Percurso e Recursos de MD Magno
Nelma Medeiros 1. Em
28 de julho de 1975, Jacques Lacan enviou uma carta a Magno Machado Dias,
então professor universitário e do magistério público estadual. Nela, agradecia o convite que recebera para ir ao Rio de Janeiro, sugerindo que poderia fazê-lo após a segunda quinzena de outubro daquele ano, pois por essa data já tinha agendada uma viagem à Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Não obstante, continuava Lacan, se seu correspondente quisesse ir a Paris no início de setembro, um encontro podia ser arranjado. Para tanto, fornecia-lhe um contato telefônico 1. O convite foi aceito e, na data proposta, MD Magno desembarcou em Paris. A história da psicanálise no Brasil daria uma guinada a partir daí. Inevitavelmente também o Brasil – sua história, cultura e assentamento sintomático – não passaria incólume, pois da obra desse brasileiro adviria uma séria de intervenções e reflexões sobre o país que era o seu. O professor Magno Machado Dias ingressara no magistério estadual através de dois concursos públicos, realizados pela administração Carlos Lacerda, respectivamente em 1965 e 1966, tendo sido aprovado em ambos, em primeiro lugar, na habilitação para Desenho. Já no início do exercício da primeira matrícula, fora transferido para o Instituto de Belas Artes, que se transformaria, em 1975, pelas mãos de Rubens Gerschman, na Escola de Artes Visuais, onde Magno realizaria seu primeiro Seminário, Senso contra Censo: da Obra de Arte, Arte , em 1976, após seu retorno de Paris no ano anterior. A segunda matrícula lhe viabilizou a transferência, em 1974, por intermédio de Eduardo Portella2, para a Secretaria de Cultura, Desportos e Turismo do Estado da 1
O leitor verá que algumas informações sobre o percurso intelectual de MD Magno foram retiradas do Acervo do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro – atualmente sob responsabilidade responsabilidade da UniverCidadeDeDeus –, que reúne cartas, fotos e outros documentos (ofícios de órgãos públicos, jornais e outros veículos de divulgação divulgaçã o universitários, universitá rios, revistas literárias regionais, regionais , etc.), ainda inéditos, aos quais faremos referência sempre que o texto se basear em informações lá obtidas, como a carta de Jacques Lacan citada. O acervo está sendo organizado, razão pela qual forneceremos o número de classificação provisório, com numeração sequencial e sem critério classificatório imediato, que obedece exclusivamente ao processo inicial de identificação e digitalização. A carta mencionada está identificada com o nº 472a-472b. 2 Em 1974, o baiano Eduardo Mattos Portella (1932-) estava à frente da Secretaria de Cultura do Estado da Guanabara, como diretor do órgão. Figura pública atuante nos meios políticos, !
Guanabara. Como representante da Secretaria junto à Maison de France, articulou a vinda de Lacan ao Rio, que não aconteceu, o que levou o brasileiro a Paris. Em meados da década de 1970, Magno já era professor universitário conhecido no Rio de Janeiro: atuava na PUC-Rio, como professor de semiologia; na Faculdade Hélio Alonso, lecionando teoria da comunicação; nas Faculdades Integradas Estácio de Sá, onde, como diretor de ensino, implantou um departamento de cultura, um jornal, uma rádio universitária e uma editora; na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, de onde seria transferido para a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, no departamento de educação artística; e na Escola de Comunicação da UFRJ, que ajudara a criar e onde buscaria espaço para produzir parte de sua obra teórica e de transmissão da psicanálise 3. O Seminário de MD Magno, iniciado no Parque Lage, passaria ainda pelo Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, então sediado no bairro do Leblon 4, e pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), antes de permanecer por 16 anos no campus da Praia Vermelha da UFRJ, onde foi encerrado em 1998, quando da aposentadoria do professor naquela instituição. Essa produção continuou ininterrupta, em Falatórios, Conferências e SóPapos, como o leitor pode testemunhar com o livro que tem em mãos. Nascido em Campos dos Goytacazes em 17 de janeiro de 1938, MD Magno adquiriu e desenvolveu muitas habilidades ao longo de sua vida estudantil e profissional, nada fazendo crer que se dedicaria à psicanálise como espaço de produção teórica e atuação clínica. Enquanto seguia o curso primário e o ginásio, no Liceu de Humanidades de Campos, estudou piano e teoria musical no Conservatório de Música de sua cidade5, interessando-se também pelo teatro e pela pintura, tendo participado de apresentações públicas nessas áreas. A partir dos 16 anos, prosseguiu seus estudos na Escola Preparatória de Cadetes do Exército, em Fortaleza, e chegou a fazer o primeiro intelectuais, acadêmicos e literários, àquela altura já acumulava experiência no exercício de funções técnicas e administrativas, na Secretaria de Educação do Estado da Guanabara e no Ministério da Educação e Cultura, no qual viria a ocupar o cargo máximo, entre 1979 e 1980, no governo do General João Batista Figueiredo. Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com ampla atuação docente e administrativa nessa universidade, foi professor de Magno no Mestrado em Comunicação (1972-1974) e no Doutorado em Letras (1975-1980). 3 Memorial do Prof. Magno Machado Dias apresentado à Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1980, por ocasião de concurso público prestado para Professor Adjunto da Escola de Comunicação no departamento de técnicas da comunicação daquela universidade. Acervo do CFRJ, doc. 359a-359j. Salvo indicação em contrário, as informações biográficas que se seguem foram retiradas desse documento. 4 Rua Ataulfo de Paiva, 1079, subsolo. 5 Acervo do CFRJ, doc. 392a-392f, 399a-399h e 400a-400d. #
semestre na Academia Militar de Agulhas Negras (AMAN), em Resende (RJ), que abandonou em 1957, desistindo definitivamente da carreira militar. 2.
“Aquele homem sozinho, / Que não fala com ninguém. / Cético não acredita em
amor, / E menos em filantropia. / Vive lendo, sonhando... / Sonhando com alguém, / Com todos, / Com ninguém (...) / Alma fria, / Fria e só... / Segue o caminho, / Traga o cigarro, / Mesmo olhar, / Mesma expressão... / Mas ele é LIVRE, / NÃO TEM ILUSÃO”. Assim o jovem cadete se expressou no poema intitulado “Aquele Homem”, publicado na Revista da Escola Preparatória, em 1956 6. Dentre tantas conjeturas a se fazer acerca desse testemunho juvenil de liberdade associada a decepção, ocorre-nos que uma delas foi a conjugação corrosiva de Monteiro Lobato com Sigmund Freud, que, da infância à adolescência, marcou sua formação. Através de Lobato, Magno entrou em contato com um arsenal de argumentos demolidores da religião, do conformismo e da co-naturalização, que continuaram a ser alvo de reflexão e crítica em sua produção em psicanálise. O que temos na literatura infanto-juvenil de Lobato? Um exercício de disponibilidade, na mão contrária da norma, do “é assim” como já estabelecido e que não se pode mais alterar. Através dos personagens e de suas aventuras no Sítio do Picapau Amarelo 7, o escritor paulista transmitia uma atitude artificialista de indagação, questionamento e eficácia, aliado a uma vontade de transformação, cultivada por uma vocação científica de buscar a lógica de articulação das coisas, para poder desmontá-las, remontá-las e, se possível, simplificá-las. Em nome do quê? Da curiosidade, do buscar saber como as coisas se articulam, e não o que elas são, são, questão estéril do eruditismo e da falação vazia. Além disso, Lobato não hesitava em lançar mão de estratégias explicativas – sempre por meio das “asneiras” da boneca Emília – que não mostravam nenhuma reverência ou respeito a autoridades de saber. Funis serviam para facilitar o entendimento de operações 6
Revista da Escola Preparatória de Fortaleza, Fortaleza , ano XII, dez. 1956, n. 13, p. 27. Acervo do CFRJ. 7 Monteiro Lobato começou a publicar estórias voltadas para o público infanto-juvenil no início da década de 1920, atuando nessa frente literária até 1944. Essa parte de sua obra literária está organizada em 17 volumes: Reinações Reinaçõe s de Narizinho (1931), Viagem ao céu e O Saci (1932); Caçadas de Pedrinho e Hans Staden (1933); História do mundo para as crianças (1933); Memórias Memória s da Emília e Peter Pan (1936); Emília no país da gramática e Aritmética da Emília invençõe s (1934); Geografia da Dona Benta (1935); Serões de Dona Benta e História das invenções (1937); D. (1937); D. Quixote Q uixote das crianças cr ianças (1936); O poço do Visconde (1937); Histórias (1937); Histórias de Tia Nastácia (1937); O Picapau Amarelo e A reforma da natureza (1939); O minotauro (1937); minotauro (1937); A chave do tamanho (1942); Fábulas (1942); Fábulas (1922); Os doze trabalhos de Hércules, Hércules, em dois volumes (1944). $
aritméticas; uma cidade inteira era concebida para mostrar os procedimentos da gramática; a natureza devia ser reformada – afinal, os humanos precisavam de quatro olhos na cabeça, as vacas passariam melhor com rabo nas costas para espantar as moscas, além de outras necessárias mutações, como passarinhos ninhos, percevejos cheirosos, moscas e pernilongos sem asas, borboletas “pegáveis”, livros comíveis, leite que assobiasse ao ferver. De preferência, que as coisas se miniaturizassem, pois, quanto mais se aperfeiçoam, menores ficam. Por fim, que se dessem razões e argumentos, ao invés de decretos, conjugando mudança com planejamento. Eram todas ideias com alguma lógica ou razão, de modo que Lobato mostrava que havia conhecimento disperso nas coisas, fossem elas estapafúrdias à luz do senso comum, fossem úteis, ponderáveis ou simplesmente plausíveis, se lhes fosse dada alguma atenção, desde que longe do regime do “já sabemos”, formatado pelas amarras inconscientes do recalque bem sucedido. Aliás, esse é um dos processos agonísticos da chamada “infância”, quando as aptidões e talentos de investigação das crianças podem (costumam) ser podados pelo entorno, fazendo delas marionetes insabidas de seus processos mentais de exclusão e codificando-lhes uma moral da qual, ao longo da vida, se desvencilharão ou não. Em carta a Lobato, datada de 1937, provavelmente escrita de Caetité (BA), onde se auto-exilara, em razão da escalada autoritária do governo Vargas e da perseguição da Igreja Católica, Anísio Teixeira declarava: “vivemos entre fantasmas, e os fantasmas são cousas realíssimas para os que neles acreditam. E o que neles acreditam é que estão mandando (...)”. Mas fazia a ressalva, quanto aos livros do amigo, saudando “o mundo sem fantasmas que você está a criar para as crianças” 8. Quanto a Freud, sua existência é “descoberta” na biblioteca da Escola Preparatória. Sim, Freud, antes ainda que Marx ou Nietzsche, além do fato de Platão ter sido lido como literatura. A lógica do inconsciente atingiu em cheio o jovem cadete, transformando-se em chave de leitura dos acontecimentos e escantilhão de análise, a funcionar doravante como atrator das diferentes possibilidades de inteligir e produzir mundo, em suas inumeráveis expressões e níveis de abordagem. Foram lidos, primeiro, os textos que Lacan viria a considerar “canônicos”: A interpretação dos sonhos (1900); A psicopatologia da vida cotidiana (1901) e O chiste e sua relação com o inconsciente (1905). Depois dessa descoberta, o estudante conseguiu que lhe presenteassem com a 8
Conversa entre amigos: correspondência escolhida entre Anísio Teixeira e Monteiro Lobato. Lobato . Org. Aurélio Vianna e Priscila Fraiz. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas/CPDOC, 1986, p. 83. %
obra completa na tradução então disponível em português 9. Logo depois de deixar a AMAN, aos 19 anos, começou a fazer análise com um psicanalista de língua alemã, que falava meio mal o português, e com um nome quase freudiano, Dr. Freund, que, traduzido, significa “amigo” 10. Nos anos seguintes, continuou a ler Freud, em espanhol e inglês, bem como a biblioteca psicanalítica que pôde alcançar, como Alfred Adler, Carl G. Jung, Sándor Ferenczi, Otto Rank, Anna Freud, Melanie Klein, Otto Fenichel e D. W. Winnicott. Interessou-se igualmente pela hipnose, que, no Brasil, a partir da década de 1950, tinha no psicanalista austríaco Karl Weissman, residente no país, um de seus mais conhecidos pesquisadores e divulgadores. Quase três décadas mais tarde, uma ressonância desse interesse ecoaria, no quadro da pesquisa sobre “Os primórdios da psicanálise no Brasil”, levada a cabo por membros do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, que tiveram oportunidade de entrevistar Weissmann, então octagenário. O resultado saiu publicado no Boletim no Boletim Maisum Maisum 11. 3.
De volta de Resende, em 1957, Magno prestou exame para a Escola Nacional de
Belas Artes, ali ingressando nos cursos de professorado de Desenho e Pintura, concluindo o bacharelado e a licenciatura na antiga Faculdade Nacional de Filosofia da então Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sua multifuncionalidade, por talento e necessidade, necessidade, o lançou em iniciativas que, heterodoxas à época, podem hoje ser colocadas na conta de um estilo, em gestação, que dispensou o raciocínio de fronteiras, lutou contra o sintoma das hierarquias prévias e atuou na bifrontalidade das coisas. Um pouco como, aqui e ali, se fazia sentir no que os críticos literários e de arte vinham denominando de “pós-moderno”, desde meados do século XX, a saber, uma radicalização da modernidade que extravasava os limites das artes visuais e da produção artística e literária em geral e invadia o cotidiano, reclamando a 9
Em evento comemorativo dos cinquenta anos da morte de Freud, em 1989, Magno relatou seu primeiro contato com a obra freudiana e as cercanias cercani as teóricas da psicanálise. psicanális e. Cf. Boletim Maisum, Maisum , nº. 81+1, 20 abril 1990, p. 4751-4754. 10 Informação fornecida por MD Magno. 11 Um alentado estudo, publicado originalmente em inglês, em 1970, por Henri F. Ellenberger, apresenta um amplo mapeamento dos diversos fenômenos indiciadores da presença do inconsciente e seus efeitos na espécie humana, ressituando uma longa tradição de práticas terapêuticas, do xamanismo ao espiritismo, passando pela hipnose, pelas quais Freud não apenas se interessou como também forneceu-lhes um lugar na unificação que propôs e que chamou de découv erte de d e l’inconscient l’inc onscient . Paris: psicanálise. psicanáli se. Ver ELLENBERGER, ELLENB ERGER, Henri F. L’histoire F. L’histoire de la découverte Fayard, 1994. Sobre o interesse pela hipnose no Brasil, ver WEISSMANN, Karl. Hipnotismo: Hipnotismo : psicologia, psicologia , técnica e aplicação. aplicação. Rio de Janeiro: Livraria Prado, 1958. A entrevista com Weissmann foi publicada em Boletim em Boletim Maisum Maisum,, nº 74, 1988. &
participação das pessoas 12 . A “tecnologia elétrica”, como denominava Marshall McLuhan, evidenciava os processos de intermediação ( intermedia) intermedia) ao deslocar a experiência do conteúdo para o processo; do sintoma representacionista de um sujeito que aborda o objeto (a realidade) para a interdependência dos registros (que as mídias digitais banalizariam três décadas depois); da hierarquia e autoridade dos detentores do saber para a comunicação generalizada da informação (mesmo que ainda concentrada nos meios de comunicação de massa, como rádio, televisão, cinema e jornais, com sua velocidade dependente de satélites). Sem respaldo de fortuna ou berço, Magno ganhava a vida de recém-casado vendendo apartamentos e dando aula particular de matemática 13. Como secretário de artes do Diretório Acadêmico da ENBA, o jovem universitário participou da criação da Galeria Macunaíma, incorporada à FUNARTE, a partir de 1975, além da realização da primeira exposição de artes plásticas em via pública. Criou a secretaria de música Heitor Villa-Lobos, em convênio com a Escola Nacional de Música, colocando no austero espaço da ENBA, em 1963, Hermínio Bello de Carvalho, que Arminda Villa-Lobos lhe apresentara, proferindo uma conferência sobre sambas e sambistas cariocas, acompanhado de Ismael Silva, Cartola, ZéKeti e Nelson Cavaquinho14. Compositor, produtor musical e escritor, Hermínio Bello de Carvalho, nascido no Rio de Janeiro, em 1935, vinha se destacando como repórter e Rádio-entrevista, além de produzir programas para a colunista de discos da revista Rádio-entrevista, Rádio MEC, na linha de pesquisa em defesa da musicalidade brasileira, como antes o fizeram Mario de Andrade e Heitor Villa-Lobos. Pouco tempo depois, em 1965, Ouro, do qual apresentou Clementina de Jesus ao Rio de Janeiro, no espetáculo Rosa de Ouro, foi diretor-roteirista, que contou com a participação de Turíbio Santos e onde também estreou o jovem Paulinho da Viola 15. A presença do samba carioca na ENBA era um exemplo de repúdio ao raciocínio de fronteira, acompanhado de uma denúncia, vigorosa no Brasil desde, pelo menos, Oswald de Andrade, sobre o academicismo esterilizante que insistia em se sobrepor ao que havia de criativo no país. Naquele mesmo ano, por ocasião da inauguração da 12
postmodernity. London: Verso, 1999. ANDERSON, Perry. The origins of postmodernity. Magno Machado Dias se casou com Annita Iedda Cardoso no dia 23 de abril de 1960. Annita era sua amiga de infância, estudante na Escola Nacional de Música, onde se formou em piano, vindo a lecionar em diversas escolas do Rio de Janeiro, incluindo a Escola de Música VillaLobos e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). 14 Acervo do CFRJ, doc. 395a – 395c. 15 ALBIN, Ricardo Cravo. Dicionário Houaiss Ilustrado: Música Popular Brasileira. Brasileira. Editora Paracatu, 2006. Uma versão online do dicionário está disponível em: http://dicionariompb.com.br/. 13
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Secretaria de Música, na presença de Arminda Villa-Lobos, convidada de honra da solenidade, o estudante secretário tomou a palavra para criticar a “exagerada departamentalização” da universidade, de efeito “esterilizante para a cultura do país” 16. A fonte do discurso era o filósofo e educador britânico Alfred North Whitehead, cujas ideias Magno conhecera ainda nos anos de educação militar e que viria a reencontrar sob a orientação de Anísio Teixeira 17. O texto base era Os fins da educação e outros ensaios, ensaios, coletânea de conferências proferidas entre 1912 e 1928, onde o autor travava sua batalha contra a educação “nociva”, que se fazia com ideias “inertes”, apenas recebidas, e que não eram testadas em novas combinações, o que resultava em rotina e pedantismo. Whitehead defendia a educação como “desenvolvimento “desenvolvimento próprio” da pessoa, uma “aquisição da arte de utilizar os conhecimentos”, conhecimentos”, de difícil transmissão, e cujo acabamento seria a conquista de um estilo, em sentido estético. O discurso do estudante secretário prosseguia, lembrando que praticamente não havia relação entre a escola de Artes Plásticas e o acervo cultural do país em outros domínios artísticos. Ora, argumentava, um processo estético abrange, por definição, todos os meios de criação, sejam eles plásticos, literários, musicais ou dramáticos, pois não se aprende arte nem por intermédio de “meia dúzia de técnicas”, nem pelo eruditismo vazio da cronologia histórica. Antes, seria necessário que uma escola de arte – na impossibilidade de emprestar talento ou gênio às pessoas pessoas – transmitisse e ampliasse o acervo cultural, na medida da demanda do país e, num sentido mais lato, do mundo. No que dizia respeito à função de uma secretaria de música, sua proposta era colocar os alunos em contato com a excelência do que se fazia “com o que de mais perto nos circunda”, a saber, a música brasileira. Não apenas por uma questão de “nacionalidade” “nacionalidade”,, mas, sobretudo, pela estatura da excelência em música, encarnada em Heitor VillaLobos, que o academicismo insistia em desqualificar e enxotar. Mas, ironizava o jovem Magno, eram tão somente as hienas, que, espreitando a ausência do mestre, se refestelavam com o rebotalho. Quanto à Villa, ele era “ a música”. música”. E concluía, considerando que, “talvez, necessitemos ser mais nós mesmos”, o que implicava
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Citamos textualmente o Uirapuru, Uirapuru, nº 1, Ano I, maio 1963, órgão de divulgação da Secretaria de Música da ENBA, que publicou o discurso do então secretário, Magno Machado Dias, intitulado “Palavras para a inauguração da Secretaria de Música do Diretório Acadêmico da ‘Escola Nacional de Belas Artes’, em 09 de maio de 1963”. Acervo do CFRJ, doc. 394a-394f. 17 Em 1969, o livro Os fins da educação e outros ensaios foi ensaios foi editado pela Companhia Editora Nacional, Naciona l, como v. 7 da coleção c oleção Cultura, Cu ltura, Sociedade, Socied ade, Educação, Educ ação, sob direção d ireção de Anísio Teixeira. Teixe ira. (
“incentivar e conhecer nossas próprias realizações” 18. Não imaginava o estudante quão premonitórias seriam suas suas palavras. Artificialismo, não-conformismo, transposição de fronteiras: hábitos mentais e arquivos sintomáticos que foram se instalando, na medida da frequentação de temas, textos, autores, presenças, que iam acrescentando à formação do impensável psicanalista, à qual se juntou Bertrand Russell e seu Por que não sou cristão cri stão19. Lendo hoje esse libelo do filósofo inglês, ainda se sente o impacto de suas palavras, seja quando as remontamos ao momento histórico em que foram proferidas, seja quando as consideramos no contexto contemporâneo. Nessa conferência, realizada em 1927 na Prefeitura Municipal de Battersea, ao sul de Londres, Russell discorre de maneira irônica sobre as incongruências e falácias da crença, dos dogmas e dos argumentos pseudointelectuais pseudointelectuais a favor do cristianismo, incluindo a pseudoexemplaridade pseudoexemplaridade da figura de Cristo. Há um freudismo larvar em seu texto, pois supor a decadência da vida humana e da vida em geral no Planeta, inseridas na dinâmica entrópica do universo, é sustentar um argumento mais lógico e deceptivo do que acreditar em um plano divino teleologicamente orientado. Incluem-se ainda o ceticismo sobre a existência histórica de Cristo, as incoerências de seus ensinamentos e a inferioridade de sua moral, quando comparada à de Sócrates e a de Sidarta Gautama 20. Por fim, Russell aponta o dano psíquico causado pela religião e pelas igrejas, na razão direta da crença dogmática, e a crueldade que lhes é intrínseca. Quando se lê esse livro de Russell, vê-se que não é só uma mera questão de argumento lógico, e sim de atitude despretensiosa, mas muito eficaz, que solicita engajamento do interlocutor, acompanhado de uma espécie de “espírito científico”, à maneira de Gaston Bachelard, aplicado ao teste e, se for o caso, à refutação e reconstrução de um argumento. É um exercício de anticrença, com base no cultivo perene da possibilidade de juízo de escolha, ele mesmo dependente de investigação, disponibilidade e expectativa “deceptiva”, “deceptiva”, no sentido de que se trabalha pelo advento de resultados, mas sem crença no valor moral dos mesmos, apostando, ao contrário, na dissolução dos entraves e na viabilização de saídas. 18
Acervo do CFRJ, doc. 394a-394f e 359a-359j. A palestra Por que não sou cristão cristão acabou dando título ao livro, que reúne outros ensaios sobre religião e assuntos afins, publicado na Inglaterra em 1957. 20 Esses argumentos, ampliados e mais fartamente documentados, se tornaram banalidades no início do século XXI. Cf. FO, Jacopo, TOMAR, Sergio e MALUCELLI, Laura. O livro negro do cristianismo. cristianismo. São Paulo: Ediouro, 2007. 19
)
Um artigo de Bachelard ajuda a acompanhar a série que vai de Lobato, Whitehead e Russell a Magno, passando por Freud. Intitula-se “O Surracionalismo”, que Magno traduziu e publicou na revista LUGAR em e m Comunicação Comunicação em 197221, uma das primeiras no campo, que criara nas Faculdades Integradas Estácio de Sá, com oito números publicados pela Editora Rio, de 1972 a 1976. Nesse artigo, Bachelard invoca para a razão sua função de turbulência e agressividade contra as certezas adquiridas, o que já sabemos bem, o que experimentamos frequentemente e repetimos fielmente. Propõe esse exercício no campo da prática científica, que julgaríamos crítica, racional e, por isso mesmo, livre das crenças típicas da religião e dos mitos. Mas o risco da paralisia do pensamento está em toda parte. “A Razão” não só não existe como é ela mesma um impedimento grave à ousadia da criação e costuma-se brandi-la contra o risco da irracionalidade, que ameaça invadir seu caminho orto pédico na busca de correição e normalidade. Ora, continua Bachelard, a prova ao contrário adveio do próprio seio da matemática, com a geometria não-euclidiana. No século XIX, os trabalhos de Gauss, Bolyai, Lobatchewsky e Riemann demonstraram nada mais nada menos que se podia fornecer prova de que é impossível provar certas proposições dentro de um dado sistema. Complicado? Não, apenas surracional. Em que sentido? Vamos recapitular brevemente a aventura desses matemáticos. Eles se debruçaram sobre um antigo problema da geometria euclidiana, o do axioma das paralelas, que não era considerado autoevidente. Esse axioma equivale logicamente (embora não seja idêntico) à hipótese de que, por um ponto fora de uma reta dada, somente pode ser traçada uma reta paralela à reta dada. Vamos lembrar também o arcabouço sintomático desse modo de raciocinar: no modelo axiomático, axiomas ou postulados são propostos e, depois, derivam-se deles todas as proposições do sistema como teoremas. Quando esquecemos que axiomas são escolhas para testar até onde vai uma ideia, consideramo-los como certeza, co-naturalizando sua concepção e efeitos enquanto verdade correspondente à realidade (no sentido metafísico de um sistema acabado e inequívoco). No pensamento matemático, por exemplo, até o século XIX, supunha-se que todos os seus setores podiam funcionar a partir de um conjunto de
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A publicação original trazia como título “ Inquisitions”. Inquisitions ”. Paris, Éditions Sociales Internationales, Internationales, juin 1936. Reproduzido in L’Engage in L’Engagement ment rationaliste ration aliste.. PUF, Paris, 1972. Edição póstuma organizada or ganizada por George Geor ge Canguilhem. Canguilh em. *
axiomas suficiente para desenvolver sistematicamente a totalidade infinita de proposições verdadeiras verdadeiras sobre dada dada área de investigação investigação 22. Ora, ao procurar deduzir esse axioma de outros que lhes pareciam autoevidentes, esses matemáticos demonstraram a impossibilidade disso, de dentro mesmo do sistema, sistema, obrigando que o problema se deslocasse de um campo de investigação para outro, a ser forjado com outros princípios, adequados à nova investigação. Mostraram, por isso, que Euclides não era a última palavra em geometria, pois novos sistemas podiam ser construídos com axiomas diferentes e incompatíveis com os euclidianos, mantendo-se todos úteis e válidos ad hoc, hoc, embora uns mais abrangentes que outros. A crença, desde os gregos, na autoevidência dos axiomas foi solapada, tornando-se claro que se trata de derivar teoremas de hipóteses postuladas, assumindo radicalmente a natureza arbitrária e artificial da estratégia axiomática, na qual a verdade torna-se tão contingente quanto a escolha de um dado axioma. Eis o surracionalismo: abrandar o princípio de nãocontradição; desaprender para melhor compreender – a soma dos ângulos de um triângulo nem sempre é igual a dois ângulos retos, pois depende da escolha do axioma; axioma ; priori em favor das formulações a abandonar o engessamento dos raciocínios a priori posteriori, posteriori, que acolhem o inaudito trazido pela experiência. Em suma, “passar para o lado em que se pensa a mais, em que se experimenta o mais artificialmente, em que as ideias são o menos viscosas, em que a razão gosta de estar em perigo” 23. Ao longo do desenvolvimento da Nova Psicanálise, Magno retomou algumas vezes o surracionalismo de Bachelard, afinando a sintonia desse conceito com sua própria concepção de pensamento e reiterando a exigência de uma racionalidade cada vez mais abrangente, para além das formações lógicas precárias de que dispomos. Não contra a racionalidade, mas a favor de seu pleno desenvolvimento, pois a razão constituinte das diversas racionalidades é bífida e opera em regime de préopositividade. opositividade. Dito de outro modo, o inconsciente articula em regime superior, em processo de oscilação e indiferenciação de opostos 24. Quando se enuncia e aplica conhecimento, em qualquer nível, já se operou uma quebra de simetria, que traz a 22
Para entender o alcance do advento da geometria não-euclidiana e, na sequência, outro advento desconcertante na aritmética, como o foi a obra de Kurt Gödel, ver NAGEL, Ernest e NEWMAN, NEWMAN , James R. A R. A prova de Gödel Göde l . 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. 23 BACHELARD, Gaston. “O surracionalismo”. Em: LUGAR em Comunicação Comunica ção,, 4º trimestre, 1972, p. 6-9. 24 R em: primeira introdução à gnômica gnôm ica ou metapsicologia metapsico logia do d o conhecimen con hecimento to MAGNO, MD. Ad MD. Ad Rem: [Falatório 2008]. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2014. O leitor pode consultar também o artigo do autor “O halo bífido do inconsciente” em TranZ: Revista de Estudos Transitivos do Contemporâneo, Contemporâneo, disponível em: www.tranz.org.br. www.tranz.org.br. !+
decantação de uma das oposições, o recalcamento r ecalcamento da alternativa, mas, principalmente, o recalcamento do deslizamento e ambiguidade constitutivos do inconsciente. Maneira de elaborar novamente a intuição freudiana: nos pensamentos oníricos, “cada encadeamento é quase invariavelmente acompanhado por sua contraparte contraditória, ligada a ele por associação antitética” 25. Vale dizer, os sonhos não respeitam as antíteses e contradições, pois combinam contrários e os representam como uma mesma coisa ou mostram um elemento pelo desejo oposto a ele. No que lhes diz respeito, o ‘não’ parece não existir 26. Não surpreende que o surracionalismo bachelardiano tenha sido pensado historicamente de modo análogo e contemporâneo ao surrealismo estético, diretamente inspirado no pensamento freudiano. Afinal, perguntava André Breton, “para quando os lógicos, os filósofos adormecidos?”27 4.
Finda a graduação, Magno recebeu dois convites de trabalho, ambos aceitos. O
primeiro foi para lecionar história da arte e geometria descritiva no Colégio de Aplicação da Faculdade Nacional de Filosofia, trabalhando como assistente de cátedra de Didática Geral, cujo titular era o Prof. Luis Alves de Matos. Lá permaneceu até 1965. O segundo convite veio de Anísio Teixeira, que havia sido seu professor na universidade, para ser seu assessor na implantação da Universidade de Brasília, função da qual declinou por não querer deixar o Rio de Janeiro. O convite, então, foi trocado pelo de trabalhar no Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, um dos órgãos do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, ambos criados pelo educador baiano 28. Lá estaria envolvido com a criação e direção de um setor de publicação de livros técnicos e científicos voltados para o público discente universitário. Com o golpe militar e a destituição de Anísio Teixeira de suas funções no Ministério da Educação, o trabalho tr abalho de Magno no CPBE não durou muito (ele deixou a instituição em 1965), mas o vínculo com o mestre permaneceu e se estreitou, com o hábito de longas conversas, nas quartas-
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Ver A Ver A interpretação interpre tação dos sonhos. sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 1972, v. IV, p. 332. Idem, p. 339. 27 André Breton. Manifesto Breton. Manifesto do surrealismo surreali smo [1924]. [1924]. Em TELES, Gilberto G ilberto Mendonça. Vanguarda europeia & modernismo brasileiro. brasileiro. 20ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 2012, p. 228. 28 Na abertura do seminário Pedagogia Freudiana Freudian a, Magno recapitula esse momento de sua formação, prestando uma das várias homenagens que fez, ao longo de sua vida intelectual, profissional profission al e institucional, instituciona l, ao professor, professo r, mestre e amigo, a respeito de quem declara ter tido a “honra, o prazer e a sorte de conviver bastante intensamente nos seus últimos oito anos de vida e que exerceu grande influência sobre o meu percurso”. Ver MAGNO, MD. Pedagogia freudiana [Seminário freudiana [Seminário 1992]. Rio de Janeiro, Imago, 1993, p. 1. 26
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feiras à tarde, na sede da Companhia Editora Nacional 29, até a morte abrupta do educador, em 11 de março de 1971. Na relação com a obra teórica e institucional e com a pessoa de Anísio Teixeira se desenha um aspecto fundamental da formação de Magno, no sentido mais pleno que esta ideia possa ter. A marca de Anísio está presente em várias iniciativas institucionais do autor à frente do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro 30, além de ter influenciado definitivamente sua produção teórico-clínica. Quando Magno chegou em Paris, em 1975, levava consigo a densa experiência cultural do Brasil e, na bagagem, a contribuição de Anísio deixaria sua marca na posterior reelaboração da psicanálise no país. Não nos deteremos em apresentar Anísio Teixeira e sua obra, pois essa tarefa está prolificamente executada por teses universitárias em pedagogia, história política e da educação no Brasil, bem como por artigos, entrevistas e documentários disponíveis na internet sobre o intelectual baiano 31, além de seu acervo organizado pela Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro. Vamos direto ao ponto que nos interessa: a estirpe do pensamento anisiano carrega a marca da mutação, acolhe e faz suas a impermanência e a imprevisibilidade, aposta no valor “real”, e não “proclamado”, dos processos – voltaremos a essa ideia em breve –, exige o teste de realidade das ideias e reivindica nada menos que a autonomia de cada um. O timbre dessa linhagem, além de ser desconcertantemente brasileiro et pour cause, cause, é John Dewey e, através dele, Ralph 29
MAGNO, MD. “Anísio Teixeira: fala proferida por ocasião da inauguração da ‘Biblioteca Anísio Teixeira’, do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, em dezembro de 1988”. Em: Boletim Em: Boletim Maisum, Maisum , nº 81+1, 20 abril 1990, p. 4745-4750. 30 A criação da Biblioteca Anísio Teixeira, em 08 de dezembro de 1988, e a constituição de um grupo de pesquisa em torno do tema da psicanálise com crianças, denominado Joãozinho – Departamento Departam ento de Estudo da Criança no Discurso Analítico, Analítico, iniciado em 1986 e encerrado em Hans”, do texto de Freud “Análise 1988. O nome “Joãozinho” é a tradução proposta de “kleinen “kleinen Hans”, de uma fobia em um menino de 5 anos” (1905), que circula no Brasil como “o pequeno Hans”. 31 O leitor interessado pode ir direto ao site http://www.bvanisioteixei http://www.bvanisioteixeira.ufba.br/, ra.ufba.br/, onde está disponível um farto material bibliográfico do próprio Anísio Teixeira, como artigos, capítulos de livros, livros completos, prefácios, posfácios, folhetos, discursos e cartas, além de produção bibliográfica bibliográf ica sobre sua obra. obra. A Editora UFRJ organizou recentemente a Coleção Anísio Teixeira, concebendo-a em 12 volumes, incluindo a reedição de alguns títulos que já haviam americanos os da sido publicados na década de 1990 e textos inéditos. São eles: 1. Aspectos american educação (1928) & Anotaçõe educação Anotaçõess de viagem aos Estados Unidos em 1927 (1927); 2. Pequena introdução à filosofia da educação: a escola progressiva ou a transformação da escola (1934); escola (1934); 3. Em marcha para a democra democracia: cia: à margem dos Estados Unidos Unidos (1934); (1934); 4. Educação para a democracia: introdução à administra administração ção educacional (1936); (1936); 5. A 5. A educação educaç ão e a crise c rise brasileira brasile ira privilé gio (1957); direito (1968); (1956); 6. Educaçã 6. Educaçãoo não é privilégio (1957); 7. Educação 7. Educação é um direito (1968); 8. Educaçã 8. Educaçãoo no Brasil (1969); (1969); 9. Educação 9. Educação e o mundo mund o moderno (1969); moderno (1969); 10. Ensino 10. Ensino superior supe rior no Brasil: análise e interpretação de sua evolução até 1969 (1989); 11. Diálogo sobre a lógica do conhecim conhecimento ento (s.d.); 12. Educação 12. Educação e universidade univers idade (1998). (1998). !#
Waldo Emerson. Mas também Whitehead e Russell, além da tradição utilitarista, sobretudo John Stuart Mill, e da tradição pedagógica inspirada em Jean-Jacques Rousseau; por fim, William Heard Kilpatrick, pedagogo norte-americano da educação progressista, discípulo e continuador da obra de Dewey. Veremos como esse legado foi assimilado na obra de Magno, que dele se apropriou seletivamente, incorporando, ressituando ou recusando alguns de seus pressupostos, a partir da teoria freudiana. 5.
O pensamento de Anísio era extremamente refinado e o contraste com as resistências
sintomáticas características da cultura brasileira era enorme, contra as quais lutou e as quais precisou entender e elaborar, uma vez que sentia seus efeitos deletérios no cotidiano de educador, intelectual, gestor e administrador da educação pública no Brasil32. É bastante conhecida a influência do pragmatismo deweyano na formação de Anísio Teixeira, que conheceu essa linhagem da filosofia norte-americana nas duas viagens que fez aos Estados Unidos, primeiro em 1927, quando tomou contato com a organização escolar daquele país, e no ano seguinte, quando foi estudar no Teachers College College da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, lá obtendo a titulação de Master of Arts em Arts em educação. Era então Diretor-Geral de Instrução do Estado da Bahia 33. Rapidamente fez uma primeira divulgação dessa experiência, com o livro Aspectos americanos de educação, educação, datado de 1928, mas é em Educação progressiva: uma introdução à filosofia da educação (1934) que sistematizou pela primeira vez sua visão da educação, apropriando-se refletidamente das lições de Dewey. Ao mesmo tempo, à sua maneira, esse livro dava voz à movimentação de ideias que reunira educadores e intelectuais, no Brasil, em torno da proposta da escola nova 34, por sua vez um exemplo 32
Um exemplo desse efeito destruidor foi a campanha encabeçada pelos bispos da Igreja Católica contra a administração de Anísio Teixeira à frente do INEP e da CAPES, apoiada por representantes católicos no Poder Legislativo. Em março de 1958, é enviado um “Memorial dos bispos gaúchos ao Presidente Presiden te da República sobre a Escola Pública Única”, contra a administração anisiana, acusada de conceber a escola pública, visando à obtenção dos “mesmos resultados pré-revolucionários, previstos, com ansiosa expectativa, pela doutrina socialista” (sic!). Apesar da perseguição eclesiástica, que pedia inclusive ao governo federal o afastamento do educador dos postos que ocupava, o então presidente da República, Juscelino Kubitschek, garantiu-lhe a permanência no cargo. O leitor pode consultar esse e outros documentos sobre a campanha católica, leiga e eclesiástica, contra Anísio Teixeira, que remonta à década de 1930 e se acirra na década de 1950, em http://www.bvanisioteixei http://www.bvanisioteixeira.ufba.br/. ra.ufba.br/. 33 “Anísio Teixeira: dados biográficos” em Conversa entre amigos: correspondência escolhida entre Anísio Teixeira e Monteiro Lobato, Lobato, op. cit., p. 19. 34 A discussão sobre o atraso e a precariedade da educação no Brasil, que se intensifica na virada da década de 1920, culminou no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, em 1932, intitulado A intitulado A reconstrução reconstruç ão educacional educacio nal no Brasil , de que Anísio Teixeira foi signatário. Para o !$
da discussão acirrada pelos modernistas sobre as chances de o país reconsiderar seu legado histórico e cultural – “um misto de ‘dorme nenê que o bicho vem pegá’ e de equações”, na estilização de Oswald de Andrade – e afirmar os aspectos positivos da cultura brasileira, fazendo “o melhor de nossa demonstração moderna” moderna” 35. No caso de Anísio, “progressiva” era a palavra-chave. Concentrava o princípio da mudança e reconstrução permanentes, característico do moderno voltado para o futuro, mas que não se furtava, ao contrário, exigia, passar a limpo os assentamentos sintomáticos que constituíam simultaneamente sua força interna de crescimento e seu atraso. Para isso, eram necessários juízo e experiência, experiência, noções interdependentes que expressavam o exercício de analisar a situação, enfrentando a crueza de seus dados, para agir no sentido de suas possíveis transformações. Tinha o sabor do “prático”, “experimental”, “sem ontologia”, “engenheiro em vez de jurisconsulto”, de Oswald, mas temperado com a impostação darwiniano-científica, social e democrata, de Dewey. Como assim? O pragmatismo costuma ser identificado como a contribuição norte-americana à filosofia mundial e, nesse sentido, trata-se de um pensamento que cresceu das forças e tensões da cultura de onde emergiu. O próprio Dewey avaliou que havia uma relação inegável entre “o caráter progressivo e instável da vida americana” e “o nascimento de uma filosofia que considera o mundo como algo em formação contínua, onde ainda há espaço para o indeterminismo, para o novo e para um futuro real” 36 . Em termos conceituais mais técnicos, essa filosofia se apoiou na ciência darwinista para estender seus efeitos lógicos e práticos à vida social, reivindicando para a democracia o papel de “uma nova metafísica das relações do homem com a natureza” 37. contexto histórico dessa discussão, ver, por exemplo, BOMENY, Helena. “Novos talentos, vícios antigos: os renovadores e a política educacional”. Em: Estudos Em: Estudos Históricos Históricos - Os anos 20, Rio de Janeiro, v. 6, nº 11, p. 24-39, 1993; CAVALIERE, Ana Maria. “Anísio Teixeira e a educação integral”. Em: Paideia, Paideia , v. 20, nº 46, p. 249-259, 2010; NUNES, Clarice. Anísio Teixeira. Teixeira. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010, também disponível em: http://www.dominiopublico. http://www.dominiopublico.gov.br. gov.br. 35 ANDRADE, Oswald de. Manifesto de. Manifesto da Poesia Poesi a Pau-brasil Pau-bras il . Em: ANDRADE, Oswald de. Paude. Pau Brasil . São Paulo: Ed. Globo, Secretaria de Estado da Cultura, 1990. 36 Segundo Dewey, um sistema filosófico, considerado em suas relações com fatores nacionais, inclui aspectos dessa vida no sistema, mas também os aspectos contra os quais o sistema protesta. Com o pragmatis pragmatismo mo não foi diferente diferente:: defende defendeuu a função mais prática que epistemológica do pensamento, ao mesmo tempo que foi crítico dos aspectos da vida americana que fazem da ação um fim em si mesmo, concebendo os fins de maneira estreita e muito “praticamente”. Ver DEWEY, John. “O desenvolvimento do pragmatismo americano”. Em Scientiae Studiae, Studiae, São Paulo, v. 5, nº 2, 2007, p. 227-43. 37 Apud RORTY, Richard. “Norteamericanismo y pragmatismo”. Em: Isegoria Em: Isegoria,, nº 8, 1993, p. 7. !%
O modelo darwinista de ciência forneceu duas chaves de interpretação para o pragmatismo deweyano: deweyano: de um lado, lado, a ideia de que a vida como contingência contingência é capaz capaz de saídas criativas diante do imprevisível; de outro, a possibilidade de generalizar o próprio método científico, não apenas para todas as áreas do conhecimento como também para o comportamento usual e costumeiro do homem 38. Na mão contrária do positivismo, essa generalização almejada tinha o intuito de suavizar a oposição entre ciência e nãociência, fato e norma, teoria e prática, pensamento e ação, instilando a atitude científica no cotidiano. O pragmatismo desejava fazer saber que o universo era um tecido inconsútil em transformação, operada por agentes biológicos, cosmológicos e físicos, em regime de provisoriedade e de contingência. Segundo o entendimento anisiano de Dewey, essa perspectiva, fugindo da obsessão comum dos filósofos por uma realidade superior, fazia do mundo um lugar de oportunidades, em permanente reconstrução, acabado e inacabado, completo e incompleto, uniforme e variável, no qual vivemos sacudidos entre garantia e precariedade, fugacidade e estabilidade, na “junção entre um ‘teimoso passado’ e um ‘insistente futuro’”. Ora, graças exatamente a tais características, eram possíveis, “de um lado, a predição e o controle, e, de outro, a oportunidade e a aventura” 39. Ecoando o entendimento de Anísio para a cultura em geral e para a norte-americana em particular, Richard Rorty, importante filósofo responsável pela renovação do pragmatismo de base deweyana, entende que a principal função social e cultural desse movimento “tem sido quebrar a crosta da convenção, favorecer antes a receptividade ao novo do que a fixação do velho”, na medida em que “tentou jogar por terra a influência dos antigos códigos morais e substituí-los por uma atitude ‘experimental’, sem medo de uma legislação social convenientemente revolucionária, nem de formas novas de liberdade artística e social” 40. Não à toa, Dewey acabou por denominar “instrumentalismo” sua inserção no pragmatismo, inclusive por diferenças para com as contribuições de Charles S. Peirce e William James (mais em relação ao primeiro que ao segundo) 38
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. Com o
TEIXEIRA, Anísio. “As bases da teoria lógica de Dewey”. Em: Revista Em: Revista Brasileira Br asileira de Estudos E studos Pedagógicos Pedagógi cos.. Rio de Janeiro, v. 23, nº 57, jan/mar 1955, p. 3-27. Disponível em: http://www.bvanisioteixeir http://www.bvanisioteixeira.ufba.br/ a.ufba.br/ 39 Idem. 40 RORTY, Richard. Objetivismo, relativismo relativismo e verdade. verdade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002, p. 92. 41 DEWEY, J. “O desenvolvimento do pragmatismo americano”, op. cit. Ver também SHOOK, John R. Os pioneiros do pragmatismo americano. americano. Rio de Janeiro: DP&A, 2002; WAAL, Cornelius de. Sobre pragmatismo. pragmatismo. São Paulo: Loyola, 2007; POGREBINSCHI, Thamy. Pragmatismo: Pragmatism o: teoria social e política p olítica.. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2005. !&
instrumentalismo, podemos retornar à outra chave de interpretação que a ciência darwinista forneceu ao pragmatismo, acima citada, e esclarecer como juízo e experiência são, ao mesmo tempo, uma lógica, um método e um princípio de ação social e política, que Dewey preconizou e Anísio Teixeira assimilou, elaborando, a partir daí, um entendimento arguto sobre o Brasil “proclamado” e “real”. Por instrumental entenda-se a ideia de que a ação ou a prática desempenham um papel fundamental nos processos processos de conhecimento, conhecimento, uma vez que conhecer é um atributo do ser vivo em geral, e não um estado ou condição transcendente transcendente do sujeito humano. As operações de conhecimento são as respostas dos organismos vivos que, em um universo inacabado, investigam e reconstroem a realidade, ao transformar eventos imprevisíveis em situações que perduram como respostas eficazes ao dado emergente, em um sucessivo procedimento de autocorreção por experimentação. Segundo Anísio Teixeira, explicando o instrumentalismo deweyano, pensar é indagar e buscar a solução de um problema ou dificuldade, de modo que, partindo da inquirição, a ação de conhecer estabeleça uma resposta que resolva a dúvida, dando lugar à asserção garantida assertion). Indica-se, com isso, que “todo conhecimento é um produto (warranted assertion). provisório de investigações competentes e não algo que exista por si e seja, por uma vez, definitivamente estabelecido” 42 . Por caminhos diferentes, também aqui nos deparamos com a ideia de que “A Razão” não é uma faculdade mediante a qual se conquistam as verdades ou axiomas primeiros, evidentes em si mesmos. Trabalhamos apenas com definições e postulados, nem falsos, nem verdadeiros, a serem usados em face das consequências que a eles se seguem, sempre submetidos ao crivo da experimentação. As operações e atividades com as quais se chegou a asserções (“garantidas” porque funcionais) são, por definição, instrumentais, e fazem parte do arcabouço cognitivo do ser vivo. Em outras palavras, a vida é uma transação contínua entre organismos e meio ambiente, na qual os obstáculos a seu desenvolvimento são oportunidades para a ação instrumental. No homem, esse processo se expande indefinidamente, pois se acrescenta ao aparato biológico a representação simbólica, que inflaciona a imprevisibilidade no sentido da equiprobabilidade e equipotencialidade dos processos cognitivos e produtivos, graças à oportunidade em aberto para o juízo e a reelaboração da experiência.
