A NDRÉ SINGER .) E IS A BEL LOUREIRO ( orgs )
AS C O ON N T T R R A D I IÇ Ç Õ Õ E E S S D O O LU LI S SM O M O A QUE P ONT O C HE G A MOS?
© Boitempo, 2016 Direção editorial Edição Assistência editorial Preparação Revisão Coordenação de produção Diagramação Capa
Ivana Jinkings Isabella Marcatti Taisa Burani Cláudia Mesquita, Frederico Ventura e Tais Rimkus Luzia Santos Livia Campos Luciano Malheiro Artur Renzo sobre fotos de Marcos Oliveira/Agência Senado, Brasília, 1o out. 2015.
Equipe de apoio
Allan Jones, Ana Yumi Kajiki, Artur Renzo, Bibiana Leme, Eduardo Marques, Elaine Ramos, Giselle Porto, Ivam Oliveira, Kim Doria, Leonardo Fabri, Marlene Baptista, Maurício Barbosa, Renato Soares, Taís Barros, ulio Candiotto CIP-BRASIL. CATALOGAÇ O NA PUBLICAÇ O SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
C782 As contradições do lulismo : a que ponto chegamos? / organização André Singer , Isabel Loureiro. - 1. ed. - São Paulo : Boitempo, 2016. (Estado de sítio) ISBN 978-85-7559-511-4 1. Brasil - Condições sociais. 2. Brasil - Política e governo. 3. Partido dos Trabalhadores (Brasil). 4. Trabalhadores - Aspectos sociais. I. Singer, André. II. Loureiro, Isabel. III. Título. IV. Série. 16-36142
CDD: 302 CDU: 316.77
É vedada a reprodução de qualquer parte deste livro sem a expressa autorização da editora. Esta edição contou com o apoio para publicação do CNPq por meio do edital MCI/CNPq n. 14/2013. 1a edição: outubro de 2016 BOIEMPO EDIORIAL Jinkings Editores Associados Ltda. Rua Pereira Leite, 373 05442-000 São Paulo SP el./fax: (11) 3875-7250 / 3875-7285
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SUMÁRIO
Apresentação – Elementos para uma cartografia do desenvolvimentismo lulista ............................................................... 9 André Singer e Isabel Loureiro
A (falta de) base política para o ensaio desenvolvimentista ................... 21 André Singer
erra em transe: o fim do lulismo e o retorno da luta de classes ........... 55 Ruy Braga
Inovações do sindicalismo brasileiro em tempos de globalização e o trabalho sob tensão..................................................... 93 Leonardo Mello e Silva
Agronegócio, resistência e pragmatismo: as transformações do MS ................................................................ 123 Isabel Loureiro
Percepções sobre pobreza e Bolsa Família........................................... 157 Carlos Alberto Bello
Faces do lulismo: políticas de cultura e cotidiano na periferia de São Paulo .................................................... 185 Cibele Rizek
Luta de classes na socialização capitalista: Estado privatizado e construção privada da esfera pública ............................. 219 Wolfgang Leo Maar
A crítica cultural lê o Brasil................................................................ 251 Maria Elisa Cevasco
Sobre os autores................................................................................. 281
AGRONEGÓCIO, RESISTÊNCIA E PRAGMATISMO AS TRANSFORMAÇÕES DO MST
Isabel Loureiro
Ainda (e sempre) a questão agrária Nas primeiras semanas de março de 2015, uma notícia amplamente divulgada na mídia chamou a atenção. Durante a Jornada Nacional de Lutas das Mulheres Camponesas, estas realizaram uma série de atividades em 23 estados do país com o objetivo de denunciar o modelo agrícola brasileiro, assentado no agronegócio, defendendo como alternativa a agroecologia. Além das marchas, trancamento de rodovias e ocupações de latifúndios, ações já tradicionais no Movimento dos rabalhadores Rurais Sem erra (MS), tomamos conhecimento da ocupação da sede da empresa Bunge em Brasília e de uma fábrica de agrotóxicos no Rio Grande do Sul. Mas a ação mais espetacular ocorreu no dia 5 de março, quando cerca de mil mulheres do MS e de outros movimentos sociais camponeses e urbanos dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais ocuparam a sede da empresa FuturaGene Brasil ecnologia Ltda. (subsidiária da Suzano Papel e Celulose S/A desde 2010) em Itapetininga (SP), local onde eram desenvolvidos testes com eucalipto transgênico, conhecido como H421. Ao mesmo tempo, outras trezentas camponesas ocuparam a própria Comissão écnica Nacional de Biossegurança (CNBio), em Brasília, onde ocorria a reunião que liberaria o eucalipto transgênico. A ocupação visava impedir que a CNBio votasse a favor da liberação do cultivo deste eucalipto no Brasil 1. 1
Disponível em:
. Acesso em: 13 abr. 2015. O cultivo do eucalipto transgênico foi aprovado na reunião da CNBio (órgão do governo federal com o objetivo de cuidar da segurança no uso de OGM) de 9 de abril de 2015. Dada a limitação do espaço, não tratarei deste tema.
