O MITO DO SUPERMAN
Capítulo de Apocalípticos e integrados , de Umberto Eco. Editora Perspectiva: São Paulo, 1979. Tradução: Pérola de Carvalho. Carvalho.
I. O problema com que nos pretendemos defrontar exige uma definição preliminar e, em suma, aceitável, de “mitificação” como simbolização incônscia, identificação do objeto com uma soma de finalidades nem sempre racionalizáveis, projeção na imagem de tendências, aspirações e temores particularmente emergentes num indivíduo, numa comunidade, em toda uma época histórica. De fato, quando se fala em “desmitificação” com referência ao nosso tempo, associando o conceito a uma crise do sagrado e a um empobrecimento simbólico daquelas imagens que toda uma tradição iconológica nos habituara a contemplar sempre carregadas de profundos significados sacros, pretende-se justamente indicar o processo de dissolução de um repertório simbólico institucionalizado, típico da primeira cristandade e da cristandade medieval (e, em certa medida, ressuscitado pelo catolicismo contra-reformista). Esse repertório permite transferir, de maneira quase unívoca, os conceitos de uma religião speculum in relevada para uma série de imagens, servindo-se delas, depois, para transmitir, per speculum in aenigmate , os dados conceptuais de origem, de modo que eles pudessem ser apreendidos também pelso simples, privados de requintes teológicos, o que, aliás, foi sempre a preocupação constante dos vários concílios que se ocuparam com o problema das imagens. […] Símbolos e cultura de massa
Todavia, existem no mundo contemporâneo setores onde se foi reconstituindo, com bases populares, essa universalidade de sentir e de ver. Isso se verificou no âmbito das sociedades de massa onde todo um sistema de valores, a seu modo bastante estável e universal, se concretizou, através de uma mitopoiética cujos modos examinaremos, numa série de símbolos oferecidos ora pela arte ora pela técnica. Numa sociedade de massa, na época da civilização industrial, observamos, de fato, um processo de mitificação afim com o das sociedades primitivas, mas que frequentemente procede, de início, segundo a mecânica mitopoética posta em prática pelo poeta moderno. Isto é, trata-se da identificação privada e subjetiva, na origem, entre um ojeto , ou uma imagem, e uma soma de finalidades, ora cônscias ora incônscias, de maneira a realizar-se uma unidade entre imagens e aspirações (e que tem muito da unidade mágica na qual o primitivo baseava sua operação mito-poiética).
Se o bisonte desenhado na parede da caverna pré-histórica se identificava com o bisonte real, garantindo, assim, ao pintor, a posse do animal através da posse da imagem, e envolvendo, assim, a imagem numa aura sagrada, não é muito diferente o que hoje acontece quando o novo automóvel, construído o mais possível segundo modelos formais escorados numa sensibilidade arquetípica, torna-se a tal ponto signo de um staatus econômico, que com ele se identifica. […] O objeto é a situação social e, ao mesmo tempo, o seu signo: consequentemente, não constitui apenas um fim concreto perseguível, mas o símbolo ritual, a imagem mítica em que se condensam aspirações e desejos. […] Portanto, os Suger 1 de nossa época que criam e difundem imagens míticas destinadas a radicar-se em seguida na sensibilidade das massas são os escritórios-estúdios das grandes indústrias, os advertising men da Madison Avenue, os que a sociologia popular designou com o sugestivo epíteto de “persuasores ocultos”. […] A civilização de massa oferece-nos um exemplo evidente de mitificação na produção dos mass media e, em particular, na indústria das comic strips , as “estórias em quadrinhos”: exemplo evidente e singularmente adequado ao nosso objetivo, porque aqui assistimos à coparticipação popular de um repertório mitológico claramente instituído de cima, isto é, criado por uma indústria jornalística, porém particularmente sensível aos caprichos do seu público, cuja exigência precisa enfrentar. Segue-se uma apresentação dos números de circulação das histórias em quadrinhos em meados dos anos 60. Eram mais de dois bilhões e meio de leitores diários em todo o mundo. Claro que, no início do século XXI, essa enumeração pode parecer um pouco datada, mas poderíamos com facilidade transpor essas cifras para as narrativas que hoje perfazem o mesmo papel: séries de tv, blockbusters, novelas televisivas etc.
