UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
CABOCLOS , ERVATEIROS E CORONÉIS: LUTA E RESISTÊNCIA EM PALMEIRA DAS MISSÕES
LURDES GROLLI ARDENGHI
Dissertação de Mestrado na área de História Regional, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História como requisito parcial para a obtenção do grau de mestre em História sob a orientação da Profª. Doutora Loiva Otero Félix.
Passo Fundo, janeiro de 2003
__________________________________________________________________ A676c
Ardenghi, Lurdes Grolli Caboclos, ervateiros e coronéis : luta e resistência em Palmeira das Missões / Lurdes Grolli Ardenghi. – 2003. 210 f. Dissertação (mestrado) – Universidade de Passo Fundo, 2003.
1. História – Palmeira das Missões 2. História regional 3. Relações de poder 4. Terra 5. Coronelismo I. Título.
CDU: 981.65 ____________________________________________________________________ Catalogação na fonte: Schirlei Teresinha da Silva Vaz CRB 10/1364
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Ardenghi, Lurdes Grolli Caboclos, ervateiros e coronéis : luta e resistência em Palmeira das Missões / Lurdes Grolli Ardenghi. – 2003. 210 f. Dissertação (mestrado) – Universidade de Passo Fundo, 2003.
1. História – Palmeira das Missões 2. História regional 3. Relações de poder 4. Terra 5. Coronelismo I. Título.
CDU: 981.65 ____________________________________________________________________ Catalogação na fonte: Schirlei Teresinha da Silva Vaz CRB 10/1364
FOLHA DE APROVAÇÃO BANCA EXAMINADORA
DRª. LOIVA OTERO FÉLIX
DR. BENITO BISSO SCHMIDT
DRª. ELIANE LÚCIA COLUSSI
UPF - Presidente da banca
UFGRS
UPF
O estudo das feridas da história, de suas paixões e de suas febres sociais, dos estigmas que estas deixam, ainda pode nos ensinar muita coisa sobre a relação patológica que uma sociedade mantém consigo mesma. A estranheza perturbadora que emana dos fenômenos percebidos por nós (mas também pelos contemporâneos) como insensatos, revela as perguntas que o corpo social formula a respeito de sua própria identidade e os perigos que tenta exorcizar segundo o registro próprio de sua época. Dominique Julia
AGRADECIMENTOS
Em especial, ao Alfredo e aos meus filhos, Patrícia, Luciana, Daniela e Alfredo Filho, agradeço o incentivo, o apoio e a compreensão pelas ausências e momentos de convívio roubados. À professora Drª. Loiva Otero Félix, um agradecimento especial, pelo estímulo, amizade e competente orientação. As indicações de leituras, locais de pesquisa, discussões e sugestões possibilitaram que esse trabalho se concretizasse. Seu exemplo de superação desafiou-me a vencer as dificuldades. Aos professores da Universidade de Passo Fundo, em especial à professora Drª. Ana Luiza Reckziegel, pelas sugestões e apoio. À professora Drª. Eliane Lúcia Colussi, pelas contribuições na construção da temática. Aos professores Drs. Fernando Camargo, Astor Diehl e Mário Maestri pelas sugestões na qualificação e defesa do projeto. Ao Dr. Benito Bisso Schmidt pelas sugestões e avaliação deste trabalho quando da defesa do mesmo. A Cristiane e Denise, amigas com as quais partilhei avanços e angústias, obrigada pelo companheirismo e amizade. Aos demais colegas, obrigada pela convivência enriquecedora. Às pessoas amigas, que acreditaram e incentivaram a realização do presente trabalho, obrigada. À direção e colegas do Colégio Pio X e do Instituto de Educação Estadual Borges do Canto, pelo apoio e compreensão. Em especial, às amigas Dione Lima Ribeiro, pela colaboração na revisão do texto, Nádia Scariot e Elza Mafalda pelas contribuições. Às pessoas que concederam entrevistas, agradeço pela disposição e contribuições, especialmente ao Dr. Mozart Pereira Soares, que pela sua sapiência, contribui para a construção da história regional. Aos familiares de Leonel Rocha pela atenção e disponibilidade. Aos funcionários dos arquivos e instituições de pesquisa, pela disponibilidade e apoio na coleta de dados.
