Segunda parte
Cura
Uma história de sorte e infortúnio
Conheci José Garcia sm dezembro de 1975, quando ele participou de um grupo que esperava para beber yagé com Santiago Mutumbajoy, um reputado xamã índio que vivia nos contrafortes do Putumayo, onde os sopés orientais dos Andes se encontram com a floresta pluvial da bacia do alto Amazonas, na Colômbia. Ele foi o último a juntarse a nosso grupo de pobres forasteiros brancos e de índios da região que observavam o crepúsculo das montanhas, e me foi assinalado como amigo íntimo e discípulo do xamã. O que chamou minha atenção foi o fato de que José Garcia era um branco que se dispusera a estudar com um curandeiro índio. Lembreime de que havia alguns meses, quando eu me encontrava na companhia de outro xamã, dois brancos se aproximaram da casa certa noite e um deles se pôs a berrar: “Graças a Deuseu sei\ Mateme agora, com tudo aquilo que você sabe, seu monte de merda, filho de uma puta! Feiticeiro de merda, filho da puta! Eles não podem fazer nada! Maldito! Mas eu sei... Estou parado, aqui... Eles não sabem nada, filhos da puta! Não conseguem fazer nada contra mim!". Quando atravessei pela primeira vez a pequena cidade, próximcJ ao lugar onde Santiago morava, um técnico empregado pelo serviço especial de saúde do governo dissera em altos “Nós do INPES oscuracas (xamãs). Somos a vanguarda do brados: progresso. Nossa tarefa écombatemos nos livrarmos de toda essa charlatanice". Os proprietários brancos dos armazéns em volta da praça garantiramme que os xamãs eram inúteis ou perigosos. Somente mais tarde fiquei sabendo que aqueles mesmos proprietários procuravam os xamãs para dar um jeito em seu pequeno comércio. Devo assinalar que o yagé cresce unicamente na floresta pluvial das terras baixas e dos sopés das montanhas e que os índios que conheço, habitantes dos contrafortes do Putumayo, dizem de vez em quando que se trata de uma dádiva
especial de Deus para os índios, e unicamente para eles.“Yagé é nossa escola”, “yagé é nosso estudo", poderão dizer, e o yagé é concebido como algo ligado à
srcem do conhecimento e de sua sociedade. Foi o yagé quem ensinou aos índios o bem e o mal, as propriedades dos animais, os remédios e as plantas comestíveis. Alguns índios Cofán, ao sul do rio Putumayo, certa vez me contaram uma história sobre a srcem do yagé que ilustra as tensões bem como as mediações que se dão entre as tradições indígenas e cristãs: Quando Deus criou o mundo ele arrancou com a mão esquerda um fio de cabelo e o plantou no chão, mas unicamente para os índios. Abençoouo com sua mão esquerda. Os índios descobriram suas propriedades e desenvolveram os ritos do yagé e de todo o complexo xamâ nico. Ao ver isto, Deus demonstrou incredulidade. Disse que eles estavam mentindo. Pediu e Lhe foi dado um pouco de infusão de yagé. Ele tremeu, vomitou, defecou e gritou bastante, fascinado com as muitas coisas maravilhosas que viu. Quando o dia amanheceu ele declarou: “É verdade o que esses índios dizem. A pessoa que toma isto sofre, mas se beneficia. É assim que a gente aprende: através doEmbora sofrimento”. possam beber o yagé com um xamã índio a fim de se livrarem do mal, seria excepcionalmennte raro que os brancos considerassem com seriedade assumir todos os perigos que se acumulam sobre a pessoa encarregada da responsabilidade de seu preparo e ritual. José Garcia é um desses poucos brancos. A noite caiu e entramos na casa de dois quartos, empoleirada na colina. A luz de uma vela tremeluzia, iluminando as traves do teto e as redes que balouçavam. Encardidas estampas católicas contemplavam a penumbra oscilante, e São Miguel, o santo padroeiro da pequena cidade vizinha e que Santiago Mutumba joy afirmaa livrarse ser o santo dos índios, os preveniu da chegada dos espanhóis, começou de Satanás, queque se afundava no fogo do inferno. Uma conversa em voz baixa sobre os momentos difíceis de cada um deu lugar à expectativa e ao temor, até certo ponto dissipados pelo curandeiro, que fazia piadas e brincava. O incenso de copal invadiu a sala e os sons noturnos do rio e do vento se uniram aos ruídos da floresta, preenchendo nosso silêncio. Um rapaz ajudou o curandeiro a encher uma panela de yagé. O curandeiro se agachou e começou a cantar ao ritmo do compasso de seu leque de cura, waira sacha — espírito da floresta, escova do vento. Ele estava curando o yagé do mal que este traz da floresta. Entoava sons yagé, mas não palavras, pedindolhe que fosse forte e trouxesse boa pinta, isto é, pintura, visões. Decorridos uns dez minutos ele bebeu, cuspiu, pigarreou e então serviu a todos nós, cantando diante do copo cheio, antes que cada pessoa bebesse. Sentamonos e aguardamos. Daí a meia hora alguém foi vomitar no escuro, tropeçando, e o xamã recomeçou a cantar, mal parando até o dia amanhecer. Solicitou boas visões; sua voz e o ritmo que ele imprimia ao leque ressoavam em nossos corpos trêmulos. Eis alguns trechos de minhas anotações, feitas naquela noite:
Então surge o feo (feio). Meu corpo se distorce e estou muito assustado. Minhas pernas se esticam e se desprendem, meu corpo não mais me pertence e então volta a me pertencer. Sou um polvo, condensome em uma forma bem pequena. A luz da vela cria
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r formas de um mundo novo, formas animais e ameaçadoras. A metade inferior de meu corpo desaparece. Aprendo a usar a dissociação como uma vantagem, como um modo de escapar ao horror. Não sou a pessoa que está passando por aquilo tudo, mas o rostoprcsença, sem corpo, calmo, que olha com atenção e observa aquele outro eu desprovido de importância. Espio meu outro eu e sintome seguro. Mas então este segundo eu, este observador objetivo e desligado, também sucumbe e tenho de dissociarme em um terceiro e, em seguida, em um quarto, pois a relação meus eus rompe,que criando uma espelhos confusos de eus entre que espiam e deseoutros sentem. O série ódio quase a miminfinita mesmode ea paranóia são estimulados por animais horríveis — porcos que grunhem estranhamente, cobras coleantes que deslizam uma em cima da outra, roedores com asas que se assemelham a barbatanas. Estou tá fora, tento vomitar, as estrelas e o vento pairam sobre mim, apoiome na cerca do curral. Está repleto de animais, que se mexem. A história de minha vida se desenrola diante de mim, em uma torrente de medo e de autocensura. Volto para dentro e assim que entro vejo o xamã, Santiago; ele transformouse em um tigre! Está sentado na rede e José Garcia ajoelhase diante dele. A sala se transformou e sinto o vômito que chega. Vou lá para fora, vomito e defeco. Sinto as odiosas situações do passado e o medo sendo expelidos. Juntome ao grupo, calmo, e agora flutuo em cores e visões maravilhosas. Dou me conta Santiago seu colar dentes de tigre. cabeçadeaninhase suporte de que dentes de tigre,pôs criando uma de nova imagem: a parteSua superior seu corponaquele é como a de um tigre. Ele acaricia suavemente José Garcia e perguntalhe se quer maisyagé. Estendem um pano e se agacham no chão. Alvoroçados, excitados, pedem uma faca para abrir uma concha de madrepérola. Mais tarde José Garcia faz perguntas relativas a seu gado; quer vêlo curado naquela mesma noite e quer que Santiago vá até sua fazenda e veja o que está acontecendo. Mais tarde percebo que ele está se referindo à feitiçaria. Pela manhã Santiago contoume que mal conseguiu funcionar durante a noite, pois esbarrava no gado o tempo todo; era um bonito gado. Oh! Um belo gado de todas as cores, que mugia, o lambia e era muito gotdo. O Banco Mundial finandou um projeto de criação de gado, naquelas regiões da floresta pluvial desde o inicio da década de 70. muita O coisa genro e que de está Santiago passand me o por conta umque período José de Garcia má sorte. deseja ser um xamã, que ele sabe
Muito mais tarde ficou claro para mim que José Garcia estava aprendendo a ser um curandeiro como parte do fato de ele estar sendo curado de uma aflição profundamente perturbadora. Ao fazer isso, ele atravessava todo um ciclo de aflição, salvação e transformação, que parece tão eterno quanto a humanidade. No entanto o poder deste ciclo não se origina da eternidade, mas do ativo engajamento com a história, do qual a aflição depende para sua cura. José Garcia não deve ativa ser historicizado, poispassado, o passado do qual aflição cura dependem é uma construção do srcinal parasua cada novoe sua {»esente, e isto também se aplica ao xamanismo Os contrafortes dos Andes, na região do Putumayo, foram percorridos pela primeira vez por europeus, em 1541, á procura da cidade de El Dorado — O Rei Dourado. Os índios que habitavam a selva, na região do rio Mocoa (descritos pelos contemporâneos como canibais que lutaram ferozmente contra os espanhóis, colocandoos em fuga), asseguraram a Hemán Pérez de Quesada e seus 260 companheiros de conquista que a Terra Dourada situavase ali perto, nas
montanhas que se erguiam na direção oeste, em uma terra fabulosa chamada Achibichi, onde os espanhóis encontraram o vale do Sibundoy, mas não o ouro e, 145
mais adiante, anova vila espanhola de Pasto. Após essa predadora expedição surgiram por lá alguns traficantes de escravos espanhóis e missionários francis canos. Era um punhado de homens amargurados, que muito padeceram com o clima e com a hostilidade dos índios dos contrafortes dos Andes, que, segundo se dizia, rebelaramse instigados por seus xamãs. No entanto o cristianismo assumiu importância na cultura da conquista. A distinção entre índios cristãos e pagãos se tomou ideologicamente decisiva devido á importância que ela assumiu, ao facilitar a legalidade da escravização e o emprego da força militar. Em seu manual de instrução para os missionários, publicado em 1668, o superior da missão franciscana estabelecida em Quito, bispo Pena Montenegro, forneceu um exemplo de racionalização cristã, tendo em vista o emprego da força contra os índios do Putumayo. A conquista por meio da força armada, escreveu ele, era justificada “para reduzir aqueles que, embora não sendo vassalos de alguém, injuriaram aqueles o eram, a exemplo dos índios pagãos que, sendo vizinhosgravemente naquelas regiões deque índios católicos, invadiam suas terras, suas vidas e fazendas, aprisionando as mulheres e as crianças, como ocorre comumente e como ocorreu este ano de 1663, nos contrafortes da montanha, em Mocoa".1 Outros relatos de franciscanos de claravam qu e índios cristianizados do vale do Sibundoy (provavelmente os “índios católicos" a que se refere o bispo) estavam sendo usados para escravizar pagãos (tais como os de Mocoa) nas terras baixas, a fim de trabalharem na mineração do ouro. Com o cristianismo, ao que me parece, os missionários também introduziram a magia, como ela é denominada atualmente no Putumayo, em referência ao poder que deriva de um pacto com o demônio. Os missionários acreditavam firmemente na eficácia da feitiçaria e supunham que os índios eram especialmente dados a praticála, devido ao fato de terem sido seduzidos pelo demônio. O bispo Pena Montenegro afirmava que sendo tão brutos e ignorantes, os índios haviam sido conquistados pelo diabo, a ponto que ele se tomou unha e carne com os nativos. As características do demônio se tomaram um traço hereditário. Através de seus ritos e superstições, os índios mantinham a memória da idolatria e da feitiçaria. Quando ficavam doentes e com procuravam os xamãs, reforçavam a ambas. Além do mais o bispo se preocupava a influência herética qué os índios exerciam sobre os brancos, pois estes também procuravam os curandeiros índios.2 O bispo instruiu seus frades a tomar cuidado, ao tirarem os “instrumentos” dos feiticeiros índios e ao proibirem suas danças e seus cânticos, “pois neles os índios guardam a recordação da idolatria e da feitiçaria”. Tendo em vista essa finalidade, era necessário destruir “seus membros, cabeças de veado e penas, pois estes são os instrumentos do mal e trazem à baila a recordação do paganismo”.3 No entanto a memória de que se trata aqui não seria a dos espanhóis e não a
dos índios? A ironia estava no fato de que ao se empenhar em apagar essas “recordações", a Igreja, na verdade, as criava e as fortalecia como uma nova força 146
social e, em conseqüência, garantia a transmissão do mito para a realidade e a transmissão da memória para o futuro. Expulsos das missões em 1767, os franciscanos deixaram o Putumayo, que se tomou um lugar ainda mais isolado, virtualmente livre de contatos com brancos durante um século, com exceção de alguns comerciantes á procura de laca de bamiz (verniz) e de plantas medicinais para as pequenas cidades das serras. Seguindose ao boom da casca de quinino, nas décadas de 1860 e 1870, o da borracha irrompeu nas terras baixas do Putumayo, bem no fim do século XIX, acarretando durante cerca de vinte anos aquilo que Walter Hardenburg descreveu como “O Paraíso do Demônio”, isto é, o espaço onde ocorreu a escravização e a morte, a uns 3S0 quilômetros ao sudoeste do lugar onde José Garcia se estabeleceu, meio século mais tarde. Foi concedido a capuchinhos da Espanha o controle quaseimportante total da Amazônia colombiana 1900, eles estabeleceram sua primeira mais base nas toras altas doemvale do eSibundoy. Suas escolas e clínicase foram bemsucedidas, em contraposição ao fracasso dos franciscanos, e sua tentativa, um tanto falha, de colonizar a região através de camponeses brancos pobres foi grandemente impulsionada pela Texaco Oil Company, que construiu estradas no início da década de 50, pelas quais camponeses pobres, negros e brancos afluíram em grande número. Um desses brancos pobres era JoséGarcia. Nascido em 1925 em Narino, localidade situada no altiplano andino, José Garcia desceu para os contrafortes da bacia do Putumayo em 1950, em companhia de sua mãe e de seu irmão, após a morte do pai. Haviam ouvido falar da beleza de Santa Marta, esperavam encontrar lá a riqueza e passaram anos árduos preparando a terra para a criação do gado. Contoume que tomou yagé pela primeira vez com um curador índio da região, chamado Andrés Hinchoa. Sua irmã ficara gravemente doente, após romper com o homem de quem estava noiva. Ela e José Garcia temiam que tivesse sido enfeitiçada, em um ato de vingança e, finalmente, procuraram Andrés Hinchoa para ver o qué ele poderia fazer. José Garcia relembra: Andrés Hinchoa era meu compadre.Foi quem me ensinou a tomaryagé. Me deu a primeira pinta e passei por coisas que jamais tinha visto. Ele me disse: “Bom. Vou te dar um copo de yagé para que você tenha boa sorte e assim sempre se lembrará de mim. Mas você terá de ser corajoso, compadre\". Então ele me deu o primeiro copo e dai chegou a chuma (embriaguez e visões). Mas Ave Maria!... Eu estava morrendo. Vi um outro mnndo. Estava em uma outra vida. Vime num atalho estreito, comprido, que não terminava mais. E me sentia angustiado, sofrendo. Tinha ido embora por toda a eternidade. Estava naquele atalho, caminhava sem parar; e dal cheguei a uma planície imensa, bela como a savana. Os campos eram verdes. Lá estava um quadro de Nossa Senhora do Carmo, e eu disse para mim mesmo: “Agora vou até Nossa Senhora do Carmo“. Então vi uma ponte bem pequena, com um buraco no meio; não havia nada além daquela pontezinha, fina como um dedo, e
pensei com meus botões: “Tenho medo de atravessar. Minha Virgem Santa, não me deixe cair! Não deixe que nada de mal me aconteça!“. Fiz o sinaldacruz e comecei a atravessar a ponte, mas comecei a cair. De repente fiquei assustado. Naquele momento invoquei a
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Santíssima Virgem do Carmo, pedindo que me ajudasse a passar. Daí cheguei até perto dela e disse: “Vim para que todos os meus pecados sejam perdoados!". Forque eu estava morto, não é mesmo? E então ela disse: “Não vou perdoar nada!'. Então me pus a chorar com amargura, soluçava, procurava aquela salvação que a Virgem Santa me negava. Chorava sem parar e implorava que ela me salvasse. Daí ela me disse que eu estava perdoado, que eu estava salvo! Fiquei feliz e volteipata este mundo. Estava sentado no mesmo lugar; com o rosto banhado de lígrimas.
Em seguida, pelo que deduzi — pois José Garcia se mostrou um tanto reticente em seu relato —, ele se envolveu em um caso amoroso e conflitante. O fim do relacionamento se deu em um clima desagradável, até mesmo agressivo. Com efeito, as cicatrizes ou aquilo que ele considera como tal, estão presentes até o dia de hoje. A jovem e sua mãe, proprietárias da fazenda vizinha, nunca estão longe de seu pensamento, quando as coisas não vão bem. Foi por tomar yagé, segundo me contou Santiago Mutumbajoy, que José Garcia pôde escolher entre três mulheres, e a eleita foi Rosário, com quem casou em 1962. Nascida em 1935, ela viera da região de Narino mais ou menos na mesma época que José Garcia e morava em uma fazenda das redondezas. Tinha 16 anos quando o homem a quem amava e com quem desejava se casar moiTeu em um acidente com um caminhão. Ficou desolada, chorou e sonhou com ele durante meses. Após oito anos de casamento saíram da floresta e foram morar na cidade zinha de Mocoa, no sopé da montanha. Alugaram quartos da tia da jovem que fora noiva de José Garcia. Essa tiapara se tomou a madrinha da primeira filha adoprimeira casal, mas tomou a vida impossível eles, segundo me contou José Garcia, pois dizia que eles sentiam excessivo orgulho da beleza da criança e que ela morreria em breve. Assim o orgulho deles seria castigado. Mudaramse para o outro lado da estrada e passaram por uma fase difícil de doença e pobreza. À noite estranhos sons os assustavam, e Rosário foi assombrada por um espírito que, muitas vezes, sentavase acima de seu ombro esquerdo. Ele a seguia por toda a casa, sobretudo quando José Garcia não se encontrava presente, de acordo com o que ela me contou. Não ficou claro de quem era aquele espírito (em 1977 ela contoume que era um rapaz com aparência de gringo, alto, bonito e que a desejava profundamente). Seu lado direito tomouse pesado e sem reflexos. Em seguida ficou parcialmente paralisado. Em um ato de desespero José Garcia procurou um curandeiro poderoso. Fui tomar yagé em um lugar, em seguida em outro e depois em mais outro e nada! Não vi nada! Fui até o xamã Flavio Pena. Ele sabia! Ele sabia como curar! Mas nem mesmo ele conseguiu fazer alguma coisa! “Não!**, disse ele, "isto é realmente difícil”. Ele cuidou bem de mim. Preparou um bomyagé, curoume como deve ser feito, mas nada! Não tive visões. O yagé era como uma garapa. Nada! Nada!
maleficio com magia"',disse ele. procurar outro "Isto é um pode “Não éFomos qualquer um que podexamã ucrar em isso.Umbría. Omaleficio a gente curar; mas amagia, não." Quando Andrés Hinchoa morreu, todas as minhas visões acabaram. Algo terrível tinha acontecido comigo. Procurei seis xamãs, mas com nenhum deles obtive sucesso.
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Então um amigo perguntou se eu já tinha ouvido falar de Santiago Mutumbajoy. “Vá yagé." lá", disseme ele. “É uma boa pessoa e alguém que sabe, de verdade, como tomar Assim, cato dia, visiteio e leveilhe alguns presentes. Ele se mostrou muito atencioso e, após conversar um pouco, disseme: "Don José, de acordo com o que me disse, quertomai yagé a fim de ver; mas não posso prometer nada! Se Deus e a Virgem me ajudarem, então, sim, poderei ajudálo. Venha, mas somente sob essa condição". O dia marcado chegou c tomamosyagé. Sim! Era aquilo que eu queria! Sim! Surgiu uma clara visão de minha casa e eu estava vendo tudo, exatamente como na época em que Andrés Hinchoa me davayagé. Bebemos yagé a noite inteira. Sets copos! Finalmente ele disse: "Gosto, gosto de fato deste José García. Ele foi feito para tomaryagé. É uma boa pessoa. Você vai ficar rico". Eu estava em um estado de estupor, deitado no chão, mas ouvia o que ele dizia. Não perguntei a ele como, nem por quê, mas fiquei cheio de confiança em suas palavras. No dia seguinte, porém, as dúvidas assaltaram minha mente. Faltavame fé!
À luz do dia Santiago lhe disse que uma outra pessoa teria de curálo. Tratavase de um maleficio terrivelmente difícil, feito com magia, e ele não queria ficar com o dinheiro de José García em troco de nada. Mais tarde a esposa de José García, Rosario, explicoume: “Existem índios que fazem feitiçaria. Don Santiago não faz. Essa feitiçaria que se faz entre os índios... bem, os índios não conseguem curar, por causa da magia, somente a pessoa que trabalha com a magia... Os índios não conhecem a magia. Não conseguem curála. As pessoas que conhecem são os compactados, aqueles que estudaram o livro da magia e que fizeramum pacto com Satanás. São eles que conhecem a magiaV. “Tudo aquilo que os índios conhecem", prosseguiu, “é oyagé e as plantas com as quais eles curam e praticam sua própria feitiçaria. As feiticeiras colocaram capachos — que é como elas chamam isso. É muito especial. Uma pessoa branca faz cruzes com terra do cemitério, tirada de um túmulo. O que mais pode existir?”. José García continuou a procurar um curandeiro suficientemente poderoso para combater a magia. Consultou um velho conhecido, Luis Alegria, um médium espírita mulato que curava com os espíritos dos santos e dos mortos e que, anteriormente, lhe havia dado conselhos relativos a seu irmão doente, Antonio, hoje um médium espírita de sucesso, segundo me contaram, que mora no vale do Sibundoy. Antonio começou sua carreira como aprendiz de um xamã índio, e José García me contou a história de seu irmão: Antonio era um yagecero, sabia como servir o yagé. Tinha muitos conhecimentos danado sobre o yagé, mas foi enganado pelo amigo que o estava ensinando a curar. Foi (enfeitiçado) por seu mestre, um velho xamã índio que vivia em Sibundoy. Bem, lá estava ele, e tudo o que conseguia dizer era que oyagé era terrível. Ele estava em um estado
yagé medonho, lutavatarde o tempo todo, dizia o era tremendamente perigoso. Era só o que ele dizia. Mais iniciouse comoque médium espirita, com um homem de Sibundoy chamado Don Pedro. Este, porém, viu que ele estava fazendo progressos tremendos com o espiritismo e também enfeitiçou Antonio. Ele ficava virando de um lado para outro na
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cama, à noite, sem conseguir dormit, lutando contra Satanis, contra os espíritos. Eles o emboscavam na floresta com suas armadilhas. Mal falei sobre isto com Luis Alegria e ele me disse: ’‘Ouça! magia A é muito boa. Por exemplo, a magia encerra um segredo que diz respeito à flor do alhecho. Ouça! Com essa flor você consegue curar o que quer que seja! Qualquer coisa! Pode curar qualquer pessoa, atrair a boa sorte e tudo o mais. Sim! É uma maravilha'*. Foi o que ele disse. ’Compre a magia", ele, "e na página procuremagia o segredo. isto podemos fazer o segredo, de dissemme modo a enfeitiçar o feiticeiro comtala mesma que eleCom usou!”.
Luis Alegria começou seu trabalho, visando a cura de José Garcia, mas pediu um alto preço. Desconfiado, José Garcia voltou a procurar Santiago Mu tumbajoy para tomaryagé e adivinhar se Luis Alegria o estaria ou não trapaceando. Teve uma visão que lhe mostrou que era exatamente o que estava acontecendo e, ao voltar para casa, enfrentou Luis Alegria. “Você está nos enganando; ninguém nunca mais vai acreditar em você.” compadre", ele disse. “Vá lá em casa que é uma história mal eu te “Isto curarei de verdade." Josécontada, Garcia disselhe que estava esperando uma mulher branca que adivinhava por meio de um baralho. Seu nome era Lydia. “Muito bem", disse ele, “traga ela também Ela examina para ver o que está acontecendo e eu me encarrego da cura!”. Foi assim que as coisas se passaram. Lydia examinou primeiramente Luis Alegria e, em seguida, José Garcia. “Ai!”, exclamou, “Ave Maria, você foi mesmo atingido. É de fato um bobo! Já que quer se afogar, por que não pula no rio? Amanhã irei até sua casa e providenciarei uma cura". “Mas Luis Alegria ouvia e implorou que ficássemos e comêssemos com ele. Recusei, mas Lydia comeu e ficou doente. Estava querendo prejudicar a ela também.”
Lydia organizou a cura deles. Levou a família para os Andes, até a cidade de Pasto. Primeiro foram ao hospital, para um exame detalhado e, em seguida, à casa de um médium espírita. A casa, porém, estava fechada e procuraram outra, o próspero centro de “irmã" Carmela, uma mulher branca que adivinhava e curava invocando o espírito de José Gregorio Hemández, atualmente um santo popular muito prestigiado na Venezuela e na Colômbia. José Gregorio morreu em Caracas em 1919, onde, segundo me disseram, foi o introdutor do microscópio. Grande cirurgião, era extremamente piedoso e benevolente. Foi morto por um carro, quando atravessava a rua ás pressas, a fim de ir buscar remédios para um paciente pobre. Retratos seus, pequenos ícones como aquele que aqui se mostra, são facilmente encontrados em diferentes formatos na Colômbia e na Venezuela. Não há a menor dúvida que José Gregorio inseriu o mito e a lenda na era moderna, ainda que essa lenda se transformasse em algo profundamente burguês.
Nas estampas vemos pomposo, de temo, engravatado, com uma ponta de oum lençotodo branco saindovestido do bolso. Ele secolete, apresenta sereno, confiante e, lá no fundo, as montanhas se alteiam até o céu coberto de nuvens, acima 150
dos torreões e de uma planície relvosa na qual, extraída do mais puro surrealismo, uma figura de avental cirúrgico, com máscara e touca, debruçase sobre uma figura seminua, que definha inconsciente, deitada em um feixe de palha, a qual também serve como mesa de operação. “O servo de Deus”, reza a legenda. Colocando as mãos sobre o paciente, em seu quarto na cidade de Pasto,situada em uma planície relvosa, entre altas montanhas, Irmã Carmela invoca o espírito de José Gregorio e começa a tremer. Seu espírito a está possuindo. A voz dela toma se áspera e masculina, enquanto ela se refere aos órgãos doentes e ao tratamento necessário, que, com freqüência, inclui cirurgias profundas, praticadas espiritualmente. “Ela é grande amiga do bispo de Pasto”, contoume José Garcia. “Ele vai ao centro espírita dela para rezar a missa.” A irmã Carmela chega a atender 150 pacientes por dia. “Quando eu estava lá, ás cinco da manhã", informoume José Garcia, “todos nos na cama, acordados, olhos Então claroencontrávamos como o dia, perto da margem do rio,mas um com padreoscom umfechados. grosso livro, quevi fazia um exorcismo. Eu tinha a impressão de estar vendo minha fazenda em Santa Marta. Sim, eu via tudo. Via meu gado sendo exorcizado com aquele livro grosso, que tinha vinte centímetros de espessura”. O padre era o espírito de Francisco Montebello, um santo popular mulato, segundo me disse José Garcia. Ele começou a rezar. “Nós nos encontrávamos numa situação terrível. Alguém fizera um malefício contra nós. As crianças estavam muito, muito doentes, e minha mulher também Tudo o que tínhamos eram nossos méritos e nada mais." Isso se passou em 1973. Naquela ocasião o Banco Mundialiniciou seu projeto de criação de gado. José Garcia adquiriu sua primeira fazenda por uma quantia equivalentea mais ou menos2 mil dólares; em 1975 comprou a segunda, por idêntica quantia e, em 1978, mais outra. Por voltà de 1979 possuía uns noventa hectares e pouco mais de cem cabeças de gado. Além das crianças nascidas em 1965 e 1971, havia mais duas, nascidas em 1973 e 1977. padecendo de mal O espírito parou de assombrála, a paralisia parecia curada e, em suas visões, ela enxergou uma tremenda confusão de pessoas desconhecidas, uma igreja e a Virgem. Contounos que a única pessoa a quem reconheceu foi uma sobrinha, que estava se casando. Durante todos aqueles anos José Garcia continuou a tomar yagé com Santiago toda semana, ou a cada duas semanas, e de vez em quando também visitava a irmã Carmela na cidade de Pasto. Em 1977 ele convenceu a irmã Carmela a descer das montanhas e curar sua família. Em seguida levoua para tomar yagé foi informada por ume xamã aires,Rosário yagé que isto é, ataque de um espírito, tomouíndio três estava vezes.
com Santiago, que não se sentia bem. Ela dirigiu ritos de cura na casa de Santiago e este ficou impressionado com o fervor com que ela orava. Disseme, 151
porém, que não entendia nada de espíritos e de médiuns espíritas e ficou, senão em estado de dúvida, pelo menos de perplexidade. Foi assim que José Garcia prosperou. Seus filhos desabrocharam, Rosário estava bem e ele desenvolvia com assiduidade seus poderes curativos. Atraía pacientes e para alguns deles atuava como intermediário, enviando os a Santiago ou a irmã Catmela. Suas técnicas de cura e os mistérios em que elas se baseavam representavam, segundo me parece, não tanto o sincretismo ou a unificação presentes nas curas de Santiago e de Carmela, quanto o fato de que nenhum desses dois curadores existiam isolados um do outro. Cada um deles pressupunha o outro, e figuras como José Garcia tomavam manifesto esse pressuposto. Suas concepções relativas àquilo que acarretava o infortúnio ou quaisquer que sejam os nomes que se queira dar a semelhantes coisas p areciam, ao que me consta, com as concepções dos de xamãs a quem aflição era provavelmente o resultado umaíndios substância de conheci. feitiçariaUma que grave penetrava no corpo ou então a obra de espíritos caprichosos — dos mortos ou da natureza — que, na aparência, agiam independentemente da malícia humana. Talvez José Garcia se diferenciasse de modo muito significativo dos xamãs índios na medida em que ele atribuía um peso maior aos espíritos dos mortos. Em todo caso, à semelhança dos xamãs, o objetivo de seu ritual era o exorcismo após a adivinhação, atingido através de um estado alucinatório ou parecido com ele. José Garcia usava um leque de cura igual ao dos xamãs, e seus cânticos também se assemelhavam até certo ponto. A fase de abertura, de grande importância aliás, ocorria quando ele consagrava seus remcdios, invocando o poder de transformar o mal em um poder dispensador de vida. É aqui que percebemos mais claramente o caráter das oposições que ele encarnava e que lhe davam poder, sobretudo quando tomava yagé com Santiago. Depois de Santiago cantar para o yagé e servilo, José Garcia começava a cantar baixinho. Chamando Deus e a Virgem, ele invocava os espíritos dos santos populares católicos, bem como os dos xamãs índios mortos que o haviam ajudado em sua busca anterior da cura. No que se referia a Andrés Hinchoa, o xamã índio que lhe deu yagé pela primeira vez e morrera, ele dizia o seguinte: “O espírito dele está entrando no centro espírita dirigido pela irmã Carmela. Agora ele está fazendo curas perfeitas. Está entrando no centro espírita dela. Tomás Becerra (outro xamã índio morto) também vem entrando no centro. A mesma coisa acontece com Salvador, de Umbría. Todos estão com a irmã Carmela e lá se concentram Falam línguas indígenas”. Ao entrarem no centro espírita da irmã Carmela eles se purificam... a exemplo do que acontece com ele, iluminado pela luz das velas, na casa de Santiago, junto á floresta. José Garcia
começaoapoder ver coisas — comodos a irmã Carmela, cidade de Pasto, concen- de trando dos espíritos xamãs índios,na articulandoos comestá os espíritos santos populares católicos, tais como o de José Gregorio, o cirurgião venezuelano 152
morto, unindo todos eles com a Virgem de Lajas. Evocando esse panteão, articulando o índio com o branco, a floresta com a cidade, o xamã índio com a médium espírita branca, José Garcia punhase então a cantar o Magnificat, purificando e fortalecendo o yagé que o purificará e o fortalecerá. Graças a isso ele podiacomo enxergar o interior corpos e as intenções yagé Josésecretas dos outros. Exatamente um xamã índio,dos quando tomava Garcia tomavase delicado e aberto aos ataques. Ao beber o yagé e penetrar em seu mundo ele precisava ser capaz de se defender. Ele fez essa descrição, ao explicar como combinava o yagé com aquilo que Caimela lhe ensinara. yagé me dá o poder de trabalhar, não é? Vou lhe contar uma história. Certa vez q O tomei yagé vi uma vizinha de nossa fazenda nova tentandosubir em uma árvore muito fina, mas sem conseguir (essa mulher era mãe da jovem com quem ele rompeu o noivado no inicio de 1960). "Pobre mulher... pobre mulhei; ela nãoconsegue subir", disse eu a mim mesmo, mas sem conseguir entender o que aquilo significava. "Essa árvore í muito fina, ela nãò vai poder subir", eu disse. "Pobre velha." Aquilo fazia parte da visão doyagé, não é mesmo? Depois disso tomeiyagé uma outra noite. Era muito forte. Eu estava com o amigo Santiago. A chuma (embriaguez) doyagé pegou para valer. Foi muito bonito, eu estava atuando de fato quando voltei a ver aquela velha. Eu estava de costas para ela. A velha se aproximou e derramou um pouco de água nas minhas costas. Era uma água muito limpa. Uma chuma terrivelmente forte se apoderou de mim.Virgen Sanlísima! Senti que estava morrendo... que exaustão, que tenor! Era uma coisa tão forte que eu não tinha a menor idéia do que fazer Então, como eu tinha meus próprias remédios, disse a mim mesmo: "Conheço essa
mulher,praticando ela está atrás de mim e eu sei quem é". Eu estava minha fazenda. Sabia quem estava o mal contra mim. Nesseela momento pegueinauma garrafa de álcool, meus remédios e me massageei com eles. Acendi incenso e seu cheiro me fez tossir. Esconjurei, em nome do Senhor. E assim que a gente cura. Dai pedi ao amigo Santiago um galho de urtiga e comecei a bater ele em todo meu corpo com muita força. Achuma foi embora, sabe? Em outras palavras, o mal se dissipou. E foi uma linda pinta (visão) que me curou, ouviu? Naquela noite vi que eles estavam fazendo mal para mim. Tentaram matar todo meu gado. Vi a velha que fez mal para mim, com a intenção de que um dia todos nós morreríamos. Pedi a Deus e à Virgen Santisima que me ajudassem, me concentrei e comecei a me ucrar. Ganhei força, mas não consegui entrar na casa dela para poder curar minha fazenda. Rezei e rezei até ter a capacidade concentrar casaEla dela. Então tivee condição de limpar todas aquelas coisa s más que de elame jogou no meu na gado. tinha poder conhecia aquilo tudo. Bem, Deus me assistiu e eu fiz a cura bem lá na casa de Santiago. Foi uma cura espiritual. Peguei todas as coisas más, entrei na casa dela, voltei e tornei a fazer. Assim, ao curar, vi que não estava enfeitiçando ela; não prejudiquei ninguém, apenas me certifiquei de que não tinha ficado nenhum feitiço para trás, que tudo estava de volta para ela e que ficaria por lá, deixando ela ás voltas com aquilo.
Ao voltar para casa ele contou a Rosário o que havia acontecido. “Conhece aquela mulher?”, perguntou. “Sim”, respondeu Rosário, “conheço, sim Ela sabe
como fazer o mal!”. Rosário, porém, mostrouse cética, e José Garcia disselhe que iria procurar Lydia, aquela mulher que adivinhava por meio do baralho. Esta confirmou tudo o que ele havia visto na companhia do índio. 153
Daí a algunS dias, segundo ele me contou, Rosário ficou assustada com a braveza do gado, o que dificultava a ordenha. José Garcia disse que o iria curar. Ao chegar ao pasto deparou com sinais de feitiçaria. Aturdido, começou a trabalhar imediatamente com seus remédios e o incenso. À tarde apressouse em ir até a casa de Santiago, mas a preocupação era tanta que se esqueceu dc levar os próprios remédios. Naquela noite tomaram yagé. Quando a chuma chegou — quechumal Virgen SantísimalPensei que estava morrendo! Que exaustão. Eu vomitava sem parar e não podia fazer nada. Sentime dominado pelas substâncias da feitiçaria. Não conseguia fazer nada, estava a ponto de morrer. Então pedi ao amigo Santiago: ‘Tem incenso? Pelo amor de Deus, me dê um pouco'*. Ele, porém, disse que não tinha nem sequer um grão. Dal tive a sensação de que eu ia engasgar até morrer. Estava sem meus remédios; era o fim. Trabalhei sem parar na chuma do yagé, mas sem resultado. Eu tinha perdidotodo meu poder para a feitiçaria. Pedi um pouco deortiga a Santiago. “Pegue o quanto você quiser“, disse ele. Agarrei um belo galho, assoprei nele e o curei. Curei aortiga para valer... Então purifiquei, me curei. Cantava sem parar, me limpava, rezava e batia oartiga em meu corpo, mas com força, com muita força! Daí tudo começou a clarear. As coisas estavam indo embora. Mais uma vez as visões mais feias se afastavam, a força da feitiçaria me deixava. E vi minha fazenda mais bonita do que nunca. Fui envolvido por uma linda visão. Olhei para mim mesmo e vi a feidçaria em três lugares. Aquilo era uma força, uma força para me esmagar, para me obrigar a abandonar a esperança de que não valia a pena cuidar de minha fazenda e que seria melhor desistir dela. Era disso que se tratava, mas consegui me curar. Deus me ajudou. A velha não conseguiu me atingir. Ela é uma feiticeira. Em breve vai querer me matat; mas não conseguirá.
Daí a mais ou menos um ano, em 1978, Santiago ficou doente. Perdeu a visão de um olho, enquanto pescava á noite, e começou a sentir tonturas. Não conseguia ficar de pé sem vomitar. Suas pernas incharam A morte parecia iminente. Ficava sozinho, entoando canções de cura, baixinho, mas, quando tomava yagé, ou não via nada ou tinha visões de milhares de espinhos de ouriços, muito eriçados, como acontece quando o animal está se defendendo. Eles entravam em sua boca, engasgandoo, e em seus olhos, cegandoo. E isso sob a influência doyagé! Que exaustão isso provoca! E as cobras, rãs, lagartos, jacarés... dentro de meu corpo... E ninguém conseguia tirálos de lá! Quando eu tomava yagé era só o que eu via. Só isso. Mas quando a gente não está doente vê coisas lindas; pássaros de todas as cores, tão belas como quando a gente vê um bonito tecido e diz: “Oh! gosto deste tecido. Tem cores maravilhosas!“. Então uma pessoa está vendo de verdade e difi cilmente sente queestá bêbado.
A casa dele estava repleta de gente, sobretudo de índios, que bebiam cerveja de milho e de mandioca e, de vez em quando, se entregavam a especulações: quem o enfeitiçara e por quê? Seria um outro xamã que usava yagé e apenas yagé? Ou
seria uma feitiçaria que incluía a magia e, portanto, passível de estar acima dos poderes do yagé? 154
José Garcia subiu a montanha até Pasto, a fim de consultarse com a irmã Carmela, e levou uma vela que havia sacudido por cima do corpo de Santiago. Ela confirmou as suspeitas que circulavam na região onde ele morava: Esteban, um índio Ingano da serra, xamã srcinário do vale do Sibundoy, enfeitiçara Santiago, usando ao mesmo tempo a magia e o yagé. A inimizade existente entre Santiago e Esteban pareceume enfocar e ampliar muitas das tensões provocadas pela expansão da economia nacional na região das fronteiras, operando em uma esfera pouco habitual, isto é, a transformação do poder mágico e da aura mágica da “indianidade” em mercadoria. Durante muitos anos xamãs índios da serra, srcinários do vale do Sibundoy, índioã In gano tais como Esteban, ganharam a vida percorrendo as pequenas cidades e aldeias da Colômbia, onde vendiam aos brancos e negros ervas medicinais, amuletos, estampas de santos católicos, livros de encantamentos mágicos e seus serviços de curadores populares. os índios xamãs do valedodoque Sibundoy chegame até mesmo a Venezuela, onde oHoje dinheiro é mais abundante na Colômbia, alguns deles, segundo os padrões dos camponeses locais, se tomaram ricos. Rosário os comparou com os índios das regiões dos contrafortes e das planícies, os quais, disse ela, ignoram a magia e conhecem unicamente suas plantas medicinais, seu yagé e seus próprios tipos de feitiçaria. “Mas os índios da serra”, disse ela, referindose a curandeiros como Esteban, do vale do Sibundoy, “conhecem outro sistema, que dá mais dinheiro para outra pessoa, sabe? Eles atravessam a fronteira que separa as nações e vão de um lugar a outro, com seus frutos, suas castanhas e outras coisas, dizendo que sabem curar, quando na verdade são uns charlatães. São astuciosos como ninguém! Graças a isto conseguem juntar um bom dinheiro. Vão até a Venezuela, ao Peru... O sistema deles é diferente porque conseguem o dinheiro com mais facilidade e porque a cura deles é uma mentira e não passa de um jeito de enriquecerem fazendo sujeiras!". “E os índios da planície não fazem isso?", perguntei. “Ah! Não! Não! O povo daqui? Não! Não! Essa gente de que eu falo é chegada a viajar. Gostam de uma viagem São tão espertos! Vão por aí, dizendo que sabem curar. E não curam nada! A única coisa que fazem é mistificar e enfeitiçar!” É provável que os índios Ingano do vale do Sibundoy tenham sido curandeiros itinerantes há vários séculos. Frank Salomon descreveu um julgamento, levado a efeito por funcionários espanhóis em 1727, que envolvia um índio da serra, srcinário de uma aldeia situada nas vizinhanças de Pasto, acusado de enfeitiçar seis parentes e um funcionário espanhol. As testemunhas atribuíram a sobrevivência deles a um curandeiro de Sibundoy, que recorreu a uma planta que
provocava visões, provavelmente o yagé* agissem Ao desempenhar semelhante provável que os curandeiros do Sibundoy como mediadores de papel, um sisé 155
tema panandino de cura e de crença mágicas, que atribuía aos índios da selva, habitantes dos contrafortes e das planícies, poderes xamânicos especiais. Era possível recorrer a eles por intermédio dos moradores da serra ou através da mediação dos índios que moravam entre a serra e a planície, tais como os Sibundoy. Hoje, em todos os lugares por onde passam e obtêm clientes, é sua imagem mítica de índios na posse de poderes ocultos que lhes o sucesso.doNoSibunentanto, nem todos os índios da Colômbia fazem o mesmo quegarante os curandeiros doy. Eles possuem confiança e um orgulho enorme, pois estão fora do alcance de contraataques mágicos, graças a sua habilidade e ao conhecimento do yagé e das visões que este provoca ou — o que é mais provável — porque simplesmente insinuam que as coisas se passam assim. Para isso apóiamse na existência dos xamãs da região dos contrafortes ou da planície, não apenas no que se refere ao yagé, que cresce apenas abaixo do vale, mas no poder supostamente superior dos xamãs, os quais em outras circunstâncias estão abaixo deles, no sentido literal e figurado. As sementes da discórdia entre xamãs como Esteban, no vale do Sibundoy, e Santiago, que habita mais abaixo, nos contrafortes, são plantadas neste solo de contradições peculiares, mas muito firmes, as quais provavelmente adquirem intensidade na medida em que oportunidades de um mercado cada vez mais amplo favorecem a capacidade dos xamãs do Sibundoy de ganharem mais dinheiro e fama do que os da planície. Por ocasião de suas jornadas de cura, os raizeiros e xamãs do Sibundoy se deparam com um amplo espectro de técnicas de cura e de fantasias demonológicas ocultas nas ansiedades de um povo mais diretamente integrado á sociedade nacional do que eles. Tomamse mais cosmopolitas do que os xamãs da planície, isolados em um bolsão muito remoto da nação; aperfeiçoam tanto o discurso da magia, baseada em um pacto com Satanás, quanto o uso de sua imagem como indios misticamente revestidos de poder. Prisioneiros de sua imagem de pagãos que têm laços inerentes ao oculto, eles ganham a vida a partir dessa imagem, assegurando sua vitalidade na imaginação popular da nação e para além dela. No entanto, para se apropriarem e se aproveitarem amplamente dessa imagem, os xamãs itinerantes do Sibundoy, tais como Esteban, não apenas necessitam do yagé — e, talvez, dos serviços rituais — dos xamãs planície, tais como necessitam também colonialmente dos xamãs da planície como da objetos míticos, a fimSantiago; de realizar aquela mitologia, inspirada, que confere o poder pagão. Nem é preciso dizer que os xamãs da planície não se sentem satisfeitos com isso. De modo geral desconfiam dos xamãs da serra e até mesmo os desprezam. Consideramnos trapaceiros e inferiores, excetuando sua capacidade de praticar o mal por meio da magia e de capachos, isto é, pacotes de feitiçaria. Tudo isto culmina com a questão do fornecimento do yagé aos xamãs da serra, ao que se sabe cada vez mais escasso. Os habitantes da planície, tal como Santiago, relu-
tam em venderlhes yagé, e ele se mostrou inflexível diante das solicitações de Esteban. Os moradores da planície com quem conversei receiam que, com o 156
a gente da serra poderá misturálo com a magia e os dominará. Graças a isso, entre outras coisas, terá um suprimento garantido de yagé. Por outro lado, recusar seu pedido poderá resultar em morte pela magia daquela mesma gente. É, segundo se imagina, a triste sorte que se abateu sobre Santiago.
yagé,
À medida que a saúde de Santiago se deteriorava até alcançar a iminência da morte, José Garcia envolveuse como nunca. Até então fora um paciente e uma espécie de discípulo, que lutava o tempo todo para livTarse da feitiçaria. Agora ele era convocado para curar seu mentor. Certa tarde fui até a casa dele. Estava terrivelmente bêbado e sua mulher implorou me que o curasse. Contou que ele estava muito mau humorado em relação a ela e a todo mundo. Ficamos lá sentados, conversando, bebendo e, quando caiu a noite, Santiago disse que todos nós tomaríamosyagé — ele, seu sobrinho, seu genro e eu. “Ótimo, estamos todos aqui”, observou. Ele serviu o yagé, cantou para ele e deu a cada pessoa um copo cheio, mas esqueceu se de mim. Então lembrouse e me serviu o copo mais cheio que eu já tomara até então. “Ah!“, eu disse, “em nome da Santa Virgem isso há de fazer alguma coisa“. Consagrei o yagé, invoquei Deus e os espíritos dos xamãs índios, Tomás Becerra e Andrés Hinchoa, para yagé, em nome de Tomás Becerra, e assim que viessem me ajudar, para que curassem aquele por diante, pois eram dos melhores bebedores de yagé. Enlão Santiago disse; “Mas quem vai cantar? Ninguém? Bom, cante o senhor, Don José! Não vive cantando só pata o senhor, yagé aqui ficou cantando e debaixo desse poncho? Durante o tempo todo em que tomou curando, escondido debaixo de seu poncho, não é mesmo? Pois então agora se mostre, para vermos se sabe de fato ou não!“. "Muito bem, senor”, respondi, “é o que faremos". Naquele mesmo instante ele caiu no chão, como se estivesse morto. Nós nos levantamos is pressas e deitamos ele em sua rede, mascom ele ficou comoOsseoutros estivesse morto. Apenas mãos mexiam. Estava mudo, só falava as mãos. acharam que ele ia suas morrer. Seusegenro me implorou para que eu tentasse curálo. Então oyagé estava me pegando. Peguei um leque de cura c comecei a curar. Achuma estava chegando em mim. Era lindo e eu comecei a ver em que estado a casa se encontrava. Era um cemitério e estava tendo um enterro. O que estava acontecendo era uma total aniquilação. Muito bem! Ocupeime com meus remédios,chuma a pegou todo mundo e foi terrível! O genro dele chorava. "Don José, por favor, por favor, venha me curar porque eu estou morrendo!" Dcbruccime sobre ele e exorcizei, limpando, varrendo, chupando. Foi a mesma coisa com o sobrinho dele. Foi terrível. Eu ia de um para outro e voltava. Eles logo melhoraram e eu fui atender o amigo Santiago. Trabalhei com ele até as três da madrugada e enlão ele começou a reviver, a falar de novo. "Sim, ha, ha, ha!" sabemos, sabemos. Ele não assoviava é mesmo, eDon gritava. José?” “Nós Daínão então somos voltava qualquer a ficar um, inconsciente. Don José”, ele “Nós dizia. “Nós Eles não podem nos pegar! Não é mesmo, Don José?“ Ele também viu o cemitério inteiro. "Ave Maria", disse, “os mortos estão apodrecendo em todos os lugares". Outros agonizavam, a ponto de morrer. A casa inteira era uma sepultura. Ave Maria! Continuamos a tomaryagé. Finalmente ele disse: "Muito bem. Voltem na terçafeira. Se eles vão nos matar; então eles também morrerão!”. Na terçafeira voltamos a tomar yagé e ele começava a cantar quando, de repente, declarou que tinha uma doença bem no fundo dele e que ia pata a outra sala, para ver se podia curála! Levou o leque de cura e podíamos ouvir ele cantando. De repente a vela se apagou e ficou tudo na mais completa escuridão. Figuei lá, nervoso, assustado, certo de que estava para morrer. O amigo Santiago calouse. Parou de cantar. Cureime com meus remédios,
que passei por todo o meu corpo, assoprando incenso. Acabei melhorando daí a mais ou menos uma hora. Quando minha força voltou comecci a cantar e curar os outros. Cantava e
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curava, cantava e curava. "Ah, DonJosé", disse Santiago, “parece que eles estão querendo nos matai; não? Mas eles não vão conseguir! Portanto, vamos tomar mais um pouco e daí veremos se eles têm poder para isso! Tome maisyag/1". Tomamos mais um copo e quando achuma chegou ele voltou a cair no chão. Dessa vez durou uma hora e meia. Ele levantou, começou a cantar e disse: “Na sextafeira tomaremos mais um pouco”. Na sextafeira voltei à casa dele e chuma a foi boa. Pui até Pasto e trouxe de lá águabenta e incenso. Curei o gado, fui uma segunda vez a Pasto, e a irmã Carmela me deu remédios para eu levar a Santiago.As coisas ficaram assim.