Que, enfim, essa literatura de massa obtenha uma eficácia de persuasão comparável apenas à das grandes figurações mitológicas partilhadas por toda uma coletividade, é o que nos revelam alguns episódios altamente significativos. Não nos referimos, aqui, às modas que delas derivam, aos objetos fabricados sob inspiração das personagens mais célebres, desde os relógios de mostrador ilustrado com a imagem do herói, até as gravatas e os brinquedos; mas sim a casos em que toda a opinião pública participou histericamente de situações imaginárias criadas pelo autor de comics , como se participa de fatos que tocam de perto a coletividade, do voo espacial ao conflito atômico. Exemplo típico é o de Terry, a personagem desenhada por Milton Caniff. Aventureiro cujas proezas tiveram início em 1934, popular por uma série de 1
Nota do Remo: sacerdote e pensador católico dos séculos XI e XII. Cronista do seu tempo e patrono das artes, redigia obras para difusão das narrativas cristãs. É tomado aqui como personificação dos mitógrafos tradicionais, difusores de símbolos e imagens que constituíam o imaginário religioso dos povos.
ambíguas vicissitudes nos mares da China, Terry a tal ponto se tornara ídolo do público norte-americano que, ao eclodir a guerra, foi necessário da noite para o dia restituir-lhe uma virgindade que de fato ele jamais possuíra; transformou-se, assim, em combatente regular, nutrindo a imaginação dos soldados na frente de batalha, e das famílias em ansiosa expectativa; ora, a opinião pública acompanhava de tal maneira as personagens de Caniff, que quando este se viu na necessidade – a um tempo narrativa e política – de decidir da sorte de Burma, fascinante aventureira comprometida com os japoneses, o fato interessou as próprias autoridades militares. Em Burma, colidiam dois mitos igualmente fortes, um de ordem sexual, outro, de ordem patriótica. Burma era bela, misteriosa e encarnava a quintessência de uma sexualidade ambígua e “maldita”; como tal um avatar da vamp cinematográfica e, melhor ainda, da velha belle dame sans merci ; mas agora, era a inimiga de um país em guerra, de que Terry era o símbolo mais positivo. O problema de Burma tornou-se, assim, um estímulo de neuroses coletivas dificílimo de resolver. Quando Terry foi promovido na zona de ação, jornais seriíssimos divulgaram oficialmente a notícia, e a aviação norte-americana, de forma autorizada e oficial, enviou-lhe (ou melhor, enviou ao autor pelo correio) uma carteira com número de matrícula. Num outro caso, Caniff escolheu uma personagem que até então ficara em segundo plano, uma menina – Raven Sherman – e se empenhou em torná-la cada dia mais interessante, fascinante, símbolo de virtude, de graça e heroísmo ao mesmo tempo; Raven apaixonou amplos estratos de leitores, até que, no momento oportuno, Caniff fez com que ela morresse. Os resultados foram superiores a todas as expectativas: os jornais publicaram o feral anúncio, os estudantes da Universidade de Loyola observaram um minuto de silêncio e, no dia dos funerais, Caniff teve de justificar pelo rádio a sua conduta. Quando Chester Gould, autor da personagem Dick Tracy, fez morrer o gangster Flattop, também desencadeou um fenômeno de histeria pública de dimensões semelhantes: Flattop havia morbidamente polarizado a admiração do público, e inteiras comunidades citadinas decretaram luto, enquanto milhares de telegramas atacavam o autor e lhe pediam contas da sua decisão. Nesses, como em outros casos, não se trata apenas do desaponto dos leitores afeiçoados, que se veem privados de uma personagem que representa uma fonte de divertimento ou de excitação; fenômenos do gênero já aconteciam no século passado, quando os leitores escreviam aos autores de feuilletons , como Ponson ou Terrail, para protestarem contra a morte de uma personagem simpática. Mas, no caso das estórias em quadrinho, trata-se de uma reação muito mais maciça de uma comunidade de fiéis, incapaz de suportar a ideia do desaparecimento repentino de um símbolo que até então encarnara uma série de aspirações. O histerismo provém da frustração de uma operação simpatizante, uma vez que passa a faltar o suporte físico de projeções necessárias. Cai a imagem e, com ela, caem as finalidades que a imagem simbolizava. A comunidade dos fiéis entra em crise, e a crise é não só religiosa mas também psicológica, porque a imagem revestia uma função demasiado importante para o equilíbrio psíquico dos indivíduos.
