domínios e fronteiras
fernanda mussalim anna christina bentes organizadoras
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introdução à lingüística domínios e fronteiras
EDITORA AFILIADA
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Introdução à linguística : domínios e fronteiras, v. 2 / Fernanda Mussalim, Anna Christina B entes (orgs.) - 4. ed. - São Paulo : Cortez, 2004
Vários autores. ISBN 85-249-0773-8 1. Linguística I. Mussalim, Fernanda. II. Bentes, Anna Christina.
01-0664 _______________________________________________ CDD-410
índices para ca tálogo sist emático: 1. Linguística 410
fernanda mussalim anna christina bentes
organizadoras Ângela Paiva Dionísio • Ari Pedro Balieiro Jr. • Edwiges Morato Ester Mirian Scarpa • Fernanda Mussalim • Joana Plaza Pinto Marina Célia Mendonça • Roberta Pires de Oliveira
introdução à lingüística domínios e fronteiras Vo lu m e 2
4a edição
INTRODUÇÃO À L1NGÜÍSTICA: domínios c fronteiras, vol. 2 Fernanda Mussalim e Anna Christina Bcntes (Orgs.) Capa: Studio Graal Preparação de srcinais: Elisabeth Santo Revisão: Dirceu Scali Jr. Composição: Dany Editora Ltda. Coordenação editorial: Danilo A. Q. Morales
RIBLIOTECA
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Doação
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Data C om pr a
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Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização expressa dos autores e do editor. © 2000 by Organizadoras Direitos para esta edição CORTEZ EDITORA Rua Barti ra, 317 - Perdizes 05009 -000 - São Pau lo - SP Tel.: (11) 3864-0111 Fax: (11 )38 64-42 90 E-mail:
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Impresso no Brasil - setembro de 2004
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O homem senti u sempre — e os poetas freqüent emente cantaram — o poder fundador da lingua gem, que instaura uma sociedade imaginária, ani ma as coisas inertes, faz ver o que ainda não exis te, traz de volta o que desapareceu. Étnile Ben ve ni ste \
SUMÁRIO Apresentação.........................................................................................................
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Sírio Possenti
Introdução..............................................................................................................
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Fernanda Mussalim Anna Christina Bentes
1. SEMÂNTICA..................................................................................................
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Roberta Pires de Oliveira
2. PRAGMÁTICA...............................................................................................
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Joana Plaza Pinto
3. ANÁLISE DA CONVERSAÇÃO...................................................................
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Angela Paiva Dionísio
4. ANÁLISE DO DIS CURSO............................................................................. 101 Fernanda Mussalim
5. NEUROLINGÜÍSTICA................................................................................... 143 Edwiges Morato
6. PSICOLINGÜÍSTICA..................................................................................... 171 Ari Pedro Balieiro Jr.
7. AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM ................................................................... 203 Ester Mirian Scarpa
8. LÍNGUA E ENSI NO: POLÍTICAS DE FECH AM EN TO ........................... 233 Marina Célia Mendonça
SOBRE OS AUTORES
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APRESE NTAÇÃO Prefaciar um livro como este que o leitor tem em mãos não é uma tarefa que se cumpra facilmente. Por duas razões, principalmente. Em primeiro lugar, não é obra de autor, ou seja, sendo uma coletânea, não se trata de um livro que possa ser atribuído a uma pessoa, caso em que os prefácios dedicam parte de seu espaço para celebrar o autor, não necessariamente para comentar o livro. Em segundo, porque se trata de uma obra contendo textos sobre Lingüística, desti nada de certa forma à sua divulgação, ou, dito de outra maneira, destinada a propiciar uma introdução não-trivial a um campo de saber já veterano, mas p ara muit os com pletamente desconhecido. O livro trata de temas bastante conhecidos nos meios mais ou menos especial massenada — eu disse “nada” ,anão disse “poucopor” — conhecidos nos meiosizados, que não dedicam especificamente essas questões, mais que elas l hes sejam afetas. Este po dería bem ser o caso dos críti cos literários, antro pólogos, sociólogos, cientistas políticos, psicólogos, e mesm o psicanalistas. Os estudantes que chegam à universidade repetem e confirmam a situa ção: eles não têm a men or familiaridade co m as questões m ais banais às quais se dedica a Lingüística, a despeito de longa experiência escolar com manifesta ções variadas e relevantes de linguagem, e também de alguma experiência, freqüentem ente do lorosa e quase sempre inútil, com gram áticas (semp re e s ó as normativas). Este é um fato curioso, sobre o qual se deveria meditar. Todos conhe cem, mesmo os que se devotam apenas ao campo das humanidades, e mes mo às letras, alguma coisa sobre relatividade, big bang e universo em expansão, DNA e clonagem. No m íni mo. À s vezes , equivocad am ente, é ver dade, a ponto de confundirem a relatividade de Einstein com o relativismo
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de suas convicções... De qualquer forma, nos campos da Física e da Biolo gia, faz tempo que a escola e a imprensa diária ultrapassaram Newton e Mendel. Mas nunca — se houver pelo menos um caso, me avisem — ultra passaram, nem escola, nem imprensa, nem mesmo o ensaísm o dos finais de semana, muito menos as colunas que agora assolam a mídia, os limiares das gramáticas normativas exceção são as menções a um texto de Jakobson sobre(aasúnica funções da linguagem) quando acansativas questão são as línguas. Ouvir o comentário de um intelectual ou de um jogador de futebol sobre a questão é exatamente a mesma coisa. Ora, tais gramáticas estão para a Lingüística mais ou menos como Galileu está para a Física Moderna, isso se considerarmos de maneira otimista e genero sa apenas os tópicos nos quais discutem a organização interna da língua e sua eventual relação com o mundo, que é o caso da herança filosófica das gramáti cas. Quanto ao mais, a atitude é meramente normativa, pré-baconiana nos me lhores casos, e manual de etiqueta — ruim — nos piores. O melhor testemunho desse atraso é o sucesso de pseudoprofessores nos meios de comunicação, que nada mais fazem do que repetir materiais do nível das apostilas dos cursinhos, com listas de “problemas” de uso do português falado julgado à luz da língua escrita. Faça o leitor a suposição de que os programas e as colunas sobre músi ca, teatro e economia sejam do mesmo calibre, e o atraso saltará aos olhos ainda mais claramente. Em resumo: Lingüística é uma coisa de que ninguém ouviu falar. Daí a relevância de um livro como este. Mas há mais razões. Outra observação sobre um certo atraso, outra justificativa para a publica ção deste livro: quem já ouviu falar de Lingüística (isso se vê na imprensa e às vezes em departamentos avançados) supõe que ela se resume à arbitrariedade do signo, às relações paradigmáticas e sintagmáticas (quando a coisa é sofisti cada, menciona-se outra dupla saussuriana, sincronia e diacronia). Freqüentemente, as introduções à Lingüística — disciplina obrigatória nos cursos de Le tras — não ultrapassam essa leitura mais ou menos festiva de Saussure, feita em algum manual, ou em apostila, que ninguém é de ferro. Assim, este livro se justifica plenamente, e por uma só razão, embora ela tenha sentidos diferentes em diversos domínios sociais. O que justifica este livro é sua capacidade de produzir uma certa ruptura. No caso dos intelectuais vizinhos, o efeito podería ser o da atualização mínima. Seria importante, por isso mesmo, no entanto, que não buscassem no livro ferramentas para seu traba lho. Para isso, as introduções aqui apresentadas não serviríam, pois se trata de introduções. Mas ninguém espera que façam as categorias da Lingüística aqui oferecidas em embrião render em seus trabalhos. Poderiam instruir-se, apenas,
APRESENTAÇAO
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mesmo que fosse para conversas em recepções. Já está na hora de não se ouvirem mais imprecações grosseiras sobre erros de português, avaliações de baixíssimo nível sobre a pronúncia desta ou daquela região, preconceitos ridículos — se não fossem socialmente excludentes — a respeito da linguagem corrente, quer se trate de fala popular, quer se trate de línguas de menor prestígio, especial mente quandoque issoo se devenão a peculiaridades (que nãonão se sediga mais, por exemplo, chinês tem sintaxe, sóestruturais porque sua frase organiza como a do francês). Até porque essas avaliações, feitas supostamente de algum patamar elevado, depõem muito mais sobre a ignorância de quem as faz do que sobre a suposta deficiência dos produtores dos fatos lingüísticos comentados. Um segundo nível de ruptura em que este livro pode atuar é em relação ao estudante de Letras. É o que mais importa. De fato, nada é mais necessário do que eliminar o suposto saber do aluno de colegial em relação aos fatos lingüísticos. primeiro lugar, a ruptura precisa realizar-se atéque mesmo em relação ao que Em sejam fatos lingüísticos. E✓ mais ou menos sabido os fatos não se oferecem graciosamente ao estudioso, que cada teoria de certa forma decide sobre eles — quais e como são, quais os mais e os menos relevantes etc. Nesse domínio, duas questões são essenciais: que o estudante se tome capaz de ver como fatos os casos de variação; em segundo lugar, que perceba que há pesquisa possível em língua — ou melhor, que faz er pesquisa a propó si to de língua não equivale a consultar gramáticas e dicionários para verificar o que neles consta e o que não consta neles. Essas são apenas as primeiras rupturas. Talvez as mais necessárias. Mas, além disso, cabe verificar minimamente o quanto são ricos e estão sendo cada vez mais enriquecidos novos campos. Por exemplo: pode-se dizer com certeza que um texto não é uma soma de frases, que propriedades como coesão e coe rência têm dimensões bastante objetivas, por um lado, mas relacionam-se com domínios que se poderiam dizer interdisciplinares, por outro. Assim, mesmo sem poder-se dizer que se atinge o patamar da “objetividade” nesse domínio, pode-se dizer com certeza que a categoria decisiva já não é o (bom ou mau) gosto do leitor. O que se pode dizer do texto vale para outros tantos campos relativame recentes: as novidades relacionadas a questões postas pelo estudo do discurso, pela Psicolingüística, pela Neurolingüística, pelos novos problemas (e novas propostas de saídas) que a Lingüística propõe ao professor e educador são sufi cientemente desafiadoras. O livro deixará claro a seu leitor o quanto a linguagem é um campo de experiências riquíssimas, quer se trate de abordar os aspectos relativos ao que
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INTRODUÇÃO A LINGUÍSTICA
se podería chamar de seus problemas estruturais (Fonologia, Morfologia, Sintaxe), quer se trate de tematizar suas relações com outros campos de saber. Ou com o mundo, que só conhecemos, de fato, ou que tentamos conhecer, por meio da linguagem — de alguma linguagem. Sírio P ossenti
INTRODUÇÃO A Lingüística, nos dias de hoje, conta com uma vasta bibliografia de estudos no campo, desde textos mais introdutórios até textos de grande especificidade e aprofundamento. Os textos introdutórios já existentes são, sem dúvida alguma, bastante esclarecedores. O que justificaria, então, a orga nização de uma obra como esta, que se propõe a introduzir o leitor nos estudos da Lingüística? Nosso propósito na organização desta obra é o de preparar o terreno concei tuai para contatos posteriores com materiais que analisem o fenômeno da lin guagem com um maior grau de detalhe e aprofundamento, além de tomar aces sível, para leitores iniciantes ou não-especializados em Lingüística, as relevan tes abordagens sobre o fenômeno da linguagem. No intuito de realizarmos tal à Lingüística: domínios propósito, concebemos os dois volumes de Introdução e fronteira s, buscando aliar os seguintes aspectos: a) uma apresentação ger al e gradual da s principais áreas da Lingüística no Brasil; b) uma amostra de como as diversas áreas abordam os fatos de linguagem; c) uma linguagem acessível. Com base nesses três aspectos, procuramos organizar os capítulos de for ma a conferir uma certa unidade à obra . Assim, de um modo geral, os capítulos estão constituídos da seguinte maneira: (i) histórico da área; (ii) bases epistemológicas da área; (iii) diferentes vertentes da área; (iv) análise de dados. No entanto, em função da especificidade de cada área e do próprio estilo e visão de cada autor com relação ao campo apresentado, os capítulos conferem um peso diferenciado aos aspectos acima citados.
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Com relação à ordem dos capítulos, não optamos pela apresentação das disciplinas seguindo a perspectiva clássica, que perscruta o fenômeno da lin guagem partindo dos níveis mínimos de análise em direção aos níveis superio res. Optamos por oferecer ao leitor a possibilidade de inicialmente enxergar o fenômeno lingüístico como um fenômeno sociocultural, fundamentalmente he terogêneo e em constante processo de mudança. Entendemos que, assim, pode mos lhe promover uma entrada mais significativa no terreno das necessárias e esclarecedoras orientações teóricas formais sobre a linguagem humana. Iniciamos o volume 1 desta obra com o capítulo de Sociolingüística (par tes 1 e 2) porque essa área, na tentat iva de compreTender a questão da relaçã o entre linguagem e sociedade, postula o princípio da diversidade lingüística. Além, disso, a Sociolígüística increve-se na corrente das orientações teóricas cgntextuais sobre o fenômeno lingüístico, orientações teóricas estas que consi deram as comunidades o ângulo dasmanifestam regras de linguagem, mas tambémlingüísticas sob o ângulonão dassomente relações sob de poder que se na e pela linguagem. O capítulo de Lingüística Histórica é apresentado na seqüência, enfocando os processos de mudança das línguas no tempo. Essa seqüência se justifica por que mudança e variação lingüística encontram-se estreitamente relacionadas: se há mudança lingüística é porque, em algum momento anterior, ocorreu o fenômeno da variação. Sendo assim, esperamos que estes primeiros textos pos sam esclarecer para o leitor dois dos mais importantes pressupostos da Lingüís tica moderna: que todas as línguas variam e que todas as línguas mudam. Em seguida, começam os a explora r as áreas que fazem parte daquilo que é tradicionalmente concebido como a descrição gramatical das línguas naturais. Os capítulos de Fonética , Fonologia, Morfologia e Sintaxe possuem a tarefa de introduzir as perspectivas teóricas e metodológicas que constituíram a Lingüís tica como uma ciência autônoma e com um objeto de estudo próprio, ao longo do século XX. Em contato com esses capítulos, o leitor terá a oportunidade de escrutinar o fenômeno lingüístico em seus diferentes níveis e, também, de ter acesso a um olhar predominantemente formalista em relação às línguas natu rais. Em outras palavras, nesses capítulos, o leitor estará entrando em contato com abordagens que propõem um número restrito de princípios firmes e segu ros que são utilizados na construção positiva do conhecimento das línguas e da faculdade de linguagem. Finalizamos o primeiro volume com o capítulo de Lingüística Textual. Essa área, que tem como principal interesse o estudo dos processos de produ ção. recepção e interpretação dos textos, reintegra o sujeito e a situação de co-
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municação em seu escopo teórico. Esse movimento faz parte de um esforço mais amplo de construção de uma Lingüística para além dos limites da frase. Iniciamos o volume 2 apresentando a área da Semântica, que tem como objeto de estudo a questão do significado e/ou dos processos de significação. Esse foi um tema sempre presente em outros lugares de construção do conhecimento, tais como a Lógica, a Retórica, a Filosofia e, mais recentemente, a Semiótica, a História, a Antropologia e as Ciências Cognitivas, o que nos sinaliza para o fato de que este objeto “transbo rda as próprias fronteiras da Lingü ística” e nos coloca na posição de ter de enfrenta r as discussões sobre as relações entre linguagem e mundo, linguagem e conhecimento. Os capítulos de Pragmática, Análise da Conversação e Análise do Dis curso, que são apresentados na seqüência, podem ser definidos, de maneira geral, como aqueles que, a partir de pressupostos teóricos diferenciados, estabelecem relações com a exterioridade da linguagem, problematizando a separação entre a materialidade da língua e seus contextos de produção. Para tanto, essas áreas também mobilizam saberes advindos de outros campos, tais como a Filosofia da Linguagem, a Antropologia, a História, a Sociologia, a Psicanálise, e as Ciências Cognitivas, proporcionando ao leitor diferentes olhares em relação às formas de construção dos sentidos, de nossa subjetividad e/alteridade e de nossa historicidade. %
Com o capítulo de Neurolingüística, continuamos o nosso percurso pelas áreas que, pela natureza das indagações que fazem, são constituídas fundamentalmente por teorias lingüísticas e por teorias advindas de outros campos do saber. Em outras palavras, “as fronteiras que delimitam os objetos de estudo destas áreas são instáveis, movediças”. Os capítulos de Neurolingüística, Psicolingüística e Aquisição da Linguagem se distinguem dos outros e se aproximam entre si por necessitarem da articulação de saberes produzidos, principalmente, na Lingüística, na Psicologia e na área de Neurociências, para que sejam respondidas as questões elaboradas em seus respectivos campos sobre as relações entre linguagem e cognição, linguag em e cérebro, enfim, sobre os diferentes modos pelos quais os sujeitos adquirem, organizam e reelaboram o conhecimento. O último capítulo deste volume, Língua e ensino: políticas de fecham ento, tematiza as contribuições que alguns importantes pressupostos teóricos constru ídos pela ciência da linguagem ao longo do século XX podem d ar para o ensin o. O capítulo apresenta as diferentes concepções de gramática que norteiam as práticas pedagógicas, além de problematizar as atuais práticas de leitura e de produção de textos na escola, proporcionando ao leitor um olhar crítico em
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relação aos processos de “homogeneização e silenciamento dos sujeitos”, tão em curso nas instituições escolares. Essa explicação sobre a disposição dos capítulos na obra não tem o objetivo de impor uma leitura linear. Dependendo dos seus interesses e de suas questões, o leitor poderá elaborar a sua própria ordem de leitura.
Introdução à Lingüística : domínios e fronteiras é fruto de um trabalho coletivo, resultante de uma verdadeira cooperação entre nós, organizadoras, entre as organizadoras e os autores, entre os autores e seus diversos interlocutores, entre nós e as pessoas que acompanharam mais de perto o projeto ao longo desses três anos, e entre nós e os editores. Esta experiência de constante diálogo nos foi extremamente valiosa e prazerosa. Esperamos que nossos leitores também se beneficiem da estimulante “atmosfera” de reflexão sobre a linguagem propiciada pelo trabalho de cada um dos autores desta obra. autores e autoras, agradecemos o entusiasmo que por se engajaram neste Aos projeto intelectual, a tolerância às longas conversascom teóricas telefone e às propostas de intervenção em seus estilos pessoais de escrita e pelos textos em si, que se constituem em brilhantes contribuições para o entendimento da ciência da linguagem e de seus tão diversos e fascinantes objetos. Agradecemos a Sírio Possenti pela gentileza em prefaciar esta obra, colaborando, com seu conhecimento sobre a linguagem e sua experiência como pesquisador e professor, para que este projeto alcançasse o bom nível que alcançou. Agradecemos também à Ingedore Koch que, com sua reconhecida autoridade e competência, nos presenteou com um texto de apresentação para a capa desta obra. Gostaríamos de deixar público o nosso reconhecimento aos professores Angel Mori, Aryon Rodrigues, Edwiges Morato, Erotilde Pezatti, Ester Scarpa, Helena Brandão, Ingedore Koch, Jairo M. Nunes, João Wanderley Geraldi, Kanavillil Rajagopalan, Luiz Antônio T. Marcuschi, Sírio Possenti e à pesquisadora Helena Britto, por suas leituras atenciosas, que contribuíram de forma decisiva para a concepção e organização de alguns capítulos desta obra. Temos também o prazer de reconhecer que, nestes tempos difíceis para a universidade brasileira, ainda existem espaços institucionais que proporcionam as condições para que um projeto dessa natureza seja passível de ser executado. Assim, agradecemos ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, por ser umia espécie de confortável “lar” acadêmico, onde tivemos a oportunidade de aprender que uma formação sólida pode e deve estar aliada a compromissos políticos mais amplos.
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A evolução deste livro tem um débito especial para com Edwiges Maria Morato, nossa companheira nesta jornada intelectual, por ter participado das inúmeras discussões sobre a organização dos capítulos, pelas leituras perspica zes e construtivas de alguns deles e por nos ter sempre incentivado, com sua amizade sólida, com seu brilhantismo e com seu compromisso com níveis ele vados de instig ação, a acreditar que valia a pena. Gostaríamos ainda de agrade cer a Ivana Lima Regis, por sua amizade e por ter sido uma interlocutora espe cial em todos os estágios deste trabalho, e a Marcelo Lemos Silveira, pelo apoio e companheirismo. Esperamos que este livro possibilite ao leitor vislumbrar a ciência da lin guagem. Evidentemente, não tivemos a pretensão de esgotar as discussões que são feitas atualmente nas diferentes áreas apresentadas. Ao contrário, Introdu ção à Lingüística: domínios e fronteiras propõe-se a ser uma porta de entrada para o campo da Lingüística, um campo vasto, heterogêneo, multidisciplinar, que consolida seus domínios e constrói seus objetos de estudo a partir de influ ências intradi sciplinares e de uma complexa, mas muito produtiva, rede de rela ções com outros lugares de construção do conhecimento. Fernanda Mussalim Anna Christina Bentes
Organizadoras
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SEMÂNTICA* Rober ta Pires de Oliv eira
1. INTRODUÇÃO Definir o objeto de estudos da Semântica não é uma tarefa simples. Po demos afirmar que a Semântica busca descrever o “significado” das palavras e das sentenças, mas devemos, então, definir esse conceito. O problema é que não há consenso entre os semanticistas sobre o que se entende por “significa do ” . Um a das dificuld ades de defin irmo s esse termo se deve ao fat o de que ele é usado para descrever situações de fala muito diferentes. Vejamos: em “Qual mesa ; é o significado de mesaT\ indagamos sobre o significado de um termo, em “Qual o significado de sua atitude?”, perguntamos sobre a intenção nãolingüística de nosso interlocutor. Falamos ainda sobre o significado de um livro, o significado da vida, o significado do verde no semáforo, o significado da fumaça (“O que significa aquela fumaça?”) e sobre muitos outros signifi cados. Se tentamos abarcar todas essas situações e outras em que o termo aparece, minamo s o próprio projeto de se con struir uma teoria científica sobre o significado, porqu e já não sab eremo s mais o sign ificado de “sign ificado ” 1. * 1
* Agradeço aos vários alunos que leram versões deste capítulo, em especial a Fabiano Fernandes e Maria Salete M. de Lima. 1. Sobre o significado de “significado”, o texto clássico é de Osgden & Richards (1976).
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INTRODUÇÃO À LINGÜÍSTICA
Daí a afirmação do filósofo Putnam: “o que atrapalha a Semântica é ela de pender de um conceito pré-teórico de ‘significado’”2. A esta dificuldade se soma ainda outra: a problemática do significado trans borda as próprias fronteiras da Lingüística, porque ela está fortemente ligada à questão do conhecimento. Responder a como é que atribuímos significado a uma cadeia de ruídos implica adotar um ponto de vista sobre a aquisição de conhecimento. E o significado uma relação causai entre as palavras e as coisas? Será ele uma entidade mental? Ele pertence ao indivíduo ou à comunidade, ao domínio público? Essas perguntas, caras ao semanticista, levam inevitavelmen te a enfrentar a quest ão espinho sa da relação entre linguagem e mundo e conse quentemente a buscar uma resposta sobre como é possível (se é que é possível) o conhecimento. Se não há acordo sobre as questões anteriormente levantadas, então há várias formas de se descrever o significado. Há várias semânticas. Cada uma elege a sua noção particular de significado, responde diferentemente à questão da relação linguagem e mundo e constitui, até certo ponto, um modelo fechado, incomunicável com outros. O estruturalismo de vertente saussureana, por exem plo, definia o significado como uma unidade de diferença, isto é, o significado se dá numa estrutura de diferenças com relação a outros significados. Assim, o significado de uma palavra se define por não ser um outro significado: mesa se define por não ser cadeira, sofá, abajur. Nesta perspectiva, o significado não tem nada a ver com o mundo, mesa não é o nome de um objeto no mundo, é a estrutura de diferença com cadeira, sofá, abajur. Essa postura pode implicar uma posição relativista, já que cada língua, cada sistema de diferenças, institui sua própria racionalidade3. Já para a Semântica Formal o significado é um ter mo complexo que se compõe de duas partes, o sentido e a referência. O sentido de um nome, a mesa da professora, por exemplo, é o modo de apresentação do objeto/referência mesa da professora. Assim, no modelo lógico, a relação da linguagem com o mundo é fundamental. Para a Semântica da Enunciação, herdeira do estruturalismo, o significado é o resultado do jogo argumentativo criado na linguagem e por ela. Diferente mente do estrutural ismo, mesa, na Sem ântica da Enunciação, significa as diver sas possibilidades de encadeamentos argumentativos das quais a palavra pode participar. Seu significado é o somatório das suas contribuições em inúmeros
2. Putnam, H. The meaning of meaning. In: Language, mind and knowledge. Cambridge, Cambridge University Press, 1975. 3. Ver Ilari (1995).
SEMANTICA
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fragmentos de discurso: “Comprei uma mesa”, “Senta ali na mesa...”. Para a Semântica Cognitiva, mesa é a superfíci e lingüística de um con ceito, o conceito mesa, que é adquirido por meio de nossas manipulações sensório-motoras com o mundo. E tocando coisas que são mesas que formamos o conceito prélingüístico mesa que aparece nas práticas lingüísticas como mesa. Esse concei to tem estrutura prototípica, porque se define pelo membro mais emblemático: um objeto de quatro pernas. A pluralidade de semânticas será ilustrada pela apresentação das linhas mestras de três formas de fazer semântica: a Semântica Formal, a Semântica da Enunciação e a Semântica Cogniti va. A escolha desses mod elos procura refletir o atual estado-da-arte em Sem ântica no Brasil.4 Bus caremo s m ostrar como um fenômeno lingüístico, a pressuposição recebe um tratamento diferenciado em cada abordagem. Na sentença “O homem de chapéu saiu” há , segundo a Semân tica Fo rmal, uma pressuposição de existência: existe um e apenas um indiví duo tal que ele é homem e está de chapéu e saiu. A Semântica da Enunciação vê nesta mesma sentença a presença da polif onia, a voz de mais de um enunciador : uma fala que diz que há um indivíduo, outra, que ele está de chap éu e outra, que ele saiu. Finalmente, a Semântica Cognitiva descreve a sentença a partir da hipótese de qu e na sua interpr etação formamo s espaços mentai s: o espaço men tal em que há um homem. Esperamos que, ao final deste capítulo, o leitor não apenas seja capaz de diferenciar esses modelos de Semântica, mas consiga manipulá-los minimamente.
2. A SEMÂNTICA FORMAL
Iniciamos pela Semântica Formal porque historicamente ela antecede as demais, o que a toma o referencial teórico e o grande inimigo a ser destruído. A Semântica Formal descreve o prob lema do signifi cado a partir d o postulado de que as sentenças se estruturam logicamente5. Para ilustrar relações lógicas reto memos a análise de Aristóteles, um pioneiro neste tipo de esiudo. Ao analisar o raciocínio dedutivo presente nas sentenças a seguir, Aristóteles mostra que há relaç ões de significado que se dão independen temente do con teúdo das exp res sões. Vejamos:
4. O termo “modelo” é utilizado aqui de modo quase informal, como se ele não fosse em si mesmo problemático. Sob re a sem ântica no Brasil, ver Pires de Ol iveira (1999). 5. A bibliografia em Semântica Formal é extensa. Manuais introdutórios são: Lyons (1977), Kempson (1980), Ilari & Geraldi (1985), Saeed (1997). Há muitos estudos sobre fenômenos do português brasileiro que adotam a perspectiva formal. Ver, entre outros, Ilari (1998), Negrão (1992), Borges (1991).
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(1)
Todo homem é mortal. João é homem. Logo, João é mortal.
Se garantirmos que as duas primeiras sentenças, chamadas premissas, são verdadeiras, concluímos a terceira. Estamos diante de uma relação entre con juntos: o conjunto dos homens está contido no conjunto dos mortais; se João é um componente do conjunto dos homens, então ele é necessariamente um com ponente do conjunto dos mortais. O interessante é que este raciocínio se garante apenas pelas relações que se estabelecem entre os termos, independentemente do que homem ou mortal significam. Se alterarmos as expressões e mantiver mos as relações, o raciocínio será sempre válido. Experimente verificar se o raciocínio seguinte é válido e justificar sua validade: Todo cachorro tem 4 pa tas; Bela é um cachorro; logo, Bela tem 4 patas. Essas são relações lógicas, ou formais, porque podemos representá-las por letras vazias de conteúdo, mas que descrevem as relações de sentido. Podemos, pois, dizer que “se A é um conjunto qualquer que está contido em um outro conjunto qualquer, o conjunto B, e se c é um elemento do conjunto A, então, c é um elemento do conjunto B”. A Semântica, em geral, deve muito à definição de significado estabelecida pelo lógico alemão Gottlob Frege (1848-1925). Frege nos legou pelo menos duas grandes contribuições: distinção sentido e referência e o conceito de quantificador. Esse autor aafirma que entre o estudo científico do significado só é possível se diferenciarmos os seus diversos aspectos para reter apenas aqueles que são objetivos. Ele exclui da Semântica o estudo das representações indivi duais que uma dada palavra pode provocar. Ao ouvir o nome próprio estrela da manhã , formo uma idéia, uma representação, que é só minha, uma vez que ela depende de minha experiência subjetiva no mundo. O estudo desse aspecto do significado cabe à Psicologia. A Semântica cabe o estudo dos aspectos objeti vos do significado, isto é, aqueles que estão abertos à inspeção pública. Sua objetividade é garantida pela uniformidade de assentimento entre os membros de uma comunidade. Eu e você temos represent ações distintas de estrela - você talvez a associe a um sentimento nostálgico, eu, à euforia das viagens espaciais -, mas compartilhamos o sentido de estrela, já que sempre concordamos quan do alguém diz estrela apontando um certo objeto no céu que reconhecemos como estrela. Nós também concordamos em discordar do uso de estrela para se referir à lua, a menos que estejamos diante de algum tipo de uso indireto da palavra ou de um engano. O sentido de um nome próprio como estrela da ma-
SEMÂNTICA
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nhã é o que nos permite alcançar, falar sobre, um certo objeto no mundo da razão pública, o planeta Vênus, a sua referência. O sentido é, pois, o que nos permite chegar a uma referência no mundo. Frege (1978) precisa dessa distinção porque sem ela não é possível explicar a diferença entre: (2)
A estrela da manh ã é a estrela da manhã.
(3)
A estrela da manhã é a estre la da tarde.
A sentença (2) é uma tautologia, uma verdade óbvia que independe dos fatos no mundo. Daí seu grau de mforavatividade tender a zero. Já em (3), afir mamos uma igualdade, cuja veracidade deve ser verificada no mundo. Se, de fato, aquilo que denominamos estrela da manhã é o mesmo objeto que denomi namos estrela da tarde , então, quando aprendemos que a estrela da manhã é a
estrela da tarde aprendemos uma verdade sobre o mundo: que podemos nos referir ao planeta Vênus de pelo menos duas maneiras diferentes. A sentença (3) expressa uma verdade sintética, isto é, uma verdade que só pode ser apreen dida pela inspeção de fatos no mundo, por isso ela pode nos proporcionar um ganho real de conhecimento. Ela exprime uma descoberta da Astronomia: a estrela da manhã não era, como se pensava desde os gregos, uma estrela dife rente da estrela da tarde, mas o mesmo planeta Vênus. Estrela da manhã e estrela da tarde são dois caminhos para se chegar à mesma referência. Só conseguimos explicar a diferença entre as sentenças (2) e (3) se distinguimos sentido de referência: embora ambas as sentenças tenham a mesma re ferência, elas expressam pensamentos diferentes. Se o sentido é o caminho que nos permite alcançar a referência, quando descobrimos que dois caminhos le vam à mesma referência, aprendemos algo sobre esse objeto, sobre o mundo. Todos nós já experimentamos a sensação de entusiasmo quando de repente des cobrimos que 3 + 3 é o mesmo que 10 - 4. Ao tomarmos consciência da igualda de, descobrimos dois caminhos, dois sentidos, para alcançarmos a mesma refe rência, o número 6. Uma mesma referência pode, pois, ser recuperada por meio de vários sentidos. Considere a cidade de Florianópolis. Podemos nos referir a ela por meio de diferentes sentidos: a cidade de Florianópolis , Florianópolis , a capital de Santa Catarina, a ilha da magia... Você certamente já viveu a expe riência de descobrir que Florianópolis é a capital de Santa Catarina, isto é, de falar de um objeto, a cidade de Florianópolis, de modos distintos. Atente para a distinção entre linguagem e mundo: Florianópolis e Florianópolis. Para esclarecer a diferença entre sentido e referência, Frege propõe uma analogia com um telescópio apon tado para a lu a. A lua é referênc ia: sua existên
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INTRODUÇÃO À LINGÜÍSTICA
cia e propriedades independem daquele ou daqu ela que a observa. Ela pode, no entanto, ser olhada a partir de diferentes perspectivas, e observá-la de um ângu lo pode nos ensinar algo novo sobre ela. A imag em da lua formada pelas lentes do telescópio é o que tanto eu quanto você vemos. Essa imagem compartilhada é o sentido. Ao mudarmos o telescópio de posição, vemos uma face diferente da mesma lua, alcançamos o mesmo objeto por meio de outro sentido. Lembremos que a imagem mental que cada um de nós forma da imagem objetiva do telescó pio está fora dos interesses da Semântica. O sentido só nos permite conh ecer algo se a e le correspon der uma referên cia. Em outros termos, o sentido permite alcançarmos um objeto no mundo, mas é o objeto no mundo que nos permite formular um juízo de valor, isto é, que nos permite avaliar se o que dizemos é falso ou é verdadeiro. A verdade não está, pois, na linguagem, mas nos fatos do mundo. A linguagem é apenas um instru mento que nos permite alcançar aquilo que há, a verdade ou a falsidade. Por isso, para Frege, mas não para a Semântica Formal contemporânea, sentenças que falam de personagens fictícios carecem de valor de verdade. Uma sentença ficcional, po r exemplo “Papai Noel tem a barba branca”, não pode ser cognitiva, porque ela não se refere a um objeto real. *
Intervalo I Se você entendeu bem essa estória de sentido e referência, diga qual a referência de: a capital da França, Paris, Paris é a capital da França.A seguir descreva a cidade do Rio de Janeiro através de diferentes sentidos6.
Para Frege (1978), um nome próprio deve ter sentido e referência. Florianópolis e a capital de Santa Catarina são dois nomes próprios, porque têm sentido e nos permitem falar sobre um objeto no mundo, a cidade de Florianópolis. Os nomes próprios são saturados porque eles expressam um pen samento completo e podemos, por meio deles, identificar uma referência. Há, no entanto, expressões que são incompletas, que não nos possibilitam chegar a uma referência, porque não expressam um pensamento completo. Esse é o caso da expressão ser capital de . Como não expressa um pensamento completo, ela não serve para alcançarmos uma referência. Além disso, é fácil notar que a expressão ser capital de é recorrente em inúmeras sentenças: (4)
São Paulo é a capital de São Paulo.
(5)
São Paulo é a capital de Santa Catarina.
6. Indicações de respostas aparecem no final deste capítulo.
SEMÂNTICA
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(6)
Florianópolis é a capital de Santa Catarina.
(7)
Florianópolis é a capital de São Paulo.
As sentenças anteriores são nomes próprios porque elas expressam um pensamento completo e têm uma referência. Em (4) e (6), a referência é a verda de, já que de fato São Paulo é a capital de São Paulo e Florianópolis é a capital de Santa Catarina; em (5) e (7), a referência é o falso. O que se repete nessas sentenças é a expressão ser capital de, uma expressão insaturada. Para expres sar um pensamento completo, a expressão deve ser preenchida em dois lugares: um que a antecede, outro que a sucede. Esses vazios são chamados argumentos. A expressão insaturada chama-se predicado. O predicado ser capital de é um predicado de dois lugares, porque há dois espaços a serem preenchidos por ar gumentos: ______ ser capital d e _______ . Podemos, no entanto, transformá-lo em um pre dicado de um lu ga r: ______ ser a capital de São Paulo, por exemplo. Você conseguiría recortar dif erentes predicados de um lugar a partir das senten ças de (4) a (7)7 São Paulo é a capital de ______ ; Florianópolis é a capital de______ ; ______ é a capital de Florianópolis são alguns exemplos. O contraste que Frege constrói é, pois, entre funções incompletas, isto é, aquelas que comportam pelo menos um espaço e pedem, portanto, pelo menos um argumento, e funções completas, que remetem a uma referência. Uma ex pressão insaturada combinada com um argumento gera uma expressão comple ta, um nome próprio, que tem como referência um valor de verdade, isto é, o verdadeiro ou o falso. Podemos entender o predicado como uma máquina, que toma elementos ou que os relaciona. Em (4), o predicado ser capital de relacio na São Paulo com São Paulo, gerando o nome próprio, São Paulo é a capital d e São Paulo, que tem sentido, expressa um pensamento, e tem uma referência, a verdade. O predicado pode ser preenchido por um nome próprio, como nos exem plos dados, mas ele pode também ser preenchido por outro tipo de argumento, a expressã o quantifica da. Uma expressão quantificada indica um certo número de elementos, daí o termo quantificador. Vejamos alguns exemplos de sentenças quantificadas: (8)
Uma cidade de Santa Catarina é a capital de Santa Catarina.
(9)
Todos os homens são mortais.
(10)
Todo s os meninos amam uma professora.
Em (8), afirmamos que há uma cidade de Santa Catarina tal que esta cida de é a capital daquele Estado, embora a sentença não especifique que cidade é
INTRODUÇÃO À LINGUÍSTICA
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essa. Em (8) temos um exemplo de quantificador existencial. Já a sentença (9) comporta um quantificador universal que pode ser informalmente traduzido por “o predicado ‘ser mortal’ se aplica a todos os elementos aos quais se aplica o predicado ‘ser hom em ” ’. Na sentença (10) temos a pre sença de dois quantificadores combinados: o universal (todos) e o existencial (uma). Essa sentença pode ter duas interpretações, ou, em termos técnicos, ela é ambígua: para todo aluno há pelo menos uma professora que ele ama — trata-se de uma leitura distributiva —; há uma única professora que todos os alunos amam. No primeiro caso, o quantificador universal antecede o existencial; no segundo, inverte-se a situação de modo que o existencial precede o universal. Os quantificadores podem, pois, se combinar e sua combinação produz interpretações distintas. O modo como combinamos operadores, e os quantifi cadores são um tipo de operador, é extremamente importante porque sua combi nação explica um tipo de ambigüidade, a ambigüidade semântica. Considere a sentença: (11)
O João não convidou só a Maria.
Você consegue enxergar duas interpretações para ela? A sentença (11) pode descrever duas situações bem distintas: ou o João só não convidou a Ma ria, ou o João não só convidou a Maria, mas também outras pessoas. A diferen ça entre essas interpretações é explicada pelo modo como se combinam os ope radores não e só: ou o não atua sobre o só, gerando não só, ou o só atua sobre o não, produzindo só não. Esta relação em que um operador atua sobre um certo domínio tem sido denominada de escopo: na primeira leitura, o operador só tem escopo sobre a negação; na segunda, é a negação que tem escopo sobre o só: “O João não só convidou a Maria”. Intervalo II 1. Considere as seguintes sentenças. Recorte-as segundo os conceitos de predicado e argumento em Frege: a) João é casado com Maria. b) Maria é brasileira. c) Oscar é jogador de basquete. 2. A partir dos conceitos de quantificador universal e existencial e da noção de escopo, descreva as sentenças abaixo: a) Todo homem é casado com alguma mulher. b) Um homem é casado com todas as mulheres. c) A Maria não dançou só com o Pedro.
SEMANTICA
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Considere agora a sentença: (12)
O preside nte do Brasil é sociólogo.
Ela se compõe de um nome próprio, o presidente do Brasil, e de um predicado de um lugar, ser sociól ogo. O problema é o nome próprio o preside n te do Brasil.