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De um lado, agronegócio, agrotóxicos, transgênicos, monopólios agrícolas; de outro, agroecologia, movimentos camponeses – MS, entre mais de cem movimentos socioterritoriais mapeados de 2000 a 2014 –, resistência. Entramos assim de chofre no coração do nosso problema, a dívida não saldada da questão agrária , que persiste no Brasil, configurando-se como obstáculo incontornável a ser superado se quisermos ser uma sociedade integrada de fato: igualitária, justa e livre. Não sendo possível fazer aqui nem sequer um rápido resumo do debate sobre esse tópico, limito-me a destacar o fio vermelho que ata o presente ao passado. Questão agrária pendente significa, antes de mais nada, muita terra em poucas mãos. Como sabemos, primeiro com as sesmarias, depois com a Lei de erras de 1850, foi instaurado no Brasil o regime de concentração fundiária que, aliado à concentração do poder político, caracteriza o país desde a colônia. As oligarquias rurais instaladas em todas as esferas do poder criaram continuamente medidas legais para tornar o latifúndio intocável. Esse traço estrutural na formação brasileira enraizou-se de modo profundo na vida e no modo de ser do país com consequências visíveis até hoje. Quando em 1850, pela pressão das grandes potências da época, é proibido o tráfico de escravos, promulga-se ao mesmo tempo a primeira Lei de erras, que legaliza a grande propriedade e vende por preços relativamente altos as terras do Estado. Isso impede que ex-escravos, imigrantes europeus e asiáticos importados para trabalhar nas fazendas, assim como os pobres do campo, obtenham a propriedade da terra. Num país onde existiam (e existem) enormes extensões de terras subutilizadas, cria-se um artifício para dificultar o acesso do pequeno lavrador à propriedade da terra e manter os privilégios do latifundiário, que tem garantidas propriedade e mão de obra barata. Em 1964, os militares criam o Estatuto da erra com a intenção de fazer uma reforma agrária (o aspecto mais visível da questão agrária) de emergência para acalmar os conflitos no campo, mas que na realidade não altera a estrutura fundiária. Nessa época em que o Brasil passa por um rápido processo de modernização econômica, os militares implantam um modelo econômico de desenvolvimento agropecuário no setor agrícola para acelerar a modernização da agricultura baseada na grande propriedade. Isso é feito, principalmente, pela criação de um sistema de créditos e subsídios, gerando profundas transformações no campo: aumento das áreas de monocultura, intensificação da mecanização na agricultura, aumento do número de trabalhadores assalariados.
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Essa modernização técnica do campo promove, ao mesmo tempo, crescimento econômico da agricultura e concentração fundiária ainda maior, tendo como resultado a expropriação e expulsão de milhares de pequenos agricultores de suas terras. Em apenas duas décadas, quase 30 milhões de pessoas deixam o meio rural. Parte desses agricultores desloca-se para as periferias das grandes cidades reforçando o contingente de pobres, outra parte transforma-se em operários, e outra parte, que não foi absorvida pelas fazendas tecnologicamente modernizadas, vira sem-terra. Cria-se assim um clima de conflito no campo que acaba por encontrar uma válvula de escape nos artigos 184 e 186 da Constituição de 1988, que, fazendo referência à função social da terra, abrem espaço para a desapropriação para fins de reforma agrária. Porém, empecilhos que favorecem os grandes proprietários impediram, na maioria dos casos, que esses artigos da Constituição fossem postos em prática. Em termos concretos, a desapropriação das áreas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) é feita de acordo com dados de produtividade de 1975, totalmente defasados, o que dificulta classificar as fazendas como improdutivas, embora a Lei Agrária n. 8.629/1993 determine que os índices sejam atualizados a cada cinco anos. Além disso, a possibilidade de “ocupação especulativa e predatória das terras”2, que leva à ausência de regulação da propriedade fundiária, permitindo que a apropriação seja feita por meio da grilagem de terras públicas, é um dos fatores que contribuem para a excessiva concentração fundiária no Brasil e para o aumento do respectivo índice de Gini3. Dados do Incra (1999) revelam a existência de cerca de 100 milhões de hectares de terras griladas em todo o país, quatro vezes a área do Estado de São Paulo4. A grilagem como forma de constituição da propriedade privada da terra – característica central da 2
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Bastiaan Philip Reydon, “Governança de terras e a questão agrária no Brasil”, em Antônio Márcio Buainain et al. (orgs.), O mundo rural no Brasil do século 21 (Campinas, Unicamp/Embrapa, 2014), p. 728. O índice de Gini relativo à concentração de terras subiu de 0,83 em 2012 para 0,86 em 2014. Em Relatório Dataluta 2014, p. 6. Bastiaan Philip Reydon, “Governança de terras e a questão agrária no Brasil”, cit., p. 743. Dados recentes mostram o aumento dos latifúndios nos governos Lula e Dilma. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2015.
