Preservando a Unidade do Espírito no Vínculo da Paz
u m cursó dê ecumenismo
O Autor
Gottfried Brakemeier nasceu em 1937, na cidade de Cachoeira do 1937, Sul, RS. Doutorou-se em Gòttingen,
Alemanha, na área de Novo Testamento; lecionou nessa área de 1968 a 1994, em São Leopoldo. Foi presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), presidente do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC) e presidente da Federação Luterana Mundial (FLM). Atualmente é professor de Teologia Sistemática e Ecumênica na Escola Superior de Teologia (EST) em São Leopoldo.
"Preservando a Unidade Unidade do Espírito Espíri to no Vínc Vínculo ulo da Pa P az"
A publicação deste livro foi possível graças às contribuições da Evangelisches Missionswerk in Deutschland (Hamburgo, Alemanha) e das Igrejas Protestantes Unidas na Holanda Ministérios Globais (Utrecht), às quais a Associação de Seminários Teológicos Evangélicos agradece.
Associação de Seminários Teológicos Evangélicos Presidente: Prof. Jose' Carlos de Sowça (São Bernardo do Campo) Vice-Presidenle: Prof. Dr. Nelson Kilpp (São Leopoldo) Secretário: Prof. Manoel Bernardino de Santana Filho (Rio de janeiro) Tesoureiro: Prof. Gerson Correia de Lacerda (São Paulo)
Vogais: Prof. Dr. Werner Wiese (São Bento do Sul) Prof. Dr. Paulo D. Siepierski (Recife)
Prof. Gerson Luis Linden (São Leopoldo)
Secretário Geral Prof. Fernando Borlo/lelo Filho
LÍBER GOTTFRIED BRAKEMEIER
0013092632
"Preservando a Unidade do Espírito no Vínculo da Paz" UM CURSO DE ECUMENISMO
BS14 p São Paulo 2004
Seminário Concórdia Biblioteca
st. CKj a «3J934 3qroo^aCMa03 TU
Copyright ©
Gollfried Brakemeier Todos os direitos reservados
Direção Editorial Hernando Bortolleto Filho Revisão Hernando Bortolleto Filho Capa Marcos Gianelli Composição e arle final Comp System - Tel.: (II) 3106-3866
[email protected] Diagramação Pr. Regino da Silva Nogueira Cícero J. da Silva
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Brakemeier, Gottfried "Preservando a unidade do espírito no vínculo da paz" : um curso de ecumenismo / Gottfried Brakemeicr. - São Paulo : ASTE. 2004. 136 páginas; 16x23 cm. Bibliografia. ISBN: 85-87565-08-7 1. Ecumenismo I. Título. CDD-262.0011
04-1783 índices para catálogo sistemático: I. Ecumenismo : Eclesiologia
230
2004
Associação de Seminários Teológicos Evangélicos Rua Rego Freitas, 530 F.13 Cep 01220-010 - São Paulo. SP Brasil
Tel.: (11) 3257-5462 - Fax (II) 3256-9896
[email protected] www.astc.org.br
ÍNDICE GERAL Apresentação
7
I.
Ecumenismo: Definição, significado, abrangência
9
II.
Unidade e pluralidade da Igreja conforme o Novo Testamento.. 17
III. Diversidade religiosa e parceiros ecumênicos no Brasil
23
IV.
Os inícios do movimento ecumênico moderno - pioneirismo protestante 31
V.
Breve história do Conselho Mundial de Igrejas
39
VI.
A Igreja Católico-Romana e o ecumenismo
49
VI I. Ecumenismo na América Latina
57
VIU. A unidade da Igreja na visão de Igreja da Reforma
71
IX .
O ecumenismo de consenso
77
X.
O ecumenismo prático
85
XI .
Pcntecostalismo e movimentos transconfessionais
91
XI I. Ecumenismo e contextualidade Xm.
Modelos de unidade eclcsial
99 105
XIV. Diálogo inter-religioso - macroecumenismo?
113
XV. Multireligiosidade e o futuro do ecumenismo
123
APRESENTAÇÃO Sociedade democrática está comprometida com a liberdade reli giosa. Também o é a Igreja de Jesus Cristo. Está proibida de exercer tirania cm nome do evangelho. Tornou-se culpada sempre que o fez. Jesus Cristo rejeita a violência religiosa. Aposta no poder da palavra, busca a adesão voluntária, cria paz entre inimigos. Reservou exatamen te este mandato também à sua Igreja. "Bem-aventurados os pacificado res, porque serão chamados filhos dc Deus" (Mt 5.9). Eis a promessa a quem se engaja nesta nobre tarefa. O mundo do século XXI se ressente dc aguda carência de "pacifi cadores/as". Proliferam os conflitos, muitos dos quais com fortes ingre dientes religiosos. Ao lado do relativismo de uma sociedade hedonista, perplexa com respeito a valores normativos, renascem os fundamenta lismos, espalhando terror. As "guerras santas" dc modo algum são lem branças do passado. A paz, premissa da sobrevivência, está ameaçada de dissolver-se em miragem no horizonte. Terá chance somente, se for pos sível construir convivência sustentável na pluralidade e multiculturalidade da sociedade globalizada. É para tanto que o ecumenismo quer contribuir. Oferccc-se como alternativa ao fanatismo fundamentalista, dc um lado, e ao descompromisso relativista, dc outro. Procura evitar tanto a colisão do diferente quanto a sua coexistência estanque. Está a serviço da construção de comunhão. Isto em primeiro lugar entre as Igrejas e as pessoas que car regam o nome de Jesus Cristo. Ecumenismo é um projeto eclesiológico. Quer superar divisões internas da Igreja. Mas vai além. Não pode excluir o resto da humanidade dc sua perspectiva. O objetivo último consiste na aprendizagem da glorificação conjunta de Deus nas alturas e da constru ção da paz na terra entre as pessoas a quem Ele quer bem (Lc 2.14).
8
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCUI.O DA PAZ - Gottfried Brakemeier
O texto que apresentamos foi colocado sob a palavra de Efésios 4.3, escolhido como lema pela Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (LECLB) para o ano em curso. Pretende oferecer uma visão panorâmica de significado, história, objetivos e implicações do ecume nismo. Nasceu da preparação do curso sobre essa matéria, constante como disciplina no currículo da Escola Superior de Teologia, em São Leopol do, RS. É esta a razão do subtítulo. Também no mais foram conservadas características da origem em classe de aula, principalmente as indica ções bibliográficas ao final de cada capítulo. Estas se restringem à lite ratura em português e espanhol. Mesmo assim, não pretendem ser com pletas, aplicando-se o mesmo às referências bíblicas. O texto poderá ser usado para ministração de cursos correspondentes, dirigindo-se não só aos especialistas na área, como também a membros leigos nas comuni dades, confrontados de perto com o desafio da unidade na pluralidade religiosa. Pareciam-nos faltar subsídios para essa finalidade, que fossem sucintos, informativos e motivadores. Esperamos preencher uma lacuna. Um livro sobre ecumenismo tem o dever de ser "ecumênico". Mesmo assim, será escrito a partir de determinada posição, perspectiva e percepção. Trata-se, no nosso caso, da confissão luterana, aliás inseri da na tradição protestante c, por extensão, católica, cristã. Exatamente essa consciência compromete com ambas, a objetividade científica e a verdade evangélica. Esperamos que elas estejam em evidência cm nos sas reflexões. Agradecemos à Associação de Seminários Teológicos Evangélicos (ASTE) pelo apoio à publicação. No mais relembramos o célebre princípio a prevalecer no diálogo ecumênico que diz:
"In necessariis unitas - in dubiis libertas - in omnibus caritas' "No que é necessário: unidade; no que é dúbio: liberdade; em tudo: caridade."
I ECUMENISMO: DEFINIÇÃO, SIGNIFICADO, ABRANGÊNCIA 1.0 termo "ecumene" (ecumênico, ecumenismo) provem do gre go "oikoumene". Trata-se do participio passivo feminino do verbo "oikein" que significa "habitar". Ecumene, em tradução literal, significa "habitada", subentendendo-sc tratar da "terra". Portanto, "oikoumene" designa a terra habitada. Na raiz está a palavra "oikos" (casa). "Ecume ne" tem a mesma origem etimológica de "ecologia", "economia", "eco sistema" e outras. Diz respeito à nossa "casa" que é o mundo, no qual nós habitamos. 2. O sentido original de "ecumene", pois, é de ordem geográfica. Refere-se ao espaço de vida do ser humano. E assim que aparece já no Antigo Testamento grego (SI 24.1, etc.) e, sobretudo, no Novo Testa mento (cf. Lc 4.5; At 11.28; Rm 10.18; etc). Já muito cedo, porém, se associam outros significados a este. Sob o aspecto politico, ecumene designa o império romano (Lc 2.1), na perspectiva cultural o mundo unido pelo helenismo, sendo que para a primeira cristandade a ecumene passa a ser vista como o campo de sua missão (Mt 24.14). Muito em breve, porém, o adjetivo "ecumênico" seria aplicado à própria Igreja, difundida por toda a terra. Torna-se sinônimo de "Igreja toda", isto é, "católica", de "Igreja inteira", "Igreja universal". O termo adquire signi ficado eclesiológico. Passa a caracterizar, enfim, determinada mentali dade, a saber, a da consciência da unidade cm Cristo e por isto a de abertura c de amplitude. Ecumene ultrapassa as fronteiras de uma insti tuição. Tem cm vista o corpo de Cristo em sua integralidade, nos hori-
10
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ
-
Gottfried Brakemeier
zontcs de toda a "terra habitada". Possui proximidade ao que hoje se chama "global".
3. Nos primeiros séculos a Igreja "global", "universal", era uma realidade. Seus Concílios eram de fato "ecumênicos", e como tais são reconhecidos. São representativos de toda a cristandade e suas resolu ções têm validade para as Igrejas em todo o mundo. Decorridos dois milênios, porem, e após tantas divisões, a ecumenc precisa ser restabe lecida. É o que diz o termo "ecumenismo". Identifica uma tarefa "mo derna". Embora não tenha equivalente bíblico exato, é de indiscutível legitimidade teológica. Expressa o esforço por recuperação da uni dade visível da Igreja de Jesus Cristo. Ecumenismo pretende superar divisões, sanar feridas e unir o povo cristão no cumprimento comum de sua missão. Prevalece hoje o significado teológico c cclesiológico do termo. 4. No fundo, porém, "ecumenismo" quer mais. Almeja a unidade não só da Igreja. Quer também a unidade da humanidade, respectiva mente a da sociedade. E o que o Conselho Mundial de Igrejas (CMI) sempre enfatizou. A unidade dos/as cristãos/ãs é prioritária. Mas não é um fim em si. Deus quer a unidade de toda a sua criação. Sem esta, a ecumene não está completa. Num mundo dilacerado por conflitos sociais, culturais, militares c outros também a comunidade cristã não poderá viver em paz. Ainda assim, fortes grupos do protestantismo, c, sobretudo, a Igreja Católica continuam a restringir o "ecumenismo" à sua dimensão eclesiológica. Seu objetivo consistiria exclusivamente na recuperação da unidade cristã. Trata-se de uma questão de conecituação, devendo-se convencionar um uso comum do termo. Há consenso dc que a busca da unidade da Igreja deva constar no topo da agenda cristã. Per gunta-se, porém, se as dimensões da ecumene não extrapolam a "comu nhão dos santos". Embora o termo tenha adquirido conotação teológica específica, vale lembrar que ele designava originalmente não o conjunto das Igrejas, e sim a orbe terrestre habitada. 5. Ecumenismo quer reverter divisões. Fraccionamento é prejuí zo. Infelizmente as divisões começaram cedo. Existem vestígios já no
ECUMENISMO: DEFINIÇÃO, SIGNIFICADO, ABRANGÊNCIA
11
Novo Testamento (cf. 1 Co l.lOs). Houve grupos sectários, ameaças de heresias na Igreja antiga, a exemplo da gnóstica, pelagiana e outras. Em 1054 d.C. separam-se a Igreja do ocidente c a do oriente. No século XVI acontece a Reforma Protestante, em decorrência da qual surgem mais outras divisões (luteranos, anglicanos, calvinistas, etc.). Quatrocentos anos depois, o processo da pluralização da Igreja de Jesus Cristo de modo algum está concluído. A cristandade se apresenta dividida, necessi tando, pois, do esforço ecumênico. Diversidade como tal c mal nenhum. O que causa danos à Igreja e à sua missão é o conflito, a con corrência, a mútua condenação e exclusão. 6. Os credos básicos da fé cristã, a exemplo do Credo Apostólico e do Niceno-Constantinopolitano, afirmam ser a Igreja de Jesus Cristo essencialmente uma. Está fundamentada no evangelho que é o mesmo ontem e hoje c cm todos os lugares. A unidade faz parte de sua essência. Jesus não quis diversas Igrejas, rivalizantes entre si. Quis apenas uma. Mesmo assim, existem muitas. Também isto, em si, não seria nenhum problema. O apóstolo Paulo escreve já no seu tempo "às Igrejas da Galácia" (Gl 1.2; cf. 2 Co 11.28). Cada uma das comunidades locais é repre sentação da Igreja toda. Elas podem ter identidades próprias, específicas, decorrentes da pluriculturalidadc de seus membros, de particularidades contextuais ou de evoluções históricas. São numerosos os fatores diver sificantes da Igreja de Jesus Cristo. Ela sempre vai se apresentar multi forme, desdobrando-sc em Igrejas. Resulta daí que ecumenismo não deve querer uniformizar. Deve, isto sim, reconciliar, conjugar, criar comunhão eclesial. Diversidade é legítima, enquanto capaz da comple mentação mútua.
7. Para tanto é fundamental reconhecer que a unidade da Igreja é anterior ao que a divide. Antes des sermos católicos/as, luteranos/as, metodistas, etc, somos cristãos. A fé, o batismo, a invocação do nome de Jesus Cristo são vínculos que estabelecem a comunhão dos santos. Isto significa: Ecumenismo não tem por meta produzir (!) a unidade cristã. Isto é obra do Espírito Santo que chama e cria a fé. O objetivo do ecumenismo é bem mais modesto: Pretende fazer visível (!) a unidade que "em Cristo" já existe. Trata-sc de concretizar a comunhão dos
12
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Rrakemeier
discípulos de Jesus, de dar-lhe forma, estrutura e expressão. Mas tam bém nessa perspectiva a tarefa ecumênica é nada fácil.
8 . 0 esforço ecumênico é promovido por diversos grupos e aconte ce em muitos níveis. Existe o ecumenismo intereclesiástico, o ecumenis mo dos movimentos, o ecumenismo de base (e de "cúpula"), existe um ecumenismo prático e outro doutrinal, um ecumenismo em liturgia em oração, um ecumenismo espontâneo e outro organizado, ecumenismo em nível local, regional, nacional e internacional. Não é recomendável jogar um tipo de ecumenismo contra o outro ou então monopolizar o ecumenismo para apenas uma de suas formas. Ecumenismo é um fenô meno multifacetado, e vários são os seus métodos, seus jeitos c sujeitos. 9. Apesar de procurar a unidade e de promover a boa causa, o ecumenismo encontra múltiplas resistências. Provoca temores. E sen tido como ameaça à própria identidade. Sofre sob a suspeita de promo ver o sincretismo ou então a relativização da verdade. O antiecumenismo encontra-se predominantemente em grupos "conservadores", exclusivistas. Não raro resulta da desinformação. Pois o bom ecumenis mo jamais renuncia à verdade. Não nivela as diferenças nem as ignora. Ele pressupõe, isto sim, uma atitude de abertura e de disposição para o diálogo. Pretende solucionar conflitos mediante o auscultar mútuo e o recurso comum ao evangelho. Não abre mão da mútua prestação de con tas. Todas as Igrejas permanecem responsáveis frente ao evangelho. Comunhão é assim: Não aniquila identidades, antes as compatibiliza e possibilita vida comunitária. 10. Para o bom êxito dessa causa importa esclarecer a relação entre ecumenismo e missão. A Igreja de Cristo é, a um só tempo, mis sionária e ecumênica. Parece residir aí um conflito: Quem pretende a amizade eclesial, deve desistir de fazer missão, e quem procura atrair novos membros não pode ser ecumênico. Ora, não há como endossar tal lógica. Missão sofre prejuízo quando praticada como feroz concorrên cia entre as Igrejas e se manifestar em condenação mútua. A boa missão não é "captura" de membros. Repudia o "proselitismo". E convite, isto sim, para abraçar a fé e integrar a comunidade. Vai dirigir-se preferen-
ECUMENISMO: DEFINIÇÃO, SIGNIFICADO, ABRANGÊNCIA
13
cialmentc à gente sem Igreja, à procura de uma comunidade de fé. Natu ralmente, postura convidativa acompanhará também o esforço ecumênico. E no entanto, não há como confundir. Ecumenismo trata de superar a rivalidade e de possibilitar a missão comum. Divergências não anulam o ecumenismo, antes o exigem.
11. Jesus Cristo quer a comunhão de seus discípulos. O mesmo vale para o Espírito Santo: Ele congrega os crentes em comunidade. Cria comunhão (2 Co 13.13). Eis porque a busca da unidade da Igreja é nada opcional. E imperativo inalienável e compromisso irrenunciável. Igreja cristã é por excelência ecumênica ou não é Igreja. A rejeição do ecumenismo ameaça transformar a Igreja em "seita". A cristandade perde credibilidade através de brigas e desavenças internas. As guerras religiosas, não por último aquelas entre os próprios cristãos, acumula ram culpa nas Igrejas diante de Deus e diante da humanidade. Em sentido abrangente, ecumenismo persegue o objetivo da paz na terra mediante a recondução de todos os povos à adoração do mesmo Deus, criador e redentor (cf. Is 2.2-5; Mt 8.11). 12. Convém distinguir "e cu me ni sm o" como d ime nsã o da teolo gia e como disciplina no currículo: a. Toda teologia, na verdade, é ecumênica. Rclaciona-se com o pensar teológico do passado, da história da Igreja, bem como com o pensar teológico nas Igrejas irmãs contemporâneas. O conhecimento da teologia de Lutero ou de Calvino, por exem plo, requer o estudo no pano de fundo da teologia escolástica da Idade Média e da Igreja antiga. Também hoje não podemos ignorar a História da Igreja, a teologia cm outros continentes, em outras Igrejas e outras entidades. Isto vale para a exegese, a dogmática, a teologia prática, para todo fazer teológico. Sem os horizontes ecumênicos será pobre qualquer teologia cristã.
b. E, todavia, faz bom sentido tratar do ecumenismo em discipli na especial. Pois o ecumenismo tem uma história que épreciso conhecer. É tarefa a ser refletida. Quer ser di vulgado e ensaiado. Justamente numa época cm que a disputa religiosa reaparece
14
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPIRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier
vigorosa, é importante a lembrança da unidade que Deus quer. Em tempos de globalização somos obrigados a conviver com o diferente. Não o podemos manter à distância. Logo devemos achar formas de convivência pacífica. E o que o ecumenismo se propõe.
13. Houve épocas de verdadeira euforia ecumênica. Achava-se que a unidade das Igrejas estaria próxima. Foi um engano. O caminho ecumênico se revelou como sendo bem mais pedregoso do que previsto. As dificuldades, porém, não justificam a resignação. A tarefa se apre senta hoje com a mesma urgência como ontem. Devemos, isto sim, despe dir-nos de ilusões. Pelo que tudo indica, a cristandade terá rosto multidenominacional também no futuro. Mesmo assim, será possível viver a "comunhão dos santos". O empenho por esta meta tem a promessa de bênção. Algo desta bênção é muito palpável. Nos últimos decênios, o ecumenismo tem logrado substanciais melhoras no relacionamento dos/as cristãos/ãs. 14. Um dos entraves continua sendo a notória dificuldade na defi nição dos objetivos. Falta uma "utopia" ecumênica, respectivamente uma visão do que seja unidade. Ecumenismo deverá pretender o quê? Deverá promover a fusão de todas as Igrejas em uma só instituição? Ou será suficiente uma "Federação de Igrejas"? Deverá ser privilegiada uma "ecumene da justiça", isto é, um ecumenismo prático com base num projeto de ordem social? E as religiões não cristãs, porventura permanecerão fora da "ecumenc"? As perguntas serão discutidas oportunamente. Elas denunciam que os termos "ecumene" e "ecumenismo" necessitam de explicação. Queremos a unidade e a paz. Mas como alcançar o objetivo? Literatura:
- BARROS, Marcelo. O Sonho da Paz. Petrópolis: Ed. Vozes, 1996,2 ed., p. 37s. - BRAKEMEIER, Gottfried. Ecumenismo: Repensando o significado e a abrangência de um termo. In: Perspectiva Teológica, Ano 33, Belo Hori zonte, 2001, p. 195-216. a
ECUMENISMO: DEFINIÇÃO, SIGNIFICADO, ABRANGÊNCIA
15
- CAMBÓN, Enrique. Fazendo Ecumenismo. Uma exigência evangélica e uma urgência histórica. São Paulo: Ed. Cidade Nova, 1994. - CONSELHO NACIONAL DE IGREJAS CRISTÃS / CONSELHO LATI NO-AMERICANO DE IGREJAS NO BRASIL. Diversidade e comunhão. Um convite ao ecumenismo. São Leopoldo: Ed. Sinodal / São Paulo: Ed. Paulinas, 1998. - HORTAL, Jesus. E haverá um só rebanho. São Paulo: Ed. Loyola, 1989, p. lis. - MEYER, Harding. Motivação e alvo do esforço ecumênico: integridade e indivisibilidade do movimento ecumênico. Diversidade reconciliada - o projeto ecumênico. São Leopoldo: EST/ Ed. Sinodal, 2003, p. 25-45. - NAVARRO, Juan Bosch. Para Compreender o Ecumenismo. São Paulo: Ed. Loyola, 1995. - SANTA ANA, Júlio de. Ecumenismo e Libertação: Reflexões sobre a uni dade da Igreja e o Reino de Deus. Coleção Teologia e Libertação IV/14, São Paulo: Ed. Vozes, 1991, 2 ed., p. 15s. a
-
VERCRUYSSE, Jos. Introdução à teologia ecumênica. São Paulo: Ed.
Loyola, 1998. - WOLFF, Elias. Caminhos do ecumenismo no Brasil. História - Teologia Pastoral. São Paulo: Ed. Paulus, 2002.
UNIDADE E PLURALIDADE DA IGREJA CONFORME O NOVO TESTAMENTO 1. A unidade está na raiz do próprio ser da Igreja de Jesus Cristo. Juntamente com a santidade, a apostolicidade e a catolicidade, perfaz um de seus essenciais atributos. Já o rápido exame do Novo Testamento o comprova. Jesus ora pelos seus discípulos para que todos sejam um (Jo 17.21). O rebanho c um só, c um só c seu pastor (Jo 10.14). "Há somente um corpo e um Espírito (...) há um só Senhor, uma só fé, um só batismo, um só Deus e Pai de lodos..." (Ef 4.4s). Que Jesus Cristo esteja dividido (1 Co 1.13), é pensamento inconcebível para a primeira cristandade. Todos os batizados são um "em Cristo Jesus" (Gl 3.28). E quem come pão na mesa do crucificado e ressusci tado constitui um só corpo com ele, o doador da ceia, e os demais participantes (1 Co 10.16). Cristo derruba paredes de separação. Ele não divide, ele une (Ef 2.lis). 2. Ainda assim, observa-se surpreendente diversidade de formas na Igreja das origens. O próprio NT é um livro plural, no qual se faz ouvir extraordinária variedade de vozes. A proposta de Taciano, teólogo cristão do segundo século, harmonizando os quatro evangelhos median te fusão, que chamou de "Diatéssaron" (= através dos quatro), acabou rejeitada. A Igreja de Jesus Cristo preferiu canonizar o lado a lado, às vezes tenso, de Mateus, Marcos, Lucas e João. Resistiu à uniformiza ção. Sempre se apresentou "multicolorida". Isto se aplica, não por último, à eclesiologia. A primeira cristandade ensaiou diversos mode los. Não se trata nisso de sinal de fraqueza, e sim de força. A Igreja de
18
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier
Jesus Cristo, em sua historia, mostrou ser capaz de adaptarse a varia dos ambientes e novas exigencias, desenvolvendo estruturas eclesiais correspondentes.
3. São múltiplos os fatores diversificantes da mensagem do evan gelho, bem como da piedade e da vivência da fé: a. Na origem da fé cristã está o testemunho de um grupo de pes soas, não de um só indivíduo. Os apóstolos eram muitos. Ora, o testemunho de um grupo necessariamente é plural. Evidente mente, Jesus c o fundamento da Igreja. Mas nós temos notícia a seu respeito somente da boca de uma "nuvem de testemunhas" (Hb 12.1). b. A Igreja das origens se alojou de imediato em dois ambientes culturais distintos, o hebraico e o helenístico. Os primeiros cris tãos se compunham de judeus (exemplo: os doze apóstolos), de judeus helenísticos (exemplo: Paulo) e de gente pagã (exem plo: Tito [Gl 2.Is]). E claro que isto acarretou enormes diferen ças na articulação da fé. A notícia de Jesus, de sua mensagem, práxis e história, tinha que ser traduzida do idioma e do pensa mento aramaico para o grego. A variedade daí decorrente inevi tavelmente provocou tensões. Houve dificuldades com a vida cm comunhão, como bem o ilustra o conflito entre Pedro e Paulo na cidade da Antioquia (Gl 2.lis). c. Além destes fatores diversificantes naturalmente há outros. A biografia individual costuma imprimir marcas específicas no testemunho. Ou então a classe social, o gênero, a etnia exercem influência. Qualquer tentativa de compreender fenômenos his tóricos está obrigada a verificar os elementos condicionantes que estão em sua origem.
4. A despeito da pluralidade do testemunho, porém, o Novo Testa mento, bem como a Bíblia cm seu todo, de modo algum se reduz a uma "colcha de retalhos". Não é um amontoado aleatório de textos religio sos, nem apregoa um ideal de pluralidade caótica. A canonização dos textos neotestamentários é expressão de um consenso básico da cristan-
UNIDADE E PLURALIDADE DA IGREJA CONFORME O NOVO TESTAMENTO
dade. Seriam estes os escritos "fundamentais" da Igreja de Jesus Cristo. Afirma-se que são expressão autêntica do evangelho e por isto canóni cos. Em outros termos, o Novo Testamento tem um centro, um eixo gravitacional, um ponto referencial. E o próprio Jesus Cristo que man tém unida a variedade. E este o paradigma válido também para a unida de da Igreja: E unidade na pluralidade centrada em Jesus Cristo, é plu ralidade concêntrica.
5. Isto significa que a idéia de um início homogêneo da cristanda de deve ser sepultada. E isto c salutar. Pois diversidade é a marca da criação. Ela é até mesmo pressuposto de unidade. O corpo não funcio na sem a diversidade de seus membros. Ninguém pode imaginar-se um corpo composto somente de mão (1 Co 12.12s). O que é absolutamente igual não tem condições de servir-se mutuamente. Um cego não pode guiar outro cego (Mt 15.14). Pode receber auxílio, sim, da parte de um surdo. Somente o diferente é capaz da compiementariedade c da cons trução de comunhão. Consequentemente, o ecumenismo está proibido de suprimir legítima variedade, de padronizar e nivelar as expressões de fé. 6. O desafio ecumênico, com o qual se defrontam as Igrejas, tem réplica em qualquer convívio social. Diversidade é riqueza. Mas ela o é somente enquanto se dispor a cooperar e enquanto se alicerçar num consenso básico. Caso as diferenças conduzirem à agressão e aca barem em desavenças, pretendendo os grupos aniquilar o diferente ou eliminar o "estrangeiro", a sociedade se autodestrói. Desde sempre a Igreja queria ser agente da paz. O partidarismo entre os cristãos de Corinto mereceu severas críticas por parte de Paulo. Viu nele a rivalida de de interesses corporativistas, aniquiladora da comunidade (1 Co 1. lOs). O fundamento capaz de sustentar a comunhão humana deverá ser cons tituído por parâmetros objetivos e universais. A primeira cristandade pro clamou Jesus Cristo como quem aproximou "judeus c gregos", os de longe c os de perto, constituindo a família de Deus (cf. Ef 2.14). Cristo acabou com a inimizade. Dele a Igreja herdou a tarefa ecumênica, sendo que antes de mais nada compete "fazer as pazes" entre os próprios cris tãos e as próprias Igrejas.
20
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier
7. O compromisso com a paz, porém, seria mal-entendido como pleito em favor de ilimitada tolerância. Paz não tolera o ódio, por exem plo. Pela mesma razão, ecumenismo não pode trair o evangelho. Exis tem verdades irrenunciáveis. Mostra-o o fenômeno da heresia, bem conhecido e combatido pelo Novo Testamento. Heresia não é a variante da fé. É, isto sim, a sua descaracterização e perversão. Nesses termos o apóstolo Paulo defendeu o evangelho frente aos "hereges" que haviam penetrado nas comunidades da Galácia. Quem faz depender a graça de Deus de condições a serem cumpridas pelo ser humano, sejam elas de natureza cultural, ética ou étnica, merece o anátema (Gl l.ós). Ecume nismo precisa do compromisso com a verdade. Não pode fazer-se cúm plice da confusão religiosa nem protagonista de superficial irenismo. 8. Da mesma forma, porém, necessita do compromisso com o amor. Pois somente quem ama cumpre a vontade de Deus (Rm 13.810). Enquanto o saber ensoberbece, o amor edifica (1 Co 8.1-3). Foi a misericórdia que fez com que Jesus dirigisse a sua atenção aos diferen tes, aos pecadores, bem como aos discriminados em termos religiosos, culturais c sociais, a samaritanos e até mesmo pagãos (Mt 8.5s; etc). Não diminuiu a vontade de Deus. Mas também não esperou que as pes soas se convertessem e acorressem arrependidas. Foi à sua procura para manifestar-lhes, a um só tempo, a exigência c o amor de Deus, a lei e o evangelho. Decorre daí que, com relação à unidade, há dois princípios a observar: a. Está aí, em primeiro lugar, a verdade, a doutrina da fé, o credo. De certa forma ela é excludente. Não existem duas verdades. Jesus Cristo é o caminho, a verdade c a vida. Afirma-se exclu sividade. Da mesma forma, a fé estabelece parâmetros para a conduta. A Igreja tem o compromisso dc zelar pela coerência com o evangelho, em discurso c prática. Deve assumir posição que nega possíveis "oposições". E o que se aplica também ao ecumenismo. Ele está proibido de diluir a verdade evangélica. b. E, no entanto, a verdade não pode divorciar-se do outro princí pio que é o amor. Amor sempre tem natureza inclusiva. Quer abraçar o outro. Procura compreendê-lo e com ele aprender.