Note que éneste sintagma há uma e apenas pes a soa tal que esta pessoa president e do afirma-se Brasil. Chaque mamos a esse tipo deuma sintagm de descrição definida. Uma descrição definida caracteriza-se por ser uma ex pressão nominal introduzida por um artigo definido78. É possível tratá-la como um tipo particular de operador: aquele que afirma existir um e apenas um ele mento tal que este elemento tem determinada propriedade. Se a sentença (12) for proferida em 1999, então a referência da descrição definida é Fernando Henrique Cardoso. Dessa entidade no mundo é predicada a propriedade “ser sociólogo”. Neste momento, ela é verdadeira, já que há um e apenas um presi dente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, e ele é sociólogo. Evidentemente, se a sentença fosse proferida em 1991, ela seria falsa, já que o então presidente do Brasil, Fernando Collor de Mello, não é sociólogo. O artigo definido carrega uma marca de dêixis, isto é, ele remete à situação em que a sentença é proferida. Até aqui não há problema. Note, no entanto, que para atribuirmos um va lor de verdade à sentença (12), imaginamos que existe alguém com aquelas propriedades. Para Frege, essa pressuposição de existência faz parte das condi ções de verdade da sentença, mas não do seu sentido. Em outros termos, a senten ça (12) expressa um pensamento completo, mas para atribuirmos a ela um valor de verdade pressupomos a existência de uma entidade da qual predicamos algo. Essa pressuposição existencial não é semântica. Frege m antém que se a pressu posição fosse semântica, então a negação da sentença seria ambígua. Vejamos: (13)
O preside nte do Brasil não é sociólogo.
Se a pressuposição fosse semântica, afirma Frege, então (13) significaria: ou não existe um presidente do Brasil ou o presidente do Brasil não é sociólogo. No entanto, em (13), não negamos a existência de alguém que é presidente do Brasil, mas a afirmação de que ele é sociólogo. Isto é, a pressuposição de que existe alguém que é presidente se mantém inalterada na negação, por isso ela não se confunde com o conteúdo da sentença*. 7. Sobre definição definida, ver Ducrot (1979). 8. A pressuposição seria, portanto, pragmática. Ver o capítulo “Pragmática” neste volume.
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INTRODUÇÃO À LINGUÍSTICA
Mas imagine que (12) seja proferida num momento em qu e não há presi dente do Brasil. Se, por exemplo, ela fosse proferida em 1888, quando vivía mos ainda na Monarquia, será que ela teria valor de verdade? Essa questão gerou muita discussão na Semântica Lógica. A solução de Frege caminha pa ralelamente à solução com relação aos nomes próprios que indicam seres imaginários, o Batman, por exemplo: sentenças que se referem a seres o u coi sas que não têm existência real, isto é, sentenças cuja pressuposição de exis tência é falsa, têm sentido, mas não têm referência. Elas não são nem verda deiras nem falsas. Bertrand Russell propõe uma outra solução. Ele trata o artigo definido o como um quantificador. Como já vimos, os operadores podem se combinar. Assim, dado que o artigo definido é um quantificador e que onão , um operador que incide sobre a proposição ou parte da proposição alterando-lhe o valor de verdade, então entre eles se estabelecem relações de escopo. A sentença (13) seria, portanto, ambígua: a negação pode ter escopo sobre o artigo definido, e teremos a forma lógica (14) a seguir, ou o artigo definido tem escopo sobre a negação, e a forma lógica será (15): (14)
[não [existe um apenas um indivíduo tal que [ele é presidente] e [é soció logo]]]
(15)
[existe um e apenas um indiv íduo tal que [ele é preside nte] e [não [é sociólogo]]]
A proposta de Russell trata a pressuposição existencial como parte do con teúdo da sentença. Neste caso, proferir a sentença (12) quando não existe al guém que é presidente do Brasil é afirmar uma falsidade. Independentemente dessa controvérsia, a Semântica Formal considera que há pressuposição quando tanto a verdade quanto a falsidade da sentença depen dem da verdade da sentença pressuposta. Há muitos tipos de pressuposição. A sentença (16) contém uma pressuposição, mas dessa vez não se trata de uma pressuposição existencial: (16)
Maria parou de fumar.
Para que eu possa atribuir um valor de verdade a essa sentença, devo pres supor que seja verdade que Maria fumava. Se Maria nunca fumou, então ter parado de fumar é algo que simplesmente não se aplica a Maria: não é nem verdadeiro nem falso.
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SEMÂNTICA
Intervalo III A partir das noções de escopo e operador descreva a ambigüidade presente na sentença a seguir: (1) O rei da França não é calvo. Determine se há pressuposição na sentença abaixo e justifique sua resposta: (2) João lamenta a morte do pai.
A década de 1970 conhe ceu um a explosão de trabalhos sobre a pressupo sição. Salienta-se, dentre eles, o trabalho de Oswald Ducrot que, certamente influenc iado pelos trabalhos de Emile Benve niste e pela escola francesa de A ná lise do Discurs o,9 se opõe veeme ntemen te ao tratame nto que a Semântica F or mal oferece para a pressuposição em particular e para o significado em geral. Suas críticas e análises possibilitaram a formação de um outro modelo: a Se mântica da Enunciação. ✓
3. A SEMÂNTICA DA ENUNCIAÇÃO
A visão de linguagem que, segundo Ducrot, subsidia a Semântica Formal é inadequada porque, argumenta o autor, ela se respalda num modelo informacional, em que o conceito de verdade é externo à linguagem. Na Semântica Formal, a linguagem é um meio para alcançarmos uma verdade que está fora da linguagem, o que nos permite falar objetivamente sobre o mundo e, conseqüentemente, adquirir um conhecimento seguro sobre ele. É possível que o conceito de referência em Frege esteja mesmo revestido de tal realismo: a metáfora do telescópio deixa claro que✓o objeto descrito, a lua, não é uma função da descrição dada, do sentido. E o nosso conhecimento da lua que depende do senti do. Vemos a mesma lua a partir de pontos de vista diferentes, não vemos luas diferentes. A diferença é sutil, mas necessária para distinguirmos entre se mânticas ditas objetivistas ou realistas, que postulam uma ordem no mundo que dá conteúdo à linguagem, e semânticas mais próximas do relativismo, que acreditam que não há uma ordem no mundo que seja dada independentemente da linguagem e da história. A linguagem constitui o mundo, por isso não é pos sível sair fora dela. A Semântica da Enunciação certamente se inscreve nessa perspectiva, mas há abordagens formais que não se vinculam a uma metafísica realista10. 9. Ver o capítulo “Análise do Discurso”, neste volume. 10. Sobre o assunto, ver Haack (1978).
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De qualquer modo, para a Semântica da Enunciação, a referência é uma ilusão criada pela linguagem. Estamos sempre inseridos na linguagem: é o fato de que utilizamos dêiticos — termos cujo conteúdo é a remissão à extemalidade lingüística, os pronomes isto , eu , você , o artigo definido o, por exemplo — que nos dá a sensação/ilusão de estar fora da língua. Estamos, no entanto, sempre fechados nela e por ela. A Semântica Formal, diz Ducrot, cai na ilusão, criada pela própria linguagem, de que ela se refere a algo externo a ela mesma, de onde ela retira a sua sustentação. A linguagem, afirma Ducrot, é um jogo de argu mentação enredado em si mesmo; não falamos sobre o mundo, falamos para construir um mundo e a partir dele tentar convencer nosso interlocutor da nossa verdade, verdade criada pelas e nas nossas interlocuções. A verdade deixa, pois, de ser um atributo do mundo e passa a ser relativa à comunidade que se forma na argumentação. Assim, a linguagem é uma dialogia, ou melhor, uma “argumentalogia”; não falamos para trocar informações sobre o mundo, mas para convenc er o outro a entrar n o nosso jogo discursivo, p ara convencê-lo de nossa verdade11. Essa diferença de concepção da linguagem surte efeitos na forma como os fenômenos semânticos são descritos. Tomemos, em primeiro lugar, a questão da pressuposição. Se a linguagem não se refere, se a referência é interna ao próprio jogo discursivo, então também a pressuposição, seja ela existencial ou de qualquer outro tipo, é criada pelo e no próprio jogo de encenação que a linguagem constrói. A pressuposição não pode ser uma crença em algo externo à linguagem. E porque falamos de algo que esse algo passa a ter sua existência no quadro criado pelo próprio discurso. Nas versões mais atuais da Semântica da Enunciação, o conceito de pressuposição é substituído pelo de enunciador. Um enunciado se constitui de vários enunciadores que, por sua vez, formam o quadro institucional que referenda o espaço discursivo em que o diálogo vai se desenvolver. A pressuposição, um enunciador presente no enunciado, situa o diálogo no comprometimento de que o ouvinte aceita esta voz pressuposta. De tal sorte que negá-la seria romper o diálogo. ✓
Retomemos ao exemplo do presidente do Brasil ser sociólogo. Quando enunciamos (12), comprometemos nosso ouvinte com o fato de que há um e apenas um presidente. O enunciado é polifônico porque encerra várias vozes. Na enunciação de (12), o locutor põe em cena um diálogo entre enunciadores. Vejamos: 1 11. Para uma introdu ção à Semâ ntica da Enunc iação , ver Ducrot (1979, 1987). A Semâ ntic Enunciação tem contribuído para a descrição de vários fenômenos semânticos do português brasileiro. Ver, entre outras análises, Vogt (1977), Koch (1984), Guimarães (1991).
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SEMANTICA
(17)
O presidente do Brasil é sociólogo. Há um e apenas uma pessoa. E2: Esta pessoa é presidente do Brasil. E3: Esta pessoa é sociólogo.
Essa estrutura polifônica deixa claro que pode haver dois tipos de nega ção. Note que diferentemente da Semântica Formal, a negação de (17) não será ambígua, porque não há duas formas lógicas. O que ocorre é que o ouvinte pode realizar diferentes tipos de negação: ele pode negar o enunciador E , neste caso estamos diante de uma negação polêmica; mas ele pode negar o posto, o enunciador E, neste caso temos uma negação metalingüística. Vejamos a análise do exemplo (16), retomado aqui: (18)
Maria parou de fumar. E,: Maria fumava. E2: Maria não fuma mais.
A enunciação de (18) põe em jogo um enunciador que afirma que Maria fumava antes, trata-se do pressuposto, e outro que diz que ela já não fuma mais, o posto. Se negamos a fala do primeiro enunciador, realizamos uma negação polêmica; se negamos o posto, uma negação metalingüística. Assim, as diferentes leituras, explicadas como ambigüidade estrutural pela Semântica Formal, são, para a Semântica da Enunciação, explicadas lançando mão do conceito de polissemia; em outras palavras, um mesmo enunciado se abre num leque de significados diferentes, mas relacionados. A Semântica For mal resolve o problema da ambigüidade por meio do conceito de escopo, en quanto na Semântica da Enunciação a noção de escopo não tem lugar e o pro blema se resolve via a hipótese de que há diferentes tipos de negação. O que explica as diferentes leituras da sentença (19) é a presença de uma série de enunciadores e diferentes tipos de negação. (19)
O presidente do Brasil não é sociólogo.
(19’) E . Há um presidente do Brasil. E2: Ele é sociólogo. E3: E, é falsa. (19”) E,: Há um presidente do Brasil. E2: Ele é sociólogo. E3: E2é falsa.
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Em outras palavras: não se trata de uma diferença estrutural, mas de uma diferença entre tipos de negação. Assim, a pressuposição, na Semântica da Enunciação, se resolve pela hipótese da polifonia e, portanto, da existência de diferentes enunciadores, e a ambigüidade se desfaz pela determinação de dife renças de uso das palavras: o não-polêmico e o não-metalingüístico. Eis um outro exemplo. Em resposta a alguém que diz que meu carro está mal estacionado, posso retrucar: (20)
Não, meu carro não está mal estacionado (porque eu não tenho carro).
Nesse caso, estou fazendo uso da negação polêmica, afinal estou negando o quadro criado pela fala do meu interlocutor, na medida em que nego o enunciador que afirma a existência de um carro que seja meu. Imagine agora a mesma situação, só que dessa vez o locutor tem um carro: (21)
Não, meu carro não está mal estacionado (porque está bem estacionado).
Nesse caso, estamos diante da negação metalingüística: o locutor retoma a fala do outro, que aparece na voz de um enunciador que afirma que o carro está mal estacionado, para negá-la. A sentença (21) pode ser descrita da seguinte forma: (21’) Ej: Seu carro está mal estacionado. E2: A fala de E, é falsa.
Ducrot distingue ainda um terceiro tipo de negação, a negação descritiva. Nela o locutor descreve um estado do mundo negativamente; portanto, na sua enunciação não há um enunciador que retoma a fala de outro enunciador negan do-a. Na enunciação de (22), o locutor pode estar descrevendo um estado do mundo utilizando a negação: (22)
Não há uma nuvem no céu.
Nesse caso, não há a retomada da fala de outro, mas a apresentação negati va de uma descrição. Evidentemente, não é possível definirmos o tipo de negação sem levarmos em consideração os encadeamentos discursivos em que a enunciação ocorre. (22) podería comportar uma negação polêmica, desde que ela ocorresse em um outro contexto. Vale notar que a Semântica da Enunciação abre mão da idéia de que há sentença, entidade cujo sentido não depende do contexto em que ela é dita. Ao contrário, e por isto sempre falamos em enun
ciação, neste modelo só há cadeias discursivas.
SEMÂNTICA
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Intervalo IV 1. Utilizando o arcabouço teórico da Semântica da Enunciação, descreva as leitu ras possíveis do enunciado “Meu livro não foi reeditado”. A seguir descreva a ambigüidade por meio da noção de escopo da Semântica Formal.
A negação é, pois, um fenômeno de polissemia que, como dissemos, define-se por identificar usos distintos que são relacionados. É o caso de televisão utilizada para designar o aparelho e para designar a rede de transmissão. A mesma estratégia de multiplicação de sentidos aparece na descrição que a Se mântica da Enunciação propõe para o operador mas. Para a Semântica Formal não há diferença semântica entre e e mas. Na forma lógica, ambos fazem o mesmo: garantem que o todo é verdadeiro se e somente se as partes que o com põem também forem verdadeiras. Assim as sentenças: (23) João passou no concurso e não foi contratado. (24) João passou no concurso, mas não foi contratado.
exprimem o mesmo conteúdo semântico: a sentença é verdadeira, em ambos os casos, se João passou no concurso é verdadeira e João não fo i contratado é verdadeira. A diferença de significado é explicada pela Pragmática. A análise da Semântica da Enunciação dispensa a hipótese de que uma mesma forma ló gi ca está presente nas duas sentenças. A diferença é descrita pela postulação de e e mas que sãomas doisque, itensem lexicais distintos. dá umporque passo além do que há dois português, são Ducrot homônimos, têm aafirman mesma representação sonora e escrita. O espanhol, o alemão são, no entanto, línguas em que a cada mas corresponde uma palavra diferente: em espanhol, pero e mas, em alemão, sonder e aber. Na Semântica da Enunciação distinguem-se, pois, dois sentidos de mas : o maspAe o masSN. O masPAse caracteriza por apresentar um raciocínio inferencial do tipo: a primeira sentença nos leva a supor uma certa conclusão e esta co nclu
são é negada pela segunda sentença. ao exemplo afirmação de que João passou no concurso nosRetomemos leva a imaginar que ele(24): será acontratado. Esta conclusão, suscitada pela primeira sentença, é negada pela segunda em que se afirma que ele não vai ser contratado. O masSNestabelece outra relação semântica. Nele, a primeira sentença nega fortemente uma fala que supostamente a antecede e repara, na segunda senten ça, o que foi dito na primeira. Tomemos a sentença (25): (25) Pedro não está triste, mas ensimesmado.
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INTRODUÇÃO À LINGÜÍSTICA
Essa sentença se decompõe numa série de enunciadores. Um enunciador afirma que Pedro está triste (E,: Pedro está triste). Essa fala é negada pelo segundo enunciador (E2: Ej é falsa). E um terceiro enunciador descreve o estado de Pedro (E3: Pedro está ensimesmado). Intervalo V Diga se o “mas” presente nas sentenças abaixo posta:
é
PA ou SN. Justifique a sua res-
(1)
João não está cansado, mas deprimido.
(2)
João foi ao cabeleireir o, mas não cortou o cabelo.
Descreva a negação nos seguintes exemplos: (1)
O João não saiu.
(2)
O céu não está azul.
A Semântica da Enunciação também se consagrou por ter possibilitado a descrição de fenômenos que supostam ente resistem a um tratamento formal. Os fenômenos que envolvem gradações, os fenômenos escalares, são possivelmente o exemplo mais prototípico. Vejamos um caso. Considere o par de sentenças a seguir: (26)
João comeu pouco.
(27)
João comeu um pouco.
Segundo a Semântica da Enunciação, não seria possível atribuir uma análise formal a essas sentenças porque em termos informativos elas veiculam o mesmo conteúdo: João não comeu muito. No entanto, sabemos intuitivamente que elas não são equivalentes, porque não podemos substituir uma pela outra. Ao contrário, há contextos es pecíficos para o uso d e cada uma dessas formas, o que significa dizer que seus encadeamentos discursivos são distintos. Imaginemos a situação de um moleque que está ameaçado pelo pai: se não comer, não brinca. O pai pergunta para a mãe: “E o Joãozinho, comeu?” . Supondo que a mãe saiba da ameaça, se ela responde com (26), sua fala vai na direção de que ele não comeu: se ele comeu pouco, então ele não comeu. E o coitado do Joãozinho fica sem brincar. Se a mãe respond e com (27), sua fala vai na di reção de comer: se ele comeu um pouco (um tanto de comida), então ele comeu. E, portanto, ele pode brincar. A hipótese é de que os operadores pouco e um pouco direci onam diferentemente uma mesma escala de comer que vai de com er muito a não comer: um pouco direciona a escala no sentido de comer e pouco no de não comer.
0
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SEMÂNTICA
um pou co
comer
pouco A
não comer
comer
nao comer
T
Se a semântica da enunciação analisa sempre em termos de argumentação, então a fala da mãe com um pouco vai na direção de comer e, portanto, é um argumento a favor do menino sair para brincar, ao passo que com pouco a estru tura argumentativa é inversa. Intervalo VI . Em termos de valor de verdade, as sentenças a seguir são idênticas. No entanto, do ponto de vista argumentativo, elas se comportam de forma be m diferente. Pro cure descrever a contribuição de sentido proporcionada pelo até nas sentenças: (1)
O presidente do Brasil esteve na festa.
(2) Até o presidente do Brasil esteve na fe sta .12 A partir da análise de “pouco” e “um pouco” reflita sobre o par: (1)
João dormiu um pouco.
(2)
João dormiu pouco.
4. A SEMÂNTICA COGNITIVA
A Semântica Cognitiva tem como um de seus marcos inaugurais a publi cação, em 1980, de Metciphors we live by, de George Lakoff e Mark Johnson13. Embora bastante recente, esse modelo semântico conta hoje com a participação de diversos pesquisadores, trabalhando nos diferentes níveis de análise da lin guagem, da Fonologia à Pragmática. Parte-se, neste modelo, da hipótese de que o significado é que é central na investigação sobre a linguagem, chocando-se, portanto, com a abordagem gerativista, que defende a centralidade da Sintaxe14.
12. Para uma descrição deste operador argumentativo, ver Guimarães (1991). 13. Para uma apresentação da Semântica Cognitiva, ver Lakoff (1987). No Brasil, ver os trabalhos de Pontes (1990) e Lima (1997), entre outros. 14. Ver o capítulo “Sintaxe” , no volume 1 desta obra. O fato de que a Semântica Cognitiv a está em franca oposição ao gerativismo impõe, como o leitor perceberá adiante, a discussão sobre aquisição da linguagem. Sobre este último tema, ver o capítulo “Aquisição da Linguagem”, neste volume.
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INTRODUÇÃO À LINGÜÍSTICA
A forma deriva da significação, porque é a partir da construção de significados que aprendemos, inclusive a lógica e a linguagem. Daí a Semântica Cognitiva se inscrever no quadro do funcionalismo. A Semântica C ognitiva se opõe , pois, ao que Lakoff denomina Semânti ca Objetivista, aquela que, segundo o autor, prega que o significado se baseia na referência e na verdade, que entende verdade como correspondência com o mundo e que acredita na existência de apenas uma maneira objetivamente correta de associar símbolos e mundo. A Sem ântica Cognitiva quer combater a idéia, de fato presente em algumas abordagens formais, de que a linguagem está numa relação de correspondência direta com o mundo. O significado, se afirma na Sem ântica Cog nitiva, não tem nada a ver com a relação de pareamento entre linguagem e mundo. Ao contrário, ele emerge de dentro para fora, e por isto ele é motivado. A significação lingüística emerge de nossas significações corpóreas, dos movimentos de nossos corpos em interação com o meio que nos circunda. Estaria, então, a Semântica Cognitiva mais próxima dos postulados da Semântica da Enunciação, que insiste que o significado é o resultado dos jogos argumentativos na linguagem? Sim, se levarmos em consideração o fato de que ambas negam a hipótese da referência. No entanto, diferentemente da Semânti ca da Enunciação, a Sem ântica Cognitiva não se baseia na crença de que a refe rência é constituída pela própria linguagem, uma ilusão, porta nto, nem na cren ça de que a linguagem é um jogo de argumentação. Lakoff define sua aborda gem como realismo experiencialista e afasta sua proposta do relativismo. A hipótese central de que o significado é natural e experiencial se sustenta na constataçã o de que ele se constrói a partir de nossas interações físicas, corpóreas, com o meio ambiente em que vivemos. O significado, enquanto corpóreo, não é nem exclusiva, nem prioritariamente lingüístico . A criança, na história da aquisição contada pela Semântica Cognitiva, ini cialmente aprende esquemas de movimento e categorias de nível básico. Por exemplo, a criança se move várias vezes em direção a certos alvos. Desses mo vimentos, emerge um esquema imagético cinestésico (uma memória de movi mento) em que há um ponto de partida do movimento, um percurso e um ponto de chegada. Esse esquema, que surge diretam ente de nossa experiência corpórea com o mundo, ancora o significado de nossas expressões lingüísticas sobre o espaço. Assim sendo, o significado lingüístico não é arbitrário, porque deriva de esquemas sensório-motores. São, portanto, as nossas ações no mundo que nos permitem apreender diretamente esquem as imagéticos espaciais e são ess es esquemas que dão significado às nossas expressões lingüísticas.
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SEMANTICA
Nossos deslocamentos de um lugar para outro, que ocorrem quando ainda não falamos, estruturam, pois, um esquema imagético, e portanto não-proposicional. Esse esquema Lakoff denomina CAM INHO15e pode ser esquematizado como a seguir: A (fonte do movimento) ------------------------► B (alvo do movimento) Muitos outros esquemas derivam diretamente de nossas experiências corpóreas no mundo. Por exemplo, o esquema de estar dentro e fora de algum lugar, chamado RECIPIENTE; o esquema de balanço, BALANÇO, aprendido em nossos ensaios para ficar em pé. São esses esquemas que dão sentido às nossas seqüências lingüísticas. Os dois primeiros exemplos a seguir são instân cias do esquema do CAMINHO, os dois últimos, do RECIPIENTE. (28) (29) (30) (31)
Fui do quarto para a sala. Vim de São Paulo. Estou em Florianópolis. Nasceu no Brasil.
O que dá sentido às sentenças (28) a (31) não é uma relação de correspon dência com o mundo, nem uma relação de dialogia com um outro, nem os encadeamentos discursivos, mas o fato de que em (28) e (29) está presente o esque ma imagético CAMINHO, e em (30) e (31), o esquema RECIPIENTE. Esses esquemas, organizações cinestésicas diretamente apreendidas, carregam uma memória de movimentação ou de experiênci a. E essa memória que ampara nos so falar e pensar. Por isso, o significado é uma questão da cognição em geral, e não um fenômeno pura ou prioritariamente lingüístico. A linguagem articulada não é mais que uma das manifestações superficiais da nossa estruturação cognitiva, que lhe antecede e dá consistência. Mas nem todos os nossos conceitos resultam diretamente de esquemas imagético-cinestésicos. Basta lembrarmos o conceito de argumentação para notarmos que não há um esquema sensório-motor que o ancore diretamente. Há, pois, domínios da experiência cuja conceitualização depende de mecanismos de abstração. A Semântica Cognitiva privilegia dois mecanismos: a metáfora e a metonímia. A metáfora define-se por ser o mapa (um conjunto de correspon dências matemáticas) entre um domínio da experiência e outro domínio. Adotenos a metodologia da Semântica Cognitiva, e examinemos, em primeiro lugar, algumas sentenças sobre o tempo.
15. Na Semântica Cognitiva, os conceitos e esquemas são sempre apresentados em caixa alta.
INTRODUÇÃO À LINGÜÍSTICA
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(32) De ontem para hoje, o José ficou doente. (33) A conferência foi de segunda a sábado.
Se observarmos essas e outras sentenças, notaremos que nosso conceito de tempo se estrutura via o esquema espacial do CAMINHO. Nesse sentido, as sentenças (32) e (33) são metafóricas, porque nelas o tempo é conceituado a partir de correspondências com o esquema espacial. Falamos, pensamos e agi mos sobre o tempo como se ele fosse uma linearidade, como uma reta direcionada para o futuro. De tal sorte que há o ponto de partida do movimento temporal, ontem em (32), segunda em (33), um percurso, o tempo decorrido entre os dois pontos, e um ponto de chegada, hoje em (32), sábado em (33). Nas sentenças (32) e (33), o esquema CAMINHO foi mapeado para o domínio do tempo. Ele pode, no entanto, ser mapeado para outros domínios. E /
esse esquema que utilizamos para expressar passagens de um estado emocional a outro, como na sentença (34) a seguir. Ele também está presente na estruturação de nosso conceito de transferência de posse, como em (35): (34) João foi de mal a pior. (35) João deu este presente para a Maria.
Já deve estar claro que não apenas o termo “metáfora” tem um sentido espe cial na vSemântica Cognitiva, mas principalmente que neste modelo nosso falar e pensar cotidianos são, na sua maior parte, metafóricos. De modo que metáfora não se refere àquelas frases que, na escola, aprendemos a classificar como metáfora. A sentença “Maria é uma flor” é uma metáfora linguística para a Semântica Cognitiva, porque ela expressa uma maneira fantasiosa de falar, não uma metáfora conceituai. A metáfora, para a Semântica Cognitiva, é um processo cognitivo que permite mapearmos esquemas, aprendidos diretamente pelo nosso corpo, em domínios mais abstratos, cuja experimentação é indireta. É por isso que as sentenças de (32) a (35) são metafóricas. Nelas há o mapeamento de um domínio mais concreto da experiência, o domínio organizado pelo esquema imagético CAMINHO, na conceituação de domínios da experiência que são mais abstratos, o tempo, o esta do de saúde, a posse. Nesses exemplos, percebemos a ubiqüidade da metáfora. A propriedade fundamental da metáfora/mapa é preservar as inferências do domínio fonte no domínio alvo, desde que não haja violação da estrutura inerente ao domínio alvo. Assim, se mapeamos o esquema CAMINHO no tem po, então podemos esperar que neste domínio se estabelece uma organização espacial em que as inferências do espaço se mantêm. Trata-se da Hipótese da
Invariância. Por exemplo: se eu vou daqui para ali, e este esquema é mapeado
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no tempo, então eu também devo poder me mover no tempo de um ponto de partida A em direção a um ponto B. Se entre os pontos espaciais A e B há posições intermediárias, então também entre o ponto A e B na linha do tempo há pontos intermediários. Além de explicar as inferências, essa hipótese procu ra justificar o fato de que há aspectos que não são mapeados. Podemos mapear o espaço no tempo, mas certas relações espaciais serão bloqueadas por causa da própria estrutura do tempo. Assim, não posso dizer “chegou embaixo da hora”. Como, então, se explicaria, neste modelo, a estrutura de inferência apre sentada no primeiro exemplo deste texto, reproduzido a seguir? (36) Todo homem é mortal. João é homem. Logo, João é mortal. A explicação é que ess as sentenças refletem a presença do esquema imagético RECIPIENTE, em que há recipientes nos quais podemos entrar e sair. A base corpórea sustentando este esquema é o fato de que estamos sempre em algum lugar e que nosso próprio corpo é um recipiente. Assim, entendemos a primeira premissa como “o conjunto de homens está dentro do recipiente dos mortais”; a segunda afirma “João está dentro do conjunto dos homens”. Num esquema de boneca russa, uma dentro da outra. Note que nesse modelo é o nosso corpo que dá sentido para as relações lógicas. A título de exemplo da metodologia de análise na Semântica Cognitiva, apresentamos uma possibilidade de descrição do conectivo mas. Sua descrição inicia com um levantamento de suas várias possibilidade s de uso. Uma pesquisa etimológica, resgatando a história desse conectivo, seria também interessante. Considere como dado a sentença (25), “Pedro não está triste, mas ensimesmado”. Etimologicamente, segundo Vogt (1977), mas deriva da expressão latina magis quam que estabelecia a comparação de superioridade: isso é mais do que aquilo. Se adotamos a hipótese de que os usos mais antigos são aqueles mais próximos dopesamos físico, então o esquema corporal do BALANÇO que No dá sustenta ção ao mas: duasécoisas e a balança pende para uma delas. caso do exemplo (25), a balança pende para o lado do ensimesmado: se pesamos os dois, Pedro é mais ensimesmado do que triste. Uma vez estabe lecida que essa é a base física, resta-nos dar conta de suas extensões metafóricas16.
16. O trabalho de Sweetser (1991) sobre os modais em inglês é talvez uma das mais brilhantes pe da Semântica Cognitiva. Nesse trabalho ela mostra, por evidências etimológicas, e também pelos diferen tes usos dos modais que sua compreensão se sustenta num esquema da FORÇA.
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INTRODUÇ ÃO A LINGUÍ STI CA
Intervalo VII Considere as sentenças a seguir: (1) Gastei cinco horas para chegar aqui. (2) Economizei duas horas por este caminho. Descreva essas sentenças a partir do arcabouço teórico proporcionado pela Se mântica Cognitiva. Ache exemplos que confirmem a existência da metáfora conceituai ARGUMEN TAÇÃO É UMA GUERRA.
Dissemos que há dois primitivos na teoria da Semântica Cognitiva: os esquemas imagéticos e as categorias de nível básico. Sobre os primeiros já fala mos e mostramos que eles se estendem via metáfora. Resta-nos agora tratar das categorias de nível básico. Sua discussão é importante, porque ela toca na ques tão da categorização, um problema caro à Semântica Formal. Mas qual é o problema da categorização? O problema é explicar que crité rios permitem que um dado exemplar faça parte de uma certa categoria (ou conceito). Ilustremos esse problema: como é que determinamos que um indiví duo particular pertence à classe dos homens? Como é que sabemos que João é humano? Na visão tradicional, aquela que se encontra na Semântica Formal clássica, um termo genérico comohomem não se refere a um indivíduo em par ticular, mas a todos os indivíduos que possam ser alcançados por meio de certas propriedades, necessárias e suficientes, instanciadas por homem. Sabemos que João pertence à classe dos humanos porque ele tem certas propriedades que só os humanos têm. A essas propriedades, que definem o conteúdo semântico de um termo genérico, a Semântica Formal dá o nome de intensão. A intensão permite alcançarmos uma classe de objetos no mundo. A esta classe damos o nome de extensão. Você certamente percebeu que há um paralelo com os con ceitos de sentido e referência que definimos no início deste capítulo, não? No caso de homem, sua extensão são os vários humanos no mundo, as entidades extralingüísticas. E qual seria a sua intensão? Suas propriedades es senciais. Além da delicadaessenciais? questão filosófica aí se esmiuça —oafinal, tem mesmo propriedades —, esta que abordagem enfrenta difícilexis pro blema de determinar com certo grau de segurança quais são as propriedades necessárias e suficientes para que algo pertença a uma certa categoria. Pergunte-se: o que faz uma pessoa ser parte da categoria HUMANO? O fato de com partilhar com todos os outros seres humanos certas propriedades e, ao mesmo tempo, de se distinguir, por meio dessas propriedades, de todos os demais seres. Eis a resposta da Semântica Formal clássica. Pare um instante de ler e pense:
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mas que propriedades são essas? A questão não é trivial e tem recebido as mais diferentes respostas ao longo dos séculos. Já se afirmou que a categoria HU MANO se define pela presença de duas propriedades “ser bípede” e “ser implume”: pertencer à classe dos humanos é ter dois pés e não ter penas. De fato, essas propriedades permitem distinguir um homem de um cachorro e de um pato. No entanto, énão muito fácil achar exemplos de seres menos aparentemente, preenchem essas condições. Bastahumanos imaginarque, um ao perneta; alguém com uma única perna continua a ser humano ou não? E se, por uma mutação genética qua lquer, um ser humano nascesse com algumas plumas, ele deixaria d e ser um humano? Já deu para o leitor ter uma idéia do problema? Sem dúvida alguma foi Ludwig Wittgenstein, em Investigações filo sófi cas, quem problematizou com m aior maestria o problema das categorias. Ele se perguntou sobre quais seriam as propriedades definidoras da categoria jogo, levando em consideração os vários usos que a palavra pode ter. Tente se lem brar de tudo o que você chama de jogo : amarelinha, palavra cruzada, vôlei, damas, solitário, futebol. E agora veja se você consegue descobrir uma única propriedade que seja comum a todas as atividades que denominamos jogo, isto é, uma propriedade necessária porque presente em todos os exemplos de jogo. Se você disser “divertimento”, eu retruco com roleta-russa. Se você falar em “competição”, eu lembro os jogos de amarelinha e os solitários. Imaginemos, no entanto, que você me convença de que a propriedade comum a todos os exemplos de jogo seja divertimento. Mas divertimento é uma propriedade tão genérica que é insuficiente para separar a classe dos jogos de outras classes. Não conseguimos distinguir jo go de divertimento se divertimento é o traço, já que há coisas divertidas que não são jogos: ir ao cinema é divertido e não é um jogo. Parece que se houver uma propriedade comum a todos os usos de uma palavra, uma propriedade necessária, ela não será suficiente para delimitar a classe. Com base nessa constatação, Wittgenstein propôs que as categorias se organizam por relações de semelhanças de família. Os usos de uma mesma pa lavra se assemelham da mesma forma que os membros de uma família. Não é necessário que os membros compartilhem a mesma propriedade para pertence rem todos à mesma família, nem mesmo o sobrenome. A Semântica Cognitiva baseia-se nessa constatação para negar a aborda gem clássica da categoria. Ela se ancora fortemente em evidências psicológ icas para assegurar a posição de que não categorizamos por meio do estabelecimen to de propriedades necessárias e suficientes. O trabalho de Berlin e Kay sobre as cores, assim como as pesquisas de Eleanor Rosch (Lakoff, 1987) apontam para fatos que contradizem as predições da categorização por propriedades ne-
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INTRODUÇÃO À LINGUÍSTICA
cessárias e suficientes. Vejamos um exemplo. Se peço para você me dar um exemplo de pássaro, você com certeza não vai dizerpingüim, a menos que você seja um semanticista. Por que não? Por que as pessoas tendem a responder per guntas sobre categorias com certos elementos e não com outros? Os experimen tos de Rosch trouxeram uma resposta a essas questões. A abordagem formal clássica não pode dar explicação para esse efato, porque para as catego rias se organizam por uma propriedades necessárias suficientes, e, seela é assim, en tão todos os membros de uma categoria devem ter o mesmo valor. Isso significa que as pessoas deveríam responder aleatoriamente, orapardal, ora pingüim, ora galinha ao meu pedido de exemplo de pássaro. Mas as pessoas respondem pre ferencialmente pardal c muito raramente pingüim11. Baseado nesses resultados, formulou-se a hipótese de que os conceitos se estruturam por protótipos. Em outros termos, quando classificamos não recor remos ao estabelecimento de condições necessárias e suficientes, mas nos esco ramos em casos que são exemplares, que são os mais reveladores da categoria. É por isso que respondemos compardal ao pedido de exemplificação de pássa ro: pardal é muito mais exemplar de pássaro do que pingüim. Há vários motivos para a nossa preferência por pardal: pardal voa e os pássaros em geral voam, pardal é um pássaro que a gente vê sempre, é familiar. As categorias se estruturam, pois, por meio de um caso mais prototípico que se relaciona via semelhanças com os outros membros. Pardal é o membro central da categoria PÁSSARO, ao passo que pingüim ocupa posição periférica. Mas como é que a criança aprende essas categorias? Ela aprende primeira mente as categorias de nível médio, porque é com objetos desse tipo de catego ria que temos contato físico direto. Mais uma vez com base em experimentos da Psicologia, a Semântica Cognitiva afirma que aprendemos categorias de nível básico diretamente, porque elas não indicam nem as categorias mais abstratas, nem as categorias mais específicas. Aprendemos primeiro e diretamente cate gorias como cachorro e mesa e só posteriormente, pelo processo de metonímia, as categorias genéricas animal e móveis e as particulares como boxer e mesa de cabeceira. Da mesma forma queestende a metáfora é o processo paraaqui estender os es quemas imagéticos, a metonímia as categorias. Também metonímia não se refere à figura de linguagem que aprendemos nos manuais de retórica ou nas gramáticas tradicionais. Trata-se antes de um processo cognitivo que permi te criar relações de hierarquias entre conceitos. A sentença (37) é um exemplo de metonímia:17 17. Sobre a categorização, ver Taylor (1989).
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(1)
O governo decretou o fim do auxílio desemprego.
✓
E, pois, por meio dos processos cognitivos da metáfora e da metonímia que estendemos nossos esquemas e categorias para além das nossas experiências físicas imediatas na direção da abstração. Intervalomostrar VIII que a propriedade “voar” não é nem necessária nem suficiente Procure para que algo pertença à categoria AVE. Procure descrever, a partir do conceito de protótipo, a categoria MÃE. Explique por que a sentença a seguir é uma metonímia: (1) A Maria saiu com o seu animal de estimação.
Vamos agora nos contentar em apresentar em suas linhas gerais a abordagem cognitiva das pressuposições. Sobre esse assunto a grande contribuição tem sido de Gilles Fauconnier (1985)18. Este autor parte da hipótese de que na interpretação formamos espaços mentais, estruturas conceituais que descrevem como os falantes atribuem e manipulam a referência, dentre elas as descrições definidas. Em conformidade com os postulados da Semântica Cognitiva, o significado não está na linguagem, antes, a linguagem é como um método, uma receita, que permite a identificação de uma estrutura cognitiva subjacente. Para dar conta da referência, Fauconnier propõe que durante a interpretação construímos domínios ou espaços mentais nos quais ela ocorre. Suponha a sentença: (38) Júlio César conquistou o Egito.
Na interpretação de (38) criamos um espaço mental em que Júlio César se refere ao personagem histórico. O que ocorre se repentinamente passamos a falar do personagem de Shakespeare, como na sentença (39)? (39) Na peça de Shakespeare, Júlio César conquistou o Egito.