RESUMO
O passado de lutas, que envolve o município de Palmeira das Missões, se constitui no tema deste trabalho, buscando investigar as motivações que impulsionavam as facções em confronto e a permanência de relações conflitantes, ma nifestadas no jogo político. Através da pesquisa e análise de correspondências, relatórios, processos judiciais, jornais, entrevistas e obras produzidas, o presente estudo é uma tentativa de reconstrução histórica das lutas e resistências que marcaram a sociedade regional no período da República Velha. A freqüência e a gravidade dos combates que ocorreram na região da Grande Palmeira, fizeram com que o município fosse identificado com representações que o qualificam como espaço de violência. A área geográfica nativa, constituída de áreas de campo e mata, deu origem à construção de um espaço diferenciado e a conseqüente formação de grupos sociais distintos, em permanente animosidade. De um lado, o poder do campo, constituído pelos coronéislatifundiários e, de outro, o poder do mato, constituído pelos caboclos, pequenos proprietários, posseiros e ervateiros. A temática remete a questões relacionadas com a posse da terra e às relações de poder, em que a estrutura do coronelismo se impõe como fator determinante para a análise, buscando explicar a cristalização dos conflitos, associados a questões socioeconômicas e diferenciados dos confrontos estaduais. O grupo oposicionista – poder do mato – aliava-se nos confrontos estaduais, aos fazendeiros da Campanha gaúcha, que apresentavam composição e características distintas em relação ao grupo local. O estudo procura reconstituir a trajetória de Leonel Rocha, como representante dos pequenos e médios agricultores,
ervateiros e
posseiros, identificado como o caudilho a pé, buscando as razões que mantiveram acesos os conflitos.
Palavras-chave: Palmeira das Missões, relações de poder, terra, Leonel Rocha, coronelismo.
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ABSTRACT
The past of fights that involv the city of Palmeira das Missões, set up the subject of this work, searching for to investigate the causes that push forward the factions in confront and the permanence of relations ships in conflict, manifested in the politic game. Across of search and aralysis of corres pondences, reports judicious processes, news papers interviews and produced works, the present work is a attempt of reconstruct the history of fights and resistance that marked the regional society in the period of old Republic. The frequency and the gravity of the combats that happened in the region of big Palmeira became the city recogniced as na space of violence. The geografic native area, constituted of areas of fied and wood land, gave origin for the construction of different space and the consequent formation of different social groups in permanent conflict. To one side, the power of field, constituted by colonel-big owners and the other side, the pawer of woodland, constituted by small owners, squatters and extractor of herb trees. The subject consigns to questions related with the possession of land and and the relationbhips of power, which the structure of the colonelism imposes as a decisive factor for the analysis, searching for to explain the crystallization of conflicts associated to for social and economics questions and different of the state conflicts. The opposite group – pawer of woodland – associated, in the state conflicts, with the famers of the west of Rio Grande do Sul, that presented different composition and characteristies in relation to the local group. The learning look for to reconstitute the trajectory of Leonel Rocha, as representative of small and medium agriculturists, owners of herb trees and squatters, identified as the “caudilhist on foot”, searching for the reasons that maintain lighted the conflicts.
Key-words: Palmeira das Missões, relationships of power, land, Leonel Rocha, colonelism.
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS ........................................................................................................
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RESUMO............................................................................................................................. vi ABSTRACT........................................................................................................................ vii LISTA DE ABREVIAÇÕES...............................................................................................