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TEIXEIRA, A. “ As bases da teoria lógica de Dewey”, Dewey”, op. cit. !'
Em termos sociais e políticos, o pragmatismo desejou que sua aposta nas diversas possibilidades de inteligir a experiência não fosse limitada a um grupo social restrito, fechado e técnico, devendo-se perguntar “como seria possível fazer todos os homens participantes desse inestimável bem” 43. A generalização social e política da lógica instrumental foi a democracia e seu laboratório, a escola 44. 6. Na
obra de Anísio Teixeira, a generalização social e política da lógica instrumental
orientou e organizou sua reflexão teórica e atuação pública, que ganharam ainda mais relevância, quando consideramos certos aspectos da cultura brasileira que emergiam com muita resistência, se não mesmo recusa, ao que era proposto pelo educador, nas diversas circunstâncias de confronto que experienciou. O ambiente cultural brasileiro era pesadamente marcado pelo patriarcalismo, pela mentalidade nepotista, pelo patrimonialismo, positivismo e catolicismo, traduzidos, tr aduzidos, por exemplo, na concepção da educação como privilégio de uma quase casta social e a exclusão correspondente da maioria da população; na visão de uma educação formal em oposição à educação voltada para o saber “manual” ou “artesanal”, reproduzida na distinção entre ensino teórico e profissional; no legalismo como único meio de se implantar mudanças institucionais, apelando à força da lei como instrumento de repressão e correção; no eruditismo humanístico de vocação jurisdicista, considerado superior à formação técnica. Em contraste, a visão pragmatista de Anísio – que colocara em questão sua própria educação de base católica jesuítica, no seio de um modelo familiar patriarcal, territorial fundiário e clientelista – considerava que a ordem moral e social também deveria assimilar os efeitos da mutabilidade evidenciados pela ciência moderna, destronando verdades eternas e carregando a família, a comunidade, os hábitos e costumes no roldão da mudança. Ora, se na ciência a experimentação controlada é procedimento intrínseco i ntrínseco à transformação, por que não seria possível a experiência em educação? Daí, o desafio lançado em um texto tão longínquo e ainda ressonante: “Nessa nova ordem de mudança constante e de permanente revisão, duas coisas ressaltam, que alteram profundamente o conceito da velha escola tradicional: a) precisamos preparar o 43
DEWEY, J. “O desenvolvimento do pragmatismo americano”, op. cit., p. 242. Para maiores informações do envolvimento de Dewey com o projeto e a tentativa de realização da escola inspirada nos pressupostos instrumentalistas, instrumentalistas, ver WESTBROOK, Robert B. e TEIXEIRA, Anísio. John Dewey. Dewey. Tradução e organização José Eustáquio Teixeira e Verone Lane Rodrigues. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2010. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br 44
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homem para indagar e resolver por si os seus problemas; b) temos que construir a nossa escola, não como preparação para um futuro conhecido, mas para um futuro rigorosamente imprevisível” 45. Seguindo Dewey, a orientação anisiana entendia que a democracia era um modo de vida social, mais do que uma forma de governo. Assim, a escola deveria se conduzir na via aberta pelo pensamento científico moderno, formando para uma vida em iguais, em meio às diferentes sociedade onde as pessoas partilhassem como iguais, experiências cognitivas, sociais e individuais que a escola potencializava como laboratório social. O postulado político que ligava, assim, democracia à educação era o de que “os homens são suficientemente educáveis” e, por isso, era concebível e esperável uma sociedade democrática 46. Ora, a democracia moderna fora elaborada em um contexto histórico de fortes reivindicações contra a contra a presença pervasiva das formas estatais na vida social e política. Daí, não surpreendia que tivesse se apoiado no ideário individualista, com efeitos de liberdade, mas também de também de tirania. Por isso, era necessário reconceber esse difícil equilíbrio, “reconhecendo que a vida social precisa institucionalizar-se de forma a permitir que não somente alguns, mas todos os indivíduos encontrem, ao lado de condições favoráveis para desenvolver as qualidades comuns e particulares, condições também favoráveis para aplicar estas qualidades alguns e no excesso que comuns e favoráveis, isto é, que o que foi dado somente a alguns decorria de serem só eles os beneficiários, contando com os demais para servi-los, seja a todos estendido, com as limitações inevitáveis da participação geral”
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. Eis um
pensamento em rota de colisão com o que havia de mais arcaico e recrudescente no Brasil. O artigo “Valores proclamados e valores reais nas instituições escolares brasileiras”, publicado em 1962 na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos e reeditado em livro em 1969, com o título “Duplicidade da aventura colonizadora na América Latina e sua repercussão nas instituições escolares”, constitui uma das intervenções mais percucientes de análise dos assentamentos sintomáticos da cultura
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TEIXEIRA, A. Pequena introdução à filosofia da educação: educaçã o: a escola progressiva ou a transformação da escola. escola. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007, p. 40. Observe-se que a edição original de 1934 trazia o título invertido: Educação Educaçã o progressiva: prog ressiva: uma introdução à filosofia filoso fia da educação, educação, que foi modificado pelo autor na reedição de 1967. 46 TEIXEIRA, A. “Democracia e educação” em Educação em Educação e o mundo mu ndo moderno mod erno.. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007, p. 253. Também disponível em: http://www.bvanisioteixei http://www.bvanisioteixeira.ufba.br/ ra.ufba.br/ 47 Idem, p. 256. Grifo no original. !)
brasileira apresentadas apresentadas por Anísio Teixeira, ainda atual no Brasil do século século XXI 48. Nele, estão aplicados os princípios do pragmatismo deweyano a serviço da reflexão sobre o que o autor concebeu como uma “duplicidade fundamental” do Brasil, organizada pela polaridade entre o “valor real”, isto é, a chance da experimentação e realização, a partir dos recursos culturais reais e locais da vida brasileira, e o “valor proclamado”, isto é, a idealidade chancelada por atos legais. Em termos psicanalíticos, nos é oferecido o diagnóstico de que há um duplo regime sintomático brasileiro: de um lado, o oficial, imitativo, positivista e doutoral; de outro, o não-oficial, da funcionalidade transitiva e pragmática ad hoc, hoc, em luta para se desviar da força recalcante do lado oficial, ou até mesmo em luta direta com ela, para dar voz a um estilo próprio brasileiro. Desde a colonização o Brasil foi se desenhando com base em uma duplicidade fundamental – jesuítas e bandeirantes, fé e império, religião e ouro –, que se iniciou com a exploração predatória como valor real, que nunca se confessava como tal, e a cristianização como valor proclamado, a acolher a denegação da predação, revestida oficialmente com o falso espírito de cruzada cristã. Espanhóis e portugueses não vieram criar um mundo novo, novo, como o fez a empreitada colonizadora dos com expectativas de criar um peregrinos do Mayflower na América do Norte, e sim encontraram um novo mundo, mundo, que planejaram explorar, saquear e, assim enriquecidos, voltar à Europa. Apoiando-se em Vianna Moog 49 , Anísio recuperava o mazombismo como expressão cultural dominante desses “brasileiros” que acabaram por ficar mais tempo do que a expectativa de rápida exploração do novo continente fazia crer. O livro Bandeirantes livro Bandeirantes e pioneiros, paralelo entre duas culturas (1954), que serve de base para a análise proposta por Anísio Teixeira, é um ensaio que parte das heranças 48
Disponível em http://www.bvanisioteixeira.ufba.br/ e em Educação Educaçã o no Brasil . 4ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011, p. 297-320. 49 Clodomir Vianna Moog (São Leopoldo/RS-1906 – Rio de Janeiro/1988) foi escritor e ensaísta gaúcho, com formação em Direito. Lutou na revolução constitucionalista de 1932, o que lhe rendeu prisão e deportação para o Amazonas. Foi anistiado em 1934, quando retornou a Porto Alegre. Ainda no exílio iniciou sua produção literária: publicou o ensaio O ciclo do ouro negro persas (1937), e foi premiado pela Fundação Graça (1936) e uma sátira política, Novas cartas persas (1937), Aranha com o romance Um rio imita o Reno (1939), Reno (1939), para o qual transpôs a experiência vivida no Amazonas. Depois da Segunda Guerra, em 1946, serviu na Delegacia do Tesouro em Nova Iorque e representou o Brasil na Comissão de Questões Sociais da Organização das Nações Unidas, como também na Comissão de Ação Social da Organização dos Estados Americanos, no México, a qual presidiu por mais de dez anos. Publicou ainda as biografias Heróis da decadência decadência (1934), Eça de Queirós e o século XIX (1938) e Em busca de Lincoln (1968); o literatura brasileira (1942) brasileira (1942) e a novela Uma jangada para Ulisses ensaio Uma interpretação da literatura (1959), além de Obras completas de Vianna Moog (1966). Sua principal contribuição ao ensaísmo brasileiro foi o livro Bandeirantes Bandeiran tes e pioneiros: paralelo entre duas culturas (1954), base da análise a nálise proposta prop osta por Anísio An ísio Teixeira. Teixeir a. !*
religiosas e culturais distintas das colonizações anglo-saxã anglo-saxã e portuguesa, para apresentar uma série de polaridades constitutivas da formação cultural norte-americana e brasileira. Se a vida baseada na ética do trabalho, no aperfeiçoamento moral e no pragmatismo econômico lastreou o mundo do pioneiro norte-americano, no Brasil, a figura correspondente, em termos de realidade histórica, é o “mazombo”, ou seja, o filho do português nascido na colônia, com características muito semelhantes ao perfil do homem cordial traçado por Sérgio Buarque de Holanda: individualismo personalista, busca de prazeres prazeres imediatos, descaso descaso por ideais ideais comunitários e de de longo prazo. O mazombo era uma “categoria social à parte, a que ninguém queria pertencer”50. Para fugir da realidade de ser filho de reinol nascido na colônia, valeu-se inclusive da reivindicação de nascimento em Portugal, inventando linhagens e ancestralidades, por preferir o valor proclamado ao real. O mazombismo, portanto, consistia na denegação de ser brasileiro, acompanhado da carência de iniciativa e inventividade, “com descaso por tudo quanto não fosse fortuna rápida, e, sobretudo, na falta de um ideal coletivo, na quase total ausência de sentimento de pertencer o indivíduo ao lugar e à comunidade em que vivia” 51. A insistência em negar a realidade alimentou no mazombo o ressentimento: a reiterada atribuição de seu próprio valor a outrem foi minando paulatinamente o poder da iniciativa e a assunção produtiva do risco. Era-lhe mais fácil alimentar a inadimplência, fechando os olhos às próprias possibilidades, do que socorrer a situação com recursos e alternativas, positivando o percurso e seus achados. O cultivo do ressentimento trouxe inércia, descaso e inoperância e, quando seus efeitos negativos eram sentidos, as razões eram buscadas alhures. À luz da psicanálise, poderíamos dizer: dada a duplicidade fundamental da predação e da religião, r eligião, para qual lado seguir? Na vertente da “bandeira”, a cobiça sem projeto, a força e a brutalidade, brutalidade, e eis que aparece aparece o “psicopata”; “psicopata”; na vertente jesuíta, jesuíta, nada além de moral e teologia reificantes, e eis que aparece o “psicótico”. No entendimento de Anísio Teixeira, esses brasileiros eram “europeus nostálgicos”, que acabaram por criar uma cultura congenitamente caduca e inautêntica. Assim, “o mazombo, dividido entre o desejo de regressar, o propósito de reproduzir a cultura da metrópole e as novas condições, o novo meio, a nova dinâmica da conquista, ignorava o próprio fato da transplantação cultural e a necessidade inevitável de 50
MOOG, Vianna. Bandeiran Vianna. Bandeirantes tes e pioneiros, paralelo entre duas culturas c ulturas.. 2ª ed. Porto Alegre, 1961, p. 144. 51 Idem, p. 150-151. #+
adaptação e se perdia em impulsos ridículos de imitação e contrafação. contrafação . Incapaz, pela sua irremediável duplicidade, de aceitar as modificações que o meio impunha, suprimia delas a possível força criadora, criadora, desnaturando o que havia de melhor no nascente esforço nacional ”52. Ao ressentimento, juntou-se a vergonha da condição de brasileiro e das soluções autóctones, que o mazombo procurava elidir ou esconder. Porém, mais do que se envergonhar ou até mesmo esconder as condições inovadoras da vida local, o mazombismo teve a desfaçatez de pretender suprir as deficiências de nossa realidade humana e social por meio de revalidações legais. Em que sentido? Através de diktats diktats legislativos, num esforço de compensar a inconsecutível, mas desejada imitação dos valores europeus. Assim, por ato oficial ou legal, declarava-se a situação de fato como idêntica à ambicionada, de modo que nos acostumamos a viver em dois planos, o ‘real’, com as suas particularidades e originalidades, e o ‘oficial’ (proclamado), com os seus reconhecimentos convencionais de padrões inexistentes. O dualismo de colônia e metrópole, que alimentou o mazombismo e foi por ele alimentado, prolongou-se nos séculos XIX e XX, e se reconfigurou no dualismo elite e povo, a primeira “diminuta e aristocrática”, o segundo “analfabeto e mudo” 53 . O artigo prossegue, aplicando esse esquema à análise da implantação das instituições escolares no Brasil, país onde se exaltam valores que se procura copiar, apesar e por causa de serem anacrônicos e atrasados, não prevalecendo uma atitude de experimentação e ensaio. A distância entre valores proclamados e reais se mantém. 7.
A polaridade de um Brasil oficial e não-oficial, assim como o mazombismo, terão
importância estratégica na reflexão de MD Magno, inclusive porque a psicanálise no do Brasil. Brasil também sofreu do mazombismo de não se assumir como psicanálise do Brasil. Consideraremos essas questões mais adiante, quando à análise de Anísio Teixeira se acrescentar as intervenções de outros brasileiros da mesma estirpe com os quais a Nova Psicanálise dialogou. Por ora, gostaríamos de costurar os pontos mapeados, mas até aqui pouco conectados, conectados, sobre o legado anisiano apropriado por Magno. Magno. Retornemos às bases conceituais do instrumentalismo e a expansão de seus efeitos para a vida social, onde democracia e educação se articulam pelo postulado 52
TEIXEIRA, A. “Duplicidade da aventura colonizadora na América Latina e sua repercussão nas instituições escolares”, op. cit., p. 300. Grifo nosso. 53 Idem, p. 302. #!
político p olítico de que os homens são suficientemente educáveis. À primeira vista, nada mais distante do pensamento freudiano. Basta lembrar o alerta já conhecido segundo o qual governar, educar e psicanalisar são atividades impossíveis, retomado por Lacan no contexto significativo da comoção cultural e política do ano de 1968 54. Ao mesmo tempo, o horizonte do impossível não implica renúncia ao problema. Pode indicar, ao contrário, o fato de ser incontornável enfrentá-lo e, para tal, precisamos de outro ponto de partida. Antes ainda que haja vida, há desejo de extinção, e a vida resiste por impossibilidade de desaparecer. Quebras de simetria sucessivas respondem pela configuração de realidades que, em escalas temporais variadas, se expandem em complexidade. Daí, a impressão de um sentido teleológico que situa um futuro desconhecido, mas conquistável e moldável pela experiência. Essa é a expectativa do pragmatismo, sua força e fragilidade. Como operação instrumental, organizar previsibilidades no seio do caos e prover meios para tanto são tarefas imprescindíveis, que não dependem da inteligência humana, pois são funções cognitivas que encontramos nas coisas. Psicanálise e pragmatismo concordam. Como postulado de base, contudo, é preciso avançar um pouco mais, na direção de uma lógica operatória que se encontre fora das especificações da lógica do vivo, vivo, em regime de radical neutralização. Em outras palavras, é preciso reverter o vetor e partir do neutro como limite extremado da caotização. Então, sim, aparecerá lugar para o jogo dos possíveis, já decantados como pedaços de realidade ou simetrias quebradas no seio das quais a crescente complexidade parecerá complexidade parecerá finalidade finalidade organizada. E como o sentido é não-Haver, o epifenômeno vida, com toda a sua exuberância, fica submetido ao arrastão pulsional. À luz dessa reversão de perspectiva, o pragmatismo ganha outro sentido. Parafraseando Dewey, ele passa a fazer parte da caixa de ferramentas da técnica psicanalítica. psicanalítica. Quando Freud afirma que esta técnica rejeita o emprego de qualquer expediente especial – pois consiste em manter a “atenção uniformemente suspensa” em face de tudo o que se escuta 55 –, ele confere mais latitude ao pragmatismo, por, pelo menos, duas razões. Em primeiro lugar, a técnica psicanalítica trata os sintomas – quaisquer sintomas – como conhecimentos úteis, e não como algo a ser extirpado ou 54
FREUD, Sigmund. Análise terminável termináve l e interminável intermináv el [1937]. Em: Obras Completas. Completas. Rio de psicanálise. Janeiro: Imago, 1976, v. 23; LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992, p. 175-204. 55 FREUD, Sigmund. “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise” [1912]. Em: Obras Completas. Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. 12. ##
corrigido, e faz a pergunta: para que serve? Isso suspende suposições ou critérios a priori priori de compreensão, que reduziriam a sintomática em questão àquilo que “já se sabe”. Em segundo lugar, o uso da mesma técnica (atenção suspensa) amplia o que sejam as “consequências práticas” de um saber (um sintoma), pois, diante da neutralidade da postura analítica, a força das significações tende a se diluir, os sintomas são reduzidos a contingências e se facilitam alternativas instrumentais à situação dada. É possível, então, abandonar a ideologia, juntamente com os princípios e compromissos metodológicos de um discurso ou saber, considerando, a partir da resultante, essa ou aquela prática como “interessante e não-contraditória com, pelo menos, o manejo de nossos processos” 56. A psicanálise propõe, assim, uma recepção plerômica dos saberes, cujos valores podem ser indiferenciados para, com isso, fazer surgir novas funcionalidades. Em brasileiro, a psicanálise é bacia amazônica, “cuja orografia, cujo relevo permite acolher todos os discursos que lhe interessarem ad hoc” hoc”57. A própria natureza dessa pleromicidade precisou ser repensada no campo da psicanálise. Desde Freud, já temos t emos a noção de formações do inconsciente, flagradas em atos falhos, chistes, sintomas. Na sequência, ainda que a perspectiva freudiana não tenha sido estritamente linguística, a reformulação lacaniana deu prevalência aos fenômenos de linguagem como via de abordagem do Inconsciente. Na Nova Psicanálise, o inconsciente deixa de ser descritível por sistema linguístico e passa a ser operação de Revirão, isto é, competência de reversão de contrários por indiferenciação. Como não é linguístico, cibernético ou homeostático 58 , seu escopo também não é o da mente “humana”, e sim do que há. Por isso, a noção de formação (do inconsciente) também foi modificada, sendo compreendida como Formações do Haver , dependentes, em sua estrutura e organização, de quebras de simetria que vão configurando possíveis, excluindo seus contrários também possíveis e recalcando o neutro. Na série das formações do vivo, aí incluída a espécie humana, essas formações são denominadas de Primário. A formação do Primário afetada de Revirão – que conhecemos pela denominação de humano – é irremediavelmente aberta e sujeita à equiprobabilidade, ou seja, não aceita o regime de oposição e é indiferente à escolha. Por oscilar, não cabe no protocolo estrito da lógica do vivo e acaba por invadir proteticamente o entorno, 56
MAGNO, MD. AmaZonas: AmaZona s: a psicanálise de A a Z [Falatório 2006]. Rio de Janeiro: NovaMente NovaMe nte Editora, Editora , 2008, p. 25. 57 Idem, ibidem. 58 MAGNO, MD. Senso contra Censo: da obra-de-arte, etc. (Introdução a uma semasionomia). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. Colégio Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, 1977, p. 168. #$
transformando-o como extensão dessa mente equiprobabilística. Essa produção protética é denominada denominada de Secundário. Secundário. Temos, então, uma teoria das formações do Haver de lógica ternária: computa a base biológica da espécie – o Primário; remaneja r emaneja a proveniência, função e lugar do que a tradição chamou de “cultura” ou simbólico” – o Secundário; e inclui o terceiro elemento, o neutro, como geratriz da complexidade – o Originário. A resultante é um modelo que conjetura o registro cerebral da máquina de Revirão como embutida no Primário, com um funcionamento tal que rompe a lateralidade biológica espontânea, excretando a reversibilidade em forma de subversões progressivas do mundo e da ordem binária com que este se apresenta. As formações do Secundário, indistintamente internas e externas, guardam e evocam a marca bífida da máquina geratriz (Revirão), mas ganham locks locks ou fechamentos que seguem a força atrativa do Primário. Sem plasticidade, funcionam como verdadeira neo-etologia. neo-etologia. Por estar desvencilhada do humano (biológico, cultural e simbólico), a Nova Psicanálise denomina Idioformação uma formação do Primário afetada de Revirão. 8.
A apresentação desse quadro teórico, a serviço da proposição de uma nova Tópica do
Recalque (Primário, Secundário e Originário), foi feita por Magno, pela primeira vez, Freudiana (1992), que, como vimos, foi em um Seminário intitulado Pedagogia Freudiana dedicado a Anísio Teixeira 59. Cabe, então, a pergunta: qual a relação entre o quadro teórico formulado em psicanálise e a indicação de uma pedagogia freudiana? Em outras palavras, qual a relação entre as bases sintomais do dito “humano” e o postulado político anisiano de que os homens são suficientemente educáveis, dado o vínculo entre educação e democracia? Como a Nova Psicanálise se desvencilhou das noções filosóficas e científicas de sujeito, indivíduo, objeto, e dos dualismos recorrentes das epistemologias (natureza x cultura; natural x artificial; mente x mundo; ser vivo x ambiente, etc.), propondo, em seu lugar, uma teoria do conhecimento e, com ela, uma teoria plerômica das formações e da pessoa, foi dado um salto no registro do problema da educação e da democracia. Quanto à educação, educação, é o caso de perguntar: diante da multifariedade das formações que entram na composição de uma pessoa, que processo pedagógico pode 59
Nos dez anos anteriores, pelo menos desde o Seminário A Música (1982), foi sendo construída uma nova abordagem teórica para a psicanálise, que culmina, no Seminário Pedagogia Pedagogi a Freudiana Freudia na,, com a apresentação de uma nova Tópica do Recalque. #%
levar isso em consideração? Diante da explosão informacional, de base tecnológica digital, que processo pedagógico pode tornar instrumental a equivalência dos saberes a aplicativos e dispositivos móveis, sem sede de produção e transmissão e sem lugar hierárquico prévio? São questões novas colocadas pelo salto de registro para o qual a comoção tecnológica e suas desconfigurações empurraram, mas já ponderáveis no final da década de 1960. O próprio Anísio Teixeira reconheceu a pertinência da nova ordem comunicacional que começava a se instalar como “início da era eletrônica em substituição à mecânica e tipográfica de nossa extinta era moderna”
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, quando,
apresentado ao pensamento de Marshall McLuhan por Magno 61, traduziu e prefaciou A Galáxia de Gutenberg em em 1969, publicando-o pela Companhia Editora Nacional. Em sua apresentação de McLuhan aos brasileiros, aponta a originalidade do ângulo pelo qual o autor canadense abordou as origens e o modo de formação do espírito moderno, a saber a tecnologia como extensões do homem, do alfabeto e da escrita à era eletrônica, passando pela pela tipografia. E saúda saúda essa percepção, percepção, de efeito desconcertante desconcertante e vertiginoso, sobretudo para os que “se fizeram integral e plenamente gutenberguianos da cultura da palavra impressa, a cultura que nos fez ‘indivíduos’, que criou o ‘público’, o ‘Estado’, as ‘nações’, o ‘pensamento científico’, desinteressado e objetivo, a ‘secularização’ global da vida humana” 62. É como se Anísio ponderasse o necessário caminho que ele percorreu, ao se manter contemporâneo de sua própria época e tentar, através dos meios que a máquina estatal lhe forneceu, prover o país com os plenos recursos da literacia gutenberguiana. A quem pôde colher esse legado, o caminho estava facilitado. No que concerne ao percurso de Magno, o escopo da virada sintomática do Planeta, prenunciada no trabalho de McLuhan, prontamente informado ao mestre e amigo, entrou no repertório conceitual levado a Paris ao encontro de Lacan. Antes ainda, em 1972, participara do I Encontro de Atualização de Professores de Ensino Normal Oficial da Guanabara, apresentando a conferência intitulada “As Mutações de McLuhan” 63 . Esse evento Paulo , Jornal ganhou cobertura da mídia, com reportagens nos jornais O Estado de São Paulo,
60
McLUHAN, Marshall. A Galáxia de Gutemberg: Gutembe rg: a formação do homem tipográfico. tipográfico. Tradução de Leônidas Gontijo de Carvalho e Anísio Teixeira; apresentação da edição brasileira por Anísio Teixeira. Teixeira . 2ª ed. São Paulo: Companhia Companhi a Editora Nacional, Naciona l, 1977, p. 13. O trecho citado é da apresentação de Anísio Teixeira. 61 Informação fornecida por MD Magno. 62 Apresentação de Anísio Teixeira em McLUHAN, Marshall, op. cit., p. 13. 63 Acervo do CFRJ, sob a identificação Apostila identificação Apostila As Mutações Mutaçõe s 00-58. 00-58. #&
dos Sports e Diário de Notícias 64. Dois anos antes, havia participado de um seminário na costa leste dos Estados Unidos (Nova Iorque, Boston e Washington), patrocinado pelo acordo MEC-USAID, onde tivera a oportunidade de ver a pujança da área de comunicação naquele país, em visitas acompanhadas a redes de tv e rádio, editoras, escolas de comunicação e agências de publicidade. Provavelmente, testemunhou uma prova contundente contundente das ideias de de McLuhan 65. Mas, sobretudo, o teórico canadense entrou no repertório da Nova Psicanálise como antena parabólica que captava e retransmitia a mutação sintomática da época – a abertura psíquica, cognitiva e social promovida pela tecnologia “eletrônica” –, sendo-lhe reconhecida a função clínica de desfiguração sintomática e disponibilidade para a transformação. Na obra de Magno, a comunicação se transformou em psicanálise, à medida que se postulou a equivalência entre o “comunicacional” e o “transferencial”, aí incluído o horizonte mcluhiano da tecnologia (ou os “meios de comunicação”) “como extensões do homem”. A ideia anisiana de educação, assim como seu corolário, a mestria, teve mais ressonâncias. Do ponto de vista institucional psicanalítico, por exemplo, isso se refletiu na via que liga a concepção de “colégio” para nomear a instituição que fundou ainda em Paris em 1975, à reformulação proposta no início da década de 1990, com a criação da UniverCidadeDeDeus UniverCidadeDeDeus (UD)66, passando por todas as mudanças estratégicas que Magno implementou à frente da condução dessas duas formas institucionais 67 . Em 2005, refletindo sobre sua concepção de formação em psicanálise, reconsiderou, junto aos membros da instituição – mas tornado público como anexo de seu Falatório –, seu percurso à frente do CFRJ e da UD: “assim é que de Presidente para cá (arre!) tenho procurado lugar e nomeada nomeada que acaso acaso justificasse o meu empenho empenho e a minha pedagógica pedagógica (se não pedante) patacoada, chamada, tendo chegado por fim a Orientador da coisa
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Respectivamente nas edições de 03 de agosto de 1972, 05 e 06 de agosto de 1972 e 03 de agosto de 1972. 65 Acervo do CFRJ, sob a identificação USAID 00-USAID 95; USAID A – USAID Z1. 66 Instituição cultural sem fins lucrativos fundada juntamente com Rosane Araujo, sua atual Presidente. Cf. mais adiante, no item 29, a concepção de instituição psicanalítica psicanalítica que orientou a atuação de Magno à frente do CFRJ e a passagem do CFRJ à UD, no início da década de 1990. 67 Magno assim explicou a escolha pela denominação Colégio dada à instituição criada em 1975: “Colégio “Colégio:: no que o termo significa de aproximação de colegas, no interesse do estudo, do debate e da produção teórica; Freudiano teórica; Freudiano:: no que o pensamento de Freud é a via, e o veio, que se nos abre à voz de Lacan; do Rio de Janeiro: Janeiro: no que, nos limitando nosso espaço, de presença constante a algum trabalho, marcamos uma sede – a qual se abre em relação a qualquer outra praça.”. praça.” . Em: Revista Em: Revista LUGAR LU GAR,, n 7: Lacan, Textos da Revista L’Arc Revista L’Arc n n 58. Editora Rio, 1975. °
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institucional que jamais se dá por assentada”68. E continua, em tom que verte a piada na seriedade do problema e vice-versa: “finalmente declaro e para mim mesmo decreto que quem quiser que se oriente como puder pelo produto que se suponha de minha lavra: ele que seja Oriente (sem que nenhum Orientador daí se depreenda)” 69. 9. No
tocante à democracia, democracia, o legado anisiano teve duplo destino. De um lado, o
escantilhão freudiano nunca permitiu, e não foi diferente com Magno, o logro da ideia de democracia. O inconsciente não é democrático, pois não funciona com uma régua de distribuição igualitária de funções ou com a expectativa de que é possível equalizar através da distribuição equitativa de condições. Ao contrário, é fora da curva, logo, é da ordem do excepcional. É aristocrático, no sentido de se encaminhar para a excelência (ou abjeção máxima) do desejo – não-Haver – e por indiferenciar os valores, pela função do Impossível Absoluto. Não há igualdade possível e idealizá-la é denegar o fato e o exercício de exercício de poder das formações recalcantes, uma vez que há quebra de simetria originária e as formações se fractalizam. Na escola ou em qualquer arranjo social ou estatal, as pessoas não são iguais, já que a miríade de formações que as desenham – na dinâmica da resultante hegemônica focalizável e no espraiamento franjal indiscernível aqui e agora – acaba por torná-las únicas únicas e, por isso mesmo, irreconhecíveis como hoc. Ora, exatamente unidade, com valores adscritos pelo que as formações podem ad hoc. nesse ponto, o legado anisiano faz a curva e toma um atalho, na vizinhança de Dewey, fazendo Magno chegar a Ralph Waldo Emerson e sua ideia de “homem privado”. Dificilmente se poderia afirmar que Emerson foi um filósofo da democracia, apesar de Dewey tê-lo lido assim 70. Como seu discípulo Nietzsche, prezava a ideia da autocriação, que denominava “‘a infinitude do homem privado’” 71, mais próxima e oriunda de um poder divino que habita o homem e mais distante da visão secular comunitária da vida cidadã, cara a Dewey. Aliás, para Harold Bloom, nisso consiste a originalidade da marca emersoniana na cultura e na política norte-americanas: a valorização do conhecimento como (re)encontro com o divino ou “a parte melhor e 68
MAGNO, MD. Clavis Universalis: da cura em psicanálise ou revisão da clínica. clínica. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2007, p. 211. 69 Idem, p. 212. 70 Segundo Richard Rorty, Dewey achava que Emerson, assim como Walt Whitman, tinham sido os únicos a ter a consciência instintiva de que “‘a democracia não é nem uma forma de governo nem uma conveniência social, mas uma metafísica da relação entre o homem e sua experiência na natureza’”. Apud “Norteamericanismo y pragmatismo”, op. cit., p. 6. 71 Idem, p. 7. #(
mais antiga de cada um” 72. Tal era, para Emerson, a condição da criação em que cada um poderia se engajar, como transformação da própria existência. Em um de seus textos mais conhecidos, Self-reliance, Self-reliance, que se pode traduzir precariamente como Autoconfiança, Autoconfiança, o pensador norte-americano descreve seu atingimento como o momento, na educação de cada um, em que é preciso entender que “imitação é suicídio” e que é preciso cada um “considerar seu melhor e seu pior como parte de si”, pois “ninguém senão ele sabe o que é que pode fazer, mas não o sabe até que o tenha tentado” 73. Essas são “as vozes que escutamos em solidão” e entrar no mundo as enfraquece e as torna inaudíveis, pois a vida social conspira contra: “a sociedade é uma empresa de sociedade anônima, na qual os membros concordam, em nome de bem assegurar o pão de cada acionista, em ceder a liberdade e a cultura do comedor”. A única coisa a fazer é cuidar do que concerne a cada um, uma regra que pode servir para distinguir grandeza de mesquinhez. Essa é uma tarefa difícil, pois sempre se encontra alguém que crê saber melhor o que o outro deve fazer do que ele próprio. Assim, “é fácil no mundo viver a partir da opinião do mundo; é fácil na solidão viver a partir de suas próprias [opiniões]; mas grande é o homem que, em meio à multidão, mantém com perfeita docilidade, a independência da solidão”. Na mesma linha de raciocínio, Emerson explora outro empecilho à self-reliance: self-reliance: a “consistência”. Por não querer desapontar o outro, reverenciamos nossas ações e palavras passadas. Mas essa é a tolice das mentes estreitas: “fale o que você pensa agora em palavras duras, e amanhã fale o que amanhã pensar em palavras duras, embora isso contradiga tudo o que disse hoje – ‘Ah, então fique certo de que você será malcompreendido’ – É tão ruim assim ser malcompreendido? (...). Ser grande é ser malcompreendido”. Em Anísio Teixeira, conviviam contraditoriamente a leitura deweyana da democracia, que fez de Emerson a ponte entre o “domínio de si” como autonomia e o processo social da educação 74, e a mensagem emersoniana do homem privado, em solidão e não comunitário. Encontramos um testemunho disso no discurso que escreveu, em 1928, e que encarregou um amigo de ler, em seu nome, em uma formatura de alunos em Salvador, à qual havia sido convidado como paraninfo e não pôde comparecer. Lá 72
BLOOM, Harold. “The sage of concord” em The Guardian, Guardian, 24 de maio de 2003. Disponível em: http://www.rwe.org/articles http://www.rwe.org/articles/199-the-sage-of-co /199-the-sage-of-concord-by-harold-bl ncord-by-harold-bloom. oom. 73 EMERSON, Ralph Waldo. Essays: Waldo. Essays: first fir st series (1841). Em: Self-reliance são retiradas http://www.emersoncentral.com/essays1.htm. Todas as citações de Self-reliance dessa fonte em tradução nossa. 74 DEWEY, John. Experiên John. Experiência cia e educação ed ucação.. Trad. Anísio Teixeira. 2 a ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976, p. 14-5. #)
afirma que “nós somos o nosso fim” e “fala alto, dentro de nós, esse sentimento fundamental de que nós preexistimos a tudo que existe”. Quando somos infiéis a nós mesmos e à nossa natureza e vocação, quebramos “o quadro de nosso destino” e o tornamos “banal e triste”. E deixa a pergunta no ar: “que me importa que a vida semeie de insídias o meu caminho ou que os homens espalhem surpresas venenosas na minha marcha, se eu levo e ouço em mim o sonho, a minha revelação, as minhas ‘vozes’, como dizia Santa Joana D’Arc, e se a elas só obedeço e sigo, como a regra permanente de minha vida?”75. A afinidade com Emerson é inequívoca e, por isso, à ideia anisiana de democracia, com todos os seus limites e contradições, não pode faltar a do “homem privado”, pois ela faz parte do Anísio lapidado pela América, como dizia Monteiro Lobato76, brasileiro antropofágico que foi “da equação eu parte eu parte do Kosmos ao Kosmos ao axioma Kosmos parte Kosmos parte do eu” eu”77. 10. Não
há igualdade em psicanálise, como não há em Emerson ou Nietzsche, do
mesmo modo que sua univocidade não se sustenta em Anísio Teixeira. Há ipseidade, no sentido do caráter único de uma formação que a distingue de todas as outras, modo de enunciar o Princípio da Diferença, que, ecoando o “homem privado” emersoniano, salta fora da democracia, para propor uma Diferocracia. Diferocracia. Eis o postulado político da Nova Psicanálise, que faz decorrer da Teoria das Formações e da Pessoa, uma política das formações da pessoa, pessoa, que conduz ao Direito das Formações, quaisquer que sejam as formações que a compõem, compõem, tendo que se buscar, por isso mesmo, outros meios e instrumentos para gerenciar os conflitos e consensos entre essas formações 78. 75
Todos os trechos citados foram retirados de MENEZES NETO, Paulo Elpídio. “Resenha do livro Ensino superior no Brasil: análise e interpretação interpreta ção de sua evolução até 1969 1969”” em Educação Educaçã o Brasileira. Brasileira . Brasília, v. 11, nº 23, 1989. Também disponível em: http://www.bvanisioteixeira.ufba.br/livros/chama_introducao.htm. Por uma dessas aleatoriedades da vida, Paulo Elpídio Menezes Neto foi colega de estudo de MD Magno na Escola Preparatória de Cadetes, em Fortaleza, tendo sido o orador da turma por ocasião da formatura. Ver Revista da Escola Preparatória Preparatór ia de Fortaleza, Fortaleza, op. cit., p. 79-99. Acervo do CFRJ. 76 Conversa entre amigos: correspondência escolhida entre Anísio Teixeira e Monteiro Lobato, Lobato, op. cit, p. 8. 77 ANDRADE, Oswald de. Manifesto antropófago antropófag o. Em ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica. antropofágica. Obras completas de Oswald de Andrade. São Paulo: Editora Globo, Secretaria de Estado da Cultura, 1990, p. 49. 78 MAGNO, MD. Delineamentos Delineam entos da Nova Mente Mente (an outline of New Psychoanalysis). Psychoanalysis) . Parcialmente inédito. O leitor encontra uma parte dessas observações em MAGNO, MD. A Rebelião dos anjos: eleutéria e exousía [Falatório 2007]. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2009, p. 120-48. Para uma aplicação do conceito de Pessoa ao campo do urbanismo, cf. ARAUJO, Rosane. A Rosane. A cidade sou eu. eu. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2011. #*
Por essa razão, a “pedagogia” passa a ser freudiana, diferocrática e ipseísta, se quiser continuar, como postura e não conteúdo, a aposta de Anísio Teixeira na singularidade, advinda do sentir fundamental que “preexistimos a nós mesmos”. Daí, também, a tarefa de pensar novamente a psicanálise, ressituá-la em relação a seu único conceito fundamental, a Pulsão, e partir dessa partir dessa ficção teórica para entender o lugar da criação, da arte, da tecnologia, do conhecimento que têm sido produzidos pela espécie dita humana, saídas contingentes de nossa condição de transeuntes, o que positiva a fragmentação, a proliferação informacional, o estado de mutação, aspectos particularmente característicos de nosso momento contemporâneo e já encarecidos por Anísio Teixeira. Explica-se igualmente que a homenagem de Magno ao mestre e amigo tenha sido feita mediante um Seminário, no curso do qual apresentou uma nova Tópica do Recalque, que situa o lugar topológico de correlação das resistências sintomáticas, apontando para o trabalho infinito de prover arquivos informacionais de disponibilidade funcional, para o que a análise trabalha contra o espontaneísmo do sintoma, tentando reconciliá-lo com sua emergência factícia e fictícia. Uma pedagogia seria, então, o exercício ou askésis dos processos de sintomatização, providenciando a eventual emergência de singularidade, experienciável para cada um em regime de solidão, que, na Nova Psicanálise, é experiência de Haver . É o real dessa experiência que nos torna absolutamente idênticos na situação de condenação à imanência, em regime de solidária solidão, solidão, que denota um vínculo absoluto em vazio, aquém do qual estamos na radical diferença das manifestações de cada um premidos pelo impossível. Como o Bartleby o Bartleby de de Herman Melville, a obra de Magno exalta e incita ao Não, à rebelião e à renúncia e não-resistência. Uma obra que enseja a redução do sentido a simples desejo de não(-haver). Signos, significantes, sons, imagens, símbolos, ícones, traços, letras, algoritmos, partículas, cordas, poeira, tudo caminha na obediência ao único sentido, que empurra para a dissolução impossível e desejada, alucinação de extinção acalentada pela matéria, pelo Chi, Chi, pela substância (em sentido espinosista), pela physis pela physis ou ou qualquer outro nome que a loucura humana tenha forjado. Nisso, somos uma repetição do Haver. Esse “Não” psicanalítico, bartlebyano, emersoniano, bachelardiano, dos Fernandos Pessoa e de tantos outros que por ele se guiaram, destroça inclemente – sem fazer esforço – as ilusões de além, sendo ao mesmo tempo o mais genuíno exercício de afirmação de que nada se deseja senão o Impossível da Desistência consumada, limite absoluto (esse Impossível), espécie de sensor ou medida de comensurabilidade de todos $+
os demais limites, aqui e agora afirmados possíveis e impossíveis. Medida que, quando a ela se recorre, serve de orientação para avaliar as lutas internas e intestinas contra ou a favor deste ou daquele limite; medida que ajuda a desistir do valor definitivo de qualquer medida intrínseca a tais lutas; medida que deita por terra e dissolve o poder dos limites que brandimos ou que diante de nós são brandidos, que defendemos ou rechaçamos mais ou menos vigorosamente. Outra estória é o que fazer com tais limites que se impõem, queiramos ou não, pois a guerra, como a análise, é infinita. 11. Na
década de 1960, Magno andava às voltas com música, teatro, arte e literatura,
além de suas incumbências contratuais como professor de escolas públicas e privadas. Em 1963, participou do II Festival de Novíssimos, promovido pelo Centro de Estudos de Música Brasileira do Diretório Acadêmico da Escola Nacional de Música. Inscreveu a peça musical Série Brasileira, Brasileira, composição sua em três partes – “Lamento”, “Reza” e “Macumba” –, que foi executada ao piano, no Festival, por Annita Iedda Cardoso Dias, com quem já estava casado 79. Por sua vez, a formação em artes plásticas no bacharelado e licenciatura da antiga Escola Nacional de Belas Artes contribuíra para que se aproximasse da experiência da Escolinha de Arte do Brasil, fundada por Augusto Rodrigues, em 1948, no âmbito do movimento internacional da educação pela arte. Nos Estados Unidos, por exemplo, a presença da arte no currículo escolar e extra-escolar já era forte, graças ao pensamento de John Dewey, que a defendia como parte do processo de integração da experiência na educação infantil. No Brasil, a partir da década de 1920, o modernismo e, em seu bojo, o movimento escolanovista, intensificaram as discussões sobre o ensino da arte nas escolas fundamentais, concebendo-o como instrumento mobilizador da capacidade de integrar imaginação e inteligência. Mais uma vez, a influência de Dewey é significativa, graças, como vimos, à atuação de Anísio Teixeira. As Reformas Educacionais de Fernando Azevedo no Distrito Federal (1927-1930), de Atílio Vivacqua no Espírito Santo (1928-1930), de Carneiro Leão em Pernambuco (1928) e de Francisco Campos em Minas Gerais (1926-1930) buscaram incorporar os princípios deweyanos voltados para o ensino da arte nas escolas. Além das iniciativas institucionais, artistas e escritores, como Anita Malfatti e Mario de Andrade, muito contribuíram para o 79
A partitura foi publicada, juntamente com o convite da época, em Revirão: em Revirão: Revista R evista da Prática P rática Freudiana, Freudiana , dez 1985, nº 3, p. 280-303. $!
