“O Negrinho do Pastoreio” , de Aldo Locatelli: breves pontuações sobre a relação entre arte e literatura.
Luciana da Costa de Oliveira * Resumo:
O presente estudo visa analisar alguns dos murais da lenda O Negrinho do Pastoreio , localizados no Grande Salão de Festas do Palácio Piratini e elaborados pelo artista Aldo Locatelli a partir do ano de 1952. Afora evidenciar questões específicas do contexto em que foram produzidas tais obras, o estudo objetiva, fundamentalmente, apreender algumas das relações existentes entre literatura e arte. No caso específico desses murais, buscar-se-á evidenciar que, se por um lado, há um texto específico no qual Aldo Locatelli baseou-se para realizar a sua narrativa pictórica, por outro, existem elementos próprios do artista, como sua técnic técnicaa e subje subjetiv tivida idade, de, que confe conferem rem uma espec especifi ificid cidad adee ao traba trabalho lho artíst artístico ico por ele desenvolvido. Tendo essas questões em vista, os murais do Negrinho do Pastoreio serão analisados a partir da gama de elementos que estiveram no entorno de sua produção, não os considerando meras ilustrações do texto literário. Palavras-chave: Aldo Locatelli – Negrinho do
Pastoreio – Narrativa pictórica
Key words: Aldo Locatelli – Negrinho do Pastoreio – Pictorial narrative
1. Aldo Locatelli, o Rio Grande do Sul e o Palácio do Governo
Aldo Daniele Locatelli (1915-1962), artista italiano natural da Província de Bérgamo, teve importante participação no campo das Belas Artes do Rio Grande do Sul. Esse pintor, que não apenas se notabilizou por suas pinturas, mas também por sua peculiar personalidade, deixou um grande legado artístico em diversos templos religiosos e edifícios públicos do Estado. No entanto, ao se empreender uma análise a respeito de tais trabalhos, especialmente o realizado para o poder público rio-grandense, faz-se necessária uma breve explicitação das razões que o fizeram chegar ao Rio Grande do Sul, bem como sua escolha em permanecer no Estado. Assim, em novembro de 1948, os artistas Aldo Locatelli, Emílio Sessa e Adolfo Gardoni aportam em terras sulinas. O objetivo do grupo era, unicamente, atender ao pedido e a encomenda do Bispo Dom Antonio Zattera que, anos antes, havia solicitado a pintura e
decoração da Catedral São Francisco de Paula, na cidade de Pelotas. Ao iniciarem seu trabalho, muitos eram os olhos que acorriam à Catedral para observá-los. Um deles, porém, era o de Marina de Morais Pires, professora pelotense que, ao propor ao grupo outro emprego ligado às artes, talvez tenha fortalecido a ideia de Locatelli, em especial, de permanecer no Rio Grande do Sul. Tal questão é fundamental para perceber o pintor muralista no contexto rio-grandense, uma vez que sua estada no Estado, na realidade, deveria durar até a finalização de seu trabalho, quando retornaria à Itália e prosseguiria com suas obras de restauração e pintura, como atesta Ângelo Guido: “Viera ao RS para aqui se demorar apenas o tempo necessário à execução das pinturas murais da Catedral de Pelotas”. (GUIDO, 1972, p.6). A escolha de Locatelli em permanecer no Brasil teve sua atenuante quando, rapidamente, passou a integrar os círculos culturais e sociais da época, a ponto de Ângelo Guido afirmar que, “(...) para nós, já não era um forasteiro” (GUIDO, 1972, p.6). As amizades que fazia, que cresciam conforme passava o tempo, eram conquistadas a partir das características peculiares de sua personalidade, como atestam seus familiares, colegas e alunos. Os traços dessa personalidade cativante, aliada ao talento de artista, fizeram com que Aldo Locatelli, logo de sua chegada ao Estado, ministrasse aulas de pintura aos interessados no ofício que, vale dizer, não eram poucos. Tais aulas, que tiveram grande repercussão na época, acabaram lhe rendendo o convite para, junto à professora Marina de Morais