A TEORIA CRITICA Marcos Nobre
FILOSOFIA
^ Z A H A R
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P A S S 0 - A -P A S S 0
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Sumário
Introdução
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Teoria Crítica e Escola de F r a n k f u r t
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A idéia de u m a Teoria Crítica
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A Teoria Crítica s e g u n d o M a x H o r k h e i m e r
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Modelos de Teoria Crítica
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Breve n o t a final
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Seleção de textos
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Referências e fontes
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l eituras recomendadas
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Sobre o autor
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Introdução Quando se diz que alguém tem uma "teoria" sobre determinado tema ou assunto, pretende-se com isso, na maioria das vezes, dizer que esse alguém tem u m a hipótese ou u m conjunto de argumentos adequados para explicar ou compreender u m determinado fenômeno ou u m a determinada conexão de fenômenos. Nesse sentido, a "teoria", ao pretender explicar ou compreender u m a conexão de acontecimentos, tem como intuito mostrar "como as coisas são". Em se t ratando de u m a teoria científica, a explicação deve ser capaz também de prever eventos futuros, ou então de compreender os eventos n o m u n d o de tal maneira a produzir também prognósticos a partir das conexões significativas encontradas. E u m a teoria é confirmada ou refutada c o n f o r m e as previsões e os p r o g n ó s t i c o s se m o s t r e m corretos o u incorretos. Esse sentido de teoria se contrapõe habitualmente à "prática". Em u m primeiro sentido dessa contraposição, como o que se pode encontrar, p o r exemplo, n o dizer corrente "a teoria na prática é outra" e em outras expressões semelhantes, a prática seria u m a aplicação da teoria e mostraria que há u m a distância entre dizer "como as coisas
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são" e utilizar essa elaboração p a r a m a n i p u l a r objetos e eventos n o m u n d o . Além de indicar que essa distância t e m de ser s u p e r a d a para que se possa "colocar e m prática" a teoria. E m u m o u t r o sentido, entretanto, a "teoria" se contrapõe à "prática" segundo a idéia de que há u m a diferença qualitativa entre "como as coisas são" e " c o m o as coisas deveriam ser". Neste segundo sentido, a prática n ã o é aplicação da teoria, mas u m c o n j u n t o de ideais que orientam a ação, de princípios segundo os quais se deve agir para m o l d a r a própria vida e o m u n d o . Na tradição de pensam e n t o d o idealismo alemão, p o r exemplo, inaugurada p o r I m m a n u e l Kant (1724-1804), esse segundo sentido de "prática" é o mais elevado, aquele que é objeto da "filosofia prática", que abrange disciplinas c o m o a moral, a ética, a política e o direito. Nesse sentido, entretanto, a distância e a diferença entre "o que é" e "o que deve ser", entre a teoria e a prática, n ã o deve ser superada (o verbo "dever" já indicando aqui que se trata de u m a prescrição prática), sob p e n a de se destruir seja a teoria, seja a própria prática. Teoria e prática t ê m lógicas diferentes, e que n ã o devem se confundir. E m outras palavras, se fazemos teoria p a r a d e m o n s t r a r c o m o as coisas devem ser, não conseguimos mostrar c o m o de fato são; se dizemos que as coisas devem ser c o m o de fato são, eliminam o s a possibilidade de que possam ser o u t r a coisa que n ã o o que são. C o m isso, estabelece-se u m fosso entre a teoria e a prática que não pode ser transposto senão ao preço de eliminar do horizonte da reflexão a lógica própria de u m a
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das duas dimensões f u n d a m e n t a i s da vida h u m a n a : o "conhecer" e o "agir". Nesse contexto, que significado p o d e ter a expressão "Teoria Crítica"? Se se trata de teoria, de "como as coisas são", c o m o seria possível criticar esse estado de coisas n o contexto da própria teoria? A crítica, nesse caso, não seria exatamente atributo da prática, da perspectiva de "como as coisas deveriam ser"? E incluir a crítica na teoria não signilicaria, portanto, abdicar da tarefa de apresentar "as coisas c o m o são", não significaria a b a n d o n a r o conhecer em prol tio agir simplesmente? E agir sem conhecer não irá resultar e m u m a ação cega, que não leva em conta "como as coisas são"? A Teoria Crítica e n f r e n t o u esses questionamentos p o r meio de u m a crítica à distinção entre teoria e prática assim formulada. E isso sem abdicar seja da idéia de conhecer "as coisas c o m o são", seja de agir segundo " c o m o as coisas deveriam ser". A Teoria Crítica não se bate n e m por u m a ação cega (sem levar em conta o conhecimento) nem p o r u m conhecimento vazio (que ignora que as coisas p o d e r i a m ser de o u t r o m o d o ) , mas questiona o sentido de "teoria" e de "prática" e a própria distinção entre esses dois m o m e n tos. Caberá à idéia m e s m a de "crítica" o papel de realizar essa tarefa. Há certamente muitos sentidos de "crítica", na própria 11 adição da Teoria Crítica. Mas o sentido f u n d a m e n t a l é o tle que não é possível mostrar "como as coisas são" senão a partir da perspectiva de "como deveriam ser": "crítica" • ignifica, antes de mais nada, dizer o que é e m vista do que
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ainda n ã o é m a s pode ser. Note-se, p o r t a n t o , q u e n ã o se trata de u m p o n t o de vista utópico, n o sentido de irrealizável o u inalcançável, m a s de enxergar n o m u n d o real as suas potencialidades melhores, de c o m p r e e n d e r o que é t e n d o e m vista o m e l h o r que ele traz e m b u t i d o e m si. Nesse primeiro sentido, o p o n t o de vista crítico é aquele que vê o que existe da perspectiva do novo que ainda n ã o nasceu, mas que se encontra e m germe n o p r ó p r i o existente. Note-se, ainda, q u e n ã o se trata t a m p o u c o de abdicar de conhecer, de dizer " c o m o as coisas são", n e m de abdicar da tarefa teórica de produzir prognósticos. Ocorre que, do p o n t o de vista crítico, aquele que separa rigidamente "como as coisas são" de "como devem ser" só consegue dizer c o m o elas são parcialmente,
p o r q u e não é capaz de ver que "as
coisas c o m o devem ser" é t a m b é m u m a parte de c o m o as coisas são; p o r q u e não consegue enxergar na realidade presente aqueles elementos q u e impedem a realização plena de todas as suas potencialidades. Eis o segundo sentido f u n d a mental da crítica: u m p o n t o de vista capaz de apontar e analisar os obstáculos a serem superados p a r a q u e as p o tencialidades m e l h o r e s presentes n o existente p o s s a m se realizar. D o p o n t o de vista crítico, portanto, a análise do existente a partir da realização d o novo — que se insinua n o existente, mas ainda não é — p e r m i t e a apresentação de " c o m o as coisas são" e n q u a n t o obstáculos à realização das suas potencialidades melhores: apresenta o existente d o p o n t o de vista das o p o r t u n i d a d e s de emancipação
relativa-
m e n t e à d o m i n a ç ã o vigente. A tarefa primeira da Teoria
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(Crítica é, p o r t a n t o , a de apresentar "as coisas c o m o são" sob .1 forma de tendências presentes n o desenvolvimento histói ico. E o delineamento de tais tendências só se t o r n a possível i partir da p r ó p r i a perspectiva da emancipação, da realizad o de u m a sociedade livre e justa, de m o d o que "tendência" significa, então, apresentar, a cada vez, e m cada m o m e n t o histórico, os arranjos concretos t a n t o dos potenciais e m a n t ipatórios q u a n t o dos obstáculos à emancipação. Vê-se já que a Teoria Crítica tem s e m p r e c o m o u m a de suas mais i m p o r t a n t e s tarefas a p r o d u ç ã o de u m determiinido diagnóstico d o t e m p o presente, baseado e m tendências r st inturais d o m o d e l o de organização social vigente, b e m i oino em situações históricas concretas, e m que se m o s t r a m tanto as o p o r t u n i d a d e s e potencialidades para a emanciparão q u a n t o os obstáculos reais a ela. C o m isso, tem-se u m diagnóstico d o t e m p o presente que permite então, t a m b é m , produção de prognósticos sobre o r u m o d o desenvolvimento histórico. Esses prognósticos, p o r sua vez, a p o n t a m não apenas para a natureza dos obstáculos a serem superados e »eu provável desenvolvimento n o t e m p o , mas para ações • a pazes de superá-los. Sendo assim, a teoria crítica n ã o p o d e se c o n f i r m a r scnflo na prática t r a n s f o r m a d o r a das relações sociais vigentes. As ações a serem e m p r e e n d i d a s p a r a a superação títm obstáculos à emancipação constituem-se em u m m o liiriilo ila p r ó p r i a teoria. Nesse sentido, o curso histórico ; i" ,u on tecimentos — c o m o resultado das ações e m p r e e n dlilris l o n t r a a e s t r u t u r a de d o m i n a ç ã o vigente — dá a nif dul,i para a c o n f i r m a ç ã o o u refutação dos prognósticos
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da teoria, Note-se, entretanto, que a prática n ã o significa aqui u m a m e r a aplicação da teoria, m a s envolve
embates
e conflitos que se costuma caracterizar c o m o "políticos" o u "sociais". A prática é u m m o m e n t o da teoria, e os resultados das ações e m p r e e n d i d a s a partir de prognósticos teóricos t o r n a m - s e , p o r sua vez, u m n o v o material a ser elaborado pela teoria, que é, assim, t a m b é m u m m o m e n t o necessário da prática. O esquema apresentado até aqui, com as idéias de crítica, emancipação, tendências, diagnóstico d o t e m p o e prognósticos, com sua relação tão peculiar entre teoria e prática, é o esquema que será r e t o m a d o em cada m o m e n t o desta exposição a partir de agora. De m o d o que, apesar de ainda m u i t o abstrata, essa primeira caracterização da Teoria Crítica deverá servir já p a r a delimitar melhor o objeto deste livro: a "idéia" de Teoria Crítica. Mas essa idéia vem ligada a u m a determinada tradição de pensamento, a u m c a m p o teórico que congrega diferentes autores, razão pela qual é necessário começar p o r u m a apresentação histórica dessa tradição intelectual.
Teoria Crítica e Escola de Frankfurt A Teoria Crítica. Essa expressão, tal c o m o é conhecida hoje, surgiu pela primeira vez c o m o conceito e m u m texto de M a x H o r k h e i m e r (1895-1973) de n o m e "Teoria Tradicional e Teoria Crítica", de 1937. Esse texto foi publicado na Zeitschrift für Sozialforschung
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[Revista de Pesquisa Social], que
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foi editada de 1932 até 1942 pelo p r ó p r i o Horkheimer. Essa revista era a publicação oficial d o Institut f ü r Sozialforschung [Instituto de Pesquisa Social], f u n d a d o em 1923 n a cidade alemã de F r a n k f u r t a m Main, e que foi presidido pelo mesmo H o r k h e i m e r de 1930 a 1958. A explicação sobre a origem da expressão "Teoria Crílica" já traz consigo u m a grande q u a n t i d a d e de dados e elementos a serem analisados. Vê-se, p o r exemplo, que a I eoria Crítica está ligada a u m Instituto, a u m a revista, a u m pensador que estava n o centro de a m b o s (Horkheimer) e a u m período histórico m a r c a d o pelo nazismo (1933-45), pelo stalinismo (1924-53) e pela Segunda Guerra Mundial (1939-45). A partir de agora, esses elementos históricos decisivos aparecerão neste livro à m e d i d a que for necessário i aracterizar a Teoria Crítica em cada u m dos seus momentos. O Instituto de Pesquisa Social nasceu da iniciativa d o economista e cientista social Felix Weil (1898-1975), apoiado decisivamente pelo t a m b é m economista Friedrich Poliock (1894-1970) e p o r Horkheimer. A doação inicial que permitiu a criação d o Instituto veio d o pai de Weil, u m rico cerealista estabelecido na Argentina n o final d o século XIX. Nao obstante isso, o objetivo principal d o Instituto era o de promover, e m â m b i t o universitário, investigações científii as a partir da obra de K a r l M a r x (1818-1883). Vê-se já que ti I co ria Crítica, desde o início, tem p o r referência o m a r • usino e seu m é t o d o — o m o d e l o da "crítica da economia política" (é justamente esse o subtítulo da o b r a máxima de Marx, O
Capital).
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Nesse contexto, é preciso lembrar que o marxismo, à exceção da então União Soviética, era então marginalizado na universidade e m todo o m u n d o , c o n t a n d o apenas com alguns poucos professores. Por isso, o projeto de Weil, Pollock e Horkheimer, então bastante jovens, teria de contar, para ser aprovado, t a n t o com u m a negociação com o Ministério da Educação alemão q u a n t o com u m acordo com a Universidade de Frankfurt ( f u n d a d a em 1914), de m o d o a assegurar que o diretor d o Instituto tivesse t a m b é m u m a cadeira c o m o professor. Além disso, era necessário encontrar u m n o m e já estabelecido n a esfera universitária para dirigir o Instituto. O primeiro indicado foi o economista e sociólogo Kurt Albert Gerlach (1886-1922), que entretanto faleceu antes que fosse expedida a autorização oficial para o f u n c i o n a m e n t o do Instituto. A partir de 1924, a direção coube ao historiador Carl G r ü n b e r g (1861-1940). Ele já editava a i m p o r t a n t e publicação Archiv für die Geschichte des Sozialismus und derArbeiterbewegung
[Arquivo para a história d o
socialismo e d o m o v i m e n t o operário], que se t o r n o u então a publicação oficial do Instituto. Assim, a história do socialismo e o m o v i m e n t o operário passaram a ser o objeto principal de pesquisa d o p r ó p r i o Instituto, que se t o r n o u rapidamente u m dos mais i m p o r t a n t e s arquivos para pesquisa sobre esses temas. 1
E m 1928, G r ü n b e r g ficou impossibilitado de prosse-
guir em suas funções de professor e de diretor d o Instituto devido a u m acidente vascular cerebral. Depois de gestões e negociações c o m relação aos dois postos, H o r k h e i m e r pas-
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sou a acumular essas duas funções, a p a r t i r de 1930. C o m i sso, u m a nova etapa da vida d o Instituto se i n i c i o u — a q u e la que irá dizer respeito mais p r o p r i a m e n t e à Teoria Crítica. H o r k h e i m e r traçou t o d o u m novo p r o g r a m a de invesligação e de f u n c i o n a m e n t o do Instituto. Lançou as bases ile u m trabalho coletivo interdisciplinar, u m a grande inovação para a época. Tratava-se de dar u m sentido positivo .10 a p r o f u n d a m e n t o da especialização n o âmbito das ciêni ias h u m a n a s , e m que disciplinas c o m o a economia, o direito, a ciência política e a psicologia ganhavam cada vez mais a u t o n o m i a e independência. Isto foi feito de m o d o a, de u m lado, valorizar a especialização em seus aspectos positivos, e, de outro, garantir u m a certa unidade para os resultados das pesquisas em cada u m desses r a m o s do conhecimento. E essa unidade era dada justamente pela refelência à o b r a de Marx, razão pela qual essa experiência inovadora ficou conhecida c o m o "materialismo interdisciplinar". Esse foi, portanto, o primeiro sentido da Teoria < Irítica tal c o m o teorizada p o r H o r k h e i m e r nesse período: I >rsquisadores de diferentes especialidades trabalhando e m regime interdisciplinar e t e n d o c o m o referência c o m u m a li.idição marxista. E, para espelhar a p r o d u ç ã o dessas pes• 111 isas, H o r k h e i m e r f u n d o u u m a nova publicação, a já m e n • tonada Zeitschrift für
Sozialforschung.