UNIDADE E PLURALIDADE DA IGREJA CONFORME O NOVO TESTAMENTO
21
Não condena precipitadamente nem se conforma com o pre conceito. No trato do outro, "não se alegra com a injustiça" (cf. 1 Co 13.6). Por isto mesmo, amor autêntico possui elementos "autocríticos". Vai escandalizar-se com as divisões. Examina a eventual co-responsabilidade própria nas mesmas. Quer a comu nhão com o diferente.
9. Ecumenismo, pois, deve conjugar a paixão pela verdade com a paixão pelo amor. Está compromissado a unir ao exclusivismo dou trinal o inclusivismo fraternal. São esses os dois poios do afazer ecumê nico que o protegem de desfigurações. Amor sem insistência na verdade será fraqueza. Vai redundar em sentimentalismo c cair em ficções. Por sua vez, verdade sem amor será cruel e desumana. Costuma provocar resistências e até mesmo o ódio. Em Jesus nós vemos ambas as coisas: a insistência na vontade de Deus c sua verdade, bem como o amor que não larga o outro nem o violenta ou o entrega a seu destino. 1 0 . 0 Novo Testamento oferece bonitos exemplos de empenho pela unidade da Igreja sem com isto suprimir a pluriformidade. Seja lembrado o assim chamado Concílio dos Apóstolos (At 15; Gl 2). Teve por assun to a unidade da Igreja, formada por judaico-cristãos, observadores da lei judaica, e gentílico-cristãos, não observadores da "torá". Encontraram-se, na oportunidade, Paulo e Barnabé de um lado e as "colunas" da comuni dade de Jerusalém, Pedro, João c Tiago (irmão de Jesus), dc outro. O conclave teve o mérito dc ter impedido o surgimento de duas Igrejas cristãs, uma judaica c outra gentílica. Teria sido um cisma "mortal" para a cristandade, confinando Pedro c os demais integrantes do g rupo dos doze apóstolos a uma facção cristã do judaísmo e privando a missão entre os gentios de sua raiz histórica em Jesus de Nazaré. A manutenção do "sola gratia " (somente por graça) para tanto tem sido decisiva. É Cri sto quem salva, e somente ele. Isto não proibe observar tradições culturais. Mas elas já não possuem força salvífica. Doravante não haveria necessidade de cumprir a lei judaica como premissa para abraçar a fé em Cristo. 11. Outro exemplo de esforço por unidade é o projeto da coleta que o apóstolo Paulo levanta nas comunidades gentílico-cristãs em
22
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier
favor dos cristãos judaicos em Jerusalém (2 Co 8-9). Esta coleta, na verdade, era um determinação do Concílio dos Apóstolos (Gl 2.10). Mas o apóstolo mostra particular engajamento nessa causa. Ela simboliza o débito dos gentílico-cristãos com relação aos judaico-cristãos. Pois é deles que partiu o evangelho para todo o mundo. Não há como contestar que a "salvação vem dos judeus", como se lè no evangelho de João (4.22). Conseqüentemente existe um vínculo entre todos os cristãos, quer venham de fora, quer venham de dentro. A Igreja de Cristo é uma só, composta de muitas nações. Seus membros vivem todos da graça de Deus, não do que herdaram ou do que produzem. A justificação por graça e fé é o mais poderoso fator ecumênico.
12. Ecumenismo precisa do consenso na fé e na prática. Mesmo assim, e também isto está em evidência no NT, tal consenso será "dife renciado". Não será uniforme. Deixa espaço para articulações próprias e para a diversidade que é característica dos dons do Espírito Santo. E um assunto a ser retomado mais abaixo.
Literatura:
- BRAKEMEIER, Gottfried. O cânon do Novo Testamento - paradigma da unidade da Igreja? In: Estudos Teológicos, v. 37, São Leopoldo: EST, 1997/ 3, p. 205-222. - GALLAZI, Sandro. O projeto e o lugar da unidade na Igreja. Estudos Bí blicos, n° 12: Unidade e conflitos na Igreja à luz do Novo Testamento. Petrópolis: Ed. Vozes, 1986, p. 7-14. - HORTAL, Jesus. E haverá um só rebanho. São Paulo: Ed. Loyola, 1989, p. 133-157. - KÀSEMANN, Ernst. Diversidade e unidade no Novo Testamento. Conciíium, n° 191, Petrópolis: Ed. Vozes, 1984/1, p. 80-90. - SANTA ANA, Júlio de. Ecumenismo e Libertação: Reflexões sobre a uni dade da Igreja e o Reino de Deus. Coleção Teologia e Libertação IV/14, São Paulo: Ed. Vozes. 1991, 2 ed., p. 177-216. - TAPPENBECK, Heinrich. A unidade da Igreja na obra e no pensamento do apóstolo Paulo. In: Estudos Teológicos, Ano 2, São Leopoldo: EST, 1962, n° especial, p. 1-13. a
DIVERSIDADE RELIGIOSA E PARCEIROS ECUMÊNICOS NO BRASIL 1. Ecumenismo acontece entre grupos, movimentos, entidades e instituições eclesiásticas. É preciso, pois, conhecer os parceiros. De modo algum são iguais. Há os mais próximos e os mais distantes. Há aqueles com os quais o ecumenismo c mais fácil e aqueles com os quais é difícil. Sc a ecumene é família de Deus (cf. Ef 2.19), a existência de parentes de diversos graus não surpreende. Não podemos ter o mesmo tipo de comunhão com todas as pessoas. Importante é que ninguém seja definitivamente excluído. O imperativo do ecumenismo se aplica, ainda que em modalidade diversa, a todos os grupos religisosos. Eis porque ecumenismo exige noções do mapa religioso circundante. 2. Uma das proeminentes características da sociedade brasileira, c por extensão também da latino-americana, consiste na pluralidade reli giosa. Isto nem sempre tem sido assim. Durante séculos prevalecia a Igreja Católico-Romana na condição de Igreja estatal. Outras formas de religião e de fé cristã estavam interditadas. Se existiam, viviam submer sas na clandestinidade, a exemplo da religiosidade afro. Até mesmo quan do o Império, no início do século XIX, atraiu imigrantes ingleses, ale mães e suíços, sendo obrigado a conceder aos protestantes entre eles o exercício de sua fé, a situação em princípio persistiu. Somente em 1889 foi decretada a liberdade religiosa. A abertura para imigrantes de quase todos os países deste planeta transformou o Brasil em nação multicultu ral. Aqui aportaram muitas nações, trazendo sua bagagem cultural e religiosa.
24
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried lirakemeier
3. Religião, se livre, sempre se apresentou em multiplicidade de cultos e ritos. Somente ditadura poderia garantir uniformidade. E o que o ecumenismo não pode pretender. Por motivos do próprio evangelho não poderá abrir mão da liberdade religiosa. Mas, como manejar a plu ralidade? É uma pergunta especialmente candente na atualidade. A glo balização cultural e a privatização da fé redundaram numa explo são de religiosidade quase selvagem. Ela traz em seu bojo forte potencial conflitivo. Pode produzir o fundamentalismo, ou seja, a intransigência fanática de grupos, por um lado. O diferente cai sob suspeita e sofre demonização. Ou pode acabar no relativismo que já não mais conhece normatividade. A alternativa a esses dois descaminhos é o ecumenismo, inconformado com o caos religioso e, todavia, adverso a quaisquer méto dos violentos. Na perseguição de suas metas necessita de estratégias e, sobretudo, da análise do respectivo quadro religioso. Ecumenismo deve trabalhar em estreita cooperação com a ciência da religião. 4. As religiões "originais" neste Continente são as indígenas. Elas foram majoritariamente extintas. Sobraram apenas restos dessas religiões tribais. Em decorrência do "despertar das consciências", porém, e do resgate da herança indígena, elas voltaram a atrair atenção. Os povos indígenas têm o direito ao diálogo interreligioso que lhes ausculte os credos e os valores culturais. Algo semelhante vale para a cultura afrobrasileira. Passou por um processo sincretista com a religião cristã dominante. Mas na umbanda, no espiritualismo, no candomblé, bem como em muitas formas de religiosidade popular, ela sobreviveu às adversidades dos tempos e conseguiu recuperar importância sócioreligiosa. O ecumenismo com essas formas de religosidade requer reflexões especiais. Voltaremos ao assunto ao tratar do macroecumenismo. 5. Aliás, já muito cedo vieram também judeus ao Brasil, fugindo da perseguição em outros países. Sofreram discriminação também em terras brasileiras. Mesmo assim, ao longo da história, estabeleceu-se no Brasil forte comunidade judaica. Ela representa mais outro desafio ao ecumenismo cristão. Cristãos c judeus, a despeito de suas diferenças, têm muito em comum. Que significa isto para a sua convivência?
DIVERSIDADE RELIGIOSA F. PARCEIROS ECUMÊNICOS
25
6. O catolicismo que sc estabeleceu no Brasil-colônia trazia fisio nomia ibérica. Sofreu mudanças com a chegada de outros contingen tes católicos, oriundos da Itália ou da França, por exemplo. Perdeu a exclusividade com a vinda de protestantes. Distingue-se tradicional mente entre protestantismo de imigração (luteranos, reformados, anglicanos) e protestantismo de missão (metodistas, batistas, presbi terianos e outros). No caso do primeiro, o protestantismo foi importa do quase como efeito colateral de interesses econômicos e políticos. Sofreu transplante para as terras brasileiras para criar novas raízes. Inicialmente não desenvolveu dinamismo expansivo. Contentava-se com a permissão para o exercício de sua fé. Enquanto isso, o protes tantismo de missão, em ofensiva evangelizadora, tratava de recrutar adeptos entre a população. É claro que entrou em colisão com a Igreja Católica dominante. Principalmente após a proclamação da República em 1889, o Brasil veio a ser atrativo campo missionário de muitos grupos evangélicos, vindos predominantemente dos Estados Unidos da América. Hoje as diferenças entre os tipos se confundem. As Igre ja j a s dc mis mi s são sã o se tor to r nar na r a m de a lgu lg u m a form fo rmaa "s " s e d e n t á r i a s " , e as de imi im i gração reconheceram sua tarefa missionária. A evangelização do povo brasil bra sileir eiroo de mo modo do algum al gum está es tá encer en cerra rada da.. Fren Fr ente te a novo no voss desafi des afios, os, po poré rém, m, e na consciência da solidariedade dc todas as Igrejas, cumpre conceber uma "missão ecumênica", que evite a rivalidade c venha a somar os recursos. 7. Vale isto, não por último, para as Igrejas pentecostais que experimentaram verdadeiro milagre de multiplicação no Brasil. Tam bé b é m o pent pe ntec ecos osta tali lism smoo se apre ap rese sent ntaa mu mult ltif ifac acet etad ado, o, sim, si m, alta al tame ment ntee com co m pl p l e x o , esto es tont ntea eant nte, e, impo im poss ssib ibil ilit itan ando do esta es tatí tíst stic icas as c o m nú núm m eros er os exat ex atos os.. Ao lado de Igrejas pentecostais já há mais tempo radicadas no País, a exemplo da Assembléia dc Deus, da Igreja do Evangelho Quadrangu lar e da Congregação Cristã no Brasil, encontra-se o "neopentecostalismo" do tipo da Igreja Universal do Reino de Deus. O fenômeno exige apreciação própria, sendo particularmente constrangedor o pro blem bl emaa do e c u m e n i s m o com co m essa es sa ala al a do c r isti is tian anis ismo mo.. Qu Quai aiss seri se riam am as formas de comunhão eclesial entre Igrejas tradicionais c pentecostais. Ademais, juntaram-se ao mosaico religioso brasileiro diversas Igrejas
26
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier
orientais, ortodoxas. Elas aumentam o exuberante colorido do cristia nismo brasileiro, espelhando a extraordinária variedade das expres sões cristãs. entan to, a Améric 8. E no entanto, Amé ricaa Latina já não é "continente "continente cristão" crist ão" como se preconizava ainda poucas décadas atrás. Mesmo em condição minoritária, muçulmanos, budistas, hindus e adeptos de outros credos não cristãos fazem fazem parte "natural" "natu ral" do quadro religioso brasileiro. O Espi Espi ritismo goza de ampla aceitação. Difundem-se Nova Era ou então gru pos po s co c o m o Scic Sc icho ho-n -noo-iê iê,, Perfe Pe rfeita ita Libe Li berd rdad adee e ou outr tros os.. No Novo voss mo movi vime ment ntos os religiosos integram o quadro e desenvolvem considerável dinâmica. O mercado religioso diversifica a oferta. Dilui o que se tem chamado dc "cultura cristã". A tradição cristã se encontra em franco processo de ero são que instala também na religião a lei da compelividade. O ecumenis mo, terá ele chance nessas circunstâncias? Como se correlacionam o ecumenismo c a missão em termos de mercado?
9. Ecumenismo nem sempre terá a mesma face. Está condiciona do à natureza dos parceiros, às suas afinidades, à sua disposição, à res pecti pe ctiva va auto au to-c -com ompr pree eens nsão ão.. O ecumenismo costuma operar com várias categorias. Distingue entre: a. Igrejas. São instituições constituídas como "associações reli giosas", dando expressão e espaço para a vivência da "comu nhão dos santos", confessada no Credo Apostólico. Exige-se de "Igrejas" que tenham definida a sua identidade cristã, que tenham certa expressão na sociedade, que possuam estrutura administrativa. Igreja se baseia em amplo consenso dos fiéis enraizado cm fundamento bíblico. Fala-sc cm "Igrejas históri cas", quando se trata de instituições eclesiásticas com alguma tradição, distinguindo-sc assim de Igrejas recém estabelecidas. Em todos os casos, Igreja é uma instituição, ultrapassando os limites de uma comunidade local e naturalmente a dc um movi mento fugaz. b. Seitas. São grupos cristãos à parte das correntes eclesiásticas prin pr inci cipa pais is.. O term te rmoo se deriva der iva do latim lat im " s e c a r e " qu quee signif sig nifica ica
DIVERSIDADE RELIGIOSA E PARCEIROS ECUMÉNICOS
27
"cortar", "separar". Seitas, portanto, seriam entidades "corta das" da s" do tronco, c por isto isto marginais. Outra explicação etimoló eti moló gica deduz o termo do verbo latino "sequi" com o significado de "seguir". Uma seita seria um grupo unido em tomo de um mestre, seguindo-lhe os ensinamentos. Seria algo como uma "escola". Falta uma explicação etimológica consensual. O ter mo adquiriu conotação pejorativa. Evoca a idéia da heresia, do fanatismo, do isolacionismo. Nenhuma comunidade eclesial vai autodenominar-se autodenominar -se assim. Recomenda-se Recomenda- se cuidado no uso do ter mo por isto. E injusto aplicá-lo a grupos simplesmente "desvi antes". Mesmo assim ele faz sentido. Designa determinada postura ou mentalidade que se caracteriza por: Exclusivismo, anliecumenismo, purismo, elitismo, unilateralismo, simplismo. Espírito sectário pode perpassar também as Igrejas c ameaçar a liberdade resultante do evangelho. c. Denominações. O termo surgiu na Inglaterra, mas tomou-se importante de fato nos Estados Unidos para caracterizar os múltilplos grupos protestantes que aí se formaram. O termo é neutro, puramente formal, sem nenhuma carga teológica. Não contém nenhum juízo ju ízo avaliativo sobre sobre os diversos grupos. Iden tifica-os tão somente pela sua designação, ou seja, "denomina ção". É claro que o diálogo ecumênico se trava não somente com Igrejas de diversos nomes, e sim de diversos credos ou confessionalidades. Não obstante, a vantagem do termo con siste em sua conotação inclusivista, "democrática". Somos todos cristãos, embora com diversos nomes. d. Novos movimentos religiosos. São, como diz o termo, movi mentos que surgem como expressão da religiosidade contem porânea. Normalmente possuem natureza sincretista, ou então representam uma religiosidade estranha, "importada", respec tivamente redespertada após longo tempo submersa. A fasci nação desses movimentos resulta justamente da aparência da "novidade" que exibem, do que é exemplo clássico a "Nova Era". Como movimentos, possuem pouca estrutura organizacio nal. Conquistam simpatizantes entre os membros das Igrejas tradicionais c grupos confusos com a modernidade.
28
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ
-
Gottfried Ilrakemeier
10. A avaliação destes conceitos vai con st at ar a rela tividade dos mesmos. O que é Igreja, seita, movimento religioso, isto dependerá do respectivo lugar teológico do observador e da observadora. Sofre decisi va influência pela maneira de perceber o outro e de entender a diferença. O maior entrave ecumênico desde sempre tem sido o desconhecimento, normalmente acoplado ao preconceito. Por isto merece aplauso a recen te iniciativa da reflexão sobre uma "hermenêutica ecumênica", engajada na superação de equívocos, de identificações errôneas, em suma, no apro fundamento da compreensão mútua das comunidades cristãs. Ainda assim, a terminologia acima analisada é útil. Ajuda no "discernimento dos espíritos" (1 Co 12.10). Quem são os sujeitos ecumênicos, seus agen tes e os possíveis parceiros? Já a tipificação dos mesmos é uma questão altamente sensível. Serão irmãos, irmãs, concorrentes, hereges? Que deverá prevalecer no relacionamento com outras Igrejas e outros gru pos? A intransigência, a tolerância ou então o ecumenismo? Este último pretende mais do que a mera co-existência. Quer a con-vivência, para o que há de buscar um mínimo de base consensual, bem como a disposi ção para a aprendizagem ecumênica. 11. Trata-se de um imperativo que em sociedade p Iuri religiosa se reveste de urgência. E bem verdade que o mundo religioso brasileiro não facilita o ecumenismo. Ele é sincretista, competitivo, proselilisla. Em ampla escala religião se tornou um produto de mercado. E pre ciso vender para sobreviver. Justamente cm tal situação, porém, cabe às Igrejas mostrar que salvação não provém do mercado, e sim do evange lho. E um dos ingredientes da salvação é a paz. Religião que não se empenha pela paz, perdeu a legitimidade.
Literatura:
- ALTMANN, Walter. O pluralismo religioso como desafio ao ecumenismo e à missão na América Latina. In: Desafios Missionários na Realidade Brasileira, São Leopoldo: CECA, 1997, p. 61-72. - BITTENCOURT FILHIO, José. Matriz Religiosa Brasileira - religiosida de e mudança social. Petrópolis / Rio de Janeiro: Ed. Vozes / Koinonia, 2003.
DIVERSIDADE RELIGIOSA E PARCEIROS ECUMÊNICOS
29
- BOBSIN, Oncide. Tendências religiosas e transversalidade: Hipóteses sobre a transgressão de fronteiras. In: Estudos Teológicos. Ano 39, São Leopoldo: EST, 1999/2, p. 105-122. - CONSELHO MUNDIAL DE IGREJAS / COMISSÃO DE FÉ E CONSTI TUIÇÃO / CONIC. Um tesouro em vasos de argila. Instrumento para uma reflexão ecumência sobre a hermenêutica. São Paulo: Ed. Paulus, 2000. - HORTAL, Jesus. E haverá um só rebanho. São Paulo: Ed. Loyola, 1989, p. 97-131. -
LANDIM, Lcilah (org.). Sinais dos Tempos - igrejas e seitas no Brasil.
Cadernos do ISER 21, Rio de Janeiro, 1989. -
. Sinais dos Tempos - tradições religiosas no Brasil. Rio de
Janeiro. Cadernos do ISER 22, 1989. -
. Sinais dos Tempos — diversidade religiosa no Brasil. Rio de
Janeiro. Cadernos do ISER 23, 1990. -
-
-
MENDONÇA, Antonio Gouvea. O Celeste Porvir: A inserção do Protes
tantismo no Brasil. São Paulo: Ed. Paulinas, 1984. . O não-ecumenismo no Brasil. In: Tempo e Presença. Ano 20, n° 301, Rio de Janeiro: Koinonia, 1998, p. 16-18. MIGUEZ BONINO, José. Rostos do protestantismo latino-americano. São Leopoldo: Ed. Sinodal, 2001. WULFHORST, Ingo. Religiões, novas religiões e seitas no Brasil. In: Pre sença Luterana, G Brakemeicr (org.), São Leopoldo: Ed. Sinodal, 1990, p. 77-92. ZWETSCH, Roberto. Perspectivas de diálogo entre fé indígena e fc cristã. In: Estudos Teológicos. Ano 36. São Leopoldo: EST, 1996/1, p. 45-60.
OS INÍCIOS DO MOVIMENTO ECUMÊNICO MODERNO PIONEIRISMO PROTESTANTE 1. O movimento ecumênico moderno surge como reação à frag mentação da Igreja de Jesus Cristo. É sinal de inconformidade com ela. De certa forma encerra o período confessional, isto c, o da divisão regional do mundo por "confissões". A guerra dos trinta anos (16181648) havia sido a última tentativa de restabelecer, pela força, a unidade da cristandade, tentativa esta que redundou cm terrível fracasso. Desde então o norte era predominantemente protestante, o sul católico, o leste ortodoxo, o oeste anglicano c calvinista. Mas a internacionalização do mundo que ocorre no século XIX já não mais permite a separação geo gráfica das confissões. Faz com que colidam, principalmente nas áreas missionárias da Africa e da Ásia. Surgem daí importantes impulsos para o ecumenismo. 2. A internacionalização do planeta é consequência das conquistas tecnológicas que encurtam as distâncias, bem como da migração inter continental de grandes parcelas da população mundial. Trata-se do avanço da globalização, iniciada com a descoberta das Américas no século XV e fortemente acelerada no século XIX. A máquina altera os meios de produção, de transporte e de comunicação. Faziam-se necessárias orga nizações internacionais para fazer frente aos problemas e às necessida des de um mundo progressivamente menor. Entre as promoções mencio namos:
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemcier
32
-
a primeira Exposição Mundial, em 1851; a fundação da Cruz Vermelha, em 1864; a criação da Associação para o Direito Internacional, em 1873; os Jogos Olímpicos Modernos, realizados pela primeira vez em 1896.
Infelizmente também os conflitos políticos tomar-se-iam interna cionais. As guerras do século XX, sobretudo as de 1914-1918 e de 19391945, teriam proporções mundiais, com prejuízos inéditos até então.
3. Também o colonialismo é sintoma dessa internacionaliza ção. Demonstra a hegemonia europeia que, após sofrer a perda das Américas em virtude da emancipação das mesmas, se apodera da África e da Ásia como aquele resto do mundo considerado ainda "sem dono". Promoveu a mescla dos povos, a missão cristã, o intercâmbio cultural. Da mesma forma, porém, fez colidir os interesses colonialistas na exploração das riquezas das regiões ocupadas. Nesse contexto atuam as sociedades missionárias. Seria injusto rotular a admirável e abnegada obra das mesmas indiscriminadamente de "colonialismo cristão". Por demais vezes, as missões entraram em choque com as forças coloniza doras, exigindo a observância de princípios evangélicos e sua primazia sobre os brutais interesses econômicos. Ainda assim, é verdade que os impérios coloniais propiciaram a expansão da missão. Simultaneamen te, aguçaram a consciência das dolorosas divisões na própria cristanda d e / Num mundo crescentemente global e, todavia, fragmentado, iria emergir, quase que naturalmente, a idéia ecumênica. A/A primeira reação das Igrejas à internacionalização consistiu na constituição de estruturas igualmente globais. Surgem no século XIX c inícios do século XX as federações e alianças eclesiásticas. São as Igrejas protestantes que buscam a comunhãocom seus irmãos e irmãs de fé espalhados pelo mundo afora com o intuito de conjugar o testemu nho. Eis alguns exemplos: - em 1867: Organiza-se a "Comunhão Anglicana" - cm 1875: Cria-se a "Aliança Mundial de Igrejas Reformadas"
Os INÍCIOS DO MOVIMENTO ECUMÊNICO MODERNO - PIONEIRISMO PROTESTANTE
33
- em 1881: Juntam-se os metodistas na "Conferência Ecumênica Metodista" - em 1905: Constitui-se a Federação Batista Mundial - em 1923: E criada a "Convenção Luterana Mundial". Não se trata da fundação de Igrejas. As estruturas são de natureza antes "federativa" entre Igrejas irmãs. Nisso distingue-se o protestan tismo da Igreja Católica com sua "estrutura planetária". Esta celebra no Concilio Vaticano I, em 1870, pública demonstração de sua "internacionalidadc". Proclama solenemente a infalibilidade papal e consagra assim o centralismo eclesiástico como decidida resposta aos avanços do pluralismo e individualismo da modernidade. Em todo esse cenário, o imperativo de unir é sentido com bem maior premência pelo protestan tismo, no que reside seguramente um dos motivos para seu pioneirismo ecumênico. As afinidades doutrinais e a magnitude dos desafios a enfren tar questionavam a permanência das divisões lesivas no corpo da cris tandade.
5. Os protestantes, porém, queriam mais do que simples associa ções confessionais. As instituições eclesiásticas, é verdade, ficaram inicialmente à margem das iniciativas. O protagonismo coube a pes soas leigas a exemplo do metodista John Mott c do anglicano Joseph Oldham, ou a movimentos como a "Aliança Evangélica", fundada cm 1846 com o nome de "Liga Fraternal de Oração c Combate à Descrença". Sejam mencionadas, ainda, a "Associação Cristãs de Jovens", fundada em 1855, e as "Sociedades Bíblicas". Entidades como essas prepararam o ecumenismo, transpondo as tradicionais fronteiras denominacionais e promovendo a cooperação. 6. É das sociedades missionárias que partem os mais fortes impul sos para a união. Mas há outras causas na raiz do sonho ecumênico. Destaca-se o problema da economia e da justiça social em meio ao capi talismo emergente. A pauperização de amplas camadas da população devido à exploração selvagem do trabalho, o êxodo rural, o crescimento do proletariado e da miséria nos centros urbanos sensibilizava as cons ciências e clamava por uma reação das Igrejas. O embate ideológico das
34
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESFÍRI'IO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakcmeicr
forças restauradoras após a revolução francesa de 1789-94 e dos movi mentos revolucionários a exemplo do comunista de Karl Marx necessa riamente provocava a fé cristã./Algo semelhante vale para o avanço do ateísmo dito científico num mundo progressivamente secular. As conse qüentes perdas para a fé eram motivo de inquietitude não só de uma confissão ou de uma Igreja.)Sejam mencionadas, enfim, as ameaças à paz mediante exacerbado nacionalismo e militarismo nos países euro peus que mais tarde, de fato, iriam detonar em horríveis banhos de sangueiTodo esse quadro constrangia os cristãos c os animava ajuntar for ças c vozes. O evangelho exigia uma resposta comum da cristandade. inicial do movimento ecumênico 6 a Conferência Inter nacional sobre Missão que teve lugar em Edimburgo, Escócia, em 1910 .)Não era essa a primeira conferência desse tipo, mas a maior c a mais representativa.)Ela é considerada o divisor de águas na história do ecumenismo. O que antecedeu eram preliminares, o que sucede c con cretização de uma visão c encaminhamento de estruturas.ÍPretendia-se a coordenação da missão principalmente na Ásia c na ÁfricaXEntretanto, o resultado foi muito além. Representantes das Igrejas Ortodoxas e da Católico-Romana ainda estão ausentes./Reúnem-se, na oportunidade, mais que 1.200 delegados de Sociedades Missionárias protestantes; A Conferência estava marcada por forte otimismo missionário. Aprego ava-se a "evangelização do mundo ainda nesta geração", uma esperança que frustrou. A importância da convenção, porém, reside nos incentivos ecumênicos que deu. As próprias Igrejas demoraram cm acolher a idéia. Mas a semente estava lançada. Mais e mais sentia-se a necessidade de não só organizar a tarefa missionária, e sim de também falar sobre assuntos de doutrina e de promover ações conjuntas em questões práti cas entre as Igrejas. 7 /Marco
8. Naccram dessa Conferência diversas organizações que dariam origem ao Conselho Mundial de Igrejas. São elas: a. - O Conselho Missionário Internacional, constituído legalmente em 1921, nos Estados Unidos\Seu objetivo consistia no apoio e na coordenação das inciativas missionárias em nível global.
