Richard Florida
A ASCENSÃO DA CLASSE CRIATIVA E SEU PAPEL NA TRANSFORMAÇÃO DO TRABALHO, DO LAZER, DA COMUNIDADE E DO COTIDIANO
Tradução de A NA LUIZA LOPES
L&PM EDITORES iii
CAPÍTULO 1 A transformação do cotidiano
Alguma coisa está acontecendo, mas você não sabe o que é. Sabe, Mr. Jones?
Bob Dylan
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magine duas situações. Primeiro, vá a 1900, escolha um homem qualquer
e leve-o até a década de 1950. Em seguida, escolha um sujeito da década de 1950 e transporte-o para os dias de hoje à la Austin Powers. Quem você acha que sentiria mais a mudança? À primeira vista, a resposta parece óbvia. Uma pessoa da virada do século XIX para o XX que caísse de paraquedas em 1950 caria boquiaberta com as maravilhas tecnológicas à sua volta. Em vez de carruagens puxadas por cavalos, ela veria ruas e estradas abarrotadas de carros, caminhões e ônibus. Nos centros urbanos, gigantescos arranha-céus se enleirariam no horizonte e pontes descomunais cruzariam águas que, antes, apenas em barcações podiam transpor. Máquinas voadoras deslariam pelo céu levando pessoas de um continente a outro em horas em vez de dias. Dentro de casa, o primeiro viajante do tempo teria que lidar com um ambiente novo e estranho, repleto de aparelhos elétricos: rádios e televisores que emanam sons e até imagens, refrigeradores que mantêm a comida gelada, máquinas que lavam roupas automaticamente e muito mais. Um novo mercado de proporções nunca vistas, com várias opções de comidas desenvolvidas tecnologicamente – legumes congelados para guardar na geladeira e café solúvel, para citar alguns –, tornaria obsoletas as idas diárias ao mercadinho. A própria expectativa de vida seria radicalmente diferente: doenças outrora fatais poderiam ser evitadas com uma injeção ou curadas com um comprimido. As transformações materiais do ambiente – a velocidade e a potência dos aparatos do dia a dia – seriam extremamente desnorteantes para esse viajante do tempo. Já o homem de 1950 não demoraria muito para se adaptar à paisagem dos dias de hoje. Embora nos seja cara a ideia de que vivemos numa era de A transformação do cotidiano l
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desenvolvimento tecnológico sem fronteiras, o segundo viajante do tempo aterrissaria num mundo não muito diferente daquele que deixou para trás. Ele continuaria a ir de carro para o trabalho. Se pegasse o trem, é bem possível que utilizasse a mesma linha partindo da mesma estação. É provável também que pudesse pegar um avião no mesmo aeroporto. Talvez ainda morasse no mesmo bairro, quem sabe numa casa maior. A televisão teria mais canais, mas continuaria praticamente a mesma. Ele poderia, inclusive, ver a reprise de alguns de seus programas favoritos da década de 1950. Ele saberia operar (ou logo aprenderia a fazê-lo) a maioria dos eletrodomésticos – até o computador, com o mesmo teclado da boa e velha máquina de escrever. Na verdade, com algumas exceções como o PC, a internet, os reprodutores de CD e DVD, o caixa eletrônico e um telefone sem o que ele poderia levar consigo, o segundo viajante estaria bastante familiarizado com a tecnologia atual. Quem sabe, desiludido com o ritmo do progresso, perguntasse: “Por que não conquistamos o espaço?” ou “Onde estão os robôs?”. Tendo em vista as grandes – e óbvias – transformações tecnológicas, é certo que o viajante de 1900 sentiria mais a mudança, ao passo que o outro poderia facilmente concluir que passamos a segunda metade do século XX fazendo ajustezinhos nos avanços da primeira metade. 1 No entanto, à medida que passassem mais tempo em seu novo lar, os viajantes perceberiam as sutilezas da transformação. Depois de arrefecido o impacto inicial da tecnologia, eles começariam a notar as mudanças nos princípios e nos valores de suas respectivas sociedades, bem como no modo de viver e trabalhar das pessoas comuns. É nesse ponto que o jogo vira. Em termos de adaptação às estruturas sociais e ao ritmo da vida cotidiana, o segundo viajante do tempo caria bem mais desnorteado. Um indivíduo do início do século XX logo descobriria que a dinâmica social da década de 1950 é bastante semelhante à sua. Se trabalhasse numa fábrica, é possível que se deparasse com a mesma divisão do trabalho, o mesmo sistema de controle hierárquico. Se trabalhasse num escritório, estaria envolvido pela mesma burocracia, pela