O mito do Superman
Imagem simbólica de particular interesse é a do Superman. O herói dotado de poderes superiores aos do homem comum é uma constante da imaginação popular, de Hércules a Siegfried, de Roldão a Pantagruel e até a Peter Pan. Frequentemente, a virtude do herói se humaniza, e seus poderes, ao invés de sobrenaturais, são a alta realização de um poder natural – a astúcia, a velocidade, a habilidade bélica, e mesmo a inteligência silogisticizante e o puro espírito de observação, como acontece em Sherlock Holmes. Mas numa sociedade particularmente nivelada, onde as perturbações psicológicas, as frustrações, os complexos de inferioridade estão na ordem do dia; numa sociedade insdustrial onde o homem se torna número no âmbito de uma organização que decide por ele, onde a força individual, se não exercitada na atividade esportiva permanece humilhada diante da força da máquina que age pelo homem e determina os movimentos mesmos do homem – numa sociedade de tal tipo, o herói positivo deve encarnar, além de todo limite pensável, as exigências de poder que o cidadão comum nutre e não pode satisfazer. O Superman é o mito típico de tal gênero de leitores: o Superman não é um terráqueo, mas chegou à Terra, ainda menino, vindo do planeta Cripton. Cripton estava para ser destruído por uma catástrofe cósmica e o pai do Superman, hábil cientista, conseguira pôr o filho a salvo, confiando-o a um veículo espacial. Crescido na Terra, o Superman vê-se dotado de poderes sobre-humanos. Sua força é praticamente ilimitada, ele pode voar no espaço a uma velocidade igual à da luz, e quando ultrapassa essa velocidade, atravessa a barreira do tempo e pode transferir-se para outras épocas. Com a simples pressão das mãos, pode submeter o carvão a uma tal temperatura que o transforma em diamante; em poucos segundos, a uma velocidade supersônica, pode derrubar uma floresta inteira, transformar árvores em toros e construir com eles uma aldeia ou um navio; pode perfurar montanhas, levantar transatlânticos, derrubar ou edificar diques; seus olhos de raios X permitem-lhe ver através de qualquer corpo, a distâncias praticamente ilimitadas, fundir com o olhar objetos de metal; seu superouvido coloca-o em condições vantajosíssimas, permitindo-lhe escutar discursos de qualquer ponto de que provenham. É belo, humilde, bom e serviçal; sua vida é dedicada à luta contra as forças do mal e a polícia tem nele um colaborador incansável. Todavia, a imagem do Superman não escapa totalmente às possibilidades de identificação por parte do leitor. De fato, o Superman vive entre os homens sob falsas vestes do jornalista Clark Kent; e, como tal, é um tipo aparentemente medroso, tímido, de medíocre inteligência, um pouco embaraçado, míope, súcubo da matriarcal e mui solícita colega Miriam Lane, que, no entanto, o despreza e está loucamente enamorada do Superman. Narrativamente, a dupla identidade do Superman tem uma razão de ser, porque permite articular de modo bastante variado a narração das aventuras do nosso heroi, os equívocos, os lances teatrais, um certo
suspense próprio
de romance policial. Mas, do ponto de vista mitopoiético, o achao chega mesmo a ser sapiente: de fato, Clark Kent personaliza, de modo bastante típico, o leitor médio otrturado por complexos e desprezado pelos seus semelhantes; através de um óbvio processo de identificação, um accountant qualquer, de uma cidade norte-americana qualquer, nutre secretamente a esperança de que um dia, das vestes da sua atual personalidade, possa florir um super-homem capaz de resgatar anos de mediocridade. A estrutura do mito e a civilização do romance
