Teoria da Sedução Generalizada e outros ensaios
úvraua PilpU/JrliJ DtsC.DS & fltiU
SAVASSI
PRUDENTE AMAZONAS
A L F A
R FERN~NOES TOURINHO, 257 FONE 221.7473 AV P~UDENTE DE MORAIS, 5BO FO.NE 337.64 65 AV AMAZONAS, 471- LOJA 9 FONE. 201.2932 R. SÃO PAULO, BIO- CENTRO FONE 201.009 9
l314t l.aplanche, Jean Teoria da sedução generalizada e outros ensaios I Jean l.aplanche : trad. [de] Doris Vasconcellos. - Porto Alegre : Artes Médicas. 1988. 126p. : il. : 23cm.
1. Psicanálise. 2. Sexo (Psicanálise). I. Vasconcellos, Doris. 11. Título.
C.D.D. C.D.U.
616.8917 577.8:159.964.28
Índices Alfabéticos pm o Catálogo Sistemático Sexo: Psicanálise Sexualidade: Psicanálise Psicanálise: Sexo Psicanálise: Sexualidade
577.8:159.96428 577.8:159.96428 159.964.28:577.8 159.964.28:577.8
(Bibliotecária responsável: Sonia H. Vieira CRB-1 0526)
JEAN LAPLANcHE
Teoria da Sedução tterallzada e outros ensaios Tradução: DORIS VASCONCELLOS Do Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia da Universidade de Paris VIl (dirigido por Jean Laplanche)
PORTO ALEGRE I 1988
© da Editora Artes Médicas Sul Ltda .• 1988
Capa: Mario Rõhnelt Supefl'isào editorial: Paulo Flavio l.edur Diagramação. arte e composição: AGE -- Assessoria Grafica e Editorial Ltda.
Reservados todos os direitos de publicação à EDITORA ARTES MÉDICAS SUL LTDA. Av. Jerônimo de Ornelas. 670- Fone (0512) 30-3444 Loja centro: Rua General Vitorino. 277- Fone (0512) 25-8143 90040 Porto Alegre. RS - Brasil
IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL
SUMÁRIO
X
12 3 4 5 6 7 8 9 1O --
Os princípios do funcionamento psíquico: Tentativa de esclarecimento 7 Interpretar (com) Freud .................................................................................... 21 Oestruturalismo diante da psicanálise ............................................................ 33 Uma meta psicologia à prova da angústia........................................................ 38 É preciso queimar Melanie Klein?.................................................................... 50 Reparação e retribuição penais: uma perspectiva psicanalítica.................... 60 Apulsão e seu objeto-fonte: seu destino na transferência............................ 72 Traumatismo. tradução, transferência e outros trans(es) ........................... 84 Apulsão de morte na teoria da pulsão sexual ................................................. 97 Da teoria da sedução restrita à teoria da sedução generalizada ................... 108
OS PRINCÍPIOS DO FUNCIONAMENTO PSÍQUICO TENTATIVA DE ESCLARECIMENTO*
O título deste texto indica claramente seu campo e seus limites. Trata-se de um esclarecimento de metapsicologia que se refere. portanto. aos fundamentos básicos da nossa teoria. Apresentar aqui minhas idéias sobre um ponto fundamental da nossa doutrina. sem tentar dissimular as dificuldades teóricas com exemplos clínicos mais ou menos adventícios. peças escolhidas e retomadas de uma experiência que é nossa referência comum. "Tentativa de esclarecimento": estes termos querem marcar que nossa reflexão tomará como ponto de partida o que Freud chamou de Prinzipien des psychischen Geschehens. No texto de 1911 que leva este título. dois princípios são enunciados: prazer e realidade. e sozinhos já bastam para nos embaraçar. Todos nós os utilizamos: alguns. talvez. sem escrúpulos. outros com um pouco mais de reserva: não são. se desculpam. o que se diz deles vulgarmente ... Mas quem dentre nós não é, hoje em dia e alternativamente. às vezes este psicanalista vulgar que, quando é preciso atender ao mais urgente. na clínica, para o relatório rápido de uma cura, a explanação simples que vai fazer a principiantes. agarra-se às concepções teóricas estereotipadas. e, às vezes. que, na calma de uma reflexão ou de discussões que se pretendem mais aprofundadas, coloca entre aspas os termos clássicos que ainda emprega, para testemunhar que o psicanalista realmente está "noutro lugar" e que a psicanálise autêntica é "outra coisa"? Nossa finalidade aqui não é de alimentar esta cômoda duplicidade. Mas tentar introduzir alguma clareza em referências confusas e múltiplas. Confusas: as definições são freqüentemente feitas de aproximações. e o próprio Freud referiu-se mais de *Texto baseado em conferências proferidas em Strasbourg e Paris.
7
uma vez à necessidade que sentia de manter ao menos provisoriamente uma certa ambigüidade. Múltiplas: o princípio de prazer e o princípio de realidade não são os únicos enunciados. Encontramos ainda o princípio de constância. o princípio de estabilidade (por referência a Fechner). o princípio de Nirvana. o princípio de inércia neurônica da' Entwu?f... Sem contar as pulsões de vida e de morte! das quais. há muito tempo. àssinalamos que se situam num plano mais geral. mais importante. que o plano propriamente pulsional. Multiplicidade e confusão exigem que se ponha em ordem. Como operar? Podemos nos contentar com uma espécie de imagem composta? Permitir-nos-emas escolher o que nos agrada em função dos progressos realizados depois de Freud?
Nosso método
É uma reflexão sobre a obra de Freud e sua experiência. alimentada evidentemente, controlada pela nossa experiência de psicanalista. Esta reflexão. inseparável para mim na sua gênese de um trabalho desenvolvido em comum com J.-8. Pontalis sobre os conceitos fundamentais da nossa ciência. como caracterizá-la? Talvez por dois termos: problemática e histórico-estrutural. Problemático. nosso método quer. em primeiro lugar. ser analítico. se possível em todos os sentidos do termo. caminhando passo a passo em contato com os textos. utilizando as contradições que não podem ser tratadas todas da mesma forma. algumas podendo ser consideradas como adventícias. outras devendo ser utilizadas dialeticamente. sllia como contradições do pensamento. seja como contradições da própria coisa (que se pense por exemplo. na noção de Ego ou no uso freudiano da biologia). "Analítico", nosso enfoque leva a interpretações que absolutamente não se recusam a declarar-se abertamente como tal. É através da interpretação que unimos as noções de história e de est[u_tura: trata-se de tentar reencontrar. através dos rerlian~ds estruturais ou das contradições aparentes. das exigências. das correspondências. produtos freqüentemente de verdadeiros "deslocamentos" no sentido psicanalítico do termo: noções. elementos doutrinais. às vezes panoramas inteiros do pensamento se encontram. numa outra configuração. desempenhando um papel inteiramente novo no pensamento de Freud. enquanto a exigência fundamental permanece imutável. Equivale a dizer o quanto uma explanação sincrética. sintética. do pensamento freudiano leva necessariamente a um absurdo. ou seja, por redução. à mais completa evidência. 1 _ Partiremos do princípio do prazer e do princípio de realidade tomando-os a um nível fenomenal. descritivo. da maneira como somos convidados pela sua própria denominação...
8
O princípio do prazer Suas definições são pouco numerosas na obra freudiana. e relativamente unívocas. Em Os dois princípios do funcionamento psíquico. se enuncia: "Os processos psíquicos tendem ao ganho de prazer. Nossa atividade se retira dos atos que podem despertar desprazer". Esta definição acarreta duas séries de observações: 1) É o desprazer que tem primazia - Sabe-se. aliás. que nas suas primeiras formulações Freud partiu da noção de princípio de desprazer. depois da de desprazerprazer. Isto destaca o fato de que se passa sempre da tensão presente. desagradável. à descarga. Já para Fechner, esta idéia estará presente. e convém insistir sobre o fato de que é a Fechner que se deve o enunciado do princípio de prazer (Uber das Lustprinzip des Handelns, 1848) e não somente o do princípio de constância ou de estabilidade. Ora. para Fechner. não se trata absolutamente de um hedonismo no sentido tradicional: a representação do prazer ou do desprazer futuro não serve para nada. O princípio de prazer é um princípio regulador exigindo uma sensação atual para pôr tudo em andamento. é um princípio que já atua ao nível das próprias representações e não ao nível do representado, do visado, do projetado. Como o movimento é sempre um movimento que vai do desprazer ao prazer. concebe-se que, nesta dupla. o termo presente. motivante, seja o desprazer. Freud fala várias vezes de uma regulação automática do curso dos prpcessos psíquicos por este princípio. o que significa apenas a retomada da tese fechneriana. Z) Para quem existe prazer-desprazer? - Primeira interpretação possível: é a nível do conjunto da atividade psíquica. Conhece-se o modelo freqüentemente retomado: o de uma vesícula viva de um organismo com uma camada periférica figurando o sistema percepção-consciência. Esta camada superficial receberia do exterior as quantidades e as qualidades. sendo estas a primeira garantia da realidade do que é percebido. Do interior só recebe uma única gama de sensações. as que escalonam entre o máximo de prazer e o máximo de desprazer. Ora. assim que o modelo se complica. surgem as dificuldades: e o modelo se complica necessariamente com a idéia de conflito e de inconsciente. A experiência psicanalítica mostra que o prazer. por exemplo no sonho. pode aparecer sob uma outra forma (mascarado -ou traduzido?). a dos sonhos de angústia. por exemplo. A distinção tópica que nos é bem familiar volta aqui a nos ajudar de um ponto de vista teórico: enunciemos. o que é prazer_ para um sistema, é desprazer para um outro. Assim. no quadro de referência da primeira tópica. um prazer inconsciente pode se mascarar num sintoma aparentemente neutro ou desagradável. Na segunda tópica. as instâncias estando ainda mais personificadas, teremos ainda menos escrúpulos em invocar, por exemplo, o "despra~er" ou o "prazer" do Superego sem implicar com isto que um tal desprazer ou prazer chegue até a consciência. Mas que sentido tem ainda falar. nestas condições, do prazer e do desprazer como qualidades psíquicas? Isto sem querer ir mais longe do que mencionar um 9
fenômeno clínico ainda mais embaraçante: o famoso Schmerzlust. o prazer que o masoquista encontra na própria dor. Diante destas dificuldades dois tipos de solução são tentadas por Freud: Manter-se num mínimo de respeito de uma psiclogia descritiva ou fenomenológica. conservando seu sentido qualificativo aos termos prazer e desprazer. o que supõe que s~am percebidos pelo sistema percepção-consciência ao menos a título de afeto inicial, de sinal. Este é o caminho indicado em Inibição, sintoma e angústia. A outra solução é do tipo econômico: trata-se de interpretar o prazer-desprazer em termos de processos puramente objetivos. Deixa-se. assim. de lado a difícil questão de saber a partir de que momento um aumento de tensão torna-se motivante como prazer sentido. A partir daí pode-se enunciar o princípio de prazer em termos tão válidos para as instãncias inconscientes como para as instâncias conscientes da pessoa. As dificuldades inerentes ao princípio de prazer são então transferidas ao princípio de constância que estudaremos mais adiante.
O princípio de realidade Suas definições também são raras nos textos de Freud. Conhece-se do texto sobre os Dois princípios:
"É somente a falta persistente da satisfação esperada, a decepção. que provoca
o abandono da tentativa de satisfação pela alucinação. No seu lugar. o aparelho psíquico teve que se decidir a se representar o estado real do mundo exterior e a buscar uma modificação real. Assim. um novo princípio da atividade psíquica foi introduzido: o ::JUe era representado não era mais o que era agradável. mas o que era real. mesmo se isto devia ser desagradável." Sabe-se que é apresentado como modificação do princípio de prazer e como regulador deste. que introduz condutas de tergiversação e a capacidade de adiar a satisfação: conhece-se sua ligação com toda uma série de funções nas quais se encarna: atenção, julgamento. memória. pensamento como atividade de controle. seja uma atividade onde se substitui a descarga imediata à manipulação de pequenas quantidades de energia. O pensamento é considerado como uma "ação para ver". Sabe-se. também. que o princípio de realidade se encarna na busca da "identidade de pensamento" substituindo-se à busca primária da "identidade de perceção" que caracteriza o prazer. O que é notado com menos freqüência é que a identidade de pensamento é apenas um elo intermediário na busca da identidade de percepção. Tudo isto se conhece bem, mas permanece um problema central: em virtude de que Freud chama este princípio princípio de realidade. um tal termo implicando quase necessariamente uma teoria da aprendizagem. do amestramento da pulsão em contato com o real? No mesmo texto do qual tomamos esta definição é igualmente introduzida a "prova de realidade". a Realitãtprüfung. Mas só aumenta a ambigüidade do termo.
10
·;
O termo prova. por si mesmo. induz a noção de ensaios e erros. De prova de realidade, termo relativamente neutro. os psicanalistas escorregaram muito depressa para a noção de prova da realidade. Tratar-se-ia. portanto, aí. de pôr à prova nossas pulsões ao contato da realidade, de submeter à prova a alucinação pela confrontação com a decepção que não pode deixar de suscitar. com uma apreensão mais discriminativa das relações objetivas. com os resultados. enfim. de uma ação motora probatória. Destacamos de passagem que se a teoria freudiana da alucinação primitiva devia implicar na possibilidade de uma redução. por aproximações suscessivas. do erro que comporta. a experiência clínica da alucinação. que sabemos impossível de reformar por qualquer confrontação que seja com o real. viria revogar definitivamente. Naqueles casos (sonho, alucinação) em que a prova de realidade seria mais necessária e onde se esperaria que devesse desempenhar seu papel. ela é estritamente ineficaz. posta imediatamente fora de cogitação. Se colocamos agora em relação o princípio de prazer e o princípio de realidade, que visão estranha nos traz um texto como Os dois princípios mas também todos os outros textos freudianos sobre este tema, O prqjeto de psicologia científica. A interpretação do sonho. O Ego e o ld, o Esboço de psicanálise. Estranha visão se tomamos as formulações ao pé da letra: trata-se de uma visão genética. o que Freud afirma abertamente alardeando sua intenção de transformar a psicanálise em psicologia genética. Dentro deste panorama. o ponto de partida é uma espécie de mônada fechada sobre si mesma e. neste sentido, narcisista. Ora. esta mônada auto-suficiente, que só tende a descarregar e que alucina sua própria Satisfação, Freud pretende mostrar como ela se abre. em função de uma insatisfação impensável, para o mundo exterior. como elabora as funções do Ego começando pela própria percepção.
Insatisfação impensável
Se nos situamos. como Freud parece fazê-lo às vezes. a nível de uma mônada em princípio sem representações. a única alucinação que se possa. então, imaginar é a da qualidade prazer. fora de qualquer outro conteúdo. Muito esperto será então quem for capaz de dizer a diferença entre o prazer alucinado e o prazer sentido, quem poderá mostrar como a falta representada por uma insatisfação, por mínima que seja. poderia se introduzir na vivência de um prazer alucinado até a consumpção. Ou então o recém-nascido alucina algumas de suas primeiras representações (Vorstei/Ungen). Evidentemente, esta é a solução de Freud. Mas então toda a sua dedução cai. Enquanto ele pretendia deduzir a formação de um sistema de marcas (Merken) da intervenção secundária do princípio de realidade. eis que este sistema de marcas. proveniente da percepção. deve ser concebido como anterior ao princípio de prazer. se é verdade que o princípio de prazer é captado primeiro na reprodução alucinatória de tais marcas. Em outros termos. longe de serem pontos de referência para um esquadrinhamento cada vez mais perfeito do princípio de prazer pelo princípio 11
de realidade, as marcas de origem perceptiva são indispensáveis ao funcionamento do processo primário. Esta idéia de um acesso perceptivo imediato da realidade é, ao mesmo tempo, conforme com tudo que sabemos da psicologia do recém-nascido e prefigurada em inumeráveis indicações de Freud. Nossa finalidade não é. como se diz, pôr Freud em contradição com ele próprio. Não se trata. por assim dizer. de forçá-lo retrospectivamente a escolher neste velho debate psicanalítico que opôe os partidários de um absurdo idealismo ou mesmo solipsismo biológico de partida e os que colocam de saída a existência de uma "relação de objeto" ou de um "amor primário de ol:!jeto". É a um outro nível, ao nível da interpretação. que colocamos a questão. Se é verdade que para Freud. cientificamente, não há dúvida de que existe de saída uma abertura perspectiva ao Aussenwelt*, qual é, então o sentido de sua absurda dedução do princípio de realidade a partir do princípio de prazer? Absurda a nível do indivíduo. será extrapolada à história da espécie (como parece fazer o Prqjeto de psicologia científica) ou mesmo à história da vida (Para além do princípio do prazer)? Ou então pode ser considerada como uma gênese transcendental, e que quer dizer isto? Ou então trata-se de uma ficção. um mito até. e, neste caso, que ele encobre? A que campo se aplica este mito? Antes de tentar responder, é preciso que passemos ao plano da significação econômica do princípio do prazer.
11 -
O PRINCIPIO DE CONSTÂNCIA
Freud declara explicitamente que é o fundamento do princípio de prazer. Um seria apenas a tradução do outro no plano da vivência suQjetiva. São nos dadas numerosas formulações dele, sem que jamais s!liam. no entanto, satisfatórias. Freud anotou desde cedo que "pode-se entender por isso as mais diferentes coisas", tem-se a impressão que, para ele, o termo "constãncia" cobre uma mercadoria relativamente heteróclita. Citemos. neste sentido. duas formulações claramente exemplares de Para além do princípio de prazer: - a tendência à "redução. à constância, à supressão da tensão de excitação interna" ...; - ou ainda, a tendência do aparelho psíquico "a manter tão baixa quanto possível a quantidade de excitação presente nele. ou ao menos de mantê"la constante". Existe aí uma contradição maior: a redução a zero é posta em oposição, e concebida como sinônimo de manutenção da constãncia. ou, ainda, a constãncia é apresentada como o menor dos males na falta da redução absoluta das tensões. A contradição pode ser percebida aqui: num sistema dito homeostático, num organismo regido por uma lei de constãncia, a carga energética tanto quanto a descarga pode. segundo as circunstãncias. ser favorável à constância (simbolizada abaixo pelo nível N) ou desfavorável a ela. ' Em alemão no original: Mundo exterior. (N. do T.)
12
Esta contradição fundamental pode se esclarecer por uma comparação do pensamento de Breuer com o de Freud. Breuer (nas suas Considerações teóricas de 1895) e Freud (no seu Prqjeto de psicologia científica de 1895) atribuem-se mutuamente a paternidade do princípio de constãncia. É certo que partem ambos da mesma experiência: a "ab-reação", e seu contrário, a "retenção" do afeto nos histéricos. No entanto, a perspectiva é completamente diferente. Não esqueçamos que Breuer colaborou nos trabalhos de Hering a respeito de uma das mais importantes auto-regulações do organismo: a da respiração. A constãncia da qual fala é do mesmo tipo: trata-se de uma homeostase. Certamente não uma homeostase do organismo no seu conjunto (como o são precisamente aquelas que regulam as grandes funções vitais) mas uma homeostase de um sistema mais particular. mais especializado, a do sistema nervoso central.
~.=I ~ N.
L "". ~7 /
É neste referencial que deve ser compreendida sua distinção entre uma energia "quiescente" ou "excitação tônica intracerebrai", e uma energia cinética circulando através do sistema. O princípio de constãncia regula, para Breuer. o nível de base da energia tônica e não, como o fará o princípio de prazer para Freud, o escoamento da energia dita livre. A partir daí, enuncia-se assim: "Existe no organismo uma tendência a manter constante a excitação tônica intracerebral" (Studien über Hysterie)•. Tal nível de base é concebido como um optimum. Como tal. pode ser ameaçado por diversas modificações de nível, algumas operando uma perturbação generalizada, outras mais localizada; como tal pode ser restabelecido pela descarga (ab-reação) mas também pela carga. Trata-se, diríamos. de manter uma verdadeira Gestalt energética. Este optimum. finalmente. tem um objetivo: é a boa e livre circulação de energia cinética. isto é, um funcionamento confortável do pensamento. a existência de associações não entravadas: "Falamos de uma tendência do organismo a manter constante a excitação cerebral tônica: mas 1,1ma tal tendência só pode ser compreensível se podemos perceber a que necessidade responde. Compreendemos atendência para manter constante a temperatura do organismo com o sangue quente porque sabemos por experiência que esta temperatura constitui um optimum para o funcionamento dos órgãos ... ' Em alemão no original: "Estudos sobre a histeria." (N. do T.)
13
Acredito que também se pode admitir que o nível de excitação tônica intracerebral tem um optimum. Neste nível de excitação tônica, o cérebro estaria acessível a todas as excitações externas, os reflexos têm a melhor condução, mas somente nos limites de uma atividade reflexa normal, o fundo das representações é capaz de ser despertado e associado segundo esta proporção relativa recíproca entre cada uma das representações. que corresponde a uma reflexão clara." 1 nversamente. no sonho. as associações seriam defeituosas e entravadas. Osonho. segundo Breuer. é testemunha de um estado no qual a energia não está absolutamente livre: tese diametralmente oposta à de Freud! A metáfora que prevalece geralmente aqui é a de um circuito elétrico ou telefônico cuja modulação só é possível a partir de um certo nível de base que deve ser mantido a qualquer preço: a energia tônica tem uma prioridade absoluta sobre toda circulação possível da energia cinética. Este resumo demasiado curto do pensamento de Breuer deveria bastar para mostrar todo o interesse de um enfoque neurofisiológico que. embora partindo das noções ditas fisicalistas da escola de Helmholtz, permaneceu muito flexível, muito próxima da experiência fisiológica. Tal enfoque pode ser considerado como não sendo rigorosamente contraditório com as descobertas ulteriores da neurofisiologia (manutenção de um nível de atividade pelo sistema reticular ativador. por exemplo ...). como uma hipótese cientificamente provável e aberta. Bernfeld, pretendendo reconstituir as primeiras etapas do pensamento freudiano, assimila-as sem discussão às de Breuer. Que diferença. no entanto (1 ). entre as hipóteses razoáveis de Breuer e a grande maquinaria que nos apresenta o Prqjeto de psicologia científica! O Projeto de psicologia científlc.:i: só podemos dar aqui algumas referências esquemáticas: 1) Freud parte de um modelo abstrato do qual jamais saberemos fundamentalmente se se trata do psiquismo. o sistema nervoso central ou o organismo que está em questão. Ignora-se. também. se a espécie de dedução dos diferentes modos de funcionamento que nos é apresentada se situa ao nível ontogenético, a nível filogenético ou a nível transcendental. 2) Este modelo está inteiramente constituído a partir de duas espécies de elementos de base: os "neurônios" e a "quantidade". Tudo indica no texto que estes neurônios são apenas as próprias Vorstellungen (representações). A clínica das neuroses, que impôs a distinção entre representação. por um lado. e quantum de afeto por outro. vê-se aqui diretamente transposta em: neurônios Iquantidade. Tudo que se passa neste sistema ou neste modelo é somente a conseqüência da posição dos neurônios (considerados em si mesmos como todos idênticos: gleichgebaut). de suas bifurcações. da diferença de condução entre estas bifurcações. Com-
1
Pode-se perceber os indicias deste desacordo latente concernente ao principio de constância nas
r]ifPrPntw; rPrli1{/1PC: quP rhrqararn atil nôr; rlíl "romunicação preliminar".
14
preende-se imediatamente como se torna possível uma interpretação em termos de memória eletrônica ou de lingüística estrutural. Voltemos ao que concerne aos princípios: Freud parte, no Prqjeto do princípio de inercia neurônica que se enuncia assim: "Os neurônios visam a se livrar da quantidade" (Neuronen sich des Quantitat zu entledigen trachten). Este princípio é constantemente identificado com as seguintes noções: - energia livre. tendendo livremente. pelas vias mais curtas, à descarga. Nenhuma estase de energia em um neurônio: - processo primário: - princípio de prazer (ou de desprazer). "Como conhecemos com certeza uma tendência da vida psíquica a evitar o desprazer somos tentados a identificar esta tendência com a tendência primária à inércia. Odesprazer coincidiria, então, com o aumento quantitativo da pressão ... O prazer seria a sensação de descarga ..." Não se trata absolutamente de constância nesta definição do prazer. Clinicamente, isto corresponde a quê? Toda a experiência de Freud nesta época. experiência sobretudo no campo da histeria e do sonho, está centrada sobre aespecificidade dos processos inconscientes. Que se tomem como referência a este propósito as passagens do Projeto sobre a simbolização histérica nas suas relações com a simbolização normal. Entre as representações B e A. das quais uma "simboliza" a outra. há um deslocamento de energia: mas, na simbolização normal. A retém para si uma parte da carga: assim sendo. o soldado que morre pela bandeira não esqueceu ou recalcou o fato de que morre pela pátria. A simbolização histérica. ao contrário. caracteriza-se por um deslocamento completo. total. de A a B. O processo primário é dito igualmente processo vali, pleno. no sentido em que se pode dizer que existe entre as representações em causa uma passagem a "descarga aberta". Geneticamente. o que Freud visa, então. na sua reconstituição das origens do desejo humano ou da pulsão é à experiência de satisfação como reinvestimento plano. que vai até a alucinação, da representação ligada à primeira satisfação. É o primeiro enunciado da tese da alucinação primitiva, que nunca será abandonada. Estranho, na sua origem. à concepção clínica do processo primário como lei do inconsciente, o princípio de constancia está. portanto. ausente da primeira elaboraç~o freudiana? Não, mas se o encontramos é em uma posição completamente diferente. onde não tem nada a ver com o processo primário e a "livre" circulação do desejo inconsciente. A noção de constância é introduzida secundariamente como uma adaptação, devido às exigências da vida. do princípio de inércia: "O sistema neurônico é forçado a abandonar a tendência originária à inércia. isto é. ao nível =. O. Deve decidir-se a ter uma provisão de quantidade para satisfazer às exigências da ação específica. Na maneira como o faz. aparece, no entanto. a continuação da mesma tendência. 15
modificada em esforço para manter ao menos tão baixa quanto possível a quantidade, e a defender-se contra os aumentos. isto é. a mantê-la constante." A lei de constância. mesmo se não foi colocada explicitamente como princípio. corresponde muito exatamente à energia ligada e ao processo secundário. Esta lei de constância aparece em dois contextos. A nível de uma dedução biológica, a respeito da qual voltaremos a falar. da "função secundária" no seio do organismo ou do sistema nervoso central. A nível específico da psicanálise. isto é. a nível das representações. O problema é saber. neste segundo contexto. o que vem entravar, moderar. regular a circulação livre que constitui o desejo inconsciente ou. é a mesma coisa. a ficção da satisfação alucinatória do desejo: surge aí a intervenção do Ego. Haveria aqui toda uma série de erros a serem dissipados: o Entwurf* é um grande texto. o grande texto sobre o Ego: o Ego é tomado aí como instância no sentido que reencontrará em Para introduzir o narcisismo. e depois na segunda tópica. Como defini-lo? É agente de inibição, freio. lastro. Através daquilo que Freud chama de processo de investimento lateral (Nebenbesetzung) introduz o processo secundário sem ser ele mesmo este processo secundário. A definição mais compacta que Freud dá é a seguinte: "Uma rede de neurônios investidos e cujas comunicações recíprocas permitem a passagem facilitada da energia" (Ein Netz. besetzer. gegeneinander gut gebahnter Neuronen). É. portanto, uma rede de neurônios ou de representações no interior da qual a circulação de energia é quase livre. mas que mantém em relação ao exterior uma diferença de nível correspondendo a um investimento libidinal constante. Interpretemos: é uma espécie de Gestalt possuindo uma estabilidade que age pela sua densidade sobre as representações vizinhas. as quais. sem ela. estariam submetidas ao processo primário. Salientemos ainda sua relação com a realidade: O Ego age exatamente para inibir a alucinação. e. neste sentido. temos aí o primeiro modelo. em Freud. e talvez o único que jamais tenha desenvolvido. de uma "prova de realidade". Mas esta instãncia age por tudo ou nada, e não por aproximações sucessivas. Ela inibe um excesso de realidade que traz a alucinação. Isto não ocorre por função de uma relação de privilégio imediato do Ego com a realidade: a instância do Ego não se articula com ela. como se tivesse. para além de um primeiro contato ingênuo com o real. um contato mais verdadeiro permitindo retificar o primeiro. Topicamente, aliás. no modelo do Prqjeto de psicologia científico. ela absolutamente não se confunde com o sistema percepção-consciência que é o único articulado sobre a realidade (1).
' Em alemão no original: Prqjeto. (N. do T.) 1 - A instância do Ego tem certamente uma relação com a percepção, mas uma relação mais complexa do que se fosse simplesmente o mediador ou o instrumento da percepção.
16
Concluamos a propósito do Entwurf, mas nossa conclusão poderia ser verificada em toda a obra e na .experiência psicanalítica: - Os princípios da psicanálise são princípios que regulam a circulação. ao longo das cadeias e das bifurcações associativas. de um certo quantum dito "afeto". São princípios que foram descobertos e só são válidos a nível das representações, no campo próprio onde se movimenta a psicanálise. Não poderiam ser definidos tal qual princípios aparentemente similares que têm referência na ordem vital sem que a maior confusão se introduza na psicanálise. Inversamente. não poderiam ser transpostos tais e quais na ordem vital sem grave dano para a biologia. - Estes princípios correspondem a duplas de oposição constante no pensamento psicanalítico, duplas que poderíamos ordenar segundo duas colunas: Processo secundário Energia livre Bindung (ligação) Ego
Processo primário Energia ligada Entbindung (descarga. desencadeamento) Des!lio
Os termos princípio de constáncia e princípio de prazer são difíceis de situar, em razão das próprias hesitações de Freud. Numa terminologia coerente seria preciso colocar o princípio de constáncia na coluna esquerda, mas sabemos que toda a ambigüidade de Freud vem do fato de ter. às vezes. situado a constãncia do lado da tendência a zero. Proponho, portanto. termos historicamente menos pesados a fim de situar. em nossas duas colunas. os princípios:
Pnncípio de nível constante Princípio de ligação
A nível econômico: Princípio de descarga A nível descritivo: Princípio do des!lio ou do gozo
Como no alto de uma penosa escada, uma tarefa considerável se oferece a nós então: problemas a colocar com Freud, problemas a propósito de Freud. isto é. interpretando-o, problemas. enfim. para além de Freud. Mencionarei somente três questões: o biologismo paradoxal de Freud, a segunda teoria das pulsões. a significação da ligação (Bindung).
1) O biologismo paradoxal de Freud O absurdo enigmático do biologismo de Freud torna-se nítido em comparação com o neurobiologismo de Breuer. este tão verossímil. Breuer parte de um organismo viável cujas relações com o exterior são reguladas por homeostases. Freud parte da ficção de um organismo em princípio não viável. fechado ao exterior. tendendo por si mesmo à morte. Por um gesto mágico impensável deveriam emergir deste "organismo" mecanismos secundários de regulação. 17
Esquematizo voluntariamente o aparente paralelismo das concepções de Breuer e Freud no quadro abaixo: Breuer
Freud
Homeostase do organismo Homeostase nervosa (energia tônica)
J.. Boa circulação (energia cinética)
Energia liv~>: descarga Energia ligada: nível
Claro que se pode dizer e deve-se dizer que todo o Freud e o co[jjunto do campo psicanalítico se situam para além dos problemas colocados por Breuer. Mas esta é uma solução que. em um certo sentido. livra-se da questão. precisamente da questão do organismo, contentando-se em considerar o biologismo de Freud como um modelo puro, uma ficção, um simples modo de dizer. A permanência desta ficção, sua insistência na obra deste o Prqjeto até Para além do principio do prazer e o Esboço de psicanálise. incitam-nos aqui a interpretar, não sem fundamento: a ficção biológica significa que a passagem da energia livre à energia ligada é mediatizada, para Freud, pela idéia de organismo. Entendo aqui idéia com todas as suas conotações, tanto a de representação como a de ELii o.;: forma. A homeostase do organismo. sua forma que se mantém no ser. aí está o que "precipita" a ligação e o fator maior desta última. isto é, o Ego. A idéia de organismo age como causa final: a necessidade de uma provisão de energia sexual para realizar a ação específica? É o que Freud defendeu às vezes, por exemplo no início do Entwurf. Mas uma tal teoria choca-se às aporias de todo finalismo. A idéia de organismo age como metáfora? lntrojeção de uma Gestalt? Mais de uma indicação de Freud iria neste último sentido. Neste caso, a ficção biológica freudiana. sua "metáfora". seria apenas o reflexo de uma "metáfora" realizada. de uma verdadeira marca: introjeção. sob a forma do Ego, da Gestalt do organismo. Enfim lembremos que para Freud a homeotase, mesmo orgânica, não pode ser originária. É preciso que, por sua vez. a passagem da energia livre à energia ligada encontre seu antecedente mítico numa outra passagem a nível da natureza: a passagem da morte à vida. A morte sendo concebida como o estado anorgânico onde impera uma transmissão puramente mecânica de energia. transmissão total que significa equalização, sugiro completar assim o quadro precedente: Breuer
Freud Morte (lei das coisas e das causas)
Homeostase
L
Boa circulação
J.
Vida (homeostase do organismo) Energia livre
+
Energia ligada
18
Constata-se que em nenhum momento Freud se situa a nível neurobiológico tal como este se apresenta em Breuer. Situa-se. às vezes. a um nível aquém, em suas especulações sobre a morte e a vida. às vezes a um nível além. o nível da psicanálise clínica. Evidentemente é a relação destes dois níveis, para além do biológico, que constitui o ponto a decifrar no pensamento freudiano.
2) A segunda teoria das pulsões Sua aparição se situa (1919·1920) no centro de uma "guinada" que, retrospectivamente. pode parecer a origem das piores aberrações sobre a noção de Ego. Fundamentalmente. esta segunda teoria das pulsões marca a reafirmação da tendência ao zero que é o princípio mesmo do des~o inconsciente. portanto do desejo sexual. Reafirmação do princípio de prazer. se queremos tomá-lo no sentido mais radical como princípio de gozo e não como princípio de constância. O princípio de prazer. diz-nos Freud (Para além do princípio de prazer). está a serviço da pulsão de morte. Todas as emendas ulterioes não poderão apagar esta afirmação. O Esboço de psicanálise virá reiterá-la: a pulsão de morte é uma força de Entbindung (tradução literal: desligamento). a pulsão de vida é uma força de ligação (Bindung). Para nós, a afirmação da pulsão de morte é a afirmação da sexualidade em seu estado radical, Já onde é indissoluvelmente gozo e morte. desejo, interdição e transgressão. Através de que paradoxo Eros. esta força que no início da teoria era ruptória. geradora e até mesmo sinônimo de angústia, "desencadeamento" energético, voltou novamente a ser o Eros platônico fator de unidade e de síntese... isto é outra história; história que, mais uma vez, não é somente a história do pensamento freudiano, mas a própria história da realidade: no caso. a gênese do narcisismo.
3) O último problema a evocar é o da ligação Problema que já podemos colocar com Freud, mas que. na sua complexidade. leva-nos para além. Se o Entbindung. o desligamento. é um e único. se é nele que reside a intuição fundamental reafirmada até a forma da pulsão de morte, a ligação, seria ela única? Existem diferentes tipos de ligação? Talvez mesmo radicalmente heterogênicos? O que vem dar lastro ao processo primário, pois é disto que se trata. Em um ensaio já antigo, publicado com S. Leclaire, sobre o Inconsciente. tentei prolongar o que. em Freud. incita a ver na ligação um fenômeno de estrutura: o inconsciente seria a própria condição da linguagem, o desdobramento da cadeia associativa significante sendo o que permite um relativo arranjo na ordem do discurso. A raiz deste desdobramento. deste "recalcamento originário". é, evidentemente. a estrutura edipiana. 19
Hoje segui uma linha bem diferente. uma linha igualmente freudiana: o Ego, na sua consistência energética, seria um elemento de gravitação capaz de inibir este mesmo processo primário. e talvez primeiro ao próprio nível da percepção, de precipitar estes correlatos - irreconhecíveis - do nosso Ego que chamamos "objetos". Se é possível que existam dois tipos de ligação. uma que s~a Gestalt e outra que s~a estrutura. qual é a sua relação? A ligação que provém do Ego - a Gesta/t é outra coisa que uma bengala (provisória. mas um provisório que se tornou definitivo) para esta outra ligação? E. se assim é, não seria preciso conceber que a ligação estrutural já está iniciada, a mínima ("em estado reduzido") nas estruturas elementares do desejo inconsciente? Só posso deixar estas questões em aberto. contentando-me. aqui. em ter proposto, por esta "tentativa de esclarecimento", uma limpeza parcial do terreno sobre o qual somos chamados a trabalhar.
20
INTERPRETAR(COM)FREUD
1. INTERPRETAR COM FREUD Interpretar: a palavra não surpreende e a função-- profana ou, mais facilmente, sagrada - que designa pode parecer bem estabelecida. Em todas as épocas, em todos os espaços culturais. interpretaram-se os sinais. os oráculos. os escritos. Sempre a interpretação faz uso da ambigüidade, ou. como se diz. da "polissemia" do elemento manifesto: seja porque a mensagem se apresente por um fenômeno de aparência natural. seja porque se enuncie em uma frase propositalmente falaciosa, seja, enfim. porque. bíblia ou carão, transborde por todos os lados. por sua riqueza. o texto proposto a uma leitura imediata. Nutrindo-se na ambigüidade de um dado. a interpretação redobra. em si mesma, esta natureza ambígua: durante uma negociação, na qual presto meus serviços. posso protestar minha imparcialidade lembrando-lhe que "sou apenas intérprete dos desejos de seu adversário B". Mas quando transmito a Besta entrevista. este. inquietando-se que eu posso ter me comprometido demasiadamente em seu nome. replicará indignado: "Aí você interpretou meu pensamento". Traduzir. mas também desviar. acrescentar. distorcer. ainda que ligeiramente. o sentido manifesto e imediato é o que conhecemos também em psicopatologia: a interpretação paranóica. Sistemática, armada de uma visão do mundo que é sem dúvida somente a contrapartida e a transposição da unidade precária e ameaçada. e por isso mesmo mais rígida. do seu Ego. o paranóico nos apresenta uma espécie de compendium de todos os procedimentos da hermanêutica: interpretação de sinais, de gestos. de ausências tanto quanto de presenças. de textos também - tanto sagrados como profanos- que direta ou indiretamente sempre lhe são endereçados.
21
Tudo isto com uma precisão e uma perspicácia que Freud bem salientou. (1 )É verdade que ele retoma tudo no seu discurso pessoal, mas seguindo linhas de força virtuais, significações inconscientes que estavam apenas esboçadas, às quais dá uma ênfase impiedosa. No sentido de toda hermanêutica não-freudiana. cabalística ou paranóica. antiga ou patrística, interpretar é situar-se mais além de um dado e. a partir deste ponto, visar a um aquém. Procedimento que se pretende nascido de um saber. e que não temeria comparar-se ao da ciência. Mas aqui o dado se apresenta já como portador de um sentido, como uma palavra a decifrar, um livro que seria ao mesmo tempo para ser lido. traduzido e substituído por um texto mais verídico. Nas palavras de Foucault. a propósito da hermenêutica do Renascimento: "Não existe comentário, a menos que. sob a linguagem que se lê e se decodifica. flui a soberanidade de um texto primitivo". (2) Penhor do empreendimento de interpretar na sua autenticidade, esta estrutura de dois níveis -texto manifesto e texto latente - é maltratada pela crítica moderna. O texto manifesto, gesto, palavra cotidiana ou mesmo obra. é apenas, afinal de contas. uma "nature2.a" aberta a todos os sentidos. Não há "Racine" de Racine. de maneira que o crítico clássico que pretende no-lo restituir é apenas um falsário. na melhor das hipóteses. um ingênuo. Ou então. se admitimos que havia. talvez. um sentido da obra para o autor. este sentido não nos interessa mais do que toda outra variante ou variação sobre o texto. no máximo como documento "psicológico" e "anedótico". Interpretar ou ler é a mesma coisa: retomar no seu universo pessoal, reanimar com seu próprio sopro. como o faz o "grande intérprete" para a partitura morta que vai procurar na loja de Durand. (3) Deutung: interpretação. Sem querermos chegar nós mesmos ao misticismo hermenêutica que. se autorizando d
1 - "Para todas estas manifestações do inconsciente de sua mulher (o paranóico ciumento) mostrava uma atenção extraordinária e se aplicava a interpretá-la com rigor. tanto assim que. para dizer a verdade, tinha sempre razão e podia ainda fazer apelo à análise para confirmar seu ciúme. Na verdade. sua anomalia limitava-se ao fato de dar ao inconsciente de sua mulher uma observação demadíadamente aguda, dando-lhe muito mais importância do ue o teria feito qualquer outro". (Freud. S. 1922. Sobre alguns mecanismos neuróticos no ciúme. na paranóia e na homossexualidade". Obras completas). 2 - Foucault, M. Les mots et les choses. Paris. Gallimard. 1966. p. 56. 3 - A gravação em disco ou em filme de uma obra musical ou teatral não muda nada a objeção, quando esta é levada ao seu principio: em nome de que absoluto privilegiar a execução da "Sagração da Primavera" dirigida pelo individuo Stravinsky?
22
pressentimento do sentido. a intuição, podem ser apenas arautos deste trabalho de decodificação. (4) A originalidade da interpretação freudiana merece. na realidade, ser relembrada e enfatizada, P9i?_!§ freqüentemente mal conhecida tanto em certos esforços teóricos para fazê-la entrar no quadro geral de uma iiermenéllficãquaiiti:i ein uma prática que, para os psicanalistas mais nem sempre resiste às seduções de uma leitura a livro aberto. Nosso livro, nosso texto pode ser o sintoma neurótico. os atos ou o discurso de um sujeito. o texto de uma observação clínica e. de maneira exemplar. a narração de um sonho. Estamos aí diante de um dado que se apresenta com um certo sentido e pretende bastar-se a si mesmo - significante e significado - : contamo-nos os sonhos, rimos deles ou nos amedrontamos, seu sentido poético é reconhecido universalmente. Um texto, portanto, que podemos ler e parece que até resumir. expor de segunda mão, etc. Diz-se com freqüência - o próprio Freud algumas vezes o disse - que a psicanálise descobriu que existe um sentido oculto nos sonhos. E apoiando-se sobre a noção rapidamente assimilada de "sobredeterminação" acrescenta-se que existe UIJ!a pluralidade de sentidos possíveis e talvez todos igualmente válidos, cada um com seu nível maior ou menor de "profundidade". Sustentando-se apenas sobre este tipo de formulação. vemos mal o que poderia distinguir Freud de toda a corrente contemporânea que recusa a idéia de que existe uma interpretação válida de qualquer produção significante.
mesmo
ortoaoxõs.