movimento, a primeira, com cursos que oferecia para crianças e adolescentes em seu atelier na Escola Mackenzie, o segundo, com o curso para crianças na Biblioteca Municipal Infantil, criado pelo Departamento de Cultura de São Paulo, onde foi Diretor, entre 1936 e 1938. Outra contribuição do escritor foi na Universidade do Distrito Federal (UDF), criada por Anísio Teixeira, quando à frente da Secretaria de Educação e Cultura do Distrito Federal, entre 1931 e 1935. Lá, como professor do Instituto de Artes, Mario de Andrade colaborou para considerar a produção pictórica da criança com critérios investigativos, propondo o estudo comparado do espontaneísmo e da normatividade do desenho infantil e da arte primitiva 80. Muitas dessas iniciativas foram abortadas pelo golpe de estado de Getúlio Vargas e a subsequente implantação do Estado Novo. A UDF, que também tinha entre seus quadros Cecília Meirelles, Afrânio Coutinho, Gilberto Freyre e Roquete Pinto, foi desmontada, com uma parte incorporada à Universidade do Brasil, sendo colocada nas mãos de setores católicos, tendo à frente Alceu Amoroso Lima e Francisco San Tiago Dantas, e a outra simplesmente extinta. A partir de 1947, renova-se o interesse pelo movimento da educação pela arte, com a valorização da arte da criança, agora sob o influxo de trabalhos como os de Viktor Lowenfeld e, mais tarde, de Herbert Read 81. O foco passou a ser a concepção de que a criança é provida de meios de expressão próprios, que podem ser cultivados, incentivados e conduzidos mediante atividades que liberem sua intuição. Afastava-se a visão estética formal do gosto e da beleza em prol de um produto final que estivesse subordinado ao método criador, solidário do processo cognitivo e afetivo da criança, seu pensamento, seu sentimento e suas percepções 82. Na onda dessa orientação, vários ateliers de arte para crianças foram criados no Brasil, em Curitiba, São Paulo, Recife e Rio de Janeiro, incluindo a Escolinha de Arte do Brasil de Augusto Rodrigues, que passou a funcionar como polo formador de operadores, que replicaram a iniciativa em outras cidades brasileiras 83. Novamente Anísio Teixeira esteve presente: conheceu e
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Rede São Paulo de Formação Docente. Ensino de arte no Brasil: aspectos históricos e metodológicos. metodológicos. 2011. Disponível em: http://www.acervodigital.u http://www.acervodigital.unesp.br/bits nesp.br/bitstream/123456789/ tream/123456789/40427/3/2ed_art_ 40427/3/2ed_art_m1d2.pdf m1d2.pdf 81 LOWENFELD, Viktor e BRITTAIN, W. Lambert. Desenv Lambert. Desenvolvimento olvimento da capacidade capac idade criadora cr iadora [1947]. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1977 e READ, Herbert. Educação Herbert. Educação pela arte [1963]. [1963]. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 82 LOWENFELD, V., op. cit., p. 19. 83 Importante lembrar que a Escolinha de Arte do Rio de Janeiro não se sustentaria sem o trabalho adjunto de Noêmia Varela. Ver Rede São Paulo de Formação Docente. Ensino de arte no Brasil: aspectos históricos e metodológicos, metodológicos, op. cit. $#
apoiou o trabalho de Augusto Rodrigues na Escolinha de Arte 84, quando retornou ao Rio de Janeiro, em 1951, para assumir a Campanha de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Magno frequentou a Escolinha de Arte do Rio de Janeiro nos anos de sua formação universitária no curso de Desenho, aplicando seus princípios em provas-aula de concursos e, depois, nas escolas onde atuou, como o Colégio Estadual André Maurois e Colégio Andrews. Orientou-se pelos objetivos que eram os de Dewey, Lowenfeld e Read: a defesa da efetividade das artes plásticas no currículo escolar, através da facilitação dos meios e condições para o exercício da atividade criadora, conduzindo o aluno à familiaridade com os materiais e a sua pesquisa e utilização adequada 85. No Colégio Estadual André Maurois, teve a oportunidade de aplicar outra habilidade cultivada de infância: o teatro. Sua primeira experiência na direção de teatro havia acontecido em 1966, quando dirigiu o grupo amador da Paróquia do Preciosíssimo Sangue na Tijuca, com a encenação do espetáculo O Sal da Terra, Terra, de sua criação, com material de poetas e músicos brasileiros, além de material de sua própria autoria, como textos e músicas. No ano seguinte, já no André Maurois, a experiência cresceu, ao assumir a classe de teatro, sob condição – apresentada a Henriette Amado, então diretora da escola – de tratar a atividade profissionalmente, o que implicava ensaios exaustivos com os alunos nos finais de semana e apresentação ao público, com bilheteria86. Encenou o espetáculo O Sal da Terra II . O sucesso foi tanto, que acertou Vietnã, de Ferreira conceber e realizar a encenação do poema Por você por mim no Vietnã, Gullar, que teve apresentações sucessivas no Teatro Opinião e no Teatro Casa Grande, como parte de um espetáculo maior de Oduvaldo Viana Filho. Em meio a essas atividades, Magno ainda arrumou tempo para ir ao então Território Federal do Amapá, em 1965, para ministrar curso de formação para professores secundários, por designação do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, onde trabalhava, na qualidade de membro da equipe da CADES (Campanha de Aperfeiçoamento e difusão do Ensino Secundário) 87. Por volta da mesma época, o encontramos professor da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, onde cria o setor de Artes Plásticas, no 84
TEIXEIRA, Anísio. “As escolinhas de arte de Augusto Rodrigues” em Arte em Arte e Educação E ducação.. Rio de Janeiro, v.1, nº 1, set. 1970, p. 3. Disponível em: http://www.bvanisioteixeira.ufba.br/. 85 Acervo do CFRJ, doc. 433a-433f 433a- 433f e 452a-452j. 86 Informação fornecida por MD Magno. 87 Acervo do CFRJ, doc. 648a-648b. $$
IPQN – Instituto Profissionalizante Quinze de Novembro, no bairro de Quintino, zona norte do Rio de Janeiro, voltado para a “recuperação de pré-delinquentes” 88. 12.
Um encontro em 1958 catapultou sua obra, cujos efeitos só vieram à luz durante e
depois dos anos 1960. Seu endereço: João Guimarães Rosa. A revista Senhor , veículo prestigiado naqueles anos, publicara pelo menos dois contos do escritor mineiro: Substância, Substância, na edição de abril de 1962, e A simples e exata estória do burrinho do comandante, comandante, na edição de abril de 1960. O primeiro conto virou de ponta cabeça o que o jovem universitário achava ser a língua portuguesa e suas possibilidades poéticas. Mas foi Primeiras Estórias que forneceu, ao estudioso de Lacan em que se tornara, as ferramentas para a concepção nuclear da estrutura do psiquismo. Antes, contudo, Guimarães Rosa ajudou o jovem escritor a pensar “a torto e a direito”. Nascia o livro Aboque/Abaque: crestomatia arcaica89. Ao longo dos 22 contos organizados em três partes – Primeiro Porte, Interlúdio e Segundo Porte –, redigidos entre 1964 e 1970, o leitor experimenta a sensação próxima Hilflosigskeit ), ao que Freud denominou “estranhamento” (( Hilflosigskeit ), ao detectar certa familiaridade de estilo com outros escritores, sem que, contudo, a proximidade se estabilize em reconhecimento, pois a irregularidade das diferenças é tal que a leitura ora salta, ora desliza, ora converge, ora dispersa, antes ainda da parada. O estranhamento do estilo se combina com o experimento modernista, ali repetido, de corporificar as palavras em léxicos quase irreconhecíveis, ao romper-lhes a composição e a semântica da língua cotidiana. Nos dois contos finais, f inais, esse procedimento se exacerba, chegando ao limiar da ilegibilidade. Logo na primeira página, a epígrafe, acompanhada de “perígrafe”, “antígrafe” e “grafígrafe”, adverte o leitor do inusitado da proposta que vai encontrar, com a mensagem subliminar de que não há autor ali, e sim multivocalidade, 88
Memorial do Prof. Magno Machado Dias apresentado à Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1980, por ocasião de concurso público prestado para Professor Adjunto da Escola de Comunicação no departamento de técnicas da comunicação daquela universidade, em 1980. Acervo do CFRJ, doc. 359a-359j. 89 Ab hoc et ab hac hac,, em latim, se traduz por “a torto e a direito”. A primeira edição de Aboque/Abaque Aboque/A baque foi da Editora Rio, em 1974, e está esgotada. No momento, a Editora NovaMente NovaMe nte trabalha tra balha na n a composição compo sição de d e um volume onde espera e spera reunir r eunir e publicar a obra literária de MD Magno, parte ainda inédita, parte coetânea de sua produção teórica em psicanálise, publicada de modo m odo disperso. Para a relação r elação entre psicanálise psicanális e e poesia nesse autor, o leitor lei tor pode p ode acessar “Revirão Guarany: Magno conversa com Jussara Salazar” em Suplemento Literário de Minas Gerais, Gerais , nº 58, abril de 2000: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais. Também disponível em: http://www.novamente.org.br/ http://www.novamente.org.br/arquivos/md00arquivos/md00-reviraoguarany-pdf_137 reviraoguarany-pdf_1372864538.pdf. 2864538.pdf.
%$ logro, automatismo, polifonia, cambalhota entre o verdadeiro e o falso. A produção literária coroava as veredas da arte e do artifício por entre as quais a criança e o jovem de Campos dos Goytacazes fora levado, e anunciava, sem sabê-lo, uma das marcas da produção teórica vindoura: vindoura: o inconsciente fractal, a Pessoa como dissimetria ambulante, ambulante, aspirando a haver ninguém 90. Em Falatórios e SóPapos recentes, Magno retomou a experiência literária de Aboque/Abaque, Aboque/Abaque, no só-depois do acontecimento, para reinteligir o que lá se passara. Declara que foi seu “rito de passagem”, nas cercanias de autores como James Joyce, Samuel Beckett e Oswald de Andrade, entre outros, exemplares no experimento da explosão das noções de sujeito, autor, estilo e narrativa 91. Sugere o título do livro como um sintagma de abertura para a questão analítica “quem é eu”, indagando sobre a língua, a pessoa, a múltipla personalidade 92. Lembra o baldado intento que então tivera – compor um livro sem estilo e sem autor –, para refletir sobre o creodo creodo (caminho obrigatório) incontornável que se impõe à língua, que imediatamente faz coalescência de significado e sentido, por sua dependência do Primário e da neo-etologia. Daí, sua reconsideração do arranjo lacaniano acerca do sujeito do inconsciente e do significante puro, mostrando sua inadequação e impossibilidade. Dá como exemplo o penúltimo conto de Aboque/Abaque de Aboque/Abaque,, “As Possíveis Palavras ou Os Vamarís Combalhares”, que, do ponto de vista semântico, quase nada contém de reconhecível da língua, mas que, pela manutenção de alguma estrutura sintática e de sonoridade da língua portuguesa, acaba produzindo narrativa93. É possível escrever e retirar todos os sintomas da língua e fazêla funcionar como máquina pensante, sem sujeito e objeto?
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Por fim, situa
historicamente aquele empreendimento, empreendimento, a partir da questão mais ampla da modernidade, do modernismo e da pós-modernidade, localizando o livro no contexto nascente desta 90
Desnecessário lembrar a presença intensiva da obra de Fernando Pessoa na concepção da Nova Psicanálise, Psicanálise , pois salta aos olhos o exercício exercíc io de indiferenciação indiferenc iação que a obra literária do poeta português portuguê s faz, a começar pela desconfiguração desconfig uração que as pessoas que lá encontramos encontra mos (Caeiro, Reis, Campos, Soares, etc.) atestam e promovem. Mas, como quem repete o dito popular de que, em relação a Fernando Pessoa, “o buraco é mais m ais embaixo”, deixamos ao leitor as eventuais relações que possa fazer e adiamos, para trabalho futuro, o risco de apresentar nosso entendimento. 91 MAGNO, MD. Clownagens [Falatório 2009]. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2012, p. 171. 92 MAGNO, MD. Economia fundamental: fundamen tal: metamorfoses metamor foses da pulsão [Falatório 2004]. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2010, p. 99-100. 93 MAGNO, MD. Ars gaudendi: a arte do gozo [Falatório 2003]. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2006, p. 186-88. 94 MAGNO, MD. Ad MD. Ad Rem: R em: primeira introdução à gnômica gnô mica ou metapsicolog me tapsicologia ia do conhecimento conhecim ento [Falatório 2008], op. cit. $&
última, por sua vez, compatível com o estilo que acabaria moldando a própria produção teórica da Nova Psicanálise. Não lhe passa desapercebido que o intuito explosivo do livro calhava com a situação política do país (a ditadura militar) 95. E esclarece sobre a primeira iniciativa de publicação de alguns contos no II Concurso Nacional de Contos, da Fundação Educacional do Estado do Paraná, em 1968 96. A regra determinava que cada autor poderia inscrever até três contos, necessariamente usando pseudônimo. A comissão julgadora era composta por Raimundo Magalhães Jr., Odylo Costa, filho, Antônio Cândido, Fausto Cunha e Themístocles Linhares. Magno inscreveu seis contos, distribuindo-os entre dois pseudônimos diferentes. Não levou o prêmio, mas foi Manchete¸ que, ao surpreendido pelo comentário de Raimundo Magalhães Jr., na revista Manchete¸ discorrer sobre o concurso de maneira geral, reconheceu que, entre os concorrentes, havia dois trios de contos que eram do mesmo autor, que merecia um prêmio de pastiche, sendo sendo tão bom quanto quanto o Proust do Pastiches do Pastiches et Mélanges. Mélanges. À experimentação em música, teatro e literatura, juntou-se ainda o trabalho em artes gráficas e editoração, realizado em várias frentes: foi capista de livros da Bloch Editores bem como responsável por todos os projetos de editoração da Editora Rio, além de assumir a criação e editoração de três projetos consecutivos de relatórios internacionais do hoje extinto Banco Nacional de Habitação. A polivalência e a politecnia, aos poucos adquiridas e exercitadas, resultaram em um conjunto de atividades que transitaram pela pintura, pelo desenho e pelas artes gráficas, articulando texto, fala, gesto e visual no teatro, fazendo o texto passar a ritmo e manejo de massa sonora na música, culminando na literatura 97. Sem saber, Magno estava sendo preparado para encarar a barra barra lacaniana. 13.
Estórias na reformulação da Para acompanhar a repercussão de Primeiras Estórias
psicanálise no Brasil, por via da apropriação de Magno, é preciso apresentar outro 95
1. 2011. Inédito. MAGNO, MD. SóPapos 1. Acervo do CFRJ, doc. 654a-654d. 97 Nos anos seguintes, o autor não abandonou sua relação prática com a pintura, realizando duas exposições de seus quadros, a primeira, intitulada Adão e Eva no Para-Iso, Para-Iso, na Galeria Matias Marcier, no São Conrado Fashion Mall, no Rio de Janeiro, em 1989, e a segunda, intitulada Neron/Noren Neron/Nore n, na sala Candido Portinari, na UERJ, em 1991. Acervo do CFRJ, Memorial ao Concurso de Professor Assistente no Departamento de Editoração da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, apresentado pelo professor Magno Machado Dias, em maio de 1977, doc. 353a-353d. O leitor encontra o catálogo da exposição Neron/Noren Neron/Nore n reproduzido como anexo a MAGNO, MD. Est’Ética MD. Est’Ética da Psicanálise, Ps icanálise, parte 2, vol. v ol. 2 [Seminário 1991]. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2002, p. 165-6. 96
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encontro decisivo no percurso do autor: Jacques Lacan. Vimos o convite feito ao psicanalista francês fr ancês em 1975. Àquela altura, o livro Écrits havia Écrits havia sido minuciosamente estudado pelo já discípulo brasileiro, que o “descobrira”, em 1968, por intermédio de Giovanna Piraccini 98, conhecida por todos como dona Vanna, da Livraria Leonardo da Vinci, tradicional reduto de escritores, intelectuais e estudantes universitários, no centro do Rio de Janeiro. A articulação conceitual de alto grau abstrativo fisgou de imediato o praticante de literatura, arte, música e teatro, professor por ocasião e necessidade, necessidade, que, na sequência, passou a articular suas aulas de comunicação e semiologia a partir da abordagem lacaniana, promovendo grupos de estudo dedicados a essa vertente da psicanálise, praticamente praticamente desconhecida desconhecida no Brasil, Brasil, em particular no Rio de de Janeiro. O curso de mestrado em comunicação e o de doutorado em teoria literária, ambos realizados na UFRJ, sob orientação de Mário Camarinha da Silva e na convivência com professores como Emmanuel Carneiro Leão, na década de 1970, deram oportunidade para os primeiros registros teóricos do processamento da psicanálise vis-à-vis o caminho percorrido até então. Destacam-se dois temas-conceitos que, por vias específicas, estruturam a renovação que se entrevê nesse período: o espelho e a obra-de-arte. obra-de-arte. Ao Rosa-máquina-de-triturar-Lacan, juntou-se Marcel Duchamp, máquina-de-fazer-desfazer-não-importa-o-quê máquina-de-fazer-desfazer-não-importa-o-quê.. O primeiro trabalho mais consolidado com resultados de pesquisa em chave de leitura lacaniana foi apresentado como Seminário em 1976 e publicado um ano depois com o título de Senso contra Censo: da obra-de-arte, etc. (introdução a uma semasionomia)99. Nele estão reunidos textos escritos entre 1972 e 1975, que circularam na revista LUGAR, LUGAR, à medida que produzidos ao longo da pós-graduação em comunicação na UFRJ. Já no título se indica o horizonte da reflexão. De um lado, o senso –, que só há em avessamento, como em uma banda de Moebius, que, sentido – senso –, cortada, transforma-se em banda bilátera, onde habita o raciocínio binário de oposição e exclusão – censo, censo, portanto. De outro lado, a proposta de contribuição ao campo de investigação aberto por Lacan e a partir de seus achados, com a concepção de uma semasionomia: semasionomia: o “acompanhamento do processo” da obra de arte, sua marca ou sinal ( semasia), semasia), sabendo que essa regulagem ou governo ( nomós) nomós) são impossíveis 100. Em outras palavras, um projeto teórico que erigia a obra de arte como espaço privilegiado 98
Informação fornecida por MD Magno. MAGNO, MD. Senso contra Censo: da obra-de-arte, etc. (introdução a uma semasionomia), semasionomia), op. cit. 100 MAGNO, MD. Senso contra censo, censo, op. cit., p. 84. 99
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para detectar a emergência da criação, entendida como como ato poético, e seu condicionante, o trabalho inconsciente. O argumento principal vinha acompanhado de seis artigos – o etc. do etc. do título –, que expunham aspectos diferentes e convergentes das teses lacanianas, com algumas proposições criativas, que, hoje, em consideração retrospectiva, apresentam discretas intervenções na orientação de Lacan compatíveis com a crítica que dela seria feita a partir da década de 1980 101. A proposta de uma semasionomia não deixava de evocar a semanálise, de Julia Kristeva, que também se propunha como contribuição à psicanálise lacaniana no campo da semiótica e da análise do discurso 102. Mas, enquanto a semanálise aspirava a mostrar texto (poético, literário ou outro) como composição significante o texto (poético, composição significante de de múltiplas conexões linguísticas e sociais, donde o conceito de intertextualidade, partindo dos trabalhos de Mikhail Bakhtin, a semasionomia se apresentava como uma teoria da arte que pretendia com-siderar (no (no sentido de siderar junto com) a obra de arte, o poético, como sinal ou marca do Impossível constituinte do desejo inconsciente. A obra de arte, tal como o ato analítico, testemunhava a impossibilidade de haver relação, no sentido lacaniano de a relação sexual ser impossível. Testemunhava, portanto, a sexão (a secção do sexual), o corte, a separação radical a que um percurso de análise, se realizado, terá sido conduzido. Em outras palavras, “o trabalho da arte é senso contra censo, censo, é subversão do cálculo e da censura – o que valeu as estéticas do desvio e da transgressão –, mas sobretudo subversão do cálculo que não se faz no trabalho inconsciente, que não pensa nem calcula, e subversão da censura à morte, ao corte, à castração que com o belo e com fixão), o bem se tapa. O trabalho do censo é o cálculo da ficção (( fixão ), ao passo que o do senso é respeito à secção ( sexão ( sexão)” )”103. Senso contra censo se apoiava explicitamente em, pelo menos, duas construções teóricas de Lacan: a topologia do sujeito como operação de corte, de que a banda de 101
Os seis artigos que compõem Senso contra censo discutem censo discutem aspectos da teoria lacaniana do sujeito e do significante, além de abordar a obra de Cézanne e dialogar com a ideia de Walter Benjamin sobre a reprodutibilidade técnica da arte. Destacam-se algumas intuições teóricas esboçadas, que ganhariam, mais tarde, contornos mais precisos, deslocados do contexto lacaniano: 1) um esboço de crítica ao conceito lacaniano de sujeito, apontando que, para além de enunciado e enunciação, há “denúncia” de sujeição; o não-humano do Revirão; o estatuto genérico da linguagem; a produtibilidade técnica da arte. De modo geral, esses artigos indiciavam o entendimento de que o “paradigma” do conhecimento e da cultura já não se apoiava mais na língua linguística, no viés subjetivo-objetivo do conhecimento e no biológico como padrão incontornável da espécie dita “humana”. 102 KRISTEVA, Julia. Uma introdução à semanálise [1968]. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. 103 Op. cit., p. 37. $)
Moebius é a metáfora principal, com a algebrização da fantasia (sexual) que lhe é solidária, formulada como objeto a, e os quatro discursos como leitura abstrativa do processo de transferência, sob a égide do discurso analítico, como o próprio Lacan indicara104. Essas ferramentas, aplicadas ao campo da arte, destacavam a excelência do fazer artístico, ato poético ou ato de criação, a partir da proposta de uma “homotopia” entre a obra de arte e a função analítica, e o processo de criação como percurso de análise ou travessia da fantasia. Assim, “como o analista, enquanto quem ‘ocupa’ o lugar do (a)bjeto, lugar da causa, a obra-de-arte recolhe a transferência. (...) ela ocupa o lugar do analista enquanto ato analítico, analítico, onde se jogam transferência e interpretação análise”105. Ao (...). ‘Sua’ obra [a do poeta] é ato poético como ato analítico: a obra é análise” situar a obra de arte do lado do ato analítico, reiterava-se a posição de Freud e de Lacan segundo a qual não se faz psicanálise da obra de arte, não se a interpreta, mas nela se reconhece a presença do mesmo não-saber, figura do Impossível Absoluto, que está na base da experiência experiência analítica. Ao público, qual analisando, analisando, cabe escutá-la, na medida medida em que transferencialmente lá supõe o seu saber (do público) à obra. Daí que o Impossível fingido na obra causa as mais diversas manifestações, sejam de índole crítica, analítica, semiótica, historicista ou outra, que são falas de analisando, assim como o são os mitos e ilusões daquele(a) que os declina diante da neutralidade da função analista. A semasionomia proposta em Senso contra censo era um ensaio teórico sobre o processo de análise, concebido concebido a partir da arte. A obra-de-arte era obra-de-arte era uma espécie de lugar atrator do Impossível, que Lacan formulara como não-relação – corte ou sexão, sexão, conforme a contribuição de seu discípulo brasileiro –, o que a lançava (a obra) na mesma função que a psicanálise concebera como sendo a do ato analítico – neutralidade, incalculabilidade, não-saber. Mas a proposição era mais precisa: o ato analítico replicava a função soberana do ato poético, radicalmente anônimo, sem dono, sede ou contorno epistêmico, de que a obra de arte dava testemunho e que a psicanálise, como teoria, contribuía para discernir e, como prática, eventualmente poderia provocar analista, homotópico à obra de arte. Se a a emergência. Se e quando o fizesse, emergiria analista, relação entre obra e público, analista e analisando, era transferencial, no sentido 104
“Lembrarei aqui a vocês os quatro discursos que distingui. Existem quatro, apenas sobre o fundamento desse discurso psicanalítico que articulo com quatro lugares, cada um deles lugar de apreensão de algum efeito de significante, e que eu situo por último nesse desenvolvimento (...). Muito bem, eu diria agora que desse discurso psicanalítico psicanalítico há sempre alguma emergência a cada passagem de um discurso a outro”. Em: LACAN, J. O Seminário, livro 20: mais ainda. ainda. Versão brasileira de M. D. Magno. Mag no. 2ª ed. Rio de Janeiro: J aneiro: Jorge Jor ge Zahar Editor, 1985, p. p . 26. 105 Senso contra censo, censo, op. cit., p. 68. $*
abstrativo que Lacan indicara, uma teoria que tomasse esse fenômeno como ponto de partida seria indiscernivelmente indiscernivelmente psicanálise psicanálise e teoria da arte. arte. 14.
Junto com o aporte que a teoria lacaniana forneceu para a tese da homotopia entre a
obra de arte e a função analista, sem o qual ela talvez não fosse conceptível, a frequentação da obra de Marcel Duchamp foi fundamental como apoio a duas vigasmestras conceituais da Nova Psicanálise: em primeiro lugar, a composição e a demonstração do princípio freudiano segundo o qual o inconsciente não tem registro de morte, embutido no axioma da Pulsão, tal como Magno o propõe: Haver desejo de nãohá. A segunda Haver. Daí se extrai a desconcertante afirmação de que a morte não há. consequência consequência duchampiana desta psicanálise é a sustentação do valor da Arte como pura e simples articulação, generalizando e radicalizando o que possa indicar o radical latino ART106. Na primeira, encontraremos a ideia específica de Espelho, Espelho, que foi se urdindo também com Guimarães Rosa. Na segunda, mostra-se o rastro da crítica e destituição da noção de sujeito (sobretudo na visada lacaniana) e os elementos de construção do Pessoa. A demonstração da relação entre as duas obras MD – Marcel conceito de Pessoa. Duchamp e MD Magno – extrapola em muito o escopo desta apresentação, mas vamos rapidamente fornecer elementos para o leitor situar o que está em jogo. Como artífice e pesquisador do campo da arte, Magno conhecia profundamente a obra de Duchamp. Além de dar aula sobre estética e história da arte na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, foi lá que realizou seu Seminário, no âmbito da transmissão da psicanálise lacaniana, sobre Marcel Duchamp, no segundo semestre de 1976. O Seminário foi intitulado Marchando intitulado Marchando ao Céu, Marcel Duchamp, Marchand Du Du Sel 107(em um arranjo fonológico com um dos pseudônimos do artista), cuja gravação se perdeu, o que impossibilitou transcrevê-lo. O tema Duchamp retornou em vários Seminários nos anos subsequentes, com referências precisas, mas sintéticas, acompanhadas de reiterados convites do autor a que se estudassem os protocolos duchampianos para melhor acompanhar e sacar o que estava sendo proposto como renovação da psicanálise. Le Grand Verre ou La Mariée mise à nu par ses se s célibataires, même, même, Grande Vidro ou Vidrão, Vidrão, como Magno o traduz, serviu como metáfora para mostrar a impossibilidade
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MAGNO, MD. Clavis universalis: da cura em psicanálise ou revisão da clínica [Falatório clínica [Falatório 2005]. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2007, p. 32-3. 107 Cartaz de divulgação. Acervo do CFRJ, sem numeração. %+
absoluta de atingimento da morte e a experiência de condenação a Haver. Magno chegou a se referir à sua própria teoria como seu Vidrão108. Elaborada a partir de 1912 e concluída (ou deixada inacabada) em 1923, o Vidrão é ininteligível sem as notas da Caixa Verde, Verde, anotações de Duchamp sobre o processo de concepção desta obra, publicada em 1934. Sua descrição é conhecida: um vidro duplo, de 2,77 cm de altura por 1,77 cm de largura, na espessura de 0,86 cm, emoldurado em liga de metal, pintado a óleo e dividido horizontalmente em duas partes109. A parte de cima corresponde ao domínio da Noiva ( La ( La Mariée) Mariée) e um de seus elementos é o Enforcado Fêmea ( Pendu ( Pendu Femelle). Femelle). A Noiva também recebe a denominação de O Esqueleto, Motor-Desejo, Vespa, A Virgem. Na parte inferior, à esquerda, estão os moldes málicos ou máchicos ( Moules ( Moules Malics), Malics), domínio dos solteiros ou celibatários, também denominado Aparelho Solteiro, Máquina de Eros, Cemitérios de Librés e Uniformes (ou Fardas) 110. Há outros elementos que as anotações da Caixa Verde ajudam a decifrar: na parte mais alta da metade superior flutua uma nuvem de cor acinzentada, a Via Láctea, que envolve três tabuletas ou os Letreiros de Cima, cuja função é transmitir aos celibatários as descargas da Noiva. Ainda na parte superior, na extrema direita, há uma zona de pontos, que são os disparos dos celibatários. A parte inferior é a “base arquitetônica da Noiva-Apoteose”, segundo Duchamp, onde nove moldes málicos estão “como que envoltos por um espelho que lhes envia sua própria complexidade até aluciná-los” 111. À direita dos moldes, está a Carreta, um carrinho com patins, que aloja um Moinho ou Batedeira de Chocolate, seu propulsor. Um engenhoso mecanismo faz com que o Moinho anime a Carreta com um movimento de vaivém, acompanhado de litanias a serem recitadas: Vida lenta, Círculo vicioso, Onanismo, Horizontal, Pacotilha de vida. Formado por sete cones, um Tamis, espécie de peneira utilizada na indústria farmacêutica ou na preparação de alimentos, se encontra à direita da Carreta. Está unido aos moldes málicos por um sistema de tubos capilares. Entre a Batedeira de Chocolate e o Tamis, abrem-se e fecham-se Tesouras. A Batedeira, que ocupa a parte central da metade inferior, é definida pelo que Duchamp chama de 108
psicanálise , da arte total à clínica geral [Seminário MAGNO, MD. Arte & Fato: a nova psicanálise, 1990]. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2001, v. 1, p. 78. 109 Segundo informações do site do Museu de Arte da Filadélfia, onde a obra se encontra. Cf. http://www.philamuseum.org/ http://www.philamuseum.org/collections/ collections/permanent/54149.h permanent/54149.html tml 110 Seguimos a descrição de Octavio Paz em em Marcel Duchamp ou o castelo da pureza. pureza. São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 30ss. Cf. também CLAIR, Jean. Sur Marcel Duchamp et la fin de l’art . Paris: Gallimard, 2000; TOMKINS, Calvin. Duchamp: Ducham p: uma u ma biografia b iografia.. São Paulo: Cosac Naify, 2004. 200 4. 111 Duchamp apud PAZ, Octavio, op. cit., p. 34. %!
“adágio da espontaneidade”: “o solteiro mói ele mesmo o seu chocolate”. Há ainda as Testemunhas Oculistas, que são figuras geométricas, espécie de porção voyeurista do erótico suscitado no e pelo quadro. Essa complicada maquinaria, que o Vidrão e a Caixa Verde Verde compõem, se articula em três partes, uma plástica, uma literária e outra sonora, como se deduz da identificação sumária de seus elementos. Pode-se descrever seu funcionamento da seguinte maneira: a Noiva envia a seus celibatários um fluido elétrico ou magnético, através do Letreiro de Cima. Aqueles, como moldes málicos, se inflam e emitem, por seu turno, um gás que, após algumas peripécias, passa pelos sete cones do Tamis, enquanto litanias são recitadas pelo Carrinho ambulante. O fluido, filtrado pelos cones e convertido em um líquido, chega até as Tesouras que, em movimento de abre e fecha, o dispersam e uma parte, explosiva, dispara para cima, atingindo a zona dos tiros. Nesse momento, a Noiva se desprende imaginariamente de suas vestimentas. Nas indicações de Duchamp, a origem desse motu erótico-mecânico motu erótico-mecânico é o Motor-Desejo, um dos órgãos da Virgem, que dela está separado por um esfriador de água, expressando o fato de que “a Noiva, longe de ser um pedaço de gelo sem sensualidade, recusa calidamente (não castamente) o inopinado oferecimento de seus solteiros” 112. Fecha-se, assim, o circuito ou o motu perpétuo motu perpétuo que se iniciara com o Motor-Desejo da Noiva. Magno radicaliza um elemento comum presente em vários entendimentos propostos dessa obra ao longo do século XX: o Vidrão desbaratou as artes plásticas e, por tabela, t abela, as artes em geral, criando problemas para o pensamento em vários campos, pois é como se Duchamp declarasse: “A arte acabou! Encerrei o assunto” 113. Seu trabalho de desertificação ou desraciocínio mostrou que sobra apenas o processo ARTiculatório e nada mais, ao dar o golpe que acaba com as fronteiras entre arte, ciência e filosofia, evidenciado na tecnologia contemporânea, que é a Grande Arte 114. Além disso, o Vidrão exemplifica Vidrão exemplifica o que o próprio Duchamp destacou como um propósito seu: a indiferença do olhar, longe, portanto, da suposta supremacia da visão olhos, retiniana. Afirmou Duchamp: “tive a intenção de fazer não uma pintura para os olhos, mas uma pintura em que o tubo de cores fosse um meio e não um fim em si. (...) Há uma grande diferença entre uma pintura que só se dirige à retina e uma pintura que vai mais além da impressão retiniana (...). É isso que ocorre com os religiosos do 112
Idem, p. 36. MAGNO, MD. Revirão MD. Revirão 2000/2001. 2000/2001 . I. “Arte da d a Fuga”; Fuga ”; II. Clínica da Razão Razã o Prática Práti ca.. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2003, p. 226. 114 MAGNO, MD. Ars MD. Ars Gaudendi: Gaud endi: a arte a rte do gozo go zo [Falatório [Falatório 2003], op. cit., p. 246-7. 113
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Renascimento. O tubo de cores não os interessava. O que os interessava era expressar sua ideia de divindade desta ou daquela maneira. Sem pretender o mesmo e com outros fins, tive a mesma concepção: a pintura pura não me interessa em si nem como finalidade”115. Para Magno, essa via significava retomar para as artes visuais, e na contracorrente das artes retinianas, “a questão fundamental da organização do espaço e do tempo em função da pulsionalidade da libido, da sexualidade humana” 116. Vê-se como, junto com Lacan, estavam disponíveis os elementos para a proposição segundo a qual a obra de arte só poderia ser analista (função indiferenciante), jamais analisando (tendência de configuração), uma vez que a própria ideia de obra e a de arte haviam entrado em periclitância com Duchamp, e junto com elas, suas coadjuvâncias estéticas e políticas de cena e significação: a crítica, a interpretação, a semiótica ou a história da arte. Restava-se concentrar na estrutura mínima da máquina desejante: o Vidrão e a impossibilidade de atingimento d’A Noiva / Morte ou o Revirão Revirão e a consequente neutralização do sentido. Por isso, o Vidrão Vidrão serviu como apoio para se reconsiderar novamente a psicanálise, a partir e apesar de Lacan. Essa obra seria uma visão primitiva, bruta e direta da fórmula mínima da pulsão – Haver desejo de não-Haver –, uma ARTiculação por meio da qual se mostrava que não se deseja deseja senão não-Haver, não-Haver, sendo sua consecução consecução absolutamente impossível, tão desejada e inatingível quanto A Noiva, que, nesse sentido, pode ser o Absoluto Intocável (um dos nomes da Noiva é a Virgem), ou a experiência d’A Morte impossível. Nós outros somos moldes málicos, celibatários, condenados a haver desejando seu simétrico (não-Haver). Magno faz questão de traduzir moules malics por malics por moldes málicos ou máchicos, máchicos, e não machos, machos, por entender que não se trata da oposição entre feminino e masculino, e sim da simetria impossível entre Haver e não-Haver, que nos lança a todos, machos e fêmeas anatômicos, em suas diversas expressões sexuais, no processo masturbatório (a Batedeira de Chocolate) de atingimento de um impossível, o que inclui o sentido lacaniano de não haver relação Virgindade,, inatingível, intocável”, sexual 117. Em suma, trata-se da “grande Apoteose “grande Apoteose da Virgindade sendo os Moldes Máchicos “formações possíveis do chamado Desejo, do chamado Tesão, na tentativa desse atingimento” 118 . Como o próprio autor resume, “nessa 115
Apud PAZ, Octavio, op. cit., p. 49. F ato,, op. cit., p. 58. MAGNO, MD. Arte MD. Arte & Fato 117 MAGNO, MD. Revirão MD. Revirão 2000/2001, 2000/2001 , op. cit., p. 227. 118 Idem, p. 228. Em uma anotação distribuída para a equipe de editoração do Falatório 2002, Psicanálise: Psicanális e: Arreligião, Arreligião , Magno afirma que “a Realidade é SUPOSTAMENTE racional, só 116
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tentativa de apresentar-lhes como funciona o meu Vidrão, Vidrão, mostrei que o movimento pulsional do que quer que haja, essa energia neutra funcionando na impossibilidade de reduzir-se a si mesma a zero, vai resultar numa série de metamorfoses, avatares. Partindo, então, desse núcleo, radicalizando o conceito freudiano de Pulsão de Morte, tomando-o como base, como fundamento da estruturalidade, e tentando acompanhar por vias já estabelecidas, pelo menos em seu desenho grosseiro, seu esboço, por Freud e retomadas por Lacan, é que tento construir um aparelho que desenharia os avatares, as transformações, a metamorfose contínua desse movimento da libido” 119. Por fim, de Duchamp também se recolhe a lição do ready made, made, que acirra o sentido e uso do ARTiculatório, ao mostrar que a arte é um ato de apropriação, como acontecimento, de algo corriqueiro no mundo. É um gesto de desumanização da arte, de radical artificialização por indiferença sexual 120 , ou, como afirmou Duchamp, por “indiferença visual”, acompanhada de “uma total ausência de bom ou mau gosto – de fato, uma total anestesia121. Com isso, nos interessa indicar uma linha de composição teórico-clínica que, na Nova Psicanálise, vai da obra de arte como função analista à Pessoa como work in progress. progress. Com efeito, a extensão e generalização do conceito de Arte como articulação somadas à experiência analítica como perda de sentido ou Revirão acabam resultando na concepção do próprio processo de análise como processo de artificialização. Quanto mais avança a ação dissoluta e dissolvente da análise, maior a disponibilidade para o não-importa-o-quê, maior a desconfiguração das formações da Pessoa e menor o efeito de co-naturalização do sintoma. Em um momento crucial de virada conceitual da psicanálise, ao longo do seminário Grande Ser Tão Veredas, Veredas, em 1985, Magno retoma seu percurso em psicanálise através da arte e afirma que “a psicanálise, em sua prática, é a arte de transformar o sonhador em artista” 122. Quase duas décadas depois, esse aforisma é reelaborado, à luz da Teoria das Formações e da Pessoa, para conceber a faltando revelar as razões possíveis. Isto não identifica o real (no nosso caso o H aver) a nenhum racional conhecido. (...) A Realidade das Idioformações (Realidade do Haver) resulta em não haver Morte. É do confronto com isto que decorre toda possibilidade moral para a psicanálise: Condenação ao Haver // Eternidade da vida Humana // Não atingimento da Morte (Marcel Duchamp: La Duchamp: La Mariée, Mariée , Le Pendu Pend u Femmelle Femme lle,, é A Morte, Aimée Morte, Aimée Selamor – – como eu a nomeei [em 1990] – a parte superior do Vidrão. Éros Vidrão. Éros c’est c’e st La Vie, Vie , Rrose Sélavy S élavy é é a parte inferior (...)”. (...)”. 119 Idem, p. 103. 120 MAGNO, MD. Arte MD. Arte & Fato F ato,, op. cit., p. 55. 121 DUCHAMP, Marcel. Conferência no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque em 19 de outubro de 1961. Disponível em: http://radicalart.info/ http://radicalart.info/things/readymad things/readymade/duchamp/text. e/duchamp/text.html. html. 122 MAGNO, MD. Grande Ser tão veredas [Seminário 1985]. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2006, p. 131. %%
psicanálise como caminho de facilitação facilitação para que cada um tenha emergência como obra de arte, donde a análise como perene criação artística das Pessoas, ou seja, a análise como infinita123. Como singularidade, a Pessoa é uma “máquina de fazer infinitudes” ou “máquina eliminadora de fronteiras” 124, na medida em que, co-movida pelo Real – lugar a que essa singularidade se reporta –, transforma o mundo, desfigurando-o como fixão encontrada, para constituir mundo como fixão libatória, aquela mesma masturbatória ficcionada por Duchamp 125. Assim, “só existe Pessoa em processo, tentando levar-se ao infinito mediante a anulação progressiva do valor de sua individualidade. É isso que quer dizer work in progress, progress, o qual é work of art ”126. 15.