mesma rotina de ascensão corporativa. Ele chegaria ao trabalho às 8h ou 9h todo dia e sairia às 17h em ponto; casa e trabalho seriam duas esferas perfeitamente distintas de sua vida. O viajante de 1900 usaria terno e gravata, e a maioria de seus colegas de trabalho seria do sexo masculino e branco. Os valores e as relações de trabalho quase não teriam sofrido mudanças. Ele raramente veria mulheres no escritório, exceto as secretárias, e quase nunca interagiria prossional mente com pessoas de outras raças. Ele casaria cedo, logo teria lhos e continuaria casado para o resto da vida. No que diz respeito ao lazer, ele descobriria que o cinema e a TV suplantaram em grande medida o teatro e outras apresentações ao vivo, mas, de resto, seu tempo livre seria dedicado 2
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a atividades bastante semelhantes às de 1900: assistir a jogos de beisebol ou lutas de boxe, quem sabe até jogar um pouco de golfe. Ele se associaria a clubes ou grupos adequados à sua classe socioeconômica, respeitaria as mesmas regras de conduta social e esperaria que seus lhos zessem o mesmo. Ele se estruturaria de acordo com valores e normas de uma empresa e levaria a vida de homem dedicado ao trabalho tão bem narrada por autores como Sinclair Lewis e John Kenneth Galbraith ou William Whyte e C. Wright Mills.2 Já o segundo viajante do tempo caria bastante irritado com as verti ginosas transformações sociais e culturais que foram se acumulando desde a década de 1950 até hoje. No trabalho, ele se depararia com um novo modo de se vestir, novos horários e novas regras. Ele veria pessoas andando pela empresa de calça jeans e sem gravata como se estivessem relaxando no m de semana e caria chocado ao descobrir que elas ocupam altos cargos. Os funcionários pareceriam ir e vir a seu bel-prazer. É bem possível que os mais novos exibissem tatuagens e piercings bizarros. Pessoas do sexo feminino e até de outras etnias exerceriam a função de gerente. A individualidade e o estilo pessoal seriam mais valorizados que a conformidade com os princípios organizacionais. Ainda assim, esses indivíduos pareceriam extremamente puritanos para o segundo viajante do tempo. Suas piadas de cunho racial seriam um fracasso, seu cigarro faria com que fosse banido do ambiente, e os martínis que toma no almoço causariam sincera preocu pação. Atitudes e expressões triviais para ele seriam motivo de ofensa. Ele estaria sempre com a terrível sensação de não saber como se portar. Na rua, o homem de 1950 veria mais grupos étnicos do que poderia sonhar: asiáticos, indianos, latinos e outros tantos confraternizando de modo estranho e talvez inapropriado segundo sua concepção. Ele encontraria casais inter-raciais e casais do mesmo sexo andando por aí com um apelido alto-astral – “gay”. Talvez considerasse natural a atitude de alguns – mulheres fazendo compras com seus bebês ou executivos almoçando no balcão de um restaurante, por exemplo. Imagine, porém, quando visse adultos vestidos com roupas colantes passando a toda velocidade em bicicletas high-tech ou mulheres andando para lá e para cá em estranhos patins com o tronco coberto apenas por um “sutiã”, só para citar alguns casos. Para o viajante de 1950, esses seres pareceriam estar envolvidos em atividades totalmente bizarras. Além disso, as pessoas passariam a impressão de estar sempre trabalhando e, ainda assim, de nunca trabalhar na hora devida. Elas pareceriam preguiçosas, mas obcecadas com exercício físico; preocupadas com a carreira e ao mesmo tempo volúveis (“Ninguém para na empresa mais de três anos?”); compassivas, mas antissociais (“O que aconteceu com os clubes de A transformação do cotidiano l
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carteado, as associações desportivas e as noites de bingo?”). É verdade que as características físicas do ambiente poderiam ser relativamente familiares, mas a sensação geral seria de estranhamento e confusão. Sendo assim, embora o primeiro viajante do tempo tivesse que se adaptar a drásticas mudanças tecnológicas, o segundo experimentaria uma transformação mais generalizada e profunda. Ora, este último foi transportado para uma época em que os estilos de vida e as visões de mundo estão sofrendo as maiores reviravoltas – uma época em que a velha ordem sucumbiu, em que mudança constante e incertezas fazem parte da norma.