E os próprios psicanalistas prestam-se seguidamente a uma tal redução de sua teoria e de sua prática: introduza-se numa reunião em que um deles expõe a seus colegas um caso clínico e preste atenção à discussão. Com facilidade será percebido no momento o mais sábio e o mais reservado dos auditores: ele se arrisca a propor uma interpretação mais completa e mais profunda do material que foi exposto. utilizando. sem dúvida com discrição, o contexto. a parte das "associações" que foi relatada pelo conferencista. etc. Mas o mais louco, e nem sempre o mais jovem, chegará a traduzir de uma só vez e como sobre um livro aberto tal sonho que só foi contado incidentalmente e sem nenhum comentário. O mais louco pode ser o próprio conferencista; pois. em seu lugar, não é necessariamente privilegiado e nada o autoriza a subentender que tal fragmento manifesto é portador de um sentido inconsciente suficientemente claro para que seus auditores e ele próprio tenham acesso a ele sem trabalho. (5) 4 - Cf. o início do capítulo da Traumdeutung que fala sobre "o método de interpretação" e situa a prática psicanalítica em relação aos procedimentos antigos ou populares de interpretação dos sonhos. (Freud, S. A Interpretação dos sonhos. Obras completas.) 5 - Ninguém entre os analistas resistiu a este gênero de interpretação. e sem dúvida nem o próprio' Freud. No momento de entusiasmo pela descoberta psicanalítica que nascia no deslumbramento de ver coincidir as interpretações da cura psicanalítica dos indivíduos com as análises dos mitos e do folclore. Freud dá consistência e autoridade a uma teoria do "simbolismo" que pretende reencontrar uma linguagem inconsciente universal. símbolos que não seriam marcados nem pela história do individuo nem mesmo pelas particularidades desta ou daquela civilização. Nesta interpretação dita "simbólica"
23
O que. então. caracteriza a interpretação psicanalítica? Não é somente a certeza de que existem nos comportamentos com os quais é confrontada ao menos dois textos: aquele que o sujeito dá ou se dá na imediaticidade de sua consciência, e um texto. uma espécie de discurso inconsciente que se chama "fantasia de desejo". É o método necessário para pàssar de um a outro. Este método, caracterizamo-lo como análise, mas num sentido ao mesmo tempo hiperbólico e desviante em relação ao que o espírito cartesiano entende como tal. As Regras do método supunham uma decomposição em partes naturais e simples. justapostas umas às outras. de modo que o procedimento da reconstrução. da "síntese", resultava por si mesmo nos termos de um recorte convenientemente ajustado às linhas de clivagem do objeto. Na técnica psicanalítica tudo se passa de forma bem diferente. As duas regras do diálogo. regra das associações livres para o analisado e regra da atenção igualmente flutuante para o analista. formam um todo metodológico. O essencial da ênfase porta sobre este preceito de tratar igualmente a todos os elementos do discurso. Todos os detalhes de um sonho, por exemplo. devem ser tomados, sem que nenhum seja privilegiado. como ponto de partida possível para uma cadeia associativa. Mas o próprio termo "elemento" não deve iludir: não há, num sonho, partes extra partes que mereçam uma delimitação simples, os elementos não são átomos significantes nem mesmo átomos "distintos" no sentido em que a teoria lingüística pode concebê-lo para o discurso articulado. O que chamamos elemento do relato é qualquer coisa. propriamente falando, deste relato, tanto um detalhe como uma cena ou o conjunto do sonho. Entre a parte e o todo não existe nenhuma relação de subordinação: a parte pode valer pelo todo. o todo pode valer como um elemento entre outros. O que Freud chamou deslocamento da intensidade psíquica ou. ainda, inversão de todos os valores psíquicos no sonho é apenas a justificativa teórica desta regra de divisão da unidade significante segundo todas as linhas de repartição imagináveis. segundo as fronteiras aparentemente menos naturais que possam existir. Escandalosa para o pudor ou o sentido moral. a regra de nada omitir durante uma sessão e de tratar todo pensamento da mesma maneira é pelo menos tão chocaftte para o entendimento quanto para o "Ego". Os paradoxos, os paralogismos que provoca. somente as confirmações e as avaliações da cura nos obrigam a admitir. Assim. podem fazer parte dos elementos do sonho. e sem que nada lhes confira um valor privilegiado. a impressão que produziu sobre mim (tristeza? medo?) ou ojulgamento que acredito ter sobre ele em "segundo grau". Este sonho era "vago" ou. então. "a partir daqui não lembro mais nada": estas frases podem nos pôr na pista. não de uma característica do sonho. mas de um "pensamento latente" entre outros: o de meu amigo X que gosta de usar roupas meio "soltas". ou de um esquecimento que cometi em estado de vigília. antes do sonho. Inversamente. o pequeno absurdo de um detalhe apenas perceptível pode marcar. como o faria um "exponente" algébrico. ele chega mesmo a ver um segundo método paralelo àquele que passa pelo trabalho paciente das "associações" individuais. Se refletimos. portanto. o "simbolismo" (tomado neste sentido bem preciso de uma "simbólica") pode ser reduzido talvez a um só símbolo verdadeiramente universal: o elemento significante mínimo e destacável. o "pequeno ("das Kleine'l. o falo nas suas inúmeras figurações.
24
o conjunto da fórmula de um sonho do sinal de negação ou de derisão. Assim também o relato pode valer pelo conteúdo. o significante pelo significado. e reciprocamente. Desse modo, a metãfora encontra seu pleno peso na realidade: a lembrança desta pessoa. que trago na idéia. é o mesmo oQjeto que coloquei em mim. incorporado. · · propício ou destrutivo. Interpretar em psicanálise é. em primeiro lugar. desmantelar e desarticular. de maneira radical, a organização do "texto" manifesto. E a partir daí seguir. sem perder pé. as cadeias associativas que formam uma rede aparentemente desordenada e monstruosa. sem nenhuma proporção nem correspondência com a cadeia da qual • saiu. E. se um conteúdo latente acaba por se esboçar. nunca é como uma tradução. no sentido corrente do termo. nem mesmo como uma transformação que, fosse ela tão complexa. na sua lei, quanto uma anamorfose. ainda assim não faria corres- ponder ponto por ponto o texto manifesto e o conteúdo latente. Interpretar é agarrar-se firmemente às asas do discurso. aceitando não ver mais longe do que o passo seguinte, animado pela única certeza de que as pegadas do caçador-caçado acabarão por se desenhar. pela reincidência dos seus numerosos entrecruzamentos. os nós significantes que marcam uma certa seqüência inconsciente. (6) Ese. às vezes. é preciso tentar enunciar esta seqüência num discurso. dificilmente pode-se ainda considerar como interpretação, tanto que Freud. num artigo tardio, , preferiu introduzir o novo termo "construção" a fim de reservar o de interpretação a este caminho do singular ao singular que consiste no essencial do procedimento· analftlco. "O termo Interpretação relaciona-se à maneira pela qual nos ocupamos de um elemento em particular do material. uma idéia que vem subitamente. um ato falho. etc. Mas pode-se falar de construção quando se apresenta ao analisado uma parte de sua pré-história esquecida ... " (7) Construir este procedimento próximo da interpretação. mas já distinto dela. seria ligar na seqüência da fantasia um certo número de elementos significantes aos quais está fixado o des~o. Quanto a esta "reconstrução". a esta "síntese", da qual muitas vezes se queixaram de que ele não a levasse ao paciente abalado pela análise até em suas razões de existir. Freud constantemente recusou-se a tanto. Aqui o adversário, Jung e a escola de Zurique. desenvolve num mesmo front um só e mesmo ataque. Às vezes. mais francamente. reclama do analista que substitua o que sua interpretação "redutora" destruiu. propondo ao neurótico novos ideais de natureza "ética" e religiosa (edificar: piedosa reconstrução ...). Às vezes. mais insidiosamente. apresenta sua exortação religiosa como interpretação. senão como a única verdadeira interpretação. É a via dita "anagógica" que pretende transformar a interpretação freudiana restituindo-lhe seu "verdadeiro" sentido. reatando ao mesmo tempo com a tradição teológica que pretende elevar-se do sentido literal dos textos sagrados ao seu sentido "espiritual". São as estruturas fantasmáticas descobertas pela análise freudiana que se tornam elas mesmas "símbolos" a serem decifra6 - Cf. Laplanche e Lecalire: Tinconscient, une etude psychanalytique" (Les Temps Modernes, julho 1961) e, principalmente, a análise de S. Leclaire do "sonho da licórnia". 7 - Construções na análise. Obras completas de Freud.
25
dos: "O complexo de Édipo tem apenas um valor simbólico. a mãe significa o inacessível ao qual se deve renunciar no interesse do progresso cultural. o pai que é morto no mito de Édipo é o pa1 'interior' do qual deve se libertar para se tornar independente". (8) Inútil enfatizar que esta pretensa transformação da perspectiva freudiana degrada o método psicanalítico naquilo que tinha de propriamente revolucionário e científico, para voltar ao deciframento místico do "Tratado das Assinaturas". Sem querer discutir a eficácia (para quem e para quê?) da terapêutica jungiana. constatemos que a interpretação sobre a qual pretende se fundar consiste apenas finalmente em captar o desejo do sujeito, retomar seu discurso num outro discurso. o do médico da alma.
2. INTERPRETAR FREUD? Ler - interpretar. Entre estes dois termos se situa um debate teórico sobre o que se chama. na imprensa. o "retorno a Freud". termos estes sujeitos, eles mesmos, à interpretação ... Pois aquele que se diz Leitor de Freud enobrece esta qualificação com uma maiúscula que deve consagrar sua leitura como Única e Profética. E o outro que quer afirmar a possibilidade de manter separados o tempo da leitura de Freud e o da interpretação. deixa de lado, na sua própria metodologia, o que podemos aprender em Freud de uma e de outra. (9) Lá onde o sapato aperta, na verdade, não é no que concerne ao direito do não-analista de ler Freud, expô-lo ou interpretá-lo; (1O) é quando se trata de apreciar o que se chama leitura e o que se chama interpretação. Leitura? M. Tort formulou a objeção decisiva: toda leitura de um grande autor não é necessariamente interpretação: "O problema verdadeiro da 'leitura' não é, absolutamente. expulsar toda interpretação, mas construir uma que sElia rigorosa com o texto". E de mostrar que uma leitura que se pretende apenas leitura, exposição fiel visando, pedagogic_amente. a substituir-se ao próprio texto. seria. ainda, uma interpretação, mas por falha. Vamos trazer a este debate duas peças tiradas de Freud. do que ele faz e do que ele diz. Do que ele faz. pois lhe acontece de ser ele próprio... leitor de Freud. e de expor sinteticamente seu pensamento, sllia sob a forma de uma apresentação dogmática. seja numa história da evolução de suas idéias. Por mais apaixonantes. sob vários aspectos. que possam ser tais textos. carregam certamente sua parte de responsabilidade na degradação e no empobrecimento da sua doutrina. no desconhecimento e na distorção de sua verdadeira história. No entanto. Freud não é destes 8 - Freud. S. Contribuição à história do movimento psicanalítico. Obras completas. 9 - CF. P. Ricoeur: "De l'interprétation. essai sur Freud. In: M. Tort: "De l'interprétation ou la machine herméneutique". Les Temps Modemes. n~ 237·8 (fev. - mar. 1966) e P. Ricoeur: "Une interprétation philosophique de Freud". La NEF. n~ 31 Uul.-out. 1967). 1O - Será preciso que a intimidação por certos "analistas". a chantagem da experiência incomunicável. do "terreno" e da caça eXClusiva da cura tenham se mantido firmes para que o filósofo, esquecendo seu procedimento soberano (homo sum.•. ), deva antes se encorajar para encarar lembrando-se que, finalmente. "é Freud que veio para o nosso terreno". (E ele se fez homem e habitou entre nós... )
26
autores que vivem da exploração de uma obra passada. O cuidado que dispensa ao escrever seu Esboço da psicanálise é testemunho disto. até os derradeiros anos de sua vida. Mas é, sem dúvida. por natureza que o desenvolvimento sistemático e sintético que procura ser um reflexo fiel da obra. e apenas isto. abre o campo a mecanismos intelectuais situados em um outro nível, mais "superficial". que os que entram em jogo na descoberta e exposição de primeiro impulso. O conceito de "elaboração secundária". fadado por Freud a propósito do sonho. é imediatamente utilizável em muitos outros campos. Este "levar na consideração a inteligibilidade" tem por finalidade tornar aceitável aos olhos das exigências morais. lógicas e até mesmo estéticas do pensamento vigil um conteúdo onde se exprime ainda. mesmo já de maneira deformada, algo da vivacidade e da incoercibilidade do desejo inconsciente. Agindo. de forma exemplar. no sonho. onde monta e impõe - como "acolado" - o argumento. ela pode ser reencontrada de maneira mais ou menos marcante em toda produção consciente. "Uma função intelectual nos é inerente. a qual exige. de todos os materiais que se apresentam à nossa percepção ou ao nosso pensamento. unificação. coerência e inteligibilidade; e não teme estabelecer relações inexatas quando. como resultado de certas circunstâncias. torna-se incapaz de perceber as relações corretas. Conhecemos certos sistemas que caracterizam não somente o sonho. mas também as fobias. o pensamento obsessivo e as diferentes formas do delírio. Nas doenças delirantes (a paranóia). o sistema é a coisa mais clara. domina o quadro mórbido. mas também não deve ser negligenciado nos outros casos de psiconeurose. Em todos os casos. pode-se demonstrar que foi efetuado um remant;Jo do material psíquico em função de um novo fim. remanejo que com freqüência é fundamentalmente forçado. ainda que compreensível se nos colocamos no ponto de vista do sistema". (11) Ler. e expor Freud. segundo P. Ricoeur. seria dar uma "reconstituição arquitetônica da obra", "produzir... um homólogo. isto é. no sentido próprio da palavra. um objeto substituto apresentando o mesmo arranjo que a obra". (12) Mas se os efeitos mais diretos da elaboração secundária observam-se no que uma obra comporta de mais manifesto. na preocupação de inteligibilidade senão de senso comum. na disposição e na estrutura arquitetônica. como uma "pura" leitura de Freud. supondo-se que tal fosse possível. poderia fazer outra coisa além de reforçar os efeitos de filtro. de censura e de colmatagem, efeitos "egóicos", até mesmo "superegóicos", já iniciados na inevitável leitura de Freud por Freud? Da "leitura" à "interpretação" passamos. com P. Ricoeur. de um extremo ao outro: da pura e impossível objetividade a esta "retomada em um outro discurso" para o qual o autor reivindica. senão os direitos da suQjetividade individual. ao menos os de uma espécie de subjetividade filosófica: "Absolutamente não digo que uma só filosofia sllia capaz de fornecer a estrutura de acolhimento onde a relação da força e do sentido possa ser explicitada: creio que se pode dizer a leitura de Freud; só se pode dizer uma interpretação filosófica de Freud. A que proponho vincula-se (
11. Freud. S. 1912. Totem e tabu. Obras completas. 12. La NEF. n~ 31 Uul.- out. 1967). p. 112.
27
à filosofia reflexiva". (13) A franqueza com a qual P. Ricoeur define sua interpretação como extrínseca. como apropriação de um pensamento. ou ainda como "retomada reflexiva", não deveria. no entanto. dispensá-lo de responder a esta pergunta: o que se torna. nesta concepção da interpretação. a descobertil freudiana da interpretação? Pois o que Freud chamou Deutung. aquilo através do que pretendeu trazer um método original. fundado e confirmado por uma experiência conduzida paciente e rigorosamente. para dizer tudo: um método científico. ou é preciso que se trate apenas. no fundo. de uma nova manifestação da eterna hermenêutica. ou. então, conviria que nos explicassem por que nada deste método freudiano pode ser. senão diretamente utilizável. ao menos transponível quando se deseja ser intérprete de Freud. E não bastaria que nos objetassem com a confusão de áreas ou de níveis: interpretação do sujeito humano. por um lado - interpretação do pensamento freudiano por outro. Pois se entendemos bem P. Ricoeur. é a mesma espécie de "teleologia" que implica o sujeito e o freudismo "numa seqüência de figuras onde cada uma encontra seu sentido nas seguintes". ( 14) A menos que se obtenha esta resposta. será preciso concluir: o ponto a que chega P. Ricoeur com seu próprio método de interpretação é precisamente o que Freud sempre recusou. contra o qual lutou através do desvio jungiano: a velha hermenêutica de inspiração religiosa. o "acolhimento" do sujeito no seio de uma "teleologia" que lhe é apresentada como a forma mais alta e mais verdadeira de seus conflitos. Com a Escola de Zurique. o "anagógico" se encontrava diante do dile~a: assumir sua natureza de doutrinação piedosa ou se apresentar sob a máscara de interpretação psicanalítica. Para P. Ricoeur. a hermenêutica se declara abertamente como retomada de um discurso na alteridade contingente de um outro discurso (uma interpretação) sem nada reter nem do que visava o procedimento freudiano ("os desejos inconscientes levados à sua última e mais verdadeira expressão"), (15) nem os meios rigorosos que ela entendia se dar para chegar a isto. (16)
3. INTERPRETAR (COM) FREUD Se chamamos "psicanalítica" e "interpretativa" nossa abordagem do texto freudiano não é no mesmo sentido em que o concebe um Ernest Jones na sua biografia 13 -C f. NEF. p. 119. Há termos que marcam uma safra. Em 1967 fala-se de "estrutura de acolhime~to" para os futuros órfãos da U.N.R. Mas Freud não construiu "duro" para que se acredite necessano propor um (ou vários) centros de alojamento pré-fabricados para alguns mfellzes freudianos errantes e perplexos? 14- Cf. NEF. p. 124. 15. Freud. S. A interpretação dos sonhos. Cit. 16. Para esclarecer a "dialética teleológica" que permitiria uma "retomada" do freudismo. a referência a Hegel está longe de ser univoca. As melhores e as mais convincentes das análises hegelianas são aquelas onde a nova "figura T, a interpretação, se impõe num convívio apaixonado. atento e obstinado em contato com a literalidade da "figura" precedente. Por este aspecto "terra a terra" do trabalho de "leitura". Hegel de alguma forrna prefigura a interpretação "redutora" de Freud.
28
de Freud, inspirando-se - é preciso que se reconheça - em indicações dadas pelo próprio Freud. O esquema que Freud propõe, às vezes, para um estudo psicanalítico do pensamento. uma psicografia de artistas. filósofos. etc.. (17) não poderia ser considerado como a última palavra da psicanálise sobre esta questão. Tomado entre a redução do pensamento a condições puramente subjetivas resultantes da contingência de uma história individual. e a crítica simplesmente racional deste pensamento. Freud somente encontra um hábil compromisso: a psicanálise. nos diz ele. aponta os pontos fracos de tal teoria, mas é à crítica racional. à crítica interna. que cabe demonstrar estas fraquezas descobertas por uma outra disciplina. Aplicado aos filósofos. aplicados por Jones ao próprio Freud. este método aparentemente esquece um dos pontos essenciais da descoberta freudiana: a neurose no seu sintoma. e com mais razão ainda o pensador. até em certos desvios de seu raciocínio, deve ter. de alguma forma. razão. Uma psicografia psicanalítica que levasse constantemente a sério esta máxima não poderia chegar ao puramente contingente. ao aberrante. mas. sim. a um des~o cujas figuras e razões desenham um fragmento de uma combinatória mais geral. (18) Resta. entretanto. que uma psicanálise do pensador e de sua obra se baterá sempre contra a objeção de princípio: encontramo-nos fora da cura. condição maior de aplicação do método. E. mesmo se q•Jeremos esquecer este detalhe (como o fez Freud para o presidente Schreber. por exemplo). é preciso confessar que, no caso de Freud, os elementos biográficos dos quais dispomos são incrivelmente incompletos. escandalosamente cortados e censurados (em primeiro lugar pelo próprio autor). O peso destas objeções é considerável. mas só pesa plenamente sobre o projeto de uma psicografia psicanalítica de Freud. O projeto do qual esboçamos aqui certas condições de possibilidade é diferente: transpor. mutatis mutandis. o metodo freudiano de análise do indivíduo e do seu desejo às exigências de um pensamento. ou seja. ao que. no plano da discursividade. se aparenta mais de perto a este desejo. Assim como demos apenas indicações fragmentárias quanto ao método de interpretação psicanalítica na cura. da mesma forma aqui só podemos nos limitar a alguns pontos do método: Conduzido no gabinete do psicanalista. o desmantelamento do pensamento e da expressão, o fato de colocar sobre um mesmo plano o "insignificante" e a declaração de princípios continuamente reafirmada. da parte e do todo, etc.. constitui uma regra metodológica salutar pelo fato de tomar pelo avesso as elaborações secundárias eas camuflagens da compreensão. permitindo que se revelem outras redes de significações. Esta regra. que poderíamos ainda chamar princípio da análise igualitária. conduz a um respeito renovado da literalidade. Sem que a literalidade do raciocínio seja evidentemente negligenciável. deve ser confrontada à - e contrabalançada por literalidade da noção. Um trabalho produzido com J.B. Pontalis ( 19) permitiu-nos 17. Freud. S. 1911. O interesse da psicanálise. Obras completas. 18. Cf. O que tentamos em nosso trabalho sobre Hõlderlin et la question du pére. Paris. PUF. 1961. 19. Laplanche. J. e Pontalis. J.B. Vocabulário da psicanálise.
29
constatar o quanto o desmembramento de um pensamento. longe de conduzir a um canteiro de obras disforme. permitia colocar em evidência o rigor da conduta freudiana no que concerne à criação e à utilização dos conceitos. Palmilllar a obra em todos os sentidos. sem nada omitir e sem nada privilegiar a priori. é, talvez. para nós. o equivalente da regra fundamental na cura. Uma vez esta enunciada e aplicada. numerosos mecanismos ou procedimentos do inconsciente. descobertos na interpretação psicanalítica da neurose ou do sonho. podem ser reencontrados a nível da obra. A absurdidade de um detalhe. como vimos. pode marcar o conjunto de um sonho do símbolo da negação. Na história do pensamento freudiano este procedimento do inconsciente se encontra em mais de uma ocasião. Assim. quando Freud introduz. em 1895. os conceitos de energia ligada e de energia livre que vão se tornar fundamentais para a doutrina. pretende estar apenas adotando a oposição introduzida por Breuer entre duas espécies de energia cerebral: energia tônica ou quiescente e energia cinética. Ora. três pontos chamam a atenção: 1~) Freud acha útil empregar outros termos diferentes dos de Breuer. 2~) Os termos que ele utiliza são na verdade tomados à física de Helmoltz. onde têm um uso bem preciso. com o qual Freud e o próprio Breu er estão familiarizados. 3~) O uso freudiano destes termos é aberrante e mesmo absurdo em relação ao uso de Helmoltz. uma vez que a energia livre de Freud corresponde. a grosso modo. à energia ligada de Helmoltz. e vice-versa. Para nós. aí está o sinal de que há um deslocamento a ser reconhecido, uma inversão a ser corrigida: o que Freud entende marcar assim inconscientemente do sinal da crítica é a teoria de Breuer com a qual. explicitamente. ele pretenderá constantemente estar de acordo. Do esquecimento. no sentido de recalcamento, encontramos um exemplo massivo com a teoria freudiana da gênese da sexualidade ou da pulsão, pois que Freud, após ter descrito de n1aneira tão pertinente nos Três ensaios sobre a sexualidade o nascimento da sexualidade a partir de toda atividade do indivíduo humano (nascimento pontuado pelos termos: auto-erotismo, apoio, perversidade polimo ri'&.- etc.). com a sua teoria do "ld" acaba por recolocar aparentemente a pulsão na ordem da natureza e do biológico. O psicanalista. diante de um esquecimento tão massivo. e que vai se perpetuar nos sucessores de Freud. não pode deixar de interpretar. Este esquecimento. para ele. é apenas o rebento. a encarnação intelectual de um recalcamento fundamental: aquele pelo qual a pulsão. renegando suas origens infantis e intersubjetivas, acaba por se apresentar ao sujeito como uma natureza. que conduz. após desvios complexos e aleatórios. a uma regulação quase instintual da atividade sexual do indivíduo. Equivalências ou permutações do significante e do significado, do oQjeto e da expressão. aparente confusão do plano da realidade e da causalidade com o plano da metáfora. tudo isto deve ser corrigido. analisado. interpretado. Assim. se nos dizem que o "Ego não é somente uma superfície. mas a projeção de uma superfície". não adianta nada denunciar a enorme confusão entre o modelo espacial do aparelho psíquico na superfície do qual se situaria o Ego. e o processo real de projeção
30
(no sentido ao mesmo tempo geométrico e neurológico) que viria somar-se a este modelo por uma ingenuidade demasiado evidente do raciocínio. É preciso chegar a entender que existem relações complexas. redes serradas entre as metáforas conscientemente expostas por Freud, metáforas inconscientes que a interpretação de seu pensamento permite reencontrar. e estas espécies de metáforas realizadas (as identificações. por exemplo) que a psicanálise descobre como constitutivas do ser humano. Vemos como um tal tipo de interpretação deveria se situar à distância do manifesto, a que ponto desconfiaria de tudo que é. na doutrina. remam;jamento "egóico". Equivaleria a dizer que este uso metódico e crítico de uma desmontagem dos significantes da obra implica a r~eição definitiva de qualquer perspectiva: perspectiva histórica ou perspectiva arquitetônica? Perdoar-nos-ão por apenas invocarmos aqui este problema complexo. Em uma abordagem interpretativa inspirada pela descoberta freudiana. talvez a noção de história (história de um pensamento) devesse ser retomada em um outro nível: o de uma "histórica" (no sentido em que. do problema. se passa à "problemática"). Longe de ser mais simples que a história. longe de ser o geometral que poderia explicar idealmente da passagem de um "estado de sistema" a um outro "estado de sistema". (20) esta "histórica" seria mais complexa. desenrolando-se segundo vários níveis. Mas para colocar seus princípios conviria primeiro examinar as múltiplas funções da contradição e situar no seu papel e na sua significação maior a instância repetitiva do desejo. A arquitetônica? Este termo implica demais a idéia de sistema. de bela ordenação, de harmonia. para que o analista não o considere com uma certa desconfiança. Ele prefere freqüentemente o termo "estrutura" do qual, para além dos modismos. Jean Pouillon deu recentemente uma tentativa de definição particularmente convincente. (21) Para esta definição. a psicanálise freudiana contribui com um detalhe bem particular. ligado ao seu método: a estrutura não poderia ser assimilada à forma ou ao sistema. na medida em que estes implicam. especificamente. um equilíbrio entre as partes cujos pesos comparativos podem ser avaliados em função da importância quase volumétrica que tomam no cor]junto. Um dos resultados da interpretação freudiana. como vimos. é de desvalorizar as considerações de ordem. de substituição da parte pelo todo, etc.. mostrando, por exemplo. como um detalhe ínfimo do sistema manifesto pode constituir. a nível do inconsciente. o eixo que faz contrapeso a massas "energéticas" consideráveis. A estrutura para Freud (isto é, ao mesmo tempo na sua obra e no seu objeto) é um equilíbrio binário ou ternário entre os elementos. os quais. no decorrer da história. podem se encontrar inteiramente deslocados. investidos de uma função completamente diferente, conservando. ao mesmo tempo. o mesmo nome e. aparentemente. a mesma natureza na obra manifesta. Para dar apenas um exemplo. é impossível encontrar. além das formulações às vezes inábeis de Freud. o significado do princípio de prazer sem levar em conta 20. Cf. P. Ricoeur. A NEF. p. 115. 21. Les Temps Madernes, n~ 246. nov. 1966.
31
os transtornos estruturais. as mudanças de investimento quase caleidoscópicas que conduzem a este aparente paradoxo: o princípio de prazer. situado no início da ?bra f!eudiana do lado da pulsão sexual é. num determinado momento. anexado a pulsao de morte.. para. finalmente. se encontrar como princípio regulador de Eros. esta força construt1va e geradora de síntese. bem diferente. no fim da obra freudiana do que era descrito em 1905 como sexualidade. • Uma história estrutural do pensamento de Freud é talvez possível sob a condição de levar plenamente em conta. no seu próprio método. o pensamento freudiano. Impõe-se como pré-requisito um longo contato junto a uma obra e aos seus impasses e ace1tar plenam:nte o !empo de uma análise "redutora". Podemos censurá-la por chegar a Uf!la v1sao relativamente fixa na medida em que acaba por mostrar. através das mutaçoes da teoria. uma permanência de exigência. a permanência de uma descoberta que deve. amda. talvez. encontrar sua forma científica adequada?
(
32
O ESTRUTURALISMO DIANTE DA PSICANÁLISE
Para o Seminário* em que apresentei este texto foi proposta a discussão de um certo número de temas. a seguir. sem procurar ordená-los de maneira sistemática. Eventualmente farei referência a alguns artigos meus, já publicados na revista Psychana/yse à J'Université. 1? Já faz mais de 20 anos que a "onda" do estruturalismo varreu a Europa. Nascida da lingüística. depois da etnologia. arrastou a psicanálise. Atualmente está refluindo. É tempo de fazer um inventário, positivo e negativo. colocando-se do ponto de vista da psicanálise e da sua especificidade. 2? A psicanálise estruturalista lacaniana parece ter sido sinônimo. nos Estados Unidos, de psicanálise francesa. O "French Freud"** é um Freud unicamente estruturalista? O responsável por este Seminário. se faz parte do "French Freud". não se deixa absolutamente englobar no estruturalismo no sentido que Lacan o definiu. ou seja. "os efeitos que a combinatória pura e simples do significante determina na realidade em que ela se produz". (1) 3? O termo "estrutural" é utilizado classicamente em inglês psicanalítico para designar a parte da metapsicologia que se ocupa da tópica do aparelho psíquico. (2) Já foi dito mais de uma vez que uma tal concepção não tinha nada a ver com o estruturalismo. Esta ambigüidade permite abrir uma questão fundamental: • Texto baseado em Seminário ocorrido na Universidade da Califórnia. Berkeley. •• "Freud francês", em inglês no original. (N. do T.) 1. J.acan. J. "Resposta ao Relatório de D. J.agache". In: Écrits 2. Cf. Hartmann. Kris e Lõwenstein. por exemplo.
33
uma tópica estruturalista, até mesmo topológica, matemática. no sentido que queriam os lacanianos, é possível e conforme com o seu objeto? Os toros. as fitas de Moebius. os nós boromeanos, etc. propõem figuras racionais do objeto da psicanálise... Racionais demais, talvez. se é verdade que testemunham um desprezo pelo que há de antropomórfico em toda figuração imaginária do aparelho psíquico. Minha proposição seria a seguinte: toda tópica é uma tópica que parte do Ego. E. como tal. é necessariamente imaginária. tão necesariamente quanto o Ego e o aparelho psíquico se constituem de forma imaginária. As figurações da tópica, derivados metáforo-metonímicos das realidades corporais e da ordem vital. são necessariamente imperfeitas. contraditórias. Não se pode "contornar" o Ego. e não basta denunciar suas ilusões para ultrapassa:lo ou aboli-lo. (3)
4? Em Freud, numerosos aspectos se prestaram à interpretação e mesmo à anexação estruturalista. Cito: a) A noção de fantasia originária, precedendo a maneira como cada um de nós "interpreta" à sua maneira. como um músico, uma partitura preestabelecida. O conflito seria apenas a maneira como um indivíduo consegue se acomodar com "a estrutura". (4) b) Apredominância e a universalidade do Édipo. Esta predominância é interpretada por Freud como o resíduo filogenético da experiência da horda. Conhecem-se as objeções a esta teoria: - objeções históricas: - objeções metodológicas: esta teoria pressupõe o Édipo que ela des~a fundamentar: - objeções psicofisiológicas: a hereditariedade de experiências vividas é mais do que controversa. Com mais razão ainda a de uma experiência única. Se quisermos "ultrapassar" esta interpretação de Freud e conservar a proeminência do Édipo, seremos tentados a ver aí uma necessidade estrutural, até mesmo matemática: o "dois". a relação dual, representaria o risco de in diferenciação perpetuada entre mãe e filho: o terceiro termo, o pai, introduziria separação, ordem, lógica; em resumo, a lei. Está tanto melhor colocado para isto justamente por estar ausente: pater semper incertus. o pai morto, etc. (5) ( c) A estrutura edipiana se transmite como estrutura. de uma geração à outra? É o que se pergunta. por exemplo, R. Girard: "Como reproduzir um triângulo"? Eis aí uma leitura precipitada de Freud. Do triângulo parenta! ao Édipo da criança, nenhuma correspondência estrutural. nenhuma "transformação matemática" racional. O Édipo não se reproduz a si mesmo. Assim. a identificação da criança com o 3 - Laplanche, J.: "Faire Dériver la Sublimation". Psychanalyse à Université. t.2. n~ 7 e 8. 4 - Laplanche. J. e Pontalis. J.-8. "Fantasia Originária". In: Vocabulário da psicanálise. Cf. também a artigo "Fantasme Originaire, Fantasmes des Origines. Origine du Fantasme". em colaboração com J.-8. Pontalis, Les Temps Mademes. abril 1964. n? 215. pp. 1133-1168. 5 - Laplanche, J. e Pontalis. J. - 8. "Complexo de Édipo". In: Vocabulário d
genitor do mesmo sexo não consiste em "colocar-se na mesma posição": Freud é muito cético em relação à "identificação com o rival". Identificação é sempre identificação com o objeto de amor. Um Édipo que fosse só direto, "normal". daria uma identificação com o objeto: do filho à mãe. Para que o Édipo chegue a uma heterossexualidade é preciso que a constelação edipiana ~a também invertida, quer dizer, homossexual!... (6) d) A noção de castração e sua predominância crescente na obra de Freud: (7)
De teoria sexual infantil (a do pequeno Hans). a teoria da castração progressivamente tornou-se "teoria de Hans e Sigmund" (como se diz da "lei de Weber e Fechner"). Torna-se mesmo uma realidade, uma vez que seria uma "negação da realidade da castração" que daria origem à perversão. Inversamente. todo sujeito, especialmente em análise. seria incitado a "assumir sua castração". A castração, fantasia classificatória da "fase fálica" (todo humano ou é fálico ou castrado). torna-se o fundamento de uma "lógica fálica" funcionando segundo o princípio binário. Isto, seja sob a forma freudiana simplificada (ter ou não ter) seja sob sua forma Iacaniana mais sofisticada "ela é sem o ter". "ele não é sem o ter". Esta formulação é considerada por Safouan e pelos lacanianos como normativa: é preciso passar por isto para ser "normal". e) Mais geralmente. uma certa tendência classificatória, com freqüência binária, do freudismo, pode ser considerada como pré-figurante do estruturalismo: Ego e ld. dualismo pulsional. classificação nosográfica, etc. Mas não pensamos assim, na medida em que se trata sempre de quadros com várias entradas, e sobretudo onde o sentido das formas de passagem. até mesmo da dialética, são conservados. Entre estes tipos ideais e a realidade. as "séries complementares" acomodam transições sutis e. sobretudo, sínteses imprevisíveis. Por outro lado, a psicanálise estruturalista se compraz em um binarismojurídico. totalitário e sem sutilezas. sempre marcado pela normatividade: o normal e o neurótico. o neurótico e o psicótico. o neurótico e o perverso, o simbólico e o imaginário, o pênis e o falo, a análise do significante e a análise do significado, a análise e a psicologia, etc, etc. 5.' Para me deter em dois exemplos precisos. tentei mostrar como um verdadeiro processo de simbolização - na vida social, na vida individual ou na cura - era mais rico. mais ambíguo e mais contraditório que a assunção unívoca de uma posição normativa em relação "à Lei" e "à Castração": (8) Laplanche. J. Problemáticas 1: A angústia (3~ parte: angústia moral). Paris. PUF. 1979. Laplanche. J. "Simbolizações". In: Psychanalyse à /'Université. t.l. n~ 1 e 2. Cf. n? 1. pp. 15-28. 8 - Ibidem.
6 7 -
35
Assim para os ritos de passagem. e principalmente a circuncisão. A fecundidade de uma circuncisão verdadeiramente simbolizante é de englobar nela, de retomar. significações múltiplas e de fazer todo o espaço à bissexualidade. (9) Da mesma forma. o sintoma fóbico que pode ser com freqüência considerado como uma etapa positiva, simbolizante, principalmente na criança. O trabalho de Freud na cura do pequeno Hans foi de aprofundar e alargar o seu sintoma. não de reduzi-lo ao significado unívoco do medo de castração. (1O) 6~ Mais de uma vez tive ocasião de me expressar sobre a questão da linguagem, e especialmente sobre a fórmula de Lacan: "O inconsciente é estruturado como uma linguagem". Minha distância em relação a esta fórmula. distância que sempre foi nitidamente marcada, (11) acentuou-se ainda mais: a) O que quer que digam, a linguagem não é tão estruturada como se pretende. Não é o modelo de uma estrutura alogorítmica e binária perfeita. (12) b) O inconsciente não é feito de palavras. mas de traços de coisas, sendo que as próprias palavras aí são coisas. (13) c) O funcionamento inconsciente, sob seu aspecto mais radical, é o próprio oposto da estrutura: - ausência de negação. - coexistência de contrários. - ausência de julgamento, - nenhuma "retenção", ou fixação de investimentos. d) Que o inconsciente seja, num sentido lato. um fenômeno de significação. é evidente, mas é uma espécie de linguagem que perdeu ao mesmo tempo sua intenção de comunicação e sua intencionalidade referencial. O trabalho analítico seria precisamente de lhe restituir estas duas dimensões. (14) e) O modelo do recalcamento, que anteriormente propus em "O Inconsciente. um Estudo Psicanalítico" (15). continua me parecendo válido, sob condição de interessar sobretudo. não à sua seqüência matemática, mas às distorções reais que sofre nas diferentes conjunturas. isto é, naquilo em que escapa à matemática: - derivação pura - simbolização - recalcamento (16). \.. f) Finalmente. minha fórmula sobre o inconsciente seria antes: "O inconsciente é um como-uma-linguagem, mas não estruturado". 9 - Ibidem. a propósito da circuncisão (L 1. n~ 2. a partir da p. 221 ). 1O - Ibidem a propósito da fobia. 11 - Laplanche. J. e Leclaire. S. T lnconscient: une Étude Psychanalytique". L'lnconscient. Colloque de Bonneval. Paris. Desclée de Brouwer. 1966. 12 - laplanche. J. "La Référence à l'lnconsdent". Psychanalyse à /'Université. L 3. n~ 11 e 12. 13 - Ibidem. n~ 11. • 14 - Ibidem. n~ 12, pp. 602·603. 15 - Laplanche. J. e Leclaire. S. Tlnconscient: Étude Psychanalytique" Cit. 16 - Laplanche. J.: "La Référence à L' lnconscient", Cit.
36
7~ A irrupção, a intrusão do estruturalismo logicista na teoria do inconsciente pode se esclarecer usando os termos "digital" e "analógico": que se pense. por exemplo. nos dois tipos de mostradores de relógio definidos assim. O nível analógico do inconsciente é o nível do Ego e dos objetos mais ou menos totais. possuindo uma forma. É o que alguns desvalorizam sob o termo imaginário. O nível mais profundo do inconsciente ("pulsão de morte") é muito mais desarticulado. feito de elementos separados. de fragmentos de cenas, em resumo. por assim dizer. de pedaços di~untos. Esta descontinuidade do inconsciente pode dar origem à inferência de que ele funcionava como uma máquina binária. Mas a descontinuidade do inconsciente. que não conhece a negação e deixa subsistir lado a lado todos os elementos mnésicos, nada tem a ver com a lógica binária, a dos "bits" (no sentido de "binary digits"*). 8~ Isto quer dizer que toda tentativa de falar do inconsciente em geral. fora de um asssunto concreto (inconsciente de um texto. inconsciente de uma obra, de uma língua. etc.), me parece ser das mais criticáveis: - retorno ao incosciente coletivo de Jung; - esquecimento do que há de revolucionário no método analítico de interpretação; - indulgência para com as divagações individuais pseudopoéticas. trocadilhos, delírios. arbitrariedade pura da interpretação. O trocadilho do analista, se não se fundamenta no método, "só se autoriza de si mesmo". isto é. do inconsciente de seu autor. 9'! Existirá um pensamento não-binário? Pode-se "pensar o Impensável"? o que Hegel nos perguntava. ou antes, nos impelia a empreender.
g___
• Em ingles no original: dígitos binários. (N. do T.)
37
UMA METAPSICOLOGIA À PROVA DA ANGÚSTIA*
; Pôr à prova: esta expressão mereceria ser examinada sob vários aspectos. Antes de tudo, é pôr à prova o fato de querer explicar uma seqüência de pensamentos que se desenvolve há muitos anos, limitando-me. ao mesmo tempo, a aprofundar apenas um número bem restrito de problemas. Um movimento de espiral: é assim que imagino, às vezes, esta progressão: a espiral repassa regularmente, ciclicamente. na vertical dos mesmos pontos. Uma espiral achatada sobre um só plano volta a ser um círculo, círculo puramente repetitivo. Nenhum pensamento escapa à repetição porque nenhum pensamento escapa ao que chamo sua ··exigência··. e que é apenas a projeção. a nível intelectual. do nosso desejo. Um pensamento fecundo seria aquele que poderia. ao menos por momentos. descolar do plano do círculo. transformar seu movimento circular em aprofundamento. \ E uma vez que quis me apresentar rapidamente antes de abordar este assunto. reivindico também que minha produção. no campo da análise. está entre aquelas que geralmente se chamam "teóricas". A oposição entre teoria e clínica sempre me pareceu particularmente vã. sobretudo quando a clínica é invocada para recusar todo aprofundamento conceitual. Mais do que clínica, prefiro falar de experiência. da qual a dita clínica é apenas um fragmento artificialmente separado, uma espécie de artefato ... basta ver como o "pequeno fato" clínico. abstraído do seu contexto. é invocado em certos textos analíticos pela "veracidade". quando se pode ver que está inteiramente recortado e infiltrado por pressupostos teóricos não formulados. Experiência: é evidentemente a experiência das curas analíticas.'mas que nos remete diretamente à nossa experiência pessoal na cura. É também. da mesma • Texto baseado em conferéncía proferida na Universidade da Califórnia. Berketey.
38
forma. o que chamo a experiência teórica, e em primeiro lugar para nós. a de Freud e do nosso contato com o pensamento freudiano. O pensamento de Freud é seguramente o próprio modelo dà ~i@_Lf:! ..cJa__e)(periênclã:õ pensa!Jlf:!l)tQ_êjª_~J(periencia. e nao o pensamento da "exp!!_!'imentação". Mencionarei aqui de passagem Ümá-pesqwsa reaHZãaa,-num dõSi'iieus seminários sobre a metodologia da prova. e sobre a retórica. a arte de convencer. nos textos analíticos. Pois bem. para um lógico neopositivista, certamente que decepção: mesmo em Freud: o _que quer se provar jamais é provado: o progresso, a descoberta. está sempre alhures. às vezes escondido hUm çánth1hp do texto. Os argumentos testemunham o contrário ... e freqüentemente a lógica utilizada é a famosa lógica do caldeirão. Tenham a curiosidade, por exemplo, de procurar como é provada, na Interpretação dos sonhos, a tese da realização do desejo. Exemplos inadequados. raciocínios inadequados. recurso às pseudo-evidências do conteúdo manifesto... sem contar o que foi acrescentado em contradição. nas sucessivas reedições da obra ... e, Jast but not Jeast*, o blackout com que Freud encobre a análise dos seus próprios sonhos quando ele atinge, precisamente, o des~o sexual. E. no entanto, isto funciona: a exigência. a pulsão. diria. é mais forte do que todos estes artifícios. A Wunscherfüllung•• sai vitoriosa. Minha experiência pessoal? É. portanto, a da teoria: mais precisamente. a da minha exigência interna tal como se reflete na teoria. Mas como agir com a teoria. se se pretende buscar aí outra coisa além de encadeamentos lógicos impecáveis? É aí que entra o termo "pôr à prova". Pôr a teoria à prova não é procurar "aplicá-la". Aplicar uma teoria (ou uma interpretação) nunca é mais do que uma forma de "aderi-la" artificialmente aos fatos. Nãol Pôr uma teoria à prova não é assim tão neutro. tão científico. tão desencarnado assim. É, muito pelo contrário, maltratá-la. fazê-la ranger. fazê-la agüentar as cargas mais insuportáveis: não para destruí-la. simplesmente: mostrar sua vaidade e suas contradições: mas para. de algum jeito. fazê-la "entregar a alma". Agora. depois desta digressão. chego ao meu propósito. Pois que instrumento de tortura - ou que teste de sobrecarga - seria mais adequado para fazer a teoria psicanalítica "entregar" sua verdade do que a _prova da _éll!.9_ú_stia? Angústia. experiência cotidiana de nossas curas. experiência cotidiana de nosso próprio inconsciente, experiência também que percorre a obra de Freud do princípio ao fim. como uma pergunta clJja resposta nunca será assegurada. Uma metapsicologia, portanto. posta _à prova da angústia ... A metapsicologia. como sabem. mais do que em capítulos. se diferencia para nós em "pontos de vista": tópico. econômico. dinâmico e, enfim. genético. Pontos de vista que se cruzam. se recortam. com duãS afinídãdeslmportãiil:eS. 'ã meu ver: por um lado a tópico-econômica. uma vez que o estudo das pulsões é inseparável dos locais onde elas exercem suas forças e. por outro lado. ã'Cifriamico-genetJca.· -.. • Em inglês no original: em último lugar. mas não de menor importância. (N. do T.) •• Em alemão no original. (N. do T.).
