Cadernos de Subjetividade
SAÚDELOUCURA
o REENCANTAMENTO
direção de Antônio Lancetti
DO CONCRETO
A partir deste número os Cadernos de Subjetividade serão publicados na SaúdeLoucura. Desejamos assim intensificar nossa vocação plural e nosso afeto pelos pensadores da imanência. ANTONIO
LANCETTl
diretor de SaúdeLoucura Núcleo de Estudos da Subjetividade Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP
A
RELAÇÃO
COMPLETA
DAS OBRAS PUBLICADAS
NA COLEÇÃO
SAÚDELouCURA
ACHA-SE
NO FIM
DO LIVRO.
EDITORA HUCITEC EDUC São Paulo, 2003
Cadernos de Subjetividade é uma publicação do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP - Linha de pesquisa: Subjetividades Contemporâneas COLETIVO
EDITORIAL
Eli
CONSULTIVO
Celso Favaretto (USP), Daniel Lins (UFC), David Lupoujade (Paris X - Nanterre - França), Francisco Ortega (UERJ),jeanne-Marie Gagnebin (PUC-SP),john Rajchman (MIT- USA),josé Gil (Universidade Nova de Lisboa - Portugal), Luiz B. L. Orlandi (Unicamp), Maria Cristina Franco Ferraz (UFF), MichaelHardt (Duke University - USA), Peter Pál Pelbart (PUC-SP), Pierre Lévy (University of Ottawa - Canadá), Regina Benevides (UFF), Roberto Machado (UFRJ), Rogério da Costa (PUC-SP), Suely Rolnik (PUC-SP), Tania Galli Fonseca (UFGRS). PROJETO
GRÁFICO
Paulo Lima Buenoz CAPA
Baseada em trabalho de Guto Lacaz:, intitulado Óleo Maria à procura da salada, de 1982, técnica mista. Foto de Nélson Kohn AGRADECIMENTOS
Mara Selaibe, Leila Reinert, Beá, Denise B. Sant'Anna, Hermetes Reis de Araújo PRODUÇÃO
EDITORIAL
Editora Hucitec ENDEREÇO
PARA CORRESPONDÊNCIA
Cadernos de Subjetividade Pós- Graduação de Psicologia Clínica Rua Monte Alegre, 984, 4.' andar CEP 01060-970 Perdizes São Paulo - Capital
[email protected]
Catalogação na Fonte - Biblioteca Monte Alegre/PUC-SP Cadernos de Subjetividade / Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos PósGraduados em Psicologia Clínica da PUC-SP - voI. 1, n.' 1 (1993) - São Paulo, 1993 -
A subjetividade designa um campo de complexidade crescente. Ali se cruzam vetores que até recentemente pertenciam a domínios do saber estanques, demolindo as clássicas fronteiras entre o psíquico e o social, o subjetivo e o político, a esfera inconsciente e a produtiva, o teatro interno e a cena material, a invenção de si e do mundo. Cresce a cada dia o descompasso entre as matrizes teóricas ainda hegemônicas e a experiência subjetiva do contemporâneo. O Núcleo de Estudos da Subjetividade (NES), vinculado ao Pós-Graduação de Psicologia Clínica da PUC-SP, tem-se proposto a explorar (~stepanorama, na interface entre vários domínios e prismas da cultura. Cadernos de Subjetividade, revista do NES, acolhe a inventividade teórica (~política nascente no Brasil e no exterior que vem desenhando os con(ornos desta nova paisagem. O presente volume vem dar continuidade a um trabalho interrompido por cerca de três anos, devido em grande parte à falta de apoio financeiro e às crises consecutivas que enfrentamos no setor editorial. O tempo de silêncio, contudo, serviu-nos para uma reorientação no projeto, que segue focando o mesmo âmbito de inquietações e sendo realizado por um grupo de alunos do Núcleo de Estudos da Subjetividade, porém IIgora em formato de revista-livro anual e sob a organização alternada de professores, pesquisadores e convidados do NES.
Anual I. Psicologia - periódicos I - Instituição ISSN 0104-1231
SUELY ROLNIK CDD 150..1
Coordenadora
do Núcleo de Estudos da Subjetividade
SUMÁRIO
Apresentação
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Peter Pál Pelbart & Rogério da Costa () comunismo da imanência
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l:ntrevista de Félix Guattari a Toni Negri Plissê fractal
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I)ierre Lévy A paixão das máquinas
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Nlix Guattari ( ) som da linha de varredura
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/lill Viola ( ) reencantamento
do concreto
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Francisco]. Varela ( ) indivíduo e sua implexa pré-individualidade
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1.lliz B. L. Orlandi A g~nese do indivíduo
mlbert Simondon
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SUMÁRIO
Gilbert Simondon, Gilles Deleuze
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indivíduo e sua gênese físico-biológica
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Da linguagem zaum à rede tecnomaya Franco Berardi
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A máquina-cinema Raymond Bellour
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o trabalho
afetivo Michael Hardt
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Uma política do futuro-presente Mauro Sá Rego Costa
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Por uma ética da metaestabilidade na relação homem-técnica Liliana da Escóssia
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Notas sobre os autores
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Fontes dos artigos traduzidos
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Homenagem a Francisco Varela (1946-2001)
APRESENTAÇÃO
C
PROJETAR O pensamento à altura do nosso tempo e de suas vertigens? O desencanto pós-moderno não soube apreender o sentido das mutações em curso. A subjetividade esgarçada por todos os lados pede novas ferramentas teóricas, outras antenas, direções inéditas. As formas inerciais de pensar, de existir, de subjetivar-se e de relacionar-se caducaram, mas ainda persistem. O fato é que continuamos impregnados por dicotomias tais como consciente/inconsciente, acaso/necessidade, natureza/cultura, Ocidente/Oriente, infra-estrutural superestrutura, etc. No entanto, o tecido fibroso de nossa realidade transbordou em muito esses pares, introduziu no meio deles dobras insuspeitadas, revelando uma tessitura em tal medida complexa que apenas um pensamento já instalado nessa multiplicidade pode aí orientar-se. Como expor-se então às novas forças em jogo neste universo polimorfo, numa época em que a megamáquina capitalista não cessa de produzir novas formas de controle social e subjetivo, novas formas de miséria e horror? Como abrir-se para a vitalidade das subjetividades emergentes, nesse contexto? Como cuidar dos vetores que atravessam a Multidão? Eis o propósito desta publicação: não se ater ao fascínio complacente da globalização, nem ao pessimismo atávico em relação aos ubismos sociais, culturais e tecnológicos do planeta, mas dar-se meios para lidar com o nascente, operá-lo, corporificá-lo, reconhecer-se nele e por meio dele resistir ao mortífero. Estamos inseridos numa rede planetária cada vez mais acentrada e çomplexa. Para uma nova geografia, novas estratégias. Nesse sentido, resistir hoje significa mais do que crispar-se na marginalidade ou nas OMO
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bordas ou inilitarizar-se no enfrentamento com um suposto centro planetário. Não se trata tão-somente de opor-se, mas de compreender os processos que percorrem a Multidão, conceber meios concretos que permitam a eles se expressarem, ganharem voz e rosto. O reencantamento do concreto é um mapeamento de algumas dessas estratégias. Eis o calidoscópio que oferecemos ao leitor: experimentações teóricas, textos inéditos ou inacessíveis em nossa língua. Dos muitos mundos possíveis que eles encerram, quais hão de vingar, quais hão de soçobrar, quantos hão de se mutiplicar? Em todo caso, é preciso reinventar o sopro das coisas.
••• Em meio a um tecnocosmos a cada dia mais complexo e sofisticado, o homem contemporâneo vê-se às voltas com um novo para o qual ainda não tem palavras. A estranheza de habitar um ciberespaço, de ver crianças tomadas numa relação apaixonada com a multimídia, de assistir à informatização galopante da vida doméstica, de enfrentar questões inéditas no campo da bioética e da biodiversidade - eis alguns poucos indícios, e apenas anedóticos, das mutações cuja dimensão e amplitude mal chegamos a avaliar. O que resta de "subjetivo" neste perturbador mundo novo? Afinal, quem somos nós sem os nossos instrumentos, as nossas máquinas, os nossos remédios e as nossas bactérias? Essas misturas em que vivemos e que nos constituem solicitam uma retomada em profundidade da questão da subjetividade. São tantas as passagens que nos lançam do "subjetivo" ao "tecnológico", que mal sabemos hoje onde começa um e termina o outro, quanto de maquínico encontramos no humano e vice-versa. É preciso percorrê-los como o avesso um do outro, como numa fita de Moebius. Assim, não se trata de lamentar ou glorificar a morte do sujeito. Nem o triunfo ou os desastres resultantes dos progressos técnicos. Pois soa cada dia mais artificial pensar técnica e sujeito sem considerar a continuação que os reinventa a cada momento. Seria preciso partir da idéia mais provocativa e radical que atravessa os textos do presente volume: a subjetividade ela mesma situa-se na adjacência de focos de produção múltiplos, heterogêneos, não hum a-
APRESENTAÇÃO
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nos. É apenas a partir dessa heterogeneidade constitutiva, micro e macrocósmica, povoada de elementos técnicos, semióticos, energéticos, que a produção de si é pensável. Há portanto uma nova circularidade a ser inventada. O humanismo clássico concedeu um privilégio excessivo ao indivíduo já constituído, em detrimento do processo de individuação. A formulação desse problema pelo filósofo francês Gilbert Simondon, num texto seminal de 1964, está presente, de maneira direta ou indireta, em grande parte dos trabalhos reunidos neste volume. Quando se pensa a fundo esses processos, como o faz a maioria dos ensaios aqui publicados, percebe-se em que medida o indivíduo emerge de um mundo complexo (biológico, técnico, semiótico, político ...) e o corporifica, encama-o . Se podemos nomear nossa Atualidade uma megarrede heterogênea onde não há estratos determinantes, nela não caberia procurar o fio de Ariadne em busca de uma visão totalizante. A infinitude de variáveis em jogo nos convida a exercer aqui uma certa miopia: ao deter-se neste ou naquele ponto singular, deixar ressoar a megarrede em toda a sua diversidade. Afinal, o que somos hoje senão fragmentos espalhados por esta miríade de linhas, aninhados em seus entroncamentos, seduzidos por suas bifurcações e ramificações? Por que então essa insistência em buscar no espelho do mundo apenas o reflexo opaco de nosso rosto demasiadamente humano? Talvez já pudéssemos abrir mão dessa miragem. Mais do que nunca, vemo-nos enlaçados pela heterogeneidade a mais estrangeira, a mais avessa, simplesmente inumana. Ao ver roubado nosso reflexo, estaríamos mesmo perdidos? PETER
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ROGÉRIO
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Entrevistado por To
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Gostaria de começar por uma questão que também fiz, recentemente, a Gilles Deleuze, a propósito de Mil Platôs. Nesse livro, que considero um dos grandes ensaios filosóficos do século, acreditei perceber uma nota trágica. Os pares conflitantes que nele se desenham (processo/projeto, singularidade/sujeito, composiçã%rganização, linhas de fuga/dispositivo e estratégia, micro/macro, etc.), tudo o que, em suma, constitui um sistema aberto encontra-se, por outro lado, não re-enclausurado, mas contido como numa tensão insolúvel e num esforço sem fim. É nisso que me parece consistir o elemento trágico desse livro. FÉLIX
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Alegria, tragédia, comédia ... os processos que gosto de qualificar como maquínicos trançam um futuro sem garantia - é o mínimo que podemos dizer! Estamos ao mesmo tempo "presos numa ratoeira" e destinados às mais insólitas e exaltantes aventuras. É impossível levar-se a sério, mas também impossível não "se enganchar". Essa lógica da ambigüidade, eu não a vejo tanto como uma "tensão insolúvel", mas como o jogo multívoco, polifônico, de escolhas paralelas, por vezes antagônicas, que não lhe deixa outro recurso senão o da má-fé, a bifurcação interrompendo todo o resto. Como "lidar" com essas constelações insustentáveis de universos de referência? O esquecimento pode ser de grande ajuda, mas ele não está ao alcance de todos! 16
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Nas Cartographies Schizoanalytiques, mas a partir daí em todos os seus textos, para caracterizar o período histórico atual, você utiliza a expressão "era informática planetária". Esta categoria ecoa com os discursos foucauItiano e deleuziano sobre a era da comunicação, especificandoos. A aceitação dessa categoria em filosofia tem efeitos metodológicos fundamentais: ela lhe permite resolver a genealogia na epistemologia e vice-versa, e construir os agenciamentos de enunciação de um ponto de vista histórico. No entanto, esta redução não pode ter também efeitos perversos no caso de uma epistemologia de referência informática? Não há risco de achatamento da determinação ou do agenciamento genealógico no universo das relações transversais, lineares e indiferentes características desta epistemologia? Como romper a indiferença do horizonte informático? GUATTARI
A subjetividade capitalística implica uma binarização e uma desqualificação sistêmica de todas as "mensagens". Ela coroa o reino de um equivaler generalizado que tem, além disso, estendido suas coordenadas nos domínios do Espaço, do Tempo, da Energia, do Capital, do Significante, do Ser ... Trata-se ao mesmo tempo de um horizonte histórico, cujo surgimento é datado, e de uma vertigem axiológica que remonta a tempos imemoriais. Por toda parte sempre houve ameaça de abolição da complexidade qualificada, desde o interior. O caos habita o complexo; o complexo habita o caos. O que implica que este último seja composto de entidades animadas a uma velocidade absoluta - deixando que a ciência "reduza" essas velocidades com constantes tais como c, h (constante de Planck), o instante zero do bigue-bangue, o zero absoluto, etc ... O que legitima uma perspectiva de "revolução molecular" é que esta entropia capitalística da subjetividade se instaura em todos as escalas e renasce constantemente de suas cinzas. Uma periodização como a que encadeia a passagem das sociedades de soberania para as sociedades disciplinares, para resultar nas sociedades de controle, é ao mesmo tempo genealógica e ontogenética. Todos esses regimes de territorialização do poder, do saber e da subjetividade se decompõem e se recompõem na subjetividade contemporânea. O que faz com que, por exemplo, não se possa falar hoje, com a escalada dos integrismos e dos
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racismos, de "regressão arcaica", mas antes de progressismo fascista ou, a rigor, de neo-arcaísmo, sendo entendido que eles reinventam com todas as peças formas de inteligência e de sensibilidade do mundo contemporâneo. Recomeçar a história desde o começo ou dobrá-la em direção a finalidades progressistas: este não é mais, verdadeiramente, o problema! Trata-se antes de recompor, sobre outras bases, os agenciamentos de subjetivação e, neste momento, recriar de um modo pático as diversas figuras da subjetivação histórica, das quais a subjetividade capitalística é a mais vertiginosa por seu vazio, sua banalidade, sua vulgaridade ... NEGRI
Nós vivemos num mundo em que a pluralidade dos processos de subjetivação se constitui através de uma pluralidade de equipamentos coletivos, bem como de mercados e de instituições. Esse processo é muito rico e impossível de ser encaixado nas velhas categorias da democracia ou do socialismo. Para não falar nas velhas categorias do capitalismo liberal. Mas esse processo é também atravessado por dinâmicas de globalização e de subordinação que relativizam e sobrecodificam a intensidade dos processos de subjetivação. Por vezes, tenho a impressão que o processo molecular, uma vez tomado hegemõnico, foi consumido e digerido por uma potência molar que não reconhece mais seu oposto como existente. Nesse contexto as saídas metafísicas e políticas não são interessantes. Como na multidão molecular se pode reconstruir uma oposição molar? GUATTARI
Substituída pela mídia de massa, pelas sondagens, pela publicidade, pelas consultorias em comunicação, a democracia política toma-se não só cada vez mais formal, cada vez mais cortada da realidade, mas também cada vez mais delirante. O que não significa que ela perca toda relação com a subjetividade capitalística. Os líderes políticos rivalizam com os apresentadores de televisão para penetrar sempre mais na pseudo-intimidade dos lares. É o reino do show de variedades substituído pelo psico-show. O vertiginoso, em tudo isso, é a capacidade que tem esse tipo de produção de subjetividade de capturar toda imanência processual, toda mutação molecular. Existiria, contudo, uma prova de ver-
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dade capaz de discriminar-se do engodo, do fingimento, do simulacro, já que estes podem também tomar-se o lugar de uma autêntica territorialização existencial? Veja, por exemplo, o gestual estereotipado de uma estrela da cultura rock, cujos traços são contudo objetos de reapropriação por crianças e adolescentes em momentos cruciais de sua existência. Mas a prova da verdade não engana, ela é de ordem pática: é ela que encadeia uma espécie de adesão existencial que cria o acontecimento. É bem verdade que todos esses focos de resistência molecular contra a serialidade da subjetividade capitalística se encarnam, freqüentemente, como retornos à transcendência, ao misticismo, ao culto do "natural". Isso me incomoda menos que a você. Eu me digo que Deus encontrará aí os ~eus! Há algo de tão artificial nesses neo-arcaísmos ... Eles nunca implicam mais que um estrato dentre outros das formações de subjetividade. Sabemos muito bem que os integristas tomam um trago e assistem filmes pornõs às escondidas. O que não desculpa nada! Resumindo, o microfascismo está sempre renascendo, mas não forçosamente o macrofascismo. A oposição molar passa ainda e sempre pela constituição de máquinas de guerra social. Chegou a hora, porém, de pensar em outra coisa que não nas máquinas leninistas. Acabamos de ver nascer máquinas molares conhecidas no terceiro mundo, com o integrismo iraniano e depois o nacionalismo iraquiano. Houve durante oito anos guerra de modelos, seleção artificial e depois colocação à prova! Uma vez que a sobrecodificação das relações internacionais pelo antagonismo Leste( leste se enfraqueceu, podemos esperar ver nascer e proliferar toda uma série de máquinas molares. Não há apenas exemplos catastróficos: o PT !lO Brasil autoriza esperanças reservadas ... mas veja bem que eu não tenho programa, modelo de referência! Tudo o que posso dizer é que me parece legítimo, inevitável, que as revoluções moleculares sejam "duplicadas" por máquinas de grande escala trabalhando no seio das relações de forças sociais que, longe de se apagar, irão se endurecer, mesmo que se diferenciando.
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Você sustenta o direito fundamental à singularidade. Você o ilustra WITIO um recentramento das finalidades da divisão do trabalho e das
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práticas sociais emancipadoras, como exercício de uma ética da finitude. Como a partir daí um processo de singularização pode tornar-se antagonista? Ou ainda, como a resistência das singularidades oprimidas pode tornar-se eficaz? Há ainda um intolerável? Ou ele próprio foi reabsorvido no mecanismo da pluralidade crescente dos mercados? Existe a possibilidade de construir uma idéia filosófica do comunismo e de ligála ao processo de subjetivação? Ainda é possível fazer tudo isso sem cair nas armadilhas do positivismo, do dogmatismo e da utopia? GUATTARI
Tenho a impressão que você se esforça em me fazer falar. Você sabe tanto quanto eu que um processo de singularização é uma pura afirmação que ignora o antagonismo, a opressão ou mesmo simplesmente a interação. Trata-se justamente aí de sair mais uma vez das metáforas dinãmicas e energéticas. Um comunismo da imanência conduziria constantemente o cursor sobre práxis ético-políticas dando suporte a seus próprios universos de referência. Fora com os paradigmas científicos que assediaram o marxismo, o freudismo, o estruturalismo, etc ... Todo um pensamento da transcendência, toda uma sentimentalidade da eternidade transformaram o progressivismo em uma imensa fobia, um evitamento sistemático da finitude, da inutilidade última da existência magnificamente ilustrada por Samuel Beckett. No lugar de fazer disso uma doença, constituir uma razão pragmática. Há aí um salto estético que expropriaria o salto religioso de Kierkegaard. Por que mudar? Por que a revolução e não o nada? Porque isso tem uma cara melhor! Mas, no fundo, por nada, por um prazer imaterial, uma palpitação imperceptível na superfície das coisas. NEGRI
Conheço sua paixão pelo acontecimento e seu prazer pela vida. Mas quando filosofa, você parece querer distanciar-se disso. Como você consegue gerir a esquizofrenia estrutura-acontecimento? Você não tem sempre tendência de antecipar a estrutura subjacente ao acontecimento, correndo risco de não o deixar falar? Esta questão pode ser encontrada em seu trabalho com Deleuze? Qual é sua teoria do acontecimento? Como imaginar hoje não o processo, mas o acontecimento revolucionário, não as condições da revolução, mas o poder constitu!nte?
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O acontecimento é um dom de Deus. Temos sempre a impressão de que nada acontece, de que nada mais acontecerá. E, então, surgem os "acontecimentos do Golfo". Mesmo neste caso eu pensei que, no fundo, nada aconteceria. A máquina mass-mediática planetária lamina todas as asperidades, todas as singularidades. Não encontramos mais as zonas de mistério. A questão agora é fazer um acontecimento com o que se apresenta. Não como os jornalistas que são obrigados, o que quer que se passe, a fazer seu "serviço". Mas de modo mais poético. Trata-se aqui, portanto, de um poder constituinte, de uma produção ontológica sui generis. Lidar com a serialidade. Nem que seja sonhando com os militares americanos cozinhando nos seus tanques, com a confusão dos reféns, com o júbilo dos jovens árabes, com o delírio sistemático de Sadam ... Essas cenas, sem limites precisos, para que enfim aconteça alguma coisa! Quanto à questão que você levanta, relativa à estrutura, eu gostaria de descentrá-Ia. Eu nunca pretendo descrever um estado de fato, um estado da história ou da subjetividade. Eu procuro apenas demarcar as condições de possibilidade dos diversos modos de descrição possíveis. Para apreender ou para contornar as problemáticas da enunciação coletiva, todo sistema de modelização - quer seja ele teórico, teológico, estético, delirante ... - é levado a posicionar o que chamo de fatores ontológicos (os Fluxos, os Phylums maquínicos, os Territórios existenciais, os Universos incorporais). Assim, encontra-se conjurada ou assumida parcialmente a questão, para mim essencial, do pluralismo ontológico. Há escolha de constelações singulares de Universos de referências, encarnados em Territórios existenciais, eles próprios marcados por uma precariedade, uma finitude que faz oscilar o Ser numa irreversibilidade criacionista. Nessas condições, uma ontologia só pode ser cartográfica, ll1etamodelização de figuras transitórias de conjunções intensitárias. O llcontecimento reside nessa conjunção: de uma cartografia enunciadora (~essa tomada de ser precária, qualitativa, intensiva. Essa relação de fundação recíproca entre o que exprime e o expresso, o que dá e o Chldo, encontra sua expressão exacerbada na criação estética precisamente considerada como poder constituinte ontológico. Digamos que existam três tempos: o do estado inicial, o do retorno a
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zero e o da retomada de processualidade. O segundo tempo não é dialético. Nele, nunca se termina com a finitude, com o não-senso. E, no entanto, trata-se de um tempo rico, de uma recarga de complexidade através de um banho caótico. O tempo zero sempre reserva surpresas; a partir de pontos de singularidade podem dar partida novas linhas de possível. O terceiro tempo seria o dos imaginários, ou seja, da retomada das ambigüidades. Como definir um comunismo, ou simplesmente um amor bem-sucedido, escapando de fato às ilusões de um desejo de eternidade. A potência de viver, a alegria spinozista só escapa à transcendência, à lei mortífera por seu caráter de modalidade fragmentar, polifônica, multirreferencial. A partir do momento em que uma norma pretende unificar a pluralidade dos componentes éticos, a processualidade criativa se oculta. A única verdade última é a do caos como reserva absoluta de complexidade. O que constituiu a força e a pureza das primeiras "reprises" de socialismo e de anarquismo foi justamente ter mantido reunidos, ao menos parcialmente, um imaginário comunista ou libertário e um sentido agudo da precariedade dos projetos individuais e coletivos que os suportavam. Desde então, a finitude tornou-se insípida, a subjetividade mass-mediatizada e coletivizada se infantilizou. A finitude do segundo tempo de "fio-terra" não está dada de uma vez por todas. Sem cessar, ela deve ser reconquistada, recriada nos seus ritornelos e na sua textura ontológica. A reconstrução do comunismo passa hoje por uma ampliação considerável dos modos de produção de subjetividade. Donde a temática de uma junção entre a ecologia do meio ambiente, a ecologia social e a ecologia mental por uma ecossofia.
PLISSÊ FRACTAL
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Tradução ROGÉRIO
DA COSTA
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deve lançar-se acima dos "fatos" para interrogarse, não apenas sobre suas causas mecânicas, mas também sobre o que os faz serem o que são, sobre os agenciamentos de enunciação dos quais eles são os enunciados, sobre os mundos de vida e de significação do magma dos quais eles surgem. Remontar até às fontes, tal é o sentido do problema do transcendental. Através de quê há um mundo? A história da filosofia e, parcialmente, a da ciência, podem ser consideradas como o conjunto de proposições que foram articuladas para responder a esta questão. Evidentemente não é possível retomar aqui toda a história da filosofia e nem mesmo resumi-la. Contentar-nos-emos com algumas sondagens inspiradas por alguns trabalhos recentes, depois mostraremos como as máquinas de Guattari (que podem ser tudo, exceto mecânicas) nos ajudam hoje a repropor este problema. No lugar sem lugar da origem sempre presente, será preciso eleger, depois de Kant, um sujeito transcendental do conhecimento? Ou então, como os cognitivistas contemporâneos, uma arquitetura do sistema cognitivo humano? Isto nos remete imediatamente a uma nova instância, pois o fundamento biológico do sujeito cognitivo está no cérebro, como pensam hoje os conexionistas e os adeptos do homem neuronal. Ora, mesmo correndo o risco de situar a última fonte no estrato biológico, não seria preferível considerar o organismo inteiro, suas operações recursivas e sua autopoiese, como o sujeito cognitivo último, aquele que calcula seu mundo? Nisto seguiríamos toda a corrente da segunda ciPENSAMENTO
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bernética, especialmente ilustrada por von Foerster, Maturana e Varela. Teríamos então atingido o termo? Não, pois o organismo, tal como ele é, remete duas vezes às contingências da História: o "fora" intervém uma primeira vez através da construção ontogenética e da experiência de vida; ele se aloja uma segunda vez no coração do organismo específico ao acaso da filogênese. A evolução biológica, por sua vez, não pode se separar da história infinitamente bifurcante e diferenciada da biosfera, e até mesmo além, ela se conecta rizomaticamente com a Terra, com suas redobras e seus climas, com os fluxos cósmicos, com todas as complexidades da physis e de seu devir. Em vez de conduzir, gradativamente, do cognitivo ao biológico e do biológico ao físico, a meditação do sujeito transcendental do conhecimento pode remeter a seu outro: o inconsciente dos afetos, das pulsões e dos fantasmas. Mas ainda aqui é impossível deter-se no inconsciente freudiano como num termo último. Guattari e Deleuze mostraram que o dito inconsciente não se limita a um reservatório de desejos incestuosos ou agressivos recalcados, mas que está aberto sobre a História, a sociedade e o cosmos. O inconsciente total, que não é mais concebido como uma entidade intrapsíquica, são os agenciamentos coletivos de enunciação, os rizomas heterogêneos ao longo dos quais circulam nossos desejos e pelos quais se lançam e se relançam nossas existências. Ora, não se pode estabelecer uma lista a priori de tudo o que entra na composição dos agenciamentos de enunciação e das máquinas desejantes: lugares, momentos, imagens, linguagens, instituições, técnicas, fluxos diversos, etc. E, finalmente, descobrimos mais uma vez que o termo último, ou melhor, o horizonte sem fim do transcendental, aqui nomeado "inconsciente", bem poderia ser o próprio mundo. Voltemos à encruzilhada de onde partimos, o sujeito do conhecimento, para seguir uma terceira via, a da empiria. A experiência não é originária? E antes mesmo da experiência, os sentidos que a tornam possível? Em Os Cinco Sentidos, Michel Serres conseguiu a proeza de construir, a partir de cada uma das modalidades sensoriais, uma metafísica, uma Ilsica, uma gnosiologia, uma estética, uma política e uma ética. A sensação seria, por conseguinte, fundadora. Mas o próprio do tato, da audiçã.o, do olfato, do paladar e da vista não seria o de se remeter ao mundo? Se a percepção faz existir para nós o fora, por outro lado, é também sobre o devir e o terrível esplendor do mundo que repousa a vida dos
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sentidos. Ser é ser percebido, dizia Berkeley. A percepção e o mundo sensível são as duas faces, as duas bordas da mesma dobra. Por uma reversão talvez previsível, o livro seguinte de Michel Serres, Statues, punha a coisa, a massa, a exterioridade mais densa no fundamento dos coletivos humanos, das subjetividades e do conhecimento. O empirismo situa o mundo no coração do conhecimento. É o que Kant, que pretendera põr o sujeito no centro, demonstrou muito bem em sua metáfora da "revolução copernicana" em filosofia. Mas por mais que se queira expulsar o mundo pela grande porta do transcendental, ele volta pelas janelas do corpo, sob o aspecto de imagens impalpáveis que freqüentam e fazem viver o sujeito, e pela força do tempo, que tudo transforma. Explorando outras vias, podemos remontar do sujeito individual às significações sociais que o habitam, ao imaginário instituinte que () atravessa (Castoriadis), à remissão historial que o destina (Heidegger), aos epistemai que estruturam seu discurso (Foucault), etc. Recordemos que a principal aporia, quando se considera um transcendental histórico, vem de seu caráter por definição evolutivo e variado. Um transcendental histórico existe, mas sob o efeito de que causas, de que devires inominados ele se metamorfoseia permanentemente? Se concebêssemos causas e efeitos na região transcendental, o que então a diferenciaria do campo empírico? Todo o fatual e o contingente da História (geografia, queda de impérios, propagação de religiões, invenções técnicas, epidemias, etc.) não retroage sobre a região historial? Não resultam as idas e vindas do transcendental histórico, de efeitos ecológicos, de processos cosmopolitas? Mais uma vez, para compreender aquilo através de que há um mundo, somos conduzidos à complexidade e aos redemoinhos do próprio mundo. PRIMEIRA
ABORDAGEM
DA DOBRA
Com efeito, é sempre o mundo, sua multiplicidade indefinida, sua realidade, sua materialidade, sua topologia singular, as contingências de seu devir, Cosmópolis povoada de coletivos heterogêneos ao infinito e em todas as escalas de descrição, é finalmente o próprio mundo que se descobre, a cada vez, acima do complexo vital de significações que o faz ser tal mundo para nós. Pelas metáforas e imagens recebidas, pelas significações culturais a
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nós transmitidas (implicando em suas dobras fragmentos holográficos de natureza), pelo inconsciente maquínico conectado ao fora, pelas técnicas materiais, as escrituras e as línguas sob cuja dependência pensamos e produzimos nossas mensagens, tudo aquilo através de que experimentamos e vivemos o mundo é precisamente o próprio mundo, a começar por nosso corpo de sapiência. Mais do que grosseiramente adaptado ao seu nicho-universo, o organismo vivo é com certeza seu produtor; nisso é preciso seguir Varela. Mas devemos reconhecer igualmente que o mundo exterior, ou se quisermos, "o meio", já está também sempre incluído no organismo cognoscente que o produz. No vivo, o mundo se redobrou localmente em máquina autopoiética e exopoiética, produtora de si e de seu fora. Acima do mundo empírico experimentado por nós, o mundo transcendental que evocamos aqui não é certamente redutível a algum estrato físico, ou biológico, ou social, ou cognitivo, ou qualquer outro. Tampouco é a soma ordenada ou bem articulada dos estratos. Trata-se do mundo como reserva infinita, transmundo, sem hierarquia de complexidade, sempre e por toda parte diferente e complicado: Cosmópolis. Corpos, culturas, artifícios, linguagens, significações, narrações ... o empírico torna-se transcendental e o transcendental faz advir um mundo empírico. "Isso" se dobra e se redobra em transcendental e empírico. A dobra é o acontecimento, a bifurcação que faz ser. Cada dobra, ação-dobra ou paixão-dobra, é o surgimento de uma singularidade, o começo de um mundo. A proliferação ontológica é irredutível a uma ou outra camada particular dos estratos; igualmente irredutível a qualquer dobra-mestra como a do ser e dos entes, da infra-estrutura e da superestrutura, do determinante x e do determinado y. O mundo total e intotalizável, o transmundo cosmopolita, diferenciado, diferenciante e múltiplo é, ao contrário, infinitamente redobrado, ele fervilha de singularidades nas singularidades, de dobras nas dobras. As oposições binárias maciças ou molares como a alma e o corpo, o sujeito e o objeto, o indivíduo e a sociedade, a natureza e a cultura, o homem e a técnica, o inerte e o vivo, o sagrado e o profano, e até a oposição de que partimos entre transcendental e empírico, todas essas partições são maneiras de dobrar, resultam de dobras-acontecimentos singulares do mesmo "plano de consistência" (Deleuze e Guattari). "Isso" poderia ter-se dobrado de outra maneira. E como a dobra emerge num mundo infinitamente
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LÉVY
PLISSÊ
diversificado mas único, sempre se pode voltar ao acontecimento da dobra, seguir seu movimento e sua curvatura, desenhar seu drapê, passar continuamente de um lado para o outro. A
ALMA
E
o
CORPO
PARA
GILBERT
SIMONDON
De sorte que, como o demonstrou Gilbert Simondon, não há substâncias, mas processos de individuação, não há sujeitos, mas processos de subjetivação. A subjetivação como ação ou processo continuado constitui um "dentro", que não é outro senão "a dobra do fora" (Deleuze). Os dualismos achatam e unificam violentamente aquilo que eles distingue~, impedindo, assim, de localizar as dobras e as curvaturas pelas quaIS passam as regiões do ser, uma na outra. "Descartes não apenas separou a alma do corpo; ele criou também, no próprio interior da alma, uma homogeneidade e uma unidade que prOíbe a concepção de um gradiente contínuo [o grifo é meu - P.L.] de distanciamento em relação ao eu atual, reunindo as zonas mais excentradas, no limite da memória e da imaginação, a realidade somática" (Gilbert Simondon. L'individuation psychique et collective, p. 167). A alma . e o corpo, apreendidas como multiplicidades diferenciadas , comUnIcam-se por suas zonas de sombra. A consciência livre, racional e volunt~ria, de um lado, o mecanismo físico-químico dos órgãos, de outro, se Juntam pela sensação, pelo afeto, toda a obscuridade psicossomática do desejo, da sexualidade e do sono. O maquinal, o reflexo, o herdado do psiquismo, toda a divisão e a exterioridade do espírito a si mesmo o redobram para o somático, fazem-no tornar-se corpo. A união psicossomática só se torna um problema se tentarmos conectar as extremidades da dobra, que são apenas dois casos-limite: de um lado, a consciência clara e racional; do outro, o corpo-matéria ou o cadáver automóvel. ~as a alma e o corpo já se comunicam sempre pela dobra que os relacIOna um ao outro, pelas multiplicidades negras da curvatura, que formam a maior parte do sujeito. O esforço em se seguir a dobra, esboçado aqui sobre o caso da alma e do corpo, deveria ser levado a todas as oposições molares. A cada vez, no lugar de entidades homogêneas e bem recortadas, descobriríamos um plissê fractal (Mandelbrot), uma infinita diferenciação do ser segundo dobras, passando continuamente umas nas outras.
A
CIÊNCIA
E A SOCIEDADE
EM BRUNO
FRACTAL
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LATOUR
O que Gilbert Simondon assinalou sobre as relações da alma e do corpo, Bruno Latour mostrou no caso da ciência e da sociedade. O autor de La Science en Action mergulhou a ciência e a técnica no grande coletivo heterogêneo dos homens e das coisas. Mas seria um erro acreditar que ele negou toda especificidade à tecnociência, uma vez que ele mostra as forças díspares que a compõem. A ciência e a técnica emergem de uma megarrede heterogênea; em contrapartida, elas contribuem para atá-la, curvá-la de outra maneira. Ciências e técnicas resultam de uma dobra do coletivo cosmopolita, que se redobra em ciência das coisas, de um lado, e em sociedade dos homens, de outro. Há certamente uma identidade (múltipla e variável) da ciência, um estilo de dobra, um regime de enunciação que a singulariza. Mas um pensador rigoroso não pode se atribuir a particularidade produzida por um acontecimento (por mais contínuo que seja) sem ter percorrido previamente a dobra que o efetua. Ele não pode dar-se a essência antes do processo. Antes de qualquer especificidade do conhecimento científico e da eficácia técnica, há primeiro uma maneira de dobrar entre a verdade das coisas em si e o conflito hermenêutico das subjetividades. Esse tipo de partição se redobra sempre :novamente, no próprio seio da atividade científica, e poderia sempre se dobrar de outro modo ou em outro lugar. Uma tal proposta científica ter-se-ia situado na face social ou demasiado humana da partição se a dobra tivesse passado mais longe. Como para a alma e o corpo, o trabalho que consiste em reencontrar e desenhar a dobra não pode se realizar sem dissolver a unidade e a homogeneidade das regiões que ele distingue. Apesar de todas as analoKiaspossíveis, a dobra que singulariza a ciência não é idêntica, por exemplo, às que fazem advir a justiça, a beleza ou a santidade. As no
(!
LEIS VIVO
DO INERTE
E O MILAGRE
EM PRIGOGINE
E STENGERS
De todos os contemporâneos exploradores de dobras, Ilya Prigogine Isabelle Stengers estão indubitavelmente entre os mais notáveis. Em
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suas duas obras, Entre o Tempo e a Eternidade e A Nova Aliança, eles tentaram pôr abaixo a cortina de ferro ontológica que uma certa tradição filosófica havia construído entre os seres (o em si) e as coisas (o para si). Apoiando-se sobre os últimos desenvolvimentos da ciência contemporânea, a filósofa e o prêmio Nobel renovaram profundamente a filosofia da natureza. Lendo-os, redes cobrimos na physis a irreversibilidade do devir e o caráter instituinte do acontecimento que acreditávamos reservados aos universos do homem (desde que se pensa a História) e da vida (desde a descoberta da evolução biológica). Os processos distantes do equilíbrio e os sistemas dinâmicos caóticos conectam, por uma dobra que permaneceu invisível por muito tempo, a necessidade estática do mecanismo e o acaso miraculoso da auto-organização viva. Desde o momento em que o determinismo da "matéria" e a inventividade finalizada do vivo não são mais do que casos-limite de um continuum infinitamente complexo, redobrado e semeado de singularidades, a vida e o universo físico, o sinal e a significação deixam de se opor. Não somente eles se relacionam um com o outro em sua diferença, mas passam também um no outro. O conceito de sistema dinâmico caótico é um dos que permitem pensar a voluta gigante unindo a vida organizada às necessidades da physis. Para ilustrar e modelizar este conceito, Prigogine e Stengers escolheram especialmente a "transformação do padeiro", isto é, o estiramento e a redobra indefinidamente reiterada de uma superfície representando "o espaço das fases de um sistema". A operação matemática da transformação do padeiro é uma espécie de análogo formal do trabalho que um verdadeiro padeiro aplica a uma massa de pão (ver La Nouvelle Alliance, p. 329-43 e 401-07, assim como Entre le Temps et l'Éternité, p. 96-107). E talvez seja a própria imagem do tempo antes que ele escoe, antes que ele seja apreendido num sistema de coordenadas: esse movimento sem fim de estiramento, de dobra e de redobra de uma superfície abstrata.
