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Setembro 2014
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N.º 197
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Saúde I Natureza I História I Sociedade I Ciência I Tecnologia I Ambiente I Comportamento
História Os gloriosos malucos das “flechas de prata” Egito A ciência dos faraós
Os avanços da bioengenharia e da medicina regenerativa permitirão em breve sintetizar ADN e imprimir corações
Robótica Os craques da bola
Fabricantes de VIDA Douro Internacional O nosso Grand Canyon
Terra Ambientes para ET
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Cegueira seletiva
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O
artigo sobre atenção seletiva que pode ler nesta edição (pág. 38) aplica-se que nem uma luva à situação internacional que se vive no momento em que escrevo estas linhas: o Egito anunciou que estava a seguir com preocupação os acontecimentos em Ferguson, no Missouri, e exortou as autoridades norte-americanas a refrearem os excessos policiais. Baralhado? Era essa a ideia... Com este gesto, simétrico de outros em que o Grande Polícia Global manifesta estar a acompanhar atentamente os eventos de outros países, o governo egípcio coloca no centro do nosso campo de visão algumas questões que costumam de lá andar arredadas. A morte brutal de um jornalista norte-americano às mãos do autointitulado Estado Islâmico (EI) é mais importante do que o assassínio a sangue-frio de milhares de palestinianos? A barbárie do EI é mais intolerável do que a de Israel? A pretexto do seu inalienável direito a defender-se dos rockets do Hamas, o estado judaico procede a uma punição coletiva, tipificada pelas convenções internacionais como crime de guerra e contra a humanidade. Depois, a comunidade internacional tenta que as duas partes alcancem um entendimento que faça calar as armas. No entanto, ninguém poderá fazer regressar da morte as centenas de homens, mulheres e crianças, praticamente todos civis inocentes, mortos pela Marinha, pela Força Aérea e pelo Exército israelitas. Querer negociar a paz neste contexto é como pretender que os líderes do EI se sentem à mesa com os familiares do jornalista assassinado e todos fiquem amiguinhos. Ou que a população de Ferguson, dois terços da qual é negra, compreenda porque é que só três por cento dos polícias são brancos. O Egito está atento a estas coisas. Quem mais? C.M.
HISTÓRIA
A herança árabe TECNOLOGIA
Os gloriosos flechas de prata TECNOLOGIA
Futebol para máquinas CIÊNCIA
Quando o cérebro não quer ver PSICOLOGIA
A imagem nas redes sociais ADAM JONES / GETTY
JORGE NUNES
Setembro 2014
DOCUMENTO
Fabricantes de vida DESPORTO
Jorge Pina: as lições de um cego AMBIENTE
Douro, o nosso Grand Canyon Não olhes para mim! Por vezes, o nosso cérebro recusa-se a ver o que está mesmo diante do seu nariz. É o segredo da camuflagem, que pode correr mal. Pág. 38 Monstros na estrada Há 80 anos, duas marcas alemãs revolucionaram o desporto automóvel. Vantagem da engenharia, mas também da fibra humana. Pág. 24
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amento ia I Ambiente I Comport e I Ciência I Tecnolog I História I Sociedad N.º 197 00197
Magia negra Os egípcios não deixaram apenas pirâmides. A sua herança científica inclui também muitos avanços médicos e cirúrgicos. Pág. 80
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Fera amansada Devido à construção de barragens, o Douro já não apresenta as características que lhe permitiram cavar fundos desfiladeiros na raia. Apesar disso, ou por isso mesmo, continua a ser um refúgio de biodiversidade. Pág. 68
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ESPAÇO
Terra para extraterrestres HISTÓRIA
A ciência dos faraós ANIMAIS
Serpentes: uma vida de rastos CIÊNCIA
Jogo sujo no laboratório
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SECÇÕES Observatório 4 O Lado Escuro do Universo 5 Motor 8 Super Portugueses 10 Caçadores de Estrelas 12 Histórias do Tejo 16 Flash 44 Marcas & Produtos 96 Foto do Mês 98
ANJA NIEDRINGHAUS / ASSOCIATED PRESS
PIERRE TERDJMAN
Observatório
Capital da imagem
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ntre 30 de agosto e 14 de setembro, a 26.ª edição do festival Visa pour l’Image (http://www.visapourlimage. com), na cidade de Perpignan, em França, rende tributo a uma profissão cada vez mais desvalorizada, mas imprescindível para compreender o mundo em que vivemos: é frequente as imagens dos fotojornalistas selecionados para o evento explicarem melhor a atualidade do que a mais nutrida das reportagens escritas. As obras são apresentadas em 26 exposições de entrada livre, agrupadas por temas (as crianças da favela Cidade de Deus, do Rio de Janeiro, os instantâneos obtidos com telemóvel...) e autores, como Chris Hondros, falecido na Líbia em 2011. Nestas páginas, pode ver algumas das fotos mais espetaculares.
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SUPER
Em cima, uma escola improvisada num aldeia afegã. Na foto maior, a violência do conflito entre cristãos e muçulmanos na República Centro-Africana. À direita, cossacos pró-europeus em Kiev, durante os tumultos que agitaram a capital ucraniana no inverno passado.
O Lado Escuro do Universo
Oscilações acústicas bariónicas
DOAN CÔNG TINH
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GUILLAUME HERBAUT / INSTITUTE
BRUNO AMSELLEM / SIGNATURES
Em cima, uma cena da guerra do Vietname. Em baixo, refugiados rohingya, na Birmânia, vítimas de ataques antimuçulmanos.
m 2005, mediu-se pela primeira vez o horizonte sonoro associado às oscilações acústicas bariónicas, que foram previstas inicialmente por volta de 1970. Em 2014, o Rastreio Celeste Digital Sloan (SDSS, na sigla inglesa) anunciou uma nova medida desta escala, mas com melhor precisão do que a feita anteriormente, e indo mais atrás no tempo, cobrindo, portanto, distâncias maiores. Há cerca de cinco anos, já vimos aqui o que são as oscilações acústicas bariónicas. Na essência, representam um equilíbrio dinâmico entre a natureza atrativa da força gravítica (gerada sobretudo pela massa escura do universo primitivo) e a pressão centrífuga produzida por fotões e bariões (como protões e neutrões) em interação e queda para zonas de maior densidade de massa-energia. Quando esta acreção induzida pela massa escura leva a altas temperaturas e pressões deste plasma interativo, geram-se ondas de natureza acústica que levam à expansão destas camadas até se atingir novamente um equílibrio com a força gravítica. Com o arrefecimento e a expansão do próprio universo, estes anéis esféricos de elevada densidade bariónica e os núcleos de massa escura de onde eles se expandiram acabam por se fixar entre si a uma distância conhecida como “horizonte sonoro”. Esta é, digamos, a geometria a que obedece (estatisticamente) a subsequente formação de galáxias e grupos de galáxias à medida que o universo evolui. Em 2005, no que era então o maior rastreio de sempre, o SDSS mediu a distância de cerca de 150 megaparsecs para o horizonte sonoro do universo atual, observando aproximadamente 50 mil galáxias até um desvio Doppler para o vermelho de z~0,5. Tipicamente, quanto mais distantes as galáxias, mais rapidamente elas se afastam umas das outras, o que produz um avermelhamento das suas linhas espectrais, ou, por outras palavras, da luz que emitem. A unidade z quantifica esse avermelhamento, que se correlaciona com a expansão do cosmos. A estrutura de larga escala do universo acompanha a sua expansão, não sendo, portanto, as distâncias ou escalas fixas com a evolução do tempo cosmológico. Aqui radica a importância do horizonte sonoro enquanto “régua-padrão” que mede a taxa de expansão do espaço-tempo e logo do papel da energia escura na história cosmológica. De forma mais específica, o horizonte sonoro é dado aproximadamente pela expressão 100/h, em que h
é o parâmetro adimensional de Hubble, relacionado com a taxa de expansão do universo. Assim, o tamanho aparente da escala em que se dá este amontoar de massa em camadas esféricas depende da distância a que ela se encontra de nós. Medindo o ângulo subtendido por esta escala, determinamos a distância a tais valores espectroscópicos de z, e por conseguinte constrange-se tremendamente a taxa de expansão do universo. Desta vez, a novidade é o uso de mais de 140 mil quasares no Rastreio Espectroscópico das Oscilações Bariónicas (BOSS, na sigla inglesa), que é parte do SDSS-III. Desde 2009, o BOSS acumulou espectros de cerca de 1,3 milhões de galáxias, com z entre 0,2 e 0,7. Terminado em junho, o BOSS tem mais desses espectros do que todos os outros telescópios do mundo, juntos! Os quasares são núcleos galácticos ativos, buracos negros supermaciços que se banqueteiam com pó e gás do centro de galáxias que podem ser das mais antigas (e, logo, distantes) e brilhantes do universo. No seu percurso para a Terra, a luz dos quasares pode ser absorvida por nuvens intergalácticas de hidrogénio, que permitem assim o seu mapeamento e uso no BOSS. Não se sabe bem, mas por volta de z~0,5 a energia escura terá começado a manifestar os tremendos efeitos no aumento da taxa de expansão do universo que lhe conhecemos hoje. Assim, o BOSS estudou uma época crítica na transição para um universo dominado pela energia escura. Através da radiação de micro-ondas de fundo cósmico (CMBR, na sigla inglesa), podemos saber também qual seria o horizonte sonoro no universo primitivo, ou mais propriamente cerca de 380 mil anos após o Big Bang, sendo assim possível estudar a evolução da taxa de expansão do universo até aos dias de hoje. O feito mais notável do BOSS foi medir a escala das oscilações bariónicas relacionadas com o horizonte sonoro com uma precisão imbatível de um por cento. Espera-se que o Instrumento Espectroscópico para a Energia Escura (DESI, na sigla inglesa), conhecido antes como BigBOSS, venha a trazer resultados ainda mais esclarecedores sobre a energia escura, a partir de 2018. PAULO AFONSO Astrofísico
N.R. – Paulo Afonso escreve segundo o novo acordo ortográfico, embora sob protesto. Interessante
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Observatório
Para onde foi o ar de Marte?
A OPINIÃO DO LEITOR Escola de afetos Sou leitora da SUPER há muitos anos e foi com muito orgulho que li o artigo “Designer” de Almas [SUPER 196], sobre uma nova joalheira, formada na escola onde eu andei, e muitas colegas minhas que aqui represento. Entre nós, tratamo-la por “escola dos afetos”, mas verdadeiramente o seu nome é Engenho & Arte e foi fundada por um mestre joalheiro a quem todas nós devemos muito. João Vilares fundou a E&A em 1999, e desde a sua criação a escola tem sido responsável pelo sucesso de muitas pessoas vindas das mais diversas áreas, que assim mudaram as suas vidas. Na escola, não é só proporcionado um bom ensino, também é [importante] o seu ambiente e tudo o que daí deriva. No meu caso pessoal, depois de uma vida de trabalho, realizei o sonho da minha vida. Já não vivo no Porto, mas a minha ligação à escola é eterna, porque foi lá que voltei a ser
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SUPER
feliz. Poderia contar aqui todas as histórias de que fui testemunha durante a minha passagem por lá, mas penso que melhor do que isso será contactar a escola e os alunos. Certamente encontrarão algo que vos vai surpreender. Joana Lima Vasconcelos (por email) Poderes da internet Relativamente ao artigo Os Poderes do Pão [SUPER 196], sou um apaixonado pela investigação na área da alimentação e como potenciar a nossa saúde com cada alimento que ingerimos. Não realizo investigação, mas estudo diariamente. Neste artigo, encontrei muita informação que é contraditória com quase tudo o que estudei nos últimos anos. Eventualmente, não tenho escolhido bem as investigações que leio para me informar. Por isso, gostaria de vos pedir que me facultem as investigações a que fazem referência no
vosso artigo, ou, pelo menos, os autores e os anos dos estudos que referem no artigo. Seguramente, dessa forma poderei ampliar os meus conhecimentos. Aproveito para dar os parabéns pelo excelente trabalho que realizam. Na mesma edição, o artigo referente ao exercício físico [Mexa-se!] é muito bom. Ricardo Santos (por email) N.R. – É precisamente para permitir aos leitores que assim o desejem irem às fontes, explorar as últimas descobertas ou invenções, que publicamos os nomes dos autores e/ou das publicações em que surgiram os estudos, quando essa informação é relevante. No caso vertente, é fácil localizar os estudos, basta fazer uma pesquisa na internet. O primeiro artigo referido, por exemplo, está acessível online, em http://www.bmj.com/ content/343/bmj.d6617. Para ter acesso a alguns dos outros, é necessário ser assinante das publicações.
Escreva para
[email protected]. Não podemos publicar todas as cartas, e as que publicarmos serão editadas.
NASA
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e tudo correr como previsto, no final de setembro, a nave Maven (Mars Atmosphere and Volatile Evolution), da NASA, entrará em órbita em torno de Marte e começará a estudar a ténue, mas nem por isso menos intrigante, atmosfera do planeta vermelho. Os planetólogos esperam que as medições da sonda lancem alguma luz sobre uma questão que anda a perturbá-los há décadas: se alguma vez existiu água líquida na superfície marciana, a atmosfera deveria ser muito mais densa (e o clima mais quente) do que na atualidade. É necessário que cerca de 99 por cento da atmosfera se tenham de alguma forma perdido no espaço, à medida que o núcleo do planeta arrefecia e desaparecia o seu campo magnético. Este facto teria permitido, além do mais, que o vento solar varresse da atmosfera a maior parte da água e de outros compostos voláteis. A Maven (http://www.nasa.gov/mission_pages/maven) determinará a história desta perda maciça, através do ritmo a que se ela processa atualmente.
Motor
Raio X Opel Corsa 2015
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Turbo elétrico
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eduzir o tempo de resposta dos turbocompressores convencionais é uma tarefa que muitos já tentaram. A Audi está agora em fase final de desenvolvimento de uma nova ideia, o turbo elétrico, não para substituir os turbos normais, mas montado em série. O tempo de resposta do turbo é uma consequência da reduzida velocidade dos gases de escape, a baixas rotações, incapaz de fazer a turbina rodar suficientemente depressa para o compressor aumentar a pressão do ar de admissão. Para resolver a questão, a Audi montou um turbo elétrico entre a saída do intercooler e a entrada do compressor do turbo “normal.” Este turbo elétrico não tem turbina: no seu lugar está um pequeno motor elétrico de 7 quilowatts, que acelera o seu compressor até ao valor estipulado de pressão máxima, em apenas 250 milésimos de segundo (à direita, na imagem). Deste modo, garante que o compressor principal recebe ar de admissão pré-comprimido, anulando o tempo de resposta a baixos regimes. À medida que a rotação do motor aumenta, sobe a velocidade dos gases de escape e o
turbo elétrico deixa de ser preciso. Por isso, existe uma válvula que o fecha, fazendo o ar circular diretamente do intercooler para o turbo convencional, através de um by-pass (à esquerda, na imagem). A energia necessária para fazer mover o motor elétrico vem sobretudo da regeneração na desaceleração e na travagem, existindo para isso uma rede de 48 volts montada no automóvel e uma bateria de iões de lítio, colocada na mala. A marca tem dois protótipos a circular com esta tecnologia. Um deles é um A6 3.0 TDI, com a versão de um só turbo, capaz de 326 cavalos e 650 newton-metros, disponível entre as 1500 e as 3500 rotações por minuto. O turbo elétrico entra em ação abaixo desse regime. O outro protótipo é um RS5 TDI, com a versão biturbo do mesmo motor, capaz de 385 cv e 750 Nm, entre as 1250 e as 2000 rpm. Outra função do turbo elétrico é eliminar o tempo de resposta, a seguir a cada passagem de caixa. A Audi anuncia que, no A6 3.0 TDI, a recuperação 80–120 km/h, em sexta velocidade, baixa de 13,7 para 8,3 segundos. A entrada em produção desta tecnologia está prevista para 2016.
Start/stop poupa
Elementar
ma associação norte-americana concluiu o óbvio, num estudo recentemente divulgado: que os condutores que usem modelos dotados de sistema start/stop (que desliga o motor, quando se para no trânsito, e o volta a colocar em funcionamento, quando se arranca) podem poupar até 133 euros por ano. Isto para um condutor norte-americano que faça 24 mil quilómetros por ano, com um carro que consuma 11 litros aos 100 km, de gasolina comprada ao preço médio dos EUA. Talvez assim se convençam os condutores que desligam o sistema, nos carros que o têm.
ade in England, o Elemental RP1 tem uma estrutura de carbono, com subchassis de alumínio e tração às rodas traseiras. A sua originalidade é que pode receber vários motores e o proprietário até pode mandar trocá-lo por um mais potente. No início, vão estar disponíveis dois, de origem Ford, o 2.0 Ecoboost, de 280 cavalos, e o 1.0 Ecoboost, de 150 cv, mas também se pode optar pelo motor da moto Honda Fireblade. Peso reduzido e caixa sequencial fazem o resto para garantir a diversão, em pista ou na estrada.
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Opel vai lançar em 2015 um novo Corsa. Será a quinta geração do utilitário alemão que tem tido grande sucesso, um pouco por toda a Europa. Apesar de manter a mesma plataforma, no novo Projeto 5000, as mudanças são muitas e a vários níveis, desde os motores às suspensões, passando pelas caixas de velocidades e não esquecendo o habitáculo, que foi totalmente reformulado. 1 – Uma das maiores novidades é o motor 1.0 Ecotec de três cilindros a gasolina. Tem injeção direta e turbocompressor e está disponível em dois níveis de potência: 90 e 115 cavalos. A Opel afirma que a presença de um veio de equilíbrio no motor lhe
Opinião
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Opel revitalizada
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cancela as vibrações típicas dos tricilíndricos. 2 – A caixa mais vendida será manual, de seis velocidades, mas as caixas automática e robotizada também são novas. 3 – A direção tem assistência elétrica, uma solução que rouba muito menos potência ao motor do que as assistências hidráulicas. 4 – O condutor dispõe de um botão City no tablier, que aumenta a assistência da direção, a baixas velocidades, para facilitar a condução em cidade. 5 – O centro de gravidade baixou 5 milímetros, melhorando assim a dinâmica, sobretudo nas fases transientes, ou seja, na entrada em curva, na travagem e na aceleração. 6 – As suspensões foram totalmente modifica-
das, recebendo novas especificações para molas e amortecedores, bem como uma geometria modificada, apenas se mantendo as mesmas soluções de base, com esquema MacPherson, à frente, e eixo de torção, atrás. O cliente pode optar entre dois acertos de suspensão, no ato de compra: Comfort ou Sport. 7 – Apesar de a plataforma ser a mesma, sem alteração do posicionamento ou da forma das zonas vidradas, todos os painéis exteriores da carroçaria receberam um novo desenho, inspirado no estilo do citadino Opel Adam. Também o interior foi totalmente modificado, com mais equipamento e materiais de melhor qualidade.
Japão incentiva células
O
governo japonês está a planear um programa de incentivos à compra de veículos movidos a células de combustível (fuel cells), que passa pela atribuição de um incentivo fiscal na ordem dos 15 mil euros aos compradores de um destes veículos movidos a hidrogénio. Deste modo, o executivo pensa estar a dar um forte apoio às marcas locais, que preparam a introdução de automóveis familiares Fuel Cell, com preços, sem o desconto governamental, a rondarem os 50 mil euros.
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s resultados do braço europeu do gigante norte-americano GM não têm sido brilhantes, na última década. A Opel tem passado por situações complicadas, algumas delas da responsabilidade da própria GM, como foi o caso da entrada (e saída) da Chevrolet no mercado europeu, uma decisão que acabou por prejudicar ambas as marcas. A dada altura, chegou a dizer-se que a GM poderia desistir da sua presença na Europa e, pura e simplesmente, vender a Opel a quem estivesse interessado. A verdade é que nada disso aconteceu. Pelo contrário, os norte-americanos puseram em prática um plano de revitalização como há muito não se via. A campanha de publicidade com utilização da modelo Claudia Schiffer é a parte mais visível desse plano, mas o programa de lançamento de novos modelos, nos próximos meses, é bem mais relevante. Entre eles está o novo Corsa, o modelo mais importante da Opel para o mercado europeu e aquele que tem mantido uma posição mais forte nos principais mercados, apesar das crises. Para a nova geração, a lançar no próximo ano, a GM foi cautelosa, reutilizando a mesma plataforma do modelo anterior e poupando cerca de 40 por cento no orçamento do novo modelo, mas modificou por completo o aspeto, tanto do interior como da carroçaria, pontos muitos sensíveis para os compradores. Depois, aproveitou o que está a desenvolver para todos os futuros modelos, desde os motores às caixas de velocidades, à eletrónica e aos sistemas de ajuda à segurança da condução. O novo Corsa parece, assim, bem preparado para enfrentar os principais rivais, que continuam a ser modelos como o VW Polo, o Renault Clio, o Peugeot 208 e o Ford Fiesta, entre outros. Resta saber a opinião dos compradores. É que o estilo, a par do preço, continuam a ser os principais fatores de decisão, neste segmento. FRANCISCO MOTA Diretor técnico do Auto Hoje
Interessante
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Caçadores de Estrelas
O cometa e a Rosetta
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primeira surpresa foi a obtenção de imagens em que a esperada forma de uma “batata ligeiramente deformada”, se revelou como duas “batatas” ligadas por uma região menos extensa. Procuram-se agora argumentos para possíveis explicações de como dois núcleos cometários gelados podem unir-se, em consequência, pensa-se, de um choque suave, por ambos se deslocarem em trajetórias semelhantes e com velocidades não muito diferentes. De tal facto resultou o que agora se denomina um “binário de contacto”. Satisfazendo as expectativas, a revelação de aspetos da escrita egípcia pela pedra da Rosetta, descoberta (em 1799) na ilha de Philae, no rio Nilo (onde foi construído o templo dedicado à deusa Ísis), transfere-se agora para a descoberta de elementos que tornarão mais precisas as ideias sobre a formação do Sistema Solar (com base na constituição dos cometas), determinada pela análise dos elementos de que são formados e dos fenómenos associados às suas passagens nas proximidades do Sol. Mais de dez anos depois de ter sido lançada no espaço, em março de 2004, de ter ganho “balanço” à custa de “gravidade assistida” proporcionada por uma passagem relativamente perto da Terra (março de 2005), seguida de uma outra por Marte (fevereiro de 2007) e, depois, mais duas vezes pelo nosso planeta (no mês de novembro de 2007 e de 2009), e de um “sono” que durou dois anos e meio, a Rosetta (uma nave da Agência Espacial Europeia) foi acordada para se encaminhar para o cometa 67P, também conhecido pelos nomes dos seus descobridores, Klim Ivanovych Churyumov e Svetlana Ivanovna Gerasimenko. O encontro, que ocorreu a 405 milhões de quilómetros da Terra, entre as órbitas de Marte e Júpiter, constituiu motivo para que milhões de espetadores em todo o mundo seguissem atentamente, no passado dia 6 de agosto, imagens (em direto) reveladoras de como a acumulação de conhecimentos e experiências pode conduzir ao resultado fantástico de uma missão como a que ainda decorre. Insensível à curiosidade que sobre si recaía, o cometa passava então a ser acompanhado – à interessante velocidade de 55 mil quilómetros por hora – pela Rosetta, que, ondulando à sua volta, vai obtendo imagens através da câmara OSIRIS (o nome do grande amor de Ísis) e de outros instrumentos, o que permitirá escolher
10 SUPER
o local de descida do módulo Philae (nome da ilha onde existe o templo da antiga divindade egípcia), o que acontecerá no próximo dia 11 de novembro. Será então ainda mais espetacular a manobra de descida e fixação da Philae sobre o núcleo do cometa, sendo o êxito dessa fase determinante para o sucesso global da missão. Depois, continuará a viagem até ao periélio (o ponto da sua trajetória mais próximo do Sol), que acontecerá em agosto do próximo ano, data em que já terão sido obtidos todos os elementos, que irão proporcionar investigações que se prolongarão por muito tempo. Agora, cerca de um mês depois do encontro entre a Rosetta e o 67P, ambos viajam no espaço, ainda bem para além da órbita de Marte, em direção às proximidades (cerca de 200 milhões de quilómetros) do Sol, onde todos
os equipamentos ficarão mergulhados no invólucro de gases e poeiras que envolverão o “binário de contacto” como resultado da sublimação dos gases congelados provocada pelo aquecimento solar. Até lá, será empolgante acompanhar a missão e perceber a beleza na conceção de conjugar a investigação científica (de que resulta sempre mais conhecimento) com a história e a mitologia. Milhares de anos depois de uma cultura notável ter marcado a história da humanidade, um projeto científico evoca o passado concretizando um outro marco histórico no conhecimento para além do tempo e do local em que atualmente vivem os terrestres. MÁXIMO FERREIRA Diretor do Centro Ciência Viva de Constância
Para grande surpresa dos cientistas, o cometa 67P não tem a forma esperada de uma “batata” (vagamente esférico), mas o de duas “batatas” unidas por uma espécie de “pescoço”. Em baixo, simulação do momento em que, em novembro, a Rosetta tentará fazer pousar na sua superfície a sonda Philae.
O céu de setembro
ESA
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céu noturno desta época vai preparando o cenário de “céu de outono”, com o desaparecimento – ao princípio das noites – da constelação do Escorpião e das suas companheiras da região do centro da galáxia (Sagitário e Ofíuco), deixando várias horas sem constelações muito evidentes. É verdade que, a norte, se avistarão, simultaneamente, a Ursa Maior e a Cassiopeia, mas, a sul, será necessária mais paciência e imaginação para identificar, por exemplo, o Capricórnio (onde se projetará a Lua no dia 6) ou, um pouco mais acima, o Golfinho ou a Seta. Esta última, simbolizando a seta que Hércules lançou à Águia para que esta parasse de atacar Prometeu e também algumas vezes referida com a “seta de Cupido”, situa-se ligeiramente acima da estrela Altair, a mais brilhante da Águia. Entre a Seta e o bico do Cisne (marcado pela estrela Albireo), encontra-se a Raposa, constelação que também não possui estrelas de brilho relevante mas em cujo “território” se situa uma nebulosa notável designada com o número 27 do catálogo de Messier e conhecida por “nebulosa do haltere”, devido ao seu aspeto. Teoricamente, a M27 é observável com binóculos, mas é bem mais interessante através de um telescópio médio. A constelação do Cisne é evidente se se considerar que as suas estrelas parecem desenhar uma cruz gigante. A cauda da ave é marcada pela estrela Deneb e o bico pelo binário (embora à vista desarmada pareça uma única estrela) Albireo. À direita de Deneb, situa-se Vega, a quarta estrela mais brilhante de todas as que se avistam de Portugal, depois de Sírio, Canópo e Arcturo. Vega é a a (alfa, a de maior brilho) da constelação da Lira, o instrumento que Hermes fez com a carapaça de uma tartaruga e ofereceu a Orfeu, que a tocava com tal beleza que tudo na natureza parava para o ouvir. Após a trágica morte de Orfeu, as musas pediram a Zeus que colocasse a Lira entre as estrelas do céu. Depois de Vega, as duas estrelas mais brilhantes da constelação, b e g (beta e gama), veem-se bem separadas. Entre elas, situa-se uma nebulosa em forma de anel que, com um binóculo, parece uma estrela, mas que a ampliação proporcionada por um telescópio mostra com a forma que lhe dá o nome. O “anel da Lira” é o que resta de uma estrela que implodiu, deixando à sua volta uma espécie de bolha de gás, ficando na parte central a estrela anã, que se reconstituiu com o restante material da estrela inicial. Com um bom telescópio e boas condições atmosféricas, avista-se o ponto luminoso no centro do anel. Interessante
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Mapa do Céu Como usar
Vire-se para sul e coloque a revista sobre a cabeça, de modo que a seta fique apontada para norte. Se se voltar em qualquer das outras direções (norte, este, oeste), pode rodar a revista, de modo a facilitar a leitura, desde que mantenha a seta apontada para norte. Os planetas e a Lua estarão sempre perto da eclíptica. O céu representado no mapa (no que se refere às estrelas) corresponde às 20 horas do dia 5. A alteração que se verifica ao longo do mês, à mesma hora, não é muito importante. No entanto, com o decorrer da noite, as estrelas mais a oeste irão mergulhando no horizonte, enquanto do lado este vão surgindo outras, inicialmente não visíveis.
As fases da Lua
Quarto Crescente Lua Cheia Quarto Minguante Lua Nova
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Dia 2 às 12h11 Dia 9 às 02h38 Dia 16 às 03h05 Dia 24 às 07h14
NORTE
Interessante
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SUPER Portugueses
O cavaleiro do Graal
Na batalha de Aljubarrota, a nobre cavalaria foi derrubada pelos mesteirais e pela arraia-miúda.
Este herói, flor da nobreza, foi também o introdutor em Portugal da tática militar da burguesia. Foi, ao mesmo tempo, um homem medieval e moderno…
P
ouco haverá por dizer acerc a de D. Nuno Álvares Pereira, mas não estará, talvez, muito claro no espírito dos portugueses o facto de toda a sua vida ter sido, de certo modo, um paradoxo. Por nascimento, pertencia a uma grande família, embora fosse – como D. João I – um bastardo. Nele, a bastardia era um reflexo dos costumes do alto clero medieval: o avô materno foi arcebispo de Braga: homem da Igreja, mas que, além de ter deixado prole, combateu bravamente na batalha do Salado, ao lado de Afonso IV – e ao lado de um filho seu, Álvaro, que, como prior da Ordem do Hospital, estava igualmente obrigado ao celibato, o que não o impediu de gerar 32 (trinta e dois!) filhos de várias mulheres. O mais novo, ou um dos mais novos, foi o nosso Nun’Álvares. No entanto, com este enquadramento e estes exemplos familiares (ou talv ez por causa
deles…), o rapaz cresceu com claras tendências ascéticas; o seu enlevo era a Demanda do Graal, o seu modelo D. Galaaz. É verdade que aos dezasseis anos aceitou, relutantemente, casar-se, e é verdade que terá sido um bom esposo para a mulher, D. Leonor Alvim; porém, logo que enviuvou, recusou os bons ofícios do rei, que queria arranjar-lhe outro casamento. Não há notícia de que tenha deixado bastardos. Isto, na época, era o que se pode chamar raro. Continuemos com os paradoxos: Nun’Álva res pertencia, como se disse, à nobreza, e a sua conceção de vida era a de um cavaleiro aristocrata. No entanto, e como sabemos, a tática que lhe deu as grandes vitórias contra os exércitos de Castela é uma tática que poderemos chamar burguesa, quando não, mesmo, popular: o essencial é a infantaria, os homens que lutam “pé terra”, que cravam no chão os cotos das suas lanças virados contra os cavalos dos grandes
senhores e a peonagem que contra eles lança pedras, dardos e virotões. Foi assim nos Atoleiros, foi assim em Aljubarrota, foi também assim em Valverde. Em todos esses campos, a nobre cavalaria foi derrubada pelos mesteirais e pela arraia-miúda…
OPÇÃO INABALÁVEL
A amizade
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pesar de ocasionais desacordos – um deles já referido no texto, outro pouco antes da batalha de Aljubarrota –, a amizade entre D. Nuno Álvares Pereira e D. João I ficou, na nossa história, como um exemplo de sentimentos fortes e de lealdade. A liga ção começou, de certo modo, antes mesmo que eles se conhecessem; Nun’Álvares foi apresentado na corte quando tinha somente treze anos, e a rainha, Leonor Teles, quis que ele fosse seu escudeiro e como tal o quis armar, ela própria. Não havia no paço arnês que lhe servisse, de modo que se mandou pedir ao mestre de Avis o arnês
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que ele usara quando tinha aquela idade, e com ele D. Nuno foi armado escudeiro. Este facto parece revestir-se (a posteriori) de um certo simbolismo. Por outro lado, é curioso notar que estes dois homens, um a cabeça política da revolução e outro a sua cabeça militar, eram ambos nobres, mas bastardos. A renovação do reino fazia-se, assim, pelas mãos de quem, pela sua qualidade, quebrava a tradição e as velhas práticas. A amizade entre o rei e o seu condestável durou toda a vida. Quando Nun’Álvares agonizava no Carmo, tinha junto de si D. João I e também o futuro rei, o infante D. Duarte.
