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Viuiane Mosé
Nietzsche e a grande política da linguagem
(;lVILIZAÇÃO BltASILElltA Rio de Janeiro 2005
COPYRIGHT © Viviane Mosé, 2005
CAPA Euelyn GI'umacb PROLETÓ GRÁFICO
Eucl)n Gn4macbe Jogo dc SouZDLeite
Pode-se admirar a homem como um poderoso gênia cons-
CIP-BRASIL CATAR.ORAÇÃO-NA-FONTE
SiNDiCAl'0 NACIONAL i)OS Ei)i'i'OltiS Ol: i.IVllOS, {.l
quc sobre a água corretltc urna cúpula conceptual inFinitatnente
Mosé. Viviane M868N
Nietzsche e a grande política da linguagem / Viviane Mosé. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
ISBN 85-200-0675-2
1. Nietzsche, Friedrich Wiihelm, 1844-1900. 2. Linguagem e
05-0250
complicada: -- sem dúvida, p ara encontrar apoio sobre tais fundaTnentos, tem de ser uma construção como que de fios de aranha, tão têt tuc a ponto de scr carregada pelas ondas,
Inclui bibliografia
línguas- Filosofia.1.Título. '
trlltiuo, qt-lc onscgtlc erigir sol)rc Íniidaniclitos tttr)poisc cottlo
CDD - 149.94 CDU - 165.7
tão firme a ponto de não ser despedaçada pelo soPrO de cada vento. Como génio construtivo o homem se eleva, nessa me-
dida, muito acima da abelha: esta constrói com cera, que recolhe da natureza, ete com a matéria muito mais ténue dos conceitos, que antes tem de fabricar a partir de si mesmo.
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste ivro, através de quaisquermeios, sem prévia autorização por escrito.
A Depressãoadequada de um objeto no sujeito -- um absurdo contraditório: porque entre duas esferas absolutamente
diferentescomo o sujeito e o objeto não existe causalidade nem elcatidão, mas uma relação estética, isto é, uma transpo-
Direitos desta edição adquiridos pela
sição insinuante, uma tradução balbuciante em uma líng totalmente est alba.
EDnORA civILiZAÇÃO BRASILEIRA Um selo d
DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A. Rua Argentina 171 -- 20921-380 -- Rio de Janeiro, RJ -- Tel-: 2585-2000
PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Caixa Postal 23.052 - Rio de Janeiro, RJ Impresso no Brasil 2005
20922-970
(NIETZSCHE,
F.
'Sobre verdade e mentira no sentido extramoral
l :--':
\-/'
hb../
Ao meu amor Dance!, por sua presença,
por nossa casa cheia de vida, por Dali.
Ao meu ilustre e muito querido orientador prof. Dr. Roberto Machado, por sua generosidade e carinho.
Aos professores Dra. Sílvia Pimenta, Dra. Kátia Muricy Dr. André Marfins, Dr. Ricardo Jardim, Dr. Edmilson Paschoal e Dr. Nicolau Julião, pelas sugestões e críticas.
-' .'
: ' . .-'
A minha amada e alegre família Mosé.
: :- '
1. >'' ' .1'tF:
'q......#:' .}lg-...f .' ;::li::
À amiga e prof. Ana Gama Barreto. Aos meus alunos.
'-'l !: :l::::11ig
Sumário
INTRODUÇÃO PARTE l
O prometo crítico
de Nietzsche
2 .í
CAPÍTULO l
Genealogia, transvaloração e linguagem
27
PARTE ll
A palavra, a verdade, as forças
ÓZ
CAPÍTULO l
A palavra omoverdade 69 CAPÍTULO ll
A perspectiva as orças 87 \..J-' CAPÍTULO
llt
A linguagem como signo do rebanho ] 09 PARTE lll
A gramática
]3.3
CAPÍTULO l
A órbita do pensament
135
11
VtV}ANE MOSÉ CAPITA LO tl
Introdução
O ser de Parmênides ] 4s CAPÍTULO lll
A lógica em Aristóteles í 5S CAPÍTULO IV
O sujeito moderno l ó7 PARTE IV
Escrever um trabalho acadêmico sobre Nietzsche chega a pa-
A afirmação ] 8i
recer um çglll11ê;!çp$o}, specialmente uando discute a crítica
CAPÍTULO l
A músicadaspalavras ] 87
da linguagem. É exatamente contra o pensamento conceptual,
contra as categorias ógico-gramaticais ue não somente
CAPÍTULO ll
como um todo. E é este, exatamente,o eixo de argumentação
O Deus do círculo contra o Deus das dentidades 2 01
deste trabalho, mostrar a importância da crítica da linguagem para o que Nietzsche chama de transvaloração dos yêlç)res. ::S S::
CONCLUSÃO2 7
:
M
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''''«r
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Transvalorar p(zdçijslpçi!!gp(+ç, princípio, come) tornar mó-
x:Êlz.EglÊáyÊ!::luido. Ao contrário de maleáveis, ês avaliações. BIBUOCRAriA 3 3
.,;'.' !.
genealogia da linguagem se insurge, mas o projeto nietzschiano
-.-..,'::'l;
- .':.::
S.j11891que homemproduziu, tanto na modernidade qu;nto na antiguidade clássica, !ão cristalizações, fixaçõq$, ;sustenç4ll!g!@crençg.!!ajdentidaã;;';la essênçja, no ser. A rede de valores quê'foi se produzindo no decorrer da história do pen-
samento, esta malha conceitualque nos enreda a todos, está fundada na ficção de que exista alguUq: coisa irredutível, imutável única, idêplitl;ã si mesma, e esta coisa é ç) ser, a essência,
:;.:; l
:l:l ::....;: l} \*
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a .verdade. NJÊ!!!!he
entende esta crença como produto
da
necessidade metafísica de duração, coma-êDgÊD.ps cológko por fundamento. EêEg.):enEêÉ!!:l:g!!Jlgçãovai se constituir como uma correlação negativa de forças, na medida em que iS..inâwf contra a mudança, própria do !ggtpo e da vida. Esta atj!!JSk: é a caracrerGtica, $õi: e;celência, dq.cu:jtul :ã3jjdental. Nietzsche
pensa a história dos valores como um processo de constituição
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VIVIANE MOSÉ
NIETZSCHE E A GRANDE POLfTÉCA DA LINGUAGEM
em última instância, é uma única e mesmacoisa: o caráteJ
e desenvolviment o !!!i!!!!np, omobusca e !!!b!!jltl2âsãoa, vida pela idéia. Ê somente
p1l@@, ' N$
ue
i::.., ;
ver.dado, a identidêÉb ,po(}e sç:..111êllêiíta11. oi por ter a idéia
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como alvo que a .!!i:llg111g..qg.,S;ç?nh:cimento .tornoulç, para Nietzsche, a 1liêEéEiê.jlanegação do corpo , das intensidades,
::.
elSSig=31.g.ÊXIÉlilSge.tç)do co!!ç:çj:tD,A estratégia de linguagem
utilizada por ele, no entanto, não é o objetivo deste trabalho, que se limita a discutir sua concepção crítica da linguagem, ao menos em parte. Recorrer à linguagemafirmativa de Nietzsche é ressaltar nossa impossibilidade: não somente não temos os
em nome da duração fictícia;dÓ ;er, da ii:êhcia, da verdade.
recursos utilizados por Nietzsche, como sabemosdas dificul-
o que marca esta vontade qe neaacão! ou seja, a crença p+verdade, çgçgntra-se oresente tanto no pensamento lliatõnico :e t ;.; cristão, como ng.1110derno. ornar os valores móveis implica i...:
construir um pensamento que não se constitua nesta negação.
Ç:,.,
Os valores que o prometo ietzschiano quer transvalorar dizem respeito, portanto, a um combate contra as avaliações produzidas pela cultura ocidental, através de uma crítica da moral,
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da ciência, da arte, mas, antes de tudo, implica uma,.SIHca:
(.;
corrosiva da matriz dç.!idos estesexggps civiljÉptórlosz::aiiB'
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dades que seu pensamento encontrou para ser aceito no meio acadêmico. E defender uma tese de doutorado é aceitar a lin;!139ÊDI.êçggênljg.
{..,:ã,
2ii;118[Â.'Tnlguagem, com sua lógica da identidade, é o que fundamenta e permite todo niilismo. Ê preciso explicitar o pro'
de psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo,
cesso de produção da linguagem, pondo a claro os jogos de
Nietzsche, Artaud e arte , orientada pelo professor Dr. Nelson Lucero; em 1995, a dissertaçãode mestrado intitulada
.,çã.@ã.
Nietzsche e a genealogia do sujeito , orientada pelo Prof. Dr.
Í€
mesmauílgllggçm, Bã..!tltgjjã!!B::bg-!DÍdQo:;l?g11:yo3al. entanto é neste lugar que o pensamento nietzschiano se colo-
ca. NiÊlzsche não abriu mão das leis exigidêâ:EÊb:.co.yunicahJ' ':..&'
Ç.
a crí-
sche é um empreendimento a que nos dedicamos há algum tempo -- em 1986, com a monografia de graduação ao curso
Utilizar a linguagem, o pensamento conceitual, a argumenW,
neste desafio -- afirmar
VÊ[E.!!])(e1]çaesue este nosso trabalho carrega. O trabalho acadêmico envolvendo o pensamento de Nietz-
força, os interesses e tensões que estiveram, desde sempre, movendo seus códigos e leis.
'L '-%Eg.>'
Aãhategar
tica de Nietzsche da linguagem a partir da linguagem que ele tanto critica -- temo!: clara!..gs torções, os abusos e..ês nevitá-
ção, Ãão abdica:l=aêli$Êl;;:tiêbeiiiã&or, dlglfll? que ensina. aue
liz alguma cg!!g);!g mesmo temoo.construiu um estilo capaz. iê desautorlZêE-estesmesmos fundamentos quq;!q111ninou;pgll :
Roberto Machado, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro; e a tese de doutorado que originou este livro, também orientada pelo Prof. Dr. Roberto Machado naquelamesma nstituição, defendida em janeiro de 2004, com o título Linguagem transvaloração -- Perspectivas para uma grande política . problema da linguagem apareceu para nós como uma exigên-
cia desta trajetória que teve início em 1986. A questão que
ijiÍizar Não somente através de reco;;sos poéticos e literários,
desde aquela época nos movia, e continua movendo, é o pro-
como o aforismo, a paródia, mas em seus conceitos-bomba,
blema da racionalidade, como um modelo excludente para o
1.4
como vontade de potência e eterno retoma, Nietzsche estabe-
pensamento. Colocar em questão a racionalidade, principal-
tJ.'
leceu sua escritura. O que os conceitos nietzschianos afirmam,
mente a partir dos princípios lógico-racionais de identidade,
'çJ,'
q;:.d:
14
VIVIANE MOSÉ O quarto capítulo, 0 sujeito moderno , apresenta a pers-
pectiva de Nietzsche a respeito do surgimento do sujeito carlSlbno
cano produto de;!!m hábito g11g:paticql,ao mes-
mo tempo que aporiiã para a crença na causalidade como produto da identidadc c da intcrioridadc
atava do-sujeito.
Afirma enfim, a crença na identidade, na unidade do sujeito como o fundamento da linguagem lógico-gramatical. Finalmente, a quinta parte, A afirmação , apresenta uma abertura para uma perspectiva afirmativa da linguagem. Par-
PARTE l
O projeto crítico de Nietzsche
tindo da concepção apresentadano Nascimento ç4a!!zzgédia, que considera um duo]o asoecto da linguagem:.g êpolÍW que diz resE)Sito ?gs !ig.p:o>.e..o di.onisíaco, a sonoridade da
ingua, produto de suayj1lculação à !Elãljla. O primeiro capí-
ttl;it;; iK';;iiãiicadas palavras , mostra a relação entre a afirmação e um aumento de potência, como manifestação do estado dionisíaco, estético.
i.,.: :
i..:.;;
O segundo capítulo, 0 Deus do círculo contra o Deus das identidades , apresenta a interpretação de Pierre Klossowski a respeito da idéia de eterno retorno, uma interpreta-
.. i
ção que trata o problema da afirmação a partir da linguagem. O Deus do círculo vicioso como o signo capaz de desbancar o
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signo das identidades, imposto pelo Deus cristão. E uma pequena Conclusão .
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CAPITULO l
Genealogia, transvaloração e linguagem
.,/ Nas considerações eitasem Ecce Homo (1888),s Nietzsche comenta que, depois de Assim Áa/oz/Zarafzistra (1883-85),
quando a parte afirmativa de sua filosofia estava cumprida, tornou-sc ncccssário produzir a sua porção ltcgativa, onclc os valores dominantes sofreriam a ação do não . Os anos posteriores aoZazafaslra têh'êótno tare'fa,segundo essescomentários, preparar para a batalha decisiva . O exercício do que
Nietzsche chama de p-artenlWliva da sua filglo.Íia aponta sempre para uma nova f(iiãa de filosofar: Á/ám do bem e do ma/ (1885) é ao mesmo tempo prelúdio para uma filosofia do futuro e o Crepz2scz{/ os z'do/os(1888) éuma filosofia a golpes de martelo . A imagem do martelo é utilizada por Nietzsche no sentido de indicar uma'forma de pensar mais agressiva;' trata-se de uma filosofia que possa, como um martelo, atingir asvçrdadÊgz.:jíçjolos e bpKg . Podemos dizer que colocar os valores dominantes sob o martelo da filosofia era
a tarefa que ele havia determinado para os anos posteri ores ao Zarczfzísfza,dando vazão a um projeto cr(taco que, nos últiSEcce Hol?zo, Além do bem e do mal , S l.
'A imagem o .Q2[!eloé relacionada, o AssimÁn/o Zzraf sfra, eêg !gglgtg J4Ê:Uilisãp, mas à cligsãg Impele-me a minha ardente vontade de criar; do mesmo modo é o martelo impelido para a pedra ( Nas ilhas bem-aventuradas ). No entanto, criação e destruição aparecem associadas: Sempre destrói
aqueleque deveráser um criador ( De mil e um fitos ). Filosofar com o martelo, segundo nos parece, é assumir essadupla função: destruição e criação.
ViVIANE MOSÉ
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
mos escritos, apontava para a transvaloração de todos os valores .
então formuladas. Não se trata mais de saber o que é verdadei--
Desde IJz/mazzo, demasiízdo bzim.z/zo (1 878-8 0), Nietzsche
faz uma crítica da filosofia, da moral, da religião, uma crítica que se estende por toda a obra e é, por diversas vezes, carac-
terizada como uma guerra . No entanto, como diz em Ecce Homo, tratava-sede uma guerrasem pólvora ou mesmo de uma guerra sem artilharia pesada ,' ao passo que depois do \''-...'
Zaratmsfrn eio a grande guerra ou a preparaçãopara a batalha decisiva .8 Ao colocar em questão o problema do
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valor, a genealogia busca fornecer as munições, os armamentos que possibilitarão a execução dessa batalha. '-b...''
:-., '
-.
Antes mesmo de duvidar de cada valor, Nietzsche se pergunta sobre a existência mesma dos valores, o que implica suspeitar do valor dos valores. A novidade desse período da obra, marcada pela busca de uma crítica total, é a formulação de novas questões. Uma nova forma de perguntar é instaura-
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da quando Nietzsche coloca em questão o estatuto da pergun-
ta, possibilitand a produção de um novo lugar.9Não é mais no interior das questões antes levantadas pela filosofia qu
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deve estar o filósofo, nem se trata de encontrar novas respos-
tas para antigas questões. Ê preciso partir de um distanciamento, de uma desconfiança com relação às perguntas até '-«...d'''
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de? Ao afirmar que a verdade é um valor, Nietzsche busca dessacralizar esse princípio de avaliação, quando desvela sua
condição de invenção humana: a verdade é uma idéia, uma construção do pensamento, ela tem história. E a história da idéia
de verdade parece remeter não ao universo do conhecimento, mas à necessidade humana de duração, de estabilidade. Colo-
car a verdade em questão é, antes de tudo, duvidar de toda produção conceitual sustentada nesta crença. Ao fazer uma avaliação da filosofia, da moral, da religião, da arte, da política, enfim, da cultura, o que a genealogia de Nietzsche faz é uma
crítica da racionalidade, do conhecimento, colocando em questão a crença em todo e qualquer fundamento originário: verdade, ser, essência, dentidade, unidade, princípio, causa.
A idéia de origem como lugar do eterno, do atempora l, do incondicional, valoração metafísica sustentada pela crença em um princípio ordenador, pressupõe a origem como lugar da verdade. Essa crença, no entanto, é produto da necessidade
de atribuir um nascimento divino para as coisas, uma forma de despertar o sentimento de soberania do homem .io A crença de que a verdade se encontra na origem, e de que a partir
da busca dn origcnl l)odcmos atingir a verdade, cst á fundada ila tradição religiosa..â plçciosiclaclc da origem r emete à ideia
ZEcce omo, Aurora ,S l. \...#'
ro ou o que é falso, mas de perguntar: por que sempre a verda'
'Op. cit., 'dalém do bem e do mal , $ 1. aparaGerard Lebrun, o deslocamento instaurado por Nietzsche nasce da consideração da vida a partir de duas perspectivas: a da saúde e a da doença. A estratégia desse deslocamento resulta de uma posição afirmativa com relação à doença. O doente forte não repudia as consequênciasdo sofriment o, nem
realizaqualquertipo de pacto com o que o alivie. Ao recusar-se depor contraa vida, ele faz sua maior afirmação. Afirmando a vida em toda sua
de.revelação,onde as leis são dadas por Deus aos homens, quer dizer, da afirmação de que a sabedoria das leis não sen-
do de origem laumana(...), mas de origem divina é total, per~feita, sem história, um presente, um prodígio .''
plenitude, inclusive na dor, o doente forte realiza a grande suspeita quando coloca em questão todas as avaliações anteriormente feitas. (Lebrun, Gerard.
itHurora, S 49.
O az/essaa dfa/éflca, 988, p. 118.)
iiO
30
O discurso
metafísico, fundado no absoluto, no incondicionado, na es-
.4/zfícrfsfo,
$ 57.
31
VIVIANE MOSÉ
NIETZSCHE E A GRANDE POLITICA DA LINGUAGEM
sência, prolonga a crença em uma divindade de origem. Portanto, reli'-ião e metafísica estão para Nietzsche conectadas a
to da coisa a novos fins . i' Sempre que uma coisa é produ-
partir da .nesma crença: o discurso religioso da eternidade do princípio vincula-se à trama metafísica do incondicionado, do
absoluto, da verdade, que se encontra no nascimento de rodas as coisas. Os valores da origem não podem vir a ser, é precisoque eles sejama causa, o eterno, o essencial. E exatamente esse essencial que Nietzsche vai b ombardear
quando, na introdução de Ge/zea/og/a a mora/, afir ma a necessidade de conhecer as circunstâncias em que os valores nasceram, sob as quais se desenvolveram e se modificaram .
Ê preciso, diz ele, fazer uma história dos valores morais .': Os valores têm nascimento, e esse nascimento se deve a cir-
cunstâncias , não a uma verdade originária. Ao contrário de serem divinos, os valores são profundamente humanos e respondem ao jogo de forças temporal da história. Um jogo de forças que não está determinado por uma causa e muito me-
nos por um fim. A história inteira de uma coisa , de um órgão,. de um uso, pode ser uma continuada série de signos de sempre novas interpretações e ajustamentos, cujas causas mesmas não precisam estar em conexão entre si, mas, antes, em certas circunstâncias, se seguem e se revezam de um modo meramente
contingente.
''
A história dos valores não resulta de uma sucessão, mas
zida, imediatamente se encontra inserida num embate plásti!.
co, onde toma a conformação das forças que dominam; toda coisa produzida é imediatamente vazada por interpretações,
por sentidos que resultam e são resultado dessa luta por do-
mínio. Quando afirma essa descontinuidade,essa total imprevisibilidade no processo de formação dos valores, Nietzsche busca quebrar a pretensa divindade da origem e desmantelar
a crença em um princípio essencial,único, afirmandoa pluralidade, o jogo de forças, a guerra. Nietzscheafirma, no Asse/zz a/ouZarnfz/sfxa, ue vida é vontade de potência: onde encontrei vida, encontrei vontade de potência . '5 Essa afirmação vai ser, como veremos, fundamental para seu prometo rítico. Dizer que vida é vontade de potência é dizer que todo tipo de vida, toda manifestação
de vida é uma guerra, uma relação de forças: tudo o que ocorre, todo movimento,todo vir-a-seré um constatarde relações de graus de forças, um combate .'' A concepção nietzschiana de vontade de potência remete toda manifestação da vida a um combate que tem como caráter intrínseco a expansão, o crescimento, a superação. O que está presente na
vida e no modo de ser de todo vivente é sempre a busca por expansão, por ampliação, por crescimento: este segredo própria vida me confiou: 'vê', disse 'eu sou aquilo que deve sempreszzperar si mesmo '.i7 Essa concepção da vida como
dc uma guerra; não provém dc uma verdade, mas dc uin com-
expansão, como superação, quc aparece pela primeira vez no
bate, uma luta plural e violenta, um constante ogo de relações e resistências,onde forças lutam por domínio. E toda dominação é um interpretar de modo novo, um ajustamen-
ZarafasZróz, parccc taml)ém cm diversos fragmentos póstu-
izGe/zea/agia a mora/, Introdução.
''0P. cit., 11,$ 12.
lqlbid.
SAssffnÃa/o#Zzraíusfra, Do superar a si mesmo . ''FragoneHfos/)ósfH/Fios,outono dc 1887, 9(91). In: Nictzsche, F. Oezlmes P/7f/osopbíqzfes ol?zp/êles. Pauis, Galiimard, 1977. i7Assí?lza/OHZaraf sf a, Do superar a si mesmo
VIVIANE ROSÉ mos: algo vivo , diz Nietzsche,
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
quer extravasar sua força . 18
Ou ainda: é o exemplo de todo ser vivo que permite demons-
trar, o mais claro possível, que ele faz tudo }zão para conservar-se, mas para tornar-semais .t9 Ao contrário de um instinto
te choca-se com as aspirações semelhantes de outros corpos
e termina por arranjar-se ( combinar-se ) com os que Ihe são suficientemente homogêneos: e/zfáo co/zsplram / /elos para conqz//sZczr Fofa/zc/a. E o processo continua...23
de conservação,20 reiteradamente criticado por Nietzsche,
expansão é o modo de ser de tudo que vive, uma expansão
que encontra resistências: a vontade de potência só pode manifestar-se em face de resistências .z' A contraposição expansão-resistênciaé exatamente aquilo que caracteriza o cho'\.....'''
que, a luta, o confronto que Nietzsche chama de vontade de potência.
:...,.../
O que parece estar sendo afirmado, em última instância, a luta vida. Tudo que se manifesta
~....-'
'' h.,.,.-'
como vida é sempre o resultado de uma luta desigual ,2z toda :::..,' '\«...-''
\-..
-'
forma é produto de umadominação. Se o caráter intrínseco a toda manifestaçãoda vida é a luta, o confronto, o choque produzido por um movimento de expansão e resistência, en-
tão a vida é constantemudança,transformação,configuração ''--...' :.
provisória.'
É contra esse caráter eternamente mutante das coisas que a metafísica se insurge. A marca da metafísica é a crença na
duração, ou, como quer Nietzsche, a necessidadepsicológica de permanência. A compreensão do mundo, a partir d um princípio ordenador, tem o poder de aliviar e tranqüilizar o homem dianteda extremaexuberânciadas forças plurais da vida, o alívio do mundo que, como eterno vir-a-ser, acar-
reta inevitavelmente dor e a morte. Encarar a inexistência de qualquer intencionalidade do devir é o mesmo que encarar o desconhecido, o incalculável, é enfrentar o caráter enigmáticoda vida e da morte. Mas não é somenteo tenebroso da existência, representadosno sofrimento e na perda, que provoca o medo do desconhecido, mas a exuberância, a grandeza, a pluralidade, a plasticidadc, o cxccsso. Encarar icia scm o filho...da forma, da .:...--------. ... . orclcm,. do c )nhccimcnto,d
-.....FP
''n#.'
'bh...
Todo corpo específicoaspira a tornar-se totalmente senhor do espaçoe a estender ua força (sua vontade de potência), a repelir tudo que resiste à sua expansão. Mas incessantemen-
''-..'
\.........,'
'*Fragmenfosóstumos,outonode 18 85a outono de 1886, 2(63).
causa, mas de uma causa que tranqüilize, que alivie.24A busca
i9lbid., primavera de 1888, 14(121). zo Contr a o fnsfi fo de co#seruaçáo nquanto instinto radical, trata-semuito
por estabilidade levou-nos a produzir um mundo que não é
mais de o ser vivo quererdar /fz,re urso à sua força(.-):
..
a conservação
apenas umaco zseqüê cfa . Fragme/zfospóstumos, outono de 1884 a outono
de 1885,26(277). ztlbid., outono de 1887, 9(í51). zz Deveria definir-se a vida como uma forma du rável de um processo de equi-
.-'
linguagem, parece insuportável ao humano. Deste modo, for-
jar uma identidade, uma unidade e uma intenção para a vida é traduzir o desconhecidopara o conhecido, uma tradução que nasce de uma busca que não é a de qualquer espécie de
líbrio de forças, em que os diferentes combatentesse desenvolveriam, cada um de seu lado, de maneira desigual. Fragmelzfos pósl#fnos, outono de 1 884
Zllbld., primavera de 1888, ]4(186). z+ Não se busca somente descobrir uma explicaçãoda causa, mas sim se elege e se prefere uma classe particular de explicações, aquela que dissipa mais rapidamente e em menor número de casos a mpressão do estranho, do novo, do imprevisto (...). O banqueiro pensa imediatamente no negócio, o cristão
no pecado, a cortesãno amor. Crepúscu/odos /do/os, Os quatro grandes
erros ,S 5.
a outono e 1885,36(22).
34
35
VIVIANE MOSÉ
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
!nlBéxeLe.qytl4êBtç..nç) eyilt,.pas.que o 'ser' .z O conceito metafísico de ser é a representação da crença na identida-
embate plástico, dinâmico, resultantede resistências, isso vida, ou melhor, isso é vontade de potência. Se onde há vida
de, na permanência. Como verdade primeira, ele é o incon-
há uma batalha que se metamorfoseia, se transforma, toman-
dicionado, o irredutível, o idêntico a si mesmo. Toda referência
do a configuração das forças que dominam, então toda idéia
ao princípio, à causa, à verdade, à unidade, ao fundamento, remete, em última instância, à noção de ser. A produção da verdade procede, portanto, da tentativa d criar uma vida onde a mutação, a luta, a contradição, a dor não
como vontade de potência,Zaxarwsfxa nicia fazendo uma crítica da verdade:
exista. No entanto, se é verdade que toda força somente pode manifestar-se contra resistências, há em toda ação uma dose de
Vontade de conhecer a verdade chamais vós, os mais sábios
dor necessária .26A mudança, o vir-a-ser, implica dor. A dor é constitutiva do processo de materialização das forças. A busca metafísica por duração, através da afirmação da unidade, da identidade, da substância, é a busca por um mzí/zdo-uez.üde -- um mundo em que não se sofra .27Se toda manifestação da vida implica uma dose de dor, toda tentativa metafísica de estabelecer um mundo sem dor é uma luta contra a vida. O pensamento maduro de Nietzsche, chamado por ele de pensamento
trágico, parte da afirmação da dor, da mudança, da morte como condição de unte relação alegre e afirmativa com a vida. Assim Nietzsche interpreta a tragédia grega, a afirmação do sofrimento
como forma de:produzir alegria.
entre os sábios, àquilo que vos impele e nflama? Vontade de que todo existente possa ser pensado: assim chamo eu à vossa vontade.28
Essa vontade, que Nietzsche chama de vontade de verdade , é a busca por uma vida distinta da que se apresenta a nós; ao contrário de o conhecimento procurar as coisas mesmas ,
o que ele faz é criar uma nova forma de vida. Ao relacionar vontade de verdade à vontade de tornar pensado tudo que existe, Nietzsche quer.desvendar a suposta neutralidade
çlçhça$.gJ41Dg.pluralidade de pulsões.que se encontram,. !!
.i;hQçaln:. !!de se acreditgla:.$çt.Q.llgq.!aorigem,.do iguitl.a.. desdobramento, a co!!s-
tante transfQrxlláç4o:. a plgllferaçqg de sentidos, a criação. Uma
multiplicidade de forças em relação permanente de tensão, um
çgdo 99nhçcimento é .una reação ao devir, à mudança: io des: prezo, o ódio de tudo o que passa, muda e se transforma: -- de
onde vem essa valorização do que permanece? Visivelmente, vontade de verdade é apenas o desejode encontrar-se em um
mundo onde tudo permaneça .29 objetivo do conhecimento f metafísico é forjar essa dentidade que a vida não apresenta, e o fundamento de.todo conhecimento é a linguagem. \
zsFragmen/osóstumos, utonode 1887, 9(38). zólbid., novembro de 1887 a março de 1888, 11(77).
27lbid., utono de 1887,9(60).
da
verdades a verdade quer alguma coisa, e o que ela quer é um outro;munggz uma outra Vida. O mundo pensado . é o mun-
do simplificado, ç9dificado, tornado linguagem. O que funda
Mliaaevei:dado-de-unidade,a.yOê. multiplicidadesubjacente
.$i:mesmos domino,.já.QJDejnito
de unidade é fictícia. No mesmo discurso em que afirma a vida
Do superar a si mesmo outono de 1887, 9(60)
' q ., .
'
VIVIANE MOSÉ
NIETZSCHE E A GR ANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
A história da metafísicapode ser pensada, a partir de Nietzsche, como a história da produção e cristalizaçãoda
tência, essas afirmações não parecem reacender a crença metafísicano substrato. Se, por um lado, o termo essência,
noção de identidade. Os conceitos produzidos pelo conheci-
tomado do vocabulário metafísico, diz sempre respeito a um
mento ao mesmo tempo sustentam e são sustentados pela cren-
ça em coisas idênticas . Esta necessidadede identidade, de
estado de permanência, a alguma coisa que é, independente da mudança, por outro a idéia de vontade de potência remete
unidade, de fundamento, de substância, resulta de uma recusa em afirmar o caráter da vida que é vontade de potência.
à vida, como o resultado de uma guerra sempre renovada de forças, e afirma a transitoriedade como marca de tudo que
a impossibilidade de duração, própria da vida, que permane-
vive. P.ilSI..gyç.q.eslêtncia..çia.yidq.é v.ontade.de potência é o mesmo.que dizer: a essência, ou.seja, o que nãf)..muda, é von-
ce subjacentea toda crença na verdade, na causalidade, no ser. Se o alvo da genealogianietzschianaé a idéia de verdade, o que ela busca é atingir toda crença na identidade, na duração. Construindo
\\.. .A
'U. #,'
o conceito de vontade de potência Nietzsche
efetua, segundo nos parece, sua crítica radical, que é a crítica a toda idéia de permanência. A genealogia, como pensamen-
'L,''
to sustentado na afirmação da vida como vontade de potên -
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cia, coloca necessariamente em questão a origem, a essência,
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a identidade. Essa nova forma de avaliar, que substitui a idéia de verdade como aquilo que é, pela déia de vida como vontade de potência possibilita,no prometo rítico de Nietzsche, a preparação para a batalhadecisiva contra os valores. O que o conceito de vida como vontade de potência busca, enfim, fazer é perguntar: por que a identidade e não a mudança? Pode-seobjetar tomando como referência os textos em que
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Nietzsche afirma que a essênciada vida é vontade de potência ,30 a essência do mundo é vontade de potência , 31 ou ain-
da a essênciamais íntima do ser é vontade de potência ,3z que vontade de potência remete, em última instância, à identidade. No entanto, quando consideradas a partir do sentido
que Nietzsche atribui aos termos essência e vontade de po-,,.-'
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tade de potência, é a mudança; em outras palavras, somente mudança permanece. Tqde. {RydqRça é .tÍBIa .desint.egração da ordem imediatamente estabelecida, o mun.do é uma sucessiva construção e destruição. Ao contrário de remeter à identidade, a idéia de vontade de potência é a desautorização do
conceito de essência. Dizer que a essênciaé vontade de potência, é dizer que a essência(da vida, do mundo, o ser) é a impossibilidade de qualquer identidade; ou ainda, se é possível falar de fundamento, então o fundamento de tudo é a transfor-
mação, a mudança, a provisoriedade. Se vontade de potência pode ser relacionada a um princípio, é a um princípio de disso-
lução, pois vontade de potência é a afirmação da dissolubilidade, da volatilidade de tudo que vive. Se alguma coisa pode
ser afirmada como aquilo que é, essa coisa é o movimento, a transformação, o devir; o que é o mesmo que dizer: nada é, tudo muda, a essênciado ser é o não ser, a não essência. A genealogia, portanto, busca utilizar não a verdade, mas
a vida como critério de avaliação,a vida como vontade de potência: A falsidade de um juízo não chega a constituir, para
nós, uma objeção contra ele; é, talvez, nesseponto, que nossa linguagem soa mais estranha. A questão é em que medida ele promove ou conserva a vida. 33 Ao avaliar os valores moder-
30Gelzea/agia a mora/,!ivro 11, 12. 31.4/ém o óem e do ma/, $ 186.
':l#ugme/ztospósl#mos, primavera de 1888, 14(80).
3sAiémdo bem e da ma!, $ +
\-....#-
38
39
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
VIVIANE ROSÉ \
nos, a partir da relação estabelecida om a vida, Nietzsche apresenta sua concepção de niilismo. O diagnósticoda cultura mo-
li'c thc\.,
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p ~/ç: * ,I'*
. enquanto
afirma
este outro
mundo,
/lega seu antípoda,
este
+.... ... I'; 1(1mundo, nosso mundo.
derna revela que os valores humanos são niilistas. 0 que significa
responde. Mas este niilismo moderno, que ele chama de morte
Ao diagnosticar o niilismo, Nietzsche relacionadois momentos históricos distintos: a modernidade científica e filosófica, ponto de partida da crítica, e a racionalidadeclássica,
de Deu- 34 stá, há muito, enraizado no pensamento humano.
nas figuras da filosofia socrático-platónica e do cristianismo.
O niilismo, identificado na modernidade como a desvalorização
E na racionalidade clássica, com o pensamento socrático/pla-
dos valores superiores, tem, como solo fértil, como espaço onde
tónico, que surge a primeira forma do niilismo. Ao identifi-
se prolifera, a avaliação da vida a partir de valores superiores
car virtude e razão, Sócrates produz um ideal de vida marcado
niilismo? , pergunta Nietzsche no segundo fragmento da Von[a(ü cü potência. Que os valores mais elevados se desvalorizam ,
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vida. O niilismo nasce com a criação destesvalores superiores, que são desvalorizados na modernidade: o que fundamenta o niilismo é, antes de tudo, a negação da vida em nome de uma
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outra vida, de um outro mundo.
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instintivo, sustentando a distinção hierárquica entre pensamento e.corpo, entre ser e devir. Com a consideração da razão como instância suprema, a vida passa a ser submetida à indigna de ser vivida, propõe substituí-lapelo conhecimento verdadeiro. O corpo, este campo de batalha de instintos e de paixões, deve ser negado pela razão.
vida com a fantasmagoria de uma outra vida distinta desta A equação Razão=Virtude=Felicidade
Esta desvalorização da vida, portanto, Nietzschepercebe que não é privilégio da modernidade, da mesma forma que o
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tem sentido a não ser que domine e m nós um instinto de calú-
melhor do que esta.'s
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Inventar fábulas sobre um outro mundo diferente destenão
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avaliação. Sócrates julga a vida pela idéia. Considerando a vida
nia, de depreciação,de receio: nestecaso nos uíngamosda
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'vIEla superllalo11+façãoo que é consciente em detrimento do
outro mundo não é privilégiodo Deus cristão. Mesmo a ciência moderna está marcada por esta crença: Não há dúvida, o verídico, no sentido mais rigoroso e extremo, tal qual o prevê a fé na ciência, aPrma desfarfe zím oz#-
fro mundo que aqueleda vida, da naturezae da história, e
diz meramente o se-
guinte: é preciso imitar Sócrates e estabelecerpermanentemente uma /wz diznna contra os apetites obscuros -- a luz
diurna da razão. É preciso ser prudente,claro, luminoso a qualquer preço: toda e qualquer concessão aos instintos, ao inconsciente,
conduz
pczxa baixo.37
Com Platão, esta negação socrática das paixões, e consequentementeda vida, se configura cada vez mais explicitamen-
te. O que Nietzsche mais critica em Platão é a divisão dos
mundos: estemundo, como devir, como corpo, como pere-
l+Cf. Machado, Roberto. Deus, homem, super-homem , n: Rez/isto rffedon, '-...#
A gala cfê cla, S 344.
n. 89, UFM.G, !994.
'sCrepziscdosáao/os, 'A razão a ilosofia ,6.
CrePúsczodos ao/os, 0 problema e Sócrates , lO
'....../
40
41
VIVIANE MOSÉ
cimento, vai ser distinto de um outro mundo, como lugar da idéia, da alma, do pensamento. Esta divisão não apenas demarcou o lugar específico da representação, instituindo seu domínio, como submeteu a vida ao pensamento. Se com
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
Deus, que consolida a rejeição da vida e do corpo: o cristão aquele que já nasce culpado. Portanto, o outro mundo
nas-
ce com a racionalidade clássica, como mundo da representação, como mundo das idéias, para, a seguir, se constituir como promessa de um paraíso divino, oriundos do Deus cristão.
Sócrates a vida passa a ser julgada, com a teoria das idéias de Platão nasce um princípio absoluto de inteligibilidade, capaz de distinguir a verdade do erro, permitindo uma ascensão em
Nietzsche, é o processo de substituição de valores decorren-
direção ao bem e à verdade. Segundo Deleuze,38esta divisão
,!F! da llmaçlç :dç. DqJ.!'l:. Agyl:.gs.,calo.[çs supçlLores ser.ã.o
vem, como um filtro, distinguir a coisa mesma e suas ima-
substituídos por valores humanos: os .valores fundados no
gens, o original e a cópia. Mas a grande pretensão platónica, segundo ele, foi permitir, a partir da distinção do modelo, uma segunda distinção, a que permite separar o verdadeiro do fal-
absoluto, na.essência, serão substituídos pela crença na consciência, no sujeito. O que emerge na modernidade é uma nova
so, a cópia do simulacro. Q que a dialética platónica quer
do pelo julgamento humano, dado com o nascimento de uma
afastar o falso, assegurando o triunfo das cópias sobre os simulacros, e fundando, assim, o domínio que a filosofia reco-
razão consciente de si. O que marca a modernidade é o nasci-
nhecerá coma.$Êy,.o domínio da.representação. Mais ainda, : Platão , diz Nietzsche, é esta fascinação dúbia chamada
fundada em uma racionalidade igualmente autónoma, capaz
'ideal', que tornou possível, para as naturezas nobres da anti-
guidade, compreender mal a si mesmase põr os pés sobre a ponte que conduziu até cruz . O cristianismo, que, para Nietzsche, está em continuidade com o pensamento platónico, não somente mantém e reproduz o niilismo do outro mundo , como dá um passo além=
0 cristianismo é um platonismo para o povo .'o E o cristianismo que, com sua abordagem religiosa, espiritualiz a e divulga, infiltra, enraizaa moral niilista platónica. Ê o discurso assumidamente moralizante da igreja, fundado na idéia de culpa, materializada no martírio da crucificação do filho de jIDeleuze Gilles. Platão e o simulacro , in: Lógica do se/zlfdo. ão Paulo, Perspectiva, 000, p. 259. I'Crepúscu/o dos íao/os, 0 que devo aos antigos , S 2. OH/ém o bem e do ma/, Prólogo.
