N.º 36 · JULHO 2016 CONTINENTE – €4,90 PERIODICIDADE BIMESTRAL
A O SIC ÇÃ MÚ LU A VO E N RE A A NEM CI
NO
Os loucos Anos 20 As noites frenéticas de Lisboa A maldita cocaína • A nova mulher Os primeiros concursos de beleza O nascimento dos voos comerciais A paixão pelo futebol A estreia da Volta a Portugal em bicicleta
Anos 20 || Sumário IMAGENS
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CRONOLOGIA A década louca
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INTRODUÇÃO O tempo das ilusões
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INFOGRAFIA As grandes cidades do mundo
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MODA As mulheres preferem o ‘chic’
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CINEMA Os anos loucos tinham filmes nos olhos
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BELEZA A primeira Miss Portugal
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VEVA DE LIMA A anfitriã de Lisboa
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ESTILO No coração do Art Déco
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MÚSICA A revolução do jazz
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DANÇA Os passos do charleston
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CLUBS O som das noites de Lisboa
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DROGAS Os anos da ‘maldita’
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ALMADA NEGREIROS A Década louca 44
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FRAUDE A gigantesca burla de Alves dos Reis
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CRISE Quando as câmaras municipais faziam de banco
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INFOGRAFIA Portugal em números
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ESTÚDIOS NOVAIS/ BIBLIOTECA DE ARTE DA FUNDAÇÃO GULBENKIAN
Produção de moda para a Vogue, 1928
ANTÓNIO FERRO Cronista dos tempos modernos
LISBOA Os voos para Madrid e as aventuras dos aviadores
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AUTOMÓVEIS A cem à hora
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INFOGRAFIA Grandes inovações
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DESPORTO A primeira Volta a Portugal em bicicleta
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FUTEBOL A loucura da bola
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LITERATURA Cinco livros que marcaram a década
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CARTOON Penteados
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1928
LINHA DIRETA
Chegam os tempos modernos
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epois de uma edição (a nº 35, de maio) dedicada à situação política que pôs fim à I República em Portugal e à instauração da ditadura, a VISÃO História regressa aos Anos 20, desta vez para prolongar noutras áreas – da moda aos costumes e ao fait-divers – a força inovadora de uma década prodigiosa. A arquitetura ganhou linhas retas, a música e a dança «enlouqueceram», as saias subiram, os cabelos encurtaram, os aviões banalizaram-se, a literatura reinventou-se, o futebol entrou no dia-a-dia, o cinema começou a falar…
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AVIAÇÃO COMERCIAL Voar é preciso 72
Chiado, 1928
Com efeito, se os contornos materiais do nosso quotidiano foram sendo traçados ao longo das quatro décadas que vão de 1890 a 1930, foi depois da I Guerra Mundial que a «vida moderna» como a entendemos deu os seus primeiros – mas já firmes – passos. Os anúncios que reproduzimos em muitas páginas são retirados da revista semanal ABC, o magazine português mais representativo da época. Mas a festa que se seguia ao pesadelo da Grande Guerra duraria, pouco tempo. No horizonte divisavam-se já as sombras de novas tormentas. Os títulos e destaques são da responsabilidade da redação. Foto da capa: Getty images VISÃO H I S T Ó R I A
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DELIUS/LEEMAGE/FOTOBANCO
Anos 20 || ????????
4 VISÃO H I S T Ó R I A
Nova Iorque, 1925
Para preencher um momento de ócio, dois casais de americanos endinheirados disputam uma partida de deck-tennis no terraço de um prédio rodeado de arranha-céus VISÃO H I S T Ó R I A
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DELIUS/LEEMAGE / FOTOBANCO
Anos 20 || ????????
6 VISÃO H I S T Ó R I A
14 de Julho
Bailarico em em plena rua, junto da esplanada de um bistrot parisiense, comemorando a festa nacional francesa. Nesta foto não datada com rigor, mas seguramente de meados dos anos 20, é de notar a atenção com que um público predominantemente masculino segue as evoluções das duas jovens que formam o par central da imagem VISÃO H I S T Ó R I A
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Anos 20 || ????????
Josephine Baker
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Natural de St. Louis, no estado norte-americano do Missouri, foi nos palcos de variedades de Paris que, a partir de 1925, a «Vénus Negra» triunfou, vindo a tornar-se fulgurantemente num dos ícones estilísticos da década. Conhecida também como «Pérola Negra» e a «Deusa Crioula», a cantora e dançarina era considerada pelo escritor Ernest Hemingway «a mulher mais bela do mundo». Adotaria 12 órfãos de várias etnias e viria atuar por diversas vezes em Portugal 8 VISÃO H I S T Ó R I A
Louise Brooks
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Imagem icónica do tipo de beleza feminina dos Anos 20, foi uma das grandes vedeta do cinema mudo e inspiradora de arrebatadas paixões. Acerca dela disse um dia, já na década de 50, Henri Langlois, o célebre «pai» da Cinemateca de Paris: «Não existe Garbo. Não existe Dietrich. Existe apenas Louise Brooks.» Viria a ser cultuada noutras artes, entre as quais a banda desenhada, quer como interveniente na série Corto Maltese, de Hugo Pratt, quer através da personagem de Valentina, de Guido Crepax VISÃO H I S T Ó R I A
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Anos 20 || ????????
Lisboa ‘à la page’ Organizado pela revista Voga no salão da Sociedade Nacional de Belas Artes, na capital portuguesa, o I Salão de Outono da Elegância Feminina & Artes Decorativas foi, durante os vinte dias em que esteve patente ao público, um dos principais acontecimentos da saison de 1928. No primeiro plano, a artista de variedades Natacha 10 V I S Ã O H I S T Ó R I A
VISÃO H I S T Ó R I A
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ESTÚDIOS NOVAIS/BIBLIOTECA DE ARTE DA FUNDAÇÃO GULBENKIAN
Anos 20 || Cronologia
A década louca 1920 JAN Entra em vigor nos EUA a Lei da Proibição («Lei Seca»), que impede em todo o território nacional a produção, a importação, o transporte e a venda de quaisquer bebidas alcoólicas; a medida está na origem de grande parte do crime organizado que caracterizará toda a década nos EUA, com destaque para a figura do gangster Al Capone MAR Na Índia Britânica, um ano depois do massacre de Amritstar, em que centenas de civis foram abatidos pelo exército, o líder nacionalista Mohandas Gandhi, mais conhecido por Mahatma («Grande Alma») Gandhi, é condenado a seis meses de prisão e lança o Movimen-
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EUA termina abruptamente a política internacionalista do seu antecessor, o democrático Woodrow Wilson, grande mentor da Sociedade das Nações (SdN); os EUA encerram-se no isolacionismo, alheiam-se totalmente dos problemas europeus (atitude que manterão durante mais de duas décadas) e nem sequer aderem à SdN, cuja primeira assembleia-geral tem lugar este mês, na cidade suíça de Genebra, escolhida para sede
1921 MAR Para combater a escassez de alimentos em clima de guerra civil e de agressão internacional, Vladimir Lenine põe
1920
1921
to (pacifista) de Não-Cooperação com as autoridades coloniais
em marcha, na Rússia, a Nova Política Económica (NEP), que contempla alguns elementos da economia de mercado
ABR Pelo Tratado de Rapallo, a Alemanha derrotada na Grande Guerra (1914-1918) e a nova Rússia soviética atacada pelas potências ocidentais (a revolução bolchevique triunfara em 1917) comprometem-se a colaborar, sobretudo no campo militar; no futuro, os alemães, embora fortemente desmilitarizados por imposição do Tratado de Versalhes, farão exercícios de blindados na região de Kazan MAI-NOV As Repúblicas Democráticas do Azerbaijão e da Arménia, criadas em 1918 após a queda do império czarista e que desde então se encontravam em guerra entre si, são invadida pelo Exército Vermelho soviético; a Arménia saíra de um conflito armado com o Império Otomano JUN Termina a Revolução Mexicana, na verdade uma sangrenta guerra civil que durava desde 1910 e que nascera da rebelião contra a longa ditadura de Porfírio Díaz, e em que se destacaram como líderes da causa popular Emiliano Zapata e Pancho Villa NOV Com a eleição do republicano Warren Harding para Presidente dos 12 V I S Ã O H I S T Ó R I A
MAI A Alemanha (transformada em 1919 em República embora mantendo a designação oficial de Deutsche Reich) compromete-se a pagar 132 mil milhões de marcos de indemnizações de guerra às potências vencedoras; avultados empréstimos americanos e britânicos agravarão ainda mais a situação interna, favorecendo os extremismos JUN Começa a disputar-se o Campeonato de Portugal de Futebol, um antepassado do Campeonato Nacional e da atual I Liga, então disputado por eliminatórias; o vencedor será o FC Porto JUL Adolf Hitler assume a liderança do pequeno Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP), fundado por Anton Drexler e mais conhecido por Partido Nazi; a hiperinflação irá depois proporcionar terreno fértil ao seu desenvolvimento
• Nove anos depois da instauração da República Chinesa, e em clima de grande turbulência militar, Mao Tsé-Tung funda, em Xangai, o Partido Comunista da China AGO O explorador polar norueguês Fritzjof Nansen funda um comité de ajuda aos refugiados, inicialmente dirigido para o auxílio aos «russos brancos», considerados «apátridas» pelo novo governo de Moscovo • Ao longo de meses, e quatro anos depois da Revolução bolchevista, a Rússia lambe as feridas mas o executivo revolucionário
consegue pôr termo à guerra civil entre «vermelhos» e «brancos», bem como vencer e anexar, em conflitos separados, a Polónia, a Ucrânia, a Arménia e a Geórgia (aliás, partes do antigo império czarista) OUT Num clima de instabilidade política galopante, em Lisboa, na «Noite Sangrenta», são assassinados em circunstâncias nunca bem esclarecidas, entre outros, o primeiro-ministro António Granjo, e os republicanos históricos Machado Santos e Carlos da Maia • Em Portugal, publica-se o primeiro número da revista republicana de esquerda Seara Nova DEZ Albert Einstein recebe o Prémio Nobel da Física, pela descoberta do efeito fotoelétrico
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1922 JAN Com a morte de Bento XV, é eleito papa o cardeal Achille Ratti, com o nome de Pio XI (ambos italianos); permanecerá na cadeira de S. Pedro até 1939 e será o primeiro chefe de Estado do Vaticano FEV O Tratado Naval de Washington, ratificado por EUA, Inglaterra, França, Itália e Japão, estabelece limites à tonelagem dos navios de guerra, numa tentativa de evitar uma corrida armamentista semelhante à que precedera o conflito de 1914-1918
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«camisas negras», a Marcha sobre Roma e toma o poder em Itália, com a cobertura do rei Vítor Manuel III; o figurino por ele criado servirá de modelo a todos os estados fascistas • No mesmo mês termina a Guerra Greco-Turca, que durava desde 1920, perdendo a Grécia as ilusões de estender as suas fronteiras ao interior da Anatólia • Em Portugal, Manuel Teixeira Gomes toma posse como Presidente da República
MAR O Egito deixa de ser oficialmente um protetorado da Grã-Bretanha e o ex-sultão Fuad I recebe o título de rei, mas os ingleses continuam a controlar militarmente o canal de Suez
NOV Com a destituição do sultão Mehmed VI, o Império Otomano é abolido e substituído pela ocidentalizada República da Turquia, provisoriamente governada pela Grande Assembleia Nacional de Ankara, sob a liderança de Mustafá Kemal, conhecido
1922
1923
JUN Principia a guerra civil na Irlanda, submetida à Grã-Bretanha desde o início do séc. XIX, que levará à criação de um Estado Livre Irlandês (República da Irlanda a partir de 1949) e, concomitantemente, de uma Irlanda do Norte ligada a Londres
por Atatürk («Pai dos Turcos») • É descoberto no Vale dos Reis, por Howard Carter, o túmulo intacto do faraó egípcio Tutank-Amon, um das mais mediáticos achados arqueológicos de sempre
SET O irlandês James Joyce publica em Paris, pela mão da americana expatriada Syvia Beach, fundadora da livraria Shakespeare and Company, o romance modernista Ulysses, que revoluciona a literatura
DEZ É fundada a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), através da união inicial das repúblicas soviéticas da Rússia, da Ucrânia, da Bielorrússia e da Transcaucásia
1923
OUT O ex-socialista Benito Mussolini, fundador dos Fasci Italiani di Combattimento, conduz, à frente dos seus
JAN Contrariando o ponto de vista da Inglaterra e dos EUA, a França, secundada pela Bélgica, ocupa militarmente a bacia do Ruhr, como retaliação à Alemanha pelo não pagamento das reparações de guerra segundo as normas impostas; na Alemanha, mergulhada na hiperinflação, é criado, como moeda de transição, o Rentenmark, que permite retirar 12 zeros ao marco corrente; no ano seguinte surgirá o Reichsmark, que circulará juntamente com o Rentenmark até ao imediato pós-II Guerra Mundial
1. Assinatura do Tratado Naval de Washington 2. Descoberta do túmulo do faraó Tutank-Amon 3. Mahatma Ghandhi dando uma entrevista 4. Uma parada militar na Praça Vermelha, em Moscovo
MAR Começa a publicar-se, nos EUA, a revista semanal Time, diferente das «ilustrações» até então existentes e modelo dos modernos newsmagazines JUN O primeiro-ministro búlgaro Alexander Stamboliysky é derrubado num golpe militar e fuzilado; fizera o país aderir à SdN, defendia uma reforma agrária e já antes da Grande Guerra se opunha ao alinhamento com os Impérios Centrais AGO Com a morte de Harding, sucede-lhe na Presidência dos EUA o até
então vice-presidente Calvin Coolidge, que prossegue uma política exterior semelhante SET Em Espanha, com a cobertura do rei Afonso XIII, o general Miguel Primo de Rivera comanda um golpe, suspende a Constituição de 1876, instaura uma ditadura governada por um Diretório Militar e funda o partido único Unión Patriotica OUT Atatürk torna-se o primeiro Presidente da República da Turquia e a capital passa de Istambul para Ankara NOV Falha o «Putsch da Cervejaria», uma tentativa de tomada de poder na Alemanha pelos nazis; Hitler é condenado a uma pena de prisão de cinco anos, mas cumprirá apenas um, durante o qual escreverá o seu famoso livro Mein Kampf (O Meu Combate) DEZ O primeiro tubo eletrónico de televisão é patenteado pelo físico Vladimir K. Zworkyin, nascido na Rússia mas radicado nos EUA na sequência da revolução soviética VISÃO H I S T Ó R I A
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Anos 20 || Cronologia
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1924
1925
JAN A morte de Lenine, que assumira um papel de liderança na Rússia desde a revolução, desencadeia uma luta sem quartel pelo poder entre Trotsky e Estaline no interior do Partido Comunista e do aparelho do Estado, confronto que só terminará 16 anos depois, com o assassínio do primeiro • No mesmo mês, Ramsay MacDonald passa a chefiar o primeiro Governo trabalhista da História da Grã-Bretanha
JAN Mussolini proíbe os partidos de oposição em Itália; ao longo do ano irá assumindo poderes ditatoriais, criando uma polícia política e adotando o título de «presidente do Conselho de Ministros» em vez do «chefe do Governo» (no que será mais tarde copiado por Salazar, em Portugal). • No mesmo mês, o engenheiro escocês John Logie Bird apresenta publicamente o primeiro sistema de televisão a cores
FEV O compositor americano George Gershwin apresenta, em Nova Iorque, a sua famosa Rapsody in Blue
1924 MAR Nos EUA, Edgar Hoover assume a direção do Bureau of Investigation, antecessor do FBI, que fundará em 1935 e que dirigirá com plenos poderes até à sua morte, em 1972 MAI Nos EUA é aprovada uma lei que limita o número de candidatos a imigrantes provenientes da Ásia, da América Latina e da Europa do Sul; este Immigration Act só será revogado em 1965 JUN O Indian Citizenship Act concede a cidadania dos EUA às populações nativas, ou ameríndias AGO Eclode, na Geórgia, uma mal sucedida tentativa de sublevação contra a o Estado soviético SET Começam, a título experimental, as emissões de rádio em Portugal, por iniciativa de Abílio dos Santos Júnior • Também em Portugal, é lançado neste ano o primeiro volume do Guia de Portugal, de Raul Proença NOV O republicano Calvin Coolidge, que já estava na Casa Branca, é eleito Presidente dos EUA DEZ Na Turquia, a Grande Assembleia Nacional aprova formalmente a dissolução oficial do Califado 14 V I S Ã O H I S T Ó R I A
ABR Abre em Paris a Exposition Internationale des Arts Décoratifs, que transmitirá ao mundo o gosto pelo estilo Art Déco
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NOV Abre, em Paris, a primeira Exposição Surrealista DEZ Bernardino Machado, do Partido Democrático, é eleito pela segunda vez (não consecutiva) Presidente da República Portuguesa • Na Pérsia (futuro Irão), quatro anos depois do golpe de estado em que tomara o poder, o general Reza Pahlavi faz-se coroar Xá (rei) e funda a dinastia Pahlavi • Em Portugal, o jornal O Século revela a grande burla de Alves dos Reis, que pusera em circulação 200 mil notas falsas de 500 escudos fraudulentamente encomendadas à própria firma britânica que as produzia
1925
1926
• Scott Fitzgerald publica o romance O Grande Gatsby, que fixará o retrato das classes abastadas nos Roaring Twenties, ou «Loucos Anos 20»
1926
JUL Adolf Hitler publica o primeiro volume de Mein Kampf, escrito na prisão; o segundo surgirá no ano seguinte AGO As tropas francesas retiram do Ruhr, por pressão anglo-americana SET Uma força hispano-francesa desembarca em Alhucemas, no Norte de África, desencadeando a fase final da guerra do Rif, contra os independentistas berberes liderados por Abd el-Krim OUT Começam as negociações que conduzirão à assinatura do Tratado de Locarno, pelo qual a Alemanha prescinde dos direitos à Alsácia e à Lorena • Em Lisboa, o jornal O Século denuncia a fraude de Alves dos Reis, que encomendara fraudulentamente aos fabricantes britânicos, em nome do Banco de Portugal, uma emissão de notas falsas de 500 escudos
MAI Eclode em Portugal o movimento militar de «28 de Maio», que derruba a I República e conduzirá à instauração da Ditadura Militar e, a longo prazo, do Estado Novo salazarista (a partir de 1933) • No mesmo mês, o marechal Pilsudsky assume-se como ditador da Polónia JUL Na China, as tropas de Chang Kai-Chek desencadeiam a Campanha do Norte, destinada a combater os comunistas de Mao Tsé-Tung AGO A importação e a comercialização de drogas são proibidas em Portugal SET Oito anos depois do fim da Grande Guerra, a Alemanha é admitida na Sociedade das Nações NOV Através da Declaração Balfour, os domínios britânicos obtêm autonomia política, embora continuem simbolicamente sujeitos à Coroa, nascendo assim a Commonwealth DEZ Hirohito ascende ao trono imperial do Japão, que ocupará até à morte, em 1989
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1. Exposição das Artes Decorativas, em Paris 2. Golpe do 28 de Maio em Portugal 3. Entrega dos primeiros Oscars de Hollywood 4. A «Quinta-feira Negra» de Wall Street 5. O Dornier X sobrevoando Nova Iorque
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1927
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FEV Em Portugal, fracassa, após combates no Porto e em Lisboa, um movimento revolucionário contra a ditadura
ABR O parlamento turco vota favoravelmente à criação de um Estado laico, sem qualquer referência ao Islão na Constituição
JAN O escritor alemão Erich Maria Remarque publica o seu influente romance pacifista A Oeste Nada de Novo • Expulso da URSS, Trotsky fixa-se temporariamente na Turquia • O desenhador belga Hergé (pseudónimo de Georges Rémy) cria a personagem de Tintin nas páginas de Le Petit Vingtième, suplemento infantil do diário Le Vingtième Siècle; a primeira aventura do repórter é vivida exatamente na misteriosa URSS
ABR Após assegurar o controlo de Xangai, reprimindo violentamente os comunistas urbanos, Chang Kai-Chek instala um Governo «nacionalista» chinês em Nanquim • Realiza-se a I Volta a Portugal em Bicicleta, organizada pelos jornais Diário de Notícias e Os Sports; o modelo é o então já célebre Tour de França
MAI Em Inglaterra, as mulheres são equiparadas aos homens em termos de lei eleitoral
MAI O americano Charles Lindbergh efetua, no seu avião monomotor Spirit of St. Louis, o primeiro voo sem escala sobre o Atlântico Norte, entre Long Island (EUA) e Paris
JUN As tropas de Chang Kai-Chek conquistam Pequim, pondo termo à Campanha do Norte da China
1927
1928
1929
• A seleção portuguesa de futebol atinge os quartos-de-final do Torneio Olímpico da modalidade, disputado no âmbito dos JO de Amesterdão; o futebol arrebata as multidões e transforma-se no «desporto-rei»
enfrentam-se sangrentamente dois gangues na Chicago da «Lei Seca», onde pontifica Al Capone
AGO Apesar dos protestos internacionais, são executados nos EUA os anarquistas ítalo-americanos Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti, acusados de um homicídio que não tinham cometido OUT Com a estreia, nos EUA, do primeiro filme sonoro – The Jazz Singer (O Cantor de Jazz), de Alan Crossland – o cinema deixa de ser mudo DEZ No seu XV Congresso, o PC soviético aprova a coletivização da agricultura, lança o primeiro Plano Quinquenal com vista à industrialização e expulsa Trotsky e os seus partidários «esquerdistas», ficando todo o poder nas mãos de Estaline; Trotsky fica com residência fixa em Alma Ata, no Cazaquistão • Travam-se violentos combates em torno de Xangai, tendo os comunistas reconquistado episodicamente a cidade
AGO Através da assinatura, em Paris, do Pacto Kellog-Briand (dos nomes do secretário de Estado dos EUA e do ministro dos Negócios Estrangeiros francês), as principais potências comprometem-se a renunciar à guerra como instrumento de política nacional SET O biólogo escocês Alexander Fleming descobre e efeito bactericida da penicilina, dando início à era dos antibióticos (que no entanto apenas terão difusão generalizada depois da II Guerra Mundial) • Nasce o Rato Mickey, criação de Walt Disney no filme de animação Steamboat Willie NOV O republicano Edgar Hoover é eleito Presidente dos EUA, derrotando por larga margem o democrático Al Smith
FEV Pelo Tratado de Latrão, a Itália reconhece o Estado do Vaticano, sob a plena soberania do Papa • No «Massacre do Dia de S. Valentiam»
MAI São atribuídos em Hollywood, pela primeira vez, os Oscars da Academia de Ciências e Artes Cinematográficas JUN Renegociando, em Paris, os termos do Tratado de Versalhes, assinado em 1919, o Plano Young estabelece que a Alemanha poderá pagar as reparações de guerra em prestações anuais até 1988; o advento do nazismo e a eclosão da II Guerra Mundial virão a transformar estas disposições em letra morta OUT O crash da bolsa de Nova Iorque, no dia 25 (a famosa «Quinta-Feira Negra» de Wall Street), desencadeia uma crise económica mundial de grandes dimensões, que marcará o mundo durante a primeira metade da década seguinte NOV O almirante americano Richard E. Byrd sobrevoa, pela primeira vez, o Polo Norte • O grande hidroavião alemão Dornier Do X parte para uma viagem inaugural intercontinental e fica retido em Lisboa durante seis semanas, por avaria Luís Almeida Martins VISÃO H I S T Ó R I A
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Anos 20 || Introdução
O tempo das ilusões
Saídos exaustos, em 1918, da absurda e traumática I Guerra Mundial, os europeus e os norte-americanos mergulharam, na década de 1920, numa euforia de notório progresso material, consumismo e inconsciência. Foram os Roaring Twenties, as Années Folles – os «Loucos Anos 20»
UIG / BRIDGEMAN IMAGES/FOTOBANCO
por Luís Almeida Martins
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Anos 20 || Introdução
Adeus, ‘Belle Époque’ Mas, houvesse ou não receio de que outras conflagrações de idêntica escala se seguissem, é indesmentível que a Grande Guerra – mais tarde chamada I Guerra Mundial – marcou o início de uma nova era. Foram tais as dimensões do cataclismo que o mundo dele emergente, sobretudo a Europa, passou a viver em permanente estado de crise e instabilidade. Os grandes impérios que englobavam as nacionalidades europeias foram levados pelo vento e os acordos políticos assinados às mesas das conversações de paz nem sempre foram os mais pragmáticos tendo em vista a preservação da frágil paz. Nem a Alemanha, sujeita a pesadas e humilhantes indemnizações de guerra, estava tão esmagada e anulada como poderia parecer (afinal, era tudo uma questão de tempo) nem os vencedores (Inglaterra, França, EUA) falavam a uma só voz. Winston Churchill, por exemplo, era de opinião que o Império Austro-Húngaro nunca deveria ter sido desmembrado e defendia que a decisão de transformar a Alemanha numa república 18 V I S Ã O H I S T Ó R I A
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m 1914, quando os homens ainda ostentavam fartos bigodes e as mulheres usavam espartilho e saia a rojar o chão, os mais otimistas – sobretudo em Inglaterra – viviam na ilusão de que a guerra que então principiava estava destinada a acabar com todas as guerras. A expressão «the war to end the war», utilizada pela primeira vez pelo pensador e pioneiro da ficção científica moderna H.G. Wells, tornar-se-ia um bordão recorrente em discursos e artigos de jornal. Com o passar dos anos e o sanguinário impasse nas trincheiras, o otimismo cederia depois lugar à ironia, sem que a expressão deixasse de ser utilizada ou tenha alguma vez caído no esquecimento – até hoje. Mas a verdade é que, em 1919 e 1920, já ninguém duvidava de que outras guerras viriam a caminho se as grandes potências não fossem capazes de chegar a um entendimento capaz de criar uma ordem nova, sucessora da que se esfarrapara no arame farpado e se esfumara nas explosões dos obuses e no crepitar das metralhadoras.
funcionaria a prazo como um elemento de dissolvência interna que se voltaria contra os triunfadores de 1918. Na charneira do conflito terminava a Belle Époque, e a rutura do equilíbrio, fosse ele justo ou injusto, manifestava-se em todos os domínios, do político ao económico, passando pelo social. Exigia-se um prolongado esforço para recuperar esse equilíbrio perdido, e esse esforço só daria frutos se as potências vencedoras trabalhassem em conjunto, o que nem sempre aconteceu. Em 1914 o mundo vivia nume economia capitalista, com um predomínio crescente dos detentores dos capitais e uma livre concorrência que quase anulava o papel do estado. Esse modelo económico mantinha-se, é certo, em 1918, mas com a diferença de que a Europa perdera a hegemonia que lhe dera toda a sua força no século XIX, e que agora era cada vez mais partilhada com os EUA e o Japão, ao mesmo tempo que países emergentes como o Brasil e a Argentina ou, sobretudo, os domínios britânicos do Canadá, da Austrália e da África do Sul começavam a pesar no prato da balança. O salto dos EUA foi sobretudo notável. Devedores em 1914, passaram a credores em 1919. Na «Velha Europa», o reforço das barreiras alfandegárias ocorrido durante a guerra permaneceu em tempo de paz, e cada Estado preocupou-se com o desenvolvimento da sua própria indústria, criando postos de trabalho e acumulando reservas de bens para o caso de eclodir outro conflito e, simultaneamente, de-
Idade de ouro do ténis René Lacoste, o «Crocodilo» para os fãs, disputa um jogo de pares ao lado de Suzanne Lenglen, em 1925
senvolvendo com frequência nacionalismos por vezes exacerbados e facilmente dirigidos para soluções políticas de força. Nasciam as ditaduras de ferro, os regimes militares conducente aos fascismos e essa verdadeiramente excecional e inovadora ocorrência que foi a Revolução Russa, os dez dias que abalaram o mundo. Os bens de consumo surgiram na década de 20, com reflexos mais visíveis no setor dos eletrodomésticos, o que representou também a entrada em cena de um certo american way of live que se estendeu a áreas do comportamento como o vestuário feminino, o corte de cabelo à garçonne, a liberalização de algumas práticas de relacionamento (ainda que nem sempre consonantes com uma autêntica libertação da mulher), o gosto pela música de jazz (como se chamava a todos os ritmos modernos), a evolução da grande literatura para o discurso da consciência, a moda do consumo de aditivos, a entrada do cinema nos hábitos do cidadão comum, o aparecimento do desporto como espetáculo de massas, os grandes saltos da aviação comercial. Tudo, enfim, era novo e diferente nos «Loucos» Anos 20».