Pires, grande idealizadora da Escola de Belas Artes de Pelotas, fundar e lecionar em tal instituição. Em 1951, Aldo Locatelli muda-se para Porto Alegre junto com sua família. Essa mudança para a capital do Estado ocorreu em função de uma nova proposta de trabalho lhe ter sido feita nesse mesmo ano: executar vários murais no interior do Palácio do Governo. No Diário Oficial do dia 08 de agosto de 1951 era publicado, por intermédio da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas do Rio Grande do Sul, o edital de concorrência pública para o serviço de pintura interna do Palácio Governamental. Alguns meses depois, nesse mesmo veículo oficial de informação do Estado, era formalizado o termo de contrato “celebrado entre a Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas e o Sr. Aldo Locatelli, para a execução da pintura”. (RIO GRANDE DO SUL, 1951, p.27209). No entanto, as tratativas do governo com o artista, na época Ernesto Dornelles, não cessaram por aí. Praticamente um ano depois, Locatelli novamente comprometia-se em realizar mais dezoito murais do Grande Salão de Festas do mesmo palácio As referências sobre a temática a ser pintada pelo artista no Palácio Governamental não são claras nos documentos oficiais. No entanto, uma importante referência são as obras
relevantes para tal questão é Arthur Ferreira Filho. Segundo o autor, “(...) ele [Locatelli], deveria executar (...) vários murais de grande porte, sobre motivos ligados à história riograndense (...) a formação etno-historiográfica do povo rio-grandense e a mais bela das lendas gaúchas (...)”. (FERREIRA FILHO, 1985, p.25). Além desse autor, Fernando Corona também deixa importante consideração acerca da obra: A pintura mural do Palácio Piratini é a seguinte: 1 – Grande Salão de Festas: (...) “Lenda do Negrinho do Pastoreio”. 2 – Salão de Reuniões: (...) Tema: visão das Missões Jesuíticas e dos Bandeirantes do mundo antigo. Criação das fazendas de gado. A Família como unidade humana. O trabalho no campo. Colonização e Agricultura. Produção e riqueza. 3 – No mesmo salão: Chegada de Silva Pais e sua gleba. 4 – Ante-sala do governador: (...) “O Estado”. (CORONA, 1973, p.14).
A nomeação oficial de Locatelli para executar pinturas de grande porte na sede do governo, pode ser entendida através de algumas características peculiares de seu trabalho. Afora o fato de possuir crescente prestígio nos círculos culturais e intelectuais da época, o que proporcionava maior visibilidade de suas obras, Locatelli era possuidor de grande destreza na elaboração de afrescos e pinturas murais, técnica esta pouco utilizada e estudada no Estado 1. Essa questão encontra eco quando se verifica que, em 1960, o crítico de arte Aldo Obino assim se refere ao muralista e seu trabalho: “(...) hoje verificamos uma locatelização do Rio Grande do Sul, e isso pela falta de maior concorrência e, sem dúvida, pelo que tem feito entre nós esse artista”. (OBINO, 1960, [s.p.]). Nesse sentido, o presente estudo tem como objetivo central evidenciar, mesmo que de forma sucinta, a relação entre a pintura da lenda O Negrinho do Pastoreio e o texto escrito por João Simões Lopes Neto. A análise da totalidade dos murais não será passível de ser realizada, uma vez que se tornaria extensa por demais. Por essa razão optou-se por apresentar os quatro primeiros murais alusivos à narrativa, pois eles apresentam elementos significativos tanto no que diz respeito às técnicas usadas pelo artista quanto pela forma com que o mesmo construiu o início da sua narrativa pictórica. 2. O Negrinho do Pastoreio, uma lenda pintada
O chamado Grande Salão de Festas 2, espaço de destaque no segundo piso da Ala Governamental do Palácio do Governo do Rio Grande do Sul, comporta em suas paredes e teto uma das mais conhecidas e importantes lendas do folclore sul-rio-grandense: O Negrinho do Pastoreio.
