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ma polêmica opõe há décadas psicanalistas e estudiosos das ciências humanas: a psicanálise tem ou não o direito de se pronunciar sobre fenômenos exteriores à situação analítica? As criações da literatura, da arte ou da religião são passíveis de uma interpretação psicanalítica, ou esta interpretação, sob o pretexto de desvendar a dimensão inconsciente destas criações, na verdade passa ao largo de seu sentido verdadeiro? Os argumentos invocados para justificar cada uma das posições variam segundo o campo em que, a cada vez, a discussão é retomada; mas, a um exame mais atento, eles se reduzem a duas formas elementares. A psicanálise sustenta que tudo o que é humano traz a marca do inconsciente e é portanto de sua alçada; seus opositores afirmam a especificidade inerente a cada tipo de atividade do homem, e acusam de reducionismo imperialista a pretensão analítica de ver em toda parte os efeitos do desejo, do inconsciente e do complexo de Édipo. Colocado nestes termos, o debate faz pensar no debate entre a baleia e o urso polar de que fala Freud no Homem dos _ Lobos: como cada um dos contendores permanece em seu ele
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Comunicação na mesa-redonda “Mitologia, filosofia e antropologia do IX Congresso Brasileiro de Psicanálise, São Paulo, abril de 1983: publicado na Revista Brasileira de Psicanálise, XVII, 3, São Paulo, 1983, pp. 365-379. ”
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mento, o gelo ou a água, o afrontamento jamais pode se verificar, muito embora os rugidos de um e de outro possam fazer crer que a luta é de vida ou de morte. A interpretação psicanalítica das manifestações culturais re pousa sobre alguns pressupostos que convém explicar. Em primeiro lugar, a cultura tomada em seu sentido mais amplo não é estranha à esfera da psicanálise, porque esta não se reduz a um método terapêutico, mas assenta tal método sobre uma teoria da gênese e do funcionamento do psiquismo em geral. Esta teoria se caracteriza pela idéia de que a humanização do pequeno ser nascido de um homem e de uma mulher equivale a um processo de culturalização, isto é, de transformação da mente num órgão ca paz de representar não apenas os fantasmas engendrados por ela própria, mas ainda objetos e entidades que ela não pode criar por seus meios exclusivos: o corpo próprio, os outros seres humanos e o mundo exterior. Para tanto, ela tem que receber do ambiente que a circunda inicialmente reduzido à sua própria mãe as informações apropriadas e os meios para metabolizar essas informações. Como esses meios são fruto do processo cultural, a transformação da psique em psique humana equivale à sua transformação numa psique marcada pela cultura. Disso resulta que a cultura não se opõe à psique individual como o fora ao dentro, mas que ela lhe é simultaneamente interior e exterior: interior porque é aquilo mediante o que o indivíduo se constitui como indivíduo, e exterior porque não depende apenas dele e continua a subsistir após sua morte física. Em virtude disso, a teoria sobre o psiquismo individual é necessariamente e ao mesmo tempo uma teoria sobre a cultura e sobre as modalidades pelas quais a psique se culturaliza, isto é, tomase humana. Portanto, a investigação psicanalítica da cultura não somente é legítima, mas é também parte integrante da própria psicanálise, razão pela qual me parece inadmissível falarse em “psicanálise aplicada” para designar esse tipo de trabalho.