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LISTA DE FIGURAS.......................................................................................................... xii INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 12 CAPÍTULO 1 – PODER DO CAMPO & PODER DO MATO: Construção do espaço e agentes sociais............................................................................... 28 1.1. A ocupação do espaço e a identidade regional............................................................. 28 1.1.1. A ocupação da mata................................................................................................... 38 1.1.2. A ocupação dos campos nativos ................................................................................ 46 1.2. Caboclos, ervateiros e coronéis .................................................................................... 48 CAPÍTULO II – A QUESTÃO DA TERRA E O PODER LOCAL................................... 59 2.1. A ocupação primitiva e a emergência de conflitos....................................................... 60 2.2. Os ervais do Campo Novo e as disputas pela terra....................................................... 67 2.3. A posse da terra e a legislação...................................................................................... 75 2.3.1. O período republicano. .............................................................................................. 76 2.3.2. O positivismo e a questão agrária.............................................................................. 79 2.3.3. A Lei de Terras de 1899 e seus desdobramentos....................................................... 83 CAPÍTULO III – LUTA E RESISTÊNCIA........................................................................ 94 3.1. Palmeira das Missões: A violência como parte do cotidiano... .................................... 94 3.1.1. ... nos últimos anos do Império. .................................................................................. 97 3.1.2. ... e quando chega a República. ............................................................................... 100 3.2. A violência exteriorizada na Revolução. ...................................................................... 107 3.2.1. A chacina do Boi Preto .............................................................................................. 109 3.3. Os caboclos vão à luta. ................................................................................................. 112 CAPÍTULO IV – O PODER DO MATO: REPRESENTAÇÃO E IMAGINÁRIO........... 116 4.1. Leonel Rocha – “o caudilho a pé”. ............................................................................... 116 4.1.1. O Levante de 1902..................................................................................................... 123 4.2. Coronéis & coronéis. .................................................................................................... 134
4.3. Palmeira nas Missões na Revolução de 1923. .............................................................. 140 4.3.1. O olhar do poder. ....................................................................................................... 152 4.3.2. A pacificação. ............................................................................................................ 157 4.3.3. A paz inconclusa........................................................................................................ 162 4.4. Caboclos e colonizadores na Fazenda Sarandi. ............................................................ 174 4.5. Por que lutou Leonel Rocha?........................................................................................ 184 4.5.1. O imaginário .............................................................................................................. 190 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 194 BIBLIOGRAFIA................................................................................................................. 199 FONTES .............................................................................................................................. 204 ANEXOS:............................................................................................................................ 206 Nº 1: Abaixo-assinado dos moradores de Campo Novo ao Imperador D. Pedro II ........... 207 Nº 2: Composição apresentada no 3º Carijo da Canção Gaúcha: Por que lutou Leonel Rocha? .............................................................................................. 209 Nº 3: Oração de Santa Catarina .......................................................................................... 210
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LISTA DE ABREVIAÇÕES
AAM/CPDOC/FGV : Arquivo Antunes Maciel – Centro de Pesquisa e Documentação Fundação Getúlio Vargas. ABM/IHGRS: Arquivo Borges de Medeiros - Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. AHRS: Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul AL : Aliança Libertadora AFC/UFRGS: Arquivo Flores da Cunha – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. APRS: Arquivo Público do Rio Grande do Sul AVaD/IHGRS: Arquivo Vazulmiro Dutra – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. FUG: Frente Única Gaúcha. IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. IHGRS: Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul MCSHJC: Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa NHP/UPF: Núcleo de História Política – Universidade de Passo Fundo. PL: Partido Libertador. PRD: Partido Republicano Democrático. PRR: Partido Republicano Rio-Grandense .