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nossa formação capitalista – está na base da maior parte das terras utilizadas na agricultura 5. Para complicar ainda mais as coisas, no segundo governo Lula houve um movimento no sentido de regularizar a grilagem de terras públicas na Amazônia Legal, que, pela Constituição de 1988, deveriam ser destinadas à reforma agrária. Daí o vaticínio segundo o qual “[...] Luiz Inácio Lula da Silva entrará para a história do Brasil como o ‘presidente companheiro dos grileiros’, e, aos camponeses, quilombolas e povos indígenas não restará outro caminho senão aquele da continuidade da luta pela terra e pelo território”6. De fato, continua vigorando a Lei de erras de 1850, que, à revelia da atual Constituição, transforma a terra em mercadoria como outra qualquer. Seguindo essa linha de intervenção, de terra como mercadoria e de tentativa de solução não conflitiva da questão agrária, foi introduzida no Brasil em 1996 a “reforma agrária de mercado” – rejeitada pelos movimentos camponeses – com financiamento do Banco Mundial no âmbito dos programas de alívio à pobreza. Essa modalidade permite o acesso à terra pelo mecanismo de compra e venda, evitando as desapropriações por parte do Estado. Embora tenham sido detectados inúmeros problemas (endividamento das famílias, abandono dos lotes por falta de condições mínimas) nos programas que compunham esse tipo de “reforma agrária” (Reforma Agrária Solidária, Cédula da erra, Banco da erra e Crédito Fundiário), ela continuou no governo Lula 7. Aliás, a literatura mostra que os governos Lula e Dilma, contra todas as expectativas dos movimentos camponeses, não fizeram “nada de relevante em relação à política agrária implantada nos dois períodos de governo FHC”8. Uns falam em “contrarreforma agrária” 9, outros se referem a uma 5
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Ariovaldo Umbelino de Oliveira, comunicação oral em debate no Cenedic, 24 abr. 2015. Idem, “A questão agrária no Brasil: não reforma e contrarreforma agrária no governo Lula”, em João Paulo de Almeida Magalhães et al. (orgs.), Os anos Lula : contribuições para um balanço crítico 2003-2010 (Rio de Janeiro, Garamond, 2010). Sérgio Sauer, “Reforma agrária de mercado no Brasil: um sonho que se tornou dívida”, Estudos Sociedade e Agricultura , ano 18, v. 1, abr. 2010. José Juliano Carvalho Filho, “Política agrária: 15 anos – carta a Plínio de Arruda Sampaio”, em Daniela Stefano e Maria Luisa Mendonça (orgs.), Direitos humanos no Brasil 2014 , Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, p. 25. Ariovaldo Umbelino de Oliveira, “A questão agrária no Brasil”, cit.
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reforma agrária “extremamente conservadora”10. Enquanto isso, os dados do Incra de 2010 mostram a existência de 66 mil imóveis classificados como propriedade improdutiva (175,9 milhões de hectares) e de terras públicas griladas que, como vimos, por não cumprirem a função social, deveriam ser destinados à reforma agrária 11. O mais grave foi ter relegado ao esquecimento os artigos da Constituição referentes à função social da propriedade, curvando-se assim aos interesses do agronegócio em detrimento dos trabalhadores rurais e camponeses, da preservação da biodiversidade e do equilíbrio ecológico. Postura tão avessa à reforma agrária, segundo uns, ou tão tímida segundo outros, está de acordo com o “reformismo fraco” do figurino lulista que procurou combater a pobreza sem confrontar os interesses do capital12. O exemplo mais recente do avanço do agronegócio se dá na região conhecida como Matopiba (polo agrícola que engloba os estados do Maranhão, ocantins, Piauí e Bahia), considerada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) como “a última fronteira agrícola em expansão no mundo”, abrangendo 337 municípios e 73 milhões de hectares. É uma região formada por três biomas extremamente vulneráveis, Amazônia, caatinga e cerrado13, abrangendo este último 90,9% das terras. O que se viu ali de 2011 a 2013 foi a expansão do cultivo da soja, a exemplo do que já ocorrera no Centro-Oeste, havendo a expectativa de que cresça 21% nos próximos dez anos. Podemos imaginar o que ocorrerá com as populações tradicionais que habitam nessa área 14. 10
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Bernardo Mançano Fernandes, “Estado e as políticas agrárias recentes”, Revista da Associação Brasileira de Reforma Agrária , mar. 2015, p. 71. Ariovaldo Umbelino de Oliveira, “Debate: a reforma agrária se tornou bandeira ultrapassada?”, O Estado de S. Paulo, 7 jan. 2015. André Singer, Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador (São Paulo, Companhia das Letras, 2012). O cerrado ocupa 21% do território brasileiro. É o berço das águas das mais importantes bacias hidrográficas: São Francisco, Paraguai-Paraná, Araguaia-ocantins, além de ser a região dos aquíferos. Menos de 20% do bioma está preservado devido ao avanço da agropecuária, com o apoio do poder público estadual e federal. Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong), Caminhos para um desenvolvimento justo, 2015. Segundo estudos do Grupo de Inteligência erritorial Estratégica (Gite) da Embrapa, em toda a extensão do Matopiba há 19% de áreas legalmente atribuídas: 46 unidades de conservação, 35 terras indígenas, 745 assentamentos e 36 áreas quilombolas.