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Existe, portanto, unia teoria psicanalítiea da natureza humana, e é importante assinalar que ela se caracteriza por um traço muito particular, que se torna evidente quando a confrontamos com outras teorias sobre a mesma questão. Quando Aristóteles define o homem como “animal racional" ou como “animal social", razão e sociabilidade são consideradas como capacidades inerentes ao ser humano, sem no entanto pressupor qualquer conteúdo que deva necessariamente acompanhar tais capacidades: a definição afirma que o homem é capaz de pensar ou é destinado à vida em sociedade, mas disso não se segue que para ser homem é preciso pensar tal pensamento determinado ou viver em tal tipo determinado de sociedade. O mesmo ocorre com a tese marxista de que o homem se caracteriza por sua capacidade de trabalhar, isto é, de negar e ultrapassar a Natureza, ou com a lese de Cassirer segundo a qual o homem é o animal que simboliza: ainda aqui, tratase de potencialidades que devem se efetivar no real. mas que não necessitam em absoluto cristalizarse em tal tipo de trabalho ou em tal espécie de forma simbólica. A tese de Freud difere das anteriores num ponto capital: ao enunciar que o homem se define pelo conflito que o constitui, conflito cujos pólos são o desejo e a defesa contra o desejo, ela afirma no mesmo enunciado que este conflito é suscitado pela existência de objetos privilegiados do desejo, a saber, o pai e a mãe. Segundo Freud, não é a capacidade genérica de desejar e de se defender contra o desejo que constitui a humanidade do homem, mas a capacidade de desejar objetos simultaneamente proibidos pela cultura. Não são. pois, quaisquer desejos os que fazem do homem homem, mas uma constelação precisa e insubstituível que organiza esses desejos como desejo de incesto e desejo de parricídio: em termos mais simples, o que toma o homem humano é o complexo de Édipo. É evidente que este postulado coloca Freud frente a uma dificuldade desconhecida para seus predecessores: a de explicar como e por que existem na psique humana conteúdos universais e inde-
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pendentes de variáveis como a época, o lugar ou a formação social. Sabemos que a esta dificuldade ele tentou responder de várias maneiras, em particular com seu “mito científico” da horda primitiva e do parricídio originário, ou ainda com a hipótese das fantasias primordiais. Os sucessores de Freud, para quem estas teses pareceram insatisfatórias, foram obrigados a sugerir outras hipóteses para resolver o mesmo problema: a presença, na psique humana, de conteúdos universais que se cristalizam na constelação edipiana. Melanie Klein falará das ansiedades primárias causadas pela ação silenciosa da pulsão de morte. Lacan invocará a necessidade de escapar à alienação imaginária pela submissão à linguagem e ao simbólico, outros levantarão hipóteses diferentes: mas todos se verão a braços com a necessidade de inventar modelos capazes de dar conta do caráter universal do complexo de Edipo, pedra de toque da teoria psicanalítica em qualquer de suas versões. Seria essa universalidade do Édipo uma idéia absurda de Freud, como sustentam os que se opõem à interpretação psicanalítica da cultura? Para responder a esta questão, é preciso examinar outro dos pressupostos da interpretação analítica: a idéia de deformação. Em si mesma, essa idéia é muito simples: em virtude da ação simultânea dos impulsos e das defesas, o conteúdo manifesto de qualquer ato humano, em qualquer plano, é resultado de um compromisso entre tendências opostas, compromisso que encobre e desfigura embora deixe entrever seu sentido e também o percurso pelo qual ele foi deformado, até atingir o ponto em que pôde ser expresso porque já se afastara o suficiente de seu momento de origem. Disso resulta que o interesse do psicanalista se atém preferencialmente a esses procedimentos de deformação, o que esclarece por que o debate com os especialistas dos outros campos é tão frequentemente análogo à luta da baleia e do urso polar: ali onde os especialistas vêem a ação de fatores históricos ou estéticos, o psicanalista procura a fantasia de desejo e as defesas que, ocultandoa, a exprimem de maneira dissimulada. Todo o
