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Nota de abertura
O ano de 2002 foi um ano bastante positivo
para o projecto Revista Portuguesa de Ciência das Religiões. Ano de arranque, com dois números saídos do prelo, 2003 apresentou-se-nos como a possibilidade de consolidar o que se apresentou nesses dois volumes. De facto, e tudo se deve graças a uma vasta e empenhada equipe de trabalho que passa pela redacção, pelos colaboradores, pelos serviços de marketing da universidade que continuam a pôr o seu melhor na apresentação gráfica, pelo excelente trabalho de paginação, recebemos os mais inesperados votos pela edição desta publicação.
Paulo Mendes Mendes Pinto Pinto Alfredo Alfredo Teixeira Teixeira Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Ciência das Religiões
Sinónimo desta situação está o facto de, aquando da preparação deste volume, se nos apresentarem artigos em muito maior quantidade que o esperado. A situação obrigou-nos a uma solução de recurso: publicar quase tudo agora para não perder actualidade e interesse científico, adoptando o formato de número duplo, visto que este que agora apresentamos tem quase o dobro das páginas do que seria de esperar.
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Assim, para além de uma secção livre em que se apresentam diversos artigos, este volume tem dois dossiers: dossiers: 1) Música e imaginários religiosos, que ainda apresenta, quase em forma anexa, uma obra original de um compositor contemporâneo que muito agradecemos, Eurico Carrapatoso; 2) In Memoriam: Memoriam: o Museu de Bagdad, reunindo cerca de uma dezena de textos de destacadas figuras da museologia, do património e da arqueologia portuguesas. Publica-se ainda um longo texto de uma teóloga, Joan D. Chittister. Trata-se de uma conferência acolhida pelo Centro de Estudos em Ciência das Religiões aquando do Dia de Oração pela Ordenação Feminina. Não sendo a teologia confessional nem a apologética o nosso campo de trabalho, pela forma periférica que esta reflexão inevitavelmente tem, decidimos publicar o texto que daí re-sultou. Trata-se de um volume que entra numa salutar e assumida ruptura em relação aos anteriores, abordando um conjunto de temáticas totalmente novas nas nossas páginas. Também totalmente nova é a primeira parte da nossa «Estante», editando textos que partem da leitura de livros para concretizar ideias numa profundidade e interesse que vai além da tradicional recensão. A este formato démos o nome de «Notas de Leitura». Obviamente, está secundado pelas tradicionais recensões e informações bibliográficas.
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Ciência das Religiões Elementos para definição de uma área de conhecimento
O século XIX viu nascer uma História das Religiões autónoma, quer da História, quer da Teologia. O seu objectivo era o estudo comparado das diferentes tradições religiosas da humanidade. A base desta nova nova ciência do humano encontrava-se nos embriões de outras nascentes ciências, como a Linguística, a Antropologia Cultural, a Psicologia e a Sociologia.
Paulo Mendes Pinto Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias
É difícil conotar um significado preciso à expressão «verdade científica». Assim o significado da palavra «verdade» varia segundo se lida com um facto esperimental, uma proposição matemática ou uma teoria científica. A frase «verdade religiosa» não me comunica nenhum significado certo. […] É certo que, por trás de todo o trabalho científico de nível superior, subjaz uma convicção - idêntica a um sentimento religioso - da racionalidade ou inteligibilidade do mundo. Esta crença firme, uma crença ligada a um sentimento profundo da existência de um espírito superior que se revela no mundo da experiência, representa a minha concepção de Deus. Verdade Científica. Alber Albertt EINSTEIN , Sobre a Verdade
O campo universitário (em especial a Linguística e a
História) foi o que mais cedo se abriu ao estudo científico das religiões. Esse aparecimento muito deve a um conjunto de novas visões dos Textos Sagrados que surge no século XIX em alguns meios culturais mais dinâmicos. Trata-se de um longo processo em que os textos antigos foram totalmente revisitados, equacionando-se a sua génese e a sua autoria. Nesta nova leitura e enquadramento – que incluiu os textos tradicionalmente atribuídos a Moisés (o Pentateuco), entre outros – a marca de inovação reside no fim do paradigma que tomava os conteúdos desses textos num sentido literal; uma literacidade que era cada vez mais relativizada e posta em causa pelos avanços, quer da Crítica Textual e Literária, quer das
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Ciência Naturais, Geologia e Biologia, que lançavam novas bases para o conhecimento da antiguidade do Homem, da Terra e do Mundo. Toda a necessidade de confronto entre a(s) tradição(ões) cristã(s) e as restantes formas de saber agora visíveis, quer sejam os novos dados científicos quer sejam as tradições culturais e religiosas exteriores ao cristianismo, criou uma profunda dinâmica de investigação, tradução e teorização no campo da compreensão, da comparação e da relativização dos fenómenos religiosos. Um passo fundamental foi dado pelas chamadas «Vidas de Jesus» – biografias que tomavam o criador do cristianismo na sua dimensão histórica –, um modelo literário relativamente em voga na segunda metade do século XIX. Antes, em 1785, já Hegel redigira uma Vida de Jesus que seria descoberta apenas em 1907; Mas o ponto alto deste estilo encontra-se, efectivamente, na obra de Renan, La Vie de Jésus, de 1863, que lhe custaria o seu lugar no Collège de France. Ao jeito comteano de fragmentação das ciências, o meio do século XIX viu nascer uma História das Religiões autónoma, quer da História, quer da Teologia. O seu objectivo era o estudo comparado das diferentes tradições religiosas da humanidade. A base desta nova ciência do humano encontrava-se nos embriões de outras nascentes ciências, como a Linguística, a Antropologia Cultural, a Psicologia e a Sociologia. Desta forma, a História das Religiões afirmou-se mais que por uma metodologia de trabalho própria, por uma reunião de metodologias diversas sobre um mesmo objecto. A Ciência da Religião, como surge grafada numa das primeiras obras que o século XIX criou sobre mitologia comparada – em que Max Müller usou o termo «Relogioswissenschaft», rapidamente traduzido para as línguas latina como «Ciência da Religião» (Max MÜLLER – La Science de la Religion. Paris: Librairie Germer Baillièrre, 1873) – surgia claramente numa acepção iluminista do saber, flanqueda e validada por um largo grupo de conhecimentos que na Ciência da Religião tinham um observatório válido e supostamente eficaz para a análise científica das religiões. Nascida no campo da rejeição às suas antecessoras, a Filosofia e, em especial, a Teologia, a Ciência da Religião tinha enforme conceptual positivista e era, acima de tudo, apologética e cientifista. O estudo científico apresentava francas bases apriorísticas: ou procurava demonstrar a superioridade do cristianismo face às restantes religiões, ou almejava exactamente o oposto, demonstrando as faces perniciosas da religião, no seu geral, e do cristianismo, de forma mais específica. O sentido cientifista das explicações tinha como modelo teórico o da evolução científica em que às formas religiosas se faziam corresponder níveis de evolução diferentes numa lógica cronológico-axial: as «formas elementares», os «princípios germinais» e as «formas acabadas». Max Müller é claro ao apontar os objectivos da sua obra, nomeadamente na abertura do capítulo com o título já sugestivo «De L'Interprétation des Religions Anciennes»: J'ai désiré surtout vous faire voir en quel sens une étude vraiment scientifique de la religion est possible, de quels matérieux nous disposons pour arriver à une connaissance sérieuse des principales religions du monde, et les principes d'après lesquels ces religions peuvent être classes – a classificação e a ordenação qualitativa dos fenómenos religiosos é, nessa época, o centro da disciplina histórica. 12
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EDITORIAL
Nos finais do século XIX o modelo positivista vigente é posto em causa. À disciplina inglesa e francesa sobrepõe-se a alemã; isto é, a uma tradição cultural impregnada de empirismo e iluminismo e herdeira do programa que David Hume sintetizou tão bem na expressão «Estudo da Natureza Humana», impõe-se a Religionswissenschaft, cuja componente vocabular Wissenschaft é claramente descendente da noção de ciência leibniziana e filha das Geisteswissenschaft , as «Ciências do Espírito» fundadas por Dilthey, em oposição aos modelos das Ciências da Natureza. O confronto epistemológico então montado centrava-se no binómio explicar/ /compreender a religião. A estas formas de caracterizar a disciplina correspondem duas relações totalmente diferentes com as restantes ciências e com a própria concepção de ciência. No primeiro caso estamos perante a linha científica herdeira da tradição iluminista e positivista que tem como modelo as Ciências Naturais onde a explicação é o objectivo da construção do saber; no segundo caso, é a tradição científica alemã a marcar a forma de concepção da própria disciplina, possibilitando um espaço próprio para os fenómenos espirituais demarcados dos fenómenos naturais. O modelo assente na explicação (Erklären) fundamenta-se em duas premissas face ao objecto de estudo: – a religião, tomada como distinta do objecto da fé, é uma manifestação antropológica e histórica que pode, como qualquer fenómeno humano, ser analisada; a fé não é, nem pode ser, o objecto desta pesquisa porque a sua própria natureza a torna inacessível a uma pesquisa empírica; – a religião, tal como qualquer outro fenómeno humano analisável empiricamente, possui uma estrutura própria; desta forma, essa estrutura pode ser decomposta e reagrupada em grupos mais elementares – a esta forma de desvendar os fenómenos religiosos corresponde uma «verdade» que pode ser revelada ao ritmo da simplificação dos fenómenos em causa, ao ritmo da descoberta das suas formas elementares. À Erklären opôs-se a Verstehen, a compreensão. Segundo uma célebre frase de Rudolf Otto, a religião começa por si mesma. É este o ponto de partida desta posição teórica: a autonomia absoluta da religião enquanto fenómeno. Isto é, existe uma experiência germinal, inicial, que está na base dos fenómenos espirituais e religiosos; esta experiência vale por si só, é a Erlebnis, a experiência vivida, fonte de onde brotaram todas as religiões positivas. Participando inevitavelmente nesse longo devir do fenómeno religioso até ao momento presente, o cientista não pode explicar o fenómeno num quadro causal, mas sim compreender as suas características nesse longo processo, e as vivências respectivas. Desta aferição sobre o sentido da disciplina, a ciência resultante que se dedica ao estudo científico das religiões não tem como objecto ou finalidade a justificação da fé: enquanto objecto de estudo, a religião é tida como um fenómeno humano, como qualquer outra produção ou vivenciação cultural e mental, que não compreende nem a apologia, nem a refutação: qualquer fenómeno religioso é vivido e, como tal, é digno de todo o respeito que o investigador cientificamente formado deve dar a todos os seus objectos de estudo. REVISTA PORTUGUESA DE CIÊNCIA DAS RELIGIÕES
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Posteriormente, criada a disciplina, desenvolveu-se em quase a totalidade do chamado mundo ocidental, de forma autónoma, o estudo científico das religiões, centrado ou na Antropologia, na História, na Sociologia ou na Linguística. Os universos onde encontramos estes estudos variam desde faculdades e universidades públicas, até instituições idênticas pertencentes ou ligadas a grupos religiosos (aqui, o franco desenvolvimento encontra-se nos meios protestantes). Passando para a actualidade, em meados dos anos noventa, pela mão de Charles Marie-Ternes, foi lançado um centro de estudos transeuropeu com o fim de fazer face às necessidades actuais do estudo sistemático e consistente das religiões (tratem-se de fenómenos antigos, ou actuais). Esta instituição recebeu o nome EurAssoc – Association Europeéne pour l'Étude Scientifique des Réligions, e está sediada em Bruxelas. Em 1998 foi criado o CoGREE – Coordinating Group for Religious Education in Europe. Este grupo de reflexão reúne duas vezes por ano e já publicou obras essenciais no campo que aqui nos trás, nomeadamente o volume Committed to Europe's Future: Contributions from Education and Religious Education , editado por Peter Schreiner, Hans Spinder, Jeremy Taylor e Wim Westerman (Comenius-Institut, Munique, 2002). Especificamente sobre a reflexão do lugar e dos métodos sobre o ensino das religiões na escola, nos últimos anos surgiram várias publicações universitárias. Citemos apenas o International Journal of Education and Religion, dirigido por Chris Hermans, com o primeiro volume publicado em 2000, e o Teaching Theology & Religion, publicado pela conhecida casa editora Blackwell de Londres, dirigida por Raymond Williams. Muitas outras publicações têm editado números especiais sobre a temática, como a Propuesta Educativa da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, que no seu número 22, de Junho de 2000, se centra no dossier «Religión y educación». O que de essencial se deve reter deste longo fenómeno no tempo, que é o nascimento e a maturação de uma área científica autónoma é, em especial, a sua libertação dos constrangimentos religiosos, de fé, que sobre os seus investigadores poderiam recair. Neste caso, o paralelo com as Ciências da Educação torna-se aliciante e rico em termos comparatistas. Não só esta disciplina também teve de optar entre o singular e o plural nos dois vocábulos que lhe dão nome (Ciência/Ciências da Educação), como teve de gerir a relação e a herança de um campo de saber muito próximo, a Pedagogia. Seguindo a ideia de Mazzoti para a Pedagogia (MAZZOTI 1996, p. 14), aplicando-a à Ciência das Religiões, poderíamos tomar a Teologia como a condição reflexiva da prática. A grande diferença e problema nesta aparentemente idêntica comparação que se poderia fazer em volta da Pedagogia/Teologia e Ciências da Educação/Ciência das Religiões, é que, procurando-se um estatuto científico para a Pedagogia, parte-se da ideia base de que ela, a Pedagogia, seria, assim, uma ciência da prática educativa, a tal condição reflexiva da prática – ora, a Teologia nunca poderia ter tal papel e lugar em relação a uma Ciência das Religiões. Mediante a caracterização anterior, duas reflexões nos parecem importantes: a) A grande diferença face ao «estudo científico das religiões» radica no princípio de criação da própria disciplina. Se as Ciências da Educação se 14
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EDITORIAL
afirmaram enquanto herdeiras, pelo menos em parte e no sentido histórico, da Pedagogia, a necessidade do estudo científico das religiões entra, não poucas vezes, em ruptura clara e necessária com as tradições religiosas. Isto é, o carácter científico de uma disciplina que estude o fenómeno religioso existe na exacta medida em que não está ligada, epistemologicamente, a nenhum grupo religioso. Passando ao plano do investigador, o Cientista das Religiões pode ser crente, mas isso não pode afectar a sua prática científica; a sua formação teológica pode enriquecer o seu pensamento, mas a sua produção científica deve afastar-se da Teologia. Ao invés, o Cientista da Educação não perde nada com a sua formação pedagógica, antes pelo contrário; b) Noutro sentido, a Teologia articula-se, a nível da efectivação das crenças e dos cultos, com a fé. A teologia é, assim, um campo de criação de conhecimento, numa lógica e com um objecto muito próprio, mas ela não é necessariamente a condição reflexiva da prática. Tal papel é muito mais desempenhado, pelo menos no mundo católico, pela fé, nas suas várias dimensões, grandemente desenraizada de qualquer reflexão teológica, que pela Teologia. Isto é, a Ciência das Religiões, o estudo científico das religiões, é um saber autónomo da própria fé que enquadra a vivência dos próprios investigadores.