Os INÍCIOS DO MOVIMENTO ECUMÊNICO MODERNO - PIONEIRISMO PROTESTANTE
35
Cabe ressaltar que isto deveria acontecer no simultâneo esfor ço por evangelização e por justiça no relacionamento entre os povos e as raças. b. O movimento para o cristianismo prático, chamado "Vida e Ação" ("Life and Work").) O movimento foi uma resposta ecumê nica imediata aos horrores da Primeira Guerra Mundial, tendo na promoção dajpaz uma de suas grandes metas) c. (O movimento "Fé e Ordem' Í("Faith and Order", chamado em português também "Fé e Constituição"), que se propõe o diálo go teológico e o acerto das Igrejas cm questões de doutrina. A idéia de se criar tal foro remonta ao bispo anglicano Charles Brent. Ainda em Edimburgo, ele se convenceu de ser impossí vel aproximar as Igrejas sem a remoção dos impedimentos dou trinais da unidade. 9. No período entre a Conferência de Edimburgo e a fundação do Conselho Mundial de Igrejas a idéia ecumênica am ad ure ce , sendo abra çada crescentemente pelas lideranças eclesiásticas/Em 1919, na Suécia, o bispo luterano Nathan Sõderblom lança, pela primeria vez, a sugestão da criação de um "Conselho Ecumênico de Igrejas".)Ela caiu em solo fértil. Era forte o anseio por maior unidade entre as Igrejas cristãs, nutri do entre outras pelas turbulências de um mundo em crise. Associa-se também, ainda que de forma tímida c parcialmente relutante, a Igreja Ortodoxa.\Em 1920, o Patriarca Ecumênico de Constantinopla envia uma encíclica na qual propõe uma "Koinonia ton Ekklesion" (Comu nhão das Igrejas). Naquele mesmo ano, a Conferência de Lambeth, rea lizada pela Igreja Anglicana, avança mais um passo: Conclama à reuni ficação da cristandadeJSão estes apenas alguns exemplos do entusiasmo com que vinha sendo acolhida a idéia ecumênica na época. Enquanto isto, a Igreja Católica Romana sc mantinha afastada do movimento. Iria despertar para o mesmo somente decênios mais tarde"^
10. A missão, a ação e a do ut ri na , cada qual com suas respecti vas organizações, são estas as principais veias que iriam confluir no Conselho Mu nd ia l de Igrej as (CMI). Há outros movimentos que a eles se unem, a exemplo do "Conselho Mundial de Educação Cristã", criado
36
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier
em 1947 a partir da liga mundial das escolas dominicais, existente desde 1907. Ademais, não devem ser esquecidas as iniciativas de grupos lei gos./ Jovens, mulheres e outros têm participação decisiva no desabro char e crescer da idéia ecumênica^E todavia, os movimentos em torno da missão, da ação c da doutrina constituem algo como as motivações fundamentais do ecumenismo nas Igrejas) "Fé e Ordem" pretende o testemunho conjunto, a fé professada de comum acordo. Trabalha a teo logia, a doutrina. Parte da convicção de que unidade necessita de um consenso básico no credo. Promove o diálogo interconfessional. O movi mento "Vida eAção" quer conjugar os esforços diaconais das Igrejas, a serviço da criatura sofrida. Tem em vista a praxis eclesial, convicta de ela ser poderosa força de união. As missões, enfim, procuram a sintonia no cumprimento do mandato de levar o evangelho aos confins da terra. Pretendem evitar a perda de crédito e demonstrar coerência evangélica. Em todos estes casos havia dificuldades a vencer. "Fé e Ordem" celebra duas grandes conferências internacionais, a primeira em 1927, em Lausanne (Suíça), a segunda em 1937, em Edimburgo (Escócia). Decide aderir à sugestão de criar uma comissão preparatória do "Conselho Mundial de Igrejas" (CMI). Algo semelhante vale para o movimento "Vida c Ação". Tem a sua primeira conferência em 1925, em Estocolmo, Suécia, a segunda em 1937, cm Oxford, Inglaterra. Manifesta igualmen te seu apoio à criação de um Conselho Mundial na oportunidade.
11. Quem fica fora, por enquanto, é o Conselho Missionário Inter nacional. Realiza, também ele, Conferências Internacionais, em Jerusa lém (1928) e Tambaram, índia (1938). Mas ainda não se vê em condi ções de se integrar no Conselho em formação. O que seria "missão cristã", isto já naquela época era controvertido. A adesão iria acontecer somente em 1961, na terceira Assembléia Geral do CMI, em Nova Dclhi (índia). Mesmo assim permanece verdade que a missão, a ação social e o diálogo doutrinal, esses três, são o tripé em que o projeto do CMI se assenta e a partir do qual se desenvolve. Pretende-se a missão conjun ta, a ação conjunta, o testemunho conjunto. 12. Seja anotado à margem que o movimento ecumênico, na pri meira parte do século XX, era uma promoção predominantemente
Os INÍCIOS DO MOVIMENTO ECUMÊNICO MODERNO - PIONEIRISMO PROTESTANTE
37
européia e norte-americana. As Igrejas jovens, do assim chamado ter ceiro mundo, eram antes espectadores do que parceiras.)lsto começa a mudar já em 1928, na Conferência sobre Missão, na índia. Percebe-se ser impossível conceber "missão cirstã" como via de mão única, sendo uns os permanentes "doadores" c outros os "receptores". Somente mutiialidade promete o bom êxito. Desenvolvimento semelhante pode-sc obser var no que diz respeito ao ecumenismo. De uma promoção de entidades cristãs do hemisfério norte iria gradativamente transformar-se num movi mento global, adquirindo feição de fato "ecumênica". Isto não diminui em nada a validade da iniciativa. Mostra, porém, que "ecumenismo", também sob este aspecto, é um processo de aprendizagem.
Literatura:
- BUSS, Theo. El Movimiento Ecumênico en la perspectiva de la liberación. La Paz: Ed. Hisbol / Quito (CLAI), 1996, p. 247s. - DIAS, Zwinglio Mota. O movimento ecumênico - história e significado. In: Numen. Juiz de Fora: Ed. UFJF. V 1, n° 1, 1998, p. 127-163. - KAICK, Baldur van/RAISER, Konrad. Movimento Ecumênico - História e Desafios. São Leopoldo: CECA, s.d. - KRÜGER, Hanfried. O Conselho Mundial de Igrejas - História do Movi mento Ecumênico. São Leopoldo: Ed. Sinodal, 1987, p. 10s. - RAMALHO, Jether Pereira. Meio século de compromisso ecumênico. In: Tempo e Presença. Rio de Janeiro: Koinonia, Ano 20, n° 301, 1998, p. 10-13.
BREVE HISTÓRIA DO CONSELHO MUNDIAL DE IGREJAS 1. A fundação do CMI estava prevista para o ano de 1941. Mas a segunda guerra mundial forçou o adiamento. Somente sete anos mais tarde, cm 1948, na cidade de Amsterdã (Holanda), foi possível consti tuir o que, desde então, seria a mais importante entidade ecumênica. Estiveram representadas 147 Igrejas de todo o mundo, predominante mente protestantes. Na Assembleia Constituinte a Igreja Católica não se fez presente nem mesmo por observadores. Também a representa ção das Igrejas Ortodoxas, por razões diversas, era fraca, valendo o mesmo para as Igrejas da África, Ásia e América Latina. Mesmo assim, tem sido dado um passo de grande envergadura. Igrejas cristãs reagiram ao processo da mundial i zação mediante a criação de uma estrutura supra-cclesial. O Conselho Mundial de Igrejas tem sido c continua sendo órgão integrador de numerosas iniciativas ecumêni cas até então isoladas, abrigando-as sob o mesmo teto c facilitandolhcs a cooperação. Ademais, as Igrejas tinham doravante um instru mento de expressão internacional que iria atrair a filiação dc sempre maior número de Igrejas. Prometia garantir-lhes presença marcante no cenário internacional, além de maior eficácia no combale aos males deste mundo. Para tanto é sintomático o tema da Assembléia Consti tuinte: "A desordem do mundo e o desígnio de Deus". A este tema corresponde a visão da "sociedade responsável" apregoada como meta a comprometer os povos. A constituição do CMI se deu numa Europa terrivelmente devastada e num mundo polarizado na guerra fria entre leste c oeste.
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRIIO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brokemeier
40
A fundação do CMI c certamente um dos mais notáveis eventos na historia da Igreja dos últimos séculos. Ainda assim, para a devida compreensão deste órgão é preciso considerar o seguinte: 2.
a. O CMI representa apenas urna parte da ecamene. Não está filiada a ele a Igreja Católico-Romana. Somente a "Comissão Fé e Ordem" conta com a participação plena da mesma. Man tém-se afastada também a maioria das Igrejas pentecostais, batistas e outras. As Igrejas ortodoxas, por sua vez, não têm atuado de forma unânime. Enquanto algumas se engajaram desde cedo, outras contemplaram o ecumenismo cm atitude de ceticismo. Isto muda em 1961, por ocasião da III Assem bléia Geral do CMI, em Nova Delhi, índia, quando as Igrejas ortodoxas de vários países socialistas resolveram filiar-se. Mesmo assim, a colaboração dessas Igrejas tem sido marcada por cautela e mesmo reservas frente a uma abertura ecumêni ca mais corajosa. b. O CMI não pretende ser uma super-igreja. Define-se a si mes mo como comunhão de Igrejas "que, de acordo com a Sagrada Escritura, confessam Jesus Cristo Deus e Salvador e que, por isto, pretendem cumprir conjuntamente o mandato para o qual foram chamados, para a glória de Deus, Pai, Filho e Espírito Santo." São estes os termos da Constituição do CMI. Ele não substitui as Igrcjas-membro em suas funções. Quer ser entendi do antes como um foro de encontros e de cooperação. Não deve ser confundido com um órgão de "jurisdição ecumênica". Para a auto-compreensão do CMI permanece fundaméntala "De claração de Toronto", de 1950, resolvida pelo Comitê Central.
Ela traz o título: "A Igreja, as Igrejas e o Conselho Mundial de Igrejas." Nela sc afirma que o CMI não relativiza as eclcsiologias de suas Igrejas-membro nem pretende impor-lhes uma nova. Quer conjugar, não fusionar. Sob tal ótica, o CMI continua sendo um modelo de comunhão eclesial, permitindo às Igrejas a pre servação de sua identidade, e, simultaneamente, irmanando-as numa grande família. Pretende somar os esforços e ensaiar passos concretos rumo à unidade.
BREVE HISTÓRIA DO CONSELHO MUNDIAL DE IGRFJAS
4]
c. Os grandes movimentos originantes do CMI continuam tendo dentro dele alguma vida própria. A Constituição compro mete a entidade expressamente com a continuação dos traba lhos de "Fé e Ordem", de "Vida e Ação", do "Conselho Missionário Internacional" c do "Conselho Mundial de Educa ção Cristã". Isto às vezes significa tensão. Basta lembrar que em 1925, em Estocolmo, o movimento "Vida e Ação" havia preconizado: "A doutrina divide, enquanto a ação une". Isto não soa bem aos ouvidos da Comissão "Fé e Ordem", integra da no CMI, mas não extinta. Vários decênios depois, a pergun ta pelo peso cabível à questão doutrinal, de um lado, e à práxis eclesial, de outro, continua a agitar os ânimos. Algo semelhan te vale para a conceituação da missão, assunto em que de modo algum há unanimidade. Considerando-sc, ainda, o confronto de expectativas tão variadas como as das Igrejas do norte e do sul, provindas de contextos e realidades sociais e culturais extremamente diversas, tem-se uma noção das dificuldades a vencer no caminho a uma "comunhão de Igrejas".
3. Na es tr utu ra do CMI, cuja sede administrativa se encontra em Genebra, na Suíça, se exprime nitidamente a vinculação eclesiástica. Autoridade máxima é a Assembléia Geral que, em períodos normais de 7 a 8 anos, reúne os representantes das Igrejas-membro e que define o rumo dos trabalhos. "Presidente" é um Moderador que atua em regime de tempo parcial. Nos intervalos entre as Assembléias, o CMI c drigido por um Comitê Central e, nos interstícios de reuniões do mesmo, por um Comitê Executivo, aos quais é responsávpl a Secretaria Geral. Figura destacada na constituição do CMI tem sido o primeiro Secretário Geral, o holandês Willcm Visser't Hooft. Seguiram-lhe, no cargo, Eugene Carson Blake, Philip Potter, Emílio Castro, Konrad Raiser c, atualmente, Samuel Kobia, todos à sua maneira personagens marcantes. Também no mais, o CMI tem lido colaboradores de grande notabilidade. 4. Os programas se agrupam em torno de cinco blocos temáti cos, nos quais se espelham os impulsos que estão na origem do CMI . São eles:
42
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier
a. "Fé e Ordem". O trabalho visa a promoção da unidade da Igre ja mediante o fortalecimento da responsabilidade comum na teologia, buscando consensos em assuntos polêmicos. b. "Missão e educação ecumênica". Os programas dessa área se propõem à (re) conceituação de missão e evangelização num mundo carente de cura e reconciliação, conectando a preocupa ção à educação ecumênica das pessoas. c. "Justiça, paz e integridade da criação". Nos horizontes do antigo processo conciliar merecem particular atenção os efei tos da globalização da economia, a meta de um desenvolvi mento sustentável, o projeto de uma ética planetária e outros. d. "Assuntos internacionais, paz e segurança humana". A pro liferação da violência, do terror e do ódio exigem uma estraté gia "ecumênica" de "pacificação", de desarmamento e de pro moção dos direitos humanos. e. "Diaconia e solidariedade". Este programa procura incentivar os esforços diaconais das Igrejas em situações de emergência c diante dos flagelos que assolam a humanidade. A temática inclui, não por último, o diálogo interreligioso. Todos esses blocos têm programas coordenados, mas próprios. Realizam encontros c Conferências Mundiais. A última Conferência sobre Missão, por exemplo, realizou-se em Salvador da Bahia, 1996, sob o tema: "Chamados a uma só esperança - o evangelho cm diferentes culturas." Já está programada a próxima a ter lugar em 2005, sob o tema: "Vem, Espírito Santo, cura e reconcilia. Em Cristo, chamados para uma comunhão reconciliadora e terapêutica."
5. Até o momento tiveram lugar oito Assembléias Gerais, em diversos continentes, tendo cada qual características específicas: 1.1948 - Amstcrdam (Holanda) 2.1954 - Evanston (EUA) 3.1961 - Nova Delhi (índia) 4.1968 - Uppsala (Suécia) 5.1975 - Nairobi (Quênia)
Tema: A desordem do mundo c o desígnio de Deus. Tema: Jesus Cristo, a esperança do mundo. Tema: Jesus Cristo, a luz do mundo. Tema: Eis que faço novas todas as coisas. Tema: Jesus Cristo une e liberta.
BRF.VF. HISTÓRIA DO CONSELHO MUNDIAL DE IGREJAS
6.19 83 - Vancouv er (Ca nad á) 7.1991 - Canbe rra (Austr ália ) 8.1998 - Hara re (Z imb abw c)
43
Tema : Jesus Cris to, a vida do mu nd o. Tema: Vem, Espír ito San to, reno va a cr iaç ão. Tema : Buscai a Deus na alegria da esp era nça .
A nona Assembléia Geral está planejada para o ano de 2006 e terá como sede a cidade de Porto Alegre, Brasil. Realizar-se-á sob o tema: "Deus, cm tua graça, transforma o mundo."
6. Os temas das Assembléias são transparentes para as ênfases específicas c para as preocupações em pauta. São documentos de um período de história da Igreja. Mereceriam uma abordagem à parte. O tema da Assembléia de Uppsala, por exemplo, é reflexo do "otimis mo revolucionário" predominante na década de 1960 a 1970. O de Nairobi demonstra o esforço por reconciliação entre os segmentos "con servadores" c "libertadores". O de Canberra dirige a atenção pela pri meira vez ao terceiro artigo da fé. Isto acontece num mundo progressi vamente multicultural. Uma das assembléias mais importantes tem sido, sem dúvida alguma, a de Nova Delhi. Isto não só por causa da adesão das Igrejas Ortodoxas da Rússia, da Romênia e da Polônia, nem mes mo pela integração do Conselho Missionário Internacional ocorrida na oportunidade. Não menos importantes foram a adoção de uma "Fór mula de Unidade" de irrestrita validade até o presente, bem como a decisão dc maior aproximação da Igreja ao mundo. Pode-sc ver nisto um paralelo ao projeto do "aggiornamento" da Igreja Católico-Roma na, lançado pelo papa João XXXIII. Aliás, o tema "Cristo a luz do mundo" de certa forma antecipa o início da constituição dogmática do Concílio Vaticano II "Lumen gentium quod sit Jesus Christus" (= a luz dos povos que c Jesus Cristo). Nova Delhi incentivou a realização de uma "Conferência Mundial sobre Igreja e Sociedade" que teve lugar em 1966, desencadeando apaixonada discussão sobre a tarefa da Igre ja no mundo. Todas as assembléias, apesar dos destaques especiais, colcoaram balizas, bem como setas indicadoras para a trajetória do ecumenismo mundial. Trata-sc de soletrar e concretizar o significado da "koinonia", característica do ser da Igreja, como bem o afirmou a Assembléia dc Nova Delhi c como o relembrou programáticamente a de Canberra.
44
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier
O Conselho Mundial de Igrejas congrega hoje mais de 340 Igre jas-membro, em cerca de 120 países, portanto mais do que o dobro do que em 1948. Infelizmente há também quem novamente se retire. Incon formados com o curso que a discussão sobre a missão estava tomando nos anos sessenta, separaram-se depois de Uppsala os evangelicais do CMI. Convocaram, para o ano de 1974 um grande Congresso em Lausanne, Suíça, onde se celebrou o "Pacto de Lausanne". Portanto, separaram-se os "evangelicais" dos "ecumênicos", como sc dizia. Entremen tes a polaridade amainou, embora não fosse de todo eliminada. Projeto particularmente polêmico tem sido o programa de combate ao racismo. Em 1969 a Comissão Central decide criar um fundo de apoio financeiro a grupos em luta contra racismo e apartheid. Embora fosse expressa mente interditado o uso das verbas para a aquisição de armas e fins militares, a decisão provocou alvoroço. Por outro lado, porém, granjeou simpatias junto às Igrejas negras, evidenciando que a costumeira conde nação do racismo por parte do CMI não se limitava ao discurso. O CMI sofreu muitas acusações. Dizia-se que estaria "cego no olho esquerdo" por criticar a exploração capitalista em termos mais enérgicos do que a violação dos direitos humanos no comunismo. Na mesma linha acusa va-se o CMI de confundir o reino de Deus com um projeto social. De um modo geral deve-se constatar que, no CMI, discutiam-se as questões melindrosas dentro das prórpias Igrejas-membro. De fato, o CMI tem desempenhado a função de uma estação experimental do ecumenis mo e de um laboratório de respostas corajosas da cristandade aos pro blemas de um mundo em crise. Em sua trajetória, o barco ecumênico enfrentou muitas tempestades, ameaçando, não raras vezes, pô-lo a pique. 7.
8. Além das polêmicas, porém, o CMI conseguiu avançar em muitas áreas cruciais e brindar as Igrejas com valiosos impulsos. Isto vale em primeiro lugar para a área social, cabendo proeminente desta que ao "Processo Conciliar de Mútuo Compromisso para Justiça, Paz e Integridade da Criação", deflagrado em 1983 de acordo com as tra dições de "Vida e Ação". Mobilizou as Igrejas em torno de questões vitais da humanidade, conduzindo à "Convocação Mundial de Seoul" (Coreia), em 1990. O processo de modo algum está encerrado, visto
BREVE HISTÓRIA DO CONSELHO MUNDIAL DE IORFJAS
45
que as ameaças à justiça global, à paz e ao meio ambiente sofreram preocupante agravamento num mundo vitimado pela obsessão do com bate internacional ao terror com meios apenas militares. Novas inicia tivas foram tomadas pelo CMI, a exemplo da "Década da Solidarie dade com as Mulheres" (1988-1998) e da "Década da Superação da Violência", proclamada na VIII Assembleia em Harare. Os programas convidam a uma demonstração de cristianismo prático, dc engajamen to ecumênico em questões de vital interesse da humanidade e de voz profética na sociedade. O CMI tem atuado como vanguarda nesses e em outros assuntos.
9. Além dos esforços por unir as Igrejas pela ação, o CMI tem produzido importantíssimos documentos de reflexão e de consenso teológico. Isto principalmente pelo trabalho da Comissão "Fé e Ordem ". Teve forte repercussão o assim chamado "Documento de Lima" sobre "Batismo, Eucaristia e Ministério" (BEM), uma convergência doutrinal, elaborada em 1982, assinada também pela Igreja Católica em sua qualidade dc membro oficial da Comissão. Naquele mesmo ano, a Comissão Central aprovou um pronunciamento com o título "Missão e Evangelização - uma afirmação ecumênica." As Igrejas necessitam de unidade, e a humanidade também. Mas o que significa unidade em ter mos precisos e concretos? Desde a Assembléia de Canberra, prefere-sc falar em "comunhão" (koinonia). E termo dinâmico, de qualificado conteúdo teológico. Com ele se ocupou intensamente a V Conferência Mundial de "Fé c Ordem", em Santiago de Compostela, Espanha, 1993. O que se pretende é comunhão na fé, na vivência e no testemunho. E, no entanto, o conceito da comunhão abre algum espaço para a diversidade. Isto não significa renúncia à meta da unidade. Pois esta está implícita na comunhão. Conseqüentemente são grandes os esforços por construir um patamar dogmático comum, do que são exemplos instrutivos o projeto "A Confissão da Fé Apostólica - explicação ecumênica da fé apostólica segundo o Credo Niceno-Constantinopolitano", o estudo sobre "Igreja e Mundo - a unidade da Igreja e a renovação da comunidade humana ", ambos dc 1990, da autoria de "Fé c Ordem". O CMI, pela sua própria existência, coloca às Igrejas c à sociedade global o imperativo da convi vência "ecumênica", cm paz e mulualidade.
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier
46
10. Inversamente é flagrante que ao próprio Conselho Muni ciai de Igrejas falta de momento uma visão precisa do que isto po deria significar. Os modelos de unidade elaborados no decorrer da caminhada não conseguiram produzir os desejados efeitos estruturais. Falta a oficialização da experiência ecumênica por parte das Igrejas. A Igreja Católica coopera em determinados assuntos, mas resiste à idéia da filiação plena. Não existe por ora concepção realmente consensual do que seja uma ética social ecumênica. Ainda não podemos comungar juntos na mesa do Senhor. As diferenças continuam a barrar a comu nhão. Isto não só nas Igrejas. Pergunta-se em termos gerais: Como con viver num mundo cada vez mais plural? Talvez seja mera coincidência que o CMI tenha sido fundado no mesmo ano da Organização das Nações Unidas, a ONU. Também ela persegue a meta da unidade, da reconciliação, da paz, ainda que, evidentemente, em outro patamar e com outros parceiros. E uma organização política, sendo por isto ilíci to comparar o CMI e a ONU. Mas é típico que também a ONU se encontre em crise. Como conviver num mundo a um só tempo global e plural é a inlerrogante crucial da humanidade neste início de terceiro milênio. O conflito entre as culturas, o renascer dos fundamentalismos religiosos, a concorrência mortífera na economia, as guerras étnicas, tudo isto requer uma resposta "ecumênica". A cristandade é chamada a dar o bom exemplo. 11. A despeito dessas constatações críticas, a trajetória do CMI é motivo dc gratidão. O ecumenismo conduziu as Igrejas a experiências de fraternidade inimagináveis no início do século XX. Deu uma nova qualidade à convivência cristã. Isto se deve em boa medida às forças ativas na gestação e na condução do CMI. E verdade que a meta ainda não foi alcançada. Vai exigir novos esforços no futuro. Faltam respos tas unânimes para uma série de questões. Citamos, entre outras: a. b. c. d. e.
a ordenação de mulheres; a hermenêutica bíblica; a homosexualidade; a relação entre Igreja e cultura; o reconhecimento mútuo do ministério.
BREVE HISTÓRIA DO CONSELHO MUNDIAL DE IGREJAS
47
Cabe respeitar, entretanto, que as linhas divisórias, mais do que em qualquer época, perpassam as próprias instituições eclesiásticas. Por isto ecumenismo hoje deverá iniciar "na própria casa", para o que o CMI tem dado e poderá dar valiosa contribuição. No movimento ecumê nico se espelham exemplarmente os conflitos das respectivas épocas. Ele oportuniza o encontro com o diferente e prepara os consensos neces sários. O CMI lembra enfaticamente a urgência do ecumenismo em épocas de privatização e isolacionismo, sendo por isto um instrumento indispensável na vida das Igrejas.
Literatura:
- BUSS, Theo. El movimiento ecumênico en la perspectiva de la liberación. Quito: CLAI, 1996, p. 26ls. - HORTAL, Jesus. E haverá um só rebanho. São Paulo: Ed. Loyola, 1989, p. 183s. - KAICK, Baldur van / RAISER, Konrad. Movimento Ecumênico - História e Desafios. São Leopoldo: CECA, s.d. - KRÜGER, Hanfried. O Conselho Mundial de Igrejas - História do Movi mento Ecumênico. São Leopoldo: Ed. Sinodal, 1987. - MALSCHITZKY, Harald. Fe e Ordem - um instrumento a caminho da unidade. In: Estudos Teológios 31, São Leopoldo: EST, 1991/1, p. 20-29. - RAISER, Konrad. O Conselho Mundial de Igejas c os novos desafios para o movimento ecumênico. In: Estudos Teológicos 34, São Leopoldo: EST, 1994/3, p. 276-282. - SANTA ANA, Júlio dc. Ecumenismo e Libertação: Reflexões sobre a uni dade da Igreja e o Reino de Deus. Coleção Teologia e Libertação IV/14, São Paulo: Ed. Vozes, 1991, 2 ed. . As Assembléias do Conselho Mundial de Igrejas. In: Jesus Cris to-a vida do mundo. São Paulo: Ed. Sagarana, 1984, p. 21-32. a
A IGREJA CATÓLICO-ROMANA E O ECUMENISMO 1. A Igreja Católico-Romana (ICAR) por muito tempo se man teve afastada do movimento ecumênico e até mesmo hostil frente a ele. A razão reside na exclusividade que tradicionalmente reclama para si. Sabendo-se vinculada aos inícios por ininterrupta sucessão histórica, a Igreja Católico-Romana identifica a Igreja de Jesus Cristo com a pró pria instituição. Insiste na visibilidade da Igreja mediante os símbolos da estrutura episcopal. Não há "ecumene" ao lado da Igreja Católica. Pois a "ecumene" c representada por ela própria. Sustentava-se: a. que a recuperação da unidade poderia processar-se somente como retorno à única Igreja, calcada no fundamento da rocha que c Pedro. b. que tudo o que é autenticamente cristão pertenceria, de alguma forma, à Igreja Romana.
2. Isto significa que a "ecumene" era vista essencialmente em termos de uma área de jurisdição. Unidade pressupõe a sujeição ao sucessor de Pedro. Assim o estabeleceu, durante o pontificado de Pio IX, o Concílio Vaticano I, em 1870. Excomunga quem questiona o pri mado do bispo de Roma e sua autoridade infalível não só em termos de fé c moral, c sim também de governo eclesiástico. Foi dogmatizada, dessa forma, a "romanidade" da Igreja Católica. Ainda em 1928, na encíclica "Mortalium ânimos", o então Papa Pio XI, reforçou esta visão, proibindo aos católicos a participação nos processos ecumênicos que
50
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier
estavam cm andamento no mundo protestante. Em tradicional perspec tiva católica, a Igreja de Jesus Cristo coincide com a instituição hierar quicamente liderada pelo bispado, encabeçado pelo seu máximo repre sentante, o bispo romano. 3. Mesmo assim, estava-se enc ami nh and o pau lat ina men te um a abertura. Isto por influxo de alguns célebres teólogos católicos. Em 1937 o francês Yves Congar publica um livro com o título "Cristãos desunidos - princípios de um ecumenismo católico". Foi o primeiro a falarem "ecumenismo" (!). Entre outras, corrigiu também a linguagem. Ao referir-se aos protestantes já não falou cm "hereges", c sim em "irmãos separados", uma terminologia que, a partir de então, se impôs. Outros nomes poderiam ser mencionados, a exemplo daquele do arce bispo Lorenz Jaeger que, em 1946 na Alemanha, juntamente com o bis po luterano Wilhelm Stãhlin, criou um grupo de trabalho para assuntos ecumênicos. Havia chegado o tempo das investidas cm favor da aproxi mação das Igrejas. Os protagonistas criaram o clima para a idéia ecumê nica poder vingar. Ademais, a fundação do CMI colocou a ICAR sob certa pressão. Seria ela por excelência "anti-ecumênica"? Bem mais importantes, porém, foram outros fatores, a saber: a. A exegese bíblica conjunta. A Bíblia, quando lida seriamente, sempre se revelou como promotora da unidade. b. A pesquisa sobre Lutero por parte dc católicos, o que redundou em revisão da imagem destorcida cm vigor no passado. c. O movimento litúrgico na ICAR. d. Os diálogos interconfessionais, precedentes ao Concílio Vati cano II. Também na Igreja Católica crescia a sensação do escândalo que a divisão do corpo de Cristo representa. Por isto ela intensifica os esforços por reconcliação, especialmente com as Igrejas orientais e anglicanas, mas também com as luteranas c reformadas. 4. A virada ecumênica da Igreja Católica, porém, está relaciona da à pessoa do Papa João XXIII, eleito cm 1958 c falecido cm 1963.
A IGREJA CATÓLICO-ROMANA E O ECUMENISMO
51
Já em 1960 ele cria na Cúria em Roma o "Secretariado para a Unidade dos Cristãos". Este Papa queria a "atualização da Igreja", o que, no seu entender, implicava a abertura ecumênica. Foi o que o motivou a convo car um Concílio com o objetivo de promover a renovação da Igreja. Este Concílio, o Vaticano II, aberto em 1962 e encerrado cm 1965, foi o pri meiro a se pronunciar oficialmente sobre o ecumenismo, no decreto cha mado "Unitatis Redintegratio". Infelizmente o Papa João XXIII faleceu já um ano após a abertura do Concílio. Paulo VI colheu os frutos da iniciativa de seu antecessor. 5.0 Concílio abriu as portas para um novo capítulo no ecume nismo com e por parte da ICAR. Alguns dos trilhos desenhados são os seguintes: a. O Concílio, ao referir-se à Igreja, privilegiou o conceito "povo de Deus" em lugar do tradicional "corpo dc Cristo", sem que este fosse suprimido. Ora, o povo de Deus é mais abrangente do que o conjunto de membros dc uma instituição eclesiástica. b. O Concílio afirmou que a Igreja de Cristo "subsiste" na ICAR, dando a entender que ela poderia subsistir também em outras Igrejas. Não há identidade entre Cristo e a Igreja, e sim apenas analogia. c. É reconhecida uma co-responsabilidade de católicos nas cisões da Igreja havidas no passado. d. Afirma-se uma "hierarquia de verdades", ou seja, distinguese entre verdades centrais e outras mais periféricas. O culto aos santos, por exemplo, não teria o mesmo peso como a doutri na da justificação por graça e fé. Isto facilita o entendimento ecumênico. e. Admitc-se haver também fora da estrutura da Igreja Católica "elementos de santificação e de verdade".Assim o constata a Constituição Dogmática "Lumen Gentium". Portanto, começa a tomar-se permeável o exclusivismo católico-romano. O batis mo e a fé criam comunhão, embora imperfeita, com a Igreja Católica, exigindo o reconhecimento mútuo como irmãos e irmãs em Cristo.
52
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakeme'ter
f. Constata-se que a catolicidadc da Igreja de Jesus Cristo ainda não alcançou a plenitude, enquanto não removidas as rupturas cm seu corpo. Sem a "Re-integração da Unidade", pois sofre prejuízo a qualidade católica da Igreja. Tarefa do ecumenismo é exatamente a recuperação da mesma. A integralidade da Igreja exige a re-unificação de todos os seus membros.