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pro blema consiste em saber se os dois pro cedim ento s são niutuamente exclusivos ou se, ao contrário, podem ser pensados como complementares, caso em que se coloca a questão inevitável de como articular as diferentes dimensões do fenômeno estudado. O que costuma irritar os pesquisadores de outros campos é a pretensão de exaustividade que, explícita ou veladamente, os psicanalistas habitualmente reivindicam para suas interpretações, pretensão segundo a qual somente a psicanálise estaria em condições de revelar o sentido mais profundo ou o sentido verdadeiro dos temas abordados. O primeiro a dar este exemplo é o próprio Freud, sob cuja pena encontramos inúmeras vezes expressões do tipo “somente a psicanálise pode lançar um raio de luz nestas trevas’' (Totem e tabu). Tal afirmativa contrasta curiosamente com a prudência com que ele reconhece, quando trata de problemas mais diretamente atinentes à prática ou à teoria em sentido estrito, a provisoriedade de suas conclusões e a extensão do que, mesmo após um percurso laborioso, continuamos a ignorar. Mas, poder seia objetar, a psicanálise não precisa explicar todos os fenômenos humanos, nem, como diz C. Le Guen, tudo desses fenômenos: basta que elucide a dimensão que lhe é própria, a dimensão inconsciente, sem precisar negar que outros fatores, de ordem qualitativamente diferente, intervêm de modo igualmente decisivo para a constituição dos fenômenos em questão. O problema, no entanto, é mais complicado do que parece. Tudo estaria muito bem se esses “outros fatores” viessem sim plesmente se acrescentar aos que a psicanálise põe em destaque, se eles por assim dizer funcionassem na mesma direção. Ora, não é o que de hábito se verifica: para empregar os termos que figuram no título de nossa mesaredonda, a antropologia, a epistemologia, a mitologia, a filosofia e, por que não, também a história, a geografia, a economia e a sociologia trazem à luz fatores explicativos que se opõem - e não que simplesmente dife rem - aos revelados pela psicanálise. Ou melhor: cada uma dessas
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disciplinas considera suficientes e adequados, para o esclarecimento de seus objetos respectivos, os meios de estudo de que se serve habitualmente, enquanto o psicanalista se verá conduzido a afirmar que estes mesmos objetos incluem em si uma dimensão inconsciente que somente o método psicanalítico permite abordar. Enquanto os mitólogos, epistemólogos e demais especialistas enfatizam a especificidade e a irredutibilidade daquilo que estudam, a interpretação analítica, que é forçosamente redutora, não visa simplesmente acrescentar um outro nível de significado aos mesmos objetos. Implícita ou explicitamente, ela afirma que, em virtude da lei da deformação, as análises das demais disciplinas não apenas se detêm em níveis mais “superficiais”, mas ainda que são tributárias das mesmas forças deformadoras que geraram a forma imediata dos objetos a serem estudados. Em outros termos, ao interromper o movimento interpretativo antes do ponto em que tais objetos se revelariam como compromissos entre os desejos inconscientes e as defesas erigidas contra ele, as disciplinas específicas reforçariam os efeitos da repressão, porque apresentariam como últimos &fundamentais conteúdos ainda muito distantes da esfera do inconsciente, embora possivelmente já bem distantes da forma imediata do objeto. Por outro lado, os especialistas declaramse freqüentemente estarrecidos com a leviandade com que, inúmeras vezes, os analistas atravessam as complexidades de determinada manifestação cultural para reencontrar, ao cabo de poucos passos, a sinonímia universal dos desejos inconscientes, e atônitos pela acusação de “resistência” com que os mesmos analistas acolhem seu ceticismo quanto à validade das interpretações apresentadas como sendo de inspiração psicanalítica. O procedimento autoritário de não responder às críticas, desqualificando o crítico ora como dominado pela resistência, ora como obnubilado pela ignorância, reencontrase portanto dos dois lados, e sem dúvida contribui apenas para reconfortar cada intérprete na certeza dogmática de que o outro é o tolo e de que ele detém a boa expli-