Neste caso, diz ao Fauconnier, abrimos um novo mental, em que Júlio não se refere personagem histórico, mas espaço ao ficcional. É a partir desse arsenal teórico que Fauconnier propõe uma análise distinta das pressuposições, já que elas nem estabelecem referência com entidades no mundo, nem são procedimentos argumentativos; são antes entidades mentais/ César
18. Para uma descrição detalhada, ver Fauconnier (1985).
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INTRODUÇÃO À LINGÜÍSTICA
cognitivas. Sem entrar nos detalhes, retomemos à sentença sobre Maria ter parado de fumar, a sentença (16). Dissemos, então, que a sentença veiculava a pressuposição de que Maria fumou um dia. Mostramos que a sentença negativa pode ser descrita como comportando uma ambigüidade: ou negamos a pressuposição, Maria não fumava antes, ou negamos o predicado, Maria não parou de fumar. Na Semântica Cognitiva, a pressuposição é descrita como significados que se transferem de dois um espaço para Noestá casoa da sentença (16), estaríamos diante de espaçosmental mentais: umoutro. em que pressuposição de que Maria já fumou; outro que diz que ela parou de fumar. No caso de negarmos o primeiro espaço mental, isto é, Maria nunca fumou, a pressuposição não é transportada para o segundo espaço mental. Já, se Maria fumou um dia, então a pressuposição é carregada para o segundo espaço mental, e a negação incide sobre o fato de ela ter parado de fumar. O mesmo raciocínio se aplica ao caso do presidente do Brasil. Formamos, na interpretação, dois espaços mentais: um em que há um eapenas um presidente, independentemente de haver de fato um presidente, isto é, independentemente da relação de referência. Essa sentença, que se srcinou no espaço mental A, ou permanece nesse espaço mental, se por exemplo negamos que há um presidente, ou ela se move até o espaço mental B, em que se afirma que o presidente do Brasil é sociólogo, e se toma uma pressuposição de B; nesse caso, a negação só poderá atingir a afirmação de que ele é sociólogo. 5. UMA RÁPIDA CONCLUSÃO
Na introdução dissemos que nossa intenção era apresentar fenômenos que já fazem parte do campo da Semântica, independentemente do modelo adotado. O que muda é a forma de descrever o fenômeno. Esse é o caso dos problemas levantados com relação à referência, à pressuposição, às definições definidas, à categorização, e a outros fenômenos aqui abordados. Ao apresentarmos como esses problemas são descritos de modos diferentes, queríamos mostrar as linhas mestres dos modelos semânticos atuais: o modelo formal, o modelo enunciativo eacreditamos o modelo cognitivo. Se conseguimos apresentar esse que você, leitor, tem condições de seguir emquadro frente, minimamente, de aprofundar (veja aí uma metáfora para a Semântica Cognitiva) seus estudos. É por isso que apresentamos, ao longo deste capítulo, várias referências bibliográficas que permitem iniciar um estudo menos superficial em cada um dos modelos apresentados. Contamos ainda ter mostrado que, na Lingüística contemporânea, não há nem uma resposta única para o problema do significado, nem uma metodologia
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única para descrevê-lo. Essa pluralidade de modelos transparece também no fato de que, muitas vezes, aquilo que é problema para um modelo não o é para outro. É esse o caso da categorização, que interessa à Semântica Formal e à Semântica Cognitiva, mas que é secundário na Semântica da Enunciação. Finalmente, se não for esperar demais, esperamos te r deixado o leitor com asemântica “pulga atrás da orelha”, com engajada uma certanuma certeza deda que qualquer odescrição está necessariamente visão linguagem, que im plica uma explicação para a relação entre linguagem e mundo, linguagem e conhecimento. Adotar a abordagem da Semântica Formal não é apenas utilizar o instrumental lógico para descrever a linguagem — o que em si podería ser feito por quaisquer das abordagens aqui propostas —, mas assumir que a lin guagem natural se estrutura logicamente. E aí reside um ponto bastante questionável. É verdade que a linguagem tem uma estrutura, mas que ela seja lógica... Se adotamos o ponto de vista da Semântica da Enunciação ou da Se mântica Cognitiva, jogamos fora a idéia de que a verdade tem algo a ver com o significado, de que o extralingüístico tem um papel na determinação do signifi cado. Esse também é um postulado polêmico. Na Semântica da Enunciação, o significado é descrito nas relações de dialogia, de argumentatividade. Ele não serve, pois, para apontar algo no mundo exterior, mas para convencer, para seduzir o outro. Enredado na linguagem, não há como transcendê-la. No mode lo da Semântica Cognitiva também abandonamos a idéia de verdade como dan do suporte ao significado. O significado está no corpo que vive, que se move, que está em várias relações com o meio e não na correspondência entre palavras e coisas. Que a heterogeneidade pode toma r as coisas mais complicadas para aque les que querem fazer semântica é certo, mas ela pode também ajudar a ver que talvez a linguagem seja de fato um objeto muito complexo. Tão complexo que somente deixando coexistir diferentes abordagens, somente espiando a lingua gem por diferentes buracos de fechadura, poderemos um dia chegar a compreen dê-la melhor. RESPOSTAS
Intervalo /: A referência de a capital da Françae Paris é Paris, o objeto no mundo. Atente para a distinção entre linguagem e objeto. A referência de Paris é a capital da França, uma sentença, é o verdadeiro, porque de fato Paris é a capital da França. Eis alguns exemplos de sentido para descrever o Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, a capital do Império, a cidade mais violenta do Brasil.
INTRODUÇÃO À LINGUÍSTICA
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Há várias possibilidades de recortar a primeira sentença: ser casado com (predicado de dois lugares), ser casado com Maria (predicado de um lugar), João ser casado com (predicado de um lugar). A segunda sentença é um exemplo de predicado de um lugar: ser brasileiro. Cuidado aqui porque não é possível recortar a sentença como ___ é ___ , pois brasileira não é um nome próprio, não tem sentido completo, nem referência. A última se ntença pode ser recortada de três formas: Oscar é joga dor de, ser jogador de, ser jogador de basquete. Em “Todo homem é casado com alguma mulher”, para todo elemento do conjunto dos homens corresponde um elemento do conjunto das mulheres. Neste caso, o universal tem escopo sobre o existencial. Já °m “Um homem é casado com todas as mulheres”, afirmamos que há um único homem que é casado com todos os elementos do conjunto mulheres . Neste caso, o existencial tem escopo sobre o universal. Finalmente na última sentença temos um caso de ambiguidade: Maria só não dançou com o João ou Maria dançou não só com o João. I n te r v a lo II:
Teremos: (1) Não é o caso de que (há um e apenas um rei da França e ele é calvo). O operador de negação tem escopo sobre o definido. (2) Há um e apenas um rei da Fran ça e não é o caso que (ele é calvo). O definido tem escopo sobre a negação. Há pressuposição factiva na sentença “João lamenta a morte do pai”, porque para ser verdadeira ou para ser falsa é preciso que seja verdade que o pai de João te nha morrido. Falamos em pressuposiçã o factiva quando a sentença pressupõe que houve um evento.
I n te r v a lo II I:
I n te r v a lo IV :
Segundo a Semântica da Enunciação, a sentença pode comportar uma negação polêmica — Meu livro não foi reeditado, porque não tenho livro — ou uma negação m etalingüística — Não é verdade que meu livro foi reeditado. A sentença exibe a seguinte estrutura: E,: Eu tenho um livro. E,: Este livro foi reeditado. O enunciador E3pode ou negar E, ou negar E,. A Semântica Formal descre vería esta sentença como ambígua. Num caso, a nega ção teria escopo sobre a pressuposição de que eu escrevi um livro, no outro, ela incidiría sobre a afirmação de que ele foi reeditado. Fala-se aqui de duas formas lógicas distintas. A prim eira sen tença é um caso de m asSN, porque h á pres ença de um enunciador que nega fortemente a fala “João está cansa do” e outro que repara a descri ção desta fala: “João está deprimido”. Na segunda trata-se de um maspA, porque a primeira sentença, “João foi ao cabe leireiro”, nos leva a imaginar que João cortou o cabelo, precisamente a conclusão que é negada na segunda parte da sentença.
I n te r v a l o
V:
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A sentençá “João não saiu” pode comportar diferentes tipos de negação, depen dendo do encadeamento discursivo em que ela aparece. A negação pode ser descritiva ou metalingüística. O mesmo vale para a negação em “O céu não está azul” que, depen dendo do encadeamento lingüístico, pode ser descritiva ou metalingüística. Intervalo VI: Em termos argumentativos, (1) e (2) são bastante diferentes. A contribui ção de sentido proporcionada pelo até está no fato de que ele pressupõe uma escala de
valores, em que o presidente do Brasil está no topo. De modo que a presença do presi dente é um argumento para a conclusão de que a festa foi um sucesso. Na sentença (1) seguinte, argumenta-se em favor da tese de que João dormiu; ao passo que, na sentença (2), a escala argumentativa vai na direção do argumento “João não dormiu”. Intervalo __VII: As sentenças manifestam a presença de uma metáfora conceituai: TEMs
PO E DINHEIRO, tanto que podemos gastá-lo, economizá-lo, empregá-lo mal, investir nele... Há muitos exemplos que confirmam a metáfora conceituai ARGUMENTAÇÃO ✓ _ __ E UMA GUERRA. Eis alguns: “Vou defender minha tese hoje”; “Ele não soube se defender da acusação”; “Ele atacou meu ponto de vista”. Intervalo VIII: Há aves que não voam, portanto, voar não é uma propriedade essencial
das aves. Há outras coisas que voam e não são aves, por exemplo os insetos. De onde se conclui que essa propriedade não é suficiente para caracterizar a categoria AVE. A categoria MÃE se organiza ao redor da idéia de progenitora e de ser aquela que cuida da criança, a provedora. Há metonímia porque animal de estimação é uma categoria superordenada com relação à categoria de nível básico. BIBLIOGRAFIA
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P R A G M Á TIC A Joana Plaza Pinto
1. UN HAS GERAIS
De que tratam os estudos lingüísticos que se classificam como “pragmáti cos”, ou pertencentes à área da Pragmática? Essa é uma pergunta que pode gerar respostas tão variadas quanto o número de pessoas que se dispuserem a respondê-la. Um número muito grande de trabalhos, com temas e objetivos os mais diversos, circula nos periódicos e outras publicações declaradamente inse ridos no domínio da Pragmática. Pode-se, no entanto, a partir de um grupo mais ou menos coeso desses estudos, procurar delimitar a Pragmática, admitindo a diversidade. Vamos assim tentar compreender um pouco da história da consti tuição dessa área tão heterogênea, procurando ao mesmo tempo evidenciar o que, em meio a diferentes perspectivas, toma possível reconhecer certos tipos de estudos lingüísticos como pragmáticos. Mesmo que se admita a variedade presente na Pragmática, também se deve admitir que as autoras e autores desse domínio têm certos pressupostos em co mum. Haberland & Mey (1977), editores doJournal ofPragmatics, na primeira edição desse periódico, afirmam que a Pragmática analisa, de um lado, o uso concreto da linguagem, com vistas em seus usuários e usuárias, na prática lingüística; e, de outro lado, estuda as condições que governam essa prática. As sim, em primeiro lugar, a Pragmática pode ser apontada como a ciência do uso
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lingüístico. As pessoas que a estudam esperam explicar antes a linguagem do que a língua. Essa afirmação é decorrente da dicotomia clássica saussureana língua/fala: Saussure (1991) defende que a língua, que seria o objeto de estudo da Lingüística por excelência, é a linguagem menos afa la ', enquanto a Pragmá tica se inicia justamente defendendo a não-centralidade da língua em relação à fala. Em outras palavras, a Pragmática aposta nos estudos da linguagem, levan do em conta também a fala, e nunca nos estudos da língua isolada de sua produ ção social. Dessa forma, os estudos pragmáticos pretendem definir o que é lin guagem e analisá-la trazendo para a definição os conceitos de sociedade e de comunicação descartados pela Lingüística saussureana na subtração da fala, ou seja, na subtração das pessoas que falam. Um segundo ponto acordado entre os estudiosos e estudiosas dessa área é que os fenômenos lingüísticos não são puramente convencionais, mas sim com postos também por elementos criativos, inovadores, que se alteram e interagem durante o processo de uso da linguagem. Numa pequena fita cassete, -com uma gravação curta de alguém conversando com um lingüista, vamos escutar tre chos do tipo: (D Entrevistadora: Então ela largou o namorado? Entrevistada: Eu vi ela largar... largou sim... largou a ele... Entrevistadora: A ele? Entrevistada: é, a ele, sim; a ele... largou a ele aquela vida infeliz que eles tinham juntos... largou a ele.
Repare que a entrevistadora tem um impasse de interpretação da fala da entrevistada porque esta última cria uma estrutura “alterada”, um objeto indire to inesperado, no entanto de extrema importância para o entendimento, não só do que a entrevistada queria dizer, mas principalmente das possibilidades ex pressivas de inovações lingüísticas. O que vemos aqui não é poesia, ou variação lingüística. Ainda que poesia e variação expressem esse mesmo tipo de situa ções criativas, esse diálogo (1) é a prova de que não é produtivo descrever a linguagem como um sistema delimitável, mas sim que esta deve ser trabalhada1
1. Note que a definição de linguagem inicialmentc utilizada pela Pragmática é bastante divers outras áreas da Lingüística (cf. outros capítulos deste volume). Essa noção inicial de linguagem como o somatório da língua mais a fala é própria do estruturalismo, metodologia de estudos sociais fundada por Ferdinand de Saussure, e inicialmente divulgada por Roman Jakobson, na Lingüística, e Claude LéviStrauss, na Antropologia. In: Dosse, F. História do estruturalismo. São Paulo, Ensaio, v. I e II, 1993.
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a partir da possibilidade de se juntar grupos de indícios sobre seu funcionamen to, tendo como limite possível um recorte convencional, não justificado por qualquer fator inerente à linguagem. Quando a análise lingüística é feita em outros moldes, trechos como de (1) são descartados como erros de uso do siste ma, ou, na melhor das hipóteses, exceção — “licença poética”. A variedade de materiais que são analisados nas publicações aceitas pelo Journal ofPragmatics nos ajuda a perceber que lingüistas estão se dedicando às situações de “exceção”, fundamentais na compreensão da linguagem em uso: diálogos colhidos entre falantes de uma comunidade, literatura, poesia, humor, e podemos ler mesmo trabalhos analisando material lingüístico-visual, como cartuns e propagandas. Explicar a linguagem em uso e não descartar nenhum elemento não-convencional: esses dois pontos comuns aos estudos pragmáticos formam uma li nha derivada da história da preocupação com o uso linguístico. No final do século XIX, a Filosofia iniciou um redirecionamento na forma de responder a suas perguntas. Desde Kant2, os estudos filosóficos passaram a ser entendidos como um conjunto de critérios para avaliar a maneira pela qual a mente é capaz de construir representações. Mais tarde, então, no final do século XIX, os estu dos filosóficos cunharam sua variante da filosofia kantiana, defendendo pri nci palmente que representação é antes lingüística do que mental, e que se deve refletir antes em filosofia da linguagem que em crítica transcendental3. Assim, objetivos filosóficos de discutir e descrever nossa representação do mundo res paldaram um movimento em direção às usuárias e usuários da linguagem, acar retando uma tendência análoga no âmbito da Lingüística. A Pragmática é fruto desse movimento em direção aos problemas relativos ao uso da linguagem, por isso, ao estudarmos a constituição dessa área, devemos acompanhar também um pouco da história dos grupos filosóficos que a influenciaram. 2. CORRENTES DA PRAGMÁTICA ê
Como a Pragmática é uma área genericamente definida por pesquisar so bre o uso lingüístico, os temas escolhidos para análise são amplos e variados. Em publicações da Pragmática podemos ler estudos teóricos sobre a relação entre signos e falantes, como é o caso do estudo de Mey (1985), que procura
2. Immanuel Kant foi um filósofo alemão que viveu entre 1724-1804. Exerceu grande influência no pensamento ocidental, procurando caracterizar os limites, alcance e valor da razão. 3. Para maiores detalhes, consultar Rorty (1994), especialmente a Introdução e o Capítulo I.
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debater o lugar da linguagem na sociedade, de uma perspectiva marxista, discu tindo o conceito de manipulação lingüística. Também encontramos levantamento de aspectos de diálogos entre falantes de uma mesma comunidade ou comuni dades diferentes (Verschueren & Bertuccelli-Papi, 1987). Observe o diálogo a seguir: ( 2)
A: Você viu meurato por aí? B [apontando um rádio ao seu lado]: Está aqui rádio. o A: Não, é orato mesmo. Meu rato de borracha. B compreende a palavra rato, mas considera Io) a improbabilidade de al guém estar procurando seu próprio rato (!); 2o) a proximidadeconcreta [ao seu lado] de um objeto efonológica da palavra que se refere a esse objeto. Assim, uma análise pragmática desse diálogo deve considerar tantos aspectos da estru tura da própria língua quanto aspectos relacionados ao usuário ou à usuária (a situação que ele/ela vivenciajl Um outro tipo de tema comumente levantado pelos estudos pragmáticos são os funcionamentos e efeitos de atos de fala. Atos de fala é um conceito proposto pelo filósofo inglês J. L. Austin para debater a realidade de ação da fala, ou seja, a relação entre o que se diz e o que se faz — ou, mais acuradamente, o fato de que se diz fazendo, ou se faz dizendo. Discutiremos melhor esse con ceito na seção 2.2. Por enquanto, vale ressaltar que, cada qual com seu critério, alguns estudos procuram, por exemplo, classificar os atos de fala de acordo com seus efeitos. E o caso de Benveniste (1991), que pretende classificar os atos de fala. De um lado teríamos aqueles atos que seriam compostos por um verbo declarativo jussivo na primeira pessoa do presente mais uma afirmação, como: ✓
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Eu ordeno que você saia.
Ainda que ele não explique detalhadamente o que seriam esses tipos de verbos, na lista dos “declarativos-jussivos”, Benveniste inclui ordenar, coman dar, decretar, o que nos leva a perceber esses verbos como estabelecendo uma relação entre “declaração de uma ação” e “jus à posição de autoridade para tal ação”. Assim, ordenar não só explicita, “declara” a ação feita por quem fala, como este deve estar apto a fazê-lo. No caso do exemplo (3), “ordenar” é o verbo declarativo-jussivo, e “você saia”, a afirmação. De outro lado, Benveniste propõe outro conjunto de atos de fala, atos estes que seriam compostos por um verbo com complemento direto mais um termo predicativo, tal qual:
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(4)
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Proclamo-o eleito vereador.
Essa classificação proposta por Benveniste não é a única e mesmo pode ser firmement e contestad a (veja Ottoni, 1998). O mais importante é se perceber que, ao selecionar, entre tantos fenômenos de linguagem em uso, quais devem ou não ser estudados, e a quais perguntas devem ser submetidos tais fenômenos , os autores e autoras da Pragmática acabam por fazer aparecer suas diferenças. A influência de grupos filosóficos nessas seleções de objetos e métodos é patente e será usada aqui para delimitar as diferentes correntes de estudos pragmáticos. São elas três correntes. O pragmatismo americano, influenciado pelos es tudos semiológicos de William James; os estudos de atos de fala, sob o crédito dos trabalhos do inglês J. L. Austin; e os estudos da comunicação, com preocu pação firmada nas relações sociais, de classe, de gênero, de raça e de cultura, presentes na atividade lingüística. Vale a pena observar que, entre os autores e autoras que são referência para a Pragmática, também estão os franceses Oswald Ducrot e Émile Benveniste, e o americano H. P. Grice. Até o final da década de 1980, muitos trabalhos cuja orientação teórica está fundamentada nesses autores incluíamse na área da Pragmática. Entretanto, a evolução de seus trabalhos conferi ram-lhes campos de estudos e métodos hoje separados dos pragmáticos. A Semântica Argumentativa e a Análise da Conversação são duas correntes outrora partici pantes do movimento que integro u com ponentes pragm áticos aos estudos lingüísticos. Neste momento histórico da Lingüística, são mais enriquecedoras quando estudadas como áreas diferentes. Mas não estranhem a leitora e o leitor se encontrarem , ainda hoje, os nomes desses a utores as socia dos de alguma forma à Pragmática4. 2.1. Pragmatismo americano
Foi o filósofo americano Charles S. Peirce o primeiro autor a utilizar a How toemake ideasdivulgadas clear, de 1878. palavra pragmatics, no seu artigo Peirce exerceu influência sobre vários filósofos assimour foram suas idéias sobre a tríade pragmá tica. Essa tríade representa a relação entre signo, objeto e interpretante. O que Peirce procurou destacar ao postular essa tríade foi a ne cessidade de se teorizar a linguagem levando-se em conta o que sempre foi lembrado na Lingüística, ou seja, o sinal , mas também aquilo a que este sinal 4. Para maiores detalhes, consultar os capítulos “Semântica” e “Análise da Conversação”, neste volume.
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remete e, principalmente, a quem ele significa. Num dos trechos de sua obra, Peirce explica:
[Os que se dedicavam ao estudo] da referência geral dos símbolos aos seus obje tos ver-se-iam obrigados a realizar também pesquisas das referências em relação aos seus interpretantes, assim como de outras características dos símbolos e não só dos símbolos, mas de todas as espécies de sinais. Por isso, atualmente, o ho mem que pesquisa a referência dos símbolos em relação aos seus objetos será forçado a fazer estudos srcinais em todos os ramos da teoria geral dos sinais5. /
E bom ressaltar que a idéia da tríade pragmática e toda a teoria que a acompanha são complexas. Peirce fez um trabalho prolongado, procurando ex plicar exaustivamente os componentes de sua teoria do signo, definindo e sub dividindo cada um dos itens para explorar ao máximo sua capaci dade explicativa e seu alcance teórico — só os sinais ele subdividiu em dez classes principais! Devemos aqui nos deter na repercussão de seu trabalho, na sua proposta principal de expor todos os aspectos da relação símbolo-objeto-interpretante. Os dois principais seguidores de Peirce, e que passaram adiante interpretações da obra deste autor, foram William James e Charles W. Morris. Ao travar contato com o círculo de filósofos de Viena, Morris sabe da proposta de Rudolf Camap de dividir as investigações sobre linguagem em três campos: a Sintaxe , que trataria da relação lógica entre as expressões; a Semân tica , que trataria da reiação entre expressões e seus significados; e a Pragmáti ca, que estaria responsável p or tratar da rel ação entre expressões e seus locuto res e locutoras. Repare que essa partição ternária lembra muito os três pontos cruciais da significação para Peirce: o signo propriamente, em Camap destaca do pela idéia de que uma área, a Sintaxe, poderia tratá-lo; o significado, ou a que remete o signo, tratado na Semântica; e a pessoa que interpreta o signo, tratado, de acordo com Camap, pela Pragmática. Essa proximidade entre os dois raciocínios entusiasma Morris. Em 1938, Morris atesta, com Foundations o f the theor y o f signs6, a doutrina pragmática de Peirce, defende a interdepen dência, combatendo a hierarquização dos três campos. Assim, Morris mostra-se fortemente influenciado pelo grupo de empiricistas de Viena, mas, ao mesmo tempo, busca minimizar a força da separação entre os três campos de estudo, o que, conseqüentemente, afastaria, na prática da pesquisa lingüística, os três ele-
5. Peirce (1906) citado em Odgen, C. K. & Richards, I. A. Janeiro, Zahar, 1972, p. 280. 6. Citado em Schlieben-Lange (1987).
O significado do significado.
Rio de
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mentos da tríade pragmática. Entretanto, ainda que esse gesto de Morris seja bastante apropriado ao pensamento de Peirce, é forte a ascendência do empirismo lógico em seu pensamento, fazendo com que sua obra se direcione para outros ciência unitária caminhos, como, por exemplo, para fundamentar a doutrina da defendida pelos empiricistas. Seguindo outro caminho, o filósofo William James aproveitou de Peirce a idéia de refletir no âmbito da filosofia sobre os sinais e seus significados. Ao escrever o ensaio Philosophical conceptions and practical results, em 1898, vinte anos depoi s que Peirce havia utilizado a palavra pragmatics, James cunha pragmatism e inaugura o que ficou conhecido como Pragmatismo americano. Mas as idéias de James só vieram a causar im pacto no século XX , sob a égide d e novos filósofos empenhados em definir a filosofia, e também a linguagem e o conhecimento, como uma prática social. A definição mais popular de J ames é a de verdade como “o que é melhor para nós acreditarmos”. Essa fórmula é bas tante polêmica, e valeu ao adjetivo “p ragm ático” a definição de “aquilo que tem aplicações práticas, voltado para a ação”. Desde Platão, que discutiu com certa con stância a questão “A que se pode chamar corretamente verdadeiro ou falso?”, a maior parte dos textos filosófi cos, especialmente influenciados pela lógica clássica, até então tinha definido verdade como um conceito que está fora das pessoas, pois o que é verdadeiro estaria sempre em conformidade com o mundo. Desse modo, a verdade seria suscetí vel de ser encontrada e confirmada. Esse conceito de verdade sem pre foi extremam ente importante para a definição de significado, pois a conceitu alização deste último girava em tomo da correspondência entre o mundo e a palavra. William James, por meio de sua reflexão filosófica baseada em componentes pragmáticos, valoriza a pessoa que fala como detentora do próprio significado, já que a verdade, palavra-chave na compreensão da relação entre mundo e lin guagem, nada mais é que aquilo que todos e todas nós, inseridos/as num a comu nidade, queremos que ela seja . Repare co mo essa posição de James desloca com grande força o tratamento do significado lingüístico, porque impele o debate acerca da verdade para o terreno do imprevisível: as pessoas sociais. No mo mento em que ele relativiza a noção de verdade, atinge em cheio todo o discurso sobre a possibilidade de conhecimento de f ato , pois duvida da própria idéia de confirmação no mundo deste conhecimento. *
E o americano Willard V. Quine quem inicia um grande empen ho em pros seguir as idéias pragmatistas de James e Peirce. Quine, como Morris, também estuda o empirism o lógico do Círculo de Vien a, mas aban dona de vez o vocab u lário logicista e reforça m uitas das idéias de Peirce, reformu lando-as no que ele
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chamou de pragmatismo radical. Sua atitude contra a tradição lógica é ousada. Com Quine, podemos aprender que muitos argumentos utilizados pela Semânti ca lógica para sustentar a exclusão do/a usuário/a na análise do significado são questionáveis em sua própria condição de argumento válido. Para entendermos o radicalismo da proposta pragmática de Quine, deve mos nos deter um pouco na questão dadeterminação da referência, e procurar mos perceber como Quine levanta o problema de que determinar o objeto refe rido por uma expressão é uma questão muito mais séria do que simplesmente encontrá-lo ou não no mundo. Muitas dificuldades podem ser levantadas para se apontar um objeto referido. Quine (1980), defendendo que aindeterminação da referência permanece não importa com qual tipo de expressão referencial estejamos trabalhando, apresenta a situação do uso de expressões demonstrati vas. A sentença (5)
Esta mesa está quebrada.
proferida numa situação similar à ostensão, não deixa de produzir perguntas: o que está sendo referido para o predicado “está quebrada”: a quina da mesa? o pé da mesa? as dobradiças? Se concordamos com Quine, essas perguntas não são realmente problemas referenciais. E perfeitamente aceitável, do ponto de vista de qualquer falante, que permaneça a indeterminação da parte da mesa que está quebrada. A apreensão do objeto referido fica assim fragmentada, e não mais s
transparente. Com exemplos como este, Quine está defendendo a tese de que a referên cia é impenetrável, no sentido de que não se pode determinar “com toda certe za” o alcance da expressão referencial no mundo. É afamosa tese dainescrutabilidade da referência, a base de sua visão holista. A inescrutabilidade da referên cia é a prova cabal de que as discrepâncias entre significações só podem ser teorizadas a partir da sua condição pragmática. Quine (1968) nos explica isso mostrando que um lingüista em pesquisa de campo, que ouve um nativo dizer “gavagai” apontando para um coelho que passa, só pode interpretar pragmaticamente esse ato. Nada garante que “gavagai” possa ser traduzido como “coe lho” ou “parte de coelho” ou “coelho andando”. Sua tradução só pode ser feita a partir da prática lingüística que o produziu. Outros dois estudiosos do Pragmatismo americano que se destacam são Donald Davidson e Richard Rorty. Ambos admitem créditos por suas idéias aos trabalhos dos filósofos James Dewey e L. Wittgenstein. Estes últimos autores acrescentaram uma perspectiva historicista aos estudos pragmáticos america nos, defendendo que as investigações dos fundamentos da linguagem podem
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ser consideradas uma prática social contemporânea. A Teoria da coerência elaborada por Davidson (1986), e respaldada pelas críticas de Rorty (1994) à tradição analítica7, delineia um arcabouço teórico para tratar a coerência inter na , e não a verdade, como o elemento que sustenta qualquer sistema interpretativo. Sua defesa polemiza, portanto, em tomo daquela noção clássica de verda de que citamos anteriormente, e contrapõe-se à Teoria da Correspondência, presente na definição clássica de significado. Essa última sustenta que senten ças e coisas no mundo podem ser relacionadas a fim de calcular valores de verdade dessa relação. Para Davidson, se há coerência, pouco importa o valor de verdade dessa correspondência. Dessa forma, o que Davidson qu er mostrar é que as atitudes proposicionais de uma pessoa, sua fala, crenças e intenções são verdadeiras porque existe um princípio legítimo que diz que qualquer uma das atitude s proposicionais do/a fala nte é verdadeira se ela é coerente com o conjunto de atitudes proposicionais desse/a mesmo/a falante. Tomemos um exemplo: ( 6)
A: Estou pensando em assistir ao carnaval em Olinda. Você, que é de lá, sabe se tem muito barulho? B: Não, tem polícia, é tudo bem organizado. A: A polícia não deixa ter muito samba? B: Não, a polícia não deixa as pessoas bagunçarem as ruas. A: Não, não foi isso que eu quis dizer. Eu não estou falando de barulho como bagunça, estou falando de barulho de batida de samba.
Esse trecho ilustra o que, entre lingüistas, é conhecido como “mal-enten dido”, um momento no diálogo em que não há coincidência de interpretação entre participantes. Muitos estudos têm procurado estabelecer padrões para a “resolução” desses chamados mal-entendidos, justifican do, por exemplo em (6), que a expressão “barulho” é empregada com diferenças culturais suficiente mente marcantes para causar diferença também na interpretação preferenc ial de tal expressão. Um exemplo deste tipo de idéia de que mal-entendidos são erros e devem ser resolvidos é um texto de M. Dascal (1986) chamado A relevância do mal
7. Tradição analítica é entendida aqui no sentido de Rorty (1994) como aquele vocabulário filosófi que se inicia com os trabalhos do filósofo alemão Frege, e que baseia toda a argumentação para a defesa de que significar é representar alg o que está fora da linguagem, seja fora porque está no mundo concreto, seja fora porque está no “pensamento” ou “sentimento”, entendidos estes últimos como conceitos abstratos, não ligados a nenhuma prática cotidiana de linguagem.
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entendido ’8. Não se iludam pelo título. O texto de Dascal procura responder com especial ênfase à questão sobre a relação entre entender e mal-entender. De acordo com esse autor, o mal-entendido relaciona-se com o entender na medida em que ambos estão ligados a camadas de um esquema conversacional que é sempre utilizado pelos interlocutores e interlocutoras na atividade de linguagem. Dascal pretende mostrar que o mal-entendido deve ser tratado como um fenômeno importante no trabalho com a linguagem. Mas ele defende que, de fato, esta relação entre entendimento/mal-entendido é importante na medida em que revela o funcionamento do entendimento. Dessa maneira, como toda dicotomia, esse par não passa de uma hierarquia camuflada, em que o mal entendido é um “mau funcionamento” do esquema de significação harmônico. Como em toda hierarquia, um elemento se sobrepõe ao outro, e, sem dúvida, neste caso, não é o mal-entendido o membro positivamente valorado do par. Seu enfoque não é para integrar propriamente o mal-entendido ao esquema interpretativo, mas sim criar um mecanismo que o evidencie e ao mesmo tempo permita corrigi-lo. Podemos compreender que Dascal considere “um tanto pa radoxal” defender a importância do mal-entendido em sua análise: a relação que o autor defende entre entender e mal-entender não pode efetivamente inte grar o segundo elemento ao esquema interpretativo; ao contrário, sua importân cia “paradoxal” está em ser levado em conta para ser eliminado. Esse texto de Dascal nos serve de exemplo da forma como têm sido trata dos os fatosevitadas, lingüísticos que resultam intempéries serem corrigidas, impedidas. Quandono ummal-entendido: autor como Dascal defendea que se deve corrigir um mal-entendido, é porque ele pressupõe que a noção de entendi mento deve ser mantida intocada. Mas uma análise linguística baseada nos debates de Davidson e Rorty acerca da coerência de sistemas interpretativos ilumina outros ângulos da questão do mal-entendido. Por que pensar em “mal-entendido” se existe apenas coerência interna nos sistemas interpretativos? Duas pessoas de culturas diferentes po dem encontrar dificuldades em manter um diálogo produtivo, sim. Mas também pessoas de mesma cultura lidam com situações como a anterior, pois cada uma encaminha suas interpretações de maneira singular. Teorizar dessa forma sobre linguagem não tem nada a ver com pensar que cada qual diz o que quer e enten de quem puder. A idéia de coerência interna em sistemas lingüísticos nos diz, 8. Uma análise detalhada desse texto de Dascal (1986) e uma discussão mais aprofundada sobr motivações em tomo da manutenção de um modelo harmônico de “entendimento” encontram-se em Pinto (1998).
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muito mais apropriadamente, que é inadequada a argumentação em tomo de “mal-entendido”, pois o processo que acarreta esse fenômeno desconcertante dos diálogos cotidianos é parte coerente de uma interpretação, e não deve ser encarado como “erro” ou “inadequação” de significado. Dessa forma, podemos afirmar que a conversação humana é, para essa corrente da Pragmática mais do que para qualquer outra, uma prática lingüística. Prática entendida como sempre social, e no sentido que colocou James, como “aquilo que é melhor para nós”, no caso, falarmos, praticarmos como lingua gem. O Pragmatismo americano oferece, então, bases filosóficas para uma aná lise lingüística que relacione a todo momento signo e falante, antes de qualquer coisa, compondo ambos o que se chama de fenômeno linguístico.
2.2. Atos de fala
G. E. Moore assistiu a cursos proferidos por Wittgenste in e definiu o p samento desse autor como um desvio no desenvolvimento da tradição filosóf ica (Silva, 1980). O que ele chamou de “desvio” seria um encaminhamento das preocupações dos estudiosos para a linguagem corrente. É Moore quem faz repercutir entre os filósofos da Universidade de Oxford esse redirecionamento. Autores como Gilbert Ryle, John Langshaw Austin e Peter Frederick Strawson seguem as indicações de Moore e de Wittgenstein para examinar a linguagem corrente como fonte de solução para os problemas filosóficos. É o movimento que ficou conhecido como Filosofi a Analítica ou Filosofia da Linguagem Ordi nária, e que tem como resultado principal para os estudos lingüísticos a Teoria dos Atos de Fala.
Depois do impacto do ensaio de Ryle, Systematic misleading expressi ons, de 1932, foi aberto o espaço para se debater como as construções gramaticais podem levar a confusões lógicas ineficientes entre filósofos e filósofas. Na es teira dessa abertura, Austin foi quem melhor expôs o problema, discutindo a materialida de e historicidade das palavras. Seus estudos procu raram ref letir sobre a possibilidade de uma teoria que explicasse questões, exclamações e sentenças que expressam comando s, desejos e concessões. A Teor ia dos Atos de Fala, que tem por base conferências de Austin publicadas postumamente em 1962 sob o título How to do things with words (Austin, 1990), concebe a linguagem como uma atividade construída pelos/as interlocutores/as, ou seja, é impossível dis cutir linguagem sem co nsidera r o ato de linguagem , o ato de estar falando em si — a linguagem não é assim descrição do mundo, mas ação.
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INTRODUÇÃO À LINGÜÍSTICA
Uma das distinções mais importantes feitas por Austin nesta sua defesa dos atos de fala é entre os enunciados performativo s , como aqueles que realizam ações porque são ditos, e os enunciados constativos, que realizam uma afirmação, falam de algo. O exemplo abaixo: (7)
Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
é um enunciado performativo pois, como os anteriormente citados (3) e (4), “pratica” uma ação enquanto é enunciado. Somente proferindo “Eu te batizo” é que o padre pode batizar alguém, e isso é o que caracteriza, a performatividade. Por outro lado, Austin propõe a existência de enunciados constativos, como os representados pelo exemplo abaixo: (8)
A mosca caiu na sopa.
Neste caso (8), não havería uma ação praticada, ao contrário, a ação [a mosca cair na sopa] já ocorreu e provavelmente por isso há o enunciado. A análise dos contrastes entre esses tipos de enunciados, o performativo e o constativo, levou Austin a prosseguir no raciocínio e aventar a separação de atos níveis de ação lingüística através de enunciados. Ele propôs chamar locucionários aqueles que dizem alguma coisa; atos ilocucionários, aqueles atos que refletem a posição do/a locutor/a em relação ao que ele/a diz; e perlocucionários, aqueles que produzem certos efeitos e conseqüências sobre os/as alocutários/as, sobre o/a próprio/a locutor/a ou sobre outras pessoas. Esses três níveis atuam simultaneamente no enunciado. Para entender melhor, vejamos uma rápida análise: (9)
Eu vou estar em casa hoje.
Em (9), o ato locucionário seria o conjunto de sons que se organizam para efetivar um significado referencial e predicativo, quer dizer, para efetivar uma proposição que diz alguma coisa sobre “eu”. O ato ilocucionário é a força que o enunciado produz, que pode ser de pergunta, de afirmação, de promessa etc., o que, neste caso de (9), fica diluído entre uma promessa e uma afirmação, dependendo do contexto em que é enunciado. O ato perlocucionário é o efeito produzido na pessoa que ouve o enunciado: efeito de agrado, pois gostaria de estar mais tempo em casa com quem enunciou (9); ou efeito de ameaça, pois vai se sentir vigiada por aquela presença na casa, e assim por diante. Uma constatação importante é que os atos de fala são muitas vezes de
efeito ambíguo, podendo expressar tanto uma promessa quanto uma ameaça, e
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assim por diante. Para solucionar o dilema, falantes costumam se basear em indícios explicitados no momento da fala, ou amplamente percebidos na rela ção entre as pessoas que falam. Dessa forma, podemos dizer que os atos de um enunciado ocorrem simultaneamente, são relativos ao contexto de fala e às pes soas que falam, e são interpretáveis com uma amplitude muitas vezes difícil de ser descrita nos limites de uma análise lingüística. Nos cursos que deram origem à obra How to do things with words, Austin dedica-se principalmente aos verbos performativos, ligando as realidades tanto verbal quanto não-verbal. O grande furor causado inicialmente pela idéia de performatividade tinha a ver com a impossibilidade, ditada pelo próprio Austin, de manter a distinção verdadeiro/falso para esses tipos de enunciados. Em 1958, num encontro de Royaumont — França, um filósofo questionou longamente Austin, argumentando que um enunciado performativo poderia ser sim verda deiro falso no que se relaciona que fala, ou no sentido do próprio ato em si.ou Austin respondeu de formaàquele insistente: Pode-se dizer de um ato que ele é útil, que é conveniente, que ele é mesmo sensa to, não se pode dizer que ele seja true or false. Qualquer que seja ele, tudo que posso dizer é que os enunciados desse tipo são muito mais numerosos e variados do que se acreditava9.
Neste famoso debate, para sustentar a impossibilidade de atribuição de valor de verdade para os enunciados performativos, Austin trata de mostrar como muitos enunciados com aparência de constativos são de fato performativos, como é o caso de “Eu te digo para fechar a porta”. Esse seu argumento desvela uma outra ousadia de Austin: ele próprio jamais sentiu inteira satisfação com a dis tinção constativo-performativo, e questionou-a, chegando mesmo a atestar a impossibilidade de sustentá-la. Austin finalmente estabelece que o tal de constativo nada mais era de fato senão um performativo mascarado10.
Mas a teoria austiniana firmou-se na Lingüística, de fato, pela via da interpretação de John Searle, em Speech acts, de 1969 (Searle, 1981). O tra balho de Searle empenhou-se no sentido de produzir um acabamento nas inú-
9. Austin, J. L. Performativo-constativo. In: Ottoni, P. R. nas, Editora da UNICAMP,1998, p. 132. 10. Rajagopalan, K. Dos dizeres diversos em tomo do fazer.
Visão performa tivo da linguag em. Campi D .E .L T .A ., v. 6, n. 2, 1990, p. 237.
