segundo em que ele está no 5º andar e o segundo imediatamente anterior ao seu choque contra a calçada? O segundo logo antes de ele bater no chão é o que a maioria de nós chamaria de crise. Se pensamos que só temos alguns minutos ou dias antes de morrer, a maioria dirá: "Isso é uma crise". Por outro lado, se nossos dias estão transcorrendo normalmente (o trabalho de sempre, as pessoas habituais, as incumbências conhecidas), a vida pode não parecer incrível, mas, pelo menos, estamos acostumados com ela. Nessas fases não sentimos que estamos em crise e talvez não nos sintamos motivados a praticar com diligência. Consideramos essa suposta diferença entre crise e não-crise. O sesshin é uma crise artificial. Quando nos comprometemos com um retiro, temos de ficar e lutar com uma situação difícil. No final do período de retiro a maioria das pessoas terá superado essa
crise — o suficiente, pelo menos, para enxergar sua vida de uma maneira um pouco diferente. É triste que nós não compreendamos que cada momento de nossas vidas — beber uma xícara de café, andar pela rua para comprar um jornal — é i sso. Por que não apreendemos essa verdade? Não a apreende mos porque nossas pequenas mentes pensam que este segundo que estamos vivendo tem centenas de milhares de segundos que o precederam e centenas de milhares de segundos ainda por vir, por isso afastamo-nos do viver de fato nossa vida. Em lugar disso, fazemos aquilo que os seres humanos passam sua vida toda fazendo: a completa perda de tempo de tentar mentalmente esquematizar as coisas para que nunca tenhamos de sofrer uma crise. Gastamos todas as nossas energias tentando ser amados, bem-sucedidos, boas pessoas, agradáveis, firmes (ou instáveis), dependendo do que pensamos que vai dar mais certo no nosso caso. Temos esquemas. A maior parte de nossas energias é canalizada para esses esquemas, conforme tentamos lidar com nossa vida de tal maneira que nunca cheguemos no fundo do poço. Por isso é que se toma tão incrível chegar perto desse fundo. É por isso que as pessoas seriamente doentes, ou que passam por uma circunstância muito destruidora em sua vida, em geral despertam. Despertam para o quê? Para o que elas acordam? ALUNO: Para JOKO:
o presente?
Sim, e o que mais?
ALUNO: Para
a impermanência?
JOKO: Impermanência. ALUNA: Para JOKO: Sim,
as sensações corporais.
e mais que isso, para o que acordamos?
ALUNO: Para JOKO:
Certo, é verdade.
o deslumbramento diante disso tudo.
O deslumbramento deste segundo. Quando este segundo não é eu, nem nenhuma outra coisa, mas o simplesmente, Oh! — e isso não significa nenhuma emoção gigantesca, só o apenas — então todas as nossas preocupações são inexistentes. Em geral, porém, só temos essa percepção quando nos vemos muito pressionados, tanto que nossa mente é arremessada para o momento presente. Então podemos esquecer todos os nossos esquemas de nos consertar, de consertar alguém ou as
circunstâncias. A maioria das pessoas passa de 80 a 90% do seu tempo acordada, tentando evitar o fundo do poço. No entanto, não podemos evitá-lo. Todos estamos a caminho do fundo, todos nós. Não podemos evitar o fundo, mas passamos quase nossa vida toda tentando isso mesmo. Despertar significa dar-se conta de que a nossa é uma situação sem esperança — e maravilhosa. Não nos resta fazer nada exceto viver apenas este segundo. Quando estamos em crise, ou em sesshin, podemos não despertar por completo, mas acordamos o suficiente para que mude o modo pelo qual encaramos a vida. Percebemos que as nossas manobras habituais — preocuparmonos com o passado, projetar um futuro imaginário __não fazem sentido, são um desperdício de segundos preciosos. De um ponto de vista, estamos sempre em crise: estamos sempre caindo até o fundo. Segundo uma outra perspectiva, não há crise. Se iremos morrer em um dado segundo, há alguma crise? Não, existe só esse segundo. Num segundo estamos vivos; noutro, mortos. Não há crise. Existe só o que existe. Porém a ânsia humana de fazer o impossível nos mantém afundados na lama. Gastamos a nossa vida tentando evitar o inevitável. Nossas energias, nossas emoções, nossos projetos encaminham-se para conseguir dinheiro, sucesso, fazer com que todos gostem dê nós, porque no íntimo acreditamos que isso tudo irá nos proteger. Uma de nossas mais poderosas ilusões é que estar amando alguém pode nos proporcionar uma verdadeira proteção. Na realidade, não existe proteção nem resposta. Nossas vidas são absolutamente sem esperança. É por isso que são maravilhosas. E não é nada de mais. Quem quer ser bem-sucedido? Quem quer ser apreciado? Todos nós. Nada de errado com esses desejos — a menos que acreditemos na ilusão. Até mesmo querer VS$ 1 milhão pode ser muito engraçado — tão divertido quanto qualquer outro jogo — se apenas o virmos como um jogo engraçado e não ferirmos os outros enquanto o jogamos. Mas não vemos isso como um jogo e por isso ferimos os outros enquanto perseguimos este que se torna um plano letal. Iluminação é apenas saber a verdade não com a cabeça, mas com todo o nosso ser, sabendo que "é isso". É maravilhoso. Está com dor de dente? Isso também é o que é — maravilhoso. Quando estamos na dor de dente claro que não a achamos sensacional.
Contudo ela é maravilhosa simplesmente por ser a vida que acontece neste segundo, doendo mesmo assim. É uma pena que nossas mentes humanas nos ludibriem. Em sua maior parte, os animais são menos manipuladores com suas vidas. Algumas vezes podem tentar fazer joguinhos. Tive uma vez um cachorro que não gostava de vir para casa quando era chamado e então ficava por trás de uma cerca, do outro lado da rua. No verão isso funcionava muito bem — ele ficava camuflado por trás das folhas, tão imóvel quanto conseguisse. Mas quando as folhas caíam no outono ele ainda assim continuava correndo para se esconder lá e permanecia paradinho — só que completamente visível! Apesar disso, cães e outros animais não se embaralham tanto quanto nós a respeito do propósito de sua vida; eles apenas vivem, e nós não. Alguns de nós estamos em meio a "desastres"; outros não. Claro que não permanecemos para sempre em meio a um imenso desastre, mas quando estamos atravessando um período desses nós praticamos muito, comparecendo cada vez mais ao zendo — e fazendo tudo ao nosso alcance para enfrentar a situação. Depois, quando a vida se acalma, deixamos de praticar com a mesma intensidade. Um indicador da prática madura é enxergar a vida como um processo sempre totalmente em crise e totalmente não em crise: as duas versões são a mesma coisa. Na prática madura, praticamos com a mesma intensidade, haja uma crise ou não. Com crise ou sem, nós praticamos. Nada será de fato solucionado enquanto não compreendermos que não existe solução. Estamos caindo e não existe resposta para isso. Não conseguimos controlar isso. Estamos passando a vida tentando deter a queda; no entanto, ela nunca se interrompe. Não existe solução nem pessoa maravilhosa que consigam deter esse movimento. Nenhum sucesso, nenhum sonho, nada pode fazê-lo interromper-se. Nosso corpo está simplesmente despencando. Essa queda é uma grande bênção. Se alguém anunciasse uma pílula que curasse a morte e nos permitisse viver para sempre, isso seria uma verdadeira tragédia. Imagine-se daqui a seis mil anos ainda pensando os mesmos velhos padrões de pensamento! Com uma cura para a morte, mudaria por completo todo o
significado de se estar e ser neste planeta. E onde iríamos colocar os novos bebês que fossem nascendo? Todos nós estamos cientes do envelhecimento: cabelos grisalhos, rugas, cacoetes. Desde o momento em que somos concebidos, estamos morrendo. Quando observo esses sinais, não me rejubilo. Não gosto deles, assim como vocês também não. Mesmo assim, existe uma grande diferença entre não apreciar as mudanças e tentar a todo preço detê-las. Mais cedo ou mais tarde, damo-nos conta de que a verdade da vida é este segundo que estamos vivendo, independentemente de este segundo estar no 9º andar ou no primeiro. Em certo sentido, nossa vida não tem a menor duração: estamos sempre vivendo o mesmo segundo. Não existe mais nada além deste segundo, do momento presente atemporal. Quer vivamos este segundo no 5º piso, quer na calçada, ainda é o mesmo segundo. Diante dessa constatação, cada segundo é uma fonte de contentamento. Sem essa compreensão, todo segundo é um inferno. (Na realidade, nós no fundo queremos muitas vezes ser bem infelizes; nós gostamos de ser o centro de algum melodrama.) Quase o tempo todo não pensamos que existe alguma crise acontecendo. ("Até aqui, tudo bem!") Ou pensamos que crise é o fato de nós não nos sentirmos felizes. Isso não é uma crise; é uma ilusão. Sendo assim, passamos quase a vida inteira tentando consertar essa entidade inexistente que pensamos que somos. Na realidade, nós somos este segundo. O que poderíamos ser? Este segundo não tem tempo nem espaço. Não posso ser o segundo que fui há cinco minutos; como poderia sê-lo? Estou aqui. Estou agora. Não posso ser o segundo que chegará daqui a dez minutos. A única coisa que posso ser é o remexer-me sobre a minha almofada, sentir dor no joelho esquerdo, vivenciar aquilo que estiver acontecendo agora. Isso é quem sou. Não posso ser mais nada. Posso imaginar que em dez minutos não sentirei dor no meu joelho esquerdo, mas isso é pura fantasia. Lembro-me de uma época em que eu era jovem e bela. Isso também é pura fantasia. Quase todas as nossas dificuldades, esperanças e preocupações também são meras fantasias. Nada jamais existiu exceto este momento. Ele é tudo o que existe. Isso é tudo que somos. Mesmo assim, a maioria das pessoas gasta de 80 a 90% de seu tempo imaginando coisas, vivendo em sua fantasia.
Pensamos no que aconteceu, no que poderia ter ocorrido, em como nos sentimos a esse respeito, em como deveria ser diferente, em como os outros deveriam ser diferentes, em como é uma pena mesmo, e assim por diante. É tudo fantasia, tudo imaginação. Memória é imaginação. Toda recordação a que nos apegamos arruína a nossa vida. Pensamentos práticos — quando não estamos nos apegando a alguma fantasia, mas apenas fazendo alguma coisa — é uma outra questão. Se meu joelho dói, talvez eu devesse pesquisar um tratamento para isso. Os pensamentos que nos destroem são aqueles nos quais estamos tentando deter a queda para não dar de cara no chão: "Vou dar um jeito nele"; "Vou dar um jeito em mim"; ou "Vou começar a me entender. Quando eu finalmente entender quem sou, ficarei em paz e então a vida correrá bem". Não, não correrá bem, Ela será apenas aquilo que tiver de ser, a cada segundo. Apenas o deslumbramento. Quando nos sentamos para praticar, conseguimos perceber o deslumbramento? Conseguimos sentir o deslumbramento que há no fato de estarmos aqui, de que, como seres humanos, podemos apreciar esta vida? Nesse sentido, somos mais afortunados que os animais. Duvido que um gato ou uma abelha tenham essa capacidade de apreciar, embora eu possa estar enganada. E posso perder essa capacidade de apreciação, de deslumbramento, se desviar-me deste momento. Se alguém me xinga: "Joko, você é uma droga!" e eu me perder em minhas reações (em meus pensamentos de autoproteção ou de revide e vingança), então terei perdido o deslumbramento. Mas, se permaneço neste momento, existe só o ter ouvido alguém que me xingou. Não é nada. Todos nós porém nos atolamos em nossas reações. Enquanto seres humanos, temos uma maravilhosa capacidade para ver o que a vida é. Eu não sei se algum outro animal tem essa capacidade. Se nós a desperdiçarmos e não a praticarmos de verdade, todos aqueles com quem entrarmos em contato sentirão os efeitos. Isso inclui nossos companheiros, nossos filhos, nossos pais, nossos amigos. A prática não é algo que nós façamos apenas por nós. Se fosse, não causaria a menor diferença, em certo sentido. Todavia, conforme nossa vida vai entrando na realidade, todos aqueles com quem nos relacionamos também
sentem a mesma mudança. Se há alguma coisa capaz de afetar este universo sofredor, é esta.
O SOM DE UM POMBO E UMA VOZ CRÍTICA Recebi recentemente um telefonema de uma pessoa da costa leste, que me disse: "Quando me sentei na prática esta manhã, estava tudo sossegado e de repente houve só um som de pombo. Não houve nenhum pombo, não houve eu, era só isto". A pessoa então aguardou meu comentário. Eu respondi: "Que maravilha! Mas suponha que em vez de ouvir o pombo você ouve uma voz crítica encontrando defeitos em você. Qual é a diferença entre o som do pombo e o som de uma voz crítica?". Imagine que estamos sentados na quietude do início da manhã e de repente pela janela aberta entra só aquele arruinar do pombo. Esse pode ser um momento encantador. (Costumamos pensar, aliás, que é isso que é o zen.) Porém, vamos supor que nosso chefe irrompe sala adentro berrando: "Eu já devia ter o seu relatório em minha mesa desde ontem. Onde está?". O que é igual nestes dois sons? ALUNO: Os
dois são só ouvir.
Sim, os dois são só ouvir. Seja o que for que nos aconteça o dia inteiro, isso é simplesmente input recebido por um destes órgãos dos sentidos: só ouvir, só ver, só sentir o odor, só tocar, só sentir o gosto. Já dissemos o que é igual a respeito dos dois sons. Agora, qual é a diferença? Ou, existe uma diferença? JOKO:
ALUNO: Gostamos
de um e não gostamos do outro.