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cação tanto do objeto em pauta quanto do erro do seu adversário. Um exemplo desta polêmica - que como toda polêmica não pode ser um diálogo, porque consiste em dois monólogos cruzados - é o problema da análise das tragédias gregas. Para os helenistas, capitaneados por J. P. Vernant, a tragédia é uma forma cultural específica do século V a.C. em Atenas, e corresponde a um momento preciso e único da civilização grega. Este momento se define por certos traços relevantes: conflito entre formas arcaicas e modernas do direito; conflito entre o passado da pólis retratado nos mitos e as novas formas sociais e mentais; conflito entre a dependência dos caprichos dos deuses em que, segundo a religião antiga, se encontra a ação humana, e a experiência de uma ainda hesitante autonomia da vontade do homem. São esses conflitos e a ambigüidade com que são vividos e apresentados que constituem a essência da tragédia: quando a ambigüidade for percebida como contradição, quando a filosofia vier dissipar essa contradição por meio da definição unívoca e do princípio do terceiro excluído, a “mola da tragédia” se quebrará e a constelação única de fatores religiosos, sociais, políticos, psíquicos e estéticos que tornavam possível a tragédia será dissolvida. A tragédia é, portanto, nessa perspectiva, um fenômeno singular que obedece a certas leis gerais - as leis que governam as complexas relações entre um artefato cultural e a sociedade na qual ele é criado - e nada mais aberrante do que projetar sobre ela a interpretação psicanaiílica, que desconhece o contexto cultural e vai diretamente ao encontro do que já pressupunha: que a tragédia é mais uma deformação - Freud diz uma “elaboração secundária a serviço de um propósito teolog izante” - do conteúdo edipiano universal. Para os psicanalistas, por sua vez, nada mais evidente do que a presença do complexo de Édipo numa série de dramas que põem em cena as diferentes modalidades do ódio e do amor entre os membros da mesma família, o problema da culpabilidade pelas ações e pelas intenções, as questões fundamentais da identidade pessoal e da
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diferença entre os sexos e entre as gerações. Livros importantes foram escritos a este respeito por inúmeros analistas, uns com mais, outros com menos sucesso; talvez o mais conhecido seja o de A. Green. Un oeil en trop. Não podemos aqui entrar no exame dos argumentos de cada autor; bastanos assinalar a aparente impossibilidade de conciliar as duas interpretações, já que cada uma delas avança como motivo essencial do surgimento da tragédia teses que se refutam mutuamente, ainda que por vezes os analistas se mostrem dispostos a acatar, como motivos secundários e finalmente pouco relevantes, os fatores que para os helenistas são os decisivos. Creio que a explicação histórica e a explicação psicanalítica permanecerão inaudíveis uma para a outra enquanto não examinarmos a idéia da leitura e do significado do ato de ler que subjaz a cada uma delas. E talvez nos surpreenda verificar que, apesar dos resultados antagônicos, ambas as leituras repousam sobre um pressuposto idêntico, que torna finalmente a leitura histórica muito pouco histórica e a leitura psicanalítica muito pouco psicanalítica. Refirome à idéia de que a leitura é uma operação de deciframento, idéia que me parece ocultar o verdadeiro sentido
do ato de ler, e ser responsável pela traição a seus próprios princí pios efetuada costumeiramente tanto pela abordagem que se diz histórica quanto pela abordagem que se diz psicanalítica. Que significa considerar que ler é decifrar? Significa supor que a obra lida tem um sentido intrínseco, que a leitura irá revelar se se dotar dos instrumentos adequados e se o leitor for suficientemente perspicaz. Este sentido seria o original, a verdadeira intenção do autor ou a verdadeira constelação de fatores que, com binados, resultaram na configuração da obra tal como ela se dá ao leitor: sentido original, intenção profunda e fatores operativos seriam completamente restituíveis pela leitura adequada. Tal leitura é dita difícil, mas não impossível: refazendo em sentido inverso o percurso da criação, ela daria conta integralmente das determina-