39
Minha abertura. quanto ao problema das pulsões. será voluntariamente abrupta. polêmica. fazendo alusão a este outro ponto de vista metapsicológico que Rapaport, apoiando-se sobre Heinz Hartmann. quis na sua época acrescentar aos quatro clássicos. e até mesmo considerar como dominante: "o ponto de vista da adaptação". Para me exprimir de maneira humorística, direi: como no serviço militar. na chamada nominal dos "pontos de vista metapsicológicos sobre a angústia", quando se clama o nome: "adaptação". a resposta é "ausente". Claro que estou esquematizando. com a finallaãaê i.íriica de esclarecer de sáída minha posição: trata-se de uma franca contestação da tese de Inibição, sintoma e angústia que deu uma verdadeira guinada no pensamento freudiano. colocando em primeiro plano a noção de perigo real. com a introdução da angústia-real (Realangst) concebida como primária em relação à ang~stia pulsional (a Triebangst). Nesta obra rica e apaixoriante. mas bastante ambígua e mesmo contraditória. uma trqjetória fecunda me parece desviada, talvez invertida de maneira inquietante: a linha de pensamento que encontrava seu ponto culminante em Para além do princípio do prazer e estava marcada pela Introdução à psicanálise. capítulo ~ (exposição demasiada e facilmente negligenciada como fazendo parte de uma obra reputada de vulgarização). Aceitemos. como ponto de partida. a distinção freudiana de três afetos: Schreck - Angst - Furcht: terror. angústia e medo; os distanciamentos e coincidências semânticas entre estes três termos. nõ5êliferentes idiomas. podem estimular a reflexão e qjudar-nos a alcançar a complexidade dos fenômenos. Mencionemos como típicos: - o terror da neurose de terror. ou traumática: - a angústia da neurose de angústia; - o medo... diríamos da fobia? mas não é sem razão que esta é chamada Angsthysterie. histeria de angústia e não "histeria de medo". Tomaríamos antes como exemplo de medo as reações de medo diante de um perigo real. Mas isto se um tal medo pudesse ser isolado em estado puro, misturado de angústia: este é precisamente um dos aspectos mais importantes da questão. Entre estes três afetos. o terror é o termo fixo: unívoco. relativamente fácil ·· ' de apreender nas suas manifestações e a definir como estado de desorganização - resultante de um afluxo de excitação incontrolável. Em compensação, a relação da angústia com o medo permanece flutuante mesmo que. à primeira análise. admitamos a distinção que consiste no fato de dizer que a angústia faz abstração do-objeto para enfatizar a preparação ao perigo. enquanto que o medo supõe ~'um objeto definido do qual se tem medo". Rapidamente o critério de relação ao objeto. principalmente, se revela insuficiente. uma vez que na fobia encontramos uma Angst vor. ~ma angústia de ... alguma coisa ou alguém. r ·· É ãe Sê éolocãr. portanto. a questão da prioridade do medo 'tlu da angústia, e a única maneira correta é fazê-lo em função da assim chamada adaptação. referência central de Inibição, sintoma e angústia. À Zweckmãssigkeit. ou adaptação a uma finalidade natural. opõe-se a Unzweckmassigkeit que recobre não somente a inadaptação. mas o fato de que uma reação ou um modo de defesa se tome secundariamente inadaptado. anacrônico. A partir daí, nossa interrogação se formula assim: a angústia
e
40
do ser humano é um medo anteriormente utilitário, que depois se tornou inadaptado. tendo buscado secundariamente um novo objeto ou um novo perigo como pretexto? Ou então a angústia - não adaptada a um perigo real qualquer -seria o fenômeno inicial? A existência ou a ausência de um medo (no sentido adaptativo) na criança é uma questão quase experimental, e surpreende-nos que Freud em Inibição, sintoma e angústia não tenha aderido firme e constantemente à evidência que ele próprio havia demonstrado antes de maneira tão clara: a inexistência na criança de montagens adaptativas "instintivas" face aos perigos reais. Cito aqui o texto tão importante da Introdução à psicanálise: (1) "Quanto à verdadeira angústia-real. a criança parece possuí-la num grau pouco pronunciado ... Seria desEliável que tivesse recebido de herança um maior número de instintos tendendo à preservação da vida; isto facilitaria grandemente a tarefa das pessoas que a vigiam e que estão encarregadas de impedi-la de expor-se a perigos sucessivos. Mas na realidade a criança começa por exagerar suas forças e se compor!_a sef!! expe!!_f!l~f!ta~angústiª pqrque iQ.f!(Jra o_P.E:r.igg_. Corre na beira da água. sobe na soleira da janela, brinca com objetos cortantes e com o fogo. em resumo. faz tudo que lhe pode ser nocivo e causar preocupação aos que a cercam. _É:_~omeote_pela educação g~e se acaba f~~~!l_d.Q...D..ascer nela a angústia-real. pois não se j)õdê reãTmente permitir ijúe aprenda por experiência pessoal." A ciência comportamental mais moderna descreve em detalhe no animal estas montagens inatas: assim ocorre com o medo do vazio em certas espécies de pássaros que fazem ninho nas fendas das falésias. Coloque um bebê numa situação análoga: o vazio nem mesmo terá sentido para ele. Na nossa opinião, o que aparece primeiro é, portanto.• a angústia.oão.a
Freud. S. lntroduction à la psychanalyse. Paris. Payot. 1972. p. 385.
41
- A angústia originalmente não é transitiva. mas reflexa ou média: ich habe Angst ich ãngstige mich je m'angoisse (eu me angustio) - A transitividade da angústia. a que constatamos no sintoma fóbico, é secundária, indireta: ich ãngstige mich vor dem Pferde me angustio diante do cavalo - No ser humano a própria transitividade do medo, do fürchten. é, talvez. indireta. Atrás do aparente: ich fiirchte den Pferd .temos o cavalo perfila-se o: ich fiirchte mich vor dem Pferde ponho-me a ter medo diante... simples evolução do: ich angstige mich vor. .. ou mais exatamente ainda de um: es ãngstigt mich vor... É. portanto, na voz reflexiva ou. mais precisamente. na voz mediana que encontra~o.e~ajQ_çl_a_ ang~~tia:
I isto me angustia diante do cavãiõ:)
A transltlvidade do medó. iio ser tíl.imano. é, portanto. uma ilusão? É provável. em geral. e é em todo caso certo no que concerne ao medo fóbico. Lembremo-nos que a psicanálise sempre progrediu por destruição das pseudo-evidênci
entre estes dois medos externos um medo interiorizado, reflexo: "tenho medo do pai interiorizado". por exemplo? Aqui me falta tempo para discutir a fundo esta noção de interiorização. e v!lio-me forçado a enunciar. nos termos mais claros possíveis, as proposições aparentemente contraditórias que é preciso conseguir abordar simultaneamente. Sim. a relação com o mundo exterior vem em primeiro lugar. e todo o mundo inferno. inclusive as próprias pulsões. coristitue!Tl~!le _a partir de_ele~ntos intt~J~Eº"S, pinçados destas experiências. M~s ao mesmo tempo o m!Jnpo i!!_~rior vem ~!!!_primeiro lugar. no sentido que os fantasmas que definem as pulsões sexuaisnão têm mE1Qida éomum com as experiências das quais são derivadas, · Sim, o oQjeto real está perdido eo Íantasmã sexual ~!LÇQDs.tJl:!lLa.pa[tir_desta perda. Más. ao mesmo tempo. o ol:jjetiJ fantá:sio_s0 Cl\!ELP_õe em_ação_des!liQsexual é apeiiãs um derivado longínquo. irreconhecível. do objetqQ[imário deapego. É. portanto. no primeiro tempo da introjeção que se situa a ruptura fundamental. a que institui um modelo do des!lio e da sexualidade a ~r!i.L~ll_f!l~ela_ção mais ou menos adaptativa. Esta ruptura. esta introjeção. é o que tentei. seguindo Freud. âé5érever o mais exatamente possível recolocando em funcionamento e reinterpretando dois conceitos meio abandonados. o de apoio e o de sedução. Todos os contrasensos são possíveis aqui: e principalménte como o de interiorização se presta para tanto. pois deixa crer que é uma relação externa que se encontra, no seu conjunto. sem modificação essencial. transpo'stà ao interior. Assim. uma mãe realmente sedutora se transporia em mãe excitante interna: uma mãe ou um pai realmente atemorizantes Interiorizar-se-lam ern medo ou angústia pulslonal. Ora. o que é preciso compreender é que a gênese tanto da excitação sexual interna como da angústia que lhe é ligada está em função não das características do objeto real. mas do movimento de introjeção, do 'Jogar para dentro de si". Tlldo que é "posto para dentro" na fantasia, só pode sê-lo co~o sinal. o expoente. enrolado na bandeira da excitação sexual e da ameaça interna ligada a ela. - Concebem agora minha hesitação para definir a angústia pulsional como voz reflexiva: eu me angustio ou antes como voz mediana: alguma coisa assim como: isto se angustia em mim. Certamente existe. em toda experiência, um momento de reflexão, de interiorização. mas o erro é de crer que o eu me angustio pode. por exemplo. decorrer diretamente de uma interiorização da agressão do outro. ou de uma "identificação do agressor". O agressor interno não é o agressor externo secundariamente interiorizado: $ agressor e aQ[ll_stiante porq~e é__intgrf1º·porque. como diz Freud. ataca o Ego dQ lado em que_este não espera.
um termo
43
Tópica e econômica da angústia Introduzi há pouco o termo "Ego", o que nos faz passar diretamente à questão tópica: a angústia põe necessariamente em jogo as grandes instâncias. Ego, ld e Superego. Não que exista. como Freud discute às vezes. uma angústia do ld. uma angústia do Superego e uma angústia do Ego. TÇJda angústia é angústia--de--Ego. o Ego é "o verdadeiro local da angústia". Mas toda angústia é a tradução do ataque interno proveniente de uma outra instância: o ld. e tamb~m o Superégo. Falar de angústia é. portanto. necessariamente. referir-se a uma tópica como teoria dos lugares. Tópica psíquica mas também tópica diretamente material: é no espaço do corpo que a angústia é sentida, e. mais do que qualquer outro afeto. são as descargas e as inervações corporais que a especificam: dificuldade respiratória e constrição torácica. palpitações e vertigens são espontaneamente situadas numa topografia corporal. É também no seio de uma topografia que surge necessariamente a angústia fóbica: acomodação defensiva, no espaço, de toda fobia. mas também investimento ansioso do próprio espaço e particularmente de seus limites. tão particular na agorafobia: o espaço como lugar da angústia é. provavelmente. apenas uma projeção ou uma dilatação do espaço psíquico. Toda tópica é tópica do Ego. e toda tópica só pode partir dos esquemas mais simples. aquele. por exemplo. da famosa "vesícula" de Para além do princípio de prazer. esta bolha de protoplasma. este protozoário que logo vai se complicar estranhamente. ou mesmo tornar-se contraditório. Nosso primeiro modelo é. portanto. o de um Ego. bolha ou "organismo" homeostático que tende, por todos os meios. a restabelecer seu nível de funcionamento e a forma correlativa deste nível. Vê-se como tópica e econômica são estreitamente solidárias: não há nível constante sem a configuração fechada de uma Gestalt não há Gestalt sem uma diferença de nível mantida entre seu interior e o exterior. Ainda outra observação: o Ego assim concebido constitui por definição o paradigma e o correlativo de todo objeto, entenda-se objeto "total". O ponto crítico de um tal esquema é o seguinte: concebe-se bem a homeostase de um protozoário, tendo de enfrentar os ataques provenientes da sua periferia; mas então como figurar a homeostase do Ego? Ele também deve manter seu nível, sua constância interna ... aparentemente. portanto. contra um "exterior';. "Mas os ataques que ameaçam esta constância provêm eles mesmos do interior desta fronteira. desta periferia interna onde atua seu conflito com o ld. Contradições? Quando se trata de tópica. reivindicamos abertamente direito às contradições do imaginário. Se é verdade que nosso aparelho psíquico se constrói realmente, no seu ser-próprio. pelo processo da nossa imaginação. como é que os modelos que fabricamos a posteriori poderiam se liberar das contradições "da própria coisa"? Estes modelos. para serem fiéis. são. necessariamente. incoerentes: fazem figurar sobre um mesmo desenho e atuar uns com os outros os elementos mais heteróclitos: corpo. psiquismo e Ego, pele e angústià, fantasia e complexo de Édipo... Nenhum esquema freudiano. desde a correspondência com Fliess até as "Novas Conferências".
44
subtrai-se a esta condição constitutiva. A tópica deve. assim. permanecer aberta a um certo número de contradições. ou pelo menos acomodar-se com elas; assim. por exemplo: O ld é um externo-interno. Corpo estranho "implantado da carne". isto é, na periferia do Ego; ligado aos objetos exteriores. atacando ao mesmo tempo do interior; o que Freud parece indicar com o seu esquema das "Novas Conferências", este famoso ovo aberto "para baixo". isto é. ao mesmo tempo em direção ao corpo e em direção ao exterior. - rã mésmã contradição se encontra ainda do ponto de vista do "Ego": pois este possui pelo menos dois "interiores": o interior "constante" que mantêm contra as agressões dirigidas à sua integridade. e o interno-externo das energias pulsionais. Às vezes. Freud nos descreve o Ego como que submetido a dois tipos de exigências simétricas: as da realidade exterior e as do ld. O fenômeno da angústia. relacionado ao esquema tópico e às "fronteiras" do Ego, obriga-nos a fazer importantes correções nesta aparente simetria. O Ego não é. como a bolha protoplasmática da metáfora. submetido diretamente aos ataques e aos afluxos de energia do mundo exterior: o que desempenha. para o Ego. a função de energias anárquicas. traumatizantes. destrutoras. é o ld. Quanto às exigências da realidade, estas só intervêm para o Ego transpostas. consideradas de outra maneira. Aí está a_g~a.!!_d§..!l~coberta. do narcisismo. da qual Freud não tirou.talvez .tod.a?..ªS conc~\l_mutaç~~r humano. da ãLitrironservação. À medida que se desenvolve o Ego. as prinçipais.funções vitais e relacionais~ desde a alimentação até a "lutâ_pei,!J vida" ou ªin~ª-.QJl~.ll~IDDeoto operatório são. assumidas pelo Ego. ou •. mais exatamente. pelo amoLdo_E;go. É por amor. e não por instinto de sobrevivência. que o bebê vai se alimentar, em breve: amor de seus objetos, amor da mãg•.af!Jgr do seu Ego. -· Eeis que passamos aí insensivelmente do rilvei tópico ao nível do econômico. isto é. da teoria das pu/sões. Insisti e volto a insistir ainda sobre o fato de que a autoconservação foi expulsa desta teoria. Pressentirão talvez meu "hegelianismo", que faz coincidir o movimento da teoria com o movimento da "própria coisa". Pois bem. direi que a autoconservação (o instinto). na vida de cada um de nós. é posta de lado. desqualificada. exatamente como a autoconservação é afastada depois de 1915 do movimento do pensamento freudiano. Falo aqui de instinto no sentido preciso. isto é, por oposição ao drive. * Entretanto. o conflito psíquico e a angústia que é. ao mesmo tempo. testemunha e estímulo só pode se conceber como uma dualidade de forças em presença, um dualismo pulsional. Não cabe aqui descrever como os analistas enfrentaram aafirmação freudiana das pulsões de vida e pulsões de morte. Interpretações múltiplas. r~eições, edulcorações... Estas interpretações. aliás. devem-se não apenas aos discípulos. mas já ao próprio Freud. Freud foi o primeiro a se achar embaraçado com a~~'!_ descoberta, como de um objeto estranhá. nõvã. que nãõsãliemuitõ fiem_ como integrar. •· · ··· Não podemos. portanto. abordar a pulsão de morte sem intérpretar e talvez já saibam que um dos meus principais trabalhos foi dar uma interpretação que • Em inglês no original: pulsão. (N. do T.)
45
leve em conta as exigências fundamentais que obrigaram Freud a esta afirmação: uma afirmação que é, ao menos em aparência. tão contrária a esta outra idéia fundamental da psicanálise: que a morte não é um conceito. uma representação inconsciente. Da pulsão de morte. da sua profunda originalidade, eu quis reter, "salvar", principalmente três características: - a prioridade do tempo voltado para o interior. o que chamo de tempo auto. se/bst, self-destruction: - a particularidade do regime econômico desta pulsão, que faz dela, de alguma forma, a pulsão por excelência, a alma pulsional de toda pulsão, o modelo mesmo da energia livre e do processo primário; - enfim. a oposição às pulsões de vida. oposição que deve ser reveladora se se mostra ser não somente uma oposição no seu fim, mas no modo de funcionamento. no "regime" (da mesma forma que se fala no "regime" de um motor). Estes três pontos me parecem ser precisamente ausentes na analista que, no entanto, levou extremamente a sério a nova teoria freudiana: quero dizer Melanie Klein. Se a pulsão de morte era apenas outro termo para falar de agressividade, como poderia ter Freud, durante anos. descartado todas as proposições de seus discípulos para introduzir uma pulsão de agressão? Nesta história da "política" teórica de Freud seria pueril ver apenas na obstinação de Freud o desejo de se reservar a prioridade da descoberta. Seu objetivo é cada vez diferente do que aquilo que lhe propõem. Ele não adere nem à pulsão de agressão nem ao protesto viril de Adler. nem à pulsão de morte de Spielrein, como teria desprezado tudo que, hoje em dia. coloca-se sob a rubrica banal e vulgar de agressividade e de luta pela vida. Minha idéia fundamental é. pQrtanto, a seguinte:_~ pulsão de morte não é uma descoberta. mas uma reafirmação. um aprofundamento dã ãfirriíaí;ao originária e fundamentá! da psicanálise: a sexualidade; ela é a sexuálidade sob o menos civilizado dos seus aspectos, o mehos sociáveL funcionando segundo o princípio da energia livre e do processo primário. Falarei, portanto, com a finalidade de esclarecimento. da oposição entre pulsões sexuais de "morte" e pulsões sexuais de "vida", para indicar bem que o grande dualismo se situa no coração da sexualidade; e, além disto, colocando "yi_[ja:·_g_;:m_orte" entre aspas para tornar claro que se trata dá V~
se
ãmor
46
É, portanto. por retroação face a esta invasão de um Eros talvez um pouco otimista demais e edificador - quem sabe edificante - que deve ser reafirmada, sob sua forma mais desencadeada, desligada, uma sexualidade que só funciona segundo o princíPlO'ae zero;ãõ' declive, para chegãr o máíS rapidamente possível à aescarga ê à identidade de representãÇãõ (termo que prefiro ao de identidade de percePÇão). ~;s.tas duas grandes pulsões. ou .mal.~ e~atarnente ~ dois grand~ regimes pulsionais da sexualidade. terei ainda ten~ênçia a distinguHos quanto a2 seu _objeto. isto é. aquiio no que investem. para distingui-los em "pulsões sexuais de obJeto" e "pulsões sexuais de representação". (2) Bem entendido, trata-se aí de uma polaridade dialética: o pólo-objeto da sexualidade marca as esta~il~zaçõ,es, !JS inv!!SÜrnentos mais OlJ menos eStáveis da libido; o pólo-represÉmJ:aÇao. ~m última a.nálise~ troca facilt11ente de objeto privilegiando as modificações incessantes. deslocamentos e condensações que são as mesmas do processo P._riinário. - · · Para voltar à angústia, é preciso primeiro entender bem a correlação entre nossa distinção tópica. o Ego e o ld, e o dualismo pulsional. Freud colocou várias vezes esta questão. sem poder respondê-la na verdade. Para nós, sem fazer coincidir exatamente cada um dos pólos tópicos com um pólo pulsional. é, no entanto. evidente que se perfila uma afinidade fundamental. De uma maneira geral. deve-se afirmar bem que o Ego é um lugar de.eleiçª-o_para as ou.Isõ.es .. sexuais__dg "vida", e que sua COTJ)QUisão à encontra nelasséu fundamento energético. Mas eSfã afirmação cfeVeiia ser relativizada levando-se em cõritã êspéciãrmente aScõiítribuições kleinianas: o Ego, que no início não passa de uma forma lábil e frágil, encontra meio de se confortar pela introjeção de seus objetos. Objetos totais. objetos "bons" favorizando a síntese ou a reparação. Inversamente, o ld. no seu fundo mais radical. é o lugar da pulsão sexual de "morte": mas esta só pode ser concébida cômoorn estado=Iirriitê da Uóldo.estãdõ decles-ligaménto do qual até mesmo ã psicose aállê!SheS'momentáneõs e aproxim.ativos. Assim que se atinge níveis menos profuridõs, menos radicais ãteSsíveis do ld, encontramos aí representações de objetos mais estáveis, investidos de maneira mais constante, pontos de ancoragem para o que chamamos de pulsão sexual de "vida". Como quer que seja. os pontos de vista tópico e econômico concordam amplamente. se levarmos em conta as relações dialéticas e móveis entre nossos dois pólos pulsionais. Para esquematizar. poder-se-ia definir assim uma tópico-econômica da angústia: A angústia se processa entre um Ego. Gestalt energética tendendo a manter seu nível e o ataque incessante das moçóés e incitações pulsionais.O desenvolvimento da angústia e. mais além, o terror. são, não um snal de perigo, mas as próprias situações perigosas (perigo interno) a caminhodE; uma dest_ruiçã() total,correspon· dendo ao transbordamento do Ego pelas "energias equalizadoras e portanto destrutivas" do Id. (Reconhece-se aqui a expressão de Para além do princípio de prazer que fala das "energias equalizadoras. portanto destrutivas" do mundo exterior.)
maiõr
Slntese
só
2 -
emais
Ou. talvez. "pulsões sexuais de índice".
..
~
''
'
47
I. '
f
r'> I
t l..,..yl.
f:" '
'· .
I.
I~
1· 1.
.I
Mas o desenvoi"Jimento da angústia já é correlativo de uma certa tentativa de ligação e de imobilização local. E, acima de tudo, o processo da angústia é. muito freqüentemente, devido a um Ego preparado, imobilizado mesmo. A angústia é. então, antes de tudo, um fenômeno de fronteira, o que é bem traduzido pela sua vivência corporal. Ela é contra-investimento ativo, criação desta linha de batalha ou paraexcitações dinâmica. que tenta bloquear no local a energia pulsional. Um tal contra-investimento é bem diferente das modificações permanentes do Ego por formação reativa. tais como são descritas por exemplo na neurose: piedade. escrupulosidade, limpeza. No processo da angústia, as barreiras do Ego desapareceram. ou talvez tenham sido reduzidas a este menor denominador comum dos afetos que é a angústia. No caso mais puro, contra-investimento e investimento se afrontam doravante sem a máscara do sintoma. por assim dizer de mãos desarmadas. Se lembrarmos que libido livre e libido ligada (ou do Ego) são. em última análise. da mesma natureza. e conversíveis uma na outra. concluiremos que, no auge do combate, no ponto onde se opera a imobilização ansiosa e a elevação de tensão. estas energias sejam indiscerníveis. Por esta razão ainda não poderíamos optar entre uma angústia do ld e uma angústia do Ego. "O Ego é o verdadeiro vínculo da angústia", mas a origem econômica da angústia está indissoluvelmente no Ego e no ld, na invasão pelo ld e o contra-investimento, mais ou menos arcaico, do Ego. Não posso abordar. aqui. o :fgundo aspecto metapsicológico da angústia. aquele que designo como dinâmico-genétVco. Para introduzi-lo. gostaria somente de enfatizar a conclusão pouco otimista que parece resultar do ponto de vista econômico-tópico. O que afirmamos realmente? 1~ A angústia é o impacto de desestruturação produzido no Ego e nos seus objetos pelo ataque pulsional. Ou. ainda. é o resíduo inconciliável, Ego-distônico. em última análise. do desejo sexual. 2~ A angústia é uma espécie de moeda de câmbio universal de todos os afetos. Mas esta moeda não é livremente conversível; o efeito de destruição produzido pela angústia é dificilmente reversível. Esta é uma observação essencial que Freud desenvolve a propósito do pequeno Hans: "Uma vez estabelecido o estado de angústia, a angústia absorve todos os outros sentimentos; com os progressos do recalcamento ... todos os afetos se_ tornam capazesçle se transformar em angústia". ' Exatamente como a termodinâmica mostra que a energia tende a se degradar em sua forma mais anárquica, ocorreria o mesmo com a energia libidinal? A questão seria. então. a seguinte: por que tudo, na vida psíquica. não é angústia. e constantemente uma volta à angústia? A este pessimismo, a esta tendência invasiva da "pulsão de morte", trago esquematicamente as seguintes correções: 1~ Disse que era preciso compreender "vida" e "morte" "em psicanálise", isto é. metaforizadas, ou, como prefiro, "metabolizadas" no campo sexual. o que quer isto dizer concretamente? Quer dizer que, por exemplo. a tendência sintética. reparadora, que cabe ao Eros construtor de formas, esta tendência de vida. não é necessariamente e sempre tão positiva quanto parece. A síntese torna-se compulsão à síntese.
48
torna-se conformismo, imobilização obsessiva, ou ainda busca vã de realizações altruístas narcisistas. Inversamente. a pulsão de "morte", em psicanálise, não é somente a metáfora psíquica do retorno ao. inanimado. Todos os analistàs perceberam que a morte da guàl se trata é também o estímulo do d~~· __destruLdor_ de toda forma estável. E a angústia paralisante mas também éstimulante, aquela que, 111E!. íJé!rece. Leonardo tentáfigurãf(figürãr b infigurável) nos seüs desé.:rífíos-do::õiiúvio". -· . - - 2? dualismo pulsional não é dualismo substancial e definitivo, mas um dualismo de regime de funcionamento. se é uma só e mesma energia libidinal que se encontra. tanto nas pulsões libidinaisde-"Víclã" quan1õ nas pu!Sõés libidinais "iTIDrte", então nada imJ)ede de déscrever as passagens de uma para a outra. Lembro que esta tese de uma só energia para as duas pulsões é explicitamente formulada por Freud em "O Ego e o ld". e~ele nunca defendeu o concei!o absurdo de uma "destrudo", simétrica da libido. E se conhecemos o caminho da pulsão de vida em direÇão à púlsao de (âegrâaãÇãõ ãõsafettls em aiígilstía. por exemplo) 5abeinos pôr éxperiêlirurqmnrcaminho inverso é possível: a constituição de objetos estáveis aPàrtir das primeiras slhiáções de ansiedade (para falar como Melanie Klein). 3~ Enfim, arrisquei uma hipótese ainda mais problemática, hipótese que pode parecer cientificamente sacrílega uma vez que atinge o princípio sagrado da constáncia da soma das energias psíquicas. Sugeri. a propósito da sublimação, que talvez fosse preciso levar a sério esta idéia freudiana de que todo abalo da vida psíquica, desde o choque físico até a emoção, acompanhar-se-ia de um afluxo novo, de uma verdadeira neoformação de libido. Se estas "fontes indiretas" da pulsão sexual atuam na infância, por-qUe não ocorreria o mesmo durante toda a vida? É evid~te que esta energi9__se~ual surgin_do constantemente. vai se repartir entre as pulsões sexuais dé vida e as pulsões sexuais de morte. Depende do destino de cada um que nem a angústia seja para ele invasiva e paralisante, nem, inversamente. a libido investida de maneira demasiado estável e demasiado exclusivamente narcisista. A esta questão somente um estudo dinâmico-genético pode trazer o enquadramento de uma resposta. e, para cada um de nós, suas capacidades singulares de sublimação e de simbolização.
sé o
Úm
ae
morte
49
É PRECISO QUEIMAR MELANIE KLEIN?*
Por que este título que. aparentemente. nos traz de volta os tempos obscurantistas: os tempos obscuros da Inquisição. quando se queimavam as pessoas e as obras? Eram queimadas. não sem antes tentar fazer o possuído confessar sua verdade. dele mesmo ignorada: o demônio que estava nele. Em primeiro lugar. destacarei a que ponto as imagens de demônios. de feiticeiras e de possessão são correntes. não somente na clínica. mas na teoria psicanalítica. Uma tese concluída por uma de minhas alunas sobre Freud e o diabo (1) mostrava recentemente a que ponto estas imagos são coextensivas ao pensamento freudiano e ao seu desenrolar. Certamente uma visão racionalista. aparentada à filosofia dos "Iluministas" é um outro aspecto do pensamento de Freud: lá onde a razão se faz dia. os demônios noturnos desaparecem para sempre: Afflavit et dissipati sunt. Contudo. não menos forte em Freud é o entusiasmo indefectível pelo diabo, irredutível a qualquer tentativa para reduzi-/o a uma ilusão. A tal ponto que a metapsico/ogia - ela própria este aspecto mais teórico da obra - é, às vezes. assimilada a uma feiticeira. Lembro ainda a esplêndida homenagem fúnebre a Charcot. Freud mostra ai como. a partir do momento em que as histéricas não foram mais ridicularizadas. a descobertá psicanalítica estava próxima. Esta histérica que chora deve ter razão. E mesmo ter razão quando diz ignorar por que chora. Era preciso. então. supor uma clivagem da sua consciência. Mas como aceitar esta coisa estranha de saber sem saber? Que modelo encontrar para a c/ivagem? Teria bastado. diz Freud. lembrar que a humanidade. há séculos ou milênios. outorgava um lugar inteiro e completo a esta divisão e a este sofrimento sob o nome de possessão. Charcot mais os exorcistas. e toda a psicanálise. já estão de pé. • Texto embasado em conferencia proferida na Faculdade de Psicologia de UNAM (México). I - Urtul1ey. L. tie. Freud et /e diab/e. Paris. PUF. I 983.
50
Levado a este ponto, o diabo torna-se quase um conceito. ou um preconceito. Como a história. o possesso e o exorcista devem. de uma certa maneira. ter razão. E é, evidentemente. a estranheza absoluta do inconsciente. o fato de ser estrangeiro. que dá base à idéia de possessão. cuja forma ligeirament~ mais mode~na é a de "corpo estranho interno". O próprio Freud. nesta fantasia de possessao - ~ue é um avatar da de sedução - não se nega a ocupar todos os lugares: a do exorctsta. a do possesso. mas também a do diabo intrusivo. _ Com o título "É Preciso Queimar Malanie Klein?" quero evidentemente prestar uma grande homenagem àquela que muitos consideram a maior cri~dora d~~ois de Freud. Equivale a situá-la nesta tradição flamejante (como se diZ do got1co) que reconhece o caráter estranho. estrangeiro. hostil. angustiante do "nosso mundo \ interior". "-Falou-se. a propósito de Klein. de uma "demonolog~a": e i~o n~m sentido pejorativo. A demonologia seria alguma coisa que se opoe a pstcologta, fazendo de nossas fantasias entidades. seres reais. atacantes. sadtzantes ou aterronzantes. Já se tinha falado do antropomorfismo de Freud. para criticar a idéia "pueril'' (I) que teríamos em nós homenzinhos que lutam entre si. Pois bem~ os "objetos" k~eini~ nos levam este realismo até seu extremo. e é. na minha opiniao, a mesma dtreçao fecunda, a da realidade psíquica. que nos indicam o antropomorfismo e a demonologia. Hoje em dia ainda se queimam feiticeiras ? No meio psica~alítico às vezes não estamos longe disso. Outros como eu relataram este cerimontal de exorcismo que se desenrolava nos porões de Londres durante o B/itzkrieg: tratava-se de e~puls~r Melanie Klein do movimento psicanalítico. E a paixão consagrada a este cenmomal mostra que se tratava de bem outra coisa que de teoria. de conceitua~ização, ou, mesmo. de clínica. Atualmente e. de uma certa maneira, _infelizmente, nao se tenta mais queimar Melanie Klein. Negligenciam-na. isolam-na. As vezes, ~dere~se aos se~s dogmas. assim como se faz com uma receita. Os que isolam e negligenCiam .Meia?Je Klein são os detentores de um racionalismo estreito, aqueles que. desde ha mUJto. esqueceram a lição interpretativa de Freud; uma lição que !essoa sempre nos mesmos termos: Melanie Klein, de uma certa forma. deve ter razao. Não me considero como um detentor da filosofia das luzes. nem do racionalismo psico/ogizante que reina em uma parte do mundo analítico. M.as também não sou um adepto do kleinismo que, como movimento e con;o doutrma. :empre sus.cJtou minha desconfiança. O que caracteriza este movimento e um verdadeiro proselttismo. a ausência de questionamento sobre os conceitos de base e, sobretudo, a volta. por outras vias. a uma hegemonia: é novamente a_tentativa ~e fazer do pensamento psicanalítico uma explicação geral, uma pstcologta de conj~nt?~ o qu.e. me parece ser. paradoxalmente. uma m~neira de tornar insossa a contnbUJçao k/emta.na. . . Menos ainda poderia aderir à técnica inaugurada por Mela~Je Klem. ~ecmca cujo único mérito é o de ter enfatizado.~ fantasia, mesmo nas mterpretaçoes de defesa: mas que me parece implicar um abandono quase total da metodo/ogta freudtana da interpretação. O bombardeamento interpretativo é apenas o aspecto ma1s chocante. o que é evidente é a imposição de um sistema simbólico preestabelecido que descon51
sidera todo passo a passo da análise freudiana. destinada, antes de mais nada, a dar oportunidade e audiência ao processo primário: é surpreendente que uma teoria que se situa tão próxima dos processos mais profundos do inconsciente só tenha conseguido se traduzir num método que chega à decodificação mais estereotipada dos d1tos e dos gestos significativos do paciente: sem considerar o movimento associativo. a referência histórica e individual, ou os mil indícios pelos quais descobrimos se a interpretação está ou não num bom caminho. Se não sou, portanto. em nada um adepto. também não sou. por oposição. daqueles que decidem que os feiticeiros. os seguidores do demônio. devem ser encarcerados numa espécie de gueto ideológico. encarceramento este que permite sem maiores dificuldades negligenciar o que dizem como coisa impossível de se referir à ·'medida de todas as coisas" isto é. ao nosso próprio Ego. A defesa contra Melanie Klein por anulação é apenas uma manifestação da defesa geral contra a análise e suas descobertas fundamentais. Freud formula de maneira pitoresca esta defesa no início de A sexualidade na etiologia das neuroses: "Não será difícil contestar a originalidade desta teoria assim que se tiver renunciado a negar seu fundamento". Em outras palavras: é falso e. se é verdade. não é nada novo. Reconhecemos. dirigida contra Freud e Klein. uma modificação do famoso argumento do caldeirão.* Evidentemente, a feiticeira chama o caldeirão ... Como progride o pensamento analítico? Por repetição e ruptura. por banalização e reafirmação. por circularidade e aprofundamento. Os momentos inovadores são também retorno àfonte. Oaprofundamento é reafirmação de uma exigência originária. Gostaria de mencionar aqui dois destes momentos de ruptura. tempos "inspirados" do kleinismo. O primeiro é o debate sobre. a psicanálise de crianças. que opõe Anna Freud e Melanie Klein. herdeira segundo a carne e segundo a forma. de uma certa maneira. e a herdeira segundo o espírito. Evidenciarei três pontos capitais: a técnica do jogo. o problema da educação e o da transferência. A técnica do jogo não é. de forma alguma. Melanie Klein que a inaugura. mas sim quem a leva ao seu apogeu. à sua sistematização. Ojogo é. para ela. um equfvalente pleno das associações livres. A oQjeção de Anna Freud parece clamar a evidência: o jogo da criança tem uma função. e mesmo várias. Tem um papel manifesto no desenvolvimento. no processo da relação ao mundo. no controle dos afetos. etc. Ver aí alguma coisa de puramente simbólico. o equivalente de um discurso. seria um golpe de força injustificátivel. Trata-se aí de uma questão sobre a qual gostaria de fazer sentir o quanto ela ultrapassa um simples problema de técnica. A essência da resposta de Melanie Klein (que evidencio mais do que ela própria o fez) é que o jogo. na análise. torna-se outra coisa do que o jogo observado objetivamente: converte-se. então. no equivalente de um discurso. Assim como o discurso do analisado presta-se aos movimentos de interpretação. de confirmação. de simbolização. o jogo na análise volta-se para o analista. • Referencia a Freud. Interpretação dos sonhos. Cap. 2. (N. da T.)
52
Acrescentarei uma conclusão segundo meus termos pessoais: é necessário reconhecer o corte entre o que se passa na análise e o que se passa fora dela: é o que chamamos a constituição da "tina .. que só pode se produzir pela exclusão do adaptativo. do funcional (invocado por Anna Freud). O jogo, diriam os lacanianos. é uma linguagem. Mas pode-se virar o argumento. que. portanto. não é decisivo: toda linguagem não é tomada na transferência. toda linguagem não é linguagem segundo o amor e o ódio. de modo que é preciso estabelecer. no seio da própria linguagem. o mesmo corte que no jogo. Como quer que seja. notemos esta falta de fé na análise por parte de Anna Freud: ela não crê na especificidade da situação analítica. capaz de fazer virar do avesso tanto o jogo como a linguagem. Nosso segundo ponto é a objeção educativa: Anna Freud fica aterrorizada pelo perigo de liberar as pulsões. Trata-se aí de uma concepção muito mecanicista: as pulsões se situariam do lado puramente biológico. enquanto que as defesas e o Superego. unicamente do lado social. Melanie Klein responde primeiramente que jamais constatou uma tal liberação da maldade das pulsões. e isto apesar de uma técnica absolutamente não educativa. Quanto ao fundo. faz intervir a noção de Superego precoce. Afirma que o Superego é muito pouco calcado sobre as interdições parentais. Sua severidade pode apresentar-se na razão inversa da permissividade parenta!. E o próprio Freud foi obrigadq a_concordar coll! este ponto em Mal-estar na civilização. · Sé assim é. impõe-se uma concepção muito mais dialética. Não ocorre, num face a face absoluto. o pulsional e o educativo, o puro desejo e a pura lei. As interdições mais ferozes encontram suas rafzes no ld. No sadismo do ld. Pensar em termos puros de educação é negligenciar o fato de que se arrisca a construir intérdições sobre raízes pulsionais que se recusa a analisar. Isto vai se esclarecer ainda melhor no terceiro ponto da discussão: a transferência e a sua possibilidade. Á objeção de Anna Freud é. ao mesmo tempo. hiperclássica - irrefutável. de uma certa forma - e completamente fora de cogitação. Seu referencial é a análise de adultos: aqui os pais já estão longe no passado: o Édipo passou. como se diz; só ficou dele a lembrança. A transferência seria, então. a repetição desta antiga situação. Tanto assim que a concepção do processo analítico é simples: a essência está em desiludir o adulto. "Você se engana, você me considera como seu pai (ou sua mãe). É anacrônico." Ora. para a criança. lembra Anna Freud. a relação com os pais ainda está presente, contemporânea. Donde esta dupla objeção: a transferência é impossível: mas se. eventualmente. fosse possível, seria uma substituição efetiva. um verdadeiro roubo de criança. Como responde Melanie Klein? Em primeiro lugar ela dá uma resposta cronológica, genética. que não vai até o fundo das coisas: com dois e meio ou três anos. diz ela. quando tomo em tratamento estas crianças, o essencial de seu inconsciente já está constituído. já ficou para trás. Isto não vai ao fundo da questão, pois apenas se transfere no tempo o que se pretende ser o processo de análise de adultos: arcaísmo e desilusão.
53
Oessencia/ da resposta. tal como a interpreto. está muito longe: é a afirmação do mundo interior. das imagos primitivas. Estas imagos não são a lembrança de éxperíericias rêáis ma!s antigas; são o depósito íntrÓjetàdo destas experiências. mas modificado ~o pi'Opi'iõ próéessõ inl:roJeçãõ:-'·l'Jao devemos em C:áso algum identificar os verdadeiros objetos com aqueles que as crianças introjetam". Há entre os dois um "i:onl:fãste grotesco". Assim. dirfamos. a introjeção é o fundamento de um mundo interior. processo que não tem nada à ver com uma memorização. Vê-se como a resposta cronológica era insuficiente. O problema essencial de transferência não se resume. portanto. numa relação passa_d_ol!!~e; está na relação_.entre_este_mundo_iJ)_terior e _as relações novas que se instauram. Neste gmtido. não se deve Jermedo de dizer qüe· ã relação com os pais reais é, ela mesma. uma transferência. Esta é a única maneira de ) esélarecer justifiC:ír a análise do pequeno Hans: que Freud tenha confiado o papel de analista ao próprio pai de Hans. supõe. com efeito. que uma transferência sobre o pai era possívéj. Nossa conclusão no que concerne a esta revolução da análise de crianças é. portanto. dupla: afirmação do mundo interior - povoado de demônios - que não se parece em nada ã um decalque mnésico de um mundo real anterior. mesmo se'tomã emprestadas suas representações a este mundo anterior. E afirmação que a aná/isê reitera. tanto na criança como no adulto. este corte entre o mundo adaptativo e àquele onde reinam o amor e o ódio. Segunda trovoada: é a grande descoberta. inaugural. ao mesmo tempo clínica e teórica. resumida no infcio do famoso artigo de 1934. Contribuição à psicogênese dos estados maníaco-depressivos. onde diz:
ae
e
I
"Nos meus escritos anteriores relatei uma fase de sadismo no seu auge, pela qual passam as crianças durante seu primeiro ano. Durante os primeiros meses de sua existência. o recém-nascido dirige suas tendências sádicas não somente contra o seio. mas também contra o interior do corpo de sua mãe; deseja esvaziá-lo devorando seu conteúdo. destruí-lo por todos os meios que o sadismo propõe." {2) ~ Qual é a novidade? Qual é a descoberta? Atenção! Nem a própria Klein. nem os kleinianos são. talvez. os melhores indicados para este julgamento. para interpretar a descoberta. Finalmente. poderão dizer. Freud descobriu a pulsão de morte. Visão banal: ele acrescentou a pulsão de morte à sexualidade. e foi Melanie Klein que deu toda a sua amplitude a este novo desenvolvimento. Visão puramente exterior: a análise progrediria por novas incorporações sucessivas. à medida que novos campos fossem explorados. Uma tal concepção cumulativa não é verdadeira nem mesmo para as ciências da natureza. O movimento científico é sempre aprofundamento e. em psicanálise. este aprofundamento não se faz sem um retorno incessante à exigência originária. 2 -
54
In: Contribuições à psicanálise. São Paulo. Mestre Jou.