Estabelecida, por conseguinte, a inegável conotação mitológica da personagem, cumprirá individuar as estruturas narrativas através das quais o “mito” é cotidianamente, ou semanalmente, oferecido ao seu público. Há, de fato, uma diferença fundamental entre uma figura como o Superman e figuras tradicionais, como os heróis da mitologia clássica, nórdica, ou as figuras das religiões reveladas. A imagem religiosa tradicional er a ade um personagem, de origem divina ou humana, que, na imagem, permanecia fixada nas suas características eternas e no seu acontecimento irreversível. Não se excluía que, por trás da personagem, existisse, além de um conjunto de características, uma estória: mas a estória já se achava definida segundo um desenvolvimento determinado e passava a constituir, de modo definitivo, a fisionomia da personagem. Em outros termos: uma estátua grega podia representar Hércules ou uma cena dos trabalhos de Hércules: em ambos os casos, no segundo mais que no primeiro, Hércules era visto como alguém que tivera uma estória e essa estória caracterizava-lhe a fisionomia divina. De qualquer forma, a estória ocorrera, e não podia mais ser negada/ Hércules concretizara-se num desenrolar temporal de eventos, mas esse desenrolar encerrara-se, e a imagem simbolizava, com a personagem, a estória do seu desenvolvimento – era o seu registro definitivo e o seu julgamento. […] A personagem das estórias em quadrinhos nasce, ao contrário, no âmbito de uma civilização do romance . A narrativa preferida nas antigas civilizações era quase sempre a que referia alguma coisa já acontecida e já conhecida do público. Podia-se contar pela enésima vez a estória do Paladino Roldão, mas o público já sabia o que havia sucedido ao seu herói. Pulci retoma o ciclo carolíngio e, no final, nos diz o que já sabíamos, isto é, que Roldão morre em Roncesvales. O público não precisa ficar sabendo nada de absolutamente novo, mas simplesmente ouvir contar, de maneira agradável, um mito, repercorrendo o desenrolar conhecido, no qual se podia comprazer, todas as vezes, de modo mais intenso e mais rico. Não faltavam os vários acréscimos e os embelezamentos novelescos, mas esses não eram de molde a ofender a fixidez definitiva do mito narrado. Era também assim que funcionavam as
narrativas plásticas e pictóricas das catedrais góticas ou das igrejas renascentistas e contrareformistas. Narrava-se, muitas vezes de modo dramático e conturbado, o já acontecido. A tradição romântica (e aqui não importa se as raízes dessa atitude se implantam bem antes do romantismo) oferece-nos, ao contrário, uma narrativa em que o interesse principal do leitor é deslocado para a imprevisibilidade do que acontecerá , e, portanto, para a invenção do enredo, que passa para o primeiro plano. O acontecimento não ocorreu antes da narrativa: ocorre enquanto se narra, e, convencionalmente, o próprio autor não sabe o que sucederá. […] Essa nova dimensão da narrativa é contrabalançada por uma “mitificabilidade” menor da personagem. A personagem do mito encarna uma lei, uma exigência universal, e deve, numa certa medida, ser, portanto, previsível , não pode reservar-nos surpresas; a personagem do romance, pelo contrário, quer ser gente como todos nós, e o que lhe poderá acontecer é tão imprevisível quanto o que nos poderia acontecer. Assim, a personagem assumirá o que chamaremos de uma “personalidade estética”, espécie de co-participabilidade, uma capacidade de tornar-se termo de referência para comportamentos e sentimentos que também pertencem a todos nós, mas não assume a universalidade propria do mito, não se torna hieróglifo, o emblema de uma realidade sobrenatural, que é o resultado da universalização de um acontecimento particular. Tanto isso é verdade que a estética do romance deverá reverdecer, para essa personagem, uma velha categoria, de cuja existência nos damos conta justamente quando a arte abandona o território do mito: e é o “típico”. A personagem mitológica da estória em quadrinhos encontra-se, pois, nesta singular situação: ela tem que ser um arquétipo, a soma de determinadas aspirações coletivas, e, portanto, deve, necessariamente, imobilizar-se numa fixidez emblemática que a torne facilmente reconhecível (e é o que acontece com a figura do Superman); mas, como é comerciada no âmbito de uma produção “romanesca”, deve submeter-se àquele desenvolvimento característico, como vimos, da personagem do romance. Para resolvermos uma situação como essa, temos compromissos de vários tipos, e um exame dos enredos dos comics , desse ponto de vista, seria altamente instrutivo. Limitar-nos-emos a examinar aqui a figura do Superman, porque com ela nos achamos diante do exemplo limite, o caso em que o protagonista, de saída, e por definição, tem todas as características do herói mítico, encontrando-se, ao mesmo tempo, inserido numa situação romanesca de molde contemporâneo.