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INTRODUÇÃO À LINGÜÍSTiCA
meras revi rav olta s11 que Austin efetiva em sua reflexão sobre a linguagem. Um exemplo disso é a taxonomia para os atos de fala proposta por Searle, que inclusive procurou deixar clara a distinção entre ato ilocucionário e verbo ilocucionário. Searle defendeu que os atos de fala possuem um componente básico: a proposição, o que orientaria, por meio de doze “dimensões de vari ação”, a sua classificação. Austin, por seu lado, também havia arriscado algu mas tentativas taxonômicas, mas percebeu cedo uma certa falta de nitidez para essa classificação1 12. Outros autores, como Jacques Derrida (1991), procuraram ler a obra de Austin com conseqüências bem mais radicais e problematizadoras que a organi zação proposta por Searle. Para autores como Derrida, a Teoria dos Atos de Fala não é uma simples bipartição entre enunciados constativos e enunciados performativos, ou um levantamento de níveis de ação lingüística. A teoria de Austin, para Derrida, expõe a dimens ão ética da li nguagem, porque leva às últi mas conseqüências a identidade entre dizer e fa zer e insiste na presença do ato na linguagem, e não aceita separação entre descrição e ação. Não existe assim diferença entre “dize r” (9) e a ação praticada em (9). Quando uma pessoa emite (9), ela pratica uma ação, e não descreve algo — a saber, “o fato de que vai ficar em casa hoje”. O ato locucionário, aquele que diz algo, é, portanto, uma abstra ção. Os diferentes níveis não existem senão na proposta de separação. Derrida assim interpreta a teoria da performatividade: O performativo não tem o seu referente (mas aqui esta palavra não convém sem dúvida, e constitui o interesse da descoberta) fora de si ou, em todo o caso, antes de si e face a si. Produz ou trans form a uma s ituação; opera 13.
Assim, os atos de fala são hoje fonte inesgotável de trabalhos na área da Pragmática, mas também na Lingüística em geral. Vale lembrar que se vascu lharmos outras áreas de estudos lingüísticos também encontraremos trabalhos que levam em conta os atos de fala em suas análises. Não se pode dizer propria mente que todos esses trabalhos são seguidores da teoria austmiana; mas o que de fato ocorreu foi que a popularização dos trabalhos de Austin, por intermédio de estudiosos e estudiosas francesas e principalmente da divulgação feita por
11. Incluem-se aí os questionamentos de Austin sobre o valor veritativo dos atos de fala, ou mesmo suas dúvidas sobre a distinção performativo-constativo. 12. Para um debate mais aprofund ado sobre a questão d a taxonomia para os atos de fala, ler Rajagopalan (1992). 13. Derrida, J. Assinatura, acontecimento, contexto. In: 1991, p. 363.
Ma rgens da Filosofia. Campinas, Papirus,
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Searle, abriu espaço para a preocupação com uma realidade lingüística bastante incômoda: o fato de que aquilo que dizemos tem efeito altera o sentido e fun ci onamento lingüísticos. No início da década de 1970, até as famosas árvores gerativistas incorpo raram os atos de fala em seus galhos. Com o tempo, esse fenômeno se abrandou, mas a leitora e o leitor vão encontrar em muitos trabalhos menções à Teoria dos Atos de Fala. Na Semântica, na Lingüística Textual, na Análise Conversacion al, na Análise do Discurso e em muitos outros lugares, para cri ticar ou reverenciar, para ser fiel a Austin ou para lhe fazer “consertos”, a Teoria dos Atos de Fala tem sido tanto um mero instrumento para explica r efeitos da linguagem em uso, como a relevância de uma promessa ou a eficácia de uma ordem, como no caso dos trabalhos de Searle (1981), quanto tem sido fonte de reflexão não somente sobre a prática do uso lingüístico mas principalmente sobre a teorização desta prática, como no caso das reflexões de Rajagopalan (1990).
2.3. Estudos da comunicação
Genericamente definido aqui como estudos da comunicação, esse grupo de pesquisas pragmáticas se caracteriza por ser um híbrido dos dois grupos an teriores. Híbrido porque podemos encontrar neste grupo autores que utilizam ambos os métodos descritos anteriormente, acrescentados muitas vezes de re novadas leituras do Pragmatismo americano ou da Teoria dos Atos de Fala. O que os toma diferentes dos demais é o crédito a teorias filosóficas historicistas que estavam em situação de ausência ou de pouca expressividade nas duas cor rentes anteriores. Desde quando os estudos marxistas promovidos em todos os campos das chamadas ciên cias sociais toma ram conta da Eu rop a14, questõ es rela tivas à co municação humana começaram a ser levantadas com a seriedade e a sistematicidade necessárias para firmar um novo paradigma. O pano de fundo dessas questões era especialmente a diferença de classes. Isso quer dizer que, de uma maneira geral, muitos autores e autoras se perguntavam o que significaria a diferença de classe social para a comunicação entre pessoas. Outras estudiosas e estudiosos, que não seguiram o ímpeto das investiga ções marxistas, também empenhado s sobre problemas relativos à comunicação, elaboraram perguntas sobre as perguntas que estavam sendo feitas e inaugura
14. Ver outros detalhes sobre os estudos marxistas no capítulo “Análise do Discurso”, neste volume.
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ram uma linha de inquirição para avaliar como estava sendo tratado o problema da comunicação no âmbito da Filosofia, da Linguística, da Etnologia e da s ciên cias sociais em geral. A reavaliação do conceito de cooperação é um exemplo de resultado des sa linha de inquirição. De acordo com Grice, o introdutor desse conceito, para haver comunicação seria preciso haver cooperação entre os usuári os. Seria pos sível inclusive levantar os princípios que regem o espírito cooperativo de comu nicação. Grice elaboro u, em mead os da década de 1960, um quadro de implicaturas conversacionais, ou seja, de regras que deveriam estar presentes no suces so de todo e qua lquer ato de lin guagem 15. Jacob L. Me y (1987) é um exce lente exemplo de como, a partir da Pragmática, é possível questionar severamente a cooperação comunicativa: ele discute como a noção de cooperação sustenta a ideologia da “parceria social”, pois apresenta o uso da linguagem como uma parceira igualitária e livre entre falantes. Seguindo uma linha crítica como a de Mey, atuais pragmatistas apostam em comunicação como trabalho social, realizado com todos os conflitos conseqüentes das relações na sociedade. Ou seja, os conflitos das relações entre ho mens e mulheres, entre professor/a e aluno/a, entre brancos/as e negros/as, ou entre judeus/judias e anti-semitas, podem ser identificados lingüisticamente. Acredito que você possa perceber facilmente essa linha argumentativa por meio da análise deste mesmo texto que você está lendo. Algumas pessoas, ao lerem um texto como este, sentem um certo desconforto com a presença cons tante do feminino na caracterização genérica, como “estudiosas e estudiosos da Pragmática”, o que significa a negação de que o masculino possa representar tanto homens quanto m ulheres. Outras pessoas talvez não se s intam desconfor tá veis, mas ao menos estranham essa insistência. Diante dessas reações se pode perguntar: por que manter o feminino nas caracterizações? Não pode o masculi no ser o genérico? Muitos estudos pragmáticos respondem a essas perguntas da seguinte forma: existem pesquisadoras pragmatistas, mulheres que estudam e produzem materiais de qualidade nos estudos introdutórios da Pragm ática? Sim; só para citar: Jenny Thomas (1995), Marcella Bertuccelli-Papi (1993), Brigitte Schlieb en-Lan ge (1987). Ref eri-la s pelo masculino é ser sexista, ou seja, é manter simbolicamente o masculino como melhor representante do gênero humano. Em trabalho baseado nas Propostas pa ra evitar o sexismo na linguagem, publi cado pelo Instituto da M ulher da Espanha, lemos:
15. Para maiores explicações, ver o capítulo “Análise da Conversação”, neste volume.
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Quando se estabelecem as normas lingüísticas de uma perspectiva sexista, se pre judica diretamente as mulheres e indiretamente toda a sociedade161 . 7
Assim, pragmatistas dos estu dos da comunicação, preocupado s/as em deba ter os conflitos sociais que são também lingüísticos, devolvem as perguntas com outra: por que não tomar visíveis lingüisticamente homens e mulheres? O desco n forto ou estranhamento produzido por uma ação assertiva (a de se textualizar também o feminino nas caracterizações de estudiosos e estudiosas) é prova de que conflitos entre homens e mulheres podem ser identificados lingüisticamente, se se considera a linguagem como um trabalho social pleno de conflitos sociais. Qualquer tentativa de descrição da comunicação que exclua aspectos so ciais é considerada inócua e ineficiente para a pesquisa pragmática. A lingua gem não é, portanto, meio neutro de transmitir idéias, mas sim constitutiva da realidade social. Não sendo “a realidade social” um conceito abstrato, mas o conjunto de atos repetidos dentro de um sistema regulador, a linguagem é sua parte presente e legitimadora, e deve ser sempre tratada nesses termos. Desde a Escola de Frankf urt, com os trabalhos de Jürgen Haberm as (1988) sobre a ação comunicativa, às teorias da desconstrução de Jacques Derrida, as mais diversas formas de pensar a linguagem como parte da realidade social, e não seu esp elho, estão sendo elaboradas. E ssa diversidade, se não ajuda a iden tificar temas definidos da Pragmática, pelo m enos tem im pedido a exclusão das mais variadas formas dos fenômenos da linguagem. Roy Harris (1981 ), por exemplo, defend e que somente levando-se em c on ta o que é metodicamente excluído na Lin güística tradicional podemos desmitificar as nossas idéias sobre as regras de funcionamento da linguagem. Assim, podemos perguntar: como usos inovadores e não-dicionarizados de palavras ou mesmo estruturas sintáticas da língua são tratados nas pesquisas? Ou: como a incoerência de ações produzidas por atos de fala são relegadas ao plano do “mal-entendido a ser corrigido”? Essas exclusões, quando debatidas, podem dar conta de problemas que atormentaram lingüistas durante muito tempo. Uma garotinh a que está na ponta dos pés, com o mato alcançando seus joelhos, diz: (10)
Olhe, mãe, vai certinho até minh as dobras'.'7
16. PROMUJER, Hacia un currículo no sexista. Puerto Rico, Universidad, 1992. 17. O exemplo é de Harris (1981) e o srcinal em inglês é o que se segue: “Look, mummy, it comes right up to my hinges”. Harris, R. The language myth. Oxford, Duckworth, 1981, p. 152.
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o que ela quis dizer? A mãe sabe, ainda que ela nu nca tenha ouvido esse uso de “dobras” . E nós que lemos o exemplo também o com preendemos. Uma situação como esta tem sido tomada pela Lingüística tradicional como exemplo para a distinção “necessária” entre conhecimento lingüfstico e conhecimento pragmá tico, ou conhecimento contextual, conhecimento de mundo etc., resumidamen te, a distinção entre conhecimento lingüfstico e conhecimento extralingüístico. Assim, o problema não é de fato levado a sério, pois reduz a questão a decidir entre a falta de conhecimento lingüfstico, ou a falta de conhecimento extralin güístico. Para os estudos da comu nicação atuais, a questão principal é “como a mãe sabe, se esse uso não é devido?”. Ou, com um pouco mais de crítica, “como o uso é indevido se a mãe sa be?” . Sendo o uso da linguagem lugar de conflit o, ele situa também negociações, modificações, recusas. Isso torna inevitável as ino vações, e mais inevitável ainda que para se falar em linguagem tenha-se que falar em fatos até então considerados como não-linguagem. Esses argumentos enfrentam a constante crítica de não estarem de fato “fazendo L ingüística” , mas sociologia, ou qualquer coisa do gênero. Afinal, em que interessariam proble mas que não legitimam a idéia de Lingüística como ciência? Dizer que lingua gem não é puramente convencional implica assumir a impossibilidade de des crever o fenômeno lingüfstico inteira e sistematicamente. O contra-argumento principal a essa crítica é que a demarcação dos limi tes entre linguag em e mundo, ou entre linguagem e sociedade é uma tarefa inglória e reducionista. Em outras palavras, pensar que incluir aspectos sociais chama dos “extralingüísticos” em uma análise leva ao risco de não se “fazer Lingüísti ca”, desvirtuando o campo sagrado do saber sobre a língua, é o mesmo que pensar que aulas de educação sexual vão fazer as pessoas terem mais relações sexuais. E uma desculpa frágil para não expor a própria frustração de não apre ender o objeto de estudo por inteiro. /
Defendendo essas posições, os estudos da comunicação seguem procuran do ampliar as possibilidades de objetos de estudo de lingüistas, tirando a criatividade do nível da mera estatística. 3
3. DIVULGAÇÃO E IMPACTO ATUAL DA PRAGMÁTICA No final da década de 1970 e início da de 80, a Pragmática começou a ser levada a sério. Nessa época os estudos que vinham discutindo os componentes pragmáticos da linguagem chamam a atenção e merecem várias publicações, entre periódicos e livros inteiros.
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Em 1977, inúmeros artigos autoproclamados pragmáticos são enviados para edição no recém-criado Journal ofPragm atics, que abre o primeiro espaço de prestígio para as pesquisas que se preocupavam com o uso lingüístico. Em 1978, Jef Verschueren publica a primeira bibliografia comentada sobre Prag mática. Logo em seguida, em 1979, Richard Rorty publica o seu A filosofia e o espelho da natureza , trazendo novamente para as rodas filosóficas as idéias de William James. Dois anos depois, em 1981, inicia-se a edição do Language and Communications oferecendo aos leitores e leitoras discussões centradas na prá The tica da comunicação humana. Nesse mesmo ano, Roy Harris publica language myth, questionando a ausência sistemática, nos trabalhos lingüísticos, de perguntas sobre aspectos criativos da linguagem. No Brasil, Marcelo Dascal edita, em 1982, uma coletânea de textos filosóficos clássicos para a consolida ção da Pragmática. Já pelos meados da década de 1980, outros trabalhos com perspectivas completamente diferentes, como de Jacob L. Mey, de 1985, e o de Brigitte Schlieben-Lange, de 1987, se acrescentam ao debate em tomo da per gunta “qual o objeto da Pragmática?”.
Está inflamada a área dos estudos pragmáticos. A atividade lingüística ganha um espaço cada vez mais freqüente na Lingüística. Trabalhos discutem a relação dos signos com a prática da linguagem para evidenciar o processo ino vador da conversação huma na. Aspectos lingüísticos são sistematicamente sub metidos a exame para valorizar sua condição de constituinte social. As varia ções sintáticas e fonológicas são estudadas pela sua significação social para os/as falantes. O bilingüismo é analisado como construtor e mantenedor das hierar quias sociais em países colonizados. Os relatos de mulheres são interpretados no que transmitem de suas auto-imagens e das imagens que o universo masculi no tem delas. Para pragmatistas que utilizam dados empíricos em seus trabalhos, ques tões sobre racismo e sexismo, sobre diferenças socioeconômicas, sobre ética ou sobre relações de poder não são mais consideradas como detalhes surgidos ao acaso em pesquisas centradas na língua pela língua. Ao contrário, a Pragmática está defendendo um quadro de pesquisa sobre, para e com os sujeitos sociais1*; um quadro metodológico que permita aos pesquisadores e pesquisadoras interagirem integralmente com suas informantes e seus informantes, discutir com elas e eles seus interesses e avaliar a repercussão de afirmações conclusi vas do trabalho teórico. *
18. Para maiores detalhes, consultar Cameron et al. (1993).
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Para pragmatistas que se dedicam a levantar problemas teóricos do estudo da linguagem, questões sobre o papel da linguagem na formação do sujeito, sobre a noção de unicidade e identidade linguísticas, sobre a imprevisibilidade e a criatividade como propriedades lingüísticas, sobre a própria condição do fazer teórico lingüístico não podem mais ficar relegadas ao plano das especulações. Conforme apontei na seção anterior, a criatividade é uma constante na realização da linguagem, de tal modo que leva a negociações, modificações, recusas, o que entre sociolingü istas é conhecido como fenômenos de variação e mudança'9. Isso leva à imprevisibilidade no sistema descrito: é impossível des crever e/ou prever todas as estruturas e combinações existentes numa língua. É fundamental perguntar-se como o signo mantém a sua unicidade, como conti nua sendo o mesmo através de repetições tão diferentes, e como, ao mesmo tempo, continua a ser intercambiável, como se sua unidade fosse fragmentada, fazendo, perdendo e refazendo todo tempo o próprio limite. É definidor pergun tar-se o que é identidade lingüística, e como ela se produz, tendo em vista que, ao contrário do que muitos/as lingüistas pensam, a linguagem não reflete o lu gar social de quem fala, mas faz parte desse lugar social: Identidade não pré-existe à linguagem. Falantes têm que marcar suas identidades assídua e repetidamente1920.
A repetição é necessária para sustentar a identidade, precisamente porque ela não existe fora dos atos de linguagem que a sustentam. Temas como esses, e as posições teóricas e éticas que os acompanham, são polêmicos porque estão sendo construídos para mostrar que o uso lingüístico não é, como queria Carnap, um dos componentes da linguagem, mas a única forma produtiva de se pensar os fenômenos lingüísticos. Dizer éfazer, a prática social que chamamos linguagem é, para a Pragmática atual, indissociável de suas conseqüências éticas, sociais, econômicas, culturais. No estágio de desenvolvimento atual das razões filosóficas que a forma ram, a saber, do Pragmatismo americano, da Teoria dos Atos de Fala e dos atuais estudos da comunicação, esta polivalente área da Lingüística não deixa de acompanhar e aprofundar todas as implicações teóricas do fato de que as manifestações e empregos da linguagem são paradoxalmente dependentes e re19. Recomendo que o leitor busque saber mais sobre variação e mudança e repare nas diferenças de enfoque entre a Pragmática e a Sociolingüística. Ver, então, o capítulo “Sociolingüística” (partes I e II) no volume I desta obra. 20. Cameron, D. Verbal hygien e. London, Routledge, 1995, p. 17.
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sistentes às usuárias e usuários. Nem centro nem periferia da linguagem, “falan te”, pela óptica da Pragmática, é tanto ator ou atriz da relação de inter compreensão quanto participante e reprodutor/a das instabilidades do processo de vida social que coordena essa ação. Espero que o leitor e a leitora possam ter compreendido um pouco de como aesgota. Pragmática consolidou como que a ciência lingüístico. campopragmá não se Muitosseainda são os temas podemdoseruso abordados numOestudo tico: tanto fenômenos concretos, quanto a própria teorização do fazer pragmático. No enfoque pragmático, o interesse por cada ponto a ser analisado é sempre um ganho quando não se quer deixar de fora da linguagem quem a faz existir: nós. BIBLIOGRAFIA
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A N A LIS E D A C O N V E R S A Ç Ã O A
Angela Paiva Dionísio
1. PARA INÍCIODE CONVERSA...
Os estudos mais recentes na área da interação verbal definem a linguagem como uma forma de ação conjunta (Clark, 1996;realizam Marcuschi, 1998a), que emerge quando falantes/escritores e ouvintes/leitores ações individuais, coordenadas entre si, fazendo com que tais ações se integrem, formem um conjunto. Usar a linguagem consiste, portanto, em realizar ações individuais e sociais. Estamos sempre fazendo algo com a linguagem. Conversar , por exem plo, é uma atividade social que desempenhamos desde que começamos a falar. No dia a dia, estamos conversando com alguém, convidando alguém para conversar, puxando conversa com um outro. Na década de 1980, em nosso país, foi lançado o primeiro livro nesta área com o título Análise da Conversação , de autoria d o professor Luiz Antônio Marcuschi. Segundo esse autor, “a conver sação é a primeira das formas de interação a que estamos expostos e provavelmente a única da qual nunca abdicamos pela vida afora”1. Quando se diz aqui “conversação” está se tratando de todas as formas de “interação verbal” existentes em nossa sociedade, embora alguns estudiosos dessa área a concebam 1 1. Marcuschi, L. A. Análise da conversa ção. São Paulo, Ática, 1986, p.14.
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como apenas as interações verbais face a face em que há “simetria de direitos e espontaneidade na realização do evento”2. Ainda segundo esse autor, é sugestivo, portanto, conceber a conversação como algo mais do que um simples fenômeno de uso da linguagem em que ativa o código. Ela é o exercício prático das potencialidades cognitivas do ser humano em suas relaç ões interpessoais, tor nando-se assim um dos melhores testes para a organização e funcionamento da cognição na complexa atividade da comunicação humana. Neste contexto a lín gua é um dos tantos investi mentos, mas não o único, o que permite uma análise de múltiplos fenômenos em seu entrecruzamento3.
A Análise da Conversação (AC) consiste numa abordagem discursiva que teve srcem na década de 1960, ligada aos estudos sociológicos, ou, mais espe cificamente, à Etnometodologia,4com os trabalhos de Harold Garfinkel, Harvey Sacks, Emanuel Schegloff e Gail Jefferson. Enquanto os sociólogos reconhe cem que a conversação nos diz algo sobre a vida social, ao procurarem respon der a questões do tipo “como nós conversamos?”, os lingüistas da Análise da Conversação perguntam “como a linguagem é estruturada para favorecer a con versação?” e reconhecem que a conversação nos diz algo sobre a natureza da língua como fonte para se fazer a vida social (Eggins & Slade, 1997). Para a Etnometodologia, os analistas devem ser sensíveis aos fenômenos interacionais, observando detalhes e conexões estruturais existentes no proces so interativo. Motivados por esses princípios, os estudiosos da AC, nestas três décadas de trabalho, procuram investigar os aspectos essenciais para a organi zação do texto conversacional. Hilgert (1989) aponta três níveis de enfoque da estrutura conversacional:5 a) macronível : estuda as fases conversacionais, que são abertura, fec ha mento e parte central e o tema central e subtemas da conversação; b) nível médio: investiga o turno conversacional, a tomada de turnos, a seqüência conversacional, os atos de fala6e os marcadores conversacionais; 2. Marcuschi, L. A. Perspectivas dos estudos em interação social na Lingiiística brasileira dos anos 90. Recife, 1998a, p. 7. (Mimeografado.) 3. Ibidem, p. 6. 4. A Etnometodologia “tem como objeto de estudo (a) as atividades práticas do cotidiano, o que implica (b) o caráter empírico desse estudo, além disso, supõe (c) um princípio de organização na realiza ção dessas atividades pelos membros do grupo social”. Hilgert, J. G. A paráfrase: um procedimento de constituição do diálogo. Tese de doutorado. PUC-SP, 1989, p. 80. 5. A análise desses níveis se encontra diluída no desenrolar deste capítulo. Em função disso, faremos agora apenas uma apresentação mais geral. 6. Ver o conceito de atos de fala no capítulo “Pragmática”, neste mesmo volume.
A N Á L IS E D A C O N V E R S A Ç Ã O
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c) micronível :
analisa os elementos internos do ato de fala, que consti tuem sua estrutura sintática, lexical, fonológica e prosódia7.
Dentre as razões que justificam o estudo da conversação, podemos apon tar: (i) é a prática social mais comum do ser humano, (ii) desempenha um papel privilegiado na construção de identidades sociais e relações interpessoais, (iii) “exige uma enorme coordenação de ações que exorbitam em muito a simples habilidade lingüística dos falantes”,8(iv) permite que se abordem questões en volvendo “a sistematicidade da língua presente em seu uso e a construção das teorias para enfrentar essas questões”9. Quando estamos conversando, estamos sempre abordando um ou mais de um assunto, um ou mais de um tópico discu rsivo 101, não importa se os temas são sérios, fundam entais para a vida dos interlocutores, para o bem-es tar do país, do mundo ou se estamos “jogando conversa fora”. O importante é a existência de algo e sobre o qual duas pessoas, pelo menos, estão conversando. O tópico discursivo pode ser definido como uma atividade em que há uma certa corres pondência de objetivos entre os interlocutores (Fávero, 1992) e em que há um movimento dinâmico da estrutura conversacional (Jubran et al, 1992), fazendo com que o tópico seja um elemento fundamental na constituição do texto oral. A organização tópica compreende duas propriedades básicas, que são a centração e a organicidade. A primeira propriedade diz respeito ao conteúdo, ou seja, diz respeito ao falar-se sobre alguma coisa, enquanto a segunda se refere às rela ções de interdependência que são estabelecidas entre os tópicos de uma conver sação. A conversa espontânea se constrói a cada intervenção dos interlocutores, ou seja, a elaboração e a produção ocorrem, simultaneamente, no mesmo eixo temporal. É uma atividade co-produtiva, que “nunca se pode prever com exati dão em que sentido o parceiro vai orien tar a sua interve nção”,11o que não signi7. Hilgert, J. G. Op. cit. A n á lise da co nve rs açã o. 8. Marcuschi, Marcuschi, L. L. A. A. Paulo, social Ática, na 1986, p. 5. brasileira dos 9. Perspectivas dos estudos em São interação Lingüística anos 90. Recife, 1998a, p. 6. (Mimeografado) 10. Uma das dificuldades encontradas pelos analistas da conversação se refere à definição do termo tópico discursivo, tendo em vista o “caráter vago e amplo do significado de assunto, e do conseqüente grau de subjetividade que preside a própria compreensão dessa noção”; (...) e o “fato de que a associação de assunto e tema toma a explicação circular, na medida em que o conceito de tema carece, igualmente, de uma definição precisa” (Jubran, C. C. A. S. et al. Organização tópica da conversação. In: Ilari, R. (org.) Gramática do Português falado . Campinas, Editora da UNICAMP, 1992, pp. 360-361. 11. Koch, I. G. V. São P aulo, C on texto , 1997, p. 116 . O texto e a construção dos sentidos.
INTRODUÇÃO À LINGUÍSTICA
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fica que sua organização seja caótica ou aleatória. As contribuições dos falantes devem demonstrar, de alguma forma, uma relação com o curso da conversa, pois a conversação é uma atividade semântica, ou seja, um processo de produ ção de sentidos, altamente estruturado e funcionalmente motivado. Durante uma conversação, recorremos freqüentemente a enunciados do tipo “isso me lembra”, “por falar “agora”, “mudando de assunto”, “voltan do ao assunto” para sinalizar queem”, estamos compartilhando cognitivamente da interação. Ainda empregam os enunciados do tipo “desculpe interromper a con versa de vocês, mas...” quando nos inserimos em interações de que não somos participantes. Marcuschi (1998a) destaca que “uma conversação fluente é aque la em que a passagem de um tópico a outro se dá com naturalidade, mas é muito comum que a passagem de um tópico a outro seja marcad a”.12A determin ação e a extensão de um tópico discursivo depende da anuência mútua dos interlocutores. A estrutura tópica serve, portanto, como “fio condutor de organização discursiva”, constituindo um traço fundamental para “definir os processos de entrosamento e colaboração entre os falantes na determinação dos núcleos comuns” e para “dem onstrar a forma dinâm ica pela qual a conve rsação se estrutu ra” 13. Há uma linearidade na construção do tópico discursivo, que garante a organicidade da interação, pois “o conjunto de relevâncias em foco em dado momento vai, paulatinamente, cedendo lugar a outros conjuntos de relevâncias, ligadas a aspectos antes marginais do tópico em desenvolvimento ou a novos conjuntos de mencionáve is que vão sendo intr oduzid os a partir dos já existe ntes” 14. Obser vando os segmentos (1) e (2) a seguir, conclui-se que há conversações em cada um deles e que há um tópico sobre o qual se constrói a interação. No segmento (1), dois interlocutores (Dora e Josué) discutem sobre uma viagem a ser realiza da (tópico discursivo) e no segmento (2), os três interlocutores [duas mulheres (M33 e M34) e um homem (H28)] discutem sobre o comportamento feministamachista de M34 (tópico discursivo). (D Josué:
Eu vou sozinho.
Dor a: Eu já diss e que eu vou com você. Josué : Eu não quero i r com você. Dor a:
E por quê?
12. Marcuschi, L. A. Perspectivas dos estudos em interação social na Linguística brasileira dos anos 90. Recife, 1998a, p. 14. (Mimeografado) 13. Ibidem. 14. Koch, I. G. V. Op. cit., p.116.
A N Á LI S E D A C O N V E R S A Ç Ã O
73
Josué: Porque eu não gosto de você. Dora (aflita):
E por quê?
Josué: Já te falei. Porque vocênão vale nada. Dora: Como é que você vai chegar lá, quer me explicar? Josué: Deixa um pouco de dinheiro pra eu comer. {Font e: C entral do Bra sil 9
, 1998, pp.44-45)
( 2)15
Contexto: Três alunos (duas mulheres (M33 e M34) e um homem (H28)) universitários do Curso de Letras conversando em uma sala, esperando começar a aula. Sabem da gravação, 01 H28
bora gente... tenho aula... ( ) daqui a () minutos
02 M33
sinceramente...se fosse se fosse uma oculta era muito melhor
03 H28
não... isso é besteira... o papo rola... a gente já falou aqui quem
04
é feminista...[M.H.
05 M34 06 H28
é você
07 M34
não tem nada a ver
08 H28
[do-minadora
09 M34
[dominadora não... é o seguinte... eu acho que... é um assunto
10
que não se entra em discussão porque são direitos iguais e
11
acabou-se se... então não tem o que discutir...
12 H28
mas... mas eu noto assim
13 M33
[[mas eu garanto que muita coisa
14 H28
[[eu acho eu acho é a autoridade...
15 M33
você você você é a favor do do machismo
16
por isso eu digo por isso eu digo que eu sou meio feminista
17 H28
você é uma feminista machista
18 M34
isso não existe
19 H28
é... existe... [você () do homem...
20 M33
[M.H.... é ((rindo))
.
\
•
[pera aí... você acha... pera aí... pera aí
21 H28
você acha machismo do homem... mas você é assim... veja
22 23
bem., você acha assim o machismo do homem... mas você tem que analisar assim a mulher pode ser machista pelo lado dela [tá entendendo?
24 M34 25 26
[lógico... admito ser que a mulher pode machista só que eu tô querendo dizer é o seguinte que [eu não sou feminista
15. Os textos orais utilizados neste artigo respeitam a form a de transcrição foram extraídos.
srcinal das fontes de on
74
27 28 29 30 31
INTRODUÇÃO À LINGÜÍSTICA
M33 M34 M33 M34
[mas ela é contra a mulher machista... sabia? eu sou a favor de direitos iguais... com isso eu não tô querendo é dizer que... é: o homem num deva... num possa ser cavalheiro [porque... [mas isso aí ele tá deixando... tá... não...
32 M33 isso faz parte do machismo... 33 M34 o cavalheirismo num faz parte do machismo {Fonte: Projeto Linguagem da Mulher, Elisabeth Marcuschi e Judith Hoffnagel, UFPE, 1989)
No que diz resp eito às co ndições de produção, é clara a distinç ão entre as Central do Brasil (1998), os interações. Em (1), fragmento do roteiro do filme interlocutores seguem um planejamento discursivo previamente elaborado, as sim como acontece nas novelas, nas peças de teatro, por exemplo. Esse tipo de interação simboliza a conversação artificial. Já em (2), fragmento de uma conversa informal entre pessoas conhecidas, é possível perceber que a interação se dá de forma natural e informal, tendo em vista que é relativamente nãoplanejada, ou seja, a construção da interação vai sendo “p lanejada e rep lanejada a cada novo ‘lan ce ’ do jog o da lingu agem ” 16. O planejam ento ocorre no mo me n to da i nteração, ou seja, a conv ersação é localmente planejada. Os interlocutores constroem conjuntam ente a inter ação, caracterizando a conver sação como uma ativi dade co-produtiva, tendo em vista que eles estão em penhados na produção Central do Brasil os personagens também do texto falado. E claro que em /
estão envolvidos na construção de sentido da interação, porém se trata de uma simulação das interações reais, naturais, entre os indivíduos na sociedade em que estão inseridos. O objeto de estudo da AC é justamente a conversação
natural , ou seja, aquelas que são produzidas em situações naturais. /
E importante destacar que a conversação natural apresenta variedades no grau de formalidade. Estabelecendo uma gradação do informal para o formal, podemos observar que há conversações mais informais, como as conversas es pontâneas, por exem plo, ao lado de outras bem mais formais, como as co nferên cias acadêmicas . Ao abord ar as diferenças en tre fala e escri ta, M arcuschi (1995) assegura que essas diferenças se dão dentro do “ continuum tipológico das prátic as sociais de produç ão textual e não na relação dicotômica de dois pólos opo stos” ,17pois as estratégias de formu lação textual que d etermina m o contínuo
16. Koch, I. G. V. Op. cit., p.63. 17. Marcuschi, L. A. Oralidade e escrita. Conferência pronunciada durante II Colóquio FrancoBrasileiro sobre Linguagem e Educação. Natal, UFRN, 26-28 de junho de 1995, p. 14.
ANALI SE D A C O N V E R S A Ç Ã O
apresentam variações estruturai s, léxicas e sintáticas, entre outras, ponsáveis pelas semelhanças e diferenças entre fala e escrita.
75
que são res
2. DADOS ORAIS: COMO TRATÁ-LOS?
Antes de prosseguirmos com a apresentação e análise de segmentos de textos conversaci onais, faz-se necessário comentarm os sobre o sistema de trans crição empregado nas transcrições dos dados orais. Como o corpus da AC deve ser constituído por conversações produzidas em situações naturais, é ne cessário que tais conversações sejam gravadas ou filmadas, para que o analista, após a sua transcrição e observação, possa com provar suas anális es. Essa tran s crição deve ser a mai s fiel possível, pois “a análise tem de se concentrar nec es sariamente na produção dos interlocutores e nunca em interpretações e adapta ções Nesse sentido, por exemplo, um grave equí voco do quepesquisador. o pesquisador completasse, com base emrepresentaria sua interpretação, um enun ciado incompleto ou incompreensível da gravação ou da transcrição, e subme tesse essa versão à análise”18. No livro Análise da conversação, mencionado anteriormente, é apresen tado, no capítulo 2, um sistema de transcrição para textos falados. Uma das observações feitas por Marcuschi (1986) diz respeito ao fato de “não existir a melhor transcrição ”19. De aco rdo co m os objetiv os da pesqu isa, o anal ista faz a transcrição assinalando o que é fundamental para suas análises. É necessário, no entant o, que a transcrição seja legível e sem sobrec arga de símbolos c omp li cados. No geral, as normas para transcrição têm seguido as orientações do Projeto de Estudo Coordenado da Norma Urbana Lingüística Culta (Projeto NURC). Essas normas estão sintetizadas no Quadro 3.1. A AC analisa materiais empíricos, orais, contextuais, consideran do tam bém as realizações entonacionais e o uso de gestos ocorridos durante o processamento da conversação. Expressões faciais, entonações específicas, um sorriso, um olhar ou um maneio de cabeça corroboram com a construção do sentidoum do enunciado está sendointeracional proferido, ou, podem substituir enunciado lingüístico lingüístico que no processo faceainda, a face. As conversas espontâneas que construímos cotidianamente estão repletas dessa mistura do verbal e do não-verbal. Steinberg (1988) sistematiza os recursos 18. Hilgert, J. G. A pa ráfrase: um proc edim ento de constitu ição do diá log o. Tese de doutorado. PUC-SP, p. 90. 19. Marcuschi, L. A. Análise da conversação. São Paulo, Ática, 1986, p. 9.
76
INTRODUÇÃO A LINGUÍSTICA
QUADRO 3.1. NORMAS PARA TRANSCRIÇÃO O corrências
1. Indicação dos falantes
Sinais
Exemplificação
os falantes devem ser indicados em linha, com
H28 M33
letras ou alguma sigla convencional
Doc. Inf.
2. Pausas
•••
não... isso é besteira...
3. Ênfase
MAIÚSCULAS
ela comprou um OSSO
4. Alongamento de vogal
: (pequeno) :: (médio) ::: (grande)
eu não tô querendo é dizer que... é: o eu fico até:: o: tempo todo
Silabação 5.
-
do-minadora 9•
6. Interrogação 7. Segmentos incompreensíveis ou ininteligíveis
9. Comentário do transcritor 10. Citações
ela é contra a mulher machista... sabia? bora gente... tenho aula... ( ) daqui
( ) (ininteligível)
8. Truncamento de palavras ou desvio sintático
eu... pre/ pretendo comprar
/
((
i
))
C6 >>
é ((rindo)) “mai Jandira eu vô dize a Anja agora que ela vai apanhá a profissão de madrinha agora mermo"
11. Superposição de vozes
[
H28. é... existe... [você () do homem... M33. [pera aí... você acha... pera aí... pera aí
12. Simultaneidade de vozes
[[
M33. [[mas eu garanto que muita coisa H28. [[eu acho eu acho é a autoridade
13. Ortografia
tô, tá, vô, ahã, mhm
A N A L IS E D A C O N V E R S A Ç Ã O
77
não-verbais normalm conversa em:
ente empreg ados pelos f alantes de uma dada língua numa
a) paralinguagem: sons emitidos pelo aparelho zem parte do sistema sonoro da língua usada;
fonador, mas que não fa
b) cinésica: movim entos do corpo com o gestos, postura, ex pressão facial, olhar e riso; c) proxêmica: a distância ma ntida entre os interlocutores; *
\
d) tacêsica: o uso de toqu es durante a interação; e) silêncio : a ausência de construções lingüísticas guagem20.
e de recursos da paralin
Steinberg (1988) diz que a paralinguagem é “uma espécie de modifica ção do aparelho fonador, ou mesmo a ausência de atividade desse aparelho, incluindo nesse âmbito todos os sons e ruídos não-lingüísticos, tais como as sobios, sons onomatopaicos, altura exagerada”21. Quanto aos gestos, os audí veis estão no campo da paralinguagem, enquanto os visuais podem ser anali sados no âmbito da cinésica. Para Steinberg, os atos para lingüísticos e cinésicos desempenham funções variadas no curso da interação e de acordo com essas funções podem ser classificados como lexicais (episódios não-verbais com significado próprio, como “Shhh” para indicar “fique quieto”), descritivos (“suplementam o significado do diálogo através dos ouvidos e dos olhos”), reformadores (“reforçam ou enfatizam o ato verbal”), embelezadores (m ov i^ .
—-
■
;
acidentais (aqueles que ocorrem menta-se o corpo todo para realçar a fala) e por acaso, sem uma função se mântica). Dessa form a, a in tera ção verbal se encontra estruturada em uma estrutura tríplice — linguagem, paralinguagem e ciné sica — ,22 exig indo d essa form a dos ana listas da oralida de uma p ostura interdisciplinar, uma vez que esses elementos estruturam a sociedade e são por ela estrutu rados.
Falamos, p ortanto, com a voz e com o corpo. Por isso , o sistema de trans crição deve contemplar informações que assegurem o registro desses aspectos. Para exem plificar o que estamos afirmand o, vejamos alguns fragmentos de con versas espontâneas, examinando a inter-relação entre atos lingüísticos, paralin güísticos e cinésicos e verificando algumas seqüências em que esses atos coocorrem. Os exemplos de (3) a (6) foram extraídos de Dionísio (1998) e nos 20. Steinberg, M. Os elementos não-verbais da conversação. 21. Ibidem, p. 5. 22. Ibidem, p.16.
São Paulo, Atual, 1988, p. 3.
.
INTRODUÇÃO A LINGUÍSTICA
78
mostram como são construídas indicações de pessoas, de objetos, de paisagens presentes no momento da interação: (3 ) 566 H03
é.. . o t em po num dá... pá chegá ... m elhoro m uito.. . aqui tá melho rado m uito. ..
567
num t em n em c omp ara... eu s aí daqui u ma época... eu e ra garo to
568
((apont a para uma m enina co m ap roximadam ente 8 anos
assim... assim
))t () uns dei zano ...
(4 ) 203 M 03
certas coisas... eu digo peraí.. . tinha um a bac ia conform e
204
baci a plástica que está próxima e m os tra )) um a bacia... de loiça.. . eu me iei aqui
205
assim (( demarca na bacia o nível da água colocada na
essa aqu i (( pega numa
época
)) eu bu tei água ...
(5) 49 7 P01
co mo é mer mo? de on de é a ter ra d o s enh ô e pr a on de é?
498 H 05
tá veno aquele ((aponta para vários coqueiros ao seu
499
que tem ali ?
500 P 01
esse gr and e? [ esse ma ior?
*
501 H05
[si m tô ven do ✓
p ra CA é m eu [ ... ] pra lá
504 P01
[ sim ]
505 H05
((apont a para frente))
aqui [... nessa nessa m and ioqu inha que tem
506 P01 507 H05
((aponta para o mais alto))
[ hum? ... sim esse ma ió [... esse ju n to do p eq u en in in lá... é do m aió
502 P01 503 H05
lado direi to)) esse pé de coco
aí nessa r oça .. .
[ do lado esquerdo? tá veno?
( 6)
201 M 03 e eu e u tava m orav a aqui na don a M ocinh a.;, ali naq uela vage dela. .. digo oxi. .. e 202
aquilo ligero assim
{Fonte: DIONÍSIO, A .