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Informações e pesquisas de campo relativas aos últimos trinta anos mostram alguns dados que repetem o padrão da ocupação de terras no país: grilagem de terras públicas no Piauí; envolvimento de órgãos e agentes públicos (juízes de comarca) e privados (cartórios de registro de imóveis) na grilagem; expulsão e/ou deslocamento de populações que há muito são moradoras da região e que utilizam, de forma comunitária, terras próximas às fontes de água para produção de subsistência 15. Em resumo, as populações tradicionais em primeiro lugar, mas também camponeses assentados, entre outros, são considerados obstáculo à expansão da agricultura empresarial e do mercado de terras. Embora a “economia do agronegócio”, como já foi indicado, tenha origem na “modernização conservadora” dos governos militares, ela se reestrutura a partir dos anos 2000 diretamente ligada à expansão mundial das commodities . De 1999 a 2012, o Brasil passou de US$ 50 bilhões a US$ 250 bilhões em exportações de produtos primários, enquanto os manufaturados diminuíram proporcionalmente16. Para os analistas, existe uma diferença essencial entre o período que vai de 1995 a 2002 e o que começa em 2003: aqui o apoio financeiro oficial e as estratégias para consolidar a hegemonia do agronegócio adquiriram uma nova amplitude17. Em suma, a política agrária do Brasil nesses últimos quinze anos foi ineficaz para os pobres e muito eficaz para os interesses dos capitais que se apoderaram do rural. A reforma agrária não foi e não é prioridade política. A primazia da política governamental é o agronegócio exportador.18
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Pedro Ramos, “Uma história sem fim: a persistência da questão agrária no Brasil contemporâneo”, em Antônio Márcio Buainain et al. (orgs.), O mundo rural no Brasil do século 21, cit., p. 677-8. Ultimamente tem aparecido na imprensa alternativa o caso das 350 mil quebradeiras de coco de babaçu ameaçadas de expulsão pelo agronegócio. Disponível em: . Acesso em: 7 set. 2015; ver também Brasil de Fato, 23-29 jul. 2015, p.10. Guilherme Delgado, “Economia do agronegócio (anos 2000) como pacto do poder com os donos da terra”, Revista da Associação Brasileira de Reforma Agrária – Abra, jul. 2013, p. 63. Gerson eixeira, “A sustentação política e econômica do agronegócio no Brasil”, Revista da Associação Brasileira de Reforma Agrária – Abra, jul. 2013, p. 22. José Juliano Carvalho Filho, “Política agrária: 15 anos”, cit., p. 27.
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Isso acontece porque “os proprietários de terra no Brasil ocupam o Legislativo, invadem o Executivo, cultivam o Judiciário”19. Ao longo dos anos foi se constituindo poderoso consenso político-midiático em torno do agronegócio, que engloba: apoio político por parte da bancada ruralista (nas eleições de 2014, 158 deputados federais e 18 senadores), apoio ideológico por parte da mídia e do mainstream acadêmico, apoio do Estado por meio do Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR) e do Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES), passividade das instituições ligadas à regulação fundiária (Incra, Ibama, Funai) que não aplicam “os princípios constitucionais da função social da propriedade e de demarcação e identificação da terra indígena”20. O poder dos grandes proprietários rurais ficou mais do que nunca evidente em 2012, quando a bancada ruralista conseguiu aprovar a revisão do Código Florestal, flexibilizando um conjunto de normas ambientais a fim de favorecer a ampliação da fronteira agrícola. Um dos aspectos mais sombrios de toda essa situação, em grande parte apoiada na apropriação fraudulenta de terras públicas, é a violência contra os povos do campo. Vários estudos trazem dados preocupantes sobre expulsões, ameaças de expulsão e assassinatos por parte do poder privado, tendo sobretudo como alvo as populações tradicionais, mas também sem-terra, assentados e pequenos proprietários 21. A literatura também menciona com frequência conflitos trabalhistas – decorrentes em grande parte da persistência do trabalho escravo – e ambientais22. Um segredo de polichinelo: “[...] a história do Brasil é uma história de violência no campo. Uma história de camponeses ameaçados – e assassinados”23. Para ser breve, uma das consequências entre muitas dessa situação absurda é que cerca de 90 mil famílias acampadas há mais de dez anos esperam até hoje para ser assentadas. 19
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Alceu Luís Castilho, Partido da terra: como os políticos conquistam o território brasileiro (São Paulo, Contexto, 2012), p. 9. Guilherme Delgado, “Economia do agronegócio (anos 2000) como pacto do poder com os donos da terra”, cit., p. 64. Carlos Alberto Feliciano, “Raízes da violência no campo brasileiro”, Boletim Dataluta , Nera, Presidente Prudente, mar. 2016, n. 99. O Brasil é líder em violência contra ativistas ambientais e agrários. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2015. Alceu Luís Castilho, Partido da terra , cit., p. 11.