Bibliografia sumária CARUSO, Marcelo, «Vidas paralelas? Religión y educación: un campo de investigación y debate», in Propuesta Educativa (22, Junho 2000), pp. 4-11. DUMÉZIL, Georges, Myth et Épopée: l’ideologie des trois fonctions dans les épopées des peuples indo-européenes, Paris: Gallimard, 1968. FILORAMO, Giovanni e P RANDI, Carlo, As Ciências das Religiões, São Paulo: Paulus, 1999. LÉVÊQUE, Pierre, Introduction aux premières religions, Paris: Lib. Générale Française, 1997. MAZZOTI, Tarso Bonilha – «Estatuto da cientificidade da Pedagogia», in Sela Garrido P IMENTA, organização, Pedagogia, Ciência da Educação?, São Paulo: Cortez Editora, 1996, pp. 13-37. MÜLLER, M. Max, La Science de la Religion, Paris: Librairie Germer Baillièrre, 1873. SEIXAS, José Maria da Cunha, Princípios Gerais de Filosofia da História , 1878. VALLET, Odon, Culture religieuse, Paris: Masson, 1990.
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Revista Portuguesa de Ciência das Religiões Revista Semestral Ano II – 2003 – n. 3/4
UNIVERSIDADE LUSÓFONA DE HUMANIDADES E TECNOLOGIAS Centro de Estudos em Ciência das Religiões
Ficha Técnica Direcção
DIMAS DE ALMEIDA - ALFREDO TEIXEIRA - PAULO MENDES PINTO CONSTANTINO CAETANO MARIA LUCIANA MIGUEL
Comissão de Redacção – MANUEL AFONSO DE SOUSA – MARIA JULIETA M. DIAS – PAULO JORGE BORGES CARREIRA – RUI A. COSTA OLIVEIRA Conselho Científico ANSELMO BORGES
Instituições estrangeiras
Instituto de Estudos Filosóficos da Universidade de Coimbra
CHARLES-MARIE TERNE
Presidente da Associação Europeia para o Estudo Científico das Religiões
ARMINDO VAZ
Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa
FLORENTINO GARCIA MARTINEZ Director do Instituto Qumran da Universidade de Gröningen, Holanda
CARLOS HENRIQUE DO CARMO SILVA
FRANCOLINO GONÇALVES
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Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa
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Pontifícia Universidade de São Paulo, Brasil
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa
HENRIQUE URBANO
JOSÉ AUGUSTO MOURÃO
JOSÉ CARLOS MIRANDA
JOSÉ AUGUSTO RAMOS
FRANK USARSKI
Universidade de S. Martinho de Porres, Lima, Peru Universidade Estadual Fluminense, Brasil
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
JÚLIO C. TREBOLLE-BARRERA
Faculdade de Filologia, Universidade Complutense, Madrid, Espanha
RÉGIS DEBRAY
Universidade de Lyon-III e Escola Nacional Superior das Ciências da Informação e das Bibliotecas, França
JOSÉ EDUARDO BORGES DE PINHO Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa
LUÍS MANUEL DE ARAÚJO
Instituto Oriental da Universidade de Lisboa
MARIA ANTONIETA GARCIA
Instituições nacionais
FREI BENTO DOMINGUES, OP
Universidade da Beira Interior
Primeiro Director da Lic. em Ciência das Religiões da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias
MARIA ELVIRA MEA
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
FERNANDO SANTOS NEVES
MARIA ENGRÁCIA LEANDRO
ADEL SIDARUS
TEOTÓNIO R. DE SOUZA
Reitor da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias Universidade de Évora
Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho
Director da Lic. em História da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias
Edição: CENTRO DE ESTUDOS EM TEOLOGIA / CIÊNCIA DAS RELIGIÕES da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias Propriedade: COFAC – Cooperativa de Formação e Animação Cultural, CRL Capa: EDIÇÕES UNIVERSITÁRIAS LUSÓFONAS Impressão e acabamento: TIPOCOR – Publicidade e Artes Gráficas, Lda. ISSN 1645-5584 — Depósito Legal n.º 186481/02 – 2003 – Tiragem: 500 exs.
Contactos Avenida do Campo Grande, n.º 376 – 1749-024 Lisboa Telefs. 217515500 – Fax 217577006 – Sítio: www.ulusofona.pt Fundação
Com o apoio da FCT para a Ciência e Tecnologia
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UMÁRIO
Nota de Abertura
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Editorial: Ciência das Religiões. Elementos para definição de uma área de conhecimento PAULO MENDES PINTO
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Parte I Música e imaginários religiosos PAULA GOMES RIBEIRO A supremacia do Objecto. Fragmentos sobre um caso de interdependência de metodologias criativas: Four Saints in Three Acts, uma ópera cubista?
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ALFREDO TEIXEIRA / CRISTINA DELGADO A emancipação do sagrado e a paródia do religioso. Notas exploratórias sobre a criação musical na segunda metade do século XX
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PAULA PINA O pecado da síncopa
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JOÃO DUQUE Arte como transcendência. Breve leitura de Gadamer
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JOSÉ PAULO ANTUNES Debates e clivagens em torno da noção de Música Sacra no Catolicismo contemporâneo
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Parte II Fontes e Documentos
« Motetes para um tempo de Paixão» de Eurico Carrapatoso
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Parte III Estudos JOSEPH ABRAHAM LEVI 155 Os Bene Israel e as comunidades judaicas de Cochim e de Bagdade. Avaliação de uma antiga presença judaica em solo indiano TEOTÓNIO R. DE SOUZA 175 Historiography of missions: cultural, social and economic implications HILDA FRIAS 179 História e religião na antiga Índia. Base indo-europeia e cristianização ANTÓNIO RAMOS DOS SANTOS 189 Um lugar de encontro entre o homem e os deuses MÁRIO BOTAS 197 Hermenêuticas antropológicas e projectos sociopolíticos e religiosos na América espanhola dos séculos XVI e XVII MARIA DO ROSÁRIO CARVALHO, PATRÍCIA MONTEIRO, JOÃO MIGUEL SIMÕES, PAULO ALMEIDA FERNANDES, CATARINA OLIVEIRA, RICARDO SILVA 211 Os conventos de Lisboa. Uma abordagem cripto-histórica PAULO MENDES PINTO 221 Nomeação do divino e ritualidade textual: conhecimento, mediação e identidade
Parte IV In memoriam: o Museu de Bagdade Depoimentos
PAULO MENDES PINTO 233 Dos desertos deste museu 8000 anos de História vos contemplam. O porquê deste dossier CARLOS H. DO C. SILVA 235 Museu alucinado – Roubar a morte ou morrer para a vida?
FRANCISCO CARAMELO O vaso de Uruk: um ícone da civilização mesopotâmica FRANCISCO MOURA Bagdade: utopia pelo turismo JOÃO CASTEL-BRANCO PEREIRA Lugares de memória tornada presente JOSÉ CARLOS CALAZANS O Museu Nacional de Bagdade: A perda de um património cultural JOSEPH ABRAHAM LEVI O Museu de Bagdade: receptáculo de mais de cinco mil anos de cultura mundial LUÍS RAPOSO Iraque: Inferno na terra do Paraíso MARIA DE DEUS BEITES MANSO O Museu de Bagdade: destruição e pilhagem. A história repete-se SÉRGIO CARNEIRO O silêncio das casas vazias VASCO RESENDE A propósito do saque do Museu Nacional de Bagdade: A negligência e o fracasso de uma ocupação americana do Iraque
239 243 245 247 251 257 261 263 265
Parte V Efeméride
Dia Mundial de Oração pela Ordenação das Mulheres JOAN D. CHITTISTER 269 O discipulado. Um povo sacerdotal em tempo de falta de sacerdotes
Parte VI Estante
Notas de Leitura 283 Recensões 303 Informações bibliográficas 313
P ARTE I
Música e imaginários religiosos
M Ú S I C A E I M A G I N Á R I O S R E L I G I O S O S
A supremacia do objecto Fragmentos sobre o caso de interdependência de metodologias criativas: Four Saints in Three Acts, uma ópera cubista?
Os Santos que estão em cena são contáveis mas na realidade são infinitos porque possuem uma dimensão subjectiva, porque se auto-representam da mesma maneira que podem representar outros santos, ou mártires, ou artistas.
Paula Gomes Ribeiro Membro do Conselho Científico do CESEM (Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical), Universidade Nova de Lisboa Professora e Coordenadora da Licenciatura em Música do ISEIT
N ovos percursos da criação musico-dramática em inícios do século XX
As primeiras décadas do século XX assistem a uma
profunda transformação dos modelos dramatúrgicos e estéticos das obras musico-dramáticas. As estruturas operáticas oitocentistas, definidas por um encadeamento musical e dramático fundamentalmente previsível, baseadas em sistemas codificados1 que perpetuam nomeadamente tipologias situacionais, dissolvem-se numa série de modelos que têm em comum o desejo de emancipação da inflexibilidade vigente. Esta nova atitude reflecte em parte a destituição de uma postura logocêntrica no que respeita aos processos de criação artística. Uma panóplia de disposições formais manifestam a dinâmica de mudança no conceito de ópera em todas as suas vertentes, deixando sobressair novos sistemas de interligação entre as dimensões musical e dramática. A transição de Tosca de Puccini para Erwartung de Schoenberg, Socrate de Satie, Wozzeck de Berg ou Doktor Faust de Ferruccio Busoni – para mencionar somente alguns exemplos –, revela um percurso prodigioso, e os espaços de Salazar descreve uma tripla codificação que se produz na ópera romantica, desde Rossini, nos sistemas dramático, vocal e sexual impedindo qualquer variação. Philippe-Joseph Salazar, Idéologies de l’opéra, Paris, PUF, 1980. 1
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tempo que as unem assistem a ágeis transformações que anunciam a nova atitude do homem perante a criação artística. A ausência de uma coerência centrada sobre a acção conduz frequentemente a obra musico-dramática a uma introspecção deliberada que espelha as então recentes e ainda assustadoras teorizações de aspectos do inconsciente. A dramaturgia da obra funciona assim cada vez menos como um encadeamento cronológico de circunstâncias relativamente narrativas e mais como uma situação intemporal onde o final ultrapassa em muito a condição de resolução dos conflitos gerados durante a peça. Revela-se a perda do poder imperativo do Eu – o sujeito surgindo como lugar caótico –, a crise de identidade, e finalmente a desconfiança em relação ao poder da linguagem – a manifesta insuficiência da palavra. Four Saints in Three Acts surge neste encadeamento.