INTRODUÇÃO “... daria para viver muito bem aqui, se não fosse a constante competição partidária, com conseqüentes intrigas e rixas, de tal modo, que viver em paz é quase impossível. Quem quiser tranqüilidade terá que tapar os ouvidos, para não escutar, vendar os olhos para não enxergar”. 1
Os confrontos armados que ocorreram no Rio Grande do Sul, durante a fase da República Velha, foram particularmente marcantes no município de Palmeira das Missões, onde federalistas e republicanos mantiveram um clima de belicosidade que, de certa forma, explica a formação do imaginário de violência, presente na memória coletiva e na historiografia. Desvendar a trama de relações que contribuíram para manter acesos os antagonismos, buscando os motivos que impulsionaram os confrontos, é o objetivo a que nos propusemos no presente trabalho. Pretendeu-se investigar, através da reconstituição do passado de lutas, as relações de poder que se estabeleceram ao longo do processo histórico, e que marcaram o município, colocando em confronto dois grupos distintos, o poder do campo e o poder do mato2. O foco se volta, especialmente, sobre o poder do mato, que sustenta uma luta em condições adversas, liderado pelo “caudilho a pé”, Leonel Rocha, mobilizando a população cabocla das áreas florestais e conseguindo manter em constante tensão o poder constituído, representado pelos coronéis-latifundiários, cooptados ao governo castilhista/borgista. Sobretudo, pretendeu reconstruir a atuação dos sujeitos históricos marginalizados no processo de ocupação e esquecidos na maior parte da historiografia regional. O estudo abrange a área primitiva do município de Palmeira das Missões, situado no Planalto Rio-Grandense e designado historicamente de Grande Palmeira , numa área de 1
Maximiliano Beschoren nas suas impressões sobre a Vilinha da Palmeira , em 1877, numa época em que, segundo ele, havia 400 a 500 habitantes na sede, e cerca de 9.000 em todo o município. Ver: BESCHOREN, Maximiliano. Impressões de viagem na província do Rio Grande do Sul (1875-1887). Porto Alegre: Martins Livreiro, 1989. p. 78. 2 FÉLIX, Loiva Otero. Coronelismo, borgismo e cooptação política. 2º edição. Editora da Universidade/UFRGS. Porto Alegre. 1996. p. 95 e 96. Destaca, em sua obra, o confronto entre o “poder do mato (representado pelos ervateiros, lavoureiros e chacareiros, identificados com as forças da oposição política) e o poder do campo (representado pelos estancieiros, identificados com as forças do situacionismo)”.
15.600 quilômetros quadrados, que se estendia até as margens do rio Uruguai, apresentando vegetação nativa que entremeava campos e matas. Tal especificidade gerou uma formação dicotômica, com processos históricos diferenciados e guardando, até hoje, traços socioeconômicos e culturais que permitem perceber duas nítidas configurações de identidade regional. Atualmente, este território constitui um grande número de municípios que vieram a se emancipar numa fase posterior aos fatos a serem investigados. Partimos da idéia de região como um corte analítico na espacialidade e com múltiplos fatores interferentes, considerando-se, além dos aspectos físicos, os elementos de ordem cultural, política, econômica e ideológica, presentes num determinado espaço. Não pode ser tomada como parte isolada, mas sim como parte de um sistema global do qual foi recortada, em que múltiplos fatores, que constituem o seu entorno, nela são interferentes. A região possui identidade própria, porém articulada a um sistema maior. Em suma, a região deve ser vista como um produto da ação humana, como um espaço vivido e com uma carga de historicidade própria, que influi na contemporaneidade.3 Assim, o recorte espacial que estabelecemos permite a análise das manifestações do imaginário social, na região em estudo, que é percebida como um espaço de violência, envolvendo a intrincada rede das relações de poder , cujas marcas estão presentes muito além do tempo dos confrontos reais, em manifestações da memória coletiva. O recorte temporal situa-se, predominantemente, no período da República Velha, extrapolando esse limite, quando necessário, para a compreensão do contexto histórico que envolve os acontecimentos. Nesse período, o município foi palco de lutas coronelistas entre maragatos e chimangos, decorrentes das rivalidades locais associadas aos conflitos na esfera estadual, dentre elas, a Revolução Federalista de 1893, a Revolução de 1923 e, na esfera federal, a passagem da Coluna Prestes, em 1924, e a Revolução Constitucionalista de 1932, na qual Palmeira teve uma participação peculiar com o 3o Corpo Provisório, denominado Pé-noChão. Evidencia-se, também, um levante ocorrido em Palmeira, em 1902, ainda pouco estudado, o que demonstra que as animosidades foram constantes, manifestando-se de formas diversas, mesmo quando não havia um confronto declarado. A temática desenvolvida originou-se da constante referência ao passado de violência que marca o imaginário coletivo. Os antigos habitantes assistiram a constantes mobilizações armadas de grupos rivais, que marcaram o cotidiano e o papel geopolítico do município na esfera estadual. Essa característica se manifesta freqüentemente na historiografia, em 3
Ver RECKZIEGEL, Ana Luiza. “História regional: dimensões teórico conceituais”. In. História: debates e tendências. Passo Fundo, v.1, Ediupf. 1999. p.15-22.