3.
tum tum tum.. . e eu espiei. .. eu digo eu num
tive m edo de
Im agens na oralidade. Tese de doutorado. UFPE, 1998)
COMO A CONVERSA SE ORGANIZ A?
Desde pequenos estamos convivendo com uma regra básica da AC, pois os mais velhos nos ensinam que devemosfalar um de cada vez. Esperar a vez para falar significa esperar a ocorrência de um lugar relevante para a transição
A N A L IS E D A C O N V E R S A Ç Ã O
79
(LRT), ou seja, esperar por marcas como pausas, hesitações, entonações descen dentes, uso de marcadores etc., na fala do nosso interlocutor. Um falante pode entregar, o direito de fala a um outro por meio de sinais que deixem claro que ele terminou de falar ou por meio de um convite ao outro para fal ar. Em outras pala vras, manda a regra que só após a conclusão de sua “fala” (de seu “turno”), o outro devetrês assumir a posição de falante. pensarmos num grupo interlocutor de pelo menos amigos, conversando entreMas si, basta durante um encontro descontraído ou, ainda, nas salas de aula quando o professor faz uma pergunta à turma e vários alunos respondem ao mesmo tempo, para percebermos que esta regra não é seguida. Freqüentemente, em sala de aula, estamos dizendo “vocês falaram ao mesmo tempo e eu não entendi nada” ou “um de cada vez”. Por outro lado, somos capazes de participarmos de uma interação com várias pessoas e nos entendermos perfeitamente. A falta de organização nesse tipo de interação é ape nas aparente, pois a harmonia e a organização nas conversações são muito relati vas.
O primeiro trabalho sobre a organizaçã o de turnos conversa cionais foi o de Sacks, Schegloff & Jefferson (1974). Para eles, a noção de turno engloba dois sentidos: (i) o de distribu ição de turno, ou seja, qu alquer locuto r tem o direito de tomar a palavra e (ii) o de unidade construcional, isto é, a fala elaborada no momento em que um indivíduo toma a palavra e se toma um falante. Com base^ nesses princípios, pode-se definir turno conversacional como cada interven ção dos interlocutores formada pelo menos por uma unidade construcional. Marcuschi concebe tumoa como “a produção de um falante ele está com a(1986) palavra, incluindo possibilidade de silêncio”, mas enquanto não considera tumo como “a produção do ouvi nte durante a fala de alguém, embora isto tenha repercussão sobre o que fala”23. No exemplo (2), já apresentado, temos 22 tur nos conversacionais, distribuídos entre os três interlocutores. A interação é cons tituída por meio de uma relação simétrica, ou seja, todos os falantes possuem o mesmo direito de fala. Os turnos podem ser identificados de acordo com os falantes no esquema a seguir: Retomada de exemplo (2) 01 H28 bora gente... tenho aula... ( ) daqui a ( ) minutos 02 M33 sinceramente... se fosse se fosse uma oculta era muito melhor 03 H28 não... isso é besteira... o papo rola... a gente já falou aqui quem 04 é feminista... [M.H. 05 M34 [M.H.... é ((rindo)) 23. Marcuschi, L. A.
Análise da conversação. São Paulo, Ática, 1986, p. 89.
tumo 01 tumo 02 tumo 03 tumo 04
INTRODUÇÃO À LINGÜiSTICA
80
turno 05
06 H28
é você
07 M34
não tem nvad er aa
08 H28
[do-minadora
09 M34
[dom inadora não ... é o seguinte... eu acho que... é um assunto
10
que não se entra em d iscussão porque são direit
11
aca b o u -se se... ent ã o n ão tem o q ue discutir...
12H28
mas... mas eu n
13 M33
[[m aseug aran toq u em u itaco isa
14H28
[[e u ach o eu ach o é a autoridade...
15 M33
vo cêvo cêv ocêéafav o rdodom ach ism o
16
po r isso eu di go po r isso eu di go qu e eu s ou m eio femi ni sta
17H28
vo cê é uma femi ni sta mac hi sta
18 M 34
turn06 o turno 07 -!► tumo 08
os iguai s e
tumo 09
oto assim tu rn o10
tumo 11 tu m o 12
turno 13
isso n existe ão
tu m14 o
19H28
é... e xi st e. .. [ vo cê () do ho mem. ..
20 M33 21 H28
[pera aí... você ach a... pera aí... pera aí vo cê acha m ach ism o do h om em ... m as você é assim ... veja
22
bem ., você acha assim o m achis m o do hom em ... m as você te m que anali sar
23
assim a mu lher pode s er ma chista pelo l ado d ela [ tá en tend en do ?
24 M34
tumo 15 turno 16 tu rno 1 7
[lógico... admito
25
ser que a m ulher pode m
26
seguin te que [eu não sou fem inista
27 M 33 28 M34
[m aselaéc o n traam u lh erm ach ista...sab ia? • eu sou a favor de direitos iguais.. . com isso eu não tô que rendo
29
é dizer que. .. é : o ho m em num deva. .. num possa ser cavalheiro
achista s ó que eu tô querendo dizer é o
30 M33
tu rno 19 # tumo 20 [por que. .. [mas
31 M34
is so aí el e tá deixa ndo.. . t á. .. não. ..
32 M33
isso faz parte do machismo...
33 M34
o cava lhe ir is mo num f az par te do machi smo
{Fonte:Projeto Linguagem
+ turno 18
da Mu lher, Elisabeth Marcuschi e
turno 21
tumo 22 Judith Ho ffnagel , UFPE, 198 9)
Os tumos, quanto ao desenvolvimento do tópico na seqüência conversacional, podem ser nucleares e inseridos. Os nucleares contribuem substancial mente para o desenvolvimento do tópico discursivo, pois exigem que as inter venções subseqüentes estejam relacionadas com o turno anterior. No exemplo (2), os tumos 02,03,07, 08, 11, 12, 13, 14,15, 17, 18, 19,20 e 21 são nucleares porque estão dando andamento ao tópico (comportamento feminista-machista de M34), enquanto os tumos 04, 05, 06, 09, 10 e 16 são tumos inseridos por serem produções marginais em relação ao desenvolvimento tópico da conversa,
AN ALISE DA CO N VERSAÇÃ O
81
apesar de colaborarem para esse desenvolvimento, exercendo sempre uma fun ção meramente interacional. Dependendo do papel desempenhado por cada inserção no desenrolar da conversa, os turnos inseridos podem ser classificados como turno de esclareci mento, turno de avaliação, turno de concordância, turno de discordância, entre outros. Observando os exemplos (2) e (7), podemos constatar que os turnos inse ridos também sofrem a influência do tipo de interação,pois no exemplo (2), por se tratar de uma conversa espontânea, os interlocutores procuram marcar suas posi ções nãosó por meio deconcordâncias (turnos 04,05), mas também dediscòrdâncias (turnos 06, 16), por exemplo. Já no exemplo (7) a seguir, por se tratar de uma entrevista, a postura da documentadora é prodominantemente de concordâncias, com apenas uma realização de esclarecimento, com a função de testagem das informações dadas. A transcrição a seguir comprova essa classificação: (7) Contexto: En trevista com um a médica, 65 anos, sobre a existência ou não de diferenças na fala do hom em e da mulher . 10 Inf.M
eu não acho que tem... não tem apenas a a mu lher norm almen te
11
é mais: mais delicada [tem sentimento
12 Doc.
[uhrum
turno concordância
13 Inf.M
essa coisa... não é?
14 Doc. 15 Inf.M
é exato no todo... não é?
turno concordância
16 Doc.
sim de forma genérica
turno concordância
17 Inf.M 18 Doc.
a a a mu lher tem m ais sensibilidade... não é? Lihrum
19 Inf.M
tem mais: a educação m ais apurada... não é?
20Doc.
+
certo
21 Inf.M
turno concordância tur no con cordância
e: te m mais sensibilidade p ra coisas be:las en en entend eu? 4
22 23 Doc.
... quase tudo... só isso só isso?
24 I nf.M
só isso... eu só noto essas diferenças
25 Doc.
quan:[do
26 Inf.M 27 (Fonte:
[m as assim m esm o têm m uitos hom ens dade também ...
turno de esclar ecimento
que têm muita sensibili-
muitasensibilidade Projeto Auto e Heterocaracterização da Faia do Homem e da Mulher, Ângela Dionísio,
UFPE, 1994)
82
INTRODUÇÃO À LINGÜÍSTICA
Outro aspecto relevante na organização das conversas é o fato de ser constituída pelas estratégias de gestão de turno que dizem respeito à troca de falantes, através de passagem de turno e de assalto ao turno, e à sustentação da fala. No primeiro caso, “a troca de falantes se processa segundo a presença (passagem) ou ausência (assalto) de pistas de LRT”24. Essa troca de turno pode ser requerida pelo falante, quando este entrega o turno de forma explícita, ou ainda pode ser consentida, isto é, quando a entrega é implícita. Já os assaltos ao turno constituem uma espécie de violação de uma regra básica da conversa, que é falar um de cada vez. Assim, os autores concebem essa questão da seguinte forma: “ no assalto, um dos interlocu tores invade o turno do outro, sem que a sua intervenção tenha sido solicitada ou consentida; em termo s funcionais, verificase que a transição de um turno a outro ocorre sem que haja pistas de LRT. O assalto pode ocorrer com ou sem deixa ”25. O tipo de assaltocom deixa é aquele que se dá durante hesitações, alongamentos, entonação descendente, pausas realizadas pelo falante que possui o turno. O assalto sem deixa caracteriza-se por intervenções bruscas, provocando sobreposição de vozes. Para Marcuschi (1986), a ocorrência de sobreposições e de falas simultâneas pode provocar um “colapso ” na interação. Talvez seja esse conhecim ento prévio sobre o funciona mento da estrutura da interação que faz com que um dos interlocutores em sobreposição desista do turno e deixe o outro assumi-lo, como se verifica no exemplo (2), nas linhas 13 e 14: 13 M 33
[[mas eu garan to que m uita coisa
turno 10
14 H 28
[[ eu acho eu acho é a autoridade...
turno 11
15 M 33
você você você é a favor do do m achismo
16
po r isso eu digo por isso eu digo que eu sou m eio fem inista
^
I
tur no 12
/
Retomando do exemplo (2), no trecho das linhas 16 a 33, constatamos quatro ocorrências de troca de falantes, decorrentes de assalto ao turno. Nas linhas 19 e 20, M33 assalta o turno de H28, durante uma pausa, e nas linhas 23 e 24 o assalto se dá durante a realização provável de um sinal prosódico, o que caracteriza em ambos os casos um assalto com deixa. Já nas demais ocorrências de assalto ao turno (linhas 25 e 26, 29 e 30), as tomadas se dão de forma mais brusca, tendo em vista que não há pistas de LRT, caracterizando o assalto sem deixa.
24. Galembeck, P. et al. O turno conversacional. In: Preti, D. & Urbano, H. A linguagem fala da culta na cidade de São Paulo. São Paulo, T. A . Queiroz/FAPESP, 1997, v. IV, p. 75. (título srcinal, 1990) 25. Galembeck, P. et al. Op. cit., p. 78.
83
ANA LI SE D A C O N V E R S A Ç Ã O
15 M33
você você você é a favor
do do m achismo
16
p o r is s o eu d ig o p o r is so eu d ig o q u e eu so u m e io fe m in is ta
17H28
você é uma fem
18 M34
isso não ex iste
19H28
é.. . exist e.. . [você ( ) do hom em .. .
inist a m achist a
[pera aí.. . você acha ... pera aí.. . pera a í
20 M33 21 H28
você acha m
achismo
do hom em .. . m as você é assi
22
você acha ass
23
assi m a m ulher pode ser m
m .. . veja bem..
.
im o machism o do hom em .. . mas você tem que analisar achista pelo lado dela
[t á entendendo? [lógico... admito ser
24 M34 25
que a m ulher pode m
26
que [eu não sou fem
achist a só que eu tô querendo
dizer é o seguint
e
inista
[mas ela é contra a m ulher m achista.. . sabia?
27 M33 28 M34
eu sou a favor de direitos iguais.
.. com isso eu não tô que
rendo é dize
29
que... é: o hom em n um d eva... num possa ser cavalheiro [porque...
r
[mas isso faz
30 M33 31 M34
isso aí ele tá deixa
nd o... tá... não..
32 M33
p a rte d o m a c h ism o .. .
33 M34
o cavalheir
ismo num
.
faz par te do m achismo
Nos contextos de assalto com deixa, podem ser geradas as seguintes situações: (i) o interlocutor assalt ado abandona o turno e o interlocutor assal tante fica com o turno, como em (7), quando a informante assaltou o turno da documentadora durante um alongamento: 25 Doc.
quan:[do [mas assim mesmo têm muitos homens que tem muita sensibili-
26 Inf.M
dade também 27
m uita sensibil
.. .
idade
(ii) o interlocutor assaltado não abandona o turno e continua a comandar a interação, como em (5), pois P01 em sobreposição ao turno de H05, durante uma pausa, faz uma solicitaç ão de esclarecime nto, mas H05 se mantém no turno e ignora a intervenção de sua interlocutora: 505 H05
((aponta para frente)) aqui [... nessa nessa m
506 P01 507 H05
and ioquinh a que tem a í nessa r oça.. .
[do lado esquerdo ? tá veno ?
84
IN TR O D ULINGÜÍSTICA ÇÀÃ O
(iii) o interloc utor assaltad o perde o turno, mas o recupera em seguida, como no exemplo (2), já que H28 não permite que M33 se mantenha com o turno de que ela tentou tomar posse: 19 H28
é.. . existe...
[você ( ) do hom em .. .
20 M 33 21 H28
[pera aí. .. você acha... pera aí. .. pera aí você acha m achism o do hom em .. . ma s você é assim.. . veja bem... você acha
22
assim o m achismo do hom em .. . mas você tem que analisar assi m a m ulher
A segunda estratégia de gestão de turnos — a sustentação da fala — é, na realidade, uma tentativa empregada pelo falante para garantir a posse do turno, assinalando à sua audiência o desejo de manter-se na conduta do diálogo. Para isso, recorre aos marcadores conversacionais, aos alongamentos, às repetições e à21-23, elevação voz. Ainda exemplo (2), verificar que no turno 17,bem”) linhas H28da realiza quatrono pausas e usa umpodemos m arcador conversacional (“veja para assegurar seu turno, enquanto no turno 20, linhas 28-29, por exemplo, a falante M33 mantém seu direito de fala recorrendo a pausas e alongamento de vogal (é:). No caso das entrevistas formais, a exemplo das realizadas pelo NURC, apesar de consistir num evento conversacional, que apresenta uma estrutura básica pergunta e resposta , unidade mínima dialógica, semelhante à da conver sa espontânea, a elaboração do turno conversacional apresenta uma distinção nítida: os turnos que correspondem às respostas tendem a ser longos e não so frem intervenção do interlocutor no sentido de tomar o turno. No exemplo (8), o turno do docum entador contém 20 palavras, enquanto o do informante tem 313 . Apesar das pausas, dos truncamentos, das hesitações, dos alongamentos, ou seja, das várias deixas, o documentador não toma o turno, pois o seu papel era meramente conduzir a interação, numa relação assimétrica. ( 8) Doc.
você falou da carne.. gosta m ais?
Inf .
. como d ona -de-ca sa... quais são as partes.
.. da carne que você
[pr a ter em casa? [á h: eu go/ assim de filé né? ((r i)) a que eu gosto m ais é do fil é.. . mas né
com o: filé f ilé nem todo com m elhor car ne que eu acho é cima.. . da alcatr a.. . e que tem fogo derre:te..
pra... não
dá pra com prar então...
um a carne cham
ada picanha..
deixa ve r.. .pra churrasco a
. que: é um a carne que fi
assi m um a cam adinha de gordura que quan
do a gente bota no
. fica co m aquele ch eiro.. . é um a delícia. .. éh::. .. deixa v er agora pra
de ca:as.. . eu gosto mu
ito de al catra.. . acho u m a carne assim q
ca por
consu:mo...
ue::.. .assim m uito saboro:sa
... ela:... não é muito du:ra... e dá pra gente fazer rosbife muito facilmente... outra outro p e d a ç o d e c a rn e q u e eu g o sto é o c o n tra fil é .. . P R IN c ip a lm e n te c o m o sso .. . a g en te m a n d a o
açougu eiro assi m cortar em fatia e dá : às vezes um
rosbif e m uit o bom com o osso que eu
AN AL IS E D A C O N V ER SA Ç Ã O
85
adoro roer o osso do
: con trafil é... e dá churrasco tam
bém .. . agora...
PR A fa/ uhm : aí meu
Deus do céu eu me lembrei de uma coisa... ONTEM... a/ eu mandei minha empregada com prar car ne pro m eu cachorro..
. e ela fo i com prar a carne. .. Acontece que ela com
prou
um O SSO que era a coisa m ais li n:da que eu já vi n a minh a vida... um o sso de braço... de de p a re ce u m c h am b a ril assim aq u ele ... a q u e la c o is a re d o n :d a .. . c h e ia d e u m a s g o rd u ra s assim entremeadas e o osso no m
eio com um
tutano. .. eu tomei o osso que era do cacho
rro ((r i) )
cozinhei... ((rindo)) fiz um pirão e comi... coisa mais gostosa desse mundo... é o tal do cham baril. .. eu não con hecia não viu?.. . aí ontem eu vi.. . qu er dizer. .. eu já tinha com ido ali num barzinho ali na Várzea muito bom setenta cruzeiros duas pessoas... e eu fiz o o:... cham baril MA S que co isa gostosa.. . pronto... do com prar.. . no futuro... é
é um... peda ço de carne que eu..
. pre/ preten
cham baril.
{Fonte:NU RC , Recife, 1997.
Inq. 1 5 0 /R E -1. 245- 256, p. 18)
Nem sempre, porém, é essa a estrutura da entrevista, pois dependendo do processo de interação instaurado entre os interlocutores, tal estrutura pode consistir numa estratégia de perguntas e respostas, com turnos cujas dimen sões estejam mais próximas da conversa espontânea. No exemplo (9), que se encontra a seguir, trecho de uma entrevista com uma empregada doméstica, percebe-se que a entrevistada (S) limita-se a responder exatamente o que lhe é perguntado, com frases curtas, sem demonstrar interesse em desenvolver mais exaustivamente a pergunta que lhe foi endereçada. A exceção dessa postura se encontra nas linhas de 08 a 14, quando a entrevistada procura es clarecer sobre o tempo em que ela acompanha as crianças. No entanto, a postura assimétrica permanece, pois o tópico discursivo é proposto pela entrevistadora (I), que conduz a interação, sem permitir que haja um desvio do tema da entrevista. (9) 01 I — há quanto tempo 02 S — há um
está nesta cas
ano e u m m ês
03 I — que é que você
faz aqui?
04 S — eu cozinho e ar
rumo
05 I — você cuida também 06
S—
a?
de cri anças?
cu id o m u it ch o bem
07 I — fica m uit o temp o du rante/ com ela.. . com elas? 08 S — depende d o tempo/ 09
se ela for saí :
11
e não tivé qu em fique
12
eu fico até:: o: tem po todo ...
13
se não tivé ou tra
86
INTRODUÇÃO À LINGUÍSTICA
14 eu eu posso ficá até um ano., dois ... depen de 151 — você gosta de crianças? 16 S — gosto bastante {Fonte: Projeto sobre a Linguagem Falada pela Em UFPE)
pregada D oméstica, L. A . M arcus chi,
4. COMO SE ORGANIZAM AS SEQÜÊNCIAS NA CONVERSAÇÃO?
(P) e resposta (R) compõem a unidade fundamental da organi zação conversacional, ou par adjacente, na terminologia de Sacks, Schegloff & Jefferson26. Mas este par adjacente pode ter “várias formas de realização; a P pode ser na forma interrogativa direta, mais comum, ou na indireta”, e as respos tas também podem “ser na interrogativa”27. Urbano et al. (1993) abordam es sencialmente dois tipos de perguntas: perguntas fechadas (sim/não) e pergun Pergunta
tas abertas (sobre algo). O primeiro tipo caracteriza-se como um enunciado, que conduz para uma resposta que, em princípio, se constitui de um sim ou de um não. A repetição de verbo da pergunta, o uso de back-channel, o uso de certos advérbios e o emprego do verbo topicalizado em negativas são alguns recursos que substituem o sim/não nesse tipo de pergunta. As perguntas fechadas têm carga semântica e as respostas consistem apenas numa confirmação ou não do que foi questionado. O segundo tipo, as perguntas abertas, contêm marcadores interrogativos e as respostas devem estar compatíveis com a circunstância ex pressa no marcador. Esses autores lembram ainda que, ao se realizar um con junto de perguntas simbolizando um todo, a tendência é a elaboração de respos tas truncadas, de respostas à última pergunta ou numa ordem preferencial do interlocutor. Apresentaremos um fragmento de uma entrevista que tinha por objetivo verificar como homens e mulheres caracterizam a própria fala e a fala do outro: ( 10)
Contexto: E ntrev ista com um engenh eiro, 28 anos, sobre a existên cia ou não de diferenças na fala do homem e da mulher. 01. Doc. 02. InfH. 03. Doc.
e você? como é que você descrevería a SUA fala? Pergunta Aberta eita ... ((ri dem onstrando ne rvo sism o)) a minha voz é muito baixa sua voz é baixa ? + Pergunta Fechada
26. Sacks, Schegloff & Jefferson (1974) elaboraram um modelo sobre o sistema de organização da conversação com base na tomada de turno. 27. Marcuschi, L. A .Análise da conversação. São Paulo, Ática, 1986, p. 37.
AN AL ISE D A CO N VER SA ÇÃ O
87
✓
0 4 .In fH.
e
05. Doc.
o que mais?
06.InfH.
tenho uns vícios de linguagem
07. Doc.
vício s de lingua gem?
08. InfH.
e
09. Doc. 10. InfH.
que vícios? é h :... deixe-me ver.. . um a coisa que eu me /
11
me fiscali zo muito é : con co rd ân cia ... fiscali zo demais
12. Doc.
por q ue vo cê se fisc aliza ?
13.InfH.
porque [eu acho feio
.
14. Doc.
Pergun ta Aberta ^ Pergunta Fecha da
Pergun ta Aberta
Perg unta Abe rta
[e QU AN do você se fiscaliza?
Pergunta Aberta
15. InfH.
porq ue eu acho feio... quan do fa land o de m odo geral né?
16. Doc.
a qual tque r: sit uação?
17.InfH.
[[é
18. Doc.
[[o u tem alguma situação que você se fiscaliza mais do que outra?
^ Pergunta Fechad a
Pergunta Aberta 19. InfH.
quan do estou com vocês ((Doc e InfH riem))
20. Doc .
por quê?
^
21.
por que somos da área?
4 Pergunt a Fecha da
22. InfH.
é porqu e são da área
{Fonte: Dionísi o, A., Projeto Auto e Heteroca
racterização da Fala do Hom
Pergu nta Abert a
em e da Mulher,
UFPE, 1994)
Analisando o exemplo (10), podemos observar que as perguntas abertas são introduzidas pelos pronomes como, o que, que, por que, alguma e o advér bio de tempo quando, que tendem a orientar o discurso informante, quanto à autodescrição da fala. Das quatro ocorrências de perguntas fechadas, verifica mos que as duas primeiras têm uma função meramente interacional, pois pare cem desnecessárias do ponto de vista informacional, já que as respostas dadas às perguntas abertas que as antecedem são claras e objetivas. A hipótese da função interacional justifica-se, por um lado, pelo término do turno do entrevista do, demonstrando que não deseja prolongar sua resposta e, por outro lado, pela insegurança da entrevistadora em conduzir a interação, ao parafrasear as res postas do informante. 5. É BOM FALAR SOBRE MARCADORES CONVERSACIONAIS, NÃO É?
Observando as conversações apresentadas neste capítulo, podemos per ceber a ocorrência de alguns recursos que são traços característicos da fala,
INTRODUÇÃO A LINGUÍSTICA
88
como em (7), por exemplo, em que a informante finaliza seus tumos com o emprego de “não é?”, “entendeu?”, procurando interagir com sua interlocutora. Esta, por sua vez, participa da conversação empregando expressões nãolexicalizadas (“uhrum”) e expressões estereotipadas sinalizadoras de conver gência (“é exato”, “sim”, “certo”). Esses recursos são chamados de marcadores conversacionais (MC). Retom ada do exemplo (7) 10 Inf.M
eu não acho que tem... não tem apen as a a m ulher norm almen te
11
é mais: mais delicada [tem sentime nto
12 Doe.
[uhrum
13 Inf.M
essa coisa... não é?
14 Doc.
é exato
15 Inf.M
no todo ...
16 Doc.
sim de forma genérica
17 Inf.M
a a a m ulher tem ma is sensibilidade...
18 Doc.
uhrum
19 Inf.M
tem mais: a educ ação mais apurada ... não é?
20 Doc.
certo
21 Inf.M
e: t em mais sen sibilidade pra coisas be:las
não é?
não é?
en en entendeu ?
Como o texto oral é planejado e verbalizado ao mesmo tempo, os interlo cutore s podem em pregar MCs em qualquer ponto da interaçã o, desempenhando funções conversacionais e sintáticas. Os falantes podem inserir MCs no início, no meio ou no fim de tumos ou de unidades com unicativas (UC). São denomina das de unidades comunicativas as porções informacionais, ou seja, os enuncia dos conversacionais, que coincidem ou não com tumos, orações ou atos de fala. Segundo Marcuschi (1989), “tal como a frase na escrita, a UC no texto oral é um ponto de referência dos mais diversos fenômenos lingüísticos” 28. %
*
No exemplo (2), o falante H28, no turno 17, em prega dois MCs: “veja bem” no início da UC — “veja bem... você acha assim o machismo do ho mem...” — e “tá entendendo?” no final do seu turno, que também coincide com o término da UC — “você acha assim o machismo do homem... mas você tem que analisar assim a mulher pode ser machista pelo lado dela tá enten dendo?
28. Marcuschi, L. A . Marcad ores conversacion ais no português brasileiro: formas, posições funções. In: Castilho, A. T. (org.) Português culto falado no Brasil. Campinas, Editora da UNICAMP, 1989, p. 288.
AN AL ISE DA CO N VER SA ÇÃ O
89
Retomada do exemplo (2) 21 H28 você acha machismo do hom em... mas você é assim... veja bem... você acha 22 assim o machismo do homem... mas você tem que analisar assim a mulher 23 pode ser mach ista pelo lado dela [tá entendendo?
Com funções conversacionais, os MCs são pelos falanteso (aqueles que servem para dar tempo à organização do produzidos pensamento, sustentar turno, monitorar o ouvinte, corrigir-se, reorganizar e reorientar o discurso) e pelos ouvintes (aqueles que são produzidos durante o turno do falante e que servem para orientar o falante e monitorá-lo quanto à recepção, por meio de sinais de convergência, como “sim”, “claro”, “mhm”, “ah sim”; de indagação, como “será?”, “mesmo?”, “o quê?”, “é?”; e de divergência, como “duvido”, “não”, “peraí”, “calma”). Os interlocutores podem recorrer a marcadores conversacionais lingüisticos (verbais e prosódicos) e paralingüísticos (não-verbais). Os MCs verbais, con junto de partículas, palavras, sintagmas, expressões estereotipadas e orações ou ainda expressões não-lexicadas (“ahã”, “uhrum”, “ué”) “não contribuem pro priamente com informações novas para o desenvolvimento do tópico, mas si tuam-no no contexto geral, particular ou pessoal da conversação”29. Os MCs prosódicos (chamados também de supra-segmentais), apesar de sua natureza lingüística, são de caráter nãó-verbal (os contornos entonacionais, as pausas, o tom de voz, o ritmo, a velocidade, os alongamentos de vogais etc.). Dentre eles se destacam as pausas e o tom de voz como sendo os mais importantes para as análises das conversações. Já os MCs paralingüísticos ou não-verbais estabele cem, mantêm e regulam a interação, por meio de risos, olhares, gestos, meneios de cabeça. Quanto às formas em que se apresentam os MCs lingüísticos, eles podem ser divididos em quatro grupos: (i) MCs simples: realizam-se com um só item lexical (“mas”, “éh”, “olha”, “exatamente”,”agora”, “aí”, “então” etc.); (ii) MCs compostos: realizam-se como sintagmas, geralmente estereoti pados (“sim mas”, “bom mas aí”, “e então”, “tudo bem mas” etc.); (iii) MCs oracionais: realizam-se como pequenas orações (“eu acho que”, “não mas sabe”, “sim mas me diga”, “então eu acho que”, “porque eu acho que” etc.); $
29. Marcuschi, L. A . Análise da conversação. São Paulo, Ática, 1986, p. 62.
90
INTRODUÇÃO A LINGUÍSTICA
(iv) MCs prosódicos: realizam-se como recursos prosódicos (entonação, pausa, hesitação, tom de voz) e geralmente acompanhados por al gum MC verbal.
6. COM O SE CONS TRÓ I A COM PREENSÃO N O TEX TO FALADO?
De acordo com Marcuschi (1998b), “admite-se, hoje, que a compreensão, na interação verbal face a face, resulta de um projeto conjunto de interlocutores em atividades colaborativas e coordenadas de co-produção de sentido e não de uma simples interpretação semântica de enunciados proferidos”30. É importante salientar que colaboração não implica consenso ou concordância , mas apenas a realização de ações coordenadas31. Quando dois ou mais indivíduos partici pam de uma conversação, eles estão coordenando conteúdos e ações, ou seja, os interlocutores fazem um esforço mútuo p ara construir sentido, isto é, para cons truir um texto coerente. O sucesso de uma interação face a face está, portanto, atrelado ao processo interacional estabelecido entre os participantes, uma vez que esses se envolvem e refletem esse envolvimento num esforço coletivo, bus cando a construção de sentidos . O exemplo (2) exemplifica claramente a distin ção entre colaboração e concordância. Os três interlocutores realizam ações colaborativas durante toda a interação, ou seja, todos estão engajados no pro cesso interacional. No entanto, percebe-se que não há uma concordância entre eles: dominadora, se há um consenso entre M33machista, e H28, quanto fato de considerarem M34e uma uma feminista não háaoconsenso entre eles (M33 H28) e M34, que não concorda com as características que lhe são atribuídas. Marcuschi (1998b) alerta o analista de interações verbais face a face para o fato de que “não lhe cabe apenas identificar e admitir que há compreensão. Ele deve dar conta da seguinte questão: como é que os participantes de uma interação resolvem suas estratégias e processos de compreensão de forma tão competen te?”32. O próprio autor apresenta algumas atividades de compreensão na interação corpus verbal, a partir serão da análise de materiais NURC-SP.b)Dentre as ativida des propostas, destacadas, neste do artigo: a) adonegociação; a construção de um foco comum; c) a demonstração de (des)interesse e (não-)partilhamento; d) a existência e diversidade de expectativas e as marcas de atenção.
30. Marcuschi, L. A. Atividades de compreensão na interação verbal. In: Preti, D. (org.) São Paulo, FFLCH/USP, 1998b, p.15. 31. Ibidem, p. 21. 32. Ibidem, p. 19.
confrontos.
Variações e
AN AL ISE DA CO N VER SA ÇÃ O
91
6.1. Estratégia :1negociação
A negociação é “aspecto central para a produção de sentido na interação verbal enquanto projeto conjunto”33. No exemplo (11), citado a seguir, nas li nhas 121 a 128, a troca do fonema /p/ pelo /t/ provocou um estranhamento quan to ao nome do veículo — uma Pampa —, já que havia sido entendido por M06 como “tampa”. O riso (linhas 127 e 130) é resultado da inadequação terminoló gica, pois o nome de um objeto (tampa), associado a um meio de transporte não parece ser coerente para M06. M06 procura checar a sua compreensão do termo e M22 colabora repetindo o nome do carro, enfatizando a sílaba que desfaz o equívoco (PAMpa). #
( 11)
Contexto: Várias pessoas conversam num terreiro da comunidade de Pedra D’água (PB). M02 narra a dificuldade encontrada por uma mulher para sair da comunidade, tentando subir uma ladeira bastante íngreme. 121 M02
vei uma mulé: naqu ela mulé de ( ) ela vei no c a rr o ... com o é o nome daqu ele carro
122 Van?
((Van é apelido de M22))
123 M22
uma pam pa
124 M02
aí qued ê subi a ladera
125 M06
um a tampa?
126 M22
uma PAM pa
127 M02
é ((sorrindo))
128 M06 129 M0 2
eu entendi uma tampa (...) aí a mulé veii de Cam pina dana: Denise
130 M06
veii ( ) com Pampa ((continua a sorrir com o nome do carro) )
131 M02
aí cade subi a ladera.. . arente fícô olhano ela butava o carro... o carro... descia logo
{Fonte: Tese Im agen s na oralidade, Ângela Dionísio, UFPE, 1998)
Marcuschi (1998b) ainda nos chama a atenção para o fato de que “nem tudo é negociável. Por exemplo, não negociamos crenças nem convicções, o que tem conseqüências por vezes relevantes na continuidade de um tópico e pode ditar sua ‘morte’”34. O exemplo (12), fragmento de uma interação longa, na qual H05 apresentava as linhas divisórias do lote de terra da sua família, demonstra que a atitude encontrada por H05 foi abortar o tópico, mediante a não-compreensão de P01 sobre as áreas limítrofes. H05 discorda severamente da conclusão
33. Ibidem, p. 19. 34. Ibidem, p. 19.
INTRODUÇÃO A LINGUÍSTICA
92
(linhas 638-639) a que P01 havia chegado. P01 percebe que seu interlocutor ficou ofendido e brinca com seu erro (linha 640). Tenta voltar à questão (linha 642), mas H05 muda de tópico, encerrando o assunto (linha 643). P01 reconhece que não há condições de consenso e aceita construir um novo tópico (linha 644). ( 12)
Contexto: A pesquisadora (P01) conversa com um dos moradores da comunidade (H05) sobre o tamanh o do seu lote de terra. Am bos estão no terr eno e H05 aponta para linhas limites da t
erra .
625 P0 1 626 H05
eu sigo esse cam inho: eu sigo esse pé de laranja com o é que é? num tá veno num tá veno é: essa carrera de capim ? ((indica algumas touceiras de
627
capim plantadas acom panha ndo o trilho que leva até as duas casas acima))
628 P01 629 H05
tô eu me dirijo por aqui ((indic a na direção do capim )) poraqu i inté ali ((indicação
630
imprecisa)) agora chegano ali [... ] agora quano chega ali já vai lá: a linha vai sê lá
631 P01
[sim]
632 H05 633 H05
aquele pezim de pau que sobe lá pá casa do ôto fii ((apesar dele indicar com um pau a direção fica impossível precisar o “pezim de pau” porque
634
há várias árvores))
635 P01
qual? aquele pé lá de cim a?
636 H05 637 P01
sim então eu poss o dizê que a linha é esse cam inho ? [ não?
638 H05 639
[é po/ NÃO assim oxente fica meu pá cá ainda
640 P01
ah: assim eu tô dan do sua terra pros outros ((sorrir))
641 H05 642 P01
é... é ((so rrir) ) então vem por onde ? aqui por esse baxio é?
H05 644 P01
vocês querem i lá em: M aria agora qué? bora ... já tá aqui A
{Fonte: Tese Im agen s na ora lidade, Angela Dionísio, UFPE, 1998)
6.2. Estratégia 2: construção de umfoco comum
Uma outra de compreensão na interação verbal diz respeito construção de umatividade foco comum. Como argumenta Marcuschi, “numa interaçãoà face a face, a base do sucesso das trocas é a presença de interesses comuns e referentes partilhados, previamente existentes ou construídos no processo de interação”35. Nos exemplos (7), (8), (9) e (10), que contêm trechos de entrevis35. Ibidem, p. 21.
ANALI SE D A C O N V E R S A Ç Ã O
93
tas, pode-se observar que, em (7) e (8), entrevistador e entrevistado entram em sintonia na configuração de um foco comum, pois os tópicos sugeridos são de senvolvidos pelos entrevistados com interesse e atenção. Já em (9) e (10), per cebe-se que os entrevistadores têm um esforço m aior para conduzir as interações, pois as respostas dos entrevistados, apesar de se manterem no tópico focalizado, são mais sucintas e não revelam um interesse em informar além do mínimo solicitado nas perguntas. A construção desta sintonia referencial 36 nem sempre é possível, exigin do de um dos interlocutores um árduo trabalho. No exemplo (12), é possível observar o esforço de ambos os interlocutores, buscando construírem o mapa das terras de H05. Apesar dos interlocutores terem interesses comuns (a cons trução do mapa das terras de H05) e de P01, durante a interação, demonstrar concordância ou procurar checar suas dúvidas quanto às informações dadas por H05, não foram construídos referentes partilhados no processo da interação, pois a pergunta “então eu posso dizê que a linha é esse caminho? [não?” (linha 637) revela a falta de sintonia referencial.
6.3. Estratégia 3: demonstração de (des)interesse e (não-)partilhamento
A terceira atividade de compreensão apresentada por Marcuschi (1998b) é a demonstração de (des)interesse e (não-)partilhamento. No exemplo (5), verifica-se que o não-partilhamento das info rmações vai se desfazendo na med i da em que a interação progride. No exemplo (10), o informante afirma que se fiscaliza mais ao falar quando está na comp anhia da documentadora. Em segu i da, ela pergunta o porquê dessa fiscalização e ao mesmo tempo propõe uma razão: serem professoras de língua portuguesa. O argumento proposto é aceito imediatamente po r seu interlocutor (linha 22). H á entre os interlocutores interes ses comuns e conhecimento partilhado. Nem sempre os interlocutores possuem os mesmos conhecimentos ou possuem os mesmos interesses sobre os tópicos. Para ilustrar esta afirmação, será apresentado a seguir um trecho analisado por Marcuschi (1998b), que exemplifica uma situação típica de desinteresse pelo tópico em andamento. (13) 663 LI
outro dia aí então o (Fábio) contando umas histórias de um :.. . de um b oy ba rato a í né?. ..
36. “Sintonia referencial” é um termo empregado por Marcuschi (1998b).
INTRODUÇÃO À LINGÜÍSTICA
94
665
carro enven enadíssim o então temos que quan do o cara vai acelerar ass
im ::.. . ele aGA rra a direção ass im::
pis a no acele ra dor: :... e fa z um m ovim ento assim com o estivesse caval/cavalgando L2 670 L I L2 LI
ahn ((ri )) e agarra a má quina [ assi m (( ri)) [queria estar num cavalo po rqu ê?... analogia. .. ele está cavalgando né? Eo::... o:...
L2 675 L I L2
((r i)) o rei do oeste ah r não tem oeste aqui... ((ri)) não tudo bem :: eu sei entendi
(D2 -Inq. 34 3, pp. 33- 34) 37
Pode ser constatada, neste exemplo (13), a construção de uma relação de não-colaboração tópica. Os interlocutores discorrem em faixas diferentes (LI na faixa séria e L2 na faixa não-séria). L2 toma no sentido literal a analogia que LI propõe: “boy barato” — “rei do oeste” e provoca em LI uma reação de desagrado (linha 675, “não tem oeste aqui”). A resposta de L2 revela que ele estava entendendo, apenas não tinha interesse no assunto. Marcuschi (1998b) salienta que “troca s deste tipo são utilizadas intencionalmente para produzir hu mor ou então construir piadas ou chistes, pois mostram interlocutores jogando em campos diversos, sem sintonia cognitiva”38.