‘Flappers’ e Art Déco O brilho das lantejoulas, o modelo dos chapéus em cloche e o rodopio dos colares das flappers (designação que os americanos deram às mulheres emancipadas cujo
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Fumando na gárgula Operários fazem uma pausa na construção do Chrysler Building, símbolo nova-iorquino da Art Déco, iniciada em 1928 sobre o traço de Van Alen
modelo físico de beleza na tela é a atriz Louise Brooks) puseram no entanto em destaque as desigualdades de um mundo onde se agravara o já de si larguíssimo fosso entre ricos e pobres. Para preencher o vácuo provocado pelo quase desaparecimento da «sólida» classe média composta pelo funcionalismo que dera o seu charme discreto à Belle Époque e cuja estrutura a Grande Guerra arruinara, surgiu de rompante uma classe de novos-ricos que acendiam charutos em notas de banco, ostentava «cachuchos» com grandes pedras preciosas nos dedos das mãos e sustentava os «caprichos» de mulheres afinal não tão emancipadas como hoje pensamos e elas próprias se julgavam. O verbo governar, com efeito, continuava a ser conjugado no masculino, não obstante as brisas de liberdade que sopravam nos bas-fonds. E com o advento dos novos-ricos, o domínio dos «patos-bravos», o poder crescente da aristocracia do dinheiro foi-se depreciando o valor do trabalho intelectual. É certo que esta tendência foi contra-
balançada pelo reconhecimento por parte dos governos de que os operários tinham direito a um nível de vida minimamente digno, mas esse foi o corolário de uma luta laboral, de raiz anarquista e depois comunista, que nunca deixou de correr em pista própria (até à década de 1990, sabemo-lo hoje…). Por todos estes motivos, a «loucura» dos Anos 20 era mais uma fuga em frente do que a celebração efetiva e consciente de um triunfo. Paradoxalmente, ou talvez não, o excesso de produtos manufaturados levou a uma crise de superprodução, ou seja, ao desemprego e à miséria. A crise bolsista de 1929, que rebentou nos EUA e se prolongou na Europa, logo adquiriu as dimensões de catástrofe mundial. O desemprego em
O mundo dos ‘Loucos Anos 20’ nada teve já que ver com esse prolongamento do séc. XIX que fora a ‘Belle Époque’
grande escala, as perturbações políticas e o endurecimento das ditaduras (no caso americano, um simples reforço da intervenção estatal com o New Deal de Franklin D. Roosevelt) foram corolários dessa crise que viria a conferir o tom sombrio à década seguinte, prenunciadora já de uma nova guerra. Filmes de propaganda concebidos segundo técnicas requintadas de controlo das massas e apelativos cartazes de conceção modernista iam, já nos Anos 20, abrindo caminho à instalação de sistemas policiais tentaculares que aos poucos minavam os cantos mais recônditos da vida das nações. Definitivamente, o mundo das Années Folles nada teve já que ver com esse prolongamento do século XIX que fora a Belle Époque, sem no entanto ser ainda assombrado pela tenebrosa escuridão da década de 30. Na sua luminosidade própria e irreverente, nos seus contornos retos e geométricos de Art Déco, no encanto das saias curtas e dos colares longos, os Roaring Twenties ainda hoje rugem aos nossos ouvidos como a mais inconsequente das marchas guerreiras: o hino a uma paz vivida com intensidade mas irremediavelmente condenada à perdição. VISÃO H I S T Ó R I A
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Anos 20 || População
As grandes metrópoles Nova Iorque, Londres e Paris eram as megalópoles, num mundo ainda decidamente centralizado no Ocidente. A localização de todas as cidades que contavam mais de um milhão de habitantes por volta de 1920
CHICAGO LOS ANGELES
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FONTE in Growth of the world’s urban and rural population, 1920-1960, United Nations: New York, 1969
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FONTE AR/VISÃO
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ESTÚDIOS NOVAIS
Trabalho || Moda
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As mulheres preferem o
‘chic’
Ao mesmo tempo que cortava o comprimento do cabelo, a altura das saias e o tamanho das abas dos chapéus, a moda cortou também as amarras às mulheres
ANTÓNIO NOVAES
por Cláudia Lobo
Descubra as diferenças Grupo de mulheres no hipódromo de Lisboa, em 1928, à esquerda e em cima, uma garden party no Palácio das Necessidades em 1906: não foi só a roupa que mudou, foi também a atitude VISÃO H I S T Ó R I A
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Trabalho || Moda
Vão-se os corpetes, vêm os votos Garçonnes ou flappers, a nova moda não simbolizou apenas uma revolução nas roupas – mas nos costumes. Com a falta de mão-de-obra provocada pela I Guerra Mundial (1914-1918), a mulher 24 V I S Ã O H I S T Ó R I A
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Bocas em forma de Cupido Inventado em 1915, o bâton retrátil passou a andar nas carteiras. E para pintar os lábios usava-se até um molde
entra em força no mercado de trabalho, descobrindo o mundo que a rodeia fora de casa. E quem consegue trabalhar como um homem usando saias até aos pés, blusas com laços até ao pescoço e cabelos compridos até à cintura? Conforme os vestidos deixam de ser cintados, as mulheres livram-se do corpete e reinventam a liberdade de um corpo que agora até já pode esticar a perna na pista de dança. Na proporção inversa ao comprimento dos cabelos, o rosto maquilha-se. À medida que as saias sobem até ao joelho e descobrem as pernas, as mulheres descobrem-se sedutoras. Morre a mulher vitoriana, definitivamente, e nasce a mulher moderna. Glamorosa, frívola, coquette. «A necessidade dura da vida lançou a mulher à conquista dos empregos até então exclusivos do homem», lê-se num artigo da revista portuguesa ABC de 1926, intitulado A mulher, rival do homem. «Hoje há mulheres polícias, mulheres barbeiros, mulheres pedreiros, mulheres chauffeurs. E a verdade é que, apesar dos prognósticos pessimistas dos filósofos de calças, elas se desempenham maravilhosamente das suas novas profissões.»
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duas semanas do casamento, a jovem parisiense Monique Lerbier descobriu que o seu noivo, um industrial que iria ser sócio do seu pai, a enganava. Estávamos no final da primeira década do século XX. Irritada com a hipocrisia da sociedade mundana em que vivia, a rapariga rompeu o noivado e decidiu gozar os mesmos prazeres da vida de que usufruíam os rapazes. Tornou-se decoradora e financeiramente independente. Passou a amar como os homens, livremente. A sua história chocou a França e o mundo – e nem o facto de Monique ser apenas uma personagem de romance tornou o caso menos grave. Pouco depois de o livro ter sido publicado, em 1922, foi retirada ao seu autor, Victor Margueritte, a comenda da Legião de Honra. A Comissão de Censura francesa proibiu a sua exportação. Mas já não havia nada a fazer: o mundo conhecera a personagem que se tornaria, até hoje, no símbolo da libertação da mulher dos Anos 20, com o nome «roubado» ao título do romance: La Garçonne. No mesmo ano, mas do outro lado do Atlântico, seria também através de uma personagem de literatura que chegaria a definição da palavra que nos Estados Unidos designava a nova mulher. Zelda Fitzgerald, que o seu marido, Scott Fitzgerald, incluiria mais tarde em O Grande Gatsby, explicava numa revista o que era a mulher flapper: «A flapper acordou da sua letargia, cortou o cabelo, escolheu um par de brincos, pôs uma grande dose de audácia e rouge e entrou na batalha. Ela flirta porque é divertido flirtar e usa fato de banho de uma só peça porque tem boa figura (…) Tem consciência de que as coisas que faz são aquelas que sempre quis fazer. As mães não aprovam que os seus filhos levem as flappers a dançar e, sobretudo, não aprovam que elas levem os seus corações.»
O fenómeno ganha força em países como a Inglaterra, que em 1918 concede o direito de voto às mulheres com mais de 30 anos (a universalidade do voto feminino só chegaria dez anos depois), e os Estados Unidos, cuja 19ª emenda da Constituição, em 1920, permite às mulheres irem às urnas. Além disso, a liberdade de ação estende-se a outros campos da vida social: fazem desporto como os homens, guiam como os homens, pilotam aviões como os homens, fumam como os homens, dançam como os homens. «O progresso e a guerra mataram para sempre, quer-nos parecer, a deliciosa separação que distinguia os homens das mulheres», lê-se no mesmo texto da ABC.
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Estilo Com as pernas à mostra nos vestidos tubulares, ou tapadas pelas calças que agora também usam, as mulheres passam de seduzidas a sedutoras
O aparecimento da maquilhagem As mulheres fazem tudo como os homens, menos, talvez, seduzir. Com a liberdade dos vestidos esvoaçantes de cintura baixa, as pernas e os pés pela primeira vez na história da moda a descoberto, os braços à mostra e os rostos emoldurados pelos chapéus de feltros colados à cabeça, descobre-se a comunicação não-verbal. O cinema influencia os comportamentos, aprende-se a beijar com o que se vê na tela e a usar a maquilhagem como as atrizes. E há novas armas de sedução: a indústria cosmética, tal como a conhecemos hoje, nasceu nos Anos 20, graças, também em parte, à indústria
Quem consegue trabalhar como um homem usando saias até aos pés, blusas até ao pescoço e cabelos até à cintura?
de Hollywood. A Maybelline comercializa uma caixa de rimmel com espelho, instruções, escova e uma fotografia da atriz dos filmes mudos Mildred Davis. Fazem-se mais expressivos os olhos graças ao revirador de pestanas inventado por William Beldue em 1923. A invenção do bâton retrátil, em 1915, torna o vermelho que toda a gente quer nos lábios transportável na carteira. Pinta-se a boca em forma de coração, tal como a atriz e dançarina Mae Murray – e em 1926 Helena Rubinstein lança até um lápis e um molde em papel que permitem delinear na perfeição a forma. Um pouco mais tarde, aparece o eyeliner, inspirado no interesse que o antigo Egito desperta depois da descoberta do túmulo de Tuntakamon. A cor chega também às mãos graças… aos automóveis! Ao ver o esmalte usado nos carros cada vez mais em maior número nas ruas de Paris, a jovem Michelle Ménard pergunta-se se será possível criar algo semelhante para as unhas e fala com Charles Revson, dono da companhia que viria depois a chamar-se Revlon. Nasce assim o verniz para as unhas, comercializado ainda pela Cutex e pela Max Factor. Mas obrigatório mesmo é o rouge (hoje vulgarmente conhecido por blush), aplicado em círculos nas bochechas do rosto, de preferência, segundo Coco Chanel, por cima de uma pele bronzeada. A quantidade usada tinha a ver com a forma como se queria ser vista. Afinal de contas, a palavra flapper tinha duas origens distintas: referia-se ao movimento que um pássaro faz quando está a aprender a voar; e significava também uma mulher imoral.
Arte e moda Crescida num orfanato onde aprendeu a costurar, cantora num club ainda antes da guerra onde ganhará o petit nom pelo qual será conhecida por todo o mundo, amante de um oficial, VISÃO H I S T Ó R I A
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Trabalho || Moda Glamour Produção de moda para a revista Vogue, 1929: o corpo liberta-se também na praia
Legenda Odio iusam nus, cupis apicide lestem nosam volupta pa
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Coco Chanel é a primeira a desenhar roupa desportiva para mulher a introduzir no guarda-roupa feminino peças de jersey, tecido até aí exclusivo da roupa de homem. Amiga de figuras como Picasso, Braque e Stravinsky (foi ela quem desenhou os figurinos de A Sagração da Primavera), o seu trabalho é o espelho de como a moda se cruzou com todas as artes, nomeadamente a pintura, o bailado e o cinema. Chanel, que abrirá a sua loja de Paris em 1919 (no mesmo local onde ainda hoje existe, Rue Cambron, 21), é, juntamente com Jean Patou, Jeanne Lanvin e a italiana Elsa Schiaparelli, uma das mais influentes figuras da moda, cujo ciclo de produção industrial (ou seja, a ideia de coleções relacionadas com as estações) fica estabelecido nesta altura. A roupa de ténis de Jean Lanvin, o criador do primeiro bronzeador solar, ajuda a moldar a silhueta tubular que se viria a impor de forma massiva a partir de 1925. Em 1926, ano em que Chanel lança o seu famoso ‘pequeno vestido preto’ – brilhante e esvoaçante –, Schiaparelli, amiga de surrealistas como Salvador Dalí, cria camisolas com efeitos trompe l’oeil.
‘Lesbian chic’
Chanel nº5 Em 1921, Coco convidou os amigos para um jantar e borrifou-os com a fragrância. Queria que o perfume fosse uma surpresa
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A nova silhueta feminina gera impactos laterais: agora que as mulheres não se querem tão curvilíneas, a gordura deixa de ser formosura e surgem os tratamentos contra o peso, ministrados nos mesmos locais onde se aplicam máscaras de rosto. Desaparece o corpete e surgem novas peças de lingerie, nomeadamente soutiens que, em vez de realçarem o peito, o apertam de forma a não ter volume. O look andrógino ganha adeptos – afinal, a garçonne Monique amava homens e mulheres, indistintamente. As mulheres até vestem calças, imagine-se – e, pior, cometem a audácia de usar smoking, moda vinda de Inglaterra, e pijama. «O pijama é das toilettes femininas a mais discutida, pela sua atitude masculina», ficam a saber as leitoras da
revista ABC em 1927, num artigo sobre duas versões daquela peça de vestuário. «A excentricidade dos modelos exige a expressão garota da figura juvenil que a veste, parecendo desafiar a censura e a crítica com o seu bonito olhar cheio de malícia e intenção. Apesar do trajo, apesar dessa toilette de atitude masculina, apesar do penteado, toda a travessura endiabrada do seu sorriso de mulher ficou feminina!» Andrógina, sim, mas coquette, glamorosa e sedutora. Ou, na palavra que a escritora americana Anita Loos ajudaria a popularizar com o seu romance de tom humorístico Os Homens Preferem as Loiras, o segundo livro mais vendido em 1926 nos EUA (e que nós depois recordaremos através de Marilyn Monroe): chic.
VESTIDOS A cintura descaída muda a silhueta da mulher, e o corpete é substituído pelo soutien. As saias sobem até abaixo do joelho, mostrando, pela primeira vez, as pernas. Com vestidos de linha tubular e de saia curta, pode esticar-se a perna ao dançar o charleston. A liberdade de movimentos é enorme.
SAPATOS Até aí dentro de botas, os pés das mulheres também deixam de estar escondidos. Com uma tira passando pelo peito do pé, os sapatos dos Anos 20 são «todo-o-terreno», pois tanto servem para o passeio matinal como para o chá das 5 ou para ir ao dancing. Varia a pele e a cor – «mas a mulher prática e económica foge sempre dos exibicionismo espetáculos que denotam originalidade e ostentação, aproveitando a moda no aspeto geral, compatível com os seus meios de fortuna e apropriada à moderna exigência, sem desmedida ambição de ficar em foco», lê-se na revista ABC.
BIJUTERIA Longos colares de pérolas, para abanarem com o corpo ao som da música; muitas pulseiras e brincos compridos.
MEIAS A produção industrial de seda artificial, conhecida como rayon, popularizou as meias transparentes (que podiam ter padrões Art Déco). As flappers usavam-nas não com ligas, mas enroladas na zona do joelho. Como o rayon era muito brilhante, havia quem pusesse pó nas pernas para ficarem menos lustrosas.
CHAPÉUS Desaparecem as capelines e os chapéus com grandes abas e aparecem os cloches, colados à cabeça, que emolduram e fazem realçar o rosto. Há vários modelos diferentes. Claro que só os pode usar quem tem o cabelo curto. CAPAS De dia usam-se usa-se manteaux (a palavra «casacos» nunca é usada em Portugal) com o traje de passeio; à noite, para as festas, é obrigatória a capa, debruada a veludo ou a pele de animal. Prende-se com as mãos, enrugando-a, e é perfeita para dançar.
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Anos 20 || Cinema
Os Anos Loucos tinham filmes nos olhos
Embora já existente há duas décadas, arte e a linguagem das salas escuras atingiram a maturidade nos Anos 20
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por Manuel S. Fonseca
eteu-se pelos olhos ocidentais dentro e o olho do mundo nunca mais foi o mesmo. Há uma imagem de Un Chien Andalou que resume exemplarmente tudo: dois dedos abrem bem as pálpebras do olho de uma mulher, uma mão segura uma navalha de barbear. No plano seguinte, uma apressada nuvem passa pela gloriosa lua cheia, roubando-lhe luz, recortando-a de sinistras sombras. Novo corte, novo plano, e já vemos, num raccord arrepiante com a nuvem lunar, a lâmina dilacerar impiedosamente o globo ocular da mulher. Esse plano cru e sangrento, que os espanhóis Luis Buñuel e Salvador Dalí conceberam nas suas artísticas e retorcidas mentes de 1928, é a melhor metáfora para o que o cinema dos anos 20 fez aos olhos do mundo e do Ocidente em particular. Rasgou-lhes a inocência. O mundo vinha de uma Grande Guerra. Na Rússia, a revolução bolchevique criara a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, enquanto a Alemanha passava pelo agónico esplendor da República de Weimar, em cujas catacumbas já o rato nazi se alimentava do lixo que para lá caísse. Uma vontade de crescer e mudar bombeava o coração de um mundo a florir em contrários: eram os Roaring Twenties, potentes na sua mecanização, na explosão do automóvel, rádio, aviões, eletricidade, telefone, crescimento das bolsas, exponencial concentração urbana. E essas cidades apocalípticas tinham o que estavam mesmo a pedir: a esfuziante e sexualizada disseminação do espetáculo popular, da música e da dança, do teatro, do café e do cabaret. 28 V I S Ã O H I S T Ó R I A
O cinema chegara, hesitante, no virar do século. Ainda começou por ser coisa de voyeur, caixa de imagens numa colunazinha para dentro da qual o espectador solitário espreitava por um óculo. Era a visão peeping tom de Thomas Edison, americano arrivista, a fingir que nada sabia da projeção em sala, convivial e francesa, que os irmãos Lumière inauguraram, a 28 de dezembro de 1895, no salão indiano do Grand Café do hotel Scribe, no nº 14 do Boulevard des Capucines, em Paris. Nascia a inconfessável sala escura. Estavam lá 33 espectadores e o que viram deixou-os em estupor e transe. Numa tela, reproduzia-se o mundo e a luz do mundo, o mundo e o movimento do mundo, o
O plano de Luis Buñuel e Salvador Dalí em Un Chien Andalou é a melhor metáfora para o que o cinema dos Anos 20 fez aos olhos do mundo. Rasgou-lhes a inocência
mundo, as coisas e as pessoas do mundo. Numa tela aparecia o espelho, a cópia, mas também a re-criação do mundo. O poder inventivo do homem roçava o ombro pelo poder criador de Deus. A omnisciente potestade criara o mundo em sete dias, agora o ardiloso homem criava paraísos à velocidade de 24 imagens por segundo.
A ágil língua americana do cinema Saltemos, à mesma velocidade, vinte anos. Estamos em 1920 e o cinema é cada vez mais uma indústria, a ganhar, desde 1915, as conspícuas cores da arte. Um americano, D. W. Griffith, agarra a epopeia pela garganta e arrasta-a para dentro de um filme, Birth of a Nation, fixando os princípios da linguagem cinematográfica – plano, sequência, montagem paralela –, habilitando o filme a transformar-se na mais popular e legível forma narrativa do século XX. E o primeiro filme de 1920 que escolho é mesmo desse Griffith, desse americano que inventou o suspense cinematográfico, pondo a correr na tela duas ações paralelas e obrigando o rabo do espectador a saltar na cadeira, ao mostrar primeiro a imagem de uma desprotegida heroína em fuga e na imagem seguinte um monstruoso perseguidor, o que cria no nosso espírito o temor de que a besta esteja cada vez mais perto de trucidar o anjo. Way Down East leva a fórmula melodramática de Griffith ao sublime. Lilian Gish, figurinha tremente e frágil em que o corpo de mulher é só pura inocência, apaixonou-se pelo filho do patrão e ele, como todos nós, por ela. Amor indesejado que o patrão não aceita, expulsando-a da sua quinta, no meio de uma tempestade de neve e fim do mundo. O amado, mal descobre, parte para a salvar, lançando-se a um rio que o monstruoso inverno encheu de perigos e armadilhas, de gigantescos blocos de gelo em convulsão, levados pela loucura paroxística dos rápidos. Chegará o amado a salvar a coisinha amada? É uma sequência pasmosa, tão épica como a primeira estrofe de Os Lusíadas, tão lírica como um soneto de alma gentil. O cinema americano, nesse começo dos anos 20, instalara já as bases do que, depois, viria a ser a sua matriz hegemónica: empresas cinematográficas sólidas, a figura
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Greta Garbo A atriz sueca que triunfou em Hollywood numa foto promocional do filme O Beijo, de 1929 VISÃO H I S T Ó R I A
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Anos 20 || Cinema do produtor dinâmico e investidor, os talentos do realizador, que Griffith define e consagra como protagonista criativo do filme. O cinema americano complementa tudo isso com a invenção do ator-ídolo. Um produtor, imigrante húngaro-judeu, Adolph Zukor, tirou da sua inocência empreendedora um rosto e um corpo, os de Mary Pickford, e fez dela «a noiva da América». E fez-se a star. Ao heroísmo, à identificação do espectador com os nobres valores da beleza e do sonho que a star representa, o cinema americano acrescentou o riso, a anárquica ação burlesca. Arrisco dizer que o mundo nunca tinha rido tanto e tão bem. Sobretudo nunca o mundo inteiro tinha rido ao mesmo tempo. Dois atores obsessivos, Charlie Chaplin e Buster Keaton, conferem ao riso a ingenuidade e a iniquidade, a inteligência e a irreverência que seduziriam mesmo as mais transgressoras vanguardas da arte e do pensamento europeus. Chaplin e Keaton, Charlot e Pamplinas, foram cantados e reverenciados pelos surrealistas, claro, mas sobretudo pelo imenso povo a que damos o singular nome de humanidade.
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E onde é que estava a Europa? Alguma já estava na América e, nesses anos 20, muito mais Europa haveria de emigrar para a nascente e crescente Hollywood. Mas havia também Europa na Europa e havia mesmo grandes cinematografias europeias. Superando as cinematografias escandinavas, exímias na utilização psicológica da paisagem nos anos 10, superando o cinema italiano que nessa década cruzara o vanguardismo futurista com a invenção do blockbuster, de que foram exemplo Quo Vadis e Cabiria, monumentais filmes históricos, a Alemanha foi, ao longo dos anos 20, uma cinematografia capaz de disputar a primazia ao cinema americano. Perdida a I Guerra, os alemães criaram, em 1918, um conglomerado de produção, a UFA, para o qual desenharam uma estratégia quase militar de ataque ao mercado, fundada num objetivo de propaganda nacional. Mas a intervenção de um dos principais acionistas, o Deutsche Bank, trouxe depressa o estúdio para o modelo
Perdida a Grande Guerra, os alemães delinearam, como propaganda nacional, uma estratégia quase militar de ataque ao mercado cinematográfico
empresarial, focado no entretenimento. Com um produtor «à americana», Erich Pommer, a UFA transforma-se no maior estúdio do mundo, e atinge a produção anual de 600 filmes. Nos corredores do estúdio acotovelavam-se stars como Emil Jannings e Pola Negri, realizadores como Ernst Lubitsch, F.W. Murnau, Fritz Lang e G.W. Pabst. Na memória coletiva, ou pelo menos na memória dos cinéfilos e historiadores de cinema, dos filmes alemães que venceram a barreira do tempo, que aroma é que, hoje, deles se evola? Eis o que o meu nariz tem para vos dizer: cheiram a fantasmas, cheiram a noite e a medo. É esse o perfume alemão dos anos 20 por oposição ao heroísmo, ao melodrama e ao riso, por vezes cruel, dos americanos. Que a vossa pituitária não tema: é um grande cheiro, é um cheiro para a eternidade.
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Estética O expressionismo de O Gabinete do Dr. Caligari, estreado em 1920, marcou o começo de uma época que se estenderia até Metropolis, de 1929. À direita: Greta Garbo em A Lenda de Gosta Berling (1924)
A Alemanha vai à guerra pela calada da noite
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Legenda Odio iusam nus, cupis apicide lestem nosam volupta pa conet volori ut aut aut mil mi
Venham e visitem comigo O Gabinete do Dr. Caligari, filme de Robert Wiene que inaugura essa gloriosa década alemã. É um filme de feira e hospício, de sonâmbula adivinhação e de loucura. Nessa atmosfera de fundo sucedem-se os crimes, tão aleatórios como irracionais, características que reforçam o terror que aquelas imagens nos inspiram. Este é um terror como nunca se vira, projetado pelo cinema, diferente do terror do romance gótico, que a literatura inventara no século XVIII. Começa antes da própria ação do filme, no seu estranhíssimo estilo visual. O mundo que O Gabinete do Dr. Caligari oferece não se parece com o nosso mundo. As casas e as ruas são de uma deformação aterradora e porém bela, se pudermos chamar belo ao que é sinistro e bizarro. São casas e ruas geométricas e curvadamente ameaçadoras, tão curvadas como os retorcidos atores que emprestam, como Conrad Veidt empresta, o corpo às personagens. É um prodigioso trabalho de estúdio, uma conceção arquitetónica que nos espeta oblíquas agulhas de medo, mesmo antes de sabermos o que vai acontecer. A realização é retrógrada, alguns passos atrás da agilidade americana desses anos, mas os cenários, puro design em estúdio, geram os ambientes que tornam ainda mais perturbante a história de um sonâmbulo a sair de um caixão, a história de crimes inexplicáveis, doutores loucos ou de loucos que chegamos a pensar serem doutores. Devemos a Hermann Warm essa inovação. Era um artista ligado à revista modernista Der Sturm e trouxe outros dois pintores, Walter Reimann e Walter Röhrig, para o filme. O expressionismo punha, assim, um pé na história do cinema, enchendo Caligari de desenhadas sombras e de gráficos augúrios de fatalidade e dessa desordem física e mental que gera monstros, num forte contraste com a luz californiana do cândido Grifitth.
lidade contando-a só com luz e sombras e dando primado às personagens, por mais humildes que as personagens fossem. É esse o caso do velho porteiro de O Último dos Homens, de Murnau, que o peso da idade afasta da esplendorosa e nobre entrada do hotel onde pontificava, para o mergulhar em servil limpeza nas humilhantes latrinas de umas caves sem glória. Ao estilo chamou-se Kammerspiel, mas essa música de câmara não deixava de ser pessimista, tão pessimista como o exuberante expressionismo. Era um pessimismo despojado, de uma violência trágica, que submetia as personagens à inexorável vontade do destino. Lembro A Morte Cansada, de Fritz Lang, filme do alegórico diálogo de uma jovem noiva com a Morte. A maiúscula Morte roubou-lhe o amado e só o devolverá à vida se a noiva salvar do já certo fim um de três seres humanos que, como três trémulas velas, estão em risco de se apagar. Falar do grandioso e arrepiante cinema alemão dos anos 20 é falar do fantasma de Nosferatu, do pacto com o diabo do Fausto, das sociedades secretas de As Aranhas, desse demoníaco e manipulador Dr. Mabuse que corrompe, destrói e mata. São filmes negros, de uma escuridão de breu rasgada a raios de desesperada luz. Os espectadores enchiam as salas para os verem com um excitado frémito de horror. E o que estavam a ver? A memória do homérico sofrimento das trincheiras, da carne para canhão, do passado ainda tão recente da I Guerra? Há quem diga que viam já o futuro próximo, tanto estes filmes parecem antecipar o mal e a barbárie nazis. Mas é sobretudo o presente que os inspira, esses anos da envenenada República de Weimar, da Alemanha de joelhos no pátio das nações, da maré vergonhosa de desemprego, dos sórdidos bastidores políticos em que a violência comunista e nazi era um tapete estendido só para ser calcado pelas botas sujas do caos.
Já estamos a ver os nazis que aí vêm?