É a nível da exigência originária que se encontram a pulsão de morte de Freud e o sã&imó infantil de Klein. mas não da maneira que um e outro talvez acreditassem; · põfs: segundo penso. a própria pulsão de mo'rte não é algo que se acrescenta à teoria da sexualidade: mas seu aprofundamento. E. da mesma forma. a exploração de Klein sobre o sadismo é o aprofundamento. a renovação da descoberta originária, a dos Tres Ensaios. É preciso salientar que o sadismo é colocado por Klein na origem. antes do amor. exatamente como a sexualidade é colocada por Freud na origem. ántes do amor de objeto. As duas descobertas soam da mesma maneira: escandalosas. contestáveis. inelutáveis. Nos dois casos trata-se de alguma coisa de violentamente negado. combatido pelos adultos; é quase a única definição freudiana da sexualidade infantil: o que os adultos. com todas as suas forças. não querem ver. Erealmente trata-se de algo pouco visível para a observação objetiva. A sexualidade infantil é. sobretudo. inferida. por Freud, a partir da análise de adultos. Dir-se-á: Melanie Klein se aproxima mais das crianças? Que seja! Mas. assim como Freud. ela infere. a partir daquelas que analisa (crianças de 3 a 5 anos) para concluir sobre o primeiro ano. Pouco importa que o intervalo cronológico diminua: o essencial é o enfoque dirigido ao passado... ou ao originário. Vamos mais longe: esta dupla "descoberta" contradiz parcialmente a observação direta. Salvo nos casos patológicos. nem a sexualidade infantil de Freud, nem o sadismo originário de Klein são fenômenos patentes. ou em todo caso constantes. do comportamento do bebê. São fenômenos esporádicos. eventuais. o que não suprime nada à sua significação. Lembremos o horrível quadro de destruição de guerra. tortura. corrosão. explosão. que Melanle nos traça na análise de Richard. É perfeitamente ilusório pretender que este quadro. encontrado na análise de uma criança de dez anos. seja a cópia real. mnésica. do que se produziu na sua vida quando tinha um ou dois anos. Sem insistir sobre esta discordância entre o bebé observado e o mundo interior encontrado na análise. notaremos que a própria Klein o percebeu. Seu artigo. "Observando o Comportamento do Bebê". propõe uma descrição bem diferente: um bebê mais calmo. mais sorridente. Às vezes temporariamente raivoso, mas não o bebê "encontrado" na análise. entregue. ininterruptamente. à mais violenta Juta interna. Paremos um instante. Parece que eu quis destruir Melanie Klein salientando suas contradições. Mas meu objetivo é completamente diferente. Mostrar. para além das contradições. em que as exigências de Freud e de Klein se encontram. se aprofundam uma à outra. Esta exigência é o reconhecimento do mundo inconsciente. que é muito diferente do decalque esquecido da nossa infância. É o reconhecimento da verdade da puisão. para além das assimilações biologizantes, que fariam dela uma variedade do instinto e dos comportamentos adaptativos (mesmo se estes são parcelares. insuficientes. deficientes). A verdade da pulsão. sua constituição. tal como a v~o. é inseparável daquilo que chamo o tempo auto: o retorno sobre si mesmo. que é. ao mesmo tempo. a constituição do objeto-atacante-interno. Que se tomem as primeiras descobertas de Freud sobre a sexualidade: esta é inseparável da noção de corpo estranho interno. excitante a partir do interior. 55
"desencadeado" (entbunden) no interior. Este corpo estranho interno: é ele que se estabelece no momento em que se perde o objeto da autoconservação. Que se tome a teoria freudiana da puJsão de morte é ainda a prioridade do tempo auto. tempo da autodestruição e do masoquismo originário. Que se tome. por fim. o mundo interior de Melanie Klein: é ainda a mesma introjeção do objeto perdido. sob a forma de objeto atacante. perseguidor interno. Para Melanie Klein - pelo menos no início da vida psíquica - não existe simbolização da ausência. A ausência do objeto que satisfaz coloca. no sujeito. sua cópia clivada. atacante. má. Cada vez que o objeto apaziguante se afasta. é o objeto excitante que se interioriza. Certamente haverá objeções: é preciso uma certa temeridade para assimilar o objeto da pulsão sexual e o objeto mortífero de Melanie Klein. Tomaria muito tempo para expor minhas justificativas. Mas o que está presente nas origens do pensamento freudiano é certamente o caráter demoníaco. atacante. desestruturante da sexualidade. Este aspecto escandaloso da sexualidade é que tende a ser continuamente abafado na evolução do pensamento psicanalítico. Dai estas ressurgências. cada vez mais explícitas: a pulsão de morte. que para mim deve ser denominada "pulsão sexual de morte". e os objetos internos mortíferos de Klein. Chegamos. agora. ao que se pode chamar de sistema kleiniano. Pois há. certamente. um sistema que funciona por jogo de pares opostos permitindo todas as mecânicas e todas as estereotipias. Estas dicotomias são as do interior e exterior. da introjeção e da projeção. do bom e do mau. do total e do parcial. do depressivo e do paranóide e. finalmente. do amor e do ódio. Os adeptos correm o risco de utilizá-los mecanicamente. como as peças destes jogos de construção, nos quais. com o auxílio de. um mínimo de elementos conjugáveis. de oposições binárias. poderse-ia reconstruir o mundo. Encontramos aqui a tentação construtivista dos kleinianos que é sempre. apenas. uma forma do hegemonismo psicanalítico. Mais uma vez trata-se de converter a psicanálise ·em psicologia universal. Entretanto. para dizer a verdade. estes pares de opostos são bem mais interessantes do que o uso dogmático que se pode fazer deles. É preciso interpretá-los. fazê-los trabalhar. mostrar que por trás do seu caráter mecânico se processa uma dialética. Tomemos o par interiorização - prqjeção tão freqüentemente utilizado sem pensar. Nossa primeira interrogação seria: como pensá-lo sem coloca r previamente a questão: interior e exterior de quê? Do organismo? Do Ego? O que levanta. então. todo o problema da constituição do Ego como espaço. como limite. Isto quer dizer - como V8remos mais adiante - que o jogo paranóide de introjeção e de projeção só pode ser correlativo de uma certa constituição de uma totalidade. isto é, de um elemento essencial da posição depressiva. Mas. sobretudo. cabe questionar fundamentalmente a aparente simetria. o jogo incessante de pinguepongue. no qual se encontra presa para Klein esta oposição: a projeção sendo continuamente seguida de uma introjeção. e assim infinitamente. Lacan teve o mérito de levantar esta objeção: não há uma dissimetria absoluta entre o que se chama introjetar - pôr para dentro - e projetar? A idéia. presente em Freud desde o início. do corpo estranho interno leva-nos a privilegiar a introjeção
56
como processo constitutivo fundamental. A intrqjeção deve ser compreendida à luz dos processos descritos por nós como traumatismo em dois tempos ou como seduÇão 9riginária. A introjeção originária não é o recalcamento. mas seu primeiro tempo. E a introdução de "significantes enigmáticos", que o recalcamento isolará num segundo tempo. Digo "significantes enigmáticos" para mostrar bem que o universo de significantes inconscientes absolutamente não é transmitido à criança "como uma linguagem". Falamos sobre a introjeção a propósito da análise de crianças para indicar seu caráter fundador na constituição do mundo interior. mas também da própria pulsão. Trata-se de algo muito diferente de um mecanismo de defesa, ainda que. secundariamente. possa aparecer como mecanismo de defesa. e entrar. então, numa certa simetria com a projeção. Examinemos agora a oposição "bom-mau .. a qual. entre todas, é talvez a menos bem pensada por Klein. Sem dúvida os termos são postos entre aspas; mas o que não se questiona é uma certa normatividade. O bom deve triunfar do mau. Ora. antes de colocar assim o objetivo de uma cura. é necessário perguntar-se se "bom" e "mau" não implicam um ponto de vista unilateral. É "bom", nos diz Melanie Klein. o que leva à síntese. e "mau" o que divide. dispersa. Ora. tal ponto de vista só pode ser o cje um órgão. ou mesmo de um organismo de síntese. isto é. o próprio "Ego". Inversamente o que é mau para o Ego só pode ser, definitivamente. a pulsão. pulsão que, por definição. põe em perigo o equilíbrio homeostático do Ego. Aproximemos um instante esta oposição "bom-mau" do problema da "neutralidade benevolente". Na benevolência analítica, qual é o bem a que visamos? É o bem do Ego. e unicamente do Ego? Ainda aqui um mínimo de pensamento dialético seria indispensável para mostrar como "bom" e "mau" não são simplesmente produtos de um splitting absoluto, mas também que se transmutam um no outro. segundo a posição do sujeito e sua adesão mais ou menos marcada aos objetivos do Ego. A dupla total-parcial pode por sua vez servir uma perspectiva puramente construtivista numa compreensão irrefletida do kleinismo. Este é o caso quando total e parcial referem-se unicamente à oposição do corpo como totalidade e das partes do corpo. A partir de Já apresenta-se naturalmente a idéia de que o total deve se construir a partir do parcial. idéia esta que toda psicologia genética. fundada sobre a observação. repudiaria. aliás. Mas a questão deve ser aprofundada: ainda aqui não haverá uma dissimetria profunda? A parte não é uma parte do todo: pertence a um outro registro. Constitui um elemento -freqüentemente metonímico -tomado como signo. como índice. Mas nada impede que um corpo. no seu conjunto, possa ser ele próprio tomado como um índice. E. inversamente. uma parte pode ser tomada como um objeto total. É bem o que Klein viu quando afirmou: o seio bom. enquanto bom. é um objeto total; de tal maneira que o sentimento a seu respeito pode ser de culpabilidade. assim como em relação à pessoa da mãe. Sobra-me pouco para apresentar a última dupla de opostos: paranóide-depressivo. a não ser para ressaltar que se trata. certamente. da dupla mais fecunda de
57
Klein. Fecunda pela idéia de posição, que ultrapassa. explicitamente. toda redução em termos de cronologia. Fecunda pela complexidade dos elementos em jogo. pois que todas as duplas precedentes aí se encontram. Fecunda. pois Klein nunca deixou de requestionar a oposição esquemática do paranóide e do depressivo, para fazê-los trabalhar um em relação ao outro. Cada vez mais. as duas posições aparecem como correlativas. Finalmente a fase paranóide, o ataque pelo parcial e pelo mau. só se concebe em relação a uma totalidade - mais ou menos completa - que recebe e contém o ataque. Inversamente, a angústia puramente depressiva, a da perda do objeto. nunca se define como puro vazio. pura perda. Não existe simbolização da ausência que não tenha tido que encarar o retorno do objeto sob a forma de objeto mau. Assim. como chega a dizê-lo Melanie Klein. a oposição das angústias paranóide e depressiva acaba por se tornar apenas um conceito limite. Toda angústia é, do ponto de vista do seu processo. ao mesmo tempo paranóide e depressiva. Seria preciso. no entanto, ir mais longe para mostrar que o problema da constituição ou, mais exatamente. da ancoragem do sl.jjeito. é o que as diferencia. Ancoragem relativa do sujeito que caracteriza a fase depressiva e que só ela permite. de forma paradoxal. levar em consideração a sobrevivência do objeto. Ancoragem que só se concebe como correlativa do processo de recalcamento e da constituição do inconsciente. É preciso. portanto. queimar Melanie Klein? Volto à minha questão inicial. É preciso mesmo enterrá-la correndo o risco de vê-la voltar. mais uma vez. sob uma forma incontrolável. como um objeto mau? Lembrarei. de passagem. o que Hegel descreve como luta à morte de consciências. como pura e simples exclusão de um desejo por um outro. o que Hegel não viu é que não há luta à morte que não engendre a volta de fantasmas. Em compensação, o que ele descreveu bem é a outra saída. a solução dialética: a luta de consciências vira dialética do mestre e do escravo. e sabe-se que. finalmente. é o escravo. pelo seu trabalho paciente. que será vitorioso. Assim ocorre com Melanie Klein; ao invés de bani-la, de exorcizá-la. peÇamos-lhe que trabalhe. forcemos seu pensamento e sua obra a trabalhar. Perceberemos. então. que o trabalho de toda grande obra psicanalítica se sobrepõe em certos aspectos. se entrecruza com o trabalho de uma outra obra. Para além de todo ecletismo. é a este trabalho. a esta sobreposição paciente das exigências. que nossa época deveria. no meu entender. se consagrar. Qualquer que seja o ponto de partida. todo trabalho de um pensamento psicanalítico encontra o de um outro pensamento. sob condição que se trate de pensamentos verdadeiros e de um trabalho verdadeiro. Ao final da conferência, me foram apresentadas duas questões. que apresento aqui. A primeira é sobre as diferenças que encontro entre a concepção da pulsão de morte em Freud e em Melanie Klein. Penso que a concepção de Freud é a mais profunda do ponto de vista da exigência teórica pelo fato de colocar no primeiro plano o que chamo de tempo auto: quer dizer. o fato de que a pulsão de morte trabalha primeiramente no interior, e contra o próprio Ego. Ao contrário. Melanie Klein desenvolve clinicamente a descoberta de Freud. mas sem se dar conta que 58
era necessário partir do tempo auto. Somente nos seus últimos textos. especialmente naquele sobre a angústia, que trata de alcançar a concepção freudiana. mas creio que ela o fez de forma imperfeita. Do meu ponto de vista. é através de um conceito como o de introjeção primária, isto é, um processo que transforma os objetos externos em objetos internos completamente diferentes e atacantes que se pode encontrar a articulação entre a pulsão de morte de Freud e o pensamento de Melanie Klein. A segunda. a propósito do mundo interno, o que é que rege o destino? A introjeção? A projeção? Certamente. para Melanie Klein, a idéia é que a projeção é que é primária. E quando aparece esta idéia. a concepção correspondente da pulsão é tal que não podemos nos satisfazer com ela; isto é. uma pulsão que não seria ligada a objeto nenhum. que seria uma pura força biológica. Na minha opinião, o único momento em que vejo aparecer a pulsão é quando o objeto se cliva; não exatamente no sentido de clivagem bom-mau. mas porque se deposita, a partir do objeto de autoconservação. um significante que está em relação metafórica ou metonímica com ele. Evidentemente não falo aqui de significante de linguagem. e nisto me distingo absolutamente de Lacan. Tenho tendência a aproximar a idéia de introjeção primária e de sedução primária. Em Freud também encontramos esta noção originalmente. de uma espécie de depósito anterior ao recalcamento; uma espécie de interno-externo que se torna. ao mesmo tempo. excitante e atacante para o Ego. Não sei se satisfiz à pergunta: de qualquer modo, fazer trabalhar Melanie Klein é evidentemente fazê-la sofrer. torturá-la e. evidentemente. ela não estaria de acordo com o que eu digo aqui.
59
REPARAÇÃO E RETRIBUIÇÃO PENAIS: UMA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA*
O presente texto não poderia propor uma teoria psicanalítica da pena. ou da sanção penal. nem mesmo destes aspectos particulares que são a retribuição e a reparação. A psicanálise é claramente mais modesta. e talvez também mais pretensiosa. Mais modesta em extensão. no sentido de não poder enunciar uma teoria unitária do social. nem. por conseguinte. deste aspecto fundamental do social que é a lei. Modesta igualmente em "intenção". pois não poderia substituir-se a uma teoria ou. até mesmo. a uma técnica da normalidade e do direito. Entretanto. mais ambiciosa. pois a psicanálise quer abranger tudo com o seu olhar. um olhar freqüentemente crítico. Sem ser tudo. está em toda parte. assim como dizemos que a sexualidade está em tudo sem ser tudo. o que significa precisamente nossa noção de "pansexualismo". Por outro lado. a psicanálise não é uma disciplina norm';Jtiva. a não ser. talvez. no negativo. Ela pode ajudar a descobrir e a denunciar certas vias de alienação. mas não traçar o caminho da liberdade. Concretamente. minha relação pessoal com o problema da pena é tripla. O primeiro contato que tive foi minha experiência psiquiátrica num departamento bem conhecido dos juristas e psiquiatras. o famoso departamento de alienados criminosos (não sei se ainda o chamam assim atualmente) "Henri Colin" em Villejuif. É preciso dizer que o mundo 'psiquiátrico. visto de dentro. é algo exemplarmente instrutivo. ao mesmo tempo que aterrador. com seu caminho utilitário e seus engodos. o que é. na verdade. uma experiência insubstituível. O outro local é. evidentemente. minha experiência psicanalítica e a multiplicidade de formas do sentimento de culpabilidade. a universalidade da culpabilidade. mesmo • Texto baseado na conferencia proferida no Centro de Filosofia do Direito da Universidade de Paris.
60
se esta estiver inserida num conjunto de outros afetos conexos. que se pode chamar vergonha. inferioridade. desonra. Variantes que traçam as fronteiras da culpabilidade. ao mesmo tempo que se contaminam com ela. Enfim. determinada reação me fez intervir. em um certo momento. em um debate atualmente ultrapassado. pelo menos sob a forma da discussão, sobre a extinta pena de morte: subitamente apareceu-me a universalidade do raciocínio utilitarista. ao mesmo tempo odioso nos seus objetivos manipulatórios e pueril nos seus meios. embora tenhamos medo de que a puerilidade ceda pouco a pouco seu lugar a uma conduta odiosa. Em vez de uma concepção psicanalítica. gostaria. portanto. de apresentar alguns pontos de referência psíquicos e algumas reflexões de um psicanalista sobre a pena. Meu primeiro ponto será o seguinte: a pluralidade do indivíduo humano. Certamente me dirão que não é novidade: a bela e a fera. Doutor Jeckyll e Mr. Hyde. ou ainda a voz da consciência individualizada como tal. a voz da consciência moral. Entretanto. a psicanálise levou esta pluralidade ao extremo. bem além da simples consideração da uma complexidade de cada um de nós. A psicanálise descreveu primeiro uma cisão. como se sabe. entre o consciente e o inconsciente que leva a uma verdadeira oposição no psiquismo. Mas Freud e os psicanalistas não pararam aí. A cisão do consciente e inconsciente era um sistema finalmente bastante abstrato. mecanicista. ou. como se diz. "psicologizante". Ora. chegamos a uma concepção que designo como "antropomórfica". e devo dizer que uma de minhas manias é precisamente martelar a verdade do antropomorfismo. querendo dizer com isto que a pessoa ps[quica é verdadeiramente múltipla. que abriga nela várias pessoas. várias posições pessoais que estão em relação e em conflito umas com as outras. É através da descoberta da identificação que se confirmou esta expressão muito antiga de Freud sobre uma "pluralidade de pessoas psíquicas". Que quer dizer isto? Quer dizer que somos constituídos a partir do modelo do outro e dos outros; o que se chama Ego - mesmo que se queira pretender que ainda tem qualquer coisa a ver com um sujeito autônomo e racional - está ele próprio fundado sobre identificações parentais: com mais razão ainda. o Superego. o que chamamos consciência moral. uma vez que foi a partir da redescoberta desta voz da moral que a "pluralidade das pessoas psíquicas" pouco a pouco se impôs. Enfim. em nós existe alguma coisa ainda mais estranha. que chamamos ld. sem dúvida muito vagamente uma pessoa: como uma "coisa" em nós mesmos que nos empurra. com a qual. às vezes. nos identificamos e que. de todo jeito. pede. exige a palavra. Então acreditamos que facilmente podemos nos orientar: numa interpretação meio simplista. propõe-se o Superego como a lei interiorizada. o ld são os instintos e quanto ao Ego é. evidentemente. a racionalidade. Pois bem: é preciso ir mais além. é preciso perceber que esta pluralidade de pessoas psíquicas se faz acompanhar. na realidade. de uma pluralidade nas ou de uma ambigüidade nas pessoas psíquicas. Falar do Superego como de uma instância unitária é ignorar que. na realidade. ele próprio se desdobra em aspectos que são de atração. de fascinação. e que chamamos ideais. assim como aspectos pura e simplesmente de interdição. enunciando ou Jem61
brando o que não devemos fazer. Freud mostrou que a lei do Superego é tirânica pelo fato de ser contraditória: o pai diz ''deves ser como eu··. e. ao mesmo tempo, "não serás como eu". Enfim. de outro ponto de vista, podemos situar ainda, no Superego, uma clivagem mais essencial: se, de uma forma evidente, ele se situa do lado da lei (quer se trate de interdição ou, mesmo, de ideal), não se pode negar. ao mesmo tempo, que a maneira pela qual nossa consciência moral age para conosco, a maneira pela qual nos tortura. às vezes, a situa também do lado pulsional: o Superego, dizemos. é também uma instância sádica. Esta dualidade ou esta ambigüidade não é menor no que concerne ao ld; para uma primeira aproximação, freqüentemente se apresenta esta ''instância" como representando a natureza em nós: os instintos ou pulsões, afirmamos, são nosso ser biológico: no entanto. percebemos, estupefatos, que esta pseudonatureza é muito pouco natural: as pulsões, ao contrário, drenam toda a sua força e sua eficácia das razões culturais e, principalmente. de nossas relações com nossos primeiros objetos humanos que evidentemente são nossos pais. Existe aí, então. tanto a propósito do ld como a propósito do Superego, uma curiosa inversão. ou pelo menos uma curiosa ambigüidade, cada um dos dois estando, ao mesmo tempo, ao lado da natureza e da cultura: e insistimos, de bom agrado, talvez por paradoxo atualmente, no fato de que o Superego está freqüentemente do lado do mais instintivo, do mais pulsional, e o ld, eventualmente. do lado do mais cultural. Agora. uma palavra sobre a culpabilidade. Aí também há uma primeira aproximação da psicanálise, e depois o que a psicanálise descobre pouco a pouco, tanto em seu movimento histórico como em cada uma de nossas psicanálises. e que é muito menos simples e muito menos tranqüilizante. Afirmar-se-ia, em um primeiro tempo, que a psicanálise existe para descobrir a culpabilidade, mas também para livrar-nos dela, como de um erro, ou de uma falsa impressão, ou eventualmente de um anacronismo: talvez nos sintamos culpados de crimes que são simples pecadilhos, ou, em todo caso, de crimes que não são mais presentes, crimes de criança. que aumentamos à distância. Rois bem. se nos reportarmos à cura de um dos grandes "culpados" da psicanálise, quero falar do ''Homem dos ratos", grande culpado, homem da dívida, uma dívida impossível de resgatar, perceberão qué o cáminho de Freud -é bem éuriÓso. Trata-se (como em uma anedota engraçãda, mas meio azeda que às vezes se conta) de dizer ao Homem dos ratos: ··você se sente culpado e trata-se de descobrir por quê": não "você está errado em sesentir culpado", mas "você tem razão de se sentir culpado, e há um crime a ser descoberto". E ainda mais: aqui o Homem dos ratos está realmente encerrado: o .!Iime a_ser descoberto_é_ finilli"T)gnt~_JJI]_frj_mg_de pensamento, um crime de desejo,. e deste crime, de qualquer maneira, não.se~j)ãr;-pois todo péi)SámentÓ do_ crime é () próprio crime. Trata-se, evidentemente, no caso do Homem dos ratos e para Freud, do assassinato do pai, do desejo de morte do pai. Então. seguramente, a culpabilidade está para nós situada, relativizada e inserida na série das "angústias": é uma angústia entre outras, a angústia moral. a angústia social, talvez a angústia de castração. e a culpabilidade seria uma delas. Ou ainda,
62
como indiquei há pouco, pode-se situá-la entre outros sentimentos bastante próximos, e penso que uma psicologia da vergonha, uma psicologia da desonra ou, ainda, uma psicologia da inferioridade, tem interesse em se destacar de uma psicologia da culpabilidade. No entanto, a psicanálise reserva um lugar à parte para a culpabilidade, e se relerem Mal-estar na ciVilização verão como Freud tem dificuldade de lidar com ela. sendo forçado a voltar continuamente: retomemos novamente a questão, não se consegue ... com esta franqueza que caracteriza o procedimento do fundador da psicanálise. A culpabilidade tem um lugar à parte porque está ligada ao crime, de uma certa forma, para Freud o crime é consubstanciai ao ser humano, o crime número um sendo evidentemente o de Édipo, o crime do próprio Édipo, isto é, a morte do pai: crime impossível de evitar. pois ocorre. na criança como no inconsciente, uma identidade absoluta entre o pensamento e o ato. A partir daí, a partir do Édipo e do des~o de matar o pai, existe um caminho, sem dúvida fácil demais. Como o outro mostrava por que sua filha é muda, demonstra-se facilmente por que seu filho é culpado: a angústia ou o medo do castigo, e igualmente a angústia da perda do amor - isto é, a angústia não somente de ser castigado pelo pai por seus desejos, mas também a angústia da perda do amor do pai, pois é preciso não esquecer que os sentimentos são todos ambivalentes e que o sentimento pelo pai é feito igualmente de amor e de ódio -, pois bem, esta angústia, num segundo tempo, seria interiorizada, precisamente em angústia de perda do amor de - ou de ser castigado por - esta instância interna que é, segundo Freud, herdeira do complexo de Édipo, ou s!l]a, o Superego. Dizia que é um pouco simples e um pouco fácil pois estamos aqui bem próximos de uma certa teoria da amostragem: as interdições externas são primeiramente recebidas como tais e depois. num segundo tempo, interiorizadas. Mesmo se admitíssemos este esquema - que nos chega de psicologias inspiradas na análise - seria preciso ainda perguntar o que se torna a interdição, quando passa do exterior (lei dos pais) ao interior (a lei do Superego). Que se torna, então, a assimilação do pensamento ao ato? Como se "negocia", no adulto - e sem dúvida de forma diferente em cada adulto -, a culpabilidade da intenção criminosa e a do crime efetivamente perpetrado? Mas, no seio do movimento analítico. a objeção maior a uma tal concepção veio de um outro horizonte: o da experiência clínica. Rapidamente os analistas percebem que o esquema de amestramento edipiano - isto é, que as interdições encontradas primeiro na família seriam em seguida transformadas em lei interior é difícil de aplicar. Constata-se, sobretudo, que a culpabilidade só raramente é proporcional à severidade parenta!: com freqüência, ela é inversamente proporcional. Esta é uma descoberta à qual ficará ligado o nome de Melanie Klein e a qual o próprio Freud, no fim de sua vida, teve de considerar. A partir daí, nada mais funciona, pois o Superego não é o herdeiro direto da fonte de interdição externa. Então só restam duas possibilidades: uma é a de voltar a um esquema arcaico, filogenético: é a criação de um grande mito que é o da "horda primitiva", ou seja, que a interdição interna. o Superego, mas também a interdição externa, o próprio 63
pai, seriam apenas as herdeiras de um esquema pré-histórico, hipoteticamente transmitido pela filogênese. o do assassinato atávico. Neste sentido, observe-se que estabeleço uma certa distância. não fazendo parte daqueles que tomam por uma verdade histórica este mito que Freud, aliás, denomina como tal. Penso que todos os mitos devem ser interpretados e, por conseguinte, que é preciso ultrapassar o mito. A outra possibilidade é ainda mais estranha; diria que se trata da teoria endógena da culpabilidde. Proponho uma inversão extraordinária. Para resumir em algumas palavras: a culpabilidade seria simplesmente uma modalidade de angústia. talvez uma primeira maneira de fazer um pacto com a angústia: e a própria angústia seria o correlativo do ataque pulsional interno, o ataque que nossos des~os dirigem continuamente contra nós. no sentido que nos atacam e nos submetem a um questionamento. Neste ponto de vista que, finalmente. também deve alguma coisa a Melanie Klein, a angústia é coextensiva ao inconsciente. E a culpabilidade. os crimes, a dialética de crimes e castigos seriam secundárias em relação a esta angústia primordial. secundárias a este momento primeiro de humanização que é o surgimento simultâneo da pulsão e da angústia; finalmente. poder-se-ia dizer que a culpabilidade já está no caminho da simbolização. Poder-se-ia sustentar que o próprio "Édipo" já seria uma primeira tentativa para controlar uma angústia em si mesma destrutiva e anárquica, uma maneira de controlar esta angústia dando-lhe personagens. inserindo-a num cenário. Neste sentido, o Édipo seria o primeiro crime por sentimento de culpa. Sabe-se bem quanto, desde Aichhorn e Freud, foi retomada esta idéia de que certos criminosos só atuam para dar corpo ao seu sentimento de culpa. Pois bem, Freud não desconfiava que. \lnalmente. seria possível se aplicar este esquema ao próprio crime edipiano. Não é o complexo de Édipo que cria o crime. mas a culpabilidade ou. antes. a angústia que sente a necessidade de se controlar num cenário que seria o cenário edipiano. o que pode ser enunciado de uma forma um pouco diferente partindo do que chamamos "castração". Sabemos que os psicanalistas consideram a ameaça de castração como aquilo que vem selar o complexo de Édipo e sancionar a interdição de incesto. Pois bem: o medo da castração correlativo desta ~ameaça não seria puramente negativo. Teria uma função positiva. tranqüilizante ou. pelo menos, estabilizante: a de transformar uma angústia inominável em um medo, este perfeitamente delimitado; a ameaça de uma destruição absoluta, de uma perda de si mesmo, transformando-se no risco. terrível mas limitado. de ter de sacrificar uma parte pelo todo. Quis fazer sentir esta correspondência entre o mundo do crime e o mundo de cada um de nós. O castigo não coloca um juiz diante de um criminoso. mas coloca cada um de nós como juiz e como criminoso. E o juiz, o Superego. ele próprio se desdobra geralmente em justiceiro e sádico. Ainda estamos no palco interior. Podemos passar ao exterior? Para isso. gostaria de aludir. primeiro, ao que se chama, em psicanálise. de necessidade de punição e ao que talvez em Filosofia do Direito poder-se-ia chamar de necessidade de justiça ou sentimento de justiça. Estes conceitos parecem superficialmente se opor. um como tendência estranha, patológica. a submeter-se ao castigo. enquanto que o sentimento de justiça se aplicaria mais espontaneamente à exigência que o outro 64
seja punido. Contudo, esta oposição do sádico e do masoquista - de punir e de ser punido - se revela pouco pertinente se levamos a sério o que lembramos a propósito da "pluralidade das pessoas psíquicas". O que, antes. me interessa. nas duas expressões. é a noção de necessidade. necessidade esta que alguma coisa se passe finalmente no real. Necessidade de punição e necessidade de justiça postulam esta passagem ao real. É preciso que apareça qualquer coisa que não fica mais no que eu chamei de inominável do pulsional. A necessidade de punição é, enfim. de ser sancionada, de forma clara e precisa. por um ato: ou. mesmo. nem por um ato! É de criar um ato para que a própria pulsão encontre seu limite. Se necessário. é preciso. mesmo. cometer o crime. ou simplesmente o furto; conhecemos isto na psicanálise de crianças. sabemos o quanto os delitos familiares. principalmente os das crianças. são na realidade apelos, apelos ao amor e à punição que são talvez, neste momento, indiscerníveis. Já lembrei aqui o trabalho totalmente inaugural de Aichhorn que foi o primeiro a evidenciar esta noção da criminalidade pela necessidade de punição. Quanto à necessidade de justiça, ele postula que uma vez que as coisas tenham passado à "efetividade" para falar como Hegel - existe uma lei possível. pode-se circunscrever o inominável. Do encadeamento sem fim de crimes e de ódios, passa-se a algo que, pode se dizer, pode ser legislado. ainda que pela lei de talião. O psicanalista só trabalha na realidade psíquica. Postula. portanto. a igualdade da fantasia e da realidade, no que se encontra. evidentemente. desqualificado para legislar fora. para dar conselhos fora do seu consultório. Um homem mata outro, de automóvel. na estrada. Para o psicanalista. quaisquer que s~am as circunstAncias, a questão do assassinato está aberta e assim deve continuar; nossa função é mesmo abri-la imediatamente. Tanto assim que. no momento em que se passa à realidade efetiva. o psicanalista só pode emitir opiniões parciais. opiniões completamente conjecturais sobre as articulações do seu domínio e o da justiça. Gostaria, entretanto, de apresentar rapidamente algumas impressões sobre certas noções de grande relevância à reflexão do tema sobre o qual ora discorro. a noção de utilitarismo. Refiro-me à exposição rápida, mas. é preciso que se o diga. magistral de Pierrette Poncella em pequeno opúsculo tão rico e tão denso sobre "O Útil e o Justo". Refiro-me à sua crítica. não menos pertinente. da sua imoralidade, o homem sendo tomado como um meio por um outro, e a pena decidida, como se diz, no cardápio, em função da eficiência. E me refiro também à crítica do seu caráter finalmente contraditório. Mas que pode acrescentar o psicanalista? O psicanalista pode acrescentar que há uma verdadeira puerilidade do benthamismo, esta aritmética dos bens e dos males. e. mais ainda, de uma aritmética transindividual: como se pode somar o bem de um e o bem de outro. subtrair o bem de um do mal do oútro? Certamente o psicanalista está um pouco mais armado para interpretar o que diz Bentham. na medida em que ele mesmo supõe uma espécie de transindividualismo das pessoas psíquicas. Mas o psicanalista vai se perguntar por onde se efetua a passagem de um indivíduo a outro, por onde passa esta aritmética. por que instáncias passam estas equações. Passam pelo ld? Trata-se de mais pena para o ld? Trata-se de mais pena para o Ego? Ou mais
65
felicidade para o Ego? Ou ainda, para o Superego? Por que instância passa a aritmética benthamiana e, sobretudo, por que meio? Evidentemente. ela passa por meio da representação. A representação foi muito criticada durante estes últimos anos. Não misturo minha voz a estas críticas. pois a psicanálise só se movimenta na representação; move-se na fantasia, mas ao mesmo tempo radicaliza a representação. O que a psicanálise mostra é que a representação não é pura e simplesmente a realidade diminuída à qual se anexou um coeficiente atenuador que até poderia ser calculado, nem mesmo. diria. de um coeficiente multiplicador. Certamente o coeficiente seria antes multiplicador que atenuador, quando se passa da realidade da pena à representação e à fantasia. Mas. para dizer a verdade, é insuficiente. A passagem à fantasia, para o psicanalista. estâ ligada á interiorização e nos faz passar a uma outra ordem: o que chamamos a sexualidade. a ordem da excitação sexual. O que era em princípio cálculo dos bens e dos males de um ponto de vista puramente utilitarista, torna-se-ia. neste momento, cálculo de excitações. A fantasia é traumatizante porque é interna. é excitadora e incitadora. Para a psicanálise. o homem não é apenas o ''homem útil". segundo a expressão empregada para designar Bentham. O homem não é apenas o "'homem útil"' para a psicanálise: o homem útil. o homem da autoconservação. ou da adaptação existe junto com o homem pulsional ou, digamos. sexual. O homem vive e age pelo amor. pelo ódio de... Vamos desencorajar o alpinista mostrando-lhe as dificuldades e os riscos do pico que pretende conquistar? Vamos convencer o jogador mostrando-lhe os riscos de perda ligados ao bacará ou à roleta? Há uma inversão de valores e atrações quando se passa da autoconservação ao sexual. Neste sentido. o utilitarismo absolutamente não leva em conta o elemento pu/sional no sentido em que o entendemos, o elemento pulsional do delinqüente. Esporte do fraudador capaz de integrar mesmo a multa no seu cálculo. ou esporte do audacioso. Finalmente, muitos delinqüentes (não digo todos). mais do que delin!ijüentes por sentimento de culpa. poderiam ser listados na categoria do que chamamos. às vezes. traumatófilos. isto é, pessoas para as quais o próprio traumatismo gera excitação. ou ainda do lado dos ''filobatas"', tomando como referencial uma oposição caracteriológica proposta por M. Balint. entre os que ele chama "'ocnofílicos". isto é, que se agarram ao que possuem, e os "filobatas", as pessoas que. ao contrário. caminham na corda bamba: evidentemente. os delinqüentes estariam. antes. do lado dos filobatas. O ser humano propenso à atuação é um filobata. e isto evidentemente destrói todo cálculo utilitarista. salvo talvez para alguns raros delinqüentes puramente utilitaristas. A noção de exemplariedade. Não sei bem se a compreendo tal como. tecnicamente. é empregada em Filosofia do Direito. mas vejo. neste termo. dois aspectos e não somente um. Um ligado ao utilitarismo: a intimidação. para citar Pierrete Poncela. é preciso que a pena real seja aparente. Ora. é aí que a crítica pela representação é fundamental. pois a aparência. o que aparece, o que é representado. é introjetado. e pelo fato de ser introjetado e de agir doravante ao interior. torna-se outra coisa. Um outro aspecto da exemplariedade me parece muito mais profundo. Não é o exemplo da pena como intimidante ou dissuasiva, mas a certeza de que. pelos menos uma vez.
66
o delito teve seu castigo, que em algum lugar existe uma justiça. Para explicar isto, gosto de me referir aos postulados kantianos da razão prática, uma vez que Kant pretende "'provar" a imortalidade da alma através desta exigência. desta necessidade que em alguma parte. enfim. os crimes recebam castigo, e as boas ações sejam recompensadas. Chegar a provar a imortalidade da alma por um tal postulado é um ato de fé extraordinário, e penso que na idéia de exemplaridade existe este ato de fé. Esta exemplaridade endereça-se não somente ao delinqüente, real ou potencial, mas a todo ser humano. é um elemento do que chamo simbolização ... Quanto ao tratamento ou à punição. quer se queira ou não, este pedido de tratamento para os delinqüentes é uma variante do utilitarismo, com seu duplo aspecto: odioso e ridículo. Poder-se-ia fazer alusão, trata-se de uma imagem mas ela não é tâo má assim como apólogo, do famoso filme "Laranja Mecânica"'. Odioso. pois a via psiquiátrica. apesar do álibi terapêutico. permanece uma via penal puramente utilitarista. Refiro-me. aqui. à minha experiência no Henri Colin. tal como era há vinte anos atrás. mas duvido que os dados tenham mudado completamente. Naquela época, o laudo dos peritos e daqueles que esperavam mostrava bem que a via "terapêutica"'. a via psiquiátrica era buscada por razões de comodidade e de utilidade social. Uma utilidade da qual os experts não hesitavam em se declarar especialistas e guardiães! Era o mais desumanizante dos caminhos! Doravante. nega-se ao delinqüente a certeza de uma pena pronunciada e fixada. para ser submetido à incerteza total. à arbitrariedade absoluta dos médicos, que são seus únicos senhores. É um caminho odioso. pois freqüentemente irreversível, no sentido de que, uma vez entrando na via psiquiátrica (ainda que pela ação dos seus próprios advogados!). não há mais possibilidade de voltar a uma via puramente penal. Mas digo também "caminho ridículo"'. pois seguidamente se trata de um álibi. talvez dos especialistas. mas. sobretudo. dos não-especialistas, de pretender tratar a delinqüência. A delinqüência não é uma doença: em todo caso não é uma doença unívoca. Certamente existem certas delinqüências demenciais. mas, mesmo nestes casos, podemos nos perguntar se o caminho de uma total irresponsabilidade é o melhor. Mas o mais freqüente é que se possa afirmar que a delinqüência faz parte de um destino ou. se quisermos. mas no mais profundo sentido. de uma doença da personalidade. Tratar um destino "desdestinando-o". tirando sua seriedade. é evidentemente uma contradição absoluta. A via psiquiátrica. como alternativa à via penal, é uma outra via penal que não quer dizer seu nome. Em todo caso. a psicanálise não poderia tomar o lugar da via psiquiátrica. por ser ela. psicanálise. totalmente fundada sobre a responsabilidade e o reconhecimento da responsabilidade. Traçarei. agora, algumas considerações sobre a reparação. noção que aparentemente estabelece uma ponte entre penalistas e psicanalistas. mas talvez com equívocos. Assim, em psicanálise. a noção de reparação foi introduzida pela grande continuadora e inovadora de quem já falei: Melanie Klein. Para ela, de forma diferente de Freud. conviria colocar uma prioridade da agressão. Já tive ocasião de mostrar que esta diferença não é tâo essencial como parecia, e que talvez Melanie Klein falasse. a propósito de agressão. de uma coisa que não é muito diferente do que Freud falava
67
em termos de sexualidade. Sabemos. também, que Klein parte de uma visão da evolução da criança que designa como uma sucessão de "posições". termo muito mais interessante do que "fases", pois estas posições pode ser reabitadas. reinvestidas em qualquer idade da vida. e não são definitivamente ultrapassadas como as fases. Melanie Klein opõe, na evolução do sujeito e da sua "agressividade", dois tipos de posição: a posição ditaparanóide. onde se trata de uma atividade psíquica puramente destrutiva, o caos da agressão e da contra-agressão, dos objetos parciais que se atira na cabeça do outro. que o atacam. que o destroem. sem que se saiba. mesmo. talvez. quem é destruído. Em compensação, a posição que ela chama depressiva nos aproxima do problema da reparação. Supõe que o sujeito percebe-se a si mesmo como uma certa unidade e percebe igualmente seu objeto. isto é, o genitor ao mesmo tempo amado e odiado. digamos a mãe. como uma totalidade. Nesta "posição depressiva" subsiste. todavia. uma tendência a despedaçar este corpo total da mãe. talvez tanto por amor como por ódio. E evidentemente a angústia de culpabilidade é inseparável deste quadro, pois o sujeito se constitui a si mesmo por identidade com o outro: destruir seu objeto é, evidentemente. uma forma quase automática de destruir-se a si mesmo. não somente destruir-se a si mesmo arriscando-se a ser destruído pelo outro - o que seria pura e simplesmente uma vingança do outro - mas destruir-se a si mesmo porque o outro é a única maneira para o sujeito de se manter como uma unidade. Correlativamente a esta culpabilidade culpabilidade de destruição do corpo materno - Melanie Klein nos descreve um momento que é de reparação ou de restituição. O que é reparar? O que é restituir? É. evidentemente. supor que o corpo da mãe sai. enfim. vitorioso dos ataques e deste desejo de destruí-lo. que é o des~o da criança. Mas esta reparação apr~senta. para mim. um duplo aspecto. E é por isso que a noção de reparação deve ser utilizada com precaução. Um aspecto pura e simplesmente patológico. isto é, que esta reparação se torna uma espécie de trabalho sem fim: aquilo que se quer destruir não se acaba nunca de reconstituir, de refazer; nunca se tem certeza de refazê-lo ou. então. se se tem certeza de refazê-lo. é num sentimento de onipotência. que é puramente mágico. Ao contrário. uma reparação que se poderia dizer normal consideraria o fato de que aquilo que se desfez não se pode jamais refazer; levaria igualmente em conta o fato de que o oQjeto não é todo bom. que ele também é ambivalente, que pode ser, ao mesmo tempo, bom e mau, sob certos aspectos. e que o sujeito mesmo não é todo bom ou todo mau. É. enfim, aceitar a idéia que não se repara fazendo voltar tudo ao status quo ante, mas que se reconstrói outra coisa, que só se repara construindo alguma coisa de novo. Freud gostava de citar este coro do Fausto: "Desgraça, tu destruíste este belo mundo. ele cai aos pedaços. mas agora mais belo, mais belo, tu o reconstróis... " Há. pois. uma reparação que seria apenas reduplicação. e que finalmente se choca com a noção de irreparável: o que foi destruído ou o que foi danificado nunca será reparado. E depois uma reparação que seria reconstrução e invenção. Alguns procurarão reconhecer. talvez. aí. a oposição lacaniana do imaginário e do simbólico; mas de minha parte não gosto muito de fixar esta oposição. porque 68
toda reparação está presa entre os dois, entre a nostalgia da integridade e a aceitação do desastre como incitação a uma nova criação. Ainda há um termo que eu gostaria de reintroduzir aqui antes de falar na retribuição; trata-se do perdão. É bem triste que a noção de perdão tenha quase desaparecido do nosso mundo social. A anistia de contravenções à qual assistimos periodicamente não passa de uma medíocre caricatura. Proporia, portanto, esta tese de que qualquer reparação só pode ter seu efeito apaziguador. estabilizador. na medida em que for mediatizada por um reconhecimento recíproco. na medida em que, de reparação de alguma coisa. torne-se reparação feita a alguém. o que implica o perdão do outro. mas também o perdão de si mesmo a si mesmo: evidentemente poderia me apoiar sobre uma dialética bem conhecida, a de Hegel. A retribuição: Há dois anos, em um artigo. afirmei que o talião era a aurora da lei. Evidentemente. esta é uma afirmação que pode parecer escandalosa. O talião é o olho por olho. evidentemente, além do: serás punido Já por onde pecaste. Observem que já se encontra aí o esboço de um movimento e de uma evolução. Cortar a mão que furou o olho já não é mais "olho por olho". Que pode constatar um psicanalista? É que a retribuição, mesmo na sua origem mais grosseira que. na verdade. é a de talião. estabelece equivalências; e não poderíamos esquecer que o ponto de partida das equivalências. no ser humano. é a equivalência dos órgãos: equivalência do mesmo ou do semelhante (olho por olho); equivalência do "próximo": a mão pelo olho. Estas equivalências são o pão-de-cada-dia do psicanalista. O sintoma histérico nos demonstra que és punido por onde pecaste, por onde desejaste; és cego, de fl)Odo histérico. porque desejaste ver. Estás paralisado porque desejaste ir a algum lugar. E o sintoma histérico mostra. igualmente, a existência de uma mobilidade. e é por um "deslocamento"de um órgão a outro que começa a se estabelecer um jogo de equivalências. Exemplo: o olho para a castração, no mito de Édipo; Édipo peca pelos seus órgãos genitais e é punido pelo olho; talvez mesmo se possa dizer que já tinha sido punido antes de ter pecado: através do pé, pelo qual. recém-nascido. tinha sido pendurado. Pois bem: esta equivalência de órgãos. na criança. é descrita por Freud como "equivalências simbólicas", termo sobre o qual os convido a refletir. Freud afirma que as primeiras equivalências simbólicas são as do seio. das fezes. do pênis e da criança. E o interessante é que o próprio sujeito humano, nestas equivalências, é tomado como um elemento entre outros. ao lado das partes do corpo. A psicanálise é o conhecimento destes deslocamentos e destas equivalências. E é bem evidente que. em certo nível. ela inclui as equivalências estabelecidas por todo código penal. desde Hamurabi. A questão para o psicanalista - e também para ojurista- é saber se existe um último equivalente, se estas equações simbólicas se justificam ou se simplificam pela posição de uma "medida" universal. Uma resposta a esta busca de uma "chave universal" pode ser encontrada num certo falocentrismo freudiano. Entre todos estes órgãos que se equivalem uns aos outros na sua perda, no fato de serem ou poderem ser cortados. trata-se exatamente de punir alguém retirando·o, seria o "falo" que viria estabelecer a boa ordem: a medida padrão.
