Para minha família e meus amigos. Em especial para meus pais, minha esposa e para a linda filha com que Deus nos abençoou.
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SOBRE O LIVRO A arte da Excelência conta a história de dois amigos que estão completando dez anos de formados. Um deles, João, sempre quis ser advogado. Formado, abriu um escritório e sua forma diferenciada de lidar com a vida profissional e pessoal o conduziram ao sucesso. O outro, Paulo, tem o sonho ainda não realizado de ser juiz federal, trabalhando como advogado enquanto aguarda a esperada aprovação no concurso. Querendo ajudar o amigo a aprender novas estratégias para atingir seus objetivos, João o convida para trabalhar em seu escritório, de modo que as experiências geradas pelo convívio diário permitam a Paulo adquirir a habilidade de, em última análise, transformar ideias em realidade. Essa habilidade é chamada por João de arte da Excelência. A partir desse convite, Paulo e João vivenciam uma série de situações que os conduzem a reflexões sobre aspectos de relevância para o desenvolvimento profissional e pessoal. Temas como o aprendizado de novas capacidades, definição e escolha de carreira, importância do conhecimento multidisciplinar, gestão de processos e de pessoas, respeito e conhecimento da diversidade, equilíbrio e satisfação pessoal, fé e erros como oportunidade de aprendizados são apresentados de maneira informal e romanceada, facilitando o entendimento e tornando agradável a leitura. Quando finalmente sai o tão esperado Edital para o concurso, Paulo e João conversam longamente sobre a aplicação da arte da Excelência na elaboração de uma estratégia para a aprovação no concurso. Um exemplo prático, mas certamente não único, sobre como se utilizar na vida real essa habilidade de transformar sonhos em realidade. A grande lição de João para Paulo é que os princípios da arte da Excelência podem ser utilizados em qualquer situação, o que torna interessante seu conhecimento mesmo por quem não esteja pensando em fazer concurso público.
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SOBRE O AUTOR O autor nasceu na cidade de Arapongas, no Paraná, em 1975. Dois anos depois, mudou-se para Curitiba com toda a família, onde cresceu e estudou na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Em 1998, já no último ano da Faculdade de Direito, ingressou por concurso público como servidor da Justiça Federal da capital paranaense. No ano seguinte prestou concurso para Juiz Federal da 4ª Região, Procurador da República, Procurador da Fazenda Nacional, Procurador do INSS, Advocacia da União e Analista Judiciário do TRT da 9ª Região. Obteve aprovação em todos esses concursos. No final de 1999 assumiu como Procurador da República, em Chapecó-SC, e no início de 2000 como Juiz Federal, na 1ª Vara Criminal de Foz do Iguaçu-PR. Como magistrado acumulou experiências administrativas e jurisdicionais. Foi coordenador do programa de qualidade da Seção Judiciária do Paraná, quando atuava na 5ª Vara Cível de Curitiba. Promovido como titular para a Vara do JEF Cível de Londrina, integrou a comissão de desenvolvimento do processo eletrônico do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, liderando a implantação do projeto-piloto inaugural no Juizado sob sua jurisdição. Atualmente é juiz federal do JEF Cível de Jaraguá do Sul-SC. Casado, pai de uma filha, é juiz federal por profissão e idealismo.
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AGRADECIMENTOS Esse livro foi construído a partir do amadurecimento e reflexão de diversas experiências minhas e de outras pessoas com quem tive o prazer de conviver até hoje. Cada uma das pessoas que participou da minha vida, acrescentando a ela algum valor, mereceria receber uma reverência nominal nesse espaço. Com essa percepção comecei a escrever os agradecimentos e aconteceu algo que eu já imaginava: antes mesmo de chegar à metade do caminho tinha mais de três páginas escritas. A lembrança de pessoas importantes em uma situação fazia surgir outras referências que não poderiam deixar de ser inseridas. E assim sucessivamente. Foi aí que constatei que os agradecimentos estavam virando uma autobiografia e precisei encontrar uma solução para isto. Agradecer a todos sem escrever um novo livro. Depois de pensar um pouco concluí que o melhor caminho era concentrar minhas forças em uma só “pessoa”. Por isso, decidi expressar minha gratidão a Deus e através Dele. Certamente Ele é a inspiração principal desse trabalho e merece meu obrigado em primeiro lugar. Aproveito a oportunidade para pedir que Ele também abençoe, e leve para o coração de cada uma das pessoas que quero bem, o agradecimento por fazerem ou terem feito parte positivamente da minha vida. A todos o meu agradecimento sincero. Que Deus os abençoe, ilumine, proteja e guie seus caminhos. Um grande abraço, Emmerson Gazda.
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CRÉDITOS AUTORAIS
Título: A arte da Excelência Autor: Emmerson Gazda ISBN: 9788563654472 Capa: Viviane Manske Gazda Fotografia da capa: Viviane Manske Gazda Revisão ortográfica: Luciane Manske Revisão do conteúdo: Viviane Manske Gazda Produção do livro digital: www.simplissimo.com.br Blog do livro: www.artedaexcelencia.blogspot.com Contatos com o autor:
[email protected]
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CAPÍTULO 1 Encostados no balcão da cafeteria no início da Rua XV de Novembro, os dois amigos estavam em silêncio. Saboreavam um dos mais tradicionais expressos de Curitiba. Distraidamente, acompanhavam as poucas pessoas que, apressadas, passavam pelo calçadão, em direção ao Palácio Avenida. Fosse sábado pela manhã, a rua estaria repleta de vida e os assíduos frequentadores do café estariam em infinitas, calorosas e divertidas discussões sobre política, negócios e futebol. Não é à toa que o lugar é conhecido como “Boca Maldita”. Mas àquela hora da noite, quase onze horas, o movimento no calçadão era discreto e em sua maioria de estudantes. Enquanto tomava seu café, Paulo pensava sobre a conversa que tivera com João naquela noite e onde tudo o que combinaram lhe levaria. João tinha um olhar tranquilo e confiante. Lembrava-se de quando conheceu Paulo, nos tempos da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, e como desde então se tornaram grandes amigos. Tanto João, quanto Paulo, vieram de famílias de classe média, sem ligação com o meio jurídico. Assim tiveram de começar praticamente do zero. Formado há 10 anos, João conseguiu ao longo da carreira consolidar seu escritório de advocacia, tornando-se um profissional respeitado e de considerável sucesso. Paulo tinha o sonho de seguir a carreira da magistratura. Para isso, depois de formado, começou a trabalhar como advogado contratado de um escritório, dedicando o tempo livre a cursos preparatórios e estudos para concurso. Apesar de todos os esforços Paulo ainda não atingira seu objetivo. Seguia na advocacia, sem grande entusiasmo e progresso, mesmo sendo um profissional respeitado e dedicado. Por duas vezes Paulo fora além da primeira fase nos concursos que tentou. No seu melhor resultado esbarrou no nervosismo e na incerteza da prova oral. João, que via o sofrimento do amigo e sabia de sua competência, por várias vezes convidou-o para trabalhar com ele. Mas Paulo sempre recusava a oferta, em 6
razão do sonho de ser juiz. Não queria se comprometer com o amigo e depois acabar deixando-o sozinho. Naquela noite as coisas começaram a tomar um rumo diferente. Estavam completando dez anos de formados. Paulo refletia já há algum tempo sobre ainda não ter atingido seu objetivo e sobre as razões do sucesso de João. Ambos tinham origem e capacidade jurídica parecida. Mas João conseguira algo a mais. Sabia das conversas com o amigo que não era sorte. Só que também não era apenas muito trabalho e dedicação. Havia alguma coisa que o diferenciava. João parecia ter o dom de fazer as coisas acontecerem. E não só no trabalho. Também na vida pessoal João conseguia se libertar das preocupações e se divertir com a esposa, os pais, irmãos e amigos. Divertia-se até mesmo naqueles encontros mais sociais, em que imperam assuntos chatos e enfadonhos. Era incrível. Poucas horas antes daquele café na “Boca Maldita”, Paulo e João deixaram as esposas em casa e, como faziam desde a formatura, saíram só os dois para jantar e comemorar os dez anos de formados. Era como um ritual que eles seguiam desde o primeiro ano de formatura. Sempre no dia certo, no mesmo restaurante e com o mesmo pedido de quando ainda eram recém-formados. Brincavam com o dono do restaurante que não saberiam o que fazer se um dia o restaurante fechasse. Mas enquanto isso, gostavam de voltar ali pelo menos uma vez por ano, para lembrar as dificuldades iniciais. No jantar conversaram sobre diversos assuntos e Paulo comentou com João o que vinha pensando sobre o sucesso dele. Queria saber qual era essa mágica. João riu enquanto refletia sobre a ideia de associar o sucesso a um elemento sobrenatural, coisa, aliás, muito comum, mas que repetidas vezes impede as pessoas de alcançarem seus sonhos. Ao invés de aprenderem a fazer as coisas acontecerem, ficam na expectativa de que uma iluminação exterior lhes favoreça o destino. Preferia os termos habilidade e arte, que permitem desmistificar o segredo do sucesso. João comentou com Paulo o motivo de achar graça da expressão usada pelo amigo e explicou: - “Paulo, meu caro, eu entendo o sucesso não como mágica, mas sim como consequência de algo que faz parte da essência da pessoa. Podemos chamar isso de um “dom” que a pessoa tem.”
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- “Sendo assim, trata-se de algo que nasce com a pessoa, de forma que posso esquecer o assunto.” – ponderou Paulo. - “Errado. Ao contrário do que muitas pessoas pensam, um “dom” pode ser aprendido.” - “Como assim?” – perguntou Paulo. - “O que chamamos de “dom” é uma habilidade. Se a pessoa não nasce com esse talento especial pode desenvolvê-lo. Mesmo as habilidades naturais precisam ser lapidadas. Elas não vêm cem por cento prontas. Veja, por exemplo, o caso da música. Algumas pessoas nascem com uma capacidade especial para essa atividade e têm o chamado “ouvido musical”. Isso significa, em uma explicação simples, que enquanto uma música toca no rádio elas conseguem saber exatamente quais são as notas musicais da melodia. Dessa forma, têm uma facilidade muito maior para aprender a tocar instrumentos musicais, compor e também para cantar afinado. Agora, o fato de a pessoa ter esse “dom” para música não significa que ela será um grande músico. Terá que estudar bastante e aprender as técnicas musicais para desenvolver esse “dom”. Da mesma forma, há muito casos de pessoas que não têm o “ouvido musical”, quer dizer, não têm essa capacidade natural para a música, e mesmo assim são excelentes músicos. Muitas vezes até melhores do que aqueles que têm o “dom”, mas não têm a disposição para desenvolvê-lo ao máximo.” - “Então quer dizer que independente do “dom” o que importa é a técnica?” – indagou Paulo. - “Sim e ao mesmo tempo não. Na verdade o que importa é aprender e desenvolver o “dom”, o que é algo muito mais intenso do que aprender a técnica. Se o músico que não tem o “dom” da música estudar profundamente a técnica, mas sem se preocupar em incorporar a musicalidade do “ouvido musical”, será com certeza um excelente músico. Só que quando comparado com um músico igualmente dedicado ao estudo e que tenha o “dom”, a tendência é que o músico com essa capacidade especial seja considerado mais completo. Então o primeiro músico precisa, além da técnica, incorporar as habilidades naturais exigidas para a excelência musical.” - “Interessante, mas isso me parece trazer uma vantagem para quem já nasce com o “dom”, com essa habilidade especial.” – comentou Paulo. - “Em princípio pode parecer que sim” – explicou João – “já que quem possui a habilidade como característica natural larga na frente. Mas o nascimento é só o 8
início da vida. Se fosse uma corrida de automóveis diria que nascer com o “dom” é largar na primeira fila. Mas isso não garante a vitória.” - “Entendo. Você quer dizer que tanto quem tem a capacidade natural, como quem não tem, poderá chegar na frente. Tudo vai depender de como a corrida, quer dizer, a vida de cada um vai se desenvolver.” - “Exato. A pessoa que nasceu com a habilidade especial terá de desenvolvêla. Quem não nasceu tem a capacidade de aprendê-la, a tal ponto que se torne uma característica interna aprendida, um “dom” aprendido. Uma habilidade especial, portanto, pode ser inata ou aprendida. O importante, em qualquer caso, é que ela se torne uma característica da pessoa, que é algo interno, e não apenas uma técnica, que é uma ferramenta externa.” - “Preciso refletir um pouco sobre essa ideia João. A pessoa precisa se tornar aquilo que quer aprender e não apenas agir de acordo com aquilo que está aprendendo. Bom, talvez no teatro se possa encontrar uma analogia para essa situação. O ator representa uma personagem, mas não se torna a personagem. Aprender o “dom” seria a pessoa se tornar a personagem, se tornar aquilo que busca. No caso do músico, tornar-se um musicista por completo. Mas isso é complicado. Fico pensando se é de fato possível aprender um “dom”.” - “Muitos duvidam que isso seja possível. Por crenças que carregam desde criança ou talvez por não estarem dispostos ao trabalho que o aprendizado exige. Mas eu tenho o exemplo concreto de meu irmão. Em comparação comigo, ele tinha mais dificuldade para compreender as lições ensinadas na escola. Isso fez com que, na época do colégio, ele precisasse estudar com maior dedicação para obter os mesmos resultados. Como consequência, ele adquiriu não só a habilidade natural que eu tinha de aprender as coisas com rapidez, mas também teve um ganho extra, que foi a capacidade de estar concentrado e dedicado por muito mais tempo em atividades de estudo. É como se ele tivesse hoje, além da mesma habilidade de aprendizado, do mesmo “dom”, um preparo físico muito maior para o exercício continuado dessa habilidade”. - “Então quer dizer que o aprendizado do “dom” pode trazer benefícios colaterais e ser mais interessante que o “dom” natural?” - “Isso pode acontecer em muitos casos. Até porque a grande questão é que todas as pessoas nascem com “dons”. Essas habilidades naturais são decorrentes da combinação genética e por isso são diferentes para cada um. Quando alguém 9
adquire uma nova habilidade pelo aprendizado, o que vai acontecer? Vai ter uma habilidade aprendida que se soma aos seus “dons” herdados geneticamente. Como resultado, por exemplo, podemos ter um músico até melhor do que aquele que nasceu com o “ouvido musical”. Vai que um de seus “dons” naturais seja a capacidade de escrever letras para as canções que compõe?” - “Mas e se a pessoa não tiver nenhuma capacidade natural que se some diretamente à aprendida? No caso do aspirante a músico, se ele não tiver nada que naturalmente lhe ajude na música? Aí não é melhor esquecer o sonho de ser um músico famoso?” - “Caso a pessoa não tenha nenhum “dom” natural ligado à música vai ficar muito mais difícil para ela, já que terá de aprender todos os “dons” necessários para ser um músico. Não penso que seja impossível, mas certamente será bastante difícil para essa pessoa se tornar um músico de grande sucesso.” - “Isso me permite dizer, João, que na escolha do que a pessoa pretende fazer na vida é preciso que ela leve em consideração a sua constituição genética e os “dons”, naturais ou adquiridos. Com esse autoconhecimento ela terá ao menos a noção da dificuldade do caminho que tem pela frente.” - “Boa observação. Por exemplo, alguém que tem um metro e sessenta centímetros de altura. Evidente que fica muito difícil ser um jogador de basquete da NBA porque não tem o “dom” da altura. Mas não é impossível.” - “Não é impossível? Acho que só no plano das ideias isso pode acontecer, com base na teoria da capacidade do ser humano em superar seus limites. Mas na prática? Até admito que a pessoa jogue bem, seja inclusive profissional. Só que na NBA, no melhor basquete do mundo? Impossível.” - “Tão impossível que já aconteceu. Lembro como se fosse hoje das jogadas impressionantes do “baixinho” Mugsy Bogues, titular do time de Charlote na década de 1990. Aliás, preciso dizer que ele não só participava da NBA, como era uma de suas estrelas. Para conseguir chegar à NBA esse jogador não era alto, mas tinha outros “dons”, naturais e aprendidos, como uma grande impulsão e uma espetacular habilidade com a bola. Agora, se esse jogador não tivesse impulsão e coordenação motora, aí o caminho para ele, que já era difícil, ficaria ainda mais complicado.” - “Não sabia disso. Agora, na ausência de qualquer habilidade inata, você tem que admitir que um “dom” não possa ser aprendido por uma determinada pessoa, concorda?” – perguntou Paulo. 10
- “Não gosto de pensar em impossibilidade, pois como você já percebeu acredito que as pessoas têm uma capacidade infinita de realizar aquilo a que se propõem. Mas é certo que dependendo das características naturais de cada pessoa pode haver uma dificuldade maior ou menor para aprender um “dom”, ou mesmo o conjunto de habilidades necessárias para uma atividade mais complexa. Quanto maior a dificuldade, mais o aprendizado vai depender da vontade da pessoa em seguir aquele caminho. Veja, se a pessoa sem nenhuma habilidade para a música quiser seguir carreira de músico, precisa ter consciência de que sua dedicação deverá ser muito grande, muito maior do que aquela exigida para quem já possui algum “dom” natural. Isso quer dizer que ela terá de querer muito isso, pois do contrário, diante das incontáveis dificuldades que aparecerão, a chance de desistir pela metade do caminho é grande.” - “Entendo aonde você quer chegar. Retomando o exemplo da corrida de automóveis, a pessoa pode estar largando na última fila ou com um carro em piores condições. Mas se o piloto for bom, tiver estratégia, coragem e muita dedicação, pode conseguir um bom resultado. Talvez não chegue em primeiro, mas pode se destacar. Só que certamente será bem mais difícil do que para aquele que largou na frente e com o melhor carro. De certa forma, no fim das contas, tudo isso tem a ver com planejamento de vida.” - “Exatamente. Por isso que na hora de entrar para a faculdade é uma dificuldade enorme decidir o que fazer. O jovem com 16 ou 17 anos precisa ter um conhecimento amplo sobre si mesmo. Precisa saber não só o que gostaria de fazer, mas também saber quais são os seus “dons”. Com essas informações ele vai ter uma melhor condição de decidir, pois terá a possibilidade de antecipar as dificuldades para alcançar seus sonhos e começar a enfrentá-las, desenvolvendo os “dons” que possui e aprendendo os “dons” que lhe faltam. No seu exemplo da corrida de automóveis, ele pode escolher um caminho em que largará entre os primeiros com um bom carro, ou no final da fila, com um carro em piores condições. Tudo é uma questão de planejamento de vida e escolha.” - “Perfeito. Eu entendi essa ideia do “dom” e até já tínhamos conversado sobre ela em outras ocasiões. Mas o difícil para mim sempre foi tirar essas ideias da teoria e aplicá-las na prática. Porque no fim das contas o que eu quero mesmo é aprender como tornar tudo isso realidade, fazer a coisa acontecer. E passar de uma vez por todas no concurso para a magistratura!” 11
- “Entendo sua preocupação. Até porque existem inúmeros livros e filmes motivacionais que trazem os segredos para o sucesso. Só que no fim das contas poucas pessoas tiram algum resultado concreto desse material. Não conseguem traduzir para o mundo real os ensinamentos ali contidos. Eu mesmo uma vez assisti a um filme desses e logo em seguida me vi sentado em meu sofá, de olhos fechados. Como o filme sugeria, fiquei imaginando que estava dirigindo o carro dos meus sonhos. Até hoje isso não se materializou.” - “Talvez o seu poder de materialização ainda não esteja bom. Você precisa treinar mais, meu amigo!” – brincou Paulo. - “Eu poderia mesmo continuar treinando essa técnica da mentalização até dar certo. Não duvido que ela ajude a aumentar a autoconfiança. Mas para ter a habilidade de “fazer acontecer” você precisa ir muito além. Essa capacidade de tornar seus objetivos realidade precisa se tornar uma habilidade interna sua. Não é uma simples técnica, é um “dom” que precisa ser adquirido. Uma vez aprendido, você será capaz de aplicá-lo para qualquer objetivo em sua vida. Inclusive passar no concurso.” - “Certo, mas como é que eu faço para aprender essa habilidade?” - “Bom, para aprender a arte da Excelência, como podemos chamar esse “dom” de “fazer acontecer”, na verdade é preciso viver a busca pela Excelência. Não é suficiente que continuemos apenas a trocar ideias, como fizemos até aqui por várias vezes. Isso seria sentar no sofá e ficar imaginando a condução do carro dos sonhos. Além das conversas, é preciso que você perceba, na prática, o que se passa com você e comece uma espécie de transformação interna, adquirindo as habilidades que hoje lhe faltam.” - “Entendo. O que você está dizendo é que só as experiências do dia a dia podem transformar ideias em realidade. Em resumo, é preciso sair do sofá e começar a materializar o carro no mundo real. Mas a dúvida persiste: como vou fazer isso?” - “Bem, eu tenho uma sugestão que pode ser boa para nós dois. Várias vezes eu já lhe convidei para trabalhar comigo e você sempre recusou, preocupado em me deixar na mão quando passasse no concurso. Pois bem, eu lhe faço novamente o convite. Mas dessa vez você não precisa se preocupar com o que acontecerá no futuro. Estou precisando de alguém de confiança e com experiência jurídica para me auxiliar no gerenciamento do escritório. Ao mesmo tempo, sou seu amigo desde a 12
faculdade e quero muito ajudá-lo a conquistar seus sonhos. Por tudo o que temos conversado nos últimos tempos eu acho que agora você está realmente pronto para começar a aprender a arte da Excelência. O que você acha de pensar sobre isso?” Ao terminar de apresentar sua proposta ao amigo, João percebeu que o relógio já marcava quase meia-noite e o frio começava a aumentar. Precisava voltar para casa. Paulo certamente necessitava de um tempo para pensar. Decisões importantes na vida pedem reflexão ainda que, por vezes, não se tenha muito tempo para isso. Mas quando há tempo, é bom poder clarear as ideias. Paulo já sabia disso e também percebeu o adiantado da hora. Olhou para o relógio e disse: - “Gostei muito de tudo o que conversamos essa noite. Sua proposta é interessante. Confesso que preciso pensar um pouco e conversar com a Rosane. Afinal, vou precisar do apoio dela se resolver aceitar esse desafio. Vamos fazer o seguinte: almoçamos com as esposas no domingo e prometo que terei uma resposta para você.” - “Fechado. Agora vamos embora antes que a Marcela me deixe trancado para fora de casa!”
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CAPÍTULO 2 Paulo acordou mais cedo que o normal. A proposta feita por João na noite anterior, apesar de tantas vezes já repetidas, agora parecia não querer sair da cabeça. Batia de um lado para o outro. Será que era hora de aceitar? Ainda tinha dúvidas. Sabia que podia confiar plenamente no amigo e que a proposta era muito boa, daquelas quase que de pai para filho. Mas era engraçado como mesmo assim ainda não tinha certeza sobre aceitá-la. Chegou a rir de si mesmo, tentando entender como o ser humano complica coisas simples e tem dificuldade de seguir por novos e melhores caminhos. Lembrou-se de um treinamento gerencial que fez no escritório. A palavra de ordem dos mestres Aninha e Gilson era: “saiam da zona de conforto!” Na teoria parecia óbvio que a resistência à mudança não existiria se o futuro apresentado fosse promissor. Mas na prática Paulo estava constatando que a coisa era bem diferente. A resistência existe mesmo se a mudança for nitidamente para melhor, mesmo que os riscos sejam mínimos. O simples fato de precisar mudar, de tomar atitudes, de encarar o novo, de aprender a fazer diferente, por si só gerava uma reação estranha de apego ao estado atual. Isso sem falar na ansiedade de precisar corresponder às expectativas. Será que seria mesmo capaz de fazer aquilo que João esperava dele? A sua posição atual não exigia domínio gerencial, apenas conhecimento jurídico. Mas a proposta que recebera iria exigir aprendizagem nessa nova área. Será que conseguiria? Será que gostaria dessa nova função? Sobraria tempo para estudar para os concursos? Ou seria melhor continuar seguindo pelos mesmos trilhos? Essas e outras questões tornaram o dormir um pouco mais difícil. Era complicado ter certeza sobre qual a melhor opção, pensava Paulo. Parecia que qualquer escolha poderia levar a bons resultados, mas como saber? Enquanto Paulo rolava de um lado para o outro na cama, Rosane, sua esposa, acordou e foi logo perguntando: - “O que foi amor, tem formiga no seu lado da cama?” - esse era o jeito carinhoso dela reclamar quando ele estava irrequieto e não a deixava dormir. 14
- “Não amor.” – respondeu Paulo – “Estou apenas pensando sobre uma proposta de trabalho que o João me fez ontem”. Rosane se espreguiçou e ainda meio sonolenta disse: - “Já sei, aquela velha proposta de você trabalhar com ele. Provavelmente você vai pensar sobre ela por alguns dias e depois recusar, já que seu sonho é a magistratura”. - “Você está me conhecendo melhor que eu mesmo, amor. Mas dessa vez o João colocou um ingrediente a mais no convite. Disse que não se importa se depois eu sair do escritório por ter sido aprovado no concurso de juiz. Quer dizer, fez uma proposta praticamente irrecusável. Mas mesmo assim eu não tenho certeza.” - “Amor, no fundo você é quem precisa decidir, você é quem tem que saber o que é melhor. Você sabe que até hoje eu sempre estive do seu lado nesse seu sonho da magistratura. Depois de tanto tempo eu confesso que às vezes penso que já passou da hora de você desistir. Mas eu entendo que você ainda continue insistindo, buscando essa realização pessoal e que também será boa para nós, mesmo com as consequências que isso trará em nossas vidas. Sinto orgulho de você por não ter deixado isso para trás, por ter tanta persistência.” - “Eu sei, tenho que agradecer essa cumplicidade que você tem comigo. Mas esse convite do João traz junto muitas responsabilidades. Ele quer, além da parte jurídica, que eu o ajude no gerenciamento do escritório. Fico na dúvida se tenho vocação para ser um administrador. E também se essas novas funções não vão tomar muito do meu tempo de estudo para o concurso.” - “Entendo. Mas querido, se você pensar bem, essa coisa de gerenciamento também é necessária para um juiz. Afinal, a gente vê todo dia na televisão o pessoal falando que a Justiça tem pilhas e pilhas de processos para serem julgados. Se o juiz não for também um bom gerente, como é que fica?” - “Não tinha pensado por esse lado. Acho que você acabou de tirar algumas formigas do meu lado da cama. Vamos levantar que vou lhe preparar um café especial. Adivinha o cardápio?” - “Suco de laranja, banana, mamão, iogurte e granola, como todo santo dia!”. - “Mas hoje, feito com uma dose extra de carinho!” – replicou Paulo com entusiasmo.
