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As metades exogâmicas dos Tenharim do rio Marmelos Um sistema em perpétuo desequilíbrio1 Edmundo Antonio Peggion UNESP
Sou um etnólogo que trabalha com os povos TupiKagwahiva da Amazônia. São povos que falam a mesma língua da família Tupi-Guarani e vivem na região sul do estado do Amazonas e norte de Rondônia. Estou às voltas, há algum tempo, com uma reflexão sobre a organização social destes povos Tupi-Kagwahiva. Sob essa denominação nós temos os Tenharim, os Jiahui e os Parintintin vivendo ao sul do estado do Amazonas e os Uru-eu-wau-wau (Jupaú), os Amondawa, os Karipuna e os Juma vivendo ao norte de Rondônia. A organização social desses povos é caracterizada pela pel a presença de uma relação determinante do ponto de vista matrimonial. Essa relação singulariza os Kagwahiva no amplo panorama dos estudos Tupi-Guarani, que opõem, de um lado as sociedades do Brasil Central e de outro as sociedades amazônicas (Viveiros de Castro, 1986:46) 2: Sociedades Metafóricas 1
Sociedades Metonímicas
Esta comunicação é parte de minha Tese de doutorado sobre a organização social dos povos Kagwahiva que vivem na Amazônia Meridional. (“Relações em perpétuo desequilíbrio: a organização dualista dos povos Kagwahiva da Amazônia” que contou com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científica e Tecnológico – CNPq e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – processo FAPESP 00/14185-2). Foi organizada para ser apresentada na mesa Amazzonia: stato attuale delle ricerche sul campo, a ser realizada no dia 8 de maio de 2007 na Università degli Studi di Roma “La Sapienza”. 2 Convém destacar que a distinção inferida por este autor foi sempre para efeitos de análise. Deixo claro que aqui a intenção é a mesma.
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Sociedades totêmicas
Sociedades sacrificiais
Sociedades legíveis
Sociedades imperceptíveis
Brasil Central
(Tupi) Amazônia
Essa singularidade relaciona-se a um sistema de metades exogâmicas patrilineares. As metades são, entre os Tenharim e os Juma, denominadas Mutum-Nygwera e Kwandu-Tarave. A primeira locução associa o termo que designa o pássaro "mutum" ao sufixo Nygwera, que indica “o passado”. A segunda aglutina dois pássaros, respectivamente, o "gavião-real" ( Kwandu) e o "maracanã" (Tarave).3 Entre os Parintintin, as metades são designadas Mutum-Nygwera e Kwandu-Apyawytang ( Apyawytang = arara) (Kracke, 1978). Entre os Amondawa e Uru-eu-wauwau as metades são denominadas Mutum-Nygwera e Arara e entre os Karipuna como Mutum-Nygwera e Tucano. Para facilitar o entendimento vou denominar as metades como Mutum e Gavião. Tomados da natureza para classificar a sociedade, os pássaros Mutum e Gavião estão em oposição conceitual (Kracke 1984a:191; Menéndez 1989:104), mas isso não faz com que os indivíduos pertencentes a uma mesma metade considerem-se originários do animal epônimo ou de um ancestral comum humano, em contraposição aos outros. Há 3
Mutum (crax sp.), Kwandu (Harpya harpya) (Nimuendajú, 1924:225; Kracke, 1978:13; Menéndez, 1989:104) e Taravé (Menéndez, 1989:108) - Tarové (Conorus leucophthalmus? - maracanã, segundo Nimuendajú,1924:225).