69
se assim podemos dize,-. Esta solução. se existe. inegavelmente não é a única, entretanto. Sabemos que há outras equivalências universais mais próximas da justiça moderna que não praticam mais a pena da castração. Temos o equivalente dinheiro e o equivalente tempo: a multa e a prisão. Diz-se que há um fetichismo do dinheiro em nossas civilizações modernas. mas quem diz "fetichismo" diz. ao mesmo tempo. uma certa universalização. Esta passagem de um "valor de uso" a um certo "valor de troca" é uma tentativa de resposta a esta pergunta que é a dos economistas e também a dos juristas: como quantificar o inquantificável? Como quantificar o qualitativo? Os economistas se perguntam. pois minha dor ou minha alegria não podem ser pagas. Mas igualmente os juristas. pois se perguntam como um crime, uma infração, pode ser "reembolsada" e qual é a quantidade de conta possível. O que surpreende é uma falta de inventividade da nossa época no que concerne à retribuição e às unidades de retribuição. Por que sentimos a necesidade de uma unidade geral de retribuição? A quantificação da pena. se a relacionamos ao aspecto qualitativo do delito. é impensável em si (como o mostra igualmente a aporia da reparação. pois o que foi destruído nunca será reparado, mas reinstaurado de uma nova maneira). O ato é único. E é exatamente sobre esta constatação que se funda uma filosofia penal que quer "individualizar" a sentença, com o risco de fazer desaparecer toda noção de avaliação. Assim como uma economia funcionando sobre o "valor de uso" seria a negação de toda economia. da mesma forma para uma justiça que pretendesse sondar apenas os rins e os corações. Pois a necessidade de retribuir. portanto de quantificar. só se justifica na intersubjetividade. A necessidade de justiça é também uma necessidade de igualdade. E refiro-me aqui a este 'mito da horda sobre o qual já disse não lhe reconhecer valor histórico: os filhos que mataram o Pai selam. por este ato. a existência de uma sociedade "fraternal" onde todas as precauções são tomadas para que nenhum deles se atribua. doravante. o papel do tirano. Conhecemos isto em todas as famílias: o ciúme e o sentimento de injustiça são antes de tudo uma exigência de igualdade ao nível dos irmãos e irmãs. Voltemos. ainda. à necessidade dejustiça. Deve-se compreendê-la nos movimentos complexos da identificação e da pluralidade de pessoas psíquicas. Um sentimento tão desacreditado. tão "baixo", dizem. como o ciúme ou a inveja, ou o grito de ódio da massa, deve ser compreendido como tradução subjetiva de um desequilíbrio e como tendência ao restabelecimento de uma certa ordem. o que chamamos. em linguagem psicanalítica. uma ligação da pulsão, o fato que a pulsão não esteja mais entregue ao processo primário. ao jogo infinito das equivalências. mas que. enfim. esteja inserida num certo cenário preciso. Vamos nos deter. portanto. aqui. que me parece centrar toda nossa relação aojudiciário. e enunciar com o que podemos contribuir. para além de uma "psicanálise" vulgar: a necessidade de ser punido e a de que o outro sf!ja punido não são dois desejos diferentes. patológicos. dos quais se poderia dizer que um é "masoquista" e o outro "sádico". Fundamentalmente trata-se de uma só e mesma necessidade:
70
que um limite. uma "ligação" seja. enfim. imposta, no outro e em cada um de nós. ao incontrolável da pulsão de morte (1 ). Conclusões? Simplesmente isto: o psicanalista não pode e não pretende trazer soluções sociais ou jurídicas. uma vez que se recusa a propor mesmo as soluções terapêuticas à delinqüência. Apresentei mais incertezas: muito ceticismo em relação ao universo das pessoas jurídicas separadas. mas também algumas certezas. Uma certeza negativa que vale tanto no campo jurídico quanto na experiência psicanalítica: é a desqualificação, no ser humano. do utilitarismo: uma psicologia da adaptação é uma psicologia essencialmente falsa que não leva em conta os móveis pulsionais, sexuais. do ser humano. O ser humano se nutre e vive por amor e por ódio antes de se nutrir para sobreviver. É o que nos mostra a psicanálise. E também uma certeza positiva. que nem por isso é muito otimista: é de que a culpabilidade e a angústia são inerentes ao ser humano: agem como freio. mas também como motores. e a busca incessante de um nível superior de simbolização é precisamente para onde levam. Enfim. propus talvez um pouco de idealismo, um pouco ingênuo: pode-se ajudar a devolver seu sentido pleno a termos como responsabilidade (h o sentido de: responder por). reparação (no sentido de: reparar para alguém e não alguma coisa), retribuição (como ordem simbólica a ser criada e não como pura e simples aritmética) e talvez. ainda. a noção de perdão?
1 -
Foi isto que quis dizer no meu artigo "les Vaies de la Déshumanité". Le Nouve/ Observateur. mar/1977.
n: 642. 28 fev .. 6
71
A PULSÃO E SEU OBJETO-FONTE: SEU DESTINO NA TRANSFERÊNCIA
Puisão para fazer o quê? Esta pergunta nos acompanha durante este artigo. pois considero que a pergunta encerra uma armadilha. Como toda pergunta. aliás. se respondemos nos seus termos. Trata-se de uma pergunta que é preciso questionar. Sua formulação - felizmente - é ambígua: trata-se da "pulsão" ou do "conceito de pulsão" de que se quer "fazer" alguma coisa? Não duvido que, no espírito da maioria dentre nós. leitores. se trate do conceito: um conceito. como se diz. científico e teórico. Como utilizá-lo? Para que pode nos servir? Colocando assim os termos da interrogação,juntamo-nos à concepção pragmática que é válida em todo o universo das ciências da natureza e provavelmente também da psicanálise. Certamente a ciência moderna (para fazer uma perífrase) não se acha submetida a um "fazer" tecnicista imediato. "Para fazer o quê?" em última análise pode querer dizer: em que isto nos serve para compreender e não para agir diretamente? (Penso em conceitos como. por exemplo, os da astrofísica.) Mas. infelizmente diria, os analistas. de uma certa maneira. parecem querer dar lições de pragmatismo aos físicos. Ligados diariamente a uma prática. exigem que todo conceito os ajude cotidianamente ao menos a se orientar, senão a construir e interpretar. Do "para que" questionado ao conceito de pulsão não é raro que se passe. então, abertamente entre nós a um "por que" em geral. colocado à própria "teoria". A teoria. para fazer o quê? A teoria está em vias de se tornar um dos bodes expiatórios da psicanálise. O outro bode expiatório sendo a psicanálise dita aplicada, que chamo "psicanálise fora dos muros". Existe aí. tanto em relação à teoria quanto em relação à psicanálise fora dos muros. um duplo fenômeno de repulsa que se torna um só. Pois é diante de uma certa concepção da teoria como devendo ser aplicada (e até tecnicista) que se encontra a razão deste duplo banimento.
72
Portanto. em relação a nossa questão de partida - para fazer o quê? -. proponho-me a formular como resposta uma dupla interrogação: a pulsão. deve-se fazer dela alguma coisa? E. em segundo lugar. a teoria: qual é seu estatuto, sua função. sua distância em relação à experiência (a nossa. a da prática analítica)? E se em preâmbulo coloquei estas duas questões que finalmente fazem apenas uma. é porque o conteúdo mesmo do que conto lhes propor deve ajudar a respondê-las. A teoria analítica deve nos ajudar a situar o lugar da teoria. Voltarei. portanto. no final. a esta interrogação. Minha segunda observação em preâmbulo é a seguinte; relaciona-se com a história. O problema que colocamos é. evidentemente, a pulsão, para nós analistas. Mas podemos nos desfazer de toda abordagem histórica, de toda problemática. de toda referência em relação à obra que nos precede e, principalmente. em relação à obra freudiana? Já me exprimi demais sobre este ponto em outros artigos para fazer aqui mais do que uma breve alusão. Penso que entre nós não se pode tratar de. freudologia. Mas o freudismo. tanto o de Freud como o de após Freud. é uma experiência. e penso que infelizmente em francês temos uma só palavra para designar ao mesmo tempo o que é experiência adquirida (experience. em inglês) e a experiência científica codificada, que é o experiment. Em alemão também há duas palavras. O que quero dizer com isto é que a experiência da qual falo é a experiência no sentido do inglês experience. quer s~a prática ou teórica. pois a teoria também é uma experiência. ejustamente não no sentido experimentalista. Há uma experiência viva dos conceitos. da sua origem. da sua derivação. do seu engano ou desvio. Há uma maneira pela qual a evolução da experiência teórica alia-se aos avatares da evolução da própria coisa. ou s~a. do ser humano. e isto até nos seus erros sobre ele mesmo. como se os erros do ser humano sobre si mesmo se encontrassem desdobrados nos erros da teoria. que certamente devem ser situados e ultrapassados. Gostaria de começar agora. a partir da experiência no seu segundo aspecto (sempre desta experience). deste húmus comum que representa a experiência prática. a experiência "clínica" como se diz. Aquilo a que. a meu ver. deve responder nosso pensamento da pulsão. Tentarei enumerar estes requisitos da experiência prática em quatro pontos. 1~ O primeiro requisito é o determinismo psíquico. Há uma afirmação geral do determinismo psíquico que nenhum analista renega. O campo psíquico. como qualquer outro. deve poder ser ordenado pela r~zão. A casualidade deve ser banida, etc. É um postulado freudiano. bastante geral. E um postulado para os psicólogos e não somente para os analistas. Freud alinha-se aqui abertamente dentro da ciência, no sentido de que o homem faz parte da natureza. Mas (pois existe um mas), se só houvesse isto. a psicanálise seria apenas uma psicologia, seria uma ciência como as outras e deveria seguir o movimento de todas as ciências. isto é, a passagem de noções confusas. subjetivas (noções como a vontade. as motivações. até mesmo as causas. e este é o ponto evidentemente). deveria passar da noção de causa. como se diz há muito tempo a propósito das ciências da natureza, ao estabelecimento de leis. quer dizer. de relações constantes. até mesmo quantificáveis. entre os fenômenos. A noção de causa. pode-se com razão supor que provém de uma certa experiência
73
subjetiva do ato psíquico e que se encontra em primeiro lugar projetada no mundo exterior. o qual supomos ser ele próprio movido por algur!ia coisa. da mesma forma como temos a impressão. nós mesmos, de nos mover ou sermos movidos. Pouco a pouco. nas ciências do mundo exterior, esta causa dá lugar ao estabelecimento de seqüências regulares cujo ideal é a função matemática. Se seguimos. então, este movimento da ciência. o refluxo deveria se operar: deveria haver aí reinteriorização do determinismo legalista. até mesmo do determinismo matemático interior; deveria ocorrer aí a reconquista do psiquismo pela ciência da natureza. Ora. existe um "osso" que se opõe a este refluxo (perdoar-me-ão esta metáfora um pouco inc~rente). Este "osso" não é o recurso ao sentido. não é a reivindicação personalista. E a resistência e o aprofundamento da noção de causa. tal como nos apresenta a psicanálise. A investigação. a análise, a interpretação do sintoma. do sonho. do lapso. do ato falho, etc. bem que pode ser chamada de busca do sentido. Mas. mais além do sentido. o que nos ensina Freud é que se trata de um outro conteúdo e. por isso mesmo. uma causa real que buscamos. E na evolução constante do pensamento freudiano sobre este tema. a idéia de Jd, a idéia que somos operados por este conjunto de causas obscuras que ele chamou assim. vem selar, de forma quase definitiva. este reconhecimento do nosso fundamental descentramento. 2~ Meu segundo ponto, sempre dentro destes requisitos aos quais toda noção de pulsão d~ve obedecer. será o seguinte: a causa. ~sas g~_a_p~ç~n~i~e~usca e de~IJre _sao çla ordem da representação; são Jembrançª-0a[!j:a~as..QU imi;lginações, imagos, com uma dupla particularidade. Trata-se de representações que estão como qüe paralisadas. fixadas. para além do sentido que podem encérrar, parâ_ãiém dos múltiplos sentidos que podemos lhes dar. EStas représentaçoes pàralisadas ou fixadas ' têm a intensidade significativa de esquemas. guardando ao mesmo tempo a_material!dade de quase-coisas. É assim que comento o problema de tradução que nos coloca a Sachvorsteliung de Freud. que é, evidentemente, representação de coisa no sentido intencional. mas que no inconsciente se torna uma verdadeira representação-coisa. Este movimento da representação de coisa à representação-coisa significa precisamente esta fixação para além de todos os sentidos. até mesmo para além de toda referência. como dizem os lingüistas. Asegunda particularidade destas representações é que elas são inconscientes. ou que mergulham no inconsciente, e que ao menos uma parte é incapaz de voltar a ser consciente, nem mesmo pela análise. como sabemos. A análise só pode constatar que uma parte do inconscien~~-I}!JDca_poderá ser rememorada e trazida de volta ao consciente. màs sorriente encerrada numa rede de construções que tenta aproximá-la mas que não atinge a prÓpr]ã cãSã. a representação-coiSa mesma. 3: Meu terceiro requisito é que estas representações têm em grande parte relação com os processos corporais, que se organizam em torno do corpo, desta ou daquela de suas zonas ou de suas funções. É o reconhecimento essencial das "organizações"- ou da complexidade- libidinais, que são organizações fantasiosas bem descritas por Freud. Daí. desta centragem sobre estas organizações, daí a ver na zona erógena (zona oral. zona anal. etc) a fonte da pulsão. falta apenas um passo. 74
Um passo fácil de dar e que Freud parece dar alegremente nos Três ensaios: mas esta alegria é talvez relativamente fácil quando se trata da zona genital (dizer que o pênis ou os órgãos genitais femininos são a fonte da pulsão parece fazer sentido). ou ainda a zona anal, ou mesmo a zona oral (mas onde está realmente a fonte somática da excitação oral? Nunca ficou bem estabelecida, finalmente). Em todo caso. bem mais difícil de sustentar é esta metamorfose da fonte quando se trata de alguma coisa como a pulsão de ver (a pulsão de ver é uma excitação do olho, existe um orgasmo ocular? Poucos dentre nós aceitariam dizê-lo) ou ainda a pulsão sádica proveniente de uma excitação muscular? 4: Meu quarto requisito. enfim, é de explicar os fenômenos de deslocamento. O fato que uma mesma reação afetiva se encontre ligada a uma representação completamente diferente das circunstâncias reais da sua gênese constitui uma experiência que Freud destaca desde o início dos seus primeiros escritos, os Estudos sobre a histeria principalmente, e aí está alguma coisa que não podemos evitar em nossa experiência e em nossa reflexão. Ou ainda o sufocamento do afeto, a "bela indiferença" das histéricas como se diz. e sua reaparição (ou assim dita?) a aparência de reaparição em outro lugar. na somatização ou no ataque. Ou ainda o desligamento do afeto de toda representação, sua desqualificação. e. no lugar de um afeto qualificado. especificado, a sobrevinda da angústia. Ou ainda os fenômenos como a transferência, e isto em todos os sentidos do termo. quer se trate da transferência do sonho, isto é, a transferência sobre os restos diurnos. de certos afetos, de certas moções de des!ljo. ou ainda a transferência no sentido que empregamos diariamente. a transferência na cura. Eis ar. portanto, as múltiplas experiências da análise que talvez só venham radicalizar uma maneira espontânea de perceber; quero dizer que o deslocamento é uma experiência da análise, mas já é uma experiência cotidiana. uma experiência da linguagem cotidiana. Que outra coisa fazemos quando dizemos (e o dizemos sem Freud): "transferimos nosso amor desta ou daquela pessoa para uma outra". "temos um potencial agressivo que está só esperando um objeto, qualquer um. o primeiro que me cair na mão, qualquer ocasião, etc"? Em resumo. os fenômenos do deslocamento. até mesmo da condensação. levam naturalmente a uma teoria da separação radical do afeto e da representação, a uma esquematização tornando um independente do outro; um. segundo o modelo físico, sendo o móvel (o afeto). o outro a via associativa. a linha de trem que leva de uma representação a outra com todas as metáforas freudianas sobre, precisamente. as vias (tanto as cadeias como as vias férreas) que levam de uma representação a outra. Existe aí uma experiência muito forte, muito persuasiva. se não convincente. uma experiência que se liga diretamente a modelos fisicalistas, em termos de quantidade e de neurônio, em termos de energia e de estrutura. ou. ainda, como se dizia no século XVII, em termos de figura e de movimento. Modelo que foi dominante no pensamento freudiano ao longo de toda a sua evolução. Mais adiante vou expor em detalhes minha posição a respeito da hipótese econômica. Quero somente enfatizar que nenhum pensamento metapsicológico pode negligenciar explicar o deslocamento que constitui nossa experiência cotidiana. Mas é preciso reconhecer inversamente que o deslocamento absoluto. no qual o afeto nada 75
retém da sua representação de origem, é somente um caso de figura,jamais verificado, assintomático. como o seria um processo primário absoluto. Evidentemente. é a psicopatologia (no sentido mais amplo. incluindo a Psicopata/agia da vida cotidiana) que dá o modelo dos deslocamentos mais radicais (ou, como tenho tendência a dizer: os deslocamentos "mais esquecidos", que esqueceram de onde provêm). Mas um deslocamento radical. um processo primário absoluto. deveria poder se traduzir pela seqüência: "esqueci - o quê? - esqueci - o quê? - esqueci"; o que é precisamente o limite absoluto colocado à investigação analítica, se esta deseja buscar efetivamente o que foi esquecido; o que supõe que o processo primário não seja absoluto. Um determinismo casualista. que nos torna estranhos a nós mesmos e nos aliena num ld. Uma determinação por representações inconscientes. Representações formando flocos em complexos ligados ao corpo ou a uma de suas partes ou funções. O fenômeno do deslocamento que não poderia ser negligenciado nem levado ao absoluto. Eis aí quatro resultados da experiência analítica. Entendo por isso não uma experiência bruta (que não existe, no sentido do empirismo), mas uma experiência relativamente independente de todo sistema teóri~o. É aí que vem se enxertar a teoria da pulsão, se pulsão existe. É aí que Freud vem introduzir. com um sucesso notável. dois tipos de modelos bem diferentes. no entanto: um modelo dito fisicalista. reduzindo. como já disse há pouco, todo fenômeno a energia + figura. ou energia + representação; e um modelo biologisante, fundado sobre o princípio de constância, a tendência inegável de todo organismo para manter sua diferença de estrutura e de nível energético com o seu ambiente. Dois modelos freudianos que por vezes concorrem. que com mais freqüência se combinam, mas cujo lugar deve constantemente ser reavaliado. Para resumir minha reavaliação pessoal destes dois modelos, diria que a principal virtude do modelo fisicalista é sua falsidade fisica. o que o torna apropriado para explicar a estranha materialidade, dura como o ferro ou mais dura do que o ferro. que chamamos "realidade psíquica inconsciente" ou como "corpo estranho interno". É aí que se situa o retorno - a reintrojeção. diriam - do falso causalismo físico. no seu lugar de origem: o psiquismo inconsciente. Quanto ao modelo homeostático. biologisante. é no que se relaciona ao Ego que ele se verifica melhor. ao longo de toda a elaboração freudiana. Minha finalidade não é absolutamente expor a teoria freudiana da pulsão que constitui uma espécie de síntese ou de compromisso entre o fisicalismo e o biologismo. Citarei apenas: fonte. impulso. finalidade e objeto. com esta famosa contingência do objeto que nos vale tantos problemas. E apenas lembrarei a origem biológica, segundo Freud. da pulsão sexual. da mesma forma. aliás. que a origem biológica das funções de autoconservação. Todos conhecem a fórmula mais sintética: a pulsão é "um conceito-limite entre o psiquismo e o somático"; é "o representante psíquico de estimulações que provêm do interior do corpo e atingem a alma"; ela é "a quantidade de exigência de trabalho imposta à alma em conseqüência da sua relação com o corporal". Encaremos agora este recurso massivo ao biológico face às nossas quatro exigências enunciadas há pouco. A exigência de uma causa que nos aliena e nos torna
76
estranhos a. nossos próprios atos: certamente sim. a referência biológica nos torna bem estranhos a nossos próprios atos. A ligação com as zonas corporais (meu terceiro ponto de há pouco): isto parece convir... ainda que o estado de tensão, tumescência e detumescência seja apenas um modelo muito pobre para explicar a noção de fonte pulsional (evoquei há pouco a pulsão de ver). Que dizer de nosso quarto ponto. o deslocamento? Pois bem. a teoria de Freud. a teoria biológica da pulsão o explica. mas ao preço de levá-lo ao absoluto. A contingência do objeto é total. A pulsão se resume num impulso (a única coisa que resta finalmente desta espécie de faca de dois gumes que é a pulsão é o Drang). um impulso energético que se liga a (e se desliga de) qualquer coisa. como a um engodo. Mas é sobre nossa segunda exigência. a relação às representações (lembranças e fantasias), que a teoria biológica ê mais fraca e mais arbitrária, negando a estas representações toda eficácia própria, para ver nelas apenas o lugar de ancoragem. de investimento, de uma energia indiferenciada e flutuante. Na minha opinião. recorrer a uma pulsão biológica para explicar a força do determinismo inconsciente é uma hipótese inverificável. contestável e, de qualquer forma. extra-analítica. Vamos mais longe. A hipótese de um equipamento pulsional inato carrega em si. como por necessidade. a idéia de que as fantasias são apenas eflore~cências, traduções psíquicas de uma evolução endógena. finalmente maturativa. E o qUe se revela em Freud, no momento mais biologisante de seu pensamento. entre 1897 e 1905. no que se seguiu a esta famosa carta de 21 de setembro de 1897. É o que se verifica também em Melanie Klein, onde fantasia e pulsão são estreitamente ligadas. e finalmente endógenas (como tantas vezes lhe foi reprovado) não somente na sua força. mas também nas suas modalidades de manifestação. Entramos aí no caminho daquilo que chamo um idealismo biológico onde o vivido é apenas um ponto de apoio e de ancoragem. Esta é uma objeção decisiva a toda teoria psicanalítica que entende confrontar um organismo biológico ou somato-psíquico a um ambiente considerado. na sua essência. como não-psíquico. É possível uma outra teoria da pulsão ou é preciso abandonar toda noção de pulsão? Pode-se propor uma outra retomada do processo freudiano. a volta a um outro Freud. a um terceiro modelo esboçado, depois "abandonado na embalagem .. e pelo próprio Freud? Entre mil. uma indicação poderia vir do fato que o Trieb, a pulsão, só é apresentado em 1905 (mesmo que o termo apareça uma vez no Entwurf). Mas. evidentemente. a noção de excitação de origem interna aparece antes. A excitação interna. lembra-nos Freud. é aquilo de que podemos nos livrar pela motilidade. Definição inegável. mas permanece aberta a questâo de partida: aquilo de que não podemos nos livrar pela motilidade é o corpo? é o investimento da reminiscência pelo corpo? ou é o próprio corpo estranho interno, isto é, a própria reminiscência? Há uma outra palavra nas Cartas a Fliess. é a palavra Impu/se, que se encontra num certo número de textos bem localizados no tempo, e que é traduzida, na edição atual do Nascimento da psicanálise, por "pulsões". Sem dúvida. não se trata de forças corporais. nem mesmo de investimento de fantasias. Estes Impu/se, estes impulsos no sentido que se diria na fisica ou na eletrônica, são a própria
77
ação das lembranças recalcadas e das fantasias, o que nasce delas, o que decorre delas como de sua fonte. Encontraremos isto no Manuscrito N, especialmente. Estes textos. com este emprego anterior ao Trieb, situam-se plenamente no que se chama a teoria da sedução, e quer dizer que o modelo freudiano que tento fazer funcionar. nas origens da pulsão. é o da sedução e do reca/camento originários. A apresentação que segue só deve ser tomada como um esquema geral. Não deve ser concebida como estritamente cronológica. ainda que s!lia um esquema de criação portanto. no sentido mais amplo, um esquema. apesar de tudo, genético (se aceitamos tomar "genético" no sentido mais amplo de criação). Enquanto que a teoria clássica da pulsão propõe uma antecedência, uma precessão e apenas uma - a dos estímulos endógenos somáticos - pensamos que é indispensável conceber uma dupla precessão: por um lado o pré-requisito de um organismo votado à homeostase e à autoconservação; por outro lado. a de um mundo cultural adulto. no qual a criança é mergulhada completa e imediatamente. Entremos um pouco nos detalhes. Opomos as funções de autoconservação à sexualidade. como funções biológicas e biopsicológicas visando à manutenção do organismo. de sua estrutura e de suas constantes assimiláveis a um nível energético homeostático: é um modelo. finalmente, que os físicos retomaram em todos os seus sistemas de regulação e de feedback. A autoconservação vem. em primeiro lugar, para o ser humano como para todo ser vivo. Insisto sobre o fato de que isto implica uma abertura imediata ao mundo, abertura perceptiva e motora do organismo sobre seu ambiente. A idéia de um organismo em princípio fechado sobre si mesmo. que deveria depois se abrir num segundo tempo ao objeto (ou construí-lo, que sei eu?). é uma das modalidades de idealismo ou do solipsismo biológicos que tantos teóricos da psicanálise imprudentemente retomaram. Em compensação, face a esta intensidade significativa da autoconservação, com Freud e também, marginalmente em relação a ele. em seguimento a Bolk. insistiu-se com justo motivo sobre a insuficiência parcial ou sobre o atraso dos mecanismos adaptativos no ser humano. Esta dependência do rebento humano em relação ao adulto. muito mais marcada do que nas outras espécies. favorece este distanciamento que é a origem da humanização. isto é. a sexualização precoce do ser humano. Entretanto. as pesquisas modernas (como as de Brazelton) mostram até que ponto a abertura perceptiva e adaptativa do recém-nascido ao objeto não deve ser subestimada. Isto no que se refere à primeira precessáo. com as nuances que é preciso considerar para a noção de autoconservação. Quanto à segunda precessão. trata-se do mundo adulto ao qual é confrontado o organismo nascente. Rapidamente. constatamos que se trata de um mundo de significado e de comunicação. transbordando por todos os lados as capacidades de apreensão e de controle da criança. De todos os lados afluem mensagens propostas. Por mensagens não entendo necessariamente nem principalmente as mensagens verbais. Todo gesto. toda mímica tem função de significante. Estes significantes originários, traumáticos. chamemo-los: "significantes enigmáticos", precisando o que entendemos por isto. Estes significantes não são enigmáticos somente pelo simples fato de que a criança não possui o código e que teria que adquiri-lo. Sabemos 78
bem que a criança começa a habitar a linguagem verbal sem que lhe seja fornecido um código previamente, assim como podemos adquirir uma língua estrangeira pela prática diária. Não se trata disto. Trata-se do fato que o mundo adulto é inteiramente infiltrado de significados inconscientes e sexuais, dos quais o próprio adulto não conhece o código. E por outro lado se trata do fato de que a criança não possui as respostas fisiológicas ou emocionais correspondentes às mensagens sexualizadas que lhe são propostas: em resumo, que seus meios de constituir um código substitutivo ou provisório são fundamentalmente inadequados. O que é, portanto, a sedução como dado e como teoria? Faz-se disto atualmente toda uma história, em torno da correspondência com Fliess, e do que Freud teria calado, ou recalcado. dos fatos históricos de sedução aos quais foi confrontado (tanto na sua análise quanto nas suas primeiras análises). O relato de um fato curioso é uma coisa; a sedução como fenômeno estrutural é outra. E talvez mesmo uma tenha comprometido a outra. Quero dizer que o abandono parcial da teoria da sedução em 97 talvez seja devido à confusão. para o próprio Freud, entre a contingência das manobras sexuais ditas perversas, por parte do adulto, e a generalidade da situação de sedução. Freud joga fora sua "neurótica" quando teria sido preciso talvez aprofundá-la. no sentido da sedução fundamental. originária. Mais tarde. retificará parcialmente o tiro ao enfatizar a generalidade da sedução ligada aos cuidados maternos. Mas é preciso ir mais longe; mais além das manobras excitantes, perversas ou simplesmente ingênuas. é preciso ver a prática cotidiana. Retomo rapidamente o exemplo do seio, com a importância extrema. talvez exorbitante. que lhe é atribuída pela psicanálise. Ora. frente a esta eflorescência do seio, bom ou mau, dado ou recusado. frente a esta onipresença entre os analistas e principalmente os analistas de crianças, relevarei a ausência. na reflexão analítica, do seio erógeno, do seio erótico. O seio é uma zona erógena importante da mulher, que não pode deixar de atuar como tal na relação com a criança. Que quer de mim este seio que me alimenta. mas que também me excita: que me excita se excitando? Que quer ele me dizer, que ele mesmo não sabe? O exemplo do seio é talvez apenas um apólogo, sobretudo para a criança moderna que tem cada vez menos contato com ele. Tem o mérito de fazer compreender sobre que bases se produz a constituição dos primeiros objetos-fontes. objetos interiorizados. ou antes. introjetados. No início. uma relação centrada sobre a autoconservação. sobre a satisfação de uma necessidade adaptativa principal (a alimentação). No inicio também. a centralização sobre uma zona de trocas entre o exterior e o interior do corpo, a zona oral, que compreendemos bem porque se torne o ponto de evocação e de fixação de uma erogeneidade, que seja necessário atribuir-lhe uma eretilidade fisiológica particular qualquer. No início também. concomitante à presença do alimento (o leite), a instrumentalidade do seio que se impõe como mensagem enigmática. carregada de um prazer de si mesmo ignorado e de impossível circunscrição. De passagem. e sem me deter aqui. aproveito a oportunidade para dizer uma palavra sobre a teoria do apoio. Teoria apresentada. posta de lado. retomada. por Freud. depois por nós todos. Esta teoria do apoio afirma o surgimento da pulsão sexual apoiando-se sobre (in An/ehnung an) a função de autoconservação. Este apoio
79
se traduz pelo fato de nascerem em um mesmo lugar. sobre a mesma fonte. numa mesma atividade, depois que o objeto e o fim começam a divergir num movimento progressivo de clivagem: o objeto, como se sabe, sofrendo uma derivação do tipo metonímico, por contigüidade: o seio pelo leite: e o fim divergindo de maneira metafórica em relação ao fim da alimentação, isto é, se modelando erri analogia com a incorporação. "Apoio" se tornou um termo bem maltratado atualmente. Já se fez dele o apoio do espírito sobre o corpo, já se falou de contra-apoio. etc. Mas, mesmo tomado no seu melhor sentido (em seu sentido freudiano), trata-se apenas do último marco de uma concepção fisiológica da pulsão sexual que deve ser abolida e invertida. É inconcebível que a sexualidade emerja biologicamente da autoconservação. ainda que por um distanciamento de fim e de objeto. Este é o cúmulo. o nec plus ultra da robinsonada: entenda-se aí a tentativa de reconstituir o mundo cultural a partir dos recursos endógenos apenas do bebê-Robins?n· Minha fórmula seria, portanto, a única verdade do apoio é a sedução originária. E porque os gestos autoconservativos do adulto são portadores de mensagens sexuais inconscientes para ele e incontroláveis pará a criança, que elas produzem. sobre os lugares ditos erógenos, o movimento de clivagem e de deriva que leva eventualmente à atividade auto-erótica. Mas o veículo obrigatório do auto-erotismo, o que o estimula e faz existir. é a intrusão e depois o recalcamento dos significantes enigmáticos trazidos pelo adulto. É preciso, portanto. falar aqui do recalcamento originário. Pois é de um movimento apenas que este cliva do psiquismo um inconsciente primordial que se torna, por isso mesmo, um ld, e que constitui os primeiros oQjetos-fontes. fontes da pulsão. De acordo com a teoria freudiana do apres-coup concebemos o recalcamento originário como em dois tempos, pelo menos. O primeiro tempo, passivo, é como que a implantação, a primeira inscrição dos significantes enigmáticos, sem que estejam ainda recalcados. Tem uma espécie de estatuto de espera. estatuto de externo-interno ou ainda (segundo uma outra expressão de Freud), de sexual/pré-sexual. O segundo tempo é ligado a uma reatualização e a uma reativação de~es significantes, doravante atacantes-internos. e que a criança deve tentar ligar. E a tentativa de ligar para simbolizar os significantes perigosos e traumatizantes que leva ao que Freud chama de teorização da criança (as teorias sexuais infantis). e ao fracasso parcial desta simbolização ou desta teorização. ou seja, ao recalcamento de um resto incontrolável, impossível de circunscrever. São estas representações de coisa, tornadas representações-coisa, que tomam um caráter isolado. fora de comunicação e fora de significância. naquilo que chamamos ld. A pulsão não é, pois, nem um ser mítico. nem_ um~ f_ocça bio!Qgica, n~m~um conceitO-limite. Elã é im-pacto sobre o indivíduo e sobre _Q_ Ego da ~_.!.r:!lu~as~o conSi:ante, exercida do interior, pelas representações-coisa re_cai~
o
da
80
Apenas uma palavra sobre o dualismo pulsional. do qual penso que é uma articulação. uma dicotomia interna à pulsão sexual. É em função da própria natureza do objeto-fonte que se distinguem pulsões de vida e pulsões de morte. Na pulsão de morte, o objeto se encontra reduzido a um só aspecto, unilateral. parcelar, excitante. até mesmo destruidor. Na pulsão de vida o objeto sempre tem aspectos unificados, totalizados, mesmo se se trata do que chamamos um objeto parcial, isto é, uma parte do corpo. Tanto assim que os objetos-fontes das pulsões de morte e de vida são finalmente os mesmos: mas reduzidos. como descarnados, resumidos a índices de excitação no primeiro caso, enquanto que. no segundo, a tendência a unificar e a sintetizar encontra-se na própria apresentação do objeto-fonte. Gostaria de repetir alguma coisa sobre a concepção dita "econômica" para distinguir aí o aspecto quantitativo e o aspecto de processo. Antes de tudo, a idéia de uma força relativamente constante da pulsão permanece um postulado plausível, mesmo que seja utópico querer quantificar esta força. Trata-se aí apenas da "exigência de trabalho" exercida pelos "protótipos inconscientes recalcados". Se eu devesse formular uma hipótese quase metafísica sobre a última origem desta força, diria que é a medida da diferença ou do desequilíbrio entre o que é simbolizável e o que não o é nas mensagens enigmáticas trazidas à criança. É, se quisermos, a medida da quantidade de traumatismo. Em segundo lugar. de toda maneira. e mesmo fora de todo objetivo quantitativo. a constante do impulso pulsional é apenas aproximativa, válida por um lapso de tempo determinado. Contra uma constante absoluta. depõe principalmente a hipótese de uma neocriação de "energia" sexual. segundo as mesmas linhas que presidem a sua gênese original. Mas existe um outro aspecto do econômico que conserva toda a sua importância: é a distinção dos modos de funcionamento: processo primário (dito de energia livre) e processo secundário (dito de energia ligada). Pode-se imaginar que a circulação em causa - os tipos de circulação, livre e ligada. mais ou menos livre e mais ou menos ligada- possam ser concebidos segundo um modelo não-fisicalista, referindo-se ao que se pode chamar circulação de sentidos ou de informação nos circuitos de comunicação - com, talvez, este paradoxo que seria preciso, também, falar da circulação do não-sentido, isto é, do não-simbolizado. Enfim. sempre dentro deste problema econômico, voltarei sobre o fato de que a existência independente do afeto e da representação é postulada por Freud a partir de fatos clínicos indiscutíveis. Ela merece. por um lado, ser traduzida segundo o modelo de circulação evocado há pouco, e por outro lado de ser modulada segundo os casos. Quanto mais um afeto é qualificado, menos é móvel: quanto mais desqualificado, mais o processo em causa se aproxima do processo primário. Mas só se pode postular assintoticamente uma descarga (angústia) ou um deslocamento de afeto absolutamente des-ligado. Propus-me a articular a pulsão à transferência. Isto necessitaria longos desenvolvimentos, e contentar-me-ei de indicar suas linhas mestras. A transferência, tal como a concebo. é característica da situação analítica e de algumas outras constelações 81
intersubjetivas específicas. que tem em comum o fato de reproduzir, de renovar, a situação de sedução originária. É assim que interpreto a fórmula de Lacan mais sugestiva do que argumentada com precisão. sobre o "sujeito suposto saber". O sujeito suposto saber. de início. é o adulto para a criança: tanto assim que pode-se dizer que a situação originária da pulsão já é uma relação tanto de transcendência quanto de transferência. Transcendência aquém. uma vez que há um vazio de significância ou uma falta de significado que constitui o caráter enigmático da mensagem do adulto. Transcendência e transferência para além, uma vez que todo o movimento de simbolização consiste em acrescentar novos significantes com a finalidade de deslocar. de transpor, e. assim, de ligar os significantes mais traumáticos. A transferência - no sentido analítico - só pode ser o prosseguimento ou a retomada deste movimento de simbolização. Neste sentido. longe de ser a espécie de jogo de papéis e de desilusão que se quer às vezes ver nela. a transferência seria a reabertura da transferência originária. e seu destino. por sua vez, só poderia ser de ser ela mesma transferida (fórmula que reencontro em Wilhelm Reich. provavelmente sem lhe dar o mesmo sentido: transferência de transferência). Também tinha prometido voltar às minhas duas perguntas do início: a pulsão. deve-se fazer alguma coisa com ela? A teoria, qual é o seu estatuto? Pois bem. o próprio conteúdo do que propus oferece as pistas. Em primeiro lugar. quanto ao "que fazer?" Não podemos negligenciar o fato de que este tipo de pergunta (que fazer de?) é inseparável. na sua "representação-fim", de um objetivo adaptativo. Aqui. adaptação de um conceito a uma finalidade. ainda que puramente técnica, e mesmo que não pretenda implicar a idéia de "valor". "Que fazer de" é uma idéia que pode existir no campo do sexual? E não seria preciso perguntar. antes de tudo, o que a pulsão pode fazer de nós. e como podemos nos acomodar da sua existência? Quanto à teoria, seu estatuto não pode ser separado da função do saber e da teorização infantil na gênese do psiquismo (lembro novamente este termo de "teorias sexuais mfantis"). Não se trata absolutamente aí de desvalorizar a teoria. como se pretende freqüentemente dizer. fazendo dela um avatar da fantasia, enquanto que, em cadeia. se desvalorizaria, por sua vez, a fantasia vendo nela apenas o fictício. e ressaltando apenas os aspectos irreais. Se quiserem me seguir, deve-se supor que a teoria analítica. no seu nível mais geral (principalmente esta teoria da pulsão ou do objeto-fonte). deve nos mostrar como. em que condições. com que resultados e que fracassos. a que preço, o sujeito "teoriza". metaboliza os enigmas que lhe propõe de imediato a comunicação inter-humana. De uma certa maneira. a teoria analítica é. portanto. uma metateoria em relação a esta teorização fundamental que opera o ser humano: não como primeiro objetivo de se apropriar da natureza. mas para ligar a angústia em relação com o traumatismo do enigma. Quer dizer que a teoria analítica não poderia de forma alguma se impor. nem mesmo interferir neste processo de simbolização individual. tal como se opera desde as origens e tal como a prática da cura pretende dar-lhe prosseguimento. A teoria diz que cabe ajudar o paciente a "teorizar" nos seus próprios termos. com os elementos
82
que lhe restaram da sua história individual. A teoria da pulsão, uma pulsão encontrando sua fonte nos objetos-representações de cada indivíduo, é um convite discreto a manter a teoria analítica à distância da cura e de seu processo de transferência.
83
TRAUMATISMO, TRADUÇÃO, TRANSFERÊNCIA E OUTROS TRANS(ES)*
Jogamos palavras sobre o papel. como por acaso. levados pela assonância, seduzidos pelo efeito produzido ou a produzir: traumatismo. transferência, tradução, transe. transcendência: ei ·los inscritos doravante, não completamente sem história. nem sem intenção deliberada, mas vagamente entre as duas, num lugar onde exigem uma busca de sentido. Mas, desde então, não se tem mais sossego, eis que estão investiêlõs~j:íelã exigê~~i~dotema. pontos de estimulação deonde irradia a inquietude, s~não_a angústia: verdadeiro diabinho cuja energia é preciso ligar antes de toda esperança de fazê~iã fluir_ e de obter daí um certo prazer. Eis aí, mais do que uma imagem. mais do que um modelo: um destes microtraumatismos renovados que pontuam. que relançam nossa atividade criativa. Por outro lado. "Atualidade do Traumatismo", título das jornadas e que originou este artigo e cuja formulação exata· não tinha detido minha atenção até hqje, não provoca em mim nem este distanciamento nem esta ameaça de transbordamento. É. na verdade, numa certã atualidade que eu desejava me situar, mais precisamente na atualidade do movimento psicanalítico e do que ele é levado a descobrir sobre si mesmo. Os documentos sobre a história da análise se amontoam e não há editor que não proponha uma ou várias coleções de obras que lhe sf!jam consagradas: histórias de pacientes, especialmente pacientes de Freud. história de documentos concernentes a Freud. história de analistas e do movimento psicanalítico. O arquivo Schreber não cessa de aumentar: documentos minuciosamente recolhidos sobre um pai que não se está longe de acusar de todos os males. Genealogias • Texto baseado em conferência proferida em um dos Encontros de Psicanálise em Vaucresson. organizados pela APF.