6.4. Estratégia 4: existência e diversidade de expectativas
Um encontro entre pelo menos dois interlocutores gera expectativas muito diversificadas, as quais estão intimamente relacionadas ao contexto, às condi ções em que o encontro ocorre, ao conhecimento partilhado, às diferentes pers pectivas que os interlocutores possuem. Em situações interativas, os interlocuto res sempre têm expectativas prévias (às vezes, chegamos até a ensaiar o que vamos dizer, como vamos dizer, simulamos a resposta do nosso interlocutor; e quase sempre esses ensaios não servem par a nada no momento real da interação). Por ter expectativas prévias, o falante sempre procura estratégias para fazer com que elas ocorram, bem como fica atento à reação do seu interlocutor. A 37. Marcuschi, L. A. Atividades de compreensão na interação verbal. In: Preti, D. (org.) Variações e confrontos. São Paulo, FFLCH/USP, 1998b, pp.25-26
38. Ibidem, p. 26.
A N A LIS E D A C O N V E R S A Ç Ã O
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interação é, pois, um “jogo com regras dinamicamente escolhidas, por isso é um jogo perigoso: nem sempre se escolhe a regra certa”39. Nos fragmentos de en trevistas dos exemplos (8) e (10), verificamos que, em (8), documentador e informante parecem ter selecionado bem as regras do jogo, já que a informante constrói o seu turno enumerando as partes da carne que ela mais gosta de ter em casa, assinalando no turno aquela de que maiscom gosta. Já no exemplo (10), o informante deixa transparecer um certo espanto a pergunta da documentadora, através do emprego de uma interjeição, seguida de uma pausa e um riso nervoso (linha 02: “eita... ((ri demonstrando nervosismo )))”.
6.5. Estratégia 5: marcas d e atençã o r
v
Durante a construção de uma conversação, são de importância fundamen tal os sinais enviados pelos interlocutores, pois dependendo desta sinalização é possível avaliar se está havendo uma boa sincronia ou uma má sincronia entre os interlocutores. A boa sincronia revela maior atenção pelo tópico em andamento e uma má sincronia revela problemas no processo interacional, que vão desde a não-aceitação do tópico até a não-compreensão do mesmo. O uso de marcadores conversacionaís, o uso de alguns traços prosódicos (entonação, mudança de altura de som, alongamentos de vogais etc.), a realização de alguns gestos, de expressões faciais e de risos são marcas que informam ao falante sobre a compreensão do que está sendo dito e sobre o envolvimento dos seus interlocutores na interação. Observando alguns exemplos analisados previamente, neste artigo, verificamos as marcas de sintonia entre os interlocutores, como o uso de marcadores conversacionais, nos exemplos (5) e (7), de alongamentos nos exem plos (10) e (12), e de gestos no exemplo (5). Apesar do caráter sucinto dessas análises, é possível afirmar que muito do que se compreende numa interação social resulta da relação construída entre os interlocutores e da contextualização da própria interação. Não se quer com isso descartar a importância da lingua gem verbal, mas apenas salientar (i) que ao falarmos não nos utilizamos apenas de uma diversidade de linguagens, mas colocamos em conexão indivíduos, lin guagens, cultura e sociedade e que (ii) gestos, expressões faciais e tons de voz são, muitas vezes, mais informativos do que construções lingüísticas, visto que a “gramática é um veículo pobre para exprimir os sutis padrões de emoção”40.
39. Ibidem, p. 30. 40. Keller, M. C. & Keller, J. D. Imaging in iron, or thought is not inner speech. In: Gumperz, J. & Levinson, S. (orgs.)
Rethinking linguistic relativity.
Cambridge, Cambridge University Press,
1996,
p .l 18.
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IN T R O D ULINGÜÍSTICA ÇÀÃ O
7. E PARA ENCERRAR A CONVERSA...
No Brasil, a Análise da Conversação consiste numa linha de pesquisa que vem sendo praticada sistematicamente e conta com uma produção edito rial que abrange transcrições de materiais docorpus do Projeto de Estudo da Norma Lingüística Urbana Culta (NURC), análises de textos orais realizadas por pesquisadores brasileiros sobre diversos temas da AC, gramáticas de con sulta referentes ao português falado, utilizando ocorpus dos NURCs, além de dissertações e teses apresentadas nos programas de pós-graduação das uni versidades brasileiras. Após aBibliografia, o leitor poderá encontrar enumera das as publicações referentes às transcrições de textos orais docorpus do NURC e aos volumes referentes à gramática do português falado. Uma outra conversa que poderá ser iniciada a partir de agora será entrevocê leitor e as referências bibliográficas que foram aqui apresentadas. Certamente, mui tos assuntos virão à tona! BIBLIOGRAFIA
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i
Fernanda Mussalim
1 oA GÈM1SS DA DISCIPLINA
1.1, Istruturalissn©^ marxismo e psicanálise: um ferren©fecundo Falar em Análise do Discurso pode significar, num primeiro momento, algo vagodee linguagem amplo, praticamente pode significar qualquer já aque toda produção pode ser considerada “discurso5 5. No coisa, entanto, Análise do Discurso de que vamos, falar neste capítulo trata-se de uma disciplina que teve sua srcem na França na década de 1960. Para entender a gênese dessa disciplina é preciso compreender as condi ções que propiciaram a sua emergência. Maldidier (1994) descreve a fundação da Análise do Discurso através das figuras de Jean Dubois e Michel Pêcheux. Dubois, um lingüista, lexicólogo envolvido com os empreendimentos da Lingüística de sua época; Pêcheux, um filósofo envolvido com os debates em tomo do marxismo, da psicanálise, da epistemologia. O que há de comum no trabalho desses dois pesquisadores com preocupações distintas é que ambos são toma-
* Agradecemos a Sírio Possenti, a Anna Christina Bentes, a Edwiges Morato e a Claudia Bertelli Reis pelas contribuições a este texto.
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INTRODUÇÃO À LINGUÍSTICA
dos pelo espaço do marxismo e da política, partilhando convicções sobre a luta de classes, a história e o movimento social. E pois, sob o horizonte comum do marxismo e de um momento de cresci mento da Lingüística — que se encontra em franco desenvolvimento e ocupa o lugar de ciência piloto — que nasce o projeto da Análise do Discurso (doravante AD). O projeto da AD se inscreve num objetivo político, e a Lingüística oferece meios para abordar a política. Vamos compreender de que maneira. Na conjuntura estruturalista, a autonomia relativa da linguagem é unani memente reconhecida. Isso porque, devido ao recorte que as teorias estruturalistas da linguagem fazem de seu objeto de estudo — a língua —, toma-se pos sível estudá-la a partir de regularidades e, portanto, apreendê-la na sua totalida de (pelo menos é nisso que crê o estruturalismo), já que as influências externas, geradoras de irregularidades, não afetam o sistema por não serem consideradas como parte da estrutura. A língua não é apreendida na sua relação com o mun do, mas na estrutura interna de um sistema fechado sobre si mesmo. Daí “estru turalismo”: é no interior do sistema que se define, que se estrutura o objeto, e é este objeto assim definido que interessa a esta concepção de ciência em vigor na época. Um exemplo. O estruturalismo de vertente saussureana1define as estru turas da língua em função da relação que elas estabelecem entre si no interior de um mesmo sistema lingüístico. Essa relação é sempre binária — ou seja, os elementos são sempre tomados dois a dois — e se organiza a partir do critério diferencial, que determina que todos os elementos do sistema se definem ne gativamente. Tomando como pares os fonemas [p] e [b], para citar um exem plo no nível fonológico, pode-se dizer que, quanto ao traço de sonoridade, [p] se define com relação a [b] por ser [-vozeado], ou seja, [b] é um fonema vozeado enquanto [p] é desvozeado. Por sua vez, tomando como pares os fonemas [p] e [t], quanto ao lugar de articulação, pode-se dizer que [p] se define como [dental]12em relação a [t]. Nessa mesma vertente, o significado também é defi nido a partir de uma relação de diferenças no interior do sistema3: o significa do de uma palavra é aquele que o significado da palavra tomada como par não é. Assim, homem se define com relação à mulher por ser [-feminino]; por sua 1. Remetemos o leitor à obra de Saussure (1916/1974), Curso de Lingüística geral, considerada a obra fundadora da Lingüística por possibilitar uma abordagem da língua a partir de suas regularidades e assim defini-la como um objeto passível de análise científica para os padrões de cientificidade da época. 2. A respeito das classificações dos fonemas, remetemos o leitor aos capítulos “Fonética” e “Fonologia”, no volume 1 desta obra. 3. Remetemos o leitor ao capítulo “Semântica”, neste mesmo volume.
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vez, com relação a cachorro, homem se define por ser [-quadrúpede], e assim por diante. A Lingüistica, assim, acaba por se impor, com relação às ciências huma nas, como uma área que confere cientificidade aos estudos, já que esses deve ríam passar por suas leis (é nesse sentido que ela se toma uma ciência piloto), em vez de agarrarem-se diretamente a instâncias socioeconômicas4. É nesse horizonte que se inscreve, por exemplo, o projeto do filósofo Althusser, como afirma Maingueneau (1990): “a lingüística caucionava tacitamente a linha de horizonte do estruturalismo na qual se inscreve o procedimento althusseriano”5. Em Ideologia e aparelhos ideológicos do estado (1970), Althusser, fazen do uma releitura de Marx, distingue uma “teoria das ideologias particulares”, que exprimem posições de classes, de uma “teoria da ideologia em geral”, que permitiría evidenciar o mecanismo responsável pela reprodução das relações de produção, comum a todas as ideologias particulares. É nesse último aspecto que resideAo o interesse propor-sedoa autor. investigar o que determina as condições de reprodução social, Althusser parte do pressuposto de que as ideologias têm existência mate rial, ou seja, devem ser estudadas não como idéias, mas como um conjunto de práticas materiais que reproduzem as relações de produção. Trata-se do materialismo histórico, que dá ênfase à materialidade da existência, rompendo com a pretensão idealista de ciência de dominar o objeto de estudo controlando-o a partir de um procedimento administrativo aplicável a um determinado universo, como se a sua existência se desse no nível das idéias. Para o materialismo, “o objeto real (tanto no domínio da conhecido natureza como da é,história) existe independente mente do fatodas de ciências que ele seja ou não,noisto inde pendentemente da produção ou não produção do objeto do conhecimento que lhe corresponde”6. Um exemplo: no modelo econômico do capitalismo (considerando aqui a concepção clássica de capitalismo, tal como ele foi compreendido pelas teorias marxistas), as relações de produção implicam divisão de trabalho entre aqueles que são donos do capital e aqueles que vendem a mão-de-obra. Esse modo de 4. Lõwy (1988) faz um interessante estudo da história das ciências sociais. Remetemos o leitor à sua obra para compreender como as vertente s filosófi cas — positi vismo, historici smo, marxismo — nortear am os critérios de cientificidade de cada época, critérios que, por sua vez, nortearam os propósitos, os estudos e os métodos nas ciências humanas. 5. MAINGUENEAU, D. Análise do Discurso: a questão dos fundamentos. In: Cadernos de Estudos Linguísticos. Campinas, UNICA MP - IEL, n. 19, jul./dez., 1990. 6. Pêcheux, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas, Editora da UNICAMP, 1988, p. 74. (título srcinal: Les vérites de la Palice, 1975)
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INTRODUÇÃO A LINGUÍSTICA
produção é a base econôm ica da sociedade capitalista. Na metáfora marxista do edifício social, a base econômica é chamada de infra-estrutura, e as instâncias político-jurídicas e ideológicas são denominadas superestrutura. Valendo-se des sa metá fora, A lthusser levanta a necessidade de se considerar que a infra-estru tura determina a superestrutura (materialismo histórico), ou seja, que a base econôm ica é que determina o funcionamento das instânci as p olítico-jurídicas e ideológicas de uma sociedade. A ideologia — parte da superestrutura do edifí cio — , portanto, só pode ser concebida como uma reprodução do modo de pro dução, uma vez que é por ele determinada. Ao mesmo tempo, por uma “ação de retorno” da superestrutura sobre a infra-estrutura, a ideologia acaba por perpe tuar a base econômica que a sustenta. Nesse sentido é que se pode reconhecer a base estruturalista da teoria de Althusser, na medida em que a infra-estrutura determina a superestrutura e é ao mesmo tempo perpetuada por ela, como um sistema cuja circularidade faz com que seu funcionamento recaia sobre si mesmo. Como modo de apreensão do funcionamento da ideologia, o conceito de aparelhos ideológicos de Althusser é bastante esclarecedor. Retomando a teo ria marxista de Estado, o autor afirma que o que tradicionalmente se chama de Estado é um aparelho repressivo do Estado (ARE), que funciona “pela violên cia” e cuja ação é complementada por instituições — a escola, a religião, por exemplo — , que funcionam “pela ideologia” e são denominadas aparelhos ideoló gicos de Estado (AIE). Pela maneira como se estruturam e agem esses apare lhos ideológicos — por meio de suas práticas e de seus discursos — é que se pode depreender como funciona a ideologia (trata-se sempre, para Althusser, do funcionam ento da ideologia dominante, pois, mesmo que as ideologi as apresen tadas pelos AIE sejam contraditórias, tal contradição se inscreve no domínio da ideologia dominante). A Lingüística, então, aparece com o um ho rizonte para o projeto althusser iano da seguinte maneira: com o a ideologia deve ser estudada em sua materia lidade, a linguagem se apresenta como o lugar privilegiado em que a ideologia se mate rializa. A linguagem se coloca para Althusser como uma via por meio da qual se pode depreender o funcionamento da ideologia. Poderem os agora melho r comp reende r a afirmação de Maingueneau (1990) anteriormente citada — “a lingüística caucionava tacitamente a linha de hori zonte do estruturalismo na qual se inscreve o procedimento althusseriano” e entender também por que é que, como já foi dito , presidem o nascimento da AD o marxismo e a Lingüística. O projeto althusseriano, inserido em uma tradição marxista que buscava apreender o funcionamento da ideologia a partir de sua materialidade, ou seja, por meio das práticas e dos discursos dos AIE, via com
AN AL IS E D O D IS CU RS O
1 05
bons olhos uma Lingüística fundamentada sobre bases estruturalistas. Mas uma Linguística saussureana, uma Lingüística da língua, não seria suficiente; só uma teoria do discurso, concebido como o lugar teórico para o qual convergem componentes linguísticos e socioideológicos, podería acolher esse projeto. ✓
E neste contexto que nasce o projeto da AD. Michel Pêcheux, apoiado numa formação filosófica, de desenvolve um pensa questionamento crítico sobre a Lingüística e, diferentemente Dubois, não a instituição da AD como um progresso natural permitido pela Lingüística, ou seja, não concebe que o estudo do discurso seja uma passagem natural da Lexicologia (estudo das palavras) para a Análise do Discurso. A instituição da AD, para Pêcheux, exige uma ruptura epistemológica, que coloca o estudo do discurso num outro terreno em que intervém questões teóricas relativas à ideologia e ao sujeito. Assim é que, como afirma Maldidier (1994), o objeto discurso de que se ocupa Pêcheux em seu empreendimento “ não é uma simples ‘superação da Lingüístic a saussuriana’”7. A Lingüística saussureana, fundada sobre a dicotomia língua/fala8— a primeira concebida como abstrata e sistêmica, por isso objetivamente apreendida; a segunda, não objetivamente apreendida por varia r de acordo com os diversos falantes, que selecionam parte do sistema da língua para seu uso concreto em determinadas situações de comunicação —, permitiu a constituição da Fonologia, da Morfologia e da Sintaxe, mas não foi, segundo Pêcheux (1988), suficiente para permitir a constituição da Semântica, lugar de contradições da Lingüística. Para ele, o sentido, objeto da Semântica, escapa às abordagens de uma Lingüística da língua9. A teoria do valor de Saussure (1916/1974), segundo a qual os signos se definem negativamente, subordina, como aponta Brandão (1998a), a significação ao valor, de onde decorre que a significação, para Saussure, é concebida como sistêmica. Para Pêcheux, ao contrário, a significação não é sistematicamente apreendida por ser da ordem da fala e, portanto, do sujeito, e não da ordem da língua, pelo fato de sofrer alterações de acordo com as posições ocupadas pelos sujeitos que enunciam. O autor retoma esta dicotomia saussureana para inscrever os processos de significaç ão num outro terreno, mas não concebe nem o sujeito, nem os sentidos como individuais, mas como históricos, ideológicos. Assim é que o autor propõe uma semântica do discurso — 7. Maldidier. D. Elementos para uma história da Análise do Discurso na França. In: Orlandi, E. P. (org.) Gestos de leitura: da história no discurso. Campinas, Editora da UNICAMP, 1994. p. 19. 8. Remetemos o leitor ao capítulo “Fonologia” no volume 1 desta obra, que também aborda est a dicotomia. 9. Possenti (1995) aponta que para Granger (1973) as línguas não são sistemas formais, mas sistemas simbólicos que contêm um sistema formal, pois só se comportam como uma estrutura no nível fonológico; nos outros domínios, inclusive nos domínios da Morfologia e da Sintaxe, a língua falha como estrutura.
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concebido como lugar para onde convergem componentes lingüísticos e socioideológicos — em vez de uma semântica lingüística, pois as condições sócio-históricas de produção de um discurso são constitutivasde suas significações. Pode-se, assim, perceber o paralelismo dos projetos althusseriano e da AD. A Análise do Discurso, demonstrando uma vontade de formalização do discurso a partir da proposta de Pêcheux (1969) de uma análise automática do discurso (doravante AAD), oferecia um procedimento de leitura que relacio nava determinadas condições de produ ção 101— “mecanismo de colocação dos protagonistas e do objeto do discurso, mecanismo que chamamos de ‘condi ções de produção do dis curso’”11 — com os processos de produção de um discurso. Para Pêcheux, é como se houvesse uma “máquina discursiva”, um dispositivo capaz de determinar, sempre numa relação com a história, as possi bilidades discursivas dos sujeitos inseridos em determinadas formações soci ais , conceito srcinário da obra de Althusser (1970) que designa, em um deter minado momento histórico, um estado de relações — de aliança, antagonismo ou dominação — entre as classes sociais de uma comunidade. Assim é que a AD intervém como um componente essencial do projeto althusseriano que visa va definir uma ciência da ideologia que não fosse ideológica, isto é, que não implicasse uma posição ideológica de sujeito. O autor, buscando definir uma “teoria da ideologia em geral” que permitisse evidenciar o mecanismo respon sável pela reprodução das relações de produção comum a todas as ideologias particulares, vislumbrava a AAD como uma possibilidade empírica de realiza ção de seu projeto. Dialeticamente, o pensamento althusseriano também é determinante da fase inicial de instituição da AD, cuja proposta se inscreve no materialismo histórico. Esperamos ter explicitado até aqui o palco do materialismo histórico e do estruturalismo sobre o qual surge a AD. O materialismo histórico e o estruturalismo estabelecem as bases não só para a gênese da AD e do projeto althusseriano (o conceito de “máquina discursiva” e a metáfora do edifício social evidenciam isso), mas também para a convergência entre esses projetos. Ainda um outro elemento compõe o quadro epistemológico do surgimento da AD: a psicanálise lacaniana. Abordaremos o pensamento lacaniano procu
10. Sobre a srcem do termo condições de produção, ver Brandão (1998a). 11. Pêcheux, M. Análise automática do discurso (AAD-69). In: Gadet, F. & Hak, T. (orgs.) introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas, Editora da UNICAMP, 1990, p. 78. (título srcinal, 1969)
análise automática do discurso:uma
Por uma
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rando evidenciar como ele é fundamental n este momento inicial de fundação da Análise do Discurso. A partir da descoberta do inconsciente por Freud, o conceito de sujeito sofre uma alteração substancial, pois seu estatuto de entidade homogênea passa a ser questionado diante da concepção freudiana de sujeito clivado, dividido entre o consciente e o inconsciente. Lacan faz uma releitura de Freud recorren do ao estruturalismo lingüístico, mais especificam ente a Sau ssure e a Jakobson, numa tentativa de abordar com mais precisão o inconsciente, muitas vezes to mado como uma entidade misteriosa, abissal. Para poder trazer à tona seu material, Lacan assume que o incon sciente se estrutura como uma linguagem, como um a cadeia de signi ficant es12latente que se repete e interf ere no discurso efetivo, como se houvesse sempre, sob as pala vras, outras palavras, como se o discurso fosse sempre atravessado pelo discur so do Outro, do inconsci ente. A tarefa do an alista 13 seria a de fazer vir à t ona, através de um trabalho na palavra e pela palavra, essa cadeia de significantes, essas “outras palavras”, esse “discurso do O utro” . O inconsciente é o lugar des conhecido, estranho, de onde emana o discurso do pai, da família, da lei, enfim, do Outro e em relação ao qual o sujeito se define, ganha identidade. Assim, o sujeito é visto como uma representação — como ele se representa a partir do discurso do pai, da família etc. —, sendo, portanto, da ordem da linguagem. Apoiado em alguns critérios do estruturalismo lingüístico, Lacan aborda esse inconsciente, demonstrando que existe uma estrutura discursiva que é regida por leis. Decorrem dessa proposta implicações para a psicanálise. A que mais diretamente interessa à AD diz respeito ao conceito de sujeito, definido em função do modo como ele se estrutura a partir da relação que mantém com o inconsciente, com a linguagem, portanto, já que, para Lacan, “a linguagem é condição do inconsciente” 14. Saussure, como já apontado anteriormente, define o sistema lingüístico a partir do critério diferencial , segundo o qual na língua não há mais que di feren
12. Para Saussure (1916/1974), o signo lingüístico é composto de significante e significado compre endidos, respectivamente, como imagem acústica (som com função lingüística) e conceito. Remetemos o leitor ao capítulo “Fonologia” no volume 1, que também aborda o conceito de signo. 13. Maingueneau (1990) aponta uma questão interessante com relação ao uso do termo análise: “é a análise funciona ao mesmo tempo materialização de uma certa configuração do saber em que o termo analista , sobre os registros lingüístico, textual e psicanalítico”. Pode-se estender esta colocação ao termo na medida em que, ainda como afirma o autor, “a escola francesa de Análise do Discurso se afirma como uma análise (= psicaná lise) aplica da aos texto s” (Mainguene au, 1990: 69). 14. Lacan é citado em Brandão, H. N. Introdução à Análise do Discurso. 7. ed. Campinas, Editora da UNICAMP, 1998a, p. 56.
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ças. Sendo assim, não se pode atribuir aos elementos do sistema nada de subs tancial, ou seja, não se pode defini-los por eles mesmos, tomando suas caracte rísticas independentemente das características de outros elementos do sistema, sem referi-las, compará-las. Passa-se, assim, como uma conseqüência inevitá vel do critério diferencial, ao critério relacionai, que delimita a função do Ou tro no interior do sistema. Dessa remissão entre os elementos do sistema tam bém decorre o critério do lugar vazio, segundo o qual cada elemento adquire sua identidade fora de si, já que, na óptica estruturalista, são as diferenças que definem os elementos. Essas diferenças, por sua vez, não são intrínsecas aos elementos e nem extrínsecas a eles, mas só podem ser consideradas a partir de uma posição no interi or do sistema. A definição de cada elemento é uma defini ção de posição, ou seja, a sua identidade resulta sempre da relação que um elemento, que ocupa uma determinada posição inicial no interior do sistema, mantém com outro elemento, que ocupa uma posição terminal: o fonema [p], ponto inicial, com relação ao fonema [b], ponto terminal; o fonema [p], ponto inicial, com relação ao fonema [t], ponto terminal, por exemplo. A identidade resulta sempre dos lugares de onde são tomados os elementos na relação biná ria. Trata-se do critério posicionai. Desses critérios decorrem implicações para o conceito lacaniano de sujei to (Santiago, 1995), ao qual não se pode atribuir nada de substancial, pois ele só se define em relação ao Outro (critérios diferencial e relacionai).O sujeito dessubstancializado não está onde é procurado, ou seja, no consciente, lugar onde a ilusão doé “sujeito centro” como sendoonde aquele o que diz, aquelereside que sabe o que , mas pode ser encontrado nãoque está,sabe no incon scien te, lugar onde reside o Outro — o discurso do pai, da mãe, etc. —, que lhe imprime identidade ( critério do lugar vazio).Asim, a identidade do sujeito lhe é garantida pelo lugar do Outro, ou seja, por um sistema parental simbólico que determin a a posição do sujeito desde sua aparição . Como exp lica Santiago (1995), “o pai e a mãe deixam de ser meros semelhantes com os quais o sujeito se relacionou numa dimensão de rivalidade ou amor, para se tomarem lugares na estru tura” ,15como se o sujeito fosse tomado por uma ordem anterior e exterior a ele. Dessa forma, o pai, por exemplo, pode surgir sob diferentes formas busca das no imaginário — pai complacente, pai ameaçador etc. —, mas pode tam bém, ocupando um lugar no discurso da mãe, tomar formas diferentes — pai ausente, pai presente etc. ( critério posicionai).
15. Santiago , J. Jacq ues Lacan: a estru tura dos estru turalis tas e a sua. In: Mari, H., Domingues, I. Pinto, J. (orgs.) Estruturalismo: memória e repercussões. Rio de Janeiro, Diadorim/UFMG, 1995, p. 221.
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Essa relação entre o sujeito e o Outro se apóia na oposição binária de Jakobson (1960/1970), segundo a qual um remetente, ocupando uma posição inicial no processo de comunicação, coloca-se em relação comunicativa com um destinatário, que ocupa uma posição terminal no sistema de comunicação. Jakobson não é um estruturalista stricto sensu , pois, além de considerar os interlocutores do processo comunicativo — fato completamente discordante do estruturalismo de vertente saussureana, que exclui de seu campo de análise a fala por ser do âmbito do sujeito — não trata do sistema lingüístico em si, das regras de organização da língua propriamente ditas. Jakob son é apontado como estruturalista pelo fato de abordar o processo comunicativo como um sistema composto de elementos — remetente, destinatário, código, mensagem, contex to, canal — que se relacionam no interior de um sistema fechado e recorrente, como um circuito comunicativo. Pôde-se perceber, até aqui, em que sentido Lacan recorre ao estruturalis mo, mais especificamente a Saussure e a Jakobson. No entanto, há pontos em que divergem radicalmente os caminhos do estruturalismo e de Lacan. O pri meiro deles diz respeito à inserção do sujeito na estrutura, um deslocamento com relação ao estruturalismo saussurea no que, num certo sentido e de maneira diferente, Jakob son também realizara. O segundo ponto se refere à maneira como é concebida a relação do sujeito com o Outro, desloc amento que realiza a partir da concepção do processo comunicativo de Jakobson. Esclareçamos o primeiro ponto, mostrando como a inserção do sujeito no sistema afeta a sua estrutura. O sujeito, por definir-se através da palavra do Outro, nada mais é que um significante do Outro. Mas, por ser um sujeito clivado, dividido entre o consciente e o inconsciente, inscreve-se na estrutura, caracteristicamente definida por relações binárias entre seus elementos, como uma descontinuidade, pois emerge no intervalo existente entre dois significantes, emerge sob as palavras, so b o discurso. Lacan, assim, não assume o pressuposto básico do estruturalismo, de completude do sistema, já que o sujeito — pura descontinuidade na cadeia significante — “descompleta” o conjunto dos significantes. No que diz respeito ao segundo ponto, o autor rompe com o estruturalismo ao romper com a simetria entre os interlocutores. Jakobson atesta uma simetria entre esses interlocutores na medida em que não considera a supremacia de nenhum deles sobre o outro. Lacan rompe com essa simetria. Para ele, o Outro ocupa uma posição de domínio com relação ao sujeito, é uma ordem anterior e exterior a ele, em relação à qual o sujeito se define, ganha identidade. Feita essa breve abordagem de alguns aspectos do pensamento lacaniano, poderemos agora explicar em que sentido o pensamento lacaniano é fundamen-
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tal neste momento inicial de fundação da Análise do Discurso, ou seja, em que se pode perceber a relevância do projeto lacaniano para a AD. O estudo do discurso para a AD, como já dito anteriormente, inscreve-se num terreno em que intervém questões teóricas relativas à ideologia e ao su jeito. Assim, o sujeito lacaniano, clivado, dividido, mas estruturado a partir da linguagem, fornecia para a AD uma teoria de sujeito condizente com um de seus interesses centrais, o de conceber os textos como produtos de um traba lho ideológico não-consciente. Calcada no materialismo histórico, a AD con cebe o discurso como uma manifestação, uma materialização da ideologia decorrente do modo de organização dos modos de produção social. Sendo assim, o sujeito do discurso não poderia ser considerado como aquele que decide sobre os sentidos e as possibilidades enunciativas do próprio discurso, mas como aquele que ocupa um lugar social e a partir dele enuncia, sempre inseridoEm no outras processo histórico que lhenão permite não é outras. palavras, o sujeito é livredeterminadas para dizer o inserções que quer,emas levado, sem que tenha consciência disso (e aqui reconhecemos a propriedade do conceito lacaniano de su jeito para a AD), a ocupar seu lugar em determ ina da formação social e enunc iar o que lhe é possível a partir do lugar que ocup a. Como afirma Althusser (1970): A ideologia é bem um sistema de representações: mas estas representações não têm, na maior parte do tempo, nada a ver com a “consciência”: elas são na maior parte das vezes imagens, às vezes dos conceitos, massem é antes de tudo que elas se impõem à maioria homens, passar porcomo suas estruturas consciências”16. Tendo até aqui descrito o terreno em que se funda a Análise do Discurso — um terreno em que se relacionam a Lingüística e as Ciências Sociais — uma questão importante se coloca: qual a especificidade da AD neste terreno? É o que procuraremos responder a seguir.
1.2. A especificidade da AD
Como aponta Maingueneau (1997), o campo da Lingüística, de maneira muito esquemática, opõe um núcleo “rígido” a uma periferia de contornos ins táveis, que está em contato com a Sociologia, Psicologia, História, Filosofia 16. Althusser (1970) é citado em Maingueneau, 1990: 69.
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etc. O núcleo rígido17se ocupa do estudo da língua como se ela fosse apenas um conjunto de regras e propriedades formais, ou seja, não considera a língua en quanto produzida em determinadas conjunturas históricas e sociais. A outra região, de contornos instáveis18, ao contrário, “se refere à linguagem apenas à medida que esta faz sentido para sujeitos inscritos em estratégias de interlocução, em posições sociais ou em conjunturas históricas” 19. A Análise do Discurso pertence a essa última região, ou seja, considera esse último modo de compreen der a linguagem, o que não significa que, para ela, a linguagem não apresente também um caráter formal, como apontava o próprio Pêcheux (1975/1988), ao afirmar que existe uma base lingüística regida por leis internas (conjunto de re gras fonológicas, morfológicas, sintáticas) sobre a qual se constituem os efeitos de sentido, como poderemos observar a partir da análise da tira que se segue: CHICLETE COM BAN ANA /Angeli
Fonte:
Folha de S. Paulo
Há duas maneiras de interpretar o enunciado de Stock no último quadrinho: que há vinte anos atrás ele vivia fazendo sexo com a própria noiva, ou então que há vinte anos atrás ele vivia fazendo sexo com a noiva de Wood, seu amigo. Em termos essencialmente lingüísticos, diriamos que o que permite essa ambigüidade é a presença do pronome possessivo de Ia pessoa “minha”. Pelo fato de ser um dêitico20 — termo que permite identificar pessoas, coisas, momentos e
17. Veros capítulos “Fonética”, “Fonologia” e “Sintaxe”, no volume 1, e “Semântica”, no volume 2. No que diz respeito ao capítulo “Sintaxe”, referimo-nos apenas à Sintaxe Gerativa e, em relação ao capítulo “Semântica”, apenas à Semântica Formal. 18. Ver no volume 1os capítulos “Sintaxe” (referimo-nos aqui à Sintaxe funcional), “Sociolingüística” e “Lingüística Textual”; ver neste volume os capítulos “Semântica” (referimo-nos aqui à Semântica da enunciação), “Pragmática” e “Análise de Conversação”. 19. Maingueneau, D. No vas tend ênc ias em An áli se do Discurso. Campinas, Pontes/Editora da UNICAMP, 1997, p .l l. 20. Sobre a noção de dêitico, ver Lahud (1979) e Geraldi & Ilari (1985).
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lugares a partir da situação de fala —, possibilita que o seu referente seja tanto Stock quanto Wood, ou seja, permite ao leitor que ele interprete o pronome “minha” como referindo-se à noiva de Stock, o responsável pelo enunciado, ou à noiva de Wood. Isso porque poderiamos nos perguntar: sobre que parte do enunciado o advérbio “também” da expressão “Eu também” incide? Sobre “Bete Speed” (eu também sexo comnoiva)? a Bete Em Speed) ou palavras, sobre “minha (eu também fazendo fazendo sexo com minha outras qual onoiva” esco po21 de “também” ? Essa primeira análise, referente ao funcionamento da língua, explica o porquê da ambigüidade na tira, mas não explica por que achamos graça quando Stock enuncia “Eu também” no último quadrinho. Por que lemos esta tira como um discurso de humor? Devido às suas condições de produção. Produzido para circular em uma sociedade em que fazer sexo com a noiva de outro seria um comportamento bastante fora dos padrões morais apresentados como adequa dos a seus membros, a possibilidade de Stock ter feito sexo com a noiva de seu amigo gera riso, pois coloca Wood em uma situação bastante constrangedora. No entanto, este mesmo discurso produzido no interior da comunidade dos es quimós, por exemplo, não geraria riso, pois, segundo os costumes dessa comu nidade, quando um esquimó recebe um visitante em sua casa, ele oferece sua mulher a ele como sinal de hospitalidade. Nesse contexto, portanto, o discurso apresentado nesta tira não seria de humor, seria apenas uma conversa corriquei ra entre dois amigos que relembram fatos do passado. A ambigüidade se mantém tanto num como noutro contexto, mas os efei tos que ela gera são diferentes, e são justamente esses efeitos de sentido que interessam à Análise do Discurso. No caso da tira em questão, a pergunta que os analistas do discurso fariam seria: por que essa ambigüidade gera riso? Para a Análise do Discurso, perguntar somente o que gera a ambigüidade seria muito pouco, essa pergunta já seria feita, por exemplo, pela Semântica e pela Pragmá tica (as noções de escopo e de dêixis utilizadas para análise da tira pertencem respectivamente a essas duas áreas da Lingüística). O que garante a especificidade da Análise do Discurso é a formulação de uma pergunta subseqüente a essa: qual o efeito dessa ambigüidade? A resposta a essa pergunta reside justamente na relação que os analistas do discurso procuram estabelecer entre um discurso e suas condições de produção, ou seja, entre um discurso e as condições sociais e históricas que permitiram que ele fosse produzido e gerasse determinados efeitos de sentido e não outros.
21. Sobre a noção de escopo ver Geraldi & Ilari (1985).
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É preciso esclarecer, no entanto, ao falarmos da especificidade da AD, que não há apenas uma Análise do Discurso, esta de que vimos falando. Como decorrência dessa fronteira instável sobre a qual se situa a Análise do Discurso e em função da disciplina vizinha com a qual ela privilegia o contato, surgem diferentes “Análises do Discurso”. Classicamente considera-se que, se uma de las mantém relação privilegiada com enquanto a História,uma comoutra os textos de arquivo, que emanamuma de instâncias institucionais, privilegia a rela ção com a Sociologia, interessando-se por enunciados com estruturas mais fle xíveis, como uma conversa informal, por exemplo, têm-se duas “Análises do Discurso” diferentes: a Análise do Discurso de srcem francesa, que privilegia o contato com a História, e a Análise do Discurso anglo-saxã22, área bastante produtiva no Brasil, que privilegia o contato com a Sociologia. Atualmente, no entanto, este marco divisório não é tão rígido assim. Possenti, no artigo “Odado dado e odado dado (O dado em análise do discur so)”, faz uma consideração a esse respeito apontando que a diferença entre a Análise do Discurso de srcem francesa e uma análise conversacional não precisa ser uma diferença de dados, mas de teoria: “não é porque os eventos de discurso de tipo ‘linguagem ordinária’ foram objeto de descrições ‘conversacionais’ ou ‘intencionais’ que eles não são discursos, que eles não podem ser tomados em conta numa AD”23. Assim, o que diferencia a Análise do Discur so de srcem francesa da Análise do Discurso anglo-saxã, ou comumente cha mada de americana, é que esta última considera a intenção dos sujeitos numa interação verbal como um dos pilares que a sustenta, enquanto a Análise do Discurso francesa não considera como determinante essa intenção do sujeito; considera que esses sujeitos são condicionados por uma determinada ideolo gia que predetermina o que poderão ou não dizer em determinadas conjuntu ras histórico-sociais. Essa é, entre outras, uma das diferenças teóricas entre as duas linhas. Apontamos de maneira bastante abrangente diferenças entre a Análise do Discurso de srcem francesa e a de srcem anglo-saxã. No entanto, há diferen ças no interior de cada uma dessas vertentes. No interior da Análise do Discurso de srcem uma francesa, Fiorin diferentes tendências. Fazendo análisepordoexemplo, que foi feito no(1990) Brasil aponta nas últimas décadas em termos de Análise do Discurso, o autor apresenta três correntes ordenadas historica 22. Sobre a Análi se do Discurso anglo-saxã ver, neste mesmo volume, o capítulo “An álise da Conver sação” e, no volume 1, o capítulo “Lingüística Textual” . 23. Possenti, S. O dado dado e o dado dado (O dado em análise do discurso). In: Castro, M. F. P. de. (org.) O método e o dado no estudo da linguagem. Campinas, Editora da UNICAMP, 1996, p. 199.
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mente e apresentadas a partir dos interditos, ou seja, a partir do que não é “per mitido” fazer no interior de cada uma delas. A primeira corrente “proibia ocupar-se do funcionamento interno do tex to”, sob o risco de ser tachado de um “direitista do campo da Letras” . A segunda corrente esboçava um interdito contrário: “é preciso ocupar-se do funciona mento interno do texto”24. Fiorin (1990) analisa esse interdito relacionando-o com a “vitória” do capitalismo, que concebe a história como “contrato”, ou seja, como sendo regida pelos mecanismos internos do mercado. Analogicamente, na Análise do Discurso, os mecanismos internos de produção do sentido é que serão enfatizados. Não obedecer à interdição dessa segunda corrente significa ria pagar o preço de ser considerado “anacrônico”, assim como neste momento é considerado anacrônico o universo conceituai marxista. A terceira corrente, que representa a tendência atual, procura eliminar esses dois interditos que pe saram sobre a AD em determinados momentos e abordar o discurso em toda a sua complexidade, concebendo-o como um objeto lingüístico e cultural. Há, entretanto, apesar dessas divergências, um elemento comum entre essas Análi ses do Discurso, e esse elemento comum diz respeito à própria especificidade da AD, como ressalta Fiorin (1990): “o que é específico de todas essas Análises do Discurso é o estudo da discursiviz ação” ,25 ou seja, o estudo das relações entre condições de produção dos discursos e seus processos de constituição. Tendo apresentado o palco intelectual — ocupado ao mesmo tempo pelo estruturalismo, marxismo e psicanálise — sobre o qual emerge a AD e mos trado a sua especificidade, passaremos agora a apontar duas influências deci sivas neste primeiro momento de fundação da AD, no que tange aos seus pro cedimentos de análise. Trata-se do método harrisiano de análise e das gramá ticas gerativas.
1.3. Procedimentos de análise: a contribuição de Harris e Chomsky
O método de Harris (1969) segu ia o rumo das análises estruturalistas. mas ampliava a unidade de análise. Propondo-se a analisar o texto, concebe tal aná lise como uma análise transfrástica, isto é, como uma análise que transpunha o limite do enunciado, uma vez que não toma como unida de de análise os elementos que o compõem, mas o próprio enunciado. E um método fundado basica a
24. Fiorin, J. L. Tendências da Análise do Discurso. In: Cadernos de Estudos Lingiiísticos. Campi nas, UNICAMP — IEL, jul./dez., 1990, p. 175. 25. Ibidem, p.174.
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mente na linearidade do discurso; o autor propõe que se observe a ligação entre os enunciados a partir de conectivos, com o objetivo de equacionar essa linearidade em classes de equivalência. Tomaremos como exemplo ilustrativo de uma análise pautada pelo método harrisiano o seguinte discurso, analisado por Osakabe (1979: 12-13): (1) O menino viu obelo quadro e gostou dele. Mas o pintor não lhe deu oquadro. Segundo o autor, esse discurso, já na forma reduzida por transformações e equivalências fornecidas pela gramática da língua, podería ser apresentado da seguinte maneira: (1’) O menino viu o quadro. O quadro era belo. O menino gostou do quadro. (Mas) o pintor não deu o quadro ao menino. Partindo das recorrências e da distribuição dos elementos de cada enuncia do, obtém-se um quadro de equivalências. Por exemplo, o verbo ver pode, neste contexto, ser tomado como equivalente a gostar , e assim teríamos:
B:
1. 0 menino viu o uqadro. 2. 0 menino gostou doquadro. 0 quadro era belo.