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A permanência da questão agrária entre nós é um exemplo típico da “modernização à brasileira”, que sempre repõe o atraso a cada esforço de superação. A sobreposição da violência “civilizada” dos monopólios agrícolas, decorrente de sua hegemonia no meio rural, à violência sem máscara dos grotões torna ainda mais complexa a análise desse problema e a resistência dos povos do campo. Num mapeamento das empresas agrícolas que, por processos de fusão, aquisição, associação etc. – com o apoio do Estado brasileiro por meio da participação do BNDES e de fundos de pensão dos trabalhadores das empresas estatais brasileiras – se transformaram em grandes conglomerados econômicos, constata-se o entrelaçamento entre capital nacional e internacional, seja este majoritário ou minoritário, independentemente do tipo de monopólio24. Estes se dividem em dois grupos. O primeiro grupo (atua nos setores sucroenergético, de celulose, papel e madeira plantada) abrange as empresas que controlam a propriedade privada da terra, o processo produtivo no campo e o processamento industrial da produção agropecuária e florestal (silvicultura). “Isso quer dizer que o proprietário da terra, o proprietário do capital agrícola e o proprietário do capital industrial podem ser a mesma pessoa física ou jurídica.”25 No segundo grupo encontram-se as empresas que não produzem diretamente no campo, mas “controlam através de mecanismos de subordinação a produção dos camponeses e dos capitalistas produtores do campo”. Elas controlam a circulação de mercadorias sem precisar ser proprietárias de terras. Isto quer dizer, também, que estabelecem alianças de classe entre aqueles que produzem de fato no campo, geralmente os nacionais, e aqueles que fazem estas mercadorias circularem pelo mundo. Assim, os proprietários de terras e os capitalistas aliam-se a empresas mundiais de diferentes setores, sejam nacionais ou estrangeiras.26
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Quatro empresas controlam o mercado mundial de alimentos: Cargill Incorporated (a maior), Archer Daniels Midland Company, Bunge Limited e Louis Dreyfus Group. Sobre os monopólios agrícolas ver Ariovaldo Umbelino de Oliveira, “A mundialização do capital e a crise do neoliberalismo: o lugar mundial da agricultura brasileira”, Geousp – Espaço e Tempo (online ), v. 19, n. 2, p. 229-45, ago. 2015. Ibidem, p. 242. Ibidem, p. 242-3.
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O caso da JBS S/A, que foi crescendo exponencialmente com a compra de frigoríficos brasileiros e estrangeiros em dificuldades, com financiamento do BNDES, é exemplo desse processo no setor agropecuário. Em resumo, a maior integração do setor agropecuário com o capital financeiro nacional e internacional de diversas origens, em vez de ter extinguido a questão agrária, como querem alguns, mostra pelo contrário que ela se tornou mais complexa. O agronegócio é a “expressão concreta da nova aliança entre as burguesias nacionais e também, no caso brasileiro, dos proprietários de terra e das empresas monopolistas mundiais. Em vários setores da agricultura capitalista nacional, a hegemonia é das novas empresas mundiais brasileiras”27. Além disso, muitas dessas empresas no Brasil abriram seu capital e lançaram ações nas Bolsas. Uma delas é a Suzano Papel e Celulose S/A (fundada em 1980), que tem como subsidiária a FuturaGene Brasil, ocupada pelas militantes camponesas em março de 2015. Do ponto de vista teórico, o entrelaçamento entre capital nacional e internacional na formação dos monopólios agrícolas dificulta continuar pensando em termos de burguesia nacional com um projeto nacional; pelo contrário, ela “está se fundindo com as demais burguesias nacionais, formando as empresas monopolistas mundiais”28. Além disso, o fato de a mesma pessoa física ou jurídica poder ser “latifundiário”, “capitalista industrial” e “banqueiro” questiona a ideia de uma burguesia industrial progressista em contraposição ao latifundiário atrasado e ao banqueiro explorador. Sem querer ignorar as tensões existentes entre os interesses das distintas modalidades de capital29, o que salta aos olhos na literatura sobre o mundo rural é o entrelaçamento entre capital agrícola, industrial e financeiro, nacional e internacional, cada vez mais visível desde o final da década de 2000. Por fim, outro fator a acrescentar ao nosso problema é a internacionalização do solo brasileiro levada a cabo por empresas constituídas por capitais nacionais e internacionais que formam, compram e vendem imóveis rurais30. 27 28 29
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Ibidem, p. 243. Idem. Para uma análise detalhada do confronto entre os interesses das distintas facções de classe, ver, neste livro, André Singer, “A (falta de) base política para o ensaio desenvolvimentista”. Ariovaldo Umbelino de Oliveira, “A questão da aquisição de terras por estrangeiros no Brasil: um retorno aos dossiês”, Revista Agrária , São Paulo, n. 12, p. 3-113, 2010; Relatório Dataluta 2014, p. 58-69.
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Existe relativo consenso entre os estudiosos da questão agrária de que a demanda por terras como mercadoria ou ativo financeiro em virtude do interesse mundial por commodities , denominada por alguns de “colonialismo verde” ou de “agroimperialismo”31, aliada às inquietações provocadas pelas mudanças climáticas com seus impactos sobre a produção agrícola, as mobilizações sociais pela terra e pelo território, além da defesa da agroecologia, entendida como um dos elementos essenciais de uma necessária e urgente mudança civilizatória, colocam em novo patamar a questão agrária e sua solução, a reforma agrária.