A doença de Santiago cedeu muito pouco até que, decorrido um mês, o mais apreciado xamã da região dos contrafortes do Putumayo veio e o curou. Era Salvador, filho de uma índia Cofán e de um branco, um cauchero (pequeno comerciante de borracha) da região serrana de Narino, que deixara o meninozinho com os índios. Há muito esperávamos que Salvador aparecesse. Sua jornada foi muito demorada e ele precisava colher rapidamente o arroz, devido à época das chuvas que se aproximava. Foi a notícia que chegou até nós, enquanto esperávamos um dia após outro. Santiago, enquanto isso, cantarolava para si mesmo sua canção de cura, e o restante das pessoas bebia a maior parte do tempo. O motivo verdadeiro pelo qual Salvador não aparecia, de acordo com Santiago, era o fato de que sua mulher estava receosa. Preocupavase com sua voz e sua saúde delicadas, com todos aqueles índios Ingano que viviam nas proximidades de Mocoa e se embebedavam sem parar, como sempre fazem, ao passo que os Cofán mal bebem chicha. “Ela sabe que se ele vier aqui vai beber e então ficará doente. É esse o problema", suspirou Santiago. Ele finalmente apareceu, acompanhado de sua mulher e da mãe dela, a mama sefiora, viúva de um xamã Siona. A mama senora é muito velha, toma yagé sem que nada lhe aconteça e canta lindamente, disseme Santiago. É ela e unicamente ela quem prepara uma chicha muito especial, feita de abacaxi, milho e mandioca, que Salvador oferece aos animais, os quais, por intermédio de suas cantigas de yagé, atrai para os caçadores. Mais tarde me contaram que vieram muitas outras pessoas para a cura com yagé, que durou três noites, e a maior parte delas tomava a bebida. A mama senora também cantou; mi novia (minha noiva), eis como Santiago se referia a ela, com uma risada zombeteira. Dom Apolinar também cantou. Era um velho xamã Core guaje, sogro de umae até dasmesmo filhas de e viera província de Caquetá. Era uma viagem árdua perSantiago, igosa, devido às da ações qu e o Exército colombiano desencadeava lá contra as guerrilhas. Santiago melhorou consideravelmente, a não ser por seu olho. Porém não ficou claro o que acontecera de fato com ele ou o que Salvador dissera sobre a causa de sua doença. Seria yagé misturado com magia, segundo dissera a irmã Carmela e José Garcia repetira? Seria culpa de Esteban? Todo mundo dissera algo diferente. À medida que o tempo se passasse, todos modificariam o que haviam dito.
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Quando voltei daí a um ano, no início de 1979, verifiquei que muita coisa mudara. Santiago estava bastante bem e ativo, mas Salvador morrera, e Rosário, a mulher de José Garcia, encontravase muito doente. O sobrinho de Salvador declarou que ele morrera em razão de ter perdido o poder, através das muitas curas que fez para muite gente de fora, sobretudo brancos e negros. Assim, tornouse poluído de Equador. lidar comRosário os ataques de virtualmente feitiçaria dos paralisados xamãs índioso da região do rioe incapaz Napo, no tinha braço e a pema direitos. O braço direito se agitava, e sua fala era ininteligível. Ela parecia desolada e triste. Sem a menor expressão em sua voz, afirmava que o espírito do homem de quem fora noiva aos 16 anos, e que morrera em um acidente de caminhão, viera assombrála e sentavase em seu ombro direito. Essa fase de doença começouem 1978, segundo ela me contou, quandosurgiram problemas em um dos sítios do casal. Foram roubadas cabeças de gado, e ela teve que trabalhar arduamente na ordenha, enquanto José Garcia e seu filho iam à procura dos animais. Contraiu pneumonia por ocasião de um temporal e foi tratada com antibióticos por um dos médicos locais. Experimentou um certo alívio, mas começou a sentirse pesada, com dores de cabeça, a que se seguiu uma paralisia gradual. Voltou a ser tratada pelo mesmo médico, que lhe deu tranqüilizantes, até que Lydia, aquela velha amiga do casal que adivinhava por meio do baralho, convenceuos a procurar tratamento na capital, Bogotá, onde o diagnóstico foi um derrame cerebral. Recebeu os cuidados necessários, voltou para casa e não conseguia parar de chorar, segundo me disse sua filha. Voltou a Bogotá e ali procurou vários médicos. Um médium espírita disselhe que sua doença era parcialmente devida a Deus (uma causa natural) e, em parte, á feitiçaria, agindo juntamente com a causa “natural". Então Lydia, a adivinha responsável por apresentálos à irmã Carmela em Pasto, em 1973, graças a que eles ingressaram no caminho da riqueza, trabalhou mais uma vez com seu baralho e adivinhou que a doença de Rosário era obra da irmã Carmela! Esta evocara o espírito do noivo de Rosário, morto havia tanto tempo, para atuar como um poder malévolo. Rosário e José lembraramse então que sempre que os poderes dele, taisGarcia como foram desenvolvidos em Carmela associação com ainsistira irmã, eram destinados ao bem da humanidade; ela também afirmava que ele estava adquirindo um número muito grande de cabeças de gado, muitos sítios e deveria dar os animais e as terras para os pobres, guardando apenas uma pequena parte para si. Carmela se voltara contra ele porque ele se negava a fazer isso, contoume o casal com muita calma. Ao mesmo tempo, acrescentou José Garcia, Carmela sentia inveja de seu sucesso e agia movida pelo despeito. O próprio José Garcia entendia seus poderes de cura em termos que corres-
pondiam à denúncia que Carmela fizera de seu sucesso material. Por exemplo, há pouco mais de um ano ele fizera o seguinte pronunciamento: 159
Sim! Eu vi a grandeza deste mundo. É algo de que a gente se lembra, leva em conta e conduz sua vida de acordo com isso. É por este motivo que Deus me ajuda. Deus me escolheu especialmente, para eu ser bemsucedido em tudo aquilo que eu desejar, mas não em excesso: fazer grandes coisas, realizar grandes curas... de acordo com minha fé e com o modo como me comporto. Mas sabe que tudo isto não me pertence? Sou apenas o administrador dos bens deste mundo. Não tenho nenhum orgulho, não sou como aquelas pessoas ricas a quem a gente cumprimenta e que nem sequer respondem. Sou apenas um administrador. O dia que o Pai quisei; ele me chamará à sua presença para que eu preste conta de tudo: “Venha,mayordomolVamos prestar contas!“.
Este sentimento cristão anticapitalista, que corre paralelo à acumulação e posse da riqueza, é igualmente reforçado por outros aspectos de sua filosofia enquanto curador: • O quadro do mundo, evocado por este texto, nos remete a uma hacienda feudal, na qual Deus é o senhor e José Garcia o mayordomo — um mordomo que cuida dos domínios de Deus e não um proprietário dos bens deste mundo. Um impulso importante, por detrás da credibilidade desse quadro ou cosmologia, reside no fato de que José Garcia “viu a grandeza deste mundo”, lembrouse dela e a levou em consideração. Isto tomouse patente de modo extremamente vigoroso pelo fato de ele tomar yagé, um remédio e um ritual indígenas. A interligação orgânica deste quadro do mundo pressupõe uma hierarquia de reciprocida des que ascendem ao Ente Supremo. Nessa hierarquia um curador como José Garcia se vê como participante de uma relação de troca com Deus, a Virgem, os santos católicos populares e os espíritos dos xamãs índios mortos. Seu poder deriva dessa cadeia de trocas recíprocas, uma cadeia que evoca um passado tomado mítico, por meio das gerações de santos e de xamãs índios. É o poder que pode curar a doença e combater a feitiçaria, conforme depreendemos quando José Garcia descreve este tipo de canto: Não canto como os xamãs, mas canto uma outra cantiga que vem com o yagé; por exemplo, com uma música que ouço. O próprioyagé nos ensina o que cantar... baixo ou cantadas... com o cântico do alto e dai por diante. Você vê as orações, mas são orações yagé.
você faz cura através disso; cantando... por exemplo Você canta Assim, o Magnificat sobsua a influência doyagé , curando os doentes, ou soboaMagnificat. influência daquele que está curando. O Magnificat tem a seguinte letra: “Minha alma está repleta da graça que emana do Senhor e meu espírito se eleva a Deus, meu Salvador. À luz de Seus olhos, agora todas as gerações dizemme: 'Sejas bemvindo!’, pois, em mim, grandes coisas se fizeram e, em mim, está o poder onipotente, cuja misericórdia se estende de geração em geração para aqueles que o temem; de meu coração seus braços se estendem para todos os necessitados. Livraivos dos poderosos; elevai os humildes. Enchei os famintos de bens e dispensai os ricos, sem nada lhes dar. Em memória de Vossa compaixão, por terdes tomado Israel como Vosso servo, de acordo com Vossas promessas, feitas a nossos pais, Abraão e seus descendentes, por todos os séculos dos séculos... Amém“.
yagé.que isso ocurar que aeufeitiçaria, canto, bêbado comséria Canto Magnificat, e limpo. isso a genteÉ pode por mais ela oseja. Com issocuro a gente está Com cantando, entoa o Magnificat, com isso a gente acalma a doença.
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(Entre as classes populares, no Peru inteiro, escreveu Hermillio Valdizán, juntamente com Angel Maldonado, em sua obra La medicina popular peruana, impressa em 1922, ocorre um grande número de crenças, mais comuns entre os brancos e mestiços do que entre os índios, relacionadas com os perturbados espíritos do purgatório. Quando tudo o mais fracassa, no sentido de afastar esses espíritos, quando eles, em conseqüência, são os verdadeiros condenados e, possivelmente, pertencem ao próprio demônio, então é preciso cantar o Magnificat. Os autores transcrevem os versos finais: “Despossuí os poderosos; elevai os humildes. Enchei os necessitados de bens, deixai os ricos sem nada... Gloria al Padre y al Hijo ".*) • A ênfase que o cristianismo coloca na virtude da caridade e na negação dos bens deste mundo emparelhase com a necessidade que o curador tem de atender os pobres. Um homem como Santiago jamais seria suficientemente hipócrita para se incomodar com um discurso de negação dos bens mundanos. Ele os ama. Seu apetite é rabelaisiano. Quanto mais, melhor, e ele não aceita aquele servilismo que José Garcia, o espírito branco piedoso, demonstra. No entanto Santiago não se consideraria menos cristão ou menos sujeito às manobras do invejoso. O subtexto desse atendimento ao pobre é o campo cósmico subconsciente de vícios e virtudes, nos quais o curador adquire poder através da luta contra o mal. O poder do curador diz respeito a um relacionamento dialético com a doença e o infortúnio. O mal confere poder e é por isso que um curador por necessidade atendeinfortúnio. os “pobres", ou seja, pessoas economicamente pobres atingidas pelo Desse modoaquelas é possível compreender a relação entree Deus eo diabo, pois eles não se colocam apenas em oposição, mas em uma sinergia mutuamente fortalecedora. A percepção que Dante tem do paraíso só é alcançada graças e após a jornada que ele fez ao inferno, onde encontrou Satanás (e, tendo em vista nossos propósitos, convém notar que Dante realizou essa jornada acompanhado de um guia pagão — leiase um “curador" ou “xamã" —, proveniente de um passado précristão). No entanto essa necessidade de descer e imergir na luta contra o mal pode ser autodestrutiva. A vida de um curador se equilibra no limite dessa estratégia, e é por isso que ele sempre precisa fazer uma aliança com um curador mais poderoso. José Garcia os encontrou na pessoa da irmã Carmela, na cidade da montanha e no xamã índio, Santiago, na borda das florestas da planície. O mais poderoso curador poderá, no entanto, matálo. • De todas as reciprocidades existentes nesse quadro orgânico do mundo, com sua hierarquia de formas e emaranhado dialético do bem e do mal, a que mais ressalta é aquela que ocorre entre o cristianismo e o paganismo, equivalente àquela que se dá entre Deus e o demônio. Os pode-
res de José Garcia derivam dessa reciprocidade de contrários. É uma antifonia, estabelecida em sua particularidade concreta, bem como em 161
suas abstrações harmoniosamente cadenciadas, pela conquista européia do Novo Mundo, ocorrida alguns séculos antes, como se po de testemunhar, por exemplo, nos escritos dos franciscanos, que abriam as trilhas para Cristo nas selvas ao leste de Quito e Pasto. Além do mais, essa antifonia provavelmente existia na sociedade transandina antes da chegada dos bem como na das relação entre os habitantes do altiplano, no espanhóis, império Inca, e os índios florestas. É naquilo que, com muita hesitação, podemos denominar a “lógica” da cura e da história d e vida de José Garcia (conforme ele a narra) que podemos v er essa moldagem de oposições, esse crescimento de um esplendor apocalíptico atiçado pelas oposições. No entanto, com outros povoadores da floresta, bem como com Manuel Gómez, um velho conhecido meu do rio Guaymuez, essa padronização pode assumir uma expressão mais vividamente explícita, tal como ocorreu na visão que Manuel teve, ao tomar o yagé. Nela um xamã índio, que distribuía o yagé, foi visto transformandose numa onça e, em seguida, no demônio. Então Manuel morreu, e em sua ascensão ao céu, tal como se deu no Paradiso de Dante, ele alcançou a glória, após transcender o mal, ganhou as bênçãos do Senhor, foi curado e obteve algo mais do que uma simples cura. Ao enfrentar a feitiçaria da magia praticada contra ele há muitos anos, José Garcia tomouse não somente um curador, que podia transformar o mal; tomou se também um homem rico aos olhos de seus vizinhos. Em uma sociedade na qual as pressões a favor da acumulação individual do capital encontram a oposição da força da inveja, contrahegemônica, sua carreira de homem empreendedor exigiu o desenvolvimento de sua capacidade espiritual de cura, em um ritmo cada vez mais arrebatado, de tal modo que ele pudesse resistir ás farpas dessa inveja. Finalmente, conforme ele já dissera em uma ocasião, chegara o dia em que seu pai o chamou: “Venha, mayordomo! Vamos prestar contas”. Desde o início da doença de Rosário, José Garcia parou de tomar yagé e de visitar Santiago. Rosário sempre se mostrara cética e talvez um tanto temerosa pelo fato de ele confraternizar com os índios e, sobretudo, tomar yagé. Carmela, bem como outros médiuns,dofreqüentemente o preveniam em relação ao fato de yagé. Agora ele também parecia assustado. ele excederse no consumo Lydia disselhe que parasse ou que o tomasse raramente, pois quando alguém está bien chumado os outros tomadores de yagé “jogam" uma feitiçaria nele. “Certa vez caí no chão”, ele me confidenciou. “Don Santiago bateu em mim com galhos de urtiga. Tomei um copo cheio e vi alguns índios de um lugar distante do Putumayo, com os rostos pintados de achiote. Eram eles que tinham feito aquilo comigo!” “De uma outra vez", ele prosseguiu, “um vento forte soprou, vindo não se sabe de onde. Chegou a apagar a vela. Estranho... Cantei o Magnifi
cat. Defendime. Continuamos a curar". Rosário ouviu falar de famoso médico de Popayán, uma cidade serrana ao 162
noite de Pasto. Ela e José Garcia foram consultarse com ele várias vezes. O tratamento era doloroso. Segundo ela, o médico aplicou injeções em sua língua em várias ocasiões. Era também um tratamento caríssimo. Formado por uma universidade renomada, o médico aprendera sua especialidade na Rússia e em muitos outros países estrangeiros, frisava Rosário. Então ela ficou conhecendo uma médium espírita nova no Putumayo, uma mulher branca do Brasil, que não permitia contatos pessoais. Rosário comunicavase com ela através de uma intermediária, amiga de ambas. A brazilera conseguiu livrar Rosário do espírito que flutuava em seu ombro direito. Afirmou que Carmela havia provocado a doença de Rosário por meio da magia e acrescentou que ela também era a culpada pelo fato de Santiago ter estado à morte. Era por isso que ele ainda padecia de cansaço, vertigens e tinha um problema em um dos olhos. Devo acrescentar, a esta altura, que Carmela (grande amiga do bispo, conforme José Garcia dissera), havia alguns meses, fora mandada embora de Pasto graças aos esforços combinados de médicos, da polícia e da Igreja e lutava para manterse em uma pequena aldeia situada a alguns quilômetros da cidade. Sua estrela se apagara, pelo menos no momento. Tentei convencer José Garcia a acompanharme a visitar Santiago, mas ele se recusou. Assim, seu filho, Pedro, foi em minha companhia. Seguimos pela trilha e entramos na floresta, quando a noite caía. Ele tinha 14 anos e tomava yagé desde os oito. Passamos pela fazenda de seu pai. O garoto contoume que o gado, bem como as bananas e outros produtos agrícolas, sempre corria o risco de ser roubado. Recentemente atacado por um trabalhador pedirao um salário maior e revidou seu compai seufora facão. O trabalhador foi embora,que roubou cachorro preferido da família, castrouo e cortou suas orelhas. Ao que parecia, Pedro temia constantemente a feitiçaria. Por que ele tomavayagé? Ele declarou que uma pessoa o tomava para ver quem a estava enfeitiçando, para clarear a própria situação e, ao mesmo tempo, para limpar os males provocados por alguém Sentia medo de andar por aquele caminho â noite. Ao chegarmos a uma bifurcação, seguimos pela trilha que entrava na floresta. O sol se punha. Chegamos ao rio e atravessamos a pinguela feita de bambu e arame, suspensa a nove metros acima de uma catarata que despencava pelas pedras. Tinha uns três metros de largura e precipitavase por entre as águas reluzentes. Perguntei a Pedro o que via quando tomava yagé. “Vi um homem fazendo o que chamamos de brujerias (feitiçaria) em nossa fazenda", respondeu. Ele queria ver todo nosso gado morto e nós pedindo esmola. Ele queria que ficássemos como eu estava vendo. Daí a pouco vi meu pai, e seus maus amigos queriam ver ele como se fosse um feiticeiro como eles. Então vi meu pai de cueca, com um rabo (igual ao
do demônio), como se fosse uma corrente, e o resto do corpo nu. Foi o que vi. Os outros disseram que era assim que o queriam. E riram quando viram o que eu vi. Queriam levar
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meu pai embora. Disseram que queriam que eu visse exatamente daquele jeito, como eles, fazendo o mal. Mais tarde a irmã Carmela disse que o homem que eu vira fazendo bnixaria era o feiticeiro. Ela ouve os espíritos e consegue curar através deles. Ela chama os espíritos... yagé ao pai de Pedro pela como o de Tomás Becerra (o xamã índio, já morto, que deu primeira vez). Mais tarde, tomandoyagé, vi meu pai curando a fazenda. Achuma me pegou e me levou até IÂ. Achei que eu também ia sofrer. Então vi meupai se transformando em pombo e, na força do yagé, vi a irmã Carmela e meu tio Antonio, todos vestidos de branco, limpando a fazenda. Certa vez vi a Virgem Maria. Passei para o outro lado e a encontrei parada, como uma estátua. Rezei e chorei. Daí a pouco cahuma mudou e vi a Virgem como se fosse uma pessoa igual a qualquer outra. Então chamei meu pai e disse: “Veja! Veja! A Virgem do Carmo!”. E ele perguntou: “Onde está ela?” Ele também sentiu vontade de chorar, mas disse para mim: “Não chore. Por que está chorando7 Não está vendo a Virgem do Carmo?”. E lá estava ela, me abençoando, com um rosário nas mãos. A partir daí achuma mudou e não vi mais nada. Eu estava chorando porque pedia o perdão dela... para todos nós. Então ela me abençoou... Meu pai contou que o mesmo aconteceu com ele, só que ele passou por cima de um abismo, apoiado em um cajado pequenininho. Não conseguia enxergar o fundo do abismo, mas a Virgem levou ele até o outro lado sem que nada de mal acontecesse.
Pedro fez dois desenhos dessas visões e mais tarde os comentou: A Virgem Este é o rio para onde eu ia e que tinha de atravessar. Está é a pinguela de bambu que eu tinha de atravessar. Quando cheguei na metade quis voltar. Este é o sol que ilumina tudo, que traz sua luz para o lugar onde estamos. A face do sol está na frente da Virgem. Na frente do sol está o chão amarelo. Aí está a pena (peanha) e a Virgem está de pé nela. Tudo isto é a pena. Foi onde eu encontrei a Virgem... parecia uma estátua de santo feita de gesso. E ela ficou viva, como se fosse uma mulher, e me deu sua bênção. (O arame farpado na frente do desenho é a cerca de uma fazenda. Ao interrogar Pedro, pareceulhe que a Virgem estava em uma fazenda, no campo onde o gado vai pastar.)
O Feiticeiro Este desenho consiste de três partes; 1. canto superior esquerdo; 2. canto superior direito e 3. parte inferior. 1. Este é o rosto de um daqueles índios maus. Vi três, todos com o mesmo rosto, igual ao dos índios do vale do Sibundoy. 2. Então eu me voltei para a fazenda e vi um vizinho colocando coisas de feitiçaria (um capacho ou pacote de feitiçaria) dentro do tronco podre de uma árvore. 3. Este homem está vestido apenas com as cuecas, segura o rabo do demônio e uma vassoura com a mão esquerda e ocapacho com a direita. Ocapacho contém pó de ossos humanos, retirados do cemitério, tetra do cemitério, cabelo humano etc... É este homem, Sán chez (um vizinho), que queria ver meu pai fazendo feitiçaria; queria ver do jeito que viu.
Daí a um ano, no mesmo lugar da estrada e quando o sol se punha, recordei
nossa Ele voltouse para mim e tirou uma garrucha debaixo da camisa. “Sim”,conversa. disse “e agora tenho isto”. 164
Perguntei à mãe dele, Rosário, se ela havia pensado em procurar tratamento com um xamã índio como Santiago. Ela deu um muxoxo. “O índio é um bruto, o índio não entende nada. Quando se embriagam, peidem a razão; onde quer que sintam vontade de vomitar, vomitam e então deitam e dormem. Não são como as pessoas educadas. Os índios... Ha! É por isso que não quero nada com eles. Fico longe deles...” “E José, seu marido?", perguntei. “Bem... ele está contente com Santiago. Aprendeu as idéias deles. Isto me deixa aflita. Isto me aflige de verdade porque não aceito. Ele está com essa idéia. São amigos velhos. É o yagé." “Mas que idéia?” “É que ele aprendeu os costumes deles, não? O sentimento, ogenio (genio pode significar temperamento, brilho, gênio). “Lá em Sibundoy”, ela prosseguiu, “tem um índio que sabe falar catorze línguas. o nome muito Porém,caiquando chega o carnaval, é o índioEsqueço mais porco que dele. existe.É Ele se capaz. emporcalha, na lama, se suja todo, dança na lama, cantando. Põe uma daquelas máscaras índias, pois normalmente usa as roupas de um branco. Aí chega o tempo do carnaval, os índios põem máscaras de índios, dançam, bebem chicha, brigam, se espojam na lama como porcos. É por isso que eu digo que educar os índios é um desperdício. Puxa! Ele fala catorze línguas! Não é pouco!”. O irmão de Rosário chegou e começou a falar da recente visita dela ao santuário do Senhor dos Milagres, na cidade de Buga, a centenas de quilômetros ao noroeste, no vale do rio Cauca, e que é uma região agrícola. Tratase de um santuário popular e, de acordo com Rosário e seu irmão, ele se srcinou ao ser descoberto por uma lavadeira índia, há muitos e muitos anos, quando ela estava economizando dinheiro para comprar uma imagem de Cristo. Ela trabalhava na margem do rio, em Buga, quando chegou a polícia, que levava um homem para a prisão, devido ao fato de ele não ter pago uma dívida. Compassiva, a índia deu ao homem o dinheiro necessário para sua liberdade e, ao voltar a lavar roupa, deparou com um pedaço de madeira que descia o rio. Nele se encontrava esculpida grosseiramente a figura de Cristo na cruz. Ela o tirou da água e a cada dia que passava a figura assumia traços cada vez mais perfeitos. O bispo de Popayán condenou aquilo como uma heresia e enviou gente para queimálo. No entanto ele resistia às chamas, transpirava, assumia uma semelhança cada vez maior, até que a Igreja reconheceu que se tratava de uma imagem verdadeiramente milagrosa, descoberta por uma índia para a redenção da sociedade colonial, há milhares de anos, em um tempo mítico.
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Realismo mágico
O poder do imaginário suscitado pelo infortúnio e sua cura, no caso da doença de Rosário e José Garcia, é um poder que adquire existência quando uma história de vida se ajusta como uma alegoria aos mitos da conquista, da selvageria e da redenção. A esta altura deve ter ficado claro que a f é religiosa e a magia envolvidas nesse processo não são místicas ou programát icas e, certamente, não constituem uma adesão cega a uma doutrina ofuscante. Constituem, ao contrário, uma epistemologia imagética que entrelaça a certeza com a dúvida e o desespero com a esperança, e na qual o sonho — de nesse o de pobres camponeses — reela bora o significado do imaginário quecaso instituições de classes dirigentes, tais como a Igreja, se apropriaram, tendo em vista a tarefa de colonizar fantasias utópicas. Ao objetivar essa realidade através do real maravilloso ou realismo mágico, a literatura latinoamericana moderna constrói uma ponte de mão única direcionada para a literatura oral, mas ainda assim, segundo me parece, encontra dificuldades em subtrairse àquela mão pesada contra a qual Alejo Carpentier reagiu, no surrealismo parisiense — a saber, o esforço de criar a magia onde podia existir unicamente umadas forma metaforizada. O surrealismo congelou o tempo toda a narrativa composições previsíveis da realidade burguesa pore suprimiu meio de formas tiradas dos sonhos e dos artefatos descontextualizados (e, portanto, ainda mais suneais) do mundo primitivo, tal como ele foi percebido de relance e com imaginação graças às máscaras africanas e objetos semelhantes exibidos no Trocadeto. Pois bem , Carpentier descobriu que não precisava de sses artefatos, pois nas ruas, campos e na história do Haiti o maravilhosamente real o encarava de frente. Lá tudo isso era vivido, era cultura, maravilhosa e, no entanto, comum. Sua descoberta do real maravilloso em 1943 traz todas as marcas do pró-
prio maravilhoso. Ao descrever como, após voltar de Paris, ele tropeçou nos fatos ordinários do extraordinário, Alejo Carpentier escreve o seguinte: 166
Isto se tomou particularmente evidente para mim por ocasião de minha estada no Haiti, ao eftoontrarme diariamente em contato com aquilo que poderiamos denominar o maravilhosamente teaL. Deime conta, além do mais, que essa presença e essa fo eça do maravilhosamente real não pertencia unicamente ao Haiti, mas constituía um patrimônio de toda a América, cujo inventário da cosmogonia ainda precisa ser terminado. O maravilhosamente real é encontrado a cada passo nas vidas daqueles que inscreveram datas na história do continente e Devido deixaramà virgindade nomes aindadegerados por ela:de os sua exploradores da Eternada Juventude... sua paisagem, formação,da deFonte sua ontologia, fantástica presença do índio e do negro, devido i revelação que sua descoberta constituía e i fecunda síntese que ela favorecia, a América está longe de ter exanrido sua riqueza de mitologias.1
Mas por que lo real maravilloso tomase uma categoria tão importante no consciente das escolas literárias a partir de 1940, após quatrocentos anos de elaboração de mitos e de magia na cultura latinoamericana? O despertar dessa sensibilidade para a qualidade mágica da realidade e para o papel do mito na história é, talvez, uma indicação daquilo que Emst Block denominou “contradições não sincrônicas", e é um solo feito para que dele brotem “imagens dialecticiais”, conforme a terminologia empregada por Walter Benjamin, para quem (e aqui cito o ensaio de Susan BuckMorss sobre as notas que ele escreveu em Passagenwerk) o sonhar coletivo do passado recente surgiu como um gigante adormecido, pronto para ser despertado pela geração presente, e o poder mítico de ambos os estados de sonho (o da geração recente e o da geração presente) foram afirmados; omundo reencantouse, masapenas para romper com o encantamento mítico da história e, na verdade, para reaptopriarse do poder conferido aos objetos da cultura de massa, que se tomaram símbolos utópicos do sonho.2
A contradição nãosincrônica ocorre quando mudanças qualitativas no modo de produção de uma sociedade animam imagens do passado, na esperança de um futuro melhor. Na Alemanha, o fascismo canalizou essas imagens e essas esperanças e, de acordo com Bloch, o empobrecimento da esquerda em relação á fantasia revolucionária a tomou cúmplice de sua própria derrota. Do mesmo modo Benjamin censurou seus companheiros da esquerda; o materialismo histórico poderia tomarse vitorioso na luta ideológica “se ele acolhesse os serviços da teologia, a qual hoje, conforme sabemos, anda mirrada e precisa ser mantida fora do alcance do olhar”.3 Ele argumentou que à persistência de formas mais antigas de produção, no desenvolvimento do capitalismo, correspondiam imagens que en tremesclavam o velho e o novo como ideais que transfiguravam a promessa oferecida pelo presente, mas que este bloqueava. Essas imagens utópicas, embora estimuladas pelo presente, reportamse ao passado de modo radical — aquilo que Benjamin denominou “préhistória”, isto é, uma sociedade sem classes.4 Os fascistas se mostravam dispostos e tinham a capacidade de explorar esses sonhos, mas isto não significava que o mito e a fantasia fossem necessariamente reacio-
nários. Ao dialética contrário,materialista as imagenspoderia continham revolucionárias, que o solo arado pela nutrirsementes e fazer germinar.5 De modo geral na América Latina, a função política da Igreja foi a de atre 167
lar essas imagens e sonhos coletivos a propósitos sociais reacionários. É aqui onde a sensibilidade de Carpentier ao mito como experiência da história na configuração de um presente em mudança é tão apropriada e necessária ao desenvolvimento da cultura e da literatura revolucionárias. Este desenvolvimento se relaciona com o realismo mágico da cultura popular como a única força contrahegemônica capaz confrontar o uso reacionário que a Igreja faz desse mesmo realismo mágicodea fim de o mistificar. No entanto aqueles que tentam usar tais forças correm o risco de serem usados por elas. Quando Carpentier enumera os motivos pelos quais “a América está longe de ter exaurido sua riqueza de mitologias”, precisamos indagar como é possível nos subtrairmos a seu encanto, principalmente aquele provocado pela “fantástica presença do índio e do negro”, a própria fantasia por meio da qual o domínio de uma classe permeia o inconsciente político. No encontro dolorosamente romantizado de um xamã índio com o herói europeu de Carpentier, no romance Los passos perdidos, publicado em 1953, encontramos a promessa e os fatos da tentativa do sonho revolucionário, no sentido de orquestrar a magia do realismo com a realidade da magia. É um dos motivos pelos quais achei útil relatar a história da sorte e do infortúnio, na qual José Garcia, um povoador branco pobre, talvez um contador de histórias, mas não um romancista, tentou inteceptar os poderes de um xamã de verdade, cujo dilema — libertarse de uma mitologia colonial opressiva, ao mesmo tempo que mantém sua essência — não é menos grave do que o nosso próprio. É no entanto a mulher de José Garcia, Rosário, que padece da doença e ela não freqüenta xamãs. Os índios são brutos! Dançam com suas máscaras, espojamse na lama. Catorze línguas! Mas ela foi bem longe, atravessou a montanha para visitar o santuário do Senhor dos Milagres, nosso Senhor que foi entregue a essa nação por uma pobre índia, há milhares de anos. Ficando mais do lado do Senhor, descoberto por uma índia, do que do lado do índio descoberto por seu marido, Rosário não apenas endossava a mitologia colonial primitivismo, enxerga nele o signo No do pagão, também do o signo do poder que — nesse caso, de não um somente poder redentor? Senhor mas dos Milagres, dependurado na cruz, na penumbra da igreja de Buga, não vemos essa configuração colonial ritualizada e adorada como um poder curativo? Não somente os índios e os negros foram identificados com o mal, nas profundezas de uma estrutura de classes, mediada por brancos que ascendiam à presença do Divino; só que dessas profundezas emana o poder. No que se refere ao trabalho manual, às capacidades e á teira, esse poder do primitivo pode ser apropriado, nesse caso transplantandoo para a mitologia da
conquista, de tal modo que a doença possa ser curada, o futuro adivinhado, as fazendas e sítios exorcizados, a riqueza obtida e mantida e, acima de tudo, os 168
vizinhos invejosos passam a ser controlados. No entanto, ao contrário do que sucedia com a terra e a mãodeobra, esse poder não se encontrava nas mãos dos índios ou dos negros, mas era projetado neles e em seus seres, muito especialmente na imagem do xamã. Na tentativa de se apropriar desse poder, vemos como os conquistadores reificaram sua mitologia relativa ao selvagem pagão, tomaramse sujeitos a esse poderbem e, ao agirem assim, procuraram salvarse da civilização que os atormentava, como do primitivo nos quais eles projetavam seu antieu. Aqui não lidamos tanto com as idéias quanto com o corpo, mediado pelo reino da imagem Na saga, tal como ela é representada pela infindável procura da paz e, quem sabe, da redenção, empreendida por Rosário e por José Garcia, vemos algo mais do que a construção de uma história pessoal que cruza com essa fetichização e reificação coloniais da selvageria. Vemos mais do que povoadores camponeses desejosos de obter riqueza, em uma economia política que recorre ao medo da inveja para enfrentar a acumulação do capital. Vemos também que em uma doença do corpo se encontra presente uma tentativa corporal de inscrever a história da alteridade do corpo que é o eu, uma historiografia experimental, mas ainda assim salvadora da vida, que se depara com o peso morto do passado terrivelmente vivo, a exemplo do que ocorre com os ataques desferidos pelos espíritos intranqüilos (o noivo de Rosário) ou com a feitiçaria praticada por invejosos. Através do infortúnio e de sua definição mutante, quando se trata de tentar a cura, essa descrição do eu corpóreo como locus da alteridade incluise ineluta velmente na troca de poderes mágicos, estabelecida entre os xamãs índios e a Igreja, uma troca que se dá por intermédio do vigoroso meio das imagens visuais. Alucinógenos e pontos de ruptura na vida cotidiana — doença, acidente, coincidência e penumbra — podem tomar esse reino da imagem manifesto e manifestamente fortalecedor. Foi tarefa de Rosário atar o poder pagão ao da Igreja, garantindo por meio dessa circulação de imagens sua solidariedade dialética. Foi ela quem mediou a circulação social de significados essenciais para a vitalidade de tais imagens, a partir do xamã, passando por José Garcia e por ela e o Senhor dos Milagres, no templo oficial de Deus. Ao santificar uma imagem tal como a do Senhor dos Milagres, a Igreja santifica a si própria. A aura de mistério hipnótico, agora assumida pela imagem na escuridão artificial do templo, revela e ao mesmo tempo oculta essa troca, tão comum em sociedades como a da Colômbia, onde a descoberta epifanica de santos e virgens é uma ocorrência freqüente e fonte primária de regeneração do poder sacerdotal que sustenta a reprodução ideológica e a opressão de classe. Precisamente devido a essa apropriação pela Igreja de uma imagem popular como um tesouro que enfeita o altar, essa imagem se expande através do espaço e do tempo,
como membro da nação universal de santos à espera do dia do julgamento, quando a luta de classes em tomo dos meios de produção e de troca incluirá os meios de 169
produção e interpretação de imagens. A santificação oficial distorce e reprime a mensagem política latente na imagem, mas garante a essa imagem uma longa vida em sua forma material, como uma escultura na qual os primeiros clarões da alvorada de sua criação popular luzem, repletos de esperança. Cópias encontram espaço nos lares dos trabalhadores assalariados e dos camponeses, tecendo uma teia muito fina de ligações com o srcinal. Em momentos de crise essas teias absorvem o choque, liberandoo mais tarde através de recordações domésticas que reconstroem a história do srcinal para cada novo presente. A cura popular se apossa respeitosamente da doutrina da Igreja através dos padres e se apropria dos ícones dependurados nas paredes dos templos, retomando para seu próprio uso aquilo de que a Igreja se apropriou, relativo à mitologia popular extraída dos sonhos dos oprimidos. Então as imagens petrificadas na pintura e na escultura nascem para a vida, a paitir daquele mistério opaco no qual a Igreja as velou e as preservou na memória coletiva. seres vivos. Entram na textura vibrante e contraditória da vida social. Tomamse A estátua de gesso da Virgem do Carmo é transformada em uma mulher de verdade, que dá ao filho de Rosário aquela bênção de que ele necessita tão desesperadamente a fim de resolver as contradições que forçam os camponeses a se explorar mutuamente. Ao conseguir a bênção da Virgem por meio da magia dos índios, seu pai pode continuar a investir um capital fornecido pelo Banco Mundial e obter lucros para os banqueiros, bem como para ele, do trabalho dos vizinhos pobres, cuja inveja é controlada magicamente. Existem, porém, limites quanto à capacidade dos ícones da Igreja em mediar as contradições capitalistas. O aviso profético da irmã Carmela indica tais limites. José Garcia acumulou um excesso de sítios e de gado; eles devem ser compartilhados com os pobres. Confrontada com tudo isto encontrase sua mulher, Rosário, que tem de mediar o conflito, na paralisia e na virtual mudez de seu ser, e cuja história procura animar e dar voz a uma estátua silenciosa e santificada, proveniente de um passado colonizado e mítico. Quando estive com ela em dezembro de 1980, decorridos vários meses de sua visita ao Senhor dos Milagres, ela me contou que estava sendo curada por uma médium espírita branca, de meiaidade, em Pasto. “Ela trabalha com o espírito de José Gregorio?”, indaguei. “Não. Invoca o espírito de Tomás Huamanga, um venezuelano que morreu há 350 anos.” Ela mostrou muita precisão. Exibiume um retrato desse espírito. Era uma fotografia retocada de um índio da região (jamais ficaremos sabendo se ele era das terras altas do Vale do Sibundoy ou da região dos contrafortes)! Ela prosseguiu e contou que ele não falava espanhol, apenas Inga e que, em vida, fora um feiticeiro famoso.
Santiago Mutumbajoy, durante tanto atendera seué marido José Garcia, suspirou oaoxamã ouviríndio falar que disso. “Eu não lhetempo disse que o índio mais cristão do que o branco?" 170
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Las Très Potências: a magia das raças
O espaço místico e mágico fixado pela imagem do índio no Novo Mundo é juncado de ironia política. Em um país como a Colômbia, onde todas as pessoas classificadas pelos censos do governo como índias caberiam em alguns quarteirões de uma cidade, a enormidade da magia atribuída àqueles índios é notável. Tratase de uma atribuição tão vigorosa entre as classes baixas de brancos, negros e mestiços quanto entre a classe média, alta e os intelectuais, incluindo os arqueólogos e antropólogos. A ironia não se restringe ao feto de que os assim denominados índios formam uma pequenina parte da população. Os índios também se incluem entre as classes mais pobres, oprimidas e marginalizadas e, além do mais, têm a reputação de ser maliciosos e até mesmo de praticar o mal, sendo também considerados ignorantes e brutais. Todo mundo sabe que o indio es malicioso. Por que também se atribui a eles poder mágico é tuna questão intrigante e, além do mais, uma questão política importante, já que a magia do índio é intrínseca não somente à opressão que eles padecem, mas também à teia de religião popular e de cura mágica do infortúnio que atravessa a sociedade como um todo, para não mencionar osnão antropólogos (como eu)d que estudam.sutUmente Essa atração mágica exercida pelo objet ’art a’colonial índio é apenas um elaborado; é igualmente algo renovado e revitalizado. Não se trata apoias de primitivismo, mas de um modernismo terceiromundista, uma reelaboração neocolonial do primitivismo. Quando nasce uma criança no vale do Cauca, pelo maios no caso de pais pobres (e eles formam a imensa maioria), a mãe, cm geral, se apressa em adquirir um coralito, um bracelete de contas coloridas, outrora de coral e atualmente de plástico, a fim de espantar o mauolhado, ojo ou mal de ojo. Tais contas devem ser “curadas”, isto é, consagradas por meio de poder mágico por um índio do
Putumayo. São os índios do Putumayo que vendem essas pulseiras, e é mais * Objdo de aite. (N.T.)
