Um poema de Wislawa Szymborska para cada dia da semana
PARA O DOMINGO: “Museu” “Há pratos, mas falta apetite.
Há alianças, mas o amor recíproco se foi há pelo menos trezento anos. Há um leque –onde os rubores? Há espada – onde a ira? E o alaúde nem ressoa na hora sombria. Por falta de eternidade juntaram dez mil velharias velharias (…)
A coroa sobreviveu à cabeça. A mão perdeu para a uva. A bota direita derrotou a perna. Quanto a mim, vou vivendo, acreditem. Minha competição com o vestido continua. E que teimosia a dele! Como ele adoraria sobreviver!”
PARA A SEGUNDA: SEGUNDA: “A alegria da escrita” “Para onde corre essa corça escrita pelo bosque escrito?
Vou beber da água escrita que lhe copie o focinho f ocinho como papel-carbono? Por que ergue a cabeça, será que ouve algo? Apoiada sobre as quatro patas emprestadas da verdade sob meus dedos apura o ouvido. Silêncio –também essa palavra ressoa pelo papel
e afasta os ramos que a palavra bosque originou (…)
as frases acossantes, perante as quais não haverá saída (…)
Outras leis, preto no branco aqui vigoram. v igoram. Um pestanejar vai durar quanto eu quiser (…)
Existe então um mundo assim sobre o qual exerço um destino independente? Um tempo que enlaço com correntes de signos? Uma existência perene por meu comando? c omando? A alegria da escrita. O poder de preservar. A vingança da mão mortal.”
PARA A TERÇA: TERÇA: “A vida na hora” “(…) Despreparada para a honra de viver,
mal posso manter o ritmo que a peça impõe. Improviso embora me repugne a improvisação. Tropeço a cada passo no desconhecimento das coisas. Meu jeito de ser cheira a província. Meus instintos são amadorismo. O pavor do palco , me explicando, é tanto mais humihante. As circunstâncias atenuantes me parecem cruéis. Nao dá para retirar as palavras e os reflexos, inacabada a contagem das estrelas, o caráter como o casaco às pressas abotoado – eis os efeitos deploráveis desta urgência.
Se eu pudesse ao menos praticar uma quarta-feira antes ou ao menos repetir uma quinta-feira outra vez! Mas já se avizinha a sexta com um roteiro que não conheço. Isso é justo –pergunto (com a voz rouca porque nem sequer me foi dado pigarrear nos bastidores) (…)
E o que quer que eu faça, vai se transformar para sempre naquilo que fiz.”
PARA A QUARTA: “Utopia” “(…)Aqui se pode pisar no sólido solo das provas.
Nao há estradas senão as de chegada. Os arbustos até vergam sob o peso das respostas. Cresce aqui a árvore da Suposição Justa de galhos desenredados desde antanho. A Árovre do Entendimento, fascinantemente simples junto a fonte que se chama Ah, Então É Isso. Quanto mais denso o bosque, mais larga a vista do Vale da Evidência (…)
Domina o vale a Inabalável Certeza. Do seu cume se descortina a Essência das Coisas. Apesar dos encantos a Ilha é deserta e as pegadas miúdas vistas ao longo das praias se voltam sem exceção para o mar (…)”
PARA A QUINTA: “Torturas” “Nada mudou.
O corpo sente dor, necessita comer, respirar e dormir, tem a pele tenra e logo abaixo sangue, tem uma boa reserva de unhas e dentes, ossos frágeis, juntas alongáveis. Nas torturas leva-se tudo isso em conta. Nada mudou. Treme o corpo como tremia antes de se fundar Roma e depois de fundada, no século XX antes e depois de Cristo, as torturas sao como eram, só a terra encolheu e o que quer que se passe parecer ser na porta ao lado . Nada mudou. Só chegou mais gente, e às velhas culpas se juntaram novas, reais, impostas, momentâneas, inexistentes, mas o grito com que o corpo responde por elas foi, é e será o grito da inocência seguundo a escala e registro sempiternos(…)”
PARA A SEXTA: “Opinião sobre a pornografia”
“Não há devassidão maior que o pensamento. Essa diabrura prolifera como erva daninha num canteiro demarcado para margaridas.