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ções relevantes tanto do conteúdo quanto da forma da obra, no limite permitindo ao leitor, de posse dos elementos constitutivos e das regras de construção revelados pela bemsucedida operação de dcciframento, reescrever de cabo a rabo a obra lida. Dessa pers pectiva, é perfeitamente indiferente que os “elementos constitutivos” sejam as fantasias edipianas, e as “regras de construção” os mecanismos dos processos primário e secundário mediados pelas defesas do autor, ou que os “elementos constitutivos” sejam os ritos, os mitos e o presente da polis, e as “regras de construção” a transposição para a “forma da tragédia” da problemática social e ética própria ao século V a.C. O que tanto o deciframento histórico quanto o deciframento psicanalítico têm em comum é a ilusão da transparência e a supressão da leitura enquanto tal: transparência da obra. enfim legível em suas determinações essenciais, e supressão da leitura, porque esta é imaginada como atividade neutra e asséptica que não deixaria traços no resultado final. A leitura não é deciframento, mas trabalho, ou seja, negação determinada do dado imediato e construção de um novo objeto, que mantém com a “matériaprima” relações muito complexas. A obra é feita para ser lida por alguém que não é o seu autor, e comporta, não uma pluralidade de significados que o deciframento viria desvendar, mas uma potencialidade de suscitar novas signi ficações mediante o trabalho da leitura, e que só vêm a ser se esse trabalho for realizado. A história de uma obra é a história das leituras sucessivas que ela suscita, as quais em primeiro lugar só podem ser efetuadas porque, devido a circunstâncias que lhe são exteriores, ela se tornou interessante ou enigmática, e em segundo lugar lhe propõem questões novas e a fazem dar respostas a estas questões, movimento pelo qual surge uma faceta dela capaz de significar algo para o leitor e para seus contemporâneos. Esse movimento não equivale, porém, a retirar mais um véu na direção da transparência absoluta; esta faceta resulta da negação do texto imediato por meio de um trabalho e não de uma simples mudan-
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ça do ângulo de visão. As metáforas visuais carregam uma conotação de estaticidade, como se apenas o observador se movimentasse e a obra permanecesse no mesmo lugar; seriam precisas metáforas manuais, que indicassem o movimento simultâneo da obra e do leitor, à guisa do torneiro que movimenta o barro ao mesmo tempo em que movimenta seu próprio corpo. A diversidade dos resultados a que chegam leituras diferentes da mesma obra se explica pela diversidade das perguntas que lhe são endereçadas, perguntas relevantes num sistema de referências e irrelevantes noutro. mas sempre orientadas pela significação que o leitor espera produzir: o trabalho da leitura tem sempre um destinatário, para quem ele se dirige e em relação ao qual deseja ser portador de uma eficácia. Vejamos em que medida essa idéia da leitura como trabalho que deixa suas marcas no texto lido pode nos auxiliar a esclarecer nosso problema. A leitura histórica será tributária da sua especificidade, da situação dos estudos da área, das finalidades pragmáticas que visa o historiador. Como podem os helenistas, por exemplo, criticar a interpretação psicanalítica por se servir de um instrumento forjado no século XX, e supor que sua própria leitura não tem data e se limita a revelar o que a tragédia fo i? A interpretação de um Vemant pressupõe estudos de filologia, de mitologia, de história das formas sociais e das idéias, que dão da tragédia uma visão muito diferente da que os próprios autores e os espectadores do século V poderiam ter. e que é tão “contempo rânea” de nós quanto a interpretação psicanalítica. E importante enfatizar esse aspecto: os gregos tinham da tragédia como de qualquer outra de suas manifestações culturais uma experiência imediata que dispensava o laborioso trajeto heurístico imposto a nós pela distância que deles nos separa, de modo que mesmo a reconstituição minuciosa de suas categorias experienciais e intelectuais só pode nos oferecer um acesso mediato ao que para eles era significação facilmente legível. Além disso, a tese segundo a