A
MECANOSFERA
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curvas dos corpos, dos arabescos desenhados por alguma linha melódica , da curvatura dos acontecimentos ... Entidades se individuam ou se desindividuam para que "isso" se preste a outras dobras, para que "isso" se reindividue de outra maneira. Quer se trate de um objeto cósmico, de uma espécie, de um biotopos,l de uma cultura, de um regime político, de um momento, de uma atmosfera ou de um sujeito, sob qualquer processo de individuação, uma máquina trabalha (ver "I1hétérogenese machinique", Félix Guattari, Chimeres n.O 11, 1991, retomado em Caos-
mose, Galilée, 1992). A análise redutora acredita ter encontrado um fundamento da explicação, um último solo causal, que se confunde freqüentemente com este ou aquele estrato (o "biológico", o "psíquico", o "social", o "técnico", etc.) Ora, a análise preocupada com a singularidade dos seres, em vez de perder tudo (exceto a certeza), numa regressão a um fundamento, qualquer que seja ele (ver o pensiere debole enaltecido por Gianni Vattimo), deve ao contrário tentar fazer aparecer a consistência própria, a dimensão de autopoiese (Vareia), a qualidade ontológica p~rticular da <'ntidade, do fenômeno ou do acontecimento considerado. E para escapar da redução que precisamos do conceito de máquina. Uma máquina organiza a topologia de fluxos diversos, desenha os meandros de circuitos rizomáticos. Ela é uma espécie de atrator que rccurva o mundo em volta dela. Enquanto dobra dobrando ativamente outras dobras, a máquina está no cerne do retorno do empírico sobre o transcendental. Uma máquina pode ser considerada numa primeira aproximação como pertencendo a tal estrato físico, biológico, social, t(>cnico, semiótico, psíquico, etc., mas ela é mais geralmente transestrática, heterogênea e cosmopolita. As máquinas são "aquilo através de que" há estratos. . Não somente uma máquina produz algo num mundo, mas ela contnhui para produzir, para reproduzir e para transformar o mundo no qual du funciona. Uma máquina é um agenciamento agenciante, ela tende a IIP voltar, a retornar sobre suas próprias condi,nes de existência para reproduzi-las. A composi- "biotope", em francês: meio çIIo das máquinas não é nem conjuntista, nem biológico determinado que mecânica, nem sistêmica. Isso é impossível, pois oferece a uma população animal e vegetal bem determina· I1ll perspectiva neovitalista que é a nossa aqui, da condições de hábitat rela· tivamente estáveis (Eco!.) ('ndn máquina é animada por uma subjetividade I
Dobras não cessam de involuir e de se recurvar umas nas outras, ao passo que outras se desdobram. Acolhido na dobra individuante, o sinal, ou a ondulação das coisas, torna-se significação. Os seres se individuam em torno das dobras das coisas, da ondulação das paisagens, das
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ou por uma pro to-subjetividade elementar. Não nos representaremos, portanto, máquinas (biológicas, sociais, técnicas, etc.) "objetivas" ou "reais", e vários "pontos de vista subjetivos" sobre esta realidade. Na verdade, uma máquina puramente "objetiva" que não fosse movida por nenhum desejo, nenhum projeto, que não fosse infiltrada, animada, alimentada de subjetividade, não se sustentaria nem um segundo, essa carcaça vazia e seca se pulverizaria imediatamente. A subjetividade não pode, portanto, ser restringida ao "ponto de vista" ou à "representação", ela é instituinte e realizante. Por outro lado, a subjetividade não toma forma e só se sustenta com agenciamentos maquínicos diversos, entre os quais, na escala humana, os agenciamentos biológicos, simbólicos, midiáticos, sociotécnicos ocupam um lugar capital. As concepções habituais da composicão só respondem na verdade aos problemas da objetividade pura, dos quais os modelos sistêmicos, informáticos e cibernéticos são apenas uma variante elaborada. Mas as máquinas não são nem puramente objetivas nem puramente subjetivas. A noção de elemento ou de indivíduo também não lhes convém mais, nem a de coletivo, uma vez que a coleção supõe a elementaridade e faz sistema com ela. Como pensar então a composição das máquinas? Cada máquina possui uma qualidade de afecto diferente, uma consistência e um horizonte fabulatório particular, projeta um universo singular. E no entanto ela entra em composição, ela se associa com outras máquinas. Mas de que modo? Querer integrar, unificar violentamente as máquinas plurais sob um só projeto, um só princípio de consistência, resultaria talvez em matá-las e certamente diminuir sua riqueza ontológica. Uma unificação "real" seria destruidora, uma unificação conceitual empobreceria a compreensão e a inteligência do fenômeno considerado. Portanto, é necessário respeitar a pluralidade maquínica, uma pluralidade sem elementos (por baixo) nem síntese ou totalização (por cima). Mas a pluralidade, justamente porque ela não é composição de elementos, não pode ser sinônimo de separação. Há certamente uma composição ou uma correspondência das máquinas. Esta articulação paradoxal deverá ser analisada com infinita delicadeza e precaução em cada caso particular. Levantamos a hipótese de que não existe nenhum princípio geral de composição, mas que, pelo contrário, cada agenciamento maquínico inventa localmente seu pró-
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prio modo de comunicação, de correspondência, de compossibilidade ou de entrelaçamento da autopoiese (pólo identitário) e da heteropoiese mútua (pólo associativo). Distingamos cinco dimensões da máquina: 1. Uma máquina é diretamente (como no caso do organismo) ou indiretamente (na maior parte dos casos) autopoiética (Varela), ou autorealizadora (como se diz de uma profecia auto-realizadora), isto é, ela contribui para fazer durar o acontecimento da dobra que a faz ser. 2. Uma máquina é exopoiética, ela contribui para produzir um mundo, universos de significações. 3. Uma máquina é heteropoiética, ou fabricada e mantida por forças do fora, pois ela se constitui de uma dobra. O exterior já está aí presente sempre, ao mesmo tempo geneticamente e atualmente. 4. Uma máquina é não somente constituída pelo exterior (é a redobra da dobra), mas igualmente aberta para o fora (são as bordas ou a abertura da dobra). A máquina se alimenta, recebe mensagens, está atravessada por fluxos diversos. Em suma, a máquina é desejante. A este respeito lodos os agenciamentos, todas as conexões são possíveis de uma máquina a outra. 5. Uma máquina é interfaciante e interfaciada. Ela traduz, trai, desdobra e redobra para uma máquina jusante os fluxos produzidos por uma máquina montante. Ela é ao mesmo tempo composta por máquinas lradutoras que a dividem, multiplicam e heterogenizam. A interface é a dimensão de "política estrangeira" da máquina, o que pode fazê-la entrar em novas redes, fazê-la traduzir novos fluxos. Toda máquina possui as cinco dimensões, mas em graus e propor~:(cs variáveis. Repitamo-lo, as máquinas nunca são puramente físicas, hiológicas, sociais, técnicas, psíquicas, semióticas, etc. Cosmópolis atrav(~ssasempre as dobras transitórias que escavam estas distinções. Certas 1l1(Lquinasestratificantes ou territorializantes - elas mesmas perfeitamente Iwlcrogêneas - trabalham precisamente para endurecer as dobras esIr(llicas. São redes de máquinas cosmopolitas que produzem os seres, os lIlodos de ser, o próprio Ser de acordo com uma modulação infrnita de IJ.I'llUS e qualidades. A produtividade ontológica se auto-entretém, pois máquinas interfan's, parasitas, vêm gerar os hiatos, os abismos ou as dobras muito profundas que separam as subjetividades-mundos, suas temporalidades, seus
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espaços e seus signos. Uma máquina mantém presente (traindo-o ao mesmo tempo) o acontecimento da dobra do qual ela resulta. Ela inscreve o clinâmen inicial na mecanosfera, faz com que ele dure, retorne e, ao fazê-lo, ela se instaura na origem de outras dobras. Pensado como mecanosfera, todo o mundo empírico retorna ao transcendental, torna-se fonte multiforme e plurívoca de universo de existência e de significação. OS
TRÊS
ANDARES
DO TRANSCENDENTAL
Partimos de uma concepção clássica do transcendental: a interioridade do sujeito, ou o objeto, ou a experiência, etc. Pouco a pouco, é a dobra do ser e do ente (ver Heidegger. Essais et Conférences. Gallimard, p. 279-310) ou do transcendental e do empírico que se impôs à nossa meditação. Devemos agora voltar à própria possibilidade das dobras (e não somente da dobra heideggeriana ser/ente). Distingamos para este fim três níveis de transcendental. O transcendental de nível zero: Há inicialmente o "isso", o inconsciente total intotalizável, o plano de consistência. As entidades que povoam esse arquilugar ou esse prototempo estão em composição e decomposição perpétuas e simultâneas. Elas se deslocam a uma velocidade absoluta e estão ao mesmo tempo infinitamente próximas e infinitamente distanciadas umas das outras. Evidentemente será preciso ter cuidado para distinguir o caos transcendental da desordem no sentido habitual ou termodinâmico do termo ... antes de meditar a dobra que relaciona uns com outros estes sentidos. (Ver, para uma exposiçâo mais detalhada sobre o caos, as Cartographies Schizoanalytiques de Félix Guattari.) O caos transcendental é a condição de possibilidade da dobra como acontecimento. O transcendental de nível um: O acontecimento da dobra é aquilo pelo qual algo se diferencia. A dobra é trabalho antes de qualquer objeto ou qualquer fluxo trabalhado, processo antes de qualquer estado, incoativo absoluto. A dobra é uma espécie de inflexão do plano de consistência, um clinâmen. O transcendental de nível dois: São os complexos maquínicos dobrados/ dobrantes que produzem os mundos empíricos. Sob o ser e o nada, o ser e os entes, os universos biológicos, sociais; seus modos de enuncia-
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ção e suas significaçôes trabalham agenciamentos transestráticos, máquinas cosmopolitas heterogêneas que se entre traduzem, se entreproduzem e se entredestroem perpetuamente. O transcendental de nível dois é o coletivo em metamorfose permanente de todos os "aquilo através de que". A organizacão "hipertextual" (ver P. Lévy. As Tecnologias da Inteligência, 1993) da rede maquínica proíbe qualquer redução a uma infra-estrutura, qualquer rebatimento do transmundo sobre uma ordem particular de discurso. Eis aqui a mecanosfera, a megamáquina mundomundo, o anel de Moebius cósmico onde empírico e transcendental I rocam perpetuamente seus lugares ao longo de uma dobra única e infinitamente complicada. DIREÇÕES DE PESQUISA: ÉTICA E SEMIÓTICA
A ontologia do plissê fractal poderia prolongar-se em duas direções. I'rimeiramente para uma filosofia da significação. Pois todo signo é doIlra, a forma mais simples da dobra significante sendo o desdobramento significado/significante, que se pode complicar, segundo Hjelmslev, em I'xpressão e conteúdo, cada um destes dois termos se subdividindo ainda em forma e matéria. Mas o signo pode se dobrar de mil modos (apeIIIIS Peirce recenseou mais de sessenta tipos de signos). É o mesmo que dizcr, com Félix Guattari, que existem tantas semióticas (de estilos de dobras significantes) quantos agenciamentos de enunciação. Músicas, !'idades, rituais, tatuagens, signos plásticos ou cinematográficos, imaIo4f'ns infinitamente difratadas da rede midiática, máquinas de escrita em Ilbismo dos softwares, imaginários plurissemióticos em ato, universos f'xislcnciais ... a dobra simples do significante e do significado só apare1'1', p.ntão, como um caso-limite bastante pobre. Sú evocamos aqui, por enquanto, a estática do signo, sua estrutura. ll.!lltl é o trabalho da significação como ato? Como pensar o redobraIIIPlllo/desdobramento de afetos, de imagens e representações produzido pelo acontecimento do signo no grande drapê fractal da memória e, IlIIt1salém, ao longo das alternâncias de dentro e de fora interfaciadas Chl mecanosfera? Quais são as máquinas heterogêneas que trabalham I'UI'Il manter o estrato semiótico como tal e pelas quais o signo se relaI'lollll sempre já com o a-significante, se confunde com os processos l' IIIUllOpolitas ?
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Enfim, a ontologia da dobra desemboca numa ética, ou numa política. Se o empírico volta ao transcendental, os cabalistas tinham razão: é no mundo de baixo que se decide em última instância a sorte do mundo de cima. Não somos somente destinados pelo desvelamento historiaI, como o pretendia Heidegger, somos também responsáveis (no sentido mais forte do termo) por ele. Agindo efetiva ou empiricamente, fazemos emergir um horizonte de sentido historiaI, um imagi" nário instituinte, um universo existencial ou incorporaI. Temos certamente de responder pelas conseqüências materiais de nossos atos, mas também pelas matrizes de significação que ajudamos a transmitir, consolidar, edificar e destruir. Não entendamos esta relação essencial da ética com a significação num sentido estreito. Não se trata unicamente de lembrar o papel primordial dos escritores, dos artistas, dos homens de "comunicação" e, em geral, de todos os que trabalham explicitamente no campo semiótico. Os atos "puramente práticos", técnicos, administrativos, econômicos e outros contribuem tanto quanto os atos de discurso para a construção dos agenciamentos coletivos de enunciação, para a produção das qualidades de ser. A ética e a política não concernem apenas às relações dos humanos entre eles, à relação com o "próximo", mas igualmente à relação com o mundo. Que mundo ajudamos a inventar e a fazer existir? Esta interrogação fundamental pode desdobrar-se em três questões ético-políticas particulares. Em primeiro lugar, enquanto cidadãos do mundo total, o que é feito de nossa responsabilidade para com a Terra, seus oceanos, suas florestas, suas massas humanas e seus climas? Em que planeta queremos viver? Em segundo lugar, enquanto fontes de mundos particulares, de que modo devemos agir para com os outros mundos, produtos de formas de vida, de cultura, de significação e de subjetividade diferentes? Que tipos de relação estabelecemos com modos de ser que não são os nossos (mas com os quais estamos, no entanto, sempre em relação pelas redobras de nossa participação com a mecanosfera)? Em terceiro lugar, que atitude fundamental adotamos para com o transmundo? Mantemos livre a possibilidade de emergência de novos agenciamentos de enunciação? Favorecemos ou, ao contrário, restringimos a produtividade ontológica? Mantemos as dobras em sua essência
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de acontecimento, ou trabalhamos para endurecê-las em oposições, estratos, substâncias? Escolhemos as individuações sempre capazes de receber novas dobras ou as individualizações rígidas e fechadas? A ética se relaciona com o mundo sob estas três faces: a Terra, os outros mundos (o próximo é apenas um caso particular de outro mundo), e o transmundo das dobras, dos agenciamentos de enunciação e dos processos cosmopolitas. Três figuras do anel imanência-transcendência que não cessa de destruir, de metamorfosear e de produzir o ser em sua infinita diversidade. Tradução SORAYA
OLIVEIRA
A PAIXÃO DAS MÁQUINAS
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FÉLIX
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(]) (i)
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da máquina ocupa-me há muito tempo, talvez menos como· objeto conceitual que como objeto afetivo. Sempre fui, como muitos dentre vocês, atraído, fascinado pela máquina. Quando estudante da Sorbonne, lembro-me de ter apresentado uma análise sobre Le Travail en Miettes de Friedmann, e do olhar espantado do professor enquanto e~ lançava meus ataques contra Friedmann; nessa época, eu era muito vIrule~to contras as visões mecanicistas da máquina. Achava, no que talv:z. seja uma queda pelo cientificismo, que podíamos esperar uma especIe de salvação pela máquina. Na seqüência, tentei alimentar este objeto maquínico. Devo avisá-los que não se trata de algo que domino mas de uma espécie de núcleo ao qual fui conduzido por ciclos. O último foi desencadeado pelo livro de Pierre Lévy, As Tecnologias da Inteligência. Fiquei surpreso por encontrar ali uma reativação dessa temática, transposta para o campo das tecnologias informáticas. Em outras palavras, reivindico o direito a essa forma de pensamento que procede por eixos afetivos, por afetos, em vez de um pensamento que pretende fornecer uma descrição científica, axiomática. Repito que se trata de uma temática totalmente aberta, e gostaria que ela assim fosse tratada na discussão, para perceber os ecos que esse tipo de reflexão pode despertar. TEMA
Encontramo-nos atualmente numa inevitável encruzilhada, a do anátema lançad~ contra a máquina, a idéia de que as tecnologias nos coloc~ nu:n~ sItuação de inumanidade, de ruptura em face de qualquer projeto etlco. De fato, a história contemporânea reforça esta perspectiva 40
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maquínica catastrófica, com as degradações ecológicas e outras mais. Poderíamos assim ficar tentados a dar meia-volta e recuar em relação ~l era maquínica, para compartilhar de não sei qual territorialidade primitiva. Pierre Lévy usa a seguinte fórmula, na minha opinião muito feliz: "lentar derrubar a cortina de ferro ontológica entre o ser e as coisas". Parece-me que um dos meios de derrubar esta cortina de ferro, presente em toda a história da filosofia até Heidegger, talvez seja esta interface maquínica, ou esta máquina concebida como interface, que Pierre Lévy denomina "hipertexto". De fato, para sair desta fascinação pela técnica, c da dimensão .mortífera que às vezes assume, é preciso reapreender, reconceitualizar a máquina de outro modo, para partir do ser da máquina como aquilo que se encontra na encruzilhada, tanto do ser em sua inércia, sua dimensão de nada, como do sujeito, a individuação subjetiva ou a subjetividade coletiva. Este tema está presente na história da literatura e do cinema, nos mitos, como o da máquina que possui uma alma e um poder diabólico. Não proponho exatamente um retorno a lima concepção animista mas sim uma tentativa de considerar que, na máquina, na interface maquínica, existe alguma coisa que seria, não da ordem da alma, humana ou animal, anima, mas da ordem de uma prolo-subjetividade. Isto quer dizer que há na máquina uma função de consistência, de relação a si e de relação a uma alteridade. É seguindo estes dois eixos que tentarei avançar. Comecemos do mais simples, do que é já mais ou menos adquirido, a idéia de que o objeto técnico não pode ser limitado à sua materialidade. Ilá na techné elementos ontogenéticos, elementos de um plano, de construção, relações sociais que sustentam as tecnologias, um capital de conhecimento, relações econômicas e, pouco a pouco, toda uma série de IlIlerfaces no seio das quais se insere o objeto técnico. A partir desta concepção, pode-se estabelecer uma ponte entre uma máquina tecnoló~'ica de tipo moderno e as ferramentas ou mesmo as peças da máquina, (' considerá-los igualmente como elementos que se conectam uns· aos oulros. Desde Leibniz, dispomos do conceito de máquina articulada (de Illaneira fractal, diríamos hoje) com outras máquinas, elas mesmas compostas de elementos maquínicos até o infinito. Assim, aquém e além da ml'lquina, o ambiente da máquina faz parte de agenciamentos maquíni('OS, O elemento liminar da entrada na área maquínica passa por um
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certo aplainamento, a uniformização de um material, como o aço que é processado, desterritorializado e uniformizado para se moldar às formas maquínicas. A essência da máquina está ligada aos procedimentos que desterritorializam seus elementos, seu funcionamento, suas relações de alteridade. Falaremos de uma relação de ontogenia da máquina técnica que a faz abrir-se para o exterior. Ao lado deste elemento ontogenético, há uma dimensão filogenética. As máquinas tecnológicas são consideradas dentro de um Phylum, onde há máquinas que as precedem e outras que as sucedem. Elas seguem por gerações - como as gerações de automóveis - cada uma abrindo a virtualidade de outras máquinas que virão. Elas incitam, por este ou aquele elemento, uma junção com todas as filiações maquínicas do futuro.
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As duas categorias de ontogênese e de filogênese aplicadas ao objeto tecnológico nos permitem traçar uma ponte com outros sistemas maquínicos que nem sequer são tecnológicos. Na história da filosofia geralmente toma-se o problema da máquina como um elemento secundário de uma questão mais geral, a da techné, das técnicas. É aqui que eu proporia uma inversão de ponto de vista, no sentido de que o problema da técnica não passaria de um subconjunto de uma problemática maquínica muito mais ampla. Esta "máquina" é aberta para o exterior, para o seu ambiente maquínico e entretém todo tipo de relações com os componentes sociais e as subjetividades individuais. Trata-se então de expandir o conceito de máquina tecnológica ao de AGENCIAMENTOS MAQUÍNICOS, categoria que engloba tudo o que se desenvolve como máquinas nos diferentes registros e suportes ontológicos. Em vez de haver oposição entre o ser e a máquina, o ser e o sujeito, esta nova concepção da máquina implica que o ser se diferencia qualitativamente e desemb~c~ ~uma pluralidade ontológica, que é o próprio prolongamento da cnativIdade dos vetores maquínicos. Em vez de haver um ser, como traço comum presente no conjunto dos entes maquínicos, sociais, humanos, cósmicos, teremos, ao contrário, uma máquina que desenvolve UNIVERSOS DE REFERÊNCIA, universos ontológicos heterogêneos, marcado~ por reviravoltas históricas, um fator de irreversibilidade e de singuland~de. Não farei aqui uma descrição exaustiva, seria demasiado longa. Alem ~a ferramenta protomáquina e das máquinas tecnológicas, há os conceitos de máquinas sociais. Por exemplo, a cidade é uma mega-
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máquina. Ela funciona como uma máquina. Teóricos da lingüística como Chomski introduziram o conceito de "máquina abstrata", presente nas máquinas lingüísticas ou sintagmáticas. Atualmente, muitos biólogos I"alamde máquina a respeito da célula viva, do órgão, da individuação e mesmo do corpo social. Aí também o conceito de máquina tende a impor-se. Máquinas matemáticas de Turing ... Também no domínio das idealidades - outro universo de referência - assiste-se à ampliação do conceito de máquina. Máquina musical. Muitos músicos contemporâneos desenvolvem esta noção. Máquina lógica, máquina cósmica, uma vez que certos teóricos afirmam que o ecossistema da Terra é equivalenle a um ser vivo, ou a uma máquina, no sentido amplo que estou usando. Para remeter a um passado de já vinte anos, podemos evocar as MÁQUINAS DESEjANTES, que retomam a teoria dos objetos parciais da psicanálise - o objeto "a" como máquina desejante -, mas sob a forma de elementos não redutíveis a objetos adjacentes ao corpo humano. Ao contrário, o que está em questão são objetos de desejo, máquinas de desejo, objetos-sujeitos de desejo e vetores de subjetivação parcial, que se abrem bem além do corpo ou das relações familiares, para os conjunlos sociais, cósmicos, e os universos de referência de todo tipo. No campo da biologia, este cOI\ceito de máquina foi recentemente desenvolvido por teóricos como Umberto Maturana e Francisco Varela. Eles defmem a máquina como o conjunto de inter-relações dos seus ('omponentes, independentemente dos próprios componentes. Eles oferecem assim uma definição que é próxima de uma máquina abstrata e que descreve a máquina como autopoiética, autoprodutora dela mesma (I reproduzindo permanentemente os seus componentes qual um sisteIIIU sem input nem output. Varela desenvolve bastante esta teoria. Na sua ('otlcepção, opõe a autopoiese, relacionada essencialmente aos seres vivos biológicos, a uma alopoiese, em que a máquina busca os seus componentes no exterior dela mesma. No seu conceito de alopoiese ele arrola os sistemas sociais, as máquinas técnicas e, para terminar, todos os HIst.emasmaquínicos que não os viventes. Este conceito de autopoiese pllrece-me muito interessante e proveitoso. No entanto, acho que seria pl"(~cisoir além da perspectiva de Varela e estabelecer uma ligação entre IIN máquinas alo e autopoiéticas. As máquinas alopoéticas encontram-se 11t1mprena adjacência das máquinas autopoiéticas e é preciso assim levur em consideração os agenciamentos que as fazem viver juntas.
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Uma outra idéia, tomada de empréstimo a P. Lévy, é que os sistemas maquínicos são interfaces que se articulam umas às outras - no que ele chama de hipertextos - e que aos poucos recobrem o conjunto da "mecanosfera". Finalmente, gostaria de reunir as perspectivas de Varela e de P. Lévy, a fim de considerar a máquina ao mesmo tempo no seu caráter autopoiético e em todos os seus desenvolvimentos alopoéticos, de interfaceamento, que lhe conferem uma espécie de política exterior, de relações de alteridade. No seu primeiro livro, La Machine Univers, Pierre Lévy fazia referência a Varela; no segundo, paradoxalmente, não o menciona. Creio que isto ficará para uma terceira obra. A máquina tem qualquer coisa a mais que a estrutura. Ela é "mais" que a estrutura porque não se limita a um jogo de interações, que se desenvolve no espaço e no tempo, entre os seus componentes, mas possui um núcleo de consistência, de insistência, de afirmação ontológica, que é prévio ao desenvolvimento nas coordenadas energético-espaçotemporais. Este núcleo maquínico que se pode qualificar, sob certos aspectos, de proto-subjetivo, protobiológico, possui caraterísticas que Varei a não levou em consideração. São elementos de onto ou filogênese, mas também de finitude. A máquina é portadora de uma finitude, de qualquer coisa da ordem do nascimento e da morte, donde a fascinação que ela pode exercer enquanto máquina explodida, destruída, em implosão, portadora da morte no exterior mas também por si mesma. Este foco de insistência autopoiética e de desenvolvimento de uma lateridade heterogenética - que desenvolve registros de alteridade - é difícil de descrever ou definir. Não é um existente que se afirma no desdobramento das coordenadas energético-espaço-temporais. Como abordar um tal objeto, senão por intermédio do mito, da narração, isto é, de meios não científicos. Acho que este núcleo maquínico está sempre, de uma certa maneira, ligado a sistemas de metamodelações que exigem um desenvolvimento da teoria. Dou apenas uma indicação que não desenvolverei, pois será retomada ulteriormente numa obra com Gilles Deleuze. Este núcleo de afirmação autopoiética e interestrático, de abertura para o exterior, implica uma concepção da complexidade considerada a partir de coordenadas decididamente "extra-ordinárias". A complexidade do objeto maquínico se realiza e se encama nos diferentes sistemas maquínicos que evoquei acima. Ao mesmo tempo, ela é permanentemente perseguida pelo caos que a dissocia, repartindo os
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seus elementos numa decomposição de natureza diferente. Como se ('ste ser autopoiético, esta proto-subjetividade maquínica estivesse ao mesmo tempo no registro da complexidade e do caos. Creio que é preciso considerar o caos não como puramente caótico, mas que pode, nas suas composições de elementos e de entidades, desenvolver fórmulas de uma complexidade extrema. Tomemos um sistema aleatório como o jogo de roleta. Se você aposta no preto e no vermelho, a cada jo?~da você tem a impressão de um sistema caótico que forma composlçoes aleatórias, sem nenhuma apreensão cognitiva. Mas se você joga por longos períodos, aparecem séries das quais certos cálculos estatísticos permitem detectar composições complexas. Este sistema aleatório depende portanto de uma certa descrição matemática. D~-se o mesm~ com o caos. O caos é portador de dimensões da maior hlpercompleXIdade. Existe um mito muito conhecido segundo o qual, sorteando letras ao acaso, pode-se obter a fórmula da obra poética de Mallarmé. Será preciso esperar muito tempo. Não obstante, a obra de Mallarmé habita potencialmente este universo caótico de combinações múltiplas entre as letras. Como fazer coexistirem essas duas dimensões, a complexidade e o caos? Simplesmente considerando que as entidades presentes no caos suo animadas por uma velocidade infinita. Elas podem compor as compleições mais diferenciadas, mas se decomplexificar com a mesma velocidade. A idéia de uma velocidade infinita desemboca numa concep(,JLO do caos capaz de ser portadora da complexidade. É nesses focos caóticos que virá inserir-se essa proto-subjetividade que pode, por sua vez, ser adjacente à dissociação caótica, à sua própria morte e às composições infinitamente complexas. É o que chamo de "grasping CAÓTICO": Ilpreensão instantânea da complexidade, constituída por todo tipo de potencialidade. Chamarei de "hipercomplexidade" essa complexidade que é mais assumida do que realmente dominada e que se encontra numa relação de insistência, de repetição. Na teoria estruturalista do significante, os diferentes componentes de um sistema podem ser tratados em termos de economia do significante. 111\ sempre um sistema de quantidade de informação ou um sistema binário presente nos diferentes sistemas heterogêneos. No modelo qu: pl'Oponho, não existe tradução entre os diferentes níveis de complexlIlude. Eles são portadores do seu substrato ontológico.
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ralizada. De modo algum. Esses diferentes sistemas de codificação estão o tempo todo impregnados de focos de afirmação e posicionalidades autopoiéticas do sistema de expressão. Este último é portanto sempre segundo em relação a um foco não discursivo do núcleo ontológico. Seria preciso falar agora dessa heterogeneidade ontológica que representam os universos de referência encarnados em diferentes sistemas de discursividade e de certa forma tributários deles. Como se tem acesso a eles? Estamos diante de um paradoxo. Somos lançados em sistemas discursivos, relações de tempo, de espaço e de trocas energéticas, e, ao mesmo tempo, temos de lidar com focos de afirmação existenciais por sua vez não discursivos. O paradoxo é que é justamente através de um material discursivo que devemos conseguir fornecer, não uma representação, mas uma presentificação existencial desses focos. No domínio da poesia, é o ritmo, os elementos de regularidade, tanto no nível da expressão quanto do conteúdo, que desenvolvem um certo universo poético. É a chave da existência de uma encruzilhada ontológica entre a poesia e a música. No domínio psicanalítico, são objetos, sistemas repetitivos, portanto discursivos, que constituem os suportes existenciais de focos de afirmação subjetiva. Por exemplo, na neurose obsessiva encontra-se uma repetição infmita da lavagem de mãos que não remete em absoluto a uma significação do tipo "o que significa lavar-se as mãos? E os micróbios?" Tudo é co-presente. O indivíduo se recompõe ao efetuar esse ritual. Ele se reafirma num componente de subjetividade parcial: sentir-se-estar-nessa-Iavagem-de-mãos. A neurose obsessiva talvez não seja o exemplo mais simples. Certos comportamentos têm a mesma função. O fato de roer as unhas, de cantarolar mentalmente quando se sente medo ou de repetir uma frase (como se houvesse uma testemunha), tudo isto representa um meio de "apreensão" dessas relações não discursivas. É uma função que eu chamo existencial. Ela aparece nos sistemas semióticos. Os lingüistas já a descreveram parcialmente. Penso nos teóricos como Austin, Ducrot, Benveniste, que enfatizaram a questão dos "shifters", os elementos da linguagem que existem não para portar uma significação, mas para gravar no enunciado a marca do sujeito da enunciação. Lacan também fez uso dessa função performativa. De certo modo, foi através desse tipo de operador que ele construiu a sua teoria da fala plena e da relação simbólica. Para
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uma boa abordagem desse assunto, recomendo
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o livro de R.Jakobson
(Essais de Linguistique Générale, Minuit, 1963), mestre absoluto de Lacan. Estamos diante de um paradoxo insustentável que somos obrigados a sustentar. De qualquer forma, todos nós estamos nesta situação. Todas as sociedades têm de aceitar essa aposta, particularmente as sociedades animistas ou científicas. Devemos propor universos de referência, estruturas qualitativas, texturas ontológicas a partir de elementos de discursividade. Temos de produzir, desenvolver UNIVERSOS INCORPORAIS que sáo universais, ainda que datados ou marcados pelo nome próprio dos seus inventores. Eles poderiam evocar as idéias platônicas, e, no entanto, estão inscritos na história. Trata-se de rupturas, mutações, marcadas de um fator de irreversibilidade, de singularidade. P. Lévy opera grandes distinções entre as máquinas que derivam do oral ou da escrita, e as máquinas informáticas. Dentro do universo da máquina de processamento de texto - que muda completamente a relação à expressão -, Lévy nota as interfaces que compõem, que singularizam esse novo universo de referência: a escritura, o alfabeto, a imprensa, a informática, a tela catódica, a impressora laser, a linotipo, os bancos de dados, o banco de imagens digitais, as telecomunicações ... Pronto, uma nova máquina. Hoje em dia, as crianças que aprendem línguas através do processador de texto não se encontram mais no mes1110 tipo de universo de referência, nem de um ponto de vista cognitivo (mmo se dá uma outra organização da memória, ou melhor, das memórias ... ), nem na ordem das dimensões afetivas, das relações sociais ou Nicas. O que essa espécie de delírio maquínico suscita? Tomemos um objeto institucional, por exemplo um estabelecimento que acolha doentes Ilsicóticos. Pode-se reificar completamente as relações intersubjetivas dizendo: o doente psicótico vem buscar ajuda de indivíduos que posHlwm um saber, que administrarão medicamentos, interpretações, indi,'u~:ües comportamentais para curar a psicose. É toda uma concepção dll. subjetividade onde cada um está fechado na sua mônada, o que, lIum segundo momento, obriga a construir meios de "comunicação". É IIl1niverso da "referência comunicacional". É preciso inverter essa persjl"ctiva e nunca partir de entidades fechadas umas em relação às outras, pois isto implica a intervenção de modos de "comunicação", de "trans1'",' .!lcia", Pelo contrário, a transferência deve ser primeira, deve já estar
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lá. Haverá máquina de subjetivação (ou não), segundo haja ultrapassamento (ou não) dos diferentes limiares de insistência ontológica, subjetiva. Nesse momento, nessa relação autopoiética, há um conhecimento imediato e pático da situação, "alguma coisa se passa". Quando uma máquina amorosa ou uma máquina de medo se desencadeia, não é devido ao efeito de frases discursivas, cognitivas ou dedutivas. Ocorre de repente. Tal máquina desenvolverá progressivamente diferentes meios de expressão. A clínica de La Borde é um estabelecimento concebido (em princípio) como uma máquina de subjetivação que, por sua vez, é composta de n subconjuntos de subjetivação. Desde a internação, essas relações de subjetivação devem funcionar entre o doente e quem o acolhe. Outros tipos de relações serão construídas a seguir entre os pacientes, os monitores, mas também com os animais ou as máquinas. Cada um desses conjuntos deve ser suscetível de produzir ou de ser vetor de tratamento, vetor de tomada de consistência existencial para os psicóticos, os quais, precisamente, estão em fase de descompensação ontológica. Será que nos contentaremos em fazer a constatação passiva: "Tudo vai bem, não nos restringimos ao mero face-a-face com o doente, há várias outras inter-relações"? Ou, ao contrário, trabalharemos as linhas de virtualidade maquínica, as linhas de alteridade maquínica trazidas pelos diferentes subconjuntos? Se a cozinha for considerada um foco autopoiético de subjetivação, será importante preocupar-se com o seu espaço, com suas dimensões arquiteturais, para favorecer as trocas e para que ela não se torne uma pequena cidadela fechada em si mesma. Hoje em dia, nos hospitais, caminhões trazem, do exterior, os pratos de comida já prontos. Não há máquina de subjetivação. Uma máquina-cozinha implica um certo tipo de espaço, mas também num certo tipo de formação e de troca entre as pessoas que nela trabalham. Os cozinheiros devem poder circular pelos outros serviços para conhecer as posições de alteridade dos diferentes postos de trabalho. É uma máquina complexa, um sistema de interfaces. Diria o mesmo para todos os outros serviços. A condução de um automóvel, por exemplo, é um momento muito importante para os psicóticos. Um psicótico pode ser incapaz de manter uma conversa, mas perfeitamente capaz de dirigir. Haverá assim uma composição subjetiva em função da tomada de consistência desses diferentes conjuntos. Enquanto alguns dentre eles perdem a sua consis-
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lência, outros poderão aparecer. Pode-se também levantar o problema de uma perda de· consistência geral, na medida em que se entra em relações de serialidade de natureza etológica, provocando estados de selvageria inter-humana tal como ocorrem nos hospitais tradicionais. A posição autopoiética e "hipertextual" da máquina possui uma potencialidade pragmática, permite assumir uma atitude criacionista, de composição maquínica, em face dessa corlina de ferro ontológica que separa o sujeito de um lado e as coisas de outro. Tradução JAYME
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Nossas maiores alegrias muitas vezes tomam a forma da loucura. S6CRATES
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ANTIGOS ouviam vozes. Nas epopéias de Homero, muitas vezes as personagens deixam-se guiar em seus pensamentos e ações por uma voz interna, à qual obedecem automaticamente. Como observouJulianJaynes,' esse tipo de narrativa nos apresenta a imagem de um povo que não exerce por completo o que chamaríamos de livre-arbítrio ou julgamento racional. Para a maioria de nós, uma conversa parece desenrolar-se em nossa cabeça, mas com um interlocutor externo. Jaynes denomina esta paisagem mental de "mente bicameral", sustentando que, muito antes da civilização grega, os povos antigos não concebiam plenamente uma idéia de consciência. Noutras palavras, eles tinham vários deuses. Hoje em dia, desconfiamos de quem exibe comportamentos semelhantes, mas esquecemos que o verbo "ouvir" refere-se a uma espécie de obediência (as raízes latinas dessa palavra são ob e audire, ou seja, "ouvir diante de, na frente de"). A necessidade de conceber a mente como uma entidade independente está tão profundamente ancorada em nós, que só podemos admitir a existência de pessoas que "ouvem" vozes sob as três categorias I .J Ulillll .I11ynes. The Origin of seguintes: os farsantes, os poetas, e os que soGOII.ldmJ.meofof ill lhe Breakdown frem de distúrbios mentais. Os "telespectadores" (lftllt 1I{(:IlTlleralMind. Boston: poderiam constituir uma quarta categoria. Os 1-loughlOIl MilTIin Co., HJ76. S GREGOS
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profetas e os deuses desertaram do nosso mundo, e a confusa conversa que se seguiu à sua partida deve agora ser exorcizada pelos que chamaIIlOS de "terapeutas". "Um dia, na Namíbia, uma mulher chamada Be estava sozinha no mato, quando percebeu um bando de girafas fugindo diante da ameaça de uma tempestade. O barulho dos cascos tornou-se cada vez mais forte e se misturou, na sua cabeça, com o barulho da chuva que começava a cair. De repente, ela se põs a cantar uma canção que nunca havia ouvido. Gauwa (o grande deus) disse-lhe que era uma canção terapêutica. Be voltou para casa e ensinou a canção para Tike, seu marido. Eles cantaram e dançaram juntos ao ritmo daquela canção, que produzia um transe: uma canção terapêutica. Tike ensinoua para outras pessoas, que também a transmitiram para outros." (História tradicional dos kung bushmans, de Botsuana, registrada por Marguerite Anne Biesele.)2 Ao falar do funcionamento mental, a maioria das pessoas, de um modo IlIltiS ou menos consciente, pressupõe a existência de uma espécie de esl"t~'O, Com freqüência, para descrever pensamentos, utilizamos termos e c'ollceitos próprios à manipulação de objetos sólidos, tais como "atrás da ,'ttl)('ça" .. , " apreen d er uma 1'd'"ela," " agarrar-se a uma crença", "bloqueio 1I11'lltal",etc. Este espaço mental é análogo ao que o "espaço de dados" é plll'll. o computador, este primeiro e efetivo duplo do nosso cérebro. É ali '111(' se produzem os cálculos e são criadas, manipuladas e destruídas as 1'1'1 )I'(~sentações virtuais, em forma digital, das imagens. À maneira de uma IIl1tol()gi~ fundamental, este espaço particular impõe sua presença antes 1111 depOIS de cada ação, como alguma coisa que existiria a priori e de uma 11 vez, desde o nascimento até o apagar final das luzes. Se existe um IfplL~:O do pensamento, seja real ou virtual, o som também deve ter o seu hlMlll', na medida em que todos os sons procuram expressar-se como vi11I't,~, () do espaço. Suas propriedades acústicas 11I1'lIulIl-se,assim, o tema deste artigo. História contada por Joseph I'IlI'll os europeus, os efeitos de reverberação Campbell, em Alfred Van der 1U'()Pl'ios às catedrais góticas estão ligados de Marck (ed.). The Jtáy of lhe Animal Powers. San Francis'IOdo indissolúvel a um profundo sentimento co: Harper and Row, 1983, p. lo ,mf~Tadoe tendem a evocar, ao mesmo tem- 163. 2
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po, O espaço interno privado - espaço da contemplação - e o reino ainda mais vasto do inefável. No cinema, efeitos de ressonância foram muitas vezes utilizados nas cenas de sonho ou nos flash-backs, para sublinhar o caráter subjetivo e o desinteresse. As catedrais, como a catedral de Chartres, na França, foram construídas a partir de conceitos derivados da filosofia grega - em particular de Platão e Pitágoras -, a partir de suas teorias sobre a correspondência entre o macrocosmo e o microcosmo. Elas se expressam na linguagem do número de ouro, na proporção e na harmonia; manifestam-se na ciência dos sons e da música. Estes conceitos não eram considerados nem como fruto do pensamento humano, nem como puras funções do pensamento arquitetural; representam, ao contrário, os princípios divinos que sustentam a estrutura do universo. Incorporá-los na estrutura de uma igreja era uma maneira de refletir sua forma na Terra, de um modo harmonioso. Chartres e as outras catedrais foram freqüentemente descritas como "música petrificada". Neste contexto, a referência ao som e à acústica3 é dupla. Trata-se não somente das características sonoras do espaço interno, que lembram as de uma caverna, mas também da própria forma e estrutura do prédio, que refletem os princípios das proporções sagradas e da harmonia universal, espécie de acústico dentro do acústico. Assim que se entra numa igreja gótica, percebe-se imediatamente que é o som que domina o espaço. Não se trata simplesmente de um efeito de eco, mas todos os sons - estejam eles próximos, afastados, fortes ou fracos - parecem ter como fonte o mesmo ponto afastado, como se eles se desprendessem da cena mais próxima para ir flutuar lá onde o ponto de vista se torna o espaço inteiro. A arquitetura antiga está repleta de exemplos notáveis de es~a~os acústicos - galerias com eco, onde um simples sussurrar se matenahza algumas centenas de metros mais adiante; perfeita nitidez dos anfiteatros gregos, onde a voz de um ator, proveniente de um ponto fo.cal determinado pelas paredes do recinto, pode ser claramente entendIda por todos os ouvintes. As técnicas modernas da arquitetura acústica Wé\.llaccSabine foi pioneiro nessa área, no início do século - foram desenvolvidas para responder aos problemas de falta de nitidez devido~ à reverberação do som dentro de um espaço. E duplamente divertido se pensarmos que, por :1 Ver notaM complcmentad um há rCM, no Ilnal do artigo, lado, os anfiteatros gregos foram construí os lUj
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dois mil anos, e, por outro, que o efeito de reverberação acústica das catedrais góticas - resultante de sua estrutura arquitetônica, e não de uma intenção precisa - era considerado um elemento essencial de sua forma e de sua função global. A ciência acústica estuda o som no espaço. Ainda que possa ser descrita simplesmente como o estudo do comportamento das ondas sonoras, não pode ser dissociada da arquitetura, pois os sons se manifestam, justamente, em sua forma mais interessante e complexa, quando se chocam com corpos sólidos, sobretudo os que enchem os espaços internos construídos pelo homem. Na sociedade rural da Idade Média, os membros do clero ouviram, provavelmente pela primeira vez, as terríveis reverberações sonoras que invadem o espaço das catedrais. Uma lista, mesmo parcial, dos fenômenos acústicos mais comuns, pode parecer lima enumeração das visões místicas da natureza. REFRAÇÃO.: quando ocorre uma mudança de meio (duas camadas de ar em diferentes temperaturas, por exemplo), a velocidade de propaga(,:<.1.0 da onda sonora varia, provocando uma curva na trajetória do som. Por ocasião dos funerais da Rainha Vitória em Londres, em 1901, a artilharia deu salvas de tiros, os quais, ainda que inaudíveis em toda a região, materializaram-se subitamente, num estrondo poderoso, a cerca de 145 quilômetros do local. DIFRAÇÃO.: quando atingimos a extremidade de um obstáculo, ele produz novas séries de ondas; mesmo sem enxergar, podemos ouvir pessoas falarem do outro lado de um muro alto. O som parece contorná-lo. REFLEXÃO.: ondas sonoras ecoam numa superfície, formando um ân~lllo igual àquele em que chegaram. Se as superfícies são múltiplas, elas IW lransformam em eco e podemos ouvir nossa própria voz, às vezes I't~pctidavárias vezes, como se já existisse no tempo. Então, é possível ('unlar consigo mesmo. Múltiplas reflexões regulares produzem as condiçôes necessárias à reverberação, em que um mesmo som pode se rep('Lirsem cessar num efeito de superposição, de modo que não se pode distinguir o som precedente do som presente. INTERFERÊNCIA: dois sons entram em colisão. O que provoca, alternacllllllcnte, o reforço ou o enfraquecimento da força ondulatória de cada 1I1ll. Por exemplo, num salão, o som de um instrumento grave torna-se Ml'lldativamente quase inaudível quando nos aproximamos de um deIt'I'minado lugar.
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as ondas sonoras se reforçam ao juntar-se a um som idêntico, ou quando sua forma física se harmoniza com as propriedades da matéria ou as dimensões do espaço. A voz de um cantor toma-se mais poderosa quando difundida num pequeno espaço; um objeto produz um som específico quando batemos nele. O material e a forma de um objeto representam o seu potencial sonoro imobilizado. VIBRAÇÃO SIMPÃTICA:5 ligada à ressonância; é provavelmente o fenômeno mais evocador: quando se toca uma campainha, uma outra campainha idêntica começa a vibrar através da casa, produzindo o mesmo som. Cada um destes fenômenos continua nos maravillhando mesmo depois de apreendermos o seu funcionamento científico de um modo racional. Há algo de imortal num eco. Poderíamos, por exemplo, aventar um último estágio de reverberação, um espaço no interior do qual tudo o que já existiu um dia continuaria existindo - o final dos tempos, onde tudo está vivo, eternamente presente. Não é mera coincidência quando se tem a impressão de que a descrição de uma vibração simpática lembra uma emissão de rádio: é o mesmo princípio atuando. Os procedimentos que caracterizam os sistemas midiáticos contemporâneos estão presentes em estado latente nas leis naturais; existiram desde sempre, sob diversas formas. No fenômeno da ressonância, podemos constatar que todos os objetos possuem um componente sonoro, uma espécie de segunda existência oculta, que se traduz num certo conjunto de freqüências. Em 1896, Nikola Tesla, um dos grandes gênios da era da eletricidade, suspendeu por uma corrente um pequeno motor oscilante na pilastra central de seu laboratório em Manhattan. Produziu, assim, uma poderosa resso. nância física que se propagou através do prédio até as suas fundações e provocou um tremor de terra: prédios inteiros sacudiram, vidros quebraram e os condutos , Ver as notas complementares, no final do artigo. de vapor explodiram em vários pátios de edi, Ver as notas complementafícios. Ele teve de detê-lo a golpes de martelo. res, no final do artigo. Tesla concluiu que poderia calcular a freqüência da ressonância da terra e transformá-la numa Descrito por John ü'Neill em Prodigal Genius: lhe Lift of forte vibração, utilizando um condutor corretaNikola 'Rsla. Nova York: Ives mente ajustado, calibrado e colocado no lugar Washbum Inc., W44, p. 159certo.(i 62. RESSONÂNCIA:4
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"Percorrendo a terra, Palongawhoga experimentou o seu chamado, conforme lhe havia sido pedido. Todos os pontos de vibração ao longo do eixo terrestre, de um pólo a outro, começaram a ressonar: a terra inteira tremeu, o universo estremeceu em uníssono. Ele fez do mundo um instrumento de som, e do som, um meio para transmitir mensagens e para celebrar o criador do universo."7 (Mito dos índios hopis sobre a criação do primeiro Universo.) "No começo era o Verbo" ... E nos perguntamos, agora: "onde estava imagem?" Assim como o mito bíblico da Criação, a religião hindu (o ioga e o tantra, por exemplo), e as religiões asiáticas mais recentes (como o budismo) decrevem a origem do mundo no som. A força criadora original permanece acessível ao homem sob a forma do discurso sagrado e do canto religioso. A invenção e o desenvolvimento das tecnolofl,iasde comunicação suscitam a seguinte idéia: o som estaria na origem elasimagens. Na era da imagem eletrônica, tendemos a esquecer que os ~islcmas mais antigos de comunicação tinham por objetivo transmitir a r"la. Edison, por exemplo, tentou, inicialmente, promover o fonógrafo 110 mundo dos negócios, para substituir os estenógrafos dos escritórios por um meio mecânico. Se o discurso está na base da criação de um I'IIr/Jusmidiático(telégrafo, telefone, rádio, televisão, etc.), a acústica (ou, C'II1 geral, a teoria das ondas) constitui o princípio estrutural fundament,,1de suas numerosas manifestações. !\. imagem de vídeoS é um motivo de ondas estacionárias de energia c.INrica,um sistema vibratório composto de freqüências específicas, como 1111 que esperamos encontrar em qualquer objeto sonoro. Como se obIIf'rvou com freqüência, a imagem que aparece na superfície do tubo c'lItúdicoé o traço de um único ponto de luz em movimento, produzido por um jato de elétrons que vêm bater na tela por trás, fazendo irradiar IIlIll superfície recoberta de fósforo. Em vídeo, não existe imagem fixa. A fonte de toda imagem de vídeo, seja ela fixa ou móvel, é um feixe Irlr('mico ativo, varrendo permanentemente a I III - é a chegada regular de impulsos elétricos Frank Waters. Book of lhe JlI'ovc'nientes da câmara ou do videoteipe. As Hopi. Nova York: Ballantine IIvlHllcsem linhas e frames são unicamente divi- Books, 1963, p. 5. .n Ij no tempo: abrir e fechar de janelas tempo- 8 Ver as notas complementaI..que delimitam períodos de atividade no in- res, no final do artigo.