84
remontando a séculos. à procura do famoso assassinato da alma. tradução de textos inéditos ... Dovarante, reúnem-se "Congressos Schreber". O arquivo do Homem dos Lobos também se torna, a partir de agora, acessível. Aqui está mais organizado, o "corte transversal", para falar como Michel Schneider, está mais centrado. Aliás, é o próprio Homem dos Lobos que foi, desde o início, conservado como uma peça: peça anatômica, cotação de arquivos. Os arquivos Freud - esta grande estrutura concebida para armazenar todos os documentos da nossa fabulosa história - fazem brilhar diante de nossos olhos a esperança de outros "cortes". Mas quando aparece um arqueólogo pirata, um cavador de túmulos. um jornalista (Karin Obholzer) já começa a confusão na tribo. Inquietação e pânico, nos arquivos, com a abertura sem preparação da correspondênciã Freua-Fiiess. O que analistas respeitáveis só tinham podido obter através de seu prestigio, era dado a um aventureiro, um "Ávida Dólares", para engordar seus bolsos. Depois de ter se introduzido junto aos nossos Cérberos através de uma operação-sedução sem precedentes. eis que divulga, profana, comenta sem precauções e - é preciso que se o diga - sem nenhuma competência. Golpe de força ao mesmo tempo publicitário e salutar, o de um Jeff Masson. O ladrão de túmulos quebra objetos. destrói camadas que outros levam anos fotografando e arquivando. Põe tudo à venda ... evidentemente bem caro. Sem ele, no entanto. a história oficial e hagiográfica, inaugurada pelo próprio Freud. continuaria a se desenrolar. Que se passa com toda esta confusão e estas ressurgências? Qual o proveito, qual o progresso para a análise, sua teoria e sua prática? Dois debates são reativados e fazem furor, debates velhos como o próprio freudismo, jamais liquidados: part_e._respectiva da fantasia e/ou da realidade na causa da neurose. ou simplesmente dõ próprio ser. psíquic.õ~ ResponSãiliii(iâde, até mesmo cul~~ls e/Ql,l_dQs_filhos em um des1:ioo freqüentemente pouco invf!jável. Debates evidentemente conexos. ordenados um pelo outro, riô qual as tomadas de posição deveriam ser, senão matizadas. pelo menos circunstanciadas. Mas eis nossos ladrões de túmulos, brandindo seus fragmentos de estátuas. e gritando: "Quase não me atrevo a acreditar de verdade. É como se Schliemann tivesse exumado esta Tróia que se considerava legendária". O primeiro dos ladrões de cemitérios é o próprio Freud, e ter-se-á reconhecido aí um fragmento de uma carta a Fliess. carta tardia (21.12.99), bem depois da assim chamada conversão à fantasia. Fantasia ou realidade? Falsa questão~oll verdadeiro debate? Questão verdadeira. embora mal colocada, no "ou" que dificulta toda articulação. Mas, sobretudo. questão a ser transmutada, se é verdade que Freud. e mais ainda aqueles que pretendem reabilitar - ou, ao contrário, desqualificar - o traumatismo real não tem bem claro de que realidade se trata. Tra~matismo fisico - traurrmtismo psíquico- concepção traumática da neurose -: aí e_sJãotrês entidades que se derivam. isto é, ao mesmo tempo em continuldáde e em d~scontinllidade com mudança de registro. em metonímia e em metáfora. O que as une. certamente, é a noção de furar. Tpcx.iJ'jla: leva a T~Tpáw ou
e
85
TcTpiflq_k w e às raízes Tpw,Tap,To:p ou Tpo:: furar. perfurar. penetrar. onde ã penetração sexual está explicitamente presente. Isto nos leva às descrições definitivas de Freud em Para além do princípio do prazer: CJ_tJ:aumª-ªrrq_m_tJ.
1 -~ Cf. especialmente Problemáticas 1: A angusUa e Problemáticas 111: A sublimação. 2 - Freud. S. Cinco psicanálises. Obras completas. 3 Cinco psicanálises_ Cit.
86
camas. neste parêntese de tempo quase hipnótico, tanto com o início da psicanálise quanto com o que Fereczi chama .::tr~nse" ...) E ainda, last but not least*, com o arquivamento. o fato de ser transformãê!õ em uma peça teórico-clínica: o que, na minha opinião. somente leva ao extremo o perigo latente de toda "comunicação clínica". Não entrarei em detalhes, limitando-me a interrogar alguns momentos do processo de Freud. Para esta interrogação, uma cronologia rudimentar me basta: com um ano e meio._ a cena originária; com quatro anos, o sonho que é a origem da rotíia. Neste ínterim. lembranças pardais com conoi:ãção sexi.iai. geriitál (a masturbação pela irmã) ou gênito-anal (a cena com Grouscha) -tudo isto pontuado de ameaças de castração. Lembranças, reconstruções. lembranças de cobertura? A questão continua colocada: precisemos alguns elementos de resposta. A cena originária (observação do coito parenta!) é inteiramente construída. Isto nos é confirmado tanto por Freud como pela entrevista do Homem dos Lobos. Trata-se de uma construção retro~!va.!lo curso da análise. a partir do sonho e das suas associações. Càda elemento terminal. cãdà ponto nodal das cadeias associativas é proposto. por Freud, para "verificação". Alguns são "recusados" pelo paciente. no sentido que ainterp_r~_!a~?9 não.suscita novo material. É o que ocorre com a hipótese de uma ameaça de cas!ras~~_formu_lada peloj[Qprjo pál: por._não ser fecunda, foi abándonada. Em ~ompensação .. o~~ras sugestões de Freud são "aceitas": é o caso das que provocam smtomas transito nos. A partir deste momento, é preciso sàlientar. o "l~vantamento da amnésia infantil" foi abandonado. como finalidade da análise. em favor daquilo que é apenas uma .. reconstrução. mas devidamente confirmada. Bem antes do artigo sobre as "Construções na Análise". o processo construtivo e o próprio termo já são empregados. (4) Mas então, salientemos isto. que é importante para o nosso tema: todo debate. sabemos. está centrado sobre esta reconstrução da cena originária e sua maior ou menor realidade factual; mas, ao mesmo tempo. toda a eficácia. o poder traumatogênico está situado fora da cena originária; portanto fora do debate! Onde está o traumatismo? Categoricamente, Freud o situa no sonho. e no seu efeito de aprês-coup: "O acontecimento que tornou possível esta divisão (da história do paciente em duas fases) não foi um traumatismo exterior. mas~m sonho do qual a criança se acordou cheia de angústia". (5) E: "A ativação da imagem [Bild] que pode agora ser compreendida graças ao desenvolvimento intelectual mais avançado age como um acontecimento recente. mas também à luz de um novo trauma. de uma intervenção estranha. análoga a uma sedução". (6) O trauma. o arrombamento propriamente dito. está no sonho: no momento do ataque interno. ·· Ônde está a sedução? Explicitamente é preciso reconhecer sua factualidade nas cenas ditas "intermediárias": episódios com a irmã ou com as domésticas. Mas, * Em inglês no texto: por último mas não de menor importância. (N. do T.) 4 - Cinco psicanálises. Cit. 5 - Idem. 6 - Ibidem.
87
na realidade, está toda na relação e na reativação das cenas umas em relação às outras, relação que só se compreende no espaço temporal aberto entre a cena originária e o sonho. ~amais, n_o entanto. Freud. terá . ousado situar__a_§.e_dJ)ção na própria cena originária. Como se a sedução devesse permanecer uma estrutura à parte. separada das outras. (7) · É preciso voltar a esta cena originária. com todos os seus detalhes concretos: voltar obrigatoriamente, como Freud foi obrigado a voltar. Todo o processo do trauma. toda a teoria da sedução se situa em !l!D jogo de aprês-coup. em uma sucessão de tràduÇões (voltaremos a isto). Ora. para Freud é necesSário que tudo encontre seu !)Onto de partida na percepção. na imagem. Imagem realmérite percebida e/ou fantasia originária, sabemos que a discussão permanece interminável. Mas como quer que s~a. cena vivida ou fantasia originária. trata-se sempre de uma imagem sem falhas. um quebra-cabeça onde todas as peçás devem se completar. "As diferentes peças deste material se encaixam perfeitamente uma na outra... (8) É quando o quebra-cabeça é imperfeito quj: se vai procurar as peças na filogênese. ou. ao menos. no esquema que se acredita ter surgido dela. Apresenta-se. neste artigo, para mim a ocasião de me distanciar em relação a esta noção de fantasia originária que Pontalis e eu exumamos de Freud: nem sua origem. nem sua função. nem sua situação tópica. nem sua dita fixidez me parecem aceitáveis tais como Freud as afirma. Para ficar no exemplo preciso do Homem dos Lobos e da cena originária. elementos evidentes me parecem sobressair do aprês-coup da tradução sádico-anal. sem que s~a absolutamente preciso postulá-los em qualquer imagem onto ou filogenética. É preciso acrescentar que esta questão, no texto de Freud, está na verdade envenenada pelo debate com Jung: digamos. de uma fórmula. que o zuriickphantasieren* impede o zurückkonstruiren* de se desenvolver. '' · · ·· · '· '" '· ' . ·. " •··' Uma outra questão. um outro debate. volta igualmente aqui. talvez extraviado. ele mesmo. por uma polêmica: a discussão com Adler. Aquestão é a do recalcamento . e seus determinantes. O recalcamento. no Homem dos Lobos. está ligado ao sonho e ao traumatismo. O sonho restaura a organização genital e. ao mesmo tempo. a soterra. Em seu lugar surge o sintoma fóbico. Mas aqui, é inevitável. convém lembrar desde a correspondência com Fliess. até "Uma criança é batida": o que é recalcado. e por quê? Questão que rapidamente pode ser formulada assim: deve-se "sexualizar" a teoria do recalcamento? (9) Freud hesitará muito tempo. para sempre. 7 -
E não como tendo pessoalmente a pensar. como uma estrutura inerentE as outras "fantasias
originárias", cena originária ou castração. B - Cf. Cinco psicanálises.
• Em alemão no original Fantasia retroativa e construção retroativa. (N. do T.) 9 - Compreender-se-á. pelo que segue. que minha posição implica distinguir os termos "sexualizar" ligar a sexualidade) e "sexuar" ( ligar a diferença dos sexos). O debate com Adler. e já com Fliess. o de "Uma Criança é Batida" (in Neurose. psicose e perversão) enfoca. na verdade. uma sexuação
(=
=
do recalcamento: sexuação que Freud recusa justamente o que é recalcado não podendo ser definido universalmente nem como o sexo "dominado" (o feminino no homem. o masculino na mulher). nem como. em todos os casos. a femínílídade (devido ao protesto viriL. ou ao complexo de castração). Mas uma vez excluída uma tal sexuação. a teoria do recalcamento contínua não podendo passar sem
88
talvez. sobre a resposta. Mas aqui. no Homem dos Lobos. a resposta é clara: o que é recalcado é a passividade, que faz correr o risco de um transbordamento, de um esmagamento do Ego: "A atitude homossexual que se estabelece ao longo do sonho era de uma tal intensidade que o Ego do pequeno ser humano se achou incapaz de controlá-la e defendeu-se dela através de um processo de recalcamento. A masculinidade narcisista do membro viril... foi chamada em socorro para realizar este intuito". (1 O) Compreendem: o complexo de castração. a diferença masculinidadefeminilidade. vem somente em socorro para selar o recalcamento. Mas este, por si mesmo. é um processo destinado a controlar uma essencial (não uma feminilidade - mas -) passividade. Lembremos muito bem disto que Freud afirma desde o começo: todo sexual começa por uma experiência de passividade; posição que não cessará de encontrar ecos ou prolongamentos: assim se encontra na postulação sistemática da histeria sob a neurose obsessiva. Que ele consiga definir a passividade. eis a questão. pois quero crer que por aí se perde. Trata-se da iniciativa do gesto? Mas entre o Homem dos Lobos e sua irmã que pega seu membro - ou mesmo entre violador e violado adultos - quem tem a "iniciativa"? Trata-se da penetração? Mas entre a penetração sexual e a penetração traumatizante talvez a coincidência não seja absoluta. Isto parece óbvio. e. no entanto. lembrarei a perplexidade de Freud diante do aleitamento de Leonardo: "Esta lembrança parece ainda conter coisas que não compreendemos. Seu traço mais extraordinário é de ter transformado o fato de mamar no seio materno em receber-o-seio; portanto em passividade e. assim sendo. em uma situação de caráter indubitavelmente homossexual". (11) Aqui, a língua alemã dispõe de três termos que permitem um jogo considerável: ~ugen, verbo ativo: mamar; saügen. verbo ativo. factitivo: dar de mamar. aleitar; gesaügt werden. verbo passivo: receber de mamar. ser aleitado. Um jogo que Freud não utiliza a fundo. pois permanece prisioneiro de um esquema da pulsão sujeito-cêntrica. na qual é necessariamente 1 o bebê, "sujeito" da pulsão oral. que é ativo. De onde este enigma de uma pulsão ativa e, no entanto. "não-penetrante". De onde os rodeios para alcançar. a partir da "atividade" do bebê. a "passividade" homossexual de Leonardo, e antes de tudo a passividade inscrita na famosa lembrança do milhano. Para reencontrar esta atividade da mãe sedutora. Freud deve passar por um intermédiário obrigatório: os "5eHos escaldantes" que se supõe terem sido "esmagádos" sobre ãtiõca de seu filho, tomo se o fato de dar. de propor e até mesmo de impor o seio não fosse suficientemente ativo e penetrante por si mesmo. A gramática sozinha. no entanto. não basta para nos orientar entre o saugen e o saügen. Para dar aqui uma ilustração polêmica. direi somente que, tentando a referência a sexualidade. no sentido que esta. com Freud, ultrapassa em todos os sentidos a sexuação. Mais exatamente. o recalcamento. nos seus tempos originários. é inseparável da sexualidade, este inconciliável fundamental: está de saída sexualizada. De maneira secundária. o recalcamento poderá ser sexuado com a aparição do complexo de castração. 1O - Cf. Cinco psicanálises. Cít. 11 - "Eine Kindheitserinnerung des Leonaroo da Vinci", Obras completas de Freud. e cf. Problemáticas lll: A sublimação.
89
explicar para um público londrino esta questão da passividade, essencial na sedução, vi que me opunham uma incompreensão massiva e talvez irredutível: certamente. me replicavam. num ciclo de comportamento mãe-criança tudo é interação: a complementaridade. a reciprocidade, são evidentes: cada um é ativo e passivo à sua maneira. a criança tomando o seio. a mãe o dando. Na interação o quebra-cabeça (aqui como antes) se completa perfeitamente. Se levamos este raciocínio até seus limites. não há sentido em falar de passividade... Passarei agora por um circunlóquio. apesar do risco de redobrar a incompreensão com este pensamento empirista que nos invade sob os pretextos falaciosos da clínica e da observação: "Definição 11. Digo que somos ativos quando, em nós ou fora de nós. alguma coisa se faz. da qual somos a causa adequada. quer dizer quando. em nós ou fora de nós. decorre da nossa natureza alguma coisa que se pode. por ela mesma. conhecer clara e distintamente. Ao contrário, digo que somos passivos quando se faz em nós alguma coisa, ou qlle decorre da nossa natureza alguma coisa da qual somos a causa apenas parcialmente." "Proposição I. Nossa Alma é ativa em certas coisas. passiva em outras. a saber. conquanto tenha idéias adequadas. é necessariamente ativa em certas coisas; quando tem idéias inadequadas. é necessariamente passiva em certas coisas". (12) Passar por Spinoza (eu poderia ter escolhido outros cartesianos) pode parecer provocador; o vocabulário da alma. entretanto. não é nem mais nem menos espiritualista que em Freud; a referência a "idéias" adequadas ou inadequadas não nos arrasta. apesar do que se possa dizer. para o caminho do intelectualismo, mas em direção aos meios de que dispõe o pequeno ser humano para tentar controlar o que lhe vem do mundo adulto. A passividade, a atividade não devem ser definidas nem pela iniciativa do gesto. nem pela penetração. nem por qualquer outro elemento comportamental. A passividade está toda inteira na inadequação para simbolizar . o que ocorre em nós vindo de pari:e do outro. (13) Assim para diferenciar e articular o saugen e o saügen as noções de interação e reciprocidade se desqualificam. O saugen é uma montagem comportamental da ordem da autoconservação. O saügen é, sem dúvida, um. comportamento. mas habitado por uma mensagem "de si mesmo ignorada". O gesaügt werden é este momento em que se faz em nós alguma càisa ... da qual somos a causa apenas parcialmente (14) e da qual buscamos. em vão. tornarmo-nos a C!JUSa adequada. A passividade da sedução, geradora do trauma interno. não é a passividade gestual ou comportamental. A criança que olha avidamente a cena originária é tão passiva. no sentido de Spinoza, quanto aquela que é masturbada por sua mãe. na medida em que há uma inadequação fundamental da sua compreensão à mensagem proposta. 12 -
Cf. Spinoza. Etica. tomo I.
* Em inglês no original: A agressão à verdade: Freud suprime a teoria da sedução. (N. do T.) 13 - Quanto à atividade. ela só pode ser definida de forma negativa relativamente àquele que é passivo. O ativo absoluto, adequado a si mesmo e às suas ações. não é o adulto. Mas "Deus". 14 - A famosa tríade oral de lewin "Comer - ser comido - dormir" deveria ser ordenada e reforrnulada segundo a mesma seqüência.
90
Do quebra-cabeças eis que passamos ao enigma, e ao que chamo "transcendência". Vê-se que tem a relação mais estreita possível com o que pode vir a ser definido como situação originária de sedução. Com a sedução. com a teoria e os fatos da sedução, alcanço este segundo imenso volume de documentos que nos chegam, e eventualmente nos esmagam: cartas a Fliess. enquetes de Marianne Krül ou de Masson e também de Schur. Documentos centrados, como por um epicentro, em torno do que se quis batizar - e desgraçadamente este nome de batismo colou na pele- de "abandono" da teoria da sedução. The assault on Truth. Freud's suppression of the seduction theory: tal é o título do livrinho de Masson. traduzido por "O real escamoteado. A renúncia de Freud à teoria da sedução". (15) Entre o titulo e sua tradução. qual corresponde melhor ao que se passou? E que não é, necessariamente. o que quis dizer Masson ... Pois para Masson e todos os outros. fatos reais de sedução e a teoria da sedução são uma só e mesma coisa: a sedução sexual. devido unicamente à sua factualidade. seria um traumatismo contingente. patogênico. do qual não há recuperação ... Saber o que quer dizer isto para Fréud? Mas. sobretudo, saber que bebê foi. por ele. jogado fora com a água do banho? Todo o mundo retoma. hoje em dia. a famosa carta do equinócio de setembro de 1897: "Não creio mais na minha Neurótica... " Pode-se. comodamente, considerar esta carta como uma série de argumentos refutando uma teoria. É o que faz. por exemplo. Marianne Krüll. Uma carta de "falsificação". diria Popper. A "falsificação" ou a "refutação de 1897"? Por que não? Isto mostraria. ao menos, que a psicanálise está sujeita a refutações. O que não me desagradaria; mas sob a grande condição de não considerar a cura como um dispositivo experimental adequado para uma tal refutação. Como quer que sl:lia. esta refutação de 1897 está sujeita a caução, tanto naquilo que refuta (ou recusa?) realmente. quanto no valor- freqüentemente "do caldeirão",* de seus argumentos. Com esta volta ao período 97 ("período": pois a evolução é mais complexa. com retornos, etapas). de que se trata? Três possibilidades. três interpretações, três opções se propõem: A opção dos revisionistas selvagens, ou dos "apaixonados pelo real", como dizia Platão, aqueles que não sossegam enquanto não beUam as árvores. Se acompanhamos seu discurso inflamado, os argumentos de Freud 1897 seriam de má fé. ligados à sua resistência para levar sua auto-análise às últimas conseqüências. Resistência diante do real infantil marcado (como está bem assinalado na passagem) pela "perversão" do pai: resistência diante do real que se interporia também na relação atual com Fliess (sob a dupla figura de Emma Eckstein e do filho de Fliess ...). Como quer que seja quanto à análise do indivíduo Freud. é neste momento de repúdio que seria preciso retomar a pista da investigação histórica. que seria a própria análise: de maneira predominante. a revelação dos acontecimentos de sedução, tomados no sentido mais concreto: os fatos de pedofilia adulta. Diria francamente que este é um caminho inegável, inevitável. mesmo se peca pela ausência total de interrogação sobre o que significa esta pedofilia. e sobre 15 - Masson. J. Le niel escamoté. Paris, Aubler. 1984. • Referência à Interpretação dos Sonhos. Cap. 11. (N. do T.)
91
a maneira como pode ser recebida: é, de uma certa forma; o caminho de Ferenczi. Mas é também o de Freud. precisamente em "O Homem dos Lobos". Entretanto sabe-se que a rememoração destes fatos somente se refere a cenas relativamente tardias, de maneira que. além deste beco sem saída mnemônico, dois caminhos duvidosos se propõem: o da reconstrução e o do transe. Dois caminhos sempre presentes. experimentados e reexperimentados alternativa ou conjuntamente. precisamente desde a cura do Homem dos Lobos. Vias forçadas. uma como a outra. na medida em que são levadas a extremos: este extremo que "Construções na análise", por fim. designa como a revivescência alucinatória indesejável de resíduos metonímicos de cenas originárias. É apenas como lembrete que cito a segunda opção possível concernente à revisão de 97. Segundo a fórmula clássica, ela abre caminho para o reconhecimento da realização psíquica. da vida de ràntasia espontânea. e do complexo de Édipo. Este happy end, como podem imaginar. não é do meu gosto. Na pior das hipóteses, alimenta as teorias biológico-filogenéticas sobre o Édipo. que não vão parar de freqüentar o freudismo. Na melhor das hipóteses. conduz às tentativas de uma interpretação estruturalista ou estruturoculturalista do Édipo, que fracassam em situar corretamente de que lado se encontra a castração e. de uma maneira mais geral. a lei. A terceira saída. a partir da revisão de 97. será. se me permitirem. um aprofundamento da noção de sedução. Fiz menção a três saídas. Mas. na verdade, Freud (como ele próprio o diz a propósito de outra coisa - mas não seria o mesmo? -- do Homem dos Lobos) "conservou as três correntes lado a lado", Sua teoria, sua libido, se encontrava dividida segundo três vias: a que continua a seguir o acontecimento: aquela que toma por regra manter a análise suspensa no meio da "realidade psíquica": a que tenta elaborar a noção de sedução reduzindo-a ao essencial. especificamente a sedução de base que representariam os cuidados maternais. Freud não podia ir mais longe. Não podia levar mais adiante a articulação original do acontecimento e da fantasia que fazia o essencial da sua teoria. a que se encontra tanto no Prqjeto quanto na Etiologia da Histeria ou no Conto de Natal. A verdadeira teoria da sedução articulava o depósito de um primeiro real. um primeiro acontecimento, e a eficácia que adquiria em se tornando reminiscência. corpo estranho interno. Faltava mostrar qual era a natureza deste primeiro depósito. destes primeiros indicias externo-internos, e diferenciar este real de uma simples percepção objetiva, de uma simples imagem. A carta 112 de Freud a Fliess. ( 16) datada de 6 de dezembro de 1896, ou seja, em pleno período de desenvolvimento da teoria da sedução, é talvez a que melhor indica o lugar deixado livre por Freud para a mutação que propomos. Não posso fazer melhor do que citar antes algumas passagens que comentam este primeiro esquema do aparelho da alma: "Sabes que trabalho com a hipótese de que nosso mecanismo psíquico formou-se por estratificação. o material disponível de traços mnésicos conhe16 - Carta 52. segundo a antiga numeração. o que indica a amplitude da censura exercida por ocasião da primeira puhlicação.
92
cendo, de tempos em tempos. um reordenamento segundo novas relações, uma reescritura. O que há de essencialmente novo na minha teoria é portanto a afirmação de que a memória não está presente de maneira única mas múltipla, depositada em diferentes espécies de signos ... Donde o esquema abaixo... :
w
Wz
11 Ub
111 Vb
Bews
XX
XX
X X
X X
X X
X
X X
X X
X
X
"P[W] são neurônios nos quais se produzem as percepções. ligadas à consciência. mas que em si mesmos não conservam nenhum traço dos acontecimentos. Com efeito. consciência e memória se excluem. SP[Wz] é a primeira inscrição das percepções. completamente incapaz de consciência. disposta segundo associações de simultaneidade. lc[Ub] é a segunda inscrição. ordenada segundo outras relações, talvez causais. Os traços lc corresponderiam. talvez. a lembranças conceptuais, igualmente inacessíveis à consciência. Pc[Vb] é a terceira reescritura. ligada a representações de palavras, correspondendo a nosso Ego oficial. A partir deste Pc os investimentos tornam-se conscientes segundo certas regras, e. para dizer a verdade, esta consciência de pensamento secundária é uma consciência de aprês-coup segundo o tempo. provavelmente ligada à ativação alucinatória de representações de palavras ... Quero deixar claro que as inscrições sucessivas apresentam a operação psíquica de épocas sucessivas da vida. Na fronteira entre duas destas épocas deve se efetuar necessariamente a tradução do material psíquico ... No local onde falta a transcrição ulterior a excitação é liquidada segundo as leis psicológicas em vigor no período psíquico precedente. e segundo as vias que estavam então disponíveis. Subsiste assim um anacronismo, numa certa província alguns fueros* ainda estão em vigor: produzem-se sobrevivências. ~-;;,recusa de tradução é o que clinicamente se chama recalcamento". (17) Antes de introduzirmos nossa marca nesta montagem cerrada, situemos o modelo em causa: é um modelo ao mesmo tempo genético (diacrônico) e tópico (sincrônico): as considerações econômicas e dinâmicas. também essenciais, situam-se neste enquadramento. Os sistemas em causa se sucedem no tempo e se ordenam no aparelho. É um modelo semiológico, mas não um modelo lingüístico: os sistemas são feitos de sinais, de traços de natureza diferente; mas os sinais lingüísticos só aparecem com a "terceira reescritura", a do pré-consciente. É um modelo "tradutivo": a passagem de um sistema a outro é uma nova inscrição segundo um código heterogênico àquele que o precede. O recalcamento. a.ri@]lJt!l.o.ção no inconsciente, é apenas o fracasso, o obstáculo. a recusa (Versagung) da tradução. · * Em espanhol no original: "Lei particular de um Estado". (N. do T.) 17 -
In: La naissance de la psychana/yse. Paris. PUF. 1979.
93
Modelo admirável, mas no qual todo o enigma (é bem o caso de dizer) repousa na natureza do sistema Wz, sistema pré-inconsciente, (18) que participa ao mesmo tempo da percepção (W) e do Zeichen. Zeichen: signo ou indício? Nos sistemas seguintes é evidente: uma tradução só pode operar a partir dos sinais que ela retranscreve. Língua de origem e língua visada, cada sistema é as duas coisas ao mesmo tempo: visada por aquele que o precede, origem para aquele que se segue. Mas com o primeiro sistema o que ocorre é diferente: como se supõe que se origine na percepção, representa dela apenas um índice objetivo; mas, por outro lado, como se proporia a ser traduzido, se não se apresentasse como signo? É exatamente porque faz sinal (em todos os sentidos desta expressão) que é preciso tentar traduzi-lo, que ele se impõe, à criança. para ser traduzido, numa tradução originária que só pode deixar um resíduo importante, este fuero que vai cair no inconsciente, como representação-coisa. Ferenczi com a sua noção de ··confusão de línguas" parece, por um momento, ter querido completar este modelo genial. Ele situa bem o diferencial, de onde surge todo o movimento. na oposição entre duas línguas. Mas falha por não conceber que o essencial do diferencial não se acha imediatamente entre a criança e o adulto, mas, mais originalmente, no próprio interior da linguagem do adulto. O melhor que posso fazer é citar Gantheret: "É muito surpreendente que Ferenczi não tenha dado mais um passo na direção que havia tomado. A linguagem da paixão, proferida pelo adulto, violenta, nos diz ele, a ternura infantil. Mas como Ferenczi, que tanto insistiu sobre a criança no adulto. pode neste momento reduzir o adulto ... ao adulto? É talvez por ter se centrado de maneira demasiado realista numa cena de violação que tenha sido levado a tomar este passo; passo que certamente não teria tomado se tivesse permanecido na sua intuição da linguagem dos adultos: pois a linguagem não pode trazer o atentado sem trazer ao mesmo tempo a inocência; o momento sem a duração. O que o adulto impõe à criança não é somente distante da ternura infantil: é esta distância mesmo". (19) Assim, no próprio lugar do traço de percepção, do Wz. o que é registrado antes mesmo de ser traduzido uma primeira vez, passivamente registrado, o que é preciso situar é uma "mensagem de si mesmo ignorada", um significante enigmático. 1 o int_rajluzívJ:lJi.~a_l!'aE!.q,_glle_ s~_t:l_epositará a .ç~da _estagio. ulterior. é apenas b . eco. o resíduo, deste intraduzível interno à própria mensàgem. É a traoscendêhcia • • • i da, sitpaç~_origi~ckia --: esta r~lação da criança a um adulto que signTiiCã o que 11 · ela _/lé/()__sabe - que sera traduzida. transportada, transferida com mais ou menos resíduos, mas jamais reduzida. É precisamente neste sentido que falei da transcendência da transferência. A situação analítica, enfatizamos bem, é feita de ausência e de simbolização, de conteúdo e de Versagung (recusa e estado de recusamento). Desta maneira, ela é diretamente uma réplica. uma reedição da situação originária. Evidentemente. isto se sabe. Conhe18 - O que mostra bem, mais uma vez, que o inconsciente não é o primeiro. não é o fons et origo do qual tudo derivaria. (Cf. Problemáticas IV: O inconsciente e o ld. 19 - GanthereL F. lncertitude d'Eros. Paris. Gallimard. 1984.
94
cemos cada vez melhor também, o jogo e a dosagem. freqüentemente perigosa, entre o trabalho analítico, trabalho de desligamento que, por algum tempo, pelo menos, funciona segundo o princípio da pulsão de morte, e a necessária reorganização, a necessária manutenção de limites, até mesmo a prótese temporária de um Ego hesitante. O corpo da análise, o enquadramento ou o "setting", como se diz, não desempenha sua função de manutenção se não for habitado pelo corpo do analista. A atenção, antes de ser igualmente suspensa. é presença atenciosa, atenção e até mesmo atenções de um corpo. Evidentemente, aqui falo apenas das análises relativamente clássicas (se é que existem ... ) de neuróticos. E é por isso, também, que dirijo minha atenção, antes de tudo. sobre o outro aspecto, o que se chama as frustrações. as recusas, ou ainda a neutralidade analítica. Isto para dizer em uma palavra que a análise - segundo uma fórmula que corre entre Pascal e Descartes - não valeria uma hora de esforço se fosse este local neutro destinado a permitir que volte a se desenrolar. se esgotar e depois se desfazer a seqüência indefinida de medos, de recalcamentos e de traumatismos antigos. Apesar de tudo, apesar de nós, existe na análise, mesmo na freudiana, a nostalgia de desfazer pela transferência. ao desfazer a transferência, o que ocorreu noutros tempos "em pleno", "in praesentia". "Tornar não ocorrido", ungeschehen machen, não é o ideal absurdo que transparece através de termos como "falsa conexão", "repetição", "anacronismo", do qual cumulamos, a exemplo de Freud, a transferência, na esperança louca e derrisória de "liquidá-la"? Minha declaração, felizmente, não é somente para fazer humor, pois o que "não valeria nem uma hora de esforço" também não pode se produzir. uma vez que aquilo que vem se alojar no espaço aberto pela análise não é uma plenitude que viria como que se dissolver aí: é um outro espaço que se abre. Na transcendência da transferência, a transcendência da situação originária. Para resumir, separo dois tipos maiores de recusa do analista ou de recusamentos da situação analítica. (20) Em primeiro lugar o analista recusa, e se recusa, a fazer coincidir o plano do sexual com o plano do adaptativo. Esta espécie de recusa é em suma o prolongamento interno, a reduplicação na própria cura daquilo que chamo "tina" analítica "Recusa de interferir no real?" Lamentamos que uma tal formulação veicule em si mesma todas as aporias da categoria do real, e leva, finalmente, a interpretar somente ao nível de uma fantasia concebida como pura fantasmagoria subjetiva. A "tina", como a vejo, não implica que o acontecimento real, visado f pelo discurso. não s(jja eventualmente objeto de interpretação. Esta recusa é, portanto, ' de outro tipo, é o de toda intervenção adaptativa: manipulação ou conselho. -- -Mas o segundo tipo de recusa é ainda mais essencial. é a recusa do saber. Aqui a fórmula de Lacan é capital, mas a ser trabalhada: "o sujeito suposto saber". O paciente se dirige ao analista como àquele que sabe: a causa do seu sofrimento... o que ele quer realmente ... O que é para seu bem. O que poderia sugerir uma certa ressonânciLl com a situação original: o do pai (ou mãe) suposto...? digamos: 20 - Cf .. por exemplo, "A transcendência da transferência". In: Psychana(yse à J'université. 1984. 9. 36. pp. 581-3.
95
"suposto significar". Ora, se o saber aparece, pode aparecer, como um prêmio, se pode ser o objeto de uma demanda imperativa, o dever do analista é de recusar. Recusar o saber é renovar o traumatismo e a sedução originária: traumatismo sob controle ou violento, mas que somente assim permite repor em andamento o processo de tradução e de simbolização. De uma certa forma isto se situa nos antípodas de Freud declarando ao pequeno Hans: "desde toda a eternidade eu sabia que um dia um menininho, etc.". Que Freud, como pretende Lacan, tenha sido aquele que sabia, e o único. isto pode justificar as coisas, inclusive o arquivamento do Homem dos Lobos? Será que Freud não sabia que não sabia? Será que Freud não sabia o suficiente para se recusar a saber? Recusar-se a saber me parece ser a regra, talvez impossível, mas fundamental, que decorre de nosso conhecimento teórico. André Beetschen nos fala em "escutar, ligar". (21) Ligar, é um per. uma perlaboração que só pode ser uma escuta. uma escuta elaborativa, mas sempre subordinada. Poética, talvez; mas não é poeta quem quer, e a faisca só pode surgir entre dois pólos. É um per que vem suprir em todo ser humano (que vem se analisar) as faltas, os dilaceramento:, as monstruosidades irremediáveis do para-excitações interno. (22) A transferência: seguramente trata-se de um trans, transporte e transmissão, mas sobretudo não se trata de um transe. Um trans para permitir um per. Mas que leva necessariamente a um outro trans, pois não vElio outro destino real e realista da transferência, exceto ser. por sua vez, transferida. (23) Não segundo a história sinistra de "João Sortudo" contada por Freud a Ferenczi, que a transferência seja passada a um outro. com uma perda a cada vez. uma entropia, e que este processo continue até o último fragmento. Uma concepção que Lacan não teria rejeitado ... Mas para ser transportado mais além, num outro lugar de transcendência. e para uma outra perlaboração-retranscrição.
21 22 23 -
96
Conferência de André Beetschen: "Escutar, ligar: o analista e o para-excitações". Para-excitações interno tão naturalmente demissionário ... que Freud dizia não existir! Fórmula já apresentada por Reich. mas não sei se a entendia assim. e duvido mesmo.
A PULSÃO DE MORTE NA TEORIA DA PULSÃO SEXUAL
1. PREÂMBULO
Tendo tido inúmeras vezes a ocasião de me exprimir sobre a questão da puisão de morte. desde o Vocabulário da psicanálise, com J.-B. Pontalis (1967), e depois com Vida e morte em Psicanálise (1970) até Problemáticas IV. posso apenas propor nas notas constitutivas deste artigo um esquema reunindo um certo número de teses, afirmando certos contornos para tornar mais perceptíveis as diferenças e as opções. 2. PROLEGÔMENOS 2.1. A noção de Todestrieb foi introduzida por Freud num certo momento da sua obra. Ela coloca, eminentemente, para todos aqueles que a adotam ou que a recusam, a necessidade de se situar em relação à teoria freudiana à sua histÓria. Devemos encontrar uma posição clara entre dois obstáculos opostos:- adotar o termo "pulsão de morte" dotando-o, ao mesmo tempo, de um conteúdo (ex: agressividade) que não responde nem às expeiiências visadas por Freud nem à função da noção no equilíbrio geral do pensamento freudiano. - Ao contrário, aderir de maneira puramente literal e dogmática às formulações freudianas. posição absurda e insustentável. nem que sElia em razão das contradições destas formulações e desua evolução. - -2.2. Uma teõrização que sesitua depois de Freud, ao mesmo tempo marcando as diferenças às vezes essenciãis -com st.iãs formulações explícitas, só se justifica
e
97
na medida em que for capaz de prestar contas de suas opções, numa tripla perspectiva: problemática, histórica e crítica. . - . Frol5lématica: as contradições e dificuldades não podemserevitadas, pois estão ligada~. a dificuld~<&.pJ:9p.[iÓ o~jeto. E_g~lso.Jl9~~to. fazê-i~ "trabalhar", quer dizer, levar a contrad!@QJ!O extremQ.él_ ti.lll.rA!!_~!ItaLencontrar. num outro nível, uma fcÍimiJiaçaõquemodifique a pr~pria Jl()_5ição_d_O_Q..rotÍkima.--- .. ·· · RiSfi5i1cii e mtêrpretãflvã: ã fiiSfOrlã do pensamento freudiano não é nem uma simples cronrnõgla ooae ãs descobertas (clínicas e/ou especulativas) acrescentar-se-iam umas às outras, nem mesmo uma dialética cljjo último estágio coroaria as dificuldades de uma síntese suprema. O pensamento de Freud é ele prót:Jrio svbm-ªido aos fenômenos do apres-coup, dÕ reêãJCãriiêiifõ é do retorno dõ reéãlcado, da repetição. efr. Enfim; sotmn!íãisaê üm poiiro. a evolUÇão do pênSiimêrito reflet:e-nvõlução da "própria coisa'' (ex. Freud :·a_b_an~ona" as pul~ de ~lJ!ocon~f',la~eara reintegráclas num outro nível. exatamente como oser humano é levado a fazê-lã}:- Çrítj_ça, enfim. no sentido de que é necessário fazer escolhas. Estas próprias escolhas são comandadas pela leitura histórica e interp~liv~Lque_permite desvendar as exigmlcías fundamenfãiS. neg~o rnéionalizações secundárias e a maneira freqüentemente falseada pela qual Freud reescreve sua própria história. Por que direito tal formulação de 1915. 1920, d_939· seria privilegiada ou. ao contrário, criticada. senãó graças a uma visão interpretativa permitindo explicar o progresso. as estagnações. as recorrências, os recalcamentos. as metaforizações internas ao pensamento p5icimalítico? 2.3. Adotar (ou recusar) a Todestrieb implica um mínimo de clareza sobre o que Freud entende J)or frlilb ePõr Tod. No que concerne a Trieb. o avánço dos estudos freudianos há muito tempo mostrou que a tradução por 'instinto" não é simplesmente inexata. É fundamentalmente contrária ao pensamento de Freud que utiliza em sentidos muito precisos e heterôgêneÕS Triéb (puiSão - drive) e inst;jlkt (instinto). Uma outra oposição se esboça, certamêntê menos categórica, entre a Trieb (pulsão) _e noções como necessidade e função mais geralmente utilizadas quando se trata de autoconservação do que para o caso da sexualidade. De nossa parte. teríamos tendência a enfatizar esta última oposição. 2.4. No que concerne à noção de morte na Todestrieb, parece-nos que três exigências freudianas devem ser salientadas, mesmo com o risco de reinterpretá-las. a - A morte em questão é sempre a morte dC!..Q[óprioindivíduo. e somente de maneira secundária a morte infligida ao outro. Freud passou anos r!lcusando a "pulsão de agressão" que lhe era continuamente proposta por seus discípuiOs. Jnsistimós àqui sobre a prioridade do tempo "auto" (selbst-Se/bstdestructionstrieb) onde encontramos a mesma exigência que na prioridade concedida ao auto-erotismo. A clareza da discussão deveria excluir que se fale de "pulsão de mortê" senão como "pu/são de sua própria morte". b - A pu/são de morte estã estreitamE!!l!!! ligada parª_Ere~d _à no_çãu de princípio do zero· ou do Nirvana (retorno à ausência de excitação pelas vias mais
as
98
curtas). e à compulsão de repetição cljja insistência se faz cada vezJ!lªls~yig_ente D_a_cUoica çura (neurose deaest:ínO=repêtiÇao na frãniférênda~ tendênEia· à· análise infinita - ilérrota do Qãrªdigma da .iinuiàÇ_ao ~ã ãm_11~~a _infantil. etc) . "Em resülno o '
[email protected]íiicíitel". o "demoníaco". o que não se Põcíe ligar e controlar. retomam com toda a forÇa: em P?rã~J~mdo prinéípio do prazer. c - Aexisténcia de uma pulsão de morte a9..nível mais profundo do ld inconsciente nunca pareceu a Freud incompatível com estas outras teses que ele reafirma: ausência de IJE!ga@Q, de_contraqLção. e ausência da idéia de morte. no inconsciente. . 2.5. Estas diferentes observaçoes. se as fazemos "trabalhàr". impõem uma interpretação do pensamento freudiano em duas direções: - interpretação diacrô[Jica para se perguntar se. com a Jlljlsão de morte. não é reafirmada, com _llla_is força_ e nitidez do que nunca, uma dimensãÕ presente _desde ãibores da experiência analíflcà. -- ·· · -·· · ----..-. . . .=.Interpretação epiStémoiógicii. visando à significação do modelo biológico. metabÕiógico. até mesmo metacosmológico em obra na especulação de Para além . '/ do princípio do prazer. Um certo número de desenvolvimentos freudianos são insustentáveis se os tomamos ao pé da letra: longa discussão de experiências sobre a imortalidade celular. onde Freud conclui o inverso do que mostram as experiências - por assim dizec ·a prioridade, na evolução do universo, de um estado ae morte ou de igualdade energética em relação a um estado de altas diferenças de potencial - esquema mecanicista do organismo como um aparelho reflexo tendendo à evacuação total da energia em vez de levar em conta a homeostase, etc. Todas estas "absurdidades" são. talvez. o Sinai de-que-ã morte visada na "pulsão de morte" não é a morte do organ\sri10. mas _a mort{deste "organismo" g_LJ~o ser humano. representa os interesses do organismo _I:Jj'ôíQillco. isto Lo--Ego. ---
enã
os
I (/
3. TEORIA GERAL DA PULSÃO. COMO PULSÃO SEXUAL 3.1. A necessidade do conceito de pulsão em psicanálise foi e continua a ser contestada. Estes ataques. desde Politzer. provêm de duas inspirações que na verdade freqüentemente se combinam: - uma inspiração epistemológica (na linha que reúne o empirismo humano à filosofia "analítica" moderna) que refuta como metafísica. "mecanicista", etc. toda invocação a forças abstratas postuladas por trás dos fenômenos (cf. Daniel Widlõcher); - uma inspiração personalista. que pretende restituir aos fenômenos psicológicos sua formulação na "prirpeira pessoa" (desde a "psicologia concreta" de Politzer até a "action Ianguage"• de Roy Schafer). Esta dupla crítica nos parece contradizer a experiência psicanalítica que mostra precisamente que é bem no que concerne à ação do ld-inconsciente que formulações em termos de "forças que nos empurram" ou de "terceira pessoa" são as mais • Em inglês no original: linguagem de ação. (N. do T.)