Afirmamos que, ao Rosa-máquina-de-triturar-Lacan, juntou-se Marcel Duchamp,
máquina-de-fazer-desfazer-não-importa-o-quê, a propósito dos dois temas-conceitos que estruturaram a renovação da psicanálise que se entrevê no trabalho de Magno na década de 1970: o espelho e a obra-de-arte. obra-de-arte. Da segunda, esperamos ter mostrado alguns circuitos de conexão. Passemos, então, ao Espelho e a Guimarães Rosa . censo, Rosa rosae: leitura das Escrito concomitantemente a Senso contra censo, Primeiras Estórias de Estórias de Guimarães Rosa acabou se transformando, do ponto de vista de carreira universitária, em tese de doutorado em letras, que Magno defendeu na UFRJ em 1980. Mas, àquela altura, já era texto acabado e conhecido, tendo sido apresentado como um dos cursos proferidos pelo autor no Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII, em Vincennes, no outono-inverno setentrional de 1977-78, o outro curso sendo Senso contra censo127. São nítidas, nesse texto, a apropriação mais extensa da obra de Lacan bem como uma acuidade maior, não desprovida de criatividade, quanto ao trato dos elementos conceituais (significante, letra, Outro, sujeito, falta, a “metaforonímia paterna”, a “folia trinária” entre real, simbólico e imaginário, borromeanamente recuperada como estrutura quaternária, entre outros), apresentados em suas relações lógicas. Ainda que Estórias, o livro abre espaço, no capítulo inicial, voltado para a análise de Primeiras Estórias, 123
universalis, op. cit., p. 185-9. MAGNO, MD. Clavis universalis, Idem, p. 185, p. 187. 125 A partir de um jogo fonológico, Magno propôs uma escrita da Mariée da Mariée,, de Duchamp: La Duchamp: La mare y est mise à nue par sexe s exe libatoire, même. même. E explica: a poça d’água ou de lama (la (la mare) mare) ali está posta em nuvem n uvem (mise à nue) nue) por sexo libatório, isto isto é, por sexo desperdiçado, pois todo sexo é F ato,, op. cit., p. 58. desperdício, já que não há relação sexual. Ver Arte Ver Arte & Fato 126 MAGNO, MD. Clavis universalis, universalis, op. cit., p. 191. 127 Acervo do CFRJ, doc. 480 a-480b. Rosa rosae foi rosae foi publicado em 1985 pela aoutra editora, aoutra editora, primeira editora e ditora do Colégio Co légio Freudiano Freud iano do Rio de d e Janeiro. 124
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para uma breve transversal de Grande sertão: veredas, veredas, tendo como horizonte a proposta da semasionomia, da qual se extrai a tese de que “ Grande sertão, sertão, enquanto obra, é análise”128. São propostos três planos que se entrecruzam nesta obra-prima de Rosa: de um lado, a travessia dos acontecimentos, que se encontra no nível do narrado ou do “amarrado” do texto – as aventuras de Riobaldo e as marcas sintomáticas que, desde a infância, o carregam, o encontro com Diadorim e a paixão pelo jagunço, em meio à guerra do sertão. De outro lado e em outro nível, está a travessia da fantasia de Riobaldo que é Diadorim, morta, no que se equipara à alucinação do desejo (anotado como objeto a). Para usar a metáfora duchampiana, a travessia ou cura de Riobaldo se realiza entre Diadorim molde málico, decadentizado em uniforme macho de jagunço, e Diadorim a Virgem, Morta (trauma agudizado pelo fato de seu perecimento na guerra e pela “descoberta” de que Diadorim-Reinaldo é Maria Deodorina, “a Deus dada” 129). Mas é a rememoração que refaz a travessia, o que, na obra, está no nível da narração ou “amarração” do texto. Essa rememoração equivale ao processo analítico, que reduz o sintoma a uma letra sem sentido, engendrando, na obra, o terceiro nível, mais invisível, da “desnarração” ou “desamarração” do nó sintomático terçado pelo texto, quando se realiza, só depois, a homotopia entre a obra de arte e a função analista, ou seja, a obra como análise, no percurso em três níveis do processo analítico. A desnarração depende da assunção, desde o lugar de Riobaldo analisando (e do leitor/público que está na mesma posição) da dissimetria entre os sexos e da impossibilidade da relação sexual. A excelência da obra de Rosa, nesse pormenor, é compor narrado, narração e desnarração de tal modo que emerge o Impossível incontornável: Riobaldo enamorado de Reinaldo/Diadorim não o toca em obediência à interdição moral do costume, e sofre por isso; conforme anatomia e registro em cartório, existe Maria Diadorina, mas disso Riobaldo não sabe e convive é com Diadorim, o que acrescenta em afetação à sua paixão; o sabê-lo é já da ordem do trágico, com a irreversibilidade da morte de Diadorim, “que revela o real em jogo na sexuação (de Diadorim e de Riobaldo, como de todo falesser 130 ), deixando vislumbrar desesperadamente o que poderia que poderia ter sido” sido”131. Contudo, o “poderia ter sido” também é 128
MAGNO, MD. Rosa rosae: rosae: leitura das Primeiras Estórias Estórias de Guimarães Rosa. Rosa. Rio de Janeiro: aoutra editora, 1985, p. 46. Grifo do autor. 129 Expressão que, no nordeste brasileiro, significa “virgem”. ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas v eredas.. 19ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 559. 130 Essa é a tradução proposta por Magno para o que Lacan denominou parlêtre denominou parlêtre ou ou “ser falante”. 131 Idem, p. 48. %'
encurralado pelo Impossível, desconsiderasse Riobaldo o proibido moral (a dita homossexualidade), homossexualidade), efetivando a praticagem corporal; ou descobrisse Riobaldo a tempo que Reinaldo era Maria. Em ambos os casos, o tesão permutaria. Em todos os casos, o sexo permanece sempre outro e a relação sexual, impossível. A rememoração da travessia se opera em relação transferencial, pois Riobaldo solicita a Zé Bebelo, chefe inteligente e valente dentre todos, que o salve. Por intermédio dessa suposição de saber que é adscrita ao antigo chefe, chega a recomendação de outro sujeito, o Compadre Quelemém de Góis. “Quem é Quelemém? É aquele que, no narrado, está na posição de analista: analista: ‘diverso de todo mundo’”, a quem Riobaldo conta tudo 132, para ter o sentido destrançado, e que a dor passasse e a história se desmanchasse. Quando se inicia Grande sertão, sertão, lê-se: “– Nonada. Tiros que o senhor ouviu...” O Riobaldo que aqui enuncia o faz em regime de terceiro tempo, t empo, o da desnarração, embora o leitor não o saiba. Desfeito o narrado em processo de narração, na travessia da fantasia, já é outra Pessoa a se dirigir a quem quer que possa ouvi-la. Em chave de leitura lacaniana, entenda-se esse “a quem quer que” como A barrado ou Grande Outro. Outro. Assim, “Riobaldo ganha (a guerra) e perde (Diadorim) no mesmo instante, no mesmo ato. E, depois do primeiro relato, depois da interpretação do seu relato, é no relato segundo, que, por escrito, escrito, ele passa: de analisando a analista: a séria travessia (...). Estar na posição do analista é estar na comemoração de uma sublimação – e a obra é obra é escritura exarada dessa comemoração. Mas Riobaldo não existe – senão como sujeito como sujeito dessa dessa obra significante obra significante.. É a obra que passa – passa a ser obra” obra”133. 132
Idem, p. 52. Idem, p. 54. Chamamos a atenção para os lugares e funções dos conceitos e sua resultante como teoria: apoiado na leitura de Lacan, o escopo da análise proposta aponta para a significant e, depois da passagem, pelo emergência de obra homotópica ao ato analítico como significante analisando, das possibilidades discursivas (que Lacan abstrai como quatro: histérica, mestre, universidade e analista). Em Senso contra censo e Rosa rosae, rosae , o significante o significante que a obra é, como ato analítico, aponta para a in-significância, para o não-senso. A crítica posterior ao escopo lacaniano implicará, em Magno, a crítica ao aparelho de base linguística lá utilizado, que constituía uma verdadeira camisa de forças na abordagem do sintoma. Uma das intervenções teoricamente fundamentais foi conceber o Halo significante significante e deslocar para a operação de letra, como propôs Lacan, mas da préneutralização implicada na catoptria a instância, não da letra, da préopositividade opositividade inconsciente, que, por quebra de simetria, se decanta em língua e em outros aparelhos linguageiros (onde se situariam a letra, o sujeito do enunciado e da enunciação, o significante metaforonímico, a metáfora paterna, de Lacan). Acompanhando detidamente a produção produçã o teórica de Magno em psicanálise, psicanális e, até o início dos anos 1980, vê-se a oscilação conceitual, pelo estado em curso da investigação, entre o uso arguto e rigoroso dos conceitos lacanianos e sua torção, pela entrada em cena de raciocínios que simplesmente não cabem no protocolo utilizado, como é o caso da lógica em espelho, que concebe o significante significant e como “entre” enunciado e enunciação, como reviramento, como banda de Moebius, todas operações 133
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A conclusão da primeira parte de Rosa rosae desemboca na apresentação do conceito de Espelho, Espelho, que tanto sustenta a análise apresentada quanto será o leme e a lâmina do estudo de Primeiras Estórias. Estórias. O corte ou sexão ou sexão que que vige na impossibilidade da relação é espelho catóptrico, catóptrico, para usar um termo ausente do texto, mas presente como lógica (e que, nos Seminários seguintes, vai sendo alçado, aos poucos, à condição de princípio fundamental do Haver e do psiquismo: princípio catóptrico, função de simetria ou reversibilidade). Um espelho catóptrico é um espelho de avessamento pleno, muito além da reversão de imagem dos espelhos especulares. O Princípio do Espelho como catoptria, e não especularidade, significa conceber a mente como competência de avessamento, reversibilidade ou simetrização, na esteira da concepção da Pulsão como desejo de simetria absoluta absoluta,, que não há (Haver desejo de não-Haver). Entre Haver e não-Haver, entre Riobaldo e Diadorim, há Espelho como superfície sem rosto, pura reflexão, onde tudo é simetrizável até à alucinação de nãoHaver. Esse é o pathos pathos fundamental: haver espelho como função mental de reversibilidade, que nos dá a chance de indiferenciar os opostos e reconhecer a equiprobabilidade do acontecimento e a equivalência moral 134. Uma análise é Travessia do Espelho, em duplo genitivo: é anamnese do trauma da batida do Real, na impossibilidade de o desejo se extinguir, e indiferenciação das oposições tidas como contrárias, mutuamente excludentes, um lado (aparentemente) inalcançável para o outro e sem reparo possível. Mas, para isso, é preciso atravessar, romper a casca, virar ao avesso, para poder acolher o acontecimento e suas vicissitudes. Retornando a Grande sertão: veredas: veredas: “para além e para aquém de Riobaldo sofrer de Diadorim ou viceversa, o de que se sofre, cada sujeito, é do espelho – espelho que Riobaldo não vê enquanto olha para olha para Diadorim sem saber que olha mesmo é para o espelho” 135. 16.
Em Primeiras Em Primeiras Estórias Rosa Estórias Rosa repete, de outro modo, o tema da travessia do espelho.
Mas o faz como quem expõe “a carta da travessia operada” 136 ou seu mapa de navegação. Ele repete a lógica catóptrica não apenas como função operante em níveis de valoradas enquanto in-significância, perda de sentido, não-senso, neutralização, indiferença, real, fazendo do simbólico mais um caminho de abstração do que uma estrutura correlata do inconsciente. À medida que foram detectados os limites do caminho simbólico de abstração, também se o abandonou, restando refazer novamente a teoria, partindo de outro construto teórico. 134 MAGNO, MD. Clavis universalis, universalis, op. cit., p. 191. 135 MAGNO, MD. Rosa MD. Rosa rosae rosa e, op. cit., p. 55. Grifo do autor. 136 Idem, p. 69. %)
narração, mas o faz sobretudo como a lógica que constrói a composição dos contos, em seus vários níveis de organização, mostrando, ao fazê-lo, a própria operação espelho. espelho. Na estrutura dos contos, se exibe o terceiro lugar como função neutra, de “abismo” ou “desorientação” que está na base de qualquer simetria, pareamento ou oposição. Magno avança na conceituação da catoptria, explicitando o entendimento da lógica reflexiva em regime topológico, ao tomar a superfície do espelho como superfície de Revirão, unilátera, com uma única margem e uma única borda. Assim, “o espelho, sua lógica, cujo efeito é efeito é a partição das imagens de um e outro lado, ele, em si, é puro corte, contrabanda uniface. Por isso ele pode operar a dialética das imagens, como faz o no espelho situar-se. Assim como é a operação analista, o ato-analítico, que dissemos no espelho que concebemos realizável pela obra – que, pela dialetização constante dos sentidos no entrelaço de sua perda, se faz de espelho, sem imagem” 137. Assim, se Rosa fez uso, em Grande sertão: veredas, veredas, de uma grande narrativa para ali mostrar a rememoração da experiência de Real (espelho, desorientação, abismo, não-senso), no só-depois do acontecimento, em Primeiras Estórias, Estórias, é preponderante a função artífice, construtora, na exibição da operação catóptrica. Utilizando uma metáfora musical, poderíamos dizer que, se em Grande sertão, sertão, nos são dados os elementos que estruturam a forma do concerto ou da sinfonia – os movimentos, o andamento, a exposição, o desenvolvimento, a recapitulação, a coda, seus temas, subtemas, diálogos, passagens tonais, etc. –, em Primeiras Estórias, Estórias, nos é dado o princípio condutor da orquestração, que mostra o “como” da forma musical. Há uma batuta de maestro, antes não vislumbrável facilmente. Vamos ao livro: são vinte e um contos, sendo o conto central, mediano, o de número 11, intitulado O espelho, espelho, que parte a série de contos em duas metades de dez. Essa partição distributiva é um primeiro nível de simetrização, pareando as duas grandes metades de contos. Além disso, o primeiro e último contos, respectivamente As 137
Idem, p. 82. Entre a concepção do espelho proposta em Rosa em Rosa rosae rosa e e a seção “A topologia do soro res quatuor: qua tuor: os espelho”, proferida em 10 de agosto de 1978 – constante do Seminário Ad sorores quarto discursos de Lacan, Lacan, o primeiro feito pelo autor no retorno de Paris –, um ajuste conceitual importante foi feito, ao se assimilar as propriedades topológicas da banda de Moebius à lógica da reflexão, com a afirmação de que “o espelho é uma banda de Moebius”. Uma das referências importantes dessa discussão são os raciocínios do estádio do espelho de Lacan, em relação ao qual Magno sugere um esquema alternativo, que ganharia contornos próprios nos Seminários Seminário s seguintes: seguintes : “Que garantia tem ela [a criança] criança ] para segurar aquela imagem? A garantia unilátera, indecidível, desorientada, não orientada absolutamente, a superfície do espelho. Ela só tem a garantia de que, radicalmente, ela é espelho”. Ver MAGNO, MD. Ad sorores quatuor: os quarto discursos de Lacan Lacan [Seminário 1978]. Rio de Janeiro: NovaMente NovaMe nte Editora, Editora , 2007, p. 123-150. 123-1 50. %*
margens da alegria e Os cimos, cimos, embora legíveis como estória de modo autônomo, compõem, em avessamento, dois momentos encadeáveis em uma única narrativa, tendo em comum o personagem do menino. O conto O espelho é ele mesmo uma metáfora da travessia do espelho, narrada como “experiência, a que me induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições”138. Nele é mostrada a angústia diante do espelho até o momento de visão do espelho por uma série de movimentos que o personagem faz, ao começar a procurar “o eu por detrás de mim” na fria lâmina refletora. Sua perquirição parte do fato de que o uso costumeiro, mundano, que as pessoas fazem do espelho costuma confirmar-lhes um modelo preexistente, ampliando o “ilusório, mediante sucessivas novas capas de ilusão”. Ao passo que aquela investigação era levada a cabo por um perquiridor imparcial e neutro, movido por curiosidade, desinteresse, urgência científica. O “segredo” foi sacar que era preciso abandonar o “visual” do “rosto externo”, anulá-lo perceptivamente, e “olhar não-vendo”. O conto descreve a ascese ou exercício de suspender progressivamente os rostos externos – o animal, a parecença com os pais, o semblante psicológico, as influências de gosto – para culminar no acontecimento de, “um dia (...) simplesmente lhe digo que me olhei num espelho e não me vi. Não vi nada. (...) despojara-me, ao termo, até à total desfigura”. Isto é, “viu” o espelho. espelho. A excelência desse conto é insistir no apontamento do espelho, criar recursos para mostrar sua topologia, o antes e o depois da travessia, mesmo sabendo ser impossível dizê-lo. dizê-lo. Em síntese, “o espelho cinde esse conto (O ( O espelho) espelho) em dois semicontos – ou melhor, o espelho o duplica em seu enunciado, o opõe a ele mesmo de seu ‘outro’ lado, o vira pelo avesso, podendo re-virá-lo de retorno” 139. Na continuidade do exame de Primeiras estórias, estórias, Magno propõe replicar o artifício do espelho, aplicado no conto nº 11, para mostrar que a operação de Revirão está presente na estruturação do livro como um todo, pois os vinte e um contos estão pareados (e não apenas o par As margens da alegria e Os cimos). cimos). Assim, a cada par – 1/21, 2/20, 3/19, 4/18, 5/17, 6/16, 7/15, 8/14, 9/13, 10/12 – uma lógica de avessamento se constitui, analisada com as ferramentas da teoria lacaniana, notadamente o jogo significante-significado, que é nomeação significante (S1) e arrolamento significante do
138
ROSA, João Guimarães. Primeiras Guimarães. Primeiras estórias. estórias . 14ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 65. As citações do conto seguem essa edição. 139 MAGNO, MD. Rosa MD. Rosa rosae rosa e, op. cit., p. 93. &+
saber nomeado (S2), vigendo, no entre-significantes, a barra, o corte, que, para Magno, é espelho, que anula, em posição terceira, a significância sustentada no entre-dois. 17.
Gostaríamos de registrar que o terceiro estudo aplicado da Lógica do Espelho – se
considerarmos que, junto com Rosa, o interesse i nteresse de Magno por Duchamp se inscreveu na possibilidade de o artista estar às voltas com a construção do olhar como indiferenciação, a partir da topologia do Revirão – foi o entendimento da lógica de construção do quadro As quadro As Meninas, Meninas, de Velázquez, apresentada apresentada no Seminário Seminário Psicanálise Psicanálise & Polética, Polética, em 1981 140. O autor se afasta da interpretação corrente de que se trata, no quadro, da indicação do lugar vazio do sujeito do saber e do poder no século XVII. Segundo esta via, o lugar vazio seria representado pelo olhar que se coloca diante do quadro, para o qual convergem quase todos os olhares representados na tela, e que seria o mesmo lugar do rei e da rainha, por sua vez refletidos no espelho do fundo 141. Por outro caminho, seguindo a hipótese do espelho uniface ou Revirão, para Magno, a pintura de Velázquez mostraria a estrutura do funcionamento mental: o espelho como superfície uniface que vira pelo avesso o que diante dele se coloca. Como? Propondo outras relações abstratas e de significação no quadro, mediante análises da ordem formal, perspéctica, das superfícies e profundidades, angulações angulações deformadas, etc., partese da hipótese de que o artista pintou o quadro olhando-o como reflexo em um espelho. Se é assim, haveria uma dupla reflexão (espelho contra espelho) para tornar possível a presença do casal real refletido ao fundo, pois o rei e a rainha se encontrariam em outra posição que não a frontal à tela. O ponto principal e o ponto de vista do quadro seriam construídos abstratamente a partir do artista, e não do casal real. Além disso, há um jogo de luz que atravessa o quadro, subvertendo a lógica euclidiana de direita e esquerda, pois a luz incide de tal t al maneira que ilumina de todos os lados. l ados. Nesse sentido, também a luz é um elemento que funciona como banda de Moebius ou superfície uniface, de tal modo que Velázquez mostraria a construção de um espelho mental, tal como funciona o inconsciente em plenitude: consciência pura, Real ou puro corte. 18.
Em sua breve estada em Paris, em 1975, Magno fez contatos que se revelaram
importantes no desdobramento de sua formação e na disseminação do ensino lacaniano 140
Polética [Seminário 1981]. Rio de Janeiro: aoutra editora, MAGNO, MD. Psicanálise & Polética 1986, p. 179-298. 141 O principal exemplo dessa leitura é o de Michel Foucault, em As palavras palav ras e as coisas coisa s, livro publicado em 1966. &!
no Brasil. Foi apresentado a Jacques-Alain Miller, então diretor do Departamento de Psicanálise de Vincennes. Miller conhecera o texto de Lacan em 1963, por sugestão de Louis Althusser, de quem era aluno na Escola Normal Superior de Paris. Teve inserção fundamental na Escola Freudiana de Paris (EFP), fundada por Lacan depois que foi expulso, em 1963, da Associação Psicanalítica Internacional (IPA), e onde o psicanalista francês passou a desenvolver desenvolver seu trabalho até dissolvê-la em 1980 142. O exaluno de Althusser não apenas aderiu rapidamente à EFP como contribuiu de modo decisivo para o próprio desenvolvimento teórico da psicanálise levado a cabo por Lacan, além de ter assumido a tarefa de reunir e publicar a obra do mestre francês. f rancês. Através de Miller, Magno foi apresentado a Betty Milan, psiquiatra brasileira formada pela Escola de Medicina da USP, que estava em Paris fazendo formação psicanalítica com Lacan. Lacan. Uma espécie de “fundação simbólica” do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro (CFRJ) se realizou na capital francesa, naquele mês de setembro, por iniciativa desses dois brasileiros. No ano seguinte, o Colégio seria criado no Rio de Janeiro, com sua fundação teórica explicada por Magno em artigo da revista LUGAR143 e oficialmente registrado em cartório em 1977. De retorno ao Brasil, entrou em contato com outros brasileiros que estavam conectados, de algum modo, ao ensino lacaniano, como, por exemplo, Durval Checchinato, de Campinas, e Jacques Laberge, de Recife, ambos do Centro de Estudos Freudianos (CEF)144. Desse contato resultou o convite para participar do IIIº Encontro Nacional do Centro de Estudos Freudianos, em Olinda (PE), realizado em setembro de 1976. O desconhecimento dos brasileiros em relação ao uso lacaniano da topologia, em especial do nó borromeano, fez da apresentação de Magno uma ocasião de desentendimento e rechaço de sua fala por parte dos presentes, com repercussões nos meses subsequentes, como o atesta a correspondência com Checchinato e Laberge. Em 142
Cf. ROUDINESCO, Elisabeth. História da psicanálise na França: a batalha dos cem anos, vol. 2: 1925-1985. 1925-1985. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, p. 407ss. 143 Cf. n. 67 supra. No Rio de Janeiro a notícia da fundação parisiense do CFRJ e sua instalação na cidade carioca foi divulgada em matéria do Jornal do Jornal do Brasil , na edição de 23 de outubro de 1975. 144 O Acervo do CFRJ possui cerca de 16 documentos, entre informes do CEF e cartas trocadas entre Magno e Laberge, no período que vai de 1976 a 1979. Além disso, constam aproximadamente 45 cartas trocadas entre Magno e Checchinato, no período de 1976 a 1982. O contato com este último havia sido indicado por Christian Simatos, então Secretário da Escola Freudiana de Paris, a quem Magno havia sido apresentado. Para informações sobre a instituição de Recife, cf. http://www.cefrecife.org.br/o-cef/hist http://www.cefrecife.org.br/o-cef/historia; oria; SOBREIRA, Sílmia. “Entrevista: Antes e depois de meu encontro com Lacan. Paris – Julho 1977. Sílmia Sobreira entrevista Luiz Carlos Nogueira”. Nogueira ”. Em: Psicologia Em: Psicologia USP , 2004, 15(1/2), 109-123.
carta de 23 de março de 1977 ao primeiro, quando respondendo à possibilidade de o evento seguinte do CEF ser no Rio, como um encontro daquela instituição com o Colégio, Magno pede ao colega cuidado na sugestão da ideia, “para não provocar suscetibilidades”, comentando ter ficado “espantado” com a animosidade que sua fala inadvertidamente provocou “entre lacanianos supostos” e sua “inabilidade para a escuta”. Conjetura, ainda, que o “mal-entendido” podia também estar ligado ao convite, então recusado, de inscrever o Colégio no CEF, “por tudo aquilo ter me parecido de uma inegável vocação totalitária”. Em sua avaliação, o Colégio não deveria “assentar sede (além da praça – que é o Rio), nem [correr] a nenhuma oficialização, salvo se necessário, de começo”
145
. Por fim, alude à tentativa, que começava então a se esboçar
no Brasil, de regulamentação da profissão de analista 146, ventilada no encontro de que participara em Olinda, declarando com veemência sua sua posição contrária. contrária. Outra carta, dessa vez dirigida a Laberge, em 06 de março de 1978, é mais contundente na consideração das perspectivas de transmissão da psicanálise lacaniana no Brasil e da existência do Colégio. Na missiva, comenta sobre eventual iniciativa de lacanianos no Brasil no sentido de constituir uma “fusão” de interesses, que Magno recusa, explicando haver diferença entre iniciativas com feitio de “totalidade” e o apoio, mesmo institucional, que se fizesse necessário, sobretudo face a alguma “violência externa”. A carta ainda trazia esclarecimentos sobre o Colégio, motivada por correspondência anterior de Laberge, que enviara, de sua autoria, um texto intitulado 145
Acervo do CFRJ, doc. 106a-106d (carta manuscrita a lápis). Obtivemos de MD Magno o esclarecimento quanto ao motivo da animosidade em relação à sua apresentação em Olinda: os participantes, participa ntes, além de desconhecerem desconhe cerem o uso lacaniano das propriedades proprieda des topológicas topológica s do nó borromeano, borrome ano, acusaram acusara m o palestrante palestrant e do Rio de Janeiro de estar “inventando “inventan do coisas” sobre a teoria de Lacan. O contato entre o CEF e o CFRJ não progrediu e Magno não retornou mais a eventos de psicanálise no Nordeste. 146 A discussão sobre a regulamentação da “profissão” de analista frequentou os jornais cariocas desde, pelo menos, 1977, e ganhou espaço em 1980, coincidindo com a dissolução, anunciada por Lacan, de sua Escola. Mais uma vez, se repetia a presença presenç a do sintoma eclesiástico eclesiástic o na psicanálise, psicanáli se, que, desde os anos 1940, transformou transfor mou a existência existênci a do pensamento pensame nto freudiano freudian o no Planeta em luta de prestígio institucional, acompanhada de supostos poderes de prescrição – na mão contrária à indicação freudiana – sobre a legitimidade e legalidade de quem poderia praticar psicanálise. psicanál ise. A pressão da IPA já resultara inócua sobre Lacan em 1963 e tentaria, no Brasil, desqualificar a existência de instituições, dentre elas o Colégio, voltadas para o estudo e transmissão da psicanálise. Mas o sintoma de viver de ecclesia também ecclesia também tinha atingido o legado de Lacan na França, reproduzindo-se no Brasil, em torno da “legítima” herança do mestre, haja vista a denúncia de Magno na carta citada. Cf. edição da revista Veja, Veja, com a matéria intitulada “Psicanálise em guerra”, de 30 de janeiro de 1980; revista Istoé, Istoé, com a matéria “A baderna Globo, com matéria de capa do Caderno B, chega ao divã”, de 23 de março de 1980; Jornal O Jornal O Globo, intitulada “Colégio Freudiano do Rio de Janeiro: a psicanálise, não pelos médicos, mas pelos psicanalistas”, psicanali stas”, de 04 de janeiro de 1980; e o Jornal do Brasil , com a matéria “Lacanianos brasileiros brasileiro s ‘bendizem’ ‘bendize m’ a dissolução”, dissolu ção”, de 21 de fevereiro fevere iro de 1980. 1980 . &$
“História de um projeto, o Centro de Estudos Freudianos” 147. Era sugerido que, caso houvesse “outra eventual história”, poderiam ser incluídas informações relativas à existência oficial do Colégio, institucionalizada em 1977, mas que não-oficialmente “nasce, se o termo serve, em 1971, desde quando se começou a trabalhar e a produzir alguma coisa. Em 1972, aproveitamos a brecha em outra zona (comunicação) em que me concederam uma revista, e pariu-se Lugar ”. ”. Mas os esclarecimentos tinham, próprio de sobretudo, a função de passar a mensagem do lugar próprio de existência do Colégio, pois, mesmo que as datas não tivessem importância “em alguma estratégia de barrar eventual canalharia de poder”, declarava-se que “não somos (não quero sê-lo, pelo menos eu) nenhum herdeiro em luta com parente nenhum: o discurso psicanalítico em si mesmo não me parece designar as estruturas elementares do parentesco (se não pelo contrário). E mesmo os chamados herdeiros, de direito e meio de fato, nem por ‘portarem as relíquias’, como disse Lacan da Srta. Anna Freud, deixam necessariamente de desentender do essencial” 148. Antes de retornar a Paris como professor assistente associado do Departamento de Psicanálise de Vincennes, Magno esteve em São Paulo a convite do Núcleo de Estudos em Psicologia e Psiquiatria (NEPP), para proferir um curso de “Introdução à Teoria de Lacan”, nos dias 16 e 17 de abril de 1977. Em carta endereçada ao diretor do Núcleo, Sócrates Nasser, datada de 06 de março, enviou seu projeto, dando orientações de como gostaria de vê-lo divulgado 149. O curso intitulava-se “Já que lá canta aí...”, se apresentando como um “pequeno per-curso, introdutório à leitura de Jacques Lacan”, em uma primeira abordagem conceitual de elementos constituintes do Campo Freudiano, tal como apontados por Lacan e sua Escola. Nas três aulas previstas, seriam abordadas questões da topologia e da linguística estrutural como leitura apta a abordar o inconsciente freudiano; e o questionamento das chamadas “ciências humanas”, para mostrar o não pertencimento da psicanálise a esse campo – que, ao contrário, pretendia aprisioná-lo –, bem como sua ruptura em relação ao discurso universitário e às ditas sociedades analíticas. Para tanto, os três temas – topologia, linguística e questionamento das ciências humanas – seriam desenvolvidos a partir dos conceitos de Sujeito, Outro e 147
Essa carta aparentemente se perdeu, pois não consta do acervo até agora identificado e numerado. O site do CEF indica, em seu “Histórico”, o seguinte artigo, a que não tivemos acesso: LABERGE, Jacques. “História de um projeto, o Centro de Estudos Freudianos”. Em: Revista Céfiso C éfiso,, nº 4, tomo 1, 1985. 148 Acervo do CFRJ, doc. 10a-10c (carta datilografada). Sublinhado no original. 149 Idem, doc. 331a-331c (carta manuscrita a lápis). &%
Significante. No Boletim do Núcleo, essa orientação foi seguida e o evento apresentado como “II Ciclo de Conferências – Problemas de Linguagem em Psicologia e Psiquiatria – Jornada introdutória à leitura de Jacques Lacan” 150 . Mas não sem um “malentendido”, que Magno, em carta datada de 12 de abril, solicitava ser desfeito publicamente. O Boletim do NEPP, cujo texto de apresentaçã apresentaçãoo do conferencista fora repetido pelos jornais de São Paulo, o situava como “diretor do Colégio Freudiano do Paris ”151. Na carta, Magno esclarecia que o Colégio só Rio de Janeiro, associado ao de Paris” se autorizava “pelo interesse e dedicação de seus partícipes, não estando – de modo algum – filiado ou associado a qualquer instituição nacional ou estrangeira de cuja chancela fizesse alguma garantia”. Prosseguia, afirmando que “nosso encaminhamento nas pegadas de Jacques Lacan e sua Escola (o que não passa de suposição nossa) é declaração apenasmente nossa”, pois o contrário – se achar autorizado em nome de Lacan – seria se colocar “frontalmente em oposição” a seu pensamento bem como “às bases de sua Escola” 152. Pedia-se, portanto, que a direção do Núcleo publicasse a carta em seu boletim seguinte, o que parece ter sido feito, como se deduz da missiva de Jorge Forbes a Magno, datada de 16 de agosto, onde informava o envio, novamente, de um exemplar do Boletim nº 4, com “a correção do engano cometido no nº 3” 153. Ainda no primeiro semestre de 1977, Magno iria a Campinas, a convite de Durval Checchinato, que, em carta de 30 de maio, agradeceu efusivamente a presença do colega na Unicamp, transmitindo-lhe os comentários favoráveis e elogiosos dos demais participantes. O contato com o NEPP e com Checchinato não avançou, e Magno não retornou mais a Campinas. Esteve em São Paulo em 1984, por ocasião da 36ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), e, em 1988, por ocasião do quinto e último congresso d’A Causa Freudiana do Brasil, empreendimento de natureza singular, produzido em outro contexto, a que retornaremos adiante.
150
Idem, doc. 136b. Idem, ibidem, grifo nosso. Quanto aos jornais, referimo-nos ao Diário ao Diário Popular Pop ular , edição de 06 de abril de 1977; A 1977; A Gazeta, Gazeta , edição de 07 de abril de 1977; O 1977; O Estado de São Paulo, Paulo, edição de 13 de abril de 1977. No Jornal da Tarde e n’ A A Folha de São Paulo, Paulo, as duas notas divulgadas, respectivamente em 06 e 12 de abril de 1977, não mencionavam ser o CFRJ “associado ao de Paris”. 152 Acervo do CFRJ, doc. 136a1-136a2 (datilografado). 153 Idem, doc. 334a (manuscrito a caneta). 151
&&
19. Não
é de se ignorar os “mal-entendidos” que cercaram os primeiros contatos com
outros brasileiros envolvidos com a psicanálise lacaniana. Se os acontecimentos subsequentes tivessem contrabalançado contrabalançado ou mesmo revertido essa tendência inicial, seria o caso de desconsiderar tais indícios. Contudo, o ulterior desenvolvimento do trabalho de Magno no Brasil testemunhou o crescimento exponencial do mal-entendido, transformado em confronto e ruptura institucionais com os próximos e os distantes, além de cerrado silêncio a respeito do autor e de sua existência em seu próprio país. Aos poucos, de modo análogo a Anísio Teixeira e se apoiando apoiando em algumas lições do mestre, o psicanalista brasileiro precisou prover as ferramentas de entendimento e análise da cultura do Brasil como sintoma como sintoma,, que viria a atingi-lo com forte pressão destrutiva, mas igualmente evidenciá-lo como típico representante do que esse assentamento sintomático tinha de melhor, quando seu lado criativo se impunha, em franca luta contra a vontade de destruição da vizinhança. A disseminação do ensino lacaniano no Brasil eviscerou o diagnóstico de Anísio Teixeira sobre o estado de coisas na educação do país, marcada por uma elite “diminuta e aristocrática” e um povo “analfabeto e mudo”. A primeira, com seu gosto pelo eruditismo de sabor jurisconsulto, mostrou-se analfa analfabête bête 154 , quando foi necessário buscar, gerir e aplicar recursos de conhecimento para acompanhar o cenário decadência, no qual se inseria o último ensino de Lacan. Não soube estruturalista em decadência, detectar os ventos da mudança, menos ainda aceitar que o fizessem. O segundo reiterou sua ignorância ressentida, fazendo coro com o sintoma nacional de macaquear o estrangeiro. Saltando fora de uma divisão ainda demasiado sociológica da partição elite / povo, pode-se dizer que o assentamento sintomático genérico genérico da cultura brasileira, que nos afeta a todos, favorecia a paralisia e o retrocesso, pois, desde pelo menos o primeiro modernismo, uma verdadeira guerra era travada entre, de um lado, uma rara e insistente postura afirmativa do que o Brasil Brasil conseguia prover prover de melhor com recursos próprios, e, de outro, uma expressiva resistência e recusa ao deslanchamento propositivo dessa postura. A emergência da Nova Psicanálise e a existência institucional do Colégio 154
Expressão utilizada por Magno, na carta a Durval Checchinato, onde faz referência, como vimos, ao “mal-entendido” da reunião do CEF em Recife, no segundo semestre de 1976. Ao se posicionar posiciona r contra a regulamentaçã regula mentaçãoo da prática p rática da analista anal ista – questão qu estão debatida de batida naquela n aquela reunião do CEF –, comenta: “Sobretudo quando se torna [tão?] fácil (confira-se nosso atual sistema universitário) ganhar um papelucho desses, ao mesmo tempo em que se comprova a ignorância crassa desses formandos todos, cada vez mais iletrados se não analfabêtes” [que, traduzido, é analfabestas]. Acervo do CFRJ, CFRJ, doc. 106a-106d 106a-106d (carta manuscrita manuscrita a lápis). lápis). Sublinhado Sublinhado no original. &'
Freudiano do Rio de Janeiro estiveram no cerne dessa polaridade no último quarto do século XX. 20. Nos meses que
se passaram entre o retorno da primeira viagem a Paris, em outubro
de 1975, e a segunda estadia, para trabalhar e fazer análise com Lacan, no período de setembro de 1977 a fevereiro de 1978, as atividades ligadas à psicanálise começaram a assumir hegemonia no trabalho intelectual de Magno. O sábado era “o dia mais cheio: cartel com mais três membros do Colégio das 10 às 12 ( Les ( Les Non-Dupes Errent ) e, das 14 às 20, grupos sucessivos de trabalho”, com a terça-feira livre, “dedicada à leitura e escrita”. Assim o autor informou seu correspondente, Durval Checchinato, em carta de 04 de maio de 1976, quando sondado para viajar a Campinas 155. Incluídas as rotineiras atribuições de professor universitário, o encontramos à frente da Editora Rio, que criara nas Faculdades Integradas Estácio de Sá, como diretor de, pelo menos, três coleções: a Semeion, que publicou, em 1976, os livros Para compreender Lacan, Lacan, de Jean-Baptiste Fages, e Nietzsche e a filosofia filosofia,, de Gilles Deleuze, o primeiro traduzido pelo próprio Magno e o segundo por ele indicado para publicação; a coleção Estudos Freudianos, que publicou o livro Freud e a psicanálise, psicanálise , de Octave Mannoni, em 1976; e a coleção Contexto, que publicara, em 1975, o livro Psicanálise: ciência e prática prática,, coletânea de textos de Jacques Lacan, Serge Leclaire, J. Nassif e André Green. No trabalho editorial ainda contava a direção da revista LUGAR LUGAR,, transformada, a partir de 1977, no periódico LUGARejus LUGARejus,, com dez números publicados, mais um número especial, até 1980. Por fim, o autor estava presente em alguns espaços públicos na cidade, como o Museu de Arte Moderna (MAM), o Teatro da Maison de France e a Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV), que já vinham acolhendo sua produção em psicanálise desde o início da década de 1970. Duas conferências realizadas nesse período foram vertidas em artigos homônimos incluídos no livro Senso contra Censo: Censo: “Gerúndio”, um texto disruptivo e estranho sobre as bases não-humanas da pulsão freudiana, apresentado no MAM em 1973; e “O triunfo do olhar”, sobre Cézanne e a intuição da função escópica quiasmática de Lacan (apoiado em MerleauPonty), como função catóptrica de avessamento, apresentado no Teatro da Maison em 1974.