J.á,..Q.que caracteriza a modernidade, na perspectiva de
instância de avaliação: o julgamento divino vai ser substituí-
mento de uma subjetividade autónoma e consciente de si, de julgar, discernir, dirigir. É a razão científica moderna que mata Deus, substituindo os desejos de eternidade pelos pro-
jetos de futuro. Mas o niilismo, como vimos, não é privilégio da modernidade, ele nasce juntamente com a crença nas categorias da razão, presentes na filosofia desde Sócrates. A crença nas categorias da razão é a causa do niilismo: nós medimos
o valor do mundo por categoriasque se referem a um mundo inventado. Quando Nietzsche se refere ao niilismo como ne-
gação da vida, ele se dirige a toda história da metafísica construída sobre estespilares. A idéia de verdade, justificação de toda busca racionalista, implica uma avaliação da vida; falar de verdade é assumir a vontade de identidade, de ser, de
essência, e isto é negar o tempo em nome da eternidade, é negar a vida em nome da morte. Portanto, o outro mundo, presente na modernidade com a crença na verdade da ciência, com a crença nas categorias
V}VIANE MQSÉ racionais, seria um desdobramento do mundo platónico das idéias e do além-mundo cristão. É a atitude negativa com re-
lação à ida que Nietzsche identifica como fundamento de todo niilismo. O niil ismo nasce da negação deste mundo em
nome de um outro mundo , primeiro pelo mundo das idéias
de Platãoe pelo mundo divino cristão. Depois, na modernidade, com a negaçãodo mundo divino, o outro mundo vai ser uma promessa de futuro, construído pela razão humana. Se o niilismo moderno, como desvalorização dos valores \..../
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superiores, pode ser chamado de nii/esmoreafiz/o, o momento de instauração destesvalores, por trazer um primeiro modo
de desvalorizaçãoda vida, vai ser chamado de níí/esmo zqgafíz/o.O niilismo primeiro nega a vida em nome de outro mundo , depois reage contra este outro mundo mantendo,
no entanto a negação. O que esta continuidade do niilismo, \'h....
nas diferentes valorações, vai mostrar, é que a negatividade '\,
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'\. 'b«.f ,/
resulta não do conteúdo do valor, daquilo que ele explicita, mas da atitude mesma de valorar, que determina sempre um
lugara partir do qual se avalia, o lugar do bem e da verdade. Mas o valor da vida, diz Nietzsche, não pode ser avaliado. Toda valoração:da vida é, a princípio, um sintoma. «Juízos sobre a vida, a favor ou contra, nunca podem ser, em última instância,verdadeiros. Eles só possuem valor como sintoma. 4i E o sintoma dos valores, tanto modernos quanto an tigos, é a vontade de negação. A negação é a primeira manifestação do
niilismo, mas, mesmo em. sua segunda forma, o niilismo reativo, segundo pensa Deleuze,4z quando as forças reativas se voltam contra o princípio de seu triunfo , ou mesmo quando desembocam em um nada de vontade, momento extremo
''-....-'
+'Crepiíscu/o dos ídolos, 0 problema de Sócrates'
+zDeleuze,. Nfefzscbe a/í/oso/ia, cap. '% $ 9. :--,P'
44
NIETZSCUE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM da vontade de nada, no zzií//smopízssipo, é sempre a negação da
vida que prevalece. Mas o problema não está na negação que,
como veremos, é um componente da afirmação, ma s está na correlação de forças predominantemente negativa. Trata-sede
um império da negação.O niilismo é a lógicada negação, lógica interna da vontade de nada. São estesvalores que devem ser transvalorados, para que a vida possa ser afirmada. Sem inviabilizar a visão predominante em sua obra, de que .: o outro mundo teria n ascido com o platonismo e o cristianisl mo, Nietzsch.e aponta.para pm momento.arte.riQF da vontade
i..dç,B;e$!çêgl, de.pejo.de utro mundo estariapresente á no { nascimento.da lingpggem.,;foi, acima de tudo, o desejo hul mano de tirar dos eixos o mundo restantee se tornar seu l senhor ,43que impulsionou este processo de negação que teve 1:nício no nascimento da linguagem. Com os signos, o homem , não se contentou em deseg/zczr,le precisou acreditar que sabia, e construiu, em torno da crença no saber, um emaranha-
do significativo sustentado pela idéia de verdade. E esta verdade encontrada ,
a verdade da linguagem, que vai per-
mitir a construção do sofisticado universo conceitual que ,Nietzsche coloca em questão na modernidade. Com a linguagem o homem estabeleceu, ao lado deste, um mundo próprio, um lugar firme capaz de fornecer a estabilidade e a duração necessárias para sustentar a crença nas diversas manifestações
da vontade de verdade. 4. questão trazida por.Nietzsche é qu o homem, como um artista do verbo , não se conte.ntou com
a utilidade, dada pela simplificação e esquematização das pa-
lavras, e buscou desenvolver um emaranhado significativo que fosse capaz de substituir as coisas, a pluralidade. Para isto ele \l ütnalto, ctttasiado )ulKano, \ l ++lbid.
45
VIVIANE MOSÉ
NiCTZSCHE E A GRANDE POLITICA 0A LINGUAGEM
precisou esquecer que o que fazia era criar nomes, e passou a acreditar nos nomes das coisas como em verdades eternas .
orgulho
É a ficç4ç) dç cauespondência
mo saber sobre as coisas. Esta crença que, como veremos, nasce
entre as palavras e as coisas
humano, o desejo de se elevar acima do animal,
produziu a crença de que as palavras pudessem revelar o supre-
bale fundamental em que repousa a construção de um outro
do esquecimento, da dissimulação, da ilusão, foi o que permi-
mundo. Q. QutrQ.mundo.dos signos é a primeira ficção huma-
tiu a construção de um outro mundo. Ê a partir daí que co-
na. A linguage!=..É nosso. pr.jwe.iro outro mundo. A importância volvimento da cultura está em que nela o homem estabeleceu um mundo pró-
prio ao lado do outro, um lugar que ele considerou firme o bastante para, a partir dele, tirar dos eixos o mundo restante e se tornar seu senhor. Na medida em que por muito tempo acreditou nos conceitos e nomes de coisas como em aefernae per/Iates [verdades eternas], o homem adquiriu este orgulho
com que se ergueu acima do animal: pensou ter realmente na linguagem o conhecimento do mundo. O criador da linguagem não foi modesto a ponto de crer que dava às coisas apenasdenominações, ele imaginou, isto sim, exprimir com
meça a inversão: não mais o mundo do devir e da pluralidade,
mas o outro mundo estável dos signos de comunicação, o mundo da linguagem. É a partir destessignos que o além mundo platónico-cristãovai ser construído, mas o próprio universo dos signos é o lugar firme , que fornece ao homem o.yppulsçZ.pgr.a criação das ficções de desvalorização da vida. No Anl/cr/sfo, Nietzsche se refere ao mundo moral e reli-
gioso das ficções, mostrando que todo o universo de valores que nos cerca é um emaranhado de causas imaginárias. As causas, os efeitos, os seres, a psicologia, a teleologia, as ciên-
cias naturais esultamde um mundo de ficções. Todo esse mundo de ficções tem a sua origem no ódio contra o natural, -- contra a realidade -- é a expressão de um profundo des-
palavras o sup remo saber sobre as coisas; de fato, a linguagem é a primeira etapa no esforço da ciência. Da cre/zça za t/exdade /zcozztzndcz luíram, aqui também as mais poderosas
contentamento com o real. 4óNeste fragmento, Nietzsche
fontes de energia. Muito depois -- somente agora -- os houieDScomeçaram a ver que, em sua crença na linguagem,
real que permite ser avaliada como nada.47 1) spaço ficcional
propagaram um erro monstruoso.
supõe que seja sempre por uma ficção que o homem deprecia
a vida. A vida, representadacomo aparência, se torna tão iré o que torna possível a negação, é ele que permite a produ.ção de valores superiores à vida. .Portanto, a ficção é, em si mesma, um valor superior à vida, na medida em que permite
Segundo este aforismo de liz/ma/zo, dem.zsiadobzlma7zo, é no nascimento dos signos, n a possibilidade de representar,
de simplificar a pluralidade, que o homem encontra seu primeiro refúgio, sua morada, seu outro mundo . Foi somente porque o homem acreditou nas palavras como em verdades eternas que a crença no conhecimentose tornou possível. O
o distanciamentoa partir do qual a vida pode ser julgada. Se a vida não pode ser avaliada por um ser vivo, porque este está
implicado nela, e por um morto por razões óbvias, como diz Nietzsche em Crepz2sca/o os íao/os,48 ntão a ficção é o meio +t'0 Anfícrfsfo, $ 15. 4Wer Deleuze, G. Níefzsc/ie e a P/oso/ía, cap. V S l '*Crepúsc
/o dos üo/os,
0 problema
de Sócrates:
VIVIANE MOSÉ
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
capaz de permitir a construção do distanciamento necessário para que a avaliação possa se dar. Todo um mundo fictício, o mundo verdadeiro , vai serconstruído para servir de media-
A linguagem é nossa ficção primeira, é ela que permite o universo imaginário que vamos chamar mundo verdadeiro
ção para este processo de avaliação e negação. Mas toda ficção é uma invenção. Somente por esta invenção, por esta ilusão, pode a vida ser avaliada. O universo ficcional se ordena para o homem a partir da crença na palavra como verdade e atin..
ge, na modernidade,o sujeito autónomo, o sujeito moderno.
vigência de ficções lógicas, sem medir a realidade com o mun-
os sinais correspondam às coisas. E é o esquecimento do caráter fictício de toda valoração que leva à crença na verdade. Mas este esquecimento não ocorre de forma passiva; ao con-
do puramente inventado do absoluto, do igual a si mesmo, o homem não poderia viver .'9 Ç) problema, portanto, não está
trário de uma passividade, de uma ausência de memória, o nto consciência, uma fa-
em que exi$tarl!.ficções,mas em que estas icções, ao invés de
culdade atava, viva, necessária para a saúde psíquica. O esque-
A ilusão, a invenção, diz Nietzsche, são condições n ecessá'\...,,Ír
rias para a sobrevivência do homem, ou seja, sem permitir
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meio!.para: acQHodar,o mundo para fins utilitários (portanto, '
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Os signos são a nossa primeira experiência de duração; é a duração ficcional da palavra que fornece a crença em um mundo durável; por serem sempre supra-sensíveisos signos são um tipo de Deus. Mas os signos são produto de um acordo, de uma convenção. É somente com o esquecimento do caráter fictício dos signos que o homem pode acreditar que
'critélié) de verdade', isto é, da rea//c&zde .s' o invés de utilizar as formas como instrumento para tornar o mundo manejá-
cimento tem, para Nietzsche, um valor bastante distinto do
que e corrente. DFl;dF .q,!çgUpda. dBS.Considerações /nrempesf/uas, Nietz-
sche aponta o esquecimento como uma força plástica funda-
vel e determinável, os filósofos preferiram acreditar que aquelas
mental para a vida. É possível viver quase scm mcmória, elc
ficções eram a representação da verdade , que aquele mundo
diz, mas é impossível viver sem o esquecimento. Neste texto
de causas imaginárias era o mundo verdadeiro . Esta inversão, diz Nietzsche, somente pode ser sintoma de uma vida que
em que discute as vantagens e desvantagens da história para a vida, Nietzsche considera memória e, conseqüentemente, his-
degenera. jgD]Ênl:e o ódio çg!!g lj].]:jda pode ser cap?z de atri-
bglcao-.mundo..jDlggj!!briodas ficções o valor de verdade.. E esta yQntade.Megaçãa.ÇQJ!!g vontade;iiÉI subitituiçáo, que está ptlç$çnre,.naJinguagem«desde nascimento dos signos. O homem criador dos signosnão era modesto a ponto de aceitar que apenas nomeava, ele precisou acreditar que com as palavras adquiria saber sobre as coisas.
tória coisas que devem scr tanto afirmadas quanto negadas. Em outras palavras, lembrar somente é importante se a capa-
cidade de. esquecer for mantida. Tanto o sentido histórico quanto sua negação são igualmente necessários para a saúde,
tanto de um indivíduo quanto de uma civilização. Esta relação memória/esquecimento vai ser tratada de forma ainda mais
elaborada em Ge/zea/og/a a mora/.s' Ali, o problema vai ser pensado a partir de uma reflexão sobre a consciência. A cons-
'''-/'}
+vAlém o beme do ma!, $ 4. ,F''i Fragzzzenfosósturrzos, utono de 1887 a março de 1888, 14(153).
48
s Ge/zea/agia da ?piora/, 11, $
4g
.!
VIVIANE MOSÉ
NiCTZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
ciência é apontada como possuindo duas faculdades, a memória e o esquecimento. Nietzsche utiliza a imagem do estôma-
relho de simplificação, esseestômago psíquico, tem, na faculdade aviva do esquecimento, a garantia de uma boa di-
go, o 'espírito' se assemelha mais que tudo a um estomago ,sz
fixa as .im..
gestão. Nietzsche atribui a saúde psíquica a esta capacidade de fechar temporariamente as portas e janelas da consciência .ss A faculdade de esquecer suspende, por alguns espaços de tempo, a atividade da consciência dando lugar às funções
que fuQC.iQna
mais nobres para governar, prever, pressentir .sóAo..yê.lpl.!:
para se referir ao papel da consciência: ela digere , na medi-
da em que assimila ou rejeita, selecionando, simplificando, reduzindo,
processando.
A.gl29çi$!êçlç-.dç.lç.mbrar
pressões, prgdyZj!!çlg..!!!!!êLçgU3dê.dç.$çnçido.
çgn
pto.A partir
desse fundo as novas impressões que chegam não são sentidas, mas reconhecidas pelas marcas mnêmicas; o que termina
zar o..Slqyecipen,!q .$kJ:llçhç. hyçll:tSI,.agIR,..as IBsi.çêe.q..no
que.diz respeito à relação memória/esquecimento. :0 esqueci-
mento é a matriz onde a memóriavai ser cunhada a ferro
por produzir uma repetição, uma digestão do já sentido. Ê
fogo. Obrigar o homem a lembrar é a função de uma série de
a memória, portanto, que torna possível a promessa e, conse-
práticas de crueldade e tortura; produzir um homem que possa prometer é a função da memória. O esquecimento é, ao con-
quentemente, a responsabilidade e a culpa. Atravé! dg illgDé: !11}.oho!!!ç.m Jjjxa.as.leb,e-pi2ds-pcamete.[..Isto .ggnjf]ca ciue .a meqóÇia, ag,çgEgédg.d©.Êgg11ççi.111ç. lg,. qpe .é..uma .necessi-
trário, uma força de saúde, uma atividade primeira e primor-
dade, up.q força, uma forma de sallde,.é. ym prQ.duto da:.Wl= fura. CoJ e-homem uma memória?
da memória.
}iiç!!;$ç!!Ê,..Ê,..Duais-adiantei::gEêytle algo a fogo, pglg. que fique na memória: somente g.gu.emão.cessa dç cau$gz.do.t.fica
.tlqnleD..Bão ma pgs$iYidade,mas uma atitude. Mais do que
--«o
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iiâ''iiíéi;i8;iã:'.r O homem capaz de prometer, o homem de memória, foi cunhado pela crueldade e pela força. No entan-
to a memória não poderia impedir de uma vez por todas o livre curso do esquecimento.Como mostra Deleuze,s4 e a
dial, uma positividade, parcialmente uspensapela mposição .Esguqce.r. *o. cgréter
fjcçÍcig. .das representações
foi.para
isso, esquecer o caráter fictício e convencional dos signos, foi uma necessidade para que a linguagem pudessese consolidar, para que a comunicação pudesse se estabelecer.Diz Nietzsche em Introdução teorética sobre verdade e mentira no sentid extramoral : .'É graças à sua capacidade de esquecimento que
consciência procedesse somente da memória, haveria uma total inadaptação desseaparelho, já que produziria um encerramento na interioridade. Ê a outra faculdade, o esquecimen-
o homem pode chegar a crer que possui uma verdade. É esta
to, que, sem ter sido completamente eliminado pela imposição da memória, torna possível essaadaptação, abrindo a consciên-
advém., possam se sustentar. Trata-se, assim,. de yo.,êb8DdQDO
cia a novas impressões. O processo produzido por esse apa-
capacidade de esquecimento que deve ser posta em ação para que a linguagem da comunicação, e a verdade que dela da:ttiifé;ençãÉ Çm função de umahecéssidade de identidade
imposta, como veremos, pela vida em grupo, pela grega-
riedade. szÃ/éM do bem e do ma/, $ 230. s3Ge/ze#/agia a mora/, ii, S 2.
içGenea/agiaa ?nora/, 1,S l
s4Deleuze, G. Níe/zscbe e a #/oso/la, cap, iy S 2.
sólbid.
50
.
VIVIANE MOSÉ O problema que Nietzsche aponta, enfim, não diz respeito à produção de ficções, a questão está em que as ficções sejam tomadas como verdade. A ficção, em si mesma, assumida como
invenção, é afirtnação. Ou, ainda, a ficção não é uma falsificação, u .la mentira, já que mentira implica verdade e a própria ve-dade é uma ficção; ficção é invenção, é arte. E a arte
como perpétua criação/destruição,é própria do mundo, tanto orgânico quanto inorgânico. Como ver emos no próximo capítulo, já em 1873 Nietzsche concebe este processo artísti
\ - .
\
-
b,
U . .,.
mas porque não há ser nem coisas, senão na linguagem. As coisas como identidades, copo.unidades, somente exis-
tem.na linguagem.A palavra não mantém uma relação de correspondência com a coisa que designa, a linguagem não é
a representação do objeto. Mesmo os objetos não existem
de redução e ficção que marca os signos. A questão funda-
cípios. O alvo da crítica nietzschiana, desde aquela época, é a idéia de verdade, a idéia de que existaalguma coisa irredutível, primordial, idêntica a si mesma. Esta crença, por não encontrar referência no que Nietzsche mais tarde vai chamar de vida
mental, para Nietzsche, é que não há um sentido nas coisas a
como mudança, expansão,vontade de potência, termina por
ser representado no objeto. Ou melhor, não há sentido, apenas perspectivas, produto de uma correlação sempre móvel de forças. O mundo, diz Nietzsche, é diversamente /nferpreráue/, ele não tem um sentido que Ihe seja próprio, mas
se sustentar no mundo ficcional da linguagem. O problema
sentidos inúmeros, 'perspectivismo' .SP O signo é apenas uma
da verdade remete à linguagem; melhor dizendo, remete a uma
disposição, uma abertura, uma moldura vazada, capaz de con-
determinada relação que o homem estabeleceucom a lingua-
figurar uma diversidade de possibilidades,uma luta. Este é o aspecto afirmativo do signo: a afirmação de sua impossibili-
gem. A ficção dos signos foi construída para aumentar o do.'
sas, não somente porque é um acúmulo de metáforas mortas,
para o mundo, afirmando o fluxo, o jogo, a guerra como prin-
\-W./'
'\-.
das coisas. Mas a linguagemnão pode revelar o ser das coi-
concebe a ausência clc fundamento, clc identidade originária '
\XH'.'
no entanto, sustentam a crença em uma identidade originária
senão em função da palavra que os nomeia, que os identifica, os constrói.s8 A impossibilidade de correspondência entre as palavras c as coisas não rcsulta, portanto, apenas do processo
co, interpretativo, como fundamento do mundo, ou çnelhor,
\+r.
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
mínio do homem, para fortalecê-lo.Já a idéia de verdade nasce do esquecimento deliberado da origem fictícia dos signos, dos valores, das invenções. Se a ficção é própria da vida, a verdade é própria da vontade de negação da vida. A verdade é um
ser um signo afirmativo. Como diz o aforismo 54 de A guia ciência, o homem do conhecimento é um recurso para prolongar a dança terrestre . Então, elediz, continuo sonhando,
'h-
tipo de arte que se sustenta em negar as condições de seu nas-
mas agora sabendo que estou sonhando. Esta afirmação, trans-
'U''
cimento. A linguagem, sustentada na verdade da palavra é, com
posta para a linguagem, poderia ser formulada assim: conti-
--.,/'
isso, feita de ficções mortas, de metáforas que perderam o
nuo falando, mas agora sem acreditar na identidade subjacente
cunho e valem apenas como metal.s7São estas metáforas que,
ao que é dito, agora estou sabendodo caos de sentido que
b' '\-,.:./'
:L- ' '-.....,
:...:./'
s7Esc fos póstzfmos, de 1870 a 1873, Sobre verdade e mentira no sentida extramoral .
dade; ou seja, o signo destituído de identidade e verdade, pode
dos /ao/os, 'A razão na filosofia .
SPNietzsche,.Samt/fcbeWer&e, rífiscbe fudle a sga&e, erlim, 1980. Da qui por diante, KSA seguidos dos números de volume e página. KSA,12, 315
52
53
VtViANE MOSÉ
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
permanece em cada palavra. O signo perspectivado, vazado, reduto da vontade dc negação, a volt:ndc clc vcr(laclc. Mns não
mudança, presente desde o nascimento dos signos, vai estar, a princípio, a serviço de uma afirmação, ou seja, a simplificação (in lin8lin8cm não deixa dc scr lim po(lcroso inst tlmcnto
foi esta a relação que o homem estabeleceu com os signos. A crítica nietzschianada linguagem parte, portanto, segundo nos parece, da consideração de que a linguagem, desde seu
de expansão. A fragilidade física do homem, diante da exuberância plural da natureza, colocava em risco sua sobrevivência, e foi a linguagem, na medida em que permitiu o
nascimento, respondeàquilo quc a estrutura racional, nasci-
agrupamento, a reunião, quc possibilitou sua afirmação como
da com a filosofia socrático-platónica, vai ter como fundamen-
espécie, que garantiu sua perpetuação. Mas é exatamente esta
to: a vontade de produzir duração como forma de secontrapor à multiplicidade móvel que é a vida. É esta vontade de dura-
experiência de agrupamento que impõe a necessidade de identidade, de verdade. A identidade é uma necessidade da comu-
ção, atribuída ao pensamentoocidental desde Platão, que
nicação. A palavra torna-se conceito na medida em que se
Nietzsche percebe presente, também, no nascimento da lin-
estabelece como signo de comunicação. O signo gregário somente é um signo quando o é para todos. São as designações sociais que estabelecem pela primeira vez as leis da verdade. As palavras são designações uniformemente válidas e obriga-
esvaziado de sentido e verdade não pode ser, em absoluto,
guagem. É com a criação dos signos de comunicação que o homem produz sua primeira experiência de duração, e é esta experiência que vai sustentara crença na verdade, fundamento da racionalidade clássica. O que buscamos argumentar é que
a crítica nietzschianada linguagem emete não somenteao problema da gramática, mas fundamentalmente ao problema
dos signos. A gramática, como o conjunto de leis da linguagem, resulta de uma relação específica que os homens estabeleceram com as àlavras. Não a linguagem metafísica, a razão suas cale lvo final da crítica de Nietzsche, mas relacão mei o homem estabeleceu com a linguagem, 'e :+ categorias Se esta relação .mento des .'.:'-.
não existisse previamente na linguagem, é provável que o platonismo e o cristianismo não tivessem como se sustentar. É na relação de correspondência entre as palavras e ascoisas que reside o fundamento da vontade de negação, a vontade de verdade. Esta relação remete não somente ao platonismo e ao cristianismo, mas antes à gregariedade.
tórias. A linguagem é o signo da comunicação e do rebanho. 0 homem inventor de signos é, ao mesmo tempo, o homem que adquire uma consciência cada vez mais aguda de si pró-
prio: foi somente como animal social que aprendeu a fazêlo. 60 A vinculação entre linguageme consciência, feita por Nietzsche neste aforismo, traduz o mecanismo gregário que cada vez mais vai aprisionar a linguageme o pensamento. O que marca a gregariedadeé o nivelamento, a vulgarização, a identidade e a conseqüentenegaçãodas diferenças, das singularidades. A consciência é a internalização deste mecanismo gregário. 0 desenvolvimento da linguagem e o desenvolvi-
mento da consciência , diz Nietzsche, ainda no mesmo aforismo acima citado, andam lado a lado. Ou seja, a linguagem já nasce produzindo e, ao mesmo tempo, sendo produzida por este mecanismo de simplificação e redução, de diminuição. A
E com a palavra que o homem tem a primeira experiência
de duração. Mas a vontade de negaçãoda pluralidadee da
H gala iência, 354
VIVIANE MOSÉ
NIETZSCHE E A GRANDE POLITICA DA LINGUAGEM
linguagen se confunde com a consciência. E esta trama de
ria, portanto. estar a servic!! gç..gnp: afirmação ou de uma
clui a substancialidade do sujeito a partir da substancialidade da linguagem. O que a filosofia fez foi produzir esquemas de comunicação, centrada em uma linguagem gregária cada vez mais estruturada pelas leis da gramática. São as funções gramaticais que vão definir o pensamento. O edifício conceptual
.nega:ç.ãgda Vida-M.as.a.experiência
que marca o pensamento moderno é uma sobreposição de ca-
ferro qae Nietzsche chama de metafísica,estavontade de dura-
ção e verdade que se identifica com a própria cultura. ;&.DÊgaçãcLdafllui:alidade ue os signos perml tiram.podewu
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e u . w v +p' . n
ficcional da linguagem
parec.Ê.tçr indicado ao homem a possibilidade de negar, de UUP vez por tcldê!,.g !Uuliiplicidade, a instabilidade, a mu.
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.dança. Ao invés da afirmação da expansão diante da pluralidade, a linguagem se compôs como negação da pluralidade;
identidade, como sentido; Deus como unidade, causalidade, verdade; o sujeito como Deus: são algumas das sustentações
em outras palavras, a linguagemnão se afirmou como o que
destas camadas conceituais que a.genealogia procura explicitar.l
possibilitaria ao homem o aumento da capacidade de vencer
A auto-implicação dos valores, que caracteriza a malha:
o obstáculo, mas se colocou como a negação do próprio obstá-
conceitual do pensamento moderno, enreda o pensamento a tal ponto, que parece não ser possível fugir destas categorias. A identidade é considerada um fato, na medida em que é im-
culo, levadaa efeito atravésda ficção de negaçãoda plu \\d..J
madas que foram se condensando no decorrer da história. A: crença na correspondência entre palavras e coisas; o ser como
ralidade e da mudança. [gjgçãQúom.as.signos, mais.esp-ecilliçau.e.nçç, o çsq.tlçS.ilpep.to de seu caráter.metafódçg ç.pfk!)i!#ivp, guç ou4 homem deu início .H üqúwlu tu++«+ r' . .-l . ÀM' $pbq# Â=p.nAanabsoHbutoelâufKõçninqbgq,
f ao processo .quWlminou
+.+++q+n. rvplR+q \.w'+'rrqr '
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no niilismo reativo da.modernidade.
possível pensar sem ela. E se a identidade é um fato, também o é a verdade, o sujeito e assim sucessivamente. :lA comunica-
ção é necessária:para que a comunicaçãoseja possível, m-
f Existe, oculta na // g agem, uma mitologia filosófica que
põe-se que algo seja fixo, simplificado, preciso (sobretudo no
,,.,' l reaparece a cada instante, quaisquer que sejam as precauções l que se tomem. 't E a filosofia é, para Nietzsche, produto deste
que chamamos o caso idêntico). ': Somos capazes de duvidar de tudo, como o fez Descarnes, mas nos mantemos fiéis à cren-
; investimento. Õ.filosofia, desde seu nascimento, se sustentou
ça na identidade, na causalidade, enfim, na gramática. Não
: }na verdade da linguagem; é a identida de da palavra que vai ifundamentar a argumentação filosófica desde Parmênides. E ..\-: :la idéia de ser, nascida com Parmênides, que vai sustentar :.órbita em torno da qual circula o discurso filosófico. Tanto o
basta, portanto, desautorizar os valores, é preciso desfazer as
. . i l,serde Parmênides,como veremos,quanto o princípio de
substancialidade, a verdade. Desautorizar valores é, a princí-
.. , l ~ !
pio, desautorizar a verdade dos conceitos, mas quando a
identidade e de não-contradição em Aristóteles, vão ser definidos pela identidade da palavra. Mesmo Descartes, diz Nietzsche, se viu enredado nestas mesmasteias, quando con-
conexões que foram sendo produzidas entre os valores, é pre-
ciso desfazer esta malha autónoma que reproduz, na medida em que impõe, cotidianamente, a identidade, o sujeito, a
genealogiacoloca em questão as formações conceituais da linguagem, ela atinge a estrutura destes valores, a máquina de
\. ''«./' ::..,./ ':-..../'
.l 6iO ufa/ante s#a sombra,$ 11.
l;rapnenfos pósfK/?zos, utono de 1887, 9(60)
56
S7
VIVIANE MOSÉ
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
reproduzir identidade.E preciso, portanto, colocar .emquestão não somenteo caráter moral da gramática, mas a crença
gramática onde a palavra, o ser, a verdade, o sujeito são uma autoridade incondicionada.. O que a metafísica termina. por construir, em seu tecido de linguagem, é .um.sentido afastado l
na identidade da palavra. :!Ê;y!=Michel-ReyÓ!.ensa agçQçdogia como um deslocamento
radical
rpretação, ousgê,
gata-se de u!!!.dÊ$!Qçmenlo.-de.perspeclivH qqe, c.onsideÇando teilosofiaumcanjunto-de-signos,-umas:ede de .ficções e de clçnças, impõe a newssidade de.inscrever.seu processo de formação.
Sc o quc estáCM questãoé, antesdc tudo, o texto ntctafísico, exatamente no domínio do texto que a genealogia deve se dar. A metafísica se cómpâs como u m conjunto de códigos que foram
se condensando no decorrer da história, códigos cuja proveniência nunca havia sido posta em causa. A língua funcionou sem-
pre como um sistema nquestionável, como um artigo de fé, n entanto, foi exatamente no espaço permitido pela língua que os valores morais pu deram se constituir e se abrigar. E a crença na língua que de alguma forma sustenta a crença na eternidade dos
valores. 'n. crença na verdade dos conceitos e na transparência dos sinais é, no fim das contas, análoga ao reconhecimento de
valores morais ctcrnos. u É o texto metafísicoque, de alguma forma, sustenta em suas entrelinhas a instância moral, mas também religiosa. E..tlHce.sentido que.a.gençqjogja.tem.po!«çspaço prJvilçgiado..aJíngua;:é no domínio 4o sigilo que deve se realizar
o gesto de ascçBgão, enealógica, signo que deve ser decifrada
como um sintoma. ê,.aji.p,:jogar privilegiado da destrui$êp. genealóg!!$..B3.medida em que. io çertice do proêesio dq iaiâiização, de çglHtituição a identidade. Ê preciso, portanto, pâr a claro este sistemade crenças, fundado, desde sempre, em uma lógica da identidade; uma Rey, Jean-Michel. 'A genealogianietzschiana , f Hislórfa da #/oso/la, vol.
de qualquer inscrição, de qualquer perspectivação, sentido que, por sua vez, permite toda a série de enunciados que genealogiadeve, ainda, desvendar. Ou seja, desconstruir o edifício conceitual, o emaranhado de valores morais que a modcrnidadc sustcnta, implica, no fim das contas, uma desconstrução cla pcclra, do ntatcrial com quc este edifício foi construído, e este material é a linguagem. .$ãp.!g!!!Ênliç.a.bn:... guagem metafísicaLnlg!.g.m.ç.taf$ig«çlg-Jlngyggçnb..gy.!11131.!
vohtãatl.'aíaiiração.presente .em.toda palavra. É este o alvo último. dQ,gençaIQgia,capaz .de permitir.a negação.da .nega:. ção, a tlqnsvaloração.dos valores. O que queremos argumentar, enfim, é, primeiramente, que a genealogia somente pode ser levada a efeito se, antes de tudo,
for uma genealogia da linguagem. E, a seguir, que somente uma crítica corrosiva da linguagem pode permitir uma lingua-
gem afirmativa, ou seja, a afirmação da linguagemdecorre da compreensão de sua negação constitutiva. E, por último, que
a crítica da linguagem o ponto culminantede qualquer genealogia,ela é um dos alvos cruciais da guerra contra os valores, capaz de permitir a transvaloração. Portanto, o processo de transvaloração exige, para sua consumação, uma genealogia da linguagem.
Uma outra possibilidadede argumentar a favor da importância da linguagem para a transvaloração encontra-se quan-
do tentamos entender o sentido que Nietzsche dava a estes termos. O tema da transvaloração somente aparece nos últimos livros de Nietzsche, Crepz2sczí/o os z'2o/os, cce -Homo
3, org. François Châtelet, 1979.
O Ánficrlslo, mas nunca é explicitamentetratado. Como vi-
ü$1bid., p. 215.
mos anteriormente,
transvaloração aparece em Ecce homo,
VIVtANE MOSÉ
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
vinculada a uma grande transformação, a uma batalha decisiva contra os valores , a uma obra de destruição . Conside-
bém a forma como Nietzsche se auto-apresenta.Ecce Homo, Nietzsche, é o anticristo. E Pascual cita, ainda, alguns frag-
rando esses três últimos livros de Nietzsche, não é difícil afirmar que o cristianismo é visto por ele como um dos maio-
res alvos de sua batalha decisiva . A moral cristã é o que, antes de tudo, deve ser transvalorado. Em Por que sou um destino , temos no imoralista,
i..
destruidor par exce//anca ,
:\...,.. '
ventou uma alma para negar o corpo. Se referindo ao cristia-
tzsche não leva ao Anticristo , diz ele, não leva a parte algu-
nismo, diz: 0 que me separa, o que me põe à parte de todo
O que significa dizer que a crítica mais contundente
o resto da humanidade, é haver descoberto a moral cristã. (...)
de Nietzsche, a transvaloração dos valores, é uma genealogia do cristianismo, que trata não somente de sua crítica, mas de
explícita vinculação da transvaloração à negação instaurada
'\.#
ção do mundo, uma difamação que permanece na modernidade. A morte de Deus não elimina a moral cristã.
\\..
'
Outra referência ao cristianismo, como fundamento dos valores de negaçãoque devem ser destruídos, é o fato de O A/zficrisfoser apontado por Nietzsche como o primeiro livro da transvaloração. Franz Overbeck, que encontrou os manus-
''-......-''
\«..J''
::........''
'-.../
critos unto a N:ietzscheem Turim, diz a Peter Gast qual o título deste último livro: 0 Anticristo -- transvaloração de todos os valores .'s E diz ainda: da obra de transvaloração Nietzsche não completou mais do que o primeiro livro. Sanches Pascual, em sua introdução ao A/zticrislo, compara
homem, Nietzsche, o anticristo. Se o pensamento de Nie-
usemcarta de 4 de fevereiro de 1889, citada por SanchesPascual na introdu ção de EI A ffcrlsfo, Alianza Editorial, 1997.
:.-/'
60
''..:..:. :'\.
Uma das maiores eferênciasao tema da transvaloração, feita por Nietzsche no último semestrede 1888, é um plano de trabalho com este título onde constam 12 subtítulos, dos quais seis são literalmente capítulos de Crepzísczz/o os z'do/os. Crepz2scu/o os z'ao/os,diz ele em carta a Peter Gast, é uma
'
.::..-
}l:-'
espécie de iniciação, algo que abre o apetite para a minha transvaloraçãodos valores . Neste livro, Nietzsche afirm Deus como um conceito contrário à vida , como uma condenação da vida. 0 conceito 'Deus' foi até aqui a maior ob/eção contra
a existência...
responsabilidade
em Deus:
Nós
negamos
somente
Deus,
negamos
com !sso redimimos
mundo. '* A negação da causalidade de Deus é a única forma
de restabelecera inocência do devir, diz ele, na medida em Ibid. õzEstcúltimo plano estápublicado, ainda scgundo Sanchcs Pascual, na Intro-
\-,'
'-:;=i:
sua superação.
título deste livro ao título de Ecoa Fiomo. Ecce Homo, eis o homem , que, como se sabe, é uma referência a Cristã, é tam-
'k*..d'
Anticristo. Portanto, segundo Sanches Pascual, estes dois últimos livros de Nietzsche se conectam em uma única função: eis o homem, o imoralista, a transvaloração que se torna
pela moral cristã, é ela que instaura e faz proliferar a difama-
''-../'
antiasno por excelência, e, portanto, um monstro da história universal; eu sou, dito em grego, e não somente em grego, O
aqueleque negaa moral cristã, a moral da decadência,da antinatureza,que ensina o desprezo pelos instintos, que in-
A cegueiraantc o cristianismoé o crimepar exce//e/zce -crime contra a vida. Em Ecoa homo, portanto, existe uma
\--...'
mentos póstumos nesta mesma direção, entre eles: Eu sou o
dução ao CrepúscK/o os i'do/os,Alianza Editorial, livro de bolso número 467, P. 12-13.
CrepúscH/oos 'ao/os,Os quatro randes rros ,S 8.
61
VtVIANE MOSÉ
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
que é a negação de todo princípio, de toda causa, e de todo
por Pierre Klossowski, em seu livro N/efzscbe e o cúcz//oz/íclo-
fim. No entanto, neste mesmo livro, Nietzsche faz uma de suas
so. Segundo a apropriação que fizemos, e que vamos apre-
afirmações mais incisivas: Temo que jamais mataremos Deus,
sentar no último capítulo deste trabalho, é a inserção de um
posto que ainda acreditamos n a gramática.
novo princípio de interpretação do tempo que vai permitir uma nova relaçãocom o pensamento com a linguagem. fundamentoda linguagemé a relaçãometafísicado homem com a vida. Esta relação decorre da indigência, da grega-
Deus não parece ser,aqui, somenteo Deus cristão, já que a gramáticaé anterior ao cristianismo.Deus é a representação da identidade, da unidade, da duração, presente na pala-
vra gregária, no ser, no sujeito, na causalidade. 0 erro de confundir o espírito como causa com a realidadesE torna-lo medida da realidades E chama-lo Deusa '9 Considerar o espí-
rito como causa é considerar a von tade, o eu, a consciência, o sujeito como ser, como Deus, como causa. A medida moderna da realidade é o SLljeito. Deus tornou-se o sulfito gramati-
riedade, do medo que terminou por produzir o Deus cristão. O princípio de identidade, como fundamento do ser, de Deus, do sujeito, nasce da fraqueza e do medo do homem diante da vida, e se sustenta na identidade convencional da linguagem.
E a identidadedo ser que a gramáticavai ter como função mantcr c reproduz.ir. E ncstc sentido quc Deus não morre
linguagem destituída da identidade e da causalidade do sujeito poderia ser capaz de afirmar a vida: este parece ser o fun-
enquanto acrcclitluinos na gramática. Mas desfazer a crença na identidade implica uma mudança nas correlações de força do pensamento. Para Klossowski, o eterno retorno é pensado
damento da transvaloração dos valores, que consumada a
como a instauração dc um novo Deus, de uma nova chave de
morte de Deus.
interpretação, capaz de mudar o eixo da linguagem. Mais do
Uma linguagem destituída de identidade, gregariedade, niilismo, sustentandoe sendo sustentadapor uma correlação
que um simples conteúdo formulado, a afirmação do eterno
afirmativa de forças, somente pode ser pensada, em Nietzsche,
sos metafísicosque a gramática reproduz. Nietzsche formu-
como produto de uma nova escritura. Em outras palavras, uma linguagem afirmativa ainda estaria por ser inventada. O pró-
lou um pensamento que é capaz de impossibilitar a identidade,
cal, o princípio da ação, a causa, a idcntidadc. Somenteuma
prio Nietzsche instituiu, ou buscou instituir, um domínio pró-
retorno, como experiência vivida, representa o fim dos recur-
a finalidade, a causalidade,o ser. Esta nova ficção, o pensamento do eterno retorno, quer fazer um combate contra a
prio para sua escritura, utilizando a paródia, o paradoxo, o aforismo, o poema, recursos, sem os quais, sem dúvida, seu pensamentonão teria sido possível. Recursos que foram, in-
identidade do Deus cristão, representação maior da metafísica.
clusive, adorados por uma boa parte dos pensadores contemporâneos. Mas a perspectiva mais incisiva, segundo nos parece,
u/f/ocasDez/s. Se a interpretação do tempo como um eterno retorno fosse instituída pela cultura, o signo do círculo e não
capaz de permitir uma nova linguagem, vem da leitura feita
o signo da identidade seria o contorno de toda linguagem, de
Plbid.,tem 3.
Para Klossowski o que Nietzschequer instaurar é a batalha entre o Deus das identidades,
o Deus cristão, e o cêrca/ws
todo pensamento. Menos do que isso, todo homem que afirma o eterno retorno tem no signo do círculo o contorno de
VIVEANE MOSÉ
NIETZSCHE E A GRANDE POLITICA DA LINGUAGEM
seu pensamento e sua linguagem. Em um mínimo fragmento
não possível esta mudança nos valores. Nos importa apontar esta como uma interpretação bastante próxima do pensamento, do prometonietzschiano, e chamar a atenção para a necessidade de pensar esta possibilidade.
de instante, sou capaz de dizer meu nome, acreditar que te-
nho e sou estenome e, simultaneamente, cessar o caos de sentido subjacente a ele. Como microcírculos infinitos, o pen-
:'
samento simultâneo é capaz de recuperar todas as possibili-
Relacionar o problema da linguagemcom o problema do
dades c .e esta identidade nome produziu, para chegar a este
conhecimento, mostrar a vinculação da linguagem com a vonta-
resultado, a estesigno. Eu posso manter a linguagem, com seu
de metafísica de negação da vida, argumentar que a metafísica já se encontra presente na linguagem desde seu nascimento, apontar para a necessidadede pensar outras possibilidades d
.'
conjunto de signos, desde que possa blazeremergir, em cada
'ÜÜÜP'
palavra pronunciada, o jogo de for ças que deu nascimento .J \....
linguagem. É como recuperar todas as identidades que existi-
linguagem, é o objetivo deste trabalho. O. que buscamos não é,
ram em mim para que eu possa ser esta que sou. E por isso que o signo do círculo deve ser inserido como fundamento
portanto, apresentarum mapa ou a trajetória do problema da
da linguagem. Sem identidade, não tenho onde me sustentar,
me satisfazer,então não posso me contentar com nenhuma
':
solução, finalização, sentido, e me resta a sustentação na ex \-... ''
,./
pansão infinita.das forças, na vida como vontade de potên-
cia, como eterna superação.Portanto, o fundamento do pensamentonão pode ser um ponto, um átomo, um sentido, mas um eterno einfinito círculo, ou círculos dentro de círcu-
'.-:;.!':-
.': '.::
linguagem na obra de Nietzsche. Nossa questão não diz respeito, portanto, à interioridade do tema, mas a sua exterioridade, ou se)a, toda nossa tentativa de pensar a linguagem encontrase inevitavelmente vinculada ao problema do conhecimento,
do valor da verdade, e conseqüentementea transvaloração. Não se trata de uma genealogia da linguagem, trata-se da relação genealogia, linguagem e transvaloração.
los infinitamente. O signo do círculo é o signo que não detém
./
'-.