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indicado adquirilas deles. Assim, a partir do nascimento, um número grande ou até mesmo preponderante de pessoas, naquele vale imenso — senão em outras regiões da república — são, por assim dizer, “batizadas" e introduzidas no reino da magia do índio (disseramme que o mesmo ocorre na costa atlântica da Colômbia, só que lá a pulseira, pepita, é comprada dos índios Guajira, da península do mesmo nome). A criança não tem consciência desse pacto celebrado entre sua mãe e o índio e do qual ela é objeto. No entanto, tal como aconteceu com sua mãe, a criança fará o mesmo, se e quando ela despontar para a maternidade. A ausência de percepção assegura com maior firmeza a potência dessa prática e a mitologia que a sustenta. Tal é o caráter do conhecimento social implícito que aqui examinamos. A causa e, até certo ponto, a cura da doença provocada pelo mauolhado também são inconscientes. A pessoa cujos olhos são maus e cujo olhar provoca a gastroenterite, freqüentemente fatal, não tem a percepção do poder desse olhar. Tratase de um poder inconsciente e de um ato que não é premeditado, talvez a quintessência da inveja — a envidia, que assume vida própria, acima e além da intencionalidade. Assim como a causa, dentro dessas características, é inocente, o que poderemos dizer da cura, quando nos damos conta de que o mauolhado não se enquadra na categoria de doença entre os índios do Putumayo, habitantes da serra ou da planície? Com efeito, o resto da sociedade lhes solicita a cura de algo que para eles não existe. É claro que os curandeiros ambulantes em breve tomam conhecimento desse fato e praticam todos os atos necessários à diagnose e ao tratamento, atos são os fora prescritos pelo encantado restante dados sociedade, pertencem a eles.mas Elestais se posicionam do círculo crentes, não necessário para a existência da doença. Lá na floresta pluvial, onde tantos desses curandeiros ambulantes ganham boa parte de seu poder mágico (é o que dizem), fiz indagações a um xamã Cofán e a sua mulher, relativas ao mal de ojo. Eles acharam que estava me referindo a algo bem literal como, por exemplo, uma doença nos olhos, uma conjuntivite. Quanto ao sal e ao capacho, os tipos predominantes de feitiçaria de que se ouve falar no vale do Sibundoy ou no interior, eles afirmam que se trata de tolices, tonterías dos brancos, que os índios do vale do Sibundoy, que perambulam pelo país, exploram a fim de ganhar dinheiro. Certo dia o xamã reveloume que curava as jóias que os brancos lhes traziam. “Não entendo”, eu disse. “Nem eu”, foi a resposta. “Mas por que age assim?" “Para deixálos contentes”, respondeu, sorrindo sem malícia ou superioridade, segundo me pareceu, mas com timidez e algum constrangimento, contandome a história de Dona Teofila, cujo talismã ele curou, para que ela
conseguisse ganharonoqual, jogodurante de cartas. Havia curioso branco de nome Gabriel Camacho, dois anos,também doenteum e solitário, perambulou de xamã em xamã através do Putumayo, há quinze anos, aprendendo o que podia 172
sobre o yagé e tentando tomarse um grande curador. A mulher do xamã encontrouo chorando, sentado num rochedo perto do rio e deulhe roupa, abrigo e alimento durante meses. Ele queria aprender os segredos do yagé muito rápido — rápido demais, conforme se viu — pois caíra nas mãos de outro xamã Cofán, Pacho Quintero, o qual, confoime todos o preveniram, era um bruxo, um brujo fino, de acordo com os outros xamãs. Gabriel Camacho teria moirido na casa de Pacho, situada na região do rio Hgre, desolado e faminto, se não fossem seus paisanos, seus conterrâneos, que voavam pela região no helicóptero de uma companhia petrolífera e o levaram para Bogotá. Com os xamãs Don Gabriel aprendeu a prever quais os cavalos que ganhariam as corridas dominicais no hipódromo da capital do país. Enquanto tomava yagé, via o número dos animais e dizia: “Vamos até Pasto apostar noCinco y Seis". Mas deitado de costas, bêbado de yagé no seio da floresta, como poderia chegar até Pasto? Santiago Mutumbajoy nunca se cansava de rir e contar uma história de que Gabriel Camacho era protagonista. A primeira vez que a ouvi cortávamos lenha e cozinhávamos o yagé durante todo o dia, a n um pequeno bosque escondido, perto do rio. Batíamos o cipó com pedras até nossos pulsos doerem “Gabriel Camacho tomava yagé certa noite com um xamã, no baixo Putumayo", narrou Santiago. “O cozinheiro não tinha dinheiro, mas Don Gabriel pagou sessenta pesos ao Lleno! Cheio! Cheio!’, ordenou ao xamã. Pediu que enchesse sua cabaça. Lleno! ‘ xamã. Então o cozinheiro, invejoso, explodiu: To, pobre indio dei Putumayo, aguantando frio e hambre y ese Bogotano pidiendo lleno, lleno. Eu, pobre índio do Putumayo, agüentando frio e fome e esseque bogotano pedindo cheio, cheio!’.’’ No Putumayo os povoadores brancos desprezam abertamente a magia indígena levam seus filhos, doentes de susto, a um curandeiro índio para que cuide deles. O irmão de Rosario, por exemplo, que raramente deixava passar a oportunidade de ridicularizar as curas operadas por índios, teve seu filho curado de susto por um índio. Há muito a se ponderar no recurso aos índios como seres mágicos que afugentam as coisas que assustam as crianças e o “mauolhado” que assusta seus pais. Talvez o índio seja considerado ainda mais temível e malvado, mas, assim como ele foi dominado pelos conquistadores cristãos, essas doenças também podem ser dominadas. Ao acalmar o medo, o papel do índio não se restringe ás crianças ou aos camponeses pobres. A uma grande distância do Putumayo, na antiga cidade colonial de Popayán, na Colômbia ocidental, uma mulher de nome Emilia revelou me o quanto se sentiu melhor, desde a última vez que nos vimos. Ela certamente parecia mais calma e animada. Declarou que queria separarse do seu marido, um advogado que a deixara havia dois anos. Mostroume uma garrafa com ervas misturadas com aguardiente. Era um remédio que conseguira com um indio do
Putumayo. Agora ela não acordava repente á noite, desusto. Não padecia mais daquela terrível insôniamais que de a acometera desde cheia a partida de Elias. Não sentia mais dores em todo seu corpo. Procurou o indio muito espontanea173
mente. A idéia lhe ocorreu certo dia em que percorria o mercado. Ninguém o recomendou. Ellos saben. Eles sabem. Maria Sol, uma jovem negra de 18 anos, conhecida minha, que trabalha como empregada doméstica na região sul do vale do Cauca, garanteme que os índios sabem como fazer a magia mais poderosa. Quando morava em Cartago, ao norte do vale, sua irmã apaixonouse por um rapaz, mas ele demonstrouse arredio e indiferente. Uma amiga a aconselhou a procurar um dos curandeiros índios que vinham das florestas pluviais do litoral do Pacífico, na província de Chocó. Ele lhe vendeu uma garrafa verde c om remédio, recomendandolhe que pingasse algumas gotas na palma da mão e, em seguida, apertasse a mão do homem por quem estava apaixonada. Foi o que ela fez, e ele, com efeito, apaixonouse loucamente por ela, mas a m ãe da jovem não aprovou. Wilma Murillo, outra amiga negra que eu tinha, da distante província de Chocó, que compra e vende as jóias de ouro feitas na região e atualmente está casada com um rapaz que tem uma boa posição (trabalha com computação, na capital), certa vez faloume de um índio de Chocó que foi enganado por um feiticeiro negro, por meio da pepita. Acusado pelo índio indignad o, ele negou q ue houvesse trapaceado, o que deixou o índio ainda mais furioso. Daí a alguns dias o corpo do negro estava coberto de ve rmes e pústulas, e cm breve ele morreu. A cunhada de Wilma, Juana, faloume de Don Miro, que morava perto de sua loja de confecções, em Puerto Tejada, ao sul do vale do Cauca. “Ele é famoso”, afirmou. “As pessoas tomam um táxi em Cali e vão consultálo.” Juana era uma habilidosa costureira e passou vários anosConhecia, contrabandeando mininas, que adquiria nos portos livres do Caribe. portanto,roupas algumafecoisa sobre o emprego da magia, já que era preciso driblar a lei. Era amiga de uma cabeleireira de Cali, que nunca cheguei a conhecer e que se tomara proprietária de um salão de beleza e devia toda sua boa fortuna a Don Miro. Ele era por demais ríspido, porém fiquei sabendo que apren dera a maior parte do que conhecia com um índio, um Cholo residente em Quibdó, capital de Chocó. Esse índio era um Colorado do Equador. Sete anos mais tarde, na aldeia índia de Humán, situada na serra, famosa em todo o Equador por seus feiticeiros e curandeiros, disseramme que muito poder mágico circula entre ela e aqueles mesmos Colorado das terras baixas do Pacífico, de quem Don Miro me falou na Colômbia. Em seu livro publicado em 1972, relativo aos índios Jívaro da Amazônia equatoriana, Michael Hamer menciona que os xamãs Jívaro atravessavam as montanhas para visitar os Colorado e praticar a magia. O curandeiro Ilumán com quem conversei naquela tarde chuvosa, enquanto ele, bêbado, curava um casal, passando pedrinhas de um formato esquisito em seus corpos quase nus, contoume que seu tio visitara Don Salvador, o xamã Cofán que salvara a vida de Santiago e
cuja casa (e, agora, seu túmulo) situavase uma grande distância, em outra região, descendo os Andes e ao norte do lagoa Agrio. Era preciso atravessar o rio San Miguel até chegar às margens do Guamuez, antes que ele desembo 174
casse no Putumayo. Esse curandeiro do Ilumán ostentava signos de poder provenientes das florestas da planície: peles de onça dependuradas na parede, bastões feitos de palmeira chonta, que ele usava na cura, e aquelas penas verdes e azuis dos pássaros da floresta que formavam o mesmo tipo de colar luxuriante que os xamãs Cofán usam. “Mas elas são tiradas unicamente das asas”, assinalou Don Santiago, que se encontrava em minha companhia e fazia o possível para não demonstrar desprezo. “As penas boas são as da cauda. Cada cauda fornece apenas um pouco. Para fazer um colar são necessários muitos pássaros.” Alejandro Casarán, um agrimensor com muitos anosde experiência nas florestas do litoral colombiano do Pacífico, pertence a uma proeminente família negra da cidade açucareira onde morei durante alguns anos, no vale do Cauca. Ele também afirmou que o brujo índio é o mais forte que existe. Certa noite ele me contou como, em meados de 1960, por ocasião de suas viagens, quando trabalhava para o Instituto de Reforma Agrária, deparouse com um curioso incidente no Saija,litoral um lugar perdido, em meio a mangues, pântanos, lama mosquitos. Erario aquele que tanto deprimiu Pizarro e sua gente quando se eviram forçados a deter sua expedição de conquista, ao sul das terras desconhecidas dos Incas, há 450 anos. Os negros descendentes de escravos africanos trazidos para trabalhar nos aluviões de ouro existentes naquela região queixavamse amargamente de uma terrível praga. Pediram aos índios Embera — “Cholo" —, habitantes do local, que a exorcizassem. Os xamãs índios concordaram e, segundo Alejandro me contou, pois se encontrava presente, isso acabou dando srcem a um gigantesco festival índio. Veio gente até mesmo do Panamá e do Equador, remando ao longo da costa e avançando através das esteras em suas canoas. Segundo ele, compareceram mais de trezentos índios, e qualquer empregada doméstica ou trabalhador dos canaviais, migrantes negros, moradores do vale do Cauca, srcinários dos rios do litoral, lhe contarão o quão poderosos são essesbrujos Cholo. Talvez, enquanto se tomam mais civilizados, eles também se tomem mais palpavelmente reais e, portanto, menos mágicos. Lembrome de que certa manhã, bem cedo, vi duas pequenas canoas atracadas no pequeno porto da cidadezinha de Santa Bárbara, inteiramente habitada por negros. Nas canoas, imóveis cano estátuas, com aspara mãos segurando os remos,junto se encontravam duas mulheres Cholo, nuas da cintura cima. No armazém, ao porto, estavam dois homens Cholo, aguardando para vender bananas. “Vá em frente!”, disseme o proprietário negro do armazém. “Eles são Cholo. Agora são meio civilizados e você pode tocálos.” Muito longe da costa do Pacífico e da cena onde se desenrolou a história de Alejandro, na qual os negros pediam aos índios que exorcizassem a praga, ao leste daquela enorme massa dos Andes que separa o litoral da bacia amazônica, os xamãs Cofán que conheço no Putumayo afirmamque nada podem fazer contra tais
pragas. Para lidar com elas apelam aos feiticeiros negros da costa do Pacífico! “São eles que sabem como lidar com pragas”, insistiu Gratulina Moreno. Ouvira 175
falar de curas de pragas verdadeiramente extraordinárias, efetuadas por negros da região do Chocó, na costa do Pacífico, e que recorriam a preces de livros especiais. “Eles chegam com suas orações esecreto, fazem o sinaldacruz, cospem por cima do ombro... sim, eles conhecem!” Havia um homem que não parava de pôr sangue pelo nariz. Chamaram um curandeiro negro, pobre migrante da costa do Pacífico. pegouauma moeda de cobrenadetesta cinco um ovo em cima dela,Ele colocou moeda lambuzada docentavos, paciente equebrou fez o sinaldacruz sobre ela. Em seguida cavocou o chão, no local em que o sangue escoara, removeu a terra, fez uma cruz com a sujeira no local onde o sangue estivera e a hemorragia parou! “Todos os negros conhecem essas orações”, comentou Gratulina. “É útil para nós termos esses remédios”, disseme o esposo xamã de Gratulina, Salvador, quando nos encontrávamos na margem do rio Guamuez, um afluente do Putumayo. Ele evocava certa ocasião em que um touro adoeceu, apresentando infecções e inflamações, após ter sido castrado. Convocaram um curandeiro negro que migrara havia alguns anos do litoral do Pacífico. Isto aconteceu apenas dois anos antes de Salvador ser morto pelos dardos de feitiço enviados pelos xamãs invejosos do rio Napo, no Equador. Ele era muito estimado na região da mon taria,e esse sentimento se fazia sentir até mesmo em um lugar tão distante quanto o Napo, conforme ficamos sabendo. Gratulina disseme que aquele acontecimento já era esperado, pois a voz de Salvador, quando ele entoava suas canções de cura, soava como uma flauta muito débil. Santiago Mutumbajoy disseme que aqueles migrantes negros que habitam as regiões situadas no da cordillera conhecem muitas magias pod vem erosas, por intermédio dasoutro quaislado se pode ferir e matar, e que esse conhecimento dos livros. Manuel Gómez, que migrara para o Putumayo havia 25 anos, disse me a mesma coisa. “Na costa do Pacífico tem gente que é muito forte nisso, seja por inveja ou para fazer mal a alguém. Isto é muito, muito ruim Eles estudam livros de magia, aprendem orações e não gostam de tomar yagé .” “Existem maestros em Tumaco (o principal porto da região meridional do litoral)”, disse me Santiago, “que atravessam as montanhas e vão até o Putumayo ensinar seus discípulos, que são feiticeiros em Orito e San Roque”. Supõese que exista muito dinheiro em Orito, pois é o centro das operações da Texaco Oil Company nas florestas do Leste. É o protótipo da cidade colonial tropical repleta de energia, rodeada pela floresta, e uma chama constante, proveniente da queima do gás natural, projetase em direção ao céu. Cabos grossos pendem dos postes de iluminação. Existem luminárias enormes, semelhantes a faróis, ao longo da margem dos esgotos que correm a céu aberto paralelamente ás ruas. Estas são revestidas com uma camada fina de piche, que derrete como sorvete sob aquele sol escaldante, e só Deus sabe o que acontece com os cascos dos cavalos. A cadeia dos Andes é claramente visível a uma longa distância, por
cima das árvores, e as altas montanhas são coroadas pelas nuvens que se assemelham a penugem. O calor é opressivo e misturase com o cheiro da gasolina e do 176
asfalto que derrete. As mulheres passam com sapatos de salto alto, chapinham e escorregam no piche pegajoso. Em todo lugar se vêem pilhas de garrafas de refrigerantes. Quanta habilidade, quanto dinheiro envolvido na distribuição da CocaCola, para ela acabar chegando àquele lugar tão remoto! Nas ruas, onde não se vê uma árvore sequer, alinhamse barracos com teto de zinco, e as antenas de televisão, amarradas em bambus, projetamse para o alto, formando ângulos esquisitos. É a Cidade do Petróleo na Selva. “Orito é um lugar bem feio”, comento. “Mas o dinheiro não é feio”, retruca Santiago, que com freqüência tem sido convocado para ir até lá realizar emas de pessoas atingidas pela feitiçaria. O lugar é repleto de inveja. Estávamos conversando a respeito de Dona Leila, uma senhora branca que viera de Orito para que seu caminhão e sua casa fossem curados da feitiçaria. Quem a trouxe foi um pobre migrante negro que trabalhava para ela. “Sim", disse Santiago, “o nome dele é Luis... Luis... Quinones. Ele veio até aqui me fazer um pedido. Veio de Tumaco para encontrar trabalho em Orito. Empregavase e, quando ia começar a trabalhar, uma outra pessoa ocupava o lugar dele. Muito bem! Ele resolveu procurar um emprego no qual pudesse trabalhar com contrato. A mesma coisa se repetiu. Não conseguia encontrar trabalho. Então... uma pessoa de Tumaco veio até aqui, pediu que eu tratasse dele e tudo correu bem. Ele era ourives, não?”. “Era." “Então ele me pediu que tratasse dele para que tivesse sorte quando fosse vender suas coisas, pois precisava ganhar dinheiro para poder sustentar a família. Fiz o que ele me pediu, a vida dele começou a melhorar, as pessoas o procuravam e pediam que fizesse para elas anéis, brincos., e daí por diante. Daí ele disse a seu paisano, a seu conterrâneo, o seguinte: ‘Vá em frente! Vá até a casa do amigo Santiago. Ele curará você’. Ele chegou, cureio, mas não deiyagé para ele tomar! Cureio com uma planta. Disse o seguinte: ‘Ouça! Você voltará a Orito com isso e, quando tiver de procurar um emprego, quebre um pedaço desta planta, ponha na sua mão e na sua boca e daí negocie. Ninguém tirara o emprego de você! um Façaemprego esta experiência!’... E foi assim que aconteceu. Ele imediatamente arranjou com Dona Leila.” Estávamos sentados na varanda de sua casa com seu sobrinho Esaís, tomando chicha. Era o começo da tarde e a chuva começava a passar. As nuvens deslizavam rapidamente ao longo da silhueta recortada da cordillera. As flores do pátio como que imitavam o movimento das nuvens, que formavam tufos bem alvos e pairavam sobre os montes de um verde muito vivo. O sol fazia com que pontas aguçadas de verdescintilantes e de amarelos dardejassem das colinas e atingissem nossos olhos. Bebendo goles dechicha, ao som do vento que zunia e do rio que
deslizava em seu leito rochoso, Esaís falou. “Os feiticeiros aprendem com os livros", falou em voz baixa no ouvido do vento. “Usam orações que tiram dos 177
livros que compram nos mercados. Tudo isso funciona através de Satã. Você trabalha com ele ou com oyagé. Ou um ou outro; ião se pode trabalhar comos dois." “Aquele sujeito negro a quem chamávamos de ‘filho mais velho’ e que veio do litoral para tomar yagé acabou se revelando um feiticeiro", disse Santiago. “Aquele morocho trabalhava com Satã”, explicoume Esaís. “Foi ferido num duelo de feitiçaria. Sentia dores horríveis e estava envolvido com todo tipo de feitiçaria. Contou que certa noite, lá no litoral, foi baleado e as balas atingiram seu peito. Mergulhou ou caiu no rio e escapou. Quando veio até aqui estava afundado na feitiçaria. Meu tio Santiago tomouyagé com ele, viu o que acontecia e o repreendeu dizendo que tinha de mudar de comportamento." Conheci esse morocho em novembro de 1976. Ele viera da floresta, do outro lado do monte, à procura de Don Santiago, pois queria tomar yagé e ser curado de um certo mal. Eu estava sozinho em casa e, enquanto aguardava, ele contou me que sua boa sorte acabara. Sua casa se incendiara, sua canoa tinha sido roubada (no litoral, e eleno precisava curado. cusmaMudou de roupa, tirou a em calçaPuerto e (malMerizalde) pude acreditar que via),muito vestiuser uma índia, aquela túnica que somente os índios usam. Já havia estado lá e amava o yagé e tudo aquilo que o acompanhava. Queria muito tomarse um curaca índio. Quando comuniquei a Santiago que um paciente o esperava em sua casa com uma triste história para contar, ele resmungou qualquer coisa e continuou trabalhando com seu facão. “Isto significa que ele não quer pagar. Quer que eu faça tudo grátis!” O nome do “filho mais velho" era Félix. Sentado, vestido com sua cusma índia, contoume que vivia basicamente daquilo que pescava no estuário lamacento do rio Naya. Há muitos anos os negros que viviam naquela região do rio costumavam tomar pildé, o nome que se dava no litoral ao yagé ou a um cipó que cresce lá, semelhante ao yagé. Disseme que tomavam grandes quantidades, mas os jovens, atualmente, afirmam que se trata de coisa do demônio e não querem saber daquilo. Um pouco acima, no rio Naya, ele tivera uma experiência de cura, praticada por índios Cholo do rio Saija. “Eles fazem um altar, um mesa com seis copinhos de aguardiente, seis de vinho brancoenquanto e seis de refrigerante, coma charutos ciganos. É para“Em os espíritos”, reveloume, aguardávamos volta de eDon Santiago. seguida a pessoa doente é deitada junto á mesa. O médico segura um bisturi que, na verdade, é o remo de uma canoa, em miniatura. De vez em quando dão pildé a uma tonguera, geralmente uma mulher. Ela se deita, fecha os olhos e dentro de alguns minutos tem a resposta. O curador e os outros índios cantam durante a noite inteira e, pela manhã, a pessoa já apresenta melhoras. Mas não se vê nada", enfatizou Don Félix, “não é como acontece com oyagé-, não se vê uma sombra ou um movimento sequer... e de manhã, quando tiram o pano que cobre a mesa, a
bebida ainda está lá!". Ele me pareceu indeciso. Don Félix foi lá a primeira vez há dez anos e padecia de uma feitiçaria que 178
ningucm conseguia curar. Tudo começou com uma diarréia sanguinolenta e intensas cólicas abdominais, seguidas de dores nas juntas, que avançavam em direção ao centro de seu corpo e se transformavam em uma dor crônica no estômago, como se ali houvesse algo sólido, procurando passar e ser vomitado. Contoume que foi tratado por médicos de Buenaventura, Cali, Bogotá e outras cidades, que julgavam que ele tivesse amebas, mas semdisselhe nenhum que resultado. Então amigo de Buenaventura, um porto no Pacífico, lá longe, no um Putumayo, havia bons brujos. Santiago chegou de seu trabalho no campo e aquela noite o índio do Putumayo e o negro do outro lado das montanhas, vestidos com as suas cusmas, as túnicas índias, tomaram yagé. Félix começou a cantar tarde da noite, como um xamã. Gostei de suas cantigas, mas não era a mesma coisa. Após meianoite Santiago levantouse da rede e, cambaleante, ligou o rádio. Ele raramente ouve o rádio e fica zangado se está ligado enquanto tomam oyagé. “Por que ligou o rádio ontem à noite?", perguntei pela manhã. “Aquele morochocanta de um jeito muito feio”, disse ele, suspirando. Tais são as dialéticas da magia, da cura e da raça. Conforme comenta meu bom amigo Orfir, morrendo de rir, onde quer que a gente vá os grandes brujos se encontram em outro lugar. Em nossa cidade de Pueito Tejada comentase que os brujos do Chocó são surpreendentes. Se você for a Chocó lá dirão que os grandes bruxos se encontram em Pueito Tejada. E assim diante, com o distante se fricciona com ao raça, familiar, primitivo o moderno, por a floresta a cidade e a raça com por omeio de umcom movimento criador de magia. Essas imputações de magia à alteridade induzem ao encantamento da mistura da diferença, em uma poética do lugar e da raça não moios política e econômica do que estética. Tomemos, por exemplo, a servidão, conforme o relato que me fizeram algumas amigas, em uma aldeia situada nas proximidades de Puerto Tejada. São filhas de camponeses e agora se tomaram mães. Algumas trabalham nos canaviais, outras são mascates e muitas se empregam como criadas nas cidades próximas ou distantes. Walter Benjamin viu na reunião do viajante que retoma com aqueles que ficaram em casa, não menos do que as reuniões que se realizam na loja de um artesão, uma oportunidade toda especial para a narração de histórias mágicas.1No Terceiro Mundo dos dias de hoje existem muito mais empregadas domésticas do que artesãos, mas, ainda assim, as histórias fluem. “Algumas patroas recorrem á magia para amarrar(ligar) suas empregadas na casa e tomálas leais e trabalhadoras”, contavame minha amiga Elbia. “Algumas empregadas combinam com suas patroasde fazer feitiçaria com os maridos delas e ‘amarrálos’!” Algumas vezes ouvese falar de uma empregada que faz uma “amarração” para a própria patroa! As empregadas do litoral
do Pacífico são inclinadas a isso! Sim! Elas se empregam e vão embora quando bem entendem. Algumas chegam a bater nas patroas! 179
“As patroas fazem tão pouca coisa", comentou com um suspiro uma moça que ouvia nosssa conversa. “Jogam bingo, passeiam pelas ruas ou batem papo no telefone. O assunto principal é como somos boas ou más." Aqui, nesta aldeia, somente as bruxas conseguem voar. “Um homem e uma mulher estavam aprendendo bruxaria, estavam aprendendo a voar. Eles tinham de repetir ’’sin Dios, sin ley y sin Santa María' (sem Deus, sem lei e sem a Virgem Maria). A mulher disse direitinho e conseguiu voar. Mas o homem disse con Dios, con ley y con Santa María (com Deus, com a lei e com a Virgem Maria) e daí não teve condições de voar. Os homens não voam nunca!" Eles, porém, se preocupam quando são considerados como pessoas que se colocam acima das outras, quando atiçam a inveja e ela se transforma em ação, em situações em que eles fracassam e deixam de fazer o que deles se espera. Foi por isso que o marido de minha amiga Elbia, dono de um barzinho onde havia duas mesas por de bilhar alugadas, seu estabelecimento curado em três na noites sucessivas, meio de líquidosteve mágicos, garrafas com ervas enterradas soleira, e remédios que ele tomou e o fizeram mergulhar em um sono profundo. “Fizemos isso para impedir que a inveja entrasse no bar e nos matasse”, contou me ele. O curandeiro era um mulato e cobrou caro (2.000 pesos, numa época em que o salário girava em tomo de 150 pesos por dia). Ninguém sabia de onde ele tinha vindo. Lembravamse apenas que ele dizia que tinha aprendido sua arte com os índios do Putumayo. Depois disso ninguém soube dizer para onde ele foi. As três potências
Um novo espírito curador haveria de se manifestar na capital da nação. Seu nome era El Negro Felipe, e disseramme que ele vinha da Venezuela. As pessoas que até recentemente depositavam sua fé em outro espírito venezuelano, o piedoso médico José Gregorio, agora o deixavam de lado e procuravam a cura com El Negro Felipe. Fui a um centro espírita localizado em um bairro da cidade onde moravam trabalhadores, e ali médiuns espíritas brancas faziam seu culto. Ele era retratado e esculpido como um negro que usava um turbante indiano e um elegante casaco de soldado, com um colarinho rendado e dragonas. Ele inegavelmente se assemelhava a um negro, mas ainda assim a médium espírita branca disse a um grupo de cerca de 35 pessoas, entre as quais eu me incluía, e que foram ao centro se consultar, que era um índio, nascido em uma tribo da Venezuela há muito tempo, e que Deus lhe concedera um grande carisma. Decorridos alguns dias naquela terra quente, comprei um quadro emoldurado, no formato de cartãopostal, de Las Tres Potências; adquirio no mercado
de Tejada de umimagem homemfamiliar. que vendia de diversos santos.doMeu foi Puerto cativado por uma Eraretratos nada mais nada menos queolhar El Negro Felipe, agora apresentado como uma das três potências. Perguntei ao ven180
dedor, um branco da cidade de Cali, quem eram essas três figuras. O rosto à esquerda, disse ele, n a de Huefia, um negro nômade. A mulher do centro era Teresa Yataque e a figura da direita era Francisco Chasoy. Os três eram do Putumayo! Fiz a mesma pergunta a minha amiga Maria Sol. Ela recuou assustada, dizendo que era um retrato usado na feitiçaria. A pessoa à esquerda era um feiticeiro negro, o brujo Mayombé; a do centro era a rainha dos feiticeiros e a da direita, um feiticeiro índio. Com grande autoridade uma índia que vendia ervas medicinais e amuletos mágicos nas fervilhantes ruas de Cali declaroume que aquelas três figuras eram de índios panamenhos. Um velho branco que vendia limonada passou por nós e ficou muito excitado. “É o retrato de três índios do Putumayo”, exclamou. Um rapaz de Bogotá que vendia quadros de santos na calçada da igreja de São Francisco, em Cali, disseme que era o retrato de santos venezuelanos: o Negro Felipe à nossa esquerda, Maria Lionsa no centro e o indio Guaicaipuro à direita. Em uma barraca ao lado da sua uma negra lançou um rápido olhar às três potên cias e, sem hesitar, declarou que eram três índios de Quito, Equador. “Cada pessoa tem sua própria história", comentou com um sorriso minha amiga Dalila, de 14 anos. Eis, portanto, outra história de como a sociedade opera com uma reserva de imagens e relações entre imagens correspondentes à magia das raças, as Três Potências. O eflúvio mágico do índio primordial também pode ser encontrado nos sonhos de rendenção moradores cortiços daespanhola, cidade de em Cali, um lugar não existem índios dos desde o início dos da conquista 1536. Chrisonde Birk beck publicou o seguinte sonho, extraído de suas anotações de campo, em 1977. Dou Colo é proprietário de um pequeno armazém situado em um dos bairros mais pobres de Cali. Certo dia, não faz muito tempo, andava pelos arredores da cidade e sentiu vontade de evacuar. Dirigiuse então a um bananal, ao lado da estrada. Como não dispunha de papel, usou as folhas de uma planta e, ao voltar para casa, se deu conta de que havia perdido o anel. À noite sonhou que a perda do anel estava relacionada com a planta, cujas folhas usara aquele dia. No dia seguinte voltou ao bananal, juntou algumas daquelas folhas e as levou para casa. Esfregou as folhas no anel de ouro de sua filha e ele tomouse eUstico e maleável. Compreendeu então que havia encontrado aquela planta legendária, há muito tempo perdida, que os índios usavam para trabalhar o ouro com grande delicadeza. Ele, por sua vez, poderia tomarse uma lenda, mas isto não haveria de acontecer; pois Doo Colo temia divulgar seu segredo. Receava que alguém se aproveitasse desse fato e ganhasse a fortuna que lhe era devida.2
Esta história foi usada como prova do desespero do povo, sempre à espera de um falso milagre, e como ilustração do “mesquinho individualismo burguês" daqueles que ganham a vida no “setor informal" da economia. No entanto há
mais seremFocalizarse ditas (e não exclusivamente apenas o fato deosDon Colo esfregar o anelconsde ouro coisas de sua afilha). interesses econômicos cientes do indivíduo é perder de vista a mitopoética colonial que abre caminho 181
através do inconsciente político. O conteúdo do sonho, bem como dessa história, que, no todo, se assemelha a um sonho, nos remetem não só á expectativa d e um falso milagre por parte do indivíduo, mas também às concepções populares do milagroso e dos segredos redentores do conhecimento alquímico, podido para a história manifesta e, no entànto, acessível através da coincidência e do infortúnio, sob a forma de um sonho, no qual a história (e não unicamente um anel de ouro) se toma maleável através da magia indígena. O Museu do Ouro, universalmente conhecido, localizado na sede do Banco de La República, em Bogotá, pode com toda certeza ser qualificado como um totem nacional. Repleto de artefatos de ouro que datam da época da conquista européia e de muito antes, suas peças pequenas, porém reluzentes, brilham como estrelas na escuridão artificial, fazendo do museu uma igreja cujos rituais diários da magia, planejados e supervisionados por uma equipe científica de etnólogos e arqueólogos, que operam nas sala dos fundos para a multidão de peregrinos, recriam os sonhos de moradores de cortiços como Don Colo, em Cali. A experiência suprema, segundo a definição do museu, está em seu santuário mais recôndito, protegido por homens armados e pesadas portas de metal, através das quais a multidão é desviada a cada momento. Lá dentro é escuro como breu. Esperamos. A multidão se mexe, inquieta. Esta é a fase da communitas que, na verdade, não passa de um rito de iniciação. Ela termina abruptamente, quando um fulgor dourado invade a sala e todos os nossos sentidos. Encontramonos em um recinto abarrotado de objetos indígenas de ouro amontoados um em cima do outro: de nariz, peitorais, rãs, onças, morcegos, jacarés, índios,argolas todos dourados... jogados braceletes, um ao ladovasos, do outro, como lixo espalhado no quintal. O ouro prolifera como velhas latas de conserva. A multidão solta um suspiro de admiração. Lembrome de que Santiago Mutumbajoy ficou muito contente quando uma mulher branca de Cúcuta lhe petguntou não apenas se ele era batizado e um verdadeiro cristão, ma s se podia revelar o secreto que permitia encontrar ouro. A alguns quarteirões do Museu do Ouro, na ma que passa pelo Cemitério Central, reúnese toda segundafeira um numeroso grupo de pessoas dedicadas ao culto dos mortos ou, mais precisamente, ao culto das almas do purgatório, almas perdidas e solitárias. Algumas delas se dirigem aos túmulos de gente famosa e lá praticam ritos mágicos, solicitando sucesso, saúde e dinheiro. Outras vão até os buracos negros e vazios, que outrora abrigavam corpos, e lá acendem velas, no espaço da morte. Lá fora na ma, por detrás das mulheres que vendem flores e velas, perfumes e sabonetes mágicos, amuletos e quadros de santos, incluindo agora as Tres Potências, e por detrás da multidão — algumas pessoas ficam paradas, eretas, outras oscilam para a frente e para trás, murmurando orações mágicas diante dos pingos ressequidos de velas há muito queimadas —, por
detrás de tudo isto, enfim, estendese ao longo da ma Vinte e Seis o carnaval do grotesco, dos marginalizados, dos miseráveis entre os mais miseráveis: uma 182
trouxa em forma de tenda que, na verdade, é um anão sem membros. Um par de órbitas oculares, alvas como o alabastro, com cicatrizes de um vermelho muito vivo, brilha no rosto de um homem. Um velho magro, vestido de preto, sentase muito ereto em uma cadeira de rodas feita em casa e segura um guardachuva negro que lhe protege a cabeça. Em seu colo acaricia um cachorrinho peludo, obscenamente normal e entemecedor, nessa terra de deformados e inomináveis. Ele está absolutamente parado. Seu cotovelo repusa em uma plataforma sobre rodas, que é um verdadeiro trambolho. Nela está deitada uma garota totalmente paralisada, e seu rosto é um arrebatamento de vacuidade desprovida de fala. Atrás deles estão algumas índias que vieram de longe, do vale do Sibundoy, na extremidade setentrional do país. Estão vendendo coralitos e amuletos, além de algo mais: garrafas de remédios, escondidas debaixo de seus tabuleiros. A multidão é compacta e se pisoteia na rua Vinte e Seis, no dia das almas perdidas do purgatório. A multidão zumbe, como um enxame de abelhas. O que está acontecendo? No alto de uma escada de mão encontrase uma caixa quadrada de madeira, e cada lado mede cerca de um metro. Por 100 pesos um homem com um megafone abrirá as portas da caixa. Dentro, desprovido de expressão, está um menino sem corpo. É meigo, tal como um anjo. Em sua boca segura um envelope, o qual contém uma profecia. Ela é sua por 100 pesos. As portas se fecham sobre o rosto sem corpo. Queremos ver mais. Tão meigo. As portas que se abrem para o futuro revelado por uma criança amputada. Sim, disseme Carlos Pinzón. Há alguns meses havia uma coisa mais ou menos idêntica, só que em vez de um menino meigo usaram um cérebro metido dentro de um saco de plástico — o cérebro de um indio. E era assim que chamavam esse oráculo das ruas: o cérebro do indio. Longe do barulho e da sujeira dos cortiços, nas livrarias freqüentadas pela classe média, pelos ricos e pelos turistas do que se convenciona chamar os países desenvolvidos, existem muitos livros sobre os índios. Muitas vezes esses livros mostram índios, animais selvagens exóticos e plantas, todos agrupados, como se pertencessem e constituíssem uma única categoria. Tais livros são verdadeiros fetiches, ícones resplandecentes e em seu preços salgados. Até mesmoem os suas textosfotografias de históriacoloridas adotadosbrilhantes nas escolas de todo o país dedicam de um quarto a um terço de seus capítulos aos índios, sobretudo às sociedades e aos costumes da préconquista (no entanto neles mal se lê uma menção, para não falar de um capítulo, á escravidão africana ou à história do negro, em uma sociedade cuja economia apoiouse grandemente nas costas dos negros e de seus descendentes, muito mais do que nas dos índios). Seja na linguagem categorizada da história, da antropologia ou da arqueologia, ou nos sonhos dos pobres, a imagem do índio enfeitiça. É um feitiço não menos cati-
vante do que a magia no interior da Igreja e do que a descoberta epifãnica de seus milagrosos santos e virgens, conforme veremos a seguir. 183
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A mulher selvagem da floresta toma-se Nossa Senhora dos Remédios
O Senhor dos Milagres de Bugaenfaticamente introduz umaque profunda ironia na história do infortúnio de Transito. Declarando despreza índios, ela realizou uma árdua peregrinação, percorrendo centenas de quilômetros e atravessando montanhas para visitar um Cristo que, segundo diz, foi descoberto há milhares de anos por um índio. Há muitos santos milagrosos na América Latina que foram descobertos por índios ou se manifestaram a eles pela primeira vez, e cada santo apresenta determinada característica ligada á sua descoberta. Esses santos que se manifestaram a índios e as circunstâncias especiais que cercam a história de sua descoberta constituem um mapa de redenção traçado na terra. Cada circunstância é como um significante, dependendo do mapa como um todo para realizar seude significado. Cada peregrino que participa de cada peregrinação é como o ato falar, transportando aquele significado para uma atualidade concreta. Deslocandonos alguns quilômetros em direção ao sul, a partir do Senhor dos Milagres de Buga, e seguindo o vale chegamos a Cali, a maior cidade do Sudoeste da Colômbia, cuja padroeira é Nossa Senhora dos Remédios, venerada na capela da igreja de La Merced. De acordo com o livreto publicado pelos padres da igreja e que recebi de presente em 1982, o primeiro branco a vêla foi um missionário que propagava a fé nos Andes, ao norte de Cali, em 1560, decorridos 24 anos do início da conquista espanhola naquela região. Um índio contou lhe que no mais recôndito da selva havia uma imagem idêntica àquela que ele venerava em seu quarto. Os índios chamavamna a “Mulher Selvagem da Floresta", La Montafíerita Cimarrona. Faziamlhe oferendas de produtos de suas roças e de animais da floresta, para que suas colheitas e caçadas fossem abundantes. Tocavam suas flautas e dançavam para ela “com a flexibilidade de corpos livres da opressão imposta pelas vestimentas européias". No século XVII, segundo um testemunho autorizado, citado no livreto que mencionei, os índios são constantemente referidos como indios bárbaros.
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O missionário, Miguel de Soto, era manco e fez os índios levaremno em suas costas até a “Senhora Selvagem” para verificar se o que eles diziam «a verdade. Ele foi transportado através de florestas marcadas pelas pegadas de animais selvagens. O sol filtrava suavemente através do rendado verde da selva, deixando rastros de ouro nas folhas caídas que cobriam a beirada das trilhas. Ao longe ele ouvia o silvar das cobras. Os cipós se entrelaçavam, formando monogramas caprichosos. As noites não eram apenas o que existia de mais escuro, mas infinitos rumores invadiam a selva. É o que lemos. Naquelas selvas aromáticas, cheias de ruídos, situadas a apenas algumas léguas do mar de Balboa, o padre Miguel de Soto viuse diante da mais perfeita imagem da feminilidade com que jamais se havia deparado, talhada em pedra, em um nicho enfeitado com cipós e samambaias. Seus olhos encerravam uma doçura mística, seu sorriso era divino e em seus braços o Menino Jesus segurava um ftuto tropical. O padre ordenou que a imagem fosse transportada para o convento de La Merced, na nova cidade de Cali. Certa noite ela desapareceu e foi encontrada novamente na selva. Foi levada de volta para seu altar em Cali, mas por duas vezes conseguiu escapar e voltar para seu nicho na floresta, situada a apenas algumas léguas do mar de Balboa, até que lhe construíram uma capela especial. Em conseqüência dos muitos milagres comprovados que ela operou em favor da gente branca e civilizada de Cali, seu nome passou de Mulher Selvagem da Floresta a Nossa Senhora dos Remédios. Conquistada e domesticada, a selvageria conserva seu poder cura. Nos diaso de hoje imagens de índios rodeiam a santa. a Comodeocorreu com Senhor dos Milagres de seminus Buga, farol que guiava peregrinação de Rosário, é o índio que a história escolhe para fornecer à raça civilizada e conquistadora um ícone milagroso. Assim como o escravo atende as necessidades de seu senhor, os conquistados redimem seus conquistadores. No caso da Senhora Selvagem da Floresta, transformada em Nossa Senhora dos Remédios, sua mitologia, que a Igreja autentica, é surpreendentemente clara no que diz respeito à contradição que constitui o que Jean Barstow denomina “o poder insuspeitado dos que são privados de poder”; o status moral ambivalente de rádios, pagãoscristãos, índios bárbaros das selvas, abençoados por um parentesco espiritual aborígine com a Mãe do Deus dos cristãos conquistadores. Embora aqui os índios sejam claramente selvagens e, como tal, contrastantes com o Velho Mundo da Europa, não há indício algum de que sejam maus ou combativos. No entanto, a selva que contém os índios e seu ícone milagroso é diferente. Ela é verdadeiramente maléfica, barroca em sua folhagem rendada, fala com o homem através de monogramas caprichosos, em meio aos cheiros da noite e aos barulhos que se filtram na escuridão, através da qual, a exemplo do que ocorre nos círculos do infemo, o padre manco é transportado por seus guias
pagãos, a fim de encontrar sua Beatriz esculpida na parte superior de um rochedo. Em vista disso, sua jornada assombrosa pode ser comparada com aquela
empreendida pelo capitão Cochrane, que abordaremos posteriormente, aquele capitão Cochrane da Marinha inglesa, que também foi carregado nas costas de índios, em meados do século XIX, naquela mesma selva “situada a apenas algumas léguas do mar de Balboa". A Nina Maria de Caloto: a história oficial
O singular paradoxo que reveste a figura do índio privado de poder e lhe confere o poder de criar santos e virgens milagrosamente poderosos manifestase também por uma famosa Virgem, nos contrafortes da cadeia central dos Andes, a uns oitenta quilômetros ao sul de Cali. Tratase da Virgem de Caloto, conhecida como a Nina Maria. Em seu caso, porém, ocorre uma inversão do relacionamento manifestado pela Mulher Selvagem da Floresta com Nossa Senhora dos Remédios. Na história oficial que a Igreja apresenta, ao abordar a Nina Maria, os índios, do modo mais enfático possível, não são retratados como criaturas angelicais e inocentes, mas, ao contrário, como canibais pagãos selvagens e rebeldes, os opostos mais acabados ao que um cristão deve ser. Ao lado dos testemunhos absolutamente contraditórios, propiciados não somente pela história oficial mas também pela história oral, essa característica abre pistas para que se entenda a realidade mágica de que tratamos, isto é, a realidade dessa Virgem milagrosa, tanto quanto a natureza milagrosa da realidade depende, de modo muito curioso, das histórias contraditórias que circulam e m tomo dela, através daquilo qu e se diz. É este ouvir e falar efervescente e contraditório, que se dá em tomo do ícone, que precisa ser levado em consideração antes de mais nada, se acaso quisermos entender o modo pelo qual o milagroso é cotidiano e o ícone serve como um meio de apropriação experimental da história. A Nina Maria é uma pequenina boneca de madeira e mede 67 centímetros de altura. Até o fim do século XVIII era conhecida como a Virgem do Rosário e carregava um Menino Jes us nos braços, mas nos dias de hoje está sem ele, e é a figura central atrás do altar da igreja da pequena cidade. Tratase depraça uma edificação colonial, simples, queúnica chama a atenção e forma um dos lados da principal. Sua fiesta anual, realizada no mês de setembro, é esplêndida e atrai milhares de devotos, sobretudo gente que os moradores da cidade denominam indios, provenientes dos acidentados contrafortes dos Andes, que se erguem majestosos nos limites orientais da localidade. Caloto é habitada principalmente por brancos, e a cálida planície, que se estende em direção ao oeste e ao norte, abaixo da cidade, com seu gado e seus canaviais ondulantes, é habitada sobretudo por camponeses negros pobres e por diaristas. Não sei o que os índios pensam daquela
cidadezinha plantada no sopé das montanhas. Eles raramente descem de suas habitações e vão até lá. No entanto, os negros que conheci não hesitam em des 186
crevêla como uma localidade dc brancos, solitária, silenciosa, entediante, um bastião do Partido Conservador. De acordo com um folheto publicado pela arquidiocese de Popayán, a efígie da Nina Maria foi trazida pelos primeiros espanhóis que fundaram o povoado de Caloto em meados do século XVI. Era então uma localidade de “mineradores” de ouro (isto, em geral, referiase a brancos que obrigavam os escravos índios ou africanos a garimpar ouro). O povoado teve de mudar de lugar várias vezes, no decurso de meio século, devido ás investidas dos índios Pijao. Em 1585, de acordo com essa história oficial, os índios atacaram Caloto a fim de se apoderarem da Nina Maria, enquanto se celebrava a missa, na Quintafeira Santa. Mataram o padre e levaram a imagem. Segundo a versão do padre Lozano, inserida no corpo da narrativa principal, dizse que os índios mataram a maioria dos brancos. Era costume dos índios, após uma expedição bemsucedida, comemorar durante três dias com bebidas que provocavam a embriaguez, e dormir durante mais três. Então o imortal cristãos, investiu contra eles, acompanhado de seusCalambas, guerreiros.chefe Certosdos de índios que a Nina Maria seria horrivelmente profanada, é de se imaginar sua surpresa, escreve o padre Lozano, ao descobrir que os selvagens a haviam colocado em um belo trono de flores. Após 24 horas de sanguinolento combate, os espanhóis conseguiram dominar os canibais e se apoderaram da image m Os Pijao voltaram a atacar mais duas vezes e, na terceira ocasião, em 1592, levaram de novo a imagem sagrada. Os espanhóis conseguiram trazêla novamente de volta e desde então ela realizou muitos milagres. Um deles — e não o menor — foi vir em defesa do pueblo de Caloto, freqüentemente perseguido, a exemplo do que ocorreu em 1810, por ocasião das guerras da independência e das persistentes guerras civis daquele século de conflagrações, quando Caloto apoiou orgulhosamente a causa do Partido Conservador contra o Partido Liberal, nos conflitos de 1 851,1860,1879 e 1899. A exemplo do que aconteceu com a Mulher Selvagem da Floresta, que se tomou Nossa Senhora dos Remédios, a natureza milagrosa da Nina Maria depende grandemente da presença do índio, mas, cm profundo contraste com Nossa Senhora dos Remédios, os índios, na história que a Igreja publicou sobre a Nina Maria, são retratados como rebeldes militantes e canibais selvagens. Além do mais o ícone não é aborígine. Foram os espanhóis que a trouxeram para a fronteira daquela região selvagem rica em ouro. O fato que propicia á lenda aquilo que poderíamos denominar a “chave política”, que vive ativamente no presente, é que, a despeito de sua selvageria, os índios são seduzidos por ela. É este “milagre” que confere significado, desvenda e desenvolve a natureza milagrosa da imagem, cuja magia, daí por diante, serviu para defender os cristãos de outras investidas dos selvagens e protegeu a localidade durante a Guerra Civil.