Consumo e temporalidade
Ora, desde a definição aristotélica que o apresenta como “o número do movimento segundo o antes e o depois”, o tempo implica uma ideia de sucessão; e a análise kantiana estabeleceu de modo inequívoco que essa ideia de causalidade “É lei necessária da nossa sensibilidade e portanto condição de todas as percepções que o Tempo precedente determine necessariamente o sequente”2. […] O antes determina causalmente o depois , e a série dessas determinações não pode ser remontada, pelo menos no nosso universo (segundo o modelo epistemológico com o qual explicamos o mundo em que vivemos), mas é irreversível. […] Em outros termos, portanto, o estar situado numa dimensão temporal permite que eu atente para a gravidade e a dificuldade de minhas decisões, mas que ao mesmo tempo atente para o fato de que devo decidir, de que sou eu quem deve decidir e de que esse meu decidir se liga a uma série indefinida de dever-decidir que envolve todos os outros homens.
Um enredo sem consumo
Se, dentro da variedade das enfatizações, nessa concepção do tempo se baseiam as discussões contemporâneas que arrastam o homem a uma meditação sobre seu destino e sua condição, decididamente a essa concepção do tempo se subtrai a estrutura narrativa do Superman para salvar a situação já por nós configurada. No Superman entra em crise, portanto, uma concepção do tempo: e isso não acontece no âmbito do tempo sobre o qual se narra , mas do tempo no qual se narra . Vale dizer que, se nas estórias da nossa personagem também se fala em fantásticas viagens no tempo (e o Superman entra em contato com gente de diversas épocas, viajando no futuro e no passado), isso, contudo, não impediria que a personagem se visse envolvida naquele acontecimento de desenvolvimento e consumo que indicamos como letal para sua natureza mítica […]. Nas histórias do Superman, ao contrário, o tempo posto em crise é o tempo da narrativa , o que vale dizer a noção de tempo que liga uma narrativa à outra.
2
Crítica da razão pura , Analítica dos princípios, cap. II.
No âmbito de uma estória, o Superman pratica uma dada ação (desbarata, por exemplo, uma quadrilha de gansgters ); nesse ponto, termina a estória. No mesmo comic book, ou na semana seguinte, inicia-se uma nova estória. Se ela retomasse o Superman no ponto em que o havia deixado, o Superman teria dado um passo para a morte. Por outro lado, iniciar uma estória sem mostrar que fora precedida por outr, conseguiria, de certo modo, subtrair o Superman à lei do consumo, mas, com o passar do tempo (o Superman existe desde 1938), o público perceberia o fato e atentaria para a comicidade da situação – como aconteceu com a personagem da orfãzinha Annie, que prolonga sua meninice onerada de infortúnios por dezenas de anos, tornando-se alvo de observações satíricas, como as que aparecem, ainda atualmente, nos periódicos humorísticos como Mad . Os roteiristas do Superman, ao contrário, excogitaram uma solução muito mais sensata e indubitavelmente original. Essas estórias desenvolvem-se, assim, numa espécie de clima onírico – inteiramente inadvertido pelo leitor – onde aparece de maneira extremamente confusa o que acontecera antes e o que acontecera depois, e quem narra retorna continuamente o fio da estória como se se tivesse esquecido de dizer alguma coisa e quisesse acrescentar alguns pormenores ao que já dissera. Acontece, a seguir, que ao lado das estórias do Superman passam a narrar-se as estórias do Superboy, isto é, do Superman ainda garoto, ou do Superbaby, isto é, do Superman-nenê. E a certa altura, surge em cena, também, a Supergirl, prima do Superman, igualmente salva da destruição de Cripton. Em decorrência, todas as estórias concernentes ao Superman são, de certo modo, “recontadas” a fim de incluir também a presença dessa nova personagem […]. Dentro dessa linha, a solução mais original é, indubitavelmente, a dos imaginary tales : acontece, de fato, que muitas vezes o público, pelo correio, pede aos roteiristas desenvolvimentos narrativos saborosos: por exemplo, por que Superman não se casa com a jornalista Miriam Lane que o ama há tanto tempo? Mas, se o Superman se casasse com Miriam Lane, daria, como já dissemos, um passo em direção à morte, estabeleceria