COLEÇÃO
Brasil 2OlO
O Sistema Partidário na Consolidação da Democracia Brasileira
Brasília, 2003
Projeto Editorial: Instituto Teotônio Vilela Organizador: José Antônio Giusti Tavares Editoração Eletrônica, impressão e acabamento: Nova Prova Gráfica Capa: Luiz Inácio de Melo Instituto T eotônio V ilela Teotônio Vilela
[email protected] Senado Federal, Anexo I, 17º andar 70165-900 - Brasília - DF Diretoria Executiva Presidente: Deputada Yeda Crusius Diretor de Estudos e Pesquisas: Eloi Fernández y Fernández Diretor de Formação e Aperfeiçoamento: Aluísio Pimenta Diretor Financeiro: Deputado Sebastião Madeira Copyright © Copyright © 2003 by Instituto by Instituto Teotônio Vilela Impresso no Brasil
S623 S623ss
O Si s te ma P a r ti d ár i o n a C o n so l id aç ão d a De mo cr a c ia Brasileira / org. por José Antônio Giusti Tavares. – Brasília: Instituto Teotônio Vilela, 2003. 400 p.; 14 x 21 cm. – (Coleção Brasil 2010 v.3) 1. Política – Brasil. 2. Sistemas partidários – Brasil. 3. Democracia – Brasil. I. Tavares, José Antônio Giusti, org. CDU 32(81)
CIP – Catalogação na fonte: Paula Pêgas de Lima CRB 10/1229
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Sumário Apresentação ........................................................................... .............. ..................... .............. .............. .............. .............. .............. .............. .............. ............ ..... 0 7 Deputada Federal Yeda Crusius – Presidente do Instituto Teotônio Vilela Introdução ................................................................................ .............. ..................... .............. .............. ............... ............... .............. .............. .............. .............. ........... 11 Professor José Antônio Giusti Tavares – Coordenador do Seminário PA RTE I – O Pr esidencialismo Brasileir Presidencialismo Brasileiroo de Coalizão Presidencialismo de Coalizão: O Dilema Institucional Brasileiro ................ ........................ ................. ................. ................ ................ ................. ................. ................ ................ ................. ........... 2 1 Sérgio Henrique Hudson de Abranches Presidencialism Presidencialismoo de Coalizão Coalizão e Crise Crise de Governan Governança ça ............. ............. 7 5 Sérgio Henrique Hudson de Abranches Presidencialismo de Coalizão Revisitado: Novos Dilemas, Velhos Problemas Problema s ................ ........................ ................. ................. ................ ................ ................ ................. ................. ............... ....... 8 3 Octávio Amorim Neto PA RTE II – A Nacionalização dos Partidos Políticos A Nacionalização dos Partidos Políticos e dos Sistemas Partidários: Uma Medição Empírica e sua Aplicação ao Caso das Américas Améri cas ................. ......................... ................ ................ ................. ................. ................ ................ ................. ............... ...... 1 0 1 Scott P. Mainwaring e Mark P. Jones
A Nacionaliza Nacionalização ção dos Partidos Partidos Político Políticoss Brasileiro Brasileiross .......... ............. ... 1 4 9 Rogério Schmitt PA RTE III – Migração Partidária, Estratégias de Sobr evivência Sobrevivência e Governismo na Câmara dos Deputados ......................... 1 6 3 Carlos Ranulfo F. Melo PA RTE IV – Partidos, Federação e Repr esentação Política Representação Sistemas Partidários Estaduais, Participação Política e Democracia Democracia no Brasil ................... ............................. .................... ................... ................... ................... ......... 2 2 9 Luís Gustavo Mello Grohmann Disciplina Disciplina e Coesão Coesão dos dos Partidos Partidos Políticos Políticos no Brasil........ Brasil ............. ..... 2 4 7 Juliano Corbellini PA RTE V – A Mediação dos Partidos na Democracia Representativa Brasileira ..................................................... .............. ..................... .............. .............. .............. ............... ........... ... 26 7 José Antônio Giusti Tavares
Apresentação
Os textos que compõem esse volume, fruto do Seminário O Sistema Partidário e a Consolidação da Demo- cracia Brasileira, constituem uma resposta muito positiva à provocação inicial, feita pelo professor Giusti Tavares, acerca da possibilidade possibilida de e da desejabilidade de um convívio reciprocamente independente entre a atividade política e a ciência política. Efetivamente, estabelecer pontes entre o conhecimento científico e o exercício de responsabilidades pú blicas constitui a essência dos propósitos que se espera deva cumprir uma instituição dedicada à formação política dos quadros de um partido moderno, como é o Instituto Teotônio Vilela. Minha experiência pessoal conduziu-me da academia para a política partidária e, logo, eleitoral e parlamentar. mentar. A academia, e não a política, polític a, foi a minha profissão de origem, de modo que compreendo perfeitamente a necessidade de conciliar o compromisso político prático com a circunspecção exigida pela ciência. É desnecessário ressaltar a importância do empreendimento. Como bem sublinhou o Professor Sérgio Abranches, não apenas a ciência política mas a atividade
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política devem aprofundar e fazer avançar seus equipamentos intelectuais para responder ao desafio de compreender e orientar as transformações rápidas e nem sempre predictíveis do mundo contemporâneo. Há muitas aproximações entre a política e a ciência. Embora o político deva tomar decisões no terreno das realidades empíricas e pontuais, os frutos de sua atividade são também globais, seja no campo da economia, seja no campo dos indicadores sociais. A consolidação e a estabilidade do Estado Democrático de Direito são o resultado final da produção continuada e permanente de miríades de decisões públicas, cuja relevância quase sempre é subestimada quando se julga o trabalho da classe política, o que torna esse julgamento freqüentemente injusto. Enfim, os políticos atravessam permanentemente testes de natureza diversa – econômicos, sociais e especificamente políticos – de cuja resposta depende a continuidade e o fortalecimento da democracia constitucional. A democracia constitucional e representativa brasileira recente e ainda em maturação, tema desse Seminário, tem muito a apreender com as democracias clássicas, da Europa e da comunidade dos países anglo-saxônicos. Mas a comparação entre a primeira e as últimas introduz dificuldades e limites que devem ser enfrentados, embora, certamente, não sejam insuperáveis. Testemunho dessa assertiva é a obra do Professor Scott Mainwaring sobre os partidos políticos, pela riqueza dos dados empíricos, pela profundidade da análise histórica e pela sobriedade da teoria. O Professor Octávio Amorim ressaltou os grandes
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testes enfrentados pelo governo Fernando Henrique Cardoso em 1999. Em 1999 passamos pelo teste econômico, a desvalorização do real, no momento em que as nossas alianças estratégicas regionais, especificamente o Mercosul, não se haviam completado. No campo prático da política, 1999 foi também o teste da firmeza da aliança de apoio ao governo: a enfrentar o problema econômico, lideranças partidárias que a compunham preferiram retaliar-se por meio de uma profusão de CPIs. O governo e as instituições não apenas sobreviveram mas consolidaram-se com todos esses testes. Passaram ainda pelo desafio da aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal, cujo impacto extraordinariamente positivo sobre a saúde das finanças públicas não foi adequadamente valorizado pela oposição, prisioneira de seu próprio maniqueísmo ético. Quanto à reforma tributária e à reforma previdenciária, o fato de que não se converteram em realidade deve ser bem explicado: de um lado, os setores sociais e os estados da federação, interessados, ainda não se encontravam maduros para pesar, numa perspectiva menos imediatista, os seus próprios interesses e os demais interesses, com os quais devem transigir e negociar para cumprir o interesse público; de outro, o governo considerou essas matérias suficientemente importantes para serem aprovadas por meio do voluntarismo autoritário, dividindo a coalizão que o apoiava ao impor projetos que ela não estava disposta a assimilar. No quadro desconcertante da política brasileira, governos de coalizão complicam-se e tornam-se vulne-
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ráveis em virtude do caráter fluido e movediço das organizações partidárias, do qual dão conta os estudos do Professor Carlos Ranulfo sobre a coesão interna dos partidos e a migração interpartidária no Congresso. A isenção e a profundidade com que esses temas foram abordados no Seminário apontam promissoramente para os frutos que de sua divulgação devem resultar para o país. Yeda Crusius Deputada Federal Presidente do Instituto Teotônio Vilela
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Introdução John Plamenatz afirmou com propriedade que o domínio próprio e específico da ciência política é o estudo das instituições. O fundamento dessa proposição é evidente. Em qualquer sociedade minimamente civilizada, as relações e os processos de poder se realizam realiza m no quadro de instituições e estas últimas, suas regras, mecanismos e procedimentos, não são indiferentes quanto aos resultados dos processos políticos. Ao contrário, afetam por antecipação e de modo decisivo os desenlaces da interação entre os sujeitos, permitindo-lhes antever as conseqüências possíveis e prováveis de cada uma das estratégias alternativas de que dispõem, reduzindo a incerteza e o risco e conferindo estabilidade e predictibilidade à associação política. Tem sido amplamente reconhecida a necessidade de uma reforma política que compreenda as leis, as instituições e os mecanismos que regulam as eleições, os partidos, o processo legislativo e o governo no país. As últimas eleições presidenciais ilustraram com terrível clareza uma debilidade fatal ao presidencialismo e, com ela, a necessidade de uma ampla reforma do sistema de governo.
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Em segundo turno, entre dois perfis diferentes de homem político, o eleitorado decidiu por Luís Inácio da Silva ou, mais precisamente, por uma imagem reconstruída e transfigurada pelos recursos midiáticos. Não elegeu um partido, elegeu o portador de um carisma, isto é, alguém ao mesmo tempo igual e extraordinariamente superior ao homem comum. Mas o governo da União e, com ele, toda a parafernália do Poder Executivo, ramificado através da federação por miríades de instituições e cargos, civis e militares, foram ocupados pelo Partido dos Trabalhadores. Como em todo regime presidencial, o presidente distribui pessoalmente os cargos do Ministério e decide sobre o primeiro e segundo escalões. E no presidencialismo pluripartidário os postos do poder formam um espólio, distribuído entre os partidos, aliados ou não nas eleições, que aderem à grande coalizão que sustentará o governo. Isso porque possuir a maior bancada na Câmara e no Senado não assegura, por si só, o apoio legislativo necessário ao presidente. Também em 1994 e 1998 o eleitorado elegeu Fernando Henrique Cardoso, não o PSDB, e o então presidente construiu com o PFL e com diferentes partidos uma coalizão de governo. Essa é a regra do presidencialismo pluripartidário: eleito plebiscitariamente, o presidente compõe o Ministério e assume a iniciativa de concertar, com os partidos que o sustentarão, a coalizão de governo, que dele se torna tributária. Ao contrário, no parlamentarismo pluripartidário, é a coalizão de partidos que forma a maioria da câmara baixa ou do parlamento, a qual, por sua vez, nomeia e responsabiliza permanentemente o governo. A distinção é clara: o parlamentarismo
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é o governo fundado na impessoalidade das instituições e na responsabilidade política permanente do Poder Executivo diante do parlamento; o presidencialismo, sobretudo quando constelado por um Congresso pluripartidário, é o governo de um só homem, com uma forte tendência ao personalismo, ao voluntarismo e ao cesarismo populista. Entretanto, no presidencialismo com pluripartidarismo congressual a coalizão governamental ainda parece ser a melhor alternativa e, no Brasil, apesar de tudo, tem funcionado. Mas há, sobretudo, uma diferença fundamental entre a constituição do atual governo e a dos precedentes. A virtude da coalizão consiste em que é essencialmente um mecanismo pluralista e consociativo de produção de consenso e, por essa via, de poder: foi esse o propósito das coalizões nos governos Fernando Henrique Cardoso. Contudo, ao longo de duas décadas de existência, o PT ou tem recusado qualquer coalizão ou a tem acolhido sob a condição e com o propósito de hegemonia. Por outro lado – embora, na tradição política brasileira, seja o presidente eleito, e não o partido, quem governa e detém o poder – quem deterá o poder no atual governo? Lula ou o partido ou, na segunda alternativa, que segmento do partido? De qualquer modo, eleito, Lula, como era previsível, teria o privilégio de decidir a quem trair: ao eleitorado que elegera o candidato popular, moderado e conciliador concilia dor,, construído por Duda Mendonça, ou ao núcleo radical do partido, ao qual aglutinara pelo compromisso com um programa que tinha como título “ruptura necessária”. Se decidiu por renegar, no governo, o neocomunismo a que dedicou toda a vida, a sua opção é substantiva ou,
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como já afirmou mais de uma vez, um recurso provisório para ganhar tempo e acumular poder? Esses desconcertos e interrogações são inquietantes e justificam a necessidade de uma reforma das d as instituições políticas no país, incluído o sistema de governo. A democracia constitucional e o governo representativo não se consolidam sem instituições políticas coerentes, vigorosas e flexíveis, entre as quais é fundamental um sistema pluralista de partidos políticos sólidos, coesos, disciplinados e responsáveis, que competem entre si, através de eleições regulares periódicas, pelo acesso à representação legislativa e ao governo, pela posse dele, pela participação nele ou pelo controle sobre ele. No Brasil, a tradição histórica, a cultura política, as regras, as instituições e os mecanismos do sistema representativo, eleitoral e parlamentar, atuando em um sinergismo perverso, estimulam e fortalecem a atomização individualista da política, em benefício dos políticos e em prejuízo dos partidos, da consolidação de suas bases sociais e de sua própria identidade, retirando-lhes até mesmo o poder de decidir sobre as suas próprias candidaturas. Enfim, os partidos políticos brasileiros padecem da dificuldade crônica, histórica e estrutural, de agregar as diferentes concepções do interesse público em que se divide o corpo eleitoral, assegurando assim transitividade e responsabilidade recíprocas entre a sociedade e a política, e de que, carecendo de capacidade representativa, carecem também de capacidade governativa. Com o propósito de elucidar questões dessa natureza, que desafiam a classe política e a comunidade da ciência política no Brasil, o Instituto Teotônio Teotônio Vilela (ITV)
Introdução
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e a Faculdade de Ciência Política da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA) reuniram em 22 e 23 de outubro de 2001, em Porto Alegre, no Plenarinho da Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, especialistas dedicados ao estudo das instituições políticas brasileiras, no Seminário O Sistema Partidário na Consoli- dação da Democracia Brasileira, Brasileira, com o objetivo de identificar os principais problemas concernentes aos partidos aos partidos políticos brasileiros nos cenários eleitoral, congressual e governamental , bem como de avaliar as alternativas estratégicas e institucionais capazes de prover, no país, um sistema pluralista e competitivo de partidos representativos e capazes de assumir as responsabilidades de governo. Este livro reúne as contribuições àquele seminário, cada uma na forma final dada pelo autor, organizandoas em cinco partes. A Parte I, O Presidencialismo de Coalizão no Brasil , compreende dois estudos de Sérgio Henrique Hudson de Abranches – o ensaio clássico Presidencialismo de Coalizão: O Dilema Institucional Brasileiro , publicado originariamente em Dados. Revista de Ciências Sociais (v.31,n.1, (v.31,n.1, 1988), reproduzido com autorização do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), e Presidencialismo Presidencialismo de Coalizão e Crise de Governança, texto publicado em junho de 2001 por Conjuntura Política, Política, n.26, revista de mídia eletrônica editada pelo Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais – seguidos do artigo O Presidencialismo de Coalizão Revisitado: Novos Dilemas, Velhos Problemas , no qual Octávio Amorim Neto explora e atualiza a abordagem que Sérgio Abranches desenvolvera pioneiramente, em
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1988, com base na experiência do regime constitucional de 1946. A Parte II, A Nacionalização dos Partidos Políticos, inclui o estudo comparativo do tema em dezessete países da América Latina, de Scott P. Mainwaring e Mark P. Jones, A Nacionalização Nacionalização dos Partidos Políticos e dos Sistemas Partidários: Uma Medição Empírica e sua Aplicação ao Caso das Américas – cujo original, em inglês, está sendo publicado por Party Politics (March Politics (March 2003, Volume 9, Issue 2), Sage Publications Ltd , à qual se deve a permissão para publicá-lo em português – bem como o artigo de Rogério Schmitt, A Nacionalização dos Partidos Políticos Brasileiros . Na Parte III, Carlos Ranulfo Félix de Melo identifica e avalia os efeitos da migração partidária sobre a distri buição da força relativa entre os partidos no Congresso brasileiro. A Parte IV compreende dois estudos. No primeiro, Luís Gustavo Mello Grohmann examina os subsistemas partidários estaduais do ponto de vista de suas relações com os governadores e do poder que estes últimos desfrutam na federação, bem como as relações entre participação e representação políticas na democracia brasileira. No segundo, Juliano Corbellini discute alguns aspectos da controvérsia sobre disciplina e coesão partidárias na política nacional. Finalmente, na Parte V, V, o organizador deste volume faz, com base num balanço crítico da literatura contemporânea sobre os partidos partidos políticos brasileiros, um estudo estudo do sistema partidário brasileiro nos cenários eleitoral, congressual e governamental, dos efeitos que sobre ele exercem a cultura política, as regras e as instituições eleitorais e a federação, e dos efeitos que ele, por sua vez,