Para q u e se tenha u m a idéia da a m p l i t u d e desse projeto, hasta citar alguns dos n o m e s envolvidos: e m economia, íilcm de Friedrich Pollock, Henryk G r o s s m a n n (1881-1950) r A rkadij G u r l a n d (1904-1979); em ciência política e direito, I i.mz N e u m a n n (1900-1954) e O t t o Kirchheimer (1905-
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1965); n a crítica da cultura, T h e o d o r W. A d o r n o (19031969) — que viria posteriormente a ser o grande parceiro de H o r k h e i m e r na p r o d u ç ã o e m filosofia — , Leo Lõwenthal (1900-1993) e, alguns anos mais tarde, Walter Benjamin (1892-1940); e m filosofia, além de Horkheimer, t a m b é m H e r b e r t Marcuse (1898-1978); e e m psicologia e psicanálise, Erich F r o m m (1900-1980). A Escola de Frankfurt. A simples m e n ç ã o dos n o m e s citados anteriomente — alguns b e m mais conhecidos d o que outros — já p o d e provocar a pergunta: mas esse c o n j u n t o de autores não é o que se costuma agrupar sob o n o m e de Escola de Frankfurt? De fato, foi (e ainda é em alguns círculos) m u i t o c o m u m referir-se a esse coletivo c o m o Escola de Frankfurt. Mas h á u m a série de problemas nessa d e n o m i nação. E m p r i m e i r o lugar, a idéia de "escola" passa a impressão de que se trata de u m c o n j u n t o de autores q u e partilhav a m integralmente u m a d o u t r i n a c o m u m , o que n ã o é o caso. Ter a obra de M a r x c o m o referência, c o m o horizonte c o m u m , não significa partilhar dos m e s m o s diagnósticos e das m e s m a s opiniões. Pelo contrário, o desenvolvimento da Teoria Crítica mostra que havia acirradas divergências entre os colaboradores d o Instituto, n ã o só p o r q u e a própria o b r a de M a r x se presta a interpretações divergentes, mas t a m b é m pelo fato de que as maneiras de se utilizar de M a r x para c o m p r e e n d e r o t e m p o presente são diversas. Em segundo lugar, h á o problema de saber quais autores devem ser incluídos o u excluídos desse conjunto. Tamb é m n ã o há critério que t e n h a se d e m o n s t r a d o eficaz, já que
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há grande divergência de diagnósticos entre os colaboradores mencionados, para não falar daqueles que não f o r a m aqui lembrados. Se for t o m a d a a colaboração na Revista d o Instituto c o m o critério, tem-se já o problema, p o r exemplo, de incluir nessa classificação autores que não têm c o m o horizonte de seus trabalhos a obra de Marx. Talvez o critério mais razoável fosse o d o p e r t e n c i m e n t o ao Instituto. Mas, m! esse critério p o d e ser aplicável nos primeiros anos da década de 1930, ele se t o r n a posteriormente de difícil verih< ação, já que as sucessivas m u d a n ç a s de sede do Instituto durante o exílio imposto pelo nazismo alteram bastante a sua composição, o que t a m b é m ocorreu n o período posteI ior a 1950, q u a n d o o Instituto volta a f u n c i o n a r e m solo .demão. Sendo assim, o que significa então essa poderosa eti«jiu la "Escola de F r a n k f u r t " e qual sua relação com a Teoria « i ilica? Para c o m p r e e n d e r isso, é necessário retomar a hisloi i-i tio Instituto e a experiência histórica d o nazismo. A iiles de mais nada, é preciso lembrar que, ao lançar as bases ii>« materialismo interdisciplinar, e m seu discurso de posse Mit direção do Instituto, em 1931, H o r k h e i m e r já tinha diante de si a vertiginosa ascensão d o m o v i m e n t o nazista. Nesse c ontexto, é desnecessário lembrar os riscos que corria um Instituto declaradamente marxista e composto em sua II in.i. maioria p o r pesquisadores de origem judaica. E o (piihii
diante da real possibilidade da t o m a d a do poder p o r
Adull 11ítler fez c o m que o Instituto inaugurasse, naquele mu «mo ano, u m escritório em Genebra, na Suíça, e transfeiÍMf o sen capital para a Holanda. Desse modo, q u a n d o
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Hitler torna-se chanceler do governo alemão, e m janeiro de 1933, o Instituto transfere sua sede administrativa quase que imediatamente p a r a Genebra e a b a n d o n a as instalações e m Frankfurt. De fato, H o r k h e i m e r acabou exonerado de suas f u n ções na Universidade já e m abril de 1933 e as instalações do Instituto em Frankfurt f o r a m depredadas pelos nazistas. A editora alemã da revista i n f o r m o u H o r k h e i m e r de que n ã o poderia mais publicá-la. Assim começou o longo exílio do Instituto e de seus pesquisadores, que iria d u r a r até 1950, q u a n d o de sua reinauguração em Frankfurt. C o m a solidariedade de intelectuais franceses e ingleses, o Instituto abre p e q u e n o s escritórios em Londres e e m Paris e passa a editar a revista na capital francesa. Em busca de u m a nova sede para o Instituto, H o r k h e i m e r recebe u m a oferta m u i t o favorável da Universidade de Columbia, e m Nova York, o que permite, já em 1934, a transferência das instalações. Até o início da Segunda Guerra Mundial, e m 1939, grande parte dos colaboradores do Instituto emigra para os Estados Unidos. C o m a t o m a d a de Paris pelo exército nazista, e m 1940, mais u m a vez a edição da revista é interrompida, sendo retomada apenas em 1942, em Nova York, com a publicação dos seus dois últimos n ú m e r o s , sob o título em inglês de Studies in Philosophy and Social Science [Estudos de filosofia e ciência social]. Nesse contexto, é preciso enfatizar que a etiqueta "Escola de F r a n k f u r t " surgirá apenas na década de 1950, após o r e t o r n o do Instituto à Alemanha. Trata-se, portanto, de u m a d e n o m i n a ç ã o retrospectiva, quer dizer, que n ã o tinha
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sido utilizada até então e c o m a qual se reconstruiu em u m determinado sentido a experiência anterior. Essa característica d o rótulo "Escola de F r a n k f u r t " tem muitas implicações. Em p r i m e i r o lugar, significa q u e o sentido da expressão "Escola de F r a n k f u r t " será em grande parte m o l d a d o por alguns dos pensadores ligados à experiência da Teoria Crítica, e m particular aqueles que r e t o r n a r a m à Alemanha após o final da Segunda Guerra Mundial, já que muitos permaneceram nos países e m que e n c o n t r a r a m abrigo da perseguição nazista. Além disso, terão mais influência na moldagem d o rótulo "Escola de F r a n k f u r t " aqueles intelectuais que tiveram posições de direção n o pós-guerra, tanto no Instituto c o m o na Universidade. Nesse sentido, H o r k h e i mer é a figura central desse movimento, já que não apenas permanece na direção d o Instituto e m sua reinauguração cm Frankfurt c o m o torna-se reitor da Universidade. A seu lado, c o m o í n t i m o colaborador, está T h e o d o r W. Adorno, i|ue o sucedeu n a direção do Instituto e m 1958. Em segundo lugar, o rótulo "Escola de Frankfurt" teve um i m p o r t a n t e papel para fortalecer e amplificar as intervenções (principalmente de A d o r n o e de Horkheimer) n o debate público alemão das décadas de 1950 e 1960. Era premente e indispensável u m a discussão sobre as causas e os efeitos da experiência n a z i s t a — c o m todas as consequêni ias para a República Federal Alemã q u e surgia — e u m debate sobre a natureza d o então c h a m a d o "bloco soviético" (ao qual pertencia u m a parte da A l e m a n h a dividida após a guerra, a República Democrática Alemã). Além disso, havia que se tentar compreender a f o r m a d o capitalismo sob o
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a r r a n j o social que se convencionou chamar de "Estado de bem-estar social", as novas f o r m a s de p r o d u ç ã o industrial da cultura e da arte, a natureza das novas f o r m a s de controle social e dos novos métodos quantitativos de pesquisa social, o papel da ciência e da técnica, além d o trabalho e m t o r n o de temas clássicos da filosofia e da teoria social. Esses são alguns dos principais temas do que se conv e n c i o n o u chamar de "Escola de Frankfurt". C o m o será explicado adiante, este livro não trata e m detalhe desses temas, mas concentra-se e m apresentar a idéia de u m a Teoria Crítica. Seja c o m o for, pode-se já concluir que Escola de F r a n k f u r t designa antes de mais nada u m a f o r m a de intervenção político-intelectual (mas n ã o partidária) n o debate público alemão d o pós-guerra, tanto n o âmbito acadêmico c o m o n o da esfera pública entendida mais a m plamente. E u m a f o r m a de intervenção de grande i m p o r tância e conseqüências, n ã o apenas para o debate público e acadêmico alemão. Compreende-se, portanto, por que os n o m e s de H o r k h e i m e r e A d o r n o são sempre lembrados c o m o pertencentes à Escola, ao passo que os demais c o m p o n e n t e s variam muito. Nesse sentido, a riqueza da experiência da Teoria Crítica até a década de 1950 permitiu que se lançasse m ã o de temas e desenvolvimentos teóricos os mais diversos, p o r vezes até m e s m o conflitantes entre si, ao m e s m o t e m p o e m que se afirmava perfazerem u m a unidade doutrinária. C o m isso, interesses teóricos muitas vezes divergentes p u d e r a m encontrar ressonância e m pelo m e n o s u m dos autores da Escola e afirmar, assim, sua referência a u m suposto "núcleo
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teórico comum", legitimando, com isso, sua pretensão de pertença à Escola. Esse tipo de p r o c e d i m e n t o levou muitas vezes a que, p a r t i n d o de u m a d e t e r m i n a d a obra de determinado autor, fossem atribuídos aos outros "componentes" da Escola aquela m e s m a posição teórica. Da m e s m a forma, objeções dirigidas a u m único " c o m p o n e n t e " afetavam o c o n j u n t o da Escola. Aqui parece residir justamente o p o d e r d o rótulo "Escola de Frankfurt": sua força está exatamente em que inexiste a unidade, ao m e s m o t e m p o e m que a unidade é afirmada com t o d o vigor a cada vez. N ã o há mais sentido, entretanto, e m prosseguir r e a f i r m a n d o u m a unidade d o u trinária inexistente. É por isso que retomar a expressão original "Teoria Crítica" significa, entre outras coisas, demarcar u m c a m p o teórico que valoriza e estimula a pluralidade de modelos críticos em seu interior. Nesse sentido, a líscola de F r a n k f u r t diz respeito a u m d e t e r m i n a d o m o m e n to e a u m a determinada constelação da Teoria Crítica. A liscola de F r a n k f u r t c o m o d e n o m i n a ç ã o político-intelectual já c u m p r i u — e com louvor — seu papel histórico. Cabe hoje levar adiante o projeto crítico sob novas formas.
A idéia de uma Teoria Crítica Pelo exposto até aqui, Teoria Crítica designa pelo m e n o s três coisas: u m c a m p o teórico, u m g r u p o específico de intelectuais filiados a esse c a m p o teórico e inicialmente reunidos cm t o r n o de u m a instituição d e t e r m i n a d a (o Instituto de
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Pesquisa Social) e a Escola de Frankfurt. C o m o já justificado há pouco, o interesse deste livro concentra-se nos dois primeiros sentidos de Teoria Crítica. O que significa, entretanto, falar em u m c a m p o teórico determinado? Para que isso seja possível, é necessário apresentar os critérios a partir dos quais é possível demarcar as fronteiras desse campo, quer dizer, o espaço teórico dentro d o qual aqueles pesquisadores que a ele se filiam desenvolvem suas investigações. Nos escritos de H o r k h e i m e r da década de 1930, o c a m p o da Teoria Crítica t e m c o m o critério de demarcação f u n d a m e n tal o seguinte: p r o d u z Teoria Crítica t o d o aquele que desenvolve seu trabalho teórico a partir da obra de Marx. Seguem-se daí pelo m e n o s duas características da Teoria Crítica. Em primeiro lugar, ela designa u m c a m p o que já existia previamente à sua conceituação pelo p r ó p r i o Horkheimer, isto é, o c a m p o d o marxismo. Nesse primeiro sentido, H o r k h e i m e r pretende ter conceitualizado os elem e n t o s teóricos f u n d a m e n t a i s que distinguem o c a m p o d o m a r x i s m o de outras concepções teóricas. É o que se pode chamar de Teoria Crítica em sentido amplo. E m segundo lugar, H o r k h e i m e r dá a sua versão desses elementos teóricos fundamentais, quer dizer, apresenta tanto a sua interpretação específica d o p e n s a m e n t o de M a r x c o m o p r o c u r a utilizar-se desses parâmetros interpretativos p a r a analisar o m o m e n t o histórico e m que se encontra. Dito de o u t r a maneira, H o r k h e i m e r apresenta a sua conceituação da Teoria Crítica. E o que se p o d e c h a m a r de Teoria Crítica em sentido restrito.