Outro paradoxo é a sua opç ão política. Nun’Álvares começou por ser inquebrantavel mente leal ao seu rei, que era D. Fernando I. A lógica de classe e o seu próprio interesse tornariam natural que, por morte de D. Fernando, transferisse a sua fidelidade para a única filha legítima do rei, D. Beatriz. Porém, como se sabe, não o fez. Ligou-se a uma causa a que ainda não poderemos talvez chamar nacional, mas que era certamente o que de mais próximo havia: deu a sua fidelidade ao mestre de Avis, a uma revolução de futuro muito incerto e forças inicialmente muito débeis. Praticamente, toda a sua família estava no campo inimigo; só um irmão, Fernando, ficou a seu lado. Não faltaram os apelos familiares para que mudasse de tenção. Logo após o levantamento de Lisboa e a morte do conde Andeiro, Nun’Ál
D. NUNO ÁLVARES PEREIRA A ousadia
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Crónica do Condestabre narra vários feitos de Nun’Álvares que nos mos tram, para além do estratego, o guerreiro cheio de humor. Talvez a proeza mais conhecida entre todas seja a da traves sia do Tejo: o rei de Castela levantara o cerco a Lisboa e fizera incendiar o arraial, mas a frota castelhana continuava diante da cidade. Nun’Álvares, que estava na outra banda, tinha urgência em falar com o mestre de Avis, que se mantivera em Lisboa durante o cerco. Decidiu, por isso, atravessar o rio com alguns dos seus, em dois batéis, durante a noite, passando discretamente entre os navios castelhanos. Isto era o que os seus com panheiros julgavam: quando os batéis se encontravam bem no meio da frota inimiga, Nun’Álvares mandou tocar rijamente as trombetas. Foi o alerta geral nas tripulações castelhanas; quando per ceberam o que se passava, já os batéis tinham chegado à margem, a salvo.
vares, que decidira juntar-se ao Mestre, teve de vencer a enérgica oposição do irmão mais velho, D. Pedro Álvares Pereira, prior do Crato, que depois enviou a mãe de ambos a Lisboa para tentar convencer o jovem Nuno a ouvir a voz da “razão”; sem resultado. Mais tarde, antes da batalha dos Atoleiros, de novo o Prior enviou um emissário ao seu casmurro irmão, com apelos e grandes promessas de benefícios – o casmurro, porém, bateu o pé e derrotou o irmão mais velho, que saiu ferido da batalha. É igualmente sabido que em Aljubarrota, pouco antes do início da ação, D. Pedro Álvares Pereira fez uma derradeira tentativa para que Nuno se passasse para o seu lado. A resposta foi mais um “não” indignado e Pedro Álvares Pereira não pôde fazer mais tentativas porque viria a morrer na batalha. Um outro irmão, Diogo, que também combatia por Castela, foi aprisionado e os soldados portugueses acabaram por matá-lo. Tudo isto, aos nossos olhos, pode parecer, digamos, normal, de um ponto de vista patriótico, mas estava-se nos finais do século XIV; a noção de pátria ou de nação não era ainda mais do que um germe que levaria o seu tempo a medrar. Assim, temos de admitir que Nun’Álva
res, grande fidalgo, era, ao mesmo tempo, um agente muito ativo da revolução, da mutação social que estava em curso. Ora, se se pode falar em sentimento nacional na época (incipiente, no mínimo), esse sentimento, a existir, estaria mais na arraia-miúda do que na aristocracia.
ORGULHO E HUMILDADE
Conta-se que, quando D. Fernando assinou o contrato de casamento da sua filha com o rei Juan I de Castela, este veio um dia a Elvas, com a sua gente, e aí lhe foi servido um lauto almoço em que participaram os fidalgos portugueses e os castelhanos. Nun’Álvares – então muito jovem – fora convidado, com o seu irmão Fernando, mas quando ambos entraram na sala viram que os seus lugares, à mesa, haviam sido tomados e não havia outros. Então, sem hesitar, Nuno pegou na ponta de uma mesa e virou-a de pernas para o ar, após o que saiu, ind i ferente à confusão. Orgulho de jovem fidalgo, dir-se-á, e era verdade. Ao longo da sua vida, já mesmo amadurecido, o Condestável deu outros sinais de que não aceitava ser tratado sem respeito – ficou, aliás, célebre uma zanga com o rei, a propósito
de umas terras que Nun’Álvares dera a companheiros seus: devido a essa zanga, o vencedor de Aljubarrota partiu para a fronteira, anunciando que abandonava o reino e ia fazer a sua vida noutros lugares. Foi preciso D. João I enviar-lhe vários emissários, não ordenando, mas pedindo, que ficasse. No entanto – outro paradoxo… – poucos, entre os aristocratas que se votaram à religião, mostraram uma tal humildade como a que ele mostrou ao professar no Convento do Carmo, em Lisboa, que fundara. “Frei Nuno”, que se despojara de todos os seus bens (e não poucos foram dados aos pobres), andava coberto de remendos e teimava em ir pela cidade pedindo esmola para comer. Isto da parte do antigo condestável do reino, antigo mordomo-mor, conde de Ourém e de Barcelos! Foi preciso que D. João I e o infante D. Duarte, herdeiro do trono, lhe suplicassem que não fizesse tal, que, pelo menos, não andasse a pedir por Lisboa. D. Nuno Álvares Pereira, que nasceu em 1360, morreu no Convento do Carmo em 1431. Setenta e um anos de vida, portanto. Beato? Santo? Não custará a crer. Mas, de certeza, um Super-Português. JOÃO AGUIAR
N.R. – Este artigo foi publicado originalmente na SUPER 107; João Aguiar faleceu em 2010. D. Nuno Álvares Pereira foi canonizado pelo papa Bento XVI, em 2009, com o nome de São Nuno de Santa Maria. Interessante
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Histórias do Tejo
A peleja de 1384
D. João I mandou reunir em Lisboa todos os navios que pudessem opor-se à armada espanhola. Na imagem, gravura de Roque Gameiro mostrando o estaleiro naval da Ribeira das Naus, em Lisboa.
Pouco antes de Aljubarrota, naus castelhanas entraram no Tejo e cercaram Lisboa. Alguns navios portugueses com mantimentos para a cidade sitiada ainda conseguiram atravessar o bloqueio, numa batalha em que Portugal perdeu três naus e o comandante da frota, mas o cerco manteve‑se, até os marinheiros de Castela serem derrotados pela peste negra.
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a última vez que Lisboa se vira cer‑ cada, um rei português – Afonso Henriques – estava do lado de fora. Mais de 200 anos depois, os portu‑ gueses encontravam‑se dentro das muralhas, a tentar resistir ao poderoso invasor caste‑ lhano, e o Tejo voltou a ter um papel prepon‑ derante, novamente a nosso favor. O caminho para o ataque ao reino de Por‑ tugal começou a ser traçado a 17 de maio de 1383, em Badajoz. Nesse dia, na cidade fron‑ teiriça, D. Fernando, o nono rei português e o último da dinastia dos Borgonha (de Henrique de Borgonha, pai de Afonso Henriques), casou a sua única filha, Beatriz, de dez anos, com o rei D. João I de Castela, dezasseis anos mais velho. Era, obviamente, um casamento de con‑ veniência, muito bem pensado pelas melhores mentes políticas em redor do monarca e que serviria de ponto final às constantes guerras entre os dois países. A opção pelo castelhano em detrimento de um príncipe inglês ou fran‑ cês, quando os nossos vizinhos mantinham vivas as pretensões à anexação de Portugal, seria compensada pelo Tratado de Salvaterra de Magos: o filho dessa união viria para Lisboa aos três meses de idade e ocuparia o trono com a morte de D. Fernando. Evitava‑se, desse modo, que o soberano unisse os dois estados sob a mesma coroa. Os tratados, nesse e noutros tempos, não valiam a cera com que eram selados. D. Fer‑ nando morreu daí a sete meses, tuberculoso,
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com apenas 37 anos, e logo João de Castela esfregou as mãos de cobiça. D. Leonor, viúva do monarca português, autoproclamou‑se regente em nome da filha e do genro, com o amante galego conde Andeiro ao seu lado e a contragosto do povo. Um grupo de nobres, apoiado pelos poderosos mercadores de Lis‑ boa, viu aqui uma oportunidade para abrir as hostilidades com Castela e colocar no trono João, mestre da Ordem de Avis e filho bastardo de D. Fernando. O conde Andeiro tornou‑se a primeira vítima do conflito, trespassado pelo mestre de Avis, com a estocada de miseri‑ córdia a ser desferida pelo barão Rui Pereira, tio de um militar de 23 anos chamado Nuno Álvares Pereira.
INVASÃO E CERCO
A resposta, previsível, foi a invasão de Por‑ tugal. Se Lisboa não se entregasse de boa von‑ tade, seria tomada pela força. A tarefa não se adivinhava fácil, nem mesmo para o maciço exército de João I de Castela. D. Fernando fortificara a capital, alargando as muralhas e erguendo 77 torres defensivas. Só pela fome, cortando o abastecimento de comida, Lisboa cairia. No dia 29 de maio de 1384, as forças estrangeiras fecharam o cerco. Largos milha‑ res de soldados circundaram as fronteiras ter‑ restres da imponente cidade, enquanto uma numerosa frota soltou amarras à porta do Tejo (mas a uma distância segura das perigosas tor‑ res defensivas), para impedir a entrada de bar‑
cos com provisões. João, mestre de Avis, ficou preso dentro de muros. Antes do bloqueio, os conselheiros do novo rei anteviram a estratégia naval – ou melhor, fluvial – de Castela. O bispo de Braga, que acompanhava o mestre de Avis, fora então incumbido de reunir todos os navios disponí‑ veis no território aliado e formar uma armada que fosse capaz de enfrentar a frota inimiga. Entre Lisboa e o Algarve, D. Lourenço juntaria 13 galés e sete naus, recheadas por uma tripu‑ lação de três mil marinheiros e 800 soldados. Uma força de respeito, mas ainda insuficiente para combater a esquadra castelhana que se aproximava do Tejo. Duas semanas antes de Lisboa se ver sitiada, já os navios zarpavam em direção ao Porto, para tentarem recrutar mais embarcações de guerra e regressar com preciosos mantimentos para a população alfa‑ cinha. Na Cidade Invicta, a armada lusa foi refor‑ çada com mais quatro galés e dez naus, ele‑ vando o número de embarcações para 34,
Este artigo é uma adaptação de um dos capítulos do livro Histórias do Tejo, de Luís Ribeiro (A Esfera dos Livros, 2013) http://bit.ly/1hrY8Zc
Salvação tripeira
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Porto foi o grande salvador de Lis‑ boa durante o duro cerco de quatro meses e 27 dias, entregando quase todos os seus mantimentos guardados à armada portuguesa que se dirigia ao Tejo. Um sacri‑ fício que deixou a Invicta à míngua, sem um singelo pedaço de carne para alimentar os seus. Diz‑se que a necessidade faz o enge‑ nho – e, juram algumas crónicas, dessa ca‑ rência nasceu um dos mais famosos pratos portugueses. Como só restavam na cidade miudezas, como intestinos e estômago de vaca, os portuenses puxaram pela imagina‑ ção e inventaram as tripas à moda do Porto. Ainda hoje os naturais da cidade são conhe‑ cidos popularmente por “tripeiros”.
incluindo cinco grandes naus de guerra. Os líderes da expedição, Rui Pereira e o alcaide de Coimbra, D. Gonçalo, acreditavam que seria suficiente para desbaratar os castelhanos fun‑ deados no rio de Lisboa e decidiram partir. O jovem condestável Nuno Álvares Pereira, líder das forças portuguesas, bem enviou mensagens ao tio, a implorar‑lhe que espe‑ rasse por ele e pelo exército que o acompa‑ nhava, no caminho para o Porto, para encher as embarcações com mais umas centenas de homens armados. Em vão. Rui Pereira não estava muito animado com a possibilidade de ser liderado por um rapazola e apressou‑se a levantar vela. Pagaria cara a soberba. No Tejo, entre Belém e Santos, aguardavam‑no 53 bar‑ cos de guerra: 13 galés e 40 naus castelhanas apinhadas de besteiros, arqueiros e lanceiros. O comandante era o experiente e genial almi‑ rante Fernando Sánchez de Tovar, veterano da Guerra dos Cem Anos e que até já derrotara uma esquadra portuguesa ao largo de Huelva, três anos antes – e em inferioridade numérica.
D. João de Castela ainda pensou em aban‑ donar o rio e intercetar os navios lusos ao largo das Berlengas, mas um dos seus capi‑ tães convenceu‑o a não arriscar: a nortada poderia arrastar as naus para sul da foz do Tejo, e as galés, movidas a remos, ficariam por sua conta, o que conduziria inevitavelmente a uma derrota naval. Não. A batalha lutar‑se‑ia em pleno estuário.
FURAR O BLOQUEIO
A frota portuguesa chegou a Cascais a 17 de julho, e aí fundeou, a preparar‑se para o combate. Entretanto, chegou aos ouvidos do mestre de Avis (com 26 anos, na altura) que o seu amigo Nuno Álvares Pereira e respetivo exército não haviam embarcado, e que os bar‑ cos estavam muito longe da força de braços necessária para um embate com a armada ini‑ miga. D. João ordenou, assim, que a esquadra se limitasse a furar o bloqueio para entregar os víveres à cidade, evitando, tanto quando possível, engrenar em refregas.
Eram nove da manhã de 18 de julho quando a frota lusa virou a ponta de São Julião da Barra, o local onde se edificaria o grande forte, 180 anos mais tarde. A hora foi bem escolhida: a maré enchia e o vento bafejava de oeste, facilitando a navegação para montante. Na coluna da esquerda, mais perto da margem de Lisboa, vinham as cinco maiores naus, capi‑ taneadas por Rui Pereira, a proteger as outras duas colunas, formadas pelas galés e pelas naus mais pequenas. Os barcos de guerra castelhanos logo saíram no seu encalço, procurando abalroar as embar‑ cações portuguesas. Algumas naus portugue‑ sas afrontaram‑nas e as outras fintaram‑nas. Seguiu‑se um furioso combate de estratégia e de navegação milimétrica. Um jogo de xadrez flutuante. Gorados os abalroamentos, a batalha alicerçou‑se nas flechas e lanças arremessadas entre conveses e em tentativas de abordagem. Nada de guerra de fogo. Os canhões ainda esta‑ vam na sua aurora e não eram suficientemente fiáveis para fazer deles peças decisivas numa batalha. Montar estas peças de artilharia precá‑ rias e traiçoeiras num navio mais depressa leva‑ ria a contenda a inclinar‑se para o lado errado, tão comuns eram as explosões. Interessante
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Histórias do Tejo
A peste negra dizimou o exército espanhol, forçando-o a levantar o cerco. Na imagem, iluminura da Bíblia de Toggenburg (1411).
Paulatinamente, os navios que pelejavam foram empurrados para a zona de Cacilhas e Almada, afastando‑se de Lisboa. No pico da batalha, as maiores naus lusas – com os curio‑ sos nomes de Milheira, Estrela, Farinheira e Sangrenta – viram‑se rodeadas pelas espanholas. Três delas não escaparam e foram capturadas pelos castelhanos. Na brutal troca de flechas, Rui Pereira acabou por ser atingido com um tiro de besta na testa. No calor do momento, talvez impelido pela fogosidade da juven‑ tude, o rei D. João de Portugal seguiu para as docas, meteu‑se numa nau, na companhia de 400 homens e mais alguns barcos de apoio, e tentou descer o rio para auxiliar os compa‑ triotas. Acabou arrastado pelo vento e pela maré rumo ao mar da Palha, e só com muita destreza os seus marinheiros conseguiram voltar à cidade. O sacrifício de algumas peças resultou, se não num xeque‑mate, pelo menos num empate técnico que poucos julgariam ser pos‑ sível face ao poderio castelhano. Os 31 barcos que atravessaram o bloqueio aproximaram‑se o suficiente das muralhas – inundadas de bes‑
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teiros e lanceiros – para obrigar as naus e galés perseguidoras a recuarem para o Restelo. As embarcações lusas carregadas de mantimen‑ tos aportaram em segurança nas docas da capital. Os castelhanos, frustrados, regressa‑ ram aos seus postos.
VENCIDOS PELA PESTE
O êxito português significava que a cidade conseguiria sobreviver mais algum tempo do que o esperado ao cerco, mas não muito. A comida transportada não era tanta como se previa e, além disso, os navios vinham cheios de bocas que também teriam de ser alimen‑ tadas. O mestre de Avis concluiu que a única saída era enfrentar de novo os castelhanos numa batalha naval, depois de descansados os tripulantes. Entretanto, chegaram ao Tejo mais 21 naus e três galés inimigas, que obriga‑ ram o monarca português a abandonar de vez os intentos bélicos. O almirante Fernando Sánchez de Tovar, por seu lado, acreditou que o reforço seria suficiente para atacar as muralhas pelo rio. Nove dias depois do conflito fluvial, lançou
a sua impressionante armada contra Lisboa, mas as fortificações tinham fama de inexpug‑ náveis por alguma razão. Sánchez de Tovar foi impiedosamente derrotado. Para lavar o orgu‑ lho, atirou‑se contra a fortaleza de Almada, conquistando a cidade da outra banda. O cerco à capital não durou muito mais tempo. Um aliado inesperado veio salvar D. João e os alfacinhas: a peste negra. Os soldados forasteiros morriam às dúzias, dia‑ riamente, até que João de Castela teve de ordenar a retirada, mantendo apenas a esqua‑ dra ancorada no Tejo. A situação dos invaso‑ res tornou‑se desesperadamente definitiva quando a epidemia se alastrou aos marinhei‑ ros – matando o próprio almirante castelhano. A 3 de setembro de 1384, os últimos navios inimigos dobraram a ponta de São Julião para não mais voltarem. Menos de um ano depois, o exército dos nossos vizinhos seria dizimado na batalha de Aljubarrota, terminando de uma vez por todas com as aspirações de João de Castela ao trono português. A.R./L.R.
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História Mesquita vestida de igreja
A herança ÁRABE
Uma igreja que oculta uma mesquita ou uma mesquita vestida de igreja? Parece estranho, mas é o que podemos encontrar em Mértola, a vila mais “islâmica” do país.
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a antiga Mirtolah árabe, que já tinha sido a Mirtilis romana, no Baixo Alentejo, ainda restam vestígios, artefactos, pedacinhos do passado que ajudam arqueólogos e historiadores a reconstituir o que foi a ocupação árabe em Portugal. Uma tarefa difícil: apesar de o domínio islâmico ter deixado tão profundas e importantes marcas na nossa história, há poucos testemunhos materiais da extensa permanência mourisca: a política de “terra queimada “ da Reconquista encarregou-se de fazê-los desaparecer. A Igreja Matriz de Mértola (ou Igreja de Nossa Senhora da Anunciação) constitui, pois, uma valiosa exceção, já que se trata do único exemplar que resta no país em que se podem encontrar vestígios da arquitetura religiosa islâmica. Com efeito, ainda é possível reconhecer traços da antiga mesquita do século XII, de cujo minarete os crentes eram convocados para as cinco orações do dia. Assim foi até 1238, ano em que os cavaleiros da Ordem de Santiago, também conhecidos por “matadores de mouros”, tomaram a vila e decidiram reaproveitar o templo muçulmano para uso cristão.
O NICHO DA ORAÇÃO
A primitiva configuração do edifício seria definitivamente alterada, no século XVI, para se converter num templo católico, mas diversos elementos decorativos e arquitetónicos permitem reconstituir a velha mesquita. Assim, a construção quadrangular, de fachada plana encimada por curiosos pináculos cónicos,
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segundo a tradição islâmica, ainda conserva daquela época as quatro portas estreitas de acesso, com cerca de um metro de largura, que terminam em arcos em forma de ferradura, além dos muros exteriores do edifício. A antiga mesquita era um pouco maior do que a igreja que hoje vemos, pois tinha seis tramos, em vez dos quatro atuais, suportados por vinte colunas, enquanto agora existem doze. Por detrás do altar-mor, um recanto poligonal mostra que era ali que se situava o mihrab, como se denominava o nicho de oração que indicava aos fiéis a direção de Meca. Orientado a sueste, seria apenas descoberto durante as obras de restauro efetuadas nos anos 40 do século passado. Constitui sem dúvida o elemento mais importante conservado e, segundo diversos arabistas, a sua estrutura e decoração, com arcos cegos e pequenas volutas esculpidas em gesso, lembram as da Mesquita de Almería, em Espanha, e as das do norte de África. No reinado de D. Manuel I, a remodelação iniciada devido ao estado avançado de degradação do templo encerrou o mihrab e algumas das entradas primitivas. Desapareceu o teto de madeira policromada que existia sob os cinco telhados de duas águas que cobriam cada uma das naves, semelhante ao da Mesquita de Córdoba (hoje, passou a ser de duas águas). O que atualmente sobressai na Igreja Matriz de Mértola é esse singular semblante almóada-manuelino, que resulta tanto da preservação da estrutura primitiva da antiga mesquita islâmica como das transformações sofridas no século XVI, com o estilo manuelino a impor-se
Noiva secular. Em baixo, pormenor do mihrab e de uma porta de arco em ferradura, e vista geral do interior da nave da Igreja Matriz de Mértola.
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Gótico do mar. A intervenção do século XVI conferiu à igreja aspetos manuelinos.
A lenda do lobo
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história não passa apenas pelo património edificado ou pelo que dele resta. Também a natureza nos dá testemunho do que foi (ou é) a passagem do homem e da sua relação com os locais. A região de Mértola está inextricavelmente associada ao Guadiana, que lhe trouxe desenvolvimento e riqueza – e também o declínio –, mas a sua história não se esgota nas memórias de um porto ou de um rio navegável. A montante da vila, o Pulo do Lobo é a maior queda de água do sul do país, com as águas a caírem de uma altura de mais de 20 metros e a
A maior queda de água do sul do país.
afundarem-se num mar de espuma. Descem depois por uma garganta rochosa e vão desaguar num lago tranquilo. As margens altas e pedregosas juntam-se tanto que diz a lenda que um lobo em caça (ou a ser caçado) as transpõe de um salto, e daí o nome. Uma versão mais encantatória reza que foi aqui que morreu o homem-lobo que pulava sobre o Guadiana em busca do seu amor: quando a natureza se impõe e a mão do homem em nada interfere, restam as tradições, os mitos e as lendas, ou histórias de contrabando como as que rodeiam o Pulo do Lobo.
Mértola é atualmente um verdadeiro museu ao ar livre nos capitéis e nas abóbadas onde as ogivas dos tramos se cruzam. No entanto, o edifício incorpora igualmente vestígios de construções anteriores, datados das épocas romana e visigótica, como foi descoberto pela equipa de arqueólogos e outros especialistas que ali realizou uma intervenção destinada a recuperar o monumento em 2003. O arqueólogo Claúdio Torres integrava esse grupo, mas já chegara a Mértola muito antes, em 1978. Vinha para desenterrar os segredos do Gharb Al-andalus (“ocidente do Andalus”), área que correspondia aos futuros territórios de Portugal e de Espanha, e não parou de descobrir coisas ao longo de mais de três décadas. Com essa primeira escavação sistemática da arqueologia portuguesa, Mértola mudaria para sempre. Veria renascer o bairro almóada, situado ao lado do castelo, erguido no século XIII sobre a antiga alcáçova, e veria surgir,
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pouco a pouco, os diferentes pontos de interesse que fazem a vila ser descrita como um museu ao ar livre, nomeadamente o Núcleo Romano, o Núcleo Visigótico, o Núcleo e a Basílica Paleo-Cristã ou o mais recente Núcleo de Arte Islâmica do Museu de Mértola, inaugurado em 2001 para ilustrar as descobertas das intervenções arqueológicas e do estudo do período muçulmano. O espólio cerâmico inclui a maior coleção de artefatos decorados com vidrado em “corda seca” (mais valioso e requintado), uma técnica decorativa que seria posteriormente difundida pela azulejaria quinhentista. Exibe igualmente estelas funerárias encontradas no cemitério islâmico da vila, algumas joias, loiças e ferramentas, diversos fragmentos arquitetónicos e duas maquetas que representam a antiga mesquita e uma casa típica do final do século XII.
A IMPORTÂNCIA DE UM RIO
Toda esta riqueza do passado deve-se em grande parte à localização de Mértola, sobranceira ao Guadiana, cujas origens remontam à época dos fenícios, que subiam o último troço navegável do rio para comerciar e ali construíram um importante porto, mais tarde aproveitado pelos romanos e, depois, pelos árabes. Com efeito, após a invasão dos povos do norte de África, chefiados por Tarik, no ano 711, Mértola passou a ter o porto mais ocidental do Mediterrâneo e tornar-se-ia um centro dinâmico e próspero. Com a conquista da região pelos cristãos em 1238, durante o reinado de D. Sancho II, começaria a perder importância. Porém, seria apenas com o desvio das rotas comerciais para o Tejo que se iniciaria um verdadeiro percurso de declínio, o qual culminaria, séculos depois, já no nosso tempo, com o encerramento das minas de São Domingos, principal empregador da zona. Assim, Mértola mergulharia num longo sono sob o sol alentejano, com a vila votada ao abandono e ao esquecimento. Tudo isso a arqueologia mudou. O domínio islâmico fez-se sentir sobretudo
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no sul do país, onde deixou marcas que influenciariam definitivamente a cultura portuguesa. Esse conjunto de povos – sobretudo de origem berbere, mas também sírios, egípcios e outros – permaneceu seis séculos em Portugal, num clima de tolerância com os costumes locais e promovendo laços económicos e culturais entre cristãos e muçulmanos. A sua influência fez-se sentir, em particular, na arquitetura (vejam-se os terraços das casas algarvias, por exemplo), nas artes decorativas (em especial, os azulejos), ou na agricultura, com a introdução de novos cultivos e métodos de regadio. Contudo, há muito desse passado que se perdeu, e talvez seja pela escassez de vestígios que Mértola e a sua Igreja Matriz suscitam tanto interesse. Duarte de Armas, escudeiro da Casa Real e encarregado por D. Manuel I de desenhar a vila e os seus monumentos em 1509, escreveria na legenda que acompanhava o esboço que fez do templo: “Igreja que foi Mesquita”. É o que ainda sente quem visita o edifício, que nunca perdeu a memória intrínseca de ser uma mesquita transformada em igreja.
A mina fantasma
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pouca distância de Mértola, a povoação fantasma de São Domingos ainda permite imaginar a época áurea em que a exploração do filão mineiro proporcionou à região tempos de prosperidade. Já exploradas pelos romanos, que ali procuravam cobre, ouro e prata, as minas conheceriam um grande desenvolvimento no século XIX, quando uma empresa inglesa, a Mason and Barry, se instalou no local e construiu uma aldeia para alojar patrões e trabalhadores. Ainda hoje é possível observar a zona “britânica”, com os seus jardins e casas espaçosas, e as fileiras de modestas casinhas caiadas dos mineiros. Ao longo de mais de um século, foram extraídos muitos milhões
Ruínas e poluição: o legado das minas de São Domingos.
de toneladas de minério (sobretudo cobre) até que o filão se esgotou, Com o encerramento da mina, em 1966, muitos mineiros foram obrigados a procurar trabalho noutras zonas ou a emigrar. A região de Mértola mergulhou na depressão económica e perdeu mais de metade da população do concelho. Atualmente, podemos ver as ruínas das minas abandonadas, rodeadas de lagoas de águas ácidas, onde se procedia à decantação. Cá fora, mais ruínas de edifícios, linhas férreas e outras estruturas conferem à paisagem o tom irreal e, simultaneamente, fascinante dos locais que conheceram bulício e azáfama e dormem agora o sono do abandono.
I.J.
Interessante
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Tecnologia Os 80 anos dos flechas de prata
Uma história DOURADA Foi há 80 anos que nasceram os famosos “flechas de prata”, os carros alemães de Grande Prémio que dominaram as corridas antes da Segunda Guerra Mundial. Tudo começou com um Mercedes-Benz que pesava mais do que devia.
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inda hoje a Mercedes-Benz usa a expressão “flechas de prata” quando se refere aos seus modelos de competição. Os melhores exemplos atuais são os seus Fórmula 1, que têm dominado a época de grandes prémios de 2014. Tudo começou há exatamente 80 anos e por uma razão invulgar. Uma imprecisão na preparação do monolugar da marca, o W25, fez com que não cumprisse o regulamento. Estava-se na véspera da Corrida Internacional do Eifel, disputada no temido circuito do Nürburgring. A equipa liderada por Alfred Neubauer levou o W25 às verificações técnicas e, durante as pesagens, os comissários técnicos concluíram que, segundo os regulamentos que obrigavam a pesar os monolugares sem líquidos a bordo e sem pneus, a balança acusava 751 quilos, exatamente um quilo a mais do que o limite máximo permitido. Desde a Taça Gordon Bennett, disputada em 1900, que tinham sido atribuídas cores aos concorrentes de cada país, nas grandes corridas internacionais, de forma a melhor informar os espetadores das suas nacionalidades. Assim, os carros de concorrentes ingleses corriam de verde, os franceses de azul, os italianos de vermelho e os alemães de branco. Num rasgo de génio, Neubauer deu ordem aos seus mecânicos para rasparem a tinta branca que pintava os dois W25 inscritos na prova. Durante toda a noite, os homens da Mercedes-Benz fizeram o seu trabalho e, pela manhã, os dois W25 tinham a sua chapa de alumínio com-
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pletamente despida de tinta, exibindo o típico tom prateado deste material. Voltaram aos comissários e o peso estava agora exatamente nos 750 kg: já podiam participar na corrida. Manfred von Brauchitsch, um dos pilotos da equipa, levaria o Mercedes-Benz sem tinta à vitória, numa corrida a que assistiram nada menos do que 200 mil espetadores. Era a primeira prova do modelo W25 e a sua primeira vitória, razão suficiente para alguém o apelidar imediatamente de “flecha de prata”, a cor que passou a ser usada pelos carros alemães de Grande Prémio.
OS GRANDES PRÉMIOS
Na década de 1930, estava-se a vinte anos de ver nascer a Fórmula 1. O topo da competição automóvel era então representado pelas corridas de Grande Prémio, organizadas em vários circuitos europeus. A homogeneização dos regulamentos técnicos não era uma constante no início da década, o apoio oficial dos construtores era quase inexistente e as participações estavam entregues a entusiastas endinheirados, capazes de comprar um Bugatti ou um Maserati para ir fazer corridas com ele. A Alfa Romeo, apoiada pelo regime de Mussolini, foi a primeira marca a apostar forte e a recolher os louros: entre 1932 e 1934, ganhou 92 por cento das 62 corridas em que se inscreveu. Além da falta de concorrentes à altura, tinha dois grandes trunfos: aos seus serviços estava um verdadeiro génio do volante, Tazio Nuvolari, o melhor piloto do mundo na altura, e a equipa que tratava da
Golpe de génio. Depois de terem passado a noite a raspar a tinta do Mercedes-Benz W25, os mecânicos esperam na grelha pela partida da corrida internacional de Eifel no circuito do Nürburgring, a 3 de junho de 1934. O vencedor foi Manfred von Brauchitsch (página oposta, em baixo), precisamente ao volante do W25.
preparação, da assistência e da manutenção dos seus carros era a já então famosa Scuderia Ferrari. Nesta altura, Enzo Ferrari ainda não se tinha dedicado a fabricar os seus próprios modelos de competição; isso só aconteceria em 1947. Em 1933, os alemães da Mercedes-Benz e da Auto Union entraram nos Grandes Prémios e nada voltaria a ser como dantes. No primeiro ano, a Alfa Romeo e a Maserati ainda conseguiram dar alguma réplica, depois de terem atualizado os seus carros, mas os anos seguintes viriam a mostrar um domínio absoluto dos monolugares alemães. A Auto-Union foi formada em 1932 com a fusão de quatro marcas (DKW, Wanderer,
FOTOS: MERCEDES-BENZ E AUDI
Hörch e Audi), numa tentativa de resistir à difícil situação económica provocada pela Grande Depressão. A sua entrada no circuito dos Grandes Prémios foi uma maneira de promover a imagem da nova marca e dos seus produtos, o que viria a resultar numa grande subida nas vendas. Mais tarde, em 1964, a Volkswagen compraria a Auto-Union, rebatizando-a como Audi mas mantendo como símbolo os quatro anéis entrelaçados (que representavam as quatro marcas originais) até aos dias de hoje. Para a sua entrada nos Grandes Prémios, recorreu aos conhecimentos de Ferdinand Porsche, que projetou os Tipo A com motor central/traseiro. Para a Mercedes-Benz, a situação era bem Interessante
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Conduzir aqueles monstros era como guiar sobre gelo diferente: tratava-se apenas de voltar à competição, depois de uma presença regular desde o princípio do século, e sobretudo de aproveitar os incentivos oferecidos pelo governo nazi. De facto, Adolf Hitler, que tinha subido ao poder em 1933, viu nas corridas de Grande Prémio mais uma boa maneira de propagandear a supremacia germânica, atribuindo uma quantia equivalente a metade do orçamento que a Mercedes-Benz tinha delineado para a época de 1934, além de prémios por vitórias. Quando a Auto-Union se mostrou interessada, essa soma acabou por ser dividida pelas duas marcas. No entanto, a escalada de custos nos anos seguintes rapidamente viria a demonstrar que os 450 mil marcos nazis atribuídos à Mercedes-Benz e à Auto-Union (metade a cada uma das marcas) não cobriam nem um décimo do orçamento anual. Ainda assim, ambas as equipas tiveram de pintar cruzes suásticas nos seus carros.