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produz sobre o caráter e o funcionamento do sistema representativo e do governo. O seminário e o livro que dele resultou – referência fundamental para quem deseja conhecer o sistema partidário brasileiro contemporâneo e suas implicações sobre a representação política e o governo do país – converteram-se em realidade graças à lucidez, à sensi bilidade e a grandeza da Deputada Yeda Crusius, Presidente do Instituto Institu to Teotônio Teotônio Vilela (ITV), órgão de estudos e formação política do Partido da Social-Democracia Brasileira. Ao assegurar todos os recursos necessários à realização desse seminário, Yeda revelou a capacidade superior de transcender a lógica dos resultados imediatos para considerar os benefícios que a longo prazo certamente resultam, para a coerência e para a adequação das instituições políticas, da reflexão científica isenta, crítica e independente, sobre temas que aparentemente não ultrapassam o umbral da teoria. A Professora Ana Falkembach Simão, Diretora da Faculdade de Ciência Política da Universidade Luterana do Brasil, assumiu com entusiasmo o desafio de promover prom over o seminário no meio acadêmico. Em seu conjunto, o empreendimento estabelece uma delicada mas sólida ponte entre a universidade e a política, buscando conciliar e integrar a circunspecção da ciência com os compromissos da atividade pública prática. José Antônio Giusti Tavares Organizador
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O Presidencialismo Brasileiro de Coalizão
Parte arte I O Presidencialismo Brasileiro de Coalizão
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Presidencialismo de Coalizão: O Dilema Institucional Brasileiro* Sérgio Henrique Hudson de Abranches
Heterogeneidade e Pluralidade de Interesses
O estilo de crescimento das últimas décadas aprofundou, de forma notável, a heterogeneidade estrutural da sociedade brasileira – uma característica marcante de nosso processo histórico de desenvolvimento. Esta se expressa, hoje, na imagem contraditória de uma ordem social no limiar da maturidade industrial porém marcada por profundos desequilíbrios e descompassos em suas estruturas social, política e econômica. No plano macro-sociológico, observa-se o fracionamento da estrutura de classes, que determina a multiplicação de demandas setoriais competitivas e a exacerbação de conflitos, em múltiplas configurações, cortando, horizontal e verticalmente, as fronteiras da estratificação Publicado originariamente em Dados, Revista de Ciências Sociais, v. 31, n.1, 1988. *
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social, ela mesma marcada por significativas mudanças, com acentuada alteração nas hierarquias sócioeconômicas e a emergência de novos segmentos sociais, através do avanço do processo de assalariamento no campo e na cidade e do declínio das profissões liberais de elite. No plano macroeconômico, esta heterogeneidade revela graves conflitos distributivos, disparidades técnicas e desníveis de renda, entre pessoas, empresas, setores e regiões. O espaço sócio-econômico dos setores mais avançados da sociedade estrutura-se com base em padrões de produção, renda e consumo próximos daqueles vigentes nos países capitalistas industrializados. Ao mesmo tempo, parcela considerável da população ainda persiste em condições sócio-econômicas típicas das regiões em desenvolvimento, caracterizadas por altas taxas de instabilidade econômica e mobilidade social. Finalmente, parte não menos significativa da população vive em condições de destituição similares àquelas que prevalecem nos países mais pobres. No plano macropolítico, verificam-se disparidades de comportamento desde as formas mais atrasadas de clientelismo até os padrões de comportamento ideologicamente estruturados. Há um claro “pluralismo de valores”, através do qual diferentes grupos associam expectativas e valorações diversas às instituições, produzindo avaliações acentuadamente distintas acerca da eficácia e da legitimidade dos instrumentos de representação e participação típicos das democracias liberais. Não se obtém, portanto, a adesão generalizada a um determinado perfil institucional,
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a um modo de organização, funcionamento e legitimação da ordem política. Esta mesma “pluralidade” existe no que diz respeito aos objetivos, papel e atri buições do Estado, suscitando, de novo, matrizes extremamente diferenciadas de demandas e expectativas em relação às ações do setor público, que se traduzem na acumulação de privilégios, no desequilí brio permanente entre as fontes de receita e as pautas de gasto, bem como no intenso conflito sobre as prioridades e as orientações do gasto público. Simultâneamente, e por causa deste mesmo perfil múltiplo e fracionado das demandas, acumulam-se insatisfações e frustrações de todos os setores, mesmo daqueles que visivelmente têm se beneficiado da ação estatal. A multiplicação de demandas exacerba a tendência histórica de intervenção ampliada do Estado. Este desdobra-se em inúmeras agências, que desenvolvem diversos programas, beneficiando diferentes clientelas. Proliferam os incentivos e subsídios, expande-se a rede de proteção e regulações estatais. Esse movimento tem o resultado, aparentemente contraditório, de limitar progressivamente a capacidade de ação governamental. O governo enfrenta uma enorme inércia burocrático-orçamentária, que torna extremamente difícil a eliminação de qualquer programa, a redução ou extinção de incentivos e subsídios, o reordenamento e a racionalização do gasto público. Como cada ítem já incluído na pauta estatal torna-se cativo desta inércia, sustentada tanto pelo conluio entre segmentos da burocracia e os beneficiários privados, quanto pelo desinteresse das forças políticas que controlam o Executivo e o Legislativo
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em assumir os custos associados à mudanças nas pautas de alocação e regulação estatais, restringe-se o raio de ação do governo e reduzem-se as possibilidades de redirecionar a intervenção do Estado. VeriVerifica-se, portanto, o enfraquecimento da capacidade de governo, seja para enfrentar crises de forma mais eficaz e permanente, seja para resolver os problemas mais agudos que emergem de nosso próprio padrão de desenvolvimento.1 Essa coincidência de situações tão contrastantes define uma formação social com características distintas quer das nações industrializadas, que apresentam maior homogeneidade social, quer das chamadas “nações plurais”, divididas por clivagens regionais e culturais muito poderosas, mas cujos diferentes “blocos culturais” apresentam relativa homogeneidade interna, como nos casos da Holanda, Holand a, Bélgica ou Áustria. Trata-se Trata-se de um caso c aso de heterogeneidade econômica, social, política e cultural bastante mais elevado, seja na base técnica e nos níveis de produtividade na economia, seja no perfil de distri buição de renda, seja nos graus de integração e organização das classes, frações de classe e grupos ocupacionais, apenas para mencionar algumas dimensões mais salientes Esta contradição aparente entre o crescimento e diversificação das formas de intervenção do Estado e o enfraquecimento simultâneo da capacidade de controle do governo sobre as políticas públicas não é uma peculiaridade brasileira. Porém, ela se agrava, neste caso, tanto em função das características de nosso padrão de desenvolvimento, quanto pelos efeitos do autoritarismo sobre as pautas de relacionamento entre sociedade e Estado, quanto, ainda, pela dinâmica da transição do autoritarismo para a nova ordem institucional, em formação. Ver, a respeito da relação entre intervenção do Estado e controle das políticas públicas, F. Lehner e K. Schubert, “Party Government and the Control of Public Policy”, European Journal of Political Research, n.12, 1984, pp. 131-46. 1
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do problema. Responde, porém, a uma mesma lógica histórica e estrutural de expansão, tornando suas diferentes partes contemporâneas do mesmo movimento geral, ainda que não coetâneas nas suas dinâmicas internas. O avanço do capitalismo industrial, no Brasil, é, assim, caracterizado por forte “assincronia”, associada a seu caráter retardatário em relação à ordem capitalista mundial e à heterogeneidade histórica de suas estruturas internas. As forças do progresso atingem desigualmente esta malha díspar, determinando ritmos diversos e conjunturas estruturalmente diferenciadas. As decisões de investimento e as opções distributivas sancionam ou exacerbam este movimento. O desenho e o funcionamento das instituições o convalidam ou, mais grave ainda, procuram simplificá-lo artificialmente, determinando transbordamentos incontroláveis de insatisfações e frustrações, que reduzem drasticamente os limites de sua legitimidade. Os constrangimentos externos e os impulsos internos compõem-se na reprodução das desigualdades. Elevam-se, portanto, as taxas potencial e real de conflito. Este permaneceu reprimido de várias maneiras, da repressão aberta à sutil imposição de barreiras elitistas, políticas, econômicas, sociais e culturais à sua plena manifestação. Embora alguns destes elementos de contenção forçada do conflito tenham desaparecido com a desarticulação do regime autoritário, muitos deles permanecem em operação. Convivem, assim, focos largos e irresolutos de conflito e barreiras à sua livre manifestação. Mais ainda, o quadro institucional não desenvolveu mecanismos novos que permitam processar esses conflitos de forma legítima, democrática e institucionalizada.
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Em síntese, a estrutura econômica alcançou substancial diversidade e grande complexidade; a estrutura social tornou-se mais diferenciada, adquiriu maior densidade organizacional, persistindo, porém, grandes descontinuidades, marcada heterogeneidade e profundas desigualdades. Daí resultaram maiores amplitude e pluralidade de interesses, acentuando a competitividade e o antagonismo e alargando o escopo do conflito, em todas as suas dimensões. Ao mesmo tempo, o Estado cresceu e burocratizou-se e a organização política seguiu estreita e incapaz de processar institucionalmente toda essa diversidade, de agregar e expressar com eficácia e regularidade a pluralidade de interesses e valores. O dilema institucional brasileiro define-se pela necessidade de se encontrar um ordenamento institucional suficientemente eficiente para agregar e processar as pressões derivadas desse quadro heterogêneo, adquirindo, assim, bases mais sólidas para sua legitimidade, que o capacite a intervir de forma mais eficaz na redução das disparidades e na integração da ordem social. O objetivo deste artigo é analisar alguns componentes desse dilema, especificamente no que diz respeito ao arranjo constitucional que regula o exercício da autoridade política e define as regras para resolução de conflitos oriundos da diversidade das bases sociais soci ais de sustentação política do governo e dos diferentes processos de representação. O conflito entre o Executivo e o Legislativo tem sido elemento historicamente crítico para a estabilidade democrática no Brasil, em grande medida por causa dos efeitos da fragmentação na composição das forças políticas representadas no Congresso e da agenda inflacionada de problemas e demandas imposta ao Exe-
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cutivo. Este é um dos nexos fundamentais do regime político e um dos eixos essenciais da estabilidade institucional, tema das seções seguintes.2
A Crise Institucional Institucional
A transição, inaugurada com a instalação da Nova República, correspondeu ao esgotamento do modelo político anterior e à falência do conjunto das instituições específicas do regime autoritário. Vivemos, Vivemos, em função do do quadro econômico-social e da derrocada da velha ordem, uma situação de alta propensão à instabilidade. Todo processo de mudança de regime implica, em maior ou menor grau, descontinuidades e desajustes entre a composição de forças que promove o trânsito imediato entre a velha e a nova ordem e o conjunto de forças políticas que efetivamente conduzirá a (re)construção institucional. Além disso, a própria mudança excita as expectativas de todos que se sentiam lesados no período anterior, suscita a esperança de mudanças, sem a Para uma análise mais detalhada das características sócio-econômicas do processo de desenvolvimento brasileiro e suas implicações institucionais, ver Sérgio H.H. Abranches, “A Recuperação Democrática: Dilemas Políticos e Institucionais”, Estudos Econômicos, vol. 15, n.3, 1985, pp. 443-63, trabalho que o presente atualiza e aprofunda no que diz respeito ao argumento político-institucional. A presente análise não pretende ajudar a elucidar todo o dilema institucional brasileiro, mas apenas seu componente político e, especificamente, aquele associado ao regime constitucional de governo. Há, evidentemente, outros elementos políticos importantes na sua determinação, sobretudo aqueles que se referem ao corporativismo não-consociacional e ao controle democrático das políticas públicas. Como há, também, os componentes sociais e econômicos deste dilema institucional, que merecem tratamento em separado. 2
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consciência clara de que a comunhão de princípios políticos não assegura, nem contém necessariamente, elementos de consenso sobre as políticas concretas e as soluções a serem implementadas pelo novo governo, tampouco quanto à direção que se dará ao processo de mudança. Adicionalmente, há uma contradição inexorável entre a necessidade prática de administrar o cotidiano, com instrumentos ainda do passado, e a imposição política e moral da reforma político-institucional, que requer, forçosamente, planejamento e complexas negociações. As pressões da conjuntura, associadas à persistência da crise econômico-social, exigem pronta ação governamental. Mas a solução – se obtida – dos problemas do dia é garantia insuficiente de estabilidade e paz social mais permanentes. A instauração de uma nova ordem libera demandas antes reprimidas, que se somam àquelas já inscritas na pauta decisória, mas inatendidas, produzindo sobrecarga na agenda prática do Estado. Contudo, as próprias dificuldades políticas, a serem contornadas com tempo e habilidade, reduzem a capacidade de formulação de programa positivo e seletivo que condicione politicamente a administração dos negócios públicos às novas prioridades. Até porque, a desarticulação progressiva da institucionalidade autoritária incorpora novas forças ao processo decisório, sem que já estejam em pleno funcionamento os novos mecanismos de processamento e seleção institucionalizada de interesses, ajustados às novas diretivas políticas e aos princípios democráticos de decisão e relacionamento social. Prevalece uma certa informalidade pré-institucional nas transações políticas, superposta à continuidade da gestão
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através de um aparelho estatal marcado ainda pelas distorções produzidas pelas regras burocrático-autoritárias de direção política. No plano político, é como se o governo precedesse o regime. A desgastada e ilegítima emenda constitucional, que regulou o antigo regime, tem seu espaço de vigência definido pela conveniência política e administrativa. Deixa, portanto, um amplo vazio constitucional no que se refere à regulação do campo jurídico-político. Mais ainda: é ineficaz na definição do escopo de autonomia e interdependência dos poderes. A instalação da Assem bléia Nacional Constituinte exacerba os problemas oriundos dessa fluidez institucional, reavivando os conflitos entre Legislativo e Executivo, os quais se processam sem limites definidos e amplamente compartilhados e na ausência de mecanismos institucionalizados e legítimos de mediação e arbitragem. Os riscos de crises institucionais instituciona is cíclicas permanecem altos e praticamente inevitáveis. Este é um problema sério, que tem raízes históricas, e que requer soluções de curto prazo – para o período de trabalho constituinte – e de longo prazo, através de inovações constitucionais, de responsabilidade da Assembléia Nacional Constituinte.3 A probabilidade de acumulação de conflitos em múltiplas dimensões, precariamente contidos pelo pacto mais genérico de transição democrática – que foi brevemente revigorado durante o período de sucesso do Plano Cruzado –, bem como de sucessão de ciclos de instabiliPara uma análise mais detalhada desse processo de “desinstitucionalização”, “desinstitucionalização”, que institui um governo sem regime, e seus efeitos políticos, ver meu artigo “A Busca de Nova Institucionalidade Democrática(?)”, Cadernos de Conjun- tura, n.3, Iuperj, Rio de Janeiro, dezembro de 1985. 3
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dade, aumenta na proporção em que as energias da nova direção política (no Legislativo e no Executivo) são consumidas na administração de crises. Além disso, a contenção dos múltiplos focos setoriais de antagonismo, que emergirão, muito provavelmente, de forma quase endêmica, no governo e fora dele, entre os parceiros da Aliança Democrática e no interior dos próprios partidos, pode desgastar rapidamente rapida mente a liderança da coalizão. Vem Vem daí a necessidade de rápida institucionalização de procedimentos de negociação e resolução de conflitos que evitem que todas as crises desemboquem nas lideranças e, sobretudo, na Presidência. Não são apenas o arcabouço constitucional, o sistema político e a estrutura estatal que se encontram em transição, na qual convivem elementos não-residuais do antigo regime e novos princípios, que amadurecerão no território da república democratizada. Também a estrutura geral de organização e representação de interesses sociais encontra-se em fluxo, requerendo um ancoradouro institucional mais legítimo, mais moderno e mais aberto. Soluções estáveis para a crise econômico-social não dependem apenas de medidas macroeconômicas consistentes. Requerem, concomitantemente, uma reforma organizacional do Estado que estabeleça nexos mais sólidos com a sociedade; a criação de espaços para formulação de ações concertadas; a recuperação da estrutura e da capacidade de planejamento. Estas mudanças no quadro administrativo e organizacional do Estado, associadas a novas regras institucionalizadas de convivência entre os agentes econômicos e o governo, são factíveis antes mesmo da definição, pela Constituinte, do novo regime.