O cruzamento entre Virgil e Gertrude Virgil Thomson e Gertrude Stein conheceram-se em Paris em 1927. Partilhavam uma atracção por esta cidade, que identificavam de algum modo a uma procura de modelos mais livres – de filosofia de vida, de pensamento, de concepção artística. Aqui encontraram o cosmopolitismo inerente à metrópole francesa – muitos forasteiros cruzavam os seus percursos em Paris, entre os quais várias personalidades oriundas dos Estados Unidos da América. Hemingway e Ezra Pound tinham chegado há pouco. E era imperativa uma visita à rue de Fleurus, n.º 27, local onde Gertrude Stein mantinha um salão literário conciliador das tendências artísticas mais avançadas na época. Virgil Thomson já tinha estado nesta capital, onde estudara composição com Nadia Boulanger, embora nunca se tivesse tornado um acólito desta grande pedagoga. Visitar Gertrude era o caminho seguro para integrar o círculo dos artistas e intelectuais americanos residentes em Paris. A escritora nem sempre reiterava os convites, mas Virgil causou-lhe uma distinta impressão tornando-se, não de imediato, mas pouco mais 20
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A SUPREMACIA DO OBJECTO
tarde, um visitante habitual do seu salão.2 Virgil tinha então 29 anos e planeara estrategicamente o primeiro encontro com a soberana, demonstrando cuidadosamente os seus vastos conhecimentos de arte e cultura e o apreço pelos seus textos, nomeadamente por Tender Buttons. Nesta ocasião, encontravam-se em pontos muito distintos das suas carreiras. Thomson começava agora a criar, não tinha nada publicado e interpretado, Gertrude dividia há muito as opiniões populares. Stein e Alice, sua companheira de longa data, não partilhavam a vida boémia dos escritores e artistas nos cafés de Montparnasse. Também não visitavam o café Le Boeuf sur le Toit, onde Cocteau se reunia com os seus pares, por vezes contando com a presença do Grupo dos Seis e com Aragon e Breton, evitavam Ezra Pound e abdicaram das visitas à Shakespeare and Company depois destes terem editado James Joyce3. A aprovação de Stein era particularmente importante para os jovens artistas. Paris estava então a atravessar a fase de plena efervescência cultural do pós-guerra. A Rive Gauche e Montparnasse em particular reunia as preferências dos artistas e intelectuais. Muitos projectos interartísticos surgiram então, reunindo Picabia, Cocteau, Satie, Poulenc , Milhaud, Picasso, Dufy, Stravinsky entre tantos outros pintores, escritores, coreógrafos, músicos. Thomson pôs em música dois textos de Stein4 antes de lhe propor o grande desafio – a elaboração conjunta de uma ópera. Apesar da escritora ter sido frequentadora assídua de espectáculos de ópera, não seria, não obstante, tendencialmente musical5. A ideia da colaboração com o compositor vai, no entanto, agradar-lhe sobejamente e, em Março de 1927, o projecto começa a ser gerado. Dois anos mais tarde, com o trabalho completo, Virgil Thomson parte para os Estados Unidos numa expedição de promoção e divulgação da ópera Four Saints in Three Acts, apresentando-a em residências de amigos. A 8 de Fevereiro de 1934, em Hartford, no Connecticut, estreia-se finalmente esta tão esperada manifestação do modernismo. Os cenários 6 foram muito apreciados e o facto do elenco ser integralmente constituído por afro-americanos, um ano antes da estreia de Porgy and Bess, surpreendeu os espectadores.
I magens de Espanha, reflexos do Cubismo Em Four Saints, Stein acolhe o objecto com a frontalidade e a crueldade que considera imanentes aos americanos e aos espanhóis. O quotidiano não se ausenta, ele é revisto, reformulado pela óptica da anfitriã do salão literário da rue de Fleurus. Four Saints é uma ópera sobre Espanha e sobre a sua paisagem. Stein considera que os americanos e os espanhóis têm muitos pontos em comum: «não precisam da religião ou do 2 Cf. Steven Watson, Prepare for Saints – Gertrude Stein, Virgil Thomson, and the Mainstreaming of American Modernism, Berkeley, Los Angeles, University of California Press, 2000. 3 Cf. Steven Watson, ibid., p. 19. 4 As duas composições de Thomson são Susie Asado, para soprano e piano, de 1926, e Preciosilla,
igualmente para Soprano e Piano, de 1927. 5 Virgil Thomson comenta: «She was not by nature what we would call musical». Virgil Thomson, interview with John Gruen, Nov 6, 1977, Oral History Project, New York Public Library, Dance Collection. Citado por Watson , op. cit., p. 41. 6 Da autoria de Florine Stettheimer. REVISTA PORTUGUESA DE CIÊNCIA DAS RELIGIÕES
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misticismo para não acreditarem na realidade tal como ela surge a cada um. Para eles a realidade não é real (…)» 7 É precisamente numa realidade irreal que a escritora vai determinar o enquadramento da sua peça. A intimidade que Stein sentia com o cubismo, protagonizado pelos seus amigos Picasso e Juan Gris, atraía-a para este país mediterrânico. A escritora sentia que a vibração desta corrente estética provinha directamente da paisagem espanhola e considerava que só os espanhóis podiam ser cubistas 8. As recordações do Verão de 1912, em que Stein e Alice viajaram por este país, visitando algumas das suas principais cidades, foram decisivas para a redacção do libreto. A Igreja de Santa Teresa de Ávila e o cenário que a rodeia causaram-lhe uma forte impressão. Tratava-se de uma paisagem fantástica, que Stein rapidamente interceptou, no seu texto, e cruzou com o quotidiano artístico em que ela própria estava inserida, produzindo uma filosofia de celebração da vida, do artifício, da teatralidade, da arte. Cenário pleno de objectos religiosos que se vendiam nos quiosques e que atribuíam uma forma à espiritualidade, coisificando-a, quantificando-a, e pondo-a ao dispor de cada transeunte. Codificação da espiritualidade em termos do dia a dia, fragmentação de um aspecto divino em figurações da banalidade. Baudrillard faz-nos sentir que o objecto é constantemente negligenciado. Ao contrário do sujeito, o objecto não faz a história, é alienado, obsceno, passivo…9 «Qui a jamais pressenti la puissance propre, la puissance souveraine de l’objet?» 10 Porém, o ob jecto é sedutor, «Il séduit par cette absence de désir, il joue chez l’autre de l’effet de désir, le provoque ou l’annule, l’exalte ou le déçoit – cette puissance-là on a voulu ou préféré l’oublier.» 11 Os objectos de Stein, Picasso ou Thomson desafiam o sujeito, reivindicando a sua autonomia, seduzindo o espectador.12 Saint Ignatius: Foundationally marvelously aboundingly illimitably with it as a circumstance. Fundamentally and saints fundamentally and saints and fundamentally and saints.
O regozijo do Santo, no texto de Four Saints, advém da fruição intuitiva da vivacidade artística do quotidiano, sob todo o tipo de formas e atitudes, o objecto real, o objecto espiritual e o objecto artístico interpenetrando-se. Mesmo o lamento se transforma e permanece neutro e pacífico. O Santo é o Artista, o Artista é o Santo. As etapas na vida dos santos correspondem às fases do artista, na paisagem artificial da primeira ópera em que Thomson e Stein colaboraram. There is a difference between Barcelona and Avila. Dizem o Compère, a Com-
mère e o coro.
A desarmonia que existe em Espanha entre o homem e a paisagem 13, o contraste, explica, em certa medida, segundo Stein, a necessidade de introduzir objectos reais nos Gertrude Stein, Picasso, op. cit., p. 34. Loc. cit., p. 38; Stein, catálogo da exposição Juan Gris, Berlin, Fev. 1930. 9 Jean Baudrillard, Les stratégies fatales, Paris, Grasset, 1983, p. 127 7 8
10
Loc. cit.
Ibid., p. 128. Ibid., p. 129. 13 Gertrude Stein, Picasso, op. cit., p. 37. 11 12
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quadros: um jornal verdadeiro, um cachimbo verdadeiro. O objecto real fornecia o elemento estável, o contraste rígido com o resto do quadro.14 O objecto servia sempre de ponto de partida, só depois se poderiam afastar os vestígios do real. Nesse momento, «já não há perigo, porque a ideia da coisa deixou atrás de si uma marca inextinguível», diz Picasso. 15 A realidade não se omite, ela refracta-se num discurso que revê o sentido através do som ou através da imagem do objecto. Stein sempre pensou na sua escrita como uma manifestação próxima do cubismo. Picasso impressionava-a. «D. Quixote também era espanhol.», escreve Stein na monografia que dedica a Picasso. «Não imaginava as coisas, via-as. Não se tratava de um sonho, não era loucura. Via-as criando-as. Quando o cubismo estava já um pouco mais desenvolvido, espantava-me a maneira como Picasso conseguia reunir objectos e fotografá-los. A força da composição era tão grande que já não era preciso pintar o quadro. Ter reunido aqueles objectos era só por si mudá-los, e isso bastava para a sua visão.» 16 Criar a realidade, era a tarefa do artista, ou a sua missão. E quando a força da composição era particularmente intensa, a materialização da arte era dispensável. Tratava-se então de um ‘objecto mental’, uma ‘energia artística’. Quando se encontraram pela primeira vez, em 1906, houve de imediato uma atracção mútua, uma empatia que fez nomeadamente com que Picasso decidisse realizar o retrato da escritora. Este quadro é o reflexo paradigmático de uma cumplicidade estética. O pintor, que se abstinha muitas vezes de modelos reais, pintando de memória, requisitou constantemente a presença de Stein para a concepção deste retrato.
14
Loc. cit.
Pablo Picasso, «Confissão – entrevista», The arts, 1923, in Walter Hess, Documentos para a compreensão da pintura moderna, Lisboa, Livros do Brasil, s.d., p. 103. 16 Gertrude Stein, Picasso, op. cit., p. 33. 15
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Porque havia ele de querer um modelo à sua frente, naquele preciso momento? – escreve Stein. – Não faço ideia, mas tudo o levara a isso. Despedirase por completo da inspiração arlequim. Ressurgia nele o espírito espanhol e eu era americana. De certa maneira, a América e a Espanha têm muitos laços comuns. Terá sido por isso que quis que eu posasse para ele? Tínhamo-nos encontrado em casa do marchand Clovis Sagot, a quem tínhamos comprado a Menina com Flores. Durante todo esse Inverno de 1906 posei para Picasso; oitenta sessões; e no fim apagou a cabeça. Disse-me que já não me podia ver e foi para Espanha: era a sua primeira viagem depois do periodo azul. Quando regressou, Picasso pintou a cabeça sem voltar a ver-me e deu-me o quadro. Fiquei satisfeita com o meu quadro e satisfeita continuo. Para mim, sou eu. É a única reprodução de mim que não deixou de ser eu. 17 O paradigmático texto Tender Buttons, foi concebido alguns anos após o início da fase cubista de Picasso (1914), e coincidiu com a data em que os Stein adquirem um dos seus quadros. Todos os estímulos sensoriais se combinam neste conjunto de fragmentos, que reinventam a realidade depois do objecto ter deixado o vestígio do real, à semelhança da técnica pictórica de Picasso. A BOX. Out of kindness comes redness and out of rudeness comes rapid same question, out of an eye comes research, out of selection comes painful cattle. So then the order is that a white way of being round is something suggesting a pin and is it disappointing, it is not, it is so rudimentary to be analyzed and see a fine substance strangely, it is so earnest to have a green point not to red but to point again. 18
Processos criativos Four Saints in Three Acts
Acto I Acto II Acto III Acto IV
Ávila. Representação nas escadas da catedral. Campo. Uma festa no jardim. Perto de Barcelona. Jardim do Mosteiro. No Céu. Personagens: Commère Compère St. Teresa I St. Teresa II St. Ignatius St. Chavez St. Settlement St. Sara St. Stephen St. Plan
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Gertrude Stein, Picasso, op. cit., p. 18. Extracto de Tender Buttons REVISTA PORTUGUESA DE CIÊNCIA DAS RELIGIÕES
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Os quatro actos da peça, e não três como refere o seu título, reorganizados dramaticamente por Maurice Grosser, articulam-se serenamente, sem qualquer enfase em instâncias iniciais ou finais, introduzindo por vezes curtas respirações entre algumas cenas, num patchwork musical que forma uma macroestrutura coesa. O discurso constrói-se sobre destruições, descobre-se, de modo inquieto, hesitante. “Quando ‘descobrimos’ o Cubismo, não tínhamos qualquer intenção de descobrir o Cubismo – refere Picasso. – Queríamos apenas exprimir o que havia dentro de nós. (…) Dizem que sou um investigador. Eu não procuro; descubro.» 19 Uma noção de descoberta prevalece em ambos os casos, ao longo da materialização progressiva das ideias de Picasso numa tela cubista, e da associação de conceitos, de termos, no texto de Gertrude. «Quando se começa um quadro, fazem-se muitas vezes belas descobertas. – afirma Picasso – É preciso ter cuidado com elas. Deve-se destruir o quadro, refundi-lo várias vezes. Sempre que o artista destrói uma descoberta bela, ele não só a domina, como antes a transforma, a condensa, a torna mais essencial. O resultado final é o produto das descobertas rejeitadas.» 20 Em Four Saints não há uma sucessão cronológica de eventos, de peripécias... Não há tempo sequencial. Passado e futuro dissolvem-se num presente contínuo. Stein afirma que nunca se deve mencionar como narrativa algo que aconteceu. A sua ideia teatral não consiste numa descrição, numa estrutura sequencial lógica de acções, na articulação de uma rede de personagens. Uma peça pode ser simplesmente uma lista ou uma série de objectos que se revelam progressivamente, após sucessivasdestruições de conceitos familiares. Commère e Compère: Letting pin in letting let in let in in in in in let in let in wet in wed in dead in dead wed led in led wed dead in dead in led in wed in sad in said led wed dead wed dead said led led said wed dead wed dead led in led in wed in wed in said in wed in led in said in dead in dead wed said led led said wed dead in.