Ainda a reforma agrária? Dado esse panorama em que a questão agrária se complexificou e que a grande empresa agrícola moderna, resultado da fusão entre agricultura, indústria, mercado e finanças é hegemônica no meio rural – garantindo ao Brasil de 2001 a 2015 (com exceção de 2014) superávit na balança comercial –, ficou evidente nos últimos anos que o debate sobre reforma agrária atingiu novo patamar. Dividida entre céticos e/ou adversários versus defensores, a contenda aparentemente já foi decidida a favor do primeiro grupo. Formado pela coalizão econômico-político-acadêmico-midiática a favor do agronegócio, além do governo, esse polo encara a modernização capitalista do campo como um passo indispensável para o desenvolvimento do país. De uma longa lista de argumentos contra a reforma agrária, vejamos os principais: 1. endo o Brasil entrado numa “nova fase do desenvolvimento agrário”32, centrada na financeirização e na inovação do setor agrícola, a reforma agrária tornou-se irrelevante para o desenvolvimento rural. Essa grande transformação introduziu a integração entre agricultura familiar 33 31
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Alfredo Wagner Berno de Almeida, “Agroestratégias e desterritorialização: direitos territoriais e étnicos na mira dos estrategistas dos agronegócios”, em Alfredo Wagner Berno de Almeida et al. (orgs.), Capitalismo globalizado e recursos territoriais (Rio de Janeiro, Lamparina, 2010), p. 113. Zander Navarro et al., “O mundo rural brasileiro: interpretá-lo (corretamente) é preciso”, em Antônio Márcio Buainain et al., O mundo rural no Brasil do século 21 , cit., p. 45. O termo “agricultura familiar” (moderna) em contraposição a “camponesa” (atrasada) foi adotado a partir da década de 1990 para atender a políticas do Banco Mundial.
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e patronal, configurando um desejável “padrão agrário bimodal”34 em que todas as explorações agrícolas, tanto as voltadas à exportação de commodities quanto as de menor porte, entraram num processo de expansão capitalista 35. 2. Num Brasil majoritariamente urbano, a reforma agrária ficou no passado e os camponeses são uma classe social em extinção. Consequentemente, o governo deveria gastar os limitados recursos públicos em programas de bem-estar social e na criação de empregos urbanos para os migrantes do campo. 3. Diminuiu o volume de terras improdutivas (que podem ser redistribuídas), sobretudo no Sul e Sudeste. Dada essa situação, o governo deve impedir qualquer ameaça à propriedade rural, independentemente de seu tamanho, e restringir as expropriações de terras que ficaram inviáveis em virtude do aumento do preço da terra nos anos 2000, tornando a reforma agrária uma política social extremamente cara. 4. Os assentamentos são “favelas rurais” que redundam em “fracasso econômico”. 5. Um último argumento, agora do governo: a reforma agrária já teria sido realizada na medida em que se “promoveu a maior política de acesso à terra do mundo em pleno século XXI”36, a qual teria contribuído para reduzir a desigualdade de renda no meio rural. As políticas públicas – como Brasil sem Miséria, Minha Casa Minha Vida, Água para odos, Brasil Carinhoso, além do crédito do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) (1995) e dos programas de compras públicas de alimentos
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No Brasil, a agricultura familiar está definida na lei n. 11.326 (24 jul. 2006), segundo a qual, entre outras características, é agricultor familiar quem tem propriedade de no máximo quatro módulos fiscais [o módulo fiscal varia, dependendo do município, de 5 a 110 ha] e utiliza o trabalho da família nas atividades da empresa. O Estado inclui os assentados da reforma agrária nessa categoria. A agricultura familiar pode ser camponesa (adota práticas ecológicas) ou industrial de pequeno porte (usa agrotóxicos, transgênicos, etc.). O MS passou a identificar-se politicamente como “camponês” desde sua filiação à Via Campesina na década de 1990. Antônio Márcio Buainain, “Alguns condicionantes do novo padrão de acumulação da agricultura brasileira”, em Antônio Márcio Buainain et al. (orgs.), O mundo rural no Brasil do século 21, cit., p. 237. Zander Navarro, “Por que não houve (e nunca haverá) reforma agrária no Brasil”, em Antônio Márcio Buainain et al. (orgs.), O mundo rural no Brasil do século 21 , cit., p. 710. Pepe Vargas e Carlos Guedes, “A nova reforma agrária no Brasil”, Folha de S.Paulo, 3 mar. 2013, p. A3.
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Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) (2003) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) (1955), da ampliação da assistência técnica e do Programa Nacional de Acesso ao Ensino écnico e Emprego (Pronatec) – seriam o caminho para “estimular o aumento da produção e renda”. Esta seria a “nova rota da reforma agrária”, “pacífica e viável” 37. Segundo dados do governo, de 1995 a 2011 mais de 1 milhão de famílias teriam sido assentadas, enquanto de acordo com o Dataluta e a CP não chegam a 700 mil. De qualquer modo, esse número de assentados não alterou o índice de Gini de medida da concentração fundiária, o que mostraria que nosso padrão fundiário não mudará nem precisa mudar para que a agricultura brasileira seja uma das mais rentáveis do mundo38. No campo oposto, os defensores e simpatizantes da reforma agrária, preocupados com a profunda injustiça social do país, argumentam que: 1. A reforma agrária é uma política para diminuir a pobreza, promover a inclusão social e reduzir a desigualdade social. Dados do Programa Agrário do MST (2014) indicam que, dentre os 4,8 milhões de estabelecimentos de agricultura familiar, somente 1 milhão de famílias tem renda que garante sua reprodução, alguma poupança, vive do trabalho familiar, contrata esporadicamente trabalho assalariado, acessa o crédito do Pronaf e produz mercadorias integradas à agroindústria. O restante são famílias camponesas pobres à margem do agronegócio que produzem basicamente para subsistência, vendem pequenos volumes de excedente, vivem do Bolsa Família ou da aposentadoria de um familiar, são reserva de mão de obra ou fornecedores de alimentos para as pequenas cidades. Neste estrato de camponeses se concentraria a base social que luta por terra e reforma agrária. Em resumo, apesar da urbanização, “rata-se de uma ‘dívida histórica’ para com a população pobre do campo, incluindo as comunidades quilombolas”39, o que mantém a questão agrária na ordem do dia. 2. Questionam a eficiência econômica do agronegócio, beneficiado por generosos subsídios públicos, que saltaram de US$ 3 bilhões em 2004, 37 38
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Idem. Zander Navarro, “Por que não houve (e nunca haverá) reforma agrária no Brasil”, em Antônio Márcio Buainain et al. (orgs.), O mundo rural no Brasil do século 21 , cit., p. 712. Miguel Carter, “Desigualdade social, democracia e reforma agrária no Brasil”, em Miguel Carter (org.), Combatendo a desigualdade social: o MST e a reforma agrária no Brasil (São Paulo, Editora Unesp/Nead, 2010), p. 68-9.