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terior do fluxo de elétrons. A imagem de vídeo é um campo energético vivo e dinâmico, uma vibraçâo que adquire uma aparência sólida somente porque ultrapassa nossa capacidade de discernir intervalos de tempo tâo finos. Todo vídeo tem suas raízes no que é ao vivo, direto (live). E a essência desta vitalidade reside no caráter acústico vibratório do vídeo, enquanto imagem virtual. De um ponto de vista tecnológico, o vídeo desenvolveu-se a partir do som (o eletromagnetismo); por outro lado, a referência ao cinema parece enganadora, pois o filme e seu antepassado, a fotografia, fazem parte de um outro ramo da árvore genealógica (a mecânica e a química). A câmara de vídeo, enquanto transdutor eletrônico de energia física em impulsos elétricos, está mais diretamente ligada ao microfone do que à câmara de cinema. Em sua origem, o estúdio de televisão era uma mistura de rádio, teatro e cinema. As imagens só existiam no presente. Sua estrutura estava calcada na estrutura dos estúdios de rádio, com cabine de controle isolada por vidros e, no palco, câmaras colocadas para captar a ação. A estrutura dos diferentes elementos no interior do estúdio pode ser considerada como a representação concreta da estética cinematográfica, uma espécie de remédio engenhoso à obrigação de "só poder existir diretamente". V árias câmaras, geralmente três (que correspondem aos três planos clássicos do cinema: longo, médio, e rapproche), retomam a ação, cada uma de um ponto de vista diferente. No cinema, a atividade numa determinada cena deve criar uma ilusão de simultaneidade e de fluxo temporal seqüencial; o vídeo representa, ao contrário, um ponto de vista que, literalmente, desloca-se no espaço em tempo presente, de um modo paralelo à ação. O vídeo se esforçou em criar a ilusão de um tempo gravado - o que foi feito só quando necessário -, utilizando as diferentes partes do estúdio com efeitos de luz. As primeiras novelas de televisão e uma grande parte das transmissões de variedades eram, de fato, o resultado da transposição direta de uma forma de arte, o teatro, que se expressa em tempo presente. Geralmente, estas emissões eram produzidas diante de um público que estava lá como telespectador privilegiado, mais tarde substituído por risadas gravadas e máquinas de aplausos. Um elemento essencial do cinema, a montagem (que consiste numa articulação no tempo), foi traduzida, nos primórdios da televisão, por um de seus aspectos fundamentais, a emissão direta (que consiste numa
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articulação no espaço), graças a um instrumento chave: a console. Foi graças a ela que diferentes seqüências foram organizadas para formar o programa destinado aos telespectadores. Os elementos de base da linguagem cinematográfica estavam contidos em sua própria estrutura. Um simples botão representava a montagem soberana de Eisenstein, o corte, e, com um botão para cada câmara, os cortes podiam ser realizados de qualquer ponto de vista. O fondu au noir de Griffith era nada mais do que uma redução progressiva da voltagem do sinal, com um potenciômetro variável. Os volets e as telas divididas foram transformados pelos técnicos em circuitos destinados a interferir eletronicamente com a voltagem normal da corrente elétrica do sinal e a compensá-lo. Os modelos mais simétricos de postes de mixage eram as notas harmônicas das freqüências fundamentais do sinal de base do vídeo. Assim, na ausência de qualquer possibilidade de gravação, e através de um instrumento eletrônico de emissão direta, podia-se obter uma simulação de montagem cinematográfica do tempo. Esta imitação dos modelos cinematográficos durou até o final dos anos 60, quando os artistas começaram a penetrar na superfície para revelar as características fundamentais da medium, liberando o potencial visual único da imagem eletrônica, que hoje se costuma considerar banal, como uma das características normais da televisão. A console foi logo depois transformada, e se tomou o primeiro sintetizador de vídeo. Os princípios que se baseou foram acústicos e musicais, uma etapa posterior na evolução dos primeiros sistemas de música eletrônica, como o Moog. O videoteipe foi o último elo da cadeia a ser desenvolvido, uma boa dezena de anos após o surgimento da televisão, e só foi integrado de fato ao sistema de tratamento da imagem de vídeo no início dos anos 70, com a introdução do time-based corrector. Graças à inclusão natural de material gravado no fluxo das imagens, e ao progresso da montagem eletrônica, sentiu-se cada vez mais a necessidade de identificar acontecimentos anteriores como sendo ao vivo. O vídeo começou a ficar parecido não só com o cinema, mas com todo o resto: a moda, as conversas, a política, as artes visuais e a música.
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"Um único neurônio funciona com a força de quase um bilionésimo de watt. O cérebro inteiro funciona com quase dez watts."!J
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SirJohn Eccles. The Physiol· SeiOI,-
ogy of the Imagination. tific American, I!)5!!,
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Em termos musicais, o processo físico da radiodifusão pode ser descrito como uma espécie de bordão. A imagem de vídeo se repete sem cessar nas mesmas freqüências. Esta nova estrutura comum do bordão representa uma mudança significativa em nossos modelos culturais de pensamento. rsto aparece de modo evidente ao compararmos um outro sistema baseado no bordão - a música indiana tradicional- com a música clússica européia. A música ocidental foi construída superpondo nota sobre nota, forma sobre forma, do mesmo modo como se constrói um edifício, até o último pedaço. Ela se baseia num princípio aditivo: o elemento de base é o silêncio, de onde provêm todos os sons. A música indiana, ao contrário, tem o som como ponto de partida. Ela é subtraente. Todas as notas e todas as formas que podem ser utilizadas em música estão presentes antes mesmo que os principais músicos comecem a tocar, afirmados pela presença e pela função do tambura. O tambura é um instrumento de bordão, geralmente com quatro ou cinco cordas; graças à estrutura peculiar de seu cavalete, ele amplifica as harmonias ou as séries harmônicas de cada nota em cada uma das cordas. Ele é ouvido com mais nitidez no início e no fim, mas está presente ao longo de todo o concerto. A série das notas descreve a gama de música a ser tocada. Em conseqüência, assim que os músicos principais começam a tocar, pensamos que eles emitem notas de um campo musical já existente, ou seja, o bordão. Esta estrutura musical reflete a teoria fIlosófica hindu que faz do som a origem do universo, encarnada pela vibração essencial chamada Ohm. Ela estaria sempre presente, sem início nem fim, em todos os lugares, e geraria todas as formas do mundo fenomenal. Em música, acentua-se sobretudo o acorde, a harmonia, ao passo que, em fIlosofia, fala-se em "harmonizar o indivíduo" como um meio de tocar e enriquecer esta energia fundamental. A idéia de um campo sonoro sempre presente desloca a ênfase dos objetos de percepção para o campo no qual a percepção ocorre: um ponto de vista não específico. Enquanto bordão, o aspecto mais significativo da televisão consiste em que suas imagens eletrônicas existem em toda a parte, ao mesmo tempo; o receptor é livre para deixar o sinal sair da linha em qualquer momento do seu percurso e em qualquer lugar do campo de emissão. Sabe-se, por exemplo, que as crianças podem captar sinais de rádio <:om s us aparelhos dentários, uma espécie de versão contemporãnea
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do "dom das línguas". O espaço de emissão lembra o espaço acústico das catedrais góticas, onde todos os sons, próximos ou afastados, fortes ou fracos, parecem ter como fonte um mesmo ponto afastado. Eles parecem desprender-se da cena mais próxima para ir flutuar lá onde o ponto de vista torna-se o espaço inteiro. No domínio da tecnologia, a passagem freqüente das ondas seqüenciais do analógico aos códigos combinatórios digitais acelera a difusão do ponto de vista. Assim como para a transformação da matéria, tratase da passagem da tangibilidade de um estado sólido ou líquido a um estado gasoso. Há menos coerência; barreiras sólidas tornam-se porosas, e a perspectiva é a do espaço inteiro: () ponto de vista do ar. Algumas semanas depois do lançamento de seu satélite, o Brasil estabeleceu comunicações com os quatro cantos do país e fez um mapa, em quilômetro quadrado, de uma das regiões mais vastas e mais inexploradas do planeta: a bacia Amazônica. Teoricamente, agora é possível teleremar, fornecendo sua própria posição, de qualquer lugar perdido na selva, ou mesmo assistir ao seriado Dinastia, bastando ter uma televisão (~um gerador portátil. Nos Estados Unidos, já existe um sistema que permite a um carro comunicar sua posição e sua direção a um satélite capaz de retransmiti-Ia, e que faz aparecer um mapa eletrônico numa tda colocada no painel de bordo. Neste mapa, cada rua da região pode s(~rselecionada, chegando à precisão de alguns grupos de prédios. Cada rlla é reproduzida com seu nome. Atualmente, é impossível se perder. Parece muito chato. E, também, mais um motivo de paranóia. No final do século XX, a idéia do Desconhecido, do "outro lado da lIIontanha", que foi fundamental para o desenvolvimento do nosso pen,~lImento,desapareceu no que se refere a espaço geográfico. No início dos anos 80, toda a superfície do planeta foi levantada por satélite com 11 lI1áxima precisão - numa resolução de até trinta pés. O fato de conhe('lfr tudo criou novos modos de consciência bastante estranhos, compaI'oveisaos sistemas militares de navegação por computador, em que não h(I, nenhum vínculo sensível direto com o mundo exterior. Um foguete pode viajar em grande velocidade ao redor da Terra, seguindo apenas tlH informações contidas na memória do computador de bordo - dados qll(' também foram coletados por satélite. A memória substitui a expe1'It\lIciasensorial: um pesadelo proustiano. () universo mental do pensamento e das imagens é um espaço sem
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(·onl<~údo. A maioria das técnicas xamânicas
baseia-se na idéia de exerCI'!' um controle poderoso e misterioso sobre o seu próprio ponto de vista uma maneira de dizer que ponto de vista não é necessariamente sinônimo de posição física. Mircea Eliade, em seus estudos sobre as origens do pensamento religioso, sugere que a passagem à posição vertical reorganizou a consciência em torno de um eixo vertical, criando assim as quatro direções fundamentais: frente/trás, direita/esquerda, e, talvez, alto/baixo. A isso pode-se acrescentar o centro privilegiado, o eu, o ponto focal ptolemaico que daí decorre naturalmente. 10 A peça formada por quatro paredes e seis faces é a destilação arquetípica desta estrutura mental que se articula posteriormente na perspectiva de Brunelleschi (produto da civilização urbana). A mente não apenas está dentro de um espaço tridimensional: ela cria este espaço. As paredes sólidas, com sua conotação claustral, começam a se dissolver nos espaços transparentes da arquitetura informativa. Os mesmos termos matemáticos que servem para descrever um espaço acústicamente plano, sem reverberação, uma peça "neutra" completamente desprovida de eco, podem igualmente servir para descrever um grande plano, uma planície. O termo plano é utilizado nos dois casos. Para os índios da América que habitavam as grandes planícies, ou mesmo para os aborígines do interior da Austrália, a acústica não existe como tal. O seu espaço acústico é interno. o
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"Quando um homem está na planície e eu na colina, eu o vejo falando comigo, tranqüilamente. Ele me vê e se vira para mim. Eu digo: «Estás me ouvindo?» Eu balanço a cabeça, olhando-o com severidade. Depois, fixo o meu olhar nele e digo: «Vem, depressa!» Enquanto olho para ele fIxamente, vejo que ele se volta, porque sentiu o meu olhar. Ele ainda vira para o outro lado e olha ao redor, enquanto eu continuo a mirá-lo. Eu lhe digo, então: «Vem aqui, agora, aqui onde estou sentado». Ele vem até mim, até onde estou, sentado atrás de uma moita. Eu o atraio com meu poder (miwi). Nenhum gesto, nenhum grito. No fInal, ele sobe a colina e vem direto para mim. Ele me diz: «Falaste comigo e eu 111 M. Eliadeo A Hislory ofReliouvi. Como podes falar assim?» Explico e ele diz: /(11111,( Ideas. Vol. 1. Chicago: «Eu senti tuas palavras enquanto falavas, e, deIJlllverNlly or Chicago Press, 1IJ71\,p. :-1. pois, senti que estavas aí». Respondi: «É verda-
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de, foi assim que te falei e tu sentiste as palavras e também este poder»."ll (Lenda aborígine, coletada por Ronald M. Berndt, Lower Murray River, Austrália.) A telepatia e a visão à distância dos aborígines encarnam a imensidão e o silêncio do deserto australiano, à imagem do telégrafo e dos outros meios de comunicação sem fIo, inventados para romper o isolamento de indivíduos que moravam nos grandes espaços do Novo Mundo. A solidão do deserto é uma das primeiras formas de tecnologia visionária; pode ser encontrada, com freqüência, na história das religiões. Os homens serviram-se dela para interrogar o passado e o futuro, para se tornarem "profetas", receber imagens ou, como os índios da América, para incentivar sua "busca de visôes". Quando o barulho e a confusão da vida diária foram reduzidos a sua mais simples expressão, as válvulas de segurança se abriram, liberando as imagens do interior. A fronteira entre o conforto do espaço interno e a aspereza da paisagem externa fIcou incerta: suas respectivas formas se misturaram, convergindo entre si. Provas de sinestesia, o cruzamento e a intercambialidade dos sentidos foram constatados em certas pessoas desde os tempos mais antigos. Esta idéia inspirou os artistas, que sonharam com a reunifIcação dos sentidos. Na história da arte, há muitos exemplos recentes, do piano cromático de Scriábin, que criaria cores a partir de um teclado, aos repulsivos espetáculos de som e luz feitos para turistas. Muitos artistas plásticos já afirmaram ter ouvido música ou mesmo sons enquanto trabalhavam; assim como muitos compositores declararam ter concebido sua música sob a forma de imagens. "Tantas imagens cruzavam minha mente; formas há muito perdidas, e perseguidas com paixão, inscreviam-se de modo ainda mais claro nas realidades vivas. Um mundo de fIguras surgia-me na mente, fIguras que se revelavam de modo tão estranho, plástico e primitivo, que, quando as distinguia claramente diante dos olhos e ouvia suas vozes em meu coração, não conseguia explicar sua familiaridade quase tangível e a segurança do seu comportamento."12
11 Citado por A. P. Elkin, in: Aboriginal Men of High Degree. St. Lucia, Austrália: University ofQueensland Press, 1977, p.45. 12 R. Wagner. My Life. Dodd and Mead, 1911. Citado por C. E. Seashore, in: Psychology of Musico Nova York: Dover Publications Inc., reedição do original de 1931\,p. Hin·7.
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A sinestesia representa a tendência natural da mídia contemporânea.
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Praticamente o mesmo material é utilizado para produzir sons a partir de um aparelho estéreo, para transmitir a voz pelo telefone, e para materializar a imagem numa tela de televisão. Com o desenvolvimento do uso de códigos digitais para efetuar operações bancárias, encher o tanque, utilizar o microondas, etc., as raízes comuns da linguagem vão se estender cada vez mais. Os esforços realizados no domínio das tecnologias artificiais tomaram necessário distinguir a sinestesia como teoria e prática artística, da sinestesia como verdadeira capacidade subjetiva ou como condição involuntária para certos indivíduos. Tendemos a relacionar o som e a imagem de um modo natural. A beleza destas experiências está na sua linguagem fluida de imaginação pessoal, e depende do humor do momento. Enquanto levarmos em conta o seu caráter subjetivo, e enquanto elas não assumirem nenhum caráter convencional, estaremos salvos do tédio do dogma e das teorizações pessoais dos práticos, seja os "vídeo-músicos", seja os "músico-videastas". A livre-troca das modalidades sensoriais, no entanto, é apenas a primeira etapa rumo à transposição da barreira suprema que separa o território do corpo físico do território da mente luminosa. Este limiar físico foi algumas vezes ultrapassado, em casos extremos. Temos o exemplo de E. Lucas Bridges, filho de um missionário cristão do final do século XIX, que vivia com uma população indígena da Terra do Fogo, os onas: "Houshken [... ] começou a cantar e pareceu entrar em transe, como se estivesse possuído por um espírito. Ele se levantou, deu um passo em minha direção e deixou cair a veste cerimonial, que era sua única roupa. Levou as mãos à boca num gesto teatral, depois afastou-as, com os punhos cerrados, os polegares juntos. E sustentou-as, por um momento, na altura dos meus olhos. Depois, abriu as mãos, quando já estavam a menos de um palmo do meu rosto. No seu interior, vislumbrei um pequeno objeto quase opaco; seu diâmetro não ultrapassava meia polegada e parecia terminar em ponta. Poderia ser um pedaço de massa semitransparente ou um elástico, mas, o que quer que fosse, parecia estar vivo e girar em grande velocidade, enquanto Houshken parecia tremer violentamente, com todos os músculos retesados. A Lua estava suficientemente clara para que eu pudesse distinguir aquele estranho objeto. Houshken abriu um pouco mais as
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mãos e o objeto parecia ficar cada vez mais transparente, até que me dei conta, à medida que suas mãos se aproximavam do meu rosto, que não estava mais lá. Ele não se quebrou, não explodiu como uma bolha: simplesmente desapareceu, depois que o percebi por menos de cinco segundos. Houshken não fez nenhum gesto brusco; abriu lentamente as mãos e as exibiu para mim, para serem inspecionadas. Pareciam limpas e secas. Ele estava completamente nu e não havia ninguém ao seu lado. Olhei para a neve e, apesar do meu estoicismo, Houshken não pôde deixar de rir docemente, pois não havia nada a ser visto em suas mãos."13 Quando as primeiras tecnologias do som e da imagem viabilizaram a produção de uma forma artificial de substituição dos cinco sentidos, a percepção humana tomou-se objeto de uma compreensão imprevisível e assustadora. Do mesmo modo, à medida que os computadores substituírem a inteligência humana, os novos laços criados entre o processamento de dados digitais e a "inteligência" vão, com toda a certeza, favorecer possibilidades de tradução ainda mais importantes, para além dos dados dos sentidos básicos. Ainda que sejamos tentados a considerar as possibilidades de uma reunificação sinestésica do domínio da percepção C~ do domínio do conhecimento no domínio da ciência (inspirada pela liberdade e fluidez da interação de nossos modos de ver, graças à eletrôlIica), parece que, atualmente, começa a se manifestar uma espécie de Ilmnésia ou anestesia que se livra de um vasto panorama, desordenado c' confuso, de imagens fragmentárias: o sonho do semiólogo. Esta situação da mídia contemporânea é encarnada de modo extraordinário por um personagem do início do século, "mnemonista" notávd, capaz de ter acesso, de um modo fluido e incontrolável, a todas as lIlodalidades sensoriais. Este homem era constantemente assaltado por !luxos de imagens e de associações que ocupavam sua mente durante horas, dias, e, por vezes, até mesmo anos; ele estimava que a distinção t111I.re passado (memória), presente (experiência sensorial) e futuro (ima~lllllÇão)era confusa e não existente. Devemos 11 testemunho ao grande pesquisador russo A. 13 L. Bridges. The UttermOsl lto I,uria, que passou trinta anos de sua vida es- Ends Df lhe Earlh. Nova York: E. P. Dutton, 1948, citado por h""lOdo este estranho personagem profético, por J. Campbell. The Way Df lhe t,lc' chamado simplesmente de S. Animal Powers, op. cit. p. 16il.
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Luria descreveu S. como alguém que teria sido capaz de recitar dezenas de páginas de textos repletas de todo o tipo de coisas, desde uma narrutiva até uma língua estranha, desconhecida dele, até termos científicos complicados ou mesmo palavras desprovidas de sentido. Sua memória possuía um caráter espacial: ele podia lembrar da posição de diferentes elementos numa página ou num quadro-negro, apresentadas em qualquer ordem e mesmo anos depois. Quando era criança, as imagens de sua escola adquiriam um tal caráter de realidade que, muitas vezes, ele acabava saindo da cama para ir até lá. Uma das particularidades de seu mundo interior que mais impressionou Luria foi a sua aptidão natural para a sinestesia. Como Luria bem compreendeu, a sinestesia estava na base de sua memória extraordinária. S. descrevia a sucessão de seus pensamentos da seguinte forma:
I,
"Ouço a campainha tocar. Um pequeno objeto de forma arredondada rolou diante dos meus olhos ... senti sob meus dedos alguma coisa que parecia uma corda ... Depois, senti o gosto de água salgada na boca ... e alguma coisa branca. "Estou agora num restaurante com música. Sabem por que tocam música nos restaurantes? Porque a música modifica o gosto das coisas. Se você escolhe a música certa, tudo tem gosto bom. As pessoas que trabalham nos restaurantes sabem disso, com certeza."14
li'
111:1
. ::::
Pouco a pouco, a vida diária toma-se difícil para S.: "Sempre tenho sensações desse tipo. Quando estou num bonde, sinto o seu barulho metálico repercutindo em meus dentes. Uma vez, decidi comprar um sorvete, pensando que, assim, ficaria absorvido pelo sorvete e não sentiria aquele barulho metálico em meus dentes. Procurei uma vendedora de sorvetes e perguntei-lhe quais os sabores. «Sorvetes de frutas», ela disse, mas falou de tal modo que uma verdadeira montanha de carvão e cinzas jorrou de sua boca e eu não pude mais me decidir a comprar o sorvete ... Outra coisa ... se eu leio enquanto como, não consi1< A. R. Luria. The Mind of a Mllemrmisl. Nova York: Basic go compreender o que leio, porque o gosto da lIookH, Hl(ill, p. 111-2. comida engole o sentido das palavras." 15 I'
Ihldl!ll), p. 1!i!J,
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À medida que S. envelhecia, sua incapacidade de esquecer tomavase cada vez mais incômoda, de tal forma que ele foi obrigado a deixar o emprego e ganhar a vida exibindo-se como um fenômeno. Luria declarou que foi muito difícil fazer um relato exaustivo a respeito de S., pois, mesmo durante as sessões, ele era constantemente assaltado por fluxos de imagens que lhe faziam perder o controle e o levavam a "agir automaticamente": S. tomou-se verborrágico, sua mente transbordava de detalhes e histórias fúteis, e ele se perdia em digressões cada vez mais longas. Esta memória sobre-humana e indelével levou-o a um sentimento poderoso e perturbador da precariedade das coisas. Se S. fosse um grego antigo, teria sido considerado como um dos produtos mais extraordinários de sua cultura. Mas sua vida terminou como a de um herói trágico contemporâneo, imortalizado por revistas científicas: suas experiências nos lembram a vingança de um péssimo diretor de vídeos musicais. Atualmente, o sistema midiático que inventamos põe à nossa disposição um potencial criador antes reservado a indivíduos dotados de poderes especiais. As possibilidades oferecidas pela sinestesia, nos domínios sensorial e conceitual, são da ordem da inspiração. Em compensação, todos nós, vítimas de saudáveis profissionais da comunicação, dotados de uma imaginação igualmente saudável, estamos nos tornando iguais ao "mnésico" de Luria, totalmente imersos c reduzidos à impotência por imagens sem fundamento e por vozes amplificadas. É o feiticeiro da aldeia que nos falta, não as estruturas formais de um sistema eficaz de processamento 'de informação, nem os profissionais da comunicação. Os artistas, os poetas, os compositores e os sábios que ouviram vozes sabem agora que não são loucos; o seu trabalho é testemunha disso. Porém formas graves de depressão nervosa podem ser consideradas como doenças profissionais possíveis para as pessoas que trabalham no limiar do que chamamos comumente de realidade, ou seja, um espaço culturalmente fabricado em tomo de convenções perceptivas, impostas pelos mecanismos que estruturam a linguagem, pelo comportamento comum, e por histórias agora esquecidas. A loucura criativa poderia ser simplesmente um desarranjo da história, que o escoamento do tempo leria "corrigido", à medida que a perspicácia visionária tomou-se um filio cultural banal. Em nenhum momento, ao longo de suas sessões ('om Luria, S. referiu-se a si mesmo como louco. Apenas uma vez, ele
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1\11.1. VIOLA
cI i.~S(' a Luria que, antes de se tornar adulto e de entrar no seu primeiro t'lllprego, sempre pensou que todo mundo funcionava igual a ele.
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NOTAS
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COMPLEMENTARES
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"Todos os homens podem ter sonhos e visões." WILLlAM
DO CONCRETO ....
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DA REDAÇÃO
Acústica: Na época de Pitágoras, a acústica era considerada a "ciência das ciências". "Ela pretendia explicar o universo inteiro [, .. l. Os fIlósofos gregos elaboraram toda uma doutrina onde os dados sobre os sons, entremeados de considerações metafísicas, forneciam a base de uma vasta harmonia universal" . (E. Leipp. Accoustique et musique. Masson, 1971). Vibração simpática: A onda sonora está intimamente ligada a uma forma geométrica, a qual é capaz de emitir ou reforçar um som. Inversamente, ela pode desempenhar o papel de receptor e começar a vibrar se for alcançada por ele. Uma corda em repouso irá vibrar se receber de uma outra fonte o som preciso que ela é capaz de emitir.
Ressonância: A forma do violino, por exemplo, é estudada para permitir o reforço das ondas emitidas pela vibração das cordas em todos os seus registros. A dificuldade consiste em conceber um violino que amplifique os sons de modo harmonioso num espectro o mais amplo possível. Imagem de vídeo: É produzida pelo recorte do quadro em linhas (625 linhas, por exemplo). Vinte e cinco vezes por segundo, o quadro é analisado linha por linha. Cada linha é percorrida, "varrida". Um sinal elétrico proporcional à intensidade luminosa encontrada é emitido. Ele varia, com certeza, ao longo da linha, se esta recortar uma imagem não uniforme. Com a imagem variando debilmente em relação à rapidez da análise do mesmo ponto (25 vezes por segundo), cada ponto engendra uma onda de freqüência de 1/25 avos de segundo, equivalente. a uma onda sonora. 'tradução ANA
LUIZA
MARTINS
COSTA
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u danças nas ciências cognitivas. "Racionalista", "cartesiana" ou
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'objetivista": estes são alguns dos termos empregados nos últimos tempos para caracterizar a tradição dominante dentro da qual fomos criados. Mas, quando se trata de uma reavaliação do conhecimento e da cognição, constato que a noção que melhor descreve nossa tradição é "abstrata": nada caracteriza melhor as unidades de conhecimento consideradas as mais "natUrais". É essa tendência em descobrir nosso rumo em direção à atmosfera rarefeita do geral e do formal, do lógico e do bem-definido, do representado e do planejado, que torna nosso mundo ocidental tão nitidamente familiar. A principal tese que pretendo investigar aqui é esta: há fortes indícios de que, entre o grupo não organizado das ciências que tratam do conhecimento e da cognição - as ciências cognitivas -, vem crescendo lentamente a convicção de que esse quadro está invertido, de que uma mudança paradigmática ou epistêmica radical vem-se desenvolvendo com rapidez. Bem no centro dessa visão emergente está a crença de que as próprias unidades de conhecimento são fundamentalmente concretas, corporificadas, incorporadas, vividas. Esse conhecimento concreto e único, sua historicidade e contexto, não constitui um "ruído" que obstrui o IH\drào mais luminoso a ser captado em sua verdadeira essência, uma llbstrução, nem se trata de um passo rumo a algo mais: trata-se de como rhcgumos e onde ficamos.
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Talvez nada ilustre melhor essa tendência do que a gradual transformação das idéias no campo bastante pragmático da i~teligência artificial. Nas duas primeiras décadas (1950-1970), as pesqUIsas basearam-se no paradigma computacionalista segundo o qual o co.nh~c~mento o.p~~a através de regras de tipo lógico para manipulação szmbolzca, um~ I.de.la que encontra sua plena expressão nos modernos computador~s dIgItaIS. Inicialmente, os esforços foram direcionados para a resoluçao de problemas mais gerais, tais como a traduçào da linguagem ~:tural o~ o desenvolvimento de um "solucionador de problemas geraIs . ConSIderava-se que essas tentativas, que procuravam igualar a intelig~ncia de um perito altamente treinado, estavam lidando com as questoes. centrais da cognição. Visto que as tentativas de cumpri: ~ssas tare:as mvariavelmente fracassavam, tornou-se evidente que a umca maneIra de se obter progressos era reduzindo a tarefa a algo mais m~desto e l~c~izado. As tarefas mais comuns, mesmo as executadas por msetos mmusculos, são simplesmente impossíveis de se realizar com uma est~atégia computacional. Esses anos de pesquisa resultaram t~a compreen~ao, pelos envolvidos, de que é necessário inverter as posIções do pento e da criança na escala de desempenho. Ficou claro que a forma ~e int~ligência mais profunda e fundamental é a de um beb ,que adq~lr~ a lm.guagem a partir de emissões vocais diárias e dis~~rsas e deh.neIa objetos significativos a partir de um mundo não especIÍtcado prevIamente. Ao ser elaborada, essa visão revitalizou o papel do concreto, concentrando-se em sua escala apropriada: a atividade cognitiva que ocorre em um espaço muito especial, que denominarei "junções" do presente imediato. Pois é no presente imediato que o concreto de fato vive. Mas, antes de prosseguir, devo rever algumas suposições arraigadas que foram herdadas da ortodoxia computacionalista.
Sobre os agentes cognitivos desunidos. Há muitas evidências que .ap~ia~ a visão de que cérebros não são máquinas lógicas, mas redes dIstnbUIdas, altamente cooperativas e não homogêneas. O sistema todo le~bra mais uma colcha de retalhos, formada por sub-redes reunidas atraves de um intricado histórico de remendos, do que um sistema otimizado resultante de um projeto claro e unificado. Esse tipo de arquitetura sugere também que, em vez de se procurarem grandiosos modelos unificados para todos os comportamentos de rede, deveriam ser estudadas
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as redes cujas capacidades estejam restritas a atividades cognitivas c"ancretas e específkas, enquanto interagem entre si. De diferentes maneiras, os cientistas cognitivos começam a levar a sério essa concepção de arquitetura cognitiva. Marvin Minsky, por exemplo, apresenta uma visão na qual as mentes são constituídas por diversos "agentes", cujas capacidades são fortemente circunscritas: tomado individualmente, cada agente trabalha somente com problemas de peCJucna escala ou com problemas do gênero "brinquedos de montar". I Os problemas devem ser dessa ordem, pois se tomam insolúveis para ~ma única rede quando têm sua escala aumentada (esse último aspecto hcou claro para os cientistas cognitivos há bem pouco tempo). A tarefa consiste, então, em organizar os "agentes" que operam nesses domínios específicos em sistemas ou "agências" eficientes e maiores e, em seguida, transformar essas agências em sistemas de nível mais alto. A mente surge, então, como uma espécie de "sociedade". É importante lembrar aqui que, embora inspirado por nova visão sobre o cérebro, este é um modelo de mente. Em outras palavras, não se trata de um modelo de sociedades ou redes neurais; é um modelo de arquitetura cognitiva abstraído (de novo!) do detalhe neurológico, que desconsidera, portanto, a "fluidez" da experiência viva e vivida. Agentes e agências não são, portanto, nem entidades nem processos materiais; são processos ou funções abstratas. Esse aspecto merece ser destacado, sobretudo pelo fato de Minsky por vezes escrever como se estivesse falando a respeito da cognição em nível de cérebro. Como irei enfatizar , o que está faltando é a conexão detalhada entre esses agentes e o acoplamento encarnado, pelo sentir e agir, que é essencial à cognição viva. Fare~os agora uma pausa momentânea para examinar algumas das implicaçoes das concepções de sub-redes cognitivas fragmentadas e localizadas. O modelo da mente como sociedade composta por numerosos agentes está concebido de forma que abral!ja uma multiplicidade de abordagens para o estudo da cognição, que vão desde as redes distribuídas, autoorganizáveis, até a concepção clássica, cognitivista, do processamento simbólico. Essa visão abrangente desafia um modelo centralizado ou unificado de mente, seja em um extremo, na forma de redes distribuídas, ou, em outro, na de proMlIl'vln Minsky. The Sodety I!f MIIIII. Novu York: Simon cessos simbólicos. Tal deslocamento é visível, por !Uul Sdl11HlOI', Wllli. exemplo, quando Minsky argumenta que exisI
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tem qualidades não apenas na distribuição, mas no isolamento, isto é, nos mecanismos que mantêm separados os diversos processos. A idéia também foi amplamente explorada, em contexto um pouco diferente, por Jerry Fodor.2 Os agentes situados no interior de uma agência podem estar conectados sob a forma de uma rede distribuída; porém, se as próprias agências estivessem conectadas da mesma maneira, praticamente iriam constituir uma grande rede cujas funções estariam distribuídas de modo uniforme. Tal uniformidade, contudo, restringiria a capacidade de combinar as operações de agências individuais de forma produtiva. Quanto mais distribuídas estiverem essas operações, mais difícil se toma para muitas delas agir ao mesmo tempo sem interferirem entre si. Contudo, esses problemas não aparecem se houver mecanismos para manter as diversas agências isoladas entre si. As agências continuariam a interagir, mas através de conexões mais limitadas. É claro que os detalhes dessa visão programática são discutíveis, mas o quadro geral que ela sugere (que não se refere exclusivamente à formulação de Minsky sobre agentes e agências) não é o da mente como entidade unificada, homogênea, nem mesmo como um grupo de entidades, mas sim como um grupo desunificado, heterogêneo, de processos. Obviamente, esse conjunto desunificado pode ser considerado em mais de um nível. O que se considera uma agência (isto é, um grupo de agentes) poderia, se se alterasse o enfoque, ser considerado simplesmente um agente em uma agência maior. E, inversamente, o que se considera um agente poderia, focalizado mais de perto, ser visto como uma agência composta por diversos agentes. Da mesma forma, o que se considera uma sociedade irá também depender do nível de enfoque que se escolhe. Tendo assim definido o cenário para essa questão crucial dentro das ciências cognitivas contemporâneas, quero desenvolver suas implicações para o ponto em questão: a centralização no presente que caracteriza o concreto. SOBRE
O SER-AÍ:
DURANTE
Prontidão-para-ação
OS COLAPSOS
no presente. Minha pre-
ocupação atual relaciona-se a uma das muitas conseqüências dessa visão acerca da desunião do sujeito, entendido como um agente cogniti-
Jerry Fodor. The Modulari!y of Mind. Cambridge, Mussu· chusetts: Bradford Books· MIT Press, 19113.
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A questão que tenho em mente pode ser formulada da seguinte forma: dada a infinidade de subprocessos competindo em cada ato coglIilivo, como iremos entender o momento de negociação e emergência, quando um deles assume o comando e estabelece um comportamento definitivo? Ou, em termos mais evocativos: como iremos compreender () momento exato do ser-aí, quando surge algo concreto e específico? Imagine-se andando pela rua, talvez indo ao encontro de alguém. O dia está acabando e não há nada muito especial em sua mente. Você se sente relaxado, naquele estado que podemos chamar de "prontidão" do pedestre que está simplesmente dando uma caminhada. Você põe a mão no bolso e de repente descobre que sua carteira não está lá como de costume. Colapso: você pára, seu aparelho mental obscurece, sua tonalidade emocional muda. Antes que você se dê conta, surge um novo mundo: você percebe claramente que deixou sua carteira na loja onde acabou de comprar cigarros. Sua disposição agora muda para uma preocupação acerca de perder documentos e dinheiro, sua prontidão-paraação é agora a de voltar rapidamente para a loja. Você presta pouca atenção para as árvores e os transeuntes à sua volta; toda a sua atenção concentra-se em evitar maiores atrasos. Situações como essa constituem exatamente a matéria-prima de que são feitas as nossas vidas. Sempre operamos em uma espécie de imediatismo em relação a uma dada situação: o mundo em que vivemos está tão pronto e à mão que absolutamente não deliberamos sobre o que ele é e de que forma o habitamos. Quando nos sentamos à mesa para comer com um parente ou amigo, o conhecimento completo e complexo acerca da manipulação de talheres, as posturas corporais e pausas durante a conversação, tudo está presente sem deliberação. Nosso eu-à-mesa é transparente.3 Terminamos o almoço, retornamos ao escritório e entramos em " O conceito de transparência lili amplamente desenvolvido uma nova prontidão, com um modo diferente em um manuscrito inédito de de falar, uma postura diferente e avaliações dife!lutoria de Fernando Flores e Michel Craves (Logonet, Inc., rentes. Apresentamos uma prontidão-para-ação B(~rkeley, Califórnia, 1990). adequada para cada situação específica vivida. Meus ugradecimentos a FerManeiras novas de se comportar e as transições Illlndo Flores por permitir-me 1(·.. (~NSC trabalho em andaou pontuações entre elas correspondem a miI1wlltn. do quul minhas prócrocolapsos que sofremos constantemente. Por prlllN Idéllls tiraram grande prov('h". vezes os microcolapsos tornam-se não exatamen-
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te micro, mas sim microscópicos, como quando um choque ou perigo súbito acontece de forma inesperada. Denominarei qualquer uma dessas prontidões-para-ação como "microidentidade" e sua situação correspondente como "micromundo". A maneira como nos mostramos é indissociável da forma pela qual as coisas e os outros se apresentam para nós. Eu poderia discorrer um pouco sobre fenomenologia elementar e identificar alguns micromundos típicos dentro dos quais nos movimentamos ao longo de um dia normal, porém a questão não é catalogálos, mas direcionar sua recorrência: ser capaz de ações apropriadas é, num sentido significativo, uma maneira pela qual corporificamos uma torrente de transições de micromundos recorrentes. Não estou negando que existam situações nas quais a recorrência não se aplica. Por exemplo, quando se chega pela primeira vez a um país estrangeiro, há uma ausência total de prontidão-à-mão e de micromundos recorrentes. Diversas ações simples, tais como conversar socialmente ou comer, devem ser executadas de forma deliberada ou aprendidas de imediato. Em outras palavras, os micromundos e as microidentidades são constituídos historicamente. Mas o modo mais comum de se viver se dá por micromundos constituídos, que compõem nossas identidades. Obviamente, há muito mais coisas que deveriam ser exploradas e ditas a respeito da fenomenologia da experiência cotidiana e pouco foi feito até agora.4 Minha intenção aqui é mais modesta: apenas apontar um campo de fenômenos intimamente próximos de nossa experiência normal. Quando deixamos o domínio da experiência humana e mudamos para o dos animais, o mesmo tipo de análise aplica-se como um relato ('xterior. O caso extremo é ilustrativo: há algum tempo os biólogos lêm conhecimento de que os invertebrados possuem um repertório 11mtanto reduzido de padrões de comportalIlento; por exemplo, uma barata apresenta so, Como principais exemplos, mente algumas poucas formas de movimento: refiro-me especificamente a ficar em pé, andar devagar, andar depressa e Being and Time, de Martin Heidegger, tradução deJohn correr. Contudo, esse repertório comportamenMacquarrie & Edward Rolal básico permite que elas enfrentem de ma- binson. Nova York: Harper, neira apropriada qualquer ambiente possível, 1929; e Phenomenology of Perception, de Maurice MerleauIltnto natural como artificial. Então, a questão Ponty, tradução de Colin pnra o biólogo seria: como ela decide qual ação Smith. Nova York: Humanl1lotora irá adotar em uma dada circunstância? ities Press, 1962.
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Como ela seleciona uma ação comportamental adequada? Como ela possui bom senso para avaliar uma dada situação e interpretá-la como exigindo uma corrida em vez de uma caminhada lenta? Nos dois casos extremos - a experiência humana durante os colapsos e o comportamento animal em momentos de transições comportamentais - nos defrontamos, de formas tremendamente diversas, é inegável, com lima questão comum: a cada colapso desses, a maneira pela qual o agente cognitivo será em seguida constituído não é nem decidida externamente nem simplesmente planejada. Ao contrário, trata-se de uma questão de emergência segundo o bom senso, da configuração autõnoma de uma postura apropriada. Uma vez selecionada uma postura comportamental ou gerado um micromundo, podemos analisar de forma mais clara seu modo de operação e sua estratégia ótima. De fato, a chave para a autonomia é que um sistema vivo encontre seu curso no momento seguinte, agindo de maneira adequada a partir de seus próprios recursos. E são os colapsos, as junções que articulam os micromundos, que constituem a origem do lado autônomo e criativo da cognição viva. Esse bom senso deve então ser examinado em uma microescala: no momento durante o qual ocorre um colapso ele realiza o nascimento do concreto.
Conhecimento como enacção*. Permitam-me agora explicar como pretendo utilizar a palavra "corporificado", ressaltando duas questões: em primeiro lugar, a cognição depende dos tipos de experiência que advêm do fato de se possuir um corpo dotado de diversas capacidades sensório-motoras; e, em segundo lugar, essas capacidades sensório-motoras individuais estão • O termo traduzido aqui por elas próprias embutidas em um contexto biológi"cnacção" foi transposto do co e cultural mais abrangente. Essas questões foinglês enaction, que é utiliza· do pelo autor no sentido de ram apresentadas acima em termos de colapso lima ação que "faz emergir". e bom senso, mas desejo explorar ainda sua esPode também significar "acio· llllmcnlo". (NdT) pecificidade corpórea e enfatizar que os proces, Francisco Vare la. Connaitre: sos sensoriais e motores, a percepção e a ação, 16.f .fciences cognitives. Paris: são basicamente inseparáveis na cognição viviSCIIII, l!)!l!); Varela. Organism: da, e não estão simplesmente conectados de ma11 MCHhwork of Selfless Selves. 111:Alfl'cd Tauber (ed.). Orgneira casual nos indivíduos. 11111,11" 11111/ the Origin of Self Ao adotar o que denomino uma "abordagem I )lIl'1ll'uchtl Ullgcverij: Reidel I
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damentais: primeiro, a percepção consiste em ação orientada perceptivamente; e, segundo, as estruturas cognitivas' surgem a partir de padrões sensório-motores recorrentes que permitem que a ação seja orientada perceptivamente. (Isso irá ficar mais claro à medida que eu prosseguir.) Deixe-me começar pelo conceito de ação orientada perceptivamente. Para a tradição computacionalista dominante, o ponto de partida para se compreender a percepção é tipicamente abstrato: trata-se do problema de reconstituir as propriedades preestabelecidas do mundo através do processamento de informações. Em contraposição, o ponto de partida para a abordagem enactiva é o estudo sobre como o "sujeito percipiente" orienta suas ações em situações locais. Em virtude do fato de essas situações locais mudarem constantemente em decorrência da própria atividade do sujeito percipiente, o ponto de referência para a compreensão da percepção não é mais um mundo preestabelecido, independente do sujE1itoda percepção, mas sim a estrutu'ra sensório-motora do agente cognitivo, a maneira pela qual o sistema nervoso conecta as superfícies sensoriais e motoras. É essa estrutura - a maneira pela qual o sujeito percipiente é corporificado -, e não algum mundo preestabelecido, que determina como o sujeito da percepção pode agir e ser modulado pelos eventos ambientais. Assim, a preocupação geral de uma abordagem enactiva da percepção não é determinar como algum mundo independente do sujeito que percebe vai ser reconstituído; trata-se, sim, de determinar quais os princípios comuns ou conexões lícitas entre os sistemas sensorial e motor que irão explicar como a ação pode ser orientada perceptivamente em um mundo dependente de um sujeito percipiente. Essa preocupação central da abordagem enactiva situa-se em oposição à visão convencionada de que a percepção é basicamente um registro das informações amThompson & Eleanor Rosch. bientais existentes, com a finalidade de reconsThe Embodied Mind: Cognitive truir verdadeiramente um pedaço do mundo fí- Science and Human Experience. sico. A realidade não é projetada como algo da- Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 1991; e Thomp· do: ela é dependente do sujeito da percepção, son, Alden Palacios & Vare Ia. não porque ele a "constrói" por um capricho, Ways of Coloring: Comparamas porque o que se considera um mundo rele- tive Calor Vision as a Case Study in the Foundations of vante é inseparável da estrutura do percipiente. Cognitive Science. Behavioral Tal abordagem da percepção é na verdade um Brain Sciences 76(1), a sair.