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Existem, entretanto, elementos de nosso dilema institucional que só poderão ser equacionados pelo processo constituinte e que se encontram no caminho crítico da estabilidade democrática de nosso País. Regimes Democráticos e Representação de Interesses
A ordem institucional da Nova República só será definida, no plano macropolítico, com a nova Constituição. No entremeio, aplicam-se, seletivamente, dispositivos preexistentes e fortalece-se aquela tendência, já referida, à informalidade de acordos e regras, que pode e deve ser compensada por mudanças institucionais e organizacionais de curto prazo. Mas será a definição de uma institucionalidade de longo prazo que determinará as possibilidades de evolução democrática mais estável do País. A dinâmica macropolítica brasileira tem se caracterizado, historicamente, pela coexistência, nem sempre pacífica, de elementos institucionais que, em conjunto, produzem certos efeitos recorrentes e, não raro, desesta bilizadores. Constituem o que se poderia classificar, com acerto, as bases de nossa tradição republicana: o presidencialismo, o federalismo, o bicameralismo, o multipartidarismo e a representação proporcional. Seria ingênuo imaginar que este arranjo político-institucional se tenha firmado arbitrária ou fortuitamente ao longo de nossa história. Na verdade, expressa necessidades e contradições, de natureza social, econômica, política e cultural,
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que identificam histórica e estruturalmente o processo de nossa formação social. Tais características compõem uma ordem política que guarda certas singularidades importantes no que diz respeito à estabilidade institucional de longo prazo, sobretudo quando analisadas à luz das transformações sociais por que passou o País nas últimas quatro décadas, do grau de heterogeneidade estrutural de nossa sociedade e da decorrente propensão ao conflito. Estas singularidades aparecem mais nitidamente quando confrontadas com outros modelos de organização democrática. Toda comparação tem algo de arbitrário. Querer aplicar regras de organização observadas em outras formações sociais, com história e estruturas diversas, corresponderia a um exercício de engenharia institucional artificial e exótico. Mas a observação de experiências distintas pode tornar mais saliente aquilo que já temos em comum com outras democracias e o que há de específico e problemático em nossa vivência, estimulando a busca de soluções a ela apropriadas. A Tabela 1 apresenta um sumário das principais características institucionais das 17 democracias mais estáveis e relevantes do após-guerra e do Brasil, em distintos momentos. Pode-se verificar que o Brasil compartilha, com a maioria, vários elementos: mais da metade desse grupo de países (9/17) adota o sistema proporcional de representação parlamentar; a maioria (13/17) tem parlamentos bicamerais; 70% – (12/17) – têm mais de três partidos com representação superior a 5% na câmara popular e outros três países possuem pelo menos três partidos nesta condição (o número médio de partidos, para o conjunto, é 4). Apenas os Estados Unidos, a Inglaterra e a Nova Zelândia são sistemas bipartidários, por este critério.
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Tabela 1 Características Institucionais das Principais Democracias Ocidentais e do Brasil (1946-64) (Dados referentes aos outros países – 1970’s) País
Regime Eleitoral1
Estrutura do Parlamento1
Alemanha
Misto (Prop. Maj.) M aj o r i t á r i o 4 Proporcional Proporcional Maj. Distrital Proporcional Maj. Distrital Proporcional Maj. Distrital Proporcional Proporcional Maj. Distrital 6 Proporcional Maj. Distrital Maj. Distrital Proporcional Proporcional Proporcional Proporcional
Bicameral
Nº de Partidos com + de 5% % Grandes3 Coalizões na Câmara Popular2 Parlamentar 03 28
Bicameral Bicameral Bicameral Bicameral Unicameral Bicameral Unicameral Bicameral Bicameral Bicameral Bicamerai Bicameral Unicameral Bicameral Bicameral Bicameral Bicameral Bicameral
Parlamentar Parlamentar Parlamentar Parlamentar Parlamentar Presidencial Presidencial5 Parlamentar Parlamentar Parlamentar Parlamentar Parlamentar Parlamentar Parlamentar Parlamentar Colegiado Presidencial Presidencial
Austrália Áustria Bélgica Canadá D in a m a r c a EUA Finlândia França Holanda It ál ia Japão Noruega N. Zelândia Inglaterra Suécia Suíça7 Brasil (1946) Brasil (1986)
% Proporcional % Distrital % Bicameral % Parlamentar Média do Número de Partidos
Forma de Governo
03 03 06 04 05 02 06 04 07 05 04 05 02 02 05 05 05 04
00 19 16 00 00 00 42 74 49 43 20 00 00 13 00 74 80
69% 41% 88% 88% 04
Obs.: 1. Fonte: Fonte: V. V. Herman Herman e F. F. Mende Mendel,l, Parliaments of the World, Londres, MacMillan, 1977. 2. Font Fonte: e: T. T. Mack Mackie ie e R. R. Rose Rose,, The International Almanac of Electoral History, Nova Iorque, Free Press, 1974. 3. Fonte: Fonte: A. Lijphart, Lijphart, ‘Power ‘Power-Sh -Sharing aring versus versus Majori Majority ty Rule...”, Rule...”, op. cit. 4. O sistema sistema australiano australiano é majoritário majoritário por transfe transferência rência simples. simples. 5. Preside Presidencial ncialista, ista, mas mas o parlament parlamentoo pode demiti demitirr o gabinete. gabinete. 6. Regime Regime majoritá majoritário, rio, mas mas com distrit distritos os plurinom plurinominais inais.. 7. O Executivo Executivo é composto composto por por um Conselho Conselho Federal, Federal, de de sete membros, membros, eleitos eleitos pelo parlamento. O presidente e vice-presidente são escolhidos entre os sete, para mandatos de um ano. Inexiste o voto de desconfiança.
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O Brasil praticou o modelo presidencialista, federativo, proporcional e multipartidário ao longo da Repú blica de 1946 e retornou a ele com a Nova República. Na Assembléia Nacional Constituinte, existem quatro partidos com mais de 5% de cadeiras na Câmara, tornando o nosso multipartidarismo rigorosamente médio e desmentindo a preocupação exagerada, hoje corrente, com a “proliferação excessiva de partidos”. Por que exagerada? Em primeiro lugar, porque o próprio sistema eleitoral atua como regulador desse processo, incentivando ou desincentivando a formação de partidos, na medida em que torna os custos, em votos, proibitivos para pequenas legendas de ocasião. A regra de cálculo do quociente partidário e o modo de distribuição distribuiç ão de sobras são mais eficientes, nesse sentido, que qualquer coerção legal. Evidentemente, não é por acaso que uma determinada sociedade apresenta tendência ao multipartidarismo – moderado ou exacerbado. O determinante básico dessa inclinação ao fracionamento partidário é a própria pluralidade social, regional e cultural. O sistema de representação, para obter legitimidade, deve ajustar-se aos graus irredutíveis de heterogeneidade, para não incorrer em riscos elevados de deslegitimação, ao deixar segmentos sociais significativos sem representação adequada. Os sistemas majoritários, embora admitam o multipartidarismo no plano eleitoral, reduzem fortemente as possibilidades de equilíbrio pluripartidário no plano parlamentar. Em ambientes sociais plurais, tendem a estreitar excessivamente as faixas de representação com o risco de simplificar as clivagens e excluir da representação
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setores da sociedade que tenham identidade e preferências específicas. Os sistemas proporcionais ajustamse melhor à diversidade, permitindo admitir à representação a maioria desses segmentos significativos da população e, ao mesmo tempo, coibir a proliferação artificial de legendas, criadas para fins puramente eleitorais e sem maior relevância sócio-política. Alguns exemplos permitem ilustrar melhor este raciocínio. A Inglaterra (Reino Unido) aparece na Tabela 1 como um sistema bipartidário: apenas os partidos Conservador e Trabalhista têm conseguido, nas últimas décadas, obter mais de 5% das cadeiras na House of Commons. Entretanto, nas sete eleições realizadas entre 1950 e 1970, pelo menos sete partidos disputaram cadeiras parlamentares. A maioria dos pequenos partidos é de base regional, como o Nacionalista Irlandês. Dois são partidos nacionais, com identidade programática própria e longa tradição na história política do país: o Liberal e o Comunista. Os comunistas disputam as eleições regularmente desde 1922, embora com pequena expressão eleitoral; os liberais, desde 1885, já tendo sido majoritários majori tários em várias legislaturas, em décadas passadas. No período referido, a votação do Partido Liberal variou entre 2,6 e 11,2%; em cinco das sete eleições mencionadas, foi superior a 5%. No entanto, a representação parlamentar dos liberais variou, no mesmo período, de um mínimo de 1% a um máximo de 1,9%, tornando-o um partido inefetivo no plano parlamentar. No período Thatcher, a votação do Partido Liberal ampliou-se, atingindo a casa dos 20-25% dos votos. Entretanto, sua representação parlamentar persistiu fortemente defasada em relação à sua posição nas escolhas populares.
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Caso polar é a Holanda, de multipartidarismo exacerbado: sete partidos tinham representação superior a 5% na Tweede Kamer, a câmara popular, em 1970. Mais de 15 partidos disputaram aquelas eleições. Destes, três obtiveram 10% ou mais dos votos – o Católico Popular (17,7%), o Trabalhista (27,3%) e o Liberal (14,4%) –, votação que lhes assegurou, respectivamente, 18, 28,7 e 14,7% das cadeiras na Tweede Kamer. Outros três partidos obtiveram entre 5 e 10% dos votos – o Radical (5%), o Anti-Revolucionário (8,8%) e a União Cristã Histórica (5%) –, que se traduziram em 4,7, 9,3 e 4,7% das cadeiras, respectivamente. Enquanto o regime inglês de representação apresenta um forte potencial de exclusão de minorias significativas, o holandês reflete aproximadamente o pluralismo existente na sociedade e o conseqüente perfil de preferências. Este potencial de exclusão, em situações de maior heterogeneidade social, pode transformar-se transforma r-se em sério risco à estabilidade da ordem política, anulando a sua aparente superioridade, que seria, segundo alguns autores, a produção de maiorias estáveis. Se essas maiorias forem muito artificiais, resultado da regra de representação e não das escolhas eleitorais, dificilmente contribuirão para a legitimidade do sistema de representação. A segunda razão pela qual a preocupação com a proliferação de partidos é exagerada refere-se ao fato de que os regimes proporcionais, mesmo quando adotam critérios de transformação de votos em cadeiras que promovem a máxima proporcionalidade e não desincentivam a fragmentação partidária, apresentam diferenças ponderáveis entre o número de partidos que disputam as eleições e o número de partidos com efetiva repre-
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sentação parlamentar. Assim, a garantia de representação a minorias significativas não determina, necessariamente, a inviabilidade de maiorias estáveis, embora implique, com freqüência, a necessidade de coalizões governamentais. Novamente o exemplo polar da Holanda é elucidativo a respeito: o número de partidos com representação parlamentar efetiva representa menos da metade do número de partidos eleitorais. Por outro lado, os dados da Tabela 1 mostram que, apesar de ser grande o número de partidos com expressão parlamentar, apenas 49% dos governos, no após-guerra, constituiram-se com base em grandes coalizões. A França, por exemplo, um sistema majoritário-distrital, com quatro partidos controlando mais de 5% das cadeiras na câmara popular, teve 74% de seus governos baseados em grandes coalizões. Para as 17 democracias incluídas na Tabela 1, verifica-se que o número médio de partidos parlamentares é 4 (a mediana é 5), com uma variação que tem como limite inferior os sistemas bipartidários e, como limite superior, o multipartidarismo holandês, com seus sete partidos parlamentares. Já o quadro partidário-eleitoral é bastante distinto: o número de partidos que disputam as eleições varia de 2 a 15 e o número médio de partidos eleitorais é 7. Em suma, a própria dinâmica eleitoral contém elementos de auto-regulação que reduzem a fragmentação parlamentar em relação à fragmentação eleitoral. Além disso, a capacidade de formar maiorias estáveis e a necessidade de recorrer a coalizões não são exclusivamente determinadas pela regra de representação, nem pelo número de partidos, mas também pelo
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perfil social dos interesses, pelo grau de heterogeneidade e pluralidade na sociedade e por fatores culturais, regionais e lingüísticos, entre outros, que não são passíveis de anulação pela via do regime de representação. Ao contrário, a tentativa de controlar a pluralidade, reduzindo artificialmente o número de partidos representados no parlamento e aumentando as distorções distributivas na relação voto/cadeira, pode tornar-se um forte elemento de deslegitimação e instabilidade. Nesta visão mais relativizada dos limites e possi bilidades dos regimes de representação partidário-eleitoral em democracias estáveis, o caso brasileiro não apresenta desvios notáveis. Nenhum momento de sua história parlamentar entre 1946 e 1964, nem na Nova República, caracteriza-se pela exacerbação do multipartidarismo no Congresso. Um traço da legislação eleitoral brasileira não analisado neste trabalho, que tem merecido a atenção dos analistas, refere-se à possibilidade de coligações eleitorais. De fato, por razões legais ou desincentivos embutidos nos sistemas eleitorais, as coligações são pouco freqüentes nas democracias constantes da Tabela 1. Certamente, a ampliação das coligações, como ocorreu nas eleições de fins da década de 50 e início dos anos 60, no Brasil, subverte o quadro partidário, confundindo o alinhamento entre legendas e contaminando as identidades partidárias. Esta é uma característica distintiva do modelo brasileiro em comparação com as democracias “maduras”. Dos 17 países aqui contemplados, apenas a penas três apresentam alguma incidência de coligações eleitorais para a câmara popular, porém com intensidade e freqüência bastante menores que as observadas no caso
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brasileiro. Nas eleições francesas de 1967 e 1968, coligações eleitorais obtiveram 35,3 e 28,7% dos votos e 34,5 e 18,7% das cadeiras, respectivamente. Na Itália, em 1968, coligações capturaram 14,5% dos votos e 14,4% das cadeiras. Finalmente, no Japão, em 1958, alianças eleitorais parlamentares conseguiram 33% dos votos e 35% das cadeiras. Mas, neste particular, de fato, o Brasil destaca-se como desviante. Coligações e alianças representam a exceção, não a regra, naquelas democracias, enquanto no Brasil, a partir de 1950 , passaram, progressivamente, a constituir a regra. Basta verificar que, em 1950 , alianças e coligações receberam 20% dos votos e em 1962 este percentual atingiu quase 50%.4 É possível perceber, até intuitivamente, que a possibilidade de alianças e coligações amplia adicionalmente o campo de escolhas eleitorais, elevando a fragmentação partidária, na medida em que não apenas garante a sobrevivência parlamentar de partidos de baixa densidade eleitoral, mas também multiplica as possibilidades de escolha além das fronteiras das legendas partidárias. Este problema será reexaminado mais adiante, quando da análise daquilo que diferencia a experiência institucional brasileira das experiências democráticas que lograram estabilidade e maturidade. O importante a considerar é que, mesmo com a alta incidência de alianças e coligações eleitorais, uma vez recomposto o alinhamento partidário, no plano parlamentar, o Brasil não apresenta índices de fracionamento muito destoantes daqueles Para uma análise das alianças e coligações no Brasil e correspondentes referências bibliográficas ver Olavo Brasil de Lima Junior, Os Partidos Políticos Brasileiros, Rio de Janeiro, Graal. 1983. 4
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observados nas democracias proporcionais, o que qualifica ainda mais a preocupação com a alegada exacer bação de nosso multipartidarismo. A Tabela 2 apresenta algumas medidas de concentração ou dispersão da força dos partidos nas câmaras populares, o que permite avaliar mais finamente a questão da formação de d e maiorias. A primeira coluna apresenta o índice de fracionamento partidário nominal de Rae.5 Apesar da terminologia, este índice é de fácil compreensão: varia de O a 1, ou seja, da concentração absoluta das cadeiras, em um sistema unipartidário, à dispersão extrema, na verdade irrealizável na prática, em que cada cadeira corresponderia a um partido diferente e o índice atingiria a unidade. Um sistema bipartidário perfeito (FP = 0,50) seria considerado o ponto de dispersão (ou fracionamento) intermediário e os sistemas multipartidários ocupariam o continuum a partir de, aproximadamente, 0,55. O Quadro 1 apresenta as três medidas mais elucidativas da Tabela 2, distribuídas de acordo com uma classificação dos sistemas partidário-parlamentares: os índices de fracionamento partidário-parlamentar (FP), de concentração de cadeiras pelo maior partido (IC) e de concentração de cadeiras pelos dois maiores partidos (ICA). FP é forte e negativamente correlacionado com os outros dois, na medida em que são todos medidas de concentração (R de Pearson = - 0,92 e - 0,94, e R de Spearman = 0,91 e - 0,97, respectivamente). Conjuntamente, descrevem o perfil de distribuição de cadeiras na Para maiores detalhes, cf. D. Rae, The Political Consequences of Electoral Laws, New Haven, Yale University Press, 1967.