A FORÇA POR TRÁS DA MUDANÇA O que causou essa transformação? O que aconteceu entre a década de 1950 e os dias de hoje que não aconteceu na primeira metade do século XX? Estudiosos e especialistas propuseram muitas teorias, acompanhadas de uma avalanche de opiniões acerca do caráter positivo ou negativo das mudanças. Alguns lastimam o m dos tradicionais valores culturais e sociais, outros apontam um futuro cor-de-rosa com base em novas tecnologias. Ainda assim, a maioria concorda num ponto: a transformação nos teria sido imposta. Uns reclamam que determinadas parcelas da sociedade impingiram seus valores ao resto do mundo, outros dizem que nossas próprias invenções estão se voltando contra nós e nos remodelando. Estão todos equivocados. A sociedade está mudando porque queremos. Além disso, a mudança não acontece de maneira caótica nem misteriosa, ela se dá de modo bastante coerente e racional. Se a lógica por trás dos acontecimentos não é patente, é porque a transformação ainda está em andamento. Nos últimos tempos, porém, vários os aparentemente soltos começaram a se ligar. O padrão latente, a força por trás da mudança, pode nalmente ser divisado. A força motriz é a ascensão da criatividade humana como agente central na economia e na vida em sociedade. Seja no trabalho ou em outras esferas da vida, nunca valorizamos tanto a criatividade e nunca a cultivamos com tamanho empenho. O ímpeto criativo – a característica que nos diferencia de outras espécies – está sendo liberado numa escala sem precedentes. O propósito deste livro é investigar como e por que isso está acontecendo, bem como identicar seus efeitos à medida que eles se pro pagam pelo mundo. Vejamos primeiro o âmbito da economia. Muitos dizem que vivemos numa economia da “informação” ou do “conhecimento”. Ora, mais certo seria armar que, hoje, a economia é movida pela criatividade humana. A criatividade – ou, segundo o dicionário Webster, “a capacidade de inovar 4
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de forma signicativa” – é o fator determinante da vantagem competitiva. Em praticamente todos os setores da economia (da indústria automobilística à moda, passando por produtos alimentícios e pela própria tecnologia da informação), aqueles que conseguem criar e continuar criando são os que logram sucesso duradouro. Isso sempre foi assim, desde a Revolução Agrícola até a Industrial, mas, nas últimas décadas, passamos a reconhecer claramente esse fator e agir com base nisso de modo sistemático. A criatividade é multidimensional e se apresenta de diversas formas que se potencializam. É um erro pensar, como muitos, que ela se limita à criação de inventos espalhafatosos, novos produtos ou novas empresas. Na economia de hoje, a criatividade é generalizada e contínua: estamos sempre revendo e aprimorando cada produto, cada processo e cada atividade imaginável, e integrando-os de novas maneiras. Além disso, a criatividade tecnológica e econômica é fomentada pela criatividade cultural e interage com ela. Esse diálogo é evidente no surgimento de novas áreas como a computação gráca, a música digital e a animação. Max Weber há muito armou que a ética protestante forneceu o espírito de prosperidade, de trabalho duro e de eciência que motivou a ascensão do capitalismo. De modo semelhante, o compromisso compartilhado para com as diversas manifestações da criatividade sustenta o novo éthos criativo que anima nossa época. Não é surpreendente que a criatividade tenha se tornado o bem mais estimado de nossa economia. Ainda assim, ela não é exatamente um “bem”, mas fruto da atividade humana. Por mais que as pessoas possam ser contratadas e despedidas, sua criatividade não pode ser comprada e vendida, ou ativada e desativada ao bel-prazer de quem quer que seja. Entre outras coisas, é por isso que vemos surgir uma nova ordem no ambiente de trabalho. Contratar tendo em vista