Recolhida por Simões Lopes Neto e publicada em suas Lendas do Sul , tal lenda
A lenda do Negrinho do Pastoreio , desde meados do século XIX já circulava oralmente pelo Rio Grande do Sul (JACQUES, 1997, p.144). Mesmo que alguns autores regionais e platinos a tenham recolhido da tradição oral, o fato é que a versão que obteve maior destaque no contexto cultural rio-grandense foi a escrita por Simões Lopes Neto. Apesar de publicar, pela primeira vez, a sua versão da narrativa folclórica no início do século XX, foi somente em fins da década de 1940 e início da de 1950 que ela alcançou plena projeção. (REVERBEL, 1981, p.286). Assim, nada mais coerente que, ao encomendar novamente as pinturas murais a Locatelli, o governo colocasse como tema esta já conhecida e divulgada versão da lenda. Além disso, é interessante colocar o que o próprio artista pontuou a respeito da situação. Quando foi entrevistado pela Revista do Globo, em novembro de 1952, assim colocou ao repórter quando interpelado a respeito de seus planos: “Penso pintar em breve os painéis inspirados nas ‘Lendas do Sul’ para o salão de festas do Palácio do Govêrno [sic]. Por isso tenho estudado a obra de Simões Lopes Neto”. (GUIMARAENS, 1952, p.42). Afora estudar o autor e, consequentemente, elaborar imagens, cenários e personagens, Locatelli preocupou-se, igualmente, com a técnica que viria a ser empregada em sua narrativa pictórica. No seu contrato com o governo, afora informações de cunho legal, constava que o artista faria a “(...) pintura mural a óleo de dezoito painéis (...)”, sendo estes constituídos por “(...) oito painéis em claro-escuro, cinco painéis a côres [sic] e (...) cinco painéis a côres [sic] no teto”. (TERMO DE CONTRATO, 1952, p.2). Vale destacar nesse contexto, ainda, a relação existente entre a produção de uma pintura e o texto que lhe serve de base. Por mais perceptíveis que sejam as relações entre ambas as expressões, o artista acaba por incorporar na sua narrativa pictórica elementos que são, por um lado, próprios dele e, por outro, externos ao texto. Ao analisar a pintura A Primeira Missa no Brasil,
de Victor Meirelles (1832-1906), Jorge Coli comenta que, além da
Carta de Caminha, referência principal de sua produção, o artista teve contato com a obra Première messe en Kabille,
de Horace Vermeer. Esta, junto ao documento escrito, lhe
ofereceu subsídios para a composição da sua missa brasileira. (COLI, 1998, p.111). Mesmo que Locatelli não tenha tido outro referencial pictórico 3 para elaborar o Negrinho do Pastoreio,
é importante considerar, nesse caso, seus conhecimentos, concepções e,
igualmente, apropriações que fez da obra simoniana. O primeiro mural a ser apresentado é o que dá início à lenda. Este, trabalhado em cores e medindo 0,96 X 2,36m, evidencia o cotidiano em uma estância e, igualmente, os usos
narrativa, Lopes Neto não elaborar referências mais aprofundadas a respeito dessas caracterizações, tal construção pictórica contou, por certo, com as vivências e os estudos do próprio artista em terras sulinas. Em seu texto, Simões Lopes Neto situa o leitor no tempo da formação histórica do Rio Grande do Sul. (CHIAPINNI, 1988, p.244). Dessa forma, são com as informações características dessa realidade passada que Aldo Locatelli vai compor esse mural. Afora isso, o artista traz à tona aspectos de um passado remoto, no qual aspectos como a solidariedade do gaúcho e os peculiaridades da sua cultura são fortemente demarcados. A primeira questão pode ser visualizada no centro da cena que se desenvolve à direita da obra: um estancieiro rico que não só auxilia os desvalidos da campanha, mas igualmente mantém boas relações com seus escravos. Tais elementos podem ser observados no ato de o estancieiro estar dando moedas a uma senhora que, pelos trajes que porta, não possui muitas riquezas e, também, pelo escravo que, apesar de encontrar-se atrás do estancieiro, enleva seu braço amistosamente sobre o ombro de seu dono. O fato de Locatelli ter feito tal composição para ser a introdução de sua narrativa pictórica, ressaltando aspectos positivos do estancieiro, pode estar relacionado ao fato de o artista querer elaborar um contraponto às atitudes do estancieiro da lenda descrita por Lopes Neto. Assim, não se teria uma generalização do gaúcho a partir do mau estancieiro apresentado na lenda, uma vez que ele representaria a exceção do comportamento típico do gaúcho. Além disso, é importante ressaltar a alusão feita pelo artista, no canto esquerdo do mural, aos elementos da cultura rio-grandense. Estas são representadas por um homem que toca música ao som de uma gaita aos personagens que, no segundo plano, dançam e trajam a indumentária típica da cultura regional. O