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CAPÍTULO 3 Um belo domingo de sol. Tudo que um curitibano, de berço ou adotivo, gosta bem no meio do inverno. Apesar do frio de rachar, o céu azul dá um certo ânimo depois de uma noite em meio a cobertas, aquecedores de ambiente e muita preguiça para sair da cama. João ainda resistia debaixo dos cobertores, enquanto Marcela insistia para que se levantasse. Precisava se arrumar para o almoço que tinha combinado com Paulo e Rosane. Não que horário fosse algo a ser seguido de forma rigorosa no domingo. Esse era um dia quase sagrado para João: dia de dormir um pouco mais e não pensar em nada além de qualquer coisa que não fosse o trabalho. Era um ritual que João adotara já fazia algum tempo. Começava no sábado exatamente ao meio-dia. Até esse horário o trabalho poderia fazer parte de sua vida. Depois, só podia aparecer de novo na segunda-feira pela manhã. Claro que havia exceções, já que nem sempre é possível avisar aos problemas que eles só devem aparecer no horário comercial. Mas João procurava fazer com que as exceções fossem limitadas, ao ponto de apenas servirem para confirmar a regra, como costumam dizer os professores de português, ao explicar o porquê de uma determinada palavra não seguir a norma geral da gramática. Para compensar as exceções, procurava também, sempre que possível, ampliar o descanso do final de semana para que seu início acontecesse já na sexta-feira à noite. O princípio aplicado por João era simples, mas eficiente: “é preciso esvaziar a cabeça com frequência de forma a abrir espaço para novas ideias”. De fato, com essa forma quase sistemática de lidar com o estresse do dia a dia, João vinha obtendo bons resultados. Por isso o horário não seria uma preocupação. Contudo, fazendo um dia lindo de sol em pleno inverno era certo que todos os restaurantes da cidade iriam ficar lotados. Muito atraso poderia significar almoço só lá pelas três da tarde, coisa que não agradava muito Marcela.
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Mesmo sabendo dos riscos de almoçar apenas na hora do café da tarde, João ainda resistia na cama. Até que Marcela, rindo, puxou os cobertores e ele se viu obrigado a levantar. Tomou um bom banho quente e em meia hora estava pronto. Às treze horas, encontraram Paulo e Rosane no restaurante. Já havia um pouco de espera, mas nada além de vinte minutos. Tempo justo para um aperitivo. Quando nem bem a conversa começava a esquentar, já estavam devidamente acomodados. O almoço foi animado. Rosane e Marcela se davam bem. Haviam se conhecido por causa da amizade de Paulo e João e logo se tornaram amigas também. Por isso era muito agradável quando podiam se reunir. Naquele dia em especial sabiam que o motivo do almoço era mais do que apenas um encontro entre amigos. Muitas mudanças poderiam ocorrer dali para frente. A expectativa é que fossem boas mudanças. Já estavam na sobremesa quando, entre um assunto e outro, João perguntou para Paulo: - “E aí, meu caro, já tem um resposta para mim, ou melhor, para nós?” Paulo riu e, Paulo riu e, antes de tudo, brincou com o amigo: - “Ora essa, mas não era você que não falava de trabalho a partir do meio-dia de sábado?” João, sem perder a esportiva replicou: - “É verdade, então deixemos isso para amanhã e vamos tomar um cappuccino!”. Mas Paulo já havia tomado sua decisão. Como se comprometera a dar uma resposta no almoço de domingo não deixou passar a oportunidade: - “Grande ideia, mas antes acho melhor você abrir uma daquelas suas exceções excepcionalíssimas, pois prometi uma resposta hoje e você sabe que como advogado sou um excelente cumpridor de prazos! Apesar de que também não vai ser uma má notícia. Pensei bastante, conversei com a Rosane e decidi aceitar sua proposta. É um desafio para mim, mas concluí que até agora venho fazendo as coisas de um jeito e não venho obtendo o resultado esperado. Então pensei que, se continuar fazendo tudo do mesmo modo, a tendência é que continue não dando certo. Parece-me que tentar esse caminho diferente que você está apresentando é uma boa opção. Confesso que nessa parte gerencial sou um pouco leigo, mas a Rosane foi muito feliz ao me lembrar de que como juiz terei que ser também um 17
grande gestor de pessoas e processos. Então, acho que trabalhando com você terei a oportunidade de aprender um pouco sobre isso que você chamou de arte da Excelência. Ao mesmo tempo vou adquirir conhecimento essencial para um futuro juiz.” - “O único risco é você gostar tanto de trabalhar com o João que depois não vai mais querer deixá-lo por essa sua paixão antiga que é a magistratura” – brincou Marcela. - “É verdade, mas se isso acontecer também será muito bom. Novas paixões são sempre bem-vindas na vida de qualquer pessoa, não é mesmo?” – disse João. - “Não sei se concordo integralmente com isso.” – observou Rosane, em tom de brincadeira – “Espero que pelo menos a paixão antiga do Paulo por mim fique para sempre”. - “Tem razão. Mas que se renove a cada primavera, para continuar com esse brilho que tem hoje!” – ponderou Marcela. - “Maravilha. Paixões antigas e novas, em convivência harmoniosa. A ótima notícia é que vamos ter muito mais contato de agora em diante. E tenho certeza que novos horizontes se abrirão” – concluiu João. - “Com certeza, meu amigo. Agradeço muito a você. Apenas queria lhe pedir um prazo antes de começarmos. Quero ter o cuidado de deixar tudo organizado ao sair do escritório em que trabalho. Eles já esperavam que um dia eu deixaria o escritório por passar em algum concurso. Por isso nunca me tornei um advogado associado. Mas sempre me comprometi em fazer uma transição. E mesmo que não tivesse me comprometido, isso é algo importante para mim. Entrar e sair pela porta da frente com responsabilidade e fazendo a coisa da maneira certa”. - “Sem problemas, Paulo. Já esperava mesmo que iria me pedir isso. Uma das características que mais admiro em você é essa sua capacidade de fazer o que é correto, ainda que possa lhe dar algum trabalho extra. Isso é fundamental na atividade que você vai fazer daqui para frente: comprometimento com as pessoas que trabalham com você. Muito bom. Quando estiver tudo certo a gente se reúne no escritório e começamos a trabalhar. Combinado?” - “Mais do que combinado” – respondeu Paulo. - “Então, ao invés do cappuccino, vamos pedir um vinho do Porto!” – exclamou João - “O tempo da exceção aberta para falar de trabalho já acabou e um digestivo vai sempre bem nessa hora. Alguém me acompanha?” 18
CAPÍTULO 4 Passaram-se dois meses desde que Paulo aceitara o convite de João para trabalharem juntos. Esse foi o tempo necessário para que saísse pela “porta da frente” do escritório onde trabalhava até então e providenciasse toda a parte burocrática, para começar sua nova atividade. As dúvidas iniciais de Paulo já haviam se dissipado e naquele momento, sentado na sala de João, Paulo tinha certeza de que precisava mesmo fazer alguma coisa para atingir seus objetivos. Sabia que a probabilidade de continuar obtendo os mesmos resultados enquanto seguisse fazendo as mesmas coisas era muito grande. Enquanto João lhe servia um café, feito na hora em uma dessas magníficas invenções humanas que trouxe o sabor do melhor café para dentro dos escritórios, Paulo, após conversarem sobre algumas amenidades, perguntou: - “Então, João, agora que já está tudo definido, quando e por onde iremos começar?” João pensou um pouco. Em tom meio sério, meio de brincadeira, disse: “- Meu caro, na verdade nós já começamos há pelo menos cinco anos, quando lhe convidei pela primeira vez para trabalharmos juntos. De lá para cá foi necessário um bom tempo para amadurecimento da ideia, para que você pudesse ter certeza do que fazer e, ao assumir o novo desafio, estar totalmente voltado para ele. Se você recordar um pouco vai ver que nunca tentei lhe convencer com tudo quanto é argumento possível. Acho que não adianta tentar apressar o processo, sob o risco da pessoa não estar decidindo por si mesma e sim pelas pressões externas. Aí é possível que, no meio do caminho, mesmo que a escolha seja boa, você se sinta infeliz e até desista do projeto. Então é preciso que se respeite o tempo de cada um. Lembra quando conversamos sobre os dons e a possibilidade de se realizar o que quiser?” - “Claro que me lembro.” - “Pois é, o resultado depende da pessoa ter a certeza que está disposta a enfrentar todas as dificuldades e desafios que virão. Do contrário, a chance de 19
desistir ou achar que seguiu pelo caminho errado é grande. Portanto, já começamos faz tempo. Começamos esperando você ter certeza que precisava seguir novos rumos, tentar fazer as coisas de uma forma diferente.” - “Isso faz muito sentido.” – observou Paulo – “Mas às vezes o tempo nunca chega. Parece que ficamos sabotando a nós mesmos, esperando uma oportunidade que justamente por isso, não aparece.” - “Realmente, Paulo. Precisamos também saber fazer a nossa hora. Mas eu acredito que as pessoas não podem mesmo dar o passo adiante enquanto não perceberem que precisam tomar o controle de suas vidas. Se elas forem adiante pelo impulso dos outros, sem assumir a responsabilidade sobre o tempo para cada coisa em suas vidas, estarão sempre ao sabor dos ventos, sem um rumo certo. Aí dificilmente chegarão a um destino planejado e sonhado, que é um dos passos para se sentir feliz e realizado. Com sorte o vento as levará para bons destinos, mas isso não é muito provável. Portanto, cada um deve respeitar o tempo dos outros e o tempo próprio. Mas também deve estar atento para assumir a responsabilidade para não prolongar seu tempo além do necessário e assim ter o controle sobre seu destino.” -“Interessante isso. Nesses dias de transição eu estava mesmo pensando se não teria demorado demais para aceitar seu convite. Concluí que não, porque se tivesse aceitado o convite antes, faltaria a experiência necessária para ter certeza que queria mesmo fazer isso. Mas se não aceitasse agora, tenho a percepção que estaria deixando de fazer minha hora e indo além de meu tempo. De qualquer modo, foi bom você não ter insistido, ao ponto de me convencer sem eu ter certeza. Se houvesse essa pressão de sua parte e eu tivesse aceitado o convite, talvez hoje, não tendo passado no concurso, poderia até estar lhe culpando. Na verdade tenho a convicção que só agora estou pronto para saber que esse caminho é o certo para mim, aconteça o que acontecer.” - “Você está cem por cento certo. Agora, é importante perceber que é comum a gente perder oportunidades por não estar preparado para elas. Isso pode se dar por não se estar tecnicamente preparado, como quando não se tem o estudo necessário para uma função. E também pode ser por não se estar psicologicamente preparado. Assim, temos que pensar na possibilidade de investir também na melhoria da nossa capacidade pessoal de aceitar novos desafios. Ou seja, da mesma forma que eu posso me qualificar tecnicamente fazendo cursos, lendo, também posso me 20
aprimorar psicologicamente, lapidando minha capacidade de perceber o mundo, de ter maior flexibilidade, de aceitar a diversidade, entre outras coisas que nos permitem ampliar os horizontes. O difícil é que não há curso ou livro para isso. A única maneira é viver intensamente, adquirindo novas experiências e estando em contato com outras pessoas e culturas. No fim das contas, uma vida bem vivida, com equilíbrio, respeito e harmonia com os outros e com o mundo, procurando encontrar lições nos acertos e especialmente nos erros, é o maior mestre que se pode ter para alcançar maior qualificação psicológica.” - “Tenho que admitir que nunca havia pensado nisso. Mas é interessante ter essa responsabilidade por adquirir ou não habilidade psicológica, como você está chamando essa capacidade de fazer sua própria hora.” – pontuou Paulo – “Isso me faz pensar que quanto mais a pessoa se abre para o mundo e aceita as diferenças, mais possibilidades ela tem de aprendizado, de se tornar psicologicamente mais fortalecida. Ao mesmo tempo, tem uma maior capacidade de aceitar os erros que comete e tirar deles proveito para o futuro.” - “Sem contar que não fica presa à culpa pelo erro.” – completou João. - “Como nesse processo o erro é tido como parte da aprendizagem, ele não é mais um inimigo escondido, um motivo de vergonha que fica constantemente atormentando a pessoa. O erro pode ser reconhecido, reparado, quando possível, e deixado para trás, no momento em que impulsiona mudanças positivas na pessoa. Não é que se vai esquecer-se do erro. Ele vai continuar ali para sempre. Mas quando a pessoa se lembrar dele, que inicialmente era um elemento negativo na sua vida, imediatamente percebe o elemento positivo em que ele se transformou. Assim, o erro passa a ser não motivo de depreciação pessoal, mas de reconhecimento que se fez necessária a situação negativa para surgir uma carga positiva maior.” - “A conversa está ficando boa” – disse Paulo. - “Mas antes que a gente comece a divagar demais, acho que é melhor eu reformular minha pergunta inicial. Enfim, como é que você pretende concluir essa fase inicial de minha inserção no escritório?’ João riu e arrematou: - “Agora você já está pegando o espírito da coisa. Reflexão e prática. Dois elementos essenciais. Passando à prática, penso em fazer uma reunião informal com o pessoal no final do expediente, para apresentá-lo a todos. Enquanto isso vou
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lhe deixando inteirado de alguns assuntos e amanhã você conversará com o pessoal para saber como tudo funciona aqui dentro. O que você acha?” - “Para mim está ótimo. Vamos ao trabalho!”.
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CAPÍTULO 5 O dia transcorreu rapidamente. João mostrou para Paulo todas as instalações físicas do escritório e cada detalhe de seu funcionamento. Esse conhecimento amplo de João sobre o funcionamento dos diversos setores do escritório, mesmo os mais simples, como expedição de mala direta ou digitalização de documentos, deixou Paulo impressionado. Em seu trabalho anterior Paulo estava acostumado a se concentrar apenas em sua atividade jurídica, deixando a preocupação com os serviços operacionais e de apoio para os empregados desses setores. Assim, pensava que João, sendo o chefe, com muito mais razão não precisaria se preocupar com isso. Percebendo os pensamentos do amigo, João disse: - “Estou vendo que você não imaginava que eu conhecesse tanto do escritório, não é mesmo?” - “De fato, achei que você iria chamar alguém para me mostrar tudo e voltar ao trabalho jurídico”. - “Eu realmente poderia fazer isso, mas achei importante lhe acompanhar nesse momento. Eu gostaria que você tivesse essa experiência inicial de perceber a relevância do conhecimento geral sobre o que se faz aqui dentro. Muitas pessoas pensam que a figura mais importante em uma determinada atividade deve estar exclusivamente voltada para a atividade-fim, deixando as atividades de apoio ou de menor complexidade para outras pessoas. Do ponto de vista estratégico isso parece lógico e, em certa medida, é correto. A questão, contudo, é que deixar as atividades de apoio e de menor complexidade para outras pessoas não significa esquecer que elas existem. Por mais simples que seja uma atividade dentro do escritório, ela tem sua razão de existir. Portanto, nada mais adequado que eu tenha conhecimento de como ela é feita. Não significa que eu pessoalmente vá ou precise fazê-la. Mas preciso conhecer todo o processo sobre como essa atividade é desenvolvida. Compreende?”
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- “Entendi a ideia, mas não a sua razão de ser. Afinal, para saber todas essas coisas você perde tempo. Tempo esse que você poderia utilizar na defesa dos interesses dos clientes do escritório, que é de onde vem o nosso faturamento.” - “Excelente ponderação. Já ouvi isso de muitas pessoas. Mas você certamente já ouviu falar de Albert Einstein e a sua famosa teoria da relatividade, não?” - “Claro, quem não conhece a frase: “tudo é relativo?” - “Pois é, meu caro, “tudo é relativo”. Enquanto você vê perda de tempo com o conhecimento de como se desenvolvem as atividades de apoio e de menor complexidade, eu vejo ganho de tempo com o que chamo de conhecimento do processo produtivo do escritório.” - “Como assim?” - “Ora, a atividade-fim do escritório é atuar nos processos administrativos e judiciais, de forma a que nossos clientes tenham êxito em seus pedidos, com o menor custo e tempo possível. Contudo, se nossa produção jurídica junto aos processos for brilhante, mas o serviço de apoio for de péssima qualidade, certamente vamos ter problemas. Por exemplo, não adianta eu elaborar um recurso espetacular e o estagiário deixar de fazer seu protocolo na Justiça dentro do prazo.” - “Certo, então esse conhecimento geral é importante para que você possa fiscalizar tudo o que acontece dentro do escritório?” - “Não propriamente fiscalizar. Essa palavra dá a ideia de alguém que está ali só para conferir se está tudo certo e para punir erros. Nesse caso do fiscal, contudo, as pessoas trabalham com medo do erro. O medo é um grande obstáculo para a melhoria dos procedimentos. Você consegue imaginar alguém sugerindo melhorias ou apresentando novas ideias se o “chefe” é daqueles à moda antiga, que só pensa em resultados a qualquer custo e para quem todo deslize é motivo de ameaças e punições?” - “É claro que não, João. Mas ainda existem profissionais em cargos de gerência com esse perfil?” - “Infelizmente em grande quantidade. Outro dia mesmo eu conversava no fórum com uma ex-estagiária aqui do escritório, que agora é servidora em uma secretaria judicial. No seu local de trabalho, as conversas entre os funcionários são proibidas durante o expediente e os celulares devem ser deixados na mesa da chefia. Aí está um exemplo atual de chefia à moda antiga, em que o pensamento está exclusivamente voltado para o resultado imediato. O problema é que, a longo 24
prazo, os resultados vão desaparecer pela falta de motivação. O clima organizacional e a satisfação no trabalho são os elementos mais importantes na motivação do colaborador. Mais importante até que o salário, a partir de um determinado patamar mínimo.” - “Certo, mas o que isso tem a ver com conhecer todos os setores do escritório?” - “Tudo a ver, meu caro amigo. Para conhecer os setores do escritório, e me manter atualizado quanto ao que está se desenvolvendo em cada um deles, eu preciso estar periodicamente em contato com todos os colaboradores de cada setor. Para isso eu criei o hábito de, diariamente, dar uma passada na mesa de cada um e cumprimentar o colaborador pessoalmente. Eu aprendi isso como uma técnica em um curso e confesso que no começo, enquanto ainda era uma técnica, foi um pouco desconfortável, não me senti muito à vontade. Acho que o pessoal do escritório também deve ter estranhado um pouco. Mas com o tempo isso deixou de ser uma técnica e se incorporou na minha forma de agir. Adquiri o “dom”. Aí a coisa começou a dar resultados. Eu passei a conversar um pouco com cada colaborador, trocando algumas palavras sobre assuntos diversos, sobre a vida fora do trabalho e sobre como estava o trabalho no setor. Assim fui conhecendo com mais profundidade meu próprio escritório e criando vínculos com o pessoal que trabalha comigo. Ou seja, minha relação interpessoal com os colaboradores do escritório melhorou muito. Isso gerou um caminho de mão dupla, pois se abriram espaços de comunicação para que as ideias sobre a gestão do escritório em cada setor fossem apresentadas. Enfim, passei a dar e receber feedback, como chamam os consultores de gestão.” - “Estou entendendo, João. Quando você passou a perguntar e ouvir as respostas, dedicando a elas real atenção, o pessoal passou a ver a possibilidade de apresentar propostas para a melhoria do trabalho.” - “Exatamente. E com isso muitos procedimentos internos foram e estão sendo aperfeiçoados. Em certa medida, o escritório passou a ter uma gestão compartilhada, onde cada um é responsável não só por fazer bem o seu trabalho, como também por estar constantemente procurando ideias para a melhoria contínua da atividade que desenvolve. Essas ideias sempre são incentivadas e analisadas coletivamente, conforme o setor envolvido.” - “Interessante. Pensando naquele chefe que proíbe conversas e celulares, fica evidente que lá nunca acontecerá esse processo de melhoria contínua!” 25
- “Pior que isso, Paulo. Dificilmente um colaborador irá indicar para o chefe que um procedimento não é o ideal ou que existe algum gargalo eminente que deveria ser enfrentado com planejamento prévio. No caso aqui do escritório, eu provavelmente seria o último a saber que alguém está descontente e pensando em mudar de trabalho, por exemplo, ou que estamos trabalhando acima de nossa capacidade, o que comprometeria a qualidade do serviço oferecido ao cliente.” - “Agora, você disse que tudo isso tem efeitos na motivação do pessoal mais até do que o salário. Como é que isso pode ser mais importante do que a parte financeira?” - “É realmente paradoxal, já que vivemos em um mundo que na atualidade é materialista ao extremo. Mas há diversos estudos que mostram o clima organizacional, a valorização e a realização pessoal a partir do trabalho desenvolvido, como as principais razões de motivação no trabalho. Veja bem, eu não estou falando que em favor da realização pessoal o colaborador trabalharia até de graça. O que estou dizendo é que um bom salário e excelentes condições do ambiente físico de trabalho não motivam por muito tempo. A eterna insatisfação material do ser humano certamente fará que, com o tempo, qualquer salário sempre pareça abaixo do que deveria ser pago. E com a condição física favorável a gente se acostuma rápido. Então, o que vai realmente determinar uma motivação mais duradoura é essa possibilidade quase inimaginável de você vir trabalhar todos os dias e gostar disso. Ainda mais se isso se der a tal ponto que o trabalho lhe ajude a encontrar equilíbrio também fora daqui, na sua vida pessoal e emocional.” - “Como é que não pensei nisso antes! O salário é uma retribuição pelo serviço prestado e a gente vai atrás dele porque precisa pagar as contas no final do mês. Mas de fato, a nossa realização pessoal e profissional é que realmente nos move com paixão.” - “Exato. Portanto quando eu converso com sinceridade, não como técnica, com todos aqui no escritório, o que faço é dar espaço para eles crescerem profissionalmente. A partir disso, o que acontece é que o colaborador sente que aqui no escritório ele pode alçar os voos que sempre sonhou. Ou a partir daqui, adquirir experiência e confiança para voos mais altos. Ao mesmo tempo, há grande motivação pela valorização das atividades desenvolvidas, mesmo as mais simples como de limpeza. Existe sempre espaço para um elogio aqui, outro ali, que vão pavimentando a estrada para o surgimento de ideias de melhoria. E também para 26
fazer cobranças quando necessário. Mas sem que isso seja o fim do mundo. As cobranças são feitas de forma construtiva, buscando melhoria. Por fim, para o cliente o importante é que esse ambiente positivo gera um processo conduzido com atenção e cuidado, havendo excelência no atendimento.” - “Em resumo, você fica sabendo de tudo que se passa, tem pessoas satisfeitas trabalhando com você e assim as novas ideias vão surgindo!” - “Há mais um detalhe importante: com esse conhecimento todo, se mesmo com a gestão preventiva algum setor ficar sobrecarregado, por alguma emergência que não podia ser prevista, ao ponto de precisar de mão-de-obra extra para apagar o incêndio, eu estou totalmente preparado para botar a mão na massa!” - “Se precisar você faz até o café?” - “Olha, se precisar pelo menos eu sei fazer. Mas até hoje não foi necessário. A máquina de café do escritório é automática e, por enquanto, nunca deu defeito. Agora, sempre é bom saber. Você já imaginou, por exemplo, o dono de um restaurante que não sabe fazer os pratos do cardápio? Se o cozinheiro fica doente, o restaurante fecha?” - “Estou começando a ver que essa coisa de arte da Excelência não é mesmo algo sobrenatural. E pelo jeito ainda tenho muito a aprender pela frente. A começar por passar um bom café!” - “Por falar nisso, vamos para a reunião com o pessoal?” - “Com certeza. Acho que agora estou com o espírito bem preparado para começar a conversar com os meus novos colegas.”