6. Os efeitos do Concílio foram extraordinários. Alteraram a atmosfera ecumênica em todo o mundo. Também o ecumenismo latinoamericano se inspirou e continua se inspirando no Vaticano U.Sem este Concílio, de fato, a caminhada ecuménica teria sido outra. Basta lem brar a "eclesiologia do povo de Deus" em discussão no continente lati no-americano. Mas também no mais, o ecumenismo tomou embalo. Já pouco tempo depois de encerrado o Concílio, teve início uma série de diálogos internacionais. Isto numa escala de prioridades, na qual as Igre jas Ortodoxas ocupam o primeiro lugar, seguidas pela Igreja Anglicana, antes da luterana, reformada e as Igrejas livres. Exemplo é o diálogo bilateral católico-romano/ evangélico luterano promovido pela Federa ção Luterana Mundial e o Pontifício Conselho para a Unidade dos Cris tãos (a antiga Secretaria para a Unidade dos Cristãos), através da "Comis são Mista Internacional Católico-Romana / Evangélico-Luterana". Ele iniciou em 1967 c produziu como notável resultado de seus trabalhos um documento sob o título "O Evangelho e a Igreja", o assim chamado "Relatório de Malta", publicado em 1972. O diálogo continua cm anda mento, tendo-sc debruçado desde suas origens sobre grande número de assuntos polêmicos. Apadrinhou também a "Declaração Conjunta sobre a Justificação por Graça e Fé", assinada em 1999. Os anos pós-conciliares sc caracterizam por forte entusiasmo ecumênico e por iniciativas iné ditas. Também as religiões não-cristãs entraram na perspectiva. Delas fala o Decreto "Nostra Aetate", inaugurando um programa de diálogo interreligioso. 7. Ainda assim, a caminhada se mostrou difícil. O Vaticano II, muito rapidamente, se tornou matéria de disputa entre grupos conservadores e outros progressistas dentro da própria ICAR. De fato, o Concílio, em muitas questões melindrosas, não havia falado uma linguagem clara.
A IGREJA CATÓLICO-ROMANA E O ECUMENISMO
53
a. Não havia dito expressamente que a Igreja de Cristo "subsiste" também em outras Igrejas. b. Falou somente das Igrejas ortodoxas como sendo "igrejas irmãs", não das protestantes, às quais se ficou devendo tal distinção. c. Falou em "reintegração (!) da unidade", lembrando, embora vagamente, o objetivo da reincorporação das demais Igrejas na instituição católico-romana. Deve-se constatar certa ambiguidade dos textos do Concílio, por tanto. Dão margem a uma interpretação "tradicional", bem como a outra, "inovadora". Isto explica porque a recente Declaração da Congre gação para a Fé, com o título "Dominus Iesus", expedida em 2000 d.C, possa interpretar o "subsiste" do Concílio Vaticano II, como referindose exclusivamente à Igreja papal. Volta a ser identificada a Igreja de Cristo com a Igreja Católico-Romana, sendo fechadas portas antes aber tas. A luta entre conservadores c progressistas pela interpretação do Con cílio continua. O espírito do Vaticano II era indiscutivelmente o da aber tura ecumênica, dc modo que uma interpretação "reacionária" está em desacordo com os propósitos originais dos conciliares.
8. Onde está a ICAR no início do terceiro milênio? Ora, c difí cil o diagnóstico. Parece que a Cúria Romana se move na contramão do ecumenismo, muito embora o Papa João Paulo II, cm sua encíclica Ut unum sint de 1995, tenha declarado enfaticamente ser o compromisso ecumênico irreversível. Mas o modelo da unidade que se busca perma nece indefinido. A volta das indulgências por ocasião do ano santo de 2000 d.C, a preferência de clérigos conservadores quando da nomeação de bispos, as dificuldades na assinatura da Declaração Conjunta sobre a Justificação por Graça e Fé, assim como a Declaração "Dominus Iesus" da Congregação para a Doutrina da Fé mostram um clima ecumênico mais áspero. Confirma-o a encíclica papal "Ecclesia de Eucharistia", de 2003 d.C, que fica muito aquém de convergências já alcançadas cm diálogos ecumênicos anteriores. Ainda não há perspectivas oficiais de hospitalidade eucarística dc parte à parte e muito menos dc plena comu nhão na mesa do Senhor. Já não mais nos condenamos individualmente. Ainda assim, as instituições eclesiásticas continuam excludentes.
54
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA
PAZ - Gottfried
Brakemeier
9. Contudo, não é esta a realidade toda. Já há tempo a ICAR deixou de ser um bloco monolítico. Em muitos segmentos, não por último leigos, arde o anseio por mais comunhão religiosa. O povo não entende os entraves por parte da hierarquia. Certamente há boas razões para não minimizar as diferenças. E, no entanto, convém avahar com cuidado os prejuízos acarretados pelas divisões para ver se realmente compensa a manutenção das mesmas. Eis porque se tornam altamente importantes os canais ecumênicos existentes, a exemplo do CONIC e de outros órgãos semelhantes, além das iniciativas tomadas no nível local ou regional. A "oração em favor da unidade dos cristãos" tem reunido as diversas comunidades c desenvolvido extraordinária dinâmica. Da mes ma forma deveriam ser exploradas as possibilidades de encontros e seminários conjuntos, bem como as da cooperação em questões práti cas, políticas e sociais. A humanidade necessita da diaconia ecumênica de cristãos e cristãs. Em ótica bíblica, a Igreja de Jesus Cristo não está confinada à Cúria, respectivamente ao Papa c à Congregação para a Doutrina da Fé, nem a Sínodos c Conselhos Diretores, ou seja, às instân cias diretivas. Inclui todo o povo dos fiéis, transcendendo toda e qual quer instituição. A Igreja que cremos é maior do que a Igreja que vemos. Por isto importa fazer ecumenismo em todos os níveis, aproveitar os espaços que se oferecem c assim fazer crescer a fraternidade eclesial na diversidade reconciliada.
Literatura:
- BEOZZO, José Oscar. Indícios de uma reação conservadora. Do Vaticano II à eleição de João Paulo II. In: Comunicações do ISER 9, n° 39, 1990, p. 5-17. - BOCK, Carlos Gilberto. O ecumenismo eclesiástico em debate - uma aná lise a partir da proposta ecumênica do CONIC, São Leopoldo: IEPG-Sinodal, 1998, p. 13-40. - CONSELHO PONTIFÍCIO PARA A PROMOÇÃO DA UNIDADE DOS CRISTÃOS. Diretório para a aplicação dos princípios e normas sobre o
ecumenismo. Petrópolis: Ed. Vozes, 1994. - HACKMANN, Geraldo Luiz Borges. A urgência da unidade segundo a carta encíclica Ut unum sint. In: Teocoimmicação, 25, n° 109, 1995.
A IÜRPJA CATÓIJCO-ROMANA E O ECUMENISMO
55
- HORTAL, Jesus. E haverá um só rebanho. São Paulo: Ed. Loyola, 1989, p. 205-216. - LINDBECK, George A. El Segundo Concilio Vaticano. In: EKKLESíA VIII, n° 16/17, 1964, Buenos Aires, p. 74-78. - WOLFF, Elias. O ecumenismo no Brasil - uma introdução ao pensamento ecumênico da CNBB. São Paulo: Ed. Paulinas, 2000.
ECUMENISMO NA AMÉRICA LATINA 1. A América Latina, durante séculos, tem sido continente católico, fechado para as idéias da Reforma e outros credos. Tentativas de implantar o protestantismo no Brasil-colônia estavam vinculadas a conquistas de nações inimigas de Portugal, a exemplo dos holandeses que, de 1630 a 1654 ocuparam o território do Estado de Pernambuco. A introdução do credo calvinista permaneceu episódio liquidado com a derrota dos invasores. Mas já no século XIX, em conexão com as lutas por independência da América Latina e com a penetração do ide ário liberal nas camadas de governantes c intelectuais, as muralhas da religião oficial começam a ruir. Não só imigrantes recebem a permis são para a prática da sua fé. Iniciam também as missões protestantes, principalmente por parte de metodistas c presbiterianos. Elas iriam diversificar o mapa denominacional na América Latina, mesmo antes de oficialmente ser proclamada a liberdade religiosa o que, no Brasil, ocorreu somente cm 1889. O advento do protestantismo na América Latina conduziria necessariamente à eclosão da problemática ecumê nica. Pois o continente, em termos religiosos, não se comparava nem à África, nem à Ásia ou à Oceania. Com certa razão, a Conferência de Edimburgo, em 1910, o havia excluído da preocupação missionária. A América Latina era "católica", mas não "pagã". Há séculos haviam atuado as missões católicas no Continente. Naturalmente havia grupos ainda não atingidos pela mensagem cristã. Mesmo assim, a evangeli zação teria outra qualidade do que a tradicional missão ad gentes (a pessoas não cristãs). Ela significaria "colisão" ou concorrência deno minacional?
58
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPIRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeter
2. As sociedades missionárias atuantes na América Latina, predo minantemente norte-americanas, não concordaram com a decisão de Edimburgo. Não lhes faltou sensibilidade ecumênica. E, todavia, não podiam admitir que a evangelização nessa parte do mundo estivesse concluída. Não se conformaram com o monopólio católico nem com a existência do que julgavam cristãos somente nominais. Resolveram rea lizar uma conferência especial para este continente. Sob a liderança do presbiteriano Robert E. Speer é criado, em 1913, na cidade de Nova Iorque, o "Comitê de Cooperação para a América Latina" (CCLA). A entidade preparou e organizou o Congresso do Panamá, bem como aqueles que lhe seguiram. Desenvolveu intensas atividades durante vários decênios, coordenando a missão no Continente, promovendo estudos sobre áreas missionárias ainda não atingidas e estimulando a cooperação das Igrejas cm nível nacional. "O CCLA proporcionou para as juntas missionárias um fórum onde se discutiam a política missioná ria, as atitudes diante dos católicos romanos e a participação da Igreja na sociedade." (D. S. Plou) 3.0 desejo de conjugar os esforços missionários na América Lati na se concretizou em 1916, com o Congresso do Panamá, em plena Primeira Guerra Mundial. Novamente a iniciativa partiu da preocupa ção com a missão, e novamente foram os protestantes os que tomaram a vanguarda do ecumenismo, ainda que se tratasse de um ecumenismo exclusivamente "inter-protestante". Não há como negar que em certos grupos reinava um espírito altamente crítico frente ao catolicismo roma no. Denunciavam a América Latina como sendo o continente do "Cristo morto", isto é, "cristão, mas sem vida" ( J. Prien), uma imagem grossei ramente distorcida. Não poderia haver cooperação intereclesiástica nes sas condições. Ainda asssim, os organizadores do Congresso cuidaram para evitar a impressão de se planejar uma cruzada anti-católica. O CCLA havia convidado também observadores católicos. Mas o tempo ainda não eslava maduro para tanto. O Congresso sofreu forte oposição por parte do Bispo do Panamá que decretou ser a participação de católicos pecado mortal e proibiu categoricamente a cedência de prédios e depen dências. Os congressistas tiveram que retirar-se para a zona do canal sob jurisdição norte-americana.
ECUMENISMO NA AMÉRICA LATINA
59
4. A despeito do pioneirismo, porem, o Congresso do Pa namá foi antes um Congresso para a América Latina do que da América Lati na. Dos 481 participantes apenas 28 eram de origem latino-americana. A língua oficial foi o inglés. As missões tinham sua sede nos Estados Unidos e o Congresso registrava pouquíssima participação de países europeus. Forte ênfase foi dada na educação. Era uma das importantes vias pela qual se promovia a missão protestante na América Latina. Outros temas foram a produção de literatura e a cooperação na promoção da unidade. Deplorava-se o "denominacionismo" que inibia a coopera ção. Grande batalhador em favor de mais diálogo interdenominacional foi o presbiteriano Erasmo Braga, uma das eminentes figuras do ecume nismo brasileiro. Infelizmente o Congresso não considerou urgente a criação de um órgão encarregado da promoção de consensos doutrinais. Não se produziu algo análogo a "Fé e Ordem" o que retardou a aproxi mação protestante neste Continente.
5. Foram realizados mais dois congressos dessa natureza: um em 1925, em Montevideo, Uruguai, outro em 1929 em Havana, Cuba. Importante é que nesses Congressos a condução dos trabalhos passou às mãos dos latino-americanos. Isso teve nítidos reflexos na composição da pauta. O tema, sob o qual se reuniu o Congresso de Montevideu, dizia: "A Obra Cristã na América do Sul". A missão evangélica já era vista como abrangendo todo o leque de atuação cristã. Entraram na mira os problemas sociais, o avanço do secularismo que se fazia sentir tam bém neste continente, bem como a necessidade da "nacionalização" do protestantismo e sua autonomia com relação cts "igrejas mães" no nor te. As Igrejas da América Latina estavam-se emancipando da dependên cia externa e tomando na mão as rédeas de seu próprio destino. Em Hava na, aliás, se articulou, pela primeira vez, o desejo pela criação de uma Confederação Internacional de Igrejas Latino-Americanas, antecipando o que mais tarde viria a ser a "Unidade Evangélica Latino-americana" (UNELAM) e, finalmente, o Conselho Latino-Americano dc Igrejas (CLAI). O esforço ecumênico tratava de estruturar-se muito em analo gia ao que se estava arquitetando na Europa. Outra decisão tomada em Havana foi de importância nada menor: Sugeriu-se a constituição dc conselhos de Igrejas nacionais. Foi no que o CCLA já há tempo havia
60
PRESERVANDO A UNIDADE DO Espumo NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier
insistido, a saber, que a idéia ecumênica deveria expressar-se na criação de órgãos regionais e promover a causa nesse nível. Iria durar 20 anos até a próxima concentração protestante de dimensões continentais. 6. No Brasil, a regionalização levou à criação da "Confederação Evangélica do Brasil" (CEB). Isto em 1934, sendo um de seus incansá veis promotores o já mencionado Erasmo Braga. E digno de registro o seguinte: a. Os sínodos que mais tarde constituiriam a IECLB não foram convidados por serem considerados entidades estrangeiras. Os pró prios sínodos, por sua vez, não faziam questão da participação por verem nisso traição à sua vocação. Somente em 1959 a então formada Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) vai filiar-se à CEB, assumindo posteriormente até fun ção de liderança através da pessoa do Pastor e Presidente Sino dal Karl Gottschald. Também outras Igrejas protestantes, a exemplo das batistas e, sobretudo, das pentecostais negaram sua filiação à CEB. Mesmo assim, a entidade era órgão de con siderável representatividade protestante, tanto em termos ecumê nicos, quanto políticos. b. Os objetivos da CEB consistiam, naturalmente, em aproximar as Igrejas protestantes umas das outras, cm incentivar a coope ração e coordenar iniciativas na área social, na produção de literatura, entre outros. Também a crescente disparidade social na sociedade brasileira inquietava os evangélicos, fazendo com que a CEB fosse uma das primeiras entidades de seu gênero a reivindicar uma reforma agrária no País. Por outro lado, porem, pretendia-se criar também um contra-peso contra o enorme poder da Igreja Católica. Dava-se continuidade à insistência na "indegenização" do protestantismo brasileiro sem que, inver samente, se tornasse vítima do nacionalismo. A fé evangélica deveria criar raízes neste chão. Enquanto as Igrejas de imigra ção sofriam sob a suspeita de não serem brasileiras, as de mis são sofriam sob a acusação de serem pontas de lança do impe rialismo norte-americano.
ECUMENISMO NA AMÉRICA LATINA
61
c. A CEB tem sido importante organização pioneira protestante. Apagou-se paulatinamente após o golpe militar de 1964. Na época estava polarizada entre progressistas e conservadores. Sob orientação progressista realizou-se em 1962, na cidade de Reci fe, a afamada "Conferencia do Nordeste" sob o tema: "Cristo e o processo revolucionário brasileiro". Nessa oportunidade foram antecipados muitos dos grandes temas da posterior teo logia da libertação. Com o golpe militar, prevaleceram na CEB os conservadores, cuja influência, porém, ia sc reduzindo gra dativamente. Nos anos 70 ela estava desativada, sem ser real mente extinta. Nos anos 80 uma bancada dc "evangélicos" no Congresso Nacional, ursurpando a sigla, tentou o reavivamento. Mas já não mais se tratava da antiga CEB. Era um grupo político que conseguiu dinheiro em troca de apoio ao governo José Sarney. O episódio criou extremo mal-estar e provocou o veemente protesto por parte das Igrejas que originalmente constituíam a CEB. Foi o último c inglorioso sinal dc vida da entidade. 7. O ecumenismo continental recuperou embalo a partir dc 1949 com a realização da primeira Conferência Evangélica Latino-ameri cana (CELA I). Entrementes estava fundado o CMI e havia-se realizado mais outra Conferência Internacional sobre Missão, em Whitby, no Cana dá (1947), o que inspirou a iniciativa. A nomenclatura mostra ser esta a Conferência considerada realmente latino-americana. Realizaram-se ao todo três Conferências do tipo: a. CELA I: em 1949, Buenos Aires. A preocupação girou cm tor no da presença do protestantismo na América Latina, seus rumos c suas tarefas. Ênfase especial recaiu sobre a evangeliza ção. Merece destaque também a entusiástica acolhida da "Decla ração Universal do Direitos Humanos", aprovada pelas Nações Unidas um ano antes, recebendo particular endosso o artigo sobre a liberdade religiosa. b. CELA II: em 1961, Lima. Sentiu-se a necessidade de um orga nismo que coordenasse o diálogo e a cooperação protestante em nível continental. Mas foi somente em 1964, em novo
62
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPIRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier
encontro em Montevideo, que se criou a UNELAM, a já men cionada "Unidade Evangélica Latino-americana". Esse órgão certamente foi um progresso ecumênico. Preparou a formação do Conselho Latino Americano de Igrejas (CLAI). Mas na con secução de seus objetivos viu-se freiado pelas fortes controvér sias teológicas c políticas nas Igrejas c nos organismos ecumê nicos na época. Ainda antes de CELA II, mas no mesmo ano, por resolução dc uma consulta preparatória no Peru, surgem CELADEC (Comissão Evangélica Latinomericana de Educa ção Cristã) e IS AL (Igreja c Sociedade na América Latina), dois organismos ecumênicos continentais, relevantes nas transfor mações sociais em andamento na América Latina, c. CELA III: em 1969, Buenos Aires. Esta Conferência estava prevista para São Paulo, mas foi transferida a Buenos Aires em razão da ditadura militar que reinava no Brasil. Mesmo assim, a conferência se destaca por boa representatividade do protes tantismo latino-americano, o que a distingue da CELA I, ainda fracamente frequentada. O tema escolhido foi: "Devedores ao Mundo". Ele demonstra o crescimento da consciência latinoamericana das Igrejas. As dores do continente marcaram forte presença, motivando o reclamo por uma "missão encarnada", muito embora não houvesse em absoluto consenso quanto às conseqüências daí decorrentes para a prática eclesial.
8. No período entre as três CELAS acontecem incisivas mudan ças no cenário ecumênico: a. Alteram-se substancialmente as relações entre protestantes e católicos. O motivo principal é o Concílio Vaticano II, bem como a reunião da Conferência Episcopal Latino-Americano (CELAM) de 1968, em Medellin, cujos resultados obrigaram à revisão da imagem tradicional do catolicismo. Na CELA III par ticipam, pela primeira vez, observadores católicos. b. Percebe-se a necessidade dc intensificar a cooperação diante da magnitude dos problemas sociais, políticos c econômicos na América Latina.
ECUMENISMO NA AMÉRICA LATINA
63
c. Acentua-se a polarização teológica nas Igrejas, claramente sensível também na CELA III. Defrontam-se, de modo cres cente, "evangclicais" e "libertadores", "conservadores" e "pro gressistas", correntes teológicas que priorizam a conversão individual c outras que enfatizam a transformação social. O fenômeno tem natureza transconfessional. Acontece no interior de quase todas as Igrejas, não podendo excetuar-se nem mesmo a Igreja Católica. O conflito iria de alguma forma paralizar a dinâmica ecumênica e provocar a formação de estruturas paralelas. Basta lembrar que em 1969 se realiza não somente CELA III, como também o primeiro Congresso Lati no-Americano de Evangelização (CLADEI), promovido pelo cristianismo evangclical. Não há dúvidas de que neste período o ecumenismo adquiriu rosto decididamente "latino-americano". Mas isto acontece acompanhado do surgimento de novos dissensos à parte das tradicionais diferenças con fessionais.
9. Das iniciativas ecumênicas das CELAS nasce o Conselho La tino Americano de Igrej as (CLAI) . UNELAM, como organização teto das Igrejas protestantes na América Latina, não estava cm condições de atender às expectativas. Entrou em crise, aguçada cm razão da transfe rência de Emílio Castro, seu dinâmico Secretário Geral, para Genebra, em 1973. Nasce a idéia de criar um novo órgão ecumênico continental. Como resultado de duas consultas em 1977, resolve-se proceder à con vocatória para uma "Assembléia de Igrejas" a se realizar em Oaxtcpcc (México), em 1978. Ela foi enviada a mais de uma centena de Igrejas da América Latina e do Caribe, das quais expressiva maioria atendeu o convite. Criou-se, então, o CLAI "em formação". A Assembléia Consti tuinte, com aprovação da Constituição c do Regulamento, teve lugar quatro anos após, em 1982, cm Lima, Peru. Atualmente, o CLAI é, sem dúvida, o mais importante órgão ecumênico da América Latina. E cons tituído por aproximadamente 145 Igrejas c organismos ecumênicos. Tem sua sede administrativa cm Quito, Equador, e subdivide-se em cinco regiões, nas quais desenvolve suas atividades.
64
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier
a. De acordo com sua Constituição, o prinicpal propósito do CLAI consiste em "promover a unidade, solidariedade e cooperação entre os cristãos latino-americanos." b. A base doutrinal do CLAI é o reconhecimento de Jesus Cristo como Senhor e Salvador de acordo com as Sagradas Escrituras. c. Ele se entende a si próprio como órgão estimulador c animador das Igrejas para descobrirem sua identidade e seu compromis so na realidade latino-americana. d. O CIAI pretende apoiar as Igrejas em sua tarefa evangelizado ra e construtora de justiça e fraternidade. e. Foram quatro as assembléias gerais realizadas pelo CLAI até o momento. Além de Lima, Peru (1982), houve Assembléias em' Indaiatuba, Brasil (1988), Concepción, Chile (1995) e em Baranquilla, Colômbia (2001). Também o CLAI representa apenas parte da "ecumene" latino americana. A Igreja Católica não participa, o que vale também para a esmagadora maioria das Igrejas Pcntccostais. Orlando Costa tem subdi vidido o protestantismo da América Latina em três categorias: o histórico, o evangélico, o pcntecostal. O CLAI representa, nesse quadro, o ecume nismo do protestantismo histórico, muito embora os limites sejam flu entes. O "evangélico", melhor, o "evangelical", está representado pelos Congressos Latino-Americanos de Evangelização (CLADEs), pela Fra ternidade Teológica Latino-Americana (FTL) e pela Aliança Evan gélica Brasileira (AEVB). Enquanto isso o ecumenismo entre as Igrejas Pentecostais é encontrado apenas cm forma rudimentar, ou até inexiste. Em sua história não propriamente longa, o CLAI tem desempenhado relevante papel como articulador da voz evangélica/protestante na Amé rica Latina, como defensor de minorias oprimidas, de foro de diálogo e de motivador para a renovação c a ecumenicidade.
10. Organização em muitos sentidos análoga ao CLAI é o Conse lho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC), constituído cm Porto Ale gre, em 1982. É igualmente entidade que congrega Igrejas históricas (e organismos ecumênicos). Distinguc-sc do CLAI por atuar não em nível continental, c sim nacional, brasileiro. Ademais, conta com a participa-
ECUMENISMO NA AMÉRICA LATINA
65
ção da Igreja Católica, algo nada comum para Conselhos dessa natureza em outros países. a. a. A criação do CONIC vinha sendo preparada há vários anos. Numa Nu ma reun re uniã iãoo da dire di reto tori riaa da d a C EB, EB , em 197 1976, 6, o entã en tãoo Pas P asto torr K. K. Gottschald, Presidente da IECLB, propôs "que se transformas se a CEB num Conselho Nacional de Igrejas, com a participa ção da Igreja Católica Romana" (C. Bock). Não houve concor dância com a sugestão, a despeito das maravilhosas experiências ecumênicas com a Igreja Católica naqueles anos, entre elas o "Serviço Intcrconfessional de Aconselhamento" (SICA), em Proto Alegre (desde 1969) e o "Conselho de Igrejas para Edu cação Religiosa" (CIER), cm Santa Catarina (desde 1970). A proposta de criar o CONIC tem sua origem nos encontros de dirigentes eclesiais, eclesiais, realizados regularmente a partir de 1975, recebendo ampla aprovação por parte das Igrejas fundadoras. A católica, b. O C ONIC ON IC congrega até o momento sete Igrejas: A luterana (IECLB), cpiscopal-anglicana, reformada, metodista, pres pr esbi bite teri rian anaa un unid idaa (IPU) (IP U) e a orto or todo doxa xa sirí si ríac aca. a. O nú núme mero ro de Igrejas componentes é pequeno em comparação com a quanti dade de Igrejas existentes. Mesmo assim é o órgão ecumênico de maior expressão em nível nacional. c. O CONIC CONIC tem sua sede administrativa em Brasília, Brasília, realiza assembléias gerais em turnos bienais e marca presença no ter ritório nacional por representações regionais. Ressente-se da necessidade de ampliar o número de seus membros para assim conseguir maior representatividade das Igrejas cristãs no país. d. O CONIC CONIC se propõe dois objetivos principais: principais: Quer promover o diálogo teológico e a convivência ecumênica, preparando encontros, servindo de foro de debates, organizando seminá rios c clebrações litúrgicas. Da mesma forma pretende unir as vozes vozes das da s Igrejas c coordenar sua atuação em assuntos de ordem polí po líti tica ca,, soci so cial al e éti é tica ca,, can c ande dent ntes es no país pa ís.. Adq A dqui uiri riuu notáve not ávell per per fil como interlocutor ecumênico e político c como porta-voz das Igrejas-membro na sociedade.
66
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier
O CON1C tem tido um desempenho fabuloso no período da dita dura e da reconquista da democracia. Continua sendo forte expressão ecumênica no Brasil. Como exemplos sejam lembradas a Semana da Oração pela Unidade dos Cristãos e a coordenação da Campanha da Fraternidade Ecumênica Ecumênic a no ano 2000, 2000 , experiência esta a ser repetida no ano ano de 2005. 200 5. Como Co mo anfitrião anfitrião ecumênico, ecumên ico, o CONIC CO NIC participa ativamente da preparação da IX Assembléia Geral do CMI, em 2006, no Brasil.
11. Ao lado do ecumenismo das Igrejas, ou seja, do ecumenismo "oficial" existe grande número de outras entidades engajadas na causa. Costumam perseguir objetivos específicos c atender expectati vas de determinados ramos. Mencionamos: a. CESE CES E = Coordenadoria Ecumênica de Serviços. É entidade dia conal, coordenadora de projetos com sede em Salvador, Bahia, atuando desde 1973. Participa a Igreja Católica juntamente com outras Igrejas do CONIC. b. DIAC DI ACON ONIA IA = entid ent idad adee "eva "e vang ngél élic ica", a", ligada lig ada anti an tiga game ment ntee à CEB. CE B. Atua principalmente no nordeste e tem sede em Recife. c. CELADE CEL ADEC C = Comissão Evangélica latinoamericana de Educação Educaç ão Cristã. Cristã. Atua em nível ní vel continental. A ela já nos reportamo rep ortamoss acima. d. CESEP = Centro Ecumênico Ecumêni co de Serviços Serviços à Evangelização Evangeli zação e Edu cação Popular. E órgão brasileiro, promotor de seminários, cur sos e outras programações sobre assuntos relacionados com os especificados especificados na autodesignação e com o ecumenismo ecume nismo em geral. e. CLAD CL ADE E = Congresso Congress o Latinoamerican Latino americanoo de Evangelização Evange lização.. São prom pr omoç oçõe õess do mo movv imen im ento to evan ev ange geli lica call na Amér Am éric icaa Lati La tina na.. Rea Re a lizaram-se três Congressos até o momento: mom ento: 1969: CLAD CL ADE E I em Bogotá; 1979: CLADE CLA DE II em Lima; 1994: CLAD CL ADE E III em Qui to. Os CLADEs têm correspondência nacional nos Congressos Brasileiros de Evangelização (CBE), dos quais o primeiro se realizou em 1983 e o segundo cm 2003, ambos em Belo Hori zonte. f. FTL= FT L=Fra Frate tern rnid idad adee Teológica Teológica Latinoamericana. É foro foro de mani festações teológicas e de debates de orientação evangelical. Foi criada em 1970 por solicitação de CLADE I.
ECUMENISMO NA AMÉRICA LATINA
67
g. AEVB = Aliança Evangélica Brasileira. Trata-se de um órgão do ecumenismo "evangélico". Necessitaria de maior embasa mento nas instituições eclesiásticas. h. CECA = Centro Ecumênico de Evangelização, Capacitação c Assessoria. Pretende ser órgão de serviço à causa ecumênica e está desenvolvendo admirável atividade. i. KOIN KO INON ONIA IA=é =é o antigo antigo CEDI, Centro Centro Ecumênico dc Documenta ção e Informação, com sede no Rio dc Janeiro. E editora da revista "Tempo c Presença". Caberia fazer menção de mais outros organismos ecumênicos, a exemplo exempl o dc CEBI CEBI (Centro dc Estudos Estudos Bíblicos), AGEN AG EN (Agência (Agência Ecumê Ecumê nica de Notícias), ASTE (Associação de Seminários Teológicos Evan gélicos) ou da SBB (Sociedade Bíblica do Brasil). Caracterizam-se por certa independência das instituições eclesiásticas o que lhes garante maior liberdade. Inversamente, isto poderá também transformar-se em fonte de atritos, perigo este, aliás, hoje fortemente reduzido em comparação com épocas passadas. Os organismos têm contribuído em muito para a difusão da idéia ecumênica e preparado o clima dc aproximação entre cristãos de diferentes confissões.