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câmara popular. A classificação dos sistemas baseou-se no número de partidos com mais de d e 5% de cadeiras. Com esta apresentação, torna-se mais fácil compreender o efeito do fracionamento parlamentar e seu significado na análise do “grau de multipartidarismo”. Observa-se que os sistemas bipartidários reais aqui analisados apresentam, efetivamente, tanto índices de fracionamento próximos a 0,50, quanto relativo equilíbrio de forças entre os dois partidos efetivos no parlamento (IC e ICA). ICA). Apenas para ilustrar, a proporção de cadeiras do segundo partido na Inglaterra era de 46%. Os sistemas tripartidários apresentam índices de fracionamento entre 0,55 e 0,60. Todos os três são, de fato, casos limítrofes, que apresentam altos índices de concentração, similares aos dos sistemas bipartidários. Na Áustria, por exemplo, o índice de concentração de cadeiras pelos dois maiores partidos (ICA) é de 0,95, restando, portanto, ao terceiro partido, apenas 5% das cadeiras. Este índice é de 0,98 para a Inglaterra. A Austrália, embora apresente um índice de concentração mais elevado para o maior partido, apresenta maior dispersão entre os outros dois, o que faz com que o índice de concentração acumulado caia para 0,84 – ainda muito alto quando comparado aos dos sistemas multipartidários. O primeiro grupo de democracias multipartidárias é constituído por aqueles países que têm quatro partidos com representação parlamentar igual ou superior a 5%. 5%. Aí se incluem duas legislaturas brasileiras do período pré64 e a Assembléia Nacional Constituinte. Há dois casos desviantes neste grupo. O primeiro é o da França que, embora tenha quatro partidos com pelo menos 5% das cadeiras na Assemblée Nationale, apresenta um índice de
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fragmentação correspondente a um sistema bipartidário concentrado e inferior aos índices das democracias bipartidárias do Quadro 1. Examinando-se os índices de concentração, verifica-se que, de fato, a França de 1968 era um sistema multipartidário peculiar, peculiar, caracterizado pela hegemonia dos gaullistas, que concentravam 76% das cadeiras da Assembléia. Não por acaso, um sistema em crise. Contudo, em anos anteriores, o sistema multipartidário francês apresentava índices inteiramente compatíveis com os dos outros sistemas multipartidários com fracionamento médio. O índice de fracionamento parlamentar (FP) da Assemblée Nationale, em 1967, por exemplo, era de 0,66, e o índice de concentração (IC) , , de 0,49. O segundo caso desviante é o do Brasil, na legislatura de 1951, que apresenta um índice de fracionamento parlamentar mais elevado, característico de sistemas multipartidários com fracionamento mediano. Novamente, encontra-se a explicação nos índices de concentração. O maior partido concentrava uma proporção relativamente pequena das cadeiras (IC = 0,37) e havia um relativo equilíbrio entre os três maiores (PSD, UDN e PTB): a diferença na proporção de cadeiras do primeiro para o segundo e do segundo para o terceiro era de 10 pontos percentuais. Esta “concentração competitiva” determinava, de um lado, a maior dispersão do poder parlamentar entre os três partidos e, de outro, uma acentuada distância entre estes e os partidos menores, estabilizando a representação efetiva em quatro partidos. Isto tornava, porém, a legislatura de 1951 um sistema partidário-parlamentar de transição, indicando o movimento na direção da consolidação de um quadro multipartidário com cinco partidos parlamentares efetivos.
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Tabela 2 Indices de Fracionalização Parlamentar Parlamentar,, Concentração, Oposição e Grandes Coalizões para Democracias Selecionadas (1970’s) e Brasil (45,50,54,58,62 e 87) Países
FP
IC
I0
ICA
Dinamarca Austrália Al e m an h a Áustria Bélgica Canadá Fi n l ân d i a França Itália Holanda Japão Noruega N. Zelândia Inglaterra Suécia Suíça Brasil 45 Brasil 50 Brasil 54 Brasil 58 Brasil 62 Brasil 87
0,75 0,59 0,57 0,55 0,78 0,65 0,82 0,42 0,72 0,84 0,63 0,72 0,47 0,52 0,70 0,82 0,64 0,76 0,78 0,78 0,78 0,65
0,40 0,54 0, 46 0,51 0,32 0,41 0,27 0,74 0,42 0,29 0,55 0,49 0,63 0,52 0,47 0,24 0,53 0,37 0,35 0,35 0,29 0,53
0,60 0,46 0,54 0,49 0,68 0, 59 0,73 0,26 0,58 0,71 0,45 0,51 0,37 0,48 0,53 0,76 0,47 0,63 0,65 0,65 0,71 0,47
0,58 0,84 0,91 0,95 0,61 0,81 0,45 0,86 0,70 0,46 0,79 0,62 1,00 0,98 0,67 0,47 0,80 0,64 0,58 0,56 0,57 0,77
GC 0 0 28 19 16 0 42 74 43 49 20 0 0 13 0 74 80*
**
Fontes: Fontes: Lúci Lúciaa Hippol Hippolit ito, o, De Raposas e Reformistas..., op. cit., e T. Mackie e R. Rose, The International Almanac..., op. cít.; os cít.; os índices foram desenvolvidos por D. Rae. The Political Consequences..., op. cit. FP IC
– Fracionalização Par Parlamentar. – Índi Índice ce de de Conc Concen entr traç ação ão de de Cade Cadeir iras as pel peloo Maio Maiorr Part Partid ido: o: prop propor orçã çãoo de cade cadeir iras as obtidas pelo maior partido. I0 I 0 – Índice de Oposição. ICA IC A – Índice Índice de de Concen Concentra tração ção de de Cadeir Cadeiras as Acumu Acumulad ladas as pelos pelos Dois Dois Maior Maiores es Parti Partidos dos:: soma da proporção de cadeiras obtidas pelos dois maiores partidos. GC GC – Grandes coalizões *No período 1946-64, 80% dos governos foram grandes coalizões **O governo atual corresponde a uma grande coalizão, mas atribuir-lhe um percentual careceria de sentido.
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Quadro 1 Fracionamento Parlamentar em Democracias Selecionadas Sistemas Bipartidários* Bipartidários
FP
IC
ICA IC A
Nova Zelândia Inglaterra Sistemas T ripartidários ripartidários Austrália Alemanha Áustria Sistemas Multipartidários com Fracionamento Médio Canadá França Japão Brasil (1946) Brasil (1951) Brasil(1986) Sistemas Multipartidários com Fracionamento Mediano Dinamarca Bélgica Itália Noruega Suécia Suíça Brasil (1955) Brasil (1959) Brasil (1963)
0,47 0,52
0,63 0,52
1, 0 0,98
0,59 0,57 0,55
0,54 0,46 0,51
0,84 0,91 0,95
0,65 0,42 0,63 0,64 0,76 0,65
0,41 0,74 0,55 0,53 0,37 0,53
0,81 0,86 0,79 0,80 0,64 0,77
0,75 0,78 0,72 0,72 0,70 0,82 0,78 0,78 0,78
0,40 0,32 0,42 0,49 0,47 0,24 0,35 0,35 0,29
0,58 0,61 0,70 0,62 0,67 0,47 0,58 0,56 0,57
0,82
0,27
0,45
0,84
0,29
0,46
Sistemas Multipartidários Multipartidários com Alto Fracionamento Finlândia Holanda
Fonte: International Almanac..., op. cit. * Os critérios utilizados para para a classificação do Quadro 1 foram os seguintes: sistemas bipartidários – dois partidos com mais de 5% na câmara popular; tripartidários – três partidos com mais de 5%; multipartidários com fracionamento médio – quatro partidos com mais de 5% (este é o número médio de partidos efetivos da amostra); com fracionamento mediano – cinco partidos com mais de 5% (esta é a mediana do número de partidos da amostra); com alto fracionamento – seis ou mais partidos com mais de 5%.
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De fato, as legislaturas seguintes, de 1955, 1959 e 1963, fazem parte do conjunto de sistemas multipartidários com fracionamento mediano. Estes constituem o segundo bloco de democracias multipartidárias, aquelas que, juntamente com as que apresentam sistemas com alto fracionamento, caracterizam-se por graus elevados de heterogeneidade ou pluralismo social – as sociedades plurais. Seus sistemas multipartídários multipartídários e seus regimes proporcionais respondem, efetivamente, a essa pluralidade irredutível, e não por acaso a dinâmica democrática é consociacional na quase totalidade dos países aí incluídos.6 Os índices de fracionamento parlamentar desses sistemas variam entre 0,70 e 0,80. A Suíça Suíça é, claramente, cla ramente, um caso limítrofe, que oscila entre o fracionamento mediano e o alto, entre cinco e sete partidos parlamentares efetivos (FP = 0,82 e IC = 0,24). Finalmente, tem-se os dois casos de alto fracionamento, Finlândia e Holanda, com mais de cinco partidos parlamentares efetivos, índices de fracionamento parlamentar superiores a 0,80 e índices de concentração em torno de 0,30. O Brasil, como se vê, não apresenta qualquer desvio importante, neste particular, em relação a várias – na verdade a maioria – das democracias estáveis do Ocidente. Tem um sistema multipartidário, com fracionamento parlamentar entre o médio e o mediano, índices em nada dessemelhantes àqueles observados em vários países que gozam de estabilidade democrática e alta legitimidade. Sobre as democracias consociacionais. ver A. Lijphart, The Politics of Accommodation, Berkeley, University of California Press, 1968, e “Consociational Democracy”. World Politics, vol.XXI, n.2. 1969. 6
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O exame do que ocorreu no período 1946-64 indica uma trajetória bastante clara na direção da consolidação de um sistema multipartidário, com fracionamento parlamentar mediano, com cinco partidos parlamentares efetivos e o poder parlamentar dividido entre os três maiores. Essa estabilização é indicada pela regularidade do índice de fracionamento (0,78) nas três últimas legislaturas. As duas primeiras apresentam-se como sistemas de transição: a primeira, empolgada pela forte representação conferida ao Partido Social Democrático – PSD, partido que assumira a liderança do processo de institucionalização da nova ordem; a segunda, refletindo a rápida mudança no alinhamento partidário, com o crescimento do PTB, que representava os setores urbanos e mais progressistas do movimento de institucionalização da democracia populista. popul ista. A última legislatura apresenta uma distribuição mais igualitária da representação entre os três maiores partidos, que se anuncia na queda do índice de concentração (IC) para 0,29.7 Vale ainda mencionar, a esse respeito, a proximidade dos índices observados para a atual Assembléia Nacional Constituinte e a primeira legislatura da “República de 46”: tanto o índice de fracionamento parlamentar quanto os índices de concentração atingem valores muito próximos. Não pretendo retirar conclusões a respeito dessa coincidência, mas creio ser razoável considerar a possibilidade de que, agora, como antes, o sistema partidário-parlamentar que emerge do processo de transição e inaugura o processo de institucionalização democrática, após prolongado ciclo Sobre a evolução e o desempenho da “República de 46”, ver Wanderley Guilherme dos Santos, Crise e Castigo. São Paulo: Vértice, 1987. 7
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autoritário, é, ele mesmo, de transição. Caracteriza-se pela forte representação de um só partido, identificado com a liderança mesma desse processo, como também por pressões subjacentes que apontam para um provável realinhamento das forças partidárias. Poder-se-ia esperar que, se não forem alteradas as regras de representação proporcional, o novo sistema partidário brasileiro torne-se um sistema multipartidário com fracionamento mediano. Independentemente dessa possibilidade, que apontaria para certas regularidades em nosso processo político, assentadas em características estruturais de nossa sociedade e em traços bastante fortes de nosso padrão político-institucional, pelo menos uma coisa é evidente: as peculiaridades institucionais que compõem o nosso dilema político não dizem respeito ao nosso regime de representação, nem ao nosso sistema partidário; compartilhamos as principais características de ambos com a maioria das democracias estáveis do mundo. Mais significativo do que as semelhanças entre as experiências brasileiras e outros regimes democráticos talvez seja aquilo que diferencia o modelo brasileiro – traços até agora permanentes de nossa organização, nos ciclos democráticos, e que persistiram, com as distorções inevitáveis, nos períodos autoritários. Presidencialismo de Coalizão: A Especificidade do Modelo Brasileiro
A primeira característica que marca a especificidade do modelo brasileiro, no conjunto das democracias aqui analisadas, é o presidencialismo. A grande maioria (76%:13/17) dos regimes liberais-democráticos do após-
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guerra é parlamentarista. Na verdade, a única democracia puramente presidencialista é a dos Estados Unidos da América do Norte, que, aliás, tem recebido freqüentemente, por parte dos analistas, a denominação de “presidencialismo imperial”. A França de De Gaulle foi fortemente presidencialista, mas trata-se de uma forma mista, na qual o parlamento tem o poder de destituir o ministério. A França da coabitação é parlamentarista – o primeiro-ministro é o efetivo Chefe do governo, embora o presidente retenha um feixe considerável de atribuições e poderes. A Finlândia é considerada, tecnicamente, regime de gabinete, pois seu presidencialismo é qualificado pelo poder de dissolução do gabinete pelo parlamento. Finalmente, na Suíça não existe o voto de confiança, mas o Executivo é comandado por um Conselho Federal, de sete membros, eleito pelo parlamento. O presidente e o vice-presidente vice-presidente do Conselho são escolhidos entre seus membros, para mandatos anuais. É nas combinações mais freqüentes entre características institucionais, e não em sua presença isolada, que a lógica e a especificidade de cada modelo emergem. É também aí que se revela a natureza do regime até agora praticado no Brasil. Não existe, nas liberais-democracias mais estáveis, um só exemplo de associação entre representação proporcional, multipartidarismo e presidencialismo. A França da V República, Repúblic a, que já teve seu período de inclinação presidencialista, é, como se viu, um regime misto, de representação majoritária-distrital e multipartidário com fracionamento médio. O sistema dos EUA é presidencialista, bipartidário e majoritário-distrital. As democracias proporcionais são todas multipartidárias e parlamentaristas, com as duas exceções mencionadas da
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Suíça e da Finlândia, elas mesmas constituindo modelos com razoável grau de especificidade. Essa composição de regimes, pela agregação de suas principais regras institucionais de representação e controle, já seria suficiente para esclarecer as variações mais importantes entre distintos modelos de democracia. Há, contudo, um elemento ligado ao funcionamento macropolítico dessas democracias – portanto empírico – que as separa na própria lógica de seu movimento. Trata-se da necessidade, mais ou menos freqüente, de recurso à coalizão interpartidária para formação do Executivo (gabinete). A última coluna da Tabela 1 apresenta a freqüência com que essas democracias foram governadas por “grandes coalizões”, nos períodos de 1918-40 e 194570. 70. Na última linha encontra-se a proporção de “grandes coalizões” no Brasil, entre 1946 e 1964. Vale notar que o primeiro governo da Nova República instalou-se com base em uma grande coalizão e as alterações ministeriais já promovidas pelo Presidente da República mantêm a Aliança Democrática. Mas seria precipitado atribuir alguma freqüência a este período. O que se pode verificar é que quatro países apresentam proporção significativa de governos de coalizão (freqüência > 40%), abrangendo mais parceiros que o necessário para obter maioria simples no parlamento. Evidentemente, essas coalizões são marcadas por maior heterogeneidade interna. Observe-se, também, que são sociedades com maior grau de pluralismo e diferenciação sociais.8 São amplamente conhecidas as clivagens cultuCf. A. Lijphart, “Power-Sharing versus Majority Rule: Patterns of Cabinet Formation inTwenty Democracies”, Government and Opposition, vol. 16, n.4, 1981, pp. 395-413. 8
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rais e religiosas que marcam o panorama social holandês.9 A Finlândia é uma sociedade fortemente fragmentada, na fronteira entre a Europa Ocidental e a Eslávica, tendo sofrido influências marcantes da Rússia e da Suécia e apresentando importantes divisões sócio-culturais.10 Não é menor a propensão ao conflito, derivada de heterogeneidades na estrutura sócio-econômica, na Itália11 e na França.12 Em ambos os países existem estruturas multipartidárias ideologicamente diferenciadas e polarizadas. Três outros países apresentam moderada incidência de grandes coalizões (em torno de 20%): a Alemanha, o Japão e a Áustria. Alemanha e Áustria também caracterizam-se por clivagens sociais ou regionais importantes.13 O Japão tem enfrentado dificuldades de compatibilizar efetivamente seu quadro institucional ocidentalizado e suas características sócio-culturais mais permanentes.14 A freqüência de coalizões reflete a fragmentação partidário-eleitoral, por sua vez ancorada nas diferenciações sócio-culturais; é improvável a emergência sistemática de governos sustentados por um só partido majoritário. Essa correlação entre fragmentação partidária, diCf. A. Lijphart, “The Netherlands: Netherl ands: Continuity Continuit y and Change in Voting Voting Behavior”, in R. Rose, ed., Electoral Behavior: A Comparative Handbook, Nova Iorque, Free Press, 1974, pp. 227-71. 10 Cf. P. Pesonen, “Finland: Party Support in a Fragmented System”, in R. Rose, ed., Electoral Behavior..., op. cit., pp. 271-315. 11 Cf. S.H. Barnes, “Italy: Religion and Class in Electoral Behavior, in R. Rose, ed., Electoral Behavior..., op. cit., 171-227. 12 Cf. P. Converse, Political Representation in France, Cambridge, The Belknap Press, 1986. 13 Cf., para o caso da Alemanha, D.W. Urwin, “Germany: Continuity and Change in Electoral Politics”, in R. Rose, ed., Electoral Behavior..., op. cit., pp. 109-71. 14 Cf. R.A. Scalapino e J. Masumi, Parties and Politics in Contemporary Japan, Berkeley, University of California Press, 1962. 9
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versidade social e maior probabilidade de grandes coalizões beira o truísmo. É nas sociedades mais divididas e mais conflitivas que a governabilidade e a estabilidade institucional requerem a formação de alianças e maior capacidade de negociação. Porém, muitas análises do caso brasileiro e, sobretudo, a imagem que se tem passado para a opinião pública do País é que nossas mazelas derivam todas de nosso sistema de representação e das fragilidades de nosso quadro partidário. O que fica claro, no entanto, é que nossos problemas derivam muito mais da incapacidade de nossas elites em compatibilizar nosso formato institucional com o perfil heterogêneo, plural, diferenciado e desigual de nossa ordem social. A unidade lingüística, lingü ística, a hegemonia do catolicismo e a recusa ideológica ideológ ica em reconhecer nossas diversidades e desigualdades raciais têm obscurecido o fato de que a sociedade brasileira é plural, movida por clivagens subjacentes pronunciadas e que não se resumem apenas à dimensão das classes sociais; têm importantes componentes sócio-culturais e regionais. As regras de representação e o sistema partidário expressam essa pluralidade; não a podem regular, regular, simplificando-a ou homogeneizando aquilo que é estruturalmente heterogêneo. Basta ver que as sociedades que precisam recorrer a grandes coalizões apresentam importantes variações institucionais. Isto indica, precisamente, que a regra institucional adapta-se à realidade social, garantindo, assim, a representatividade e a estabilidade da ordem política. O reexame dos dados até aqui apresentados ilustra essa afirmação. Dos quatro países que recorreram freqüentemente a grandes coalizões, um, a França, tem