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CAPÍTULO 6 Já havia se passado algumas semanas desde o dia em que Paulo começara a trabalhar no escritório de João, mas as lembranças daquele primeiro dia ainda estavam vivas em sua memória. Depois de tudo o que João lhe mostrara durante o dia, foi uma grande surpresa para Paulo a forma calorosa como foi acolhido pelo pessoal do escritório. Prepararam um coquetel de boas-vindas e em todas as conversas que teve percebeu sinceridade quando as pessoas se colocavam à disposição para ajudar no que fosse necessário. Isso tornou muito mais fácil o seu trabalho inicial, que era justamente inteirar-se sobre o funcionamento do escritório. Paulo resolveu experimentar a forma como João agia e rapidamente foi incorporando a percepção da importância da comunicação sincera com a equipe. Quando viu que já estava começando a gostar de conversar com as pessoas e conhecer um pouco mais sobre elas, João lhe perguntou: - “E daí, meu caro, quais suas impressões sobre sua nova atividade?” - “Bem, devo confessar que estou gostando de conversar com o pessoal e conhecer os detalhes do escritório. É claro que você tornou o caminho fácil para mim, já que eles estão acostumados com essa forma aberta e franca como você trabalha. Então eu só estou tendo que seguir o fluxo. Mas uma coisa que me chamou a atenção foi a recepção que me deram no dia em que cheguei aqui. Não esperava as pessoas tão acolhedoras, até porque, em princípio, eu posso estar ocupando a posição sonhada por um deles.” - “A recepção foi muito boa, também achei. E devo lhe dizer que foi ideia deles. Certamente não foi por bajulação, já que isso aqui dentro eles sabem que não tem efeito, se não tiver efeito contrário. O que me parece é que já temos uma equipe em um bom estágio de desenvolvimento, em que sabemos que o sucesso de um não depende do insucesso do outro. Pelo contrário, o sucesso de um depende do sucesso de todos. Por isso a acolhida que lhe deram, trazendo você para dentro da equipe e indicando que será bom trabalhar com você. Isso é importante porque em muitos locais a chegada de novas pessoas é vista com desconfiança e causa certos 28
desequilíbrios no grupo. Quanto antes a pessoa for acolhida e passar a fazer parte do grupo, mais rápido as coisas estarão novamente em seu ponto de equilíbrio.” - “Realmente, eu já me sinto parte da equipe e isso me faz estar comprometido com ela. Aliás, por falar em comprometimento, ocorreu-me hoje que até agora estou conhecendo o escritório, mas ainda não sei exatamente o que você está planejando para mim. Em outros tempos eu diria que até agora estou só conversando e ainda não comecei a trabalhar efetivamente. Depois da nossa conversa no meu primeiro dia aqui já sei que estou em uma das partes mais importantes do meu trabalho. Só que agora eu já me sinto preparado para os próximos passos. Acho que já podemos conversar sobre o que você pretende exatamente que eu faça, até porque vejo que você tem feito muito bem essa função gerencial, não havendo razão para você se afastar dela. Afinal, o que você está planejando?” - “Bom ouvir isso, meu caro. Estava justamente esperando você ter uma visão geral do escritório para podermos conversar sobre suas funções, o que é algo bem simples de explicar. Minha ideia é dividir com você as responsabilidades decisórias do acompanhamento gerencial do escritório e a parte jurídica das causas mais importantes. Em resumo: faremos um gerenciamento compartilhado e na minha ausência o que você decidir, está decidido. O que você acha?” - “Simples de explicar. Difícil de fazer. Quer dizer, a parte jurídica não vejo dificuldades. Mas na parte gerencial percebo que tenho de aprender muita coisa para poder decidir bem. Antes de tornar isso uma regra você terá que esperar um tempo, até que eu entenda bem todas as suas posições.” - “Isso não é problema. Certamente nós vamos trabalhar antes seu desenvolvimento gerencial, para que você possa estar em condições de tomar boas decisões administrativas. O que é suficiente por agora é você estar disposto a desenvolver essas novas habilidades. O resto, tenho plena certeza que você consegue. Lembre-se o que conversamos sobre “dons” no jantar de aniversário de nossa formatura.” - “Claro. Eu não sei se tenho o “dom” de gerenciar pessoas e processos, de tomar decisões que não sejam jurídicas, mas estou sinceramente disposto a tê-lo. Até por que, se eu quero ser um bom juiz, preciso ter ou desenvolver o “dom” de decidir bem, seja no plano jurídico, seja em qualquer outro plano, não acha?” - “Certamente. Essa disposição em aprender é o mais importante. É o segundo passo. O primeiro, evidente, é tomar consciência e aceitar que não se sabe algo.” 29
- “Só fico com uma dúvida, João. Você gerencia tão bem o escritório e dá conta de toda a parte jurídica sem maiores dificuldades. Por que razão resolveu ter alguém para lhe ajudar?” - “É que eu tenho um novo projeto pela frente. Um dos projetos mais importantes da minha vida. E vou precisar ter mais tempo livre para desenvolvê-lo. Só que, por enquanto, é segredo.” - “Ok. Mas eu quero ser o primeiro a saber quando for sair do papel. A única coisa que continua me preocupando é você investir em mim para ter tempo para seu projeto e eu acabar passando no concurso.” - “Não se preocupe. Eu já pensei nisso. Quero que você dê uma estudada nos outros advogados do escritório para me dizer qual dentre eles você acha que poderia também trabalhar conosco nessa parte gerencial e nas causas mais importantes. Assim, a gente pode aproveitar e desenvolver você e mais alguém para a função gerencial, compartilhando de forma mais ampla a liderança da equipe”. - “Bem, na verdade eu já posso até antecipar o meu indicado. Conversando com o pessoal sobre o escritório descobri que o Celso já atua em diversas causas mais complexas e atualmente está fazendo uma especialização em gestão de pessoas. Ele me pareceu ter bastante bom senso e equilíbrio em suas colocações, o que reputo muito importante para a função. O que você acha?” - “Acho que você andou lendo meus pensamentos. Na minha opinião, o Celso tem efetivamente todas as qualidades para assumir uma função de gerenciamento. Mais do que isso, ele está precisando disso para continuar motivado e crescendo profissionalmente dentro do escritório. Então vamos fazer o seguinte: o Celso passará a trabalhar junto com você nesse processo de desenvolvimento gerencial pelo qual você está passando. Vai ser muito bom porque vocês contarão um com o outro, além de mim, é claro, para ir aprimorando os conhecimentos. E como não é uma competição por um cargo, havendo espaço de trabalho para os dois, o resultado certamente será muito positivo. Vamos dar a boa notícia para o Celso imediatamente.” - “Ele vai gostar da novidade.”
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CAPÍTULO 7 Duas semanas depois João chegou ao escritório com um ar diferente. Paulo desconfiou que havia alguma notícia boa para ser anunciada e foi logo entrando na sala de João, para saber do que se tratava. Nem bem Paulo sentou na cadeira e João, sem lhe dar tempo para respirar, perguntou: - “Você nunca pensou em ter filhos?” - “Sempre esperamos eu passar no concurso.” – disse Paulo, estranhando um pouco aquela pergunta, já que nunca tinham falado desse assunto. - “Isso é bom, porque é difícil estudar com filhos. Mas ao mesmo tempo revela a política do “serei feliz quando””. - “Política do “serei feliz quando””? – perguntou Paulo imaginando que João iria conduzir a conversa para mais algum aprendizado gerencial. - “É. A maioria das pessoas vive dessa forma. Sua vida só será boa quando tal coisa acontecer. A casa na praia, o nascimento dos filhos, a aposentadoria. E quando a coisa acontece é incrível como, em muitos casos, a felicidade não se realiza. Surgem novas vontades, novas condições para a felicidade. A pessoa vive, no fim, sempre na dependência de um futuro que nunca chegará. E se esquece de viver o mais importante, que é o presente. Estar realizada no aqui e agora, com o que ela é e possui hoje. De certa forma é mais um caso em que a pessoa precisa assumir a responsabilidade por sua vida e saber fazer a hora.” - “De fato, se passar mais uns cinco anos corre o risco de eu acabar sendo avô do meu próprio filho. Mas por quê você está falando em filhos?” – perguntou Paulo. - “Lembra-se daquele projeto que eu lhe falei que ainda era segredo?” - “Claro. E o que filhos têm a ver com isso? Não vai me dizer que...” - “Exatamente, meu caro. A Marcela está grávida! Hoje tivemos a confirmação. Ela está de 12 semanas. Dentro de um mês devemos saber o sexo.” - “Que maravilha! Meus parabéns! E quais são suas primeiras impressões sobre a perspectiva da paternidade?”
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- “Bem, ainda é meio cedo para falar. A gente demora um pouquinho para ter a exata noção, até porque o bebezinho está ali dentro da barriga da mãe dele e não aqui do lado de fora. Mas a sensação de ver aquele pedacinho de gente no ultrassom é incrível. É quase inacreditável que com 12 semanas, e não mais do que 10 cm de comprimento, o futuro bebê já tenha quase tudo formado. Coração batendo, cabeça, pés, mãos, órgãos, cérebro. É mesmo divino. Ao mesmo tempo a gente tem um choque de realidade, tendo que admitir que não controla quase nada na vida, senão nada. O bebezinho está ali dentro e não podemos fazer muito para ele ser de um jeito ou de outro, nem mesmo para que ele fique lá por toda a gestação. Só podemos cuidar da Marcela, seguir as recomendações médicas, conversar com a barriga e rezar.” - “É engraçado ouvir você dizer isso, já que nesse tempo em que estou aqui no escritório você tem me mostrado que muito do seu sucesso vem justamente da capacidade de planejar e montar estratégias, o que é uma forma de tentar controlar as coisas.” - “Realmente. Mas justamente porque quase tudo está naturalmente fora do nosso controle é que precisa de planejamento e de tanto cuidado em tentar antecipar o que pode dar errado. Porque se não há atenção nisso, as chances de todo o trabalho e dedicação serem perdidos aumenta consideravelmente. É como um jogo de futebol. Os times investem nos melhores jogadores, estudam o adversário e montam estratégias. Mas na hora do jogo não há certeza de vitória. De qualquer modo, se um time investir nos melhores jogadores do planeta e estudar bem os adversários, mas não houver uma estratégia de jogo devidamente treinada e seguida pelos jogadores, as chances de derrota são bem grandes, compreende?” - “Agora o que estou compreendendo perfeitamente são os seus planos para o escritório. Você já estava pensando em ter mais tempo para se dedicar à gestação da Marcela e ao bebezinho que vem por aí, não é?” - “Isso mesmo. Como eu já lhe disse antes, existe tempo para tudo na vida. Eu, particularmente, quero ter tempo para curtir esse momento. Então preciso pensar em estratégias para criar esse tempo. Não que eu vá deixar o escritório de lado, mas de certa forma ele já é um filho adolescente, que sempre teve uma boa orientação. Então agora é possível deixá-lo caminhar um pouco com as próprias pernas. Só espero que não se revolte contra o pai!”
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- “Quanto a isso pode ficar tranquilo. Estamos aqui justamente para funcionar como amigos desse adolescente. Estando em boa companhia ele não vai se desviar do caminho.” - “Que bom. Mas vamos ao trabalho que hoje o dia será corrido. Depois a gente conta a novidade para o pessoal.”
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CAPÍTULO 8 Quando João falou que o dia seria atribulado, Paulo não tinha imaginado que seria tanto. A manhã terminou com uma reunião acalorada com um cliente importante, para o qual o escritório estava trabalhando em um processo de fusão, com todas as implicações administrativas e tributárias. A parte comercial do negócio estava bem encaminhada, mas havia ainda muitos detalhes jurídicos a serem resolvidos. A grande dificuldade é que o cliente era daquelas pessoas difíceis de convencer a aceitar soluções novas, que trariam mais segurança ao negócio e evitariam que o escritório, no futuro, tivesse diversas pendências judiciais para resolver. Nesse cenário complexo, chamou à atenção de Paulo a forma tranquila com que João conduziu a reunião, escutando com atenção e procurando compreender as razões do cliente. Dessa forma, João foi aos poucos conseguindo abrir espaço para a apresentação de algumas ideias dos setores do escritório que estavam trabalhando no caso e obtendo o consentimento do cliente para encaminhar as coisas da forma que se apresentava mais favorável. Foi realmente de impressionar. Quando saíram para almoçar, Paulo foi logo dizendo: - “Que maravilha a sua tranquilidade e paciência na reunião. Achei que hoje não iríamos avançar em nada com esse cliente. O resultado da reunião foi inacreditável. Como é que você conseguiu manter a calma?” - “Essa reunião de hoje foi mesmo complicada. Por isso é importante entrar preparado em toda e qualquer reunião. Não só no aspecto técnico, mas especialmente no aspecto psicológico. Você deve estar previamente programado para se manter tanto mais calmo quanto mais complicada se tornar a situação. Afinal, o nosso objetivo não é brigar com o cliente, mas mostrar para ele as melhores soluções possíveis para o seu problema. Isso exige trabalhar com a razão e não com a emoção. É natural que o cliente também tenha ideias próprias. Elas devem ser consideradas, pois do contrário não seria uma pessoa de sucesso no meio empresarial. Então procuro trabalhar com a ideia de que temos de achar uma 34
solução que seja boa para o cliente, com a qual ele concorde, e que seja factível para o escritório. O pessoal da área gerencial chamaria isso de solução em que todos os envolvidos saem ganhando. - “Isso me faz lembrar de uma palestra de um desembargador federal, que assisti uma vez, em que para ilustrar aos presentes que o juiz deve ter a virtude da paciência, ele referiu a necessidade de fazer uma audiência criminal, em que de antemão visualizava que seria difícil, pois eram mais de 30 testemunhas arroladas pela defesa. Ele sabia, ainda, que o advogado estava querendo irritá-lo para provocar seu impedimento no processo. Assim, o que fez foi, no dia anterior, avisar o pessoal de secretaria que faria as audiências com ele, para que se preparassem para não ter hora para ir embora. Trouxe umas bolachinhas e uma garrafa térmica com chá, que deixou na sala da assessoria. Lá pelas duas da tarde começou a audiência e entre uma testemunha e outra, enquanto eram colhidas as assinaturas, saía, comia uma bolachinha, tomava um chá. Daí voltava tranquilo para mais arguições. Até que lá pelas cinco da tarde o advogado do acusado percebeu que sua estratégia não ia dar resultado e desistiu das 20 testemunhas que ainda estavam por ouvir.” - “Excelente. Certamente esse magistrado é exemplo para todos no meio jurídico.” - “Com certeza. Agora me diga uma coisa. Essa sua postura em busca da solução que componha todos os interesses, também explica por que você aceitou pensar sobre ponderações do cliente que, em princípio, sei que você considera totalmente inviáveis?” - “Não propriamente essa minha postura. Mas a minha consciência que não sou o dono da verdade. Veja bem, quando eu ainda era adolescente, lá pelos meus quinze anos, eu fazia o Ensino Médio, na época 2º grau, ali no CEFET-PR, participando da equipe de basquete do colégio. Na época a gente tinha um treinador chamado Carlos Eduardo, que gostava muito de basquete e da possibilidade de usar o esporte como instrumento de educação dos jovens. Então a gente aprendia muito de basquete, mas também tinha a oportunidade de conversar e trabalhar vários aspectos sobre valores e outras coisas importantes na formação de uma pessoa. Uma vez ele me deu de presente um livro chamado “Ilusões”, de um autor que talvez você até conheça, Richard Bach.”
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- “Eu já li um livro desse autor que se chamava “Fernão Capelo Gaivota”, salvo engano.” - “Exato. Esse é o livro mais famoso dele e trata sobre estar aberto para novas possibilidades, superar limites e aprendizado. No livro “Ilusões”, o Richard Bach faz uma série de ponderações sobre as principais questões existenciais do ser humano, dentro de uma história de aviador criada por ele e a partir de um manual sobre essas coisas, que encontrou pelo meio do caminho. Lá pelas tantas, quase no final do livro, e na última página desse manual cheio de orientações para a vida, aparece a seguinte frase: “tudo nesse livro pode estar errado”. E ponto final. Aquilo me chamou a atenção. Depois de tantas coisas interessantes o autor termina informando que tudo aquilo pode estar errado. Você consegue imaginar isso?” - “Realmente é intrigante.” - “Pois é, eu fiquei com aquilo na memória. Com o tempo fui amadurecendo essa ideia e aí passei a perceber que muitas vezes vou me apegando a conceitos, crenças e convicções que, de repente, podem estar equivocadas. Ou que pelo menos podem ser aperfeiçoadas. Por isso eu procuro ouvir as ponderações contrárias ao que penso e, quanto mais absurdas me pareçam, mais importante passa a ser refletir sobre elas. Afinal, não se pode descartar a hipótese de que quem esteja dizendo absurdos seja eu, não meu interlocutor, compreende? Ou às vezes os dois podem estar certos, só que vendo as coisas por ângulos diferentes, já que a verdade absoluta não existe. Isso tudo cria um ambiente de feedback, de retorno sobre minhas posições, que é de onde vem boa parte das ideias inovadoras.” - “Faz sentido. Mas eu não entendo muito bem como as pessoas podem ver as coisas por ângulos tão diferentes!” - “Meu caro, a gente tem a tendência de achar que todas as pessoas raciocinam da mesma forma que nós, como se todas as pessoas fossem iguais. Isso é um erro, pois cada ser humano é único. Por isso temos tanta diversidade no mundo. Assim, é natural que a forma de ver o mundo varie de pessoa para pessoa. Pode ser até que você encontre pessoas parecidas com você, mas nunca iguais. Além do que algumas pessoas podem se comportar da forma como o meio social exige, mas isso não quer dizer que elas sejam assim. O fato é que, quase sempre, as pessoas não são como elas se comportam. Se você começar a entender isso vai aprender a aceitar de verdade as diferenças e a trabalhar com as infinitas possibilidades que surgem disso, tirando de cada um o seu melhor.” 36
- “Isso tudo que você está dizendo tem lógica, mas me parece muito pouco concreto em termos de aplicabilidade. Como é que eu vou poder conhecer as diferenças das pessoas e encontrar a melhor forma de trabalhar com cada uma delas?” - “Você tocou em um ponto interessante. Saber que as pessoas são diferentes me ajuda a ter respeito pelos outros, o que já é algo importante. Mas se eu conseguir entender um pouco mais essa diversidade, aí eu posso me tornar uma pessoa com maior capacidade de me relacionar e trabalhar com a diversidade, abrindo espaço para melhores resultados.” - “Você conhece alguma fórmula mágica para isso?” - “As pessoas adoram mesmo fórmulas mágicas para tudo quanto é coisa. Infelizmente eu não tenho... Mas nesse caso sei quem tem!” - “Opa, então vamos atrás dessa pessoa!” - “Não é propriamente uma pessoa, mas um conjunto de pessoas que, a partir do pioneirismo de Sigmund Freud, começaram a estudar a formação psíquica do ser humano, desdobrando-se em diversas linhas de pesquisa. Não vou falar propriamente em Freud ou me aprofundar em termos científicos de psicologia, pois isso não vem ao caso. Se você quiser saber mais a respeito ou ter detalhes mais técnicos, terá de começar a estudar o assunto. O que me parece importante considerar é que, analisando a evolução dos estudos da psicologia, podemos ter a percepção que o ser humano é um ser “biopsicossocial”. Quer dizer, a complexidade de uma pessoa decorre de fatores biológicos (bio), de fatores psíquicos (psico) e de fatores de interação social (social). Cada um desses fatores possui uma série de correntes de estudos na psicologia que eu mesmo nem saberia explicar para você. O que sei, por exemplo, é que Freud foi o precursor do estudo dos fatores psíquicos, dando origem à psicanálise. A preocupação de Freud não está na configuração genética da pessoa. Para ele isso não tem tanta relevância. O importante é a influência das experiências vividas pelo indivíduo, essencialmente até a infância, que acabam por se impregnar em um setor da mente que ele chamou de inconsciente. Essas experiências passadas, especialmente as experiências traumáticas aprisionadas pela pessoa no inconsciente são, para Freud, determinantes para explicar as ações atuais da pessoa. Freud explica o funcionamento da relação entre consciente e inconsciente, a partir dos conceitos de Id, Ego e Superego.”
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- “Isso quer dizer que muitas das coisas absurdas que uma pessoa diz ou faz hoje em dia pode ser fruto de experiências vividas na infância?” - “Exatamente. Segundo as ideias de Freud, a pessoa não estaria reagindo à situação atual em si, mas a um ato do pai ou da mãe do passado que se renova na sua vida atual, por exemplo.” - “E pelo pouco que já li sobre Freud, sempre com algum substrato de sexualidade.” - “Mais ou menos por aí. De qualquer modo, não era exatamente sobre Freud que eu queria falar para você. Eu fiz referência a ele porque o vejo como precursor de todos esses estudos sobre o assunto. Além do que, essa pequena referência permite ter uma ideia de como a coisa é complexa, já que só de pensar no fator psíquico você pode ter noção de que precisa paciência para entender as pessoas.” - “Tem razão. Se ao sentar para uma reunião cada pessoa traz sua mãe e seu pai juntos, mais Id, Ego e Superego, então realmente é preciso aceitar que, às vezes, problemas simples se tornem difíceis de resolver.” - “Você está pegando o espírito da coisa. Agora vamos sair um pouco do fator psíquico e entrar no fator biológico, onde a ênfase está no fato de cada ser humano carregar em si uma carga genética única, contida no DNA. A ideia é que, da mesma forma que cada um de nós tem aparência física diferente, também no aspecto psicológico cada um tem uma configuração específica. Ou seja, uma pessoa não é psicologicamente igual a outra.” - “Faz sentido, João. Quer dizer, se eu sou fisicamente diferente de você, também devo ser emocionalmente diferente.” - “Exatamente, meu caro amigo. Quem começou a trabalhar com esse conceito foi Carl Jung. Partindo da observação que as pessoas têm fenótipos diferentes, quer dizer, aparência física diferente, mas que podem se apresentar parecidas, como a cor dos olhos, por exemplo, ele pensou que de repente poderia ser possível encontrar pessoas com algumas características psicológicas semelhantes, da mesma forma como acontece na aparência física.” - “E o que foi que Jung descobriu nesses estudos que ele realizou?” - “Ele conseguiu encontrar 4 pares de características psicológicas que se opõem entre si, como acontece com as características físicas. Isso lhe permitiu criar a teoria dos tipos psicológicos, com o mapeamento em combinação dessas características opostas. Segundo a teoria de Jung, a pessoa teria preferência por 38
ser: (a) quanto ao que lhe motiva na vida: introvertida ou extrovertida; (b) quanto à forma de percepção do mundo: sensorial ou intuitiva; (c) quanto ao que lhe domina na hora de tomar decisões: racional ou sentimental; (d) quanto ao estilo de vida: planejada ou espontânea. Por fim, considerando a possibilidade de combinação dessas características entre si, tem-se 16 possibilidades de preferências psicológicas.” - “Caramba! Acho que não entendi nada! Quer dizer, até a possibilidade de termos preferências psicológicas diferentes e existirem tipos psicológicos diferentes eu acompanhei. Mas isso vai fazer as pessoas agirem diferente?” - “Com certeza. A gente precisaria de mais tempo para você entender a teoria dos tipos psicológicos em toda a sua extensão. Mas o que quero que você perceba, com o pouco que lhe falei, é que a forma como você irá abordar uma pessoa para resolver um determinado problema com sucesso depende também do tipo psicológico dela. Por exemplo, no caso dos tipos extrovertido e introvertido. Essa característica, conforme Jung, tem a ver com a motivação da pessoa. Jung descobriu que o extrovertido retira sua motivação essencialmente do mundo exterior. Por isso ele precisa se comunicar, estar com as pessoas, fazer exercícios, expor suas opiniões, falar até mesmo antes de pensar. Já o introvertido retira sua motivação do seu mundo interior, dos seus conceitos e ideias. Então ele é mais reservado, gosta de ficar em silêncio, pensa antes de falar, tem um grande poder de concentração. Sua motivação é encontrada na reflexão.” - “Estou começando a entender melhor. Quer dizer, se eu estou diante de um extrovertido não quer dizer que tudo o que ele diz seja necessariamente sua visão final da coisa. Ele pensa alto e pode ainda estar no meio de seu raciocínio. O bom é que ele pode contribuir com várias possibilidades para solucionar o problema. Já quando o introvertido falar é porque o assunto já está amadurecido.” - “É isso aí. Você precisa conhecer a pessoa para saber como ela atua. O mesmo se aplica a você mesmo.” - “Certo. Pelo que estou percebendo, isso vai ser importante também para definir a pessoa ideal para cada tipo de função. Assim, se eu tenho uma causa com muitos detalhes técnicos, mas com nenhuma prova a ser produzida em audiência, um advogado introvertido pode ser a melhor opção, já que ele vai se concentrar nos detalhes técnicos. Já se a prova testemunhal e as alegações orais são o mais
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importante, como no Tribunal do Júri, então um advogado extrovertido parece ser uma boa opção! E as outras preferências?” - “A segunda preferência diz respeito a como as pessoas extraem informações do mundo. Na tradução técnica são usados sensação e intuição. Eu prefiro falar que a pessoa é sensorial ou intuitiva. Parece-me que fica mais fácil de entender. Por essas palavras você já consegue identificar a dualidade. As pessoas sensoriais preferem obter informações através dos cinco sentidos, o que significa que elas estão atrás de dados reais e concretos. São práticas, estão atentas aos fatos e orientadas para o presente. As intuitivas, por sua vez, dão maior importância para o que se chama de sexto sentido. Estão atentas a pressentimentos, a possibilidades teóricas futuras e a uma eventual necessidade de inovação.” - “Eu acho que consigo visualizar algumas profissões bem sensoriais e outras mais intuitivas. Por exemplo, na mesma área de atuação, o engenheiro atua de forma sensorial. Já o arquiteto precisa ser intuitivo.” - “No Direito, Paulo, eu diria que a preferência sensorial prepondera nos casos em que as provas são a parte mais importante do processo, uma vez que a análise dos dados concretos é que determinará o resultado da causa. Já a parte de desenvolvimento de teses jurídicas, em ações que se discutem exclusivamente as normas jurídicas aplicadas, a preferência intuitiva é importante.” - “Certo. Estou vendo, por tudo isso, que não existe uma preferência que seja melhor que a outra. Cada uma é importante em um setor. E na maioria das vezes elas precisam estar presentes em conjunto, o que torna relevante a equipe ser bem diversificada. E a distinção entre racional e sentimental, como ela se dá?” - “Essa dualidade diz respeito à forma como as pessoas trabalham com as informações que possuem na hora da tomada de decisões. Na tradução técnica é usado pensamento em oposição a sentimento. Eu optei por falar em racional ou sentimental, porque me parece mais fácil de você compreender. Veja bem, a pessoa racional tem a preferência por tomar decisões de forma lógica e objetiva. Ela utiliza a razão, o raciocínio lógico, baseia-se em princípios. É firme, mas justa. Já a pessoa sentimental tem a preferência por tomar a decisão de maneira orientada para um sistema de valores. Ela busca harmonia, tem compaixão, é piedosa e está preocupada com o efeito de suas decisões sobre os outros.”
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- “Tomada de decisões é algo bem próprio do trabalho de um juiz. E parece evidente que racionalidade é tudo na tomada de uma decisão judicial. Você acha que há espaço na Justiça para um juiz que tenha a preferência sentimental?” - “Não só há espaço, meu caro. Acho que estamos precisando um pouco disso. Um aspecto que você deve considerar é que estamos falando em preferências. Quer dizer, a pessoa tem uma habilidade natural para atuar de acordo com sua preferência. Mas isso não quer dizer que, ao longo da vida, não possa aprender a atuar com outras preferências, ainda que lhe seja mais confortável atuar conforme sua preferência natural. Assim, no caso do juiz, podemos ter um excelente magistrado que tenha preferência sentimental, já que ele sabe que precisa decidir dentro das normas do processo e a partir da prova dos autos. O ponto positivo é que ele estará sempre preocupado com os efeitos de suas decisões sobre as pessoas que são partes no processo.” - “Tem razão. Pensando dessa forma seria importante para todos que o juiz com a preferência racional desenvolvesse também um pouco a preferência sentimental.” - “Com certeza, meu caro. Agora, para encerrarmos os tipos psicológicos, ainda preciso falar da distinção entre as pessoas planejadas e espontâneas. Tecnicamente usa-se a terminologia julgamento para as pessoas com preferência planejada e percepção para as pessoas com preferência espontânea.” - “Os nomes ficaram bem diferentes, mas pelo menos está me ajudando a entender a ideia geral da coisa. Acho que se for estudar o assunto com mais profundidade será melhor usar os termos técnicos corretos.” - “Concordo com você, até porque os nomes técnicos terão implicações na compreensão de outras questões correlatas. De qualquer modo, para você entender a ideia geral da coisa, trabalhar com os termos planejamento e espontaneidade para o estilo de vida facilita um pouco minha explicação.” - “Certo. E como essa dualidade se apresenta?” - “A pessoa planejada tem a preferência por ter uma vida organizada e planejada. Ela gosta de ter as coisas sob controle, é decidida, têm objetivos e, evidentemente, é organizada. Já a pessoa espontânea tem a preferência por ter uma vida flexível, espontânea, como o próprio nome da preferência já diz. Ela tem uma grande capacidade de adaptação, gosta de novas experiências, é aberta para novas possibilidades. Enfim, deixa a vida acontecer.” 41
- “Em termos profissionais acho que a preferência planejada é mais importante, não?” - “Depende. A organização, o planejamento, a definição de estratégias são importantes em qualquer profissão, mesmo naquelas onde a imaginação vem em primeiro lugar. Mas a flexibilidade, o “jogo de cintura”, a capacidade de enfrentar com naturalidade uma situação inusitada também são características essenciais para um bom profissional. Então acho que os dois lados fariam bem em desenvolver características do outro. Aliás, não só para fins profissionais isso é interessante. Já imaginou um homem espontâneo extremado casado com uma mulher planejada extremada? Essencial que eles saibam que têm essa dualidade e aprendam a ser um pouco menos radicais nas suas polaridades.” - “Com certeza. Deve sair faísca desse relacionamento. Isso me faz ficar preocupado com uma coisa nessa teoria do Jung. Não há a possibilidade das pessoas serem rotuladas, de forma a se descartar alguém para uma atividade por ser de um tipo psicológico não compatível com a função? Ou, no caso do seu exemplo do casamento, a pessoa evitar um relacionamento pela incompatibilidade do tipo psicológico?” - “Por isso é importante lembrar que os tipos psicológicos indicam a preferência de agir da pessoa, enquanto uma característica de sua personalidade. Como já mencionei, não quer dizer que ela vai agir assim, pois você não pode esquecer que a pessoa também é formada por elementos psicológicos e sociais. Assim, durante a vida ela pode desenvolver habilidades que não sejam de sua preferência natural. Isso torna possível encontrar alguém que não tem o tipo psicológico ideal para uma função, mas que poderá exercê-la com maestria. Tudo vai depender daquilo que aprendeu durante sua vida. Aqui se encaixa bem o que conversamos sobre o “dom”. Se você não tem, você pode aprender. Por isso o tipo psicológico será sempre uma preferência de agir e não um determinante de agir. Além disso, nunca existirá um tipo psicológico puro. Com as experiências da vida a pessoa vai se adaptando, conforme suas necessidades, aprendendo as habilidades que precisa para ter sucesso no caminho que escolheu. Lembra-se do exemplo do baixinho Bogues, que se tornou astro do basquete americano? Seria o mesmo caso, só que no aspecto psicológico.”