REGULAMENTO MÍNIMO
No início da década de 1930, as limitações do regulamento técnico eram quase inexistentes, abrindo espaço para motores cada vez maiores e mais potentes, muitas vezes acoplando dois motores para obter um maior. O grande expoente desta fase terá sido o H16 da Bugatti,
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composto por dois motores de oito cilindros em linha, montados em paralelo. Isto levava a uma consequente escalada no peso dos carros. Em 1932, o regulamento usou a via do peso para travar a escalada de potência, limitando-o a 750 kg. Pensavam os legisladores que esta limitação chegaria, resumindo assim o regulamento técnico à sua expressão mínima. Esta ideia partia do princípio de que nenhuma marca iria investir em novas tecnologias, um princípio que viria a revelar-se profundamente errado, com a entrada das equipas alemãs. Hoje, o peso dos monolugares de Fórmula 1 é definido pelo mínimo e não pelo máximo. Uma decisão fundamental separou, desde o início, os Auto-Union dos Mercedes-Benz, do ponto de vista técnico. Enquanto os primeiros optavam pela revolucionária colocação do motor atrás do piloto, em posição central/traseira, na Mercedes-Benz mantinha-se o motor na clássica posição dianteira. Além das vantagens de distribuição de pesos frente/trás, o motor central dos Auto Union permitia mais facilmente baixar o centro de gravidade. Para atingir o mesmo objetivo, os engenheiros da Mercedes-Benz tiveram de descentrar o veio de transmissão, de modo a poderem baixar o banco do piloto. Inicialmente, a arquitetura dos motores
espelhava também escolas diversas: na Auto-Union, começaram com um V16; na Mercedes-Benz, com um motor de oito cilindros em linha, ambos com compressor mecânico. Em 1938, a regulamentação dos 750 kg foi abolida e introduziram-se várias categorias de peso, consoante a cilindrada. Ambas as marcas optaram por motores V12 de três litros, equipados com compressores de duas etapas e peso máximo de 850 kg. O cume da potência foi atingido no final da época de 1937, quando o Mercedes-Benz W125 chegou a debitar 580 cavalos às 5800 rotações por minuto e o Auto-Union Tipo C atingia os 520 cv às 5000 rpm, valores perfeitamente incríveis para a época: mais de 100 cv acima dos Alfa Romeo e o dobro de alguns carros ingleses que concorriam com os alemães. A força destes motores era tal que, mesmo no GP do Mónaco, era possível fazer uma volta completa sempre na mesma mudança. O W125 anunciava 337 quilómetros por hora de velocidade máxima em configuração de Grande Prémio, com pneus de 180 milímetros de largura e travões com circuito hidráulico, mas ainda de tambor. Não admira que os pilotos da altura afirmassem que conduzir aqueles monstros, mesmo no melhor dos asfaltos, fosse como guiar permanentemente sobre gelo. Eram poucas as situações em que se podia de facto acelerar a fundo, e nunca durante uma curva. Por outro lado, o elevado peso da direção obrigava a virar os carros com o acelerador, fazendo
Virar de página. Luigi Fagioli (página oposta), num Mercedes-Benz W25, foi o primeiro “flecha de prata” a liderar uma prova, até desistir. Foi na histórica corrida internacional de Eifel, no Nürburgring, em 3 de junho de 1934. O público acorreu em massa ao circuito: segundo relatos da época, seriam mais de 200 mil pessoas (em cima). A Mercedes-Benz levou um novo nível de profissionalismo ao desporto automóvel. Em 30 segundos, a assistência (em baixo) mudava as quatro rodas e abastecia 200 litros de um combustível de fórmula secreta.
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Foi uma época marcada pela personalidade dos pilotos derrapar a traseira, pelo que se estava sempre no limite entre uma deriva controlada da traseira e a eminência de uma série de piões, que facilmente poderia terminar em tragédia. Apesar da vantagem das suspensões independentes às quatro rodas, face aos eixos rígidos da concorrência, e da substituição dos clássicos amortecedores de fricção por modernos sistemas hidráulicos, a potência dos flechas de prata era excessiva. É preciso notar que os Grandes Prémios dos anos trinta não duravam a hora e meia de agora, mas um mínimo de três horas, fazendo da resistência física dos pilotos uma exigência quase tão importante como o talento de condução. As paragens nas boxes para reabastecimento e mudança de pneus não eram uma questão de estratégia: eram uma necessidade. A rapidez estava longe de ser a de hoje: eram precisos 30 segundos para mudar os quatro pneus e abastecer. Hoje, as melhores equipas de Fórmula 1 fazem o mesmo em menos de três segundos. A coragem era outra das qualidades importantes de um piloto de Grande Prémio. Cada vez que se sentava num daqueles monolugares, o piloto não sabia se estaria vivo ao fim dos 500 km de cada corrida. A segurança pura e simplesmente não era um tema considerado.
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Os acidentes e a morte eram vistos como parte integrante da atividade de pilotar os carros mais rápidos do mundo. Os cintos de segurança não existiam, o que tinha lógica: em caso de capotamento, e como os monolugares não tinham arco de segurança, seria o piloto a sofrer o primeiro impacto. Acreditava-se assim que o melhor que poderia acontecer ao piloto seria ser cuspido para o mais longe possível do automóvel, de forma a não morrer esmagado por ele ou queimado nos incêndios que invariavelmente se sucediam a um acidente grave. Rails de proteção ou escapatórias eram desconhecidos de quem implantava os circuitos. Muitos deles eram desenhados em cidades, caminhos rurais ou autoestradas, na maior parte das vezes apenas com fardos de palha como proteção.
PILOTOS FEITOS HERÓIS
Foi uma época marcada pela personalidade dos pilotos. Bernd Rosemeyer estreou-se com a Auto-Union e foi, até 1937, o piloto que melhor proveito soube tirar do V16. Acabaria por morrer num acidente brutal, quando tentava bater o record de velocidade numa autoestrada alemã. Além dos Grandes Prémios, os records de velocidade em autoestradas fechadas ao trânsito eram o segundo palco
em que as duas marcas se confrontaram. O terceiro eram as provas de rampa, disputadas com um carro de cada vez e em contrarrelógio. Auto-Union e Mercedes-Benz construíam veículos especiais para bater os records de velocidade, baseados nos modelos de Grande Prémio mas dotados de carroçarias aerodinâmicas que escondiam totalmente a mecânica e o piloto. Para as provas de rampa, montavam quatro rodas traseiras, como nos rodados duplos dos camiões, para garantir melhor tração em pisos piores do que os das pistas. Tazio Nuvolari veio da Alfa Romeo ocupar o lugar de Rosemeyer. No campo da Mercedes-Benz, a história mais interessante é a de Dick Seaman, um inglês a correr numa equipa alemã, nas vésperas da Segunda Guerra Mundial. Filho de uma viúva milionária, Seaman acabaria por se casar com uma jovem alemã, para grande raiva da sua mãe, que cortou relações com ele, pouco antes de também o piloto inglês encontrar a morte no GP da Bélgica, em 1939. Nesse ano, morreu igualmente o desporto automóvel, que só após a guerra renasceria pouco a pouco das cinzas. Nas 47 corridas em que se defrontaram, entre 1934 e 1939, a Mercedes-Benz ganhou 28 vezes e a Auto Union 18. Mais impressionante é o facto de, das 47 corridas em que participaram, apenas uma não ter sido ganha pelos flechas de prata alemães: foi precisamente em casa, no GP da Alemanha de 1935, vencido de forma heroica pelo Alfa Romeo de Nuvolari. F.M.
Apogeu e queda. Na página oposta, a equipa Mercedes-Benz em 1937: da esquerda para a direita, Manfred von Brauchitsch, o diretor desportivo, Alfred Neubauer, Dick Seaman, Hermann Lang e Rudolf Caracciola. Tazio Nuvolari, no seu estilo inconfundível, levou o Auto Union Tipo D V12 à vitória no GP de Inglaterra de 1938, em Donington (em cima). O ano de 1939 (em baixo) seria o último dos “flechas de prata”. Durante a guerra, a Mercedes-Benz escondeu os seus carros, que hoje podem ser vistos no museu da marca.
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Tecnologia
Um teste às capacidades robóticas
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Futebol para MÁQUINAS Falta-lhes virtuosismo e capacidade estratégica, mas não é por isso que deixam de ser muito especiais a jogar à bola. Eles, os robôs, são a principal atração dos jogos de futebol que se disputam no RoboCup, um torneio em que se mostram os últimos desenvolvimentos tecnológicos e os avanços em inteligência artificial. A última edição decorreu em julho, no Brasil, e Portugal voltou a arrecadar vários prémios. 30 SUPER
Onde está o Ronaldo? Muitos dos avanços nos jogos de futebol do RoboCup devem-se à liga Middle Size (com robôs de médio porte). Na edição deste ano, a equipa da Universidade de Aveiro ficou em terceiro lugar.
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Chuta, Zé! Na liga Kid Size de robôs humanoides, as pequenas criaturas não podem ter mais de 90 centímetros de altura.
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m 2050, uma equipa de robôs humanoides, totalmente autónomos, jogará contra a seleção de futebol vencedora do Campeonato Mundial da FIFA. Quem ganhará? A perspetiva de ver esta disputa entre humanos e máquinas tem sido apresentada como o grande objetivo do RoboCup, uma competição em que equipas de vários países se enfrentam em jogos de futebol robótico. O primeiro torneio teve lugar em 1997, no Japão. Desde então, o nosso país arrecadou, todos os anos, diversos prémios, principalmente nas competições dos mais jovens. Em julho, após o final do Campeonato Mundial de Futebol, coube à cidade brasileira de João Pessoa organizar o RoboCup 2014, reunindo 2500 participantes de quase 50 países. Portugal esteve representado através de duas equipas universitárias, apoiadas por 12 investigadores, a que se juntaram 45 jovens e dez professores de escolas preparatórias, secundárias e profissionais. Para não variar, os participantes portugueses trouxeram prémios na bagagem. Além das cinco ligas seniores que compõem o torneio de futebol (algumas dividem-se em diferentes escalões) e que dão fama a este evento mundial, houve, como sempre, espaço para várias outras competições, destinadas aos robôs desenvolvidos pelas escolas: o destaque vai para as provas de busca e salvamento, dança e futebol: “Este ano, tivemos um primeiro lugar na liga de futebol júnior, no escalão etário que vai até aos 14 anos [o Agrupamento de Escolas
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Mais do que competir, pretende-se partilhar ideias de São Gonçalo, de Torres Vedras, foi campeão mundial na categoria individual], e vários prémios nas competições de dança”, resume Fernando Ribeiro, coordenador da representação portuguesa e membro da Federação Internacional de RoboCup. Já a equipa Bot’n Roll, apoiada pela Universidade do Minho e composta por estudantes entre os 14 e os 19 anos, obteve o prémio de Melhor Entrevista, também em futebol júnior: o galardão é importante, porque “é na entrevista que os júniores provam que fizeram o seu trabalho sozinhos”, esclarece. Quanto aos séniores, a equipa Cambada, da Universidade de Aveiro, obteve o terceiro lugar na liga Middle Size (para robôs de médio porte), uma categoria em que as dez máquinas em campo (cinco de cada lado) mais parecem pequenos drones terrestres. Não podem ultrapassar os 40 quilos e os 80 centímetros de altura, deslocando-se por via de rodas a velocidades que chegam aos quatro metros por segundo. “Além desta classificação, conquistámos o primeiro lugar na prova de Desafio Científico, que avalia os contributos de natureza técnica e científica para a evolução da liga Middle Size”, destaca Bernardo Cunha, da equipa de Aveiro. O FC Portugal, constituído por
investigadores das universidades de Aveiro, do Minho e do Porto, foi a outra equipa sénior presente em João Pessoa, tendo disputado as ligas de simulação 2D e 3D. Nestas, não existem robôs físicos, pois o jogo corre num programa de computador, com cada grupo a ter de montar a melhor estratégia para bater o adversário. Na liga 2D, o ambiente é bidimensional e os jogadores que surgem no ecrã fazem lembrar as criaturas do jogo Pacman. Muito diferente é a liga 3D: por ser tridimensional, torna tudo bem mais complexo, sendo possível, por exemplo, passar a bola por cima de um oponente. Os membros do FC Portugal também não regressaram de mãos a abanar, graças ao troféu de Desafio Livre/Científico obtido na liga 2D.
PARTILHAR CONHECIMENTOS
Ao contrário do que se possa pensar, o evento não está somente direcionado para a competição, em que ganhar é o culminar de todo um trabalho: “No fundo, o RoboCup é uma ocasião para comparar soluções tecnológicas e científicas”, salienta Fernando Ribeiro. Pretende-se, acima de tudo, “aprender e mostrar os robôs, existindo uma partilha muito grande de informação entre os participantes”.
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Pé de chumbo. Apesar de poderem medir entre 1,30 e 1,80 metros, os robôs da liga Adult Size ainda são bastante toscos a jogar, em comparação com os congéneres mais pequenos das outras ligas.
Cavaleiros e fumadores
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ideia de fabricar robôs humanoides autónomos, iguais em tudo aos seres humanos, não é recente nem está cingida ao universo da fição científica. Hoje em dia, o que não falta são empresas e laboratórios a tentar criar protótipos que, num hipotético futuro, desemboquem numa criatura capaz de partilhar (ou substituir) o nosso lugar na Terra. Uma dessas amostras é o robô Asimo, da Honda, capaz de andar e correr, a que junta uma boa destreza com as mãos e a capacidade de tomar decisões por si próprio. Mesmo assim, a sua inteligência artificial está a anos-luz da dos androides que nos acostumámos a ver no cinema. Indo atrás no tempo, até ao século II a.C., há relatos de que Heron de Alexandria teria construído estátuas animadas por água, ar e vapor. Em 1495, Leonardo da Vinci desenhou (embora se desconheça se construiu) um aparelho mecânico que parecia um cavaleiro em armadura, capaz de se sentar, acenar com o braço, mexer a cabeça e abrir e fechar a boca (o queixo movia-se). No século XVIII,
proliferaram por toda a Europa bonecos mecânicos, os quais maravilhavam o público através da sua habilidade para escreverem frases simples, tocarem instrumentos musicais e executarem tarefas básicas. Em 1939, a norte-americana Westing house Electric Corporation apresentou o Elektro, uma espécie de homem motorizado que mais não era do que um robô grosseiro, feito de aço: respondendo a ordens verbais, movia os braços e a cabeça, deslocava-se através de rodas nos pés e transmitia discursos previamente gravados. Dois dos seus truques preferidos consistiam em fumar cigarros e encher balões. Nada de muito científico, mas o suficiente para animar os mais jovens. O primeiro robô humanoide, o Wabot-1, foi pensado e montado na Universidade Waseda de Tóquio, em 1973. De aspeto antropomórfico, conseguia andar como um bípede, comunicar com as pessoas e agarrar e transportar objetos. Tornou-se o primeiro protótipo verdadeiramente revolucionário.
Em 1939, o robô Elektro chamava as atenções.
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Um longo caminho umanoides artificiais capazes de conviver e colaborar com seres humanos no mesmo espaço. Eis o sonho dos futuristas, um mundo em que as máquinas, mimetizando o nosso corpo e a nossa inteligência, farão os trabalhos mais entediantes, duros ou perigosos. No entanto, os atuais avanços na robótica estão longe de gerar criaturas sofisticadas e indistinguíveis de nós, embora a fição científica sempre tenha mantido as expectativas excessivamente altas. No mundo real, ainda falta percorrer um longo caminho, dadas as enormes limitações dos atuais protótipos, incapazes de operar com total autonomia em ambientes complexos. Não é por capricho que o corpo humano é o exemplo a ser seguido pelos investigadores da robótica: milhões de anos de evolução, via seleção natural, equiparam-nos com as características necessárias para lidar com um ambiente terrestre diversificado e cheio de obstáculos imprevistos. Segundo Sven Behnke, investigador do Grupo de Sistemas Inteligentes Autónomos da Universidade de Bona (Alemanha), são cinco as capacidades que se tentam explorar nos robôs humanoides, embora os resultados ainda sejam parcos: a locomoção bípede, a perceção, a interação humano-robô, a manipulação de objetos com destreza, através dos membros superiores, e a capacidade de aprender e adaptar o comportamento às circunstâncias. Correr, mais do que andar, exige uma enorme coordenação por parte do nosso corpo, na medida em que ele se balança para compensar as mudanças que ocorrem no seu centro de gravidade. Conseguir que uma máquina faça o mesmo é extremamente complicado, embora o robô Asimo, desenvolvido pela Honda, tenha feito alguns progressos nesse sentido: é capaz de acelerar até aos nove quilómetros por hora. A questão, aponta Behnke num dos seus artigos científicos, é que o Asimo “é incapaz de reciclar a energia armazenada nos elementos elásticos [das pernas], tal como os humanos fazem, pelo que não é energeticamente eficiente”. Pior: só se dá bem em pisos planos. O que se exige num bom protótipo de duas pernas é a capacidade de andar em terrenos difíceis e de resistir a perturbações exteriores, como um empurrão. Perceber o seu próprio estado e o ambiente que o rodeia é fulcral para qualquer humanoide. Aqui, a visão e a audição têm um papel decisivo (mais do que os sensores laser ou ultrassónicos), pois permitem focar a atenção nos objetos relevantes e reconhecê-los. Por enquanto, os sistemas visuais dos robôs só funcionam em ambientes simples, sem muitos objetos notáveis e com pouco ruído visual, sendo necessário, além
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AI-LAB UNIVERSITÄT ZÜRICH
H
O Roboy, da Universidade de Zurique (Suíça), usa músculos e tendões elásticos, para emular o nosso corpo.
disso, que os elementos-chave tenham uma cor que os identifique. Igualmente difícil é a tarefa de distinguir um ou mais sons específicos (a voz de uma pessoa, por exemplo) entre várias fontes sonoras ou ruído: foram feitos avanços que permitem aos sistemas perceber várias vozes em simultâneo, mas estamos longe de o fazerem sem erros. Para que os humanos vivam em sociedade, têm de ser capazes de comunicar eficazmente entre si, mas para isso não basta falar: também é preciso produzir diferentes expressões faciais e olhares, assim como gesticular com os braços e as mãos. A linguagem corporal transmite mensagens sem que se tenha de expressar uma só palavra: um sorriso, mesmo que venha de uma criatura feita de metal, fios e silício, transmite muita coisa. Conseguir que um robô dê informações e transmita emoções básicas através do corpo ou do timbre da voz, por exemplo, levaria a interação com os humanos a um outro patamar. Fortes, flexíveis e sensíveis: eis as mãos humanas. Sem estas formidáveis ferramentas, jamais teríamos saído da primitividade e conquistado a Terra. Manipular com destreza um objeto requer, além de mãos capazes, “uma coordenação mão-braço e a coordenação das duas mãos com o sistema visual”, explica o investigador da Universidade de Bona. Porém, o elevado número de juntas dos braços robóticos torna
difícil agarrar e manipular o que quer que seja, e o caso piora quando se trata de lidar com objetos desconhecidos. Para tornar as coisas ainda mais complexas, um robô tem de saber dosear a força a empregar quando toca ou agarra determinado objeto: ninguém gostaria de ficar com a mão esmagada ao apertar a mão de um deles. Contudo, estas máquinas jamais nos imitarão se não forem capazes de adaptar as suas capacidades aos diferentes ambientes. Ou seja, têm de conseguir lidar com a mudança. Neste capítulo, e dado que são criaturas exímias em se moldar às diferentes circunstâncias, os humanos prefiguram-se como os melhores professores, havendo muito a aprender com o nosso comportamento. Todavia, alguns movimentos humanos não podem ser emulados pelos robôs, devido aos seus constrangimentos técnicos. Por outro lado, há ações que só as máquinas conseguem executar. Assim sendo, o que fazer? Tendo em conta a “diferença entre o professor e o robô”, Sven Behnke propõe que este último seja capaz de “inferir as intenções do professor humano e arranjar a sua própria estratégia, para cumprir os mesmos objetivos”. Dito de outra forma, é preciso que eles sejam mais inteligentes e autónomos. Ainda falta muito para lá chegarmos.
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O salto tecnológico em 17 anos foi muito maior do que o esperado Este espírito colaborativo é tão genuíno que a maior parte das equipas vencedoras divulga na internet o que fez ao nível de software e hardware, cedendo a quem quiser a programação dos seus robôs. Com base nesta partilha de conhecimento, tal como refere Bernardo Cunha, “potencia-se uma evolução mais rápida dos robôs e uma maior transferência de tecnologia para as aplicações do mundo real”. Ao mesmo tempo, “o RoboCup permite às equipas de investigação levarem o que desenvolveram para fora dos laboratórios, e testarem as suas soluções em ambientes reais”, acrescenta. De 1997 a 2014, o salto qualitativo da competição, em termos tecnológicos, foi gigantesco, tanto nas ligas de simulação como naquela em que entraram os robôs da Universidade de Aveiro, estando longe o tempo em que as máquinas não passavam de simples caixas negras, imóveis, incapazes de fazer um passe longo. Quanto às restantes provas de futebol, também muito mudou, e a prova de humanoides, em que a locomoção, os passes e os remates na bola são feitos através de sistemas dotados de pernas, mantém-se como uma das que atraem mais atenções: na realidade, o tal jogo
contra os humanos, marcado para daqui a três décadas e meia, terá de ser feito por eles. Para lá chegar, os melhores desenvolvimentos de cada liga terão de ser integrados nas restantes. Nesse sentido, os conhecimentos obtidos nos torneios de simulação são aplicados nos robôs movidos a rodas, podendo depois transferir-se destes aparelhos algumas novidades para os humanoides.
DESAFIAR OS HUMANOS EM 2030?
Um jogo de futebol com jogadores de carne e osso obriga a uma observação constante da bola e dos adversários, com o intuito de perceber a sua posição e os seus movimentos em campo. As máquinas do RoboCup já o conseguem, pelo menos em parte: nas jogadas defensivas, é possível vê-los a adotar as melhores posições, para que o oponente não fique com o esférico. No que respeita aos remates, nomeadamente na liga Middle Size, a probabilidade de cada um resultar em golo é muito grande. Planear uma estratégia e adaptá-la ao longo do jogo, tal como delinear movimentos e cumpri-los, está igualmente ao alcance destes robôs, com evoluções constantes a cada ano. Na opinião de Fernando Ribeiro, os maiores
Heroísmo metálico. Na prova de busca e salvamento, as máquinas têm de mostrar a sua capacidade de resposta perante uma situação de emergência, como procurar e desativar uma bomba num carro.
avanços têm ocorrido nesta liga (o campo mede 18 por 12 metros e usa-se uma bola oficial da FIFA), existindo uma maior colaboração entre os androides e uma competitividade renhida entre os grupos que participam. Construídos de raiz, os robôs da equipa Cambada sofreram grandes melhoramentos em relação à competição de 2013, o que lhes permitiu moverem-se a mais de três metros por segundo, controlar a bola de forma mais eficiente e detetá-la com maior precisão num ambiente tridimensional mesmo quando está no ar, a par de uma evolução na inteligência artificial, que conduziu a maior autonomia e capacidade de aprendizagem. Perante os progressos, o responsável português mostra-se otimista: “Acredito que o jogo contra humanos não será em 2050, mas sim por volta de 2030 ou 2035. Evoluímos mais rapidamente do que se esperava.”
DINHEIRO DITOU AUSÊNCIAS
O número de equipas nacionais que vai ao RoboCup, em cada edição, depende da quota a que o país tem direito, e esta, por sua vez, varia conforme os resultados obtidos. Para as competições séniores, a seleção nacional é Interessante
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HONDA ROBOTICS
Quem tem medo do japonês?
Além de contribuírem para a produção de carne, os pombos produziam estrume.
Q
uando está parado, o robô Asimo, desenvolvido pela Honda, mais parece um brinquedo de aspeto inofensivo, da altura de uma criança (1,3 metros). No entanto, assim que o vemos a correr na nossa direção, a chutar com precisão uma bola de futebol, sem se desequilibrar, ou a subir e descer qualquer tipo de escadas, mimetizando o movimento humano, ficamos presos entre o desconforto e a surpresa. A ambição da marca japonesa, para daqui a vários anos (uma década, na melhor das hipóteses), é produzir e vender unidades capazes de cumprirem tarefas domésticas, darem assistência a pessoas com necessidades (principalmente idosos) e prestarem auxílio nos espaços públicos, como aeroportos ou estações ferroviárias. Apesar de desenvolver várias tarefas de forma autónoma, a inteligência artificial do Asimo (acrónimo de Advanced Step in Innovative Mobility, que os japoneses escrevem em maiúsculas) ainda está na infância. Os seus maiores avanços são a mobilidade e a destreza, duas características que o tornam a grande referência entre os do seu género. Apresentada pela primeira vez nos Estados Unidos, em 2011, só em julho a terceira e última geração do robô da Honda chegou à Europa, com o intuito de dar a conhecer os avanços obtidos pela empresa nipónica. A operação de charme, realizada em Bruxelas, mostrou ao público europeu uma criatura artificial que, além de caminhar suavemente, consegue correr a nove quilómetros por hora, um record absoluto para um humanoide. Para aqui chegar, foi necessário perceber e emular os movimentos dos seres humanos, o que não é fácil: quando andamos de forma lenta, o centro de gravidade mantém-se entre a sola dos pés, mas, quando corremos, a localização desse centro varia continuamente. As anteriores versões do Asimo (a primeira surgiu em 2000) mostraram alguma flexibilidade nas pernas, com o corpo a balançar-se para manter o equilíbrio, mas o novo protótipo consegue executar na perfeição alguns movimentos mais exigentes, como saltar a pés juntos ou ao pé-coxinho. No que respeita aos braços e às mãos, a última geração revela uma maior destreza ao nível do pulso e dos dedos, sendo capaz de algo tão complexo (para um robô) como desenroscar a tampa de uma garrafa, verter o líquido para um copo de papel e segurá-lo sem o esmagar. Além disso, como possui mais flexibilidade nos dedos, consegue expressar-se em linguagem gestual, tanto em japonês como em inglês. Contudo, se o Asimo quiser ser mais do que
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um robô com alguma mobilidade e destreza, sem estar confinado às feiras científicas ou aos parques de diversão (um dos exemplares está na Disneylândia, nos Estados Unidos), há que aperfeiçoar a sua inteligência artificial. Por agora, é capaz de prever a direção em que uma pessoa se move e corrigir imediatamente a sua própria trajetória, evitando uma colisão. Basicamente, isto implica autonomia e a capacidade de interromper uma ação para se adaptar às intenções de outrem. O problema, confessa Satoshi Sigemi, líder da equipa de engenheiros do Asimo, é que ele “não sabe se alguém está a aproximar-se ou somente a tentar passar”. Até conseguir distinguir uma coisa da outra, serão precisos muitos anos de investigação. Todavia, para desempenhar funções simples e determinadas, como as de rececionista ou guia de informações, já é possível “identificar o que as pessoas esperam do robô”, o que torna tudo mais simples. No intuito de tirar o Asimo da primitividade (em comparação com os humanos, evidentemente), a Honda estabeleceu parcerias com laboratórios e universidades que operam no campo da inteligência artificial. O caminho, ainda incerto, exigirá uma grande interligação com as neurociências e a sociologia: se o objetivo é emular o ser humano e obter um humanoide funcional, há que estudar com mais afinco o nosso próprio comportamento. Os partidários do ludismo, conhecidos por serem contra a substituição da mão de obra humana por máquinas, dificilmente se entusias-
marão com o potencial desta nova tecnologia, capaz de operar 24 horas por dia, sem se cansar ou reclamar do salário auferido e das difíceis condições de trabalho. O único senão está na sua bateria, que apenas dura 40 minutos em modo de corrida... Tendo como padrão o ser humano, desde 2007 que os investigadores da Honda têm vindo a testar o trabalho em rede e a divisão de tarefas entre os vários protótipos Asimo, com o intuito de desenvolver processos colaborativos. Assim, e de momento, já é possível ter várias unidades a comunicar e a partilhar informação entre si. Independentemente do que venha a acontecer a esta invenção japonesa, a aposta da Honda não cairá em saco roto, pois já houve um conjunto de aplicações com potencial comercial que brotaram do seu desenvolvimento. Entre elas, contam-se uma prótese robótica capaz de reduzir o peso do corpo sobre os músculos das pernas, destinada a devolver às pessoas mais idosas alguma capacidade de locomoção, e um pequeno veículo omnidirecional (à primeira vista, parece um simples banco) que se move para onde quer que balancemos o nosso corpo. Uma das criações de maior impacto foi um veículo de pesquisa controlado à distância, que usou tecnologias empregues no Asimo para, em 2013, investigar o edifício de um dos reatores nucleares da acidentada central de Fukushima Daiichi, no Japão.
VALDECIR BECKER/ROBOCUP/UFPB
Portugal substitui por criatividade os recursos de que não dispõe feita com base num ranking, o qual assenta, principalmente, em critérios científicos; quanto às equipas júniores, são escolhidos os melhores classificados no festival nacional de robótica, organizado anualmente. Devido à crise que Portugal enfrenta, e porque um bilhete de avião para o Brasil, mais a estada, não é barato, houve equipas que não puderam participar, tendo sido substituídas por outras. A culpa não é só da crise: a própria competição, à medida que evolui, vai ficando mais cara: atualmente, na liga Middle Size, cada equipa de robôs necessita, no mínimo, de uma dúzia de pessoas a apoiá-la.
A ESCASSEZ AGUÇA O ENGENHO
Apesar destes constrangimentos e da dimensão do país, Fernando Ribeiro considera que “estamos muito à frente daquilo que seria de esperar”, na área da robótica: “Temos tido uma evolução muito boa, não só nas universidades, como em muitas escolas secundárias e profissionais, que estão a apostar a fundo neste setor.” Essencialmente, “conseguimos fazer, com menos orçamento mas mais criativi-
dade, as mesmas coisas do que outros países”, afiança, com os jovens estudantes a terem de “saber trabalhar com um robô de uma ponta à outra, porque não há dinheiro para comprar peças novas”. Uma das experiências que a Universidade do Minho tem vindo a promover, nos últimos oito anos, é a RoboParty, um evento que, ao longo de dois dias e três noites, ajuda uma centena de jovens a construírem, a partir do zero, um robô que depois fica para eles. Tudo o que precisam de levar é um saco-cama, um computador e vontade de aprender. Depois do sucesso das últimas edições, realizadas em Guimarães, o modelo foi exportado para o RoboCup 2014. Segundo Fernando Ribeiro, o grande responsável por levar a RoboParty ao Brasil, a iniciativa foi um sucesso. Basicamente, foi dado aos jovens um kit, desenvolvido pela empresa portuguesa Bot’n Roll (uma spin-off da Universidade do Minho), que se destina a quem nunca montou um robô: basta soldar os componentes, montá-los e programar o que se obteve, tudo isto em três dias. “Estão aqui envolvidas áreas distintas, nomeadamente
Dois contra dois. No futebol júnior, os estudantes enfrentam-se usando os seus robôs. No escalão até aos 14 anos, o Agrupamento de Escolas de São Gonçalo, de Torres Vedras, venceu a categoria individual.
a eletrónica, a mecânica, as comunicações e a informática. Com esta experiência, os jovens podem escolher melhor o que querem fazer no futuro.” Portugal levou equipas a terras de Vera Cruz, ganhou prémios, adquiriu e partilhou know-how, organizou eventos e promoveu tecnologia nacional. Independentemente de tudo isto, o que se pretende é que a tecnologia testada neste evento internacional acabe por ser útil à sociedade e ao setor industrial. Na Universidade do Minho, por exemplo, foi construída uma cadeira de rodas omnidirecional que, neste momento, está na calha para ser comercializada. Mais perto de começar a ser vendido está um robô autónomo que apanha bolas de golfe, feito com o mesmo hardware dos que jogam futebol. “O futebol robótico é apenas um meio para atingir um fim”, explica o representante português na Federação Internacional de RoboCup. “A ideia final é criar bens, negócios e valor acrescentado com base na investigação robótica que tem sido feita ao longo dos anos.” J.P.L.
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Ciência
O que é a invisibilidade?
Quando o cérebro NÃO QUER VER A invisibilidade é um objeto de desejo para os militares e um desafio para os neurologistas: por vezes, o nosso cérebro só vê o que quer ver. 38 SUPER
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JORGE SILVA / REUTERS
O homem invisível O artista chinês Liu Bolin pinta o seu corpo e a sua roupa para se fotografar completamente mimetizado com o fundo. Os artistas são especialistas a enganar a mente.
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Distraídos. Quando nos concentramos numa determinada tarefa, podemos ignorar por completo o que se passa à nossa volta.
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o ano passado, cientistas da Universidade do Texas criaram uma capa feita de nanotubos de carbono transparentes, cujo objetivo é tornar o seu portador invisível. Para consegui-lo, aproveitaram o princípio físico subjacente às miragens: a refração. Fundamentalmente, os nanotubos causam alterações na densidade do ar através de variações na temperatura, o que faz a luz mudar progressivamente de direção. Se for adequadamente utilizada, a luz dos objetos que estão por detrás da pessoa que enverga a capa rodeia por completo o seu corpo: ao não interromper a trajetória dos raios que chegam por detrás, o indivíduo torna-se invisível. Não é segredo que passar despercebido constitui, precisamente, o objetivo da camuflagem, fundamental em tempo de guerra. Quem está mais preparado para isso do que os ilusionistas? São peritos em ocultar do público o movimento enganador, sempre feito à vista de todos. Durante a Segunda Guerra Mundial, os militares britânicos recrutaram Jasper Maskelyne, o décimo descendente de uma ilustre família de ilusionistas. Segundo narra na sua autobiografia, Maskelyne foi colocado numa unidade de camuflagem do Real Corpo de Engenheiros e, em janeiro de 1941, deram-lhe a sua própria unidade, conhecida como The Magic Gang. Atribuíram-lhe uma missão peculiar: fazer desaparecer o porto de Alexandria da vista dos pilotos nazis. Dado que camuflar o local era impossível, Maskelyne teve a ideia de deslocar todo o porto. A poucos quilómetros de Alexandria, localizou uma baía chamada Maryut, cujo perfil coincidia com o da cidade egípcia. Ao dispor as luzes de forma idêntica às do porto e daquele centro urbano, montou uma réplica exata do que os alemães podiam observar do céu. Durante oito noites, nas quais foram apagadas as luzes do verdadeiro local, os pilotos nazis bombardearam um porto que nunca existiu. Infelizmente, esta história (conhecida e aceite pela maior parte da comunidade de magos) é um mito. Numa série de artigos publicados na revista Journal of the Genii’s Magical Society, entre 1993 e 1995, o ilusionista e historiador militar Richard Stokes referiu numerosas inconsistências e erros no relato de Maskelyne, como, por exemplo, o facto de não existir por ali qualquer local com o nome de Mayrut.