Para aqueles que pensam, nada é sagrado. O topete de chamar as coisas pelos nomes, a dissolução da análise, a impudicícia da síntese, a perseguião selvagem e debochada dos fatos nus, o tatear ndecente de temas delicados, a desova das idéias –é disso que eles gostam. À luz do dia ou na escuridão da noite se juntam aos pares, triangulos e círculos. Pouco importa ali o sexo e a idade dos parceiros (…) Preferem o sabor de outros frutos da árvore proibida do conhecimento do que os traseiros rosados das revistas ilustradas, toda essa pornografia na verdade simplória (…)
É chocante em que posições, com que escandalosa simplicidade um intelecto emprenha o outro! Tais posições nem o Kamasutra conhece (…)”
PARA O SÁBADO: “As três palavras mais estranhas” “Quando pronuncio a palavra FUTURO
a primeira sílaba já se perde no passado. Quando pronuncio a palavra SILÊNCIO suprimo-o. Quando pronuncio a palavra NADA crio algo que não cabe em nenhum ser”.
E PARA ALGUM DIA QUE NÃO HÁ: “Gato num apartamento vazio” “Morrer– isso não se faz a um gato.
Pois o que há de fazer um gato num apartamento vazio. Trepar pelas paredes. Esfregar-se nos móveis. Nada aqui parece mudado e no entanto algo mudou. Nada parece meido e no entanto está diferente. E à noite a lâmpada já não se acende. Ouvem-se passos na escada mas não são aqueles. A mão que põe o peixe no pratinho também já não é a mesma. Algo aqui não começa na hora costumeira. Algo não acontece como deve. Alguém esteve aqui e esteve, e de repent desapareceu e teima em não aparecer (…)
Até uma regra foi quebrada e os papéis remexidos (…)
Espera só ele voltar, espera ele aparecer. Vai aprender
que isso não se faz a um gato. Para junto dele como quem não quer nada devagarinho, sobre patas muito ofendidas (…)”
Poetas do Mundo - Polónia - Wislawa Szymborska (1923 - 2012) Poemas Biografia Wislawa Szymborska nasceu em 1923 em Bnin (Kornik), na Polónia. Vive em Carcóvia desde 1931. Durante a guerra frequentou cursos clandestinos, posteriormente estudou literatura polaca e sociologia na Universidade Jaguellonica. Estreou-se como poeta em 1945 com o poema Szukam slowa (Procuro uma Palavra). De 1953 a 1981 colaborou, como editora de poesia e como colunista, na revista semanal Zycie Literackie (A vida literária). Os seus ensaios Lektury nadobowiazkowe foram reunidos num livro. Traduziu vários poetas franceses. Wislawa Szymborska tem 16 obras de poesia publicadas, a primeira, intitulada É por isso que estamos vivos (1951), é uma tentativa de se adaptar ao realismo-socialista, o estilo literário aprovado oficialmente pelo regime comunista. W. Szymborska aborda temas como as lutas modernas na Polónia, o Holocausto, a II Guerra Mundial, a ocupação soviética e a transição para a democracia. Na sua poesia, o contexto histórico e biológico manifesta-se em fragmentos da realidade humana. Os seus poemas foram traduzidos para 36 línguas. Em Portugal foram publicados dois livros: Paisagem com grão de Areia, Relógio D’Água, 1998 e Alguns Gostam de Poesia- Antologia, Czeslaw Milosz e Wislawa Szymbrosca, Cavalo de Ferro Editores, 2004. Ganhou vários prémios, nomeadamente o Prémio Nobel, em 1996. Wislawa Szymborska morreu aos 88 anos, no dia 1 de Fevereiro de 2012
As três palavras mais estranhas
Quando pronuncio a palavra Futuro, a primeira sílaba pertence já ao passado. Quando pronuncio a palavra Silêncio, destruo-o. Quando pronuncio a palavra Nada, crio algo que não cabe em nenhuma não-existência.
RecordaçõeS
Estávamos a conversar e calámo-nos de repente. Tinha aparecido na esplanada uma rapariga que beleza!, demasiado bela para o nosso tranquilo veraneio ali. Barbara olhou apressada para o marido. Cristina pôs instintivamente a mão sobre a mão de Zbyszek. Eu pensei: ligo-te, espera- vou-te dizer- não venhas, acabam de anunciar vários dias de chuva. Só Agnieszka, viúva, saudou a bela com um sorriso.
Admiração
Porquê tanto a uma só pessoa?