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- “Faz sentido. Eu penso que poderia exemplificar com o caso daquele nosso professor da faculdade que era bastante introvertido. Contudo suas aulas eram excelentes. Precisas, didáticas e com um conteúdo de dar inveja.” - “Boa lembrança. É mesmo uma característica dos introvertidos terem grande conteúdo. De outro lado, uma pessoa extrovertida, mesmo tendo aptidão biológica para falar em público, pode acabar sendo um péssimo professor quando, por exemplo, sua experiência de vida não lhe conduziu a aprender que observar o tempo e ser objetivo são duas grandes qualidades a serem adquiridas pelos extrovertidos. Particularmente, eu penso que descobrir o seu tipo psicológico e desenvolver habilidades do seu oposto é algo muito importante para o seu sucesso pessoal, já que que você terá no seu espectro espectro de competências todas as habilidades necessárias para cada situação. Em umas, usará suas preferências naturais. Em outras, suas habilidades adquiridas.” - “Essa ideia é muito interessante. Mas como é que eu vou identificar as minhas preferências pessoais e das pessoas que convivem comigo para poder compreender melhor a mim mesmo e aos outros?” - “Ah, meu caro, já que você queria uma fórmula mágica, vou aproveitar para tirar um coelho da cartola. Ocorre que, enquanto o suíço Jung estava estudando essa questão na Europa, duas americanas, Katarine Briggs e sua filha, Isabel Myers, buscavam nos Estados Unidos justamente uma maneira de identificar as preferências de atuação das pessoas, de forma a maximizar os resultados produtivos. Quanto Jung divulgou seu estudo, Briggs e Myers encontraram nele um fundamento perfeito para criar uma ferramenta de grande utilidade na identificação do tipo psicológico de cada um. Essa ferramenta é conhecida como “Myer-Briggs Type Indicator” (MBTI).” - “Então quer dizer que basta eu ter acesso ao MBTI que conseguirei descobrir meu tipo psicológico e das pessoas que trabalham comigo?” - “Exatamente. A ferramenta não dispensa a colaboração sincera da pessoa, bem como a validação do resultado com uma análise individual junto a um consultor habilitado. Mas tem o grande mérito de ser o teste de personalidade que percentualmente tem um dos melhores índices de acerto. Por isso ele é usado há décadas com tanto sucesso.” - “Certo. E como podemos fazer o MBTI?”
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- “Bom, como é um instrumento licenciado, precisamos contratar algum consultor qualificado para aplicá-lo e também para ter a análise individual e validação do resultado.” - “Legal. Isso me deu a ideia de fazermos a contratação para todos os integrantes do escritório. O que você acha, João?” - “Excelente. Vou entrar em contato com o Luis Fernando, com quem fiz o MBTI, e ver se ele pode trabalhar essa ferramenta conosco. Além disso ele poderá apresentar com mais profundidade esses assuntos que conversamos hoje.” - “Seria ótimo. Vejo que tenho muito a aprender sobre isso ainda. E muito desenvolvimento pessoal pela frente.” - “Perfeito. Mas agora precisamos voltar ao escritório e concentrar o pensamento nos processos. Antes de sairmos para o almoço vi que foi designada para o mês que vem a audiência daquele cliente que está discutindo os limites de construção de um novo empreendimento. Temos que começar a pensar nas provas que vamos produzir nessa audiência.”
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CAPÍTULO 9 Algumas semanas se passaram e Paulo havia deixado um pouco de lado a aprendizagem gerencial para se dedicar com mais profundidade a alguns processos mais complicados. Dentre eles, o da audiência que acabara de acontecer, em que várias questões técnicas de engenharia foram discutidas, para se definir os exatos limites do direito de construir do cliente que estavam representando. Enquanto a audiência transcorria, Paulo ficou surpreso ao ver como João tinha bons conhecimentos de engenharia e técnicas de construção. Aliás, não era a primeira vez que João mostrava conhecimentos de outras áreas. Em outra audiência parecia um médico fazendo perguntas sobre detalhes de doenças que Paulo nem sabia que existiam. Aproveitando a oportunidade foi logo perguntando, enquanto se dirigiam para o escritório: - “Uma coisa que tenho notado é que você possui muitos conhecimentos que vão além do campo jurídico. De onde você tirou essa ideia de estudar temas que em princípio parecem não ter nenhuma relação com o Direito?” - “Miguel Reale já dizia, em sua teoria tridimensional, que o Direito é “fato, valor e norma”. A discussão da norma eu encontro no ordenamento jurídico, que procura regular o fato e o valor. Mas o fato e o valor estão na sociedade, na vida. Então eu preciso conhecer de Engenharia para questionar os engenheiros, de Medicina para discutir uma doença em Juízo, de Psicologia para entender as pessoas e conseguir construir com o cliente, a solução ideal para seu caso. E assim por diante.” - “É interessante essa sua forma de pensar. O conhecimento como instrumento dos seus objetivos.” - “Meu caro, em meio a tantos problemas estamos perdendo a noção que o mundo, ante sua complexidade crescente, é cada vez mais multidisciplinar. Então é muito importante conhecer um pouco de tudo. O paradoxo que existe nisso é que justamente pela complexidade crescente, as pessoas estão se especializando e deixando de lado a preocupação com a visão do todo.”
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- “Tem razão. Eu mesmo nunca pensei em conhecer Medicina ou Engenharia para aplicar em um processo. Deixava isso para os médicos e engenheiros.” - “Claro que você não vai ter a pretensão de possuir o conhecimento que tem um médico ou um engenheiro. Mas você precisa pelo menos ter uma ideia da coisa para poder questionar aquilo que é importante para a solução do processo. Precisa ter condições de fazer perguntas em cima das respostas técnicas que forem dadas. E o mais importante: tendo um mínimo de noção sobre qual será a resposta. Afinal, já imaginou se você pergunta algo e o engenheiro diz justamente aquilo que você não queria ouvir?” - “Certo, uma regra básica de audiência: nunca pergunte aquilo que você não tem certeza se a resposta será favorável para o seu cliente.” - “Mas muitas vezes você precisa perguntar, porque o cliente precisa ter provas a seu favor. Então, se você não souber nada além do jurídico, vai acabar tendo que arriscar.” - “Entendi aonde você quer chegar: nada de arriscar sem necessidade. É preciso ter estratégia.” - “Exato. O conhecimento multidisciplinar amplia minha visão das coisas e torna mais difícil eu ser levado a um erro. Por exemplo, imagine que você está construindo uma casa. Você faria a piscina de fibra, de lona ou de azulejo?” - “Não sei. Qual é a melhor?” - “Depende. Se você conversar com o vendedor da loja de piscinas de fibra, ele vai lhe dizer que a de fibra é a melhor. Se o cidadão instala piscina de lona, então esta será a melhor. E quem trabalha com piscina de azulejo vai dizer que essa é a melhor solução, apesar de mais cara. Agora, quem precisa decidir qual a melhor piscina para você é você mesmo, compreende?” - “Estou entendendo. Para decidir vou ter que buscar fontes isentas e definir a piscina que me parece melhor.” - “Não quer dizer que no fim das contas você fará a melhor escolha, mas pelo menos você estará no controle da situação. O conhecimento traz a liberdade de poder decidir o que é certo ou errado por você mesmo e não pelo que os outros dizem.” - “Como é que eu não percebi isso antes? Trazendo para o Direito, quanto mais conhecimento multidisciplinar eu tiver, maiores as minhas chances de ser um bom operador jurídico, já que o Direito não é um sistema isolado.” 46
- “Exatamente, meu caro Paulo. O Direito serve justamente para regular as condutas sociais. Então ele vai ter nas suas normas um pouco de tudo que existe nesse mundo. Quer coisa mais multidisciplinar que isso?” - “Realmente. Mas eu vejo que não é só naquilo que interessa para a profissão que você sempre tem algum conhecimento. De onde vem isso?” - “Boa pergunta. Há algum tempo atrás eu adotei como princípio ler até o fim todos os livros que comprasse, por mais chatos que fossem. Adotei esse princípio depois que notei que muitas pessoas compram uma série de livros que, no fim, só são usados de enfeite na estante. Então, se eu compro um livro, eu tenho que fazer sua leitura, que é o mais importante nessa compra. Depois de um tempo eu resolvi ampliar a ideia para ler todos os livros que ganho. Até um tempo atrás eu trocava o livro, se não fosse do meu agrado. Mas comecei a pensar que se alguém tinha escolhido aquele livro para mim é porque o achou interessante. Então por que não dar uma chance de ampliar meus horizontes, conhecer algo novo que, por mim mesmo, eu não iria buscar?” - “Interessante. Assim você está sempre aberto para conhecer novas visões do mundo. Eu geralmente faço isso com obras musicais. Já que ganhei, escuto. E confesso que tenho ampliado meu gosto musical. Mas nunca tinha pensado em fazer isso com livros.” - “Vale a pena tentar. Já faz algum tempo, por exemplo, ganhei um livro do Amyr Klink, cujo título é Mar sem fim. Por mim eu não compraria, pois não sou fã de navegação. Mas o livro ficou ali na estante, na fileira dos pendentes de leitura, até que outro dia resolvi começar sua leitura. Por incrível que pareça ele tem me inspirado na preparação para o nascimento do bebezinho que a Marcela está esperando.” - “O que um livro de navegação tem a ver com o nascimento de um bebê?” - “Navegação em si, não sei. Mas no caso do livro Mar sem fim, o fato é que o Amyr Klink estava sozinho em um barquinho à vela, dando a volta ao mundo, pelo caminho mais curto, que é na Antártida. Sozinho, no meio daquelas geleiras todas, ele precisava montar uma estratégia para dormir, sem correr o risco de acordar naufragando com o barco batendo em uma geleira.” - “Não tinha pensado que ele precisaria dormir. O que ele fazia?”
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- “Travava o curso, tirava pequenos períodos de sono de dez minutos e acordava para ver se estava tudo certo. Fazia novos ajustes e dormia mais dez minutos, até completar o ciclo de sono de que precisava.” - “Certo, mas insisto, o que isso tem a ver com bebês?” - “Bom, a inspiração é que se o Amyr Klink conseguia acordar de dez em dez minutos para ver se estava tudo bem com o barco, então será moleza acordar de três em três horas para ajudar a Marcela na amamentação do bebê. Até porque não vamos estar sozinhos, navegando no meio do nada.” - “Ah, claro. Agora entendi. Mas você sempre conseguiu ler até o fim todos os livros que comprou ou ganhou?” - “Confesso que tem uns três ou quarto que não. Porém estão na prateleira, esperando que um dia eu me anime a continuá-los. Quem sabe. Ainda não desisti deles. Às vezes, no meio do nada, aparece algo que se pode aproveitar. Como eu leio tentando me desfazer de qualquer preconceito sobre o livro, estou aberto para conhecer as ideias ali contidas. Daí vou refletindo sobre elas, incorporando aquelas que me parecem relevantes e conhecendo aquelas que não me parecem muito úteis.” - “Interessante essa sua forma de fazer a leitura de um livro. De certa maneira você lê aplicando sua teoria de não ser o dono da verdade. Lê, pensa, aceita como uma visão de mundo e compara com o que você pensa, sem julgar a pessoa do autor em si.” - “É verdade. Nunca tinha pensado nisso dessa forma, mas você tem razão. A leitura é um bom modo de termos nossas próprias ideias contrapostas ou confirmadas. E talvez aí esteja uma boa justificativa para ler o livro inteiro: dar ao autor uma oportunidade para apresentar sua posição por completo.” - “Gostei dessa sua prática, João. Vou usá-la também. A partir de agora, todo livro que ganhar ou comprar, vai ter que ser lido.” - “Isso dá um pouco de trabalho, ainda mais se as pessoas descobrirem e resolverem lhe dar muitos livros. Mas você vai acabar gostando. A melhor parte é que você não assistirá mais tanta televisão.” - “Aí está algo que será mesmo positivo. Tirando um programa ou outro que vale a pena, ver televisão é onde a gente mais perde tempo. Pior ainda quando assiste noticiário, que hoje em dia parece que gosta mesmo é de uma tragédia.
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Apesar de que sempre termina com uma notícia boa. Ou com notícias do futebol, para já preparar o clima da novela.” - “Tem razão. Mas já que você tocou no assunto de fugir um pouco da televisão, preciso lhe fazer um convite. Gostaríamos de receber você e a Rosane para jantar lá em casa hoje. Pode ser?” - “Com certeza, meu amigo. Será um grande prazer.”
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CAPÍTULO 10 Às vinte horas o interfone tocou. Paulo e Rosane chegaram exatamente no horário marcado. Pontualidade britânica e uma garrafa de vinho eram características registradas de Paulo. Ao entrar no apartamento, o casal sentiu um aroma delicioso, vindo do espaço gourmet em que João e Marcela haviam transformado a cozinha, integrando-a com a sala e a churrasqueira. Paulo cumprimentou Marcela e foi logo perguntando: - “Qual é o prato tão aromático que você está preparando para nós hoje?” - “Eu não estou preparando nada. Hoje quem está na cozinha é o João. E parece que você está escalado para auxiliá-lo. Segundo o João, hoje é um dia especial e as meninas ficarão apenas sendo servidas.” - “Incluindo lavar a louça?” – quis saber Rosane. - “Incluindo lavar a louça!” – respondeu Marcela. - “Já vi que estou perdido. Como sou um zero à esquerda na cozinha, só me sobrará a louça!” – concluiu Paulo. - “Mas a que devemos uma ocasião tão especial?” – perguntou Rosane. - “Bem, hoje foi meu último dia na empresa e o João quis me fazer esse carinho. Depois de 12 anos, vou me desligar um pouco do trabalho e dedicar-me apenas ao futuro bebê que está vindo por aí. Eu já estava a algum tempo querendo mudar de ares, descobrir novas oportunidades. Mas sempre fui adiando, sem ter muita ideia do que fazer. Em verdade, eu iniciei no meu trabalho realizando um grande sonho, que era me formar e trabalhar na parte administrativa de uma empresa importante. Mas com o tempo esse sonho foi realizado e tenho sentido a necessidade de fazer algo novo. A gravidez me deu coragem de deixar o trabalho de lado e arejar a cabeça com uma coisa totalmente diferente. A experiência de ser mãe certamente trará novos horizontes. Ou sempre posso voltar a trabalhar em uma empresa. Mas teria que ser outra, já que depois de doze anos no mesmo lugar as perspectivas de alguma promoção são pequenas. Você ocupa um espaço e parece
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que as pessoas já não conseguem enxergar que você pode fazer mais do que aquilo que está fazendo.” - “É verdade. O mais importante é que agora você vai poder se dedicar integralmente ao bebezinho que está por vir. Aliás, já sabem o sexo?” – perguntou Rosane. - “Essa é mais uma razão para o jantar. Ficamos sabendo hoje que será uma menina. Já temos até o nome: Ana, nossa princesinha.” - “Esse nome é lindo. Não acredito que o João conseguiu manter segredo disso lá no escritório. Ele que é terrível para guardar uma surpresa. Parabéns!” – exclamou Paulo. - “Então o que estão esperando? Vamos lá para dentro que o João está ansioso pela ajuda do Paulo”. Chegando à sala, Paulo foi logo dizendo: - “Olha só para você, meu amigo. Um verdadeiro chefe gastronômico! Quem diria!” - “Pois é, meu caro, a vida não é feita só de trabalho. Alguma coisa eu tinha que fazer para me divertir!” – respondeu João. - “E eu que achava que não me surpreenderia com mais nada vindo de você, João.” – ponderou Rosane. - “Essa é realmente uma virtude do meu querido marido: a vontade de sempre estar aprendendo coisas novas” – observou Marcela. - “É, acho que a paternidade está me inspirando. Eu sempre fui um bom churrasqueiro, mas de uns tempos para cá vinha sentindo a necessidade de me aventurar no fogão, para complementar minhas habilidades com as carnes. Está sendo bem divertido!” – explicou João. - “E o que teremos para o jantar? Já sei que estou escalado para ajudá-lo no que for preciso.” – disse Paulo. - “Bem, primeiro vamos terminar esse molho de coração de alcachofra ao pomodoro que estou preparando. Esse cheiro incrível que você está sentindo é do vinho branco que usei para regar o coração de alcachofra. Depois a gente prepara na churrasqueira uma peça de contrafilé, cortada em fatias e temperada só com um pouco de sal grosso. Ao mesmo tempo cozinhamos um pouco de nhoque. Ao final, acho que conseguiremos montar um prato com nhoque, os pedaços de carne e por cima de tudo o molho. O que vocês acham?” 51
- “Pelo cheiro parece que vai ficar muito bom. De onde você tirou essa receita?” – perguntou Rosane. - “Olha, na verdade eu estava com vontade de reproduzir um prato parecido com esse que uma vez comi lá no Restaurante Spaghetto . Mas não achei nenhuma receita pronta aqui pelo Brasil. Aí pesquisei na internet e encontrei em alguns sites italianos três receitas interessantes de molho vermelho com coração de alcachofra. Dessas três receitas, peguei uns temperos daqui, outras ideias dali e montei esse prato que estou fazendo. A carne feita na churrasqueira já é invenção minha. Uma mistura de cozinha italiana com o bife de chorizo argentino. Acho que vai ficar bom. Afinal, molho vermelho e carne de boi combinam bem.” - “Tem tudo para ficar ótimo, João. O difícil vai ser você conseguir reproduzir o molho pomodoro do Spaghetto. Acho que é uma das razões deles terem tanto sucesso, mesmo depois da multiplicação de restaurantes em Curitiba.” – brincou Paulo. - “Com certeza será uma missão impossível. Mas se ficar metade parecido já vai ser muito bom. Agora, acho bom você começar a se mexer e providenciar o fogo para esse churrasco. Enquanto isso vou servir um pouco de vinho para todos. Aliás, menos para a Marcela. Gestação e álcool não combinam.” - “Sobrou para mim. Espero pelo menos ser recompensada com a satisfação de algumas vontades esquisitas que posso ter nos próximos meses, em relação a comidas!” – disse Marcela, servindo-se de um pouco de suco de maracujá. - “Bom, para isso o João já está em fase de treinamento, minha amiga.” – observou Rosane – “Aliás, João, eu tenho uma curiosidade. De onde você tira essas ideias de estar sempre inventando coisas diferentes?” - “Bem, havia um tempo em minha vida em que o trabalho tomava praticamente todo o tempo que eu tinha. Evidente que paralelamente a isso a vida pessoal e o lazer quase não existiam. A Marcela era bastante compreensiva, mas eu sabia que ela sofria bastante com essa minha falta de disponibilidade para estarmos mais juntos. Encontrar minha família e os amigos era só mais em ocasiões especiais. Sem contar que, na maioria das vezes, as questões jurídicas eram o assunto principal. O interessante, contudo, é que mesmo com tanta dedicação, o trabalho não rendia como eu desejava. Parecia que eu estava sempre um pouco cansado, estressado e as ideias inovadoras não surgiam com facilidade.”
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- “Interessante isso.” – disse Rosane – “Lembro-me da Marcela ter comentado comigo algumas vezes como se orgulhava de sua dedicação ao trabalho. Mas que também gostaria de tê-lo um pouco mais presente. Acho que muitas pessoas devem ter essa mesma sensação. Eu confesso que às vezes tenho um pouco de ciúmes dos livros que passam as noites com o Paulo, nessa preparação dele para os concursos. Mas e aí, o que você fez?” - “Bom, eu comecei a pensar sobre isso tudo e percebi que, ao concentrar minhas forças quase em sua totalidade no trabalho, eu estava colocando em risco minha própria saúde, a saúde do meu casamento, a saúde dos meus relacionamentos familiares e do relacionamento com meus amigos. Sem contar que o próprio trabalho não estava tendo o resultado esperado. Então ficou claro para mim que eu precisava encontrar uma forma diferente de fazer as coisas. Como sempre faço, comecei a procurar soluções. E descobri que o equilíbrio entre trabalho, família, amigos e lazer é fundamental para conseguir ter sucesso em todas essas áreas.” - “Equilíbrio, essa palavra está na moda no futebol!” – comentou Paulo. - “Não só no futebol, meu caro amigo. Na vida. Pode parecer contrário à lógica sustentar que diminuir um pouco o ritmo de trabalho e dedicar-se mais a outras áreas de importância em sua vida signifique ganho de produtividade. Mas isso é real. Um dos livros mais interessantes que li sobre esse assunto foi “Ócio Criativo”, de Domenico de Masi, um italiano com excelentes estudos de sociologia do trabalho. Esse livro me fez perceber que precisamos ter tempo para abrir a mente, deixando de lado a preocupação com o trabalho. Isso é fundamental para termos mais disposição, produtividade e principalmente criatividade, que é o elemento que nos torna capaz de reinventar o processo do trabalho e aumentar a produtividade.” - “Por que a criatividade é tão importante?” – perguntou Paulo, já se interessando pelo assunto. - “Veja bem, a criatividade é o que lhe permite pensar sobre como você faz o seu trabalho atualmente e como você pode fazer para realizá-lo melhor, em menos tempo e com mais eficiência. Se você não tem tempo para nada, sua criatividade estará comprometida e você seguirá fazendo as coisas sempre do mesmo jeito. Em consequência, seu dia será cada vez mais curto, já que a tendência é que sua atividade profissional siga em uma crescente. E aí você entra em um círculo vicioso, que provavelmente só terá fim no momento em que você estiver em pane geral.” 53
- “Certo, mas e a gastronomia, onde ela entra nisso tudo? – perguntou Rosane. – “Porque para mim ócio é não fazer nada”. E pelo que estou vendo você está tendo é muito trabalho para tirar as sementes desses tomates!” - “É, ainda preciso aperfeiçoar minha técnica de tirar as sementes dos tomates. Mas é justamente aí que entra o “ócio criativo”, preconizado por Domenico de Masi. Esse ócio, ao contrário do senso comum da palavra, não significa ficar sem fazer nada. Significa fazer coisas totalmente diferentes, experimentar o novo, de forma a abrir espaço para novas ideias. Sobre isso, eu costumo dizer que é preciso esvaziar a cabeça, retirando dela os problemas que temos, de forma a abrir espaço para que as soluções para esses problemas apareçam. Se a mente está cheia de preocupações, como é que as ideias tranquilizadoras vão aparecer? Pense bem, você alguma vez já conseguiu deixar as preocupações de lado simplesmente ficando paradinho sentado no sofá, sem fazer exatamente nada? ” - “Com certeza não. A não ser que a pessoa seja mestre em meditação, esse é um terreno fértil para as preocupações se multiplicarem!” – respondeu Marcela. - “Exato. Então não adianta só parar. É preciso encontrar o equilíbrio que eu falei inicialmente. Para isso você precisa viver de uma forma a privilegiar todos os aspectos importantes em sua vida.” - “Por isso a importância das férias anuais.” – disse Paulo. - “Mais ou menos, meu caro. Muitas pessoas acham que o equilíbrio pode ser alcançado com o trabalho exauriente durante onze meses do ano e folga total em um mês de férias, ao final do período. Não nego a importância das férias, como uma forma de pausa necessária a cada ano, que permite um tempo maior de esvaziamento da mente das preocupações com o trabalho. Mas também durante os onze meses de trabalho diário é preciso que a pessoa tenha cuidado com sua família, seus amigos, suas atividades de lazer. Afinal, por exemplo, você como esposa, Rosane, acharia satisfatório ter seu marido só para você um mês por ano e os outros onze deixar ele só para o trabalho?” - “Claro que não! Só se eu não gostasse mais do Paulo, o que não é o caso.” - “Pois é, foi o que descobri depois que comecei a adotar aquela ideia de não cuidar de assuntos do trabalho a partir do meio-dia de sábado, até segunda-feira pela manhã. No início eu achei que isso era suficiente e de fato foi muito bom. Para quem trazia trabalho para casa todo final de semana a mudança já foi radical. Mas com o tempo eu comecei a ter uma sensação de que minha vida estava ficando 54
meio segmentada. Até que um dia, conversando com uma advogada amiga minha sobre o assunto, ela me disse que eu precisava entender que existia vida para além do que ela chamou de “muros da Justiça”. - “Essa é boa: vida para além dos “muros da Justiça”. E no que isso lhe ajudou a encontrar as respostas que você estava procurando?” – perguntou Paulo. - “Veja, eu percebi que por mais que eu estivesse tentando me desligar do trabalho, essa minha tentativa estava sendo feita como se o trabalho fosse um local que, no sábado ao meio-dia, precisava ter a porta trancada, com nova abertura só na segunda-feira de manhã. Então era como se eu tivesse de fazer força para ficar longe, não era algo natural. Quando surgiu esse conceito de vida além dos “muros da Justiça” eu comecei a entender que não sou várias pessoas: o profissional, o marido, o amigo, o filho, etc. Eu sou uma pessoa só, em que todos esses aspectos são importantes ao mesmo tempo. Assim, para ter sucesso na minha busca por equilíbrio, vi que não precisava trancar o advogado no escritório para deixar o marido aparecer. Bastava eu deixar cada aspecto preponderar no local em que ele era a figura principal. E às vezes vários aspectos podem preponderar ao mesmo tempo.” - “Interessante isso. E hoje, qual o resultado que você tira dessas experiências todas sobre o assunto?” – perguntou Rosane. - “Bem, eu tenho várias conclusões sobre isso tudo. Primeiro, como benefício para minha vida pessoal, estou descobrindo nessas minhas novas atividades de lazer, como a culinária, por exemplo, excelentes maneiras de estar mais próximo da Marcela, da minha família e dos amigos. E para a Ana, que vem por aí, já estou até arriscando fazer umas composições no violão. De outro lado, como benefício para a vida profissional, estou me sentindo mais motivado, com ideias para novos projetos e visualizando a importância de, como gerenciador do escritório, estar atento para incentivar todos os integrantes da equipe a estarem bem em sua vida pessoal.” - “Você não acha que essa preocupação com a vida pessoal dos integrantes da equipe pode ser um pouco intimista demais?” – ponderou Marcela. - “Bem, claro que é preciso ter muito cuidado aqui. Mas a partir do momento em que eu percebi que tudo o que acontece na vida da pessoa é importante para que ela seja um profissional de sucesso, a minha conclusão é que preciso de alguma forma, pelo menos, incentivar que ela encontre seu ponto de equilíbrio. Não quer dizer que eu vou ficar me metendo na vida pessoal de cada colaborador. Mas eu 55
incentivo que cada um procure cuidar com atenção de sua família, seus filhos, seus amigos e tenha atividades de lazer. Enfim, que viva com satisfação também para além das salas do escritório. Isso porque uma pessoa bem realizada no campo pessoal terá muito mais aptidão para encontrar sucesso profissional. Não há como ter plena satisfação profissional sem ter sucesso pessoal.” - “Muito bom. Será que você é o criador da teoria da “pessoa global”? Bem, se não for pouco importa. O interessante é que suas ideias são animadoras. Ainda mais sabendo que, por conta disso, teremos um belo jantar. E depois ouviremos suas composições para Ana.” – concluiu Rosane. - “O jantar acho que será mesmo saboroso. Agora, quanto às composições, precisarei tomar mais um pouco de vinho para torná-las públicas!” - “Então vou encher seu copo, meu amigo. E bom apetite.”