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O Sistema Partidário na Consolidação da Democracia Brasileira
regime majoritário-distrital, parlamentarista, e sistema multipartidário com fracionamento médio. A Itália tem regime proporcional, parlamentarista, e sistema multipartidário com fracionamento mediano. Holanda e Finlândia têm regimes proporcionais, sistemas multipartidários com alto fracionamento, mas a primeira é parlamentarista e a outra presidencialista com controle parlamentar sobre o gabinete. Se adicionamos os outros três casos de recurso “moderado” a grandes coalizões, a variação se amplia ainda mais: a Alemanha tem regime misto majoritáriodistrital/proporcional, sistema tripartidário e é parlamentarista. A Áustria, de regime proporcional, é parlamentarista e tripartidária. E, finalmente, o Japão, de regime majoritário distrital, é parlamentarista e tem sistema multipartidário com fracionamento médio. Ou seja, não há correlação entre características institucionais do regime e do sistema partidário e o recurso a grandes coalizões. Aliás, tome-se como exemplo final Inglaterra e Suécia. A primeira, de fato um sistema bipartidário quase perfeito no plano parlamentar, majoritária-distrital, teve, no período analisado por Lijphart, 13% de seus governos baseados em grandes gra ndes coalizões. A segunda, fortemente proporcional, com sistema multipartidário medianamente fracionado, jamais recorreu a grandes coalizões no período. Apenas uma característica, associada à experiência brasileira, ressalta como uma singularidade: o Brasil é o único país que, além de combinar a proporcionalidade, o multipartidarismo e o “presidencialismo imperial”, organiza o Executivo com base em grandes coalizões. A esse traço peculiar da institucionalidade concreta brasileira chamarei, à falta de melhor nome, “presidencialismo de coalizão”, distinguindo-o distinguindo -o dos regimes da
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Áustria e da Finlândia (e a França gaullista), tecnicamente parlamentares, mas que poderiam ser denominados de “presidencialismo de gabinete” (uma não menos canhestra denominação, formada por analogia com o termo inglês cabinet government). Fica evidente que a distinção se faz fundamentalmente entre um “presidencialismo imperial”, baseado na independência entre os poderes, se não na hegemonia do Executivo, e que organiza o ministério como amplas coalizões, e um presidencialismo “mitigado” pelo controle parlamentar sobre o gabinete e que também constitui este gabinete, eventual ou freqüentemente, através de grandes coalizões. O Brasil retorna ao conjunto das nações democráticas, sendo o único caso de presidencialismo de coalizão. É preciso compreender melhor a dinâmica do presidencialismo de coalizão coaliz ão no Brasil. A Nova República repete a de 1946 que, por sua vez, provavelmente manteve resquícios da República Velha, sobretudo no que diz respeito à influência dos estados no governo federal, pela via da “política de governadores”. A lógica de formação das coalizões tem, nitidamente, dois eixos: o partidário e o regional (estadual), hoje como ontem. É isto que explica a recorrência de grandes coalizões, pois o cálculo relativo à base de sustentação política do governo não é apenas partidário-parlamentar, mas também regional. Adicionando-se à equação os efeitos políticos de nossa tradição constitucional, de constituições extensas, que extravasam o campo dos direitos fundamentais para incorporar privilégios e prerrogativas particulares, bem como questões substantivas, compreende-se compreende -se que, mesmo no eixo partidário-parlamentar, partidário-parlamentar, torna-se necessário que o governo
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O Sistema Partidário na Consolidação da Democracia Brasileira
procure controlar pelo menos a maioria qualificada que lhe permita bloquear ou promover mudanças constitucionais. A Tabela 3 ilustra bem o padrão de coalizões governamentais na República de 46. O Brasil teve, no período, 13 ministérios diferentes, tomando-se por critério alterações na composição do gabinete que promoveram mudança na ocupação de ministérios pelos diferentes partidos. Por este critério, por exemplo, a presidência de Kubitschek teve apenas um ministério, embora tenha havido várias mudanças de titulares de diferentes pastas. Mas a substituição de ministros manteve rigorosamente o controle partidário original dos ministérios, alterandose apenas o estado de origem dos titulares. Observe-se que, em nenhum caso, o governo sustentou-se em coalizões mínimas. O caso mais próximo desta situação foi o último ministério parlamentarista da presidência Goulart, tipicamente um ministério de crise. As coalizões controlavam, na quase totalidade dos casos, larga maioria na Câmara, no Senado e no Congresso Nacional. Dependendo da distribuição das cadeiras parlamentares entre os partidos, pode tornar-se impraticável formar coalizões mínimas. Se, por exemplo, a proporção de cadeiras de um partido não for suficiente para alcançar a maioria simples e a adição de qualquer outro partido ultrapassar esta marca, é inevitável a constituição de uma grande coalizão, se o presidente considerar arriscado, inconveniente ou mesmo inviável governar com minoria. Não foi esta, porém, a situação brasileira no período 194664. A última coluna da Tabela 3 apresenta o número de coalizões mínimas possíveis, em cada ministério, levandose em conta apenas os partidos que participaram das
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grandes coalizões, em cada governo. Não se considerou o número de coalizões mínimas possíveis, tomando por base os partidos parlamentares efetivos, o que, em alguns momentos, subestima os graus de liberdade na formação de coalizões mínimas possíveis. Em todos os casos havia pelo menos uma coalizão mínima possível. Conclui-se, portanto, que o cálculo dominante requeria coalizões ampliadas, seja por razões de sustentação partidárioparlamentar, seja por razões de apoio regional. O Quadro 2 apresenta o controle de ministérios pelos diferentes partidos que participaram de coalizões governamentais. O número de partidos admitidos ao governo é maior do que a média de partidos parlamentares efetivos, que foi de cinco partidos – uma pista de que a formação de coalizões não seguia seg uia apenas a lógica partidário-parlamentar, como já indiquei acima. Além disto, pode-se ver que, embora o PSD não apresente domínio forte, no conjunto, controlou, por maior período de tempo, a maioria dos ministérios estratégicos. Basta comparar o total (36% dos ministros) com as porcentagens para, por exemplo, os ministérios da Justiça (68%), Fazenda (47%) e Viação e Obras Públicas (47%). O PTB controlou os ministérios da Agricultura (59%) e Trabalho, Indústria e Comércio (79%), mantendo-se como o principal ocupante do Ministério do Trabalho e Previdência Social (44%) a partir de 1961. O PSP fez 40% dos ministros da Saúde, ministério criado na segunda presidência de Vargas. O PR nomeou 30% dos ministros da Educação e Cultura, também a partir da divisão do Ministério da Educação e Saúde, o qual havia sido hegemonicamente controlado pelo PSD.
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Tabela 3 Coalizões Partidárias no Executivo Brasileiro Período 1946-64 1 Coalizões de Governo2 Dutra I Ministério De 01.46 a 10.46 II Ministério De 10.46 a 03.50 III Ministério De 03.50 a 01.51
Nº de Partidos na Coalizão
% Cadeiras % Cadeiras na Câmara no Senado
% Cadeiras no Congresso
N. de Partidos na3 Câmara
03
87%
91%
8 6%
10 (0 4)
03
82%
86%
81%
10 (04)
02
64%
73%
6 4%
12 (0 6)
Vargas I Ministério De 01.51 a 06.53 II Ministério De 06.53 a 09.54
04
89%
91 %
89%
12 (06)
04
85%
89 %
85%
12 (06)
Café Filho I Ministério De 09.54 a 04.55 II Ministério De 04.55 a 11.55
04
85%
91%
89%
12 (06)
05
82%
89%
8 0%
12 (0 6)
68%
70 %
67%
12 (06)
Nereu Ramos De 11.55 a 01.56 Kubitschek 4
De 01.56 a 01.61
04
68 %
70%
67%
12 (06
Quadros De 01.61 a 08.61
06
92%
91 %
93%
12 (06)
05
83%
89 %
86%
13 (05)
04
79%
87 %
79%
13 (05)
03
56%
74 %
59%
13 (05)
05
85%
85%
8 5%
13 (0 5)
04
63%
65%
6 3%
13 (0 5)
Goulart I Ministério 5 De 09.61 a 07.62 II Ministério De 07.62 a 09.62 III Ministério De 09.62 a 01.63 IV Ministério De 0l.63 a 06.63 V Ministério De 06.63 a 04.64
Fonte: Lúcia Hippolito, De Raposas e Reformistas..., Reformistas..., op. cit. 1. As coalizões coalizões possíveis foram foram calculadas com base no número de partidos no ministério. 2. Foram considerad consideradas as novas coalizões coalizões aquelas aquelas mudanças de ministério ministério que alteraram alteraram a distribuição de ministérios entre os partidos. 3. Os valores valores entre parênteses parênteses correspo correspondem ndem aos partidos partidos com mais mais de 3%. 4. Neste governo, governo, não houve houve mudanças mudanças na distribuição distribuição de ministérios ministérios entre entre os partidos. Houve trocas importantes de ministros dentro do mesmo partido e entre os estados. 5. Os três primeiros primeiros ministér ministérios ios de Goulart Goulart foram parlament parlamentarist aristas. as.
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Quadro 2 dos Ministério.— 1946/64 Controle Partidário Controle Partidário Partidário dos PSD PSD
U DN UDN UD N
PTB
Ministérios
N
%
N
% N
%
Justiça J u s t i ç a.
15 68 68
02
09 02
R.Ext.
06 40
05
Faz.
09 47 47
Viação
PSB N
%
PDC N
PR
PSP partido
Sem Sem
Total N
%
N
%
N
%
N
%
%
09 02 09
— —
01
05 —
—
—
— 22 100
33 01
07 03 20
— —
—
— —
—
—
— 15 100
02
11 02
11 — —
01 05
—
— —
—
05
25 19 100
08 46 46
02
12 03
18 — —
— —
—
— 01
06
03
18 17 100
Agr.
04 23
0l
06 10
59 59 — —
01 06
01
06 —
—
—
— 17 100
Ed.e Saúde
04 80 80
01
20 —
— — —
— —
—
— —
—
—
— 05 10 100
T.I.C.
01 07
—
— 11
79 79 — —
— —
—
— —
—
02
14 14 10 1 00
Saúde
04 27
—
— 02
13 — —
— —
—
— 06
40 40
03
20 15 100
MEC
01 10
—
— 01
10 01 10
01 10
03
30 30 01
10
02
20 10 100
T.P.S.
01 14
—
— 03
44 44 01 14
01 14
—
— —
—
01
14 07 100
MI C
02 40 40
01
20 01
20 — —
— —
01
20
— —
—
— 05 100
Minas
01 20
04
80 80 —
— — —
— —
—
— —
—
—
— 05 10 100
Total
56 37
18
12 36
24 07 05
04 03
06
04 08
05
16
11 151 —
Fonte: L. Hippolito, De Raposas e Reformistas: o PSD e a Experiência Democrática Brasileira (1945-64), Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985. Os maiores percentuais de controle partidário, para cada ministério, aparecem no quadro em negrito.
Essa capacidade de controle ministerial nem sempre correspondeu ao peso dos partidos no Congresso, sobretudo no que se refere aos partidos menores. Alguns exemplos demonstrarão a diferença entre o peso parlamentar e o peso governamental dos partidos. No primeiro ministério Dutra, o Partido Republicano (PR) detinha 3% das cadeiras no Congresso e participação equivalente a 10% no governo. No primeiro ministério Vargas, o
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Partido Social Democrático (PSD) controlava 39% das cadeiras no Senado e 45% das vagas no gabinete. A União Democrática Nacional (UDN), o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e o Partido Social Progressista (PSP) tinham a mesma proporção de ministérios, embora aquela controlasse 26% do Congressso, o PTB, 16% e o PSP, 8%. No governo Café Filho, PSD e UDN controlavam o ministério em equilíbrio numérico perfeito, embora o PSD suplantasse a UDN, em força parlamentar, parlamentar, por proporção nunca inferior a 10 pontos percentuais (no Senado a diferença era de 27 pontos). O PTB e o PR participavam marginalmente, com os mesmos 9%, a despeito de o primeiro ter representação parlamentar mais de 15 pontos superior à do segundo. Evidentemente, essas igualdades são mais numéricas, pois os ministérios não têm todos o mesmo valor político. E, como se viu, PSD e PTB controlavam os ministérios estratégicos. Mas não é menos significativo que PR e PSP, de tão baixa densidade parlamentar, tenham predominado na ocupação de determinados ministérios ao longo desse período, o que se explica, em grande medida, pelo eixo regional das coalizões. O Quadro 3 mostra a participação dos estados nos ministérios. Mais importante que anotar a sabida predominância do triângulo RJ/SP/MG, é verificar a clara existência de uma lógica regional subjacente à formação das coalizões governamentais e o fato de que alguns estados aparecem como representantes representantes preferenciais de suas regiões, denotando sua liderança nos blocos regionais de nosso sistema político. É o caso da Bahia, de Pernambuco, do Ceará e do Rio Grande do Sul.
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Quadro 3 Composição Regional dos Ministérios — 1946-1964 Estados RJ/DF/GB SP MG BA RS PE CE Outros Total
N. de Ministérios
%
22 33 24 17 10 10 07 12 13 5
17 24 18 13 07 07 05 09 1 00
A combinação do critério partidário com o regional pode diminuir as diferenças de “qualidade” entre ministérios. Na medida em que ministérios menos estratégicos tornam-se jurisdições mais ou menos cativas de partidos ou estados, abre-se a possibilidade de que as lideranças políticas criem redes ou conexões burocrático-clientelistas que elevem os “prêmios” (pay-offs) associados (pay-offs) associados a ministérios secundários. Daí não se poder subestimar, por exemplo, a participação relativamente elevada de partidos como o PR e o PSP em certos ministérios. E o mesmo é verdade em relação aos estados. Alguns ministérios de “direção política”, como Justiça, Trabalho, Indústria e Comércio e Relações Exteriores, eram ocupados pelo critério partidário. Outros, que podem ser caracterizados como “ministérios de gastos” ou de “clientelas”, eram ocupados pelo critério regional. Era o caso, por exemplo, do Ministério da Educação e Saúde, cativo da Bahia até o seu desmembramento. A partir daí, o Ministério da Saúde passou a ser utilizado para atender ao PSP,
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O Sistema Partidário na Consolidação da Democracia Brasileira
passando ao controle de São Paulo. O Ministério de Viação e Obras Públicas teve 43% de seus titulares oriundos do Rio de Janeiro (ou DF; ou GB). O MEC passou para o eixo partidário, predominando ministros paulistas e do Rio, mas com 30% de seus titulares oriundos do PR. Finalmente, havia os ministérios política e economicamente estratégicos, como Fazenda e Agricultura, cuja ocupação se dava pela combinação dos critérios partidário e regional. Na Fazenda, predominaram o PSD e São Paulo (47 e 41%, respectivamente), e na Agricultura, o PTB e Pernambuco (59% em ambos os casos). Uma outra maneira de examinar essas coalizões, pela ótica partidária, seria calcular um “índice de fracionamento governamental”, similar àquele utilizado para a análise do sistema partidário-parlamentar. Um valor de O indicaria que um só partido controla todo o ministério. A unidade representaria um governo em que cada ministério estivesse sob controle de um partido diferente. Quadro 4 Índice de Fracionamento Governamental Índice de 1946-64 e 1987 Governos
FG
Dutra Varg as Café Filho Nereu Ramos K u bits che k Q ua dr o s G ou l ar t ( P a r lam en t ar i st a ) G ou la r t S ar n e y
0,64 0,71 0,77 0,75 0,75 0,81 0,78 0,80 0,44
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Os índices de fracionamento governamental contribuem com esclarecimento adicional das grandes coalizões brasileiras. Todos os governos basearam-se em coalizões entre partidos que somavam mais que a maioria simples no parlamento. Porém, a dispersão do controle ministerial pelos partidos varia, determinando coalizões mais e menos concentradas. De qualquer forma, a maior parte dos governos brasileiros apresenta índices de fragmentação relativamente altos, com exceção da presidência Dutra e do atual ministério Sarney. No primeiro caso, o PSD dominava amplamente o ministério (em torno de 50% dos postos). No segundo, o PMDB detém mais de 70% dos postos. Tanto o alto fracionamento governamental quanto uma grande coalizão concentrada representam uma faca de dois gumes. O primeiro confere maiores graus de liberdade para manobras internas por parte do presidente, que pode retirar força exatamente da manipulação das posições e dos interesses dos vários parceiros da aliança. Porém, ao mesmo tempo, na medida em que seu partido não detenha maioria parlamentar pa rlamentar,, ou mesmo governamental, o presidente torna-se, em parte, prisioneiro de compromissos múltiplos, partidários e regionais. Sua autoridade pode ser contrastada por lideranças dos outros partidos e por lideranças regionais, sobretudo os governadores. É a dinâmica do duplo eixo das coalizões nacionais. Uma coalizão concentrada, por sua vez, confere ao presidente maior autonomia em relação aos parceiros menores da aliança, mas o obriga a manter mais estreita sintonia com seu próprio partido. Se o partido majoritário é heterogêneo interna e regionalmente, obtém-se
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O Sistema Partidário na Consolidação da Democracia Brasileira
o mesmo efeito: a autoridade presidencial é confrontada pelas lideranças regionais e de facções intrapartidárias. Mas o risco maior, neste caso, adviria de um rompimento do partido com o presidente, deixando-o apenas com o bloco de partidos minoritários da aliança. Ambos os riscos estão presentes na presidência Sarney. Sarney. O PMDB é heterogêneo interna e regionalmente. Líderes de facções e governadores do partido podem contrastar sua autoridade, autoridade, o que, aliás, tem ocorrido com freqüência. Por outro lado, o presidente sabidamente não conta com a total confiança de seu partido adotivo, fato que eleva a probabilidade de rompimento. Como o PMDB é amplamente majoritário no Congresso, tal rompimento obrigaria o presidente a governar em minoria e exacerbaria o conflito entre Legislativo e Executivo. O raciocínio acima aponta para o nó górdio do presidencialismo de coalizão. É um sistema caracterizado pela instabilidade, de alto risco e cuja sustentação baseia-se, quase exclusivamente, no desempenho corrente do governo e na sua disposição de respeitar resp eitar estritamente os pontos ideológicos ou programáticos considerados inegociáveis, os quais nem sempre são explícita e coerentemente fixados na fase de formação formação da coalizão. coalizã o.