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Assim, cada interpretação dos princípios orientadores do c a m p o da Teoria Crítica e cada tentativa de se utilizar deles para a compreensão d o m o m e n t o presente a partir dos escritos de H o r k h e i m e r da década de 1930 constitui-se em Teoria Crítica em sentido restrito. Esse sentido aparecerá t a m b é m neste livro na apresentação de modelos de Teoria Crítica que têm essa conceituação de H o r k h e i m e r c o m o referência central. E, c o m o já indicado na " I n t r o d u ção", t o d o m o d e l o crítico traz consigo u m d e t e r m i n a d o diagnóstico do t e m p o presente e u m c o n j u n t o de prognósticos de possíveis d e s e n v o l v i m e n t o s , b a s e a d o s e m tendências discerníveis e m cada m o m e n t o
histórico
determinado. C o m o se pode ver, é característica f u n d a m e n t a l da Teoria Crítica (tanto em sentido a m p l o c o m o em sentido restrito) ser p e r m a n e n t e m e n t e renovada e exercitada, n ã o p o d e n d o ser fixada e m u m c o n j u n t o de teses imutáveis. O i|ue significa dizer, igualmente, que t o m a r a obra de M a r x c o m o referência primeira da investigação não significa tomá-la c o m o u m a doutrina acabada, m a s c o m o u m conjunto de problemas e de perguntas que cabe atualizar a cada vez, segundo cada constelação histórica específica. Nesse sentido, p a r a finalizar esta seção, serão esquematicamente apresentadas algumas das formulações de M a r x que são fundamentais para a conceituação de u m a Teoria Crítica, e cm seguida os princípios f u n d a m e n t a i s que demarcam o i iimpo da Teoria Crítica em sentido amplo, com base t a n t o nos textos de M a r x quanto nos escritos de H o r k h e i m e r da década de 1930.
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Na seção seguinte, será apresentado o m o d e l o crítico inaugural construído p o r H o r k h e i m e r nesse período, com especial ênfase n o já m e n c i o n a d o artigo "Teoria Tradicional e Teoria Crítica". Ainda que as formulações de H o r k h e i m e r nesse texto devam m u i t o aos trabalhos do pensador m a r xista Georg Lukács (1885-1971), autor do livro seminal História e consciência de classe (1923), essa i m p o r t a n t e referência n ã o será explorada aqui, buscando-se somente ressaltar o vínculo dos conceitos elaborados por H o r k h e i m e r com os elementos apresentados da o b r a de Marx. Nesse p o n t o surge o sentido preciso em que será utilizada p r o p r i a m e n t e a expressão "Teoria Crítica" neste livro: t o d o m o d e l o crítico construído a partir do modelo apresentado p o r H o r k h e i m e r e m seu texto de 1937. Nesse sentido, se a obra de M a r x é a referência f u n d a m e n t a l para a f o r m u lação d o m o d e l o de 1937, m u i t o s dos modelos críticos f o r m u l a d o s posteriormente — seja p o r outros autores, seja pelo p r ó p r i o H o r k h e i m e r — terão por referência f u n d a mental n ã o a obra de M a r x diretamente, mas os escritos de H o r k h e i m e r da década de 1930. Na seção subsequente, serão apresentados os elementos mais gerais de alguns desses modelos de Teoria Crítica que têm c o m o referência f u n d a m e n t a l o m o d e l o desenvolvido p o r H o r k h e i m e r n a década de 1930. Isso não significa — é sempre b o m reafirmar — que o c a m p o mais geral da Teoria Crítica se reduza a eles, mas sim que eles se constit u e m naqueles modelos críticos mais conhecidos n o interior da Teoria Crítica em sentido restrito — aqueles que têm c o m o referência f u n d a m e n t a l os escritos de H o r k h e i m e r da
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década de 1930. Seguem-se a essa seção algumas breves i onsiderações finais. A matriz da Teoria Crítica: a análise do capitalismo por Karl Marx. O capitalismo é u m a f o r m a histórica que se caractei iza por organizar toda a vida social em t o r n o do mercado, lím contraste com todas as f o r m a s históricas anteriores, o 11 icrcado capitalista não é simplesmente u m elemento social entre m u i t o s outros, m a s é o centro p a r a o qual convergem todas as atividades de p r o d u ç ã o e de r e p r o d u ç ã o da sociedade. Por isso, a tarefa primordial da Teoria Crítica desde sua primeira formulação na obra de M a r x é a de compreender ti natureza d o mercado capitalista. C o m p r e e n d e r c o m o se estrutura o mercado e de que maneira o c o n j u n t o da sociedade se organiza a partir dessa estrutura significa, simultaneamente, compreender c o m o se distribui o poder político e a riqueza, qual a f o r m a do Estado, que papéis desempenham a família e a religião, e muitas outras coisas mais. Diferentemente de todas as f o r m a s históricas anteriores, n o capitalismo t o d o e qualquer artefato é u m p r o d u t o para ser trocado. É a lógica da troca que determina o comportamento dos agentes no mercado, e n ã o quaisquer ou11 as motivações c o m o valores, crenças religiosas ou determinações culturais. Não se pretende com isso dizer que não haja valores e crenças, mas sim que, n o mercado, eles devem se subordinar à lógica da troca mercantil. A fim de compreendê-la, é preciso começar a análise por sua unidade elementar, a mercadoria. Dizer que o m e r -
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cado é o centro em t o r n o d o qual se organiza o c o n j u n t o da sociedade capitalista significa então dizer que, potencialmente, t o d o e qualquer b e m deve ter u m d e t e r m i n a d o valor, quer dizer, que t o d o b e m deve poder ser apreciável, deve p o d e r assumir a f o r m a de u m a mercadoria. Foi assim por exemplo que, pela primeira vez na história, o trabalho h u m a n o t o r n o u - s e u m a mercadoria. Mas, nesse caso, o que é que se vende e m troca de u m salário? M a r x diz que não é o trabalho e n q u a n t o tal que é vendido mas a força de trabalho,
isto é, as capacidades físicas e
mentais do h o m e m de utilizar i n s t r u m e n t o s e m á q u i n a s para produzir mercadorias. Isso significa, entretanto, que a força de trabalho estava separada dos i n s t r u m e n t o s de trabalho que lhe p e r m i t i a m produzir bens; essa separação estrutural é u m a característica da f o r m a histórica do capitalismo. Para compreender essa separação histórica do h o m e m de seus i n s t r u m e n t o s de trabalho, é necessário inicialmente lembrar o vertiginoso desenvolvimento tecnológico que a c o m p a n h a o capitalismo. A capacidade de controle dos f e n ô m e n o s naturais, os a u m e n t o s de produtividade d o trabalho, o desenvolvimento da infraestrutura de transportes e de comunicações são sempre crescentes sob o capitalismo. Isso significa, entretanto, que os i n s t r u m e n t o s de trabalho t o r n a m - s e t a m b é m cada vez mais sofisticados e complexos, o que exige, p o r sua vez, quantidades cada vez maiores de capital para se adquirirem as m á q u i n a s e equipamentos adequados a u m mercado competitivo.
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Em sua origem, esse vertiginoso e contínuo progresso lécnico só foi possível p o r q u e a riqueza da sociedade estava acumulada nas m ã o s de alguns poucos que, ao empregarem essa riqueza n a aquisição de equipamentos e m á q u i n a s recém-inventados, fizeram dela capital, t o r n a n d o - s e eles próprios capitalistas.
De o u t r o lado, a partir do final d o
século XV t e m início na Inglaterra o longo e decisivo p r o cesso d o "cercamento" — a expressão sistemática de camponeses de suas terras. Essa massa populacional viu-se então obrigada a migrar para as cidades, onde, p o r sua vez, encon11 aram a novidade das grandes indústrias, com sua p r o d u ção em larga escala e suas máquinas. Despojada da terra e de seus i n s t r u m e n t o s de trabalho, só restava a essa imensa massa de despossuídos vender o único b e m reconhecido pelo mercado de que ainda dispunha: a sua capacidade de operar as novas m á q u i n a s e os novos equipamentos, e m outras palavras, a sua força de trabalho. Ao vendê-la, esses grandes contingentes t o r n a r a m - s e proletários. N ã o se trata mais, portanto, da família c a m p o nesa que d i s p u n h a dos meios para produzir a sua própria miIisistência, mas de trabalhadores u r b a n o s que vendem sua força de trabalho em troca de u m salário. E, ao utilizarem o salário recebido na c o m p r a de mercadorias para sua própria sobrevivência, os proletários criam t a m b é m o mercado inIri no para o p r ó p r i o capital industrial. C o m isso, analisa Marx, a sociedade capitalista dividese estruturalmente em duas classes, assim caracterizadas pela posição que o c u p a m p o r cada u m a delas n o processo produtivo: capitalistas são aqueles que d e t ê m os meios de
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produção e que os p õ e m e m f u n c i o n a m e n t o com a força de trabalho que compram-, e proletários são aqueles que vendem sua força de trabalho ao capitalista em troca de u m salário. Além de sua f u n ç ã o de troca, o mercado funciona t a m b é m c o m o u m m e c a n i s m o de aprofundamento
das de-
sigualdades, pois, segundo as análises de M a r x d o funcionam e n t o da economia capitalista, a distribuição de bens seg u n d o a divisão em classes tende a produzir u m polo de intensa acumulação de riqueza e u m o u t r o polo de crescente pobreza. N ã o é dessa maneira, entretanto, que o mercado surge na sociedade capitalista. Ele aparece c o m o u m a instituição neutra, cuja lógica da troca de mercadorias de valores iguais não favorece n e m desfavorece n i n g u é m em particular, mas f u n c i o n a segundo regras que valem para todos, independ e n t e m e n t e de sua posição social, política e econômica. O mercado capitalista aparece c o m o aquele m o m e n t o da vida social em que a troca de mercadorias de igual valor segundo regras que valem para todos é t a m b é m p o r isso u m a troca justa. Nesse sentido, ele p r o m e t e ser a instituição que garante e p r o m o v e os ideais da sociedade capitalista: a liberdade e a igualdade para todos. Marx, em acordo com a c h a m a d a economia política clássica inglesa — essencialmente A d a m Smith (1723-1790) e David Ricardo (1772-1823) — afirma que, n o mercado, as mercadorias são de fato vendidas pelo seu valor. Mas diz t a m b é m que o mercado, em lugar de p r o m o v e r a igualdade e a liberdade que promete, p e r p e t u a e a p r o f u n d a desigualdades que estão na origem d o p r ó p r i o capitalismo, acirran-
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do as diferenças de p o d e r e de riqueza entre capitalistas e proletários. M a r x m o s t r a que há u m a diferença entre o salário que o proletário recebe pela utilização de sua força de trabalho pelo capitalista (que corresponde ao valor de mercado da força de trabalho) e o valor que a força de trabalho é capaz de produzir (que se agrega à mercadoria produzida). Essa diferença entre o que a força de trabalho "vale n o mercado" e o valor maior que ela é capaz de produzir (chamada p o r M a r x de "mais-valia") é apropriada privadamente pelo capitalista sob a f o r m a d o lucro. E, para Marx, enquanto houver lucro, não é possível realizar a liberdade e ,i igualdade prometidas pelo capitalismo. É certo que esse m e c a n i s m o p e r m a n e n t e e cotidiano da promessa da liberdade e da igualdade sob relações sociais Capitalistas é real e efetivo, m o l d a n d o de fato a consciência l.into de capitalistas c o m o de proletários. Mas o reconhecimento dessa ilusão real produzida pelo sistema não deve nbscurecer o fato de que, apesar disso, a promessa de igualdade e de liberdade está t a m b é m de algum m o d o inscrita Hessa f o r m a de organização social. E n ã o é apenas isso, o i .ipitalismo é a primeira formação histórica que desenvolve de maneira tão vertiginosa a técnica e a p r o d u ç ã o que t o r n a de fato possível a realização da liberdade e da igualdade, l i n d a que sua efetiva realização dependa, para Marx, da destruição dessa f o r m a histórica de p r o d u ç ã o . E as análises de Marx c o n d u z e m ao prognóstico de q u e o capitalismo tende a essa destruição, tanto p o r sua p r ó p r i a lógica interna m > ntraditória — M a r x conclui que, c o m o tempo, a taxa de Itiu o tende a cair estruturalmente, o q u e viria a provocar o
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colapso da lógica de f u n c i o n a m e n t o d o sistema — c o m o pela ação consciente d o proletariado contra o poder d o capital. Nesse sentido, a destruição d o capitalismo e a instauração de u m a sociedade de livres e iguais é u m a tendência real presente n o p r ó p r i o sistema. Para Marx, p o r t a n t o , a liberdade e a igualdade só poderão ser realizadas c o m a abolição do capital. Mas é i m p o r tante notar que é o p r ó p r i o capitalismo que simultaneam e n t e p r o m e t e u m a sociedade livre e igual e, n o seu funcion a m e n t o concreto, r o u b a a cada vez a possibilidade dessa realização. Dito de o u t r a maneira, a realização da liberdade e da igualdade depende de u m a revolução que venha a abolir o capital e sua f o r m a social. Essa revolução é obra d o proletariado organizado c o m o classe, vale dizer, d o proletariado consciente de que a realização da liberdade e da igualdade depende da abolição d o p r ó p r i o capital. Essa
emancipação
do proletariado em relação à d o m i n a ç ã o capitalista, entretanto, encontra obstáculos concretos. A conscientização do proletariado c o m o classe é u m processo q u e tem de superar t a n t o as ilusões reais produzidas pelo capitalismo c o m o a repressão dos movimentos emancipatórios pelo poder político, econômico e social do capital. Os princípios fundamentais
da Teoria Crítica. Dessa sucinta
recapitulação de alguns elementos da análise d o capitalismo feita p o r M a r x já é possível enunciar os princípios f u n d a mentais que distinguem a Teoria Crítica (em sentido anv pio) de outras correntes de pensamento, demarcando, assim,