12. 12 . E os elementos especificamente latino-americanos do ecume nismo neste Continente, quais seriam? Eles existem? Com todo cuida do, arriscamos dizer o seguinte: a. O ecumenismo latino-americano latino-americano compartilha com o ecumenis mo global a ambigüidade. ambigüidade. Existem exemplos animadores c outros decepcionantes. decepcion antes. Também o anti-ecumenismo é uma rea lidade neste continente, tanto em sua forma "antiprotestante" quanto "anticatólica" - para não falar da oposição às formas sincretistas e à religiosidade afro-brasileira. A causa do evan gelho periga sucumbir na concorrência religiosa. Nessas con dições, o ecumenismo vai exigir renovado esforço, devendo superar não poucos obstáculos. b. Dian Di ante te do doss impe im pedi dime ment ntos os que o ecum ec umen enis ismo mo enfren enf renta ta tamb ta mbém ém na América Latina, Latina, importa insistir na reafirmação do com-
68
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier
pwmisso ecumênico ativo por parte das Igrejas e de seus mem bros. E paradoxal, mas verdade: Ecumenismo se reveste hoje em sociedade de mercado e de tendência nitidamente individu alista, de especial urgência. A sociedade, para a sua sobrevi vência, necessita de consensos básicos. Não menos as Igrejas. Em sociedade plural, as Igrejas, através do ecumenismo, deve riam desempenhar função de vanguarda. c. O ecumenismo na América Latina desde sempre tinha orienta ção fortemente prática. Colocava o dogma em segundo lugar. Trabalhava exigências e realidades contextuais, problemas vitais das pessoas e da sociedade. Com isso se mostrou mais flexível, menos preso a tradições. É claro que revelou perigos a evitar. O descaso para com o dogma causa prejuízo. E, no entan to, há que se questionar um dogmatismo estéril que passa ao largo dos desafios do cotidiano. A orientação na práxis garante ao ecumenismo latino-americano considerável interesse em âmbito internacional. d. O ecumenismo latino-americano sempre buscou a proximidade ao "povo", ou seja, às "bases", seja na forma da leitura popular da Bíblia, seja na forma da solidariedade com os movimentos populares. Pretendia-se e se pretende um "ecumenismo leigo", sustentado pelo povo, vindo de baixo, não imposto de cima. O célebre "ecumenismo de base", com sua peculiar dinâmica em épocas de opressão, continua a requerer investimento e apoio em tempos confrontados com novas e gigantescas ameaças. Ele cer tamente não representa a única forma dc levantar adiante a causa da unidade. E, todavia, é uma da mais alta relevância. Possivel mente tal ecumenismo significará desafio às instituições. Pois, por mais importante que seja o engajamento das mesmas, é ver dade também que não poderá ser de todo absorvido por elas. Ecumenismo, para ter resguardado o dinamismo, necessita das características de um movimento. Sem a participação do povo, ele será tão fictício como o é uma Igreja sem membros. 13. Convém não esquecer que o ecumenismo latino-americano não se encontra em situação isolada. É parte do ecumenismo global.
ECUMENISMO NA AMÉRICA LATINA
69
No caso da IECLB e de outras Igrejas históricas isto se evidencia por sua filiação ao CMI, à FLM, etc., bem como por suas múltiplas parcerias com Igrejas do exterior. A pergunta pela especificidade ecumênica lati no-americana não deveria ocultar o fato de que o ecumenismo neste continente se inscreve num esforço global. Também neste caso o parti cular deve inserir-se no universal. Duas constatações finais: a. E justo o anseio por popularizar o ecumenismo, ou seja, por fazê-lo decer das "esferas celestiais" das oficinas especializa das para o cotidiano das pessoas. E, no entanto, não se pode esperar do Zé e da Maria do povo que seja conhecedor dos numerosos projetos e entidades ecumênicos neste Brasil e nes ta América Latina. É preciso ser especialista para acompanhar os acontecimentos nesta área. Mais importante do que o conhe cimento, é o espírito ecumênico e a disposição para participar. b. As Igrejas, ao assumirem a tarefa ecumênica, não perdem sua identidade. Pelo contrário, são convidadas a participar das ini ciativas ecumênicas com seu próprio perfil. Caso contrário nada terão a contribuir. Certamente a aprendizagem ecumênica inclui a mútua prestação de contas do próprio jeito de ser. Mas isto não equivale a autonegação. Cabe ser Igreja ecumênica anglicana, metodista, luterana e católico-romana, e7c./Confessionalidade não atrapalha, enquanto vista como dom recebido por Deus para fazê-lo frutificar em benefício do todoy'
Literatura:
- ADOLF, Felipe. Ecumenismo Protestante en America Latina. In: Presen cia Ecumênica, n° 24/25, Caracas, 1982, p. 8-12. -
BOCK, Carlos Gilberto. O ecumenismo eclesiástico em debate - uma aná lise a partir da proposta ecumênica do CONIC, São Leopoldo: IEPG-
Sinodal, 1998. - BOLL, Godofredo. O ecumenismo no Brasil na visão de um luterano. In: Presença Luterana, ed. G Brakemeier, São Leopoldo: Ed. Sinodal, 1989, p. 131-147.
70
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPIRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier
- CONSEJO LATINOAMERICANO DE IGLESIAS. Oaxtepec 1978. Costa Rica, 1980. - ESCOBAR, Samuel. La fundación de la Fraternidad Teológica Latinoa mericana. Breve ensayo histórico. In: Boletín Teológico. Ano 27, n° 59/60, 1995, p. 7-25. - GOTTSCHALD, Karl. "A Confederação Evangélica do Brasil". In: Pre sença Luterana 1970, São Leopoldo: Ed. Sinodal, 1970, p. 117s. -
KOINONIA (ed.). O sonho ecumênico: prefácio ao novo milênio. Memó
ria da I jornada ecumênica. Rio de Janeiro, 1995. MIGUEZ BONINO, Jose. Un intento latinoamericano para situar el pro blema de la unidad. In: El futuro del ecumenismo. Buenos Aires: Aurora, 1975, p. 125-146. SABANES PLOU, Dafne. Caminhos de Unidade. Itinerário do Diálogo Ecumênico. São Leopoldo: Ed. Sinodal / Quito: CLAI, 2002. SOLANO, Arturo Piedra. Orígenes y importancia del Congreso de Pana má. In: Vida y Pensamiento, Costa Rica, V. 16,/2, 1996, p 8-16. TIEL, Gerhard. Ecumenismo de Base na América Latina. In: Estudos Teo lógicos, n° 31, 1991/1, p. 47-65. a
-
. Ecumenismo na perspectiva do reino de Deus - uma análise do
movimento ecumênico de base. São Leopoldo: Ed. Sinodal c CEBI, 1998. - WOLFF, Elias. O ecumenismo no Brasil. Uma introdução ao pensamento ecumênico da CNBB. São Paulo: Ed. Paulinas, 2000. - IDEM. Caminhos do ecumenismo no Brasil. História - Teologia - Pasto ral. São Paulo: Ed. Paulus, 2002, p. 456.
A UNIDADE DA IGREJA NA VISÃO DE IGREJA DA REFORMA 1. A história das Igrejas protestantes não inicia no século XVI, e sim no século I, em Jerusalém. Pois a Reforma não queria fundar, nem fundou um nova (!) Igreja. Reformou a de seu tempo. Igreja da Refor ma é Igreja de Jesus Cristo, católica e apostólica, compartilhando toda a sua história, desde os inícios até hoje. Por isto mesmo, a Confis são de Augsburgo, uma das expressões básicas de Igreja luterana c uma das primeiras confissões protestantes, considera-se a si mesma "ecumê nica", pertencente a toda a cristandade. Formula a fé "cristã". De acordo com o prefácio da Confissão, os dissensos a serem superados não anu lam o fato de que "todos estamos e militamos sob um mesmo Cristo". Os princípios "luteranos", expressos nos quatro "sola" (somente por gra ça, somente por fc, somente Jesus Cristo e somente a Escritura) nada mais pretendem do que o recurso à origem da Igreja e a busca de auten ticidade evangélica. O mesmo propósito está na origem do calvinismo c das Igrejas Reformadas, como o atesta entre outras a Confissão Galicana, esboçada pelo próprio Calvino e aceita por um Sínodo Nacional dc comunidades evangélicas na França, em 1559. 2. Mesmo assim surge Igreja luterana, respectivamente Igreja reformada ao lado da Igreja romana. A separação não coincide com a data do dia 31 de outubro de 1517, quando Lutero pregou as 95 teses na porta da Igreja do Castelo em Wittcnberg. Ela se deu num longo proces so, extremamente conflituoso, consumando-sc, no caso do luteranismo, com a Paz de Augsburgo em 1555 que selou a divisão. Em termos teoló-
72
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier
gicos, a separação se torna definitiva com o Concílio de Trento (15451563) de um lado, e a composição das confissões protestantes (das lute ranas no "Livro de Concordia", concluído em 1580), de outro. A partir de então haveria territórios católico-romanos, evangélico-lutcranos c outros reformados. Valia a diretriz, dizendo "cuius regio, eius religio" (de quem é a região, daquele c também a religião). Inicia a era confessio nal. Algo semelhante vale para a Igreja Anglicana, constituída por Hen rique VIII como Igreja independente de Roma, a partir de 1534, na Inglaterra. Doravante a Igreja de Jesus Cristo apresentar-se-ia em cres cente variedade de Igrejas, distintas entre si por estruturas, tradições, confessionalidades. 3. A Reforma do século XVI, ao redundar em divisões na Igreja Católico-Romana, levantou pela primeira vez a pergunta pela Igreja ver dadeira. Apesar da existência da Igreja Católica Ortodoxa ao lado da Igreja Católica Romana, o ocidente desconhecia essa pergunta. Haveria uma só Igreja de Jesus Cristo, a despeito de todas as suas falhas. Agora, porém, surgem outros agrupamentos eclesiais cm meio à tradicional cris tandade, reivindicando legitimidade c autenticidade apostólica. Quem estaria com a verdade? O lutera nismo ja ma is identificou a Igrej a ver dadeira com uma instituição. Conforme o artigo VII da Confissão de Augsburgo, a Igreja existe onde "o evangelho está sendo pregado de maneira pura c os sacramentos são administrados corretamente". Isto pode acontecer em Wittenberg como também em Roma, Londres ou cm qualquer outro lugar. É claro que tal concepção implica, por definição, abertura ecumênica.
4. Isto é coiToborado pela continuação do texto de CA VII. Ele diz: "E para a verdadeira unidade da igreja basta que haja acordo quanto à doutrina do evangelho e à administração dos sacramentos. Não é neces sário que as tradições ou os ritos c cerimônias instituídos pelos homens sejam semelhantes em toda a parte...". Em outros termos: A unidade da Igreja se fundamenta num consenso na doutrina e na prática sacra me nt al - somente nisto. As estruturas eclesiásticas, as tradições, os cos tumes podem variar. Fundamental é a compreensão comum do Evange lho. Por analogia, estruturas também não podem assegurar a unidade.
A UNIDADE DA IGREJA NA VISÃO DE IGREJA DA REFORMA
73
É ilusão querer manter a Igreja unida, impondo aos membros uma ordem eclesiástica, um rito comum ou qualquer outra coação externa. A comunhão estrutural numa só instituição eclcsial não respresenta nenhuma garantia da "comunhão do Espírito Santo" (2 Co 13.13) que perfaz a natureza da Igreja.
5. É o que confere à Igreja luterana liberdade nas formas eclesiais. Sc a Igreja é conduzida por bispo/a, presidente ou presbítero/a, não é questão de última relevância. Igreja luterana não pretende a uniformida de. Está comprometida, isto sim, com a boa teologia e com a busca de autenticidade evangélica. Ecumenismo significa, por isto, entendimen to em assuntos de doutrina, e, por conseguinte, de práxis eclcsial. E o esforço por consenso em assuntos fundamentais. Seria errôneo deduzir daí um desprezo à instituição eclesiástica e às questões formais. A estrutura eclesiástiica é importante como serva do Evangelho. Mas não é constitutiva. Ela é uma questão de "bene esse" da Igreja, não de "esse", ou seja, o que está cm jogo não é o "ser", e sim o "bem estar" da Igreja. A unidade da Igreja não se baseia numa "lei" ou numa "ordem", e sim num só Espírito (Ef 4.4). As ordens eclesiásticas continuam rele vantes no esforço ecumênico. Dcmonstra-o, a seu modo, o nome da comissão "Fé e Ordem" do CMI. Portanto, as expressões visíveis de unidade, almejadas pelo esforço ecumênico incluem as de natureza estru tural. Mas elas são secundárias em comparação com o testemunho da fé. Conseqüentemente, o ecumenismo não pode satisfazer-se com a sim ples fusão ou unificação das instituições eclesiásticas. Ela não é suficiente para garantir a unidade no Espírito. Há outros sinais de unidade, sobre tudo o mútuo reconhecimento da eclesialidade. Convém destacar alguns aspectos dessa concepção: a. Consensos na doutrina costumam permanecer "diferenciados". Usarão terminologia e linguagem distinta. Não podemos espe rar que o parceiro ecumênico adote integralmente o nosso dis curso. Importa que os propósitos confluam e expressem o mes mo. Nem sempre identidade verbal significa identidade de sentido. Para tanto um exemplo: É possível concordarem que a Bíblia seja "inspirada", c todavia entender coisas incongruen-
74
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakeineier
tes sob a mesma palavra. Inversamente diferentes expressões não assinalam necessariamente divergência de causa. Assim a "Concórdia de Lcucnbcrg", firmada entre as Igrejas Luteranas, Unidas e Reformadas na Alemanha, não nivelou todas as dife renças. Mas possibilitou a comunhão cclesial. b. É importante insistir cm "aprendizagem ecumênica", ou seja, na aprendizagem mútua das Igrejas. Aprender, porem, não signi fica copiar ou imitar. Acópia nunca será igual ao original. Con vém entender a própria confessionalidade como uma espécie de talento, com o qual somos chamados a trabalhar (Mt 25.14s). Todas as Igrejas têm as suas limitações. Ecumenismo exige, por isto mesmo, uma postura de humildade e de auto-crítica. Mas desde que sejam cristãs, são portradores também de algum "carisma". A Reforma beneficiou a cristandade cm seu todo, com inclusão daquela parcela que não lhe aderiu. Ecumenismo implica o chamado para servir à catolicidade do corpo de Cris to com o que cada Igreja tem de melhor. c. A busca de consensos não vai limitar-se a uma questão inter eclesiástica (de Igreja para Igreja). Progressivamente está se tomando um imperativo intra-eclesiástico (interno de cada Igre ja). O ecumenismo inicia na própria comunidade e Igreja, onde devem ser trabalhadas diferenças e superados conflitos. Anecessidade se intensifica diante do pluralismo religioso da socieda de moderna. Voltamos a dizer que em Igreja luterana deve haver espaço para diversidade, embora dentro dos horizontes da confessionalidade. Importa correlacionar devidamente a iden tidade confessional e a pluralidade dos dons do Espírito Santo.
6. A ccumenicidadc de Igreja luterana significa disposição para a parceria eclesial. Esta não poderá renunciar ao critério da unidade que é Jesus Cristo. Vai testar o que é compatível com este nome. E este o cami nho, assim entendemos, a ser seguido em direção à comunhão entre as Igrejas sem que seja traída a verdade que Jesus Cristo, ele mesmo, é. 7. A posição calvinista, no que diz a esse respeito, situa-se muito próximo da luterana. Diz o reformador Calvino cm sua obra monu-
A U N I D A D E 1>A IGR EI A NA VISÃO Olí IGREJA DA REFORMA
mental "Institutas da Religião Cristã" (IV, 1.9): "Onde quer que encon tremos a Palavra de Deus puramente pregada e ouvida, e os sacramentos administrados de acordo com a instituição de Cristo, não há como duvi dar de que nos defrontamos com uma igreja de Deus." Isto coincide praticamente com o teor de CA VII. É possível que as palavras "e ouvi da", não constantes na Confissão de Augsburgo, façam alguma diferen ça. Mas ela é mínima. Também para Calvino existe uma só Igreja, cuja unidade visível exige o esforço cristão. Consiste, segundo o Reforma dor, não na uniformização formal, e sim em preservar ou restabelecer o senhorio absoluto de Jesus Cristo cm sua Igreja. Por ser assim, pode haver Igreja verdadeira também além das fronteiras da própria institui ção, portanto também na Igreja Romana, muito embora a tradição calvi nista, assim como a luterana, recuse-se a aceitar a supremacia papal como emamando de um direito divino. Ecumenismo deve, antes de mais nada, tratar de conjugar o autêntico ouvir da palavra e a condigna celebração do sacramento.
Literatura:
- GREBEL, Hans Rudolf. A atitude ecumênica dos protestantes. In: Diálogo Ecumênico, ed. O. Cullmann e O. Karrer. São Paulo: Herder, 1967, p. 55-65. - McNEILL, John T. A Igreja na teologia reformada do século dezesseis. In: Donald McKim (ed.). Grandes Temas da Tradição Reformada. São Paulo: Pendão Real, 1999, p. 149-159. - MEYER, Harding. O ecumenismo sob o ponto de vista da teologia lutera na. In: Estudos Teológicos, v. 1, São Leopoldo: EST, 1961/2, p. 25-38. . A estrutura dos consensos ecumênicos. In: Diversidade Reconci liada - o projeto ecumênico. São Leopoldo: EST / Ed. Sinodal, 2003, p. 73-84. - SCHERER, James. Evangelho, Igreja e Reino. Estudos Comparativos de Teologia da Missão. São Leopoldo: Ed. Sinodal, 1991. - TRILLHAAS, Wolfgang. La responsabilidad ecumênica de la Reforma. In: EKKLESIAIX, n° 20/21, Buenos Aires, 1965, p. 90-102.
O ECUMENISMO DE CONSENSO 1. Que consenso doutrinal seja essencial para a unidade da Igreja, é concepção amplamente compartilhada entre o povo cristão. Existe uma só fé (Ef 4.5) a ser confessada unanimemente. De fato, não há perspecti vas de unidade c de comunhão sem um mínimo de concordância em questões básicas da fé. Por isto, o esforço por convergências no discur so das Igrejas, em seu ensino, sua pregação e sua teologia tem acompa nhado a trajetória ecumênica desde os inícios. Ele tem dado origem ao assim chamado ecumenismo de consenso, buscando superar divergên cias c conflitos em discurso e prática das Igrejas para reconduzir à trilha comum que é a tradição apostólica. 2. É esta a preocupação que está na raiz do movimento "Fé e Ord em ". Ele é, como visto acima, uma das veias constituintes do Con selho Mundial de Igrejas (CMI). Nasceu da consciência do caráter "con fessional" da Igreja de Jesus Cristo. Não são fatores étnicos, culturais, classistas ou estruturais que estão na raiz da Igreja. Está alicerçada num credo, sendo este, pois, a principal condicionante da unidade. Conse qüentemente a Comissão "Fé e Ordem" dedicou-se à causa da unidade na fé. Nesse afã, tem produzido importantes documentos de convergên cia. Formulam o resultado de um diálogo multilateral, isto é entre diver sos parceiros ecumênicos. Tais diálogos acontecem também em outros grêmios e grupos, em nível internacional, nacional e local. Distinguemsc dos diálogos bilaterais entre apenas dois paceiros. Tanto estes como aqueles têm-se mostrado importantes na história do ecumenismo, sendo proibido optar por um dos dois modelos. Verdade é que não se permite
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Btakemeier
aos diálogos bilaterais ignorar a situação ecumênica maior. Há que se evitar "conchavos ecumênicos" que fragmentam a busca da unidade c ameaçam transformá-la em guerra dc trincheira de coligações confessio nais. Não obstante, eles podem ser pioneiros e preparar acordos multila terais que de outra forma seriam difíceis de alcançar.
3. Entre estes se destaca o assim chamado "Documento de Lima" com o título "Batismo, Eucaristia, Ministério" (BEM). É chamado "Documento de Lima" porque foi em Lima, capital do Peru, que o Documento, em 1982, recebeu a sua redação final e foi aprovado, por unanimidade, pela Comissão "Fe c Ordem". Trata-se, pois, de um acor do apoiado por muitas Igrejas. E claro que a tentativa de alcançar um consenso em assuntos de tal modo centrais e, com exceção do batismo, polêmicos, tem sido objetivo ambicioso. E, com efeito, não se alcançou um consenso realmente pleno. Muitos preferem falar cm "convergên cia". Se de fato tivesse sido alcançado um consenso, o resultado deveria ter sido o reconhecimento mútuo de batismo, eucaristia e ministério por parte dc todas as Igrejas signatárias. Isto, porém, não aconteceu. As Igre jas participantes no diálogo conseguiram aproximar as posições, formu lar uma plataforma doutrinal comum, mas não dirimir todas as diver gências. Ainda assim, a investida de "Fé e Ordem" foi da mais alta importância. Despertou um debate, cujos resultados enchem bibliote cas. Recebeu atenção também por parte do CONIC que promoveu um seminário sobre a matéria. Lamentavelmente, o esforço teve impacto inexpressivo nas estruturas eclesiásticas. O documento praticamente não provocou mudanças nem conduziu a maior comunhão das instituições. 4. A despeito de tais ressalvas, o imenso investimento em comis sões de diálogo interconfcssional havido nas últimas décadas não ficou sem frutos. Aplica-se este juízo com particular pertinência aos diálogos bilaterais. Possibilitaram acordos intcreclesiásticos dc mútuo reconhe cimento c de comunhão cclesial. Cabe absoluto destaque, nesse senti do, à "Concórdia de Leuenberg". Trata-se de um documento de consenso entre Igrejas luteranas, reformadas e unidas, elaborado no ano de 1973, em Leuenberg na Suíça, por iniciativa de Igrejas européias. Depois de intensos diálogos teológicos, as Igrejas parceiras constataram haver
O ECUMENISMO DE CONSENSO
entre elas uma compreensão comum do evangelho que anula dissensos do passado. As questões outrora controvertidas permanecem na agenda, razão pela qual se realizam periódicas assembléias, sempre sobre temas específicos. Entretanto, as diferenças já não mais impedem a plena comu nhão cclcsial, expressa em comunhão de púlpito e de altar e incluindo o reconhecimento mútuo da ordenação e dos ministérios. Não está sendo extinta a variedade de formas cm culto, estruturas e atividades. Mas essa variedade já não mais possui força divisora. E verdade que nem todas as Igrejas luteranas, reformadas e unidas são signatárias da Concórdia, muito embora seja acolhida entrementes também em outros continentes além do europeu. De qualquer maneira, oferece-se aí um modelo de "ecume nismo de consenso", digno de ser seguido.
5. Também outros exemplos poderiam ser mencionados. Pensa mos concretamente na "Declaração Co mu m de Porv oo " que é um acor do entre a Igreja Anglicana e as Igrejas Luteranas da Escandinávia e do Báltico, firmado em 1992. O entendimento foi facilitado pelo fato de essas Igrejas lerem em comum o "episcopado histórico", que se legitima por sucessão apostólica direta, muito à semelhança do que acontece na Igreja Católica. Por isto mesmo a Declaração de Porvoo não inclui as Igrejas Luteranas da Alemanha, dos Estados Unidos c de outros países que não compartilham essa concepção. Mesmo assim, existem acordos bilaterais também com essas Igrejas. Entre eles está "A Declaração de Meissen", de 1988, entre a Igreja Anglicana e Igrejas luteranas da Ale manha. Afirma-se o reconhecimento recíproco da eclesialidade das Igre jas, apesar da diferença na compreensão do ministério episcopal. Simul taneamente se estabelece a hospitalidade eucarística de parte à parte. Isto significa que ainda não se chegou a ratificar a plena comunhão cclesial. Mas importantes brechas foram abertas. 6. Existem sinais de aproximação, portanto. É grande a quantida de de diálogos bilaterais com resultados bastante animadores. Não raro, porém, os consensos alcançados costumam ficar sem o reconhecimento oficial das Igrejas. Não produzem efeitos estruturais. Falta o que se cha ma "recepção", ou seja, a ratificação e assimilação estrutural. O quanto esta pode ser difícil é comprovado pela trajetória de uma iniciativa da
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPIRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brákemeier
Federação Luterana Mundial (FLM) e do Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos da Igreja Católico-Romana: Propôs a oficializa ção de ii m um consenso relativo à doutrina da justificação por graça e fé. Já dizia o "Relatório de Malta", entitulado "O Evangelho e a Igre ja", publicado em 1972: "Hoje se esboça sobre este assunto (sc. a justi ficação) um amplo consenso." E o que desde então sempre de novo tem sido repetido e confirmado. Se, porém, assim é, por que não dar-lhe caráter oficial mediante o respectivo aval das autoridades eclesiásticas? A oficialização de resultados obtidos cm diálogos doutrinais é uma neces sidade. Sem ela, os diálogos perdem o valor e o sentido. Não adianta discutir c constatar convergências, sc estas nunca forem acolhidas. Por isto têm sido fortes, nos últimos decênios, os reclamos por transforma ção dos consensos teológicos em praxis cclcsial. A Declaração Conjunta seria o primeiro consenso oficial católico/luterano.
7. A tentativa, porém, se evidenciou como extremamente com plicada. O primeiro texto foi esboçado por uma comissão mista cm 1994. Varias reformulações se fizeram necessárias. Professores luteranos de teologia na Alemanha lançaram um abaixo-assinado contra o projeto. A reação do Vaticano quase bloqueou a assinatura, exigindo novas tratativas, bem como um anexo esclarecedor ao texto original. A despeito dos percalços, porém, a Declaração conseguiu ser assinada em 31 de outubro de 1999, na cidade de Augsburg, Alemanha, sendo assinantes o Presidente da FLM e o Presidente do Pontifício Conselho para a Unida de dos Cristãos. A esmagadora maioria das Igrejas Luteranas, reunidas na FLM, havia endossado o texto, ainda que algumas com ressalvas à proposta. 8. Os objetivos da Declaração Conjunta, na verdade, são modes tos. Pretende-se celebrar um acordo oficial num assunto central do Evan gelho. A justificação por graça e fé tem sido o mais polêmico assunto na época da Reforma, selando a divisão e conduzindo a anátemas de parte a parte. A Declaração não revoga as condenações do passado, formuladas pelo Concílio de Trento (1545-1563) e contidos nos Escritos Confes sionais Luteranos. Ela não quer revisar a história. O que se pretende é constatar que as condenações de outrora já não mais atingem os par-
O ECUMENISMO DE CONSENSO
81
ceiros de hoje. Afirma-se ter havido um processo de aproximação na matéria que já não mais justifica divisão e excomunhão. Havia sido excluída, em termos expressos, a eclesiologia que não seria afetada pelo acordo.
9 . 0 consenso alcançado na Declaração permaneceu um "consen so diferenciado". Não pretende uniformizar o discurso, impondo ao parceiro as próprias concepções. Um consenso diferenciado deixa espaço para articulações próprias, e portanto para particularidades confessio nais. Coloca essas particularidades, porém, em fundamento comum, "reconciliando" as diferenças remanescentes que já não mais possuem força divisora. O objetivo foi alcançado. Mas não sem algumas (...) res salvas. Não houve acerto definitivo: - sobre a centralidade da justificação, - sobre o ser humano como sendo "simultaneamente justo e pecador", - sobre o caráter meritório das boas obras. Também não está claro, quais poderiam ser algumas das conseqü ências a serem tiradas dessa Declaração no que diz respeito a uma maior comunhão entre as Igrejas. Como se relacionam justificação e ecles iolo gia? Por que continuamos separados na mesa do Senhor?
10. Ainda assim, a "Declaração Conjunta" representa um sig nificativo avanço ecumênico. Ela incentivou a discussão sobre a justi ficação, colocou normas para a metodologia ecumênica pela adoção do "consenso diferenciado", removeu uma série de elementos doutrinais conflitivos entre as Igrejas, comprometeu com maior comunhão eclesial. A importância ultrapassa a "bilateralidade". Pois as definições da Declaração são relevantes também em diálogos com outros parceiros ecumênicos. Justificação por graça e fé não pode ser considerada assun to "particular" de luteranos e católicos. Coerentemente outras Igrejas têm participado, cm escala maior ou menor, na discussão precedente à assinatura. Permanece aberta uma serie de questões, entre elas a pergun ta pelas conseqüências eclesiológicas de um acordo dessa natureza. Será
82
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier
possível concordar no assunto central do Evangelho e ignorar imperati vos estruturais daí resultantes?
11. Do retrospecto aos numerosos diálogos doutrinais, tanto bilaterais quanto multilaterais, havidos nas últimas décadas, o ecume nismo poderá tirar algumas importantes conclusões: a. A busca do consenso na fé modificou a paisagem ecumênica. Foram construídas pontes e derrubados muros. Disscnsos dou trinais, trabalhados com seriedade e disposição para a aprendi zagem, por via de regra se evidenciam superáveis. Pelo menos pode-se conseguir a aproximação das posições e aprofundar a compreensão para as divergentes. Os estudos efetuados na Ale manha sob o título "Condenações doutrinárias - divisoras das Igrejas?" têm conduzido a surpreendentes resultados. Promo veram o que se poderia chamar "amizade teológica interconfessional". E, com efeito, a cristandade não pode relaxar no esforço por conjugar o credo e harmonizar sua voz. Buscará a "sinfonia" na "polifonia" do testemunho. Dissonâncias no dis curso acarretam prejuízo para a comunhão dos santos. b. Simultaneamente, porém, deve-se constatar a necessidade de ulteriores "consensos sobre o indispensável consenso básico" da Igreja cristã. No entender de muitos, ecumenismo continua sendo o esforço por converter o outro à própria posição. A "idéia do ecumenismo de retorno" de modo algum está superada. Espe ra-se de consensos ecumênicos que sejam "totais", correspon dendo em formulação e redação exatamente ao próprio lingua jar. Somente assim seria possível a comunhão eclesial. Não está claro o que significa um "consenso diferenciado". Da mesma forma se revelou problemático isolar um tópico doutrinal para discuti-lo em separado. Embora seja inevitável identificar os assuntos polêmicos e colocá-los particularmente em pauta, há que se respeitar que costumam estar inseridos em horizontes maiores, dos quais não permitem ser arrancados. Não se pode excluir a eclesiologia do arcabouço geral da justificação por graça e fé, por exemplo. Fragmentos de consensos permanece-
O ECUMENISMO DE CONSENSO
rão sem efeitos. Pergunla-se: Quando estará dc fato alcançado um consenso doutrinal? E, quanto consenso é necessário para real comunhão ccclsial? Também sob esta perspectiva, pois, confirma-se a necessidade de desenvolver uma hermenêutica ecumênica, incumbida de estudar as condições c possibili dades de entendimento entre as Igrejas. Tal estudo deverá incluir não somente os dissensos dogmáticos do passado, como também fatores contextuais, estruturais, avanços teológicos e outros. c. No mais, o ecumenismo de consenso revelou senísiveis debi lidades, quando se trata de traduzi-lo em mudanças de estrutu ras eclesiásticas. Nesse tocante conseguiu êxito apenas modesto. As instituições eclesiásticas hesitam em transformar consensos doutrinais em comunhão eclesial, ou até mesmo permanecem estanques. É o que levanta a suspeita de o dogma não ser o único vilão responsável pelas divisões. Pelo que tudo indica há outras causas a sondar. O que se diz ser divergência doutrinal poderia ter outra natureza e encobrir outro tipo de dissenso. É uma pista a seguir. Nós voltaremos ao assunto. Seja antecipa do que, se assim for, a responsabilidade pela unidade não ficará a cargo da doutrina da fé somente. Vai exigir recursos adicio nais ao debate teológico.