O Dilema Institucional do Presidencialismo de Coalizão
A teoria empírica das coalizões, embora excessivamente descritiva e assentada na lógica das preferências individuais, permite identificar algumas questões que
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ajudam a compreensão da intrincada dinâmica política e institucional associada a governos de aliança. Em geral, a análise de estruturas políticas e sociais mais homogêneas e estáveis induz a uma ênfase maior em coalizões que minimizem o número de parceiros e maximizem as proximidades ideológicas entre eles. Esta estratégia teria por objetivo reduzir os riscos e contrariedades associados a alianças mais amplas e diversificadas mencionados acima. 15 Entretanto, em formações de maior heterogeneidade e conflito, aquela estratégia é insuficiente ou inviável. Nestes casos, a solução mais provável é a grande coalizão, que inclui maior número de parceiros e admite maior diversidade ideológica. Evidentemente, Evidentemente, a probabilidade de instabilidade e a complexidade das negociações negociaçõ es são sã o muito maiores. Estes contextos, contextos, de mais elevada divisão econômica, social e política, caracterizam-se pela presença de forças centrífugas persistentes e vigorosas, que estimulam a fragmentação e a polarização. Requerem, portanto, para resolução de conflitos e formação de “consensos parciais”, mecanismos e procedimentos institucionais complementares ao arcabouço representativo da liberal-democracia. A formação de coalizões envolve três momentos típicos. Primeiro, a constituição da aliança eleitoral, que requer negociação em torno de diretivas programáticas mínimas, usualmente amplas e pouco específicas, e de princípios a serem obedecidos na formação do governo, após a vitória eleitoral. Segundo, a constituição do goverToda a parte inicial desta seção reproduz, em parte, a seção V de meu artigo “A Recuperação Democrática...”, op. cit.
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no, no qual predomina a disputa por cargos e compromissos relativos a um programa mínimo de governo, ainda bastante genérico. Finalmente, a transformação da aliança em coalizão efetivamente governante, quando emerge, com toda força, o problema da formulação da agenda real de políticas, positiva e substantiva, e das condições de sua implementação. É o trânsito entre o segundo e o terceiro momentos que está no caminho crítico da consolidação da coalizão e que determina as condições fundamentais de sua continuidade. A formação do governo, a elaboração de seu programa de ação e do calendário negociado de eventos têm impacto direto sobre a estabilidade futura. Numa estrutura multipartidária, marcada pelo fracionamento, o sucesso das negociações, na direção de um acordo explícito que compatibilize as divergências e potencialize os pontos de consenso, é decisivo para capacitar o sistema político a atender ou conter legitimamente demandas políticas, sociais e econômicas competitivas e a formular um programa coerente e efetivo. Nesse acordo têm importância tanto a substância das medidas quanto o seu calendário. Somente assim é possível estabelecer uma base concreta de compromisso, alicerçada na seleção encadeada de medidas, que evita, ao mesmo tempo, a sobrecarga inicial de reivindicações contraditórias e a frustração precoce dos principais setores que compõem a coalizão. A observância desses compromissos, ainda que ajustada às circunstâncias, constitui um dos requisitos essenciais para a legitimidade e continuidade da coalizão. Esse é, naturalmente, um processo de negociação e conflito, no qual os partidos na coalizão se enfrentam
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em manobras calculadas para obter cargos e influência decisória. Tal processo se faz por uma combinação de reflexão e cálculo, deliberação deliberaçã o e improviso, ensaio e erro, da qual resulta a fisionomia do governo. Boa parte das manobras de cada partido destinase não somente a influenciar os outros partidos, mas principalmente a persuadir suas próprias bases e, acima de tudo, suas facções parlamentares e seus militantes, dos benefícios da coalizão.16 Por isso mesmo, a adesão a princípios mínimos para orientação de políticas ou a diretrizes programáticas assume relevância na medida em que possa reduzir as divergências intrapartidárias e engajar o conjunto do partido na realização de objetivos amplamente compartilhados. Do ponto de vista da negociação com os outros partidos, busca-se enfatizar os princípios compatíveis e complementares e contornar aqueles que sejam divergentes. O problema é que, em circunstâncias de crise, entre os pontos de divergência encontram-se questões inarredáveis da agenda de políticas de governo, tais como controle da inflação, as prioridades para o gasto público ou a política salarial. O dilema que se apresenta é a identificação do limite de tolerância dos parceiros, que depende da posição das lideranças políticas e de fatores a elas externos – ligados à sua relação com as bases, os grupos de militantes e as facções parlamentares parlamenta res –, de um lado, e da reação dos interesses organizados na sociedade, de outro. É exatamente por isto que a Cf. G. Luebbert, “A Theory of Government Formation”, Comparative Political Studies, vol. 17, n.2, 1983, pp. 229-64. 16
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manutenção da coalizão depende decisivamente do desempenho corrente do governo, a despeito dos acordos e compromissos formulados na sua constituição. No que diz respeito às lideranças, isso implica a capacidade de negociar a inclusão recíproca de políticas contrárias aos princípios diretivos dos partidos e de calcular corretamente a amplitude de sua legitimidade e autoridade junto às bases e de sua credibilidade perante a opinião pública. Em outras palavras, competência na negociação de sacrifícios recíprocos, resguardando os interesses coletivos, e extensão real de seu mandato para fazer concessões em nome da estabilidade da coalizão e do sucesso da gestão governamental. No que se refere às bases e facções parlamentares, o fator decisivo é a intensidade de sua adesão aos princípios em questão. O risco desse delicado fazer contas é conceder em áreas consideradas inegociáveis pelas bases. Não é um processo de cálculo tão racional e explícito quanto a teoria descreve, mas é bastante consciente, embora seja feito numa ampla faixa de incerteza. Esta, porém, nunca é tão grande nas questões mais importantes, e a consulta permanente permite evitar que se subverta o consenso básico do partido. O maior risco ao desempenho da coalizão está no quadro institucional do Estado para decidir, negociar e implementar políticas. Isto porque, como o potencial de conflito é muito alto, a tendência é retirar do programa mínimo, ou compromisso básico da aliança, as questões mais divisivas, deixando-as para outras fases do processo decisório. Viabiliza-se o pacto político de constituição do governo, mas sobrecarrega-se a pauta de decisões, na etapa de governo, propriamente dito, com
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temas conflitivos e não negociados. Para que o processo decisório não seja bloqueado e desestabilize a coalizão no futuro, torna-se, então, indispensável um esforço de construção institucional que viabilize acordos setoriais, à medida que os conflitos forem surgindo. Não é demais insistir que, no limite, o futuro das coalizões depende de sua capacidade de formular e implementar políticas substantivas. Uma coalizão pode formar-se com base em amplo consenso político e ser liquidada pela divergência quanto a princípios e orientações de política econômica e social corrente. Esta pode produzir seu progressivo fracionamento e dificultar, sistematicamente, a formulação e implementação de ações governamentais imprescindíveis, a administração de programas e a alocação de recursos. Mais que isto, pode comprometer irremediavelmente o relacionamento com as bases majoritárias de sustentação do governo, estimulando a polarização e a radicalização. A existência de distâncias muito grandes na posição ideológica e programática e, principalmente, na ação concreta dos componentes da coalizão pode comprometer seriamente sua estabilidade, a menos que existam subconjuntos capazes de encontrar meios de suprir esses vazios com opções reciprocamente aceitáveis. Mais que do peso da oposição dos “de fora” – sobretudo em se tratando de grandes coalizões –, o destino do governo depende da habilidade dos “de dentro” em evitar que as divisões internas determinem a ruptura da aliança. A ruptura é, freqüentemente, precedida por um “fracionamento polarizado”, no qual cada segmento nega legitimidade aos demais. Esta deslegitimação recíproca compele cada parceiro a se distanciar dos outros e a
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enfatizar, mais radicalmente, suas diferenças. Expandese o espaço da competição, rompendo os limites da tolerância, e reduz-se a autonomia das lideranças e a autoridade de seus mandatos. ma ndatos. A superação negociada dos conflitos torna-se cada vez mais difícil, porque a polarização amplia desmesuradamente as concessões necessárias de parte a parte. Correlatamente, aumentam as dificuldades de persuasão das facções parlamentares e dos militantes para que apóiem tais concessões. Além disso, a crescente fragilidade da posição das lideranças as torna mais relutantes em encampar posições que lhes possam custar o apoio das bases. Em certo sentido, dificilmente uma grande coalizão governante terá condições de estabilidade, em períodos de crise aguda, sem um amplo apoio político-social, que ultrapasse os limites das lideranças partidárias e envolva todos os segmentos sociais politicamente organizados. São vários os exemplos de pactos explícitos, explíc itos, e até formalmente contratados, que obtiveram sucesso na estabilização de coalizões em momentos críticos da história de vários países.17 As cisões internas e a instabilidade a elas inerentes são naturais em qualquer governo de coalizão, embora adquiram contornos mais graves em épocas de crise. Requerem, portanto, uma série de mecanismos institucionais que regulem este conflito, promovam soluções parciais e estabilizem a aliança, mediante acordos setoriais de ampla legitimidade. Cf. P. Merkl, “Coalition Politics in West Germany”, in S. Groennings, E.W. Keeley e M. Leyerson, eds., The Study of Coalition Behavior, Nova Iorque, Holt, Rinehart & Winston, 1970.
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Mas, evidentemente, mesmo o pleno funcionamento desta estrutura institucional complementar aos mecanismos típicos da democracia liberal não é garantia suficiente de estabilidade, continuidade e sucesso de grandes e heterogêneas coalizões. E aí residem o risco maior das coalizões e a especificidade do presidencialismo de coalizão. Como disse, a coalizão pode romper-se de duas maneiras: pelo abandono dos parceiros menores, situação na qual o presidente passa a contar apenas com seu partido e é forçado a alinhar-se com suas posições majoritárias; ou pelo rompimento do presidente com seu partido, que o deixa em solitário convívio com partidos minoritários e a cujos quadros é estranho. Em ambos os casos, resultam, em grau variável, o enfraquecimento da autoridade executiva e maior potencial de conflito entre Legislativo e Executivo. No presidencialismo, a instabilidade da coalizão pode atingir diretamente a presidência. É menor o grau de liberdade de recomposição de forças, através da reforma do gabinete, sem que se ameace as bases de sustentação da coalizão governante. No Congresso, a polarização tende a transformar “coalizões secundárias” e facções partidárias em “coalizões de veto”, elevando perigosamente a probabilidade de paralisia decisória e conseqüente ruptura da ordem política.18 Por isso mesmo, governos de coalizão requerem procedimentos mais ou menos institucionalizados para solucionar disputas interpartidárias internas à coalizão. Existe sempre um nível superior de arbitragem, que Como ocorreu na República de 46. Ver a respeito, Wanderley Guilherme dos Santos, Sessenta e Quatro: Anatomia da Crise, São Paulo, Vértice, 1986. 18
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envolve, necessariamente, as lideranças partidárias e do Legislativo e tem, como árbitro final, o presidente. Na medida em que este seja o único ponto para o qual convergem todas as divergências, a presidência sofrerá danosa e desgastante sobrecarga e tenderá a tornar-se o epicentro de todas as crises. No caso de regimes parlamentaristas, o resultado imediato do enfraquecimento da aliança é a dissolução do gabinete e a tentativa de recomposição de uma coalizão de governo. Caso esta fracasse, recorre-se a eleições gerais, buscando uma nova correlação eleitoral de forças. No caso do presidencialismo de gabinete, demite-se o ministério, preservando-se a autoridade presidencial. No caso do presidencialismo de coalizão, é o próprio presidente quem deverá demitir o ministério e buscar a recuperação de sua base de apoio, em um momento em que enfrenta uma oposição mais forte e que sua autoridade está enfraquecida. Será tanto pior a situação do presidente se estiver rompido com seu partido, pois aí estará enfrentando não apenas a oposição da maioria, mas a desconfiança de seus aliados naturais. Um cenário possível é aquele em que o presidente torna-se cativo da vontade de seu partido, delegando sua própria autoridade – situação de equilíbrio precaríssimo e de alto risco para a própria estabilidade da ordem democrática. Cenário alternativo seria aquele em que o presidente resolve enfrentar o partido, confrontar o parlamento e afirmar sua autoridade numa atitude bonapartista ou cesarista altamente prejudicial à normalidade democrática. A submissão do Congresso ou a submissão do presidente representam, ambas, a subversão do regime democrático. E este é um risco sempre presente, pois
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a ruptura da aliança, no presidencialismo de coalizão, desestabiliza a própria autoridade presidencial. Esses cenários demonstram o dilema institucional do presidencialismo de coalizão. Ele requer um mecanismo de arbitragem adicional àqueles já mencionados, de regulação de conflitos, que sirva de defesa institucional do regime – assim como da autoridade presidencial e da autonomia legislativa –, evitando que as crises na na coalizão levem a um conflito indirimível entre os dois pólos fundamentais da democracia presidencialista. O Império tinha no poder moderador um mecanismo deste tipo. A República Velha não adotou nada semelhante, mas o equilíbrio deu-se através da política de governadores, estabelecida por Campos Salles. Nos Estados Unidos da América do Norte, a Suprema Corte tem poderes que lhe permitem intervir nos conflitos constitucionais entre Executivo e Legislativo. No Brasil da República de 46 e no Brasil pré-constituinte da Nova República, precisamente os casos mais claros de presidencialismo de coalizão, este mecanismo inexiste. Governos de coalizão têm como requisito funcional indispensável uma instância, com força constitucional, que possa intervir nos momentos de tensão entre o Executivo e o Legislativo, definindo parâmetros políticos para resolução dos impasses e impedindo que as contrariedades políticas de conjuntura levem à ruptura do regime. Por outro lado, este instrumento de regulação e equilíbrio do regime constitucional serve, no presidencialismo de coalizão, para reduzir a dependência das instituições ao destino da presidência e evitar que esta se torne o ponto de convergência de todas as tensões, envolvendo diretamente a autoridade presidencial em
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todos os conflitos e ameaçando desestabilizá-la em caso de insucesso. Em síntese, a situação brasileira contemporânea, à luz de seu desenvolvimento histórico, indica as seguintes tendências: (a) alto grau de heterogeneidade estrutural, quer na economia, quer na sociedade, além de fortes disparidades regionais; (b) alta propensão ao conflito de interesses, cortando a estrutura de classes, horizontal e verticalmente, associada a diferentes manifestações de clivagens inter e intra-regionais; (c) fracionamento partidário-parlamentar, dário-parlamentar, entre médio e mediano, medi ano, e alta propensão à formação de governos baseados em grandes coalizões, muito provavelmente com índices relativamente elevados de fragmentação governamental; (d) forte tradição presidencialista e proporcional. A primeira indicando, talvez, a inviabilidade de consolidação de um regime parlamentarista puro. pu ro. A segunda, apontando para a natural necessidade de admitir à representação os diversos segmentos da sociedade plural brasileira; (e) insuficiência e inadequação do quadro institucional do Estado para resolução de conflitos e inexistência de mecanismos institucionais para a manutenção do “equilí brio constitucional”. Muitos analistas tendem a interpretar a história institucional brasileira no sentido da inadequação, seja do presidencialismo, seja da representação proporcional, para a estabilidade democrática. Não é, definitivamente, a inclinação do raciocínio aqui empreendido. Ao contrário, sustento que, de um lado, esta tradição político-institucional responde à específica dinâmica social do País. Sua própria heterogeneidade, a ambigüidade e fragilidade das referências nacionais e as contradições contrad ições a elas inerentes
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contribuem para firmar esta combinação entre proporcionalidade e presidencialismo de coalizão. De outro lado, não há evidência persuasiva de que a solução parlamentarista ou a representação majoritária, ou mesmo o bipartidarismo, pudessem oferecer salvaguardas suficientes à instabilidade e à exacerbação do conflito. Os contrapesos estarão, possivelmente, em outro plano de institucionalidade, que permita evitar a fragmentação polarizada de nosso sistema político. Creio que nosso dilema institucional resolve-se com instrumentos que permitam regular a diversidade, conviver com ela, pois nosso quadro sócio-cultural e econômico faz da diferença uma destinação – nossa Fortuna, na acepção de Maquiavel –, mas é da nossa Virtù, de nossa capacidade de criar as instituições necessárias, que poderão advir a normalidade democrática e a possibilidade de justiça social. Se sermos diversos e contrários é inevitável, a desordem e o autoritarismo não devem constituir nosso fado e nossa tragédia.