A ARTE NA GUERRA
Deixando as lendas, a verdade é que diferentes exércitos contrataram, não magos, mas artistas para fazerem as suas tropas desaparecer aos olhos do inimigo. O húngaro László Moholy-Nagy, que manipulava a perceção humana nas suas esculturas e pinturas, começou a aplicar as suas ideias à camuflagem na
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O cérebro reconhece padrões, mesmo que estejam incompletos Chicago’s School of Design, poucas semanas depois do ataque japonês a Pearl Harbor. Por outro lado, diversos pintores ajudaram a desenvolver estruturas óticas de ocultação inspiradas em diferentes escolas, como o cubismo ou a op art, um género de arte visual que recorre a ilusões óticas. Em Inglaterra, o exército contratou o pintor surrealista Roland Penrose, amigo de Picasso, para definir os seus padrões de camuflagem. O livro que escreveu, Home Guard Manual of Camouflage, descreve como aplicou as técnicas do cubismo e do pontilhismo à dissimulação bélica. Todavia, o papel dos artistas tinha as horas contadas. No final da década de 70, com a chegada da computação, introduziu-se um novo tipo de camuflagem, denominado “textura dual”, um antecessor da atual camuflagem usada nos uniformes dos soldados. O seu objetivo é enganar o cérebro para que a figura do soldado se esfume e passe a fazer parte da paisagem. Fundamentalmente, a camuflagem militar moderna surge organizada em duas
camadas: a micro, dos píxeis, e a macro, a forma como se agrupam esses píxeis. Para enganar a mente (especializada em reconhecer padrões), é muito importante que os lados direito e esquerdo do uniforme não combinem.
A MAGIA DO FRACTAL
Guy Cramer, presidente da Hyperstealth Biotechnology, uma empresa canadiana que se dedica a conceber camuflagens para diversos exércitos, afirma que o cérebro, quando observa uma anomalia na parte direita do pescoço e um padrão semelhante do lado esquerdo, une os pontos de imediato e pensa que está a ver a parte superior de um corpo humano. A companhia que dirige especializou-se em conceber camuflagens fractais, com formas geométricas que apresentam o mesmo aspeto em diferentes escalas. Assim, sem uma referência da dimensão, os nossos olhos não conseguem distinguir o fractal da paisagem. O segundo passo óbvio na corrida pela invisibilidade foi encontrar uma camuflagem uni-
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Segundo as experiências, é possível não vermos uma pessoa vestida de gorila, mesmo que ela olhe na nossa direção e faça caretas.
O gorila e a mulher do guarda-chuva
STEPHEN SWINTEK / GETTY
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versal que funcione em qualquer ambiente, da selva a um deserto. Em 2004, o exército norte-americano pensou tê-lo descoberto: o Universal Camouflage Pattern (UCP). Poucos meses depois, à medida que a guerra do Iraque se desenvolvia, os soldados sentiriam na própria pele uma das grandes verdades universais: quando se pretende fazer algo que sirva para tudo, acaba por de nada servir. Os norte-americanos enganaram-se por completo ao acharem que o UCP funcionaria em qualquer situação: foram oito anos de investigação e 5000 milhões de dólares investidos numa tentativa condenada ao fracasso. Não é necessário esconder-se da vista para ser invisível. Em 1995, agentes da polícia de Boston perseguiam delinquentes que acabavam de protagonizar um tiroteio. Um dos fugitivos era um agente afro-americano, vestido à paisana, chamado Michael Cox. Os polícias que acabavam de chegar ao local dos acontecimentos confundiram-no com um dos criminosos e começaram a bater-lhe. Outro agente, Kenny Conley, passou a correr junto deles e, segundo declarou em tribunal, não se apercebeu da tareia. Conley foi condenado por perjúrio e obstrução à justiça: era impossível que não tivesse visto o que se passava diante dos seus olhos.
Em 2011, os psicólogos Christopher Chabris e Daniel Simons adiantaram uma hipótese que ninguém tinha colocado até então: e se, realmente, Conley não tivesse visto a agressão? A fim de comprová-lo, conceberam uma experiência singular: pediram a um grupo de voluntários para correrem atrás de um dos seus assistentes e para contarem o número de vezes em que ele tocava no chapéu. Num ponto do trajeto, tinham colocado dois homens que fingiam bater noutro. O resultado foi revelador: em plena luz do dia, mais de 40 por cento dos voluntários não viram a briga. Quando se repetiu a mesma experiência de noite, a percentagem subiu para 65%. Na verdade, o pobre Conley podia não ter visto a sova que Cox sofreu.
VISÃO SELETIVA
O trabalho dos dois investigadores tornou-se conhecido a partir de 1999, quando efetuaram a experiência do gorila, que atraiu muita atenção mediática e, por conseguinte, muitos cientistas dispostos a estudar o fenómeno. Curiosamente, na década de 1970, um psicólogo da Universidade norte-americana de Cornell, em Ithaca (Nova Iorque), já fizera algo de parecido. Na altura, Ulric Neisser, que introduziu o conceito de “visão seletiva”, foi acusado de falta de
ara a sua experiência do gorila, os psicólogos Christopher Chabris e Daniel Simons pediram a um grupo de voluntários para verem um vídeo em que havia várias pessoas, metade das quais com uma T-shirt branca e a outra metade com uma preta. Os de branco atiravam uns aos outros uma bola de basquetebol, e os de preto igualmente. A fim de tornar tudo ainda mais complicado, os jogadores não estavam quietos, mas em contínuo movimento. Os voluntários tinham de contar o número de passes entre os de T-shirt branca. Findo o vídeo, os psicólogos perguntaram qual fora o número de passes (quinze), e se tinham visto algo estranho. Surpreendentemente, metade dos participantes não vira uma pessoa vestida de gorila entrar pelo lado direito, meter-se entre os jogadores, bater no peito no centro do campo e sair de cena pelo lado esquerdo, ao longo de nove segundos. O resultado foi semelhante quando substituíram o gorila por uma mulher com um guarda-chuva aberto. Segundo os dois especialistas, o facto de não terem visto o gorila ou a mulher do guarda-chuva deve-se a falta de atenção: os participantes estavam tão ocupados numa tarefa complexa (contar os passes) que o primata e a senhora improvável se tornaram literalmente invisíveis aos seus olhos. As implicações dessa experiência inovadora são surpreendentes: uma coisa é o que existe no campo visual de uma pessoa e outra, muito diferente, que ela tenha consciência de tudo o que ali se encontra. Assim, consoante estivermos a prestar atenção ou não, teremos consciência de algumas coisas e não de outras. Interessante
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Os estímulos inconscientes também nos influenciam validade ecológica: perdera-se tanto em testes de laboratório, tão distantes e diferentes das experiências do ser humano no mundo real, que era impossível afirmar que as suas conclusões fossem verdadeiramente úteis num mundo alheio ao próprio laboratório. As experiências de Neisser eram muito curiosas, mas a comunidade científica não sabia muito bem o que fazer com elas: na altura, pensava-se que o cérebro efetuava uma representação de todos os objetos situados à sua volta e armazenava-os na memória. Algo de semelhante ao que Chabris e Simons descobriram pode acontecer mesmo em situações em que é exigida uma atenção especial aos pormenores. Assim, a revista Psychological Science publicou, recentemente, um artigo de um grupo de psicólogos que testou os dotes de observação de 24 radiologistas do prestigiado Brigham and Women’s Hospital, de Boston (Massachusetts). Entregaram-lhes cinco pacotes com cinco ressonâncias magnéticas cada, dos pulmões de vários pacientes, para que procurassem indícios de um possível tumor. O que eles não sabiam era que algumas imagens tinham sido manipuladas para incluir a figura de um gorila a dançar: para 83% dos médicos, esta era completamente invisível. “Não é que não pudessem vê-lo, mas os seus cérebros estavam ocupados com a tarefa que tinham em mãos: procuravam nódulos cancerígenos e não gorilas”, explicou Jeremy Wolfe, diretor do Laboratório de Atenção Visual do hospital. Por sua vez, Christopher Wickens, psicólogo da Universidade do Illinois especializado em questões de aviação, demonstrou que os dispositivos que projetam informação do voo, como a velocidade do vento ou a altitude, fazem o piloto não reparar nas aeronaves que surgem de forma inesperada no seu campo visual.
PRESTE ATENÇÃO!
O conceito de cegueira por falta de atenção foi apresentado, há doze anos, pelos psicólogos Arien Mack e Irvin Rock. Quiseram, assim, demonstrar que os seres humanos, quando prestam atenção a algo que acontece diante de si, podem não se aperceber de outras situações inesperadas. Mack e Rock descobriram que temos maior tendência para detetar a presença de estímulos inesperados quando estes possuem algum significado. O que é mais interessante ainda, embora possamos não nos aperceber da presença desses estímulos, eles
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GORILA INVISÍVEL
Concurso de disfarces. O aspeto de muitas espécies animais permite-lhes camuflarem-se no ambiente, para evitarem os predadores e/ou confundirem as suas presas.
influenciam as ações que cometemos. Estamos perante um exemplo de influência subliminar? A conclusão de Mack e Rock é inequívoca: “Os nossos estudos convenceram-nos de que não há perceção consciente se não estivermos atentos.” Em 2011, um aluno de Simons, Steven B. Most, confirmou que se produz um efeito semelhante quando olhamos para um ecrã de computador com padrões completamente distinguíveis. A sua experiência consistia em mostrar aos participantes uma série de pontos negros e bancos sobre um fundo cinzento, e pedir-lhes que prestassem atenção aos pontos negros. Passado pouco tempo, surgia uma cruz vermelha que atravessava o ecrã. Um terço dos voluntários não a viu. “Pensamos que temos consciência de tudo o que acontece à nossa volta, mas, na realidade, apenas reparamos em alguns aspetos específicos”, afirma Most. Contudo, nem todos os especialistas na matéria estão de acordo com a sua interpretação. Jeremy Wolfe, oftalmologista e diretor do Visual Attention Lab, da Harvard Medical School, considera que, na realidade, temos consciência dos objetos que vemos, mas esquecemo-nos rapidamente deles. Wolfe dá como exemplo investigações como a de Cathleen Moore, da Universidade do Estado da Pensilvânia, e de Howard Egeth, da Johns Hopkins. Estes cien-
tistas mostraram que, embora possamos não o recordar conscientemente, aquilo a que não se presta atenção pode influenciar a perceção dos objetos em que realmente reparamos. Segundo Moore e Egeth, essas experiências indicam que estamos perante uma cegueira da memória: a atenção tem a ver com a forma como codificamos na memória o que vemos. Os trabalhos de Helene Intraub, psicóloga da Universidade do Delaware, também parecem apoiar tal hipótese. Há anos que se sabe que os seres humanos são incapazes de recordar perfeitamente o que viram. Isso ocorre porque o cérebro não armazena a informação como se fosse um vídeo, mas constrói a recordação com base em pequenos traços de memória. O que Helene Intraub descobriu é que cometemos esse erro apenas um segundo depois de visualizarmos a imagem a recordar. A psicologia cognitiva ainda não encontrou uma explicação definitiva para o fenómeno e as interrogações que ele continua a suscitar são numerosas: será que todos os seres humanos sofrem da chamada “cegueira seletiva”? Acontece o mesmo com os restantes sentidos? Depende da capacidade intelectual? Apenas o tempo e novas experiências permitirão responder a todas estas questões. M.A.S.
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É a tua cara!
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Flash Joia alada Os entomólogos conhecem este inseto caleidoscópico por Chrysis ignita, mas o povo chama-lhe “vespa-dourada”. Apesar de ser relativamente comum, dificilmente conseguimos apreciar a sua beleza, pois não costuma ultrapassar um centímetro de comprimento. Pode considerar-se o cuco dos insetos: costuma depositar os seus ovos no ninho de outra vespa (Oplomerus spinipes), que habita em barreiras e paredes argilosas e se encarregará de alimentar as larvas de ambas as espécies, dispensando a sua congénere dos cuidados parentais. Foto: Jorge Nunes.
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Psicologia Como aumentar o prestígio
A imagem nas REDES Ter péssima ou ótima imagem nas redes sociais pode salvar-nos ou deitar tudo a perder quando se trata de estabelecer uma relação ou encontrar emprego. A credibilidade, a honestidade e mesmo o sex-appeal dependem, em grande parte, de como nos mostramos nos meios digitais.
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rede social sobre o seu trabalho na companhia, pensamos que é melhor, dado que não está satisfeita, rescindir com efeitos imediatos o seu contrato com a Marketing & Logistics.”
FÓRUM COM MIL OLHOS
Outro caso de um autêntico “tiro no pé” na internet foi o do jogador de basebol e comentador desportivo norte-americano Mike Bacsik, que não reagiu bem à derrota infligida pelos San Antonio Spurs aos Dallas Mavericks, num jogo da NBA: “Parabéns aos porcos mexicanos de San Antonio”, escreveu no Twitter, após o encontro. Na segunda-feira seguinte, foi suspenso das suas funções na emissora de rádio KTCK, muito embora tenha pedido publicamente desculpa. E que dizer de Carly McKinney, de 23 anos, ex-professora de matemática em Aurora (Colorado)? A jovem publicou fotos em que aparecia nua, brincava com a maturidade sexual dos seus alunos e fazia gala de consumir marijuana. Tudo isso no Twitter. Posteriormente, Carly assegurou, num canal de televisão, que tinha sido uma aposta que fez com uma amiga. De nada lhe serviu: as autoridades despediram-na da escola e enviaram-na para o desemprego. Na face oposta da moeda, há celebridades, como Angelina Jolie, que cuidam minuciosamente da sua imagem nas redes sociais e nos media. Declarações como “A minha família e o meu trabalho para a ONU são essenciais. Sou mãe e, depois, cidadã” contri-
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uando se procura trabalho, já não é suficiente ter um currículo decente; é também necessário possuir boa reputação digital. Segundo um estudo internacional realizado em 2012, 79 por cento dos recrutadores de pessoal utilizam a internet para procurar informação sobre os candidatos a um posto de trabalho. Uma conhecida caça-talentos assegura mesmo que “é frequente iniciar a procura de candidatos pelo Google, sobretudo quando é para cargos mais elevados”. Por isso, adverte: “A reputação da pessoa dependerá de como consegue gerir os diferentes espaços nas redes digitais. Uma foto fora de contexto, por exemplo, pode ser interpretada de muitas formas pela empresa.” A boa reputação, um conceito que caíra em desuso, volta a estar na moda devido às novas teorias de gestão empresarial, que consagram a importância da imagem corporativa. Hoje, quando os motores de busca e as redes sociais ventilam pormenores sobre a vida de milhões de utilizadores, torna-se imprescindível a presença online não transmitir uma má impressão. Ficar bem no retrato pode salvar-nos a pele e o posto de trabalho. Foi precisamente o contrário que aconteceu a uma jovem inglesa de 16 anos, Kimberley Swann, despedida do emprego por ter escrito no Facebook que o seu trabalho no escritório era aborrecido. A carta de despedimento não deixava margem para dúvidas: “Tendo em consideração os comentários que deixou na
Sorriso para a rede. A atriz Angelina Jolie é uma das celebridades com maior consciência social e que melhor manejam a sua reputação nos media e na internet.
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buem para fazer da atriz o protótipo de uma estrela com consciência social. Não é a única. O caso das mais de duzentas raparigas raptadas da escola, em 14 de abril, no norte da Nigéria, pelo grupo islâmico Boko Haram, emocionou o mundo inteiro, e algumas figuras famosas, como a atriz Salma Hayek, usaram a sua dimensão púlica para apoiarem a causa. Salma percorreu o tapete vermelho em Cannes com um cartaz em que se lia o slogan Bring Back Our Girls (“Devolvam as nossas raparigas”), mensagem divulgada por personalidades e políticos de diversas cores, como Michelle Obama ou David Cameron. O hashtag #BringBackOurGirls foi um trending topic nas redes sociais. A internet possui o poder, entre muitos outros, de agir na defesa de princípios e direitos. Serve também para limpar a imagem e alterar situações humilhantes. Por exemplo, depois de ter sido atirada uma banana contra Dani Alves, futebolista brasileiro do Barcelona, durante um desafio, surgiu uma campanha contra o racismo em sua defesa. Jornalistas, colegas futebolistas, como Neymar, e vários políticos deixaram-se fotografar com o referido fruto para mostrar a sua solidariedade com Dani Alves, e começaram a publicar as fotos nas suas contas no Twitter e nas redes de microblogging.
SER GENEROSO É BOA ESTRATÉGIA
Nos nossos dias, há muitas figuras que começaram por baixo, do cantor Justin Bieber a E.L. James, a autora de As Cinquenta Sombras de Grey, que se deram a conhecer através da internet. Xavier Leiva, consultor de estratégia e reputação digitais, estudou o surpreendente perfil das pessoas que conquistam maior popularidade e influência devido à sua atividade online: “São especialistas em determinado tema, mas não necessariamente os melhores. Porém, compreenderam o mecanismo que proporciona maiores recompensas na rede digital, que é o de oferecer conteúdos aliciantes, de forma gratuita, aos interessados no mesmo tema, uma atitude que se transforma em publicidade positiva para elas”, explica. Demonstrar gratuitamente as suas capacidades para melhorar a reputação tem sido de grande utilidade para o guru Seth Godin, um empreendedor norte-americano que, após fundar várias companhias, começou a escrever livros sobre marketing e êxito empresarial. Para se promover, decidiu oferecê-los aos
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BEN MARGOT
A campanha antirracista de Neymar deu a volta ao mundo
internautas que visitassem a sua página. Foi o que fez com Unleashing the Ideavirus (“Soltar o vírus das ideias”), o que o ajudaria, posteriormente, a conseguir publicá-lo em dez línguas (já não de forma gratuita, claro). Além disso, tornou-se um dos mais apreciados conferencistas norte-americanos sobre êxito profissional e empresarial. O próprio Godin sublinhou, nos seus textos, que um dos segredos para a sua ascensão meteórica é “estar ligado a tribos de indivíduos de talento numa relação de confiança mútua”. Em alguns casos, a força da reputação é ainda maior. É o que acontece no eBay, o site de leilões online em que os vendedores que oferecem os seus produtos são pessoas anónimas que não beneficiam do reconhecimento suscitado por uma grande marca. Nesse contexto, para alguém aceitar comprar a um desconhecido (do qual só tem uma breve descrição no site) algo tão caro como um Porsche Carrera GT ou tão singular como um moinho de vento, é necessário uma grande confiança, algo que os vendedores só conquistam através de uma reputação imaculada. Para eles, é essencial que o sistema de classificações automático do eBay lhes conceda a ansiada avaliação de “100% de votos positivos”, o que eliminará qualquer assomo de dúvida por parte do
comprador. Referências impecáveis, proporcionadas por anteriores utilizadores, fazem esquecer a desconfiança instintiva de quem se aventura numa transação económica em que só vê o objeto adquirido 24 ou mais horas depois de o ter pago. De mesma maneira, a compensação proporcionada pelo bom nome tornou-se fundamental para evitar o comportamento duvidoso de quem pudesse sentir a tentação de vigarizar ou burlar. Ninguém irá acreditar num produto colocado no eBay por alguém que tenha apenas uma classificação de 50%. O fundador desse gigante online, Pierre Omidyar, soube-o desde o princípio, e já falava assim em 1996, nos primórdios do site: “Algumas pessoas são desonestas ou desiludem-nos. Isso é verdade aqui, nos anúncios classificados ou na loja ao lado. É um facto comprovado do nosso quotidiano. Contudo, no eBay, essa gente não tem onde se esconder.” A verdade é que muitos negócios digitais se baseiam na confiança e no prestígio, fatores essenciais para poderem funcionar. É o caso das páginas que permitem aos utilizadores pontuarem os produtos ou serviços que adquiriram. O exemplo do TripAdvisor demonstra o poder que essas ferramentas conquistaram nas relações económicas. Na sua página, os
Pela boca... O jogador de basebol Mike Bacsik (à esquerda) felicitou no Twitter “os porcos mexicanos de San Antonio”, quando aquela equipa texana ganhou um jogo. Embora depois tenha pedido desculpa pelo seu comentário “horrivelmente insensível” sobre a comunidade hispânica daquela cidade (em baixo), a sua imagem ficou seriamente prejudicada e perdeu o emprego de comentador desportivo.
Campanha das bananas. O futebolista brasileiro Neymar colocou no Twitter uma foto de apoio ao seu colega Dani Alves. O gesto levou outros famosos a aderirem à causa antirracista.
viajantes descrevem, tintim por tintim, as suas experiências em hotéis e atrações turísticas de todo o mundo (por vezes, não muito agradáveis). Para milhões de utilizadores, converteu-se numa referência indispensável para prepararem as suas férias. Uma má avaliação pode tornar-se decisiva para a credibilidade de um estabelecimento se for lida por internautas de todo o planeta. Assim, sistematizar o processo de avaliação mudou as relações entre comerciante e cliente no mundo das vendas online.
ALTRUÍSMO COMPETITIVO
A verdade é que, como mostram a biologia e a etologia, a importância económica e profissional da imagem, da fama e da credibilidade possui uma base enraizada na evolução, tanto animal como do ser humano. As subtis recompensas que decorrem do altruísmo, por exemplo, foram mesmo estudadas em sociedades mais primitivas, como é o caso dos caçadores de tartarugas da ilha de Murray, no estreito de Torres do oceano Pacífico, perto da Grande Barreira de Coral. Um dos costumes tradicionais destes indígenas é que comem carne de tartaruga de cada vez que se celebra uma festa. Os répteis marinhos são apanhados por alguns caçadores experientes, após uma perseguição que pode durar até doze horas e que
os deixa exaustos. Quando regressam com as presas, entregam-nas e nada recebem em troca, não são compensados. Contudo, embora não haja prémio imediato, a recompensa chega de forma indireta e, sem dúvida, mais valiosa. Estudos sobre a fertilidade na tribo mostram que os caçadores de tartarugas ficam com as mulheres mais jovens e fecundas do grupo. No livro People Will Talk (“As pessoas falam sempre”), o jornalista científico John Whitfield explica a forma como, em múltiplos casos humanos e também do reino animal, “a generosidade proporciona vantagens, não por implicar o agradecimento do indivíduo beneficiado, mas por algo mais importante: cria uma publicidade boca a boca que torna a pessoa generosa mais atraente para os outros, que, embora não tenham sido destinatários dos seus atos, ficam a par da sua reputação de magnanimidade”. Muitos outros estudos asseguram que conquistar boa fama é um incentivo importante para agir desinteressadamente. Chamam-lhe “altruísmo competitivo”, pois trata-se de um mecanismo que permite destacar as características positivas dos indivíduos aos olhos dos outros e contrariar as perceções negativas. Esse altruísmo ajuda a explicar fenómenos como as ações beneméritas levadas a
cabo por Bill Gates e outros multimilionários. No mesmo sentido, a fé que depositamos nos indivíduos com melhor reputação é uma constante firmemente enraizada na natureza. Segundo John Whitfield, “se for mostrada a chimpanzés a solução para dois problemas difíceis, e cada uma oferecer a mesma recompensa em comida, tendem a copiar a decisão adotada pelo animal mais velho e de maior categoria social, do mesmo modo que os peixes imitam os de maior tamanho, pois são a prova viva de boas escolhas”. Esta tendência, que pode parecer primitiva, também se verifica no mundo das relações digitais. Um estudo publicado, em 2008, na revista Human Communication Research, demonstrou que ter amigos e amigas bonitos no Facebook faz a pessoa ser considerada fisicamente mais atraente por aqueles que visitam a sua página. Por outro lado, uma investigação de 2012 da Universidade do Missouri chegou à conclusão de que as pessoas que veem o nosso perfil naquela rede social confiam mais na opinião e nos comentários dos nossos amigos do que na própria informação que fornecemos. Assim, na era da internet, como sempre aconteceu, teme-se o famigerado “o que irão dizer as pessoas?”. J.A.M.
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Nos últimos anos, avanços espantosos parecem estar a tornar realidade o velho sonho da biologia sintética. A criação de ADN e de novas células, assim como a impressão de órgãos, parecem estabelecer as bases de uma revolução que transformará a saúde humana e o conceito que temos da vida. J.B.
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FABRICANTES DE VIDA
Desenhar micróbios Hoje, a ciência já não é apenas capaz de sequenciar genomas: também começou a simular, reescrever ou enriquecer as instruções genéticas de diversos micro-organismos, para que se comportem como nos interessa.
FOTOLIA
E
m 2002, a revista Science anunciava ao mundo a síntese de um vírus num tubo de ensaio. Isto é, tinha sido criado um genoma operacional a partir de compostos químicos inertes. “Provocou uma agitação sensacional”, relata o coordenador do projeto, Eckard Wimmer, da Universidade de Stony Brook, em Nova Iorque. Num abrir e fechar de olhos, a ciência passava de ler genes a conseguir escrevê-los: “Chamaram-nos irresponsáveis por termos sintetizado o vírus da poliomielite, e também por divulgarmos como o tínhamos feito”, recorda o cientista. Apesar das críticas, o avanço deu origem a um novo conceito de investigação: o que considera os sistemas biológicos como máquinas, a fim de se poder recriar, substituir, eliminar e utilizar como queremos cada uma das suas peças. Falamos da biologia sintética. Conhecido pela sua ambição de ser o primeiro a sequenciar o genoma humano, o biólogo e empresário John Craig Venter levou apenas um ano a seguir os passos de Wimmer. No final de 2003, anunciou a síntese do genoma de um vírus um pouco mais complexo. Tratava-se de um bacteriófago, um tipo de vírus que infeta apenas bactérias. Desde então, o instituto de investigação a que deu o seu nome registou várias patentes de técnicas e descobertas com um único (e obsessivo) objetivo: descobrir qual é a quantidade mínima de ADN necessária para permitir a existência de um organismo vivo. “A vida evoluiu através de transformações fortuitas”, explica Venter no seu livro mais recente, Life at the Speed of Light. “O nosso objetivo é descobrir quais são os módulos básicos, os responsáveis pela replicação cromossómica ou pela divisão celular. Estabelecidos
esses parâmetros, poderemos manipular as peças de modo a fazer a célula executar as funções que nos interessam.” Não se trata de uma hipótese nova. Há séculos que o ser humano seleciona e faz uso de micro-organismos da forma que lhe convém. As leveduras, por exemplo, fermentam a cerveja e o pão; o fungo Penicillium chrysogenum produz penicilina; sem as bactérias lácticas, o vinho seria outra coisa. Todavia, Venter acredita que criar micróbios com ADN sintético constituirá uma mudança de paradigma. É fácil explicá-lo, mas muito difícil consegui-lo. O Mycoplasma genitalium, a bactéria mais pequena conhecida, possui 525 genes. Para conseguir definir um genoma minimamente viável, a equipa de investigadores do Instituto J. Craig Venter (JCVI) começou a trabalhar com esta espécie, cujo genoma sequenciara em 1995. “Cerca de cem genes do M. genitalium não são fundamentais: desativámo-los e a célula continua viva”, explica Venter. “Contudo, não sabemos quais são aqueles de que podemos prescindir em simultâneo.”
BRINCAR AOS DEUSES
Resolver estes mistérios poderia levar anos, um tempo precioso que Venter não queria perder. Com o apoio de uma equipa que inclui os melhores biólogos moleculares do mundo, decidiu, então, ignorar os genomas com os quais tinha estado a trabalhar e fazer de Deus. Isto é, decidiu sintetizar a partir do zero, peça por peça, uma molécula funcional. Para poder concretizar a sua ideia, os cientistas do JCVI tiveram primeiro de desenvolver novos métodos. Em 2007, efetuaram com êxito o primeiro transplante de material genético Interessante
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FRED PROUSER / REUTERS
Documento
Mais letras no ADN A equipa dirigida pelo químico Floyd Romesberg (à direita) conseguiu que uma célula vivesse com um genoma amplificado: às quatro bases azotadas naturais dos ácidos nucleicos (guanina, citosina, adenina e timina) conhecidas pelas letras G, C, A e T, acrescentou duas inventadas, X e Y. Célula artificial. Em 2010, Craig Venter (em cima) anunciou que o seu centro de investigação tinha criado pela primeira vez uma espécie de laboratório, a que chamou Mycoplasma mycoides JVC-syn1.0. O Instituto J. Craig Venter desenvolveu uma técnica engenhosa para que só o ADN artificial criado a partir do organismo unicelular Mycoplasma mycoides prosperasse no citoplasma de outra espécie bacteriana, o Mycoplasma capricolum. Em baixo, mostramos o método que adotaram.
Leitura do genoma da bactéria Mycoplasma mycoides
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da história. Em traços gerais, retiraram o ADN de uma bactéria e implantaram-no no interior de uma célula vazia pertencente a outra espécie. O micro-organismo desgenetizado começou a comportar-se como se fosse o doador. Seis meses depois, a equipa de Daniel Gibson, um biólogo molecular do JCVI, montou o seu primeiro genoma artificial. Nada de surpreendente, se considerarmos que o próprio Venter
Recriação sintética do seu ADN, com uma marca genética, para o distinguir
tinha criado, cinco anos antes, o de um vírus. Contudo, agora, o desafio consistia em adaptar as técnicas desenvolvidas a um ADN maior: o da bactéria Mycoplasma genitalium. Os cientistas aplicaram princípios de engenharia genética e dividiram o ADN do micro-organismo em 101 fragmentos, para poderem trabalhar com sequências mais fáceis de manipular, como explica Gibson: “O problema
Inserção do ADN marcado numa bactéria, juntamente com o seu ADN natural
BLOOMBERG
ARCHIVO UNIVERSAL
FABRICANTES DE VIDA
Um técnico sanitário chinês examina uma galinha, para verificar se ela está infetada com o vírus H7N9, que causou os últimos surtos de gripe das aves no Extremo Oriente.
Genomas por email
INSTITUTO SCRIPPS
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gripe das aves. Perante a impossibilidade de importar o agente patogénico para zonas não infetadas, os Centros para o Controlo e a Prevenção de Doenças dos Estados Unidos recorreram ao método desenvolvido por Venter. Bastou uma mensagem de correio eletrónico com a sua sequência genética para sintetizar o vírus responsável pela doença, o H7N9. Assim, sem que um único exemplar do micro-organismo saísse da China, a espécie pôde ser estudada a milhares de quilómetros de distância.
para uma célula vazia, anunciaram na revista Science a criação “do primeiro ser vivo cujo progenitor é um computador”, nas palavras de Craig Venter. À nova espécie, chamaram Mycoplasma mycoides JCVI-syn1.0. Terão os especialistas do JCVI criado vida artificial? Muitos pensam que não. “Exagerou-se a importância dos resultados”, contrapõe David Baltimore, biólogo do Instituto de Tecno-
logia da Califórnia: “É uma questão de escala, mais do que um autêntico avanço científico. Não criaram vida: imitaram-na.” Venter não contesta: “Efetivamente, criar vida implica que o genoma modele a célula onde se encontra; não basta apoderar-se de uma já existente, como um caranguejo-eremita a tomar posse de uma concha vazia”, diz. “O nosso trabalho não pretende recriar a
Um antibiótico sensível ao marcador elimina as bactérias com o ADN natural
Obtêm-se assim bactérias que sintetizam as suas proteínas com o ADN artificial.
JOSÉ ANTONIO PEÑAS
é que a síntese de ADN tende a degenerar. Quanto maior for a sequência, maior a probabilidade de ocorrerem erros. Assim, tivemos de desenvolver métodos que nos permitissem unir as peças gradualmente.” Gibson e a sua equipa precisaram de menos de dois anos para alcançarem os objetivos propostos. Depois de terem fabricado de raiz, em laboratório, um genoma que transplantaram
efinir as fronteiras entre a vida real e a vida digital, atualmente tão interligadas, está a tornar-se cada vez mais difícil. Prova disso, como explica Craig Venter, é que “podemos digitalizar um genoma, transmitir a informação através da internet e passá-la para um conversor, com capacidade para transformar os dados em ADN, que iremos depois inserir numa célula”, criando assim um ser vivo. A tecnologia tem aplicações imediatas. Por exemplo, no início de 2013, surgiu na Ásia uma nova estirpe da
Ao multiplicarem-se, parte das bactérias-filhas levarão o ADN sintético
Interessante
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Documento Cromossoma artificial A levedura Saccharomyces cerevisiae, usada na fermentação da cerveja, foi o organismo complexo escolhido por Jef Boeke, diretor do Centro Médico NYU Langone, para implantar uma estrutura com 274 mil pares de bases genéticas.
WARNER BROS. PICTURES / ALBUM
Um misterioso agente patogénico semeava o terror em Contágio (Steven Soderbergh, 2011).