Nasa história xilogravuras recentemente por um do romeiro a intenção de retratar oficial,feitas em exibição na residência padre,com é feita uma nítida 187
distinção entre dois diferentes grupos ou tipos de índios, os católicos que ajudaram os espanhóis e os selvagens que roubaram a Virgem, assassinaram o padre e levaram sua cabeça. A distinção é importante, na medida em que não apenas ressurge nos relatórios dos franciscanos sobre a região do Putumayo no tempo colonial (estabelecem igualmente uma distinção entre os índios das montanhas e os da planície), representa os aucas, chunchos etc., estabelecidos na montaria andina do Equador, Peru e Bolívia, como índios selvagens, e representa também o caráter dualizado do “índio" como uma categoria social e um personagem moral. Não somente havia índios pagãos e índios convertidos existindo como verdadeiros grupos sociais, mas a imagem colonialmente sugerida e ainda efervescente do índio depende precisamente dessa combinação de opostos, na qual a selvage ria e o cristianismo se apóia m e se subvertem mutuamente. Esse debruçar sobre a relevância semântica da dependência de um ser se manifesta em um registro diferente, através do contraste entre as histórias oficiais da Nina Maria e de Nossa Senhora dos voltamos Remédios. Talasdebruçar tomase, no entanto, positivamente insistente quando nos para disparidades existentes entre os relatos oficiais e oficiosos relativos a virgens milagrosas, introduzidos no reino deste mundo pelas descobertas pagãs. Tomemos a Nina Maria como exemplo. A Nina Maria: história popular e histórias
Das 32 pessoas com quem me encontrei pela primeira vez em 1982 e com quem falei rapidamente na cidade de Caloto e ao longo da estrada principal que levava á planície, seis declararam que não tinham conhecimento da Niiía Maria. Ao todo falei com três índios, dezesseis brancos e treze negros, todos adultos. Somente cinco pessoas fizeram relatos que coincidiam com a história oficial. “É uma imagem espanhola", disse a sobrinha do padre. “Os índios a roubaram Graças a ela conseguiam atacar os espanhóis e a veneravam Os espanhóis a recuperaram e desde então conseguiram resistir aos índios." “Os índios a cultuavam", enfatizou o padre. “Estimavamna e foi por isso que a levaram. Odiavam os brancos, mas não a religião." Contrariamente a essas declarações, catorze pessoas me surpreenderam ao dizer que ela era uma Virgemindia, que apareceu em primeiro lugarpara os índios e não para os brancos, e que tinham sido estes que a roubaram dos índios! Seis negros, seis brancos e dois índios prestaram esse depoimento. Um negro, proprietário de um pequenino armazém a um quilômetro da cidade, disse: “Alguns indios a encontraram, porém mais do que isso eu não sei". Uma branca que vendia café em uma aldeia das redondezas disse: “A Virgem apareceu para os índios selvagens nos morros de Caloto para fazer com que eles tivessem fé”.
uma santa na dospraça índios!”, exclamou uma mulher branca meiaidade vendia“Éamendoins principal da cidade. “Esta terra erade inteira deles e que ela 188
os protegia. Quando os espanhóis chegaram ela fez com que parecesse que existiam milhares de guerreiros índios, e isto assustou os espanhóis, que fugiram’* Uma negra que vendia bananas no mercado declarou: “Ela potência ao povo índio, a seus caciques. Encontraramna lá nas montanhas. Ela apareceu como se fosse uma pessoa de verdade. Então outro grupo de índios a roubou. Os caciques pegaramna de volta e a puseram na igreja de Caloto. O grupo que a roubou também queria sua coroa de ouro. Ela faz milagres, mas os índios não lhe dão o devido valor. No dia 8 de setembro (sua festa anual) ficam terrivelmente bêbados. Porém têm muita fé nela, embora fiquem largados na sarjeta como cachorros. No ano passado um ladrão tentou roubar a coroa, que era vigiada por um policial. O ladrão abriu a porta, mas por um milagre pareceulhe que tinha mais de mil policiais montando guarda lá. Muitos pueblos sentem inveja de Caloto e tentaram destruir a cidade e levar a Virgem embora. Invejam a Virgem tanto quanto o pueblo. E por que a inveja? Ninguém consegue explicar a inveja; é que mala corazón)”. o mundo tempessoas gente denão maufizeram coraçãoa (gente Quatro menor de menção a índios ou á história colonial e à conquista. Em vez disso declararam que ela apareceu posteriormente, no século XIX. Um negro, no ônibus que entrava na cidade, disse simplesmente que ela apareceu pela primeira vez na época da Guerra Civil, a fim de salvar o Partido Conservador. Um barbeiro, homem branco muito velho, sentado diante da praça da qual se avistava a igreja, disse que ela apareceu durante “as guerras”, isto é, as guerras entre os liberais e os conservadores. Os liberais, muito confiantes, atacavam a cidade mas fugiram, atemorizados; a Nina Maria havia criado uma
ilusão de barulho e confusão, dando a impressão de que a cidade era defendida por conservadores que superavam em grande número seus atacantes. O rapaz branco que tomava conta do salão de bilhar ao lado da barbearia disse que não conhecia de fato sua história, mas que ela apareceu durante a Violência, isto é, aqueles embates sangrentos entre liberais e conservadores que devastaram boa parte da Colômbia rural de 1948 a 1958. Na cidadezinha predominantemente negra de Puerto Tejada, vizinha de Caloto, um amigo me disse que a primeira aparição da Virgem ocorreu durante a Guerra dos Mil Dias, que durou de 1899 a 1901. Um famoso general negro, Juan Zappe, habitualmente conservador (mas, até certo ponto, um camaleão), travava, juntamente com seus guerrilheiros, um árduo combate com as tropasliberais. Sua munição quase chegara ao fim. A derrota parecia certa. Então a Nina Maria apareceu milagrosamente, provocando alucinações no inimigo e criando a ilusão de que os conservadores eram muito mais fortes do que parecia. Então os homens do general Zappe foram vitoriosos, e atualmente a família Zappe participa orgulhosamente todo ano da festa da Nina Maria em Caloto. Uma senhora de certa idade, Ana Guambia, faz parte da elite de Caloto. É
pintora e é aa principal, se não a única, do movimento detrata folclore local. Ela encara Virgem milagrosa comoestimuladora uma arma mágica quando se de confli189
tos raciais e espirituais. Afirma que os espanhóis eram muito supersticiosos, bem como os índios, e que, em suas campanhas de conquista, eles transportavam uma imagem da Virgem, possivelmente feita em Quito, que os protegia. Os índios compreenderam esse fato. Entenderam que a Virgem era uma arma mágica e decidiram roubála, minando desse modo o poder de seus opressores. Eles se apoderaram da imagem c começaram a destruíla. Hoje percebese que embora o rosto ainda esteja perfeito, debaixo das roupas seu corpo está desfigurado. Então os índios começaram a padecer de pragas, tais como a varíola e o sarampo, seu cacique morreu de um ataque cardíaco e eles começaram a se dar conta de que em vez de destruíla deveriamvenerála. Foi então que os espanhóis a encontraram, adorada pelos índios, que a cobriam inteiramente de flores. Finalmente uma enfermeira negra que atendia um amigo meu que estava à beira da morte, nos arredores da cidade, em uma choupana encostada nos canaviais, fez uma ligação lírica entre a Nina Maria e o Senhor dos Milagres de Buga, a uns 200 quilômetros ao norte de Caloto. “Alguns índios a encontraram num bambual, e daí ela foi embora. Estava descalça. Os índios voltaram a encontrála, trouxeramna para Caloto e começaram a fazer festas para ela. Você não viu?", perguntoume. “É uma fiesta de índios!" Fez uma pausa. “As pessoas contam que quando ela foi embora, partiu para Buga, a fim de ficar com o Senhor dos Milagres, pois naquela época ele era uma criança.”
Um diálogo de dupla visão
Das 36 pessoas com quem conversei, seis declararam não ter conhecimento da gênese da Nina Maria. Apenas cinco coincidem com a história oficial. Alegam que a imagem pertenceu aos espanhóis, que foi brutalmente roubada por índios canibais e que seu poder milagroso foi truzido a este mundo por selvagens que sucumbiram a seu encanto cristão. Em completa contradição com a história oficial, a versão oral mais comum, sustentada por negros, brancos e índios, afirma que os espanhóis roubaram a imagem dos índios e que se trata de um ícone essencialmente indígena. Isto abrange vários relatos, com diferentes implicações políticas. No relato da negra que vende bananas no mercado, dois temas de importância são abordados. Reconhecendo que a Virgem milagrosa pertencia inicialmente ao povo indígena e que este deposita grande fé nela, a vendedora de bananas nota que os índios não a apreciam devidamente. Ficam bêbados em sua festa, estendemse na sarjeta como cachorros. Ao passo que a bestialidade do índio é necessária para trazer ao mundo a Virgem e seus poderes milagrosos, uma apreciação
consciente, a percepção, os cuidados subseqüentes desenvolvimento requerem uma sensibilidade muito diferente, isto eé,oaquela associada adesse quempoder não 190
é índio. Existe aqui uma divisão racial do trabalho espiritual na criação do poder milagroso da santa, na qual o índio bestial, pagão e selvagem, é necessário, do mesmo modo que um cachorro ou um bêbado conseguem sentir e atrair influências às quais u m homem civilizado e sóbrio é insensível Um segundo tema no relato da vendedora de bananas diz respeito á importância primordial inveja, da reciprocidade e da que ilusão. A Virgem pueblos, inveja da parte d e da outros da mesma forma protege Caloto estimula da agres-a são dos invejosos. Ao estimular e desviar a inveja ela apresenta um dilema básico não apenas para a feitiçaria e a cura mágica, mas para os relacionamentos interpessoais em geral, tão vividamente ilustrados nas vidas de Rosário e José Garcia. A exemplo do que acontece com eles, a alucinação salta do seio da inveja, rompeo e faz com que essa inveja seja provocada, resolvida ou ambos. Além do mais, o modo pelo qual a Virgem protege seu povo da inveja que ela estimula nos outros consiste em induzir á alucinação, transformando uma realidade em outra, e com isso causando confusão. Pelo que foi dito, a alucinação se fez presente nas guerras de conquista, nas da independência, nas guerras civis do século XIX, na Violência de meados deste século e há alguns meses, quando um ladrão tentou roubar a coroa da Nina Maria (cabe notar aqui que a magia é usada a fim de impedir o roubo na Colômbia, e na maioria dos casos de que tenho conhecimento o objetivo dessa magia é o mesmo atribuído à Virgem, isto é, criar o medo, quando não a confusão, por meio da ilusão de uma força protetora, tal como uma cobra ou uma onça). Voltemos agora â mulher que vende amendoins na praça. Ela disse que a Virgem é uma santa dos índios. Esta terra lhes pertencia. Ela os protegia. Quando os espanhóis chegaram ela fez com que parecesse existir um número imenso de guerreiros índios, e isso assustou e afugentou os espanhóis. O que me parece intrigante é que o poder mágico da Virgem no sentido de criar uma realidade assustadora por meio da ilusão é empregado primeiramente contra06 espanhóis, sustentando seus mitos e fantasias relativas aos poderes dos índios. Além do mais, a história, tal como é narrada, reconhece a base ilusória desse poder imputado ao índio selvagem Essa história fala ao mesmo tempo do que está dentro e do que está foraepistemologia, do encantamento magia, dois registrando assim não apenas duplicidade da comodatambém universos separados. Cadauma um deles requer o outro, cada um deles demole o outro. Se quisermos, este é o paradoxo da própria noção da ilusão — menos real, igualmente real, mais do que aquilo que é realmente real e do que aquilo que toma o real realmente real. Tal é a fé que compõe as histórias que compõem a Virgeme seus milagrosos poderes. Por detrás dos poderes ilusórios da Virgem mascarase, é claro, a ilusão da imagem do índio como um ser composto e decomposto pelo fluxo e refluxo da história colonial. Em ambas as instâncias, a da Virgem milagrosa dependente do
índio e a do índio dependente da Virgem milagrosa, o princípio de adesão à realidade da história não deixa de assemelharse ao princípio da colagem, na qual a
apresentação coexiste com a representação e na qual cada ordem da realidade aliena, quando não zomba da outra. Em outro registro essa colagem se manifesta através da mulher branca vendedora de café, que dizia que a Virgem pertence aos índios e apareceu para tomá los cristãos. Quase equivale a dizer que a função histórica da Virgem é política, de acomodardivina o pagão deus do e, assim, nesteque caso, estabelecer a legitimidade doao domínio doconquistador branco. É a crítica familiar se fez ás virgens mágicas: são criaturas inventadas por clérigos astutos a fim de ludibriarem índios crédulos. No entanto sentimonos tentados a perguntar por que eles se mostraram tão crédulos em relação a esta questão específica? E se eles se deixavam enganar com tamanha facilidade, por que os eclesiásticos precisavam recorrer a meios tão tortuosos para leválos a acreditar no deus dos espanhóis e em sua mãe virginal? Além do mais, não é a crença dos índios que se questiona aqui, mas a crença do branco em relação à do índio. O fato é que a vendedora de café, que observou que a Virgem apareceu primeiro para índios, e assim agiu para tomálos crentes, é ela mesma uma crente no poder milagroso da Virgem. A força e a lógica que sua declaração encerra, enquanto interpretação cética, depende da própria fé e a presume. Não apenas a fé no poder da Virgem em fazer milagres é criada e reproduzida através desse duplo entrelaçamento de uma concepção que se apóia e m um relato fixo, e não apenas os relatos se contradizem mutuamente, como, em geral, contestam a voz oficial da própria Igreja. Creio que isto aponta para algo que vai além do da ícone simples dialética. Em vez parece social que a vida e, negação, portanto, multiplicidade a realidade doou milagre, depende dadisso, reprodução de uma realidade constantemente inconstante, na qual o significado depende de seu oposto e ao mesmo tempo o destrói, em um confronto incess ante com a fonte da verdade formalmente institucionalizada. A fim de repelir o inimigo e extrair a vitória de uma derrota, a imagem da Virgem cria mais imagens, que, ao que se diz, não passam de ilusões.
Historiografia virginal
Quando nos debruçamos sobre os quatro relatos, nos quais jamais se faz menção ao papel do índio pagão em omitir o poder salvacionista da Virgem, somos inclinados a indagar mais incisivamente que espécie de historiografia a imagem alimenta e expressa através do discurso. Embora seja tentador dizer que um ícone tal como a Virgem de Caloto possa preservar mitos de srcem da sociedade col onial, esses relatos indicam, além do mais, que os mitos de srcem permitem q ue o ponto srcinário deslize pelo tempo ou o salte a fim de representar diferentes
acontecimentos. Nesses quatro relatos a srcem da Virgem é deslocada para diante e situada em outros campos de batalha, nas guerras de independência tra192
vadas no século XIX, nas guerras civis que lhe sucederam e na Violência de meados do século XX. Enraizada em deteiminada paisagem, tão mítica quanto física, enraizada cm um determinado partido político, o Conservador, a Virgem está livre para perambular através de um tempo cronológico e para fixar acontecimentos memoráveis mediante o frescor de sua gênese recorrente. Ao agir assim ela serve como um lembrete de pontos focais da história social, pontos revestidos do tempo messiânico de perseguição e salvação da comunidade moral A função mnemónica reabastece o presente com temas e oposições mfticas, colocadas em uma atuaçãosemiótica no teatro dajustiça e da redenção divinas. A magia do índio — obstáculo pagão, militante, anticristo, ao ouro das regiões incultas — coloca a Virgem em seu curso redentor. A ironiadivinamente forjada, por meio da qual, em sua derrota, os índios descobrem e também criam a defensora milagrosa de seus conquistadores, estabelece o complexo das relações míticas e mágicas com o qual os relatos compõem e decompõem a história da Virgem Quando a voz do eíndio já não se faz mais ouvir, a figura mais genérica de um intruso ameaçador de um “Outro Invejoso” emerge nos partidários da realeza, no século XIX, ou nos partidários liberais das guerras civis e daViolên cia, omitindo a recorrência contrastante domilagre. Tratase de um processo hermenêutico, politizado, sensível á raça e à classe, de interação semiótica com a estrutura de signos estabelecidos como imagens na experiência social, introduzido pela conquista espanhola. Incrustada em ícones coloniais tais como a Nina Maria de Caloto, tal estrutura é trazida para a vida diária não como um modelo inerte e fixo, mas, ao contrario, existe por meio de uma criatividade espasmódica, dialógica, e como gama de possibilidades inter pretativas. A esse respeito, vale notar que o relato oral mais comum cm temo da gênese da virgem subvertea fala oficial do passado, tal como é proposta pela Igreja, ao mesmo tempo em que mantém fidelidade à forma santificada pela autoridade dessa mesma Igreja. Referime à imagem e aos relatos que derivam dela, circulam em tomo dela e a ela retomam, como se se tratasse da mesma coisa. É uma ordem de realidade que existe em dois meios distintos — por um lado, a boneca de madeira e, por outro, os relatos que adornam e animam sua nudez virginal Eu disse “imagem”, quando poderia muito bem ter dito “a comunidade de pessoas entre as quais a imagem existe, a comunidade de pessoas que realizam o imaginário e, por meio disto, trazem a imagem para a vida, em um procedimento que se repete muitas vezes”. É claro que é um fetichismo revestir a imagem per se de um papel ativo, tendo em vista aquilo que, na realidade, é uma relação de reciprocidade entre aquele que vê e aquilo que é visto. Chegara o momento de examinar com maiores detalhes o relacionamento daqueles que vêem com a imagem vista. Neste momento quero colocar o leitor
de em relação a um tipo de cegueira, presente em pessoas preparadas, quesobreaviso podem apreender esse relacionamento como algo análogo àquele modelo 193
conhecido, agora tão na moda, de texto e leitor, no qual é creditado a este último um papel significativamente ativo na construção do texto que está sendo lido. Neste momento a analogia tem sua utilidade somente se a compreendermos como algo mais brutalmente político e mais finamente nuançado do que se costuma elaborar. Para tanto basta nos reportarmos ao passado e pensarmos na construção dialógica do imaginário da tortura e nos horrores do boom da borracha no Putumayo para avaliarmos o que foi uma política brutal. Quanto ao segundo aspecto, que diz respeito à sutileza, ele pode ser indicado ao nos referirmos à formação de imagem que ocorre no relacionament o entre os xamãs do Putumayo e seus pacientes, um relacionamento que em geral muito nos tem a ensinar quanto á construção dialógica dos tumultos da alma e da formação de imagem corporalmente eficaz. Pois aqui, ao que se diz, o xamã é aquele que verdadeiramente vê e, em virtude dessa capacidade, proporciona ao paciente, aquele que não consegue ver, as imagens curadoras — a pinta ou pintura.* Porém não é tanto o xamã quanto o paciente quemas confere fala podem e formamodificar narrativaaapercepção, essas imagens, as quais não apenas perturbam também o registro de uma vida, bem como os relacionamentos sociais. Assim, é na atividade combinada daquele qu e vê mas não fala do que é visto, juntamente com o paciente que fala, mas que não vê verdadeiramente, que encontramos a fusão de uma formação de imagem socialmente eficaz. Ao que parece, não deixa de ser o caso de ícones mudos, tais como a Virgem de Caloto que, a exemplo do xamã, provocam imagens (pinta, pintura). Outras pessoas, desprovidas dessa visão, resgatam essas imagens por meio da fala e dos relatos. Ao agir assim, elas também resgatam a fé messiânica no milagre e em pontos focais que condensam retroativamente, sob forma de colagetn, a epopéia da conquista imperialista, das lutas da independência, das guerras civis e da Violência. O imaginário dialético e a tarefa do crítico
Este tipo de historiografia que se apóia na formação e na dependência da imagem é também o tema de uma contribuição agudamente excêntrica à teoria da revolução social, elaborada na Europa ocidental no século XX. Refirome aos conceitos de crítica redentora e de imagens dialéticas, desenvolvidos por Walter Benjamin. Em sua juventude, em 1914, Benjamin invocava exatamente aquele tipo de historiografia tal como é exibida na formação de imagem provoada pela Virgem de Caloto. Contrário à visão da história como algo que se apresenta como um conünuum progressivo, o jovem Benjamin introduzia o conceito de que “a história permanece acumulada em um ponto focal, tal como acontecia outrora com
* consomem Entre os adeptos da União do cVegetal e do Santo Daime, doisé grupos devoeionais brasileiros a ayahuasca (ou yagi) om finalidades religiosas; a pinta conhecida como miração. (N. T.)que
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as imagens utópicas dos pensadores. Os elementos da condição final não se encontram presentes como tendências de progresso, desprovidas de forma, mas, em vez disso, estão incrustadas em cada presente como criações e idéias expostas a um perigo, condenadas e ridicularizadas”. A tarefa histórica, prosseguia ele, “consiste em conferir forma absoluta, de modo autêntico, á condição imanente da realização, a fim de tomála visível e predomina nte no presente”.1 A tarefa do crítico da obra de arte consiste, portanto, em associarse a essa tarefa de redenção, resgatando, conforme coloca Richatd Wolin, “as poucas visões únicas de transcendência que embelezam o continuum da história". Com toda certeza não será precisamente isto que os camponeses e habitantes urbanos de Caloto inserem em todo presente, ao nos oferecerem suas versões sobre as srcens da Virgem no passado? Somente aqui os fragmentos seculares e teológicos desse passado apresentam uma configuração mais nítida, mais concreta, menos grandiosa e mais brechtiana do que aquela sugerida pelo tom grandiloqüente da eles formulação É a terradadohistória, índio, por quanto o fato de elidiremdeaBenjamin. força messiânica queexemplo, constituitanto o enfoque dessa história; é o alarido confuso da batalha, das guerras raciais e das guerras das civilizações que ressoa através desta visão da transcendência, a qual embeleza o continuum da história. Mais tarde, em outra época de sua vida, quando reajustou a critica redentora a fim de fundila com sua ligação idiossincrática ao marxismo, Benjamin referiu se a sua tarefa como algo que envolvia a “dialética em um momento de pausa”. A galeria de imagens com que se preocupa o crítico da alta cultura agora se expande e inclui aquele imaginário que incendeia a imaginação popular. Se, por meio dessa expansão, a história da arte chega mais perto de uma visão da história enquanto arte, não se deve esquecer que, para Benjamin, esta é uma visão da arte que se apóia no conflito de classes, bem como uma visão messiânica. Ela vincula o parecer de que, enquanto o poder das idéias e a ideologia se situam mais no reino das imagens e de que não pode existir um desejo revolucionário desprovido de uma representação pictórica exata, essa capacidade das imagens foi bloqueada, com exceção de raras ocasiões, pelas representações da classe dirigente em tomo do passado que esse imaginário evocava. “Esse salto para o passado”, escreveu Benjamin, sobre a evocação imagética da Roma antiga pela Revolução Francesa, “se exerce em uma arena onde a classe dirigente dá as ordens”. No entanto, o mesmo salto “em direção ao ar livre da história é o salto dialético, que é como Marx entendeu a revolução”.2 Incitando o critico a arquitetar modos de libertar o imaginário do peso debi litador da tradição e da prisão das classesdirigentes, Benjamin parecesugerir que as imagens ou pelo menos algumas delas conduzem a essa tarefa. Por isso o crítico dedicado ao método da “dialética em um momento de pausa” é exortado a não
forçar a dialética através de imagens, trabalhar com esse desesta bilizador e a nutrilo, quando e ondemas ele aexistir enquanto sinalpotencial de um término
messiânico do acontecer. Em suas próprias palavras, guando se aproximava do fim da existência, ele definiu mais ou menos essa tarefa (foi em 1940, após os acontecimentos turbulentos que se seguiram ao pacto StalinHitler): !
O pensar envolve não somente o fluxo de pensamentos, mas também sua suspensão. Li onde o pensar se detém subitamente em uma configuração prenhe de tensões, ele dá a essa configuração um choque, através do qual a cristaliza em uma mônada. Um materialista histórico aproximase de um tema histórico somente quando o encontra como uma mônada. Nessa estrutura ele reconhece o signo de um término messiânico do acontecer ou, dito de outro modo, como uma oportunidade revolucionária, na luta pelo passado oprimido. Toma conhecimento dele a fim de detonar uma era específica, subtraindoa ao curso homogêneo da história. Detona uma vida especifica, subtraindoa dessa era, ou uma obra específica, subtraindoa à obra de toda uma vida.3
No entanto, apesar de sua ousadia, ele hesita. Há uma falha no atrevimento com que ele concebe a imagem dialética; há ênfase excessiva na tarefa do crítico enquanto ativistasee não há confiança suficiente no modo comoa as imagens menos algumas) comportam na cultura popular. Para elidir dialética de(pelo imagens como essas, pelo menos no Terceiro Mundo, a varinha mágica e dialética do formador de imagens precisa apenas de uma leve pancada. Tomese como exemplo a Virgem de Caloto. Aqui não há necessidade de se recorrer à mão pesada da arte surrealista, não é preciso invocar como metáfora o término messiânico do tempo, não há por que se dar ao trabalho de contestar a visão oficial do passado evocado pela imagem e, acima de tudo, não há necessidade de ir além dos limites, argumentando que a imagem pode funcionar como “mônada” no sentido a que anteriormente me referi. Tudo isto existe como uma ocorrência cotidiana na maravilhosa realidade continuamente evocada através da criação dialógica da vida da Virgem e da força vital. Talvez o escrito de Benjamin relativo a esse estratagema tão fundamental para sua concepção do artista e do crítico revolucionários tivesse se beneficiado de um estudo mais detido de algumas imagens populares, tal como a da Virgem de Caloto. No entanto é possível que seja realmente isso que Alejo Carpentier assinala no prólogo de The kingdom ofthis world [O reino deste mundo]: enquanto os surrealistas europeuseeram condenados pore sua sociedade e suas tradições (incluind o as de revolução rebelião) a manipular a justapor desajeitadamente um imaginário impróprio, construindo laboriosamente realidades descomunais, nas colônias e excolônias européias algo semelhante ao realismo era inerente enquanto prática social profundamente incrustada na vida cotidiana. Quanto ao surrealismo, o mesmo (gostaria de sugerir) se dá em relação às imagens dialéticas. A diferença critica entre suas expressões européias e coloniais é que enquanto na Europa elas eram grandemente ignoradas pelo populacho, ainda que (para os surrealistas) “a serviço da revolução", nas colônias e excolônias tais
expressões são intrínsecas à forma de vida e estão a serviço de seus mágicos, sacerdotes e feiticeiros. 196
Raramente Bcnjamin conseguiu afastarse dessa sua paixão pela melancolia. Não era tarefa fácil para uma alma tão firmemente ligada à promessa redentora de um passado cujo traço, levado â quintessência, reside na premonição da catástrofe. No entanto o surrealismo evocava nele um apreço pelos modos graças aos quais a risada conseguia fazer o mundo rachar, expondo as terminações nervosas da há zona de luta doprocurada, formador se de abre... imagens na aqual “a esfera imagem, tanto tempo empolitizado, uma palavra, esfera na qualdao materialismo político e a natureza física compartilham o homem interior”. Pois se o surrealismo tentava modificar aquela trouxa de feitiços que contém representações míticas nas quais se baseia a cultura ocidental, e o fazia usando imagens que acionavam amplas contradições, abrindo as portas para o maravilhoso, sua própria representação tinha de ser icônica e irônica, trazendo à mente não apenas a análise de Freud relativa ao imaginário inconsciente minado e subvertido pelas piadas, mas também o fascínio que Mikhail Bakhtin e Georges Bataille experimentavam pela poética anarquista, a qual mesclava o grotesco e o jocoso em sublevações de degradação e renovação, que se assemelhavam a um carnaval. E aqui penso no “realismo mágico” dos romancistas latinoamericanos. Suas criticas deixam a desejar. Existe uma verdade quando Carpentier alega que os europeus estavam forçando a porta que se abre para o maravilhoso em suas próprias sociedades com um desespero de brutos, enquanto que nas colônias estavam entreabertas, quando não escancaradas. No entanto nem em sua obra, nem na de Arguedas, Asturias ou Garcia Márquez ouvese, segundo me parece, a força da risada e da anarquia acentuando o reino enevoado do maravilhoso. Com excessiva freqüência o espanto que sustenta suas histórias é representado de acordo com uma tradição do folclore, de exótico e de indigenismo há muito estabelecidos e que, ao oscilar entre o engraçadinho e o romântico, é pouco mais do que a apropriação padronizada da classe dominante em relação àquilo que é considerado a vitalidade sensual do povo e de seu imaginário. No entanto, para os surrealistas, precisamente devido á extremada autoconsciência que caminhava de par em par com o “desespero de brutos”, permaneciam gravados como um axioma o espanto e a irritação expressos por Wilhelm Fliess, otorrino de Berlim, que, dos sonhos, de autoria de seu bom amigo após l a as provas de Adeinterpretação Dr. Freud, no outono 1899, queixouse de que os sonhos apresentavam um excesso de piadas. Isto nos leva de volta ao universo das piadas e da atuação semiótica nos sonhos presentes na iconografia popular. Penso aqui não apenas no dedilhar da corda da derrota e da salvação que cria uma multiplicidade de versõesrelativas à Virgem e que faz malabarismos com a semiótica do milagre. Penso também no modo como o tom pesado e a autoridademística davoz oficial do passado é atraída para a terrae familiarizada com uma sagacidade amável e, de vez em quando, picante. As
evidências indicam que a profusão de variações que unem e desunem uma realidade diversa é obra de uma atividade que esvazia a sistematicidade. Tratase de 197
um estratagema no qual se brinca co m as palavras, com toda sua multiplicidade e duplas epistemologias, com as pretensões de umalíngua mestra, não simplesmente manifestada mas reivindicada pelas classes dirigentes. “Alguns índios encontraramna em uma moita de bambus", este foi o relato que me foi feito, acompanhado de uma risada da enfermeira que atendeu nossa amiga, moribunda nas proximidades de um canavial. “E então ela se foi... 0 povo diz que quando ela foi embora dirigiuse a Buga para ficar com o Senhor dos Milagres, pois ele também era uma criança.” Nessa reflexão posterior da enfermeira a perspicácia cria outro mundo e outro modo de ver. A traquinagem dos santos, mais do que ser revelada, é um deleite e com o mesmo assomo generoso de emoção o Norte do vale, em Buga, é ligado à região Sul do vale, em Caloto. O Senhor dos Milagres de Buga, majestosamente arredio, é trazido suavemente para a t ara, para a materialidade e para o povo graças ao encontro amoroso prépúbere que ocorre entre ele a Ninã Maria, que tanto gosta de viajar. Talvez a coisa funcicme assim: embora asaparições dela sejam milagrosas, seus desaparecimentos é que a tomam humana. Nisto também existe algo fortemente anticlerical, como se o fato de notar os desaparecimentos levasse a notar os direitos do povo em relação à Igreja, que a tranca durante a noite. Algumas vezes isto se toma muito claro, a exemplo do que ocorreu com a Virgem da ilha do lago Cocha, ao leste do Peru, a qual, de acordo com o depoimento de um velho soldado que participou da guerra contra o Peru, travada no Putumayo em 1933, foi descoberta pelos índios e desaparecia toda vez qu e o padre comparecia a sua capela a fim de celebrar a missa. As pessoas comentavam que ela ia visitar a Nina Maria na distante localidade de Caloto, relatoume o velho soldado. Talvez exista uma vida secreta e uma oculta Sociedade de Santos e Virgens da qual a Igreja não tem conhecimento. Talvez essa sociedade inclua não apenas santos e virgens famosos na Colômbia ocidental, mas também admita santos populares de outros lugares, tão distantes quanto a Venezuela, por exemplo, de onde vieram El Negro Felipe e José Gregorio Hemández. Nessa sociedade os santos se parecem mais conosco e talvez até mesmo se assemelhem a nossos filhos. Como daqueles queoueles exibem apaticamente para estamos os fiéis,longe quando ficam semblantes escondidos impassíveis atrás do altar quando posam para suas estampas vendidas no mercado e nas ruas! E se as pessoas gostam de preencher as vidas dos santos e das virgens com paixões por demais humanas, deslocando assim o monólogo inscrito pela Igreja, esses mesmos santos e virgens preenchem a paisagem por meio de significados inscritos pelas rotas de suas interrelações. Dado que são humanos, bem como sagrados, não seria correto afirmar que eles, em conseqüência, “santificam” padrões espaciais, a menos que endossemos uma noção de santidade que apóie o vigor das fraquezas humanas.
Sc assim agirmos poderemos então descrever um contorno “sagrado” da terra, composto de pedacinhos e fragmentos interligados, referentes aos significados 198
dos lugares. As tomarias, os ritos pata curar o infortúnio, os hctbanários ambulantes e os curadores populares trazem intermitentemente à luz esses contornos e lugares, os quais, acima de tudo, não passam de redes implícitas,de trilhas esfuma çadas, que só se manifestam indiretamente através das fendas, sonhos e anedotas da vida cotidiana. Algumas vezes os ícones da Igreja interagem com os do Estado. Cali, a maior cidade do Sudoeste da Colômbia, está no ângulo onde as planícies se interpenetram com as alcantiladas encostas dos Andes. Dominando e protegendo a cidade desde cima, no pico da montanha, encontrase uma enorme estátua de Cristo crucificado, com os braços estendidos. Lá na cidade, segundo me afirmou um de seus jovens vagabundos, há uma estátua em homenagem ao fundador da cidade, o grande conquistador Sebastián Benalcázar. Ele é representado de pé, numa postura tensa e, em vez de empunhar uma espada, leva a mão à cintura. Furioso, mal pode acreditar que acabam de lhe roubar a carteira (é preciso assinalar queoCali é notória por seus batedores de perspectivas carteira). Com outra que mãofundou, aponta não para sonho do sublime e para as futuras da acidade mas para outra estátua, a do primeiro prefeito de Cali (conforme diz meu jovem amigo), acusandoo de toubo. O prefeito, por sua vez, defendese apontando para a estátua de outro dignitário da cidade, o qual aponta em direção á montanha, assinalando nada menos do que o próprio Cristo, que estica os braços, como se estivesse se submetendo a uma inspeção da polícia: “Não roubei nada. Podem verificar!”. O fado do vagabundo utbano e o de Cristo são assim unidos, mas ambos são injustamente acusados pelos fundadores da cidade, pelosconquista dores e pelos bons burgueses. A Virgem e o Arcanjo
Bem ao sul, na escarpa rochosa de uma profunda ravina, lá no alto dos Andes, e próximo a uma estrada, verdadeira montanharussa que se dirige para o Equador, há uma representação pictórica da Virgem de Lajas. A intensidade com a qual ela irradia a fantasia popular pode ser aferida por sua presença nas visões provocadas pelo yagé em Pedro, filho de Rosário, bem longe, nos contrafortes orientais, onde seu poder se difunde ainda mais, ao longo dos cursos de água e dos grandes rios como o Putumayo e o Caquetá, os quais acabam por criar o Amazonas. Negros, brancos, índios, mesmo os da longínqua floresta tropical, vêm visitar a Virgem Salvador, o grande xamã Cofán que trouxe Santiago de volta do abismo da morte, foi visitar a Virgem de Lajas quando sua filha mais velha ficou cega. Ela se recusara a dar a mão em casamento a um colonialista negro, conforme me narrou
sua mãe muitos Ele enfiou uma agulha em umsua retrato furandolhe o olhoanos e elamais ficoutarde. cega daquele olho. Pediu novamente mão edela, ela 199
tomou a recusar. Mais uma vez ele furou o retrato e cegou o outro olho. Salvador tentou curála por meio de seus cânticos, juntamente com yagé e com suas ervas, mas sem resultado. Seguiram então o curso do rio, através da floresta, e subiram a montanha até as cidades e o santuário da Virgem, mas a filha estava muito triste. “É preferível eu partir com a Virgem a ficar cega”, ela confidenciou a sua mãe e logo após morreu. Somente muito mais tarde eles ficaram sabendo da história do colonialista e do retrato, quando ele se embebedou e mostrou os olhos vazados da fotografia para o cunhado de Salvador, que estava bebendo com ele. Salvador não tomou nenhuma atitude, afirmando que Deus puniria o culpado. A exemplo do que ocorreu com o Senhor dos Milagres em Buga, com Nossa Senhora dos Remédios em Cali e com a Nina Maria de Caloto, a Virgem de Lajas também foi descoberta por um índio. De acordo com o padre Augustín M Cora, em seu livro Nuestra Senora dei Rosário de las Lajas (publicado em Bogotá em 1954), a Virgem de Lajas fez sua aparição em 1794, na ravina de Lajas, próximo a Ipiales. É umaapoderouse ravina espetacular, pelos viajantes como a gente boca do inferno, onde o diabo de mais vista de uma vítima, precipitando no rio Guáitara, lá embaixo. O filho de uma das famílias proeminentes de Pasto ouviu dizer que sua velha amadeleite, uma índia, estava vivendo na miséria, no campo, e foi buscála para que ela morasse no conforto de sua casa. Quando atravessavam a ravina ela ouviu som de música. Contornou algumas pedras e eis que viu a Virgem. Nesse momento entrou em transe, chamando seu companheiro para que testemunhasse o que estava acontecendo. Assim que pôs os olhos na Virgem ele desmaiou, e as aparências indicavam que havia morrido. Ela andou a noite inteira, até Pasto, onde deu o alarme. No dia seguinte o padre e outras pessoas apressaramse a ir até o local da aparição e o encontraram vivo, ajoelhado diante da Virgem, com o rosto banhado de lágrimas. No entanto, a exemplo do que sucedeu com a Nina Maria de Caloto, a história oficial é apenas um dado em uma miscelânea de vozes que, por meio de suas diferenças interligadas, conferem vida aos poderes milagrosos da Virgem Rosário e seu marido virtualmente viraram às avessas o relato oficial, dizendome que a Virgem de Lajas não foi encontrada por uma índia que era conduzidaàspor um branco por uma índia que viajava sozinha, um bebê costas. Não foirico, paramas a mulher que a virgem apareceu, mas trazendo para o bebê. “Olhe”, disse o bebê. E lá estava ela. Dona Emilia, uma negra velha e pobre que estava sendo tratada de reumatismo por Santiago, contoume que a virgem é milagrosa, faz milagres e que visitoua em seu santuário quatro vezes. Quanto à srcem da Virgem, disse o seguinte: “Há muito tempo uma índia andava por lá com sua filhinha, à procura de lenha. A filha disse: ‘Mamãe! Olhe! Aquela mestiza está me chamando’”. Dona Emilia explica que mestiza não é simplesmente filha de índio com branco,
mas uma gringa, uma forasteira de pele clara. A denominação racial, expressa pela criança, deixando de lado seu significado específico de gringa, tomouse 200
ainda mais significativa quando o neto de Santiago, o menino César, de 10 anos de idade, que visitava o avô vindo de Caquetá, afirmou, ao ouvir nossa conversa, que a meninazinha, até aquele momento epiíânico, era muda! No momento cm que viu a Virgem mestiza gringa, a indiazinha adquiriu o poder de falar (e de mencionar categorias raciais). A mãe de César, Natividad, também havia visitado a Virgem quatro vezes. Por ocasião da última visita faziase acompanhar de sua sogra, que não viu a Virgem como uma pintura, mas como uma estátua. “Seu olhar era vivo", disse ela a Natividad. Outras pessoas também viram a transformação da Virgem em uma escultura, bem como seu olhar. O filho de Rosário viu a Virgem do Carmo modificarse dessa forma por ocasião de uma visão com yagé, que ocorreu como contraponto àquela que ele tivera de sua casa sendo objeto de feitiçaria. Ao explicar a visão que tivera com a Virgem, descreveu o atemorizante cruzar de um rio, necessário para chegar até ela, e contou como o sol iluminava a Virgem em seu nicho no rochedo da ravina. Então, afastandose do rochedo, ela tomouse “semelhante a uma mulher, viva, e me deu sua bênção", libertandoo e a sua família do nicho rochoso da feitiçaria e da inveja. “Para algumas pessoas ela simplesmente desaparece!”, comentou a mãe de Natividad, Ambrosia, juntandose a nós na cozinha, com um feixe de lenha nos braços. Mas seu marido Santiago, xamã e homem de visão, jamais viu seu olhar onde a vida brilha ou jamais a viu viva. Para ele a Viigem permanece na tela onde está pintada, e eu, que jamais a vi, sou informado que no lado oposto da ravina, tocayo, São Miguel, pisando com força diante dela, seAmbrosia, encontra meu xará, meu na serpente. Natividad, Emilia e eu abanávamos a fumaça que teimava em entrar em nossos olhos. A conversa assumiu um tom animado. “A Virgem de Lajas consegue curar os doentes, os cegos e os aleijados", declarou Ambrosia. “Ela também exorciza os pecadores.” “Se você for com fé, será curado. Se não for com fé, nada acontece!”, exclamou Natividad. Cada declaração sua era corroborada por uma réstia de sol que atravessava a fumaça. Introduzi na conversa o tópico de índios que trouxeram santos e virgens milagrosos para a sociedade da Colômbia como um todo. Natividad mencionou mais um santo desses em Huila, fez uma pausa e disse: “É que nós, índios, somos inocentes. É por isso". “Mais religiosos”, interveio Roberto, seu marido. “Mas isto foi antes", declarou Natividad. “Agora os índios degeneraram.” Então, solenemente, deu uma risadinha. “Mas aquelas pessoas antigas”, prosseguiu, “não eram apenas inocentes. Eram tambémmuito selvagens. Comiam gente. Matavam gente. Viviam como animais... Pergunte a Don Santiago. Ainda existem
algunsNoque fazem assim”. de Nossa Senhora dos Remédios, em Cali, os índios relato eclesiástico que participaram da descoberta da Virgem são excepcionalmente pacíficos. Na 201
história eclesiástica da Virgem de Caloto, a Nina Maria, os índios são formidavelmente selvagens. O poder do índio pagão de revelar os signos milagrosos e os santos de Deus a seus conquistadores cristãos é um poder que depende da inocência e da selvageria, de tal modo mesclados que, quando uma característica como a inocência é enfatizada, é para fazer com que seu oposto reprimido, a selvageria, se destaque através de sua ausência e com conotações emocionalmente ampliadas. Ao contrário disso, Natividad, filha de um xamã índio, traz simultaneamente para nossa atenção a inocência e a selvageria do índio. Ela o faz de tal modo que une o presente ao passado do mesmo modo como o pathos se une ao humor, mediado pela Queda a partir de uma “inocência” que acolhe a selvageria. Ela se refere a essa queda como sendo uma degeneração. Na sala onde, durante vinte anos, seu pai curou negros e brancos com aquele mesmo imaginário de inocência e selvageria, representado para eles em sua própria pessoa, está dependurada uma estampa empoeirada de São Miguel Arcanjo derrotando o demônio e precipitandoo na fumaça e nas chamas do inferno. Em sua mão esquerda ele segura a balança da justiça b em junto à cabeça do demônio, enquanto que na direita empunha bem alto sua espada. Suas asas estão estendidas. Com exceção da auréola, seu traje é o de um soldado, como um antigo romano. Muitas vezes me surpreendi divagando em tomo desse quadro, dependurado no centro da sala onde, durante tantos anos, muita gente tomou um remédio alucinógeno e, graças ao cântico índio, debelou o demônio, assim como São Miguel. Ele também se encontra naquela ravina distante, em frente á Virgem de Lajas,me e olevam modoa como Ambrosia, Natividad Emilia referem a ele,que na cozinha, imaginar como tudo aquilo eteria sidosepara o romeiro caminhava até lá atravessando um campo de poder composto pela Virgem em um dos lados da ravina e o arcanjo do outro lado. Essa mestiza descoberta por uma meninazinha índia é uma espécie de mãe para todos nós e, conforme Ambrosia declara, ela cura os doentes e limpa o pecado. Diante dela está aquele guerreiro implacável que empurra o demônio para os infernos. Não presenciei isto, mas muitas noites vi o velho Don Santiago, marido de Ambrosia, lá nos infernos de uma região tórrida, situada bem abaixo do santuário da Virgem, sentado em sua rede, do outro lado do retrato do arcanjo, coberto de teias de aranha, rindo, enquanto as lágrimas desciam por seu rosto, cantando e curando gente que se dobrava ao peso do infortúnio. Pareceme óbvio que curadores como ele contêm a imagem da mãe e do guerreiro, do mesmo modo como sua filha Natividad, por meio do pathos e da risada, junta a inocência e a selvageria índia, de outro modo dividida entre relatos icônicos de imagens milagrosas, tais como Nossa Senhora dos Remédios, a Mulher Selvagem da Floresta e a Nina Maria. Com efeito, o peso das tradições do Velho Mundo ampara a visão de São Miguel Arcanjo como uma entidade que contém em si os poderes duais de cura-
dor e guerreiro. Donald Attwater diz que a referência existente no livro da Revelação á guerra travada no céu contribuiu para que São Miguel fosse honrado no 202
Ocidente, desde o início do cristianismo, como capitão das hostes celestiais, protetor dos cristãos em geral e dos soldados em particular. No Oriente, entretanto, bem como em Constantinopla, não era seu status de guerreiro, mas seu poder de curar os doentes que importava.4 Acontece que esse arcanjo é também o padroeiro da cidadezinha de Mocoa. Há enorme quadro quecoisa o representa ao ladoCreio do altar, ninguém localidadeumparece saber muita a seu respeito. quemas nenhum dos na padres e freiras saiba algo relativo a suas srcens locais. Devo muito a Don Santiago por ter tomado conhecimento delas. Ele recebeu esse conhecimento de seu papa serior, seu avô, que teve uma existência notavelmente longa. Os últimos anos ele os passou virtualmente dobrado em dois, devido ao peso dos padres e de outros brancos que ele carregou Andes acima. Por sua vez papa senor ouvira folar da chegada dos brancos por gente mais velha do que ele. Foi de um tomador, um bebedor de yagé, que os índios em tomo de Mocoa ouviram folar da chegada iminente dos brancos e, naquela visão, havia indícios de dor e mal Antes de fugir, os índios esconderam seu santo mais precioso, São Miguel, na fortaleza labiríntica das raízes de umhiguerón,que se erguia junto ao rio. Quando os espanhóis chegaram eles puseram os santos dos índios no templo deles, índios, e os usavam como cepos onde cortavam a carne. Chocados, alguns índios fugiram com tamanha pressa que deixaram para trás seus filhinhos. Outros ficaram, mas se recusaram a fazer o que quer que fosse e morreram lentamente. Outros venderam suas terras por uma ninharia, por alguns facões ou uma trouxa de roupa. Certa noite a cabana onde os espanhóis dormiam pegou fogo. Eles se queimaram dos pés aos joelhos e perderam as pernas. Foi o castigo de Deus. índios das colinas e das montanhas, de Aponte, Descanse, Yunguillo e Sibun doy desciam até o rio Mocoa para pescar. Naquele tempo o rio tinha peixes em abundância. Eles retiravam o veneno barbasco das árvores â beira do rio e, ao procurarem lenha, descobriram a imagem escondida de São Miguel, que colocaram na igreja da velha cidadezinha. Os espanhóis, sem pagálos, os obrigaram a construir uma nova igreja na cidade nova, rio abaixo, onde a estátua de São Miguel encontra até hoje. dos padres, você poderá ver a imagem em uma “Seseconseguir permissão sala trancada, no fundo da igreja. É esculpida em madeira e é pequena”, disse Santiago, levantando a mão a uns setenta centímetros do chão. Fui até a igreja. O padre que me acompanhou até a sala trancada se mostrava tão contrafeito quanto eu. É claro, assinalou ele, havia uma esplêndida imagem de São Miguel Arcanjo, que media cerca de um metro e meio, vestida com armadura romana, composta de elmo, peitoral e botas compridas. O arcanjo pisoteava o demônio. No entanto, por mais que procurássemos entre os restos de asas,
braças e auréolas, naquela floresta de santos bem preservados e outros arruinados, não conseguimos encontrar outro São Miguel que não aquele. 203
“Mas ele está lá com toda certeza!”, insistiu Don Santiago, quando puxei conversa com ele á noite. “Tem os braços erguidos, asas prateadas e é pequeno." Voltei á igreja, ao depósito de santos, e lá, com efeito, se encontrava a imagem O padre não tinha a menor idéia de quem era ou de que se tratava, ma s, no entanto, era a única que se ajustava à descrição de Santiago. Mas que tipo de São Miguel era aquele? Não havia nem espada nem dem ônio. Em vez disso ele flutuava, ajudado por asas de um comprimento desmesurado. Era um pequenino querubim, com os braços e os olhos voltados para cima. Era o anjo mais meigo que já foi esculpido.