que se depreende da visualização e breve análise desse primeiro mural e, ainda, comparando-o à narrativa de Simões Lopes Neto, é que, enquanto este apenas pontua o tempo histórico da formação das estâncias, Aldo Locatelli busca complementá-lo com imagens alusivas ao gaúcho e sua cultura. Nesse sentido, não apenas os campos sem cercas caracterizavam o tempo da narrativa, mas igualmente os usos e costumes típicos dos sul-riograndenses. Os outros três murais que se referem ao início da lenda são os que apresentam as personagens centrais da história. O primeiro deles, sem dúvida, é o estancieiro que, segundo Simões Lopes Neto, era um grande egoísta e “(...) muito mau, muito (...)” (LOPES NETO, 1996, p.79). Toda essa sua mesquinhez rendeu-lhe a solidão, uma vez que, por não ajudar
ninguém, quando era necessário o auxilio nas lidas da estância, nenhum homem vinha de bom grado ajudar-lhe. Aldo Locatelli, ao dedicar-se à elaboração dos murais referentes a esta personagem e suas especificidades, escolheu trabalhar em grisaille. Este se constitui em uma técnica pictórica que trabalha essencialmente com a oposição claro e escuro. Além disso, ele buscava imprimir à obra um aspecto mais natural a partir do uso das cores mais contidas e da menor intensidade de luz. Em função da volumosidade que adquire por trabalhar com o jogo de luz e sombra, esse tipo de pintura acaba inserindo-se na própria arquitetura do prédio onde é executada. (VIDAL, 2010, p.654). É importante frisar que tais pinturas não estão localizadas ao lado da primeira apresentada – a introdutória. Ambas encontram-se nas paredes laterais do Salão de Festas, que ladeiam, à direita, a porta de acesso à Antessala do Governador e, à esquerda, o Salão Alberto Pasqualini. Mesmo não estando próximos, todos os murais têm a mesma medida (0,71 X 1,05m), o que denota a preocupação do artista com a harmonização dessas obras no espaço. A imagem que Locatelli faz do estancieiro, dispostas em dois murais, capta, com muita precisão, as caracterizações a ele atribuídas pelo escritor. Assim, no primeiro mural que trata dessa personagem, o artista buscou fazer referência a sua riqueza e, ao mesmo tempo, ao seu egoísmo, uma vez que, ao proteger todas as suas moedas, o mesmo olha para os lados com desconfiança. Além disso, ao integrá-lo ao ambiente e aos instrumentos de trabalho da estância, a solidão acaba sobrepondo-se à suas caracterizações de trabalhador do campo. O último mural elaborado por Locatelli que se refere à introdução da lenda, apresenta as três personagens faltantes: o filho do estancieiro, mau e perverso como o pai; o cavalo baio cabos-negros, parelheiro do dono da estância; e, por fim, o escravo menino chamado, apenas, o Negrinho. Esta pintura é passível de duas observações importantes. A primeira diz respeito à apresentação do Negrinho, figura central da narrativa. É precisamente nessa parte da lenda que Lopes Neto evidencia o aspecto religioso e devocional do pequeno escravo, colocando que a ele “(...) não deram padrinhos nem nome; por isso o Negrinho se dizia afilhado da Virgem, Senhora Nossa, que é a madrinha de quem não a tem”. (LOPES NETO, Op.cit., p.80.). No mural, no entanto, não há alusões a esse sentimento religioso do escravo. Locatelli, ao organizar a sua narrativa pictórica, opta por não evidenciar tal aspecto, o que leva a segunda situação a ser colocada. O que o pintor escolhe para caracterizar, em parte, o Negrinho, é o seu cotidiano na estância. Lopes Neto, ao referir-se às atividades do escravo, assim pontua: “Todas as madrugadas o Negrinho galopeava o parelheiro baio; depois
ria”. (LOPES NETO, Idem.). Assim, é justamente essa situação que Locatelli resume no mural, sublinhando especialmente a referência à forma violenta com que o menino era tratado pelo filho de seu dono. Após apresentar os três murais alusivos ao início da lenda, torna-se possível estabelecer algumas das relações possíveis entre a arte e a literatura. Inicialmente, a referência às técnicas empregadas para pintar a história do menino escravo, que se constituem no colorido e na técnica do grisaille – ou pintura em claro-escuro – é importante na medida em que dá destaque e expressividade às imagens que, aos poucos, passavam a povoar o grande salão governamental. Conforme pontuado, foi de acordo com a expressividade e intensidade da cena e, igualmente, da separação entre o bom (o Negrinho) e o mau (o Estancieiro) que Locatelli vai articular as técnicas de sua pintura. É relevante ressaltar, ainda, no tocante às técnicas do artista, a maneira com a qual ele ordenou, no espaço onde seriam pintados os murais, as cenas da história do jovem escravo. Mesmo baseado em uma narrativa literária, o artista