a diversidade não é mais uma obrigação legal, mas uma questão de sobrevivência econômica, pois a criatividade vem em todas as cores, gêneros e preferências pessoais. Horários, regras e códigos de vestimenta foram exibilizados para atender o processo criativo. A criatividade deve ser promovida de diversas formas pelos empregadores, pelos próprios indivíduos criativos e pelas comunidades onde vivem. Não é de se espantar que o éthos criativo transponha o mundo do trabalho e penetre em todas as esferas da vida. Ao mesmo tempo, vemos despontar modelos totalmente novos de infraestrutura econômica para dar suporte à criatividade e estimular pessoas criativas a desenvolver novas ideias e produtos – exemplos disso são os gastos sistemáticos com pesquisa e desenvolvimento, o crescente número de empresas de alta tecnologia e os investimentos de risco. O capitalismo também expandiu seus horizontes para abarcar talentos de grupos marginais A transformação do cotidiano l
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e inconformistas que até agora eram excluídos. Com isso, desencadeou outra reviravolta impressionante: levou os que antes eram vistos como rebeldes excêntricos atuando à margem para o centro do processo de inovação e crescimento econômico. Essas mudanças na economia e no ambiente de trabalho, por sua vez, ajudaram a propagar e a legitimar transformações semelhantes na sociedade como um todo. O indivíduo criativo não é mais encarado como um iconoclasta; ele – ou ela – faz parte da nova cultura predominante. Ao tratar das mudanças econômicas, costumo dizer que nossa economia está passando de um sistema corporativo centrado em grandes em presas a um sistema mais voltado para o indivíduo. Essa ideia não deve ser confundida com a concepção tola e infundada de que as grandes empresas estão à beira da extinção. Também não acredito na fantasia de uma economia centrada em pequenos negócios e em “agentes livres” independentes. 3 As grandes empresas ainda existem (óbvio), ainda têm bastante inuência e provavelmente sempre terão. Minha intenção é salientar que as pessoas, na medida em que são a principal fonte de criatividade, representam o principal recurso da nova era. Essa constatação tem amplas consequências, por exemplo, na geograa social e econômica, bem como nas características das comunidades. Não é incomum ouvir que, na atual era da alta tecnologia, “a geograa morreu” e a noção de lugar não é mais relevante. 4 Para ver que isso não é verdade, basta observar que as empresas de alta tecnologia estão concentradas em pontos especícos como a área da Baía de São Francisco, Austin ou Seattle. O lugar geográco se tornou o principal elemento organizador da nossa era, assumindo muitas das funções que antes eram exercidas por em presas e outras organizações. No passado, as corporações desempenhavam um papel econômico central ao atuar como elo de ligação entre o indivíduo e o trabalho, em especial se levamos em conta a prática de contratações potencialmente vitalícias que se instaurou depois da Segunda Guerra Mundial. Hoje, porém, as organizações são menos “éis” a seus funcionários, e as pessoas mudam de emprego com frequência, o que torna os contratos de trabalho bem mais contingentes. Nesse ambiente, a situação geográca substitui a corporação como aquela que organiza as relações entre indivíduo e trabalho. Hoje, ter acesso a pessoas talentosas e criativas está para os negócios assim como ter acesso a carvão e minério de ferro estava para a siderurgia. Ele determina os lugares que as empresas escolhem para se xar e crescer, o que por sua vez altera a dinâmica de competição entre cidades. Em um discurso para governadores dos EUA, Carley Fiorina, CEO da Hewlett-Packard, declarou: “Fiquem com seus incentivos scais e autoestradas; nós vamos aonde estão as pessoas mais capacitadas”.5 6