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dos insights centrais da análise fenomenológica empreendida por Maurice Merlcall-Ponty em seus primeiros trabalhos. Cabe citar aqui integralmente lima de suas passagens mais visionárias: O organismo não pode ser comparado estritamente a um teclado sobre () qual os estimulos externos tocariam e no qual sua forma exata seria dclineada, pela simples razão de que o organismo contribui para a constitlli~~ã()daquela forma ... "As propriedades do objeto e as intenções do sujeito ... não estão apenas mescladas; elas constituem também um novo todo." Quando o olho e o ouvido seguem um animal em vôo, é impossível dizer "qual começou primeiro" na troca de estímulos e respostas. Visto que todos os movimentos do organismo são sempre condicionados por influências externas, pode-se facilmente, se assim o quiser, tratar o comportamento como um efeito do meio. Mas, da mesma forma, já que todos os estímulos que o organismo recebe foram, por sua vez, possibilitados unicamente pelos seus movimentos precedentes, que resultaram na exposição do órgão receptor às influências externas, pode-se também dizer que o comportamento é a primeira causa de todos os estímulos. Assim, a forma do excitante é criada pelo próprio organismo, por sua maneira particular de se oferecer a ações vindas do fora. Sem dúvida, a fim de poder subsistir, ele deve deparar-se com determinado número de agentes físicos e químicos à sua volta. Mas é o próprio organismo segundo a natureza particular de seus receptores, os limiares de seus centros nevrálgicos e os movimentos dos órgãos - que escolhe no mundo físico os estímulos aos quais ele será sensível. "O ambiente (Umwelt) emerge do mundo por meio da realização ou do ser do organismo - [admitindo-se que] um organismo somente pode existir se conseguir encontrar ambiente adequado no mundo." Isso seria um teclado que se move de tal forma que ofereça - de acordo com ritmos va,; Maurice Merleau-Ponty. The riáveis - essas ou aquelas teclas para a ação em si Structure of Behavior, tradução mesma monótona de um martelo exterior.6 de Alden Fisher. Boston: BeaSegundo essa abordagem, então, a percepção con, W63, p. 13 (a ênfase é minha). A primeira citação innão está simplesmente embutida e confinada no lorna, de V. F. von Weizsecker. mundo ao redor; ela também contribui para a Hencxgeselze. In: Bethe (ed.). enacção desse mundo ao redor. Assim, como ob1/ll7Idbuclt der Normalen und "lIt/wlo/(isclten Physiologie, p. serva Merleau-Ponty, o organismo simultanea:11\ !Ii 11 Hcgunda, de K. Goldmente instrui e é modelado pelo ambiente: M.NI"ln, 'lYt6 Or/(Iwism. Boston: I1IIIH'UII, !!Im!. Ponty admitiu claramente que devemos ver o
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organismo e o ambiente como enlaçados em especificação e seleção recíprocas - uma questão da qual necessitamos nos recordar constantemente, pois ela é bastante contrária às visões herdadas, oriundas da tradição cartesiana. Um exemplo clássico do direcionamento perceptivo da ação é o estudo de 1958 empreendido por Richard Held e Alan Hein, que criaram gatos no escuro e os expuseram à luz sob condições controladas.7 A um primeiro grupo foi permitido movimentar-se normalmente atrelados a uma canga que puxava um cesto; seus movimentos eram transferidos mecanicamente para um segundo grupo de animais transportados nesse mesmo cesto. Os dois grupos compartilhavam portanto da mesma impressão visual, mas o segundo grupo era completamente passivo. Quando os animais foram soltos, após algumas semanas sob esse tratamento, o primeiro grupo de gatinhos comportou-se normalmente, mas os que haviam sido carregados comportavam-se como se fossem cegos: eles colidiam com objetos e caíam das bordas. Esse estudo admirável dá suporte à visão enactiva de que os objetos não são vistos a partir da extração visual de suas características, mas sim pelo direcionamento visual da ação. Resultados semelhantes foram obtidos sob diversas outras circunstâncias e estudados até mesmo ao nível de uma única célula. Se o leitor julgar que esse exemplo é bom para gatos, mas longe da experiência humana, vamos examinar outro. Em 1962, Paul Bach y Rita projetou uma câmara de vídeo para pessoas cegas, capaz de estimular pontos múltiplos na pele através de vibrações ativadas eletricamente.8 Utilizando essa técnica, fez-se com que as imagens formadas com a câmara correspondessem a padrões de estimulação de pele, dessa forma substituindo a perda visual. Os padrões projetados na pele não possuem nenhum conteúdo "visual", a não ser que o indivíduo esteja comportamentalmente ativo, dirigindo a câmara de vídeo através de movimentos com a cabeça, mão ou corpo. Quando a pessoa cega de fato se comporta assim ativamente, após algumas horas de experimento surge um efeito notável: a pessoa não mais interpreta a sensação na pele como estando relacionada ao corpo, mas sim como imagens projetadas no espaço sendo exploradas pelo "olhar" corporalmente direcionado da câmara
7
Richard
Held & Alan Hein.
Adaptation of Disarranged Hand-Eye Coordination Contingent upon Re-afferent Stimulation. Perceptual and Motor Skills 8, 1958, p. 87-90. Paul Bach y Rita Brain Mechanisms in Sensory Substitution.
8
Nova York: Academic
1972.
PrCRN,
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de vídeo. Assim, a fim de perceber "os objetos reais do lado de fora", a pessoa deve dirigir a câmara ativamente (utilizando sua cabeça ou mão).
A estrutura sutil do presente. Agora que situei o surgimento do concreto dentro do quadro enactivo para a cognição, onde ele de fato faz sentido, posso retomar à questão inicieal: como micromundos emergentes podem surgir a partir de um turbilhão de diversos agentes e subredes cognitivas? A resposta que proponho aqui é que no intervalo em que ocorre um colapso há uma rica dinâmica envolvendo subidentidades e agentes simultâneos. Esse rápido diálogo, invisível à introspeção, foi revelado recentemente em estudos sobre o cérebro. Alguns aspectos centrais dessa idéia foram apresentados primeiramente por Walter Freeman que, ao longo de vários anos de pesquisa, conseguiu introduzir uma série de eletrodos no bulbo olfativo de um coelho, de forma que uma pequena porção da atividade global pudesse ser mensurada enquanto o animal agia livrementeY Ele constatou que não havia um padrão claro de atividade global no bulbo, a não ser que o animal fosse exposto a um odor específico por diversas vezes. Descobriu ainda que esses padrões de atividade surgiam a partir de um cenário de atividade incoerente ou caótica, em rápidas oscilações (isto é, com períodos de aproximadamente cinco a dez milissegundos), até que o córtex se acomodasse a um padrão elétrico global, que durava até o final do procedimento de farejar e entâo dissolvia-se novamente no cenário caótico. 10 As oscilações proporcionam, pois, um meio de amarrar seletivamente um conjunto de neurônios em um todo transitório que constitui o substrato para a percepção olfativa naquele instante preciso. O ato de cheirar aparece nesse sentido não como uma espécie de mapeamento de características externas, mas como forma criativa de enactar significância levando em conta a história corporificada do animal. E, o que é mais impor" Walter Freeman. Mass Action in the Nervous System. Nova tante, essa enacção ocorre na junção entre um York: Academic Press, 1975. momento comportamental e o seguinte, através 111 Walter Freeman & Christide rápidas oscilações entre populações neurôniIIC Skada. Spatial EEG Patcas capazes de dar origem a padrões coerentes. torllH, Nonlinear Dynamics, IIlId l'crccption: The NeoHá crescente evidência de que, durante uma Sh~I'I'lngl()niun View. Brain percepção, essa espécie de ressonância rápida UmllTcll Ueview.r 70, 198!i, p. liga transitoriamente os conjuntos neurônicos. 1117?!í.
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Isso foi observado, por exemplo, no córtex visual de gatos e macacos conectados a um estímulo visual;11 foi também constatado em estruturas neurais radicalmente diferentes, como o cérebro das aves,12 e mesmo nos gânglios de um invertebrado, Hermissenda.13 Essa universalidade é importante, pois ela sugere a natureza fundamental da ligação por ressonância como um mecanismo para a enacção de acoplamentos sensório-motores. Se fosse um processo específico de uma espécie - característico, digamos, apenas do córtex de mamíferos -, seria muito menos interessante como hipótese de trabalho. É importante observar que essa ressonfmcia rápida não está simplesmente relacionada a um gatilho sensorial: as oscilações surgem e desaparecem de forma bastante espontânea em diversas partes do cérebro. Isso sugere que essa dinâmica rápida diz respeito a todas as sub-redes que dão origem à completa prontidão-à-mão no momento seguinte. Elas envolvem não apenas a interpretação sensorial e a ação motora, mas também toda uma gama de expectativas cognitivas e tonalidades emocionais que são fundamentais para a modelagem de um micromundo. Entre os colapsos, essas oscilações são os sintomas de rápidas cooperações recíprocas e competições mútuas Charles Gray & Wolf Sinentre agentes distintos que são ativados pela sigeroStimulus-Specific Neurotuação presente, rivalizando entre si para im- nal Oscillations in Orientapor diferentes modos de interpretação a fim de tion Columns in Cat Visual Cortex. Proceedings ofthe Naticonstituir um quadro cognitivo coerente e uma onal Academy of Sdences of the prontidão-para-ação. Com base nessa dinâmica USA 86, 1989, p. 1698-702. rápida, da mesma forma que em um processo evoSerge Neuenschwander & lutivo, um conjunto neurônico (uma sub-rede cog- Francisco Varela. Sensori-triggered and Spontaneous Oscilnitiva) finalmente toma-se mais predominante e lations in the Avian Brain. So11
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converte-se no modo comportamental para o momento cognitivo seguinte. Por "toma-se mais predominante" não quero dizer que se trata de um processo d e otimização: isso se assemelha mais a uma bifurcação ou forma de dinâmica caótica destruidora de simetria. Segue-se que esse berço da ação autõnoma está sempre perdido para a experiência vivida, pois, por definição, somente podemos a Ila bitar uma microi denti dade quando ela]' á se encontra presente, mas não quando ela está em ges-
dety Neuroscience Abstracts 76, 1990. 13 Alan Gelperin & David Tank. Odour-Modulated Collective Network Oscillations of Olfactory Intemeurons in a Terrestrial Mollusc. Nature 345, 1990, p. 437-40. Para um estudo recente, ver Steven Bressler. The Gamma Wave: Cortical Information Carrier. Trends in Neurosdence 73, 1990, p. 161-2.
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tação. Em outras palavras, no colapso que antecede o surgimento do micromundo sl'p;uinle, há um número infinito de possibilidades disponíveis até que, em virtude das imposições da situação e da recorrência da história, uma única seja selecionada. Essa dinâmica rápida é o correlato neural da collstituiçào autônoma de um agente cognitivo incorporado em um dado momento presente de sua vida.
Da sutil estrutura temporal à ação cognitiva. Conforme foi observacio, a ressonância rápida da reciprocidade de um agente proporciona
o cenário para o surgimento de um micromundo. Há indícios de que esse acoplamento sensório-motor esteja relacionado com outros tipos de desempenho cognitivo tipicamente humanos: em outras palavras, os níveis cognitivos realmente "mais altos" surgem a partir do evento de sentir e agir de nível "baixo", possibilitando que a ação seja direcionada perceptivamente. De fato, esse conceito básico está bem no núcleo do programa piagetiano.14Como a idéia de estruturas cognitivas corporificadas foi defendida por George Lakoff e Markjohnson,15 irei apresentá-la fazendo menção especial ao trabalho desses autores. Novamente, devo sair do abstrato e salientar uma abordagem experimentalista da cognição. Conforme declara Lakoff, o argumento central de sua própria abordagem e da dejohnson é que as estruturas conceituais significativas originam-se de duas fontes: da natureza estru14 Jean Piaget. Biologie el ConnaiJJance. Paris: Gallimard, turada da experiência corpórea e de nossa ca1969. pacidade em projetar imaginativamente, desde " George Lakoff. Wamen, FiTe certos aspectos bem-estruturados da experiência and DangeroUJ ThingJ. Chicacorpórea e interativa até estruturas conceituais. go: University of Chicago l'ress, 1983; e MarkJohnson. O pensamento racional e abstrato constitui ele The Body in lhe Mind. Chicapróprio a aplicação de processos cognitivos basgo: University of Chicago tante gerais - focalização, varredura, sobreposiPress, 1989. ção, reversão fundo- figura e assim por diante George Lakoff. Cognitive S()lmmtics. In: Umberto Eco a essas estruturas conceituais. 16 Em linhas gerais, nllll. (eds.). Meaning and Menas estruturas corporificadas (sensório-motoras) tal Repre.rentations. Bloomingconstituem a essência da experiência e as estrutem: Indiana University Press, IUHH,p. 121,proporciona uma turas experienciais "motivam" a compreensão hl'ov(! vlHllo geral da abordaconceitual e o pensamento racional. Conforme j((!ln llxpcl"imenlalista de Lak"I1' O.lOhI1HOI1. enfatizei, a percepção e a ação são corporificaIH
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das em processos sensório-motores auto-organizáveis; segue-se, então, que as estruturas cognitivas emergem a partir de padrões recorrentes de atividade sensório-motora. De qualquer modo, a questão não é, como afirmaria Lakoff, que a experiência determina de forma absoluta as estruturas conceituais e os modos de pensamento; trata-se, antes, de que a experiência possibilita e ao mesmo tempo restringe a compreensão conceitual por entre os múltiplos domínios cognitivos. Lakoff ejohnson fornecem numerosos exemplos de estruturas cognitivas geradas a partir de processos experienciais. Rever todos esses exemplos iria me desviar muito de meu curso; assim, irei discutir de forma resumida apenas um dos tipos mais significativos: as categorias de nível básico. Pense nas coisas de tamanho médio com as quais interagimos constantemente: mesas, cadeiras, cães, gatos, garfos, facas, xícaras e assim por diante. Essas coisas pertencem a um nível de categorização que é intermediário entre os níveis mais baixo (subordinado) e mais alto (superior). Se tomarmos uma cadeira, por exemplo, no nível mais baixo ela poderia pertencer à categoria "banco", ao passo que no nível mais alto ela pertence à categoria "mobília". Eleanor Rosch e seus co-autores demonstraram que esse nível intermediário de categorização (mesa, cadeira e assim por diante) é psicologicamente o mais fundamental ou hásico, pelas seguintes razões, entre outras: primeiro, o nível básico é o nível mais geral no qual os membros da categoria possuem formatos globais percehidos como semelhantes; segundo: é o nível mais geral no qual uma pessoa utiliza ações motoras similares para interagir com os membros da categoria; e, terceiro, é o nível no qual uma série de atributos correlatos são mais aparentes.17 Pareceria, assim, que o fato de uma categoria pertencer ao nível básico depende não de como as coisas estão organizadas em algum mundo preestabelecido, mas sim da estrutura sensório-motora de nossos corpos e dos tipos de interações direcionadas perceptivamente que essa estrutura possibilita. As categorias de nível básico são tanto experienciais como corporificadas. Eleanor Rosch; Carolyn l Im raciocínio semelhante pode ser construído Mervis; Wayne Gray; David para esquemas de imagens que emergem a par- Johnson & Penny Boyes-Braem. tir de determinadas formas básicas de ativida- Basic Objects in Natural Calegories. Cognitive Psychology 8, des e interações sensório-motoras. 1976, p. 382-439. 17
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AJ'g'lIIlICllleique a percepção não consiste na reconstituição de um mundo prcestabelecido, mas sim no direcionamento perceptivo da ação em 11111 mundo que é inseparável de nossas capacidades sensório-motoras. As estruturas cognitivas emergem de padrões recorrentes de ação dirccionada perceptivamente. Posso resumir, então, afirmando que a cognição consiste não de representações, mas de ação corporificada. De maneira correspondente, o mundo que conhecemos não é preestabelecido; é, ao contrário, enactado através de nosso histórico de acoplamento estrutural. As junções temporais que articulam a enacção estão enraizadas na dinâmica rápida não-cognitiva, em que uma série de micromundos alternativos são ativados; essas junções são a fonte tanto do bom senso como da criatividade na cognição. É portanto a busca, bastante contemporânea nas ciências cognitivas, de uma compreensão da compreensão que aponta numa direção que considero pós-cartesiana de duas maneiras significativas. Primeiro, o conhecimento parece cada vez mais como algo construído a partir de pequenos domínios, isto é, micromundos e microidentidades. Esses' modos básicos de prontidão-à-mão variam, mas estão presentes em todo o reino animal. Porém, o que todos os seres cognitivos vivos parecem ter em comum é o conhecimento que é sempre um know-how constituído com base no concreto; o que chamamos "geral" e "abstrato" são grupos de prontidão-para-ação. Segundo: esses micromundos não são coerentes ou integrados em alguma imensa totalidade que regula a veracidade das partes menores. É mais como uma interação conversacional desregrada: a própria presença des~e desregramento permite que um momento cognitivo passe a existir de acordo com a constituição e a história do sistema. A autêntica fonte dessa autonomia, a rapidez de seleção do comportamento do agente, está para sempre perdida para o próprio sistema cognitivo. Assim, o que tradicionalmente chamamos "irracional" e "não-consciente" não contradiz o que parece racional e intencional: constitui sua própria fundamentação.
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que lia pela primeira vez um conjunto de textos dedicados por Gilbert Simondon e Gilles Deleuze ao problema da individuação, textos finalmente reunidos em boa hora neste volume, sentiame transformando em nuvem. Pior ainda, nuvem mais complicada que as do céu, poeira de palavras movendo-se ao sabor de um descontrole de ventos-frases. Ao reler o mesmo corijunto pela enésima vez, sinto que me recupero muito lentamente daquele caos, daquele estado de interfusões e extravios, daquele estado, digamos, de metaestabilidade, estado brumoso, enfim. "A bruma solar", diz Deleuze a propósito da descrição que Thomas Edward Lawrence faz do deserto, "é o primeiro estado da percepção nascente", a "miragem na qual as coisas sobem e descem",l como que indecisas quanto as suas próprias individualidades. Agora já percebo algumas direções marcadas pelos ventos. Vejo que certas palavras se atraem, reagrupando-se em cumplicidades conceituais, e isto acontecendo numa luta em que elas experimentam sua capacidade de erigir um domínio que outras palavras, distintamente imantadas, não teriam conseguido circunscrever. Que novo domíriio estaria sendo traçado por esses textos, por essa nova maneira de dizer o problema da individuação? Ora, essa pergunta já estava querendo imporse desde quando minhas primeiras e nebulosas 1 1)tlIClIZC, Gilles. Critique el cli"lrl"~' I'uris: Minuit, 1993, p. leituras sofriam o assédio desses textos. Ela conti144, (Cr(lica e c[{nica; tr. br. de nua arregimentando a construção das minhas 1'"lflr 1'1\1I'clbllrt. São Paulo: próprias frases, de tal modo que um texto a ser 11:11,:14, 1!)!l7, p, l:~O.) MEDIDA
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por mim assinado começa a sofrer sua própria individuação como resposta a essa pergunta, começa a compor-se, mesmo que de modo indeciso, insuficiente ou errático, como aparentemente uno em si e distinto daqueles outros também destinados a respondê-la. Repito a pergunta, como se esta fora um barco navegando de olho na variação dos sinais que vão mapeando sua própria errância: que domínio está se erigindo quando esses textos de Simondon e Deleuze transformam o problema da individuação? Numa resumida e abusiva história de conceitos, a individuação aparece como problema explícito quando a questão da realidade do ser se contrai, se encolhe numa viva atenção ao indivíduo, ao ente que se apresenta como dado em sua imediatidade, este cristal, este vegetal, esta mulher ou esta voz de cristal em Gal. Cada um desses entes, pensado como essência inferior em Platão ou como substância primeira em Aristóteles, fundamento e sujeito real dos predicados, foi considerado como indivíduo pronto, como individuum, como não-dividido, como atomon. Se divido esta flor em duas partes, já não posso oferecê-la assim inteira, como indivíduo-camélia colhido no jardim de Zilda, ali onde vislumbro uma pluralidade de outras camélias inteiras; posso também obter indivíduospétalas, mas, a cada vez, o que preciso observar é se obtive uma individualidade que resista em si como única entre as demais. Se divido Sócrates ao meio, a coisa é mais grave, pois cometo homicídio com a agravante de não obter uma duplicação de filósofo. Quando Aristóteles2 diz que Sócrates é UM indivíduo único num conjunto numericamente múltiplo, ele não está pensando na animalidade racional de Sócrates, pois isto equivaleria a salientar tão-somente a unidade formal pela qual Sócrates e todos os homens se definem genérica e universalmente como animais racionais. É por estar ligada à materialidade-Sócrates que a [mimal-racionalidade-Sócrates pode ser encontrada pelos habitantes de Atenas nos limites de um indivíduo inconfundível, justamente ele que tinha fama de confundir os demais com suas perguntas pelo ser do ente. () indivíduo-Sócrates é um todo-inteiro de matéria e forma, como se dizia, nem disperso na pura materialidade, nem evaporando-se na pura generalidade. Pois bem, se atribuirmos à matéria o poder de limitar lima forma universal, forma que, então, ganha os contornos de uma individualidade, estaremos 2 Aristóteles. Metaftsica, XII, 11, ('ncontrando a resposta por assim dizer aristoté1074 a 33 ss.
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lica que um 11I6sofoárabe do século XI, Avicena, procurava para o problema que o atraiu e que nós herdamos, qual seja, o problema da' constituição do indivíduo: o que faz com que uma substância ou natureza comum a vários se torne este ou aquele indivíduo? Feita à maneira tradicional, essa pergunta recebeu respostas que variaram ao longo dos séculos. De um lado, diz Simondon, o substanciali.l'rrtoatomista estabelece a individuação como um fato: seja tomando o átomo como existência dada,' seja apreendendo o composto como fato resultante de um "encontro ao acaso". Por outro lado, a posição dominante caracteriza-se como um hilemorfismo que - privilegiando ora a forma, ora a matéria, ora dosando combinações de ambas - procura dizer o princípio de individuação, isto é, o princípio pelo qual o indivíduo é individuável e individuado, Em sua resposta, Tomás de Aquino, por exemplo, elabora a difícil noção de "matéria signata quantitate", isto é, a matéria disposta a variações de quantidade.3 Respostas desse tipo, como pode ser visto, são reunidas por Simondon como aplicações de um esquema hilemórfico, isto é, um esquema que pensa a própria operação de individuação como dependente de um princípio de individuação, um princípio "contido na matéria ou na forma". Tal esquema estaria supondo, diz ele, uma "sucessão temporal" que, partindo do princípio de individuação, chegaria ao indivíduo constituído depois de passar por aquilo que esse esquema não estaria tematizando suficientemente: a própria operação de individuação. Simondon está de olho nesse meio, nessa zona obscura, um entremeio que certa tradição teria maltratado em suas maneiras de ligar indivíduo pronto e princípio de individuação, É a operação de individuação, ela mesma, portanto, que Simondon reexamina. Ele o faz de tal modo que acaba abalando dois ancoradouros tradicionais do pensamento. Nesse reexame, o princípio de individuação não passará de um efeito daquela operação, ao mesmo tempo que o indivíduo não mais terá o monopólio do ser concreto em sua totalidade. Para se sustentar esse resultado, é preciso pensar a imanência' entre a individuação e o indivíduo, é preciso conceituar a individuação como complexa operação ativada no indivíduo tomado como meio de individuação, um meio que implica uma realidade pré-individual, um campo de singularidades pré-individuais. Para exemplificar I '1lllnl\H de Aquino. De ens et isso, pensemos um vegetal individuando-se co',1-"1,/111, :l, mo meio de atuação de um sistema que, por não
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se confundir com ele, é dito sistema pré-individual, Neste exemplo, o sistema é composto de duas regiões, de duas ordens de realidade: uma "ordem cósmica", com sua energia luminosa, e uma "ordem inframolecular", com suas "espécies químicas distribuídas no solo e na atmosfera", espécies "classificadas e repartidas" justamente por meio daquela energia luminosa "recebida na fotossíntese". O vegetal vive individuando-se como aquilo que vai dobrando, segundo estratégias de entrelaçamento do dentro e do fora, do self e do non-self, como diria Francisco Varela,4 uma ordem pré-individual na outra; vive compondo-se como mediação (não dialéticohegeliana) entre essas ordens, como resson(1ncia interna de um "sistema pré-individual feito de duas regiões de realidade primitivamente sem comunicação" , Posso agora retomar a pergunta feita anteriormente: que domínio se erige com essa nova maneira de dizer o problema da individuação? Com palavras de Deleuze, o domínio que se erige é o de uma "nova concepção do transcendental":' Sabe-se que Deleuze emprega um nome paradoxal para designar essa concepção: empirismo transcendental.6 Roberto Machad07 lembra que esse nome já se preparava, na obra de Deleuze, desde os anos 4 Costa, Rogério da. Limiares do cinqüenta e início dos anos sessenta, na confluên- contemporâneo - entrevistas. São Paulo: Escuta, 1993, p. 83. cia de pequenos e magníficos estudos dedicados Deleuze, G. Logique du senso a Hume e a Kant. Resumindo: Paris: Minuit, 1969, p. 126, n. De um lado, Deleuze valoriza, em Hume, a 3; tr. br. de L. R. Salinas Fortes idéia de separar as relações e os termos que se en- (Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 107, n. 3). contram relacionados; valoriza, portanto, a iniDeleuze, G. Différence et répéciativa humiana de estabelecer uma "dualidade tition Paris: PUF, 1968, p. 186, empírica" entre "os termos e as relações", duali- 187; tr. br. de Luiz B. L. Orlandade situada para além da dualidade, também di & Roberto Machado (Diferença e repetição. Rio de J aneihumiana, entre as impressões e as idéias.8 Como ro: Graal, 1988, p. 236, 237). se justifica essa valorização? O empirismo de Machado, Roberto. Deleuze e Ilume, como diz Michel Malherbe, não é um a filosofia. Rio de Janeiro: "empirismo vulgar", aquele que reduz o conheci- Graal, 1990, p. 139 sS. mento a uma "relação entre um sujeito real e Deleuze, G. Empirisme et subum objeto já constituído",9 Para Deleuze, ao afir- jectivité. Paris: PUF, 1953, p. 122. lIlar que "as relações são exteriores aos seus terMalherbe, Michel. Kanl ou I1IOS", havendo impressões e idéias de termos e Hume - ou la raison el le .fenfidistintas impressões e idéias de relações, Hume ble. Paris: Vrin, 19110,p, l!l. 5
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I'stal'ia elevando "o empirismo a uma potência superior", a potência capaz d(\ descortinar um "mundo de exterioridade", mundo em que o próprio pensamento está em relação fundamental com o Fora", mundo em que as relações não derivam de termos, mas são como "passagens externas". I;: justamente graças a relações assim entendidas que o sujeito humiano pode ultrapassar o imediatamente dado, ultrapassamentos que se dão num mundo feito de tecido "conjuntivo", este em que "a conjunção ~ destrona a interioridade do verbo f', mundo rizomático, enfim. 10 Por outro lado, Deleuze aponta o que julga ser insuficiente no transcendental kantiano. Recordemos que, segundo ele, o termo transcendental, com Kant, "qualifica o princípio de uma submissão necessária dos dados da experiência às nossas representações a priori e, correlativamente, de uma aplicação necessária das representações a priori à experiência", com o que se dispensaria a "idéia de uma harmonia entre o sujeito e o objeto"." Pois bem, o que Deleuze desvaloriza em Kant é o ter ele acreditado que se possa induzir o transcendental a partir das "formas empíricas ordinárias, tais como elas aparecem sob a determinação do senso comum"; desvaloriza, pois, o "decalque do transcendental sobre o empírico", decalque que só não acontece, segundo ele, em passagens dedicadas por Kant ao sublime na terceira Crítica. 12 Ora, o que pretende Deleuze, precisamente, com essa reapropriação dissimétrica de iniciativas de Hume e Kant? Ele pretende dizer que a exploração do domínio e das regiões do transcendental depende, justamente, do exercício de um empirismo dito superior. Que significa isto? Significa, no caso de Deleuze, G. Hume. In: Châtelet, Fr. (org.). Histoire de la qualquer faculdade, por exemplo, levá-la a um philosophie. VaI. 4, Les lumieres "exercício transcendente não decalcado sobre o (Le XVI/Jeme siecle). Paris: Hachette, 1972, p. 66, 67; tr. br. exercício empírico" vulgar, de tal modo que, indo artigo de Deleuze feita por do além das apreensões que costuma efetuar a Guido de Almeida (Rio de partir "do ponto de vista de um senso comum", Janeiro: Zahar, 1982, p. 60, (il). essa faculdade possa ir até o ponto de sentir-se " Dcleuze, G. La philosophie presa de tudo aquilo que "a força a exercer-se; Gritiqlle de Kant. Paris: PUF, assim procedendo, ela pode vir a descobrir "a 1!)(i,I, p. 22, 23. paixão que lhe é própria";13 pode vir a descobrir 1'1 1>(~Ir.IIZC, G. Dif. et réP., op. os sistemas de diferenças, as multiplicidades, as elt., p. IH(i, IH7, IH7n; tr. br., p. :l:Hi, 2:17, 237n. problemáticas, as disparações em que ela própria é extremada e até estressada. Nesse sentido, 1'lhlcll1l11, 10
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praticar o empirismo transcendental implica viabilizar forças eminentemente subversivas: indo por ele, experimentando-o, conforme um "tipo de experiência muito particular" e que "permite descobrir as multiplicidades", como adverte e antevê Deleuze,'" indo por ele, repito, a primeira advertência é desconfiar de pontos de vista sobrepostos em relação a este ou àquele campo de estudos; trata-se de, com cuidado e operações especiais, colocar-se à disposição das emissões daquilo que se estuda; é preciso lavrar contatos numa ambiência de reciprocidades de aberturas forçadas, tendo-se em vista que estas são violenta ou suavemente impostas pelas ações dos díspares. Ou seja, a exploração de um campo empíricotranscendental exige variações ardilosas, como as operações de um subi sentir, de um entre/sentir, de um intra/sentir, extra/sentir, trans/sentir etc. e não simplesmente de um re/sentir, operações articuladas no meio das maquinarias em que se agenciam níveis disparatados de naturalidades e artificialidades; exige refinamentos táticos da disposição de contemplar e contrair as intensidades de x, as pulsações de uma questão, as intensificações que determinado problema exala em sua pauta de efetuações. Mireille Buydens salienta justamente a "natureza intensiva" das "singularidades nõmades, impessoais e pré-individuais" que povoam o campo transcendental, marcando-se, assim, o caráter virtual desse campo, dado que pensar as singularidades em sua natureza intensiva exige que se evite concebê-las tão-soDeleuze, G. Lettre-préface. mente como "infinitesimais", por exemplo, conIn:Jean-Clet Martin. Váriatiom cepção que apenas restauraria o império dos in- - La philosophie de Giltes Deleuze. Paris: Payot, 1993, p. 8. divíduos.!5 A exploração desse campo intensivo Buydens, Mireille. Sahara, implica não só uma abertura do sensível como l'esthétique de Gilles DeleuZt. Patambém exige que se deixe a coisa "pensar em ris: Vrin, 1990, p. 17, 14. (Agramim", como diz Pierre Lévy, exige, em suma, deço a Paulo César Lopes a colocar-se como ampla suscetibilidade a "possí- lembrança desse interessante estudo.) veis metamorfoses sob o efeito" dos problemas. 16 Lévy, Pierre. As tecnologias da Aliás, basta reler estudos nietzschianos de Deinteligência (1990); tr. br. de Icuze para notar o quanto ele reencontra em Nie- Carlos Irineu da Costa. Rio de tzsche a atuação de princípios e conceitos ditos Janeiro: Ed. 34, 1993, p. lI. plásticos ou "em metamorfose", denominação que Deleuze, G. Nietzrche el la philosophie, Paris: PUF, 1962, lhes é atribuída porque, para não serem meras 11, § 6. (Nietzrche e afilosofia, tr. Il,'cneralidades, precisam determinar a si próprios br. de E. F. Dias e Ruth.J. DhlN, (.'om aquilo que eles procuram determinar. 17 RJ: Ed. Rio, 197o, lI, § 6. 14
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Pois bem, é nessa perspectiva de um empirismo transcendental que a resenha de Deleuze está lendo os textos de Simondon. Voltemos aos indivíduos que encontramos em nossas relações empírico-vulgares. Em vez de simplesmente abarcá-los com a ajuda de categorias mobilizadas em cstnMgias dedutivas ou indutivas, devo operar transduções, diz SimOlldoll. Isto quer dizer que, ao inverso da dedução, esta operação que "procura alhures um princípio para resolver o problema de um domínio", a tmnsdução, mais sutil, deve "extrair das próprias tensões" desse domínio a "estrutura" capaz de resolvê-las; isto também quer dizer, por outro lado, que, embora a indução procure também extrair estruturas da "análise dos próprios termos do domínio estudado", ela acaba fraquejando ao conservar tão-somente o que "há de comum a todos os termos", ao passo que a transdução procura "descobrir dimensões", vasculhar a problemática, detectar disparidades etc., e dizer tudo isso com "a menor perda possível de informação". Pode-se ver que essa idéia de transdução sinaliza no sentido da exploração de domínios empírico-transcendentais. Assim, para transduzir o indivíduo, devo perguntar, por exemplo, pelo sistema no qual está ele tomado no exercício de sua própria individuação, sistema dito metaestável (nem estável, nem instável), sistema metaestável de singularidades préindividuais; devo perguntar pela ação dos díspares, pela disparação entre pelo menos duas "escalas de realidades díspares", disparação que, para Deleuze, "define essencialmente um tal sistema", sistema que implica, portanto, um "estado de dissimetria", uma "diferença fundamental". E como devo perguntar pelo "problema colocado pelos díspares"? Devo fazê-lo indiretamente, capturando a própria operação de individuação como passagem que resolve, na composição do indivíduo, um campo problemático pré-individua~ campo distendido na agitação dos díspares. Com ou sem ironia ou humor, devo pensar o indivíduo que vejo como sendo um precário, mutante e mutagênico revestimento de uma individuação que se agita por ser "organização de uma solução", por ser "resolução para um sistema objetivamente problemático". Com Jean-Clet Martin, pode-se resumir deste modo as exigências que se impõem a quem pretenda estudar um domínio empíricotranscendental: estar atento ao "campo de resolução", este campo de n~ulidade-atual, campo em que se "cristalizam singularidades segundo percursos determinados"; mas essa atenção deve prolongar-se para
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explorar o "campo problemático", esse campo de realidade-virtual, campo em que as singularidades pré-individuais se distribuem nomadicamente como "instâncias topológicas" não ainda direcionadas.18 Finalmente, lembremos apenas que Deleuze retoma a inspiração de Simondon em vários pontos de sua obra. Isto não quer dizer que deixe de existir um importante desacordo. Por exemplo, ao mesmo tempo que destaca, concordando com Simondon, a "importância das séries disparatadas e de sua ressonância interna na constituição dos sistemas", Deleuze evita a condição ainda mantida por Simondon, qual seja, "a exigência de semelhança entre séries ou de que sejam pequenas as diferenças postas em jogo". Ora, essa observação crítica, essa manifestação de interessante acordo-discordante, acontece no momento em que Deleuze enfrenta o que chama de "dificuldade maior", acontece quando pergunta pela "condição" da "comunicação entre séries heterogêneas", quando pergunta pelo seu "acoplamento" ou "ressonância" interna, evitando aceitar, como resposta, que essa condição seja a de "um mínimo de semelhança entre as séries" ou de uma "identidade no agente (ou força) que opera a comunicação". A resposta propriamente deleuziana fala em "diferenciador", em "precursor sombrio", em "díspar", em "em-si da diferença", em "diferentemente diferente", em "objeto = x", aquele que "se desloca perpetuamente em si mesmo e se disfarça perpetuamente nas séries", resposta que remete de modo permanente ao estatuto do problemático .19 Mas é também certo que Deleuze vê em L'individu ... , apesar de não acompanhar as "conclusões" desse livro, a "primeira teoria racionalizada das singularidades impessoais e pré-individuais". Diz ainda que, nele, Simondon analisa as "cinco características" pelas quais ele próprio, Deleuze, tenta "definir o campo transcendental". Essas características já foram aqui esboçadas. Como não podemos estudá-las em detalhe, por que, então, fazer mais uma passageira referência a elas? O primeiro motivo é chamar a atenção para a importância que o tt~xtode Simondon ganha no conjunto da obra de um filósofo tão criativo p tão mergulhado na história da filosofia quanto Martin,j.-C. Op. cit., p. 22; (. I)eleuze. O segundo motivo explica o primeiro, sobre empirismo transcendenlIIas dá também um sinal às divergências existental, ver cap. 2. t"s entre esses autores e que não pudemos aqui Deleuze, G., DR, op. clt., d(~senvolver: a reapropriação deleuziana do tex- p. 158, 156 ss.; tr. br., p. 201, to de Simondon é mais do que um amparo bi- 199 ss. 18
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hliogl'állco para conceitos já elaborados; ela participa de conceituações (' rc-conceituações em andamento; ela se imiscui como dobra criativa IlO fluxo conceitual a que Deleuze se entrega; ela opera, funciona em linhas decisivas do sistema deleuziano, do planõmeno dessa filosofia da diferença; engrena-se produtivamente com a maquinaria conceitual que a deglute. Para se ter ligeira idéia disso, é suficiente ler esta passagem de Logique du sens, passagem relativa à primeira característica do campo transcendental, o campo que Deleuze procura determinar para evitar a mera oscilação entre "campos empíricos" e "profundidade indiferenciada": "em primeiro lugar, as singularidades-acontecimentos correspondem a séries heterogêneas que se organizam em um sistema nem estável nem instável, mas «metaestável», provido de uma energia potencial em que se distribuem as diferenças entre séries", sendo, "a energia potencial", diz ele, "a energia do acontecimento puro, ao passo que as formas de atualização correspondem às efetuações do acontecimento". Com aquele hífen imbricando singularidades-acontecimentos, ele está reativando, por contato poroso com o texto de Simondon, seu próprio conceito empírico-transcendental de acontecimento, sendo este um dos filosofemas mais reincidentes em sua obra e que acabará exigindo uma atenção especial ao conceito de virtualidade e, portanto, com o de singularidades pré-individuais. Na quinta característica do campo transcendental, a complicação se reafirma: "em quinto lugar, esse mundo do sentido tem por estatuto o problemático: as singularidades se distribuem num campo propriamente problemático e advêm neste campo como acontecimentos topológicos aos quais não está ligada qualquer direção". Por que a complicação aqui se reafirma? Porque Deleuze tece a relação acontecimento/problemático: "o modo do acontecimento", diz ele, "é o problemático".20 E ambos os conceitos, além de muitos outros, são tratados de tal modo que neles se adensa essa perspectiva de exploração de mundos empírico-transcendentais, perspectiva tão presente nesse texto tão reverenciado de Simondon. Carecemos de um estudo detalhado do alcance que esse encontro de Deleuze com ~" Dclcuzc, G. LS, op. cit., p. Simondon propicia na constituição de um novo 12(i, 125, 127,69; tr. br., p. 107, transcendental na história da filosofia. HHi,57.
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INTRODUÇÃO
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Existem duas vias segundo as quais a realidade do ser como indivíduo pode ser abordada: uma via substancialista, que considera o ser como consistindo em sua unidade, dado por si próprio, fundado sobre si mesmo, inengendrado, resistente ao que não é ele próprio; uma via hilemórfica, que considera o indivíduo como engendrado pelo encontro de uma forma e de uma matéria. O monismo, centrado em si mesmo, do pensamento substancialista opõe-se à bipolaridade do esquema hilemórfico. No entanto, há algo em comum nestas duas maneiras de abordar a realidade do indivíduo: ambas supõem que existe um princípio de individuação, capaz de explicá-la, de produzi-la, de conduzi-la. A partir do indivíduo constituído e dado, esforçamo-nos para remontar às condições de sua existência. Essa maneira de propor o problema da individuação, partindo da constatação da existência de indivíduos, encerra uma pressuposição que deve ser elucidada, porque conduz a um aspecto importante das soluções que propomos e se insinua na busca do princípio de individuação: é o indivíduo, enquanto indivíduo constituído, que é a realidade interessante, a realidade a explicar. O princípio de individuação será investigado como um princípio capaz de explicar os caracteres do indivíduo, sem relação necessária com outros aspectos do ser que poderiam ser correlativos da aparição de um real individuado.
7àlperspectiva de investigação atribui um privilégio ontológico ao indivíduo cons-
titu(do. Logo, ela corre o risco de não operar uma verdadeira ontogêne9a
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se, de não colocar o indivíduo no sistema de realidade em que a individuação se produz. Qy,e a individuação tenha um princípio, isso é um postulado na pesquisa do princípio de individuação. Na própria noção de princípio, há um certo caráter que prefigura a individualidade constituída, com as propriedades que terá quando estiver constituída; a noção de princípio de individuação decorre, de certo modo, de uma gênese às avessas, de uma ontogênese invertida: para explicar a gênese do indivíduo, com seus caracteres definidos, é necessário supor a existência de um primeiro termo, o princípio, que traz em si o que explicará que o indivíduo seja indivíduo e dará a razão de sua hecceidade. Mas faltaria mostrar de maneira precisa que a ontogênese pode ler, como condição primeira, 11mtermo primeiro: um termo já é um indivíduo ou, pelo menos, algo individualizável e que pode ser origem de hecceidade, que é possível converter em hecceidades múltiplas; tudo o que pode ser origem de relação já é do mesmo modo de ser que o indivíduo, quer seja o átomo, partícula insecável e eterna, a matéria-prima ou a forma: o átomo pode c'ntrar em relação com outros átomos pelo clinâmen e constituir , assim , 11m indivíduo, viável ou não, através do vazio infinito e do devir sem rim. A matéria pode receber uma forma, e nesta relação matéria-forma ~wencontra a ontogênese. Se não houvesse certa inerência da hecceidade ao átomo, à matéria ou à forma, não haveria possibilidade de enconIrar, nas realidades invocadas, um princípio de individuação. Procurar o
Ilrincípio de individuação em uma realidade que precede a própria individuação ~nJnsiderar a individuação unicamente como ontogênese. Nesse caso, o princípio de individuação é origem de hecceidade. Com efeito, tanto o subsIllllcialismo atomista quanto a doutrina hilemórfica evitam a descrição direta da própria ontogênese; o atomismo descreve a gênese do composlo, como o corpo vivo, que só tem uma unidade precária e perecível, 1111(\ resulta de um encontro casual e que irá se dissolver novamente em IU'IIS elementos quando uma força, maior que a força de coesão dos IloIllOS, atacá-lo em sua unidade de composto. As próprias forças de l'IH'SUO, que poderíamos considerar como princípio de individuação do 11Idivíduo composto, são rejeitadas na estrutura das partículas elemenhu'os que existem pela eternidade afora e são os verdadeiros indivíduos; 1111 lltomismo, o princípio de individuação é a própria existência da infiIIllIude dos átomos: já está presente no momento em que o pensamento IIUtll' tomar consciência de sua natureza: para cada átomo, a individua-
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ção é um fato, é sua própria existência dada e, para cada composto, é o fato de ser o que é em virtude de um encontro casual. Segundo o esquema hilem6~fic(), ao contrário, o ser individuado ainda não é dado quando consideramos a matéria e a forma que se tomarão o cruvoÀ.Óv: 1 não assistimos à ontogênese porque sempre nos colocamos antes dessa tomada de forma que é a ontogênese; logo, o princípio de individuação nào é apreendido na própria individuação como operação, mas naquilo que esta operação necessita para poder existir, isto é, uma matéria e uma forma: supomos que o princípio está contido na matéria ou na forma, porque supomos que a ope-ração de individuação não é capaz de conter o próprio princípio, mas unicamente de utilizá-lo. A pesquisa do princípio de individuação realiza-se antes ou depois da individuação, conforme o modelo seja tecnológico e vital (para o esquema hilemórfico) ou físico (para o atomismo substancialista). Mas, em ambos os casos, existe uma zona obscura que recobre a operação de individuação. Esta operação é considerada como coisa a explicar e não como aquilo em que a explicação deve ser encontrada: daí a noção de princípio de individuação. E a operação é considerada como coisa a explicar porque o pensamento tende para o ser individuado acabado, do qual é necessário dar uma explicação, passando pela etapa da individuação para chegar ao indivíduo após a operação. Logo, há suposição da existência de uma sucessão temporal: primeiro, existe o princípio de individuação; em seguida, este princípio opera em uma operação de individuação; por fim, o indivíduo constituído aparece. Se, ao contrário, supuséssemos que a individuação não produz apenas o indivíduo, não procuraríamos passar rapidamente pela etapa de individuação para chegar a esta realidade última que é o indivíduo: tentaríamos apreender a ontogênese em todo o desenvolvimento de sua realidade, e conhecer o indivíduo pela individuação muito mais do que a individuação a partir do indivíduo. Desejaríamos mostrar que é necessário opeO'\Jvo",óv- termo grego que rar uma reversão na investigação do princípio Hlgnificao total, o conjunto (cf. de individuação, considerando como primor/)ictionnaire Grec-Français, de dial a operação de individuação a partir da qual A. llailly, Paris: Hachette). I'llfll Aristóteles o\JvoÂ.Óv deo indivíduo vem a existir e da qual ele reflete O NIK'llIllI Hubstllncia,o composdesenrolar, o regime e, por fim, as modalidades to d" mlltéria e de forma (N.T.). em seus caracteres. Então, o indivíduo seria apreI
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endido como uma realidade relativa, uma determinada fase do ser que supõe uma realidade pré-individual anterior a ela, e que não existe completamente só, mesmo depois da individuação, pois a individuação não esgota de uma única vez os potenciais da realidade pré-individual; por outro lado, o que a individuação faz aparecer é não só o indivíduo, mas também o par indivíduo-meio.~ Dessa maneira, o indivíduo é relativo em dois sentidos: porque ele não é todo o ser e porque resulta de um estado do ser em que ele não existia como indivíduo, nem como princípio de individuação. Por conseqüência, unicamente a individuação, enquanto operação do ser completo, é considerada como ontogenética. A individuação deve, então, ser considerada como resolução parcial e relativa, que se manifesta em um sistema contendo potenciais e encerrando uma certa incompatibilidade em relação a si próprio, incompatibilidade feita tanto de forças de tensão quanto de impossibilidade de uma interação entre termos extremos das dimensões. A palavra ontogênese ganha todo o seu sentido se, em vez de lhe atribuirmos o sentido, restrito e derivado, de gênese do indivíduo (em oposição a uma gênese mais vasta, por exemplo, a da espécie), fazemo-la designar o caráter de devir do ser, aquilo por que o ser devém enquanto é, como ser. A oposição do ser e do devir só pode ser válida no interior de certa doutrina, supondo que o modelo próprio do ser é a substância. Contudo, também é possível supor que o devir é uma dimensão do ser, corresponde a uma capacidade que o ser tem de defasar-se em relação a si próprio, de resolver-se defasando-se; o ser pré-individual é o ser em que não existe fase; o devir é o ser em cujo seio se efetua uma individuação, o ser em que uma resolução aparece pela sua repartição em fases; o devir não é um quadro no 2 Aliás, o meio pode não ser qual o ser existe; ele é dimensão do ser, modo simples, homogêneo, uniforme, mas ser originalmente de resolução de uma incompatibilidade inicial, atravessado por uma tensão rica em potenciais.3 A individuação corresponde à entre duas ordens extremas de d I grandeza que o indivíduo meaparição de fiases no ser, as fiases o ser; e a não é diatiza quando vem a ser. lima conseqüência depositada ao lado do devir 3 E constituição de uma ordem (~isolada, mas esta própria operação enquanto de grandeza mediata entre terse efetua; só podemos compreendê-la a partir mos extremos; o próprio deontogenético, em certo dessa supersaturação inicial do ser homogêneo vir sentido, pode ser considerado e sem devir que, em seguida, se estrutura e de- como mediação.