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CAPÍTULO 11 Paulo ainda estava sonhando com o delicioso jantar que João havia preparado quando o telefone tocou. Era sua mãe: - “Alô, filho. Tudo bem com você?” - “Tudo, mãe. Aconteceu alguma coisa?” - “Aconteceu meu filho. Sua avó faleceu. Foram acordar ela hoje pela manhã e ela havia parado de respirar. Foi levada por Deus tranquilamente durante a noite. Não foi possível fazer mais nada.” - “Entendo. E como é que você está? Precisam de alguma ajuda para providenciar o velório?” - “Eu estou bem. Mesmo a gente já sabendo que uma hora isso iria acontecer, quando vem a notícia a gente repensa muita coisa. E a sensação de perda é inevitável, mesmo acreditando que sua avó foi para um lugar melhor que esse. Mas fique tranquilo que já está tudo encaminhado. O velório vai começar lá pelas nove horas no Cemitério Municipal e estamos definindo se faremos o enterro ainda hoje.” - “Está certo, mãe. Vemo-nos no velório. Um beijo. Amo você, viu?” “- Beijo, filho. Amo você também.” A notícia pegou Paulo desavisado. Fazia tempo que sua avó estava meio doente, mas justamente nos últimos tempos tinha melhorado bastante e estava mais animada. Em uma das últimas visitas ainda lembrava-se de ter ficado quase todo o tempo segurando a mão de sua avó, enquanto conversavam sobre a vida. Mas a idade pesa e Paulo sabia que sua avó não ficaria com eles para sempre. Faz parte do processo da vida. Ainda bastante reflexivo, Paulo contou para Rosane do falecimento de sua avó e foi levantando-se para começar o dia um pouco mais cedo. Antes de ir para o velório precisava passar no escritório para encaminhar algumas coisas. Depois encontraria Rosane direto no cemitério. Quando chegou ao escritório, João ficou surpreso em ver Paulo já trabalhando a todo vapor. Foi logo perguntando: 57
- “O que aconteceu, meu caro? Esqueceu algum prazo para apresentar recurso em um processo?” - “Não, meu amigo. Minha avó faleceu nessa madrugada. Então vim para o escritório resolver algumas pendências, para depois poder ficar no velório. Parece que o enterro será hoje mesmo, no final da tarde.” - “Meus sentimentos. A sua avó era mesmo uma pessoa muito especial. Ainda lembro como se fosse hoje dos verdadeiros cafés coloniais que ela preparava para nós quando íamos lá passar à tarde de domingo, estudando para as provas da faculdade. Que os Anjos estejam com ela nesse momento. Você precisa de alguma ajuda para concluir o que veio fazer aqui?” - “Não, já estou quase terminando.” - “Certo. Depois quando você for para o velório me chame que quero ir junto, pode ser?” - “Pode, claro. Mas não se preocupe. Você não tem nada urgente por aqui hoje?” - “Olha, trabalho eu até tenho, mas urgente não tenho nada. Aliás, você já deve ter percebido que eu raramente estou com alguma coisa que precisa ser feita para hoje, não?” - “ É verdade. Como você consegue esse milagre?” - “A gente já falou outro dia sobre estratégia e planejamento. Aqui é outra aplicação disso. O que eu procuro é estar sempre em dia com o meu trabalho. Veja, geralmente eu gasto um dia de trabalho para fazer um recurso em algum processo. Se eu tenho dez dias de prazo, eu não preciso deixar para fazer o recurso no décimo dia, em cima da hora. Posso criar a rotina de sempre estar zerado, fazendo o recurso no primeiro ou segundo dia. Aí, se surge algum imprevisto, tenho tempo para resolver essa urgência que não estava programada. Como sempre estou recebendo novos processos que precisam de recurso, na prática dá na mesma, só que eu não fico com o estresse de saber que tenho um monte de trabalho que precisa ser feito amanhã.” - “Faz sentido. Eu já percebi isso com o uso do cartão de crédito. Resolvi parcelar a compra do combustível em três vezes. Como uso um tanque por mês, no primeiro mês tive que pagar só um terço do meu gasto mensal com gasolina. Mas no segundo mês já gastei dois terços, a soma da parcela do primeiro e do segundo mês. E por fim, no terceiro mês, já estava de volta pagando o tanque cheio, com a
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soma das três parcelas que sempre estava devendo. Quer dizer, tirando a vantagem no começo, depois não resolveu mais.” - “Claro, porque quando você tem uma demanda que se renova, parcelar o seu cumprimento só vai dar um efeito no começo. Depois volta tudo ao normal, sendo que você ainda fica sempre devendo alguma coisa lá para frente. Eu vejo isso também acompanhando as estatísticas de sentenças dos juízes. Tem vários juízes que todo mês terminam com o mesmo estoque de sentenças pendentes de julgamento. Independente do número de processos que são remetidos para ele sentenciar, ele dá conta do trabalho, mantendo o passivo fixo. Sobre isso eu fico me questionando que, se esses juízes fizessem um pequeno mutirão, poderiam zerar o seu passivo fixo e aí terminar todo mês sempre com a tranquilidade de não ter processos atrasados. A meu ver isso eliminaria significativamente o estresse desses magistrados.” - “Só que você não está considerando o risco que esses juízes correm de serem chamados para mutirões e auxílios em outros lugares. Um juiz já me confessou uma vez que ter o gabinete zerado é um perigo. O sistema da Justiça ainda olha muito para o acumulado e não para o quanto o juiz trabalhou. Assim, o prêmio que o juiz recebe por ter conseguido encontrar formas de deixar seu trabalho em dia, muitas vezes, é receber alguns processos de outros colegas para sentenciar.” - “Acho que isso não é muito motivador. Quem sabe você passa no concurso e ajuda a mudar isso, meu caro?” - “É o que estou tentando, mas um passo de cada vez. Então, você vai mesmo comigo? Eu já estou pronto.” - “Sim, só me deixa avisar que vou ficar fora pela manhã.”
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CAPÍTULO 12 Enquanto se dirigiam para o cemitério, as lembranças sobre a avó de Paulo eram inevitáveis. Quando Paulo começou a falar das novenas que sua avó fazia e da fé que ela tinha, João perguntou: - “E você, Paulo, acredita em Deus?” - “Bem, eu sou católico desde criança.” - “Eu sei que você é católico. Mas eu não estou falando em religião. Falo de fé. Religião todo mundo tem, até o ateu, que se cerca de livros e discussões sobre a negação de Deus. A religião tem seu lado bom, quando conecta as pessoas com Deus, tornando factível algo tão complexo. Mas quando não gera essa conexão, quando não nos permite contato com nossa fé e com o divino que temos dentro de nós, então acaba não sendo um bom instrumento. O pior é quando em nome da religião muitas coisas que não têm qualquer relação com Deus são feitas.” - “Tem razão. É uma pena que isso aconteça até os dias de hoje. De qualquer forma, é interessante essa sua maneira de ver a religião como um instrumento.” - “Parece complicado, mas se você pensar bem fica fácil perceber que Deus e religião são coisas distintas. Vendo a religião como instrumento, todas as religiões podem estar certas ou erradas, dependendo do quanto ajudem a pessoa a ser mais próxima de Deus. E isso vai variar de pessoa para pessoa. Então eu posso ir a uma missa e isso ser bom para minha fé. Posso ir a um culto luterano ou evangélico e também me aproximar de Deus ali. Tudo depende se aquele ambiente me traz paz, me conecta com Deus. Portanto, meu caro, a fé é bem diferente da religião. O que importa é se no seu íntimo você acredita que Deus existe, seja de que forma você O imagine. Pode ser uma energia universal, um grande juiz da vida ou alguma outra forma. Outra coisa importante: a fé não se explica. Não é possível explicar com argumentos porque Deus existe. Você sente essa existência e simplesmente acredita, tem fé. Então, vendo a coisa dessa forma, renovo a pergunta: você acredita em Deus?”
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- “Bom, João, agora entendi que sua pergunta é bem mais profunda do que eu havia imaginado no começo. Mesmo assim eu posso lhe dizer que acredito em Deus. Ainda outro dia conversava com minha mãe, dizendo a ela que com meu pai aprendi muitas coisas na vida, como pensar antes de agir, saber consertar as coisas em casa, ter iniciativa, querer fazer a diferença, procurar fazer sempre o que é certo. Já com minha mãe aprendi a ter fé, rezar, ser humilde e ter simplicidade. Daí vem minha fé. Só que é um pouco difícil encontrar algum efeito prático nessa crença em Deus. Afinal, sinceramente, o que isso importa para a minha vida cotidiana, para meus estudos, meu trabalho e tudo mais? No mundo de hoje ninguém parece querer saber de Deus.” - “Aí que você se engana, Paulo. Deus é fundamental na sua vida, mesmo que você não esteja percebendo isso. A fé é um grande ponto de equilíbrio, um grande auxílio para passar pelos muitos momentos difíceis da vida. Por isso é preciso estar sempre alimentando a fé.” - “Nesse aspecto você tem razão, João. Repito constantemente algumas orações e elas funcionam como um mantra, que me ajudam a manter o equilíbrio e a paz interior. Às vezes nem percebo e estou orando em silêncio antes de entrar em uma reunião importante. Dá uma sensação de tranquilidade e segurança.” - “Sabia que dá para perceber essa tranquilidade na sua forma de agir com os outros? Isso é muito bom porque, em última análise, ao invés de ficar falando sobre Deus, você vive a sua fé nas suas ações diárias. E assim, mesmo sem perceber, transforma os outros que estão ao seu redor, mostrando-se uma pessoa confiável e que tem algo especial.” - “De fato. Eu acho que a fé não pede palavras. Ela precisa mesmo é ser demonstrada com ações. Se cada um que diz ter uma religião seguisse os ensinamentos do Mestre dessa religião, certamente o mundo seria bem melhor. No meu caso, por exemplo, como sou católico, procuro seguir os ensinamentos de Jesus, que estão nos Evangelhos. Aliás, se pudesse, indicaria, para aqueles que são cristãos, a leitura desses quatro livros da Bíblia como forma de renovação de sua fé e de motivação em fazer o bem, em tempos tão difíceis como temos hoje. Fiz isso recentemente, depois de ouvir a proposta em um sermão, e fiquei surpreso em ver quanto da essência dos ensinamentos de Jesus eu não lembrava mais.” - “Outra coisa importante sobre a fé, Paulo, é que ela nos ajuda a não termos tanto apego aos bens materiais, às vaidades terrenas e à necessidade de 61
ostentação. Com isso vivemos de uma forma mais leve e solidária. Já viu como são as pessoas que estão totalmente voltadas para o conforto material? Tirando o individualismo e o egoísmo, que por si só já são coisas que deixam a pessoa mais depressiva, há uma preocupação constante com o dinheiro, negócios, ficar rico. Enquanto isso a vida vai passando. De outro lado, é triste ver pessoas que conseguiram acumular verdadeiras fortunas durante a vida e não conseguem usufruir um pouco do dinheiro que têm. Acabam virando verdadeiros escravos a serviço de seu vultoso patrimônio. Claro que não estou dizendo que ter dinheiro é ruim. Mas que pode ser um problema, se a pessoa não souber lidar bem com a situação. A fé ajuda a entender que, por mais dinheiro que se tenha, ele não trará saúde, amigos verdadeiros, paz, felicidade, relacionamentos recompensadores, entre outras coisas que fazem muita diferença na vida.” - “Essa coisa do dinheiro é mesmo intrigante. Por causa dele a gente vê cada vez mais pessoas escolhendo profissão pelo quanto se ganha, não pelo que se faz na atividade. No Direito mesmo, a febre dos concursos públicos gerou um contingente de pessoas que só estudam para concurso, os chamados “concurseiros”. Nada contra. Ir atrás dos objetivos é muito importante. Mas o problema é que muitos escolhem o cargo a ser alcançado pelo salário. Aí surgem situações de promotores que têm vocação para serem juízes. Ou juízes que dariam ótimos advogados, mas como juízes não se sentem realizados, porque os advogados ganham mais.” - “Isso é realmente um problema. Além da pessoa achar que ganha pouco, afinal o setor público tem um teto salarial máximo, a longo prazo haverá total desmotivação se não aprender a gostar do que faz.” - “Nesse ponto não tenho dúvidas que, na área pública, minha vocação é a magistratura. Mas confesso que já estou gostando de aliar a advocacia com essa parte gerencial lá no escritório. Salário é importante, mas não é tudo. Imagina uma pessoa que ganha bem e gosta do que faz. Por trinta por cento a mais vale a pena mudar para uma atividade que não lhe agrada?” - “Valer não vale, meu caro Paulo, mas pode ter certeza que, infelizmente, tem muita gente que ama o dinheiro o suficiente para fazer isso. Quando isso acontece é ruim para toda a sociedade, já que o comprometimento primeiro com o ganho financeiro deixa em segundo plano a busca pelo bem das pessoas. Aí temos juízes sem a preocupação com o justo, advogados capazes de mil artimanhas para libertar
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criminosos, médicos sem capacidade de compreender a angústia dos pacientes, empresários gananciosos, políticos corruptos e por aí afora.” - “Você tem razão. Agora, nós vínhamos conversando sobre fé como algo importante para a pessoa ter uma vida plena, realizando suas aspirações. Mas e se a pessoa não acredita em Deus, como é que ela faz?” - “Bem, eu acho que ela deveria acreditar. Mas se não conseguir, aí pelo menos deveria conhecer um pouco mais de Psicologia e Física Quântica.” - “Psicologia e Física Quântica?” - “Exatamente. A confiança em si mesmo e o equilíbrio são elementos trabalhados pela Psicologia como determinantes para o sucesso. Se você não acredita que é capaz, nunca conseguirá superar seus limites. Se você não tem equilíbrio psicológico pode ter todo o conhecimento do mundo e, na hora de aplicálo, simplesmente não conseguir. É o branco que dá na hora da prova, o tenista que perde a concentração e se vê derrotado em um jogo que parecia fácil.” - “Sobre isso já ouvi falar, mas onde entra a Física Quântica?” - “Vários estudos de Física Quântica propõem uma nova dimensão para a importância do observador na definição dos fenômenos físicos. Quer dizer, pela Física Clássica o observador é neutro, sendo mera testemunha dos fenômenos físicos. Mas a Física Quântica tem demonstrado o contrário: o observador também tem influência na ocorrência dos fenômenos físicos.” - “Certo, mas o que isso tem a ver com a pessoa que não tem fé?” - “Bem, tirando o fato de que alguns físicos, como o indiano Amit Goswami, têm utilizado a Física Quântica para explicar Deus, como no livro a “Física da Alma”, a Física Quântica mostra que o Universo é essencialmente composto de energia. Isso significa que, enquanto observadores dos fenômenos físicos, temos influência sobre o que nele acontece. Mas como também somos compostos de energia, fazemos parte do Universo. Dessa forma, o nosso pensamento, a nossa forma de ver as coisas, a nossa conduta de vida, enfim, tudo aquilo que somos e pensamos influencia diretamente o que ocorre no mundo físico.” - “Caramba. Quer dizer que a nuvem cinza que parece existir sobre a cabeça de algumas pessoas não é por acaso?” - “Exatamente. Aquela pessoa que está sempre de mau humor, que reclama de tudo na vida, que parece que nada está bom para ela, não é por mera falta de sorte que as coisas cada dia estão piores. Já aquela pessoa que está sempre animada, 63
de bom humor, confiando na vida, já notou como parece que as coisas simplesmente acontecem na vida dela?” - “Já reparei nisso, mas parece coisa de livro de autoajuda!” - “Parece, mas na verdade é ciência. Cientistas como Fritjof Capra e o prêmio Nobel de Física Eugen Winger afirmam a importância da consciência do sujeito na conformação dos eventos físicos.” - “Não imaginava que isso fosse tão sério assim.” - “É mais sério do que você pode pensar. A grande questão é que precisamos abrir espaço em nossas mentes para deixar de lado os limites trazidos pela Física Clássica e pelo pensamento cartesiano. A razão tem nos atrapalhado em muito para definir o que é possível. A verdade é que ainda conhecemos muito pouco sobre o poder de nossas mentes e aí ficamos limitados pelo que sabemos ser possível fazer, a partir de conceitos ultrapassados. Certamente você já ouviu falar que usamos no máximo dez por cento da capacidade de nosso cérebro? E os outros noventa, o que será que somos capazes de fazer com eles?” - “Olha, não sei, mas acho que é bom eu começar a tomar cuidado quando penso que nunca vou passar no concurso para juiz. Pode ser que eu esteja influenciando o resultado dos concursos!” - “Não duvide disso. Quando você leu os Evangelhos deve ter visto uma série de situações em que Jesus fala para as pessoas que vinham atrás dele, buscando um milagre: “vai em paz, a tua fé te curou”. Quer dizer, a fé das pessoas, a crença de que a doença poderia ser curada, foi o elemento essencial para o processo de cura. Houve uma situação, ainda, em que Jesus estava andando sobre as águas. Pedro perguntou para Jesus se ele também poderia fazer isso. Jesus disse que sim e Pedro então começou a andar sobre o oceano, em direção a Jesus. Até que percebeu que isso era “impossível” e começou a afundar na água. Quer dizer, impulsionado por Jesus, Pedro superou os limites da razão. Mas quando a razão voltou a imperar, Pedro afundou no mar.” - “Eu me lembro dessas passagens da Bíblia. Jesus falou também que com um pouquinho de fé seria possível até fazer uma montanha mudar de lugar. Realmente superar os limites atuais de nossa mente pode dar bons resultados. Apesar de que estamos usando exemplos da Bíblia. Se a pessoa não é cristã pode não aceitar essas ideias.”
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- “Então vou dar um exemplo que estava lendo outro dia no jornal. Uma mulher deu à luz a dois filhos. Um deles, depois de horas na incubadora e todas as tentativas dos médicos para reanimação, foi dado como morto. As enfermeiras então colocaram o bebezinho no colo da mãe, para que ela se despedisse dele. Um momento muito triste. A mãe, no entanto, pegou aquele serzinho já sem vida e começou a acariciá-lo, a conversar com ele, dizendo o quanto ela, o pai e o irmãozinho que sobreviveu estavam felizes com o nascimento dele. Ela ficou ali por quase duas horas acarinhando o filho morto, como se ele estivesse apenas dormindo. Até que tirou um pouquinho de leite do seio, botou na boquinha do bebê e ele voltou à vida. Os médicos não tiveram explicação para o caso. Milagre? Ou a mãe indo além dos limites da razão para passar um pouco de sua energia vital para o bebezinho?” - “É algo para se pensar.” - “Com certeza. E há muitos outros exemplos de superação de limites. Um caso de destaque é o de Morris Goodman, conhecido como o “Homem Milagre”, que em 1981 recuperou-se das terríveis lesões causadas após a queda do seu avião. Tetraplégico, foi desenganado pelos médicos quanto a voltar a se movimentar. Mas ele disse que se recusava a aceitar o diagnóstico e iria sair do hospital andando. E simplesmente assim foi. Tem até um filme sobre a história de autocura de Goodman, que vale a pena assistir. O título em português é “O homem milagre”. - “Ok. Você já me convenceu. Agora, fico pensando que, a partir disso tudo, confiar em Deus não seria exatamente necessário.” - “Paulo, eu penso que confiar em si mesmo é só uma parte do processo, que se completa com a fé em Deus. É que muitas vezes a gente duvida de nós mesmos e quase sempre estamos presos aos limites de nossa racionalidade. Em todos esses momentos Deus está conosco, nos ajudando no processo de acreditar que é possível ir mais longe. Já quem não tem Deus não tem nada que lhe dê forças nas horas de perda de confiança em si mesmo, que não são poucas.” - “Certo, a fé traz equilíbrio, força e segurança. Mas você já pensou que isso pode ser apenas um apoio psicológico e que Deus pode não existir? - “Isso para mim parece impossível. Você já olhou para esse mundo todo aí fora? E o Universo? De onde viria tudo isso? Para mim é prova suficiente que Deus existe.”
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- “Entendo, mas vou insistir na pergunta: e se no final de sua vida você descobrir que Deus não existe?” - “Bem, para mim não muda nada. A fé que tenho não é algo que me faz viver no futuro, na política do “serei feliz quando”. Em resumo, eu não vivo procurando fazer o bem para alcançar o “Paraíso”. Faço pela alegria que me traz. A fé em Deus me faz viver de uma forma plena, buscando sempre me aperfeiçoar como ser humano. A fé me faz ter bons valores, que eu aprendi com meus pais e quero ensinar para minha filha. A fé me faz buscar bons amigos, me faz ter o apoio de Deus em todas as horas. Em razão dela escuto boas mensagens nos cultos que vou. Enfim, a fé me traz tranquilidade e paz. Assim, se quando minha vida terminar eu descobrir que estou errado, então terá sido muito bom para eu viver com fé. Daí simplesmente fim. Mas um final feliz, por ter tido uma vida muito boa. Agora eu lhe pergunto: e quem não acredita em Deus? Se ao chegar ao fim da vida descobrir que estava errado? O que vai acontecer?” - “Boa pergunta, João. Acho melhor deixar que cada um encontre sua própria resposta. Mas uma coisa posso lhe dizer: com certeza minha avó querida está tranquila quanto a isso nesse momento.” - “Que bom, Paulo. Acredito nisso também. Então vamos entrar e cuidar de nos despedir dela, ao menos por enquanto.”