A esta e não a outra? E que faço eu aqui? Num dia que dizem terça-feira? Em casa e não em ninho? Com pele e não com escamas? Com cara e não folha? Porquê pessoalmente só uma vez? E logo na Terra? Junto a uma estrela pequena? Depois de estar ausente tantas eras? Para além de todos os tempos e algas? Para lá do pólipo e da medusa? E logo agora? Para o sangue e os ossos? Só comigo em mim? Por que não mais além ou a cem milhas daqui, ou ontem ou há um século sentada e olhando o canto escuro - tal como de focinho erguido de repente olha um que rosna e a que chamam cão?
tradução: Júlio Sousa Gomes
em Paisagem com grão de areia, Relógio D'Água, 1998
ASSOMBRO Por que, afinal de contas, isso e não outra coisa? Por que este ser específico, sem disfarce, não em um ninho, mas em uma casa, costurado não em escamas, mas em pele, não com folhas sobre o topo, mas uma face?
Por que sobre a Terra, neste instante, terça-feira de todas as noites, aos olhos atentos daquela estrelinha, depois de não ser por tantas eras, depois de oceanos de fados e constatações, todos os crustáceos, todas as constelações? O que, de fato, me fez ter aparecido nem um palmo, nem um continente mais distante, nem um átimo, nem um milénio mais cedo? O que me fez preencher-me assim tão precisamente? E por que aqui agora, a mirar este dia escurecido, resmungando irretorquível questionamento tal qual um cachorro, um bicho rosnento?
Tradução do inglês para o português de André J. Caetano
de "Paisagem com Grão de Areia" Álbum
Na minha família ninguém morreu de amor. Se alguma coisa houve não passou de historieta. Tísicas de Romeu? Difterias de Julieta? Alguns envelheceram até ganhar bolor. Ninguém a definhar por falta de resposta a uma carta molhada e dolorosa. Apareceu sempre por fim algum vizinho com lunetas e uma rosa. Ninguém a desfalecer no armário de asfixia de algum marido voltando sem contar.
E os mantos e os folhos e as fitas de apertar a nenhuma impediram de ficar na fotografia. E nunca no espírito satânico de Bosch! E nunca pelos quintais de arma em punho! De bala na cabeça teve a morte outro cunho e em macas de campanha alguém os trouxe. De olheiras fundas como após a grande folia, até esta aqui de carrapito extático, se fez ao largo em grande hemorragia mas não por ti, ó bailarino, e com viático. Talvez antes do daguerreótipo, alguém, mas nos deste álbum, ninguém, que eu verifique. Tristezas dissiparam-se, os dias sucederam-se, e eles, reconfortados, sumiram-se de gripe.
Elogio dos sonhos
Nos sonhos pinto como Vermeer Van Delft.
Falo grego com fluência e não apenas com os vivos.
Conduzo um automóvel que me é obediente.
Sou hábil, escrevo grandes poemas.
Escuto vozes tão bem como os antos mais austeros.
Ficaréies admirados da perfeição com que toco piano.
Consigo voar como devia ser, isto é, eu de mim própria.
Ao cair de um telhado sei como descer lentamente na verdura.
Não me lamento: consegui descobrir a Atlântida.
Fico contente porque, antes de morrer, consigo acordar sempre.
A guerra a rebentar e eu a virar-me para o melhor lado.
Sou, sem ter porém que o ser, filho da época.
aqui há alguns anos vi dois sóis.
e, antes de ontem, um pinguim, ali, muito nítido, ao pé de mim.
Vida na expectativa
Vida na expectativa. Espectáculo sem ensaios. Corpo sem tirar medidas. Cabeça sem reflexão.
Não sei o papel que desempenho. Sei apenas que é o meu, intransmissível.
É já em cena que tenho de adivinhar de que trata a peça.
Debilmente preparada para a honra que é a vida, dificilmente aguento o tempo de acção que me é imposto. Lá vou improvisando embora deteste improvisar. Passo a passo tropeço no desconhecimento das coisas. O meu modo de vida cheira-me a provincianismo.
Os meus instintos são crasso amadorismo. O medo do palco, explicando-me, ainda me humilha mais. Os factores atenuantes parecem-me cruéis.
Palavras e gestos sem regresso, estrelas por contar, o carácter – um casaco à pressa abotoado, são os deploráveis efeitos desta urgência.
Treinar ao menos uma quarta-feira, ou repetir uma quinta ao menos uma vez! E já lá vem a sexta com um guião que ignoro. Está como deve ser – pergunto (com um pigarro na voz pois nem sequer me foi dado pigarrear nos bastidores).