Matam-se os arcanjos, riem-se os anjos
Não era o único estilo do cinema alemão. A par desta novíssima intervenção dos decoradores e dos seus dominantes cenários pintados, um outro tipo de filmes, quase intimistas, aproximava-se da rea-
Ia dizer que na América não era assim. Mas há um filme que me desmente. Chama-se Greed. E não se sabe muito bem que filme é esse. É do tamanho de uma pirâmide plantada no meio da história do VISÃO H I S T Ó R I A
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Louise Brooks, minha Nossa Senhora É altura de levantarmos a ponta de outro lençol. O cinema meteu a humanidade na cama. O grandíssimo plano – o glorioso e gigantesco close-up dos mais belos rostos de homens e mulheres que a humanidade já vira – nimbado a cendrada luz em telas de dez metros, estarreceu os espectadores cativos do escuro das salas e das cadeiras em que se enterravam e dissolviam. Em 32 V I S Ã O H I S T Ó R I A
1924, morria Lenine, que tanto defendera o cinema como a mais importante das artes para a revolução, e um sueco, Maurice Stiller, criava Greta Garbo, em Gösta Berlings Saga. Depois, um alemão, Pabst, abriu a Garbo, em Berlim, a estrada de sofrimento da Rua sem Sol, que havia de ser a sua sina. O erotismo de Greta Garbo, que logo a seguir Hollywood rapta, é feito de solidão e dor, de um consentido e procurado masoquismo. Foi a essa beleza macerada que homens e mulheres se renderam, fiéis, em todo o mundo. Uma Nossa Senhora de aflição no baixo-ventre. Pode beijar, fumar um cigarro aristocrata, reclinar-se em cama lânguida, mas no fim é a imagem dela, solitária, indefinível, que persiste. Greta Garbo, The Temptress, Flesh and the Devil ou Divine Woman, foi só essa pura imagem, como muitos místicos gostariam de ser só puro espírito, sem nunca o terem conseguido. O tónus erótico do cinema dos anos 20 tem mais de uma centena de grandes intérpretes, de Rudolfo Valentino, John Gilbert e Douglas Fairbanks a Gloria Swanson, Clara Bow, Norma Shearer, Vilma Banky, Asta Nielsen. Mas se destaquei a Garbo, deixem-me reservar uma palavra cheia das mais perversas intenções para Louise Brooks. Percebeu-se o que dela podia vir em A Girl in Every Port, de Howard Hawks. Entrava pelos olhos dentro: a beleza dela era de um mundo que ainda estava por nascer. Moderna,
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cinema. Um monumento à rapacidade e à crueldade humanas. Para quê contar-vos a história: o tema é o nauseabundo dinheiro e mistura-se-lhe ciúme, crime e o Vale da Morte no deserto de Mojave. E é preciso saber o que se passou com a produção: Stroheim, o realizador, filmou mais de 80 horas de película e montou um filme de dez horas. Armou-se, entre ele e o produtor, Irving Thalberg, a mesma guerra que entre os arcanjos Gabriel e Lúcifer, entre a mais megalómana liberdade artística e a implacável realidade financeira. Os espectadores viram apenas um filme de duas horas e meia, montado por Thalberg. Quem ganhou, Gabriel ou Lúcifer? No filme, ganha a bestialidade humana, na talvez única tragédia negra que o cinema americano fez nos anos 20. E quem seria esse Stroheim que a fez tão dantesca e escabrosa? Alguém me descobre uma certidão de nascimento dele? Não era este o cinema americano dos anos 20. Cruéis embora, os filmes de Chaplin e Keaton, inseridos numa tradição de burlesco, que já vinha dos anos 10, faziam o mundo rir. Não é que o humor deles não tivesse gagues de sem dó nem piedade. Tinha. Realizadores e atores, controladores ferozes das obras que fizeram, Chaplin e Keaton incarnam eles mesmos operários, delinquentes, fugitivos, em obras-primas como The Kid e The Gold Rush, ou como Sherlock Jr. e The General. Se Chaplin reinventa um ser humano em que se casam a maldade e o lirismo, Keaton reinventa o espaço e o que nele é a absurda ação humana. (Ah, e já chegou a certidão de nascimento do tal Stroheim. Nasceu em Viena, no meio da Mitteleuropa, Erich von Stroheim de seu nome completo. Fala alemão. Bem me parecia que o negrume de Greed tinha sotaque.)
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Anos 20 || Cinema
Na sala escura Kathryn McGuire e Buster Keaton contracenam no filme mudo Sherlock Jr, de 1924
Ícones da tela Louise Brooks configurou a imagem da mulher emancipada dos anos 20. À direita: Charlie Chaplin na pele do vagabundo ‘Charlot’
‘O Cantor de Jazz’ A estreia do primeiro filme sonoro ocorreu em Nova Iorque, no Warners Theatre, em outubro de 1927
um corpo e uma sexualidade seguríssima de si – e a deixar, inseguríssimos fosse do que fosse, todos os homens sentados na sala escura. Pabst roubou-a a Hollywood e fez dela a Lulu de A Boceta de Pandora. Tal como a Garbo, Miss Brooks ficou para o resto dos seus dias amarrada à personagem de mulher fatal, a essa personagem de mulher ainda tão jovem, mas de intrincada psicologia, riquissimamente sexualizada, de êxtase e ruína, de desejo, concupiscência e consumação. O rosto e os gestos de Lulu dizem o que dizem: ela quer, ela faz. E revelam que ela sabe que o quer é complexo e não linear. O que ela quer é da ordem do quântico, como a física que essa década então desenvolveu.
Revolução, lágrimas e um beijo Os anos 20 viram nascer o cinema revolucionário soviético, de que Eisenstein, Dziga Vertov, Pudovkine e Dovjenko são os expoentes. À extraordinária beleza de alguns filmes, de O Couraçado Potemkine,
filmado no ano em que Hitler publicou o Mein Kampf, a A Mãe e a Arsenal, os soviéticos oferecem uma mais-valia ao capitalista cinema mundial: um conceito revolucionário e dinâmico de montagem. A França já tinha Renoir e extasiava-se com o megalómano Napoléon, de Abel Gance, exibido em três imagens paralelas e simultâneas. E tinha os vanguardistas, como Germaine Dullac, Epstein, Delluc e Man Ray, a quererem fazer um cinema de puras formas, género que Marcel L’Herbier leva ao acúmen no cínico e imparável L’Argent, combinação prodigiosa da montagem soviética com uma narrativa quase sinfónica, que dão uma visão obscenamente sexualizada do dinheiro. O cinema mudo estava no céu. Em 1927, já em Hollywood, o alemão Murnau filmou Sunrise, um dos mais belos
Os espectadores ouviram O Cantor de Jazz e já não quiseram outra coisa
filmes de sempre, e Fritz Lang, ainda em Berlim, assinou o futurístico Metropolis. E, no entanto, apareceu um filme a anunciar, sem nenhuma ponta de exagero, a morte do mudo. Um filme meio pedestre, O Cantor de Jazz, trouxe uma inovação fatal: pôs um ator, Al Jolson, a cantar e a falar. Os espectadores ouviram e já não quiseram outra coisa. Haverá ainda dois anos de obras-primas do cinema mudo. Escolho, para fechar, um filme francês, Passion de Jeanne d’Arc, do dinamarquês Dreyer, com alguns cenários gigantescos e outros miniaturizados, conforme a cena o exigia, o rosto dos atores, e sobretudo o da tão bela Falconetti, convertido em paisagem dolorosa, como na cena de martírio em que rapa todo o cabelo e chora um inteiro vale de lágrimas. Diz-se que, no fim da cena, Dreyer veio ao pé dela, recolheu com um dedo uma das lágrimas, levando-a aos lábios. Beijava nessa lágrima a última lágrima do cinema mudo. Manuel S. Fonseca foi programador da Cinemateca Portuguesa e é colunista de cinema VISÃO H I S T Ó R I A
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A primeira Miss Portugal
Chamava-se Margarida Bastos Ferreira e representou o País em 1927 no concurso de Miss Universo, em Galveston, no Texas. O júri americano não lhe deu o prémio a que muitos a julgavam com direito
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por Liliana Lopes Monteiro
oi em 8 de setembro de 1921, em Atlantic City, Nova Jérsia, EUA, que foi eleita a primeira Miss América. Mais do que uma celebração da beleza americana, o concurso, realizado na semana do feriado do Labor Day, pretendia atrair turistas e prolongar a sua estada. A celebração da beleza não era assunto novo ou desconhecido dos portugueses. Paris já elegia as suas «rainhas». Nesse mesmo ano, o Diário de Notícias promovia uma iniciativa que pretendia encontrar a mulher mais bonita de Portugal. Um dos redatores do jornal viajara pelo País munido de uma objetiva da Portugalia-Film, preparado para retratar as mais belas. Quatro anos mais tarde, é eleita a primeira Miss Lisboa na Festa dos Mercados, um concurso organizado pelo Diário de Lisboa no qual as estrelas são as mais bonitas vendedeiras da cidade. Ilda Fernandes, da Praça da Figueira, foi a vencedora, coroada na Câmara Municipal perante a euforia do povo que a aguardava à porta e a aclamava. 34 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Mas o grande destaque da década nos concursos de beleza ocorre em 1927. Nesse ano organiza-se em Galveston, no Texas, a eleição da primeira Miss Universo. O comité americano contacta países potencialmente interessados. Portugal confirma de imediato o convite e prepara a eleição de uma Miss Portugal que possa representar o País. Entre março e junho desse ano o País para e une-se num entusiasmo coletivo de colossal proporção. Desde o povo aos intelectuais e aos artistas, dos estudantes aos políticos, todos acreditam numa vitória nacional.
Miss Portugal, um dever patriótico
«Cabelos negros cortados. Escultural. Distinta.» Assim descrevia o DN Margarida Bastos Ferreira
«É necessário que as mulheres bonitas da nossa terra se apresentem para a sedutora e patriótica viagem à América do Norte», lê-se no Diário de Notícias de 16 de março de 1927. O jornal apela assim às portuguesas para que participem no primeiro concurso de Miss Portugal. Publica na primeira página o telegrama proveniente de Galveston convidando o diário a encontrar a mais bela do País, que iria competir pelo título de «mais bela do mundo». O apelo é lançado a todas as jovens solteiras entre os 16 e os 25 anos, convidadas a enviar os seus retratos para a sede do Diário de Notícias. As concorrentes selecionadas serão convidadas a comparecer na segunda eliminatória, na capital. Os apelos são constantes e diários, sempre na primeira página, geralmente acompanhados por um dos muitos retratos já recebidos. «É preciso honrar Portugal. Vencer, no mundo, pela Beleza, é a maior vitória», titula-se.
Galveston Na apresentação das concorrentes em fato de banho, Margarida é a 9.ª a contar da direita. À esquerda: Uma multidão aguardava-a na estação portuense de São Bento, quando ia a caminho de Vigo para embarcar no Niagara
O júri da primeira eliminatória é composto pelo escritor Júlio Dantas, o pintor Columbano Bordalo Pinheiro, o professor de Educação Física Carlos Gonçalves, o aguarelista Alberto Sousa, o escultor Francisco Santos, o arquiteto Raul Lino e o chefe de redação do DN, Rocha Júnior, que examinam mais de 500 retratos. São escolhidas as 23 mais belas, mas não se divulgam nomes, apenas as iniciais e a origem de cada uma, nomeadamente de Ílhavo, Aveiro, Lisboa, Amadora, Santa Comba Dão, Figueira da Foz, Viana do Castelo, Porto e Açores. A campanha continua até aos dias que antecedem a final, sucedendo-se as entrevistas às selecionadas e os testemunhos dos entusiastas do concurso. São tantas as jovens que após a primeira eliminatória continuam a enviar os seus retratos que o jornal anuncia que «qualquer rapariga que se julgue nas
Saiba que... • Depois da eleição de Margarida Bastos Ferreira compôs-se um fado em sua honra, com música de Ruy Coelho e letra de Rocha Júnior (com quem se casaria) • Margarida teve patrocínios e presentes de empresas portuguesas e foi a estrela de campanhas de publicidade (Perfumes Nally, Armazéns Azevedo Tecidos) • Não usou maquilhagem em nenhuma das competições • A Miss Universo, Dorothy Brithon, assinou um contrato cinematográfico de 250 mil dólares anuais e recebeu um prémio de 2 mil dólares • Em 1929 realizaram-se nos EUA dois concursos de beleza para homens, com júris unicamente femininos.
condições de comparecer no concurso» deverá comparecer no dia da final, «ainda para possível admissão». Na Praça do Município, uma hora antes do concurso, juntava-se uma multidão que a polícia e a GNR mal conseguiam conter e ali permaneceu ao sol durante mais de quatro horas. À sua chegada de automóvel, as concorrentes eram cercadas e interpeladas pelos transeuntes. E é assim que no Salão Nobre dos Paços do Concelho se reúnem 21 das 23 candidatas escolhidas originalmente (uma do Porto e outra da Figueira da Foz desistem) e mais 11, selecionadas apenas horas antes. Inicialmente todas as concorrentes compareceram na Sala dos Engenheiros, a sala do júri, e depois apresentaram-se uma a uma. No final só restaram três, que o DN salientou na altura serem também as favoritas do público. Margarida Bastos Ferreira, de 20 anos, da Amadora, seria a vencedora, enquanto Virgínia Lima e Maria Emília Casanova Ferreira, ambas de 19 anos e de Lisboa, ocuparam o 2º e o 3º lugares. Finalizada a eleição, a emoção invade as ruas, enquanto Margarida desfila no varandim do Salão Nobre, perante palmas, acenos, ovações, e a agitação das capas negras dos estudantes. «Mulher portuguesa em todos os seus detalhes. Cabelos negros cortados. Escultural. Distinta», é assim que o DN de VISÃO H I S T Ó R I A
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Belezas portuguesas Os atrativos das concorrentes a Miss Portugal colocaram o júri perante o embaraço da escolha (páginas da revista ABC)
31 de março descreve a vencedora. Começa a jornada seguinte. Dias depois, acompanhada pela irmã, a Miss parte para o Porto, para daí seguir para Vigo e apanhar o paquete para os EUA. Na estação do Rossio e nos vários apeadeiros da capital onde o comboio parou, a multidão aguardava entusiasticamente Margarida, tendo inclusive rasgado-lhe parte do vestido. Ao chegar ao Porto, a jovem desmaiou. Ao fim da tarde seguiu para Vigo, onde dormiria no Hotel Continental. Um jornalista do DN perguntou-lhe então no que pensava. «Estou com medo da América. Afinal, para quê esta viagem? Que vou lá fazer? No vapor chegam amanhã três lindas raparigas que valem mais do que eu. Ao pé delas, nada serei, nada conquistarei.» Na manhã seguinte embarcou no Niagara, onde se juntou à Miss Luxemburgo, à Miss França e à Miss Itália. A 1 de maio, Margarida chegou aos EUA, e o concurso em Galveston decorreu entre 21 e 23. As concorrentes desfi36 V I S Ã O H I S T Ó R I A
laram no Boulevard Seawall em traje de desporto, traje de passeio, fato-de-banho e vestido de baile. A Miss América e Miss Nova Iorque, Dorothy Brithon, foi eleita Miss Universo. Nos segundos e terceiros lugares ficaram a Miss Florida e a Miss Luxemburgo. No DN, o enviado especial António Ferro escreve que a Miss Portugal foi «aclamadíssima em todas as provas», e daí
Festa dos Mercados, 1925 Ilda Fernandes foi a vencedora deste concurso alfacinha organizado pelo Diário de Lisboa
não se entender não ter obtido qualquer qualificação. Ferro criticava a preferência do júri pelas concorrentes americanas. A própria Margarida confessou que, apesar da insegurança inicial, no segundo dia das provas era tal o clamor da multidão que chegou a acreditar na vitória.
Desilusão e polémica Rapidamente a polémica se instalou – em Portugal e não só. Afinal, a primeira e segunda classificadas eram ambas casadas, e o regulamento determinava que as candidatas teriam de ser solteiras. Adicionalmente, cada país deveria ter apenas uma representante, o que não aconteceu no caso dos EUA. Finalmente, veio a descobrir-se que a Miss Luxemburgo era afinal parisiense. Margarida Bastos Ferreira regressou à Europa por Paris no início de junho onde, segundo o DN, um encontro casual com o político republicano exilado Afonso Costa apenas lhe confirmou a admiração dos seus conterrâneos, declarando-lhe o antigo chefe do Governo que os americanos tinham sido muito injustos e que ela seria sempre a “Rainha de Portugal”. Sem título, mas não sem glória, Margarida regressou a Portugal na véspera de Santo António.
Genoveva Lima Mayer Numa das suas festas, recebeu os convidados com uma chita aos pés
A anfitriã de Lisboa Os salões das famílias abastadas, com as suas tertúlias de tipo vário, eram um cenário comum na Lisboa dos Anos 20. Mas nenhum deixou memória mais viva do que o de Veva de Lima
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por Emília Caetano
s convidados terão talvez pensado que, naquele dia, a anfitriã excedera os limites. Já estavam habituados a que as festas no palacete dos Ulrich, no alto das Amoreiras, em Lisboa, tivessem sempre o seu quê de exótico. Mas, dessa vez, estava a aguardá-los Veva de Lima, sentada na sala, com uma pequena chita aos pés, presa por uma trela. Pior ainda: a inquietante criatura estava para ficar. Nascida em 1886, em Lisboa, Genoveva de Lima Mayer casara com Rui Ulrich, um professor de Finanças, que foi também administrador do Banco de Portugal e de empresas, além de embaixador em Londres. O casal alugara o palacete à casa de Anadia, em 1920. A chita fora trazida de África por um irmão de Veva. Mas ela própria tivera a sua experiência africana, que se saldara por um lote assinalável de peles com que forraria as escadarias do palacete. E que estavam longe de ser a única nota exótica na decoração da casa, como prova um gabinete de trabalho, todo ele decorado ao estilo oriental. Veva, que se gabava de ir a Paris renovar o guarda-roupa, ali visitara, em 1925, a Exposição das Artes Decorativas, que foi o momento definidor do novo gosto, a Art
Déco. Mas não parece ter ficado particularmente adepta. São Art Déco algumas das peças, mas o grosso do mobiliário segue o gosto do fim do século XIX, princípio do XX. «Ela era muito ligada ao século XIX. Não pode dizer-se que fosse propriamente uma modernista», explica Alfredo de Magalhães Ramalho, presidente da direção da Associação Casa Veva de Lima. A decoração, de que ela mesma se encarregara, refletia todo um estilo de vida. Muitos dos objetos eram trazidos das suas viagens. E Veva conhecia bastante da Europa, a que acrescentara, numa ocasião, os EUA, de onde viera fascinada. Quase todas as obras que cobriam o palacete eram de artistas estrangeiros e feitas, nalguns casos, por encomenda. Tanto ela como o marido eram originários de famílias da alta burguesia de Lisboa. Os Lima Mayer descendiam de um alsaciano que chegara com as Invasões Francesas e por cá se casara com uma senhora da sociedade. Quanto aos Ulrich, provinham de um alemão que viera trabalhar na reconstrução da cidade após o Terramoto. Nem num ramo nem no outro da família havia sinais de nobreza, apesar das armas visíveis em duas cortinas do palacete: «São uma fantasia, meramente decorativas.»
E fantasia não faltava à dona da casa. Nas suas muitas horas vagas escrevia poemas, peças de teatro, crónicas de viagens, textos de opinião. Deixou cerca de três dezenas de obras, que assinava como Veva de Lima. «Era uma escritora típica do princípio dos anos 20, na escolha dos temas, por vezes etéreos. Escrevia bem, mas digamos que era apenas uma escritora média», comenta Magalhães Ramalho. A literatura tinha sido uma tentação de família. O pai, Carlos Mayer, embora não fosse escritor, pertencia aos «Vencidos da Vida», o grupo literário e político de que fizeram parte Eça de Queirós ou Ramalho Ortigão.
Noites de glória Mais do que à escrita, Veva de Lima deixa, no entanto, o nome ligado à sua casa, que foi centro de uma intensa atividade mundana e cultural da cidade. Por lá passaram António Ferro, Fernanda de Castro e consta que, ocasionalmente, Calouste Gulbenkian. «Ela era uma pessoa curiosa, muito interessada em saber o que se passava lá fora. E sentia-se muito ligada aos artistas, empenhava-se na promoção de novos nomes», acrescenta Magalhães Ramalho. Uma das festas memoráveis do palacete decorreu num jardim anexo, para onde foram levados tendas e camelos. Noutra ocasião, abria-se, a certa altura, uma cortina na sala, para deixar aparecer a anfitriã, sentada num carrinho em forma de cisne, puxado por Afonso Lopes Vieira. E houve uma noite em que os convidados foram recebidos por supostos criados negros, de cara engraxada, com peles sobre a libré e archotes na mão. Em 1963, Veva de Lima morria no palacete. Por essa altura, o salão dos Ulrich tinha há muito perdido a animação de outrora, sobretudo depois de que o filho, Jorge, por volta dos 20 anos, se suicidara, ali mesmo em casa, por desamores com uma prima. Quanto à chita, crescera e tornara-se tão assustadora para os convidados, que Veva se vira obrigada a oferecê-la ao Zoo de Lisboa. VISÃO H I S T Ó R I A
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MUSEU CALOUSTE GULBENKIAN/COLEÇÃO MODERNA
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No coração do Art Déco Festivo, feito de linhas retas, a tender para o abstracionismo, o estilo mundialmente lançado em Paris na Exposição de Artes Decorativas e Industriais Modernas de 1925 deixou marcas em Portugal por Rui Afonso Santos
‘Nu’ Este óleo sobre tela, pintado por José de Almada Negreiros para o Bristol Club em 1926, é um expoente do modernismo em Portugal
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m Portugal, a perpetuação das morosas estruturas mentais oitocentistas na transição da Monarquia para a República, associada à crise política e às dificuldades económicas vividas nos Anos 20, adiaram em grande parte para a década seguinte a divulgação do Estilo Art Déco – denominado segundo a Exposição de Artes Decorativas e Industriais Modernas, realizada em Paris em 1925. O novo estilo de raiz francesa – decorativo, ortogonal (com predominância de linhas e ângulos retos), festivo, assimilador do fauvismo, cubismo expressionismo e, até, do abstracionismo – fora, porém, já anunciado por Raul Lino em interiores que para si próprio concebeu, segundo uma gramática de estilização secessionista que estendeu à arquitetura, com desenho integral dos interiores e equipamentos, tal como sucede na Chapelaria Gardénia (1917), no Chiado, primeira loja moderna de Lisboa. Outras obras de estilização moderna erguidas em Lisboa, como o funcional Edifício dos Telefones (1923), do construtor René Touzet, a Agência Havas (1922) do arquiteto Carlos Ramos ou o Edifício da Companhia dos Eléctricos (1927)
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de Jorge Segurado, erguido na Rampa de Santos em reinvenção classicizante, anunciaram o novo gosto, que Pardal Monteiro praticaria com segurança na Estação do Cais do Sodré (1928), numa requintada moradia nas Avenidas Novas, Prémio Valmor em 1929, e no edifício da Caixa Geral de Depósitos do Porto (1929-31), com requintados interiores Grafismo inovador Fotomontagens, letterings e imagens em diagonal revolucionaram, pelas mãos de Leitão de Barros, o Notícias Ilustrado, em 1929
de filiação secessionista – exemplo a que até os tradicionalistas Rebelo de Andrade foram recetivos, no risco do Café Chiado, inaugurado em 1927, e também Cottinelli Telmo, na Estação Fluvial do Sul e Sueste (1928-31). Mas foi no Cine-Teatro Capitólio (1925-31) que Cristino da Silva manifestou com maturidade o novo estilo, patente nos detalhes da sua prumada e pala exterior envidraçada e luminosa, com lettering moderno, das suas paredes amovíveis em vidro gravado e, até, na novidade maquinista das suas escadas rolantes e
mobiliário metálico – que culminaria na Casa Bellard da Fonseca (1930-31), com interiores expressamente desenhados e a novidade absoluta de mobiliário metálico bauhausiano por Franz Torka.
De Paris às Caldas da Rainha A Exposição parisiense, que divulgou universalmente o Estilo Art Déco, da Europa às suas colónias, dos EUA ao Japão (e que deslumbrou os arquitetos Marques da Silva e Paulino Montês, e também o pintor António Soares), repercutiu-se na V Exposição das Caldas da Rainha (1927), desenhada por Montês. Ela foi a génese de uma estética ortogonal e luminista inspirada na magna Exposição de Paris que noutras manifestações de arquitetura efémera, como as exposições Industrial Médico Cirúrgica (1928), onde se destacou o suíço Fred Kradolfer; o Salão de Elegância Feminina e Artes Decorativas (SNBA, 1928), que reuniu numerosos arquitetos, pintores, escultores modernos (Paulino Montês, António da Costa, Ruy Gameiro, Martins Barata, Carlos Botelho, Roberto Nobre, Emanuel Altberg, Albert Jourdain, etc.) com destaque para Soares; e a Exposição da Luz Electricidade Aplicada ao Lar (SNBA, 1930), dirigida artisticamente por António Soares, coadjuvado pelo engenheiro Carlos Santos (da
empresa Electro-Reclamo, introdutora da publicidade luminosa em 1928), e com stands desenhados por ele e pelos artistas Fred Kradolfer, Albert Jourdain e Roberto Nobre. Contudo, ninguém praticou melhor o Estilo Art Déco do que o arquiteto e decorador vienense Franz Torka, discípulo dileto e chefe do ateliê do grande Otto Wagner, com larga colaboração na obra-prima do mestre que é a Caixa-Postal de Viena, e estabelecido em Lisboa em 1920, como diretor artístico das Fábricas e Lojas da Companhia Alcobia, no Chiado. Arquiteturas e decorações de interiores, mobiliário, equipamentos, iluminação, tecidos, tapetes, papéis de parede, cenários para cinema, tudo desenhou Torka integralmente, numa aspiração de «obra total». Em 1925, os seus interiores do Teatro do Ginásio apresentavam um singular gosto Art Déco de filiação vienense que, por volta de 1930, estendeu a magníficos móveis e painéis decorativos, com embutidos em madeiras exóticas e aplicações de laca e latão – para reinterpretar igualmente as vanguardas europeias no desenho de mobiliário em tubo metálico cromado. Os interiores Art Déco do cabaret Bristol Club (Carlos Ramos, 1925-26), com pinturas de Almada, Soares, Viana, Barradas, Lino António, Francis Smith,
A década do design Capas e cartazes de António Soares (1920), Jorge Barradas (1926), Luiz (1929), Emmerico Nunes (1927) e Leitão de Barros (1929)
Ruy Vaz, Guilherme Filipe) e esculturas e baixos-relevos (Canto da Maya, Leopoldo de Almeida) estilisticamente acertados, constituíram marcos do novo gosto, também praticado por Jorge Segurado no projeto do York Bar (1929), decorado por Soares. No Porto, o arquitecto Manuel Marques praticou também o novo estilo em projetos de arquitetura particular (Casa Domingos Fernandes, 1927) e espaços comerciais (Pastelaria do Bolhão, 1929; Portobar, 1930), associando-se também ao arquiteto Amoroso Lopes e desenhando, desde 1927, móveis e decorações Art Déco para os Armazéns Nascimento. Certos vitrais de Ricardo Leone (Ourivesaria Marques, 1926; Frontaria da Papelaria da Moda, ao Rato, 1929, constituem, aliás, marcos assinaláveis do Estilo Art Déco em Portugal, numa via estilística atenta aos exemplos de Gaétan Jeannin e de Jacques Gruber, divulgados por álbuns publicados quando da Exposição de 1925. No desenho, na ilustração, na pintura e no cartaz, a personalidade marcante em Portugal é a de José de Almada Negreiros VISÃO H I S T Ó R I A
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Serralves, o remate Na escultura, a grande figura portuguesa foi Canto da Maya, discípulo de Bourdelle e artista de longa carreira parisiense, cidade onde se instalou definitivamente em 1923. O gosto Art Déco, por ele já praticado em 1919, apurou-se depois formalmente com referências à escultura 42 V I S Ã O H I S T Ó R I A
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1 Interior da Caixa Geral de Depósitos do Porto, de Pardal Monteiro (traçada em 1929) 2 Frontão luminoso da Pastelaria Versailles, 1925 3 Cine-Teatro Capitólio, de Cristino da Silva 4 Estação do Cais do Sodré, de Pardal Monteiro (1928)
Ninguém praticou melhor o estilo Art Déco do que o arquiteto e decorador vienense Franz Torka, discípulo dileto e chefe do ateliê do grande Otto Wagner
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(1893-1970), com desenhos no novo gosto já em 1918, e maturado após estada em Paris em 1919-20 num grafismo virtuoso, lembrado do Picasso «clássico», que repartiu por um imaginário de Arlequins, Columbinas, figuras de elegantes e atrizes e numerosos autorretratos. Estreado na pintura em 1925, com dois quadros para a decoração da Brasileira do Chiado, figurando duas estilizadas banhistas na praia e um autorretrato num grupo sentado a uma mesa (e a mundanidade elegante e a alegria de viver caracteristicamente Art Déco foram também partilhadas pelas pinturas realizadas para o café por Eduardo Viana, Bernardo Marques e António Soares), Almada deu com uma longilínea garçonne nua pintada em 1926 para o boudoir do Bristol Club a melhor pintura Art Déco portuguesa, para dar depois, em 1929, no mesmo gosto, excelentes decorações relevadas em estuque pintado para vários cinemas de Madrid – e o gosto perdurou-lhe nos longos anos que lhe restaram para viver. O concorrente direto de Almada na pintura foi António Soares, que, evoluindo do grafismo germânico que, nos anos 1910, marcara a sua prática humorística, se mostrou depois recetivo à influência francesa (nas ilustrações-figurinos de moda que deu para as sofisticadas capas da ABC e da Ilustração) sobretudo após a visita à magna Exposição de 1925. Pintor de grupos de mulheres de luxo e de intelectuais em manchas terrosas, lembradas da pintura de Columbano, para os quadros d’A Brasileira, Soares abriu a sua paleta após a visita a Paris, dando imagens de garçonnes em manchas coloridas, num imaginário lembrado de Raoul Dufy ou, sobretudo, de Van Dongen, e que, nos anos 30, se aquietou num imaginário neoclassicizante inserível no «retorno à ordem».