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Os indivíduos criativos, por sua vez, não se concentram onde estão os empregos. Eles se reúnem em centros de criatividade e onde gostam de viver. Veja o caso de Atenas e Roma no período clássico, de Florença na época dos Médici, da Londres elisabetana, do Greenwich Village e da área da Baía de São Francisco – a criatividade sempre foi atraída para locais especícos. Como observou Jane Jacobs, grande urbanista, lugares bemsucedidos são multidimensionais e diversicados – eles não apelam a um único setor ou grupo demográco; eles são repletos de estímulo e troca criativa.6 Como consultor, costumo dizer a líderes políticos e empresariais que os lugares precisam de uma atmosfera humana – ou criativa – tanto quanto de uma atmosfera comercial. Cidades como Seattle, Austin, Toronto e Du blin reconhecem a natureza multidimensional da mudança e se esforçam para converter-se em comunidades amplamente criativas, e não apenas em centros de inovação e de alta tecnologia. Se cidades como Buffalo, Grand Rapids, Memphis e Louisville não seguirem o exemplo, elas vão penar para sobreviver. Os principais modelos sociais também estão mudando, guiados por forças que têm origem no éthos criativo. Em praticamente todas as esferas da vida, laços efêmeros substituíram os vínculos estáveis que antes estruturavam a sociedade. Em vez de morar na mesma cidade durante décadas, hoje nos mudamos com frequência. No lugar de comunidades forjadas por estruturas sociais fechadas e pelo forte compromisso com a família, amigos e organizações, nós buscamos espaços em que é possível conhecer pessoas facilmente e viver de modo semianônimo. A deterioração do poder dos laços, seja com indivíduos ou com instituições, é resultado do número crescente de vínculos que estabelecemos. O que me contou um industrial aposentado, ex-diretor de um centro de transferência de tecnologia em Ottawa, Canadá, ilustra bem isso: “Meu pai cresceu numa cidade pequena, trabalhou para a mesma empresa e conviveu com as mesmas catorze pessoas a vida toda. Eu conheço mais gente do que isso num único dia”. 7 A vida moderna é cada vez mais denida por compromissos contingentes. Nós pulamos de emprego em emprego sem esforço ou grande preocupação. Se antes as pessoas se uniam por meio de instituições sociais e forjavam sua identidade em grupos, uma das principais características da atualidade está relacionada ao esforço de encontrar uma identidade própria. 8 Essa invenção e reinvenção do eu, que geralmente reete nossa criatividade, é a principal característica do éthos criativo. Hoje não somos mais denidos pela organização em que trabalhamos, pela igreja que frequentamos, pelo lugar onde vivemos ou mesmo por laços familiares. Quem nos dene somos nós, ao forjarmos uma identidade com base nas várias facetas de nossa criatividade. Outros aspectos da vida A transformação do cotidiano l
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– o que consumimos, como nos divertimos, os esforços que fazemos para formar comunidades – se organizam a partir desse processo de criação de identidade. Para pensar em identidade coletiva hoje, é preciso repensar as noções de classe. Geralmente, somos levados a classicar os indivíduos com base em seus hábitos de consumo, seu estilo de vida ou, grosso modo, sua renda. Frequentemente equiparamos renda média e classe média, por exemplo. Embora os considere indicadores de classe relevantes, eles não são fatores determinantes. Uma classe corresponde a um grupo de pessoas que com partilham interesses e costumam pensar, sentir e comportar-se de modo semelhante. No entanto, o que determina essas semelhanças é, antes de mais nada, a atividade econômica, o que fazem para ganhar a vida. Todas as outras distinções partem daí. Ora, uma das características centrais da nossa era está ligada ao fato de que cada vez mais pessoas estão exercendo trabalhos criativos para ganhar a vida.