È ilusória a ideia de que é só um exame rápido realizado em sala provisória. Não. Fico de pé diante do cenário e dou conta da sua solidez. Impressiona-me o rigor de cada adereço. o palco rotativo há já muito que funciona. Já estão acesas até as mais distantes nebulosas. Não tenho quaisquer dúvidas que se trata da estreia! E, seja o que for que eu faça, para sempre se transforma no que eu fiz.
A preparação do currículo
Que é preciso? È preciso fazer um requerimento e ao requerimento anexar o currículo.
Independentemente da duração da vida, o currículo deve ser curto.
É obrigatória a concisão e boa selecção dos factos, transformar as paisagens em endereços, e vagas recordações em datas fixas.
De todos os amores o conjugal é quanto basta, e quanto aos filhos só os que nasceram.
Mais importante que quem conheces é de quem és conhecido. Viagens só se ao estrangeiro. A que aderiste mas sem dizeres porquê. Distinções sem motivo.
Escreve como se nunca tivesses falado contigo próprio e te evitasses ao passares por ti.
Omite o silêncio dos cães, dos gatos e das aves, cacaréus de lembrança, sonhos e amigos.
Valoriza mais o preço que o valor e o título que o texto. Antes o número que calça que aonde vai esse atrás de quem tu andas.
A fotografia de orelhas descobertas. Importa o seu formato e não o que elas ouvem. Que ouvem elas? O estrépito das máquinas triturando papel.
Despedida da paisagem Não quero mal à Primavera por ela aí estar de novo. Não a culpo por, como em cada ano, cumprir as suas obrigações. Compreendo que a minha tristeza não detém a vegetação. O cálamo se vacila é só ao vento. Não me causa dor que sobre a água os tufos de amieiros de novo tenham com que ramalhar. Tomo em consideração que, como se vivesses ainda, a margem de certo lago permaneça linda como foi. Nada tenho contra esta vista, à vista
da baía esplendorosa de sol. Consigo até imaginar que outros que não nós se sentem neste momento no tronco do pinheiro derrubado. Respeito o seu direito ao murmúrio, ao riso, a um silêncio feliz. Apostaria mesmo que o amor os une e que ele a envolve com um braço vivo. A passarada nova rumoreja nos caniços. Sinceramente lhes desejo que a ouçam. Não peço qualquer mudança às ondas de junto à margem. desenvoltas, preguiçosas, rebeldes ao meu querer. Nada exijo aos fundos da água sob o bosque, safira agora e logo esmeralda e logo negros. Com uma coisa não concordo. Em regressar lá. Desisto dele do privilégio da presença. Pois quanto baste eu Te sobrevivi, apenas quanto baste, para pensar com distância.
Trad. Júlio Sousa Gomes
de Paisagem com Grão de Areia,Relógio d'Água, 1998
4 poemas Estou demasiado perto
Estou demasiado perto para ser sonhada por ele. Sobre ele não vôo, dele não fujo sob as raízes de uma árvore. Estou demasiado perto. Não é com a minha voz que canta o peixe na rede. Não é do meu dedo que rola o anel. Estou demasiado perto. Uma enorme casa está ardendo sem mim, pedindo socorro. Demasiado perto, para que no meu cabelo o sino badalasse. Demasiado perto para poder entrar como convidado ante o qual as paredes se abrem. Pela segunda vez não morrerei jamais tão levemente, tão fora do meu próprio corpo, tão involuntariamente como outrora em meu sonho. Estou demasiado perto, demasiado perto. Ouço um silvo, e vejo a casca fulgurante dessa palavra, imóvel nos meus braços. Ele dorme, agora mais acessível a uma bilheteira de circo ambulante com um leão apenas, vista uma vez na vida, do que a mim, deitada a seu lado. Agora para ela nele cresce um vale De folhagens ruivas, fechado por um monte nevado no ar azul. Eu estou perto demais para cair-lhe do céu. Meu grito só poderia acordá-lo. Pobre de mim, limitada à minha própria figura, eu que fui bétula, eu que fui ninfa e saía da casca, brilhando as cores da pele. Eu que tinha a graça de sumir ante olhos espantados o que é uma riqueza de riquezas. Estou perto,
demasiado perto para ser sonhada por ele. Retiro o meu braço de sob a cabeça dele que dorme, e o braço dormente fervilha de agulhas, em cujas pontas esperando a contagem sentaram-se os anjos caídos.