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Anos 20 || Artes
grega arcaica, em figuras de cabelos e pregas graficamente tratados (baixo-relevo A Dança e a Música para o Bristol Club, 1925) e com recuperação de materiais menosprezados como a terracota (Adão e Eva, 1929) – e foi ele, naturalmente, o único artista português a participar na Exposição de 1925. Nas artes gráficas, destacam-se as capas, ilustrações, desenhos, vinhetas e publicidade que artistas como Kradolfer, Soares, Barradas, Botelho, Bernardo Marques, Almada, Sarah Afonso, Stuart de Carvalhais ou Mily Possoz davam a maga-
joias disponíveis, entre os anos 20 e 40, nos ourives e joalheiros Leitão & Irmão em Lisboa, ou na Casa José Rosas no Porto, bem como as cerâmicas das Fábricas de Sacavém, Coimbra, Lusitânia, Condal e ElectroCerâmica, com moldes vindos do estrangeiro, constituem outras marcas relevantes neste breve inventário do Art Déco em Portugal – e obra-prima absoluta foi a Casa de Serralves, riscada para o Conde de Vizela pelo francês Charles Siclis em 1929, com jardins de Jacques Gréber, e que levaria quase 20 anos a concluir-se, constituindo a última grande encomenda do Estilo Art Déco parisiense, que a II Guerra Mundial eclipsaria. Rui Afonso Santos é curador do Museu Nacional de Arte Contemporânea
zines como Contemporânea, Civilização, ABC, Ilustração, Ilustração Portuguesa, Magazine Bertrand, Europa, Notícias Ilustrado, Imagem, Kino, Sempre Fixe, além dos cartazes modernos do Atelier ARTA (Bristol Club, 1925, por Barradas; Instale um Telefone, 1930, por Botelho) e das produções da Imprensa Libânio da Silva (Contemporânea) – antes que o artista e cineasta Leitão de Barros assinalasse, após um estágio de artes gráficas em Frankhental, Alemanha, uma revolução gráfica modernista em O Notícias Ilustrado (1928-35), com largo recurso à fotografia e fotomontagem, ou lettering e imagens em diagonal, que os novos processos de rotogravura propiciavam A atividade dos decoradores Ventura Júnior, Domingos e Lino do Nascimento e Landerset Simões é igualmente assinalável, assim como a produção de mobiliário, candeeiros e ornamentos das casas Jalco, do decorador João Alcobia, Olaio, Fábrica da Granja e Venâncio do Nascimento. Os Tapetes de Beiriz, que, desde 1927, o desenhador José Fonseca criava com estilizações figurativas e padronagens abstratas, as porcelanas da Vista Alegre (particularmente as desenhadas por Ângelo Chuva), os vidros desenhados (desde 1929) por Jorge Barradas para a Companhia Industrial Portuguesa e suas fábricas na Marinha Grande, numerosas pratas e VISÃO H I S T Ó R I A
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A década louca de Almada Paris, Lisboa e Madrid são as capitais onde José de Almada Negreiros procura a vanguarda essencial a quem se diz «sempre futuro». Escreve o seu único romance, Nome de Guerra, em 1925, um marco na literatura portuguesa que é uma porta de entrada para a agitação da época o dia em que celebra 27 anos, 7 de abril de 1920, Almada Negreiros regressa a Portugal ao fim de um ano e meio em Paris, onde retomou os estudos de pintura. As primeiras impressões são esclarecedoras sobre o seu estado de espírito: «Quando cheguei a Lisboa, tudo estava mais pequenino. A estação do Rossio, o Rossio e os polícias. […] Julguei que me tinha enganado e que tinha descido em Beja.» Contudo, a experiência parisiense não fora isenta de contrariedades. É em França que Almada se confronta pela primeira vez com a falta de dinheiro, como revela Maria José Almada Negreiros (sua nora), em Identificar Almada (Assírio & Alvim, 2015). Em Paris, chega a trabalhar como bailarino de salão, operário de uma fábrica de velas de iluminação e domador de cavalos num circo. Durante a sua passagem por Biarritz é relações públicas, bailarino numa boîte e, até, acompanhante de senhoras. Ocupações menores quando comparadas com a arte, que realmente o motivava, apesar de não lhe garantir o sustento. Como o próprio escreveria: «Fazer fortuna com a Arte não é o mesmo que Arte para fazer fortuna. Só o primeiro é bom negócio.» É em Paris que constata o que já suspeitava sobre o país periférico que amava: «Gosto muito de Portugal mas 44 V I S Ã O H I S T Ó R I A
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por Vânia Maia
tenho uma triste ideia dos meus compatriotas. Que longe de mil novecentos e vinte que estão os portugueses!» É o retrato de uma Lisboa que procura desembaraçar-se da sua ruralidade que Almada traça em Nome de Guerra, o seu único romance, escrito em 1925, apenas publicado em 1938. O manuscrito terá ficado esquecido numa caixa de chapéus guardada pelo seu irmão António, mas Fernando Cabral Martins, 66 anos, especialista no período modernista português, acredita que «não haveria quem publicasse o romance na altura em que foi escrito». O docente universitário destaca o «realismo de tipo novo» trazido pelo livro e a «criação de uma linguagem que descreve o universo de Lisboa nos anos 20 com uma grande frescura». Herberto Helder classificava Nome de Guerra como «um dos apenas três ou quatro romances portugueses
Irreverente Almada, aqui num emblemático retrato captado pelo dramaturgo Vitoriano Braga, desilude-se com a falta de vitalidade do meio artístico português nos anos 1920
deste século [XX] que se podem ler sem desbaratos de tempo». Em 1938, Vitorino Nemésio seria dos poucos a elogiar a obra e a sua «clarividência psicológica». Nome de Guerra, romance de aprendizagem, acompanha Antunes no seu percurso de autoconhecimento na cidade, onde se encontra com D. Jorge, «o experimentado», que vai ajudar o rapaz da província a tornar-se «um homem». É através dele que Antunes conhece Judite, uma prostituta com esse «nome de guerra» que nunca revela a sua verdadeira identidade. Judite desempenha um papel essencial ao mostrar a Antunes que «perder o medo»
manifesta-se ao longo dos anos 20 das mais variadas formas
1921 Dá a conferência A Invenção do Dia Claro, apresentada por António Ferro e editada por Fernando Pessoa. Colabora com o Diário de Lisboa
1920 Regressa a Lisboa vindo de Paris. Escreve e ilustra a revista Parva. Participa no III Salão dos Humoristas Portugueses
era «ganhar o conhecimento da vida». Almada fazia assim um manifesto pela autonomia pessoal, como revela o título de um dos capítulos da obra: A sociedade só tem que ver com todos, não tem nada que cheirar com cada um. José-Augusto França escreveu a propósito do título do romance que «o nome das pessoas se declara duplo para elas próprias e para a sociedade». A mesma revolução individual já havia sido propalada na mítica conferência A Invenção do Dia Claro (1921). O humor perpassa as aventuras de Antunes e «é impossível ler Nome de Guerra sem ver», garante a historiadora de arte Sara Afonso Ferreira, 38 anos, estudiosa da obra de Almada, referindo-se à escrita cinematográfica do autor. Outra das grandes inovações modernistas do romance é o «fluxo de consciência», ou seja, a forma como conduz o leitor através dos monólogos interiores da personagem principal, o que implica uma visão de Lisboa muito pessoal, por exemplo, quando se confronta com os ritmos da época: «Os músicos pareciam cada um para seu lado. […] Logo de entrada aquilo tudo fazia-lhe um bocado de impressão. Nunca ouvira tanto barulho nem no Carnaval. Mas gostava.» Sara Afonso Ferreira assinala a audácia do livro quando mergulha em realidades que habitualmente não eram retratadas, como a vida nos cabarés, a sedução da cocaína ou a condição da mulher, em particular das prostitutas. «Chama-se
1928 Vence o concurso de cartazes para a representação portuguesa na Exposição Universal de Sevilha
1925 Escreve o romance Nome de Guerra (publicado em 1938). Discursa numa homenagem a Ramón Gómez de la Serna no Café Tavares, em Lisboa
clube a umas casas abertas toda a noite e nas quais a razão mais forte é o jogo», escreve Almada no capítulo Às vezes o dia começa à noite. Adiante, acrescenta: «Estas raparigas tiveram todas a mesma vida mais ou menos fantasiada e uma única história absolutamente verídica e a qual as levou todas a dançar na mesma sala. A história verídica é a única que vale e pode-se contar: o primeiro homem que elas conheceram era um pulha!»
Pugilato na Brasileira O Bristol Club, situado no cruzamento da Rua Jardim do Regedor com as Portas de Santo Antão, em Lisboa, terá inspirado os clubes de Nome de Guerra. É em 1926, o ano seguinte a ter escrito o livro, que pinta um sedutor nu feminino para o Bristol. Data também dessa altura uma das suas conferências mais emblemáticas, Modernismo, proferida na festa de encerramento do II Salão de Outono, na Sociedade Nacional de Belas-Artes, em Lisboa. «É muito marcante porque define o termo ‘modernismo’ com o sentido que usamos hoje», afirma Fernando Cabral Martins. Ainda em 1926, a sua obsessão pelos Painéis de São Vicente de Fora, do século XV, atinge uma conflitualidade ímpar: Almada disputa com José de Bragança, diretor do Museu Nacional de Arte Antiga, a descoberta de juntar os painéis num políptico, baseando-se na perspetiva dos ladrilhos. A rivalidade dará origem a uma
cena de pugilato entre ambos na Brasileira – revela António Valdemar em Almada, Os Painéis, a Geometria e Tudo (Assírio & Alvim, 2015) – e seria mais um motivo para ele partir para Madrid em 1927. «Saí de Portugal muito arreliado, apesar de reconhecer que fui sempre um menino mimado nos meios em que vivi; saí desgostoso apenas com o panorama artístico», revelava num artigo da Ilustração com o título inequívoco: «José de Almada Negreiros triunfa em Espanha». Na capital espanhola encontra uma vida cultural trepidante. A amizade com o modernista Ramón Gómez de la Serna, que tinha vivido em Portugal, facilitou a sua entrada nas tertúlias madrilenas. Frequenta os prestigiados cafés Pombo e Granja El Henar e o restaurante habitual de García Lorca. Ao contrário do que acontecera em Paris, não lhe falta trabalho na sua área. No ano seguinte, em 1928, vence o concurso de cartazes para a Exposição Universal de Sevilha e vai mantendo colaborações artísticas em Portugal. Seria o prenúncio da Guerra Civil (1936-1939) a fazê-lo regressar a Lisboa, ao fim de cinco anos, consagrado como o vulto artístico que sempre acreditou ser. «A data mais memorável da minha individualidade será por certo 1993, quando universalmente se festejar o centenário do meu nascimento», havia escrito em 1913 com o atrevimento dos seus 20 anos. Almada bastava-lhe como o mais certeiro nome de guerra. VISÃO H I S T Ó R I A
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A revolução do jazz
Nascido nos bairros de má fama de Nova Orleães, nada faria supor que o jazz viesse a ter impacto mundial, elevando a música popular a um inédito patamar de excelência. Os Anos 20 foram o ponto de charneira por João Moreira dos Santos 46 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Chicago, 1923 A King Oliver’s Creole Jazz Band e Louis Armstrong VISÃO H I S T Ó R I A
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Swing Duke Ellington (ao lado) começou a tocar em festas à noite em 1917 enquanto de dia trabalhava como pintor de tabuletas; aos 11 anos, Louis Armstrong (em baixo) tocava na rua BRIDGEMAN IMAGES/FOTOBANCO
erdeiro do legado cultural africano, da tradição musical europeia e das primeiras expressões de música afro-americana, o jazz começou a ganhar forma nos encontros sociais que os escravos faziam por volta de 1860/80 na Congo Square. Era naquela praça de Nova Orleães que, excecionalmente, se fundiam, aos domingos, as várias tradições musicais e se ouviam as blue notes. Na viragem para o século XX, encontramo-lo ainda indefinido, sem rótulo próprio, subjacente ao ragtime, com o seu ritmo sincopado tocado por pianistas itinerantes que eram capazes de traduzir para o teclado a polirritmia africana. Canções como Maple leaf rag, de Scott Joplin, ajudaram a popularizar o primeiro género musical negro criado nos EUA. A junção do ragtime com os blues, cujas origens remontam ao século XIX, propiciou o aparecimento do jazz, que no final dos anos 1910 era já o estilo dominante. Essa e outras fusões deram-se no caldo cultural de Nova Orleães, que fez aportar ainda ao jazz as influência musicais francesa e caribenha. O termo em si terá sido empregado pela primeira vez em 1913 – curiosamente, na coluna de baseball de um jornal de San Francisco –, tendo-se tornado corrente a partir de 1917, graças a um disco gravado nesse mesmo ano pela Original Dixieland Jazz Band. Entre os pioneiros do jazz encontravam-se músicos como o trompetista Buddy Bolden, que em 1895 formou a sua banda, atuando, nomeadamente, nos cabarets de Storyville, bairro conhecido pelas casas de prostituição e por empregar pianistas, entre os quais o célebre Jelly Roll Morton. As jazz bands, que atuavam em salões de baile, nos parques, nas procissões fúnebres e também nos barcos a vapor que sulcavam o rio Mississippi, eram então essencialmente constituídas por um trio de instrumentos de sopro – tipicamente, trompete/cornetim, trombone e clarinete – e por um triunvirato rítmico formado por bateria, baixo/tuba e um instrumento de cordas (piano, banjo ou guitarra). No final dos Anos 20 aumentou o número de elementos, tendo
O jazz terá chegado à Europa através dos soldados negros do Exército americano que vieram combater a partir de 1917
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Harlem, Nova Iorque, Anos 20 A multidão aguarda a chegada dos músicos de uma banda de jazz ao Teatro Lafayette
passado a integrar também o saxofone. O fim de Storyville, encerrado em 1917 por pressão do Exército e da Marinha, forçou a migração dos músicos para o Norte dos EUA. Chicago e Nova Iorque acolheram-nos de braços abertos. Consequentemente, foi naquelas cidades que Jelly Roll Morton, King Oliver, Louis Armstrong e Sidney Bechet gravaram nos Anos 20 o jazz polifónico de Nova Orleães, vulgarmente conhecido por Dixieland. Ali começaram também a desenvolver a improvisação jazzística, apresentando-se ao vivo nos ballrooms e nos speakeasies, casas de consumo ilegal de bebidas alcoólicas que a «Lei Seca», instituída em 1919, multiplicara por todo o país.
Ritmos esfrangalhados António Ferro estava precisamente em Nova Iorque quando o jazz «fervia» em popularidade através de músicos como Fats Waller, Louis Armstrong, Art Tatum ou Cab Calloway, e swingava já nas big bands
de Paul Whiteman, de Fletcher Henderson e de Duke Ellington. Encontrou-o em 1927, no Cotton Club e no Small’s Paradise, um clube de jazz do bairro do Harlem, berço do jazz na cidade. Impressionado, o jornalista português reportou para o Diário de Notícias o «frenesi dos jazz-bands», notando «os seus ritmos sincopados, esfrangalhados, com os guinchos, com as melodias, com as gargalhadas e as súplicas, que nascem, espontaneamente daquele pandemónio, seiva borbulhante e infatigável. A música não sai dos instrumentos, sai dos seus esgares, das suas contorções, dos seus pés enlouquecidos, dos seus olhos barulhentos…». Não obstante algumas incursões pontuais prévias, o jazz terá chegado à Europa através dos soldados negros do Exército americano que a partir de 1917 vieram combater para as trincheiras em nome de uma liberdade de que eles próprios não beneficiavam na sua pátria. Contava-se entre eles o icónico tenente James
Reese Europe, que em 1918 percorreu a França à frente dos Hellfighters, uma banda integrada no 369º Regimento de Infantaria dos EUA. O fim da guerra, e em particular da ameaça dos U-Boote alemães, reabriu o Atlântico à navegação comercial e ao jazz. Vários músicos, com destaque para Will Marion Cook, Sidney Bechet, Sam Wooding, Louis Mitchell e Josephine Baker rumaram então ao Velho Continente. Era o fim da pacatez das valsas e até do exotismo do tango nos cabarets. A Jazz Age estava prestes a começar e mostraria à Europa uma exuberância interpretativa e uma liberdade musical inéditas. Paris foi, das capitais europeias, a mais recetiva ao novel e irreverente jazz, rendendo-se rapidamente aos seus ritmos. Testemunharam-no dois portugueses ilustres. De facto, o médico e higienista Ricardo Jorge escrevia em 1919 que «o fox-trot pateia-se aos sacões, ao compasso esbandalhado do jazz-band, orquestra de negralhada, onde o músico da caixa e da pancada se descabeça e ulula terrorosamente. Este chinfrim de peles vermelhas e pretas a rechinar nas orelhas e a badalar nas gâmbias, ensandeceu o Paris festeiro». Três anos depois, a revista Contemporânea publicou um poema do livro La muse intrépide, que Alberto de Monsaraz veio a editar em França em 1923. Afirmava o poeta integralista que «negros mal arranjados, urrando, gritando, pulando, fazem trotar as pessoas» nos dancings. Com efeito, se compositores como Igor Stravinski, Maurice Ravel, Erik Satie, Dmitri Shostakovich e, sobretudo, Darius Milhaud se interessaram por ele e até o incorporaram nas suas obras, a crítica musical destacou os seus intérpretes de exceção e os amadores dedicaram-lhe livros e revistas. O jazz estava instituído como género musical. João Moreira dos Santos é autor de vários livros sobre jazz em Portugal e do programa ‘Jazz A Dois’, na Antena 2 VISÃO H I S T Ó R I A
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A dança da moda «Nas boites de nuit, o número sensação é um preto mais ou menos engraxado dançando o Charleston, que a seguir os brancos imitam, no mesmo ritmo alegre e sacudido. O Charleston conquistou Paris. E como decerto também vai ter entre nós os seus cultores, o ABC apressa-se a dar aos seus amigos a verdadeira teoria dos seus passos» Revista ABC, 6 de maio de 1926
«É preciso não esquecer de conservar em todos os passos a execução do movimento especial de flexão do joelho, que representa a característica desta dança»
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«O Charleston compreende quatro passos principais, que o cavalheiro liga e repete à sua vontade»
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O som das noites de Lisboa O jazz chegou a Portugal nos Anos 20, mas não teve vida fácil na capital do fado. Restou-lhe o ambiente transgressivo dos clubs, sequiosos de excentricidade por João Moreira dos Santos
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Loucura A primeira página da revista Ilustração de 1 de março de 1927 e o desenho da capa da revista ABC de fevereiro de 1927, ambos da autoria de Emmerico VISÃO H I S T Ó R I A
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Os ‘clubs’ Não obstante os espetáculos importantes, mas pontuais, realizados no teatro de São Carlos, no Salão Foz e, muito especialmente, no Teatro da Trindade, o centro nevrálgico da idade do jazz lisboeta foram os clubs. 54 V I S Ã O H I S T Ó R I A
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s primeiros sinais do jazz chegaram a Portugal quando a implantação da República ainda fumegava e Sidónio Pais já surgia no horizonte político. Tê-los-á transmitido pioneiramente o jornalista, escritor e diplomata Alfredo de Mesquita (1871-1931). No livro A América do Norte, publicado em 1917, deixou expresso o contacto que em 1904 tivera, nos EUA, com a música sincopada, afirmando que os fonógrafos repetiam «indefinidamente a mesma romanza ou o mesmo rag-time [sic]». Dois anos depois, o jornal A Capital estava já em condições de apresentar aos leitores uma visão invulgarmente esclarecida sobre as origens do jazz, situando-as na Nova Orleães do início do século XX. O periódico republicano deixava, porém, claro que não se tratava de «um novo passo de baile», mas sim de «uma orquestra […] que além dos instrumentos ‘antigos»’ juntou outros ‘modernos’», tendo adotado o ritmo do «’rig-time’ [sic] ou música sincopada». Iniciados os Anos 20, Lisboa queria, como as suas congéneres europeias, divertir-se impulsivamente, esquecendo as agruras da I Guerra Mundial. Era a jazz-age, período assim designado pelo escritor F. Scott Fitzgerald. Entendeu-a bem J. Kix, que, em 1926, escreveu no jornal A Tarde que «o Jazz-band é a música do nosso tempo […] porque é a única música que os nossos sentidos, estropiados pela guerra, ainda podem entender». Assim o pensara também António Ferro, que no livro A Idade do Jazz-Band, de 1924, afirmou que «o Jazz-Band, a encarnado e negro, a todas as cores, é o relógio que melhor dá as horas de hoje, as horas que passam a dançar, horas fox-trotadas, nervosas… No Jazz-Band, como num écran, cabem todas as imagens da vida moderna».
Baile em Lisboa, 1928 O jazz não se ouvia apenas nos clubs, mas também nas festas e em alguns cafés
Remontando ao início do século XX, com a abertura em 1908 do Club dos Restauradores (que em 1913 deu lugar ao Maxim’s) e do Clube dos Patos, os clubs viram a sua progressão acelerada graças às fortunas feitas durante a I Guerra Mundial. Despontaram nesse período, entre outros, o Palace Club, o Majestic Club e o Club Internacional (inaugurados em 1917), o Bristol Club e o Clube Mayer (1918). Nos Anos 20, marcados pelo cosmopolitismo e pela ânsia de importar e de viver a modernidade que o cinema, a rádio e a Imprensa já anunciavam à aldeia global em construção, surgiram, nomeadamente, o Monumental Club (que em 1920 sucedeu ao Majestic), o Olímpia Club (1920), o Regaleira Club (1921), o Bal Tabarin Montanha (1923) e o Salão Alhambra (1925). Espacialmente, a maioria dos clubs concentrou-se na Baixa de Lisboa, ocupando um triângulo que tinha como
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vértices os Restauradores/Avenida da Liberdade, a Rua das Portas de Santo Antão e o Chiado. Se alguns se instalaram em edifícios mais ou menos vulgares, como sucedeu com o Bristol e o Olímpia, outros demandaram os palácios aristocráticos. Tal foi a opção do club Restauradores/Maxim’s (Palácio Foz), do Majestic/Monumental (Palácio Alverca) e do Regaleira (Palácio Regaleira). A sumptuosidade e o luxo destes últimos não escaparam ao olhar da Imprensa. Numa crónica para o Diário de Lisboa, publicada em 1927, Félix Correia (1901-1969) caracterizou-os por terem «ricas escadarias de mármores caros, com baixos-relevos preciosos, colunas antigas, quadros célebres de pintores como Columbano, pátios à maneira mourisca, espelhos, lindas talhas de artistas como Leandro Braga, tetos de preço». Segundo o mesmo jornalista, sob uma trindade formada pela «mulher, a dança e o ‘champanhe’» e alicerçada no jogo, por vezes ilícito, vivia-se nos clubs «a estúrdia, a orgia, a loucura – o ‘jazz-band’».
Clubs O Maxim's ficava no Palácio Foz (foto ao lado) e o Bristol (em baixo, à esquerda) na Rua Jardim do Regedor, não longe do Regaleira, cuja ficha de jogo se pode também ver nesta página (em baixo)
Com efeito, a partir dos Anos 20, tais clubs foram o espaço por excelência de todas as transgressões e experimentações associadas a um sentimento de modernidade. Testemunharam e propiciaram, particularmente, a emancipação da mulher personificada na garçonne, isto é, a mulher masculinizada, de cabelos curtos, ativa, autónoma, que fuma, que conduz,
Os clubs foram o espaço por excelência de todas as transgressões e experimentações associadas a um sentimento de modernidade
que pratica desporto e que frequenta os dancings adotando uma expressão sexual mais liberal (incluindo as práticas homossexuais e bissexuais), a prostituição, através das papillons com os seus nomes estrangeirados abreviados, e até o início do consumo de estupefacientes. Frequentavam-nos, sobretudo, as elites políticas, diplomáticas e económicas, nomeadamente os novos-ricos, os aristocratas e também artistas plásticos, atores, escritores e intelectuais, assim como cidadãos estrangeiros de passagem por Lisboa. Ou, como escreveu Henrique Roldão em crónica humorística publicada em 1925 no semanário O Domingo Ilustrado, aos clubs ia «o filho-família que apanhou a distração dos pais para se escapulir com dez mil réis tirados do mealheiro da tia, o caixeiro da loja de modas […], o burguês […], o velhote atiradiço e parvo e finalmente o rapaz fino dos bancos que não usa colete para fingir de americano, que traz o cabelo curto para fingir que é inglês e que é estúpido para mostrar que é português». VISÃO H I S T Ó R I A
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Anos 20 || Música
Publicidade Várias das capas da revista ABC, com ilustrações de Jorge Barradas, que eram, na verdade, anúncios ao Bristol Club
Ao som do jazz-band A sede de excentricidade e de originalidade dos nightclubs dos Anos 20 foi alimentada pelos ritmos frenéticos do jazz. O casamento entre ambos era, aliás, perfeito, pois como explicava em 1926 a revista ABC, «o jazz correspondeu a uma necessidade dos cabarets internacionais», ávidos «duma música canaille, bárbara, louca, que gritasse alegria e desvairamento e que enchesse a noite de tumulto folgazão». O usufruto e o entendimento que se fazia então do jazz eram, porém, diferentes dos atuais. Desde logo, porque aquele género musical estava ainda longe de ser uma música de concerto ou sequer improvisada, servindo tão-só para embalar as sucessivas e exuberantes danças que os EUA desaguaram na Europa ao longo da década, incluindo o fox-trot, o shimmy, o black-bottom e o charleston. Depois, porque o termo utilizado era não o jazz, mas sim o jazz-band, o qual era popularmente utilizado como sinónimo da bateria. Tal significa que muitas das aparentes referências ao jazz 56 V I S Ã O H I S T Ó R I A
sinalizam tão-só a presença do referido instrumento. Conceitos à parte, o jazz fez-se ouvir nos clubs lisboetas através de músicos e de grupos estrangeiros e nacionais. Dos primeiros pouco se sabe, já que a Imprensa olhava para o novo género musical como uma moda passageira e sem grande, ou nenhum, valor artístico, reduzindo os seus praticantes ao anonimato. Ainda assim, são conhecidas as atuações de Argentina Triano e do «seu magnífico jazz-band americano», ocorrida no Bal Tabarin-Montanha em 1925, do Jazz-Band Sul-Americano de Romeu Silva, no Maxim’s e no Monumental Club em 1926, da bailarina negra Sadie Hopkins, que em 1927 (porventura acompanhada pela orquestra do norte-americano Bubby Curry) causou sensação no Bristol Club, e do jazz-band do navio Ryndam, que em 1927 atuou no Maxim’s. Quanto aos músicos portugueses, destacaram-se o violinista Almeida Cruz, que fundou em 1926 a orquestra Cruz’s Dance, e Tavares Belo (1911-1993), que em 1928 iniciou a sua carreira como pianista do Bal Tabarin Montanha. Havia também as orquestras dos clubs, nomeadamente o Bristol Setimino Jazz, do célebre violinista Raul d’Oliveira, o Maxim’s Jazz ou o Jazz-band Patos. Globalmente, a prática jazzística nos nightclubs foi ilustrada por alguns ro-
mancistas e novelistas, incluindo Almada Negreiros, através do romance Nome de guerra (1938). Reinaldo Ferreira, o famoso Repórter X, referiu em A virgem do Bristol Club (1930) que «as marteladas do jazz-band eram entrecortadas pelo estralejar das gargalhadas…». João Ameal, em Os noctívagos (1924), aludiu às «estridências doidas de jazz-band» e a um quinteto que praticava «um jazz alacre, ruidoso, com grandes dissonâncias bárbaras, em girândola». Augusto Navarro, em Uma Rapariga Moderna (1927), viu o jazz como «música ultramodernista» e Carlos Valongo, personagem de O preto do Charleston (1930), de Mário Domingues, percecionou «as mulheres, a intriga amorosa, o jazz-band, o preto do charleston, os boémios» como «elementos esplêndidos para uma novela da nossa época», à qual pôs desde logo o título Ao som do jazz.