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Selvageria
Estou tentando reproduzir um modo de percepção, um jeito de enxergar através do modo de falar, delineando o mundo por meio de um diálogo que se toma vivo, provido de uma súbita força transformadora, que irrompe pelas fendas pausas e justaposições da vida cotidiana, tal como ocorre nas cozinhas do Putumayo ou nas ruas em tomo da igreja, no caso da Nina Maria. É também um modo de representar o mundo, na “fala” sinuosa da colagem das coisas, como nos coralitos (medicados pelos indios) em tomo dos punhos dos bebês. Tratase de um modo de percepção que opera nos escombros da história, tais como os santos desprovidos de membros e auréolas, espalhados pela sala dos fundos edavirgens igreja de Mocoa, onde a poeira cobre pedaços de um mundo sagrado mutilado, reduzido a cepo de açougueiro. É um modo de percepção que coloca em primeiro plano esses fragmentos, os quais invadem a ordem que reina no altar, na obscuridade artificial da própria Igreja. Essa inscrição nos limites da história oficial, esse “autêntico" e verdadeiramente obscuro São Miguel, pequenino e desprovido de palavras, flutuando com suas asas imensas nos confins do quarto de despejo da igreja, são imagens de esperança, irregulares e oscilantes. Em um acesso de sentimento poderemos querer murmurar coisas encorajadoras e valentes sobre a “resistência" e daí por diante, enfatizando a fragilidade de tais vozes contrahegemônicas e de significantes portadores de asas encarnes, prontos para voar. No entanto esse tipo de resposta destinase mais a nós do que àquelas vozes. Somos nós que obtemos coragem, graças àquela confluência de força e fragilidade, a força na fragilidade dada aos fracos e aos derrotados, inscrita de vez em quando nos ícones milagrosos e também nos xamãs índios. Com os derrotados está o poder redentor, com o selvagem está a santidade, afirma Natividad, a filha do xamã, dando uma risadinha.
Do mesmo modo existiu santidade na selvageria, porém sentimos que sem muitas risadas, a exemplo do que ocorre na tela portuguesa que retrata a Adora 205
ção dos Magos, pintada na primeira década do século XVI, na qu al o lugar habitualmente ocupado pelo mago negro foi tomado por um índio brasileiro, de cocar de penas, brincos, pulseiras e tomozeleiras de ouro e um colar de pérolas. Em uma das mãos ele traz uma tigela que é metade de um coco, repleta de ouro, e na outra um tacape, que, ao que se dizia, os índios brasileiros usavam. Vestido com um calção e uma camisa de variegado padrão, “pou cos selvagens p oderiam parecer”, escreve Hugh Honour, “mais gentis, corteses e eminentemente humanos”.1 No entanto, em outra tela portuguesa pintada uns cinqüenta anos mais tarde, um índio com o mesmo cocar e um m anto de penas preside, como o demônio, os tormentos dos condenados, em um inferno semelhante àqueles pintados por Hie ronymus Bosch. Eles eram deuses ou demônios, nota Richard Comstock, “criaturas que não sofreram a queda, que possuíam uma inocência srcinal, ou demônios providos de uma maldade brutal, além da compreensão humana. Nos primeiros encontros dos colonizadores europeus com os nativos americanos observamos ambas as imagens operando na mente do homem branco".2Talvez menos mítico, mas nem por isso carente do reconhecimento da dualidade na imagem do índio, o norteamericano Henry Boller, que comerciava com os índios, assim se expressou, em carta dirigida a seu irmão no ano de 1859: dros.
Se não fosse pelas constantes interrupções, eu poderia “pintar** para você... dois qua-
O primeiro deles represen taria o lado brilhante da vida do índio, com suas penaslanças, e vestido com exuberância, com seus estandartes, lutas, caça ao búfalo etc. O outro lado, que éetc. o escuro, a sujeira, verdadeiros, os parasitos, sem a pobreza, a nudez, sofrimento, a superstição Ambosmostraria seriam igualmente exageros ou dis-o torções; ambos totalmente dessemelhantes!3
Quando Manuel Gómez, um colonialista branco dos contrafortes do Putu mayo, nos Andes, tomou yagé com um xamã índio, ele também viu as coisas dessa maneira dualizada, luzes e trevas, antes de morrer. Decorridoà muitos anos, ele me contou que, após o caos de formas que se modificavam e se moviam, após os sons que zumbiam e murmuravam em paradas e retomadas e depois que as cobras, em grande penetraram suaonde bocaestivera através do vômito, umaà onça se aproximou, logonúmero, desaparecendo. No em lugar o xamã, junto fogueira, agora se encontrava o diabo. Ele era exatamente como o pintavam, disse Manuel, inflamado e vermelho, com rabo e chifres. Enquanto Manuel não tirava os olhos dele, sentado ao lado da fogueira, nas grandes florestas do Putumayo, o diabo, fumando um charuto, transformouse em xamã e perguntou a Manuel se ele sentia medo. Mais uma vez o índio transformouse no diabo, e Manuel sabia que estava morrendo. Na verdade já estava morto, contoume mais tarde, e começou a subir por uma es-
cada esplêndida até encontrar um velho, no limiar do nada. Esse homem abençoou Manuel e disselhe que voltasse para a terra. Passo a passo ele regressou, 206
deparandose com a luminosidade verde da alvorada que irrompia através da floresta. Foi o índio como xamã e este como diabo que encenaram essa passagem para ele, através do espaço da morte e da redenção. A linguagem é dramática, não menos do que a experiência registrada, e a experiência deve ser percebida não simplesmente como uma glosa sobre o poder colonial, mas um modo de ver como o poder propicia uma visão de sua constituição interna, lá onde a fabula e a fantasia irrompem no cotidiano da opressão da raça e da classe. É um munda nismo que se toma hiperreal, lá onde a sociedade confina com o ermo, na fronteira. Por esta forma abençoados, colonialistas como Manuel Gómez e José Garcia destroçam a feitiçaria do invejoso: o colonizador reifica seus mitos relativos ao selvagem, tomase sujeito ao poder deste último e, ao agir assim, procura a salvação naquela civilização que o atormenta, tanto quanto o selvagem em quem ele projetou seu antieu. Ao observar a pintura portuguesa de meados do século XVI, que representa o índio como o demônio a presidir os tormentos dos condenados, Hugh Honour comenta que essa imagem enquadrava o índio como uma fera da selva. Contrastando com o primeiro quadro, a Adoração dos Magos, e sua ligação com a mitologia de uma Idade de Ouro, o segundo quadro liga o índio não somente ao diabo, mas também àqueles homens da lenda renascentista e medieval, cruéis, lascivos, bestialmente peludos e deformados. Foram essas lendas que propiciaram o imaginário dos nativos do Novo M undo como seres monstruosos, sugere John Friedman em seu estudo sobre as raças monstruosas na iconográfico arte e no pensamento medievais.4 Ele sugereaoque um desenvolvimento que caminhava paralelamente do houve imperialismo europeu, começando com aquela galeria de criaturas e monstros fabulosos, as maravilhas do Oriente, na índia e na Etiópia, nos confins do (Velho) Mundo, reduzindose a uma única figura, o homem selvagem, identificado com os povos encontrados no Novo Mundo. Essas maravilhas do Oriente incluíam gigantes, pigmeus, unicórnios, formigas que escavavam ouro, pessoas com cabeças de cachorros, outras com caudas, algumas com a cabeça saindo do peito, canibais e amazonas — criaturas metade humanas, metade espíritos, que povoavam as margens da sociedade, a qual, além do mais, fora dar às margens de terras exóticas. Tais criaturas ocuparam seu espaço em livros que exerceram grande influência, tais como Imago Mundi, de Pierre d’Ailly, Historia Rerum, do papa Pio II e nos relatos de viagem de Sir John Mandeville. Como se sabe, todos eles, principalmente os dois primeiros, atraíram a atenção de Cristóvão Colombo. Em sua tão apreciada biografia do almirante, Samuel Morrison declara queImago Mundi e a Historia Rerum foram as duas principais fontes de Colombo (na medida em que as fontes foram preservadas) quando ele recorreu a argumentos intelectuais a fim
de seus planos. Foi graças a essa última obra trilhas que elejulgava tomouestar conhecimento dosapoiar antropófagos (canibais) do Amazonas, em cujas em 1492 e 1493.5 207
Em seu estudo sobre as maravilhas do Oriente, Rudolf Wittkower concluiu que, através da disseminação pictórica, nas formas populares, bem cómo nas eruditas, tais maravilhas impressionaram grande número de pessoas e influenciaram muitas correntes do pensamento medieval Seus significados poderiam mudar. Por exemplo, no final da Idade Média elas poderiam surgir na iconografia cristã sob a forma de raças fabulosas, capazes de redenção, que aguardavam os apóstolos de Cristo. No início do século XVI, período da conquista do Novo Mundo, tal visão parece ter sido substituída por outra, a qual enxergava o monstro como um mau agouro. Essa visão se associava a uma irrupção de crenças populares que não tinham lugar na concepção medieval oficial do mundo. No entanto, uma modificação tão brusca de julgamento, do monstro como um cristão em potencial e o monstro enquanto arauto do mal, não deveria causar surpresa. Conforme o próprio Wittkower enfatizou na conclusão de seu erudito ensaio, “em todos os lugares atribuiuse ao monstro os poderes de deus oueasdoforças do mal”.6 Essa monstruosa dualidade do um diabólico bem diabólicas é nitidamente delineada na descrição que Richard Bemheimer faz do homem selvagem do final da Idade Média. Com efeito, essa figura, conforme sugere Hugh Honour, é util para que se compreenda a qualidade mágica imanente ao imaginário europeu da selvageria, à época da conquista do Novo Mundo (quando não até hoje).7 Metade humana, metade animal, desprovida da fala e da razão, essa peluda criatura das florestas assemelhase a uma criança gigantesca, temida por seu terrível gênio e por seu poder mágico. Irritandose com facilidade, ela pode reduzir os intrusos a pedaços, atacar as mulheres e raptar crianças, sobretudo as que não foram batizadas. Desenraiza árvores, faz os lagos desaparecerem e as cidades afundarem no chão. Prefere viver sozinha em lugares escondidos, tais como as cavernas, e luta constantemente contra outros homens selvagens e as feras e dragões da floresta. Em sua ira, ela cria tempestades e chuvas de granizo (é o tempo que mais aprecia), pois não há nada que favoreça mais o retomo dos mortos. Ignorante de Deus, essa criatura exerce poder sobre os animais da floresta (assim como os xamãs) e possui conhecimento oculto dos poderes mágicos das plantas (a exemplo dos xamãs). Inferior aos humanos na grande cadeia do ser, ela tambémlhes é superior. Os poderes a ela atribuídos não a fazem menos perigosa do que desejável. Bemheimer inclui em seu livro um quadro de Brueghel, o Velho, o qual mostra camponeses capturando, pela força das armas, um homem selvagem, com o propósito de matálo, assim como aconteceu há muitos anos no Putumayo com o irmão de Santiago Mutumbajoy, igualmente um xamã. Mas Bemheimer também chama a atenção para a escultura de um selvagem no portal de uma igreja do século X m, em Provença, a qual mostra sua mão através do braço de um homem que conta dinheiro em um saco. A intenção dessa representação, diz Bemheimer, é
demonstrar lucro pode sercom obtido a partir íntimado com o selvagem. Eis aí que umaointerpretação a qual mais da de associação uma colonialista Putumayo, tal como José Garcia, haveria de concordar (mas talvez não sua mulher, Rosário). 208
E é claro que, de vez em quando, o selvagem dá um passo adiante e, com a maior das boas vontades, atende os necessitados e talvez cuide com ervas mágicas dos ferimentos daquele cavalheiro, peisonagem do Faerie Queene de Spen ser, que se perdeu nas florestas pertencentes àquela criatura. Atualmente os colonialistas do Putumayo podem sonhar em obter plantas como essas. José Garcia usa algumas delas em sua garrafa de remédios, e meu caro amigo que já se foi, Chu Chu, um curandeiro mulato que morava longe do Putumayo, no vale do rio Cauca, aconselhoume com grande cuidado que plantas eu deveria solicitar aos ervatários do Putumayo, tanto para meu próprio bem quanto para o dele. Nos cortiços de Cali, Don Colo também sonhou com uma planta indígena, mágica e secreta, que poderia ser dele. Essa planta, perdida para a história, amaciava o ouro. E talvez algo daquele cavalheiro de Spenser, perdido na floresta, império do selvagem, se reproduz na vida, a exemplo do que se narra daquele branco de Bogotá, Gabriel Camacho, que durantesendo muitocuidado tempo perambulou yagé, do Putumayo, perdido e enlouquecido, pelos xamãs pelas com oflorestas sua erva mágica. As surpreendentes inversões que se nota quando o conquistador atribui poderes mágicos ao primitivo nos é mostrada nas descrições renascentistas dos feitos de Alexandre, o Grande, com as raças maravilhosas da índia. Em um manuscrito francês do início do século XV vemos iluminuras de Alexandre e seus soldados em combate mortal com um homem e uma mulher selvagens, jogandoos na fogueira. Em total contraste com essa imagem, em umAlexanderbuch do mesmo século, vemos esse monarca tão poderoso, acompanhado de seus cortesãos, togando ao selvagem, agora descrito como um sacerdote, que consulte as árvoresoráculo do sol e da lua. Alto, escuro e peludo, esse sacerdote/homem selvagem tem presas enormes e uma língua comprida como a de um cão. Apresentase nu e usa apenas um brinco de ouro e a mitra de um bispo. Nos textos latinos, nota Ti mothy Husband, ao ouvir o selvagem profetizar sua morte iminente, Alexandre reconhece o poder do pagão, exclamandoJúpiter omnipotens.* Entre os vários aspectos, quero chamar especial atenção para aquilo que Bronislaw Malinowski denominou “uma verdade bem conhecida”, isto é, que “uma raça mais elevada em contato com uma menos elevada tende a atribuir a esta última poderes demoníacos misteriosos".9 Ele se reportava às experiências vividas com o discurso colonial no Sudoeste do Pacífico, por ocasião da Primeira Guerra Mundial, muito tempo depois das descrições renascentistas de Alexandre e de suas proezas com as raças selvagens e maravilhosas da índia. As distâncias também eram muito grandes. A imputação de misterioso e de demoníaco que as classes mais poderosas
fazem àsaos outras —— os éhomens mulheres, os civilizados primitivos, os cristãos pagãos de tirar àso fôlego. É uma concepção aos velha, persistente, paradoxal e ubíqua. Atualmente ela existe não apenas sob a forma de racismo, 209
inas também como um culto vigoroso do primitivo, c é enquanto primitivismo que ela propicia a vitalidade do modernismo. “É nossa esperança moderna", entoa a voz atual de W. B. Yeats em “Ego Dominus Tuus” (minha citação é de um rascunho de 1912): Com o auxílio das imagens Eu poderia invocar meu antieu, convocar todos aqueles com quem menos tratei, estimar a todos eles Pois estou farto demais de mim mesmo
De acordo com Maiy Cathleen Flanneiy, é este rascunho que revela mais claramente o fato de que Yeats estava escrevendo sob a influência de um espírito que o visitara durante uma sessão. Era o espírito de Leo Africanus, escritor e explorador mouro, que fora prisioneiro na corte do papa Leão X e a quem se dava certa importância, em se tratando das opiniões que ele expressava sobre os africanos. Yeats correspondeuse com esse espírito através de uma caligrafia pro positalmente disfarçada.10 Qualquer que tenha sido o papel desse espírito na formação do antieu moderno e que expressa nossa esperança, moderna (“Encontramos a mente sensível e suave”, escreve o poeta, referindose a ele), ficamos um tanto chocados ao sermos informados por Margaret Hodgen, em seu livro Early Anthropology in the Sixteenth and Seventeenth Centuries [A antropologia remota nos séculosXVI e XVn] que Leo Africanus declarou que os negros não apenas levavam uma vida animalesca mas como “eramalgo completamente destituídos de razão”. É uma declaração que ela percebe importante no fluxo de idéias e sentimentos europeus que separavam os pagãos da grande cadeia de seres humanos, de tal modo que, por meio da mais extremada ambigüidade, os pagãos eram situados em uma zona inferior, entre o animal e o humano.11 A dependência do moderno em relação ao primitivismo fica assustadoramente clara na viagem em direção ao Heart o f darkness. A terra parecia não ser terrena. Estamos acostumados a olhar com consideração a forma agrilhoada de um monstro conquistado, mas ali podia se ver uma coisa monstruosa e livre. Não era terrena e os homens eram — não, não eram inumanos. Sabe, isso foi o pior de tudo — a suspeita de que não fossem inumanos. Essa suspeita era algo que podia chegar lentamente a alguém. Eles urravam, saltavam, rodopiavam, faziam caretas horrendas; porém o que mais impressionava era pensar na humanidade deles — igual &nossa. Era pensar no remoto parentesco com aquele tumulto selvagem e apaixonado. Feio. Sim, era bastante feio...12
A magia do primitivo, o colonialismo fundiu sua própria magia, a do primitivismo. O destacado antepassado da antropologia, E. B. Tyler, notou em seu livro Primitive culture [Cultura primitiva] (publicado em 1871) que, na época em que
escrevia, muitos brancos na África e nas índias Ocidentais temiam os poderes do feiticeiro. Era uma confirmação estarrecedora de sua tese relativa à estrutura de 210
classe da magia e á evolução das sociedades, pois esses mesmos brancos certamente pertenciam a uma nação cuja instrução, segundo os termos de Tyler, havia avançadoo suficiente para destruir a crença na magia. Sua tese chamava atenção para a ubiqüidade com a qual um grupo de pessoas consideradas primitivas eram consideradas como detentoras de poderes extraordinários, por parte daqueles que proclamavam a si mesmos seus superiores: O mundo modemo instruído, que rejeita a ciência oculta como superstição desprezível, praticamente comprometeuse com a opinião de que a magia pertence a um nível mais baixo da civilização. É muito instrutivo verificar que a solidez desse julgamento não é propositalmentc confirmada por nações cuja instrução não progrediu o suficiente para destruir a crença na própria magia. Em qualquer país, uma raça isolada ou estabelecida em é passível da lugares remotos, sobrevivente de uma antiga nacionalidade e que resiste, reputação de feitiçaria.13
Ele citou exemplos, tais como os dravidianos hinduizados do Sul da índia que, no passado, afirmou Tyler, temiam os poderes demoníacos de uma casta de escravos inferior à deles. A partir de relatos contemporâneos ele examinou um caso no qual essa casta inferior não era a beneficiária de semelhante imputação. Certas tribos dravidianas tinham um medo mortal dos Kurumba, “párias desprezíveis da floresta, mas, segundo se acreditava, dotados de poderes de destruição dos homens, animais e propriedades por meio da feitiçaria’’.14No entanto, não se trata apenas do poder de fazer o mal. Tyler faz menção específica à cura como algo que integrava essas atribuições. No que diz respeito àqueles feiticeiros em relação a quem (segundo Tyler) muitos brancos na África denominados e nas índias Obi, Ocidentais experimentavam grande temor, devese notar que os próprios Obi receavam gente ainda mais feroz do que eles, isto é, aqueles curandeiros e curandeiras das comunidades de quilombolas da Jamaica, descendentes de escravos fugitivos que, possuídos na dança e no teatro pelos espíritos de seus ancestrais quilombolas e, portanto, portadores de uma história especialmente colonial e jamaicana de “ferocidade” e magia selvagem, são capazes de apaziguar os males causados atualmente pelos Obeah.ls Na vizinha ilhaseu de livro Cuba,Hampa de acordo com o tão considerado antropólogo afro-cubana: los negros brujos (cuja priFernando Ortiz, em meira edição é de 1906), era comum que brancos detodas as classes se valessem de feiticeiros negros (brujos) que também eram escravos. Além do mais, devido a questões de amor, saúde e vingança, ainda era comum, à época em que ele escrevia, que brancos, incluindo os da classe superior, acreditassem em curandeiros e feiticeiros negros. Disso resultava em parte, segundo ele afirma, “uma cultura não muito sólida entre as classes dirigentes da sociedade cubana”. Não é um conceito interessante o de que a fé na magia por parte da classe
dominada é devida a uma cultura “não muito sólida” no interior da classe dirigente? Existe aí um curioso sinergismo entre aqueles que dirigem e aqueles que 211
os podem sustentar magicamente, bem como através de um trabalho mais material. E para além da divisão de trabalho entre aqueles que comandam e aqueles que lhes fornecem a magia, surge um quadro da sociedade como um todo, com diferentes espécies de lugares para os dominadores e os dominados, espaços cósmicos unidos vertiginosamente, como um sonho da história do mundo que desfalece. A despeito dos da “psicologia avançada" dos brancos Cuba,deescreve Ortiz, “as superstições negros os atraem, produzindo umaem espécie vertigem, de tal modo que eles se tomam presas daquelas crenças, mesmo pairando nas alturas de sua civilização; é como se os planos superiores de sua psiques inicialmente submeijam e em seguida se desliguem, retomando ao primitivismo e à nudez de suas almas".16 Em seu estudo sobre o vodu do Haiti, publicado em 1959, o antropólogo francês Alfred Métraux apresenta uma sugestão relativa à história da “vertigem" e da primitiva submersão da psique da classe dirigente, sobre a qual Ortiz escreve. Aos nos prevenir contra a imagem mórbida e alucinatória que rodeia o vodu no Haiti, Métraux pondera que essa imagem não passa de uma lenda, associada á feitiçaria usada pelos escravos contra seus senhores. Se essa feitiçaria existiu de fato ou se apenas se imaginava que ela existisse, é algo de pouca importância para a lenda, a qual, segundo escreve Métraux, pertence ao passado. Pertence ao período colonial, quando foi fruto do ódio c do medo. O homem jamais é cruel e injusto impunemente. A ansiedade que cresce nas mentes daqueles que abusam do poder freqüentemente assume a forma de terrores imaginários e de obsessões O senhor escravo, porémque temia ódio. Tratavao como a uma dementes. besta de carga, mas maltratava receava osseu poderes ocultos lhe seu imputava. Quanto maior subjugação do negro, mais ele inspirava medo, aquele medo dotado de ubiqüidade presente nas narrativas e registros daquela época c que se solidificava através daquela obsessão com o veneno, a qual, ao longo do século XVm, foi causa de tantas atrocidades. Talvez alguns escravos se vingassem de seus tiranos por essa forma. Tal coisa é possível e até mesmo provável, mas o medo que reinava nos engenhos tinha sua srcem em recessos mais profundos da alma. Era a feitiçaria da África distante e misteriosa que perturbava o sono dos moradores da “casa grande”.17
Um traço semelhante de sono perturbado se percebe na descrição que Henry Charles Lea fez da Inquisição no porto de escravos de Cartagena, situado no Caribe, ao sul de Cuba e do Haiti, no litoral da colônia de Nova Granada, hoje denominada Colômbia. Era uma colônia dominada pela feitiçaria de três continentes, diz Lea, que escreveu poucos anos antes de Ortiz: Os escravos trouxeram da costa da Guiné os mistérios do Obeah e as práticas sombrias da feitiçaria. Os índios possuíam um amplo arsenal de superstições (curar ou ferir, provocar amor ou ódio); os colonizadores tinham suas próprias crendices, às quais acrescentaram a fé implícita nas crendices das raças inferiores. A terra era dominada pela combi-
como nação vãs das fantasias, artes ocultas masdecomo três ocontinentes, exercício de e todas poderes eram sobrenaturais, consideradasque pela envolviam Inquisição fé não expressa ou implícita no demónio.18
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Este é um modo de ver as coisas muito próprio do Putumayo. Coincide com uma visão que mescla o mundo subterrâneo da sociedade conquistadora com a cultura do conquistado, o colono e o escravo. Além do mais, ele enxerga essa mescla como um ataque ativo e mais ou menos contínuo ao poder, ao sistema de segurança da doutrina da Igreja e a seus rituais de poder embutidos na Inquisição. Tal visão compreende implicitamente que mesclar o mundo subterrâneo da sociedade conquistadora com a cultura do conquistado não é uma síntese orgânica ou “sincretismo” das três grandes correntes da história do Novo Mundo — africana, cristã e indígena —, mas uma galeria de espelhos que reflete a percepção que cada componente tem do outro. Juntamente com outros estudos sobre Cartagena antiga, baseados em documentos coloniais preparados por inquisidores, padres e funcionários do governo,19a história da Inquisição, escrita por Lea, sugere que essa galeria de espelhos era, do ponto de vista do colonizador, algo que nivelava a feitiçaria à sedição, se não na realidade, pelo menos como uma metáfora, como se o conceito de um “mundo subterrâneo" assumisse uma ampla gama de conotações, desde o inferno cultuado pelos seguidores de Satã ao subterrâneo da conspiração e desconfiança da ordem social. É extraordinário o quão importante a raça e o gênerosão enquantosignifica dores dessa ameaça subterrânea, que ameaça irromper através da crosta de machismo branco encarnado na autoridade colonial. De acordo com os textos oficiais, os líderes dos palenques ou lugares de escravos fugidos provavelmente eram magos e feiticeiros. A rebelião de escravos nas minas deTribunal, ouro de Zaragossa figurava noefusão relatório do inquisidor encaminhado ao Supremo em 1622, como uma maciça de feitiçaria, que objetivava consumir pelo fogo e esterilizar as minas, bem como seus donos, através da magia. Negras escravas e libertas, que trabalhavam como criadas, ao que se dizia eram feiticeiras consumadas e serviam suas senhoras brancas com as artes da adivinhação e o preparo de filtros de amor. A Inquisição alegava haver descoberto confrarias de bruxas que cultuavam o diabo e até mesmo nas confrarias de espanholas as africanas, aoque se dizia, exerciam um papel muito importante. Dizia se também que além dos muros de Cartagena, cidade de cristãos, livres e escravos, índios pagãos forneciam àquelas feiticeiras negras as ervas que elas solicitavam. Esses textos oficiais reproduzem uma visão inquisitorial do poder, místico e malevolente, que rodeava e minava os termos coloniais da ordem. Por mais fantástica que seja essa visão, se a experiência do Putumayo pode servir de guia, é uma visão que se toma incorporada à magia e feitiçaria das classes subalternas. Esse mal não é desprovido de fascínio. Conforme Bemheimer ilustra com detalhes, a selvageria do homem e da mulher selvagem se constitui quando se junta os extremos da destruição e da cura. Em 1632 a Inquisição alegou ter descoberto uma grande reunião de bruxas
negras no porto de Tolú, situado a uns sessenta quilômetros ao sul de Cartagena, onde grassava uma epidemia, sem dúvida atiçada pelo processo inquisitorial (diga 213
se de passagem que o padre Acosta, em sua apreciada Natural and moral history o f the Indies [História natural e moral das índias], cuja primeira edição é de 1588, assinalava o bálsamo de Tolú devido a suas virtudes medicinais).20 Duas das presumíveis líderes, ambas negras, foram condenadas á fogueira, mas uma delas, Paula de Eguiliz, teve a permissão de sair da prisão e trabalhar como curandeira, em incluindo entre seusvinte pacientes os inquisidores, como odessas bispo excursões de Carta gena, cuja casa passou dias como convidada. bem Por ocasião ela abandonava o sanbemto, roupa que simbolizava seu status diabólico, e aparecia em público vestida com um manto com barras de ouro, conduzida em uma liteira. Graças a essa prática médica enquanto prisioneira da Inquisição, ela, segundo consta, ganhou muito dinheiro, parte do qual distribuiu entre as demais prisioneiras. Decorridos seis anos, os quais incluíram a tortura, sua sentença foi comutada para duzentas chicotadas e prisão perpétua.21 Emque queossemonstros situa o poder de cura da selvageria? verdade, confoime diz Witt kower, das maravilhas do Oriente Éderam forma não apenas aos devaneios de beleza e harmonia do homem ocidental, mas também criaram símbolos por meio dos quais o horror dos sonhos reais poderia se exprimir. E, no entanto, não estamos aqui diante de uma questão que se estende além da função modeladora dos símbolos e dos sonhos? A selvageria também suscita o espectro da morte da própria função simbólica. É o espírito do desconhecido e a desordem, que corre solta na floresta que rodeia a cidade e a terra semeada, rompendo com as convenções sobre as quais repousam o significado e a função modeladora das imagens. A selvageria desafia a unidade do símbolo, a totalização transcendente que liga a imagem àquilo que ela representa. A selvageria rompe com a unidade e, em seu lugar, cria um deslocamento e uma articulação entre significante e significado. A selvageria faz dessas conexões espaços de escuridão e luz, nos quais os objetos espiam em sua variegada nudez, enquanto os significantes flutuam ao redor. A selvageria é o espaço da morte da significação. Bemheimer lembranos que a selvageria, na Idade Média, “implicava qualquer coisa que escapasse às normas e á ingovernável, estrutura estabelecida da sociedade cristã, referindose àquilo que eracristãs incomum, rude, imprevisível, exótico, inculto".22 Que lista! Com toda certeza teremos de perguntar a cura e não apenas a magia perversa do homem selvagem não se acha desligada desta imprevisibilidade rude e supressora das estruturas? No entanto a selvageria é incessantemente recrutada pelas necessidades da ordem (e, com efeito, esta é uma das tarefas e contribuições mais duradouras da antropologia à ordem social). Permanece porém o fato de que ao tentar domála através desse meio, de tal modo que ela possa servir à ordem como uma contra
imagem, essa selvageria talvez deva reter necessariamente sua diferença. Se não se reconhece o mérito da selvageria per se, com sua própria força, realidade e 214
autonomia, então ela não poderá funcionar como uma serva da ordem As implicações desse paradoxo estão submersas em um ato violento de domesticação. É o que testemunha a colocação profética de Paul Ricoeur, usada na introdução de um estudo antropológico recente sobre o exorcismo: “Se o mal é coextensivo com a srcem das coisas, enquanto caos primitivo e disputa teogônica, então a eliminação malase suposições, do perversoédeve à arte criativa Deixando dedolado essa pertencer equação insípida do mal enquanto como caostal”.23 primitivo e sua eliminação por meio da criatividade que é contestada pela selvage ria dos homens e mulheres selvagens. A selvageria de que aqui se trata irrompe através das fatigadas dicotomias do bem e do mal, da ordem e do caos, da santidade da ordem etc. Ela não medeia tais oposições. Em vez disso, ela toma o partido do caos, e sua criatividade cura dora é inseparável do fato de ela se alinhar com um determinado paitido. De tacape na mão, castigadas pelo granizo e pela tempestade, enquanto os relâmpagos rasgamnão o céu, anunciando dosantie« mortos,daessas criaturas dotambém mundo selvagem apenas carregamooretomo fardo do sociedade, mas absorvem com sua pelagem molhada e felpuda aquilo que de melhor a oposição binária pode oferecer: a ordem e o caos, o civilizado e o bárbaro, o cristão e o pagão. Ela emerge do lado do grotesco e do destrutivo. “Seu aspecto destrutivo é mais forte do que seu aspecto salutar", escreve Bemheimer no que diz respeito ao homem selvagem da Idade Média, “e, ao que parece, quaisquer benefícios que sua aparência possa conter para a comunidade humana derivambasicamentede suas características macabras".24
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Gordura índia
(^Xieio percotrer o mundo selvagem e suas mediaçõ es, juntamente com as topografias de zonas mágicas, seguindo os fios daquilo que verifiquei ser mais geral e interrelacionado com a história de vida de Rosário e José Gaicía, isto é, a atribuição de selvageria e poder de curas mágicas, feita pelo colonizador em relação ao índio, e o modo como essa atribuição realizou a magia, a partir das encostas orientais e das florestas tropicais que se estendem dos primeiros contrafortes dos Andes até a imensidade da bacia amazônica. É com os aucas, chunchos e outras criaturas fabulosas da floresta que me preocupo basicamente, mas também me intriga essa atribuição de selvageria àquilo que alguém denominaria as espécies colonizáveis. A selvageria é imputada ao outro, objetificada e, em seguida, recebida de volta como uma substância mágica, conforme, ao que se propala, fizeram com a gordura das corpos dos índiosdas regiões montanhosas do Peru. Há muito me surpreendia o fato de que em seus lugares de resid ência, bem como em suas jornadas em busca de remédios e de pacientes, os curadores Sibun doy apartavam as regiões montanhosas das florestas, vendo nelas signos icônicos de civilização e selvageria. Ao refletir nessa mediação como fonte do mágico, minha atenção se dirigiu para aqueles outros curadores índios reputados, dos altiplanos da Bolívia. Refirome aos Collahuaya. Pareciamme, de modo até certo ponto importante e formal, idênticos a seus colegas menos conhecidos do vale do Sibundoy, estabelecidos muito ao norte, na Colômbia. À semelhança deles, os itinerantes Collahuaya são apartados do resto da sociedade, e muitas pessoas, às vezes dogmaticamente, às vezes com dúvidas, lhes abribuem consideráveis conhecimentos sobre assuntos ocultos, na grande luta pela vida. O mais significativo de tudo é que eles são ligados à selvageria concentrada nas florestas úmidas, existentes abaixo de suas casas nas montanhas. Até que ponto os Collahuaya são
realmente isso édas uma questão controvertida, mas, a exemplo dofalar que sucede comligados a maiora parte coisas na esfera do mito e da magia, para não da política da raça e da conquista nas quais o mito e a magia se fazem presentes, 216
é a aparência que freqüentemente se toma um fetor decisiva “Nos os encontramos em todos os lugares”, escreveu Adolph Bandelier, arqueólogo dos Estados Unidos, por volta de 1900, enquanto se entregava a escavações nas ilhas do Titicaca e Koati.1“Entre Puno e Sillustani vimos essas singulares criaturas caminhando em fila indiana, seguindo silenciosamente seu caminho de uma aldeia indígena a outra,recebidos de uma habitação isoladahospitalidade.” a outra, tolerados emostodos os lugares e emColla todos eles com reservada Eram famosos curadores huaya, explicou ele, empreendendo viagens que duravam anos e os levavam a lugares distantes, como Buenos Aires, ou ainda mais longe, até o Brasil e além dele. “Na ilha", escreveu Bandelier em seu posto de observação, no grande lago Titicaca, lá no alto, no maciço dos Andes, entre a Bolívia e o Peru, “de vez em quando os chamam de Chuncho, mas eles nada têm em comum com esses índios da floresta, a não ser quando afirmam (e provavelmente é verdade) que algumas de suas ervas medicinais são colhidas na montariaou nas florestas, onde as tribos selvagens (que, com freqüência, recebem a denominação coletiva de Chuncho) habitam e perambulam." Ele adquiriu alguns dos produtos dos curadores: contra a melancolia,yerba de amante-,contra o resfriado reumático, uturuncu, para se esfregar, contra a dor de cabeça, yerba de Castilla (como em Castela, aquela glória do mosaico que era a poderosa Espanha); e outro remédio, só que estrangeiro, o pó estemutatório de heléboro. Porém o principal tesouro dos curadores itinerantes Collahuaya era, ao que parecia, estatuetas de minério que, segundo se dizia, abundava cm Chara sani, região natal dos Collahuaya. Eram de alabastro branco e tinham a forma de um punho cerrado, a fim de propiciar riqueza. Havia também, embora Bandelier jamais tivesse recebido a permissão para vêlas, estatuetas com forma humana, negras, destinadas á feitiçaria.2 A fim de levar adiante suas escavações arqueológicas, os trabalhadores índios empregados por Bandelier tiveram de realizar ritos para aplacar os espíritos dos cumes das montanhas, para os “avós” daqueles grandes picos, osachachilas, bem como para a própria terra. Tais ritos compreendiam, entre muitos preparos e substâncias mágicas oferecidas aos espíritos, lascas raspadas com uma faca de estatuetas que,mágicas nesse caso, diz Bandelier, representavam um touroCollahuaya, ou uma vaca. As estatuetas (ou suas lascas), fornecidas pelo curador faziam parte dos sacrifícios oferecidos aos picos e à terra. Eram ofertas á masculinidade e â feminilidade do espaço produtivo da vida, que deveriam ser comidas pelos deuses como parte dos ritos associados á colheita, aos rebanhos e às pessoas, como um todo e individualmente, em seus tormentos e em suas esperanças. É, portanto, com alguma insistência que se levanta a questão dos porquês que levam o poder a ser associado a esses curadores índios itinerantes, cujas estatuetas, afirmou Bandelier, “são vendidas não somente aos índios (e talvez menos a
estes), mas a mestiços e, de vez em quando, até mesmo a brancos, pois a fé nas curas e nos dons sobrenaturais dos Collahuaya é muito comum e profundamente
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enraizada em todas as classes da sociedade, embora raramente confessada
(grifo meu)".3Isto se deu por volta de 1900. “De vez em quando os chamam de chunchos", escreveu Bandelier, “mas eles nada têm em comum com esses índios da floresta, a não ser quando presumem (e provavelmente é verdade) (grifo meu) que algumas de suas ervas medicinais são colhidas na montaria ou nas florestas, onde as tribos selvagens (que, com freqüência, recebem a denominação coletiva de chuncho) habitam e perambulam" É este sofisma que enfatizei e ele é direcionado para uma zona de realidade na qual a presunção e a possibilidade se combinam a fim de criar, através da poética da incerteza, uma zona de poder “profundamente enraizada em todas as classes da sociedade, embora raramente confessada", na qual a identificação e a dissociação com a selvageria da floresta e de sua gente vai ao encontro, por meio do ritual, dos desejos e infortúnios da vida cotidiana civilizada, fazendo em seguida o caminho de volta. Setepublicou anos apósem a publicação do livro Review, de Bandelier, outroum estrangeiro, G. M. The Geographical Wrigley, em 1917, artigo intitulado “Os doutores viajantes dos Andes, os Collahuaya da Bolívia”. Nele as ligações entre os doutores itinerantes e a selva que se estende ao leste dos Andes ficaram mais explicitadas ou, pelo menos, mais sensuais e, portanto, mais resistentes ao ceticismo do que ocorreu com Bandelier. Era possível sentir o cheiro da selva dos chunchos, nas regiões montanhosas, á medida que os curadores itinerantes se aproximavam. Faziam parte de suas maletas de drogas, escreveu Wrigley, gomas aromáticas, resinas, cascas e ervas da floresta tropical.4 Assinalando que o território Collahuaya se estende até aa montaria dos Andes orientais, Wrigley afiimou, sem montana que fornecia as valiosas plantas medicirecorrer a sofismas, que era nais, acrescentando esta nota: “É atribuído aos habitantes índios um amplo conhecimento empírico de suas propriedades. Wiener referese aos Piro do vale do Urubamba, que sobem anualmente até Hillipani a fim de trocar cestaria, cerâmica, pássaros vivos e certas plantas medicinais, das quais esses chunchos têm mais conhecimento do que os índios Quechua do altiplano”.5 Antes de iniciarem suas prolongadas viagens, os curadores, assevera Wrigley, iam “até a montana a fim de ter com que encher suas carteiras. Como essa jornada os conduz a uma região quente, eles usam muito pouca roupa, circunstância que levou alguns viajantes a supor que a floresta era seu verdadeiro lar".6 Se isto não era verdade, então eles tinham um outro lar mais próximo de um espaço da morte magicamente produtivo, do qual, fortalecidos com remédios chuncho, eles ressuscitariam, revestidos de novo poder, a fim de viajar de volta para o planalto e atravessar a república. Ao explorar a “floresta dourada" de Caravaya, ao leste dos Andes e abaixo do território Collahuaya, em 1860, o explorador inglês Clements Markham, encarregado de fazer um levantamento das
florestas de cinchona que preparou contém muito quinino —, tarefa que lhe confiou o govemo—deantimalárico sua majestade, seus carregadores para com 218
eles entrar “naquela floresta densa e emaranhada, na qual europeu algum estivera antes”. Meia dúzia de homens pálidos saíram da mata.“Tinham aparência doentia e cadavérica”, observou ele, “como homens que houvessemressuscitado do mundo dos mortos, esgotados pela prolongada vigilância e pelo cansaço.”7 Na verdade não eram habitantes da floresta, mas gente das montanhas, Col lahuaya “coletores de drogas e de incenso", disse ele, “que penetravam fundo na floresta a fim de obter o que procuravam e que dela safam como os vimos, pálidos e abatidos”. Era muito esquisita essa raça, pensou ele, pois atravessava as florestas ao leste dos Andes e em seguida ia praticar as artes de cura em toda a América. “Vão em linha reta de aldeia em aldeia", escreveu Markham, “exercendo sua profissão, e nisso vão longe, até Quito e Bogotá em uma direção e nos limites extremos da República da Argentina, no outro.”* São denominadosChirihuano no litoral do Peru, acrescentou, e Wrigley, citando um livro publicado em 1860, fez a mesma afirmação. Vintealemão anos antes que Jakob Markham fazer um que levantamento da comércio cinchona, o viajante Johann von viesse Tschudi notou havia muito entre o altiplano andino e as florestas que se estendiam para o leste, sobretudo no que se referia ao precioso vermífugo da casca de cinchona, droga lendária desde que curou a esposa do vicerei, a condessa de Chinchon, sendo promovida com fervor pelos jesuítas na Europa, no século XVII. Antes das guerras sulamericanas da independência, afirmou Tschudi, os coletores indígenas daquele valioso remédio o haviam fornecido a todos os boticários da Europa. Resinas e plantas aromáticas das florestas orientais também se faziam presentes nas igrejas das montanhas e das cidades. Os padres as adquiriam, usandoas como incenso. Existem índios, observou Tschudi (cometendo exatamente aquele tipo de erro em relação ao qual Wrigley nos colocou de sobreaviso, mais tarde, quando ele confundiu os Collahuaya com os índios da floresta), que vivem nas profundezas das selvas do Sul do Peru e da Bolívia e que se dedicam quase que exclusivamente a coletar bálsamos medicinais e resinas aromáticas. Coletavam também remédios mágicos, tais como a garra do tapir, a fim de curar “epilepsia”, e o dente de serpentes muito temidas, usado para a cura dacegueira e da dor de cabeça. Levam issoaté os mercados das montanhas, disse Von Tschudi, e alguns deles chegam até mesmo a percorrer duzentas ou trezentas léguas, a partir de suas florestas natais, atravessando a maior parte do Peru e até mesmo visitando Lima. Carregam grandes cabaças repletas de bálsamos. Surpreendido, Von Tschudi notou como essas “tribos" errantes procuravam contatos freqüentes com outras nações. “Não são receosos e reservados, mas, ao contrario, aborrecidamente comunicativos."9 Ele se enganou, ao confundir os curadores itinerantes com os índios que viviam bem dentro da selva. Seu engano, porém, foi préordenado. Tratavase de uma convenção social que reproduzia um mito, o qual entrelaçava os índios sel-
vagens e aque medicina mágica um império de exotismo Era uma mitologia se compra zia em em estabelecer uma distinção entre arborizado. o cristão e ochuncho. 219
Disso é que cia retirava sua força. Os índios que coletam e distribuem os remédios da selva, enfatizou Von Tschudi, professam ser cristãos. Como tal devem ser diferenciados dos pagãos das florestas dos contrafortes orientais dos Andes, a exemplo dos chunchos, muito perigosos e “uma das raças mais formidáveis de índios selvagens". Não há gente mais indisposta contra os cristãos. Os remanescentes são abandonados de haciendas e missões dos contrafortes das montanhas testemunhos de uma longa históriaaodelongo desconfiança. São canibais que assassinam cruelmente todos os índios cristãos com que sc dep aram É impossível qualquer espécie de intercâmbio amistoso com eles. Em suas pilhagens se apresentam praticamente nus, e seus cabelos, rosto e peito são pintados de vermelho, com achiote. Suas armas são o arco da palmeira chonta e a macana, grande espada de madeira. Quando uma cruz foi levantada na floresta, os chun chos amarraram nela, decorridos alguns dias, uma macana e duas flechas como “símbolo de sua irreconciliável inimizade pelos cristãos". Segundo se afirma, a grande rebelião messiânica de 1741, liderada pelo profeta que adotou o nome de Juan Santos Atahuallpa (um índio dos Andes que foi para a Espanha e, ao regressar ao Peru, criou sua base de apoio entre os índios das florestas orientais), envolveu chunchos, bem como índios Campa. As igrejas dos primeiros contrafortes dos Andes foram pilhadas, as imagens sagradas e os padres foram amarrados juntos e jogados nos redemoinhos dos rios, aldeias foram queimadas, campos cultivados foram destruídos, e essa história, lamentouse Tschudi, é a de toda a montaria.10
Nas descrições da história dos Incas, esses chunchos compareciam como uma gente arquetipicamente selvagem Garcilaso de La Vega, o aristocrata Inca, sempre disposto a promover a causa cristã por meio da imagem do “bom índio" em um mundo colonizado, relata em sua famosa obra The royal comeníaires o f the Inca [Os comentários reais do Inca] (a primeira parte foi publicada em 1609) que, quando o bom soberano Inca Yupanqui tomou posse do império, ele resolveu visitar seus domínios. Nisso levou três anos, no fim dos quais decidiu conquistar os chunchos que viviam nas selvas ao leste da sagrada capital de Cuzco, com o objetivo de oseexpuigar seus costumes e desumanos. A expedição desceu o grande até entãodepouco conhecidobárbaros rio da Cobra. Era impossível prosseguir por terra, devido às montanhas escarpadas e aos numerosos lagos, pântanos e atoleiros, abundantes naquelas paragens. Dez mil soldados Inca desceram em balsas, as quais se levou dois anos para preparar. Após sangrentas escaramuças, eles subjugaram os chunchos, que então serviram ao Inca, quando ele empreendeu a conquista de outros índios selvagens. Quero enfatizar este aspecto, pois é a dominação do selvagem, com o objetivo de usálo para propósitos civilizatórios, que está no âmago da imputação de magia e na apropriação do poder selvagem.