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entre as metades uma série de oposições complementares como alto/baixo, claro/escuro e de uma perspectiva econômica caça/caçador e caça/coleta (Menéndez, 1989:104 e 109). O universo social Kagwahiva é classificado a partir desse sistema de metades, em que as aquisições posteriores ao contato são atribuídas mais fortemente à metade Gavião. Meus informantes definiam o pertencimento às metades através de atributos físicos e, antigamente, também pela pintura corporal. Além disso, durante a realização de rituais, os membros de uma metade devem sempre pintar os indivíduos da outra (Kurovski, 2005:73). Cada metade possui um conjunto de nomes pessoais, e, assim, é possível saber se o indivíduo é Mutum ou Gavião. Os nomes, aliás, possuem uma estreita relação com o sistema de metades. Há uma diferença corporal fundamental, pois sempre referida pelos Kagwahiva para marcar uma diferença entre as metades. A cútis dos indivíduos que são da metade Mutum é mais marcada e mais escura, os pequenos sulcos da epiderme são mais realçados nos membros da metade Mutum. Já os Gavião possuem a tez mais clara e fina, com os sulcos da epiderme mais superficiais. Segundo os Tenharim, a pele dos Mutum é mais grossa. Já a alvura dos Taravé é tida como “mais bonita” . Durante a realização de um ritual denominado Mboatawa, uma série de prerrogativas implica na subdivisão
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de atividades e em sua associação com o perfil de cada uma das metades. No entanto, há uma complexidade enorme quando se trata de tentar evidenciar as formas que caracterizam o universo social Kagwahiva. A associação cosmológica entre alguns seres míticos e as metades resulta numa série de desdobramentos interessantes. Assim como a metade Mutum está em associação com Mbahira, a metade Gavião está ligada aos Yvaga’nga, seres míticos que vivem no segundo céu. Ambos possuem estes respectivos animais como renymbav , animais de estimação: em diversos mitos o herói cultural Mbahira (ou sua filha) possui um mutum e em mitos que tratam dos Yvaga’nga, eles possuem um gavião (Kracke, 1984b). Convém destacar que as metades exogâmicas, embora tratadas pelos Kagwahiva como conjuntos que se opõem, não caracterizam duas unidades corporadas estanques. Não totalizam grupos como classes, aparentando mais relações difusas que o modelo clássico do sistema exogâmico. Melhor dizendo, o dualismo Kagwahiva parece operar num plano de intersecção entre o sistema de classes e o sistema de relações. Seu valor operativo está ligado a um esquema que associa linguagem e valores definidores das relações sociais como um todo (Silva,1999). No caso Kagwahiva, tais relações estão pautadas num modelo concêntrico determinante, que, pela sua natureza
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ambivalente, leva a diferentes perspectivas analíticas do mesmo foco. Mas, um dualismo concêntrico implicando uma assimetria não recusa o princípio de reciprocidade. É, ao contrário, condição mesma de sua existência. Embora o dualismo Kagwahiva não seja representado por categorias diferentes – são pássaros – ele parece representar uma dialética mais sutil, na qual a oposição é definida por uma desigualdade a priori – um dualismo em perpétuo desequilíbrio. Dir-se-ia que o dualismo Kagwahiva é um fenômeno inusual no contexto das discussões recentes acerca do americanismo tropical. No entanto, já disse Lévi-Strauss (1956a; 1960;1991, dentre outros), que uma das características do dualismo sul-americano é o seu perpétuo desequilíbrio. O dualismo concêntrico que grassa pelos povos indígenas é a expressão dual de um sistema potencialmente ternário. Tal ternarismo implica em sistemas logicamente assimétricos podendo, eventualmente, apresentar implicações no plano político. Um fato notável com relação às metades Kagwahiva é que elas variam em seus termos entre os diversos povos falantes desta língua, mas preservam uma regularidade fundamental. Podemos considerar que estamos diante de um sistema que diz algo mais do que uma simples relação simétrica ou assimétrica entre seus termos. As metades Kagwahiva são uma linguagem, certamente, mas expressam
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o mundo e se auto-referem como um sistema aberto, que tem na alteridade sua expressão fundamental. É como se tivéssemos um sistema dual, fenômeno tipicamente Jê, expresso através de uma das características centrais dos Tupi – a predação. Afinal, o sistema de metades é uma filosofia ou uma instituição que ordena a vida diária? (Maybury-Lewis, 1979:09). O dualismo kagwahiva não se apresenta em aldeias circulares ou em oposições espaciais como centro/periferia e nem possui uma síntese harmoniosa como preconizava Maybury-Lewis (1979) para as sociedades dialéticas do Brasil Central. Estes meus dados lembram a disposição espacial da aldeia Winnebago, realçada e tornada referência crucial na antropologia por Lévi-Strauss (1956a:155 e ss.). Em sua análise dos dados de Paul Radin sobre os Winnebago, LéviStrauss mostra como havia dois pontos de vista diferentes para descrever a aldeia. Os Winnebago, que possuíam duas metades – “os de cima” e “os de baixo” – caracterizavam sua aldeia ora com uma disposição circular com as casas distribuídas por toda sua extensão e dividida em duas metades (de acordo com os informantes da metade “de cima”), e ora com uma bipartição com dois semicírculos, um englobando o outro (de acordo com os informantes “de baixo”). No segundo modelo as casas dos chefes encontravam-se no centro (Lévi-Strauss, 1956a:156-158).