A ameaça negra Além dos clubs, nos Anos 20 o jazz dava-se a ouvir nos bailes e bailaricos, na novel rádio, nas estridentes grafonolas, nos teatros, nas revistas à portuguesa, nas leitarias e nos cafés, nomeadamente no Chave d’Ouro, no Rossio, que servia mesmo torradas com sabor a charleston. Até o Palácio de Belém, sob a presidência de Bernardino Machado, lhe abriu as
portas – ou a um seu sucedâneo – nas vésperas do golpe do 28 de Maio de 1926. Só o cinema escapou, porque era ainda mudo. O problema, dizia-se, era a «Invasão americana», título do artigo que Félix Correia publicou no Diário de Lisboa, em 1930, escassos anos antes de entrevistar Hitler em Berlim: «Nos bailes só se tocam charlestons, black-bottoms e tangos; tudo americano. E muitas das orquestras, brancas, negras ou café com leite, também vieram da América […]. E se damos um salto ao cabaret, lá está o jazz americano a ferir-nos os ouvidos com o seu barulho infernal.» António Alves Martins, poeta e jornalista, não podia estar mais de acordo. No mesmo jornal, defendera em 1924 que o jazz, com os «seus acordes infernais», não era senão «uma das muitas invenções americanas, destinadas a dar cabo deste velho e cansadíssimo mundo europeu». Sobrinho de bispo, estatuiu mesmo que «expulsar do seu seio o jazz-band equivale a expulsar do seu corpo todos os pecados – da sua alma todas as tentações». A aludida profusão jazzística acabou por ser demasiado intensa, sobretudo a partir da implantação da ditadura. Reagiram prontamente alguns cronistas e jornalistas. O «triunfo dos negros
O jazz era uma «música bárbara, louca», que gritava «alegria e desvairamento» e enchia «a noite de tumulto folgazão»
ou a escarumbocracia», chamou Mário Azenha em 1928, ao que Fernando de Pamplona apelidou, nesse mesmo ano, de «hora preta». Este último sentia, aliás, «nos acordes estrídulos do «Jazz» […] a voz das árvores e dos macacos, a voz ébria, ruidosa, do sertão (…). Não foi, contudo, original, pois em 1924 já o escritor Ferreira de Castro se referira ao jazz como «música de selvagens, donde se levitam gritos de desbravadores de selvas, onde há mãos que rufam tambores como nos batuques africanos, mãos negras que tangem peles de veado distendidas sobre troncos ocos». A decadência que os clubs conheceram no final dos Anos 20 teve, porém, pouco a ver com a violência verbal das críticas. Contribuíram para tal a implantação de um regime ditatorial e conservador em 1926 e a promulgação da lei do jogo, em 1927, que proibiu os jogos de azar em Lisboa. Assim se fecharam, uma a uma, as portas das casas que nos Anos 20 alinharam – ainda que por breves momentos – os lisboetas com a modernidade que se vivia nas demais capitais da Europa. Quanto ao jazz, migrou progressivamente dos nightclubs para os teatros, passando a ser, a partir dos anos 40 e 50, uma música para ver e ouvir em ambiente de concerto. VISÃO H I S T Ó R I A
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Anos 20 || Drogas
Reinaldo Ferreira O Repórter X escrevendo um dos seus artigos, como o que aqui se reproduz, publicado na ABC
Os anos da ‘maldita’
Lisboa dançava nos clubs noturnos entre nuvens de fumo. De substâncias várias, mas que não davam prisão, só má fama. Por muito tempo, nenhumas foram declaradas ilícitas
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por Emília Caetano
nome era Charlotte. Reinaldo Ferreira descreve-a como «uma francesa extravagante, antiga artista de circo, amante de um croupier», esquelética, já de certa idade, cabelo curto, maquilhagem carregada, vestida de preto. Terá sido ela a primeira vendedora de cocaína em Lisboa. O já então popular Repórter X faz dela um retrato minucioso, quer na revista ABC quer em livros como Memórias de um Ex-Morfinómano. Mas é difícil dizer até onde vai a realidade e começa a ficção deste retrato, traçado por alguém que sempre teve dificuldade em distinguir os limites de uma e de outra. São de sua autoria as últimas palavras atribuídas a Sidónio Pais: «Morro bem. Salvem a Pátria!» Mas parece seguro que o ex-Presidente terá sucumbido de imediato aos tiros com que foi alvejado, sem dizer nada. Como parece igualmente seguro que o jornalista ainda nem tinha chegado ao local. 58 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Nascido em 1897 em Lisboa, Reinaldo Ferreira iniciou-se no jornalismo aos 17 anos no diário A Capital e deixaria uma produção de dimensão invulgar para quem só viveu 38 anos. De escrita fácil, cedo considerado o maior repórter português, trabalhou em vários jornais, viveu em Paris, Madrid, Barcelona, Bruxelas, ao serviço da Agência Americana, escreveu novelas, teatro, foi argumentista e realizador de cinema. A partir do Porto lançou o semanário Repórter X, o seu pseudónimo, criado por lapso por um tipógrafo que não compreendera a assinatura. Ao longo de
A extravagante francesa Charlotte terá sido a primeira vendedora de cocaína em Lisboa
toda a carreira, a sua imaginação, exercitada desde criança em novelas policiais e de aventuras, não conhecia limites. A morfina fazia o resto. Mas também é difícil saber quanto das suas reportagens seria, efetivamente, ficcionado. Entre as façanhas que lhe são atribuídas conta-se a de se ter feito fotografar disfarçado de pedinte, de barba por fazer e mão estendida, para um inquérito à mendicidade, publicado em A Manhã, mas que nunca terá passado de uma encenação. Noutra altura terá espalhado sangue de galinha no quarto de uma pensão, para a fotografia de uma sua história sobre uma estrangeira assassinada pelo marido numa pensão de Lisboa. E sempre ficaram suspeitas de que a sua famosa série de reportagens sobre a Rússia dos Sovietes foi na realidade escrita em Paris. O público reagia com alguma indulgência a estes deslizes. Até porque a imaginação de Reinaldo Ferreira não era necessariamente um mal. Ajudou, por exemplo, as autoridades a desvendar um caso que impressionou o País: o assassínio da atriz Maria Alves, estrangulada num táxi e atirada para uma sargeta. Seguindo a lógica da literatura policial, ele concluiu que só podia ter sido o ex-empresário da vítima. Mário Domingues, chefe de redacção do Repórter X, um velho amigo do liceu de quem havia de se afastar mais tarde, contaria, muito depois da morte de Reinaldo, que o início do seu descrédito começou com a reportagem sobre a sua
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‘Prostitutas cheirando cocaína’ Esta ilustração alemã, de Viktor Leyrer (1927), restitui-nos o ambiente da época
«descoberta» de que havia no subsolo de Lisboa, desde o terramoto de 1755, outra cidade, com uma população bem organizada, mas sem saber da existência de vida à superfície. Aí sim, os leitores terão achado de mais.
Quando Lisboa ‘snifava’ Mas, nem pela sua própria dependência de droga, ele faz de Charlotte uma descrição com alguma indulgência. A francesa, que terá feito fortuna, centrava o seu negócio no Palace, que passa por ter sido o primeiro dos clubes modernos de Lisboa, um mundo que Reinaldo conhecia de cor. «Introduzindo-se nas salas começou a oferecer um pó prateado, mágico, que muito se usava em Paris e que era a garantia da máxima ventura, durante algumas horas.» O Repórter X, que se refere sempre às drogas por «vício», atribui a Charlotte uma absoluta sordidez. Assim, ela daria
coca às raparigas que trabalhavam no Palace em supostas pastilhas de hortelã-pimenta, até as tornar dependentes, «espumando de gozo ao vê-las agonizar, lentamente». Ela própria teria morrido sem nunca experimentar a droga. No artigo «Existem… fumeries de ópio em Lisboa?», publicado na ABC em 1926, o Repórter X fala sobre as várias drogas então a circular. «Há quinze anos o máximo desequilíbrio boémio de Portugal era o uso e abuso de licores», mas, acrescenta, «eis que chega com a guerra e com o falso e verdadeiro cosmopolitismo que então importamos um carregamento completo de drogas. Foi a hora da loucura …». Fala assim da droga que conhece melhor: «Os morfinómanos em Portugal eram apenas, até aquela época, os que já padeciam de velhas doenças; suicidas a longo prazo, que procuravam o alivio da dor física. A partir de então passou a ser uma semente chic
de azuis e de violetas que se espalhavam pelo sangue, que subiam aos olhos, que perturbavam as imaginações.» Mas o Repórter X confirma que, naquela época, «a entrada triunfal pertenceu à cocaína – esse pó prateado que enche o corpo humano de oxigénio e que o ergue no espaço – para depois o deixar cair de grande altura numa queda horrível – duma queda que dura anos». Cecília Santos Vaz, numa tese de mestrado sobre os clubes noturnos de Lisboa, escrita para o ISCTE, explica que, nos Anos 20, a cocaína era tema frequente na imprensa: «Multiplicam-se os artigos sobre «a fada branca», a ‘coca’, a côcô», a ‘neve’ ou simplesmente ‘a droga’, constatando-se a sua crescente popularidade.» O uso de coca passou então a atingir «todos os grupos sociais e inclui os artistas dramáticos, atores, homens e mulheres, desportistas», com destaque para as atrizes de revista e as papillons, raparigas pagas pelos clubes para atrair clientela. No entanto, acrescenta, a partir de meados da década a imprensa passa a divulgar os efeitos nefastos. Em 1926, o ano da introdução de sanções ao uso de droga, a ABC descreve os cocainómanos como pessoas que «geralmente são magras, pálidas, cor de terça, enrugados os rostos, envelhecidas e enlividecidas». Noutro texto, a revista chega mesmo a pedir a intervenção das autoridades: «O tráfico de cocaína está na mão de meia dúzia de rufiões, porteiros de clubs ou escrocs cadastrados e bom será que a polícia abra os olhos a tempo.»
Macau no epicentro da guerra No final do século XIX e no início do século XX, a droga «sai do controlo médico e começa a estender-se a alguns grupos sociais», diz Luís Vasconcelos, antropólogo do Serviço de Intervenção nos Comportamento Aditivos e nas Dependências (SICAD).Mas no Ocidente esses grupos são ainda restritos e dificilmente poderá falar-se num problema de saúde pública. «O uso de droga é antiquíssimo. Mas a química moderna tornou possível isolar os alcalóides em muito pequenas quantidaVISÃO H I S T Ó R I A
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des, com enorme efeito.» Surgem, assim, os preparados psicoativos. Se a morfina e a heroína são isoladas a partir do ópio, a cocaína é extraída das folhas de coca. Sem que houvesse, durante algum tempo, qualquer problema legal com isso. Surgem no mercado numerosas bebidas com algum teor de coca, como o vinho Mariani, que contaria entre os seus apreciadores a rainha Vitória e o papa Leão XIII. «Nos Anos 20 dá-se a mudança de paradigma. O consumidor de droga deixa de ser visto como um dependente para ser considerado um criminoso. Mas o movimento proibicionista internacional surgiu por causa dos opiáceos. A coca era a droga das festas e dos ricos. Não dava preocupação de maior», diz ainda Luís Vasconcelos. Reinaldo Ferreira escreve sobre o ópio: «É, de todos os chaveiros dos tais paraísos artificiais, o mais antigo. Nasceu na decadência da civilização chinesa.» Mas depois estendera-se ao Ocidente: «Aristocratas degenerados criaram, nos seus palácios, recintos esconsos onde se fumava ópio. E os amarelos que emigravam para Europa traziam, entre outros planos de negócios, o de montarem uma fumerie de ópio.» Em Paris não só surgiram numerosas fumeries, como seria criado, em 1844, o Clube do Haxixe, que reunia la crème de la crème dos intelectuais: Baudelaire, que escreveria sobre drogas, sobretudo em As Flores do Mal (1857), mas também Alexandre Dumas, Alfred de Musset ou Balzac. Também em Portugal, em 1915, Fernando Pessoa, através de Álvaro de Campos, publicava o Opiário. «Por isso eu tomo ópio/é um remédio.» No seu caso, contra o tédio.
A imaginação de Reinaldo Ferreira não conhecia limites e é difícil saber quanto das suas reportagens seria ficcionado 60 V I S Ã O H I S T Ó R I A
BRIDGEMAN IMAGES/FOTOBANCO
Anos 20 || Drogas
‘A droga que mata’ Assim titula uma revista francesa, referindo-se à ‘coca’
Lá longe, na China, o uso do ópio era tão generalizado que constituía um problema sanitário, a que as autoridades queriam pôr fim. Levado da Índia pela Companhia das Índias Orientais, o ópio dera lugar, entre 1839 e 1856, a duas guerras entre a China e a Grã-Bretanha. Mas, em ambos os casos, os ingleses saíram a ganhar, ficando até com Hong Kong. Portugal era parte no negócio devido a Macau. E algum do ópio que chegava à China seria cultivado em Goa.
Os fumos proibidos Os «amarelos» de que falava o Repórter X eram os chineses que tinham emigrado para alguns países da Europa, mas sobretudo para os EUA, onde foram trabalhar na construção dos caminhos-de-ferro. Alcunhados de coolies, um termo pejorativo de origem difícil de terminar, eram mal vistos não só pelo hábito de fumarem ópio, mas sobretudo por trabalharem por salários mais baixos do que os locais. «Um pouco por toda a Europa, por vezes à revelia dos governos, começaram a manifestar-se movimentos de opinião contra a droga, partindo da Igreja Angli-
cana e dos missionários», escreve Carlos Alberto Poiares em Análise Psicocriminal das Drogas, tese escrita para a Universidade do Porto. Esse movimento seria em breve liderado pelos EUA, que decidiram aproveitar a ocasião para voltar às boas graças da China, já que tinham chegado a suspender durante uma década a entrada de imigrantes daquele país. «Depois da adoção de medidas racistas no campo do emprego, a droga funcionou, pois, como moeda de troca», explica C. A. Poiares. Em 1909 reunia-se a Conferência de Xangai, o primeiro encontro internacional sobre droga, presidido pelo delegado dos EUA, o puritano bispo Brent. O alinhamento com a China permitia ainda aos norte-americanos «garantir o domínio no Pacífico», já que tentavam firmar-se como primeira potência mundial. Entre os países menos entusiastas do proibicionismo estava Portugal. Daí que nesta como nas conferências que se seguiram a sua posição tenha sido, segundo aquele autor, «alvo de diversas críticas». No entanto, dada a pressão externa, Portugal aprovaria, em 1923, a primeira lei de combate à droga. Publicada no ano seguinte, era mesmo assim bastante branda: qualquer tipo de droga só podia ser vendido às farmácias e a «estabelecimentos científicos». Bem mais restrita foi a legislação de agosto de 1926, que previa seis meses de prisão e multas de 3 mil a 5 mil escudos para os importadores ou comerciantes de drogas que não tivessem autorização. As mesmas penas serão aplicadas aos consumidores e aos donos de «casas de reunião ou divertimento, como clubes e cafés, ou de casas de toleradas ou de passe», que permitam estupefacientes. O estabelecimento seria encerrado pelo mínimo de um ano. Em 1935 morria Reinaldo Ferreira. A pouco e pouco os leitores tinham-se tornado menos indulgentes para com a sua imaginação, que não conhecia limites. E a sua fase de ex-morfinómano fora breve. Mas até na sua morte o Repórter X foi símbolo de toda uma época. Cada vez mais apertados pela nova legislação, os clubes noturnos de Lisboa foram encerrando um a um. A festa tinha chegado ao fim.
FUNDAÇÃO ANTÓNIO QUADROS
Cronista dos tempos modernos
Antes de ser o mestre da propaganda do Estado Novo, António Ferro deixou-se contaminar pela loucura dos Anos 20, com o jazz e o cinema à cabeça, e ligou-se ao movimento modernista, produzindo textos que lhe valeram a censura da República
‘O
por Vânia Maia
jazz-band é o triunfo da dissonância, é a loucura instituída em juízo universal, essa caluniada loucura que é a única renovação possível do velho mundo… Ser louco é ser livre, é ser como a inteligência não sabe mas como a alma quer. Os loucos são os grandes triunfadores da criação.» A irreverência destas palavras vociferadas em 30 de julho de 1922 por António Ferro, então com 26 anos, deixaria a plateia brasileira do prestigiado Teatro Trianon, no Rio de Janeiro, de cara à banda. Era a primeira vez que António Ferro apresentava a conferência A Idade do Jazz-Band. A espaços, o seu discurso era interrompi-
do pelas notas de uma orquestra de jazz ao vivo e por bailarinas que irrompiam pelo palco. A façanha seria repetida em várias cidades do Brasil, para deleite de uma burguesia perante a qual Ferro surgia como representante do modernismo português, à boleia de ter figurado como editor dos dois números da mítica revista Orpheu, marca do modernismo luso, que juntara nomes como Fernando Pessoa, Almada Negreiros, Santa-Rita Pintor ou Mário Sá-Carneiro. Ferro aparecera na qualidade de editor, já que à data de lançamento da revista, em 1915, tinha 19 anos e, sendo menor de idade, era o editor «irresponsável» de que os arrojados modernistas precisavam…
Madrid, 1928 António Ferro com a mulher, Fernanda de Castro, e amigos, fotografados por Almada
A Idade do Jazz-Band usa a música como pretexto para traçar um retrato frenético da época que se vivia. O conhecimento aprofundado sobre o jazz, enquanto estilo musical, Ferro só o conquistaria «nas incursões furtivas aos caveaux parisienses» e «nos clubes nova-iorquinos», escreve o investigador Orlando Raimundo em António Ferro, O Inventor do Salazarismo (D. Quixote, 2015), antes de acrescentar que Ferro se tornaria um «colecionador compulsivo de discos». A neta Mafalda Ferro, 62 anos (filha do poeta António Quadros), revela que o avô não era particularmente fã de fado, apesar do uso propagandístico que dele fez. «Percebia que era a canção nacional, mas aquele lado sofrido não tinha a ver com ele. Ele era mais jazz», afirma. À VISÃO História, Orlando Raimundo, 67 anos, destaca a capacidade de dominar a arte da retórica do futuro diretor do Secretariado de Propaganda Nacional (Secretariado Nacional de Informação após a II Guerra Mundial), que Ferro liderou de 1933 a 1949: «Usava as palavras como objetos e sabia como as colocar para chocar e dar nas vistas.» Efeitos largamente atingidos durante a sua estada de um ano no Brasil, entre 1922 e 1923. VISÃO H I S T Ó R I A
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Retrato de Mussolini com dedicatória para António Ferro
O intrépido entrevistador «A porta abre-se com violência, com irritação, como se fosse aberta por um pé-de-vento, eu tenho Hitler, finalmente, diante de mim.» A descrição dramática de António Ferro assinala um momento alto da sua carreira jornalística – manchete de 23 de novembro de 1930 do Diário de Notícias. O encontro, em Munique, com Adolf Hitler, à época ainda na oposição ao Governo alemão, era o culminar de uma década de grandes entrevistas que havia começado em 1920 com a sua entrada para O Século. Em 1923, já ao serviço do Diário de Notícias, encontra-se pela primeira vez com Benito Mussolini, em Roma. O Duce diz-lhe que a única maneira «de julgar se uma ditadura é um bem ou um mal é aguardar pelos seus resultados». O seu périplo dá origem ao livro Viagem à Volta das Ditaduras (1927). A sua simpatia por este tipo de regimes era evidente. Já depois da publicação do livro dá-se a entrevista a Hitler que, como descreve Margarida Acciaiuoli, em António Ferro, A Vertigem da Palavra (Bizâncio, 2013), se resume a três perguntas em francês previamente aprovadas. Ferro pergunta-lhe se o seu partido é da paz ou da guerra, e a resposta do futuro Führer dá título ao artigo: «O meu partido é o partido da paz, mas não da paz de Versalhes.» António Ferro admitia que, por vezes, era necessário «maquilhar» o entrevistado para o apresentar «com interesse, com novidade, com espírito», o que torna difícil avaliar até aonde poderá ter ido a sua criatividade, que nada tinha de jornalístico. 62 V I S Ã O H I S T Ó R I A
FOTOS: FUNDAÇÃO ANTÓNIO QUADROS
Família António Ferro com o filho mais velho, António Quadros, em 1926 (à esq.), e a mulher, Fernanda de Castro com uma amiga (em cima)
A 1 de agosto de 1922 surpreende os amigos ao casar-se por procuração com a namorada que tinha deixado em Lisboa, a poetisa Fernanda de Castro. As suas testemunhas seriam a atriz Lucília Simões, que o havia desafiado a fazer a viagem transatlântica, e o almirante Gago Coutinho, ainda a celebrar a sua travessia aérea do Atlântico Sul. Os padrinhos brasileiros foram o escritor Oswald de Andrade e a artista Tarsila do Amaral, que pintou o retrato da noiva após a sua chegada ao Brasil para a luaLiteratura As obras A Idade do Jazz-Band e Hollywood Capital das Imagens, da autoria de António Ferro, mostram a sua paixão pela música e pelo cinema. Os livros Leviana e Colette seriam polémicos devido ao seu pendor sensual
-de-mel. Fernanda de Castro, com quem António Ferro teria dois filhos (António Quadros em 1923 e Fernando Quadros Ferro em 1927), tem uma abundante produção literária. «Se virmos as fotografias da época, o mundo artístico era masculino, mas a Fernanda de Castro estava lá. Nunca passou pela cabeça do meu avô que ela fosse apenas dona de casa», garante Mafalda Ferro.
Vítima da censura Ainda no Brasil, Ferro dá a conferência A Arte de Bem Morrer, em que defende a ideia perturbadora de que morrer é bom, alcançando grande impacto (o texto seria editado com capa de Almada Negreiros, de quem era, na altura, próximo). Causa ainda grande sururu em São Paulo a estreia da sua peça Mar Alto, sobre uma história de adultério, incluída no reportório da Companhia de Teatro de Lucília Simões, fazendo parte do elenco o próprio Ferro. Já de regresso a Portugal, a peça seria apresentada no Teatro de São Carlos, em Lisboa, a 19 de junho de 1923. Sem meias medidas, o governador civil, major Viriato Lobo, proíbe-a em nome da ordem pública. Surge assim o Documento dos Homens de Letras contra a censura a Ferro, subscrito por autores como Aquilino Ribeiro, Fernando Pessoa e Raul Brandão, além de nomes que seriam mais tarde vítimas da censura que o então jovem dramaturgo passaria a defender, como António Sérgio e Jaime
Cortesão. Apesar de estes terem ganho a causa, a peça não seria reposta. A produção literária modernista de António Ferro, concentrada até 1925, andaria de mãos dadas com o choque e a polémica: Teoria da Indiferença (onde escreve que teve «a impressão de ter sido plagiado» quando leu Oscar Wilde), Colette (um perfil da arrojada romancista francesa Colette Willy), o manifesto futurista (fora de tempo) Nós, Leviana, que traça o retrato de uma mulher frívola com algum erotismo (ao estilo do modernista espanhol Ramón Gómez de la Serna, seu amigo), entre outros textos. «Um velho sonho de Ferro era o de tornar-se num protagonista da importação dessa nova cultura cosmopolita e contribuir assim, patrioticamente, para tornar Lisboa numa cidade à la page», escreve o investigador José Barreto no ensaio António Ferro: Modernismo e Política (2011). A sua estratégia passava pelas frequentes viagens a capitais europeias, mas também pelas passagens pelo Brasil e EUA, muitas vezes tendo como pretexto a sua carreira de repórter internacional (ver caixa). A expensas do Diário de Notícias, que o autoriza a ficar dois meses nos EUA na primavera de 1927, dá largas à paixão pelo cinema e visita Hollywood. Conhece Walt Disney e o produtor e ator Douglas Fairbanks, com quem partilhava a admiração por Mussolini. Na bagagem traz a ideia de seguir o exemplo norte-americano de usar o cinema para promover ideais. Esteve próximo de várias tentativas de golpe contra a República, fruto da amizade com o comandante Filomeno da Câmara, com quem partilhava a nostalgia sidonista. Os ideais do golpe militar do 28 de Maio de 1926 obrigaram-no a trocar o modernismo pelo «vanguardismo nacionalista», mais condizente com o regresso às tradições que o Estado Novo, a partir de 1933, defenderia. A Salazar, não agradava o seu passado irreverente, o que levou Ferro a retratar-se: «A obra que eu escrevi aos 20 anos não é minha, é dos meus 20 anos, é de alguém que morreu.» Uma obra hoje esquecida que ficou mesmo, para sempre, nos anos 20 dos seus 20 anos. VISÃO H I S T Ó R I A
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Anos 20 || Fraude
A grande burla de Alves Reis
O maior falsificador de todos os tempos acreditava que só havia uma maneira de enriquecer: emitindo dinheiro. Foi o que fez. História de um burlão que enganou o Banco de Portugal e que confiou quase até ao fim na sua «boa estrela»
A
por Clara Teixeira
rtur Virgílio Alves Reis começou cedo a construir o mundo em que queria viver. Aos 18 anos, falsificou um diploma de Engenharia emitido por uma escola politécnica de Oxford que nunca existiu. Perfecionista, deu-lhe existência legal autenticando uma cópia do documento num cartório de Sintra e destruindo de seguida o «original». Como técnico de Engenharia, emigrou em 1916 para Angola com a jovem esposa, Maria Luísa Jacobetti de Azevedo, que o acompanhará na aventura colonial e em muitas outras que o destino reservará ao casal. Em poucos meses, alcançou um posto de chefia na Companhia dos Caminhos de Ferro de Moçâmedes. Não se ficou por aí. As duvidosas reparações efetuadas nas locomotivas não impediram a sua nomeação para altos cargos técnicos na antiga colónia, mas foi obrigado a recuar já que o «diploma» de Oxford não o equiparava aos engenheiros saídos das escolas portuguesas. Estreou-se nos negócios de import-export e na exploração mineira, mas as coisas não lhe correram bem. Em 1923 regressou de vez a Lisboa com a mulher e dois filhos pequenos, sem ter como pagar uma vida abastada. Recorreu a esquemas e comprou uma empresa ferroviária colonial com um cheque sem provisão. As dívidas acumularam-se e foi preso por burla no Aljube, no Porto. E foi durante os dois meses passados na prisão que gizou um crime quase perfeito. Em 1924, Portugal já tinha abandonado o padrão-ouro e as notas em circulação eram cada vez em maior número. O Banco de Portugal (BdP) – uma instituição privada que detinha o exclusivo da emissão de 64 V I S Ã O H I S T Ó R I A
moeda na metrópole – já não era obrigado a assegurar a contrapartida em ouro do dinheiro que emitia. Alves Reis rodeou-se de abundante documentação e transformou a cela em «gabinete de trabalho». Aos poucos, «a simples curiosidade» que o movia transformou-se no «firme desejo de emitir notas», como conta Francisco Teixeira da Mota, autor de Alves Reis – Uma História
Para eliminar o aspeto novo e o cheiro a tinta, as notas foram passadas por água com limão, mas desbotaram e adquiriram um tom avermelhado. Ficaram conhecidas como «camarões»
A encomenda foi entregue à casa inglesa Waterlow & Sons, fabricante oficial das notas do BdP. O presidente da firma, Sir William Waterlow, acreditou na narrativa e aceitou fabricar as notas ao abrigo de um segredo de Estado para auxiliar Angola. Ultrapassados alguns episódios rocambolescos, a emissão clandestina entrou em circulação em fevereiro de 1925: uma primeira entrega de 20 mil notas foi feita no dia 10 e uma segunda, de 30 mil notas, no final do mês. Seguiu-se uma terceira entrega de 150 mil notas em março. Os passaportes diplomáticos de Marang e de José Bandeira foram cruciais para que as notas, acomodadas em pesadas malas, viajassem entre Londres e Lisboa (depois de uma escala na Holanda), sem serem detetadas nas alfândegas. Alves Reis confiava, como sempre, na sua «boa estrela».
As notas ‘camarões’ Recolha de dinheiro As filas à porta do Banco de Portugal para troca das notas de 500 escudos duraram vários dias
notas no estrangeiro. Faltava criar uma narrativa para acabar com desconfianças, e nisso Alves Reis era mestre.