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documentos, jornais da época e, sobretudo, na memória coletiva. Como tema recorrente nas representações e no imaginário social, constituiu-se em um fator de controvérsias e indagações, escamoteado às vezes, por trazer à tona questões que, segundo a visão de alguns, deveriam ser apagadas, mas que a memória teima em fazer ressurgir, pois, conforme Pierre Nora: “a memória é vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, suceptível de longas latências e de repentinas revitalizações”. 4 A investigação inicial, buscando delimitar o tema, levou-nos ao levantamento das obras produzidas, em nível local e regional, como também a obras relativas à República Velha e aos temas a ela relacionados. A revisão bibliográfica conduziu a algumas certezas e a questionamentos que permitiram estabelecer os pressupostos iniciais da pesquisa. Nesse sentido, algumas obras tiveram especial relevância, apontando lacunas e possibilidades para avançar na investigação histórica. A obra do escritor palmeirense Mozart Pereira Soares, Santo Antônio da Palmeira,5 serve de referência para estudo do município, destacando as linhas gerais da ocupação e evolução histórica. Apoiada em consistente pesquisa documental e acrescida de registros de contemporâneos dos fatos, pela sua abrangência, abre possibilidades para novos enfoques e investigações. Aponta para a polarização de forças entre os grandes proprietários da área de campo e os habitantes da zona florestal, que veio a se constituir no foco desta pesquisa. O estudo sobre coronelismo na região, realizado por Loiva Otero Félix, apontou o rumo da pesquisa, quando ressalta a presença dos pequenos proprietários, representados por chacareiros e ervateiros, designando-os como poder do mato, em permanente enfrentamento com o poder do campo, constituído pelos estancieiros. As forças políticas do campo concentram-se em Vazulmiro Dutra, que lidera a política regional, nas primeiras décadas do século XX, e que foi objeto de estudo na obra citada, sendo representativo dos coronéis do Planalto, cooptados ao modelo borgista. O poder do mato é comandado pelo coronel maragato, Leonel Rocha, que tinha o apoio de líderes políticos que se opunham ao grupo situacionista. A atuação de Leonel Rocha, embora de grande relevância nas lutas locais e regionais, carece de estudos mais
4
NORA, Pierre. “Entre memória e história. A problemática dos lugares”. Revista Projeto História . Vol. 10. São Paulo: dez. 1993. p. 9. 5 SOARES, Mozart Pereira. Santo Antônio da Palmeira. Editora Bels. Porto Alegre: 1974. A obra se constitui numa referência para o estudo do município, pela sua abrangência, apontando as linhas gerais da ocupação e evolução histórica do município.
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aprofundados, o que é apontado por Félix, quando destaca a falta de um “estudo sobre os coronéis maragatos, suas bases de apoio e mecanismos de manutenção local numa política estadual adversa.”6 As obras de Soares e Félix foram de fundamental importância, dando origem aos primeiros questionamentos referentes às especificidades das lutas que marcaram a região. A partir desses elementos, foi possível estabelecer alguns dos pressupostos que nortearam a pesquisa. Ao examinarmos a produção historiográfica sobre os confrontos armados, constatouse que a maioria dos autores situa os acontecimentos no quadro das disputas políticas relacionadas ao domínio do poder na esfera estadual. Dessa forma, adquirem caráter de lutas elitistas, nas quais se destaca o enfrentamento dos estancieiros da região da Campanha contra o poder estadual, representado pelo Partido Republicano Rio-Grandense e sustentado pelos estancieiros do Planalto Gaúcho. Nesse sentido, sobressaem as obras de Sandra Pesavento, Celi Regina Pinto e Maria Antonieta Antonacci7 que, com algumas diferenças quanto às motivações dos grupos envolvidos, defendem que o enfrentamento ocorria no interior da classe dominante. Essas abordagens não contemplam as peculiaridades presentes nas lutas da região em estudo, visto que a liderança local era representada por Leonel Rocha, que tinha sob seu comando um número significativo de caboclos, que como ele, enfrentavam as dificuldades