JOKO:
Por que isso é verdade? Afinal de contas, ambos são só sons. Por que não gostamos da voz crítica tanto quanto gostamos do arrulhar do pombo? ALUNA:
NÓS não ouvimos simplesmente a voz. Nós atrelamos uma opinião ao que ouvimos. JOKO:
Certo. Temos uma opinião a respeito dessa crítica — pensamentos fortes e reações intensas, para ser franca. Numa aula anterior, contei uma história a respeito do homem que saltou do edifício de dez andares e, ao passar pelo quinto, ainda berrava "Até aqui, tudo bem!". Ele estava esperando durar
para sempre. É assim que vivemos: na esperança de evitar a voz crítica, de desafiar a gravidade e permanecer para sempre. Alguns parecem de fato desafiar a gravidade. Uma pessoa que me deu prazer ao longo de muitos anos foi Greg Louganis, provavelmente o maior mergulhador que jamais existiu. Um mergulhador extraordinário como Louganis tem força para atingir uma altura notável quando se atira, dando assim mais espaço para o movimento de descida dentro d'água. A altura fornece-lhe espaço de movimentação. Um outro atleta memorável que parece desafiar a gravidade é o jogador de basquete Michael Jordan, que às vezes parece ficar suspenso no ar. Surpreendente. E nos maravilhamos com Baryshnikov, esse grande bailarino. Todos eles chegam a uma altura assombrosa, mas em algum momento todos vêm para baixo. Como nos ensina o bom senso, a gravidade sempre prevalece. Mas nós não vivemos de acordo com o bom senso. Não gostamos da voz crítica; não gostamos de cair. Não gostamos nada dessas coisas. No entanto, gostando ou não, a vida consiste em muitas coisas desagradáveis que nos atingem. É raro a vida nos dar só aquilo que queremos. Sendo assim, passamos o tempo todo tentando fazer aquilo que nenhum ser humano consegue. Tentamos, de alguma maneira, permanecer aqui para que nunca cheguemos no fundo, nunca nos esborrachemos no chão. Tentamos evitar aquilo que não pode ser evitado. Não existe como viver uma vida humana e evitar as coisas desagradáveis que nos atingem. Existe crítica, dor, ser ferido, ficar doente, decepcionar-se. Nossa pequena mente diz: "Você não pode confiar na vida. Melhor providenciar algum seguro". Fazemos o melhor que podemos para evitar todo e qualquer contato com a dolorosa realidade. Quando nos sentamos para o zazen, nossa mente está incessantemente fantasiando, tentando "permanecer para sempre". Não podemos fazê-lo. Contudo, na qualidade de seres humanos, persistimos na tentativa de fazer aquilo que não pode ser feito: evitar toda espécie de dor. "Vou planejar. Vou descobrir o melhor caminho. Vou descobrir o que fazer para conseguir sobreviver e ficar a salvo." Tentamos transformar a realidade com o nosso pensamento para que ela não consiga se aproximar de nós, jamais. Há aquela história que lhes contei antes a respeito de sentarme num zendo perto de uma moça que ficava se mexendo o tempo
todo. Ela estava com dificuldades com o tornozelo e não parava. Ela o estendia, punha para baixo, torcia-o para trás, dobrava. Estava mexendo o tempo todo com o tornozelo. O monitor inclinouse e sussurou no ouvido dela: "Você deve ficar imóvel. Deve parar de mexer o tornozelo". Ela disse: "Mas dói". Ele respondeu: "Bem, existem muitos tornozelos doendo nessa sala". Ela falou: "Mas é o meu tornozelo!". Quandq atravessamos certas espécies de dor, temos uma simpatia por outra pessoa que passa pela mesma dor. Mas quando alguém sente dor não é o mesmo que quando eu sinto dor. Quando alguém diz: "Sinto muito por você", a verdade é que não sente não, não do jeito que sente para si. Temos um objetivo primário: queremos manter a dor tão afastada de nós que nem cheguemos a saber dela. Queremos permanecer para sempre em nossas nuvens de pensamento a respeito de nossas providências e esquemas de nosso auto-aperfeiçoamento. Nada há de errado com nosso auto-aperfeiçoamento em si; por exemplo, podemos decidir que não vamos mais comer porcaria, ou que vamos fazer mais exercícios físicos, ou dormir melhor. Tudo bem. O que há de errado é que a esses esforços acrescentamos a esperança de que esse auto-aperfeiçoamento irá servir de vacina contra todas as adversidades — a voz crítica, a decepção, a enfermidade, o envelhecimento. Quando Michael Jordan estiver com 70 anos, provavelmente não estará mais flutuando em torno das cestas de basquete como é capaz de fazer agora. Da mesma forma com os relacionamentos e casamentos: que expectativas despejamos nesses vínculos? ALUNA: Esperamos
que garantam a nossa felicidade.
JOKO:
Certo. É proveitoso trabalhar para se ter um bom casamento. Mas a esse trabalho acrescentamos a esperança de que nosso companheiro ajude-nos a desafiar a gravidade, detendo a nossa queda. Enquanto acharmos que existe uma diferença entre o som de um pombo e o de uma voz crítica, iremos nos engalfinhar com a vida. Se não queremos que essa voz crítica exista em nossa vida e se não tivermos trabalhado com a nossa reação a ela, iremos nos engalfinhar. E a que se refere essa luta? Todos nós estamos nela. ALUNO:
Essa luta acontece por causa da diferença entre o que está realmente acontecendo e o que está em nossa mente.
JOKO:
Certo. Com sua peculiar sutileza, nossa mente sempre está acrescentando: "Esta situação é uma coisa de que gosto/não gosto". Formulamos opiniões. Quando apenas ouvimos, não existem opiniões. Quando o som atinge os nossos tímpanos, não existe opinião, só audição. O esforço que se faz na prática é justamente sobre esse aspecto. O dia inteiro informações sensoriais estão nos alcançando. Mas, do ponto de vista humano, apenas parte delas é aceitável. Será que isso quer dizer que se você acariciar com delicadeza a minha mão ou espetar uma agulha com força nela eu vou ter que gostar igualmente das duas coisas? Não, algo terá a minha preferência. Todos nós sabemos que preferimos as sensações agradáveis. (Particularmente eu detesto quando algum técnico de laboratório espeta uma agulha na ponta do meu dedo para retirar uma amostra de sangue.) Não há nada errado com preferências em si; é a emoção que acrescentamos a elas que nos coloca em apuros. Em razão de nossas emoções, transformamos preferências em exigências. A prática ajuda-nos a reverter esse processo, a desfazer as exigências, fazendo com que voltem a ser simples preferências, sem peso emocional Por exemplo, se planejamos um piquenique, uma preferência é: ''Seria melhor que hoje não chovesse". Porém, se ficamos muito contrariados porque chove, essa preferência já se tornou uma exigência: "Preparei toda essa comida, tive toda essa trabalheira — e agora faço o que com tudo isso? Mas que droga de vida!" Quando nos sentamos para praticar, vamos consolidando uma visão cada vez mais objetiva das criações mentais por meio das quais tentamos nos proteger para conseguirmos "permanecer para sempre". Aprendemos a simplesmente observar as criações mentais e a retornar ao vivenciar aberto do input sensorial. Sentar é uma iniciativa simples. Se formos honestos quando nos sentarmos para praticar, iremos descobrir que não queremos ouvir nosso corpo. Queremos pensar. Queremos pensar acerca de todas aquelas idéias que nos dão esperança. Assim, o primeiro passo é ser honesto. Isso quer dizer ver os nossos pensamentos tanto quanto nos for possível e ouvir nosso corpo. Enquanto nossa esperança não se esfumaçar, nós não devotaremos muito tempo a ouvir o nosso corpo. Sem duvida nós
não queremos ouvir. Ao longo de anos de prática sentada, contudo, essa indisponibilidade aos poucos se transforma. Sentar não diz respeito a ficar em estado de graça ou sentir-se feliz. Sentar trata de enfim enxergar que não existe, na realidade, uma diferença entre ouvir um pombo e ouvir alguém a nos criticar; a "diferença" só existe em nossa mente. Esse esforço é o que constitui a prática. Não é sentar-se em estado de graça durante algum tempo, todo dia de manhã. Diz respeito a encararmos nossa vida de maneira direta, para vermos o que estamos na verdade fazendo. Em geral, o que estamos de fato fazendo é tentar manipular nossa vida ou a vida dos outros. Simplesmente, então, observamos que estamos tentando manipular as pessoas ou os acontecimentos para que "eu" — essa ilusão construída por pensamentos autocentrados — não possa ser ferido. Honestidade: reconhecer as minhas opiniões a respeito da prática sentada, de mim mesma, da pessoa sentada perto de mim. Honestidade: "Realmente sou bem irritável, bem chata". Essa honestidade nos permite ouvir mais e mais nosso corpo — por dois segundos, vinte segundos, ou ainda mais tempo. Quanto menos esperança tivermos de poder consertar as coisas pelo pensamento, mais tempo seremos capazes de ficar ouvindo o que é real. E por fim podemos começar a nos dar conta de que não há solução. Só os egos devem ter soluções, mas não existem soluções. Em algum momento, podemos até mesmo enxergar que, se não existe solução, não existe problema. Aulas como esta não são palavras para serem ponderadas; ficamos com algo do que aconteceu, jogamos fora, depois, e então voltamos para a prática simples e direta. Será que um dia chegaremos a ser maravilhosos e perfeitos? Não. Não iremos chegar em parte alguma. Não há parte alguma onde chegar. Já chegamos neste lugar onde não existe diferença entre o som de um pombo e o de uma voz crítica. Nossa tarefa é reconhecer que já chegamos.
CONTENTAMENTO Com freqüência sou acusada de enfatizar as dificuldades da prática. Essa é uma acusação verdadeira. Acreditem-me, as dificuldades estão aí. Se não as reconhecemos, nem o motivo de
aparecerem nos é claro, nossa tendência é nos enganar. Ainda assim, a realidade última — não só em nossa prática sentada, mas também em nossas vidas — é o contentamento. Com contentamento não estou querendo dizer felicidade; as duas vivências não são a mesma. Felicidade tem um oposto; contentamento não. Enquanto buscamos a felicidade, iremos ser infelizes, porque estamos oscilando de um pólo a outro. De tempos em tempos, vivenciamos o contentamento. Pode ser por acaso, ou no decurso de nossa prática sentada, ou em outras esferas de nossa vida. Depois de um sesshin, podemos vivenciar o contentamento por mais algum tempo. Com o passar dos anos de prática, nossa vivência do contentamento aprofundase — quer dizer, se entendermos a prática e estivermos dispostos a realizá-la. A maioria das pessoas não está disposta dessa maneira. O contentamento não é algo que tenhamos de encontrar. Contentamento é o que somos se não estivermos preocupados com alguma outra coisa. Quando tentamos encontrar o contentamento, estamos simplesmente acrescentando um pensamento — e, aliás, algo nada proveitoso — ao fato básico do que somos. Não temos necessidade de sair em busca do contentamento. Mas sem dúvida precisamos fazer alguma coisa. A questão é: o quê? Nossas vidas não nos oferecem contentamento e buscamos sem cessar uma solução nesse sentido. Nossas vidas são basicamente percepção. Com esse termo, quero dizer tudo aquilo que os órgãos dos sentidos registram. Vemos, ouvimos, tocamos, sentimos odores etc. Isso é a realidade da vida. No entanto, quase o tempo todo substituímos a percepção por alguma outra atividade; revestimo-la com alguma outra coisa que chamarei de avaliação. Com avaliação não estou querendo dizer uma análise objetiva e fria, como por exemplo quando examinamos um aposento desorganizado e consideramos ou avaliamos como organizá-lo e limpá-lo. A avaliação a que me refiro é centrada no ego: "Será que este próximo episódio de minha vida irá trazer-me algo de que gosto, ou não? Será que vai me magoar, ou não? Será agradável ou desagradável? Irá tornar-me importante ou banal? Irá trazer-me vantagens materiais?". Nossa natureza é avaliar as coisas desse jeito. Quanto mais nos entregarmos a avaliações dessa natureza, menos contentamento haverá em nossa vida.