Portuguesa (Oficina do Livro). Ao ler um discurso do deputado Cunha Leal, proferido em 29 de outubro de 1923, percebeu que as tentativas desesperadas do Governo para controlar a inflação davam liberdade ao Banco de Portugal para aumentar a quantidade de dinheiro em circulação sem «dar conta disso» ao poder executivo. O BdP não só emitia notas à revelia do Governo e do Parlamento como nem sequer controlava as que estavam em circulação. Emitir dinheiro parecia ser uma boa maneira de enriquecer. Como o BdP detinha o exclusivo das emissões, Alves Reis teria de atuar em nome da instituição. Com a ajuda de Adolph Hennies, um homem de negócios suíço de reputação duvidosa com interesses em Angola, do seu sócio holandês Karel Marang, detentor de passaporte diplomático, e de José Bandeira, irmão do ministro de Portugal em Haia, forjou um documento em que o BdP lhes dava poderes para encomendar o fabrico de
Empréstimo secreto A pretexto de um imaginário empréstimo secreto de um milhão de libras (cerca de cem mil contos) para resolver a delicada situação financeira de Angola, feito por um sindicato de empresas holandesas, Alves Reis planeou uma emissão clandestina de notas de 500 escudos, com a efígie de Vasco da Gama, que seria usada para pagar esse mesmo empréstimo aos credores. Redigiu contratos e cartas autorizando a emissão, falsificou as assinaturas do novo alto-comissário em Angola, Rego Chaves, do delegado do Governo de Angola e deputado da nação, Delfim Costa, do ministro das Finanças, Daniel Rodrigues, e do próprio governador do BdP, Inocêncio Camacho Rodrigues. Rodeou-se de todos os cuidados e estudou as notas em circulação ao pormenor. As notas clandestinas tinham de ser iguais às que já circulavam, obedecendo à mesma ordem numérica e alfabética e aos critérios de sequência das assinaturas dos responsáveis do BdP.
As notas novas foram rapidamente transformadas em «dinheiro lavado», ou seja, trocadas no mercado negro por divisas (libras, dólares) e cheques em moeda estrangeira – até por licenças de importação. Outro estratagema consistia em fazer depósitos de notas novas em bancos e, dias depois, levantar esses mesmos depósitos na íntegra, pagos em dinheiro «velho». A compra de joias também foi usada na conversão, especialmente através de uma ourivesaria do Porto com ligações à casa cambista que, mais tarde, viria a detetar a burla. Para eliminar o aspeto novo e o cheiro a tinta, Alves Reis, com a ajuda do grupo de «colaboradores», mergulhou notas no valor de 1980 contos, uma a uma, em água com sumo de limão deitada na banheira da casa de banho do escritório. Patrão e empregados saíram para jantar, mas quando voltaram ao 1º andar da Rua de São Nicolau as notas tinham desbotado e adquirido um tom avermelhado. O Banco de Portugal conserva alguns destes espécimes, batizados como «camarões», no espólio do Museu do Dinheiro, em Lisboa. Imparável, o burlão não desistiu e tentou nova experiência, mergulhando as VISÃO H I S T Ó R I A
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Anos 20 || Fraude notas apenas em água, para disfarçar o cheiro a tinta. O mais difícil foi secá-las. Em Haia, Paris e Lisboa, José Bandeira e Alves Reis exibiam a riqueza recente. Compravam palacetes, quintas e carros vistosos, joias e roupas caras para as mulheres, hospedavam-se em bons hotéis. O dinheiro corria fácil e Alves Reis dispunha finalmente dos fundos para resolver os negócios em Angola. Mas espalhara-se o boato de que havia notas falsas de 500 escudos e tornava-se mais difícil fazê-las entrar em circulação – apesar de o próprio BdP ter desmentido o rumor. Só havia uma maneira de introduzir no sistema tão grande volume de notas. Como assinala Teixeira da Mota, «o mais importante já existia: dinheiro. Havia, agora, que construir o banco». Em julho de 1925, é criado o Banco Angola & Metrópole. A ganância não tem limites e uma nova emissão de 380 mil notas novas foi encomendada à Waterlow & Sons. As duas emissões perfizeram 290 mil contos, qualquer coisa como 100 milhões de euros ao câmbio atual. Dessa vez, a casa inglesa questionou o valor, superior ao previsto, e também a coincidência de séries e números com uma anterior emissão do BdP em 1922. Apesar do cuidado em não repetir os números das notas, isso acabou por suceder, o que não agradou ao cérebro da operação. Quase ao mesmo tempo, o descuido de um funcionário, que depositou centenas de contos em notas novas no Banco do Minho, tornou-se tema de conversa entre bancários. A preocupação de Alves Reis era agora a de legalizar as emissões clandestinas. Impunha-se conquistar o controlo acionista do BdP, de capitais privados. Em setembro, começou a comprar grandes lotes de ações do banco emissor, dando um novo passo para tornar real a fábula em que vivia desde há meses.
A descoberta das notas duplicadas O avanço sobre o BdP atraiu as atenções sobre a estratégia do Angola & Metrópole. Um dos mais intrigados era Alfredo da Silva. Desconfiado, o fundador da CUF interrogava-se como é que o Angola & Metrópole emprestava tanto dinheiro aos clientes sem se preocupar em captar 66 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Em tribunal Alves Reis comove a audiência com um relato de cinco horas sobre a sua tragédia pessoal
depósitos. Havia muito por esclarecer, e o jornal O Século começou a investigar. Eis que tudo se precipita a partir de novembro de 1925. A campanha jornalística não passou despercebida na casa de câmbios Pinto da Cunha, no Porto, utilizada pelos funcionários do Angola & Metrópole para trocar divisas ou para realizar avultadas transferências para Lisboa. A mesma firma tinha ligações familiares à ourivesaria do Porto onde, ao longo desse ano, Alves Reis comprara joias no valor de 840 contos, pagando sempre com notas novas de 500 escudos. O cambista Manuel Lutero de Sousa notara, nos últimos meses, uma estranha
Na véspera da noite de Natal, o burlão cai na armadilha dos investigadores e confessa finalmente o crime
movimentação de notas «Vasco da Gama», que, apesar de serem novas, não vinham em maços com numeração seguida, como era procedimento habitual no Banco de Portugal. Para evitar desconfianças, Alves Reis ordenava ao seu séquito que baralhassem o dinheiro, evitando a entrada em circulação de notas com números seguidos, mas acabou por atrair as atenções do cambista que partilha as suas dúvidas com um amigo tesoureiro que, por sua vez, as transmite ao Banco de Portugal. Numa inspeção surpresa à filial do Angola & Metrópole no Porto, os funcionários do BdP descobrem um cofre com 1200 contos em notas novas de 500 escudos não registadas no balanço. Mas algo não batia certo: apesar das irregularidades contabilísticas, as notas apreendidas não eram falsas. O mistério permanecia: como explicar o enorme volume de dinheiro em circulação? Na sede do BdP, as notas são inspecionadas e detetados os primeiros quatro exemplares duplicados. Apesar dos cuidados de Alves Reis, as séries e a numeração coincidam com uma anterior emissão do BdP. Mas ainda faltava perceber como é que a «falsificação» tinha acontecido. Alves Reis, então com 27 anos e três filhos pequenos, é detido no regresso de uma
viagem a Luanda. O mundo pacientemente construído à medida dos seus sonhos começava a desabar. O governador, o gerente da filial do Porto e um diretor do BdP e um alto funcionário público passam por cúmplices e também são presos – eram suas as assinaturas nos contratos enviados à Waterlow & Sons. A 7 de dezembro, o BdP iniciou a recolha de todas as notas Vasco da Gama em circulação, já que era impossível distinguir entre as das diferentes emissões. Durante dias, formaram-se filas à porta da instituição. Na sequência das revelações, o ministro do Comércio demitiu-se e a desconfiança alastrou ao Governo, correndo rumores sobre alegadas listas de políticos subornados pelo Angola & Metrópole. Mas continuava por apurar quem teria falseado as assinaturas dos diretores e fornecido a numeração das notas aos falsificadores. Na noite de 23 para 24 de dezembro de 1925, Alves Reis confessa finalmente a burla. Cai na armadilha dos investigadores, acreditando que a mulher estava presa numa cela com ratos.
O julgamento Burlão, falsário, mitómano, Alves Reis vê a vida desabar, e a 31 de maio de 1928 tenta suicidar-se na cela. Abraça o catolicismo, depois o protestantismo e, aos poucos, desiste de atribuir as emissões clandestinas ao BdP. Começa a ser julgado em maio de 1930, quatro anos e meio depois da detenção. É acusado de falsificação e uso de contratos e cartas falsos, exercício ilegal de profissão e burla por cheques. Comove o tribunal com um relato de cinco horas sobre a sua tragédia pessoal, que mais tarde publica em livro. É condenado a oito anos de prisão, seguidos de 12 anos de degredo. Ao jornalista e seu antigo colega de liceu António Ferro, declarou, no final da leitura da sentença: «Pode dizer que me resigno.» O maior burlão que Portugal conheceu foi libertado a 5 de maio de 1945. Tinha 47 anos e voltou a dedicar-se aos negócios. Uns correram mal e conduziram-no de novo à barra do tribunal. Morreria em 1955, de ataque cardíaco, quando a sua «boa estrela» já o tinha abandonado para sempre.
Anos 20 || Inflação
Dinheiro louco
Para combater a inflação, imprimia-se dinheiro de forma descontrolada, à revelia dos governos e do Parlamento. As «emissões surdas» de moeda e os talões e os vales de trocos tomavam o País de assalto por Clara Teixeira
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epois da loucura da Grande Guerra, a vida no Portugal dos anos 20 fervilhava. Nem o dinheiro escapava. Sujeito a desvalorizações acentuadas e a especulações desenfreadas, ele era caro e escasso. A inflação subia de forma vertiginosa e o câmbio do escudo batia no fundo. Faziam-se apostas de risco e construíam-se fortunas. Surgiam empresas e fábricas novas a um ritmo nunca visto. Entre 1920 e 1926, seriam criados 18 novos bancos. O ambiente de negócios era febril. «A vida», escreveu Raul Brandão, «modificou-se nos últimos vinte anos, primeiro com lentidão, e depois da guerra, num tropel que mete medo.» Os efeitos financeiros da I Guerra Mundial (1914-18) não pouparam Portugal, que acumulou uma crise económica com uma crise política. A espiral inflacionista só era comparável à dos países perdedores da guerra – Alemanha, Áustria e Hungria. Os bens essenciais aumentavam de um dia para o outro. Durante o conflito, os preços mais do que duplicaram. Entre 1920 e 1924, cresceram quase três vezes, obrigando aqueles que dependiam de rendimentos fixos – como pensões, juros, títulos, até salários – a deitar contas à vida. O esforço de guerra fez crescer o défice e também a dívida pública, que passou de um milhão de contos em 1918 para 8 milhões em 1924. A crise nas finanças públicas foi agravada pela diminuição das reexportações das matérias-primas das colónias, a escassez de bens essenciais, a redução das remessas dos emigrantes e a fuga de capitais. Perante a pressão inflacionista, a solução encontrada foi o fabrico de dinheiro sem qualquer 68 V I S Ã O H I S T Ó R I A
controlo. Com custos para a economia, como se verá. O escudo, criado em 1911 pelo regime republicano, desvalorizou-se tanto em 15 anos como o real em 500 anos, como notou o investigador Nuno Valério. Para comprar algo que custava 1 escudo (1$00) em 1911, eram precisos 1$01 em 1914, 2$96 em 1918, 5$86 em 1920 e 24$25 em 1924. Ou seja, o poder de compra da moeda nacional era 24 vezes menor do que 13 anos antes, em 1911. O dinheiro valia cada vez menos. Para tentar acompanhar a subida de preços, foi lançada a nota de mil escudos no final de 1920. Ninguém poupava. Estima-se que o valor dos depósitos bancários tenha diminuído de 44 contos (44 mil escudos, ou 44 000$00) em 1922 para menos de 29 contos em 1923. A depreciação interna do escudo, resultante da inflação, era acompanhada na frente externa pela descida do câmbio. Em finais de 1918, a libra trocava-se a 7$12. Este valor foi superado em mais de 20 vezes em 1924, quando a divisa inglesa atingiu o valor máximo de 155$54, estabilizando em seguida perto dos 110$00.
Sem moedas de trocos, o País funcionava à custa de vales improvisados em pequenos pedaços de papel e cartão
Dos vales à nota de mil Para acompanhar a subida dos preços, é lançada a nota de mil escudos em 1920. Mas o dinheiro vale cada vez menos e os municípios começam a emitir cédulas de 2, 5 e 10 centavos para substituir a moeda que escasseava
Moeda descontrolada O Banco de Portugal (BdP) não ficava indiferente perante o descalabro da economia. De capitais privados, a instituição detinha o exclusivo da emissão de moeda no continente e ilhas. As suas emissões fiduciárias (notas de banco) destinavam-se quase exclusivamente ao financiamento da despesa e da dívida públicas. A investigadora Maria Eugénia Mata analisou como os défices públicos forçavam o Estado a contrair empréstimos junto do BdP. Este, obrigado a fabricar moeda para satisfazer as necessidades do Estado, alimentava, com as suas emissões, a forte inflação do pós-guerra. Cerca de 90% das
notas em circulação constituíam dívida do Estado ao BdP, segundo assinala Manuel Mira Godinho. Em 1924, a oferta de moeda era já 15 vezes maior do que em 1914. A moeda em circulação aumentou de 128 mil contos em 1913 para 1,846 milhões de contos em 1925. A emissão de notas tentava acompanhar a subida dos preços, mas por detrás estava a necessidade de imprimir dinheiro para o Estado poder pagar as suas próprias despesas. Desesperados com a dívida e impotentes perante o aumento dos preços, os sucessivos governos começam a dar luz verde ao Banco de Portugal para aumentar a quantidade de dinheiro em circulação sem autorização legislativa. São elaboradas portarias ilegais pelos governos, não publicadas no Diário do Governo (atual Diário da República), enquadrando novas emissões de notas que ficavam à espera de uma oportunidade política para fazer passar no Parlamento as autorizações necessárias. A 29 de outubro de 1923, o deputado Cunha Leal desfere no Parlamento um ataque à política monetária do BdP, denunciando as «cinco maneiras» de aumentar a circulação de moeda em Portugal. Para além das emissões legais, as
emissões também eram feitas através de «portarias surdas» assentes em acordos escritos entre o Governo e o BDP, de portarias elaboradas mas não publicadas, de acordos sem portaria elaborada e de «um quinto processo que consiste em o Banco não dar cavaco ao Governo, aumentar a circulação fiduciária e o Governo, a certa altura, dar conta disso e não se importar». Com efeito, o BdP não só emitia notas sem autorização do Parlamento como também passou a fazê-lo sem o aval dos governos. A instituição nem sequer controlava os exemplares que já estavam em circulação. Ao perceber isto, um inspirado Alves Reis começou a preparar a maior burla que Portugal conheceu no século XX (ler, nesta edição, o texto A Grande Burla de Alves Reis). Mas o escudo continuava a desvalorizar-se mais depressa do que o ritmo a que se fabricavam notas novas. A inflação anulou este aumento, provocando uma redução efetiva do valor da moeda. O dinheiro físico começou a escassear nas transações comerciais mais banais. As moedas de prata e bronze rareavam, já que o metal era mais valioso do que o seu valor facial. Cerca de 99% do dinheiro em circulação era constituído por notas.
Talões de trocos Confrontado com a escassez de trocos, o Governo autorizou a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e a Casa da Moeda a emitirem cédulas de 2,5 e 10 centavos. Um total de 178 municípios foi também autorizado a criar as suas próprias cédulas, válidas nas respetivas áreas geográficas. Mas não foi suficiente. À revelia do Ministério das Finanças, surgiram por todo o lado talões de trocos ou vales improvisados em pequenos pedaços de papel e cartão, ostentando apenas o carimbo e a assinatura do comerciante. O País funcionava à custa deste dinheiro informal. A desvalorização abrupta da moeda foi travada a partir de 1924, quando o primeiro-ministro (e simultaneamente ministro das Finanças) Álvaro de Castro proibiu as emissões fiduciárias para alimentar défice e dívida. A medida, a par de um forte aumento de impostos para equilibrar as contas públicas e do aumento das reservas cambiais do BdP para travar a descida do escudo, ainda tardará a produzir o efeito desejado. O controlo da inflação, a estabilização monetária e a disciplina orçamental foram alcançadas durante a República, mas o regime liberal, deposto pela Ditadura Militar em 1926, já não beneficiaria desse «milagre» económico. VISÃO H I S T Ó R I A
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Anos 20 || Estatísticas
Portugal em números
Na década em que os casamentos diminuíram e os divórcios aumentaram, ainda eram muito poucas as mulheres na universidade LIVROS E JORNAIS
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SERVIÇOS AÉREOS PORTUGUESES
PRIMEIRAS EDIÇÕES de livros, em 1929
875
691 JORNAIS em 1929 31 JORNAIS DIÁRIOS em 1929 CAMINHOS-DE-FERRO
443
carreiras passageiros
3 380 DE QUILÓMETROS explorados em 1929
195
229
33 273 086 PASSAGEIROS em 1929
52 79 1927 1928 1929
VEÍCULOS EM 1925
9 283 Carruagens, landaus, caleches, coupés, mylords, vitórias,
1 515 Camiões, camionetas, automóveis, side-cars
8 912 AUTOMÓVEIS, motocicletas, side-cars e outros com motor
137 838 CARROÇAS, galeras,
dog-carts, phaetons, tilburys, char-à-bancs, ómnibus e semelhantes
468 Elétricos 15 375 Bicicletas, velocípedes e semelhantes
e semelhantes
carros para bois e semelhantes
4 190 Carroças ou carros de mão
6 milhões 32 mil e 991
HABITANTES em Portugal em 1920 1 milhão 755 mil e 650 sabiam ler (1920)
CASAMENTOS E DIVÓRCIOS 53 024
51 213
50 043 49 104
46 242
45 550
46 801 41 776
45 347
44 525
909
561 501 588 632 555 568 477 449 n/d 1920
1929
casamentos
divórcios
232
DIVÓRCIOS por adultério da mulher e 174 POR ADULTÉRIO do marido, em 1929
29 070
ESTRANGEIROS em Portugal em 1925 (17 813 espanhóis, 4 969 brasileiros e 2 300 ingleses) EM LISBOA
529 524
HABITANTES em 1925
13 257
DIVÓRCIOS decretados por mútuo consentimento, em 1929
ELEMENTOS da GNR, policia e guarda-fiscal em Lisboa em 1925
269
185 321
69
SENTENÇAS originadas por injúrias e sevícias, em 1929 SAÚDE
52
POSTOS DE SOCORRO MÉDICOS existentes em Portugal em 1929, 30 dos quais no distrito de Lisboa
10
LISBOETAS dedicavam-se exclusivamente a trabalhos domésticos em 1925
8 561
pessoas estavam registadas em Lisboa como mendigos, vagabundos
MATERNIDADES em Portugal continental e ilhas, em 1929
e meretrizes
38
ESTRANGEIROS
13 884
ENSINO
7 126
ESCOLAS OFICIAIS DE ENSINO PRIMÁRIO elementar, em 1925-26
316 888
ALUNOS do ensino primário elementar, no mesmo ano
33
LICEUS em Portugal em 1927-28
12 128
RAPAZES matriculados no liceu em 1927-28
3 808
RAPARIGAS matriculadas no liceu no mesmo ano letivo
4 117
ALUNOS matriculados nas universidades de Lisboa, Coimbra e Porto, em 1925-26
11
MULHERES frequentavam o curso de Direito na Universidade de Coimbra, em 1925-26
1
MULHER concluiu a licenciatura e outra o doutoramento em Medicina na Universidade de Coimbra, em 1925-26
1 MULHER
em Lisboa (8 866 espanhóis, 1 783 brasileiros, 831 franceses)
concluiu a licenciatura em Ciências Físico-Químicas na Universidade de Coimbra, em 1925-26
INSTITUIÇÕES SOCIAIS (asilos, albergues…)
NO PORTO
3 MULHERES
11
HABITANTES
licenciaram-se em Farmácia na Universidade de Coimbra, em 1925-26
CRECHES em Portugal continental e ilhas em 1929
147
ORFANATOS, em 1929
215 625 em 1925
FONTES: Censos de 1920 e anuários estatísticos do Instituto Nacional de Estatística (INE)
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Anos 20 || Aviação
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Voar
era preciso
Foi na década de 1920 que a espécie humana adquiriu asas como os pássaros, ou seja, começou a deslocar-se pelos ares tanto quanto possível tranquilamente e de forma «natural»… Até então, as experiências pioneiras mais não tinham sido do que loucuras de alto risco por Luís Almeida Martins
A bordo de um Junkers G-31, em 1928 Uma passageira toma o pequeno-almoço enquanto sobrevoa os telhados de Berlim VISÃO H I S T Ó R I A
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Anos 20 || Aviação
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1 Em Los Angeles, 1929, controlo de passageiros da Western Air Express provenientes do México 2 Jantar requintado a bordo de um aparelho da Lufthansa 3 Em 17/3/29, passageiros aguardam, em Newark, o embarque num Ford que dentro de minutos colidiria tragicamente com um camião, ainda na pista 4 Foi a Lufthansa a primeira companhia a projetar filmes a bordo 5 Alguns dos 169 passageiros do gigantesco DO-X, em 1929 6 A bordo de um Handley Page de 40 lugares, da Imperial Airways
O ‘glamour’ da aviação comercial duraria até à era da indústria do turismo de massas, mas foi nos Anos 20 que levantou voo para o céu da lenda
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osta das histórias de Agatha Christie? Então, por muito concentrado(a) que esteja na tentativa de descobrir o criminoso, é impossível que não se aperceba de que o ambiente em que elas decorrem é mais «estrangeiro» do que os países estrangeiros de hoje. O fictício «Hercule Poirot» começou – para nós, público – a pôr a funcionar as suas celulazinhas cinzentas na década de 1920, e alguns dos mistérios por ele desvendados envolvem viagens aéreas (que lhe provocavam, aliás, pânico). Mas, «Poirot» à parte, a imagem que retemos dos aviões desse tempo é que, embora estranhos como insetos deselegantes, lentos, frágeis e efetivamente inseguros, eles eram quase hotéis de luxo O glamour da aviação comercial manter-se-ia intacto até décadas recentes, quando a indústria do turismo de massas o veio anular por completo, mais foi nos «Anos Loucos» que levantou voo rumo ao céu azul da lenda. As primeiras carreiras coabitavam ainda com os raides pioneiros empreendidos por «gloriosos malucos das máquinas voadoras», pelo que houve assim uma época em que nem sempre era fácil distinguir a aventura da rotina. É sabido que o mais famoso dos voos aventureiros foi o empreendido em maio de 1927 pelo americano Charles Lindberg, quando, aos
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comandos do seu monomotor Spirit of St Louis, uniu em linha reta Long Island (EUA) a Paris, atravessando pela primeira vez o Atlântico sem escalas. Em termos rigorosos, esta nova forma de viajar acessível a cidadãos comuns foi inaugurada – sem fanfarra – em 8 de fevereiro de 1919, quando um ex-bombardeiro Farman Goliath sobrevivente da recente I Guerra Mundial, adaptado às necessidades requeridas pelo transporte de passageiros, levantou voo do aeródromo do Bourget, nos arredores de Paris, para daí a pouco aterrar em Croydon, nas imediações de Londres. Aí, sim, houve brindes. Mas o mês foi fértil em estreias, já que passados dois dias um Caudron C-23 inaugurava a linha Paris-Bruxelas transportando 16 passageiros sentados em poltronas de palhinha que podiam contemplar a paisagem à vontade, pois
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as janelas eram tão grandes que mais pareciam paredes envidraçadas. O pior, tanto no caso do Goliath como no Caudron, era o ensurdecedor ruído provocado pelos motores e pelo próprio girar das hélices, uma vez que a carcaça de madeira dos aparelhos era apenas revestida de contraplacado e de tela. Mas, com ou sem barulheira nos ouvidos, muitos homens de negócios cedo se habituaram a utilizar este meio de transporte rápido nas suas meteóricas deslocações, o que fez que, entrada a década de 20, rara fosse a semana em que não nascesse nos cartórios tabeliónicos uma nova companhia aérea. A criação da IATA (International Air Traffic Association), ainda antes de os calendários de 1919 serem substituídos nas paredes pelos de 1920, foi apenas o mais evidente reflexo dessa realidade. É claro que o
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comboio continuava a ser o rei dos meios de transporte (e continuaria a reinar até bastante depois da II Guerra Mundial), mas é também verdade que a aviação ia entrando cada vez mais nos hábitos.
O sonho imperial Uma das mais antigas e emblemáticas companhias aéreas da idade heróica da aviação comercial foi a britânica Imperial Airways, cujos aparelhos cheios de encanto mas semelhantes a gafanhotos, hoje tão romanticamente obsoletos, ligavam o relvado aeródromo de Croydon às pistas de terra batida da Índia, da África, da Malásia ou da Austrália. Resultou da decisão governamental tomada em 1923 de fundir as três pequenas companhias então existentes na Grã-Bretanha, e transportaria senhoras perfumadas, cavalheiros de colarinhos duros e alguma carga entre 1924
e 1939. Neste último ano fundir-se-ia com a British Airways para dar lugar à BOAC, também já extinta há muito, mas isso são contos mais largos. Em 1924, a Imperial colocou ao serviço o estranhamente belo biplano Handley Page, com os dois enormes motores alinhados na asa superior, muito acima da fuselagem. A prioridade da companhia era o transporte postal, cuja relativa celeridade aproximava da metrópole albiónica os rincões perdidos da Malásia ou as ilhas remotas dos Mares do Sul onde as personagens de Somerset Mangham viviam as suas histórias passionais entre goladas de gin, mas os aparelhos tinham capacidade para 15 passageiros, e partiam lotados. As hélices eram postas a funcionar manualmente e, com os seus dois motores de 440 CV, o Handley podia voar a 140 km/h, o que batia de longe a velocidade de qualquer VISÃO H I S T Ó R I A
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Anos 20 || Aviação navio e explorava ainda a vantagem de o percurso poder ser feito praticamente em linha reta – ainda que as escalas para reabastecimento tivessem de ser múltiplas. Este tipo de avião de asa dupla não cessaria de ser aperfeiçoado até ao final dos anos 30, mas os estudos e a prática ensinariam que o futuro pertencia aos monoplanos, ou seja, aos aviões de duas asas como desde há muito os entendemos.