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0 seu campo. O esforço analítico de M a r x está f u n d a m e n talmente na perspectiva da superação da d o m i n a ç ã o capitalista e a n c o r a d o na realização da liberdade e da igualdade, que, sob o capitalismo, p e r m a n e c e m apenas aparentemente 1 cais. Trata-se, portanto, para Marx, de destruir essa aparênc ia por meio da efetiva realização da liberdade e da igualdade. Nesse sentido, essa perspectiva de emancipação não é um ideal, m e r a m e n t e imaginado pelo teórico, mas u m a possibilidade real, inscrita na própria lógica social do capitalismo. Mas, se é assim, t a m b é m a realização dessa possibilidade concreta da emancipação, da construção de u m a iociedade de mulheres e h o m e n s livres e iguais, não é obra dn teoria que a descortina, mas da prática t r a n s f o r m a d o r a que a t o r n a real. Assim, a Teoria Crítica só se confirma n a Imítica t r a n s f o r m a d o r a das relações sociais vigentes. Isso n ã o significa, entretanto, que haja u m a b a n d o n o da leoria e m prol da prática. É certo que a Teoria Crítica, em sua formulação original em Marx, está dirigida para e pela pi.itica t r a n s f o r m a d o r a . Mas isso não quer dizer que seja nu nos i m p o r t a n t e a análise das estruturas sociais reais e m (JUC estão inscritos t a n t o os potenciais de emancipação quanto os obstáculos concretos à sua efetivação. Pelo cont tá lio, o delineamento de tendências d o desenvolvimento histórico ganha u m a extraordinária importância: tanto com (fliH'U> ao diagnóstico do t e m p o presente a partir da lógica do i apitai — lógica que é estruturante d o c o n j u n t o da st ti iedade capitalista — c o m o com relação aos prognósticos •jui podem ser derivados a partir desse diagnóstico. É com h i e n a s tendências estruturais da lógica social do capitalis-
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m o e n o exame dos arranjos históricos concretos em que essa lógica se expressa — com base n o diagnóstico do p r e s e n t e , p o r t a n t o — q u e se d e s e n h a m as p e r s p e c t i v a s d o sentido do desenvolvimento histórico — os prognósticos, em s u m a — que o r i e n t a m o sentido das ações transform a d o r a s p o r empreender. Sendo assim, a teoria é tão i m p o r t a n t e p a r a o c a m p o crítico que o seu sentido se altera p o r inteiro: n ã o cabe a ela limitar-se a dizer c o m o as coisas funcionam,
mas sim anali-
sar o f u n c i o n a m e n t o concreto delas à luz de u m a pação ao m e s m o t e m p o concretamente
emanci-
possível e bloqueada
pelas relações sociais vigentes. C o m isso, é a própria perspectiva da emancipação que t o r n a possível a teoria, pois é ela q u e abre pela primeira vez o c a m i n h o para a efetiva compreensão das relações sociais. Sem a perspectiva da emancipação, permanece-se n o âmbito das ilusões reais criadas pela própria lógica interna da organização social capitalista. Dito de o u t r a maneira, é a orientação para a emancipação
o que permite compreender a sociedade e m
seu conjunto, que permite pela primeira vez a constituição de u m a teoria em sentido enfático. A orientação para a emancipação é o primeiro princípio f u n d a m e n t a l da Teoria Crítica. Se, portanto, a orientação para a emancipação está na base da teoria, c o m o o que confere sentido ao trabalho teórico, a teoria não p o d e se limitar a descrever o m u n d o social, mas tem de examiná-lo sob a perspectiva da distância que separa o que existe das possibilidades melhores nele embutidas e não realizadas, vale dizer, à luz da carência d o
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que é frente ao melhor que p o d e ser. Nesse sentido, a orientação para a emancipação exige que a teoria seja expressão de u m comportamento
crítico relativamente ao conhecimen-
to p r o d u z i d o sob condições sociais capitalistas e à própria realidade social que esse conhecimento pretende apreender. Esse c o m p o r t a m e n t o crítico é o segundo princípio
funda-
mental da Teoria Crítica. C o m o n o caso d o primeiro princípio, t a m b é m o comp o r t a m e n t o crítico com relação ao conhecimento e à realidade social não é algo que o teórico i n t r o d u z "de fora", mas sim u m princípio inscrito n o real. Pois esse c o m p o r t a m e n t o é exatamente aquele que caracteriza a posição social do proletariado n o processo de p r o d u ç ã o social, vale dizer, a sua posição de classe. Esse p o n t o de vista permite identificar as tendências estruturais do desenvolvimento histórico e seus arranjos concretos da perspectiva das potencialidades
e
dos obstáculos à emancipação. Esses dois princípios f u n d a m e n t a i s da Teoria Crítica herdados de Marx, ao m e s m o t e m p o e m q u e caracterizam o c a m p o crítico, t a m b é m d e m a r c a m negativamente esse campo, já que excluem tanto aqueles teóricos que constroem modelos abstratos de sociedades perfeitas (e que nessa vertente intelectual são c h a m a d o s de utópicos o u 110 rmativistas) c o m o aqueles que p r e t e n d e m reduzir a tarela da teoria a u m a descrição neutra d o f u n c i o n a m e n t o da iociedade (chamados de positivistas). Os dois princípios mostram a possibilidade de a sociedade emancipada estar inscrita na f o r m a atual de organização social c o m o u m a tendência real de desenvolvimento, c a b e n d o à teoria o exa-
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m e do existente não para descrevê-lo simplesmente, mas para identificar e analisar a cada vez os obstáculos e as potencialidades de emancipação presentes e m cada m o m e n t o histórico.
A Teoria Crítica segundo Max Horkheimer Pelo que foi apresentado até aqui, u m a análise de "Teoria Tradicional e Teoria Crítica" tem de mostrar de que maneira esse texto de H o r k h e i m e r interpreta e f o r m u l a os dois princípios f u n d a m e n t a i s da Teoria Crítica e c o m o se utiliza deles para fornecer u m diagnóstico d o t e m p o presente. Sendo assim, há que examinar c o m o H o r k h e i m e r f o r m u l a nesse texto o princípio do comportamento
crítico relativamente ao
conhecimento p r o d u z i d o sob condições sociais capitalistas e à própria realidade social que esse conhecimento pretende apreender com base n o princípio da orientação para a emancipação que caracteriza mais a m p l a m e n t e a perspectiva crítica. Nesse sentido, o c o n h e c i m e n t o crítico opõe-se a t o d o c o n h e c i m e n t o que não tiver sido p r o d u z i d o a partir desses dois princípios f u n d a m e n t a i s . Mas, c o m o se verá, não se trata simplesmente de rejeitar o c o n h e c i m e n t o que n ã o dispõe da perspectiva da emancipação e m sua produção; ao contrário, trata-se, para a perspectiva crítica, de m o s t r a r p r i m e i r a m e n t e p o r que ele é parcial, p a r a então buscar integrá-lo, sob nova f o r m a , ao c o n j u n t o do conhecimento crítico. E, c o m o e s t a m p a d o n o p r ó p r i o título d o artigo,
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esse c o n h e c i m e n t o p r o d u z i d o sob condições sociais capitalistas é d e n o m i n a d o p o r H o r k h e i m e r "Teoria Tradicional". A concepção tradicional de teoria. A concepção m o d e r n a de i iência e de teoria científica estabeleceu-se c o m o u m conjunto de princípios abstratos a partir dos quais se t o r n a possível f o r m u l a r leis que explicam a conexão necessária dos f e n ô m e n o s naturais segundo relações de causa e efeito. () cientista procura aplicar os princípios e leis a f e n ô m e n o s particulares, f o r m u l a n d o hipóteses que se constituem e m previsões sobre o que tem necessariamente de ocorrer a partir de determinadas condições iniciais. A ocorrência d o lenômeno previsto pela teoria significa a confirmação da previsão e, nesse sentido, a confirmação de u m a própria teoria. Caso contrário, passa a ser necessário rever as condições do experimento de verificação, ou algum aspecto da própria teoria. Entendida assim, a teoria científica coloca c o m o tarefa 11 n icamente o estabelecimento de vínculos necessários entre os fenômenos naturais a partir de leis e princípios mais gerais. C o m isso, o cientista é aquele q u e observa os fenômenos e estabelece conexões objetivas entre eles, quer dizer, conexões que se dão na natureza i n d e p e n d e n t e m e n t e de qualquer intervenção de sua parte. Para tanto, tem de absi i .1 ir das qualidades concretas dos objetos e d o sentido que possam ter n o contexto das relações sociais, para considelá los u n i c a m e n t e c o m o elementos de u m a cadeia causai necessária. Essas são as características mais gerais do que
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H o r k h e i m e r d e n o m i n a concepção tradicional
de teoria, a
Teoria Tradicional. O que acontece, entretanto, q u a n d o esse m o d e l o de ciência é transposto p a r a o estudo d o h o m e m e m sociedade, p a r a as hoje d e n o m i n a d a s "ciências h u m a n a s " ? C o m o é possível, nesse caso, m e r a m e n t e observar os f e n ô m e n o s e estabelecer conexões causais objetivas entre eles, q u a n d o o objeto e m questão (as relações sociais) é u m p r o d u t o da ação h u m a n a ? Além disso, o que significa então u m " f e n ô m e n o " social? P o d e - s e t r a t á - l o c o m o se fosse u m e v e n t o da natureza? Para que seja possível essa transposição do modelo tradicional de teoria das ciências naturais para as ciências h u m a n a s , torna-se necessário antes de mais n a d a separar o cientista social do agente social que ele t a m b é m é, o u seja, diferenciar o observador de relações sociais d o m e m b r o de u m a sociedade concreta. Para tanto, é preciso distinguir rigidamente a observação da sociedade de u m a avaliação da observação feita, o u seja, é necessário separar, de u m lado, a descrição de c o m o funciona a sociedade, e de outro, os valores próprios a cada cientista c o m o agente social. Dito de outra maneira, se, n o caso d o estudo da sociedade h u m a n a , o sujeito (o cientista) é t a m b é m simultaneam e n t e o objeto da investigação (como agente social), o u seja, se a sociedade é resultado da ação h u m a n a de que participa aquele que pretende entendê-la, é preciso separar essas duas facetas d o m e s m o indivíduo de m o d o que n ã o se c o n f u n d a m o u misturem. Para isso, é necessário estabelecer u m método científico (à maneira das ciências naturais) que
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impeça que o cientista social, consciente o u inconscientemente, dirija a investigação dos f e n ô m e n o s sociais para u m a mera confirmação de seus valores pessoais. Em outras palavras, esse m é t o d o científico tem de separar rigidamente o que é d o d o m í n i o do conhecimento
e
0 que pertence ao d o m í n i o da ação. Dessa perspectiva tradicional de teoria, n ã o cabe ao cientista qualquer valoração do objeto estudado, mas tão somente a sua classificação e explicação segundo os parâmetros neutros do método. Na concepção tradicional, portanto, a teoria não p o d e em n e n h u m caso ter por objetivo a ação, não pode ter u m objetivo prático n o m u n d o , mas tão somente apresentar a conexão dos f e n ô m e n o s sociais tais c o m o se apresentam a um observador isolado da prática. D o contrário, o observador deixa de ser u m cientista e passa a ser u m agente social 1 orno qualquer outro, i m b u í d o de u m a determinada coni epção de m u n d o , de u m d e t e r m i n a d o c o n j u n t o de valores cm n o m e dos quais age. A partir de tais critérios, a concepção tradicional de teoria t a m b é m estabelece u m a especialização da atividade do cientista social análoga àquela d o cientista da natureza. Sendo possível circunscrever u m r a m o de investigação da sociedade a p a r t a d o de toda e qualquer valoração de seu objeto (ou seja, sendo possível circunscrever u m c a m p o de investigação que se estabeleça i n d e p e n d e n t e m e n t e de t o d a > qualquer concepção de m u n d o particular), tem-se u m a di-.iiplina científica. Foi assim que surgiram disciplinas 11' Mtíficas c o m o a sociologia, a antropologia social e a ciên• l,i política, sendo q u e esses parâmetros vieram t a m b é m a
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reorientar disciplinas já existentes, c o m o a história, a psicologia e o direito, p o r exemplo. A concepção tradicional de teoria estimulou o s u r g i m e n t o de disciplinas particulares e u m a crescente especialização n o â m b i t o de cada disciplina em particular. A atitude crítica. Segundo Horkheimer, a perspectiva tradicional de teoria, p r e t e n d e n d o simplesmente explicar o f u n c i o n a m e n t o da sociedade, termina p o r adaptar o pensam e n t o à realidade. Em n o m e de u m a pretensa neutralidade da descrição, a Teoria Tradicional resigna-se à f o r m a histórica presente da dominação. E m u m a sociedade dividida e m classes, a concepção tradicional acaba p o r justificar essa divisão c o m o necessária. Mas, pelo que foi visto até agora, seriam essas críticas aceitáveis? Afinal, não é necessário resguardar a ciência da confusão c o m concepções de valor? N ã o é necessário separar "conhecer" e "agir" c o m o dimensões radicalmente distintas, se há intenção de alcançar o autêntico conhecimento científico da realidade? O p r o b l e m a está, diz Horkheimer, e m q u e o conhecim e n t o da realidade social é u m m o m e n t o da ação social — assim c o m o esta é u m m o m e n t o daquele. Não se trata de negar que conhecer e agir sejam distintos, mas de reconhecer que têm de ser considerados c o n j u n t a m e n t e . Se a realidade social é o resultado da ação h u m a n a , esta se dá, p o r sua vez, n o contexto de estruturas históricas determinadas, de u m a dada f o r m a de organização social. Desse m o d o , o p r i m e i r o passo é o de investigar essas estruturas, de maneira
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H descobrir quais são as condições históricas em que se dá a ação. Ao fixar a separação entre conhecer e agir, entre teoria r prática, segundo u m m é t o d o estabelecido a partir de I '.i râmetros da ciência natural m o d e r n a , a teoria tradicional rs pulsa d o seu c a m p o de reflexão as condicionantes histói h ,is do seu p r ó p r i o método. Se t o d o conhecimento p r o d u /H lo é, entretanto, historicamente d e t e r m i n a d o (mutável no tempo, p o r t a n t o ) , não é possível ignorar essas condicionantes senão ao preço de permanecer na superfície dos fenômenos, sem ser capaz, portanto, de conhecer p o r inteiro suas if.us conexões na realidade social. E m outras palavras, na i ouccpção tradicional de teoria, o m é t o d o é t r a n s f o r m a d o
crítico, que
pirlcnde conhecer sem abdicar da reflexão sobre o caráter histórico d o conhecimento produzido. Sendo o capitalismo iini.i forma social histórica que tem c o m o centro organizado) o mercado, trata-se, antes de mais nada, de reconhecer ijiu ,i p r o d u ç ã o de mercadorias é o foco a partir do qual se f i t i u t u r a a sociedade. E, c o m o já visto, a organização da »m tedade e m f u n ç ã o da p r o d u ç ã o de mercadorias e d o lUero estrutura a sociedade capitalista e m classes. Desse Htodo, qualquer concepção de ciência q u e n ã o tenha c o m o Jiffssii posto a divisão da sociedade em classes e que não seja f i p a z de reconhecer o exercício da ciência c o m o u m dos m o m e n t o s dessa sociedade p r o d u t o r a de mercadorias estat i i itdo, c o m o concepção de ciência, parcial.