Essa cruzada pelo rio da Cobra, a fim de se apoderar da selvageria de um povo, é narrada com pormenores pelos índios das montanhas, declarou Garci 220
laso. Eles se gabam das proezas de seus ancestrais durante aquelas batalhas travadas ao longo das margens dos rios da selva. “Mas", prosseguiu Garcilaso, “como alguns desses feitos a mim pareciam pouco críveis... como os espanhóis até hoje jamais possuíram a área conquistada pelos Incas nos Antis (terras dos chunchos) e como não se pode apontar com o dedo para ela conforme é possível fazer em relação restante região queaojá domínio mencionamos, julgueiouque nãoparecia deveriaser, misturar um ao assunto quedapertencia da fábula, que com histórias verdadeiras.”11 Quatro anos após sua expedição aos chunchos, o soberano Inca Yupanqui organizou uma expedição malograda contra osChirihuano nas florestas da planície (ao leste de Charcas, onde atualmente é a Bolívia). Os espiões de Yupanqui informaram (e cito Garcilaso) “que lá a terra era extremamente ruim e consistia de florestas densas, pântanos, lagos e lamaçais, sendo que muito pouco era de utilidade para o cultivo. Os nativos daquela região eram completamente selvagens e piores do que feras, pois não tinham religião e não cultuavam o que quer que fosse. Viviam sem leis ou bons costumes, como animais, nos contrafortes dos morros, não tinham aldeias ou casas". Eram canibais, comiam seus inimigos, bem como sua própria gente, quando ela estava morrendo. Andavam nus e dormiam com suas irmãs, filhas e mães. Ao ouvir esse relato, o soberano Inca reuniu seu povo e anunciou: “Nossa obrigação de conquistar osChirihuanos agora é maior e mais premente, pois precisamos livralos do estado bestial e vil em que se encontram, levandoos a viver como homens, pois foi com este propósito que nosso pai, anos o Sol,tiveram nos enviou para cá”. oDez mil guerreiros aprestados,Hoje mas após dois de reconhecer quanto sua missãoforam era impossível. os Chirihuanos não são tão selvagens quanto antes, diz Garcilaso, no entanto persiste seu modo bestial de viver. Na verdade seria um grande prodígio conseguir livrálos disso.12 Em um relato do final do século XVI, A história natural e moral das índias, o sacerdote jesuíta Acosta deixa Claro que os Chirihuanos são, com efeito, um paradigma de selvageria. O padre Acosta tomou parte na malograda campanha do vicerei Toledo contra eles e os situa na mesma categoria de selvageria e resistência aos espanhóis a que pertencem os chunchos. Que diremos dos chun chos e dos Chirihuanos?, indaga ele. “Toda a flor do Peru não esteve lá, levando consigo uma provisão tão grande de homens e armas, conforme vimos? Certamente voltaram muito contentes por terem salvo suas vidas, perdendo sua bagagem e quase todos seus cavalos.”13E não apenas os chunchos e Chirihuanos são um epítome da selvageria, como são igualmente o epítome dos primeiros homens do Novo Mundo, sugere Acosta, não levando em conta os relatos dos índios sobre suas srcens, pois tais relatos “mais se assemelham a sonhos do que a
histórias verdadeiras". 221
Mas dificilmente era uma questão de história verdadeira versus sonhos. Os sonhos não eram desprovidos de história, nem a história deixava de ter sua fantasia. A selvageria era uma fantasia, na qual pagãos e cristãos se encontravam na montaria. Cruzandoa nos dois sentidos, os curadores desmontavam a ordem e a desordem, levando o selvagem ao civilizado e, assim, praticando a magia a partir de uma topografia moralizada. A montaria a tomava real, a montaria a tomava natural. A geógrafa Wrigley a esta altura nos é de grande valia. Referindose aos curadores Collahuaya, notou que as preciosas plantas medicinais vêm da montaria e comentou que “um povo" (referindose aos Collahuaya), “com acesso relativamente fácil às fontes de suprimento naturalmente seria selecionado para agir com o fornecedor das plantas medicinais da montaria.'’(grifo meu).14 Com efeito, ao recrutar a magia da imagem dos curadores Collahuaya para a causa do materialismo em geral e do detemdnismo geográfico em particular, ao invocar uma agênseria selecionado cia exemplo do que ocorre no trecho “ naturalmente (pormística, quem? adevido a quê?), e ao propiciar um protótipo simples, porém elegante,” a um determinismo ecológico posterior, de “arquipélagos verticais”, Wrigley, no fim de seu escrito, deixanos intrigados devido a uma memória que, ao que se presume, está no fundo de todos nós. “Ele nos faz lembrar”, escreve ela, refe rindose àqueles curadores e feiticeiros índios errantes, “do vigor dos antigos controles geográficos que imperam nos Andes centrais.”15 Claro que é esse vigor, esses controles e esse império que aquelas figuras selvagens e míticas da floresta úmida irão contestar. É seu fardo e tirarão disso o
melhor partido que puderem. É como se tivéssemos de nos defrontar com uma imagem alucinatória na arte legendária do xamã, a arte da magia, na qual a mímese e o poder de transfor mar caminham paralelos. Só que a imagem em questão, a topografia moralizada dos Andes, não é obra de um artista individual, mas da própria cultura popular, criando, a partir do espaço e de suas distinções, uma grande diferença que separa a selvageria da civilização, atravessada por curadores peripatéticos antes que eles percorressem os infortúnios de uma nação. É nesse momento que os primeiros estudos sociológicos sobre a oposição binária (tais como o de Robert Hertz sobre a preeminência da mão direita (publicado em 1909), a meio caminho entre o ensaio de Emile Durkheim e Mareei Mauss sobre a classificação primitiva e a obra clássica de Durkheim, The elementary form s o f religious life [As formas elementares da vida religiosa]) nos vêm à mente, a exemplo do que se lê nesse dramático trecho de Hertz: Todas as o posições apresentadas pela natureza exibem este dualismo fundamental. A luz e as trevas, o dia e a noite, o Leste e o Sul em oposição ao Ocsté e ao Norte, representam no imaginário e localizam no espaço as duas classes contrárias de poderes sobrena-
turais. De um lado a vida reluz, avança e se ergue; e se aextingue. O mesmo se dá com o contraste entre o alto e o baixo, o céude e aoutro terra.desce No alto, sagrada residência
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dos deuses e das estrelas, que desconhecem a morte; aqui embaixo, a região profana dos mortais a quem a terra traga; e, ainda mais embaixo, os lugares sombrios oode se escondem serpentes e multidões de demônios.16
d a to que este atordoante contraste entre o alto e o baixo, esta alegoria das alturas é que dizem respeito ao poder dos Andes, de realizar o mito e a magia. Eles concernem á floresta tropical e à floresta brumosa de onde provêm esse mito, essa magia. entanto, esse kantismo estará por demais consumido por suaNo própria mitologia, relativasociológico às categoriasnão fundamentais? Não poderia aquela ordem tão apreciada do “dualismo fundamentar ser nutrida, quando não depender da alegoria das alturas, onde a ordem reina suprema? Onde a morte e a blasfêmia, a sórdida materialidade daquilo que está abaixo, o objeto em si, poderão ganhar uma cunha epistemológica, nesse elevado organum de sublime conhecimento? Talvez a própria magia dos xamãs ou, pelo menos, a magia a eles atribuída, seja gerada por essa questão e, nas fraturas e rupturas com a experiência, ela encontre sua cunha. De qualquer modo, na selvageria que se atribui ao “embaixo” encontrase a oportunidade de situálo fora do alcance do fato de ele não ser nada além do que o outro das alturas. Na mímese da arte mágica imputada pela sociedade à floresta das terras baixas e seus exóticos poderes, essa oportunidade reluz. É o que Georges Bataille, uns vinte anos após Hertz e na mesma cidade, denominaria “a velha marca de nascença” da revolução marxista contra a águia imperialista da idéia, pairando majestosa, em sagrada aliança com o sol, castrando tudo aquilo que entra em conflito com ele.17 A Estrela da Neve
Em seu estudo sobre o grande festival andino da Estrela da Neve, o Collur Riti, publicado em 1982, Robert Randall especifica as imagens transmitidas por aquilo que se situa no alto e por aquilo que se situa abaixo, a leste de Cuzco, a antiga capital do império Inca, onde as montanhas se encontram com a floresta. Ele descreve esse festival anual como sendo “provavelmente o espetáculo mais comovente e deslumbrante dos Andes”, durante o qual, nos anos que se situam em tomo 1980, cerca 10 mil aperegrinos sobem situado as montanhas, porCitarei ocasião CorpusdeChristi, a fim de de chegar um vale sagrado nos picos. suasdo frases iniciais que descrevem a paisagem. Emergindo da selva, as montanhas Cotquepunku, do pico nevado, são maciços alvos e resplandecentes que pairam na floresta tropical enevoada. O interior dessa cadeia de montanhas abriga um vale isolado que, durante a maior parte do ano, acolheapenas rebanhos de lhama e alpaca que pastam a 4 500 metros de altitude, abaixo dessas reluzentes geleiras. No entanto, durante a semana que precede o Corpus Christi, mais de 10 mil pessoas, em sua maior parte índios ecampesinos,fazem uma peregrinação ao vale de Sinakara. A música ecoa
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para além dos muros que encenam o vale, e dançarinos, em trajes emplumados, andam empertigados em meio à fumaça de pequeninas fogueiras, onde a comida está sendo preparada.1*
Mais adiante, quando eu escrever sobre os índios que carregavam em suas costas brancos que vinham da selva e atravessavam as montanhas da Colômbia, teremosaos motivos paraalvos retomar a essas imagens e ás maravilhosas rentes maciços, e reluzentes, que emergem da selva e metáforas pairam narefefloresta tropical enevoada. Ágora quero entregarme ao ímpeto do trecho citado, ao contraste que opõe a selva à geleira, aos chunchos, os dançarinos emplumados e a sua dança dramática, quando o sol desponta. Esse rito é interpretado por Ran dall como algo que possui vários significados, tais como “uma grande comemoração do processo civilizatório, de transição do ou d o mundo para este, da regeneração e ressurreição de Pachamama (a terra), da cura dos doentes e do início de outro ano (marcado pelo retomo das Plêiades)".19Apoiandose em estudos recentes no campo da etnoastronomia, sobretudo os de T. Zuidema, Randall sugere que essa peregrinação anual não só marca o desaparecimento e reaparecimento das Plêiades no céu (um lapso de cerca de 37 noites), como também aquilo que ele denomina “a transição da desordem para a ordem (do caos para o cosmos)".20 É uma interpretação que se harmoniza com a observação de Zuidema, segundo a qual, para os Incas, egse período de 37 noites correspondia, de acordo com o calendário, àquilo que ele denomina o caos. Randall é cuidadoso ao enfatizar que a desordem dos peregrinos dançarinos termina com a dança final, ao nascer do sol. Segundo o autor, ela é perfeitamente ordenada e sincronizada. Devido a sua incessante preocupação com a ordem e com a análise formal daquilo que eles denominam a “mente andina", há pouco interesse, por parte dessa escola de especialistas em estudos andinos, em qualquer outro “caos" que não seja aquele que permita estabelecer o modo pelo qual esse mesmo caos é convocado para a celebração da ordem É com equanimidade que esse festival é retratado como “uma grande comemoração do processo civilizatório", alimentado, quando não criado, pela dança ensandecida dos chunchos, homens selvagens da floresta. Isto é encarado como um rito de transição estelar, quando não cósmica, de renovação social ordeme de cura individual. Tudo isso é resultado da transição da desordem para a Quanto aos chunchos, Randall cita relatos dos campesinos das encostas das montanhas, segundo os quais aqueles eram seus ancestrais. Um desses relatos narra como os antigos, os naupa machu, ocupavam as montanhas em uma época anterior a essa, quando não havia outro sol e outra luz que não a da lua. Esses antepassados eram seres poderosos, capazes de achatar montanhas e mover grandes rochas. O principal espírito dos picos locais perguntou a eles se gostariam de ter parte do poder daquelas montanhas mágicas, mas, orgulhosos de sua força, os
naupa machu desprezaram essa oferta, levando o chefe do pico a criar o sol que, erguendose acima da selva, transformou os ancestrais em pedra, com exceção
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“Um incidente no Putumayo: índia condenada a morrer de fome, no Alto Putumayo (os peruanos declaram que isto foi obra de bandidos colombianos).” In Walter E. Hardenburg, The Putumayo: The Devil's Paradise, 1912.
O castigo do tronco, aplicado em Laguna. In Edouard André, América Equinocial, 1884.
1908. Cortesia da Whiffen Collection, Museu de Arqueologia e Antropologia da Unive rsidade de Cambridge. Muchachos,
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“índios da Amazônia peruana: rio Ucayali.” In Walter Hardenburg, The Putumayo: The Devil’s Paradise, 1912.
“Espírito da floresta” preparando remédio.
Don Pedro e o autor no jardim das delícias do curador.
“Ele sentouse com a meninazinha.”
o v a m o s rodeados por férteis campos agrocomerciais.
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“Ilustração da passagem de Quindio na província de Popayon e cargueros (ou carre-
In John Potter Hamilton, Traves trough the Interior gadores) atravessaramna.” Provincesque of Colombia, 1827.
Descida íngreme da cordilheira dos Andes na província e Choco.In Charles Stuart Cochrane, Journal o f a residence cmd Travels in Colombia during the Years o f 1823
and 1824 ,
1825.
O curtão postal enviado pelo soldado à mãe com o seu retrato anexado ao alto.
recebendo fio após fio de sua chaquira.
“Curar ... o que é isto ?”
daqueles poucos que fugiram pata o escuto caos das florestas abaixo. Por meio dessa criação dos chunchos na escuridão que reinava abaixo, a ordem Inca foi criada acima, nas montanhas iluminadas pelo sol. Épocas inteiras de tempo também estão sepultadas lá embaixo. A exemplo da fuga dos antigos para as selvas, ao que se diz, grandes ciclos da história estão sepultados mesmo lugar a de partir do qual, de um (o termo senaquele deve aos informantes Randall) noatravés presente, eles“florescimento” podem exercer uma influência poderosa sobre a vida contemporânea. Tal florescimento, por meio do qual uma época anteriorexerce sua influência, habitualmente perniciosa, sobre o presente, ocorre por ocasião da lua cheia ou da lua nova, na alvorada ou no crepúsculo. Teremos motivos para nos lembrar desse florescimento de um tempo subterrâneo quando, posteriormente, abordarmos os modos pelos quais a própria história age como uma feiticeira na criação de la mala hora, a hora má, no vale do Sibundoy, na Colômbia. Lá também são feitas ligações com aquilo que parece ser uma “outra” época subterrânea da conquista préhispânica. Enquanto essa época sepultada floresce sob forma quase satânica, a fim de enfeitiçar o presente e até mesmo matar, podese recorrer a esse mesmo testemunho da história, tendo em vista a cura. No que diz respeito ao tempo mítico, o mesmo ocorre em relação aos chun chos do Leste de Cuzco: inferiores, selvagens, hostis, ainda assim são curadores e concessores de fertilidade. Em relação àquilo que parece ser uma contradição significativa à sua tese de que a ordenação é curativa, Randall cita testemunhos para afirmar que os habitantes dasdoentes encostase pelos daquelas montanhas xamãs, responsáveis pela cura dos cuidados com aenviavam fertilidadeseus dos campos, lá para a selva, onde aprendiam durante um ano, “a fim de trazerem essa fertilidade lá para cima, na sierra". A própria selvageria da floresta (e, presumivelmente, de seus habitantes) é curadora e fertilizadora. Poderemos querer qualificar esse conceito e insistir em uma espécie de coligação “dialética” entre o alto e o baixo, a montanha e a floresta das terras baixas, a ordem e a desordem etc., mas não acredito que isto deprecie substancialmente o caráter unidirecional da atribuição de poder mágico que aqueles que se encontram em posição elevada exercem em relação aos que se situam abaixo deles. Isto também não deprecia a caracterização da classe situada abaixo como uma força, cuja capacidade de prodigalizar a saúde e a fertilidade, não menos do que o perigo que essa força encerra, nasce de sua selvageria. Ouçamos a evocação de Randall em relação à floresta, uma evocação que presumivelmente ecoa as opiniões do próprio povo da montanha: A selva é também um lugar de escuridão, caos e desordem, onde, escondidas do sol, as plantas crescem desenfreadam ente, entrelaçandose comdesalinho e confusão. Nisto ela repre-
senta, como a mitologia Inca, as tribos incultas, díspares e incivilizadas da época que precedeu a conquista ensolarada dos Incas civilizados, que trouxerama ordem ao mundo.
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RandaU assinala que as grandes taças Incas, de boca larga e de madeira pintada, geralmente representam todos os inimigos dos Incas como selvagens da floresta (chunchos) (o que nos traz à mente o emprego da palavra auca, no Norte do que é hoje o Equador e também ao longo da fronteira do Putumayo com a Colômbia). Ele observa que nos dias de hoje, durante o Festival da Estrela da Neve, a figura selvagem do chuncho de representar indianismo per se; nãoe emplumada se trata apenas de seres assume míticos aaofunção leste dos Andes, maso de todos os “índios”. Por outro lado, os integrantes do grupo Colla, considerados comerciantes ricos e procedentes dos altiplanos, hoje são representados não por índios, mas por mestiços (gente de ancestralidade índia e branca, mas, nesse contexto, considerada “branca”). No Festival da Estrela da Neve oschunchos derrotam os Colla, em combate simulado. Aselvageria, a fertilidade, a cura mágica, suprimidas, reprimidas, são contidas embaixo, na sombria selva emaranhada, esse subterrâneo agreste da história que pode irromper através de rebeliões, de tom messiânico, que curam e fertilizam não simplesmente esta ou aquela pessoa, não só este ou aquele campo, mas toda uma sociedade erroneamente revestida de uma outra época. É a interpretação a que se pode chegar dos repetidos ataques aos espanhóis durante a época colonial, por parte dos moradores da floresta, que culminaram no romance, 110 vigor e no esplendor de um mito objetificado no movimento liderado por Juan Santos Atahuallpa em 1741. Randall detecta manifestações modernas dessa constelação de mito e ruptura social na geografia políticomoral da rebelião associada a Hugo Blanco, nos anos 60. Em ambas as instâncias, os líderes das montanhas ou “profetas” desciam de suas terras para as terras baixas, cobertas por florestas, situadas ao leste, com as serpentes e os demônios, não para encontrar meramente uma base social de apoio, mas para reafirmar uma base míticohistórica. As forças rudes da selvageria e da história foram recrutadas, numa tentativa de destruir a antiga ordem, porém fracassaram. Entretanto, a mitologia continua vivendo. O próprio Randall convoca a nostalgia do fracasso político para inspirar uma pungente identificação com os demônios da história e da renovação social, enquanto consolidam com segurança o triunfo da vontade de proceder a uma ordenação. chunchos e a selva — “lugar de escuridão, caos e desordem, No entanto, sem os onde, escondidas do sol, as plantas crescem desenfreadamente, entrelaçandose com desalinho e confusão" — não haveria uma base para a própria ordem. Com efeito, é a partir dessa dependência que a magia e a fertilidade “florescem”.
Nesta obra de arte coletiva, que tanto se dirige à natureza quanto dela deriva, já foi dito que a floresta da planície figura em relação às zonas elevadas não apenas como o lugar da desordem, mas como uma fêmea. É o que ocorre em Los ríos profundos, romance criptoautobiográfico de José Maria Arguedas, que se
passa na cidade de Abancay, nos Andes peruanos, há uns cinqüenta anos. Em relação à usurpação dos valores de uso pelo sistema de mercado, são as mulheres 238
que desafiam as injustiças do sistema comercial e do Estado. Ao agirem dessa forma, elas criam não apenas a “desordem”, sob a forma da rebelião (e aqui procederíamos bem em fazer uma pausa e perguntar a nós mesmos por que sempre a rebelião é qualificada como desordem e não o sistema contra o qual ela se insurge). As mulheres também provocam a animação da paisagem e de outras coisas mudas. Fundamental para este processo de dar voz às coisas, no calor de uma desordem inspirada pela mulher, que se volta contra a desordem criada pelo sistema de mercado das coisas, o qual triunfa sobre as pessoas, é a descida da mulher às florestas orientais e á zona feminina, onde habitam os chunchos. Devido ao açambarcamento praticado pelos comerciantes há uma séria falta de sal. As chicheras locais (mulheres que preparam e vendem a chicha, bebida feita com milho fermentado) lideram uma rebelião que objetiva garantir o fornecimento do sal e a sua distribuição, gratuitamente, às mulheres da cidadezinha e aos servos índios das fazendas do arredores. 0 Exército intervém para abafar a insurreição, e a líder revolta, paracom o rioose de lá, segundo se chunchos comenta, desce para da a selva, deDona onde Felipa, prometefoge voltar e atear fogo nas haciendas. As autoridades receiam que, se isso acontecer, os servos fugirão e se aliarão às chicheras. Os chunchos, ao que se diz, são capazes de se zangar terrivelmente. Os meninos do colégio especulam que o rio Pachachaca pode tomar o partido dos chunchos e de Dona Felipa e reverter ser curso, trazendo lá para cima as canoas dos chunchos, que queimarão o vale e os canaviais dos proprietários das haciendas, matando todos os cristãos e seus animais também. Na igreja de Abancay o diretor do colégio, que também é padre, anuncia que um destacamento de guardias civiles, constituído por policiais bem treinados para manter a ordem, será instalado permanentemente no quartel, e prossegue com o seguinte sermão (em espanhol, em vez de quechua): "A ralé está invocando um fantasma a fim dc assustar os cristãos. É uma farsa ridícula. Os servos dc todas ashaciendas têm almas inocentes, são melhores cristãos do que nós; c os chunchos são selvagens que jamais saem dos limites da selva. Se, por obra do demónio, eles vierem, suas flechas sc revelarão dc pouca serventia diante dos canhões. Devemos nos lembrar de Cajamarca...!", ele explicou e, voltando seus olhos para a Virgem, com sua voz metálica implorou perdão para os fugitivos, para aqueles que seguiram o mau caminho. disse cie.22"Tu, querida c amada Mãe, saberás como expulsar o demônio dc seus oorpos”,
Por esta forma acionadas, vemos como as ambigüidades politizadas da “desordem", imputadas e transmitidas através da polaridade das mulheres, diabólicas e virginais, dão vida a distinções binárias, sob outros aspectos estáticas, firmes e intelectualizadas, unificadas pela montanha e pelas terras baixas. Podemos sentir como a progressiva trajetória dos acontecimentos, desencadeados pelas contradições do sistema de mercado das trocas não apenas faz irromper distinções laten-
tes, mas tambémdeooposições. decorrer dos acontecimentos muito deve ao acaso e àpoderosas, inesperadacomo confluência É uma espécie de jogo semiótico, 239
no qual os signos abdicam de sua precisão em favor da ressonân cia política que agora anima a paisagem, conspirando com a selvageria da redentora importância de uso das mulheres. “Lembremse de Cajamarca...!”, troveja o padre, e seus olhos se movem em direção à Virgem. Cajamarca é a planície onde o soberano Inca Atahuallpa e seu poderoso exército foram derrotados por um punhado de espanhóis, marcando assim o final de um império, o surgimento de outro e, mais adiante, uma dupla identidade, agudamente colonizada. É esse primeiro plano e esse antecedente de identidade que Frank Salomon retratou recentemente. Tratase de uma vasta história colonial, escrita nas danças e nos assassinatos dos yumbo, nos subúrbios da cidade de Quito, nas montanhas do Equador. Yumbo pode muito bem significar auca, o equivalente andino e nortista de chuncho. Ali, a exemplo do que ocorre com o Festival da Estrela da Neve, para o qual Robcrt Randall chama nossa atenção de modo tão notável, o ritual anual dos yumbo, durante o qual se dança e se mata, está associado com o Corpus Christi.23 Para aquele homem que cuida dos equipamentos que guiam os aviões para dentro e para fora de Quito e que guia Salomon através do mundo do yumbo (na medida em que esse mundo é criado na imaginação dos moradores das montanhas), a dança suscita as polaridades de um índio versus uma América branca. Com o Corpus Christi o “compasso da existência” (uma imagem que o guia aprecia) gira 180 graus, e aquilo que Salomon denomina “o esforço de se tomar algo" desviase da cidade da hierarquia e da brancura, “retomando não ao mundo ancestral, que se perdeu irremediavelmente, masEm ao alter contrário, à selvaSalomon, na qual os“um poder es da de América perseguida se recolheram”. seu guia, prossegue senso distinção étnica, desprovido de seu fundamento srcinal, sobrevive como uma tensão elétrica entre dois eus potenciais, igualmente irrealizáveis”.24 Aqueles que assumem o papel dos dançarinos yumbo se tomam explicitamente auca — não são batizados, não são socializados, são vizinhos dos animais e dos espíritos das montanhas e das nascentes, afirma Salomon. Enquanto tal, não podem entrar em uma igreja e, ao contrário de suas contrapartidas cristãs, nessa versão do Corpus Christi elaborada no Novo Mundo, sua refeição, embora formalmente semelhante à santa mesa, parodia a substância desta. Não são as traves, mas as lanças, que formam essa mesa; não é o pão fresco, mas migalhas roubadas ou mendigadas, além do crânio de um porco, esgravatado e limpo, além de um saco de batatas fritas derramadas sobre a “mesa” improvisada, enquanto se ridiculariza a oração a Deus. “Vocês vão ter de pagar!", grita o macaco para os yumbos. Então os homens formam fila e se dispõem a pagar as contas. Essas contas são classificadas segundo sua denominação e enfurnadas debaixo do couro do tambor. Em seguida recomeça a música yumbo. O dinheiro, conforme Salo-
mesa mon assinala, e não se toca burlesco, nele em uma verdadeira (cristã). Comonão se seé mencionado tratasse de um espetáculo rabelaisiano, injetado
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com humor brechtiano c feroz, com os pés na terra, os yumbo-aucas zombam da ordem hierárquica e serena dos oficiantescristãos e, além disso, do Estado cristão Esses dançarinos da floresta lá embaixo vivem no colo de seus pais e mães das montanhas. “Vim até aqui visitar o apu para curar. Dou boa sorte”, eles poderão dizei; e com apu se referem não simplesmente à montanha ou a um senhor, mas também aos oficiantes cristãos do Coipus Christi. As montanhas amam essa gente das terras baixas. Quando, no monte Guamani, ouvese o barulho do trovão, ao entardecer, dizse que o Guamani está chorando porque seus xamãs Quijo do sopé das montanhas passam por ele, na estrada que leva à cidade de Quito. Eles dançam para as residências cristãs e cantam: “Eu vim, cheguei com minha Mãe Montanha. O que você quer? Quer uma cura ou quer matar?”. E quando partem, daí a alguns dias, dizem: “Agora precisamos ir para nossa casa. Agora nossa montanha está nos chamando, nossa montanha está brincando. Quando nossa montanha brinca, vamos embora, nossa montanha não deixa a gente ficar”. brincadeira das montanhas? É o relâmpago quedárisca surgindo junto Éàsa encostas distantes das montanhas, o lado que paraoascéu, florestas da planície, visível em Quito como um fulgor pálido (segundo as palavras de Salo mon), alumiando, ao fundo, os perfis escuros das cristas. Esse tremeluzir por detrás das cristas que rodeiam a cidade é um sinal do poder dos yumbos. Agem como xamãs do Pacífico e das florestas tropicais do Leste, a domamse com pássaros de plumagem reluzente. São xamãs que vieram até a cidade da montanha a fim de vender animais da selva e praticar a medicina mágica. É verdade que se diz dos yumbos que eles dependem dessas montanhas que os amam e choram por eles, dessas montanhas que são suas mães, seus apus ou senhores, cujo senhorio maternal se dilata para denotar os oficiantes cristãos, a quem os yumbos, que agora representam não apenas o povo da selva, mas sua quintessência mágica e selvagem no ofício xamânico, complementam em ponto e contraponto, por ocasião do Corpus Christi. Tratase, porém, de uma dependência profundamente ambivalente. Os xamãs vêm da selva e oferecem a seus chefes aquilo que sua superioridade lhes nega, isto é, o poder mágico da selvageria, o poder mágico de matar e de curar e, diante daqueles oficiantes cristãos, eles exercem selvageria sobre eles mesmos, matando um dos seus e em seguida, por meio da arte xamâ nica, trazendo a vítima do espaço da morte para a vida, para algo que é, talvez, maior do que a vida, uma diferença estruturada, codependente, da floresta e da montanha, “índia” e cristã, encenada nestas alturas, nos subúrbios da cidade. Caçando e abatendo sua vítima em uma floresta tropical simbolizada, por meio do poder divinatório de seus alucinógenos, no dia que se segue a Corpus Christi, o xamã que matou saúda seus companheiros selvagens (passo a citar Salomon): “E que notícias me traz, irmão? Não viu alguém vir por aqui com os pés e dedos virados para trás, com o cu e os bagos cheios de pulgas e talvez com uma corda
curta amarrada no pescoço? viu alguém passar por matador quer comer o fugitivo, mas Não é persuadido a assim ressuscitálo, casovocê?”. recebaOdinheiro. 241
“Irmão, de onde você veio?”, perguntam ao homem que é trazido de volta à vida. “O que foi que você viu?” Em tom de voz bem baixo, para que os curiosos não ouçam, ele conta: “Irmãos, percorri o mundo inteiro. Vi todos os animais, vi todos os meus irmãos e agora trouxe as sementes doces. Fui para outro mundo e trouxe o que ali havia: laranjas, colación e todas as frutas”. E assim os irmãos yumbos, xamãs, todos eles selvagens, cantam, despedindose das montanhas, dos cristãos, seus anfitriões: De um ano para outro aparecemos aqui Como o pássaroveranero. Ah, agora voces vêem. Ah, agora vocês vêem A morte vocês vêem, a vida vocês vêem agora Ai, não, sim! É assim, é assim!25
Há um tremeluzir de luzes nas sombras da morte: “A morte vocês vêem, a vida vocês vêem agora. Ai, não, sim!”. Há um tremeluzir de luzes além dos cumes sombrios que rodeiam a cidade das montanhas, um antigo jogo de diferenças que se manifesta tanto no comércio quanto nas trocas ideológic as, que talvez agora tenha ficado mais aguçado devido à rapidez com que a circulação de mercadorias criou “o moderno” e “o tradicional”. As danças yumbo florescem mais, informanos Salomon, “onde a desenfreada expansão de Quito, rica devida ao petróleo, ocasionou uma súbita e dramática invasão de comunidades antigamente '
n
26
rurais .
Isto cultural levanta algumas questões abordadas por Benjamin e queonde dizemasrespeito ao efeito do salto em direção àquela Paris de Baudelaire, mercadorias passam a adquirir grande importância. Em primeiro lugar, ocorre o confronto da disciplina da cidade com sua selvageria (“James Ensor gostava de introduzir grupos militares em suas multidões carnavalescas, e ambos se davam esplendidamente, como um piotótipo daqueles estados totalitários, nos quais a polícia toma o partido dos saqueadores”, observou Benjamin);27 em segundo lugar, é preciso observar como o salto quantitativo para a tecnologia e a oscilação do mercado inscreveu nas mercadorias um pathos de promessas negadas, estimulando através delas visões de utopia, extraídas de fantasias do passado primitivo, tais como a selva e seus fabulosos yumbos, aucas e chunchos. Em relação às cidades do Primeiro Mundo, a própria cidade do Terceiro Mundo se aproxima do status do auca. Examinemos o anúncio de página inteira publicado no New York Times (21 de outubro de 1984), centrado em uma foto colorida de uma índia das montanhas carregando nas costas um bebê adormecido. Usa um manto de um vermelho vivo e um chapéu panamá com uma faixa multicor. Em tomo do pescoço há contas de ouro e prata e de suas orelhas pen-
dem brincos Atrás são delacavidades vemos cestos de vime; seus espaçosos interiores, escurosdourados. e convidativos, sexualizadas, à espera de mercadorias 242
para comprar e vender. Ela tem os olhos baixos e ligeiramente afastados da máquina fotográfica, como se estivesse absorta em outro mundo que não o do fotógrafo ou o nosso. É um anúncio da revista Gourmet (“o padrão de vida") que, conforme é declarado, tem 2,5 milhões de leitores. Mas os pássaros tropicais lá dos contrafortes das montanhas, que os xamãs yumbo trouxeram até Quito, morreram durante a viagem. No entanto as cores persistem, e é com elas que os xamãs são ajudados na criação e transmissão de suas fantásticas visões. Quanto à antigüidade dessa enorme distinção que articula a demoníaca magia das florestas das planícies com a majestosa ordem das terras altas — é claro que do ponto de vista destas últimas —, podese apresentar uma justificativa para o fato de ela se reportar a épocas muito remotas. Hemy Wassén resume muitos indícios relativos a esse tema na monografia que editou sobre o conteúdo do túmulo detomo um curador O teste carbono permitiudatas situarmais tal conteúdo em de 350 Collahuaya. d.C.MSalomon cita com estudos que sugerem recuadas (cerca de setecentos anos), no que se refere ao comércio da planície com as terras altas. Ele mesmo chega a ponto de dizer que, pelo menos para o século XVI, há indícios que sugerem fortemente “algum grau de influência ideológica da planície sobre os habitantes das terras altas".29 Entretanto, tal “influência” tem todas as probabilidades de ser tanto autoinduzida quanto induzida de fora. Trata se de uma fantasia institucionalizada das terras altas em relação às florestas do Leste, cujo romantismo, selvageria, beleza e mistério não podem deixar de considerar o ideológico como algo natural e o ficcional como realmente real. E quem permanece imune? À cientificidade da arqueologia e á antigüidade da datação por caibono acrescentamos a paixão heróica dos habitantes da planície, liderados pelos xamãs, contra os espanhóis e, antes disso, ao que se diz, contra as incursões do império Inca. Mais uma observação: os habitantes das terras altas, ricos e pobres, brancos e índios, urbanos e não tão urbanos, descem para as planícies á procura dos xamãs e de seu poder mágico. Nós também, não menos dependentes das impalpáveis distinções foijadas pelo mito, por meio de acontecimentos históricos ocorridos em paisagens interiores e exteriores, seguimos esses habitantes, observando, nos afastando, mas, finalmente, a exemplo daqueles que descem, imaginando o mundo ritualisticamente, não menos tributários da magia das matas e do primitivo, do selvagem, como se o mito se reproduzisse inevitavelmente através de rituais que, para alguns, são curativos e,para outros, necessitamde uma explicação. Para encerrar, Salomon nos deixa com esta vigorosa imagem: onda após onda de estrangeiros conquistaram e santificaram a cidade de Quito, na montanha. Os poderes absrcinais são projetados para fora, em direção á periferia,
passam cima daescreve borda ele, das “a montanhas alcançam refúgio das florestas distantes.por “Assim”, floresta see toma — e oestá se tomando sempre 243
— o refúgio do antigo, do aborígine, do autóctone. É um reservatório para aquele tipo de conhecimento que os poderes do centro desejam unicamente expelir e substituir".30 Mas qual é o grau de autonomia desse conhecimento que o centro projeta para fora? Será que a alteridade que marca aquilo que é projetado também não o marca como algo que é desejado e necessário ao centro? A magia da zona selvagem não será criada tanto pelo centro quanto pelos xamãs, que são feitos para agir como aqueles que amortecemos choques da história? Isso se encontra ativamente inscrito no corpo. Examinemos a história dos ferimentos dos espanhóis e da gordura do corpo dos índios. Bemal Díaz lutou com Cortês e ganhou um império para a Espanha. Seu campo de batalha foi o México, e ele escreveu aquilo que é, com toda certeza, o relato mais universalmente lido daquela conquista. Ao descrever o primeiro confronto com os Tlascalan, ele registrou que o corpo de um índio bem nutrido foi aberto para que dele se retirasse a gordura que curaria os ferimentos dos participantes da batalha. Não havia óleo, disse ele, mas havia filhotes de cachorros dos índios que proporcionaram uma refeição satisfatória. Presumivelmente não eram desprovidos daquela gordura que teria aliviado os ferimentos. No próximo embate a gordura dos índios voltou a ser aplicada com a finalidade de curar quinze espanhóis feridos, bem como seus quatro cavalos. Naquela noite houve galinhas e filhotes de cachorro para comer. Era curioso, escreveu Bemal Díaz, como os índios, nessa batalha e em todas mortos.31 as demais, levavam embora seus feridos, e os espanhóis jamais viram os índios O grande cavaleiro Hemando de Soto, ao que se diz, também usou a gordura dos índios mortos em combate, quando da expedição contra um dos capitães Inca, que resistia na Sieira de Vilcaza, nos Andes peruanos.32 Não posso dizer o quão mágico era tal emprego, mas com toda certeza os princípios enunciados por Frazer referentes à magia complacente e contagiosa ficam claros: com a gordura daqueles que me feriram eu curarei minha ferida. Sabese lá o que está sendo dito aqui a respeito da gordura enquanto excesso beneficente de vitalidade, de corpos vivos e saudáveis, daquele que é mais gordo, em oposição ao infeliz magro etc.! Mas se é vã qualquer especulação relativa às opiniões dos espanhóis sobre as virtudes mágicas da gordura indígena, ela não é tão vã assim quando abordamos as opiniões do índio em tomo desse tema. É o mesmo que dizer — e, como sempre, é algo que deve ser dito, em se tratando deste jogo de espelhos — que não se trata tanto das opiniões dos índios quanto das opiniões dos espanhóis em relação ás opiniões que os índios manifestavam em relação às opiniões dos espanhóis. Neste caso tratavase do untu do índio ou da gordura do corpo. Quando estava para terminar seu pequeno livro sobre os ritos e fábulas Inca,
uns quarenta anos depois que os soldados de de Soto curaram seus ferimentos com a gordura de índios mortos, o sacerdote católico Cristobál de Molina julgou 244
apropriado estenderse longamente sobre a santidade das montanhas, a extração da gordura dos corpos dos índios, a revolta da Doença da Dança contra os espanhóis e os ritos de cura que floresceram durante e após essa insurreição, sem dúvida a maior de todas as rebeliões índias ocorridas durante os primeiros duzentos anos de dominação colonial. Dez anos antes desse livro, uma revolta que os índios Taqui Onqoy Doença darapidamente. Dança irrompeu na diocese de Cuzco,denominaram anteriormenteocapital Inca, e ou propagouse Segundo o padre Molina escreveu, espalhouse a notícia que os espanhóis ordenaram que a gordura dos índios fosse recolhida, após o que seria exportada para a Espanha, tendo em vista a cura de determinadas doenças. Embora ninguém pudesse afirmar com certeza, provavelmente os feiticeiros do Inca, escondidos nas misteriosas paragens de Vilcabamba, onde os Andes se encontravam com as florestas amazônicas, é que foram os responsáveis por esse relato, destinado a semear a inimizade entre os índios e os espanhóis. A partir de então os índios relutaram em servir os espanhóis, pois temiam ser mortos e ter a gordura de seus corpos extraída como remédio para o povo da Espanha.35 Quase quatrocentos anos após a revolta da Doença da Dança, o peruano Efraín Morotc Best publicou em Cuzco um artigo sobre o Nakaq, um fantasma das montanhas meridionais do Peru que, ao que se diz, ataca indivíduos na escuridão, em lugares públicos, para extrair a gordura de seus corpos, que, ou é vendida nas farmácias, onde é usada no preparo de certos remédios, ou para certas pessoas, que a empregam para lubrificar máquinas, fundir sinos de igreja ou polir os rostos das imagens de santos.34 Raramente se dizia que o Nakaq era um índio. Quase sempre comentavase que era branco ou mestiço. Em algumas versões a vítima desaparecia imediatamente. Em outras as vítimas eram colocadas para dormir ou então entravam em um estado semelhante ao transe por meio de pós mágicos. Depois que sua gordura era extraída elas acordavam, sem lembrarse do que tinha acontecido. Não havia qualquer sinal de ferimento. Continuavam a viver sua vida de todos os dias e morriam lentamente. Algumas não morriam, mas ficavam doentes para sempre, de tristeza. Ao acordar, algumas pessoas se lembravam de tudo, como se fosse um sonho. Em seu sobrede o mesmo OliverSmith sugeriu ele serve paraensaio confirmar, maneirafantasma, grotesca,Anthony as experiências cotidianas do que índio em relação à opressão de classe e de raça. Em comentário á parte, notou que os mestiços com quem falou em Ancash, no Peru, em 1966, contaramlhe com grande hilaridade que matavam um cachorro ou um porco e espalhavam suas tripas com roupas enxarcadas de sangue para levar os índios a pensar que o fantasma que extraía gordura andava por perto e os mataria, caso não trabalhassem com mais afinco ou não se comportassem.35 No entanto esse simulacro da realidade, na qual os mestiços zombam daquilo que acham que os índios pensam que
os mestiços estão pensando sobre os índios, vai além de uma simples piada. Em seu trabalho de campo na provínciaandina de Ayacucho, no início e em 245
meados da década de SO, o etnólogo e romancista peruano José Maria Átguedas conheceu um homem, um misti, como os índios o chamavam (querendo dizer, com isso que se tratava de alguém que não era índio, um membro da classe “se no ria r ), que, com grande encanto, embelezava o fato, certamente bem conhecido, de que os mestiços (bem como os brancos) dessas classes sociais podem recorrer a adivinhos e curadores índios quando se vêem em apuros, atribuindo lhes assim o poder de desviar o curso do destino, como se existisse um pacto implícito entre a indianidade e a redenção. Aiguedas fez perguntas aos moradores da cidadezinha andina de Puquio em relação aos wamanis, espíritos das montanhas que rodeavam a localidade e cujos sacerdotes recebem o nome de pongos, dado aos criados e servos cm boa parte dos Andes. Seu conhecido misti contou lhe o que aconteceu, quando atuou como autoridade em um distrito no interior da província.30 Havia uma grande comoção, pois os moradores da capital do distrito, bem como regiões vizinhas, ouvido falar que, em uma cavema nao montanha, das havia um pongo capaztinham de realizar curas milagrosas e de adivinhar futuro. Devido à confusão geral, pois as pessoas, tumultuadas, iam correndo consultar o pongo, o governador decidiu colocar um fim naquilo que ele denominava a farsa do índio. Enviou quatro homens para prender o pongo. Trouxeramno amarrado para a cidade, onde o governador o tratou muito mal, fazendoo dormir na prisão e sem o desamarrar. Entretanto, pessoas de todas as classes sociais, ignorantes e letrados, solicitaram ao governador que o libertasse. Ele decidiu fazer o pongo passar por uma prova. O pongo pediu certos ingredientes e armou sua mesa ou altar, a fim de invocar os wamanis, os espíritos da montanha. Ele e o governador aguardaram sozinhos, em um quarto escuro. Os wamanis chegaram voando, fazendo grande barulho e batendo as asas. O governador disse que conseguiu ver um deles, pois tinha deixado uma janela aberta. Tinha a forma de uma águia pequena, porém imponente. Também nos contou que os wamanis falavam com fúria majestosa e chicoteavam o pongo. O mais furioso era o espírito da maior de todas as montanhas, Quarwarasu. Os wamanis contaram ao governador o que lhe aconteceria ao longo de sua vida, e lhe deram remédios para suas doenças. Só assim ele ficou convencido do poder do pongo e comoveuse, a ponto de iniciar uma amizade íntima com ele, chegando mesmo a dizerlhe certo dia que também gostaria de ser um pongo. Isso, no entanto, estava fora de cogitação, disselhe o pongo. Não era uma profissão que um misti pudesse seguir. Não conseguiriam resistir âs punições e aos testes a que os wamanis submetiam seus pongos. Assim, o governador desistiu de sua ambição, mas manteve relações afetuosas com o pongo. Certo dia, em Nazca, uma localidade remota situada no litoral sul, um amigo do governador, que já não ocupava mais o cargo, pediulhe que trouxesse um pongo para curar certa doença de uma mulher, que nenhum médico
conseguia exgovernador o pongo, que morava a uma distância dediagnosticar. três dias de O Puquio e, de táxi, convocou atravessaram uma extensa região, indo 246
até a costa, cm Nazca, onde, em um quarto escuro, o pongo preparou seu altar e invocou os wamanis, os espíritos das distantes montanhas de Ayacucho. Como se encontrava no litoral, invocou também os espíritos das montanhas vizinhas, sobretudo os da Montanha Branca, mas foi um equívoco, pois a Montanha Branca, situada em uma região onde havia poucos índios, falava espanhol, que o pongo não conseguia entender. Os wamanis seperguntou encolerizaram No dia seguinte o exgovernador à Montanha Branca se poderia servir de intérprete. Ela concordou e os wamanis continuaram A Montanha Branca acusou a doente de ser uma feiticeira. Disse que ela estava doente devido à feitiçaria, pois uma de suas vítimas havia se vingado, mandando um feitiço contra ela. O wamani principal ordenou a dois de seus menores espíritos da montanha que fossem colher substâncias usadas para fazer feitiçaria e lhe trouxessem aquilo que a mulher branca e doente empregara contra sua vítima, bem como aquilo que sua vítima usara contra ela. Em um abrir e fechar de olhos as aves derrubaram objetos pestilentos sobre o altar. Eram dois embrulhos com feitiçaria, que imediatamente foram jogados no fogo. O pongo e o exgovernador voltaram para as montanhas e a paciente começou a melhorar. O exgovernador disse a Arguedas que os espíritos das montanhas interessamse pelos índios e que os segredos desses espíritos só podem ser aprendidos no interior das montanhas. Contavase que o amigo do exgovemador, opongo índio, permaneceu durante seis meses dentro de uma dessas montanhas e que, decorrido esse tempo, ele voltou a aparecer, adormecido no campo. Ele ainda vive, disseram a Arguedas. Entre as posições inferiores, o pongo ocupa a mais baixa de todas e é o criado de todo mundo. Ele voltou a aparecer, dormindo, disse o misti a Arguedas. Ele é também o criado dos sonhos e da arqueologia do mito racista que se desloca para o presente, vindo do interior escondido da terra montanhosa, emergindo adormecido como se estivesse em um tempo de sonhos, a fim de redimir a classe senoríal de sua feitiçaria autoinduzida. Assim como essepongo voltou a aparecer adormecido, outros pongos desapareceram dormindo, violados pelosmistis e brancos sob para a forma de nakaqs, quepolir vendem suas dos gorduras lubrificante máquinas ou para os rostos santos.como remédio, como Em meio às técnicas que constituem esses ritos, existe uma figura que propicia a substancialidade necessária para ligar a febre efêmera das atribuições e contraatribuições a uma força redentora. É uma figura imaginária, constituída por aquele campo fugaz da alteridade — as representações que os brancos fazem das representações que os índios fazem das representações que os brancos fazem dos índios. É a figura da mulher e do homem selvagens, figuras pagãs, a quem se atribui a magia de matar e a magia de curar a doença e o infortúnio socialmente
causados por seus superiores, definidos como civilizados. São estes os grandes artefatos: o antieu fetichizado, gerado por histórias civilizatórias, a figura selva 247
gemente contraditória do primitivo, menos do que humana e mais do que humana. É a figura da escrava negra em Cartagena, com seus filtros amorosos e suas poções mágicas. É Paula de Eguiliz, condenada à morte na fogueira pela Inquisição, acusada de comandar as bruxas negras que assediavam Cartagena. Embora fosse objeto de acusação, era solicitada por seus acusadores, o bispo e o principal inquisidor, a fim de curálos. Despindo o sanbenito, traje de penitência que a marcava como aliada do diabo, ela saía da prisão coberta por um manto bordado de ouro, carregada em uma liteira, lembrando a Mulher Selvagem da Floresta, La Montanerita Cimarrona. É o pongo em sua caverna na montanha curando mistis. É o chuncho nas paragens selvagens, ab aixo das montanhas. É o xamã exorcizando José Garcia, livrandoo daquele feitiço que outros brancos, invejosos de sua boa sorte, lhe enviaram. São imagens de selvageria imputada a esses escravos, exescravos e pongos e, em seguida, extraídas deles, embebidas com aquela alteridade que essa imputação tanto intensifica, a exemplo do que ocorre com a gordura extraída pelo nakaq. É um poder escorregadio e mágico, que pode exorcizar, no eu colonizador, o mal de possuir mais. Somos todos nakaqs.