Literatura:
- BRAKEMEIER, Gottfried. Doutrina da Justificação - no limiar de um consenso ecumênico? In: Teqcomunicação, Porto Alegre: PUCRS, n° 113, Ano 26, 1996/3, p. 331-344. - COMISSÃO DE FÉ E ORDEM. A Confisssão da Fé Apostólica, explicação ecumênica. Tradução de Jaci Maraschin, São Paulo, 1993. - DOUTRINA DA JUSTIFICAÇÃO POR GRAÇA E FÉ. Declaração Con junta Católica Romana - Evangélica Luterana. São Leopoldo: CEBI / Por to Alegre: EDIPUCRS, 1998. - KILPP, Nelson. O batismo e a ceia do Senhor na tradição luterana e no diálogo presente. In: Estudos Teológicos 38, São Leopoldo: EST, 1998/1, p. 15-33.
8 4
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier
- MALSCHITZKY, Harald. Fé e Ordem — um instrumento a caminho da unidade. In: Estudos Teológios, 31, São Leopoldo: EST, 1991/1, p. 20-29. - MEYER, Harding. Do diálogo para a comunhão: recepção ecumênica e a 'receptibilidade' dos resultados dos diálogos. In: Diversidade reconciliada - o projeto ecumênico. São Leopoldo: EST / Ed. Sinodal, 2003, p. 73-84. - TIEL, Gerhard. A caminho da unidade da Igreja. Anotações a respeito do Documento de Lima sobre batismo, eucaristia e ministério. In: Estudos Teológicos 21, São Leopoldo: EST, 1987/1, p. 45-62.
17
O ECUMENISMO PRÁTICO 1. Quiçá, a via mais promissora seja a da práxis, do serviço, da diaconia. A convicção tem longa história. Basta lembrar o movimento "Vida eAção ", outra veia importante do CMI. Ainda ecoa na memória a já mencionada divisa dizendo que, enquanto a doutrina divide, a ação é que une. Não se busca a unidade mediante a reflexão c o acerto teológi co, e sim mediante a ação, o engajamento comum em causas urgentes. E, com efeito, os desafios práticos têm natureza essencialmente "ecumê nica". Colocam-se todos da mesma maneira. A violência, a destruição ambiental, o desemprego e outros problemas semelhantes não se orien tam por critérios confessionais ou religiosos. Atingem todos por igual, não fazendo distinção de acordo com o credo. 2. Na América Latina, a priorização da práxis contou com fortes simpatias. Em razão da magnitude dos problemas sócio-políticos, a ocu pação com questões de doutrina por algum tempo até parecia luxo, coisa de primeiro mundo. Urgia unir as forças de todas as Igrejas na luta por libertação e superação de um sistema opressor e produtor de vítimas. Caberia inserir-se nos movimentos sociais e solidarizar-se com seus jus tos reclamos. A "opção preferencial pelos pobres" tem sido proeminente catalizador ecumênico, gerando novas formas de comunhão na busca de uma sociedade alternativa, justa, igualitária, pautada pelos valores do reino de Deus. A perspectiva desse reino inspirou uma nova "ecumene", interessada não tanto na unidade das instituições eclesiásticas, e sim na unidade da humanidade, irmanada pela paz e pela justiça. Esse espírito vivia, e ainda vive, na dinâmica das comunidades eclesiais de base, superando antigas fronteiras denominacionais mediante o enga-
86
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPIRITO NO VÍNCULO DA PAZ
-
Gottfried Brakeineier
jamento comum no projeto cie um mundo que melhor corresponda aos propósitos divinos e ofereça condições de sustentabilidade. Movimen tos ecológicos, anti-racistas, feministas, pacifistas foram descobertos por esse ecumenismo como aliados na luta pela nobre causa.
3. Exemplos de ecumenismo prático encontram-se em lodo o mun do. Entre eles uma iniciativa do CMI tem sido de particular importância. Trata-se do "Processo Conciliar de Mútuo Compromisso para a Jus tiça, a Paz e a Integridade da Criação". Fala-se em abreviação de JPIC. O desencadear desse processo foi decidido em 1983, na 6 Assem bleia Geral do CMI, realizada em Vancouver, Canadá. Pretendia-se o engajamento das Igrejas-membro do CMI em todo o mundo nessa causa tão importante. Fala-se em processo conciliar para assinalar a natureza ecumênica do mesmo. O desfecho da discussão deveria acontecer num "Concílio da Paz" promovido por todas as Igrejas cristãs. Merecem des taque uma série de aspectos notáveis: a
a. O tema "justiça, paz e integridade da criação" coloca em pau ta imprescindíveis pressupostos da sobrevivência humana. O desprezo aos mesmos respresenta a principal ameaça à huma nidade no inundo moderno. Injustiça é fenômeno global, mas caracteriza principalmente o que se chama de conflito norte sul. O fosso entre riqueza e pobreza produz um desequilíbrio mortal, fonte de endêmica violência. Os conflitos armados são outra ameaça, antes configurada principalmente pelo conflito leste - oeste e o terrível arsenal de armas de destruição em massa, difundidos pelo planeta. A terceira guerra mundial não aconte ceu, aliás está acontecendo em inúmeros conflitos regionais, fugindo ao controle dos estados. A destruição do meio ambien te, enfim, não necessita de comentários. Integridade da criação, respectivamente a preservação do meio ambiente são premis sas de vida futura neste planeta. b. Quando se trata de prática, o ecumenismo exige o engajamen to, o compromisso. A base do ecumenismo já não é o consen so numa doutrina, e sim o pacto. Na América Latina se fala em "opção", sendo que os pactos feitos nessa base reúnem um
ü ECUMENISMO PRÁTICO
87
outro público do que os consensos na doutrina. São cm primei ro lugar os próprios atingidos por injustiça, guerra ou destrui ção do meio ambiente os que vão se empenhar na luta. E serão, em segundo lugar, todos c todas que com cies se solidarizarem, sejam católicos, protestantes, cristãos ou não cristãos. O ecume nismo em assuntos de ética tem outra característica do que o ecumenismo em assuntos dogmáticos. c. Visto que são os atingidos os que estão na frente de luta deste ecumenismo, este sempre terá uma tendência de se concen trar na "base", entre os pobres, explorados, entre as vítimas. O ecumenismo se transfere "de cima", dos especialistas, para "baixo", ao povo que se torna seu protagonista. Surge a per gunta: Como sc relaciona a comunidade de fé com os movi mentos sociais que propugnam causas públicas? De qualquer maneira, as Igrejas nessas questões já não mais estão sozinhas entre si. Compartilham a luta com outros segmentos sociais.
4. O processo conciliar "JPIC" teve enorme impacto. Também por parte da IECLB, do CONIC, do CLAI e de outras entidades ecumê nicas houve significativas contribuições, embora nem sempre sob exa tamente os termos do tema. É verdade que na América Latina se privile giou a causa da "justiça", em flagrante detrimento da "integridade da criação". As peocupações manifestadas pelo Fórum Mundial, ECO 1992, no Rio de Janeiro, não receberam a atenção que teriam merecido. Tam bém no mais o processo conciliar, vinte anos depois de inaugurado, con tinua urgente. O combate ao terror ameaça tragar as nações numa esca lada de violência, instaladora do permanente medo e do caos social. Precisa ser substituído pelo combate ao ódio, que a um só tempo é raiz e fruto do terror. A infernal coligação de injustiça, guerra e destruição ambiental requer outra reação do que a do poderio militar, das forças do mercado e do jogo dos interesses. Em outros termos, as enfermidades globais exigem terapias igualmente globais, ecumênicas. A Campanha da Fraternidade Ecumênica no ano 2000, sob o tema "Dignidade huma na e paz - novo milênio sem exclusões", ou os Foros Sociais cm Porto Alegre, RS, são disso bonitos exemplos. A sociedade carece de mais outras iniciativas semelhantes.
88
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier
5. A história, porém, provou ser este ecumenismo de modo algum mais fácil do que o dogmático. O processo conciliar teve certo desfecho em 1990 com a realização da já referida Convocação Mundial em Seoul, Coréia. Apesar de terem sido firmados uma série de "pactos" não se chegou a acordos realmente convincentes. Não só a doutrina divide. A práxis pode ter o mesmo efeito. Revelaram-se conflitos entre norte c sul, entre os blocos e as classes sociais, entre primeiro e terceiro mundo, deixando uma série de lições: a. A união é fácil na oposição, difícil na posição. Que significa "justiça"? Como sc faz? As conseqüências da injustiça são visíveis e podem mobilizar a reação conjunta. Mas quando se trata de conceber uma sociedade justa, as opiniões divergem. b. Costumam misturar-se interesses grupais ou corporativistas aos reclamos sociais. Clara distinção nesse tocante se faz necessá ria, portanto. c. Toda ética tem bases "dogmáticas". Ela necessita de uma "teo ria" ou seja "visão" que lhe forneça parâmetros. Toda ação refletida, quando desimpedida, brota de um credo. O processo conciliar confirmou que a prática não substitui a confissão. Doutrina e praxis devem ser distinguidas, mas não podem ser separadas. Também a ética social é campo de conflitos ecumê nicos. 6. Seria absurdo, porém, rejeitar o ecumenismo prático por essas razões. Assim como é importante o ecumenismo de consenso, a despei to de suas limitações, assim também o é o ecumenismo que busca o mutirão cm favor das causas justas. Seria estúpido substituir um ecume nismo por outro ou optar em favor de apenas um tipo. Tanto a fé quan to a práxis necessitam do esforço por comunhão. Condicionam-sc mutuamente. Sem o estímulo da práxis o ecumenismo vai mofar nos ecritórios dos profissionais. Sem o embasamento teológico, cie vai de sandar e resultar em estéril ativismo. As comunidades cristãs, natural mente, não permitem ser confundidas com movimentos sociais. Ambos têm identidade própria. E, no entanto, a Igreja cristã pode e deve solida rizar-se com grupos empenhados cm favor de justiça, paz e integridade
O ECUMENISMO PRÁTICO
da criação, bem como em causas públicas semelhantes. Isto em todos os níveis: o local, o regional, o nacional e o internacional. Não só a comu nhão na profissão da fé, também a comunhão na prática do amor neces sita de consensos, de sintonia e de acordos, embora os parceiros aqui c lá não sejam exatamente iguais. Enquanto se propõe a defesa da causa de Deus neste mundo, a ação social é tão imprescindível para o movimento ecumênico como o é o amor para a fé.
Literatura:
- BRANDT, Hermann. Convivência e Confrontação. Reflexões missiológicas sobre o documento "O Caminho para Damasco - Kairós e Conversão". In: Estudos Teológicos 32, São Leopoldo: EST, 1992/1, p. 27-40. - KÜNG, Hans. Projeto de ética mundial. Uma moral ecumênica em vista da sobrevivência humana. Tradução de Haroldo Reimer. São Paulo: Ed. Paulinas, 1992. - SILVA IULIANELLI, Jorge Atílio. Solidariedade em tempos ncoliberais. In: Tempo e Presença, Rio de Janeiro: Koinonia, n° 291, 1997, ano 19, p. 33-35. - TIEL, Gerhard. O processo conciliar de mútuo compromisso para a justiça, paz e integridade da criação. In: Estudos Teológicos 28, São Leopoldo: EST, 1988/2, p. 153-170. . Ecumenismo na perspectiva do reino de Deus - uma análise do movimento ecumênico de base. São Leopoldo: Ed. Sinodal e CEBI, 1998. - VISCHER, Lukas. Preparativos ecumênicos para uma Assembléia Mun dial da Paz. In: Conciliwn, n° 215, 1988/1, p. 10-20.
PENTECOSTALISMO E MOVIMENTOS TRANSCONFESSIONAIS 1. Existe a possibilidade de um ecumenismo com as Igr eja s Pen tecostais? A pergunta é de difícil resposta devido à complexidade do
fenômeno. As Igrejas pentecostais chamam atenção tanto pela extraor dinária expansão, quanto pela variedade de formas e grupos em que se apresentam. Ao milagre da multiplicação correponde nas Igrejas pente costais o flagelo da divisão. Distingue-se entrementes entre peníecostalismo histórico e neopentecostalismo, bem como entre ainda outros tipos. Pertencem ao pentecostalismo histórico aquelas Igrejas que, des de sua chegada ao Brasil cm inícios do século XX, têm desenvolvido alguma estrutura eclesiástica a exemplo da Assembléia de Deus, da Igreja do Evangelho Quadrangular, da Congregação Cristã no Brasil e outras. O neopentecostalismo é representado sobretudo pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Ainda assim, permanece verdade que pente costalismo é antes movimento do que instituição. Aposta no Espírito Santo como poder espontâneo, desenvolvendo um modo de ser cristão a partir da obra da terceira pessoa da Trindade. 2. Devido à dinâmica que desenvolveu, o pentecostalismo goza de crescente interesse na teologia. Sua conceituação passou por radi
cal mudança. Já não mais é visto como fenômeno negligenciável, c sim como alerta às Igrejas tradicionais quanto a dimensões omissas em sua missão. O jeito pentecostal é acolhido preferencialmente entre as classes desprivilegiadas da América Latina. Mediante a promessa da cura divina, a celebração da festa no templo de Deus, a construção
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ
92
-
Gottfried Brakemeter
da auto-estima além de outros elementos, ele vem ao encontro de pro fundos anseios populares. Ao mesmo tempo está sendo colocado mais outro desafio às Igrejas: Como integrar as manifestações extáticas no tradicional discurso pneumatológico? Por sua vez, coloca-se às Igre jas pentecostais a exigência da elaboração de uma concepção de Igre ja. Quais seriam as feições de uma "eclesiologiapentecostal"! Poderá o pentecostalismo existir unicamente em forma de movimento, sem potencial para a criação de estruturas e instituições que lhe garanta estabilidade e sustentabilidade? Por enquanto não há clara resposta a esta pergunta. Diferenças entre os diversos grupos costumam ser resolvidas predominantemente por meio da divisão, sendo flagrante a forte dependência das comunidades de suas lideranças pastorais. Por ser antes movimento do que instituição, o pentecostalismo não cabe numa só categoria de Igrejas. Apresenta-se com muitas faces e em numerosos agrupamentos. O modo de ser pentecostal abrirá chances para o ecumenismo? 3. "...o centro do pentecostalismo é o batismo no Espírito Santo, que não é um rito como o batismo com água, e sim uma presença toda especial do Espírito Santo, que tem como sinal exterior proferir algumas palavras estranhas..." (Roger Cabezas) Em outros termos, o que faz a pessoa cristã c uma determinada experiência espiritual (glossolalia, "cair para trás", "cura divina", exorcismo, etc). Conseqüentemente "...o pen tecostalismo é mais do que uma doutrina (uma confissão), é uma manei ra de viver c experimentar a fé cristã..." (ibd.). O que interessa não ê a doutrina, é a experiência religiosa. Aplica-se isto também ao ecumenis mo pentecostal que "...não se baseia numa doutrina impressa e bem defi nida, mas sim numa experiência comunitária..." (ibd.). Portanto, não é o consenso na doutrina que constitui a comunhão, e sim uma mesma experiência do Espírito. É este um tipo dc ecumenismo totalmente dife
rente dos demais. 4. A
difusão do pentecostalismo é seguramente um sintoma da assim chamada "volta ao sagrado" que ocorre na sociedade moderna e implica um novo fervor religioso. Embora não seja essa toda a verdade sobre o fenômeno pentecostal, há que se vê-lo nesse contexto. Sua difu-
PENTECOSTALISMO E MOVIMENTOS TRANSCONFESSIONAIS
93
são não se limita à America Latina. Expande-se também cm países ditos "secularizados". Prognósticos quanto ao desaparecimento da religião em virtude dos triunfos do secularismo rcvclaram-se como grave engango. Religião faz parte da natureza do ser humano. Seu renascer, porém, não se encaixa nas formas tradicionais. Acontece de forma quase "selva gem", como busca da oferta que melhor cumpre os anseios das pessoas. As religiões orientais, a mística, bem como novos movimentos religio sos têm conjuntura. Inscreve-se aí também o pentecostalismo que fla grantemente atende profundas necessidades humanas, principalmente do povo confinado ao ambiente frio, artificial e desumano das metrópo les urbanas. 5. A
modalidade pentccostal de viver a fé tem criado e continua criando Igrejas, cujo número foge a levantamento estatístico. Simulta neamente, porém, o pentecostalismo sc articula como movimento transconfessional, presente na maioria das Igrejas históricas. Atuam grupos "carismáticos" na Igreja Católica, Luterana, Metodista, e outras. Fala-se em movimento transconfessional sempre que membros dc diferentes Igrejas descobrem sua concordância na ênfase de determinados aspec tos da fé, considerados omissos ou atrofiados dentro de sua própria Igre ja. Comunicam-sc, pois, transpondo as tradicionais barreiras denominacionais. Criam novas coligações não das (!) Igrejas, e sim nas (!) Igrejas, do que podem resultar fortes tensões internas nas mesmas. Importa sublinhar, pois, que transconfessionalidade e ecumenismo se distinguem. Não são a mesma coisa. Transconfessionalidade se caracteriza por afi nidades. Procura o parentesco. Não é o esforço por superar diferenças, c
sim por congregar pessoas "simpatizantes", isto é, pessoas que compar tilham convicções convergentes. "Ecumenismo", quando confundido com "transconfessionalidade", ameaça reduzir-se à comunhão com o que é igual, já não mais com o diferente. Desenvolvem-se simpatias que per passam as fronteiras denominacionais, mas deixam de ser removidos obstáculos à paz. Comunhão, nesses casos, tem por condição a adesão ao próprio grupo. 6. Destacam-sc três grandes movimentos transconfessionais na atualidade que
listamos e caracterizamos como segue:
94
PKLSLKVANDO A UNIUADK DO ESPÍRI'IO NO VÍNCULO DA PAZ
- Gottfried
Brakemeier
a. O já mencionado movimento carismático propõe-se a recupe ração da experiência espiritual da fé. Não é uniforme, podendo adquirir até mesmo matiz confessional. Existe um movimento carismático luterano, católico, metodista, entre muitos outros.
Apresenta-se, na IECLB, como "Movimento de Renovação Espiritual". Comum das variantes que se encontram difundi dos em quase todo o mundo, são os elementos tipicamente pentecostais, introduzidas nas Igrejas tradicionais com o propósito de lhes corrigir o atendimento deficitário da dimensão emocio nal do ser humano e o descuido com a obra do Espírito Santo. b. O movimento libertador está orientado em práxis transforma dora. Teologia da libertação existe não somente na América Latina, e sim também na África, na Europa c outros continen tes. Persegue a meta da construção de uma sociedade alternati va e a evasão de cativeiros sociais, ideológicos e outros. Inspi ra-se na promessa do reino de Deus e sua justiça (Mt 6.33). A seu modo também a teologia feminista deve ser mencionada neste contexto. Outros exemplos são a teologia negra c a teolo gia dos "dalit" (na índia), isto é, dos excluídos. Movimentos de libertação não respeitam limites denominacionais. Têm répli ca cm quase todas as Igrejas. Criaram organismos ecumênicos, embora não Igrejas próprias. Privilegiam a atuação no nível social e político. c. O movimento evangélica! persegue a meta da evangelização c conversão pessoal. Ele tem longa história, com precedentes cm movimentos avi valistas do século XIX, principalmente na "Alian ça Evangélica", fundada em 1846 na Inglaterra. Criou igual mente redes internacionais. Tomou forte embalo em 1974 com o Congresso de Lausannc, Suíça, e o pacto firmado na oportu nidade. Tem certa proximidade ao pietismo, representado no Brasil pela "Missão Evangélica União Cristã" (MEUC), embo ra se distinga dele em não poucos aspectos. Enfatiza a vivência do "discipulado" por parte dos fiéis e se opõe à destruição da fé pela herança iluminista. O movimento deu, também ele, ori gem a organismos ecumênicos, a exemplo dos CLADE (Con gressos Latino-americanos de Evangelização) e da FTL (Fra-
PENTECOSTALISMO E MOVIMENTOS THANSCONI-ESSIONAIS
95
temidade Teológica Latinoamericana). Não constituiu Igrejas próprias, ainda que tenha cm algumas das Igrejas tradicionais, a exemplo das Batistas, maior expressão do que em outras. 7. Os
movimentos preconizam, cada qual, um modelo diferen
te de unidade. São
difíceis de serem compatibilizados. Pretendc-sc:
- A unidade através do pacto em favor da transformação social e da opção pelos pobres. É o ecumenismo dos grupos sociais. - A unidade no empenho por evangelização e conversão indivi dual. É o ecumenismo dos grupos evangelicais, engajados numa espiritualidade baseada na decisão consciente a favor da fé. - A unidade através de uma experiência religiosa comum, ou seja, através do batismo no Espírito Santo e os fenômenos que o acompanham. É claro que o lado a lado dos três modelos gera novas tensões. Em princípio não são incompatíveis. Mas a prioridade que se lhes con fere, dificulta a comunicação c facilita a formação de facções concor rentes. Novamente uma das questões cruciais é a da eclesiologia. Quem, afinal, são os membros da Igreja? Quais as condições a cumprir para participar da comunidade cristã? Ou ainda: Como se relacionam na Igreja de Jesus Cristo a dimensão dinâmica, espiritual, e a dimensão institucio nal, legal? Porventura, o Espírito Santo é avesso a ordens? Também os movimentos criam comunhão, mas em cima de premissas que podem ser altamente excludentes. Como manejar essa variedade de correntes teológicas de modo ecumênico? 8. Excluimos da nossa reflexão a "Igreja Universal do Reino de Deus" (IURD). Como empresa religiosa, estribada numa "teologia da
prosperidade", ela fica em débito com os atributos tradicionais da Igreja de Jesus Cristo, principalmente o da "apostolicidade". E difícil reconhe cer nesta "Igreja" a imagem da Igreja das origens e de seu Senhor cruci ficado. Trata-sc de neoliberalismo econômico em roupagem religiosa. É uma religião de resultados, uma "ciência" do sucesso. As causas dos problemas enfrentados pelas pessoas hoje são atribuídas a maus espíritos
96
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier
do que resulta uin discurso exorcizante. A visão do mundo é maniqueís ta, dualista, estando o crente em meio a este campo de batalha, entre Deus e o diabo. Mas o ser humano de forma alguma é vítima. O destino está cm suas mãos. Basta investir em Deus e ele pagará. O crente antecipa o investimento à retribuição por Deus. Espera dividendos. Isto, porém, significa que magia tomou o lugar do evangelho. Graça eperdão inexis tem. A comunidade desaparece e é substituída por freguesia. AIURD é expoente típica para uma corrente de pensamento da atualidade que "pri vatizou" em definitivo o bem estar das pessoas. 9. É
claro que os três movimentos clencados acima existem por atenderem necessidades humanas, cada qual a seu modo. Mas como evitar maiores prejuízos à Igreja cm vista das propostas de tamanho antagonismo? Já que se trata de fenômenos intra-eclesiásticos, reforça se a necessidade de iniciar e ensaiar "ecumenismo" já dentro da pró pria casa. Ecumenismo se tornou tarefa interna das Igrejas. A fim de
serem evitadas novas rupturas c danos à credibilidade do evangelho, há quatro imperativos a serem respeitados: a. Importa averiguar as necessidades humanas a que os movi mentos respondem. Quais são? Serão legítimas? Se sim, não há como demonizar o movimento. Mesmo merecendo criticas, há o que dele aprender. b. E imperioso perguntar, se os movimentos cumprem o que pro metem. Estarão propagando ilusões? Curam ou complicam mais? Enganam? Que se entende por libertação, evangeliza ção, obra do Espírito Santo? Todas as propostas exigem o teste da solidez. Como avaliá-las sob a perspectiva pastoral? c. O exame terá que buscar orientação no evangelho. Que é "cris tão" em tudo isto? Jesus Cristo é realmente o Senhor? As sensa ções carismáticas, estarão elas em conformidade com o Espírito de Cristo, o crucificado e ressuscitado? Tudo o que é oferecido sob o rótulo "cristão" terá que prestar contas de sua autenticida de. Também nas Igrejas existem "produtos" falsificados. d. Para Igreja protestante, e por extensão para todas as demais denominações, isto terá que acontecer sob a ótica da confessio-
PliNTECOSTALlSMO li MOVIMENTOS TRANSCONFESSIONAIS
97
nulidade. Pois
esta nada mais é do que o compromisso radical com a autenticidade evangélica, ou seja, a "apostolicidade". O que deve prevalecer na Igreja é a fidelidade ao evangelho. Nesse sentido, as Igrejas estão comprometidas com o princípio formulado pelo apóstolo Paulo, dizendo: "Examinai tudo, e retende o que for bom" (1 Ts 5.21). São esses alguns dos critérios fundamentais que permitem às Igre jas manter içada a bandeira ecumênica. Prometem converter divergên cia em comunhão e conduzir ü reconciliação das propostas, mesmo na variedade dos dons do Espírito.
Literatura:
- BOBSIN, Oneide. Teologia da prosperidade ou estratégia dc sobrevivên cia. In: Estudos Teológicos, 35, São Leopoldo: EST, 1995/1, p. 21-38. . Tendências religiosas e transversalidade. Hipóteses sobre a trans gressão de fronteiras. In: Altmann, Walter / Altmann, Lori (ed.). Globali zação e Religião: Desafios à Fé. São Leopoldo: CECA / Quito: CLAI, 2000, p. 11-35. - CAMPOS, Bernardo. Da reforma protestante à pentecostalidade da Igre ja. São Leopoldo: Ed. Sinodal / Quito: Ciai, 2002, p. 72-97. - CÉSAR, Waldo / SCHAULL, Richard. Pentecostalismo e futuro das Igre jas Cristãs - promessas e desafios. Petrópolis: Ed. Vozes / São Leopoldo: Ed. Sinodal, 1999. - CASCO, Miguel Angel (et alii). Pentecostais, Libertação e Ecumenismo. São Leopoldo: CECA e CEBI, 1996. - MEYER, Harding. Movimentos transconfessionais. In. Diversidade recon ciliada - o projeto ecumênico. São Leopoldo: EST / Ed. Sinodal, 2003, p. 129-142. - JENSEN, Richard A. O Toque do Espirito. São Leopoldo: Ed. Sinodal, 1985. - OS NOVOS MOVIMENTOS TRANSCONFESSIONAIS E AS IGREJAS. Tomada de posição do Instituto de Pesquisa Ecumênica, Estrasburgo. São Leopoldo: Ed. Sinodal, 1977. - VACCARO, Gabriel O. Identidad Pentecostal. Quito: Consejo Latinoa mericano de Iglesias, 1990. - WULFHORST, Ingo. O pentecostalismo no Brasil. In: Estudos Teológi cos, ano 35, São Leopoldo: EST, 1995/1, p. 7-20.
ECUMENISMO E CONTEXTUALIDADE 1. As
ameaças à unidade do corpo de Cristo não emergem tãosomente do dissenso doutrinal, ético ou estrutural. Procedem também do contexto, isto é, da realidade vivencial da comunidade e das pessoas. Dc múltiplas formas, o mundo circundante se projeta na maneira de con ceber, manifestar c viver a fé. Contextos diferentes podem abrir profun das valas na comunhão humana e onerar a convivência. Basta lembrar a tão falada tensão entre primeiro e terceiro mundo. A despeito da pro fissão da mesma fé, um sentimento dc distância é comum entre os res pectivos expoentes. Na América Latina a religiosidade tem outro colori do, outras manifestações, do que na Europa. E este um fenômeno a receber maior atenção no esforço ecumênico do que de costume. 2. Toda teologia é contextual. O mesmo vale para a piedade.
Ambas trazem as marcas de seu lugar dc origem, seu "Sitz im Leben". Não existe expressão da fé que seja "perene", "a-temporal", "a-histórica", "a-cósmica", indistintamente válida em todos os tempos e lugares. Linguagem, costumes, mentalidades, experiências dc vida e outros con dicionantes imprimem distintivos inconfundíveis na articulação verbal c prática da fé. A contextualidade pode ser ignorada, mas não negada. Ela pode ser implícita, passiva, irrefletida. Ou poderá ser consciente mente assumida, do que resultaram as assim chamadas "teologías con textuais", a exemplo da "teologia latino-americana", "africana", "negra" e outras. A redescoberta da importância do "lugar" das teologías e das Igrejas detectou fontes de novos ou antigos conflitos ecumênicos.