C:
(Mas) O pintor não deu o quadro ao menino.
(2) A:
Como resultado, obteríamos a seguinte forma para esse discurso: (3) Al: A2: B: (Mas) C: Ou ainda, (4) A: B: (Mas) C:
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O recurso a esse método pelos iniciadores da AD explica-se po r um cert o interesse comum em produzir uma análise da superfície discursiva: Dubois se valia desse método, como relata Maldidier (1994), como “um meio de fazer aparecer as regularidades significativas dos discursos con trastados pelo corpus”,1(> ou seja, como uma forma de evidenciar o que havia de regular, de constante em cada um dos discursos contrastados. P ara Pêcheux, po r sua vez, a deslinearização decorrente das transformações — (1) e (2), por exemplo — permitia perceber os traços dos processos d iscursivo s — (3) e (4) — , ou seja, os process os pelos quais um discurso se constituía enquanto tal. Harris, como foi possível perceber, restringe-se a uma concepção de discur so como uma seqüência de enunciados. Essa definição mostrou-se insuficiente para os propósitos da AD, que buscava reintegrar uma teoria do sujeito e uma teoria da situação. Assim, Pêcheux, visando a construção de um arcabouço teóri co que lhe permitisse isso, passa a considerar a oposição enunciação e enuncia do2 27. A primeira se refere às condições de produção do discurso (é neste nível que 6 será possível reintegrar as teorias do sujeito e da ideologia), que permitiríam a elocução de um discurso e não de outros, isto é, refere-se a determinadas circuns tâncias. a saber, o contexto histórico-ideológico e as representações que o sujeito, a partir da posição que ocu pa ao enunciar, faz de seu interlocuto r, de si mesmo, do próprio discurso etc.; e o segundo se refere à superfície discursiva resultante des sas condições. O procedimento gerativista de análise28, já bastante difundido na época, vem ao encontro dos interesses de Pêcheux.
Estruturas sintáti Em 1957. Noam Chomsky, aluno de Z. Harris, publica cas e coloca em questão o método estruturalista americano29. Chomsky postula a existência de um sistema de regras internalizadas responsável pela geração das sentenças. A possibilidade de produzir uma análise nesses moldes aponta um caminho para a AD reintegrar as teorias do sujeito e da situação. Numa
26. Maldidier. 1994: 21.
27. Remetemos o leitor aos capítulos “Semântica” e “Pragmática” neste mesmo volume para uma maior compreensão da oposição enunciado/enu nciação. Ver também Benve niste (1974/1989) e Searle (19 81). Vale dizer, no entanto, que a noção de enunciação é reinterpretada pela AD. Neste arcabouço teórico, a enunciação não é o : -pr ee nd iá a como a situação empírica em que ocor re o discur so, mas como a represen tação, a imagem que o sujeito do di scurso, inserido em determ inadas condições sociais, faz das condições de produção de seu ú:-curso. Ver. a esse respeito, Pêcheux & Fuchs (1975/1990). 28. Remeterr.es c leitor ao capítu lo “Sintaxe ” no volume 1 desta obra, e aos capítulos “Aquisiç ão da Linguagem” e “Psicolingüísiica” neste mesmo volume. 29. O geraiivis—:. cpesar do rigor de sua formalização, é interpretado como uma ruptura com o estruturalismo. Posiciorizio-se a esse respeito em entrevista dada a Jean Paris, como relata Silva (1995), Chomsky aponta os li mites c : estruturalismo, afirmando a seu respeito não ser teórico suficientemente, por deixar de pesquisar o s processos gerativos subjacentes que determinam as estruturas que observa e estud a.
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analogia com o postulado de que o sistema de regras é responsável pela geração das sentenças, propõe-se a noção de condições de produção, responsável pela geração dos discursos. Esse conceito de condições de produção é, como aponta Orlandi (1987), básico para a AD, pois elas “caracterizam o discurso, o consti tuem e como tal são objeto de análise”30. Para a AD, portanto, a enunciação não é um desvio, mas um “processo constitutivo da matéria enunciada”, afirma a autora31. É este último procedimento de análise que será produtivo para a AD, pois será a partir dele que ela formulará e reformulará seus procedimentos de análise e seu objeto de estudo, que definirão, por sua vez, o que chamamos as fases da AD. 2. FASES DA AD: OS PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE E A DEFINIÇÃO DO OBJETO
A primeira época da Análise do Discurso32 (doravante AD-1) explora a análise de discursos mais “estabilizados”, no sentido de serem pouco polêmi cos33, por permitirem uma menor carga polissêmica, isto é, uma menor abertura para a variação do sentido devido a um maior silenciamento do outro (outro discurso/outro sujeito). Os discursos políticos teórico-doutrinários, como um manifesto do Partido Comunista, são um bom exemplo. Por serem mais “estabi lizados”, pressupõe-se que tais discursos sejam produzidos a partir de condi ções de produção mais estáveis e homogêneas, isto é, no interior de posições ideológicas e de lugares sociais menos conflitantes: o manifesto comunista é enunciado do interior do Partido Comunista e representa seus possíveis interlo30. Orlandi, E. P.A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso, z. ed. Campinas, Pontes, 1987, p.110. 31. Orlandi (1987) faz uma comparação entre as diferentes formas de a Sociolingüística, a teoria da enunciação e a Análise do Discurso trabalharem com a exterioridade. Aponta que a Sociolingüística visa a relação entre o social e o lingüístico; a teoria da enunciação trata da determinação entre o funcional (enunciação) e o formal (enunciado); a AD “procura estabelecer essa relação de forma mais imanente, considerando as condições de produção (exterioridade, processo histórico-social) como constitutivas da linguagem” (Orlandi, E. P. Op. cit., p.l 11). 32. Ver Pêcheux (1969/1990). 33. Orlandi (1987) propõe uma tipologia discursiva classificando os discursos em três tipos: o lúdico, o polêmico e o autoritário. Essa classificação é feita, entre outras coisas, com base no grau de reversibilidade entre os interlocutores: no discurso autoritário esta reversibilidade tende a zero; no polêmico ela é contro lada; no lúdico a reversibilidade é total. Optamos no texto pela utilização da expressão “menos polêmicos” porque queremos enfatizar apenas esta reversibilidade que possibilita, de acordo com seu grau, uma menor/maior abertura para a variação do sentido devido a um menor/maior silenciamento do outro (outro discurso/outro sujeito), de onde decorrem discursos menos/mais “estabilizados”. Ressaltamos, portanto, que não temos aqui a intenção de classificar discursos.
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cutores inscritos neste mesmo espaço discursivo. Considere, para contrapor, um debate político de que estivessem participando marxistas e liberais. Nessas condições de produção, o discurso do Partido Comunista representaria parte de seu(s) interlocutor(es) inscrito(s) em um outro lugar social, a saber, no espaço discursivo liberal. Neste caso, teríamos uma relação mais conflitante, pouco “estabilizada”. Um debate não seria, portanto, objeto de análise da AD-1. Com relação aos procedimentos de análise da AD-1, eles são realizados por etapas, apresentadas a seguir: a) primeiramente s e seleciona um corpus fechado de seqüências discur sivas (um manifesto político, por exemplo); b) em seguida faz-se a análise lingüística de cada seqüência, consideran do as construções sintáticas (de que maneira são estabelecidas as rela ções entre os enunciados) e o léxico (levantamento de vocabulário); c) passa-se depois à análise discursiva, que consiste basicamente em cons truir sítios de identidades a partir da percepção da relação de sinonímia (substituição de uma palavra por outra no contexto) e de paráfrase (se qüências substituíveis entre si no contexto); d) por fim, procura-se mos trar que tais relações de sinonímia e paráfrase são decorrentes de uma mesma estrutura geradora do processo discur sivo. Têm-se, então, a noção de “máquina discursiva”: uma estrutura (condi ções de produção estáveis) responsável pela geração de um processo discursivo (o processo de construção do manifesto comunista, por exemplo) a partir de um conjunto de argumentos e de operadores responsáveis pela construção e trans formação das proposições, concebidas como princípios semânticos que defi nem, delimitam um discurso (o comunista, para tomá-lo como exemplo). Para a AD-1, cada processo discursivo é gerado por uma máquina discur siva. Assim, diferentes processos discursivos (o processo de construçã o do ma nifesto comunista e o processo de construção do manifesto liberal, por exem plo) referem-se a diferentes máquinas discursivas, cada uma delas idêntica a si mesma e fechada sobre si mesma (Pêcheux, 1983/1990). Na segunda fase da AD34 (AD-2), a noção de máquina estrutural fechada começa a explodir. O conceito de formação discursiva, tomado de empréstimo do filósofo Michel Foucault (1969), é o dispositivo que desencadeia esse pro-
34. Ver Pêcheux & Fuchs (1975/1990).
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cesso de transformação na concepção do objeto de análise da Análise do Dis curso. Foucault (1969) define formação discursiva (doravante FD) como: um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço que definiram em uma época dada, e para uma área social, econômica, geográfica ou linguística dada, as condições de exercício da função enunciativa35. Em outras palavras, um a FD determ ina o que pode/deve ser dito a partir de um determinado lugar social. Assim, uma formação discursiva é marcada por regularidades, ou sej a, por “regras de formaç ão” , concebida s como m ecanismos de con trole 36 que de term inam o interno (o que perten ce) e o exte rno (o que não pertence) de uma formação discursiva. Assim, um a FD, ao definir-se sempre em relação a um externo, ou seja, em relação a outras FDs, não pode mais ser concebida como um espaço estrutural fechado. Ela será sempre invadida por elementos que vêm de outro lugar, de outras formações discursivas. Neste sen tido, o espaço de uma FD é atravessado pelo “pré-construído”37, ou seja, por discursos que vieram de outro lugar (de uma construção anterior e exterior) e que são incorporados por ela numa relação de confronto ou aliança. Uma FD, portanto, é constituída por um sistema de paráfrases, já que é um espaço onde enunciados são retomados e reformulados sempre “num esforço constante de fechamento de suas fronteiras em busca da preservação de sua identidade”38. Sendo, pois, a FD um espa ço atraves sado po r outras FDs, ela não pode ser concebida como formada por elementos ligados entre si por um princípio de unidade. É nesse sentido que Foucault a concebe como uma dispersão. O papel do analista do discurso seria descrever essa dispersão buscando estabelecer as regras de formação de cada FD. Nesta segunda fase da AD, portanto, o objeto de análise passará a ser as relações entre as “máquinas” discursivas. Vale res saltar, no entanto, que o fechamento da maquinaria amda é conservado, pois a presença do outro (outra FD) sempre é concebida a partir do interior da FD em questão.
35. Foucault (1969) é citado cm Maingueneau, D.
Nov as ten dências em Aná lis e do Dis cur so.
3. ed.
Campinas, Pontes/Editora da UNICAMP, 1997, p.14. 36. Ver Foucault (1969,1971). Remetemos também o leitor a Geraldi (1993), que faz uma esclarecedora apresentação dos mecanismos de controle internos, externos e dos sujeitos - de que fala M. Foucault, e a o capítulo “Língua e ensino: política s de fechamen to”, neste mesmo volume, que também aborda estes meca nismos. 37. Sobre a noção de pré-construído, ver Pêcheux (1975/1988). 38. Brandão, H. N. In trod uç ão à Aná lise do Disc urso. 7. ed. Campinas, Editora da UNICAMP, 1998a, p. 39.
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No que diz respeito aos procedimentos de análise, a AD-2 apresenta muito poucas inovações; o deslocamento efetivo que se dá com relação à AD-1 diz respeito sobretudo ao objeto de análise: discursos menos “estabilizados”, por serem produzidos a partir de condições de produção menos homogêneas. Um debate político, já referido anteriormente, seria um bom exemplo. A desconstrução da maquinaria discursiva só ocorrerá mesmo na terceira fase da A nálise do Disc urso39 (AD-3). Essa d esconstruç ão é d ecorrente de um deslocamento que acorre no que diz respeito à relação de uma FD com as ou tras. Na AD-2, o “outro” — outra(s) FD(s) — é incorporado pela FD em ques tão, que mantém, mesmo sendo atravessada por outros discursos, uma identida de. É possível, através de uma análise discursiva, determinar, no interior da dispersão, o que pertence a uma ou à(s) outra(s) FD(s). Na AD-3, por sua vez, adota-se a perspectiva segundo a qual os diversos discursos que atravessam uma FD não se constituem independentemente uns dos outros para serem, em seguida, postos em relação, m as se formam de mane i ra regulada no interior de um interdiscurso. Será a relação interdiscursiva, por tanto, que estruturará a identidade das FDs em questão. Em decorrência dessa nova concepção do objeto de análise — o interdiscurso —, o procedimento de análise por etapas, com ordem fixa, como afirma Pêcheux (1983), explode defi nitivamente. As recentes pesquisas afirmam o primado do interdiscurso sobre o discur so, diferentemente da AD-1, que concebe a relação entre os discursos como sendo uma relação entre “máquinas” discursivas justapostas, cada uma delas autônoma e fechada sobre si mesma; e diferentemente também da AD-2, que considera a existência de FDs constituídas independentemente umas das outras para depois serem postas em relação. Na seção que se segue, faremos a análise de uma crônica e retomaremos os conceitos de formação discursiva e interdiscurso (AD-2, AD-3). Optamos por não retomar o conceito de “máquina discursiva” da AD-1, mais comumente chamada de AAD (análise automática do discurso), por estar ligada a um perío do muito marcado , no sentido de produ zir trabalhos em tom o de uma concepção de discurso que foi completamente abandonada nas fases posteriores40. Reto maremos também o conceito de condições de produção, além de apresentar ou tros ainda não abordados (pelo menos de forma direta), como os conceitos de formação ideológica, sujeito e sentido. 39. Ver Maingueneau (1984. 1997). 40. Remetemos o leitor a Pêche ux (1969, parte II) para maiores escbrecim dimentos de an álise desta primeira fase.
entos a respeit o dos proce
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3. UMA ANÁLI SE
3.1. O conceito de discurso
Reproduziremos agora a crônica “Um só seu filho” de Bráulio Tavares, publicada no Caderno Mais da Folha de S. Paulo , no dia 16/3/97, e que será objeto de nossa análise. A escolha que fizemos deste material de análise se justifica pela própria forma como esta crônica é constituída, de maneira bastan te interessante para um primeiro contato com os fundamentos teóricos da AD. Em função dos objetivos deste arti go, não conside raremos aspectos literários da crônica em questão, o que não significa que não os reconheçamos. Naquela noite, o papa atravessou sua recorrente insônia com a ajuda de algumas páginas do tratado ilustrado de Mary DTmpério sobre o manuscrito Voynich, na edição de luxo dee 1994. Leu até que os nomes deUsando John Dee Roger Bacon pareceram misturar-se seus olhos começaram a arder. os eóculos dobrados para marcar a página, colocou o livro sobre a mesa de cabeceira e aper tou o botão que mergulhou o quarto nas trevas. Fez suas orações deitado, autoindulgência da qual teria se envergonhado aos 60 anos, mas que agora já lhe pare cia um direito adquirido. Também lhe sucedia às vezes adormecer antes de con cluir as preces; isso também não o inquietava mais. Pensava: “Deus enxerga meu coração; ele sabe que meu pecado não é este, que minhas dívidas são outras”. De repente, estava sentado no alto de uma montanha. O horizonte imenso estendia-se à sua frente; o vento era frio, mas não incomodava. — Este foi seu último dia sobre a Terra — disse uma voz ao seu lado. Tens agora o direito de fazer um último pedido. Ao seu lado havia uma forma que a princípio ele tomou por um homem de pé, depois por uma árvore, depois por uma nuvem vertical. Seus traços podiam corresponder a qualquer uma das coisas, e ele imaginou que aquilo era Deus. — Obrigado, Senhor — disse. Não mereço esta graça. — Todos os homens a recebem — disse a voz. Não és melhor do que nin guém. Sem saber o que responder, ele inclinou-se mais uma vez. Pensou: “É meu último dia deretira vida,deisto não deve amedrontar; é como apósseuma refei ção alguém minha frenteme o prato vazio. Por que quando me rebelar, já fruí o que me interessava?”. — Olha para tua mão — disse a voz. O que mais desejas? Ele fitou a palma da própria mão: viu com espantosa nitidez as linhas e as comissuras da pele, viu as rugosidades, o intrincamento têxtil das camadas superpostas, viu o fervilhar da matéria viva e as células que se partiam e se fun diam umas às outras como gotas d’água.
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— Nascer de novo - respondeu ele, sem pensar. — Queres voltar ao passado? — Quero nascer de novo, mas no futuro — retrucou. Quero nascer sob a forma de outra pessoa e saber se serei novamente seminarista, e padre, e cardeal, e papa. Quero que algumas destas minhas células sejam transplantadas para um tubo de ensaio e dali talvez para um ventre, de onde eu renasça: corpo, rosto e mente iguais aos que tive quando nasci. Código genético igual ao meu, sem a interferência abastardante de genes de uma fêmea, de uma parideira intrusa. Que ro que meu espírito se faça carne, mas quero ser o Pai único de meu Filho. — Para quê? Ele ergueu-se e maravilhou-se de ver que mesmo diante de Deus podia ficar de pé quando bem entendesse (“mas, af’, pensou, “é o último dia”). Olhou o vale que se espalhava lá embaixo: à luz roxa que vinha do céu, distinguia florestas, mares, arquipélagos, cidades, desertos de areia intacta, enormes cordilheiras de gelo rodopiando devagar em águas de um azul metálico. Cruzou os braços e virou-se— para vulto.alma existe está ligada sem remissão a este corpo mortal. Se Se ominha meu corpo se repetir, minha alma permanecerá aqui na Terra. De novo nascerei e serei um menino que irá dançar ao som de pandeiros e rabecas; de novo roubarei frutas, correrei atrás de cães, beijarei a boca de alguma moça de tranças louras. De novo estudarei o latim e a álgebra, de novo andarei anônimo e de batina por entre homens arrogantes que não suspeitarão o meu futuro. Farei voto de pobreza e viverei depois como um monarca; farei voto de obediência subirei e degrau após degrau das hierarquias de comando; farei voto de castidade... e quem sabe da próxima vez terei mais sorte. Lá embaixo, no vale, a luz crescia, e ele já enxergava centenas de metrópo les e cada janela de cada casa, e cada rosto adormecido por trás de cada janela. — Ninguém teve esta segunda chance — disse a voz, mas sem tentar per suadi-lo. — O que pedem os homens, então? — Pedem dinheiro, poder, mulheres. Pedem oxímoros, paradoxos: juventu de eterna, imortalidade do corpo... Tu pedes que teu corpo se multiplique. E se, em vez de um, fizerem dois? De quantas almas irás precisar? E se fizerem 20, 200 ? voltou a sentar-se. Sabia que quem acabara de fazer aquele nãoa era o Ele ancião calejado pelos debates escolásticos, o erudito capaz de pedido enfrentar teologia e a metafísica em 12 idiomas e, sim, o rapaz que em uma noite de febre sentira pela primeira vez, no pulsar dos próprios gânglios, a semente da morte crescendo dentro de si. — Vai, pede — disse a voz; e, sem surpresa, ele soube naquele instante que aquela voz não era Deus. Estendeu a mão para o vulto, e tocou nele.
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O camareiro, quese chamava Gesualdo, encontrou-opela manhã, apalpou a pele fria de seu rosto, viu os olhos azuis virados para o teto. Gritou por socorro e teve a preocupação de não tocar em nada no quarto. Nessa crônica é possível perceber que se cruzam, pelo menos, duas ques tões mobilizadas pelo autor através do devaneio do Papa, que se vê diante de seu último dia de vida. Antes de iniciarmos esta análise, no entanto, gostaría mos de esclarecer que, ao falarmos em devaneio ou discurso do personagem Papa, estaremos, na verdade, sempre nos referindo a discursos que são mobili zados pelo autor por meio deste personagem. Neste devaneio é delatado um conflito entre dois discursos, um religioso e outro científico. Suspenso entre duas maneiras de conceber a sua existência, o Papa reflete sobre a possibilid ade de nascer de novo, “sem a interferência abastardante de uma fêmea, de uma parideira intrusa”, numa referência à clonagem de seres humanos, mas se depa ra com um conflito espiritual: “Tu pedes que teu corpo se multiplique. E se, em vez de um, fizerem dois? De quantas almas irás precisar?” A Análise do Discurso considera como parte constitutiva do sentido o contexto histórico-social; ela considera as condições em que este tex to, por exem plo, foi produzido. Contextualizado num momento histórico em que a clonagem levantava a questão da ética na ciência, nada mais representativo desse contexto que a figura do Papa co mo contrap onto ideológico. P or meio deste personagem, o autor presentifica no texto o ponto de vista religioso-católico que faz oposição a uma ciência que se confronta com a concepção de homem com o ser espiri tual. Se este contexto for ignorado, todo o sentido do texto é alter ado. B asta conside rar a hipótese de este texto, por exemplo, ter sido escrito no século XIX, em que a clonagem de seres humanos não passava de pura ficção científica e não era, como nos dias atuais , um a possibilidade que a ciência considera. Este texto não te na o estatuto que atribuímos a ele, o de colocar em cena um conflito ideológi co atual, mas lhe seria atribuído o estatuto de “ficção científica” por abordar fatos inconcebíveis ao homem da época. O contexto histórico-social, então, o contexto de enunciação, constitui parte do sentido do discurso e não apenas um apêndice que pode ou não ser considerado. Em outras palavras, pode-se dizer que, para a AD, os sentidos são historicamente construídos. Althusser (1970) afirma, como já apontado anteriormente, que a classe dominante, para manter sua dominação, gera mecanismos que perpetuam e re produzem as condições materiais, ideológicas e políticas de exploração, dentre esses mecanismos, os aparelhos ideológicos de Estado (AIE). O discurso, como também já foi apontado, é um “aparelho ideológico” através do qual se dão os
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embates entre posições diferenciadas. É possível com preender melhor esta afir mação a partir da crônica analisada. Nela é delatado um conflito entre os discursos religioso e científico. Ocor re que esse conflito não é apenas um emb ate entre estes dois discursos, mas é, antes, um confronto entre forças ideológicas. O conflito, materializado na alternância das posições que o personagem Papa ocupa durante seu devaneio — ora desempenha o papel de autoridade da Igreja Católica, instituição que representa, ora ocupa o lugar de um homem comum fascinado pelas promes sas da ciência de sua época —, é caraterístico de posições ideológicas contrá rias uma em relação à outra em um m omen to dado, ou seja, o conflito é carac terístico de um embate de nossa época. O texto, portanto, não se apresenta como um conjunto de enunciados unificados por posições ideológicas nãoconflitantes, como algo homogêneo. Ao contrário, o texto se constitui de dis cursos divergentes cujas fronteiras se intersectam (o próprio devaneio se ca racteriza pela ausência de uma demarcação definida entre uma posição e ou tra); o texto é heterogêneo, não é possível definir um dos discursos sem reme ter ao outro. O que se pode dizer do devaneio do Papa? Que ele representa um posi cionamento da Igreja Católica com relação à liberdade do homem diante da própria vida? Que ele representa as possibilidades que a ciência moderna oferece ao homem de ser senhor da própria vida? Não é possível optar por apenas uma das hipóteses sem incorrer no risco de desconfigurar o sentido do texto. O devaneio do Papa representa, ao mesmo tempo, o posicionamento católico e o posicionamento da ciência moderna, ele só existe na verdade porque existe um conflito, ético no caso, entre as duas posições. Assim, o texto não é um ou outro discurso, mas é a relação entre eles. A AD chama de fo rm ação ideológica (FI) este confronto de forças em um dado momento histórico: Falar-se-á em formação ideológica para caracterizar um elemento (determinado aspecto da luta nos aparelhos) susceptível de intervir como uma força confron tada com outras na conjuntura ideológica característica de uma formação social em um momento dado; cada formação ideológica constitui assim um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem “individuais”, nem “universais” mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classe em conflito umas com as outras41. 41.
Haroche, C., Henry, P. & Pêcheux, M. (1971) são citados por Brandão, H. N. Introdução à 7. ed. Campinas, Editora da UNICAMP, 1998a, p. 38.
Análise do Discurso.
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Sendo assim, uma formação ideológica comporta necessariamente mais de uma posição capaz de se confrontar uma com a outra. Na verdade, numa formação ideológica, as forças não precisam estar necessariamente em confron to; elas podem entreter entre si relações de aliança ou também de dominação. A idéia de confronto foi colocada em destaque aqui unicamente em função do texto analisado. O conceito de formação discursiva (FD), já apresentado, é utilizado pela AD para designar o lugar onde se articulam discurso e ideologia. Nesse sentido é que podemos dizer que uma formação discursiva é governada por uma forma ção ideológica. Como uma FI coloca em relação necessariamente mais de uma força ideológica, uma formação discursiva sempre colocará em jogo mais de um discurso. No caso da crônica analisada, temos interligados por uma relação de forças contraditórias o “discurso da ciência” e o “discurso religioso”. Para esclarecer melhor a constituiç ão de uma formação discursiva, gosta ríamos de analisar uma tira de Bill Watterson:
Fonte: Watterson, B.
Os dez anos de Calvin
, v. II, 1996.
Calvin, o personagem-menino que assume o papel de sujeito do discurso “A força para mudar o que eu puder, a inabilidade de aceitar o que eu não posso e a incapacidade de ver a diferença”, enuncia do interior de uma formação discursiva. Como uma FD é um dos componentes de uma formação ideológica específica, o fechamento, o limite que define uma formação discursiva é instá vel, pois ela se inscreve em um espaço de embates, de lutas ideológicas. Assim, uma FD não consiste em um limite traçado de maneira definitiva; uma FD se inscreve entre diversas formações discursivas, e a fronteira entre elas se desloca em função dos embates da luta ideológica, sendo esses embates recuperáveis no interior mesmo de cada uma das FDs em relação. Vejamos como isso se dá no discurso de Calvin. A análise, esboçada no quadro que se segue, foi-nos
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apresentada por um aluno do 2o ano de Trad utor e Intérprete da Universidade de Fran ca42, por ocasião da leitura da p rime ira versão deste texto. Nós a repro duzi mos aqui como uma contribuição para a explanação do conceito em questão. FD
FD C R ISTÃ
FD IN D IV ID U A L IST A
“A força para mudar o que eu puder”
A força para m udar o que puder (obje ti va tr ansfo rm ar)
A força para mudar o que puder (objetiva uma imposição ditatorial )
“A inabilidade para aceitar o que eu não po sso ”
A hab ili dade de aceitar o que não pode ser mudado (resignação diante dos obstáculos intransponíveis)
A inabilidade de ace itar o que não pode ser m udado (r evolta e insatisfação diante dos obstáculos intransponíveis)
“A incapacidade de ver a diferença”
A capacidade de ver a diferença (aspira-se à sabedoria)
A incap acidade de ver a difer ença (aspira-se somente à reali zação das vontades pessoais, nada deve detê-las)
O quadro apresentado m ostra o dis curso de Calvin como dec orrente de um embate entre duas formações discursivas, a “FD cristã”, enunciada a partir de um lugar ideológico que valoriza a convivência pacífica e equilibrada de um sujeito consigo mesmo e com o próximo, e a “FD individualista”, enunciada a partir de um lugar ideológico que valoriza a vida pautada pelos desejos pessoais e particulares do sujeito (os nomes dados às FDs são bastante “esquemáticos”, no sentido de rotular em os discurs os; foram escolhidos em função do que jul ga mos ser o componente semântico mais c aracterístico das FDs em questão e são aqui utilizados apenas para fins didáticos). De acordo com o quadro, um mesmo enunciado pode ser compreend ido de duas maneiras, dependendo do lugar i deo lógico de onde é enunciado. “A força para mud ar o que eu puder” pode signifi car a luta por uma transformação pautada na boa vontade e na solidariedade cristãs ou uma imposição ditatorial pautada pelo egocentrismo e individualis mo. Ao mesmo enunciados “A inabilidade aceitar que eu não posso” e “Atempo, incapacidade para como ver a diferença”, que para parecem nosoremeter univocamente à “FD individualista”, no quadro são apresentados como nos re metendo também à “FD cristã”. O leitor deve estar se perguntando por quê. Uma breve apresentação do conceito de heterogeneidade discursiva poderá es 42. Agradecemos a Eugênio Rodrigues pela contribuição.
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clarecer essa questão. Antes, porém, não poderiamos deixar de fazer uma refe rência a Bakhti n (1929/1988) que, fazen do um a crítica à concepção saussureana de língua como um sistema monológico, apresenta a noção de dialogismo sobre a qual se funda uma grande parte da Lingüística43, inclusive a AD. Bakhtin (1929/1988) considera que a verdadeira substância da língua é constituída pelo fenômeno social da interação verbal e que o ser humano é in conceb ível fora das relações que o ligam ao outro44. É partind o dess e pres supos to que critica a concepção de língua enquanto estrutura, pelo fato de, ao ser tomada como alheia aos processos sociais, não ser articulável com uma prática social concreta, com a história e tampouco com o sujeito. Segundo Authier-R evuz (1982), um paradigm a é constante nos estudos do círculo de Bakht in: op õem-se o dialógico ao monológico, o múltiplo ao único, o heterogêneo ao homogêneo45. O dialogismo do círculo de Bakhtin, no entanto, não tem como preocup ação central o diálogo face a face, mas diz respeito a uma teoria de dialogização interna do discurso. É n esse sentido que, para Bakhtin, o discurso, cujo dialogismo se orienta para outros discursos e para o outro da interlocução, instaura-se numa perspectiva plurivalente de sentidos, bem como a própria palavra que, pelo fato de ser atravessada por sentidos constituídos historicamente, não é monológica, não é neutra, mas atravessada pelos discur sos nos quais viveu sua existência socialmente sustentada46. Rec orrend o a este conceito de dialo gism o47 con cebid o pelo círculo de Bakhtin , Authier-Rev uz (1990) indica algumas formas de heterogeneidade m os trada no discurso, de formas se articulam sobre a realidade da heterogenei dade constitutiva todo que discurso. A heterogeneidade constitutiva, segundo Maingueneau (1997), não é marcada em superfície, mas a AD pode defini-la, formulando hipóteses, a partir do pressuposto da presença constante do Outro na constituição de uma formação discursiva (é bastante evidente aqui como o conceito de heterogeneidade constitutiva do discurso de que se vale a AD é 43. Ver os capítulos “Sintaxe” (referimo-nos à S intaxe Funcional), “So ciolingüísti ca” e “Lingüística Textual” no volume 1 desta obr a, e os capít ulos “Semântica” (referi mo-nos à Semân tica da Enunci ação), “Pragmática” e “Análise da Conversação” neste mesmo volume . 44. Remetemos o leitor a Brait (1997), uma coletânea de artigos que apresenta estudos sobre os principais conceitos da obra bakhtiniana. 45. Authier-Revuz (1982) é citada em Brandão, H. N., Intro dução à An álise do Discurso, 7. ed., Campinas, Editora da UNICAMP, 1998a, p. 52. 46. Bakhtin (1929/1988). 47. Embora ele se situe na perspectiva da Semântica da Enunciação, cabe citar aqui o texto de Ducrot (1984/1987), Esboço de uma teoria polifô nica da enunciação, em que o autor, contestando a unicidade do sujeito falante, procura mostrar como em um mesmo enunciado é possível detectar mais de uma voz. Remetemos o leitor ao capítulo “Semântica”, neste mesmo volume, para maiores informações.
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caudatário do conceito de dialogismo de Bakhtin). Authier-Revuz (1982) apon ta três tipos de heterogeneidade mostrada: a) aquela em que o locutor ou usa de suas próprias palavras para traduzir o discurso de um Outro (discurso relatado) ou então recorta as palavras do Outro e as cita (discurso direto); b) aquela em que o locutor assinala as palavras do Outro em seu discurso, por meio, por exemplo, de aspas, de itálico, de uma remissão a outro discurso, sem que o fio discursivo seja interrompido; c) aquela em que a presença do Outro não é explicitamente mostrada na frase, mas é mostrada no espaço do implícito, do sugerido, como nos casos do discurso indireto livre, da antífrase, da ironia, da imitação, da alusão48. Essas três formas de heterogeneidade mostrada assinalam a presença do Outro na superfície discursiva de maneira diferente, desde formas mais eviden tes (a, b), que Authier-Revuz (1990) classifica como heterogeneidade mostrada marcada, até a forma mais complexa, menos evidente (c), em que a voz do locutor se mistura à do Outro, e que a autora classifica como heterogeneidade mostrada não-marcada. No entanto, independentemente dessa classificação, to das essas formas de heterogeneidade estão ancoradas no princípio da heteroge neidade constitutiva do discurso. Retomando agora à análise da tira de Watterson, apresentada no quadro, ficará mais claro de compreender por que os enunciados “A inabilidade para aceitar o que eu não posso” e “A incapacidade para ver a diferença” são apre sentados como nos remetendo também à “FD cristã”. Nos dois enunciados há a marca da negação — o prefixo irt —, uma forma de heterogeneidade mostrada marcada na superfície do discurso. Por meio desta marca, o que é negado é justamente o discurso que é apresentado no quadro como nos remetendo à “FD cristã”: “A habilidade para aceitar o que eu não posso” e “A capacidade para ver a diferença”. Assim, a negação de um discurso necessariamente nos remete a ele, de forma que ele pode ser percebido como a presença do “Outro” no interior do discurso que o nega. Já o enunciado “A força para mudar o que eu puder”, como já foi dito anteriormente, também nos remete à “FD cristã” e à “FD materialista”, mas pela presença da heterogeneidade mostrada não-marcada na superfície discur-
48. Authier-Revuz (1982) é citada em Brandão. H. N., op. cit., p. 50.
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siva. É no espaço do sugerido que percebemos esta heterogeneidade, é em função da relação que estabelecemos entre “A força para mudar o que eu pu der” e os demais enunciados do discurso de Calvin que percebemos a dupla alusão deste enunciado. Retomando Maingueneau (1997), é formulando hipó teses desse tipo que podemos perceber a presença constante do Outro na cons tituição de uma formação que Apodemos a realidade heterogeneidade constitutivadiscursiva, do discurso. própria perceber Authier-Revuz (1982)da considera que os dois níveis de heterogeneidade mostrada, a marcada e a nãomarcada, são, na verdade, formas lingüísticas de representação de diferentes modos de negociação do sujeito falante com a heterogeneidade constitutiva, sendo a heterogeneidade mostrada não-marcada uma forma mais arriscada de negociação porque, ao jogar com a diluição, é mais dificilmente controlada pelo sujeito. Foi possível perceber, então, que existe, numa formação discursiv a, sem pre a presença do Outro, e é esta presença que confere ao discurso o caráter de ser heterogêneo. O quadro apresenta do a partir da análise da tira de Watterson mostra de maneira bastante clara esse caráter heterogêneo do discurso. Ape sar de Calvin enunciar de um lugar ideológico, digamos, “individualista”, os embates entre este lugar ideológico e o “cristão” são recuperáveis no interior mesmo da FD. Calvin, ao ironizar o discurso cristão negando-o através de uma paródia, recupera-o como parte constitutiva do discurso. É nesse sentido que Maingueneau (1997), considerando que uma formação discursiva não pode ser compreendida como umrelação bloco compacto e fechado, que eladoé interdisdefinida a partir de uma incessante com o Outro, afirma omas primado curso sobre o discurso. Para ele, a unidade de análise pertinente não é o dis curso, mas um espaço de trocas entre vários discursos. Os diversos discursos que atravessam uma FD não passam de componentes, ou seja, em termos de gênese, tais discursos não se constituem independentemente uns dos outros para serem, em seguida, postos em relação, mas se formam de maneira regulada no interior de um interdiscurso. Será a relação interdiscursiva, pois, que estruturará a identidade das FDs em questão. A AD-3 e as recen tes pesquisas tomam, como já apontado, o interdiscurso como um pressu posto teórico. O primado do interdiscurso pode ser muito bem percebido na crôn ica “Um só seu filho”, pois o sentido do texto não pode ser apreendido em um espaço fechado, dependente de uma posição enunciativa absoluta ou de outra, mas ele deve ser apreendido como circulação dissimétrica de uma posição enunciativa à outra. Observemos dois trechos.
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Quando a voz pergunta ao Papa qual era o seu último pedido, o Papa, depois de alguma hesitação, responde: Quero nascer de novo, mas no futuro — retrucou. Quero nascer sob a forma de outra pessoa e saber se serei novamente seminarista, e padre, e cardeal, e papa. Quero que algumas destas minhas células sejam transplantadas para um tubo de ensaio e dali talvez para um ventre, de onde eu renasça: corpo, rosto e mente iguais aos que tive quando nasci. Código genético igual ao meu, sem a interferên cia abastardante de genes de uma fêmea, de uma parideira intrusa. Quero que meu espírito se faça carne, mas quero ser o Pai único de meu Filho.
Nesse trecho, podemos perceber que há um diálogo incessante entre a “voz”, da ciência — “Código genético igual ao meu, sem a interferência abastardante de genes de uma fêmea, de uma parideira intrusa.” — e a “voz” da religião — “Quero que meu espírito se faça carne, mas quero ser o Pai único de meu Filho” . A posição enunciativa do sujeito do discurso, no caso o personagem Papa, mo bilizado pelo autor como responsável por esta enunciação, circula dissimetricamente pelo espaço interdiscursivo, na medida em que ora enuncia de uma posi ção, ora de outra. O mesmo ocorre quando esse personagem faz uma reflexão a respeito do que ele voltaria a viver se nascesse de novo. Atravessando o discurso sobre a sua trajetória na Igreja Católica, é possível pe rceber a presença de um discurso de crítica à Igreja, uma vez que faz referência à arrogância de alguns de seus companheiros, ao mesmo tempo que deixa entrever em sua fala um cert o senti mento de orgulho e desforra ao referir-se ao seu brilhante futuro: “De novo estudarei o latim e a álgebra, de novo andarei anônimo e de batina por entre homens arrogantes que não suspeitarão o meu futuro”. Nesses dois trechos, o personagem ora enuncia de um lugar ideológico, ora de outro. Os trabalhos mais recentes da AD não considerariam que os dois pólos enunciativos de onde enuncia o personagem Papa são constituídos a priori e só então colocados em relação, mas que essa circulação dissimétrica de uma posição enunciativa à outra ocorre devido ao fato de o campo discursivo (Maingueneau, 1984) — conjunto de formações discursivas com mesma função social que se encontram em concorrência, aliança ou neutralidade aparente e que se divergem sobre o modo pelo qual tal função deve ser preenchida — através do qual o sujeito, do discurso circula se caracterizar essencialmente por ser um espaço interdiscurs ivo. Do ponto de vista da AD, seria possível di zer que o efeito de devaneio do sujeito-personagem é construído sobre a possibilidade de circulação entre posições enunciativas que o campo discursivo oferece.