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Embora Paul Radin não insista sobre o desacordo, LéviStrauss diz que não se trata da falta de informações ou de ter que escolher entre alternativas. As diferentes formas descritas pelos Winnebago poderiam corresponder a duas maneiras de descrever uma organização muito complexa que não pode ser formalizada por um único modelo (LéviStrauss, 1956a:158). Dizem os Kagwahiva que ambos os termos da metade possuem o mesmo valor, ou seja, que um indivíduo tanto da metade Mutum quanto da metade Gavião são iguais. Certamente a consideração cabe perfeitamente quando se discute acerca da troca matrimonial entre grupos familiares aliados. Entretanto, em outros planos a concepção é outra. Há apenas uma diferença, que, apesar de todos os subterfúgios dos informantes, não chega a ser trivial. O Mutum – agindo como um sogro prototípico - é aquele que manda trabalhar, é aquele que organiza o trabalho e chama o Gavião para participar. De toda essa reflexão poderia, cautelosamente, apontar para uma oposição pautada na distinção entre Natureza e Cultura. Os Mutum estão para a Cultura, assim como os Gavião estão para a Natureza. Os Gavião estão para os genros, assim como os Mutum estão para os sogros, enfim uma série de oposições que carregam consigo um conjunto de valores. É preciso observar o funcionamento do sistema de metades kagwahiva de uma perspectiva que não oblitere
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um princípio básico de sua organização social. É preciso, portanto, refletir sobre as metades exogâmicas e sua inflexão quando em conexão com um modelo canibal que funda a ontologia kagwahiva. Tavejara – termo usado para o chefe - , associado
simultaneamente a um afim e ao inimigo, pode ser considerado uma espécie de contra-ego, um eu-outro. No dicionário da Língua Parintintin, tovajar pode significar a partilha da caça e também o matador (Betts, 1981). Segundo Eduardo Viveiros de Castro, o termo Tovajar , equivalente lingüístico de Tavejara, seria o confrontante, que se opõe a mim, que me faz face ou “aquele que defronte de mim vê de mim o que eu não vejo”. (Viveiros de Castro, inf. pess). 4 Posição ambígua, portanto, a do chefe Kagwahiva, que é, simultaneamente, um afim próximo (sogro) e distante (inimigo), que deve ser bom caçador e generoso e que deve ser um grande matador. Sujeito tão ambíguo que depois de matar um inimigo não se deve a ele dirigir o olhar ou gracejar-lhe. Torna-se, de alguma maneira, o inimigo. Entre os Kagwahiva, a morte do inimigo poderia não se dar no terreiro da aldeia, como ocorria entre os Tupinambá. A morte, em geral, ocorria durante a batalha e sempre que possível o corpo da vítima era trazido para a aldeia. Quando 4
Tais observações foram obtidas em aulas do Prof. Dr. Eduardo Viveiros de Castro no Museu Nacional do Rio de Janeiro no ano de 2001.
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não era possível trazer o corpo todo, pelo menos traziam a cabeça do inimigo. Toda a etnografia sobre os Kagwahiva considerou o tratamento dado ao crânio como um processo de mumificação para obtenção das chamadas "cabeçastroféus", como faziam seus vizinhos Mundurucú. Porém, os Kagwahiva tratavam-na para conservá-la até o ritual da morte do inimigo. No ritual, a cabeça, descarnada e enfeitada, era posta no meio do círculo de dançarinos. Estes portavam cada qual um Mboahawa, bastão de pupunheira utilizado especificamente no ritual. 5 Dançando e cantando, os jovens batiam suavemente com seus Mboahawa sobre a cabeça do inimigo colocada no centro da roda dos dançarinos. Num dado momento, um dos guerreiros era chamado pelo chefe através de um discurso realçando a vingança. O guerreiro, então, batia com força sobre a cabeça do inimigo e caia ao chão. Carregado, permanecia por um longo tempo em sua rede, comendo e bebendo muito pouco. Após esse período era levado até o rio, recebia um banho e era renomeado. Através de exemplos registrados por dois funcionários do SPI nos anos 1920, percebi uma disposição espacial do ritual e de seus possíveis desdobramentos na estrutura social kagwahiva. Havia a disposição das metades exogâmicas também na disposição espacial do ritual e 5
Veja o comentário de Freitas (1926:72): “A única dança que não quizeram revelar foi a matança da pessoa inimiga entre elles, mas vi um instrumento de mais de um metro de comprimento feito de madeira duríssima (amago de pupunheira) enfeitado de pennas e tendo a forma de uma lança, a que chamam: Omboahab.”