não se utilizou da mesma sequência linear exigida pela escrita. A sua narrativa pictórica, disposta sobre portas, nichos e o teto do salão, não segue uma linearidade direta, ou seja, não está disposta uma ao lado da outra de maneira que um mural seja necessariamente a complementação e a continuação do outro. Pelo contrário, elas ocupam espaços diversos, onde as cenas de maior importância na narrativa têm, por certo, maior destaque. Tal é o caso do mural que introduz a lenda. Este, que faz a abertura da narrativa, situando o observador no espaço a ser descortinado, é elaborado, precisamente, sobre porta principal de entrada do salão. As demais, que apresentam as personagens, estão dispostas em lados diferentes e não subsequentes à primeira. Assim, tendo essas questões em vista, fica mais claro correlacionar os primeiros murais que Aldo Locatelli elaborou 4 no Grande Salão de Festas com a lenda descrita por Simões Lopes Neto. Além disso, se tornam nítidas as relações entre o texto escrito e as imagens elaboradas pelo artista que, em sua ampla criatividade, dotou o seu Negrinho do Pastoreio de elementos que lhe são próprios. Ao dispor as pinturas da lenda seguindo o ritmo
arquitetônico do salão, trabalhando com os jogos de claro-escuro e coloridos e, ainda, apresentando elementos pictóricos não encontrados na narrativa simoniana, pode-se observar a especificidade desse trabalho de Aldo Locatelli. 3. Aldo Locatelli, entre o texto e a pintura
Após observar, mesmo que brevemente, os murais iniciais da lenda O Negrinho do
Conforme colocado inicialmente, os murais não foram dispostos pelo artista em uma sequência linear, ou seja, de modo que um fosse necessariamente a complementação de seu anterior. No entanto, a harmonia com que dispõe os murais no grande salão, em que cenas pintadas em grisaille dialogam e interagem com as coloridas, evidencia a própria concepção de Locatelli acerca da pintura mural, na qual esta é determinada pelo ambiente arquitetônico. Assim, é articulando fragmentos da lenda ao espaço disponível para a sua representação que o artista demonstra a função estética e decorativa do mural. (LOCATELLI, 1972, p.8). Por tal motivo, afirma Trevisan que “(...) a sequencia dos afrescos, com sua sábia disposição das cenas, não perturba a visão de conjunto”. (TREVISAN, 1998, p.127). Outra questão a ser colocada, e que foi explanada acima em seus casos específicos, é o relativo ao uso do colorido e do grisaille, respectivamente no primeiro e nos subsequentes murais apresentados acima. Se forem observados em sua totalidade, todos os murais elaborados em claro-escuro fazem referência direta ao estancieiro ou aos maus tratos sofridos pelo Negrinho. Por outro lado, as cenas elaboradas em cores são todas elas referentes às ações desenvolvidas pelo jovem escravo e, ainda, ao contraposto do estancieiro mau, visualizada no primeiro mural apresentado. Afora estar relacionada com a disposição das imagens no espaço arquitetônico, a opção do artista em elaborar as cenas dessa forma evidencia, igualmente, a ênfase dada ao pequeno escravo martirizado em prol da maldade de seu senhor. Se levada em conta, igualmente, a subjetividade e a liberdade de criação do artista, pode-se, inclusive, inferir que tal maneira de elaborar a lenda do Negrinho do Pastoreio estava relacionada ao modo de ser e perceber o homem em sua essência. Para finalizar, apenas uma última observação. Conforme visto até aqui, os murais correspondentes à lenda do Negrinho do Pastoreio possuem, assim como as demais obras de Locatelli, detalhes que singularizam a sua produção artística. A sua visão e concepção acerca do homem e do mundo influenciaram, sem dúvida, a sua construção pictórica. Especialmente nos murais alusivos à lenda, nas quais os flagelos da escravidão constituem-se como o núcleo da história, o muralista imprime ao Negrinho um ar piedoso, expressivo e glorificador. Nesse sentido, percebendo o entrosamento do artista com a narrativa e, ainda, a maneira como trabalha as personagens através das formas e cores em suas composições, é possível colocar que, de maneira alguma, ele constitui-se como um mero ilustrador da narrativa simoniana. Tal questão pode ser observada em suas próprias palavras, quando pontua os elementos da criação estética:
Afirma-se que o tema leva a uma expressão literária, consequentemente sai da prática pintórica [sic]. Exato. Quando o artista entra no anedótico e se preocupa de documentar exclusivamente um episódio, um fato, é envolvido em problemas que destroem o impulso da criação estética, submergindo-a na concessão “de genere”. Mas estes artistas não criam nem interpretam, só descrevem, só documentam, só ilustram. (LOCATELLI, 1972, p.12).