99
', ,··
apropriadas. É a existência e a propulsão do ld, é nossa ~~iyh;lad_EU!I]l relaçã_p a ele. que definem as condições do ato psicanalítico e marql_f!l_ seus limites. A reapropriação, "na prir:n!!lr.ã pessoa", da for~pulsional só pode ser. ~o. melhor dos casos. um oQjetivo "infinito" da cura: acreditar que se atinge este oQ]etivo propondo uma teorização _que nega_ nossa passividade em relação à propulsão pulsional equivale a sühSi:ituir_ a lenta ner]aboraçãopsicanalítica pelo pensamento_ mágico. 3.2. A passividade em relação à pu/são não implica uma concepção biológica desta. A noção de "conceito-limite" entre o biológico e o psíquico é uma noção confusa. que apela para o dualismo clássico e contestável do "psíquico" e do "somático". Que a pulsão nasça' sobre um limite. sobre a linha de articulação entre o autoc9nservativo e 0SexuàlnaO implica que Seja eJa mesma Um Ser-lin_Jite. cl) r-·~· I·[;._;·,: I Que o biológico. o autoconservativo. se encontre, por diversas razoes, repre: sentado no conflito pulsional não implica que a pulsão s!lia uma força biológica. nem mesmo "a exigência de trabalho" exercida pelo somático sobre o psíquico. Se "exigência de trabalho" há, concebêmo-la como aquela exercida pelo ld, verdadeiro "corpo estranho interno" (ou conjunto de corpos estranhos internos) sobre o organismo do Ego, que "permanece. antes de tudo, um Ego-corpo". (Estas formulações implicam evidentemente uma reavaliação do desti~o do ~~oló gico eda sua metabo/ização, tanto no ser humano quanto no pensamento ps1canalitico.) 3.3. A noção de um ld ou de um inconsciente primários, não-recalcados, parece-nos ligada a uma falsa apreciação do lugar do biológico na psicanálise. A hipótese de um ld não recalcado, concebido como absolutamente primeiro ("tudo que é consciente era antes inconsciente"), leva a todas as_ aporias d~ u.~a tentativa para reconstruir o mundo humano a partir de uma mo_n~d~ a pnnCJplo fechada sobre si mesma, e que deveria. não se sabe como. abrir-se ao mundo e ao ser-no-mundo. A hipótese de um ld não-recalcado implica a possibilidade de rastros psíquicos hereditários de experiências arcaicas, visão lamarckiana que contrasta estranhamente tanto com o darwinismo freudiano quanto com o triunfo atual do neodarwinismo. · Para concluir. é somente pelalãÇao !lo recalcamento originário que se constitui • - o inconsciente Õriginário. O inconsciente. uma vez constituído pelo recalcamento. é mesmõ ·uín ld. torna-se uma· natureza mesmo, uma segunda natureza que "nos age". _ 3.4. Distinguem-se classicamente na história do pensamento freudiano duas teorias (sexualidade/autoconservação - pulsões de vida/pulsões de morte). Nossa interpretação é que estas teorias não se substituem uma à outra mas se completam, a segunda vindo modificar e reeqUilibrar a primeira. Neste sentido. atribuímos uma grande importância ao momento intermediário ("Para intJ"_oduzir o narcisismo") que permite apreender sobre que eixo pivota a evolução {cf. 4. L).
100
O esquema que propomos seria o seguinte: funções d e - - - - - - - - - - - - - - - - pulsões sexuais autoconservação (antigas "pulsões do ego")
~
_ . pulsoes sexua1s de vida
/
libido do Ego 3.5. Opomos a ayt:Qconservação,
""'
\ _
-
--:-----.
pu 1soes sexuaiS) de morte -
7
libido do objeto
so~?.a
direção das grandes funções visando
à homeostase do organismo, à sexualidade, somente para a qual vale plenamente a descriÇão proposta em "Pulsões e destino das pulsóes". indicaremos somente algumas características da autoconservação: - A autoconservação é primeira. Ela explica a abertura imediata, perceptiva e motora. do organismo ao seu meio. - A autoconservação no ser humano é parcialmente falha ("prematuração"), mas as pesquisas modernas (Brazelton) mostram a que ponto a abertura adaptativa ao objeto foi subestimada. - . - A autoconservação não toma partido no conflito psíqul_c9. Ela não é recalcada. É representada no conflito psíquico pelo Ego, cuja energia é libidinal. 3.6. A pulsão é pulsão sexual, no sentido mais amplo definido abaixo. Somente a sexualidade é objeto do recalcamento, por razões freqüentemente estudadas por 'r, Freud, e cujo essencial se resume no distanciamento entre o universo sexual adulto · -· . 1q\l~faz chegar suas mensagens à criança, e_ as capacidades de ligação e de simbolização do Ego infantil. - .3.7. ~w; c_o~stitui a puls~c:_~~~! é exatamente aquele que diferen.9ªJl.-ªPílre)h_()_p~gl,!lç_o~ ~o ~menta ong1f!anõ. -- ·-· Seu ponto de partida é a "Sectução-ongii'rárlã'~ a ser concebida não como manobra sexual particular da parte do adulto, mas como o fato que a criança imatura é confrontada a mensagens carregadas de sentido e de desejo, mas das quais não possui a chave ("significante enigmático"). O esforço para ligar o !raumatismo que acompanha a sedução originária leva áo recalcamento destes primeiros significantes 'l! tte seus derivados metonímicos. Estes objetos inconscientes ou representações-coisas inconscientes constituem a fonte da pulsão (oQjetos-fontes). 4. A PULSÃO DE MORTE NO CAMPO DA PULSÃO SEXUAL Para justificar a inclusão da pulsão de morte nas pulsões sexuais, numerosos argumentos podem ser propostos.
101
4.1. A aparição da pulsão de morte no pensamento freudiano (1919). e os aos quais está ligada, merece interpretação. Não poderia ser mantida a idéia de que se trate de uma nova "descoberta" adicionando-se, de maneira cumulativa, à descoberta da sexualidade. E. aliáS. cÕmo exigência expeculativa que a noção de pulsão de morte foi primeiro, e será por muito tempo, proposta (ou recusada por numerosos discípulos). q. movi!Tlento h!stórico _gu~_~_v~ à seg~nda!_El.Qria _das pulsões é uma evolução complexa, feita de aprofund?_fllil.D.tos •.de..reafirmaçõesL.c!e...de.sl:Qb.effil.s ~e não se s1tuãm õtll:le· se ãCi'ifclífãnã" (retomamos a seguir uma passagem deP lemáticas IV). Desenhemos a evolução da teoria das pulsões como numa revista érii qúãdrinhos ou como num filme: reman~os estruturais
CD
@
1914-1915
®
1915-1918
1919
sexualidade sexualidade Eros = de objeto e --~11!> de objeto e ---pulsão de narcisista narcisista vida
----'-~----~~
sexualidade (única "pulsão" verdadeira)
sexualidade pulsão desligada e - - - . de demoníaca morte
No primeiro tempo partimos de um primado da sexualidade, sobretudo no ano 1915 com os textos sobre o inconsciente e o recalcamento. Somente a sexualidade tem direito a ser chamada pulsãó; o único conteúdo do inconsciente é a sexualidade. E depois eis o segundo ternpo: que é bem o de uma descoberta. Mas o que é então descoberto e apresentado [lão é a pulsão _de_[f!Q.Ij:g,_rn~ ~á rio, a , j sex~~dade investida no objeto e no_Ego_,_l®_~~a.sex.ualid~de ~o amor · do oQjeto e o amor. do Ego. Trata-se de uma exploração absolutamente nova. a do Ego como objeto de amor. a idéia que os objetos exteriores são reflexo ou estão em relação corri este inveSfimimtó primeiro âóEQà, jjõís que âíTiãinõS õ outro ou segundo nossa pr6pria imagem óli erttãõ grãÇas a urri pÕtenciaí .àrl'!à"fõsõ que é antes ó potencial quê faz com que nos amemos á iiós mesmos. A sexualidade, neste momento. tende portànto a ser absorvida por este âspecto do amor. Daí o terceiro tempo, o da "guinada" com Para além do princípio do prazer; a sexualidade correu o risco de ser incorporada. arriscamos só ver na sexualidade este aspecto ligado, investido, calmo. quiescente; daí em 1919 a necessidade de reãfirmár áiguma coisa que tinha se perdi:io, isto é, a sexualidade não ligada, a sexualidade que se pode dizer "desligada" no sentido da pulsão. isto é, a sexualidade mudando de 102
objeto. uexuali-º_adej;endo como ú(1iC.Q._91ljetivo,_c~r:r:~_fllais d!!~t:!!~ possível em direção à suasati_s[açã0 e ao esgotame!lto_cQmQLeto....Jl9_ seu des!lio. isto é, a realiza@Q_ ~mQLeta dQ._se_l.l__deslli9 ~às mais_cur.tas.:..PQI:taoto...neste momento. a necessidade de reafirmar alguma coisa que era essencial na sexualidade e que ·tinha siÇ!g_ pirdiéla, seú ãspeeto âeiri@íãcó, sujE!il:él_c19-ªº..PIOCesso primário e à com--') ~ repetiÇão. li. Pãrnr dâí, a sex\iãhd(!Qe._ (j cõrtteWõ que abarcava de início, ericonfi'ã:se C9mO que esquartejada doravante entre estes dois clSPectoS. que serão finalmente reagrupados por Freud sob os termos de pUISões dê vida. ou Eros. e pulsões de morte. Eros retomando não a. totalidade da sexualiâaàé,_ f!lª~ .os..aspectos da sexualidade votados ã conservar o objeto, e também a conserVar o Ego como objetO primário. · --4.2. li. relação das pulsões devida e de mortecom_os_''prindpios" do funcionamento d(; aparêJho pslquico merecéna longas exPlJeações (cf. Vocabulário de psicanálise. artigos: "Princípio de Constância. Princípio de Prazer. Princípio de Nirvana; Principio de Inércia"). Pode-se dizer esquematicamente que o princípio de prazer está de saída dividido entre duas tendências contraditórias: princípio de [nér:cia ou_de_ zerg (futuro princípio de Nirvana) e princípio de constância (regulando a homeostase do organismo e do repréSentante. b Ego). Quando estes dois aspectos estão mais esclarecidos, depois de Para além do princípio de prazer chega-se, não obstante. a formulações invertidas, segundo o principio de prazer 5Elia atraído para o zero ou para a constância. Quando o "principio de prazer" signifLca_roouçá9. absoluta das tensões, diz-se que está'aseiVIçci dã pü~õ ª~1]9rtê;·. - · ·--uuanaõTtenaencia ao zero absoluto é designada como "princípio de Nirvana". o princípiõ ae prazer distingue-se dele e confunde-se com 6 princípio de constância: representa. então, a exigência das pulsoes de viélã. hã sua tendência à homeostase e à sío~se. 4.3. Do ponto de vista "energético", Freud s~pre se ~~1!..59~~ostular um "destrudo". ou seja, uma energia própria à pulsão de morte. ("O Ego e o ld"). o dualismo pulsional deveriá. portantõ:ser ciinêiiiàdo i:àm um monismo energético. o da"libiâo. · ··· · 4.4. Asituação da pulsão de morte em relação ao ld e ao recalcamento originário implica opções incompatlvels naíiossa opiniaii: .. =f ··- :-...:.. ..l ... - Freud, como vim~. man~~- até_Q_fim•. com_ am~.ci~:u~~~ci!l®~. a idéia de que o recalcamento se aplica à sexualidade por excelencia. - A sitiiãção da pulsão de morte no mais prbftffido dõ-·ldé inegável (cf. André Gréeri: Le diSéáürs vivantj. . ..... - Apartir daí, ou é preciso manter uma dupla ficç~o~ izante: 9 ld "a..Qê!:to:' para Q çorp(). e a pulsão de morte CQf!IO _te.lliJ~_ncia( biológiçíl 9_i.!lanLmªdo. Ou então é preciso admitir que o recalcamento originário ~ r a pul_são de morte e asitua no próprio núcleo do ld, como núcleo da pulsão sexual. 4.5. Certas conjunturas perturbantes levam ainda a conceber a pulsão de morte como aprofundamento e não como inovação.
vias
seu
103
- Para Freud, prioridade do tempo "auto" que, a quinze anos de distância, caracteriza do mesmo modo o primeiro estágio dapulsão sexual (auto-erótica) e o primeiro estágio da pulsão de morte (pulsão dit~uaprópria morte}. - Entre Freud e Melanie Klein. Só podemos nos surpreender pelo fato de M. Klein descobrir, trinta anos depois de Freud, no mesmo ponto onde Freud situava a emergência da sexualidade. a aparição do ''sadism at its peak"*. Para um tanto quanto para o outro destes autores. esta descoberta não é. aliás, fruto de pura observação: é preciso, ao contrário, ultrapassar a observação ingênua e sobretudo interpretar, reconstruir retroativamente a partir de estâgios ulteriores. Não se pode pensar que Klein e Freud vêem, ou reconstroem. no mesmo ponto, o que podemos chamar oataque interno da pulsão, ou o "ódio do Jd" pelo Ego? 4.6. A contribuição kleiniana pode ser consideradaçor:nii a contribuição clínica mais fundamental à teoria da pulsão de morte. Mas ainda é preciso não deixar a teoria kleiniana no isolamento de seus conceitos, considerando-a s!lja como um andar complementar de um mesmo e único edifício psicanalítico, s!lja como um edifício à parte, ao lado do edifício freudiano. Uma das dificuldades maiores da concepção kleiniana do sadismo infantil reside na sua conciliação com a tese freudiana do masoquismo originário, o que chamamos o aspecto originariamente "auto" da pulsão de morte. Parece que se propõem dois esquemas de ~riZé!tão: - O esquema da projeção do sadismo sobre os objetos exteriores, seguida da introjeção destes objetos. que se tornam atacantes internos. Um tal esquema, se fosse primeiro, suporia que é a destruição (enão a autodestruição} que é primeira, ainda que só deva se especificar encontrando seus objetos no exterior. [Odeio o seio--.o seio é mau--ÍD-o seio é màl1 - o esquema da deflexão da pulsão de morte adotado em 1948 em concordância com a teoria freudiana.
em mlm]
para não me destruir d . . . - o eJO o Selo a mim mesmo
\j '
A deflexão pode ser ela própria seguida pelo movimento projeção-introjeção. Klein, no entanto. parece hesitar com justa razão sobre o sentido a dar à autodestrutividade primeira. Trata-se de uma pulsão de morte sem fantasia. uma auto-destruição estagnante e cega, ou antes, já um ataque pelos oQjetos internos? (Cf. Klein 1948. A propósito da angústia e da culpabilidade: " ... este temor (dos animais selvagens} exprimia seu sentimento de serem ameaçados pela sua própria destrutividade (assim como por seus próprios perseguidores internos".) ~ Nossa concepção seria que a pulsão de morte estagnante e sem representação é apenas o relicário de uma concepção biológica errônea. A pulsão de morte só pode ser o ataque interno por objetos ao mesmo tempo estimulanteS pêrigosos pàrà Ego. Mas a constituição destes objetos-fontes, atacantes internos, é elá própria
o
' Em inglês no original: sadismo no seu auge. (N. do T.)
104
e
~ltado
de um processo de intrqjeçãoprimário que teve sua origem no que chamamos asitüãção originária de sedução (cf. 3.7.i . -- ·4:7.-A contribuição kleiniana também deveria ser reavaliada no que concerne às oposições parcial-total. paranóide-depressivo e mau-bom (é, aliás, o que Klein faz parcialmente. principalmente no artigo de 1948 citado). "Paranóide" e "depres~ivõ" devem ser postos em relação reçíproca. Por outro lado, e sobretudo, a oposição do "parcial" e do "total" não poderia ser concebida, de maneira genética e construtiva, baseada numa dita imaturidade perceptiva, como relação de partes do corpo a um corpo, enfim, percebido com totalidade. O "parcial" é mau porque representa um objeto clivad_o.JJJJJ resto atacante do objeto-(mesmo se este é uma "pessoa total"}. O "totafé ·sintético e apaziguador. conforme ao Ego, mesmo se se trata de uma parte do corpo como o seio "bom". 4.8. Assim como o parcial e o total, ou o mau e o bom, as pulsões de vida e as pulsões de morte também não são "simétricas". Opõem-se do ponto de vista do seu modo de funcionamento energético, de seu fim. de sua relação com o Ego e, enfim. seu objeto-fonte.. As pulsões ~exuaisde vida fundonai:n segürictcÚ prJfldpio aa energlã ligada (ilrincípio de constância}; seu fim é a síntese, a manutenção ou a constituição de unidades e de vínculos; são Cõntõrrries ãõ Ego; seu oQjeto-fonte _ -é-um· úljjetO "tOtal". regulador. As pulsões sexuais de morte funcionam segundo princípio da energia livre (princípio do zero); seu fim é a descarga pulsional tOtal, mesmo qu,!! isto custe o aniquilamento do oQjeto; são hostis ao Ego. o qual tentam d~stabilizar; seuobj;tü:fo~te!_Uf11.8~pectcJ cliV'!do,unilate~al, um indicio do o~eto .. 4.9. ESta oposlçao 56 se concebe. no entanto, com base numa energia liblâlhiil E,O_fllljm. Isto implica que eQt_reo PtQÇ~oprimário eJivr~iLO pr()cesso secundário ligado existam formas intermediárias e passagens possíveis. Mas uma dE;simetria fundamental persiste, a pulsão de vida tendendo à união entre ela me?mae o_ princípio de desunião; a pulsão de morte tendendo à desunião tanto de sua união com a pulsãÕ vida corrío própria pu!São âe vida.
do
o e
ae
da
5. ALGUMAS OBSERVAÇÕES 5.1. Uma teoria da "agressividade" deveria ser necessariamente pluridimensional, tendo em conta ao menos três fatores: - o "pedaço de atividade" inerente a toda ação, quer seja autoconservativa ou libidinal: - a deflexão da pulsão de morte sobre o mundo exterior (sadismo); - os componentes agressivos da relação especular. 5.2. A, ausência de "idéia de morte:· _no ld (como a ausência de toda idéia implicando o negativo. ex. a castração, Isto é, em última ãnálise. ã ãüSêricta.de toda "idéia-de"), não_é_incompatível com aangústia de morté no Ego. ESta é percepção do peifçjo proveniente do trabalho interno dà pÜÍsão C!é
morte.
a
105
5 .3. A nível do Ego, a morte psíquica pode revestir ao menos dois aspectos: 1? a desestruturação do Ego pelo transbordamento. a invasão, a equalização introduzida pela pl11Sãó sexual não ligada; · 2~ ·~â evitação das tensões" (Daniel Lagache) PE:!Io Ego narcisista; trata-se de manter a todo preço a homeostase visando_poupar toda .sobrecarga, méls também toda fíemorragia iibidinal: recusa de novás possibilidades no obsessivo ou iio ocnofllicb; ascetismo, estoicismo ou epicurismo. Parece-me que é a esta categoria que André Green chama "narcisismo de morte". O paradoxo do termo "princípio de Nirvana" liga-se. sem dúvida, ao fato de poder designar estes dois aspectos dificilmente redutíveis à unidade: a raiva frenética, esquizoparanóide, da pulsão de morte atacando o Ego, e a abolição imaginária do des~o na ataraxia, verdadeira mimetização da morte, mas conforme ao princípio de constância. Certamente o primeiro aspecto é mais conforme à significação econômica do princípio de inércia, o segundo aspecto fazendo eco com a significação filosóficoreligiosa do Nirvana. O Nirvana da pulsão e o Nirvana do Ego não são idênticos, portanto, mesmo se durante uma parte do trajeto os processos que aí conduzem parecem coincidir.
Nirvana do Ego
QIL----------------Nirvana da pulsão
A pulsão só tem um meio de atingir o nível = O : a descarga completa. O Ego tem quatro ou seis maneiras de manter a homeostase: aceitar uma descarga ou um aumento de tensão moderados- evitar uma descarga ou uma tensão excessivas - evitar a descarga e a tensão mesmo se moderadas. Estas duas últimas eventualidades corresponderiam ao Nirvana budista, tão diferente da devastação esquizofrênica quanto o silêncio do monastério difere do de Hiroshima. 106
5.4. Pode-se sustentar que o medo da castração é. a.maneira- culturalmente normativa - de ligar a angústia. Que dizer do medo. de morrer, no sentido da relé!Ç?o do indivíduo com o aEq_ntecimenro_ce sua biológica e psíquica? Estando Sêdlâdó no Ego, como todq_arero; Q_mectQJ!e mos~r é sQmE:!nte uma elatíOràC;ao dã mals inominável das angústja~. de Q_rjg!l_rn_jJ.Iterna,_graças ._à_única ~fêe~taÇão_~sível:_~. ~e-~-~ _ [>!!rig~~r_!3_ vid,
moftê
.
1_
Q~
(
.
.. _q, L.
•!f.
.• ,
.,
,. '
• Em alemão no original: perigo de morte. (N. do T.).
107
d ..
... '·-L -r-_LO\,-úe_ <~L1i!_
Ç(p/A.).{'f
o-cA·t·'J' Lj_.,,t(t_
\:,{, ('it1.(t-} ~ir i )t ', .:t-1 1 u'.f,
DA TEORIA DA SEDUÇÃO RESTRITA À TEORIA DA SEDU~ÃO GENERALIZADA '
• /
'
I.
. .,I'
\.-\/~
!.'
Temos o dever de afirmar que entre o fim do ano de 1897 e a dupla data de 1964 e 1967 foi ocultado, junto com a teoria da sedução. um fundamento essencial da psicanálise. Nosso objetivo, neste artigo, não é principalmente histórico. mesmo que nos seja necessário. cursivamente, acompanhar a história (1 ). Trata-se de mostrar as razões profundas deste ocultamento. de indicar como pode ser ultrapassado e como pode ser fundamentado de novo. mas desta vez na sua radicalidade. o que Freud havia largamente traçado antes de apagá-lo. Freud não dissimula o caráter genialmente inovador desta descoberta: "Considero que se trata aí de uma revelação importante, algo assim como a descoberta de um caput Ni/i da neuropatologia" (2). Trata-se de pôr em relação uma realidade E!fetiva, que se traduz nos fatos concretos - a "sedúção" - e uma teoria da mais ampla repercussão. uma vez que, explicitamente, pretende explicar a totalidade da psicopatologia e uma ve?. que, implicitamente. através da noção de recalcamento. o que se encontra em perspectiva é a gênese do sujeito humano enquanto possuindo um inconsciente e uma sexualidade (no sentido freudiano deste termo). Estes dois elementos: !.e~Hdacje efe_tiva de uma sedução e teoria da sedução vão percorrer toda a nossa exposição. Vejamos como se conjugam antes de 1897: 1 ~ Deixamos a outros o cuidado de escrever em seus detalhes esta "História da Teoria Freudiana da Sedução" que nos faz_ uma falta cruel. Doravante os documentos estão completos, com a publicação m extenso da correspondenCia de Freud a Fliess. Entretanto. desde há muitos anos os textos fundamentais estavam à disposição daqueles que desejassem interessar-se por eles: manuscritos de "O Nascimento da Psicanálise". "Projeto de Psicologia Científica". "Novas observaçóes sobre as psiconeuroses de defesa", "A Etiologia da Histéria". etc. 2 "A etiologia da tlisteria". fn Neurose. psicose e perversão. Obras completas.
108
Os fatos da sedu~Q..tais como Freud os aponta nesta época são o que designo como seduçãciTiifantil. Concretizam-se em "cenas" que, graças ao método analítico, podernsel'reenêontradas, reconstruídas. rememoradas. Mas Freud não se priva de confrontar esta rememoração intra-analítica com informaçoes colhidas entre os próximos, e às vezes realizando uma verdadeira investigação. Todos os escritos freudianos desta época estão cheios de exemplos destes "acontecimentos de uma experiência sexual prematura" (3) na qual uma criança mais ou menos pequena é confrontada passivamente com uma manifestação, uma irrupção da sexualidade adulta. Retomemos rapidamente os elementos. A criança da qual se trata situa-se sempre num estado de imaturidade, de incapacidade, de insuficiência em relação à experiência que lhe acontece. As lembranças evocadas, diz-nos Freud, podem remeter até o segundo ano de vida (4). mas a questão não é de pura cronologia: da mesma forma como, na neurose traumátiça do adulto, o estado de despreparo (fortuito) é necessário para que aconteça o traumatismo, da mesma forma a criança pequena . (mas esta por natureza) encontra-se num despreparo essencial. sem recurso, aflita (hinflos) em relação à "arbitrariedade" do aténtadó sexüalperpetrado pelo adulto: "Um certo estado infantil das funções psíquicas. assim como do sistema sexual. é necessário para que uma experiência sexual, tendo ocorrido durante este período, deSenvolva mais tarde, como lembrança, uma ação patogênica" (5). A imaturidade. a "impotência sexual inerente às crianças" é assim avaliada por Freud em relação a uma espécie de escala de desenvolvimento comportando' etapas. níveis: nível de reação somática. nível de ressonância afetiva, nível de compreensão psíquica, tudo Isto fazendo apenas um: é na sua totalidade psicossomático-afetiva que a criança pode ou não integrar adequadamente o que lhe acontece. Evidentemnte, a etapa de maturação pubertária atua aqui como o limiar temporal maior. mas também como o modelo de outras barreiras mais precoces, outras trocas de nível, prefigurando já a noção de fase. O essencial é que a crianQ!..nl!_m primeiro tempo do traumatismo situa~se num "antes", rium "pré"(6)que a ~epara (foque ~[}ó Sií[úiido têifiPõ. Oparceiro obrigatório da sedução é o adulto. Seguramente a anamnese encontra cenas sexuais entre adolescentes ou cdanÇãs deidade aproximada. mas. regularmente, remonta a cenas mais arcaicas onde uma das duas crianças (às vezes as duas) foi submetida à infecção (7) pelo adulto: "Lá onde as relações se passam entre duas crianças. as cenas sexuais conservam o mesmo caráter chocante, dado que toda relação infantil postula uma sedução prévia de uma das crianças por um adulto" (8). O adulto incriminado por Freud - e por seus pacientes - certamente não era qualquer um. Era um adulto "perverso" e isto no duplo sentido que vai ser 3 - Ibidem. 4 - Ibidem. 5 - Ibidem. 6 - "Pré-sexual", diz Freud. Mas este termo pode e deve ser tomado em duplo sentido: absoluto: antes dã irrupção da sexualidade e relativo: numa etapa anterior da sexualidade infantil. 7 - A comparação com a "transferência" (Übertragung) de uma doença infecciosa é abertamente colocada. "A etiologia da histéria". Cit 8 - Ibidem. Grifo noSSQ.
109
estabelecido, mais tarde. nos Três ensaio~ desvio~. uanto aoi_Objetéit pois que é
U!f! pedófilo, até mes~o incestuq;o, desviJ> q~ªnti) áofim iJo~-·~!0~~ RQ
de pessoas que não têm nenhum êscrúP'ulo em sati er suas necessidades .Sêiruais através de crianças que se preocupem com sutilezas na lljneira de obter esta satisfação" (9). A passagem da qual foi tirada esta última citação descreve. de ulna maneira que um Nabocov não contradiria. o caráter ao mesmo tempo "grotesco", "chocante", "incongruente" e "trágico" destas relações sexuais de um "casal desigualmente combinado" . .freud. até _a negação total da sua teoria. não cedeu a respeito deste caráter perverso do "pai da histérica". -- --- _Este aspecto patológico das cenas incriminadas representa um papel ?ds Ímp~ss em que a discussão se comprometerá a seguir~s~a que toda esta mixórdia1teratológi seja renegada. em co[jjunto e sem maior exame~ por _conta da ''fan~sia''~f-1-G . üa exifrillida-e branéliâá. bem í:ãrde. como árma de_guêrrá d.elibe_radan_Jente antipsicãnalítita. Duplo Impasse que evli:ará rét:Orriàr ã questão do ponto onde Freud a deixa. e grâças aos desenvolvimentos que nos deixaram principafnente os Três ensaios: por mais inegável que s~a a perversão clínica de numerosos adultos nas suas relações com a criãllçã. esta psicopatologia deve ser relativizada, reconstituída sobre o fundo daquilo que conhecemos de arbitrário 'que cimicteri:la a sexualidade humana em geral. precariectade e intercambialidade de seus fins. estranheza e inacessibilidade de seu objeto "perdido", etc. "Um ou vários acontecimentos" nos diz Freud: mais praticamente todos os seus exemplos clínicos põem em relação. em perspectiva. várias cenas que se sucedem no tempo mas que. sobretudo. "simbolizam" uma em relação à outra. Já na configuração do conjunto pode-se demonstrar esta ressonância de um cenário ao outro. Mas é preciso ultrapassar a analogia global entre as cenas; o trânsito. o metabolismo de uma a outra. opera-se sempre elemento por elemento: o esquema desenhado no "Projeto de Psicologia Científica" (caso Emma) (11) continua sendoo mais demonstrativo neste caso; é exatamente do mesmo tipo daquele que iiga o son-ho a seus pensamentos latentes. eventualmente a uma cena vivida na véspera. Atrás de uma cena perfila-se. portanto. uma outra. a qual deixa pressentir []ma terceira. Esta passagem de cenà em cena até uma lmprovavel cêriã primeira. originária. será um argumento no momento da crise de 1897. Contentemo-nos em notar. de momento. o aparente paradoxo de voltar-se a um acontecimento primeiro. Última característica. a mais essencial. pois que define a própria sedução: a passividade da criança em relação ao adulto. É este que toma a iniciativa. insinua-se por palavras ou gestos: a sedução é descrita como "agressão". irrupção. intrusão. violência. Esta afirmação total. a essencial passividade da criança na sua confrontação com a sexualidade adulta. deve. no entanto. apresentar nuances em função, precisamente, ao encadeamento e da sucessão de cenas sexuais. Antes de tudo. sabemos.
para ser
mais
9 -- Ibidem. 1O - Só se emprestl aos ricos ... 11 -- In: La naissance de ta psychana/yse. Paris. PUF. 1973. pp. 363-366.
110
·. t ,
I
I
l
-_
. ' .
-
t\
Freud,bpõe a histeria. na qual seduçã_o_ e passividade seriam imediatamente evidentes, à etiologia da neurose obsessiva. na qual "não- se trata mais de uma passividade mas de uma agressão praticada com prazer, de uma participação, experimentada I sexual com prazer. em atos sexuais: portãn1õ.Liêuma atividade sexual". Mas a oposição aqui é uma falsa simetria: passividade e atividade infantis não dividem o jogo em partes iguais: a atividade encontrada na infância do obsessiVo perfila-se sempre sobre o fundo de uma experiência passiva: "Em todos os meus casos de neurose obsessiva encontrei um substrato de sintomas histéricos. sendo que estes terminavam por se ligar a uma cena de passividade sexual que tinha precedido a ação geradora de prazer." (12) Entremos. entretanto, mais nos detalhes e ultrapassemos esta oposição esquemática de obsessivo e histérico. Efetivamente. a objeção está ao alcance da mão: em mais de uma "lembrança" na qual o sujeito pretende ter sido seduzido passivamente não se pode demonstrar que ele desempenhou um papel provocador, indutor. em relação ao gesto do adulto? Quem seduz quem? A questão não corre o risco de se perder nos meandros de ações e de interações recíprocas. até mesmo em espelho? Ainda aqui o pensamento de Freud é muito claro. como o vemos no caso Emma: ;' (13) a provocação pela criança se situa nas cenas mais recentes. repetitivas. (14) \ mais se volta atrás no tempo mais a passividade (ligada ao aspecto fortuito inesperado) / domina. mais avançamos no tempo mais a atividade do sujeito se insinuà nas cenas. -~ Vê-se que nossa descrição das cenas já se abre sobre o que se chama teoria t1a sedução: uma teoria original e complexa que se desenvolve ao menos em três registros: temporal. tópico e "tril_c!l!tivo". Registros estreitamente solidários, complemen1ãres. êqLié desejamos apenas relembrar muito brevemente (15). o aspecto temporal da teoria da sedução permaneceu - ao menos assim o esperamos - uma aquisição da psicanálise: é ~!~oria chamada posterioc ou__~nda_ do traumatiSI]lO_~m. dqis tempos. P@:Uia qu~ na_dase .Íf!?C!~Y~!lQ incgl}_sciente humano senaô iiã relação de aõ menos dois acontecimentos separados. noter!liJp. j)Or].lm ffi()IiienEo de mutação que permite ao sl!ieito reagir de forma diferente da priJl1eira experiência. o primeiro tempo. o_~o terror. confronta um süjeltO iiãó preparado · i::om uma ação sexual_ altamente siQi1ificativa. mas cl!ia significação não pg_Qe__?.~r ·• Iassimilada. Deixadã ém espe~ra. _ã):!fl}~ran_Çil_QªQ_f!_eiTl__S~ m~Illapatogên~em · ' fraúrríãtií.ante. Só se o torna pela sua revivescência. por ocasiãõãeUmã segunda 12 - "Novas observações sobre as psiconeuroses de defesa". In: Neurose, psicose e perversão. Sabemos que Freud não desistirá ulteriormente deste subStrato histérico na neurose obsessiva. 13 - La naissance de la psychana/yse. Paris. PUF. 1973. pp. 364-365. 14 - "Apesar deste primeiro incidente ela tinha voltado à loja. depois parou de ir. Em seguida. recriminou-se por ter voltado à loja, como se tivesse querido provocar um novo atentado. E. de fato. a "consciência pesada" que a atormentava bem que podia derivar deste incidente". Ibidem. De maneira reciproca em relação ao "substrato histérico" de toda neurose obsessiva; temos aqui uma histeria que se desenvolve em obsessão. fobia de impulso. recriminações obsessivas. 15 - Para maiores desenvolvimentos. rever principalmente: Fantasme originaire, fantasmes des origines. origine du fantasme" em colaboração com Pontalis. J.-8. Paris. Hachette. 1965. pp. 22-8.
111
~~a,.q~~_,_e.!ltra..e'!l__~~!l~f!~..,~~Íéltiva com a primeira. Mas, devido às novas poss_JbJIIdades de reaçao do S.Y,J_eJto, -~jl_p!!Jpna lembrança, e não a nova cena, que
,, . fimc1ona CQJ!lQ.f.OI!te de energia lirndinal interna. autotraumatizante·: ----Este tempo autõfrãmatlzânfê encõiifi'ã silll saíãa nao nürriã'liquidação ou numa elaboração normal. mas numa :·d~~W\:Qló.Q:iç_( pu__recalcamento; isto por razões ligadas ao aspecto tópico do processo implicando uma verdãdeli'ã eSfratégia de guerra. O indivíduo que vai, aliás, ?urante o curso_ de~ processo mesmo. ~rasitado f!!Jf seu Ego nasce11te. está entre9ue a d01s tipos de aflição e de vulnerabilidade: quando ?o-P.r:~rneir,oataque~ o externo, não tem ás méíàs de defesa adequados, quem seya responsavel, e pode, no máximo, bloquear o inimigo no lugar. No segundo ., _tempo. já tem os meios. mas se encontra revirado, atacado no seu fronte desarmado isto é, do interior. · Teoria genial, que desdenha todas as dosagens que se buscará. a seguir. descrever entre fatores exógenos e fatores endógenos: aqui tudo é exógeno e tudo é endógeno. Mas esta proposição só poderia ser verdadeiramente fundamentada por um desenvolvimento da teoria tópica e principalmente por uma explicitação da teoria do Ego e de suas peripécias. que aqui só se apresenta esquematicamente. (16) Enfim. ao lado destes pontos de vista temporal e tópico, também se desenvolve a teoria da sedução. sobre um plano (não lingüístico mas) da linguagem. incluindo, como Freud sempre o fará. todos os modos articulados de comunicação neste termo de linguagem (17). Refiro-me aqui sobretudo à carta a Fliess de 6 de dezembro de 18~. Tive sobretudo de comentar várias vezes (18) este modelo que assimila a relaçao das cenas entre ela~_a_ljfT)a reinscrição e a uma tradução, e o recaicamento ~ ta[ila_(pa~ial) ~-e t~_adução. processo situadoná bãrreira que separa duas épocas psíquLcas. Aqui também muitos pontos são apenàs esboçados, principalmente a natureza de uma primeira inscrição, no pequeno ser humano. de um "sinal de percepção". No total, esta teoria freudiana de antes de 1897, que designaremos doravante comq~·~r.ia ~a-~~~~ção_r~strJta". apresenta, ao mesmo tempo, uma grande força e pontos de fraqueza. Sua força reside: 1) n_a trama .fechada que liga a teoria ..a~-d~_?S- tiradCJ_~_da_ eJ(periência analítica; 2) no fato de pôr em jogo, já de forma ngorosa e âoravante int~ansponível, est~ três fatores_ da radonalidáde analítica - temporalidade do aprês-coup, localização tópica suQjetiva, laços tradutores ou interpretativos entre os cenários e as cenas; 3) na capacidade explicativa do modelo, amplamente transponível e extensível no campo da psicopatologia; 4) na capacidade V~r p_rincipalmente, para tudo que concerne ao Ego e seus envelopes. a relação do Ego-corpo ~do Ego-1nstanc1a. etc:- VIda e morte em psicanálise. Porto Alegre. Artes Médicas. 1985, (O "Ego-pele":
16 -
Som?s. portanto. l':vados a admitir a existência de uma identificação muito precoce. e provavelmente lambem mu1to sumana, na sua primeira fase. identificação a uma forma concebida como limite. como ~lsa: a bolsa da pel_e') - Problemáticas 1: A angústia. 2; parte: "A angústia na teoria tópica". _ e Uma metaps1colog1a a prova da angustia". 17 - É o campo coberto pela semiologia. segundo Saussure. 18 - Ver Problemáticas 1: A Angústia. -- "A situação psicanalitica: o psicanalista e seu baque!". In: Psychanalyse à I'Université. 1980, 5. n:s 19 e 20.
112
(
\
evolu!i'{~ ºo modelo: o que designamos. de passagem, como "esboços" para desenvolvimentos fÜturõs: -- --- ·- ··· -- · · . --os pontos fracos. inversamente. são aqueles onde uma teoria restrita corre o risco de ser bloqueada numa concepção restritiva. Pode-se relevar vários, precisamente aqueles qug ::quebrarão" no momento (!á_revisão dilacerante do 21 de setembro de 18~"I,_Do lado das "cerias:·: é a essenc)ado.f'I)Q.Q'!J!l.!l.O sedução que não é questionaaa: a concepção de Freud mantém:seãõ ilivel da psicq:>atolQgia ã maís"manifesta. isto é,dãS reiélções pelverSàs - no sentido clíniCo do termo : .___ ent:I:ê Üm adulto e orriã i:í'iãnÇà. A partir daí. a interrogação "estatística" dé Freúct. tão simplista qoarítõ possa parecer, não poderia deixar de ser desconcertante: não deveria haver, necessariamente, um maior número de perversos na geração dos pais do que de neuróticos na dos filhos? Da mesma forma. e mais profundamente, é o tipo de fatos em causa, ou, mais exatamente. o medo da realidade buscada na investigação analítica, que é mal apreciado: se as cenas traduzem-se umas às outras. se voltar atrás na interpretação não tem outro objetivo senão descobrir, enfim. uma cena que entregaria, no seu texto, todo o seu sentido, concebe-se que a busca de uma cena sempre. mais antiga. mais escondida. mais totalmente reveladàra•. ãpofJniJ~ só pÕêfêser infinita e engànadora. 9) bõ iãdo da teoria, a mesma rigidez apái-ente. O modelõ concebido, por mais coerente que s!lia. tem por objetivo explicar a psicopatologia: e somente ela. Defesa patológica, recalcamento e inconsciente pertencem ao mesmo conjunto. aquele que, inversamente. a cura se propõe a desfazer. A idéia de um inconsciente "normal" (20) irredutível apesar do que se pode conquistar solm!ê!te, á postulação de um recalcamento originário que a própria teoria da sedução explltãria. tudo isto ainda está fora do alcance. (21) Alouca esperança de um "sucesso total", da descoberta do "segredo do incidente infantil", de uma "dominação completa do inconsciente pelo consciente" acaba necessariamente na decepção. mas esta termina. sem outra forma de processo. por fazer explodir a teoria ém pedaços: enquanto qüe à relação da teoria com os fatos poderia ser radicalmente renovada pelo seu aprofundamento conjunto. Pois apenas um aspecto parcial e restritivo da fatualldade
n
19 - O recurso que Freud faz à fantasia - ou à indistinção da "ficção" e da "verdade" não esclarece nada: uma fantasia não produz necessariamente um sentido auto-suficiente mais do que uma cena rememorada. A volta para trás na fantasia também será infinita. Donde o último recurso à biologia. 20 - Pressentimento. entretanto: "Não basta levar em conta o recalcamento entre o pré-consciente e o inconsciente: é preciso ainda pensar no recalcamento normal que se produz no próprio sistema inconsciente. É um fato muito importante, mas que ainda resta muito obscuro". Manuscrito M. In: La naissance de la psychanalyse. Paris, PUF. 1973. p 181-182. 21 - Um outro fator de obstículo é a importância quase exclusiva que Freud reconhece ainda à puberdade entre as fronteiras separando as fases temporais. A infância e a sexualidade infantil é e será ainda por muito tempo percebida por ele como um todo (o periodo auto-erótico) face ao todo pós-pubert.ário. Dai a dificuldade em fazer atuar o mecanismo do aprês-coup. entre dois momentos da infância, do qual o "Homem dos Lobos" dará posteriormente um exemplo surpreendente. Uma dificuldade análoga encontrar-se-á até os anos 1900-191 O a propósito da teoria da homossexualidade. Freud. com Sadger. depressa descobre que um vínculo heterossexual apaixonado pode ser a origem de uma escolha homossexual. mas é-lhe necessário muito tempo para aceitar levar este vinculo até a infância (Leonardo da Vinci).