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qual a tragédia é filha da polis é ela mesma filha do século XX, na medida em que pressupõe pelo menos a teoria marxista da inter pretação das “superestruturas culturais” e a crítica dos aspectos dogmáticos desta teoria, crítica que rejeita a idéia mecânica do reflexo mas conserva a noção básica de que uma forma cultural mantém relações complexas com as contradições da sociedade na qual se elabora. Tal idéia chocaria Esquilo e Sófocles tanto quanto as teses incriminadas por Vernant, e de modo algum pode pretender retratar com mais fidelidade do que elas o sentido “último” do objeto “tragédia”. Ela indubitavelmente revela dimensões que aumentam nossa compreensão da tragédia; mas, justamente, aumentam nossa compreensão, e seriam rejeitadas como nãopertinentes não só por Eurípedes, como também por Nietzsche ou por Hegel, cujo trabalho de leitura repousava sobre pressupostos diferentes. Qual das interpretações é mais verdadeira: a que vê na tragédia a luta do princípio apolíneo e do princípio dionisíaco, ou a que a concebe como luta do direito antigo e do direito da pólis? Esta pergunta não tem sentido algum: a tragédia é o texto dos tragediógrafos e tudo o que resulta dos trabalhos de leitura que ele suscitou nos últimos vinte e cinco séculos, entre os quais a interpretação "histórica” dos helenistas atuais. Essa leitura, porém, nada lerá de histórica, se persistir em se pensar como revelação definitiva do sentido da tragédia, isto é, se trair o próprio princípio da historicidade, que é a criação e emergência do novo a partir e contra o antigo do qual nasce. Não se veja nestas considerações, de resto, qualquer defesa do relativismo ou do historicismo. As diferentes interpretações não se escalonam segundo um princípio de maior “profundidade" das posteriores com relação às anteriores. nem são equivalentes entre si porque todas seriam “relativas” e datadas, e no fundo puramente projetivas. Pensar a leitura como trabalho implica pensar a história da obra como seus efeitos e como retomo desses efeitos sobre ela mesma, na tríplice dimensão da história da obra, da história das leituras e da história do
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intérprete. Nesse sentido, a leitura de Vernant é parte constitutiva da história das tragédias, da história das investigações helenísticas e da história do pensamento de Vernant, assim como a interpretação freudiana do “Moisés" de Michelangelo é parte constitutiva da história da estátua, da história da psicanálise e da história da autoanálise de Freud. Podemos dizer algo semelhante a respeito da interpretação psicanalítica. Ela deixa de ser psicanalítica se se limitar à aplicação de um corpo já constituído de doutrinas sobre um objeto su posto inerte, isto é, se no caso presente partir da hipótese de que qualquer obra humana é deformação e elaboração do complexo de Édipo. Sabemos disso no que se refere à interpretação do discurso do paciente a interpretação só tem valor se não resultar da aplicação mecânica da teoria, mas se brotar do encontro dos dois inconscientes em presença. Contudo, relutamos em tirar as consequências óbvias disso, a saber que uma interpretação jamais será psicanalítica se não obedecer ao princípio fundamental do método freudiano, que é o da interpretação do singular pelo singular nas condições definidas porém não preenchidas a priorí pelos parâmetros reguladores da teoria. O que o analista intérprete da tragédia esquece e isso nos vem do próprio Freud, ao menos numa das vertentes de sua obra é que seu instrumento de trabalho não é o Vocabulário da psicanálise, mas seu próprio inconsciente, e que portanto é abusiva qualquer pretensão de “objetividade" no sentido comumente admitido deste termo. A inter pretação psicanalítica do que quer que seja implica o intérprete na sua formulação mesma, e é também parte de sua própria análise, parte tomada possível pelo encontro com o discurso do paciente ou pelo encontro com um texto literário. No entanto, dirseá, este último não pode associar, nem possui um inconsciente. É verdade; mas, se o texto não associa, a associação será do psicanalista é Freud quem o diz, na Gradiva; se a interpretação concerne a um inconsciente, e aqui só o intérprete possui inconsciente, este terá