. « :. '.
'
o movimento, é por isso que não permite a crença na identidade. O sentido do círculo como fundamento é a ausência de
fundamento e sentido, é o eterno movimento. Em suma, a afirmação do tempo como um eterno retorno pode ser considerada a afirmação que aponta para a trans--...../'
valoração já que afirma a substituição do Deus das identidades
''«.../
pelo Deus do círculo, na medida em que, pela interpretação, pe-
la criação, institui um novo código, uma nova força, no ',...../'
-....g' \--./'
campo de batalhados valores. Nosso objetivo, aqui, não é apresentar o resultado desta luta, ou seja, não n os importa
avaliar a eficiência e o resultado desse argumento para a transvaloração.Nem mesmo entramos no mérito de ser ou
:'.../
64
:l:ilil
PARTE i A palavra, a verdade, as forças
CAPÍTULO A palavra como verdade
Como vimos no capítulo anterior, a idéia de verdade é o cen-
tro da rede de valores que Nietzsche busca desautorizar em sua genealogia: não são as verdades que devem ser colocadas
em questão, mas o próprio valor da verdade. O alvo da transvaloração é permitir que os valores recuperem sua mobilidade, a partir da desautorização de toda e qualquer cren-
ça na verdade como princípio originário, como fundamento, como ser. O que se busca :féihsiãütâr: é a capacidade criativa;:
e; portanto, móvel dos valores No artigo Introdução teorética sobre verdade e mentira no sentido extramoral , escri-
to em 1873 e publicado postumamente, Nietzsche vai tratar do ploblem4 dp verdadea partir de tina cohéideração sobro
dade e, icção, c.onhecimento arte, pehsad;àa partir de uma àüaliàçliá díi piila+fà. Cll+mando a atenção pára o asp:ccçg convencioníil :é fiéunltivó da linguagem, Nietzsçhf yai apç)n:tàt' para o câráter ficéibúàl:qilé toda-crença ná verdade encer-
ra é ;escóódé: Mais do que isso, Nietzsche vai atribuir toda manifestação, tanto orgânica quanto inorgânica, a esta ativi-
dade ficcional, estética, metafórica. A invenção, a criação, pensada algumas vezes como uma atividade interpretativa contínua, e não a verdade, é própria de tudo que vive. A idéia
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VIVIANE MOSÊ
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
de verdade somente manifesta a necessidade de entrar em
nomear. Para que a linguagem se tornasse possível, ou seja, para que o homem aceitasse e relacionar com o conjunto de
acordó{ foi esta necessidadeque determinou a relação que o :: homem estabeleceu com a palavrâl
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vras nao remetessemàs coisas, mas a outras palavras: Se a palavra fosse apenas o rastro de uma experiência vivida, se
que são as convenções da linguagem? As designações e as coi-
indicasse, pela via do signo, à pluralidade móvel que Ihe deu
sas coincidem?
origem, o estatuto da palavra estaria comprometido. O ho:
Cada palavra torna-se mediatamenteconceito pelo fato de,
ltistnmciltc, ão servir p;tran cxl)criênci:torillinll; úitic;t,
.
signos da linguagem, como representação das coisas, foi preciso estabelecer uma relação com a linguagem onde as pala-
É a avaliaçãdda palavra, como unidade mínima de signo-: ficação, que a reflexão de Nietzsche sobre a linguagem tem' como alvo naquele textos O que é a palavra, pergunta ele, o
mem, a todo instante, perceberia que a identidade da palavra não poderia corresponder ao universo infinitamente móvel e múltiplo Liascoisas, c a palavra;não sc tornaria possível, a nã(i
absolutamente individualizada, à qual deve seu nascimento, isto é, como recordação, mas deve simultaneamenteservir para inumeráveis experiências, mais ou menos análogas, ou seja, rigorosamente falando, nunca idênticas, e só pode convir a casos diferentes. Todo o conceito nasce da identifica-
devo remctcr, unicamente, ao universo de sinais.:Dito de ou-
ção do não idêntico.'
tra maneira, as palavras não se relacionam com as coisas, mas
ser como magia ou como anel Ao contrário, a condição dç existênciada linguagem, como um sistema de signos de co. municação, é o esquecimentoda plutalidàde, e toda palavr
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Ao de iunciar a palavra como conceito, Nietzsche explicita:
a função valorativa de todo nome, de todo éonceitQ: Con: ceituar é simplificar, reduzir, então conceituar, assim como
vras querem.di.zer..!!!na palavra .deve remeter sempre a outra
valor. E o valor implicado em todo e qualquernome, em todo
palavra, como um efeito cascata que nunca atinge o corpo) as sensações, os sentidos. A linguagem, desde seu nascimento, existe como uma interpretação, uma valolêçjg çlorêlgulgyçll
e qualquer conceito é a identidade. Nomear é impor identi-
o afastamento.do corpo, .o esquçciÚçi$Q.çlq!..!Êpqgções.do
dade ao múltiplo, ao Move!, é forjar cima unidade que a pluralidade das coisas nãó apresenta.lA palavra, por juntam
çlevir, mâs que esconde as condições deste n.ascipenço: qugnf
coisas distintas em um único signo, se sustenta na negação dã diferença. O fundamento da crença na identidade é o universo convencional e, em última instância, moral da lihÉuagem.
as coifas: A linguagem gregária é um artigo de fé.
Uma outra questão, apontada pelo texto anterior, fala da palavra não remeter, pela via da recordação, àquilo que quer
hà identidades Sem esquecer a pluralidade sensível que gerou
representar, é escolher, ressaltar, rejeitar; nomear é atribuir:
70 Sobre erdade e mentira no sentido extramoral' \w'' \,..J.'
com o universo significativo das próprias palavras,ou seja, as palavras se relacionam cóm aquilo que está dito que as pala-
72
do sustenta a crença na correspondência entre as palavras e
Fói graças à sua capacidadede esquecerque o homem cop$egtiiü produzir este sistéina de simplificação, esta crença
a palavra, o homem não teria chegado a concluir que a identidade forjada pelas palavras pudesse corresponder efetivamente às coisas. E sem acreditar nesta correspondência 73
VIVIANE MOSÉ
NtETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
linguagem não teria sido possível. Tão exatamente como uma
fundada na identidade. A vida gregária necessitado acordo,
folha nunca é idêntica a uma outra, assim também o conceito de folha foi formado graças ao abandono deliberado destas características individuais, graças ao esquecimento destas ca-
a idéia de identidadeé a sustentaçãodesteacordo. É este primeiro passo para a obtenção da idéia de verdade: :i!:il:'
racterísticas. 't O esqueciíhento;como vimos no capítulo
Quer dizer que agora está fixado o que doravante deverá ser
anterior,'2 compõe-se como uma atividade, ou seja, como uh :: mecanismo colocado em ação pala necegsidàdeiMais do que
pe?zZade, que quer dizer que se encontrou uma designação das
uma ausência de memória, o esquecimento é uma positividade,
linguagem fornece, inclusivamente, as primeiras leis da verda-
necessáriapara a sobrevivênciado homem. Esta crença na
de: porque nasce, aqui, pela primeira vez, o contraste entre
identidade que a palavra instaurou só se tornou possível por esta faculdade humana do esquecimento. E o esquecimento, a inconsciência, a ilusão, a dissimulação como necessidade que
coisas uniformemente válida e obrigatória, e a legislação da
verdade e mentira.74
Quando o homem cria o sistema de códigos da linguagem
se encontram no jogo de forças que deu nascimento à palavra. É nestesentidoque a hnçãó dabalavra é esquece:r, + conder a pluralidade qué liié:deu i)i:agem:. o contrário de
é quando funda, também, as primeiras leis da verdade. Vetdêde é ptjlizar córretamente QScódigos, é o;bedecera esta,: çgqvençqQÉ: a crença na correspondência entre os dignos e:
dizer, sua função é mascarar, ocultar, esconder. O que a iden-
as ço+sqs,dada pela,necessidadedé i:iiútitlicação imposta pelos
tidade imposta por cada palavra mascara é a impossibilidade
de fixação e sentido, de ser, de verdade. Uç+lizàrós $édigog!
grqbo, qye vài fótüecer a primeira distinção entre verdade e , : rnçiptira: 0 mentiroso faz uso das designações álidas, as
da linguagem é,:de alguma força, pegar,é ®uhdÓ, éó$;o tç®:+
palavras,para fazer com que o irreal pareça real: diz, por
po, como devirgO sistemade códigos da linguagem,que nas-
exemplo, 'sou rico', quando, para o seu estado, 'pobre' seria
ce com a necessidade de comunicação imposta pela vida em
a designação coFretâ. 's É a imposição da comunicação que exige uma designação das coisas uniformemente válida e
grupo, é o fundamento de toda metafísica.
Ao afirmar que a palavra parte da identificação do nãoidêntico, Nietzsçhe submete a linguagem à comtinicáção:; Esta
obrigatória .7ó Foíj portanto. a Partir;.da linguagSp!.glçgarlg qye g;h:Qpe.mcon$truiil ó É4iàdigúá ini:+ilt5réfàtivo;4a erda-,
idéia que apareçe em textos da década de 1880 e que tratare-
de:jl$(iÚçht:ena linÉuàgeú:â idç+iitidádé á ++fd44éiãÓ Óóssíf
mos no próximo capítulo, também aparece esboçada nesta época. 0 homem,por tédio e por necessidade imultaneamente , diz Nietzsche, quer existir socialmentee gregariamente. 73E esta existência social que exige a linguagem
vens. 4às q lihguàgemé tiúà iiõh+ençãó, uh àéóidói PQ! tias de tódàcrença há idéhtidàdé ékisté üha sóbrei
zt Sobre verdade c mentira no sentido cxtramoral.
ç)$içÕ0:4ç , Cahadàs, trapspQ$ta$ çm y;niV: }tsós distintos. Ai: pa14yta, CQlno resultado de urna seqüênéiá de interpretações, ;:: 7+ Sobre vcrd;ldc c mentir;} no sentido cxtramoral zçlbid.
'zCf. p. 49.
zólbid.
7-11bid.
74
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VIVIANE ROSÉ de avaliações, de metáforas, nasce de uma sequência de trans-:: posições, esquecidas enquanto tais, e condensadas como um conceitos,;Osconceitos, assim como as palavras, são resíduos de metáforas, são metáforas mortas, fixadas pela necessidade de identidade.: O processo de produção da pala vra é um processo de afastamento, de distanciamento e negação da vida: O que é a palavra? A representação so nora de uma excitação
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nervosa. Mas c oncluir de uma excitação nervosa para uma causa exterior a nós é já o resultado de uma aplicação injustificada do princípio de razão. (...) Primeiramente transpor uma excitação nervosa para uma imageml Primeira metáfora. A imagemde novo transformada em som articulados Segunda metáforas E de cada vez um salto completo de uma esfera para outra esfera nova e totalmente diferente.
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Tra..apor uma excitaçãonervosa, decorrente das impres' sões da vista, para uma imagem é uma metáforas Ver é sintetizar esta diversidade de impressões em uma imagem, é criar, através da simplificação, esta imagem. A seguir, transp.or umã imagem para um som é dar um salto para uma esfera córnpleü temente distinta: segunda hetáfóra. :E fmer coiréspóüder a;
este som um universo específico de sentido é ainda outra metáfora, que implica identificar coisas que não têm identidade. Além de tudo, todo este processo metafórico, que tem como função a produção do sentido, é mediado, necessariamente, pela memória. Mas mesmo a memória está submetida a esta força criativa: É em todo caso alguma coisa de arfÊfíco esta produção de formas com as quais alguma coisa entra
para a memória: ela disfi/zge tal forma e assim a reforça. Pensar é um discernir ,'8 diz Nietzsche em um outro fragmen-
NiCTZSCllCE A CnANDt POLITICA DA LINGUAGEM
to da mesma época. A memória não guarda passivamenteos ' dados; ao distinguir, ao reforçar, ela interfere. O que a me-: ória armazena não é exatamenteaquilo que chega a dai senão:aquilo que distingue.*Apalavra, assim como o concei. : to, portanto, resulta de um jogo de abstrações e de crenças,
resulta de nossa capacidade e necessidade não somente de transposição, de invenção, mas de afastamento, de negação, de esquecimento.
A questão da metáfora, posta por Nietzsche neste texto de 1873, parece se referir especificamente Aristóteles. 'n. metáfora , diz Aristóteles na Poéf/ca,79 é o transporte a uma coisa de um nome que designa uma outra, transporte quer do gênero à espécie, quer da espécie ao gênero, quer da espécie à espécie ou segundo a relação de analogia. A metáfora é UM: transporte que se dá entre dois termos, duas palavras, onde o sentido de uma é atribuído à outra.:;Este transporte é efetuadQ. pór semelhan ça, ou seja, é atrqyégda percepção de uma semeIháhçá éhtié duas coisas diferentes que a metá11ora ode se dar.
Então a metáfora, se utilizando de uma semelhança, identifiü: ca coisas distintas. É neste mesmo sentido que Nietzsche utiliza
o conceito de metáfora, como transporte, como transposição,
como identificaçãodo não-idêntico.Mas se a metáfora eM Aristóteles tem UH uso específico e circunscrito ho interior: : da linguagem, para: Nietzsche a metáfora é o fundamento de
tôda lihgüíigem. Segundo Ricoeur,: em A mef(abra z/iz.,a, metáfora em Ari$tóteles pertence a dois domínios, a retórica e a poéticas A
rççéricá, como uma técnica da eloqüência, tem como função engendrar a persuasão. O lugar retórico da metáfora,80que
''-.' 77lbid. '.....P:
7 ;iagmenfos pósf#mos,verão de 1872 a início de 1873, 19(78).
)jca. 1457
b.
pipa. Porto, Rés Editora, 1983, p. 67.
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76
77
VIVÊANE MOSÉ
NIFTZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
terminou por se reduzir à arte do bem-dizer, é a transposição a serviço da clareza, do calor, da amplitude, da conveniência.
da verdade. Mas é no domínio da poéticaque a metáfora pode
Por ser um transportesumdesvio do uso;corrente, a metáfora ' permite, ainda, um ar eitranhó , ptódtizindo admiração e
guagem
intéreééé:Esta é a função propriamente retórica da metáfora: figura de linguagem a serviço da eloqüência. Já o lugar poéti-
co da metáfora resulta de uma atividade mais complexa. função do poema é não somente a imitação, mas um desloca-
mento para o alto, uma elevação, na medida em que representa os homens superiores aos da realidade. Se referindo à imitação das melhores ações, a metáfora poética participa da
dupla tensão que caracteriza a imitação (mz/mesas)oética: submissão à realidade, como cópia, e invenção fabulosa, como composição dos homens melhores do que o são na realidade.
Esta dupla tensão, diz Ricoeur,
derada abstratamente-- isto é, fora desta função de refea metáfora
esgota-se na sua capacidade
Quando Nietzsche se refere à palavra como metáfora, ele parece estar utilizando o conceito aristotélico de metáfora contra o próprio Aristóteles. A metáfora não é própria da poesia ou da retórica, ela é a matriz de toda palavra. Quando
Aristóteles circunscreve um domínio próprio para a metáfora. ele está desconsiderando o fundamento metafórico da lin-
guagem. Nietzsche, ao contrário, chama a atenção para a atividade poética presente, não somente em todo discu rso, em
toda linguagem, mas em tudo que vive. E é exatamente desconsideração desta atividade poética de toda manifestação
de vida que permite ao homem se mover em direção ao conhecimento verdadeiro.
constitui a função referencial da metáfora em poesia. Consirência --,
ser positivada, fora deste domínio, se perde nos jogos de lin-
de
Ailusão
e não a verdade é a condição
de sobrevivência
do
homem: Vivemos, graças ao caráter superficial de nosso intelecto, numa ilusão perpétua: temos então para viver necessi-
substituição e dissipa-seno ornamento; condenada à errância,
dade da arte a cada instante.
perde-se nos j ogos da linguagem.*'
do intelecto. Esta arte, no entanto, a que Nietzsche se refere
E através da i:nvenção poética da metáfora que se torna
A arte é condição de existência
insistentemente naquela época, não é a arte dos artistas, a arte como instituição e como obra, mas uma atividade propriamen-
compor uma representação mais essencialdas ações humanas;
te criadora, uma força artística presentenão somente no homem, mas em todas as coisas. Esta atividade estética não
o seu modo próprio é o de dizer a verdade através da ficção,
resulta de uma escolha, não é produto da vontade, mas consiste
da fábula, do mito trágico. 8z A metáfora poética utiliza a fic-
no movimento próprio do mundo: 0 processo artístico
ção, a invenção, como forma de atingir a verdade. Portanto, a função poética.não somenteaceita, mas se sustentanesta
fisiologicamente absolutamente determinado e necessário ,8'
possível apresentar o que é essencial. 0 objetivo da poesia é
capacidade de invenção da metáfora, uma invenção a serviço Kilbid., p. 56. Kzibid., p. 20.
diz ele. E, em outro momento, a fisiologia superior certamente compreenderá lá, em nossa evolução, as forças ar''Frag/nenfos pósfu7}zos, erão de }872 a início de 1873, 19(49) H-Ibid., 19(79).
/'
místicas, ão só na evolução do homem, mas também na do
fundo das coisas não é senão metáfora, transposição; em ou-
animal; ela dirá que o artístico começa também no orgâni-
tras palavras, não há um fundo para as coisas, nem mesmo
co .8s Esta atividade instintiva, força artística criadora de fic-
coisas, senão perspectivas, interpretações, metáforas. Um pro-
ções Nietzsche vai, a partir do l ,iz/ro do P/ósoÁo, conceber
cesso interpretativo contínuo e sem fim é o que Nietzsche afirma presenteem tudo que vive. Ele chega a se perguntar se este processo orgânico não é um pensamento. Haverá um raciocínio inconsciente?Será que a matéria raciocina? Ela
instinto. Portanto, a transposição metafórica não sendo uma característica somente da atividade estética humana, mas es-
tando presente desde o mundo orgânico, impõe, a tudo que vive, um caráter interpretativo. A arte, como produto do homem, é um prolongamento
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desta força artística inconsciente. A arte do homem nasce,
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NIETZSCHE € A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
como próprio de tudo que vive. Esta força estética, pensada como instintiva, como inconsciente,é a forma geral de todo
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VIVIANE MOSÉ
antesde tudo, da imprecisãoda vista .8óVer é assimilar superfície das coisas no espelhodo olho, o que não deixa de ser uma transposição. Mesmo as coisas inexistemcomo uma forma em si: Não há forma na naturezaporque não há nem interior nem exterior. A arte nasce no espelho do olho. ;' Ver,
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portanto, é antesde tudo criar, na medida em que é reduzir, contornar; ver é inventar. A forma vista é um conceito. A síntese pr Sentena palavra como conceito, a simplificação que implica escolher, ressaltar, ortar, é á uma transposição de uma
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simplificação anterior. A arte humana corresponde, portanto, a um segundo momento desta atividade inconsciente: Existe uma dupla força artística, a que produz as imagens a que as escolhe. 8a Em suma, tudo é transposição, metáfora. Toda metáfora já é transposição de uma metáfora anterior.
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Hslbid., 19(50). Será, talvez, ainda, necessário chamar processos utísticos às üansformações químicasda natureza norgânica, ao papel mímico que uma força representa:mas existem ários papéisque pode representar. (Ibid., 19(54) ) Hólbid., 19(66). Kzlbid., 19(144). K8lbid., 19(79).
sente e combate por seu ser individual. 8P Esta questão, a con-
sideração da possibilidade de o pensamento estar presente no mundo orgânico, aparece ainda mais explícita em textos tar-
dios, como veremos no próximo capítulo. Esta idéia, que já se encontra presente no l,iz.'rodo /;/ósoáo,parece antecipar, de alguma forma, feita no Zaxnfz/sfxa como vontade de potência. A arte é, para Nietzsche, uma positividade: um prazer legítimo do homem, dado não pela lusão de verdade, mas pela afirmação da verdade da ilusão. Não é o sentido, a verdade, mas a ausênciade sentido e verdade a positividade de tudo o que vive. E este modelo estético que Nietzsche vai contrapor
ao modelo lógico-racional; a ilusão como contraposição à verdade. Se Nietzsche considera a arte um modelo legítimo de interpretação é exatamente porque, como um culto à superfície, ela representa a afirmação do caso particular, da sin-
gularidade,da ficção. O alvo desta afirmaçãoda arte é uma crítica da verdade. Como se dissesse:o fundamento do orgânico e do inorgânico é a mentira, a ficção, a ilusão. E o homem, da mesma forma que os corpos, tem necessidadeda ilusão, por isso cria a verdade. A verdade é uma ilusão que não quer explicitar que é ilusão, então a verdade é uma men-
tira . Já a arte trata a aparência como aparência, não quer, Hplbid., 19(164)
h-.#'
80
81
VIV}AN E MOSÉ
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
pois, enganar, é verdadeira .90A verdade é um tipo de arte
enorme, e em certa medida, disforme, de fatos. Dar forma, mais do que reter, é acreditar que retém. O poder de nosso intelecto não está em dominar, mas em acreditar que domi-
que esconde as condições de seu nascimento. E o que é então a verdade? (...) as verdades são ilusões que esquecemos que o são, metáforas que foram usadas e perderam a sua força sensível, moedas que perderam seu cunho e que a partir de então entram em consideração, já não como moeda, apenascomo metal.sl
na. Nossa capacidade de crença, nosso talento para a ficção,
é o fundamento de nosso domínio. Ao contrário da verdade, da identidade, do ser, o que se encontra no nascimento de todas as coisas é a necessidade de ficção, de ilusão, de arte. Se
o intelecto é fundamentalpara a sobrevivência do homem, a arte, como capacidade de invenção, é igualmente necessária
A verdade é um tipo de invenção, de convenção que rejei-
ta sua origem, um signo que esqueceu que é signo, moedas que perderam seu cunho . A verdade é uma ficção que o
para esta mesma sobrevivência.
esquecimento elevou à categoria de valores eternos . E sem-
No entanto foi o esquecimento da necessidade estética do homem a condição para o exercício da crença na verdade: para que o homem acreditasse na verdade de suas construções, de
pre tendo em vista a utilidade que alguma afirmação é eleva-
seus signos, foi preciso que esquecessede si mesmo como
da à categoria de verdade. O que o homem de fato quer não
sujeito da criação artística
é a verdade, mas as conseqüênciasque ela pode proporcionâF.92 ma verdade,em si mesma,não interessa ninguém. Mesmo o homem de ciência não se interessa pelo conheci-
mento verdadeiro. O que a ciência quer não é conhecer, é esquematizar para controlar, para prever. A intelectualidade reside em nossa capacidade de sintetizar, o que implica contornar, conter; implica criar e esquecer.
Acreditamos tomar posse, através dos signos, de uma massa
Não é senão pelo esquecimento deste mundo primitivo de
metáforas, não é senão pela solidificação do que originalmente era uma massa de imagens a surgir, numa vaga ardente, da capacidade original da imaginação humana, não é senão pela crença invencível de que este sol, e sta janela, esta mesa, é uma verdade em si, em resumo, não é senão pelo fato de o
homem esquecer de si enquanto sujeito, enquanto sujeito da
criação artística, que vive com algum repouso, alguma segurança, e alguma coerência.P3
'Frcz;gmenfosóstumos, verão-outono de 1873, 29(17). Pl Sobre verdade e mentira no sentido extramoral . Pz E apenas num sentido restrito que o homem quer a verdade: ele ambiciona as conseqüências agradáveis da verdade, as que conservam a vida; é indiferente ao conhecimento puro e sem conseq uênciase manifesta uma atitude hostil em relação às verdadesprejudiciais e destrutivas (ibid.). Em um fragmento da década de 1880 esta idéia encontra-seainda mais explícita: 'A es-
A sustentação da metafísica é a construção de um tipo específico de homem, um homem que acredita na unidade, na identidade, na verdade de seu ser, e não na capacidade
sênciada 'verdade' é esta apreciação: 'creio que isto ou aquilo é assim.' O que se exprime neste julgamento são as condições zzecessárfas ara nossa consef-
sou rejeitar sua capacidade estéticapara poder acreditar na
t/açãa cresclme/zfo. crençana razãoe nas suas categorias(.-) constitui prova a favor de sua fi/idade para a vida, não a favor da verdade. tos póstumos, outono de 1887, 9(38).)
metafórica e inventiva de sua provisoriedade:.Ç) homem preci verdade de suas invenções; precisou acreditar que conhecia,
(Fragmen-
P.} Sobre erdade e mentira no sentido extramoral
VIVIANE MOSÉ
h.A.,'
ÇK..-P
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que sabia, e para isto precisou esquecer que criava. M as como
vidade artística, como uma atividade própria do estado de natu-
eliminação da atividade estética é impossível, porque faz parte do movimento próprio da vida, podemos concluir que o homem
reza, e, de outro, a determinação social que elege um sistema me-
terminou por impor a si mesmo uma guerra: para manter seu
imposição, dada pela linguagem da comunicação, que estabele-
universo conceptual, seu mundo verdadeiro , ele passou a viver em uma constante luta contra sua capacidade criativa, impossí-
ce a fundamentação da idéia de verdade. A crença na identidade
vel, no entanto, de ser calada. Ao lutar contra suas impressões, contra suas sensações,que estãoconstantemente lembra-lo da atividade metafórica de suas verdades eternas , o homem luta contra a vida. Seria possível dizer, considerando esta perspectiva, que o grande sofrimento do homem racional é a sua total
orgânica, e até mesmo inorgânica, é afirmativa, estética; o sistema de códigos da linguagem da comunicação é a arbitrariedade que produz a verdade como negação da vida. De uma certa forma, estacontraposição proposta p or Nietzsche aponta uma solu-
ção : a retomada do caráter criativo, que ocorreria com a
ele identifica seu impulso criativo (suas diferenças individuais, sua singularidade) a um mal e luta contra si mesmo, enquanto
l à linguagem quando, em sua genealogia, pensa Q signo..a partir
buscaser comum, ser rebanho,ser normal. A diferença ndivi-
í Nietzsche, .nostextos tardios, no entanto,.dá uma nova dimensão
l de um jogo de fo.rças. 4. compreensão da linguagem a partir da
dual é um mal, pensa o homem moderno. A singularidade é um
l ;ioêãi5de foi=çanão está presente nos primeims textos de Nietz l ache. Nos textos que comentámos, esta questão parece vislum-
desvio da normalidade, é uma doença.
l brada, mas não explicitamentetratada. Na primeira parte de
O que a crítica nietzschiana da linguagem, a princípio, faz é
explicitar este logro, que reside na crença da correspondência
guia ciência, encontramos uma referência a estaconcepção mais ampliada do problema da linguagem:
entre os sinais e as coisas, crença que serve de sustentação para
idéia de verdade. O que Nietzsche pretende, nesteprimeiro
Eis o que me custa e nunca deixa d e me custar os maiores esfor-
momento, tendo an tes de tudo como alvo a verdade, é mostrar
ços, compreender que importa mais saber como se chamam as coisas do que o que elassão. (...) Que loucura não seria pretender que basta denunciar esta origem, este véu nebuloso do de-
objeto. Não somente porque o signo é uma simplificação, uma
interpretação, um conceito, mas porque não há coisas a representar. vida imagem, toda forma, é produto da atividade in-
terpretativaprópria de tudo que vive. Os textos e fragmentos que contém o l,fmo cío !/ósoáo, e que utilizamos como referência até aqui, apesar de proporem os pontos fundamentais da crítica nietzschiana da linguagem, se sustentam, ainda, mesmo que '--...H'
e na verdade resultam da crença na identidade da palavra. A vida
l explicitação do caráter metafórico das palavras e da verdade.
é preciso explicitar a impossibilidade de o signo representar o
\:,.P'
tafórico, um sistema de códigos, e o impõe a todos. E esta
incapacidade de lidar com sua dimensão estética; em outras palavras, ele sofre de arte . Na tentativa de se vincular à verdade,
o caráter perspectivo e arbitrário de toda representação. Para isso
\h...../
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
não explicitamente, em uma contraposição: de um lado a ati-
lírio para reduzir ao nada o mundo tido como essencial,aquilo que se chama realidade! SÓ os criadores podem destruirá Mas
não esqueçamos sto: basta criar novos nomes, apreciações, novas vétossimilhanças para criar, com o tempo, novas coisas.
A perspectiva explicitada nesteaforismo parece apontar uma
ampliação que Nietzsche percebe em seu próprio pensamento:
'4H ala fêlzcía,58
--...'
84
8S
VIVIANE MOSÉ durante seus primeiros escritos sobre a linguagem Nietzsche parecia acreditar que a simples denúncia do nascimento meta-
fórico da linguagem, ou a denúncia do caráter fictício da verdade, fosse suficiente para inverter os valores que se sustentaram
nestas crenças. No entanto, como ele mesmo diz, seria uma loucura
acreditar que alguma mudança pudesse se dar assim;
não basta denunciar, explicitar o logro do sentido, para desfazer esta estranha trama de negatividade. Nos encontramos de tal forma arraigados, constituídos por estes valores de negação, que se torna ilusório crer que os argumentos racionais bastariam
para nos desembaraçardestesvalores. Mais do que entender jogo de negatividade que o valor da verdade impõe, é preciso criar novos valores, é preciso interpretar.
O que os novos textos, principalmente da década de 1880, vão trazer é a avaliação dos valores a partir do jogo de forças que os produziu. O que a imposição do sistema metafórico racional representa é uma correlação de forças marcada por um valor que setornou dominante: o niilismo. É a análisedo niilismo como
correlação de forças negativaque vai se tornar o alvo da crítica nietzschiana. Q.p1lç81e.Han4g está na simplificação do signo;, o
l signo é um mçlg,contorno que.tem como função configurar, elqy.g$1alKlb..!!gpl,i.ficar, conter, e não dizer ou revelar. Como
i um conte:rnov!:b.exp.ostQ-ao ogo de forçasda vida, o quç o .sign&tratiiliB..g..r.esultado.
provisório
de uma luta. Não basta,
portanto, explicitar o processo de nascimento do signo para torna-lo afirmativo, é preciso entender e atuar no campo d e ba-
talha dos valores, é preciso assumir e afirmar esta atividade interpretativa própria da vida, é preciso interpretar.
CAPÍTULO i A perspectiva das forças
O homem só muito lentamente descobre como o mundo é
infinitamente complicado. Primeiro imagina-o o mais simples possível, tão superficial como ele próprio. (...) O ho-
mem conhece o mundo à medida que se conhece: a sua profundidade desvela-se-lhe medida que se espanta de si próprio e de sua complexidade.ss
O que a perspectivanietzschiana, sustentadana afirmação da vida como vontade de potência, traz para a avaliação da linguagem é a compreensão de que o processo de simplificação, de sujeição, de imposição que a palavra instaura, não é próprio apenas da linguagem, nem é uma simples arbitrariedade imposta pela vida em grupo; é, ao contrário, uma característica do processo de assimilação do orgânico. E somente pela simplificação, pela assimilação do complexo ao simples, que o orgânico pode se tornar possível. Assim como a lingua-
gem, o mundo orgânico é a imposição provisória de uma duração,96 de uma interpretação, e toda interpretação
é produto
de um jogo de forças, de uma luta por domínio, que Nietzsche vsFtagmelztos Dósttemos verão de 1872 a início de 1873, 19(118).
% A ordem astral em que vivemos é uma exceção; essa ordem e a relativa duração que é condicionada por ela possibilitam a ex ceção das exceções: a formação do orgânico. A Baia ciência, S 109.
89
VIVIANE MOSÉ
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
chama de vontade de potência. Ao relacionar o processo de
mecanismode expansão, de domínio, para se tornar um
produção da linguagem à formação do orgânico, Nietzsche
fim em si mesmas. A .finalidaçjç da linguagem, assim, como
afirma, como vimos, desde os textos de 1873, e cada vez mais
do co!!!!cimento que dela deriva, tornou-se a substituição
explicitamente, uma atividade interpretativa contínua, como
marca de tudo que vive. Esta atividade nterpretativa infinita é o que Nietzsche vai chamar de vontade de potência. Não
da pluralidade,a negação do Mundo, o hi!!!s.m.a.O alvo último da crítica de Nietzsche, a partir da concepção da vida como vontade de potência, é a análise e a superação
somente o orgânico vai ser pensado a partir desta concepção,
do niilismo.
mas o inorgânico, como uma pré-forma de vida .97.Q-pro: qye
O que vai marcar a interpretação nietzschianaa partir do Zarafmsfra é a compreensão da vida a partir de um jogo de forças: tudo o que ocorre, todo movimento, todo vir-
.jogo de forças pgmitiu que esta simplificação fosse vista como
a-ser é um constatar de relações de graus de forças, um com-
modelo do bem, como verdade? O que Nietzsche vai ter como
bate .w8 vista por Nietzsche não como uma unidade, uma totalidade com uma direção definida, mas como um
blema.dq..jiDgyêgem.não..está; este.perspectiva, no processo dç::;$impljíicaçãa:::ereduçãQ,
.ln4s re.sêde çm estabelecer:
alvo, a partir .çlê..Introdução a hõçãõ de força, é a avaliação do jogo interpõe.tativo,do campo de forças que produziu vontade de negação, que a crença na verdade instaura. A questão não é mais a imposição de um determinado sistema metafórico, e as leis da verdade que terminou por estabelecer, mas
a vontade de negação que a substituição da vida pelo universo de signos estabeleceu. O que importa agora é pensar a idéia
de verdade a partir de uma vontade de substituição, de negação da vida. Foi esta vontade, pensada como vontade de potência, que fez com que a simplificação, a redução, deixassem de
ser o meio pelo qual a linguagematua, deixassem de ser um P7Não somenteo orgânicoque é pensadopor Nietzsche omo vida. O aforismo 36 de .A/émdo bem e do ma/ afirma a morte como uma pré-forma de vida e aproxima orgânico e inorgânico. Ali, o mundo material é pensado como algo da mesma ordem de realidade que nossa prqplia emoção; como uma forma mais primitiva do mundo das emoções, em que ainda está encerrado em poderosa unidade aquilo que, em seguida, no processo orgânico, se
complexo combate de forças. A vida é o excesso que se sig-
nifica, se configura, se limita, em uma duração provisória. 0 aspecto global da vida não é a situação de indigência, a situação de fome, mas antes a riqueza, a exuberância, e até mesmo o absurdo esbanjamento -- onde se combate, combate-sepor pofêzzcfa. 9Poda forma, toda simbolização, toda manifestação resulta de uma luta que tem como caráter intrínseco a expansão, o crescimento, a superação. Ao contrário de um instinto de conservação, Nietzsche afirma a vontade de potência: Querer conservar-se a si mesmo a expressão de uma situação de penúria, de uma restrição do próprio impulso fundamental da vida, que surge da amp/cação de potência. '
O princípio de autoconservação
é falso, diz ele: 0 contrário é verdadeiro. Em todo ser vivo,
pode-se ustamente mostrar, com a maior clareza, que ele
ramifica e configura . A vontade de potência está presente na matéria inorgânica, d iz ele, tanto a vida quanto a matéria inorgânica são constituídas por forças em choque. (Cf. Fragme tos Póstumos, outono de 1884 a outono
'*Fragmenlos ósfwmos, utono de 1887,9(91). 'PCrePúsc#/oos íao/os, Incursõesde um extemporâneo ,S 14
de 1885, 26(274), 35(59}, 36(20), 36(22).)
i' Z gala ciência, S 349.
VIVIANE MOSÉ
qq-«r.F .
' PhM''
;-+.,''
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faz tudo, mãopara conservar-semas para tornar-se mais. iol
de corrompida, ou imperfeitae primitiva: faz parte da es-
A superação de si é o modo de ser de tudo que vive, mas
sa/zelado que vive, como função orgânica básica, é uma conse-
esta supe'ação se choca com todas as outras forças em expansão'
quência da própria vontade de poder, que é precisamente
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L,
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O modo de ser da vida é sempre o resultado de uma
nhor do espaçoe a estender ua força (sua vontade de
luta desigual ; i05 orças iguais levariam a um equilíbrio, a uma
potência), a repelir tudo que resiste à sua expansão. Mas
identidade que não encontra referência na vida. A violência,
incessantemente choca-se com as aspirações semelhantes
a sujeição é, uma imposição do processo interpretativo,
de outros corpos termina por arranjar-se ( combinarse ) com os que Ihe são suficientemente omogêneos:
subjacente a toda forma. É esta desigualdade, esta guerra, que
então conspiram juntos para conquistam potência. E o
vida é esta guerra, este confronto, este ogo violento marcado
processo continua... ' :
pela imposição de uma correlação de forças sobre outra. Para Deleuze,t06o que determina a qualidade da força
:.....J'
faz com que o jogo da vida permaneça;mais do que iss o, a
É esta resistência, esta tensãoque define vontade de potência: a vontade de potência só pode manifestar-se em
a diferença de quantidade, dada na relação de uma força com
face de resistências . lo' A contraposição expansão-resistên-
é a diferençade quantidadeno confrontode forças que
cia é, exatamente, aquilo que caracteriza o choque, a luta, o confronto que Nietzsche chama de vontade de potência; um confronto que não pode se dar senão por imposição, por violência. Toda duração é manifestaçãode um jogo vitorioso de forças, um jogo que se estabeleceua partir da submissão de um grupo de forças sobre outro. A vida mesma, diz Nietzsche:
determina a qualidade da resultante. Uma força é então, necessariamente,produto de sua relação com outras forças.
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Hb-.......-
vontade de vida.ieH
Todo corpo específico aspira a tornar-se totalmente se-
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NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
E esse/zc/a/me/zfepropriação, ofensa, sujeição do que é estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas próprias, incorporação e, no mínimo e mais comediílo, exploração (...). A exploração não é própria de uma socieda-
outra. Não existe força no singular,somente forças, então
Forças em confronto têm sempre como resultante a diferen-
ça entre forças dominantes e forças dominadas, entre as que mandam e as que obedecem. Uma força dominada é uma força afastadadaquilo que ela pode, é uma força que não pode exercer sua força, então é chamada de corça reaffz/a. Se a força não pode ir adiante e ao mesmotempo não pode parar, já que força implica expansão, então ela se volta contra
si mesma, deixa de agir e reage. Uma corça af/ua, ao contrádo fna/, S
!ttqAiétH do hein 'ena 'ar-
FraWnenfos ósl /nas,outono de 1887a marçode 1888, 14(121). inzlbid.,primavera de 1888, 14(186). \-.....z'
toqbid., utono de 1887,9(151).