1 0 0
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier
3. Os
fatores determinantes do contexto social costumam ser predominantemente de ordem econômica e cultu ral , à vezes cm estrei
ta correlação. Comunidades cristãs, localizadas em favela ou em bairro nobre, embora pertencentes à mesma denominação, distinguir-sc-ão cm sua maneira de ser e provavelmente terão dificuldades na comunicação. Algo análogo se aplica às diferenças culturais. O jeito asiático de ser destoa do jeito ocidental, incluindo os modos de viver a mesma fé. Já se defrontou com esse problema a primeira cristandade ao transpor os limi tes entre a cultura hebraica c helenística. As dificuldades são atestadas, entre outros, pelo conflito havido entre Pedro e Paulo na Antioquia. Pode ria haver comunhão de mesa entre cristãos judaicos e cristãos gregos (cf. Gl 2.Us)? A diversidade dos contextos culturais tem sido a causa de um grave problema ecumênico, exigindo a definição clara do evangelho. 4. Não há como evitar o contexto, respectivamente
a contextua lização da fé. O evangelho quer chegar perto das pessoas, penetrar em seu mundo e promover exatamente aí a renovação. A exigência da opção preferencial pelos pobres e a da inculturação, cada qual a seu modo, acusa a consciência dessa necessidade. Elas confrontam com
interrogantes, amplamente debatidos. Podemos dispensar-nos de aden trar à problemática. Basta constatar haver certo consenso nas correntes teológicas da atualidade no sentido de que a causa implícita nas propos tas deita profundas raízes no evangelho. Missão cristã não pode passar ao largo da cultura das pessoas a que se dirige, nem pode ignorar as suas condições materiais. A palavra de Deus assume o humano para se comunicar. E o humano é sempre concreto. Desprezo ao contexto social afundará a mensagem no abstrato, fazendo com que já não alcance as pessoas. 5. A comunicação do evangelho, pois, exige sua contextualiza ção, respectivamente
sua "acomodação", como se dizia antigamente. Esta, porém, contém riscos. A adaptação ao contexto está sujeito ao peri go de descaracterizar o evangelho. O "texto" poderia ser engolido pelo "contexto" ao ponto de aquele perder a sua identidade. Seja o contexto sócio-econômico, seja o contexto cultural, em ambos os casos aproxi mação ilimitada seria equivalente à renúncia à força crítica do evange-
ECUMENISMO E CONTEXTUALIDADE
101
lho. A solidariedade com os pobres, por mais justa que seja, deverá pre caver-se contra a ameaça de reverter em cumplicidade com os seus pecados, valendo o mesmo para a identificação com culturas alheias. Não há cultura sem ambigüidades. Visto que o ecumenismo quer cons truir pontes, desde cedo sofreu sob a suspeita de favorecer ou de até mesmo promover o sincretismo. Neste caso, a "acomodação" transfor-
mar-se-ia em "conformação", o que teria a diluição do evangelho por conseqüência. Já expusemos acima tratar-se de um mal-entendido. Per manece a pergunta, todavia, como evitar a confusão religiosa sem, por outro lado, sacrificar a contextualidade da mensagem evangélica no altar de um estéril purismo doutrinal. 6. Seja anotado à parte ser necessário redis cuti r o signif icado de "sincretismo". Teologia cristã, assim nos parece, não pode concordar
com que a polêmica travada sob este termo obstaia a aprendizagem intercultural. A mistura religiosa evidentemente deve ser rejeitada. "Inculturação" ou então o "encontro intercultural", como alguns preferem, exige mais do que a simples adição dos elementos simbólicos e dos credos. E, no entanto, não há como ser "contextual" sem usar as categorias conceptuais, familiares às pessoas. O mesmo vale com relação a tradi ções e costumes. Ilustra-o magistralmente o proceder do apóstolo Paulo: Em seu afã de "ganhar" as pessoas tomou-se um judeu aos judeus e um pagão aos pagãos sem renunciar sua identidade cristã (1 Co 9.19-23). Visto que tradições culturais, muito em analogia às obras da lei, não salvam, elas podem ser perfeitamente colocadas a serviço do evangelho. Em tal perspectiva, a alteridade dos parceiros já não mais representa ameaça, e sim chance de enriquecimento e ampliação de horizontes.
7. Então, que é que, afinal de contas, une a ecumene cristã? A disparidade dos contextos, em que as comunidades cristãs vivem inseri das, representa um desafio ecumênico sui generis. Contextualidade par ticulariza a fé. Dá-lhe feição peculiar, nascida em determinada situação e a ela atrelada. Pode isolar a comunidade e redundar em virtual incomunicação. O resultado de contextualidade feita absoluta será a comu nidade estanque, ilhada, perdida na ecumene. Por isto contextualização necessita do permanente recurso ao "texto", ou seja, à tradição comum c
102
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakeineier
normativa da cristandade, contida na Bíblia c configurada no evangelho. É o próprio Cristo que une a sua Igreja, tanto na variedade doutrinal, quanto estrutural e contextual. A contextualidade da teologia não pode deixar de buscar a continuidade com o credo "original" da cristandade c encaixar-se em sua história. A dimensão universal da fé é tão importante quanto a particular é inevitável. A constatação ressalta a relevância do ecumenismo que, sem sufocar particularidades, mantém o vínculo com o corpo maior de Jesus Cristo. 8. Resta
dizer que nenhuma das realidades, nem a global nem a particular, é imutável. Não são nenhuma fatalidade. Muito pelo contrá rio, o evangelho transforma contextos, embora não os apague. Pre tende compatibilizá-los. E mesmo que estes ofereçam resistência, o amor é capaz de criar novidade. Irmana as pessoas, reconstituindo a família dc Deus e construindo comunhão na diversidade. Isto em interação dinâmi ca das realidades, a local, a regional e a universal. Ensina-o, a seu modo, o mundo globalizado que não pode prescindir da particularidade de seus grupos componentes. Estes, por sua vez, não podem abandonar a comu nhão maior, devendo ser capacitados para a convivência em justiça e pluralidade sustentável. Algo análogo se verifica na Igreja. Ela é univer sal, mas constituída de comunidades particulares. Com vistas à interde pendência entre as expressões contextuais e universais da fé cristã, é tarefa do ecumenismo trabalhar como braço do amor, o que significa zelar para que as juntas entre os membros sejam mantidas ou refeitas, sempre com o objetivo de assegurar a saúde do corpo maior.
Literatura:
- BARROS, Marcelo. O Sonho da Paz. Petrópolis: Ed. Vozes, 1996, 2 ed.,p. 166-176. - BOFF, Leonardo. Em favor do sincretismo: a produção da catolicidade do catolicismo. In: Igreja: Carisma e Poder. São Paulo: Ed. Ática, 1994, p. 157-184. - BRANDT, Hermann. Teologia contextual como sincretismo? O "novo sin cretismo" da teologia da libertação c a suspeita de sincretismo em relação a
ECUMENISMO E CONTEXTUALIDADE
103
à ecumcne. In: Estudos Teológicos, Ano 27, n° 2, São Leopoldo: EST, 1987, p. 167-185. - SCHMIDT, Ervino / ALTMANN, Walter (ed.). Inculturação e Sincretis mo. Porto Alegre / São Leopoldo: CONIC / IEPG, 1994. - TEIXEIRA, Faustino Luis Couto. O cristianismo entre a identidade singu lar e o desafio plural. In: Perspectiva Teológica, Ano XXVII, n° 71, 1995, p. 83-103.
MODELOS DE UNIDADE ECLESIAL 1. Ecumenismo
pretende, antes de mais nada, a unidade visível da Igreja cristã. Procura conjugar unidade e pluralidade no corpo de Cristo, distinguindo entre a diversidade legítima, e até mesmo necessária, da quela que cria cisões, racha a comunidade e redunda em gueixas ditas "santas". Mas como imaginar "unidade eclesial"? A pergunta reside em como concretizar o ideal da unidade e dar-lhe forma. Há consenso no sentido da idéia de uma "Federação de Igrejas", freqüentemente ventilada no passado, ser insuficiente. O objetivo da unidade é maior. Então, caberia investir na criação de uma superestrutura, uma institui ção eclesiástica única, global, planetária? Na história do ecumenismo foram elaborados diversos modelos de unidade, do que segue um rápido apanhado. 2. O
mais tradicional é o católico-romano, preconizando uma uni dade estrutural, hierarquicamente centralizada. Teria sua base no colégio episcopal, encabeçado pelo Papa em sua qualidade de sucessor de Pedro. Portanto, a Igreja Católico-Romana, com sua estrutura organi zacional, seria o modelo da "Igreja ecumênica". Tem sido essa a visão do ecumenismo católico no passado, com nítidos reflexos ainda hoje. A recuperação da unidade dar-se-ia pelo retorno dos irmãos e das irmãs separadas para o seio da Igreja mãe, isto é, por "reincorporação" dos dissidentes na Igreja liderada pelo bispo de Roma. Ainda o Concílio Vaticano II evoca essa idéia ao falar na "reintegração da unidade". O problema dessa concepção é que ela não é a das origens. A primeira cristandade não era Igreja hierarquicamente centralizada nem sujeita à
106
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Goiifried Brakemeier
jurisdição do apóstolo Pedro. Ademais, é absolutamente ilusorio sonhar com a possibilidade de uma Igreja absorver as outras. A esmagadora maioria dos católicos tem plena consciência disso. Por outro lado, a pro posta aponta para uma questão deveras crucial: Pode-se imaginar "uni dade" sem nenhuma expressão estrutural? Por isto mesmo discute-se no mundo ecumênico a função específica do "ministério petrino". O pró prio Papa demonstrou abertura para a redefinição de seu papel. Não po deria ser ele o "representante de toda a cristandade"? Seu ministério seria o da unidade, feita visível em sua pessoa. A discussão é difícil. Confinar o ministério papal a uma função meramente respresentativa, de "iurc humano" e não de "iurc divino", sem jurisdição global e por isto também sem a infalibilidade de seus enunciados em assuntos dc fé e conduta, isto parece ser impossível e conflita com o estilo do exercício desse ministério ao longo da história. O que permanece em pauta, toda via, é a pergunta pelas implicações institucionais da unidade que alme jamos. 3. Em vista da pluralidade das Igrejas despontou a idéia de um reinício, de uma "nova largada na estaca zero". É este o propósito do modelo da "União Orgânica". Fala-se também no modelo da "união corporativa". Ele esteve cm discussão já nas duas Conferências Mundiais de "Fé e Ordem", em 1927 (Lausanne) e 1937 (Edimburgo), por inicia tivas provindas da Igreja Anglicana. O objetivo consiste na fusão das Igrejas existentes, do que resultaria uma Igreja "nova". Isto, porém, pres supõe o que se chamou dc "morte das confessionalidades". Não haveria mais igreja luterana, metodista, presbiteriana, etc, visto que as tradições confessionais deveriam ser "esquecidas" em prol de uma só identidade cristã. A "União Orgânica" sonha com a Igreja "transconfessional", uma nova corporação eclesiástica sem marca "denominacional". Sua base seria a comunhão no batismo e na eucaristia, na fé apostólica, no serviço e no testemunho. Mas também este sonho se evidencia como sendo irreal. As Igrejas dificilmente estarão dispostas a abdicar da sua herança confessional. E não seria isto até mesmo perigoso? O modelo tem forte propensão à uniformização com a ameaça dc se tomar estéril e acarretar pobreza espiritual. Diversidade, incluindo a confessional, signi fica riqueza, caso bem aproveitada.
MODELOS DE UNIDADE ECI.ESIAI.
107
4. O
luteranismo tem privilegiado outro modelo, calorosamente discutido e, entrementes, acolhido também em outros segmentos da ecumene. É o da "unidade na diversidade reconciliada". Neste caso, a uni dade não é estabelecida mediante a supressão das diferenças, e sim pela compatibilização das mesmas. Diversidade é mal nenhum. O que
importa é fazê-la compatível, ou seja, extrair-lhe as pontas, desarmá-la, eliminar os elementos conflitivos. A reconciliação exige, por isto mes mo, o consenso, ainda que diferenciado. O modelo permite preservar identidades confessionais, ou seja, ele sc opõe à "transconfcssionalidade", tendo recebido críticas exatamente por esta razão. Oportunizaria o comodismo, consagrando o staus quo das denominações e isentando-as da necessidade de mudar. Tal argumentação, porém, distorce o projeto. Pois também a reconciliação de diferenças requer o reexame da doutri na à luz do evangelho. Ela não se faz sem ouvir o contra-argumento do
vizinho. No mais, não se arroga a qualidade de alternativa absoluta a outros modelos. Pode perfeitamente aglutinar elementos da "união orgânica", por exemplo. A vantagem é que permite a convivência plural de Igrejas, assim como também dentro dc cada uma das mesmas. Con verte-se, assim, num ensaio de autêntica comunhão. Ainda não estão suficientemente discutidas as potencialidades deste modelo. 5. Outro
modelo desenvolvido e por muito tempo privilegiado pelo Conselho Mundial de Igrejas é o da "comunidade conciliar de Igrejas locais". E conhecido também como o da "comunhão conciliar". Em sua raiz está a observação que, na história da Igreja, litígios costumavam ser resolvidos em concílios, respectivamente sínodos, a começar pelo Concílio dos Apóstolos cm Jerusalém (At 15). A iniciativa para unir o corpo de Cristo deverá partir, neste caso, das congregações locais. A unidade, pois, seria construída de baixo para cima, estendendo-se final mente à Igreja universal. As comunidades, assim se supõem, criariam "concílios", isto é, órgãos comuns para a tomada de decisões conjuntas. Também neste caso está sendo dado espaço para diversidade. Mas uma estrutura comum, baseada no princípio da conci li aridade e no firme com promisso cristão, levaria as comunidades à comunhão cada vez mais estreita. Um problema deste modelo é a definição de "comunidade local". Será possível que as congregações se emancipem das "Igrejas"
108
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier
nacionais ou mesmo globais a que pertencem, para tomarem iniciativas ecumênicas? Elas possuem de fato tal autonomia? E como seriam cons tituídos os "concílios" comuns? O que seja um "concílio", é altamente controvertido entre as Igrejas. Assim sendo, conciliaridade é antes fruto de unidade, mesmo abalada, do que premissa. Resolve questões internas das Igrejas, mas não inaugura, por força de lei, nova caminhada ecumê nica. Ademais pergunta-se: Quais seriam os critérios orientadores para evitar dominação e assegurar autêntica comunhão conciliar? O modelo não vingou. Pouco se ouve hoje a seu respeito. 6. Ainda outros modelos mereceriam ser mencionados a exemplo do elaborado pelos teólogos católicos Heinrich Fries e Karl Rahner,
plano apresentado em 1983. Prevê a permanência de diversidades confessio nais e liberdade no exercício da fé, sem as costumeiras condenações mútuas e sem reivindicações de monopólio da verdade. Seria assim evi tada a coação à renúncia da identidade confessional dos parceiros. O laço de união seria a figura do papa, embora com as funções redefini das. Uma contra-proposta protestante é da autoria de Oscar Cullmann, publicada em 1986 sob o título provocante: "Unidade mediante diversi dade". O conhecido teólogo sugere uma comunhão de Igrejas verdadei ramente autônomas, sem liderança papal. A proposta se aproxima da idéia de uma federação eclesial. Na América Latina tem sido forte a insistência na concretização da unidade através do compromisso com a justiça e a libertação. O ecumenismo teria nos pobres e nas pessoas que por eles optam seus mais eficazes promotores. Tem-se em vista princi palmente as comunidades eclesiais de base como paradigma de Igreja ecumênica. Afora isto, houve e há quem se empenhe em construir a uni dade a partir da tarefa da evangelização, sendo a conversão o fator deci sivo. São pontos de partida diferentes, às vezes destoantes, alcançando por isto mesmo unidade apenas parcial. 7. É essa uma das razões pelas quais se prefere falar hoje em "koinonia". Desde a VII Assembléia Geral do Conselho Mundial de Igrejas, em Canberra, 1991, e desde a Conferência da Comissão de Fé e Ordem cm Santiago de Compostella, em 1993, se resume nesta palavra a mais importante visão da unidade. Ela não é nova, visto que a fala cm "comu-
MODELOS DL UNIDADE ECLESIAL
109
nhão dos santos" pertence ao acervo eclcsiológico tradicional, formula do pelo Credo Apostólico. Também na declaração da unidade de Nova Delhi ocorre o termo. O que é novo é que ele adquire natureza progra mática. "Koinonia" toma-se a via pela qual se busca alcançar a meta ecumênica. Redescobre-se Igreja como sendo essencialmente "comu nhão", conjugando a diferença de seus membros e a sua união. Isto se toma particularmente relevante quando aplicado ao conjunto das Igre jas. A cristandade é a "comunhão dos santos", e por isto também "comu nhão de Igrejas". Não se abanuunou a visão da unidade visível. Mas ela ficou incorporada na da "comunhão". Esta necessita de um consenso básico, um denominador comum em que se sustentar. Ultrapassa uma simples federação. E, no entanto, garante maior espaço para diversida de. Não priva os membros de sua identidade. Pretende a integração do diferente, sem submetê-lo a pressões. Ademais, comunhão precisa ser vivida. Quer tomar corpo na confissão, na celebração, na ação conjunta. É conceito dinâmico. Por sua vez não sobrevive sem estruturas. Toda comunhão se ampara em ordens, regras e leis. Quais seriam as estruturas de "comunhão ecumênica"? Não foram esgotadas, assim nos parece, as riquezas dessa concepção. O assunto deve permanecer na agenda. 8. É
espantoso que nenhum dos modelos de unidade, elaborados no passado com alto grau de competência, criatividade e paixão, logrou ser exitoso. Foram diminutos os efeitos estruturais que provocaram. As Igrejas continuam divididas. Resulta daí o notório desencanto com o ecumenismo na atualidade. O barco ecumênico parece estar encalhado. A tripulação enfrenta o perigo do cansaço e do desânimo. Qual a expli cação? Ora, é preciso reconhecer que existem pelo menos quatro tipos de cristianismos, famílias confessionais, cada qual com seu critério peculiar de unidade: a. Mencionamos em primeiro lugar o católico-romano, para o qual unidade não existe sem comunhão com e sob o papa. Questões doutrinárias são secundárias em comparação com esse critério de ordem estrutural. b. O segundo tipo é o da Igreja Ortodoxa. Para ela a unidade se condiciona à tradição milenar, a mais antiga da Igreja cristã,
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPIRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemekr
110
bem como à adesão à mesma. Nessa ótica, o que constitui a Igreja não é um regimento sagrado, nem a pregação da palavra de Deus, e sim a visibilização do divino na terra. c. O terceiro tipo é representado pelas Igrejas da Reforma, para as quais é fundamental o consenso na doutrina e na prática sacramentai. Igreja se identifica como criatura do evangelho, e somente assim. As formas, os ritos e as tradições são elementos regulativos, não constitutivos. d. O quarto tipo, enfim, é o pentecostal. Para ele é central o batis mo com o Espírito Santo, sendo que assuntos de dogma e de organização são relegados ao segundo plano. Pergunta-se onde enquadrar a Igreja anglicana nesta tipologia. É Igreja protestante ou católica? Talvez seja a Igreja da "via média", como a si mesma sempre se compreendeu. Como tal não representaria mais outra família cristã, e sim uma variante intermediária entre duas outras. Seja como for, os quatro critérios de unidade acima elencados são mutuamente excludentes, obstaculizando a comunhão eclesial. Sejam lembrados adicionalmente os critérios dos movimentos transconfessionais para se ter clara idéia da complexidade da tarefa ecumênica no século XXI. Como avançar sob tais condições? A pergunta há de merecer nossa atenção mais abaixo.
Literatura:
- BARROS, Marcelo. O Sonho da Paz. Petrópolis: Ed. Vozes, 1996, 2 ed., p. 179-184. - BARROS NETO, Waldemar Augusto de. Os novos paradigmas da transi ção ecumênica. Novos Paradigmas - Ensaios de Pós-Graduação, 1 (1), 1995. - MARASCHIN, Jaci (ed.) Koinonia. In: Estudos de Religião. São Bernardo do Campo: Ed. IMS. Ano IX, n° 9, 1994. - MEYER, Harding. Unidade na diversidade. A crise de nossa compreensão da unidade da Igreja. In: Peregrinação. Estudos em homenagem a Joachim Herbert Fischer, Martin Dreher (org.), São Leopoldo: Ed. Sinodal, 1990, p. 151-162. a
MODELOS DE UNIDADE ECLESIAL
-
. Diversidade reconciliada - o projeto ecumênico. São
II1
Leopol
do: EST/ Ed. Sinodal, 2003. - TIEL, Gerhard. A unidade da Igreja. In: Simpósio, n° 33, São Paulo: ASTE, 1990, p. 39-62. - VERCRUYSSE, Jos. Introdução à teologia ecumênica. São Paulo: Ed. Loyola, 1998, p. 113-126. - WEBER, Bertoldo. Koinonia. Caminhos para a comunhão rumo à unida de. São Leopoldo: Ed. Sinodal, 1988.
DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO MACROECUMENISMO? 1. "Ao ecumenismo entre as confissões religiosas deve seguir-se o ecumenismo re al, embora diferente, entre as grandes religiões." Quem
o diz é H. Küng em seu livro "Projeto de Éitca Mundial". No entender desse conceituado especialista, um nova constelação mundial, policêntrica, transcultural e multireligiosa faria urgente a ampliação da ecumene e sua extensão ao universo das religiões. E com efeito, jamais
as guerras religiosas desenvolveram tamanho potencial destrutivo como no mundo globalizado do terceiro milênio. A urgência atribuída pelas Igrejas em dias recentes ao diálogo inter-religioso acusa o despertar da consciência para a problemática. Religião pode potenciar os conflitos em vez de debelar as chamas das fogueiras. Eis porque a cristandade está obrigada a dirigir-lhe redobrada atenção. Já não pode ignorar ou desprezar as religiões a partir dc uma suposta posição de superioridade. Deve arranjar-se com o estranho, assumir posição e buscar formas de convivência. O horizonte da dogmática cristã passa a ser, em escala crescente, não somente a própria tradição nem mesmo o mundo secular, e sim o mundo plurireligioso e multicultural. Para tanto uma análise da "conjuntura religiosa" e dos fatores que a determinam é indispensá vel premissa. Mesmo assim, pergunta-se pela necessidade da amplia ção dos horizontes ecumênicos para além das Igrejas. Qual seria a jus tificativa? 2. O assunto está em fervoroso debate. Há quem insista em não confundir ecumenismo e diálogo inter-religioso. Seriam duas coisas
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPIRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier
distintas. Nessa ótica, a ccumcnc permanece restrita ao âmbito eclesiás tico, enquanto o mundo não cristão está fora. Ecumenismo, assim se apregoa, designaria a busca da unidade da Igreja, não a busca da unidade da humanidade. Tratar-se-ia não de um movimento humanitário, políti co ou outro, e sim de um movimento estritamente cristão. A concepção tem a seu favor a consonância com o objetivo perseguido originalmente pelo movimento ecumênico moderno. Era precisamente o de promover a
unidade entre os cristãos. O mundo não cristão estava fora da perspecti va. E, não entanto, permanece a pergunta pelo que legitimaria a exclu são dos "pagãos" da comunhão ecumênica. Os motivos certamente não podem permanecer circunscritos a fenômenos pragmáticos, circuns tanciais ou conjunturais. A tão propalada globalização não c argumen to suficiente, nem mesmo o é a ameaça de um conflito cultural de pro porções apocalípticas. Existem imperativos teológicos que o exigem. O primeiro deles resulta da afirmação de todo ser humano ser criatu ra divina.
3. Esmiuçando as implicações, iniciamos por concordar com que o termo ecumene deva ter res gua rda da a conotação teológica (!). Não se confunde com uma simples "ideologia de unidade", política ou social. Nem tudo o que busca unidade tem natureza "ecumênica". Até mesmo quadrilhas criminosas cultuam formas de comunhão. "Ecumene" tem em vista a criação, o mundo que é de Deus (SI 24.1), amado por ele de tal maneira que por ele deu seu filho unigénito (Jo 3.16). Ela lembra a dignidade de que toda pessoa está revestida cm sua qualidade de ima gem de Deus. Por ser universal o evangelho, é universal também a ecu mene, contendo em seu bojo a vocação para a convivência em paz e justiça. Também o ecumenismo para além das fronteiras cristãs perma nece vinculado aos propósitos de Deus. Assim sendo, há que se distin guir cuidadosamente entre a ecumene cristã e a ecumene inter-religiosa, sem inversamente divorciar. São altamente procedentes as advertências
contra a confusão. E, no entanto, a dimensão universal da "ecumene" é constitutiva para o próprio conceito. Exige, por conseguinte, o empenho por alcançar "consensos inter-religiosos", cooperação em assuntos prá ticos, intercâmbio de experiências, identificação de caminhos à paz. Inse re-se aí, não por último, o projeto de uma ética planetária.
DIALOGO INTCKKLLIGIOSO — MACROLCUMENISMO
115
4. Entrementes,
a ampliação dos horizontes ecumênicos encontra apoio em muitos lugares. Na Europa está em linha de frente o já mencio nado H. Küng. Mas ele de modo algum é o único. Há quem fale na "grande" e na "pequena ecumene" para caracterizar a das religiões e a das confissões cristãs, respectivamente. Acolhe-se dessa forma a visão do "mac ro ec um en is mo " originária da America Latina (P. Casaldáliga). Foi neste continente latino-americano que já há tempo se insistia em que fosse abandonado um conceito de ecumenismo por demais amarrado a assuntos doutrinais. Haveria que se abrir as portas para um "ecumenis mo integral" (J. de Santa Ana), incluindo segmentos sociais tradicional mente marginalizados. Apregoa-se um "ecumenismo das culturas", ou então um modelo ético-social chamado "ecumene da justiça" (J. Miguez Bonino), orientada na busca comum do reino de Deus (Mt 6.33). Espe lha-se nessas propostas a tensão entre o "ecumenismo de consenso " e o "ecumenismoprático" conforme exposto acima. De qualquer maneira, é
forte o anelo por ver rompida a estreiteza do ecumenismo "umbical" das Igrejas, ocupado somente com os dissensos internos entre os cristãos. 5.0
confronto inevitável com o diferente incentiva desenvolver o que se chama "teologia da s religiões". É teologia cristã no contexto das religiões não cristãs, procurando "situá-las" no universo da fé. Agravase a situação de diáspora da cristandade, isto é, de dispersão, burlando em definitivo a tentação dc contornar o diálogo com as demais religiões. Uma tal teologia procuraria ver as religiões em conjunto, articulando suas diferenças e semelhanças à procura de um denominador comum. Vai sondar possibilidades de entendimento e afinidades com a fé cristã. Seja admitido que tal projeto se defronta com enormes dificuldades c receios. Não resultaria tal esforço numa grande confusão, ou seja, em sincretismo, numa "sopa" religiosa que não mais apetece e em última instância não serve a ninguém? 6. A despeito
de tais ressalvas existem em nossos dias fortes impe rativos para um "ecumenimso inter-religioso": a. "Sem paz entre as religiões não haverá paz entre os povos" (H. Küng). Portanto, importa buscar entendimento e consensos
116
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier
entre as religiões. Para Küng, tolerancia tão somente não é sufi ciente. Deve ser ecumenismo. b. O tempo dos "absolutismos" passou. Já não tem crédito quem se porta como dono da verdade. Sociedade plural não admite o autoritarismo de quem quer que seja. Mas, como evitar o peri go do relativismo? Ecumenismo inter-religioso deve trilhar a senda estreita entre fundamentalismo e relativismo. Ambos são perigosos. Como afirmar a verdade cristã em meio ao pluralis mo religioso moderno? c. As ameaças a que o mundo de hoje vive exposto exigem o esforço conjunto de todas as nações, portanto também a coope ração das religiões. Somente através de um mutirão planetário poderemos resolver os problemas da humanidade. 7. Urgências práticas, porém, não respondem questões de ordem teológica. Qual seria o "valor salvífico" das religiões que não confessam Jesus Cristo e o rejeitam como revelação de Deus? Haverá salvação tam bém à parte da fé cristã? Analisando as posturas teológicas, normal mente assumidas nesse tocante, distinguem-se três que são: a. O exclusivismo. Diz ele que somente em Cristo e mediante a fé em seu nome há salvação. Articulava-se tradicionalmente na divisa: Fora da Igreja não há salvação. Para ser salvo é preciso ser cristão. A perspectiva é eclesiocêntrica. Entre a fé cristã e as demais religiões não há senão descontinuidade e antagonis mo. E a posição do confronto. b. O inclusivismo. Ele afirma que somente em Cristo e por ele há salvação. Sustenta, porém, que Jesus Cristo atua também fora da Igreja, ainda que de maneira oculta e anônima. A perspecti va é cristocêntrica. São construídas pontes entre cristãos e não cristãos. E a posição da harmonização. c. O pluralismo. Esse não nega a singularidade de Jesus nem sua importância como salvador cristão. Nega-lhe, isto sim, a exclu sividade. Acredita que também outras religiões conduzem a Deus. A perspectiva é teocêntrica. Deus manifestar-se-ia tam bém por outras vias do que a cristã. É a posição da parceria.
DIÁLOGO INTF.RRF.LIGIOSO - MACROLCUMENISMO
117
Todas essas posições confrontam com sérios inconvenientes. Pode remos afirmar, com boa consciência, que salvação seja o privilégio exclusivo dos cristãos e que ela se prende à esfera da Igreja e seus fiéis? Seria verdade que todo o resto da humanidade estaria condenado à per dição? Ou: Poderemos transformar as pessoas de boa vontade em "cris tãos anônimos" (K. Rahner)? Isto significaria "encampar" o vizinho con tra a sua vontade e imprimir-lhe, num claro ato de violência, o carimbo cristão. Enfim: Poderemos relativizar Jesus Cristo e transformá-lo em apenas uma manifestão de Deus ao lado de outras? Isto contraria o teste munho bíblico e significaria renúncia à afirmação de verdade. Portanto, nenhuma das três respostas oferece solução. 8. Enquanto no passado a posição exclusivista era hegemônica, crescem, em épocas recentes, as simpatias em favor do modelo plu ralista. Ela parece ser mais condizente com a multiculturalidade da
sociedade global. As demais posições de modo algum desapareceram. Apresentam-se em numerosas variantes, em co-existência às vezes con flitante. Entre elas, o exclusivismo fundamentalista com suas manifes tações violentas inspira verdadeiro temor. Trata-se de um fenômeno "trans-religioso". As cruzadas cristãs, de ontem e de hoje, encontram réplicas na intolerância das alas ortodoxas muçulmanas, judaicas ou hin dus. O fanatismo religioso se constituiu numa das graves ameaças à paz mundial. E o que parece ser um argumento adicional em favor de uma teologia pluralista das religiões. O respeito frente à alteridade do vizinho se oferece como única via para a paz. Demandaria a humildade de quem pretende aprender sem julgar-se em posse da verdade. Os mais conheci dos pluralistas cristãos são o presbiteriano John Hick e o católico Paul Knitter. Outros nomes mais poderiam ser mencionados. A corrente plura lista pleiteia em favor da aproximação entre as religiões e da partilha da responsabilidade pela salvação do ser humano. Então, não haverá cami nho alternativo às três posições mencionadas acima? Como fugir do fana tismo, exclusivista e autoritário, de um lado, e do indiferentismo relativis ta, desinteressado em algo como normatividade universal, de outro ?
são
9. Para avançar, necessário se faz reconhecer que todas as religiões exclusivistas. Deixariam de apregoar verdade, se não o fossem.