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fazendo aparecer indivíduo e meio, em conformidade com o devir, que é uma resolução das tensões primeiras e uma conservação dessas lensões sob forma de estrutura; em certo sentido, poderíamos dizer que o único princípio pelo qual podemos nos orientar é o da conservação do ser pelo devir, essa conservação existe pelas trocas entre estrutura e operação, procedendo por saltos quânticos entre equilíbrios sucessivos. Para pensar a individuação é necessário considerar o ser, não como substância, matéria ou forma, mas como sistema tenso, supersaturado, acima do nível da unidade; não consistindo unicamente em si mesmo e não podendo ser pensado, adequadamente, mediante o princípio do terceiro excluído; o ser concreto ou ser completo, isto é, o ser pré-individual, é um ser que é mais que uma unidade. A unidade, característica do ser individuado, e a identidade, que autoriza o uso do princípio do terceiro excluído, não se aplicam ao ser pré-individual, o que explica a impossibilidade de o mundo ser recomposto, posteriormente, com mônadas, mesmo acrescentando-lhes outros princípios, como o de razão suficiente, para ordená-las em universo; a unidade e a identidade só se aplicam a uma das fases do ser, posterior à operação de individuação; essas noções não podem ajudar a descobrir o princípio de individuação; elas não se aplicam à ontogênese, entendida no sentido pleno do termo, isto é, ao devir do ser enquanto ser que se desdobra e se defasa individuando-se. A individuação não pôde ser pensada e descrita de maneira adequada porque uma única forma de equilíbrio era conhecida, o equilíbrio estável; o equilíbrio metaestável não era conhecido; o ser era implicitamente suposto em estado de equilíbrio estável; ora, o equilíbrio estável exclui o devir, pois corresponde ao mais baixo nível possível de energia potencial; é o equilíbrio atingido em um sistema quando todas as transformações possíveis foram realizadas e não existe mais nenhuma força; todos os potenciais se atualizaram, e o sistema não pode se transformar novamente, tendo atingido o seu mais baixo nível energético. Os antigos só conheciam a instabilidade e a estabilidade, o movimento e o repouso, não conheciam clara e objetivamente a metaestabilidade. Para definir a metaestabilidade é necessário fazer intervir a noção de energia potencial de um sistema, a noção de ordem e a de aumento da entropia; Ilsslm, é possível definir este estado metaestável do ser, muito diferente do . quilíbrio estável e do repouso, que os antigos não podiam fazer Vhll,
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intervir na investigação do princípio de individuação, porque, para eles, nenhum paradigma físico preciso podia esclarecer o seu emprego.4 Tenlaremos, portanto, apresentar primeiro a individuação física como um caso de resolução de um sistema metaestáve~ a partir de um estado de sistema como o da superfusão ou da supersaturação que preside a gênese dos cristais. A cristalização é rica em noções muito estudadas e que podem ser empregadas como paradigmas em outros domínios; ela não esgota, no enlanto, a realidade da individuação física. Ora, podemos supor também que a realidade, em si mesma, da mesma maneira que a solução supersaturada e ainda de modo mais complelo no regime pré-individual, mais que unidade e mais que identidade, é primitivamente capaz de se manifestar como onda ou corpúsculo, matéria ou energia, porque toda operação, e toda relação no interior de uma operação, é uma individuação que desdobra, defasa o ser pré-individual, correlacionando simultaneamente valores extremos, ordens de grandeza primitivamente sem mediação. A complementaridade seria, então, a repercussão epistemológica da metaestabilidade primitiva e original do real. Nem o mecanicismo, nem o energetismo, teorias da identidade, explicam a realidade de maneira completa. A teoria dos campos, acrescentada à dos corpúsculos, e a teoria da interação entre campos e corpúsculos, ainda são parcialmente dualistas, mas encaminham-se para uma teoria do pré-individual. A teoria dos quanta, por outra via, apreende liste regime do pré-individual que ultrapassa a unidade: uma troca de energia se faz por quantidades elementares, como se houvesse uma individuação da energia na relação entre as partículas, que, em um sentido, é possível considerar como indivíduos físicos. Nesse sentido é que poderíamos assistir à convergência de duas novas teorias que, até hoje, se mantiveram impenetráveis, a dos quanta e a da mecânica ondulatória: elas poderiam ser consiHavia, entre os antigos, deradas como duas maneiras de exprimir o pré-inequivalentes intuitivos e nordividual pelas diferentes manifestações em que mativos da noção de metaesde intervém como pré-individual. Sob o contí- tabilidade; mas, como a metaestabilidade geralmente nuo e o descontínuo há o quântico e o complesupõe a presença simultânea mentar metaestável (o mais que unidade), que é de duas ordens de grandeza e () verdadeiro pré-individual. A necessidade de a ausência de comunicação interativa entre elas, este conr.orrigir e de acoplar os conceitos de base em ceito deve muito ao desenvolfísica talvez traduza o fato de os conceitos serem vimento das ciências. 4
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adequados unicamente à realidade individuada, e não à realidade pré-indi-
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vidual. Compreenderíamos, então, o valor paradigmático do estudo da gênese dos cristais como processo de individuação: ele permitiria apreender, em uma escala macroscópica, um fenômeno que repousa sobre estados de sistema pertencentes ao domínio microfísico, molecular e não molar; apreenderia a atividade que ocorre no limite do cristal em formação. Tal individuação não é o encontro de uma forma e de uma matéria prévias, que existem como termos separados, anteriormente constituídos, mas uma resolução que surge no seio de um sistema metaestável rico em potenciais: forma, matéria e energia preexistem no sistema. A forma e a matéria não são suficientes. O verdadeiro princípio de individuação é mediação, que geralmente supôe dualidade original das ordens de grandeza e ausência inicial de comunicação interativa entre elas, em seguida, comunicação entre ordens de grandeza e estabilização. Ao mesmo tempo que uma energia potencial (condição de ordem de grandeza superior) se atualiza, uma matéria se ordena e se divide (condição de ordem de grandeza inftrior) em indivíduos estruturados em uma ordem de grandeza média, que se desenvolve por um processo mediato de amplificação. O regime energético do sistema metaestável é que conduz à cristalização e a sustenta, a forma dos cristais exprime, porém, certos caracteres moleculares ou atômicos da espécie química constituinte. No domínio do vivo, a mesma noção de metaestabilidade pode ser utilizada para caracterizar a individuação; mas a individuação não se produz mais, como no domínio físico, apenas de maneira instantânea, quântica, brusca e definitiva, deixando atrás de si uma dualidade do meio e do indivíduo, o meio empobrecido do indivíduo que ele não é, e o indivíduo não tendo mais a dimensão do meio. Sem dúvida, tal individuação existe também para o vivo, como origem absoluta, mas é acompanhada de uma individuação perpétua que é a própria vida, conform o modelo fundamental do devir: o vivo conserva em si uma atividade permanente; ele não só é resultado de individuação, como o cristal ou molécula, mas também teatro de individuação. A atividade do vivo, por conseqüência, não está toda concentrada em seu limite, como a do indivrduo físico; existe nele um regime mais completo de ressonância interna, que exige comunicação permanente e mantém uma metaestabilidad
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que é condição de vida. Não é esse o único caráter do vivo, e não podemos assimilar o vivo a um autômato que manteria certo número de equilíbrios ou buscaria compatibilidade entre várias exigências, segundo uma fórmula de equilíbrio complexa, composta de equilíbrios mais simples; o vivo é também o ser que resulta de uma individuação inicial e amplifica esta individuação, o que não faz o objeto técnico, ao qual o mecanicismo cibernético gostaria de assimilá-lo funcionalmente. No vivo há uma individuação pelo indivíduo e não apenas um funcionamento resultante de uma individuação já efetuada, comparável a uma fabricação; o vivo resolve problemas, não só adaptando-se, isto é, modificando sua relação com o meio (como uma máquina pode fazer), mas também modificando-se a si próprio, inventando novas estruturas internas, introduzindo-se completamente na axiomática dos problemas vitais:' O
indivíduo vivo é sistema de individuação, sistema individuante e sistema individuando-se; a ressonância interna e a tradução da relação consigo próprio em informação estão neste sistema do vivo. No domínio físico, a ressonância interna caracteriza o limite do indivíduo individuando-se; no domínio vivo, ela devém o critério de todo indivíduo enquanto indivíduo; ela existe no sistema do indivíduo, e não apenas no que o indivíduo forma com seu meio; a estrutura interna do organismo já não resulta (como a do cristal) unicamente da atividade que se efetua e da modula~:ãoque se opera no limite entre o domínio de interioridade e o domínio de exterioridade; o indivíduo físico, perpetuamente descentrado, perirórico em relação a si próprio, ativo no limite de seu domínio, não tem verdadeira interioridade; o indivíduo vivo, ao contrário, tem uma verdadeira interioridade, porque a individuação se realiza dentro; no individuo vivo o interior também é constituinte, enquanto no indivíduo físico só o limite é constituinte, e o que é topologicamente interior é geneIkamente anterior. O indivíduo vivo é contemporâneo de si próprio em todos os seus elemen5 Por esta introdução é que o los, o que não o é o indivíduo físico, o qual con- vivo faz obra informacional, ele próprio tornando-se um I(ml passado radicalmente passado, mesmo núcleo de comunicação intequando ainda está crescendo. O vivo, em seu rativa entre uma ordem de realidade superior à sua diprúprio interior, é um núcleo de comunicação mensão e uma ordem inferior Informativa; ele é sistema em um sistema, com- a esta, que ele organiza. portando em si mesmo mediação c1tms de grandeza.6
entre duas or-
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Essa mediação interior pode
intervir como retransmissor
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Em suma, é possível fazer uma hipótese análoga à dos quanta em IIsica, e também à da relatividade dos níveis de energia potencial: é possível supor que a individuação não esgota toda a realidade pré-individual, e que um regime de metaestabilidade não só é mantido pelo indivíduo, mas também carregado por ele, de maneira que o indivíduo constituído transporta consigo certa carga associada de realidade préindividual, animada por todos os potenciais que a caracterizam; uma individuação é relativa como uma mudança de estrutura em um sistema físico; um certo nível de potencial se mantém e as individuações ainda são possíveis. Essa natureza pré-individual, que permanece associada ao indivíduo, é uma fonte de estados metaestáveis futuros de onde poderão sair novas individuações. Segundo esta hipótese, seria possível
considerar toda verdadeira relação como tendo posição de ser e como desenvolvendo-se no interior de uma nova individuação; a relação não surge entre dois termos que já seriam indivíduos; ela é um aspecto da ressonância interna de um sistema de individuação; faz parte de um estado de sistema. Esse vivo, que, simultaneamente,
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é mais e menos que a unidade, comporta
uma problemática interior e pode entrar como elemento em uma problemática mais vasta que seu próprio ser. A participação, para o indivíduo, é O fato de ele ser elemento em uma individuação mais vasta, por intermédio da carga de realidade pré-individual que o indivíduo contém, isto é, graças aos potenciais que detém. Toma-se, então, possível pensar a relação interior e exterior ao indivíduo como participação, sem apelar para novas substâncias. O psiquismo e o coletivo são constituídos por individuações produzidas após a individuação vital. O psiquismo é continuação da individuação vital em um ser que, para resolver sua própria problemática, é obrigado a intervir, por sua própria ação, como elemento do problema, como sujeito; o sujeito pode ser concebido como a unidade do ser, enquanto vivo individuado, e como elemento e dimensão do mundo, enquanto ser que se representa sua ação no mundo; os problemas vitais não são em relação à mediação exterfechados em si mesmos; sua axiomática aberta nll que o indivíduo vivo realisó pode ser saturada por uma seqüência indefiZII, o que permite ao vivo fa/,('1' comunicar uma ordem de nida de individuações sucessivas que sempre j4"'lIndczll cósmica (por exemintroduzem mais realidade pré-individual e inplo, 11 cnergia luminosa solar) corporam-na na relação com o meio; afetivida11IIIllII ordclll de gnmdeza in1"'1111101(1(' 111111', de e percepção se integram em emoção e ciên-
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cia que supõem um apelo a novas dimensões. No entanto, o ser psíquico não pode resolver em si mesmo sua própria problemática; sua carga de realidade pré-individual, ao mesmo tempo que ela se individua como ser psíquico que ultrapassa os limites do vivo individuado e incorpora o vivo em um sistema do mundo e do sujeito, permite a participação sob forma de condição de individuação do coletivo; a individuação sob forma de coletivo faz do indivíduo um indivíduo de grupo, associado ao grupo pela realidade pré-individual que traz consigo e que, reunida à de outros indivíduos, se individua em unidade coletiva. As duas individuações, psíquica e coletiva, são recíprocas uma em relação à outra; elas permitem definir uma categoria do transindividual, que contribui para a explicação da unidade sistemática da individuação interior (psíquica) c da individuação exterior (coletiva). O mundo psicossocial do transindividual não é o social bruto nem o interindividual; ele supõe uma verdadeira operação de individuação a partir de uma realidade préindividual, associada aos indivíduos e capaz de constituir uma nova problemática, tendo sua própria metaestabilidade; exprime uma condição quântica, correlativa de uma pluralidade de ordens de grandeza. O vivo é apresentado como ser problemático, simultaneamente superior e inferior à unidade. Dizer que o vivo é problemático é considerar o devir como uma dimensão do vivo: o vivo é conforme o devir, que opera lima mediação. O vivo é agente e teatro de individuação; seu devir é uma individuação permanente, ou melhor, uma seqüência de acessos de individuação, avançando de metaestabilidade em metaestabilidade; assim sendo, o indivíduo não é substância nem simples parte do coletivo: () coletivo intervém como resolução da problemática individual, o que significa que a base da realidade coletiva já está parcialmente contida ('m um indivíduo sob a forma da realidade pré-individual que permanece associada à realidade individuada; o que geralmente consideramos como relação, em razão da substancialização da realidade individual é, de fato, uma dimensão da individuação por que o indivíduo devém: a l't'lação com o mundo e com o coletivo é uma dimensão da individuação dll qual o indivíduo participa a partir da realidade pré-individual que se 11Idividua etapa por etapa. Logo, psicologia e teoria do coletivo estão ligadas: a ontogênese é qlle indica o que é a participação no coletivo e também o que é a opera~n.() psíquica, concebida como resolução de uma problemática. A índi-
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par de sensação e de tropismo,8 orientação do ser vivo em um mundo polarizado;
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ainda aqui é necessário desligar-se do esquema hilemórfico; não há uma sensação que seria uma matéria constituindo um dado a posteriori para as formas a priori da sensibilidade; as formas a priori são uma primeira resolução por descoberta da axiomática das tensões, resultante do afrontamento das unidades tropísticas primitivas; as formas a priori da sensibilidade não são a-prioris nem a-posterioris obtidos por abstração, mas as estruturas de uma axiomática que aparece em uma operação de individuação. Na unidade tropística já há o mundo e o vivo, mas o mundo figura aí unicamente como direção, como polaridade de um gradiente que situa o ser individuado em uma díade indefinida, a qual se estende a partir dele e na qual ele Particularmente, a relação ocupa o ponto mediano. A percepção, postecom o meio não poderia ser riormente a ciência, continuam a resolver essa considerada, antes e durante a inclividuação, como relação problemática, não só pela invenção dos quadros com um meio único e homoespaço-temporais, mas também pela constituigêneo: o próprio meio é sistema, grupamento sintético de ção da noção de objeto, que devém fonte dos duas ou várias escalas de reagradientes primitivos e que os ordena entre si Iidade, sem intercomunicação antes da inclividuação. em conformidade com um mundo. A distinção de a priori e a posteriori, repercussão do esquema " Noção introduzida por Loeb hilemórfico na teoria do conhecimento, encotiO estudo do comportamento utllmal, designando os fenôbre, com sua obscura zona central, a verdadeira tlWI!OSde crescimento, de operação de individuação, que é o centro do co1l1'l
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tentada por uma preexistência dos termos extremos, mas se desenvolve a partir de um estado médio primitivo que localiza o vivo e o insere no gradiente que dá um sentido à unidade tropística: a série é uma visã~ abstrata do sentido, segundo o qual a unidade tropística se orienta. E necessário partir da individuação, do ser apreendido em seu centro em conformidade com a espacialidade e com o devir, não de um indivíduo substancializado diante de um mundo estranho a eleY O mesmo método pode ser empregado para explorar a afetividade e a emotividade, que constituem a ressonância do ser em relação a si próprio e ligam o ser individuado à realidade pré-individual que lhe é associada, como a unidade tropística e a percepção o ligam ao meio. O psiquismo é feito de sucessivas individuações que permitem ao ser resolver os estados problemáticos correspondentes à permanente comunicação do maior e do menor que ele. Contudo, o psiquismo não pode resolver-se ao nível do ser individuado isolado; ele é o fundamento da participação em uma individuação mais vasta, a do coletivo; o ser individual isolado, que se coloca a si próprio em questão, 9 Com isso queremos dizer que não pode ultrapassar os limites da angústia, ope- o a-priori e o a-posteriori não ração sem ação, emoção permanente que não se encontram no conhecimento; não são forma nem matéchega a resolver a afetividade, experimentação ria do conhecimento, pois não pela qual o ser individuado explora suas dimen- são conhecimento, mas termos extremos de urna díade sões de ser, sem as poder ultrapassar. Ao coletivo, pré-individual e, conseqüen-
apreendido como axiomática que resolve a problemática psíquica, corresponde a noção de transindividual. Tal conjunto de reformas das noções é sustentado pela hipótese de que uma informação nunca é relativa a uma realidade única e homogênea, mas a duas ordens em estado de disparation: a informação, quer ao nível da unidade tropística, quer ao nível do transindividual, jamais é depositada em uma forma que pode ser dada; ela é a tensão entre dois reais díspares, a signifi-
cação que surgirá quando uma operação de individuação descobrir a dimensão segundo a qual dois reais (Hsparespodem tornar-se sistema; portanto, a informação é um início de individuação, uma exigên-
temente, pré-noética. A ilusão de formas a-priori procede da preexistência, no sistema pré-inclividual, de condições de tota-lidade, cuja climensão é superior à do indivíduo em processo de ontogênese. Inversamente, a ilusão do a-posteriori provém da existência de urna realidade cuja ordem de grandeza, quanto às modificaçôes espaço-temporais, é inferior à do indivíduo. Um conceito não é a-priori nem a-posteriori, mas a-praesenti, pois ele é uma comunicação informativa e interatlvlt entre o que é maior e o que 6 menor que o indivíduo.
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('ia de individuação, nunca é uma coisa dada; não há unidade e identidade da informação, pois a informação não é um termo; ela supõe tensão de um sistema de ser; só pode ser inerente a uma problemática; a informação é aquilo por intermédio de que a incompatibilidade do sistema não resolvido devém dimensão organizadora na resolução; a informação supõe uma mudança de fase de um sistema, porque ela pressupõe um primeiro estado ~ré-individual que se individua conforme a organização descoberta; a mformação é a fórmula da individuação, fórmula que não pode preexistir a esta individuação; poderíamos dizer que a informação é sempre no presente, atual, porque ela é o sentido segundo o qual um sistema se individua.1O A concepção do ser sobre a qual repousa este estudo é a seguinte: o ser não possui uma unidade de identidade, que é a do estado estável em que nenhuma transformação é possível, o ser possui uma unidade transdutora, isto é, ele pode defasar-se em relação a si próprio, ultrapassar a si próprio de um lado e de outro de seu centro. O que consideramos relação ou dualidade de princípios é, de fato, escalonamento do ser, que é mais que unidade e mais que identidade; o devir é uma dimensão do ser, não o que lhe advém conforme uma sucessão que seria sofrida por um ser primitivamente dado e substancial. A indiviEssa afirmação não leva a duação deve ser apreendida como devir do ser, contestar a validade das teoe não como modelo do ser que esgotaria sua rias quantitativas da informa"fi O Slgnl lcação. ser individuado não é todo o ser ção e das medidas da complexidade, mas supõe um estado nem o ser primeiro: em vez de apreender a indivi10
fundamental - o do ser préindividual - anterior a qualquer dualidade do emissor e do receptor, portanto, a qualquer mensagem transmitida. O que subsiste deste estado fundamental, no caso clássico da informação transmitida como mensagem, não é a fonte da informação, mas a condi-
duação a partir do ser individuado, é necessário ahrer ender O ser individuado a partir da individuação e a individuação a partir do ser pré-individua4 repartid d
segun O as várias ordens de grandeza. Logo, a intenção desse estudo é estudar as formas, modos e graus da individuação a fim de reO
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colocar o indivíduo no ser, consoante os três níveis: físico, vital, psicossocial. Em lugar de sub por su stâncias para explicar a individuação, consideramos os diferentes regimes de individuação como fundamento de domínios tais
tll1'lIlIl~nllpl'lrnell'll",
como matéria, vida, espírito, sociedade. A separação, o escalonamento, as relações desses do-
Çno primordial sem a qual não 111\ efeito de informação, logo,
IIlIdllde informação: a metaI'HllIlJllldlldedo receptor, quer 1r'lIlcde ser técnico ou de IlIdlvlduo vivo, Podemos no11111111' I'NllIIntimnllçi'lo de "in-
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mínios aparecem como aspectos da individuação conforme suas diferentes modalidades; as noções de substância, de forma e de matéria são substituídas pelas noções mais fundamentais de informaçâo primeira, de ressonância interna, de potencial energético, de ordens de grandeza. Para que essa modificação de noções seja possível é necessário, todavia, fazer intervir simultaneamente um método e uma noção novos. O método consiste em não tentar compor a essência de uma realidade por meio de uma relação conceitual entre dois termos extremos, e em considerar qualquer verdadeira relação como tendo posição de ser. A relação é uma modalidade do ser; é simultânea relativamente aos termos de que assegura a existência. Uma relação deve ser apreendida como relação no ser, relação do ser, maneira de ser e não como simples relação entre dois termos que poderíamos c()nhec(~r de modo adequado mediante conceitos, porque teriam uma exisl .nda detivamente separada, Porque os termos são concebidos como suustClIIcias é que a relação é relação de termos, e o ser é separado em lC'l'IllOS porque o ser é, primitiva e anteriormente a qualquer exame da individua~~ào, concebido como substância. Em contrapartida, se a subst(lncia deixa de ser o modelo do ser é possível conceber a relação como nilo-identidade do ser em relação a si próprio, inclusão no ser de uma r ulidad' que não é só idêntica a ele, de maneira que o ser enquanto S 'I" unleriormente a qualquer individuação, pode ser apreendido como mais que unidade e mais que identidadeY Tal método supõe um postulado de natureza ontológica: ao nível do ser apreendido antes de qualquer individuação, o princípio do terceiro excluído e o princípio de identidade não se aplicam; esses princípios aplicam-se unicamente ao s r já individuado, e definem um ser empobrecido, separado em meio e indivíduo; não se aplicam, então, ao todo do ser, isto é, ao conjunto formado ulteriormente por indivíduo e meio, mas somente àquilo que, do ser pré-individual, se tornou indivíduo. Nesse sentido, a lógica clássica não pode ser empregada para pensar a individuação, pois ela obriga a pensar a operação de individuação com conceitos e com relações entre conceitos, que só se aplicam aos resultados da operação de Particularmente, a pluralidaindividuação considerados de maneira parcial. de das ordens de grandeza, a Do emprego desse método, que considera o ausência primordial de comunicação interativa entre estas princípio de identidade e o princípio do tercei- ordens faz parte de tal aprero excluído como excessivamente estreitos, li- ensão do ser, II
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bera-se uma noção que possui uma multidão de aspectos e de domínios de aplicação: a de transdução. Por transdução entendemos uma operação física, biológica, mental, social, por que uma atividade se propaga gradalivamente no interior de um domínio, fundando esta propagação sobre lima estruturação do domínio operada de região em região: cada região de estrutura constituída serve de princípio de constituição à região seguinte, de modo que uma modificação se estende progressivamente ao mesmo tempo que esta operação estruturante. Um cristal que aumenta e cresce, a partir de um germe muito pequeno, em todas as direções em sua água-mãe, fornece a imagem mais simples da operação transdutora: cada camada molecular já constituída serve de base estruturante à camada em formação; o resultado é uma estrutura reticular amplificante. A operação transdutora é uma individuação em progresso; no domínio físico, ela pode efetuar-se de maneira mais simples sob forma de iteração progressiva; mas em domínios mais complexos, como os domínios de metaestabilidade vital ou de problemática psíquica, ela pode avançar com um passo constantemente variável e estender-se em um domínio de heterogeneidade; há transdução quando há atividade, estrutural e funcional, partindo de um centro do ser e estendendo-se em diversas direções a partir desse centro, como se múltiplas dimensões do ser aparecessem em torno desse centro; a transdução é aparição correlativa de dimensões e de estruturas em um ser em estado de tensão préindividual, isto é, em um ser que é mais que unidade e mais que identidade, e que ainda não se defasou em relação a si próprio em múltiplas, dimensões. Os termos extremos, atingidos pela operação transdutora, não preexistem a essa operação; seu dinamismo provém da tensão primitiva do sistema do " Ele exprime, ao contrário, a ser heterogêneo que se defasa e que desenvolve heterogeneidade primordial dimensões segundo as quais ele se estrutura; ele de duas escalas de realidade, uma maior que o indivíduo não procede de uma tensão entre os termos que o sistema de totalidade metaserão atingidos e depositados nos limites extreeslável -, a outra menor que "Ie, como uma matéria, Entre mos da transdução. 12 A transdução pode ser uma estas duas ordens primordiais operação vital; em particular, exprime o senti
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a verdadeira maneira de progredir da invenção, que não é indutiva nem dedutiva, mas transdutora, isto é, que corresponde a uma descoberta das dimensões segundo as quais uma problemática pode ser definida; é a operação analógica no que ela tem de válida. Essa noção pode ser empregada para pensar os diferentes domínios de individuação: ela se aplica a todos os casos em que uma individuação se realiza, manifestando a gênese de um tecido de relações fundadas sobre o ser. A possibilidade de empregar uma transdução analógica para pensar um domínio de realidade indica que este domínio é efetivamente a sede de uma estruturação transdutora. A transdução corl'esponde a essa existência de relações que nascem quando o ser pré-individual se individua; ela exprime a individuação e permite pensá-la, logo, é uma noção simultaneamente metafísica e lógica; aplica-se à ontogênese e é a pr6pria ontogênese. Objetivamente, ela permite compreender as condições sistemáticas da individuação, a ressonância interna,':i a problemática psíquica. Logicamente, pode ser empregada como fundamento de uma nova espécie de paradigmatismo analógico, para passar da individuação fIsica à individuação orgânica, da individuação orgânica à individuação psíquica e da individuação psíquica ao transindividual subjetivo e objetivo, o que define o plano dessa pesquisa. Poderíamos afirmar, sem dúvida alguma, que a transdução não poderia ser apresentada como procedimento lógico possuindo valor de prova; aliás, não queremos dizer que a transdução é um procedimento lógico no sentido corrente do termo; ela é um procedimento mental, e mais ainda que um procedimento uma maneira de progredir do espírito que descobre. Essa maneira de progredir consiste em seguir o ser em sua gêneJe, em efetuar a gênese do pensamento ao mesmo tempo que ocorre ~ênese do objeto. Nessa pesquisa, ela é chamada a representar um papel que a dialética não pode representar, porque o estudo da operação dc individuação não parece corresponder à aparição do negativo como Negunda etapa, mas a uma imanência do negativo na condição primeira ,~()bforma ambivalente de tensão e incompatibilidade; isso é o que há de mais positivo no 13 A ressonância interna é o c'Nladodo ser pré-individual, isto é, a existência modo mais prirrútivo da cod(~potenciais, que é também a causa da incom- municação entre realidades de ordens diferentes; ela conlém Plllibilidade e da não-estabilidade deste estado: um duplo processo de llmplI ficação e de condensuçllo. li ncgativo é primeiro como incompatibilidade
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olllogenética, mas ele é a outra face da riqueza em potenciais: logo, não é um negativo substancial; jamais é etapa ou fase, e a individuação não ó síntese, retorno à unidade, mas defasagem do ser a partir de seu centro pré-individual de incompatibilidade potencializada, Nessa perspectiva ontogenética, o próprio tempo é considerado como expressão da
dimensionalidade
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do ser individuando-se,
Conseqüentemente, a transdução não só é maneira de progredir do espírito, mas também intuição, visto que ela é aquilo por que uma estrutura aparece em um domínio de problemática, fornecendo a resolução dos problemas levantados, Mas, ao contrário da dedução, a transdução não vai procurar alhures um princípio para resolver o problema de um domínio: ela extrai a estrutura resolutiva das próprias tensões deste domínio, da mesma maneira que a solução supersaturada cristaliza-se graças a seus próprios potenciais e conforme a espécie química que contém, não pela contribuição de alguma forma estrangeira, Ela também não é comparável à indução, pois a indução conserva realmente os caracteres dos termos de realidade compreendidos no domínio estudado, extraindo as estruturas da análise destes próprios termos, mas só conserva o que há de positivo, isto é, o que há de comum a todos os termos, eliminando o que estes têm de singular; a transdução, ao contrário, é uma descoberta de dimensões, as dimensões de cada um dos termos que o sistema faz comunicar, de tal maneira que a realidade completa de cada um dos termos do domínio possa vir a ordenar-se sem perda, sem redução, nas novas estruturas descobertas; a transdução resolutiva opera a inversão do negativo em positivo: aquilo por que os termos não são idênticos uns aos outros, aquilo por que são díspares (com o sentido que este termo ganha na teoria da visão) é integrado ao sistema de resolução e devém condição de significação; não há empobrecimento da informação contida nos termos; a transdução caracteriza-se pelo fato de o resultado dessa operação ser um tecido concreto que compreende todos os termos iniciais; o sistema resultante é feito de concreto, e compreende todo o concreto; a ordem transdutora conserva todo o concreto e caracteriza-se pela conservação da informação, enquanto a indução reclama uma perda de informação; à semelhança da progressão dialética, a transduçdo conserva e integra os aspectos opostos; à diferença da progressão dialética, a transdução não supõe a existência de um tempo prévio como quudro em que a gênese se desenrola, o próprio tempo sendo solução,
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dimensão da sistemática descoberta: o tempo sai do pré-individual,
da mesma maneira que as outras dimensões segundo as quais a individuação se efetua, 14
Ora, para pensar a operação transdutora, que é o fundamento da individuação em seus diversos níveis, a noção de forma é insuficiente. A noção de forma, a de substância ou a de relação, como relação posterior à existência dos termos, fazem parte do mesmo sistema de pensamento: estas noções foram elaboradas a partir dos resultados da individuação; podem apreender unicamente um real empobrecido, sem potenciais, e, portanto, incapaz de individuar-se. A noção de forma deve ser substituida pela de informação, a qual supõe a existência de um sistema em estado de equilíbrio metaestável podendo individuar-se; a informação, à diferença da forma, jamais é um termo único, mas a significação que surge de uma "disparation", A antiga noção de forma, tal como a libera o esquema hilemórfko, é excessivamente independente de qualquer noção de sistema e de metaestabilidade. A que foi dada pela Teoria da Forma comporta, ao contrário, a noção de sistema e é definida como o estado para o qual o sistema tende quando encontra seu equilíbrio: ela é uma resolução de tensão. Infelizmente, um paradigmatismo físico sumariíssimo levou a Teoria da Forma a considerar exclusivamente o estado de equilíbrio estável, como estado de equilíbrio de um sistema que pode resolver as tensões: a Teoria da Forma ignorou a metaestabilidade. Desejaríamos retomar a Teoria da Forma e mostrar, mediante a introdução de uma condição quântica, que os problemas propostos Essa operação é paralela à pela Teoria da Forma não podem ser diretamente da individuação vital: um veresolvidos pelo emprego da noção de equilíbrio getal institui uma mediação, ('stável, mas unicamente utilizando a de equilí- pelo emprego da energia luI)rio metaestável; então, a Boa Forma não é mais minosa recebida na fotossíntese, entre uma ordem cósmi" forma simples, a forma geométrica pregnante, ca e uma ordem infra-molecular, classificando e repartindo llIas a forma significativa, isto é, a que estabelece lima ordem transdutora no interior de um siste- as espécies químicas contidas no solo e na atmosfera. Ele é IIIlI. de realidade que comporta potenciais. Essa um núcleo interelementar, e boa forma é que mantém o nível energético do desenvolve-se como ressonância interna deste sistema préI4lslema, conserva seus potenciais, compatibiliindividual feito de duas cama,.,",!ldo-os:ela é a estrutura de compatibilidade e das de realidade primitivamente sem comunicaç!lo, () d., viabilidade, é a dimensionalidade inventada núcleo interelementar fll1. 11m Nt'gundo a qual há compatibilidade sem degra- trabalho intra-clcmcnlar, 14
II(i.
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dação.lr. A noção de
Forma merece, então, ser substituída pela de infor-
mação. No decurso desta substituição, a noção de informação jamais deve ser reduzida aos sinais ou suportes ou veículos de informação, como a leoria tecnológica da informação, inicialmente extraída por abstração da tecnologia das transmissões, tende a fazê-lo. Logo, a noção pura de forma deve ser salva duas vezes de um paradigmatismo tecnológico sumariíssimo: uma primeira vez, relativamente à cultura antiga, por causa do uso redutor que é feito desta noção no esquema hilemórfico; uma segunda vez, no estado de noção de informação, para salvar a informação como significação da teoria tecnológica da informação, na cultura moderna. Pois nas sucessivas teorias do hilemorfismo, da Boa Forma, em seguida da informação, a visada é exatamente a mesma: a que procura descobrir a inerência das significações no ser, esta inerência deve ser descoberta na operação de individuação. Assim, um estudo da individuação pode tender para uma reforma das noções filosóficas fundamentais, pois é possível considerar a individuação como aquilo que, do ser, deve ser conhecido em primeiro lugar. Antes mesmo de perguntar por que é ou não legítimo fundar julgamentos sobre os seres, devemos considerar que o ser se diz em dois sentidos: em um primeiro sentido, fundamental, o ser é enquanto é; mas em um segundo sentido, sempre sobreposto ao primeiro na teoria lógica, o ser é o ser enquanto individuado. Se fosse verdade que a lógica só funda as enunciações relativas ao ser após a individuação, uma teoria do ser anterior a toda lógica deveria ser instituída; essa teoria poderia servir de fundamento para a lógica, porque, de antemão, nada prova que o ser seja individuado de uma única maneira possível; se existissem diversos tipos de individuação, deveriam existir também diversas lógicas, cada uma correspondente a um tipo defmido de individuação. A classificação das ontogêneses permitiria pluralizar a lógica com um fundamento válido de pluralidade. Quanto à axiomatização do conhecimento do ser pré-individual, ela não pode estar contida em uma lógica prévia, pois nenhuma norma, nenhum sistema destacado de seu conteúdo podem ser definidos: só a indiviPor conseqüência, a forma duação do pensamento pode, ao se realizar, IIplll'CCC da mesma maneira qUI' u. comunicação ativa - a acompanhar a individuação de seres outros que !'(lHH(lIInnclll inlerna que opeo pensamento; portanto, não é um conhecimen111 11 Itullvlduuçllo: ela apare('!' ('11111 o IlIdlvlduo, to imediato, nem um conhecimento mediato que II
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podemos ter da individuação, mas um conhecimento que é uma operação paralela à operação conhecida; não podemos, no sentido habitual do termo, conhecer a individuação; podemos unicamente individuar, individuar-nos e individuar em nós; logo, esta apreensão à margem do conhecimento propriamente dito é uma analogia entre duas operações, o que é um certo modo de comunicação. A individuação do real, exterior ao sujeito, é apreendida pelo sujeito graças à individuação analógica do conhecimento no sujeito; mas a individuação dos seres não sujeitos é apreendida pela individuação do conhecimento e não só pelo conhecimento. Os seres podem ser conhecidos mediante o conhecimento do sujeito, mas a individuação dos seres só pode ser apreendida mediante a individuação do conhecimento do sujeito. Tradução IVANA
MEDEIROS
A PROPÓSITO DE SIMONDON* • Publicado
sob o título de "Gilbert
Simolldllll,
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illdivíduo
e sua gênese
. físico-biológica",
na
de la France et de l'étTaTI/iCT,VIII. Cl.vl, li." 1-:1,janeiro-março de HHi6, pp. 11511R. A obra de G. Simondon (1924- W!l!J), l:il/dirJidl/ ti .111 lienése physico-biologique, apareceu em
Revue philosophique
1964 (Paris, PUF, coleção "Epiméthée"). lhllll SI' dll pllhlicação parcial da tese de doutorado de Estado, L'individuation à la lumiere des noi,io/l.1 di' .fimlll' ti, rl'information, defendida em 1958. A segunda parte só foi publicada em I!J!l!J, 1'('111 AlIlJln, ('1I1ll o tílulo L'individuation psyehique et colieetive. [Nota de David Lapoujade, orgalli/.lldlll' dll ('III,'IOIH'II I:fle f)éserte et autres textes, a sair no Brasil pela Ed. Iluminuras, incluindo o pl'p.s(,lIll' I('xlll di' IlPll'lIzc. NEI [O indivíduo e sua gênese ftsico-biológiea ganhou uma nova edição I'ruIlCl'SII « :1'('lIohl(',,I. Mill()lI, I!J9!í) que incorpora passagens da tese de doutorado não presenles 11I1.~ jlllhllnll;I;(,s PI'I'I'I·c!('nll·s. NTI .
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DELEUZE
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de individuação é respeitado, julgado venerável, mas parece que a filosofia moderna se absteve até agora de retomar o problema por sua conta. As conquistas da física, da biologia e da psicologia nos levaram a relativizar, a atenuar o princípio, mas não a reinterpretá-Io. Já é um grande mérito de Gilbert Simondon apresentar uma teoria profundamente original da individuação, teoria que implica toda uma filosofia. Simondon parte de duas observações críticas: 1°)Tradicionalmente, o princípio de individuação é reportado a um indivíduo já pronto, já constituído. Pergunta-se apenas o que constitui a individualidade de um tal ser, isto é, o que caracteriza um ser já individuado. E porque se "mete" o indivíduo após a individuação, "mete-se" no mesmo lance o princípio de individuação antes da operação de individuar, acima da própria individuação; 2°) Por conseguinte, "mete-se" a individuação em toda parte; faz-se dela um caráter coextensivo ao ser, pelo menos ao ser concreto (mesmo que seja ele divino). Faz-se dele todo o ser e o primeiro momento do ser fora do conceito. Este erro é correlativo do precedente. Na realidade, o indivíduo só pode ser contemporâneo de sua individuação e, a individuação, contemporânea do princípio: o plincípio deve ser verdadeiramente genético, não simples princípio de reflexão. E o indivíduo não é somente resultado, [121] porém meio de individuação. Contudo, precisamente deste ponto de vista, a individuação já não é coextensiva ao ser; ela deve representar um momento que nllo é nem todo o ser nem o primeiro. Ela deve ser situável, determinávnl em relação ao ser, num movimento que nos levará a passar do préIndlvldunl ao indivíduo. 120 PRINCÍPIO
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A condição prévia da individuação, segundo Simondon, é a existência de um sistema metaestável. Foi por não ter reconhecido a existência de tais sistemas que a filosofia caiu nas duas aporias precedentes. Mas o que define essencialmente um sistema metaestável é a existência de uma "disparação", ao menos de duas ordens de grandeza, de duas escalas de realidade díspares, entre as quais não existe ainda comunicação interativa. Ele implica, portanto, urna diferença fundamental, como um estado de dissimetria. Todavia, se ele é sistema, ele o é na medida em que, nele, a diferença existe como energia potencia4 como diferença de potencial repartida em tais ou quais limites. Parece-nos que a concepção de Simondon pode ser, aqui, aproximada de uma teoria das quantidades intensivas; pois é em si mesma que cada quantidade intensiva é diferença. Uma quantidade intensiva compreende uma diferença em si, contém fatores do tipo E-E' ao infinito, e se estabelece, primeiramente, entre níveis díspares, entre ordens heterogêneas que só mais tarde, em extensão, entrarão em comunicação. Ela, assim como o sistema metaestável, é estrutura (não ainda síntese) do heterogêneo. J á se nota a importância da tese de Simondon. Descobrindo a condição prévia da individuação, ele distingue rigorosamente singuléiridade e individualidade, pois o metaestável, definido como ser pré-individual, é perfeitamente provido de singularidades que correspondem à existência e à repartição dos potenciais. (Não é justamente isso que se tem na teoria das equações diferenciais, na qual a existência e a repartição das "singula!idades" são de natureza distinta da forma "individual" das curvas integrais em sua vizinhança?) Singular sem ser individual, eis o estado do ser pré-individual. Ele é diferença, disparidade, disparação. E entre as mais belas páginas do livro há aquelas nas quais Simondon mostra como a disparidade, como primeiro momento do ser, como momento singular, é efetivamente suposta por todos [122] os outros estados, sejam eles de unificação, de integração, de tensão, de oposição, de resolução de oposições... etc. Notadamente contra Lewin e a Gestaltheorie, Simondon sustenta que a idéia de disparação é mais profunda do que a de oposição, que a idéia de energia potencial é mais profunda do que a de campo de forças: ''Antes do espaço hodológico há esse acavalamento de perspectivas que não permite apreender o obstáculo determinado, porque não há. dimensões em relação às quais o conjunto único se ordenaria; a flue/.uatio anim~ que precede a ação determinada, não é hesitação entr v(lrios objetos ou mesmo entre diversas vias, mas recobrimento movent(\
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de conjuntos incompatíveis, quase semelhantes e, todavia, díspares" (p. :l2:J)....Mundo imbricado de singularidades discretas, tanto mais imbricado quanto mais estas não estejam ainda se comunicando ou não estejam tomadas numa individualidade: é este o primeiro momento do ser. Como vai a individuação proceder a partir desta primeira condição? Dir-se-á tanto que ela estabelece uma comunicação interativa entre as ordens díspares de grandeza ou de realidade; ou que ela atualiza a energia potencial ou integra as singularidades; ou que ela resolve oproblema posto pelos díspares, organizando uma dimensão nova na qual eles formam um conjunto único de grau superior (por exemplo, a profundidade no caso das imagens retinianas). No pensamento de Simondon, a categoria do "problemático" ganha uma grande importância, justamente na medida em que ela está provida de um sentido objetivo: com efeito, ela.já não mais designa um estado provisório do nosso conhecimento, um conceito subjetivo indeterminado, mas um momento do ser, o primeiro momento pré-individual. E, na dialética de Simondon, o problemático substitui o negativo. A individuação, portanto, é a organização de uma solução, de uma "resolução" para um sistema objetivamente problemático. Esta resolução deve ser concebida de duas maneiras complementares. De um lado, como ressonância interna, sendo esta o "modo mais primitivo da comunicação entre realidades de ordem diferente" (e acreditamos que Simondon tenha conseguido fazer da "ressonância interna" um conceito fIlosófico extremamente rico, suscetível de toda sorte de aplicações, mesmo e sobretudo em psicologia, no domínio da afetividade). Por outro lado, como informação, [123] sendo que esta, por sua vez, estabelece uma comunicação entre dois níveis díspares, um definido por uma forma já contida no receptor, o outro definido pelo sinal trazido do exterior (reencontramos aqui as preocupações de Simondon concernentes à cibernética e toda uma teoria da "significação" em suas relações com o indivíduo). De toda maneira, a individuação aparece bem como o advento de um novo momento do Ser, o momento do ser fasado, acoplado a si mesmo. "í~a individuação que cria as fases, pois as fases são tão-somente esse desenvolvimento de uma parte e outra do próprio ser... O ser préindividual é o ser sem fases, ao passo que o ser • I't\glnll 20!) na referida ediapós a individuação é o ser fasado. Uma tal con~nlldo !!)!)!i (NT). cepção identifica, ou pelo menos reata individua•• Ihicl(.tn, p. 2,12 (NT). ção e devir do ser" (p. 276).**
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Até agora indicamos apenas os princípios mais gerais do livro. No detalhe, a análise organiza-se em torno de dois centros. Primeiramente, um estudo de diferentes domínios de individuação; notadamente, as diferenças entre a individuação física c a individuação vital são objeto de uma profunda exposição. O regime de ressonância interna aparece como diferente nos dois casos; o indivíduo físico contenta-se em receber informação de uma só vez e reitera uma singularidade inicial, ao passo que o vivente recebe, sucessivamente, vários aportes de informação e contabiliza várias singularidades; e, sobretudo, a individuação física se faz e se prolonga no limite do corpo, por exemplo, do cristal, ao passo que o vivente cresce no interior e no exterior, sendo que o conteúdo todo do seu espaço interior mantém-se "topologicamente" em contato com o conteúdo do espaço exterior;* (sobre esse ponto, Simondon escreve um capítulo admirável, "topologia e ontogênese"). É de estranhar que Simondon não tenha levado mais em conta, no domínio da biologia, os trabalhos da escola de Child sobre os gradientes e os sistemas de resolução no desenvolvimento do ovo, DL pois esses trabalhos sugerem a idéia de uma individuação por intensidade, a idéia de um campo intensivo de individuação, que confirmaria suas teses em muitos pontos. Porém, isso ocorre, sem dúvida, porque Simondon não quer [124] ater-se a uma determinação biológica da individuação, mas precisar níveis cada vez mais complexos: assim, há uma individuação propriamente psíquica, que surge, precisamente, quando as funções vitais já não bastam para resolver os problemas postos ao vivente, e quando uma nova carga de realidade pré-individual é mobilizada numa nova problemática, em um novo processo de * Há, certamente, um erro de solução (cf. uma teoria muito interessante da impressão no original francês afetividade). E o psiquismo, por sua vez, abre- ao repetir "espaço interior" (intérieur) neste ponto. O que se a um "coletivo transindividual". Simondon escreve no capítuVê-se qual é o segundo centro das análises lo "topologia e ontogênese" (a de Simondon. Em certo sentido, trata-se de uma que Deleuze fará referência em seguida) não deixa visão moral do mundo, pois a idéia fundamen- logo dúvidas a esse respeito (cf. pp. tlll é que o pré-individual permanece e deve 222-7 da ed. de 1995) (NT). I)prmanecer associado ao indivíduo, "fonte de DL Sobre esta questão, Deleu. pstados metaestáveis futuros". O estetismo é então ze remete invariavelmente li de Dalcq. L'Oeu[ el .llm condenado como o ato pelo qual o indivíduo se obra dynamisme organisat6ur. 1'111'11: Ii(~parada realidade pré-individual na qual ele A1bin Michel, W41 (NT).