Autotomia
Em perigo, a holotúria divide-se em duas: uma delas entrega-se à à voracidade do mundo, a outra lhe escapa. Desagrega-se de repente em perdição e salvação, em multa e em prêmio, no que foi e no que será. No meio do corpo da holotúria abre-se um abismo com duas margens subitamente estranhas. Numa a morte, noutra a vida. Aqui desespero, alento ali. Se houver uma balança, os pratos não oscilam, Se houver justiça, aqui está. Morrer quanto necessário, sem exceder a medida. Crescer de novo quanto necessário a parte que se salvou. É verdade, também nós podemos nos dividir. Mas apenas em corpo e suspiro cortado. Em corpo e poesia. De um lado a garganta, do outro o riso, leve, rapidamente sumindo. Aqui um coração pesado, ali non omnis moriar, três palavras apenas como três penas aladas. O abismo não nos separa. O abismo nos circunda.
Amor à primeira vista
Os dois estão convencidos
de que foi um sentimento súbito o que os juntou. É bela uma certeza como essa, Mas é mais bela a incerteza. Acham que por não se terem conhecido antes nunca houve nada entre eles. E o que diriam as ruas, escadas, corredores, Onde há muito podiam se cruzar? Queria perguntar-lhes Se não se lembram Na porta giratória talvez Um dia cara a cara? Em meio à multidão um 'com licença'? No telefone a voz - engano? - mas conheço sua resposta. Não, não se lembram. Ficariam surpreendidos de saber Que já faz tempo O acaso brincava com eles. Não preparado ainda a transformar-se para eles num destino, aproximava-se e os afastava, cortava-lhes o caminho e, abafando a gargalhada, saltava para o lado. Houve sinais, signos, só que ilegíveis. Talvez há três anos atrás ou na terça-feira passada certa folha voou de um ombro para o outro? Houve algo perdido e recolhido Quem sabe, uma bola já no bosque da infância. Houve maçanetas e campainhas, em que antes já o toque se punha no toque. As malas lado a lado no depósito de bagagem. Talvez, numa certa noite, o mesmo sonho Apagado imediatamente depois de acordar. Pois cada princípio é apenas uma continuação, e o livro de eventos sempre aberto no meio.
poemas encontrados aqui
O primeiro amor
Dizem que o primeiro amor é o mais importante. É muito romântico, mas não é o meu caso. Algo entre nós houve e não houve, deu-se e perdeu-se. Não me tremem as mãos quando encontro pequenas lembranças, aquele maço de cartas atadas com um cordel, se ao menos fosse uma fita. O nosso único encontro, passados anos, foi uma conversa de duas cadeiras junto a uma mesa fria. Outros amores continuam até hoje a respirar dentro de mim. A este falta fôlego para suspirar. No entanto, sendo como é, não lembrado, nem sequer sonhado, consegue o que os outros não conseguem: acostuma-me com a morte.
mais poemas Quarto do suicida
Vocês devem achar, sem dúvida, que o quarto esteve vazio. Mas lá havia três cadeiras de encosto firmes. Uma boa lâmpada para afastar a escuridão.
Uma mesa, sobre a mesa uma carteira, jornais. Buda sereno, Jesus doloroso, sete elefantes para boa sorte, e na gaveta - um caderno. Vocês acham que nele não estavam nossos endereços? Acham que faltavam livros, quadros ou discos? Mas da parede sorria Saskia com sua flor cordial, Alegria, a faísca dos deuses, a corneta consolatória nas mãos negras. Na estante, Ulisses repousando depois dos esforços do Canto Cinco. Os moralistas, seus nomes em letras douradas nas lindas lombadas de couro. Os políticos ao lado, muito rectos. E não era sem saída este quarto, aos menos pela porta, nem sem vista, ao menos pela janela. Binóculos de longo alcance no parapeito. Uma mosca zumbindo - ou seja, ainda viva. Acham então que talvez uma carta explicava algo. Mas se eu disser que não havia carta nenhuma éramos tantos, os amigos, e todos coubemos dentro de um envelope vazio encostado num copo.
