Análise de Poemas Camonianos Aquela Triste e Leda Madrugada
Aquela triste e leda madrugada, cheia toda de mágoa e de piedade, enquanto houver no mundo saudade, quero que seja sempre celebrada. Ela só, quando amena e marchetada saía, dando ao mundo claridade, viu apartar-se d`ua outra vontade, que nunca poderá ver-se apartada. Ela só viu as lágrimas em fio, que duns e doutros olhos derivadas, s`acrescentaram em grande e largo rio; Ela viu as palavras magoadas, que puderam tornar o fogo frio, e dar descanso as almas condenadas.
Este texto é constituído por duas quadras e dois tercetos em metro decassilábico, com esquema rimático, ABBA/ABBA/CDC/DCD, verificando-se a existência de rima interpolada em A, emparelhada em B e cruzada em CD. O soneto aborda a separação de dois sujeitos que estiveram juntos e o sofrimento que essa separação provocou, utilizando o termo anafórico “Ela”, que substitui a palavra madrugada ao longo do poema, referindo-a como única testemunha desse afastamento. O sentimento predominante neste soneto é a tristeza. A madrugada é personificada e testemunhou até ao fim a separação dos amantes: “Ela só viu…”, ocorrida no momento em que o dia nascia, trazendo luz e beleza à terra: “…quando amena e marchetada/ saía, dando ao mundo claridade”. A esta beleza de uma madrugada primaveril opõe-se o sofrimento dos amantes que se separam, e que surge apresentado em metáfora que se transforma em hipérbole: “… as lágrimas em fio” que se acrescentaram em “grande e largo rio”. O soneto termina com a separação definitiva dos amantes, que é acompanhada por palavra “magoadas” que metaforicamente vão atenuar o fogo da paixão, tornando-o frio, e proporcionando, de certa forma, alívio às almas condenadas ao inferno do sofrimento.
Um Mover de Olhos, Brando e Piedoso
Um mover de olhos, brando e piedoso, Sem ver de quê; um riso brando e honesto, Quase forçado; um doce e humilde gesto, De qualquer alegria duvidoso. Um despejo quieto e vergonhoso; Um repouso gravíssimo e modesto; Uma pura bondade, manifesto Indício da alma, limpo e gracioso; Um encolhido ousar; uma brandura; Um medo sem ter culpa; um ar sereno; Um longo e obediente sofrimento: Esta foi a celeste fermosura Da minha Circe, e o mágico veneno Que pôde transformar meu pensamento.
O texto é constituído por duas quadras e dois tercetos, em metro decassilábico, com um esquema rimático : ABBA///ABBA//CDE//CDE verificando-se a existência de rima interpolada em a, emparelhada em b e interpolada em cde. Na poesia camoniana, a idealização da mulher concretizase sobretudo em retratos em que o aspecto físico atinge a impessoalidade do convencional: olhos sempre claros, cabelos louros, tez muito alva e faces rosadas. Esta concretização se verifica ainda através do aspecto espiritual que se caracteriza pela serenidade, pela doçura do riso e pela brandura dum gesto (rosto) sossegado. Esta visão da mulher traduz também a concepção platónica do amor ideal e inacessível. É um retrato, somatório de determinados aspectos, todos eles qualificados. Este soneto tematiza a beleza da mulher e o fascínio por ela exercido no sujeito. O poeta traça o retrato da sua amada, mais espiritual do que físico, e conclui com uma referência à transformação do seu pensamento provocada pela formosura, que funcionaria como um “mágico veneno” que o subjugou. Esta escassa referência a características físicas e a predominância das qualidades morais remetem-nos para a ideologia platónica. É sobretudo nítida a influência petrarquista no ideal de beleza feminina (a graça, o recato, a doçura, a brandura, etc.), e nas qualidades morais atribuídas à mulher, expressas por uma adjectivação abundante: (brando, piedoso, honesto, humilde, quieto e vergonhoso, modesto, etc.) e por substantivos abstractos (bondade, brandura, medo sem ter culpa). Note-se que os aspectos focados têm um elevado nível de abstracção,
(reforçado pela utilização do artigo indefinido e constituem dois conjuntos. Observa-se, ainda, que, na esteira de Petrarca, as qualidades morais predominam sobre as físicas e o fascínio resulta, portanto, da beleza espiritual (a celeste formosura). Ondados Fios De Ouro Reluzente
Ondados fios de ouro reluzente, Que, agora da mão bela recolhidos, Agora sobre as rosas estendidos, Fazeis que sua graça se acrescente; Olhos, que vos moveis tão docemente, Em mil divinos raios encendidos. Se de cá me levais alma e sentidos, Que fora, se de vós não fora ausente? Honesto riso, que entre a mor fineza De perlas e corais nasce e parece, Se na alma em doces ecos não o ouvisse; Se, imaginando só tanta beleza, De si em nova glória a alma se esquece, Que será quando a vir? Ah! Quem a visse!
O texto é constituído por duas quadras e dois tercetos em metro decassilábico, com um esquema rimático ABBA // ABBA // CDE // CDE, verificando-se a existência de rima interpolada em “A”, emparelhada em “B” e interpolada em “CDE”. Nota-se que, quando fala na mulher, Camões abre um campo de intensa beleza, de delicadeza e de irresistível poder de sedução. Para quem tanto sofreu as penas do amor, para quem tantas vezes teve o coração dilacerado pela saudade de um amor perdido, inacessível ou não correspondido, é um espanto que nunca censure, maldiga ou menoscabe a mulher. É fato que o poeta padeceu muitos infortúnios, mas a sua dor mais profunda não vinha da experiência amorosa. A dor intensa e aniquilante de Camões era moral, sua tragédia era existencial.