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O c o m p o r t a m e n t o crítico pretende m o s t r a r d u a s coisas s i m u l t a n e a m e n t e . Por u m lado, q u e a p r o d u ç ã o científica de extração tradicional é parcial, p o r q u e , ao ignorar que essa p r o d u ç ã o t e m u m a posição d e t e r m i n a d a n o f u n c i o n a m e n t o da sociedade, acaba p o r construir u m a i m a g e m da m e s m a q u e fica n o nível da aparência, não conseguindo atingir os objetivos que ela p r ó p r i a se colocou c o m o teoria. Por o u t r o lado, entretanto, que essa aparência à qual se limita a Teoria Tradicional é t a m b é m aquela p r o d u z i d a pela p r ó p r i a lógica ilusória d o capital, que p r o m e t e a liberdade e a igualdade que jamais p o d e r ã o ser realizadas sob o capitalismo. Nesse sentido, a parcialidade da concepção tradicional de teoria é t a m b é m real: ela expressa a parcialidade própria de u m a sociedade dividida e m classes. Cabe, portanto, à Teoria Crítica eliminar essa parcialidade da Teoria Tradicional. Mas isso não significa afastar o u negar a Teoria Tradicional sem mais. C o m o diz Horkheimer, trata-se de dar a ela a consciência concreta de sua limitação; quer dizer, é preciso considerar seus resultados n o contexto mais a m p l o da sociedade p r o d u t o r a de mercadorias, entendê-los e m vista da posição social específica da Teoria Tradicional. Só assim ela p o d e superar sua f u n ç ã o de legitimação da dominação, assumida p o r ela desde o m o m e n t o em que se pôs c o m o tarefa examinar os f e n ô m e n o s sociais de maneira objetiva e neutra. Mas, se é assim, a Teoria Crítica n ã o se c o m p o r t a criticamente apenas em relação ao conhecimento produzido sob condições capitalistas, m a s igualmente em relação à
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p r ó p r i a r e a l i d a d e q u e esse c o n h e c i m e n t o
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pretendeu
.1preender. O u seja, a atitude crítica n ã o se volta apenas para o conhecimento, mas p a r a a própria realidade das condições sociais capitalistas. E isso p o r q u e o c o m p o r t a m e n t o crítico tem sua fonte na orientação para a emancipação
relativa-
mente à d o m i n a ç ã o vigente. Nesse sentido, a Teoria Crítica irá interpretar todas as rígidas distinções em que se baseia a Teoria Tradicional (como "conhecer", "agir", "ciência", "valor" e tantas outras) c o m o indícios da incapacidade da concepção tradicional de compreender a realidade social em seu todo. O m é t o d o tradicional, ao t o m a r essas cisões c o m o dadas e não c o m o produtos históricos de u m a formação social, não é capaz de explicar satisfatoriamente por que elas seriam, afinal, necessárias. A Teoria Crítica, ao contrário, mostra que tais diviKóes rígidas são características de u m a sociedade dividida, .linda não emancipada. Sendo assim, é a perspectiva da emancipação, da instauração de u m a sociedade reconciliada, que ilumina a presente situação de n ã o emancipação e permite à Teoria Crítica compreender o real sentido das cisões não justificadas da Teoria Tradicional. É a unidade f u t u r a , na sociedade emancipada, dos elementos que se e n c o n t r a m cindidos sob tl dominação capitalista, a fonte de luz que instaura a perspectiva crítica sobre o existente. O c o m p o r t a m e n t o crítico lorna-se possível p o r q u e f u n d a d o em u m a orientação para a emancipação da sociedade, para a realização da liberdade e ila igualdade que o capitalismo ao m e s m o t e m p o possibilita e bloqueia.
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O materialismo
interdisáplinar.
H á u m a grande diferença
entre a situação da p r o d u ç ã o científica n o t e m p o de Marx (1818-1883) e aquela que foi teorizada p o r H o r k h e i m e r em 1937. Não havia n e m de longe, n o t e m p o de Marx, o n ú m e r o de disciplinas científicas e de especialidades que se desenvolveram posteriormente. Nesse sentido, H o r k h e i m e r tem de lidar c o m u m elemento novo em relação ao quadro teórico f o r m u l a d o p o r Marx. Mas isso n ã o é u m obstáculo. C o m o já visto, é característica da Teoria Crítica a p e r m a n e n te renovação, o debruçar-se sobre u m c o n j u n t o de problemas e perguntas que cabe atualizar a cada vez, segundo cada situação histórica particular. O p a r â m e t r o da relação da Teoria Tradicional com a Teoria Crítica é aquele da economia política clássica com as formulações d o p r ó p r i o M a r x (que praticou a crítica da economia política, c o m o já m e n c i o n a d o ) . Mas a economia política clássica tem u m parentesco r e m o t o c o m o que hoje se entende c o m o ciência econômica e n e m r e m o t a m e n t e corresponde à lógica da especialização atual, sendo diferente t a m b é m da ciência econômica tal c o m o praticada na década de 1930 nos países centrais. À primeira vista, o processo de acelerada especialização poderia parecer inteiramente contrário ao m o d e l o de análise do capitalismo elaborado p o r Marx, já que se basearia em u m a f r a g m e n t a ç ã o da realidade social prejudicial à apreensão d o t o d o pretendida pela perspectiva crítica. A compreensão d o c o n j u n t o da lógica social a partir da c o m preensão da lógica de valorização d o capital poderia parecer prejudicada pela proliferação de perspectivas disciplinares.
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i r , entretanto, o c o m p o r t a m e n t o crítico tem de dar às ir.ilizações da Teoria Tradicional u m t r a t a m e n t o tal que permita a sua incorporação à Teoria Crítica, esse procedimento tem de valer t a m b é m para o processo de especialização científica crescente. Dessa f o r m a H o r k h e i m e r n ã o pretende se distanciar • Ia especialização, mas quer dar a ela u m sentido crítico. Isso é possível, p r i m e i r a m e n t e , na m e d i d a em que a f rescente especialização d o conhecimento é compreendida r m seus c o n d i c i o n a m e n t o s históricos e e m seu sentido iocial. Ainda assim, é necessário ter claro que, ao f r a g m e n i.ii cada vez mais o objeto de estudo (a sociedade) em múltiplas perspectivas, a especialização da Teoria Tradii ional t o r n a cada vez mais difícil a compreensão da sociedade e m seu c o n j u n t o , c o m sua divisão e m classes e sua organização em t o r n o da valorização d o capital. Deste modo, a p r o d u ç ã o científica encerra-se cada vez mais na Mistificação da o r d e m existente. Em vista disso, H o r k h e i m e r pretende encontrar u m sentido positivo para o m o v i m e n t o em direção à crescente ispecialização, a f i m de orientá-lo no sentido crítico. Para tanto, lançou as bases d o já mencionado materialismo
inter-
disciplinar, e m que pesquisadores trabalhando em diferentes áreas d o c o n h e c i m e n t o têm c o m o h o r i z o n t e c o m u m a teoria de Marx. Economistas, cientistas sociais, psicólogos, teóricos do direito e da política, filósofos e críticos de arte colaboram para, e m cada disciplina particular, interpretar Os resultados da Teoria Tradicional em vista de u m a imagem da sociedade capitalista em seu conjunto, simultaneamente
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organizada em t o r n o da valorização d o capital e revelando potenciais de superação e m relação à d o m i n a ç ã o do mesmo. Foi essa experiência interdisciplinar que permitiu a H o r k h e i m e r f o r m u l a r o seu diagnóstico d o t e m p o presente, de maneira a identificar as tendências do desenvolvimento histórico naquele m o m e n t o . C o m o já visto anteriormente, a Teoria Crítica constitui-se n o d u p l o exercício de interpretação do p e n s a m e n t o de M a r x e de utilização desses parâmetros interpretativos p a r a analisar o m o m e n t o histórico presente. Foi esse d u p l o exercício q u e H o r k h e i m e r fez nos seus escritos da década de 1930, i n a u g u r a n d o o que se c h a m o u aqui de Teoria Crítica em sentido restrito. Diagnóstico do tempo presente. São três os elementos f u n d a mentais que caracterizam o diagnóstico do t e m p o presente de H o r k h e i m e r em seu texto "Teoria Tradicional e Teoria Crítica". Todos eles derivam direta ou indiretamente de trabalhos realizados n o âmbito d o Instituto de Pesquisa Social na década de 1930 e e m grande medida divergem com relação ao diagnóstico a p r e s e n t a d o o r i g i n a l m e n t e por Marx. O primeiro elemento i m p o r t a n t e tem sua origem nas análises econômicas de Friedrich Pollock, autor já mencion a d o anteriormente. Segundo os escritos de Pollock da década de 1930, as tendências autodestrutivas do capitalism o n ã o se encontravam acirradas, apesar da Revolução Russa de 1917 e da crise econômica sem precedentes ocorrida em 1 9 2 9 . 0 capitalismo passou de u m a fase concorrencial para u m a nova, a monopolista — na qual u m a alta e
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B i s c e n t e concentração d o capital em uns poucos conglomerados econômicos acabou p o r exigir intervenções profundas d o Estado n a economia com o objetivo de estabilizar M relações de mercado. C o m isso, t o r n o u - s e necessário repensar as relações entre Estado e capital, já que, segundo h prognóstico original de Marx, a possibilidade de u m a Intervenção p e r m a n e n t e do Estado para estabilizar e organiza r o mercado levaria a u m colapso da própria lógica de valorização do capital. O segundo e l e m e n t o i m p o r t a n t e d o diagnóstico de I lorkheimer p r o v é m dos estudos empíricos sobre a classe trabalhadora alemã realizados na p r i m e i r a metade da • é c a d a de 1930. A partir deles, H o r k h e i m e r concluiu que tinha ocorrido u m a i m p o r t a n t e diferenciação social no Interior do p r ó p r i o proletariado. Essa diferenciação seria, tlli primeiro lugar, econômica. Ao c o n t r á r i o da previsão de um e m p o b r e c i m e n t o crescente do proletariado, observou-se o s u r g i m e n t o de u m a aristocracia operária e u m a melhoria das condições de vida de parte d o operariado. Em segundo lugar, o p r ó p r i o peso da classe trabalhadora lio processo e c o n ô m i c o se alterou em razão dessa diferenciação social, n ã o s e n d o mais possível identificar simplesmente u m grande p o l o de pobreza e u m o u t r o p e q u e n o polo de riqueza na sociedade, mas diferentes níveis e . amadas sociais. O terceiro elemento i m p o r t a n t e d o diagnóstico de I lorkheimer, t a m b é m objeto de pesquisa d o Instituto, é lepresentado pela ascensão do nazismo e d o fascismo. Esse elemento mostra n ã o só que a capacidade de resistência da
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classe trabalhadora à d o m i n a ç ã o capitalista t i n h a sido superestimada, m a s que a sua possível reorganização sob a brutal repressão nazista era m u i t o improvável. É preciso lembrar t a m b é m que a ascensão do nazismo e d o fascismo veio a c o m p a n h a d a de u m extraordinário desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, da p r o p a g a n d a e da indústria d o entretenimento — o que a u m e n t o u a eficácia d o controle espiritual das massas. Ao examinar esses três elementos em conjunto, é possível entender p o r que H o r k h e i m e r considerava que os potenciais de emancipação da d o m i n a ç ã o capitalista encontravam-se bloqueados naquele m o m e n t o : estabilização dos elementos autodestrutivos do capitalismo, integração das massas ao sistema e repressão a t o d o m o v i m e n t o de contestação. C o m isso, era a própria ação t r a n s f o r m a d o r a , a própria prática que se encontrava bloqueada, n ã o restando ao exercício crítico senão o âmbito da teoria. Mas se, nesse diagnóstico, o nazismo p o d e ser considerado u m elemento histórico c o n j u n t u r a l e felizmente derrotado, o diagnóstico de H o r k h e i m e r d o bloqueio da prática continha t a m b é m elementos estruturais divergentes relativamente ao q u a d r o teórico estabelecido p o r Marx, c o m o a estabilização dos elementos autodestrutivos d o capitalismo em sua fase monopolista e o surgimento de novos mecanism o s de integração das massas ao sistema. E m 1937, esses elementos estruturais apontavam para a necessidade de u m a revisão mais p r o f u n d a de alguns dos pilares da teoria de Marx, sem, entretanto, realizá-la. Esse c o n f r o n t o mais intenso com a teoria de M a r x seria realizado posteriormen
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te, tanto pelo p r ó p r i o H o r k h e i m e r c o m o p o r outros pensadores da Teoria Crítica. Seja c o m o for, pode-se s u p o r que a complexidade e o •ilto grau de dificuldade de leitura de "Teoria Tradicional e léoria Crítica" devam-se em grande m e d i d a a essa convivência em u m m e s m o texto de elementos teóricos n e m l e m p r e p l e n a m e n t e conciliáveis. Mas talvez seja t a m b é m exatamente p o r isso que esse seja o texto inaugural do que é chamado aqui de Teoria Crítica em sentido restrito, já que sua tentativa de m a n t e r unidos elementos teóricos de difícil conciliação permite leituras e perspectivas de interpretação bastante divergentes. Não sendo possível, entretanto, no •unbito deste livro tratar em detalhe de todas essas diferentes perspectivas interpretativas, de todos os autores que se reivindicam dessa concepção, n e m das diferentes fases de suas obras, procurou-se concentrar esforços na apresentação da iileia de Teoria Crítica e de sua formulação original no texto de H o r k h e i m e r de 1937, de m o d o a fornecer ao leitor os elementos f u n d a m e n t a i s para se introduzir n o universo da léoria Crítica e de seus autores. Ainda assim, a próxima seção tentará apresentar em suas grandes linhas dois modelos de Teoria Crítica que têm c o m o referência central essa i onceituação original realizada por Horkheimer.