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CAPÍTULO 13 No dia seguinte Paulo ainda estava um pouco pensativo, lembrando-se do carinho de sua avó. Quando chegou ao escritório, João o chamou para um café. - “E aí, meu caro, como você está?” – perguntou João. - “Um pouco cansado, não dormi direito, mas no geral estou bem. Aquela nossa conversa de ontem sobre fé ajudou-me a lembrar de que minha avó sempre estará comigo, ainda que de uma forma diferente.” - “Viver essa fase do luto é importante para podermos seguir adiante. Em alguns casos o luto é mais complicado. Em outros, mais fácil de ser superado. É preciso vivê-lo, mas procurando sempre encontrar motivação para superá-lo e seguir adiante.” - “No meu caso não será tão difícil. Eu estive muito com minha avó e não tenho agora aquela sensação de perda de algo que não aproveitei quando devia. Também não tenho nenhum ressentimento ou mágoa que ficou sem ser perdoada.” - “É muito comum as pessoas só perceberem que queriam estar mais com a família e com os amigos queridos nessas horas de despedida. E aí fica um sentimento ruim, por não poder mais estar junto. Por isso é importante viver com intensidade o sentimento hoje. Ninguém sabe o dia de amanhã.” - “Tem razão, João. O pior é quando as pessoas ficam em vida guardando ressentimentos. Irmãos, pais e amigos de infância chegam a ficar anos sem se falar por causa de alguma coisa que aconteceu. E quanto vem a morte, surge aquela sensação de tristeza por não terem acertado as contas antes.” - “Isso realmente deve ser doloroso, para quem fica e para quem se vai. Mas eu acredito que você sempre pode exercer o perdão. Claro que se for em vida melhor, pois não ficará privado da convivência de uma pessoa querida. Só que mesmo depois da morte você pode orar e conversar com a pessoa querida, dando o seu perdão e aceitando o dela. Não há limite de tempo e espaço para a reconciliação.” - “É verdade. Lembro-me de um fato sobre isso, de quando minha outra avó faleceu. Isso já tem uns 20 anos. Na época ainda era adolescente e minha avó às 67
vezes vinha passar uns meses conosco. Minha irmã não gostava muito porque ela tinha que dividir o quarto dela. Depois do falecimento minha irmã passou uns tempos meio triste. Certo dia perguntei a razão. Ela estava chateada porque queria ter dito para nossa avó que a amava e não era para ela ficar triste por causa do quarto. Aí eu falei justamente o que você acabou de referir: que ela podia rezar e dizer isso para nossa avó, que certamente ela iria entender.” - “Perfeito. Você mostrou que já tinha um espírito conciliador desde aquela época. E sua irmã, ainda criança, aceitou facilmente a ideia do perdão. O problema, meu caro, é que quanto mais às pessoas crescem mais difícil fica conseguirem perdoar os outros. Não sei por que começam a acumular ressentimentos, culpas e mágoas com fatos passados. Isso não ajuda muito a construir um presente de sucesso. Quanto maior a habilidade em deixar o passado para trás, melhor a capacidade de fazer um presente e um futuro melhores.” - “Nisso você tem toda razão. Mas nem sempre é fácil. Por tudo o que você me explicou sobre a complexidade psicológica das pessoas, dá para entender que às vezes o caminho do perdão é racionalmente curto, mas psicologicamente imenso.” - “Por falar nisso, eu tenho uma ótima notícia para você sobre a questão dos tipos psicológicos. Conversei com o Luis Fernando e ele me confirmou que terá alguns trabalhos em Curitiba no próximo mês, mas que só lhe tomarão o período da tarde. Então ele estará disponível para um treinamento aqui no escritório por uma semana, durante as manhãs.” - “Muito bom. Assim podemos fazer o treinamento sem prejuízo das atividades do escritório. Vou conversar com o Celso para organizarmos as coisas e fazermos o remanejamento do que esteja marcado para essa semana. O pessoal do escritório vai gostar. Já havia comentado com eles sobre o assunto e ficaram bem interessados.” - “Perfeito, Paulo. Se precisar de alguma coisa na organização é só falar comigo.” - “Obrigado. A propósito, João, quando você mencionou o Luis Fernando me lembrei de algo que já faz algum tempo quero lhe perguntar.” - “Diga, meu caro.” - “Eu reparei que sempre que você fala de algo importante vem junto à referência sobre quem ou o que lhe ajudou a aprender aquilo. Isso tem alguma razão especial de ser?” 68
- “Com certeza. Eu penso que temos sempre que referir as fontes do nosso conhecimento. De certo modo é uma forma de agradecer o ensinamento recebido e lembrar-se da importância de fazer o conhecimento circular, atingindo cada vez mais pessoas. Muita gente não pensa assim quanto ao conhecimento, talvez a maioria das pessoas. Acha que quanto menos gente souber como fazer algo é melhor para ele que sabe fazer. Em termos lógicos a ideia pode até parecer correta, mas na prática, acaba limitando a obtenção de novos conhecimentos.” - “Como assim?” - “É que quando eu compartilho meus conhecimentos com os outros eles também acabam trazendo suas experiências para a conversa. Se isso não ocorre, dificilmente você volta a conversar com aquela pessoa, a não ser que você goste de ouvir palestra e não de conversar. Quando existe diálogo, ao mesmo tempo em que está ensinando alguma coisa, a pessoa está aprendendo outras.” - “Entendo. Se a pessoa esconde o que sabe, para garantir uma espécie de “reserva de mercado”, a tendência é que fique isolada e estagnada em seu conhecimento.” - “E não é só isso. Para ter sucesso não basta ter o conhecimento. É muito importante ter as oportunidades de utilizar o conhecimento. Afinal, conhecimento que não se aplica e nada são quase a mesma coisa. Acontece que quem não compartilha o que sabe, tem poucas oportunidades de ação, já que seu campo de relacionamento pessoal acaba ficando restrito e quase ninguém sabe do conhecimento que ela tem. Aí outra pessoa, que compartilha o conhecimento, surge e aproveita as oportunidades existentes.” - “Acho que já ouvi falar sobre isso: importância da rede pessoal que é preciso formar para ter sucesso.” - “Pois é, pela troca sincera de ideias e experiências, que são a essência do conhecimento, a gente forma excelentes redes pessoais. E alguns bons amigos também. Além disso, lembrando-se daqueles que ajudaram no seu sucesso, você mostra gratidão a todos que se relacionam com você, de modo que as pessoas estarão sempre encorajadas a participar de algum projeto que você apresente. Elas sabem que por menor que seja a participação no projeto, terão sua parcela de reconhecimento.” - “Muito interessante. Mas às vezes pode parecer que você está fazendo publicidade, especialmente se a referência estiver em um artigo ou em um livro.” 69
- “A diferença é que na publicidade a pessoa recebe para dizer o que lhe pedem. Às vezes nunca experimentou o produto ou até não gosta dele. No meu caso a referência é autêntica, simplesmente decorrente do reconhecimento.” - “Mais uma vez você refere à questão da autenticidade, da sinceridade de ação. Estou percebendo que ser autêntico é algo muito importante na arte da Excelência.” - “Diria que é a base de tudo. Para que seu sucesso seja real você precisa ser o que diz e o que faz. Caso contrário seu sucesso também será uma ilusão.”
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CAPÍTULO 14 Duas semanas se passaram. Paulo seguia trabalhando e estudando, quando surgiu uma notícia muito esperada: o Edital para o concurso de Juiz Federal Substituto da 4ª Região Federal fora publicado. Eram 21 vagas, mais as que surgissem no prazo de validade do concurso, para os Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Como o único pedido de Rosane em relação aos concursos era para que ficassem um pouco mais próximos de Curitiba, Paulo sempre sonhara com uma vaga de Juiz Federal na 4ª Região, considerando que as matérias da jurisdição federal eram as que mais lhe interessavam. Ao receber a notícia Paulo foi imediatamente conversar com João. Precisava contar-lhe a novidade e, ao mesmo tempo, dizer que pretendia fazer o concurso, mesmo que isso fosse óbvio. - “Boa tarde, João, posso entrar?” - “Claro, meu caro amigo. Como estão as coisas?” - “Tudo bem. Acabei de saber que saiu o Edital para o concurso de Juiz Federal aqui da 4ª Região.” - “Que beleza. Esse é o concurso dos seus sonhos, não?” - “Exatamente.” - “E aí, está animado?” - “Bem, animado sim. Mas ao mesmo tempo preocupado. Agora a coisa começa a ficar real. Eu já fiz esse concurso algumas vezes. Em uma delas cheguei até a prova de sentença. Na mais recente fui até a prova oral. Só que agora, com as novas perspectivas que aprendi nesse tempo aqui no escritório, estou mais confiante. Ao mesmo tempo sentindo um pouco a pressão. Fora o fato de que se eu passar terei que deixar o escritório.” - “Fique tranquilo. Sobre o escritório já conversamos antes. Ter você trabalhando aqui comigo é muito bom, mas não é por isso que eu vou torcer contra o seu sucesso. Eu quero o melhor para você.”
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- “Disso eu tenho certeza. Existem pessoas que torcem contra os seus colaboradores só para não ter que encontrar outros. Mas eu sei que esse não é o seu caso. Muito pelo contrário.” - “Então, por isso você não precisa se preocupar comigo. O Celso está trabalhando muito bem junto conosco e se você tiver que sair, vamos conseguir seguir em frente. Teremos de fazer uns ajustes aqui, outros ali, mas não tenho dúvidas que tudo dará certo.” - “Obrigado. Até porque o concurso é longo. São três etapas: prova preliminar, prova escrita e de sentença e prova oral. Então, se eu passar, a posse no cargo só acontece daqui a cerca de um ano, o que significa que no momento em que você mais vai precisar, quando do nascimento da Ana, eu ainda estarei por aqui.” - “É mesmo. Eu tinha me esquecido de como é demorado o processo de seleção de um concurso para juiz. Um ano entre o lançamento de Edital e a posse. É bastante tempo. Dá-lhe disposição para estudar!” - “Com certeza. Precisa de muita determinação. Aliás, eu gostaria justamente de conversar com você sobre minha preparação para esse concurso. Como você acha que tudo isso que estou vivenciando aqui no escritório sobre gerenciamento pode me ajudar no estudo para as provas? Eu já venho estudando regularmente, mas agora, diante da abertura do concurso, penso que preciso montar uma estratégia para chegar à tão almejada aprovação. Pelo menos acho que você faria isso.” - “Opa, já vi que você pegou o espírito da coisa. Realmente, agora que você tem as datas das provas é muito interessante que faça uma programação de estudos. Na verdade acho que você já poderia ter aplicado muito do que está aprendendo aqui no escritório no estudo que estava fazendo. Mas isso não importa agora. O que passou não volta mais. Precisamos nos concentrar no presente e no futuro.” - “Eu já tinha pensado sobre isso. Minha conclusão, aliás, é que muito do que tenho aprendido aqui, senão tudo, tem aplicação não só na preparação para o concurso, mas para o sucesso na vida como um todo.” - “De fato, meu caro. O que temos conversado não é um modelo voltado para fazer as coisas acontecerem especificamente em termos de concurso público. Mas também pode ser aplicado para isso, o que é uma boa notícia para você.” - “Com certeza. E para você, que não pretende fazer concurso, é mais um exemplo prático de aplicabilidade da arte da Excelência. O que lhe parece?” - “É verdade. Mas quem sabe eu não me animo a fazer concurso no futuro?” 72
- “Essa é boa. Você fazendo concurso? Não consigo nem imaginar. Agora, com certeza você seria um ótimo juiz!” - “E quem disse que eu faria concurso para juiz? Só mesmo tendo vocação para seguir essa carreira nos tempos atuais. É muita responsabilidade para uma pessoa só! Ainda sobra espaço para respirar? Sem contar que recentemente o pessoal começou a achar que pode ficar intimidando os juízes, atentando contra suas vidas. Não mesmo. Eu nasci para ser advogado. Então se um dia acabasse fazendo concurso teria que ser para alguma carreira da advocacia pública. Acho que tem mais o meu perfil.” - “Você é mesmo uma figura. Então por favor, Dr. Advogado, queira fazer a gentileza de começar a ajudar-me na tentativa de aplicar aos concursos o que tenho aprendido com você.” - “Pois não, meu caro. O que eu posso dizer sobre isso? Vamos ver. Bem, acho que o primeiro ponto de tudo é que você precisa definir qual o cargo dos seus sonhos. É fundamental que você encontre nessa função coisas que você goste de fazer, já que depois de passar no concurso terá que exercer essa profissão por um bom tempo, talvez durante toda a sua vida profissional. Ao mesmo tempo, sendo algo que você gosta de fazer, ficará mais fácil encontrar motivação para as intermináveis horas de estudo.” - “Certo, João. No meu caso eu já superei essa etapa. Já defini a carreira que quero seguir. E acho que foi interessante também eu ter definido qual ramo da magistratura, já que as matérias para juiz federal, juiz estadual e juiz do trabalho são totalmente distintas. Seria impossível estudar para todos esses concursos ao mesmo tempo.” - “Perfeito. Até porque se você escolhe uma área, como no seu caso a área federal, existe uma série de outros concursos que você pode ir fazendo como degraus, até chegar ao seu objetivo final. Quer dizer, você escolheu advogar e ir estudando até passar exatamente no concurso que queria. Mas poderia também, por exemplo, ingressar no serviço público como servidor da Justiça e ir fazendo uma carreira dentro do Judiciário, até passar no concurso para juiz. Então, ao escolher o direto federal, você concentrou suas forças em uma área específica, o que lhe deu uma grande gama de opções.” - “Entendo, João. Você tem razão nessa sua ponderação. Se no fim das contas o plano principal não der certo, a pessoa tem um plano alternativo. No meu caso o 73
plano alternativo é a advocacia, agora com uma perspectiva mais interessante, desde que comecei a trabalhar com você. No caso de alguém que ingressa como servidor da Justiça, o plano alternativo é fazer carreira como serventuário, o que também é uma boa opção, porque a carreira do Judiciário Federal tem seus atrativos.” - “O fato de você ter um plano alternativo, Paulo, é algo importante também para lhe dar tranquilidade. Imagine se você tivesse agora que fazer o concurso de juiz federal, sem ter nenhuma outra coisa em vista, no caso de não aprovação? Certamente você estaria muito pressionado para passar, o que afetaria significativamente seu psicológico, podendo botar tudo a perder.” - “Isso foi algo em que sempre pensei, desde quando resolvi que queria tentar a carreira da magistratura. Não podia ficar dependendo da aprovação no concurso. E por isso fui advogar. Mas hoje vejo que algumas vezes deixei de lado boas oportunidades na advocacia, por conta da ideia do concurso.” - “Você poderia muito bem ter trabalhado as duas coisas paralelamente. Sua carreira como advogado e seu sonho de ser magistrado. O máximo que iria acontecer era você ter que escolher entre duas ótimas possibilidades para seu futuro, quando da aprovação no concurso.” - “Tem razão. Vejo que atualmente muitas pessoas seguem um caminho mais arriscado. Estão se apegando ao estudo para concursos como profissão, sem nenhum plano alternativo. Mas e se eles nunca passarem em nenhum concurso? O que vão fazer?” - “Eu acredito que com dedicação e esforço uma hora a aprovação vem como recompensa. O que essas pessoas precisam ter é uma boa estratégia para controlar a ansiedade e a pressão psicológica, por estarem dependendo da aprovação no concurso para sua sobrevivência futura. Diria que elas precisam de um planejamento cuidadoso também nessa área da fase pré-aprovação no concurso. Assim, se a pessoa pretende se formar na faculdade e ficar só estudando para concurso, deveria já durante a faculdade definir a carreira desejada e se dedicar intensamente, desde a faculdade, ao estudo preparatório para concurso. Ao mesmo tempo, deveria definir qual a fonte de seu sustento no período pré-aprovação, depois de formada. Sobre isso, se possível, durante a faculdade a pessoa deveria tentar juntar algumas economias para formar um pequeno capital, de modo a ter recursos
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para se manter por um determinado período, sem precisar ficar na dependência total de quem esteja lhe financiando os estudos.” - “Isso é complicado, João. Esse aspecto da dependência financeira de alguém é realmente um elemento que pode trazer um grande problema. Se a pessoa fica dependendo dos pais, há sempre aquela pressão, mesmo que velada, para que o filho se estabeleça. Se a dependência é do cônjuge, pode haver cobranças por só um dos dois estar botando dinheiro em casa. Então diria que é preciso ter essa questão do financiamento dos estudos muito bem resolvida. Eu mesmo optei por ir advogar, enquanto estudava para o concurso de juiz, por não querer ficar na total dependência de meus pais. Não tenho nada a reclamar, tanto que até me casar morei com eles. Mas se não tivesse meu próprio salário, no começo bem minguado, diga-se de passagem, tenho certeza que a cobrança por resultados seria grande. Com a cobrança viria o controle sobre gastos, saídas, estudos, namoradas, enfim, sobre toda a minha vida. E no fim fico pensando qual seria a minha situação hoje, já que até agora não passei no concurso? Solteirão, residindo com os pais?” - “Bem, penso que você já teria ingressado em alguma carreira pública, ainda que não fosse da magistratura, porque iria buscar alternativas de resolver a cobrança de seus pais. De qualquer modo, se a pessoa tem certeza que seu objetivo é o concurso público, uma outra ideia é já durante a faculdade buscar aprovação em um concurso de nível médio, preferencialmente no local onde pretende trabalhar depois de formado. No caso da Justiça Federal, por exemplo, há o cargo de técnico judiciário. Às vezes as pessoas têm uma certa restrição com um cargo assim, porque imaginam que vão ficar só fazendo trabalhos burocráticos, incompatíveis com o alto cargo objeto de seus sonhos. Contudo, esse cargo de nível médio, além de resolver o problema de financiamento dos estudos, traz excelentes oportunidades de aprendizado da prática judiciária, o que é importante para quem pretende alçar voos mais altos.” - “Tem razão. Na época da faculdade até teve um concurso para a Justiça Federal e eu acabei não fazendo, porque achava que não iria acrescentar nada ficar na secretaria carimbando processos. Achava que era muito pouco para um quase formado Bacharel em Direito. Hoje, depois de tanto tempo atuando na Justiça Federal, sei que minha ideia da atividade dos técnicos judiciários estava totalmente equivocada. Inclusive, temos um colega de faculdade que entrou nesse concurso e
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está na Justiça até hoje. Em cerca de dez anos ele fez carreira e é o diretor de uma das secretarias aqui da capital.” - “Excelente lembrança. Inclusive encontrei com ele outro dia. A secretaria que ele dirige é uma das melhores.” - “Agora, João, se a pessoa está mesmo só estudando para concurso e dependendo de financiamento de outra pessoa, não deveria fixar um prazo para ficar apenas estudando?” - “Diria que em qualquer situação a pessoa deveria fixar um prazo para se dedicar aos concursos. Mas se ela depende de outros para financiamento e sua atividade é apenas estudar para concurso, realmente é interessante estabelecer um tempo para aprovação. Isso ajuda a diminuir a pressão de quem está financiando, pois sabe que a situação é transitória, além do que impede que o próprio “concurseiro” se sinta pressionado. Decorrido esse prazo, a pessoa não precisa abandonar o sonho do concurso, mas é importante que comece a trabalhar com alguma outra coisa. Isso vai evitar a perda de sua autoestima, os desgastes com quem está financiando seus estudos e também é uma forma de iniciar o investimento em algum plano alternativo, já que a aprovação no concurso é sempre um evento com prazo incerto. Eu penso que um período de dois a três anos é o ideal. Depois disso é bom iniciar o plano alternativo.” - “Interessante, mas você falou também que, além desse prazo de dois a três anos como “concurseiro profissional”, seria importante pensar sobre fixar um prazo máximo para se dedicar aos concursos. O que você quis dizer com isso?” - “Bem, a gente já conversou que a vida não é feita apenas de realizações profissionais. Você, por exemplo, tem esse sonho da magistratura. Mas já pensou até quando você irá atrás dele? Vai passar o resto de sua vida trabalhando durante o dia como advogado contratado, estudando à noite e tirando férias para ler jurisprudência?” - “Até vir trabalhar com você não tinha pensado sobre isso. Mas agora estou percebendo que ao longo desses dez anos em busca da magistratura, eu abri mão de muito tempo que poderia ter dedicado a outras coisas. Não que o estudo tenha sido em vão, já que estudar nunca é tempo perdido. Mas eu poderia ter estado mais com minha família, viajado mais com a Rosane. Ah, poderia estar trabalhando com você aqui há muito mais tempo, o que teria sido ótimo.”
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- “É justamente isso que eu quero dizer. Estudar para concurso é uma tarefa a longo prazo e solitária, mesmo que você estude em grupo. No final é você consigo mesmo. Quando se é jovem e não se tem nada profissionalmente, a pessoa pode dedicar muitas horas na preparação para concursos. Com o passar do tempo ela, em geral, consegue aprovação em algum cargo que pretende usar como trampolim para o seu objetivo final ou vai consolidando sua carreira no setor privado. Vê sua vida financeira melhorar, casa, tem filhos. E continua estudando para o cargo que era seu sonho lá na juventude. Só que agora, a cada dia de estudo, ela está perdendo um dia com a esposa, um passeio com o filho. Então, a meu ver, chega um ponto em que ela precisará reavaliar os seus planos e pensar: será que ainda vale a pena buscar o passo adiante que ela queria lá no passado e impor todos os ônus desse passo para a família inteira?” - “Estou entendendo o que você quer dizer. Tenho um amigo que hoje é advogado da união. Ele era servidor da Justiça Federal e o plano inicial dele era ser juiz federal. Só que depois de uns dois concursos em que ele não passou para juiz, conseguiu aprovação para a advocacia da união. No começo ele ainda pensou em fazer novos concursos para juiz, mas depois ponderou que no cargo que estava ocupando poderia continuar a morar em Curitiba. Como juiz teria necessariamente que sair da nossa capital. A esposa dele é dentista e precisaria ficar aqui. Os filhos também já estavam estudando e não gostavam nada da ideia de se mudar para o interior. Então, em favor de estar mais próximo da esposa e dos filhos, deixou os concursos de lado e hoje está muito feliz com a atividade que exerce.” - “Pois é. Por isso digo que é importante pensar em um prazo para realizar o sonho. Depois disso, as condições mudam e pode ser mais interessante realizar outros sonhos. Pode ser que o salário não seja todo aquele que se imaginava, mas não é de grandes salários que se faz a felicidade. E às vezes o aumento de salário é só uma ilusão. No caso mesmo desse seu amigo. Considerando só a necessidade de manter duas casas e o custo dos deslocamentos constantes no final de semana para ver a família, parece-me que no fim o salário líquido como advogado da união é superior ao que ganharia como juiz.” - “Tem razão. Por isso mesmo esse concurso que vou fazer agora é importante para mim. Decidi que será o último que tentarei. Se não passar vou aceitar seu convite e ingressar como associado aqui no escritório. E dar asas a outros planos que estão engavetados há tempos.” 77
- “Será um prazer ter você em definitivo aqui no escritório. Mas será melhor se for por uma escolha sua. Então vamos nos concentrar em terminar de definir sua estratégia para a aprovação. Acabamos nos desviando um pouco do assunto. Pelo que vimos você já definiu o cargo que é seu objetivo final, estabeleceu um plano alternativo com a advocacia e centralizou os estudos na área de interesse do cargo pretendido. Então penso que o próximo passo é você mapear seus “dons”, suas habilidades naturais e adquiridas nas diversas disciplinas importantes para o concurso.” - “Como vou fazer isso?” - “Bem, vamos pegar o programa de tudo o que pode ser perguntado para você no concurso e ver as matérias que você já tem um bom domínio e aquelas que você só estuda mesmo por necessidade. Possivelmente as matérias que você já conhece bem são as suas preferidas, constituindo uma habilidade natural. Já as que você não tem tanto conhecimento devem ser aquelas que você não tem uma propensão natural a se interessar.” - “Certo. Acho que não é difícil fazer isso. Por exemplo, eu gosto muito de Direito Constitucional, já li até o tal do Alexy, que todos falam tanto. Mas Direito Civil não me atrai muito. Até hoje só li alguns manuais. Assim eu posso lhe dizer que sou muito melhor em Constitucional do que em Direito Civil. Mas e daí, o que faço com essa informação?” - “A ideia é você ter essa percepção dos seus pontos fortes e dos pontos fracos, para poder investir neles com inteligência. Evidentemente que é muito difícil você ser brilhante em todas as matérias. Mas se você quer passar no concurso, especialmente na prova oral, você precisa ter pelo menos alguns pontos de brilhantismo, para se destacar dos demais candidatos. Ao mesmo tempo, você precisa ser ao menos de razoável a bom no restante do programa do concurso para conseguir passar pela prova objetiva, que é a primeira eliminatória, e pela prova escrita e de sentença.” - “Acho que estou entendendo o seu raciocínio. Você quer identificar meus pontos fortes, aqueles que tenho maior aptidão para estudar, e trabalhar neles para que eu seja excelente. Nos demais, que não são propriamente o que mais gosto de estudar, você está propondo que eu devo buscar estar na média.” - “Exatamente, meu caro Paulo. Parece-me que com isso você terá conhecimento suficiente para poder começar a exercer o cargo de juiz federal. 78
Excelência nas matérias que você tem condições de atingir a excelência e bom conhecimento naquelas matérias que lhe são mais difíceis de estudar com motivação.” - “Interessante essa sua ideia. Eu sempre pensava que deveria buscar um equilíbrio, com tudo mais ou menos no mesmo nível. Mas pensando bem, você tem razão. Quando chega a prova oral só tem gente muito boa na disputa. Todos vão estar com um bom nível de conhecimento. Se eu não tiver um diferencial para surpreender a banca, a decisão a meu favor fica mais complicada. Aí tudo pode acontecer.” - “Perfeito. Você está entendendo bem a questão. É preciso investir nos pontos fortes, aproveitando a motivação natural que você tem para estudá-los, para neles se tornar imbatível. E nos pontos fracos, para não serem o que acabam por lhe derrubar. Agora, é claro que cada concurso tem suas matérias chaves, dependendo da área de atuação. Se elas não são o seu ponto forte você tem duas opções: escolhe outra carreira em que as matérias que lhe agradam sejam as mais importantes ou trabalha com dedicação dobrada para transformar um ponto fraco em brilhantismo. Tudo é uma questão de escolha e estratégia. Por exemplo, se você gosta muito de Direito do Trabalho, melhor procurar a carreira de juiz do trabalho. Se Direito Civil fosse o seu forte, a Justiça Estadual é um caminho mais interessante. Já na Justiça Federal, matérias de Direito Público são essenciais.” - “Entendo. Você está aplicando aqui a sua teoria sobre os “dons”, que a gente conversou no dia em que me propôs vir trabalhar com você. Se a pessoa não tem a habilidade é capaz de adquirí-la, mas precisará de um esforço extra.” - “Ou pode procurar uma coisa para fazer que esteja mais de acordo com suas aptidões naturais, o que inclusive pode representar uma maior satisfação com a atividade a ser exercida após o concurso. Enfim, tudo vai depender do que a pessoa realmente quer.” - “Interessante, João. Novamente entra em cena a importância da certeza sobre o cargo que se quer ocupar.” - “Exato. Você precisa ter certeza que aquele cargo público almejado é realmente o que você quer, de forma que esteja cem por cento motivado a fazer tudo o que esteja a seu alcance, e um pouco mais, para atingir seu objetivo. Caso contrário a chance de você se desviar de seu planejamento é grande. Tudo pode se transformar em razões para não estudar. Isso significa também que você deve buscar o cargo 79
pelo que ele lhe inspira e não pelo salário. A não ser que você seja daqueles que têm no dinheiro sua principal motivação de vida. Mas aí é melhor não fazer concurso, porque não se fica milionário no serviço público.” - “Você tem razão. Sem uma motivação maior é muito difícil estudar para os concursos. Sendo sincero, ficar horas, dias, meses e anos na frente dos livros é bem mais difícil do que sair para dar uma volta no Parque Barigüi.” - “Não é que você deixará de passear no Parque Barigüi, meu caro. Mas isso terá de fazer parte da sua vida, no planejamento de horas de lazer. Estudar para concursos é um projeto a longo prazo. Então você não tem como simplesmente parar sua vida por dois, três ou mais anos, voltando a vivê-la só depois da aprovação. Se fosse algo de um fim de semana até daria para fazer uma imersão nos estudos, mas não é o caso. Estudar de forma desenfreada até pode ser que no começo pareça positivo. Mas com o tempo vai ser terrível para sua capacidade de aprendizado. Você vai estudar e não vai aprender nada. Lembra que eu passei por isso no trabalho, até que dei uma diminuída no ritmo e minha produtividade aumentou?” - “Claro que me lembro. As folgas de sábado à tarde e domingo, a realização de outras atividades não relacionadas com a área profissional, tudo lhe ajudou.” - “Isso mesmo, Paulo. A ideia é que de vez em quando é preciso esvaziar a cabeça, para que novos conhecimentos possam entrar. Portanto o lazer deve estar na sua estratégia e no seu planejamento de estudo.” - “Ok, mas considerando que eu já tenho que trabalhar aqui no escritório, onde é que vou arrumar tempo para depois do estudo ainda ter algum lazer?” - “Aí é uma questão de gerenciamento de tempo. Você pode começar encontrando e eliminando ou diminuindo atividades que lhe façam efetivamente perder tempo, que são aquelas atividades em que o tempo passa, mas praticamente nenhum conhecimento é acrescentado ou nenhum estresse é aliviado.” - “Já sei, preciso dormir menos!” - “Não necessariamente. Em regra oito horas diárias de sono são importantes para a pessoa ter um bom desempenho, especialmente naquelas atividades que exigem esforço mental. Portanto só pense em cortar horas de sono se você está dormindo mais que oito horas por dia ou em situações de emergência. No mais é bom manter o equilíbrio do sono.”