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quando começou a alta dos preços agrícolas, para US$ 10 bilhões em 2010 40. Se o agronegócio fosse de fato tão eficiente, como explicar que os índices de produtividade, baseados no censo agropecuário de 1975, não sejam revistos? Além disso, se fossem levadas em conta as externalidades ambientais negativas, veríamos que o Brasil sustenta o agronegócio, e não o contrário. “Se as empresas tivessem que pagar pelo uso que fazem dos recursos ecossistêmicos de que dependem – e que sistematicamente destroem –, elas fechariam seus balanços no vermelho”41. 3. Mostram que a reforma agrária poderia aumentar a produtividade rural, sobretudo para o consumo interno. De acordo com os dados do Censo Agropecuário de 2006, 70% dos alimentos consumidos no Brasil são produzidos pela agricultura familiar, que gera 87% dos empregos no campo. Um trabalho do Instituto de Pesquisa Econômica (Ipea), de 2012, com base nesses mesmos dados mostra inclusive que a pequena propriedade é mais produtiva, por hectare, que a grande propriedade e que “o problema do pequeno agricultor é menos de capacidade produtiva que de acesso à terra”42. E isso apesar do menor investimento que recebe do governo federal em comparação com o agronegócio: o Plano Safra 2014/2015 prevê financiamento do agronegócio de R$ 187,7 bilhões, enquanto a agricultura familiar receberá R$ 28,9 bilhões. 4. Argumentam que a criação de mais empregos rurais reduziria o êxodo dos pobres para favelas urbanas, além de proporcionar a revitalização dos pequenos municípios rurais. 5. Contra a caracterização dos assentamentos como “favelas rurais”, afirmam que 91% das famílias assentadas dizem ter melhorado de vida, o que mostraria o “grande potencial no sentido de fortalecer os direitos sociais dos pobres”43. 40
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Gerson eixeira (26 jan. 2015), disponível em: . Acesso em: 18 abr. 2015. Ricardo Abramovay, “A fantasia dos preços”, Folha de S.Paulo, 13 abr. 2015, p.3. IBGE, 2006, p. 306 citado em Pedro Ramos, “Uma história sem fim: a persistência da questão agrária no Brasil contemporâneo”, em Antônio Márcio Buainain et al. (orgs.), O mundo rural no Brasil do século 21 , cit., p. 673. Miguel Carter, “Desigualdade social, democracia e reforma agrária no Brasil”, cit., p. 70.
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6. E por fim, muitos dos defensores da reforma agrária enfatizam as “vantagens ecológicas” ligadas à agricultura familiar que, sobretudo na sua vertente agroecológica, tem a reconhecida capacidade de produzir alimentos saudáveis preservando o equilíbrio dos ecossistemas. Desse ponto de vista, a reforma agrária não é apenas nem predominantemente uma questão econômica, ela é social, política e ecológica. Como vemos, no Brasil enfrentam-se duas perspectivas opostas e inconciliáveis sobre o mundo agrícola 44: de um lado, a que privilegia pragmaticamente a modernização econômica do meio rural, segundo a qual as desigualdades no campo se resolvem com mais capitalismo. Em termos concretos, isso significa agronegócio + agricultura familiar moderna, ou seja, integrada ao capitalismo, o que de fato quer dizer subordinação ao agronegócio, visto como único modelo de desenvolvimento no campo. Segundo esse ponto de vista, deve-se abandonar a oposição entre “agricultura familiar e patronal, pequena produção e agricultura em grande escala, agroecologia e pacote tecnológico da Revolução Verde, agricultura familiar e agronegócio, latifúndio e minifúndio, Norte/Nordeste e Centro-Sul do país, entre outras”45. Em contraposição, a perspectiva que considera que a questão agrária continua na ordem do dia ancora-se na ideia de que as desigualdades no campo são inerentes ao capitalismo e, por isso mesmo, só podem ser resolvidas no longo prazo numa sociedade não capitalista. Aqui se incluem as organizações camponesas, como a Via Campesina e seus associados, entre eles o MS, o Movimento de Pequenos Agricultores (MPA) e todo o espectro político e intelectual que defende a necessidade da reforma agrária, entendida como “política de desenvolvimento territorial” e não como política assistencial para resolver os problemas da pobreza no campo, o que implica enfrentar o problema da concentração fundiária e do papel subalterno dos camponeses. A solução para a desigualdade no campo é posta na pequena e média produção local, na soberania alimentar, no papel da mulher camponesa e, sobretudo, 44
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Bernardo Mançano Fernandes, em “A reforma agrária que o governo Lula fez e a que pode ser feita”, denomina os dois campos opostos de “paradigma do capitalismo agrário” e “paradigma da questão agrária”, em Emir Sader (org.), Lula e Dilma: 10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil (São Paulo, Boitempo, 2013). Antônio Márcio Buainain, “Alguns condicionantes do novo padrão de acumulação da agricultura brasileira”, cit., p. 237.