92
de se
em
cada um de sõiilado, de maneira desigual. Fragpnenfos ósrKmos, outono de 1884 a outono de 1885, 36(22) lohDeleuze,G. Nielzscóe e a /l/oso/ía, cap. 11,S 2
93
VtVtANt MOSÉ
NtC'lZSCtlt C A CigANO(: POLlt'iCA 0A LiNGU.;AGEM
rio, é uma força em plena expansão, é uma força que exerce sua força, é uma ação.
da avaliação que Nietzsche insere: não importa a verdade ou a falsidade de um conceito, importa se ele afirma ou nega a
A vontade de potência é a resultante dcstc jogo dc forças,
vicia.'08A vida é o princípio dc avaliação. Uma cultura afirmativa é uma cultura onde a correlação de forças tenha predomínio de forças dominantes, onde prepondere a vontade afirmativa de potência, a vontade da vida. Não se trata,
ela é o que a força, ou jogo de forças pode. O poder resulta de uma diferença de quantidade, dada no confronto. Se a resultante das forças, a vontade de potência, tem a predominância de forças dominadas, trata-se de uma z'o laje /zegízfiz/a
pofêmcia.Se, ao contrário, tem como predomínio forças dominantes, trata-se de uma uo/zf.zde /;rmafiua de pofêncicz. Portanto, vontade de potência diz respeito a um jogo de forças que, no caso do homem, pode ser afirmativo ou ne gativo
portanto, de negar a vontade de negação, mas de submetê-la à afirmação. A vontade de negação, como, por exemplo, na necessidade da identidade da palavra, não necessariamente é predominantemente negativa, ela pode estar a serviço de uma
afirmação. Portanto,a negaçãopode estar a serviço de uma
com rela ção à potência: existe a vontade que se exerce através da negação da potência, e a vontade cuja ação é a afirma-
cessariamente a vida:; p.gis do que isso, é preçjêg,.ÉD..um..de:..-.-.-
ção da potência. Como vontade de potência é um caráter da
terminado aspecto, nega! a,pLur.gl.idadepêra.afirmar .a vida. .
vida, e como a vida é sempre monstruosamente afirmativa,
vontade negativade potência é uma vontade própria do homem. É somente no homem que o jogo de forças da vida pode
ser afirmativo ou negativo. Dizer sim e dizer não é próprio dos homens, mas o homem, por medo da pluralidadee da mudança, construiu uma cultura sustentada fundamentalmente na negação. A negação, diz Deleuze, é constitutiva do ho-
mem, e com o homem é o mundo inteiro que se arruína e se torna doente, é a vida na sua totalidade que é depreciada .:'7 A vontade de verdade, que resulta de um jogo de forças onde
predomina a reação, é uma vontade negativa de potência. E esta vontade que marca a história da humanidade desde Sócrates. A vontade de verdade é um exercício da vontade de
potência sustentado na negação da potência, ou seja, é um poder que se afirma pela negação da vida. Ê este o problema u7Deleuze, . Níefzscbea/i/oso/7q ap \4S lO.
t m
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=
=
XíüíüiÜiç ,e,negaçãonão são-valores m si, ao contrário, $e constituema partir de.UU caWP.o,-dç.p .g,çgUçbS3gde for. .. ..ças.E .este-campo-de.-forçasque.Niçla$çhe,--.paait.dq.Zg:...:. (afmsfza, procura-considerar.
-
Pensar a vida como vontade de potência, é, portanto, con-
siderar o campo de batalha onde a vida se dá, é entender a complexidadedo processoque se dá como uma luta. Todo acontecimento, mesmo na vida orgânica e inorgânica, é resultado de um jogo de forças, e é a resultante deste jogo de forças que se constitui como afirmação ou negação. Se o caráter intrínseco a toda manifestaçãoda vida é a luta, o confronto produzido por um movimentode expansãoe resistência, então o que se manifesta como vida é sempre uma
configuração provisória, o que significa que toda forma é a o Á/é/n do be/n edo /na/, S 4. A falsidade de tlm juízo não chega a constituir, para nós, uma objeçáo contra ele (...). A questão é em que medida ele promove ou conserva a vida.
VIVIANE ROSÉ
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
imposi;ao de uma interpretação. Não somentenão há fatos,
tação é a forma própria da potênc.ia: 'anão se deve p erguntar:
mas apenas nterpretações,l09 omo todo interpretar é propor
'qzíem, pois, interpreta?', ao contrário, o próprio interpretar,
um campo de forças, uma correlação.
enquanto forma da vontade de potência, tem existência (con-
tudo não como 'ser', mas como um processo, um z,ir-a-ser A história inteira de uma coisa , de um órgão, de um uso, pode ser uma continuada série de signos de sempre novas interpretações e ajustamentos, cujas causas mesmas não precisam estar em conexão entre si, mas, antes, em certas circunstâncias, se segueme se revezam de um modo meramente contingente. Desenvolvimento de uma coisa, de um uso,
'.','
de um órgão, nessa medida, pode ser tudo, menos seu
'hq.+V+.'
progressos em dircção a um alvo, c Wcnos ainda um/;Cogresszís ' b..N.Fr
lé)Bico curtíssimo, ala\nçatlo com o nlíiiimo clispêiitlioclc forças e de custos.' '
pretar é a forma (o vir-a-ser) da vontade de potência, substitui o autor, o sujeito da interpretação pela guerra de forças, pelo combate próprio da vida. No princípio não há identidade, não há ser, mas uma guerra, que se dá como um jogo interpretativo contínuo. Então não há princípio senão um infinito constituir e perecer,um mandar e obedecer. Com diz cslc finl3iliclito )(lsttittlo: A voilt:l(lc dc l)otêilcin ilttcrprcta; quando um órgão se forma, trata-se de uma interpretação
(...). O processo orgânico pressupõe uma atividade i/zfer-
'k'-.'
'''-...-''
\b...0.-
\.
enquanto um abeto .' ' ' Este fragmento, ao afirmar que inter-
O processoda vida é extremamentecomplexo. Uma infinidade de forças está seillpre atuando, se chocando, sc confrontando, dominando e se submetendo, para que um mínimo acontecimento,um mínimo corpo se manifeste;
prelzzfiz/a contínua. ' 'z Como atividade infinita, produtora
mais do que isso, trata-se de um processo interpretativo cujo
em-si sofre uma dissolução a favor de uma estrutura interpretativa do .ser.. interpre.!ação cgmQ.yma atividadç
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jogo de resistênciase imposiçõesé determinado pela vontade de expansão, a vontade de potência. Em função de sua complexidadee transitoriedade, este jogo não é marcado por um fim; resulta, ao contrário, de correlações de forças que são absolutamentemóveis e transitórias. E este jogo complexo e imprevisível que determina o que um costume, uma coisa, um órgão, é: um jogo interpretativo, vida, vontade de potência. IU.!ç1lptBBt.e.ym..Hqioe se tornar senhor de um aco.nlecimento, na medida em que interpretar é constituir. A interpre-
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destruidora dc si mesma, a atividadc interpretativa revela a ausência de fundamento que a idéia de vontade de potência institui. Em $ietzsche, diz:.G ianni Vattimo,' '3á: noção de coisa-
metafórica, uma sucessão infinita de transposições é o fundamento do mundo, um fundamento sem fundamento: trata-se
de um fluxo incessante móvel, eternamente riador e destruidor de si mesmo,sem princípio nem fim, sem sujeito. Em função desta ausência de ser, de fundamento, de identidade,
forjar a forma na multiplicidade do devir é um ato de força, de violência, de domínio: é assim que a potência da vida se i''Fragyne/liaspóslKpnos,outono de 1885 a outono de 1887, 2(151). itz[bid., outono de 1885 a outono de 1887, 2(]48).
illVattimo, Gianni. À as .4//a de/ Su/efo -- Niefzsc#e, /Jefdqggery /a
tt}9KSA,2. 315. luPGe/zea/agia aznora/, 1,$ 12.
üer?ne/zéllfíca, arcelona, Pardos, 1989.
:..../'
96
97
VIVtANE MOSÉ
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
exerce. Toda forma, toda interpretação é uma imposição, uma
nas centraliza, classifica, seleciona o pensamento que se dá
violência. Todo dar-se de algo é uma perspectivaque se
como corpo- Em última instância, ninguém pensa, senão a
superpõe violentamente a outras. Tudo que se manifesta como
guerra de forças, a vontade de potência. O homem, diz
vida resulta de uma imposição que se dá como interpretação. f'A vontade de potência domina alguma coisa menos l)atente je Ihe imprime, por iniciativa própria, o sentido de uma fun-
Nietzsche, deve ser concebido:
i ção. I i4E assim sucessivamente. concebida desta fQ!!11ê) )Cid;
é..]tln..texto-copgnuo, escrito infinita e ininterruptamente. pensamento não é uma atividade unicamente intelectual, que se dá através do cérebro; ao contrário, diz ele neste fragmen-
como multipl icidade: a fisiologia nada mais faz do que indicar um maravilhoso comércio entre esta multiplicidade e o arranjo das partes sob e em um todo. Mas seria falso, disso,
inferir necessariamente m Estado com um monarca absoluto(a unidade do sujeito).' ''
to, todo o organismo pensa, todas as formas orgânicas toidentidade no sujeito, toda identi- l
mam parte no pensar, no sentir, no querer -- por conseguinte o cérebro é apenas um enorme aparelho de centralização . ' '5
dade resulta da palavra. O que funda o sujeito é o nome, mas l
Da mesma forma esta célebre afirmação do aforismo 17 de
o homem, subjacente ao nome, é uma pluralidade de forças :;
À/ém do bem e do ma/: uW4.en$amentg,vçm quando e/e quer
em luta, é vontade de potência. A identidade do sujeito, como !
e não quando ez-quero; de. mo.do.que é um Áa/seamenro.da realidadeefetivadizer: .osujeito'eu'.,écondição do predicado
veremos, é a ficção que tem como função atribuir identida-
'penso' . E:He.sçS.sentido que não procede a pergunta Quem
pensa? ou :Qllçm .interpreta? . Nãa.1lá..Klx!.apJigl pol trás
de às coisas. Mas a identidade somente existe na linguagem. :
E é a linguagemque permite a construção da ficção de um outro mundo, um mundo de i dentidadesestáveis,de coisas l
do pensamençç2a-Q. .p.gqsapçnto é tudo. Na medida em que pensar é uma atividade interpretativa que impõe as coisas, pensar é a forma própria da vontade de potência. Não é o
e sujeitos, de valores eternos. É o processo de simplificação, de assimilação da linguagem que vai funcionar como um fil-
homem quem pensa, mas a vida.l i' O aparelho cerebral ape-
dança, da morte. Se a vida é vontade de potência, também o universo conceitual humano, que Nietzsche chama de niilista
t14Ge/zea/agia a mora/,11,S 12. ''sFragmeHfos ósru/mos, utonode 1884 a outono de 1885, 27(19). it'Nietzschese referea um pensamento,sentimento, querer em todos os
por negar o tempo e a vida, é produto desta mesma força interpretativa. E uma interpretação específicaa que determina a relaçãoque o homem estabeleceu om a linguagem,
' ' -' '
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1
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seresvivos (FraEme/liaspóslK/nos, outono dc 18 84 a outono de
85, 35 ( 15».
tro capaz de proteger o homem do devir, do tempo, da mu- l
E afirma; 0 que importaé compreendermos ue o chefee seussúditossão
uma interpretação que quer deter a potência, portanto, uma
da mesma esPécIe,todos sentindo, querendo, pensando (Fragmezzlos óstumos, outono de 1884 a outono de 1885, 40(21». O aparelho neurocerebral apenas o chefe, o centralizador de um processo que se dá a partir dos súditos, .ou seja, das sensaçõesdo corpo.
vontade negativa de potência. ''FragznenrosósrK/fios, utono de 1884a outono de 1885, 27(8)
VIVIANE MOSÉ
O jogo que determina a vida e a consciência, como um aparelho de linguagem, é o mesmo. EmÁ/ém do bem e do ma/,
diz Nietzsche: Este imperioso algo a que o povo chama de espírito quer ser e quer se sentir senhor, dentro e em torno de si: tem a vontade de conduzir da multiplicidade à simplicidade, uma vontade restritiva, conjuntiva, sequiosa de domínio e realmente dominadora. Suas necessidades e faculdades são aqui
as mesmasque os fisiólogosapresentampara tudo o que vive, crescee se multiplica.A força que tem o espírito de
bb..,,/
bq'qb.M.#F
apropriar-se do que Ihe é estranho, manifesta-se num forte pendor a assimilar o novo ao antigo, a simplificar o complexo, a rejeitar ou ignorar o inteiramente contraditório. ' '*
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NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
rar o perspectivismo necessário mediante o qual cada centro de força -- e não unicamente o homem -- constrói a parffr de sí mesmo todo o resto do mundo, isto é, mede segundo sua força, tareia, dá forma .i '9A vida resulta de infinitas pers-
pectivas. 'daquiloque agora denominamos mundo é o resultado de uma multidão de erros e fantasias, que surgiram pouco a pouco no desenvolvimento total do ser orgânico. 120 e sub-
traímos o aspecto perspectivadas coisas, diz Nietzsche, mundo, e não apenaso homem e sua cultura, não subsiste.ízi O mundo nomeado é um mundo criado. l;Ü'.nomear, or não contemplar a totalidade móvel do que nomeia, é necessariamente uma delimitação, uma perspectiva. Toda significação é uma atribuição de sentido imposta à coisa: dar nomes
O mecanismo de simplificação e redução, de assimilação
é assimilar, reduzir, simplificar. Se a interpretação, a imposição de sentido produzida através da simplificação, da redu-
do novo ao antigo, de rejeição do contraditório, é o que ca-
ção, marca da linguagem humana, não é exclusiva do homem,
racteriza a vida, e não apenas o sistema conceptual que nos foi
se o processo orgânico funciona a partir dos mesmos pressu-
imposto. As característicasdo espírito, da consciência, são aqui as mesmasque os fisiólogos apresentampara tudo o que
gem anterior, orgânica? Se a linguagem humana se compusesse
vive, cresce e se multiplica . O processo de simplificação da
como metáfora da linguagem orgânica, ela estaria afirman-
linguagem, como imposição violenta de formas, como exer-
do, na medida em que estaria dando prosseguimento, a ativi-
cício de domínio, é também o mesmo processo que se dá no
dade interpretativa contínua, incessante, própria de tudo que
jogo de forças orgânico. O que é próprio da vida não é somente a arte como ilusão, como ficção, como vimos no capítulo ant .dor, mas a artc como criação e destruição, como imposição, dominação, violência. O jogo que rege a vida e a cultura é o mesmo. A interpretação, presente tanto na vida como na cultura, faz com que tanto uma como a outra resultem de um pensamentoperspectivo, imposto a partir de um
vive. Ao se afirmar como um fluxo interpretativo nfinito e contínuo, a linguage.m eria produto de uma.vontade.afirmo.
postos, a linguagem humana seria a metáfora de uma lingua-
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uva de potência. Pgr prosseguimentoà metáfora orgânica seria afirmar .q. Qpossj.bil!.dg(].e. çlç.$ç.111iç:; $erjg.a$tmêç 'g.D.etáfç)-
ra, a transposição, a invenção, a impo.sifãocomo fundamento de tôda interpretação. No.qn.tlapto,conIQ o que predomina
na linguagem é a vontade de verdade, como fixação de um
foco, de um jogo de interesses e domínio. Ê preciso conside'''Frqgmenfos ósfulnos,outono de ]887 a marçode ]888, 14(186)
tztIHtttnano, emasiado14mano,6.
li A/éln do üefne do /na/, S 230.
':'Frag/genros pósrzuPzos, utono de 1887 a março de 1888, 14(184) 1 00
- h,
lo
VtVIANE MOSÉ
NIETZSCHE E A GRANDE POLITICA DA LINGUAGEM
tipo específico dB,ante.rpretaçqo.,..odemos dizer que o universo
E a crença na identidade da palavra que permite a utilidade
conceitual humano se sustentana negaçãoda interpretação,
da linguagem omo um tipo de substituição da vida, do
Qi negação da atividade metafórica. Como um conjunto de
devir. A sustentação, o alicerce de toda substituição parece ser, para Nietzsche, a identidade fictícia da palavra.
metáforas mortal, a linguagem se constitui como uma vontade
de negação da potência. É neste sentido que a idéia de verdade representa, para Nietzsche, a tentativa de negação da vida, por se tratar de uma interpretação que quer deter a interpretação.
A linguagem é um poderoso instrumento da vontade de potência, e pode estar a serviço tanto da afirmação como da negação. Mas foi a vontade de negação, como vontade de
Não nos servimos da palavra e do conc eito apenas para designar as coisas, senão que também cremos, originariamente, que por elas apreendemos a essênc/a as coisas. As palavras e conceitos, ainda agora, nos induzem a pensar as coisas mais simples do que são, separadas, umas das outras, indivisíveis, cada qual possuindo uma existênciaem si e por si.tz'
duração e identidade, que predominou, desde o princípio, na relação do homem com os signos de comunicação. Nietzsche considera a linguagem, desde o nascimento dos signos, uma
configuração dominada pela vontade de verdade. Como vi-
mos na primeira partc deste trabalho, Nietzschc, cm um
Toda substituição somente pode se dar como ilusão, como
ficção, como crença, já que, na complexidade múltipla da vida
toda idéia de identidade é fictícia. Tanto a idéia de identidade, quantodc finalidade,causa,essência, ulfito ctc., são fic-
aforismo de .fJumano, de / afiado bz//nízlzo,tribui aos signos a crença na verdade e no outro mundo. Com os signos, ele
ções que rcsultaln de uma vontade negativa de potência. Ê uma
diz, o homem não se contentou em designar, eleprecisou acre-
seja, quer que a força não se manifeste como força. Mas o jogo
ditar qu' sabia, e construiu, ao lado deste, um mundo pró-
de forças da vida é infinitamente cxubcrantc para que possa ser controlado. Exigir que a força nãose expresse como força, que não seja um querer-dominar,um querer-vencer,um querer-subjugar, uma sede de inimigos, resistências e triun-
prio. A ilcção que o homem produziu com os signos foi a ficção
de um mundo durável. A importância da linguagem para o desenvolvimento da cultura está em que nela o homem estabeleceu um mundo pró-
prio ao lado do outro, um lugar que ele considerou firme o bastantepara, a partir dele, tirar dos eixos o mundo restante e se tornar seu senhor.izz
interpretação da vida que quer a imobilidade, a fixação, ou
fos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse como força. ':' Somente a sedução da linguagem pode fazer
crer no controle das paixões, dos instintos, das ações. A vontade, o impulso manifestam a mesma quantidade de força que gerou este impulso, esta vontade, e não pode ser diferente.
O que o universo conceitual humano quer, e de fato não
Foi a crença na verdadeencontrada,a verdade da palavra, que sustentou a ficção de um conhecimento verdadeiro.
consegue, não é saber, mas controlar. Ê a serviço desta tenlz'O z/ia/ante e SHa se/nora, S l l
izzH
m
o, demasiado
b
ma/zo,
$ 11
lz Ge ea/agia da mora/, 1, S 13.
E
...
+.
h.U..rF
q - -
'
decisão de não saber (. . .) um estado defensivo ante muita coisa
compreende apenas o seu devir-reativo, que o atravessa e constitui. Ê por isso que a história do homem éa do niilismo,
conheçíyç!'Lin Se a simplificação permitida pelos signos não
negação e reação .'28 O lado desolado, a vontade de negação,
atinge as forças, então a força do conhecimento não está em
constituem, também, a vida, e podem, em um campo afirma-
controlar, mas em esquecer,em não ver, em mascarar. Conhe-
tivo de forças, estar a serviço da potência. O que acontece em nossa cultura é que os valores de negação se tornaram para o
da linguagem, parte, necessariamente,do esquecimento da operação que o tornou possível: a simplificação, a esquematização, a invenção, a arte. Portanto, o saber implica o não saber. Não somente o não saber, mas, ainda, a ocasional
opinião é também um esconderijo, toda palavra também uma
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máscara ,iz7 diz Nietzsche. Toda palavra esconde uma pluralidade, um fluxo, uma violência. Ao contrário da aparente explicitação, o que o conhecimento, assim como a l inguagem ',..--- '
propõe é um esconderijo, uma fachada, uma substituição da vida,O mundo dos signos é o refúgio onde o homem construiu sua morada, seu outro mundo . O mundo da linguagem mais esconde do que explicita, e é esta, exatamente, a
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ibpcia] para o que chamamos saber: trata-se de uma brusca
píritos .126 Toda filosofia também esconde uma filosofia, toda
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daquilo que pode, mas que se mantém na negação. Como diz Deleuze: 0 homem habita apenas o lado desolado da terra,
vontade do espírito em se deixar iludir ou iludir outros es-
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tqJl&a.de ontrole que está, segundoNietzsche, um impulso apareQçeçlç çç,.gp.çwgi.Q..dn!abe!;..mas que é condição es-
cer, gesto que implica a simplificação, a assimilação, a digestão \.
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característica daverdade: esconder, antes de tudo, que a arte,
a invenção, é sua matriz, seu fundamento, para, a seguir, esquecera vida, o fluxo, asintensidades, tempo, a morte. A reatividade da verdade, e dos valores que ela permite, reside
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em que se trata de uma interpretação que mascara sua proveniência, ou seja, Guio domínio não se sustenta no exercício
homem a verdade, o bem. O homem fez do não o seu sim, e nele habita. Portanto, o que Nietzsche chama de transvaloração, de negação da negação, não é a exclusão da negação,
mas a negação do predomínio da negação, e a retomada do jogo afirmativo/negativoque caracteriza a vida. O que,..-Nietzsche tem como alvo em seu pensaiW:o--é,~ ./.« enfim, da idéia de verdade. E estdldescons' ,--- -'-.a'ãesconstruçãb \-.........-Z /!$i!!çãg) segundo nos parece, somente pode acontecer se consegue desatrelar as palavras e as coisas. É a correspondência
entre as palavras e as coisas que fundamenta toda crença na verdade. !.o esvazianlçnlo da palavra, ou seja, a afilmaSão. da impossibilidadedo sentido, que termina por permitir êónfrónto da palavra consigo. mesma. Esta operação termina
permitindo que, se desfazendo da crença na verdade, a linguagem possa reencontrar seu caráter afirmativo. .O.çaráter-
afirmativo da palavra é a sua impossibilidadecomo verdade, ou seja, seu carátel fictício. Um contorno vazio capaz de sustentar uma diversidade de sentidos, esta é a função afirmativa da palavra. Toda palavra nasce na medida em que é dita, já
que se constitui a partir de um jogo de intensidades produzi-
do, antesdc tudo, por aquelequc diz. Nictzschc, cm sua genealogia, pergunta: Quem, realmente, nos coloca questões?
tesa/éZno óem e do ma/, S 230. tzólbid.
tz7lbid., S 289.
izHDeleuze, G. Níefzscbe e a/7/oso/7a, Conclusão
1 04
10s
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VIVtANE MOSÉ
NiETZSCnC € A GRANDE POLfTtCA 0A LINGUAGEM
O 'que' em nós aspira realmente à verdade? .iz9 Não se trata
como instrumento da potência. E portanto evidente que cresce
mais do que está sendo dito, mas de que deslocamentos de
força o que estásendo dito é produto. A palavra não tem um sentido fixo, ao contrário, serve a um jogo de forças, onde mesmo quem diz é, em última instância, produto. O conjunto de signos produzido pelos homens é um conjunto de
cada aumento de potência. ' E a afirmação da vida que leva a valores afirmativos e nã
o contrário. Afirmar a vida implica uma relação de potência e
não de indigênciacom a vida. Somenteum pensamento nas-
cido da força, da coragem,da solidão, pode contemplar
contornos vazios, sempre abertos a novos preenchimentos,
potência. Ao afirmar o tempo como um eterno retorno, se-
novos sentidos, sentido que é sempre produto de uma tensão
gundo pensa Klossowski, Nietzsche indica não um novo con-
de forças, de uma guerra. A negatividadeda palavra resulta da rejeição destaproveniência.Quando o signo assumeseu lugar como ficção, como ilusão, ele nega a si mesmo como verdade, e pode afirmar-se como invenção, como perspectiva. Mas o predomínio da negatividade,na relação do homem
teúdo de pensamento, mas produz a condição a partir da qual
com os signos, resulta de uma determinada relação com a vida. Não somente o signo se torna afirmativo quando assume seu caráter de ilusão, como o homem se torna uma afirmação ao
Klossowski fala do eterno retorno como experimentação. Para ele, Nietzsche estabeleceum novo estatuto para o ato mesmo de pensar, quando vincula o pensamento a uma condição fisio-
abrir mão de sua vontadede duração. Em outras palavras, o esvaziamentodo signo, a afirmação de seu caráter convencional, somentepode sedar a partir, não de uma nova relação com os signos, mas de uma nova relação com a vida. O que Nietzsche chama de transvaloração dos valores é produto de uma mudança na correlação de forças que pro-
lógica, a força. Ê esta discussão, a possibilidade de um pensa-
duz as interpretações, os valores. Se o universo conceptual
de uma necessidade a vida em grupo. E a necessidade e comunicação que traz o nivelamento,a redução; é esta ne- l
humano -esulta da negaçãoda potência, por ter nascido, como veremos no próximo capítulo, da indigência e da fragilidade, os valores que configuram este universo, fundado na idéia de
verdade, são valores que privilegiam a diminuição, a fraqueza. Somente um aumento de potência, de coragem, de vida poderia produzir um aumento de nossa capacidade de transvaloração dos valores existentes: 0 conhecimento trabalha lzPGe/ze.z/ogfaa mora/, Introdução.
o pensamento afirmativo pode se dar. A idéia do eterno retorno atua na relação do homem com a vida; somente quem
afirma a vida a ponto de afirmar seu eterno retorno pode produzir um pensamento afirmativo. É neste sentido que
mento afirmativo, que pretendemos encaminhar nos próximos
capítulos. Para tanto, precisamos desmontar, seguindo a trilha de Nietzsche, alguns valores de nossa cultura.
O que vamos apresentar a seguir é a argumentação , nietzschiana a respeito do nascimento da linguagem a partir
cessidade de simplificação que faz com que a palavra se torne imediatamente conceito. A vinculação entre linguagem e comunicação, no entanto, não produz somente o conceito, como identificaçãodo não-idêntico, mas produz tambéma l consciência, como aparelho de nivelamento e diminuição, como aparelho de linguagem. 'Fraga?ie/idosósrn/Hos,primavera de 1888, 14(122)
!
CAPÍTULO
111
A linguagem como signo do rebanho
Como vimos nos capítulos anteriores, Nietzsche atribui a linguagem a uma atividade metafórica própria de tudo que vive.
Tanto a relação queo homem estabelece om o mundo, como a atividade própria de manifestação de todas as coisas, é des-
crita em termos de produção metafórica. Esta atividade metafórica, ou força artística inconsciente,é vista não apenas como instintiva, mas se configura como a forma geral de todo instinto. O processo interpretativo é fisiologicamente necessário, e a linguagem decorre deste processo. Mas, da mesma forma, Nietzsche se refere à linguagem como o fundamento da crença na verdade. Ê a identidade necessária à comunicação que produz a crença na verdade; o mundo da identidade
e da verdade teria surgido quando um determinado sistema metafórico teve de ser imposto a todos. É o estabelecimento deste código canónico que termina por mascarar a atividade metafórica, através da imposição da identidade da palavra que, como conceito, se compõe como metáforas mortas. Como nos capítulos anteriores nos dedicamos, principalmente, a destacar este aspecto estético e metafórico da linguagem, vamos, seguir, apresentar a relação linguagem e gregariedade, linguagem e comunicação, que aparece bastante explícita em alguns
aforismos da década de 1880. A questão que para nós parece
se impor é: qual a relação entre a força estética, nstintiva, metafórica, e a força da necessidadede comunicação no nasci-
VIVIAM E MOSÉ
mento da linguagem? Se considerarmos os textos de 1873, apresentadosno primeiro capítulo, afirmaremos que a força metafórica, interpretativa impõe a linguagem, que por sua vez
precisou, imediatamente,''l ser submetida à necessidade de comunicaçãoe acordo. Já nos textos da década de 1880, que predomina é a concepção de que a linguagem nasce da necessidadede comunicação, e esteve, desde sempre, submetida a esta. Ao vincular a linguagem à necessidade de comunicação e acordo, Nietzsche a submete à precariedade, à indigência, à necessidade. Já o nascimento pela via da força interpretativa relaciona linguagem e excesso, exuberância, vigor, superação
de si, vontade afirmativa de potência. Neste caso, a necessidade de comunicação aparece como uma força que busca submeter a exuberância da atividade interpretativa da vida. .Ez..p,Qrtg.Rtgwa.consideraçãoa capacidade de comunica-
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ção produzida pela neçessi4Qde.quç, nos aforismos e fragmen-
tos da décadade 1880, surge como a força que deu nascimento..
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à linguagem.A neccssidadc,ao impor a vida cm grupo, inlpõs, ao mesmo tempo, a comunicação e o acordo. A linguagem nasce desta necessidade de acordo; ela é, na verdade, este
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acordo. A linguagem humana, nesta perspectiva, não diz respeito à necessidade de configurar o excesso, como atividade estética própria da vida, mas a capacidade de comunicação
da necessidade,em decorrência da situação de indigência e fraqueza em que se encontraria a espécie humana.
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A história da linguagem é a de um processo de abreviação --
com base nesse rápido entendimento as pessoas se unem, cada vez mais estreitamente. Quando é maior o perigo, maior
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é a necessidade de entrar em acordo, com rapidez e facilida-
de, quanto ao que é necessário fazer; não entender-semal em meio ao perigo, eis o que os homens não podem dispensar de modo algum no convívio. (...) entre todas as forças que até agora dispuseram do ser humano, a mais poderosa deve ter sido a fácil comi//zlcaóí/idadeda necessidade, que é, em última instância, o experimentar apenas vivências medianas e vulgares.'3z
A linguagem torna semelhante a diferença, reduz a multi-
plicidade.ê..}!Wdêde,.produzindo abrçviliçàó.iipaz aé permitir um rápido entendimento e.ntre as pessoas; sem esta simplificação a espécie humana não teria subsistido. Como uma das forças mais poderosas que já dispuseram do ser humano, a fácil com /z/cabe/i(&zde a necessidade , empurrando o homem em direção à linguagem, permitiu sua sobrevivência.
E o perigo, a fragilidade, c\penúria que impõem a necessidadc do acordo. Como nos diz Nictzschc no aforismo 354 de gala cíê zc/cz: Onde a necessidade, a indigência, por muito tempo obrigou os homens a se comunicarem, a compreende-
ram uns aos outros de forma rápida e sutil, há enfim um excesso dessa virtude e arte da comunicação.
A linguagem seria,
portanto, produto da fraqueza. Ela não resultaria de uma explosão de vida, mas de uma situação de penúria. É ainda neste sentido que afirma este fragmento póstumo: Os nossos conceitos nos são inspirados pela nossa indigência. ''3 Mas não é somente a linguagem que nasce deste poder de comuni-
cação da necessidade, mas a consciência.
Nietzsche não somente faz a consciência derivar da linguagem, como relaciona linguagem e consciência a esta neces-
'*--.' '-..,.P''
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
i3i Cada palavra torna-se imediatamente conceito pelo fato de, justamente, mãoservir para a experiência original, única, absolutamente individualizada, à qual deve seu nascimento ( Sobre verdade e mentira no sentido extramoral ).
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112
t.3zÁ/é/no bem e do ma/, $ 268
É''KSA, 12, 97.
Vi Vi ANE KqOSE
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GRANDE Potli icA OA LINGUAGEM
linguagem se desenvolve, desenvolve-se, ao mesmo tempo, pensa Nietzsche, este aparelho internalizado de signos. Como
l)i'oÍc\'.It) . (.sl.t illll l.t , (} lioiiicttt l)i'c't:isott It' liilt ststcitiii c[c sigitos capaz (]c pcriltitir a coi tuiiicação c o acordo. É a ncccssidadc quc produz o aparelho de signos da consciência. Não um aparelho de pensamento, mas um aparelho de tradu-
um aperfeiçoamento do processo de comunicação, a consciência é um filtro de linguagem. Em outras palavras, a consciência
ção, de redução do pensamentoa signos de comunicação. O pensamento onscienteé, para Nietzsche, a menor e a mais
é a internalização, através da memória, da rede de comu-
superficial porção do pensamento. O que a consciência faz é
nicação que passa a se estabelecer entre os homens, em de-
reduzir o pensamentoa palavras, em decorrência da necessi-
da linguagem o da consciência ão simultâneos.Quando a
corrência do surgimento da linguagem. O fato de nossas ações, pensamentos, sentimentos, mesmo movimentos nos chegarem à consciência -- ao menos parte deles-- é consequênciade uma terrível obrigação que por
longuíssimo tempo governou o ser humano: ele precisava, sendo o animal mais ameaçado, de ajuda, proteção, precisava de seus iguais, tinha de saber exprimir seu apuro e fazer-se compreensível -- e para isso tudo ele necessitava antes de consciência , isto é, saber o que Ihe faltava, saber como se sentia, saber o que pensava. Pois, dizendo-o mais uma vez: o ser humano, como toda criatura viva, pensa continuamente, mas não o sabe; o pensar que se torna co/zscfe/zfe apenas a parte menor, a mais superficial, a pior, digamos: pois apenas esse pensar consciente ocor re em Pa/auras, ozz e/a, em
senos de comi//zicação, com o que se revela a origem da própria consciência. Em suma, o desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento da consciência (/zãoda razão, mas apenas do tomar-consciência-de-si-da azão) andam lado a lado.'
Como o animal mais ameaçado , mais frágil, o homem encontrou no agrupamento, na reunião sua possibilidade de
manutenção, de sobrevivência. Mas para tornar possível esta
dade de sobrevivência do homem. Mas o pensamento não está
submetido a esta necessidade de comunicação: o homem, como tudo que é vivo, pensa continuamente, mesmoque não o saiba. Esta idéia, como vimos no capítulo anterior, relacio-
na o pensamentoa uma atividade interpretativa própria da vida, não unicamente dos homens. Mesmo o inorgânico pensa: 'Pensar' nos estados primitivos (pré-orgânicos) é realizar
estruturas, como no caso do cristal. No nosso pensamento, o essencial é ordenar o material novo nos esquemas antigos. ''5
O pensamento traduzido em signos de comunicação resulta de uma diminuição, de uma vulgarização, de um achatamento que tem como função reduzir o desconhecido ao conhecido. !
Um pensamento deste tipo, qu e nunca ocorre na realidade. é, porém, aplicado como modelo de formas e aparelho de filtragem com que, ao pensarmos, refazemos e simplificamos a extrema multiplicidade e diversidade do acontecer efetivo, para que dessa maneira o nosso pensamento se torne captável por meio de sinais.13ó
O que chamamos pensamento é apenas a esquematização
da linguagem. A redução do pensamento à consciência, e, KSA, 11, 688..
''4A ala íê/zcfa,354.
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VIVIANE MOSÉ
portanto, à linguagem, decorre de um processo que termin por produzir a maior de todas as simplificações, simplifica ções, a idéia de eu. A consciência, omo lugar da interioridade e da ordenação
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centralizadora do eu, não passa de um sistema de palavras. O processo de inversão de valores de que Nietzsche tanto fala, onde os conceitos conceitos mais elevados, mais universais e vazios são colocados no início, quando deveriam ser colocados no fim,t37 se sustenta possivelmentenessa possivelmentenessa nversão primeira onde o jogo complexo de forças vai ser substituído pela esquematização das palavras. O eu, uma generalização necessária porém abs-
trata e vazia, torna-se torna-seum um valor suprcrlao.Mas suprcrlao.Mas o quc ille dá direito de falar de um Eu, e até mesmo de um Eu como causa, e por fim de um Eu como causa de pensamentos? . A resposta de Nietzsche parece certa: a sedução das palavras. Ao contrário do valor superior conferido à consciência, ele diz: Tudo
o que entra na cg.psciência é o último elo de uma cadeia; uma .l conclusã o (:.:). O efetivo acontecer interligado passa-seabaipassa-seabai1: o do limiar de nossa consciência. consciência. ls8 Por baixo de cada pensamento encontra-se uma afecção. A função da consciência é exatamente afastar afastar as paixões. Conhecer, ou tornar consciente
é reduzir um processo corporal a sinais, é simplificar a com-
plexidade múltipla do que acontece. Ao relacionar o desenvolvimento da consciência ao desen-
volvimento da linguagem, Nietzsche não somente chama a atenção para o papel superficial superficial da consciência, como como acentua o poder niveladorda nivelador da linguagem.A linguagem.A força da comunicação, que impulsiona o homem em direção ao mundo elaborado
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dos signos, dos esquemas, das abstrações, não se sustenta ape-
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nas no uso das mesmas palavras, mas cada palavra deve estar vinculada a uma vivência semelhante, o que significa que é
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l t37Porexemplo, t37Porexemplo, em Crepúsculo Crepúsculo dos ãao/os, 'A razão na filosofia , item 4.
'~. l i KSA, 12,26.
NIETZSCHEE NIETZSCHEE A GRANDE POtfTiCA 0A LINGUAGEM preciso, para existir comunicação, que as pessoas pessoas tenham uma
experimentação comum das coisas, uma vida em comum. Não basta utilizar as mesmas palavras para compreendermos
uns aos outros; é preciso utilizar as mesmas palavras para a mesma espécie de vivências interiores. t3P A comunicação
implica não apenas dizer o comum, mas viver o comum. A natureza da co/zsc/ê/zc/an/ma/ ocasiona que o mundo de que podemos nos nos tornar conscientesseja conscientesseja só um mundo generalizado e vulgarizado -- que tudo que se torne torne consciente por isso nlcsmo torna-sc Liso, nulo, rclativanlcntc tolo, geral, signo, marca de rebanho.i40
A vida em sociedade, que Nietzsche Nietzsche chama de rebanho ,
é o resultado desta vida em comum , produzida pela pel a linguagem. E a submissãodo submissão do homem home m à comunicação comuni cação que produz o nivelamento, a vulgarização que marca o pensamento da co-
munidade, como multidão indiferenciada, como rebanho. Portanto, impulsionado impulsionado pela necessidade, o sistema de códigos da linguagem linguagemse se tornou cada vez mais sofisticado, chegando a compor uma abstrata rede de significações, significações, que, como um filtro, se colocou entre os homens e suas sensações, suas impressões e percepções -- das coisas e de si mesmo.
que antes era um conjunto de códigos que facilitava a vida gregária, se torna uma malha de conceitos cada vez mais ela-
borada, capaz de mediar não somente a relação rel ação dos homens uns com os outros, mas do homem com seus impulsos, suas paixões, do homem com a pluralidade,com pluralidade,com o devir, com tempo, com a vida. Esta rede de palavras, este aparelho de conhecimentos, resulta do armazenamento na memória de um do ma/, S 268 S 354
117
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E
complexo banco de dados. É este banco de dados dados que vai in-
terpretar, ou seja, vai simplificar, reduzir, selecionar,vai traduzir, na r :dada em que vai ou não reconhecer. reconhecer. A valorização desta capacidade capacidade de redução e de filtro vai fazer da consciên-
cia o lugar por excelênciadas excelênciadas avaliações: avaliações : somente pode ser conhecidoe, portanto, considerado, considerado, aquilo que pode ser reconhecido pela consciência, ou seja, traduzido em palavras. Ao contrário de uma instânciasuperior, instânciasuperior, a consciência é um
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que a consciência, como um mecanismo de linguagem, com sua capacidade capacidade de substituição, protege o homem da violência dos impulsos e da exuberância excessiva das sensações. O
homem deixa de sofrer por ser arrastado por impressõessúimpressões súbitas, por intuições, na medida em que estas são reduzidas
nomes,a conceitos. Ver é ser levado pelo que é visto, é ser arrastado pela sensação, sensação, pelo corpo- A operação conceptual,
meio de comunicação, não diz respeito à existência ndividual
ao reduzir esta impressão a um conjunto de códigos, códigos, protege aquele que vê: ver agora é um produto do nome. Os homens
do homem, mas reprodu z o que é comum na vida em sociedade. O que a consciência avalia estápreviamente determinado: tudo
são habituados de tal maneira que precisam, antes de mais
o que se torna consciente é espiritualizado, conceituado, e con-
foi substituí pela de nomear, que é o mesmo que acessar uma imagem previamente codificada. Desta forma, cada vez mais, apenas o conhecido é visto, porque
duz ao progresso, à elevação; por outro lado, ela afasta o que é animal, grosseiro, instintivo, que é considerado um retorno ao embrutecimento, ao primitivo, ao animal. Nada mais perigoso e paradoxal, para Nietzsche, do que a função da consciência: ten-
do se desenvolvido como uma necessidadede necessidadede perpetuação da vida, ela ela funciona como instrumento de depreciação. O paradoxal aqui é o fato de a consciência, como instância superior dos
homens,produto homens,produto de seu desenvolvimen d esenvolvimento to , e sua evolução ,
nada, de um nome para que uma coisa Ihe seja visível. i4z A
somente ele é passível de identificação, de reconhecimento. UlRg.nova i.mpressão, quando atinge a.vista, quando chega à
.consciência, ou é reduzida a uma outra já conhecida, ou é eli-
minada Como destituída de sentido. Esta é a proteção que homem espera e quer da consciência: se manter distante do
ser um órgão de negação da vida. Como se o h omem, no ponto mais alto do seu desenvolvimento , percebesseque percebesseque para pre-
desconhecido, do súbito, do inusitado, do diverso. O que ele esperae precisa é da identidade, da unidade, da duração,
servar a vida fosse preciso nega-la.
mesmo que isto implique um empobrecimento, uma vulgari-
A negação da vida considerada omo finalidadeda finalidadeda vida, como finalidade da evolução. A existênciacomo existênciacomo uma grande grande tolice. : Uma interpretação tão louca é somente produto monstruoso
zação. Produto de uma linguagem castradora, castrador a, niveladora, a consciência visa proteger e conservar o homem fraco, aquele
que se sente incapaz de lidar com a violência de seus impulsos.
de uma avaliação da vida por meio de fatores da co/zsciêncü.t4i
Este sistemade proteção, no entanto, é apenas um uma a pro-
A função, digamos, positiva deste processo de diminui-
messa. O sistema de 4blç11gçã:oa linawggçO.nég.!çln,g.pgdç!. nég.!çln,g.pgdç!. .dç..dççe.Lqvida. .dç..dççe.Lqvida. .O fluxo ininterrupto das forças é muito supe-
ção do homem, h omem, de domesticação domest icação de seus impulsos, está em
rior à nossacapacidade nossacapacidade simbólica de contenção. O que o fil-
1;, 1 iilFragmentos pósfwmos, pósfwmos, novembro 1887 a março de 88, 88, 11(83)
n2A ala iê/zela,261 iê/zela,261
VIVIANE MOSÉ çÇO.dêinguagem, e conseqüentemente da consciência,-termi-
tiplas que trabalham umas contra as outras, tais como as repre-
senta o conjunto c onjunto de toda vida orgânica, orgâ nica, o mundo consciente cons ciente
não de deter, deter, mqs de invcrtcr a dircção das forças. Isto, quc
queno fragmento. i''l A consciência, com relação à pluntlicladc
nir a si próprio, com a mesma crueldade e força que foi impe-
dida de se manifestar pra fora . O homem consciente de si, aquele que acredita em sua capacidade de julgamento e decisão, é o homem doente de si mesmo .