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or agora, os micróbios sintéticos estão confinados aos laboratórios, mas torna-se inevitável pensar no risco de uma fuga. Poderão sobreviver e reproduzir-se? Arthur L. Caplan, especialista em bioética, compara a hipótese à polémica surgida quando se desenvolveram as técnicas para criar espécies transgénicas, na década de 1970. Não precipitaram o apocalipse, embora se tenha efetivamente comprovado que podem dar origem a problemas ecológicos: “Mesmo pequenas alterações no genoma de um organismo acarretam consequências
génese. De facto, isso não seria possível sem os seres vivos, que evoluíram ao longo de 3500 milhões de anos.”
NOVOS GENES AO COMANDO
A fim de obter a célula sintética, Gibson trabalhou com duas espécies distintas. Primeiro, sintetizou um genoma baseado no da bactéria Mycoplasma mycoides, maior do que o da M. genitalium, e também com maior capacidade para se multiplicar. Depois, transplantou essa molécula para uma célula vazia, pertencente à espécie Mycoplasma capricolum. “O resultado foi o que definimos como uma célula sintética”, explica o investigador. “Na realidade, a única coisa artificial é o ADN; o citoplasma continua a ser o do M. capricolum. Contudo, à medida que a nova bactéria se replica e forma uma colónia, os seus descendentes deixam de integrar informação da espécie original, mas apenas do genoma que lhe implantámos.”
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indesejáveis. Foi o que aconteceu com a introdução do milho transgénico nos Estados Unidos e o declínio abrupto das populações da borboleta-monarca”, refere o especialista. Com a ameaça latente do terrorismo, o facto de se tornar pública a informação genética de agentes patogénicos (e de ser possível sintetizar facilmente ADN) dá que pensar. Foram precisos três anos para produzir o vírus da poliomielite, mas hoje seria possível fazê-lo em menos de 12 horas. “É inquietante que os quadros reguladores não fiscalizem este tipo de tecnologias”, diz Caplan.
Em abril, outra experiência de bioengenharia ocupou as primeiras páginas dos jornais: a criação de um cromossoma sintético num ser mais complexo do que os vírus ou as bactérias que costumavam ser protagonistas deste tipo de histórias. Tratava-se da Saccharomyces cerevisiae, a levedura da cerveja, cujo ADN se encontra encapsulado num núcleo. A equipa liderada por Jef Boeke, do Centro Médico NYU Langone, em Nova Iorque, desenvolveu uma versão sintética e funcional do cromossoma número 3 (a S. cerevisiae possui dezasseis), graças a uma técnica de “corta e cola” semelhante à desenvolvida por Gibson. “A verdadeira proeza é que ele está integrado num organismo vivo”, explica Boeke. “As células com este cromossoma são perfeitamente normais, mas podem fazer coisas diferentes das suas congéneres naturais.” Durante sete anos, os cientistas procederam a mais de 50 mil alterações na base genética da levedura, elimi-
NYU LANGONE
E se escapar algum?
nando repetições e sequências sem função aparente. “Basta uma modificação incorreta para a célula morrer. A nossa intervenção demonstra que o cromossoma sintético é muito resistente”, assinala o especialista. Para que servem estes Frankensteins do mundo microbiano? Dois exemplos: a empresa de biotecnologia Amyris está a trabalhar com leveduras que produzem artemisinina, o principal ingrediente do tratamento contra a malária; por sua vez, a DuPont criou uma bactéria que produz poliéster de qualidade superior. No JCVI, investigam-se mais duas aplicações, para obter sínteses de vacinas e hidrocarbonetos. Craig Venter dedica grande parte do seu orçamento a percorrer o planeta. Pretende reunir o maior número possível de micro-organismos, sequenciar o seu genoma e averiguar o que se pode fazer com ele. Há uma década, percorreu os mares de veleiro, com membros da sua equipa, durante dois anos, e descobriu mais
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espécies do que alguma vez tinha sido feito na história, sobretudo de microalgas. “São as candidatas perfeitas para dar origem a um organismo artificial”, explica o empresário norte-americano: “Consomem energia proveniente do Sol (não necessitam de alimento) e sintetizam hidrocarbonetos para armazenar a energia.” Há muito que se tenta produzir combustíveis a partir de algas, mas os custos são demasiado elevados. Desde 2009, o JCVI colabora com a ExxonMobil para tentar dar resposta a um problema para o qual, segundo admitiu a petrolífera, talvez sejam necessários mais 25 anos de investigações.
GENOMA COM ASSINATURA
Embora Venter tenha anunciado, há um ano, que o sonho de criar ADN totalmente artificial, sem copiar o de qualquer espécie, estava ao virar da esquina, a tarefa parece hercúlea. De uma simplicidade espantosa, considerando as
funções que desempenha, o código genético baseia-se em quatro compostos químicos: a adenina (A), a citosina (C), a timina (T) e a guanina (G). Depois de acopladas a um esqueleto de açúcares, essas bases azotadas formam a dupla hélice de ADN. Cada conjunto de três letras (o codão) codifica um dos vinte aminoácidos essenciais, a matéria-prima de todas as proteínas. Esse código universal, que permanece sem alterações desde os alvores da vida terrestre, ganhou agora mais duas letras. No início deste ano, cientistas do Instituto de Investigação Scripps, na Califórnia, dirigidos por Floyd Romesberg, anunciaram o resultado de mais de 15 anos de investigação: uma célula viva cujo ADN possui duas bases extra. Nas páginas da Nature, Romesberg explicou que o seu objetivo é codificar nas novas unidades informação que permita sintetizar aminoácidos não essenciais: “Com mais letras, podemos inventar palavras”, diz. Já não estamos a falar
de melhorar o que existe, como propõe Venter, mas de produzir algo diferente do que existe. Numa antecipação de eventuais críticas, as células enriquecidas incorporam um mecanismo de controlo que impede a sua sobrevivência fora do laboratório. Segundo Boeke, as suas leveduras também não poderiam fazê-lo, mas, em relação às bactérias ou algas sintetizadas no JCVI, a situação é menos clara. “Ao tratar o genoma como um alfabeto, podemos escrever seja o que for nas zonas não codificantes do ADN. Na primeira célula sintética, incluímos os 46 nomes de todos os que contribuíram para esse avanço, e algumas citações de personagens célebres”, explica Craig Venter. Os mais céticos afirmam que as marcas de segurança irão desaparecer após as sucessivas divisões celulares. Além disso, não impediriam os micróbios de laboratório de sobreviver na natureza. A verdade é que ainda restam muitas dúvidas e obstáculos por transpor. Interessante
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Órgãos de impressora
TED FOUNDATION
Documento
Criar de raiz partes do corpo como se fossem peças sobressalentes, disponíveis quase de imediato e sem risco de rejeição, é um dos objetivos prioritários da medicina regenerativa, que voltou os olhos para as impressoras 3D.
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unca na história da humanidade vivemos tanto e, consequentemente, os nossos corpos nunca tinham sido obrigados a funcionar durante tanto tempo. Na União Europeia, morrem diariamente nove pessoas à espera de um órgão: “Ao longo da última década, duplicou o número mundial de doentes que precisam de um transplante. Mesmo que pudéssemos dispor de mais doadores, não conseguiríamos satisfazer a procura. Temos de encontrar outras soluções”, diz Anthony Atala, diretor do Instituto Wake Forest de Medicina Regenerativa, da Carolina do Norte. Por enquanto, a alternativa mais promissora apenas é uma realidade quase banal nos consultórios dos dentistas: a criação de peças sobressalentes para o corpo humano. Atala dedicou três décadas de investigação a esse objetivo. Antes, trabalhou com tecidos mais simples, como os dos músculos e dos vasos sanguíneos, mas, no início deste ano, anunciou um autêntico passo de gigante: o transplante de quatro vaginas produzidas em laboratório. Oito anos depois da cirurgia, todas as pacientes, que sofriam de uma rara síndrome congénita, desfrutam de uma vida sexual satisfatória.
RECUPERAR A JUVENTUDE
Para criar órgãos a partir do zero, os cientistas necessitam, antes de mais, de células estaminais com capacidade para se transformarem em qualquer tecido do corpo. Até há pouco tempo, só era possível obtê-las de embriões humanos, o que desencadeava acesos debates de ordem ética. Porém, hoje, já é possível fazê-lo através da reprogramação de tecidos adultos. Em termos metafóricos, o processo funciona como uma máquina do tempo. Depois de cultivar
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amostras celulares de um doente em laboratório, estas são submetidas a uma inversão no processo de maturação. Assim, rejuvenescem e voltam a tornar-se células estaminais prontas para encarar novos desafios. Como se organiza e dá origem a um tecido ou um órgão? Com a ajuda de “andaimes”. Fabricados com polímeros porosos, trata-se de uma espécie de malhas biocompatíveis e biodegradáveis que permitem às células crescerem e diferenciarem-se, assim como adotar a forma desejada. “Agem como uma prótese. Se introduzirmos informação obtida através de radiografias e scans, as impressoras tridimensionais conseguem fazer cópias exatas do órgão do paciente”, diz Atala. O segundo passo consiste em revestir o suporte com uma fina camada das células anteriormente obtidas. Finalmente, os tecidos em construção têm de alcançar a maturidade dentro de um biorreator, um engenho que imita as condições no interior do corpo humano. A peça sobressalente continuará a crescer depois do transplante, até se tornar indistinguível do órgão original. Para os que têm a sorte de ver o seu nome sair da lista de espera, receber um fígado ou um rim de um doador é quase como voltar a nascer. Porém, isso também os condena a um futuro em que têm de manter o seu sistema imunitário sempre em estado adormecido: se detetar o intruso, encarniçar-se-á contra ele até o destruir. “O problema desapareceria se se utilizassem células do próprio doente”, explica Atala. Outra grande vantagem é a espetacular redução dos tempos de espera, uma evolução que permitiria realizar este tipo de intervenções em etapas iniciais da doença, quando os pacientes
Charcutaria fina. Anthony Atala, diretor do Instituto Wake Forest de Medicina Regenerativa, mostrou um rim artificial durante uma conferência TED, em 2011, explicando que não se tratava ainda de um órgão completo, mas apenas de uma “casca” vazia, sem estruturas internas.
ainda estão saudáveis e têm mais facilidade em recuperar. A criação de andaimes biocompatíveis é uma disciplina em pleno desenvolvimento. Para o transplante constituir um êxito, é essencial controlar os tempos: se a estrutura se degradar antes do devido, o órgão não ficará bem formado. Contudo, também não convém que leve demasiado tempo a dissolver-se: nesse caso, surge uma cicatriz entre a zona de inserção do implante e os tecidos adjacentes, o que
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coloca em perigo o funcionamento adequado do primeiro. Uma solução para ultrapassar tais inconvenientes consistiria em reciclar os órgãos doados que não apresentem as condições adequadas e são descartados sem contemplações. Em 2012, uma equipa da Universidade de Gotemburgo, na Suécia, enxertou pela primeira vez uma veia obtida com um bioandaime elaborado a partir do vaso sanguíneo de um cadáver. Extrapolável a todo o tipo de tecidos, o pro-
cesso consiste em descelularizar o órgão de um doador. Assim, apenas se conserva a estrutura proteica que dá forma ao tecido. Do ponto de vista teórico, o raciocínio é impecável, pois dispomos de órgãos que sobraram e que podem ser reutilizados como moldes. Na prática, cientistas do Instituto Wake Forest já comprovaram que a técnica funciona com rins de suíno. Seja como for, a melhor alternativa para evitar os problemáticos andaimes de polímeros seria criar órgãos sem estruturas postiças, uma pos-
sibilidade que o apogeu das impressoras 3D começa a permitir. A companhia Organovo, por exemplo, já comercializa kits de tecido de fígado impresso.
FÍGADOS SINTÉTICOS
O processo exige uma análise pormenorizada da estrutura tissular, traduzida num código que a impressora reconheça. Com recurso a células de cadáveres, culturas de biópsias ou linhas celulares já estabelecidas, os especialistas da Interessante
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Gelatina para regenerar pele queimada
NSTITUTO WAKE FOREST
Documento
m dos avanços mais interessantes da bioengenharia surgiu em novembro de 2013, quando um grupo de investigadores da Universidade de Granada, em Espanha, anunciou ter criado pele a partir de células estaminais extraídas do cordão umbilical de um recém-nascido. Em concreto, a matéria-prima provinha de uma substância presente no cordão denominada “gelatina de Wharton”, já identificada pelos especialistas daquela universidade espanhola pela sua acessibilidade e potencial para gerar outros tecidos, embora se pensasse, até agora, que não se podia transformar em células epiteliais. Os cientistas acreditam que a pele artificial estaria pronta para implantar de imediato nos queimados graves se fosse armazenada nos bancos de tecidos. Atualmente, são necessárias semanas para produzir um substituto adequado com restos da epiderme do doente. P.C.
Organovo fabricam biotintas para impressão a jato. Durante o mês e meio de vida, as amostras hepáticas multiplicam-se, morrem e são substituídas com a dinâmica própria dos tecidos vivos. A sua utilização pode, por exemplo, ajudar a identificar a toxicidade ou a eficácia dos fármacos antes de se iniciarem os estudos clínicos em doentes. É preciso não esquecer que dez por cento dos medicamentos testados pela indústria farmacêutica são descartados quando se chega aos testes clínicos, o que poderia assim ser evitado. Atala e a sua equipa do Instituto Wake Forest também se dedicam a experiências com impressoras 3D. Além de estudar as potencialidades desta tecnologia para criar bioandaimes (com células em vez de polímeros), Atala pretende obter órgãos em miniatura: “Queremos imprimir corações, pulmões ou fígados miniaturizados, que seriam instalados sobre chips e alimentados com um sucedâneo do sangue. Esse sistema permitiria substituir os animais nas experiências”, explica o cientista. “É costume pensar que, no futuro, produziremos órgãos inteiros”, diz Keith Murphy, diretor-executivo da Organovo, acrescentando: “Contudo, nós preferimos concentrar-nos na criação de tecidos mais pequenos. Poderemos imprimir, por exemplo, uma espécie de pensos
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para tratar um coração que sofreu um enfarte. Ao utilizar células do doente, evitaremos a rejeição.”
TECIDOS PARA GERAR ELETRICIDADE
Num artigo recentemente publicado, Ibrahim T. Ozbolat e Yin Yu, da Universidade do Iowa, propõem outras aplicações para os mini-órgãos. Dão como exemplo o pâncreas, composto por dois tipos de células, das quais apenas 2% desempenham um papel endocrinológico. Um tecido exclusivamente criado com as células úteis poderia administrar insulina aos diabéticos sem necessidade de produzir um pâncreas completo. “Além disso, os órgãos em miniatura podem ser desenhados para dotar o corpo de novas funções”, indicam os dois cientistas. “Por exemplo, se criássemos estruturas orgânicas que possam gerar eletricidade, não precisaríamos de pilhas nos pacemakers.” No caso de se insistir na intenção de imprimir
órgãos vitais completos em tamanho natural, o principal desafio consiste em criar um sistema vascular eficaz. No corpo humano, o sangue que corre pelas veias, artérias e capilares encarrega-se de proporcionar alimento e limpar cada zona. Porém, nos tecidos artificiais, esses serviços de manutenção não existem. Daí que ainda não seja possível imprimir uma camada de células com mais de alguns milímetros. “Os transplantes que concluímos com êxito, como os da bexiga ou da traqueia, resultaram porque esses orgãos são suficientemente finos para não exigirem uma extensa infiltração de vasos sanguíneos”, esclarece Atala. Algumas bioestruturas artificiais, como as amostras hepáticas da Organovo, apresentam sinais de vascularização. Contudo, não parece provável que as redes complexas se formem espontaneamente. Os especialistas do Instituto Wake Forest estão empenhados em criar algo muito seme-
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lhante a um sistema vascular: “Contemplámos duas opções: imprimir pequenos canais que possamos povoar com células do endotélio, as que formam os vasos sanguíneos, ou fabricar os andaimes com materiais que produzam oxigénio”, explica o direto do centro. É no Instituto Wyss, da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, que se encontram as impressoras com maior definição do mundo, com capacidade para criar estruturas à escala microscópica que incluam (e é esse o ponto interessante) capilares humanos. “Em vez de fabricarmos tecidos com sulcos, criamos vasos sanguíneos como se fossem uma estrutura sólida. Depois, extraímos o material”, explica Jennifer Lewis, uma engenheira que se dedica a este tipo de investigação. Para consegui-lo, os especialistas da instituição desenvolveram um polímero a que chamaram “tinta fugidia”. Em vez de endurecer à medida que arrefece, faz exatamente o contrário: derrete-se. Depois de
SHAWN ROCCO / DUKE MEDICINE
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HARVARD BIOSCIENCE
INSTITUTO WAKE FOREST
Estes já funcionam! Eis alguns dos órgãos fabricados por diversos centros de investigação a partir das células dos próprios pacientes, e que já demonstraram a sua operacionalidade. À esquerda, uma das quatro vaginas produzidas no Instituto Wake Forest de Medicina Regenerativa, da Carolina do Norte, e uma válvula cardíaca. Em baixo, uma traqueia. À direita, um mini-rim, junto a biomoldes de orelhas e ossos, uma bexiga e um vaso sanguíneo implantado durante uma operação cirúrgica pioneira realizada nos Estados Unidos.
aspirar o que não interessa, obtêm-se pequenos túneis ocos. Através desta técnica, os cientistas de Harvard criaram um tecido com três tipos diferentes de células e um sistema vascular complexo, semelhante ao dos órgãos humanos. Além disso, povoaram a rede incipiente com células endoteliais, que deram origem ao revestimento dos vasos sanguíneos.
IMITAR O ALGODÃO DOCE
Trata-se de desenvolver um método seguro e rápido, mas também económico. Jordan Miller, da Universidade da Pensilvânia, trabalha num projeto semelhante ao de Lewis. Não é tão rápido, nem tão preciso, mas considera ter encontrado a solução perfeita: “Em vez de polímeros especiais, utilizamos hidratos de carbono”, esclarece. Por outras palavras, a sua “tinta fugidia” é açúcar. O cientista conta que a ideia lhe ocorreu ao observar a fina estrutura
do algodão doce vendido nas feiras. Uma simples solução aquosa eliminaria o material. Além disso, Miller engendrou a primeira impressora autorreplicável. Batizada com o nome RepRap, trata-se de um projeto de código livre: qualquer um pode construir esta máquina, que consegue fabricar todas as peças necessárias para criar um clone de si própria. Ultrapassado o obstáculo do sistema vascular, ainda há muito por fazer. Segundo Miller, o próximo desafio estará relacionado com este problema: “Muitas das células incorporadas nos tecidos não conseguirão sobreviver às horas necessárias para a impressão.” Ainda falta muito, pois, para a tecnologia integrar o quotidiano das práticas clínicas. Contudo, se recordarmos o que disseram, há mais de uma década, vários pioneiros neste campo, as impressoras de órgãos talvez venham a ser tão vulgares como o microscópio eletrónico no século XX. Interessante
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Fabricar corações Figura de referência da cardiologia mundial, o médico espanhol Francisco Fernández-Avilés dirige um laboratório de órgãos bioartificiais pioneiro no mundo. Revela-nos o que já conseguiu fazer e quais os principais desafios.
O
chefe do Serviço de Cardiologia do Hospital Geral Universitário Gregorio Marañón, em Madrid, Francisco Fernández-Avilés (nascido em Cuenca, em 1953), conhece como ninguém a nossa bomba vital. Desde 2010, dirige um projeto sem paralelo a nível mundial: procura recriar o órgão fundamental em laboratório. O que impulsionou a criação do laboratório de órgãos bioartificiais no hospital madrileno? Na medicina regenerativa, quando temos de lidar, por exemplo, com um coração afetado por uma doença crónica grave, temos duas opções. Se a doença se encontrar numa fase inicial, quando as células sofreram danos irreparáveis mas a estrutura se mantém intata, podemos recorrer às células estaminais e evitar uma maior destruição. Contudo, se a doença evoluir, ao fim de algum tempo forma-se uma cicatriz. A zona afetada não só terá perdido as suas células como tudo o que as rodeia. Quando se chega a essa fase de insuficiência cardíaca avançada, apenas um transplante poderá resolver a situação. Nem sempre há órgãos disponíveis... De todos os doentes que precisam de um coração em Espanha, nem um décimo consegue consegue obtê-lo. Esse valor desce para menos de metade em países como os Estados Unidos. Temos de encontrar uma alternativa! No final do ano passado, foi implantado em França um coração completamente artificial. O que o distingue dos bioartificiais? O primeiro é uma máquina dotada de baterias, que funciona muito bem transitoriamente, enquanto se aguarda o transplante. Embora devam surgir muitos avanços nesse campo, não proporcionam uma solução definitiva. Por sua
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vez, os órgãos bioartificiais são feitos de células. Teoricamente, seriam até mais eficazes do que os de um doador, pois evita-se a rejeição. É possível criar um coração funcional desse tipo? Ainda estamos no campo das hipóteses. No entanto, pensamos que seria possível, se utilizássemos como base a matriz de um órgão proveniente de um cadáver. Em que fase se encontra a investigação? Tanto no caso de corações humanos como no de suínos, bastante parecidos com os nossos, já conseguimos definir os passos necessários para obter uma matriz de colagénio, uma espécie de estrutura oca, sem informação genética do antigo dono. Como se eliminam as células dessa armação? Utilizamos um produto que está presente nos champôs vulgares e nos sabonetes para lavar as mãos. Ao percorrer os vasos já existentes na estrutura, o detergente elimina as células num prazo de dois a quatro dias. Terminado o processo, como é possível repovoar a matriz? É o que estamos a estudar agora. Encontramo-nos na fase a que chamamos ex-vivo: trabalhamos com órgãos humanos ou animais, ligados a um sistema de perfusão (introdução de sangue) que mantém os tecidos com vida enquanto tentamos repovoar as matrizes e estudar como se comportam as células. Já conseguimos bons resultados com pequenas amostras. No entanto, falta descobrir como é que as células sabem para onde ir. Que tipo de células utilizam? As que são conhecidas por “pluripotentes induzidas”, que funcionam de modo semelhante às células estaminais. Podem ter diversas proveniências: vêm da pele, da medula óssea,
da gordura ou mesmo do cabelo do paciente. Depois, são reprogramadas para adquirirem plasticidade e se dividirem. A partir daí, têm de se especializar. No caso do coração, temos necessidade de células que se contraiam, de células que deem origem aos vasos sanguíneos e de outras que formem o sistema elétrico, responsável por receber e propagar os impulsos.
EM BUSCA DA PERFEIÇÃO
A técnica é melhor do que a dos andaimes ou suportes construídos com polímeros? Creio que é muito difícil construir um andaime com a estrutura exata de uma matriz de coração. Temos suspeitas de que a sua distribuição espacial, na etapa embrionária, serve para indicar às células por onde devem ir e como
HOSPITAL GREGORIO MARAÑÓN
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se têm de diferenciar. Uma empresa sueca produz matrizes incríveis, construídas com seda de aranha, mas nunca terão a perfeição de uma proveniente de um cadáver. Nesse caso, será sempre necessário um suporte humano? Penso que sim. Iniciámos as experiências com suínos, embora o seu colagénio não possua o mesmo nível de biocompatibilidade do do ser humano. Pode mesmo vir a ser rejeitado pelas células humanas. Por isso, estamos a trabalhar em simultâneo com corações cedidos. Os órgãos bioartificiais poderão alguma vez colmatar o défice de doadores? Não creio. É verdade que as necessidades de transplante ultrapassam o número de órgãos disponíveis por doação, e é por isso que estamos
à procura de alternativas, como os corações de animais. No futuro, poderemos recorrer a um conjunto de técnicas complementares. Há algum limite para a utilização de órgãos bioartificiais? Em princípio, o tempo. Se desse entrada no hospital um doente no estado que denominamos “urgência zero”, ou seja, com necessidade imediata de um coração, a possibilidade de produzir um órgão nem se colocaria. Felizmente, porém, a maior parte dos doentes que necessitam de um transplante sofrem de doenças crónicas. Entram de forma programada numa lista de espera enquanto dispõem de alguns meses de vida. Assim, poderiam esperar enquanto aproveitamos as suas células para criar um novo órgão.
Quando podemos esperar assistir à aplicação desta tecnologia para salvar vidas humanas? Está para breve? No melhor dos casos, já estarei reformado! Estamos a falar em, pelo menos, uma década. Estes métodos foram bem-sucedidos com rins ou fígados, mas o coração é outra história. Tem de possuir uma estrutura muscular que funcione, no mínimo, sessenta vezes por minuto durante toda a vida, e que esteja ligada a um sistema elétrico de grande complexidade. O grupo com que colaboramos, do Texas Heart Institute, nos Estados Unidos, já produziu um coração de rato operacional. Queremos conseguir o mesmo com seres humanos, mas estamos a falar de muitos milhões de células que têm de se entender entre si. Interessante
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Desporto Do boxe para uma visão da vida
As lições de um CEGO C
urei as feridas, limpei as lágrimas e vim.” Esta frase resume de forma exemplar o trajeto extraordinário de um homem que promete ficar na história do desporto adaptado em Portugal. Jorge Pina, ex-pugilista, agora atleta paralímpico invisual, prepara-se para inaugurar a primeira escola de atletismo adaptado no nosso país. Um feito de realce, mas que é apenas mais uma etapa no percurso de vida de alguém que sabe enfrentar cada adversidade com um sorriso permanente nos lábios. Marcámos encontro no Estádio Universitário, em Lisboa. Alto, forte, musculado, Pina é o protótipo do atleta de competição, mas é o seu espírito solidário que verdadeiramente o move. Não há obstáculos que o detenham: cego do olho esquerdo, e vislumbrando apenas algumas sombras (dez por cento de visão) com o direito, mantém uma relativa autonomia. Conhece suficientemente o balneário para se equipar sozinho, caminha ao longo do corredor do pavilhão dando ligeiros toques na parede com o braço esquerdo e, no tartan, é capaz de correr sem sair da sua pista. A acompanhá-lo, tem sempre um telemóvel especial, uma máquina que fala, transmitindo-lhe mensagens sonoras. É com ele que Pina trata dos assuntos da sua associação, fala com os amigos e projeta treinos e viagens. “Tudo o que faço é para os outros e com os outros”, diz. A história de Jorge Pina, hoje com 38 anos, começa no Algarve, em Portimão, em 1976,
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quando os pais, retornados de Angola, ali se fixaram após a independência da antiga colónia africana. Por pouco tempo, porém: o pai, polícia, foi colocado em Lisboa, e a família acabou por se deslocar também para a capital, primeiro para o bairro do Rego, em Santos, mais tarde para Chelas e para o Barreiro. Entretanto, a família crescia: eram cinco na chegada a Lisboa, mas hoje são nove irmãos. “O meu pai vive em Cabo Verde, a minha mãe está nos Estados Unidos, alguns dos irmãos estão cá”, resume, lembrando uma adolescência difícil: “Tive problemas com toxicodependência, foi um período conturbado da juventude… Fui para a tropa. Depois de a minha filha nascer, decidi que queria vê-la crescer, não queria que lhe contassem que o pai é isto e aquilo, quis mudar de vida.” É neste “mudar de vida” que se fundamenta aquilo que ele é hoje: “Sabia que aquele não era o caminho certo, e tive de lutar contra todas as adversidades que as drogas causam, e mudar o meu rumo, ter uma história mais alegre… Foi esta que encontrei.” O desporto foi sempre uma âncora indispensável neste percurso, a começar pelo pugilismo: “Comecei muito novo, aos 11 anos… No Rego, todos os miúdos treinavam boxe, queriam ser Mike Tysons… No meu caso, o ídolo era o Muhammad Ali. Iniciei-me nos Económicos, depois fui para o Rio de Janeiro, no Bairro Alto, para o Sporting… Depois, começou o sonho!” O sonho era ser campeão do mundo: Pina
PAULA VIEGAS
Ex-pugilista, agora atleta paralímpico invisual, Jorge Pina vai abrir, em setembro, a primeira escola de atletismo adaptado em Portugal. Esta é a história extraordinária de um homem que ultrapassou todos os problemas olhando sempre em frente.
Correr por todo o lado
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orge Pina não para. Enquanto conversávamos, à sombra de uma árvore junto a um dos pavilhões do Estádio Universitário de Lisboa, preparava uma viagem para o dia seguinte: “Amanhã, vou para Helsínquia correr, também por uma causa. Sou um atleta da paz, corro numa organização internacional fundada por Sri Shinmoy, um líder espiritual que criou a Corrida da Paz. Sou embaixador, e esta corrida vai pelo mundo inteiro deixar a mensagem de paz, amor e harmonia, dando ferramentas para ultrapassar dificuldades, para conseguirmos lidar e aceitar o mundo exterior de uma forma mais saudável e harmoniosa.” A Corrida da Paz iniciou a sua edição de 2014 em Portugal. Em fevereiro, começou em Lisboa o transporte da tocha flamejante, que percorrerá mais de 24 mil quilómetros, por 47 países europeus, passando de mão em mão, unindo escolas, comunidades, organizações e pessoas com os mais diversos percursos de vida. De Lisboa, a tocha partiu para o Barreiro, seguindo-se Setúbal, Seixal, Melides, Sines, Zambujeira do Mar, Aljezur, Lagos, Portimão, Albufeira, Vilamoura, Quarteira, Faro, Olhão, Castro Marim e Vila Real, continuando em Espanha. O percurso de Pina passou a ser reconhecido também em termos mediáticos. O país ficou a conhecer um pouco da sua história quando, em junho de 2013, participou no programa Splash!, da SIC, no qual figuras
Com o judoca Nuno Delgado e a tocha da Corrida da Paz de 2014.
públicas mergulhavam de uma prancha para uma piscina, de vários metros de altura. Pina não hesitou quando o convite lhe foi feito: “Era uma oportunidade para me mostrar e provar que, quando há vontade, não há limitações. Assim, fui subindo prancha a prancha, saltando sempre. Não há que ter medo de nada!” Conseguiu fazer um salto a 7,5 metros de altura, terminando em terceiro lugar no concurso. Em 2013, a Casa das Letras editou o livro Não Faz Diferença Nenhuma!, da autoria de Bibá Pita, com Inês de Barros Baptista. A autora, que tem uma filha com trissomia 21, decidiu desdramatizar as diferenças e mostrar como é possível levar a vida para a frente mesmo quando esta parece injusta. Entre outros depoimentos, lá está o de Jorge Pina, exemplo de força no derrubar de adversidades. Em outubro, Pina participou também na primeira edição da Night Run, uma corrida noturna nas ruas de Lisboa, com fins solidários, e da qual uma parte da verba reverteu para a sua associação. Participaram cerca de 5000 pessoas. Uma personalidade tão rica não podia passar despercebida no cinema. O realizador Miguel Clara Vasconcelos apresentou em 2005 uma viagem ao mundo do pugilismo, Documento Boxe, com Jorge Pina como protagonista. Cinco anos depois, Vasconcelos regressou ao tema, agora com Combate às Escuras: Pina é, agora, um pugilista cego.
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“O boxe era uma terapia; a raiva ficava no saco, ficava tudo no treino” foi vários anos campeão nacional, o único em três categorias seguidas, 67, 71 e 75 quilos. Foi para os Estados Unidos, onde ainda é o único português a registar duas vitórias, uma aos pontos e outra por KO, e para Espanha. Quando estava pronto para disputar o título mundial… “Puxaram-me o tapete. Apareceu-me esta cegueira, de uma forma inesperada e repentina, e tive de mudar a minha vida toda…”
SUBITAMENTE, A CEGUEIRA
Tinha na altura 28 anos. “Estava a treinar em Espanha, com Javier Castillejo, que foi campeão do mundo, e de repente começo a ver bolhas, como se estivesse a despejar um copo de água com gás e as bolhas a saltarem… Fui a um médico e ele aconselhou-me a vir para Portugal, para descansar, e depois voltar ao treino. Não me elucidou sobre a gravidade do meu problema. Por isso, continuei a treinar, fui combater ao Algarve, do Algarve fui para a Polónia, e quando vim de lá decidi que tinha de ir outra vez ao médico.” Começa aqui um calvário a caminho da escuridão: Pina foi operado de urgência ao olho esquerdo, numa clínica, mas a cirurgia não correu bem. “A retina ficou dobrada ao meio, fiquei com um vinco. Fui tentar tirar o vinco, mas não resultou. Perdi a visão do olho esquerdo, após quatro operações. Já em Santa Maria, fui a uma consulta de rotina e disseram-me que tinha de ser operado ao olho direito. Fiquei hesitante: porquê, se consigo ver, ler e escrever, andar sozinho, apanhar o autocarro, essas coisas todas? Operaram-me. Não correu bem e, com as cirurgias todas, em vez de melhorar, só piorei…” Nota-se uma certa mágoa por todo este processo (“se calhar, se não mexessem tanto, ainda via mais do que vejo hoje…”), mas também a consciência de que as opções depois tomadas foram as mais certas: “Se fosse tentar mexer nisso… Não sei, sou tão fraquinho… Ia meter-me num estado ainda pior do que já estava… Serviu para mudar a minha forma de vida, para acreditar que se calhar isto tinha de acontecer, e que talvez tenha sido melhor a vida ter-me proporcionado estes momentos que estou a ter agora. Se não fosse assim, não me tinha tornado a pessoa que sou hoje, não daria a oportunidade aos outros de me conhecerem e de saberem a minha história como uma forma de lhes dar força para ultrapassarem as dificuldades e os problemas…”
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ATRAVESSAR A ESTRADA
Na verdade, a transformação de Jorge Pina foi rápida e decidida: após uma fase de alguma revolta, a capacidade de olhar em frente permitiu-lhe ver novos horizontes: “Estava no Hospital de Santa Maria, e praticamente atravessei a estrada e vim para aqui!”, conta, com um sorriso permanente, os olhos semicerrados, em recordação. No hospital, recebeu uma chamada de alguém que conhecia pessoas que faziam atletismo adaptado. “Não hesitei e disse: ‘Está bem!’ O desporto sempre fez parte da minha vida, foi uma das ferramentas que usei para ultrapassar dificuldades, e decidi agarrar a oportunidade.” Ali mesmo ao lado do hospital, a pista do Estádio Universitário foi um apelo irresistível. Pina já corria, quando se preparava para o boxe, mas agora tinha outros objetivos: “Quando cheguei, treinava-se para o Campeonato do Mundo. ‘Quais são os mínimos?’, perguntei.