Presidencialismo de Coalizão e Crise de Governança* Sérgio Henrique Hudson de Abranches
Que crise é esta? É uma crise de governo produzida produz ida por desequilíbrios que afetam a eficácia do padrão de governança brasileiro, que caracterizo como de presidencialismo de coalizão. A primeira vez que escrevi sobre esse padrão de governança e o caracterizei como “presidencialismo de coalizão”, em meados dos anos 80, ele parecia uma ave rara no quintal da democracia e de difícil viabilidade histórica. A Constituição de 1988 19 88 o consagrou consag rou no desenho institucional do país. Hoje, Chile, Argentina e Uruguai vivem sob governos presidenciais de coalizão. Ele agüentou bem a hiperinflação indexada, o impeachment de Collor, a ciclotimia de Itamar Franco, o crescimento do PT, tanto no Congresso quanto nas prefeituras e em alguns governos estaduais. Publicado originariamente em Conjuntura Econômica, Econômica, n.26, junho de 2.001 (mídia eletrônica). eletrônica) . Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais. *
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O principal eixo de impacto desse padrão de governança está na relação entre o Legislativo e o Executivo. Some-se uma agenda de país emergente, com desequilíbrio entre oferta e demanda de políticas públicas. Incorpore-se uma federação extensa e assimétrica e a interferência dos governadores na relação entre o presidente e o parlamento. Agregue-se a mudança no modo de intervenção do Estado – com a privatização, a descentralização e a Lei de Responsabilidade Fiscal – em contradição com as demandas clientelistas da tradição do modelo. Por ser presidencialismo, esse regime de governança reserva à presidência um papel crítico e central no equilí brio, gestão e estabilidade da coalizão. O presidente precisa cultivar o apoio popular – o que requer a eficácia de suas políticas, sobretudo as econômicas – para usar a popularidade como pressão sobre sua coalizão; ter uma agenda permanentemente cheia, para mobilizar atenção da maioria parlamentar e evitar sua dispersão; ter uma atitude proativa na coordenação política dessa maioria, para lhe dar direção e comando. As coalizões multipartidárias são inevitáveis em um sistema político como o brasileiro, expressão de uma sociedade plural e, além disso, com tradição de voto proporcional. O chefe de governo – seja presidente ou primeiro-ministro – tem de abandonar a visão de seu próprio partido e adotar uma lógica de ação voltada para a estabilidade e eficácia da aliança. aliança . Quando deixa de fazêlo ou fracassa na tentativa, no parlamentarismo o governo cai; no presidencialismo de coalizão provoca uma crise de governança. A queda do governo no regime parlamentar pode se transformar em crise de governança, g overnança,
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mas esta não é uma conseqüência direta do rompimento da aliança, como no presidencialismo de coalizão. A eficácia político-operacional da governança é determinada pela capacidade de coordenação da maioria por parte do chefe do Executivo que ocupa o centro do sistema de forças. Quando há falhas de coordenação, o sistema tende à fragmentação, podendo sofrer paralisia decisória e colapsos recorrentes de desempenho, com danos ao apoio social do governo. Numa crise de governança, no presidencialismo de coalizão, é grande a dificuldade de trocar alianças, para redesenhar a base de sustentação parlamentar. No parlamentarismo, a queda do gabinete, a dissolução do parlamento e a convocação de eleições são meios para resolver essa dificuldade. No presidencialismo de coalizão, a reforma do gabinete é processo traumático e desesta bilizador, dada a quase impossibilidade de equilibrar as demandas partidárias, faccionais e regionais, em um ministério com número finito de postos. Principalmente se há posições à margem da barganha política, como tem sido o caso da equipe econômica. Há, em toda parte, limitações reais ao número de alianças viáveis a que qu e o chefe do Executivo pode recorrer. recorrer. A literatura contemporânea mostra que o conjunto possível de coalizões é reduzido por uma série de constrangimentos: resultados eleitorais, regras de funcionamento dos parlamentos, rivalidades locais, estaduais ou nacionais, ideologias ou posicionamentos programáticos, micropolítica interna dos partidos e dinâmica do relacionamento interpartidário. É por isso que, apesar das críticas e pressões e mesmo que o desejasse firmemente, o presidente Fernando Henrique não tem como trocar
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alianças: não há outros partidos que poderiam compor uma coalizão de governo alternativa, que lhe garantisse a maioria que tem com o PSDB, o PFL e o PMDB. Além disso, com a agenda de políticas que escolheu, enfrentaria barreiras programáticas a qualquer troca substancial de alianças e uma agenda dessas não permite governar em minoria. Por outro lado, a existência de facções partidárias que discordam da orientação geral requer uma grande coalizão, não apenas uma coalizão mínima, que reúna só o número necessário de cadeiras para assegurar a maioria, vista erradamente como a “coalizão natural”. A quase totalidade dos partidos, nas democracias européias, tem, como aqui, facções regionais ou formadas em torno de lideranças políticas fortes, opostas às estratégias políticas dos líderes nacionais de seus partidos. Alguns desses grupos têm preferência por aliados distintos para formar coalizões, daí decorrendo as dissidências e a necessidade de adicionar mais partidos à coalizão, para descontar um percentual de votos discordantes. Portanto, não é falha nossa. É da natureza geral dos partidos reais aqui e alhures. Na Europa, a polarização de muitos sistemas partidários invibiliza politicamente a maioria das coalizões coalizõe s teoricamente possíveis, como mostrou Klaus von Beyme. Aqui também. A polarização esquerda-oposição/ governo-neoliberalismo torna politicamente inviável ao PSDB trocar alianças na tentativa de se livrar dos custos fisiológicos da parceria com PFL e PMDB. Mesmo que as elites dirigentes dos outros partidos considerassem possível uma aliança – como é o caso c aso de alguns parlamentares do PT, que aceitariam uma composição com os
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social-democratas – essa alternativa seria bloqueada por suas “bases” e lideranças não-parlamentares. O presidente não tem como escapar: para ter a maioria tem de manter a mesma coalizão. A alternativa é a piora ou a crise da governança, como terminou por ocorrer. A distribuição de cargos e verbas é um dos instrumentos de manutenção de coalizões, em toda parte. A diferença é se essa distribuição adota critérios políticoprogramáticos ou puramente clientelistas. A literatura sobre a lógica e a dinâmica das coalizões mostra que os partidos, ao se aliarem, buscam maximizar o número de cargos sob seu controle e manter a coalizão a menor possível. É inerente à vida político-partidária a rivalidade entre partidos afins. Toda coalizão vive permanente estresse causado pela competição entre os aliados mais próximos, com propensão irresistível para maximizar seu poder e minimizar o dos outros, independentemente da regra eleitoral. A gestão política da coalizão precisa manter o estresse em nível aceitável e evitar que a concorrência entre os aliados leve ao colapso da aliança. A gestão política presidencial falhou na disputa pela sucessão no Congresso Nacional, permitindo a elevação do estresse na coalizão a um nível insustentável e, finalmente, provocando sua ruptura. A conjuntura política passou a um estado de instabilidade crônica. A composição das Mesas, com atribuição das presidências aos parceiros do PSDB, equilibrava a coalizão. As duas presidências legislativas são as únicas posições de poder institucional independentes da Presidência da República. Podem, se desejarem, confrontar o desejo imperial do presidente. Uma distribuição eqüitativa desse
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poder institucional é condição necessária à funcionalidade da coalizão. O veto do senador Antônio Carlos Magalhães ao senador Jader Barbalho serviu de pretexto para que PSDB e PMDB rompessem esse equilíbrio. O rompimento da coalízão liberou as tendências centrífugas do sistema e a maioria se tornou inorgânica e desarticulada. A fonte dos problemas que o governo vem enfrentando está nessa desarticulação e perda de direção política da maioria. Em qualquer sistema de governança democrática, o chefe do governo lidera, conduz e articula a maioria. Coisa que Fernando Henrique fez, com mais sucesso que insucesso, ao longo de quase seis anos. Foi quando se tornou parte dos conflitos e rivalidades que o presidente perdeu o controle do processo político. Essas contrariedades entre parceiros são usuais quando vai se aproximando o período de definição das candidaturas presidenciais. O chefe de governo deve arbitrá-las e resolvê-las sem se envolver. Fernando Henrique, ao contrário, deixou que o PSDB rompesse o acordo que dava equilíbrio à coalizão. Preferiu não arbitrar o conflito no Senado, envolvendo PFL e PMDB, embora centrado na pendenga pessoal entre Barbalho e ACM. Acabou tomando lado e contribuindo para alimentar as rivalidades. A crise é de governança e cria um ambiente propício à fragmentação da maioria, sem liderança, desarticulada e sem direção. Neste contexto de desgovernança, o processo político se torna errático e imprevisível. Parece que a política deixa de ter racionalidade. O caso do painel, a escalada do conflito entre ACM e Jader Barbalho, a concorrência entre parceiros levando ao colapso da coalizão governista, nada disso parece fazer sentido. Mas
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a nenhuma dessas ações faltou racionalidade. Foram decisões baseadas em objetivos específicos, que não levam em consideração a coalizão ou o interesse geral do governo. Só o presidente pode estabelecer a precedência do interesse comum. A lógica dos partidos e atores passa, então, a ser determinada pelas rivalidades faccionais e pelos interesses interesses regionais. A sucessão que predomina hoje no cálculo dos políticos não é ainda a federal é a dos governos estaduais. É a lógica descentralizada de partidos federais. Essa lógica da federação se impõe nos períodos pré-eleitorais, em todos os partidos que abrigam facções rivais nos estados ou onde seu principal concorrente está na seção estadual de partido aliado no plano nacional. Mesmo a reação ao governo federal, no momento, está muito influenciada pelas contrariedades estaduais. Como o presidente está com a popularidade baixa, perdeu parte do poder de atração sobre os partidos que apóiam seu governo. O esgotamento da agenda de reformas e a incapacidade de propor uma nova – a “Agenda 2000/2001” não obteve credibilidade – consumiu outra parcela da atratividade da presidência. As falhas de coordenação política que levaram ao rompimento do pacto que cimentava a aliança governista praticamente esgotaram o que restava de recursos políticos para atrair os aliados e fazer frente às tendências centrífugas do presidencialismo de coalizão. A partir daí, predomina essa lógica fragmentária, agravando os problemas de coordenação e articulação política, por parte do presidente. Fernando Henrique não é ainda um lame duck , porque não há nenhum candidato favorito indiscutível à sua sucessão que possa exercer
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atração sobre a maioria. Portanto, ele ainda pode reassumir a direção política. Se não o fizer, o sistema continuará à deriva até encontrar uma nova âncora, já durante a campanha presidencial efetiva, no segundo semestre de 2002, ou depois da eleição. A combinação entre a crise de governança e a crise energética representa o maior desafio que Fernando Henrique tem pela frente, desde o Plano Real. É claro que a própria crise cria oportunidades para o redirecionamento da maioria, para o bem ou para o mal, e pode até dar uma chance ao presidente de recuperar parte da atração perdida sobre ela, se apresentar resultados que levem, no médio prazo – seis meses –, a uma tendência crível de substancial melhora da taxa de conforto econômico da população. A ver.
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O Presidencialismo Presidencialismo de Coalizão Revisitado Revisitado:: Novos Dilemas, Velhos Velhos Problemas Problemas OctavioAmorimNeto
Não seria exagero afirmar que o artigo “Presidencialismo de Coalizão: O Dilema Institucional Brasileiro”, de Sérgio Abranches, publicado em 1988, é, juntamente com os trabalhos de Argelina Figueiredo e Fernando Limongi1 , um dos mais profícuos textos da ciência política brasileira dos últimos quinze anos. No artigo, Abranches mostra, com riqueza teórica e empírica, que a especificidade constitucional do Brasil – a combinação de presidencialismo, multipartidarismo, federalismo e bicameralismo – impõe aos cruciais processos de formação ministerial e constituição de maiorias legislativas um complexo jogo de alianças interpartidárias e interregionais. No espaço de um único artigo, o autor conseguiu não apenas esboçar um amplo, porém preciso, preciso , afresco a respeito da estrutura e dinâmica institucionais institucionai s das nossas Refiro-me especialmente a Argelina Figueiredo e Fernando Limongi, Execu- tivo e Legislativo na Nova Ordem Constitucional (Rio Constitucional (Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999). 1
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experiências democráticas entre 1946 e 1964 e pós-1985, como logrou lançar as bases de um vigoroso programa de pesquisa científica, que ainda não se esgotou. Grande parte da minha vida acadêmica tem sido devotada a contribuir modestamente para a execução do, por assim dizer, “programa abranchiano”. Assim, neste ensaio, gostaria de, mais uma vez, tecer algumas reflexões acerca de novos aspectos do nosso presidencialismo de coalizão, no sentido, apontado por Abranches, de que precisamos conhecer melhor nossas instituições para tentar bem reformá-las. É, pois, fundamental que se entenda, com acuidade, a experiência bem sucedida de FHC com o presidencialismo de coalizão para que se possa tentar institucionalizar os seus aspectos positivos e modificar os negativos. Meus comentários se cingirão a quatro aspectos específicos de nossas presidências democráticas, com ênfase na de FHC: (1) o critério de recrutamento ministerial, (2) a escolha de instrumentos legiferantes pelo Executivo, (3) a formação da agenda legislativa do Congresso, e (4) a estabilidade governamental.
O Recrutamento Ministerial
Há um debate muito intenso na literatura acadêmica – brasileira e norte-americana – a respeito de qual é a verdadeira natureza dos arranjos multipartidários que se observam no presidencialismo brasileiro. Alguns, como Figueiredo e Limongi, sustentam que temos coalizões governativas tão sólidas e eficazes quanto aquelas forma-
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das no parlamentarismo europeu.2 Outros consideram que tais coalizões são, na verdade, relativamente frouxas e menos eficazes. São os casos do próprio Abranches e de Mainwaring, tal como afirma em seu recente livro.3 Por último, para Ames, o padrão de governança vigente no país é excessivamente atomístico, de modo que uma nova maioria tem que ser formada a cada nova votação.4 Minha visão do problema é distinta. Verifica-se, no Brasil, uma substancial variação no tipo de governo que podem formar os nossos presidentes. Ou seja, podemos ter tanto coalizões sólidas quanto frouxas, ou mesmo não ter governo de coalizão. Para que qu e se chegue a esta percepção tão matizada, há que se ter em mãos indicadores apropriados para se inferir que tipos de governo são constituídos no país. Se, de fato, existem diferentes tipos de governo no Brasil, um primeiro erro fundamental a se evitar é igualar a presidência de Collor à de FHC. As duas têm padrões de governança completamente distintos. Neste sentido, gostaria de chamar atenção para um dado eloqüente: no governo de Collor, 60% dos ministros, em média, não tinham filiação partidária nenhuma. Como é que se pode denominar de governo de coalizão uma administração que basicamente não tem ministros partidários nos seus quadros? Ver Argelina Figueiredo e Fernando Limongi, Executivo e Legislativo , op. cit . Scott P. Mainwaring, Sistemas Partidários em Novas Democracias: O Caso do Brasil (Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001). 4 Barry Ames, The Deadlock of Democracy in Brazil: Interests, Identities, and Institutions in Comparative Perspective (Ann Perspective (Ann Arbor: The University of Michigan Press, 2001). 2 3
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Contudo, é fato também que nunca tivemos, desde 1985, nenhum governo cujo ministério tenha sido todo composto por ministros partidários. Sob a presidência de Sarney, aproximadamente 22% dos ministros não eram filiados a partidos; sob Collor, como já visto, 60%; sob Itamar, 45%; e sob a primeira presidência de FHC, 32%. Ademais, há importantes diferenças dentro das presidências. O primeiro ministério chefiado por Sarney (na verdade, nomeado por Tancredo Neves) exibia apenas 18% de ministros apartidários. Porém, seu último ministério, nomeado em janeiro de 1989, contava com 35% de ministros sem partido. Itamar Franco nomeou 20% de políticos sem filiação partidária para o seu primeiro ministério, enquanto que, para o último, constituído em janeiro de 1994, nada menos do que 76% dos titulares das pastas do primeiro escalão não tinham sigla partidária.5 Existe, portanto, uma variação muito grande nos critérios de seleção dos ministros, critérios que, por sua vez, têm um impacto significante sobre a taxa de apoio legislativo dos partidos ao presidente. Como procurei mostrar alhures, quanto mais partidário é o critério de seleção dos ministros, maior o apoio legislativo dos partidos ao presidente, ficando assim o governo mais próximo, pois, de funcionar como uma coalizão ao estilo europeu.6 De modo que os primeiros anos da presidência de Sarney e as duas presidências de FHC são os períodos Ver Octavio Amorim Neto, “Gabinetes Presidenciais, Ciclos Eleitorais e Disciplina Legislativa no Brasil”, Dados , vol. 43, nº 3, 2000, pp. 479-517. 6 Octavio Amorim Neto, “Gabinetes Presidenciais, Ciclos Eleitorais e Disciplina Legislativa”, op. cit . 5
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que mais se assemelham, desde a redemocratização, ao ideal de governo de coalizão ao estilo europeu.