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Idem, doc. 99a-99b (carta manuscrita a lápis). &(
Na EAV, como vimos, Magno iniciou iniciou seu Seminário, apresentando apresentando Senso contra Censo no primeiro semestre de 1976 e seu Marchando ao Céu, Marcel Duchamp, Censo Marchand Du Sel , proferido em duas partes, respectivamente no segundo semestre de 1976 e primeiro semestre de 1977. A presença do Seminário do autor naquele espaço institucional – onde, por vínculo estatutário, já exercia atividade docente desde 1965, egresso do Colégio Estadual João Alfredo 156 – se deveu à direta intervenção e acolhida por parte do artista plástico Rubens Gershman, que, em 1975, assumiu a direção do então Instituto de Belas Artes, logo transformado em Escola de Artes Visuais. Magno havia pedido exoneração de sua função de Diretor de Ensino nas Faculdades Integradas Estácio de Sá em maio de 1974 157, o que o deixava sem espaço para prosseguir com sua atividade de transmissão da psicanálise, incluindo o início de seu Seminário. Graças a Gershman, que lhe abriu as portas da EAV, esse trabalho seguiu adiante. Naquele ano ainda faria a conferência “ A “ A Transferência da Transferência”, Transferência”, na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, a convite do Decanato de Pesquisa e Pós-Graduação e Decanato de Graduação, e participaria da mesa-redonda sobre “O Lugar do Sujeito”, de iniciativa do Centro de Psicologia Social (CPS), com a presença de Carlos Henrique de Escobar, Luiz Alfredo Garcia-Roza, Chaim Samuel Katz e Eduardo Mascarenhas 158. Magno dispunha de uma proposta alinhavada de voltar à França por um período mais prolongado. Mas, para isso, eram necessários recursos materiais de financiamento de sua estada em Paris, pois os salários de funcionário público, somados ao de sua esposa, também funcionária pública, não seriam suficientes para tanto. Em correspondência com Jacques-Alain Miller, começaram as tratativas para estreitar os laços com a orientação analítica, teórica e institucional com Jacques Lacan, a partir de novembro de 1975. Por exemplo, foram abertas frentes de trabalho de divulgação da obra do mestre francês e de sua Escola, mediante produção editorial. O foco era traduzir e publicar em LUGAR em LUGAR artigos artigos da revista Ornicar?, Ornicar?, incluindo os de Jacques-Alain Miller e sua contribuição teórica sobre o conceito lalangue, lalangue, que Magno traduziu como
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Magno lecionou no Instituto de Belas Artes, que se transformaria na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, disciplinas como “Cultura Contemporânea e Didática”, no curso de História da Arte; “Desenho a mão livre”, no curso de Arte Decorativa; “Arte e Comunicação”, no Curso Superior de História da Arte. Cf. Acervo do CFRJ, docs. 360b-c; 361a-361b; 371a. 157 Idem, doc. 231d. 158 O leitor encontrará uma cronologia sumária das atividades do CFRJ e de MD Magno desde 1970, de onde retiramos essas informações, na página institucional da Novamente: www.novamente.org.br/historico. &)
alíngua159. Pretendia-se igualmente verter para o português dois seminários de Lacan: Livro I: Os escritos técnicos de Freud, 1953-1954 e Livro XI: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, 1964, 1964, o primeiro a cargo de Betty Milan, e o segundo, de Magno160. Paralelamente, seria providenciado o curriculum vitae vitae do professor e um projeto docente com vistas à futura proposição de um curso em Vincennes por parte de Magno (com todo o trâmite burocrático da tradução juramentada para o francês) 161. Em Proposition sur un enseignement ), sua “Proposição sobre um ensino” (( Proposition ), concebeu “um per-curso em dois passos”: Sensus contre census: de l’oeuvredart , que reconhecemos como Senso contra censo, censo, e La troisième t roisième rive de lalangue (sur (s ur les écrits de l’écrivain brésilien João Guimarães Rosa, em prenant pour garde ses ses Primeiras Estórias), que entrevemos como o Rosa Rosae, Rosae, de 1980162. No programa de divulgação oficial dos cursos oferecidos pelo Departamento de Psicanálise, no semestre 1977-1978, aparecia tão somente “Poética e Psicanálise (da obra de arte – Senso contra Censo)”, às terçasfeiras, de 10h às 12h, e “A terceira margem da língua (estudos analíticos de literatura brasileira)”, no mesmo dia, de 18h às 20h. Eram colegas de ensino ensino naquele semestre em Vincennes Roland Chemama, Catherine Millot, Jacques-Alain Miller, Gérard Miller, Paul-Laurent Assoun, Alain Grorischard, François Regnault, Serge Cottet, Contardo Calligaris, entre outros163. 159
Haroldo de Campos se opõe à tradução de lalangue por lalangue por alíngua pelas alíngua pelas razões raz ões com que Magno Magn o a defende: em português o a justaposto a uma palavra pode se confundir com o prefixo de negação (como em afasia, apatia), donde Campos propor a tradução lalíngua, lalíngua , por acreditá-la mais próxima da cunhagem lacaniana, segundo a qual o inconsciente é feito de lalíngua, como um saber e um saber-fazer, o que nos mostra que seus efeitos nos afetam, ultrapassando a linguagem. Ora, para Magno, o a de alíngua é ambíguo, podendo ser um artigo ou um prefixo de negação, justamente porque, em Lacan, se trata tanto de a língua quanto de não não língua: contra Wittgenstein, Lacan sustenta que existe linguagem privada (a (a língua), mas no sentido de fingimos que nos entendemos (não que fingimos que ( não língua) língua) – aliás, em análise, não se trata de entender o outro –, inclusive porque uma língua não pode ser metalinguagem de outra, já que não há metalinguagem (para Lacan). Cf. CAMPOS, Haroldo de. “O Afreudisíaco na Galáxia de Lalíngua (Freud, Lacan, a escritura)”. Em: http://revistas.ulusofona.pt/index.php/afreudite/article/view/824; MILNER, Jean-Claude. “Da imagem. Belo Horizonte: Autêntica, 2012, p. linguística linguística à linguisteria”. Em: Lacan, o escrito, a imagem. 33-52; MAGNO, MD. SóPapos, SóPapos, 2013, sessão de 23 de março. Inédito. 160 Acervo do CFRJ, doc. 82a-82c e 83a-83b (cartas manuscritas a lápis). A primeira edição em português portuguê s desses seminários s eminários apareceu aparec eu em 1979, 19 79, pela Zahar Z ahar Editores, Ed itores, em parceria parcer ia com o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro. 161 Acervo do CFRJ, doc. 15a-15c (carta datilografada). Na documentação oficial que seguiu para o tradutor juramentado, juramenta do, consta a declaração declaraç ão de Pierre Merlin, então presidente president e da Universidade de Paris VIII, que atesta a designação de Magno Machado Dias para o cargo de professor professo r assistente associado do d o Departamento Departa mento de Psicanálise. Ps icanálise. Cf. C f. doc. 482a. 162 Acervo do CFRJ, doc. 510a-510l. 163 Idem, doc. 497a-497r. &*
Acertadas as contas, vendidos os móveis e pertences pessoais, de posse de uma licença prêmio por tempo de serviço, obtida junto ao Estado do Rio de Janeiro – pois a licença com vencimentos havia sido negada –, e com a proposta aprovada de dois cursos a serem ministrados, com remuneração, no Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII, Magno desembarcou em Paris pela segunda vez. Carregava na mala um Brasil tropicalista, autoritário, de poesia marginal, positivista, concreto e neoconcreto, arcaico e moderno, próprio e copiado, real e proclamado, pragmático, rude, ignorante, patrimonialista e mazombo. Mas também antropofágico e macunaímico. 21.
A historiografia sobre o desenvolvimento institucional da psicanálise no Brasil nos
informa que Freud era lido por médicos e artistas modernistas no início do século XX, sobretudo em São Paulo, o que marcará uma apropriação diferente e divergente de seu legado164. De um lado, a subordinação dos raciocínios singularizantes da psicanálise a serviço da perspectiva psiquiátrica higienista e a posterior burocratização da prática psicanalítica nas sociedades analíticas. De outro, a assimilação da lógica do inconsciente para propor outro entendimento do Brasil, à maneira de uma análise das bases sintomáticas de nossa cultura, ao se investigar a chance das forças recalcantes e recalcadas na aposta de uma virada progressiva para o país. O polo catalisador desta segunda via foi Oswald de Andrade e a acuidade com que elaborou essa análise repousa na ideia de antropofagia. Dentre os manifestos que caracterizaram os diversos posicionamentos das vanguardas artísticas e literárias no início do século XX, o Manifesto Pau-Brasil (1924) (1924) e o Manifesto o Manifesto Antropófago (1928) são, sem dúvida, os dois mais percucientes e radicais feitos no e para o Brasil e os brasileiros, incluída a iniciativa editorial da Revista de Antropofagia (1928-9), Antropofagia (1928-9), verdadeiro documento “explosivo” de nossa história literária, l iterária, na
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SAGAWA, Roberto Yutaka. Os inconscientes no divã da história. história. Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – Programa de Pós-Graduação em História da UNICAMP. Orientação: Profª Drª Mariza Corrêa. 1989; PONTES, Carlos Fidelis da. Médicos, psicanalistas psicanalis tas e loucos: uma contribuição contribuiç ão à história da psicanálise no Brasil . Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado da Escola Nacional de Saúde Pública / Fundação Oswaldo Cruz. Orientação: Profª Drª Maria Helena Machado. FACCHINETTI, Cristiana. “Psicanálise modernista no Brasil: um recorte histórico”. Em: Physis. Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 1, nº 13, 2003, p. 115-137. '+
qual apareceu o manifesto quase homônimo 165. Eles configuram um acirramento do espírito de inconformismo e crítica que caracterizou a Semana de Arte Moderna de 1922, resultante de um crescente mal-estar de segmentos ligados à expressão estética, literária e plástica, até então hegemônica no Brasil, em uma “luta para desafogar o ambiente dos canastrões, que ditavam regras de bom gosto” 166. A polêmica se abriu em vários flancos, contra o passadismo, o romantismo, o indianismo ou a monotonia dos temas parnasianos, com sua rima e métrica tornadas obrigação burocrática, cada um desses elementos inflacionando a exasperação por terem já se tornado símbolos da medianidade da opinião, que unia as letras acadêmicas (a Academia Brasileira de Letras tinha forte influência), o público burguês e o mundo oficial 167. Claro está que os influxos das vanguardas europeias no modernismo brasileiro, hauridos em viagens e consumo assíduo de sua produção plástica e literária, foram fundamentais para acirrar a atitude, ao mesmo tempo, destrutiva e construtiva, do movimento, fornecendo material que seria digerido e atualizado à luz do que o modernismo, sobretudo em Oswald de Andrade e no Macunaíma de Mário de Andrade, perscrutava como configurando a base da sintomática nacional. Sob esse aspecto, Raul Bopp, Antonio Candido, Augusto e Haroldo de Campos, Decio Pignatari e Benedito Nunes concordam concordam quanto ao que que havia de propriamente propriamente brasileiro na atitude modernista, ao colocar na ordem do dia a análise do que havia sido recalcado histórica, política, social e esteticamente no país, e dar voz a um Brasil ainda por se descobrir. “Os nossos modernistas se informaram, pois, rapidamente da arte europeia de vanguarda, 165
CAMPOS, Augusto de. “Revistas re-vistas: os antropófagos”. Em Revista de Antropofagia A ntropofagia.. Reedição fac-similar da revista literária publicada em São Paulo – 1ª e 2ª dentições, 1928-1929. São Paulo: Editora Abril, 1975. 166 Esse desconforto era sensível em vários círculos e grupos literários e intelectuais espalhados por cidades brasileiras. brasileira s. Várias revistas, muitas vezes de existência efêmera, efêmera , foram criadas na década de 1920, testemunhando a inquietação que agitava os meios literários brasileiros: em São Paulo, tivemos a Klaxon (1922), Revista do Brasil B rasil (1925), Terra Roxa e Outras Terras (1926), Revista Novíssima (1926) e Revista de Antropofagia Antropofagi a (1928); em Minas Gerais, Leite Criolo (1919) e a Revista a Revista (1925), (1925), de Belo Horizonte, Verde (1928), de Cataguases e Elétrica e Elétrica (1928) (1928) de Itanhandu; no Rio de Janeiro, Estética (1924), Estética (1924), Terra de Sol (1924), Festa (1924), Festa (1927) e Movimen e Movimento to Nova; em Manaus, Redenção Redenç ão e Equador (1929); em Fortaleza, (1928); em Belém, Belém Nova; Maracujá (1929); em Recife Revista Recife Revista do d o Norte (1926); em João Pessoa, Era Pessoa, Era Nova; Nova ; em Salvador, Arco e Flecha F lecha (1928); em Porto Alegre, Madrugada Alegre, Madrugada (1929), (1929), para citar alguns exemplos. A frase citada é de Raul Bopp. Cf. TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia & modernismo brasileiro, brasileiro , op. cit., p. 405-6; BOPP, Raul. Movimentos modernistas nos Brasil – 1922-1928. 1922-1928. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012, p. 39, p. 66-76. 167 CANDIDO, Antonio. Literatura Antonio. Literatura e sociedade soci edade.. 9ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006, p. 125. Cf. também BRITO, Mário da Silva. Ângulo e horizonte: de Oswald de Andrade à ficção científica c ientífica.. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1969, p. 12. '!
aprenderam a psicanálise e plasmaram um tipo ao mesmo tempo local e universal de expressão, reencontrando a influência europeia por um mergulho no detalhe brasileiro”, afirmou Candido 168 . Para Nunes, Oswald trouxe para o modernismo brasileiro a experiência de que participou, ao frequentar a atmosfera de rebeldia e de renovação contemporânea dos manifestos futuristas, da teorização cubista e das expressões circunstanciais do humor dada dada,, com uma contribuição irredutível às matrizes europeias, em especial no tocante ao tema da antropofagia 169. “Oswald captara a informação certa, a compreendera, assimilara e transfundira, para nosso roteiro e uso”, sem ficar esperando “pelo beneplácito dos deuses da cultura mundial para produzir obras originais”, na avaliação de Pignatari 170. Para Haroldo de Campos, a obra de Oswald de Andrade é o legado mais radical do Modernismo de 22 e “se mostra intrinsecamente identificada com os propósitos da revolução estética que sacudiu nosso país, no ano do Centenário de sua independência”, no sentido da “fundação em novas bases de uma literatura brasileira verdadeiramente afinada com a sensibilidade do tempo” 171. Essas avaliações comungam no destaque à contribuição oswaldiana ao modernismo e não à toa. Passado o efeito explosivo da Semana propriamente dita, na azáfama de sua preparação e na polêmica provocada no ato de sua apresentação, o alcance do que ali estava em jogo foi apreendido e catapultado pelos manifestos Antropofagia e em meio à bipolaridade do próprio oswaldianos, no bojo da Revista de Antropofagia e modernismo, dividido entre o vetor progressivo de crítica e construção e o regressivo do reacionarismo e da conservação. Assim, a onda renovadora serviu para dar um primeiro empuxo no sentido de reflexão sobre as possibilidades de expressão própria no país, a partir de suas particularidades particularidades culturais, ecoando ecoando intelectual intelectual e literariamente em revistas, revistas, manifestos e ensaios (é inegável como a antropofagia antecipou, em muitos pontos, Casa Grande & Senzala, Senzala , de Gilberto Freyre). Por outro lado, o refluxo da onda correspondeu ao surgimento de posições estéticas e políticas que assimilaram, em sinal trocado, a mesma pesquisa sobre o Brasil, seu estado de inércia e a necessidade de Anta, em torno de Plínio saídas alternativas, dando corpo, por exemplo, ao grupo Anta, Salgado, com presença de Candido Mota Filho, Cassiano Ricardo e Menotti del Picchia. 168
Literatura e sociedade, sociedade , op. cit., p. 127-8. NUNES, Benedito. Oswald Canibal . São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 13. 170 PIGNATARI, Décio. “Marco Zero de Andrade” em Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, Paulo, 24 de outubro de 1964. 171 CAMPOS, Haroldo de. Oswald de Andrade: trechos escolhidos. escolhidos. Rio de Janeiro: Agir, 1977, p. 8. 169
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A perspectiva verde-amarela do grupo, “escamoteado de uma costela de Oswald” 172, foi reativa à postura rebelde, pragmática e propositiva das ideias oswaldianas, preferindo o passo atrás do sentimento patriótico, do indianismo ignorante e do apagamento das diferenças constitutivas da cultura brasileira em nome da nacionalidade. nacionalidade. O resultado foi o Manifesto Nhengaçu Verde-Amarelo, Verde-Amarelo, publicado em 1929, um pastiche reacionário da antropofagia oswaldiana, ou a “contrafação tupi-nacionalista” de seus manifestos, como bem assinalou Pignatari 173 . Como sabemos, o verdeamarelismo desaguaria no integralismo, versão brasileira do fascismo, acabando nos braços do Estado Novo de Getúlio Vargas. Afinal, o que há nos manifestos oswaldianos, cuja lógica atravessou o século XX e foi alçada à condição de razão seminal (não cartesiana) de cruzamentos culturais, como os propostos, por exemplo, pela Tropicália – a cênica (Teatro Oficina e José Celso Martinez Corrêa), a musical (Caetano Veloso, Gilberto Gil. Tom Zé, Torquato Neto), a artística (Nova Objetividade e Helio Oiticica) ou a cinematográfica (Cinema Novo e Glauber Rocha)?174 Em ritmo sincopado, com frases curtas de alto valor performativo, os manifestos apresentavam uma visão audaciosa do Brasil, a partir da indagação sobre suas bases sintomáticas. No Manifesto No Manifesto Pau-Brasil, Oswald reivindicava, contra o “gabinetismo”, a língua sem arcaísmos e sem erudição, com a “contribuição milionária de todos os erros”. Apontava para uma “nova perspectiva” e uma “nova escala” que dessem efetiva magnitude às particularidades da cultura nacional, que, sem cacoete nacionalista e ufanista, era metaforizada como “poesia pau-brasil”. Extraía-se daí uma espécie de indicação vetorial no sentido de positivar a resultante da composição cultural heterogênea do país como o lugar desde onde estaríamos em condição, com a nossa condição, condição, de nos desvencilhar da “cópia” e abraçar a “invenção” e a “surpresa”, e nos enxergar, como se fosse pela primeira vez, “com olhos livres”. A direção, o sentido e a força – o encaminhamento vetorial, portanto – eram impressos pelo “roteamento dinâmico dos fatores construtivos”: a modernidade e seus “tiques de fios e ondas e fulgurações”, suas “novas formas de indústria, da viação, da aviação”, os negativos 172
BRITO, Mário da Silva. Ângulo e horizonte: de Oswald de Andrade à ficção científica, científica, op. cit., p. 24. 173 PIGNATARI, Décio. “Marco Zero de Andrade”, op. cit. 174 O tema é amplo e a bibliografia pertinente imensa. Cf. BASUALDO, Carlos (org.). Tropicália: uma revolução na cultura brasileira (1967-1972). (1967-1972) . São Paulo: Cosac Naify, 2007, que apresenta farta documentação, com destaque para a retomada antropofágica da Tropicália. '$
fotográficos, os postes, os gasômetros e os rails. Pau-brasil era era uma visão de futuro, com tudo o que os moinhos, os arranha-céus, as turbinas elétricas e as usinas produtoras pudessem trazer, justo porque a “contemporânea “contemporânea expressão do mundo” não cabia em fórmulas. O poeta audaz mostrava o que havia de próprio no país, a partir de uma atitude soberana e afirmativa dessa parciaridade. O final do manifesto de 1924 dava uma pista para o que viria quatro anos mais tarde: “Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparação de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia”. Um sintoma cultural que não sofria de ser alguma coisa (“sem ontologia”) estava disponível para virar qualquer qualquer coisa. Eis a antropofagia ou “devoração universal” oswaldiana, a ideia mais radical e consequente do primeiro modernismo brasileiro, que inspirou diversas iniciativas, propostas e reflexões na produção literária, teórica, estética, artística e cultural, no Brasil, ao longo do século XX, como lembramos ter sido o caso da Tropicália, na década de 1960. Reentoamos, mais uma vez, a “frase musical” dominante desse manifesto, destacando alguns pontos fortes: antropofagia, única lei do mundo, expressão mascarada de todos os individualismos e coletivismos, de todas as religiões e tratados de paz. Antropofagia, só o que nos une socialmente, economicamente, filosoficamente, lei do homem – e só interessa o que não é meu. Antropofagia, transformação permanente ou transfiguração do tabu em totem. Antropofagia, a humana aventura, a terrena finalidade, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita os males catequistas identificados por Freud. Antropofagia, pois nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Antropofagia, pela existência palpável da vida, contra os importadores de consciência enlatada. Antropofagia, pela experiência pessoal renovada, contra a memória fonte de costume. Antropofagia, a favor dos roteiros e contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud. Antropofagia, pelo conhecimento, que leva da equação eu parte eu parte Kosmos ao axioma Kosmos Kosmos parte do eu. eu. Antropofagia, pois o espírito recusa-se a do Kosmos conceber o espírito sem corpo 175. Raul Bopp chamou a atenção para o fato de que a pesquisa antropofágica do grupo de Oswald e Tarsila do Amaral implicava “descer à nossa pré-história”, “trazer alguma coisa desse fundo imenso, atávico”, “com um sentido ferozmente brasileiro”, 175
Em ANDRADE, Oswald de. A de. A utopia antropofágica antropofágic a, op. cit., p. 47-52. '%
pois, debaixo da fisionomia externa, havia um outro Brasil, de enlaces profundos e de valores ainda indecifrados. Essa “descida às fontes genuínas” possibilitaria “captar os germes da renovação”, no sentido de mostrar uma “síntese cultural própria, com maior densidade de consciência nacional”. Para tanto, era preciso “remexer raízes da raça, com um pensamento de psicanálise” 176. Ora, voltamos ao ponto inicial da questão: enquanto Freud era assimilado pela aliança entre o higienismo mental da psiquiatria e a burocracia institucional psicanalítica, os poetas e artistas o apreenderam como fonte de entendimento e intervenção com o que empreender uma verdadeira ana-lysis, ana-lysis, investigando e invocando o retorno do recalcado no complexo desenho sintomático do país. Não apenas o vocabulário era freudiano – como, por exemplo, a metáfora da transformação do tabu em totem –, como também os recursos r ecursos cognitivos implicados nas analogias e metáforas habitavam a vizinhança da técnica freudiana, para deixar falar “a contribuição milionária de todos os erros”, na sacação da dinâmica psíquica entre forças recalcantes e recalcadas. A menção indireta a Freud na “transfiguração do tabu em Tabu haviam sido publicados entre totem” – os quatro ensaios que compõem Totem e Tabu haviam 1912 e 1913 – era forte indício da sintonia de Oswald com a perspectiva psicanalítica: antropofagia é a deglutição da proibição, situada no que é externo (tabu) em forma de totem, desfazimento irônico das pretensões de sacralização dos objetos artificiosos produzidos. Daí seu efeito terapêutico contra os “males catequistas”: ao invés de viver subjugado a um tabu, o brasileiro o reverte em totem, devorando-o, em um duplo gesto de apropriação e dejeção. É importante lembrar que, na mão contrária, o manifesto verdeamarelista declarava que seu “totem” não era “carnívoro”, donde a anta; que seu nacionalismo não era “intelectual” e sim “sentimental”, aceitando “as formas da civilização”, mas impondo “a essência do sentimento”; que poderíamos “destruir as nossas bibliotecas, sem a menor consequência no metabolismo (...) da Nação” (sic!), pois “queremos ser o que somos: brasileiros”, “barbaramente, com arestas, sem autoexperiências científicas, sem psicanálise e nem teoremas” teoremas”177. De algum modo, a bipolaridade modernista, modernista, partida entre forças progressivas e regressivas, encontrou, ao longo do século XX, meios de se 176
BOPP, Raul. Vida e morte da antropofagia. antropofagia. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008, p. 4979; p. 99-101. 177 Manifesto Nhenguaçu Nhenguaç u Verde-Amarelo Verde-Amarelo (Manifesto do Verde-Amarelismo ou da Escola da Anta). Em: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia & modernismo brasileiro, brasileiro, op. cit., p. 507-514. Grifo nosso. '&
metamorfosear, comparecendo em cada momento que o país se defrontou com suas possibilidades de avanço, freadas freadas pelo estatismo burocrático, de vocação vocação totalitária; pelo ignorantismo do culto à emoção e ao sentimento, que recusa a análise, exercício de abstração e disponibilidade; pela idealização legiferante cuja violência policial tenta, de todas as maneiras, recalcar o trabalho pela existência própria. Novamente, Vianna Moog e Anísio Teixeira. Não sofrendo da neura mazombista de cor verde-amarela, a antropofagia oswaldiana pode fazer análise e colocar o dedo na “ferida narcísica” do país: o fado e o fato de nossa formação mestiça, compósita, que, por alguma razão, a se pesquisar mais a fundo, nos deixou sem ontologia e sem caráter – para resgatar o lado macunaímico da antropofagia –, em abertura para transitar entre as formações disponíveis, pois digerimos o que não é nosso – não levamos os tabus a sério. Uma contribuição nossa à caixa de ferramentas do arsenal Secundário do Planeta, tão parcial, parciária e peregrina como qualquer outra. Nos idos de 1920, pareceu a Oswald que o lastro inovador e criativo característico da cultura brasileira seria capaz de colocar o país nos trilhos da modernidade, ombreando com as demais contribuições internacionais. Quem sabe, quase um século depois, esse lastro nos coloque em condições mais adequadas de habitar a contemporaneidade, caracterizada justamente pela desconfiguração, dado o cruzamento hiperbólico das informações 178. Mas para isso, é preciso análise. 22. Três anos depois de seu retorno de Paris, Magno dedicou o segundo semestre de seu
Seminário Psicanálise & Polética (1981) à “Heterofagia”, não sem antes revisitar as teses antropológicas e psicanalíticas sobre a emergência de cultura. De maneira irreverente, propondo o “mito do macaco maluco” – como releitura da mitologia freudiana de Totem e tabu e em analogia com o Tarzan dos macacos, macacos , de Edgar Rice Burroughs –, o autor deslocava a cultura do patamar distintivo superior ao qual a antropologia a tinha alçado para dar-lhe um lugar lógico mais próximo do primata agricultor – – Lacan já o apontara –, subdito à ordem familiar, subsidiária da aliança e do parentesco, por sua vez corolário neo-etológico da reprodução sexuada espontânea dos corpos. Se houvesse alguma referência a desnortear o primata, transformando-o em “macaco maluco”, ela deveria ser buscada no Impossível, que indiferenciava o sexual e 178
MAGNO, MD. Comunicação e cultura na era global [Seminário 1997]. Rio de Janeiro: NovaMente NovaMe nte Editora, Editora , 2005, p. 367. ''
condicionava a emergência do artifício e da tecnologia, para onde Magno empurrava o Simbólico lacaniano, abordando-o como vetor de abstração progressiva da pressão recalcante e conteudizante da cultura, ela própria um artifício declinado do Simbólico. Com base nessa direção de análise, Magno assumiu formal e explicitamente para a psicanálise a tarefa – com a qual outros antes dele haviam se deparado – de refletir sobre a sintomática de base do que se costuma chamar de “cultura brasileira”. Partindo da obra de Oswald, esse questionamento resultou, em última instância, em uma teorização sobre a estética de base do país, afastando-se do tradicional enquadramento das expressões artísticas brasileiras no horizonte do Barroco em prol do Maneirismo. Heterofagia. Porém, antes disso, foi preciso conceber a Heterofagia. Na seção intitulada “Por que me afano com meu país?”, parodiando o conhecido texto do conde Afonso Celso, não sem um quê de autogozação, Magno dá as diretrizes do que concebe ser uma intervenção clínica pertinente à psicanálise no tocante à questão “Brasil”. A situação era propícia: o país ainda se encontrava sob o regime ditatorial militar, mas a abertura política, anunciada no governo Geisel (1974-1979) e modestamente efetivada no governo Figueiredo (1979-1985), com a anistia e as reformas partidária e eleitoral, reativava possibilidades mais francas de enunciação e manifestação públicas. O Colégio Freudiano do Rio de Janeiro começava a se constituir como polo atrator de algumas dessas expressões, inclusive pelo modo criativo com que organizou a participação das pessoas na instituição, além de atrair o público em geral para suas atividades atividades abertas, com com mutirões, cirandas cirandas e saraus. Oswald é saudado como “homem de gênio, ou seja, aquele que dá a dica certa, mesmo desenhando o mapa errado” 179, com o que o autor já indicava o remanejamento que sua chave de leitura psicanalítica faria da antropofagia. Em coadjuvância, eram Senzala , Visões do Paraíso e indicadas as leituras fundamentais de Casa Grande & Senzala, Macunaíma, Macunaíma, além dos irmãos Campos e sua pesquisa no sentido de mostrar a qualidade preeminente da produção produção poética e literária oswaldiana 180. A análise não descuidava das fi losofia messiânica mes siânica (1950), “Um aspecto teses formuladas por Oswald em A crise da filosofia
179
Psicanálise & Polética, Polética, op. cit., p. 309. Além das referências já fornecidas, cf. também CAMPOS, Haroldo de. “Uma poética da radicalidade” em ANDRADE, Oswald de. Pau-Brasil . São Paulo: Ed. Globo, Secretaria de Estado da Cultura, 1990 e CAMPOS, Augusto de. O balanço da bossa e outras bossas. bossas. 2ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Perspectiva, 1974. 180
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antropofágico da cultura brasileira: o homem cordial” (1950) e A marcha das utopias (1953)181. Junto com considerações críticas sobre o par antropofagia / messianismo, que Oswald acopla respectivamente a matriarcado / patriarcado – que Magno não aceita tal qual, remanejando-o, naquele momento, a partir das fórmulas lacanianas da sexuação –, vemos que o foco da obra oswaldiana é, para a psicanálise, o entendimento da antropofagia. Oswald estaria em busca da originalidade do sintoma brasileiro, ou seja, “o que há não de infantilismo, mas de infância, de fundação sintomática nessa cultura”182: o “só me interessa o que não é meu” é um sintoma de “devoração das heterofagia, de tal modo que Oswald não estaria qualificando de alteridades”, donde heterofagia, brasileiro este ou aquele tipo de comportamento cultural, mas a própria disponibilidade à deglutição das diferenças. Seria uma espécie de vocação heterológica do brasileiro, já que “não se trata de saber qual é o ser do brasileiro, porque simplesmente isso não existe, mas de saber qual é a dica do seu sintoma”. O movimento do inconsciente é devoração das diferenças, justamente por ser indiferenciante, em consonância com a formulação de Freud de que o sistema inconsciente não tem registro originário de “morte”, de “não” e de “diferença”. O inconsciente heterofágico seria a própria geratriz das diferenças como instância indiferenciadora ou neutralizante, razão da disponibilidade do inconsciente, que, por quebra de simetria, declina na opositividade binária do sintoma. Esse entendimento positivava a posição cultural de se desobrigar de dar sentido (prévio) às coisas e indicava que a força de tal atitude consistia em estar livre do sentido para justamente poder fazê-lo, caso a caso, a cada vez: “será que podemos falar em ‘cultura brasileira?’ quem sabe não temos o privilégio de não precisar ter uma cultura? Temos é o sintoma de comer as culturas”.
181
A crise da filosofia messiânica messiânic a foi apresentada como tese de concurso docente para a Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), de que Oswald não participou, por decisão do Conselho Nacional de Educação, que alegou faltar-lhe curso superior específico na matéria. “Um aspecto antropofágico da cultura brasileira: o homem cordial” consistiu em uma comunicação apresentada no Primeiro Congresso Brasileiro de Filosofia promovido pelo Instituto Brasileiro Brasileiro de Filosofia (IBF), sob patrocínio da Reitoria da USP. A USP. A marcha das utopias consistiu em livro de 1966, que reuniu artigos originalmente publicados em O Estado de São Paulo. Paulo. Cf. ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica antropofág ica,, op. cit.; CANDIDO, Antonio. escritos. Livraria Duas Cidades, “Digressão sentimental sobre Oswald de Andrade”. Em: Vários escritos. 1970, p. 72. 182 Psicanálise & Polética, Polética , op. cit., p. 325. Salvo indicação contrária, a sequência da argumentação se baseará nesse Seminário, p. 301-386. ')
Além disso, a heterofagia assimilava à deglutição oswaldiana do outro a atitude macunaímica de macunaímica de não ter caráter, segundo a ideia original de Mário de Andrade do “herói sem nenhum caráter” que, ultrapassando a caracteriologia personalógica, destacava a flexibilidade e criatividade do brasileiro. O caráter, que era “sem nenhum”, apontava para a devoração devoração das diferenças. diferenças. Ora, se o movimento do inconsciente é heterofágico, omnivorante e sem caráter, e se há a indicação de um comportamento sintomático que funciona analogamente a essa indiferenciação, era possível perscrutar sua emergência, onde quer que ela ocorresse, no tempo e no espaço, como parecia ser o caso do Brasil, que, por alguma razão de complexos cruzamentos sintomáticos, apresentava, em suas manifestações culturais mais disruptivas, a característica de ser terceiro, terceiro, isto é, de operar a diferença em alternância, sem ter a obrigação de ser uma coisa ou ou outra. O Magno canibal, parafraseando Benedito Nunes, extraía de Lacan, deglutido e cuspido, a formulação de uma lógica de terceiro lugar para o inconsciente, entrevista como “perda de sentido” ou “travessia” em Senso contra censo e Rosa rosae. rosae. A partir daí, reclamava para a psicanálise a tarefa de, seguindo por essa terceira via, auscultar a possibilidade de haver alguma estilística que acometesse o “falante”, para além da consistência binária do Clássico e da inconsistência labiríntica do Barroco, este último situado por Lacan como expressão do gozo d’A/ Mulher (com A barrado), dentro de sua lógica da sexuação 183. Era proposto, então, “como estudo, pensar o Clássico, o Barroco e o Heterófago, Heterófago, uma outra categoria” – quatro anos depois situado teoricamente como Maneiro, Maneiro, no diálogo com o que historicamente é conhecido como Maneirismo – para, nesse campo de abordagem estilística, “ver a nossa história heterofágica pela via de Oswald”. A anfi-orientação do terceiro lugar, intuída na antropofagia de Oswald e no Macunaíma de Macunaíma de Mário de Andrade, estava presente na “terceira margem” e no “grande sertão” de João Guimarães Rosa; na mestiçagem de Gilberto Freyre; no pragmatismo ad hoc de Anísio Teixeira; no experimentalismo da Tropicália; na alternância místicohoc pornográfica de Hilda Hilst e em outros testemunhos literários, artísticos, poéticos, teóricos, que algumas vozes veementes, como a de Augusto de Campos, insistiam em indicar, defender e explicar, na mão contrária da mentalidade derrotista de denegar a
183
LACAN, J. O Seminário, livro 20: mais ainda, ainda, op. cit., p. 97-104; p. 142-159. '*
produção própria 184 , ora se esquivando envergonhadamente dela, ora imitando subservientemente subservientemente a configuração pronta oferecida por outras tradições e culturas. Decio Pignatari uma vez afirmou, a respeito de Oswald, que “quando o setor é o da literatura, e o país, Brasil; e quando o poeta-inventor se encoraja até à audaciosa e surpreendente veleidade de pensar, propondo projetos gerais de criação e cultura, é quase certo que venha a ser isolado como um corpo estranho ou um enclave exótico, que o organismo procura ignorar para poder suportar” 185 . A história do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro e, com ele, parte significativa da história da psicanálise no Brasil, mostrou que a denegação de nossas bases sintomáticas, incluída a reatividade violenta à produção própria, não atingiam somente a produção literária. A sintomática era “ampla, geral e irrestrita”, e mostrou sua capacidade destrutiva ao erguer toda sorte de empecilhos para que a psicanálise no Brasil no Brasil viesse a se afirmar como a psicanálise do Brasil, levando, no percurso, à própria periclitância da instituição carioca e sua posterior reformatação. 23. No Seminário Acesso fi-menina (1980) Seminário Acesso à lida de fi-menina (1980)
186
, sobre a sexualidade feminina, a
sessão de 26 de junho de 1980 recebeu o título de “Améfrica Ladina: introdução a uma abertura”. A circunstância de seu proferimento era a realização, entre 11 e 14 de julho daquele ano, da “primeira reunião da Fundação do Campo Freudiano consagrada ao ensino de Jacques Lacan e à psicanálise latino-americana, sob os auspícios do Ateneo de Caracas”, como anunciava o convite enviado, em castelhano, a Magno, em 04 de novembro do ano anterior 187, avisando que, em caso de apresentar trabalho, este deveria estar em francês ou castelhano. No Seminário, o autor comentou que havia sido convidado a participar da reunião, “até mesmo com certa deferência, pode-se dizer” 188. Informa ainda que tivera a oportunidade, junto com Betty Milan, de fazer uma moção direta a Jacques-Alain Miller, ponderando aspectos da proposta de organização da 184
CAMPOS, Augusto de. O balanço da bossa e outras bossas, bossas, op. cit., p. 156. “Marco Zero de Andrade”, op. cit. 186 MAGNO, MD. Acesso à lida de fi-menina [Seminário 1980]. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 187 Acervo do CFRJ, doc. 162b. 188 MAGNO, MD. Acesso à lida de fi-menina fi-m enina,, op. cit., p. 146. O Acervo do CFRJ guarda uma carta de Jacques-Alain Miller a MD Magno, datada de 08 de março de 1979, na qual o remetente comenta que talvez visite a América do Sul em setembro, já que tem um convite “para ir à Venezuela, talvez na Argentina”, ocasião em que espera “poder conhecer o Brasil” (doc. 159). Não há registro no Acervo do convite a que Magno se refere no Seminário, não podendo ser a carta-convite carta-co nvite oficial of icial de d e novembro nove mbro de d e 1979, 1979 , que, como veremos, já é remetida em castelhano, com um texto padrão. 185
(+
reunião, dado que um de seus temas previstos era “A língua espanhola e a psicanálise”, acrescentando que os trabalhos dos brasileiros deveriam ser apresentados em língua nativa. O autor referia-se à carta de 23 de novembro de 1979, onde Miller também era sondado quanto à possibilidade de vir ao Rio com Lacan depois da reunião de Caracas189. Em resposta, Miller informou que o “terceiro tema sobre ‘a língua espanhola e a psicanálise’ é para vocês ‘a língua portuguesa e a psicanálise’” 190 e, em carta de 14 de dezembro de 1979, reafirmou que a organização da reunião venezuelana seria em espanhol e em francês para não sobrecarregar o secretariado responsável, apesar de reconhecer “o lugar eminente da língua portuguesa na América Latina”. Sugeriu, então, aos brasileiros que quem quisesse apresentar seu trabalho em português poderia levar um profissional para tradução simultânea. A carta concluía com um agradecimento pelo convite de ir ao Brasil, avisando que Lacan voltaria para a França depois da reunião, mas que ele, Miller, ainda não tinha definida sua programação, por ter um convite para ir à Argentina191. Por fim, em carta datada de 1º de março de 1980, Magno e Betty Milan informaram que a correspondência do final do ano anterior chegara-lhes atrasada – referem-se à carta de 14 de dezembro – e já não era mais possível assegurar a participação deles em Caracas. Aproveitavam para enviar detalhes da organização da visita de Miller ao Brasil, depois de julho: uma conferência no Rio de Janeiro e outra em São Paulo, respectivamente na UERJ e na USP, além de um seminário em cada uma das duas cidades com analistas convidados. O CFRJ assumia o financiamento da passagem Caracas-Rio ou Buenos Aires-São Paulo, conforme fosse o caso, além da estadia do convidado 192. Os brasileiros do CFRJ não foram a Caracas. No Seminário, Magno comentou: “a essa altura, para mim funcionou como interpretação, ou seja, valeu o levantamento da questão na medida em que a gente começou a se dar conta: não somos América Latina” Latina”193. A exclusão oficial da língua portuguesa da reunião venezuelana valeu o 189
Acervo do CFRJ, doc. 157a-157c. Idem, doc. 160a-160b, s/d. 191 Idem, doc. 163a-163b. 192 Idem, doc 161a-161b. 193 MAGNO, MD. Acesso MD. Acesso à lida de fi-menina, fi-menina, op. cit., p. 146. No programa Roda programa Roda Viva Especial , da TV Cultura, que foi ao ar no dia 30 de junho de 2014, comemorando os 45 anos de existência deste canal de TV, Hector Babenco, cineasta argentino naturalizado brasileiro, afirmou ser o Brasil, “pela sua mistura”, um país “atípico” na América Latina. Menciona a população indígena, junto com a presença da cultura africana e da cultura europeia, “o que deu ao Brasil uma tonalidade, do ponto de vista comportamental, única na América Latina. Não há nada mais diferente de um brasileiro do que um chileno”. E completa: “acho que aí está nossa força”, para 190
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entendimento de que o Brasil era, não América Latina, e sim América Africana, Africana, segundo a expressão de Betty Milan. Era necessário analisar os assentamentos sintomáticos da cultura brasileira – que, como vimos, foi a tarefa iniciada no ano seguinte –, já que “talvez esteja instalada por aí uma certa sintomática que ainda não disse seu nome, talvez porque sempre tenha que pedir licença para se apresentar, e com uma certa roupa importada, de algum lugar. Todo mundo quer ser nacionalista, quer ser brasileiro, quer descobrir o que seja a cultura brasileira, mas talvez expor esse sintoma seja tudo o que esse neurótico não quer, mesmo quando se propõe uma análise, como acontece aliás em toda análise”. Ser Améfrica Ladina era Ladina era assumir a mestiçagem como própria, acompanhada do recado implícito de que o tolo que com ela se metesse ficasse fi casse esperto com a astúcia do interlocutor, igualmente capaz de grosseria, se a situação o exigisse194. O chiste proposto jogava, assim, com diversos sentidos reversíveis, acumulados cultural, étnica, histórica, sócio e linguisticamente no Brasil. Além de positivar a visão popular que atribui ignorância ao negro no trato social, revertendo-a a seu favor, se explorava também a significação histórico-linguística segundo a qual ladino era o escravo que sabia falar a língua portuguesa, por oposição ao boçal, recém-chegado da África195. Desse modo, o significante Améfrica, Améfrica, que era ladina – um nome para a sintomática brasileira marcada pela experiência da escravidão negra – podia ser interpretado à luz da dialética lacaniana do senhor e do escravo (no sentido do Hegel de Alexandre Kojève assimilado por Lacan), com ganhos suplementares aos usos explorados. Nos processos de assentamento sintomático no Brasil, não teria o significante-mestre (maître (maître,, m’être, m’être, mètre) mètre) – dono, ser-eu, metro – articulado o discurso logo corrigir, dizendo “nossa identidade”, que “reside em quem somos e que não estamos sabendo aproveitar [isso]”, sendo essa a nossa “originalidade”. Cf.: http://tvcultura.cmais. http://tvcultura.cmais.com.br/rodaviv com.br/rodaviva/roda-viva-45-anos a/roda-viva-45-anos-de-tv-cultura-30 -de-tv-cultura-30-06-2014-bloco-1 -06-2014-bloco-1 194 Segundo o Dicionário Houaiss Eletrônico, Eletrônico , diz-se ladino: 1. de indivíduo que revela inteligência, vivacidade de espírito; esperto; 2. de indivíduo cheio de manhas e astúcias; espertalhão, finório; 3. em sentido antigo, é sinônimo de castiço, puro, vernacular; 4. no regionalismo brasileiro, dizia-se do índio ou escravo negro que já apresentava certo grau de aculturação. 195 espertamente boçal, A pesquisa histórica recente nos informa que o escravo ladino sabia ser espertamente boçal, diante da fiscalização que batia à porta dos engenhos para fazer cumprir a lei Eusébio de Queiroz, que proibira o tráfico transatlântico de escravos, em 1850. Vestindo trapos, fazendo cara de quem nada entendia das palavras do intendente da polícia, podiam ser libertos, juntos com os recém-retirados do navio negreiro. Cf. ALMEIDA, Marcos Abreu Leitão de. Ladinos de. Ladinos e boçais: o regime de línguas do contrabando de africanos 1831-c.1850). 1831-c.1850). Dissertação de mestrado. Orientação: Jefferson Cano. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, 2012. Disponível em: http://www.bibliotecadig http://www.bibliotecadigital.unicamp. ital.unicamp.br/document/?cod br/document/?code=000850403&fd=y. e=000850403&fd=y. (#
produtor de marcas como do lado do escravo, dando uma medida da situação de o brasileiro ser amefricano, ao se apropriar do gozo do suposto dono (o colonizador), além de ludibriá-lo? Como esclarece o autor: “Minha questão é saber se, nessa transação toda, onde entra de tudo, a marcação da situação não é por um significante que se situa como base dessa sintomática, por elementos de identificação provenientes dessa dialética de senhor e escravo, quando teria ganho, como produtor das marcas, o próprio escravo. Isso talvez não queira dizer rigorosamente coisa alguma, mas serve como metáfora”196. Ou ainda, fora do eixo lacaniano-kojèviano, as formações “dono” e as formações “escravo”, em sua agonística perene, não testemunham o jogo da pura e simples alienação e apropriação, onde se inscreve todo jogo transferencial? Como argumenta Magno, já crítico do princípio da dialética do senhor e do escravo, “quem pode apropriar-se pode apropriar-se do quê? É disso que decorrem: mandante e mandado, dono e escravo, senhor e servo, patrão e empregado, empresário e operário – que são acoplamentos nascidos da relação dos poderes, inicialmente fundamentados na força. Se quisermos, então, de nosso ponto de vista, reconhecer qualquer poder, basta procurar pelas forças Ladina era que o garantem, sejam físicas, psíquicas, policiais, sociais, etc.” 197. Améfrica Ladina era uma advertência ao inimigo nada sacro, no melhor estilo antropofágico. 24. Com
a morte de Lacan em 1981, Magno enviou uma carta à Escola da Causa
Freudiana de Paris, instituição criada um ano depois da dissolução da Escola Freudiana de Paris, afirmando que sua permanência na instituição era dependente da presença pessoal do mestre francês, apresentando, apresentando, portanto, sua retirada daquela instituição. A carta foi publicada na sessão de 14 de outubro do Seminário Psicanálise & Polética. Polética. A oportunidade em que esse seminário se transformara para elaborar psicanaliticamente alguma reflexão sobre a cultura brasileira também era suscitada pelas circunstâncias em torno da reunião de Caracas ocorrida um ano antes. Não à toa uma questão cara à teoria lacaniana – a Diferença – emergia nos mal-entendidos e impasses decorrentes das tentativas de diálogo interinstitucional, dentro e fora do Brasil, criando situações que exigiam análise e tomadas de posição, com as implicações políticas decorrentes. 196
MAGNO, MD. Acesso MD. Acesso à lida de fi-menina fi- menina,, op. cit., p. 164. MAGNO, MD. Economia MD. Economia fundamental: fundamenta l: metamorfoses metamo rfoses da pulsão p ulsão [Falatório 2004], op. cit., p. 49. Para um recorte do que esse Falatório aborda em relação a questões de economia psíquica articulada à lógica do capitalismo, tendo como corolário a crítica ao conceito marxista de maisvalia, cf. MAGNO, MD. “Economia pulsional: trabalho, apropriação e alienação”. Em: Lumina Em: Lumina,, Facom/UFJF, v. 6, n.1/2, p. 73-91, jan./dez. 2003. Disponível em: http://www.ufjf.br/facom/ http://www.ufjf.br/facom/files/2013/03 files/2013/03/R10-05-MDMagno.pdf. /R10-05-MDMagno.pdf. 197
($
O termo “polética”, no título do Seminário, forçava justamente uma reflexão sobre ética e política a partir do discurso psicanalítico, irredutível aos discursos ocidentais que se ocuparam das éticas e das políticas. Sendo a polis polis o espaço de exercício da possibilidade, e não sua ortologia, manipulação e controle, sua ética, como a do falante, estaria referida ao Real como corte, sexão, isto é, impossibilidade de relação. Ora, uma vez a ética referida ao Impossível Absoluto, a política deveria ser o espaço da Diferença e o buscar resguardá-la, no respeito à derrelição de cada um no exercício de sua de sua diferença. diferença. Polética, portanto, cujo sentido foi ampliado com o conceito de Diferocracia de Diferocracia,, urdido nas malhas desse seminário. A heterofagia implicava necessariamente uma agonística e um jogo de forças, pois não apenas a postulação do inconsciente heterofágico indiferenciante trazia como corolário imediato a Diferença e suas modalizações, como também situava polética ou diferocraticamente o entendimento do sintoma heterofágico brasileiro e, no caso da psicanálise dele proveniente, a legitimidade da havência de suas enunciações, nem que fosse por referência ética e consideração política a que o discurso psicanalítico estava axiomático. Por isso, a obra oswaldiana parecia ser obrigado por seu próprio campo axiomático. “um bom indicador para sacação da nossa posição numa polética. Posição que me parece ser tanto a posição a se dizer nacional quanto nossa situação no campo dessa zorra que é o movimento psicanalítico mundial” 198. Em nível nacional, o mal-entendido, como vimos, decorria das tentativas de aproximação com instituições psicanalíticas em Recife e em São Paulo, em 1976-77, quando, a partir do CFRJ, Magno se recusara ser tomado como ponta de lança de um Movimento Lacaniano Brasileiro, como Escola única. Segundo sua observação, “todo tipo de efeito neste país já se fez, de Nordeste a Sul, tentativas de organização do lacanismo brasileiro e luta pela chefia, esse tipo de bobagem, no sentido, certamente, de alguém assumir a herança, ainda com o homem vivo, de ser o representante de Lacan. Já insisti certas vezes aqui que não me chamo Jacques Lacan e que não sou representante de ninguém com esse nome” 199. Muito menos era o caso, em nível internacional, de alguma submissão “a qualquer imperialismo ou colonialismo ávido por implantar alguma Multinacional” 200, em referência à reunião de Caracas. E continuava, de modo análogo ao Manifesto 198
Psicanálise & Polética Polétic a, op. cit., p. 309. Idem, p. 361, p. 417. Grifo do autor. 200 Idem, ibidem. 199
(%
Antropófago, Antropófago, afirmando a necessidade da postura de dizer um não não público público às tentativas de catequese, as quais, em seu próprio tempo, Lacan também repudiou, esculhambando a vontade totalitária da IPA, ao referir-se a essa instituição pelo acrônimo SAMCDA – Sociedade de Auxílio Mútuo Contra o Discurso Analítico 201. Por fim, o autor esclarecia que a “falta de respeito para com nossa posição enquanto sujeitos habitantes de determinado lugar sintomatizado por determinada língua”, levara à recusa em participar da reunião de Caracas, “com todo o respeito que tenhamos pela inteligência e valor do organizador” 202 . Afinal, não estava interessado em “nenhum Movimento Analítico Lacaniano Universal , MALU MILHER”203. 25.