Consegui ir ao Mundial. Depois, quis ir a Pequim, aos Jogos Paralímpicos. Ia fazer a maratona. Os mínimos eram 3h20. Estabeleci o objetivo de fazer menos de três horas, e consegui 2h59… Assim, sucessivamente, fui ganhando o meu espaço na equipa do desporto adaptado, criando laços e amizades, até resolver criar esta escola de atletismo adaptado.” É nas corridas de fundo que o novo atleta encontra também a sua espiritualidade. Não se considera velocista: “A verdade é que a única medalha que tenho nos paralímpicos foi numa estafeta de 4x100 metros, a medalha de prata no Campeonato da Europa”, recorda, com um sorriso. Correr três horas no escuro é algo que não o assusta minimamente: “É assim que às vezes consigo entrar num espaço meditativo e viajar… O guia vai comigo, mas eu gosto de correr em silêncio… Para mim, a corrida é um estado de meditação: eu e o meu corpo, e o barulho da terra, sentir a respiração… Vou
Atletismo adaptado
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Fora da caixa. Através do projeto MusicBoxe, Jorge Pina tenta motivar os jovens de bairros problemáticos a encontrarem um sentido para a vida. Aqui, numa ação na Zona J, no bairro de Chelas, em Lisboa.
desfrutando da corrida, num lugar mais fundo. O treino e a parte física sempre tiveram para mim um lado espiritual… Mesmo no boxe, nunca fui uma pessoa violenta. Para mim, o boxe era uma forma de arte, uma terapia, a raiva ficava no saco, ficava tudo no treino…”
UM MUNDO DE PROJETOS
A verdade é que foi como invisual que este homem invulgar começou a fazer crescer um mundo de projetos sociais e solidários. Em 2011, fundou a Associação Jorge Pina (AJP): “Queria dar oportunidades aos jovens para correrem e praticarem desporto, e queria partilhar a minha história, encaminhá-los. Sob três pilares: inclusão, harmonia e paz. Sem estes três, não há equilíbrio. Nunca esqueci o pugilismo, e ainda sou treinador de boxe. Tenho um projeto que é o MusicBoxe, de integração social nos bairros de Lisboa, que tenta, através da música, do boxe e da dança, levar os miú-
dos a praticarem alguma coisa de que gostem, tirando-os dos caminhos da marginalidade. Também quero dar-lhes um bocadinho da minha história de vida, fazê-los ver que a transformação depende deles: ‘Se quero alguma coisa, tenho de ser eu a fazer, não posso ficar à espera. Eu consigo, se quiser!’ ” Tudo começou na casa de um amigo, Francisco Mendes, ex-apresentador do programa Top +, na RTP. Mendes é atualmente presidente da Mesa da Assembleia-Geral da AJP. Com mais alguns amigos, fizeram crescer projetos: uma escola de boxe, o programa MusicBoxe, iniciativas de apoio a pessoas com necessidades. Já trabalharam com jovens da Curraleira, e atualmente estão sediados em Marvila, trabalhando com cerca de 30 pessoas, dos dois sexos e dos dez aos 25 anos. “Estamos prestes a ficar sem local de treinos: o Pavilhão dos Loios vai para obras, e já nos disseram que não poderemos voltar para lá…
escola projetada por Jorge Pina poderá, efetivamente, constituir uma pedrada no charco na história do desporto adaptado em Portugal. Até agora, o setor tem evoluído timidamente, movido sobretudo pela carolice de algumas associações de deficientes, com pequenos apoios estatais. Portugal tem, desde 1988, uma Federação Portuguesa de Desporto para Pessoas Com Deficiência, que integra como membros efetivos cinco instituições da área: a Associação Nacional de Desporto para Deficientes Visuais, a Associação Nacional de Desporto para a Deficiência Intelectual, a Associação Nacional de Desporto para a Deficiência Motora, a Liga Portuguesa de Desporto para Surdos e a Paralisia Cerebral – Associação Nacional de Desporto. É a partir do trabalho destas instituições, que organizam torneios, campeonatos e formação, que o desporto adaptado tem crescido, registando participações nos Jogos Paralímpicos a partir de 1972. Desde então, sempre com presenças regulares, um número de atletas a rondar as três dezenas, e com resultados agradáveis, incluindo várias medalhas, sobretudo nas modalidades de atletismo, boccia e natação. Em Londres 2012, a representação paralímpica portuguesa (30 atletas) foi a menos medalhada de sempre, com apenas três lugares no pódio, dando conta das dificuldades no setor e do aumento da competitividade em termos internacionais. Jorge Pina foi desclassificado, na maratona.
A Câmara está a tentar ceder-nos um espaço para a sede, mas se não tivermos um espaço para desenvolver as atividades é como se não houvesse nada. A atividade do boxe é suportada por uma verba da área do Desporto, da Câmara. É insuficiente, mas é melhor do que nada…”
FINALMENTE, UMA ESCOLA
É neste cenário de luta diária que surge o acordo com uma conhecida marca de desodorizantes: “Cheguei à Rexona com um projeto, o Correr Portugal, no qual atravessarei o país, de ponta a ponta, de Caminha a Sagres, para ajudar dez instituições de solidariedade social. Começará a 5 de outubro: dez dias, dez cidades, dez instituições. Desafiaram-me, aceitei o repto e estamos a angariar fundos para apoiar essas instituições, patrocínios, apoios… Depois de sair dessa reunião, fui chamado pelo diretor de Marketing da Rexona, Pedro Gonçalves, perguntando-me o que é que eu queria para a associação. A resposta que me ocorreu foi: ‘Quero uma escola de atletismo adaptado, Interessante
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rês filhas (Carolina, Bruna e Núria), de mães diferentes, e a mulher que muito admira, Raquel Pedro, médica de clínica geral, são os principais pilares deste homem que parece capaz de superar qualquer obstáculo. Raquel é também a sua treinadora, em substituição do antigo técnico, José Santos, com o qual Pina continua a manter contactos. Essenciais são também os guias. Depois de Luís Ginja e de Paulo Hermezilha, é com António Pinheiro (na foto) que Jorge Pina corre. Com ele marcou um treino para depois da entrevista: “Já que estou aqui, aproveito…”, disse, referindo-se à presença no Estádio Universitário. O treino é sempre um prazer. Pinheiro trabalhou cinco anos com outro atleta paralímpico, Carlos Ferreira, e está há pouco mais de um ano com Jorge Pina, o suficiente para perceber, com a sua experiência, que está perante alguém invulgar: “É fácil lidar com o Pina. A parte mais difícil é que ele é um atleta muito impetuoso. Para ele, o treino é como se fosse uma competição”, comenta, com um sorriso, adiantando que está disponível para colaborar no projeto da escola de atletismo adaptado.
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PAULA VIEGAS
PAULA VIEGAS
Os pilares
Fio condutor. É através de um telemóvel especial que o atleta organiza a sua preenchida agenda.
A escola de atletismo adaptado será também local de formação para dar oportunidade às pessoas de praticarem desporto.’ Como atleta paralímpico, sei da falta de atletas que há em Portugal para dar continuidade ao trabalho até agora feito.” Daqui resultou a iniciativa Rexona Corre por Mais, pensada para angariação de verbas destinadas à criação da escola: um euro por cada quilómetro percorrido em ginásios aderentes, em maio e junho deste ano: foram percorridos 135 526 quilómetros, do que resultou uma verba suficiente para o arranque do projeto. Assim, a escola vai mesmo avançar em setembro, estando marcado para 22 desse mês um Open Day Adaptado, no Estádio do Inatel, em Lisboa, das 14 às 18 horas: “Todos os atletas referenciados pela Direção Regional de Educação de Lisboa (DREL) na área da deficiência vão estar lá a experimentarem as várias áreas do atletismo: saltos, lançamentos, velocidade... Vai ser um dia aberto para todas as deficiências: cegos, surdos, motores, intelectuais. É para todos, é inclusão, e não exclusão.” O entusiasmo é visível em Jorge Pina, apesar do muito trabalho que um projeto destes exige: nos últimos meses, o atleta foi a escolas apresentar a ideia e falou com diretores e respon-
sáveis pelo desporto escolar e adaptado. A adesão tem sido plena, havendo já mais atletas candidatos do que os referenciados pela DREL. A escola deverá funcionar em vários pólos, mas começará no Estádio do Inatel, estando o protocolo já assinado. O Estádio Universitário e a Pista Municipal de Atletismo Moniz Pereira, também em Lisboa, são duas outras possibilidades ainda em estudo. Devido aos vários níveis de deficiência dos atletas que frequentarão a escola, serão também necessários formadores especializados: “Temos cinco técnicos, mas, pelo andamento, já vi que vão ser precisos mais… Fizemos um protocolo com a Universidade Lusófona, para que os professores da área do desporto possam vir estagiar e aprender, ter a experiência de estar com pessoas com deficiência. Vai ser uma escola para os miúdos, mas também para os futuros professores. Estamos à espera de fechar o protocolo com a Faculdade de Motricidade Humana, e estaremos abertos a mais escolas da área do desporto que estejam interessadas. Queremos parcerias: juntos, conseguiremos fazer melhor!” J.V.
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FOTOS: JORGE NUNES
Ambiente Santuário natural nordestino
O nosso CANYON
Nos confins do planalto dourado das terras de Miranda, existe um acidente orográfico com desfiladeiros onde nos sentimos insignificantes e penhascos de tirar o fôlego. O biólogo Jorge Nunes leva-nos ao nordeste transmontano para conhecer o nosso Grand Canyon, uma região moldada pelo Douro ao longo de milénios.
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caiaque rasgava vagarosamente o espelho de água em que se refletia a ciclópica paisagem feita de rebeldes e eriçados fraguedos. No profundo desfiladeiro, o calor era tórrido e o silêncio sepulcral. O sossego, que permitia um contato íntimo e tranquilo com a natureza, numa espécie de exaltação mística, só era interrompido pelo chapinhar compassado dos remos e pelo pio de sombras fugidias, que os olhos tinham dificuldade em descortinar, devido ao cintilar persistente da água e das penedias. A colossal garganta, por onde deslizava a minúscula embarcação e na qual se espreguiçava, indolente, a majestosa cobra azul a que uns chamam “Douro” e outros “Duero”, ia-se estreitando diante dos olhos. À medida que avançávamos, as muralhas petrificadas alteavam-se, deixando ver uma nesga cada vez mais estreita de céu anil no qual passeavam nuvens níveas e majestosas aves planadoras. O Douro já não tem as águas indomáveis que moldaram o seu vale ao longo de milhares de anos. Hoje, é um rio pachorrento, completamente domado pela construção de sucessivas barragens hidroelétricas. Assim, prosseguíamos sem pressa, pois a paciência é a suprema virtude de quem não se limita a olhar, mas gosta de ver e saborear os pormenores. Para isso, para descobrir o espírito dos lugares, não
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há melhor do que um caiaque ou uma canoa a vogar ao sabor da corrente. Os grifos iam deixando os rochedos e lançavam-se no vazio, como praticantes de asa delta em busca de correntes de ar quente que os levassem pelo céu ao sabor do vento. Mais adiante, de uma fraga à beira-rio descolou uma magnífica ave vestida de negro: uma cegonha-preta, rara e ameaçada, que encontra nos alcantis durienses a quietude necessária à sua subsistência.
Prosseguimos viagem no mais absoluto silêncio: os animais destas zonas remotas e recônditas não gostam de ser incomodados.
RIO INTERNACIONAL
Reza a lenda que, numa contenda entre os grandes rios ibéricos (Tejo, Douro e Guadiana), ocorrida quando o mundo ainda era jovem, o Douro mostrou-se mandrião, tendo sido o último a escolher o seu caminho em direção ao mar. Enquanto o Guadiana serpenteou placi-
Ao sabor da corrente. O Douro já não tem as águas indomáveis que criaram o seu vale ao longo de milhares de anos. Hoje, é um rio pachorrento, completamente domado pela construção de sucessivas barragens hidroelétricas.
damente pelas planícies do sul e o Tejo se dirigiu às vastas campinas e fartas lezírias do Centro, onde calmamente se espraiou, o Douro nasceu ciclópico e arrogante, cavando o seu leito através dos fraguedos bravios das terras nortenhas. Consta que a sua força lhe adveio das águas que foi bebendo nos seus diversos afluentes. Como diz o povo, “o Doiro é o rio mais forte porque bebe as águas todas”: possui a maior bacia hidrográfica de toda a península Ibérica e ocupa o terceiro lugar no ranking dos maiores rios peninsulares. O Douro nasce na serra de Urbion, em Espanha, a cerca de 1700 metros de altitude. Ao longo do seu curso de 927 quilómetros, atravessa 597 km de território espanhol, perfaz 122 km de raia luso-espanhola e os derradeiros 208 km em Portugal, até desaguar no Atlântico, junto ao Porto. Porém, quem vê o rio na Invicta está longe de imaginar como ele é bem diferente a montante, sobretudo no seu troço internacional, onde se apresentava, até há bem pouco tempo, selvagem e indómito, constituindo uma fronteira natural intransponível, de que os homens do planalto nem se abeiravam. Nos plainos extensos que pertenceram ao território do antigo reino leonês, o Douro corre em declives suaves e apresenta um comportamento sereno. Porém, ao aproximar-se da fron-
teira, tudo se altera. No curto espaço correspondente à selvagem garganta fronteiriça que começa nos arredores do Embalse de Castro e termina em Barca de Alva, onde o curso se torna exclusivamente português, este estranho rio passa dos quase 600 metros de altitude para apenas 115, afogando-se a pique num vale alcantilado onde, antes das barragens, corriam águas tumultuosas. Aplacada a fúria das águas por cinco barragens sucessivas (Miranda, Picote, Bemposta, Aldeadávila e Saucelhe), hoje, já não se formam rápidos aterrorizadores, mas nem por isso a paisagem do troço internacional deixa de ser monumental e magnífica, constituindo o lar de muitos animais e vegetais emblemáticos.
TERRITÓRIO SOB PROTEÇÃO
Com o propósito de salvaguardar a riqueza paisagística e natural e as tradições culturais associadas aos mais de 120 km deste profundo acidente orográfico, criou-se, em maio de 1998, o Parque Natural do Douro Internacional (PNDI). A área protegida, num total de 85 500 hectares, abrange os troços fronteiriços dos rios Douro e Águeda, bem como as superfícies planálticas confinantes pertencentes aos concelhos de Miranda do Douro, Mogadouro, Freixo de Espada à Cinta e Figueira de Castelo Rodrigo.
No preâmbulo do decreto criador do PNDI, lê-se: “Este enclave orográfico, de características únicas em termos geológicos e climáticos, condicionou as comunidades florística e faunística e as atividades rurais. A vida selvagem, em especial a avifauna, assume clara relevância à escala nacional e em diversos aspetos à escala internacional.” Assim, são objetivos do parque natural valorizar e conservar o património natural e o equilíbrio ecológico, através da preservação da biodiversidade e da utilização sustentável das espécies, dos habitats e dos ecossistemas; promover a melhoria da qualidade de vida das populações, em harmonia com a conservação da natureza; salvaguardar o património arquitetónico, histórico e cultural, com respeito pelas atividades tradicionais; e ordenar e disciplinar as atividades recreativas, de forma a evitar a degradação dos elementos naturais, seminaturais, paisagísticos, estéticos e culturais da região. O Douro Internacional ostenta ainda outros estatutos legais de conservação, nomeadamente o de Zona de Proteção Especial para Aves Selvagens (Douro Internacional e Vale do Águeda) e o de Sítio de Importância Comunitária da rede ecológica europeia Natura 2000 (Douro Internacional). Desde 2002, forma, juntamente com o Parque Natural Arribes del Duero, perInteressante
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A pega-azul (rabilongo ou charneco) tem uma curiosa distribuição geográfica: existe apenas na península Ibérica e no Extremo Oriente. Pensava-se, até há bem pouco tempo, que a espécie teria sido transportada por navegadores de um canto do globo para o outro, mas descobertas recentes sugerem que, afinal, esta bela ave teve, outrora, uma distribuição uniforme na Eurásia, tendo-se extinguido na zona intermédia e sobrevivido somente nos dois extremos.
Aves raras
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requentemente, os céus do nordeste transmontano, sobretudo do Douro internacional e do Águeda, são patrulhados por majestosas rapinas diurnas, como grifos, abutres, águias-reais, águias de Bonelli e falcões-peregrinos, entre outras. Uma das mais fáceis de observar é o grifo (Gyps fulvus), uma ave residente, gregária, acastanhada, com pescoço claro, que ocorre, principalmente, nos vales alcantilados do Douro superior, onde nidifica. É uma excelente planadora que se move a energia solar: usa as correntes térmicas ascendentes para galgar os céus e voar grandes distâncias quase sem bater as asas. Por isso, não é de estranhar que, nos dias mais frios (ou enquanto os raios solares não aqueceram o ar), permaneça pousada nas arribas rochosas associadas aos barrancos fluviais em que habita. Trata-se de uma espécie que desempenha um papel sanitário muito importante: é necrófaga, ou seja, alimenta-se de tecidos macios (músculos e vísceras) de cadáveres, sobretudo de mamíferos de médio e grande porte, que localiza através da visão (consegue detetar um cadáver a mais de 300 metros de altura) ou seguindo o movimento de outras aves igualmente comedoras de bichos mortos. Estes organismos constituem importantes barreiras naturais à propagação de doenças: ao consumirem os cadáveres, tanto de animais selvagens como domésticos, impedem que estes contaminem os solos, os recursos hídricos e outros animais.
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Todavia, não é caso único nas rapinas durienses. São igualmente necrófagos o abutre-preto (Aegypius monachus), visitante ocasional da zona, e o britango ou abutre do Egito (Neophron percnopterus), ex-libris da região (foi escolhido como símbolo do Parque Natural do Douro Internacional). No caso do britango, o restritivo específico (percnopterus) significa literalmente “galinha do faraó” (daí o nome vulgar “do Egito”), mas no nordeste transmontano chamam-lhe “fateiro do cuco”, “almocreve do cuco”, “criado do cuco” ou “correio do cuco”, dado ser a ave que vem à sua frente (costuma chegar no princípio de março, enquanto o cuco só retorna às terras transmontanas na segunda quinzena do mesmo mês). Há outras denominações locais, como “alcaforro branco” ou “corvo branco”, aludindo à plumagem alva característica deste que é o mais pequeno dos nossos abutres. Nos céus durienses, destaca-se ainda a imponente águia-real (Aquila chrysaetos), denominada, localmente, por “ave-caçadeira” ou “vergadinha”, que pode atingir um metro de comprimento, dois de envergadura e 12 quilos de peso. Trata-se de uma espécie ameaçada que restringe a sua ocorrência, quase exclusivamente, aos vales encaixados e quase inacessíveis. Uma outra espécie rara que aí ocorre é a águia de Bonelli (A. fasciata), também conhecida como “águia-perdigueira”. Identifica-se, sobretudo, pelo ventre branco, contrastando com as asas mais escuras. Ambas as espécies alimentam-se de coelhos, pombos e répteis, a que a
águia-real acrescenta mamíferos carnívoros, diversas aves e até cadáveres. Entre os princípios de maio e finais de setembro, sobretudo na zona do Penedo Durão, observa-se ainda o falcão-peregrino (Falco peregrinus), considerado o animal mais rápido no mundo: pode atingir mais de 300 quilómetros por hora ao mergulhar em voo picado sobre as suas indefesas presas (geralmente, outras aves, como os pombos-das-rochas e os estorninhos). Nem só de grandes aves de rapina vive o bloco de notas do ornitólogo amador. Nas fendas das arribas, esconde-se uma das aves rupícolas mais raras e de distribuição mais localizada em Portugal: o chasco-preto ou melro-barroqueiro (Oenanthe leucura). “Fácil de identificar mas difícil de encontrar, devido à sua escassez e à inacessibilidade da maioria dos locais onde ocorre”, dizem os guias de campo, tem a particularidade de construir o ninho à base de pequenas pedras que o macho oferece à fêmea durante a parada nupcial. Há mais para descobrir na avifauna do Douro internacional: estão referenciadas 170 espécies, das quais 126 são nidificantes. Mais uma dezena, para aguçar o apetite dos amantes dos binóculos: a cegonha-preta, o milhafre-real (rabo-de-bacalhau ou gavião), a águia-cobreira, o mocho-pequeno-d’orelhas, o bufo-real, o andorinhão-real (zilro), o torcicolo, a toutinegra-real, o sisão e a rara gralha-de-bico-vermelho.
Cenário selvagem. O canhão fluvial do Douro é um vale de escarpas rochosas abruptas, e uma faixa planáltica que engloba cerros e encostas suaves entre os 600 e os 800 metros de altitude, mais estreita na parte norte e mais larga na zona sul (na imagem).
O Parque do Douro Internacional acolhe 25 habitats naturais tencente à rede de espaços naturais de Castela e Leão, uma área protegida transfronteiriça que totaliza 192 605 hectares. Quando se trata de proteger o nosso património, seja ele natural, material ou imaterial, as fronteiras traçadas pela mão humana têm pouco significado. Embora o PNDI seja conhecido, aquém e além-fronteiras, sobretudo pelas suas majestosas “arribas” e pela avifauna rupícola, constituindo o núcleo mais importante destas espécies em território nacional (daí a sua classificação como Zona de Proteção Especial para Aves Selvagens), acolhe 25 habitats naturais muito diversos, incluindo quatro prioritários. De entre estes últimos, destacam-se os bosques endémicos de zimbro (Juniperus oxycedrus), que se localizam, frequentemente, em vales apertados, encostas declivosas não acessíveis ou desinteressantes para a agricultura, ou ainda em zonas onde a intervenção humana existiu outrora, mas cessou há muito tempo, deixando caminho livre para o desenvolvimento natural da vegetação. No canhão do Douro, surgem ainda zimbrais arbustivos, considerados como um outro tipo de habitat natural. Trata-se de vegetação de caráter reliquial, que teve grande expansão durante os períodos continentais, frios e secos do Quaternário, mas que atualmente subsiste em situação de desequilíbrio climático. O zimbro é uma resinosa que surge, amiúde,
associada às quercíneas perenifólias, como a azinheira e o sobreiro, as quais vegetam nas encostas mais escarpadas, bastante secas e extremamente pedregosas. As suas bagas (apesar de este ser o termo usado pelo povo, não está correto, uma vez que do ponto de vista botânico são “gálbulos”: estróbilos arredondados, ou em forma de cone curto com base arredondada, carnudos e que não se abrem quando maduros) tiveram na Idade Média uma extraordinária celebridade, pois supunha-se que faziam curas miraculosas. Atualmente, são utilizadas como depurativas e diuréticas. Além disso, entram na confeção de alguns pratos (como o arroz de zimbro), servem para condimentar o presunto fumado e são o principal ingrediente na preparação do gin (bebida alcoólica destilada).
ENCLAVE MEDITERRÂNICO
Por estranho que pareça, apesar de se localizar no extremo norte do país, este recanto escondido do território nacional pertence à região biogeográfica mediterrânica e o seu clima é considerado mediterrânico-subcontinental: apresenta acentuadas amplitudes térmicas, com invernos frios e verões muito quentes e secos. Enquanto a zona norte do PNDI está inserida na designada “Terra Fria Transmontana”, a faixa sul faz parte da “Terra Quente”, que se caracteriza por um microclima idêntico
ao do Douro vinhateiro, com escassa precipitação e amenas temperaturas invernais. Quanto à geologia, pode dizer-se, de um modo geral, que o PNDI se apresenta essencialmente granítico, nos extremos norte e sul, e xistoso, sobretudo entre essas duas zonas. Isto é, obviamente, uma forma muito simplista de abordar o assunto, pois existem três grandes unidades geológicas (rochas metassedimentares, rochas granitoides e depósitos de cobertura), e a variedade litológica da região é notável. Inclui, por exemplo, granitos, gnaisses, migmatitos, serpentinitos, calcários, mármores, travertinos, quartzitos, siltitos, arenitos, conglomerados, xistos e grauvaques. Curiosamente, apesar da enorme distância ao mar, também existem testemunhos fósseis de uma antiga fauna marinha da era Câmbrica. Do ponto de vista paisagístico, destaca-se o canhão fluvial do Douro, com um vale de escarpas rochosas abruptas, e uma faixa planáltica, englobando cerros e encostas suaves entre os 600 e os 800 metros de altitude, mais estreita na parte norte e mais larga na zona sul. Porém, apesar de o parque se chamar “Douro Internacional”, não tem somente paisagens fluviais. Utilizando diversos parâmetros, como a litologia, a geomorfologia, a rede hidrográfica, os declives, o coberto vegetal, a utilização dos solos e o grau de intervenção humana, os especialistas definiram diversas unidades paisagísticas, cada uma com as suas especificidades: Arribas do Douro, Douro Superior, Vale do Águeda, Terras de Miranda, Relevos do Freixo e Campos de Figueira. Enquanto as arribas e o vale do Águeda são Interessante
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Em vias de extinção
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o gabinete da minha diretora, está afixado um grande cartaz que costuma deixar intrigados muitos daqueles que lá entram pela primeira vez. Exibe dois simpáticos jumentos e as seguintes palavras: “Burros há muitos! Mas estes estão em extinção.” Como falamos de um estabelecimento de ensino, o poster pode facilmente ser considerado uma piada de mau gosto. Porém, neste caso, não se trata de uma ofensa a ninguém, mas de um alerta para a situação preocupante do burro mirandês, uma raça nativa em perigo de extinção. Cartazes similares veem-se com frequência nas lojas, mercearias e tabernas espalhadas pelos concelhos de Miranda do Douro e Mogadouro, uma vez que essa área geográfica corresponde ao berçário da raça asinina das Terras de Miranda, a primeira e, até ao momento, única raça autóctone de asnos em Portugal. Os jumentos mirandeses, também conhecidos como “burros lanudos”, são animais de estatura elevada (entre 1,20 e 1,35 metros), robustos, com patas grossas, cabeça volumosa, focinho curto, pescoço reduzido e grosso e peito largo. Ostentam manchas brancas no focinho e no entorno dos olhos, pelo comprido e grosso e pelagem de cor castanha escura com gradações mais claras nos costados e na face inferior do tronco. As orelhas apresen-
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Miranda do Douro e Mogadouro correspondem ao berçário da raça asinina das Terras de Miranda, a primeira e, até ao momento, única raça autóctone de asnos em Portugal.
tam-se grandes, largas na base e arredondadas na ponta, com pelo abundante. Estes atributos morfológicos, aliados à elevada capacidade para valorizar forragens pobres e à grande resistência à escassez hídrica, permitiram-lhes adaptar-se perfeitamente ao relevo, às grandes amplitudes térmicas e às condições de baixa pluviosidade do Planalto Mirandês, onde ainda se pratica uma lavoura tradicional de minifúndio, baseada, sobretudo, no pastoreio e na cultura cerealífera. Principalmente para as gentes mais idosas, o burro continua a ser um auxiliar importante nas tarefas quotidianas e na realização de muitos trabalhos agrícolas. O problema é que, devido ao envelhecimento da população, ao êxodo rural e à acelerada revolução tecnológica, em que as máquinas agrícolas modernas substituem a força animal, permitindo produzir mais em menos tempo e percorrer mais depressa distâncias cada vez maiores, os burros mirandeses estão à beira do extermínio. O facto até já foi notícia nos meios de comunicação internacionais, como aconteceu recentemente com o New York Times (num artigo intitulado Hard Times for a Small (and Fuzzy) Group of Europeans, no qual se procurou estabelecer um paralelismo entre o declínio da raça asinina portuguesa e os problemas socioeconómicos europeus, nomeadamente em Portugal).
Embora muita gente vaticine que os burros domésticos (incluindo, obviamente, os de Miranda) são uma espécie em vias de extinção, nem tudo está perdido. Um grupo de cidadãos transmontanos constituiu, em 2001, a Associação para o Estudo e a Proteção do Gado Asinino (AEPGA, http://www. aepga.pt). Esta entidade sem fins lucrativos, obreira do cartaz que a minha diretora exibe com tanto orgulho, tem como principais finalidades o estudo, a preservação e a promoção dos asininos, em especial a raça mirandesa. Reúne criadores, especialistas zootécnicos e admiradores deste gado e tem contribuído para a criação e o melhoramento genético da raça, bem como para a sua divulgação, proteção e aproveitamento, de modo a salvar um património genético, ecológico e cultural único no nosso país. Além disso, a associação visa contribuir para a recuperação dos seus efetivos e para o seu aproveitamento socioeconómico, através da organização de iniciativas turísticas, recreativas e culturais. Afinal, para a manutenção da raça asinina das Terras de Miranda, é necessário continuar a valorizar a sua utilização tradicional em explorações de pequena dimensão, ao mesmo tempo que se deve incentivar o surgimento de novos e jovens criadores, com renovadas utilizações para os seus animais.
De tirar o fôlego Nos confins do planalto dourado das terras de Miranda existe um acidente orográfico com desfiladeiros onde nos sentimos insignificantes e penhascos de cortar a respiração. A figura humana da foto ajuda a ter uma noção da escala.
As arribas são terrenos bravios, escarpados e despidos de gente terrenos bravios cheios de matagais, escarpados, incultos e despidos de gente, as Terras de Miranda do Douro e os Campos de Figueira de Castelo Rodrigo, por exemplo, são zonas planálticas com alguns declives, onde a presença humana se faz sentir desde há longa data. Nota-se o dedo humano nos campos agrícolas, lavrados, semeados ou em pousio, nas culturas arvenses, como o olival ou o amendoal, na vinha, presente um pouco por toda a área, na produção pecuária, com destaque para as raças autóctones de bovinos, como a mirandesa, e de ovinos, como as churras: galega mirandesa e da terra quente. Todavia, lembram os responsáveis do PNDI, a principal estrutura agropecuária existente na região decorre ainda em moldes tradicionais, o que tem favorecido a existência de um mosaico de bosques e matagais, com elevada biodiversidade, e a sobrevivência da fauna mais ameaçada.