A NOVA CLASSE A criatividade como imperativo econômico ca evidente com a ascen são de uma nova classe que chamo de classe criativa. Cerca de 38 milhões de americanos, 30% dos indivíduos economicamente ativos nos Estados Unidos, pertencem a essa nova classe. Segundo minha denição, o centro da classe criativa é formado por indivíduos das ciências, das engenharias, da arquitetura e do design, da educação, das artes plásticas, da música e do entretenimento, cuja função econômica é criar novas ideias, novas tecnologias e/ ou novos conteúdos criativos. Além desse centro, a classe criativa também abrange um grupo mais amplo de profssionais criativos que trabalham com negócios e nanças, leis, saúde e outras áreas ans. O trabalho dessas pessoas envolve a solução de problemas complexos, que requer uma boa capacidade de julgamento, bem como alto nível de instrução e muita experiência. Todos os membros da classe criativa – sejam eles artistas ou engenheiros, músicos ou cientistas da computação – compartilham o mesmo éthos criativo, que valoriza a criatividade, a individualidade, as diferenças e o mérito. Para esses indivíduos, todos os aspectos e todas as manifestações da criatividade – tecnológicas, culturais e econômicas – estão interligados e são inseparáveis. A principal diferença entre a classe criativa e outras classes está relacionada ao que ela é paga para fazer. Os membros da classe trabalhadora e da classe de serviços recebem sobretudo para executar de acordo com um plano. Já os da classe criativa ganham para criar e têm muito mais autonomia e exibilidade para isso do que as outras duas classes. É claro que há uma zona cinzenta e questões de limites a serem consideradas no que diz 8
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respeito ao meu esquema. Embora alguns possam criticar minha denição de classe criativa (e as estimativas numéricas que se baseiam nela), acredito que seja bem mais precisa do que as denições mais amorfas de trabalhadores do conhecimento, analistas simbólicos ou prossionais técnicos e especializados que existem hoje. A estrutura de classes nos Estados Unidos e em outras nações desenvolvidas tem sido alvo de intensos debates por bem mais de um século. Para uma série de autores dos séculos XIX e XX, a grande questão foi a ascensão e, em seguida, o declínio da classe trabalhadora. 9 Já para Daniel Bell e outros autores da segunda metade do século XX, o tema central passou a ser o surgimento da chamada sociedade pós-industrial, caracterizada pelo crescimento da indústria de serviços em oposição ao setor manufatureiro. 10 Hoje, a grande questão – que já vem se revelando há algum tempo – gira em torno da ascensão da classe criativa, a classe que mais cresce nesta era. A vertiginosa ascensão dessa classe é o motivo de a sociedade moderna parecer tão estranha ao segundo viajante do tempo. Ao longo do século XX, a classe criativa nos Estados Unidos passou de aproximadamente 3 milhões de trabalhadores ao que ela é hoje, um crescimento de mais de 1.000%. Se considerarmos apenas o crescimento de 1980 para cá, veremos que ela dobrou de tamanho. Cerca de 15 milhões de americanos, mais de 12% da força de trabalho, fazem parte do Centro Hipercriativo dessa nova classe. Hoje, a classe criativa nos Estados Unidos é maior do que a tradicional classe trabalhadora, formada por aqueles que trabalham nos setores de produção, construção e transporte, por exemplo. O século XX foi palco da ascensão e do declínio da classe trabalhadora, que atingiu o auge entre 1920 e 1950, com 40% da força de trabalho americana. Depois disso, veio a longa queda, chegando a um quarto da força de trabalho nos Estados Unidos hoje. A classe de serviços – que inclui o mercado de alimentação, o trabalho de escritório e a assistência pessoal, por