Retornos
Voltou. Não disse nada. Parecia muito perturbado. Deitou sem tirar a roupa. Escondeu-se debaixo do cobertor, as pernas dobradas. Tem quarenta anos, mas não neste momento. Está vivo - mas como no ventre materno atrás de sete peles, na escuridão que o defende. Amanhã dá palestra sobre homeostasis na cosmonáutica metagalática. Por enquanto se encolhe, adormece.
Os filhos da época
Somos os filhos da época, e a época é política. Todas as coisas - minhas, tuas, nossas, coisas de cada dia, de cada noite são coisas políticas. Queiras ou não queiras, teus genes têm um passado político, tua pele, um matiz político, teus olhos, um brilho político. O que dizes tem ressonância, o que calas tem peso de uma forma ou outra - político. Mesmo caminhando contra o vento dos passos políticos sobre solo político. Poemas apolíticos também são políticos, e lá em cima a lua já não dá luar. Ser ou não ser: eis a questão. Oh, querida que questão mal parida. A questão política. Não precisas nem ser gente para teres importância política. Basta ser petróleo, ração, qualquer derivado, ou até uma mesa de conferência cuja forma vem sendo discutida meses a fio. Enquanto isso, os homens se matam, os animais são massacrados, as casas queimadas, os campos se tornam agrestes como nas épocas passadas e menos políticas.
Tradução: Ana Cristina Cesar
Céu
Era preciso começar daí: céu. Janela sem encosto, sem moldura, sem vidraça. Abertura e nada mais, porém muito bem aberta. Não preciso aguardar a noite amena: nem levantar a cabeça para perscrutar o céu. Tenho céu atrás de mim, sob as mãos e debaixo das pálpebras. Estou enredada de céu e isto me exalta. Nem as montanhas mais altas Estão mais próximas do céu que os vales mais profundos. Não há mais céu num lugar do que em outro. A nuvem está atada ao céu indiferente como o túmulo. A toupeira é tão feliz quanto a coruja que abre as asas. O objecto que cai no precipício cai do céu no céu. Partes poeirentas, líquidas, montanhosas, passageiras e queimadas do céu, migalhas do céu, brisas de céu e montes. O céu é omnipresente até nas trevas sob a pele. Devoro o céu, rejeito o céu. Estou com armadilhas na armadilha, com o habitante instalado, com o abraço abraçado, com a pergunta presente na resposta. A divisão entre céu e terra não foi pensada de forma adequada a respeito desta unidade. Permite até que se sobreviva no endereço mais exacto, que pode ser achado mais depressa se me procurarem. Os meus sinais característicos são o arrebatamento e o desespero.
Blog Livrada
Pois bem, disse tudo isso por quê, afinal? Disse porque hoje, pela primeira vez em dois anos de blog, vamos falar de um livro de poesia nessa bagaça, e todo mundo sabe que pouca gente se atreve a comentar essa arte por puro medo de estar falando besteira sem saber. E é aí que entra o nosso livro de hoje. Nada menos que a recente coletânea de poemas da poetisa polonesa Wisława Szymborska, prêmio Nobel de literatura de 1996, que foi
traduzida para um livro pela primeira vez no Brasil no ano passado. Ê, atraso! Mas, tudo bem, antes tarde do que nunca. Fico boladão com essa galera que não se coça pra traduzir um autor mesmo depois que ele ganha o prêmio Nobel. Agora tão pipocando uns poemas do Sr. Transformer por aí, mas cadê que nego publica um livro dele? Vai vendo e depois não reclama, mas legenda pra filme do Shrek tem todo ano, pensa nisso. Enfim, esse livro não é nenhum livro inteiro da Szymborska (para vocês que gostam de ler em voz alta os textos, mesmo que seja para vocês mesmos, a pronúncia é Vissuáva Chembórsca), mas uma coletânea de poemas de vários de seus poucos livros (he he) escolhidos pela tradutora Regina Przybycien (pchêbítchen), que é curitibana e bateu um papo comigo aqui. Ela diz que escolheu os poemas baseado no grau de facilidade em traduzi-los, o que eu acho muito correto levando-se em consideração que tradução de poesia é algo muito mais zeloso do que tradução de prosa e ponderando que polonês não deve ser a língua mais fácil do mund de se traduzir. Bom, e por que os poemas de Wisława Szymborska são bons o bastante para entrar aqui
nesse blog? Simplesmente porque são fáceis, no nível de que até uma criança seria capaz de entender e apreciar sua beleza. Essa senhorinha simpática que não larga o pirulito sabor metástase não fica se escondendo por trás de significados ocultos, construções herméticas, jogos de palavras sinistros, e palavreado floreado que ninguém entende. Ela quer simplesmente ser entendida e falar sobre as coisas que lhe são caras, a saber: a vida, a morte, a guerra, a mulher e a própria poesia. Esse último tema, aliás, é o que eu acho de melhor na poesia da moça, que mostra não só um senso de humor autodepreciativo saudável como também uma leveza de espírito invejável. Szymborska sabe que pouca gente se enteressa pelo tipo de escria que ela e seus colegas poetas realizam, e consegue rir de sua própria impopularidade. É assim, por exemplo, em “Alguns gostam de poesia”, publicado alguns anos antes de ser
consagrada com o Nobel: Alguns – Ou seja nem todos Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria; Sem contar a escola onde é obrigatório E os próprios poetas
Seriam talvez uns dois em mil O tema se repete em “O Recital da Aurora”, mais antigo, e ainda mais engraçado:
Musa, não ser um boxeador é literalmente não existir Nos recusaste a multidão ululante. Uma dúzia de pessoas na sala Já é hora de começar a fala Metade veio porque está chovendo O resto é parente. Ó musa.
