ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders : sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
A obra “Os estabelecidos e os outsiders”, publicada no ano de 1965, apresenta o estudo, realizado na década de 1950, de uma pequena cidade ao sul da Inglaterra, de nome fictício Winston Parva. O objetivo de Elias e Scotson, na obra, é compreender, compreender, através do uso de fontes diversas, tais quais estatísticas, entrevistas, documentos e etnografia, a lógica da configuração social e das relações de interde int erdepend pendênci ênciaa que se verifica verificam m na cidade. cidade. Violência iolência,, discrim discriminaç inação ão e exclusão exclusão social social são características que se depreendem da análise social realizada. De qualquer modo, a situação verificada em Winston Parva é tida como paradigmática das que se manifestam em inúmeras outras cidades em processo de industrialização, razão pela qual o estudo etnográfico foi o método escolhido para permear toda a investigação realizada. A etnogr etnografi afiaa é uma descr descriçã içãoo densa densa.. O etnóg etnógra rafo fo encara encara uma mu mult ltipl iplic icida idade de de estrut estrutur uras as conceituais complexas, muitas das quais estão sobrepostas ou entrelaçadas entre si, estruturas que são, ao mesmo tempo irregulares, estranhas e não explícitas, as quais o etnógrafo deve captar para depois explicá-las.[2] Desse modo, trata-se de um trabalho de observação, a partir do qual é possível compreender a realidade observada e fazer proposições nos planos micro e macro. Winston Parva dividia-se em três zonas, três bairros distintos. Na zona 1, habitavam as pessoas mais privilegiadas economicamente, cuja ascensão social permitiu que elas se mudassem para a área de classe média da cidade, deixando, assim, a zona 2; nas zonas 2 e 3, residiam os operários das fábricas locais. Entretanto, por detrás da aparente semelhança existente entre os residentes dessas duas últimas áreas da cidade, profundas disparidades foram verificadas entre seus grupos, uma vez que os habitantes da zona 2, território mais antigo de Winston Parva, consideravam-se superiores aos demais pelo simples fato de habitarem o local há mais tempo. Não existiam, pois, diferenças étnicas, nos níveis de desenvolvimento econômico ou educacional, nem mesmo de atividade profissional entre esses sujeitos, mas, mesmo assim, os habitantes da zona 2, chamada por eles próprios de “aldeia”, “aldeia”, negavam-se a manter contato com os recém-chegados recém-chegados da zona 3, o “loteamento”, exatamente pelo fato de serem recém-chegados, de serem outsiders na terra daqueles estabelecidos.[3] Fato é que essa configuração social mostrará sua influência em inúmeros aspectos da vida daqueles grupos, tais como em sua organização familiar, familiar, índices de criminalidade, criminalidade, relação entre os vizinhos, entre outras, passando a ser considerada essencial na análise desenvolvida no livro. Insta salientar que, a princípio, o objetivo dos autores da obra era desvendar o porquê da signi signific ficati ativa va difere diferenç nçaa nos índ índice icess de atos atos infrac infracion ionais ais prati pratica cados dos em cada cada zona zona da cidade cidade.. Entretanto, eles abandonaram tal tarefa ao se darem conta de que todas as características que emanavam daquela organização social decorriam de sua forma de configuração, do modo como aquela sociedade se organizava, sendo esta a base da análise configuracional por eles proposta. Fica evidente, na obra, que a maior coesão entre os membros das zonas habitacionais 1 e 2 facultava a exclusão e a estigmatização dos membros da zona 3. Nesse diapasão, os autores chamam a atenção para a diferenciação existente entre preconceito indivi ind ividua duall e a estig estigma matiz tizaç ação ão grupal grupal prati pratica cada da em Winston inston Parva Parva.. Aquel Aquelaa tem tem sua raiz raiz na personalidade dos indivíduos, enquanto que essa, pela qual um grupo rotula negativamente outro, tem como elemento fundamental a instabilidade instabilidade do equilíbrio equilíbrio do poder entre agrupamentos sociais distintos. O estigma pode ser caracterizado como um mecanismo mecanismo a priori de identificação do indivíduo, que permite seu conhecimento sem a necessidade de que um contato mais do que superficial seja com