A linguagem de Stein permite uma liberdade da palavra, desvinculada do acervo familiar que habitualmente a caracteriza. A realidade não é jamais parafraseada, ilustrada, imitada, descrita. Estabelece-se uma continuidade entre o processo criativo da autora e a afirmação de Braque, que contextualiza a sua visão do cubismo: «Não se deve querer parecer verdadeiro pela imitação das coisas, que são transitórias e mutáveis e que nos parecem ilusoriamente imutáveis. As coisas em si não existem. Só existem através de nós. Não se deve querer apenas copiar as coisas. Devemos penetrá-las, tornarmo-nos nós próprios em coisas.» 21 Esconderijos vazios, alheios a referências externas, os vocábulos mantêm-se livres e permeáveis às leituras do leitor/espectador. A comunicação desfaz-se, a palavra assume um perfil formal, modela-se com a plasticidade da tinta num quadro, e dispõese em manchas de sonoridades. Pablo Picasso, op. cit., p. 102 Pablo Picasso, op. cit., p. 103 21 Georges Braque, «Cahiers 1917-1947», in Walter Hess, op. cit., p. 104. 19 20
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Those used to winter like winter and summer. Those used to summer like winter and summer. Those used to summer like winter and summer. Those used to summer like winter and summer like winter and summer. Those used to summer like winter and summer. 22
O verbo liberta-se do significado e move-se no discurso expondo directamente as suas qualidades intrínsecas, morfológicas, fonéticas, o seu poder rítmico. A união dos fragmentos inquieta-se numa sucessão partilhada por diversos personagens indefinidos. Fragmento descomprometido, que consegue atingir o essencial mantendo uma estimulante ambiguidade. A escritora penetra os signos, como na estética cubista, e reinventa os objectos.
Trois femmes, Picasso, 1908
“Notei que a pintura tem um valor autónomo, independente da descrição objectiva das coisas. Perguntei a mim mesmo se não devia pintar as coisas como as conhecemos e não como as vemos” 23, afirma Picasso. A formulação da hesitação induz voluntariamente uma sensação de estranheza, através de uma diluição voluntária do significado. A recorrência alheia-se da submissão à componente formal caracterizadora da ária ou do ensemble da ópera oito centista que se liga não só a questões dramatúrgicas como à natural exibição do virtuosismo 22 23
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Extracto de Four Saints in Three Acts. Pablo Picasso op. cit, p. 102. REVISTA PORTUGUESA DE CIÊNCIA DAS RELIGIÕES
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do cantor. Funciona então de modo microestrutural, gerando-se através de jogos fonéticos, de assonâncias, de associações de símbolos, de reincidência sobre certos vectores da obra. To know to know to love her so. Four saints prepare for saints. It makes it well fish. Four saints it makes it well fish. Four saints prepare for saints it makes It well well fish it makes it well fish prepare for saints.
Aliada a uma dimensão «cubista», a insistência subverte a rigidez estrutural. Não se enfatiza uma sensação, contradiz-se o pendor emocional com um discurso estruturado de forma divergente daquele que é habitualmente proferido no quotidiano. As anti-emoções constituem-se através desta fragmentação que gera uma rede de incertezas na arquitectura total da obra. São as ideias, os objectos, que impulsionam o artista. As emoções são coisificadas. As ideias ficam presas dentro da obra, do quadro, do texto, da música. Diz Picasso «acontece mesmo que jamais podem sair de lá. Formam com ele um todo íntimo, mesmo quando a sua existência não é já distinguível.» 24 Saint Teresa I: There can be no peace on earth with calm. There can be no peace on earth with calm with calm and with whom whose calm and with whom whose when they well they call it there made message especial and come.
A repetição pode assim tornar-se um fluxo natural, uma agitação contida, uma hesitação que desvia a importância do passar do tempo, aprisionando-o num presente contínuo, como uma pacificação de momentos individuais que não se conseguem cruzar. Como se o tempo-espaço se edificasse progressivamente a partir de planos sucessivos, que justapostos completariam uma imagem global, indução cubista. Em consequência, a repetição provoca um efeito próximo do transe, um inebriamento discursivo, pela imperturbabilidade das palavras e das fórmulas musicais re iteradas. Thomson consentindo, decididamente, mais influências de Satie do que de Debussy, sedimenta a sua criatividade na ideia de reiteração que lhe é fornecida pelos textos de Gertrude. É a pureza do discurso, de Satie e de Stein, a ausência de grandes nar rativas ou de significados condicionadores, que lhe agradam. Thomson descobre uma enorme empatia com a filosofia musical de Satie. O humor, a flexibilidade, a confiança no poder da imaginação, e o desvio total da autoridade caracterizam esta influência. Do mesmo modo que Stein utilizava as palavras antes destas estarem impregnadas de significado, Thomson utilizava fragmentos de música que podiam ser à priori apercebidos como familiares mas em contextos divergentes. O compositor recusa a ideia de que Satie fora um compositor naïf, rejeitando igualmente uma ingenuidade na sua própria literatura musical. 25 24 25
Loc. cit.
Cf. Steven Watson, op. cit., p. 50.
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«Não há uma escola Satie.» – afirmava o compositor francês – «O satismo não saberia existir. Teria de contar com a minha hostilidade. Em arte, a escravatura não é possível. Esforcei-me sempre por despistar os seguidistas, pela forma e pelo fundo, em cada nova obra. É o único meio, para um artista, de evitar tornar-se um porta-bandeira, vale dizer-se mestre-escola.» 26 Mas, apesar da sua vontade, Satie era um verdadeiro deão musico-filosófico, que impressionou profundamente Virgil Thomson, nomeadamente com Socrate, drama sinfónico em três partes 27, sobre diálogos de Platão, peça iconoclasta, a-histórica que reflecte bem o mesmo ambiente onde se inserem Stein e Picasso. Thomson viria a afirmar que: The Satie musical aesthetic is the only twentieth-century musical aesthetic in the Western world. (…) Of all influential composers of our time, and influence even his detractors cannot deny him, Satie is the only one whose works can be enjoyed and ap preciated without any knowledge of the history of music. These lack the prestige of traditional modernism, as they lack the prestige of Romantic tradition itself, a tradition of constant Revolution. They are as simple, as devastating as the remarks of a child. 28
A simplicidade que encontramos em Four Saints é uma consequência da filosofia de Satie. Ela reflecte o entrecruzar de fórmulas musicais e literárias numa dramaturgia antiemocional e antivirtuosística.
Objecto e paisagem Os Santos de Stein e Thomson não são personagens desenvolvidas psicologicamente, são vultos planos. Vibram como imagens, como objectos. Objectivação do su jeito. Estas personagens/imagens não têm densidade. Para Gertrude, um personagem pode ser animado, uma pessoa, ou inanimado, um objecto. Os Santos que estão em cena são contáveis mas na realidade são infinitos porque possuem uma dimensão sub jectiva, porque se auto-representam da mesma maneira que podem representar outros santos, ou mártires, ou artistas. Por vezes, são listados, como sequências automáticas. Todas as palavras que são trocadas entre eles são densas de simplicidade, são traços de pincel numa tela e não informações, são discursos mecânicos que podiam ser cantos de pássaros pelas múltiplas organizações que descobrem, pelas infinitas assonâncias que utilizam. Stein escreve: In Four Saints I made the Saints the landscape. All the saints that I made and I made a number of them because after all a great many pieces of things are in a landscape all these saints together made my landscape. 29
Cada elemento é então uma peça de uma imagem total, que se torna dinâmica pelos movimentos, colectivos ou individuais, pelas exclamações, interjeições de cada personagem, animado ou inanimado: as personagens e os objectos são ambos objectos constituintes de uma paisagem global. Erik Satie, «Nada de Casernas», Escritos em forma de grafonola, Lisboa, & etc, 1993, p. 60. Estreado em Janeiro de 1920, em Paris. 28 Virgil Thomson, «The Only twentieth-century aesthetic?», Piero Weiss, Richard Taruskin (ed.), Music in the Western World, a history in documents, NY, London, Schirmer, 1984, p. 475. 29 Citação de Stein em Steven Watson, op. cit., p. 46. 26 27
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Por entre este coro de Santos, alguns assumem um protagonismo evidente – em primeira instância Santo Inácio de Loyola e duas Santas Teresas de Ávila. Estes dois importantes vultos da Contra Reforma espanhola nunca se conheceram, ‘inexactidão’ que provocou inicialmente a Virgil Thomson um certo desconforto. Mas rapidamente o compositor considerou que eles estabeleciam uma distinta paridade. Santa Teresa duplica-se e encontra Santo Inácio, espelhos de Stein (ou de Alice) e do seu colega James Joyce, que partilhavam a cidade de Paris evitando cruzar-se. É muito interessante esta ‘desmultiplicação’ do personagem de Santa Teresa. Trata-se de uma atitude que revela dois pontos significativos . Por um lado, a inserção num momento da história da ópera em que o personagem assume um estado de indefinição, ruptura ou auto-multiplicação, como se sucumbisse a um estado de esquizofrenia. Por outro, o facto de apresentar duas ópticas simultâneas de uma mesma figura, que ora se complementam ora se espelham, como é salientado na encenação de Robert Wilson vista recentemente no Teatro Nacional de S. Carlos, revela um processo cubista – duas faces de um mesmo rosto, sensações complementares de uma mesma figura. Apesar de já ter terminado há muito a sua fase cubista, Picasso distorce a figura feminina no ano em que Stein e Thomson concebem a sua ópera. Cruelmente, expõe-na desfigurada, reorganizando a sua anatomia numa amálgama agressiva. Será interessante comparar esta distorção feminina com a dialéctica que acontece no interior de Teresa. Thomson afirma que esta dualidade serve um propósito musical, o de permitir a realização de duetos. Será Santa Teresa a sucessora de Kundry, mulher selvagem que geme e que grita em desespero, que vagueia na imensidão do tempo sem obter perdão do salvador, da agitada e complexa Elektra, da figura-sombra Mélisande? Mélisande sentia-se completamente perdida, insuficiente, frágil, como uma figura em degenerescência. O sujeito desfaz-se, divide-se progressivamente, numa ascensão exponencial do inconsciente, que assume cada vez mais um papel preponderante no delineamento do novo personagem-sombra. Santa Teresa encontra-se paradoxalmente na continuidade de uma hierarquia de personagens femininas que, após se desintegrarem como pessoas, de perderem a humanidade dimensionadora e ganharem uma aura fantasmática, vibrando como imagem pura, vão dissociar-se. Teresa divide-se em duas, assumindo a capacidade única de dialogar consigo própria. Consegue imaginar-se o grande e denso monólogo de Klytamnestra, a perversa mãe de Elektra, como uma introspecção que pode dar aso à fractura completa do personagem, exposto aos mistérios do seu interior desconhecido, e temendo os seus próprios sonhos. E Teresa antecede Lulu, de Alban Berg, que só verá os palcos em 1937. A postura algo esquizofrénica de Santa Teresa mantém-se, no entanto, sempre pacífica. As duas partes, duas figuras, conciliam-se, combinam-se, relacionam-se em harmonia. Não há qualquer agitação que percorra o teatro da Santa, a qual se adequa tão bem no jardim, em Ávila, onde inicia a peça, pintando enormes ovos, como no céu, onde termina com todos os outros Santos. Saint Teresa I, II: Can any one feel any one moving and in moving can any one Saint Teresa II: Saint Teresa I:
feel any one and in moving. To be belied. Having happily married.
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Saint Teresa II: Saint Teresa I: Saint Teresa II: Compère: Saint Teresa I, II: Compère: Chrorus:
Having happily beside. Having happily had with it a spoon. Having happily relied upon noon. Saint Teresa with Saint Teresa In place Saint Teresa and Saint Teresa Saint Teresa to trace. Saint Teresa and place. Saint Teresa beside. Saint Teresa added ride. Saint Teresa with tied.