É notável a rapidez com que nos instalamos na freqüência de avaliação. Talvez venhamos funcionando bem, bem mesmo — e então, de repente, alguém critica o que estamos fazendo. Numa fração de segundo, saltamos para o reino de nossos pensamentos. Temos uma disponibilidade espantosa para nos afundar nesse peculiar espaço de julgamentos dos outros ou de nós. Muito drama vai nisso e gostamos dele, mais ainda do que temos consciência. A menos que esse drama se torne punitivo e prolongado, entramos nele de bom grado porque, como seres humanos, temos uma predileção essencial pelos dramas. De uma perspectiva comum, permanecer num mundo de puras percepções é bastante entediante. Vamos supor que saímos de férias por uma semana e que agora estamos de volta. Talvez tenhamos nos divertido ou assim julguemos. Quando voltamos ao escritório, a caixa de trabalhos por fazer está lotada e, espalhados por toda a mesa, estão recadinhos "enquanto você esteve ausente". Quando as pessoas nos telefonam, no serviço, isso em geral quer dizer que elas querem alguma coisa. Talvez o serviço que passamos para outra pessoa executar tenha sido esquecido. Na hora começamos a avaliar a situação: "Quem fez essa bagunça?"; "Quem fez corpo mole?"; "Por que é que ela está telefonando? Aposto que é a mesma velha história de sempre"; "Mas a responsabilidade é deles afinal. Por que estão me ligando?". Da mesma maneira, no final de um sesshin podemos vivenciar um fluxo de vida em contentamento. Depois nos espantamos de ele se dispersar. Embora não tenha se dispersado, alguma coisa aconteceu: uma nuvem tolda a clareza. Enquanto não nos dermos conta de que contentamento é justamente o que está acontecendo, sem considerar a nossa opinião sobre isso, iremos ter apenas um reduzido montante de contentamento. Quando permanecemos com a percepção em vez de nos perdermos em avaliações, o contentamento pode ser a pessoa que não fez o serviço enquanto estávamos de férias. Pode ser o interessante encontro ao telefone com todas aquelas pessoas para quem temos de ligar, seja lá o que estejam querendo. Contentamento pode ser a dor de garganta que estamos sentindo; pode ser a demissão; pode ser o inesperado período de trabalho extra. Pode ser o exame de matemática que precisamos fazer, ou lidar com a ex-esposa que quer uma pensão maior. Em geral não
costumamos pensar que essas situações sejam fontes de contentamento. A prática diz respeito a lidar com o sofrimento. Não que o sofrimento seja importante ou valioso em si, mas é o sofrimento que nos ensina. É o outro lado da vida, e enquanto não conseguirmos enxergar todos os lados da vida, não irá haver nenhum contentamento. Para ser honesta, o sesshin é um sofrimento controlado. Temos a oportunidade de encarar nosso sofrimento numa situação prática. Quando nos sentamos para praticar, todos os atributos tradicionais de uma boa aluna zen são postos em xeque: resistência, humildade, paciência, compaixão. Essas coisas parecem fantásticas nos livros, mas não são tão atraentes quando estamos com dor. É por isso que o sesshin deve não ser fácil: temos de aprender a estar com o nosso sofrimento e ainda assim agir da maneira apropriada. Quando aprendemos a estar com nossas vivências, sejam elas quais forem, temos mais consciência do contentamento que é a nossa vida. O sesshin é a oportunidade de se aprender essa lição. Quando estamos preparados para a prática, o sofrimento pode ser uma bênção. Nenhum de nós quer reconhecer esse fato. Sem dúvida eu tento evitar o sofrimento; existem muitas coisas que não quero que aconteçam na minha vida. Apesar disso, se não conseguirmos aprender a ser a nossa experiência mesmo quando ela dói, jamais conheceremos o contentamento. O contentamento é ser as circunstâncias de nossa vida, sejam elas quais forem. Se alguém agiu injustamente conosco, é isso. Se alguém está contando mentiras a nosso respeito, também é isso. A riqueza material dos Estados Unidos dificulta, em certo sentido, que vivenciemos o contentamento básico que somos. As pessoas que viajam para a índia às vezes relatam que, ao lado da enorme pobreza, existe um contentamento extraordinário. Defrontadas com a vida e a morte o tempo todo, as pessoas aprenderam algo que para nós aqui é muito difícil: aprenderam a apreciar cada momento. Não nos saímos muito bem nessa habilidade. Nossa própria prosperidade — todas as coisas que damos como certas e todas aquelas que queremos ainda mais — de certo modo age como um obstáculo. Existem outros obstáculos, ainda mais elementares, mas nossa abundância material é com certeza uma parte do problema.
Na prática, voltamos várias vezes à percepção, a apenas sentar. A prática é só ouvir, só ver, só sentir. Isso é o que os cristãos chamam de a face de Deus: simplesmente acolher o mundo tal como ele se apresenta. Sentimos o nosso corpo, ouvimos os carros e os pássaros. E tudo o que existe. Porém não nos dispomos a permanecer nesse espaço por mais do que uns poucos segundos. Logo nos desviamos, para lembrar o que aconteceu conosco na semana passada, ou pensar no que irá acontecer na semana que vem. Pensamos de forma obsessiva nas pessoas que nos estão dando trabalho, ou no que estamos realizando profissionalmente, ou em qualquer outra coisa. Não há nada de errado com essas idéias que pipocam em nossa mente, mas se nos mantivermos presos a elas ficaremos atolados no mundo das avaliações efetuadas segundo o nosso ponto de vista autocentrado. A maioria das pessoas passa a vida toda dentro dessa perspectiva. É natural pensar: "Se eu não tivesse um companheiro tão difícil (ou uma colega de quarto tão difícil ou qualquer outra coisa tão difícil), minha vida seria muito mais calma. Eu seria muito mais capaz de apreciar minha vida". Pode ser que isso desse certo por um breve período. Por algum tempo a vida pareceria melhor, sem dúvida. Entretanto esse conforto não é tão valioso quanto encarar aquilo que nos contraria, porque é essa própria contrariedade (ou seja, nossa tendência a nos manter apegados aos nossos dramas, a nos envolver neles com a mente acelerada e as emoções a todo vapor) que constitui o obstáculo valoroso. Não existe um verdadeiro contentamento numa vida assim; aliás, nenhum contentamento. Por isso fugimos das dificuldades e tentamos eliminar alguma coisa: o companheiro, a colega de quarto, o que quer que seja, de modo a conseguirmos encontrar aquele lugar perfeito em que nada pode' nos contrariar. Alguém tem um lugar assim? Onde poderia ser? O que poderia ser-lhe aproximado? Há muitos anos, eu costumava me conceder dez minutos todo dia para devanear a respeito de uma ilha tropical e todo dia eu arrumava um pouco mais a minha cabana. Minha vida de fantasia ficava cada dia melhor. Até que um dia então eu já estava com tudo de mais confortável. Alimentos maravilhosos simplesmente apareciam como por milagre, e aquele mar encantador e uma lagoa, perfeita para se nadar, ao lado da cabana. E ótimo devanear se existe um limite de tempo para isso. Porém meu sonho não poderia existir, exceto na minha mente. Não há
lugar na Terra onde possamos nos ver livres de nós mesmos. Se estivéssemos sentados numa caverna meditando, ainda assim estaríamos pensando a respeito de alguma coisa: "Mas que atitude nobre a minha de sentar-me nesta caverna!". E depois de mais alguns instantes: "Que desculpa posso inventar para sair daqui e isso não ficar mal?". Se pararmos dentro de nós e descobrirmos o que de fato estamos sentindo ou pensando, iremos notar — mesmo que estejamos trabalhando duro — um fino véu de preocupação egocentrada a respeito de nossa atividade. A iluminação é simplesmente não fazer isso. Iluminação é fazer o que estamos fazendo — totalmente — em reação às coisas tal como elas nos chegam. O termo atual é "fluir". O contentamento é apenas isso: algo vem até nós; eu o percebo. Algo é necessário, eu o faço; depois outra coisa, e mais outra. Ocupo uma parte do tempo dando uma volta a pé ou conversando com meus amigos. Não há problemas numa vida vivida dessa maneira. O contentamento nunca cessaria, a menos que eu.o interrompesse fazendo avaliações: reagindo aos acontecimentos como se fossem problemas, recriminando, rejeitando, esgarçando-me: "Não quero fazer isso". Quando o que acontece não se ajusta à minha idéia do que eu quero fazer, tenho um problema. Se a atividade está entre as que aprecio, também posso desprovê-la de contentamento. Vocês conseguiram pensar em algum exemplo? ALUNO: Eu
tento ser perfeito.
ALUNA: Eu
penso que fazer isso me toma importante.
ALUNA:
Eu paro de prestar atenção e só fico pensando em terminar o que estou fazendo. ALUNO:
Eu começo a me comparar com os outros e entro em
competição. ALUNO: Eu
me preocupo se estou fazendo direito.
ALUNA: Começo JOKO:
a me preocupar que isso possa acabar.
Bom. E abaixo do nível de consciência está nosso profundamente arraigado condicionamento, os motivos inconscientes que nos levam a fazer aquilo que fazemos. Com o tempo todas essas coisas vêm à tona. Mesmo que estejamos numa atividade de que gostamos, mesmo que o companheiro seja alguém de quem basicamente gostamos, a natureza do ser humano é continuar tentando ajeitar as coisas, o que leva embora o
contentamento. Qualquer avaliação autocentrada de uma situação irá nublar a percepção pura, que é o próprio contentamento. Quando esses pensamentos surgem, apenas os vemos e deixamos que se vão, vemos os pensamentos e permitimos que se vão, vemos os pensamentos e permitimos que se vão. Regressamos à vivência daquilo que estiver acontecendo. É isso que coloca diante de nós a perspectiva do contentamento. A boa prática sentada não significa que de súbito temos um espaço muito claro no qual nada acontece. Ocasionalmente isso pode acontecer, mas não é importante. Para uma boa prática sentada é necessário que estejamos cada vez mais dispostos a tomar consciência do que está acontecendo. Estarmos disponíveis para perceber conscientemente que: "É sim, não faço mais nada senão pensar no Taiti. Não é interessante?"; ou: "Terminei com o meu namorado há seis meses e o que estou fazendo? Todos os meus pensamentos estão presos nisso. Mas que interessante!". Emoções acumulam-se em função desse tipo de pensamento — depressão, preocupação, ansiedade — e continuamos atolados em nossas obsessões. Onde está o contentamento? Para a maioria, permanecer no momento presente e continuar se lembrando de que é isso que viemos fazer aqui é sofrer, lemos de estar dispostos a efetuar essa prática não só quando estamos sentados, mas pelo resto de nossas vidas. Se o fizermos, então aumentaremos a porcentagem de vivências de contentamento em nossa vida. Para tanto, temos de pagar um preço, porém. Algumas pessoas o pagarão, outras não. Às vezes, as pessoas imaginam que consigo produzir contentamento para elas. Elas acham que eu tenho alguma espécie de mágica. Mas não consigo fazer nada pelos outros, exceto dizer-lhes o que fazer. Não posso realizá-lo por mais ninguém, apenas para mim mesma. É por isso que, se a prática for muito facilitada e não existir um preço a ser pago, nunca sequer viraremos a chave na fechadura dessa porta. Se continuarmos em nossa vida fugindo de tudo o que nos desagrada, essa chave nunca se movimentará. Não devemos nos forçar com exagero. Dependendo de nossa capacidade, podemos precisar recuar, retroceder. Mas, se recuarmos, podemos estar certos de que nossos problemas permanecerão fielmente ao nosso lado. Quando "fugimos" de nossos problemas, eles nos acompanham sem hesitação. Eles gostam de nós, e não nos abandonarão enquanto não lhes dermos uma
verdadeira atenção. Dizemos que queremos ser unos com o mundo, quando o que queremos na realidade é que o mundo nos agrade. Para que possamos estar "em união com o mundo", devemos passar vários anos numa prática meticulosa, cavando e esculpindo. Não existem atalhos ou caminhos que conduzem mais depressa a um contentamento e sossego relativos sem que se pague um preço. Devemos enxergar quando estamos embaralhados em nossas questões pessoais, apenas observar esse movimento interno, e depois voltar para este mundo das percepções puras, o que não nos interessa de modo nenhum, quase nunca. Suzuki Roshi disse certa vez: "Do ponto de vista comum, estar iluminado parece algo muito monótono". Não existe nisso drama nenhum; é apenas estar ali. Diferimos em termos de nossa capacidade de permanecer com as nossas percepções. Mas todos temos essa capacidade. Ela pode se manifestar em níveis ligeiramente diferentes, mas todos temos essa capacidade. Uma vez que somos humanos, podemos estar despertos e podemos sempre aumentar a quantidade de tempo em que permanecemos despertos. Quando despertamos, o momento se transforma: começa a dar uma sensação gostosa, a nos conferir energia para fazer o que vem em seguida. Essa capacidade sempre pode aumentar. Devemos estar conscientes do que somos neste segundo. Se estivermos com raiva, temos de saber disso. Temos de senti-la. Temos de ver os pensamentos aí envolvidos. Se estamos entediados, isso é, sem sombra de dúvida, algo a ser pesquisado. Se nos sentimos desestimulados, precisamos perceber isso. Se estivermos nas malhas dos julgamentos que elaboramos ou da convicção de estarmos exclusivamente com a razão, precisamos ter isso presente. Se não virmos esses conteúdos, eles roubam o espetáculo. Para resumir: quando nos sentamos para praticar, estão ocorrendo duas atividades: uma é a percepção pura, o mero sentar-se aqui. O conteúdo dessa percepção pode ser qualquer coisa. A outra atividade é a avaliação: saltar da percepção pura para os julgamentos autocentrados a respeito de qualquer coisa, quando nos sentamos para a prática, lidamos com essa tensão, com essa contração e com esse pensamento repetitivo. Ternos de enfrentar nosso condicionamento residual: é o único caminho até o contentamento. Lidamos com o que está ocorrendo, exatamente aqui, bem agora.