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O valor do excede nte
1971 foi um ano de esperanças renovadas para muitas pessoas pobres que trabalhavam no campo, na região da Colômbia onde eu morava. Desde a década de 30 não houvera tamanha atividade política por parte dos camponeses que lutavam com os latifundiários pelo controle da terra. Certo dia acompanhei dois líderes sindicais camponeses até o alto das montanhas que ondulam para o Oeste, a partir da extremidade sul do vale. Luis Carlos Mina e o falecido Alfredo Cortés, meus amigos, eram camponeses dos arredores de Puerto Tejada e tinham experiência pessoal com a deflagração de greves nos engenhos de açúcar. Queriam incorporar os das índios a seu novo solicitandolhes que contribuíssem madeira montanhas para sindicato, a construção da casa campesina a ser edificadacom na cidadezinha onde havia o mercado principal. Isso proporcionaria às pessoas um lugar onde passar a noite, na véspera do mercado, e assim elas não precisariam dormir na rua. Era um espaço onde as pessoas se reuniriam, discutiriam suas preocupações mútuas e se organizariam Viajamos o dia inteiro, subindo a cordillera ocidental em pangarés esqueléticos, e localizamos a hacienda. Precisávamos da permissão do proprietário para conversar com seus colonos. Em troca de um pequeno pedaço de terra, pouco fértil, eles trabalhavam durante três dias na hacienda. Eram índios Páez da cor dillera central. Tratavase de quatro ou cinco famílias pequenas, que viviam em choças espalhadas. Quando nos aproximávamos de suas casas eles trancavam portas e janelas. Olhavam para o chão quando conseguíamos entabular um princípio de diálogo, o que não acontecia com freqüência. O proprietário não era menos esquelético do que nossos pangarés. Peludo, rude, sua roupa era manchada de suor e de seu cinto pendia um facão, cuja bainha era polida e reluzente, devido ao uso constante. Era umblanco, um branco, como diziam naquelas paragens, e freqüentara o curso secundário durante alguns anos.
Vivia na fazenda, bastante só, e descia em média uma vez por semana para o mercado, no vale. Era cortês e, embora não manifestasse grande entusiasmo por 249
aquilo que estávamos fazendo, provavelmente achou melhor não demonstrar animosidade em relação ao novo e florescente sindicato. Permitiunos, portanto, que fôssemos conversar com seus obreros. Ao ouvir falar que eu trabalhava como médico, queixouse de sua insônia e de dores de estômago... Quando a situação piorava ele descia para o vale e tomava um ônibus que acompanhar o levaria ao Sul, na fronteira comcomo o Equador. De vez em quando se fazia por quase seu filho, que servira mecânico na Marinha colombiana. Lá passava a noite e pegava outro ônibus, dessa vez em direção ao Leste, descendo os Andes, até as florestas, à procura de um xamã índio, um curaca. Lá ficava bebendo remédios especiais, contoume, até se curar. De vez em quando levava terra da fazenda para que ela também passasse por um processo de cura, sobretudo quando a colheita ia mal ou o gado emagrecia. Que estranho, pensei. Era a primeira vez que eu ouvia semelhante coisa e não sabia quase nada a respeito dos curacas, yagé, da geografia a que ele se referia e, para dizer a verdade, a respeito da feitiçaria ou malefício. Era o malefí cio que fazia o gado emagrecer e as colheitas minguarem Daí a algumas semanas, no dia em que funcionava o mercado, na cidade zinha, deparamonos com alguns de seus empregados. Estavam um pouco bêbados, cambaleavam, sorriam e se divertiam em meio à multidão de camponeses reunidos na sede do novo sindicato. “O patrão diz que sofre de malefício", afirmei, tentando puxar conversa com eles. “Quem estaria fazendo isso?" “Ora essa”, comentou que estava mais de mim, “los mos compadres!". haReferiaseaquele aos colonos índios de próximo cujos filhos o dono damiscienda era padrinho! Ele não parava de sorrir. Jamais saberemos se os colonos enfeitiçaram de fato o proprietário e sua fazenda. Este, porém, sentiase suficientemente atingido para fazer uma longa viagem e adquirir proteção mágica de outros índios, habitantes da floresta, cujo poder se igualava ou se sobrepunha àquele a que o expunha o fato de ele explorar seus colonos índios da cordilheira. Era a magia a serviço da luta de classes, a qual também acabou por envolverme. Cinco anos mais tarde fiquei conhecendo um atarracado morador das montanhas, que morava nos Andes, perto da estrada que ligava as florestas orientais da bacia amazônica á cidade andina de Pasto. Era um fazendeiro diligente e próspero, um blanco, segundo os padrões locais e, durante três anos, tivera pouca sorte. Era um monumento melancólico e sem graça ao conformismo social. Seus olhos, que pareciam duas contas, naufragavam na inocência ovóide de seu rosto gordo. Sua fazenda se estendia por pastos verdejantes e por plantações de batatas lindamente cultivadas, mas saturadas de fungicidas e fertilizantes. Eles terminavam nas margens de um lago azul e gelado, no qual somente os mais ousados se aventuravam a nadar. Segundo se comentava, o lago era encantado. Em tomo er-
guiamse pequenas cabanas, pertencentes a camponeses diaristas, blancos como ele. Era gente pobre, e ele empregava alguns deles em seus campos férteis, inva 250
didos por pesticidas. Seus pais o trouxeram para lavrar aquelas paragens á margem do lago quando ainda era uma criança. Chamavase Sexto. Conhecio em páramo do cimo das uma elevação acima de sua fazenda, a alguns quilômetros do montanhas, lá no vale do Sibundoy, certa noite em que ele tomava yagé com um curador índio de nome Pedro, com quem eu costumava hospedarme por ocasião de minhas viagens à região das planícies. Estávamos quase no final de 1976 e os padres promoviam grandes atividades, pois planejavam fazer com que sua igreja se transformasse em catedral. Um dignatário da mais alta hierarquia, o arcebispo de Bogotá, com seu séquito de bispos, vinha consagrar a nova catedral. Enquanto isso os missionários, muito atarefados, percorriam diligentemente o vale inteiro, em uma vã tentativa de inspirar fervor religioso. A mãe de Pedro, o curador índio, tinha mais clareza do que eu em relação ao significado de toda aquela movimentação. Contoume que finalmente os ossos de frei Bartolomé, escondidos na catedral, seriam exumados e que o papa iria santificálo. Era o mesmo Bartolomé que, há sessenta anos, juntamente com o frei Gaspar de Pinell, empreendera uma lendária excursão apostólica, descendo as montanhas em direção ás densas florestas dos rios Putumayo e Caquetá, com o objetivo de batizar os Huitoto e outras tribos novas e selvagens (conforme a colocação dos textos publicados pela Igreja). Seu espírito émilagroso, e Pedro carrega um retrato dele em sua carteira. O vento, porém, deixava de enfunar as velas que impelem o mundo. A mulher de Pedro participou de nossa conversa, quando falávamos a respeito dos ossos de frei Bartolomé e de suas proezas com os selvagens, ambos soterrados na igreja, em um subterrâneo que pertencia a um tempo de redenção. A perspicácia dela deu lugar a um prolongado suspiro. Declarou que os grandes xamãs da planície não existiam mais. O mesmo ocorria com frei Bartolomé, que morreu em 1966. “Nos tempos antigos havia grandes curacas”, disse ela, pensativa, referindose aos xamãs. Eles eram capazes de se transformar em onças e papagaies. Conseguiam voar. Agora acabaram. Cometam um ao outro. Brigaram entre eles. Foram consumidos pela inveja. Eles se transformavam em onças para comer a família inteira de seus inimigos. Agora que Salvador morreu, não existe mais ninguém. Ele era como frei Bartolomé. Sabia curar. Era um homem de qualidade. Não havia médico como ele e até hoje não existe ninguém. Frei Bartolomé ajudava até mesmo as mulheres a dar à luz. E não cobrava nada por isso. Ia a lugares distantes no campo, até mesmo quando chovia. É por isso que ele é um santo. Está no céu. Foi o pai de todos nós. Fundou a catedral, o convento das Santas Irmãs e o dos padres também. Foi o fundador de Sibundoy.
“Por que os capuchinhos foram embora do vale?”, perguntei. “Porque o frei Bartolomé morreu. Recebeu uma carta do INCORA (o insti-
tuto de reforma agraria do governo, que desapropriou a maior parte das terras que os capuchinhos haviam tomado dos índios no início deste século). O frei 251
abriu a carta e teve um ataque cardíaco. Os capuchinhos venderam quase todas suas fazendas ao INCORA. Agora o povo tem que pagar ao INCORA, mas isto não é bom. Agora só se ouve falar de dinheiro, de conseguir empréstimo para trabalhar a terra, comprar arame farpado, usar tratores. É melhor ser pobre e dormir sem essas preocupações.” Nem ela nem Pedro tinham qualquer outra terra que não eles um pedacinho de solo árido colinas acima cidade, cujagraças parca produção complementavam com anas pouca renda que da Pedro obtinha a suas atividades de curador, adivinho e carpinteiro. Aquela noite os missionários haviam escolhido a casa de Pedro como local de encontro de uma das reuniões destinadas a consolidar a fé, antes da chegada do arcebispo. Aconteceu, porém, que justamente naquela noite Pedro planejara tomar yagé com seu grupo de pacientes. Imperturbável, disse a mim e aos outros que aguardássemos sem fazer barulho, sem sermos vistos, no quarto de chão batido, enquanto reuniãopranchas dos padres se realizava na sala ficamos da frente.sentados Separados unicamente pelasatoscas de madeira da parede, no escuro. Nossos temores e expectativas em relação ao yagé que tomaríamos mais tarde eram sublinhados por raios de luz e pelos sons que vinham da sala. Cerca de trinta vizinhos, entre adultos e crianças, haviam comparecido à reunião com um padre e uma freira. Todos, muito rígidos, estavam sentados em bancos, à luz de uma lâmpada. O padre começou. “Viemos aqui para discutir problemas. Vim até aqui com a Irmã e gostaria que nos chamássemos por nossos nomes. Somos iguais perante Deus.” Silêncio. “Estamos aqui pata procurar a unidade, a base de tudo”, declarou o padre, que em seguida percorreu a sala, perguntando o nome de cada pessoa. Muita gente riu, contrafeita. “Precisamos ser amigos”, afirmou a freira. “Temos de fazer amigos, pois a maior parte de nossos problemas se deve à falta de comunicação.” Em seguida ela fez um discurso criticando os protestantes. Pedro interveio com uma pilhéria que aprendera com os padres, em sua cruzada contra o comunismo. Ele igualava os comunistas e sua censurou pior característica era fato a desconsideração pela Virgem, a aos mãeprotestantes, da terra. A freira o grupo pelo de ele não ser suficientemente amistoso entre si. Até então, com exceção de Pedro, ninguém ousara dizer o que quer que fosse. A freira, sem dúvida, estava se empenhando. “Vamos cantar um hino que fala da amizade”, ela sugeriu, mostrando a todos uma partitura. “O quê! Vocês não sabem ler!" Girou a manivela de um toca discos. O padre estava de pé, e todos os demais, sentados. Ele começou a fazer preleções, fazendo todo tipo de perguntas relacionadas a conflitos entre casais. “O que falta?", perguntou, dando a resposta em tom triunfal. “Compreen-
são! Falta compreensão!” Invocou a fraternidade. “Todos nós procedemos de Deus e a Ele retomaremos.” 252
A freira perguntou: “Vocês se sentem sozinhos ou acompanhados?”. Pela primeira vez o grupo se manifestou: “Acompanhados!". A freira leu seu hinário e tocou o disco. Obrigou uma mulher a ler um hino em voz alta. Ela e o padre falaram a respeito da pobreza. “Como nos livramos da pobreza?", perguntaram. “Com alguémodisse. “Não! dinheiro", Não!", exclamou padre. “Dinheiro todo mundo pode ganhar. Existe algo mais importante do que o dinheiro. 0 que é?" Fezse um prolongado silêncio. “Com a palavra de Deus, conhecendo a palavra de Deus!" Alguns jovens, reunidos em frente da casa, gritaram: “Reunião e merda é a mesma coisa!". “É difícil os vizinhos se comunicarem", disse o padre, “realmente difícil.” E assim, decorrida uma hora, a reunião chegou ao fim. Pedro, empolgado, entrou no quarto onde nos encontrávamos, declarando: “E agora vamos ao que interessa”. Acendeuse uma pequena fogueira e sentamos todos no chão em tomo dela. Oito dentre nós conversavam animadamente, enquanto ele preparava a panela do yagé. Ele não nos exortou a dizermos nossos nomes ou a sermos amigos, e embora naquela noite se tivesse falado muito a respeito de pobreza e conflitos, isso não se resolveu por meio de um apelo à compreensão, à comunicação ou á palavra de Deus. Silêncio. Pedro começou a cantar para oyagé. Alguém repetiu algo que o padre dissera: “Fraternidade". Uma sensação de suavidade invadiu o quarto. Pedro cantava com mais vigor, e após bebermos o primeiro copo houve uma conversa prolongada, porém interrompida com freqüência, sobre os preços e lucros obtidos com as colheitas. Decorrida uma hora Pedro estava sentado com a cabeça apoiada nas mãos, sofrendo. De repente olhou na direção de Sexto, o homem do lago, e perguntou: “Desconfia de alguém de lá que tivesse posto osal?" Ao empregar a palavra sal ele estava referindose à feitiçaria. Sexto disse que sim. “Muito bem", disse Pedro. “Devemos continuar a pensar, a nos concentrar, a examinar tudo.” Daí a muitos pouco voltouse paradoJulio, umdo negro de meiaidade queque se mudara para lá havia anos, vindo litoral Pacífico, e disselhe sabia quem lhe havia feito o mal, quem era o homem que... Decorrido um tempo, que pareceu ser quase uma hora, um índio da localidade aproximouse de Pedro, que sofria e estivera vomitando. “Este remédio é violento”, ele disse, entre uma golfada e outra. O homem começou a desfiar o rosário de suas desgraças. “Minha mulher me abandonou... meu filho está doente., o mal invadiu minha casa... não sei o que fazer..."
“Que ruim!”, exclamou Pedro, com empatia e dor, voltando a apoiar o rosto nas mãos. 253
Isso durou a noite inteira. As pessoas se levantavam para defecar e vomitar. Em seguida voltavam para perto da fogueira. Longe dela o frio era grande. Todos falavam principalmente sobre a prevenção e cura da feitiçaria. Havia muita zombaria, muitas piadas, e em meio às interrupções e retomadas, a arroios e grandes ondas, as cores e configurações do yagé avançavam e recuavam; as ondas amarelas das flores em tomo do lago, copas rosadas e brancas, gelatinosas, ondulavam lentamente como se fossem plantas aquáticas, mescladas com serpentes e porcos. Uma sombra se mexeu, a fogueira crepitou, ouviuse um som, uma emoção se infiltrou no interstício da discussão lenta e dispersiva. Essas súbitas irrupções esquadrinhavam e punham em estado de alerta nosso ser, moldando a consciência, assemelhandose ao jardim das delícias do curador, no quintal da casa. Ali, em meio à maior desordem, cresciam várias plantas: cipós, arbustos e grandes flores de estramônio com formato de sinos, brancas e laranjas, no maior alvoroço. Quando diaseu nasceu começou a exorcizar o mal acompanhando dos doentes, umcom por um, por meioode lequePedro curador de folhas farfalhantes, vigor o ritmo de seu canto. Graças a seu cristal de quartzo, sua “lente’’, ele enxergava o interior dos corpos. Mandava o doente respirar e expirar na lente e, de vez em quando, pedia que olhasse nela e visse a forma vaga do mal. Passava o leque de folhas pelo corpo do doente, ritmando sua ação com o canto. O leque farfalhava, se agitava, recolhia o mal que estava lá dentro. Ele sugava coisas ruins do corpo do paciente e as cuspia em um canto do quarto, fazendo muito barulho. Nisso levou muito tempo, cerca de duas horas e meia para atender quatro pessoas. Todo mundo parecia estar descontraído e livre. A fogueira foi atiçada, ofe receuse aguardiente, e a conversa girava em tomo dos acontecimentos da noite. Comentavase rapidamente, porém com freqüência, o tema da feitiçaria, algo que interferia na história de vida de todos os presentes, enquanto que o tempo todo, embora com interrupções constantes, Pedro entoava seus cânticos, marcando o ritmo com seu leque de cura, sugando e cuspindo. Normalmente taciturno e estóico, Sexto, o homem do lago, descreveu os sofrimentos pelos quais havia passado nos três últimos anos. Fez uma pausa. “Mal aires”, concluiu uma mulher, em tom confidencial Havia uma chispa no olhar de Sexto, quando ele a encarou. “Não!... Feitiçaria!”, exclamou. “Puro sal , pura feitiçaria", concordou um rapaz, sentado em um canto, “com toda certeza!” Sexto tinha 57 anos. Quando veio para o lago com seus pais havia pouca gente ali, mas agora o número de moradores aumentara muito. Poucos tinham sítios maiores do que um hectare. O de Sexto media quase sessenta. Engordar o gado e produzir batata agora exigia capital e empregados, os brancos pobres que
viviam em pequenas cabanas, redondezas dos campos. Quando fui visitálo ficounas claro que ele temia a inveja dessa gente e a feiti254
çaria a que isso poderia levar. “As pessoas daqui são consumidas pela inveja”, comentou, “e enfeitiçam a fazenda. Não dão duro como eu. Eles me vêem prosperar e tentam me fazer mal, mas se a gente tomar yagé a cada seis meses se garante contra o maleficio. Então nada poderá nos prejudicar. O que aconteceu comigo é que eu me descuidei. Parei dè tomar yagé durante algum tempo.” anosàsele percorria de Pasto, tãofoicontente quanto alguém pode Ha ficartrês devido boas vendas as noruas mercado, quando assaltado e esfaqueado. Caiu com todo o peso do corpo sobre a pema direita e foi levado ao hospital. A radiografia não acusou fratura alguma, segundo lhe disseram, e os médicos deram lhe alta após uma semana, porém ele mal conseguia andar. Durante um ano e meio precisou de muleta e ainda mancava, o que diminuía sua capacidade de executar tarefas mais árduas. Ainda assim ele não deixou de desempenhar várias delas, conforme testemunhei durante aqueles dias passados junto ao lago. Como se isso não bastasse, sua filha sofreu ataques de paralisia, para os quais não havia um motivo óbvio. Foi obrigado a vender com grande prejuízo financeiro o pequeno ônibus que servia a zona rural, de sua propriedade, pois o motorista que contratara o estava roubando. Movido pela curiosidade, tomou o yagé quando tinha 21 anos. Desde então o tomara várias vezes e acabou conhecendo a maior parte dos xamãs do vale, nas montanhas. No momento parecia estar feliz com Pedro e lhe levava pacientes da região do lago, agindo como uma espécie de intermediário. Na verdade Sexto nutria a silenciosa ambição de se tomar xamã. Passamos pela cabana de um vizinho pobre. Somente as crianças se encontravam em casa, e entre elas havia uma menina pequena que estava doente. Com pompa e ares de mistério Sexto sentiu seu pulso e apalpoua, dizendo que lhe traria certas ervas. Em sua casa tinha um jardim de plantas medicinais, cuidadosamente cultivado. Era um pedacinho de terra que encerrava promessas mágicas. Mais tarde, quando tremíamos devido ao ar noturno que varria o lago, tossindo devido à fumaça da fogueira na qual as batatas estavam sendo cozidas, ele falou de seu sonho de adquirir cristais de quartzo, empregados na adivinhação, e penas de xamã, vindas da região das matas. No entanto entoar cantigas era algo que estava além dea suas Até receber esse domo pprecisaria ter paciência. “Quando gentepossibilidades. tomayagé", explicou, “adquirimos oda do xamã. O xamã nos dá este dom e é isto que cura as pessoas, o gado... tudo, incluindo a feitiçaria da terra e das colheitas.” Ele fez uma pausa, reunindo em uma única paisagem encantada todos aqueles atos mágicos. “Os xamãs das montanhas cantam”, declarou, “e com isso invocamo espírito do xamã dafloresta, que lhe ensinou a ajudar os outros. Eles agem assim porque o xamã deu a eles esse dom” Segundo entendo, a visão de Sexto é de que as regiões da floresta, ao leste, são ligadas á região das montanhas por uma cadeia de um discurso espiritual que
se estende através do tempo, apreendido como uma imagem espacial. É uma paisagem que interfere no presente, conforme vimos, aos nos referirmos aos chun255
chos ao
leste de Cim», gente sepultada em um subterrâneo do tempo na região das selvas, semente dotada de força mágica a fim de florescer no presente. O que Sexto indicava era uma conexão temporal fixada em uma topografia moral, que consistia em sucessivos fortalecimentos do poder através das trocas de dons, as quais ocorrem entre os espíritos e o xamã, entre o xamã e o paciente, entre o paciente e você, caro leitor. O dom do passado ao presente, dos xamãs das selvas aos das montanhas, foi apreendido por Sexto, o camponês rico, como algo que impediria a feitiçaria que, segundo ele desconfiava, era praticada por seus empregados. O manto de proteção mágica, propiciado pelos índios xamãs e pelo yagé, tomavase para ele um instrumento de controle da mãodeobra, em uma economia camponesa na qual o capital e o trabalhador assalariado estão se tomando características distintivas, algumas vezes superando e outras coexistindo com uma agricultura de subsistência, mais antiga, na qual se empregam pesticidas ou fertilizantes e na diferente qual não eintervém o capital ou não o trabalho assalariado. Quanto a José Garcia, o dom que um camponês empreendedor como Sexto adquiriu do yagé e dos xamãs da região das florestas era algo que facilitava a difusão da economia de mercado na agricultura de subsistência, na qual a desigualdade fertilizava a inveja e esta gerava a feitiçaria. Em tal situação cabe a um xamã das montanhas, como Pedro, agir como médium não apenas dos espíritos de um passado primordial, soterrado nos subterrâneos do tempo, nos ermos da floresta. Ele também medeia a luta de classes, conforme aquela que se trava entre Sexto e seus empregados. Deparamonos também com outro conjunto de mediações: o fato de que Pedro intermedeia a força cultural dominante da região, os mistérios e a autoridade da Igreja Católica e a feitiçaria e a imponderabilidade do cotidiano. Quando pergunteilhe como haviam funcionado as reuniões do padre na sala da frente de sua casa, ele deu uma risada. “Estou a meio caminho do céu”, declarou.
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A magia da caça
Quando cheguei ao Putumayo, foi Pedro quem descreveu para mim um mundo no qual ele invocava os espíritos da “primeira tribo" e os Huitoto das cálidas florestas situadas mais abaixo. Era com eles que criava o poder necessário á cura e à adivinhação. Recorria àquelas criaturas de fantasia, que vinham do início dos tempos e que se situavam no limite do mundo civilizado, naquela região onde figuras sagradas, como os freis Bartolomé e Gaspar haviam penetrado com a cruz, várias décadas antes de nosso encontro. Era impossível deixar de sentir a presença das florestas nesses xamãs das montanhas. Lá estava essa presença encarandonos, devido àdependência dosxamãs das montanhas em relação aoyagé, o qual é encontrado unicamente nas florestas das regiões mais quentes das planícies. No entanto essa dependência não é tão radical quanto parece. Não se trata de “um fato natural". Existem muitos xamãs e curadores em todo o mundo que não recorrem a drogas alucinógenas. Além do mais, existem muitos alucinógenos nas montanhas, a começar pela abundância de estramônios que florescem em todo o vale do Sibundoy e a que os xamãs locais tanto recor rem Aos olhos dos habitantes das montanhas, segundo me parece, a importância e o poder mágico do yagé é devido em grande parte ao fato de que ele é investido do podei mítico e metafórico das florestas da planície e de seus habitantes. Tratase de poderes de primitivismo e de selvageria, especificados pela colonização e pela Igreja Católica. Tomar o yagé significa tomar tudo isso, através de um gole alucinatório, que provoca náuseas. Também não se pode deixar de ver a imagem das planícies nos adornos rituais dos xamãs, todos provenientes das florestas quentes: as penas e os cristais de quartzo que Sexto tanto deseja, para não mencionar os cantos. Anseia que eles cheguem igualmente dessa maneira. “Por que usa este colar com dentes de onça?”,
lembrome de terPorque perguntado certa vez a um velho vale do Sibundoy. “Por quê? ele tem o mesmo dono quedo o yagé. Vem do mesmo lugar, do monte, e é o yagé a que chamamos tigre ahayuasca." 257
“E o cascabel ?", indaguei, referindome aos colares feitos com sementes e que, agitados, reproduziam o barulho de um guizo de cascavel. “Eles são o s om da floresta, de onde vem o yagé “E como é que eles ajudam a curar?” “Bem, eles mostram pra gente... tudo!" E as penas? Elas provêm das aves das florestas da planície. Ajiidam a fazer a pinta, a pintura que se cria ao se tomar o yagé. No entanto, a despeito dessa dependência em relação á floresta, a filha dele deixou bem claro para mim que os xamãs da montanha são melhores que os lá de baixo; más inteligente, foi a frase empregada. “Deus nos fez com inteligências diferentes”, disse ela, “e os xamãs do Sibundoy são estimados pelos xamãs da planície”. Quanto aos índios que habitam na extremidade oeste do vale, em tomo da cidade de Santiago, ela observou o seguinte: “Eles têm uma inteligência diferente nossa. Gostam de perambular aí, até Palmira, Pereira, zuela.daVendem bugigangas (cachorro)por e aprendem um pouco de Bogotá, medicinaVenenos livros”. “Somos preguiçosos demais para sair de nossa cidade, Sibundoy”, interveio o pai dela. Três anos mais tarde eu discutia essas coisas com meu amigo xamã Santiago, montanha abaixo, na planície. “Até agora os xamãs da planície têm mais sabedoria do que os lá de cima”, ele comentou. “Até agora ninguém ouviu dizer que um xamã da montanha se transformou em uma onça, em um pássaro e foi capaz de voar. Era o que Miguel Piranga fazia. Era o que Casemixo fazia. Era o que Patrício, quando jovem, fazia.” Conversamos sobre Patrício, com quem Santiago tomou yagé algumas vezes, em sua juventude. “Os outros pediam a ele sorte, para ganhar dinheiro. Eu, porém, pedi a ele sorte na caça. Isso é que é bom. Quem pede sorte na caça acaba trazendo tudo. Então um sujeito me perguntou: ‘Você está recusando a riqueza?’. E Patrício explicou: modo algum. Caçar oé melhor do que pessoas ter dinheiro. é que é quero bom. A sorte na‘Decaça acaba trazendo resto. Outras vêm Isto e pedem: chontear [matar gente por meio de dardos mágicos, soprados por meio de uma zarabatana] e matar brujos [feiticeiros, xamãs]. Mas aprender isso não presta’. Foi esta a explicação de Patrício. A magia, tendo em vista a caça, é sabedoria e inclui ganhar dinheiro. A magia da caça é mais poderosa do que aquela para se ganhar dinheiro, pois ela proporciona tudo, em primeiro lugar animais e, mais tarde, dinheiro. A magia do dinheiro é boa unicamente para o dinheiro. A outra pinta permite que se aprenda como curar e como ter sorte para se ganhar di-
nheiro.” Ele fez uma pausa. “Os sujeitos que vieram do vale do Sibundoy é que pediam magia para se ganhar dinheiro. Eu, porém, pedi a visão, para aquelas 258
r ocasiões cm que ia caçar. Então o xamã disse i sso é que é bom. Disso vem tudo o mais’.” “E como é que funciona essa magia para se ganhar dinheiro?”, indaguei “Aqueles que bebem yagé com essa finalidade são os que sabem disso. Tentam fazer mal às pessoas por pura inveja e acabam ficando com nada, a não ser o Rosário mal. Estáme entendendo?” dissera quase o mesmo, em sua casa no sopé das montanhas. “0 povo das montanhas tem outro sistema", disse ela, “e isso dá a eles mais dinheiro, não? Atravessam a nação e vão de um lugar para outro com suas amoras c suas castanhas, quando na verdade estão trapaceando. O sistema deles é uma mentira e um jeito de enriquecer através da sujeira!” Com sujeira ela queria se I referir â feitiçaria. O filho de Salvador demonstrava o mesmo desprezo em relação aos curadores índios errantes das terras altas do vale do Sibundoy. “Eles não sabem nada de plantas", disseme naquela região quente onde se erguia sua casa, junto a um tributário do Putumayo. “Gostam de vender ilusões. Percorrem todo o país com a finalidade de ganhar dinheiro. Agora estão indo para a Venezuela. Alguns foram presos lá, devido a seus truques.” Mesmo assim existem alguns laços amistosos entre a gente da planície e a da montanha. Como é que os últimos poderiam adquirir o yagé a que dão tamanho valor? A mulher de Salvador contoume, em 1975, que dois irmãos, curadores da cidade de Santiago, no vale do Sibundoy, costumavam vir a sua casa todo ano, pouco antes do Carnaval. Vinham acompanhados de suas mulheres e filhos da distante Venezuela, onde praticavam medicina mágica. Voavam de Bogotá até a selva e de lá subiam o rio de canoa. Segundo ela me disse, bebiamuma grande quantidade de yagé lá na floresta, com Salvador. Declaravam que faziam isso para obter sorte e ter a capacidade de curar. Traziam muitos presentes — comida, roupas e utensílios de cozinha, como, por exemplo, baldes de plástico. “Deramnos muitas coisas”, ela prosseguiu, “pois diziam que ganhavam muito dinheiro na Venezuela e deviam isso a Salvador, que é o taita ou pai deles." Então, decorridas duas semanas ou pouco mais, subiam a montanha iam para a casa de Santiago, durante o Carnaval, levando um yagé muito espesso, eque Salvador preparava para que eles o transportassem para a Venezuela e que equivalia a uma quantia de mil pesos. Por outro lado, havia relacionamentos como o de Santiago e de Esteban, no qual o curador da montanha tomase o inimigo invejoso e implacável do xamã da floresta. Poderá recorrer não apenas à arma que é o capacho, isto é, o embrulho de feitiçaria, graças ao qual os xamãs da montanha são notórios, como também
tem acesso à magia, aquele poder maléfico que resulta do fato de se fazer um pacto com o demônio, a partir de livros de magia. É o que disseram que aconte 259
ceu com Santiago, quando clc se recusou a venderyagé para Esteban, um homem da região das montanhas, que há muito era seu inimigo. Parecia ser a situação na qual um homem que solicitara a magia da caça estava sendo atacado por um homem que tinha o poder de praticar a magia a fim de ganhar dinheiro. Até então o homem que solicitara a magia da caça conseguira defenderse, embora houvesse uma época em que parecia que ele seria magia e de que tratavam aqueles seus livros? derrotado. Mas o que era aquela
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O livro da magia
A exemplo de quase tudo — quando não tudo — aquilo que eu gostava de
imaginar como sendo conceitos fundamentais, ninguém se mostrava suficientemente esclarecido a respeito da magia. Florencio, um velho amigo índio, afirmava que ela havia chegado com os brancos e unicamente com eles. “Usamna para tirar nossas terras”, declarou, acrescentando que onde quer que fosse cuidava sempre de ter uma raiz de chondur em seu bol so, no caso o chõndur blanco, pois precisava de uma magia muito forte para combater a magia dos blancos, as magia requeria um pacto haver geralmágicos. no sentido de ficou que a muito e oum com oParecia demônio usoacordo de livros Não claro se um xamã poderoso da planície que usasse o yagé poderia ser mais forte do que a magia. Santiago fora salvo por Salvador, é verdade. Mas nem Salvador ou qualquer outra pessoa, quando pressionados, esclareceu se a magia se encontrava ou não presente. Uma confusão a mais estava no fato de que os brancos procuram os xamãs índios para serem curados de feitiçaria feita por outros brancos, e embora não denominem essa feitiçaria magia, parece que ela, no final, resulta no mesmo. Quando Antonio, o irmão de José Garcia, foi atingido pela doença e se revolvia em sua cama à noite, sem conseguir dormir, lutando contra Satã, emboscado na floresta, o amigo de José Garcia, Luis Alegria, um migrante mulato que viera para a região, lhe deu um conselho. “Ouça!", disse. “ Magia c coisa muito boa. Por exemplo, magia contém um segredo que envolve a flor do alhecho. Com essa flor é possível curar tudo! Tudo! Podese curar qualquer pessoa, proporcionar boa sorte, tudo, enfim. Sim! É uma maravilha!" Foi o que José Garcia me cantou, decorrido muito tempo. Luis Alegria prosseguiu. “Compre o livro damagia", aconselhou José Garcia, “e na página tal procure o segredo. Com ele nós também poderemos usar um
segredo para enfeitiçar o feiticeiro com a magia que ele mesmo empregou!" 261
Vários anos depois que José Garcia me contou essa história, uma velha índia trouxe uma menina triste á presença de Santiago Mutumbajoy. De vez em quando ele sentavase com a garota e cantava com suavidade, passando em seu corpo o leque de folhas, como se quisesse limpála. Os dois permaneciam em profundo silêncio, sozinhos naquele espaço criado pelo murmúrio suave do rio, a distância, que despencava em pequenas quedas d’água e que prosseguia, deixando para trás os redemoinhos, semelhante ao sussurro de um pensamento que se toma consciente de si mesmo, no espaço existente entre as palavras. Alguém contoume que o pai da menina morrera recentemente e vivia chamando a mãe dela, que então adoeceu e também morreu. Agora havia somente suas jovens filhas, e o curador cantava para elas, lentamente, suavemente. O pai fora pescar certa manhã, bem cedo, e viu uma pessoa estranha á margem do rio. Ao voltar para casa começou a vomitar e sentiuse febril. Morreu daí a Muito uma semana. depois Santiago Mutumbajoy contoume que o pai estava estudando magia nos livros, mas não era suficientemente forte para se relacionar com o espírito mau a quem havia invocado por meio das orações e conjuros que aprendera nos livros. É preciso ser muito corajoso e ter sangue forte para resistir, observou Santiago, mas o pai era um homem fraco, começou a morrer. Veio tomar yagé uma ou duas vezes, mas de nada adiantou. Ele não conseguia tolerar a chuma, aquela abertura do mundo, invadido por sons estonteantes e fragmentos de cores e odores. Só de tomar um pouco de yagé ele caía no chão, aos berros: “Me dê o contrai". Após morrer ele voltava sem cessar a sua casa eespantó a la mujer.A exemplo do que acontec e com as almas daqueles que morrem violentamente ou devido ao abraço de Satã, creio que poderíamos dizer que aquele espírito sem paz vivia voltando com a finalidade de levar sua mulher para a mesma sepultura intran qüila, e ela também acabou morrendo. Tendo isso em mente, uma pessoa seria certamente temerária se acaso seguisse o conselho de Luis Alegria, amigo de José Garcia: “Compre o livro da magia
e na página procure o segredo...". Era como se atalmagia e, mais precisamente, o seu livro fosse uma prefiguração daquilo q ue se poderia denominar a mercantilização da magia, mas tam bém a magia da mercantilização. O que estamos ouvindo, nesses relatos de almas atormentadas e nessa aquisição de livros mágicos, é a inscrição irregular, no corpo social, do sentido de se poder fazer aquis ições em um mercado. A vivacidade de tal significado é suscitada quando se toma mágica a mercadoria que está sendo discutida. Por magia deve ficar bem claro que estamos nos referindo ao conhecimento, âs palavras e à capacidade que elas têm de operar. Na verdade estamos
falando sobre a mercantilização de uma teoria do significado e da retórica, não apenas do conhecimento, mas daquilo que, em um sentido profundamente signi 262
ticativo, é o conhecimento do conhecimento, que precisa permanecer inacessível para que esse conhecimento exista. Em oposição a adquirir pinta de um curador de yagé como um meio (segundo se diz) de a pessoa também se tomar um curador, a aquisição da magia através do ato de se comprar um livro é uma atitude essencialmente anônima e individualista, uma transação de mercado, na qual o dinheiro é desembolsado tendo em vista a obtenção de um conhecimento padronizado. Em contraste, o conhecimento do yagé é adquirido através de uma imensa privação e é essencialmente a acentuação ou extensão da substância do xamã, o doador. É sua pinta e parte dele. Além do mais, é a antítese de um conhecimento padronizado e retira seu poder do inefável, das sutilezas inerentes ao jogo de luzes e sombras, das alusões e das súbitas transformações. É o poder em seu estilo, não em sua substância ou, melhor dizendo, sua substância é seu estilo. Ambos os poderes são perigosos para aqueles que os praticam, quer se trate yagé da aquisição ouxamã, da prática, enquanto no ocaso se teme é a inveja de outro em se mas, tratando da magia que do se receiaoé que a personificação de uma abstração, do próprio mal no emblema de Satã, o que, aliás, está de acordo com o poder abstrato das forças do mercado. A luta aqui se trava com o eflúvio do mal, onisciente e onipresente, com aaura miasmática daquiloque oprime e não com este ou aquele determinadoxamã, devido a um temor concreto à inveja. O que é fascinante, neste caso, e não apenas complexo, é o modo como essa inscrição irregular, no corpo social, do sentido de se poder fazer aquisições em um mercado, acarreta uma discussão a partir de várias perspectivas, a mais importante das quais é aquela imanente ao discurso colonial, com a visão dos brancos, por um lado, e a dos índios, por outro — se quiserem, o conselho de Luis Alegria, contrapondose ao relato de Santiago Mutumbajoy. O que importa, neste caso, não é apenas o modo como a magia é identificada pelos índios como algo intrínseco à cultura colonial, mas também aquilo que se obtém efetivamente através da aquisição de livros de magia. Com efeito, a magia da palavra impressa adquiriu esse poder através do exercício da dominação colonial, com o feti chismo daquilo que é impresso, tal como se dá com a Bíblia e com a lei. A magia, segundo me parece, nãoa dora, como também prolonga
só confere “magicidade" à imprensae coloniza magia inerente à sua racionalidade à função monológica presente na dominação. Uma das primeiras coisas que os índios me contaram, nos dias que se seguiram à tomada de Villa Garzón, cidadezinha do Putumayo, por misteriosos guerrilheiros, na década de 70, foi o fato de que estes, a quem os índios denominavam bandidos, queimaram toda a papelada existente na sala do juiz e na delegacia de polícia. Alguns anos mais tarde fiquei sentado durante muito tempo, observando
um jovem que tentava provar a um padre, Sibundqy, que ele O erapadre, realmente quemíndio afirmava ser e que precisava de umaem certidão de batismo. 263
no entanto, se recusou a atender sua solicitação, pois a carteira de identidade expedida pelas autoridades do Estado não correspondia ao registro do livro da igreja. Nele o sobrenome da avó do rapaz aparecia em último lugar e não o do avô, conforme o costume. Além do mais a mãe não era casada. Surpreendente e, no entanto, uma ocorrência de todos os dias: o rapaz não existia, mas os livros de registro e os documentos, sim. No livro de B. Traven, The rebellion o fthe hanged [A rebelião dos enforcados], que se passa em Chiapas, México, o professor da escola expõe suas idéias revolucionárias: Se quiserem que vençamos e permaneçamos vencedores, precisaremos queimar todos os papéis. Muitas revoluções começaram e fracassaram simplesmente porque os papéis não foram queimados, conforme deveria acontecer. A primeira coisa a ser feita é atacar o cartório e queimar todos os documentos, todos os papéis que tenham selos e assinaturas — atestados, títulos de dívida, certidões de nascimento, casamento e morte... Então ninguém saberá quem é quem, como se chama, quem foi seu pai e o que ele teve. Seremos os herdeiros, pois ninguém terá condições de provar o contrário. Para que precisamos de certidões de nascimento? Já li uma pilha de livros. Li tudo o que foi escrito sobre revoluções, revoltas e motins. U tudo aquilo que os povos de outros países fizeram quando não agüentavam mais aqueles que os exploravam. No entanto, no que diz respeito à queima de papéis, não li nada. Não está escrito em livro algum. Descobri isso na minha própria cabeça.