Modelos de Teoria Crítica lima lista apenas indicativa dos autores que t ê m o texto de I lorkheimer de 1937 c o m o referência incluiria os n o m e s já
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mencionados de Adorno, Marcuse, Lówenthal e, na geração seguinte, Jürgen H a b e r m a s (nascido em 1929). Até o n d e sei, n ã o se dispõe ainda de estudos mais detalhados das obras de Kirchheimer, N e u m a n n e F r o m m (até 1939, q u a n d o ele se afasta d o Instituto), de m o d o a verificar se e em que medida o r i e n t a m seus trabalhos segundo os parâmetros específicos da c o n c e i t u a ç ã o de H o r k h e i m e r . O caso de Walter Benjamin t a m b é m é, nesse contexto, excepcional, já que ele constrói u m m o d e l o de Teoria Crítica próprio e anterior ao de Horkheimer, t e n d o grande influência nas formulações de A d o r n o e d o próprio H o r k h e i m e r posteriores a 1940 — ano de sua m o r t e na tentativa de fuga da perseguição nazista. Vê-se já p o r que, n o contexto deste volume, não seria possível apresentar todos esses autores e as diferentes fases de suas obras. O objetivo primeiro deste livro é o de fornecer os elementos f u n d a m e n t a i s para que o leitor possa se introduzir nessa tradição intelectual e, assim, estar e m condições de se dedicar à leitura e ao estudo daqueles autores de seu interesse. É possível, entretanto, fornecer algumas indicações de c o m o esse prosseguimento da leitura de autores da Teoria Crítica poderia se dar. Apresento a seguir, de maneira esquemática, e m suas grandes linhas, dois modelos de Teoria Crítica: o do livro Dialética do Esclarecimento, de H o r k h e i m e r e Adorno, e o m o d e l o comunicativo de Jürgen Habermas. O modelo da Dialética do Esclarecimento. Publicado em livro pela primeira vez e m 1947, o trabalho a quatro m ã o s de
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I lorkheimer e de A d o r n o foi escrito d u r a n t e o exílio norteunericano d o g r u p o d o Instituto de Pesquisa Social. Tratase de u m a o b r a de estrutura peculiar, c o m u m ensaio inicial ("O conceito de esclarecimento"), sucedido por dois "excursos", u m ensaio sobre a indústria cultural, e u m a análise do antissemitismo, encerrando-se com u m a série de pequenos textos e fragmentos sobre temas variados. Nesse livro, H o r k h e i m e r e A d o r n o a b a n d o n a m o m o delo do materialismo interdisciplinar da década de 1930, o que significa, sob m u i t o s aspectos, a b a n d o n a r t a m b é m alguns elementos decisivos da Teoria Crítica tal c o m o apresentada em 1937 p o r Horkheimer. Ainda que a colaboração entre as diferentes especialidades teóricas tenha sido m a n tida de alguma f o r m a , a economia política deixou de ocupar o centro d o a r r a n j o interdisciplinar. Isso se coaduna com o novo diagnóstico que fizeram, segundo o qual o capitalismo tinha se t r a n s f o r m a d o de tal maneira q u e n ã o mais produzia a possibilidade concreta da realização da igualdade e da liberdade. Desse m o d o , em "Teoria Tradicional e Teoria (mítica", a possibilidade da prática t r a n s f o r m a d o r a encon(rava-se bloqueada historicamente pela repressão e pela propaganda nazista, permanecia ainda n o horizonte a idéia de que as possibilidades de intervenção t r a n s f o r m a d o r a n o m u n d o p o d e r i a m se reabrir com a derrota d o nazismo. Esse não foi, entretanto, o diagnóstico de H o r k h e i m e r e A d o r n o .t partir do início da década de 40. A vitória das tropas Aliadas não significou, para eles, a restauração das possibilidades revolucionárias. Pelo contrário, o diagnóstico d o tempo presente que desenvolveram na Dialética do Esclare-
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cimento foi o de u m bloqueio estrutural da prática transformadora. Esse diagnóstico estava calcado e m análises econômicas (de Friedrich Pollock mais u m a vez, a q u e m foi dedicado o livro de 1947) que apontavam para u m a m u d a n ç a estrutural d o f u n c i o n a m e n t o d o capitalismo, na qual a intervenção do Estado na organização da produção, distribuição e c o n s u m o tinha adquirido o caráter de u m verdadeiro planejamento. Isso alterou radicalmente os t e r m o s em que M a r x havia estabelecido suas análises. Essa nova f o r m a d o capitalismo foi d e n o m i n a d a p o r Pollock "capitalismo de Estado", sendo que, n a Dialética do esclarecimento,
Horkhei-
m e r e A d o r n o elaboraram u m a versão p r ó p r i a dessa conceituação de Pollock, que c h a m a r a m de "capitalismo administrado" o u " m u n d o administrado". As fases anteriores d o capitalismo (a "liberal" ou "concorrencial", e a "monopolista") t i n h a m a característica m a r cante de a p o n t a r e m p a r a além de si mesmas, descortinando em si m e s m a s o c a m p o de ação capaz de abolir o capital e instaurar a sociedade justa. O capitalismo administrado, ao contrário, é u m sistema que se fecha sobre si mesmo, que bloqueia estruturalmente qualquer possibilidade de superação virtuosa da injustiça vigente e paralisa, portanto, a ação genuinamente t r a n s f o r m a d o r a . Isso ocorre p o r q u e o velho p a r a d i g m a d o capitalismo liberal — o da autorregulação d o m e r c a d o — não mais se aplica, e o novo mecanismo que o substituiu é ainda mais opaco. O sistema econômico n o capitalismo administrado é controlado de fora, politicamente. N o entanto, esse con-
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(role não é exercido de maneira transparente, mas sim hurocraticamente, segundo a racionalidade própria da b u locracia que se chama, na linguagem de H o r k h e i m e r e Adorno, "instrumental": trata-se de u m a racionalidade que pondera, calcula e ajusta os melhores meios a fins dados exteriormente ao agente. Historicamente, entretanto, o grande projeto de e m a n i ipação da razão h u m a n a esteve sempre colocado na determinação racional dos fins, ou seja, n o debate e na efetivação daqueles valores julgados belos, justos e verdadeiros. No capitalismo administrado, a razão se vê reduzida a u m a capacidade de adaptação a fins previamente dados de calcular os melhores meios para alcançar fins que lhe são estranhos. Essa racionalidade é d o m i n a n t e na sociedade n ã o apenas p o r m o l d a r a economia, o sistema político ou a burocracia estatal, ela t a m b é m faz parte da socialização, do processo de aprendizado e da formação da personalidade. Por isso, H o r k h e i m e r e A d o r n o e m p r e e n d e r a m , na / >ialética do Esclarecimento,
u m a investigação sobre a razão
h u m a n a de a m p l o espectro. Seu objetivo foi o de buscar compreender p o r que a racionalidade das relações sociais humanas, ao invés de levar à instauração de u m a sociedade de mulheres e h o m e n s livres e iguais, acabou p o r produzir um sistema social q u e bloqueou estruturalmente qualquer possibilidade emancipatória e t r a n s f o r m o u os indivíduos em engrenagens de u m mecanismo que n ã o c o m p r e e n d e m e não d o m i n a m e ao qual se s u b m e t e m e se adaptam, impotentes. Esse problema mais geral se t r a d u z na tarefa de compreender c o m o a razão h u m a n a acabou p o r restringir-
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se historicamente à sua f u n ç ã o instrumental, cuja f o r m a social concreta é a do m u n d o administrado. Traduzido nos t e r m o s d o artigo "Teoria Tradicional e Teoria Crítica", seria c o m o dizer que a f o r m a de p e n s a m e n t o ilusória e parcial própria da Teoria Tradicional é n ã o apenas d o m i n a n t e , m a s t a m b é m a única f o r m a possível de racionalidade sob o capitalismo administrado. Sendo assim, a racionalidade c o m o u m t o d o reduz-se a u m a f u n ç ã o de adaptação à realidade, à p r o d u ç ã o do c o n f o r m i s m o diante da d o m i n a ç ã o vigente. Essa sujeição ao m u n d o tal qual aparece n ã o é mais, portanto, u m a ilusão real que p o d e ser superada pelo c o m p o r t a m e n t o crítico e pela ação transform a d o r a . Ela é u m a sujeição sem alternativa, p o r q u e a racionalidade própria da Teoria Crítica n ã o encontra mais ancor a m e n t o concreto na realidade social d o capitalismo administrado, u m a vez que n ã o são mais discerníveis as tendências reais da emancipação. A d o m i n a ç ã o total e completa da racionalidade instrumental sobre o c o n j u n t o da sociedade capitalista resulta então n o m e n c i o n a d o bloqueio estrutural da prática. Mas, se é assim, t a m b é m o p r ó p r i o exercício crítico encontra-se e m u m a aporia: se a razão instrumental é a f o r m a única de racionalidade no capitalismo administrado, b l o q u e a n d o qualquer possibilidade real de emancipação, e m n o m e de que é possível criticar a racionalidade instrumental? H o r k h e i m e r e A d o r n o a s s u m e m conscientemente essa aporia, dizendo que ela é, n o capitalismo administrado, a condição de u m a crítica cuja possibilidade se t o r n o u extremamente precária.
A Teoria Crítica
O modelo comunicativo
de Jürgen Habermas.
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O p o n t o de
partida da formulação de H a b e r m a s da Teoria Crítica será justamente a situação da teoria tal c o m o descrita na Dialética do Esclarecimento.
H a b e r m a s pretende criticar o diag-
nóstico desse livro de H o r k h e i m e r e A d o r n o e, para isso, retoma, sob m u i t o s aspectos, o m o d e l o crítico presente e m "Teoria Tradicional e Teoria Crítica". Para Habermas, apoiar conscientemente a possibilidade da crítica em u m a aporia (como fizeram H o r k h e i m e r e Adorno) significa colocar e m risco o p r ó p r i o projeto crítico. Pois tal aporia fragiliza tanto a possibilidade de u m c o m p o r t a m e n t o crítico relativamente ao conhecimento q u a n t o a orientação para a emancipação. É evidente, entretanto, que H o r k h e i m e r e A d o r n o chegaram a tal posição teórica levados pela exigência m e s m a da Teoria Crítica de analisar o m o m e n t o histórico sem retoques n e m concessões, o u seja, pela exigência de p r o d u z i r u m diagnóstico d o m o m e n t o presente capaz de apresentar com rigor as tendências estruturais do capitalismo administrado. Sendo assim, de m o d o a se c o n t r a p o r a essa posição aporética de H o r k h e i m e r e Adorno, H a b e r m a s p r o p ô s u m diagnóstico do m o m e n t o presente divergente daquele apresentado na Dialética do Esclarecimento. N e m p o r isso, entretanto, deixam de existir algumas convergências importantes entre os dois diagnósticos. Partindo da constatação de que o capitalismo passou a ser regulado pelo Estado, H a b e r m a s concluiu que as duas tendências f u n d a m e n t a i s para a e m a n cipação presentes na teoria marxista — a d o colapso interno, em razão da q u e d a tendencial da taxa de lucro, e aquela
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da organização d o proletariado contra a d o m i n a ç ã o d o capital — t i n h a m sido neutralizadas. E m b o a medida, esses elementos estão presentes t a m b é m n o diagnóstico f o r m u l a d o p o r H o r k h e i m e r e A d o r n o em seu livro. A diferença está, entretanto, em que H a b e r m a s n ã o conclui daí que as o p o r t u n i d a d e s para a emancipação t e n h a m sido estruturalmente bloqueadas, mas sim que é necessário repensar o p r ó p r i o sentido de emancipação da sociedade tal c o m o originalmente f o r m u l a d o p o r M a r x e t a m b é m p o r H o r k h e i m e r e m "Teoria Tradicional e Teoria Crítica". Nesse sentido trata-se, para Habermas, de constatar que, p a r a enfrentar as tarefas clássicas da própria Teoria Crítica, é preciso hoje ampliar seus temas e encontrar u m novo paradigma explicativo. Pois, se os p a r â m e t r o s originais da Teoria Crítica levaram a que, na Dialética do Esclarecimento, fosse posta em risco a própria possibilidade da crítica e da emancipação, são esses parâmetros m e s m o s que têm de ser revistos, sob pena de se perder exatamente o essencial dessa tradição de pensamento. Para Habermas, portanto, são as próprias formulações originais de M a r x que têm de ser abandonadas. Isso n ã o p o r q u e H a b e r m a s pretenda abrir m ã o da crítica, mas porque, para ele, os conceitos originais da Teoria Crítica não são mais suficientemente críticos frente à realidade atual. A Dialética do Esclarecimento
tinha p o r objeto princi-
pal de investigação a razão h u m a n a e as f o r m a s sociais da racionalidade, concluindo dessa investigação que a razão instrumental consistia na f o r m a estruturante e única da
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racionalidade social n o capitalismo administrado. Isso resultava em u m a situação aporética d o c o m p o r t a m e n t o crítico e em u m bloqueio estrutural da prática transformadora. Sendo assim, para se contrapor a esse diagnóstico de Horkheimer e A d o r n o , H a b e r m a s f o r m u l o u u m novo conceito de
racionalidade. Para ele, a racionalidade instrumental identificada p o r
H o r k h e i m e r e A d o r n o c o m o a única d o m i n a n t e e, por isso, objeto p o r excelência da crítica não deve ser demonizada, mas é preciso, diferentemente, i m p o r - l h e freios. Para tanto, H a b e r m a s irá f o r m u l a r u m a teoria da racionalidade de dupla face, em que a instrumental convive com u m outro tipo de racionalidade que ele d e n o m i n a "comunicativa". Essa teoria é f o r m u l a d a em termos de u m a teoria da ação, que H a b e r m a s apresentou de maneira mais detalhada em seu livro Theorie des Kommunikativen
Handelns
(Teoria da
ação comunicativa, sem tradução para o português), de 1981. (Uma primeira formulação das teses que viriam a ser defendidas nesse livro encontra-se n o artigo "Técnica e ciência c o m o 'ideologia'", de 1968.) Assim, ao contrário de H o r k h e i m e r e Adorno, que apresentam u m a teoria d o desenvolvimento da racionalidade h u m a n a que culmina em u m prevalecimento da razão instrumental c o m o f o r m a única da racionalidade, Habermas pretende m o s t r a r que a evolução histórico-social das formas de racionalidade leva a u m a progressiva diferenciação da razão h u m a n a em dois tipos de racionalidade — a instrumental
ea
comunicativa.