O holandês voador
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Graf Zeppelin O carismático dirigível fez o seu primeiro voo em 1928
Contudo, a Imperial não foi pioneira no ramo. A mais antiga das companhias aéreas permanece ainda hoje em atividade, e é a holandesa KLM, uma feliz sigla para o nome Koninklijke Luchtvaart Maatschappij (Real Companhia Aérea). Fundada no final de 1919, o seu primeiro aparelho saltou logo de Croydon para Amesterdão com passageiros a bordo, para espanto e gáudios gerais. Em 1924 levantaria voo para Batávia (Jacarta), na Indonésia, então Índias Orientais Holandesas – e a bem dizer ainda não aterrou, apesar de um recente casamento de conveniência com a Air France. O Fokker holandês, fosse ele da KLM ou de outra companhia, era por volta de 1925 o aparelho mais utilizado na Europa. Monoplano de madeira revestida de tela, podia, com as suas asas colocadas sobre a fuselagem e o seu único motor espetado no «nariz», atingir a velocidade estonteante de 210 km/h. Uma das companhias não holandesas que adquiriram aviões Fokker foi a «lendária» embora hoje já
A década de 1920 – e a seguinte – foi também o tempo dos grandes dirigíveis, esses «mais leves do que o ar» que desde o início do século vinham travando uma guerra tecnológica e comercial de antemão perdida contra os «mais pesados do que o ar», ou seja, os aviões. Verdadeiros navios voadores, os dirigíveis ainda hoje fascinam a nossa imaginação. Também conhecidos por zepelins – do nome do seu inventor, o barão alemão Von Zeppelin –, eram uma espécie de bazófias, com o seu reservatório de gás enorme em proporção com o reduzido habitáculo destinado aos passageiros. Julio Verne, no romance Robur o Conquistador, apresenta aos leitores o dirigível Albatroz, na verdade um navio, com quilha e tudo, mantido no ar pela ação de inúmeras hélices horizontais. A novidade era poder ser conduzido, ou dirigido, para onde se quisesse (dai a palavra «dirigível»), o que não conseguiam os já existentes balões de ar quente ou gás, que arrastavam os passageiros segundo os caprichos das correntes de ar. No tempo da fantasia de Verne ainda não havia forma de dirigir um aparelho aéreo mais pesado do que o ar, e daí que, na prática, todos os dirigíveis fossem balões alongados com um pequeno habitáculo junto da barriga. O problema é que os balões de gás eram muito perigosos, uma vez que – já para não falar dos perigos de explosão – se a pressão diminuía, o aparelho deformava-se e caía. Depois de muitas experiências pioneiras, anteriores à década de 1920, entramos assim, após a Grande Guerra, na conceção do dirigível semirrígido de grandes dimensões. Um exemplo deste tipo de geringonça foi o Norge, a bordo do qual o italiano Umberto Nobile, o norueguês Roal Amundsen e uma equipa de sete dezenas de tripulantes sobrevoaram o Polo Norte, em maio de 1926. O pior foi daí a dois anos, quando uma tentativa de repetir o feito, agora com o dirigível Italia, redundou na morte de Amundsen. Os ingleses construíram nos Anos 20 uma série de dirigíveis rígidos recheados de hidrogénio, e um deles atravessou o Atlântico. Mas foram os alemães que, na senda de Zeppelin, inauguraram as carreiras regulares destes aparelhos, entre Berlim e Friedrischsafen. Em agosto de 1927, o gigantesco Graf Zeppelin deu a volta ao mundo a uma média de 114 km/h, passando por Tóquio, Los Angeles e Nova Iorque, mas só na década seguinte as carreiras dos dirigíveis germânicos, já com a suástica pintada na cauda, se abalançariam a atravessar o Atlântico – e acabariam mal, com o catastrófico incêndio do Hindenburg no campo de aviação de Lakehurst (Nova Iorque). Indubitavelmente, o futuro do transporte aéreo estava no «mais pesado do que o ar» com trem de aterragem. Os aperfeiçoamentos tecnológicos desembocariam mais tarde no motor a jato, mas de 1960 para cá os avanços têm sido pouco significativos. 76 V I S Ã O H I S T Ó R I A
SMITHSOMIAN MUSEUM
Os elefantes brancos prateados
BIBLIOTECA DO CONGRESSO DOS EUA
Charles Lindberg Apelidado de «Águia Solitária», o aviador americano seria, em maio de 1927, o primeiro a atravessar o Atlântico sem escala, pilotando o seu Spirit of St. Louis
extinta Pan American, fundada em 1927 e que tantos progressos significativos introduziria até 1950 na aviação comercial. O avião que maior sucesso obteria na Europa dos Anos 20 seria, contudo, o alemão Junkers na sua versão monomotor (F-13). Posteriormente, o bimotor Junkers (Ju-502), já inteiramente metálico, tornar-se-ia também uma referência. Tanto um como outro, com as suas carlingas prateadas de chapa ondulada, a fazerem lembrar as célebres carrinhas Citroën ou até as carruagens da CP (estas, aliás, de modelo americano), os Junkers oferecem ainda hoje uma imagem da aviação entre guerras. Neste transporte de luxo, as refeições eram degustadas
à mesa e sobre toalha branca, servidas por empregados hirtos nos seus casacos igualmente brancos e bonés de pala dura. Por este tempo, já a companhia belga Sabena, criada em 1923 e inicialmente destinada a ligar Bruxelas a Londres e a Roterdão, voava para as profundezas do Congo, inaugurando em fevereiro de 1925 os voos comerciais da Europa para a África com a aventurosa e exótica carreira que unia a capital belga a Léopoldeville. Escusado será dizer que a maioria dos passageiros continuava a preferir o ripanço do navio, como o faria ainda em 1930 o imaginário mas muito nosso familiar «Tintin» na sua viagem ao Congo. Se a Sabena faliu recentemente, a velha
Publicidade Em 1927, a Imperial Airways voava regularmente para o Egito e a Índia. Quanto à Lufthansa, anunciava, em 1928, voos para vários destinos europeus. Em 1927, a KLM ressuscitava a lenda do navio fantasma «Holandês Voador». E mesmo no final da década, a Sabena ligava Bruxelas com Londres e a Escandinávia
alemã Lufthansa, que surgiu em 1926 como fusão de duas companhias mais pequenas, continua ativa. Outra companhia antiga e sobrevivente é a espanhola Iberia, fundada em 1927 por um empresário basco associado à Lufthansa. Em França só em 1933 quatro pequenas companhias se uniriam para formar a Air France. Mas o aeroporto do Bourget já existia desde 1919, e ainda hoje acolhe viajantes, embora em muito menor escala do que Orly e Charles de Gaulle. A TAP só nasceria muito mais tarde, em 1945, por iniciativa de Humberto Delgado.
Baleias voadoras No que toca às linhas transoceânicas, eram preferidos os hidroaviões, de que na década de 20 se construíram grandes modelos, nem sempre satisfatórios. Os italianos, tradicionalmente dados a encenações operáticas, apresentaram em 1919 o gigantesco Caproni, com nove asas e lotação para 100 passageiros, mas… não conseguiram fazê-lo levantar voo. Nove anos depois, em 1928, o alemão Claudius Dornier concebeu o também enorme Do-X, de 52 toneladas, para 70 passageiros. Era uma maravilha no que toca a acabamentos interiores e a conforto (dispunha até de camas), e conseguiram efetivamente pô-lo a voar à força dos seus 12 motores de 600 CV cada um, mas revelou-se lento e pouco rentável. Fez uma escala prolongada em Lisboa e dele se fala noutro local desta revista. Só nos últimos anos da década de 30 a Pan America poria no ar os seus famosos Clippers (que escalavam Lisboa e a Horta) mas até mesmo esses estavam condenados a serem definitivamente substituídos pelos aviões com trem de aterragem, dado o avanço técnico na construção de pistas de betão. Neste domínio da viagem aérea, nascida do sonho de Ícaro, também os Anos 20 foram, pelo seu pioneirismo e iniciativa, a década prodigiosa. VISÃO H I S T Ó R I A
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ESTÚDIOS NOVAIS/BIBLIOTECA DE ARTE DA FUNDAÇÃO GULBENKIAN
Anos 20 || Aviação
Para malucos ou ricos
Ir ao campo de aviação de Alverca ver o novo – e perigoso – transporte levantar voo para Madrid chegou a ser «programa» da sociedade lisboeta no final dos Anos 20. Por pouco tempo… por Luís Almeida Martins
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a década de 1920, poderiam os portugueses comuns, se assim o entendessem, viajar de avião a partir do território nacional? Ou essa «aventura» estava apenas reservada aos aviadores, que, como era voz corrente, não passavam de doidos varridos por cuja salvaguarda mães, mulheres e namoradas murmuravam orações?... A resposta é: sim, podiam, desde que tivessem dinheiro para pagar o bilhete, o seu destino imediato não fosse além de Madrid ou Sevilha e, evidentemente, possuíssem também aquele grãozinho de «loucura» indispensável a quem abandona a relativa segurança do solo. 78 V I S Ã O H I S T Ó R I A
«Relativa» porque os tempos eram mesmo inseguros no Portugal de então, com uma conjuntura político-social marcada pela instauração da Ditadura Militar, em maio de 1926, e as desesperadas, embora mal sucedidas, tentativas para derrubá-la pela força das armas, sobretudo em fevereiro do ano seguinte. E foi exatamente a 19 de maio de 1927 que se fundou uma empresa «de malucos» denominada Serviços Aéreos Portugueses (SAP). Económica e estatutariamente subsidiária da alemã Junkers Luftverkehr, uma das pequenas companhias germânicas que tinham ficado de fora da Lufthansa, fundada no ano an-
Em Alverca O diretor da Ilustração, João de Sousa Fonseca, dá as boas-vindas ao jornalista espanhol Luis Oteyza, desembarcado do Junkers
terior, a SAP não deixava de ser algo de arrojado. O que tinha ela para oferecer? A tal ligação Lisboa – Madrid – Sevilha. A viagem inaugural, a partir do Campo Internacional de Aterragem de Alverca, acoplado às instalações militares da base do Grupo Independente de Aviação de Bombardeamento (GIAB) e das Oficinas Gerais de Material Aeronáutico (OGMA), em funcionamento desde 1919, fez-se com um aeroplano monomotor Junkers F-13 de asa baixa com lotação para oito passageiros, batizado de Lisboa. As aeronaves utilizadas nos primeiros tempos seriam todas da Unión Aerea Española, empresa sedeada em Madrid de que a casa Junkers Flugzeugwerk AG era acionista maioritária e que possuía uma frota de dois trimotores Junkers G-24 e três monomototres Junkers F-13. De início, nenhum destes aparelhos inteiramente metálicos e revestidos de chapa ondulada era propriamente português, mas em maio de 1929 a empresa acabaria
Carreira Lisboa-Madrid Um dos aparelhos que asseguravam a ligação proporcionou, em 1927, ‘batismos de voo’ sobre a capital portuguesa, conforme reportou na altura o semanário ABC
por ter um avião registado em Portugal: um Junkers F-13 proveniente da Suécia, que recebeu a matrícula C-PAAC. A função primordial da SAP era o transporte postal, mas o comboio batia esmagadoramente o incipiente transporte aéreo, que se ressentia de falta de passageiros. Seria preciso esperar por 1934 para que surgisse a mais sólida Aero Portuguesa, empresa que contava inicialmente com a participação maioritária da Air France mas passaria em breve a ter capitais exclusivamente nacionais. Seria ela a operar mais tarde os voos de Lisboa para Tânger e Casablanca, que o célebre filme de Michael Curtiz, com Ingrid Bergman e Humphrey Bogart, imortalizaria em 1942. Quanto à TAP, apenas haveria de ser fundada em 1945, operando logo desde o início a partir do Aeroporto da Portela, inaugurado em 1940 e rebatizado de Aeroporto Humberto Delgado em 15 maio de 2015, em homenagem ao fundador da companhia. Mas durante um par de anos, nesse final da década de 1920, foi de bom-tom dar um passeio a Alverca para ver os aviões. Senhoras de saia curta e chapéu cloche faziam-se acompanhar de cavalheiros que, se fosse verão, levariam o seu «palhinhas». Mas foi sol de pouca dura: a SAP extinguir-se-ia em breve.
Asas sobre o Atlântico Vivia-se, de qualquer modo, um tempo em que as proezas da aeronáutica eram manchetes da imprensa e suplantavam as (embora cada vez mais frequentes e rotineiras) notícias da fundação de novas companhias de transporte aéreo. É, por exemplo, impossível evocar a aviação em Portugal nos anos 20 sem recordar o voo pioneiro sobre o Atlântico
Sul levado a cabo por Gago Coutinho e Sacadura Cabral. A primavera de 1922, vésperas das comemorações do centenário da independência do Brasil, iria oferecer pretexto para nova aproximação simbólica dos dois países, quando a aviação, vencida a prova de fogo da Grande Guerra, se abalançava a voos mais largos. O território português estava, aliás, na rota de grandes proezas aeronáuticas. Em maio de 1919, uma travessia aérea entre a Terra Nova (Canadá) e a capital portuguesa foi concretizada por três hidroaviões Curtiss (o NC-1, o NC-2 e o NC-3) tripulados por pessoal na marinha dos EUA. A viagem prolongou-se por
É impossível evocar a aviação em Portugal nos anos 20 sem recordar o voo de Gago Coutinho e Sacadura Cabral
23 dias e teve múltiplas escalas, entre as quais os Açores. Mas já no mês anterior os britânicos John Alcock e Arthur Brown tinham vencido o Atlântico Norte, ao voarem 16 horas consecutivas entre os EUA e a Irlanda. Continuava, porém, em aberto o desafio do Atlântico Sul, e foi a esse que dois portugueses decidiram responder. Um dos problemas da navegação aérea, para além da fragilidade e da reduzida autonomia dos aparelhos, era então a dificuldade em manter o rumo. Antes de se lançarem no desconhecido, era pois conveniente que os dois aventureiros encontrassem uma solução para o problema. Após reflexão, Gago Coutinho adaptou o sextante náutico à aviação, através do acrescento de um nível de bolha de ar que funcionava como horizonte artificial. Foi então posto à disposição dos aviadores um hidroavião Fairey F III-D MkII equipado com um motor Rolls-Royce e batizado de Lusitânia. Sacadura seria o piloto e Coutinho o navegador. A aventura principiou na manhã de 30 de março de 1922, quando o Lusitânia levantou voo da Doca do Bom Sucesso, em Belém. E a primeira etapa, até às Canárias, VISÃO H I S T Ó R I A
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foi concluída sem incidente de maior. Só no dia 5 de abril prosseguiram rumo a Cabo Verde, onde se demoraram até 17 para proceder a reparações. A terceira etapa tinha por destino os penedos de S. Pedro e S. Paulo, já território brasileiro. Aí, a amaragem correu mal, e o hidro afundou-se, tendo os aviadores sido recolhidos pelo cruzador República, que os transportou para a ilha de Fernando de Noronha. O Governo português decidiu enviar um segundo Fairey. A 11 de maio, Coutinho e Cabral partiram para nova tirada, mas pouco depois uma avaria no motor obrigava-os a amarar em pleno oceano. Desta vez, seriam resgatados pelo navio inglês Paris City. Reconduzidos a Fernando de Noronha, aguardaram a chegada de um terceiro Fairey, o Santa Cruz, este adquirido por subscrição pública. Levantaram a 5 de junho e finalmente alcançaram a costa brasileira fazendo diversas escalas antes de alcançarem o Rio de Janeiro, onde a viagem terminou a 17 de junho, no meio de entusiasmo popular e de cerimónias oficiais. No regresso a Lisboa, Coutinho e Cabral foram alvos de uma grande manifestação espontânea na Baixa. Claro que este primeiro raide sobre o Atlântico Sul não foi um sucesso total, já que necessitou de três aparelhos e de mais de dois meses para ser concluído. Mesmo assim, o feito vem sendo cada vez mais reconhecido internacionalmente.
Outros feitos Foi ainda no final dos anos 10, em 1919, que Lelo Portela e António Maia, acompanhados de Manuel Gouveia e Fernando Sousa, estabeleceram a primeira ligação
Em 1927, Sarmento de Beires, Jorge Castilho e Manuel Gouveia atravessaram de novo o Atlântico Sul, agora em voo noturno 80 V I S Ã O H I S T Ó R I A
ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO
Anos 20 || Aviação
aérea Paris-Lisboa, a bordo de um Bréguet, de construção francesa. Mas no ano seguinte – 1920, e portanto já na década que nos interessa –, Sacadura Cabral e Azevedo Silva, acompanhados dos mecânicos Roger Soubirou e Domingos Barreiros, voaram de Inglaterra para Portugal num Fairey, de fabrico britânico. Ainda nesse mesmo ano de 1920 falharia a tentativa de voar entre Lisboa e a Madeira empreendida por Sarmento de Beires e Brito de Pais num Bréguet. Mas em 1921 esse feito seria concluído com êxito, sendo desta vez o aparelho utilizado um hidroavião bimotor Fairey 3 levando a bordo Gago Coutinho, Sacadura Cabral, Ortins de Betencourt e Roger Soubirou. A viagem durou sete horas e 40 minutos e constituiu um duplo sucesso, pois serviu também para comprovar a eficácia do sextante de Gago Coutinho.
Por esta altura já Coutinho e Cabral planeavam a viagem que os tornaria mundialmente famosos e procuravam formas de resolver os problemas levantados pela orientação num voo de longo curso sobre o oceano, onde não existiam as referências visuais utilizadas nesse tempo nos voos sobre terra. Com efeito, os pilotos das primeiras carreiras aéreas europeias seguiam muitas vezes o percurso das linhas férreas e procuravam identificar com o olhar (e com a ajuda de mapas) as localidades a que se destinavam ou que sobrevoavam. Sobre a imensidão da monotonia líquida, tudo era diferente.
Um novo entusiasmo Cinco anos mais tarde, em 1927, seria a vez de Sarmento de Beires, Jorge Castilho e Manuel Gouveia repetirem a façanha da travessia do Atlântico Sul, desta vez em
ARQUIVO HISTÓRICO DA FORÇA AÉREA
da Aviação, com alguma ligação como Portugal: o lançamento, pelos alemães, do gigantesco hidroavião Dornier Do X, com seis motores elevados sobre a fuselagem, que em 1929 bateu o recorde de capacidade de transporte, levando a bordo 169 pessoas. No ano seguinte (já no dealbar da década de 30, é certo), a enorme aeronave empreendeu um voo transatlântico com escala em Lisboa. Com tanto azar (ou «sorte» para os mirones alfacinhas) que ficou retido três semanas no Tejo, avariado e à espera de peças de substituição. Os rapazes fizeram do «dorniaxis» local de romaria e nasceria então um entusiasmo juvenil pela aeronáutica, traduzido pela profusão de construções de papel para recortar e armar distribuídas pelos jornais infantojuvenis. Mas tudo voa, a começar pelo tempo.
Aventuras Coutinho e Cabral à partida de Belém e uma notícia francesa do afundamento do Lusitânia. À esquerda: Em outubro de 1927, um hidroavião Junkers com rumo à América, a bordo do qual seguia a atriz austríaca Lilli Dillenz, fez uma amaragem de emergência na praia de Santa Cruz (Torres Vedras)
voo noturno. Descolaram de Alverca num hidroavião Dornier Wal batizado de Argos no dia 3 de março e amararam em Natal, na costa brasileira a 18. Até Bolama, na então Guiné Portuguesa (Guiné-Bissau), Duvalle Portugal fez também parte da expedição, mas não seguiu viagem para reduzir o peso do aparelho e poupar combustível na etapa transatlântica. Se esta travessia é incomparavelmente menos famosa do que a de Gago Coutinho e Sacadura Cabral em 1922, nem para isso ela deixa de ter relevância na História da Aeronáutica, já que foi no seu âmbito que, pela primeira vez, uma aeronave se manteve a voar sobre o mar durante uma noite inteira. À sua relativa discrição não é alheio o facto de Portugal viver mergulhado na já recordada instabilidade política. A década não terminaria sem um acontecimento de certo impacto na História VISÃO H I S T Ó R I A
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Anos 20 || Automóveis
A cem à hora
Na década de 1920, o número de automóveis em Portugal quase quadruplicou. Com a revolução nas comunicações nasciam também um estilo de vida e um estatuto novos por Humberto Brito
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utomóvel contra um candeeiro. O passageiro fica com o crânio fraturado e o chauffeur também ferido.» «Mortas por atropelamento. Uma camionette dos correios, que hoje seguia pela Rua do Patrocínio, colheu ali um menor de 6 anos. Também no Beato foi morta uma criança, que aparenta ter 6 anos, por um camion.» «Criança morta por automóvel. Na morgue deu entrada um menor de 10 anos atropelado por um au-tomóvel na Rua do Diário de Notícias» Etc. Ao abrirmos a imprensa portuguesa dos anos 20, para lá das parangonas sobre atritos internacionais e as zaragatas que nos conduziram da I República à Ditadura e ao Estado Novo, deparamos com dezenas de mortos e feridos provocados por acidentes de viação. Três grandes motivos parecem estar por detrás desta nova realidade. Em primeiro lugar, o parque automóvel aumentava descontroladamente. O número de veículos quase quadriplicou entre 1920 e 1929, havendo ao final da década cerca de 20 mil automóveis. (Números que, mesmo assim, nos farão sorrir um pouco se considerarmos que havia, no final da década, 26,7 milhões de automóveis registados nos Estados Unidos.) Em segundo lugar, as pessoas não estavam preparadas para tal transformação. Por um lado, não é evidente que o Regulamento de Circulação de 1911, que se tornara obsoleto, fosse aplicado pelos
Corridas de automóveis O desporto motorizado animava as festas estivais da Curia na segunda metade da década de 20
adequadas, de acordo com um código feito para um mundo que tinha deixado de existir.
condutores; por outro lado, a generalidade da população não estava alertada para os perigos que isto acarretava. Se a esta equação juntarmos, em terceiro lugar, o estado do sistema rodoviário, miserável de acordo com todos os relatos, é até de espantar que os números não sejam ainda mais funestos. Resumindo: cada vez mais pessoas passaram a conduzir carros cada vez mais potentes por estradas cada vez menos
Um setor em transição Dominado pela indústria americana, graças à produção em série e à estandardização de componentes iniciadas pela Ford na década anterior, o setor automóvel prosperava, reconvertendo várias fábricas de armamento. Procurando restabelecer-se da recessão deflacionária de 1920-21, a empresa de Henry Ford começa aos poucos a perder terreno para a General Motors e a Chrysler, que compreendem
que as pessoas já não querem apenas um meio de transporte: passaram a desejar um estilo de vida. Por exemplo, um anúncio publicado na revista Ilustração, nº 59, garante que «o Buick é o carro de luxo aceite sem reserva pelos homens de mais destaque social». Verifica-se, no entanto, uma estagnação da tecnologia. É certo que o travão de mão e a alavanca das mudanças passam a estar situados na zona central; que surgem os travões às quatro rodas acionados por um pedal; que nasce a direção assistida; que se generaliza o uso de pneumáticos; que se introduz o aquecimento e o autor-
rádio. Contudo, a partir de certa altura as inovações mecânicas vão perdendo terreno para as inovações estéticas. As linhas arredondam-se e os automóveis vão-se tornando gradualmente mais baixos e aerodinâmicos. Torna-se mais frequente veículos serem trocados antes de atingirem o fim de vida; as vendas a crédito, por isso, disparam. Reforçado pelo cinema, pela rádio e pela literatura, o automóvel torna-se um marcador de classe, um símbolo de poder. O automobilismo começa a surgir em Portugal como desporto de alta sociedade e, mais ou menos em simultâneo,
reacendem-se esforços para organizar Salões Automóvel.
Na pista do Coliseu «Como organização, um fracasso; como decoração, uma vergonha», protesta o Domingo Ilustrado acerca do IV Salão Automóvel, o primeiro realizado em Lisboa, no Coliseu dos Recreios, em julho de 1925. «O mais pífio, o mais rosinhas de papel de arraial saloio que se possa imaginar, colchas apanhadas em estilo Rua da Palma, e tudo do mais pior, do mais reles de que há memória.» Lastimando a falta de diversões e motivos de interesse VISÃO H I S T Ó R I A
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extraautomóvel, este IV Salão — a que a imprensa atribuiu muito pouca importância — é criticado por se concentrar exclusivamente na exploração comercial. «O que se apresenta no Coliseu não é mais do que uma mal arrumada garage sem atrações nem ambiente.» O êxito retumbante dos primeiros três Salões, organizados no Porto, no Palácio de Cristal, havia colocado bem alta a fasquia para o Automóvel Club de Portugal. Após um hiato, motivado pela I Guerra Mundial, entre 1914 e 1922, o III Salão Automóvel reunira, em junho de 1924, «todas as boas marcas mundiais», mostrando os últimos modelos e os «grandes carros de luxo» (desde «os soberbos Alfa Romeo, aos admiráveis Buick, Packard, Berliet, Ansaldo, Mercedes, Citroën, Benz, Fiat, Studebaker, Aurea», etc.) A Revista de Turismo relata que o III Salão Automóvel produzira «a melhor e mais satisfatória impressão em todos — nacionais e estrangeiros — que em considerável número ali acorreram», proporcionando «uma das mais belas demonstrações industriais que se têm realizado em Portugal» e, como se não bastasse, um êxito de vendas. O fracasso da exposição de Lisboa em 1925 (segundo testemunhos prestados ao Domingo Ilustrado, um «zero absoluto do ponto de vista comercial») levou a organização a responder à pressa com uma festa e um concerto-mistério, anunciados no último dia. Tal não inverteu, porém, o declínio de José Dias na presidência do ACP. Ao mesmo tempo, aumentavam de volume as críticas quanto às proporções dos acidentes rodoviários e persistiam campanhas para melhorar as condições das estradas nacionais («ainda e sempre o mesmo cancro», brame a Revista de Turismo). Alguma mudança estava prestes a acontecer.
Direita, volver É sabido que, no poema de Álvaro de Campos Ao Volante, este heterónimo de Fernando Pessoa se analisa enquanto conduz um Chevrolet pela Estrada de Sintra… Mas, relacionadas com esta composição, podem ser apontadas duas curiosidades, nunca referidas. A primeira é que o poeta (pseudo) automobilista se abastecera for84 V I S Ã O H I S T Ó R I A
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Anos 20 || Automóveis
Ao volante de um Chevrolet pela estrada de Sintra, Álvaro de Campos abastecera-se na Auto-Gazo e conduzia pela esquerda...
çosamente numa bomba de fornecimento Auto-Gazo, instalada pela petrolífera americana Vacuum Oil Company, a futura Mobil. Com efeito, era esta companhia que detinha o monopólio do fornecimento de combustível, a ela se devendo também a primeira grande campanha de sinalização nas estradas portuguesas, traduzida na implantação de placas indicativas um pouco por todo o País. A segunda curiosidade relacionada com o poema é que, tratando-
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IV Salão Automóvel A mostra do Coliseu foi muito criticada. Ao lado: Grupo de automobilistas posando no Estoril
-se de uma obra escrita em maio de 1928, Álvaro de Campos conduzia certamente pela esquerda. Efetivamente, foi o Decreto nº 14 988, de 6 de fevereiro de 1928, que estipulou que a partir das zero horas de 1 de junho desse ano o sentido de circulação em Portugal decorreria pela direita, passando a aplicar-se a cedência de passagem a quem se apresentasse por esse lado. Alterações que causaram o ceticismo de muitos e, como seria de prever, mais do que um acidente… Este é, no entanto, um ponto de viragem na história rodoviária nacional. Dele resulta no imediato um novo Código da Estrada, que seria revisto um mês e meio depois. Nasce também a Junta Autónoma das Estradas, incumbida de reparar e renovar o mapa rodoviário. Concretiza-se igualmente a protelada nomeação de um novo presidente do Automóvel Club de Portugal, Ricardo O’Neill. Finalmente, desta união de esforços com o Automóvel Club, nasce, em 1929, o primeiro Mapa das Estradas de Portugal propriamente dito.
Anos 20 || Tecnologia
Grandes inovações
No dia-a-dia, muitos aspetos dos «tempos modernos» começaram nos Anos 20. Apesar de algo estranhos, estes aparelhos anunciavam uma autêntica revolução no quotidiano das classes médias e altas
ASPIRADOR ELECTROLUX O modelo XI desta marca sueca, lançado em 1928, vendia, de acordo com os seus representantes em Portugal, uma média diária de 1120 unidades em todo o mundo
FOGÃO DE PETRÓLEO VACUUM Muito publicitado na década de 1920 e depois reproduzido por outras marcas, inclusive portuguesas, revolucionou a cozinha, até então assente na lenha e do carvão, pela «higiene» e pela «rapidez» com que funcionava
CÂMARA LEICA 1 Fabricada na Alemanha entre 1925 e 1936, foi uma das primeiras máquinas fotográficas de 35 milímetros com lente fixa de 50 milímetros
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ERIKA S&N Segundo um folheto publicitário, esta máquina de escrever portátil pesava quatro quilos, tinha um estojo de «couro legítimo» e era facilmente transportável em viagem ICONOSCÓPIO Antecessor das câmaras de TV e verdadeira «lâmpada mágica», permitiu concretizar as primeiras emissões de imagens televisivas, ainda em fase experimental
RÁDIO PORTÁTIL Embora transportável, o pequeno aparelho de telefonia de J. M. McGuire não possuía bateria, pelo que tinha de estar ligado à corrente para funcionar
CINÉGRAFO BOL Pequena câmara de filmar e de projetar, punha ao alcance de quem podia adquiri-lo a capacidade de tornar indeléveis as recordações VISÃO H I S T Ó R I A
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Anos 20 || Ciclismo
ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO
A estreia da
Volta a Portugal em Bicicleta Foi organizada em 1927 pelos jornais Diário de Notícias e Os Sports. Com ciclistas pouco preparados, coices de mula, mordidelas de cão e caminhos por onde foi preciso levar a bicicleta às costas, suscitou enorme entusiasmo popular por João Pacheco 88 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Emoção Os ciclistas dão, na Praça dos Restauradores, em Lisboa, as primeiras pedaladas, que os levarão até ao cacilheiro VISÃO H I S T Ó R I A
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m Cacilhas, aquele barco da Parceria dos Vapores Lisbonenses, carregado de máquinas, homens e incerteza, era esperado sobretudo por mulheres. A curiosidade justificava-se. Ia começar uma competição que se previa dura, com dezenas de ciclistas a percorrerem 1958 quilómetros por caminhos e estradas de Portugal. A 1ª etapa começaria ali para terminar em Setúbal, onde os ciclistas jantariam conservas oferecidas por um industrial e uma caldeirada feita por um especialista. À partida de Lisboa soaram três silvos festivos de rebocadores. «Até meio do rio a multidão, ao longo dos molhes, acenou sempre com lenços, saudações essas que eram correspondidas de bordo pelos corredores.» A cena é descrita no Diário de Notícias de 27 de abril de 1927. Era este diário que, em conjunto com o jornal Os Sports, organizava a I Volta a Portugal em Bicicleta, com o apoio técnico da União Velocipédica Portuguesa, fundada em 1889. Logo na tarde da partida, o concorrente Diário de Lisboa usou o editorial para qualificar a Volta como «prova desportiva de violência», mas também como 90 V I S Ã O H I S T Ó R I A
ARQUIVO DIÁRIO DE NOTICIAS
Anos 20 || Ciclismo
«valentíssima jornada». E corroborou as descrições da multidão emocionada que assistiu à partida dos ciclistas de Lisboa para Cacilhas. Segundo o relato do Diário de Lisboa, organizou-se «um cortejo luzido, que pôs em alvoroço toda a parte baixa da cidade; correu, de todos os cantos, gente curiosa, ou amiga, a ver desfilar os 42 campeões; encheu-se o caminho de bicicletas, porque se juntaram, às centenas, os ciclistas montados, para dar, numa afirmação bonita de solidariedade, um brilho maior ao acontecimento». Engana-se o jornal no número de concorrentes. Dos 42 admitidos desistiram logo quatro ainda antes da partida. Após as restantes desistências por motivos técnicos ou físicos, chegariam ao final da última etapa apenas 20 ciclistas.