exemplo – cresceu gradativamente ao longo do século XX, passando de aproximadamente 16% a 30% da força de trabalho americana entre 1900 e 1950 antes de chegar a mais de 45% em 1980. Com cerca de 55 milhões de membros, a classe de serviços é, hoje, a maior classe em termos absolutos. Embora a classe criativa ainda seja menor do que a classe de serviços, seu papel econômico vital a torna mais inuente. Além disso, ela é signi cativamente maior do que a classe de “homens organizacionais”, descrita por William Whyte em seu livro de 1956. Assim como a classe empresarial de Whyte, que “determinou o espírito americano” nos anos 1950, a classe criativa é a classe normativa desta era. Seus princípios, porém, são muito diferentes: individualidade, liberdade de expressão e abertura à diferença são privilegiadas em detrimento de homogeneidade, conformismo e adequação, A transformação do cotidiano l
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que deniram a era organizacional. A classe criativa é dominante também em termos nanceiros – em média, seus membros ganham duas vezes mais do que os membros das duas outras classes. Os sacrifícios a que os membros da classe criativa estão dispostos por dinheiro também são muito diferentes dos realizados pelos homens organizacionais de Whyte. Somos poucos os que trabalhamos para a mesma grande empresa por toda a vida, e somos bem menos propensos a relacionar nossa identidade ou autoestima àqueles para quem trabalhamos. Nós levamos em consideração tanto questões nanceiras quanto a possibilidade de sermos nós mesmos, de determinarmos nosso horário, de realizarmos trabalhos instigantes e de vivermos em comunidades que reetem nossos valores e prioridades. De acordo com uma grande pesquisa realizada com prossionais de tecnologia da informação – um subgrupo relativamente conservador da classe criativa –, desao e responsabilidade, horário exível e um ambiente de trabalho seguro e estável estão acima do dinheiro no que diz respeito ao que valorizam no emprego. A reviravolta da vida privada pode ser resumida por esta estatística bastante divulgada nos Estados Unidos: menos de um quarto de todos os americanos (23,5%) pesquisados no censo de 2000 vivia em um núcleo familiar “convencional” – queda signicativa em relação a 1960, cujo percentual correspondente era 45%. 11 Essas mudanças profundas não são, como dizem por aí, o resultado dos excessos e imprudências de sujeitos mimados. Elas estão calcadas numa lógica econômica simples. Nós vivemos da nossa criatividade; logo, procuramos cultivá-la e buscamos ambientes que possibilitam seu desenvolvimento, assim como o ferreiro cuidava de sua ocina, e o fazendeiro cuidava do gado que puxava seu arado. A criatividade no mundo do trabalho não está limitada a membros da classe criativa. Trabalhadores de fábricas e até prestadores de serviço menos qualicados sempre foram criativos de alguma maneira útil. Sem falar que o conteúdo criativo de muitas funções associadas à classe trabalhadora e à classe de serviços vem crescendo – exemplo disso são os programas de melhoria contínua de várias fábricas, que convidam operários a contri buir também com ideias. Baseado em tendências como essa, suponho que a classe criativa, ainda em ascensão, continuará a crescer nas próximas décadas à medida que atividades econômicas mais tradicionais se tornem suas funções. Como o leitor verá no último capítulo deste livro, não acredito de forma alguma que a solução para melhorar as condições de vida dos mal pagos, subempregados e desprovidos seja implementar programas sociais – nem restituir o trabalho operário dos velhos tempos –, mas estimular a criatividade desses indivíduos, pagar devidamente por isso e integrá-los à economia criativa. 10
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