113
era invocado para recusar. sem mais, uma teoria que era ela mesma por demais restrita. enquanto que a discussão de 1897 (22) podia se abrir sobre um reman!ljo dialético como o que se observa na história das ciências, uma dupla generalização . rio sentido exato de que falamos, em fisica. da teoria da.. relatividade generalizada. Uma .!.OO!.]a_ dasedução g~n~raJJZada? qu~ já traço o programa de após 1964-1967. Mas não posso pássãr emSllêncio o período intermediário de setenta anos, mesmo se os limites deste artigo que. assinalemos, deseja ser mais teórico e epistemológico que histórico. assim me restringem. É um período de recalcamento. se podemos aplicar este termo à história do pensamento. (23) Na literatura psicanalítica - com exceção de Freud e de Fereczi - é o deserto. "O Índice dos escritos psicánalíticos" de Grinstein. que cobre este período muito exatamente. é revelador. A palavra-chave "sedução" indica em tudo e por tudo três artigos de curiosidade psicopatológica e um artigo de curiosidade histórica. todos publicados em revistas não-psicanalíticas por autores c4.ia posteridade_ não nos deixou nenhum testemunho. (24) A restrição da teoria à psicopatologia. seu repúdio por Freud como pertencendo a um período ultrapassado. atuaram. no movimento. exatamente como uma censura. No próprio Freud, depois de 1897, a teoria passou por um verdadeiro cataclisma. Sabe-se que é próprio do recalcamento (secundário) agir sempre "individualmente", isto é, pedaço por pedaço. Tão eficaz quanto o próprio reealcaménto, este processo de deslocamento. de deSmembramento. dé ocúltamento._ é esta reelaboração secundária que recoloca juntos elementos não coerentes e desfaz os vínculos de coerência real. Cada um dos membros da teoria sediJtivá, membra di~ecta, continua a evoluir por si_mesmo, procurando para si eventualmente um outro contexto. Assim o aspecto i:emporal da teoria, o aprés-coup, continuará a ser uma linha diretiva do pensamento -e da prática- psicanalíticas: apesar das tentações da "fantasia retroativa" apresentada por Jung, Freud insistirá em manter a dupla tensão, a tensão em sentido duplo. entre a cena mais antiga e o drama mais recente: testemunha disto todo o texto sobre "O Homem dos Lobos". É verdade, no entanto. que privado do contexto da sedução, o aprés-coup pode apenas procurar desesperadamente um outro ponto de ancoragem. numa outra "realidade": aquelas que se chama "fantasias originárias", he-rança filogenética. "mito científico" da horda originária. etc. (25)
vise
22 - Mas que interlocutor verdadeiro tinha Freud então? 23 - Tomamos a liberdade de falar de recalcamento (processo pessoal). pois se trata essencialmente do pensamento do indivíduo Freud. 24 - Margaretha Kossak "Sexuelle Verführung der Kinder durch Dienstboten" (Sedução sexual das crianças pelos empregados): Sexual Probleme jan. 1913. - Berllhold E. Schwarz e B.A.Ruggieri: "Morbid parent-child passions in delinquency" (Paixões mórbidas de pais·filhos na delinqÍiêrKia) SOcial Therapy, 1975. 3. 180 e "Sadism seduction and sexual deviation"" (Sadismo. sedução e desvio sexual), Medica/ Times, 1959. ff'l. pp. 216-224. - Alexander Schusdck "Freud"s "seduction theory": a reconstruction" (A "teoria da sedução" de Freud: uma reconstrução) J. Hist behav. Sei.. 1966. 2, pp. 159-166. 25 - Ver, a respeito deste movimento de ascendência na "história da espécie". Fantasme originaire. fantasmes des origines. origine du fantasme . 1964. Les Temps Modemes. 215. Por mais de uma vez exprimimos desde então nossa oposição a este gênero de especulação sociológico-antropológica
114
No que tange aos aspectos tópicos da teoria, as coisas também vão derivar perigosamente. A nocãQ_JI.e...ati!!llJ.í! interno, até mesmo de corpo .!!~ranho interno. n~2_1lf!Lealmentv;ontes.tada_;_é a fan13tsia, sabemgs_. fl11~ará o lugar desta última "re~ica";_masJáJ:am~m o solo de uma realidade mais "Qgi~t;iva" ~ inevitaY~!!Jen~ pus~d(J: a pulsão será, em último caso. de origem biológica; quaisquer que s!ljam as relações. de "representação" que a~egurem a mediação, o movimento vai no sentido: excitações somáticas -:-- pulsão :..__:-fantasià. enquanto que. em plena teoria da sedução (maio 1897). a série cãüsal SêesfliDêlecllrasslm:impulsos _ _,... (lmpulse) :e~~rança das cenas --------
.
--------_. fantasias ----~~>• impulsos O terceiro aspecto da teoriª, .o.riJodelo de linguagem e tradutivo, vai, para Frelld. afundar pouco a pouco. É em Fereczi que encontrará mais do que a sua ~IJ!I!.~Ilçia (pois Fereczi. cert:ameD~ão .tinha conhecimento da. carta 52), sua renovação. Vemos no_ seu artigo "Confusão
..
.
.
Se.. a.sedução como teoria sofre. para Freud, esta espécie de recalcamento ) e _Qe_ des.m~mbra!Tlen~ .que lamentamos. por outro lado, em compensação, o da "fatuaJ~~ad~·:. um_.aprofu!J~Íil~fi~ lf!.íf!9itãlite ~é.- é$!)Qça, com a introdução de um ~?u~do nível. que se_pode ch~.~·mr:_~eduÇao precoce. o pai, gràride · personãgem e filogenética. qualquer que 51tla a função que lhe é conferida e o tipo de existência que lhe sflja atribuída: causalidade transmitida geneticamente) e realidade histórica para Freud. (um dos textôs que vão mais íOnge neSte séntido acãiiã re
ser
sq. - Laplanche. J. et Pontalis, J.-B. "Fantasme originaire. fantasmes des origenes. origine du fantasme" in Les Temps Modemes. 1964,215. Nova edição Paris, Hachette, 1985. p 28-29. - Laplanche. J. Vida e morte em psicanálise. Porto Alegre, Ari:€s Médicas. 1985. - Gantheret, F./ncertitude d'Eros. Paris, Gallímard, 1984. p. 143 ss. - Laplanche, J. Ver cap. "Traumatismo. transferência, transcendência e outros trans(es)".
115
da sedução "infantil". cede lugar à mãe. essencialmente narelação dita "pré-edipiana". A sedução é aí yeiçula_da pelos cuidados corporais prodigalizados à criançà: Este é um tema que se repete em Freud. e sua_IT1_anej;:a cl_!!_demonstrar que nãQs_Qrnente a sedução não é abandonada mas que segue seu caminho, para além_ do episódio em direção ao essencial. Só posso citar a passagem canônica: "Aqui a fantasia toca o solo da realidade efetiva. pois foi efetivamente a mãe que, no desempénho dos cuidados corporais, riei:éssariamente provocou é ralvéz mesmõClespi!rtõU peJa primeira vez sensações de prazer no órgão genital". (27) - -- Trata-se aí de um passo capital na via que nos faz voltar atrás não somente ~o tempo (trata-se dos primeiros meses) mas na categoria de n'!ãí[(íáde em que e preciso situar os _fatos de sedução. Pois não se trata mais exatamente de pura re~lidade fatual (Realitãt) mas de _e.fetivjd~d_e (~i~~keit), .!;ategpria que nos leva alem da contingência e da peripécia: trata-se diLL!_fTia_ S~IJção_ neces~ria (musste, verbo que marca o caráter obrigatório da ação materna) inscrita na própria situação. Em compensação, Freud falha em analisar o que constitui esta universaÍidade e ""-. a caracterizaria como um dado humano fundamêntâÍ; não chega a introduzir o inconscien~te[í!ãíjmas isi:o é muito gera) nJ! su~ ânáli~é-~a situaçao pais-criança); !
um
27 - Novas conferências de Introdução á Psicanálise. obras completas de Freud. 28 - Todo discipulo de Freud que tenta fazer progresir o pensamento anaJitico (todo pesquisador inscrito_ numa. tradição) só pode alternar duas atitu.des: a que consiste em se deixar propulsar p~r l · md1caçoes. relampagos da obra. correndo o nsco de adiantar-se a Freud: e aquela que. por uma apreciaçao ,.\' mais objetiva do conjunto da pensamento freudiano. lhe confere um lugar relativament;i fica. ]avalia ' suas riquezas mas tabém seus limites. suas falhas e seus impasses. PenSáinos ter de maneira sutiti~ilt~mente freqüente adotado o primeiro ponto de vista para ter o direito de não extrapolar indevidamente Freud na teoria da sedução generalizada. Um dos textos que mais convida a esta extrapolação-propulsão é. sem dúvida. o Leonardo. Comentamo-lo neste sentido nas Problemáticas 111: a Sublimação. 29 - 1964: Laplanche. J. e Pontalis. J.-B.: Fantasme originaire. fantasmes des originés. origines du fantasme. Cia. 30 -- Le réel escamoté. Paris. Aubier Montaigne. 1984.
116
, .r
outra reflexão .. à sedução infantil é cair de novo na pesada oposição do real e da fànta~ia que a teoriajÍl~fTI_ente permite uJtrapassar. ·· · · A"generalização" que propÕmos se coloca. portanto. e antes de tudo, sob a forma de um questionamento teórico. Seu priméiro.fÜndamento é mesmo muito precJ_~r1l!!!lte filos{lficQ: Uf11?. reh!ti.!:~~~~.Qmio.ªtlvida_~_i;'-~ssividade. Freud teve_~ _[~_!l~e mérito.. a grande_ªygácia; de colocá-\Q.D.1l.?_Q!:ig~n,s~tãêitorii teoria ~~?-~s•.quanto n?, desenvolvime!lto q~_yidil_~xua[. (31) Audácia. se lembramos a man~1ra moderna . anglo-saxã para falar claro, pela qual se pretende esvaziar a questão fala~do de ·~nteraçã?"· Pois certamente~ ~o plan(J ga pu r-ª <:le_?cri_çã__c> compor_j:.;lmenl:iJI. mu1to esperto sera aquele capaz de medir, numa relação interpessoal ~uem_é ativo e quemé passivo, "C<&éi_p_u]s_~o-~_IJfT! p_ed_aÇ9_ de atividade. quand~ 3 !!!l~_ de~a~eira negligente de pu}_~a~iva~~g ~e_p~_r:_qÜ~er_qizer pulsões ....Alim PaSSI'JQ_ (32). No _entanto. mesmo com esta referência ao fim. Freud se atrapalha. como demonstramos a propósito da situação inicial do aleitamento. Pois. n:a_~ ~~?vas Liçõe~:· afirma que "A mãe é, em toc!os os s~ntidos,_ativ_a_ em. relação a c_r:~~~--(33) no Leonardo" (noutros sentidos tão claramente orientado) parece descon~ertado pelo caráter passivo da "lembrança do milhano" enquanto pensa que o erot1smo_=oraJ (a sucção do seio) deveriã ser. como por definição. ativo. (34) l'Orf.ãnto. nao se deve temer aqui invocar a reflexão filosóficã, especificamente a dos cartesianos que colocaram de forma bem marcante a qu~o da atividade passivi~d_~na relação intersubjetiva: as criaturas umas emrelação âs outras, ou. então. as criaturas na sua relação com Deus. Citei uma vez Spinoza, mas também podemos recorrer a Descartes. para o qual deve haver pelo menos "tanta realidade" na causa ql!_anto no efetivo, óu sóbrétudo a Lelbrilz: "Diz~se que a criatura age para fora ~0.~? tem a perfeição. e suporta uma oytra quando é imperfeita. E uma criatura e ma1s perfeita que uma outra quando encontramos nela o que serve com razão a priori daquilo que Sé paSSa na OUtra, e é por iSSO que dizemos que age sobre \ ela". (35) ·· ··· ·····- --- · · -Eãpoiados sobre este firme critério, o de l!..~~rn-~?··. de conteúc1o. de significação. portanto de_ men~gem. que podemos abordar a situação origináriª ga criança e tentar_:__<:lefim-la. alem de todas é!S suas variações. Aqui. o atrevimento de Ferécí:i nos guia. permitindo-nos desvencilharmo-nos da exclusividade "familialista" que pesa sobre todo o pensa~ento psicanalítico. Pois é finalmente uma contingência (ainda que e~ra1zada na b~ologia (36) e na história humana) o fato de que uma criança no ma1s das vezes seja educada por pais. por seus pais. pelos pais. Asituaçãq_orlgj_náda. tal como a coloca Ferenczi. é a confrontação da criança e do mundo adulto. Pois
:e
~
31 -
32 33 34 dêncla 35 36 -
.
-
·- ----···-
\,
Ver Atividade- Passividade. In: Vocabulário da psicanálise. Pulsões e destino das pulsões. Obras completas. Novas conferências de introdução á psicanálise. Obras completas. Cf. nossa discussão: Problemáticas 111: A Sublimação. e o cap. 'Traumatismo. transferência. trancene outros trans(es)". Monadologia. 49.50. Até quando. aliás?
117
podemos, em todo rigor, e quaisquer que sejam as distorções que possam daí resultar. nos tornar. semfamília, uiii f:iumá_ii(), (37)JJ]ââ. não sem esta confr:QIJ.t:aç39. Mas este mundo adulto não é um mundo objetivo, que a criança teria que descobrir e aprender, como aprende a caminhar e a manipular coisas. Caracteriza-se pelas mensagens (lingQígicas ()~ simplesmente semiológicas: pré ou pãralingUíSticãsj que questionam a criança_antes 9l!.~.eLaas çorrmr:eel]_da, e às quais deve dãrsiú)udo e resposta (o que vem a darno mesmo), Até aqui Ferenczi nos acompanha. Ainda que a expressão: confusão das línguas não nos pareça completamente adequada. Há várias línguas do adulto, linguagem verbal, linguagem dos gestos, da mjmiq~_!!dO$_&e1:Qs. Há na criança uma pôtencia!idade parei eritraf nestãs _línguas. potencialidil_de. naturaUnstrumental e. também.'lfetiva. Mas o problema não se resume nem no da aquisição de_ul!@(ou_várias) linguagem(nsj, nem no da confrontação de duas linguagens com suas lógicas e suas bâteriãs si~gifi cantes diferentes. Sabemos que, sem gramat:kâ nerri dicionário, uma tal ãquisição ou uma tal correspondência éperfeitameb.tê pQ.~sível. · - -~ Seguindo pará isto uma imà~m de ficção científica já proposta por Freud, (38) podemos tentãâéJs a invocar ãqüi ã éorifrontação de nossa civilização com a chegada de extraterrestres, ou bem mais simplesmente a acolhida reservada a Pizarro pelos incas. Sabemos através deste último exemQLo_!:}Lie_qu_?isquer_que s~am as diferenças de estruturas menfàJS, aehistórias.e mesmo. de referenCiais, a ÇQ[lfUsão das línguas acaba por dar lugar a alguma. mod.alidi;içj~p[depada de correspondência e de aquisição. Da mesma forma. para voltar à criaDça._esta se. IntrodUZ sem professor, habita a linguagem (verbal) que lhe preexiste, e isto. finalmente, sem véStígiõs. (39) É, portanto, aqui. muito precisamente, que é preciso ir mais longe dô que Ferenczi. mas também em uma via diferente do lacanismo. Pois Ferenczi .não dá ) o_pas. so. d. e l.eva. r em.l ~sideração que. esta~'ll!!.g.yaQem.._d·a· Qª-...i~~o"_.sóé. tri.u.!')~~ na medida em. ql!~'(\!n:LsenJ:icj() .'.'de si. f!l.~!Tlo 1gl}()rad(;J': .. isto é, que manifesta a pre5eriÇi do inconsciente parenta!. Ma,s. contra Lacan. afirmamos que esta manifes- } tação do incoÍlsCÍente irredutível somente às potencialidades polissêmiEaS de Uma linguagem em geral. Para ligar entre si todos estes elementos, enunciaremos: a confrontação adultocriança engloba uma relação essencial de atividade-passividade,liQada ao fatô lnefutavel que õ psiquismo parenta! é mais "rico" que o aã é:í'iariÇã. Mas. de forma diferente dos éartesianos, não falaremos de maior "perfeição" porque esta riqueza do adulto também pode ser considerada imperfeição: sua clivagem de seu próprio inconsciente.
ser
1
ser
. i
e
37 - A menos que se reintroduza a familia através do expediente das fantasias edipianas transmitidas geneticamente. 38 - Num texto totalmente coerente com o nosso propósito: "As teorias sexuais infantis". In: La vie sexuel/e. Paris, PUF, 1969. 39 - "O que não se pode dizer, deve-se calar" diz Wittgenstein. convidando-nos, assim. a nos limitarmos ao campo da Íinguagem. e pensando refutar definitivamente a hipótese de um inconsciente impossfvel de ser conhecido. Mas corrigimos. acrescentando: o úniCo indizível verdadeiro é o doantigo dito que perdeu seu dizer. é o significante dessignificado. Pois este foi dito e nãó pode mais ser calado. (Dedicamos esta nota a Maurice Dayan).
118
., 'I'
~~-
I • t_,
Pelo termQ_sedução originárja qualifit;é!!!!Qhll.O_rta~~i!JJ?çáo ~~.!l~.él!!!ental narqual Q_JildU~p.fQf!91! ª_cria_nça_significan~!anto 9l!ªnto y_ef~ª[s, e até_co.rnportarnentais. impregnados de signiticaçõe!u?~isinconscientes .. (40) Do que chamo significantes enigmáticos. não é necessário procurar longe para encontrar exemplos. c()ii@fõs. o proprio seio, órgaõ ãpanintemente. riãtllrãraã ractação: podemos negligenciar aindà seu investimento sexuàl e incon5éiente maior pela mulher? Pod~_mos supor que este investimento "perverso" não é percebido, suspeitado, pelo bebê,. como fonte deste obscuro questionamento: que quer ele de mim? Mas des~aríamos reservar aqui o lugar principal para à que se chama a "cena origin_ária''. Querer situá-la. como o faz Freud, ao mesmo nlvei da sedução,.!!() .saco sem fundo das fantasias originárias, é esquecer este fato essenciai: ãcena do coito eritre os pais é ela mesma sedução para a crlar1Çã. no sentido de sectução oí-iglnãrla. Propõe (freqüentemente: impõe) a esta imagens. frag[l1entos de iíiSi:6í-iiis trãümâtizantes. inassimiláveis porque parcialmente obscuros para os próprios atores. Âconcepção kíeíriiãnã dos "pais combinados" ilustra bem este aspecto: unidôs num coito eterno que conjuga o gozo e a morte, excluindo o bebê de toda cápacidãde de '! participar. portanto de simbolizar. É neste mesmo registro que funcionam também os dois grandes enigmas revelados por Freud comô os que despertam ao trabalho a atividade teorizante da criança: , , a vindade uma outra criança e a diferença dos gêneros. Ainda aqui, é através · do expediente da incapacidade dos adultos de se explicar isto a si mesmos que se produz o efeito traumático. · Vê-se que incluo na sedução originária situações, comunicações que nada têm a ver com o "atentado sexual": 9 ~nigma cujo móvel é inconsciente é sedução por si mesmo e não é em vão que a Esfinge está postada às portas de Tebas (41 ). Não está entre os menores méritos de Leonardo - e do "Leonardo" de Freud - o de nos indicar os três níveis da sedução, tais como os percorremos: sedução pedófila. (agui, homossexual), sedução precoce pela mãe, seduç~o originária cuja fi91:lra é o inelutável sorriso enigmático da Gioconda, da Virgem e de São João. Pois o · qlie-e preciso compreender bem é que a sedução originária não abole a importância dos dois outros níveis mas vem arifes lhes dar seu fundamento. A sedução pmcoce, priríé:Tpalmente. merece toda a nossa atenção na nova teoria da pulsão. AS noções de zona erógena, de fonte somática da pulsão, de pulsão parcial anal, oral ou fálica, não podem ser liberadas dos impasses aos quais nos convida uma fisiologia temerária, se não lembramos que estas zonas, lugares de trânsito e de trocas, são antes de rudo e primordialmente os pontos de focalização dos cuidados maternais. Cuidados de higiene. motivados conscientemente pela solicitude maternal, mas onde as fantasias de desejo inconscientes funcionam plenamente. Enfim. é a partir do solo da sedução 40 - É notível que as Lições de introdução à psicanálise tomem como ponto de partida a elucidação dos atos falhos (não somente dos lapsos verbais). O que é próprio do ser que tem um inconsciente não é o sonho, mas o ato falho. 41 - A sedução pedófila. "infantil'', inaugura a tradição. Mas a sedução originária, a do enigma, é o prólogo da tragédia.
119
originária, e da sedução precoce, que é possível atribuir toda a sua importância aos fatos da sedução infantil, para fazê-los sair, enfim, da espécie de gueto teórico onde estão confinados há anos. \ Na série: sedução infantil- sedução precoce- sedução originária, enfatizemos ainda uma véz que não há uma progressão do mais real ao mais "mítico". pois convém recusar a classificação de mítico (ou de "tempo mítico") pela qual desfljam se livrar do originário; o originário é um aprofundamento da noção de real, em ~ireção a Si!Uações inelutáveis que O fundamentam: é uma categoria êiã efetividade, da Wirk/ichkeit É a partir de uma forma precisa desta hierarquia das "seduções" que deve ser reconstruída. sob sua forma generalizada. a teoria da sedução. Teoria que explica. através do mecanismo do recalcamento. da constituição e da permanência. de um inconscien!e. assim comg do efe!to ·:pulsão" que lhe é indissociável. Mas que também deve inciÜir no seu modelo o que se chama a "cura", seus efeitos como seus limites. Só pode se tratar aqui de um esquema, uma vez que uma parte destas questões já foi tratada em outros lugares. e outras permanecem em estado de programação. Recentemente traçamos o esquema geral com a maior precisão a propósito da pulsão. (42) É a confrontação de um indivíduo cujas montagens somatop~quicas se situam de maneira predominantemente ao nívél da necessidade, com significantes emanandõ dõ adulto. ligados à satisfàção deStas necessidades mas veiculando com eles ã potencialidade, à interrogaç~o puramente potencial de outras men5agens sexuais. O trabalho de domínio e de simbolização deste "significante enigmático" termina necessariamente em restos "fueros"• inconscientes. que chamamos "objetosfontes" da pulsão. ' Aqui Perênczi só fornece uma indicação, rapidamente insuficiente. Pois não se trata de uma vaga "confusão", mas, muito precisamente. de uma inadequação de linguagens. inadequação da criança aà adulto, inadequação do adulto ao objeto-fonte qué age nele. O ponto de vista temporal, - o aprés-coup - só se compreende, portanto, através do ponto de vista semiológico e tradutivo. aquele introduzido pela carta de 6-12-1896. Lembremo-nos. no entanto, do lugar vazio (43) deixado pelo Wz.• Como umà pura perç_epção poderia deixar sinais, se eram sinais propostos por um outro. E. inversamente, se se tratava ápenas de indícios, de traços puramente factuais, de relicários sem intenção semiológica, como poderiam se propor a Uma primeira tradução pelo sujeito? Portanto assimilamos o Wz. • tal como se apresenta. exatamente ao significante enigmático. tal como se apresenta, se inscreve. antes de toda tentativa de tradução. O ser humano é e não cessa de ser um ser autotradutivo, autoteori.:z:ante. O reéãlcamento originário é apenas o momento primeiro e fundador de um processo 42 - "A pulsão e seu ol]jeto-fonte: seu destino na transferência", vide cap. • ~· Em espanhol no original: Lei particular a um estado. (N. do T.) 43 - Verdadeiramente enigmática para nós ... 44 --- Problemáticas IV: O inconsciente e o ld. • Ver capitulo "Traumatismo, tradução. transferência e outros trans(es)." (N. do T.)
120
gue dura toda a vida. Para este processo propusemos um esquema. o da substituição significante ou metábole, com suas diferentes modalidades: segundo prevaleça o vínculo de contigüidade (metonímia) ou de semelhança.. (metáfo@);~gundo .. s~a "e5qüecédora", "recalcante" ou "integrante": (44) segundo permaneça isolada óu 5e cristalize. tomé consistência com outras metáboles naqÜiíõ Qiié CFíãmamos ''simbolizaçáõ... (45) - - -- FreLid mostrava imediatamente que o ponto de vista tópico é indispensável para__ ~pt;ar o processo de recalcamento e fóriieé8f ã:r~aõ qüãf o próprio sujeito deve se abandonar ao processo primário. A partir daí. resta modular os diferentes níveis. e as diferentes etapas do recalcamento. em função, é claro. do tipo Q_~ sedução mas sobretudo da evolução e ~ã _c~iflpl~xificãção do sistema de instãnciaspsíquicas. O recalcamento originário, como insi~~?ylviã_ Bl~êlima[. ~-um pr~ê5So que. não podendo ser percebido diretamente. pode s~r if)çljgido_~ 9_el!n_eado na- evolução individual. Mas entre suas maior€§ Célrar;Wó~~s _est:á o fato .de ser éle próprio. no 5eu cónjunto. sob a depeod~ncia go__ªpJ:~:ÇQ.Up. A constituição do !::go;·lsto é. o tempo do narcisismo originário, desempenha éiÍ u.m papel éSSendai. precipií:ànte, mas nao como um momento último. Pois somen~ o r.ecáíéãrru~rifu secunãano. correlativo do Édipo e do complexo .de castraÇão. vem selar a constituição do inconsciente. (46) ·· · · O ponto de vista econômico é um aspecto essencial da teoria. Mas aí também a concepção deve ser generalizada. libertada de um domínio demasiâdo éxclusivo ãanOÇão de força e de quantidade. o esseliC:jaJ,:_ilo ê:õi1ôm1i:o. nao tãri@'l:rqoe '.:;.:, clrCútã: maneirã como circ,ula. Assim a oposição dedõis-fípo~·êlÊ! prp~esso. prTriiãilo ê sécunctâiici: desempenha um gràni:le papel na teoria do conflito. e ari~ de tudo na definição das forças pulsionais 9\!~.?.§_ilcharn em jogo:_pulsões de.!flgrte é pulSõêS de iJ!Ciá. Nao há outra maneira de definir su~ oposição (e. suas ligas e ·compromissos) a maior ou menor ligação ou desliga_IT1.§D.\JJ__ Ql1~_a_s__ caracterizam. Ligação edesligamento que são elas mesmas correlativas do aspecto peíà qiiãl se apresenta o "objeto-fóiib:": puro índice ou_obj!')tojá:~totaL.::totalizante". (47) O projeto ~rico, tal como acabamos de esboçªclo, não podenã.--sob o risco de se estiolar no cêu aas idéias. ser limifudó ao riível dã pura contemplação. do "teorético". o solo dé onde tira sua focça, d.e p:n.ae dr~6~ éôll1radiÇãõ olÍ éonfirníãção. ~fiíPt?:_il~~lllll~o edaprâi:ica qu~_su~g!u a rev§õ_de j ~.'7: Jrés il~nvoi Vlmento~_nos parecem aCJiilessêiidãis tõcantes à situação, à transferência e ao processo: - -A situaçãg_, caracterizamo-la como~ _da "tina", e)(ci,llindo ()_ª9~t:?t~o. Não para fazer da psiêiinálise um processo "desencarnado" llJ~S!_ ao co~y-á~i~. pai!! ver nelã üiií'lügar âe êóriceritrãção (48) do que faz a essênciamesmoda açãõ humana: vivere mõrrer pêio amor do amor e do &li o. (49) ... -
·Pêia
e
mas a
45 46 47 48 49
-
'•
Problemáticas 11: Castração. Simbolizações. Segunda parte: Simbolizações. Bleichmar, S., Aux origines du siJiet psychique. Paris. PUF. 1985. principalmente p. 153-160. Cf. "Problemática do ld", In Problemáticas IV: O inconsciente e o ld.
Um acelerador de particulas, diríamos. Cf. cap. "Traumatismo. transferência. transcendência e outros trans(es)".
121
Vemos a concepção e a prática da transferência dominadas pela seguinte alternativa: trata-se de uma neutralidade cuja finalidaq!!,~ ~i!..~ deixa~pr~ncher por todas as repetições aberrantes do sujeito. com a finalidade. ulteriormente, de desiludir ~é! ilusão? Ou se tratá de um retomo. um lugar de ~n)gffia,_enu:esumo. néste sentido. ' urriãseaUç'ão destinada â permitir retomar prosseguir a elaboração dos enigmas originárioS aõ sújêlto? - ---- Trân5ferênCia em vazio, ou tran5fer~ncia ª_pJ!;!nQ, ~ é a escolha fundamental, mesmo se a5 vicis5it1Jdes da cura podem às vezes fazê-las pãrecer como dois aspectos tão prováveis um quanto o outro. b processá. enfim. é evidentemente o da interpretação e o da construção a ser restituído, entretanto. nesta proposição uíilversaE o ser humano é. pÔr natureza. àiifu-interpretante. Processo finito ou processo infinito? Voltemos um instante à conStatação desesperada de 1897: não se toca jamais o solo da derradeira cena; tendo por a afirmação de 1937: mas batemos na rocha de origem. biológica, dâ castração. Nossa maneira de compreender as coisas é, de tocia evidêndã; .muito . diferente: por um lado, não existe ceni!_d~rradeira, nem mesmo fantasia derradeira. fundamental, uma derradeira chave (individual ou i:rànslndlvidual) qué resolveria o processo da análise. Neste sentido, eSta é mesmo intél]]llnável, assim como as potencialidades criativas do ser humãnõ. Masã.interpretação nem por ls5o é uma invenção ex nihilo. Refere-se. a uni conteúdo. qúe ten1:à. ãrtãncar à sua obsctirldáde, e que nao é outro 5enãÕ próprio inconsciente. Aí está a rocha. ou antes aí está ~ fechadura cuja chave se perdeu. t-'las antes d!! ter sido perdida pelo próprio sujeito. rio proceSso dê rêéalcamento. foi. mais profundamente. perdida pelo outro. o outro aduifu. ó outro da sedução originária. Perdida para sempre para a crlánÇa.
I
e
eco
o
"POST-SCRIPTUM" O texto acima foi discutido, juntamente com outros. durante as jornadas sobre "A Sedução em Psicanálise". organizadas pela Associação para Estudos Freudianos e realizadas dias 5 e 6 de outubro de 1986. Em conseqüência das discussões. apresenta-se, a seguir, um esclarecimento. Meu artigo tendo sido interrogado a fundo, gostaria simplesmente de acrescentar alguns esclarecimentos. mais ainda devido ao fato de que meu texto é certamente denso. Abordarei cada ponto na ordem em que me ocorre. A expressão, a bela expressão "um sentido dele mesmo ignorado" não é exatamente minha. Vem de Freud, oÜ antes. destes tradutõfeS, as vezes irispjracfos, que foram M. Bonaparte e R. Loewenstein. É no "Homem dos ratos", quando este "confessa" a grande apreensão obsessiva. e que Freud "observá no seu rosto a expressão complexa e bizarra. expressão que não poderia traduzir de outra forma senão como sendo o horror de um gozo dele mesmo ignorado" (P.U.F .. p. 207) "Einen Gesichtsausdruck den ich nur ais Grausen vor seiner ihm selbst unbekannten Lust auflosen kann ". 122
Evidentemente. na minha e~gressiig,g~j:j.Q_Q é ignorado por aquele que propõe o significante. Mas este retorno que faço ao Homem dos ratos conforta meu ponto devista em dois aspectos. Por um lado. Freud não recusava fazer-se atento aos significantes enigmáticos não verbais (aqui: a expressão de um rosto). Por outro lado. a anáÍise (auflõsen) ou. cómo dizem os tradutores. á ... tradução, se faz em linguagem verbal. Penso ainda na passagem bem conhecida de "a negação" na qual Freud traduz em palavras a "linguagem das moções pulsionais orãis". Isto nos leva a um ponto importante: surpreende-me a surpresa de Conrad Stein sobre a ênfase que porta sobre "Os significantes não verbais e até verbais e até mesmo comportamentais". Com efeito, sempre- desde Bonneval 1961 mé-mãntive na posição clássica freudiana segundo a qual_a linglJ_agem vert:Jal._~_clo nível do processo secundário. ou antes, que é aquilo que se acrescenta ao processo primário para secundarizá-lo. Os gestos. o seio, o sorriso dé umã mae saõ signlficaritês não verbais que o sujeito tenta traduzir (sobrando um resto) em outras linguagens. inclusive na linguagem verbal. Esta reina na cura. mas não é porque Freud traduz a níiinii:a do homem dos ratos em palavras que esta estivesse de imediato impregnada de paiavràs. Quanto a saber se é preciso ter a linguagem (verbal) para sorrir. e ·seos animais não sorriem. eu não poderia decidir: mas penso, contrariamente a Stein. que as mãos de uma mãe podem veicular des!lios sexuais inconscientes sem ~:::S:--jmplicar de forma alguma a linguagem. Como poderia ser diferente, se o mais profundo /do !Cs é feito de representações-coisas (e mesmo as representações de palavra. se existem aí. estão no estado de representaÇões-coisas ou, êomo digo. de significantes __ des-significados). Chego à sedução originária. sobre a qual talvez tenha me feito entender mal. A "generalização" que opero. das seduções - infantil e precoce - freudianas à originária não é uma passagem a um primeiro tempo, numa regressão temporal e na dimensão de um "apres-coup"*: é. uma passagem ao ess~:ncial à "efetividade" em relação às seduções que apenas descrevem o ocorrid() (infaírtil) sitüãêionais (precoce). A sedução originária quer dizer. que. é_apresença de um maior sentido, mas de um "maior sentido" escondido, ig_norªdo, cjiie é o próprio mecanismo de toda sedução. quer esta seja precoce. infantil. adulta._ etc. O estupro de uma criança pór seu pai. as carícias eróticas de uma inae só são sedutoras porque veiculam o enigma do des!lio inconsciente do adulto. O "apres-coup ": agradeço mUito ã [e Guen por ter levantado a questão, pois corre-se o risco de incluir aí qualquer coisa. A sedução originária não poderia ser uma primeira ocorrência. mas, como a própria eS?ênçi
ou
• Expressão idiomatica utilizada correntemente em francês na literatura, e que significa "num segundo tempo", "a posteriori". "depois do ocorrido". Ver "Posteridade" no Vocabulário da psicanálise. (N. do T.)
123
recuso este recurso ao termo mito para qualificar fenômenos significantes que se produzem (efetivam~nte!) na infância. Trarei aqui a referência a Jung tal como aparece no Menino dos Lobos; não para brandir o espectro da heresia. mas para esclarecer as coisas: Freud mantém firmemente (sem a ver claramente) a distinção de seu nachtraglich do Zurüçkphantasieren de Jung. Mas este não tem. precisamente. uma concepção inteiramente centrada no presente. todo passado sendo fantasiado re~roativamente a partir daí? E que diferença. senão a maior dignidade dos termos. extste entr~ _a "fantasia retroa~iva" e o mito retroativo? Temo que incluir toda a teona analittca no processo analitico acabe numa espécie de subjetivismo psicanalítico, ou ~té mesmo solip~ismo _a 9oi~quele que encontro. para tomar dois exemplos notonos. tanto ~.l"_flllarl_ÇQmo em J.C. Laviê_(1 ). Para min.'. o "apres-coup ", essencial na nossa concepção da temporalidade. só se concebe como tensão bipolar entre os "acontecimentos". uma tensão para a 9ual o modelo tradutivo parece-me ser o mais adequado. Mas o que tento formular. e que par?_ que haja traduções sucessivas (e fracassos de tradução) é preciso que haja mensagem ou significante de imediato (é o .."'!.z) *. Neste sentido não penso de forma alguma que a regressão no tempo seja infinita. como parece pensar Conrad. e como Freud acreditou constatar. desesperando-se por isso. A série ascendente de c~n.a: é (talvez) indefinida. mas comporta seu lil]ljte. seu~ limites: os significantes ongmanos propostos pelo adulto. - Quer isto dizer que concebo a cura comq nãooriginária? Nãol Parece-me. ao cdntrário. que a psicanálise reinstala a siWaç~o originária de_ sedução. Mais ainda, pode-se dtzer que somente ela a instaura na suap_ureza. na medida em que se guard~ de palavras. de gestos e da atitude psíquica que poderiam produzir uma seduçao de fato. Neste sentido. pode-se dizer que situação analítica éa mais "originária .. de todas. Aqui concordo com Conrad Stein ... felizmente nos reencontramos sobre a prática!
o
. Outra precisão: renego abertamente a concepção freudiana de fantasmas originános. O q~e _quer que Conrad pareça pensar. não se trata de uma depuração própria do meu ultimo texto. na sua vontade de ir diretamente ao essencial. mas de uma posição deliberada e antiga. Não é porque Pontalis e eu mesmo exumamos esta dimensão do pensamento freudiano que eu esteja de acordo com o que ela veicula. I. Esclarecimento de Conrad Stein sobre esta questão: "Em vista dos importantes esclarecimentos trazidos por Jean Laplanche ao seu post-scriptum. e que me parecem de natureza a relançar a discussão. lamento ser obrigado a me limitar a apontar aqUI. por mmha vez. um mal-entendido. Nunca cemccLao. termo.mito. para qualificar. segundo a fórmula de Laplanche. os fenômenos significantes que se produzem (efetivamente!) na infância tanto é verdade que.longe de pôr em dúvida ~ua efetividade. nunca deixei de dar a maior importância ao s~u ressurgimento ~o cu~o do proces~? ~~a.IJtJço_. Minha _contribuição ao número dé Etudes freudiennes consagrado à seduçao em ps1canalise e. alias. mequ1voca sobre este ponto. ·:o_senhor gritou. meu irmão gritBva" tmha dito a paCiente da qual se tratava. para deduzir em seguida que seu irmão tinha sido seu sedutor e. na sua conjugaçao. a lembrança sessão precedente e a lembrança da infância reencontrada estão relacionadas uma e outra a acontecimentos perfeitamente reais ... • Ver cap. 'Traumatismo. tradução. transferência e outros trans (es)". (N. do T.) 124
/
Sou totalmente oposto a todo recurso ao mito no freudismo: fantasmas originários filogeneticamente transmitidos. mito da horda. do assassinato do pai. etc. (não falo d~análise dos mitos como na "tomada de posse do fogo". Mas Freud justamente não analisa seu "mito" da horda). Na minha opinião, é por ter deixado de perceber a situáção originária de sedução, verdadeiro irredutível além do Ql!ªlnão é necessário ' (nem possível) regredir!J.Cl.Jempo.. que Freud se envolve nesta corrida de regréssão pré~históricã:-ilriiãCOrrida que seus sucessores embelezaram e enobreceram falando de dimensão mítica. Mas não cria um mito quem querl Na minha opinião. somente os povos. e outros tipos de coletividades. são capazes disto. Todo signJficante é _enigmático? Certamente sim. E chego a temer que esta constatação pouco fácil não seja a origem da maneira pela qual o lacanismo se livra do inconsciente individual. Mas o que chamo de enigma vai muito além da potencialidade polissêmica. até mesmo poética. de toda palavra: é o fato de que OS significanteSéJdUitos (parentais), no CUrSO dOS recalcameotos-trádUÇÕÉ:S SUCeSSiVOS, abandonaram seus sígnificadg~ b_em precisos mas "perdidos, para sempre". , - Sei que a partir daqui tudo resta a dizer e fazer. Em partiCi.Ílar. a relação geral de sedução deve ser especificada. seus aspectos traumáticos e/ou estruturantes precisádos. etc. Penso. principalmente. esta questão tendo me sido um diã colocada. que a distinção entre "duplo vínculo" deve ser revisada: o,enigma não é o duplo vínculo ...J:T:l!ls_é__ provável que o duplo vínculo seja uma forma particular - particularmente ,perversa e provavelmente nao metabolizável - de enigma. A chave da relação de sedução originária deve permitir estudar nas suas pàfficUJarltlatles os diferentes tipos de sedução.
om
a
125
BIBLIOTECA ARTES MÉDICAS TfTULOS EM PRODUÇÃO • Aimard & Morgan: Abonlngem Mctodo/ôgic:r dos Problemas de Linguagem
• Ajuriaguerra, J.: A
E.~crita
lnf.1ntil- Evolução c Dificuldade
• Andolfi, Maurizin: Tempnr.1/idadc c: Mito em Psicoterapia Familiar • Au~tin. D.L.: OrwnJo Dizer ê F:m:r -I'ilf
• Bleidnuar. Htrgo: Ang!Í$1Úr c Fô!lllasrmr • Cabral, Lama & Tcjcra: Educar Vh·cmlo: O t11rpn l' o (irupn 11:1 ' Calkins. Lucy: A Arte tiL' E11.~inar ;r E\crt'\'t't • • • • ' •
E.~cola
Calkins. Lucv: Li~·tics de uma Cri:lll\'11 Caslorina c l'ols.: l'simlo!!ill Cicm!tica Chassegut·t Smirgel- Sc.w.1/id:dc Feminin:; Chasse!!UC! Smirgcl- O Ego ltlc:rl Cherrv: A. l'wcura do Símbolo Cole ..Jcmmc: r\J:uwal de Psicof.1rmno1/n,~?,i:r
• Cnr5nn: Cirunú:r Ciinecolthúc;r dt• Greenlli/1 • l"mUy. Bry:m!: o o~·.Çcll\'1;/vimcntn l't•rct:ptua/ c Moror em Lacte/1/CS c Cri.1nças • CurEis~. Sandra: i\ Alegria tio Atlnimcnto 1111 Prt'·Esco/a • C1ermak. Mareei: P.1i.'i:ôcs do Ohjt•to (Üiudol'~!L·:m:r/ílit"tr da.ç 1'.~icmc.ç) • Dchray. Rosinc: Ik/Jt1.ç t' M:ic.ç t'/Jl Rcwrlt:t • De jtltrr. C.: O Corp11 entre • DuHn. Fr
;1
Bi1r/ogia
L'
a
/ 1 .~ie:rlliilisc
• Onlto, Fr:m~·oisc: A Dificufthrdc i/c Viver ' Dnr. JuCI: lnrroduç
• • • • • • • • • • •
• •
' • • ~
• • •
'
\...
• • • • • ' •
Enderlc. Carmen: P.~h·t1lugi.1 tia ;\do/esdnd:1- Unw A!mrdagcm Pluridimensional F:rin & Dcjour~: Corp<1 Enfermo L' Corpo Enítko Foge!, L[lnt: & Lcibctt: l'.'iico/ngia M:1.~eu/in:c - Nm·a.~ 1't·r.~pcctiv.1~ P.~icanalílicol.'i Fmmhcrg &. Dri">coll- O Sm·t·.~-~n t'lll Sa/11 ck Aula (it•arhenrl. Bill: Di.~uil/lim dt• 1\ptt'rulil"nJ!t'lll ltamaydc: /Jeao/.1· -·- llmalu!rnc/upiH CulliJJ/ci:J :w Métocfo tio Grande EdUL':rclnr Hanlcman, Mildrcd: Os Cnminllm do Cnn/tct•irncnlo mc fuf:inci.1 -O.~ Trab:c/hm de NATHAN ISAACS na Educar:io. f'sico/ogia t' Pilrget Hughcs: Cri:HJÇl!i e Nlimt•rus Jcru">alinsky, A : Defidéncia Mcnr.1/ Julicn. l'hillipc: O Retorno de I.ac:rn :1 Fretul Kccney & Ro~s: .4. Mt•ntc em 1i.·mriir - Con.~lruinún Tcwpí:1.~ Sistémic;cs da Famr1ía Klcrman: Psictlft•rapia d:c D~·prcs~:io Kohut. Hcinz: l'.~icnftleia do Scff Koppitz. Elilaheth: A·~·a/i:~r;io Jl.~im/6gic;r d11 Dt>.~t·nlw c/:c Figur:c Hmmma por E.çcn· /:Jrt'S Lahn, Edirh e Col~.: Computaç;in Clínica c F.•p;c~·o {riafil'tl - O Computador t' m Tr;mstomo.'i de Lingu.1gcm t' Aprendiz.1gem Lcboukh: Fal"c .1u Esporte Luvcl!, Kurt: O Dcscm·nh·imt'JJicJ de Cont·ciws Matem:iticm e Cicnrificn.~ mJ Lrianç;c Luhorsky, L.: Prindpios úc: I'.~icotempia Jl.çicamrfiric:J Luria & Tsctkova; A Hc.~olu~·
de K:rrcn MadJtJn•r Quirnga. Ana: P.>icnloei:J Soci:cl- EnfotJIIt'.~ c f'cr.•pt•cri,·as Sehaffer. Hoy: A Atitude An:r/ilica Souza, Alduisin M.: Re/;Jfo lk um:~ Amili.~t· 1"crmimul;c Spmlek. 13ernard: Prê-E~m/:1 Hnic Tiikhii. Vcikkw O Hdndon:uncnrn · Jiw-l';ccicme Talli": Dificuldades na Apn·ndizHgcm Eçcui.1T Vct"t·hiato. Mauro: Jl5il'OIII