CAOS E DESLUMBRAMENTO Quando converso com os alunos, ouço muitas coisas a respeito ae por que se sentam para praticar: "Quero me conhecer melhor"; "Quero que minha vida fique mais integrada"; "Quero ficar mais saudável"; "Quero conhecer o universo"; "Quero saber o que é a vida"; "Estou só"; "Quero uma relação"; "Quero que minhas relações fiquem melhores". Existem infinitas variações para essas e outras motivações para uma prática. Todos estão absolutamente bem, não há nada de errado com nenhuma delas. Mas, se pensamos que a finalidade de sentar e praticar é atingir essas coisas, então nos equivocamos quanto ao que estamos fazendo. É verdade que temos de começar a nos conhecer e a conhecer nossas emoções e como elas atuam. Precisamos perceber a relação entre nossas emoções e nossa saúde física. Temos de considerar a nossa falta de integração e tudo o que essa não-integração implica. Sentar e praticar atingem todos os aspectos de nossas vidas; apesar disso, quando nos esquecemos de uma só coisa, esquecemo-nos de tudo. Sem ela, nada mais funciona. Difícil denominá-la. Poderíamos chamá-la deslumbramento, assombro. Quando nos esquecemos de nos maravilhar diante daquilo com que deparamos, então estamos em apuros, e nossa vida não acontece. É verdade que através da prática necessitamos efetuar um bom contato com aquelas coisas que mencionamos antes: emoções, tensão, saúde — entre outros fatores. Enquanto não estivermos habituados a fazer essas ligações, o deslumbramento não aparece. Nossa ligação, porém, não tem de ser completa; no entanto, só quando não estamos nos afobando por causa dessas coisas é que enxergamos o deslumbramento. Por exemplo: se estou com alguém que me irrita, esqueci o deslumbramento que ela é. Outro exemplo: a maravilha de fazer um serviço que não quero fazer. Ontem, decidi limpar aquele espaço que fica embaixo da pia. Essa é uma coisa que prefiro esquecer de fazer. No entanto, havia nisso também um deslumbramento: diante daquelas partículas de sujeira e outras coisas que encontrei. O deslumbramento não é algo diferente daquilo que fazemos. Pensamos que o deslumbramento é um estado extático, e o deslumbramento pode
ser mesmo um êxtase. Dirigir pelas Montanhas Rochosas com o panorama do Grande Canyon — essas cenas são tão espetaculares que por um momento vemos o deslumbramento que há nisso. Essas vivências podem conter uma poderosa dimensão emocional. Mas o deslumbramento não é sempre emocional; nem nós conseguiríamos passar todo o nosso tempo em tal estado emocional. Podemos pensar que o deslumbramento só é encontrado em certas atividades especiais. "Talvez os artistas e os músicos achem fácil enxergar o que é deslumbrante. Mas sou um contador. Onde é que está o deslumbramento disso?" Mesmo que os músicos e artistas entrem de fato em contato com o deslumbramento em suas áreas específicas, podem não vê-lo em outras. Podemos, por exemplo, ter a impressão de que os físicos e outros cientistas estão muito distantes do deslumbramento da vida. No entanto, conheci alguns físicos e descobri que é muito importante para eles que uma solução seja elegante. Eis aí uma palavra interessante de surgir no meio de um monte de matemáticos e computadores. Certa vez perguntei a um físico por que ele usava essa palavra. Ele disse apenas: "Toda boa solução tem de ser elegante". Quando lhe perguntei o que isso queria dizer, ele respondeu que elegância significa ir decantando até a essência, para que não se fique com coisas extras. Isso contém um deslumbramento. A solução pode não ser nem verdadeira; os físicos lidam com teorias. Em certo sentido, nenhuma fórmula é verdadeira. Não há nada de "verdadeiro" também em nenhum relacionamento. Mas, neste momento, um relacionamento pode ser simplesmente deslumbrante. Se não nos damos conta disso, não nos damos conta do que é a nossa prática. A prática não é estar simplesmente integrado ou em bom estado de saúde, ou ser uma boa pessoa, embora todas essas coisas façam parte da prática. A prática diz respeito ao deslumbramento. Se você quer averiguar como anda a sua prática, na próxima vez que algo acontecer em sua vida que você não conseguir suportar, pergunte-se: "Onde está aqui o deslumbramento?" É isso que cresce conforme vamos praticando. Aumenta a nossa capacidade de ver o deslumbramento da vida, seja o que for que se apresente, e independente de gostarmos ou não. Por exemplo, quando entramos numa relação com essa perspectiva, podemos dizer: "Eu amo você pelo que você é e amo você pelo que
você não é". Em lugar de encontrar os defeitos — "Você fala demais. Você não fala nada. Você deixa suas roupas por toda parte. Você nunca limpa a mesa da cozinha. Você me irrita o tempo todo" —, o deslumbramento brilha e atravessa as camadas. "Eu amo você pelo que você é e amo você pelo que você não é." Como sabermos se a nossa prática é uma prática real? Só por uma coisa: vemos cada vez mais o que é deslumbrante. Qual é o deslumbramento? Eu não sei. Não podemos saber essas coisas através do pensamento. Mas sempre sabemos quando é verdadeiro. Às vezes não consigo enxergar de jeito nenhum o que há de deslumbrante, embora eu o consiga muito mais do que há cinco anos. Uma prática verdadeira desloca-se ao longo de um continuum a caminho de um teor cada vez maior de percepção consciente do deslumbramento. Não estou dizendo viver num estado de graça, de alguma espécie. Pode ser enxergar o deslumbramento de uma pessoa de quem não gostamos. "Mas que coisa maravilhosa — ela é exatamente como ela é!" Ou podemos encontrá-lo em alguém que tem uma doença grave. Essa pessoa pode ter uma presença tão poderosa que ilumina todo o espaço à sua volta, de maneira deslumbrante. Conforme você vai passando pelo dia, atravessando suas pequenas adversidades e dificuldades, pergunte-se: "Onde está o deslumbramento?". Sempre estará ali. O deslumbramento é a natureza da vida em si. Se não o sentimos, simplesmente continuamos com a nossa prática; não podemos nos forçar a senti-lo. Só podemos trabalhar com o obstáculo que está à nossa frente. O obstáculo é criado por nós; não é causado pelo que aconteceu conosco. Isso faz parte do deslumbramento também. Se vocês estão entendendo do que estou falando, ótimo. Se não sabem do que estou falando, ótimo também. Ambas as respostas fazem parte do deslumbramento: saber ou não saber; de todo modo, ótimo. ALUNO: Tenho
pensado bastante a respeito do conflito com o Iraque. Não consigo enxergar nada deslumbrante nisso. ALUNO: Não
posso evitar, mas acho que esse conflito é horrível. Por baixo desse sentimento sinto medo. Não queremos enxergar o deslumbramento porque estamos atolados no medo. JOKO: Sim,
no geral isso é verdade.
ALUNA:
Quando penso no conflito, localizo um certo deslumbramento na perspectiva de uma maior unificação mundial. JOKO:
Sim. Como pessoa, olho com horror para esse conflito. Mas o caos é em si interessante. Na disciplina da física, existe um campo relativamente novo chamado a teoria do caos. A guerra está produzindo o caos. Com ele surgem novas possibilidades. Tudo está sendo abalado e, de agora em diante, todo o Oriente Médio irá ser diferente. Nossos relacionamentos com todos os envolvidos serão diferentes. Os relacionamentos deles com todas as coisas irão ser diferentes. Não podemos enxergar ordem no caos porque somos humanos. Não é que o caos seja necessariamente ruim; até mesmo no horror existe um deslumbramento. Deslumbrante é o que está acontecendo. E não nos cabe julgar ou avaliar isso. Claro que se eu pudesse impedir a matança eu o faria. Isso não faz nenhum sentido; é só o caos, e, no entanto, o caos não é caos — é deslumbramento. Do caos emerge uma nova ordem, que por sua vez se torna caos. Isso é a vida. Para nós, paz é estar disponível para permanecer com o caos. Isso não quer dizer que não agimos de modo algum. Mas até a nossa ação faz parte do caos. Sempre temos dois pontos de vista: o pessoal e esse que se desenvolve a partir da prática sentada, que é o deslumbramento. Por exemplo: é terrível que milhares de pessoas tenham sido mortas na última guerra; mas do ponto de vista do bem-estar da Terra, menos pessoas estão melhor. A Terra já tem muita gente. Se eu sou uma das pessoas que morreram ou se conheço alguém que foi morto, claro que, pessoalmente, isso para mim foi um desastre. Porém, a vida na Terra não pode ser mantida numa posição fixa. Saddam Hussein é a próxima peça no tabuleiro; conforme ele anda, todos andam, e o caos sobrevirá. Isso é bom ou ruim? Nenhum dos dois. É só o que é. ALUNO:
É como uma célula de câncer: queremos reduzir essa célula porque vai tentar prejudicar o corpo todo. JOKO: Mas
a célula de câncer não vê a coisa desse jeito. Ela só está fazendo o que está fazendo. ALUNA:
Nós queremos tomar providências para fazer algo a respeito do câncer; no entanto, num determinado momento, também podemos nos dar conta de seu deslumbramento. JOKO:
Podemos estar lutando contra o câncer, fazendo tudo o que pudermos para sobreviver e, ao mesmo tempo, podemos sentir
o deslumbramento deste processo que nós somos. Se eu tivesse câncer eu lutaria até o último fio de força. Sou uma lutadora. Ao mesmo tempo, o deslumbramento está sempre presente. ALUNA:
É como se a última coisa que eu quisesse ver fosse o deslumbramento. JOKO:
Você tem razão. A última coisa que queremos enxergar é o deslumbramento, porque é humilhante; sempre nos sentimos insultados em certa medida. Tudo na vida é deslumbramento, mas, como a vida tal como nos aparece raramente nos convém, não conseguimos enxergar o deslumbramento. Então ficamos nos indagando por que somos tão infelizes. Aquilo que estamos banindo de nossas vidas é o que realmente queremos e necessitamos. ALUNA:
Pensando no novo equilíbrio de forças no Oriente Médio, lembro das tensões extras que recentemente pesaram sobre minhas relações. Estamos passando por nossas pequenas batalhas e mudanças, e estamos trabalhando em prol de um novo equilíbrio de forças. E como um microcosmo do que está acontecendo em várias partes do mundo. E observando o conflito do Oriente Médio consigo entender com um pouco mais de clareza o que está acontecendo comigo neste exato momento, em casa. ALUNO:
Quando morei no Oriente Médio por três anos, um ponto de vista dos árabes apareceu-me com muita nitidez. Neste país, grande parte do petróleo vem daqui mesmo, no entanto, desperdiçamos uma boa parte do que usamos. Temos uma necessidade ansiosa de petróleo. Nossa ânsia está fora de controle, e estamos então usando os recursos de outrem para satisfazer a nossa própria ânsia. Faz parte do caos. Há uma maneira de ver tudo isso, que os árabes têm, e que é realmente válida. ALUNA:
Há pouco tempo voltei de uma viagem à África. Enquanto viajava por lá às vezes via homens árabes com seus mantos esvoaçantes. Observei como eu reagia a eles, baseando-me nas coisas que me haviam sido ditas a respeito de como algumas culturas árabes são opressivas em relação às mulheres. Sentia meu corpo ficando tenso. Um dia, enquanto eu estava passando pelo corredor de um avião, esbarrei num desses árabes e ele me disse: "Desculpe-me", olhando-me nos olhos e sorrindo. Naquele momento algo abriu-se para mim e eu o vi apenas como uma pessoa e não como um árabe.
ALUNO:
Muitas vezes fico fascinado por todo o caos que me circunda. Observo os conflitos em minha própria mente, e outras pessoas falam para mim das coisas que estão atravessando, e depois olho para as pessoas que estão a caminho do trabalho no centro de Los Angeles. É uma confusão imensa, e praticamente todo mundo está indo para o trabalho. É quase que inacreditável! Imaginar alguém em algum lugar tentando coreografar aquilo tudo — "Anda, anda, anda!" — seria totalmente impossível. Tudo parece comprimido a ponto de explodir. No entanto, em razão da extrema pressão, as pessoas recuam um pouco e deixam os outros entrar, e tudo volta a fluir. É fascinante como afinal aquilo tudo acaba funcionando. JOKO: Uma
vez enquanto voava até Los Angeles eu estava conversando com um passageiro que era planejador urbano. Ele olhou pela janelinha para as autopistas e os edifícios e disse: "Não vai conseguir ficar desse jeito por muito mais tempo!". Mas as coisas acabam se mantendo em pé porque existe um ajustamento em andamento. De alguma maneira as pessoas se adaptam. ALUNO:
Eu observo que relaxo por causa da inevitabilidade do caos — e talvez outros façam isso também. Talvez seja isso que impeça a cidade de tornar-se mais maluca do que ela já é. Qualquer pessoa que dirija por algum tempo numa autopista ou numa rua engarrafada precisa realmente deixar as coisas acontecerem para agüentar a situação. É um momento nessa cidade frenética em que as pessoas têm de ceder, de deixar que aconteça o que tiver de acontecer. É uma espécie de jogo espiritual. JOKO:
Nas lutas do Oriente Médio e de outras partes vemos o resultado final da violência interna de todos nós. Imaginamos que podemos resolver os nossos problemas com lutas externas e guerras. Gastamos somas inacreditáveis em armamentos; no entanto, os índices de mortalidade infantil estão entre os mais altos no mundo industrializado. Isso também faz parte do caos. Tudo bem adotar um ponto de vista pessoal e tentar mudar essas coisas, mas nossos pontos de vista pessoais precisam ser equilibrados pelo reconhecimento de que milhões de coisas — muitas mais do que conseguiremos um dia entender — estão se agrupando, mudando e movimentando-se o tempo todo. Enquanto não encararmos a nossa própria situação, com todo o caos que existe em nossas próprias vidas, não poderemos
fazer muito, ou ser eficientes em outros lugares. Vai haver caos de qualquer jeito, mas, quando nós o encaramos, vemo-lo por um outro prisma. Não queremos vê-lo, no entanto. Queremos viver dentro das caixas que criamos e apenas continuar continuar redeco-rando as paredes, em vez de sair pela porta. Realmente adoramos as nossas prisões; essa é uma razão pela qual a prática é tão difícil. Resistência é a própria natureza do ser humano. Uma pessoa como Saddam Hussein não aparece do vácuo, sem motivo; ele é o resultado de muitas e muitas circunstâncias, tal como foi Hitler. Não deveríamos no entanto pensar que se o mundo inteiro praticasse o zazen não haveria caos. Também não é assim. O caos continuará. Não precisamos nos preocupar com isso. Mas, se praticarmos, com o tempo teremos mais abertura para as coisas serem como elas são. Continuaremos tendo preferências pessoais pelas coisas irem de um certo jeito, mas não faremos mais tantas exigências. Preferências são muito diferentes de exigências. Quando as coisas não caminham do jeito que preferimos, ajustamo-nos com muito mais rapidez ao modo como elas aparecem. Isso é o que acontece acontece após anos de prática sentada. Se vocês estiverem procurando alguma outra coisa, bem, desculpem-me... É paradoxal, mas aprender a permanecer com o caos proporciona uma espécie de paz profunda. Porém não é aquilo que costumamos costumamos imaginar para nós. ALUNA: Isso JOKO: Isso
é o deslumbramento? deslumbramento?