1 1 8
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier
Exclusivismo, pois, é parte da natureza da religião.
É pressuposto de sua credibilidade. A negação do direito à exclusividade quebra a espinha dorsal das religiões. Isto vale também para o credo cristão. A renúncia à exclusividade de Jesus Cristo como caminho, verdade e vida (Jo 14.6) equivale à renúncia ao sola gratia, à norma do amor como síntese da lei divina, à fé como relação devida com Deus. Estaria aniquilado o evan gelho. É o que a fé cristã não pode admitir. Algo análogo, porém, acon tece com outras verdades religiosas. Sua relativização é sua destruição.
Conseqüentemente, o diálogo não deve exigir das religiões a renúncia à exclusividade e, sim, a abertura para a aprendizagem. Espera-se dos
parceiros religiosos que estejam dispostos para ouvir o outro e para entender o porquê de suas convicções. Todo diálogo é assim: Exige claras posições para iniciar, argumentação para continuar c disposição à autocorreção para ser fecundo. Diálogo inter-religioso, se levado a efeito com sinceridade, vai aproximar as religiões e, mesmo que não seja capaz de eliminar as diferenças, vai criar laços de familiaridade (macro) ecumênica. 10. Propomos, pois, um modelo que poderíamos chamar de exclu sivismo aberto. Vai reunir elementos do inclusivismo e do pluralismo
sem, assim acreditamos, sucumbir a seus perigos. A complexidade do assunto não permite o detalhamento minucioso. Devemos limitar-nos a algumas observações que julgamos essenciais: a. Todas as religiões contêm a "sua" verdade. Salvam de alguma coisa. Caso contrário não teriam fiéis. Importa lembrar que salvação é termo "relativo". Sempre é salvação de determi nado perigo. Livra de alguma emergência c de desespero. Em razão disto, o diálogo inter-religioso deve iniciar pelo diag nóstico das enfermidades deste mundo, não pela terapia. A cura se condiciona ao mal a ser combatido. Estaremos falan do a mesma linguagem ao usar o termo "salvação"? Não só o discurso sobre Deus está cm jogo, e sim também sobre o mundo e seus males. O diagnóstico feito pelas religiões, será ele rea lista, honesto, verdadeiro? Somente em caso positivo, tam bém o será a salvação.
DIÁLOGO INTF.RRF.LIGIOSO - MAC:ROF.CUMENISMO
119
b. Todas as religiões são ambíguas. Possuem suas patologias, inclusive a religião cristã. Inversamente possuem também suas riquezas. Têm particularidades. Não podem ser jogadas na mes ma panela por essa razão. É simplismo afirmar que as religões seriam como que lâmpadas diferentes, irradiando a mesma luz. Está certo, sim, que "há um só Deus e Pai de todos" (Ef 4.6). Pois a realidade é uma só e idêntica para todos. E, no entanto, a percepção da mesma diverge, resultando em cultos, ritos, cre dos, condutas distintas e de forma alguma equivalentes. Tam bém nas religiões co-existem o joio e o trigo, devendo-se tomar providências para não confundir um com o outro. Assim como o ecumenismo se opõe ao relativismo, assim também não é sinônimo de sincretismo.
c. Conseqüentemente, as religiões necessitam dc avaliação críti ca. Para tanto são exigidos parâmetros, cuja escolha se subtrai à subjetividade ou ao arbítrio das pessoas. Desde que preten dam socorrer, as religiões deverão responsabilizar-se perante "causas salvacionistas", a exemplo da paz. Que significa "paz" e como se faz? Sem paz a humanidade não sobrevive Ela será incapaz de construir "sociedade" e não terá futuro, nem ima nente nem transcendente. Cristãos não podem falar de paz sem, de imediato, recorrer a Jesus Cristo (cf. Ef 2.14; etc). Algo análogo vale para causas como "justiça", "dignidade humana", "esperança" e outras. Elas não são opcionais, desde que o ser humano pretenda a vida, e sempre de novo levam ao miolo do evangelho. Existe uma responsabilidade comum das religiões, aliás, não só pela salvação do indivíduo, como também pelo bem estar dc sociedade e mundo, incluindo a preservação do meio ambiente, a política populacional, a saúde social. Qual a contribuição "soteriológica" das religiões em todos esses assun tos? Elas salvam exatamente "dc quê"? d. Nesse diálogo o que interessa não são os pecados históricos das religiões, e sim seu discurso fundante. A conduta dos fiéis cos tuma ficar em débito com os propósitos originais de uma reli gião, freqüentemente obedecendo a interesses alheios. O recurso à proposta "constituinte" de uma religião vai desenvolver força
120
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ
-
Gottfried Brakemeier
crítica, não por último, com relação à prática atual. Tem poder reformador e, com grande probabilidade, efeito ecumênico. E a proposta "autêntica ", original, normativa que está em discus são, não os seus desvios. e. Resulta daí, no que diz respeito à fé cristã, ser necessário distinguir entre Cristo e o cristianismo. Este é um fenômeno com
plexo, moldado não só por categorias evangélicas. Influem nele fatores políticos, filosóficos, contextuais e outros. Algo análo go vale para as demais religiões. São portadores de valores cul turais, humanos e, portanto, relativos. Como tais têm a sua sabedoria. Mas, qual é o elemento propriamente "divino" de que se dizem instrumentos? Em que sentido são "voz de Deus"? Seja qual for a resposta, Cristo como manifestação do amor de Deus c encarnação do Verbo é maior do que o "cristianismo". É anterior e superior a ele. No diálogo inter-religioso, o que interessa é antes Cristo do que a manifestação histórica, cultu ral e institucional da fé que nele tem origem. 11. Cresce
na teologia cristã a propensão a inscrever o diálogo, respectivamente o ecumenismo inter-religioso cm horizontes trinitari os. E, com efeito, abrem-se dessa maneira novas perspectivas. A dimen são da criação fundamenta, em ótica cristã, uma solidariedade original de toda a humanidade. Toda pessoa, criada à imagem de Deus, está re vestida de indelével dignidade. Também o segundo artigo, a cristologia, lembra um dado fundamental do ser humano que é a dependência da misericórdia divina na realidade da culpa, da fraqueza, do mal. O Espí rito Santo, enfim, sopra onde quer. Desperta fé abraâmica, amor samari tano e esperança para além da morte também fora do âmbito institucio nal cristão. Estatísticas quanto aos efeitos do Espírito Santo em outros povos fogem ao levantamento. Proibem-se os anátemas sobre os não cristãos por este motivo. E Deus quem os julga. Deve-se perguntar, isto sim, se não existe algum "parentesco espiritual" entre a fé cristã e ou tros credos. O Espírito Santo não terá deixado vestígios também em
outras culturas? Ademais, convém sublinhar que a humanidade não tem apenas origem comum, anseios comuns, certo patrimônio sapiencial comum. Também o seu futuro é um só, atrelado ao "oikos", que é o
DIÁLOGO INTGRRELIGIOSO — MACROECUMGNISMO
121
planeta, bem como à promessa de salvação, o reino de Deus. O diálogo inter-religioso colocará essas interrogantes em discussão, para o que o próprio evangelho fornece o impulso. A reflexão sobre uma teologia trinitaria das religiões ainda está em fase inicial. Está aí um campo a ser trabalhado. 12. Entre os parceiros inter-religiosos, a religião judaica ocupa um lugar especial. Há quem veja na relação entre cristãos e judeus o
desafio ecumênico por excelência. Pois a fé cristã é rebento da fé judai ca. Compartilha com esta uma parte da Sagrada Escritura, a dignidade de "povo de Deus", a fé no Deus de "Abraão, Isaque c Jacó". O que separa as duas comunidades é o judeu Jesus de Nazaré, que deu origem a um "Israel cristão". A filiação a este Isreal já não se condiciona à observância da "torá" de Moisés, e sim à "fé" em Jesus Cristo. Surge o povo da "nova aliança" (1 Co 11.25), em explícita concordância com as profecias de Isaías, Jeremias, Ezequiel e outros. Visto que a nova alian ça não anula a antiga, há "dois povos de Deus", melhor, duas variantes do povo de Deus, lado a lado, disputando cada qual a herança de Abraão (cf. Gl 3.6-14). O diálogo há de clarear necessidade e possibilidade de comunhão judaico-cristã em cima do alicerce comum. Não são inequí vocos nem se identificam os conceitos de "povo de Deus", "Israel" c "Igreja". Há que se trabalhá-los. A indefinição ou até a perversão dos mesmos está na raiz de gravíssimos pecados históricos que pesam na consciência cristã. Ecumenismo judaico-cristão poderia inaugurar uma nova história, não de perseguição, e sim de partilha. Será ilusória tal esperança?
Literatura:
- BRAKEMEIER, Gottfried. Fé cristã e pluralidade religiosa - onde está a verdade? Estudos Teológicos, ano 42, São Leopoldo: EST, 2002/2, p. 23-47. - BRANDT, Hermann. "Eu sou o caminho, a verdade e a vida" - a exclusivi dade do cristianismo e a capacidade para o diálogo com as religiões. In: Estudos Teológicos, Ano 42, São Leopoldo: EST, 2002/2, p. 5-22. - CASALDÁLIGA, Pedro. Do ecumenismo para o macroecumenismo. In: Contexto Pastoral, ano IV, 1996.
122
-
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier
_. O Macroecumenismo e a proclamação do Deus da Vida. In: Faus tino Teixeira (org.). O diálogo ubterreligioso como afirmação da vida. São Paulo: Ed. Paulinas, 1997, p. 31-38. MIRANDA, Mário França de. O encontro das religiões. In: Perspectiva Teológica. Ano XXVI, n° 68, 1994, p. 9-26.
-
-
HICK, John. O caráter não absoluto do cristianismo. In: Numen. Juiz de Fora: Ed. UFJF. V 1, n° 1, 1998, p. 11-44. KNITTER, Paul. O cristianismo como religião verdadeira e absoluta? In: Conciliam, n° 156, 1980/6, p. 19-33. KÜNG, Hans. Projeto de Etica Mundial - urna moral ecumênica em vista
-
da sobrevivencia humana. São Paulo: Ed. Paulinas, 1992. PEDREIR A, Eduardo Rosa. Do confronto ao encontro. Uma análise do
-
cristianismo em suas posições ante os desafios do diálogo inter-religioso. São Paulo: Ed. Paulinas, 1999. -
-
QUEIRUGA, André Torres. O diálogo das religiões. SãoPaulo: Ed. Pauli nas, 1995. TEIXEIRA , Faustino. Teologia das religiões - uma visão panorâmica. São
-
Paulo: Ed. Paulinas, 1995. . (org.) Ditiogo de pássaros - nos caminhos do diálogo interreligioso. São Paulo: Ed. Paulinas, 1993.
-
TRACY, David. Para além do fundamentalismo e do relativismo. In: Concilium,n° 240 (2), 1992, p. 121s.
MULTIRELIGIOSIDADE E O FUTURO DO ECUMENISMO 1. A sociedade do século X X I será multic ultura l. Espelham-sc os efeitos da globalização que oportunizou um intercâmbio cultu
nisto ral sem precedentes, que mescla os povos e avizinha as religiões. Já não é possível isolar-se num mundo estanque. Os modernos meios de trans porte c dc comunicação eliminaram as fronteiras de espaço e de tempo e não só possibilitam, como também forçam o encontro com o outro. Podese deplorar a globalização ou saudá-la como nova conquista. Verdade é que o processo é irreversível. Por conseqüência, a fé cristã há de ajustarse a um mundo crescentemente plural que lhe nega tradicionais mono pólios. O mesmo vale para outras religiões. Multiculturalidade significa
a coexistência de diferentes culturas no mesmo ambiente, lado a lado, em confronto imediato. Colidem estilos de vida, credos religiosos, ideo
logias, interesses, direitos, expectativas cm proporção inédita. Nessas condições, sustentabilidade social depende da arte de conviver com diferenças. Eis o crucial desafio da multiculturalidade: Serão inevitá veis as "guerras santas", as pequenas e as grandes, em busca do extermí nio do outro com o intuito da supressão da dissidência? Ou será preciso conformar-se com o "vale tudo" de uma sociedade caótica, desorienta da? Deve haver uma terceira via. 2. Diante de tal quadro, o dizagem do realismo. Importa
primeiro imperativo a atender é a apre n sepultar os sonhos imperialistas, ou seja, o desejo às vezes clandestino de "abocanhar" o parceiro e convertê-lo ao próprio credo. Também no futuro, o cristianismo vai ostentar face multi-
124
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier
denominacional. Isto significa o atestado de óbito para qualquer ecume nismo conversionista, proselitista, reconquistador. Lembra, muito pelo contrario, o propósito original do ecumenismo que jamais queríafundir. Queria, isto sim, unir. Convém não confundir isto e aquilo. Ademais, o realismo implica a confissão de nenhuma instituição eclesiástica, por si só, ser capaz de representar a ecumene na integralidade. A catolicidade da Igreja excede as concretizações particulares. As Igrejas possuem, cada qual, seus dons c seus defeitos. Não deixam de ser pecadoras, tam bém elas. O progresso do ecumenismo tem por premissa a disposição para a autocrítica, respectivamente a confissão dos pecados. Há que se desisitr de identificar as insuficiências somente nos outros. Vale tam bém neste caso a palavra de Jesus, alertando para a necessidade de repa rar na trave no próprio olho antes de apontar para o argueiro no olho do irmão (Mt 7.3). O bom ecumenismo não se compara a uma prova olím pica em disputa da medalha de ouro, e sim a um curso de treinamento na comunhão dos santos. Essa comunhão não é nenhuma "ficção científi ca". Ela é possibilidade real, ao pleno alcance "em Cristo". 3. Convivência plural em Igreja e sociedade se torna ilusória sem um mínimo de tolerância. E este mais outro termo chave do ecumenis mo. Significava originalmente a concessão de espaço e proteção para minorias, incluindo o reconhecimento de sua legitimidade, embora em caráter excepcional. "Tolerar" é sinônimo de "suportar" (cf. Cl 3.13). Entrementes descreve, em sentido amplo, o respeito devido à alteridade social, cultural e étnica de pessoas e grupos. E com efeito, "intolerân cia" inviabiliza a sociedade plural. Tem natureza autoritária, violenta. Em suas formas extremadas acaba em terrorismo, disposto até mesmo ao suicídio vingativo. Conseqüentemente recebeu estigma negativo. O Estado moderno é tolerante. Garante o livre exercício da religião, aten dendo assim um dos fundamentais direitos humanos. Também o ecume nismo não pode abrir mão da categoria. Opõe-se aos "fundamentalis mos" de todos os tipos que exercem tirania e ameaçam a paz. Tolerância está vinculada ao reconhecimento da liberdade de consciência, uma asser tiva evangélica básica. Jesus Cristo não nivela os seus seguidores. Con fere-lhes o direito à diferença. Algo análogo vale para a humanidade em seu todo. Variedade é o signo da criação. Logo, deve haver tolerância
MULTIRGLIGIOSIDADE E O FUTURO DO ECUMENISMO
125
recíproca, expressando-se em "simbiose" construtiva. Ela será dinâmi
ca, mutuamente desafiante e, justamente assim, fecunda. 4. Tolerância, porém, se distingue de permissividade. Ela
tem limites. A Igreja de Cristo não pode "suportar" a suspensão do primeiro mandamento, o atentado à própria liberdade ou à dignidade humana, nem pode conformar-se com o crime, o pecado. Comunhão humana, seja qual for, deve traçar linhas divisórias entre o permitido e o proibido. Tolerância deve ter seu espaço abalizado, claramente marcado para não redundar em anarquia. O pluralismo que desiste de impor regras norma tivas universais pode parecer tentador: Oferece-se como proposta mais "humilde", não autoritária, defensora da liberdade de opinião. Mas ela conduz a beco sem saída. Toda comunhão humana necessita de regras de jogo, cuja infração será passível de penalização. O respeito frente a outras pessoas não implica, em absoluto, a obrigação de aprovar-lhes os credos. Existem deidades terrivelmente "desumanas", deuses opres
sores, cultos satânicos. Não há como conferir-lhes o atestado da legiti midade. Ademais, as pessoas buscam certezas. Não conseguem viver com a permanente dúvida. Por mais paradoxal que pareça: O relativis mo acaba gerando novos fundamentalismos. Joga as pessoas nos braços dos ditadores. Portanto, nem este nem aquele promete êxito na constru ção de uma sociedade sustentável. 5. Assim sendo, o ecumenismo cristão adquire função paradig mática. Buscando conjugar a variedade c a unidade toma-se exemplo do
que deve ocorrer também na esfera política e social. Ecumenismo permite a identidade própria, mas descarta o individualismo e o corporativismo. Exige tolerância, mas não ilimitada. Como visto acima, não pretende eli minar variedade, e sim compatibilizar e capacitá-la para a convivência.
Trata-se de projeto ambicioso c, todavia, de alta urgência em sociedade plural que, sem consensos básicos, não consegue sobreviver. Importa, pois, sublinhar que o ecumenismo eclesiástico tem réplica secular. Coloca-se como imperativo a todo ser humano e ao conjunto dos povos. Assim como comunhão não permite ser restrita à comunidade cristã, assim também o ecumenismo. Está comissionado a propugnar a causa da paz social, muito de acordo com os objetivos do "cristianismo prático", acolhidos pelo CMI.
126
PRESERVANDO A UNIDADE DO EspfRrro NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Hrakemeier
6. Isto
não significa abrir rnão do significado teológico do termo. Seja reafirmado que "ecumenismo" está a serviço da causa de Deus (!) no mundo. Entretanto, também cm sua dimensão secular, o esforço "ecumênico" cumpre propósitos divinos: Quer a paz da sociedade (cf. Jr 29.7; Lc 19.42; etc), a libertação do mal (Mt 6.13). Não há como sepa rar a paz entre os/as cristãos/ãs da paz na sociedade. Novamente há que se tomar providências para não confundir. Mas seria errôneo divorciar. Enquanto a violência reinar nas ruas das cidades, também a comunidade cristã não poderá viver tranqüilamente. Em suma, constatamos qu e, pa ra o ecumenismo, a perspectiva do reino de Deus permanece constitutiva. "A ecumene é de Deus e tudo o que nela se contém " (SI 24.1). Ainda assim ou justamente por isso, ela abrange a esfera política, fazendo
com que "ecumenismo" ultrapasse a tradicional busca da unidade dos cristãos. Penetra em outros espaços. "Ecumenismo" é proposta a ser tra duzida para outras esferas no afã de viabilizar sociedade plural. 7. Em tudo isso, o esforço pela unidade da Igreja permanece absolutamente prioritário. Não há necessidade de repetir o que foi dito acima. A fragmentação do corpo de Cristo desacredita o evangelho e corrói a credibilidade de quem o anuncia. A Igreja cristã deve ao mun do a demonstração da possibilidade da unidade na pluralidade, confor me ela o prega e é chamado a viver. Sc quisermos a unidade da humani dade, devemos começar por arrumar a nossa própria casa. Sem a demonstração da unidade que temos em Cristo, será debilitado o esfor ço por convencer o mundo da verdade evangélica. Pelo que tudo indica,
está globalmente diminuindo a presença e a influência cristã. As reli giões não cristãs, bem como o secularismo desenvolvem surpreenden te pujança c agressividade. Em diversos continentes, cristãos e cristãs voltam a sofrer perseguições. A cristandade está a caminho de nova "diáspora", ou seja, "dispersão". Importa redescobrir a solidarieda de das Igrejas num mundo progressivamente hostil à mensagem do evangelho ou indiferente frente à mesma. Também sob esta ótica o partidarismo cristão, que causa ou engessa divisões, aparece como imper doável tolice. Na raiz do movimento ecumênico moderno está a preo cupação com as missões. Essa mesma preocupação deveria reativar o ecumenismo hoje.
MULTIKELIGIOSIDADF. F. O FUTURO DO ECUMF.NISMO
127
8. É
verdade que, para conseguir a adesão ao projeto ecumênico, necessário se faz superar temores e clarear os objetivos. Como visto acima, a meta se resume no termo "comunhão". Ecumenismo quer res tabelecer laços familiares, reconstituir a família cristã e, por extensão, a família global. Quer revitalizar "comunidade". Cabe soletrar mais uma
vez o que é isto. Para tanto é fundamental perceber o que poderíamos chamar a dupla natureza da comunhão humana. Por um lado ela é como quee fatalidade. Não optamos pela nossa família nem pelo ambiente so qu cial em que vivemos. Comunhão humana é um dado, uma realidade, um fato inegável. Ninguém pode desembarcar da nave espacial que é o pla neta terra, nem do povo de que é membro. Por via de regra também não escolhemos a família religiosa a que pertencemos. E, no entanto, o que temos recebido deve ser administrado, moldado, vivido. Ecumenismo é a tentativa de gerenciar c plasmar a comunhão que temos recebido "em Jesus Cristo", mediante o batismo no nome do triúno Deus, mediante o Deus criador. Se somos família de Deus (Ef 2.19), vivamos como tal, dando espaço c função a cada um de seus membros. Não precisa ser especialmente lembrado que isto significa respeito à diferença e a iden tidades individuais. De qualquer maneira, ecumenismo quer reconstituir a "família das Igrejas cristãs" crist ãs" e assim contribui co ntribuirr para a cura deste mundo mund o e o bem de seus habitantes. 9. Nesse mesmo contexto, convém lembrar que o ecumenismo se
inspira em duas vertentes. Uma é a origem comum. E o olhar retros pect pe ctiv ivo. o. Proc Pr ocur uraa rec r ecup uper erar ar a un unid idad adee em e m Jes J esus us Cris Cr isto to,, reve re vert rter er div d ivis isõe ões, s, superar barreiras construídas no passado. Precisa, por isto, do diálogo doutrinal e do estudo da história do dogma para examinar se os anáte mas recíprocos ainda hoje precisarão ser mantidos. A outra vertente, poré po rém, m, é a vocação comum. As Igrejas receberam a tarefa de serem testemunhas do evangelho (At 1.8), de servirem à criatura carente, de prep pr epar arar arem em a vind vi ndaa do rein re ino. o. Dev De v em conjug con jugar, ar, po pois is,, seus se us esfo es forç rços os,, ser se r vindo cada qual com o talento que recebeu. Também as instituições in stituições ecle siásticas, não só seus membros, estão compromissadas a colocar seus dons a serviço da causa de Deus neste mundo, tratando de complemen tar-se mutuamente. Talvez o modelo mais promissor de unidade visível e de comunhão cclesial seja aquele que ensaia formas concretas dc coo-
128
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier
pera pe raçã çãoo no anún an únci cioo do evan ev ange gelh lho, o, na cele ce lebr braç ação ão da liturg lit urgia ia e no exer ex ercí cí cio da diaconia. A missão comum, da qual a família cristã está incumbida, merece especial destaque. Há uma dívida ecumênica a saldar. O povo cristão é devedor de "judeus e gregos", de todas as nações, e ele o é coletivamente. O mundo não cristão, assim como a sociedade secular, já não distingue as denominações. Enxergam somente "cristãos" e "cris tãs", contabilizando suas falhas e suas virtudes no mesmo registro. Algo semelhante vale para a evangelização que, em verdade, não admite atri buto bu toss deno de nomi mina naci cion onai ais. s. A gran gr ande de comi co miss ssão ão (Mt 18.18s) 18.1 8s) n ã o dist di stin ingu guee prote pro testa stante ntes, s, catól ca tólic icos os e pent p entec ecost ostai ais. s. A perspectiva é a do reino de Cristo, no qual Deus quer congregar toda a criação. A preparação desse reino, a que o mundo é conclamado (cf. Is 40.3; Mc 1.3) c da qual a Igreja de Jesus Cristo é o privilegiado instrumento, implica a "humanização", ou seja, o empenho por convivência social em justiça, paz e cuidado ambi ental. E, no entanto, ecumenismo não se dá por satisfeito com isto. Bus ca, em última instância, a vinda dos povos do Oriente e Ocidente, do Nort No rtee e do Sul, Su l, para pa ra part pa rtic icip ipar arem em à me mesa sa com co m Abr A braa ão, ão , Isaq Is aque ue e Jacó Ja có no reino dos céus (Mt 8.11). Então Deus será tudo em todos (1 Co 15.28). deverá perder de E a dimensão escatológica que o ecumenismo jamais deverá vista e que lhe confere abrangência transeclesiástica, cósmica. Até lá cabe ainda caminhar um bom pedaço. Mas sem esperança também o ecumenismo morre. Cabe-lhe antecipar algo dessa promessa e assim prom pr omov over er salv sa lvaç ação ão em me meio io aos clam cl amor ores es de gu guer erra ra entr en tree as naçõ na ções es.. Essa missão não permite desgastes desnecessários por rivalidades inter nas e brigas por primeiros lugares. 10.
11. Na
perseguição dessa meta, também a incompatibilidade dos critérios de unidade a que acima aludimos não poderá po derá ser alegada alegada como com o obstáculo. Ela não justifica anátemas ou excomunhão. Quanto consenso será necessário para nos podermos reconhecer mutuamente como irmãos e irmãs na fé e, por extensão, como Igreja de Jesus Cristo? Serão
suficientes a confissão da fé nos termos do credo apostólico, a oração conjunta do "Pai Nosso" No sso",, a Sagrada Escritura Escritura como com o testemunho do evan-
MULTIKELKIIOSIDADF. F. O PUTURO DO ECUMENISMO
129
gelho, o batismo no nome do triúno Deus? Que mais é necessário para a salvação? Também no que diz respeito à unidade eclesial existe uma exigência mínima e outra máxima. Há que se tomar cuidado cuidado para não transformar esta última no padrão para a primeira. Seria descaracte
rizar o conceito da "comunhão". Em razão disso, não há o que, em prin pr incc ípi íp i o, des de s acon ac onss e lhas lh asss e pas pa s sos so s ma maii s cora co rajo joso soss em dire di reçã çãoo ao reconhecimento mútuo. Por que continua interditada oficialmente, em muitas Igrejas, a hospitalidade eucarística? A pluiriformidade da Igre ja das da s orig or igen enss perm pe rmii t e tamb ta mbéé m do dois is mil anos an os depo de poii s vari va ried edaa de e cle cl e s i ológica, desde que centrada no fundamento comum que é Jesus Cristo (1 Co 3.11). Variam Variam também també m os estilos na vivência da piedade, pied ade, respe re spec c tivamente na experiência do Espírito Santo. Sob esse aspecto, pois, o ecumenismo não só luta pela unidade. Ele luta também pelo direito à legítima pluralidade, frente à qual as Igrejas, por demais vezes, se mostram intransigentes. Seja reiterado que unidade tem certa plurali dade por premissa, devendo haver acordo quanto ao raio da "legitimi dade", nesse caso. 12. A
magnitude do projeto ecumênico pode assustar, acarretando o perigo da resignação. Enquanto faltar uma "utopia" ecumênica, im port po rtaa investir nas possibilidades de cooperação existentes. Mesmo que as Igrejas exibam dificuldades com a abertura ecumênic ecum ênica, a, é possível fazer muita coisa em conjunto. Por isto importa import a enfatizar a necessidade da estratégia dos pequenos passos. São esses, c não os saltos gigantes que cos, que levam longe. Isto significa em termos concretos "fazer o que promove a comunhão". A oração, a leitura bíblica, a reflexão, o engaja mento em obras sociais, tudo isto em conjunto (!) vai frutificar e criar consciência ecumênica. Também a discussão sobre assuntos polêmicos não poderá faltar. A boa comunhão deve saber discutir divergências e conviver também com tensões e diferenças, desde que haja um funda mento comum. Ecumenismo significa exatamente isso, ou seja, consci entizar as pessoas dos fundamentos fundamentos da comunhão comun hão humana, human a, lançados pela obra do triúno Deus, para em cima deles construir "comunidade" que saiba ser grata a Deus, seja solícita no cumprimento da vontade divina c que tenha, exatamente assim, a promessa de bênção.
130
PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCUIO DA PAZ
-
Gottfried Brakemeier
Literatura:
-
-
-
BARROS, Marcelo. A Dança do Novo Tempo. O novo milênio, o jubileu bíblico e uma espiritualidade ecumênica. São Paulo: Ed. Paulus, 1997. CASTRO, Emilio. Perspectivas Ecumênicas para o Final do Século. In: Tem po e Presença, n° 297, Rio de Janeiro: Koinonia, 1998, p. 23-26. GASSMANN, Günther. O futuro do movimento ecumênico com vistas ao ano 2000 - tarefas e oportunidades. In: Estudos Teológicos 36, São Leo poldo: EST, 1996/2, p. 140-149. LONNING, Per et alii. El futuro dei ecumenismo. Buenos Aires: Ed. La Aurora, 1975. QUINTERO, Manuel. Oi koumcne - Venturas y desventuras en la antesala dei tercer milênio. In: Cristianismoy Sociedad, Ano XXXIII, n° 124, Guayaquil 1995, p. 43-58. RUGGIERI, Giuseppc/TOMKA, Mikkós et alii. A Igreja em fragmentos: A busca de que unidade? In: Concilium n° 271, Petrópolis: Ed. Vozes, 1997/3. WESTHEL LE, Vítor. Una Sancta: A unidade da Igreja na divisão social. In: Estudos Teológicos 31, São Leopoldo: EST, 1991/1, p. 29-47.
Impressão e Acabamento
na Gráfica Imprensa da Fé
Outras publicações da ASTE Documentos da Igreja Cristã H. Bettenson 4 edição a
Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX Paul Tillich 2 edição a
História do Pensamento Cristão Paul Tillich 2 edição a
Vocabulário Bíblico J.J. Von Allmen 3 edição A
Fundamentos da Ética Cristã Michael Keeling
O Protestantismo Brasileiro Emile G. Leonard
3 edição A
A Fé Cristã Gustaf Aulén
História Documental do Protestantismo no Brasil Duncan Alexander Reily 3 edição A
Cuidado Pastoral em Tempos de Insegurança Ronaldo Sathler-Rosa
Visite o site: www.aste.org.br