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de reconhecer que a interpretação diz respeito antes de tudo a ele próprio, e só por essa mediação ao texto interpretado. Ela não é nem mais nem menos verdadeira por causa dessa passagem necessária: se ilumina o texto e acrescenta algo à nossa compreensão dele, é porque e não apesar de que é fruto de um trabalho de leitura que nega os dados imediatos por meio das associações despertadas pelas ressonâncias deste texto no inconsciente do intérprete exatamente como na situação em que se interpreta a fala do paciente. Ou será que, ao interpretar um texto literário, o psicanalista põe m iraculosam ente fora de circuito sua contratransferência? A interpretação psicanalítica obedece, portanto, a critérios definidos: ela não é psicanalítica porque emprega o vocabulário e os conceitos freudianos, a fim de ilustrar pela enésima vez a verdade e a fecundidade das teses já conhecidas, mas porque reproduz a maneira de pensar inventada por Freud. E essa maneira de pensar se define pela percepção dos efeitos do inconsciente tanto no objeto a analisar quanto na atividade do analista, o que faz da interpretação não apenas reconstrução do sentido, mas sobretudo construção dele. A negação do dado imediato fala do paciente ou texto da tragédia é aqui trabalho para criar uma significação nova e inédita, fruto simultâneo das associações presentes e das experiências passadas, entre as quais se inclui, para o analista, sua própria análise e os efeitos que ela teve entre os quais o de tomá lo apto a analisar os outros no mesmo movimento pelo qual se analisa a si mesmo. Se o texto não transfere nem associa, podemos, no entanto, considerar que essas carências são de certo modo suprimidas pela simultaneidade com que ele oferece todas as suas partes à leitura, simultaneidade que se opõe à sucessividade das comunicações do paciente, e que pode funcionar como elemento de controle para avaliar a propriedade da interpretação apresentada. Mas não podemos esquecer que tal interpretação não desvenda significados ocultos já preexistentes na obra posto que só
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surgem, e só são de interesse para a psicanálise, se resultarem da leitura singular que implica o leitor e seu inconsciente na operação que os faz surgir. Por isso é vã a discussão sobre se o rei Édipo tem ou não tem complexo de Edipo: o que interessa à psicanálise e não à apologética que lhe usurpa o nome é o movimento pelo qual cada leitor pode descobrir algo sobre seu próprio complexo de Édipo, e em geral sobre sua própria vida psíquica, por ocasião de uma tal leitura. É importante frisar que, por essa mesma razão , as leituras psicanalíticas é óbvio agora que devemos pôlas no plural, posto que cada uma é singular podem fazer surgir do texto de Sófocles novas significações, que passarão a fazer parte também da história desse texto e, portanto, a interessar seus futuros leitores. Onde fica, então, a universalidade do complexo de Édipo e da lei da deformação? Podemos agora percebei que afirmála a priori não se justifica: nesta form a geral e assertiva, tal afirmação tem valor como condensação de inumeráveis psicanálises, mas só pode ser psicanaliticamente substanciada se for em cada caso reinventada e rcdescoberta. E só pode ser reinventada e redescoberta se não quiser se fingir de científica e de definitiva, ilustração ad nauseam de um princípio estabelecido de uma vez por todas, deciframento aparentemente objetivo mas na verdade malandro de um sentido que já se conhece antes de começar a ler. A psicanálise, porque é leitura, é trabalho e não deciframento, é instauração do sentido e não mera revelação dele, é negação singular e dolorosa e não marcha triunfal rumo a uma transparência enganadora. Para concluir: o que é a tragédia? Nem a interpretação histórica será histórica, isto é, datada, nem a interpretação psica nalítica psicanalítica, isto é, singular, se procurarem responder a esta pergunta por meio de uma mistificação objetivante. O que a tragédia foi para os gregos do século V se perdeu para nós, e nada pode mitigar a dor desta perda irreparável. Talvez, se con-
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sentirmos em efetuar o luto dela que também é um trabalho possamos abandonar as ilusões gêmeas de que a leitura é o crime perfeito, que não deixa rastros, ou a epifania do sentido originário pela voz inefável de um leitor sem corpo, e reconhecer que a tragédia só pode significar algo para nós caso nos decidamos a aceitar que nos é impossível saltar por cima da nossa pró pria sombra.
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