é o deslumbramento. deslumbramento.
VIII. Nada Especial DO DRAMA AO NÃO-DRAMA Na prática zen nós saímos de uma vida dramática — espécie de novela das 20 h — para uma vida não-dramática. A despeito do que possamos dizer, todos nós gostamos muito de nossos dramas pessoais. A razão para tanto? Seja qual for o nosso drama
particular, sempre estamos no papel principal — que é onde nós queremos estar. E, pela prática, nós gradualmente nos deslocamos para longe dessa preocupação com nós mesmos. Assim, sair de uma vida dramática para uma vida não-dramática, embora possa parecer sem nenhum atrativo, é do que trata a prática zen. Examinemos esse processo mais de perto. Quando começamos a praticar, é bom começar respirando algumas vezes bem fundo, enchendo a cavidade abdominal, o meio do peito e embaixo e mbaixo dos ombros, até estarmos repletos de ar; depois, soltamos o ar, interrompendo a expiração um instante. Faça isso três ou quatro vezes. Em certo sentido, é artificial, mas ajuda a criar um certo equilíbrio e forma uma base conveniente para se sentar e praticar. Depois de termos feito isso, o passo seguinte é esquecer exatamente isso, esquecer de controlar a respiração. Não o esqueceremos por completo, é claro, mas é inútil controlar a respiração. Em vez disso, apenas vivencie esse processo, o que é muito diferente. Não estamos tentando fazer uma respiração lenta, longa e regular, como muitos livros sugerem. Em lugar disso, o que queremos é deixar que o ar seja o comandante, para que a respiração esteja nos respirando. Se a respiração for superficial, que seja assim. Quando nos tornamos a nossa respiração, por sua própria pulsação a respiração se torna mais lenta. A respiração permanece superficial superficial porque queremos pensar em vez de vivenciar a nossa vida. Quando fazemos isso, tudo se torna mais superficial e controlado. A palavra retesado é bastante sugestiva: descreve como subimos para a cabeça, a garganta, os ombros e lá nos tensionamos; estamos com muito medo e nossa respiração também fica alta. Uma respiração que consegue ser abdominal, como tende a ocorrer após anos de prática, é aquela que vem quando a mente perdeu as esperanças. Tudo aquilo pelo que esperamos é do que lentamente aprendemos a desistir e, então, a respiração desce. Não é algo que precisemos tentar fazer. A prática consiste em vivenciarmos a respiração como ela é. Também pensamos que deveríamos ter uma mente sossegada. Muitos livros dizem isto: que a pessoa iluminada é aquela que tem uma mente sossegada. É verdade: quando não temos nenhuma esperança, nossa mente sossega. Enquanto alimentamos esperanças nossa mente está tentando descobrir como satisfazer essas vontades maravilhosas de coisas que queremos que aconteçam, ou estamos tentando nos proteger de todas as coisas
terríveis que não deveriam acontecer. Assim, a mente está tudo, menos sossegada. Agora, em lugar de forçar a mente para que ela sossegue, o que podemos fazer? Podemos nos tornar conscientes do que ela está fazendo. É isso que é rotular nossos pensamentos. Em vez de nos atolarmos em esperanças começamos a ver: "É, sim, pela vigésima vez hoje estou esperando sentir algum alívio". Depois de um bom sesshin, poderemos ter dito isso umas quinhentas vezes: "Espero que ele me telefone quando o sesshin acabar". E então rotulamos: "Com esperança de que ele me telefone quando o sesshin terminar"; "Com esperança de que ele me telefone quando o sesshin terminar". Depois de termos dito isso quinhentas vezes, o que acontece com isso? Enxergamos exatamente o que é: um absurdo. Afinal de contas, a verdade é que ou ele telefona ou não telefona. Conforme vamos observando nossa mente ao longo dos anos, aos poucos as esperanças se dissipam. E o que nos resta? Pode parecer lúgubre, eu sei: resta-nos a vida tal como ela é. É proveitoso entrar nesse processo com uma atitude de investigação. Em vez de ver a nossa prática sentada como algo bom ou mau, como algo que deve melhorar numa base firme, deveríamos só investigar, observar o que estamos de fato fazendo. Não existe uma boa ou má prática sentada; existe apenas a percepção consciente ou a inconsciência do que está se passando em nossa vida. E, quando nós mantemos mais tempo a percepção consciente, as indagações que temos a respeito da vida são vistas por um novo prisma. Não somos entregues pura e simplesmente a um outro ponto de vista, mas conquistamos uma maneira diferente de ver as coisas. Conforme esse processo se desenvolve com o tempo, muito devagar a nossa mente vai sossegando — não por completo, e o que se aquieta não são os pensamentos (poderemos praticar vinte anos e continuar vendo os pensamentos que correm pela mente). O que sossega é o nosso apego aos nossos pensamentos. Cada vez mais os vemos como uma espécie de espetáculo, parecido com o que fazemos quando olhamos as crianças brincarem. (Minha mente pensa quase o tempo todo. Que pense, se é o que quer.) E nosso apego aos pensamentos que bloqueia o samadhi. Podemos ter muitos pensamentos e mesmo assim estar em profundo samadhi, desde que não estejamos apegados a eles e só permaneçamos na vivência. É verdade que quanto mais tempo de prática tivermos, menos tenderemos a pensar, porque nossa tendência é obcecarmo-nos menos. Sendo assim, a mente de fato aquieta, embora com toda certeza não por
termos dito a nós mesmos:' 'Eu tenho de ter uma mente sossegada!". Quando nos mantemos sentados na prática, de tempos em tempos alcançamos perspectivas de grande lucidez a respeito de nossas vidas, que esclarecem diferentes aspectos das mesmas. Em si mesmos esses momentos não são nem bons nem maus e, do ponto de vista da prática zen, não são nem particularmente importantes. Apesar de esses momentos de lucidez repentina terem uma certa utilidade, zazen não é ir atrás deles. Eles realmente ocorrem, e de repente vemos: "Ora, é isso — isso é o que eu faço. Que interessante!". No entanto, até mesmo captar o momento dessa repentina lucidez é só algo que vem e vai, vem e vai, por nossa mente. Tornamo-nos cientistas que vivem esse experimento chamado nossa vida. Nossos eus e nossos pensamentos estão espalhados à nossa frente; olhamos com interesse para esse espetáculo, mas não mais como nosso próprio drama pessoal. Quanto mais desenvolvida for essa perspectiva em nós, melhor será a nossa vida. Por exemplo: se estamos fazendo um experimento com sal e açúcar, não dizemos: "Que coisa terrível! O sal e o açúcar estão discutindo!". Não nos importa o que o sal e o açúcar estejam fazendo, apenas os observamos e apreciamos como interagem. Por outro lado, em geral nós nos importamos muito com o que os nossos pensamentos estão fazendo. Não ficamos apenas na sua observação, com uma atitude de interesse, como os cientistas que apenas acompanham o que acontece. "Se eu misturar isso e aquilo — interessante. Se eu puser essas coisas em proporções diferentes — interessante." O cientista simplesmente observa e acompanha acompanha processos. Quando essa qualidade de observar, de apreciar e vivenciar o que acontece estiver mais fortalecida em nossa vida, a realidade (que é só a percepção consciente) depara a irrealidade ou o nosso pequeno drama tecido de pensamentos. E vemos com mais clareza o que é real e o que é irreal, como a luz que ilumina a escuridão. Mas, quando nós trazemos mais realidade (percepção consciente) para nossas vidas, aquilo que vinha sendo problemático parece mudar. Quando instilamos mais percepção consciente em nossas vidas, começamos a eliminar nossos dramas pessoais. E não queremos fazer isso de verdade. Gostamos de nossos dramas pessoais, gostamos de alimentá-los. Cada um de nós tem sua própria encenação predileta. Por exemplo, podemos acreditar: "As circunstâncias da minha vida são em especial difíceis. A minha infância foi mais difícil que a da maioria das pessoas"; ou "Aquela
coisa que me aconteceu realmente arruinou a minha vida". É verdade, essas coisas aconteceram e criaram os nossos condicionamentos. Porém, enquanto mantivermos nossas crenças de que as histórias que contamos são a verdade acerca de nossa vida, a prática genuína não irá ocorrer. As crenças interditam a prática. A menos que haja uma certa disponibilidade para abandonar essas crenças pessoais de vida, não existe nada que eu ou qualquer outra pessoa possa fazer. Às vezes, um sofrimento é o suficiente para criar por si aquela mínima brecha por onde a percepção consciente consiga se infiltrar. Mas enquanto essa pequena fenda não se abrir não há nada que alguém possa fazer. E as pessoas realmente obstinadas conseguem manter suas histórias pessoais até a morte. A vida para elas é muito dura. Uma crença pessoal desse tipo — "Sou uma vítima" — é como um armário fechado e escuro. Se queremos sentar nesse armário com a porta bem trancada, nada conseguirá penetrar nele. Infelizmente, enquanto insistimos em ficar sentados dentro desse armário (e todos fazemos isso às vezes), descobrimos que ninguém quer, na realidade, entrar e sentar-se conosco. Com franqueza, ninguém tem um interesse particular pelo drama dos outros. O que nos interessa é o nosso próprio drama. Eu posso querer me fechar dentro do meu próprio armário, mas com certeza não vou ficar sentado dentro do seu. Todos nós entramos em nossos armários particulares. O armário é o nosso drama pessoal, e queremos ficar sozinhos dentro dele para nos sentir bem no seu centro. É uma suculenta infelicidade. E quer nos demos conta, quer não, adoramos isso. Porém, quando passamos pela experiência experiência de abrir a porta e deixar um pouco de luz entrar, depois de termos visto uma vez que seja o que é um pouco de luz genuína dentro do armário, nunca mais conseguiremos nos manter indefinidamente dentro dele. Pode nos custar anos, mas depois de algum tempo iremos abrir a porta. Uma maneira de entender os sesshins é que esses encontros fazem a porta abrir-se para algumas pessoas. Por isso é que os sesshins podem ser tão incômodos. Em algum momento começamos a ver que aquilo que acontece em nossa vida não é a questão; sempre haverá algo acontecendo. O que acontece sempre será uma mescla daquilo de que gostamos e de que não gostamos. Não há tempo em que isso cesse.