ele realizado, tendo em vista o enquadramento a categorizações de antemão estabelecidas pela sociedade.[4] É um “atributo derrogatório imputado à imagem social de um indivíduo ou grupo e visto como instrumento de controle social”.[5] Nesse sentido, o estigma envolve não tanto um conjunto de indivíduos concretos que podem ser divididos em duas pilhas, a de estigmatizados e a de normais, quanto um processo social de dois papeis no qual cada indivíduo participa de ambos, pelo menos em algumas conexões e em algumas fases da vida. O normal e o estigmatizado não são pessoas, e sim perspectivas que são geradas em situações sociais durante os contatos mistos, em virtude de normas não cumpridas que provavelmente atuam sobre o encontro.[6] Portanto, o estigma não é ruim em si, mas serve para diferenciar negativamente um ou vários sujeitos de determinado grupo comparado. Em outras palavras, serve para reforçar a normalidade deste. Esse processo de estigmatização fica bastante evidente em Winston Parva, sendo ele vital para reforçar a superioridade dos habitantes das zonas 1 e 2 em relação aos da zona 3, em outras palavras, para preservar seu status social privilegiado.[7] Em contrapartida, como “preço” pela mantença do reconhecimento desejado, os membros dos grupos superiores tornam-se reféns de seu papel, pois ficam obrigados a reafirmar – a todo o tempo - sua identificação e integração grupal, e também a preservar o valor maior do seu grupo, limitando, assim, sua esfera de liberdade nas ações pessoais. Fato é que a importância da opinião interna de um agrupamento sobre o ato de seus membros é tão determinante para que essa pessoa mantenha seu status que ela acaba servindo como forma de autocontrole individual. Por sua vez, o negativamente estigmatizado é encarado como pessoa que está inabilitada para a aceitação social plena; um indivíduo que poderia ter sido facilmente recebido na relação social cotidiana possui um traço que se pode impor à atenção e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de conhecimento de outros atributos seus. O estigma, pois, limita sensivelmente as possibilidades de agir do sujeito e torna verossímil todas as características negativas atribuídas ao estigmatizado. A conduta dos seres considerados normais perante o indivíduo estigmatizado é discriminatória e excludente, utilizando-se, ainda, de termos pejorativos para referenciá-lo. Assim, visando a adequarse ao padrão de normalidade social, o estigmatizado pode esforçar-se para ser aceito pelo grupo; em outros casos, em contrapartida, pode ele assumir uma postura de fuga da realidade, que é a ele tão desfavorável, ou comportar-se de modo combativo. Nesse sentido, “a pessoa estigmatizada algumas vezes vacila entre o retraimento e a agressividade, correndo de uma para a outra, tornando manifesta, assim, uma modalidade fundamental na qual a interação face-a-face pode tornar-se muito violenta”.[8] Argyle explica essa relação, que envolve o sujeito estigmatizado e suas interações. Na vida cotidiana, as pessoas categorizam umas às outras e respondem a essa categorização com diferentes tipos de interação, a depender de seu conteúdo favorável ou desfavorável. Sendo esse fator comum, o indivíduo aprende a prever a qualificação que receberá e ver-se nesses termos, no que se denomina sua autoimagem, representativa de como ele se percebe. Ocorre que essa categorização pode ser negativa ou positiva, de maior ou menor prestígio, o que também é previsto pelo sujeito e se torna sua autoestima, extensão em que uma pessoa tem atitudes favoráveis em relação a si mesma, baseada nas reações dos outros.
Esses processos cognitivos tornam-se determinantes das interações sociais, uma vez que a autoimagem só pode ser mantida se os outros a aceitam e reagem a ela de maneira apropriada.[9] Assim, como ápice de todo esse processo, a reação social adversa gerada pelo estigma pode transformar a concepção que o indivíduo tem de si próprio. Não raro ele se torna autodepreciativo e desenvolve um auto-ódio. Em outros termos, a situação especial do estigmatizado é que a sociedade lhe diz que ele é um membro do grupo mais amplo, o que significa que é um ser humano normal, mas também que ele é, até certo ponto, ‘diferente’, e que seria absurdo negar essa diferença. A diferença, em si, deriva da sociedade, porque, em geral, antes que uma diferença seja importante ela deve ser coletivamente conceptualizada pela sociedade como um todo.[10] Portanto, de acordo com os mecanismos acima mencionados, os rótulos aplicados aos habitantes da zona 3 acabam sendo incorporados à própria descrição desse grupo, materializando-se. Trata-se de uma visão negativa que provocou a condenação global do loteamento. No que se refere aos hábitos de asseio pessoal, por exemplo, sua área de residência fica conhecida como “beco dos ratos”, em virtude da rotulação daqueles sujeitos como sujos e anti-higiênicos, o que faz com que os outros creiam ser esta uma característica real dos excluídos. Ainda nesse processo de inferiorização, exercem função precípua as fofocas depreciativas e a maculação da autoimagem dos outsiders. Aquelas permitem que as generalizações negativas se espalhem