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- “Certo, no meu caso não estou dormindo demais. Acho que posso é diminuir um pouco da televisão.” - “Um pouco, ou talvez muito. Videogame e internet, inclusive a de celular, a mesma coisa. Não quer dizer que você não vai mais assistir televisão, navegar na internet ou jogar videogame, se é algo que você gosta. Mas fará isso de forma mais limitada, só durante o tempo em que isso seja útil para obter algum conhecimento ou para diminuir o estresse. Por exemplo, você pode reduzir horas de televisão deixando de lado telejornais, aquelas séries americanas que passam na televisão a cabo, novelas e os infindáveis jogos de futebol. Nesse caso você pode escolher assistir só um telejornal ou até ler um jornal impresso, que lhe permite ser mais seletivo, traz mais informações e é bem mais relaxante. Quanto às séries americanas, penso que você não precisa assistir todas. Quem sabe escolhe uma que você gosta mais, só para descontrair. Novela, se você for um fã desse gênero, talvez assistir a das sete, enquanto janta. E futebol, procure se concentrar no Coritiba, que é o time que realmente importa.” - “Estou entendendo sua proposta. Racionalizar o tempo na frente da televisão e direcioná-lo para o estudo e para outras fontes de lazer. Vou tentar gravar meus programas favoritos, aí posso assistir na hora que seja mais adequada, dentro do meu planejamento. Já com a internet certamente é fácil ser mais seletivo. A gente perde muito tempo navegando por diversos sites com as mesmas notícias, lendo emails repetitivos com aquelas mensagens em forma de corrente, interagindo nas redes sociais e, no caso dos concursos, discutindo assuntos às vezes irrelevantes nos fóruns digitais.” - “É por aí. Você pode ganhar muito tempo sendo mais disciplinado no uso da televisão e do computador. Essa mesma ideia vale para o videogame, para quem gosta. É um tipo de lazer que, por um período curto, é interessante. Só que é comum a pessoa ficar horas jogando. O problema é que a partir de um ponto o jogo já não elimina nada do estresse. Joga-se apenas para vencer mais uma fase, para atingir o objetivo. Melhor concentrar forças em atingir o objetivo da vida real, destinando um tempo que era do videogame para estudos e uma caminhada ao ar livre.” - “De fato, João, vejo que dá para conseguir um bom tempo extra com essas medidas. Mas e se isso não for suficiente?”
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- “Olha, mesmo que isso seja suficiente, será interessante que você procure formas de aumentar sua produtividade. Repense seu trabalho, suas rotinas em casa, enfim, tudo o que você faz no dia a dia, e procure encontrar formas de fazer as mesmas coisas com melhor eficiência, de uma maneira mais simples e rápida. Certamente você vai encontrar pontos onde pode melhorar e aí terá mais tempo livre. Um pouco de organização, definição de horários para as atividades e rotina ajudam muito para quem precisa de um dia mais longo.” - “Sobre isso eu estava justamente pensando em acordar meia hora mais cedo, não demorar tanto para levantar, ser um pouco mais rápido no banho e assim conseguir chegar uma hora antes no escritório. Dessa forma já teria um tempinho para estudar antes de começar a trabalhar. Depois, pensei em reduzir um pouco o intervalo do almoço e antes de ir almoçar estudar mais uma meia horinha. Se eu somar esse tempo com as duas horas que estudo quando chego em casa do escritório, depois do jantar, já dá um bom tempo de estudos diários. Daí posso estudar sábado pela manhã até o meio-dia e ter o sábado à tarde e domingo o dia todo para esvaziar a cabeça, como você diz.” - “Acho que são excelentes dicas, Paulo. Você ainda pode ter algumas horas extras de estudo quando o trabalho no escritório estiver mais tranquilo, dedicando-se à leitura de algum artigo de interesse, ao invés de prolongar o café. Isso, aliás, é bom até para o seu trabalho no escritório.” - “Mas você acha que três horas e meia de estudo de segunda a sexta e mais três a quatro horas no sábado pela manhã é suficiente?” - “Isso é muito relativo. Vai depender novamente das características de cada um. Mas no seu caso a questão é que, trabalhando nos processos, você também está estudando, ainda que seja um estudo de casos concretos. De qualquer modo, mais importante que horas e horas infindáveis de estudo é a constância desse estudo, a regularidade a longo prazo.” - “Como assim?” - “Veja bem. Algumas pessoas elaboram um plano de estudos quase impossível de ser cumprido. Estabelecem metas de leitura de um livro por dia, dez horas de estudo diário, dedicação integral ao objetivo de aprovação no concurso, sem tempo para mais nada. Então começam a cumprir o planejamento e na primeira semana a coisa até funciona. Na segunda semana a situação começa a ficar um pouco mais difícil, o cansaço aparece e logo vem o desânimo, o não cumprimento das metas 82
impossíveis. A consequência: uma parada de duas semanas para descansar e para replanejamento. No final das contas, em um mês essa pessoa terá estudado no máximo cerca de cem horas, pois dificilmente conseguiu ficar às dez horas por dia na frente dos livros, conforme programado. Só que o desgaste é bem grande. Já em um planejamento mais factível, como o seu, temos três horas e meia por dia e mais quatro no sábado. Se você tiver regularidade e estudar todas as horas propostas, o que é possível, terá cerca de noventa horas de estudo no mês. Só que com muito mais consistência que a pessoa que tentou ficar dez horas por dia estudando. É importante lembrar que depois de duas horas seguidas de estudo você já não tem o mesmo rendimento, o que torna importante as pausas e alternância com outras atividades.” - “Agora fiquei surpreso. Eu nunca tinha pensado que a regularidade era um elemento tão importante no estudo. Mas isso é mesmo lógico, considerando que aprovação em concurso é investimento a longo prazo. Assim, mais vale estudar bem quatro horas por dia de forma regular, que dez de forma irregular. Impressionante. No meu caso, para ser realista, se eu admitir uma quebra por imprevistos de dez por cento das horas planejadas de estudo, ainda terei cerca de oitenta horas de estudo por mês, sem contar o aprendizado com o trabalho. Acho que é muito bom.” - “Também acho. Se você só estivesse estudando para concurso ou não tivesse conhecimento da matéria, eu lhe diria que uma opção para não ficar só estudando em casa era procurar um bom curso preparatório. Mas no seu caso, nas três horas e meia que lhe sobram por dia para estudar, entre fazer um curso ou ficar em casa estudando, eu penso que é melhor se concentrar no estudo em casa. Como você já domina a matéria, no cursinho veria muita coisa repetida e perderia muito do seu pouco tempo disponível vendo matéria que você já conhece. Além do que, fazer só o cursinho não adianta. É preciso estudar a matéria em casa. A regra de ouro da aprovação em qualquer concurso segue três princípios: estudar, estudar e estudar. Então não adianta só fazer o cursinho. Eventualmente você pode fazer algum curso mais intensivo, de alguma matéria que você domine pouco ou como uma revisão da matéria mais perto da prova. Isso até pode ser interessante. Agora, se você estivesse só estudando, seria diferente. O cursinho lhe daria a possibilidade de variar de ares. Estudo em casa em um turno, por três a quatro horas, e aulas em outro turno. É uma forma de conseguir manter a regularidade de estudo diário, para quem está só estudando. Mas a pessoa tem que ver se o cursinho está lhe trazendo 83
algo de novo. Caso contrário pode ser até melhor estudar um pouco mais em casa e ter mais tempo livre para alguma atividade multidisciplinar.” - “Lá vem você com a multidisciplinaridade. Você acha que até para prestar concurso ela é importante?” - “Com certeza. Você lembra como o conhecimento de engenharia me ajudou naquela audiência sobre os limites para o empreendimento do nosso cliente? Agora imagine que você está em uma prova escrita, de sentença ou oral. Muitos casos concretos são colocados ali em forma de questão. Se você tem um conhecimento multidisciplinar, pode dar um brilho especial as suas respostas. Já pensou em uma questão ambiental, você apresentar o conhecimento jurídico exigido e ainda fazer algumas considerações sobre a importância técnica daquela proteção jurídica ao meio ambiente? Certamente vai dar ao examinador a sensação de que você sabe o que está falando.” - “Não tinha pensado nisso, mas você tem razão. A prova do concurso não deixa de ser um lugar em que a gente tem que mostrar tudo o que sabe e mais um pouco. Então, se eu mostro que não só entendo de Direito Ambiental, mas também de Meio Ambiente, que é o objeto de proteção desse ramo do Direito, certamente vou convencer o examinador que sou um bom candidato à vaga que estão querendo preencher.” - “Perfeito. Além do que, ao buscar o conhecimento multidisciplinar, você terá novas visões do mundo, as quais lhe ajudarão a refletir e ter cada vez mais bom senso. Por incrível que pareça, muitas questões de concurso exigem acima de tudo bom senso para serem respondidas corretamente.” - “Certo, João. Sem contar que ao buscar conhecimento de outras áreas, inclusive conhecimentos culturais, eu vou realizar atividades que ajudam a afastar o estresse.” - “Claro. Isso é muito importante. Como eu já disse, você não pode parar sua vida por causa do concurso. Ainda que ele seja prioridade, você precisa cuidar das outras partes importantes dela, como a família, os amigos, a esposa, os filhos. Diria que você não pode viver na política do “serei feliz quando” passar no concurso. É fundamental para a aprovação no concurso que você não coloque esse objetivo como a razão de sua felicidade. Isso, além de não lhe ajudar em nada, vai lhe trazer ansiedade antes da aprovação, e pode gerar frustração depois, já que todo trabalho, por melhor que seja, sempre tem suas partes chatas.” 84
- “João, o que eu vejo de mais preocupante nessa questão da política do “serei feliz quando”, em relação à aprovação no concurso, é que muitas pessoas pensam que quando passarem no concurso estarão com “a vida ganha”. Agora, no meu modo de ver, depois da aprovação ainda será preciso “ganhar a vida” todos os dias, realizando o trabalho para o qual se foi contratado. Já pensou se daí, depois de todo o esforço, a pessoa descobre que não era bem aquilo que queria para sua vida?” - “Por isso é importante, como já lhe disse, que antes de buscar o concurso a pessoa olhe para todos os aspectos do cargo desejado. Ela precisa ver a parte boa, mas não pode esquecer de examinar com cuidado a parte ruim. Por exemplo, para o juiz, é evidente que a pessoa terá que mudar de cidade de tempos em tempos, para fazer carreira, ter uma série de responsabilidades e restrições pessoais, bem como deixar a sua cidade atual. Então se ela não quer isso para sua vida, melhor nem começar a estudar para o concurso de juiz. Porque depois de aprovada ela provavelmente vai assumir o cargo, já que não deixará todo o esforço se perder. E só então perceberá que não era bem isso que sonhava. Mas uma vez no cargo juiz, quem seria “louco” de pedir exoneração, por não se sentir feliz na função?” - “Seria uma decisão muito difícil. A estabilidade do cargo público também traz uma certa perda de liberdade, já que a pessoa, mesmo infeliz com o serviço, terá a tendência de continuar no trabalho pela segurança que o cargo dá e para não perder todo o esforço que fez para ser aprovada no concurso.” - “Pois é, Paulo. Por isso é importante considerar as vantagens e desvantagens antes de ser aprovado. Agora, voltando um pouco o foco para o seu planejamento, eu estava aqui pensando sobre métodos de estudo. Como você estuda para o concurso?” - “Basicamente eu pego o programa e vou estudando cada item, em dois ou três autores de renome. Para não ficar muito monótono eu estudo um tema de uma matéria, depois mudo para outra. Por quê? Você acha que eu poderia fazer alguma coisa diferente?” - “Eu não sei exatamente. Tendo como premissa que as pessoas são bastante diferentes, com configurações biopsicossociais bem heterogêneas, é praticamente impossível afirmar que exista uma forma ideal de estudar. No final cada um tem seu tempo e a sua forma de aprender. Mas é claro que algumas regras básicas sobre o ambiente de estudo, rotina e planejamento valem para todos. Também analisar a
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experiência de sucesso dos outros sempre pode ajudar a encontrar melhorias para o seu método de estudo.” - “Entendo o que você quer dizer. Isso me lembra de uma vez que uma amiga pediu para eu montar um plano de estudos para a filha dela, que queria fazer um concurso para o INSS. Eu peguei o programa, separei os itens das disciplinas e montei uma agenda, indicando exatamente o que ela deveria estudar em cada dia, de forma a chegar no dia do concurso com toda a matéria vista.” - “Uma boa ideia. Deu certo?” - “Deu nada. Ela desistiu do meu plano no segundo dia, porque não conseguia ter o ritmo de leitura que seria exigido para cumprir o planejamento feito.” - “Pois é. Por isso é difícil dizer qual a melhor forma de estudo. Tudo vai depender das habilidades do estudante. Por exemplo, no caso que você relatou, se a estudante tivesse a capacidade de leitura de cerca de trinta páginas por hora, seria possível estabelecer que com vinte horas de estudo por semana ela conseguiria ler um livro de seiscentas páginas. Mas se ela só lê dez, sua capacidade de estudo fica reduzida a duzentas páginas. Então o planejamento precisa ser feito de acordo com as habilidades de cada um.” - “Estou vendo que até para estudar a pessoa precisa desenvolver habilidades. Eu nunca tive a curiosidade de definir quantas páginas leio por hora, mas acho que devem ser umas trinta.” - “Não é curiosidade, meu caro. Você precisa saber qual a sua capacidade de leitura para montar o seu planejamento de estudo. Se você só lê dez páginas por hora, seu ritmo de estudo será um. Se lê trinta, compreendendo o conteúdo, seu ritmo será outro.” - “Então acho que vou fazer um curso de leitura dinâmica, para aprimorar minha técnica de leitura.” - “Eu tenho minhas dúvidas se a leitura dinâmica vai ajudar muito na preparação para concurso. A leitura dinâmica lhe dá uma visão geral do texto, mas os detalhes, que via de regra é aquilo que você ainda não sabe, podem passar sem serem percebidos. Mas pode ajudar no estudo de uma jurisprudência ou de algum artigo, em que muita coisa seja repetição do que você já sabe. Quando você chegar ao ponto que lhe interessa de verdade, você faria a leitura mais atenta. Só que há o risco de você não perceber algo que lhe interessa.” - “Certo, mas então como eu posso melhorar meu ritmo de leitura?” 86
- “Olha, o melhor jeito que conheço é lendo. Quanto mais você exercitar a leitura, melhor você ficará nela. Lembra quando você entrou na escola e aprendeu a ler? Você lia muito devagar. Depois foi melhorando e hoje lê com mais rapidez. A prática vai trazendo o aprimoramento. Agora, tem algumas coisas que fazem as pessoas lerem mais devagar. Por exemplo, tem gente que lê em voz alta, achando que vai fixar melhor. Só que isso faz a leitura ficar bem mais lenta e não aumenta necessariamente a fixação do conteúdo. Fora o risco de ficar com calo na voz. Outras pessoas eliminam a fala, mas leem como se dentro de sua cabeça estivessem falando para si mesmo. É mais rápido que ler em voz alta, mas ainda toma mais tempo do que a leitura em que a compreensão não está vinculada à voz mental.” - “Mas é difícil ler sem qualquer voz interna ajudando. Você consegue isso?” - “Olha, eu não eliminei totalmente a voz. Mas é uma voz que já fala bem rapidinho, às vezes até pulando palavras. Isso já é bem positivo. O maior problema é quando a voz da leitura interna vai no ritmo de uma fala externa. Aí a leitura fica demorada.” - “Entendo. Agora, além do tempo de leitura, percebo que eu demoro um pouco para vencer as etapas do estudo porque fico preocupado em fixar todo o conteúdo de uma vez. Daí faço resumos, grifo o texto, copio frases. Será que isso ajuda?” - “Do ponto de vista de fixar aquele conteúdo específico ajuda. Só que você corre o risco de só terminar de ver todas as matérias para o concurso muito depois da prova realizada. Ou, se conseguir estudar tudo, quando chegar no final já esqueceu o que viu no começo.” - “Tem razão. Mas então como fazer para fixar o conteúdo sem perder tanto tempo?” - “Uma vez li um artigo que dizia que para você fixar o conteúdo de um texto precisa fazer sua leitura por três vezes. Na primeira vez você deve fazer a leitura de forma despreocupada, sem anotações ou voltar na leitura em partes que acha importantes. Enfim, nessa primeira leitura seu objetivo é ter uma visão geral do texto. Na segunda leitura você deve novamente ler todo o texto e fazer algum destaque nas partes que entender mais importantes. Nesse momento você ainda não vai se preocupar em fixar essas partes importantes. Deve apenas fazer uma chave do lado do texto e escrever alguma referência rápida que lhe dê a ideia do que se trata. Grifar é algo que deve ser usado só naquilo que é muito relevante, já 87
que toma muito tempo na leitura. Por fim, na terceira leitura você será mais dinâmico no texto em geral e vai se concentrar em fixar os pontos importantes que destacou.” - “Bem interessante essa ideia. A primeira leitura será bem agradável e me dará algum conhecimento geral. A segunda me fará fixar o conhecimento geral e preparar a fixação dos pontos importantes. A terceira, que me parece uma leitura bem mais rápida, determinará a fixação das partes destacadas do texto. Só tem um problema: como é que vou estudar três vezes cada texto se mal consigo ler uma vez?” - “Boa pergunta. Não sei se tenho a resposta para ela. Mas tenho uma sugestão, que de repente vale a pena ser pensada. Você disse que para cada ponto do programa lê dois ou três autores renomados, certo?” - “Correto. Acho importante para não ficar muito centralizado na visão de um autor só.” - “A ideia de não ficar restrito a uma visão é boa, Paulo. Mas a questão é: você está conseguindo fixar a posição de cada um desses autores?” - “Nem sempre. Às vezes até confundo quem disse o quê.” - “Pois é. Como você já tem um bom conhecimento jurídico, minha dica é que, ao invés de estudar três autores por matéria, você se concentre apenas em um, de preferência naquele que escreve melhor, tem bom conteúdo, refere posições divergentes, cita jurisprudência e o mais importante: é conciso.” - “Entendi. Aí posso fazer a leitura desse livro por três vezes e vou ter uma fixação maior de conteúdo que na leitura de três autores diferentes sobre o mesmo assunto.” - “Exatamente. Inclusive, com a proximidade concurso, você pode fazer a primeira leitura para a prova preliminar, a segunda com vistas à prova escrita e a terceira para a prova oral. Certamente será uma forma interessante de você melhorar a cada etapa do concurso.” - “É uma boa ideia. Mas e como eu vou fazer para não deixar de saber a visão de outros autores?” - “Você vai complementar seu estudo com a leitura de alguma jurisprudência e com artigos específicos de outros autores, principalmente os que façam parte da banca do concurso, sobre temas mais atuais que possam despertar o interesse dos examinadores.”
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- “Excelente. Lendo os informativos do STF, do STJ, do TRF da 4ª Região e alguns artigos atuais terei um bom estudo complementar. Mais alguma sugestão sobre isso?” - “Tenho sim, se me permitir. Você disse que separa a matéria por pontos e vai estudando cada um deles, alternando matérias para não ficar cansativo.” - “Isso mesmo. Você faria diferente?” - “Veja bem, durante a faculdade minha experiência sempre foi de estudar de forma segmentada, como você faz, até porque a gente não vê toda a matéria de uma vez. Vai aprendendo a cada ano um pouquinho. Depois da faculdade, e agora mais recentemente, com a minha ideia de ler todo livro que compro ou ganho, eu comecei a ler os livros inteiros, o que me fez ter uma visão mais ampla de seu conteúdo. Então eu fico pensando se não seria mais adequado você fazer um plano de estudos em que, a cada uma ou duas semanas, conforme a complexidade da matéria, esteja totalmente imerso em uma disciplina específica. Por exemplo, você pega o livro que selecionou daquela matéria e faz a leitura integral em uma ou duas semanas, complementando com a jurisprudência, artigos e algum texto de lei que seja relevante. Na sequência passa para outra matéria.” - “Isso pode ser interessante. Algumas pessoas fazem imersão nos Estados Unidos para aprender inglês e dá resultado. Considerando o meu ritmo de leitura, acho que a cada mês eu consigo ler os livros de três matérias. Assim, até o concurso vou estar bem preparado.” - “Com a vantagem de ter uma visão mais sistêmica de cada disciplina.” - “Muito bom. Preciso lhe agradecer por todas essas orientações da arte da Excelência aplicadas ao concurso. Realmente o que você me disse hoje está totalmente relacionado ao que vivenciei nesse período no escritório. Por essa razão vejo que suas ponderações são pertinentes.” - “Como você bem disse são ponderações, o que significa que partem da minha percepção das coisas. Caberá a você adequá-las à sua realidade pessoal. Mas gostaria de lhe dizer ainda mais três coisas.” - “Eu ouvirei com muito prazer.” - “Primeiro, não se preocupe com os outros candidatos. Como quase tudo na vida, o desafio de aprovação no concurso é consigo mesmo. Se você for bem na prova vai passar. Segundo, tenha paciência consigo mesmo e com as pessoas que estão à sua volta, torcendo pela sua aprovação. A aprovação no concurso, como 89
muitas coisas na vida, é também um exercício de paciência. Por fim, tenha fé em você mesmo e em Deus.” - Novamente lhe agradeço. Vou aproveitar e pedir para minha mãe incluir minha aprovação nas novenas dela. Conheci certa vez uma pessoa que a mãe fazia novena e pedia pela aprovação do filho nos concursos. Claro que o filho estudou bastante, mas o incrível é que ele passou em todos os concursos que fez naquele ano. Juiz Federal, Procurador da República, Advocacia da União, Procurador da Fazenda Nacional, Procurador do INSS, Analista Judiciário do Tribunal Regional do Trabalho. Inclusive, no concurso de Procurador da Fazenda Nacional ele havia ficado de fora da segunda fase por uma questão objetiva. Não é que quase três meses depois, sem recurso nem nada, uma questão teve o resultado alterado de ofício pela Procuradoria e ele acabou passando no concurso? Já viu uma coisa dessas?” - “Estou achando que é mesmo uma boa ideia sua mãe incluir algum pedido em seu favor nas novenas. Mas não adianta só rezar. Você vai precisar estudar também! Afinal, deve ter mais gente na fila dos pedidos de aprovação em concurso do que para ganhar na loteria acumulada.” - “Com certeza. Vou fazer a minha parte.”
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CAPÍTULO 15 Os dias iam passando e o concurso se aproximando. Paulo seguia rigorosamente sua rotina de trabalho e estudos. E no domingo ainda tinha o dia de folga para estar mais próximo da família e de Rosane. Nessa reta final de estudos, o ritmo era um pouco mais intenso, mas estava conseguindo manter algum tempo para relaxar, como João havia dito. Isso estava mesmo sendo importante, dando ânimo para cada nova semana de estudos. No escritório, estavam encerrando uma semana muito especial. Finalmente acontecera o curso com o consultor contratado por João. Havia feito o MBTI e agora entendia bem melhor tudo o que João tinha lhe explicado sobre os tipos psicológicos e sobre a complexidade psíquica do ser humano. Aproveitando que era sexta-feira, meio da tarde, Paulo convidou João para tomarem um café, na cafeteria da esquina do escritório. Sair um pouco do ambiente de trabalho era necessário depois de uma semana bem cansativa. - “Claro que eu aceito, Paulo. Vamos dar uma pausa para o café sim. Só um minuto que eu já vou.” – respondeu João. Na cafeteria, enquanto João tomava um cappuccino. acompanhado de um belo pedaço de torta Dois Amores, Paulo aproveitou para comentar: - “Sabe, João, eu tenho analisado tudo o que aprendi com você nesses últimos tempos e fiquei curioso, porque do jeito que você fala parece que as coisas sempre dão certas para você.” - “Meu caro amigo, infelizmente não é bem assim. Mesmo tendo estratégia, procurando fazer tudo da melhor maneira possível, às vezes as coisas não saem como o esperado. Eu prefiro não dizer que deu errado, porque sempre quando não se é vitorioso, alguma coisa positiva pode ser alcançada. Tento ser otimista, aprender com os erros e seguir em frente. Afinal, não adianta nada ficar remoendo o passado.” - “Certo, mas concretamente eu não me lembro de algo que tenha dado errado para você.” 91
- “Justamente porque mesmo no erro eu procuro aprendizado e não fico lamentando o que passou, como muitas pessoas fazem. Em relação a essas pessoas, você vai se lembrar facilmente das agruras que passaram. Mas que vantagem elas levam nisso? Na verdade só terão desvantagem. Além de não conseguirem seguir em frente, superando os erros, acabam sendo vistas como pessoas sem sucesso. Particularmente eu acho bem mais interessante valorizar o que tem dado certo em minha vida.” - “Ao ponto de até o que deu errado se tornar algo positivo?” - “Exato. Por exemplo, você lembra-se daquele apartamento na praia que eu comprei na planta? Uma vista maravilhosa do mar, todo personalizado com aquele casal de arquitetos que eu gosto, o Raphael e a Keidy?” - “Claro que me lembro. Você falou tanto dele quando comprou. Depois, quando ficou pronto, até fui com a Rosane passar um final de semana lá com vocês. O que aconteceu com ele?” - “Pois é, depois de tanto cuidado na escolha, pesquisa de preços, análise das condições financeiras e técnicas da construtora e acompanhamento da obra em cada detalhe, não é que quando deu um temporal na praia a calha do telhado não suportou a quantidade de água e transbordou, entrando água pelo teto do apartamento e molhando um monte de coisas?” - “Você até comentou alguma coisa disso comigo na época. Mas o que houve depois? A construtora não tinha consertado tudo?” - “Consertou o telhado, dobrou a vazão da calha, impermeabilizou a laje para evitar novos alagamentos e pagou todos os prejuízos. Nesse ponto valeu a pena ter escolhido uma construtora confiável. Só que depois daquilo eu não me senti mais confortável no apartamento. A cada chuva precisava ver o telhado. Ficava em dúvida sobre a eficiência da impermeabilização. Além disso, com a altura, pegava muito vento no apartamento e não me adaptei a isso. Enfim, acho que perdi a confiança no apartamento. Se estava aqui e chovia, já ficava imaginando se não iria entrar água lá. Resultado: sentei com a construtora e fiz um acordo. Devolvi o apartamento em troca do que tinha gasto atualizado.” - “Bem, João, do ponto de vista jurídico você poderia ter ganhado algo mais, como danos morais e lucros cessantes, pela valorização do imóvel. Mas do ponto de vista financeiro, e principalmente de resolver o problema, até que foi uma boa solução.” 92
- “Só que do ponto de vista de ter o apartamento na praia, como sonhado e idealizado, não foi nada bom! Quer dizer, as coisas não aconteceram como planejado.” - “É verdade. Mesmo assim você não dá destaque para isso na sua vida. Só fico com uma dúvida: em um caso como esse, onde é que você encontra algo positivo, algum aprendizado?” - “Acho que primeiro de tudo aprendi que devo pensar dez vezes antes de comprar outro apartamento que seja no último andar. Verificar bem o telhado, a altura, se a construtora já está fazendo uma laje impermeabilizada e com escoamento da água por baixo do telhado, para evitar infiltrações no apartamento em caso de algum acidente. Enfim, providências práticas desse tipo.” - “Certo, mas e para além disso?” - “O que eu posso lhe dizer, meu caro, é que essa experiência com o apartamento da praia me fez perceber que as coisas materiais vêm e vão, mas as pessoas ficam. Então, ao me deparar com um problema que estava sendo causado por um bem material, era possível ter flexibilidade para me desfazer do bem e deixar para outro momento o investimento na praia. Em primeiro lugar precisava me preocupar com o bem-estar pessoal. Agora, se o problema não é com um bem material, e sim com uma pessoa, aí é diferente. Nesse caso a flexibilidade precisa ser no sentido de tentar entender o outro e procurar encontrar outras formas de abordagem, que permitam o sucesso do relacionamento. Claro que se o relacionamento é mais íntimo, como de marido e mulher, qualquer abordagem terá de ser no sentido de se conseguir fazer com que a vida conjugal seja boa. Mas se é uma relação profissional que apresenta dificuldades, aí é preciso ser flexível para achar abordagens que tornem pelo menos útil e amistoso o relacionamento.” - “Acho que de certa forma você percebeu que precisava mudar de planos, sob risco de, ao insistir no que não estava dando certo, ver a situação ficar cada vez mais complicada.” - “Exatamente. Não propriamente em relação ao imóvel, que a construtora garantiu ter resolvido o problema, mas em relação à minha satisfação em estar no local, que acabou sendo afetada por esse incômodo. Isso porque como fiquei inseguro com relação ao imóvel, estava sempre pensando se no futuro ele não poderia voltar a apresentar o mesmo problema.”