A Escolha dos dos Instrumentos Legiferantes: Projetos de Lei versus Medidas Provisórias
O segundo aspecto para o qual desejo atentar diz respeito ao fato de que, sob um sólido governo de coalizão, os instrumentos ordinários de legislação (projetos de lei) tendem a prevalecer sobre os extraordinários (medidas provisórias) no esforço de implementação do programa de governo. Isto porque o governo conta com uma maioria estável que lhe permite, de forma mais ou menos segura, obter a cooperação do Legislativo para aprovar projetos de lei, diminuindo, portanto, a necessidade de se recorrer às medidas provisórias.7 Tal foi o que aconteceu durante os anos FHC. A última afirmação pode parecer equivocada, uma vez que FHC foi constantemente criticado pelo supostamente abusivo número de medidas provisórias que editou. Porém, havemos de fazer uma diferenciação dentro do universo das medidas provisórias (doravante, MPs). Sem dúvida, FHC reeditou muitas MPs. Entretanto, em termos de freqüência anual de MPs originais, ele é o presidente com a menor taxa entre 1989 e 1998: 39 MPs originais por ano. Sarney editou 83 MPs originais em 1989. Collor Para uma maior elaboração teórica deste ponto, ver Octavio Amorim Neto e Paulo Tafner, “Governos de Coalizão e Mecanismos de Alarme de Incêndio no Controle Legislativo das Medidas Provisórias”, Dados , vol. 45, nº 1, 2002, pp. 5-38. 7
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emitiu, em média, 48 MPs originais entre 1990 e 1991 (1992 deve ser excluído porque foi um ano atípico). E Itamar Franco baixou, em média, entre 1993 e 1994, 69 MPs originais. Ademais, se examinarmos a razão entre projetos de lei enviados pelo Executivo ao Congresso e MPs originais, constata-se que os menores valores se encontram no primeiro ano da presidência de Collor e no último da presidência de Itamar Franco, períodos sob os quais o percentual de ministros apartidários foi o mais alto. Já sob o primeiro mandato de FHC, encontra-se o segundo valor mais alto para a razão entre projetos de lei e MPs originais (se excluirmos 1992), 0,86, e, em todos os outros anos do seu primeiro governo, tal razão sempre permaneceu em um nível relativamente alto (ver Tabela 1). Por último, cumpre notar que, apesar de apresentar o valor mais alto para a razão entre projetos de lei enviados pelo Executivo ao Congresso e MPs originais, o ano de 1991 deve ser considerado também tam bém um ano atípico porque, em função da votação do projeto do deputado Nélson Jobim limitando a edição das MPs, o Congresso indicou claramente a Collor que não toleraria mais a maneira abusiva com que o Presidente delas se valera no ano anterior.
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Tabela I MPs Originais, Projetos Projeto s de Lei Originados do Executivo Executi vo e Razão entre MPs Originais e Projetos de Lei do Executivo. Presidentes
Ano
MPs Originais(MP)
Projetos de lei (PL)
PL/ (MP + PL)
Sarney a rne y Collor Col l o r
1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998
83 87 8 10 47 91 30 39 33 55
170 102 216 197 189 56 192 158 129 128
0,67 0,54 0,96 0,95 0,80 0,38 0,86 0,80 0,80 0,70
Itamar Itamar
FHC FH C I
Fonte: Fonte: Os dados sobre MPs foram fornecidos pelo PRODASEN e as informações referentes aos projetos de lei, por Argelina Figueiredo e Fernando Limongi.
A Formação da Agenda Legislativa do Congresso
O terceiro aspecto relevante – concernente à negociação da agenda legislativa do Executivo com a sua base parlamentar – explica, ao mesmo tempo, o sucesso e os fracassos do governo FHC. A sustentação de um sólido governo de coalizão implica que, em geral, só vão a plenário aquelas matérias que sejam consensuais dentro da maioria governativa. Negociações freqüentes e demoradas com os aliados são absolutamente necessárias para que se alcance tal consenso. Se isto é verdade, é de se esperar que as maiorias dentro de cada um dos partidos que apóiam o governo sofram governo sofram pouquíssimas derrotas em plenário.
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Sob o primeiro mandato de FHC, as maiorias dentro do PSDB, PFL e PMDB tiveram uma taxa de derrota em votações nominais de 1,9%, 1,9% e 3,2%, respectivamente. Já PT e PDT amargaram, respectivamente, 88,3% e 79,9% de derrotas. Comparem-se os números do PFL sob FHC com o seu percentual de derrotas sob Collor e Itamar Franco: sob o primeiro, entre 1991 e 1992, a maioria dentro da bancada do PFL foi derrotada em 15,8% das votações; sob Itamar Franco, em 16% delas. Esses números indicam que FHC negociou muito mais a sua agenda legislativa com o PFL do que o fizeram Collor e Itamar.8 O percentual de derrotas em plenário das maiorias dentro das bancadas dos partidos é um indicador que permite uma comparação precisa entre as coalizões formadas em sistemas presidencialistas com aquelas constituídas sob regimes parlamentaristas. As maiorias dentro dos partidos que integram coalizões governativas em regimes parlamentaristas sofrem, em média, 5% de derrotas em plenário ao longo de um governo. Os principais partidos de sustentação do primeiro governo FHC exibem uma média de derrotas abaixo de 5%. Este é um indicador eloqüente da solidez da coalizão montada por FHC. A negociação da agenda legislativa com os partidos é fundamental para a solidificação de uma coalizão porque permite que os partidos se sintam plenamente incorporados ao governo. Uma coisa é um partido ter, Para uma análise completa desses valores para PT, PDT, PSDB, PMDB, PTB, PFL e PPB, entre 1989 e 1998, ver Octavio Amorim Neto, Gary W. Cox e Matthew D. McCubbins, “Agenda Power in Brazil’s Câmara dos Deputados,” Seminários de Pesquisa da EPGE/FGV-RJ, 2002, disponível em http:/ /www.fgv.br/epge/home/seminarios.
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nominalmente, um ministro no gabinete presidencial. Outra coisa é ser o partido incluído nas negociações que estabelecem a agenda legislativa do Executivo. Ex ecutivo. Vale Vale notar que o nexo entre participação ministerial e participação nas negociações relativas à agenda legislativa do Executivo torna-se mais forte quanto mais bem representado for um partido no governo.
A Estabilidade Governamental Governamental
O quarto aspecto a ser enfatizado concerne à estabilidade do Executivo, tal qual medida por um indicador simples, qual seja, o grau de rotatividade dos ministros. Vou aqui me valer de um indicador desenvolvido por Wanderley Guilherme dos Santos, denominado pelo autor de estabilidade ministerial constitucional (EMC).9 EMC é a média de permanência dos ministros em seus cargos dividida pela permanência constitucional máxima possível. A Tabela 2 mostra que, das oito primeiras presidências democraticamente constituídas na história da República – Dutra (1946-1951), Vargas (1951-1954), JK (1956-1961), Jango (1961-1964), Sarney, (1985-1990), Collor (1990-1992), Itamar (1992-1994) e FHC (19951998) –, a última foi a que alcançou a mais alta taxa de estabilidade ministerial.
Ver Wanderley Guilherme dos Santos, Sessenta e Quatro: Anatomia da Crise (São Paulo: Vértice, 1986), p. 121.
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Tabela 2 – Estabilidade Ministerial Constitucional Constitucion al de 8 Presidentes Constitucio nal EEMC EM MC MC
Dutra
Var gas argas
J JK K
Jango
Sarney
Collor
Itamar
FHC
0 ,3 6
0, 32
0 ,3 8
0 , 13
0, 43
0 ,2 9
0 , 24
0 ,5 5
Fonte: Adaptado de Wanderley Guilherme dos Santos, “Poliarquia em 3D”, Dados , vol. 41, nº 2, 1998, p. 280.
Uma maior estabilidade dos ministros em seus cargos é fundamental para os programas de governo sejam executados de forma mais consistente e eficiente. Por exemplo, o sucesso do governo FHC na área do ensino básico está certamente associada à longa permanência de Paulo Renato à frente do Ministério da Educação.
Síntese dos Achados
Em suma, a formação e sustentação de um sólido governo de coalizão em um regime presidencial puro, como o brasileiro, estão intimamente associadas à ênfase no recrutamento partidário dos ministros, à prevalência de instrumentos ordinários de legislação sobre os extraordinários e à negociação prévia e constante da agenda legislativa com os partidos que integram o governo. Estes fatores são certamente fonte da maior estabilidade observada no primeiro governo de FHC. Entretanto, o terceiro fator – a negociação da agenda com os partidos – explica, em grande medida, a paralisia do governo FHC em algumas áreas cruciais, como, por exemplo, a reforma tributária. A última não foi sequer enviada ao Congresso porque nunca houve consenso entre o Executivo e os partidos que o apoiavam
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a respeito do tema. Como o governo nunca quis ser derrotado na questão e não desejava arriscar rachar a sua base parlamentar, decidiu, racionalmente protelar indefinidamente o encaminhamento da reforma tributária, motivo pelo qual foi severamente criticado. À luz das evidências acima apresentadas, compreendem-se as razões pelas quais FHC foi sempre taxado pejorativamente de “frouxo”. FHC foi assim visto porque não logrou persuadir o Congresso a aprovar uma série de reformas consideradas vitais para o país e por ter sido demasiadamente leniente com as demandas e ameaças dos partidos que o apoiavam. Ora, o que se percebe como frouxidão é, na verdade, uma leitura equivocada do esforço que envidou FHC para que não rachasse a sua base de sustentação parlamentar, esforço que resultou na alta estabilidade relativa do seu governo. Contudo, todo esforço tem seu custo. E, no caso do governo de FHC, este custo foi a paralisia de algumas reformas que não encontraram respaldo na própria base de apoio parlamentar do Executivo. Sob um governo de coalizão majoritário e estável, o bloqueio das propostas do Executivo é conseqüência sempre de dissensões no seio dos partidos que o integram e não fruto de obstrução pela oposição.
Competir enquanto se Coopera: O Dilema dos Partidos artidos no Presidencialismo de Coalizão
Para concluir este ensaio, gostaria de examinar um agudo dilema do nosso presidencialismo. Voltemos à pergunta que motivou o texto agora clássico de Sérgio
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Abranches: como se combinam eficazmente representação proporcional e o regime presidencial? Resposta: formando-se sólidos governos de coalizão. Vimos, acima, que tais governos, da perspectiva do presidente, podem gerar mais estabilidade, porém, ao custo de paralisia na implementação de projetos de interesse do Executivo. A pergunta que agora se coloca diz respeito aos dilemas que os governos de coalizão colocam para os partidos. Sob um governo de coalizão, os partidos têm que cooperar na arena governamental, mas competir na arena eleitoral. Tal Tal dilema se torna mais agudo quando as siglas partidárias são fracas aos olhos do eleitorado, como bem mostra Scott Mainwaring ser o caso da maioria dos nossos grandes partidos.10 Como se desdobra o problema? Um governo de coalizão dissolve a identidade dos partidos perante o eleitorado. O que, antes, era o PSDB ou o PMDB ou o PFL, acaba virando uma coisa só, isto é, o rolo compressor do governo. Se, aos olhos dos eleitores – em geral, pouco informados –, o governo pode ser visto com uma unidade, permanece, não obstante, o duro fato de que um governo de coalizão é um conjunto, mais ou menos coordenado, de distintas organizações partidárias. Como resolver este dilema? Como cooperar com um conjunto de partidos e, ao mesmo tempo, se diferenciar deles? É a partir das ações que empreenderam os partidos no sentido de desatar este nó de marinheiro que se pode entender muito do tumulto partidário que se observou ao longo do segundo governo de FHC.
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Scott P. P. Mainwaring, Mainwa ring, Sistemas Partidários em Novas Democracias , op. cit .
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Logo após a desvalorização do real, em 1999, houve um ambiente de incerteza política e econômica enorme, uma vez que não se sabia se o país ia entrar numa recessão e como o desenrolar dos eventos econômicos eventualmente afetaria a popularidade FHC. Havia também a necessidade de se aprovar uma série de reformas exigidas pelo acordo do Brasil como o FMI a fim de se debelar a crise econômica. O diagnóstico que veio a prevalecer era de que o país padecia de um sério problema fiscal. E o que aconteceu naqueles idos de 1999? Ao invés de tentarem fazer valer suas preferências no que diz respeito à reforma fiscal e à estabilização econômica, os três principais partidos da coalizão de FHC – PSDB, PFL e PMDB – passaram a se engajar em uma terrível pugna entre si para comunicar seus programas ao eleitorado. Foi naquele instante que o PSDB empunhou a bandeira do desenvolvimentismo para se distanciar da ortodoxia representada por Pedro Malan. O PFL, para a surpresa geral, declarou guerra à pobreza e estabeleceu a CPI do judiciário. O PMDB criou a CPI dos bancos. Não me parece uma questão destituída de interesse indagar-se o porquê de terem ocorrido todas aquelas manobras justamente em um momento de crise. Os partidos resolveram, em vez de dar os passos necessários para resolver a crise econômica, partir para uma campanha eleitoral antecipada. O mecanismo que levou a tal situação tem a ver, na minha opinião, com o presidencialismo de coalizão e com os dilemas que coloca aos partidos, máxime em uma situação em que as legendas partidárias são muito frágeis, se diluindo fácil e negativamente no rastro de um governo em crise.
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A partir da crise de 1999 pode-se entender melhor a relativa confusão que foi o segundo mandato de FHC. Desde então, os partidos que integravam a base de apoio do governo ficaram a pelejar em torno de CPIs e acusações mútuas de corrupção, mas, ao mesmo tempo, continuaram unidos na sustentação do Executivo, que permaneceu efetivo e estável, ainda que a um nível inferior àquele observado no primeiro mandato. Esses dois aspectos, aparentemente contraditórios, são as duas faces de uma mesma moeda, que é a gestão de um governo de coalizão no contexto de um sistema de partidos cujas siglas transmitem um fraco conteúdo programático ao eleitorado. Ou seja, PSDB, PFL e PMDB, que passaram a pagar um preço alto por pertencer ao governo a partir da crise de desvalorização cambial de janeiro de 1999, tentaram minimizar tal preço de uma forma aparentemente engenhosa, mas que, ao fim e ao cabo, acabou sendo deletéria para o governo FHC. Os desentendimentos entre os três partidos tornaram-se mais evidentes e sérios quando da eleição dos novos presidentes da Câmara e do Senado em fevereiro de 2001, em mais um passo que antecipava a disputa presidencial de outubro de 2002, até chegar ao seu ápice em abril de 2002, quando o PFL abandonou os postos ministeriais que ocupara ao longo de quase oito anos. É óbvio que as dificuldades econômicas pelas quais passou o país desde 1999 em muito contribuíram para a dissolução da aliança multipartidária multipar tidária que sustentou FHC. Porém, a intensidade das desavenças entre os grandes partidos derivou, em não pequena parte, da fragilidade programática dessas legendas, pois, se fossem mais
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seguras da imagem que deles tem o eleitorado, não precisariam executar desgastantes manobras de marcação de posição ou cometer atos de agressão mútua. Concluo afirmando que nosso sistema político precisa de algumas reformas que protejam ou fortaleçam os aspectos positivos do presidencialismo de coalizão e que retifiquem os aspectos negativos. Necessitamos de mecanismos institucionais que tornem praticamente inevitável a constituição de sólidos governos de coalizão, tal qual definidos acima, e que impossibilitem governos cesaristas como o de Collor Coll or.. Uma tal reforma não significa não significa o abandono tout court do presidencialismo. Creio que um regime como o semipresidencialismo francês – que tem um presidente diretamente eleito, dotado de importantes prerrogativas constitucionais, mas cujo primeiro ministro depende da confiança parlamentar – poderia ser adaptado ao Brasil com algumas modificações. A sua virtude seria justamente a de institucionalizar, por meio do mecanismo de confiança parlamentar do gabinete, a nossa prática informal ou para-constitucional de governos de coalizão. Porém, não haverá caminho fácil se os partidos brasileiros não se fortalecerem programaticamente, reformando-se ou não o sistema de governo. Destarte, faço minhas as palavras de Scott Mainwaring quando afirma que os partidos, embora não sejam hoje tão fortes nas democracias mais estáveis como eram no começo ou meio do século passado, continuam sendo instrumentos fundamentais para a governança democrática.11 Assim, pode-se dizer que teremos grandes Scott P. Mainwaring, Sistemas Partidários em Novas Democracias , op. cit., cit., p. 51-96. 11
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dificuldades de institucionalizar o presidencialismo de coalizão se as siglas e as organizações partidárias não se tornarem programaticamente mais fortes. O fortalecimento dos partidos permitirá que estes – concomitantemente – cooperem na arena governamental e compitam na arena eleitoral de forma mais eficaz e estável. É fundamental que as siglas sejam fortes o suficiente para que os partidos não temam cooperar entre si e com o governo e para que possam competir em bases mais programáticas e menos personalistas e turbulentas. A provável ida para a oposição, a partir de 2003, de vários dos partidos que sustentaram FHC, será uma grande oportunidade para que se fortaleçam programaticamente.