Oscar Wilde afirmava «Aquilo que é mais difícil e mais intelectual é não fazer nada.» 30
A passividade é um dos grandes fundamentos artísticos da obra. Esta passividade é decorrente de uma introspecção despreocupada, na qual o vector que sobressai para o público é o da contemplação desinteressada da vida. A vida como um momento pacífico, delicado e agradável. A pulsão que pode fazer parar toda a acção, que se pode encerrar dentro do Eu como uma força centrípeta erige-se em espiral em cada um dos Santos. Em Four Saints, a passividade não é intensa ou dramática mas alegremente despreocupada. Esta indolência permite que os personagens mantenham um universo interno desconhecido do espectador. 30
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Oscar Wilde, «La Critique et l’Art», Intentions , Paris, Stock, 1997 , p. 197. REVISTA PORTUGUESA DE CIÊNCIA DAS RELIGIÕES
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Os Santos de Robert Wilson A interpretação cénica não é meramente uma paráfrase ou um espelho da partitura, consistindo efectivamente numa verdadeira metalinguagem. A concepção cénica irá manter-se preferencialmente como uma expressão que deverá contribuir para manter e ampliar a energia da obra. Robert Wilson chegou ao teatro com uma aversão ao realismo psicológico e ao movimento fundamentalmente emocional. Sentia-se então mais próximo do universo da dança, e nomeadamente de George Balanchine, do qual apreciava a geração de um espaço virtual, o formalismo dos bailarinos, que dançavam para eles próprios. A introspecção está sempre presente no trabalho de Wilson, que propõe constantemente uma imersão nas dimensões do inconsciente. Aliás, esta tendência aprofunda-se quando começa a trabalhar com indivíduos com deficiências auditivas e mentais. Explorando uma forma paralela de comunicar, plena de símbolos visuais e gestuais, o encenador vai reencontrar um discurso eminentemente espontâneo, automático, trabalhado a partir do corpo e do som original, do som que não é ainda palavra, que é guincho ou grito, exclamação. A estreia de Four Saints in Three Acts na encenação de Robert Wilson (Houston Grand Opera, Janeiro de 1996) reformula os padrões cénicos de uma obra que, após algumas dezenas de representações na Broadway, poucas vezes tinha visitado outros palcos.
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Wilson permite questionar-se, elevar os seus problemas a demandas pictóricodramáticas neste fórum que é para ele o teatro. Afastando-se cada vez mais da noção de teatro como texto, o encenador ausenta-se de toda a ilustração e elabora um metadiscurso através de uma depuração plástica de um espaço-total que inclui os corpos e as vozes dos actores-cantores. A linguagem cénica que propõe elege o artifício e o sim bolismo. Anulando qualquer vestígio de veemência passional, ele transforma os sons literários e musicais em formas e cores, muitas vezes primárias. Os símbolos crepitam no espaço como imagens únicas, em paisagens cénicas elaboradas com base num despojamento especificamente cuidado. A margem de associação, de interpretação, deixada para o espectador é particularmente extensa, uma vez que Wilson não narra, não espelha, não submete o texto a uma paráfrase espacial mas provoca uma dialéctica simbólica gerando universos verdadeiramente oníricos. Para ele, o palco é algo artificial. E é através da formulação artificial deste espaço que ele convida o espectador a intervir mentalmente, a libertar o seu poder associativo e a dissertar activamente sobre os símbolos e as paisagens que ele introduz. Wilson compatibiliza-se com a escrita de Stein desde os anos 60, seduzindo-se pela importância que é dada ao objecto, ao fonema, pela via de expansão privilegiada de um universo de associações intuitivas, e pelo lugar secundário que é atribuído à acção e ao significado. A dimensão familiar é transformada numa presença distante, com a qual o espectador não se pode identificar, mas que no entanto pertence a um imaginário colectivo. Os Santos movimentam-se de forma completamente estilizada, numa coreografia que os torna interdependentes. Os seus gestos completam-se, repetem-se, interagem, reorganizam o gesto em padrões desenhados num espaço global. Os símbolos que surgem e desaparecem são bidimensionais e contribuem para a definição do sonho – carneiros ascendem ao céu lentamente logo no início da peça, voltam a surgir no terceiro acto, sempre suspensos. Árvores suspensas, como plataformas brancas recortadas, dispõem-se em perspectiva. Inversão de uma árvore, também 32
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suspensa. Uma maquette de um templo. Luas que tão depressa surgem como se desvanecem. Finalmente, a cena é enquadrada por pescoços de girafas que descem e ascendem como guindastes, numa anti-apoteose. Coro e solistas: Four Saints Commère: And Saints Coro e solistas: Five Saints Commère: To Saints Last Act Compère: Coro e solistas: Which is a Fact
A Visão do Espírito Santo Uma componente autobiográfica está bem patente na obra. Anjos, mártires, santos e artistas, todos possuem aquela dedicação a algo que lhes é superior. Há uma continuidade nas visões, nos desejos, na tranquilidade, na mortalidade, nas canções. A concentração desse animado e pacífico quotidiano artístico resulta num contínuo teatro dentro do teatro, em que o Compère e a Commère ora se distanciam – apresentando as cenas, fazendo comentários, estabelecendo um mundo só deles – ora se conciliam com os restantes personagens. As primeiras cenas abordam mesmo a realização de um pequeno drama que relata alguns dos quadros da vida de Santa Teresa – entre os espectadores contam-se ambas as Santas Teresas. As Santas assistem à representação da sua própria vida. As didascálias e todas as indicações cénicas são incluídas no drama, o que auxilia a distanciação do espectador em relação ao desenrolar dos quadros. Este factor leva-nos mais uma vez a observar a influência de Satie. Terminamos com uma cena que desconstrói mais uma vez a potência narrativa e dramática do teatro tradicional, no que diz respeito ao texto e também à música. No 3.º acto, enquanto os Santos desenvolvem as suas actividades no jardim do mosteiro, Santo Inácio relata a sua visão do Espírito Santo. Mas tanto os homens, como, depois, as mulheres santas, mostram cepticismo em relação a esta visão. A visão do Espírito Santo não apresenta uma tensão nem uma aura espiritual específica. Curiosamente, a cena da visão fala de pombos na relva, pombos gordos na relva amarela, e uma pomba no céu. Em Ávila, as pombas pareciam estar inertes, afirmava Stein, e recortavam-se contra o céu como se planas fossem. Assim, elas faziam-lhe lembrar a pomba que simboliza o Espírito Santo que surge nos quadros da Anunciação. A esta imagem no céu contrapõem-se os pombos na relva. A simplicidade intuitiva do discurso reapropria-se dos símbolos como inseridos num novo contexto. A autora diz que esta famosa cena da visão surgiu quando passeava pelos jardins do Luxembourg em Paris, e os pombos gordos passeavam na relva amarela. 31 Na versão de Wilson, no horizonte, um homem equilibra-se numa trave estreita e um aeroplano acompanha-o. Trata-se do Santo e da sua visão. A desconstrucção das veneráveis narrativas completa-se. Pigeons on the grass alas … 31
Cf. Gertrude Stein, «A Radio Interview», Paris Review, Fall, 1990, p. 95.
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M Ú S I C A E I M A G I N Á R I O S R E L I G I O S O S
A emancipação do sagrado e a paródia do religioso Notas exploratórias sobre a criação musical na segunda metade do século XX
«As convicções amolecem, perdem os seus contornos, e acabam por se encontrar na linguagem comum de um exotismo mental, numa koinê da ficção: as convicções acumulam-se naquela região em que se diz aquilo que já não se faz, região onde se teatralizam as questões que já se não conseguem pensar, e onde se mesclam necessidades várias, ainda irredutíveis, mas desprovidas de representações credíveis» (Michel de CERTEAU, La faiblesse de croire)
Alfredo Teixeira Centro de Estudos em Ciência das Religiões (Universidade Lusófona)
Cristina Delgado Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (Universidade Nova de Lisboa)
A antropologia tem articulado as suas hipóteses acerca
da “troca” no contexto das interrogações acerca das formas elementares de simbolização na sociedade: o poder de “substituir”, de colocar algo “em vez de…”, de reconhecer o que “vale para…”, ou seja, a possibilidade de reconstruir um ponto de vista onde o “mesmo” se descobre no “diferente”. Observe-se a extensão das operações sociais que se estruturam a partir da operação de substituição: indemnização, compra, resgate, fazer as vezes de, metáfora, re-presentação, etc. É no estudo dessa função simbólica que a antropologia tem trabalhado sobre o crer ou a crença enquanto estrutura de comunicação. A constituição de campos organizados do simbólico, a sua manipulação e instituição, depende de uma reserva de crédito. Ora essa reserva social de crédito articulou-se durante séculos na Europa sobre o cimento da identidade religiosa. A crise que se aprofundou, neste domínio, durante os Tempos Modernos — que habitualmente se resume no conceito de secularização —, não podia deixar de ter consequências num território particular, o das relações entre os imaginários religiosos e a poética musical. Falamos, neste contexto, de emancipação do sagrado, porque as religiões históricas viram diminuído o poder de fixar o sentido desse sagrado, e falamos de paródia do religioso1, porque os mitemas reFalamos de “paródia” não no sentido de comentário irónico, mas no sentido de “contrafactura”, tal como no século XVI era usado para caracterizar processos de composição que partiam de 1
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ligiosos ficaram ao alcance de formas diversas de colonização sem a protecção das antigas autoridades.
Desarticulação e disseminação da crença Fides/Croyance A Jean Wirth pertence um dos mais importantes estudos sobre o uso medieval e moderno do conceito de crença (cf. 1983), estudo que encontrou outros desenvolvimentos na sua obra acerca da imagem na cultura medieva (cf. 1989). O investigador partiu do estudo do vocabulário medieval para mostrar as trajectórias da constituição do vocabulário moderno da crença. Wirth observa que não há no latim medieval nenhuma palavra que cubra o campo de croyance no francês moderno. O campo semântico de fides alargou-se entre os séculos IV e XII, de tal forma que passou a designar tanto o vínculo religioso, quanto o laço social (o juramento, a vassalidade). Wirth mostrou como a arte se tornou um meio de pregação: a arte coopera com as montagens rituais que organizam as acções litúrgicas da Igreja e a imagem torna-se o lugar, por excelência, da produção do sagrado. Em L’image médiévale, Wirth procurou mostrar como entre o século XI e o século XIII o sistema estético e o sistema religioso se articulam de forma mais vasta com o sistema social (cf. 1989: 343-345) 2 — a imagem não deixará de se tornar terreno de acesas lutas simbólicas, ainda nos nossos dias (cf. Goody, 2003). A moderna croyance caracteriza-se por uma remodelação profunda das relações entre o sagrado e o profano, ou talvez melhor, pela emergência de um regime de socialidade independente das estruturas da sacralidade. Wirth mostra que, a partir do século XII, o conceito de fides cada vez menos será englobante das práticas sociais, isto porque a emancipação das instituições transporta consigo remodelações e inovações semânticas (cf. 1983: 10-14 ) — nesse sentido que se assitirá à emancipação do vocabulário das instituições do seu Sitz im Leben original. Entre os séculos XVI e XVII, fides tenderá a designar uma verdade transcendente, ou a relação com ela, que se distingue precisamente da croyance dos outros. Fides especializar-se-á, e croyance alargará de forma pouco coerente o seu campo semântico — designando tanto a convicção interior, quanto a adesão a uma ortodoxia, ou mesmo a relação com o religioso ilegítimo, empurrado para a zona nocturna da superstição. um modelo pré-existente, modelo que por vezes nada tinha que ver com o carácter ou a função da obra final. Estas apropriações podiam afectar o texto (um texto antigo com uma nova música) ou o texto e a música (adaptação e desenvolvimento de uma elemento musical com um texto novo). Veja-se, por exemplo, a utilização da chanson “Malheur me bat” de Ockghem na Missa de Josquin des Prez que tomou o mesmo nome. Na historiografia essa missa é designada, por isso, de “missa de paródia” ou “de imitação”, e no seu tempo seria identificada como “missa de imitação (paródia) de Malheur me bat”. Paródia não tem pois aqui, um sentido pejorativo, identifica apenas um processo de composição musical. 2 Com uma amplitude maior de informação, Georges Duby tinha já mostrado a importância desse fenómeno nas relações entre arte e sociedade de 980 a 1420, lugar de descoberta de uma concepção espiritualista de imagem que reabilita a matéria como sinal do espiritual (cf. 1976) — este aspecto relaciona-se com a estrutura sacramental das doutrinas de salvação do cristianismo, território que será o lugar de muitas das clivagens religiosas que contextualizarão a(s) Reforma(s).