No entanto, quanto mais cientistas nos tomarmos, menos nos emaranharemos no que está acontecendo e mais seremos capazes de apenas observar o que está acontecendo. A capacidade de fazer isso e a disponibilidade para tanto aumentam com o passar dos anos na prática. No início essa postura observadora pode ser mínima. Nossa incumbência é aumentar nossa abertura para desenvolvê-la, No final, não importa como nos sentimos. Não faz diferença se estamos deprimidos, inquietos, fragmentados, felizes. A tarefa do aluno é observar, vivenciar, tomar consciência. Por exemplo, a depressão, quando completamente vivenciada, deixa de ser depressão e torna-se samadhi. A inquietação também pode ser vivenciada e, quando isso acontece, dá-se um deslocamento interno e não temos mais de nos preocupar com a nossa inquietação. Nenhuma circunstância, nenhum sentimento, essa é a meta. O objetivo é a oportunidade oportunidade de vivenciar. Costumamos supor que temos de mergulhar fundo nas "questões" psicológicas submersas e trabalhar com esse material. Não é bem isso. Afinal de contas, onde essas questões se escondem? escondem? Não é suposição realmente acurada a de que existam coisas por baixo da consciência que irão dar um jeito de vir à tona, embora possa assim parecer a nós. Nos sesshins, podemos ficar emocionados, tristes, desesperados, mas essas emoções não são mistérios escondidos que aparecem de repente. Essas coisas são simplesmente o que somos, e estamos vivenciando quem somos. Quando tentamos trabalhar para que essas coisas venham à tona, estamos apenas diante de uma outra forma de auto-aperfeiçoamento que não funciona. A prática não é uma questão de sentar para que essas coisas possam emergir e assim consigamos trabalhar com o material para nos tornarmos pessoas melhores. O fato é que já estamos bem. Não se trata de ir a nenhuma outra parte. Bloqueamos nossa percepção consciente com nossa culpa e nossos ideais. Por exemplo, vamos supor que eu disse para alguém: "É só que não sou uma boa professora. Não lido com todas as situações de maneira perfeita". Quando fico apegada a esse pensamento, bloqueio toda a minha capacidade de aprender. A culpa e os ideais de como eu deveria ser bloqueiam a única coisa que de fato importa: uma clara percepção consciente: "Estou vendo o que aconteceu, eu realmente fiz uma bela confusão, não foi? Bom, o que posso aprender?". Um outro exemplo poderia ser o do
cozinheiro preocupado com o jantar. Vamos supor que o jantar queimou. O cozinheiro não tem de se descabelar: "Oh! é o fim do mundo! O que as pessoas vão pensar de mim? Eu acabo de queimar tudo!". Nesse ponto o que pode ser feito? Basta procurar cada pedaço de pão que ainda houver em casa e reparti-lo. Não é o fim do mundo quando o jantar queima, mas a culpa interdita o aprendizado. A única coisa que importa é a percepção consciente do que está acontecendo. Quando entramos pelo setor dos ideais e da culpa, as decisões em si tornam-se difíceis, porque nós não vemos como caímos nas armadilhas das nossas preocupações: "Será que isso vai servir para mim? O que acontecerá? Será realmente uma boa medida? Minha vida vai se tornar mais segura, mais maravilhosa, mais perfeita?". Essas perguntas são erradas. Quais são as certas? E quais são as decisões certas? Não podemos dizer antes, mas, em algum momento, saberemos se não nos emaranharmos na culpa, nos ideais e no perfeccionismo que em geral acrescentamos ao nosso processo de tomar decisões. Sentar para praticar trata dessa espécie de clarificação. Todas as técnicas são úteis e todas são limitadas. Seja qual for a técnica que inserirmos em nossa prática, ela nos servirá por algum tempo, até que deixemos realmente de empregá-la, que comecemos a devanear com ela ou a sonhar. Sendo assim, o importante com qualquer técnica é a intenção. Nossa intenção deve ser a de estarmos presentes, de tomarmos consciência, de estarmos praticando. E ninguém sustenta essas intenções o tempo todo. Elas se mantêm em caráter intermitente. Também queremos encontrar um professor que passe a tomar conta disso por nós; todos nós queremos ser salvos e cuidados. A intenção de praticar é a coisa mais importante. Não existe técnica que possa nos salvar, professor algum que venha nos salvar, centro algum que possa nos salvar. Não existe nada que venha nos salvar. Esse é o mais cruel de todos os golpes. Quando transformamos nossa vida dramática numa vida não-dramática, isso quer dizer que pegamos a nossa vida de incessante buscar, analisar, alimentar esperanças e sonhar e a tornamos um espaço para apenas vivenciar a vida tal como ela se nos aparece, neste exato momento. O fator chave é a percepção consciente, o mero vivenciar da dor que é como é. Paradoxalmente
isso é o contentamento. Não existe nenhum outro contentamento na Terra, exceto este. Essa espécie de prática surte um efeito letal: eliminará de maneira irreversível nosso drama. Mas não a nossa personalidade. Todos somos diferentes e continuaremos sendo assim. Contudo, o drama não é real. É um impedimento a uma vida que flui e pode ser atenciosa.
MENTE SIMPLES A única mente que pode enxergar a vida de maneira transformada é a simples. O dicionário define simples como "tendo ou sendo composto por apenas uma parte". A percepção consciente pode absorver uma multiplicidade de coisas, da mesma forma como o olho consegue captar muitos detalhes ao mesmo tempo. Mas em si mesma a percepção consciente é uma coisa só. Ela permanece inalterada, sem acréscimos ou modificações. A percepção consciente é completamente simples; não temos de acrescentar nada, nem de modificá-la. É despretensiosa e isenta de arrogância. Não pode evitar de ser assim, a percepção consciente não é uma coisa, para ser afetada por isto ou aquilo. Quando vivemos a partir da pura percepção consciente, não somos afetados por nosso passado, nem pelo presente, nem pelo futuro. Uma vez que a percepção consciente nada tem que possa servir-lhe de fingimento, é humilde. É modesta. Simples. A prática diz respeito a desenvolver ou revelar uma mente simples. Por exemplo, muitas vezes ouço as pessoas se queixando de que se sentem assoberbadas pela vida que estão levando. Estar assoberbado é estar subjugado por todos os objetos, pensamentos, acontecimentos da vida e sentir-se emocionalmente afetado por eles, de tal modo que ficamos com raiva e contrariados. Quando nos sentimos assim, podemos dizer e às vezes dizemos coisas que magoam os outros e a nós mesmos. Diferente da mente simples, que existe na pura percepção consciente, confundimo-nos pela multiplicidade do ambiente externo. Nesse estado de confusão não conseguimos perceber que tudo o que é externo é nós. Não conseguimos enxergar que tudo existe em nós enquanto não vivemos de 80 a 90% do tempo com a mente simples. A prática
trata de desenvolver essa mentalidade. Não é fácil. Requer uma inesgotável paciência, assiduidade e determinação. No meio dessa simplicidade, dessa percepção consciente, entendemos o passado, o presente, o futuro e começamos a ser menos afetados pela avalanche de experiências. Conseguimos viver apreciando as pessoas e situações e sentindo uma genuína compaixão. Nossa vida deixa de revolver em torno de julgamentos como: "Oh, ele é tão duro comigo. Sou uma vítima total"; "Você fere meus sentimentos"; "Você não é do jeito que eu quero que você seja". Às vezes as pessoas me dizem que, depois dos sesshins, a vida simplesmente flui, sem nenhum problema. As mesmas questões continuam existindo, mas representam menos dificuldade. Isso acontece porque no sesshin a mente se torna mais simples. Infelizmente, nossa tendência é perder essa simplicidade porque recomeçamos a nos enredar no que parece ser uma vida muito complexa em torno de nós. Sentimos que as coisas não são do jeito que queremos que elas sejam e começamos a espernear e a nos pôr à mercê de nossas emoções. Quando isso acontece, é comum que nos comportemos de maneira destrutiva. Quanto mais tempo de prática tivermos, mais teremos períodos — breves no começo e depois mais extensos — em que sentiremos que não nos é necessário nos opor aos outros, mesmo quando sejam pessoas difíceis. Em vez de vê-las como problemas, começamos a apreciar suas esquisitices, sem tentar consertá-las. Por exemplo, podemos desfrutar o fato de serem silenciosas demais, ou de falarem muito, ou de usarem maquiagem demais. Desfrutar o mundo sem julgá-lo é o que constitui uma vida realizada. São anos e anos de prática. E mesmo então não estou querendo dizer que todos os problemas possam ser vivenciados sem uma reação; mesmo então, ocorre uma mudança interna e nos afastamos da vida de reações apenas, na qual tudo o que acontece pode mobilizar nossas defesas prediletas. A mente simples não é misteriosa. Na mente simples, a percepção, consciente apenas é. Aberta, transparente. Não há nada complicado a seu respeito. Para a maioria das pessoas, quase todo o tempo, porém, é uma postura interna em grande parte inacessível. Mas quanto maior o contato com a mente simples, mais veremos que tudo é nós e mais nos sentimos responsáveis
por tudo. Quando percebemos de que maneira estamos vinculados, temos de agir de outra forma. Quando ficamos presos nos fios de nossos próprios pensamentos, não estamos fazendo o nosso trabalho — sentindo o passado e o futuro, tudo no presente. Chegamos até a imaginar que se estamos isolados num aposento, sem mais ninguém, apenas contrariando-nos, isso está certo. A verdade porém é que, quando nos largamos dessa forma, não estamos fazendo o nosso trabalho, e a nossa vida é afetada em sua totalidade. Quando mantemos a percepção consciente, quer nos inteiremos disso, quer não, uma cura está ocorrendo. Se praticarmos por um tempo longo o bastante, começaremos a enxergar a verdade: chegaremos a entender que o "agora" acolhe o passado, o futuro e o presente. Quando conseguimos sentar para praticar com uma mente simples, se ficamos emaranhados em nossos pensamentos, algo aos poucos se esboça e uma porta que esteve até então fechada começa a se abrir. Para que isso ocorra, temos de trabalhar com a nossa raiva, com a nossa contrariedade, com nossos julgamentos, com a autopiedade, com as idéias de que o passado determina o presente. Conforme essa porta se abre, vemos que o presente é absoluto e que, em certo sentido, o universo inteiro começa neste exato momento, a cada segundo. E a cura da vida está nesse segundo de pura percepção consciente. Sarar é sempre o estar simplesmente aqui, com uma mente simples.
DOROTHY E A PORTA TRANCADA Todos estamos em busca de alguma coisa. A maioria dos seres humanos sente uma espécie de falta, de algo incompleto, e busca algo que preencha o buraco que sentem. Mesmo aqueles que dizem: "Não estou buscando nada; estou contente com a minha vida", também estão em uma busca a seu próprio modo. Assim, as pessoas vão para esta ou aquela igreja, para os centros zen ou de ioga, comparecem a workshops de crescimento pessoal — na esperança de encontrar essa peça que falta. Quero falar com vocês sobre uma garota chamada Dorothy. Ela não morou no Kansas, mas em San Diego, numa imensa casa
em estilo vitoriano. Sua família morava no solar há várias gerações. Todos tinham seu próprio quarto, e havia aposentos extras e cubículos por toda parte, além de um sótão e um porão. Quando Dorothy ainda era uma garotinha, ela aprendeu que algo de estranho havia naquela casa: no último andar daquela velha mansão vitoriana havia um quarto trancado. Há tanto tempo quanto as pessoas conseguiam se lembrar, aquele quarto sempre permanecera trancado. Corriam rumores de que um dia fora aberto, porém ninguém sabia o que havia lá dentro. A fechadura daquela porta era estranha e ninguém jamais conseguira encontrar uma maneira de abri-la. As janelas daquele aposento também estavam de algum modo bloqueadas. Uma vez Dorothy subiu numa escada pelo lado de fora da casa e tentou ver o que havia lá dentro, mas não conseguiu ver nada. A maioria das pessoas daquela família estava simplesmente habituada ao aposento com sua porta trancada. Sabiam que estava lá, mas não queriam se importar com isso. Por essa razão era apenas uma coisa que mencionavam, Dorothy porém era diferente. Desde o tempo em que era muito pequenina ainda ficou obcecada com esse quarto e com o que haveria dentro dele. Ela achava que ela precisava abri-lo. Quase tudo a respeito da vida de Dorothy era normal para uma garotinha daquele tamanho. Ela cresceu, fizeram-lhe tranças no cabelo, tornou-se adolescente, cortou o cabelo segundo a última moda, tinha uma amiga inseparável, um amigo inseparável, ficava toda excitada com as últimas novidades no campo da maquiagem e com a mais nova canção de sucesso. Ela era bastante normal. Todavia nunca desistiu de sua obsessão pelo quarto trançado. De certo modo, isso dominava a sua vida. Às vezes ela subia até o último andar e sentava-se diante da porta e permanecia apenas olhando para ela, indagando-se sobre o que haveria por trás. Quando Dorothy ficou um pouco mais velha, ela sentia o quarto como um aposento ligado ao que lhe fazia falta na vida. Por isso deu início a vários tipos de treinamentos e práticas na esperança de encontrar o segredo que lhe permitiria abrir a porta. Tentou de tudo: foi a vários centros, consultou diversos professores, buscando a fórmula para destrancar a porta. Participou de workshops, passou por processos de renascimento, hipnose e muito mais. Fez de tudo. Nada, contudo, destrancava a porta para ela. Sua busca prosseguiu durante muito tempo, ao longo de todos