1:24.
GILLES
DELEUZE
mergulha, fecha-se numa singularidade, recusa comunicar-se e provoca, de certa maneira, uma perda de informação. "Há ética na medida em que há informação, isto é, uma significação encimando uma disparação de elementos de seres e fazendo, assim, com que seja também exterior aquilo que é interior" (p. 297).* A ética percorre, portanto, uma espécie de movimento que vai do pré-individual ao trans-individual pela individuação. (O leitor se pergunta, todavia, se, em sua ética, Simondon não restaura a forma de um Eu [Moi] que ele, entretanto, havia conjurado em sua teoria da disparidade ou do indivíduo concebido como ser defasado e polifasado.) Em todo caso, poucos livros levam-nos, como este, a sentir a que ponto um filósofo pode inspirar-se na atualidade da ciência e, ao mesmo tempo, porém, reencontrar os grandes problemas clássicos, transformando-os, renovando-os. Os novos conceitos estabelecidos por Simondon parecem-nos de uma extrema importância: sua riqueza e sua originalidade impressionam vivamente ou influenciam o leitor. E o que Simondon elabora é toda uma ontologia, segundo a qual o Ser nunca é Uno: pré-individual, ele é mais que um metaestável, superposto, simultâneo a si mesmo; individuado, ele é ainda múltiplo porque "polifasado", "fase do devir que con* Página 245 na edição de 1995 (NT). duzirá a novas operações".
DA LINGUAGEM ZAUM À REDE TECNOMAyA .
Tradução LUIZ
B. L.
ORLANDI
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FRANCO
BERARDI
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escreveu: "Poderia introduzir-se na comunicação um caractere universal, algo melhor do que os caracteres usados pelos chineses. Poderemos empregar pequenas figuras no lugar das palavras, no sentido de representar coisas visíveis e também invisíveis. Isto serviria para a comunicação com nações distantes, mas também poderia ser utilizado na comunicação ordinária. O emprego dessa forma de escritura seria muito útil para o enriquecimento da imaginação e para a produção de pensamentos". A caracteristica universalis, como simbolização translingüística, é uma questão de grande atualidade, mais hoje em dia do que na época de Leibniz, já que uma comunicação intercultural planetária faz-se cada vez mais necessária. EIBNIZ
TRANSMENTALISMO
SIMBOLISTA
A poesia simbolista trabalha sobre a mesma intuição: deve existir uma substância translingüística na comunicação, uma vibração do ser que se possa perceber e comunicar com outros instrumentos, que não as palavras. A poética simbolista tenta superar o limite lingüístico da compreensão inter-humana, e procura uma forma de comunicação que seja livre da convenção semântica. O conceito central da es~ola poética simbolista é a noção de linguagem transmental. Mallarmé busca uma poética capaz de transmitir emoções em vez de IIlgnif1cados. A palavra torna-se uma corda musical que quer vibrar em
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uníssono com o seu mundo. A concepção mallarmiana de emoção deve ser entendida para além do contexto romântico e da sua sugestão decadente. Mallarmé escreve que o simbolismo é "uma poética totalmente nova, que pode pintar não a coisa, mas o efeito que ela produz". Pintár, diz ele, não a coisa, mas o efeito produzido na mente daquele que recebe a mensagem poética. Estamos distantes da aura romântica: o efeito emocional do qual Mallarmé está falando é a transmissão do estado mental. A ação exercida pela cor, pelo fonema, por lima imagem ou por uma palavra tem o propósito de produzir uma mutação mental, uma emoção neurológica ou uma telepatia sinestésica. Aqui deve-se mencionar o poeta russo Velímir Khlébnikov, que pertenceu ao movimento futurista e foi amigo de Maiakóvski nos anos hudetljane. Dentre os futuristas, Khlébnikov pode ser visto como o poeLamais próximo do espírito da pesquisa simbolista. De resto é preciso dizer que as afinidades entre estas duas tendências literárias (simbolismo e futurismo) são muito mais interessantes do que as suas diferen<,:as.Khlébnikov, que adorava viajar de trem de um vilarejo a outro da sua terra russa, e que amava os modos de vida arcaicos e freqüentava as práticas mágico-xamânicas da Rússia tradicional, queria criar uma linguagem virtualmente planetária, capaz de ser entendida para além das fronteiras nacionais e lingüísticas. Chamou Zaum esta sua linguaKem, palavra que pretendia significar uma linguagem emocional translingüística. Angelo Maria Ripellino, erudito italiano que escreveu livros belíssi1II0Ssobre a literatura eslava, aponta que "o futurismo tem duas faces. I}c um lado ele enfatiza a tecnologia, os arranha-céus, as máquinas; do outro é movido pelos trogloditas, pelos selvagens, pelas cavernas, pela 1,( lade .da pedra; e assim opõe a dormência de uma Ásia pré-lógica ao II'C~neSlda metrópole moderna européia". I Com efeito estamos num terreno ambíguo, aberto em duas frentes diferentes. A linguagem Zaum foi seduzida pelas formas pré-simbólicas d,1 comunicação, pela vocalidade original pro!olingüística, a linguagem das emoções originais. Angelo Maria Ripellino. Mns ao mesmo tempo está predisposta a imagi- Tentativa di esplorazione dei 11111' a possibilidade de uma comunicação pós- continente Khlebnikov, In: Saggi informa di ballal6. 'fil!'1 n1, _llIll>ólica, ou seja, uma tecnologia telepática. 1978, p. 93. 1
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Neste sentido, vemos simbolismo e futurismo convergindo na direção da imaginação das utopias lingüísticas, fundindo o arcaico e o futuro. Khl(~bnikov estava fascinado pelas encantadoras virtudes dos sons, pelas feitiçarias fonemáticas. "Crença na bruxaria dos fonemas, interesse na cultura xamânica, pesquisa de uma linguagem ritual ... ; esta é a inlluência simbólica, que considera a poesia uma ação mágica, espécie de mensagem oracular. Vários poemas de Bal'mont, Bel'ij, Blok são concebidos como significados de uma ação mágica, semelhantes aos ungüentos dos feiticeiros, aos cérebros dos animais, à pele de cobra, às folhas de beladona ou figueira-brava e assim por diante." 2 Khlébnikov volta as costas para o mundo europeu moderno, não obstante os seus flertes futurísticos, preferindo a Ásia eterna, e mergulha na "noite etimológica", nas profundezas de um passado que tende em direção às origens imaginárias. Neste pano de fundo mágico, ele vislumbra a possibilidade de um efeito telepático de transmissão do significado, sem a mediação de um "significante" convencional, através da estimulação direta das emoções neurológicas correspondentes ao significado. O caminho de Khlébnikov conduz a uma comunicação pré-simbólica, mas esta estrada acaba convergindo com a da busca pós-simbólica, que hoje, à luz do desenvolvimento das tecnologias de realidade virtual, constituem o verdadeiro problema. Khlébnikov parece ser o ponto de convergência das duas modalidades comunicativas: a arcaica-ritual pré-simbólica e a tecnológico-virtual pós-simbólica. O objetivo da linguagem transmental de Khlébnikov é encontrar uma dimensão não convencional de comunicação através de uma viagem de regresso ao território noturno das etimologias e das origens. A partir de Khlébnikov podemos hoje progredir na direção da mesma finalidade, através das ousadas experimentações das técnicas telepáticas. SHABDA
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E MANTRA
A pesquisa simbolista está explicitamente conectada às buscas místicas de todos os tempos, porque o misticismo conhece o caminho para a dimensão não convencional da comunicação. Nos Fundamentos do Misticismo Tibetano, Lama i 111111"111,p. 4,. Anagarika Govinda escreve: ''A natureza essen-
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cial das palavras não se esgota no seu significado presente, e nem sua importância está limitada à sua utilidade como transmissoras de pensamentos e idéias". 3 Anagarika Govinda está perfeitamente consciente do fato de que, neste campo, o simbolismo budista mostra uma profunda coincidência com o simbolismo poético, e observa: ''A magia que a poesia exerce sobre nós deve-se a esta qualidade do ritmo [... ] o nascimento da linguagem foi o nascimento da humanidade mesma. Cada palavra era o equivalente sonoro de uma experiência, conectada a um estímulo interno e externo". 4 A consistência material do signo poético (isto é, do som, do ritmo, da vibração) produz sua eficácia e a capacidade para criar efeitos mentais. Referindo-se à tradição tibetana, Anagarika Govinda faz uma distinção entre a palavra como SHABDA e a palavra como MANTRA; SHABDA é a palavra ordinária que compõe o discurso comum, a palavra capaz de carregar significação através de uma compreensão convencional. O MANTRA, ao contrário, é o impulso que cria uma imagem mental, é um instrumento capaz de criar um estado mental sem passar pela significação convencional. "MANrRA é um instrumento para pensar, algo que cria uma imagem mental. Através do seu som, traz à tona seu conteúdo como um estado de realidade imediata. MANrRA é poder, não meramente um discurso com o qual a mente pode contradizer ou evadir-se. O que o MANTRA expressa pelos seus sons existe no tempo, e depois desaparece. O fato de que a palavra cria algo de atual reflete a verdadeira peculiaridade da poesia. A sua palavra não fala, mas age."5 O mantra é uma força capaz de evocar imagens, de criar e transmitir estados mentais. REALIDADE
MENTAL
E IDEOGRAFIA
DINÂMICA
O simbolismo poético e o simbolismo mágico estão ambos envolvidos no processo de evocação que a palavra e o signo podem produzir. Mas hoje devemos reconsiderar o problema partindo de um dado novo, Oliundo da tecnologia eletrõnica: a máquina para a produção de REALIDADE VIRTUAL, que repro- 3 Lama Anllglll'lkn Ouvlu!!n, põe o mesmo problema colocado pela poética Founr/atillltl (if 1I/JnuIII My,rtlsimbolista e pelo simbolismo mágico, quer di- ci.!m, [,ondI'llN, 1II(i(), p, 17. 41bldelTI, p, 111, zer, o problema da comunicação telepática. A comunicação lingüística tornou-se possível n Ibldllm, p, 111,
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Io\Tuçasaos sinais convencionais, conectados arbitrariamente a um signil'icado: estamos falando aqui de uma comunicação que estimula estados mentais correspondentes à imagem, à emoção, ao conceito que o emissor quer transmitir ao seu receptor. A produção de instrumentos técnicos para a estimulação, especialmente as máquinas de REAUDADE VIRTUAL, apresentam o problema sob uma nova luz. Não me interessam estes aparelhos de Virtual Reality que podem ser encontrados no mercado de entretenimento, que na verdade são pouco mais do que videogames interativos. Para além da sua aplicação presente, o que me interessa é a dimensão conceitual da realidade virtual. O que há de novo na realidade virtual? Ela pode ser definida como uma tecnologia capaz de transmitir impulsos diretamente de um cérebro a outro, com o objetivo de estimular uma certa configuração sináptica no cérebro do receptor, e, portanto, uma imagem, um conceito, uma emoção. De modo puramente abstrato podemos dizer que a realidade virtual é a estimulação de uma onda neuronal, estruturada segundo modelos que são intencionais e isomórficos aos estados mentais que correspondem a uma certa experiência. Nesse sentido é uma tecnologia adequada para um tipo de comunicação telepática. Jaron Lanier, que foi o primeiro a construir máquinas de REALIDADE VIRTUAL, fala de comunicação pós-simbólica. Se é possível criar uma impressão mental correspondente a uma certa experiência, e compartilha-se esta impressão mental com uma outra pessoa, ou outras pessoas, então não há mais necessidade de descrever-se o mundo, porque basta simplesmente criar esta contingência, esta coincidência. Não há mais necessidade de descrever uma ação, basta criá-la. IDEOGRAFIA
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O que quer dizer, sinteticamente? A IDEOGRAFIA DINÂMICA é uma tecnologia de comunicação que permite transmitir estados mentais, imagens, emoções, conceitos, configurações de sentido, sem nenhuma codificação, e, portanto, sem nenhum meio de tipo convencional. A transmissão de estados mentais torna-se possível pela estimulação direta das conexões neurofísicas correspondentes às configurações de sentido. Podemos dizer que a ideografia dinámica é uma tecnologia de comunicação capaz de transferir de uma pessoa a outra os modelos mentais que estão envolvidos na visão de uma certa imagem, na experiência de uma determinada situação, no ato de pensar um certo conceito. É fácil ver a relação entre Virtual Reality e IDJo;OGRAJIlA DINÂMICA. A IDEOGRAFIA DINÂMICA é uma técnica que põe em ação uma seqüência de realidades virtuais, correspondentes aos conteúdos que eu quero mandar a alguém -leia-se comunicar a ele (no sentido de partilhar com ele). I':stamos aqui num terreno que não é redutível à informática ou à telemática, porque estas são tecnologias capazes de produzir e comunicar modelos lógicos, enunciados de tipo digital. Tecnologias que podem torIlar mais performáticos os processos de abdução, dedução e indução, ou seja, naqueles processos nos quais estão envolvidas combinações de 11mnúmero de unidades finitas, portadoras de significados convencionais codificados. A INFORMÂTICA INTRODUZ UM REINO DA COMUNICAÇÂO DISCRETA, JÁ QUE A INTENSIDADE 1'ltODUZIDAS
E A COMPLEXIDADE
PELAS MÁQUINAS
DAS CONFIGURAÇÕES
INFORMÁTICAS
PROVOCAM
SEMIÓTICAS
UM EFEITO DE
Mas o fluxo da comunicação humana, o fluxo perceptivo e mesmo o processo de elaboração consI'i(~nte têm características de continuidade. Para realizar processos de IIpo ideo-dinãmico - para levar a cabo o processo de realidade virtual (o Ilecessário criar interfaces capazes de traduzir séries digitais em sínteNl contínua, ou seja, de conectar o digital com o orgânico, de traduzir fllll termos de configuração neuronal algoritmos correspondentes aos IIlj1jl1ificados. A IDEOGRAFIA DINÂMICA, como transmissão de modelos mentais (emo!:lonais, perceptivos ou conceituais) é uma ferramenta de tipo analógil'I " global e sinestésica, e não opera na base de escolhas binárias ou IU'jljundoum modelo de tipo recombinatório, apoiado em unidades disl'I'CltllS elementares. Ela funciona diretamente sobre a imaginação.
'1'11'0 cONTÍNuo
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Partindo destas premissas, podemos voltar ao problema exposto por Leibniz, aquele do caractere universal. Em termos contemporâneos, éo problema de uma linguagem planetária, de uma linguagem capaz de agregar pessoas que pertencem a contextos e tradições culturais e lingUísticas diferentes. Pierre Lévy propõs a idéia de uma tecnologia de comunicação que tllt' mesmo definiu como IDEOGRAFIA DINÂMICA.
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NA MENTE DE QUEM A USA.
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É A IMAGINAÇÃO?
QUE
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A imaginação é uma faculdade de variação infinita capaz de combinar elementos analógicos. A imaginação é uma variação infinita de possibilidades que a mente elabora partindo dos diagrama disponíveis, dos fragmentos memorizados da experiência passada. O depósito da memória é limitado, mas as possibilidades de composição dos conteúdos estocados são ilimitadas. Ao processo de combinação destes elementos analógicos, deterioráveis e plásticos, chamamos imaginação. Ao estudo prático e teórico do devir da imaginação podemos chamar PSICODEUA. Com efeito, PSICODEUA significa a possibilidade de modificação da atividade da mente por meio das estimulações de tipo químico, elétrico, e assim por diante. Como se produz uma estimulação programada, intencional, controlada, da atividade mental do nosso partner comunicativo? Partindo da possibilidade de transmissão dos modelos mentais, de estímulo das ondas sinápticas correspondentes aos estados mentais que queremos comunicar, vemos que é possível compartilhar mundos imaginários em co-evolução mental. "Entender uma proposição significa intuir e imaginar como seria o mundo se aquela proposição fosse verdadeira. Podemos pensar a significação seguindo a metáfora da composição de fragmentos, em vez da concepção clássica da tradução ou expressão." 6 Sobre esta base podemos dizer que cada forma de linguagem é a transmissão de sinais com a finalidade de desencadear na mente do receptor a construção de modelos mentais, que seguem as intenções do emissor. TECNOMAYA
Até agora falamos de comunicação, agora falemos do mundo. Wil· liam Gibson vê o mundo como ciberespaço. "Uma alucinação comparo tilhada cotidianamente por milhares de operadores em todo mundo, meninos que aprendem os conceitos matemáti· " P. I.évy. I:idéographie dyna- cos, representações gráficas dos dados recebidos 1111'1"6• PllrlM, i!)!)I, p. !)!í. de cada computador do sistema nervoso huma· I W, UlhNon. Neuromance. no." 7 O ciberespaço é uma nova hipótese de
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mundo: ontologia e gnosiologia não são mais distinguíveis, porque o Ser revela-se essencialmente uma projeção. "Estamos numa espécie de caverna, como disse Platão, e fazem-nos assistir sessões intermináveis de filmes funky" - Philip Dyck. Podemos pensar que a realidade seja uma projeção infinita de fIlmes intermináveis sobre a tela do nosso cérebro. Mas se queremos nos deslocar do mundo alucinatório para a dimensão do mundo real, simplesmente temos de introduzir a noção de comunicação, ou seja, de partilha da alucinação. "Quando duas pessoas dividem o mesmo sonho, não se trata mais de uma ilusão: a prova fundamental que distingue a realidade da imaginação é o consensus gentium, o fato que uma outra pessoa ou muitas outras vêem a mesma coisa que eu vejo. Isto é idios kosmos, o sonho privado, oposto ao sonho que dividimos, o koinos kosmos. O que é novo, no nosso tempo, é isto: começamos a ver a qualidade plástica e vibrátil do mundo comum, e isto nos dá medo, porque mostra a sua insubstancialidade, e nós estamos começando a ver que a qualidade da imaginação não é meramente fumaça. Como a ficção científica, uma terceira realidade está emergindo entre ficção e realidade." 8 Os hindus o chamam MA_YA. Mas a significação profunda deste conceito não é de fácil compreensão. "Maya é o resultado de um processo, de um congelamento, rígido na forma e no conceito, é ilusão, porque foi modelado pelas suas conexões viventes e limitada no espaço e no tempo. A individualidade e corporeidade do ser humano não iluminado, que procura manter e preservar a sua identidade ilusória, é maya em seu sentido negativo. Até o corpo do iluminado é maya, mas não no sentido negativo, porque é criação consciente de uma mente livre da ilusão e por isso ilimitada, não mais constrangida pelo ego."g MA_YA não significa ilusão, mas algo mais: quero dizer que significa projeção do mundo. A projeção do mundo pode ser congelada e tornarse mera ilusão, auto-engano, se pensamos que o mundo imaginado seja independente da comunicação e do devir do mundo. Mas MAYA em si significa ação que projeta, criação do mundo. "Do ponto de vista da consciência do Dharmakaya, todas as formas de aparência são MAYA, Todavia, MA_YA, no sentido mais profundo, é realidade no seu aspecto criativo, ou o aspecto criaP. Dick. Only Appamllly U~IIL tivo da realidade. Assim MAYA torna-se a causa Nova York, W74. da ilusão, mas não é ilusão em si, se sabemos vê- nA. Govlndu, Op. rlt., p, ~~(). 8
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la como uma globalidade, na sua continuidade, na sua função criativa, ou como poder infinito de transformação e de relação universal."1O O conceito de MAYA como projeção do mundo é extremamente útil para nós que estamos assistindo ao processo de proliferação dos instrumentos tecnológicos para a simulação dos mundos. A tecnologia social de comunicação objetiva ligar imaginação e a projeção dos indivíduos e dos grupos. A rede projetiva pode ser denominada TECNOMAYA, uma rede neurotelemática que está empenhada em projetar incessantemente um filme compartilhado por todos os organismos conscientes e conectados dentro de uma sociedade. Esta tecnoimaginação, esta implicação recíproca no koinos kosmos é a socialização mesma. Através da proliferação de máquinas para a estimulação eletrônica e holográfica, e a neuroestimulação programada, podemos entrar no domínio de TECNOMAYA, porque produzimos mundos de significados e, ao transmiti-los, pomos em movimento a imaginação das pesIbidem, p. 219. soas que nos circundam.
A MÁQUINA-CINEMA
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Tradução SÍLVIO
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LANG é o cineasta por excelência ou pelo menos de um certo cinema anterior a Rossellini e à Nouvelle Vague, que, pela voz de Godard, prestou-lhe duas vezes a homenagem que conhecemos, é porque Lang é o homem do dispositivo, aquele que lançou o olhar mais agudo sobre a máquina-cinema: olhar que vai até o ponto em que o olho se estende ao próprio corpo, do qual ele parece ser a ponta afinada. Sustentada em Mabuse e Splone por todo-poder do olhar delegado e pela reflexão sobre a hipnose, metaforizada, em Metrópolis, pela invenção do andróide e uma primeira antecipação da dinâmica da mídia, a figuração do dispositivo impregna de um modo excessivo, físico e mítico, o último filme mudo do seu período alemão: Frau Im Mond. .Esta mulher que parte em direção à Lua dá o seu nome ao foguete, Fnede, que leva uma tripulação de três homens, um velho e uma criança. O caráter antecipatório da viagem (em 1929) não basta para explicar a loucura que a anima. Chega um momento em que é preciso inverter o que se acredita ver para encontrar algo que se pareça com a razão, fazendo dos atores do drama também espectadores. Não como esses heróis quaisquer, que se tomaram, no cinema moderno, aqueles que vêem, no sentido deleuziano, a sua própria inércia motriz e a propagam para O espectador. Mas como seres significativos, espécimens de espécies exemplares, confrontados à dinâmica do movimento que os une, do ponto de vista deste viajante imóvel que sempre foi, desde o início, o espectador de cinema. Islo pode ser uma ficção. O efeito de uma impressão. Um desejo E
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indevido de extrapolação. Mas ao rever Frau Im Mondhá quase um ano, compreendi de repente o estranho efeito produzido por aquele longo trajeto da Terra até a Lua, preparado por uma mise-en-scene impecável, que culmina nos célebres planos da partida do foguete. Simplesmente isso: o foguete, que é o próprio movimento, também é um espaço fechado, próximo da sala de cinema. Ele materializa bem de perto (como já fazia o trem, em Splone) o deslocamento fixo, em que os corpos são a própria presa, quando submetidos a uma projeção que sutiliza sua espessura e motricidade para favorecer as sombras jogadas na tela. As transformações sofridas pelos viajantes do espaço, vestidos assim como nós, é uma maneira de expressar as transformações vividas pelos espectadores, imobilizados em suas cadeiras. Isto ilustra uma idéia que já ficou evidente: o cinema é contemporâneo das máquinas de transformar o espaço e vive esta transformação de uma maneira bastante peculiar, como um olho que, ao mesmo tempo, se liga e se desliga das máquinas e, por isso, pode figurá-las, assim como substituí-las. Lang enriquece esta colusão com um suplemento: é aí que reside todo o seu interesse. Tais idas-e-vindas, cena-sala, foguete-cinema, foram sabiamente manejadas durante a primeira fase do filme, antes da decolagem. Por quatro vezes, em quatro níveis superpostos. Os planos extraordinários que preludiam a projeção, quando o foguete é exibido aos possíveis finandadores do projeto, servem de base prévia: tela que desce, painel móvel que sobe, janela minúscula, onde se enquadra a cabeça de quem faz Il projeção, feixe de coisas que jorram à direita, onde não são esperadas, como se para reduzir ao espaço-plano o que pertence ao volume - problema que Lang dominou plenamente com seus espaços secos, cinzas, (tlonos, tons sobre tons, onde cada coisa vibra por ser remetida ao seu vlLlormínimo e absoluto. A assimilação máquina-espaço-tempo/máquiIItl-de-visão é concluída nos poucos planos (interiores a esta seqüência) que mostram um foguete concebido por Helius, o herói, e dotado de lima câmara que permitiu captar as primeiras imagens da face oculta da I:ua. Por outro lado, há uma longa seqüência da partida do foguete. Sua lorça é midiática: acima de tudo, por envolver os olhares dos espectadores. Espectadores da era das multidões, ao mesmo tempo sujeitos e objetos do ponto de vista, massificados e semi-individualizados, trabaIlIudos de um jeito como só Lang sabe fazer, na tenaille en recul de um
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olhar que não parece ter começo nem fim, que parece sempre ter estado lá onde se encontra. De tal modo que, ao olharmos o foguete partir, esle inslrumento da viagem a que somos conduzidos, somos ainda reprojetados no interior da sala de cinema em que estamos. Enfim, podemos lembrar de um plano extraordinário, que quase só Lang sabe fazer: Helius sentado num carro, encobrindo a borda de uma minúscula janela de trás que lembra uma cabine de projeção. O enquadramento é fechado, o herói é "capturado" na sua cadeira, vítima daquele humor delicado, tão característico dos grandes filmes mudos, o qual atinge excessos grotescos ou sublimes em Frau Im Mond, dependendo de como é visto. Estes pensamentos indecisos podem ser atribuídos a um fracasso sentimental com Friede (noiva, não se sabe por que, de Hans Windegger, um amigo comum, ainda que fique claro que ela ama Helius) e à aventura extrema que prepara, da qual ele é o cérebro científico e o metteur-en-scene. Ora, enquanto ele rumina à beira do indizível, efeitos de luz e sombra, projeções mínimas e desmesuradas percorrem a superfície da tela. Elas provêm, logicamente, das janelas do carro, hors champ, mas de tal modo concentradas no campo que perdemos qualquer idéia de sua localização, para sermos atraídos pelo efeito de duas forças que se atraem: de um lado, a agitação interna deste ator sentado, paralisado, quase um espectador de sua própria imagem, interior-exterior, cujos eflúvios o invadem; por outro, a força ligada a um meio de deslocamento, de translação, que já é uma pura máquina de visão. No momento em que entramos no foguete para fazer a viagem, estamos prontos para aquele efeito de reversão do qual eu falava, o efeito que imagino. Atores que se tomam espectadores. Não somente por causa do espetáculo para o qual se preparam, e que vai culminar na terceira fase da viagem. Mas porque compõem um microcosmo da sociedade humana, reduzida a um estado coletivo e diferenciado, em função do qual eles abraçam a situação em que se encontram: rumo à Lua, ao cinema. É muito simples afirmar que Lang só estava interessado no foguete (o que é dito por Lotte Eisner, sem mais detalhes), e jogar para algum porta-voz ou para Thea von Arbou (então cenógrafa e mulher de Lang) a responsabilidade de algumas linhas assinadas por ele, publicadas na Deutsche Filmzeitung. "Quatro homens, uma mulher, uma criança: um punhado de seres
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humanos com destinos entrelaçados. Num veículo jamais visto até então, numa nave espacial rumo a um solo que ninguém ainda pisou, percorrendo a solidão infinita da Lua - mas todos permanecem acorrentados pelo destino, na Lua como na Terra, segundo as leis de seu sangue, de suas paixões, de sua felicidade e de suas tragédias. Representar tudo isso: tal era o sonho que Ilutuava diante dos meus olhos." Lang não estava interessado apenas no foguete, mas em algo ainda mais inquietante. Ele se apropriou de sentimentos e de relações bastante rudimentares, ao mesmo tempo excessivas, delicadas e convencionais, para circunscrever um espaço misto que permite que elas sejam simuladas não só pelos heróis efetivos, mas também por espectadores potenciais, cujas forças expressam estados ligados não só ao filme mas à idéia, ao corpo do cinema. Assim, no foguete estão: Helius, bravo, frio e incandescente, uma espécie de Siegfried científico, mestre de si mesmo, assim como do universo; Windegger, um ser frouxo e violento, covarde e indeciso, de sentimentos sem qualidade; Friede, a mulher antiga e também nova, que sofre mudanças a partir da fusão do romantismo, do modernismo e da tecnologia; o professor Mansfeldt, o iniciador, muito velho e frenético: com trinta anos de antecedência, profetizou a existência de ouro na Lua e os meios de se chegar até lá; Turner, técnico e homem de finanças inescrupuloso, enviado pela firma que garante o financiamento da operação em troca do monopólio da exploração do ouro; por fim, Gustav, a criança valorosa que se escondeu no foguete, assim como nas histórias em quadrinhos que são a sua paixão. Estamos diante de um resumo da humanidade, personalidades, idades e sexos (não falta nem um mascote, o camundongo Josefine, levado por MansIddt). Os espectadores podem se reconhecer como tais no grupo huma110 assim constituído, indentificando-se individualmente com cada um dos personagens por pulsões e repulsões, como ocorre diante de todos os corpos do cinema. Mas estes corpos também são qualificados, um por um e em conjunto, pelos estados singulares característicos da experiência extrema que atravessam. A combinação destes estados com os IWlIS traços de humanidade acaba produzindo neles o mesmo número de faces compósitas. E os espectadores - os verdadeiros - têm, assim, a Impressão de viver uma experiência una e múltipla, que toca as raízes obscuras de seu ser de espectador de cinema.
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'li'ês estados se sucedem durante o vôo do foguete. Primeiro, o choque da decolagem. Em diversos estágios, superpostos no tempo e variando segundo as posturas dos corpos, todos os personagens desfalecem. Um sono singular. Uma hipnose favorecida pela conjugação da imobilidade (todos estão presos em suas camas) e do movimento-deslocamento, como em certas máquinas de inibição sensorial. O segundo estado é a embriaguez ligada à ausência de peso. Basta um leve movimento para Gustav levantar-se e passar de um andar a outro do foguete, prestes a medir mal o efeito e bater no teto. Sonhos de vôo, sonho de decolagem. O terceiro estado, que se afirma à medida que o foguete se aproxima da Lua, é de pura fascinação. Em momentos de estonteante beleza, as imagens do solo lunar desfilam pelas janelas do foguete. É Mansfeldt que fica possuído por este estado, abrindo perigosamente as janelas até o pouso na Lua, para ver e ver sempre mais, e querer tocar o que vê, abraçando a imagem com as mãos, para acariciá-la, arranhá-la, apagá-la, até mesmo para mergulhar nela, num gesto alucinado que será novamente encontrado por Ulisses, nos Carabiniers. Mas todos os viajantes entram em êxtase, mais ou menos assim como acreditamos, às vezes, ter entrado na imagem - o que pode ser visto nos planos que lembram, com muita precisão, a massa de espectadores diante da pista no momento do lançamento do foguete. O círculo que assim se fecha tem o propósito de nos fazer sentir que estes três grandes estados, suportes de estados intermediários e de posturas singulares, são claramente sucessivos, na medida em que participam da construção de uma história. Mas a cronologia que os separa de nós faz com que possamos apreender até que ponto também eles se encontram misturados, nas profundezas do corpo. Intimidades do corpo arcaico apreendido em seu pertencimento à máquina-cinema. Quanto ao que ocorre na Lua, é um pouco indizível, pelo tanto que as almas e os corpos parecem vítimas de afectos erráticos que às vezes ultrapassam o limite das marcas de ação e de conduta (Mansfeldt é perseguido por Turner, numa busca de ouro alucinada, e desaparece num buraco, sem que sua morte tenha nenhum efeito; Turner procura se ll.possar do foguete - com que finalidade? - e acaba morto por Winti gger, etc ... ). Fraqueza do cenário? Divórcio entre as intenções ini'Inlll o ntme pronto (como em tantos filmes mudos de Lang, pelo que Lollcl Elsncr dá a entender)? Pelo menos duas coisas são certas. Existe
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na Lua uma atmosfera; podemos respirar como na Terra. Este retorno do real tem o propósito de aproximar o que o fantástico da viagem poderia ter afastado. Ele nos leva para o lugar de onde partimos, com o suplemento adquirido pelo trajeto, que permanece essencial. E existe ouro na Lua. Esta resposta à miragem inicial faz da Lua uma terra prometida, uma espécie de Eldorado: uma imagem do cinema, tal como havia sido para Mélies em seus devaneios de origem, tal como ela se toma também aqui, através das especulações financeiras que têm por objeto a expedição - o filme. A Lua-cinema, quando suas fases ainda não eram refletidas pelo circuito abstrato dos monitores (Palk) e quando não estava cheia, como uma imagem pobre de pub (Fellini). No entanto, existe ainda um suplemento, expresso no próprio título do filme. Ele também toca, por outro lado, na máquina, no destino do dispositivo. Uma mulher na Lua: é exatamente isto que está em jogo, algo dificilmente concebível (em 1929), e sem o qual o filme seria inconcebível. A cena do lançamento é explícita: Helius sugere a Friede que ela poderia desistir da viagem; ela responde (indo ainda mais longe do que o peso do olhar dos espectadores): "Você está tentando me dizer que nós, mulheres, não somos suficientemente corajosas para esta aventura? Os olhos do mundo inteiro nos vêem - as orelhas do mundo estão à escuta." A réplica é uma oportunidade para Lang conceber um daqueles estranhos planos modernistas que contrastam com seu minimalismo: uma mistura de rostos e engrenagens (objetivas? alto-falantes?), comparável ao Plan de générique do último Mabuse. Um plano-máquina que evoca aquilo que prefigura. Como sabemos, o foguete tem o nome da heroína. Simbolismo bastante simples, apagado pelo fato de que ela entra lá dentro. A não ser por ele vincular o foguete, uma vez na Lua e através de Friede, a uma outra máquina que, de um modo bem mais direto, cabe à mulher: a câmara, que a câmara de Fritz Lang se incumbe de nos mostrar. Em planos magníficos, ele filma Friede filmando o solo desértico da Lua, revelando seus filmes dentro do foguete. Mas por que é preciso que seja a mulher que filme? Evidentement , para que o dispositivo-cinema dependa da mulher. Que tipo de dep n· dência, exatamente? Em Me trópo lis, duas Marias se confundem 11 opõem: Maria-puro-amor e Maria-máquina, que encarnam, ao m limo lempo, o processo de fabricação das imagens e o poder negativo 111111' lifero, ligado a este processo, que o filme acaba restituindo ao PUf() Inm,
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E também em Splone, Sônia, a bela esplonne (representada por Gerda Maurus, a atriz de Frau 1m Mond), passava da esfera de Haghi-o-enunciador ti esfera de Trémaine-o-herói (representado por Willy Fritsch, que tam bém (~Helius em Frau 1m Mond) através do trem - a máquina Splone. Desse modo, o personagem feminino deixava a vertente do terror negaLivo, vinculada ao olhar da mise-en-scene desde o início do filme, para entrar na dimensão do amor, que também pertence à própria imagem (no cinema mudo, o rosto extático de Gerda Maurus, em dose, de Sônia à Friede, é uma expressão muito forte disso). Neste sentido, Frau 1m Mond leva tudo para o lado do puro amor. Foguete e câmara se conjugam para, na Lua, conduzir o destino dos heróis, do casal, a um último estado: o estado amoroso, próximo dos estados que o precedem, em particular da hipnose (como sabemos, Freud faz esta associação no famoso capítulo 8 de Psicologia de Massas e Análise do Eu). Nesta viagem, neste filme, não há nada comparável ao desejo de domínio desregrado que associa numa mesma imagem - fundada na força (real e virtual) das máquinas - Mabuse e Haghi, o mestre de Metrópolis e Rotwang. Esta força é dividida entre homem e mulher, deslizando de um a outro em cada filme mencionado: Helius e Friede permanecem juntos na Lua após a partida forçada do foguete (o final real); ou Helius permanece só para esperar a volta de seus amigos (outro final previsto, segundo Lotte Eisner). De qualquer forma, este abandono tem sucesso no amor, assim como o dispositivo-cinema conduz o herói ao apaziguamento (Friede) estranho estado de graça que poderia explicar o seu nome solar. Helius: o noivo da Lua, mais mulher - mulher-cinema - do que nunca. Assim, o estado do cinema, projetado através do espectro de mitologias imemoriais - sua herança - ocorre aqui como o casamento imaginário da Lua com o Sol.
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Tradução ANA LUIZA
MARTINS
COSTA
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atenta da produção dos afetos em nosso trabalho e em nossa vida social tem freqüentemente sido útil a projetos anticapitalistas, por exemplo no contexto de discursos sobre o desejo ou sobre o valor de uso. O trabalho afetivo representa, em si e diretamente, a constituição de comunidades e subjetividades coletivas. Portanto, o circuito da produção de afeto e de valor se parece, sob vários aspectos, com um circuito autônomo de constituição de subjetividade, alternativo ao processo de valorização capitalista. Modelos teóricos associando Marx e Freud expressaram o conceito de trabalho afetivo utilizando termos como produção de desejo; de modo ainda mais significativo, várias pesquisas feministas analisando as potencialidades existentes no que tem tradicionalmente sido designado como trabalho feminino, abordaram o trabalho afetivo com termos como trabalho familial e prestação de cuidados!. Cada uma dessas análises revela os processos pelos quais nossas práticas de trabalho produzem subjetividades coletivas, produzem sociabilidade e, finalmente, N.T. O autor utiliza aqui os termos kin work e caring labor. produzem a própria sociedade. Kin designa parentes ou famiTais concepções do trabalho afetivo hoje (e liares; o que está em jogo neseste é o aspecto fundamental deste ensaio), de(e tipo de atividade são os euiduelos tradicionais que as muveriam, entretanto, ser situadas no contexto da lheres dedicam a pessoas da evolução do papel do trabalho afetivo na eco1"1111111111 (crianças, idosos, enfl'I'1I10N, etc ... ), no desempenomia capitalista. Em outras palavras, embora IIho dI' 11m (mblllho que, muio trabalho afetivo nunca tenha estado inteiraIn~ VfI1.I'H, uno é reconhecido mente fora da produção capitalista, os proces1011101111. OBSERVAÇÃO
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sos de pós-modernização econômica dos últimos vinte e cinco anos não só deram ao trabalho afetivo um papel diretamente produtor de capital, mas também o puseram no topo da hierarquia das formas produtivas. O trabalho afetivo é uma dos aspectos do que chamarei de "trabalho imaterial", que assumiu uma posição preponderante na economia capitalista global em relação a outras formas de trabalho. Dizer que o capital incorporou e valorizou o trabalho afetivo e que o trabalho afetivo é uma das mais importantes formas de produção de valor do ponto de vista do capital não signiHca que, assim contaminado, ele não possa mais ser útil a projetos anticapitalistas. Pelo contrário, considerando o papel do trabalho afetivo como um dos elos mais fortes na corrente da pós-modernização capitalista, seu potencial de subversão e de constituição autônoma torna-se ainda maior. Nesse contexto podemos reconhecer o potencial biopolítico do trabalho, utilizando biopoder em um sentido que adota ao mesmo tempo que inverte o uso que Foucault faz deste termo. Eu quero então proceder em três etapas: em primeiro lugar, situar o trabalho imaterial na fase atual da pós-modernização capitalista; em segundo, situar o trabalho afetivo em relação às outras formas de trabalho imaterial; e, por fim, explorar o potencial do trabalho afetivo no tocante ao biopoder. PÓS-MODERNIZAÇÃO
Na sucessão dos paradigmas econômicos nos países capitalistas dominantes,2 desde a Idade Média, é comum, hoje, considerar três momentos distintos, cada um deles definido por um setor privilegiado da economia: um primeiro paradigma, no qual a agricultura e a extração de matérias-primas dominavam a economia; no segundo, no qual a posição prepoderante perOptamos por manter a detencia à indústria e à fabricação de bens durá- nominação escolhida pelo auveis e o paradigma atual, no qual a prestação de tor para designar a posição serviços e o processamento da informação são a que os países ocupam na economia globalizada, tradu· essência da produção econômica. A posição do- zindo os termos utilizados, minante passou, portanto, da produção primá- dominant capitalist countrl6.f l' subordinated countrl6.f, por ria, para a secundária e desta para a terciária. "países capitalistas c10mlnllfl tes" e "países dcpcnclolltoH". Chamou-se modernização econômica à passagem 2
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do primeiro paradigma para o segundo, isto é, do domínio da agricultura para o da indústria. Modernização significava industrialização. Poderíamos chamar a passagem do segundo para o terceiro paradigma, isto é, a passagem do domínio da indústria para o dos serviços e da informação, de p6s-modernização, ou melhor, de informatização econômica. Os processos de modernização e industrialização transformaram e redefiniram todos os elementos do plano social. Quando a agricultura, como a indústria, se modernizou, a fazenda transformou-se progressivamente em fábrica, com todos os seus elementos de disciplina, tecnologia e relaçôes salariais, entre outros. De modo mais geral, a própria sociedade foi se industrializando, a ponto de transformar as relaçôes humanas e a natureza humana. A sociedade tornou-se uma fábrica. No início do século XX, Robert Musil, refletindo sobre as transformações da humanidade na passagem do mundo agrícola para a fábrica social, observou com acuidade que: "Houve um tempo em que os homens cresciam naturalmente nas condições do momento e isso era uma maneira muito saudável de se tornar um indivíduo. Mas, nos dias de hoje, com toda essa turbulência, quando tudo é separado do solo em que cresceu, até mesmo no campo da produção do espírito, deveríamos realmente substituir, por assim dizer, os artesanatos tradicionais pelo tipo de inteligência que vem associada às máquinas e às fábricas".3 A humanidade e seu espírito são produzidos nos próprios processos de produção econômica. Os processos para tornar-se humano e a própria natureza do humano foram fundamentalmente transformados na mudança qualitativa trazida pela modernização. Hoje, no entanto, a modernização chegou ao fim, ou, para usarmos as palavras de Robert Kurz, a modernização fracassou. Em outras palavras, a produção industrial não está mais aumentando sua predominância sobre outras formas econômicas e outros fenômenos sociais. Um dos sintomas dessa alteração manifesta-se em mudanças quantitativas no emprego. Enquanto a migração do trabalho da agricultura e da mineração (setor primário) Robert Musil, The Man witllOut Q_ualities, v. 2. Nova para a indústria (setor secundário) indicava proYork: Vintage, 1996, p. 367. cessos de modernização, os processos de pós(Publicado em português como Homem sem qualidades. Rio modernização ou informatização são identificacI" .lmleiro: Nova Fronteira, dos na migração de empregos da indústria para 1111\11, 'Ihld. Lya Luft e Carlos o setor de serviços (setor terciário), mudança que AhbllllHC'lh), :J
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vem ocorrendo nos países capitalistas dominantes, e em particular nos E.u.A., desde o início dos anos 70.4 O termo serviços aqui cobre um grande leque de atividades, desde assistência médica, educação e serviços financeiros até transportes, entretenimento e publicidade. A maioria dos empregos mostra alta mobilidade e envolvem habilidades flexíveis. Mais importante ainda: tais empregos caracterizam-se, em geral, pelo papel central desempenhado por conhecimento, informação, comunicação e afeto. Nesse sentido, podemos dizer que a economia pósindustrial é uma economia informacional,5 A afirmação de que o processo de modernização está acabado e de que a economia globalizada está hoje vivendo um processo de pós-modernização em direção a uma economia informacional não significa que a produção industrial será abolida nem que ela deixará de desempenhar um papel relevante, mesmo nas regiões mais desenvolvidas do globo. Assim como a revolução industrial transformou a agricultura e tornou-a mais produtiva, a revolução informacional irá transformar a indústria redefinindo e rejuvenescendo os processos de produção - através da integração, por exemplo, de redes de informação a processos industriais. O novo imperativo operacional de administração é "tratar a produção como um Sobre as mudanças na oferserviço".6 Com efeito, à medida que as indús- ta de empregos nos países dotrias se transformam, a distinção entre produ- minantes, ver Manuel CasteUs & Yuko Aoyama. "Paths ção e serviços vai tornando-se menos nítida. Da towards the informational somesma forma como, através do processo de mo- ciety: employment structUI'C dernização, toda produção se tornou industria- in G-7 countries, 1920-90". International Labour Revi,w lizada, é também através do processo de pós- 133(1):5-33, 1994. modernização que toda produção tende a ser N.T. O termo informalilmlll produção de serviços e tende a se tornar infor- economy refere-se tanto à In formatização da economlu, IIIacionalizada. quanto ao papel centl'lll d" O fato de que a informatização e o movimen- sempenhado pela Infol'muçllo lo favorecendo os setores de serviços são mais nesta mesma economlu, visíveis nos países capitalistas dominantes, não François Bar. "InformllUflll infrastructure and Ih IrlLllI' nos deveria fazer retroceder a uma compreenformation of mUllufll lur~rt , Nilo da situação econômica global contemporâIn: The New Injllrmoltoll 11 I I lIea no tocante a estágios de desenvolvimento - structure: Slral"I',I/Or Poli". ed, WllIllLlfl 11 ~" ('orno se hoje os países dominantes fossem eco- Novll York: ·lwc,"~I•• 1 I lIomias informacionais de serviços, seus depen- tu,'y 1'~mrll'rIlNN, IIJUII, n 4
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dentes diretos os países de economia industrial, e os outros, os países de economia agrícola. Para os países dependentes o colapso da modernização significa, antes de mais nada, que a industrialização não pode mais ser vista como a chave para o desenvolvimento econômico e a competitividade. Algumas das regiôes mais subordinadas do mundo, tais como as regiôes da África Subsaariana, foram efetivamente excluídas não só dos fluxos de capital e do acesso às novas tecnologias mas até mesmo da ilusão das estratégias de desenvolvimento, e se encontram portanto à beira da fome (mas devemos reconhecer que a pós-modernização, embora responsável por essa exclusão, continua dominando essas regiôes). Na maioria dos casos, a competição pelas posiçôes intermediárias na hierarquia global não se realiza através da industrialização da produção mas de sua informatização. Países territorialmente extensos, com economias variadas, tais como a Índia, o Brasil ou a Rússia, podem dar apoio, simultaneamente, a toda a variedade de processos produtivos: à produção de serviços baseada na informação, à moderna produção industrial de bens, bem como às tradicionais produções artesanal, agrícola e mineira. Não precisa ter uma progressão histórica entre essas formas, que, aliás, freqüentemente coexistem e se misturam; não é necessário passar pela modernização antes da informatização - a produção artesanal tradicional pode ser imediatamente computadorizada; telefones celulares podem ser imediatamente operacionados em remotas vilas de pescadores. Todas as formas de produção existem dentro das redes presentes no mercado mundial e sob a dominação da produção informacional de serviços.