A despeito do entorno agonístico, a obra teórica, clínica e institucional de Magno
prosseguiu, acelerando a sondagem do sintoma heterofágico. Em 1983, funda a Causa Freudiana do Brasil, em uma iniciativa do Colégio Freudiano de Psicanálise em Brasília, do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro e do Colégio Freudiano de Vitória, conforme vemos em seu estatuto, inicialmente publicados no Boletim Maisum, Maisum, e reeditados em Revirão: em Revirão: Revista da Prática Freudiana204. A Causa Freudiana do Brasil (CFB) tinha como objetivo abrir espaço para o debate científico que acolhesse as reflexões produzidas no campo psicanalítico, considerada a pluralidade de instituições brasileiras que, àquela época, já se 201
LACAN, Jacques. Televisão. Televisão. Em: Outros escritos. escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 518. A íntegra da conferência, originalmente encomendada para uma rede de televisão, com o título de Psicanálise de Psicanálise,, está disponível no youtube. 202 Psicanálise & Polética Polétic a, op. cit., p. 418. 203 Idem, p. 419. O acrônimo proposto mostrou a presença de espírito do autor, ao explorar a semântica do “feminino” que andava pelo ar na carona do sucesso de mídia de um seriado exibido, à época, na TV Globo, intitulado “Malu Mulher”, pretensiosamente sério, mas inevitavelmente caricatural dos discursos e propagandas sobre a emancipação feminina então em voga no Brasil. 204 Essas instituições se formaram na disseminação do trabalho do CFRJ, seja por iniciativa de seus membros, como foi o caso do Colégio Freudiano de Vitória, que surgiu de grupos de estudo formados naquela cidade por José Nazar, seja por encontro fortuito tornado ocasião de trabalho conjunto, como foi o caso do Colégio Freudiano de Psicanálise em Brasília, que surgiu da iniciativa de Humberto Haydt de Melo, que Magno reencontrou no Colégio Brasileiro de Cirurgiões, quando de sua conferência nesta instituição, em 1984. Por coincidência, Melo havia sido seu colega na Escola Preparatória de Cadetes do Exército, em Fortaleza, na década de 1950. Da instituição brasiliense derivou, mais tarde, o Colégio Freudiano de Goiânia. À medida que foram se realizando os congressos da CFB, outras instituições foram se agregando, como foi o caso da Maiêutica, de Porto Alegre, e do CEDP – Centro de Estudos e Desenvolvimento Psicanalítico, de São Paulo. Cf. MAGNO, MD. “De lenda em lenda”. Conferência de abertura do V Congresso d’A Causa Freudiana do Brasil. Em Boletim Maisum, Maisum , 1989, n. 80, p. 45914605. Para os estatutos da CFB, ver Boletim Maisum, Maisum , 1983, nº 30+1, p. 1505-1510 e Revirão: Revista da d a Prática Freudiana, Freudiana , 1985, nº 2, p. 308-312. (&
referenciavam ao ensino de Lacan. Seu ineditismo na história institucional da psicanálise consistia na natureza estritamente congressual congressual que seu estatuto determinava, descentralizando o exercício do poder decisório. Isto, porque caberia a cada instituiçãomembro, por rodízio, sediar e dirigir um congresso, de modo soberano quanto à orientação do evento, o que incluía o convite a qualquer pessoa ou instituição, brasileira ou estrangeira. Não haveria hegemonia de nenhuma instituição participante sobre as demais, nem ingerência em suas decisões quanto aos objetivos e atividades que cada uma assumisse, quando o rodízio assim determinasse. Para fazer parte da associação, a instituição pleiteante deveria apresentar seu pedido, por escrito, dirigido ao Conselho da Causa, formado pelos titulares das associações membros. Não havia hierarquia entre estas últimas e as instituições i nstituições recém-ingressas, recém-ingressas, sendo exigidos o pagamento da inscrição e o cumprimento de um prazo de carência (1 ano) para participar do rodízio, quando deveria ser reiterado, por escrito, o pleito inicialmente apresentado. A cada ano, por ordem de entrada na associação e em rodízio permanente, o Diretório da Causa seria exercido pelo órgão correspondente da instituição titular que estivesse à frente da realização do congresso anual – fim e meio da CFB –, podendo-se declinar desse exercício mediante exposição dos motivos. Assinavam o estatuto Humberto Haydt de Souza Melo pelo Colégio Freudiano de Psicanálise em Brasília; Sergio Augusto Passos pelo Colégio Freudiano de Vitória e MD Magno pelo Colégio Freudiano do Rio de Janeiro. O experimentalismo da iniciativa testava um arranjo não muito afeito a certo funcionamento político-institucional recorrente na história brasileira, marcada, desde, pelo menos, o período imperial, pela imposição de um “poder moderador”; por relações políticas esteadas em estruturas oligárquicas e personalizadas de poder; pela agonística dos poderes atravessada pelo clientelismo e seu hábito arraigado de conceder benefícios com contrapartida de apoio político, em um cálculo não raro mesquinho e personalista; pela manutenção de castas privilegiadas, sustentadas pela burocracia, por sua vez, solidária do próprio poder estatal por elas administrado, sobrepondo público e privado205. Essas características, que supomos, por estudo de sociologia política e história, pertencer à macrofísica estatal e societária, estão, com efeito, disseminadas nas transas locais de poderes com os quais as pessoas, ilusoriamente, se sentem 205
CARVALHO, José Murilo de. “Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão conceitual”. Em: Dados Em: Dados [online], 1997, v. 40, n. 2. Disponível em: http://www.scielo.br/sci http://www.scielo.br/scielo.php?script elo.php?script=sci_arttext&pi =sci_arttext&pid=S0011-52581997 d=S0011-52581997000200003. 000200003. ('
protagonistas e sujeitos, por se suporem substantivadas n’O Poder. Não veem que não passam de marionetes movimentadas por fios feitos da rede sintomática em que estão imersas206. Também nas transas institucionais da psicanálise no Brasil esses sintomas mostraram poder mostraram poder alguma alguma coisa. Foram cinco congressos realizados pela Causa Freudiana do Brasil, entre 1984 e 1988, em Brasília, no Rio de Janeiro, em Vitória, em Porto Alegre e em São Paulo, respectivamente sob a direção do Colégio Freudiano de Psicanálise em Brasília, do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, do Colégio Freudiano de Vitória, da Maiêutica e do CEDP – Centro de Estudos e Desenvolvimento Psicanalítico. A associação congressual contou também com a participação do Colégio Freudiano de Goiânia, que não chegou a sediar nenhuma reunião, dada a dissolução da CFB em 1988. Inclui-se, ainda, o contato com a Fundação do Campo Freudiano, através de Jacques-Alain Miller, em 1984, que sugerira ao CFRJ a realização de um encontro com psicanalistas brasileiros, a convite da Fundação, a ser realizado no Brasil. Contudo, de retorno à França, Miller alterou as condições de realização do evento, comunicando-as a outra instituição, a Clínica Freudiana, da Bahia, através de seu representante, Jairo Gerbase, que as transmitiu ao CFRJ. As novas condições incluíam a organização de uma comissão brasileira nomeada pela Fundação (sic!), encarregada dos convites aos participantes, podendo ter suas escolhas escolhas vetadas pela Fundação Fundação (sic!); os não-brasileiros seriam convidados pela Fundação, sem direito de intervenção dos anfitriões brasileiros (sic!); os custos correriam por conta da comissão brasileira, estando seu programa subordinado à aprovação da Fundação (sic!). Em outras palavras, um evento franco brasileiro, comandado por franceses, que decidiriam quem participaria, na casa dos brasileiros, a quem a conta seria enviada. enviada. A resposta foi um Manifesto, escrito a cinco mãos, publicado em 1985, que também circulou em um grande jornal do Rio de Janeiro 207, onde se esclareciam essas circunstâncias, tornando público o entendimento do Colégio de que se tratava de 206
MAGNO, MD. “Psicanálise e poder”. Em: TranZ: Revista de Estudos Transitivos do Contemporâneo, Contemporâneo, Rio de Janeiro, v. 6, 2011. Disponível em: http://www.tranz.org.br; SILVEIRA JR., Potiguara Mendes da. “ O poder das formações: o artista, o rei, a rainha, o quadro, o filme...”. Em: Revista FAMECOS: FA MECOS: mídia, cultura cu ltura e tecnologia tec nologia.. Porto Alegre, v. 21, n. 1, p. 165-185, jan-abr 2014. Disponível em: http://revistaseletronicas http://revistaseletronicas.pucrs.br/oj .pucrs.br/ojs/index.php/ s/index.php/revistafamecos/art revistafamecos/article/view/1407 icle/view/14077/11329 7/11329 207 Revirão: Revista R evista da Prática Freudiana Fre udiana,, nº 2, op. cit., p. 308-312. Os signatários do manifesto foram: MD Magno, Marco Antonio Coutinho Jorge, Octavio de Souza, Antônio Sergio Mendonça e Aluízio Menezes. O Manifesto foi publicado no Jornal no Jornal do Brasil , na edição de 15 de setembro de 1985, no caderno “Especial”, que circulava aos domingos. ((
“colonialismo”, a ser compreendido no contexto do esfacelamento da herança do lacanismo na França e a subsequente vontade de constituição de hegemonia por parte de determinados segmentos franceses, que se estendiam inclusive (ou principalmente?) além-mar. A essa pretensão não faltavam adesões locais subservientes, que não apenas davam prova de fraqueza intelectual, como intentavam obter vantagens pessoais, trocando seu apoio pelo suposto ganho em aculturação, mostrando, com isso, o esforço de parecerem civilizados. O Manifesto repudiava a pretensão de tutela da instituição estrangeira sobre o processo de aproximação entre instituições e analistas brasileiros, que a Causa Freudiana do Brasil iniciara por decisão autóctone, o que não impedia qualquer de suas instituições-membro de convidar a Fundação ou outra instituição estrangeira, quando de sua gerência congressual, estabelecida estabelecida pela ordem do rodízio. Na conclusão, declarava-se que, ao invés de “escamotear a sintomática constitutiva da singularidade cultural do Brasil”, desejava-se, ao contrário, “por em relevo essa implicação”, pela vontade de “constituir uma tradição representativa de enunciação brasileira na Psicanálise”. Não se tratava nem de “xenofobia militante”, menos ainda da assimilação, mas com boca “subserviência mansa do colonizado”, e sim de insistir na “ assimilação, própria, por antropofagia (ou heterofagia)”, nas pegadas de Oswald de Andrade, que apontara talvez “o coração da nossa sintomática”. O “só me interessa o que não é meu” era solidário de um vigor de postura “contra todas as catequeses”. catequeses”. Dezesseis anos depois, quando do convite para participar dos Estados Gerais da Psicanálise, Psicanálise, iniciativa do psicanalista francês René Major, com adesão de várias instituições internacionais e brasileiras, Magno, mais uma vez, se manifestou, ponderando suas razões em não aceitar o convite que lhe chegou através do psicanalista Chaim Samuel Katz. Deu ao evento a alcunha de Estragos Gerais da Psicanálise, Psicanálise, declarando não ver razão de os brasileiros “embarcarem num projeto que já tem de saída o sabor – e mesmo a denominação (Estados Gerais) – de um fenômeno exclusivamente francês e com raízes históricas” que considera “espúrias”, pela relação com a Revolução Francesa e os acontecimentos a ela vinculados, como o Terror e a Restauração. Questionou “a velha vontade de colonização” ali presente, acrescentando que “gostaria muito de ver acontecer – e ter a honra de participar de – algum movimento que fosse emergencial de nossas próprias situações e condições”. Por fim, seu diagnóstico, coerente com o percurso feito até então, foi no sentido de considerar o projeto como
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retardatário, se não mesmo retrógrado, “apesar dos semblantes de vanguarda e os esgares democrateiros com que se possam maquilar” 208. 26.
A obra teórica de Magno deu um salto, a partir de 1982. Fiel à sua digestão
heterofágica, passo a passo, a cada Seminário, avançava a concepção de uma psicanálise simplificada em seus axiomas e postulados, transformando as primeiras intuições, transmitidas, lado a lado, com o ensino lacaniano, em proposições distintivas de uma nova psicanálise, que continuaria a dialogar com o corpus teórico lacaniano, por pelo menos, mais dez anos. Para situar a magnitude do salto teórico, podemos dar quatro exemplos, dispersos na produção desse período. Em primeiro lugar, a concepção do Revirão como modelo minimalista do psiquismo, a partir das propriedades da banda de Moebius. Ao invés de destacar a operação topológica do corte – que, em Lacan, é o correlato da noção de sujeito do inconsciente –, a proposta de Magno privilegia a lógica de reversão inscrita no percurso longitudinal da contrabanda, entendendo que o ponto não-orientável descrito pelos matemáticos é, com efeito, ponto bífido. A cada ponto conjeturável no percurso longitudinal dessa superfície unilátera inscreve-se uma lógica de orientação para um lado ou para outro, outro , pois há, sim, orientação topológica na contrabanda, só que ela é bífida. bífida. Temos, então, uma potente metáfora para mostrar que o psiquismo funciona espontaneamente na disponibilidade para transitar entre opostos, cruzar informações, virar ao avesso qualquer dado de realidade, pois sua propriedade fundamental é a bifididade. Ora, tal capacidade capacidade do psiquismo psiquismo de estar disponível disponível para um lado ou outro outro é solicitada, marcada e recalcada pela realidade binária do mundo macrofísico, com a qual a mente opera. Para acompanhar os processos inconscientes é preciso, portanto, saltar fora da opositividade binária e se referir a uma lógica de terceiro lugar : a bifididade antecede logicamente a partição de opostos, que, por sua vez, se nos impõem por recalque. A lógica do Revirão é apresentada pela primeira vez no Seminário A Música para mostrar que a lógica significante de Lacan depende de condições estruturantes ou competências que não estão dadas na ordem da linguagem, em seu apoio linguageiro e linguístico. linguístico. O significante não está isolado do significado, como se fosse uma palavra 208
MAGNO, MD. “Resposta a Chaim Samel Katz e a quem mais possa interessar sobre participação participa ção nos ditos Estados Gerais da Psicanálise, Psicanálise , Rio, R io, Agosto, 2001”. Em Ars Em Ars Gaudendi: Ga udendi: a arte do gozo [Falatório 2003], op. cit., p. 125-6. (*
simbólica desprovida de significação, mas atuante na determinação inconsciente, como propôs Lacan, a partir de seus empréstimos à linguística estrutural. Esse significanteletra é sintoma habitante do mundo binário e opositivo, portanto, declinado em relação à instância bífida do inconsciente. Logo, o sujeito do inconsciente, representado pelo significante, é espessura sintomática já irremediavelmente significativa, ou seja, em regime de oposição. Para manter o vigor abstrativo do esforço lacaniano, era preciso abandonar a preeminência simbólica do significante e considerar sua compleição bífida como halo significante significante ou Revirão. Nesse sentido, qualquer expressão simbólica é já uma possibilidade alélica do halo significante, em opositividade a outro alelo recalcado. Palavras, atos, discursos, significantes, significados, significações, abstrações simbólicas (do parentesco, da língua, do poder, dos processos sociais etc.) são ordenações já decantadas, binárias e opositivas, que expressam a operatividade do recalque, e não a bifididade do inconsciente, que as tornou possíveis 209. O segundo exemplo de reordenação conceitual é o entendimento de que o processo primário freudiano, longe de ser apenas determinação significante do inconsciente do e no falante, inclui também o vivo que, apesar de espontaneamente não se comportar de modo reversível, é arrastado pela força excessiva da pulsão, cuja direção e sentido é a extinção impossível. Tomado isoladamente, o vivo é processo etossoma, isto é, comparece em uma homeostático e constituído de autossoma e etossoma, estruturação codificada (genética, por exemplo) acoplada a uma programação etológica, dependente de relações ecossistêmicas, sofrendo a força entrópica do princípio do prazer freudiano. No novo escopo abrangente do processo primário, concebe-se um grande processo metaforonímico, de cruzamento sintático e semântico das coisas em geral, aí incluído o vivo. Ora, esse processo tem vicissitudes particulares, consoante a sua decantação em formações, como a língua, por exemplo, de tal modo que o simbólico corresponde ao processo primário ocupado por ocupado por formações que conectam as moções pulsionais, configurando sintomaticamente o “sujeito” e assentando-lhe as bases no vivo, na língua e nos processos significantes, no sentido restritivo da teoria lacaniana. lacaniana. A falta, inscrita no simbólico, torna-se um efeito do efeito do processo hiperbólico do inconsciente pulsional, pois as formações sintomáticas são parciais, passíveis, inclusive,
209
MAGNO, MD. A Música [Seminário 1982]. 2ª ed. Rio de Janeiro: aoutra editora, 1986, p. 208-220. )+
de pressão de estase, pois são máquinas de acoplamento simbólico que metaforizam os modos de acoplamento do vivo 210. O que conecta o avanço da tese do Revirão com o princípio do prazer no vivo e no falante é a intuição primeira do Espelho. O vivo que o falante é sofre de portar a competência reflexiva, que opera o mundo a partir da lógica de Revirão: tudo é questionável, passível de cruzamento e reversão: a mente é Espelho enantiomórfico. Mais um passo conceitual e a lógica do Revirão é concebida em perspectiva cosmológica, como estruturalidade do Haver. Aí está o terceiro exemplo de reordenação teórica. A mente (humana) como originariamente Espelho é uma repetição da estrutura em simetria e quebras de simetria sucessivas que constituem o Haver, em motu perpetuo de desejar o não-Haver impossível. O diálogo teórico foi buscar analogias e exemplos na cosmologia física e seus modelos de universo entrópico (buracos negros de condensação de matéria) e neguentrópico (conjeturas de explosão e expansão). Se, n’ A n’ A Música, Música, Magno sugere que “o descobrimento freudiano do processo primário daria frutos se levado ao campo da ciência-tecnologia com mais rigor” 211, em Escólios¸ Escólios¸ no diálogo com a cosmologia física, constata que “estamos cansados de linguística e de ciências humanas, e desejamos uma guinada” 212. 210
Idem, p. 16-78. Importante registrar que essas questões, desenvolvidas no Seminário A Música, Música , se coadunavam com dois desdobramentos em curso da teoria dos sistemas de Ludwig von Bertalanffy: a teoria da autopoiesis autopoiesis de Humberto Maturana e a cibernética de segunda ordem de Heinz von Foerster, que, por sua vez, recuperou da álgebra monovalente de Georges Spencer Brown a noção de cálculo matemático como uma operação capaz de realizar distinções. Também para Magno a contribuição de Spencer Brown foi importante, pois lhe forneceu um apoio heurístico para mostrar abstrativamente uma noção de forma como anotação ou marca distintiva do que quer que haja. Em outras palavras, forma como forma da distinção que, como tal, possui dois lados: o que se distingue como “marcado” e o que se indica como “nãomarcado” ou excluído, mas que permanece no fundo como possibilidade para a operação. A lógica do “marcar distinção sob fundo não-marcado” foi uma espécie de operador de passagem entre o regime binário da diferença simbólica e o regime enantiomórfico da mente, à medida que, da proposição do Espelho, emerge a própria possibilidade da binariedade ‘marcado/não marcado’. O Boletim O Boletim Maisum Maisum,, nº 12+1, 20 maio 1982, p. 497-516, publicou o artigo “As leis da forma (para introduzir uma semântica sem verdade)”, de Axelle e André Patsalides, com Litura-Analytica, v. 27, tradução de MD Magno. O artigo originalmente saiu em Cahiers Litura-Analytica, Ornicar?, Ornicar?, 1982. Pouco depois, no mesmo Boletim, Boletim , foi publicado o cap. 12 do livro Laws of Form, Form, de Georges Spencer Brown, também traduzido por Magno. Cf. Boletim Maisum, Maisum , nº 30+1, 1983, p. 1511-1515. 211 Idem, p. 29. 212 MAGNO, MD. Escólios MD. Escólios [Seminário 1984]. Em: Revirão: Em: Revirão: Revista da d a Prática Freudiana, Freudiana, Rio de Janeiro, nº 1, jul 1985, p. 21. As reações ao novo patamar de questionamento a que a psicanálise psicanáli se foi alçada na obra de Magno ressoaram ressoara m particularmente particular mente nesse seminário, seminário , em cuja gravação estão registradas as interrupções intermitentes dos participantes, impedindo a apresentação dos argumentos do autor. Tal circunstância é aludida no início da publicação: “Era para ser o Seminário do primeiro semestre de oitenta e quatro. Duas sessões se realizaram realizar am )!
O quarto e último exemplo da ruptura teórica t eórica da Nova Psicanálise em elaboração na primeira metade da década de 1980 é a consolidação conceitual da heterofagia em chave estilística, conforme a sondagem iniciada em Psicanálise & Polética. Polética. Foram propostos o estilo maneirista como terceiro em relação ao clássico e ao barroco, e a consequente leitura do Brasil como “maneiro”. Na verdade, é o coroamento das pesquisas que, desde Senso contra Censo, Censo, foram construindo a psicanálise como uma arte e sua teorização como uma estética, na medida em que: 1) é postulada a condição artificiosa do que há, abolindo-se a distinção entre natureza e cultura ou natureza e simbólico; 2) a estética artificialista daí decorrente se estende a toda e qualquer operação de produção, não sendo apenas a arte isolada como campo profissional e conceituada pela produção sapiente e/ou chancelada pelo mercado; 3) a produção artificiosa é um fazer que está na dependência da fantasia sexual (desde Freud e Lacan), a qual pode encontrar, em um processo de análise, meios de se elaborar discursivamente e se expressar estilisticamente; 4) a psicanálise, portanto, “é a arte de transformar o sonhador em artista”, no sentido de ser a arte que leva à travessia da fantasia, que é realizar o que a fantasia determina no sintoma, mas sem aí se aprisionar, sintomatizando, ao contrário, no mundo, ao transfigurá-lo como efeito de análise; 5) do entendimento abstrativo da sexualidade, já presente em Lacan, decorre uma concepção mínima de estilos disponíveis para o falante, que, longe de ser os dois indicados na teoria lacaniana, são, na verdade, quatro, em conformidade com a extremação da noção de Real – não haver relação sexual –, o que lança cada um no confronto com o Impossível absoluto, que não há 213. 27. Desde, pelo menos, Heinrich
Wölfflin, tornou-se consolidada a perspectiva segundo
a qual Clássico e Barroco são as duas vertentes nítidas da arte ocidental 214. Conectando a história da arte com a psicanálise e ressaltando a congruência entre essas duas vertentes com o Masculino e o Feminino lacanianos, Magno destaca a emergência de um terceiro estilo, que a história e a crítica de arte acabaram por reconhecer como não sendo nem Clássico, nem Barroco, e sim Maneirista. O estudo do Maneirismo mostrou que se trata de um estilo caracterizado pela postura antinaturalista, artificiosa e pertinentes. pertinent es. Houve surdez demais d emais e esforço e sforço para pa ra olvido em quanto quan to matraqueio matraque io impertinente. impertin ente. (...) Do que sobrou, quer dizer, do que me foi laxado, ajunto agora – e deixo como está para ver como é que fica. Sabe-se que isso passa, mas retorna”. 213 MAGNO, MD. Grande Ser tão veredas [Seminário 1985], op. cit., p. 129-145; p. 211-227. 214 WÖLFFLIN, Heinrich. Renascen Heinrich. Renascença ça e Barroco Ba rroco [1888]. São Paulo: Perspectiva, 2000. )#
cerebralizante; pelo contraste crescente com o “natural”, donde o recurso exaustivo a figuras rotantes e a torções; o que culminou no princípio estilístico da hiper-acentuação da divergência das direções, evidenciando a lei da contrariedade dos opostos como razão da criação artística e poética. Nessa perspectiva, são maneiristas Pontormo, Rosso, Beccafumi, Parmigianino, Bronzino, El Greco e Michelangelo, mas também Rabelais, Tasso, Cervantes, a lírica de Camões e Shakespeare 215. Para o psicanalista, essas contribuições somavam para mostrar a tese de que a sexualidade (humana) é de terceira ordem, ordem, isto é, maneirista, não se reduzindo nem às configurações anatômicas, mas também não se enquadrando apenas em suas expressões simbólicas, como Lacan quantificou na fórmula “Homem” e “Mulher”. A secção/sexão instaura o terceiro sexo, “lugar entre, interstício, [do] faz-de-conta, farsante, que se atravessa, que é 216
Maneiro”
. Ora, a bifididade de que o Maneirismo é testemunha estilística depende,
em última instância, da alucinação de não-Haver, o que inscreve uma quarta instância para a sexualidade, que é o sexo da morte, impossível, mas não menos desejado. Configuram-se, assim, os quatro estilos basais da mente afetada de Revirão – Tanático, Maneiro, Clássico e Barroco –, ou sua sexualidade, conforme as fórmulas da sexuação – Desistente, Resistente, Consistente e Inconsistente 217. 215
WEISE, Georg. Il manierismo: manierism o: bilancio critico del problema stilistico e culturale. culturale. Firenze: maneirismo. São Paulo: Cultrix/EDUSP, Leo S. Olschki Editore, 1971; SHEARMAN, John. O maneirismo. 1978; PINELLI, Antonio. La belle manière: anticlassicisme anticlassicis me e maniérisme maniérism e dans l’art du XVI è siècle. siècle . Paris: Livre de Poche, 1996; HAUSER, Henri. Maneirismo: Maneirism o: a crise da renascença renascen ça e o surgimento surgimen to da arte moderna. moderna. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1993; FALGUIÈRES, Patricia. Le maniérisme: une avant-garde au XVIè siècle. siècle. Paris: Gallimard, 2004; CURTIUS, E. R. Literatura europeia e idade média latina latin a. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1996. 216 MAGNO, MD. Grande Ser tão veredas [Seminário 1985], op. cit., p. 175. 217 Em razão da complexidade da questão da lógica da sexuação, primeiro formulada por Lacan e, depois, revista e ampliada por Magno, omitimos uma série de raciocínios que envolvem o que o psicanalista francês chamou de “fórmulas quânticas”. Tentaremos resumi-las. Em primeiro lugar, esses raciocínios utilizam a anotação da lógica simbólica, que formaliza o que a teoria clássica das proposições entendia como a quantidade das proposições: todos, nenhum, alguns. Os dois quantificadores que nos interessam são: (!), que representa a ideia de que “existe ao menos algo (x), tal que...”, e ( "), um quantificador universal utilizado para representar a ideia de que “Todas as coisas (x) são tais que...” ou apenas “Para todo (x)...” Os quantificadores modularam a ideia de universal, seu contrário (Universal Afirmativa x Universal Negativa) e seu contraditório (Particular Afirmativa x Particular Negativa). Para Lacan, importava enunciar logicamente as características singulares da realidade sexual do inconsciente: sua ordem simbólica em falta estrutural, sua inscrição significante ordenada pela função função fálica (o significante falo como função ou variável lógica) e a impossibilidade da relação sexual, não importando a posição subjetiva homem subjetiva homem ou mulher. Assim, criticou a lógica aristotélica e sua concepção de universal com base na existência e, em seu lugar, propôs o universal a partir da exceção, que circunscreve o todo, além de conceber uma função inédita na qual a negação cai sobre o quantificador, a ser lido como não-todo. Disso resultam duas posições subjetivas da sexuação. De um lado, a função homem, que se escreve !x~ !x / "x !x e se lê: existe pelo )$
A heterofagia das produções encontrava no Maneiro sua deriva estilística, abrindo um campo de pesquisa sobre o Brasil como um país Maneiro, e não Barroco. Para exemplificá-lo, o autor usou como exemplo uma escultura de Aleijadinho, que faz parte da composição pictórica da igreja de Matosinhos, em Congonhas, Minas Gerais. Trata-se de um anjo, pendurado do teto da igreja, em postura afetada e teatral, portando na mão direita um cálice e na esquerda uma lança (uma foto da escultura foi capa da Revista Revirão Revista Revirão,, nº 3). Visto de frente, o anjo oferta esses objetos especularmente e, na hipótese de aceitá-los, quem o fizer os receberá de forma cruzada, a lança passando para a mão direita e o cálice para a esquerda. Ora, esses dois objetos são símbolos da castidade ou intocabilidade, na longa tradição da Questa do Graal, de modo que o Anjo está entre as duas marcas, masculino e feminino, que não copulam por ser a relação sexual impossível 218. Curiosamente, para dizer o mínimo, o filósofo tchecoslovaco Vilém Flusser, que morou e trabalhou no Brasil entre 1940 e 1973, fazendo disso oportunidade para refletir sobre a “fenomenologia do brasileiro”, ficava perplexo ao ver a arte colonial brasileira ser chamada de barroca. Para ele, um imigrante nativo de cidade barroca europeia cai na risada ao visitar as pretensas cidades barrocas brasileiras, risada que, no entanto, vira admiração tão logo o imigrante se desvencilha do rótulo. “Porque então descobre um fenômeno sem paralelo no qual elementos portugueses, orientais (hindus e chineses) e negros conseguem formar uma síntese na qual é possível descobrirem-se os germes de um novo tipo humano, (...) inteiramente fora da corrente menos um que diz não à função fálica, de modo que se fecha um universal com essa operação de exclusão (!x~!x ) e se constitui um todo ( "x!x) como exercício da mesma função fálica, fundada na operação de exclusão. De outro lado, temos a função mulher, que se escreve ~!x~!x / ~"x!x e se lê: não existe nenhum que não seja função fálica (~!x~!x), logo o universal não existe, é negado e não-todo torna-se função fálica (~ "x!x). Para Magno, no entanto, há duas funções lógicas anteriores e hierarquicamente superiores às duas modalizações lacanianas, que, aliás, não são denominadas de homem e mulher, e sim de consistente e inconsistente. Dado o axioma da pulsão, Haver desejo de não-Haver, há desejo de Impossível como gozo absoluto de extinção, donde se segue o sexo da morte, desistente, suposto gozo obtido caso atingíssemos em presença a morte requerida, que se escreve ~!x !x / "x~!x e se lê: se não existe nenhum que afirme o tesão (~ !x !x ) – em crítica à ideia de função fálica –, então todos podem negá-lo ("x~!x). Mas a morte não há, portanto resta haver sexualidade como quebra de simetria originária, secção ou sexão resistente, que se escreve !x !x / ~ "x~!x e se lê: se existe pelo menos um que afirma o tesão ( !x !x), ele pode ser negado, mas não de todo, nem por todos, nem por todo o tempo (~ "x~!x). Cf. o desenvolvimento das fórmulas quânticas da sexuação em relação com as lógicas ocidentais, em diálogo com o lógico brasileiro Luiz Sergio Coelho de Sampaio, além da congruência entre a sexuação e os quatro estilos basais em MAGNO, MD. Revirão 2000/2001. I. “Arte da Fuga”; II. Clínica da Razão Prática, Prática, op. cit., p. 117-162. 218 MAGNO, MD. Grande Ser tão veredas [Seminário 1985], op. cit., p. 165-6. )%
histórica, em canto perdido do mundo (...), em síntese espontânea e não pretendida” 219. E conclui, como se citasse Oswald de Andrade: “o curioso é que o brasileiro atual, ao ver tal fenômeno, não se descobre a si próprio nele como sendo uma das suas raízes e potencialidades, mas, obcecado pela ideologia, pretende ver barroco e, se for chauvinista, até barroco excepcionalmente excepcionalmente elaborado” 220. O núcleo da nova teoria, em torno do qual o trabalho conceitual de Magno se expandiria, estava concebido: 1) em regime de dissimetria, Haver busca não-Haver; 2) o Real é bifidização de Haver, com suas consequentes dissimetrizações, o que, em termos cosmológicos, combina com as conjeturas físicas sobre as partículas simetrizáveis e perpetuo de condensação/neutralização e com os modelos de universo eterno em motu perpetuo de explosão/expansão; 3) repete-se, embutido no sistema biológico conhecido que é o nosso caso, o mesmo modo de operação em Espelho ou Revirão, do Haver; 4) a Mente é Espelho enantiomórfico; 5) Inconsciente é Haver e Linguagem é Revirão; 6) há uma estilística de base apreensível na estetização dos processos do falante, que pode ser organizada em quatro possibilidades, correlatas da sexuação; 7) a estilística de base da sintomática brasileira é o Maneiro. No ano em que o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro assumiu a direção d’A Causa Freudiana do Brasil e realizou o congresso que a função estatutária lhe incumbia, o II Congresso d’A Causa teve como tema-título “A Psicanálise do Brasil”. 28.
1985 foi o ano do (primeiro) Rock in Rio e da eleição presidencial que encerrava a
ditadura militar. Também foi o ano da expectativa pela passagem do cometa Halley, em meio ao sucesso do teatro besteirol e do rock nacional. Em dezembro, o Jornal do Brasil publicou Brasil publicou um cartoon de Liberati, em quase meia página, com o título “Promessas de verão: Está chegando a hora em que o Rio vira uma festa” 221. No traço do artista, se desenhava uma série de microcenas do cotidiano carioca: o sanduíche natural do bairro do Leblon; a vitrolinha tocando Gil, Caê e Angela Ro-Rô; o humor esculhambado do teatro besteirol; a azaração do rapaz saradão; o cabelo new wave da banda de roquenroll; o intelectual lendo Marguerite Duras; a expectativa pela exibição do filme, até então proibido, Je vous salue, Marie, Marie, de Jean-Luc Godard... no centro, embaixo,
219
fenomen ologia do brasileiro: em busca de um novo homem. homem. Rio de FLUSSER, Vilém. A fenomenologia Janeiro: Eduerj, 1998, p. 81. 220 Idem, p. 81-2. 221 Em 18 de dezembro de 1985. )&
dois bigodudos conversam, um deles carregando uma banana debaixo do braço: “– Onde você vai com essa merendona?” “– Pro Colégio ‘Fróidiano’”. Naquele ano, realizou-se no Hotel Copacabana Palace o IIº Congresso d’A Causa Freudiana do Brasil. Seu símbolo, uma banana, que ocupava a quase totalidade do cartaz de divulgação, rendeu-lhe a alcunha, até hoje lembrada, de ter sido o congresso “da banana”. Menos recepção reflexiva, talvez, teve sua efetiva intenção analítica e política: fazer o gesto, traduzido em bom brasileiro, de dar uma banana, mandar às favas, as moções que, estrangeiras ou nacionais, vinham criando dificuldades ao trabalho teórico, clínico e institucional desenvolvido no Colégio Freudiano do Rio de Janeiro. Apesar e por causa disso, o evento foi um sucesso. A movimentação em torno do CFRJ havia começado muito antes, quando, em 1982, inaugurou sua série de saraus, que eram eventos abertos ao público, nos quais um/a convidado/a de projeção pública, por sua atividade, opinião ou intervenção, traria seu depoimento sobre como via os acontecimentos do mundo, motivado por questões trazidas por um grupo de analistas da instituição 222. Além dos saraus, o CFRJ passou a promover cirandas, pequenos congressos onde a palavra estava disponível para expressão em plenário, fosse tomada por analistas ou não, por integrantes da instituição ou não, desde que a pessoa tivesse se inscrito. Outra atividade, dessa vez mais restrita à participação dos membros da instituição, eram os mutirões, esforço concentrado de pesquisa e estudo voltado para o desenvolvimento desenvolvimento de temas e questões importantes para a prática e a teoria psicanalíticas. Acrescida a frequente cobertura pela mídia impressa dos eventos patrocinados pelo Colégio, podemos dizer que essa instituição foi um caso de presença, no sentido de Gumbrecht 223, na cidade do Rio de Janeiro, com efeitos colaterais no Brasil e no exterior. À parte a reviravolta teórica da psicanálise trazida pelo ensino de Magno, Magno, mas não deixando deixando de com ela ela se relacionar, o fato é que centenas de pessoas, com maior ou menor conhecimento do percurso da psicanálise no Planeta, procuravam o Colégio, que chegou a ter, entre 1982 e 1988, mais de 400 inscritos que pagavam a mensalidade da instituição. A divulgação midiática, com a ignorância e distorções que costumam caracterizá-la, fazia circular a existência do CFRJ e de seu integrante mais polêmico (seu presidente, MD Magno). Aqui e ali, a presença do 222
O primeiro convidado da série de saraus foi o músico Caetano Veloso, que retornou pela d’ aoutra,, segunda vez, dois anos depois, quando a conversa foi transcrita e publicada no Folhão no Folhão d’aoutra publicação publicaç ão da editora editor a do Colégio, Colégio , distribuída gratuitame g ratuitamente nte nas livrarias livra rias da zona zon a sul da cidade. cida de. 223 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Atmosfera, Atmosfera , ambiência, ambiência , Stimmung: sobre um potencial oculto da literatura. literatura. Rio de Janeiro: Contraponto, Editora PUC Rio, 2014. )'
Colégio – reconhecido como primeiro grupo de formação estritamente lacaniana no Rio de Janeiro224, no momento em que teoricamente já não se tratava mais disso, pelo menos no ensino de Magno – invadia as conversas de bares, as rodas de amigos, as discussões acaloradas sobre sexo e política, ora associada a algo exótico, ora a algo diferente, ora reverberando certo incômodo denegatório. De um modo ou de outro, fazia parte do cotidiano da cidade, acolhendo, ainda que por um curto intervalo de tempo e sem que se dessem conta, a inquietação, a denegação e a loucura de seus habitantes, sendo, ao mesmo tempo, um laboratório experimental por onde passaram vários dos componentes sintomáticos das mazelas do país. Ao longo dos meses de agosto e setembro de 1985, os saraus se intensificaram, como preparação para a realização do Congresso. Em torno do tema “O que é o Brasil?”, foram recebidos Ferreira Gullar, Maria da Conceição Tavares, Heloisa Buarque de Holanda, Abelardo Barbosa (Chacrinha), Chico Anysio, Carlos Eduardo Novaes, José Celso Martinez Corrêa, Roberto da Matta, Artur Moreira Lima, participantes do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras e os integrantes do Planeta Diário / Casseta Popular . Nos três dias em que se realizou, de 04 a 06 de outubro, o Congresso teve oportunidade de acolher de novo Roberto da Matta e José Celso Martinez Correa, além de outros convidados, com destaque para a participação de Gilberto Freyre, recebido como conferencista de honra do evento, para proferir a conferência “Brasil & Psicanálise”225. A presença de Freyre era, ao mesmo tempo, uma homenagem e uma afirmação senzala tinha virado de cabeça de postura, na medida em que o autor de Casa-grande & senzala tinha para baixo a suposição, suposição, então em voga nos nos discursos higienistas higienistas do início do século XX, de que a miscigenação teria causado dano irreparável ao Brasil. Ao contrário, a mistura étnica, segundo Freyre, era uma vantagem imensa da cultura brasileira. Incorporando resultados de pesquisas de nutrição, antropologia, medicina, psicologia, sociologia e agronomia, o sociólogo pernambucano mostrara que as teorias raciais haviam se tornado obsoletas. E isso com extraordinária liberdade de estudar a sociedade brasileira, 224
movimen to psicanalítico psicanalític o no FIGUEIREDO, Ana Cristina C. de. Estratégias de difusão do movimento Rio de Janeiro – 1973/1983. 1973/1983. Orientador: Anamaria Ribeiro Coutinho. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Psicologia. Dissertação (Mestrado em Psicologia), 1984. A dissertação serviu de base para “O movimento psicanalítico no Rio de Janeiro na década de 1970” em: BIRMAN, Joel (coord.). Percursos na história da psicanálise. psicanálise . Rio de Janeiro: Taurus, 1988. 225 O leitor pode acessar a palestra em https://www.youtube.com/watch?v=9OgPnt9rtqc https://www.youtube.com/watch?v=9OgPnt9rtqc.. Vários saraus e apresentações no Congresso foram transcritos e publicados em Revirão: Revista da Prática Freudiana F reudiana,, 1985, nº 2 e nº 3. )(
mostrando que a formação do país não podia ser interpretada pela raça, e sim pela cultura, com o que se tornaram visíveis os aspectos formadores da organização familiar e política, na maneira de vestir, comer, na vida sexual, na relação com o meio. “Como um bom freudiano, Freyre acreditava que, para entender o comportamento de um grupo, neste caso, os senhores de engenho, era necessário saber como seus membros haviam sido criados” 226, incluindo a discussão de diferentes formas de sexualidade de modo aberto e sem juízo moral, em uma abordagem ousada para um historiador da época. Isso, sem falar na intuição freyreana do maneirismo ibérico – o sociólogo não usou essa expressão –, especialmente o português, na conta do qual Freyre debitava uma “singular predisposição para para a colonização colonização híbrida e escravocrata escravocrata dos trópicos” trópicos” 227. Mas o IIº Congresso da CFB, com seus saraus preparatórios, não colocou na mesa de discussão apenas a miscigenação, o hibridismo, a heterofagia ou o maneiro. Por se tratar de psicanálise, o genitivo “do Brasil” exigia mostrar o outro lado da moeda, fazendo a ana-lysis ana-lysis das formações sintomáticas para entender como se deu o recalcamento que produziu e produz certa formação recalcante vitoriosa, cujo vigor hegemônico faz suspeitar haver por trás uma realidade igualmente expressiva. Era necessário colocar na roda, portanto, duas das forças francamente autoritárias da formação brasileira, que Magno identificava como o jesuitismo da restauração católica e o positivismo da politecnocracia militar, que sempre jogaram com uma população que parece viver na esculhambação esculhambação de toda e qualquer regra. Não surpreendia que o país vivesse na bipolaridade entre demagogia e ditadura, a primeira explorando a alienação disponível de quem não pensa sobre o que está fazendo, a segunda, aproveitando-se do outro rosto da baderna, para invocar policialescamente a “necessidade” de ordem (e progresso). Como, então, discernir a sintomática de base do país, se ela não encontra lugar para dizer sua verdade? Onde o espaço que os próprios brasileiros se concedem para falar e ouvir sobre o que está tão na cara que não se vê, ao passo que os amigos 226
Repensa ndo os trópicos: um retrato intelectual de Gilberto Freyre. Freyre. São BURKE, Peter. Repensando Paulo: Editora da UNESP, 2009, p. 81. 227 senzala. 23ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1984, FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala. p. 5. Em entrevista publicada pelo Boletim Boletim do CFRJ, Roberto da Matta, partindo de seu entendimento teórico do carnaval brasileiro a partir da ideia de ambiguidade ambiguidade – convergente, segundo o antropólogo, com a interpretação de Mikhail Bakhtine –, afirma: “ No “ No Brasil, o ruim r uim são as pontas. O problema não é o ambíguo; é quando aparece o que é completamente definido ideologicamente, politicamente, profissionalmente. Esse é o cara que cria problemas, que vai causar confusão; porque eventualmente ele vai dividir coisas que não deveriam ser divididas. Vai tentar suprimir justamente essa tradição carnavalesca que vive, que se alimenta de vários códigos ao mesmo tempo”. Cf. Boletim Cf. Boletim Maisum Maisum,, nº 50, 09 dez. 1985, p. 2269-2274. ))
estrangeiros, em pouco tempo, percebem e declaram? Ou o preço é alto demais e se prefere viver do investimento, não menos rentável, da mediocridade, ao invés de se produzir e afirmar estilo em em voz e discurso discurso próprios? 228. 29.