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Deixará de existir, portanto, um termo único para designar de forma indesatável lealdades e vínculos religiosos e sociais, talvez porque essa articulação não mais será possível da mesma forma (cf. 1983: 31, 49-53). Esta desarticulação diz respeito ao cerne das trajectórias que constituirão esse modo de civilização a que chamamos modernidade. Uma boa parte dos discursos acerca dos destinos da religião no Ocidente foi marcada pelo debate sobre o conceito de “secularização”. O termo é afectado pelas diferenças geográficas e linguísticas e apresenta matizes diferentes conforme o âmbito das Ciências Humanas em que é usado (cf. Tschannen, 1992; Dobbelaere, 1981). Mas essa polissemia aponta invariavelmente para a tentativa de ler um conjunto vasto de transformações na Europa, particularmente a partir do séc. XVII, que dizem respeito ao lugar das práticas e representações religiosas. Trata-se, por isso, de um conceito etnocêntrico — tal como o próprio conceito de “religião” — que não pode ser aplicado, com o mesmo alcance significativo, noutros universos culturais. Secularização Poderíamos resumir em duas as faces deste paradigma, que ao longo do século XX se tornou num dos quadros exploratórios mais frequentes nas teorias da religião. Antes de mais, podemos identificar no conceito uma dimensão político-jurídica que procura descrever um conjunto vasto de transformações que moldaram a sociedade moderna promovendo a passagem de determinados poderes da esfera religiosa para a esfera temporal 3. Em segundo lugar, podemos reconhecer no conceito uma dimensão hermenêutica, na medida em que nele se resume um conjunto interpretativo que tem a ambição de propor um sentido para esse conjunto de transformações, conjunto que poderíamos resumir em seis coordenadas4: • dessacralização do mundo; • decadência da religião nas sociedades modernas; • incremento do interesse pelo mundo e crescente desinteresse pelo sobrenatural; • recuo da influência pública da religião; • transferência de representações, crenças e poderes da esfera religiosa para a esfera da actividade secular; • superação social de um estado religioso na direcção de um outro marcado pelo ideal de emancipação; • transformação do campo religioso no sentido da sua “mundanização”. Estas coordenadas apontam para diagnósticos crepusculares que, nas suas versões mais duras, profetizam o fim da religião, como consequência dos mecanismos de racionalização da sociedade e desalienação dos indivíduos e, nas suas versões mais brandas, proclamam a inevitabilidade da privatização da religião e da decadência daquilo a que Hegel chamou a religião positiva5. 3 O contributo mais importante para o conhecimento desta dimensão histórica e política do conceito de secularização foi dado por Hermann Lübbe (cf. 1965). 4 No âmbito da caracterização desta dimensão do conceito de secularização, o artigo de L. Shiner (cf. 1967) tornou-se uma referência clássica. 5 Para uma abordagem panorâmica destes diagnósticos: cf. Teixeira, 1997: 43-73.
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Na Europa, o paradigma da secularização tornou-se quase totalitário, e as considerações, com matizes regionais diversificados, acerca da diminuição da capacidade das Igrejas influenciarem a sociedade e acerca do aprofundamento da separação entre Igrejas e Estado (laicidade) tomaram o lugar do interesse pela religião que persistia sob o signo da mudança. O fenómeno tornou-se tão vasto que afectou a própria fisionomia das Igrejas; mais elas próprias descobriram que o cristianismo trazia em si a semente dessa secularização (por isso se falou de teologias da secularização, teologias do mundo, da revolução, teologias políticas, e o próprio II Concílio do Vaticano consagrou a expressão “autonomia das realidades terrenas”). Nas interpretações mais duras, proclamou-se o fim da religião. Os mestres da suspeita remeteram-na para o reino da superstição, da ideologia que mascara outros interesses — era necessário, pois, superar este obstáculo à emancipação humana. Durante o século XX, este discurso foi recuando diante de um outro que procurou pôr em destaque que a trajectória de secularização não conduziu a uma expulsão da religião das sociedades europeias, antes fez dela um sistema de significação entre outros. Num mundo em que a vida social é regida por normas de eficácia e operacionalidade definidas pragmaticamente, a religião deixa de ser o horizonte organizador da vida social e, em particular, da moral, e os indivíduos passam a orientar-se, quanto à questão religiosa, segundo o seu interesse pessoal, segundo a capacidade de resposta da religião às inquietações vividas na procura de bem-estar existencial. Vale a pena recordar aquilo que, neste campo, observou Michel de Certeau nos seus estudos sobre as metamorfoses do crer nas sociedades ocidentais, essas sociedades que fizeram a experiência de fragmentarização do cristianismo enquanto corpo social, a desagregação social do “cristianismo objectivo”. Certeau falava do fim da articulação estrutural entre a experiência pessoal do crente e a experiência social da comunidade através da Igreja enquanto “corpo de sentido” (cf. Certeau, 1974: 13). A consequência é a disseminação do religioso — que é apenas uma sub-espécie de um fenómeno de disseminação do crer mais vasto 6 —, fenómeno eloquentemente descrito por Michel de Certeau neste texto: As convicções amolecem, perdem os seus contornos, e acabam por se encontrar na linguagem comum de um exotismo mental, numa koinê da ficção: as convicções acumulam-se naquela região em que se diz aquilo que já não se faz, região onde se teatralizam as questões que já se não conseguem pensar, e onde se mesclam “necessidades” várias, ainda irredutíveis, mas desprovidas de representações credíveis (Certeau, 1987: 183). 6 As propostas de Certeau revelam-se particularmente eficazes no campo da interpretação da “crise da crença” na sociedade ocidental, não só no campo religioso, mas também no campo político onde as pertenças se dizem mais como referência do que como identificação. É-se socialista por se “ter sido”: A referência permanece como uma voz, um resto de palavra, em suma, um voto em certas ocasiões. Os partidos vivem à sombra de um simulacro de uma legitimidade que se refere a um passado de relíquias. A técnica da citação de sondagens tornou-se, por exemplo, um mais importantes catalisadores do teatro do crédito. Mas a sondagem diz mais da inércia e dos restos de adesão dos interrogados do que das suas fortes convicções. A recessão do crer afecta de forma notória o funcionamento da “autoridade”, uma das articulações fundamentais do campo político (para Hobbes, o funcionamento da “autoridade” era a articulação fundamental do político). Nessa articulação se explicitam as dissemelhanças e continuidades entre o campo político e religioso. Nos dois campos, as instituições põem em acção, mesmo neste contexto, o imperativo que lhes dá razão de ser: “fazer crer”; daí a paixão pelo “respondente”, a procura incessante dos que correspondem à solicitude providencial da instituição (cf. Certeau, 1990, 259s).
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Este efeito de deslocação e disseminação decorrente da diminuição da força inclusiva das instituições religiosas pode ser compreendido, em nosso entender, a partir de quatro eixos fundamentais: • o acento posto na dimensão emotiva que privilegia tanto as dimensões subjectivas da experiência religiosa, como a intensidade das trocas grupais, fazendo passar para segundo plano o regime de validação por meio da autoridade burocrática ou tradicional; valores que podem, em alguns casos, constituir humanismos desvinculados do fundo religioso que os justificava; • a penetração do interesse ético moderno na esfera religiosa é também uma das vias de disseminação do religioso, tendência bem patente nos constantes processos de tradução da mensagem religiosa salvífica em valores que possam circular nos debates éticos da sociedade; • o terceiro eixo refere-se ao processo de intelectualização, que se traduz em modos de identificação que continuam a privilegiar as referências religiosas enquanto matriz da identidade individual e colectiva, sem que tal se concretize em formas regulares de actualização de um sistema de lealdade; • numa via próxima da anterior, é necessário ter em conta aquelas formas de emblematização de uma tradição religiosa, que legitimam uma determinada ordem cultural, a identidade de uma nação, de uma minoria ou de uma etnia; essa referência à tradição pode autonomizar-se de tal modo que deixem de ter importância os conteúdos que supostamente essa tradição tornaria críveis. Disseminação A antropologia do crer que Michel de Certeau não pôde deixar totalmente articulada, é um dos contributos mais importantes para o funcionamento das estruturas de credibilidade, que são o alicerce fundamental dos sistemas simbólicos. As instituições sociais têm funcionado segundo o pressuposto de que as reservas de crenças não se esgotam e podem ser deslocadas de um lugar para outro, de um objecto para outro: assim se pensam os trânsitos (conversões) do crer, seja do paganismo ao cristianismo, do poder eclesiástico ao poder político da monarquia, da religiosidade tradicional às instituições da República. O que nestas deslocações da crença é transportável, como uma espécie de pátria portátil, passa ao reino das “convicções”, o resto fica remetido para o sheol das superstições. Nas sociedades, abundam as cruzadas e campanhas que visam esta alquimia, cujo resultado é a produção de uma topografia dos “bons” lugares do crer. Certeau procurou mostrar que, neste contexto de mercado de valores e significações, onde abundam os objectos do crer mas rareia a credibilidade, não bastam as tácticas de manipulação, transporte e depuração da crença, é necessário produzi-la artificialmente segundo técnicas de marketing. Os poderes antigos superavam a ausência de um aparelho técnico com uma eficaz gestão de clientelas. O Estado moderno, para superar essa dependência, desenvolveu um instrumentário diversificado, constituído por instituições burocráticas, administrativas, panópticas, entre outros meios. Mas a sociologia e a antropologia do contemporâneo mostram que essas instiuições vêm perdendo a credibilidade que as sustentava. E nem a sofisticação da disciplina de produção de simulacros compensa o desinvestimento dos sujeitos: Os Estados, as empresas, os mercados, as diferentes instituições procuram fabricar o seucredo recorrendo REVISTA PORTUGUESA DE CIÊNCIA DAS RELIGIÕES
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ao capital-ficção daquilo que era o antigo “espírito” de família, de casa, de região; mas o interesse não subtitui a crença (cf. Certeau, 1990: 262; 1974: 35)7. Nestas deslocações do crer, e nos modos de produção dos avatares da crença, desenham-se figuras tácticas que recorrem à religiosidade enquanto reserva de fragmentos disponível para as agências de marketing, os empreedimentos estéticos, e os reinventores dos valores da civilidade. Os utilizadores dessas relíquias não são já fiéis crentes, são gestores e consumidores que utilizam os escombros de um naufrágio em função de determinadas necessidades, em função de certos programas, dentro dos quais as Igrejas são “museus de crenças sem crentes” (cf. Certeau, 1990: 264). Este é o contexto em que a elaboração simbólica do sagrado se pode emancipar dos objectos convencionalmente reconhecidos como religiosos, e estes mesmos podem ser matéria para novas recomposições num regime de paródia simbólica em que os mitemas e os ritemas não podem ser já explicados pela lógica docredo que os organizava, ou pelas práticas reguladas que os actualizavam. Neste domínio é necessário ter em conta três tópicos essenciais: a) A folclorização do cristianismo objectivo (cf. Certeau, 1974: 9-13). Algumas décadas atrás ainda a crença cristã estava solidamente ancorada em grupos e comportamentos específicos. Não havia lugar para a fluidez dos contornos. Ou se aderia a uma linguagem ou se entrava para as fileiras dos que a combatiam. Antes o cristianismo definia formas de sociabilidade e práticas particulares, agora esse cristianismo cultural já não está da mesma forma radicado na fé de um grupo particular. A circulação das personagens do religioso na cena pública mediática é bem o exemplo disto mesmo. Não aparecem já como especialistas de um discurso que dá testemunho de uma verdade, mas como mais uma voz no teatro das opiniões desta commedia dell’arte a que agora passámos a chamar sociedade da comunicação 8. b) Esteticização do religioso (cf. Certeau, 1974: 18-20). O corpo de escritos e ritos cristãos é utilizado como um conjunto de belas artes servindo os interesses da cria7 É útil, neste domínio da reflexão sobre a produção do político, uma referência à leitura que Mário Vieira de Carvalho fez do fenómeno da estetização do político na sua investigação sobre o Teatro Nacional de São Carlos (cf. 1993: 213-242). 8 O media tornaram-se um poderoso meio de instituição do real (cf. Certeau, 1990: 270-272): nunca outros ministros de Deus puderam falar de forma tão contínua, produzir revelações e regras em nome da actualidade, de tal forma que esse narrar “o-que-se-passa” se tornou a ortodoxia do presente, fábrica de simulacros que produz crenças e, portanto, praticantes: “Le réel raconté dicte interminablement ce qu’il faut croire et ce qu’il faut faire” (Certeau, 1990: 271).Esta dogmática do presente não possui lugar próprio, nem sede ou magistério definido. Ela “cobre o acontecimento”, produz as nossas lendas-legendas, transmuta o ver em crer. Esse pluriverso de narrativas jornalísticas, publicitárias, televisivas, mais do que as narrativas teológicas do passado exercem as funções da providência e da predestinação uma vez que imprimem modelos narrativos, que se reproduzem e ampliam: “Notre sociét é est denue une société recitée , en un triple sens: elle est definie à la fois par des récits (les fables de nos publicités et de nos informations), par leurs citations et par leur interminable récitation” (loc. cit). O núcleo do funcionamento dos media , da publicidade e da representação política, encontra-se precisamente nesta alquimia que dá a “ver” o que é necessário “acreditar”, definindo o campo, o estatuto, e os objectos da visão. Desta forma, a ficção, outrora limitada aos lugares do estético, invade o quotidiano dizendo real o simulacro que produziu, levando os destinatários não a crer no que não vêem (lógica tradicional) mas a crer no que vêem. Assim se constitui um novo paradigma do saber que define o referente social pela sua visibilidade (ao contrário do antigo postulado da invisibilidade do real), demonstração de uma nova relação entre o crer e o real, que agora é mediada pelo “visto”, ou pelo “mostrado”.