A ação instrumental é aquela orientada para o êxito, em que o agente calcula os melhores meios p a r a atingir fins
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determinados previamente. Esse tipo de ação é aquele que caracteriza p a r a H a b e r m a s o trabalho — aquelas ações dirigidas à d o m i n a ç ã o da natureza e à organização da sociedade que visam à p r o d u ç ã o das condições materiais da vida e que p e r m i t e m a coordenação das ações, isto é, possibilitam a reprodução material da sociedade. E m contraste com esse tipo de racionalidade, surge aquela própria da ação de tipo comunicativo, quer dizer, orientada para o entendimento
e n ã o para a manipulação de
objetos e pessoas n o m u n d o e m vista da reprodução material da vida ( c o m o é o caso da racionalidade instrumental). A ação orientada para o e n t e n d i m e n t o é aquela que permite, p o r sua vez, a r e p r o d u ç ã o simbólica da sociedade. Segundo Habermas, a f o r m a social p r ó p r i a d o capitalismo c o n t e m p o r â n e o é aquela em que a orientação da ação para o e n t e n d i m e n t o encontra-se presente n o p r ó p r i o processo de f o r m a ç ã o da identidade de cada indivíduo, nas próprias instituições e m que ele é socializado e nos processos de aprendizado e de constituição da personalidade. A racionalidade comunicativa encontra-se assim, p a r a Habermas, efetivamente inscrita n a realidade das relações sociais contemporâneas. Sendo u m tipo de orientação da ação efetivamente presente na realidade das relações sociais, a orientação para o e n t e n d i m e n t o só é possível, entretanto, p o r q u e projeta condições ideais em que n ã o haveria qualquer obstáculo à plena comunicação entre os interlocutores. Nesse sentido, diz Habermas, tais condições ideais são, p o r paradoxal que
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possa parecer, condições de comunicações reais n o m u n d o . Para eles, se n ã o fosse assim, n ã o seria sequer possível falar em u m a ação orientada para o entendimento, em u m a ação comunicativa. A ação comunicativa se caracteriza p o r pressupor a cada vez u m a série de condições como: que n ã o haja assimetrias de poder, dinheiro o u posição social entre os sujeilos que p r e t e n d e m se entender, que os sujeitos só se deixem convencer pelo m e l h o r argumento; o u que não haja distúrbios psicológicos que atrapalhem a comunicação. Salta aos olhos, entretanto, que condições c o m o essas jamais se cumprem n o m u n d o real das relações sociais, e m que as assimetrias e dissimetrias entre os sujeitos são a regra e não a exceção. Mas esse é justamente o a r g u m e n t o de Habermas: ao orientar sua ação para o entendimento, os sujeitos antecipam necessariamente
tais condições ideais, pois sem elas
não seria possível u m a ação comunicativa; simultaneamenIe, entretanto, tais condições necessárias n ã o são cumpridas, o que permite, p o r sua vez, que sejam detectadas todas as distorções da comunicação — aqueles obstáculos que impedem a cada vez a p l e n a realização de u m a ação c o m u n i c a tiva. Para que a comunicação possa se dar, essas condições ideais têm de ser antecipadas e m situações reais de ação, o que significa que essa antecipação encontra-se inscrita na vida social concreta. C o m isso, H a b e r m a s p o d e simultaneamente fornecer u m a solução para o a n c o r a m e n t o real da emancipação na configuração social atual e estabelecer u m
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p a r â m e t r o crítico para avaliar t a n t o o conhecimento produzido q u a n t o situações sociais concretas, já que o potencial comunicativo
inscrito na vida social jamais se realiza plena-
mente. C o m H a b e r m a s , surge a idéia de u m a racionalidade dúplice, e m que a racionalidade instrumental e a comunicativa se m o s t r a m ambas não apenas necessárias à p r o d u ç ã o e reprodução da vida em sociedade, c o m o t a m b é m complementares.
F u n d a m e n t a l para H a b e r m a s é q u e cada u m a
dessas racionalidades n ã o extrapole seus d o m í n i o s próprios. Q u a n d o isso acontece, temos o que ele d e n o m i n a patologia social. T a m b é m aqui, a teoria comporta-se
critica-
mente em relação à realidade social, na m e d i d a e m que é capaz de detectar essas patologias e dispõe de parâmetros críticos para a p o n t a r a ação concreta a ser empreendida para eliminá-las. É grande a distância, entretanto, a separar essas f o r m u lações de H a b e r m a s da enunciação original dos princípios f u n d a m e n t a i s da Teoria Crítica tal c o m o realizada por Marx. Entre outras, u m a das conseqüências mais imediatas dessa reformulação dos parâmetros críticos p o r H a b e r m a s é a de que "emancipação" deixa de ser s i n ô n i m o de "revolução", de abolição das relações sociais capitalistas pela ação consciente do proletariado c o m o classe. O que terá como contrapartida, p o r exemplo, u m a valorização dos potenciais emancipatórios presentes nos mecanismos de participação próprios d o Estado democrático de direito, que é o principal objeto de investigação dos trabalhos de H a b e r m a s a partir da década de 1990.
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Breve nota final Este volume de introdução terá sido já bem-sucedido se t i ver sido capaz de estimular a leitura dos vários autores aqui mencionados. Nesse sentido, terá atingido seu objetivo se essa nota final significar u m começo: o da tentativa de decifrar nos vários autores da Teoria Crítica os modelos que propõem. Dessa perspectiva, a idéia de u m a escola (como a Escola de Frankfurt) parece redutora diante de u m a experiência m u i t o mais interessante e rica, q u e é a da pluralidade de modelos n o c a m p o da Teoria Crítica, t a n t o em seu sentido amplo c o m o n o sentido restrito daqueles que têm por referência as formulações de H o r k h e i m e r em seus esi ritos da década de 1930. Mas esta n o t a final é t a m b é m u m começo no sentido de que a tradição intelectual da Teoria Crítica não se contenta em analisar contribuições de seu p r ó p r i o c a m p o à maneira de u m a classificação de fósseis. Cada exame de cada modelo crítico vem carregado t a m b é m de novos problemas ç perguntas, exatamente n o espírito de p e r m a n e n t e renovad o e atualização que caracteriza essa teoria: Será que os princípios f u n d a m e n t a i s da Teoria Crítica tais c o m o formulados originalmente p o r M a r x são, ainda hoje, suficientes para demarcar o c a m p o crítico? Se ainda o (Ao, será que o sentido da orientação p a r a a emancipação e ilo c o m p o r t a m e n t o crítico diante do c o n h e c i m e n t o e da realidade social deve permanecer o m e s m o , o u devemos tilribuir novos sentidos a esses princípios? Nesse caso, qual ler ia o seu novo c o n t e ú d o e que c a m p o teórico ele d e m a r -
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caria? Se a posição n o interior d o c a m p o for a da Teoria Crítica e m sentido restrito, será que a conceituação elaborada p o r H o r k h e i m e r n a década de 1930 ainda deve permanecer a referência central? Tentar responder a essas perguntas e problemas é levar a Teoria Crítica adiante, e n ã o simplesmente encontrar para ela u m lugar a n ó d i n o n o arquivo m o r t o da história do pensamento.
Seleção de textos
Para os sujeitos do comportamento crítico, o caráter discrepante cindido do todo social, em sua figura atual, passa a ser contradição consciente. Ao reconhecer o m o d o de economia vigente e o todo cultural nele baseado como produto do trabalho h u m a n o , e como a organização de que a humanidade foi capaz e que impôs a si mesma na época atual, aqueles sujeitos se identificam, eles mesmos, com esse todo c o compreendem como vontade e razão: ele é o seu próprio mundo. Por outro lado, descobrem que a sociedade é comparável com processos naturais extra-humanos, meros mecanismos, porque as formas culturais baseadas em luta e opressão não é a prova de u m a vontade autoconsciente e unitária. Em outras palavras: este m u n d o não é o deles, mas sim o m u n d o do capital. Aliás a história não pôde até agora ser compreendida a rigor, pois compreensíveis são apenas os indivíduos e grupos isolados, e mesmo esta compreensão não se dá de u m a f o r m a exaustiva, u m a vez que eles, por força da dependência interna de uma sociedade desumana, são ainda funções meramente mecânicas, inclusive na ação consciente. Aquela identificação é portanto contraditória, pois encerra em si u m a contradição que caracteriza todos os conceitos da maneira de pensar crítica. Assim as categorias econômicas tais como trabalho, valor e produtividade
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são para ela exatamente o que são nesta ordem [social], e qualquer outra interpretação não passa de mau idealismo. Por outro lado, aceitar isso simplesmente aparece como uma inverdade torpe: o reconhecimento crítico das categorias dominantes na vida social contém ao mesmo tempo a sua condenação. O caráter dialético desta autoconcepção do homem contemporâneo condiciona em última instância também a obscuridade da crítica kantiana da razão. A razão não pode tornar-se, ela mesma, transparente enquanto os homens agem como membros de um organismo irracional. Como uma unidade naturalmente crescente e decadente, o organismo não é para a sociedade uma espécie de modelo, mas sim uma forma apática do ser, da qual tem que se emancipar. Um comportamento que esteja orientado para essa emancipação, que tenha por meta a transformação do todo, pode servir-se sem dúvida do trabalho teórico, tal como ocorre dentro da ordem desta realidade existente. Contudo ele dispensa o caráter pragmático que advém do pensamento tradicional como u m trabalho profissional socialmente útil. Max Horkheimer, "Teoria Tradicional e Teoria Crítica" Contradições Uma moral como sistema, com princípios e conclusões, uma lógica férrea e a possibilidade de uma aplicação segura a todo dilema moral — eis aí o que se pede aos filósofos. Em geral, eles responderam a essa expectativa. Mesmo quando não estabeleceram nenhum sistema prático ou uma casuís-
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tica elaborada, eles conseguiram deduzir d o sistema teórico a obediência à autoridade. Na maioria das vezes, voltaram a fundamentar, valendo-se dos recursos da lógica, da intuii ção e da evidência, t o d a a escala dos valores tal como já a sancionara a prática pública. " H o n r a i os deuses com a religião legada por vossos ancestrais", diz Epicuro e o próprio Hegel secundou-o. Q u e m hesita a se pronunciar nesse sentido será solicitado ainda mais energicamente a fornecer um princípio universal. Se o p e n s a m e n t o não se limita a ratificar os preceitos vigentes, ele deverá se apresentar de maneira ainda mais segura de si, mais universal, mais autoritária, do que q u a n d o se limita a justificar o que já está em vigor. Será que você considera injusto o poder dominante? Q u e m sabe você quer que impere o caos e n ã o o poder? Você está criticando a uniformização da vida e o progresso? Será que, à noite, a gente deve voltar a a c e n d e r velas de cera? Será que o fedor d o lixo deve voltar a empestear nossas cidades, c o m o na Idade Média? Você n ã o gosta dos matadouros, será que a sociedade deve passar a comer legumes crus? Por mais a b s u r d o que seja, a resposta positiva a essas questões encontra ouvidos. O anarquismo político, a reação cultural baseada n o artesanato, o vegetarianismo radical, as seitas e partidos excêntricos têm o c h a m a d o apelo publicitário. A doutrina só precisa ser geral, segura de si, universal e imperativa. O que é intolerável é a tentativa de escapar à disjuntiva "ou isso — o u aquilo", a desconfiança d o princípio abstrato, a firmeza sem doutrina.
" Wilhelm Nestle (org.), Die Nachsokratiker. I-.195.