de sobreviver à margem dos latifúndios. A formação econômica do município fornece o suporte estrutural no qual se estabelece a organização de uma sociedade com a dominação da elite pastoril e a conseqüente marginalização dos demais setores. A ocupação do município fez-se de maneira distinta nas áreas de campo e mata, resultando numa formação social diferenciada e, por vezes, conflitante, constituindo-se em poderes antagônicos, como já foi colocado anteriormente. Entre esses grupos, situa-se uma massa de caboclos, expropriados de suas terras, quando houve a privatização dos ervais nativos, que passam a ocupar os “fundos” de campo como posseiros, meeiros ou como peões das estâncias ou, até mesmo, mão-de-obra temporária dos proprietários-imigrantes e ervateiros. Esse segmento social aparece de forma quase difusa na historiografia, porém, as obras de Paulo Afonso Zarth e Aldomar Rückert adquirem 6 7
FÉLIX, Loiva Otero. Op. cit. p. 29. ANTONACCI, Maria Antonieta. RS: As oposições e a Revolução de 1923. Porto Alegre. Mercado Aberto., 1981. PESAVENTO, Sandra J. República Velha gaúcha- charqueadas frigoríficos e criadores. Porto Alegre: Movimento/IEL/RS, 1980 e outras obras relativas ao período e PINTO, Celi Regina. Positivismo: um projeto político alternativo – 1889-1930. L&PM Editores. Porto Alegre : 1986. As obras das autoras tratam com profundidade o período da República Velha, abordando os aspectos econômicos e políticos.
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importância significativa por apontarem os problemas agrários que conduziram à formação desse grupo marginalizado no processo de ocupação e escassamente citado na historiografia. De acordo com Paulo Afonso Zarth, “o lavrador caboclo estava estreitamente ligado ao estancieiro ou comerciante de mate ”, que poderiam ser a mesma pessoa. Os caboclos poderiam ser submetidos a uma sólida dominação política e econômica, sujeitos, inclusive, à arregimentação militar nos momentos das lutas armadas. 8 Em sua obra História agrária do Planalto gaúcho,
realiza importante estudo sobre a formação da propriedade na região, no
período de 1850 a 1920, demonstrando as contradições do processo numa região de vastas áreas inexploradas na qual emergem os conflitos pela posse da terra. Para fins deste estudo, temos presente na designação de caboclo, componentes étnicos, socioeconômicos e culturais. Referimo-nos aos moradores das áreas rurais, que se dedicavam às atividades extrativistas - especialmente a erva- mate – e/ou relacionadas a culturas de subsistência, em roçados de pequeno porte. Trata-se de pequenos proprietários, agregados ou arrendatários, com significativa carga étnica, fruto da mestiçagem do índio, branco e mesmo do negro, apresentando um modo de vida típico do meio rural. Enfim, considera-se caboclo o homem da terra com uma cultura própria, vinculada a práticas coletivas e atividades econômicas relacionadas ao setor primário. A designação ervateiros pressupõe um grupo diferenciado, que em menor número, controlava a produção, a comercialização e as áreas onde a erva-mate – Ilex paraguaiensis – era encontrada em maior quantidade. Distingüiam-se dos coletores ou tarefeiros que executavam as atividades de corte, coleta e sapeco da erva, destinada posteriormente à fase de transformação e comercialização. Os coronéis assumem, na região em estudo, o papel de comando socioeconômico e político, respaldados no poder do governo do estado e nas suas próprias prerrogativas, que lhes advêm como detentores de terra, gado e controladores de gente. Os coronéislatifundiários, portanto, constituem o grupo dominante, proprietários de grandes áreas de campo destinadas à pecuária, sendo em geral descendentes dos tropeiros paulistas de ascendência luso-brasileira, que chegaram ao planalto nos primórdios da ocupação. Os colonos são entendidos aqui por imigrantes ou descendentes de imigrantes europeus, que se dedicavam à agricultura em pequenas propriedades. Diferenciam-se dos caboclos agricultores, por terem ocupado a área de mata, numa fase posterior, como participantes do processo de colonização em colônias oficiais ou particulares. 8
ZARTH, Paulo Afonso. História agrária do planalto gaúcho - 185 9-1920. Ijuí: Ed. UNIJUÍ, 1997. p.175-176.