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ção estética: desde as poéticas mais secretas às composições teatrais e musicais, passando pela reinvenção das práticas dos espaços e arquitecturas cristãs. O Livro (a Bíblia), antes inscrita numa experiência crente comum, num modo de “receber” (tradição), de “praticar” (leitura) e de “pensar” (teologia) vê-se agora liberto das amarras que o ligavam a uma fidelidade concreta e vigiada e fica à mercê tanto das práticas científicas, comuns ao tratamento de outros textos, quer às invenções das artes. c) Erosão das fronteiras dos sistemas simbólicos. Este tópico decorre daquilo que Certeau percebeu como uma extensa crise da credibilidade das instituições (cf. 1974: 27-31). Desde há, pelo menos três séculos o “funcionariado” da verdade pretendido pelas instituições eclesiais é contestado em sectores da sociedade cada vez mais vastos. Esta dissonância deixou mesmo de necessitar de assumir formas contestatárias: multiplicam-se os “cristãos sem Igreja” mas sem que isso se traduza na constituição, como no séc. XVII, de grupos periféricos que renunciam à mediação eclesial em nome de uma religião mais espiritualizada. Tal como os partidos e os sindicatos, as religiões e as Igrejas vêem afectada a sua capacidade de continuar a exercer duas das suas funções primordiais: organizar as práticas e representar os princípios. É esta degradação da capacidade de gestão institucional do religioso que favoreceu nas últimas décadas, nas sociedades que alguns qualificam de póscristãs, a proliferação de doxemas exógenos e o intenso trabalho debricolage religioso e espiritual. Desprovidos das antigas garantias — políticas, cosmológicas e outras — os sistemas simbólicos vêem-se desprotegidos das fronteiras que os defendiam, ficando o seu património simbólico à mercê de reapropriações diversas em contextos culturais múltiplos (cf. Teixeira, 2002: 158-161)
Religião e estética Weber e a sua posteridade No breve ensaio intitulado “Excurso”, bem como na sua “Sociologia da religião” — texto incluído em “Economia e Sociedade” — Weber parte da sua tese, por demais conhecida e glosada, de que é nas religiões que se devem procurar as origens dos processos de racionalização, enquanto trajectória de superação do estádio mágico em busca de uma resposta para o problema da teodiceia, e na perseguição dos fundamentos da ética. Neste percurso, Weber descobre que as relações religião-mundo estão habitadas por uma lógica de “tensão” e “conflito”. Esta lógica é particularmente visível em cinco esferas da realidade Antes de mais, a esfera económica. Weber observou que as religiões primitivas têm um particular interesse pela prosperidade e pela riqueza: a posse de bens é uma benção divina. O conflito terá surgido na medida em que se aprofundou o carácter impessoal dos processos económicos, alimentado, antes de mais, pelos fenómenos de monetarização da circulação económica. Mas haverá que ter em conta a influência das doutrinas éticas das religiões da redenção cujo perfil personalista tende a colocar limites à riqueza e a ver no ascetismo um ideal religioso. Por isso, na óptica de Weber, a moderna estrutura capitalista, caracterizada por essa despersonalização nas relações entre REVISTA PORTUGUESA DE CIÊNCIA DAS RELIGIÕES
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os seus vários elementos se tornou refractária a qualquer consideração ética. A economia moderna não se opõe à ética, simplesmente exclui da sua lógica interna a possibilidade de constituição de critérios éticos (cf. 1971: 405, 414, 444, 453; 1985: 383). Também na esfera do político Weber encontra a mesma tensão. Tal como no âmbito anterior, o processo interno de evolução da estrutura política conduziu a uma progressiva despersonalização, em razão do processo de abstracção bem patente no fenómeno da sua redução a um esquema de interacções objectivas e leis positivas. O pragmatismo absoluto que organiza as relações de poder — na luta por ele e na sua conservação— e dinamiza as estruturas políticas não deixa qualquer lugar para a ética religiosa. A política funciona segundo uma racionalidade própria, o Estado rege-se por normas que devem ser aplicadas incondicionalmente, mesmo que seja necessário recorrer à violência, e independentemente das crenças dos cidadãos (cf. 1971: 546ss; 1985: 355). A tensão entre a esfera erótica e a ética religiosa é ainda mais profunda porque, segundo Weber, a identidade quanto às origens é, ainda, maior. Esta afinidade é identificável, por exemplo, nas manifestações orgiásticas primitivas em que a sexualidade é a expressão mais típica das experiências que ultrapassam a normalidade quotidiana. As tensões ter-se-ão desenvolvido com a necessidade de regular religiosamente o matrimónio, ou a vinculação sexual, para assegurar a reprodução e a subsistência familiar (cf. 1971: 556ss; 1985: 362). É no âmbito da esfera intelectual que Weber encontra o lugar de maior tensão. O progresso da investigação empírica empurra os postulados religiosos para o reino do irracional ou anti-racional, negando-lhes a capacidade de conferir um significado é tico ao mundo. De facto, o “intelectualismo”, como assinalou Weber, conduziu, no campo religioso, a formulações dogmáticas mais racionalizadas. Mas tal processo traz consigo o sémen da sua própria negação (como veremos, Gauchet vai amplificar esta observação weberiana). Com efeito, é a religião racionalizada que cria as condições para a aparição de um pensamento laico que a própria religião acabará por enfrentar. A heterogeneidade entre a religião e a razão intelectual não conduz ao desaparecimento do primeiro; implica, antes, a sua deslocação para o exterior das esferas da racionalidade (cf. 1971: 564, 571). Weber reconhece também que, desde o princípio, existe uma profunda afinidade entre a esfera estética e a religião, reunião que produziu grande parte das criações artísticas da humanidade. Mas, à medida que a arte foi desenvolvendo a sua dinâmica própria desenvolveram-se tensões que Weber vê cristalizadas na distinção “conteúdo/forma”. Enquanto as religiões de tipo soteriológico vivem na demanda do sentido profundo da realidade para responder aos problemas da humanidade, a arte desenvolveu-se no exercício da forma. Mas para além deste afastamento, Weber descobre, ainda, na cultura moderna, uma relação de concorrência. Weber refere-se ao que hoje poderíamos designar de “esteticismo”, refúgio intelectual para os desiludidos do excesso racionalista. O esteticismo aparece como uma espécie de «redenção intramundana» que cobre mesmo a região ética que as religiões da redenção procuram vigiar: o esteticismo substitui os juízos éticos por juízos de gosto (cf. 1971: 554ss; 1985: 365). Num ensaio que se tornou bastante influente nos meios marcados pela tese weberiana do “desencantamento do mundo”, Marcel Gauchet descobriu no cristianismo 42
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a oportunidade que possibilita “a saída da religião” (cf. Gauchet, 1985). Descobre no cristianismo um valor matricial, não só no que diz respeito ao capitalismo, mas em relação à génese das articulações fundamentais que, singularmente, caracterizam o universo ocidental moderno: a relação com a natureza, as formas de pensamento, os modelos de organização política. A conquista da autonomia política encontra-se inscrita no interior do próprio cristianismo; e é a sua heterogeneidade quanto à essência do religioso que lhe permite superar a própria alienação religiosa. Esta potencialidade do cristianismo funda-se em dois princípios fundamentais: a transcendência de Deus e a autonomia do mundo quanto ao seu fundamento, factores que permitem a superação da antiga heteronomia. Esta tanscendência e autonomia permite a subsistência de uma esfera de sociabilidade na qual o de jure não se confunde já com o de facto. A partir desta situação, o cristianismo trouxe consigo as condições para a efectivação do fim da religião. Assumindo a sociedade o norte da sua orientação e as razões da sua fundamentação, a religião, no que diz respeito à sua função social, é enclausurada no domínio do obsoleto. É neste contexto que surge a tese central de Gauchet: A eliminação da função social fundamental do religioso não deveria, normalmente, acabar por levar consigo uma perda ou uma erosão inexoráveis, mesmo que muito lentas, da própria possibilidade de uma crença? Poderíamos ser tentados a pensá-lo. A não ser que nos deparemos com outro problema, que complica manifestamente os dados: a função subjectiva que a experiência religiosa conserva – ou adquire – quando se apaga a sua função social (1985: 236). Existe uma religião “superestrutura” capaz de sobreviver ao ocaso da religião “infraestrutura”. A idade da religião como estrutura encontrou o seu termo, mas seria ingénuo pensar que o mesmo se poderia afirmar da religião como cultura9. Gauchet fala de um “resto” de “experiências singulares e sistemas de convicções”, experiência religiosa do indivíduo, enraizada no núcleo último de religiosidade, potencial ao mesmo tempo lógico e psicológico, constituindo-se em “resto antropológico irredutível” (cf. ibid. 133s). A sua leitura política do religioso acaba, pois, por se centrar na afirmação de que a experiência subjectiva de tipo religioso não tem qualquer ligação necessária a um conteúdo. O “estrato subjectivo ineliminável do fenómeno religioso” é o fundamento da experiência religiosa e é anterior a toda e qualquer formulação explícita de religião. Assim, Gauchet tanto afirma o carácter irredutível da experiência religiosa como nega que, a partir desta irredutibilidade, se possa afirmar o carácter necessário de qualquer religião. Gauchet separa, pois, a experiência que qualifica de religiosa da esfera da religião. É que a experiência religiosa subjectiva para que remetem, com efeito, os sistemas religiosos constituídos pode funcionar perfeitamente por si mesma, de algum modo, no vazio. Não tem necessidade de se projectar em representações fixas, articuladas num corpo doutrinal e social. Pode ser tematizada num lugar-outro diferente daquele que havia sido o seu território predilecto (cf. ibid. III, 292): Gauchet toma a sociedade dos EUA como um caso exemplar na compreensão destas distinções; cf. ibid. 234-236. 9
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Mesmo supondo que a idade das religiões está definitivamente fechada, é necessário não perdermos de vista que, entre religiosidade privada e substitutos da experiência religiosa, não acabaremos nunca, provavelmente, com a religião. Há dois erros que devem ser evitados: o erro que consiste em concluir , a partir da existência deste núcleo subjectivo, acerca da permanência ou invariância da função religiosa; o erro que consiste em deduzir do enfraquecimento do papel da religião nas nossas sociedades o anúncio seguro da sua volatilização sem vestígios. A descontinuidade na ordem da função social está já, essencialmente, operada. Pelo contrário, a continuidade no registo da experiência íntima não cessa de nos reservar surpresas 10. Gauchet procura, precisamente, determinar a estrutura teórica deste “substrato antropológico”, deste “esquema estruturante da experiência”, identificando os “restos de religião” 11. Um desse restos é, para o autor, a experiência estética. Ela diz respeito à forma como se recebe a aparência das coisas, à organização imaginária da nossa captação do mundo; nela está em causa a nossa faculdade de imaginação e não a nossa faculdade de intelecção 12. A experiência estética surge identificada com a experiência do sagrado, da presença do divino no mundo ou da irrupção do “totalmente-outro” na familiaridade das coisas13. Experiência da diferença e da ruptura, a experiência estética apresenta o mundo enquanto abertura a um mistério que não se conhece, oferecendo-se como mediação do sagrado: O sagrado é, especificamente, a presença da ausência [...], a manifestação sensível e tangível do que normalmente está fora dos sentidos e da captação humana. E a arte, no sentido em que nós modernos a compreendemos, é a continuação do sagrado por outros meios. Quando os deuses desertam do mundo, quando cessam de vir e aí significar a sua alteridade, é o próprio mundo que se nos afigura outro, revelando uma profundidade imaginária que se torna objecto de uma procura especial, dotada de fim em si mesma, reenviando apenas para si própria. Assim, a apreensão imaginária do real, que constituía o suporte antropológico da actividade religiosa, começa a funcionar por si própria independentemente dos antigos conteúdos que a canalizavam (ibid. 297). A diferença, a alteridade, a profundidade não podem, pois encontrar-se nos limites do mundo, pois este, desde o fim da religião, não sinaliza nada fora de si mesmo. Só a experiência estética — que antes era um dos suportes do sagrado e se converteu, na modernidade, em arte pela arte — pode romper com a mesmice do quotidiano, manifestar a presença da ausência. Sintetizando, poder-se-á afirmar que a sobrevivência da experiência religiosa é algo que, nas teses de Gauchet, diz respeito, nas condições actuais, ao indivíduo. Tal experiência, enquanto estrutura antropológica fundamental, apenas pode ser compreendida sob o registo ontológico, privada de qualquer possibilidade de afectar ou ser afectada pela sociedade ou pela história. Enquanto condição de possibilidade transhistórica, a experiência religiosa pode, pois, prescindir da religião enquanto instituição (cf. ibid. 300). Ibid. 292s. Cf. ibid. 293-303. 12 Cf. ibid. 296. 13 Cf. ibid. 297. Gauchet apoia-se, na definição de “sagrado”, de Rudolf Otto ( Das Heilige, 1917). 10 11