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A passagem para uma economia informacional envolve necessariamente uma transformação tanto na qualidade quanto na natureza dos processos de trabalho. Esta é a implicação sociológica e antropológica mais imediata da mudança de paradigmas econômicos. Informação, comunicação, conhecimento e afeto passam a desempenhar um papel cstrutural nos processos produtivos. Muitos vêem como primeiro aspecto dessa transformação a mudançu no processo de produção industrial - tomando-se a indústria auto-
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mobilística como elemento central de referência - do modelo fordista para o modelo toyotista.7 A mudança estrutural fundamental entre esses modelos envolve o sistema de comunicação entre a produção e o consumo de mercadorias, isto é, envolve a transmissão da informação entre fábrica e mercado. O modelo fordista construía uma relação relativamente "muda" entre a produção e o consumo. Na era fordista a produção em massa de bens de consumo padronizados podia contar com uma demanda adequada e, assim, tinha pouca necessidade de "ouvir" atentamente o mercado. Graças a um circuito de feedback consumo-produção, mudanças no mercado podiam acelerar mudanças na produção, mas essa comunicação era restrita (devido a canais de planejamento fixos e estanques) e lenta (devido à rigidez das tecnologias e dos procedimentos da produção de massa). O toyotismo é baseado numa inversão da estrutura fordista de comunicação entre produção e consumo. Idealmente, de acordo com esse modelo, o planejamento da produção estaria em comunicação constante e imediata com o mercado. As fábricas manteriam um estoque zero e as mercadorias seriam produzidas apenas no último instante, de acordo com a demanda existente no mercado. Portanto, este modelo não envolve apenas um feedback mais rápido mas uma inversão na relação, uma vez que, ao menos em teoria, as decisões da produção ocorrem postedormente às decisões do mercado, e em reação a elas. Este contexto industrial nos oferece uma primeira percepção de forma como a comunicação e a informação passaram a desempenhar um papel novo e fundamental no processo de Sobre a comparação entre os produção. Poderíamos dizer que a ação instru- modelos fordista e toyotista, Benjamin Carial. Penser à mental e a ação comunicativa se entrelaçaram ver l'envers: travail et organisatioll profundamente nos processos industriais infor- dans l'entreprire japonaire. Pa· matizados. (Seria interessante e útil observar aqui ris: Christian Bourgeois, W!J4. (Publicado em português CO· como estes processos destroem a teoria da divi- mo Pensar pelo avesso. RICI do sào entre ação instrumental e ação comunicati- Janeiro: Revan/UFI\J, l!)fI4,) Penso principalmont !Im va proposta por Habermas, e, da mesma forma, Jiirgen Habermas. ' 1 711 '17"0'" desintegram as distinções que Hannah Arendt 01 Communicativ6 ACIIOrl, Un. (~stabeleceentre trabalho, ação e obra.8) Contu- ton: Beacon Pron, 11)"41• do, precisa ressalvar, desde logo, que a noção Hannah Arondl. T1I, IIrI .,. Condition. Chlcl\~(1I tJttlv de comunicação como mera transmissão de da- sity af ChlclllJC) 1 1 nM, {publicado (Im portu,", I dos de mercado é uma noção empobrecida. 7
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Os setores de serviço na economia apresentam um modelo mais rico de comunicação produtiva. A maioria dos serviços está, de fato, baseada no intercâmbio contínuo de informações e conhecimentos. Uma vez que a produção de serviços não resulta em um bem material ou durável, poderíamos definir o trabalho envolvido nessa produção como trabalho imaterial - isto é, trabalho que produz um bem imaterial, como serviços, conhecimento, ou comunicaçãoY Um dos aspectos do trabalho imaterial pode ser identificado por meio de uma analogia com o funcionamento de um computador. O uso cada vez mais amplo de computadores tem levado progressivamente à redefinição de práticas e relações de trabalho Uuntamente, na verdade, com a redefinição de todas as práticas e relações sociais). Nos países dominantes, a familiaridade e a intimidade com a tecnologia dos computadores vêm se tornando, de forma cada vez mais generalizada, uma qualificação básica para o trabalho. Mesmo quando não se trata de contato direto com computadores, é extremamente comum exigir-se a capacidade de lidar com símbolos e informação seguindo o mo Condição humana. São modelo operacional de um computador. Um asPaulo: Edusp, 1981). Para uma crítica excelente da di- pecto original do computador é que ele pode visão habermasiana entre d mo ificar continuamente sua própria operação ação comunicativa e ação instrumentai no contexto da através de seu uso. Mesmo as formas mais rudipós-modernização econômimentares de inteligência artificial permitem ao ca, ver Christian Marazzi. /I computador expandir e aperfeiçoar suas operaposto dei cab.ini: la svolta /inguistica dell'economia e i suoi ef ções baseado na interação com seu usuário e seu foti nella politica. Bellinzona, ambiente. O mesmo tipo de interatividade conSuíça: Casagrande, J!)lJ5, p. tínua caracteriza uma ampla gama de atividades 29-34. produtivas contemporâneas em todos os setores 9 Para urna definição e anâlise do trabalho imaterial, ver da economia, quer o computador esteja diretaMaurizio Lazzarato. "Irnrnamente envolvido ou não. Há algum tempo, os teriaILabor". In: Radical T1wught in Italy, ed. Paolo Vimo & operários aprendiam a agir como máquinas tanMichel Hardt. Minneapolis: to dentro quanto fora da fábrica. Hoje, à mediUniversity ofMinnesota Press, da que o conhecimento social se torna cada vez 1996, p. 133-147. mais uma força de produção direta, pensamos 10 Peter Drucker entende a cada vez mais como computadores e o modelo passagem para a produção imaterial como a destruição interativo das tecnologias de comunicação torcompleta das categorias tradina-se cada vez mais essencial para nosso tracionais da economia politica. "The basic economic resource balho.1O As máquinas interativas e cibernéticas
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tornaram-se uma nova prótese integrada aos nossos corpos e mentes e, também, uma lente através da qual redefinimos nossos pró- «the means of production», to use the economist's prios corpos e mentes.ll tcrm - is no longer capital, nor natural resources Robert Reich chama esse tipo (the ecollomist's «Iand»), nor «Iabor». It is and wi/l de trabalho imaterial de "serviços /ir krlllwledlie." (O recurso econômico básico - os simbólico-analíticos" - tarefas mcios de prouução, para usar a expressão do ecollomislu .. nuo (~mais o capital, nem os recursos naque envolvem "atividades de lurals (u "h'ITU"dos economistas), nem o trabalho. identificação de problema, de R e .lerá o amhet:iTlln71to).Peler Drucker. Post-capitalist Sodety. NOVIIVork: Ihlrpcr, 1!)!)3,!l. (Publicado em solução de problema e de inter- porlugu~s como Sociedade pós-capitalista. São Paulo: mediação estratégica."!:.! Hoje, Pioneiru, Olleçilo Novos Umbrais, 1!)lJ3. Trad. Niesse tipo de trabalho é o mais va- valdo MonUngclliJr.). () quc ()ruckcr não compreende é que u conhecimento ntlo é dadu mas prolorizado e por isso Reich o iden- duzido e que sua produção envolve novos tipos de tifica como a chave para a com- meios de produção e trnbalho. Marx usa a expressão general intellect para refepetição na nova economia global. Ele reconhece, entretanto, que o rir-se a esse paradigma da alividndc soci!ll produtora. "The development of fixcd cnpilnl indicntcs aumento de postos para esse tipo to what degree social knowledge hns become de emprego, que exige tanto um direct force of production, and to what degrce, hence, the conditions of the process of socinl life conhecimento especializado co- itself have come under the control of the general mo a capacidade de processa- intellect and been transformed in accordance with mento criativo de símbolos, im- it. To what degree the powers of social production have been produced, not only in the form of plica um crescimento correspon- knowledge, but also as irnrnediate organs of social dente de empregos de baixa qua- practice, of the real life process." ("O desenvolvimento de capital fixo indica até que ponto o lificação e pouco valorizados, que conhecimento social se tornou força direta da proexigem uma manipulação rotinei- dução, e, conseqüentemente, até que ponto as conra de símbolos, como, por exem- diçôes do próprio processo da vida social ficaram sob controle da inteligência coletiva, sendo transplo, a digitação de textos e o pro- formadas de acordo com ela. Até que ponto os cessamento de dados. É nesse poderes da produção social foram produzidos, não somente sob a forma de conhecimento, mas tamponto que começa a emergir uma bém como órgãos imediatos da prática social, do divisão fundamental do trabalho processo da vida real.") Karl Marx. Grundrisse. no universo dos processos ima- Nova York: Vintage, 1973, p. 706; trad. Martin Nicolaus. (Publicado em português como Contribuileriais. ções à crítica da economia política. São Paulo: Flamll, O modelo do computador, no 1946; trad. Florestan Fernandes). entanto, pode explicar apenas um Robert Reich. The Work o/Nations: Preparing Ou raspecto do trabalho imaterial e sewes for 21st Century CaPitalismo Nova York: Knopf, I9lJI, p. I7Z (Publicado em português como O Imcomunicacional envolvido na balho das nações: preparando-nos para o capttaUsrrlll do produção de serviços. O outro século XXI. São Paulo: Educator, WlJ3.) 11
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aspecto do trabalho imaterial é o trabalho afetivo de interações e contatos humanos. Este é o lado do trabalho imaterial que tem menos possibilidade de ser discutido por economistas como Reich, mas ele me parece ser o aspecto mais importante, o elemento que liga todos os demais. Os serviços de saúde, por exemplo, baseiam-se fundamentalmente em trabalho afetivo e prestação de cuidados, e a indústria do entretenimento e as várias indústrias culturais igualmente enfatizam a criação e manipulação dos afetos. Em maior ou menor grau, esse trabalho afetivo desempenha algum tipo de papel em cada um dos segmentos da indústria de serviços, das lojas de fast food às instituições financeiras, inserido nos momentos de interação e de comunicação humana. Este trabalho é imaterial, mesmo sendo corporal e afetivo, no sentido de que seus produtos são intangíveis: um sentimento de tranqüilidade, de bem-estar, de satisfação, de entusiasmo, de paixão - até mesmo uma sensação de união ou de integração a uma comunidade. Categorias de serviços que exigem a presença ou a proximidade física de uma outra pessoa são freqüentemente utilizadas para identificar esse tipo de trabalho, embora o que é essencial nele, seu aspecto de presença física, é, de fato, a criação e manipulação dos afetos. Esta produção, troca e comunicação afetiva é geralmente associada ao contato humano, à presença efetiva de um outro, mas esse contato pode ser tanto real quanto virtual. Na produção dos afetos na indústria do entretenimento, por exemplo, o contato humano, a presença de outros, é sobretudo virtual mas, nem por isso, menos real. Este segundo aspecto do trabalho imaterial, seu aspecto afetivo, se estende além do modelo de informação e comunicação definido pelo computador. Poderemos entender melhor o trabalho afetivo se começarmos por aquilo que as análises feministas do "trabalho da mulher" têm chamado de "trabalho na modalidade corporal" .13 As prestações de cuidados estão, com certeza, completamente imersas no corporal e no somático, mas os afetos que elas produzem são, não obstante, imateriais. O que o trabalho afetivo produz são redes sociais, formas de comunidade, biopoder. Poderíamos observar aqui, mais uma vez, que II Vllr Dorothy Smith. The ",~),rydlly World as Problematic: a ação instrumental da produção econõmica se " Ft,,,,llIlsl Sociology. Boston: fundiu à ação comunicativa das relações humaNllI'lhlillMlnl'll Unlvcrsity Press, nas. Neste caso, entretanto, não foi a comunica11111'. )I. 7111111.
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ção que se tornou empobrecida mas sim a produção que foi enriquecida até o nível de complexidade da interação humana. Embora, num primeiro momento, por exemplo na informatização da indústria, seja possível dizer que a ação comunicativa, as relações humanas e a cultura foram instrumentalizadas, reificadas e "rebaixadas" ao nível das interações econômicas, deveríamos logo acrescentar que, em um processo recíproco, a produção tornou-se, em um segundo momento, comunicativa, afetiva, desinstrumentalizada, e elevada ao nível das relações humanas - mas, evidentemente, a um nível de relações humanas inteiramente dominadas pelo capital e integradas a ele. (E aqui a distinção entre cultura e economia começa a se esfacelar.) Na produção e reprodução de afetos, naquelas redes de comunicação e cultura, subjetividades coletivas são produzidas e sociabilidade é produzida - mesmo que essas subjetivi?ades e essa sociabilidade sejam diretamente exploráveis pelo capital. E aqui que percebemos o enorme potencial do trabalho afetivo. Não pretendo discutir aqui se o que é novo é o trabalho afetivo em si ou o fato de que o trabalho afetivo produz valor. As análises feministas, em particular, já reconheceram, há muito tempo, o valor social das prestações de cuidados, do trabalho familial e das atividades maternas. O que é novo, por outro lado, é o quanto esse trabalho imaterial afetivo é agora diretamente produtor de capital e a forma como ele se generalizou em amplos setores da economia. De fato, como componente do trabalho imaterial, o trabalho afetivo conquistou uma posição dominante do mais alto valor dentro da economia informacional contemporânea. No que diz respeito à produção do espírito, como diria Musil, não deveríamos olhar mais para o solo e o desenvolvimento orgânico, nem para a fábrica e o desenvolvimento mecânico, mas para as formas econômicas dominantes de hoje, ou seja, para a produção definida por uma combinação de afetos e cibernética. Este trabalho imaterial não está restrito a alguns grupos de trabalhadores como, por exemplo, programadores de computadores ou enfermeiras, que formariam potencialmente uma nova aristocracia de trabalhadores. Ao contrário, o trabalho imaterial em suas várias formas (informacional, afetivo, comunicativo e cultural) tende a se espalhar por todas as forças produtivas e por todas as tarefas, como um componenL , maior ou menor, de todos os processos de trabalho. Isto posto, com
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certeza há válias divisões dentro do universo do trabalho imatelial divisões internacionais, divisões de gênero, divisões raciais, e assim por diante. Como diz Robert Reich, o governo dos Estados Unidos vai fazer todo o possível para manter nos Estados Unidos o trabalho i~atelial mais valioso e exportar os de menor valor para outras regiões. E muito importante esclarecer estas divisões do trabalho imaterial que, devo frisar, não são as divisões de trabalho às quais estamos acostumados, particularmente no que diz respeito ao trabalho afetivo. Resumindo, podemos distinguir três tipos de trabalho imaterial que levam o setor de serviços ao topo da economia informacional. O primeiro está envolvido numa produção industrial que foi informacionalizada e incorporou tecnologias de comunicação de uma maneira que transforma o próplio processo de produção industrial. A produ~ão industlial é considerada como um serviço e o trabalho material da produção de bens duráveis se aproxima do trabalho imatelial e se confunde com ele. O segundo é o trabalho imatelial de tarefas analíticas e simbólicas, que, por sua vez, se divide em manipulação cliativa e inteligente, por um lado e, por outro, em tarefas simbólicas de rotina. Finalmente, um terceiro tipo de trabalho imaterial envolve a produção e manipulação de afetos e requer o contato e a proximidade humana (virtuais ou efetivos). Esses são os três tipos de trabalho que conduzem a pós-modernização ou informatização da economia global. BIOPODER
Denomino de biopoder o potencial do trabalho afetivo. Biopoder é o poder de criação da vida; é a produção das subjetividades coletivas, da sociabilidade e da própria sociedade. A observação atenta dos afetos e das redes de produção de afetos revela esses processos de constituição social. O que se cria nas redes de trabalho afetivo é uma forma-de-vida. Quando Foucault discute o biopoder ele o Ver especialmente Michel olha de cima. É o patria potestas, o direito de vidà (lollcllult. The History 01Sexue morte do pai sobre filhos e servos. Mais imII/lty, vol 1. Nova York: Vinportante, biopoder é o poder que permite às forIUKo, li)7!!, p. 135-45; trad. I~()bol'l Hurley. (Publicado ças emergentes da governabilidade criar, admi~11l (l()I'IIl!lill~S - Hist6ria da senistrar e controlar populações - o poder de ad~'IIII1t1(lIlnI: vuntade de saber. ministrar a vida.14 Outros estudos mais recentes I~I() di' .)ulloll'O: Gl'llltl, 1997; lO
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ampliaram essa perspectiva de Foucault, considerando o biopoder como a lei do soberano sobre a "vida nua", ou seja, a vida separada de suas válias formas sociais.15 Em cada caso, o que está em jogo no poder é a própria vida. Essa passagem política para a fase contemporânea do biopoder corresponde à passagem econômica da pós-modernização capitalista na qual o trabalho imaterial foi levado a uma posição dominante. Aqui também, na criação de valor e na produção de capital, o que é essencial é a produção da vida, ou seja, a criação, a administração e o controle das populações. Essa visão foucaultiana do biopoder, no entanto, focaliza a questão apenas de cima, como prerrogativa de um poder soberano. Por outro lado, quando olhamos para a situação do ponto de vista do trabalho envolvido na produção biopolítica, podemos começar a observar o biopoder a partir de baixo. O plimeiro fato que vemos quando adotamos essa perspectiva é que o trabalho da produção biopolítica é fortemente configurado como trabalho de gênero. De fato, diferentes linhas de teorias feministas já nos forneceram análises amplas da produção de biopoder sob este ponto de vista. Uma corrente do eco-feminismo, por exemplo, emprega o termo biopolítica (de uma forma que poderia parecer, à plimeira vista, bastante diferente da utilizada por Foucault) para se referir às políticas das várias formas de biotecnologia que são impostas por corporações transnacionais a populações e ao meio ambiente, especialmente em regiões subordinadas do mundo.16 A Revolução Verde c outros programas tecnológicos, que foram colocados como meios do desenvolvimento eco- trad.DeAlbuquerque,M.T.C.& GuiIlon de Albuquerque, J.A.) nômico capitalista, trouxeram com eles, na verVer de Giorgio Agamben, dade, tanto a devastação para o meio ambiente Homo sacer. Turim: Einaudi, como novos mecanismos de subordinação da 1995; e "Form-of-life". In: Radmulher. Esses dois efeitos, no entanto, na verda- ical Thought in llaly, ed Paolo Vimo & Michael Hardt Minde não passam de um só. Fundamentalmente o neapolis: University of Minnepapel tradicional da mulher, lembram-nos esses sota Press, 1996, p. 151-6. autores, é de realizar as tarefas de reprodução, Ver Vandama Shiva & Inque foram severamente afetadas pelas interven- gunn Moser, ed. Biopolitics: a Feminist and Ecologial Reader. ~:õesecológicas e biológicas. Deste ponto de vis- Londres: Zed Books, 1!J95; c lu, então, mulher e natureza são dominadas con- Vandama Shiva Staying A/ivn: Ecology and SUrVIV(11 .iuntamente, mas também trabalham juntas numa inWomem, lndia. Londres: Zed DookH, relação cooperativa, contra o ataque das tecno- 1988. 15
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logias biopolíticas, para produzir e reproduzir vida. [SobrevivênciaI7]: a política tornou-se uma questão que envolve a própria vida e a luta assumiu a forma de um biopoder vindo de baixo contra um biopoder vindo de cima. Num contexto bastante diferente, vários autores feministas nos Estados Unidos vêm analisando o papel essencial do trabalho feminino na produção e reprodução da vida. Em particular, a prestação de cuidados envolvida nas atividades maternas (distinguindo-se estas atividades dos aspectos biologicamente específicos do trabalho de parir) tem provado ser um terreno extremamente rico para a análise da produção biopolítica.18A produção biopolítica aqui consiste basicamente no trabalho envolvido na criação da vida - não nas atividades de procriação, mas na criação da vida precisamente na produção e reprodução de afetos. Aqui podemos perceber claramente que se está desfazendo a distinção entre produção e reprodução, assim como a distinção entre economia e cultura. O trabalho atua diretamente nos afetos; ele produz subjetividade; ele produz sociedade; ele produz vida. O trabalho afetivo, nesse sentido, é ontológico - ele revela o trabalho vivo que constitui uma forma de vida e, assim, demonstra novamente o potencial da produção biopolítica. 19 Devemos logo acrescentar, no entanto, que não podemos simplesmente dar nosso total suporte a uma dessas persN.T. Staying Alive. O autor pectivas, sem reconhecer os enormes perigos que brinca, aqui, com o título do elas apresentam. No primeiro caso, a identificalivro de Vandama Shiva, citação entre mulher e natureza cria o risco de se do acima, indicando que, para sobrevivermos no mundo naturalizar e absolutizar a diferença sexual, além atual, temos de estar atentos de propor uma definição espontânea da própria ao fato de a política ter-se tornado um questão de vida. natureza. No segundo caso, a celebração do trabalho materno poderia facilmente servir para 'H Ver Sara Ruddick. Maternal Tltinking: towards a Politics of reforçar tanto as divisões de gênero do trabalho Peace. Nova York: Ballantine quanto as estruturas familiares de sujeição e Books, 1989. subjetivação edipianas. Mesmo nessas análises li' Sobre as capacidades ontofeministas do trabalho materno fica claro o quanlogicamente constitutivas do (l'IIbulho, especialmente no to pode ser difícil, às vezes, deslocar-se o potenconlexlo das teorias feminiscial do trabalho afetivo, seja das construções pa(UN, VllI' KlIlhi Weeks. Consti111/1"1
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por mais relevantes que sejam, não invalidam a importância de se reconhecer o potencial do trabalho como biopoder, um biopoder que vem de baixo. Esse contexto biopolítico é precisamente a base para uma investigação da relação produtiva entre afeto e val.or. O que encontramos aqui não é tanto a resistência ao que poderíamos chamar de "trabalho afetivamente necessário",21,22mas sim o potencial do trabalho afetivo necessário. Por um lado o trabalho afetivo, a produção e a reprodução da vida, plantou-se firme- " Ver Gayatri Chakravorty "Scattered Speculamente como um alicerce necessário para a acu- Spivak. tinnson the Queslion ofValue". mulação capitalista e a ordem patriarcal. Por In: Olher Wurlds. Nova York: outro lado, no entanto, a produção de afetos, de HOlltl!:dgc, 1!J!lil; p. 1!í4-75. subjetividades, e de formas de vida, apresentam ." N.T o autor faz aqui uma enorme potencial para circuitos autônomos de IIlusno 11idéhl marxista de "trabalho socialmcntc necesvalorização e, talvez, de liberação. sário". Tradução ELIZABETH
ARAúJO
LIMA e PAULO
Revisão
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NADINE
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UMA POLÍTICA DO FUTURO-PRESENTE
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QUANTO
o que importa
não é o futuro da revolução mas o devir revolucionário. 1 Vamos agora ouvir falar de novo em revolução. Em vez do fim da História, como desejam alguns, uma história em várias camadas, tempos não sucessivos, mas simultâneos, vários ritmos incongruentes e superpostos como na música dos pigmeus, tempos não pulsados co~o :m Boulez e Cage, devires com movimento retrógrado. A revoluçao e o corpo-sem-órgãos da política. É a partir dela que se distribui o novo espaço da política no tempo que a sucede. A revolução não tem passado, não é determinada; é num surto que se dá o acesso ao corpo-semórgãos da socialidade. Os períodos revolucionários sã~ ~s~ustadores e fascinantes. Benjamin: são como surtos para fora da Hlstona, para fora do tempo. Kayrós, quando se cruzam o tempo dos Deus~s e. o ,te.mpo dos homens. Durante a Revolução, não há tempo, não ha Hlstona. A História nasce à medida que se cristaliza e se perde o vigor dos novos potenciais que se comunicam na sua eclosão. LEMBRANÇAS
DA REVOLUÇÃO
Em 1972, os maoístas franceses explodiam bombas em Nice e na Espanha para estragar o verão dos burgueses. Terrorismo e disp~rate. I,a révolution sera jaite. "A revolução será feita", berravam voluntanstas. Em 1973, vários grupos transformaram-se em bandas. Tocavam nas esquinas, davam conI Iltlltlll'W, (;i1lcs & Parnet, Clnll'll. /JlllloJ(lu.1. certos em asilos de velhos e de órfãos. La ré160
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volution c'est la fite. "A revolução é a festa", gritavam cheios de compaixão. PARIS,
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EU FAÇO
AMOR,
MAIS
EU FAÇO
A REVOLUÇÃO
Uma revolução que não se preocupa em tomar o poder. Dez mil palávras de ordem. Dez mil questões diferentes. Em junho, ainda nas ruas, guerra de paralelepípedos contra o gás lacrimogêneo da polícia. Uma greve geral pára a França. Param as fábricas, os transportes, as comunicações. Ocupações de fábricas e a criação de conselhos operários como os sovietes. Ocupação dos prédios das faculdades para fazer festas e mudar currículos e programas. A imaginação no poder. Cada grupo faz sua própria revolução. Não há questões unificadas, nem líderes. Nos campos, os proprietários fogem de suas terras, armados. Vão acampar nos bosques, nas montanhas, organizados para enfrentar o exército revolucionário que não chega. É a guerra. Mas ninguém sabe quem manda nem o que quer essa revolução. FRANKFURT,
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Theodor Adorno chama a polícia para desalojar os estudantes que ocupam o Instituto de Pesquisas Sociais. Para Adorno é a volta da barbárie, que ele identifica, míope, com a dos nacional-socialistas. Os estudantes não perdoam. Como morreu Adorno, o grande ideólogo do marxismo de Frankfurt? Adorno não cansa de olhar os peitinhos e as coxas de suas alunas, durante as aulas. Depois da rebelião de maio, as meninas contra-atacam. Invadem seu escritório de diretor do Instituto. Tiram as blusas, os soutiens e passam os peitinhos na sua História ouvida de estudancara. Depois tiram o resto da roupa e encenam lima trepada sobre sua mesa de reitor. Horas tes universitários alemães no início dos anos 70. Não sei depois, Adorno morre de enfarte.2 se é a verdadeira história du Não interessa o futuro da revolução. O que morte de Adorno. Nesse momento, não me importll Mil li interessa é o devir revolucionário. verdadeira: é um mito bt1l11 2
construído.
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2. O primeiro grande teórico contra-revolucionário foi Richard Hooker, crilicando a Revolução Inglesa, a primeira, aliás, a merecer esse nome. Em seu Ecclesiastical Polity, Hooker faz um perfil dos mais radicais entre os revolucionários, os puritanos. Pa.ra pôr em marcha um movimento, é preciso ter uma "causa". Há pouco tempo se usa este termo em política, ele foi lançado pelos puritanos. Para promover sua "causa", segundo Hooker, deve-se criticar severamente os males sociais e principalmente o comportamento das elites, e fazê-lo repetidamente. Os críticos devem ser considerados, pelos que os ouvem, homens de grande integridade, "pois somente homens muito bons podem ofender-se tão profundamente com o mal". Depois, deve-se dirigir a crítica de forma direta sobre o governo instituído. Todos os defeitos e a corrupção do mundo devem ser atribuídas ao governo. Fica claro então o que deve ser atacado a fim de livrar o mundo de todo o mal. E após esta preparação, é o momento de indicar uma nova forma de governo como "o remédio para todos os males", assim como identificar os líderes do movimento. Os seguidores do movimento preferirão a companhia de outras pessoas envolvidas com a mesma causa, aceitarão facilmente os conselhos e as orientações dos líderes, "negligenciarão seus próprios interesses para devotar todo o seu tempo ao serviço da causa". "Se algum indivíduo de opinião contrária abre a boca para persuadilos, eles se comportam como surdos, não ponderam as razões que lhes são oferecidas, a tudo respondem repetindo as palavras de João: «Nós somos de Deus; aquele que conhece Deus nos ouve». Quanto aos demais, vocês pertencem ao mundo, e falam da pompa e da vaidade do mundo; e o mundo, feito de gente como vocês, lhes dá ouvido."3 O. primeiro recurso usado pelos puritanos para garantir seu apoio é o de reescrever as Escrituras. Usá-las para finalidades que não estão nelas, para sustentar suas próprias teses. A proposta da Reforma de que todos devem interpretar livremente as Escrituras, certamente levaria ao caos é o que pensam. Cada um dos reformadores, a partir de Calvino, escreve então seu próprio texto canõnico. Os seguidores dos puritanos se abstêm da leitura de qualquer vllegclin, Eric. A nova ciência outra fonte. E exercem uma censura cerrada àquedll f!0/flica. 2.' ed. Trad. JOSé les que lêem ou citam outros autores além dos de VII1K"H Filho. Brasília: Edito1'11 tlnll, Hll\2, p. IO:l sua corrente. A crítica livre, o exercício livre da I 111111(1111, p. 1()4. O!i. teoria são naturalmente banidos.4 I
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Como afirma Eric Voegelin: "nenhum trecho do Novo Testamento permite extrair conselhos em prol de uma ação política revolucionária. Nem mesmo a Revelação de São João, animada pela expectativa escatológica do Reino de Deus [... ] coloca o estabelecimento desse reino nas mãos de um exército puritano [... ] [... ]. No capítulo 20 da Revelação, um anjo desce dos céus e lança Satã num poço sem fundo por mil anos: na Revolução Puritana, [eles] arrogam para si próprios essa função angelical". Passagens de um panfleto puritano de 1641 - Um Vislumbre da Glória de Sion, citado por Voegelin: "Deus tenciona empregar os homens do povo na grande tarefa de proclamar o reino de Seu Filho. [... ] [A voz de Cristo] vem primeiramente da multidão, dos homens comuns. A voz se faz ouvir inicialmente por meio deles, antes que outros a expressem. Deus usa a gente comum para proclamar que Deus Nosso Senhor Onipotente reina. [... ] o povo de Deus é feito de gente desprezada. Os santos são chamados de facciosos, carismáticos e puritanos, de sediciosos e perturbadores do Estado. No entanto eles serão libertados desse estigma, e os governantes se convencerão [... ] que os Santos de Deus [... ] são os melhores cidadãos". A convicção dos governantes, aponta Voegelin, será reforçada por mudanças drásticas nas relações sociais. O panfleto cita Isaías 49:23: "Os reis serão teus provedores; prostrados diante de ti, a face contra a terra, lamberão a poeira de teus pés". Na concepção dos puritanos, a vitória de sua revolução implicará uma mudança radical dos governantes, que agora deverão ser obviamente seguidores de sua doutrina. Outro panfleto, de 1649, com a revolução já em pleno curso - e intitulado Perguntas - também citado por Voegelin: "O antigo grupo de governantes deve ser eliminado, pois «que direito têm os homens meramente naturais e mundanos de deter o governo, que carece de uma justificativa santificada para as menores graças tangíveis?» [... ]. Se esperamos novos céus e uma nova terra «como poderá ser legal remendar o velho governo mundano». O único cur O correto de ação será aquele que resulte em «suprimir para sempr OI inimigos da religiosidade» [... ]. Este mundo é feito de trevas, as qu 111 devem ceder lugar a uma nova luz. Conseqüentemente são inviáv I, 011 Kovernos de coalizão".5 Nessa perspectiva, "o novo reino será univer- [,Ibidem, p. 101\.
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sal na substância como o será em sua reivindicação quanto ao poder: ele se estenderá [querem os puritanos]: «a todas as pessoas e coisas universalmente». E continua Voegelin: "Os Santos antevêem que o universalismo de sua reivindicação não será aceito sem luta pelo mundo das trevas, e sim produzirá uma aliança igualmente universal do mundo contra eles. Por isso os Santos terão de unir-se «contra os poderes anticristãos do mundo» enquanto tais poderes «concertar-se-ão universalmente contra eles». Assim os dois mundos, que supostamente deveriam seguir-se cronologicamente, na realidade histórica transformar-se-ão em dois campos armados universais, empenhados em luta mortal".6 3. É preciso ver na Revolução Inglesa a revolução paradigmática dos tempos modernos. É ela que inaugura a era das revoluções como as conhecemos, até a de 1917.Todas têm uma pretensão ética universalista, trazem um novo quadro ético e político que a partir delas deverá se instaurar de modo universal na Terra, e, ao mesmo tempo, têm seu espaço de ação concreta delimitado por fronteiras nacionais. Richard Hooker é um modelo para os críticos reacionários, que se oporão às revoluções em nome da Razão - foi o principal inspirador do pensamento deJohn Locke, criador do liberalismo político. Eric Voegelin é um teórico político contemporâneo, que se inspira em Hooker, no texto citado, A Nova Ciência da Política. Hooker e Voegelin percebem muito claramente os aspectos sombrios das Revoluções e dos revolucionários, aspectos que vêm perseguindo os projetos revolucionários desde a Revolução Inglesa - o sectarismo, a incapacidade de diálogo com outras formas de pensar, o comportamento de rebanho dos seguidores, satisfeitos com a sua visão rígida da realidade e com a convivenciazinha incestuosa com outros que repetem seus mesmos bordões. Sua crítica lembra a leitura que D. H. Lawrence faz do culto do Apocalipse de SãoJoão e das igrejas que o incorporam - como religião da vingança e do ressentimento - completamente distante da nobreza e generosidade do Cristo dos Evangelhos.7 Os aspectos descritos por Hooker e Voegelin são, numa perspectiva nietzschiana, os aspectos " Ihldem, p. 110·1. reativos das Revoluções e dos revolucionários. I I.IIWI'CIICC, D. H. Apocalypse. E é claro, apesar da precisão de suas críticas aos l.olull'l'N: I'clIguin l!J76 (L' 11t1" IU:II), aspectos reativos, eles não são capazes de ver
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ou descrever os aspectos ativos e criadores de uma Revolução, seu cor· po-sem-órgãos, que só é experimentado por quem a vive no centro d ' seu movimento de criação. Este movimento, aliás, é sempre traído em sua narração posterior, que exclui todo o devir, a ambigüidade, as contradições, suas zonas de indiscernibilidade, sua alegria enlouquecida, suas paixões e tragédia. Seu caráter paradoxal e criador é traído nas formas cristalizadas da História. 4. Sessenta e oito marcou o fim da era das Revoluções Modernas. Ainda não falando sua língua, mascarada com os discursos e categorias do passado, ela produz paradoxalmente outra coisa. Sem fala. Mil, novecentos sessenta e oito representa o ponto mais alto e mais paradoxal dos. processos revolucionários e assim dá a ver, com clareza, a beleza paradoxal de todos os outros. Uma revoluçã.o que não apresenta mais um novo quadro de valores com pretensões universais. Ao contrário, promove singularizações, faz diferir continuamente suas intenções; não tem centro, nem se delimita por fronteiras nacionais. Do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (UFRJ), na Rua Marquês de Olinda, acompanhávamos nossa revolução em Paris, Chicago, Buenos Aires, Frankfurt, Cidade do México. Fizemos uma manifestação em Botafogo contra os tanques soviéticos invadindo Praga. 5. A Cristã, a Reforma, a Liberal e a Comunista. As revoluções foram os grandes momentos de criação ética, quando se produziram e se exercitaram novos modos de ser em sociedade, novas maneiras de existir. O caráter de surto criador, ou o corpo-sem-órgãos das revoluções transforma-as em caixas-pretas para seus sucessores. O Iluminismo é a traição inteligente da revolução, os aristocratas alemães que colonizam o pensamento revolucionário inglês e francês a partir d Kant. E inventam uma revolução movida pela Razão. A invenção d' valores não é racionalizável. Os modos-de-ser, a sua construção é est . tica, ou ético-estética, movimentos corporais, correspondências s n f· veis, ritmos, cores e afetos. A crítica racional dos valores é igualm nt inútil, filha da mesma traição iluminista. Em caixas-pretas, traço d • grandes revoluções, cristã, da Reforma, Liberal e Comunista brlll 1ft ainda, como universos incorporais, balizando a construção d t nU rios existenciais. Ver, por exemplo, os traços de Liberdad ,Igutu I I
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e Fraternidade, na trilogia do cineasta polonês Kieslowski - Azul, Branco e Vermelho.8 6. O trabalho e a Técnica eram compreendidos por Marx como mediadores entre a sociedade e a Natureza, num longo processo que se acelerara com a Revolução Industrial. O trabalho como forma de organização da sociedade, e as máquinas que lhe estão associadas, produziriam uma hominização da Natureza. A Revolução comunista viria apenas completar, no plano da organização da sociedade, um processo iniciado com a revolução técnica da indústria. O lugar da técnica, no entanto, foi deslocado com a atual revolução tecnológica. Em lugar de objeto neutro, cujo sentido estava sujeito à ética da organização social; em lugar de materialização da teoria e do pensamento operatório, que teria seu valor ético acrescentado de fora, pelo seu uso social, as máquinas hoje são imediatamente expressão de valor. Gilbert Simondon (Do Modo de Existência dos Objetos Técnicos).9 Não há novos agenciamentos técnicos qu~ não sejam imediatamente novos agenciamentos éticos. Revolução técnica e revolução ética imediatamente associadas. Este foi o grito enigmático de 1968. A atual revolução tecnológica pede a criação de grandes exploratoria éticos. Não mais a definição de uma nova tábua de valores - como a cristã, a liberal ou a comunista - mas matrizes de grades valorativas. experimentais, múltiplas variações dos usos da vida. Como os funtores e os diagramas nas Cartografias Esquizoanalíticas de Félix Guattari.1O Trois couleurs: bleu, trois couleurs: blane, trois couleurs: rouge (em português: A liberdade é azul, a igualdade é branca, .a fraternidade é vermelha). Ver: França, Andréa. Azul, branco e vermelho. A trilogia de Kieslowski. Rio de Janeiro: Sette I.clrus, W96. R
" Slmondon, Gilbert. Du mode li 'f,xútence des objets techniques. 1'1I1'1H: Aubicr, 1989 (ed. revi~lIdll). Félix. Cartogra.frlllt.lIllnlllytique.f. Paris: (.,1"111/111, lU 1111. 111
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7. Em 1987, Félix Guattari e Antonio Negri escrevem Os Novos Espaços de Liberdade, por saudosismo ou bela homenagem, um novo manifesto comunista.
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individuais ef ou coletivas, esmagadas, bloqueadas [... ] irá gerar novas relações de desejo suscetíveis de «inverter» a situação presente. [... ]. Trata-se de [... ] uma reconquista do domÚüo sobre o tempo de produção, que é o essencial do tempo da vida. A produção de novas formas de subjetividade coletiva, capazes de gerir segundo finalidades não capitalísticas as revoluções da informática, da comunicação, da robótica e da produção difusa."" Definem mui claramente as novas categorias revolucionárias, que implicam uma compreensão do trabalho não mais como praxis, mas como poiesis, meio de produção de mundo, imediatamente técnica e valor, ação produtiva de objetos e produção de subjetividade; o fim de qualquer pretensão universalista na expressão de seus valores, e a contínua produção de mundo e valor com a velocidade das novas tecnologias - i.e., um estado de revolução permanente. • Continuam Guattari e Negri: "Os universais políticos não são portadores de nenhuma verdade transcendente; [... ] eles são inseparáveis dos territórios particulares de poder e de desejo dos homens. A universalidade política não poderá pois se desenvolver através da dialética aliado/inimigo, como as tradições reacionária e jacobina o prescrevem. A verdade «ao alcance do universo» constitui-se pela descoberta do amigo na sua singularidade, do outro na sua irredutível heterogeneidade, da comunidade solidária no respeito pelos seus valores e finalidades próprias. Tais são o «método» e a «lógica» das marginalidades que são assim o sinal exemplar de uma inovação política adequada às transformações revolucionárias solicitadas pelos modos de agir produtivos atuais."12 E concluem:
"Nós recomeçaremos a chamar comunis m'o à luta coletiva pela libertação do trabalho. [... ]. Só um movimento imenso de reapropriação do trabalho, enquanto atividade livre e criadora, enquanto transformação das relações entre os sujeitos, só uma revelação das singularidades
"Após alguns séculos de domínio capitalista ef ou socialista, produção e sociedade tornaram-se uma e a mesma coisa. É um fato sem retorno. As máquinas de luta revolucionária devem tornar-se elas mesmas modos de
11
Guattari, Félix & Ncgrl, 1b.
ni. Novos espaço.! de UI/m/fl//"
Lisboa: Centelhn, W1I7, p, 11, 12
Ibidem, p. 24.
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agir produtivos das novas realidades sociais e das novas subjetividades. Sua questão passa a ser então, estritamente, a da Produção de Subjetividade. Este seria o campo de luta principal pois é por aí, contra a produção de subjetividade monopolizada pela mídia e o consumo cada vez mais uniformizado do Capitalismo planetário que se devem desenvolver os meios de singularização individual ou coletiva, de heterogênese, a abertura para novos modos de ser, que chamaremos hoje de comunismo."13 Em 84, Guattari e Negri ainda falavam do Estado, dos partidos políticos e do movimento sindical, da necessidade de atuar com e sobre esses espaços, na busca de mudanças legislativas que propiciem a promoção e desdobramento dos modos de ser singulares. Mas, em 1987, no texto liminar ao Cartografias Esquizoanalíticas, Guattari já não se refere ao Estado nem a quaisquer das instâncias a ele associadas. Como se o poder dos Estados-nacionais já não representasse grande coisa para uma luta que tem o Capital Mundial Integrado como seu opositor e que portanto só se pode organizar em agenciamentos internacionais articulados a partir de movimentos locais, para os quais os limites nacionais pouco significam. (Obs. É evidente que a forma Estado-nação tem cada vez menos importãncia na Europa de Maastricht ou em todo o velho Primeiro Mundo; no entanto a ação sobre o Estado, passando pela via legislativa, tem ainda espaço nos países do Terceiro Mundo como mostra, por exemplo, Peter Evans em estudo sobre a globalização econômica e a função dos Estados nas economias emergentes - México, Índia, Brasil, Coréia, Cingapura, Vietnã, Malásia, etc.14- e - Harry Cleaver15 falando do uso de noções como sociedade civil e direitos humanos pela esquerda mexicana ou brasileira, num movimen1" Ibidem, p. 36. to de criação de um Estado democrático que realEvans, Peter. Embedded Aumente funcione - o que soa como anacronismo lonomy. States & Industrial Transformation. Princeton Unipara as alternativas de esquerda européias.) 14
versity Press, 1995. L'
Cleuver,
pus
Harry. The Chia-
Uprising and the Future oI' Clnss Struggle in the New World Order. Fevereiro de 11104· - publicado primeiraIlInlllo nu revista italiana UAN'(Páduu, s.d.)