O entendimento sobre o “sintoma Brasil” se ampliou, no compasso da produção
teórica de Magno e da crise que lentamente foi se instalando no CFRJ. No IVº Congresso d’A Causa Freudiana do Brasil, realizado em Porto Alegre, sob a direção da instituição psicanalítica Maiêutica, em 1987, forjando novo chiste, desta vez a partir de um sintoma de grande peso no país – a Petrobrás –, Magno proferiu a conferência intitulada “‘Neurobrás’ S #a”229. Mudara o tom da intervenção. Se desde 1981, Oswald fora presença inspiradora, em uma elocução que abria perspectivas de entendimento e, quiçá, de possível alavancagem de uma produção psicanalítica própria no Brasil, sem donos institucionais e em colaboração conceitual e clínica, agora o poeta compartilhava espaço com Anísio Teixeira. Ambos serviam de retaguarda ao diagnóstico explícito acerca do esgotamento das soluções teóricas com que Lacan provera a psicanálise e a concomitante necessidade de pensar tudo de novo, fora do escopo estruturalista e em consonância com a mutação tecnológica, política, cultural, que varria o Planeta. Lacan era “um pensador terminal” 230 e fechara um ciclo. Urgia produzir futuro novamente. Mas a chance do Brasil nessa virada, no tocante à psicanálise, era ameaçada, senão mesmo, sabotada, pelo outro lado da inventividade heterofágica, configurado no que Anísio Teixeira, tomando emprestado de Vianna Moog, apontara como o mazombismo do brasileiro, que, naquelas circunstâncias, representava a atitude de veemente recusa em relação à existência de pensamento próprio em psicanálise no Brasil. Reeditava-se, no campo freudiano, a mesma experiência que a literatura conhecera, acompanhada de atitudes rivalitárias, cujo efeito era a destruição do crescimento à volta, fosse em nível pessoal, fosse em nível institucional. Na conferência, esmiuçava-se o problema, com sua chave de interpretação já indicada no título: o entendimento clínico de que todo processo estacionário (neurose) é impeditivo das possibilidades de existência própria (travessia da fantasia), aplicado à 228
MAGNO, MD. “Conferência de abertura do IIº Congresso da CFB” em Revirão: Revista da Prática Freudiana, Freudiana , nº 3, op. cit., p. 5-21, e republicada em Grande Ser tão veredas [Seminário 1985], op. cit., p. 253-268. 229 Cf. Boletim Maisum Boletim Maisum,, nº 73/74, 1988, p. 3841-3868. 230 Idem. )*
análise do sintoma Brasil, resultava em entender a estagnação dos processos criativos do país (neurobrás) pelo recalcamento de sua produção autóctone, em estilo próprio, conforme um processo de travessia de fantasia (na anotação lacaniana de S #a). Neurobrás era, por isso mesmo, empresa S.A., e não S #a, como “sociedade anônima da neurose nacional” ou sociedade de defesa do sintoma – sua sustentação e denegação. Uma sintomática que explicava o fato de o Brasil não ter conseguido se impor até então (até hoje) diante das demais nações “com um aparelho cultural de sua lavra”, já que o sintoma “não se revê, não se cura ou não se curou a tempo” 231. Desde Freud sabemos que a chamada “neurose” não é senão uma expressão estacionária, compulsória e compulsiva de um aprisionamento entre o alelo dito “histérico” e o alelo dito “obsessivo” 232. Já sabemos que a vigência do recalque sobre a disponibilidade de Revirão significa que a força recalcante está investida para manter excluídos o outro alelo e a própria bifididade. Também vimos que essa é a situação de disjunção do mundo macrofísico, parte integrante do que Freud chamou de princípio de realidade, à qual os neuróticos dão as costas “por considerá-la – no todo ou em parte – insuportável”233. Como isso se aplica ao aprisionamento na alternância entre histeria e obsessividade? A hemiplegia obsessiva consiste em não querer lidar com a disjunção, não querer assumi-la como incontornável e, assim, prover os meios para, por via da disjunção, disjunção, criar outros mundos igualmente disjuntivos, acrescidos, no entanto, de próteses e, por isso, mais ricos em saídas alternativas. Como recalca a realidade disjunta, a hemiplegia obsessiva sofre do retorno do recalcado na disjunção: disjunção: ora é isso, ora é aquilo, nada se adianta, tudo se procrastina, pois se deseja que o mundo funcione sem se pagar o preço, algum preço, qualquer preço, por isso. Assim, como a prova de realidade não conta, “a realidade do pensamento é equiparada à realidade externa, os desejos à sua realização, ao acontecimento” 234. Por outra contabilidade, a hemiplegia histérica obtém o mesmo saldo estacionário. Trata-se da mesma recusa da disjunção, só que, ao invés de alternar a oposição, a histeria opera na ilusão de produzir a concomitância de um lado e de outro da disjunção, sem que se produza, no nível da prova de realidade, alguma saída alternativa. Por recalcar a realidade disjunta, a hemiplegia histérica sofre do retorno do recalcado 231
Idem. inconsciente”, op. cit. Cf. MAGNO, MD. “O halo bífido do inconsciente”, 233 FREUD, Sigmund. “Formulações sobre os dois princípios de funcionamento psíquico”. Em Sigmund Freud, obras completas, completas, v. 10. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 109. 234 Idem, p. 119. 232
*+
obliterando a disjunção: disjunção : tudo se promete em soluções gloriosas, ao mesmo tempo, agora. Duas contabilidades diferentes, a mesma recusa em pagar o preço, o mesmo saldo estacionário, por não se aceitar a quebra de simetria, que declina a bifididade em disjunção. Aplicados o Revirão e sua hemiplegia neurobrás, o que temos? A heterofagia recalcada, que retorna, ora na vertente da imitação, essa “proverbial macaquice do brasileiro”, imitando o que é de fora, ora na vertente do mazombismo, recusando a realidade da condição de brasileiro, não sem tentar, no processo, destruir rivalitariamente o que outro brasileiro faz. É o caso de se perguntar: “O preço é alto demais? Eu lhes direi que é menos financeiro do que cultural. É uma neurose de mazombia (como quem diz neurose de transferência) que encarcera nossa sintomação e nossa fantasia fundamentais no círculo de giz onde rodopia, chiliquento ou compulsivo, esse peru histérico-obsessivo das mazelas nacionais”
235
. Como transformar o S.A. da
sociedade anônima da neurose nacional em S #a da explicitação da fantasia heterofágica, advinda de o país ser “uma verdadeira fantasia de arlequim de pequenos caquinhos de tecidos mais diversos”, que faz do brasileiro o palhaço do Planeta e de alguns brasileiros no Brasil os palhaços que sustentam a criação, sob os olhares de escárnio da nação? 236 Dez anos depois, sob os auspícios da virada planetária da globalização, o tema heterofagia / mazombismo retornou na obra de Magno, com alguns esclarecimentos suplementares importantes. O autor propôs que se distinguisse “sintomática de base” de funcionamento “nosológico” 237 . A primeira diz respeito ao simples fato de haver disjunção e, com ela, processo de decantação sintomática, com sua possível dialetização e transitividade. A segunda remete a processos de estase e de limitação das movimentações do psiquismo, sem condições de dialetização por parte da pessoa ou do grupo que está submetido a suas pressões e imposições.
235
MAGNO, MD. Conferência de abertura do IIº Congresso da CFB, em Revirão: Revista da Prática Freudiana F reudiana,, nº 3, op. cit., p. 17. 236 Fiel a seu estilo irônico e de autogozação, pelo que logra deixar ambíguas seriedade e brincadeira, brincade ira, em abertura de Falatório Falató rio recente, rec ente, Magno, Ma gno, apontando apon tando para pa ra um bibelô de palhaço que q ue pusera à sua frente, declarou: declarou : “este aqui é o meu retrato, feito por p or um artista desconhecido”. desconhe cido”. Cf. Clownagens [Falatório 2009]. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2012, p. 13. Hilda Hilst, em diversos textos desde O caderno rosa de Lori Lamby, Lamby, recorre ao riso e à “bandalheira”, e convoca à invenção de “uma pornocracia, Brasil meu caro”. Cf. HILST, Hilda. Contos d’escárnio: textos grotescos. grotescos. São Paulo: Editora Globo, 2002. 237 MAGNO, MD. Comunicação e cultura na era global [Seminário 1997]. Rio de Janeiro: NovaMente NovaMe nte Editora, Editora , 2005, p. 373ss. *!
Trata-se de uma distinção importante em função da proposição de uma sintomática de base da cultura brasileira, que comparece em nossa história, em nossos comportamentos, não como formações nosológicas, e sim como o que caracteriza um assentamento 238 . É preciso um longo trabalho de análise para destacar, mapear e entender quais são essas formações de base, que soçobraram no processo, como parece ser o caso da preferência brasileira pela heterofagia e a tendência ao que viria a formar o mazombismo, o segundo em perfeito acordo com a primeira em sua vocação de gosto pelo que é outro. Temos, então, assentamentos sintomáticos que podem ser utilizados positiva ou negativamente, no sentido sentido de serem o mediador dos movimentos, espécie de “ponto de conexão de todas as rotas pulsionais, mas que pode ser dialetizado, compreendido, até afetivamente comentado e ridicularizado pelo próprio portador do sintoma, etc., no entanto, lá está como fundação” 239. Contudo, quando tais assentamentos funcionam de modo compulsório, emerge o “síndrome do mazombo” 240, em associação com a formação sintomática heterofágica. Um síndrome é uma combinação de fenômenos de base que, em concurso, se manifestam de tal modo que a presença de um desses sintomas aponta para a possibilidade da presença de outros. No caso do síndrome do mazombo, podemos resumi-lo na fórmula: “o outro mais distante é que é o mesmo e, quando se aproxima, passa a ser de uma alteridade que deve ser dejetada de algum modo” 241. Vale dizer, a identificação tem valor positivo com o outro que está longe, pois, quando está perto, o sinal inverte, a identificação reverte, passa a ter valor desqualificante e se instala uma espécie de autoctofobia, em destituição veemente da produção em estilo próprio e dos brasileiros próximos que se lançam nessa aventura. De alguma forma, o país denega o made in Brazil – não paga seu preço – e prefere continuar no fake in Brazil . Do contrário, se lograsse se desvencilhar de sua pregnância destrutiva, veríamos um sintoma produtivo de ter a competência – pela via heterofágica – de assimilar o knowhow disponível no mundo e constituir existência própria a partir daí. As consequências da vertente histérica do mazombismo são as mesmas, mas seu desenho é diferente, podendo ser capturado na metáfora do “serrar o galho onde está sentado” 242 . Os investimentos autóctones em algum projeto ou dispositivo, seja 238
Idem, p. 377. Idem, p. 379. 240 Idem, p. 359. 241 Idem, p. 360. 242 Idem, p. 362. 239
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intelectual, político, religioso, etc., malogram em crescer, por contrainvestimento dos próprios associados, que, acometidos da macaquice que valoriza o que não é do lugar, passam a destruir por dentro o que mal começaram a construir, sem que haja oportunidade para teste e experimentação por inteiro até o esgotamento e o fracasso. A Causa Freudiana do Brasil foi dissolvida antes ainda que a soma deletéria de seu saldo sobrepujasse a aposta que lhe deu ensejo. Seu último congresso se realizou em São Paulo, no segundo semestre de 1988, sob a direção do CEDP – Centro de Estudos e Desenvolvimento Psicanalítico. A proposta de dissolução foi apresentada por Magno em sua conferência de abertura intitulada “De lenda em lenda”. Mais uma vez, uma dica chistosa, que o autor se incumbia de destrinchar, não sem ironia: teria sido a CFB uma alenda – alenda – como quem diz lacanianamente alíngua alíngua –, como o foram alenda alenda de Freud, alenda de alenda de Lacan, alenda da alenda da Escola Freudiana de Paris, alenda do alenda do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, todas “pequenas ocorrências sintomáticas que naturalmente portam a sua marca estilística, eventos transcritos, que ficam como páginas da história para além de mal e bem, acontecimentos puros e simples”? 243 Mas “de lenda em lenda” não poderia delenda, tanto pelo processo de estiolamento interno da ser entendido também como delenda, própria CFB quanto no sentido de “que se faça uma destruição para outra lenda, que se crie a partir de uma instituição delenda, delenda, outra lenda”?244 De um modo ou de outro, era preciso mudar, pois o momento presente presente já não se mostrava compatível compatível com a descrição teórica pregressa, sobretudo em função da rápida incorporação universitária, de feitio academizante, sofrida pela transmissão do ensino lacaniano, burocratizado nas malhas do didatismo estéril. Então, mais valia “Lacan ser um exemplo de mestria do que seu fechamento em teoria” 245. 29. A delenda não delenda não atingiu apenas a instituição congressual. O CFRJ também
passou por
transformações institucionais, que o levaram, primeiro à dissolução, e depois à assimilação
a
um
modelo
reconfigurado
de
instituição
psicanalítica,
a
UniverCidadeDeDeus, UniverCidadeDeDeus, na década de 1990. Vimos que na criação de uma instituição ligada ao ensino de Jacques Lacan no Rio de Janeiro, em 1975, optou-se pela designação de “Colégio”, com suas razões apresentadas na revista LUGAR, LUGAR, que, por sua vez, se transformava em pólo de 243
MAGNO, MD. “De lenda em lenda”. Conferência de abertura do V Congresso d’A Causa Freudiana do Brasil. Em Boletim Em Boletim Maisum Maisum,, 1989, n. 80, p. 4592. 244 Idem, p. 4604. 245 Idem, p. 4602. *$
publicação da instituição nascente 246. Centrando seu objetivo na psicanálise, orientando “aqueles que querem, no campo aberto por Sigmund Freud, prosseguir no caminho indicado por Jacques Lacan”, o Colégio se propunha “garantir a relação do psicanalista à formação que ela dispensa” 247, ecoando a orientação lacaniana da Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola 248. Nesse documento, Lacan questionava, mais uma vez, o cerne da existência institucional da psicanálise – a formação do analista – e, com isso, a própria possibilidade de haver sociedade psicanalítica. Relembrava, de um lado, o princípio segundo o qual “o psicanalista só se autoriza por si mesmo”, o que não excluía, por outro lado, “que a Escola garanta que um analista dependa de sua formação”. O fato de o analista buscar essa garantia o transformava em responsável pelo “progresso da Escola”, quanto mais pudesse testemunhar de sua própria experiência no percurso de formação, a que a Escola não estaria imune. Ao contrário, dela dependia como fator de transformação e avanço na sustentação da presença da psicanálise no mundo – que Lacan denominou de “psicanálise em extensão” – e na preparação de seus operadores – denominada “psicanálise em intensão”. Dada a formação do analista, o fim da análise e a função da Escola, propunhamse duas formas de inserção do operador psicanalista: o AME ou analista membro da Escola, e o AE ou analista da Escola. O primeiro era o reconhecimento, em que se constituía a garantia dada pela Escola, de se tratar de um praticante que comprovou alguma capacidade e demandou inserção no projeto de trabalho da instituição, mas cujas competências analíticas ainda estariam por ser acompanhadas e testemunhadas. Em outras palavras, “um analista praticante só é registrado nela, no começo, nas mesmas condições em que nela se inscrevem o médico, o etnólogo e tutti quanti”. quanti”. O segundo se encontraria, em tese, em situação de “dar testemunho dos problemas cruciais, nos pontos nodais em que se acham no tocante à análise”. Por essa razão, se tratava de um lugar cuja sustentação ultrapassava a garantia inicial da Escola e ficava na dependência da demanda de direito e de fato do operador em ocupá-lo. Para tanto, era necessário o 246
Cf. n. 67 supra. Primeira modificação dos Estatutos do CFRJ, em 1981. Cf. Boletim Maisum, Maisum , n. 3, 1981, p. 125. 248 O leitor encontra esse texto em LACAN, J. Outros escritos. escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 248-264, e, no original, em Scilicet , n. 1, Paris, 1969. O Boletim Maisum publicou uma tradução tra dução da Proposição da Proposição duas duas vezes, no n. 3, que divulgou a primeira modificação dos Estatutos do CFRJ, em 1981, e no n. 46, quando da segunda modificação estatutária, em 1983. Nossa tradução é um cotejo do original com as duas citadas. 247
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“passe” de analisando a analista, ato que estaria confiado a “passadores”, analistas da Escola, que poderiam responder, por experiência analítica própria, pelo passe. O candidato a analista da Escola, ou seja, aquele que demandava se fazer autorizar como psicanalista da Escola, deveria se dirigir a um dos passadores para falar de sua análise, no confronto analítico do processo simbólico de destituição subjetiva a que uma análise conduz, se e quando levada a termo. O passe implicava considerar a relação transferencial a partir da teoria lacaniana dos quatro discursos, que concebia a transferência a partir do sujeito suposto saber. A porta de passagem, para repetir a metáfora lacaniana, bascularia em função da chance de o sujeito sacar o desejo de “desser” [désêtre [désêtre], ], onde “se desvela o inessencial do sujeito suposto saber”, “porque ele [o analisando] rejeitou o ser que não sabia a causa de sua fantasia no momento mesmo em que, enfim, esse saber suposto, ele se o tornou [ ce savoir supposé, il l’est devenu]”. devenu]”. Lacan lembrava ainda que a proposição implicava “uma acumulação da experiência, sua recolha e sua elaboração, uma seriação de sua variedade e uma notação de seus graus”, que impunha aos envolvidos, sobretudo ao “júri em funcionamento”, “um trabalho de doutrina, para além de seu funcionamento como seletor” 249. A primeira modificação estatutária do CFRJ, em 1981, se orientou pela Proposição de 9 de outubro outubro no no tocante à formação do analista, analista, à garantia garantia do Colégio e ao dispositivo do passe. Daí, a distinção entre “formação em psicanálise” e “formação do psicanalista” como eixo norteador do processo de formação, sem prejuízo para as categorias nas quais os participantes da instituição se distribuíam (correspondentes e membros) 250 . Por formação em psicanálise, compreendia-se a “formação teórica e cultural que o Colégio propõe como fundamental a todos aqueles que desejam laborar no campo freudiano, quer como analistas, quer como participantes de qualquer outra operação discursiva” 251. Já a formação do psicanalista psicanalista se distinguia pela exigência da análise pessoal, da garantia e do passe, conforme os requisitos de suas respectivas comissões de estudo. Ambas as instâncias estariam a cargo do recém-criado Instituto Jacques Lacan (IJL), que disporia de um Instituto de Ensino bem como de Comissões, a 249
O leitor pode acompanhar um detalhado relato dos eventos que promoveram a Proposiçã a Proposiçãoo na Escola de Lacan, a situação de crise vivida àquela altura pela Escola Freudiana de Paris, as apreciações críticas desse texto e as rupturas que se seguiram em ROUDINESCO, Elisabeth. História da psicanálise na França: Franç a: a batalha batalh a dos cem ce m anos, vol. v ol. 2: 1925-1985 19 25-1985,, op. cit., pp. 474495 250 Primeira modificação dos Estatutos do CFRJ, em 1981. Cf. Boletim Cf. Boletim Maisum Maisum,, op. cit., p. 1256. 251 Idem, p. 127. *&
de Garantia e a de Passe, encarregadas respectivamente do reconhecimento dos títulos de AMC ou Analista Membro do Colégio e de AC ou Analista do Colégio. O Estatuto remetia explicitamente o sentido e o valor desses títulos à Proposição Proposição de Lacan, dispondo também sobre as regras que orientariam a formação, renovação, atribuições e modo de funcionamento das duas comissões. Quatro anos depois, o CFRJ optou por diferençar os espaços e os procedimentos institucionais destinados à psicanálise extensiva e à intensiva 252. Isso se refletiu na função do IJL, que passou a se encarregar da tarefa de ensino do Colégio, e na criação da Analítica, órgão doravante responsável pelas decisões institucionais ligadas à preparação do operador psicanalítico, o que implicava conceder aqueles títulos reconhecidos pelo Colégio, renovando-se a orientação apoiada na Proposição. Proposição. As comissões foram reorganizadas em Permuta, Controle, Garantia, Passe e Transmissão, sendo seu modo de trabalho apoiado no dispositivo lacaniano do cartel 253. A articulação ou “nodulação” entre os lugares institucionais, funcionando como mais um, era “suposta realizar-se em torno do LUGAR do Presidente-Reitor-Intercessor, o qual se impõe como Zelador da causa, e como juntor e disjuntor do movimento desejante do Colégio. Para este LUGAR é nomeado o fundador do Colégio na pessoa do Prof. Dr. Magno Machado Dias (ou simplesmente MD Magno)” 254. Esse arranjo durou pouco, dadas as dificuldades surgidas na manutenção de um mínimo rigor de postura na formação do analista proposta na instituição, e seus efeitos se fizeram sentir em nova modificação estatutária, em 1987 255, com repercussões nas Magno realizado no ano seguinte. Na reflexões apresentadas no Seminário De Mysterio Magno realizado quarta modificação dos Estatutos do CFRJ, em 1987, desaparecem o passe e sua comissão, além do título de Analista do Colégio, e é criado o título de Analista Autônomo. As comissões são reformuladas, dando lugar à Comissão de Controle, de Garantia e de Alforria, a primeira responsável pela concessão do título provisório de Analista Praticante (AP), a segunda, pelo título permanente de Analista Membro do Colégio (AMC) e a terceira, pelo título de Analista Autônomo (AA). Esse arranjo 252
Maisum,, n. 46, pp. 2081-2091. Cf. Boletim Cf. Boletim Maisum Esse é outro dispositivo de formação do psicanalista criado por Lacan, apresentado no Ato no Ato de Fundação da Escola Freudiana de Paris em 1964: o trabalho na Escola seguiria “o princípio de uma elaboração apoiada num pequeno grupo”, composto de três a cinco pessoas, “sendo quatro a justa medida, MAIS UM encarregado da seleção, da discussão e do destino a ser reservado ao escritos, op. cit., p. 235. trabalho de cada um”. Cf. LACAN, J. Outros escritos, 254 Boletim Maisum Boletim Maisum,, n. 46, p. 2089. 255 Cf. JORGE, Marco Antonio Coutinho. “Novos estatutos, outros rumos” em Boletim em Boletim Maisum Maisum,, n. 64, 1987, pp. 3147-3153. 253
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guardava relações de exigência recíproca quanto à postura entre os níveis hierárquicos correspondentes, uma vez que todos estavam na dependência de análise pessoal, supervisão analítica com um segundo analista e exposição pública das razões de suas atividades e decisões. Procurava-se, com isso, instalar uma responsividade institucional referida à especificidade da prática clínica, a partir da qual a teoria psicanalítica deveria se articular e renovar, na medida do possível, o que rompia com o formalismo, senão mesmo ritualismo, do passe lacaniano, e evidenciava o atectonismo e a disponibilidade do lugar de analista. Ao mesmo tempo, certas decisões concretas eram necessárias ao funcionamento do processo, colocando à prova o arranjo provisório na hierarquia proposta. O Presidente-Reitor do Colégio assumiu o risco da nomeação arbitrária dos dez primeiros Analistas Membros do Colégio (AMC), declarando publicamente se tratar de seu “pecado original” 256. O risco incluía também intervir diretamente em todas as nomeações para funções estratégicas do Colégio, como a Direção do IJL e os professores membros de sua recém-criada Congregação; Congregação; o exercício da função de mais um (no sentido lacaniano) em todas as comissões da Analítica; a nomeação da primeira composição das Comissões de Controle, de Garantia e de Alforria; a supervisão analítica dos AMC que tivessem AP sob sua supervisão; a nomeação e ocupação do lugar (no sentido da hierarquia) de Analista Autônomo; a aprovação prévia de outras funções no IJL (a composição das diretorias de seus departamentos, por exemplo) e dos nomes designados para os cargos da estrutura administrativa do Colégio (direção, secretaria e tesouraria); por fim, à semelhança das modificações estatutárias anteriores, a ocupação do lugar de Presidente-Reitor do Colégio, que se impunha como “Zelador da Causa”. No Seminário Clínico realizado no segundo semestre de 1988 257, o problema da formação do analista foi longamente l ongamente tratado por Magno como implicado diretamente na clínica – questão que se torna candente “sobretudo no que diz respeito a analistas alistados por uma Instituição” 258 –, além de ser explicitado o que estava em jogo nas modificações concebidas na Analítica, em torno das ideias de controle, garantia e alforria. Depois de lembrar a situação política, além de analítica, das circunstâncias da 256
Informação fornecida por MD Magno. Agradecemos a Gisêlda Santos o acesso a parte do relatório da comissão clínica, onde foi tratada a questão da “Formação Novamente”, com a apresentação de um histórico sobre o tema da formação do analista no CFRJ e na UD, entre 1979 e 2003. 257 Parte integrante do Seminário De Seminário De Mysterio My sterio Magno Ma gno.. 258 MAGNO, MD. De MD. De Mysterio My sterio Magno Mag no,, op. cit., p. 143. *(
concepção e efetivação da Proposição de 1967 na Escola de Lacan, o autor passou em revista sua própria condução do Colégio. Assumiu a imitação do mestre na estruturação da instituição, incluindo “aquela democração exagerada onde vale tudo”, bastando “o sujeito comunicar para ser considerado Analista Praticante”, conforme a “base dissolvente de Lacan naquele período” 259. Reiterou o estatuto mais recente como um “estatuto imperial”, pelo fato de a funcionalidade dos aparelhos institucionais passarem necessariamente por sua aprovação, detendo-se nas razões do modelo proposto. Lembrou da vertente paranoide, comum na existência das instituições, que leva seus participantes a proliferarem supostas críticas ao que nem mesmo se dedicam a indagar para entender, esclarecendo que aquele estatuto fora feito com um raciocínio de organização, que a “imbecilidade militante” insistia, et pour cause, cause, em ignorar, criando um processo de “impossibilidade”
260
. Comunicou que, na verdade, “de maneira
absconsa”, concebera três etapas, cujo primeiro lance somente estava indicado, o prosseguimento dependendo de alguma confiabilidade em relação à sua condução do processo. “Eu não queria dizer o passo seguinte”, esclareceu o autor, “porque, a meu ver, isto prejudicaria o processo. Não prejudica necessariamente, mas se o processo fosse no desconhecimento de seu final, daria uma coerência interna à instituição de votar num determinado caminho e encontrar o seu apogeu, lá adiante, sem ter tido a promessa anterior de certas prebendas que podem parecer interessantes no percurso”, além de ocultar para as pessoas “um nível de disponibilidade que elas deveriam ter espontaneamente espontaneamente no percurso”. De todo modo, o processo, assim mesmo implementado, mostrou sua eficácia, “na medida em que, tendo escondido esses passos, eu tenha provocado certas explosões e certas separações no seio da instituição que, embora me pesem, ao contrário de me serem ingratas, até me são gratas”, pois “aqueles que não estão disponíveis a votar num determinado percurso fazem mais e melhor em estarem longe mesmo, porque inimigo íntimo é pior que inimigo distante” 261. O que estava em jogo na concepção da formação do operador analítico, da função de uma escola de pensamento norteadora desse processo e em suas relações recíprocas, tal como a intervenção institucional – estatutária “imperial” – de Magno pretendera implementar? Em primeiro lugar, uma reelaboração das possibilidades de entendimento da dica lacaniana segundo a qual a psicanálise é a pergunta “o que é a 259
Idem, p. 144. Idem, p. 145. 261 Idem, ibidem. 260
*)
psicanálise” e seu derivado analítico segundo o qual “o analista só se autoriza por si mesmo”. Se o ato analítico é da ordem da solidão radical, indiciando alguma passagem de analisando a analista – a ser eventualmente reconhecida reconhecida por quem possa contar dessa experiência a quem possa ouvi-la –, nem por isso o analista “se autoriza por si mesmo”, ou, por outra, “o analista só se autoriza por sua Escola”, ou seja, “é autorizado por ela” 262
, na medida em que está carimbado por alguma instituição. E isto em dois sentidos:
seja porque o espaço discursivo que arrisca uma resposta consequente e séria (no sentido de que faz série) à pergunta “o que é a psicanálise” constrói paradigma teórico e prático nesse campo, implicando que o analista que nele busque formação possa saber e poder fazer funcionar funcionar tal paradigma, seja porque porque qualquer resposta resposta consequente consequente e séria à pergunta “o que é a psicanálise” pode vir a reformatar uma escola de pensamento, constituindo novo paradigma. As duas razões se aplicaram à situação histórica de Lacan em sua experiência na Escola Freudiana de Paris. De modo similar, a trajetória do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, como alenda – alenda – naquele sentido aludido quando da dissolução da CFB, no mesmo momento em que essas considerações clínicas eram apresentadas apresentadas –, com seu personagem (quase) conceitual, institucional e passional à proa e à prova, mostrava que se tentara a húbrys (em psicanálise não há outra coisa) da criação de um espaço singular, com risco próprio, de clínica e teoria psicanalíticas. Aqueles que estavam envolvidos na construção / destruição do CFRJ estavam também à prova, no mesmo risco e na mesma húbrys, húbrys, ainda que não tivessem atinado para isso (o que não faz diferença específica em psicanálise, apenas chance de entendimento só-depois). Outra coisa muito diferente era confundir criação de Escola com ato de fundação de instituição, cuja chancela estatal burocrática pode permanecer como exclusivo aval de existência institucional, enquanto não houver (de)monstração de pensamento próprio, situação que, prolongada ou tornada hegemônica, nada mais tem a ver com psicanálise. Aliás, algo a se pensar na consideração da proliferação de instituições psicanalíticas, que se intensificou a partir da década de 1980, no Brasil, em geral, e no Rio de Janeiro, em particular 263. Em qualquer caso, a instituição “serve para dar existência, presença, a 262
Idem, p. 146. Esse costuma ser o mote dos trabalhos sobre a história institucional institucional da psicanálise no Brasil: sua narrativa cronológica, contábil e genealógica, à maneira das árvores genealógicas, que tomam de empréstimo o creodo geracional e genético para mostrar linhagens, denegando, no processo, processo , qualquer reflexão sobre a possibilidade possibilidad e de emergência emergên cia ou não de ato poético, cujo advento é da ordem do acontecimento, que salta fora da lógica anterior. 263
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essa Escola, e para formar o grupo que garante que determinado fulano está dentro dessa Escola” 264. O que se concretizou como modificação estatutária dizia respeito ao entendimento do que pudesse ser um Analista Membro do Colégio (AMC) e um Analista Autônomo (AA): o primeiro é autorizado por sua escola, ao passo que o segundo refunde ou rediz (está em condições de fazê-lo e mostrá-lo) uma escola. Assim, “qualquer Escola no primeiro sentido serve para Formação de um Analista se, e somente se, há no seu horizonte a Escola no segundo sentido. Ou seja, a Escola sabe que pode até se dizer ser a psicanálise aqui e agora, mas não sempre. Assim, aquele tal AA, que ela produzirá, é aquele que sonha saber e poder defender a tese de sua Escola publicamente”, a ser mostrada “pela via teórica, como paradigma bem-sucedido; e pela via prática, como cura eficaz” 265. O segundo aspecto do que estava em jogo na concepção da formação do operador analítico, da função de uma escola de pensamento norteadora desse desse processo e em suas relações recíprocas, repousava numa tomada de decisão teórica e clínica sobre o que se poderia entender como hierarquia, a proposta de sua institucionalização rígida e o intento “absconso” de equivocar sua linearidade ascendente. Assim, de Analista Praticante a Analista Autônomo, passando pelo Analista Membro do Colégio, um percurso seria feito, a ponto de dissolver a hierarquia internamente pela mesma via, em reversão, reversão, que a erigira, forçando a emergência de entendimento e postura segundo os quais o nível superior só vale se se demonstra que se é capaz de assujeitamento ao nível inferior. Dito de outro modo e concretamente, a proposta consistia, passo a passo, em construir uma Analítica borromeanamente concebida, onde os AA que existissem (modificando-se, inclusive, o estatuto, com a inclusão de seus nomes) dariam supervisão aos AMC, que dariam supervisão aos AP, que dariam supervisão aos AA, nodulando a hierarquia em uma subtroca, ainda que “perigosa e assustadora para o ego das pessoinhas que ‘lidam’ com a psicanálise” 266. Em suma, nodulação borromeana de um processo infinito de análise, em vez de passe, com a chance de se construir e praticar efetivo controle, entendido como “lugar adequado onde um analista em prática, seja ele neo-praticante, AMC ou o que for, fala da sua análise”, sua análise”, pois é na medida em que “põe em prática sua escuta de outrem que ele exprime o que acontece ou aconteceu em sua 264
Idem, p. 147. Idem, ibidem. 266 Idem, p. 148. 265
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análise”267; rígida e explícita hierarquia, em vez de gradus, gradus, insistindo na primeira, na aposta de que, funcionando com rigor, ela se dissolvesse por si mesma. Por fim, é importante lembrar de um terceiro argumento teórico e clínico que, aparentemente coadjuvante em meio à complexa e difícil situação pela qual passava o Colégio, se mostraria decisivo nos anos subsequentes: a ideia de Clínica Geral. Cada vez mais crítico da suposição de que clínica era o que se passava entre analista e analisando, no formato isolado e “bolorento” do consultório – em que pese sua função necessária como aparelho clínico de cura, incluindo a formação do operador –, Magno também deu a indicação, em seu Seminário de 1988, de que a presença do analista deveria se efetivar em diversas situações no campo da cultura, lembrando que era essa a perspectiva que presidia todas as suas articulações sobre clínica e formação do analista268. Nesse sentido, o momento de generalização que a clínica geral implicava correspondia à efetivação dos modelos estratégicos e práticos elaborados por uma escola de pensamento e os artifício de formação de seus operadores. Se a prática individual era posta à prova pelos dispositivos institucionais de formação, em conjunto, escola e analista/analisando não produziriam eficácia senão como intervenção no mundo, o que exasperava os procedimentos do que Lacan concebera como psicanálise intensiva. Pois não se tratava de disseminar teoricamente a psicanálise na cultura, mantendo a distinção entre isso e o que se fazia efetivamente como análise, e sim procurar os meios de acossar a generalidade do mundo segundo a posição do analista, e não segundo as teorias psicanalíticas, inventando, em cada um dos discursos, a presença daquele que terá passado pela experiência analítica de indiferenciação 269. No momento em que uma tentativa forte de inflexão institucional, como a que acabamos de acompanhar, era explicitada, colhia-se seu fracasso. A estrutura do Colégio foi dissolvida em dezembro de 1990, com a proposta de sua “restrução” 270, orientada tanto pela indicação de “encolhimento e o fechamento” da Instituição, no intento de mais rigor e da seriedade ou “concentração da Clínica Geral”, quanto por sua “expansão e abertura”, visando maior possibilidade de intervenção no mundo ou
267
Idem, ibidem. Idem, p. 123. 269 Cf. MAGNO, MD. Velut Luna: a clínica geral da Nova Psicanálise [Seminário 1994]. 2ª ed. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 270 MAGNO, MD. “Restrução: texto de abertura da 14ª Assembleia Geral do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, realizada em 18 de dezembro de 1990” em Boletim em Boletim Dois Dois,, n. 1, 1991, p. 3-4. 268
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“expansão da Clínica Geral” 271 . Essa guinada fora de certa forma anunciada nos “Comentários prévios à votação dos novos estatutos do CFRJ”, que Magno proferiu em janeiro de 1989, publicados no Boletim no Boletim Maisum Maisum no ano seguinte. Neles diagnosticava o “fracasso da peste” como a situação de degradação em que a psicanálise se encontrava. O próprio Colégio era disso exemplar e seu presidente não se eximia de assumi-lo, ao lembrar da separação de alguns membros da instituição, não em razão de diferenças teóricas ou doutrinárias, e sim de interesses e jogos de poder, que não poderiam ser tolerados, o que o transformava em “co-autor” do acontecimento, na medida em que forçara a situação até se mostrar seus limites. Mas não temia o cerco ou sítio que se criara a seu redor, pois estava “situado”. E prosseguia: “quando digo que estou cercado, é no sentido de que, tendo farejado o encaminhamento dos acontecimentos na cultura com bastante antecedência, chego a concluir que é momento de inserir esses eventos que são pós-lacanianos, do campo da cultura, do saber, nos diversos movimentos de pensamento, na ciência, na filosofia, aqui e ali, em novas posturas, com retorno de certas categorias que estavam meio esquecidas. É preciso com certa urgência inserir tudo isso dentro do campo, mas de maneira a não prejudicar o que é específico da teoria psicanalítica e da prática clínica” 272. Por isso, era necessário, nos anos vindouros, atravessar o marasmo que se avizinhava, com centramento, fechamento e concentração em termos de produção para tentar fazer a nova doutrina falar, pois a década seguinte seria uma “guerra”. E foi efetivamente. Dissolvido o Colégio, se iniciou um longo processo de implantação e realização de um novo modelo institucional, a UniverCidadeDeDeus (UD), para o que Rosane Araújo, empresária e arquiteta de sucesso, foi peça fundamental. Com sua visão de negócio e recursos que generosamente colocou à disposição, foi possível não apenas fazer face às exigências financeiras e materiais de organizar um novo espaço para a instituição, incluindo nova sede física, como também prover o suporte moral e pessoal inestimável a Magno e a seu projeto institucional em renovação. O casarão que passou a abrigar a UD na Cidade de Deus, em Jacarepaguá, foi cedido em regime de comodato: uma propriedade, que havia sido uma antiga sede de fazenda na zona oeste da cidade, com três pisos, amplos salões, diversas salas, contabilizando 2000 m 2 só de área interna, em uma arquitetura sóbria e elegante, com amplos jardins e estacionamento, em um sítio geográfico onde se cruzava o sintoma 271
Idem, ibidem. Boletim Maisum Boletim Maisum,, n. 81+1, 1990, p. 4733.
272
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carioca do convívio entre a favela e a média e alta burguesia da cidade, ali situadas nas adjacências das demais regiões de Jacarepaguá e na fronteira que se abria para a Barra da Tijuca, e de onde partiam vias de alta rotatividade para a zona sul e a zona norte. Foi uma presença que se mostrou decisiva nos rumos da nova instituição, à frente da qual Rosane Araújo, como presidente e co-fundadora, foi incansável em seu trabalho, que tem contado, entre várias iniciativas, na edição e/ou reedição da obra teórica de MD Magno, através da NovaMente Editora, obra que, até o final da década de 1990, permanecia parcialmente inédita e gravada no frágil suporte de fitas magnéticas, em risco iminente de perda definitiva. Magno retirou-se da presidência da instituição, declarando não desejar mais ser mestre de ninguém, por não querer esse tipo de relação. Restava seu lugar de Zelador, inserido estatutária e regimentalmente, de onde emanariam suas opiniões a respeito do que fosse psicanálise e instituição psicanalítica 273. Esta última era concebida como uma “univercidade paralela”, que não daria diplomas, sob o risco de ficar “desmoralizada como toda universidade contemporânea”. Seria um lugar de acolhimento das possibilidades científicas, artísticas, políticas, eróticas, do mundo, e se entrevê aí a clínica geral como princípio de sua criação, no sentido de infletir o discurso psicanalítico de maneira maneira a fazê-lo avançar avançar na cultura. Quanto à teoria, o autor lembrava que tratava-se apenas de uma ferramenta, e não preceito religioso, a ser considerada rigorosamente, como condição para se verificar, a cada vez e a cada caso, “se é ela que está errada ou seu meu trato com ela é que está mal-feito”. Do mesmo modo, uma instituição, em sua regragem, também é uma ferramenta, dependendo de aposta em sua mera operatividade. Em suma, “um jogo experimental” que deveria ser “bem seguido de maneira a testá-lo”
274
. Estavam
lançadas as condições para por à prova, em outras circunstâncias, o que havia sido conjeturado no encerramento da CFB: “que se faça uma destruição para outra lenda, que se crie a partir de uma instituição delenda, delenda, outra lenda”.