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A diferenciação socioeconômica põe em confronto grupos distintos, em permanente enfrentamento, designados, como o poder do campo e o poder do mato. Os coronéislatifundiários exercem marcadamente o predomínio político, aliados à cúpula dirigente do estado, representada pelo castilhismo-borgismo de base positivista. Esses coronéis representam a base de sustentação do PRR, em nível estadual, visto que emergem como grupo dominante, a partir da instalação da república positivista. No estudo das lutas que marcaram a região, sobressai a ação do poder do mato que, embora em condições desfavoráveis, mantém por um largo período a mobilização contra o poder estabelecido, o poder do campo. A análise dos grupos nos remete a Norbert Elias, quando estuda uma pequena comunidade, na qual demonstra uma constante universal, constituída de estabelecidos e outsiders. O poder do campo constituía o establishment , “grupo que se auto percebe e que é reconhecido como uma “boa sociedade”, mais poderosa e melhor, uma identidade social construída a partir de uma combinação singular de tradição, autoridade e influência”. Esse grupo se completa no outro que lhe dá visibilidade, os outsiders, este definido como um coletivo, existe sempre no plural, constituindo um conjunto heterogêneo e difuso, marcado pela estigmatização9 . Os caboclos, que constituem o poder do mato, são os que estão fora da “boa sociedade” e se autopercebem como tal, sendo marcados com atributos de violência e atraso. No caso em estudo, os caboclos assumem aos olhos da “boa sociedade” características depreciativas, associadas à ignorância, às crendices, à delinqüência. Elias destaca que “um grupo só pode estigmatizar outro com eficácia, quando está bem instalado em posições de poder das quais o grupo estigmatizado é excluído”.10 O grau de coesão maior do grupo estabelecido permite que controlem cargos e posições sociais, preservando, assim, seu excedente de poder , o que lhe permite manter a exclusão dos demais grupos. A natureza das fontes de poder pode variar em diferentes contextos, no entanto, a figuração estabelecidosoutsiders apresenta características comuns e constantes, podendo ser atribuída aos coronéis e caboclos da região. A luta entre os grupos ocorria pelo grande diferencial de poder, tendo em vista a manutenção das fontes de poder, no caso, a posse da terra que concedia vantagens materiais e simbólicas a quem a possuía. Através da pesquisa em fontes documentais e historiográficas, bem como de relatos orais, buscamos desvendar os motivos que mobilizaram o poder do mato a lutar contra o poder estabelecido, em condições adversas e considerando que sua condição de classe era 9
ELIAS, Norbert & SCOTSON, John. Os estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2000. p. 7-8. Idem. p. 23.