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8. Mas onde está a revolução proposta por Guattari? Um passeio pela Internet mostra uma ampla variedade de sites políticos, para todos os gostos, desde os ambientalistas que já foram mais
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ativos e eficazes, como o da Greenpeace, aos mais recentes como o lndigenous Environmental Network, ligando as lutas ambientalistas às lutas dos povos indígenas; sites dos movimentos minoritários como os homossexuais Lesbian Mothers Support Society, National Freedom to Marry Coalition, Digital Q,ueers, ou os da liberação do uso de drogas - o mais articulado National Organization for the Reform ofMarijuana Law (específico para os E.U.A.); até os sites de discussão política como o Liberals & Libertarians, ou a Netizen da Hot Wired, que acompanhou durante um ano as práticas curiosas da mídia e dos diversos agentes nas campanhas dos dois partidos para as últimas eleições presidenciais nos Estados Unidos. Mas algo com a intensidade e as passagens entre dimensões e naturezas diversas que caracterizam um movimento revolucionário só aparece nos sites que se associaram em tomo do Exército Zapatista de Libertação Nacional mexicano - o movimento dos grupos indígenas federados, que circula pela Selva de Lacandona, em Chiapas. A comunicação internacional e apoio às lutas dos zapatistas através da internet tiveram um efeito evidente sobre os modos como o governo e o exército mexicanos se comportaram em relação à revolta armada em Chiapas, que no dia 1.0 de janeiro de 1994 - dia em que entrou em vigor o acordo de livre comércio Estados Unidos/Canadá/México, o Nafta -, ocupou militarmente cinco vilas da região. A primeira reação do governo mexicano teve a brutalidade que marca esse tipo de ação militar no Ocidente, desde o Vietnã - invasão de aldeias, massacres indiscriminados de camponeses suspeitos de pertencer ao EZLN, etc.16 Mas esse primeiro movimento foi logo sustado tendo em vista a quantidade e variedade dos apoios vindo do exterior assim como de outras camadas da sociedade mexicana organizadas na CND - Convenção Nacional Democrática - um movimento não partidário, da sociedade civil. Muitos suspeitos ainda estão na cadeia, o exército continua ocupan- 16 Entre 3 e 10 de janeiro de do a região, e os grupos paramilitares matam 1994, a "resposta" do exérci(numa guerra de "baixa intensidade"), mas o to mexicano matou 157 peM soas e deixou 427 "desapa· governo propõe negociações (lentas, intermi- recidos", além de dewlocllr náveis ... ) e evita o escândalo de ações extrema- 30.000 civis de suas uld 111M para acampamenloN nUMmUII das. Outras lutas camponesas e de povos indí- tanhas e CampOH d I' ('li !tI genas por todo o México se articularam às lutas dos.
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dos zapatistas. A internet foi o principal meio de comunicação nessa luta. Diz um documento da Acción Zapatista, principal site de apoio, sediado na Universidade do Texas, Austin - "Zapatismo no Cyberespaço":'7 O computador também favoreceu uma nova forma de organizar que se aproxima do espírito dos zapatistas em sua forma de organizar-se em Chiapas. As redes eletrônicas permitem a criação de um tecido de comunicação e cooperação democráticas, que se move rapidamente e com fluidez. Em contraste com organizações,·tradicionais que tendem a ter estruturas rígidas, hierárquicas, de cima a baixo - mesmo as organizações revolucionárias - este tecido eletrônico de organização é uma rede lforizontal com uma infil}.idadede nós. Os esforços para IMPOR estruturas hierárquicas no ciberespaço têm dado pouco resultado porque os participantes podem abandonar esse terreno com facilidade e criar de novo seus próprios contatos, listas, conferências, ou grupos noticiosos. Foi por meio da rede que se organizou o primeiro Encontro Internacional, na selva, em: Chiapas, em julho de 1996, reunindo três mil ativistas e intelectuais de quarenta e dois países e cinco continentes. O encontro foi convocado em janeiro de 1966, com a preliminar de cinco conferências nos cinco continentes, para discutir Ações pela Humanidade e contra o Neo-Liberalismo - os efeitos do neoliberalismo em diversas áreas de experiência: econômica, política, social, cultural e sobre as populações indígenas. Na convocação para os Encontros, os zapatistas afirmam seu compromisso pela paz e sua análise de uma transição necessária para um "verdadeiro espaço de luta democrático". Recusam o papel de vanguarda numa luta que deve incluir todos os setores da sociedade mexicana e propõem que a atual fase do capitalismo globalizado oferece condições para integrar através das redes eletrônicas, e outros meios, um amplo espectro de grupos políticos em todo o planeta. Eles insistiam sobre a nova forma dos fóruns como a produção de "diálogos sem fim baseados necessariamente sobre relações sociais não hierárquicas e pelo conflito democrático" .18 Lá estavam Mme Mitterand e Régis Debray, representantes do PT e de muitos partidos socialistas e comunistas das' Américas e de centenas de organizações não-goIn hUIJ.'!/www.eco.utexas.edul vernamentais de todo o mundo. Um dos resullill'fIlly/(:16I1ver/c/tiapas95.html 1111 l(oplwl'://eco.utexas.edu. tados do encontro foi a criação da Rica - Rede Intercontinental de Comunicação Alternativa I1
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como veículo para "troca de experiências e discussão de estratégias glo bais para a luta contra o capitalismo e para o desenvolvimento e expllll são de ampla variedade de modos de organizar a vida social", como diz sua carta de princípios. O segundo Encontro aconteceu entre 25/7 e :11 8/1997, na Espanha. W Entre os sites associados à Rica, e à Acción Zapatista, estão lhe Guatemalan Students Home Page, do movimento estudantil guatemalteco, a Tlte Mexican Solidarity Page sediada em Montréal, no Canadá (ambas têm versões em inglês e espanhol); o Movimento dos Trabalhadores pela Solidariedade (Workers Solidarity Movement), um grupo anarquista na Irlanda; a Instructional Workers Page, do sindicato dos trabalhadores intelectuais nas universidades públicas do Texas; a página Food Not Bombs, An Anarchy Homepage; Burn!, uma revista eletrônica sediada na Universidade da Califórnia em San Diego, e que integra os grupos Arm the Spirit, Long Haul Infoshop, Groundwork Books, a Rede de Informação CurdoAmericana (American Kurdish Information Network), e Art For @ Change. Outra página é a SOUDARITY, organização socialista fundada em 1986, por socialistas revolucionários que buscam um reagrupamento das esquerdas nos E.U.A., a partir de organizações de base. Fora dos Estados Unidos, em Hanôver, Alemanha, o The Alternative Guide through the WWW- Galaxy canaliza os sites em alemão, a European Counter Network, os sites em italiano e inglês.20 Não há muitos recursos diferentes na rede: contatos de pessoa a pessoa, conferências ou conversas em tempo real; listas, em que muitas pessoas contribuem e têm suas propostas acrescentadas num conjunto crescente, e coordenadas por um moderador não em tempo real; revistas/noticiosos que poIbidem. Em 1998, novem dem ter um corpo de editores e colaboradores bro 22-25, o encontro do espalhados por qualquer parte do planeta onde EZLN com a sociedadc civil, em Chiapas, contou com 1'0 haja telefone. Como afirma Pierre Lévy, a dife- presentantes de muitos grUpON rença principal em relação à mídia eletrônica internacionais que npóltln1 11 anterior é a passagem de um sistema de comu- luta zapatista. Em dc1. mbl'O de 1998, aconteccrum Illlcon nicação um-todos a um sistema todos-todos. To- tros regionais nu DlnIl1111U't'II, dos podem acessar todos. A diferença política na Alemanha c nu Ildlllu, aí é como propõe um artigo deJohn Arquilla & 20 Ibidem. David Ronfeldt da Rand Corporation,21 sobre a 11CYllERWARIStJOMIN I Cyberwar - os usos do ciberespaço na guerra: .John Arqulllll & nlwld I 11 19
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''A História demonstra que, na vida incipiente de uma nova tecnologia, as pessoas enfatizam os efeitos de eficiência e subestimam os efeitos potenciais sobre o sistema social. O avanço nas tecnologias de rede torna possível pensar pessoas, juntamente com bases de dados e processadores como recursos de uma rede [... ]. A revolução da informação põe em xeque o design de muitas instituições. Rompe com as hierarquias e redistribui o poder, freqüentemente em benefício dos agentes considerados mais fracos e menores. Atravessa fronteiras e redesenha os limites de escritórios e responsabilidades. Expande os horizontes espacial e temporal que os agentes levam em conta. Assim, ela obriga sistemas fechados a abrirem-se. Embora isto seja difícil para instituições antigas, grandes e burocráticas, a forma institucional per se não está ,se tornando obsoleta. [... ]. As mudanças que preocupam as instituições, como a erosão da hierarquia, também favorecem o crescimento de redes multiorganizacionais. [... ]. A rede tem uma forma diferente da forma institucional [... ] redes multiorganizacionais consistem de (sempre pequenas) organizações ou partes de instituições que se ligaram para agir conjuntamente. [... ] [Assim,] agentes diversos e dispersos podem se comunicar, consultar, coordenar e operar juntos através de grandes distâncias e com base em mais e melhor informação que nunca antes." Eles criam uma nova categoria de guerra, além da política, econômica, social, todas podendo associar-se à guerra militar propriamente dita: a netwar, guerra de rede. E entre as netwars está esta em que movimentos em torno do mundo se organizam de modo crescente atravessando as fronteiras nacionais e criando coalizões, e identificando-se mais com a sociedade civil - uma sociedade civil globalizada - que com os Estados-nações. Segundo os autores, esta deveria ser a próxima grande fronteira do conflito ideológico e a netwar seria sua principal característica. Os zapatistas foram mais longe. Em La Revolución Globa~ dizem:
f'('lclt.Inlcrnlllional Policy Deplll'lll1tlnl. RAND Journal of (:""'PllrIIllvtStrattlfj 72(2);141-
M, 1110:1.
"No passado, os esforços revolucionários buscaram a unidade através da promulgação e adesão a uma ideologia. Aprendemos de forma dura e penosa que esta prática não serve. Nós, os
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seres humanos, nossas idéias, nossas culturas, nossas formas de fazer as coisas são muito variadas. Os esforços de homogeneizar-nos são destinados ao fracasso. Em lugar disso, devemos buscar uma unidade mais orgânica, como as diferentes e complementares formas de vida que evoluem numa ecologia auto-sustentada." Onde a rede atua diretamente? Os militares falam de C3I, "comando, controle, comunicações e inteligência".n 9. Pierre Lévy fala de sinergia, em que, em um trabalho de grupo, a proposição de um se prolonga na do outro, dos outros, em tempo real mensagens que se ampliam/reformam/crescem/transformam no ato da troca. Ao processo como um todo ele chama de criação de uma "inteligência coletiva". Pierre Lévy criou um sistema de produção de Inteligência Coletiva, num software intitulado Árvore do Conhecimento; infelizmente não está na rede. Ele o vende e ensina como usar, para grandes empresas e instituições. Está sendo usado pelo metrõ de Paris, por algumas universidades, uma francesa e outra escocesa. No Brasil, seu uso é promovido pela DDIC (http://www.ddic.com.br). A DDIC já o está usando no programa de pós-graduação da PUC-São Paulo, como árvore de gestão de projetos de pesIn: Arquilla & Ronfeldt. op. quisa (professores, mestrandos, doutorandos ... ). cit. Já foi adotado em uma escola particular de São 23 Lévy, Pierre. As tecnologias da inteligência. Ofuturo do penPaulo (Logos) e deve chegar à Escola Superior samento na era da informática. Trad. Carlos lrineu da Costa. de Administração Fazendária, em Brasília.23 Rio de Janeiro: 34 Letras, No modelo original de Lévy é um sistema em 1993; Lévy, Pierre & Auque se inscrevem todos os participantes de uma thier, Michel. As árvores de coinstituição de tamanho razoável e portanto ten- nhecimentos. Trad. Monica M. Seincman. São Paulo: Escuta, dente à impessoalidade nas relações e à criação 1995. Mais informações em: de grupelhos variados, separados por preconcei- Arbor & Sens - http:// www.globenet.org/arbor/; tos, ou simplesmente lutando pelo poder, nas for- Arbres de connaissance pOUl' mas mais baixas, como acontece nas nossas gran- une nouvelle école http:// des universidades. Cada pessoa, do servente ao www.erasme.org/acne/j Awu ciación Espaiíola de 1b1 lrn reitor, faz um currículo onde especifica tudo o bajo - http://www.clb rI ti, que sabe fazer, de preferência na ordem em que es/aet/; - Cercq - hllp:// www.cereq.rr/ c - 'orlall esses saberes foram adquiridos, mas não restritos Gingo - hltP://WWW.11111 aos diplomas acadêmicos - entra tudo no currí- quilowcb.fr/ orl X/ 22
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culo: aprendi piano com minha mãe, faço uma ótima macarronada, sei comprar peixe, soltar pipa, jogar poker, fui jornalista e sou doutor em matemática. Essas fichas são feitas de modo que possam todas interagir. Na hora que preciso de uma receita de macarronada especial, tenho a lista dos bons cozinheiros; da mesma forma, se quero montar um grupo de pesquisas e preciso de um modelizador matemático, um antropólogo, um biólogo, e estagiários em antropologia e biologia. Em cada situação e em cada posição que eu esteja e precise e queira ter a ajuda de outras pessoas ou fazer algo com um ou mais parceiros/parceiras. O sistema corrói o peso da hierarquia da instituição, dá uma flexibilidade e uma velocidade muito grande a qualquer momento da produção ... ou do lazer. Talvez o aspecto central da estética das revoluções seja este da ampliação de possibilidade de relações entre as pessoas de origens, classes, culturas, raças, sexos, países, planetas os mais diversos. É uma festa. A revolução é uma festa, como diziam os ex-maoístas franceses com suas bandas. (Pierre Lévy é criticado como crente num certo determinismo das mudanças tecnológicas sobre as transformações sociais. A mesma crítica era feita, com um pouco mais de conseqüência, em relação a Marshall McLuhan, nos anos 70, por toda a intelectualidade européia de esquerda. Como engenheiro de softwares, no entanto, Pierre Lévy tem a experiência da interpertinência entre os aspectos técnicos e éticos [ou etológicos, ou políticos] em qualquer sistema informatizado, e é nessa direção, na linhagem simondoniana, que aponta, ao não discutir de maneira independente as questões técnicas e ético-políticas das novas tecnologias.)
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cor da asa da graúna. Todas as características de Fulana incluídas, amála é algo a mais que não está em nenhuma classe. O grau de conhecimento mais profundo que é o amor, o amor terreno e o amor de Deus, me coloca nesse estado. Aquilo que eu não posso esgotar com as palavras; que por mais que fale ainda não a.preendo inteiramente. Isto é o que é verdadeiramente comum a todas a.s coisas: a sua singularidade. Como organizar-se politicamente não em função da classe a que se pertence: ser trabalhador, ser negro, ser mulher, ser brasileiro ou camponês? Como organizar politicamente fora de qualquer classe, a partir disto que é comum a todos? - eis o novo projeto comunista.21 A proposta é bonita. Seu efeito é, ao mesmo tempo, poético e, aparentemente, um bom argumento. Mas, e daí? Uma etimologia pode ser responsável por escolhas políticas? Etimologias são bons argumentos políticos? Nosso encanto apenas mostra o quanto ainda nos resta da esperança, de que todas as lutas singulares e dispersas encontrem novos modos de se articular naquela grande nuvem .luminosa que varria o planeta e costumávamos chamar de Revolução. Estas articulações vão precisar se fazer sempre e se refazer, não para a construção de um só caminho, mas integrações variadas marcadas por correspondências sensoriais, e entre afetos, concepções do trabalho ou da natureza, casamentos provisórios, coletivos provisórios, sempre a se constituir e desconstituir, como o movimento das redes. Não interessa o futuro da revolução, o que interessa é o devir revolucionário. Voltemos então aos zapatistas, e ao presságio Agamben, Giorgio. The Copoético de Ricardo Domínguez: ming Community. Trad. por 24
10. Giorgio Agamben pergunta como fazer política hoje, quando todas as categorias políticas ruíram. Pergunta se tem sentido propor um novo Comunismo. Lembra então a categoria da Escolástica, do quodlibet, a "qualquer coisa". (Q,uodlibet ens est unum, verum, bonum seu perfectum - qualquer ente é uno, verdadeiro, bom, ou perfeito.) "Qualquer coisa" não era entendido como "não importa o que", mas como "o que realmente importa". Libet é do verbo querer, como em português - qualquer - qual dentre todas as coisas eu quero. Os seres na sua singularidade não podem ser conhecidos de forma meramente intelectual com as cutcgorias ou classes aristotélicas (quando, sempre o ente x pertence à C'lllRS(~ y). Assim é por exemplo, no amor: eu não posso dizer que amo 1,'uIUllll porque ela é bela, inteligente, tem olhos vibrantes, cabelos da
"Na selva delirante de Lacandona flutua uma construção temporária de plantas, carne e circuitos que está tentando desenvolver uma perturbação rizomática, a «antecâmara» de uma «revolução que tornará a revolução possível.. .». Os zapatistas não são a primeira revolução pós-moderna, mas a última; eles são a mediação, em vias de desaparecer, entre a quebra do espelho da produção (capital morto) e o estilhaçar do cristal da (des)materialização (capital virtual)."25
Michael Hardt. The University of Minnesota Press, 1993. R. R. Domínguez. Run for the Border: The Taco Bell War,
25
p. I. Ricardo Domínguez trabalha ao lado de Stefan Wray no projeto The Electronic Disturbance Theater, que COOl'do nou bloqueios eletrOnicoH 11 sites como o da Presidl!nclll ctll República do México, 11 !lol sa de Valores do M6xlro 01111 Casa Branca, em rlUlllN dnhH' minadas, em upolu (I 111111 do EZLN. Pum In I'UI'IllIlÇnU I
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POR UMA ÉTICA DA METAESTABILIDADE NA RELAÇÃO HOMEM-TÉCNICA .
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da humanidade e da técnica é o limite do pensamento ontogenético, que se caracteriza por pensar a gênese dos sujeitos e dos objetos inserida num mesmo processo de evolução: o processo de individuação do ser. Tal pensamento implica uma renúncia às concepções puramente instrumentalistas e antropocêntricas - que reduzem a técnica a um conjunto de meios (neutros), utilizados para obtenção de fins que lhe são totalmente expostos do exterior - assim como às concepções puramente pessimistas, que analisam a questão da técnica em termos de impacto negativo sobre a suposta "natureza humana". Estas são concepções que se mostram incapazes de dar conta da complexidade da realidade técnica, especialmente na sociedade contemporânea. É preciso pensar a técnica como uma dinâmica que retroage sobre os homens, sobre a inteligência, os sentimentos e sobre valores culturais, dinâmica esta em que todos os homens são convocados a participar de forma criativa e conseEste artigo é uma versão parcialmente modificada da conqüente. clusão de rrúnha dissertação Não se trata, conforme afirma Gilbert Simonde mestrado intitulada A relaç(/() homem-técnica como procesdon, "de uma técnica como meio, mas antes •HI de individuação do coletivo, como ato, como fase de uma atividade de relaorlcmtndn pelo Prof. Dr. Peter ção entre o homem e seu meio [...] a energia do l'(l1 l'eI hlll'l. PUC/SP, 1997. Slmondon. Culture et gesto técnico, tendo progredido no meio, retorIl'dllll((lIC!./JlIlletin de l'lnstitute na sobre o homem e lhe permite se modificar e ri, l'IIl1o.HI!Jhie de l'Université 1,1/1" ti, /lrrtxcllc.I, I!Hi!i, p. H. evoluir ...2 CO-EVOLUÇÃO
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A relação do homem com a técnica é concebida como um dos aspectos da relação do homem com o mundo. Tal relação não está calcada em uma distinção do homem e do mundo enquanto sujeito e objeto. Homem e mundo formam um único sistema. Temos de admitir entretanto que as tecnologias contemporãneas têm gerado efeitos contraditórios: apresentam aspectos potencializadores e aspectos despontencializadores da subjetividade, o que de certa forma responde pelas atitudes pessimistas de um lado e (excessivamente) otimistas de outro. Ao refletir sobre tais efeitos contraditórios, Félix Guattari reconhece inicialmente que a técnica tem dupla tendência: uma homogeneizante, universa lista e reducionista, que no pior leva à mass-midialização embrutecedora; e outra que reforça a heterogeneização e singularização de seus componentes e, no melhor, leva à criação de novos territórios existenciais.3 Entretanto, ele reconhece que a primeira tendência tem predominado nas sociedades capitalísticas: A questão que volta aqui de maneira lancinante consiste em saber por que as imensas potencialidades processuais trazidas por todas essas revoluções informáticas, telemáticas, robóticas, biotecnológicas, dos escritórios [bureautiques] ... até agora só fizeram levar a um reforço dos sistemas anteriores de alienação, a uma mass-midialização opressiva e a políticas consensuais infantilizantes.4 É que, se por um lado, a nova ordem econômica e social parece solicitar o que Guattari chama de uma subjetividade criacionistd' , por outro, ela tem tido enorme eficácia em sua ação reterritorializante - o Capital como modo de reterritorialização universal tem conduzido todas as atividades humanas e os processos maquínicos à uma equivalência generalizada. A saída, para Guattari, consiste numa reapro-
priação dos equipamentos coletivos de subjetivação,
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F. Guattari. Caosmose: 11m '111 vo paradigma estético. 'Irad. Anil
3
Lúcia de Oliveira & Llíclll '. Leão. Rio deJaneiro: Ed. :I'h
1992. 4
F. Guattari. Da pl'Odllçllu rlH In: A, 1'111'""1
subjetividade. (org.). Imag6m
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das tecnologia.1 rll) vlrlual, 1\11 1 Ih • Janeiro:
Ed, 114, 1111111, li, IM7,
F. GUIlUltrl, Ao! Irll, '111/111, CllmphullI: I'npl"", 1U1I1I,
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ou seja, de todos os sistemas maquínicos que são suporte dos processos de subjetivação (máquinas técnicas, sociais e religiosas, por exemplo).
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Ele enfatiza entretanto - com base nas análises foucaultianas -, que essa reapropriação deve considerar o intrincamento inevitável de três vias/ vozes produzidas por tais equipamentos, e que estão na base dos processos de subjetivação das sociedades ocidentais contemporâneas: as vozes de poder, que incidem de forma coercitiva e dominadora sobre os corpos, e de forma imaginária sobre as almas; as vozes de saberes tecnocientíficos e econômicos; e finalmente as vozes de auto-referência - processuais, autofundadoras e criativas. A afirmação isolada de uma dessas três vozes capitalísticas, como resolução dos problemas atuais, tem redundado em dogrnatismos de todo tipo, barrando qualquer produção de novos valores existenciais e de desejo. No que se refere ao poder busca-se um retomo às antigas identidades de povo, raça, religião, casta e sexo; no campo dos saberes, ou se mantém uma fé ilimitada e irresponsável no capitalismo e no progresso tecnocientífico, justificando todas as devastações humanas, culturais e ambientais, ou, ao contrário, adota-se uma atitude antitecnológica; e por fim, a radicalização na idéia da criatividade, desvinculada das outras vias/vozes, leva muitos a uma marginalidade crõnica. Guattari quer descartar com isso qualquer idéia de determinação unívoca: as dimensões que concorrem para o engendramento da subjetividade não mantêm relações hierárquicas obrigatórias e fixadas de forma definitiva, e por isso não podem ser pensadas isoladamente.7 Esse pensador convoca todos que continuam ligados à idéia do progresso social - não no sentido instrumentalista do termo mas no sentido de "processo social"- a priorizarem essas questões relacionadas à produção de subjetividade, buscando entre outras coisas, reconciliar os valores e as máquinas. O que passa necessariamente, a nosso ver, pela definição de uma ética das virtualizações/individuações/subjetivações operadas pelas novas tecnologias. METAESTABILIDADE
E INFORMAÇAo
Embora a questão ética não seja temática central na obra de Simondon, observamos que há uma preocupação étiF. UlIlIlllIl'l. C(losmose: um noI/"/lIlrIul/Nmll e.l'ldlico, p. 11.
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ca, ou melhor, um sentido ético, que atravessa e sustenta todo o seu pensamento, criando assim
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uma rede conceitual que se apresenta como verdadeiro tratado de ética. Veremos que a crítica endereçada ao monismo substancialista e ao dualismo do pensamento filosófico ocidental (o esquema platõnico e o esquema hilemórfico aristotélico), se desdobra em uma crítica à distinção - operada por esse mesmo pensamento -, entre dois tipos de ética: a ética pura (ou teórica) e a ética prática (ou aplicada). Pois é a separação entre a substância e o devir, e a conseqüente definição do ser como um, como dado na substância individuada e acabada - e portanto fora do devir - que institui essa distinção ética.8 A ética pura é aquela que preserva a substancialidade, a imutabilidade, a eternidade do ser. É a ética do sábio, do instruído: da ordem da contemplação ela se opõe à ação e à vida. A ética prática, aplicada ou "da ação no presente" é a que confere um privilégio ao devir enquanto devir, ou seja, concebe o ser em perpétuo movimento ou evolução. Para Simondon, essas duas éticas são igualmente parciais, na medida em que só obtêm sentido na própria oposição que estabelecem entre si: "a coerência interna de cada uma dessas éticas se faz pelo negativo, como recusa das vias da outra". A substancialidade da ética do sábio não é senão "uma contra-existência, um anti-devir, e este tem necessidade de que em torno dele a vida evolua para que seja dada a impressão de sua substancialidade".9 Simondon faz analogia entre esse tipo de relação e a relação entre o homem sóbrio e o homem embriagado onde aquele tem necessidade deste para se saber sóbrio - e entre o adulto e a criança - na qual o primeiro necessita do segundo para se saber racional. É na teoria da individuação, mais especificamente nas noções de metaestabilidade e informação, que Simondon fornece as bases de sua ética. Uma vez que a individuação é concebida como troca de informaçflo, sendo condicionada pela ressonância interna de um sistema que se e~ . tua de forma fracionada, não é possível admitir "nem uma ética da eternidade do ser, que visa G. Simondon. /"'I"rJlvl!luII tion psychique el coll6Cltv,.I'Ilrlll consagrar uma estrutura uma vez descoberta, Aubier, 191\9. como definitiva e eterna",lO, "nem uma perpétua evolução do ser sempre em movimento ..."ll 9 Ibidem, p.237. Nem pura estabilidade, nem pura instabilidaIbidem, p. :lllM. de. Trata-se antes de uma operação que se balbld m. 8
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seia numa série de equilíbrios metaestáveis, que tem como fórmula, como elemento disparador, a informação - entendida como "a maneira através da qual um sistema individuado se auto-afeta e se auto-condiciona" .12 Informação é a modalidade de troca, de ressonância entre as partes de um sistema que se individua. Ela é informante e informada, é, simultaneamente, resultado e germe de individuação, pois é o que transborda, irradia e resplandece de uma individuação a outra. Na invenção técnica, como já foi dito anteriormente, o que transborda, o que passa como informação é a tecnicidade, contida e expressa pela própria matéria. A matéria, ao veicular informação, é informante e informada. Nesse sentido, um objeto físico - natural ou técnico, pouco importa - não pode ser considerado simples matéria "plástica", indiferente , sem estruturas ou virtualidades próprias, disponíveis à vontade e J.! ao gesto técnico/humano. A matéria propõe um gesto, propõe uma ação. No caso do objeto técnico, a tecnicidade/informação contida no objeto construído retroage sobre os sujeitos, reconfigurando-os, produzindo assim novas subjetividades. Mas para que a informação passe de um sistema.para outro, para que ela tenha essa potência transformadora, é preciso conceber uma relação de pertencimento. Explico: é preciso que haja analogia entre os sistemas, que eles sejam subsistemas de um sistema mais vasto, e que a ressonân- . cia interna de um sistema seja esquema de resolução, não apenas deste sistema, mas do sistema/conjunto ao qual pertence. O que significa dizer que a informação/ressonância é interior e exterior ao mesmo tempo, ou ainda, que não há distinção entre interior ou exterior. Ou, como afirma Deleuze, o interior é a dobra do exterior. 13 Esse é o critério fornecido por um tipo de pensamento como o de Deleuze, Guattari e Simondon, assim como M. Serres, Bruno Latour, Pierre Lévy e Laymert G. dos Santos, para se pensar hoje o progresso tecnocientífico. O gesto técnico, para ser ético, não pode ser um gesto isolado e fechado nele mesmo, uma vez que a ética é "o sentido no qual a interioridade de um ato tem um sentido na exterioridade".14 Este sentido não está dado Idem, p. 234. numa instância transcendente ao ato, mas no (;lIIeH Deleuze. Foucault. São próprio ato, naquilo que ele é capaz de produ('nulo: Ul'llsiliense, 1988. zir, na relação que estabelece com o meio assoH (I. Sll11ondoll. Op. cit., p. ciado - esse sistema maior formado pelo homem :1oI 'J" I'J
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e pelo mundo. Sabemos, desde Espinosa, que essa relação pode ser de composição ou de decomposição. Não temos dúvida de que a proposta ética de Simondon, ao postular uma imanência do ato, coincide com a ética espinosista, tal como apresentada por Deleuze, como uma tipologia dos modos imanentes de existência.15Em Espinosa, e igualmente em Simondon, todo o caminho da ética se faz na imanência. Nesse sentido, a ética da metaestabilidade é também uma ética da composição. 16É exigência de relação, de ressonância entre as diversas dimensões do ser. No caso do vivo, é a própria condição da vida, pois é na relação que a vida acontece e se mantém. Há outro aspecto da realidade ética que merece ser destacado, tendo em vista sua pertinência na análise dos dispositivos tecnológicos informacionais contemporâneos: a realidade ética é estruturada em rede. O ato ético - ou moral I? - desdobra-se em atos laterais, que se entrelaçam formando redes - e não cadeias contínuas - geradoras de sentido. Tais redes, diferentemente das cadeias contínuas, caracterizam-se por uma simultaneidade recíproca entre os diversos atos ou acontecimentos. O ato imoral, louco e parasita, além de não criar lateralidade, de não se conectar, ainda impede os outros atos de se estruturarem em rede. A tendência à centralização e controle de informação, de alguns grupos sociais/ econõmicos, com relação à internet, é um exemplo corriqueiro de atos loucos e egoístas, na medida em que obstam essa estruturação reticular do coletivo. Outro exemplo pode ser dado pela forma de hierarquia estabelecida em qualquer instituição em que o fluxo de informação/ saber se submete a uma hierarquia piramidal, como empresas e universidades: tal hierarquia não pode ser considerada ética, do ponto de vista ontogenético, Gilles Deleuze. Spinosa nt In pois ela impede o devir reticular. probteme de l'expressión. Plu'IN: 15
Minuit, 1968. ÉTICA
E LÓGICA
TEMPORAL
DESCONTÍNUA
A realidade ética solicita ainda uma abertura temporal, isto é, a simultaneidade recíproca entre atos e acontecimentos implica uma exigência de relação com o passado e o futuro, naquilo que eles contêm de informação, pois ela é o que
16 Denise B. Sant'Annll, G'llrlJII e técnica, 1997, mim u,
17 Simondon, !lU 'outr rio 11 Espinosa, nllo dlfnron I lllu ético de ato mUI'UI, Para I. 11 ato ético 6 ItunbOm ffiU I, 1111 entllo 010 Ó Imorlll,lnd. 111I louco ou m NItlU UI I I (L'lndlvltlul"lufI p
cnllncllv" p, :14;1)
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relaciona passado, presente e futuro. Estamos mais uma vez falando da dinâmica atuallvir- tual: se o presente é da ordem do atuallindi- viduado, passado e futuro são da ordem do virtual/pré-individual/co-Ietivo. Não se trata aqui de uma lógica temporal linear, mas de uma lógica descontínua - o tempo de Aion - em que o presente convoca passado e futuro como dimensões simultâneas do devir do ser, como dimensões informativas, portadoras de sentido. Na realidade ética, "cada ato retoma o passado encontrando-o novamente; cada ato moral resiste ao devir e não se deixa sepultar como passado; por meio de sua força proativa ele fará sempre parte do sistema do presente, podendo ser reevocado em sua realidade, prolongado, retomado por um ato, ulterior segundo a data, mas contemporâneo do primeiro, segundo a realidade dinâmica do devir do ser". 18 Um ato técnico para ser ético deve ter essa atenção ao passado, pois os atos do passado - confeccionados no tempo - ressoam no presente, sob a forma de virtualidades, construindo assim, através de uma simultaneidade recíproca, uma rede que não se deixa reduzir pela unidimensionalidade do sucessivo. Na invenção técnica isso fica mais claro, pois a antecipação dos esquemas técnicos se submete a essa dinâmica em que participam passado e futuro virtual. A relação afetiva estabelecida com os objetos técnicos em desuso - os chamados objetos obsoletos - numa sociedade de consumo já era uma preocupação de Simondon no início dos anos 50, quando o descartável ainda não havia tomado as proporções que podemos observar hoje. Pois bem, já naquela época Simondon convocava uma atitude éticoafetiva com esses objetos, ao lembrar que "quando um objeto se encontra em obsolência, é uma IH G. Simondon. Op. cit., p. importante quantidade de trabalho humano que 244. se volatiliza sem proveito, e que torna-se irrecuG. Simondon. Trois persperável".19 pectives pour une réflexion SUl' l'éthique et la technique. Não apenas inventar o novo, mas reinserir o A,ma[e.r de ['Institut de Philosovelho, atualizando-o, para criar um presente sob liMe el de Sciences Morales de o apelo do futuro.20 Isto significa estabelecer uma l'U"ivmité Libre de Bruxelles, WII:I, p, 114(apud: G, Hottois. correlação entre normas e valores: essa é também Slrllrmdoll ella philosophie de la uma forma de apreender o sentido da ética da (,llltlm IIclmiqlJe. Bruxelas: De IIl1llck WOHmllol, W93), metaestabilidade, em sua exigência de relação MI Ihllllll1l, p, IIH, entre passado e futuro virtuais. 111
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Simondon afirma que é preciso substituir a noção de equilíbrios melaestáveis "a essa estabilidade absoluta e incondicional [da ética pura] c ti essa perpétua evolução de um relativo fluente [da ética prática]".~1 As normas são justamente as linhas de coerência interna de cada um desses equilíbrios metaestáveis: são as estruturas de um sistema metaestável. Os valores são as linhas pelas quais as estruturas de um sistema tornamse estruturas do sistema que o substitui. Ou seja, os valores possibilitam a transdutividade das normas, a passagem de um sistema para outro como informação: os valores são as normas tornadas informações. São os valoreslinformações que transitam, que estabelecem relações e que formam redes de sentidos.22 Convém esclarecer, contudo, que não há uma separação, uma oposição entre norma e valor. É a normatividade que, ultrapassando o sistema dado, pode ser considerada valor: a normatividade é o devir da própria norma. É verdade que, segundo Simondon, as normas exprimem a realidade individuada, definida, estável e atual, ao passo que os valores exprimem a realidade pré-individual e virtual. Mas seria erro traduzir isso como uma oposição, estabelecendo mais uma dualidade. A questão não passa pela dissociação dessas realidades, ao contrário, Simondon insiste em dizer que é na própria condição de estabilidade de um sistema - seja um sistema físico, orgânico, psíquico ou social- que deve ser prefigurada e incorporada sua metaestabilidade. Esse é o sentido que ele dá ao regime de metaestabilidade que caracteriza o devir do ser. É também a percepção da ética em sua unidade, em sua exigência de correlação entre normas e valores, entre individuado e pré-individuado - esses termos extremos da dinâmica do ser. Simondon afirma que "a ética é o sentido da individuação".23 Acrescentaria que tal ética, que é a da metnestabilidade, é o sentido de todo processo de subjetivação. É interessante observar que a noção de metaestabilidade fornece lU! bases de uma ética da individuação/subjetivação/virtualização qu n () busca eliminar as duas éticas criticadas (pura e prática). O que ela busca é combater a distinção instituída uma vez para sempre: a metaestabiliG. Simondol, p, ti" dade é a via onde as duas éticas tradicionalmen- p. 238. te separadas podem coincidir. II Ibidem, Para concluir, queremos ressaltar a importân- ~:IIbidem, p, :.I4~. li
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cia da dimensão coletiva na constituição dessa nova composição ética. O coletivo, sendo o campo da existência cotidiana, é o único capaz de gerar sentido: ele traduz o sentido da imanência da ética. O coletivo convoca o comum, o que está disponível, o que pode ser incluído. E sabemos que todo processo de subjetivação implica a inclusão de objetos, paisagens, odores, sons, enfim, implica a inclusão do mundo: é incluindo o mundo e nos compondo com ele que nos reinventamos e reinventamos o mundo.
NOTAS SOBRE OS AUTORES
Félix Guattari (1930-1992), psicanalista, fIlósofo e ativista político, autor entre outros de A Revolução Molecular (Brasiliense, 1985), O Inconsciente Maquínico (Papirus, 1988) e As Três Ecologias (Papirus, 1989). Publicou com Gilles Deleuze O Anti-ÉdiPo (Imago, 1978), Mille Plateaux (Ed. 34, 1995) e O Q,ueÉ a Filosofia? (Ed. 34, 1994). Pierre Lévy é fIlósofo, historiador das ciências e especialista das novas tecnologias de informática. Atualmente é professor na University of Ottawa, Canadá. Publicou notadamente As Tecnologias da Inteligência (Ed. 34, 1993), O OJteÉ o Virtual (Ed. 34, 1995), Cibercultura (Ed. 34, 1999). Bill Viola é artista, músico e videasta. Sua obra soma mais de cinqUenta instalações e vídeos, além de ensaios e entrevistas. Trabalha fundumentalmente com toda a diversidade de recursos tecnológicos disponíveis. Francisco Varela (1946-2001), biólogo, diretor de pesquisa no labor· tório de neurociências do CNRS (Paris) e co-fundador da teoria d u· topoiese em biologia teórica. Autor de The Tree of Knowledge (19H~) 11" Embodied Mind: Cognitive Science and Human Experience (1994). Luiz Orlandi é fIlósofo, autor de A Voz do Intervalo (Ática, lfJSl), de Malquerença (Boletim IFCH/Unicamp) e vários artigos obra de G. Deleuze. Traduziu, deste auto], A Dobra: L,th, ~ , O '"'11'...1"" (Papirus,1991), O Bergsonismo (Ed. 34, 1999) e com a col 187
188.
SOBRE
SOBRE
OS AUTORES
berto Machado Diferença e Repetição (Graal, 1989). Coordena atualmente o curso de graduação em Filosofia da Unicamp. Gilbert Simondon (1924-1989) é filósofo, autor de Du Mode d'Existence des O~jets Techniques (1958), L'individu et sa Genese Physico-biologique (1964) e L'Individuation Psychique et Collective (1989, póstumo). Gilles Deleuze (1925-1995) é filósofo, autor entre outros de Diferença e Repetição (Graal, 1989) e Conversações (Ed. 34, 1993). Publicou com Félix Guattari O Anti-Édipo (Imago, 1978),Mil Platôs (Ed. 34, 1995) e O QJle É a Filosofia? (Ed. 34, 1994). Franco Berardi (Bifo), militante e teórico italiano, foi fundador da Rádio Alice, experiência alternativa inspirada na leitura que Deleuze fez de Lewis Carroll em Lógica do Sentido. Pesquisa atualmente as relações entre a questão social e a utilização das novas tecnologias. Publicou, entre outros, Come si Cura il Nazi; Lavoro Zero e Neuromagma (Castelvecchi, Roma). Raymond Bellour, diretor de pesquisa no CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique), trabalha sobre literatura, cinema e vídeo. É autor entre outros de: L' Analyse du Film (1979), Henri Michaux ou une Mésure de l'Étre (1986), Passages de 11mage (1990, org.), e animador da revista de cinema Trafic, da qual foi co-fundador. Michael Hardt é filósofo e professor na Universidade de Duke (E.U.A.). É autor de Gilles Deleuze - um Aprendizado em Filosofia (Ed. 34, 1996), e, com Antonio Negri, de Labor ofDionysus: A Critic ofState-form (University of Minnesota Press) e Império (Record, 2001).
OS AUTORES
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1H9
Peter Pál Pelbart é filósofo e professor na PUC-SP. É autor de O Tempo Não-Reconciliado (Perspectiva, 1998), A Vertigem por um Fio (Iluminuras, 2000) e Vida CaPital (Iluminuras, 2003), entre outros. Traduziu, de Gilles Deleuze, Conversações, Crítica e Clínica e parcialmente Mil Platôs voI. 5 (Ed. 34). Rogério da Costa é filósofo, engenheiro de sistemas, professor do Pós- Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP e do Departamento de Ciência da Computação da mesma universidade. Organizou Limiares do Contemporâneo (Escuta, 1993), e é autor de L'Ontologie du Contingent (Presse Universitaire du Septentrion, 1999) e Cultura Digital (Publifolha, 2002).
FONTES
DOS ARTIGOS
TRADUZIDOS
"O comunismo da imanência", de Toni Negri & Félix Guattari, "Au delà du retour à zero", Futur Antérieur, n.O4, inverno de 1990. "Plissê fractal", de Pierre Lévy, "Plissê fractal", Chimeres n.O22, Paris, 1994. "A paixão das máquinas", de Félix Guattari, "A propos des machines", Chimeres n.oI9, Paris, 1993. "Da linguagem zaum à rede tecnomaya", de Franco Berardi, inédito, 1992.
Mauro Sá Rego Costa é doutor em Educação pela UFRJ, professor do Programa de Pós-graduação do Conservatório Brasileiro de Música e da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense, UER]. É membro fundador da Universidade Livre do Rio de Janeiro.
"Gênese do indivíduo", de Gilbert Simondon, L'individu et sa génilst! fiI/y sico-biologique, "Introduction", Paris: Aubier, 1989.
Liliana da Escóssia é professora do Departamento de Psicologia da lJ FS, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, doutoranda do Insti(u(o de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, (UFRJ), lLulOrll de Relação Homem-Técnica e Processo de Individuação (Editora UFS,
"A propósito de Simondon", de Gilles Deleuze, "Gilberl SlnllllldClll1 l'individu et sa génese physico-biologique", Revue philosopltiqUD dI ,,,"~ , et de ['étranger, voI. CLVI, n.O13,janeiro-março de 196(;.]n III lu temente na coletânea de G. Deleuze, L1le Deserte et autre.f texl,., C I' David Lapoujade, a sair no Brasil pela Editora Iluminur UI,
I!)!)!).
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190.
FONTES
DOS
ARTIGOS
TRADUZIDOS
"O reencantamento do concreto", de Francisco J. Varela, "The Reenchantement of the Concrete", Zone n.O6, Nova York, 1992. "A máquina-cinema", de Raymond Bellour, "La machine-cinema", Catálogo Le temps des machines, Paris, 1990. "O som de uma linha de varredura", de Bill Viola, "Le son d' une ligne de balayage", Chimeres n.O 11, Paris, 1991. ''Affective Labor", de Michael Hardt, inédito, 1998.
SAÚDELOUCURA TÍTULOS
EM CATÁLOGO
SaúdeLoucura 7, Antonio Lancetti et alo Desinstitucionalização, Franco Rotelli et alo SaúdeLoucura 2, Félix Guattari, Gilles Deleuze et alo Saúde Mental e Cidadania, Regina Giffoni Marsiglia et alo Hospital: Dor e Morte como Oficio, Ana Pitta Cinco Lições sobre a Transferência, Gregório Baremblitt A MultiPlicação Dramática, Hemán Kesselman & Eduardo Pavlovsky Lacantroças, Gregório Baremblitt SaúdeLoucura 3, Herbert Daniel,Jurandir Freire Costa et alo Psicologia e Saúde: Repensando Práticas, Florianita Coelho Braga Campos (org.) Saúde Mental e Cidadania no Contexto dos Sistemas Locais de Saúde, Maria E.X. Kalil (org.) Mario Tommasini: Vida e Feitos de um Democrata Radica4 Franca Ongaro Basaglia SaúdeLoucura 4, Antonio Lancetti, Gregório Baremblitt et a!. Saúde Mental no Hospital Geral: Espaço Para o Psíquico, Neury Botega & Paulo Dalgalarrondo Manual de Saúde Menta4 Benedetto Saraceno, Fabrizio Asioli e Gianni Tognoni Reabilitação Psicossocial no Brasi4 Ana Pitta (org.) Assistência Social & Cidadania, Antonio Lancetti et alo SaúdeLoucura 5, Gregório Baremblitt et alo SaúdeLoucura 6, André do Eirado Silva et alo(orgs.) Princípios Para uma Clínica Antimanicomial e Outros Escritos, Ana Marta Lobosque SaúdeLoucura 7 (Saúde Mental e Saúde da Família), Adib Jatene, Antonio Lancetti et alo Consumo de Drogas: Desafios e Perspectivas, Fábio Mesquita & Sérgio Seibel (orgs.) A Reforma Psiquiátrica no Cotidiano, Angelina Harari & Willians Valentini (orgs.)