\... '
-
Todos os instintos que não se descarregam para fora z/o/famsepara dentro, é isto o que eu denomino a interiorização do .'
L''
'....../''
homem: é somentecom somentecom isso que cresce no h omem aquilo que mais tarde se denomina alma . O inteiro mundo interior, originariamente delgado como algo retesado entre duas pe-
obstruída.143
'-./ '''--,-''
\..,''
A mesma força de ação que foi rejeitada pela consciência transforma-se em reação, contra si mesmo e contra a vida. A vas se convertem em reativas. Portanto, a consciência impossibilitada de vencer a comple-
--..:P
'-....../'
de forças da vida, representa um papel absolutamente superficial, supérfluo, está destinada, talvez, a desaparecer e ser subs-
tituída por um automatismo completo .I's Um mecanismo como o da consciência permanece, e permanecerá sempre, impossibilitado de atingir o mundo sem
forma do caos das sensações. Os meios de expressão da linguagem são inutilizáveis inutilizáveis para dizer dizer o 'devir': pertence à nossa indissolúue! necessi(üde de conservação põr, sem cessar, um
mundo mais grosseiro de seres duráveis, de 'coisas' etc. i46Ao i46Ao
contrário de ter ter acessoà verdade das coisas, coisas, a linguagem a responsável por uma multidão de enganos Se o laço dos instintos, instintos, este laço conservador, não fosse tão mais poderoso do que a consciência, se não desempenhasse no conjunto um papel regulador, a humanidade sucumbida fatalmente sob o peso de seus juízos absurdos, de suas divagações, de suas frivolidades. i47
.çonsciênda é o lugar de inversão das forças, onde forças ati-
''...../
~-..../
de sentimentos, de intenções, de apreciações é apenas um pe-
les, separou-se aumentou,adquiriu aumentou,adquiriu profundeza, largura, altura na medida em que a descarga do homem para fora foi
'-..,...,''
produção de esquemas. Em relação às forças enormes e múl-
na por fazer .é.p11gduzir .é.p11gduzir ma interioridade autopunitiva,.que
olhar cada vez mais pra dentro de si mesmo, a julgar e pu-
qW-
GRANDE POLITICA DA LINGUAGEM
ele chama de.Iria:.ÇQOS.ciência. mpossibilitada de deter os fluxos instintivos, q consciência instaura um instrumento capaz Nietzsche chama chama de consciência de si , conduz o homem a
' =.
NIETzscnE E
xidade da vida, já que se compõe compõe como um aparelho de sinais,
A consciência, com a frivolidade dos seus juízos que marcou toda a produção conceiüual umana, não levou ao total perecimento do homem devido, exatamente, a seu cará-
se limita a inverter a direção das forças. Nos faltam órgãos mais
ter superficial.Sua superficial.Sua inferioridade om relaçãoaos relação aos instintos
sutis que possam ler a complexidade múltipla que se encontra
impede que seus juízos negativos sobre a vida atinjam a com-
em todas as manifestações da vida. Nosso aparelho de-conhe-
cimentos , como um aparelho de linguagem,fica reduzido à
neHtos
''7Z ala fêmcfa,ll. fêmcfa,ll.
t43Gepzealogfa moral, 11,S 16. 1 20
outonode outonode 1887, 10(137).
nslbid., primavera de 1888, 14(144). ' Frnpnentos póstumos, novembro de 1887 a março de ]888, 1 1(73)
VIViANC WOSé plexidade das forças. As funções animais são mil vezes mais importantes que os belos estados de alma c os ápiccs da cons-
Nie'1ZSCliE€ A CnANOCPOtlT}CA DA LINGUAGEM grande gritaria dos comediantes(...); quer, em terceiro lu-
ciência. ''* Mesmo todo aparato simplificadorda consciên-
gar, (ltlc cada um sc inclino diante da maior das mentiras, igualdade entre os homens -- e que venerem, exclusiva-
cia não é capaz de controlar os instintos determinantesda vida;
mente as virtudes zgzía//farias e /ziz/e/ac/orai. 49
em última instância, predomina a vida e seu jogo de forças. Sem conseguir conter a exuberância das forças, a consciência
O que o agrupamento, no entanto, exige, em troca da
vai ter como única proteção e refúgio a crença, a ilusão, o
comodidade prometida, é a eliminação da diferença, da sin-
fechar os olhos diante do que não pode suportar. O papel da consciência é então esconder, afastar aquilo que não pode ser
gularidade. A vida social produz não mais homens, mas um
vivenciado. O homem consciente é aquele que investe sua força em correr, em se afastar de suas próprias impressões, mas que termina refém daquilo que queria esquecer. Linguagem e consciência estão, para Nietzsche, determinadas pela necessidade de comunicação, uma necessidade que im-
põe a identidade, o nivelamento, a vulgarização. Se a vida em
grupo foi uma imposiçãopara a sobrevivência o homem, e se estaexigência da reunião impôs o acordo e conseqüentemente
achatamento, a vulgarização, o rebanho, o objetivo da cultura deveria ser produzir um tipo de compensação para esta limitação, por exemplo, a valorização da solidão. No entanto o valor
maior da modernidade, pensaNietzsche, é estenivelamentoproduzido pela consciência. O homem moderno atribui à comunicação, ao convívio, não uma utilidade, mas a representação do bem. A cultura moderna é produto da valorização moral da vida
único rebanho. Se destacar,ser visto torna-se essencial,na medida em que produz uma compensação ao nivelamento
que todos são submetidos. A necessidade da publicidade decorre do valor conferido ao rebanho: ser reconhecido pelo rebanho é o valor maior. Além do mais, o que a modernidade
valoriza em seus discursos, em sua política, o que carrega como estandarte, é a idéia de igualdade entre os homens . ou sela, o máximo que almeja é não deixar ninguém de fora do processo de nivelamento e vulgarização. Mas não há igual-
dade, a não ser como imposição. A igualdadeé a moral da comunidade, e resulta do medo da diferença, da singularidade, da solidão. Nietzsche é extremamente crítico a esta imposição de convívio, valor maior da modernidade. E faz, insistentemente, um elogio à solidão,'se como este do Zaxazzzslza:
em sociedade, como valorização,acima de tudo, do conforto, da ausênciade conflito e de dificuldade. A comodidade, que é o que a modernidade quer, é o que oferece a vida em grupo. EIe (o século XIX) quer, inicialmente e acima de tudo, comodidade; quer, em segundo lugar, a pub licidade e essa
Lenta é a experiência de todos os poços profundos: longamente têm de esperar, antes de saberem o gue caiu em seu fundo. É longe da feira e da fama que se passa tudo o que é grande; é longe da feira e da fama que moraram, desde sem-
i+vCitâdopor Kos sovitch, Leon. Sigzzos poderes em Nfelzscóe. São Paulo, Fraga enes pósf#mos, novembro de 1887 a março de 1888, 1 1(83).
Á.-i«: i97P:f: 50 como: Vo«f.d, '; p''êncl', 188s li« m tomo il S 667. isuEntre outros, destacamos, A/éln do be/ne do ma/, S$ 26, 44, 284.
VIVIAN E MOSÉ pre, os inventores de novos valores. Foge, meu amigo, para a solidão: vejo-te picado por moscas venenosas.'5'
O homem gregárioé aqueleque não quer ver, nem ouvir, nem saber. A grande função da gregariedade é, através da imposição de um modelo único de códigos, impedir a proliferação de interpretações e valores. Trata-se de uma interpretação que quer deter a interpretação. Somente o tempo e a solidão possibilitam a absorção e a digestão do que nos chega pelos
sentidos.Quanto maisprofundo é um poço, maior o tempo necessário para que alguma coisa Ihe chegue ao fundo. Então solidão é uma necessidade para quem quer conhecimento. Mas
a vida em sociedadeexige poços rasos. A consciência, como '-....-'
aparelho de conhecimento, é marcada por uma constante má '-.......-''
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digestão .'sz Como um estômagodoente, dispéptico , ela não digere, não absorve, apenas ulga, e aproxima ou abata. Somente
a solidão produz as condições para a criação de novos valores. Gregariedade e singularidade são signos que representam o mórbido e o são, respectivamente. A linguagem, a comuRiçação, a troca, a consciência, são sinónimos de gregariedade, de .con-
gWação da espêêiez.WEta111©e enfraauecimç1111g:..Masjetz. .scbqparéê;ããêiiitar.ga.posslbiljçladç de a jinguagep çpntemplar
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g,!bgdglidade, a força,a expanlãQ,.a gççpcia. valori;êção dasalidãa-éliii;iãaãfÉiiliélipais
condições para uma linguagem
.dirmativa. l.li!!.dg$.mais.belQg11tççbQ$jgbrell.pguageÚ, em sua \...../ .
Qblg,..êpqreqecomo um elogio à solidão. Se a linguagem nasce
como um signo do rebanho; éê a comunicação impõe o nive-
NltTZSCllt
E A GR/\NPt llol.flÊC/\ D/\ LINGUAGEM
do jogo de relações, da malha conceptualnascida da necessidade l
de troca, de comunicação, que o homem pode criar novos valo-
rcs. Em uma passagem ntitulada 0 regresso ,Zaratustra scvê diante da solidão e diz: Ó solidãol ó solidão minha pátria! Tempo demais selvagementevivi em selvagensterras estranhas, para não
regressar sem lágrimas. A solidão é a pátria de Zaratustra, e a l comunidade dos homens o que é estranho e selvagem. E, mais
adiante, a solidão responde: 'n.qui estásna tua casa e no teu lar; l aqui podes dizer tudo livremente e desabafar as tuas razões; na-l da aqui se envergonha de sentimentosocultos e obstinados. Aqui,
todas as coisasvêm afagantes o encontro de tua palavra, lison- l jeando-te: pois querem cavalgar nas tuas costas. E, mais adian- l te, Zaratustra diz: 'Abrem-se aqui, diante de mim, todas as palavras
e o escrínio de palavras do ser: todo o ser quer tornar-se, aqui, l
palavra, todo o devir quer que eu Ihe ensinea falar. Lá embaixo, li
porém, todo o discursoé inútil. Esta passagem,acima de tudo, ressaltaa possibilidade de uma linguagem afirmativa, uma linguagem que não tenha como
funçãoa negação,ou a depreciação a pluralidade.Trata-se, ao contrário, de uma linguagemque tenha como função atrair a pluralidade. Nela, as coisas vêm ao encontro da palavra, em vez de a palavra impor identidade ao múltiplo. Nãg.É.3 palavra que fala ali, mas as coisas; a palavra é um meio capaz de'fazer as coisas falarem, por isso pode contemplar o devir. Lã:em. +
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baixo , diz ele, todo discurso é inútil,.parque .já, pão são as coj$as
que falam, quem fala são as palavrase o eu, que, ao contrário
lamento e a vulgarização, a possibilidade de uma linguagem afir-
.gS dizer, querem fazer calar quando impõem a identidade ..Aqui, todo o devir quer que eu Ihe ensine a falar . Aqui, o devir quer
mativa surge, então, relacionada à solidão. É somente se afastando
falar atravésde mim. Então falar, aqui, é me calar, ou calar o meu eu, a minha consciência. Esta inversão dos valores da lin-
'-.a-'
Das moscas da feira' S 230. 1 24
guagem acontece em conseqüênciada solidão, onde a imposição da comunicação já não existe, onde já não existe a
VIVIANE MOSÉ
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LÍNGUA'GEM
necessidadede acordo. A linguagem, aqui, não está submetida à comunicação. Somente o que foi antecipadamente acordado é possível de ser comunicado. O fundamento da comunicação
guagem, parece remeter a um contraponto: de um lado a vida
é a redução e o acordo. Não são as palavras que falam na lin-
gregária e sua linguagemvulgar, de outro a solidão permitindo
guagem da comunicação, mas o acordo estabelecido entre quem
uma nova relação com os códigos. Sc na vida gregária os homcns
fala c quem ouve. Quando existe acordo existe comunicação, mas quando este acordo se quebra ninguém diz mais nada, mes-
s.c relacionam uns com os outros nlcdiaclospcla iclcntidaclcda linguagem, na solidão o homem se relaciona diretamente coh
mo usando as mesmaspalavras. Enquanto a gregariedade cala,
os códigos e pode perceber a impossibilidade da identidade. É a
a solidão diz, por não pressupor um acordo. Aqui, a solidão diz a Zaratustra, podes dizer tudo , nada se envergonha de
vida que na solidão vcm ao encontro das palavras, a vida como pluralidade e devir, como impossibilidadede sentido e verdade:
seus sentimentos ocultos. Aqui, Zaratustra não precisa ser nada,
'n.qui, todas as coisas vêm afagantes ao encontro de tua palavra,
e pode ser qualquer coisa e deixar que as coisas sejam. Aqui,
lisonjeando-te: pois querem cavalgar cm tuas costas. Mas na comunidade, no rebanho, lá embaixo , todo discurso é inú-
eu não impõe sentido nem duração às coisas, porque não há outro , nem necessidadede acordo. Muitas coisas podem ser pensadas a partir destas passagens.
tra e mais complexa questão. O elogio à solidão, acompanhado de uma das raras passagens onde Nietzsche faz um elogio da lin-
til , porque não diz nada, não pode dizer. A identidade imposta às coisas é a única coisa que pode ser dita. Tudo se torna um.
Uma delas é que as palavras, quando assumidas como signo, como
valorização da solidão parece remeter a uma crítica dos valores
sinal, podem afirmar a vida. As palavras, quando não atadas
gregários, valores que negam a diferença, a pluralidade, ao mes-
vinculaçãodo sentido, da comunicação, o outro, são como
mo tempo que aponta para uma linguagemque não estejasub-
molduras vazadasonde a vida se configura. As palavras na soli-
metida ao acordo.
dão são abertas, e não fechadas como são quando conceito. Não
Encontramos em outra passagemdo ZarnfusZxa, 0 con-
possuindo interioridade, as palavras se configuram como uma
valescente , a mesma relação entre solidão e linguagem afirmativa. Ali, na solidão de sua caverna, Zaratustra se relaciona com seu pensamento abismal, o pensamento do eterno retor-
abertura para a exterioridade. ':Abrem-seaqui , diz ele, diante de mim, todas as palavras. Mas lá embaixo, onde as palavras s
fecham em conceitos, todo discurso é inútil. Existe, portanto, discurso do lá embaixo , o da vida gregária, e o de cima , o da
no. Mas Zaratustra não suporta essepensamento, nojo, nojo,
montanha, o discurso da solidão. É a relação entre estas duas
animais o rodeiam falando, perguntando o que estava acontecendo. E ele diz:
linguagens que parece remeter a uma afirmação.
nojo , diz ele, e dorme durante sete dias. Ao acordar. seus
Se a questão trazida por Nietzsche não é a negação do grupo e o recolhimento à solidão, ou seja, se o que ele faz não é propor
(...) como é agradável que existam palavrase sons; não são
uma escola entre o agrupamento e a solidão, já que isto seria
palavras e sons arco-íris e falsas pontes entre coisas eterna-
opor valores, seria configurar bem e mal, trata-se, então, não da
mente separadas?Toda alma tem o seu mundo, diferente dos outros; para toda a alma, qualquer outra alma é um
pura e simples negação da linguagem gregária, mas de uma ou-
VI VIANE
OSE
trasmundo.(...) Para mim, como haveria algo exterior a mim? Não existe o exteriorl Mas esquecemos sto a cada palavra; como é agradável que o esqueçamos.
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uma brincadeira, uma doidice, uma mentira. As palavras ser-
pessoas, entre coisas. A solidão é própria de todo ser indivi-
linguagem como veículo de manifestação da verdade verdade faz com
dual. O abismo é constitutivo de tudo o que é vivo. As pala-
duê á linguagem seja devolvida a si mesma, e reencontre reencontre seu
vras não conseguem abolir as distâncias entre as coisas, que permanecem separadas, mas a cada palavra que falamos nos esquecemos deste abismo. E como é agradável que o esqueçamos , ele diz. É este esquecimento, produzido pelos sons, a ponte que transpõe o intransponível. A função da linguagem
lugar como afirmação. Mais adiante, Zaratustra vai falar a seus animais sobre o
não é aproximar o eternamenteseparado, eternamenteseparado,mas produzir esta ponte que torna o homem capaz de dançar sobre as distâncias
que constituem as coisas. A função afirmativa da linguagem não é dizer, já que a complexidade da vida não pode ser reduzida em palavras. A função da linguagem é sobrevoar, dançar,
fazer esquecer.O esquecimento,como esquecimento,como vimos vimos no primeiro capítulo, é em Nietzsche condição para uma boa saúde. O esquecimento agua nvertendo o fundamento do homem de E, ainda na mesma passagem, continua: Não foram as coisas presenteadascom presenteadascom nomes e sons, para que o homem se recreie com elas? Falar Falar é uma bela doidice: com ela o homem dança sobre todas as coisas. coisas. Quão grata é
toda a fala e toda a mentira dos sonsa Com sons dança o nosso amor em coloridos arco-íris. \...
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te, confere à linguagem seu poder afirmativo. afirmativ o. A linguagem
Ao dizer que as palavras são falsas pontes entre entre coisas eternamenteseparadas eternamenteseparadas , Nietzsche chama chama atenção para impossibilidade impossibilidade de a linguagem transpor a distância entre
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positividade. E a mentira dos sons que, mais especificamen-
vem, antes de tudo, como recreação, como dança. É a menti ra dos sons son s que permite esta dança. A linguagem, como um universo distinto, o universo da mentira, da doidice, da dança, tem na ficção sua força afirmativa. A. desautorização da
rebanho, a memória e, por conseqüência, a consciência. -......'
NIETZSCHE E A GRANDE POLITICA DA LINGUAGEM
A questão mais importante neste texto, segundo se gundo nos parece, é a afirmação de que a mentira da linguagem é sua 1 28
que impediu seu pensamento abismal de ser ser pronunciado.
volta a dizer nojo, nojo, nojo . É quando seus animais o incitam a cantar. E Zaratustra diz: Que eu deva cantar -- este
consolo e esta cura inventei para para mim. E os animais animais mais mais adiante dizem: Ê melhor, convalescente, que prepares primeiro uma nova lira para ti, uma nova lira! Porque vê, Zaratustra, para teus teus novos cantos precisas de novas liras. que Nietzsche Nietzsche parece fazer, aqui, é chamar atenção para para necessidadede necessidadede criação criação de novas linguagens. Novos cantos precisamde novas liras. Pensamentos olitários não encontram lugar na comunicação comunicação do rebanho. E o pensamento abismal do Zaratustra não pode ser falado, sem ser diminuído, vulgarizado. vulgariz ado. Canta, é o que Ihe dizem os animais. Ao inventar para si mesmo esta esta cura Zaratustra dança com a vida. E é estadança, estadança, a dança da músicadas músicadas palavras,que, palavras,que, enfim, permite a Zaratustra afirmar o eterno retorno: Pois eu te amo, ó eternidade. eternidade. E termina, termina, assim, a terceira parte do livro: Não
foram as palavras feitas para os seres pesados? Não mentem todas elas, porventura, à criatura leve? Cantai Não fales mais.
E a experimentação experimenta ção de uma nova linguagemque linguagemque permite a Zaratustra afirmar o eterno retorno. retorno. Criar novas linguagens linguagens 1 29
VIVIANE MOSÉ
NÉETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM g..ú-, .
é o que precisa precisa Zaratustra. Mas já existem muitas linguagens, diz Nietzsche neste fragmento póstumo: há mais linguagens do que se magina; (...) e o homem, de alguma alguma maneira, verte
suasconfissõesno confissõesno vazio ou seja, fala o tempo todo sem saber que fala; não é lamentável lamentável , diz ele, ele, que o espaço vazio não tenha ouvidos? .:s3 As As linguagensdistintas, portanto, já existem. Mas a linguagem humana, que não quer falar, se
b
ogÍ-l. r.
A questãotrazida, questãotrazida, enfim, por Nietzsche é: se a consciência, como mecanismo de inversão das forças, nasceu n asceu da indigência, da fraqueza, não seria o caso de produzirmos um pensamento nascido da abundância, da força, da coragem, da
solidão? Somente Somente a partir de uma correlação de forças afirmativa o pensamento e a linguagem afirmativa se tornariam possíveis. Se a linguagem nasceu e se constituiu constituiu como um sig-
dedica a calar esta multiplicidade de l inguagens. A linguagem
no do rebanho, por ter se fundado na rede de comunicação
conceitual, a linguagem que fala, encerra a linguagem, apri-
da consciência, do sujeito, Nietzsche considera a possibilida-
sionando-a em conceitos. Se existem muitas linguagensdas linguagens das
de de uma linguagem fundada na singularidade, na solidão. ;
quais não tomamos tomamos conhecimento é porque valorizamos, an-
Somente uma linguagem que não se sustentasse na identida-
tes de tudo, a consciência. Somente a linguagem que se dá por
de, no sujeito, no sentido, na consciência, poderia contem-
uma tradução dos processos mentais em signos de comunica-
plar os abetos.
ção é por nós reconhecida.Então, reconhecida.Então, mais do que criar novas linguagens, trata-se de desautorizar a linguagem que tem como
função calar. Devemos desconfiar, diz Nietzsche, do que em nós é pen-
samento, sentimento, sentimento, vontade; vontade; é preciso desconfiar de tudo que em nós se torne consciente. 0 erro fundamental consis-
--,
O que buscamos fazer, até aqui, foi tratar o problema p roblema da linguagem a partir partir do nascimento dos signos. Vamos, a seguir, abrir uma nova perspectiva de avaliação: ao tratar do proble-
ma da gramática gr amática estaremos apontando para pa ra as camadas de sentido sobrepostas sobrepostas no decorrer da história do pensamento ocidental.
: te em tomarmos como medida (...) o consciente, cons ciente, em vez de compreendermos que ele não passa de um instrumento, de uin dctalhe no conjunto da vida; é uma falsa perspectiva que
toma a parte pelo todo. 's' O que atinge a consciência é mediano e comum, produto da necessidadede necessidade de convivência. Somente abrindo mão da imposição da comunicação pode a linguagem explorar suas potencialidades. Da mesma forma que
as palavras não estão, necessariamente, em correspondência com as coisas, a linguagem não está submetida, submetida, unicamente, à consciência e à comunicação. lsiVolzfade e pofêncfa, outono de 1883, liv. 1, tomo 1, item 52.
ls'Fragpnenfosósfulnos, s'Fragpnenfosósfulnos,outono outono de 1887, 10 (137). 1 30
131
PARTE li A gramática
CAPÍTULO A órbita do pensamento
â..S$1ulyl.a.conceitpal.mode.rna, segundo pensa Nietz.ache, construída a partir de Platão e Aristóteles, tendo como base .Parmênides de Eléia, se sobrepôs ao próprio pensamento: pensamento não pensa mais, quem pensa é a composição formal do discurso, que, mais do que uma estrutura formal é uma
estrutura moral. O fundamentológico-gramaticaldo pensamento, que se tornou o lugar por excelência de reprodução da crença na identidade, passou a não se distinguir mais do próprio discurso, tudo o que é dito é necessariamente dentidade, verdade, ser.
Em A/ém do bem e do ma/, Nietzsche explicita, de forma bastante nítida, este elaborado sistema: Os conceitos filosóficos individuais não são algo de fortuito
e que se desenvolve por si, mas crescem em relação e em
parentescoum com o outro; embora surjam de modo aparentemente repentino e arbitrário na história do pensamento, não deixam de pertencer a um sistema, assim como os
membros da fauna de uma região terrestre -- tudo isto se
confirma também pelo fato de os mais diversos filósofos preencherem repetidamente um certo esquema básico de filosofias possíveis. À mercê de um encanto invisível tornam
descrever sempre a mesma órbita: embora se sintam independentesuns dos outros com sua vontade crítica ou siste1 37
VIVIANE MOSÉ
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
mítica, algo neles os conduz, alguma coisa os impele numa
fura, mostrando que a função formal da gramáticanão é
ordem definida, um após o outro -- precisamente aquela sistemática e relação inata entre os conceitos. O seu pensamento, na realid ade, não é tanto descoberta quanto reco-
alguma coisa, mas, mais do que isto,determina o que pode e
nhecimento, relembrança, retorno a uma primeva, longínqua morada perfeita da alma, de onde os conceitos um dia bro-
sõfia não conseguiu dar um passo além da gramática; toda
absolutamente possível. A l.ógica:g.ramaticalnão somente diz o que não pode ser dito. Na interpretação de Nietzsche, a filo-
taram. (...) Onde há parentesco ingüísticoé inevitávelque,
filosofia é, em última instância, uma filosofia da gramática .
graças à comum filosofia da gramática -- quero dizer, graças ao domínio e direção inconscientedas mesmas funções gramaticais --, tudo esteja predisposto para uma evolução e uma sequênciasimilares dos sistemas ilosóficos: do mesmo modo que o caminho parece interditado a certas possibilidades outras de interpretação do mundo.'ss
A escravatura que a lógica-gramatical impõe à linguagem não
O. modo CQlno os conceitos filosóficos surgem, a relação
çstabglçcjdaÇBgç .eles, determina o que enunciam. Quando. gln conceito aparece, é porque de alguma forma ele estava sendohêcessárió: o conceito não traça sua própria trajetória, Dê$jãjüajétóiíC previamente determinada, é que exige este
resultade um erro, ao contrário, trata-sede um aprisionamento que auxilia, mais do que impede, os propósitos do pensamento conceptual,que não é a descoberta, mas o reconhecimento, a relembrança . É sempre sobre um fundo fixo, é sempre sobre órbitas há muito estabelecidas, que o conheci-
mento se torna possível. Muito ao contrário de buscar a verdade , o conhecimento tem como função traduzir o desconhecido em conhecido, com o objetivo de tornar ordenado (o que pode ser substituído por humanizado ), o que é caó-
tico, o que é devir. Saber, portanto, não é conhecer,mas esquematizar, simplificar, traduzir a pluralidade, o excessoem
g.k.àquele conceito: Ê a relação de parentesco linguístico entre os conceitos que impõe o sistema do qual todas as filoso-
um esquema reduzido de sinais. Todo saber implica uma von-
fias, necessariamente, azem parte. Onde há este parentesco lingüís .co, filosofar acaba sendo, não somente aceitar, mas
so por outro: o devir e a pluralidade são substituídos pela identidade, pela causalidade, pelo ser. Este filosofar em ór-
reproduzir este sistema. Isto que Nietzsche chama de filosoórbita manifesta a reduç o pensamento às lógico-gramaticais. A lógica quer fazer acreditar que seu lugar no pensamento não é produzir conteúdos, mas fornecer a forma geral dos pensamentos; a rigor, nunca diria nada, apenas forneceria as condições ideais do dizer. Quando Nietzsche se refere à filosofia
bita parece indicar que o investimento da filosofia foi sempre
em direção à construção e reprodução desta grade interpretativa imposta como linguagem. Esta concepção do pensamento filosófico, como um sistema constituído a partir de órbitas preestabelecidas,parece afirmar como prioritário na produção filosófica, portanto, não o pensamento, mas a criação de cada vez mais elaboradasabstrações, capazes de sus-
da gramática ele denuncia a pretensa neutralidade d esta estru-
tentar a rede significativa que tem como função a manutenção
;Pi#eaiben+;.-#+'BF+wtb'/+n. fl'+:=Nn$!- e. wl oH#w&.- p-. 'xç
t-sç.4/éíno óem e do lna/, S 20.
'=
4-
«uZ
tade de transposição, de criação e substituição de um proces-
da identidade, da duração, do sujeito. À medida que esta vontade de duração se institui como leis da linguagem, os
VlviANE Mass
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
caminhos que o pensamento vai percorrer estarão previamente
mifica . Se todo conceitonasceda identificaçãodo não-
traçados; o que significaque nada absolutamentepoderá ser dito, que não sejaser, identidade, verdade. Funcionando como.,..
moldura para toçla e qualquer tentativa de pensamento, de .compreensão, es.ça inguagem metafísica chamada razãoisó reproduz invariavelmente eu próprio contorno. Em CrepzZsczl/oos i'do/os,Nietzsche se dedica ao probleL\A..+P
h-.../''
idêntico , toda crença na identidade é um processo de mumificação. Não foi o pensamento socrático que criou conceito
e verdade, que, como vimos, nascem untamente com a linguagem, mas foi Sócrates, segundo Nietzsche, o primeiro a fazer da verdade e do conceito o alvo do pensamento, o bem.
ma da razão mostrando que a racionalidade resulta de uma negação ocráticada vida. Ê a luz diurna da razão que deve
Foi o mais grosseiro erro que se cometeu, a verdadeira fatalidade do erro sobre a terra; nas formas da razão acredita-
guiar o homem contra os apetites do corpo. E preciso ser claro, luminoso a qualquer preço. Esta valorização da razão,
ram encontrarum critério de realidade,quando apenas tinham nessas formas um meio para se tor narem senhores da realidade, para se eqz/íuocarem om a realidade de manei-
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em detrimento do corpo e da vida, vai marcar a filosofia desde Sócrates. Quais as idiossincrasias dos filósofos?, pergunta \q.../
ra inteligente. ''
Nietzsche, e responde:
'\-..,''
'\'-...
:\..,.,'
'
Sua falta de .sentido histórico, seu ódio contra a representação mesma do vir-a-ser, seu egipcianismo. (...) Tudo que os filósofos tiveram nas mãos nos últimos milênios foram mú-
mias conceituais;nada de efetivamentevital veio de suas
.
-.........'
mãos. Eles matam, eles empalham quando adoram, estes senhores idólatras de conceitos.ls7
Os cona:eixosque sustentam a razão metafísica ----o ser, a identidade, a causalidade e, como quer Nietzsche, a oposição de valores -- são, ao mesmo tempo, leis da linguagem. É nê !inguagem que a vontade de verdade, como vontade de dura:
ção, vai plantar seus pilares de sustentação. Portanto, a linguagem é, para Nietzsche, desde seu nascimento, metafísica; e a metafísica decorre de um aperfeiçoamento da linguagem.
':......../
'.
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'\.J
A racionalidade nascida com Sócrates é que produz este processo de valorização dos conceitos,'s* este egipcianismo . em detrimento da pluralidade,isP a filosofia
empalha
e mu-
tsó lnserimo-nosem um fetichismo grosseiro quando trazemos à consciênci os pressupostos fundamentais da linguagem metafísica: ou, em alemão, da razão . Crzpúscw/odos z'ao/os,':A razão na filosofia . ts7ibid
''-....#'
são
aparelhos
de produzir
duração.
Ao fixar a pluralidade no conceito, e ao valorizar o conceit
*\......#'
-...,...''
A razão é uma metafísicada linguagem.Linguagem e razão
isKDizNietzsche em A/7/oso/Za a época trágica dos8regos , S 5: razão é um modo de representaçãoque procede por conceitos e combinações lógicas . tsP Um onceito é uma invenção a que nada corresponde integralmente, mas a que muita coisa corresponde um pouco KSA, 11, 464.
demos com exatidão até que ponto a preocupação da razão nos obriga a fixar a unidade, a identidade, a duração, a substância, a causa, o ser, de sorte que nos enreda no erro e torna necessário o erro (...), sucede como no movimento dos astros, só que neste caso nossos olhos são o advogado perpé-
tuo do erro, e naquele uem advogaem favor do erro é a nossa linguagem. Segundo seu aparecimento, a linguagem ' 'FxngmelzrosósfKmos, rimavera e 18 8, 14(153)
.
1 40
141
VIVIANE MOSÉ pertence ao tempo da forma mais rudimentar de psicologia. Inserimo-nos em um fetichismo grosseiro quando trazemos à consciência os pressupostos fundamentais da linguagem metafísica: ou, em alemão, da razão.ió'
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
nou o sistema conceptualmetafísico.A idéia de ser, ao configurar a crença no princípio de identidade, princípio racional por excelência, passou a estar presente em cada palavra, êm cada frase que falamos. Mas é na idéia de Eu que este ser se sustenta.
Nietzsche, ao contrário da tradição, que acreditava na razão como aquilo que é próprio do humano, como aquilo
Esse fetichismo vê, por toda parte, agentes e ações; ele crê na vontade enquanto causa em geral; ele crê no Eu , no Eu
que Ihe é natural, chama razão a este sistema moral de interpretação do mundo. A razão é a órbita capaz de fazer o pen-
enquanto Ser, no Eu enquanto Substância, e pro/ela essa cren-
samentogirar em torno da mesma déia: a identidade, a
ça Eu-substância para tod as as coisas. -- SÓ a partir daí a cons-
causalidade, a não-contradição do ser. E a linguagem .quem
ciência cria então o conceito coisa ... Por toda parte o Ser é introduzido através do pensamento, /mp lado como causa. ó3
':advoga a favor.do erro metafísico do ser; raciocinar-é sub..meter o p ensameBlo a este sistema.
A crença no ser, que marca o nascimento da razão ociden-
tal, é a configuração da idéia de verdade. Ê em torno da noção.de ser que cirçyla a filosofia metafísica.A despeito de toda tentativa c ítica, a filosofia nada mais fez do que reproduzir, incessantemente, uma lógica da identidade, como vontade de
Utilizar a linguagem metafísica, a razão, é pro/alar a identidade --
eu substância -- para todas as coisas. Isto implica
que o mundo se torne um mundo de identidadesobserváveis, de coisas : é somente a partir daí que surge o concei-
duração, como vontade de verdade. A noção de ser como
to coisa . Não somente de coisas , mas de ações, ou seja,
aquilo que é -- o que é não vem-a-ser; o que vem-a-ser não é
as coisas
-- mais do que um conceito filosófico tornou-se um funda-
sas e assim por diante. A razão das coisas é sempre seu prin-
mento do pensar metafísico:
cípio, sua origem, em última instância, seu ser, sua verdade. Desta forma, o mundo se compõe como um todo ordenado,
Nada teve, até o presente, uma força de persuasão mais in-
gênua que o erro do Ser, como foi formulado, por exemplo, pelos Eleatas; pois ele abarca toda e qualquer palavra, toda qualquer frase que pronunciamos! Também os oponentes dos eleatassucumbiram à sedução do seu conceito de Ser.''z A crença no SU surgida com Parmênides, é para Nietzsche
o erro fundamental, por ser a sustentaçãodaquilo que se tor..-PF-aN
de alguma forma estável, disposto ao conhecimento. Este ser.
esta dentidade e unidade, este princípio de ação, esta causa que a linguagem atribui às coisas, é produto de uma projeção psicológica, nasce da crença na origem subjetiva destes mesmos atributos. Em outras palavras, a metafísica resulta de
um antropocentrismo imaginário: o homem projeta nas coisas aquilo que ele gostaria ou imagina ser. ':A crença funda-
mental , diz Nietzsche em um fragmentopóstumo, é a de
i''Crepúscu/o dos ãao/os, 'A r azão na filosofia , S 5 t
.
t
1 42
(identidades) são causas, que originam outras coi-
VfVÉAN E MOSÉ
que existem sujeitos. ''4 E este sujeito fundamental , cujos atributos são unidade, identidade, substância, causa , é projetado nas coisasproduzindo o mundo de coisas. O fetichismo
da razão é a projeção de uma força subjetiva,autónoma e ordenadora, nas coisas. Desta forma, o mundo não somente
se torna ordenado, mas dirigido pelo sujeito. Identidade, substancialidade, causalidade, sujeito, Deus, linguagem, são construções que se retroalimentam, que se auto-implicam, não
somenteentre si, mas com todos os outros valores produzidos pela racionalidade. Pensar qualquer coisa é remeter sempre ao emaranhado
lógico-gramatical
fundado
por estas
mesmas noções. Os conceitos não são configurações autóno-
'!h..,''
mas, distintas umas das outras, ao contrário, estão vinculados, atados uns ãos outros pela lógica da identidade. Mesmo .o conceito Deus decorre da metafísica da linguagem. A idéia
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de Deus nada mais traduz do que, em uma única palavra, a idéias de causa, sujeito, substância, identidade, unidade, ser.
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Ç..g.este sentido.Sye Nietzsche afirma da --- .Li - a .imp.ossibilidade +ü . ., ' '' SQp$umàçãQ.da,morte de Deus, por sua vinculação gramád=. iilse=eq:iab+üPçi$+»qqüR+nZ+4n-wP:.-PPP «ü-+44:::il»iPP a#pXPoqP-
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ca.. São as categorias lógicas que, ao reproduzir incessantemen-
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te.g idéia de Déüs, garantema perpetuaçãodos valores de
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negação da vida'$ão estas categorias que, em última instân'
çia, determinam a reatividadeda linguagem. A lógica é a estrutura que funda e perpetua os valores de negação.
i KSA, 12, 102-3 1 44
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O ser de Parmênides
Para Nietzsche, Parmênides é, an tes de tudo, quem instaura o domínio lógico-gramatical como lugar por excelência do pensamento. E na linguagem que ele encontra a segurança, a estabilidade capaz de demonstrar sua crença no ser. O mundo,
como mudança, como devir, é o lugar do erro; somente pensamento pode demonstrar o que é. Em Á /Z/oso/}ana época frcíg/ca dos gregos, Nietzsche se refere à entrada de Parmê-
nides no pensamento grego como sendo o momento menos grego de todos, nos dois séculos de idade trágica . 1'5 nserin-
do a mais pura abstração, a teoria do ser de Parmênides em nada se parece com a linguagem dos mistérios, dos magos, dos adivinhos, dos profetas; ao contrário, nela, quem fala é uma
luz fria, feita de gelo: é por uma dedução lógica e não por intuição, como era costume grego, que Parmênides atinge seu conceito de ser. Xenófanes de Cólofon, por exemplo, considerado seu antecessor por propor um Deus único, absoluto, eter-
no e eternamente imóvel, chega a este ponto por uma via mística e religiosa; da mesma forma Heráclito que, com suas
palavras, exprime o orgulho e a majestadeda verdade, fala de
uma verdade apreendida por intuições.lóóO que Parmênides instaura, ao contrário, e que vai ser seguido por seus sucessoépoca rnágíca dos grãos, $ 1X
1 47
VIVIAN E MOSÉ
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
res, mesmo por aquelesque o criticaram, é um tipo de argumentação fundada não em intuições, mas em uma dedução lógica. Não é o qae Parmênidesestabelece omo ser a maior contribuição de seu pensamento, mas antes de tudo o como ele
chega a isto, a via que o trouxe até o ser, a via da linguagem. Em seu poema Sobre a afz rezáló7temos: E necessário
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pensar e dizer isto: que o ente é, pois é ser; e que o nada não é, pois (é) não ser. ' O nada, porque não é, não pode ser pensadonem dito, e o que não pode ser dito nem pensado
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não é. Desta única premissa, no decorrer do poema, Parmênides conclui: o ser é imóvel (se se movesse se tornaria
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que não é, o não-ser), uno (se houvesse utro, este outro seria o não-ser), eterno (sempre existiu, se tivesse começado, antes do começo seria o não-ser), indivisível (se se dividisse, as partes seriam o outro, o não-ser) e pleno (se houvesse in-
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tervalos em seu interior, seria o vazio, e o vazio o não-ser); o não-ser não existe porque não pode ser pensado nem dito. Esta argumentação termina por estabelece não somente a identidade do ser, mas a correspondência entre ser e pensar: pensar e ser é o mesmo , ele diz mais adiante no poema. Somente o que pode ser pensado e dito é.
que as palavras dizem das coisas. Ao contrário de Parmênides.