Assim, mesmo que observando alguns dos murais que Locatelli elaborou a respeito da lenda do Negrinho do Pastoreio , percebem-se as particularidades e especificidades da narrativa pictórica desenvolvida pelo artista. Mesmo baseado e inspirado pelo texto de João Simões Lopes Neto, Aldo Locatelli imprimiu em sua versão da lenda valores e concepções que lhe são próprios. Além disso, sua forma de interpretar a narrativa textual e transformá-la em narrativa pictórica acabam por apresentar outra versão da lenda, uma versão em imagens no qual Aldo Locatelli, a partir de sua maestria com pincéis e cores, não apresenta-se como um mero ilustrador, mas sim como o artista que, a partir de suas técnicas e vivências, imprime ao seu Negrinho grande expressividade e intensidade.
1
Os pintores que dedicaram-se a elaboração de pinturas murais no Rio Grande do Sul foram, em sua maioria, alunos de Aldo Locatelli no Instituto de Belas Artes do Rio Grande do Sul, como é o caso de Clébio Sória. 2 Colocou-se, inicialmente, que tal espaço era, até então, chamado de Grande Salão de Festas porque, após os trabalhos de Aldo Locatelli serem concluídos, esse salão passou a ser chamado de Salão Negrinho do Pastoreio. 3 O primeiro ilustrador da ora de Simões Lopes Neto foi Nelson Boeira Faedrich, no final da década de 1970. Para maiores detalhamentos, ver: SOARES, Mozart Pereira. Um ilustrador de Simões Lopes Neto, Correio do Povo, Porto Alegre, 30 out. 1982. Letras e Livros, p.11. 4 Optou-se, nesse trabalho, em apresentar os três primeiros murais alusivos à lenda descrita pro Simões Lopes Neto. A partir delas se torna possível observar as particularidades da narrativa pictórica elaborada por Aldo Locatelli. Os demais, igualmente, apresentam suas singularidades e especificidades, mas sua apresentação e posterior análise, se tornariam por demais extensas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: CHIAPPINI, Lígia. No entretanto dos tempos. Literatura e história em João Simões Lopes Neto. São Paulo: Martins Fontes, 1988. COLI, Jorge. Primeira Missa e a invenção da descoberta. In: NOVAES, Adauto. A descoberta do homem e do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. CORONA, Fernando.Palácios do Governo do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: CORAG, 1973. FERREIRA FILHO, Arthur. Palácio Piratini. Porto Alegre: IEL, 1985. GUIDO, Ângelo. Aldo Locatelli – a personalidade e o artista. Correio do Povo, Porto Alegre, 22 jul. 1972, p. 5-8. GUIMARAENS, Carlos R. Êle pinta paredes... e como! Revista do Globo, Porto Alegre, 01 nov. 1952, p. 42-46. JACQUES, Cezimbra. Assuntos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1997. LOCATELLI, Aldo. “Mural”: Análise – considerações, método e pensamento. Correio do Povo, Porto Alegre, 22 jul.1972, p.09-12. LOPES NETO, João Simões. Lendas do Sul. Porto Alegre: Globo, 1996. OBINO, Aldo. A “Via Sacra” de Locatelli. Correio do Povo, Porto Alegre, 10 abr. 1960, [s.p.]. RIO GRANDE DO SUL. Secção de Expediente e Pessoal. Termo de Contrato. Diário Oficial do Estado, Poder Executivo, Porto Alegre, RS, 06 set. 1951. REVERBEL, Carlos. Um capitão da Guarda Nacional. Vida e obra de J. Simões Lopes Neto. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1981. TERMO DE CONTRATO celebrado entre a Secretaria de Obras Públicas e o Sr. Aldo Locatelli, execução da pintura interna do salão principal do palácio do Governo. Secretaria de Obras Públicas Porto Alegre, 11 jul. 1962, p. 1-12. TREVISAN, Armindo. O universo artístico de Aldo Locatelli. In: TREVISAN, Armindo et. all. O Mago das Cores: Aldo Locatelli. Porto Alegre: Marpron, 1998.
VIDAL, Carlos. Invisualidade da pintura. História de uma obsessão (de Caravagio a Bruce Naumann). Lisboa, 2010. Tese (Doutorado Belas Artes – Pintura) – Faculdade de Belas Artes, Universidade de Lisboa.