os anos da universidade e pós-graduação. Ela criou técnicas para se levar a vários estados alterados de consciência, e continuava ainda assim incapaz de abrir aquela porta. Então um dia, quando chegou em casa, notou que ela estava deserta. Ela subiu até o último andar e sentou-se em frente da porta trancada, Usando uma de suas práticas esotéricas ela entrou num estado profundo de meditação. Obedecendo a um impulso, estendeu a mão e empurrou a porta — que começou a abrir. Ela estava eletrizada. Em todos aqueles longos anos de tentativas para abrir a porta, nada parecido com aquilo havia ocorrido. Dorothy sentiu medo e excitação ao mesmo tempo. Tremendo, forçou-se a atravessar aquela porta. Foi quando descobriu... Desapontamento e confusão. Dorothy encontrou-se não num novo, ou estranho, ou maravilhoso espaço naquele aposento misterioso, mas imediatamente de volta ao piso térreo daquela velha casa vitoriana, em meio a todas as coisas antigas e tão conhecidas. Era a mesma perspectiva, ela estava na mesma localização com a mesma conhecida mobília de sempre. Tudo era apenas como sempre tinha sido. Decepcionada e intrigada ao mesmo tempo, algumas horas depois ela subiu as escadas até o último andar e entrou no aposento misterioso. A porta ainda estava trancada. Dorothy havia aberto a porta — e não havia aberto a porta. A vida seguiu em frente. Dorothy casou-se. Teve um casal de filhos. Ainda morava na mesma casa vitoriana, com sua família. Era uma boa esposa e uma boa mãe. Ainda assim, nunca desistiu de sua obsessão. Aliás, sua única experiência de ter aberto a porta motivava-a sempre mais. Ela passava muito tempo no último andar diante da porta trancada, de pernas cruzadas, tentando abri-la. Já o havia feito uma vez, poderia fazê-lo de novo. E com certeza, depois de tantos anos tentando, aconteceu de novo: ela empurrou a porta e esta se abriu. Excitada, ela pensava: "Hoje é o dia!". Atravessou a porta — e outra vez se encontrou no térreo da mesma velha casa vitoriana, onde morava com o marido e os filhos. Correu de novo até o último andar até o aposento misterioso e o que encontrou? A porta continuava trancada. O que se pode fazer? Uma porta trancada é uma porta trancada. Dorothy deu continuidade à sua vida. Ficou com os cabelos grisalhos. Continuava passando um bom tempo sentada diante da porta trancada. Era uma esposa e mãe bastante boa,
mas sua atenção ainda se dirigia sobretudo para a porta trancada. E ela era uma pessoa persistente, assídua: não desistia assim tão fácil. De tempos em tempos, ela conseguia passar pela porta e entrar no aposento, porém sempre era remetida de volta ao térreo, exatamente para o plano onde levava a sua vida. Durante todo esse tempo a casa foi aos poucos sendo preenchida com coisas. Os membros da família pareciam acumular cada vez mais coisas e os quartos extras tornaram-se depósitos de lixo. A casa foi ficando tão entupida que não havia mais espaço para os convidados, e quase que os moradores também ficaram sem o seu. Não havia espaço para mais nada na casa exceto para Dorothy, o marido e os filhos, o que também estava ótimo porque estavam todos tão preocupados com suas próprias pessoas que mal conseguiam pensar em tomar conta de alguma outra coisa. Aos poucos, a obsessão de Dorothy esgarçou-se. Sua luta para abrir aquela porta começou a ficar obsoleta. Em vez de passar tanto tempo diante da porta, ela começou a ficar um pouco mais com os filhos e netos, tomando também conta da casa: os pisos foram renovados, as cortinas trocadas etc. A casa não estava em mau estado, mas havia sido um pouco negligenciada, porque Dorothy tinha se ocupado apenas de seu projeto de sentar diante da porta. Sua atenção lentamente foi deslocada de voíta para o cuidado necessário às coisas diárias que precisavam ser atendidas. Foi um lento processo. Às vezes ela ainda subia até o último andar e olhava para a porta, mas se a abrisse sabia o que iria encontrar. Muito devagar, o desencorajamento e o desapontamento instalaram-se. Cada vez mais ela se esquecia de tudo o que não fosse só viver sua vida, tomando conta das coisas de um momento para outro. E então um dia ela subiu até o último andar e por acaso olhou para a porta que estava trancada. Uau! Estava escancarada! Lá dentro, plenamente visível, estava um confortável quarto para hóspedes. Havia uma bela cama e uma cômoda e todos os pequenos acessórios que tornariam confortável aquele quarto para um hóspede. Ao ver aquele espaçoso e delicioso quarto de hóspedes, Dorothy percebeu no que havia se tornado o resto da casa. Ela via como tudo estava entulhado e confuso e como era difícil andar livremente pela casa. Diante dessa constatação a mudança começou. Sem que fizesse muito alguma coisa, os aposentos daquela velha mansão vitoriana começaram a desentulhar-se por
si. Começou a haver mais espaço para as coisas e as pessoas naquela casa. Apareceu espaço. Era como se todo o monte de coisas fosse imaterial, lixo fantasmagórico. Nem estava lá realmente, afinal de contas. A casa voltou ao que tinha sempre sido. Aliás, sempre tinha existido muito espaço para convidados, e agora Dorothy percebia que a porta nunca estivera trancada, para início de conversa. Sempre estivera aberta. Só sua rígida postura de empurrá-la mantivera-a fechada. Essa é a nossa ilusão essencial a respeito da prática: que a porta está trancada. A ilusão é inevitável: todos a temos, num grau ou noutro. Enquanto pensarmos que a porta está trancada, ela está trancada. Para tentar abri-la fazemos de tudo. Vamos a todo centro possível, participamos de workshops, experimentamos isso e aquilo, para, por fim, descobrirmos que nunca esteve fechada. Apesar disso, a vida de esforços inúteis que Dorothy levou para ela foi perfeita. Era isso que ela precisava fazer. Na dade, é isso que todos nós temos de fazer. Temos de dar à nossa prática tudo o que temos para conseguirmos perceber que, desde o início, não existe senão perfeição. O quarto está aberto, a casa está aberta, se não a entulharmos com lixo inexistente. Mas não existe meio de sabermos disso antes de sabermos disso. Uma forma de disciplina espiritual cristã é a prática da presença de Deus. Como cristãos, estamos em busca daquela radiação em todas as coisas que os místicos chamam de a face de Deus. Essa radiação não está escondida em algum lugar muito distante, mas bem aqui e agora, exatamente embaixo do nosso nariz: Da mesma forma, Dorothy percebeu que aquilo que tinha buscado sua vida inteira era simplesmente a sua própria vida: as pessoas, a casa, os quartos. Todos estes eram a face de Deus. Nós porém não enxergamos isso. Se realmente o víssemos, não torturaríamos os outros nem a nós da maneira como o fazemos. Não somos gentis; somos manipuladores, desonestos. Se víssemos que essa vida que estamos levando é a própria face de Deus, não seríamos capazes de nos comportar dessas maneiras, não em razão de algum mandamento ou interdição, mas só porque veríamos a vida tal como ela é. Não é que a prática — sentar-se diante da porta — seja inútil, mas uma grande parte do que chamamos prática — caçar ideais ou a iluminação — é uma ilusão. Isso não abre a porta. Enquanto
não enxergarmos esse fato com a mesma clareza com que comemos nosso mingau de aveia pela manhã, teremos de atravessar muitos desvios e atalhos, muitos desapontamentos e enfermidades — que são nossos mestres na vida. Todas essas lutas fazem parte do aprendizado relativo à porta. Se praticamos bem, mais cedo ou mais tarde esse quebra-cabeça fica mais claro e a porta abre-se com mais freqüência. ALUNA:
Parece que Dorothy poderia ter perdido menos tempo se tivesse sentado na cozinha, no meio de sua família e de seus afazeres cotidianos, em vez de se retirar para o último andar da casa, distante de tudo o mais. Sempre buscaremos lá onde pensamos que a resposta está enquanto não estivermos prontos para enxergar. Fazemos o que fazemos até que não o fazemos mais. Isso não é bom nem mau; é só como as coisas são. Temos de desbastar-nos de nossas ilusões. Se dissermos para nós mesmos: "O caminho para abrir a porta está em ficar mais tempo com meus filhos", também isso se torna apenas uma outra idéia obsessiva. Passar tempo com meus filhos para tornar-me iluminada talvez não vá me tornar uma mãe melhor, afinal de contas. JOKO:
ALUNA: A
prática não diz respeito a abrir o coração? Não é isso que Dorothy estava realmente tentando fazer? JOKO:
Sim, essa é uma forma de descrever a coisa. E ela descobriu que...? ALUNO: Que
seu coração já estava aberto.
JOKO:
Certo. Os pais que não conseguimos agüentar, o parceiro que nos magoou, o amigo que irrita: não há nada de errado com eles, a menos que pensemos que há. Enquanto não estivermos prontos para ver isso porém, não o veremos. ALUNO:
Se a história é a respeito de um quarto de hóspedes, então Dorothy nunca nem chegou a pensar em ter convidados. JOKO: Certo.
Ela nem pensaria nisso.
Nós pensamos: "Eu deveria ser mais simpático, mais educado, mais hospitaleiro". Contudo, se estamos emaranhados em nossas ilusões, não podemos ser verdadeiramente hospitaleiros. Até desempenhamos os movimentos nesse sentido, mas ser de fato hospitaleiro significa ser apenas quem se é, como somos. Não
podemos acolher ninguém em nossa casa se primeiro não tivermos acolhido a nós mesmos. ALUNO:
Quando estamos emaranhados em nossos melodramas pessoais, como Dorothy estava, não estamos verdadeiramente disponíveis aos outros. Quando enxergamos mais além de nosso melodrama pessoal, conseguimos ver com mais objetividade as necessidades dos outros e responder a elas. JOKO:
Sim. Todos nós já passamos pela experiência de estarmos tão contrariados que simplesmente somos incapazes de ouvir os problemas de um outro indivíduo. Não temos espaço para isso. Todo o nosso espaço está ocupado com nossas próprias coisas. Não temos nenhum "quarto de hóspedes". Mesmo assim, não podemos simplesmente dizer "Não vou ficar obcecada" e dese jar que isso aconteça. Pois então achamos que ainda há um buraco em nossa vida, que temos de destrancar a porta e descobrir o que está do outro lado. ALUNO:
Minha prática tem sido uma série de decepções. Eu imagino: "Esse workshop vai resolver essa situação para mim". Participo dele e embora possa ser útil de alguma maneira, em última análise é desapontador. Acho muito difícil simplesmente permanecer com o meu desapontamento, sentir a minha vulnerabilidade. Em vez disso, encubro-os de alguma forma e digo para mim mesmo: "Basta continuar tentando. Vou descobrir um outro workshop". ALUNO:
Sinto que perdi muito tempo e energia, que desperdicei momentos preciosos de minha vida queixando-me de meus pais e de minhas condições de vida, tudo no esforço de destrancar a porta. JOKO:
Não adianta nada olhar para trás e dizer: "Eu deveria ter sido diferente". Num dado momento, somos do jeito que somos e vemos o que somos capazes de ver. Por essa razão, a culpa sempre é inapropriada. ALUNA:
Parece como se tivéssemos que atravessar um certo tanto de sofrimento. Temos de ser crucificados antes de nos entregar. JOKO:
Sem exagerarmos na dramatização desse aspecto, isso é verdade. Somos muito teimosos. E isso também está certo.
ALUNA:
Dorothy conseguiu desfrutar sua vida? Me incomoda que alguém tenha de lutar por tanto tempo. JOKO: Sim,
imagino que ela às vezes desfrutou sua vida, antes mesmo de ter visto o que era. Todos nós desfrutamos a nossa vida às vezes. Mas por baixo do contentamento e da gratificação está a ansiedade. Ainda estamos em busca de algo atrás da porta e temos medo de nunca o encontrarmos. Pensamos: "Se eu tivesse isto ou aquilo seria feliz". Uma época de momentos prazerosos não elimina essa inquietude subliminar. Não existem atalhos. Devemos enfim enxergar quem somos e o que é esse aposento que está atrás da porta. ALUNO:
Comigo o sentimento que está por baixo de tudo é o medo. É como uma corrente subterrânea sutil que flui junto com tudo o que eu faço. Minha vida toda não fui plenamente consciente dele, mas ele estava lá, dirigindo a minha vida. JOKO:
Quando sentamos para praticar, levamos nossa atenção para essa sutil corrente subterrânea. Isso quer dizer notar nossos pensamentos e as sutis contrações de nosso corpo. Para Dorothy isso aconteceu quando sua obsessão com a porta trancada começou a abrandar e ela começou a prestar mais atenção nas condições do resto da casa. Suas esperanças começaram a morrer. ALUNA: Basta
que tomemos conta de nossas tarefas imediatas.
JOKO:
Certo. E tomar conta do que precisa ser cuidado remete-nos de volta ao que somos neste momento. Na história sobre Dorothy o que vocês pensam acerca dos aposentos entulhados na casa? ALUNO:
Apegos. Pensamentos a respeito de um monte de coisas. Recordações. JOKO: Recordações, ALUNA:
fantasias, esperanças.
Parece que, quando temos uma coisa imediata a fazer, nossa tendência é focalizar, em vez disso, o medo, ou a ansiedade, ou qualquer outra coisa — a porta trancada — e esquecer de prestar atenção na tarefa que está à nossa frente. De certo modo, o medo (ou o que for) é irrelevante. Existe essa tarefa a ser feita e só precisamos fazê-la, com ou sem medo. Luto contra a minha vida
porque em vez de fazer o que precisa ser feito, eu luto contra o medo subliminar, tento destrancar aquela porta. JOKO:
Certo. Paradoxalmente, o único meio de abrir a porta é esquecendo a porta. Os alunos costumam queixar-se comigo de que, quando se sentam para praticar, algo interfere em sua percepção consciente: "Fico aéreo"; "Fico tão nervosa! Não consigo ficar quieta". Por trás dessas queixas está o pensamento de que, a fim de sentar e praticar com alguma eficiência, temos de nos livrar de todas as coisas desagradáveis; a porta trancada tem de ser aberta para podermos alcançar todas as coisas agradáveis. Se estamos aéreos, estamos aéreos. Se estamos nervosos, estamos nervosos. Essa é a realidade de nossa vida naquele momento. Uma boa prática sentada significa simplesmente estar presente com isso: ser esse nervosismo ou esse alheamento. As pessoas se dão a imensos trabalhos quando se trata de eliminar sentimentos desagradáveis. "Estou tenso; tenho de participar de um workshop para relaxar." Então a pessoa vai para o workshop e isso a faz relaxar — mas por quanto tempo? Querer aliviar a tensão é como olhar para a porta trancada, tentando imaginar o modo de abri-la. Se nos obcecarmos com essa idéia de abrir a porta, poderemos descobrir técnicas de abri-la por alguns momentos; mas então iremos nos perceber remetidos de volta a nossas vidas, tal como elas são, vivendo na mesma velha casa de sempre. Em vez de nos obcecarmos com a porta trancada, precisamos ir tocando a nossa vida adiante, o que significa limpar a casa, tomar conta das crianças, ir para o trabalho etc. ALUNA:
Uma amiga e eu estávamos há pouco falando de como tínhamos tido um ano difícil. Enquanto estávamos com vinte, trinta anos, nós .duas tínhamos esperanças de que as coisas fossem melhorar para nós. Agora, na casa dos quarenta, chegamos à desanimadora conclusão de que isso não irá acontecer: nossas vidas não vão melhorar em nada! JOKO:
Paradoxalmente, essa dolorosa decepção com o futuro ajuda-nos a apreciar a vida como ela é. Só quando desistirmos da esperança de que as coisas fiquem melhores é que poderemos chegar à constatação de como elas estão bem do jeito que estão.