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marcadamente diferente dos fazendeiros da região da Campanha, dos quais eram aliados. Portanto, os grupos que se confrontavam no estado não apresentavam a mesma figuração, estabelecidos – outsiders, que ocorria na região. A
partir da análise inicial foi possível estabelecer as hipóteses que norteiam o
presente estudo: 1º - A formação de uma sociedade dicotômica, com a exclusão dos caboclos que viviam da extração da erva-mate, nas áreas do campo, gerou confrontos relacionados à questão agrária. 2º- O domínio socioeconômico e político dos coronéis-latifundiários, cooptados ao governo castilhista/borgista, gerou disputas pelo poder local, com reações típicas do coronelismo. 3º -As lutas armadas, no município, diferenciavam-se dos confrontos estaduais quanto à composição do grupo de oposição e, em conseqüência, quanto aos motivos que impulsionavam as lutas, relacionando-se a questões de terra e exclusão socioeconômica. 4º- A liderança do grupo de oposição se concentrava no “caudilho a pé”, Leonel Rocha, sobre o qual assentavam-se representações que o identificavam com o segmento despossuído, e que era reforçado na historiografia com expressões como “roceiro pobre, quase analfabeto, sem ambições de poder”. A questão Por que lutou Leonel Rocha?, presente no imaginário social, se impõe como explicação a ser perseguida na busca dos motivos que mobilizaram o poder do mato, durante o ciclo revolucionário que envolveu a região. A partir dessas constatações, foi possível estabelecer as linhas gerais da pesquisa, centrada nas relações de poder entre as facções relacionadas ao mato e ao campo; nas motivações do poder do mato, que remetiam à questão da terra e, sobretudo, à trajetória de Leonel Rocha, como fator aglutinador dos dois outros componentes: coronelismo e questão agrária. As constatações remeteram a fontes bibliográficas relacionadas com o tema. Para o estudo da questão agrária recorreu-se à obra de Luiza Kliemann, RS: terra e poder 11 , que faz uma detalhada análise da relação entre a posse da terra e o controle do poder no estado do Rio Grande do Sul. Fez-se necessário situar as lutas dentro do contexto político da República Velha, relacionado com a esfera estadual e federal. A maioria dos historiadores destaca as especificidades do estado sulino, quanto à formação histórica, marcado pelas características de zona fronteiriça, em que a conquista do território se deu às custas da luta armada. O 11
KLIEMANN, Luiza H. Schmitz. RS : terra e poder: história da questão agrária. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986.
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positivismo e o autoritarismo do governo castilhista/borgista diferenciam o Rio Grande do Sul do restante do país nas primeiras décadas do período republicano. Esses fatores, associados a uma economia subsidiária e dependente, estariam na origem dos conflitos. Sandra Pesavento, ao analisar a economia gaúcha no período, destaca a importância de “analisar também as formas de articulação e conscientização da classe dominante local, bem como o desempenho do estado sulino de feição positivista e autoritário”.12 Pesavento ressalta a tradição de autoritarismo brasileira, que é acentuada no Rio Grande do Sul, devido às condições históricas de sua formação, sendo necessário considerar que “as prováveis disputas pelo poder dão-se ao nível dos grupos dominantes, uma vez que as demais camadas sociais se fazem ausentes do jogo político”.13 As especificidades da elite que controlava o poder no estado, representada pelo partido republicano, são apontadas por Celi Regina Pinto, quando afirma que, na sua maioria, não pertencia à tradicional elite pecuarista da Campanha gaúcha, mas era proveniente da região norte do estado.14 Diferentemente, dos demais partidos republicanos brasileiros, o PRR teve que enfrentar uma oposição organizada, representada pela elite pecuarista do estado que dominava a rede coronelista da campanha gaúcha. Mesmo considerando esses aspectos e o fato de se constituírem numa minoria, destaca que o partido dominou o estado durante a República Velha, tendo inclusive enfrentado duas revoluções sem perder o poder e, ainda, liderou o processo da Revolução de 30, que pôs fim ao pacto oligárquico.15 Os maragatos palmeirenses aliaram-se à elite pecuarista da Campanha, mas eram social e economicamente muito distintos da mesma. No caso da região da Grande Palmeira, constata-se que o enfrentamento se dá entre camadas sociais distintas, visto que o poder do mato nã o faz parte do grupo dominante, constituindo-se no segmento sobre o qual lançamos nosso olhar, no sentido de investigar a composição e os motivos que os impulsionavam à luta. As motivações do grupo de oposição local apresentam-se como indagações a serem investigadas, visto não apresentarem semelhanças com os federalistas da Campanha, cujos vínculos com a oligarquia dominante no Império, serviram como motivo para enfrentamento com o grupo que assumiu o poder na República e, posteriormente, contra um governo que se perpetuou no poder.
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PESAVENTO, Sandra J. “República Velha gaúcha Gaúcha: Estado autoritário e economia”. In DACANAL, José H. ; GONZAGA, Sérgius (Orgs.) RS: Economia e Política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1979. p. 194. 13 Idem. p. 196. 14 PINTO, Celi Regina. Positivismo: Um projeto político alternativo – RS: 1889 -1930 . L&PM Editores 1986. p. 10-11. 15 Idem. p. 11.
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