REFÚGIO DA NATUREZA
O PNDI alberga muitas espécies botânicas e faunísticas de elevada importância. Nas encostas do Douro, revestindo as suas arribas, encontram-se bosques endémicos de zimbro, que penetram pelos vales dos afluentes dos rios Sabor e Águeda. Na zona do planalto, os habi-
tats dominantes são os bosques, com diferentes classes etárias, de carvalho-negral (Quercus pyrenaica), nos locais mais temperados, e de azinheira (Q. rotundifolia) e sobreiro (Q. suber), em zonas mais mediterrânicas, onde também surge o zimbro. Nas encostas mais húmidas do Douro e dos seus afluentes, como é o caso da ribeira do Mosteiro e da ribeira da Sapinha, surgem os bosques de lódão-bastardo (Celtis australis). Existem ainda giestais, piornais, estevais e algumas manchas florestais de carvalho-cerquinho (Q. faginea faginea). Nos vários afluentes do Douro, encontram-se bosques ripícolas ou ribeirinhos de diversos tipos: salgueiros (Salix atrocinerea, S. neotricha, S. erytroclados e S. salvifolia), amieiros (Alnus glutinosa), choupos (Populus nigra betulifolia) ou tamargueiras (Tamarix africana). Amiúde, os lameiros estão compartimentados por sebes de freixos (Fraxinus angustifolia), e acolhem vários endemismos, belas orquídeas e muitas plantas bulbosas, como os narcisos. Outros habitats importantes são a vegetação rasteira resistente à seca, como a caldoneira (Echinospartum ibericum), ou as comunidades de leitos de cheia rochosos, nas quais surgem espécies que, de tão raras, só são conhecidas pelos botânicos e, por isso mesmo, só foram
batizadas com nomes científicos em latim: Aphyllanthes monspeliensis, Petrorhagia saxifraga, Peucedanum officinalis, Centaurea ornata, Dianthus marizii, Silene boryii duriensis (endémica), etc. Estas plantas ocupam sobretudo espaços limitados e muito fragmentados, uma vez que viram a sua área de distribuição severamente reduzida, devido à edificação de várias barragens. Isto é apenas uma pequena amostra, pois, na verdade, a flora do PNDI alberga uma grande variedade de endemismos florísticos ibéricos e regionais, de elevada importância para a conservação da natureza. Se para encontrar as imóveis plantas basta procurar nos lugares certos, já o mesmo não se pode dizer dos esquivos animais. Com exceção da avifauna, que se ouve e vê com muita facilidade, os restantes bichos, sobretudo os mamíferos, são muito fugazes e, geralmente, com comportamentos recatados. Não cabe aqui enumerar todas as espécies inventariadas para o PNDI, mas será incontornável referir algumas das mais significativas, reservando especial destaque para as aves, sobretudo as grandes rapinas e diversas espécies rupícolas (literalmente, “que vivem nas rochas”), que serão tratadas à parte. Assim, como seria de esperar perante tão grande diversidade de habitats naturais, encontram-se na região animais bastante raros e emblemáticos, como o majestoso lobo-ibérico (Canis lupus signatus) ou o minúsculo rato de Cabrera (Microtus cabrerae). Interessante
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As gravuras rupestres foram “descobertas” 12 anos antes das de Foz Côa
Pombos e pombais
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s pombos citadinos, principalmente quando têm efetivos populacionais elevados, podem causar vários problemas ambientais e de saúde pública. Além da contaminação do ambiente por bactérias e fungos (que podem transmitir várias doenças aos humanos), as fezes dos pombos também provocam, habitualmente, danos materiais avultados. Isto acontece porque são ácidas e, além de sujarem os prédios e as ruas, danificam as pinturas e corroem as rochas e superfícies metálicas usadas na construção de edifícios e monumentos. Provocam ainda o entupimento de caleiras e condutas de ventilação e contribuem para a proliferação de ratos, baratas e moscas. Se pensarmos que cada pombo produz cerca de 2,5 quilos de fezes por ano, podemos ter uma ideia mais exata da dimensão do problema. Por estranho que pareça, aquilo que é um problema de difícil resolução nas cidades está longe de ser uma contrariedade no campo, sobretudo, se estivermos a falar de zonas pobres, como Trás-os-Montes e a Beira Alta raiana. Nessas regiões, a criação de pombos e a construção de columbários foi uma prática comum desde épocas remotas. Antigamente, os pombais eram uma tradição arreigada, uma vez que constituíam um complemento importante da atividade agropecuária dos seus proprietários. Além de contribuírem para a produção de carne, uma vez que os borrachos (pombos jovens) constituíam uma fonte alimentar muito apreciada (tal como os estorninhos, que também ocupavam os pombais, durante o inverno), geravam grandes quantidades de estrume de elevada qualidade, conhecido localmente como “pombinho”. Este fertilizante orgânico era utilizado, principalmente, nas culturas agrícolas adjacentes aos pombais, como é o caso de hortas, amendoais
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Além de contribuírem para a produção de carne, os pombos geravam estrume.
e olivais. Tudo isto a troco de quase nada: bastava que os donos disponibilizassem regularmente alimento (algumas sementes que as aves complementavam com outras recolhidas na natureza, bem como insetos, vermes e frutos). Os pombais tradicionais do nordeste transmontano, únicos no país sob o ponto de vista arquitetónico, eram pequenas construções, geralmente de planta circular ou em forma de ferradura, com paredes caiadas de branco, nas quais existiam inúmeras cavidades que permitiam locais seguros de nidificação. Embora muitas dessas rústicas torres de pedra continuem a salpicar a paisagem agrária duriense e chamem a atenção dos viandantes, na verdade, têm sido vítimas de abandono generalizado. De modo a contrariar esta tendência, foi criada a Associação de Proprietários de Pombais do Nordeste (com a sigla Palombar, que significa “pombal” em língua mirandesa), que visa contribuir para a recuperação, a conservação e a revitalização dos pombais tradicionais. É exatamente isso que tem vindo a acontecer: dos cerca de 650 columbários inventariados, na área do Parque Natural do Douro Internacional, muitos já foram recuperados e repovoados. O mais curioso é que não se trata apenas de restaurar estas emblemáticas construções, que remontam, as mais antigas, a meados do século XIX, preservando uma tradição secular. É igualmente um contributo para a conservação da natureza, uma vez que o aumento das populações columbófilas e de outras espécies que lhes estão associadas, como estorninhos e pardais, aumenta a disponibilidade de presas para as populações nidificantes de algumas aves de rapina raras e ameaçadas, como a águia de Bonelli e o falcão-peregrino.
O maior carnívoro português, com cerca de 70 centímetros de altura, 1,2 metros de comprimento e até 40 quilos de peso, possui, na região, pelo menos três alcateias confirmadas. Isso, porém, não é razão para descansar os conservacionistas, pois sabe-se bem como este animal tem sido vítima de crenças ancestrais infundadas e de perseguições impiedosas. Quanto ao rato de Cabrera, tem apenas 13 cm de comprimento, a que se juntam mais cerca de 5 cm de cauda, não indo além dos 80 gramas de peso. Trata-se de um endemismo ibérico que tem vindo a sofrer um declínio da sua área de ocupação e ainda da extensão e da qualidade do habitat, bem como do número de subpopulações e de indivíduos maduros. Como não é fácil encontrar os mamíferos anteriores, o mais provável é cruzar-se com um pequeno cervídeo que outrora quase não existia por estas bandas e que, entretanto, tem vindo a expandir-se. Referimo-nos ao corço (Capreolus capreolus), também conhecido por “cabrito-montês” ou “cabra-brava”, uma espécie que não pode ser caçada no parque. O corço atinge no máximo 1,2 m de comprimento e 70 cm de altura, e possui ramificações pequenas, com apenas três pontas. Ostenta pelagem castanho-avermelhada no verão e castanho-acinzentada no inverno. O focinho é negro, com lábios e queixo brancos, e na zona caudal apresenta um pequeno tufo de pelos brancos, conhecido por “escudo anal”, em forma de coração nas fêmeas e de rim nos machos. Apresenta hábitos solitários, surgindo, principalmente, nas imediações dos maciços arbóreos autóctones, como os carvalhais. A região alberga também colónias de criação de morcego-de-peluche (Miniopterus schreibersi) e de morcego-rato-grande (Myotis myotis) e de hibernação de morcego-de-peluche, morcego-de-ferradura-grande (Rhinolophus ferrumequinum) e morcego-de-ferradura-pequeno (R. hipposideros). Apesar de haver diversas barragens no troço internacional do Douro, ainda é possível encontrar curiosos animais aquáticos, como o mexilhão-de-rio (Unio crassus), o cágado-de-carapaça-estriada (Emys orbicularis) e a lontra (Lutra lutra), entre outros. Destacam-se, igualmente, as 14 espécies de peixes, como a panjorca (Rutilus arcasii), com estatuto “em perigo”, o barbo-comum (Barbus bocagei), a boga-do-norte (Chondrostoma duriense) e o escalo-do-norte (Squalius carolitertii).
Arte antiga. O “cavalo de Mazouco” apenas foi dado a conhecer ao mundo em 1981, mas rapidamente se tornou famoso: foi a primeira jazida de arte rupestre paleolítica encontrada a céu aberto em Portugal.
TERRITÓRIO DE GENTES
Por mais interessante e valioso que seja o património natural do Douro internacional e dos planaltos confinantes, nomeadamente do Planalto Mirandês, não podemos esquecer que este é também um território de pessoas. Assim, o parque natural não protege apenas riquezas fauno-florísticas, mas guarda também tesouros humanos, arquitetónicos e histórico-culturais. Esta zona recôndita teve ocupação humana desde tempos imemoriais, como demonstram os inúmeros vestígios arqueológicos pré-históricos que ali foram encontrados. Um dos mais interessantes é, sem dúvida, o famoso “cavalo de Mazouco”, que apenas foi dado a conhecer ao mundo em 1981, num artigo científico que rezava assim: “As gravuras rupestres cuja descoberta vamos noticiar situam-se na freguesia de Mazouco, concelho de Freixo de Espada à Cinta. (…) Até hoje inéditas para a arqueologia, eram porém bem conhecidas dos habitantes daquela povoação, que designavam a
mais evidente delas por ‘carneiro’.” Curiosamente, estes enigmáticos desenhos na pedra, que afinal não representavam um ovino mas um equídeo, serviram, ao longo de gerações, para alimentar o lendário da região: “Segundo os habitantes da zona, o ‘carneiro’ estaria a olhar para o local onde existe um ‘tesouro’, algures na margem esquerda da ribeira de Albagueira”, escreveram os arqueólogos responsáveis pela divulgação do achado, datado do Paleolítico Superior. Este período, também conhecido por “Idade da Rena”, estendeu-se desde cerca de 38 mil até 9000 a.C. O cavalo, com cerca de 62 cm de comprimento, não está sozinho: existem, no local, mais duas figuras bastante incompletas de animais ainda não identificados. Cerca de vinte mil anos depois de o afloramento xisto-grauvaque ter sido riscado, possivelmente por caçadores paleolíticos, as Gravuras Rupestres do Mazouco foram classificadas, em 1983, como Imóvel de Interesse Público. Foram a primeira
jazida de arte rupestre paleolítica encontrada a céu aberto em Portugal, uma década antes das notáveis gravuras do vale do Côa, a cerca de 25 km de distância, que só foram descobertas em 1993. Além disso, o seu estado de conservação é invejável, tendo em conta que a rocha se encontra profundamente fissurada e os rigores meteorológicos, em tão longos períodos de tempo, costumam degradar as faces dos rochedos expostos ao sol, à chuva e ao vento. Muito mais haveria para referir acerca da pré-história duriense, como as fortificações castrejas, edificadas entre o II milénio a.C. e meados do I d.C., e os berrões: estátuas proto-históricas graníticas com figuras zoomórficas em tamanho natural, especialmente de porcos (o vocábulo “berrão” é usado para designar os porcos não castrados). Poderíamos falar também sobre os testemunhos da ocupação romana, como povoados, necrópoles e pontes, ou a respeito dos castelos e das atalaias medievais raianas que ajudaram a definir e consolidar as fronteiras do Condado Portucalense e, posteriormente, do reino de Portugal (D. Afonso Henriques deu foral aos moradores de Miranda do Douro em 1136 e aos de Freixo de Espada à Cinta em 1152). Porém, usaremos as derradeiras linhas deste artigo para lembrar o arcaico mirandês, ou melhor, a lhéngua mirandesa, com estatuto de segunda língua oficial em Portugal. O dialeto foi introduzido no ensino nacional no ano letivo 1987/88 (constitui disciplina opcional desde a pré-primária até ao 12.º ano), possui uma norma escrita (a Convenção Ortográfica, publicada em 1999) e obteve o reconhecimento político através de uma lei de 1999. Além disso, tem sido objeto de inúmeros estudos científicos e tem sido utilizada em diversas publicações, assinadas, sobretudo, pelo presidente da Associação de Língua Mirandesa, Dr. Amadeu Ferreira, que traduziu para mirandês mais de cem de autores portugueses e estrangeiros. Destacam-se, entre outras, as traduções de Os Lusíadas, da Bíblia e de dois volumes de aventuras de Astérix. Tudo isto tem contribuído para a emergência de um renovado interesse pela língua e pela cultura mirandesas. Aceite o desafio: parta à descoberta do Douro internacional e do planalto dourado das terras de Miranda, onde poderá exercitar não só as pernas e os olhos, percorrendo paisagens de tirar o fôlego e observando espécies únicas, mas também as cordas vocais, tagarelando em mirandês. Vá ver o lhobo, a cabra-braba, o cochino montez ou os paixaricos, como a ciguônha, a cruja, o alcaforro, a aila ou o gabilan: bien benido a tierras de Miranda del Douro! J.N.
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IAN WHITE
Espaço Mundos alienígenas na Terra
Planeta para ET Há lugares na Terra cujas condições, verdadeiramente extremas, não ficam atrás das que reinam em certas luas e planetas, e onde prosperam criaturas que proporcionam pistas sobre como poderá ser a vida extraterrestre.
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a cada vez mais febril procura de ambientes habitáveis noutros mundos, dentro e fora do Sistema Solar, os astrobiólogos descobriram que não é preciso mergulhar nos lagos de metano de Titã (uma das luas de Saturno), perfurar rochas marcianas ou submergir sob a espessa camada de gelo de Europa (satélite de Júpiter) para encontrar vida extraterrestre ou imaginar como poderá ser. No segundo caso, existem no nosso próprio planeta recantos que abrigam micro-organismos tão espantosamente resistentes, obstinados e adaptáveis a ambientes extremos como os que poderiam habitar outros mundos. Enquanto se espera que a tecnologia, a vontade política e o dinheiro permitam o ideal, que seria viajar diretamente para esses sítios longínquos em busca de vestígios de vida, cientistas como Chris McKay, astrobiólogo do Centro de Investigação Ames da NASA, na Califórnia, estudam cenários terrestres que mantêm certas semelhanças com alguns planetas e satélites vizinhos. O objetivo é procurar e reconhecer indícios de vida em ambientes que podem ser considerados incompatíveis com ela, tal como a conhecemos. Obtém-se, assim, um profundo conhecimento da enorme diversidade metabólica terrestre, fundamental para as missões interplanetárias já em curso, como a do Curiosity em Marte, planeta onde o veículo robótico da NASA chegou em agosto de 2012. Com efeito, o rover, verdadeiro laboratório com rodas, procura indícios de vida no planeta vermelho. Os dados recolhidos pelos investigadores na Terra poderão revelar-se fundamentais para
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o Curiosity poder explorar onde interessa e o que interessa. Estão em jogo interrogações sobre o que é a vida, como podemos defini-la, quais os requisitos para poder existir, e quais os limites que a inibem (temperatura, salinidade, acidez...).
OS INGREDIENTES NECESSÁRIOS
A formação da crosta terrestre, dos oceanos e da atmosfera são processos que ainda não compreendemos bem. Sabe-se que, há cerca de 3500 milhões de anos, época em que os investigadores situam as origens da vida, a Terra era um lugar muito mais quente do que hoje: a temperatura à superfície oscilava entre os 55 e os 85 graus Celsius, precisamente o nível em que prosperam muitos extremófilos, os micro-organismos que vivem em condições extremas. Naquela época, a nossa casa poderia ser definida como uma concentração em constante transformação, embora inerte, de rochas, gases e água. Nesse caso, como foi possível surgir vida da não-vida? A resposta poderia residir na química, nomeadamente no estudo dos compostos que contêm ferro e enxofre. Em laboratório, minerais como a pirite, que possui esses dois elementos, produziram reações químicas que serviram de base a uma hipótese sobre a origem da vida: o ferro e o enxofre poderiam ter desempenhado um papel importante na formação de aminoácidos, as substâncias químicas orgânicas que constituem os componentes fundamentais das proteínas, as quais formam as células de animais e vegetais. Se esse tipo de reação ocorreu aqui e deu
origem à criação de vida, algo de semelhante pode ter acontecido noutros cantos do universo, e até com maior facilidade: os astrobiólogos criaram o conceito de “super-habitabilidade” para se referirem à possibilidade de haver planetas e luas ainda mais favoráveis à vida do que a Terra. Nestas páginas, visitamos alguns dos sítios mais extremos do nosso planeta, lugares onde McKay e outros especialistas procuram as chaves para o aparecimento da vida. Talvez nos ajudem a encontrá-la muito longe daqui. De facto, talvez não seja preciso viajar até Marte para ali estar. Condições semelhantes às marcianas produzem-se em muitos lugares da Terra, dos planaltos desérticos da América do Sul aos gelos antárticos, do mar Morto aos geisers da Islândia ou ao gélido permafrost siberiano. Porém, a procura de ecossistemas terrestres que nos permitam compreender como poderão ser os de outros mundos não se limita ao planeta vermelho. Vénus ou certas luas de Saturno e Júpiter também encontram uma analogia em alguns dos lugares mais extremos (e, quase paradoxalmente, mais belos) do nosso planeta azul.
PARQUE NACIONAL DE YELLOWSTONE
Yellowstone, nos Estados Unidos, é um local único para procurar extremófilos, pois aloja uma enorme quantidade no seu interior. Possui dez mil acidentes hidro e geotermais (metade dos que existem no mundo), que incluem geisers, fumarolas, lagos de lama e quedas de água quente e muito ácida. Cada um possui características próprias e reúne uma vasta gama
Nómada. O astrobiólogo Chris McKay, da NASA, no deserto do Mojave, local de investigação para quem procura vida extraterrestre. McKay anda há mais de 30 anos a viajar pelo mundo para descobrir quais as consições necessárias para o surgimento da vida.
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Os cientistas continuam a descobrir novas formas de vida extremófilas de organismos adaptados a condições extremas. Entre as atrações biológicas do parque, encontra-se a arqueobactéria Metallosphaera, muito resistente aos metais tóxicos e que habita em ambientes hiperácidos. Este organismo obtém energia do ferro e está coberto de óxido, o que lhe confere uma tonalidade laranja forte. À volta do geiser Old Faithful, descobrem-se arqueas metanogénicas, micróbios que se pensa serem das formas de vida mais antigas, pois existem em ambientes sem oxigénio nem luz. São os organismos predominantes no fundo da maior parte das quedas de água quente, mas também se adaptam a temperaturas subglaciais, como as que reinam em Europa, uma das luas de Júpiter. Na espetacular nascente de água quente Grand Prismatic, há tapetes de cianobactérias fotossintéticas, micro-organismos que datam de há 3500 milhões de anos e que poderiam ser responsáveis por a nossa atmosfera ser rica em oxigénio. A razão do interesse de Atacama (uma cópia de Marte no Chile) para a astrobiologia é que se trata de um dos locais mais secos do mundo; ali, a precipitação é medida em milímetros por década. Chris McKay e os seus colegas descobriram uma zona deste deserto onde nada cresce, e trabalham ali para determinar o ponto exato em que a pouca vida dá origem à não-vida. Segundo McKay, conhecer a fundo tal ponto proporcionaria uma preciosa ferramenta para podermos descobrir as limitações que a vida pode ter encontrado no planeta vermelho. Por sua vez, Rafael Acuña, bioquímico da Universidade de Santiago de Chile, estuda diferentes extremófilos noutros pontos de Atacama, como certas bactérias muito tolerantes à radiação ultravioleta, um género de alga vermelha fotossintética, a Cyanidium, que cresce em crostas dentro de uma caverna, e uma cianobactéria que vive sob rochas de quartzo e consegue suportar a brutal seca. Dois ou três metros abaixo das areias salgadas de grande parte do Atacama, um oásis de micro-organismos prospera entre cristais de sal; trata-se de uma comunidade maioritariamente formada por arqueas, que não necessitam de oxigénio, descobertas em 2012 por um detetor de sinais de vida que poderia ser utilizado em missões a Marte.
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DESERTO DE ATACAMA
ANTÁRTIDA
O continente meridional é ideal para estudar extremófilos e as suas circunstâncias. Os vales secos de McMurdo, tão castigados pelos ventos que o gelo não tem tempo para se acumular sobre as rochas, constituem um santuário para os astrobiólogos. Ali, o professor Ross Virginia, do Dartmouth College (New Hampshire), estuda certos nemátodes que permanecem “mumificados” durante milénios e “ressuscitam” quando são borrifados com algumas gotas de água. “Este verme tem duas formas de sobrevivência,” explica Ross Virginia. “A quiescência, durante a qual deixa de se alimentar e reproduzir, e a criptobiose, que é uma ausência de motilidade e metabolismo.” Já este ano, cientistas do British Antarctic Survey anunciaram a descoberta de musgos antárticos que ressuscitaram após passarem 1500 anos debaixo do gelo. Para Chris McKay, a maior atração astrobiológica da Antártida é subaquática: o lago Untersee constitui uma grande extensão de água doce, sempre coberta por uma camada de gelo
com dois a seis metros de espessura. Numa das extremidades, há uma bolsa de água anóxica com o maior teor conhecido de metano no fundo, o que o aproxima dos lagos de metano de Titã. O lago Vostok é outro ponto de interesse: as suas águas sem luz e sob uma espessa camada de gelo apresentam semelhanças com as condições em Europa. Há 15 milhões de anos que se encontra isolado, e cientistas russos estão a estudar se contém micróbios.
RIO TINTO
O rio Tinto atravessa a província espanhola de Huelva. Nas suas margens, encontra-se jarosita, um mineral que surge apenas quando há água presente e que inclui grandes concentrações de metais como o ferro. Especialistas do Centro de Astrobiologia de Madrid (CAB) estudaram zonas da margem do rio com níveis de acidez extraordinariamente elevados. Para sua surpresa, descobriram bactérias fotossintéticas entre as camadas de sal das rochas. Ao analisá-las, verificaram que o ferro parece protegê-las da radiação ultravioleta.
Vulcão venusiano. O Ol Doinyo Lengai (Montanha de Deus, em masai), na Tanzânia, poderia dar pistas sobre a geologia de Vénus.
isso, creio que a possibilidade de encontrar vida sob as rochas de Marte é razoavelmente elevada.” A abundância de névoa neste deserto deve-se às suas dunas de areia, as mais altas do mundo (mais de 300 metros). A sua estrutura parece ser muito semelhante à das gigantescas dunas de Titã, que cobrem mais de 10% da superfície do satélite. A comparação ajudaria a estudar os padrões de circulação global dos ventos naquela lua de Júpiter.
OL DOINYO LENGAI
Se Vénus possui um espelho para poder olhar-se na Terra, terá de ser a Montanha de Deus, Ol Doinyo Lengai, na língua dos masai. Este vulcão ativo da Tanzânia fica situado na parte oriental do Grande Vale do Rift, e a sua fama provém de possuir a lava mais fria do mundo (menos de 550 ºC) e a mais fluida. Trata-se do único vulcão que expele lava de carbonatito, maioritariamente composta por minerais do grupo dos carbonatos, ao contrário da lava basáltica, mais vulgar. A pouca viscosidade da substância justifica o interesse dos astrobiólogos em Ol Doinyo Lengai, pois poderia explicar o que acontece em Vénus, planeta com mais de mil vulcões na superfície e sulcado por mais de duzentos canais de lava, incluindo um com quase 7000 km de extensão. Os peritos pensam que, para criar aquele acidente geográfico, a lava deve ter conseguido fluir através de longas distâncias. Estarão os vulcões venusianos a cuspir uma lava semelhante à do monte divino?
PICO DE ORIZABA
Num relatório publicado na revista Astrobiologia, Felipe Gómez, um dos especialistas envolvidos no desenvolvimento do instrumento REMS do Curiosity, indica que a descoberta possui implicações para o desenvolvimento de vida na Terra, já que o planeta não possuía oxigénio nos seus primórdios e a atmosfera não teria conseguido proporcionar a proteção contra a radiação que agora oferece, permitindo a existência de vida. A equipa do CAB observou que o sal ajuda a vida a prosperar em ambientes hostis, pois resguarda a temperatura e a humidade. Gómez explicou que colocaram diferentes classes de bactérias entre camadas de sal, no laboratório, para as expor a condições de radiação marcianas. Descobriram que 40 por cento das bactérias Acidithiobacillus ferrooxidans, extremamente frágeis, sobreviveram aninhadas no seu invólucro salino.
DESERTO DO NAMIBE
Este espaço africano com mais de 80 mil quilómetros quadrados (quase a superfície de
Portugal continental) apresenta semelhanças com Titã e com Marte, planeta com o qual partilha três características. Trata-se de um deserto onde não chove e há muita névoa, responsável pelo facto de zonas que não recebem uma gota de água conseguirem manter a mesma diversidade de vida microbiana do que aquelas onde há, ocasionalmente, alguma precipitação. Os cientistas analisam, ali, rochas de quartzo colonizadas por cianobactérias que se desenvolvem na sua parte inferior. O mineral translúcido filtra a luz solar e proporciona as condições adequadas para a cianobactéria poder desempenhar o trabalho de fotossíntese, como acontece em Atacama: “A diferença é que, no deserto do Namibe, praticamente qualquer rocha terá colónias desta alga, bem mais escassas noutros desertos”, escreve Kim Warren-Rhodes, investigadora do centro Ames da NASA, num relatório para o Desert Research Institute. “Quando se verifica que fazem esse trabalho há algum tempo, já não nos espanta que os micróbios encontrem formas de sobreviver em condições terríveis. Por
Com cerca de 5700 metros, a maior elevação do México chamou a atenção de Chris McKay por alojar as árvores que crescem a maior altitude no mundo (cerca de 4000 metros). Estudar esses pinheiros que sobrevivem a condições de muito frio e falta de oxigénio poderá proporcionar respostas sobre a possibilidade de terraformar Marte, isto é, alterar o seu clima e a sua atmosfera para torná-lo habitável. Os astrobiólogos pretendem determinar as razões exatas que inibem a existência de vida vegetal a grande altitude. No caso das árvores que crescem nessas zonas, o fator mais importante parece ser a temperatura do terreno ao nível das raízes, pelo que será necessário estudar as suas variações em diferentes pontos de Orizaba, acima e abaixo da máxima altitude a que os pinheiros crescem. Os exobiólogos pensam que a terraformação marciana terá de passar pela presença na superfície do planeta de árvores que produzam oxigénio. Os pinheiros de Orizaba poderão revelar-nos a temperatura que teríamos de criar no planeta vermelho para a vegetação poder prosperar. A.P.S.
Interessante
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História
O que nos deixaram os egípcios?
Ciência FARAÓNICA 80 SUPER
Ligados ao céu. Este papiro representa a deusa Nut a criar o firmamento. Os egípcios foram os artífices do calendário solar, que idealizaram a partir da observação atenta dos fenómenos astronómicos.
S
e passearmos pelas galerias dedicadas ao Egito no Museu Britânico, em Londres, poderemos ver numa das vitrinas um dedo grande do pé. Não se assuste: não é verdadeiro, é apenas uma prótese. Feito de cartão, vem acompanhado de parte de um pé, igualmente falso, para poder ser inserido e atado ao do paciente. A peça ortopédica data do ano 600 a.C. e, a par de outra semelhante que se pode admirar no Museu do Cairo, constitui o exemplo mais antigo dos grandes avanços egípcios em matéria de tecnologia aplicada à medicina. “Tecnologia”, “medicina”, “ciência”: três palavras que seriam criadas depois, mas cujas finalidades não eram alheias aos habitantes das margens do Nilo. Pelo contrário, os especialistas concordam que aquela civilização foi a primeira a alcançar um nível muito elevado em diversas disciplinas, e que os sábios gregos foram beber aos seus ensinamentos. Aliás, estes nunca esconderam quem tinham sido os seus mestres. Homero afirma na Odisseia que os médicos do Egito eram “mais hábeis do que os de outras terras”. O historiador Heródoto também destaca as múltiplas conquistas dos egípcios nos relatos das suas viagens. Por sua vez, os soberanos persas Dário e Ciro levaram para trabalhar nos seus palácios de Persépolis os melhores médicos da terra das pirâmides.
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PRIMEIROS MÉDICOS ESPECIALISTAS
A civilização do Nilo não se limitiu a erguer as colossais pirâmides. Destacou-se igualmente pelas inovações científicas em múltiplos campos, como a medicina, a matemática, a astronomia e a agricultura.
Traumatologistas experientes, conhecedores do funcionamento do aparelho digestivo e do coração (com intuições surpreendentes para a época), aptos a realizar trepanações cerebrais: o êxito dos médicos egípcios baseou-se na especialização. “Há um para cada doença: alguns dedicam-se à vista; outros, à cabeça; outros, aos dentes; outros, ao ventre; outros, às doenças internas”, escreveu Heródoto, fascinado. Os egípcios redigiram tratados de medicina que nos permitiram conhecer a sua perícia, nomeadamente quatro documentos consagrados à prática clínica que chegaram até nós. O principal é o papiro cirúrgico Edwin Smith, comprado em 1862 pelo arqueólogo com o mesmo nome, em Luxor, a um vendedor de antiguidades. O seu conteúdo, traduzido para inglês por James Henry Breasted em 1920, consistia num relatório completo sobre 48 ocorrências habituais (muitas sofridas pelos guerreiros nas batalhas, como feridas na cabeça causadas por contusões) e como deviam ser tratadas. São também mencionadas fraturas, luxações, lesões e tumores, todos analisados com espírito científico e organizados de forma racional pelo autor desconhecido. Cada lesão surge descrita com grande clareza e, em seguida, explica-se pormeInteressante
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Arte funerária. Fresco de um harpista cego com duas mulheres, do túmulo de Nakht, astrónomo e escriba de Tutmósis IV.
Não usavam o zero, mas criaram um sistema numérico decimal norizadamente o exame que o médico terá de efetuar para poder identificá-la e diagnosticá-la. O autor do texto recomenda que o diagnóstico seja um destes três: “uma doença que vou tratar” (quando é claro que pode ser curada), “uma doença que vou conter” (é possível aliviar os sintomas) ou “uma doença que não se pode tratar” (incurável ou desconhecida). A exatidão dos tratamentos e curas sugeridos chama a atenção. Por exemplo, no caso de feridas na cabeça e de lesões na medula espinal e nas pernas, é aconselhada a imobilização da zona afetada. Para fechar as feridas, indica-se que devem ser cosidas, pois já sabiam dar pontos e conseguiam mesmo realizar suturas cranianas. É o primeiro documento da história a fazer referência ao cérebro e a descrever pormenorizadamente parte da anatomia do órgão, com as suas circunvoluções, meninges e líquido cefalorraquidiano. Outro texto médico, o papiro Ebers, fala de remédios da farmacologia. O tratamento para
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pôr fim à dracunculíase (doença da lombriga da Guiné, que se instala na camada subcutânea) é tão eficaz que ainda é o método geralmente usado para erradicar essa doença parasitária.
O “LEONARDO” DO NILO
Por ocasião das escavações na pirâmide de degraus de Djoser, do tempo da terceira dinastia (nos começos da época faraónica), os arqueólogos ficaram supreendidos pelo facto de o nome do vizir Imhotep surgir, numa das estátuas, ao mesmo nível do faraó Djoser. A verdade é que ele tinha demonstrado amplamente o seu mérito, e é hoje considerado mais importante do que o seu senhor. A reputação de Imhotep como grande médico chegou até aos gregos, que o veneraram no panteão dos deuses sob o nome de Asclépio, divinidade que os romanos designariam por Esculápio. Hoje, é considerado o autor dos primeiros textos sobre medicina e inspirador dos primeiros ensinamentos sobre cirurgia e traumatologia, que
seriam reproduzidos, mil anos depois, no papiro Edwin Smith. À perícia demonstrada nesse campo, juntam-se os seus dotes como arquiteto, pois foi o artífice da referida pirâmide de degraus, a primeira das célebres construções do Egito. Imhotep foi o primeiro grande impulsionador da ciência naquela civilização, o “Leonardo da Vinci” do Nilo. Outro campo do saber que não tardou a desenvolver-se, mesmo antes do período dinástico, foi o da matemática: por volta do ano 3300 a.C., os egípcios, que ainda não eram governados por faraós, já dominavam cálculos complexos. Após a unificação das terras do norte e do sul pelos primeiros grandes reis, como Narmer, a ciência dos números experimentou um notável avanço. Os escribas (funcionários do Estado) tinham de resolver muitos problemas práticos associados à governação, como o número de homens necessários para desempenhar diversas tarefas, a quantidade de tijolos para erguer um edifício, a distribuição de alimentos em rações por determinado grupo da população... Era necessário ter uma boa planificação para enfrentar tais situações práticas e, para isso, tinham de saber fazer operações matemáticas.
JOSÉ ANTONIO PEÑAS
ALBUM
Numa povoação anexa viviam os 30 mil trabalhadores utilizados, durante os mais de vinte anos necessários para erguer uma grande pirâmide.
3. Pela rampa lateral exterior, que circundava toda a obra, íam sendo arrastados os blocos, fazendo a pirâmide ganhar altura. Entradas para as rampas internas
1. Usavam um sistema de rampas múltiplas para elevar as pedras, à base de força muscular humana, com a ajuda de trenós e rolos de madeira. A rampa principal chegava até ao primeiro nível.
2. À medida que a pirâmide ia ganhando altura, uma parte dos operários trabalhava nas rampas internas, deixando espaços entre os blocos destinados a futuras câmaras funerárias, salas e galerias de ventilação.
Um dos operários ia deitando água sobre a areia para que o trenó deslizasse melhor, enquanto os seus companheiros puxavam.
Assim, os egípcios conceberam um sistema numérico decimal que lhes permitiu trabalhar com quantidades elevadas, e criaram sinais hieroglíficos e hieráticos para escrever os números de um a dez mil, embora não conhecessem o zero. Resolviam as operações com base na soma e na subtração, que eram as ferramentas que dominavam, pois tinham um conhecimento mais rudimentar da multiplicação e da divisão. Usavam também frações baseadas na unidade, com a forma 1/n, e resolviam equações de duas incógnitas. O papiro matemático Rhind, do qual ainda restam três partes (duas no Museu Britânico e uma no de Brooklyn), é o documento que melhor demonstra a sofisticação do método de cálculo do Antigo Egito. Possui um caráter muito didático, reúne problemas básicos de trigonometria, progressões e regras para obter números pares, além dos temas já referidos. Mostra que os egípcios já tinham uma palavra para se referir à incógnita das equações: chamavam-lhe aha e figura em vários problemas do célebre papiro, redigido pelo escriba Ahmes por volta de 1650 a.C., embora ele próprio circunscreva modestamente o seu papel ao de copista de um trabalho anterior.