Górgias afirma: nada é . Esta argumentação sofística, explicitada por Bárbara Cassin,''9 recoloca a posição dos sofistas,
consideradosmeros enganadores .Ao contrário, o que os sofistas vão fazer é antecipar esta questão contemporânea, da impossibilidade do discurso e do conhecimento verdadeiro. Se a conclusão lógica de Parmênides, da correspondên-
cia entre ser e pensar, não vai poder ser levada adiante, a valorização do pensamento como lugar da verdade, no entanto, vai permanecer como um estandarte da metafísica. O que, de
alguma forma, Parmênides instaura é o pressuposto de que nós temos um órgão de conhecimento, o pensamento, que é capaz de atingir a essência das coisas, e revelar a verdade:
Não
acrediteis nestes olhos estúpidos , diz ele, não acrediteis no ouvido barulhento ou na língua, mas examinai tudo com a força do pensamento. ''o Esta supervalorização do pensamen-
to, e conseqüente ejeição dos sentidos,vai ser responsável pela dissociação brutal entre os sentidos e a capacidade de produzir abstrações. Parmênides encorajou, segundo Nietzsche, a cisão inteiramente errónea entre 'espírito' e 'corpo' que, sobretudo desde Platão, pesa como uma maldição
E esta afirmação que Górgias, segundo Platão em O se/7s-
sobre a filosofia . ''i O que a filosofia termina por fazer é cons-
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fa, vai usar para criticar Pannênidcs: se tudo que pode scr
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pensado é, então o não-scr é, lú quc Parmêiliclcs foi capaz dc
truir um universo de conceitos, de abstrações,de proibições, quc sc fcclia sol)rc si mcsnlo, cxcluiiltlo toda relação cona irracional, com os instintos, com as paixões, com o corpo.
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dizê-lo. Com isto Górgias, não somente mostra que o pensamento e a linguagem não remetem às coisas, mas remete própria linguagem:um discurso remet semprea outro discurso. Um discurso não revela o que as coisas são, revela o
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ió7Parmênides. Os pré-socráticos , in: Os Pe/zsadores,São Paulo, Abril, 1873, P. 148. tó8lbid.
Em seu poema, onde sustenta sua argumentação
no
propno pensamento, o que Parmênides termina por fazer é argumentar a favor dos dois principais princípios lógicos, conferindo-lhes o estatuto de verdade: o princípio da identiEnsaios se/ísf/cos. São Paulo, Siciliano. 1990. na época /rágfcadosgnqos,S X, Parmênides citado por Nietzsche
1 48
i 49
VIVtAN E MOSÉ
N}ETZSCRE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
dade, o que é é , ou o ser é , e o princípio da não-contradi-
coisas entre si, como a palavra não-ser .(...).
ção, se o ser é, o seu contrário, o não-ser, não é ; a afirmação
pelos conceitos, nunca atravessarcmos o muro das relações, nem penetraremos em qualquer origem fabulosa das coisas.''3
do ser exige a negação do não-ser. Estes dois princípios somente serão s:.tematizados como p rincípios de linguagem na lógica
aristotélica, mas é na ontologia de Parmênides que eles sesus-
tentam. É em torno destes princípios que vai se fundamentar a metafísica. Se, por um lado, o princípio de identidade possi-
Pelas palavras e
O ser é apenasuma palavra, assim como o não-ser, no entanto é em torno desta palavra que gravita a metafísica.
Contra o ser de Parmênides,Nietzsche tem Heráclito:
bilita a crença na duração e na verdade, por outro, o princípio
Usais os nomes dascoisas como se tivessem uma duração fixa;
de não-contradição fornece aquilo que Nietzsche acredita ser
mas até o próprio rio, no qual entrais pela segunda vez, já não
a crença maior da metafísica. A crença fundamental dos metafísicos , diz ele, é a crença na oposição de valores. ''z
é o mesmo que era na primeira vez. i7' A vida é mudança, uma exuberância de forças, um excesso. Não existe uma es-
esta oposição que estrutura a filosofia de Platão. Ao dividir
sência, um ponto fixo nas coisas, mas um fluxo contínuo, em
mundo em dois mundos opostos, Platão mantém, antes de
constantetransformação. Esta concepção do devir universal -- de onde as coisastiram sua origem, aí devem também perecer, segundo a necessidade -- é percebida por Anaxi-
tudo, a divisão parmenideana entre espírito e corpo, entre pen' samento e sensação, entre ser e devir. E esta contraposição que servirá como linha divisória entre o bem e o mal: o bem é tudo
mandro, antecessor de Heráclito, como
uma emancipação
que diz respeito ao pensamento, à idéia, à alma, à duração; o
criminosa do ser eterno, uma iniqüidade que tem de ser expia-
mal é tudo que diz respeitoao corpo, às paixões,ao tempo. Esta divisão se perpetuarácomo um em si do pensamento.
da com a ruína. ''5 Esta dificuldadeem lidar com a mudança, dificuldade bastante humana, segundo Nietzsche, é que vai diferenciar um pensador do outro, já no pensamento antigo. Quanto de verdade suporta um espírito? Foi o medo ou a
O que Parmênides, com sua argumentação lógica não percebeu, segundo Nietzsche, é que a identidade do pensamento não revela a identidade do que é, reflete apenas a vinculação
coragem que levou este pensador a afirmar seu pensamento?
do pensamento à linguagem. A identidade é uma simplificação da pluralidade, que é, por sua vez, a condição da palavra, fundamento da comunicação. Mas as palavras, diz Nietzsche
Para Platão, como para Anaximandro, o próprio devir é um
a Parmênides,
Se, entre os gregos, Anaximandro e Platão consideram o devir ruína inexorável,Heráclito por sua vez ao conceber o devir como justiça -- a própria luta dos seres múltiplos é
ão passam de símbolos para as relações das coisas entre si conosco, nunca afloram algures a verdade absoluta; e a palavra ser só designa a relação mais geral que liga todas as
devir ilimitado, um devir louco, um devir bybr/do e cul-
pado .'
17\A ilosofia na época trágica dos gregos, S XX. t7+lbid.,
$
izslbid., IV 7zA/éM do õem e do na/, $ 2.
17óDeleuze,G. Niezzsc/]e e a /í/oso/7a, cap. 1, S 12
VIVIANE MOSÉ própria justiça 17' --, redime este mesmo devir afirmando-o
como movimento próprio das coisas, sem necessidade de justificação. Sob a forma da polaridade, o vir-a-ser acontece na disfunção de uma mesma força em duas opostas, que de novo
voltam a se unir. O devir eterno resulta de uma luta de contrários, e esta luta manifesta a justiça eterna. Ao contemplar
regularidade e a segurança que se manifestam em todo devir,
..
Heráclito vai concluir que ele não pode ser criminoso. A injustiça, ele diz, está onde se encontra a desordem, a irregula.,
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ridade, mas onde reina a lei e a ordem, como neste mundo, como poderia aí vigorar a esferada culpa, da espiação, da condenação, e por assim dizer o lugar de suplício dos conde-
'
ça,montinhos de areia à beira-mar, ergue-os e os destrói; de vez em quando recomeça o jogo. Um instante de saciedade e, logo depois, a necessidade apodera-se outra vez dele, assim como a necessidade orça o artista a criar.i8n
Não é o pensamentode Heráclito, no entanto,que Nietzsche considera predominante na filosofia, mas a idéia de ser
surgida com Parmênides. É desta matriz, a identidade do ser, que brota com todo vigor a filosofia, como uma necessidade de controlar a exuberância sempre distinta de si mesma que
nados? .t78Com esta perspectiva, Heráclito oferece ao pensa' mento uma perspectiva inédita, que vai influenciar diretamente
enquanto instinto que moveu a filosofia em direção ao ser. 81
o pensamento de Nietzsche: uma compreensão do mundo que dispensa a necessidade metafísica da crença no ser.
Como nos diz Nietzsche em um fragmento póstumo, desprezo, o ódio de tudo o que passa, muda e se transforma: -- de ondc vcm essa valorização do quc pcrmnnccc? Visivel-
1-1cráclito aquelc para quem a vida é inoccntc c justa. Ele não apenas negou o ser, mas fez do devir uma afirmação: não há ser além do devir, o devir é tudo. SÓ vejo o devir , não vos deixeis enganara E a vossa vista curta,
e não à essênciadas coisas que se deve o fato de julgardes encontrar terra firme no mar do devir e da evanescência. i'9 Mas o devir não resultaem expiaçãoe culpa, ao contrário, é um instinto de jogo. O devir, para Heráclito é inocente,como
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Transformando-se em água e terra, junta, como uma c rian-
o devir. O que se pode avaliar em um espírito, diz Nietzsche, é o quanto de verdade suporta. Foi antes de tudo o medo
diz Heráclito,
'\+./-'
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
relata Nietzsche:
mente, a vontade de verdade é apenas o desejo de encontrarse em um mundo onde tudo permaneça .282 objetivo da idéia
de ser é, portanto, forjar essa dentidade que a vida não apresenta. A formulação da noção de ser não teria nascido de uma busca pelo conhecimento, mas de uma vontade de previsão e de controle. E a carência :'3 que é decisiva neste processo, a falta de controle sobre a multiplicidade e exuberância da vida, t8{tlbid.,VII.
-....a:
'-.....-'
Neste mundo, só o jogo do artista e da criança tem um devir e um perecer, um construir e um destruir sem qualquer im-
putaçãomoral, com uma inocênciaeternamente gual. (...)
' :FragzPzenros póstumos, outono de 1887, 9(60).
iKJ Não 'conhecer' mas esquematizar, mpor ao caos bastante egularidade e forma para satisfazer nossa necessidade prática. Na formação da razão, da lógica, das categorias, é a carência que é decisiva: não a necessidadede 'co-
t7Hlbid.
nhecer', mas a de resumir, de esquematizar, a fim de compreender, de prever (-.). Não é uma 'idéia' preexistente que trabalhou aqui, mas a utilidade
i7plbid.
(Frqgme/liasóslKmos,primavera de 1888, 14(152».
-b..'
tnA filosofia na época trágica dos gregos, S IA. ''..
IHi É o medo enquanto instinto que nos leva a conhecer , A gaja cféncla, S 355.
\....
1 52
l S3
VIVIANE MOSÉ que os leva a construir, por necessidade, a razão c suas categorias. Um instrumento de dominação é a lógica, a causalidade, a identidade, o ser, não uma verdade . A mudança e não
o ser é o fundamento da vida. A afirmação do ser como verdade nasce, necessariamente, do esquecimento do devir. Para
que se formasse o conceito de substância, indispensável à lógica, ainda que em senso estrito nada Ihe corresponda de real,
foi preciso que por muito tempo o mutável das coisas não tenha sido visto ou sentido. i84 Portanto, a construção da ra-
zão, como instrumento produtor de identidades,não resulta
de um conhecimento ,mas de uma torção. Não foi o conhecimento do ser que fundamentou a filosofia, mas a necessidade dele
t*4A: la cfé/zela,lll 1 54
CAPÍTULO ii A lógica em Aristóteles
A questão principal relativa ao pensamento de Aristóteles, que nos interessa diretamente aqui, fala da mudança de eixo no que diz respeito à linguagem. Se Parmênides, ao construir
o lugar do pensamento verdadeiro, o ser, se perdeu em sua argumentação que identificava dizer, pensar e ser, Aristóteles,
por outro lado, buscandosalvar a possibilidadedo conhecimento verdadeiro, vai propor a identidade entre dizer e significar. Dizer somente é um gesto humano se significar alguma coisa, se estiver vinculado a um sentido; ao contrário do que
fazem os sofistas, que defendem o dizer por dizer e podem ser comparados a plantas. É a vinculação da palavra ao senti-
do que, a partir de agora, vai fornecer a adequaçãoentre as palavras e as coisas. O que Aristóteles faz é estabelecer o sen-
tido como condição da linguagem humana. Para Bárbara Cassin,'8s foi em torno dos sofistas, e do problema da linguagem, que a filosofia na Grécia clássicagirou. Se, de um lado, Parmênidesafirma o ser como identidade, e o faz por um artifício de linguagem, dedução que o leva a crer na verdade do pensamento; por outro os sofistas, utilizando Parmênides contra ele próprio, argumentam que não somente Parmênides se equivocou com relação ao ser e ao não-ser, mas a linguageme o pensamentonão leiKSCassin, . E safos se/hffcos. São Paulo, Siciliano, 1990
1 57
VIVIANE MOSÉ vam à verdade. Aocontrário
de o ser é , eles afirmam
NiETZSCHCE A GRANDEPOLÍTICA DA LINGUAGEM nada
(oz/s/cz).'*'A essência ou ous;a é a realidade primeira e última
cível, é incomunicável . Por outro lado, ainda, atrelados
de um ser, aquilo sem o qual um ser não poderá existir ou deixará de ser o que é. Ao contrário de seus antecessores,
possibilidade parmenidiana da identidade e da verdade, tanto
Aristóteles considera que as essências estão nas próprias coi-
Platão como Aristóteles precisam confrontar os sofistas; é desteconfronto que nasce o que Nietzsche vai chamar de
sas, e é possível conhecê-las através do pensamento. Isto sig-
é ; ou, ainda: nada é; se é é incognoscível; se é e é cognos-
metafísica. A oposição clc valores iilstauracla por I'arntêiliclcs
entre ser e não-ser, desautorizado por Górgias, vai ser subs-
tituída por uma nova oposição: o ser, e o falso ser. Desta forma, rejeitandoo não-ser e transformando-o em falso ser, Platão não somente salva, de alguma forma, o lugar do scr instaurado por Parmênides, como constrói a categoria capaz de afastar os sofistas. Os sofistas se afirmam no domínio do falso, do pseudos, por isso devem ser rejeitados.' Se Platão constrói como modelo da verdade a idéia, já Aristóteles, se-
nifica que as coisas concretas, individuais, ao contrário do que pcilslt l)llttão,IHli l)iiliitciil liiii;l COtiCXãO, Lillia COiltiiltiiClaCIC. com o ser. '*'' A matéria é, a qui, elemento necessário à constituição da substância, mas a matéria é, por sua vez, inteiramente determinada pela forma. A forma é o elemento inteligível por
cxcclência, a(luilo quc é necessário apreender acerca clo ser,
para dele ter a verdade. Esta continuidade entre o ser, como : essência e verdade, e as coisas é o fundamento da possibilida-. ::
de do conhecimento verdadeiro. Assim como a forma dasil coisas materiais remete ao ser, a forma do discurso, a lógica, . remete à verdade.
gundo Bárbara Cassin, vai se contrapor aos sofistas utilizan-
Em sua Filosofia Primeira, Aristóteles considera de funda-
do como modelo a linguagem,a verdade da linguagem, o
mental mportância o estudodos primeiros princípios: como decorrem do próprio ser enquanto ser, estes princípios são
sentido. Partindo da possibilidade de adequação entre o pen'
lamento e as coisas, Aristóteles vai apresentar, ou sistematizar, as condições do discurso, seus princípios e leis, para torna-lo capaz de permitir o discurso verdadeiro: a lógica, como forma do discurso, permite que o pensamento enuncie a verdade das coisas. A lógica aristotélica, portanto, de-
pendede um certo número de suposições elacionadas metafísica como veremos. A me.afísica de Aristóteles parte do estudo dos primeiros princípios e as causas primeiras de todas as coisas, investigan-
do o ser enquanto ser . Dentre os diversos sentidos que a palavraser adquire, ele privilegia um: o sentido de substância in'Bárbara Cassin vai mostrar a contemporaneidade das questões trazidas pe' los sofistas.
ontológicos, isto é, dizem respeito à essência. Estes princípios ontológicos serão considerados, também, como veremos, princíiH7 É vidente , diz Arist6teles no livro Vll da Nela/bica, que o ser primeiro, e não o ser em alguma determinação, mas o ser absolutamente, é a substância. Aristóreles. l.a /néfapbyfsiqKe, tr. e notasJ. Tricot, 2 vol., Paras, Vrin, 1966. iKK A ncologia de Aristóreles é, portanto, solicitada por duas tendências opostas, aquelatotalmente espontânea que o faz situar o real no individual concreto e a outra, herdada de Piatão, que o convida a situa-io na estabilidade inteligível de uma essência una, que permanece sempre idêntica a si mesma, malgrado a pluralidade dos indivíduos.' Gilson, Erienne. L'érre et /'essence,
<
.'e $'
'
Pauis, rin, 1972,p. 18.
tH9A istinção entre um mundo sensível e um mundo inteligível não está pre-
senteem Arisróteles; mas a distinção,a ruptura, permanece,não em dois mundosopostos,mas no interior da própria substância, ntre o que nela é essência, em referência à forma, e o quc nela é acidente, ou seja, não é necessário nem constante, a matéria.
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VIVIANE
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
MOS
pios de linguagem, mais um argumento a favor da adequação entre o pensamento e as coisas. E o princípio primeiro, que
manifestação da ordem própria e essencialdas coisas. Um dos
emerge da própria estrutura do ser, é o princípio de identida-
desdobramentos fundamentais destafilosofia, como vimos, é a
de . Como diz Aristótclcs
corrcs})oildência cntrc n diillcnsão lógica c ontológica. A lógica para Aristóteles é ontológica, porque é o que permite a con-
no livro 111 la Me/a/b/ca,
á impos-
sívelao mesmoespírito conceber que uma coisa é e não é . SÓ admitindo a identidade das coisas pode a filosofia se afirmar como metafísica. Se existe um substrato que não muda, e que não pode ser apreendido p ela sensação, senão pelo pensamen-
to, então está nstaurada a possibilidade de definição, e a definição é o que deve ser buscado no conhecimento de cada ser, de cada essência. A definição, como veremos, é o que Aristóteles
instaura como proposição. O outro princípio determinante para
Arístóteles,e que decorre do princípio de identidade , é o ':nU'''
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princípio de não-contradição , que enuncia: é impossívelque um ser seja e não seja idêntico a si mesmo, ao mesmo tempo
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concepção, exista uma perfeita adequação entre o conhecimento objeto. Portanto,
o instrumento para o pensamento
verdadeiro. E o que é a verdade? É a correspondência entre a predicação feita pelo pensamento (...) e as coisas. O que a lógi-
ca, antes de tudo, sustenta a exigênciado sentido, não um sentido móvel, capaz de manifestar a existência própria e singular das coisas, mas o sentido como identidade, essência, como
o imutável das coisas. Partindo da identidade, afastando o que
Todo juízo estabelecido pelo pensamento é do tipo sujeito-
é contraditório, e vinculando a verdade a uma causa, a um prin-
predicado, onde um predicado é atribuído a um sujeito (S é P). A forma sujeito-predicado á tinha sido sugerida por Platã o no Zeefefo, de onde provavelmente Aristóteles a extraiu. Isto que se chama proposição é a ordenação de linguagem capaz de permitir a definição, que é a explicitação da essência ou da identidade de uma coisa. A proposição representa o juízo, capaz de
cípio, Aristóteles acredita estar garantindo a verdade da linguagem, o sentido. .Ê dando uma ontologia à l inguagem, atribuindo ao discurso princípios ontoló gicos, que ele acredita poder afutar
o falso do verdadeiro. Bárbara Cassin, em Arislófe/ese o /ocos, discute o problema da argumentação aristotélica em torno do sentido, explicitando o que ela chama de cena originária : Aristóteles
to e todo juízo, a proposição está submetida a três princípios lógicos: prilzc@io e ide/zlic&zde (uma coisa só pode ser conhe-
havia acabado de anunciar seu princípio de não-contradição,
cida e pensada se for concebida e conservada com sua identida-
de Heráclito, a demonstrar o que Ihe parece evidente. 0 ponto de partida (...) não consiste em exigir que se diga que algo é ou não é \...à, mas qne pelo menos signifique algo, pata si e para
de, essência), pr!/zc@/o ctz zzão-confzadição (A é A e é impossível \.
tinuidade entre a linguagem e o ser. A articulação en.tre ser(como
essência e verdade primeira) g,linguagem faz com que, nesta
na mesma relação . Voltaremos a falar deste princípio adiante.
trazer o pensamento para a linguagem. Como todo pensamen \.:''
Para Aristótelesa lógica, como a forma do discurso,é a
que seja na mesma relação não-A), prí/zc@io do force/ro e;çc/wí-
do (ou Sócrates é homem ou não é homem). Estes princípios,
o mais firme de todos , e se vê forçado , pelo pensamento
wm owfro. i90A estratégia de Aristóteles, então, vai ser substi-
por outro lado, se sustentam na idéia de causa/ictzde,ou seja, todas as coisas têm como causa a substância suprema, o motor
imóvel do mundo, o ato puro, o um.
tPtiAristóteles,itado por Cassin, Bárbara. Árfslófe/ese o /egos, São Paulo, Loyola, 1999, p. 28.
\ . ....,
1 60
161
VIVIANE MOSÉ
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
ruir a demonstração impossível pela refutação: se falar implica
não falam mais, são plantas. Se o homem é um ser dotado de
significar e se significar não admite contradição, então quem
.l.egose se o logos é a exigência do sentido, então quem não participa do sentido, ou seja, não aceitao modelo de sentido
fala não pode refutar o princípio de não-contradição.
(;;tãbelecido, não é homem, é um não-homem. Ou o adversário se cala, renuncia a satisfazer o caráter espe-
O que parece explícito nesta argumentação aristotélica, sus-
cífico do homem, que é ser dotado de palavra (...) ou então ele fala, e portanto significa e renuncia a negar o princípio, pois o princípio de não-contradição se prova e se exemplifica
tentada em uma lógica que ele vai ser o responsável por desenvolver, é a necessidade de manter o lugar do ser e da verdade
pelo próprio fato de que é impossível que a mesma (palavra) simultaneamente tenha não tenha (sentido).'P'
samento móvel de Heráclito e dos sofistas. E possivelmente nes-
nascido com Parmênides, como forma de se contrapor ao penta direção a afirmação de Nietzsche: Tudo aquilo que representa
um esforço real de verdade veio ao mundo atravésdo combate O que Aristóteles faz, portanto, não é a demonstração do
principia, mas a refutaçãoda crítica, Para destruir um /ocos necessário ter um /ocos , o que mantém o caráter indcmonstrável da não-contradição. É sobre este princípio indemonstrável que ele sustenta o sentido como verdade
da linguagem.
Esta argumentaçãoaristotélica,explicitadaaqui por Bárbara Cassin, estabelece o sentido como a entidade por excelência da
não-contradição, ou seja, ele vincula ser e sentido. Portanto, existe um sentido verdadeiro para as coisas, e este sentido mos-
tra-se na linguagem, deixa-se dizer e escrever , ao mesmo tem-
po saber' s que existe a possibilidadedo sentido falso, do
por uma convicção sagrada: pelo pzzlbos e combater: de outra forma o homem não tem interessenenhum pelaorigem lógica .193
Tanto Platão quanto Atist6tclcs estão cm disputa com os sofistas. A lógic a nasceu de um ago/z, não é mais do que o estabeleci-
mentode um campo de combate, com suas regras específicas, um campo de combate sustentado em ficções. Considerando a cena onde a filosofia se deu, a lógica foi o
armamento capaz de submeter o inimigo. Os sofistas, que assumiam a lógica como ficção, passaram para a posteridade
como enganadores , ao contrário do lugar de honra dado a Platão e Aristóteles. O que a lógica faz, segundo Nietzsche,
psezídos,como no caso dos sofistas. O que a lógica, com seus princípios estabelece, então, são as condições do pensamento verdadeiro. Em uma perspectiva nietzschiana, d
sair das impressões pela via da ficção, e sustentarum pensamento em outro pensamento. A lógica fornece o modelo de
sentido deve
sar em que um pensamento é posto como causa de um outro pensamento .i94Desta forma, ao sair do mundo muito mais complicado das sensações,a lógica, como um filtro, termina por se impor como um modelo excludente. Um pensamento
existir, então Aristóteles
cria
leis para que ele
exista. A partir de então, diz Bárbara Cassin, o mundo do sen-
tido engole continuamente o que está fora dele .IPZ Os que falam sem sentido, ou sem respeitar a rede significativa proposta como modelo por Aristóteles e elevada à categoria de verdade, lpilbid., p. 28. i9zlbid., p. 42.
uma ficção completa. Procede-se aqui a uma maneira de pen-
deste tipo nunca ocorre na realidade; é, porém, aplicado como i''Fragzne/arospósru?/zos, verão de 1872 a início de 1873, 19(43)
i KSA, 11, 505.
VtVIANe MOSÉ
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
modelo de formas e aparelho de filtragem com que, ao pensar-
mos, rarefazemos e simplificamosa extrema multiplicidade e diversidade do acontecer efetivo. '9s O que a lógica, por princípio, exclui é o fluxo das sensações, das paixões: o corpo. Por se
sustentar na condição primeira de inserção que é a linguagem, ela é o mod elo a p r/ori de inserção e exclusão, e por isto mesmo serve de modelo para todos os outros modos de exclusão vigentes. Como Platão e Aristóteles não conseguiam se contrapor ao sofista, então eles inventam a categoria do falso
ele
não deve ser ouvido, ele é o falso ; ou, então, o argumento do
'4Ü...P
\b-V+'J
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e dizem:
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sentido: o que ele diz é contraditório, e o que é contraditório não tem sentido . O que as argumentações ilosóficasem torno da verdade permitiram foi a justificaçãoda exclusão. O primeiro modelo excludente é o modelo da linguagem. Neste trecho de Sobre verdade e mentira no sentido extramoral ,
Nietzsche explicita esta relação :
linguagem. É a linguagem, como o primeiro sistema de leis,
que sustenta todos os outros: ordem piramidal de castas e graus, de privilégios e subordinações. O que este sistema de signos permite é a construção de um outro mundo . Não é
uma ficção específica de outro mundo que constitui o privilégio da linguagem como verdade, mas a instauração de um lugar firme capaz de servir como substituição ao que muda:
devir, o excesso, a vida. A linguagemproduz a referência de duração que fundamenta a vontade de negação da vida. esquematização que a linguagem instaura se torna a referência de realidade; a verdadeira realidade é o mundo fixo, idêntico a si mesmo, enquanto a vida é vista como a parência, como
engano, como ilusão. Ê esta inversão que Nietzsche busca desfazer em sua transvaloração dos valores. E o lugar, por excelência, desta inversão é a lógica; a lógica é um modelo excludente.
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Tudo o que distingue o homem do animal depende desta capacidade de fazer volatizar as metáforas intuitivas num esquema, logo, dissolveruma imagemnum conceito. No domínio destesesquemasé possível uma coisa que nunca poderia ser construída por meio das primeirasimpressões intuitivas: construir uma ordem piramidal segundocastas e graus, criar um mundo novo de leis, de privilégios, de subordinações, de delimitações, mundo que doravante se opõe ao outro, o das pri-
meiras mpressões, omo sendoo que há de mais firme, de ''..../'
mais geral, de mais conhecido, de mais humano, e em virtude disso, como o que é regulador e imperativo.
O que define o homem é estacapacidade de produzir con'.-.../'
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ceitosa partir da esquematização as impressões,ou seja, a
A crença na identidade do ser, o que é não vem-a-ser, o
que vem-a-ser ão é , como vimos, sustenta idéia de verdade e agua como princípio fundamental, condição do discurso verdadeiro. Da mesma forma, é da dedução da iden-
tidade do ser que Aristóteles conclui o princípio da não-contradição, que, por sua vez, implica na exclusão do terceiro elemento, fundamentando a oposição de valores que caracteriza a metafísica: ou Sócrates é homem ou Sócrates não é
homem , ou seja, ele não pode ser e não ser. E é ainda da idéia de um ser supremo, como motor imóvel do mundo. que Aristóteles conclui a causalidadede todas as coisas. a ordenação sistemática do mundo. A proposição, condição para qualquer juízo, implica a sentença sujeito-predicado, onde o sujeito é a identidade, o ser, a causa. O raciocínio é um encadeamento de juízos que se exprime logicamente atra-
tusKSA, 1, 597.
vés da conexão de proposições, o silogismo. E consideran-
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i 64
1 65
VIVIAM E MOSÉ
do esta rede de sentidos imposta a qualquer tentativa de pensamento que Nietzsche afirma: Todos os acontecimentos da natureza são, no fundo, inexplicáveis para nós: só podemos, de cada vez, constatar o
cenário em que o drama propriamente dito se desenrola. Falamos então de causalidade, quando no fundo só vemos uma sucessão de acontecimentos. Que esta sucessão deva
ser sempre produzida numa encenaçãodeterminada, é uma crença que muitas vezes se contradiz i nfinitamente. A lógica não é mais do que a escravatura nos laços da linguagem.t9'
Chamamos de explicação , diz Nietzsche, quando falamos de causa e afeito, no entanto, nunca existiu tal coisa na realidade. O que há é um fluxo incessante de coisas, de onde isolamos '.lgumas partes Os acontecimentos na natureza são
inexpli(..veis para nós. O que marca a buscahumana por co' nhecimento é a impossibilidade do conhecimento verdadeiro,
própria de um mundo marcado pelo devir. Ê esta impossibilidade que leva à criação da rede de fixações e sentidos, esta rede de ficçõeschamada lógica. O universo conceptualquc o homem construiu, sustentado pela ordem lógica do discur-
so, resulta não de uma constatação, de uma verdade , mas de uma necessidade. O que a genealogia nietzschiana vai mostrar é que esta necessidade é sintoma de um tipo de homem, o homem gregário, o homem doente de si mesmo , o homem fraco. A escravidão da lógica é uma escravidão voluntária, como proteção contra aquilo que o homem acredita não poder enfrentar, a vida.
l Fragme/ztosóstumos, erão-outono e 1873, 29(8)
CAPÍTULO lv
sujeito moderno
A história do pensamento é, para Nietzsche, a história da produção e cristalização da idéia de substância. O que sustenta a busca por conhecimento é a crença de que exista alguma coisa irredutível, idêntica a si mesma, e que essa coisa é a essência da vida, o ser, a verdade. No entanto a existência de uma
essênciado mundo é uma ficção: se a vida é uma luta, se toda configuração é provisória, então toda idéia de unidade é fictícia. A identidade é uma crença nascida do medo do caráter absolutamentetransitório de tudo que vive. Não há átomo, não há ser, não há essência,não há realidade, não há verdade, o que há é uma tensão de forças que produzem configurações provisórias. E para se distanciar desse caráter transitório da vida, que o pensamento produz unidades conceituais, verdades, essências, que vão fornecer a segurança, a sistematiza-
ção que a vida não apresenta. A crítica da idéia de sujeito tem uma importância fundamental no processocrítico do pensamento de Nietzsche. É a crença de que somos sujeito, ou seja, de que somos unidade e, principalmente, uma unidade que é causa, que é origem, que permite a produção do mundo como su bstância. A idéia de sujeito como encarnação da substância pressupõe a crença
no sujeitocomo princípio, unidade, como origem do conhecimento, como lugar da razão. A substancialidade do sujeito não é, para Nietzsche, somente mais uma ficção que adquiriu 1 69
VtVIAN E MOSÉ
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
valor de verdade; ao contrário, é a crença no sujeito que permi-
de sujeito e não inversamente. i99 0u mesmo: extraímos
te a substancialização da realidade. A antropomorfização
conceito de unidade do nosso conceito de 'eu' -- nosso mais
do
mundo, o homem como medida de todas as coisas, é um valor intrínseco à modernidade: Contentamo-nos em ver na ciência
antigo artigo de fé .:
a antropomorfização mais fiel possível das coisas: aprende-
são formas subjetivas .20z o entanto, para entendermos es-
mos a descrever-nos sempre com maior rigor, quando descrevemos as coisas e sua sucessão . i97Se o homem é a medida da
sas afirmações, torna-se necessário, inicialmente, saber o que
realidade, é a partir de sua identificação como unidade, como
A crença no sujeito pressupõe, basicamente, as noções de interioridade, unidade e princípio. A idéia de sujeito é a representação da substância ativa, uma configuração idêntica a si,
substância,que ele produzirá a valoração do mundo. A crença na causalidade, na lógica, é uma projeção da crença no sujeitocomo substânciaativa. A trama conceptualmoderna, como aparato metafísico que permite compreender o mundo a partir ae regularidades estáveis, de unidades de sentido, somente foi possível a partir da produção da idéia de sujeito. Sujeito: tal é a terminologia da nossa crença numa unidade subjacente a todos os diferentes momentos de mais alto sentimento de realidade; entendemos essa crença como efeito de uma causa -- acreditamos na nossa crença a ponto de, graças a ela, imaginarmos a verdad e , a realidad e , a subs-
tancialidade .ts8
Ou ainda: a crença fundamental é
de que existem sujeitos .zol Mesmo a matéria, a substância,
Nietzsche quer dizer quando utiliza o termo sujeito.
dotada de atividade, de princípio, de vontade; ela representa a força capaz de originar, ordenar, criar. Ao mesmo tempo que unidade e princípio, a noção de sujeito implica interioridade, representa um mundo interior caracterizado pela atividade e
pela identidade. Essa interioridade ativa e idêntica não aparece, em Nietzsche, somente como sujeito; os termos eu , alma ,
consciência ,
espírito ,
vontade ,
podem ser en-
contrados com esse mesmo sentido. É sempre à interioridade atavaque Nietzsche está se referindo quando utiliza estes ter-
mos, é a essa nterioridade que ele atribui a idéia de causa. Ao discutir a idéia de causalidade no CrePz2scu/odos z'do-
A idéia de sujeito, nessefragmento, é a própria represen' caçãoda unidade, da permanência. Nietzsche chega mesmo
afirmar que é a idéia de sujeito que torna possível a idéia de substância. A compreensão de alguma coisa irredutível, de alguma unidade última e idêntica a si, subjacente a toda pluralidade e toda mudança, somente é possível porque acreditamos encontrar em n6s mesmos o exemplo dessa identidade. 0 conceito de substância é uma conseqüência do conceito
/os, Nietzsche atribui a crença na causalidade à crença no que ele chama de dados interiores Em todas as épocas acreditou-se saber o que é uma causa, porém de onde tiramos nosso saber,ou melhor, a fé no nosso saber? Do domínio dessesfamosos dados /zzteriores, os quais nem sequer um resultou eficaz até agora (...). Desses ipplbid.
zwlbid.,primavera e 1888, 14(79) utonode 1887, 10(19).
zoiKSA, 12,102-3. zt'zKSA, lO, lO.
VIVIANE MOSÉ
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
três .tidos ífzfedores om que a causalidade parecia afiançada, o primeiro e mais concludente é a vontade considerada como causa; a noção de uma consciência (espírito) como causa e depois a do eu (sujeito) como causa, são posteriores; aparecem quando a vontade já estava estabelecida como um dado, como empldsmo, a causalidade.zus
ra a distinção entre um mundo interior e um mundo exterior.
O nascimento da noção de causa é atribuído, nesse aforismo,
à crença na interioridade: a vontade, a consciência, o sujeito, são os três dados interiores que fundamentam a idéia de causa. A causa nasce quando a interioridade emerge a partir da cren-
ça na vontade, que, por sua vez, fornece o empirismo necessário para produzir a consciência e o sujeito. E comQp©çj !!!Sigo
da..mundo.i111ÊElw.ou.melhor,.ÉSQ-m.es% xi$ãQ..qw.ç.çwçg
O nascimento o mundo nteriortornapossível ma inter- I' predação da vida a partir de um distanciamento, de uma dife-
renciação: o mundo exterior é o mundo interpretado na perspectiva do sujeito que compreende a si mesmo como .jnterjoridade. A partir daí o homem não se percebe mais como mundo; ele agora é um agente no mundo, ele agua porque está
em 7e/anão om o mundo. Essa distinção entre homem e mundo, essedistanciamentoa partir do qual o homem come-
a se estabelecer.entre. ln mundo...interior e um mundo exççElgr,
ça a se colocar como agente no mundo torna- se cada vez mais
entre ,qoa açãQ.É.$eu êufor,, que se torna Possível a.crqDça. Qa.
sofisticado, culminando com a produção de uma subjetividade que se pretende totalmente autónoma em relação à vida.
causalidade. Mas é na idéia de vontade que a interioridade e a causalidade se fundâlhehtaM:'Dos três dados interiores , qH' '9Un.
\\9..r
A genealogianietzschianado sujeito aponta, portanto, para
um processo de produção da subjetividade, marcado por três noções distintas, porém complementares e intrinsecamente conectadas: vontade, consciência e sujeito de conhecimentos.zo'A noção de vontade, ao fundar a interioridade, instau-
''#+qn+\
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E a idéia de vontade que torna possível o ideal socrático de
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a vontade é ãqüêfõiãece a systqntação de onde emergem g! outros dois'Á'éÕiiiciêhcia resulta da necessid:ide de comuni-
atingir a vida em sua profundidade, além de poder consertá-la. mundo-verdade. A crença na verdade e na unidade da vontade
\'\+
cação. Como produto.da linguagemcomo lugar da lib.erd4de.e da responsabilidade:.é o. exercíçiQda vontade, como-atividade
tade é a manifestação de uma essência profunda, única, indivisível. E essa unidade que fornece a substancialidade do mundo. No
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da interioridade, que te.rmina por pÇodyzit esse .espaSg.Sêpêz de avaliar os motivos de uma ação. Por fim, emerge o sujeito de conhecimentoscomo exercício livre do pensamento, como atividade autónoma, consciente de si. A utilização do termo
::-..-,..
sujeito tem, aqui, o sentido cartesiano de sujeito de conheci-
versos estados do querer a uma unidade. Os filósofos sempre se
mentos. Mas o sujeito de conhecimentos é a resultante de um
relacionaram com a idéia de vontade como se ela fosse a coisa
'
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sustenta a idéia de sujeito, fazendo crer que toda decisão da von-
entanto o sujeito não é uma unidade. Da mesma forma, a vonta-
de é uma falsificação; ela é uma simplificação que reduz os di-
processo de subjetividade, de interioridade, fundado na idéia de vontade, de princípio ativo.
'.-./'
A vontade quer construir um mundo, um outro mundo, um
zuJCrepúsc#/odos ídolos, 0 erro da causalidade falsa'.
172
ziuO termo sujeito de conhecimentos foi cunhado em nossa dissertação de mestrado para se referir não somente ao sujeito do conhecimento , mas ao processo de subjetividade criado em torno desta idéia. Cf. Mosé, Vi viane. Níefzscbe e a genes/agia do su/elmo.Dissertação de mestrado, IFCS, 1996. 1 73
.
VEVEANE MOSÉ
NÊETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
mais conhecida do mundo e não procederam, por isso, a uma análisedessa déia, tomaram-na como certeza imediata .
complexo de sentir e pensar, mas sobretudo um aÁefo: aquele
do que exagerar um preconceito popular.zoóNo entanto, o alvo
afeto do comando .''' Ao considerar essa complexidade, Nietzsche desacreditaa existênciade um autor por trás da ação: a vontade é o resultado de um jogo de forças marcado pelo abetodo comando , que, como vontade de potência, está presente não somente no querer humano, mas em toda manifestação da vida. Vontade de potência é mando e obe-
maior da crítica de Nietzsche à concepção de Schopenhauer diz
diência, a pluralidade do querer implica em que nós ao mes-
respeito, principalmente,
mo tempo sejamos a parte que comanda e a que obedece: um homem que qz/er-- comanda algo dentro de si que obedece, ou que ele acredita que obedece .:' ' Para que um
Ao fazer da vontade o em si das coisas , ao admitir que tudo que existe é ''ontade, Schopenhauer eleva a concepção religiosa
de um qu',.er pessoalagindo em tudo que vive, à condição de fundamentação do mundo.zosEssa interpretação nada mais faz
à indemonstrável
doutrina
da z/o/zfa-
de zí/zíca ,z07ma vontade inteira, indivisível, presente em todos
os seres. Da mesma forma, contra a concepção kantiana, Nietzsche afirma que a vontade não é uma faculdade do homem,z08
querer se torne manifesto é preciso que diversos outros que-
porque ela não é intencional, não resulta de um livre-arbítrio . Afirmar o livre-arbítrio seria acreditar na autonomia da vontade
reres sejam subjugados; não há unidade do querer, mas uma vitória de determinadas orças sobre outras. O que permanece subjacentea toda ação não é a unidade da causa, mas uma luta desigual e sempre renovada de forças. Em última instância, a vontade não existe, existem vontades ou pontuações de vontade que constantemente aumentam ou perdem sua potência .zlz A vontade não é livre porque não
em relação às forças da vida, o que implicaria a crença de que homem pode dominar a pluralidade nstintiva.