uma premissa irreversível; e todavia é preciso encontrar sempre novos estímulos narrativos e satisfazer as exigências “romanescas” do público. Conta-se, assim, “o que teria acontecido se o Superman tivesse desposado Miriam”. Tal premissa é desenvolvida em todas as suas implicações dramáticas e, ao final, adverte-se: atenção, essa é uma estória “imaginária” que na verdade não aconteceu. Os imaginary tales são frequentes, como também os untold tales , isto é, os relatos que concernem a acontecimentos já narrados, mas em que “se esquecera de dizer alguma coisa”, pelo que são recontados sob outro ponto de vista, descobrindo-lhes aspectos laterais. Em meio a esse bombardeio maciço de acontecimentos já não mais ligados por nenhum fio lógico, nem mutuamente domiados por nenhuma necessidade, o leitor, naturalmente sem se dar conta disso, perde a noção da ordem temporal. E passa a viver num universo imaginativo
em que, diversamente do que ocorre no nosso, as cadeias causais não são abertas (A provoca B, B provoca C, C provoca D e assim até o infinito) mas fechadas (A provoca B, B provoca C, C provoca D e D provoca A), e não tem mais sentido, portanto, falar daquela ordem do tempo em que nos baseamos ao descrever habitualmente os sucessos do macrocosmo. Poder-se-ia observar que – afora as necessidades mitopoiéticas, e também comerciais, que impelem a tal situação – semelhante assentamento estrutural das estórias do Superman reflete, ainda que a baixo nível, uma série de convicções difundidas em nossa cultura acerca da crise dos conceitos de causalidade, temporalidade e irreversibilidade dos eventos; e de fato, grande parte da arte contemporânea, de Joyce a Robert-Grillet, até filmes, como O Ano Passado em Marienbad , refletem situações temporais paradoxais, cujos modelos , todavia, existem nas discussões epistemológicas dos nossos tempos. Mas o fato é que, em obras como o Finnegans Wake ou Dans le Labyrinthe , a ruptura das relações temporais habituais ocorre de um modo consciente, seja por parte de quem escreve seja por parte de quem deverá fruir esteticamente de tal operação: e, portanto, a crise da temporalidade tem uma função de pesquisa e ao mesmo tempo de denúncia, e tende a fornecer ao leitor modelos imaginativos capazes de fazê-lo aceitar situações da nova ciência e conciliar, assim, a atividade de uma imaginação habituada a velhos esquemas com a atividade de uma inteligência que se aventura a hipotizar ou a descrever universos irredutíveis a imagens ou esquemas. E por conseguinte essas obras (mas aqui se abre outro discurso) desenvolvem sua função mitopoiética, oferecendo ao habitante do mundo contemporâneo uma espécie de sugestão simbólica ou de diagrama alegórico daquele absoluto que a ciência resolveu, não numa modalidade metafísica do mundo, mas num possível modo de estabelecer nossa relação com o mundo, e portanto num possível modo de descrever o mundo. As aventuras do Superman, ao contrário, não têm, de modo algum, essa intenção crítica, e o paradoxo temporal que as sustêm deve escapaar ao leitor (como provavelmente escapa aos autores), porque uma noção confusa do tempo é a única condição de credibilidade da narrativa. O Superman só se sustenta como mito se o leitor perder o controle das relações temporais e renunciar a raciocinar com base nelas, abandonando-se, assim, ao fluxo incontrolável das estórias que lhe são contadas e mantendo-se na ilusão de um contínuo presente. Uma vez que o mito não é isolado exemplarmente numa dimensão de eternidade, mas, para ser compartilhável, tem que estar inserido no fluxo da estória em curso, essa estória em curso é negada como fluxo e vista como presente imóvel. Ao habituar-se a esse exercício de presentificação contínua do que acontece, o leitor perde, ao contrário, consciência do fato que o que acontece deve desenvolver-se segundo as coordenadas das três estases temporais. Perdendo consciência delas, esquece os problemas que nela se baseiam: isto é, a existência de uma liberdade, da liberdade de fazer projetos, do dever de fazê-los, da dor que esse projetar comporta, da responsabilidade que dele provém, e
enfim da existência de toda uma comunidade humana cuja progressividade se baseia sobre o meu projetar.