A maior parte das centenas de problemas é apresentada por Ahmes de forma prática, recorrendo a exemplos como pães ou cerveja. Outros são mais recreativos, pela forma de enunciar e ensinar conceitos de forma divertida. É o caso do problema número 79, que diz mais ou menos isto: “Sete casas têm sete gatos; cada gato come sete ratos, e cada rato, sete espigas; cada espiga produziu sete medidas de grão. Quantas medidas de grão se salvaram?” Trata-se de uma progressão geomética cuja solução é 16 807.
FUNCIONÁRIOS CORRUPTOS
Outro conceito muito interessante criado pelos matemáticos do Nilo foi o do pefsu, uma unidade que avaliava quantos pães ou quanta cerveja se podia obter de determinada quantidade de cereais. Tinha uma finalidade muito prática: assegurar que os cervejeiros e os padeiros não pudessem desviar o grão para o seu bolso. Ou seja, os escribas funcionavam como uma espécie de inspetores do fisco, de calculadora na mão. Como ninguém vigiava o vigilante, o estudo de certas contabilidades da época ramésida demonstra uma tendência constante, por
Como construíram as pirâmides?
O
s egípcios dominavam a geometria e ergueram as pirâmides sobre uma base quadrada. Os lados da construção são triângulos equiláteros, corpo geométrico com que estavam familiarizados. É mesmo possível que conhecessem a relação de proporções entre a hipotenusa e os catetos num triângulo retângulo, que seria posteriormente concretizada no teorema de Pitágoras. A nível prático, uma investigação recente da Universidade de Amesterdão (Países Baixos) descobriu que, para resolver o problema de transportar os grandes blocos de pedra através do deserto, um operário ia derramando água na parte dianteira do veículo que os transportava. A areia molhada não se acumula como a seca e facilita o efeito de deslizar. Um mural encontrado no túmulo do faraó Djehutihotep reproduz a operação. Interessante
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Este papiro, feito a partir de uma pintura mural do túmulo de Ipi em Tebas, mostra uma intervenção oftalmológica.
Invenções egípcias que ainda usamos Papel – O aproveitamento, desde a época da primeira dinastia, da planta do papiro, abundante nas zonas pantanosas do delta do Nilo, permitiu aos egípcios criar suportes de escrita flexíveis e resistentes, que precederam o atual papel. Preservativo – Há pinturas do ano 3000 a.C. que retratam homens com uma espécie de preservativo feito com tripas ou pele de animal. Não existe a certeza de que fosse usado como método contracetivo (parece uma peça para rituais), mas a forma é a mesma. Ortopedia – As primeiras próteses foram encontradas no Egito, como a de um dedo grande do pé, que data de 600 a.C., assim como uma tala para tratar fraturas de um período anterior (V dinastia, 2400 a.C.). Há pinturas em túmulos que mostram a utilização de muletas para ajudar a pessoa a andar. Calendário solar – Depois de criarem, inicialmente, um calendário lunar, conceberam depois outro mais preciso, o calendário civil. Era composto por doze meses de trinta dias, e mais cinco dias suplementares no final. Caminhos pavimentados – A necessidade de transportar grandes blocos de pedra até às pirâmides e aos templos levou-os a pavimentar os caminhos com lajes de calcário e arenito, combinadas com troncos de madeira petrificada. Cosmética – Os egípcios de ambos os sexos eram coquetes e asseados. Cortavam o cabelo, barbeavam-se e usavam maquilhagem e lápis para delinear os olhos. Davam também importância à higiene oral e usavam palitos como escova de dentes e uma mistura de essências de menta, mirra, canela e mel para manter o hálito fresco.
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A sua ciência era empírica, para resolver problemas práticos parte dos escribas, para arredondar ligeiramente a seu favor. A matemática e, em particular, um conceito tão conhecido como o da subtração, a que não se dava demasiada importância, acabavam por se transformar num mecanismo de enriquecimento para os funcionários menos cumpridores da lei. O Egito era palco de problemas e conflitos práticos e de contrastes, uma terra em que se passava de imediato da zona cultivável ao deserto, pelo que se tornava essencial medir o terreno aproveitável com muita precisão. Foi assim que nasceu e se desenvolveu a geometria, cuja invenção Heródoto situa na época do faraó Sesóstris, por volta do ano 2000 a.C. O historiador grego chamava aos geómetras egípcios arpedonapti, que significa “os que atam cordas”, uma referência gráfica ao método que usavam para tirar medidas através de nós. As cordas permitiam-lhes traçar as duas linhas geométricas básicas: a reta e o círculo. Segundo Heródoto, o ramo da matemática que se ocupa do estudo da forma e das dimensões no plano ou no espaço surgiu por
necessidade prática, quando Sesóstris decidiu distribuir pelos súbditos a terra cultivável dividida em grandes parcelas de forma quadrada. Por cada parcela, cobrava um tributo em função da sua área. Os funcionários do faraó tinham de conhecer bem o tamanho de cada uma e lidar com um fator que alterava os seus cálculos: as enchentes do Nilo, que, ao inundarem alguns dos limites estabelecidos, reduziam o espaço útil de que os proprietários dispunham. Nesse caso, estes podiam solicitar uma descida dos impostos, pelo que os funcionários voltavam a medir o terreno para estabelecer com precisão quanto deviam baixar o contributo do dono.
MEDIÇÕES COMPLEXAS
Após este início básico, a geometria conheceu um desenvolvimento notável. Os egípcios conheciam as propriedades das principais figuras e conseguiam calcular a área de um círculo com relativa precisão, através de uma curiosa fórmula: tomavam como base o diâmetro, subtraíam 1/9 e extraíam o quadrado do resultado.
Parto assistido. Várias parteiras ajudavam a dar à luz e ocupavam-se do bebé. As dores de parto eram paliadas com cerveja.
da estrela Sírio. Há 5000 anos, antes do primeiro faraó, os astrónomos aperceberam-se de que esse astro desaparecia sempre durante um período de 70 dias, em meados do verão. Depois, reaparecia no mesmo ponto (o horizonte a oriente) e à mesma hora (mesmo antes do amanhecer). O que era mais importante, as cheias anuais do Nilo produziam-se apenas alguns dias depois, trazendo a desejada inundação que banhava os terrenos cultivados e assegurava as colheitas.
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TEMPO SEMELHANTE AO NOSSO
Embora o método não fosse totalmente exato, obtinham uma constante de 3,1605, próxima do número pi (3,149), enquanto outros povos da época usavam valores de cerca de três. Uma aplicação importante deste conceito foi a construção de celeiros de forma cilíndrica. Contudo, a manifestação mais espetacular do domínio egípcio da geometria foram as pirâmides, graças ao seu conhecimento do quadrado, que usavam sempre como base. Foi possível comprová-lo no papiro de Moscovo, no qual se colocam problemas cujo objetivo é encontrar o volume de um tronco de base quadrangular. Os já referidos “atadores de nós” tinham observado que, se juntassem cordas de determinado comprimento para formar um triângulo, obtinham um ângulo reto. É possível que o matemático grego Pitágoras tivesse recorrido à sabedoria egípcia para formular o seu célebre teorema. Uma grande diferença entre os homens de ciência de ambas as civilizações é que os egípcios não elaboravam formulações teóricas abstratas, pois o seu interesse era empírico, destinado à aplicação prática; por isso, há sempre problemas para resolver nos seus papiros matemáticos. Os sábios gregos, em contrapartida, aprofundaram sobretudo a obtenção de regras gerais. Outra das grandes conquistas científicas da
civilização do Nilo foi terem conseguido medir a passagem do tempo através da observação dos astros, o que lhes permitiu conceber um calendário bastante exato, “o único calendário inteligente que jamais existiu na história do ser humano”, como afirma o historiador britânico Cyril Aldred no livro Os Egípcios. O importante avanço tornou-se possível devido à tradição do estudo da astronomia, disciplina que há muito aprofundavam, pois a população tinha necessidade de conhecer, com a máxima precisão, quando se iria produzir a inundação anual dos terrenos cultivados, provocada pelos cheias do grande rio, fundamental para a agricultura. Inicialmente, o calendário egípcio era lunar, com três estações de quatro meses cada, as quais correspondiam às fases de crescimento, sementeira e colheita. Contudo, como os doze meses lunares davam um total de 354 dias, os que faltavam para completar os 365 do ano solar era acrescentados de forma singular: somavam um mês adicional a cada triénio. No entanto, o sistema começou a tornar-se demasiado aleatório para as necessidades de organização e planificação do reino egípcio à medida que a engrenagem estatal adquiria maior sofisticação e exigia cálculos mais precisos. O primeiro fundamento para a criação do novo calendário foi a observação da trajetória
Por isso, o reaparecimento anual de Sírio era um evento que seria assinalado como o dia do começo do ano pelos autores do novo calendário, denominado “calendário civil”. Era composto por doze meses de trinta dias, com mais cinco no final, que correspondiam às datas de nascimento dos deuses do ciclo de Osíris. Os meses tinham três semanas de dez dias cada. A configuração temporal seria completada pela divisão dos dias em vinte e quatro horas. Um modelo perfeito. O declínio faraónico, com as invasões de persas e gregos a partir do ano 500 a.C., não implicou o enfraquecimento da ciência; pelo contrário, promoveu uma nova idade dourada. Ptolomeu I Sóter, o general de Alexandre Magno que se tornou faraó após a distribuição dos territórios conquistados pelo macedónio, teve a ideia de criar o Museu de Alexandria, com uma grande biblioteca que reuniria os melhores cientistas. As duas instituições foram concebidas para promover a cultura helénica num território com uma acentuada identidade própria. A experiência teve um resultado extremamente positivo, pois daria origem a um espaço de fusão de culturas em que as sabedorias egípcia e grega se combinaram para alcançar um nível mais elevado. Além dos avanços nos campos da literatura e da filosofia, disciplinas como a matemática e a astronomia conheceram um grande desenvolvimento em Alexandria. Eratóstenes de Cirene, diretor da biblioteca entre 230 e 195 a.C., reuniu um registo significativo de contributos em matéria de álgebra e cálculo. Organizou também os dados proporcionados pelas descrições precisas do Mediterrâneo do navegador grego Píteas, e conseguiu elaborar o primeiro mapa do mundo conhecido, baseado em cálculos comprovados. Assim, embora a civilização faraónica termine oficialmente no ano 30 a.C., após a morte de Cleópatra, a sua ciência sobreviveu mais quatro séculos, produzindo figuras tão fundamentais como o astrónomo Cláudio Ptolomeu, nascido no Alto Egito e autor do modelo geocêntrico do universo, ou a matemática Hipátia, natural de Alexandria. A herança científica egípcia não ficou sepultada sob as areias do deserto. J.A.M.
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Animais Amor-ódio irremediável
Uma vida de RASTOS Malditas, temidas, adoradas... No seu trabalho Com a Língua Fendida, Heidi e Hans Jürgen-Koch captaram as mil facetas das serpentes, autênticos prodígios da evolução.
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Lição de camuflagem No seu habitat (o norte da Austrália e as selvas da Nova Guiné), a pitão Morelia viridis confunde-se com as árvores.
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Poder bucal. As víboras, como esta cornuda do Sahara (Cerastes cerastes), possuem dentes retráteis e ocos, ligados às glândulas venenosas. Em baixo, uma cobra-rateira usa a sua língua para identificar uma congénera.
Cobras e serpentes surgiram há 100 milhões de anos
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Corpo formidável Muitas cobras do género Lampropeltis, uns predadores que se alimentam de outros ofídios, exibem chamativas combinações de manchas e bandas nas suas escamas dorsais (em cima). Todas as serpentes mudam de pele periodicamente, um processo que realizam por completo e de uma só vez. À direita, um exemplar de Elaphe dione deixa para trás o seu abrigo anterior. Entre as peculariedades anatómicas destes animais conta-se também o seu grande número de vértebras. Certas pitões (em baixo) têm mais de 400.
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Cuidado! Quando identifica uma ameaça, a cobra-real abre as vértebras da zona do pescoço e forma um capelo de aviso. Na realidade, pode tornar-se muito agressiva.
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Só sushi. Com a sua dieta à base de peixes, a cobra-raiada é inofensiva para os restantes animais.
Gotas mortíferas. O veneno hemotóxico das cascavéis (na foto, o momento em que é extraído) afeta os glóbulos vermelhos, os vasos sanguíneos e o coração.
O veneno da taipã australiana mata um adulto em 30 minutos
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em todas as serpentes são venenosas (apenas umas 640 espécies das mais de 3400 conhecidas), mas os compostos que injetam através dos seus dentes são cada vez mais potentes: “A evolução favoreceu o aparecimento de toxinas mais seletivas, com alvos moleculares que cumprem funções fisiológicas essenciais da presa”, explica um ensaio publicado recentemente na revista PNAS. Uma equipa de investigadores de várias instituições especializados em venómica (o estudo da composição proteica dos venenos) reconstruiu a história evolutiva de algumas espécies de ofídios e concluiu que a seleção natural favoreceu as mais eficazes. “Atuam destruindo o sistema muscular e alterando o cardiovascular, o nervoso central e o periférico”, escreveram. A sua com-
posição varia tanto que dificulta a produção de antídotos. Não obstante, segundo a Organização Mundial de Saúde (http://bit.ly/1nwYzlp), pelo menos 200 destas salivas modificadas possuem interessantes aplicações médicas ou biotecnológicas. Trata-se apenas de mais uma manifestação da dualidade que caracteriza estes animais. Sejam venenosas ou não, as serpentes estão enraizadas na mitologia da humanidade desde as suas origens. Para os judaico-cristãos, por exemplo, foram um reflexo do mal e do pecado. Pelo contrário, os sumérios, que estabeleceram na Mesopotâmia, há mais de 5000 anos, os alicerces da civilização, tinham-nas por fonte de fertilidade e renovação, talvez devido à mudança periódica de pele. A.A.
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Ciência Roubos, traições, espionagem...
Que inveja! Tal como nas outras profissões, os ciúmes geram em alguns cientistas a necessidade de recorrer a meios fraudulentos para alcançarem o êxito e o reconhecimento.
Jogo sujo no LABORATÓRIO Na ciência, não costuma ser fácil conseguir resultados brilhantes e em tempo record. Daí que alguns investigadores decidam seguir por atalhos menos éticos, para ficarem com o prestígio, a fama... e o dinheiro.
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se descobriu certas irregularidades na resolução do caso: não se permitira aos implicados defender-se e, pior ainda, um dos membros do Instituto de Biotecnologia, ao qual os dois pertenciam, fazia parte do coro acusador. Qual fora, então, o crime dos microbiólogos? Os cientistas tinham maquilhado algumas imagens do seu estudo para que adquirissem maior destaque, mas sem alterarem os resultados relevantes. Seja como for, deve ter parecido um deslize pouco importante à comissão de ética dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos, dos quais recebiam apoio económico, pois manteve as ajudas que lhes tinham proporcionado durante todo o processo.
MUITO RUÍDO, POUCOS OSSOS
Se pensa que a vida de cientista decorre num cenário de grande camaradagem, racionalidade e responsabilidade, está enganado. Um das disciplinas em que se pode constatar a existência de ódios viscerais é a paleontologia, nomeadamente a humana. Não é de estranhar: nessa área, a fama de um investigador depende geralmente da descoberta, muitas vezes acidental, de um fóssil. Como se diz habitualmente na profissão, a paleontologia é o único ramo da ciência que tem mais especialistas do que objetos de estudo, o que garante o aparecimento de conflitos. Um exemplo é o confronto que opôs, durante décadas, os antropólogos Richard Leakey e Donald Johanson, até que fumaram o cachimbo da paz, em 2011, quando se sentaram juntos
CULTURA RM / MARTELLY / GETTY
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m outubro de 2013, a Universidade Autónoma de México (UNAM) deu por concluída uma investigação que incidia sobre dois dos seus microbiólogos mais brilhantes, Alejandra Bravo e Mario Soberón. Tudo começara em 2012, quando três cientistas canadianos demonstraram que os modelos desenvolvidos pelos dois mexicanos não eram passíveis de ser reproduzidos. No outono do mesmo ano, uma comissão independente concluíra que tinham sido levadas a cabo, em pelo menos dois dos onze artigos que tinham publicado, “manipulações inapropriadas e categoricamente reprováveis”. Embora os membros da comissão sublinhassem que as alterações não constituíam qualquer fraude, pois não afetavam as conclusões finais da investigação, recomendavam que os ensaios fossem retirados e aplicadas diversas sanções, incluindo exigir a demissão de Mario Soberón do cargo de chefe de departamento, e despromover Alejandra Bravo, que passaria de dirigente académica a investigadora adjunta. A imprensa divulgou a notícia e os investigadores foram alvo de duras críticas, enquanto se elogiava a rapidez com que a fraude fora descoberta. Poucos saíram em defesa dos presumíveis culpados: mesmo assim, o antigo reitor da UNAM, Juan Ramón de la Fuente, apelou à serenidade, enquanto afirmava que os dois tinham sido “vítimas de excesso de suspeitas”. Passado um ano, após nova investigação por parte da Provedoria dos Direitos Universitários da UNAM, as sanções foram retiradas, quando
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Há quem tenha ganho o Nobel furtando dados a um colega no Museu de História Natural norte-americano para debater as origens da espécie humana. Semelhante rivalidade não pode ser comparada com a batalha travada pelos seus colegas do século XIX Edward Drinker Cope e Othniel Charles Marsh, que não hesitaram em recorrer a subornos, roubos e destruição de ossos para lesar o adversário. A famosa inimizade, batizada como “guerra dos ossos”, acabou por destruir a fortuna e o prestígio social de ambos. Por falar em dinheiro, por vezes, o que se pretende não é apenas a recompensa económica. Em outubro de 2006, o paleontólogo amador Nathan L. Murphy encontrou, escondidos numa rocha, ossos muito bem conservados de uma nova espécie de dinossauro. A descoberta proporcionou-lhe fama e algo mais: o dinheiro da venda dos restos fossibilizados a museus e colecionadores. O norte-americano não era um novato entre os caçadores de fósseis, pois já participara na descoberta de restos de hadrossauro, incluindo os de Leonardo, um magnífico exemplar com 77 milhões de anos. Três anos depois e após vários meses de
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investigação, as autoridades do Montana descobriram que o fóssil de dinossauro de Murphy já tinha sido encontrado, em 2002, na quinta de uma família de rancheiros, os Hammonds, e não a quase 40 quilómetros dali, como ele afirmara. Murphy foi acusado de roubo, pois os restos também pertenciam aos Hammonds.
SEQUESTRO DE UM NOME
Como isso não bastasse, o verdadeiro autor da descoberta tinha sido o geólogo australiano Mark Thompson, que chamou ao exemplar Julieraptor, em honra da sua irmã. Murphy pediu-lhe para ocultar a descoberta dos Hammonds, pois estabelecera com eles um acordo económico que incidia sobre tudo o que fosse encontrado nas suas terras. Por sua vez, a família também não fora muito sincera: a parcela onde o fóssil surgiu não lhes pertencia, mas era arrendada. Thompson decidiu cumprir o acordo, mas não sem antes ter fotografado o dinossauro e conservado algumas amostras. Não se soube mais do fóssil até que Murphy o exibiu em público, sob o nome de Sid Vicious.
Infelizmente para o caçador de ossos, o seu colega australiano apercebeu-se de que os restos eram, precisamente, os mesmos que tinha encontrado, e revelou-o aos Hammonds. Descoberta a trapaça, Murphy não teve outro remédio se não confessar-se culpado do roubo, embora tenha alegado, em sua defesa, que não se tinha apercebido de que trouxera os ossos, pois encontravam-se sob os de uma tartaruga que desenterrara nesse ano. Ninguém acreditou. O fóssil de Cleptoraptor, como seria batizado por alguns paleontólogos, poderia ter sido uma galinha de ovos de ouro, pois o seu valor alcançava os 400 mil dólares (cerca de 300 mil euros). Como dizia o mestre do suspense Alfred Hitchcock, a propósito dos erros cometidos por assassinos, ninguém teria esperado tal atitude por parte de alguém que afirmava amar tanto esse ramo da ciência. No fim de contas, quase meio milhão de dólares é uma tentação muito difícil de ignorar. No campo da paleontologia, além de fósseis, também se pode surripiar nomes. Em 2008, o investigador William Parker acusou três colegas do Museu de História Natural e Ciência do Novo México (Estados Unidos) de terem dado o nome de Rioarribasuchus a uma nova espécie de etossauro (réptil do período triássico), quando sabiam que ele estava pres-
LOUIE PSIHOYOS / CORBIS
ASSOCIATED PRESS
Paleobroncas. Nathan L. Murphy foi condenado por roubar fósseis. A rivalidade entre os paleontólogos E. Cope e O. Marsh originou a chamada “guerra dos ossos” (página oposta).
tes a publicar um artigo em que optava pela designação de Heliocanthus. Segundo a Comissão Internacional de Nomenclatura Zoológica, não se pode batizar uma espécie quando se tem conhecimento de que outro centista irá fazê-lo, e foi a essa regra que os especialistas do Novo México se agarraram: nada sabiam sobre Parker. O incidente reacendeu a polémica que já existia em redor dos três investigadores. Em julho de 2007, o paleontólogo Jerzy Dzik, da Universidade de Varsóvia, enviara uma mensagem de correio eletrónico a Spencer Lucas, um dos que seriam posteriormente acusados por Parker, para lhe pedir explicações. Lucas tinha ido visitá-lo há tempos, quando Dzik e a sua equipa estavam a terminar um artigo em que descreviam um novo etossauro. De regresso, Lucas adiantou-se e publicou a descrição do animal no boletim do seu museu. O investigador acusava os polacos de não terem sido mais específicos no protocolo sobre o estudo de fósseis, e desculpava-se pelo que considerava não passar de um “mal-entendido”. Como ele próprio era o editor do boletim, conseguiu publicar a descrição sem ter de esperar que uma revista científica procedesse à revisão e aceitasse o conteúdo do seu artigo. Contudo, os problemas com os especialistas
do Novo México não acabaram ali. Quando outro dos seus relatórios, no qual faziam uma reinterpretação de outro dinossauro, denominado Redondasuchus, chegou às mãos de Jeff Martz, doutorando da universidade Texas Tech, este descobriu que a explicação era praticamente copiada da que incluíra na sua tese de doutoramento, e que tinham utilizado uma figura do seu estudo sem o mencionarem. Finalmente, a Sociedade de Paleontologia de Vertebrados considerou que não estava na posse de argumentos suficientes para poder inclinar-se por um dos dois lados.
IRRADIADO DA RIBALTA
Os cientistas dispõem de uma arma de grande potência e, simultaneamente, simples para castigar os infratores: suspender as suas investigações. Foi o que se passou com o cosmólogo Halton Arp, em meados dos anos 80. Arp, autor do Atlas de Galáxias Peculiares, recebeu uma carta da comissão do Observatório de Monte Palomar, na Califórnia, em que lhe era comunicado que as suas investigações não tinham qualquer valor e se suspendia o trabalho que desenvolvia nos observatórios de Monte Palomar e Las Campanas (Chile). O astrónomo também não tinha autorização para proferir conferências em congressos, e todos os seus
Pinta de cientista
N
os anos 50, a antropóloga Margaret Mead descreveu a imagem que a sociedade da época tinha de um cientista: um homem de bata branca que trabalhava num laboratório. Esse senhor de meia idade, talvez com barba, de aspeto desarranjado e que passa o dia a fazer experiências, não parece ter evoluído muito com a passagem do tempo. O estereótipo do cientista está bem enraizado até na mente das crianças, e desde muito cedo, logo nos primeiros anos do ensino primário. Depois, à medida que crescem, a ideia torna-se ainda mais firme. Porém, algo está a mudar. Em 2001, a Fundação Nacional de Ciências dos Estados Unidos promoveu um inquérito que revelou que mais de 80 por cento dos inquiridos pensavam que o cientista “ajuda a resolver problemas” e “trabalha para o bem da humanidade. Todavia, cerca de 30% opinavam que eram indivíduos estranhos, com escassos interesses para além das suas investigações, muito racionais e pouco emotivos. Interessante
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posteriores artigos foram recusados pelas revistas científicas norte-americanas. Tanta agitação devia-se, na realidade, ao facto de Arp, que viria a falecer em 2013, defender que uma das provas da expansão do universo, o desvio para o vermelho das galáxias, não tinha origem cosmológica. Na sua opinião, o fenómeno, associado ao distanciamento de objetos longínquos, obedece às leis da mecânica quântica, o que coloca em causa toda a teoria do Big Bang. A comissão que atribuía o cobiçado tempo de observação pelos telescópios nem sequer lhe permitiu concluir as suas investigações, por considerá-las erradas. Perante um panorama tão desanimador, Arp optou pelo exílio e foi trabalhar num centro estrangeiro, o Instituto Max Planck de Astrofísica (Alemanha).
GALARDÃO POUCO ÉTICO
No campo da física, também se podem cometer atropelos. Um dos mais falados foi o sofrido pelo italiano Oreste Piccioni. Em 1954, apresentou os pormenores técnicos de um estudo destinado a encontrar o antiprotão através do Bevatron, o acelerador de partículas do Laboratório Nacional Lawrence Berkeley, nos Estados Unidos. Vários anos depois, descobriu que dois dos seus colegas, Emilio Segrè e Owen Chamberlain, tinham feito a experiência em segredo, confirmando a existência da antipartícula. Em 1959, o Comité Nobel atribuiu aos cientistas o galardão pela descoberta. Embora Segrè tenha mencionado os contributos de Piccioni na cerimónia de entrega do prémio, o cientista italiano não considerou que fosse suficiente. Para compensá-lo por manter silêncio, foi-lhe então prometido que também lhe seria atribuído um Nobel. Porém, como o prémio não chegava, o investigador processou os laureados, em 1972, e exigiu uma importante soma económica e uma declaração a reconhecê-lo como verdadeiro autor da descoberta. Infelizmente, o tribunal não lhe deu razão: demorara demasiado a denunciar o sucedido. Efetivamente, por vezes não é preciso roubar ideias, basta usurpar os dados. Foi assim que James Watson e Francis Crick ganharam a corrida a Linus Pauling, que desvendou a estrutura do ADN e procurava um modelo molecular para explicar a sua configuração. Os dois jovens cientistas tinham decidido encontrar o seu próprio modelo; para isso, contavam com os dados cristalográficos de dois
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NANCY R. SCHIFF / GETTY
A fraude científica aumentou dez vezes desde 1975
Armas femininas. A bióloga Lynn Margulis teve de divorciar-se de Carl Sagan para poder dedicar-se à sua carreira. O astrónomo queria que ela o ajudasse a terminar o doutoramento.
colegas, Maurice Wilkins e Rosalind Franklin. Devido ao ritmo a que obtinham a informação, os avanços eram lentos, pelo que haveria melhor forma de acelerar o processo do que ir ao laboratório de Wilkins e Franklin para tomar os dados de empréstimo? A estratégia permitiu-lhes antecipar a descoberta da dupla hélice do ADN... e os três venceram o Nobel, deixando a pobre Rosalind Franklin para trás. Algo de semelhante ocorreu em 2005, quando o astrónomo espanhol José Luis Ortiz anunciou a descoberta do planetoide 2003 EL61. Michael Brown, professor de Astronomia Planetária no Caltech (Estados Unidos), acusou-o de ter espiado dados dos seus computadores, de livre acesso na internet. Embora Ortiz tenha alegado que a sua equipa fizera a descoberta ao reexaminar observações da zona, o norte-americano não acreditou: uma semana antes do anúncio, Brown publicara o resumo de um futuro relatório, no qual apresentaria o planetoide sob o nome K40506A (posteriormente, Haumea). Bastava introduzir os caracteres em qualquer motor de busca da internet para encontrar a página com os cálculos de Brown. Foi isso que Ortiz fez, em duas ocasiões: uma, dois dias antes do anúncio; outra, no próprio dia. O astrónomo norte-americano acusou-o de lhe ter roubado a descoberta, pois Ortiz limitara-se a seguir os seus passos e a efetuar o anúncio, sem qualquer comprovação posterior. Por sua vez, este defendeu-se alegando que não era espionagem consultar dados de livre acesso, e que, apesar de Brown ter sido o primeiro a encontrá-lo, não o comunicara.
VIVER À SOMBRA
Fora do laboratório, as ambições científicas podem misturar-se com a vida privada. Veja-se o exemplo do casal formado pela microbióloga Lynn Margulis (1938–2011) e um jovem e promis-
sor astrónomo chamado Carl Sagan (1934–1996). Este obrigou a mulher a pôr de parte a sua carreira científica para o ajudar enquanto ele terminava a sua tese de doutoramento e obtinha um emprego estável como investigador. Mais desagradável foi a polémica desencadeada por um artigo publicado, em finais do ano passado, na Wired. Revelava que um editor do Biology-Online.org (um site de conteúdos que é também parceiro da revista Scientific American) respondera de forma insultuosa à bióloga Danielle N. Lee, que recusara uma proposta de colaboração. A cientista, que faz parte da comunidade de bloguistas da Scientific American, escreveu uma entrada na sua página, Urban Scientist, a contar o que sucedera. O texto desapareceu em menos de uma hora. A única explicação que a bióloga recebeu foi através do Twitter: “A SciAm é uma publicação que se dedica às descobertas científicas. O post não era apropriado para essa área e foi eliminado.” Os rumores de censura propagaram-se, sem que a revista conseguisse desmenti-los. Pouco tempo depois, a escritora e geóloga Monica Byrne revelava a identidade da pessoa que a tinha assediado sexualmente há um ano. Um editor de blogues científicos contactou-a pelo Facebook e marcou um encontrou num café para falarem de colaborações. Contudo, no local, começou a descrever explicitamente a sua vida sexual. O caso de Lee encorajou-a a revelar o nome do autor do assédio, que era afinal Bora Zivkovic, conhecido pela alcunha de The Blogfather, responsável pelos blogues da Scientific American. Outras duas colaboradoras, Hannah Waters e Kathleen Raven, alegaram ter sido vítimas de situações semelhantes com Zivkovic. Passados alguns dias, o cientista, um aparente defensor do papel das mulheres na ciência, apresentou a sua demissão. M.A.S.
Marcas & Produtos
Idealmente húmida
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histera Drop-Structure é o nome de uma inovadora fórmula mágica. O sistema recém-desenvolvido de gotejamento no interior da tampa da panela multiusos da Staub mantém, de forma contínua, os níveis de humidade durante o processo de cozedura, para obter deliciosos pratos cozinhados na perfeição. A forma especial da designada chistera do jogo basco da pelota inspirou o designer Samuel Accoceberry a criar um novo sistema de gotejamento na tampa curva da nova panela da Staub. É mais compacta do que a lendária cocotte, mais versátil do que uma panela convencional e, com a sua inovadora tecnologia, aumenta a gama de cocottes de ferro fundido esmaltado fabricadas pela marca. Esta versátil panela multiusos é ideal para assar carne e permite guisar na perfeição saborosos manjares. Para além das propriedades de cozinha tradicionais encontradas nos utensílios Staub com fundição esmaltada, a estrutura inovadora e aperfeiçoada de gotejamento da Chistera permite ainda que esta se mantenha idealmente húmida enquanto cozinha.
Personalidade olfativa
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Como o camaleão
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Timberland já está a preparar a chegada da próxima estação às suas lojas, com peças que se adaptam na perfeição ao estilo de vida do homem moderno: são extremamente versáteis, o que possibilita uma transição quase sem esforço do visual do dia a dia para um look mais casual, de fim de tarde.
xistem dois tipos de glândulas que produzem as secreções sudoríparas: glândulas de suor écrinas e apócrinas. As glândulas sudoríparas écrinas têm uma função termorreguladora e encontram-se distribuídas por todo o corpo. Não são a causa principal dos odores desagradáveis. As glândulas sudoríparas apócrinas localizam-se em zonas específicas, tal como as axilas. Apesar de a secreção das glândulas apócrinas ser inferior à secreção écrina, é sensível às bactérias e é mais responsável pelo odor corporal. Para ser eficaz, um desodorizante tem de atuar sobre a flora bacteriana. Além disso, a fórmula galénica do desodorizante tem de conferir aos ingredientes ativos a possibilidade de assegurarem a sua função específica. Ao contrário da maioria dos produtos que pretendem bloquear a produção de suor, a Eisenberg escolheu privilegiar o desenvolvimento de um cuidado que respeite os mecanismos naturais de sudação mas que elimine os odores desagradáveis, testando-o sob controlo dermatológico e em pele sensível. De forma a respeitar esta abordagem natural e delicada, bem como o
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DAVID FLEETHAM
Foto do mês
Comida em fuga
Edições, Publicidade e Distribuição, Lda.
Nas águas próximas das Galápagos, um leão-marinho atravessa um cardume do tamanho de um campo de futebol, formado por milhares de Xenocys jessiae. Estes peixes vivem a menos de 20 metros de profundidade e agrupam-se em bancos para, entre outras coisas, se defenderem dos predadores. Segundo a Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas, elaborada pela
Conselho de Gerência Marta Ariño, Rolf Heinz, Rafael Pardo, João Ferreira Editor Executivo João Ferreira
Diretor Carlos Madeira (
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União Internacional para a Conservação da Natureza, a sua principal ameaça é talvez o El Niño, que origina uma camada de águas mais quentes e pobres em nutrientes. À hora de fecho desta edição, os cientistas ainda não tinham a certeza sobre se irá verificar-se em 2014 aquele fenómeno meteorológico, que, além disso, provoca inundações nas Américas e secas na Austrália.
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