O Coxo dos Pneus A partida foi triunfal. No Rossio havia fotógrafos e um operador a filmar. Os ciclistas preparavam-se para o cortejo até ao Cais do Sodré, acompanhados por uma multidão de entusiastas e de curiosos. Terão marcado presença muitos sócios de clubes de futebol, por haver representantes a concorrer. E entre a multidão havia quem recordasse as corridas em Palhavã,
quando o campeão José Bento Pessoa dominava as provas nacionais e dava cartas nas competições internacionais. Em 1927 já tinham passado mais de 20 anos desde que terminara a carreira brilhante desse ciclista profissional, e a modalidade já não era praticado por uma elite em velódromos inaugurados pela família real. Mas talvez a presença de muitas mulheres em Cacilhas se explique com a fama deixada pelos primeiros ciclistas no final do século XIX, como escreve Romeu Correia no livro José Bento Pessoa – Biografia: «O nome do jovem figueirense anda na boca de toda a gente. É um belo homem, e isso amplia ainda a sua rápida popularidade, pois o apoio feminino jamais lhe faltará. As suas feições corretas, o corpo harmonioso, a bravura das vitórias, provocam onde quer que apareça inconsoláveis paixões.» Agora, na década de 1920, o ciclismo começava a popularizar-se e havia desportistas para todos os gostos. O pelotão da primeira Volta estava dividido em três categorias: fortes, fracos e militares. O equipamento obrigatório incluía calções e sapatos pretos. E «todos levavam os seus bidon de folha, com água ou cerveja, amarrados aos guiadores».
ARQUIVO DIÁRIO DE NOTICIAS
No Alentejo e na Beira Baixa Muitos curiosos iam ver passar os ciclistas, ao longo de uma prova onde abundaram os furos
Na Rua Augusta abriu-se passagem a custo, tanta era a gente. Um dos alvos de atenção foi, desde o início, Augusto dos Santos, «o Coxo dos Pneus», que teve fotografias publicadas em vários jornais. Apesar de não ter a perna direita, participou na Volta como ciclista não inscrito, sendo dos poucos a chegar ao fim, a 15 de maio. Pelo caminho, foi recebido com emoção nas terras por onde passava a caravana. E o DN ia dando conta das suas boas prestações, com destaque logo para a 3ª etapa, Sines-Odemira, quando foi o primeiro ciclista a passar pelo Cercal. Após a partida dos ciclistas, a maior parte das publicações quase abandonaram a Volta à sua sorte. A acompanhar o pelotão seguiram apenas dois repórteres dos jornais organizadores, a bordo de um «esplêndido carro Dodge», alimentado por «gasolina e óleos Shell». Sim, a publicidade a alguns produtos será uma constante na cobertura jornalística feita ao longo dos 18 dias da Volta nas páginas do DN. Por exemplo, à partida da 2ª etapa os leitores ficaram a saber o
que bebiam ao pequeno-almoço os ases do pedal: «Esta manhã, os corredores ciclistas da I Volta a Portugal partiram para Sines, tendo todos tomado antes o poderoso reconstituinte Ovomaltine, que o Diário de Notícias adquiriu expressamente.» Nas páginas de publicidade do mesmo jornal, lá estão os anúncios ao reconstituinte. E aos combustíveis, ao automóvel e a várias marcas de bicicleta. No final da Volta abundaram anúncios em que fabricantes ou distribuidores de bicicletas chamavam a atenção para os bons desempenhos nesta ou naquela etapa, ou mesmo na classificação geral, omitindo os nomes dos ciclistas vencedores. À partida de Beja, a dificuldade foi arranjar leite para todos os atletas beberem
Na década de 1920 o ciclismo deixava de ser o desporto de elite de fins do século XIX e começava a popularizar-se
o tal reconstituinte. Esta era uma das dificuldades que os organizadores tinham de ultrapassar «nestas terras pequenas onde o leite mal chega para o consumo local». A propósito, por aqueles dias – e apesar da censura – a fome no Algarve era outro dos assuntos que iam marcando lugar nas páginas do jornal.
Preparação e improviso As dificuldades da organização devem ter sido tantas que até a existência de comidas e bebidas no controlo de alimentação de Almodôvar mereceu os elogios do jornalista que cobria a Volta para o DN, Oldemiro César: «Excelente serviço. Cervejas, refrescos, águas minerais, sanduíches de paio aos montões.» Pelo caminho a regra ia sendo o improviso, daí o espanto. Foi preciso improvisar oficinas em quartos de pensões, inventar pensões em teatros, plantar bandeirolas e pintar marcas no chão que indicassem o caminho ao pelotão. Na etapa Castelo Branco -Guarda, o atleta que liderava teve de percorrer vários quilómetros sem selim, apoiado nos pedais e no guiador. O herói foi Quirino de Oliveira, do Clube Atlético de Campo de Ourique, descrito no DN VISÃO H I S T Ó R I A
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Anos 20 || Ciclismo como tendo «asas nos pés e a robustez física de um atleta completo». Foi ele o comandante do pelotão durante várias etapas, mas devido a uma queda acabou por perder a liderança nos últimos dias, chegando em 3º à meta final, em Lisboa. Quem venceu a Volta foi Augusto de Carvalho, em parte graças à «pasteleira» cedida por um popular, quando o ciclista do Grupo Sportivo de Carcavelos ficou com a bicicleta avariada na etapa Braga-Porto. Outra explicação para a sua vitória final terá sido o facto de fazer parte da única equipa que se preparou a sério, dando-se ao trabalho de percorrer previamente todo o percurso da Volta, em ritmo de treino. A preparação viria a render também ao Carcavelos o primeiro lugar por equipas. A organização da Volta errou no cálculo do tempo necessário para percorrer algumas das distâncias. Por exemplo na etapa Porto-Coimbra os ciclistas chegaram já de noite à meta, com os faróis dos carros de apoio a iluminarem a estrada. Mas pior foi o facto de muitas vezes não haver sequer estrada, sendo os campeões obrigados a carregar às costas as bicicletas – à época muito pesadas. A descrição do DN estará longe do exagero: «O aspeto de ciclistas e automobilistas à chegada a qualquer parte é, na verdade, arrepiante pela porcaria que cada um traz sobre si! Há rostos irreconhecíveis. A máscara de poeira nada tem de cómica. É trágica de repelência! Há além disso a registar vários desastres. Temos um corredor ferido pelo coice de uma muar, outro mordido por um cão, dois forçados a desistir porque se lhes partiram as máquinas no caminho.»
Em franca decadência No Diário de Notícias proclamou-se desde o início o prognóstico de que «a sensacional prova» iria «prender a atenção de todo o País». Mas não se cumpriu o objetivo declarado pelos organizadores de que se tornasse um acontecimento desportivo anual. Isto apesar da grande atenção dada à primeira Volta em muitas terras, onde passava o pelotão ou onde terminavam e começavam etapas, com discursos, jantares comemorativos, ce92 V I S Ã O H I S T Ó R I A
rimónias com a presença das autoridades locais e prémios especiais criados em cima da hora para quem vencesse determinada etapa. E com presentes oferecidos por particulares a serem entregues até dias depois do final da Volta, em nome de determinados ciclistas – ficando em exposição em Lisboa, nas montras dos Armazéns do Chiado. Fosse ou não por motivos económicos, a segunda edição só se realizaria passados quatro anos. Ainda houve uma tentativa de imitação daí a dois meses, com uma Volta a ser promovida pelo jornal Sporting, do Porto. Mas foi um insucesso, já
Cobertura A 1.ª Volta teve eco noutros órgãos de informação, para além do DN e de Os Sports
que foi recebida com menos entusiasmo popular, em parte pela menor competitividade entre os ciclistas que concorreram. «Em 1927, quando o Diário de Notícias e Os Sports lançaram a Volta a Portugal, o campo era sáfaro e mau. Perdera-se o prestígio dos Pessoas e dos Crespos, dos Mouras e o ciclismo mostrava-se em franca decadência, sem nomes novos que o erguessem.» É o que escreve o jornalista Belo Redondo no Guia da Volta a Portugal em Bicicleta – História da ‘Volta’, apresentado em 1935 como «o mais completo guia ilustrado da VI Volta a Portugal, indispensável a todos os desportistas». Segundo o autor, antes
dessa primeira Volta os organizadores «não tinham muitos meios de averiguar das possibilidades dos estradistas, pois só duas provas se realizavam então: os 100 quilómetros e o Porto-Lisboa». Em prefácio ao mesmo guia, o administrador do DN Caetano Beirão da Veiga fala de maledicências sofridas pela organização e justifica assim a pertinência da primeira Volta a Portugal em Bicicleta, que faria falta «porque o Diário de Notícias, preocupando-se sempre com o aperfeiçoamento da raça, e, por consequência, com a melhoria das suas condições físicas, julgou oportuno organizar uma grande competição atlética que, percorrendo o País, o acordasse do pernicioso letargo em que havia caído». O letargo aqui são os anos anteriores à revolução de 28 de Maio de 1926, que viria a resultar na Ditadura Militar e depois Estado Novo. Mas apesar de em 1935, neste guia da VI Volta, ficar melhor uma explicação apenas épica e política, a génese da Volta em Portugal terá mais a ver com o impacto do Tour francês. Conta Gil Moreira, em A História do Cliclismo Português, que terá sido grande o impacto em Raul de Oliveira, que combatera em França na Grande Guerra e que por lá ficara cobrindo a prova francesa como jornalista. Regressou para a redação de Os Sports e tentou convencer os administradores a organizarem com o DN uma Volta por cá, à semelhança do que se fazia em França por iniciativa de jornais desportivos. Sem sucesso, pois parecia caro e arriscado. Até que, ao ganhar dinheiro na lotaria, Raul de Oliveira decidiu gastá-lo numa Volta a Lisboa, em 1923, organizada oficialmente pelo DN. Correu bem e abriu caminho para o início de uma competição à escala nacional, que parecia ter condições para angariar leitores fora de Lisboa e anunciantes em geral. Sobretudo depois do sucesso de uma volta ao País a cavalo também organizada pelo DN, seguindo os passos da Ilustração Portuguesa, 20 anos antes. Portugal estava pronto para assistir a uma versão portuguesa do Tour. E mesmo sem selim ou sem estrada, com mordidelas de cão ou coices de mula, a Volta a Portugal de 1927 viria a ser a primeira de muitas.
ANTT
A loucura do futebol
Tudo começou nos Jogos Olímpicos de 1928. Mal instalados e habituados a jogar em pelados, os jogadores portugueses acabariam, mesmo assim, por obter esplendor na relva por João Pacheco
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ortearam o futuro conforme os lugares que cada um ocupava no comboio. A brincadeira servia para passar o tempo, mas resultou num bom augúrio. Ditava um futuro brilhante ao grupo de futebolistas que iria defender as cores portuguesas nos Jogos Olímpicos de Amesterdão. A realidade não seria tão gloriosa como no recentíssimo Europeu de 2016... mas quase. Seguia no comboio o guarda-redes do Casa Pia António Roquete, «o Zamora português», o rapaz que usara um nome falso para poder saltar para a baliza logo aos 16 anos, num jogo amigável contra o Belenenses, a contar para a Taça Vendedores de Jornais. Viajava também o médio Raul Figueiredo «Tamanqueiro», à época no Benfica, mas que anos antes fora o obreiro da sur-
preendente vitória do Olhanense na final do Campeonato de Portugal. Voltaria para o clube algarvio nesse ano. Seguia a bordo um avançado jovem, baixo, franzino e talentoso, que um ano antes fora transportado em ombros pelos adeptos, depois uma vitória portuguesa sobre a França por 4-0. Chamava-se José Manuel Soares, mas era conhecido por «Pepe». Fora campeão pelo Belenenses no ano anterior e voltaria a sê-lo no ano seguinte. Morreria em 1931, envenenado por uma sande de chouriço, em circunstâncias nunca totalmente esclarecidas. Entre os ídolos mais conhecidos, era ainda passageiro do comboio o defesa direito Carlos Alves, o primeiro «Luvas Pretas», avó do futuro craque homónimo, que acabara de conquistar o título de campeão nacional pelo Carcavelinhos, um pequeno clube de operários conhecido nessa altura
Entrecampos, Lisboa Uma multidão aguardava a seleção, que seguiria depois em cortejo até ao município
como o «Sparta de Alcântara», pela dinâmica de jogo coletivo a lembrar o estilo da equipa do Sparta de Praga, que passara por Portugal deixando muito boa impressão. O estilo rápido do Carcavelinhos baseava-se mais na inspiração dos artistas da bola do que numa organização tática rígida. Chamavam-lhe o «rapa, tira, põe e deixa», como se conta no livro A Paixão do Povo – História do Futebol em Portugal, de João Nuno Coelho e Francisco Pinheiro.
Desporto já de massas No campeonato de 1928, a média foi de quase seis golos por jogo. Eram comuns as goleadas. Embora disputando ainda espaço regular nos jornais à tauromaquia ou ao boxe, foot-ball (como então e escrevia) transformarva-se num desporto de massas, abandonando a vertente elitista praticado por sportsmen elegantes no final do século XIX. Neste contexto, embora a equipa portuguesa de esgrima viesse a conquistar nas Olimpíadas a Medalha de Bronze, o que apaixonou mais pessoas foi a chegada inesperada da geração de Amesterdão aos quartos-de-final da competição de futebol, ficando entre as oito primeiras. VISÃO H I S T Ó R I A
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Longe da unanimidade, a febre popular à volta do futebol era alvo de críticas como a do escritor Vitorino Nemésio (então com 26 anos) publicada em junho no Diário de Lisboa. No artigo de opinião O Stadium contra o Forum?, Nemésio termina em tom jocoso imaginando um futuro «Foot-ball Cícero Club», numa crítica à rapidez e à superficialidade da época, simbolizada na obsessão crescente com o futebol. Ainda a propósito de jornais – e apesar da Censura instaurada em 1926 – o semanário humorístico Sempre Fixe aproveitaria o pretexto para publicar ilustrações satíricas viradas para o futebol como alegoria da política internacional, ao longo da preparação para os JO e durante a estada da seleção em Amesterdão.
Truques de magia e fado Lá fora passavam ainda pelas janelas paisagens de Espanha, de França, da Bélgica… E segundo o sorteio feito entre os jogadores, Portugal iria à final contra o Uruguai, depois de eliminar as seleções do Chile, da Jugoslávia, da Bélgica e da Itália. E ditava a sorte que Portugal venceria a final. Quem assim descreve, no Diário de Lisboa, o sorteio e a viagem é o treinador e jornalista Cândido de Oliveira, à época redator do jornal e um dos quatro membros do Comité de Selecionadores – ele que anos antes fora o primeiro capitão da seleção. E que continuaria a marcar o futebol português durante décadas, com uma interrupção breve por sido preso político no campo de concentração do Tarrafal em meados dos anos 40, antes de fundar o jornal desportivo A Bola. Escreveu Cândido de Oliveira: «Estes rapazes sabem como ninguém passar o tempo em viagem… Têm um reportório incomparável – de pequenina companhia de variedades. Cada um deles tem um número para entreter os camaradas. E há de tudo: prestidigitadores, cantadores de fado, tocadores de guitarra, jongleurs, clowns… O Figueiredo e o Carlos Alves são as primeiras figuras. Tocando guitarra e cantando o fado, puseram o comboio em alvoroço.» 94 V I S Ã O H I S T Ó R I A
ANTT
Anos 20 || Futebol
‘Fanzone’ de 1929 Quando ainda não estavam generalizadas as telefonias, muita gente juntou-se no Terreiro do Paço para escutar o relato de um França-Portugal
Os jogadores da seleção partiram com bastante desconfiança em relação aos campos relvados, em que não estavam habituados a jogar. De Portugal levavam também a autoconfiança e a fama internacional conquistadas nos últimos meses, em jogos de preparação que correram muito bem, contra Espanha, França, Itália e Argentina, nalguns casos em relvados onde se fartavam de escorregar e cair mesmo à boca da baliza. Aliás, mesmo durante a competição na Holanda terá sido maior o brilhantismo do que eficiência junto às redes adversárias... Por cá, a revolução de 28 de Maio de 1926 ainda não resultara num regime sólido. Salazar acabara de ser nomeado ministro das Finanças. E os futebolistas portugueses deixavam para trás um País
O futebol foi proibido pela Ditadura no verão de 1928, mas a lei só foi cumprida em Lisboa
ainda a braços com convulsões políticas que resultavam em feridos, mortos, presos e deportados. Nesse clima, o ministro da Instrução Duarte Pacheco decretou a proibição do futebol no verão, entre 1 de julho e 15 de setembro, numa medida em prol da higiene e da moral. A lei foi cumprida em Lisboa mas desrespeitada no resto do País. Com o regime a ter de adaptar-se ao facto de o futebol ser já algo demasiado popular para ser vencido, apostou-se anos depois na construção do Estádio Nacional. Apesar de o futebol já mover multidões, em Portugal ainda não havia jogadores profissionais, vivendo-se um profissionalismo encapotado em que os clubes acabavam por pagar aos futebolistas de forma não assumida, muitas vezes arranjando-lhes empregos. A propósito, nos JO só podiam participar futebolistas amadores, o que explica a ausência de seleções como
GETTY
Amesterdão, 1928 Pepe ameaça as redes do Chile. À esquerda: Um cartaz com a seleção olímpica portuguesa
as da Áustria, Checoslováquia, Hungria ou Inglaterra, onde os campeonatos já estavam profissionalizados. O debate entre os defensores do profissionalismo e os do amadorismo foi um dos temas que marcaram o congresso da FIFA, agendado também para Amesterdão e para as mesmas datas dos JO. Ali foi discutida e aprovada a futura realização de um Campeonato do Mundo aberto a profissionais e amadores.
Reportagens magras Longe dessas negociações sobre o futuro do futebol e logo à chegada a Amesterdão, a comitiva lusa ficou desiludida com as condições em que ficou alojada, num hotel sobrelotado. Quase não havia adeptos nem jornalistas nacionais. Ainda por cima, o Diário de Notícias enviou António Ferro, que se confessava feliz na ignorância sobre o assunto, o que mereceu a sátira ilustrada nas páginas do Sempre
Fixe, onde se ironizava com as «grandes reportagens magras de um jornalista gordo, em Amesterdão». Tal como a sorte ditara no comboio, o Uruguai foi mesmo à final. E venceu-a, contra a Argentina. Eram duas das seleções mais fortes do mundo. Portugal ultrapassou as expectativas e chegou aos quartos-de-final. Apesar de ter muito mais técnica do que físico, num futebol em que as substituições durante o jogo ainda não eram permitidas, perdeu apenas no terceiro desafio, contra o Egito. Logo no primeiro encontro, Portugal jogou durante 12 minutos sem Armando Martins (que se lesionou e teve de recuperar fora do campo) quando a seleção já perdia por 2-0 contra o Chile. Mas voltou e Portugal marcou dois golos num minuto, acabando por ganhar por 4-2. Seguiu-se a Jugoslávia, que Portugal também derrotou, por 2-1. Só depois acabou o sonho sorteado no comboio, quando a seleção perdeu com o Egito, por 2-1. Nesse encontro, a geração de Amesterdão terá sido prejudicada pela arbitragem. Desde 1927 que Portugal não era derrotado, tendo disputado sete desafios in-
ternacionais, contando com os jogos de preparação, como sublinharia Cândido de Oliveira na crónica sobre o jogo. Tinha sido uma campanha brilhante. Mesmo sem chegarem à final, «Pepe», «Tamanqueiro» & Cª acabariam por entrar para a História do futebol português, sendo recebidos no regresso por multidões. No editorial do Diário de Lisboa de 11 de Junho conta-se que a chegada foi apoteótica, com um trajeto triunfal a ser feito da Estação de Entrecampos e os Paços do Concelho de Lisboa. O impacto político foi grande, como ali se escreve: «A propaganda do nosso país realizada pelos simpáticos e modestos rapazes que daqui se deslocaram à Holanda valeu mais do que muitas platónicas manifestações diplomáticas de problemático efeito.» A guitarra que viajou com a equipa recebeu no regresso uma placa de ouro comemorativa, por ocasião de um jantar de homenagem no restaurante Ferro de Engomar, em Benfica. Ainda na Holanda, a dita guitarra tinha servido para acompanhar o Hino Nacional. Nascera a geração de Amesterdão – e, como ela, a «loucura» pelo futebol. VISÃO H I S T Ó R I A
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Anos 20 || Literatura
Mortos, feridos e ‘glamour’
Guerra, crise, psicanálise e feminismo – a literatura dos Anos 20 adianta-se às contradições e emancipações da época por Isabel Nery
É
tempo de jazz, pós-guerra, aparecimento dos primeiros eletrodomésticos. E isso quer também dizer que é tempo de uma nova literatura. A escrita rebuscada do século XIX dá lugar a textos que privilegiam a ação e os diálogos. Temas como a sexualidade e os direitos das mulheres entram pela ficção adentro e dão origem a escândalos. Assim ia o mundo dos Anos 20: entre os horrores das memórias da Grande Guerra, de que Hemingway se tornou um relator clássico em O Adeus às Armas, e a mudança de costumes, espelhada nos excessos de Gatsby, uma personagem de Scott Fitzgerald. Entre uma economia americana que passa de 69 para 93 mil milhões de produto interno bruto (PIB) e o culto das celebridades, ao mesmo tempo que se revitaliza o Ku Klux Klan e se faz sentir a «Lei Seca», banindo o álcool. Deste lado do Atlântico, o francês André Gide, mais tarde fundador da editora Gallimard, publica Corydon, em 1920, com o objetivo assumido de denunciar os preconceitos contra a homossexualidade. No mesmo ano, Agatha Christie lança o seu primeiro romance, O Misterioso Caso de Styles, introduzindo o detetive Hercule Poirot. A literatura vai refletir toda a ebulição – e contradição – dos Anos 20. Umas vezes olhando para os costumes (Francis Scott Fitzegerald), outras para as evoluções da Medicina (Sigmund Freud) ou para os traumas da guerra (Ernest Hemingway). Com Thomas Mann viaja-se no tempo e com James Joyce vive-se o choque das cenas sexualizadas. Embora tivessem um papel cada vez mais ativo, as mulheres continuavam a ser discriminadas, e mesmo excluídas. Disso mesmo trata o texto de Virginia Woolf, ainda hoje, quase um século depois, considerado um tratado do feminismo. 96 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Ulisses DE JAMES JOYCE (1922)
Para Além do Prazer DE SIGMUND FREUD (1920)
As baias sociais começam a aligeirar-se e as teorias de Freud vêm contribuir para essa mudança. A ideia – então revolucionária – de que as mulheres tinham os mesmos impulsos sexuais e desejos que os homens questiona a forma como era encarada a sexualidade. O neurologista, nascido na Morávia (atual República Checa, então pertencente ao Império Austro-Húngaro) defende que os desejos sexuais são centrais para os humanos e entende que muitos problemas começam na repressão desses desejos. Este livro significaria uma viragem nas teorias médicas, dando origem às hoje comuns psicoterapias.
A trama do livro – com personagens da Odisseia de Homero a viverem em Dublin – é complexa, mas os efeitos que teve na altura da sua publicação fazem jus à originalidade da obra. Chocados com as descrições das vivências de Bloom, que se masturba enquanto observa uma vizinha, os americanos e os ingleses decidem banir a obra. Seria necessária a decisão de um juiz (um precedente inédito no que toca a uma obra considerada «pornográfica») para, quase uma década depois, ser permitida a venda do romance nos Estados Unidos. A história passa-se num único dia e é um retrato minucioso da cidade de Dublin, capital da Irlanda que então acedia à independência relativamente ao reino Unido, mas também da classe média baixa europeia da época.
A Montanha Mágica DE THOMAS MANN (1924)
Para alguns é um clássico mais comentado do que lido, e a culpa não será certamente alheia às cerca de mil páginas (800 na versão portuguesa) que ocupa a história do jovem engenheiro Hans Castorp. Depois de rumar a Davos, na Suíça, para visitar um primo em tratamento contra a tuberculose, acaba por ficar sete anos, numa primeira metáfora do aprisionamento que pode significar uma doença. Mann decide escrever o livro depois de visitar a mulher num sanatório e ser aconselhado pelo médico a ficar lá também. «Se tivesse seguido o conselho talvez ainda lá estivesse em cima. Preferi escrever A Montanha Mágica», explicou o próprio autor. Embora passado na mesma época, o livro é um contraste absoluto com as excentricidades de Gatsby. Nos Alpes suíços, a viagem é essencialmente interior. O tempo não corre. É relativo. Lento. Paralelo. Tal como o sentem as pessoas «lá de baixo», as que vivem fora do sanatório. Mas esta montanha é também uma viagem pela realidade política da Europa de então, a caminho do fascismo.
O Grande Gatsby DE F. SCOTT FITZGERALD (1925)
Se fosse preciso um romance para estabelecer um paralelo entre a crise económico do início do século XXI e a do século XX, seria este. À euforia do crescimento do pós-guerra – refletida no uso generalizado de eletricidade e de automóvel ou na escolha das cidades como lugar para viver – segue-se o crash da bolsa, em 1929. E O Grande Gatsby, escrito por Fitzgerald a ver o mar, na costa francesa, é isso tudo. Primeiro o enriquecimento baseado numa mentira, depois a opulência das festas em Long Island, que obrigavam à contratação de oito criados para limpar tudo no dia seguinte, e um triste fim, repleto de traições. Tal como se poderia escrever hoje, o romance retrata a decadência que vem depois da riqueza – e os efeitos perversos de uma desigual distribuição da riqueza.
O Adeus às Armas DE ERNEST HEMINGWAY (1929)
«Uma história imortal de amor e guerra», é assim que se apresenta a versão adaptada para cinema, protagonizada por Rock Hudson, em 1957. Amor e guerra estão no centro do livro, mas antes estiveram no centro da vida do autor norte-americano. Hemingway serviu na Cruz Vermelha durante a Primeira Guerra Mundial, foi ferido com apenas 19 anos e apaixonou-se pela enfermeira que o tratou. O mesmo acontece ao seu personagem Frederic Henry. Mas este Adeus é muito mais do que uma história de amor. A maioria lê nele um protesto de Hemingway contra todas as guerras – e todos os horrores que elas trazem dentro e fora do campo de batalha. Mais tarde, o autor de outros clássicos, como Por Quem os Sinos Dobram, diria: «Quando se vai para a guerra jovem tem-se uma grande ilusão sobre a imortalidade. Os outros são mortos, nós não... Quando se é ferido pela primeira vez perde-se essa ilusão.»
Um Quarto Que Seja Seu DE VIRGINIA WOOLF (1929)
«Não preciso de odiar nenhum homem. Ele não me pode fazer mal. Não preciso de lisonjear nenhum homem. Ele não tem nada para me dar.» A frase lida nas conferências onde Woolf começou por apresentar o texto, com o título inicial Mulheres e Ficção, chocou a audiência. Era um tempo em que apenas as mulheres ricas – caso da escritora – podiam imaginar-se a escrever livros. As poucas que o faziam usavam nomes falsos (em geral masculinos), e a escritora, que foi considerada maníaco-depressiva, queria mudar o estado da arte. As suas posições foram consideradas provocatórias. Mas a verdade é que Woolf era impedida de frequentar bibliotecas por ser mulher. Ao exigir um quarto só seu, reivindicava para as mulheres um espaço (literal e metafórico) onde pudessem brilhar nas letras. Pelo menos, tanto como os homens.
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Anos 20 || Cartoon
Os cabelos curtos A moda dos penteados à garçonne gerou atritos familiares e forneceu o mote a Emmerico Nunes para uma curta banda desenhada publicada na ABC de 24 de março de 1927
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