ALUNO:
Há pouco tempo tive uma percepção semelhante. Durante anos eu viera me dizendo que minha vida seria melhor quando eu tivesse poupado dinheiro suficiente para viver em semiaposentadoria. Teria mais tempo para um serviço voluntário. Teria mais tempo de fazer uma prática mais consistente, de ler mais etc. Agora estou começando a me dar conta de que o que preciso fazer está justamente aqui, no trabalho. Se estou tentando terminar alguma coisa e alguém entra e me distrai, isso é justamente o que preciso fazer naquele instante. O que eu deveria estar fazendo é exatamente o que estou fazendo. JOKO:
Para concluir, vamos perguntar a nós mesmos: "Como é que estou tentando destrancar a porta em vez de estar simplesmente vivendo a minha vida?". Todos estamos tentando destrancar a porta, encontrar a fórmula certa. Estamos em busca do professor certo, do parceiro perfeito, do emprego inacreditável etc. Constatarmos que estamos tentando destrancar a porta é imensamente valioso; ajuda-nos a ver o que nossa vida realmente é.
PEREGRINAR NO DESERTO Peregrinar no deserto em busca da Terra Prometida: eis o que a nossa vida é. A disciplina do sesshin intensifica essa impressão da peregrinação; o sesshin parece que nos contunde, desestimu-la, decepciona. Podemos ter lido livros que retratam uma bela imagem da Terra Prometida, do que é chegar à percepção consciente da natureza buda, da iluminação etc. No entanto, percebemo-nos peregrinando. O máximo que podemos fazer é simplesmente ser a própria peregrinação. Ser a peregrinação significa ser cada momento do sesshin, seja e!e qual for. Quando sobrevivemos, tendo atravessado a aridez e a sede, chegamos talvez a uma descoberta: peregrinar pelo deserto é a Terra Prometida. É muito duro compreendermos isso. Conhecemos nossa dor e nosso sofrimento. Queremos que o sofrimento acabe. Queremos chegar na Terra Prometida, onde o sofrimento não existe mais.
Em seu trabalho com moribundos e pessoas gravemente perturbadas, Stephen Levine * observa que a verdadeira cura acontece quando entramos com tanta profundidade em nossa dor que não a vemos mais como a nossa dor apenas, e sim como a dor de todo mundo. É imensamente mobilizador e solidarizante descobrir que minha dor não é exclusiva. A prática ajuda-nos a ver que o universo inteiro está na dor. Pode-se observar o mesmo aspecto quanto aos relacionamentos. Nossa tendência é pensar neles como eventos discretos no tempo: começam, duram algum tempo e terminam. No entanto, sempre estamos em relacionamentos, sempre vinculados a alguém. Numa certa altura da história, uma relação pode se manifestar de uma forma particular, mas antes dessa manifestação essa ligação já existia e, depois que ela "terminar", continuará. Continuamos em alguma espécie de relação mesmo com aqueles que já faleceram. Antigos amigos, amores e parentes continuam em nossa vida e são parte de quem somos. Pode ser necessário que a manifestação visível termine, mas a relação real nunca acaba. Não estamos realmente separados uns dos outros. Nossas vidas estão reunidas; existe só uma dor, só um contentamento, e é o nosso. Assim que encararmos a nossa própria dor e estivermos dispostos a vivenciá-la, em vez de a disfarçarmos, evitarmos ou racionalizarmos, ocorrerá um deslocamento interior quanto à nossa visão de nós, de nossa vida e dos outros. Como observa Stephen Levine, cada momento em que perseveramos com as nossas dificuldades e sofrimentos é uma pequena vitória. Ao permanecermos com a nossa dor e com a nossa irritabilidade, abrimos a nossa relação para a vida e para os outros. O processo é lento; nosso padrão não se reverte da noite para o dia. Lutamos numa batalha incessante entre o que queremos e o que é, aquilo que o universo nos apresenta. No sesshin, nós vemos essa batalha conjunta com mais nitidez. Vemos as nossas fantasias, nossos esforços para entender as coisas e para defender nossas teorias; vemos nossas esperanças de encontrar uma porta de acesso para a Terra Prometida, onde toda luta e todo sofrimento cessem de vez. Queremos, queremos, queremos uma certa pessoa, um certo relacionamento, um certo trabalho. Uma vez que nenhum querer desses pode algum dia ser completamente resolvido, temos *
Stephen Levine, Healing into life and death, Nova York: Doubleday, 1987.
uma tensão e uma ansiedade incessantes que acompanham de perto nossos quereres. São gêmeos inseparáveis. Às vezes, é útil acentuar a ansiedade, chegando num ponto em que simplesmente não a consigamos mais tolerar. Então, podemos estar dispostos a recuar e, a distância de um passo atrás, ter uma outra maneira de olhar para o que está acontecendo. Em vez de nos preocuparmos interminavelmente com o que está errado lá fora — com o parceiro, o trabalho, ou outra coisa —, podemos começar a mudar nossa relação com o que é. Aprendemos a ser aquilo que somos neste momento, neste relacionamento ou naquele aspecto aborrecido de nosso trabalho. Começamos a enxergar a ligação entre nós e os outros. Vemos que a nossa dor também é a deles, e que a dor deles também é a nossa. Por exemplo, uma médica que não tem uma relação com seus pacientes irá vê-los simplesmente como um problema atrás do outro, problemas a serem esquecidos assim que saírem de seu consultório. O médico que percebe que seu próprio desconforto e aborrecimento são o desconforto e o aborrecimento de seus pacientes terá apoio desse senso de vinculação e irá trabalhar com mais precisão e eficiência. O tédio cotidiano de nossas vidas é o deserto pelo qual peregrinamos em busca da Terra Prometida. Nossa relações, nosso trabalho e todas as pequenas tarefas necessárias que não queremos, realizar são todos presentes. Temos de escovar os dentes, temos de comprar comida, temos de lavar a roupa, temos de fazer o canhoto do talão de cheques. Esse tédio — essa peregrinação no deserto — é na realidade a face de Deus. Nossas dificuldades, o parceiro que nos leva à loucura, o relatório que não queremos escrever — essas coisas são a Terra Prometida. Somos especialistas na produção de pensamentos acerca de nossa vida. Não somos especialistas, no entanto, em apenas sermos nossas vidas, nossa dor e prazer, nossas derrotas e vitórias. Até mesmo a felicidade pode ser dolorosa porque sabemos que podemos perdê-la. A vida é muito curta. Os momentos que agora vivenciamos rapidamente se vão para sempre. Nunca mais os veremos. Todo dia que passa leva consigo milhares e milhares de momentos desses. De que maneira iremos passar o pequeno intervalo que nos resta? Iremos gastá-lo rodopiando em torno de nossos pensamentos a
respeito de como a vida é terrível? Esses pensamentos não são nem sequer reais. Teremos pensamentos assim, mas podemos saber que os estamos pensando em vez de nos emaranharmos neles. Quando conseguirmos sentar e atentar para nossas sensações corporais e pensamentos que são a dor, o sofrimento se transformará no universal, que é o contentamento. A finalidade de nossa vida, como Stephen Levine diz, é cumprir aquilo para que nascemos, sararmos na vida. Isso significa sarar a partir da dor de nosso "eu quero" pessoal, separado e constrito, e tornarmo-nos abertura. A finalidade de nossa vida é sermos a própria abertura, que é contentamento. Contentamento inclui sofrimento, felicidade, tudo o que é. Esse tipo de cura é do que a nossa vida se compõe. Quando curo a minha dor, sem nenhum pensamento a respeito, eu também curo a sua. A prática consiste em descobrir que a minha dor é a nossa dor. Sendo assim, não conseguimos encerrar nossos relacionamentos. Podemos ir embora, divorciar-nos, mas não podemos acabar com eles. Quando achamos que podemos encerrá-los, todos sofrem. Não conseguimos terminar com a relação com nossos filhos; não podemos nem sequer encerrar uma relação com quem não apreciamos. Esse término iria exigir que fôssemos algo que não somos e nunca seremos, ou seja, pessoas separadas das demais. Quando tentamos ser separados, o sofrimento recomeça por toda parte. Como diz Stephen Levine, nascemos para curar-nos na vida. Isso quer dizer que nos curamos na nossa dor e que nos curamos na dor do mundo. Para cada um de nós, essa cura acontece de um modo diferente, porém o objetivo básico é o mesmo. Precisamos ouvir essa verdade e lembrá-la várias vezes seguidas, milhares de vezes. Para realizar esse trabalho, temos de ir contra a corrente de nossa sociedade, que nos ensina a ir em busca do número um: cada qual para si. Na prática diária, em sesshins dos quais participamos, na manutenção do contato quando moramos longe, temos ajuda para fazermos o trabalho, esse trabalho de curar-nos na vida, e chegarmos a ver que, até mesmo agora, já alcançamos a Terra Prometida.
A PRÁTICA É DAR A prática é de fato algo para se aprender a dar, mas isso pode ser facilmente mal-entendido, por isso temos de ser cuidadosos. Há pouco tempo li um livro cuja autora se chamava Peregrina da paz * - Em três décadas caminhou mais de 40.000 km, levando seus bens consigo, pregando a paz. Seu livro mostra que ela de fato entendia a prática, que ela descreve com muita simplicidade. Ela diz que, se quisermos ser felizes, temos de dar, dar e dar. Em vez disso, a maioria quer receber, receber e receber. Essa é a natureza do ser humano. Foram necessários muitos anos de árduo treinamento para que a Peregrina da Paz transformasse a sua vida. Para ela, o treinamento foi dar totalmente. Isso é maravilhoso — se entendermos de modo correto o intuito da atitude. Alunos iniciantes têm idéias tipicamente autocentradas a respeito da prática: "Vou praticar para conseguir uma integração completa"; "Vou praticar para ficar iluminado"; "Vou praticar para ficar calma". Em vez disso, a prática é a respeito de dar, dar, dar. Mas cometemos um erro se simplesmente adotamos essa postura como um novo ideal. Dar não diz respeito a pensar. Nem nós deveríamos dar em função de obter melhores resultados para nós mesmos. Para a maioria, contudo, dar é confundido com motivações autocentradas, e isso continuará sendo válido enquanto nossa prática não estiver bastante sólida. Devemos perguntar a nós mesmos: "O que é dar?". Isso pode nos manter ocupados por muitos anos. Por exemplo, deveríamos dar aos outros tudo o que eles quiserem? Às vezes — mas às vezes não. As vezes precisamos dizer não, ou simplesmente sair do caminho. Como não existem fórmulas, corremos o risco de cometer erros — e está tudo bem. Praticamos com os resultados de nossos atos, e isso leva tempo. Talvez depois de muitos anos comecemos a apreender a verdadeira natureza do dar. Um professor zen no *
Peace Pilgrim: Her life and work in her own words, compiled by some of her friends. Santa Fé, NM: Ocean Tree, 1991. Também Steps toward inner peace — A discourse by Peace Pilgrim: Suggested uses of harmonious principles for human living. Friends of Peace Pilgrim, 43480 Cedar Avenue, Hemet, CA 92343.
Japão exige dos novos alunos que pratiquem por dez anos sem um trabalho direto com ele. Quando os alunos voltam depois de dez anos, ele lhes diz que voltem a praticar sentados por mais dez. Embora não seja assim o meu estilo de ensinar, ele tem uma finalidade. Leva tempo descobrir o que a vida é. Na semana passada recebi dois telefonemas de pessoas em busca de conselhos a respeito da prática. Uma delas dizia que sua amiga tinha vivido uma percepção espiritual um pouco desintegrada e que queria saber qual era o livro certo que ajudasse a amiga a aprumar-se. A outra pessoa ligou-me à 1:30 h da madrugada para dizer que tinha lido um livro maravilhoso sobre iluminação e achado que sua própria prática não estava muito iluminada. Ela queria ajuda para entender o que se passava. Eu lhe disse que não era uma boa idéia telefonar para as pessoas no meio da noite. Ela respondeu: "Oh, já está de madrugada?". Eu disse: "A iluminação diz respeito a despertar. E para que você desperte você tem de saber que horas são". Ela disse: "Isso nunca me ocorreu". Iluminação é a capacidade de dar totalmente a cada segundo. Não é ter algumas experiências extraordinárias. Esses momentos podem ocorrer, mas não tornam uma vida iluminada. Precisamos perguntar: "O que significa para mim dar, neste momento?". Por exemplo, quando o telefone toca, como podemos dar? Quando estamos num trabalho físico — limpando, pintando, cozinhando —, o que significa dar totalmente? Embora não possamos nos tornar pessoas capazes de dar totalmente apenas pensando sobre isso, podemos notar quando não damos totalmente. Ocultamos de nós mesmos nossas motivações autocentradas, e a prática ajuda-nos a perceber o quanto somos autocentrados. A verdade é que, a qualquer momento, somos como somos. Precisamos vivenciar isso, saber quais são nossos pensamentos e sensações corporais, e, então, aos poucos, nossa vivência pode voltar-se sobre si mesma. Nós não temos de fazer isso. Isso se volta sobre si mesmo por si. Não podemos nos fazer ser de uma certa maneira. Imaginar que podemos é uma das maiores armadilhas da prática. Mas podemos tomar contato com a nossa intolerância e grosseria, com nossa preguiça e com os outros jogos que jogamos. Quando percebemos como somos de verdade, as coisas lentamente começam a virar — como acontece com tantos alunos que tenho. É maravilhoso assistir a isso. Quando a