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como essa disposição permitia abrir possibilidades de refletir sobre o dualismo kagwahiva por meio de um conjunto de distinções internas. Sendo assim, à parte as oposições de praxe, tais como baixo/alto, escuro/claro, temos algumas outras que são as seguintes:
MUTUM
GAVIÃO
CULTURA
NATUREZA
CHEFE
GUERREIRO
SOGRO
GENRO
DENTRO
FORA
ESTABILIDADE
MUDANÇA
GENEROSIDADE
VINGANÇA
E por fim, dentro da perspectiva concêntrica do dualismo, é possível multiplicar as oposições, num perpétuo desequilíbrio entre os termos. Não há como pensar os termos acima de maneira a concebê-los como eqüistatuários. Os Kagwahiva são, em essência, as relações que resultam de cada oposição e nunca apenas um dos termos. Para que exista cada uma das colunas é necessário que exista a outra. Tal asserção não nos permite, porém, desconsiderar o movimento centrífugo da sociedade. O perpétuo desequilíbrio permite apontar para estados sucessivos do dualismo concêntrico que são todos eles
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abertos ao exterior. O centro, no caso, é o limite inferior da infinidade de círculos que podem ser traçados ao redor dele (Viveiros de Castro, 2001:30). Essa infinidade de círculos traçáveis ao redor do centro aponta para a importância do dualismo que se abre ao outro, transformando o centro em um limite de convergência e dessa maneira em algo puramente imaginário (Viveiros de Castro, 2001). A relação entre as metades é a expressão de tais possibilidades. Operando com uma lógica que embute, ainda, um sistema de classificação retirado da natureza, os pássaros das metades são a todo tempo simbolizados através de uma lógica que os opõe de maneira desigual. Enquanto há, no plano doméstico, um predomínio da metade Mutum, no plano das relações com alteridades radicais, há o predomínio da metade Gavião. Dadas as discussões recentes acerca das diferentes formas de oposições presentes na América do Sul e seus paralelos com sistemas que operam de maneira semelhante, pode-se desdobrar as mais diversas analogias. Se a oposição entre consangüinidade e afinidade não possui o mesmo estatuto e se leva os sistemas de parentesco a operarem através da incorporação da distância sócio-política, é certo que também a exogamia de metades tenderá a operar concentricamente. Sendo assim, torna-se pouco provável que haja um funcionamento do dualismo que não cause um perpétuo desequilíbrio nas relações entre seus termos. Há uma
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similaridade entre o método de classes e o método das relações. Ambos estão interpostos e atravessados por oposições concêntricas que instituem as permanentes relações de diferenças. Embora os Tenharim concebam seu dualismo como diametral e simétrico, há em seu sistema de metades um perpétuo desequilíbrio. A assimetria, ligada à relação desigual estabelecida entre as metades, pode ser encontrada também em outras instâncias da sociedade. Do ponto de vista das relações político-econômicas, a assimetria apresenta-se de forma a demonstrar a incorporação, como parte subordinada, do genro ao grupo doméstico do sogro. A relação de subordinação do genro ao sogro pode ser identificada também no plano cosmológico onde os princípios básicos da estrutura social Kagwahiva, a patrilinearidade e a relação sogro/genro, ficam mais evidente que o sistema de metades exogâmicas (Kracke, 1984b: 18). Se os Tupi em geral não deram lugar ao dualismo na organização social, concebem toda sua mitologia de uma perspectiva binária (Lévi-Strauss, 1991:49-67). No caso Tenharim, as metades estão presentes na organização social e, apesar de não possuírem uma correspondência imediata no universo cosmológico, associam-se a um princípio elementar de onde derivaram os outros dois referidos por Kracke (1984b). Este seria um princípio básico de desigualdade embutido tanto na relação sogro/genro quanto na filiação.