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na agroecologia. Em resumo, é a concepção de quem, para além do aspecto econômico-produtivo, valoriza a terra como território, como espaço de ser e existir, a dimensão cultural do modo de vida camponês, a forma camponesa de produzir, o camponês como “guardião da agrobiodiversidade”46. anto os autores favoráveis à reforma agrária quanto seus opositores reconhecem que há uma grande distância econômica e social entre a agricultura familiar e o agronegócio. Os primeiros lamentam e reivindicam políticas públicas para melhorar o desempenho e a independência dos pequenos lavradores. Os segundos, constatando que “em nenhum outro momento da história agrária os estabelecimentos rurais de menor porte econômico estiveram tão próximos da fronteira da marginalização”47, propõem sua integração ao agronegócio. Mais do que diferentes interpretações dos dados, o confronto se dá entre visões de mundo antagônicas, enraizadas em conjuntos de valores conflitantes. De um lado, ênfase na justiça social, na solidariedade, participação democrática, sustentabilidade, soberania alimentar, diálogo da ciência com os saberes tradicionais, conhecimento totalizante; de outro, foco na produtividade, no lucro, na ciência e tecnologia reducionistas, descontextualizadas, em suma, na modernização econômica tout court 48. O trecho a seguir, de um dos mais respeitados estudiosos de sociologia rural, resume bem essa polarização: Um extenso retrocesso social é vivido pelo país há meio século em consequência de uma modernização agrícola de prancheta, sem fundamentos sociológicos e antropológicos [...] odo um imenso saber agrícola e ambiental está desaparecendo, engolido por um saber agronômico direcionado exclusivamente para o curto prazo do lucro. O que é lucrativo neste ano agrícola pode trazer grandes prejuízos econômicos em anos posteriores, o que não entra no cálculo moderno.49
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Horácio Martins de Carvalho, “O camponês, guardião da agrobiodiversidade”, Escolas Livres de Formação , Caderno n. 1 de Residência Agrária, UNB, Matrizes Produtivas da vida no campo, 2014. Antônio Márcio Buainain et al., “Sete teses sobre o mundo rural brasileiro”, em Antônio Márcio Buainain et al. (orgs.), O mundo rural no Brasil do século 21, cit., p. 1.172. Hugh Lacey, “Agroécologie: la science et les valeurs de la justice sociale, de la démocratie et de la durabilité”, Ecologie & Politique , n. 51, p. 27-39, 2015. José de Souza Martins, “A modernidade do ‘passado’ no meio rural”, em Antônio Márcio Buainain et al. (orgs.), O mundo rural no Brasil do século 21 , cit., p.24.
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Estas duas perspectivas divergentes podem ser traduzidas naquilo que a Igreja católica nos anos 1980 denominava “terra de negócio” e “terra de trabalho”. A polarização que encontramos no debate acadêmico, na vida política e econômica em relação ao mundo agrícola se traduz na existência de dois ministérios: o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), criado na época do Império, considerado o Ministério do Agronegócio; e o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), criado em 1999 (três anos depois do Massacre de Eldorado de Carajás), interlocutor da agricultura familiar que tem por objetivo fornecer microcrédito e financiar atividades de formação e infraestrutura nos assentamentos. De um lado, o governo alavanca o agronegócio que, embora contribua para o saldo positivo da balança comercial, não leva em conta os impactos ecológicos e sociais negativos; de outro, procura remediar a situação subalterna dos pequenos lavradores. Essa esquizofrenia ficou mais do que nunca evidente em 2014, no segundo governo Dilma Rousseff, com a nomeação da ruralista Katia Abreu para o Mapa, que, no discurso de posse, disse já não haver latifúndio no Brasil, e de Patrus Ananias para o MDA, que, por sua vez, insistiu na necessidade de levar a cabo a reforma agrária nos latifúndios improdutivos 50. Os defensores da expansão agrícola do grande capital desaprovam essa situação esquizofrênica sugerindo que dois ministérios já não fazem sentido, uma vez que a agricultura é a mesma e que agricultores familiares, como “suinocultores, avicultores e fumicultores, que produzem articulados a grandes empresas de processamento, que operam em escala global” 51, estão inseridos no agronegócio e, portanto, não precisam de um ministério especial. Para o campo hegemônico, agronegócio e agricultura familiar, entendida como “agronegocinho”, são complementares, não excludentes. O próprio MDA, apesar das linhas de crédito que contemplam a agroecologia, adere majoritariamente a esse ponto de vista.
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Folha de S.Paulo, 7 jan. 2015, p. A6.
Antônio Márcio Buainain et al., “O tripé da política agrícola brasileira: crédito rural, seguro e Pronaf”, em Antônio Márcio Buainain et al. (orgs.), O mundo rural no Brasil do século 21, cit., p. 857.