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- “Certo. E como advogado, já antecipou que se isso acontecesse podia ser que não houvesse mais garantia da construtora, sendo que vender o imóvel para frente não afastaria sua responsabilidade civil.” - “Mais ou menos por aí. Coisas mesmo só de quem está no meio jurídico para entender. Mas de fato, do ponto de vista jurídico, concluí que minha única opção segura era devolver o imóvel para a construtora naquele momento, para ela dar garantia direta ao eventual novo proprietário.” - “Agora, João, com tudo isso você não fica meio desanimado em comprar um outro apartamento na praia, talvez com medo da cena se repetir?” - “Olha, Paulo, acho que é muito importante a gente perceber que os erros não podem nos fazer ter medo de arriscar, de inovar e até mesmo de tentar de novo. O medo é um dos grandes responsáveis pelo insucesso. Mas eu pergunto: se por receio de fracassar a pessoa nem chega a tentar, que resultado vai obter?” - “Estou entendendo seu raciocínio. A pessoa vai continuar no exato lugar onde se encontra.”. - “Pois é. Só pode ser vitorioso aquele que se lança a buscar o resultado. E para isso não se pode ter medo. Isso não significa que você não deva ponderar os riscos e tomar todas as medidas para evitar que os erros aconteçam. Mas vai ter que assumir algum risco para ir além de onde está hoje. E quando o resultado não for o esperado, terá de aproveitar a experiência adquirida e tentar novamente, até conseguir o que pretende. Ou eventualmente até concluir que seja a hora de mudar de planos e buscar outros objetivos.” objet ivos.” - “Acho que isso se aplica perfeitamente aos concursos públicos. É preciso ter coragem para prosseguir, para estudar cada vez mais até conseguir a aprovação. Ou, como já conversamos, ver que o cenário mudou e existem outras opções melhores.” - “É isso aí. Aplica-se aos concursos e a tudo na vida. Já imaginou o que seria do mundo se todos os cientistas desistissem de suas pesquisas no primeiro resultado negativo?” - “Entendo. E você teve algum outro benefício dessa sua experiência, que já nem sei dizer se pode ser rotulada de desfavorável?” - “Certamente foi desfavorável. Mas eu tenho tentado extrair o que posso de positivo dela. Por exemplo, com toda a preocupação relativa a esse assunto, acabei tendo um final de ano e os poucos dias de férias bem conturbados. Praticamente 94
não descansei. Então quando voltei para Curitiba estava me sentindo meio cansado fisicamente, em decorrência de toda essa situação.” - “E aí, o que você fez?” - “Bom, primeiro eu procurei o Dr. Maurício, que a gente conheceu uma vez jogando basquete, lembra?” - “Claro. Ele trabalha com Nutrologia. E o que foi que ele disse?” - “Eu fiz uma bateria de exames para analisar como estava o nível de vitaminas em meu corpo. Acho que tirei quase um litro de sangue de tantos exames que ele pediu. O que me surpreendeu foi que em todas as vitaminas eu estava bem abaixo do nível mínimo necessário. A partir disso, o Dr. Maurício me receitou uma suplementação de vitaminas, sugeriu algumas modificações nos meus hábitos alimentares e a inclusão de atividades físicas três vezes por semana na minha rotina. Eu segui essas orientações e fui f ui gradativamente melhorando. Devo confessar que hoje me sinto até melhor que antes.” - “Interessante. Quer dizer que, atacando os resultados de algo em princípio negativo, você descobriu pontos de melhoria que nem imaginava necessárias serem feitas.” - “Para você ver como são as coisas! Por sugestão da Marcela eu comecei ainda a fazer acupuntura. Sinceramente era algo que eu achava que não devia fazer efeito nenhum. Espetar um monte de agulhas no corpo para que ele entre em equilíbrio?” - “Eu também fico na dúvida se dá efeito.” - “Por incrível que pareça dá muito efeito. Por exemplo, as dores no pulso que às vezes eu tinha quando digitava demais desapareceram. Tenho dormido bem, minha ansiedade diminuiu e estou mais tranquilo do que já era. Enfim, a acupuntura foi interessante do ponto de vista clínico e também para ampliar horizontes, já que tive de admitir que existe mesmo muita coisa que a gente não compreende, mas que precisamos respeitar.” - “Acho que um ponto importante disso tudo que você está falando foi a sua abertura para procurar auxílio profissional. As pessoas muitas vezes relutam em procurar ajuda. Acham que podem sempre resolver tudo sozinhas. Mas há momentos em que o auxílio profissional é importante. Por exemplo, se a pessoa não consegue pensar sob pressão. Sem ajuda psicológica não vai adiantar anos de estudo, já que na hora da prova a pressão vai fazer o conhecimento desaparecer.
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Imagine então em uma prova oral. É capaz da pessoa não conseguir sequer entrar na sala de provas.” - “É isso aí. Não quer dizer que você precisará ficar o resto da vida com o auxílio do profissional. Mas em momentos de crise ou para começar a encontrar a solução de algum problema é uma boa ideia. Por exemplo, sobre alimentação mais saudável. Depois que o Dr. Maurício falou sobre o assunto, eu tenho pensado bastante nisso, ainda mais com a gravidez da Marcela e a perspectiva do nascimento da Aninha. O alvo das minhas experiências têm sido as frituras, que são um grande vilão da alimentação moderna. Estou fazendo alguns testes de substituição do alimento frito pelo assado ou cozido, mas sempre com ênfase para que o sabor seja bem parecido.” - “Como assim?” - “Por exemplo. Ovo frito. Quem é que não gosta de um ovinho frito em cima do arroz com feijão? Para crianças, então, arroz com ovo é sempre um prato de sucesso. Pois então, primeiro eu tentei fazer o ovo no microondas. Horrível. Fica sem sabor. Depois eu tentei fazer cozido. Ficou muito bom. Para minha surpresa é tão rápido de fazer quanto frito. Basta colocar um ovo ou vários ovos em uma panelinha com água. Um minuto depois que a água começou a ferver o ovo está com a clara branquinha e a gema ainda mole. Aí é só quebrar no meio, jogar sobre o arroz e temperar com um pouco de sal. Perfeito. Comida saudável com o mesmo sabor. Se você gosta do ovo mais cozido, em cinco minutos de fervura fica pronto.” - “De onde você tira essas ideias? Alguma outra experiência alimentar de sucesso?” - “Eu tenho feito tentativas. Frango assado ao molho de vinho branco, ao invés de frango frito. Batata assada no forno, ao invés de frita. Nesse caso pega um pouco menos de sal, porque a gordura é que faz o sal grudar na batata, mas o sabor fica igual. Hambúrguer assado. O sabor fica bom, com a vantagem da cozinha não ficar toda esfumaçada, além do que todos os hambúrgueres ficam prontos ao mesmo tempo. A almôndega pode ser cozida com molho de tomate. Fica muito bom. Carne frita na frigideira antiaderente, só com um pouquinho de azeite de oliva, para não queimar. Dá o mesmo resultado que a fritura com um monte de óleo em uma panela comum. Não elimina a gordura, mas já diminui muito. Você pode dar uma secada na carne antes com papel toalha que ela não solta tanta água. Enfim, a questão é a
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pessoa partir do princípio de, sempre antes de fazer um alimento, pensar se não existe um meio de eliminar ou reduzir a fritura. Os resultados são surpreendentes.” - “E nesse caso, João, o meio ambiente agradece. Tem gente que não come carne em razão da poluição que sua produção causa. Mas você já imaginou a poluição diária causada pelo despejo de óleo de fritura de cada um nos ralos das pias ou no quintal de casa? Acho que somando o mundo inteiro dá por dia mais do que vazou lá no Golfo do México recentemente.” - “Sendo que nesse caso o Direito Ambiental não tem nem como fiscalizar a conduta das pessoas. O Estado vai colocar uma pessoa na casa de cada um para ver se está jogando óleo de fritura pelo ralo?” - “Impossível. Você está coberto de razão. Aliás, o Direito Ambiental pouco pode fazer pelo meio ambiente, em termos de repressão. Somente como direito regulador. O resto precisa vir da consciência das pessoas da importância de preservar. Só assim é que se terá alguma possibilidade de êxito em manter nosso planeta vivo.” - “Pois é. Por tudo isso você pode ter certeza que aprender com os erros é uma possibilidade real. Veja o quanto o problema com o apartamento da praia me rendeu.” - “Mas de qualquer modo, João, ainda permanece uma pergunta: por que mesmo fazendo tudo certo, às vezes não se alcança o resultado esperado?” - “Essa resposta é mesmo complicada. Alguns dirão que é questão de destino. Pode ser, não descarto essa hipótese. Outra possibilidade é que em algum ponto você deve ter feito alguma coisa errada. Isso acho mais plausível. Afinal a gente não sabe tudo e muitas vezes somos influenciados por outros elementos que não controlamos ou que nos impedem de tomar a melhor decisão. Você, por exemplo, nunca tomou uma decisão guiado pela paixão?” - “Já, quando casei com a Rosane. Graças a Deus foi um decisão acertada. Mas outra vez comprei um carro à noite. Sob a luz do luar era lindo e fechei negócio. De dia vi que tinha vários defeitos na lataria e no motor.” - “Pois é, a paixão, a falta de conhecimento, a pressa, a falta de experiência, a impossibilidade de controlarmos todos os fatores, a dependência do auxílio de terceiros ou mesmo a falibilidade natural ao ser humano podem determinar um resultado inesperado. É como no jogo de futebol: por mais que exista planejamento, bons jogadores e estratégia, não há garantia de vitória. Só que, procurando pensar em todos os detalhes, a chance de sucesso é maior. No caso do apartamento, por 97
exemplo, eu parti do princípio que o último andar era muito bom porque não teria ninguém fazendo barulho no andar de cima. E realmente nesse ponto o apartamento era muito bom, silencioso ao extremo. Mas não pensei nos riscos do telhado apresentar problemas. De qualquer modo fico tranquilo porque a vista para o mar que ele tinha não deixaria ninguém pensar em muita coisa lá em cima.” - “Só você mesmo para rir de uma história dessas.” - “Tem que ser otimista. Consertar o que precisa ser consertado, pedir desculpas se necessário e bola para frente. Aliás, isso me faz lembrar mais uma coisa importante sobre quando as coisas não saem como planejado. Essas experiências lhe ensinam a agradecer, comemorar e compartilhar as vitórias. Cada acerto, cada passo com sucesso exige uma comemoração. - “É verdade, eu já percebi que você gosta de fazer um coquetel no escritório quando a gente ganha alguma ação importante.” - “Isso é importante. Se choramos a derrota, precisamos comemorar a vitória. No trabalho é muito comum que as pessoas pensem que quando as coisas dão certo a equipe não fez mais do que a obrigação. Até porque cada um vai receber o seu prêmio em dinheiro pelo sucesso. Mas como eu sei que mesmo fazendo tudo certo as coisas podem dar errado, então é importante ficar feliz quando dá tudo certo. Além do que isso é fundamental para a motivação da equipe. Novamente eu digo que o dinheiro não é tudo. As pessoas precisam também de reconhecimento.” - “O esporte traz bons exemplos disso. A vitória é muito comemorada.” - “Isso é uma grande verdade. Se você pensar bem, quando uma equipe de Fórmula 1 tem um carro imbatível é quase uma obrigação os pilotos chegarem à frente. E mesmo assim a cada vitória há muita comemoração, com espumante e tudo o que se tem direito. É um belo exemplo para seguirmos.” - “Você está falando em vitória de equipe. Só que eu vejo que mesmo quando você tem uma vitória que é individual sua você gosta de compartilhar o resultado.” - “Com certeza. Nenhuma vitória é individual. Veja, por exemplo, o caso do concurso. Quando você passar não será uma vitória só sua. Por mais que o estudo seja individual, todos que lhe deram apoio, que escreveram os livros em que você estudou, que deram aulas para você na faculdade, entre outros, têm alguma participação no resultado. Então é preciso compartilhar a alegria da vitória.” - “Tem razão. Quando passar no concurso farei uma grande festa!” - “Pode contar com minha presença!” 98
CAPÍTULO 16 As semanas correram como nunca e a prova preliminar aconteceria domingo. Somente os cem primeiros classificados avançariam para a segunda etapa. Era sexta-feira, cinco e meia da tarde. Paulo já sabia que não adiantava procurar estudos de última hora. Naquele momento quem estudou estava preparado. Quem não estudou, não estaria preparado com o que visse na sexta à noite e sábado durante o dia. Como Paulo havia estudado, e muito, estava tranquilo. O melhor agora era seguir os conselhos de João, relaxar, tirar o sábado para esvaziar a cabeça e estar cem por cento descansado para domingo pela manhã. Por isso, antes de ir para casa, convidou João para um happy hour . Nada muito demorado, mas o suficiente para descontrair e abrir espaço para a capacidade de raciocínio. Depois de conversarem sobre os mais diversos assuntos, quando já se despediam, João perguntou: - “E domingo? Tudo certo?” - “Tudo. Estou com boas chances. Fiz a prova preliminar dos três últimos concursos como simulado e consegui notas suficientes para passar adiante.” - “Que bom. Então boa sorte, que Deus o ilumine e na segunda-feira de manhã a primeira coisa que você irá fazer ao chegar ao escritório será vir conversar comigo, para me contar como foi. Combinado?” - “Certo. Obrigado e até segunda.” O final de semana transcorreu normalmente. A prova aconteceu no domingo pela manhã e na segunda-feira, logo cedo, Paulo estava na sala de João, para contar-lhe todos os detalhes.” - “E então, meu caro amigo, estou curioso para saber. Como foi a prova?” – perguntou João. - “Não passei.” - “Como assim não passou? Já saiu o gabarito, o resultado?” - “Não, não saiu. Mas eu posso dizer com certeza que não passei nessa prova. Mas não se preocupe. Foi a melhor não aprovação da minha vida.” 99
- “Não estou entendendo. O que aconteceu?” - “Bem, eu saí daqui na sexta-feira e fui jantar com a Rosane. No sábado pela manhã fomos dar uma volta no calçadão da XV de Novembro. Almoçamos na casa dos pais da Rosane e à tarde fomos ao cinema. Um dia perfeito. Quando cheguei em casa, vi um papel caído no chão, ao lado da cômoda da Rosane. Ela deixou cair ali sem querer, quando ia guardar na gaveta.” - “E aí, o que tinha nesse papel?” - “Era o resultado de um exame. Um exame positivo de gravidez!” - “Que maravilha, parabéns! Bem-vindo ao clube! Tomara que seja uma menina para ser amiguinha da Ana! Então, sabendo disso você desistiu do concurso?” - “Não, depois de tanto estudo eu não iria desistir tão fácil. Uma coisa não impede a outra. A Rosane não queria que eu soubesse antes da prova para não tirar minha concentração. Depois, no almoço, ela iria me dar a boa notícia.” - “Certo. E como você pode dizer que não passou?” - “Eu fiquei muito feliz com a gravidez da Rosane. Nós comemos alguma coisa em casa mesmo para comemorar. No domingo pela manhã eu acordei e fui fazer a prova. Entrei na sala, sentei no meu lugar, olhei para todas aquelas pessoas que estavam atrás do mesmo sonho que eu. Enquanto esperava comecei a pensar em tudo o que aprendi com você nesses meses, na satisfação que estou tendo em trabalhar no escritório e agora nesse bebezinho que está por vir. Foi aí que eu percebi que as variáveis agora eram outras. Eu queria ser juiz federal, mas também queria que meu filho ou minha filha estivesse perto dos avós, dos tios, dos primos e dos nossos amigos. Como juiz eu sabia que isso não seria possível. A carreira é longa, começa pelo interior, vai gerando mudanças de cidade, distância da família, dos amigos. Enfim, uma série de restrições que até então eu estava disposto a aceitar. Mas a notícia concreta da gravidez da Rosane mudou toda minha forma de ver as coisas. É interessante que antes eu nunca havia pensado que um dia a Rosane iria engravidar e estaríamos longe. Mas com a notícia da gravidez a coisa se tornou real e eu consegui ter uma visão mais ampla.” - “Você precisava tomar uma decisão. O que foi que você fez?” - “Peguei o caderno de provas, dei uma olhada nas questões e vi que sabia a maioria das respostas. Nesse momento percebi que não poderia postergar para o final do concurso minha decisão. Estudar até o final do concurso, perder essa época mágica da gravidez da Rosane, tudo isso para depois não assumir o cargo? Já tinha 100
respondido para você que seria considerado louco. Ao mesmo tempo, estaria tirando a chance de algum outro candidato que poderia seguir no concurso na minha vaga. Peguei o caderno de provas, assinei a folha de respostas e entreguei em branco. Saí dali, liguei para a Rosane e tiramos o domingo só para nós.” - “Que domingo, meu amigo! E como você está se sentindo hoje, sobre a sua decisão de ontem?” - “Incrivelmente bem. Não imagina como me sinto feliz de ter tomado essa decisão. Depois de tudo o que vivi nos últimos tempos tenho a plena certeza de que fiz uma excelente escolha. Consigo visualizar claramente que a opção de seguir no concurso também era boa. Mas vejo na minha escolha atual um espaço de ótimas perspectivas. No fim, não estava diante de uma decisão certa ou errada. Apenas diante de uma escolha a ser feita. Escolhi privilegiar todos aqueles que são importantes para mim e não só os meus sonhos pessoais.” - “Muito bom. Estou vendo que você não é mais apenas um aprendiz da arte da Excelência. Tornou-se também um mestre. É claro que nessa arte nunca deixamos de ser aprendizes. Cada situação na vida será uma possibilidade de aprendizado, de crescimento. Mas a partir de agora também será uma oportunidade de compartilhar os conhecimentos adquiridos.” - “Tenho que lhe agradecer por tudo isso, João. E dizer que mesmo sem o resultado final de aprovação no concurso, ainda haverá comemoração! Afinal as coisas ficaram melhores do que eu esperava.” - “E você já conseguiu pensar em algum plano para o futuro? Vai pelo menos continuar na advocacia? Saiba que a minha proposta para você se tornar meu sócio ainda está de pé, certo?” - “Claro que vou continuar na advocacia. Você acha que iria deixar de aplicar todo o conhecimento jurídico que adquiri nesses anos todos de estudo? E com certeza vou continuar aqui no escritório. Não precisava nem ser como seu sócio. Tem sido uma experiência muito boa trabalhar com todo o pessoal daqui.” - “Excelente. Fico muito feliz. Por você, por mim e por todos do escritório, que também gostam da sua forma de trabalhar. Além do que, continuando na advocacia, você estará deixando em aberto a possibilidade de um dia retomar o plano de se tornar juiz federal. Quem sabe um pouco mais para frente.” - “Ah não, acho que não vou querer estudar mais para concursos. Já foi tempo suficiente. E depois, sair de Curitiba estará cada vez mais fora de cogitação.” 101
- “Quem foi que falou em voltar a estudar para concursos e sair de Curitiba? Estou projetando uma vaga pelo quinto constitucional da advocacia, quando criarem o Tribunal Regional Federal da 6ª Região. Um dia ele vai ser aprovado no Congresso Nacional. A sede será em Curitiba e um quinto das vagas será de advogados de notório saber jurídico, reputação ilibada e mais de dez anos de efetiva atividade profissional, em lista sêxtupla formada pela OAB e com escolha do nome pelo Presidente da República. Você preenche todos os requisitos. Só precisa criar a Excelência de sua escolha.” - “Você está sabendo bem o texto da Constituição Federal, hein? Eu não tinha pensado nisso. É mesmo uma possibilidade. Mas sinceramente isso terá que ser bem mais para o futuro. No momento quero me dedicar ao escritório, à gravidez da Rosane, ao nascimento da sua filha, depois do meu bebê e colocar em prática um novo projeto.” - “Um novo projeto? Do que estamos falando?” - “Com o seu consentimento, pretendo escrever um livro sobre tudo o que aprendi nos últimos tempos. Mas não será um livro técnico. Quero escrevê-lo de forma mais aberta, com personagens e com liberdade para expressar sentimentos e permitir reflexão. Algo para sair um pouco dos “muros da Justiça”, como você diria.” - “Com certeza, você tem o meu consentimento. Vai ser uma grande alegria ver como você conseguirá transformar vida em palavras. Parece uma tarefa fácil. Mas como a arte da Excelência é experiência, será um grande desafio transformar ideias em movimento.” - “Já comecei a perceber isso ontem. Rascunhei algo para a estrutura do livro e tentei começar a escrever a história. Bem complicado. Alguma sugestão?” - “Você podia começar mais ou menos assim: “encostados no balcão da cafeteria no início da Rua XV de Novembro os dois amigos estavam em silêncio. Saboreavam um dos mais tradicionais expressos de Curitiba. Distraidamente acompanhavam as poucas pessoas que apressadas passavam pelo calçadão, na direção do Palácio Avenida.” O resto da história você já sabe. Só precisa colocar no papel.” - “Você sempre tem grandes ideias. E como fez a sugestão, vou entender que aceita que use nossa experiência pessoal para ajudar na narrativa.”
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- “Com certeza. Até porque imagino que você vai falar muito bem de mim nessa história, de forma que serei uma das pessoas mais favorecidas com esse livro. Você já imaginou algo para o título?” - “Isso foi a primeira coisa que imaginei e foi muito fácil. A arte da Excelência. O que acha? Nada mais justo, não lhe parece? - “Muito bom. Excelência dá a ideia de algo com um nível máximo de resultado, mas ao mesmo tempo também lembra a sua busca pela magistratura, já que todo juiz recebe o tratamento de Excelência.” - “Você percebeu esse duplo sentido! Espero que os leitores também percebam.” - “Não tem problema. Você pode colocar essa nossa conversa no final e deixa tudo explicado.” - “Meio inusitado, não?” - “Por falar em inusitado, você não fica um pouco preocupado em não ser bem compreendido ao escrever um livro que abordará questões de desenvolvimento pessoal e profissional, mas de uma maneira tão diferente do que a gente costuma ver no Direito?” - “Uma das coisas que aprendi com você é que para produzir algo novo é preciso ter coragem. E como você disse, a arte da Excelência é movimento. Pode ser que muitas pessoas não compreendam a formatação do livro. Mas isso não é o mais importante. Não vou escrever o livro com o objetivo de alcançar fama e sucesso. Minha pretensão é escrever em primeiro lugar para mim mesmo. Para que eu possa lembrar e sistematizar o que aprendi até aqui. Depois, vou escrever para minha família, incluindo a família da minha esposa. Aqui claro que haverá uma dedicatória especial para meus pais, minha esposa e o bebezinho que está por vir. Se o livro ajudá-los a compreender um pouco melhor o que sou e o que sinto será muito bom. Em terceiro lugar, vou escrever para os amigos e partícipes de minha vida, de ontem, hoje e do futuro. Será uma forma de agradecimento pelo carinho recebido. Por fim, vou escrever para os leitores que acreditam na possibilidade de podermos evoluir como seres humanos. Espero que possa ajudar em algo em suas vidas com minhas palavras. Quanto aos demais, acredito que se chegarem a ler o livro até o final, pelo menos saberão que não tenho a pretensão de ser o dono da verdade e que tenho consciência da diversidade entre as pessoas. Assim, o que
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agrada uns, pode não ser bom para outros. De uma forma ou de outra, espero que estes leitores consigam também encontrar sua estrada para a felicidade.” - “Você poderia até terminar o livro com aquela frase do Richard Bach em Ilusões, lembra? “Tudo nesse livro pode estar errado.” - “Também não é para tanto. Pelo menos para compartilhar ideias o livro pode servir.” - “Tem razão. Você está no caminho certo, meu amigo. Vai fazer o livro por paixão. Isso é fundamental para o sucesso. O resto é consequência. Que Deus o abençoe e inspire nesse seu projeto.” - “Amém.”
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