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Potencialmente assimétricos são também os segmentos residenciais, que absorvem, no seu interior, uma série de grupos domésticos. Esses segmentos possuem um líder, que é também líder de um dos grupos domésticos englobados por ele. A junção desses segmentos estabelece a totalidade da sociedade. Do ponto de vista do sistema de parentesco, os Tenharim apresentam um sistema dravidiano concêntrico, que opera através de um gradiente de distância sócio-política onde, no interior do grupo, a consangüinidade engloba a afinidade e, no exterior, a afinidade engloba a consangüinidade. Esse gradiente de distância é operativo também no sistema de metades, muito embora saibamos que, consangüíneo/afim são distinções matrimoniais e categoriais, que não envolvem nenhuma noção cultural de consangüinidade (Viveiros de Castro, 1993b:18). Deste modo, ainda que os termos de uma e outra distinção não sejam plenamente coincidentes, como já mencionado, o modo como a exogamia de metades incorpora a distância sócio-política é o mesmo em ambos os casos. As unidades de troca de cônjuges presentes no interior das metades não permitem que o sistema de metades constitua-se em duas macro-classes matrimoniais. Cada unidade de troca estabelece suas alianças com várias outras, mas que nunca se reduzem a apenas duas. Desta forma, os Tenharim operam com um sistema de troca multibilateral apesar de possuírem metades. Tais sistemas, segundo
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Viveiros de Castro (1990:45-46), são incompatíveis 6. As regras que estabelecem a distância sócio-política para o dualismo Tenharim possibilitam o funcionamento do sistema com uma constante incorporação de estrangeiros. O concentrismo das metades tenharim possibilita-nos traçar um paralelo com a organização social dos Yaminahua, povo Pano que habita a região do rio Purus no Peru. De forma semelhante aos Tenharim, este grupo apresenta um sistema de parentesco referencial de tipo dravidiano e um sistema de metades exogâmicas patrilineares (Towsley, 1988:56). Entretanto, além do sistema dravidiano, os Yaminahua operam suas relações de parentesco através de dois sistemas interligados: um sistema de nomes pessoais e a organização dualista (Townsley, 1988:58). As metades deste grupo definem-se como Roa (dentro) e Dawa (fora). Na metade Roa (dentro) estão os chefes e seus irmãos, além das mulheres e crianças. Na metade Dawa (fora) estão os homens adultos, que vivem na guerra e na caça. Tais atividades são abandonadas pelos velhos e pelos indivíduos responsáveis pela direção da comunidade, assim estes são relacionados ao interior da comunidade. A metade interior está associada à consangüinidade, e à metade exterior estão associados os mestizos. A matriz da metade Dawa é o bom caçador, símbolo perfeito do adulto masculino,
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“Um regime multibilateral pode emergir mesmo em sistemas de 2n classes matrimoniais, desde que elas não sejam redutíveis a duas macro-classes (ou metades)” (Viveiros de Castro, 1990:46).
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o qual também é constrangido à regra uxorilocal, tornando-se um outsider na casa de seu sogro (Townsley, 1988:100-101). No caso Tenharim, as metades, operando de forma concêntrica, conservam uma dicotomia interior/exterior, estabelecendo entre si uma relação assimétrica. O chefe Tenharim é da metade Mutum e suas relações com o exterior são dadas através da metade Taravé. Há um claro domínio da metade Mutum em todas as instâncias políticas da sociedade: grupos domésticos, lideranças, segmentos residenciais. No entanto, essa relação desigual não é explicitada, no discurso Tenharim, na forma de uma assimetria entre as metades. Por conseguinte, como no universo cosmológico, a expressão do dualismo nas relações, excetuando-se o matrimônio, é algo extremamente trivial, mas que mascara uma evidente assimetria do sistema. Além disso, o sistema de metades tenharim apresenta ainda uma outra particularidade, uma vez que são duas metades que se dividem em três pássaros: Mutum de um lado e Taravé e Kwandu de outro. Da mesma forma, os Parintintin concebem seu sistema como duas metades: Mutum de um lado e Kwandu/ Gwyrai’gwara de outro (Kracke, 1984a:99-100). A diferença reside em que, no caso Parintintin, há uma ideologia de metades encobrindo um sistema de três clãs exogâmicos. Entre os Tenharim do rio Marmelos, embora haja uma clara exogamia de metades, o concentrismo do sistema aponta para um possível triadismo aí implícito.
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Parece, enfim, que as metades exogâmicas conjugamse uma na outra continuamente, fazendo voltar-se o olhar para a relação mesma que as constitui. Não é à toa que, em todos os grupos Kagwahiva atuais, uma das metades permanece sempre a mesma, enquanto a outra sempre varia. Seriam, pois, como perspectivas que se abismam incontinenti, como um sistema que se abre ao infinito.
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