e sejam tomadas como verdadeiras, enquanto que estas minam qualquer possibilidade de defesa e união entre os membros do grupo inferiorizado, os quais não esboçam nenhuma reação contra a qualificação negativa que lhes foi aplicada. Vale ressaltar que os autores identificaram uma estreita relação entre a fofoca praticada e a estrutura da comunidade onde ela se realiza. A aldeia necessitava de um fluxo constante de fofocas para manter-se em funcionamento e a maior coesão social entre os membros desse grupo facilitava sua difusão. Aqui, pois, ela aparece como um mecanismo integrador e reafirmador da superioridade grupal. No loteamento, em contrapartida, a falta de coesão e até mesmo de contato entre seus residentes, bem como a desconfiança que uns tinham em relação aos outros, em decorrência da imagem gerada pelo estigma, obstaculizavam seu exercício. Conforme mencionado, a própria organização familiar diferia substancialmente nas zonas 2 e 3. Naquela, as famílias eram mais unidas e dependentes, sendo central nesse contexto a figura da mãe, a qual tinha a capacidade de unir vários núcleos familiares distintos (famílias ampliadas). Sendo assim, a mesma coesão identificada no seio social também se apresentava no âmbito familiar. Nessa, entretanto, as famílias eram pequenas e viviam de forma isolada, uma vez que a conformação ao estigma aplicado fazia com que se evitasse contato com os vizinhos não confiáveis. Tal constatação permitiu aos autores desmistificar a ideia de que a família é unidade básica e primária de qualquer sociedade, ficando evidente, em contrapartida, ser ela produto da comunidade que a abraça. Pode-se defluir, então, do cenário traçado, que o controle social informal era bastante mais forte na aldeia. Todas as características do bairro corroboravam para que a vigilância fosse mais eficaz: a forte coesão entre os membros, o fato de eles participarem de associações comunitárias e as fofocas, utilizadas como instrumento de regulação de condutas. No loteamento, porém, nada disso se verificava. O estigma que carregavam fazia com que os próprios vizinhos temessem uns aos outros e a falta de agremiações na comunidade e de espaços conjuntos de lazer faziam com que o contato entre os co-habitantes não se estabelecesse, impedindo a efetivação de um controle social informal.
É, pois, diante de todo esse contexto que se pode explicar as diferenças nos índices de criminalidade juvenil nas zonas de habitação 2 e 3. O controle social informal da criminalidade é realizado pelas instituições da sociedade civil, tais como a família, a escola e os habitantes do bairro, no intuito de zelar pela observância das normas sociais, ainda que através de sanções. Pode ser realizado em dualidade com o controle social formal, outro extremo do poder de controle, exercido por órgãos públicos encarregados da repressão da criminalidade, tais como a Polícia, o Ministério Público e o Poder Judiciário. Sobre este se sobressai por ser mais efetivo e menos seletivo e estigmatizante. Onde falha o controle social informal, sobressai a criminalidade. Ademais, a autoimagem negativa, desenvolvida pelos jovens da zona 3 em decorrência do estigma por eles suportado, fazia com que muitos deles, intencionalmente, se amoldassem à representação construída e agissem buscando sua correspondência. Portanto, o delito não passava da adequação ao papel que lhes fora atribuído pela sociedade. Em relação à gangue “os garotos”, composta por membros da zona 3, pode-se dizer que eles eram rejeitados por se portarem mal e se portavam mal porque eram rejeitados. Apropriando-se das palavras dos escritores, pode-se dizer que “o palco dos conflitos e tensões psicológicos individuais era ligado ao dos conflitos e tensões sociais”.[11] Desse modo, o que os autores constataram foi que as tentativas de estudar os delinqüentes, explicá-los e fazer previsões a seu respeito, unicamente com base em critérios individuais, através de diagnósticos psicológicos não corroborados por diagnósticos sociológicos, não costumam ser dignas de confiança. É que as condições de reprodução contínua dos grupos de jovens delinqüentes encontram-se na estrutura da sociedade e particularmente na das comunidades onde moram grupos de famílias com filhos ‘delinquentes’ e onde essas crianças crescem.[12] . Portanto, o livro consegue identificar e elucidar as relações de poder, dependência e exclusão existentes em uma sociedade e suas implicações em todos os níveis de sua organização, bem como em todos os aspectos da vida dos habitantes. Pode-se concluir que sua grande mensagem – e sua atualidade – consiste na crítica que apresenta acerca da polaridade conceitual entre individuo e sociedade, psicologia e sociologia, a qual, nos dias atuais, ainda se tenta desmistificar.