Em seu relato sobre a cosmologia dos Siona, idealizado de modo muito típico, Jean Langdon descreve o que os índios do Putumayo lhe falaram sobre as últimas camadas do Universo, onde um ser denominado diosu (comparar com o Dios) se encontra sentado na companhia de alguns poucos termo espanhol “seres vivos de Deus” ou anjos voando ao redor, enquanto ele consulta um livro (a Bíblia) que contém todos os remédios. Acima dele, no mais alto céu, pombas escrevem em um papel. Esta profusão de livro, escritos e papel, nas nuvens puras que pairam sobre o Ente Supremo colonizado desse cosmos índio, exaurese naquela zona inferior onde a camada cósmica das pombas escritoras dá lugar ao nada absoluto, com exceção do tronco de uma árvore, do qual pende um espírito solitário.2 Na simbologia onírica dos índios Sibundoy, de acordo com o frei etnógrafo Castellví, que passou quase metade de sua vida no vale, sonhar com papéis é sinal de que se irá encontrar um homem branco e que algum infortúnio, tal como um processo legal, irá ocorrer.3 No entanto os padres não estão menos sujeitos do que a lei a figurar na magia onírica que cerca os livros. Quando estava morrendo e atravessava o espaço da morte, conforme sua colocação, meu amigo Horencio, um índio Ingano, viu os padres consultando seus livros sobre remédios. Faloume de uma visão provocada pelo yagé, na qual ele subia até o vale do Sibundoy e via os xamãs
índios com penas e espelhosAe,pinta em seguida, o Exército colombiano tido devestidos ouro, cantando e dançando. que surgiu em seguida foi a de vestrês 264
bispos em um aposento repleto de livros dourados, que expeliam ouro. Era uma cascata de ouro, segundo ele. A extremidade leste do desfiladeiro que leva às florestas formadas pelo vale do Sibundoy é ocupada atualmente por uma cidadezinha chamada San Francisco. Foi fundada pelos capuchinhos no início deste século. Na introdução ao livro que o frei Jacinto Maria de Quito dedicou a sua história, publicado em 1952, encontramos as seguintes palavras do frei Damián de Odena, que constituem um testemunho de magia reluzente das cartas: Certamente todas as obras realizadas pelos arautos de Cristo permanecerão indelevelmente gravadas com letras de ouro no livro da eternidade... resulta também para a glória do Senhor registrar e exaltar as proezas de seus santos, as obras daqueles que anunciam "paz e bemestar'*, as conquistas realizadas por aqueles que procuravam as almas, conquistas estas mais preciosas do que o ouro. Ao superior de uma congregação, que ofereceu ao papa Pio XI uma grande coleção de livros e diários publicados por seus monges, disse o santíssimo frei, após examinálos: “Isto vale tanto quanto qualquer missão**.4
Ao interpretar literalmente esses sentimentos dourados, ao ver o aposento dos bispos expelindo uma cascata de ouro, Florencio redime sua visão por meio do poder da fantasia e da inocência, que a Igreja descarta. Sua visão informal toma a oficial retórica. Ao agir assim, a magia é espremida do domínio do universo oficial do mesmo modo que o suco o é de uma fruta madura. O livro da Igreja, a natureza enquanto livro do Senhor, os livros da lei, a escrita, a papelada oficial que vai se acumulando — tudo isto faz a magia vazar para as mãos do povo que eles dominam O símbolo de tudo aquilo que é civilizado, cristão, o próprio Estado, os escritos e os livros criam seu contraponto nos livros de magia vendidos nos mercados por ervanários e curadores índios, que se deslocam de um lugar para outro, vindos do Putumayo. Don Benito faloume sobre a trapalhada em que se meteu, devido a um desses livros de magia. Disse que quando jovem deixara a cidade de Santiago, no vale do Sibundoy, após curarse de um maleficio com yagé. O curador era um xamã da planície, perto de Mocoa. O pai de Benito tinha sido ervanário e o filho encaminhouse para aquele gênero de vida típico dos homens de sua cidade, isto curadotrabalhou y cerrado,como é, tomouse curador ervanárioAprendeu — agora algo fortificado, graças às curas que operou na eplanície. mais quando porteiro do hospital de San Juan de Dios, na cidade de Cali, mas viuse obrigado a ir embora, devido a uma ligação por demais íntima com o médico chefe, que era gay. Benito acabou tomando conhecimento de um livro de magia, que decidiu usar com proveito. Pesava quase quinze quilos e quase três quilos a mais por ocasião da lua cheia. Na reclusão de um bosque de bambus, na fazenda San Julián, próximo aos canaviais de Puerto Tejada, no Sul do vale do Cauca, ele preparou um talismã, seguindo as instruções do livro. O preparo envolvia a morte
eterríveis o cozimento de um Durante gato preto, masdeo um feitiço contradoente, o feiticeiro, problemas. mais anovirou ele ficou sem criando dinheiro, 265
passou fome e não teve clientes. Voltou para o Putumayo, deixou para trás Santiago, sua cidade natal, situada na montanha, prosseguiu descendo até a borda da bacia do Amazonas onde, mais uma vez, submeteuse a um tratamento com um xamã e s e curou. O yagé tem um espírito. O yagé é o rei das plantas. É o dono das plantas, disseme, e declarou que ele também o empregava, exercendo um próspero ofício, lá onde a planície do vale do Cauca, ocupada pela agricultura, se encontra com os primeiros contrafortes da montanha, ao sul. “O yagé abre o espírito de uma pessoa", afirmava ele, “e dá força mental." No entanto, em seus tratamentos corriqueiros Benito raramente empregava remédios fortes, e quando o fazia, a exemplo do que ocorreu com uma mulher da cidade de Cali que era louca, recorria a um alucinógeno da montanha, ao qual chamava Tunga Negra. Usava eméticos e purgantes ao curar casos de feitiçaria, a exemplo do que sucedeu com um velho que tinha uma lojinha ao lado de sua casa. Seu nome era Don Juan, um branco encanecido de Popayán, capital região. Don Juannoera a encarnação de um enigma típico: repleto de ódio pelosda índios (e negros), entanto, procurava um índio para ser curado. Contoume que era proprietário de uma próspera banca no mercado de Popayán até ser atacado pela feitiçaria, após o que perdeu o dinheiro, amigos, a esposa, a mercadoria e, finalmente, o próprio ponto no mercado. No entanto Don Benito, o índio, curouo com yagé, contoume Don Juan, mostrandome não apenas uma, mas três garrafas de culebritas, pequeninas cobras que havia vomitado. Eram sinais irrefutáveis de feitiçaria. Tratavase de uma situação curiosa: um velho branco, mesquinho e arruinado, proprietário de uma banca no mercado, agora curado por um índio e que, como um parasita, abriu uma lojinha junto ao portão da casa do curador, tirando vantagem dos pacientes que apareciam diariamente. Era um lugar distante, perto da estrada de ferro. Tinha apenas umas duas casas, uma ponte sobre o rio, e Don Juan, com seu pomodeadão saliente e seus cotovelos ossudos, semelhante a uma marionete, visível somente da cintura para cima, no balcão de sua loja. Ele oscilava para a frente e para trás, pronto para dizer aos recémchegados o que deviam esperar e exibindo com orgulho suas culebritas.No fim da semana centenas de camponeses atravessavam a ponte, galinhas em uma caravana interminável, composta de adultosnegros e crianças, mulas, burricos, e instrumentos agrícolas. Enrolavamse como uma serpentina em tomo da casa de Benito e da lojinha de Don Juan. De vez em quando um ou dois se consultavam com Don Benito, compadre dos consulentes. Regressavam no início da semana. Cascos e pés faziam a ponte ressoar. Em seguida subiam e atravessavam a borda da cordillera ocidental, em direção ás encostas recobertas de densas florestas, que desciam para o Oceano Pacífico. Estavam colonizando aquelas paragens distantes, mas ainda queriam viver nas comunidades onde haviam nascido e que agora não passa-
vam, em sua maior parte, de casas desoladas, cujas paredes eram de aigila vermelha. Talvez nem mesmo isso ainda existia. De vez em quando um pequeno grupo de 266
r mulheres explorava um ribeirão com suas batéias, à procura de ouro. Era uma recordação da escravidão que as trouxera pata aquelas encostas estéreis; havia alguns séculos. Um médico “direito" costumava ir à aldeia mais próxima, uma vez por semana, como parte de um trabalho oficial. Cobrava por uma consulta mais da metade ao dofato que de Benito pedia. popularidade deste último médico de modo algumOcuera devida ele ser maisAbarateiro do que o sistema oficial pavase de doenças que não constavam do catálogo oficial de sofrimento humano, tais como a feitiçaria ou malefício, que afligia os adultos, e o mal de ojo ou mauolhado, que matava recémnascidos e bebês. Muitas mães levavam seus bebe zinhos para que ele os curasse de mal de ojo. Repassando meu diário de pesquisa relativo a setembro de 1975, encontro, por exemplo, este registro: Uma mulher branca aparentando uns 25 anos chegou às 9h30 da manhã com uma menina de cincotrês semanas, o bebê diarréia havia cincoDon dias. Viajou durante horas, aqueixandose cavalo. Vivedelá que naloma (sopétinha da montanha), ao leste. Benito trabalhou desde as 7 da manhã, preparando o terreno para plantar maii (milho). Está cansado, sujo, não lava as mãos e começa a curar o bebê. Diagnóstico: põe a mão esquerda na testa do bebê durante 20 segundos. Tira a mão, colocaa em cima da mesa,com a palma voltada para cima e a estuda atentamente durante um minuto. Pergunta ou, melhor dizendo, declara: “A diarréia é como água?“. “Sim", responde a mãe. Faz outra pergunta que não consigo registrar. Em seguida pede à mãe que dispa o bebê. Colocao em seu colo, dá leves pancadas em sua cabeça com ambas as mãos e massageia sua barriga. O bebê começa a soltar gases ruidosos. Benito continua a massageálo durante uns dois minutos, ojeadoV. A com GRANDE CONCENTRAÇÃO e finalmente se pronuncia: “O bebê esti mãe cabeça, em para sinalreconfortar de aprovação, masBenito não dizdiznada, atentamente o tempoinclina lodo. aAproximase o bebê. a elaolhando que se abstenha disso. Devolvelhe o bebê daí a um minuto e, conforme sempre faz, começa a escrever uma comprida e minuciosa lista de instruções relativas ao tratamento em sua caderneta. Rasga a página, lê em voz alta para a mãe (álcool etc. etc.), vai até o quarto dos fundos c volta com uma garrafa de aguardente com um remédio amarelo (algo que contém bismuto), entregaa à mulher c cobra 50pesos (em tomo de um salário diárionas plantações do vale. À quelaépoca). Pouco depois surge outra mulher com um bebê e faz a mesma queixa. Ele passa a mão na testa do bebê, diz que está commal de ojo, mas que não tem maisremedioi Só voltará a recebêlo na quartafeira. Hoje é segunda. A mãe lhe adianta vinte pesos, mas ele devolve, dizendo que esperará até o remédio chegar de Cali. Ela, porém, pedelhe que fique com o dinheiro, pois isto o ajudará a adquirir o remedio.
O que sempre me surpreendeu em Benito foi a informalidade e a continuidade, o que incluía em grande parte a cura, constantemente entremeada à atividade doméstica. Todo tipo de gente sentavase em tomo do paciente e de Benito, na sala da frente, ouvindo e contribuindo com seus comentários, sobretudo um velho que fugira de uma casa de repouso para pessoas idosas, instalada pelo governo nas proximidades de Cali. Costumava divagar em voz alta sobre seu passado, animado pela discussão que se estabelecia entre o curador e os doentes.
Nunca lhe disseram para se calar. Era um velho branco, um refugiado sem um tostão, refestelado na sala de tratamento de um curador índio, que esmiuçava o 267
passado enquanto as crianças entravam e saíam ou bisbilhotavam, afastando a cortina, por detrás da qual as velas se consumiam em louvor á Virgem de Lajas e ao Senhor dos Milagres de Buga. Acima de nós todos, descrevendo preguiçosas elipses, balançava o crânio de um grande peixe da Venezuela, segundo Benito me contou. Com freqüência Benito parecia perdido em seus pensamentos, distante e taciturno. Era sua mulher Carmen quem animava o ambiente. Lembravase de todos e de tudo, sempre tinha um séquito em tomo dela, na cozinha, organizado para desempenhar pequenas tarefas. Era uma mulata da cidade de Cali, onde vivia da venda de frutos do mar para os restaurantes. Havia muitos anos ficara muitíssimo doente. Foi ummaleficio, obra de um concorrente invejoso. Ela ia de um curador a outro, sem o menor resultado, até que, em desespero de causa, levaramna para o Sul, ao vale do Sibundoy, e lá foi tratada por um índio. Agora estava casada com Don Benito e o tempo todo tinha a seu lado o apoio de um índio. Muitos jovens procuravam Benito. Seus corações haviam sido partidos por um amor indiferente e eles enlouqueceram. Alguém colocara certas coisas em sua bebida e somente um curador como Benito poderia fazêlos melhorar. Ele também se dedicava a fazer talismãs e de vez em quando se envolvia com disputas trabalhistas nos canaviais. Na verdade foi devido a isso que ouvi as primeiras referências a seu nome, quando morava na cidade canavieira de Puerto Tejada, no início da década de 70. Um amigo meu, negro, que trabalhava com um grupo que cavava fossos, contoume o seguinte. Estavam sendo pagos por um pequeno empreiteiro que tinhaoum contrato com um dos engenhos. O empreiteiro e o grupo tentaram subornar administra dor do engenho, para que ele registrasse um volume maior de trabalho do que eles haviam realizado. No entanto o administrador se recusou, e o grupo decidiu enviar meu amigo até os confins do vale do Cauca — um dia de viagem — a fim de consultar Benito, para ver se não haveria um jeito de se livrarem do tal administrador. Benito disse a meu amigo que voltasse a procurálo e lhe trouxesse pedaços de barro, nos quais estivessem impressas as marcas dos cascos do cavalo do administrador. Era uma despesa e um incômodo consideráveis para pessoas que raramente dispunham de dinheiro para pagar a passagem de um ônibus, mesmo em se tratando de uma curta distância. Providenciaram o barro e aguardaram. No entanto, em vez do administrador, o empreiteiro é que foi prejudicado. Perdeu o contrato e, com isso, lá se foram os empregos. “Talvez a gente tenha se enganado com as marcas dos cascos", observou meu amigo. Decorrido algum tempo Juana, sua irmã por parte de pai e mãe, teve uma briga violenta com uma de suas meiasirmãs, alegando que ela estava recorrendo à feitiçaria para tirar seu marido. Procurara Don Benito para conseguir o que queria. x
Benito não era o único índio das terras altas do Putumayo que viajara para longe e encontrara meios de realizar curas e resolver assuntos ligados á feitiçaria, 268
em cidades como Puerto Tejada, cuja economia se apoiava na atividade agrícola. Eu via com freqüência dois ou três homens como esses, algumas vezes acompanhados de uma mulher, vendendo seus produtos espalhados na calçada, ao longo do mercado, nos dias em que este funcionava, duas vezes por semana. A despeito do calor os homens usavam muitas vezes uma característicaruana. Em geral as bancas pequenas os produtos eram simplesmente colocados chão. No entanto,eram por menor quee fossem as bancas, sempre se dava grande no destaque aos livros de magia, expostos ao lado de raízes, cascas, pilhas de enxofre, limalha de ferro e espelhos. Esses livros eram pequenos, porém caros. Custavam o equivalente a dois dias de trabalho. Tive a impressão de que raramente eram vendidos. Um que eu via com freqüência era A Santa Cruz de Caravaca, com o seguinte subtítulo: Tesouro de Orações de Enorme Virtude e Eficácia para a Cura de todo Tipo de Dorcs, tanto do Corpo quanto da Alma, juntamente com Práticas Inumeráveis para Libertar Uma Pessoa da Feitiçaria e dos Encantos: com BcnçSos e Exorcismos Etc.
Outra obra de grande aceitação eraO livro de São Cipriano. O Livro Completo da Verdadeira Magia ou Tesouro da Feitiçaria Escrito em Hebraico Antigo, num Pergaminho Entregue pelos Espíritos ao Monge Alemão Jonas Sufurino contém: A Clavícula de Salomão, Pactos de Exorcismo, O Dragão Vermelho e o Bode Infernal, a Galinha Preta, Escola de Feitiçaria, O Grande Grimorio e o Pacto d e Sangue, a Vela Mágica para a Descoberta de Encantos, Compêndio de Magia Egípcia e Caldéia, Filtros, Encantos e Conjuros Mágicos
Quando percorri a rua principal de Puerto Tejada, no último domingo de novembro de 1976, e passei pelo mercado, lá estavam três homens identificáveis como índios das terras altas do Putumayo. Sim!, declarou um deles, tinha um pouco de yagé. Vendiao a pessoas de Cali para que elas pudessemasegurar e cerrar, isto é, que lhes permitisse se garantir e se fechar, livrandose da feitiçaria
e das pessoas invejosas. Contoume que estava para regressar ao Putumayo. Iria até a região das florestas, a fim de conseguir mais remédio e então iria para a 269
Venezuela. Outro homem contoume que havia sido ensinado por um cacique (termo muito usado na Colômbia, com o significado de chefe, mas que não era empregado no Putumayo) chamado Maurício, perto de Mocoa, na região tropical. Do outro lado da rua estava um homem vestido como u m índio das montanhas do Putumayo, mas com uma postura bastante dif erente daqueles ervanários tranquilamente confiantes, reservados e, de vez em quando, altivos. Estava rodeado por uma pequena multidão em parte cínica , em parte aparvalhada. Gesticulava e repreendia sua assistência. Uma galáxia de medalhinhas de santoscatólicos pendia de seu peito e ele emitia sons semelhantes aos cânticos xamânicos do Putumayo, intercalados com orações e hinos cristãos. Na calçada, diante dele, havia dinheiro, sob a forma de notas. Ele ia “curar" aquelas notas para que pudessem reproduzirse e, com essa finalidade, usaria sangue sagrado. Na cidadezinha vizinha de Santander de Quilichao, mais ou menos na mesma época, fiquei conhecendo uma jovem e um homem das terras altas do Putumayo, Andréa e Luis Miguel, que vendiam ervasiam e remédios mágicos nosa diferentes mercados da província. Na segundafeira a Popayán, na terça Silvia, na quarta a Santander etc. Tinham três filhos. Andrea carregava o tempo todo nas costas um bebê de um ano. Os outros dois ficavam com uma babá em Popayán, onde alugavam um quarto desconfortável. Passavam a noite que antecedia o mercado no chão do corredor de um quiosque que se alinhava ao longo da estrada de rodagem. Levantaramse às três da madrugada para pegar o ônibus que se dirigia a Corinto, onde haveria mercado no dia seguinte. Luis Miguel contoume que fora ensinado por Don Daniel, um cacique que morava perto do rio Putumayo, abaixo de Puerto Asís e com quem tomava yagé uma vez por semana. “A gente vê cobras... e até mesmo onças!", declarou. “É a salvação da vida”, afirmou Andrea, enquanto falava sobre os remédios com um cliente em potencial. “Porque fui depurado com yagé ", prosseguiu seu marido Luis Miguel, “não preciso de injeções”. Fez uma pausa. “Estou muito bem!” Eles voltavam para sua pequenina aldeia nas montanhas do Putumayo durante o Camaval, que era belo e muito especial. Lá faziam um estoque de remédios. Jovens e inexperientes, dificilmente se poderia considerálos como pertencentes ao grupo superior havia dos ervanários, em suas diferentes: pequenas bolsas e trouxas, espalhadas na calçada, pelo menosmas 65 remédios • Linaza — para a febre, conforme disseram. • Yagé Zaragoza • Yacuma Negra • Misclillo (um caracol) e tatolia.Esses três eram empregados em conjunto para o tratamentodo susto e espanto. Misturar com aguardiente, assoprar e cuspir a mistura no paciente (com oraciones). • Uma pata de coelho, para dar sorte.
• Gualanday — para os rins. Vem da região quente. • Romero (alecrim) — para insônia e pesadelos. Fazse incenso com ele. 270
• Para diarréia: Japio, Granizo do páramo e Guavilla do pdramo. • Quina — para a calvície. Provém do litoral do Pacífico. • Barbasco — purgativo feito com aparas de madeira. Dizem que vem do páramo do cume das montanhas, mas nas terras baixas do Putumayo usase o barbasco como veneno para matar peixes e ele cresce nas margens dos rios. • Raiz de China — para os rins, proveniente dopáramo. • Pionía — para a vesícula biliar. Sementes muito pequenas e reluzentes, vermelhas e pretas, srcinárias do litoral do Pacífico. • Guacia — para a febre e o fígado. Parte do tronco de uma árvore. Segundo dizem, é srcinária do litoral do Pacífico. • Paradero — para estimular a fertilidade. Provém dopáramo. São pequenos nozinhos ligados como sinos a um cipó. • Tuercemadre — para inibir a fertilidade. Provém das regiões quentes • • • • • •
das terras baixas. É uma noz retorcida, semelhante a uma rolha, com as bordas em forma de pétalas. Para dores do útero: Tamarindo, da região quente; Balsamo Rosado, da mesma região; Balsamo Espingo, do Equador. Cedrón Chocuana — para crises de nervosismo. É uma semente grande e contém um caroço. Originária do litoral. É necessário raspála um pouco. Spingo — para crises de nervosismo. Vem das regiões quentes do Equador. É uma semente com formato de vieira. Gordura de urso — para reumatismo. Vendida em frascos pequenos que continham soluções de antibióticos para serem injetadas. Originária do Putumayo, “recomendada”. Bilimento Chocuano — sais odoríferos vendidos em garrafinhas, para resfriado e dor de cabeça. Luis Miguel diz que é feito com seteplantas. Chondur de Castilla— srcinário das regiões quentes. Devese mascar ou moêlo e misturálo com aguardiente. Depois devese soprálo e cuspilo sobre a pessoa doente, a fim de livrála do espanto ou susto
(essa raiz é indispensável para os xamãs das terras baixas que conheço. Mascamna quando estão adivinhando e curando). • Altamisa, várias espécies. Empregada em aspersões para a “cura” de uma casa salada, isto é, uma casa enfeitiçada. • Pele de uma cobra (do tipo conhecido como cascabet), pele de coelho e pata de uma onça. Servem para muitas coisas, possuem um segredo, previnem roubos. • Havia muito mais remédios feitos a partir de plantas e também:
• Argolas, apitos, lâminas de barbear, agulhas, alg“de odão, grampos, contas, pentes, pedaços de enxofre e limalha de ferro uma mina do Putu 271
mayo. Todos esses itens são usados com outros remédios, a fim de compor a boa sorte de uma pessoa". Livrinhos de orações, muitas delas dirigidas ao espírito do famoso cirurgião venezuelano José Gregorio Hemández. Retratos coloridos e emoldurados de vários santos e Virgens. Doze livrinhos diferentes sobre magia — quem sabe srcinados a partir do livro de Don Benito, que pesava quase quinze quilos (e ganhava alguns quilos a mais na lua cheia).
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A sujeira e a magia do modemo
Devido à localização sua casahumanidade junto ao rio,que no sopé montanhas, além dos canaviais eprivilegiada da vasta e de plangente os fazdas prosperar, Don Benito podese permitirser um pouco esnobe. “Não passam de chiqueiros!”, afirma, referindose ás cidadezinhas da zona canavieira, todas elas cortiços rurais, criadas pelo novo sistema agrocomerciaL “Pura sujeira!”, exclama. Ao falar em sujeita d e está se referindo à feitiçaria. No entanto poderia muito bem referirse á sujeira no sentido literal, pois esse vocábxilo resume muito bem aqueles lugarejos comprimidos, desprovidos de esgoto, onde moram trabalhadores diaristas, que não dispõem de água pura para beber, nem de comida necessária para alimentar seus filhos, com barriga d’água e vermes, que montem de diarréia e bronquite. “No litoral comida não falta, porém não há dinheiro”, lamentam as mulheres migrantes que fugiram de uma economia de subsistência das florestas do litoral do Pacífico. “Aqui há dinheiro, mas não comida.” Existem muitos médicos e farmácias nessas cidades agto comerciais. Em Puerto Tejada, por exemplo, havia em 1982 cerca de 30 mil habitantes, cinco farmácias, três das quais bastante grandes e aproximadamente uns doze médicos. O povo procurava os curadores populares, mas isto não se devia à ausência ou falta de médicos com seus diplomas devidamente registrados. Também não era doente devido à escassez de tais médicos e de seus remédios. Os que procuravam esses médicos recebiam vastas receitas, que compreendiam uma verdadeira comucópia de pílulas, cápsulas e substâncias injetáveis. Retomavam, porém, àquela mesma água poluída e à mesma feita de comida que criavam as ptécondições para problemas de saúde Tais précondições constituíam um verdadeiro maná para as multinacionais que fabricavam remédios, na verdade, abutres que se alimentavam de lixo e de tripas.
Umcanavial amigo meu que arranjou como trabalhador braçal permanente em um e, portanto, tinha emprego condições de gozar da assistência médica, ra 273
chava lenha quando entrou uma lasca em seu dedo. Foi procurar um médico e eu o vi quando voltava para casa. O dedo estava ligeiramente inchado, mas não era nada de muito sério. Ele disse que o médico mal examinou seu dedo e receitou comprimidos de esteróide (Fenylbutazona, vinte comprimidos), algo denominado “narcótico 222”, e um c reme muito caro, chamado Lasonil, que continha hepari nóide e hialuronidase, tudo isto para curar um simples machucado! Até mesmo o mais incompetente dos curadores não seria pior do que esse tipo de tratamento médico oficial. Para a maioria das pessoas, sobretudo no Terceiro Mundo, é o tipo de tratamento que se deve esperar, quer se trate de uma lasca no dedo, do nascimento de uma criança ou de uma situação que implique perigo de vida. Minha amiga Juana fora aconselhada a ter seu primeiro filho no hospital local, ao contrário de sua mãe, por exemplo, cujo parto ocorrera no chão de terra batida de uma choupana, nas florestas do Chocó. Ninguém recebeu a permissão de entrar com Juana no hospital, na noite em que ela foi dar à luz em Puerto Tejada, um guarda vigiava paracontou que ninguém pusesse os pésnasceu, naqueleencontiava recinto sagrado.eBem mais tarde ela nos que, quando a criança se absolutamente sozinha, apenas ela e aquela vida que emeigia, mais ninguém: sem enfermeira, médico, amigos ou qualquer outra pessoa de sua família. O pessoal do hospital encontroua de manhãzinha com o nenê que ela e a mãe natureza haviam parido sozinhas. Como é romanesco o Terceiro Mundo! No entanto todo mundo dispensava grande respeito aos médicos, e a fé — na verdade uma fé mágica nas maravilhas médicas da ciência moderna — era restringida unicamente pelo fato de que poucas pessoas contavam com meios para colher seus benefícios ou até mesmo um fragmento deles, a exemplo daquela jovem criatura que não tinha condições financeiras para tomar anticoncepcional durante o mês todo e, assim, encorajada pelo farmacêutico, comprava unicamente uma pílula para a noite em questão. Em outros momentos não se tratava apenas de recorrer a uma parte de todo — uma pílula em vez de 21 —, mas era uma questão de fazer uma escolha cruel entre que m, naquele amontoado de ge nte doente, deveria ser designado para ir ao médico. Minha amiga Rejina frisou esse aspecto, com aquele seu modo de s er sincero. Ela tirava o sustento vendendo mingau frio para os trabalhadores dos canaviais, nos dias de pagamento. Morava com seus três filhos em um quarto de uma casa de chão de terra batida, com três compartimentos, e que construíra na cidade de Puerto Tejada com o dinheiro ganho com a metade de um bilhete de loteria premiado, dado a ela por uma pessoa amiga. Não se dispunha de qualquer outra privada que não um buraco raso no minúsculo quintal, e não havia água. Sua situação representava o padrão do que ocorria naquela cidade. Ela alugava o outro quarto a uma jovem chamada Maura, que trabalhava de vez em quando nos canaviais e, em outras ocasiões, como empregada doméstica em Cali. Maura
morava com seu filhinho de umonde ano cozinhavam e estava grávida. e Rejina compartilhavam o terceiro compartimento, em umEla fogão de lenha. 274
Passei lá algumas semanas após o nascimento do bebê de Maura. Ela e o menino de um ano estavam doentes. Ela tossia sem parar e falava de tuberculose. O meninozinho, apartado do seio, não comia nada. Encontravase em avançado estágio de inanição, aparvalhado, como se estivesse em transe. Maura não dispunha praticamente de dinheiro, apenas o suficiente para consultarse na mais barata de sua. saúde. pai dela do novo nenêirmãs, recusavase a ajudar,ali alegando criançaclínica não era A Omãe e suas que moravam perto, que erama paupérrimas e não se preocupavam muito com sua sorte. Aquilo era um fato bastante comum Rejina e Maura discutiam o que fazer. “Se você for ao médico em vez do bebê", argumentava Rejina, “ele morrerá, mas você sobreviverá e o bebezinho também Mas se o gaiotinho for ao médico em vez de você, então você morrerá, o bebê também e provavelmente o mesmo v ai acontecer com o garoti nho. Portanto é melhor você ir ao médico e ele não." Juntamos algum dinheiro de tal modo que a mãe e o filho pudessem procurar o médico. Este era jovem, experiente e entusiasta. Pediu radiografias, porém Maura não tinha condições de pagar. Receitou antibióticos e alimentos com proteínas para o garotinho, porém Maura não tinha como pagar. E se acaso ele internasse o menino em um hospital durante uma ou duas semanas para que ele se alimentasse por via intravenosa, o que aconteceria em seguida? A que condições de vida ele iria se submeter, ao sair do hospital? Estávamos rodeados por férteis plantações de ondulante canadeaçúcar e de sorgo cor de ferrugem, tendo como pano de fundo o azul das montanhas. A soja amarelava a acariciava o solo quente. No entanto tudo aquilo estava plantado em um campo social que fazia com que crianças como os filhos de Maura morressem de fome e que gente como Maura, que trabalhava naqueles campos, não tivesse como adquirir comida em quantidade suficiente para poder viver. Nenhum médico poderia curar aquilo, mesmo dispondo de todos os raiosX e antibióticos do mundo. Tal situação não era enfrentada sequer pelos médicos americanos da Fundação Rockefeller, na vizinha Faculdade de Medicina da Universidade de Valle. Eles afirmavam que o problema era que mulheres como Maura tinham filhos em quantidade excessiva. No entanto, por mais absurdos e inacreditavelmente espantosos que sejam, tais serviços, proporcionados pelo sistema médico oficial e por seus médicos com boa formação universitária, apoiados por corporações multinacionais de “ciência" — farmacêuticas e agrocomerciais —, são procurados por muita gente. Essa procura, otimisticamente desesperada, é testemunha de uma atração mágica, neste caso pelo mundo oficial e pela “ciência", que não é menor e provavelmente muito maior do que aquela que se encontra na magia da assim denominada medicina mágica.
Subsistindo nas sombras do poderio econômico e científico dos Estados Unidos, esse culto do moderno, encontrado no Terceiro Mundo, ilumina o poder 275
mágico inerente àquele poderio e necessário a ele. A exemplo do que ocorre na relação entre a magia que brilha como ouro nos livros elaborados pelos arautos de Cristo e nos livros de magia vendidos pelos ervanários do Putumayo, da mesma forma, nessas modernas cidadezinhas agrocomerciais de trabalhadores semterra, existe um curioso relacionamento de poder, profundamente mágico, entre os fundamentos da classe dominante e fundamentos, entre as classes dominadas, quetais fazfundamentos ressaltar a magia implícita em semelhantes aquela que toma socialmente eficazes. Esse ressaltar da magia implícita no discuiro dos fundamentos dominantes constitui uma arte. Mesmo quando ele se apresenta com a cara mais séria do mundo pode conter o caricato. Tomese como exemplo o hospital do irmão Walter em Puerto Tejada, conforme o conheci em 1981. Duas de suas auxiliares negras, srcinárias do litoral do Pacífico, o mostraram para mim porque a mãe de uma amiga minha enlouquecera e afirmara que queria ser tratada ali. Ela viera das florestas do litoral do Pacífico havia bem uns 25 anos e agora vivia precariamente de jornadas ocasionais de trabalho nas grandes fazendas. Seu marido a abandonara há alguns anos. Precisava cuidar dos dois filhos mais novos e, com freqüência, no meio de sua infelicidade, enlouquecia, rasgava as roupas e perambulava pelas ruas, proferindo pendejadas, tolices. Não havia altar no estabelecimento do irmão Walter, nem as velas queimavam em louvor dos milagrosos santos e Virgens. No entanto, naquilo a que denominavam quarto de tratamento, havia uma grande lâmpada azul fixada em um elaborado madeira, noAonível dosdasolhos, na parede. de um importantepainel aparatodeterapêutico. longo paredes, belos e Tratavase sensuais, corriam tubos de plástico. Aqui e lá, colados nessas mesmas paredes, viamse, em grande profusão, anúncios multicores, absolutamente surpreendentes, cortados de revistas de medicina que os médicos costumam assinar. Retratos de radiografias do tórax e de cortes transversais do corpo humano, cor de carne, brilhavam nas paredes de adobe, gastas e rachadas, rebocadas com esterco de vaca. Um par de luvas verdes de borracha segurava dois rins rosados e, de seus ureteres, espremiam uma urina dourada. Era o anúncio de um diurético made in USA. “Não olhe para a luz azul”, avisou nossa guia, “pode provocar câncer." A tia de Rejina, Sebastiana, apresentoume a outra forma de cura por meio da magia da medicina moderna. Era cozinheira de um dos engenhos e tinha o direito de consultar gratuitamente o médico da companhia. Teve um súbito mal estar na região lombar direita, com cólicas, febre e ardor na urina. Ele a tratou com três injeções intravenosas e ampicilina oral, uma penicilina de espectro amplo. Daí a dois dias ela melhorou e seu filho levoua a um curador espírita na cidade de Cali, o qual lhe disse que ela tinha um problema com o rim e com a
vesícula biliar. Prescreveulhe remédios no valor de 800 pesos, que poderiam ser adquiridos em qualquer farmácia, isto em uma época em que o salário mais alto 27ó
no campo era de 50 pesos por dia. Disselhe que retomasse daí a três dias para ser operada e já se sentia muito melhor quando regressou. “Por que você precisava ser operada?”, perguntei. “Quem sabe?”, ela respondeu. Durante a operação o curador espírita disse: “Oh! A senhora está com pedras no rim!". Ela ignora o que ele fez, mas precisou ficar na cama durante seis dins c seguir uma dieta especial. A sala de operação tinha muitas velas acesas e um altar. O curador usava um casaco branco. Todos os pacientes foram reunidos e oravam. Ela contou que o curador chamava e os pacientes respondiam. Então o curador ficou possuído pelo espírito de José Gre gorio. Começou a sacudirse, transpirar, e sua voz se modificou. Todo mundo recebeu a ordem de se retirar e, em seguida, um por um foi chamado para sua operação. Havia cerca de vinte pacientes, e a operação de Sebastiana durou uns vinte minutos. O lugar tinha o nome de “El Centro Hospitalario de José Gregorio”, em homenagem ao famoso cirurgião venezuelano, cujo espírito é hoje invocado pelos curadores espíritas na Colômbia inteira. No Putumayo, José Garcia e Rosário estavam muito envolvidos com a irmã Carmela, que também recebia o espírito do famoso cirurgião venezuelano. Foi José Gregorio quem tomou a medicina venezuelana científica e moderna, segundo declaravam os recortes de jornais afixados nas paredes de seu centro espírita em Pasto. Foi ele quem introduziu na Venezuela o microscópio, que aumenta o invisível, e no entanto a modernidade foi o motivo de sua morte. Morreu atropelado por um dos primeiros automóveis da Venezuela, em 1919, quando atravessava a rua correndo para ir em busca deque remédios para um paciente pobre. do A magia da ciência e da indústria, se expressa através do hospital irmão Walter e do culto do irmão José Gregorio, é uma magia que encena a promessa de poder e riqueza, mas tratase de uma promessa até agora negada para a vasta maioria dos pacientes. Sem a mãodeobra e o talento desses últimos, haveria pouca riqueza. Por outro lado, a magia de praticantes como Don Benito e os ervanários do Putumayo reportase ao início dos tempos, ao próprio primitivismo, tal como ele é concebido pela modernidade. Em conjunto esses curadores tão diferentes compõem o espectro de extinção ritual do infortúnio que aflige cidades agrocomerciais como Puerto Tejada. Tratase de magias codeterminantes: uma delas aninhase na esperança de um futuro oferecido e simultaneamente negado pelo mundo moderno, a outra abriga se na mitologia onírica latente naquela esperança e que recorre ás origens jmagi nadas das coisas. Em seu manuscrito inacabado sobre o fetichismo das mercadorias e a cidade européia moderna, Walter Benjamin escreveu que “no sonho em que cada época vê, através de imagens, a época que a sucederá, esta aparece unida a
elementos da préhistória, isto é, de uma sociedade sem classes".1Certamente havia uma paixão pela ausência de classes entre um deteiminado setor de “ele 277
mentos préhistóricos" na moderna cidade agrocomercial de Puerto Tejada, nesse caso o grande grupo de migrantes negros procedentes das luxuriantes selvas do litoral do Pacífico. Eram eles que executavam a maior parte do trabalho árduo e servil, na qualidade de empregadas domésticas nas cidades ou como cortadores e carregadores nos canaviais. Eram altivamente igualitários e decididamente marcados pelo primitivismo. mostravamse essencialmente deslocados. Formavam umaDiante espéciedadecivilização classe intocá vel, assemelhavamse a macacos, segundo se dizia, eram contaminados pelo cheiro de peixe e não sabiam falar corretamente. A esse retratocoletivo acrescentavase a reputação de feitiçaria e de curas mágicas. Mostravamse atentos diante da menor infração ao ato de compartilhar e à igualdade. A reciprocidade era seu código. “Aqui no litoral”, rezava um ditado, “uma mão lava a outra." Temiam e dominavam a arma do malefício, caso esse código fosse negado. Era uma sensibilidade litorânea, intensificada devido ao fato de eles terem migrado e m busca de trabalho assalariado. Dos rios do litoral trouxeram muitos segredos. Alguns desses segredos provinham de uma velha igreja colonial, congelada no tempo, quando os brancos partiram porque os negros se recusavam a trabalhar para eles, após a abolição da escravidão, em 1951. Outros segredos eram devidos aos xamãs índios que moravam ao longo dos rios do litoral, os “ cholos”, que usavam um alucinógeno semelhante ao yagé, denominado pildé. Segundo me contou meu amigo Otazio, um feiticeiro negro dos rios litorâneos do Chocó, o pildé era empregado para trabalhos “a longa distância". Os migrantes da costa eram famosos por seus venenos e feitiços com sapos, suas inumeráveis oraciones, suas curas de picadas de cobra e sua superlativa arte com malefícios, que faziam com que o estômago de suas vítimas inchassem adquirindo uma circunferência enorme, expandindose e murchando com o movimento das marés, observado naqueles rios tão distantes. Sim, era um grupo que chamava a atenção! As mulheres, na estrada que descia para Villarica, não contavam que, em Cali, havia algumas empregadas que enfeitiçavam suas patroas, que as empregadas procedentes do litoral do Pacífico não se dedicavam a isso? Elas apareciam e iam embora quando bem entendiam. Algumas chegavam até mesmo a fazer feitiços contia suas patroas! Corriam outras histórias sobre o modo como essa gente “primitiva" das florestas além. das montanhas e à beiramar empregava a feitiçaria para atingir as classes dominantes que se aproveitavam dela. Lembrome de que o jovem filho da mulher qu e enlouqueceu contavame com freqüência como sua mãe reagiu ao ser despejada com seus quatro filhos do barraco no qual moravam em Puerto Tejada. O aluguel estava muito atrasado e o proprietário arrancou as telhas a fim de os forçarem a desocupar o barraco. Aquela mulher frágil e perturbada do litoral cavou então um buraco raso na frente do barraco, á vista de todo mundo, e nele colocou substâncias empregadas na feitiçaria, tena e ossos do cemitério etc.
Então o barraco ficou salado, enfeitiçado, e a partir desse fato o proprietário não conseguiu mais alugálo, confidencioume o rapaz, muito satisfeito. 278
No litoral os xamãs índios empregam bonecas de madeira em seus feitos mágicos. Há cinqüenta anos alguns etnólogos suecos afirmaram ter encontrado bonecas no litoral surpreendentemente semelhantes aos “fetiches" da África central. Seja como for, na Colômbia as bonecas são privativas do litoral e de sua arte mágica. É certamente interessante notar que nas histórias sobre os trabalhadores assalariados dos canaviais em tomo de Puerto Tejada que, segundo se comenta, celebram um pacto com o diabo a fim de aumentar sua produtividade e, portanto, seu salário, dizse que tal ato se dá por meio da assistência de uma boneca de madeira. A influência “primitiva" do litoral, ao que parece, é decisiva nessa estranha ritualização da magia, em uma produção capitalista em laiga escala. Graças ao pacto com o diabo o trabalhador assalariado aumenta o salário sem intensificar o esforço físico. No entanto o canavial acaba se tomando improdutivo, tal como o salário. Este serve unicamente para adquirir tudo aquilo que é considerado um luxo e não bens féiteis, tais como a terra ou o gado. Jamais se ouviu dizer que as mulheres ou os produtores, proprietários de sítios, tenham feito semelhante pacto. Existe um motivo para tanto. Por que o sitiante ou a sitiante haveriam de querer tomar sua teninha infértil, por mais que necessitassem de dinheiro? Por que as mulheres, as sitiantes e as semterra, haveriam de querer salários tão pouco férteis quando é responsabilidade delas, segundo todos dizem, sustentarseus filhos, criaturas que estão crescendo? Não! O demoníaco passa a ter vida própria quando a rápida constituição de uma classe de trabalhadores assalariados põe a nu e extrai a magia implícita no fetichismo das mercadorias da cultura capitalista edo o modo comoE ela organiza pessoas enquanto coisas, através do mecanismo mercado. é aqui que oas“primitivo" dá sua contribuição estratégica, sob a forma dos trabalhadores negros, provenientes da economia de subsistência do litoral, sempre sensíveis ás infrações relativas á igualdade e aos belos cálculos de crescimento e esterilidade, embutidos na economia de reciprocidade: aqui no litoral (mas não aqui no canavial) uma mão lava a outra. No litoral existe comida, mas não há dinheiro, lamentam as mulheres. Aqui existe dinheiro, mas não há comida; daí decorre a “sujeira" e a magia do moderna, que os curadores índios como Don Benito temem e, ao mesmo tempo, apreciam.
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Plantas revolucionárias
O s ervanários do Putumayo combinam e distribuem as plantas curativas da Colômbia. Levam as florestas tropicais do litoral do Pacífico às florestas da bacia do alto Amazonas; põem em contato os frios e pantanosos páramos do cimo das montanhas com as terras quentes, bem como com as zonas temperadas que se estendem entre ambas as regiões. Os ervanários do Putumayo personificam essa ecologia. Perambulando de um lugar conturbado para outro, escrevem a língua dos significantes mágicos na face da topografia tropical. Expostas em ruas empoeiradas, maculadas pela lama respingada pelos caminhões e mulas de passagem, suas plantas se assemelham a assinaturas de uma mitologia vívida, quando não inconsciente, relativa ao espaço e á raça. O poder mágico atribuído a esses ervanários enquanto índios e, mais especificamente, ervanários índios do Putu mayo, é uma imputação que enquadra e surrealiza o forasteiro que percorre uma paisagem encantada. É um mosaico de significados ligados a lugares, desajeitadamente correlacionados através da raiz, da planta, do pedaço de casca, que possui partes do corpo e doenças ligadas a essas partes: raiz da China para os rins, procedente do páramo; Pionía, sementinhas reluzentes, vermelhas e pretas, das florestas quentes do litoral do Pacífico, para a vesícula; raízes de chondur, com gosto de menta, das terras baixas do Putumayo, empregadas para tratar das crianças com susto... Esses ervanários podem também atuar como curadores, transmitindo, adquirindo, integrando, criando verdadeiras colchas de retalho com novas palavras, novas pronúncias, novos conceitos, á medida que se deslocam de uma cidade para outra, de um povoado para outro, de um litoral para outro, revestindo o novo de indianismo. A exemplo dos condutores de luz, eles absorvem a inveja e a feitiçaria que se abatem sobre as pequenas comunidades e bairros das grandes
cidades. Meu amigo, o curador Chu Chu, foi salvo, segundo me contou, por um desses curadores errantesmulato do Putumayo.
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Alguns permanecem em um único lugar, colhendo as plantas de uma vasta região e levandoas para suas farmácias. Era o que fazia Antonio Benavides. Duas vezes por semana era possível encontrálo no mercado de Puerto Tejada cuidando de uma grande banca de remédios feitos com plantas medicinais. Era um homem corpulento, de meiaidade, que viera das terras altas do Putumayo havia vinte anos e agora morava em Cali. Ele era uma mescla espetacular de bom senso e de impostura. Contavame que costumava ir regularmente ao litoral do Pacífico a fim de obter trezentos tipos diferentes de plantas, incluindo o alucinógeno pildé, semelhante ao yagé. “Em tomo do pildé existem muitas cobras", ele me contou, “pois a planta tem muito poder." Graças a uma planta especial do litoral ele conseguia curar a lepra e o câncer. Conforme dizia, mantinha aproximadamente 4 600 plantas diferentes e vendia de 200 a 250 variedades em Puerto Tejada. As plantas não são como os remédios que se compram nas farmácias. Elas encerram um mistério e é preciso rezar e concentrarse, antes de as colher e usar, garantiume Antonio. Era um homem muito viajado, segundo seu relato. Vendera plantas na Venezuela e no Panamá e também estudara os livros de magia. Seus pais eram ervanários e sua tia, segundo ele me contou, era tão famosa que, de sua aldeia de San Francisco, no vale do Sibundoy, levaramna aos Estados Unidos para verificar se era verdade que os índios conseguiam curar loucos. “Minha tia mostroulhes que isso era possível", ele relatou, enquanto seu filhinho enrolava algumas folhas para um camponês negro que necessitava de yagé para as algo reumatismo, “mas não lhes mostrou o segredo. Usou curas,para bemocomo outras plantas. Eu costumava acompanhála até a floresta a fim de colher plantas, mas na verdade ninguém, além de Deus, me ensinou o que quer que fosse. É uma profissão hereditária. Minha mãe era parteira e minha tia também. Meu tio consertava ossos quebrados e fazia massagens." “Não”, respondeu ele a uma pergunta minha, “não estudei com umcacique das terras baixas. Só fui conhecêlos quando era umnaturalista profissional." Antonio fez uma pausa para atender um cliente. “Antes de mais nada é preciso ser atento, limpo e ter um coração compassivo para poder seguir aquilo que Deus nos reservou. Esses caciques com certeza conhecem certas coisas, é verdade, mas não tão bem quanto um naturalista. Um naturalista precisa ser muito atento. Por quê? Porque no mundo em que vivemos existe muita inveja e cobiça. Como é que alguém pode ser um bom médico quando os médicos da universidade cagam na sua cabeça? Para ser um bom médico é preciso ser quase um santo. Limpo. Eu costumava me apresentar com cobras nos mercados, durante muitos anos. Sou um cacique de verdade.” Conversamos sobre o yagé.
“Ele“mas encerra noventa cento do poder dopara reinopoder das trabalhar plantas!",com declarou Antonio, é preciso ser por um grande conhecedor ele. Eu não sou", confessou. “O yagé tem esse grande poder graças aos desígnios da 281
Providência Divina e transporta o espirito para qualquer lugar do espaço...” Sua voz morreu e recuperou o vigor quando a conversa girou em tomo da cidade de Cali, onde ele morava há anos e que fora tão boa para ele. Deralhe a possibilidade de estudar la metafísica “e para isso não preciso de yagél”. Creio que foi a cidade que propicioulhe ensinamentos sobre a astrologia. E sobre referiase o capitalismo também. tentavadespert dar mais explicações yagé, ao modo comoQuando ele abriaele o corpo, avao por meio dasobre coor-o denação das forças corporais com a das estrelas e dos minerais, de tal modo que a pessoa se fundia com o globo, o Universo. No entanto, dizia ele, havia um problema: o capitalismo está destruindo o globo, e os líderes do mundo o estão contaminando. Essa gente, disse ele, empregando a palavra pueblo, está confusa e nos arruina. Agora já não existem mais laços que nos liguem. “Tudo se deve ás armas bélicas.Alegagrandes potências, quando construíram as armas de guerra, as vam que era para a defesa, mas na realidade era para destruir seus próprios irmãos e irmãs que, um dia, poderiam servir. E não foi só no Vietnã”, acrescentou, “já está se aproximando daqui” (isto foi em 1976). De repente chegou uma camponesa negra de Obando, a fim de comprar algo que permitisse... ela hesitou... “asegurar la vida... como la vida hoy en dia es muy complicada ”. Os canaviais estão avançando rapidamente sobre as terras dos camponeses, desorganizando as plantações mistas, compostas por aquilo que eles colhem, mais os pés de cacau, os bananais e cafezais. A reação de Antonio ao avanço das práticas agrocomerciais assemelhavase bastante ás daquele outro curador das terras altas do Putumayo, Don Benito, agora estabelecido nas encostas das montanhas, nas bordas daquele vale tão rico e vasto. “É bom para os ricos e mau para os pobres", disse Antonio. “A fumigação provoca um dano terrível para a cultura do café e do cacau, de tal modo que as pessoas têm que vender seus sítios e se tomar escravas. Muitas vezes têm que ir morar em outros lugares. As plantas produtivas estão sendo destruídas — a iúca, os bananais... Estão se tomando estéreis." Ao se referir a esse sistema de metafísica, inspirado pela cidade, a essa assombrosa mistura de yagé, astrologia e organicismo medieval, ele prosseguiu: “O ser humano quetodo implorar àsSe plantas do acontecer, mundo paraentão que elas e para que o façamtem para mundo. isto não todosproduzam nós estaremos perdidos. Tudo ficará infestado, a começar pelas raízes. Com o fracasso da esfera produtiva haverá o da esfera criativa". Ele continuou, como se estivesse lendo meus pensamentos: “O problema com essa gente da universidade é que eles estudam apen as dois aspectos, o econômico e o material. Quanto ao corpo e ao espírito, nada! Estou ensinando”, acrescentou, “venho ensinando ao povo a revolução através de meu trabalho com as plantas”.
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