Percebe? Não é nada complicado, é só uma poetisa que sabe que não é lida e faz troça disso com o quê? Com a própria poesia. Esses trechos mostram bem o espírito leve e brincalhão de Szymborska, que faleceu recentemente este ano deixando esse mundo mais carrancudo. Mesmo quando ela fala de coisas realmente tristes, como o nazismo, ela consegue ser leve. Em “Primeira Foto de Hitler”, ela brinca com o bebê do monstro aust ríaco:
E quem é essa gracinha de tiptop? É o Adolfinho, filho do casal Hitler! Será que vai se tornar um doutor em direito? Ou um tenor da ópera de Viena? De quem é essa mãozinha, essa orelhinha, esse olhinho, esse narizinho? De quem é essa barriguinha cheia de leite, ainda não se sabe:
De um tipógrafo, padre, médico, mercador? Quais caminhos percorrerão estas pernocas, quais? Irão para o jardinzinho, a escola, o escritório, o casório Com a filha do prefeito? Esse é o tom da ironia da autora, que fere sem ferir, e põe reflexão em coisas simples, como a infância de um ditador extremista (algo que Adriana Partimpim copiou depois, talvez sem saber. Talvez, muito provavelmente, ou a moça lê poesia em polonês, por acaso?) E eu poderia ficar aqui transcrevendo trechos de vários poemas do livro, mas não quero tirar a graça dessa leitura. Porque esse livro de Szymborksa é um daqueles livros fragmentários que você vai descobrindo a graça individual de cada um dos poemas. É como um disco dos Beatles: primeiro uma música dele é a sua música favorita, depois outra, depois outra e depois outra, até que todas as faixas passaram pelo menos uma vez pelo título de canção favorita da banda. Tudo aqui tem o seu valor e nenhuma destas poesias está fora do alcance do leitor comum. Acho que esse é um legado que Szymborska deixa para o mundo da poesia, principalmente num país onde existem pessoas como o Arnaldo Antunes: sê simples e sê palatável, pobre poeta. Nada de querer fazer a nova poesia concretista, o verso livre preso a significados ocultos, o hexâmero dactílico do século 21, pára com essas palhaçadas e sê modesto, que aí quem sabe as pessoas começam a gostar de poesia de novo. Esse projeto da Companhia das Letras é feito, ao que parece, para uma série de prêmios Nobel majoritariamente poetas, como ela e o Derek Walcott, que foi publicado com seus Omeros (que vai na contramão de tudo que eu acabei de aconselhar). O lance é simples: foto do cabra da peste na capa, código de barra na capa, símbolo do prêmio Nobel na contra-capa e lombada e contra-capa da mesma cor do box com o título. Essa foto da capa que escolheram é um charme. Qualquer senhorinha fazendo essa fumaça com o crivo pareceria a legítima bruxa veia, mas ela parece tão doce e feliz fumando esse cigarrinho que a gente só quer abraçá-la e ficar impregnado com esse cheiro maldito de nicotina. Papel pólen de alta gramatura e fonte Meridien, que até então nunca tinha visto em livro nenhum (ou pelo menos assim me lembro). Maravilhoso livrinho, recomendadíssimo.