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Adorno e a vanguarda musical A chamada Escola de Frankfurt tornou-se no pensamento contemporâneo uma bandeira do reformismo moderno, nesse sentido de recuperação de uma modernidade “espiritual” em detrimento dessa modernidade “material” radicalizada e reduzida ao mercado e aos impulsos da tenociência. Essa tedência para uma leitura reformista dos ideais do “esclarecimento” moderno, pode ainda encontrar-se no pensamento de Habermas, herdeiro legítimo desse reformismo. Essa radicalização da modernidade “material” é vista por Habermas como o resultado da colonização dos âmbitos comunicativos e de toda a esfera do mundo vital por parte de sistemas controlados pelo poder do dinheiro, colonização que provocou um empobrecimento cultural, designado de perda de sentido ou perda de liberdade. Para Habermas, a análise de raiz weberiana confunde, neste âmbito, as causas com os efeitos. Não é a secularização que provoca a crise cultural, ela é antes um efeito do processo de autonomia e desenvolvimento daqueles sistemas admnistrativo-económicos. A problemática da secularização esta ligada, na leitura de Habermas, ao fenómeno da colonização técnica do mundo, posição que implicou uma reinterpretação das tensões mundo-religião tal como as defeniu a teoria weberiana acerca do “desencantamento” do mundo. O agente de tais tensões não é tanto a incomensurabilidade entre a lógica sistémica das esferas racionais e a ética da fraternidade, mas, sobretudo, a invasão, por parte dos sistemas de base cognitiva ou racional-técnica, dos universos vitais que deveriam ser orientados pela acção comunicativa, desvio que conduz à neutralização da personalidade e introduz profundas limitações ao nível da liberdade e do sentido. Assim, como já foi referido, o contraste que está em causa, não é aquele entre religião e racionalidade técnica mas aquele outro que opõe o mundo vital, gerado e reproduzido mediante processos comunicativos, e os sistemas de organização e admnistração controlados por meio do poder e do dinheiro (cf. 1981 II: 471, 477, 481, 488). No campo da estética musical esta herança crítica encontra no pensamento de Adorno as suas referências mais importantes, e por isso ele se tornou uma influência fundamental na vanguarda do pós-guerra, nessa linha de legitimação de uma atitude de permanente procura do novo e o anticonvencionalismo como uma garantia de validade estética e afastamento da música de massas. Adorno via a vanguarda como a possibilidade de fuga da mercantilização capitalista do produto estético. Para Adorno a autenticidade da arte tem uma relação de proporção inversa com a sua fruição, incentivando neste sentido, a composição de música sem motivações externas. Estamos pois perante a afirmação de uma radical emancipação do acto de criação musical. O modernismo estético está profundamente ligado à vanguarda como ponto de intersecção entre as necessidades expressivas mais extremas e os meios técnicos mais avançados (cf. Paddison, 2001: 255). Na música, percebe-se a tendência para uma crítica a todas as gramáticas musicais que se apresentem como códigos normativos e, genericamente, a todas as figuras tradicionais do comportamento musical. Neste contexto estamos ainda perante a crença moderna na força da revolução enquanto crítica das funções normalizadoras da tradição. A relação com o material recebido é, assim, frequentemente caracterizada como ironia, paródia, sátira, por vezes através da citação ou da montagem, às vezes pela negação, sempre através de um processo de recontextualização com consequências ao nível da estrutura. Por isso, segundo Adorno, só na vanguarda se pode encontrar a interiorização e o desenvolvimento extremo da auREVISTA PORTUGUESA DE CIÊNCIA DAS RELIGIÕES
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tonomia musical. A arte que diz a verdade seria a expressão do não idêntico, ou seja, a expressão de uma totalidade que aparece no singular e aspira à dignidade do absoluto. Assim, a arte que se tornasse sistema, que substituisse o conceito pela fórmula, que fizesse da técnica ou do meio um fim e desistisse das ideias, do sentido, negava a sua própria essência como arte 14. Adorno considerava a música de A. Berg aquela que melhor podia representar “a memória da unidade originária do ser humano e da natureza”, e propunha agora que “a nova música se devia tornarmusique informelle, isto é, numa música que se desfizesse de todas as formas que lhe fossem exteriores, abstratas, rigidamente contrapostas, e que, completamente livre do que lhe fosse heteronomicamente imposto e lhe fosse estranho, se constituísse, porém, de uma forma objectivamente necessária no fenómeno, e não naquelas leis exteriores” (Adorno, 1994: 272)15. “Uma musique informelle conservava […] a nostalgia de uma música como o canto das sereias, uma música ainda não privada de poder” e “era incompatível com o eterno retorno da necessidade de ordem configurada em esquemas”. A musique informelle parte da tensão entre composição e material e deve surpreender o compositor. Isto mostra-nos a sua oposição a um processo de composição teleológico, pois “a tensão entre a ideia e o imprevisível é em si mesmo um elemento vital da nova música” (cf.ibid. 302s). Assim, o conceito demusique informelle resolve as dicotomias (a dialéctica do Iluminismo): teleologia e estaticidade, pensamento e experiência, construção e expressão, auto-referencialidade da obra em devir e identificação emocional subjectiva (Vieira de Carvalho, 1999: 289). Para o musicólogo M. Vieira de Carvalho, o compositor português Jorge Peixinho corresponde a essa “imagem adorniana do compositor como químico que experimenta as substâncias no tubo de ensaio e se deixa surpreender por elas” (1999: 291). Para além da sua obra musical, os seus textos dão testemunho de uma autocompreensão que se aproxima claramente de alguns dos tópicos definidores damusique in formelle. Peixinho defende que a arte faz parte do mundo da vida, que tem como função dar um sentido à vida, tentando dominar o “caos amorfo e aleatório dos inúmeros elementos da vida quotidiana”, recusando um consumo reificado da música, um consumo que reduz a música a mero objecto sonoro 16. Assim, a arte é, para Peixinho, um motor de consciencialização de um mundo em permanente transformação, um “agente potencial de uma autêntica e integral dignificação e plena realização do homem, de um homem finalmente desalienado e desmassificado”17. Vê na arte “a mais importante porta aberta para o desconhecido, para o Infinito, um infinito nada metafísico e ao alcance de quem quiser e tiver poder criador suficiente para o descobrir e o definir, contribuindo assim para um melhor conhecimento do mundo e do Homem que o habita” 18. No quadro de uma concepção de história como superação, segundo o modelo hegeliano, a teoria estética do compositor português porcura defender a tese de que a música contribui para um aperfeiçoamento cultural e espiritual dos indivíduos, levando-os a um nível superior de existência — a música pode, neste sentido, conAcerca deste conceito adorniano de arte ver: Vieira de Carvalho, 1999: 239-240; 286. Acerca do conceito de musique informelle ver: Vieira de Carvalho, 1999: 287-289. 16 Jornal de Letras e Artes, 11.03.64. Na teoria da vanguarda de Bürger (cf. 1993), a arte é vista c omo testemunho do processo de emancipação social. 17 D. de Lisboa, 16.08.73. 18 Arte Musical, 29 (1973). 14 15
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tribuir para um mundo melhor 19. A missão mais importante da música é “contribuir para um embelezamento da existência humana e responder aos mais altos sonhos e desígnios potencialmente existentes no inconsciente colectivo”, o que só será possível através da “elevação e cultivo da sensibilidade individual e colectiva”. Para Jorge Peixinho “uma sociedade que ame a música será uma sociedade mais feliz, mais desalienada, mais livre, mais consciente”20. Assim o próprio acto de composição musical é representado, sobretudo nos seus textos dos anos setenta, como revolução cultural na direcção de uma sociedade mais justa. E só a música que tem uma “exigência consciente de qualidade, de invenção, de imaginação criadora” 21 é que tem este poder. Neste sentido, a cultura e a arte surgem-nos, circularmente, como motor e resultado de dinamismos sociais, pois funcionam “como consciencialização da posição de cada indivíduo em relação ao mundo que o rodeia e à sociedade de que faz parte integrante” 22. A vanguarda musical do pós-guerra traduziu-se pois, enquanto atitude estética, num amplo movimento de emancipação da poética musical em relação a todo o tipo de heteronomias, fossem elas formas de subordinação a outro sistema simbólico ou actualizações de normatividades transmitidas. Gostaríamos de testar o conjunto interpretativo até aqui desenvolvido em três lugares de verificação. Sem pretender qualquer tipo de exaustividade, ensaia-se no capítulo que segue uma aproximação às relações entre a criação musical e o campo simbólico religioso, a partir de três compositores.
I tinerários na criação musical da segunda metade do século XX
Messiaen, uma teopoética A religiosidade dos “restos de religião” de que fala Gauchet, parece ser assim encerrada num apriorismo que dispensa a textura da história. Os testemunhos de uma clara emancipação da arte conciliada com a releitura crente de uma tradição religiosa seriam anomalias, no quadro paradigmático a que se refere Gauchet. Referimonos aqui não já à arte disciplinada por interesses doutrinários e apologéticos, ou delimitada pelo seu lugar funcional num dado campo religioso, mas como experiência do maravilhoso historicamente situada. Olivier Messiaen é, talvez, o exemplo mais eloquente. A obra musical de Olivier Messiaen é, no século XX, um caso singular, quanto à amplitude e persistência das suas referências teológicas. Filho de um professor de língua inglesa, Pierre Messiaen, e de uma poetisa, Cécile Sauvage, Olivier conheceu, como ele próprio reconhece, uma educação muito aberta ao exercício da fantasia23. Do A música é “uma das mais altas manifestações do espírito humano e como tal acompanha […] a própria evolução espiritual de uma civilização e de uma sociedade” ( Plateia, 28.01.69). 20 Notícias de Paços de Brandão , 07.82. 21 Plateia, 28.01.69. 22 Rádio & Televisão, 22.07.1972. 23 As informações e citações autobiográficas de Messiaen que constituem o material documental mais importante para estas breves notas, referem-se a uma longa entrevista conduzida por Brigitte Massin (cf. 1989). 19
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encantamento face aos sons da natureza até à descoberta, em casa, de uma soberba edição ilustrada de Shakespeare, passando pelos contos de Anderson, Perrault, ou Grimm, a infância e a adolescência de Messiaen dão testemunho de um gosto desenvolvido pelas expressões do Maravilhoso: “Eu lia Shakespeare exatamente como se lêem contos de fadas. Fui e continuo a ser um grande leitor de contos de fadas”. Esta procura do maravilhoso tornou-se, mesmo, uma verdadeira “preparação evangélica”: “Creio que foi por causa dos contos de fadas que me tornei cristão. O Maravilhoso é o meu clima natural. Experimentava a necessidade do Maravilhoso, mas um Maravilhoso que fosse verdadeiro. Geralmente o Maravilhoso inscreve-se em mitos, em histórias imaginárias. Na religião católica o Maravilhoso que nos é dado é verdadeiro. Foi assim que, pouco a pouco, quase sem dar por isso, dei comigo na situação de crente. Pode-se dizer que passei insensivelmente do sobre-real dos contos de fadas ao sobrenatural da fé”. Dir-se-ia que Messiaen encontrou no catolicismo a expressão paradoxal de um Maravilhoso histórico. Outras leituras se acrescentaram às primeiras: a Bíblia ilustrada de Gustave Doré, a famosa Bíblia do cónego Crampon, traduzida para francês a partir dos textos originais, os missais que acompanhavam os fiéis nos itinerários do ano litúrgico, a Suma Teológica de Tomás de Aquino. Messiaen tinha quinze anos de idade quando teve o primeiro contacto com este tratado teológico, obra que virá desempenhar um papel importante na construção das referências simbólicas da sua criação musical. A sua leitura da Suma Teológica não persegue o substrato dos enunciados dogmáticos, é uma l eitura estética atenta à economia do discurso, à arquitectura dos argumentos —uma leitura atenta às formas que possam inspirar uma sintaxe musical Em 1931, com apenas vinte e dois anos, Olivier Messiaen foi nomeado organista titular do órgão Cavaillé-Coll da Igreja da Santíssima Trindade em Paris (“o órgão que eu amo como a um filho”), tornando-se o mais jovem oganista titular da capital francesa. Aí, as suas funções eram exigentes: as três missas da manhã, o ofício de vésperas, bem como todas as outras celebrações de circunstância, como os casamentos e as exéquias. As vésperas, e a Missa do meio dia, porque era umamesse basse, abriram-lhe um vasto campo para a prática da improvisação e, neste contexto, foi emergindo o compositor organista. Da prática da improvisação, da sua fixação escrita e dos seus posteriores desenvolvimentos vieram a nascer os grandes ciclos para orgão: La Nativité du Seigneur (Neuf Méditations pour orgue, 1935), Les Corps Glorieux (1939), Messe de la Pentecôte (1949/50), Le Livre d’orgue (1951), Méditations sur la Sainte-Trinité (1969), Livre du Saint Sacrement (1984). As nove meditações do ciclo La Nativité du Seigneur , cifram metaforicamente os nove meses de gravidez da Virgem, e apresentam já alguns dos recursos idiomáticos que Messiaen virá a sistematizar emTechnique de mon langage musical (1943) — como, por exemplo, os modos de transposição limitada e a métrica hindú, recursos, entre outros, que lhe irão permitir encontrar um caminho alternativo ao neo-classicismo do Grupo dos Seis, sem passar pelas propostas da Segunda Escola de Viena. No órgão da Igreja da Santíssima Trindade, segundo o seu próprio testemunho, Messiaen nunca foi um simples funcionário ao serviço de uma ordem ritual, aproveitando essa situação para procurar novos suportes para um certo maravilhoso teológico de que a sua obra nunca prescindirá. Remonta a esse período o encontro com uma célebre obra de 1919: Le Christ dans ses mistères, do beneditino Columba Marmion, obra de 48
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