Se abandonamos a compreensão popular
da vontade
fornecida pela suposta simplicidade do querer, e procedemos a uma análise desse conceito, encontramos uma multiplicidade: em todo querer existe, primeiro, uma plural idade de sensações, a saber, a sensaçãodo estado que se deixa, a sensação do estado para o qual se z/a!,a sensaçãodesse 'deixar' e 'ir' mesmo, e ainda uma sensação muscular concomitante (. .), que entra em jogo tão logo queremos.:'P
A vontade é algo complexo que envolve não somente querer, mas o sentir e o pensar: a vontade não é apenas um z''sA ajaciência, 127.
uma causa, mas um produto, um resultado: esta é a impossibilidadeda crença no livre-arbítrio. Se o homem é uma pluralidade, uma luta de forças, como
então teria nascido a idéia de uma unidade interna ? A suposta unidade do sujeito teria nascido de uma compreensão equivocada de um sentimento corporal: Que fizemos? Interpretamos mal um sentimento de força, de tensão, de resistência, um sentimento muscular que é já um começo de ação para fazer dele uma causa; considera-
zoóü/ém o bem e do maJ, S 19.
:'7Z ala íêmcía,99. zo'CrepúscK/o os ídolos, A razão na filosofia , S 5 ZOPH/émo óem e do mal, S 19.
zmlbid. ziilbid.
z':Frag/nenfospósfn/nos, novembro de 1887 a março dc 1888, 11(73)
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
VIVIANE MOSÉ mos causa a vontade de fazer tal ou qual coisa, porque a
do, ela nasce como uma ponte, um meio de comunicação entre
ação Ihe sucede.:''
a interioridade e a exterioridade. Sua função é, como vimos,
traduzir as forças da vida, que nos são sempre inconscientes, para o mundo dos códigos, da linguagem; a consciência é um aparelho de conhecimentos.
A idéia de vontade teria surgido da compreensão da força, da tensão muscular, dos impulsos corporais como causa, como
intenção. É essaunidade do corpo, traduzida na idéia de vonta-
Já a produção do sujeito de conhecimentos resulta do exer-
de, que fornece a referência para a compreensão do sujeito como unidade. O corpo, no entanto, não é uma unidade. Partindo da
-'Ü# '
-
vida como vontade de potência, Nietzsche compreende o orgânico como uma luta, uma hierarquia de célulasprocedentes da
categorias da razão. Essa segurança, que emerge com a filoso-
luta por domínio. A hierarquia entre células, tecidos e órgãos é resultado da tensão produzida por esse combate por expansão.
capaz de preparar o advento da modernidade científica e filosó-
fia de Descarnes,termina por produzir um sujeito autónomo fica. Ê Descartes quem funda a crença na autonomia represen-
C) corpo é uma constante mutação provocada pelo combate, uma \.......';
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mutação que, no entanto, é capaz de, provisoriamente, manifestar-se como unidade. O que o estudo da fisiologia humana
termina por indicar é um maravilhosocomércio entre essa multiplicidade arranjo das partes sob em um todo .2''.O quç ÇXjlçecoma.Sglpgz.g.q!!!!S. manifestacomo um tçlçlç!. ão
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é uma unidadç*.E3$-umdlçq111ãg:çE!!ç..ê$.pêi;K$,Ao afirmar
ilóãtiãdê'de potência n as manifestaçõesmais rudimentares do orgânico, e mesmo no inorgânico, Nietzsche radicalizasua con'-..'
cício da consciência. Ê a consciência, como aparelho de conhecimentos, que sustenta a crença na segurança e na certeza das
tativa do sujeito; a partir dele a categoria fundada com a idéia '!
de vontade adquire a segurança e a certeza de si. Se a idéia de vontade resulta da simplificação de diversos estados do querer, dando a idéia de uma unidade interna, essa unidade ainda diz respeito ao corpo, aos sentimentos, às sensações, ao passo que
o sujeito cartesiano é o exercício do pensamento sobre o pensamento. Se a metafísica nascida com Sócrates tem como função negam.p$1psfinçgs, . o sujeito cartesiano é a reprçsentqção delsg.!!çgêçãuê.yçldade do sujeito é o pensamento. Esta sub-
cepção da provisoriedade de tudo que vive. Mesmo o corpo não existe, ele é, a todo instante, uma mutação produzida pela condicionalidade da luta. Nesse sentido, a unidade da força muscular,
jetividade nascida do cartesianiiitiõ êilêd;itra sua plena realiza-
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da tensão, interpretadas como causa, é um equívoco. Foi a ava-
liação equivocada das forças do corpo que permitiu ao homem
dos valores divinos, das essências. Afastado de Deus, o sujeito
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produzir a noção de vontade. *'.../'
A segundacamada de sentido, apontada por Nietzsche como sustentação para a subjetividade moderna, é a consciência. A consciência é produto do distanciamento homem/mun-
\-.../'
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n.}lbid., primavera de 1888, 14(98). zt4lbid.,outono de 1884 a outono de 1885, 27(8). 1 76
ção na modernidade. A substituição de valores, denominada morte de Deus , termina por desvincular esse sujeito cartesiano
moderno representa o máximo da autonomia da substância, nascida com a idéia de vontade. A racionalidade moderna é o
ápice da crença na profecia socráticade poder consertar o mundo. O sujeitoda razão não precisa mais de Deus, ele não quer mais esseDeus absoluto e onipotente, ele é agora esse princípio. No entanto, a certeza cartesiana que inaugurou sujeito de conhecimentos, não passou de um hábito gramatical.
177
VIVIAN E MOSÉ
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
Descartesfoi vítima dos próprios preconceitosque ele tanto quis denunciar. Buscando produzir um conhecimento seguro ele começou por instaurar a necessidade de duvidar
duzir um hábito gramatical que associa causa e efeito. Trata-
de todas as suas opiniões, o que implicou colocar em questão
se da reprodução de um postulado lógico-metafísico, uma categoria que, no entanto, foi tomada como certeza imediata . A imprudência de Descartes foi não ter duvidado da lin-
os princípios sobre os quais estas opiniões se apoiavam. O objetivo da dúvida é libertar o conhecimento dos Juízos
guagem, apoiando sua verdade inquestionável em uma ficção.
preestabelecidos; no entanto, na interpretação de Nietzsche,
Aqui se conclui segundo o hábito gramatical: pensar é uma atividade, toda atividade requer um agente, logo -- . Mais esquema o velho atomismo buscou, além da força que agua,o p edacinho de matéria onde ela fica e a partir do qual atua, o átomo.
é exatamente obre um preconceitoque a certezado coglfo se apoia. Descartes oi vítima da armadilhada linguagem: verdade do cogifo não passa de uma ficção da linguagem, um
jogo de palavras. Nietzsche faz uma avaliaçãodo enunciado cartesiano, mostrando as mediações implicad as nessa pretensa
verdade. A argumentação de Descartesz's reduz-se a admitir
O cog/to não é nada mais do que uma palavra, afirma a
que, se existem pensamentos é porque alguma coisa pensa, essa coisa sou eu. Ao sustentar sua certeza em duas afirma-
verdade do sujeito sem colocar em questão a verdade da linguagem. A substancialidade conferida ao sujeito é a simples reprodução da crença na linguagem, o que significa que a realidade do pensamento não foi colocada em questão. Nietzsche confronta o cog//o com o método que o tornou possível; é preciso duvidar da verdade do pensamento: 'pen-
ções temerárias , o pensamento e o sujeito, ele termina por separar o pensamento daquele que pensa; ou seja, o pensa' mento é uma substância produzida por um substrato sujeito. Se decomponho o processo que está expresso na proposição eu penso , obtenho uma série de afirmações temerárias (...)
sar' absolutamente ão existe na forma como estabelecem s
-- por exemplo que sou ezl que pensa, que tem de haver necessariamente um algo que pensa, que pensar é atividade e efeito de um ser que é pensado como causa, que existe um eu , e finalmente que já está estabelecido o que designar como pensar -- que eu sei o que é pensar.zt'
trária, (...) um arranjo artificial para facilitar a compreensão .zn
É na distinção entre autor e ação que repousa a certeza cartesiana, mas essa distinção não existe. Essa argumentação,
na interpretação de Nietzsche, nada mais faz do que repro' Fragme fos PósfKmos, outono de 1887, 10(158) 216ü/éw o bem e do ma/, $ 16. 1
teóricos do conhecimento; é uma ficção absolutamente arbiComo uma ficção, uma simplificação da linguagem, o cogifaxe não pode sustentar, como queria Descarnes, uma certeza. Excetuando as governantas que ainda hoje acreditam na gra-
mática como uma t'eri/asafazer/zíz -- e por conseqüênciano sujeito, no atributo e no complemento, já não há ninguém tão inocente que ainda admita, à maneira de Descartes, o sujeito eu como condição do predicado penso . Graças à tendência cética da filosofia moderna, é muito mais no inverso -z''Fragpnenfos ósfu?nos,novembro de 1887 a março de 1888, 11(113) 1
VIVIANE MOSÉ
NfETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
saber, o pensamento como causa e condição, tanto do sujei-
to comodo complemento ,da substância ,da matéria -- que estamos dispostos a acreditar; o que, afinal, talvez mais
não seja do que a forma invertida do erro.:'*
A questãocolocada por Nietzsche não é a inversão da crença, onde o eu deixa de ser condição para ser conseqüência do predicado penso , como faz a filosofia moderí na. Q..q!!Ê..g..genealogia.q.uer-é-explicitar.as
-condições-4
nagçjnqnto.dç!!ê.SlgSglliglg..gg..!Úçilq.Sgng...gg:Wg!!:--
!. men.to,.mg.!çlê2Éb.aD. ct!!Ilações. ue .tiveram:quiser-instau-' U \ . .. .
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l radas para..qyÉ..çs.t.asverdades se tornassem possíveis. que a verdade cartesiana do cogffo oculta é sua fundamentação gramatical.O sujeitosomente é condição do predicado penso , em decorrência de um princípio lógico imposto à linguagem.A lei de causalidadeé uma lei gramatical, um acordo capaz de facilitar a comunicação, não uma verdade. Mais do que isso, a lógica, como escravatura nos laços da linguagem , manifestauma interpretação niilista da vida, resulta de uma vontade de negação.
Contra a certeza cartesiana fundada no pensamento, Nietzsche vai afirmar: um pensamento vem quando 'ele' quer
e não quando 'eu' quero; de modo que é um Áa/seamezzfo realidade efetiva dizer: o sujeito 'eu' é a condição do predicado
'penso' .zi9 Se eu não posso controlar meus pensamentos, se k../ ...:7
pensamentos brotam em minha cabeça, muitas vezes me pro-
vocando perplexidade, espanto, como atribuir meus pensamentosa mim? Quem, ou o que em mim pensa? E a .pergunta.
do cog/[o, mas indo em direção a seu pensamento mais insti-
gante, no que diz respeitoà linguageme ao pensamento. pensamento não resulta de um ponto, de uma intenção, do eu, da consciência,mas de uma guerra, de um confronto plural e instável, da vida como vontade de potência. Quem pensa é a guerra que é a vida. Meu eu resulta desta guerra, deste
pensamento produzido pelo corpo, não somente o corpo do homem, mas os corpos, os fluxos, as forças. O homem, para Nietzsche, em todos os sentidos e perspectivas, está submeti-
do à vida, é produto da exterioridade.O eu, como interioridade fictícia, somente ganha força quando obedece a esta determinação. Esta concepção é a inversão do enunciado cartesiano, que, atribuin pensamento ao eu, instaura a fundamentação do antropocentrismo moderno. A substancialidade do pensamento, para Descartes, é sus-
tentada pela substancialidade do sujeito que pensa, no entanto, diz Nietzsche, não existe um substrato sujeito por trás do pensamento.Pensarnão é uma atividade produzida por uma entidade única: por trás de todo pensamento existem paixões que se chocam, e o eu é a ficção que busca conter esta batalha de instintos e paixões. O pensamento, mesm passando pelas diversas instâncias simplificadoras, não se reduz aos códigos e, em sua maior parte, traduz forças instintivas: a maior parte do pensamento consciente deve ser incluída entre as atividades instintivas, até mesmo o pensamento filosófico .zzo Ê n esse sentido que o pensamento é uma
Ao afirmar a autonomia do pensamentosobre o sujeito,
ficção. O pensamentonão é uma realidade da mesma forma como o sujeito não é uma substancialidade. A valoriza-
Nietzsche está não somente chamando atenção para a ilusão
ção cartesiana do pensamento como certeza imediata n ão tem nenhum valor, a não ser como crença. Não é um sujeito que
1-...../'
zlllbid., 1885-1886, 13(123). zt9Hlém o bem e do l a/, S 17.
uolbid., $
180
181
VIVtANE MOSÉ
NiETZSCHE E A GRANDE POLITICA 0A LINGUAGEM
pensa, mas um jogo de forças, de instintos; por trás do pen-
seria necessárioperguntar ao filósofo: Por que sempre a ver-
samento existe uma guerra.
dade? Essa pergunta termina por remeter à necessidade metafísica da verdade, que, como vimos, traduz a vontade de duração, de estabilidade, de constância. A fixação do ser como substância, que se concretiza na produção do sujeito moderno como sujeito autónomo, é o alvo da buscada verdade. Fixar
Importa caracterizar correta e rigorosamente a unidade na qual convergem pensar, querer e sentir, e todas as afecções (paixões). E evidente que o intelecto não passa de um instrumento -- mas nas mãos de quem? Certamente das afecções,
a substância significa localizar o princípio. A crença na substancialidade do sujeito separa a ação de seu autor, instaurando
e estas são uma multiplicidade por detrás da qual não é necessário introduzir uma unidade.zz'
um substratum neutro capaz de ser esse princípio. O sujeito
cartesiano representa a plena maturidade da noção de ser A pluralidade instintiva invade o pensamento; ou melhor, pensar é uma simplificação da pluralidade instintiva. A .certeza e a segurança das categorias da razão estão sustentadas no
como identidade, como causalidade. É na capacidaderepresentativa do sujeito que Descartes localiza a autonomia da subs-
sujeito de conhecimentos como certeza imediata, mas esse
máximo com a autonomia representativa do sujeito cartesiano, que sustenta as categorias da racionalidade moderna.
sujeito substancial não existe senão como uma ficção da linguagem. O que existe é uma multiplicidade, uma luta. A idéia de sujeito é uma ficção que oculta uma pluralidade de forças, de instintos. Sujeito e pensamento são reduções da língua, são
tância, do ser. É a crença no ser como substância, levada ao
Para Jean-Michel Real em Á genes/ogianielzscó/a/za,22z que sustenta a camada estratificada de ficções e crenças, que Nietzsche com sua genealogia quer desconcertar,
palavras; por trás destas simplificações existe um afeto , é a posição estávelde um sujeito pleno, presentea si, isto é,
busca por superação, a vontade de potência. O que deve ser colocado em questão é a noção de sujeito como substância:
impossibilidade do pensamento substancial resulta da inexistência da substancialidade do sujeito. O que o cogffo preten-
de é asseguraro fundamento a partir da substancialidad do sujeito que pensa. É exatamente a noção de substância que Nietzsche desautoriza em sua avaliação do cogifo cartesiano, quando 2 relaciona a um hábito gramatical. Nietzsche não somente decompõe o enunciado cartesiano, colocando em questão a substancialidade do sujeito e do pensa'
mento, mas inverte a direção da questão proposta por Descar-
!
colocado fora de qualquer referência ao inconsciente, ao corpo, ao significante: sujeito julgado como capaz de um domínio abso.
1.
luto sobre a cadeia dos significantes, sujeito capaz de regulamen-
tar pelo seu querer dizer a totalidade do discurso filosófico.2z3
Este sujeitomoderno foi o alvo maior do pensamento; todos os investimentos filosóficos tiveram como alvo fortale-
cer estesujeito, prepara-lo para esta função de ordenação. este homem moderno, consciente de si, sustentado em uma racionalidade igualmente autónoma, que como vimos, reali-
nes: mais do que saber da verdade ou falsidade dos conceitos, ey, Jean.Michel. 'A genealogia nietzschiana , in: }llsfórfa da /l/oso/7a, vo1.3, org. François Châtelet, Paria, Librairie Hachecte, 1979.
1 1 zziKSA,11, 647.
zalbid., p. 213.
ViVIANE MOSÉ
za a morte de Deus . Não exatamente morte, masa substituição de Deus: o sujeito de conhecimentos, o homem de
ciência, acredita poder ser esta unidade, substância, causa, identidade, verdade, que um dia eie atribuiu ao ser e a Deus. Nos dois pólos da história do conhecimento, a racionalidade
socrático-platónica e o cristianismo de um lado, e a modernidade de outro, encontramos em uma extremidade a idéia de ser, como duração e verdade, e em outra a idéia de sujeito, como
representação da autonomia da razão. A idéia de ser institui o lugar da duração, como lugar da idéia e da ficção, como lugar da negação do devir. É da idéia de ser que nasce a identidade, qV-n..,....'
unidade, a verdade, a causa, que, na modernidade, vão ser atri-
buídos ao sujeito de conhecimentos.Pg.y:rlR extrem dade .a outra, dg.!!aiç!!nÊDlada:.nQçãp de ser à emergência do sujeito n\ .-abw p 'Hq-'6?ú4-p+ bp .ü pf
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6a.úçiHhúhin$oLü4#lü+c+KK+
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.em uma gramlíticaonde o sujeito, como metáfora do ser, .éseH:
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[noderno,-a.filQ$Qíiq.y4i .,in.stiçujndo. ua. lógica .(!a idçntjdpçje,
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pre uma autoridade.incondicionada. Ao desvendar a sobreposição de camadas que compõem
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idéia de sujeito, Nietzsche termina por localizar o sujeito ''-.......,
\.. ...../
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''..''
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moderno como o resultado do intrincado sistema de ficções e de crenças que compõe a metafísica. A emaranhada rede do conhecimento metafísico, tecida a partir da crença na identidade, tem como função produzir essesujeito de conhecimentos autónomo, na medida em que ele é a garantia dessa mesma
identidade. Q sujdto moderno é uma crença que sustenta todo ylR.çglflgg.!iç.çEÊDçês,..opdi íçi.çlçDBçej1lial.moderno,E-é .na linguagem que este sujeito se constitui. O sujeito é glalUaçi-
cal, e foi consil;limo om'a'fühêão'dê ebi:isentar a autQDopia do ho.alem êl;h ielaêão à vidái t'oüãbroduto lógico,.ele ,n .çlr..v:»q++ : -P» h6 6«qPI»M.+hb'P' klB m:-é um pensamentqqué é êã\jsãldeótitros pensamentos. A ideia qü$BÇÇBB
-18 aYwõ
BaTPVV«
de sujeitoé o centro da rede de linguagemque enreda-a modernidade, tiêiito de partida da êfíiiica nietzschiana. O sujeito moderno é a maioridade do ser nascido com Parmênides. 1 84
PARTE v A aârmação
CAPÍTULO A música das palavras
Segundo Michel Haar, Nietzsche formula, quase simultaneamente, duas hipóteses acerca do nascimento da linguagem, que
podem ser encontradasentre os anos de 1870 e 18i3.224Estás hipóteses afirmam que a linguagem teria.nascido,. por um
lado da música, e por outro da metáfora, Estas concepções, a princípio divergentes, somente mais tarde énÉ:6;ililai:ãõ uin
ponto de convergência: a concepção de vontade de potência como uma atividade metafórica presente ém tpdÕ que vi.ve Mas não é somente na concepção madura de vontade de po-
tência que esta idéia aparece. Já nos textos de 1873, como vimos no segundo capítulo, podemos encontrar esboçada esta
concepção. O que o nascimentometafórico e musical da linguagem têm em comum, e que Nietzsche nunca abandonará. é a compreensão de que a linguagem resulta de um elemento pré-linguístico, ou, de uma linguagemantcrior, impossívcl de scr simbolizada. Sc este clcmcnto pré-lingüístico for pensado
como um fundamento, como princípio originário, como pa::'O quc vamos apresentar aqui é basicamente a fundamentação das concepções sobre a linguagem que Nierzsche vai sustentar no decorrer de sua obra. Recentemente, algunsautores como Paul de Mann passaram a valorizar uma hipótese desenvolvidapor Nietzsche em textos preparatórios para cursos sobre a retórica, escritos antes mesmo dos textos filosóficos que conhecemos. Neste livro Nietz sche faz derivar a linguagem da retórica. Somos partidários, no entanto, da perspectiva de Michel Haar, que, como veremos, considera posturas posteriores àquela.
1 89
VIVIANE MOSÉ
NiCTZSCHE E A GRANDE POLITICA DA LiNGUAGe'M
reco ser o caso dc O /zascf/7zenfoa Irízg(gd/íz,ictzsche estará
cação quc parece impor a linguagem, sua positividadc mctafó-
iitscritlo ila uaclição iilcLalÍsict\(luc tanto critica. No ciiLatiLO,
iica é iitictliaíaiitctitc iicgiicla, ou sela, a palavra torna-sc ime-
este elemento, ao contrário de um fundamento originário,
diatamente conceito . Portanto não é a positividadeque é
pode ser pensado, como vimos em textos da mesma época, como uma força estética,plástica,um fluxo artístico inces-
valorizada nesta concepção, mas a negação. Quando, ao contrário, a linguagcm éconccbida como tendo nascido da música, em O nascimento da fzagéd/cz, ua positividade é, como veremos, explícita. Ali, Nietzsche concebe a música como manifes-
sante, uin princípio, não de identidade, mas dc mudança. Ao conceber a ideia de vontade de potência, na década de 1 880, como uma atividade estética nfinita, Nietzsche vai poder, não
tação de uma melodia primordial, uma melodia dos afetos.
somente afirmar a ausência de fundamento desta força estéti-
Comparada com os textos da mesma época que apresentamos
ca, que no Nízsc/mento da frczgédfa inda aparece relacionada
no primeiro capítulo, podemos dizer que Nietzsche afirma a força artística, interpretativa,própria da vida, como música.
ao uno primordial, como permitir á, ainda, resolver a aparen' te divergência entre música e metáfora.
O fluxo contínuo em constante transformação, o jogo estético
Se a linguagem é, na maioria das vezes, pensada como
da vida é a música primordial, que, por transposição, permi-
diminuição, redução, negação do fluxo interpretativo da vida,
tirá a linguagem. Dizer que a linguagem nasceu da música é, em Nietzsche, conferir à linguagem um elevado estatuto. Mas, da mesma forma, esta positividade vai ser, como a metáfora,
quando considerada a partir de sua vinculação com a arte, mais especificar ente com a tragédia grega, encontra sua positividade. O nascimento da linguagem pensado como metáfora, em Sobre verdade e mentira o sentido extramoral , conside-
ra, principalmente, a produção de conceitos como metáforas mortas. É a negação da metáfora que funda a idéia de verdade, e é esta déia que sustenta a concepção negativa da linguagem. A metáfora é uma positividade da linguagem, na medida em que manifesta, mesmo que através de transposições, a multiplicidade estética que é a vida. Mas esta positividade da me-
táfora foi negada, quando, por uma necessidadeda vida e grupo, as leis da verdade surgem. Em síntese, a metáfora so-
mente se torna negativa quando afirmada como verdade. Como uma moeda que perdeu seu cunho e vale agora apenas
negada, agora pela cultura socrática. Se foi somente com socratismo que o nascimento musical da língua, que se expressa em seu aspecto sonoro, foi explicitamente negado, então
podemos considerar uma experimentação afirmativa da linguagem no período anterior àquele. Em outras palavras, se linguagem nos foi imposta pela comunicabilidade
da neces-
sidade , marca da vida em grupo, então seu aspecto positivo foi imediatamentemascarado.Se, ao contrário, a linguagem originalmente e compôs como música, e, aos poucos, seu aspecto vocal foi negado em nome do conceito, então a experiência afirmativa da linguagem já encontrou lugar em nossa
fica o que não tem identidade, e se torna conceito. E a necessi-
cultura. O que, no entanto, marca os dois textos, quase contemporâneos, e que vai ficar mais explícito com a concepç ão de vontade de potência, é tanto a positividade da atividade
dade imposta pela vida em grupo que leva à negação da
estética presente em ambos, quanto à negação desta ativida-
capacidademetafórica da palavra. E como é a força da comuni-
de pela cultura, pela linguage conceptual.
como metal, a metáfora perde sua força estética quando identi-
V IVIANE
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
MOSÉ
O que a perspectiva apresentada em O /zízscimento a tra-
gédia traz, enfim, é a vinculação deste ogo estético com a música, sendo que música, aqui, não se refere à arte musical
propriamente dita, mas a uma melodia original dos afetos . Nietzsche se refere a uma língua originária, uma língua dos abetos,puramente sonora, impossível de ser simbolizada, que
seria o fundo de todas as coisas, o querer universal . Esta
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ausência de forma, é o dionisíaco. Desta música originária derivaria a música propriamente dita, a poesia lírica e épica,
-..J \ . . . / '
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música impossível de se manifestar, por se caracterizar pela
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A linguagem, considerando seuaspecto vocal, possui um musicalidade específica, que manifesta não a totalidade, mas
um rastro, um indício desta íngua originária, o dionisíaco. E este o aspecto propriamente intenso e comunicativo da lín-
gua. Mas a linguagempossuitambémum aspecto absolutamente apolíneo, os códigos da linguagem, os signos, frutos de uma convenção, de uma arbitrariedade. Estes signos são necessários, na medida em que atuam como um contorno para
a linguagem prosaica e a científica. Nem mesmo a arte musi-
a ausência de forma da música primordial, e estariam, a prin-
cal seria capaz de manifestar esta linguagem primordial dos
cípio, a serviço dela. Mas esta relaçãovai se inverter, quando o aspecto vocal for rejeitado em nome do sentido. Nietzsche, quando era ainda um jovem professor, neste texto de 1862 sobre a retórica, ao se referir à essência da
abetos, esta música dionisíaca, mas é a que mais se aproxima
dela. Se referindo a Schopenhauer,diz: apenasum dos grandes pensadores reconheceu à música um caráter e uma ori-
gem diversos dos de todas as outras artes, porque ela não é, como todas as demais, reflexo do fenómeno, porém rcflcxo
música, diz:
imediato da vontade Dicsnld .zzs
A ciência das línguas mostra-nos quc (lu anto mais uma lín-
O dionisíaco é estamúsica que, no entanto, para se manifestar, precisa necessariamenteda transposição apolínea, da
gua é antiga, mais é rica em sonoridade, e mesmo que é impossível separar a língua do canto. As mais antigas línguas eram também mais pobres cm palavras, escasseavamos conceitos gerais, eram as paixões, as necessidades e os sentimentos que encontravam a sua expressão na sonoridade.
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se mostrando ainda mais incapaz de revelar o que pretende, fundo primordial, impossível de ser manifestado.
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representação. Sê a linguagem musical é, da mesma forma que
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a linguagem das.palavras, um código, a música é ainda uma analogia, mas uma analogia dionisíaca,noturna, enquanto a linguagem das palavras é uma analogia apolínea, ou seja, formal e luminosa, da melodia original.zzóA música, como ma-
nifestação artística, é então o que mais se aproxima desta linguagem dos afetos, mas não a traduz. E a linguagem, como uma derivação da música, representa um afastamento maior, ''-.../
zzsOmascímentotzagédía, 16.
:--/'
ZZ'Haar, Michel. Níefzsc/7e ef /a rnéfapbysíque, Paria, Éditions Gallimard,
P. lli.
Podemos quase afirmar que eram menos línguas de palavras do que línguas de sentimentos; em todo o caso os sentimen-
tos formavam as sonoridades e as palavras, em cada povo segundo sua individualidade; o movimento do sentimento trazia o ritmo. Pouco a pouco a língua separou-se da língua das sonoridades.zz7
1993, u71)a refórfca,
Curso
sobre retórica , p. 86
\-...''
1 92
1 93
VIVIANE MOSÉ
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
A sonoridade,da língua, segundo pensaNietzsche, vai ser
gestos bailantes dos membros em movimentos rítmicos. En-
cada vez mais rejeitada em nome das palavras, dos conceitos,
tão, crescemas outras forças simbólicas, as da música, em
do sentido. Aos poucos, o caráter apolíneo da língua, arbitrá-
súbita impetuosidade, na rítmica, na dinâmica, na harmonia.zz'
rio e superficial,
ganha lugar como
verdade .
Ainda
nesta
direção, em O drama m#slccz/ rego, texto preparatório para
Na composição inicial da tragédia é o trabalho do corpo
o Nascíme/zlo a [zngédia,Nietzschemostra que, em seus
que se manifesta, sem nenhuma separação da palavra e do
primórdios, a música grega não separava palavras e sons, e a
gesto, como uma simbólica total do corpo, onde música, dança, gestos, não sc sul)inctcnclo aiticla à rcprcscntação, produzem uma sinfonia quc tcm como função a melodia dos afctos,
nacsinapcssoa que compunha os versos, conlpunlla talllbéna a música, que era uma única e mesma coisa, ou seja, era uma música d: palavras, onde as palavras valiam muito mais como
som. Mas esta inguagem foi sendo substituída por outra, onde uma voz desaparece por trás do sentido que deve transmitir.
o dionisíaco. Ali, todas as manifestações se encontram, todas se untam evocando Dionísio, em uma encenação onde o coro é, ao mesmo tempo, o sujeito e o objeto do espetáculo. Nesta
música, manifesta-se também na tragédia ética. Ao se referir
cena originária a música ocupa o espaço próprio da simbolização, ela é a matriz de onde emergetodo símbolo, toda forma. O que o espaço plural da tragédia, como Nietzsche a
tragédia antes de seu declínio socrático, antes de qualquer se-
constrói, encena é o nascimento da representação artística. A
Esta perda do caráter primordial da linguagem,como negação da musicalidade própria dos abetos,como negação da
paração entre ator e espectador,entre açor e autor, antes de
palavra, separada destaconfiguração que a fez surgir, como
qualquer inserção no espaço idealista platónico, Nietzsche cons-
acontece na linguagem conceitual, revela-se incapaz, menor.
trói uma cena onde a palavra ainda não é separada de seu ritmo, de sua tonalidade, de seu timbre. Segundo a leitura de Jean-Michel Rey,a8 Nietzsche constrói esta cena original
da
tragédia com o objetivo de mostrar, a partir da tragédia antiga,
uma representação plural, marcada pelo corpo em suas diversas manifestações. Na tragédia, diz Nietzsche, o homem é elevado à máxima intensificação de suas capacidades simbólicas:
Que coisa análogapoderia oferecer o poeta da palavra, que se esforça em alcançar,com um mecanismo muito mais imperfeito, por um caminho indireto, a partir da palavra e do conceito, aquela ampliação interior do mundo visível da cena e sua iluminação interna? Se, agora, na verdade, a tragédia musical tam-
bém agrega a palavra, por isso mesmo ela pode colocar a seu lado, simultaneamente, o substrato e o lugar de nascimento desta, e esclarecer-nos, de dentro pra fora, seu devir.230
Agora, a essência da natureza deve expressar-se por via simbólica; um novo mundo de símbolos se faz necessário, todo o simbolismo corporal, não apenas o simbolismo dos lábios, dos
semblantes,das palavras, mas o conjunto inteiro, todos os
Quando a palavra é colocada no espaço plural de seu nas-
cimento, quando é confrontada com a cena que a fez surgir, ZZ9O ascimento da tragédia, S 2
::*Rey, Jean-b(ichel. Op. cit.
230lbid., $ 21.
1 94
VIVIANE MOSÉ ela pode esclarecer-nos, de dentro pra fora, seu devir .
somente confrontada com esta cena que a linguagem encon-
tra sua positividade. E esta cena trágica, como vimos, é manifestaçãode uma simbólicatotal do corpo. O que faz a palavra manifestar seu devir é sua submissão à cena trágica, lugar de nascimento de toda representação, ou seja, é a afirmação de sua vinculação ao estado estético. É a negação deste estado plodulgr de símbolos que a tragédia vai empreender, e.mseu rumo a.,uma estética racional, que Niétzsche chama
de socratismo estético. A palavra, que nasce de um espaço
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1?1ural, que soQepte exerceria sua potencialidade vinculada a cata pluralidade, ao corpo, passa a substituir, a ocupado lugar
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de tudo aquilo que a fez surgir. A discussão sobre o nascimento '.....,''
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da tragédia e se.udeclínio pode ser pensado, também, como uma metáfora do nascimento e decadência da linguagem.
O socratismocondena a arte e o saber trágicos em nome do conceito, porque possui a crença inabalável de que o pen' lamento, seguindo o fio da causalidade, pode atingir os abismos mais longínquos do ser e que ele não apenas é capaz de conhecer o ser, mas de corrigi-/o .23i A embriaguez dionisíaca que a tragédia encena, como manifestação do estado criativo, produtor de signos, como manifestação da estética da natureza, vai ser negada em nome da vontade de controlar e prever, em nome da ciência. Q afastamento da palqvraSD relação gg corpo.a !!nãos.ição lógico-racional.de. URê.jinEy@ggU.,des:--
tituída de contcêdição, de paixão, fup.dadana identidade e rla.. causalidade, é a desvinculação da palavra do terreno que a fez :e a faz surgir. É a busca por fundamento, por estabilidade, por
controle que leva o homem a negar a capacidade simbólica plural e eternamente mutante da vida. '--.../
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
A positividade da vida, afirma Nietzsche em seu pensamento trágico, decorre exatamente da ausência de fundamento que
caracterizatanto a atividade estética nfinita da vida, o dionisíaco, quanto a linguagem e os valores da cultura. O estado estético é este fundo infinito, esta força criadora, e conseqüentemente destruidora, incessante. O que a tragédia encena é
abundância de linguagens, presentes na vida. Como um jogo marcado pela luta entre forma e ausência de forma a vida é
um fenómeno estético. Tudo, em última instância, é arte, invenção, linguagem. E a linguagem humana somente se tor-
nará afirmativa se for capaz de se afirmar como uma intcrptctação infinita.
Mas, o que acontece na cena trágica, como na cena filosófica, é, ao contrário, a negaçãodeste fundo eternamente produtor de signos, esta pluralidade significante do corpo, esta músicados abetos.A nova cena da tragédia traz o predomínio do olhar sobre os outros sentidos, o olhar ordenador
e a valorização da voz em detrimento da música, uma voz neutralizada posta a serviço da palavra. Da mesma forma, música torna-se cada vez mais um acessório do texto, uma ilustração. A experimentação vai ser substituída pelo espetáculo, onde o público assiste ao desenrolar de uma trama cada vez mais verbal e dialética. É do predomínio do olhar, da visibilidade, da forma, do sujeito que nasce o socratismo, que vai invadir e matar a tragédia. A morte da tragédia representa o mesmo que o estabelecimento da equação socrática razão=virtude felicidade. Nesta perspectiva, tanto a representação trágica quanto a linguagem em seus primórdios teriam nascido de uma melo-
dia dos abetos,e estariam a serviço desta manifestação dionisíaca, portanto afirmativa da vida. O apolíneo seria o suporte
l ailbid.,S 15.
da experimentação dionisíaca. No entanto, ainda na tragédia,
196
197
.'-F
VIVIANE MOSÉ
NtETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
a representaçãopolínea ai sesobreporà música,e no
pensamento das tonalidades, dos músculos , é o que deve ser
socratismo, bem como na metafísica que vai se desenvolver no decorrer da história do pensamento humano, a melodia dos afetc,, que tem como veículo o corpo, vai ser expli-
considerado. O estado estético é o pensame.nto do corpo.
Os signos do estadoestético ão produto do excesso,ou seja, um estado de potência aumentada. E, como diz Nietzsche:
citamente rejeitada em nome do sentido, da verdade, da consciência. Conceber uma linguagem afirmativa, produto de uma
Todo aumento de vigor e de potência abre perspectivas novas
nova escritura, deve, portanto, implicar a emergência dest
nos que pode nascer uma linguagem afirmativa,'âo contrário
estado estético, fonte afirmativa de toda linguagem.
da linguagem gregária, nascida da indigência e dà fraqu:eza. Uma espécie humana improdutiva, sofredora, caãsãdà'reviver (...) não possuindo mais a força de interpretar, de criar fic-
e faz crer em horizontes novos. z33.É desta.relação com oljjg-
Em textos póstumos da década de 1880, Nietzsche permanece se referindo a este nascimento estético da linguagem,
como neste de 1888:
ções, produz o niilista .23'E a afirmação da potência, do corpo,
da vida que leva à transvaloração. Para a tarefa de uma O estado estético possui uma riqueza su perabundante de meios
transvaloração dos valores são necessárias, talvez, mais potências que as que outrora llabitaram juntas em um só indivíduo. z35
de expressão, ao mesmo tempo que uma extrema receptividade
l)ant as excitaçõesc os signos. E o cimo do humor comunicati-
1)ciisaiilciito (lo clct-tlo rcloiilo, l):lra l)icirc l
vo e da possibilidade de se traduzir, nos seres vivos -- é a fonte
como veremos, é a experimentação de um novo pensamento, capaz de contemplar os afetos. O objetivo do eterno retorno
da linguagem. As linguagens têm aqui seu foco de origem, tanto a linguagem verbal com o a linguagem dos gestos e dos olha-
é afirmar o não-sentidoda vida e selecionar os que afirmam a vida a despeitodo sentido. Continuar pensando mesmo afir-
res. O fenómeno mais completo é sempre o fenómeno inicial: nossas aptidões são a quintessência de aptidões m ais amplas
mando o não-sentido é o pensamento que advém da afirmação
Mas, mesmo presentemente, entende-secom os músculos, lêse mesmo com os músculos (...). Nunca se comunicam pensa-
do eterno retorno. O pensamento sem sentido é o pensamento
estético, que se exerce não por um alvo, um objetivo, um fim, mas pelo prazer estético de pensar. A condição desta negação
mentos; comunicam-se movimentos, signos mímicos a parti dos quais chegamos aos pensamentos.:':
do sentidoé a perda da ordenaçãoda linguagemgregária e da consciência, e a consequente experimentação dàévátiações de intensidade pulsionais, tendo como guia a memória do círculo e o fio condutor do.corpo O pensamento afirmativo éo pensamento que nasce da afirmação do eterno retorno.
Este estado estético, fonte de toda linguagem, com sua supe'
rabundância de meios de expressão, permite, por um aumento de potência, uma nova r.elaçãQ-cQl:n)ssignos. O que pode ser comunicado não são os pensamentos, os signos, mas estados, tonalidades. Os signos devem estar a serviço destas variações de
zl+Citado por Kossovitch, Leon. SiÉPzose poderes em Nfelzscbe. São Paulo, Anca, 1979, como: Vontade de Falência, 1885/86, liv. 11,temo 1, S 167. z Fraglnenfos pósfKpnos,outono de 1887, 9(60).
intensidade, assim como o apolíneo deve servir ao dionisíaco. ':Fragmentosósfutnos, rimavera e 1888,14(1 9)1 98
!.
zi-cerce omo, Por que sou tão sábio
CAPÍTULO l O Deus do círculo contra o Deus das identidades
':.....#.
'h/
Quem não acredita em um processo c/rczl/ado lodo tem de
acreditar no Deus t.'o/u/zfár/o-- assim minha consideração se condiciona na oposição a todas as considerações teístas que houveram até agora. ' Pierre Klossowski pensa que a filosofia de Nietzsche, na medida em que vai se desenvolvendo, abandona a esfera propria-
menteespeculativapara adotar, ou pelo menos simular, as preliminares de um complõ -z37 0u seja, se, a princípio, as especulações nietzschianas acerca da história da filosofia o levam a
crer na derrocada digamos natural do mundo metafísico, das estruturas geradas por ele em torno de sua auto-sustentação, ao mcsnio tc nl})o, esta avaliação, cslc diagnóstico é quc permite, ou acelera, estaderrocada, na medida em que a anuncia. Nietzsche
configura esta queda quando a nomeia, e sua filosofia crítica é nada mais do que a anunciação detalhada dos diversos níveis e estratos que tendem a desabar. É assim com a verdade, o ser, o sujeito, a consciência, o homem, as coisas, o mundo. Nietzsche bombardeia, em sua guerra contra os valores, todas as cristaliza-
ções, todas as identidades que impedem, ou que tentam impeaóNietzsche. Obras inca//zp/eras. Os Pensadores XXXII. Tr. Rubens Torres Fi-
lho. São Paulo,Abril Cultural, 1974. Sobreo eterno etorno , S 16, p. 396. Zt7Klossowski, Pierre. Nlefzsc/7e e o cfc/o ufcioso, Rio de Janeiro, Pazulin, 2000, P. 16.