273
MAGNO, MD. “Uma ferramenta...” (transcrição de trechos da fala proferida por ocasião da apresentação da nova estrutura do CFRJ em 28 de fevereiro de 1991) em Boletim Dois, Dois, n. 3, fev. 1991, p. 91-97. 274 Idem, p. 92. !+$
31. Freud
sugeriu que a filosofia pudesse se estimular na psicanálise, tornando-se ela
própria tema de pesquisa psicanalítica 275 . Isto, porque, além de sua tecnicalidade conceitual, teorias e sistemas filosóficos são elaborados contando com as relações da disposição constitucional de uma pessoa e dos acontecimentos de sua vida, que estão computadas, de alguma maneira, nas realizações abertas a ela, em virtude de seus dons peculiares. O trabalho lógico, por abstrato que seja, está sobredeterminado pelo temperamento ou predisposição oriundos de gostos, escolhas estéticas, influências, vicissitudes familiares, culturais, históricas, que empurram a pessoa para um estilo e modo de pensar e raciocinar em detrimento de outros. As variações desse temperamento são praticamente infinitas, mas é possível discernir algumas escolhas que configuraram mais a sintomática de base de uma teoria ou sistema do que outras. Ora, essas considerações não se aplicam apenas à filosofia, mas também à psicanálise em sua construção construção teórica 276. Assim, por exemplo, a reformulação do campo freudiano proposta por Jacques Lacan carregou a marca de sua descendência francesa cartesiana, além da herança da filosofia continental, notadamente Hegel e Heidegger, encontrando no centramento do sujeito, na heterogeneidade do registro corpo-alma e na transcendência divina os pontos em relação aos quais era necessário marcar a operação do inconsciente, que deslocava, equivocando, as suposições de certeza embutidas nesses postulados. Donde o sujeito como intervalo significante, a nodulação borromeana entre real, simbólico e imaginário e o Outro barrado, propostas teóricas que Lacan pôde formular, ao fazer seu “retorno a Freud” por via de problemas pertinentes aos repertórios filosóficos a que teve acesso e que mais explorou. Sucessivamente compareceram e foram, aos poucos, dispensados, a divisão dialética da consciência para formular o desejo alienante e alienado (Hegel); o Dasein e Dasein e seu papel crítico das visões naturalizantes do homem (Heidegger); a consciência e suas provas de certeza rachadas pela equivocidade estrutural decorrente do pensamento inconsciente (Descartes), para citar os mais conhecidos 277. Ao fim e ao cabo, a obra lacaniana acolheu, desconfigurou mainstream do pensamento ocidental, despojando-o de suas remanescências e esgotou o mainstream do
275
O interesse científico da psicanálise [1913] em Obras completas. completas. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2012, v. 11. 276 MAGNO, MD. SóPapos. SóPapos. Sessões de 12 e 26 de maio de 2012. Inédito. 277 BORCH-JACOBSEN, Mikkel. Lacan: le maître absolu. absolu. Paris: Flammarion, 1990; JURANVILLE, Alain. Lacan Alain. Lacan e a filosofia. filosofia . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987. !+%
psicológicas, graças ao escantilhão freudiano de que nunca abriu mão. Lacan, portanto, “é um pensador terminal” e encerra um ciclo 278. A Nova Psicanálise foi edificada a partir desse legado e não seria possível sem ele, mas com a visão voltada para a frente. Algumas “antenas parabólicas” captaram os ventos da mudança, ainda na década de 1960, a exemplo de Marshall McLuhan, mudança cujo vetor tecnológico, desconfigurante, pulverizador, não-humano, nãolinguístico, foi apontado por outras antenas parabólicas da geração seguinte, como foi o caso de Magno. Talvez sua educação monteirolobatiana tenha contribuído para a disponibilidade de sondar a realidade e enxergar o que não se via, sem deixar de dizer seriamente as “asneiras” que lhe ocorriam, à maneira da boneca Emília. Talvez a mistura tão característica da cultura brasileira tenha fornecido a essa antena parabólica competências de captura não-oficiais e não-oficializantes, deixando-a fora do sintoma perimetral da auctoritas auctoritas dos saberes. Talvez sua formação científica, ao escapar do positivismo tecnocrata com o qual conviveu na escola militar, tenha contribuído para a curiosidade de acompanhar os avanços nas pesquisas nos diversos campos de saber, sempre supondo que a disjunção da realidade incita a mais e mais conhecimentos, ao invés de limitá-los. Talvez a atitude herética da criança que mastigava a hóstia para saber se sangrava a tenha livrado a tempo da neurose larvar de acreditar no transcendente além-mundo como verdade da disjunção, mas nem por isso deixando de refletir sobre o pathos pathos religioso que acomete a espécie (humana), acossada por uma “hipótese Deus”279. Talvez a sorte de gozar da presença de excelentes brasileiros tenha se somado à intuição do estudante universitário que, empolgado pela existência de um Villa-Lobos no país, conjeturava se “talvez necessitemos ser mais nós mesmos” e “incentivar e conhecer nossas próprias realizações”, o que o levou a tentar entender, no
278
Vimos essa afirmação de Magno ser proferida na conferência de abertura do IV Congresso d’A Causa Freudiana do Brasil, em 1987. Pouco depois, um alentado estudo de Jean-Claude Milner mostrou quase axiomaticamente que a “obra clara” de Lacan culmina em sua “desconstrução” a partir da década de 1970, em função de impasses teóricos tributários do próprio questionamento questionam ento levantado por Lacan, L acan, mas que q ue não nã o puderam pud eram ser abordados a bordados a tempo. tem po. Cf. MILNER, Jean-Claude. L’oeuvre Jean-Claude. L’oeuvre claire: Lacan, La can, la science, s cience, la philosophie philosop hie.. Paris: Seuil, 1995. 279 Dado o movimento imanente da pulsão, a cada vez reiterado pela impossibilidade impossibilidade de transcender Haver, a experiência de exasperação aí colocada torna inarredável uma “hipótese Deus”. É em razão dessa posição gnômica de extremação de um conhecimento absoluto de Haver dado para cada um que a Nova Psicanálise pode acolher as manifestações do psiquismo no campo das religiões, com a decadentização de um transcendente nomeado, que as tradições monoteístas, por exemplo, chamaram de “deus”. Cf. MAGNO, MD. “Psychopathia sexualis” [Seminário 1996]. Santa Maria, RS: Editora da UFSM, 2000, p. 181-203. !+&
Seminário dedicado a Anísio Teixeira, por que, afinal, “há de ser sempre a cultura brasileira sustentada pelo espólio dos dos linchados?” 280 Quaisquer que sejam as respostas – pois especular sobre as confluências de uma obra é um exercício que se aplica a qualquer caso de criação, considerados os elementos estilísticos lá presentes –, o fato é que os problemas a serem formulados nas agendas dos conhecimentos saltaram de nível e isso ficou evidente a partir da década de 1980. A começar pelo paulatino entendimento sobre a “quebra de fundamentos” das certezas epistemológicas, políticas, artísticas, formulado via querela do pós-moderno nas duas décadas anteriores. A falência anunciada era consentânea com os questionamentos emergentes, que optavam pela navegação entre Cila e Caribdes, mas sem considerar as novas formas do estranho e do disruptivo como monstros a serem evitados, e sim como partes de uma “escuta poética da natureza”, que é simultaneamente o “processo natural nela, processo aberto de produção e invenção, num mundo aberto, produtivo e inventivo” 281. A Nova Psicanálise, como vimos, buscou diálogos com searas gnoseológicas que, por obrigação de protocolo, já não podiam mais se sustentar nos escaninhos epistemológicos e disciplinares característicos do século XX. Programas de pesquisa como os das ciências cognitivas e seu pool “interdisciplinar” (inteligência artificial, linguística, neurociências, psicologia cognitiva e epistemologia), que tiveram alavancagem nas últimas décadas, não poderiam tê-lo feito sem uma atitude de mínima convergência de saberes, que, diga-se de passagem, ainda precisa avançar muito em termos de constituição de um novo paradigma do conhecimento 282. No caso da psicanálise, a intuição freudiana quanto às bases simultaneamente somáticas e psíquicas do inconsciente sempre deixaram a porta aberta para a inclusão de pressões sintomáticas filogenéticas da espécie humana na constituição de uma sintomática individual, mesmo que não houvesse condições laboratoriais de acompanhamento disso. O mesmo vale para a proximidade, que Freud nunca abandonou, com os estudos do cérebro, concebendo, inclusive, a ideia de trilhamento ( Bahnung Bahnung ) cerebral para acolher as informações que obtinha em seu laboratório psicanalítico sobre o fenômeno da repetição sintomática, provavelmente ligada a 280
MAGNO, MD. Pedagogi MD. Pedagogiaa Freudiana Freudian a [Seminário 1992], op. cit., p. 123. metamorf oses da ciência. ciência. PRIGOGINE, Ilya e STENGERS, Isabelle. A nova aliança: metamorfoses Brasília: Editora da UnB, 1991, p. 226. 282 SANTOS, Boaventura de Souza. Introdução Introduçã o a uma ciência pós-moderna pós-mode rna.. Rio de Janeiro: Graal, 1989. 281
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alguma facilitação que se inscrevera, primeiro, como caminho sináptico (modo de elaborar em conformidade com a neurologia de sua época). O cruzamento dessas intuições ganhou forma conceitual na pulsão de morte, carreador simultâneo das moções do vivo e do não-vivo. Quanto a Lacan, a atualização do pensamento freudiano (como quem diz atualização de um programa ou aplicativo) procurou distinguir sua especificidade diante de outros campos de saber, como a biologia ou mesmo a física, por via de apropriações feitas ao campo da linguística e da antropologia estruturais. Ao conceber o simbólico como único capaz de recortar o que havia de pertinente ao falante na ideia de pulsão, avançou a compreensão de que o sujeito do inconsciente era marcado por uma falta, razão pela qual o eu (moi ( moi)) não poderia ser reduzido jamais às suas imagens biológicas de adaptação. Algo no homem não se enquadrava no cenário natural, pois estaria marcado por uma perturbação essencial, que era o desejo, de modo que o simbólico mostrava o fracasso do princípio do prazer em sua função eminente de ser princípio de constância, de alguma maneira ligado à homeostase do vivo. Como o sujeito do inconsciente não se confunde com o indivíduo, sendo algo diferente de um organismo que se adapta, tal como o behaviorismo, por exemplo, se encarregara de descrever, não havia uma marca que, de partida, situasse o ser humano no seio de suas relações, definindo-o como individualidade, unidade, coesão ou evocando-o como um espelho da natureza, em harmonia com ela. Ao contrário, pela tópica RSI, algo estruturalmente dado no homem – o Simbólico, a linguagem – o colocava em regime de diferença pura, ainda que inevitavelmente entrelaçada com a relação Imaginária que os falantes estabeleciam com outros sujeitos e objetos, reduzindo a diferença à semelhança, e onticamente ancorada no Real, motu motu insistente acéfalo a lembrar o horizonte do impossível. Um caminho para acompanhar a bifurcação a que a Nova Psicanálise foi levada é considerar o que está em jogo na paráfrase chistosa que Magno faz de um dos enunciados fundamentais do pensamento lacaniano: “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”. Afirma o brasileiro, brincando com a homofonia do original em francês (“l’inconscient est structuré comme un language”): “o inconsciente é estruturado como se o engaja” ou “L’inconscient est structuré comme on l’engage” 283. Como a
283
É preciso lembrar que a teoria lacaniana do inconsciente não produziu claramente uma definição de linguagem, oscilando entre uma abordagem a partir da estrutura como ordem !+(
hipótese do Revirão exigiu uma lógica catóptrica, de vocação plerômica, em lugar da lógica do significante, de vocação simbólica derivando para o sintoma corporal, as formações do inconsciente, doravante entendidas como formações do Haver, ganharam novo escopo, seja em seu desenho específico do vivo (Primário), seja em sua competência de transcrição de formação para formação (Secundário), o primeiro sendo subvertido pela função enantiomórfica da mente (Originário), cuja funcionalidade desfigura o entorno por acréscimo de informação igualmente bífida (advinda do Secundário). Essa reformatação foi argumentada, mostrada, didatizada, metaforizada, de diversas maneiras nos Seminários realizados nos anos 1980 e 1990, através de interfaces gnoseológicas estratégicas, como o foram o diálogo com a ideia de autopoiesis de Humberto Maturana e Francisco Varela, que questionavam a suposta autonomia do significante linguístico, pois concebiam conhecimento e linguagem como fenômenos complexos em relação direta com as determinações do vivo 284. Ou a aproximação com a teoria das catástrofes, do matemático René Thom, que permitiu especular sobre as lesões e trilhamentos cerebrais como análogas à facilitação orográfica das formações 285. Ou a atenção dada aos fenômenos de “flutuação e bifurcação” da física de Ilya Prigogine, que enriqueceu a concepção da Mente como sistema caótico passível de entrar em regime de flutuação, que, levado à “quase” morte térmica, se recompõe ao tomar uma bifurcação 286. Ou a concepção de um inconsciente “fractal”, na esteira das pesquisas sobre caos e fractalidade, concebendo concebendo de maneira abrangente e abstrata as formações do Haver, como infinitamente grandes e pequenas para todos os lados, sem que saibamos quais são suas conexões 287. O autor teve oportunidade de apresentar parcialmente alguns desses resultados no evento Cenários Brasil 2020 – Workshop Cultural , promovido pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, realizado em Brasília, em 1997 288. simbólica e sua dispensa em favor da apropriação da língua como sintoma, de que o conceito de alíngua é seu rastro. 284 My sterio Magno M agno [Seminário MAGNO, MD. De MD. De Mysterio [Seminário 1988]. Rio de Janeiro: aoutra editora, 1990, p. 108-114. 285 Idem, p. 30-43. 286 Idem, p. 103-107. 287 MAGNO, MD. Comunicação e cultura na era global , op. cit., p. 37. 288 Também participaram do evento Ângela Maria Dias (ECO/UFRJ), Gilberto de Mello Kujawski (bacharel em direito e mestre em filosofia pela USP e colaborador do Jornal do Jornal da Tarde e de O Estado de São Paulo), Paulo), José Miguel Wisnik (professor de literatura brasileira da USP, musicólogo e músico); Luiz Sergio Coelho de Sampaio (lógico, membro da Academia !+)
Esses são alguns exemplos que apontam para um inconsciente não linguístico, e sim plerômico, pois as formações engatam e são engatadas – “se engajam” – conforme a espontaneidade artificiosa do Haver, aí incluído o Primário do vivo, e o artificioso fabricado por competência de Revirão, ou seja, o Secundário, que tem na língua um de seus indícios, em meio a uma franja infinita de formações. A língua desliza e avessa não porque seja estruturalmente significante diferencial, e sim porque é utilizada por uma formação que porta o Revirão. Logo, a operação por excelência que caracteriza o humano não é a operação metafórica de substituição significante, e sim a terceira instância bífida, que torna possível avessar o binário da língua. Tarefa, aliás, do poeta. “Se o mundo fala carne, madeira, pedra, está falando a linguagem. E é ternário, também. Se o cachorro é binário, ele pertence ao mundo que é ternário, vai no empuxo disso. O Haver fala ternário e não podemos confundir sua fala com a fala binária de suas modalidades (...). é a isso que chamo de Significante. Significante. É a isso que chamo mesmo de: A linguagem. Para Lacan, não há linguagem, há línguas. Ele só trata dos fenômenos sintomáticos que encontra. Estou dizendo que A linguagem não diz nada, é apenas a estrutura que, mediante furo, me permite circular”289. Em suma, não é mais possível abordar os fenômenos sintomáticos a partir da suposição de que o significante, como elemento constitutivo do inconsciente, age separadamente e à revelia do indivíduo, como se significante e significado fossem duas redes que não se recobrem. Ao contrário, não há diferença de natureza entre os registros r egistros operativos do inconsciente, como propôs Lacan com seu Real, Simbólico e Imaginário; é preciso ir além, depois de incluir o o corpo como sintoma consubstanciado em alínguas e na linguisteria 290, e propor outra razão de entrelaçamento entre o vivo e a emergência de competência simbólica, fora da suposta excepcionalidade humana do registro Brasileira de Filosofia); Renato Janine Ribeiro (professor de filosofia da USP). Em Cenários Brasil 2020 – Workshop Worksho p Cultural – Brasília, 08 de outubro de 1996 . Palestras e debates transcritos a partir de gravação. Acervo do CFRJ. 289 MAGNO, MD. Arte MD. Arte & Fato, Fato, op. cit., p. 159. Como exercício heurístico, veja-se a diferença de entendimento entre essa perspectiva e a que orientou o Lacan estruturalista, para quem “pensar é substituir aos elefantes a palavra elefante, elefante, e ao sol um círculo. Vocês se dão bem conta de que entre essa coisa que é fenomenologicamente o sol – centro do que corre no mundo das aparências, unidade de luz – e um círculo, há um abismo. E mesmo se o franquearmos, que progresso progress o há sobre a inteligência inteligênc ia animal? Nenhum. Porque o sol não vale nada. Só vale na medida em que esse círculo é colocado em relação com outras formalizações, que constituem, com ele, o todo simbólico no qual tem seu lugar, no centro do mundo, por exemplo, ou na periferia, periferi a, pouco importa. O símbolo só vale se se organiza num mundo de símbolos”. Em LACAN, Jacques. O Seminário, Livro I: Os escritos técnicos de Freud . Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p. 256-7. 290 LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20: Mais, ainda, ainda, op. cit. !+*
simbólico e da circunscrição exclusivamente mental ou psíquica – no sentido lacaniano dos registros RSI – do inconsciente. Daí, a proposição de uma nova tópica do recalque, que considera o Primário como autossoma e etossoma, junto com seu lastro mimético para a performance do Secundário, que, por sua vez, é já lesão cerebral e cultural indistintamente, restando prover as provas laboratoriais desse engatamento, incluindo a demonstração da inscrição cerebral Primária da enantiomorfia catóptrica da mente 31. As
291
.
questões fundamentais para o acerto da lente de conhecimento nas próximas
décadas precisarão recompor as principais teses sobre a linguagem e abandonar a ou Freud ou Darwin, ou Darwin, em troca de uma perspectiva de convergência. A tese alternativa ou Freud da linguagem como estrutura simbólica entrou no campo freudiano pelas mãos de Lacan e contribuiu para discernir aspectos formais importantes da performance cultural e linguística da espécie (ainda que na contramão epistemológica da biologia). Mas é preciso também considerar o papel da morfogênese e da filogênese fil ogênese da espécie humana na emergência de linguagem, entendida como uma competência cerebral de base, como o fez a gramática gerativa de Chomsky, sem que seja preciso supor, junto com o linguista norte-americano, que, uma vez disponível, a linguagem torna-se um fato de cultura, já pouco ou quase nada sofrendo em termos de influência biológica. Para tanto, é
fundamental
aprofundar
os
estudos
em
neurociências,
retrospectiva
e
prospectivamente, prospectivamente, pois tanto é válida a hipótese de um cérebro evolutivamente apto à linguagem, demonstrável a partir de seus fundamentos neurais (cruzando funcionalidade cerebral sob a égide de uma sistema-espelho neuronal com som, gesto e mímica para explicar a emergência de linguagem) 292, como é válida a perquirição da estrutura e funcionalidade cerebrais a partir do conjunto dos circuitos de neurônios-espelho e seus cruzamentos com outros circuitos para explicar a complexidade global de performance
291
Uma via promissora desse caminho investigativo são as pesquisas em neurônios-espelho, como o demonstra, por exemplo, o trabalho do neurocientista indiano V. S. Ramachandran. Para um histórico dessas pesquisas e suas interfaces com a Nova Psicanálise, cf. ALONSO, Aristides. “Os neurônios-espelho neurônios-espelho e a mente-espelho da Nova Psicanálise” Psicanálise” em TranZ: Revista de Estudos Transitivos do Contemporâneo Contempo râneo,, n. 2, 2007, disponível em www.tranz.org.br; para o trabalho de Ramachandran, cf. RAMACHANDRAN, V. S. O que o cérebro tem para contar: desvendando os mistérios da natureza humana. humana. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. 292 ARBIB, Michael. “From monkey-like action recognition to human language: an evolutionary framework for neurolinguistics”. Em Behavioural Behaviou ral and Brain Sciences Science s (2005) 28, 105-167. Agradeço a Patrícia Netto pelas conversas esclarecedoras que tivemos sobre essas questões. !!+
da espécie293. Por fim, a questão é decifrar a natureza dessas conexões – quase nada sabemos sobre elas –, de modo que se possa demonstrar a inscrição Primária de uma função catóptrica cerebral e, junto com ela, as lesões do Secundário como simultaneamente cerebrais e simbólicas/culturais, de modo a abandonar de vez o paradigma separatista nature x nurture nurture e partir para a conexão entre este cérebro catóptrico global que habita o Planeta e a própria estrutura catóptrica do Haver, mediante a postulação do real neutro e indiferente. A convergência nas pesquisas sobre mente precisará produzir a convergência com as pesquisas em Cosmologia física 294. Enquanto isso, por via da Teoria das Formações, a Nova Psicanálise trabalha para conceber uma Gnômica ou Metapsicologia do Conhecimento Conhecimento que, partindo de uma postura “amazônica” 295 – modo de metaforizar em brasileiro a atitude de convergência gnoseológica, da mesma maneira que as várzeas, regatos e braços de rios vão cumulativamente desaguando no rio Amazonas e, daí, para o mar –, acolhe como conhecimento o que quer que se diga ou se articule, pois as formações são conhecimento anotado. Parte-se do próprio conhecimento como resultado da transa de formações, com o que se dispensa os artefatos de exclusão produzidos pelas epistemologias, a começar pela pretensão filosófica de estabelecer a distinção entre o que é e o que não é conhecimento e de regrá-los pelas figuras epistemológicas epistemológicas do sujeito e do objeto296. Essa teoria do conhecimento é gnômica porque gnóstica, no sentido de prezar e sustentar uma atitude de abordagem das formações de maneira a insistir no 293
Para Ramachandran, “o santo graal da neurociência, quer estejamos estudando memória, percepção, percepç ão, arte ou consciência” consciên cia” é entender entende r “como neurônios codificam codifica m significado e evocam todas as associações semânticas de um objeto”. Cf. O que o cérebro tem para contar , op. cit., p. 89. 294 Esse argumento é extraído de um SóPapo recente de Magno, de 05 de julho de 2014 (ainda inédito) e procura, com risco próprio, dar exemplos da linha de raciocínio lá apresentada. Para o autor, depois da convergência de investigações de longa data sobre hipnose, transferência, sexualidade, patologias mentais psiquiátricas psiquiátricas e psicológicas, etc., na obra freudiana, assistimos à difração do legado de Freud, no século XX, disperso em teorias psicanalíticas, psicológicas e psiquiátricas, psiquiátric as, lado a lado com as pesquisas sobre cérebro (em muitos momentos, em franca e tola rivalidade com a psicanálise e vice-versa). Nas próximas décadas, precisaremos abandonar os raciocínios de exclusão que opuseram os campos e práticas de conhecimento para alcançar uma segunda convergência, que faça afluir os resultados das pesquisas sobre mente, incluindo prova laboratorial laborator ial da funcionalidade funcionali dade catóptrica catóptric a do d o cérebro, cérebro , com co m as pesquisas em cosmologia, cosmologia , o que proveria um concerto entre vivo, mente, inteligência artificial, vida artificial, estrutura homogênea da “matéria”, quebra de simetria das partículas por decaimento quântico, os universos conhecidos e desconhecidos e o princípio antrópico. 295 MAGNO, MD. AmaZonas MD. AmaZonas:: a Psicanálise Psica nálise de A a Z , op. cit. 296 MAGNO, MD. Ad MD. Ad Rem: primeira introdução in trodução à gnômica ou metapsicologia metaps icologia do conhecimento conhecim ento [Falatório 2008], op. cit. !!!
acrescentamento do conhecimento como condição pessoal de possibilidade de se virar no mundo. É uma postura que se afasta das discussões históricas e filosóficas sobre a gnose, para postular tão somente que há conhecimento absoluto como apreensão imediata do real, experiência de presença ou Haver, que é imediatamente cada um saber sua solidão, sua condição de estranho radical ao mundo, dele separado e sem álibi. O conhecimento absoluto causa os movimentos de conhecer, isto é, o conhecimento modal, que é possibilidade tética, em qualquer nível de construção, apresentação, articulação ou proposição. Vê-se, por essa via, a colocação estratégica segundo a qual o que quer que se diga ou se articule é da ordem do conhecimento, pois “não há o que não seja formação e não há o que não seja conhecimento” 297. Para refinar a distinção entre os dois níveis de conhecimento, absoluto e modal, propõe-se a hierarquia entre Haver e Ser, com o que se quer indicar a dependência de todos os modos de conhecer (Ser) em relação ao Real, como respostas possíveis e provisórias à condenação condenação de Haver. Ora, o interesse psicanalítico pelo conhecimento é em função de sua tarefa, que é a clínica, pois uma análise é um processo infinito de conhecimento, sem genitivo (de si, do outro, do mundo), sendo, por isso mesmo, análise das formações e suas metamorfoses. Nesse sentido, um longo trabalho de elaboração e reformulação do entendimento das afecções psíquicas ocupou a obra de Magno, em um percurso que buscou abstraí-las de sua história social-jurídico-médico-psiquiátrica social-jurídico-médico-psiquiátrica e da perspectiva lacaniana de “estruturas clínicas”, em prol de raciocínios os mais abstratos possíveis voltados para a anotação e a compreensão das formações e seus vetores. Assim, se a tópica do recalque é Primário (1Ar) $ Secundário (2Ar) $ Originário (Or), cabe à psicanálise a análise das formações secundárias de uma Idioformação enquanto supostamente patológicas ou patéticas, articulando o Secundário a suas relações e bases necessárias no Primário e à sua geratriz Originária 298. Coerente com a Teoria das Formações, por via da Gnômica, as afecções psíquicas são consideradas genericamente como morfoses, morfoses, abordáveis através de uma Patemática, Patemática, que considera as pressões vetoriais entre as formações. Etimologicamente morphosis morphosis é ação de dar uma forma, como vemos nos vocábulos anamorfose ou metamorfose, por exemplo, e advém de morphé, morphé, que significa forma. Trata-se, portanto, de descrever as formas de gozo, em vista de suas metamorfoses, em duplo sentido: entender as morfoses como uma espécie de metadiscurso e acompanhar como as 297 298
Idem, p. 29. MAGNO, MD. Ars MD. Ars Gaudendi: Gaud endi: a arte a rte do gozo go zo [Falatório 2003], op. cit., p. 76. !!#
formações são metamorfóticas, podendo transitar de uma para outra
299
. A proposição de
uma Patemática evoca a tradição lacaniana dos matemas para insistir em que não se trata trata de proposições discursivas transmissíveis integralmente por sua suposta matemização, e sim de anotações mínimas de acompanhamento vetorial dos avatares gozosos de uma Idioformação de carbono e água, que padece originariamente de desejar reverter o mundo em seu contrário enantiomórfico, até o Impossível absoluto de nãoHaver, no caminho exsudando próteses, que podem se hipostasiar ou não. Na Patemática, portanto, confluem os lastros semânticos do pathetikos, pathetikos, pathetiké, pathetiké, pathetikon: pathetikon: o patético, o emocionante, o impressionante, o sensível. Trata-se pathos: os gostos, as emoções, os sofrimentos, o que se experimenta, a prova, a do pathos: experiência, o acontecimento, o infortúnio, a paixão. É também o pathos lógikos, lógikos, pois as afecções experimentam graus variáveis de enfermidade, relacionadas ao pathé, pathé, pathés, pathés, isto é, ao estado passivo, ao sofrimento, à aflição, inclusive por se carregar um corpo, sendo propriedade dele esses estados de pathé. pathé. Por isso, é pathema é pathema,, pathematos, pathematos, pois trata-se de enfermidade, aflição, desgraça e todo evento que afeta o corpo ou a pathetos, pateta, patético, muito sofrido. Então, se há alma, nos lançando em estado pathetos, simplesmente pathesis pathesis – aflição física ou psíquica –, podemos dizer que o axioma Haver desejo de não-Haver denota uma Pathesis Universalis, Universalis, pois Haver sofre de querer não-Haver e disso decorrem as aventuras do gozo 300. A concepção de uma anotação mínima da morfologia do gozo obedece, como indicamos, a uma lógica vetorial, no sentido de acompanhar como as psicomorfoses – isto é, as formações (secundárias) supostamente patológicas de uma Idioformação – transitam e se metamorfoseiam ou tendem a se estiolar e hipostasiar. São propostas quatro modalidades: progressivas, estacionárias, regressivas e tanáticas. Cada uma delas guarda uma reversibilidade intrínseca a seu movimento vetorial, podendo ser uma afecção positiva, que parte do sim, sim, ou negativa, que parte do não não.. Isso, para fazer a ressalva de que a inscrição afetiva inconsciente é bífida, neutra, indiferente, e é tratada, só depois, como partida em positiva e negativa. Do mesmo modo, para cada posição reversível positiva ou negativa, temos também uma alternância entre ativo e reativo. Outra ressalva: não se trata de atividade e passividade, e sim do entendimento de que ou a posição psíquica se caracteriza mais frequentemente pela moção de capturar, comover diretamente as formações, ou essa posição é re-ativa, no sentido de se 299
Idem, p. 168. Idem, ibidem.
300
!!$
caracterizar mais frequentemente pela moção de atrair para si as co-moções das formações. Assim descrito, parece que não há configuração concreta sintomática a ser analisada, mas é isso mesmo: mesmo: a ideia é destacar formações genéricas que suportem a leitura a mais abrangente possível de formações de conteúdo. Outra referência importante para a clínica é a tese da sexualidade como gosto, gosto, em sua máxima abrangência fractal, o que resulta na compreensão das psicomorfoses estética, antes ainda de se configurar como como primeiramente inscritas de forma estética, pathos logikós l ogikós.. As inscrições sexuais de gosto em sua base estética são chamadas de 301
fundações mórficas
e atestam as vicissitudes do gozo em relação com os gostos
(positivos e negativos) advindos do Primário. Ora, a aplicação imediata dessa posição clínica é dispensar toda a história e a semântica social, jurídica, policial, psiquiátrica ou moral da ideia de perversão perversão e abordar as moções psíquicas de gozo, procurando analisar, entender e acompanhar o entrelaçamento das fundações mórficas da Pessoa com as relações de força das formações secundárias. Assim, por exemplo, as morfoses progressivas (o que a tradição nosológica denominou de perversão) são formas de gozo que carreiam seus interesses gozosos para a frente, sem sofrer bloqueios recalcantes, seja pela face afirmativa da afecção, seja por sua face f ace negativa. Trata-se de uma insistência de gozo, que apresenta vários graus de efetivação, indo do lúdico envolvido em todo projeto afirmativo – das brincanagens sexuais do repertório singular da Pessoa à concepção de uma cosmologia causa de si, si, como é o caso do pensamento de Espinosa – ao compulsório da legiferação do mundo a partir de uma fundação mórfica, também legiferante para a pessoa por ela afetada, à maneira de um imperativo categórico de cepa kantiana. Aliás, Lacan, ao refletir sobre o que poderia ser a “estrutura perversa”, compreendeu o imperativo categórico kantiano como sendo congruente com o imperativo sadiano do “tenho o direito de gozar do seu corpo e o exercerei, sem que nenhum limite me detenha no capricho das extorsões que me dê gosto de nele saciar” 302. Acrescentemos ainda que Gilles Deleuze supôs que o par sadismo / masoquismo se explicava por uma disjunção que lhe seria constitutiva, quando, na verdade, se expressam como “S/M: Revirão”, sendo necessário ter sutileza artística ou musical para “escutar” de que maneira a expressão do gosto e do gozo oscila entre uma morfose progressiva positiva no polo da atividade (sadismo) – posição de co-
301 302
MAGNO, MD. Pedagogi MD. Pedagogiaa Freudiana Freudian a [Seminário 1992], op. cit. LACAN, Jacques. Kant Jacques. Kant com Sade Sade.. Em Escritos Em Escritos,, op. cit., p. 776-803. !!%
mover diretamente as formações – e uma morfose progressiva positiva no polo da reatividade (masoquismo) – posição de provocar a co-moção para si por via re-ativa 303. Quando consideramos a reversão da morfose progressiva positiva, temos uma contribuição valiosa desta teoria para o entendimento do sintoma. Pois, diferentemente das tradições nosológicas que tratam a fobia como avesso da neurose, a Nova Psicanálise considera as moções fóbicas como morfoses progressivas em sua face negativa,
ou seja, a fobia é insistência no gozo sem bloqueio de recalque, mostrando a
face negativa da progressão. Quanto às morfoses estacionárias, já vimos um exemplo na hemiplegia aplicada à “neurobrás”. O movimento é estacionário, na medida em que o recalque funciona para impedir a movimentação psíquica ,
de maneira positiva ou negativa.
No primeiro caso, trata-se de uma afecção que diz sim à sim à disjunção, obliterando-a, para fantasiar obter tudo ao mesmo tempo – a “proverbial macaquice do brasileiro”, que quer sê-lo imitando o outro. No segundo caso, trata-se da afecção de dizer não não à à disjunção e sofrer de viver opositivamente, saltando entre o ‘agora isso’, ‘agora aquilo’, ‘mas nem não às isso’ e ‘nem aquilo’ – o lado mazombo que diz não às circunstâncias autóctones, mas também não não às às moções autóctones que dão prova de realidade de que é possível ser Brasil heterofagicamente. A distinção que acompanhamos entre “formações de base” e “formações nosológicas” para melhor entender heterofagia e mazombismo também se inscrevem na Patemática, embora tenham sido originalmente propostas em um momento do percurso conceitual em que o entendimento vetorial das formas de gozo ainda convivia com distinções de nomenclatura entre “neurose”, “psicose” e “morfose”304. Mas o princípio se mantém: é preciso distinguir entre fundações mórficas e suas bases estéticas, de um lado, e o estiolamento das formas de gozo por processo de reificação compulsória, de outro. As morfoses regressivas são o terceiro caso da Patemática e inscrevem o que as nosologias antigas identificavam como “psicoses”. Como nas modalidades anteriores, parte-se da afirmatividade genérica das fundações mórficas para acompanhar as resultantes de seu entrelaçamento com o processo Secundário. Nesta terceira 303
O “S/M: Revirão”, junto com “A monstruosa progressão” e “A ciência de Sade” são sessões do Seminário “Psychopathia sexualis” em sexualis” em que Magno desenvolve uma série de considerações sobre a obra sadiana, passando ao largo da interpretação lacaniana e deleuziana. Para esta última, cf. DELEUZE, Gilles. Sacher-Masoch: o frio e o cruel . Rio de Janeiro: Zahar, 2009. 304 MAGNO, MD. O sexo dos anjos: a sexualidade humana em psicanálise [Seminários 19861987]. Rio de Janeiro: aoutra editora, 1988. !!&
modalidade, sua característica vetorial é a expressão da forma de gozo sob efeito de um hiper-recalque, o que denota um processo de hipóstase da afecção psíquica,
com a qual
a pessoa lida lida como se fosse fosse uma formação do Primário. A morfose é chamada de regressiva, pois o que há de regressivo é o fato de o Secundário ser tratado como Primário.
Ora, temos aqui outra contribuição clínica advinda do laboratório de
observação da Nova Psicanálise: diferentemente do que o protocolo estruturalista levou pai, a abordagem de Lacan a supor em torno da psicose como foraclusão do nome do pai, Magno, por ser homogeneizante e vetorial, considera as forças recalcantes na morfose regressiva em um grau suficientemente elevado para que a afecção psíquica só encontre modo de expressão em um mimetismo hipostasiado do Primário. Tomemos como exemplo a oscilação hetero e homo homo nos nos discursos da sexualidade. Ela é, de saída, uma elaboração do Secundário, pois as sexualidades são performances, discursos, estilos, que transam, incluindo a anatomia como mais um elemento na composição das preferências de gosto. Assim, na morfose progressiva e estacionária, as sexualidades costumam encontrar embates e equacionamentos estéticos, artísticos, discursivos, afetivos, que também se expressam por vias secundárias, o sexo anatômico não sendo uma prova inarredável a favor ou contra o desejo em questão, pois as transas são articuladas no nível da disponibilidade secundária. Já na morfose regressiva, as moções de gozo contrárias ao discurso vigente ao redor r edor são tratadas como se fossem impossíveis de comparecer. Continuando com o exemplo da oscilação hetero e hetero e homo homo,, isso significa que a força recalcante é tão veemente que não há a opção de transar a sexualidade como escolha. Sua realização é formulada como se só fosse possível, virando em seu oposto no Primário. Primário. É o caso de Daniel Paul Schreber, cujas Memórias de um doente dos nervos serviram de base para o texto freudiano “O caso Schreber” 305. O juiz-presidente da corte de apelação de Dresden lidou com sua homossexualidade desejada como se, para realizá-la, fosse irrevogável ser mulher no Primário e, Primário e, com isso, transar com Deus, outra formação de vocação hiper-recalcante, consoante as hipóstases produzidas pelos discursos religiosos. A morfose regressiva se articula, portanto, em torno da retroação sintomática de uma formação secundária ao Primário, como se fosse mesmo, mesmo, com possibilidades muito remotas de dialetização, donde a ideia vetorial, como direção, sentido e força aplicada, de hiper-recalque. 305
SCHREBER, Paul-Daniel. Memórias Paul-Daniel. Memórias de um doente doe nte dos nervos ne rvos [1903]. Rio de Janeiro: Graal, 1984; FREUD, Sigmund. “O caso Schreber” [1911] Schreber” [1911] em Obras completas. completas. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2010, v. 10. !!'
Por fim, as morfoses tanáticas, que expressam de maneira mais eloquente o desejo de desaparecimento, sob as mais variadas formas de melancolia, exigindo, como nas outras modalidades de morfose, escuta abstrata para acompanhar as sutilezas de suas manifestações, muitas vezes mescladas com outros interesses de gozo. Quem já não experimentou e até proclamou alguma vontade de morrer ? Resta saber como a economia dos investimentos libidinais se articula, a cada caso e a cada vez. Uma última dica para o leitor acompanhar com mais subsídios a leitura dessa série de conferências. A concepção de uma nova tópica do recalque implicou pensar que as formações sintomáticas obedecem a uma ordem implícita implícita no percurso de suas resistências e relativizações. Se, por um lado, nossa especificidade é a competência de reviramento, singularidade de Haver em regime de indiferença e afastamento radicais em relação a qualquer formação comparecente, por outro, sua emergência no seio da construção biológica que conhecemos – esse Primário da ordem do vivo, com complexidade autossomática e etossomática – acaba por podar-lhe essa mesma função originária de pleno Revirão. A máquina indiferenciante convive e é recalcada por construções lateralizadas, demarcadas, parcializadas, sistemicamente organizadas no sentido de preservar sua existência. Assim, está dado um modelo espontâneo de funcionalidade, resistência e fechamento para as formações: o nível Primário de recalque. Quando nos apoiamos no funcionamento em Revirão, produzimos Secundário – formações artificiosas que não portam um lacre, um selo espontâneo – , mas que igualmente se decanta, seguindo imitativamente o modelo fechado do Primário. Se é assim, os acontecimentos que incidem sobre a espécie (humana) não estão nem completamente soltos nem colocados em qualquer ordem. Há uma hierarquia forçada pela própria disponibilidade das formações do Haver: Primário, Secundário e a disponibilidade do Originário. Donde a proposição de um creodo antrópico. A palavra creodo é um neologismo cunhado pelo embriologista e geneticista britânico Conrad Waddington em meados meados do século XX para configurar sua hipótese de que a plasticidade e a canalização são propriedades das redes genéticas. Vale dizer, a capacidade de ajuste em resposta a diferentes condições (plasticidade) e a estabilidade diante de perturbações genéticas e ambientais (canalização) são importantes quando se consideram as mudanças evolutivas não do ponto de vista de genes individuais, e sim de uma rede de interações, onde se entrecruzam dados relativos à maneira como essa rede é construída, aos limites impostos à sua estrutura, à sua robustez ou flexibilidade. Waddington retratou esses processos como uma paisagem complexa de colinas e vales !!(
com muitas ramificações, descendo de um platô muito alto, e a denominou “paisagem epigenética”: nela “o platô representa o estado inicial do óvulo fertilizado, e os vales são as vias de desenvolvimento que levam a estados finais específicos, como um olho funcional, um cérebro ou um coração” 306. O matemático René Thom se apropriou do neologismo do creodo para conceber uma “teoria das catástrofes” que, na verdade, é uma espécie de abordagem metodológica ou “um tipo de linguagem que permite organizar os dados da experiência nas condições as mais diversas” 307, aplicável a raciocínios genéricos de descontinuidade que podem se apresentar na evolução global de um sistema qualquer. A ideia de catástrofe corresponderia, assim, aos pontos de clivagem ou de inflexão que desenham momentos de ruptura nos processos sociais, linguísticos, físicos, de engenharia, etc. A abrangência heurística dessa ferramenta conceitual se aplica ao problema de como determinado fenômeno atinge um vértice de funcionalidade e decai para outra função ou sofre um salto para outra variável. Ora, quando a Nova Psicanálise – tomando de René Thom a ideia de creodo como reflexão abstrata sobre os pontos de inflexão de um sistema, tendo por trás o vislumbre de Waddington sobre os processos de pressão ou canalização dos caminhos de desenvolvimento genético – propõe um creodo antrópico a antrópico a partir da ordem implícita do recalque, isso significa que as Idioformações, em seu encaminhamento sintomático abstrativo, necessariamente passam passam do Primário ao Secundário para atingir o Originário, dada sua vocação para o excessivo. Percorrer o caminho não é obrigatório, mas se houver movimentação, o macrotrilhamento morfológico – no sentido da teoria das formações – é Primário (1Ar) $ Secundário (2Ar) $ Originário (Or). Trata-se, portanto, do entendimento do processo sintomático do deslocamento de qualquer Idioformação, que está necessariamente constituída de formações primárias e secundárias. É um esquema de inteligibilidade que leva em consideração que: 1) há formações; 2) o advento dessas formações (como simetrias quebradas) enrugam o tecido homogêneo do Haver em (aparentes) descontinuidades; 3) essas descontinuidades são atratoras de outras formações, em um sistema que está subdito, contudo, a pontos de colapso que “apagam” momentaneamente essas rasuras (real bífido do Revirão). 306
Evoluçã o em quatro dimensões d imensões:: DNA, comportamento comporta mento JABLONKA, Eva e LAMB, Marion. Evolução e a história da vida. vida. São Paulo: Cia das Letras, 2010, p. 84. 307 THOM, René. René. Paraboles et catastrophes. Entretiens sur mathématiques, la science et la philosophie realisés par p ar Giulio Giorello Gio rello et Simona Simo na Morini. Paris: Pa ris: Flammarion, Flammar ion, 1980, p. 59. !!)
Considere, leitor, que as referências de vínculo das Pessoas são primárias, secundárias e a originária. As Pessoas podem (costumam) transitar entre elas com maior ou menor facilidade, de maneira dinâmica, podendo se situar hegemonicamente no mundo a partir de qualquer dessas referências, incluindo a bipolaridade de se situar a partir da oscilação entre uma e outra. Acrescente Acrescente ludicamente a pregnância pregnância de esquemas esquemas narrativos religiosos em nosso percurso ocidental como metáfora para esse périplo cultural e você disporá de uma eficaz máquina de clínica geral: Os Cinco Impérios, que, no creodo, seguem a série de Amãe, Opai, Ofilho, Oespírito, Amém. Mas não vamos lhe tirar o prazer de acompanhar a explicação pelas mãos do autor. Assim como esperamos que, com as indicações que fornecemos, você possa tirar o melhor proveito dessas Conferências Simplórias Simplórias sobre um pensamento nada simplório, e sim brasileiramente solerte.
Este texto é parte de pesquisa em andamento, com apresentações parciais de seus resultados sob forma de minicursos, palestras em reuniões acadêmicas, publicações publicaçõ es online ou em e m cd-rom, desde d esde 2010. Nelma Medeiros Me deiros é é Professora adjunta do departamento de filosofia (UFRRJ). Mestre em história (UFF) e doutora em filosofia (UFRJ). Pesquisadora do “ ...etc.: Estudos Transitivos do Contemporâneo” (GP/CNPq).
Conversa com Poti em agosto 2015: - criação do primeiro grupo / nomeação das pessoas do cartel - Magno grego - Magno produção artística
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