Iena, 1923. Vol. I, 72a,
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Dois jovens conversam: A — Você n ã o quer ser médico? B — Por causa da profissão, os médicos estão sempre lidando com os m o r i b u n d o s , e isso endurece as pessoas. Depois, com a institucionalização crescente, os médicos passam a representar e m face do doente a empresa c o m sua hierarquia. Muitas vezes, ele se vê tentado a se apresentar c o m o o administrador da morte. Ele se t o r n a o agente da grande empresa e m face dos consumidores. Q u a n d o se trata de automóveis, isso n ã o é tão grave assim, mas q u a n d o os bens administrados são a vida e os consumidores são pessoas que sofrem, trata-se de u m a situação e m que não gostaria de m e encontrar. A profissão d o médico de família talvez fosse mais inofensiva, mas ela está e m decadência. A — Você acha que n ã o deveria mais haver médicos e que deveríamos voltar aos charlatães? B — Não disse isso. Só tenho h o r r o r de m e tornar médico, e sobretudo u m desses diretores-médicos com poder de c o m a n d o sobre u m hospital público. Apesar disso, acho que é melhor, naturalmente, que haja médicos e hospitais d o que deixar os doentes morrer. T a m b é m n ã o quero ser n e n h u m p r o m o t o r público, mas acho que dar liberdade aos assaltantes seria u m mal m u i t o maior d o q u e a existência dessa corporação que os põe na cadeia. A justiça é racional. N ã o sou contra a razão, só quero enxergar a f o r m a que ela assumiu. A — Você está se contradizendo. Você se aproveita o t e m p o t o d o dos serviços dos médicos e dos juizes. Você é tão culpado q u a n t o eles próprios. Só que você não quer se dar ao trabalho de fazer o que os outros fazem p o r você. Sua
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própria existência pressupõe o princípio a que você gostaria cie escapar. B — Não nego isso, mas a contradição é necessária. Ela é u m a resposta ã contradição objetiva da sociedade. Q u a n d o a divisão do trabalho é tão diferenciada c o m o hoje e m dia, é possível que e m d a d o lugar se manifeste u m h o r r o r responsável pela culpabilidade de todos. Se esse h o r r o r se difundir, se pelo m e n o s u m a pequena parte da h u m a n i d a d e se t o r n a r consciente dele, talvez os m a n i c ô m i o s e as penitenciárias se t o r n e m mais h u m a n o s e os tribunais acabem se t o r n a n d o supérfluos. Mas n ã o é absolutamente por isso que eu quero ser escritor. Eu só queria ver com maior clareza a situação terrível e m q u e t u d o se encontra hoje em dia. A — Mas se todos pensassem c o m o você, e ninguém quisesse sujar as mãos, então não haveria n e m médicos n e m juizes, e o m u n d o pareceria ainda mais horrível. B — Mas é justamente isso que m e parece questionável, pois, se todos pensassem c o m o eu, espero, n ã o apenas os remédios contra o m a l iam diminuir, mas o p r ó p r i o mal. A h u m a n i d a d e ainda tem outras possibilidades. Eu não sou a h u m a n i d a d e inteira e n ã o posso simplesmente t o m a r o seu lugar e m m e u s pensamentos. O preceito m o r a l que diz que cada u m a de m i n h a s ações deveria poder ser t o m a d a c o m o u m a m á x i m a universal é m u i t o problemático. Ele ignora a história. Por que m i n h a aversão a ser médico deveria eqüivaler à opinião de que n ã o deve haver médicos? Na verdade, há tantas pessoas aí q u e p o d e m ser bons médicos e têm mais de u m a chance de vir a ser médicos. Se eles se c o m p o r t a r e m m o r a l m e n t e d e n t r o dos limites traçados atualmente para
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sua profissão, terão m i n h a admiração. Talvez cheguem mesm o a m i n o r a r o m a l que descrevi p a r a você; talvez, ao contrário, agravem-no ainda mais, apesar de toda a sua competência técnica e t o d a a sua moralidade. M i n h a vida, tal c o m o a imagino, m e u h o r r o r e m i n h a vontade de conhecer p a r e c e m - m e tão justificados c o m o a própria profissão de médico, m e s m o que eu não possa ajudar diretamente a ninguém. A — M a s se você soubesse que você poderia, se estudasse p a r a médico, vir a salvar a vida de u m a pessoa a m a d a , vida que ela perderia c o m t o d a a certeza, não fosse p o r você, você não se dedicaria imediatamente ao estudo da medicina? B — Provavelmente, mas você m e s m o está v e n d o que, com seu gosto por u m a coerência inexorável, você acaba t e n d o de recorrer a u m exemplo absurdo, e n q u a n t o eu, com m i n h a teimosia sem n e n h u m sentido prático e c o m m i n h a s contradições, n ã o m e afastei do bom-senso. Esse diálogo se repete sempre que u m a pessoa n ã o quer abrir m ã o do p e n s a m e n t o e m benefício da prática. Ela vai sempre encontrar a lógica e a coerência n o lado contrário. Q u e m for contra a vivissecção não deve mais fazer n e n h u m m o v i m e n t o respiratório, p o r q u e isto p o d e custar a vida a u m bacilo. A lógica está a serviço d o progresso e da reação, ou, e m t o d o caso, da realidade. Mas, na época de u m a educação radicalmente realista, os diálogos tornaram-se mais raros, e o interlocutor neurótico B precisa de u m a força s o b r e - h u m a n a para n ã o ficar são. M a x H o r k h e i m e r e T h e o d o r Adorno, Dialética do
Esclarecimento
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Até a m e t a d e d o século XIX, o m o d o de p r o d u ç ã o capitalista se i m p ô s a tal p o n t o , na Inglaterra e na França, que M a r x pôde reconhecer o q u a d r o institucional da sociedade nas relações de p r o d u ç ã o e, ao m e s m o t e m p o , criticar o f u n d a m e n t o de legitimação da troca dos equivalentes. Ele elaborou a crítica da ideologia burguesa e m f o r m a de economia política: sua teoria do valor d o trabalho destruiu a aparência de liberdade, na qual a relação de violência social, subjacente à relação d o trabalho assalariado, tornara-se irreconhecível pela instituição jurídica do livre contrato de trabalho. Ora, o que Marcuse critica e m M a x Weber é o fato de que, sem ter levado em conta a visão penetrante de Marx, ele se fixa a u m conceito abstrato de racionalização que n ã o enuncia o conteúdo de adaptação do q u a d r o institucional específico a cada classe, adaptação aos subsistemas progressivos d o agir racional-com-respeito-a-fins, mas q u e mais u m a vez os esconde. Marcuse sabe m u i t o b e m que a análise marxista não pode mais ser aplicada sem restrições às sociedades d o capitalismo em fase tardia que Max Weber já tem em vista. Mas ele queria mostrar, t o m a n d o Max Weber c o m o exemplo, que o desenvolvimento da sociedade m o d e r n a n o quadro de u m capitalismo regulado pelo Estado escapa aos conceitos, se o capitalismo liberal n ã o for p r e v i a m e n t e conceitualizado. Desde a última q u a r t a parte do século XIX nos países capitalistas mais avançados, duas tendências de
desenvolvi-
mento p o d e m ser notadas: (1) u m acréscimo da atividade intervencionista d o Estado, que deve garantir a estabilidade
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d o sistema, e (2) u m a crescente interdependência entre a pesquisa e a técnica, que t r a n s f o r m o u a ciência n a principal força produtiva. Ambas as tendências p e r t u r b a m aquela constelação d o q u a d r o institucional e dos subsistemas d o agir racional-com-respeito-a-fins, pela qual se caracterizava o capitalismo desenvolvido dentro d o liberalismo. C o m isso, caem p o r terra relevantes condições de aplicação da economia política, na formulação que, t e n d o e m vista o capitalismo liberal, M a r x lhe deu a justo título. Creio que a chave para a análise da constelação modificada se encontra n a tese básica de Marcuse, segundo a qual técnica e ciência hoje a s s u m e m t a m b é m o papel de legitimar a dominação. A regulação a longo prazo do processo econômico intervenção
pela
do Estado originou-se da defesa contra as dis-
funções que ameaçavam o sistema de u m capitalismo aband o n a d o a si mesmo, cujo desenvolvimento efetivo contrariava tão obviamente a sua própria idéia de u m a sociedade burguesa que se emancipasse da d o m i n a ç ã o e neutralizasse o poder. A ideologia básica da troca justa, que M a r x conseguiu desmascarar teoricamente, fracassou na prática. A form a de valorização do capital na economia privada só podia ser m a n t i d a pelos corretivos estatais de u m a política socioeconômica que estabilizava a circulação. O q u a d r o institucional da sociedade foi repolitizado. Ele h o j e n ã o mais coincide imediatamente c o m as relações de produção, ou seja, com u m a o r d e m de direito privado que garanta a circulação da economia capitalista, e com as correspondentes garantias gerais de o r d e m do Estado burguês. C o m isso, alterou-se a relação entre o sistema econômico e o sistema
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de dominação: política não é mais apenas u m f e n ô m e n o de superestrutura. Se a sociedade não continua mais a se autorregular "de m a n e i r a a u t ô n o m a " c o m o u m a esfera subjacente ao Estado e p o r ele pressuposta — e essa era a verdadeira novidade do m o d o capitalista de p r o d u ç ã o — , a sociedade e o Estado n ã o estão mais n u m a relação que a teoria marxista d e t e r m i n o u c o m o relação entre a base e a superestrutura. Mas, então, u m a teoria crítica da sociedade t a m b é m n ã o pode mais ser f o r m u l a d a exclusivamente e m termos de u m a crítica da economia política. U m m o d o de teorização que isole metodicamente as leis econômicas de m o v i m e n t o da sociedade só p o d e ter a pretensão de compreender a contextura da vida da sociedade nas suas categorias essenciais, e n q u a n t o a política for dependente da base econômica e essa última, inversamente, n ã o tiver q u e ser compreendida t a m b é m c o m o u m a f u n ç ã o da atividade d o Estado e dos conflitos que se resolvem politicamente. Segundo Marx, a crítica da economia política só se constituía e m teoria da sociedade burguesa e n q u a n t o era u m a crítica da ideologia. Mas, se a ideologia da troca justa d e s m o r o n a , o sistema de d o m i n a ç ã o t a m b é m n ã o pode mais ser criticado
imediata-
mente a partir das relações de produção. Depois do d e s m o r o n a m e n t o dessa ideologia, a d o m i nação política requer u m a nova legitimação. Ora, c o m o o p o d e r exercido indiretamente sobre o processo de troca é p o r sua vez c o n t r o l a d o pela d o m i n a ç ã o organizada préestatalmente e institucionalizada ao m o d o de u m Estado, a legitimação não p o d e mais ser derivada de u m a o r d e m n ã o política, das relações de produção. Nessa medida, renova-se
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a pressão, existente nas sociedades pré-capitalistas, n o sentido da legitimação direta. Por o u t r o lado, o restabelecimento da d o m i n a ç ã o política imediata ( n u m a f o r m a tradicional da legitimação baseada sobre a tradição cultural) t o r n o u - s e impossível. Por u m lado, as tradições já estão de qualquer maneira enfraquecidas; p o r outro, nas sociedades industrialmente desenvolvidas, os resultados da emancipação burguesa com respeito à d o m i n a ç ã o política imediata (os direitos f u n d a m e n t a i s e o mecanismo das eleições gerais) só p o d e m ser plenamente ignorados nos períodos de ação. A dominação formalmente democrática nos sistemas do capitalismo regulado pelo Estado está sujeita a u m a exigência de legitimação que não p o d e mais ser satisfeita pelas retomadas da f o r m a de legitimação pré-burguesa. Por isso surge, n o lugar da ideologia da troca livre, u m programa de
substitu-
tivos, que n ã o é mais orientado pelas conseqüências sociais da instituição do m e r c a d o , m a s pelas c o n s e q ü ê n c i a s sociais de u m a atividade de Estado que compensa as disfunções da troca livre. Ela conjuga o m o m e n t o da ideologia burguesa do r e n d i m e n t o (que desloca, entretanto, d o mercado para o sistema escolar, a atribuição de status c o n f o r m e a medida d o r e n d i m e n t o individual) com a garantia do m í n i m o de bem-estar social, a perspectiva de segurança do lugar de trabalho, b e m c o m o a estabilidade dos vencimentos. Esse p r o g r a m a de substitutivos obriga o sistema de d o m i n a ç ã o a preservar as condições de estabilidade de u m sistema global que garanta a segurança social e as chances de ascensão pessoal, e a prevenir os riscos d o crescimento. Isso exige u m espaço de manipulação para as intervenções
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d o Estado que, ao preço de u m a restrição das instituições de direito privado, assegurara a f o r m a privada da valorização do capital e vinculam a fidelidade das massas a essa forma. Na medida e m que a atividade do Estado é dirigida para a estabilidade e o c r e s c i m e n t o d o s i s t e m a e c o n ô m i c o , a política assume u m caráter negativo peculiar: ela visa a eliminar as disfunções e evitar os riscos que ameacem o sistema, portanto, n ã o para a realização de objetivos práticos mas para a solução de questões técnicas. Isso foi m o s t r a d o claramente p o r Claus Offe, na sua contribuição para o Dia dos Sociólogos de Frankfurt (Frankfurter Soziologentag) deste ano: Nessa estrutura da relação entre a economia e o Estado, a 'política' degenera n u m agir q u e segue numerosos e sempre novos 'imperativos que dizem respeito ao que deve ser evitado', ao m e s m o t e m p o que a q u a n t i d a d e de i n f o r m a ções sociológicas diferenciadas, injetadas n o sistema social, possibilita o rápido reconhecimento das zonas de risco, b e m c o m o o t r a t a m e n t o das ameaças efetivas. O que é novo nessa estrutura é ... o fato de que os riscos da estabilidade incorporados n o m e c a n i s m o de valorização d o capital nos m e r cados altamente organizados da economia privada, riscos que, todavia, são manipuláveis, prescrevem aquelas ações e medidas preventivas que devem ser aceitas n a medida em que se quer que elas sejam harmonizadas com a oferta de legitimação existente (com programa de substitutivos)".*
* Claus Offe, "Zur Klassentheorie und Herrschaftsstruktur im staatlich regulierten Kapitalismus" (manuscrito).
Marcos Nobre
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Offe vê m u i t o b e m que a atividade d o Estado é restringida p o r essas orientações de ação preventiva a tarefas técnicas administrativamente solúveis, de m o d o que as questões práticas são deixadas de lado. Os conteúdos práticos são eliminados. A política de estilo antigo, já pela p r ó p r i a f o r m a de legitimar a dominação, era levada a se d e t e r m i n a r e m relação aos fins práticos: as interpretações do "bem-viver" eram dirigidas para as contexturas de interação. Isso vale t a m b é m para a ideologia da sociedade burguesa. Por o u t r o lado, o p r o g r a m a de substitutivos hoje d o m i n a n t e é voltado tão somente para o f u n c i o n a m e n t o de u m sistema dirigido. Ele exclui as questões práticas e, c o m isso, a discussão sobre aceitação de padrões que só seriam acessíveis a u m a f o r m a ção democrática da vontade. A solução de tarefas técnicas não d e p e n d e de discussão pública. Discussões públicas poderiam, antes, problematizar as condições de c o n t o r n o d o sistema, dentro das quais as tarefas da atividade d o Estado se apresentam c o m o técnicas. A nova política de intervencionismo d o Estado exige, p o r isso, u m a despolitização da massa da população. Na m e d i d a em que as questões políticas são excluídas, a opinião pública política p e r d e a sua função. Por o u t r o lado, o q u a d r o institucional da sociedade continua ainda a ser distinto do agir racional-com-respeitoa-afins. Tal c o m o antes, sua organização é u m a questão da práxis ligada à comunicação e não apenas da técnica, c o m o quer que ela seja dirigida cientificamente. Portanto, a tendência de p ô r a práxis entre parênteses, ligada à nova f o r m a de d o m i n a ç ã o política, n ã o se compreende p o r si só. O
A Teoria Crítica
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programa de substitutivos que legitima a d o m i n a ç ã o deixa sem legitimação u m p o n t o importante: c o m o fazer com que a despolitização das massas se torne plausível para elas próprias? Marcuse poderia responder a isso: fazendo com que técnica e ciência a s s u m a m também
o papel de u m a
ideologia. Jürgen Habermas, "Técnica e ciência e n q u a n t o 'ideologia'", seção V.