203
VIVIANt MOSÊ
Nií-Tzscitt c A attANI)l: í'oi.lí icA DA LiNCUAai:M
dir, o pensamentodo devir. Mas ao mesmo tempo que bombardeia as cristalizações a cultura que busca combater, Nietzsche
manifestar, de forma cada vez mais virulenta, nos fragmentos inéditos, contemporâneos de F]'ufano, demasiado bK-
elabora seu instrumento mais eficaz neste combate, a afirmação
mano c, principalmente, nos da Gala ciênc/a. O qz/e /zíc/do
do eterno retorno. Não basta denunciar a ausência de funda-
e o qzíe é i/zco/zsc/ente no pensamento
mento dos valores e das coisas, é preciso atuar no campo de
essaé a p ergunta subterrânea que por fora se disfarça numa crítica da cultura e se explicita, propositadamente, sob uma forma que é ainda coerente com as discussões especulativas e históricas de seu tempo.:'
forças que d eu nascimento a estas cristalizações, é preciso inter-
pretar. A a firmação do tempo como um eterno retorno é, para Nietzsche, a possibilidade de produzir uma mudança na correla-
' - H.
e nos nossos atou --
ção niilista de forças que domina a cultura. No momento em que este pensamentose apresenta tudo toma uma outra cor e é
tir a efetividadedo eterno retorno na história da cultura, nem mesmo colocar em questãosua validade. O que nos importa é
inconsciente no pensamento? A matéria raciocina? O orgâni-
apresentar a relação deste pensamento com a linguagem e a
co resultade um pensamento O que é o pensamento? Quem
transvaloração no pensamento de Nietzsche.
pensa? São estas as perguntas que, subjacente a todas as ou-
O que Pierre Klossowski busca analisar na experiência nietzschianado eterno retorno, em seu livro N/efzscbee o
tras, permeiam a reflexão nietzschiana. Mas o que, em última instância, Nietzsche parece querer é a instauração de um novo
cúcz//oz/idoso,239, muito mais do que um conteúdo formu-
pensamento, um pensamento capaz de contemplar o devir. É,
lado, uma experiência vivida. Ou seja, ele tenta compreender o pensamento do eterno retorno considerando, principalmente, a experiência vivida por Nietzsche de um novo pensamento. Não de um novo conceito, de uma nova formulação, mas
então, nesta direção que caminha a crítica nietzschiana:uma
uma outra óisfórü que começa. z3aNosso objetivo não é discu-
''-....../'
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. . . R'g.
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''n.,,.+'
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O pensamento, em si mesmo, é o que, para Klossowski,
está em questão, desdesempre, e cada vez mais intensamente, na filosofia de Nietzsche. O que é consciente e o que é
de uma nova possibilidade de configuração para o ato mesmo de pensar. É esta experimentação, no domínio do pensamento, que chama a atenção de Klossowski. Para ele, a crítica radical que Nietzsche faz da cultura é sempre movida por uma dúvida acerca do estatuto do pensamento.
.../
O que vem a ser, então, o afo de pe/zoar?Esta é a dúvida que vagueia em surdina pelos escritos da juventude e que vem se
crítica da cultura que tem como alvo a afirmação de um pen-
samento capaz de ser atravessado pelos abetos,pelas forças em luta, pelo devir, e que se efetua através da desautorização dos diversos estratos do pensamento conceptual, sustentados pela linguagem (principalmente identidade,
consciência,
o eu). Nietzsche considera a cultura como uma negação da vida, na medida em que esta se fundamenta em silenciar os abetos,
os instintos, a natureza . Ê exatamenteem nome de uma cultura dos afetos que, segundoKlossowski, Nietzsche afirma sua crítica da cultura da identidade, da finalidade, da igualda-
z Vontadede poléncfíz, 1881/82, liv. IV tomo 11, tem 247 nPKlossowski, Pierre. Op. cit.
204
z+lilbid.,p. 17.
20S
VIVIANE MOSÉ
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGE'M
de. Ao contrário, é a desigualdade e a diferença que tornam
produz as primeiras formas de pensamento, de comunicação,
cultura possível, a desigualdade e a luta entre grupos de afe-
de significação. No mundo inorgânico, ao contrário, não há discussão, a comunicação parece perfeita. É exatamente a
tos. É em nome de um pensamento apaz de ser solidário aos afetos, e não que estejaa serviço de sua negação, como é o pensamentoconsciente, que Nietzsche elabora sua filosofia.
possibilidade de erro, constante na vida orgânica, que leva a instauração de signos; o processo de significação é uma ne-
E preciso devolver aos homens a coragem dos seus impulsos naturais. É preciso frear sua subestima de si mesmos (não do
cessidadeda vida orgânica. E os signos são o resultado da
homem como indivíduo, mas do homem como natureza). :''
seja, são fantasmas produzidos por estas variações, rastros
O pensamento consciente é, para Nietzsche, a inversão de
um processo de pensamento que tem origem no mundo orgânico. Ou seja, Nietzsche considera o pensamento a partir do movimento dos corpos; os cor a fonte de todo processo de significação. Todos os movimentos, todos os gestos, são signos de um acontecimento interior . Todo movimento deve ser concebido como um gesto, uma espécie de linguagem, na qual as forças (impulsivas) se entendem.
No modo inorgânico falta o mal entendido, a comunicação
,/
repetição de variações, de estados excitados ou excitáveis, ou deixados pela repetição dos movimentos, das trocas queco.m.l põem os corpos, os órgãos. São estes signos, estes fantasmas, que tornam a vida orgânica possível, na medida em que permitem um tipo de comunicação, de negociação, de troca. E,
em níveis cada vez mais elaborados da vida orgânica, este mecanismo se aperfeiçoa. O ser humano é o produto da vida orgânica que atingiu o mais sofisticado sistemade codificação, de transmissão, de linguagem. Ele próprio é este sistema; ou seja, é sua capacidade de linguagem, de comunicação, de agru-
parece perfeita. No mundo or gânico começa o erro. (---) São os
pamento, que torna sua sobrevivência possível. E o que é
erros específicos às custas dos quais vivem os organismos. Pro-
sistema de códigos humano? Uma abreviação de signos dos
blema da possibilidade do erro? A contradição não está entre
movimentos (pulsionais) dos gestos. z4sA palavra é um signo que é consequência de uma abreviação de signos. Se o nasci-
falso e verdadeiro , mas entre as abreviações dos signos e os
próprios signos. O essencialé o seguinte: a criação de formas que represenBP numerososmovimentos, a invenção.de signo!. para espécieljnteiras de signos.Todos os movimentossão os signos de um3çontecimento interior, e cada movimento interior
sc cx])rime pç?r cmclllantcs moclificaçõcsdc formas.:':,
E o movimentopróprio do orgânico,com suastrocas e negociações, com seus erros necessários e específicos, que :z'lKSA, 9,121. .' 24zKSA, , 28-9.
mento do signo resulta da repetição de movimentos corporais, se são os fantasmas da intensidade pulsional, a linguagem
cotidiana decorre da abreviação destes signos presentes em todo corpo; não somcntc dc abrcviação, mas,como vcrcmos, dc iilvcrsão. Este processo clc abrcviação tios signos é mediada pelo cérebro.
Mas como nasce o cérebro? Pergunta Klossowski. O cérebro é un] mecanismodc simplificação e representação que z+lKlossowski, Pierre. Op. çit., p. 66
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resultada necessidade e vencer a dor.z A dor, sentida pelo
A consciência, como produto de uma abreviação dos signos, não é senão o código cifrado das mensagenstransmitidas pelos impulsos; um código cifrado que tem a função, não
organismo como agressão,vai se tornar representação. A representação da dor, que acontece através da volatilização dos
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impulsos, é uma forma de torna-la possível ao organismo. representação nasce, portanto, como uma substituição capaz de distanciar,diminuir,atenuar.Mas o cérebro, que nasce de uma necessidadede dominar a dor através da represen-
de transmitir as mensagens, mas de invertê-las. E o corpo, que
tação, vai se tornar, a partir da consciência, um mecanismo
deixa de ser solidário dos impulsos que o atravessam. A cons-
de inversão dos impulsos, de negação do processo orgânico.
ciência, como um código que nasceu da fraqueza, da fragili-
E como se a vida tivessese tornado uma dor para o organismo, e a função do cérebro é afasta-la, substituí-lapela representação, pela linguagem. Ê em função disso que a dor
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um tema tão recorrente em Nietzsche. Toda reatividade do pensamento humano resulta de uma vontade obstinada de negar a dor. Mas a dor, Nietzsche percebe, não somente é constitutiva da vida, como não representa uma oposição ao
prazer. Ao invés de produzir valores que aumentassem capacidade de o homem viver a dor, a cultura construiu um mecanismo de afastamento da dor que implica a negação do
corpo. A linguagem ue, assim como a consciência, resulta de um aperfeiçoamento da capacidade de comunicação do mundo orgânico, vai terminar por se constituir como a negação do corpo, ou seja, como a negação daquilo que a tor-
nou possível.
nada mais é do que o lugar de encontro de um conjunto de impulsos individualizados, que só aspiram a perder a individualidade, na medida em que é apreendido pela consciência
dade, da necessidadede comunicação, torna-se um órgão dominante: a consciência não fala mais do corpo, fala apenas de si mesma, de sua vontade de inversão. Ao contrário de um processo de decifração e negociação das mensagens transmi-
tidas desde o orgânico, e esta seria sua função, a consciência passa a ser a produtora de mensagens que devem ser transmi-
tidas ao corpo. O corpo é agora instrumento da consciência, do pensamento, do cérebro. A inversão produzida pela consciência faz com que agora tudo termine na cabeça .24õ Para compreender Nietzsche é importante ver aqui a inversão à qual chega o organismo: ou seja, o órgão mais frágil que ele desenvolveu é o que o domina, em razão de sua própria fragilidado . z47
A consciência, como produto do conjunto de códigos cotidianos é um mecanismo de inversão, mas e o eu ? Existiria uma identidade para além destescódigos? A identidade do eu
O corpo quer se fazer compreender por intermédio de uma l linguagem de signos, falaciosamente cifrados pela consciência: e sta constitui esse códÜo de senos que inverte, falsifica, filtra aquilo que se exprime através do corpo 245
parece reivindicada, diz Klossowski, pela história irreversível do corpo, pelo encadeamento, pela continuidade.
produz o eu, mas o eu que produz a continuidade do corpo.
\..,.a-
z+ólbid.
z+4lbid., p. 45.
z+7lbid., p. 47
z+slbid.,p. 46.
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Mas esta
continuidade é uma ilusão: não é a continuidade do corpo que
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O corpo somente se constitui como unidade na medida em que um eu pode equer se confundir com ele. Para si mesmo este corpo morre e renasce várias vezes, segundo mortes
intenção, esta linguagem, este eu. A q.uelçqg!..?ortanlg,.qy.ç perpassa toda esta reflexão de Nietzsche sobre o. pensamento pode ser resumida como uma tentativa de pensar a linguagem,
renascimentos às quais o eu pretende sobreviver, na sua coe-
o processo de abreviação de signos, o código dos signos coti-
são ilusória. z48O eu consciente, aqueleque ordena, dirige, é
dianos, como um sistema que, ao invés de rejeitar os impulsos, seja a eles solidário. A idéia do eterno retorno vem com
uma coesão ilusória que sustenta a continuidade de um corpo absolutamente descontínuo, que não cessa de morrer e renas-
cer a cada dia. E as pulsõessão, tanto o recurso, a princípio, do eu, quanto terminam por representaro perigo de desabamento de sua coesão. O eu é, portanto, uma ilusão de coesão,
uma ilusão que quer esconder os movimentos pulsionais do corpo. E a identidade do eu que afasta os estados corporais, termina por impedir um pensamento pulsional; é somente com
a desautorização desta identidade que este pensamento se torna possível. Nietzsche não defende uma 'higiene' do cor-
po, estabelecida pela razão. Defende os estados corporais como dados autênticos que a consciência não pode deixar de
escamotear,por ser um deles. z4P ão se trata de dar vazão, pelavia racional, ao corpo, mas de construirum mecanismo capaz de fazer ouvir os estadoscorporais. A identidade do eu precisa ser desautorizada.para que um pensamento corpo' ralizante 2so possa acontecer.
No entanto, como é possívelcolocar em questão o centro
de lucidez, a identidadedo eu, e, ainda, permanecermos lúcidos? Não podemos renunciar à linguagem, ao sujeito, à
vontade, mas podemos, diz Klossowski,zsjapreciar, em uma perspectiva distinta da que tivemos até aqui, este querer, esta
esta função: trata-senão apenas de uma formulação, mas, se constitui, fundamentalmente, omo uma forma inédita de pensar, que se quer fundada nã o na identidade do eu, mas na provisoriedade do eterno devir. A idéia de eterno retorno ofe-
rece o signo do círculo como signo de ordenação do tempo: eternidade móvel do tempo como fundamento do pensamento, em substituição da idéia de identidade, de princípio
finalidade. Este pensamento, muito mais do que um conteúdo formulado foi, em Nietzsche,uma experiênciavivida. Mais do que isso, o conteúdo formulado foi conseqüência de uma experiência vivida. Na interpretação de Klossowski, Nietzsche, em função das
limitações impostas, cada vez mais, pela doença que o acometia, terminou por produzir um espaço de experimentação capaz de confrontar a forma instituída, a razão, com novas possibilidades para o pensamento. Nietzsche sente em si mesmo, durante muito tempo, uma concorrência dissolventede forças somáticas e espirituais e a vigia, apaixonadamente: quanto mais ele escuta o corpo,
mais desconfiada pessoaque o corpo sustenta. Os pensamentos de suicídio, diante do desespero de nunca ficar cura-
z+8Íbid., . 49
do, acabavam por reprovar o corpo em nome da pessoa que
z+plbid p. 46 uolbid., p. 50. utibid., p. 73
aí se encontra diminuída. (...) Surge daí uma suspeita, um ódio, em relação à sua própria pessoa consciente e sensata.
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(...) e elabora uma inteligência que desejasubmeter, exclusivamente, a critérios físicos.zsz
O que Nietzsche ou via de seu pensamento consciente eram
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palavras de desespero, de angústia, de negação da vida. Mas i.'
algo nelenão quer morrer, e ele toma o partido do corpo. k .+. , W
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cama/zo, mas ele se deparou, sempre, com a impossibilidade Nietzsche se dedicou aos problemas da cultura é porque, para
seu corpo, buscando lê-los a partir de outras perspectivas, que sua consciência, como, por exemplo, a idéia de suicídio, e ao
ouvir, diretamente,seu corpo doente, Nietzsche perspectiva o problema da dor, avaliando-a a partir de critérios físicos: ele não somente interpreta o sofrimento como energia, como
quer que assim seja .zs3Ao invés de gastar suas forças na ten-
tativa de afastar a dor, ele vai afirma-la. É.esta afirmação.da dÉ)!.qye vai permitir a Nietzsche a mudança radical de perspectiva que çêracteriza seu pensamento. Se o pensamento conscienteresulta de uma tentativa de afastamento da dor - aqÉnünvph i»m;u'i f+R..:-ç.H/q+#!4+1Pl$'Q4:i »--'
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n.ú -
samento, sustentado pela tensão de pulsões, pelo combate dos 'L
alma/zo, demasizzdo
ções conscientes, e se entrega aos movimentos, aos fluxos de
ta pela doença de Nietzsche, e por ele afirmada, vai dar a ele não uma nova formulação de pensamento, mas um novo pen-
; :......:
creditada por Nietzsche desde antes de
de falar sem ceder ao domínio da identidade da palavra. Se
através da representação, da ilusão, a experimentação imposê .-'
obscuros, que a redação é interrompida..A submissão do pensamento à idéia de um inteligível em si já havia sido desa-
Desconfia de suas avaliações sensatas, rejeita suas considera-
não as da consciência. Ao afastar as avaliações produzidas por
:' .,;.
rente, e os pensamentos acabam por se tornar tã o confusos e
abetos, e não por sua rejeição.
Em um primeiro momento, neste processo de experimentaçãodo pensamento,Nietzsche dá livre curso a forças que se exprimiam através das perturbações do seu organismo. No entanto estes afluxos e refluxos convertidos em palavras, em
imagens, em raciocínios, apresentam-se como uma saída apa-
Klossowski, ele não podia falar em nome da não-palavra , mesmo tendo sido esta sua secreta obsessão: a busca de uma 'cultura' em função das forças da não-palavra .zs4 No entanto esta busca por um pensamento que fugisse ao inteligível
em si, aliada às crises, cada vez mais agudas de sua doença, obrigam Nietzsche a se entregar a estados ainda mais contemplativos, estados de absoluto isolamento, onde se sente impelido a se afastar até mesmo dos pensamentos. Você nem pode imaginar como pratiquei fielmente, até o fim, o programa de ausência de pensamentos: e tenho razões para ser fiel, pois, 'por trás do pensamento está o demónio' de um tremendo
acesso de dor. :ss Ou seja, o pensamento consciente interpre-
ta um determinado fluxo como dor, mas este mesmo fluxo pode ser vivido, sem a mediação da consciência, como um movimento pulsional, como uma variação de intensidade. É esta experimentação, a que Nietzsche se propõe como tentativa de uma nova terapêutica, que vai leva-lo a se entregar ao que Klossowski chama de tonalidades da alma . Ao contrário de uma avaliação moral dos afetos, dada pela tradução da consciência, Nietzsche vai se dedicar a experimentar as variações impulsivas de seu corpo a partir do próprio corpo, ou
guiadas, como ele mesmo diria, pelo fio condutor do cor-
::-,#
zszlbid., p. 45
zsilbid.
[
de out. de 1879. Schlechta, ol. 111, . 1158
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po . E em um destes períodos, em agosto de 1881, que ele vai experimentar o êxtase do eterno retorno , e formular como pensamento.
novo pensamento, e é esta a condição imposta pelo pensamen-
to do eterno retorno. Meu ensin amentodiz: viver de tal modo que tenhas de dose/a7 iver outra vez, é a tarefa -- pois assim sel'a e/n to(7o o caso. zs7
Homem, tua vida inteira, co mo uma ampulheta, será sempre desvirada outra vez e sempre se escoará outra vez. (...). E então encontrarás cada dor e cada prazer e cada amigo e inimigo e cada esperançae cada erro e cada folha de grama e cada raio de sol outra vez, a inteira conexão de todas as
Os meios de suportar o conteúdo formulado, o pensamen-
to mais grave, ou seja, de que a existência,tal como é, não tendo sentido nem finalidade, deve retornar eternamente, é, necessariamente:
coisas. Esse anel, em que és um grão, resplandece empre outra vcz.nõ
O conteúdo formulado por Nietzsche, a proposição imperativade que tudo retorna, tem como função produzir condições para a experiência vivida do eterno retorno; ao mesmo tempo, é somente a partir desta experimentação, como foi o caso de Nietzsche, que o eterno retorno pode ser pensado.
pensamentodo eterno retorno não se resume ao conteúdo formulado, mas à experiência vivida de um outro pensamento. É esta simultaneidade que Klossowski chama de experiên-
cia vivida do eterno retorno, ou seja, o eterno retorno é um pensamento que implica uma experimentação, ao contrário do afastamentodas paixões exigido pela razão. O eterno retorno é. :m suma, um pensamento ivido, um pensamento que se dá como experimentação. Se o pensamento conceitual é fundado na negação da potência, um pensamento afirmativo deve, antes de tudo, inver-
A transvaloração de todos os valores. Encontrar prazer não mais na certeza, mas na incerteza; nem causa nem efeito , mas uma criação contínua, a vontade não de conservar,
mas de dominar; não mais esta humilde ocução: tudo é apenassubjetivo , mas essaafirmação: tudo é também obra nossa -- sejamos
orgulhosos
dela .zsa
O eterno retorno é, portanto, um pensamentovivido, experimentado, e que encontra no signodo círculo a possibilidade de se manifestar como conteúdo formulado. Quando Nietzsche formula a idéia do círculo, do retorno como fundamento,o que ele faz é produzir um ll\eusdo círculo, que tem como função superar o Deus das identidades, o Deus cris-
tão. A idéia deDeus é o fundamento da linguagemmetafísica, da razão. E a idéia de Deus como unidade, identidade e princípio de ação, que sustenta a racionalidade. É a idéia de iden-
tidade de Deus que fundamenta a identidade do sujeito além de todo conceito. Causalidade, sujeito, verdade, resultam da
ter esta relação afirmando a vida como um combate dos afetos
crença no ser como entidade metafísica. O ser, a verdade,
por domínio, como vontade de potência. E a afirmação da vida em todos os seus aspectos que leva à experimentação de um
Deus, são apenas signos que adquiriram valor de verdade. Se,
uóVozzladee Falência, 1881, liv. 111,tomo 11, tem 25.
zs7Vonlade e potência, 1881, liv. 111,tomo 11, tem 27. u Vontadede Falência, 1884, liv. IV, tomo 11, tem 235
V}VIANE MOSÉ ao invés de identidade, causalidad e, unidade, princípio, o sig-
no Deus for dotado de circularidade, ou seja, se ao invés do Deus das identidadesutilizarmos como signo o Deus do círculo, produziríamos uma nova e inédita experiência de pensamento: um pensamento eternamentemóvel, sem finalidade,
sem correspondênciacom as coisas, sem fundamento, sem
E a idéia de um tempo sucessivo que permite a identida-
de, na medida em queafasta o que foi. Ao contrário, o tempo do círculo como um tempo sucessivoe circular, é capaz de restaurar, na circularidade do instante, as diversas camadas que compõe isto que provisoriamente penso ser. Ao mesmo tempo, é a experimentaçãodestas dentidades que traz a re-
sujeito, sem sentido, sem princípio nem fim, um pensamento voltado sobre si mesmo, sem ntenção nem alvo, e que se con-
velação do eterno retorno, já que a experiência do eterno re-
tenta em eternamentepensar. Portanto, para Klossowski,
diversas possibilidades que existem em mim. A idéia de eter-
conteúdo formulado por Nietzsche, de que tudo retorna, tem
no retorno existe em mim, como uma das identidadesque
como função a constituição de um novo Deus: o Circo/ws
compõem a identidade que sou, mas foi esquecida. O esque-
Wfíos#s Dezls. É este novo signo, o Deus do círculo, que vai
cimento é condição do eterno retorno, porque é, antes de tudo, o esquecimento de mim. Ê a desautorização da identidade do
superar, por fim, o signo das identidades, o Deus cristão. '
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'
torno é uma destas dentidades,presenteno círculo das
O signo do círculo desbanca a fixação da identidade, na
eu que restaura o encontro fortuito de impulsos que é o cor-
medida em que o círculo é eternamente móvel, mutante. O
po, restaurando estado stético,o pensamento-corpo.n-
círculo desloca a fixação, própria da idéia de identidade, em um signo capaz de manter, ao mesmo tempo, o fluxo e a ordem, no retorno eterno do fluxo. O círculo é o signo perfeito
tão, é a experimentação desta multiplicidade de identidades
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porque ordena, ao mesmo tempo que afirma, o fluxo das in-
lação na medida em que ela é o retorno de um instante vivido
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tensidades. O.pensamento do .c.ír(fulonão impede a noção de
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que me permite a revelação do eterno retorno. A experiência
vivida do eterno retorno apresenta-se,portanto, como revee esquecido: está inscrito na própria essência do movimento
eu,-mas a identidade do eu, quando pensada a partir do cír-
circular que se o esqueceao passar de um estado a outro .2óo
culo,. se desfaz:.se-tudo retorna, então se torna possível res-
Eu esqueço não somente as diversas identidades, que foram
taura! êgdj.versas'possibilidadesrévias que produziram essa
condição prévia para a produção dessa identidade que sou (ou
identidade queeu acreditoser: a revelação do eterno retor-
so ser é apenasuma síntese de todas as identidades que fui,
que era antes da revelação), mas esqueço também o próprio instante da revelação. Então eu não preciso pensar o eterno retorno para vivê-lo, ele está inscrito nisto que sou. Dizer que o esquecimento a fonte, e ao mesmo tempo
--.../
então todas estasidentidades estão presentes naquilo que acre-
condição indispensável para a revelação, é dizer que a memó-
../
dito ser. Meu eu é o somatório de tudo que fui e daquilo que
ria de si é perdida com a experimentação da memória do cír-
posso vir a ser.
culo. Ê somenteatravésdo esquecimentode si, como princípio
no traz como necessidade-as ealizações~sucessívas e todas as identidades Possíveis .:sP Ou seja, se a identidade que pen-
'-«...-'
Piêrre. Op. cit, p. 77.
zóolbid., . 79.
:.-...../
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NtETZSCHE E A GRANDE POLITICA OA LINGUAGEM
ordenador, linear, causal, que o eterno retorno pode se dar. Ou seja, o movimento circular se revela quando a linearidade
mesmo, que pense a si mesmo. A linguagem,como vimos, exige que uma palavra remota não às coisas, mas a outras
imposta pela crença na identidade é perdida. Ao mesmo tem-
tidade de Deus, de mim e do mundo: se tudo retorna eu não
palavras. $) universo da linguagem é fechado em si mesmo, é um universo de signos e não diz respeito a nada senão a si mesmo. A comunicação do corpo, das tonalidades, das in-
preciso mais de memória, de identidade, de Deus cristão, eu
tensidades, pode passar pelos signos, mas não se reduz a eles.
posso me abandonar na circularidade do movimento, na memória do tempo, o que significa abrir minha memória para
Como diz este fragmento: entende-se com os músculos, lê-
além dos meus próprios limites, para além de mim. Portanto, a proposição imperativa do retorno eterno de todas as coisas
samentos; comunicam-se movimentos, signos mímicos
po, é o movimento circular que torna possível a perda da iden-
é um pensamento capaz de sustentar o abandono da identidade, porq permite o enfraquecimento expansão do esquecimento. É a memória individual que cria
passado e presente, é ela que sustentao homem capaz de prometer. Em síntese, a sustentação fornecida pela crença na
identidadede Deus, e que conferia a mim a minha própria identidade e a identidade do mundo, pode ser suspensa se eu
afirmo a f rcularidade do tempo. O pensamento conceitual sustenta,portanto, a ordenação das intensidades, da pluralidade, da vida, na idéia de identidade, que pode ser pensadacomo ser, sujeito, Deus. O signo do círculo, ao substituir o signo da identidade como princípio) de ordenação do pensamento, leva à substituição do Deus das identidades,o Deus cristão, pelo Deus do círculo, o Circo/z/s VZfíosws ez/s, o que faz com que a idéia de ser, de sujeito, e todas as derivações da crença na identidade
estejam também em questão. A idéia de eterno retorno é, portanto, em Nietzsche, a consumaçãoda morte de Deus. Ao desautorizar a idéia de identidade, de finalidade, de sentido, o pensamento do eterno retorno desautoriza também a intencionalidade e a ontologia da linguagem, permitindo que o pensamento, sem sujeito, sem alvo, se volte sobre si
se mesmo com os músculos (...). Nunca se comunicam penpartir dos quais chegamos aos pensamentos .2ói A valoriza-
ção da linguagem, onde tudo precisa se tornar palavra para que exista, é conseqüência da inversão que Nietzsche atribui à cultura, e nasceu como vimos, do valor sagrado conferido à consciência.É a negaçãodo pensamentoconceitual, portanto, que permite a experiência do eterno retorno, vice-versa.
Nietzsche considera que esta experiência, no domínio do pensamento, exige um aumento de potência, uma alta tonali-
dade da alma. A potência aumentada corresponde a uma outra consciência, a outras sensações, a outros desejos, a uma outra perspectiva. zóz Acionar este aumento de potência re-
quer a eterna provocação das diferenças de intensidade, requer a vontade de queda e de ascensão. Esta alta tonalidade da alma é atingidaquando deixo de negar a diversidade, a pluralidade, o jogo da vida, afirmando seu eterno retorno. Afirmar o eterno retorno é me requerer como um momento fortuito cuja causalidade mesma implica o retorno de toda a série .2'3 Produzir as condições para que essa revelação aconZ''Frag?Manias ósr nos, primavera de 1888, 14(] 19).
26zVonfadee potência, 1885/86, iv. 11,tomo 1, i tem 343 zójKlossowski, Pierre. Op. cit., p. 78.
]$B.'
]'
VIVtANE MOSÉ
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:;
teça é afirmar todos os momentos do movimento circular,
que significa não privilegiar um momento específico desse !:
tempo, mas o movimento inteiro. Ou seja, implica a impossi-
bilidade de dividir o tempo entre bom e mau tempo: como uma simultaneidade, o tempo, e a vida, somente podem ser afirmados como um todo. Esta afirmação exige capacidade de afirmar as variações de intensidade, exige força. Se o signo do rebanho, a linguagem conceitual, a consciência, são mecanismos de enfraquecimento, a produção desta experimentação
no domínio do pensamento xigea negaçãodo pensamento :. :: . ':
g......,:. L- . ;'i.i.
conceptual, da linguagem gregária, da consciência. Esta n egação, no entanto, não implica inconsciência e perda de si, mas uma mudança no mecanismo de avaliação e significação que agora passa a ser o corpo.
O que é estaalta tonalidadeda alma, e como esta experiência, esta tonalidade de alma, pode se tornar pensamento? A tonalidade..da alma é uma variação pulsional dada por
uma.flutuação,.pena diferença de i.ntensidade. Ao tomar si mesma como objeto, ao invés de se deixar traduzir pela linguagem gregária, pela consciência, ao se voltar sobre si mesma, o que implica que se divida, se desuna e se reuna, :
alma se interpreta. Esse processo de divisão e reunião é dado pelo movimento de ascensão e queda. As diversas flutuações de intensidade, nascidas de ascensão e queda, nada mais são
do que diferenças de intensidade que não trazem em si um sentido. Dor e prazer são interpretações que resultam da
8'
consciência, as variações de intensidade não n ecessariamente correspondem ã estas avaliações. «A dor é outra coisa que
o prazer quero dizer que ela não é seu contrário. z64 A interpretação, mesmo da alma sobre si mesma, requer um .@
z Vontade depofê cfa, iii-iM 1888, 1iv.11,tomo 1, item 395.
220
signo. E o que é o signo? O signo é o traço, a marca deixada pelo retorno dessas lutuações de intensidade,.QU. eja, o retorno da flutuação, a repetiçãodeste. etorno, termina por deixar um rastro, um fantasma, um simulacro. Não somente a flutuação de intensidade, o afluxo, consequência da guerra
de abetos,de intensidades, deixa como marca o signo; mas, também, a ausência de intensidade, onde, ainda aí, um afluxo marca esta ausência, que chamamos refluxo. A esse processo em que a intensidade se torna signo, em que se significa, chamamos pensamento. No entanto o signo, que é o rastro deixado pela repetição desta flutuação, não se livra absolutamente dos movimentos abismados que recobre. Toda significação permanece função do caos gerador de sentido .zõs A despeito desse caos sem começo nem fim, onde o signo
é apenas um simulacro, compomos um conjunto fechado de significações: o código dos signos cotidianos. Nesse sistema o sujeito, que nada mais é do que um des ses códigos, ou seja, o traço de uma flutuação, é o signo que nos permite constituir como ser pensante. Dessa forma o pensamento,que não pertence a ninguém, porque significa, no sentido de tornar signo, um caos de movimento sem início nem fim, torna-se pensamento de um sujeito que pensa. Mas como o sujeito é apenas um signo, não sabemosao certo quem pensa, porque o pensamento é de ninguém, é uma intensidade sem fim, que
significa a si mesma, inclusive como sujeito. O sujeito é um produto do pensamento, do processo de significação das variações de intensidade pulsional, e não contrário. É neste sen-
tido que Nietzsche afirma: Um pensament vem quando ele quer e não eu quero. zó6 perguntaa ser feita é como esse 26íKlossowski,Pierre. Op. cit., p. 82. zõ6Aiélndo bem e do lna!. $ 17.
221
Conclusão
Naquele Império, a Arte da Cartografia logrou tal Perfeição que o mapa de uma única Província ocupava toda uma
cidade, e o mapa do Império toda uma Província. Com tempo, essesMapas Desmedidos não satisfizeram e os Colégios de Cartógrafos levantaram um mapa do Império que tinha o tamanho do Império e coincidia pontualmente com
ele. Menos Adictas ao estudo da Cartografia, as Gerações Seguintes entenderam que esse dilatado mapa era Inútil e não sem Impiedade o entregaram às Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos desertosdo Oeste perduram despedaçadas
Ruínasdo Mapa, habitadas or Animaise por Mendigos; em todo o país não há outra relíqu ia das Disciplinas Geográficas.268
A linguagem, desde seu nascimento, serviu como abrigo e suporte para a vontade de negação da vida, para o niilismo. Não a linguagem como conjunto de signos, como mapa, mas a linguagem aliada à vontade de substituição do mundo, como
busca de negaçãoda instabilidade, o tempo e da vida. O aspecto negativo da linguagem, como redução, simplificação
da pluralidade, está, a princípio, a serviço da afirmação, na medida em que permite a expansão do homem diante de uma natureza hostil, incluindo seus instintos e paixões. A linguaz'*Borges, orre Luas. 0 rigor na ciência , in: O /azedar
VIVIANE MOSÉ gem, como o mapa, é uma redução que possibilita a expansão do homem. Mas a tentativa, presente na valorização platónica da idéia, de substituir o mundo plural por um mundo \'..
ficcional, parece corresponder, como no conto de Borges, à busca de um mapa perfeito, de um mapa que fosse o próprio
mundo. O aspectoafirmativo do mapa, assimcomo da linguagem é aumentar o poder de negociação do homem com
exterioridade. Mas, segundo Nietzsche, quando o homem inventa a linguagem ele percebe, ao mesmo tempo, que pode, :'-.../ \\.
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a partir dali, negar o mundo, inventando um outro mundo, um mundo estávele verdadeiro. A primeira verdade encontrada é a identidade convencional da palavra. Esta identidade
ser, da verdade. O que afirmamos, neste trabalho, é que a linguagem foi o primeiro suportepara uma correlação negativa de forças, para
o predomínio de forças negativas, para o niilismo. É na lin-
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guagem que a metafísica se sustenta, ou seja, foi na experiên-
cia de duração da linguagem que toda busca por identidade, \,
por verdade, se apoiou. O homem, diante das palavras, não
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se contentou em designar, ele precisou acreditar que CQm elas
adquiria accssoa um outro universo, c configurou um mundo seu, o mundo do conhecimento, das idéias, do pensamento, das palavras. A linguagem, desde seu nascimento, serviu
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como um refúgio, um universo paralelo, um outro mundo. Foi neste espaço que a metafísica se constituiu. É neste espa-
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NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
Deus cristão, a ciência, são conseqüências desta experiência metafísica da linguagem. A linguagem de Nietzsche é marcada, como sabemos, pelo aforismo, pela paródia, pelo paradoxo, pelo poema, experiên-
cia que culminou com sua obra máxima, sua tragédia, Zaxafwslra.zó9Não é muito simples dizer se a linguagem de
Nietzsche é, ou não, aquilo que ele apontava como afirmativa; o que, de qualquer forma, dependeria de um outro traba-
lho que não este que apresentamosaqui. O que buscamos afirmar é que esta experiência afirmativa da linguagem é vis-
ta por Nietzsche como a busca por uma nova escritura, por
uma linguagem inda por ser criada, ao invés de uma recorrência a um momento da cultura onde a reatividade ainda não a estivessecontaminado. Este momento possivelmente não
existiu. Se a linguagem nasceu da comunicabilidade da ne-
cessidade , como discutimosanteriormente, se nasceu da indigência, da fraqueza, da necessidade, do medo da vida, então
somenteuma nova correlação de forças poderia produzir a afirmação. É somentea partir da afirmação da vida, a partir da inserção c não da ncgaçãodo corpo c tios impulsos, quc a linguagem pode ser reinventado.
A reatividade de nossa linguagemderiva dessa fraqueza que Ihe deu nascimento. Ao contrário da comunicação da indigência, uma linguagemafirmativa derivaria da afirmação dos
ço, cavado pela linguagem,que Parmênides insere o ser, es-
movimentos, das variações de intensidade, do tempo. Trans-
paço que Platão vai chamar, muito acertadamente, de mundo.
mitir movimentos é o que busca a linguagem que não se dirige
E mesmo um mundo o universo que a linguagempermitiu com
à identidade da consciência, mas à manifestação da superabundância de forças, de alegria, de prazer. Somente um au-
suas substituições. O gesto de Platão que, para Nietzsche, marca a história ocidental, é a substituição por excelência, ''....../'
grande substituição: o mundo da linguagem, dos códigos, da
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representação,é o mundo verdadeiro, é o mundo. Platão, o 228
mento de potência, de força, de intensidade, poderia gerar um aberto. Zaraf
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229
fllagédfa ferzscbfa#a, Rio de Janeiro,
VIVIANE Mole
NIETZSCHE E A GRANDE POLÍTICA DA LINGUAGEM
pensamento afirmativo. E este aumento somente se daria como
do, ao devir, ao tempo. Afirmar a vida a ponto de querer seu
afirmação da vida em todos seus aspectos Pensar uma linguagem afirmativa seria conceber, não uma
eterno retorno é o pensamento capaz de permitir uma supe-
linguagemmais próxima das coisas, mas uma que assumisse
valoração. O pensamento de Klossowski, em função disso, nos
esta impossibilidade. Exigir um modo de expressão adequa-
parece a apropriação mais intensa do pensamento de Nietzsche, ou ao menos a apropriação que nos fazemos dela. Ao desarticular, com a experiênciado eterno retorno, a possibi-
do é absurdo: é inerenteà naturezada linguagem,exprimir uma simples relação, diz Nietzsche. Ao contrário de dizer o que as coisas são,:o que a linguagem pode fazer é se Compor
como um contorno ficcional e provisório, que busca, não
rabundância de forças, um aumento de potência, uma trans-
lidade de fuga pela linha reta, em direção a qualquer possibilidade metafísica, a ficção do eterno retorno, configurado no
a vida. Uma linguagem afirmativa é a que busca, não um afas-
signo do círculo, devolve o homem à sua condição, à sua dor constitutiva, à sua alegria no perecimento. Sem a saída me-
tamento, mas uma aproximação do corpo, dos instintos, das
tafísica, própria da vontade de negação que marcou a cultura
forças, da vida como vontade de potência. E neste sentido que
desde a experiência gregária, ou seja, desde que existe civilização, a linguagem pode voltar a ser o que é: um contorno
deter, mas manifestar a atividade interpretativa infinita que
Nietzsche é, antcs de tudo, um genealogistada verdade. E a crença na unicladc dí\ vcrclnclc(luc sustciltn nossa lin8iia8ciil
vitz.;t(lo, iiiiil c'otlltL;ttt'itÇnoslclici\ cilPitz clc I'itz.ct' boi)ictlt
racional, uma linguagem que quer a duração, a fixação, a identidade. Somente uma linguagem que assumisse a verdade e seus
dançar sobre as coisas, capaz de fazê-lo brincar. Mesmo os
desdobramentos como ficção, como ilusão necessária, pode-
ria se aproximar da afirmação. Mas, como vimos, não basta denunciar o nascimento ficcional e arbitrário da verdade para
desfazersua estranha trama. É preciso, diz Nietzsche, construir uma interpretação que seja capaz de, num embate de forças, vencer a interpretação predominante, fundada na ló-
gregos, cultura extremamente afirmativa, exuberante, na concepção de Nietzsche, não foram tão trágicos, tão afirmativos,
quanto a afirnlnção do ctcrno rctorno exige. É esta afirmação máxima que torna inútil a identidade, e todas as categorias produzidas a partir desta crença. Se a relação com a vida se inverter, sc a vida passar a scr o alvo, ao invés da verdade, como quer a genealogianietzschiana, se o homem puder, um
gica da identidade. Somente uma interpretação que imponha
dia, se sustentar na provisoriedade, na instabilidade, no devir,
um novo querer, ou seja, o querer a mudança, a provisoriedade, o tempo, pode permitir uma nova linguagem. A função da afirmação do eterno retorno é, em última instância,produzir uma interpretação apaz de impedir a
ao invés da identidade, o pensamento metafísico terá se tor-
negação do mundo, negação que se manifesta através da cria-
ção metafísica de um outro mundo. A afirmação do etern retorno, que implica não somente a formulação de um conteúdo, mas a experiência vivida, devolve o homem ao mun-
nado inútil, porque não dirá respeitoa mais nada. E a humanidade poderá, quem sabe, lançar ao deserto, como o mapa
do conto de Borges, esta experiência metafísica. Se poderia argumentar, quando se trata de uma experiê ncia afirmativa de linguagem,a favor do poema, recurso, inclusive, afirmado por Nietzsche. Excluímos esta questão de nossa argumentação, não em função de rejeitar a intensidade
VIVIANE MOSÉ
Bibliogra fia
sem dúvida vigorosa que a linguagem poética sempre permi-
tiu, mas por considerarmos que o problema da arte abre novas e importantes questões que não estamos tratando aqui. Toda arte, desde a morte da tragédia pelas mãos do socratismo,
ficou relegada ao outro , que não a verdade . A arte ficou desvinculado da vida, é esta a denúncia de Nietzsche. Então função do poema se tornou a válvula de escape que terminou por possibilitar a manutenção da racionalidade. Trata-se, por-
tanto, não de ter o poema como alternativa,mas de repensar a linguagem como um todo; trata-se de reinventar o pensamento: esta é a nova e grande política.
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Além das seguintes traduções brasileiras
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