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3.2. A noção de sentido para a AD
Considerando o que foi apresentado até aqui com relação à noção de dis curso com a qual a AD trabalha (conceitos de formação discursiva, formação ideológica, heterogeneidade, interdiscurso), seria quase redundante dizer que, para AD, o caráter discursodepende é constitutivo de seu isto é, que oasentido de uma dialógico formação do discursiva da relação quesentido, ela estabele ce com as formações discursivas no interior do espaço interdiscursivo. A heterogeneidade constitutiva do discurso o impede, como vimos, de ser um espaço “estável” , “fechado” , “homogêneo” , mas não o redime de estar inse rido em um espaço controlado, demarcado pelas po ssibilidades de sentido que a formação ideológica pela qu al é governado lhe concede. Uma formação discu r siva, apesar de heterogênea, sofre as coerções da formação ideológica em que está inserida. Sendo assim, as seqüências lingüísticas possíveis de serem enun ciadas por um sujeito já estão previstas, porque o espaço interdiscursivo se ca racteriza pela defasagem entre uma e outra formação discursiva. Explicando melhor: as seqüências lingüísticas possíveis de serem enunciadas por um sujei to circulam entre esta ou aquela formação discursiva que compõem o inter discurso. O devaneio do personagem Papa é bastante esclarecedor nesse sentido. Ora o personagem fala a partir de um lugar ideológico, ora de outro. Ora é o representante da Igreja Católica diante de Deus — “Obrigado, Senhor. Não mereço esta graça” —, ora é apenas um homem moderno a tormentado pela idéia da morte — “Nascer de novo”. Mas não seria inverossímil o personagem Papa, mobilizado pelo autor como responsável pela enunciação, pedir para nascer de novo? E justamente neste ponto que a AD se mostra bastante esclarecedora. Para a Análise do Discurso, o que está em questão não é o sujeito em si; o que importa é o lugar ideológico de onde enunciam os sujeitos. Em outra s palavras, no espaço interdiscursivo, enu n ciando do interior de uma formação discursiva de cunho ideológico cristãocatólico, o personagem jamais poderia pedir para nasc er de novo. Ao fazer esse pedido, o que ocorre é que ele deixa de enunciar inscrito em uma FD de cunho cristão-católico e passa a enunciar de um outro lugar ideológico, estando inscri to, assim, em outra formação discursiva. Dessa forma, apesar do caráter constitutivamente heterogêneo do discurso, não se pode concebê-lo como livre de res trições. O que é e o que não é possível de ser enunciado por um sujeito já está demarcado pela própria formação discursiva na qual está inserido. Os sentidos possíveis de um discurso, portanto, são sentidos demarcados, preestabelecidos ✓
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pela própria identidade de cada uma das formações discursivas colocadas em relação no espaço interdiscursivo. No entanto, apesar dos sentidos possíveis de um discurso estarem preestabelecidos, eles não são constituídos a priori, ou seja, eles não existem antes do discurso. O sentido vai se constituindo à medida que se constitui o próprio discurso. Não existe, portanto, o sentido em si, ele vai sendo deter minado simultaneamente às posições ideológicas que vão sendo colocadas em jogo na relação entre as formações discursivas que compõem o interdiscurso. Se tomarmos como exemplo a própria constituição da crônica “Um só seu filho”, ou melhor, se a tomarmos como uma metáfora de como se constitui o sentido para a AD, ficará bastante fácil de compreender a noção de sentido. O sentido da crônica não é dado a priori, mas vai sendo construído à me dida que se constrói o texto. Não se tema priori com muita clareza o que está efetivamente ocorrendo com o personagem Papa. O personagem vai sendo construído à medida que o texto vai sendo construído e, por sua vez, vai-se construindo o sentido do texto à medida que se dá a sua própria constituição. Esse sentido, no entanto, não é qualquer sentido, mas está previsto pelas forças ideológicas colocadas em jogo na crônica. A AD diria que os sentidos possíveis para esta crônica deslocam-se entre (e aqui diremos de maneira bastante esquemática e simplificadora, apenas para exemplificar) a “formação discursiva da ciência” e a “formação discursiva católica”. No espaço de circulação entre essas duas formações discursivas é que residiría o sentido. O sentido, portanto, não é único, já que se dá num espaço de heterogeneidade, mas é necessariamen te demarcado. Um outro exemplo que pode ser esclarecedor é pensarmos nas propagan das eleitorais que a cada quatro anos assistimos pela televisão. Os discursos de cada partido ou político não são elaborados previamente e guardados em gave tas até a data prevista para serem enunciados na TV. Mas, à medida que vai se dando o embate político entre partidos e candidatos, os discursos vão sendo escritos, re-escritos, e os sentidos, então, vão sendo constituídos no próprio pro cesso de constituição dos discursos. Evidentemente, não são quaisquer sentidos que são constituídos a partir de uma formação discursiva, como já foi dito ante riormente, mas somente aqueles previstos pela formação ideológica que rege determinado discurso. Assim, no contexto atual, dificilmente ouviremos de um candidato do PT algo como “Vamos privatizar os setores básicos da economia” ou, então, de um candidato do PFL, “Abaixo a privatização”.
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3.3. O conceito de sujeito na AD
Não fica muito difícil de prever, considerando o percurso que fizemos até aqui, de que maneira a subjetividade é concebida pela AD. Para abordarmos essa questão, consideraremos as fases da AD apresentadas anteriormente, já que, decorrente de cada noção de discurso, têm-se diferentes noções de sujeito. Na AD-1, como cada processo discursivo é gerado por uma “máquina discursiva”, o sujeito não poderia ser concebido como um indivíduo que fala (“eu falo”), como fonte do próprio discurso. O sujeito, para a AD-1, é concebi do como sendo assujeitado à maquinaria [para utilizar um termo do próprio Pêcheux (1983/1990)], já que está submetido às regras específicas que delimi tam o discurso que enuncia. Assim, segundo essa concepção de sujeito, “quem de fato fala é uma instituição, ou uma teoria, ou uma ideologia”49. Na AD-2, a noção de sujeito sofre uma alteração que precisa ser compre endida no interior da noção de formação discursiva de Foucault (1969/1971): assim como uma FD é concebida como uma dispersão, no sentido de não ser formada por elementos ligados entre si por um princípio de unidade, o sujeito também o é. Não existe mais, neste segundo momento, a noção de um sujei to marcado pela idéia de unidade, tal como era concebido na AD-1. Ao contrá rio, a noção de dispersão do sujeito (Foucault, 1969/1971) é aqui retomada; o sujeito passa a ser concebido como aquele que desempenha diferentes papéis de acordo com as várias posições que ocupa no espaço interdiscursivo. Dessa for ma, na AD-2, “ vigora a idéia de que o sujeito é uma função, e qu e ele pode estar em mais de uma” 50. No entan to, n esta se gunda fase, o sujeito , apesar da poss ibi lidade de desempenhar diferentes papéis, não é totalmente livre; ele sofre as coerções da formação discursiva do interior da qual enuncia, já que esta é regu lada por uma formação ideológica. Em outras palavras, o sujeito do discurso ocupa um lugar de onde enuncia, e é est e lugar, entendido com o a representação de traços de determinado lugar social (o lugar do professor, do político, do publicitário, por exemplo), que determina o que ele pode ou não dizer a partir dali. Ou seja, este sujeito, ocupando o lugar que ocupa no interior de uma for mação social, é dominado por uma determinada formação ideológica que preestabelece as possibilidades de sentido de seu discurso. Com relação, portanto, às concepções de sujeito da A D-1 e da AD-2, podese dizer que, apesar de diferentes, elas são influenciadas p or uma teoria da ideo 49. Possenti, S. Apresentação da Análise do Discurso. Campinas, s.d.(b). Mimeografado. 50. Possenti, s.d. (b), mimeografado.
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logia que coloca o sujeito no quadro de uma formação ideológica e discursiva (Brandão, 1994). Nesse sentido é que para a AD não existe o sujeito indivi dual, mas apenas o sujeito ideológico: a ideologia se manifesta (é falada) através dele. Na AD-3, por sua vez, a noção de sujeito sofre um deslocamento que inau gura uma nova vertente, bastante atual, da Análise do Discurso. Nessa terceira fase, “a concepçã o de sujeito é definida de form a um pouco men os ‘estruturalista”’51. Compatível com uma noção de discurso marcado radicalmente pela heterogeneidade — afirma-se na AD-3 o primado do interdiscurso —, tem-se um sujeito essencialmente heterogêneo, clivado, dividido. Os trabalhos de Authier-Revuz52, em torno dos quais se desenvolve essa nova vertente, incorporam descobertas das teorias do inconsciente, que consi deram que o centro do sujeito não é mais o estágio consciente, mas que ele é dividido, clivado entre o consciente e o inconsciente. Inserido nesta base conceituai, o sujeito da algum AD secom movimenta entre esses dois pólos sem poder definir -se em mom ento o um sujei to inteiramente consciente do qu e diz. Nesse sentido, o “eu” perde a sua centralidade, deixando de ser senhor de si, já que o “outro”, o desconhecido, o inconsciente, passa a fazer parte de sua identidade. O sujeit o é, então, um sujeito descen trado, que se define agora como sendo a relação en tre o “eu” e o “outro” . O sujeito é constitutivame nte hete rogê neo, da mesma forma como o discurso o é. Para Authier-Revuz (1982), a heterogeneidade m ostrada é uma tentativa do sujei to de explicitar a presença do outro no fio discursivo, numa tentativa de harmonizar as diferentes vozes que atravessam o seu discurso, numa busca pela unidade, mesmo que ilusória. Apresentadas as concepções de sujeito em três diferentes fases da AD, é possível perceber que, apesar de distintas, elas possuem uma característica em comum : o sujeito não é senho r de sua vontade; ou tem os um sujeito que sofre a s coerções de uma formação ideológica e discur siva, ou temos um sujeito subme tido à sua própria natureza inconsciente. É preciso salientar, também, que, ao contrapormos uma primeira vertente (AD-1 e AD-2) a uma segunda, mais atual, o fizemos de maneira a focalizar apenas os aspectos discriminadores entre essas vertentes. No entanto, AuthierRevuz, ao p rivilegiar o enfoque da dimensão do inconsciente como constitutiva da linguagem e do sujeit o, não d eixa de concebê-los — linguagem e sujeito — 51. Possenti, S. Discurso, sujeito e o trabalho de escrita. In: Nascimento, E. M. F. S., Gregolin, M. do R, V. (orgs.) Problemas atuais da Análise do Discurso. Araraquara, Editora da UNESP, 1994, p. 35. 52. Ver Authier-Revuz (1982, 1990 e 1998).
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no interior de uma perspectiva discursiva em que se articulam com o ideológi co. Por sua vez, a AD-1 e a AD-2, ao conceberem o sujeito como interpelado pela ideologia, não deixam de concebê-lo também como um sujeito inconscien te. Os esqueci mentos 1 e 2 de que tratam Pêcheux & Fuchs (1975) sã o uma evidência disso. Segundo os autores, o sujeito se ilude duplamente: a) por “esquecer-se” de que ele mesmo é assujeitado pela formação discursiva em que está inserido ao enunciar (esquecimen to n. 1); b) por crer que tem plena consciê n cia do que diz e que por isso pode con trolar os sentidos de seu discu rso (esq ue cimento n. 2). Esses dois esquecimentos estão constitutivamente relacionados ao conceit o de assujeitamento ideológico, ou interpelação ideológica, que “con siste em fazer com que cada indivíduo (sem que ele tome consciência disso, mas, ao contrário, tenha a impressão de que é senhor de sua própria vontade) seja leva do a ocupar seu lugar, a identificar-se ideologicamen te com grupos ou classes de uma dete rmin ada fo rmaçã o social” 53. O personagem Papa, tal como foi constituído pelo au tor da crônica, é uma boa metáfora de como se constitui o sujeito para a AD. Exemplificaremos aqui a constituição desse sujeito, considerando-o apenas a partir das perspectivas da AD-2 e da AD-3, por serem essas as perspectivas que se mostraram mais prod u tivas no campo da Análise do Discurso. Na perspectiva da AD-3, diriamos que o personagem Papa é um persona gem heterogêneo, que por alguns mom entos crê que tem consciência do que diz — “Nascer de novo” — , mas que, a seguir, se depara com a própria inconsciên cia — “Sabia que quem acabara de fazer aquele pedido n ão era o ancião calejado pelos debates escolásticos, o erudito capaz de enfrentar a teologia e a metafísica em 12 idiomas”. O personagem em questão é uma metáfora de um sujeito dividido pela própria inconsciência. Na perspectiva da AD-2, por sua vez, diriamos que o personagem Papa é assujeitado pelas formações discursivas colocad as em relação no texto, por enun ciar apenas o que já está previsto por estas mesmas FDs. Assim, o personagem enuncia inscrito num espaço discursivo demarcado pela formação ideológica que o rege. De acordo com o que vimos analisando da crônica em questão, diriamos, de maneira bastante esquemática, que este personagem enuncia ins crito em um espaço discursivo que coloca em uma relação de conflito os discu r sos religioso e científico; enunciará, portanto, apenas o que está previsto como enunciados possíveis para estas FDs.
53. Brandão, H. N. Op. cit, p. 89.
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3.4. As condições de produção do discurso
A dupla ilusão do sujeito de que tratam Pêcheux & Fuchs (1975), abordada anteriormente, é, para a AD, constitutiva das condições de produção do discurso. Como decorrên cia dessa dupla ilusão, manifestações que se dão no nív el da superfície discursiva, como a heterogeneidade mostrada, foram interpretadas por Pêcheux (1969) como uma evidência dessa relação imaginária que o sujeito tem com o próprio discurso, como uma manifestação da tentativa (ilusória) de con trolar o próprio discurso. Assim, para a AD, o sujeito, por não ter acesso às reais condições de produção de seu discurso devido à inconsciência de que é atravessado e ao própr io conceito de discurso com o qual trabalha a AD — uma teoria materialista da discursividade —, representa essas condições de maneira imaginária. E o que Pêcheux (1969) chama de jogo de imagens de um discurso. Reproduziremos a seguir o quadro que o próprio autor apresenta: ✓
Significação da expressão
Questão implícita cuja “resposta” subentende a formação imaginária correspondente
(A)
Imagem do lugar de A para o sujeito colocado em A
“Quem sou eu para lhe falar assim?”
Ia
Imagem do lugar de B para o sujeito colocado em A
“Quem é ele para que eu lhe fale assim?”
Imagem do lugar de B para o sujeito colocado em B
“Quem sou eu para que ele me fale assim?”
Imagem do lugar de A para
“Quem é ele para que me fale assim?”
Expressão que designa as formações imaginárias
f K\L f UB) ia
i b (A)
A
B Fonte:
L
i a (R)
i b(r
)
Pêcheux, 1969/1990.
o sujeito colocado em B “Ponto de vista” de A sobre R “Ponto de vista” de B sobre R
“De que lhe falo assim?”
“De que ele me fala assim?”
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A fim de facili tar a comp reens ão desse qu adro 54 para o lei tor, vam os apresentá-lo dividindo-o em dois blocos: 1. A imagem que o sujeito, ao enunciar seu discurso, faz: a) do lugar que ocupa; b) do lugar que ocupa seu interlocutor; c) do próprio discurso ou do que é enunciado. 2. A imagem que o sujeito, ao enunci ar seu discurso, faz da imagem que seu interlocutor faz: a) do lugar que ocupa o sujeito do discurso; b) do lugar que ele (interlocutor) ocupa; c) do discurso ou do que é enunciado. Esse jogo de imagens, mesmo estabelecendo as condições de produção do discurso, ou seja, aquilo que o sujeito pode/deve ou não dizer, a partir do lugar que ocupa e das representaçõ es que faz ao enunciar, não é preestabelecido antes que o sujeito enuncie o discurso, mas este jogo vai se constituindo à medida que se constitui o próprio discurso. Em outras palavras, o sujeito não é livre para dizer o que quer, a própria opção do que dizer já é em si determinad a pelo lugar que ocupa no interior da formação ideológica à qual está submetido, mas as imagens que o sujeito constrói ao enunciar só se constituem no próprio proces so discursivo. Ainda mais uma vez nos valeremos da metáfora do personagem, agora para explicar como as imagens se constituem no próprio processo discursivo. O discurso do sujeito-personagem não está constituído a priori, mas vai se deline ando à medida que ele representa a voz que lhe fala, a parti r das imagens que faz do que lhe é dito. Assim, por exemplo, num primeiro mom ento, coloca-se como um sujeito que não teme a morte — “E meu último dia de vida, isto não deve me amedrontar; é como quando após uma refeição alguém retira de minha frente o prato vazio. Por que me rebelar, se já fruí o que me interessava?” —, mas redefine todo seu discurso a partir da imagem que faz de si naquele momento — “Ele fitou a palma da própria mão: viu com espantosa nitidez as linhas e as comissuras da pele, viu as rugosidade s, o intrincamento têxtil das camadas superpostas, viu ✓
54. Remetemos o leitor a Osakabe (1979), que, além fazer uma apresentação bastante esclarec edora do jogo de imagens de Pêcheux (1969), reestrutura esse quadro mostrando a necessidade de se considerar os atos de linguagem como pertinentes às condições de produção. Assim, teríamos uma outra representa ção: “O que A pretende falando dessa forma?”.
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o fervilhar da matéria viva e as células que se partiam e se fundiam umas às outras como gotas d’água”. E nesse sentido que o jogo de imagens faz parte das condições de produção de um discurso, na medida em que as imagens que o sujeito vai construindo ao enunciar vão definindo e redefinindo o processo discursivo.
4.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Abordamos neste artigo o que julgamos ser fundamental para um primeiro contato com a Análise do Discurso, buscando, ao mesmo tempo, esclarecer, por meio das análises aqui apresentadas, os conceitos que foram colocados. Quere mos ressaltar, no entanto, que este texto não esgota de forma alguma as ques tões que são colocadas pela AD; propõe-se apenas a ser uma porta de entrada possível para o campo, fornecendo ao leitor alguns subsídios para que ele possa iniciar seus estudos na área. Assim, concluir este texto significa apenas concluir a reflexão que fize mos nestas poucas páginas, já que muitos aspectos poderíam ainda ser aqui considerados. Optamos, então, por concluí-lo retomando apenas um aspecto já abordado neste capítulo, por julgarmos crucial enfatizá-lo ao falarmos em Aná lise do Discurso: sua especificidade. O leitor deve ter percebido, ao entrar em contato com os conceitos que embasam a AD, que a definição de todos eles se fundamenta sobre uma caracte rística em comum, a saber constitutividade: discurso, o sentido, sujeito, as condições de produção vãoa se constituindo noopróprio processo de o enunciação. E não podería ser diferente. A AD, ao se propor a não reduzir o discurso a análises estritamente lingüísticas, mas abordá-lo também numa perspectiva histórico-ideológica, não podería constituir-se enquanto disciplina no interior de fronteiras rígidas, que não levassem em conta a interdisciplinandade, seja com determinadas áreas das ciências humanas, como a História, a Sociologia, a Psi canálise, seja com certas tendências desenvolvidas no interior da própria Lingüística, como a Semântica da Enunciação e a Pragmática, por exemplo. a essa interdisciplinaridade, a de Análise do Discurso se apresenta como Devido uma disciplina em constante processo constituição, de onde decorre a constitutividade dos próprios conceitos que a fundament am. Essa interdisciplina ridade, diríam alguns, podería colocar a AD numa situação de extrema fuga cidade. No entanto, esse caráter interdisciplinar não é o perigo que a espreita. Na verdade, o único perigo que podería colocá-la em xeque seria o de não reco nhecermos sua especificidade e tentarmos excluir de seu campo as contradi-
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ções, as irregularidades, em vez de simplesmente tentarmos apreendê-las na materialidade discursiva. Se o leit or tiver apreendido esse caráter da Análise do D iscurso, terá com preendido sua característica fundamental. O mais será uma questão de interesse que, obviamente, esperamos ter despertado com esta introdução. BIBLIOGRAFIA
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São Paulo, 16 de março de
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NEUROLINGÜÍSTICA Edwiges Morato
1. NEUR OLINGÜ ÍSTICA: UM BREV E PERCURSO HI STÓRICO
A Neurolingüística é, sem dúvida, um dos campos mais recentes da Lin guística. Para se ter uma idéia, no Brasil, ela aparece como disciplina de curso de graduação (Letras e Lingüística) e também como área de pesquisa na pósgraduação apenas na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) — e isso a partir dos anos 1980. Contudo, há gente dedicando-se cada vez mais à investigação na área de Neurolingüística, seja desenvolvendo pesquisas em ní vel de pós-graduação em outras universidades, seja procurando estimular a pro dução de conhecimento na área por meio do aprimoramento de métodos diag nósticos e terapêuticos que procuram compreender melhor o funcionamento da cognição humana. Tanto as definições quanto as descrições do campo de atuação da Neu rolin güística que encontramos espalhadas pela literatura produzida em diferentes campos (como o da Lingüística e o das Neurociências) revelam que as frontei ras que delimitam seu objeto são algo movediças. Segundo Caplan (1987), a Neurolingüística é o estudo das relações entre cérebro e linguagem, com enfoque no campo das patologias cerebrais, cuja in vestigação relaciona determinadas estruturas do cérebro com distúrbios ou as-
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INTRODUÇÃO À LINGUÍSTICA
pectos específicos da linguagem. Já para Menn & O bler (1990), a Neurolingüística tem por objetivo teorizar sobre o “como” a linguagem é processada no cérebro. Parece óbvio, levando em con ta o hibridism o da pal avra, que Neurolingüística diga respeito às relações entre linguagem e cérebro e que acione dois cam pos do conhecimento humano para explicá-las, as Neurociências e a Linguísti ca. Isso realmente seria um truísmo se nós não tivéssemos tantos problemas para dar conta dos complexos processos que constituem a linguagem e o cére bro, bem como do modo de funcionamento de ambos. Praticamente terminada a “década do cérebro”, ainda não podemos prog nosticar qualquer acordo ace rca da inter-relação entre linguagem e cérebro. Um bom começo para entrever as relações que ambos mantêm entre si — e na qual seguramente intervém a cultura, a história, a subjetividade — é verificar o que estamos e ntendendo por uma e outra coisa. A partir da í, naturalmente, não escaparemos da Filosofia. E fundam entando cientificamente essa questão que esta remos “fazendo” Neurolingüística. Se considerarmos que linguagem e cérebro têm um a relação (ou sej a, não são uma mesma coisa, e tampouco são coisas logicamente heterogêneas entre si), de que ordem ela seria? Haveria uma relação de causalidade entre eles (na medida em que um cérebro defeituoso causaria uma linguagem ou uma “mente” defeituosa)? Ou haveria uma relação de reciprocidade entre eles (na medida em que o cérebro pode constituir a linguagem da mesma forma que é constituído pela linguagem e seu funcionamento)? Ainda que as respostas a essas questões não raras vezes sejam aventadas de maneira apaixonada, o que sabemos na atualidade sobre a atividade cogniti va indica que há um a relação estreita entre linguagem e cérebro, ancorada na inte rrelação de diferentes áreas do córtex e na interdependência de m últiplos proces sos ou funções cognitivas (como mem ória, linguagem, percepç ão etc.) que atuam em nossas várias formas de perceber e interpretar o mundo. Linguagem e cére bro, dessa forma, funcionariam cada qual como um sistem a dinâmico e flexível a priori (ou seja, não são fixadas de cujas regularidades não são determinadas maneira inata ou biologicamente predeterminadas), não são estruturas fechadas e autônomas (ou seja, não obedecem a padrões estáveis e homogêneos de exis tência). Antes, estão na dependência de diferentes fatores que orientam nosso entendimento e nossa ação no mundo.
Tendo tudo isso em vista aceit emos, ainda que com reservas, que Neurolin güística seja o campo de estudo das relações entre linguagem e cérebr o; e ace i temos também que seu objeto diga respeito, a um só tempo, às ciências huma-
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nas e às neurociências. A pártir disso, nosso olhar deve estar voltado para o que caracteriza tal campo de investigação, para o legado filosófico-científico que o constituiu. Se levarmos em conta que os sacerdotes egípcios já faziam correla ções anátomo-funcionais entre cérebro e comportamento humano, e que a tradi ção filosófica greco-latina se pautou, entre outros temas, pelo problema corpo mente, veremos a história da Neurolingüística remonta de fato à história do homem como serque pensante. Se é bem verdade que o problema corpo-mente funda toda nossa tradição científico-filosófica, o problema cérebro-linguagem, de sua parte, toma forma num período mais recente, mais precisamente no início do século XIX. Esse início, chamado Frenologia, logo alargou seus interesses, em direção aos estu dos anátomo-fisiológicos da linguagem e seus distúrbios. A descrição sistemá tica das alterações de linguagem decorrentes de lesões cerebrais, feita inicial mente por médicos patologistas(ou por anatomistas), deu srcem à Afasiologia: o estudo das afasias, isto é, problemas de linguagem decorrentes de uma lesão focal adquirida no Sistema Nervoso Central. A Afasiologia, nesse início, pode ser definida como o campo de estudo das correlações entre linguagem e deter minadas áreas do cérebro que seriam por ela responsáveis. Dos estudos especí ficos das afasias aos estudos de processos lingüísticos e cognitivos gerais do cérebro humano, normal ou patológico, deu-se um desdobramento quase natu ral. Dessa maneira, precedida por trabalhos realizados há quase duzentos anos, com base na colaboração algo tumultuosa entre a ciência médica e a ciência lingüística, nasce a Neurolingüística. Há quem atribua, como Bouton (1984) ou Lecours & Lhermitte (1979), à publicação, em 1939, do livro Le syndrome de désintégration phonétique, de Alajouanine, Ombredane (neurologistas) e Durand (foneticista) o início da Neurolingüística. Mas há também os que, igualmente de forma tradicional, con sideram a Neurolingüística um ramo (Luria, 1981) ou um subconjunto (Hécaen, 1972) da Neuropsicologia, o que significa defini-la como o campo de estudo das perturbações verbais decorrentes de lesões cerebrais. Essa definição, contu do, é apenas uma pálida caracterização de suas potencialidades teóricas e metodológicas. Apesar de não ter um programa definido de maneira muito pre cisa, a Neurolingüística, grosso modo , caracteriza um campo de investigação que se interessa de uma maneira geral pela cognição humana e de maneira mais específica pela linguagem e por processos afeitos a ela, direta ou indiretamente. A seguir, elencamos, em linhas gerais, o campo de interesses da moderna Neurolingüística: a) estudo do processamento normal e patológico da linguagem por meio de modelos elaborados no campo da Lingüística, das Neurociências,
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INTRODUÇÃO À LINGÜÍSTICA
da Neuropsicologia ou da Psicologia Cognitiva (assim, o estudo do “agram atismo” ou das “parafasias” , por exemplo, mostra-se importan te para a compreensão de aspectos sintáticos ou semântico-lexicais do processo normal de linguagem; o estudo das demências ou das amnésias pode indicar, por sua vez, aspectos fundam entais da natureza da me mória; e já que a relação entre linguagem, cognição e cérebro não é direta, os modelos que analogicam ente a descrevem, sob experimenta ção e test agem, ganham algum p oder explicativo e sugere m formas de funcionamento lingüístico-cognitivo). A este item vincula-se ainda o inter esse por temas com o neurop lastici dade, dom inância cere bral para as funções cog nitivas (como a mem ória ou a percepção), neurofisiologia da linguagem etc.; b) estudo da repercussão dos estados patológicos do/no funcionamento da linguagem o interesse está mais dirigido à os sustentação, com provação ou (aqui refutação de teorias lingüísticas); dados patológicos, por implicarem um grau máximo de instabilidade nas relações entre sujeito e linguagem, bem como entre sujeito e sociedade, tomam-se cruciais para qualquer teorização sobre o funcionamento da linguagem e da cognição humanas; c) estudo dos proc esso s alternativo s de significação (verbal e não-verb al) levados em conta p or sujeitos afetados por patologias cerebrais , co gni tivas ou sensoriais (afasia, demência, surdez etc.). Aqui o objetivo está dirigido tanto para a discussão sobre a maneira pela qual se caracteri za, avalia ou diagnostica os dados lingüístico-cognitivos no terreno da clíni ca, quanto para a teorização linguística, de uma m aneira gera l (es tudos sobre os recursos expressivos utilizados pelos falantes, estudos sobre a inter-relação dos vários níveis linguísticos que constituem a lín gua do ponto de vista funcional, estudos das relações — formais, discursivas, neuropsicológicas — entre a linguagem oral e a escrita); d) discussão de aspectos éti cos e sociocu lturais relacionados ao contexto patológico, à cognição humana e à questão normal/patológico. Este item se aplica tanto à análise do metadiscurso clínico-médico sobre a patolo gia quanto à preocupação com a orientação de condutas terapêuticas; e) estudo dos processo s discursivos que relacionam linguagem e cognição. Aqui vai interessar tanto a análise da dimensão interativa das ações humanas, quanto a das condições históricas e discursivas que a s mo bi lizam. Nesse sentido, procura-se destacar no campo da pesquisa
neurolingü ística o interesse pelas propriedades
interat ivas e dialógicas
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que regem as práticas humanas, pelos processos ideológicos, culturais e intersubjetivos que integram linguagem e cognição num quadro relacionai mutuamente constitutivo. Como exemplo desse tipo de inte resse, lembramos a análise de diferentes fatos textuais que testemu nham a presença da cultura e da história na linguagem, como os pro vérbios, as piadas, os discursos relatados, os comentários, as modalizações, a produção e a veiculação de pressupostos interpretativos admiti dos na sociedade. Desse modo, a teorização produzida pela pesquisa neurolingüística volta à Lingüística de forma extremamente produtiva em relação aos interesses desta última. A análise dos dados obtidos no contexto patológico, bem como o estudo sistemático da relação entre linguagem, cérebro e cognição permitem diferentes e prolíferos movimentos teóricos: colaboram para o entendimento dos proces sos normais de aquisição e desenvolvimento da linguagem e da cognição, pro movem a construção de teorias “pontes ” no interior da própria Lingüística, atuam na arbitragem interdisciplinar entre a Lingüística e outras disciplinas do conhe cimento voltadas para a pesquisa neurocognitiva, contribuem para o melhor desenvolvimento das atividades clínico-terapêuticas, desempenhando um im portante papel social, o que fazem ao destinarem explicitamente parte de sua vocação científica à diminuição de tensões e sofrimentos provocados pelas pa tologias cerebrais, bem como à análise da produção e da circulação de precon ceitos e estigmas relativos às alterações lingüístico-cognitivas. Não é de estra nhar, portanto, que a arbitragem interdisciplinar seja o vetor epistemológico que sustenta toda e qualquer pesquisa produzida na área. Tanto a tradição européia, que identifica a Neurolingüística com os estu dos afasiológicos e psicolingüísticos, quanto a tradição americana (de inspira ção sociolingüística), que a identifica com a fundamentação de práticas clínicoterapêuticas e com estudos de aspectos comunicacionais afetados pela patolo gia, são bons indicadores da relevância da área. A Neurolingüística praticada na UNICAMP, em especial, tem traçado um caminho que, reconhecidamente afiliado à tradição européia, procura ter na Lingüística o seu posto privilegiado de observação.
1.1. Das condições de surgimento da antiga Afasiologia
Apesar de todo o conhecimento acumulado na “década do cérebro” (os anos 90 do século XX), nem tudo se sabe sobre os processos cognitivos subjacen-
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INTRODUÇÃO
À LINGÜÍ STI CA
tes à linguagem (e vice-versa). Como se dá a representação cerebral da lingua gem em pessoas surdas, canhotas ou bilíngües? Como é possível que um tecido cerebral, uma vez “morto”, se regenere? Como é possível que crianças deficien tes mentais aprendam e se desenvolvam? Por que o cérebro envelhece às vezes tão rapidamente? Por que esquecemos as palavras e as coisas? E por que nos lembramos delas? O cérebro é variável, assim como as línguas e as culturas? Há alguma repercussão da cultura escrita na atividade cerebral? Como se processa a neurofisiologia da linguagem? As percepções são as mesmas para todas as pessoas? Como diria Brecht, tantas perguntas, tantas respostas... Sem dúvida, podemos apontar as barreiras tecno-científicas de nosso tem po entre as restrições a um conhecimento mais completo da relação linguagemcérebro-cognição. Com o avanço biotecnológico sabe-se, por exemplo, que as diferenças entre os distúrbios de memória e da gestualidade causados por lesões em diferentes partes do cérebro são bastante (e algumas vezes prontamente) perceptíveis. Entretanto, quedepossam correlacionar mente atividade cerebral pesquisas e processos memória ainda não direta há. E ou issoprecisa talvez porque, assim como a linguagem, a memória seja um processo cognitivo alta mente complexo, dependente não apenas de várias zonas cerebrais como de diversos fatores em jogo nas atividades simbólicas humanas, sendo, dessa ma neira, possível apenas em função das experiências significativas da vida em sociedade, por um exercício de subjetividade e consciência, por práticas discursivas que regem os processos civilizatórios como a cultura, a arte ou a ciência. Nesse ponto nos deparamos com outro fato que nos priva da possibili dade correlacionardas diretamente linguagem cérebro: o domíniocérebro irredutivelmentedeinterpretativo ações humanas. Nãoe sendo linguagem, e cognição capacidades apriorísticas, é lícito pensar que se definem pela práxis significativa humana, reúnem-se pelo que são signicamente, pelo que signifi cam, pelo que fazem significar em nós. O interesse pela organização cerebral da linguagem, bem como pela sua realidade cognitiva surgiu a partir do momento em que ela passa a ser “visível” para os antigos estudiosos da correlação entre comportamentos humanos e áreas corticais lesadas, por volta da segunda metade do século XIX. Antes disso, os fenômenos que de alguma forma eram afeitos ou relacionados à linguagem eram creditados a alguma capacidade intelectiva do homem que nada teria a ver com linguagem propriamente dita, como a percepção, a memória, o raciocínio. No fundo, toda a tradição científico-filosófica acerca da linguagem a toma como uma espécie de exteriorização de conteúdos cognitivos ou mentais que seriam subjetivados e aparentemente inacessíveis ao investigador. Afinal, para os anti gos, a linguagem, essa espécie de “dom divino” dado ao homem (portanto, ina
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ta, essencial, verdadeira, lógica e transparente), não se confundia com a realiza ção humana (a fala), que a deformava, mas com a mente (o espírito), que a continha. O que diria uma perspectiva que admite uma relação mais estreita entre linguagem, cognição e cérebro? O que significa, afinal, conceber uma relação estreita entre linguagem e cognição? Significa que não se trata de correlacionar diretamente uma coisa e outra coisa, mas sim de procurar entrever seus modos de existência comuns, suas implicações e influências recíprocas. A relação es treita entre linguagem e cognição, dessa maneira, passa pela interdependência dessas duas formas de (ser) conhecimento. Se levarmos em conta autores como Humboldt (1972) e Vygotsky (1987), dificilmente haveria possibilidades inte grais de pensamento ou conteúdos cognitivos fora da linguagem ou possibi lida des integrais de linguagem fora deprocessos interativos humanos (Morato, 1996).
1.2. Afasiologia e Neurolingüística
Desde a Antiguidade focaliza-se o cérebro como o órgão da sensação e da inteligência. Porém, apenas no século XIX surge o estudo “científico” do cére bro. A descoberta das localizações cerebrais e os primeiros trabalhos sobre a teoria celular datam dessa épo ca. Também é importante assinalar, nesse co ntex to, que o interesse pela cognição aparece justa mente nessa época (na verdade, já um pouco antes, no período do Iluminismo), quando a psique se toma um atri buto propriamente humano (e não mais divino, como o era para os antigos). Embora os sacerdotes egípcios já fizessem suas correlações anatomo-clínicas, observando as conseqüências dos danos cerebrais, de Galeno até a Idade Média preponderou a Teoria dos Ventrículos, responsável pela explicação da arquitetura anatômica e funcional que determ inava quais as faculdades mentais de que os homens eram dotados. De acordo com essa teoria, apenas algumas faculdades mentais (como razão, memória ou senso comum) teriam uma reali dade cerebral mais ou menos circunscrita a determinadas regiões: a linguagem não tinha uma realidade nosológica (isto é, não fazia parte das evidências de seqüelas de distúrbios cerebrais) simplesment e porque não existia para os estu diosos (Marx, 1966). Ou seja, ela era “invisível” porque não se considerava até então que estava localizada no cérebro. Embora seja tradicional falar que a Afasiologia nasceu com o francês Paul Broca, em 1861, quando ele descreveu os primeiros casos de afasia motora, que afetaria basicamente o aspecto expressivo da linguagem (descrevendo, entre outros, o caso do paciente Leborgne, apelidado “Tan-tan” por ser esta a única
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INTRODUÇÃO À LINGUÍSTICA
forma expressiva que lhe restara para se comunicar com os outros), cabe salien tar que quem estabeleceu propriamente a relação entre área cerebral lesada e manifestações clínicas de pacientes neurológicos foi Gall, no início do século XIX, fazendo correlações anátomo-fisiológicas de impressões vistas a olho nu na caixa craniana. Coube a Gall, dessa maneira, introduzir a linguagem entre as faculdades mentais que estariam localizadas no cérebro. A verdade é que a linguagem só veio a ter uma realidade mental (“mental” significando ou reduzindo-se ao cere bral, de acordo com o e
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que cada função cognitiva, como a memória ou a linguagem, é de responsabili dade de regiões ou sedes circunscritas do cérebro), eram questionados seria mente. Tanto o estudo da linguagem e processos afeitos a ela (iniciado pelos pró prios afasiólogos, como Lordat, antes mesmo que pelos lingüistas) quanto a ponderação dos primeiros críticos do localizacionismo (como Charcot, Jackson ou Freud) deram srcem à moderna Neuropsicologia (de inspiração funcionalista) e à Neurolingüística (de inspiração estruturalista). A falta de teorias pontes entre a Lingüística e a Neurologia também co n tribuiu para que os estudos lingüfsticos sobre a afasia não acontecessem ainda no século XIX (podemos até mesmo aludir a um desconhecimento teórico recíproco dessas duas ciências que se formavam como tais nessa época). Além disso, o uso da Lingüística como “ciência auxiliar” também não foi favorável ao estudo das afasias que então despontava. Somado a todos esses fatores, lembramos o psicologismo que dominava as primeiras explicações sobre as afasias, o que de certa forma inibia a incursão de lingüistas nesse campo. Em suma, são esses, entre outros, os motivos pelos quais a história entre a Lin güística e a Afasiologia é, na verdade, a de um encontro que não houve real mente (Françozo, 1987). Quando se efetivou, em meados dos anos 60 do século XX, o estudo lingüístico da afasia dizia respeito basicamente à sintaxe (ou melhor, às regularidades gramaticais e às regras de boa formação de sentenças) e à semântica (ou melhor, às representações lógico-formais de sentenças). A fala, em seu contex to fonético-fonológico, ficou de fora dos problemas afásicos (como estava, no início, de fora da própria Lingüística), já que era considerada uma realização simplesmente motora (o que equivale a dizer não-simbólica, ou não-lingüística, e sim meramente fisiológica). Também ficaram de fora do início dos primeiros estuuos lingüísticos das afasias as atividades realizadas pelos falantes em situações de uso efetivo da linguagem, os aspectos socioculturais a ela relacionados e as práticas discursivas (largamente ideológicas, inconscientes) que a mobilizam. Vale ressaltar, a pro pósito, que foi preciso esperar por Jakobson, que realizou o primeiro estudo propriamente lingüístico das afasias (tendo como base de seu trabalho a descri ção neuropsicológica dos fenômenos afásicos feita pelo russo A. R. Luria), para que o diálogo entre a Afasiologia e a teoria lingüística se tomasse fecundo, criativo e promissor. A partir do momento em que passa a situar-se preferencialmente na Lin güística, a antiga Afasiologia — agora denominada Neurolingüística — pôde
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projetar de maneira interessante antigas indagações filosóficas sobre o sentido, a representação, o conhecimento, a relação entre patologia e normalidade etc. Pôde, sobretudo, voltar-se para a Lingüística de modo a assumir seus pressu postos e métodos próprios, às vezes criando teorias pontes com outros domínios da própria ciência da linguagem, como a Psicolingüística, a Sociolingüística, a Pragmática, a Análise do Discurso, a Filosofia da Linguagem. Chegada a hora de fazermos um apanhado do que discutimos até aqui, podemos dizer que, resumidamente^ a Neurolingüística tem sido um lugar de investigação de pré-conceitos (como os de língua, linguagem, representação, cognição, significação etc.); da articulação epistemológica entre linguagem e cognição, essas duas formas de conhecer e de apreender o mundo; da relação entre semiose verbal e não-verbal; da semiologia e da classificação de proble mas de linguagem; da elaboração de modelos de processamento cerebral da linguagem e da cognição; dos limites da correlação anátomo-clínica; da relação entre normalidade e patologia; das condições de reorganização lingüísticocognitiva após dano cerebral; das relações entre o processo de aquisição e o de patologia de linguagem. Finalmente, cabe salientar que ainda que a Afasiologia ou a Lingüística Afasiológica, na expressão de Caplan (1987), não totalize o interesse teórico-metodológico da Neurolingüística atual, este é, sem dúvida, o seu campo de investigação mais prolifero.
2. AS PRIMEIRAS TEORIZAÇÕES SOBRE AS AFASIAS EA LINGUAGEM PATOLÓGICA Os primeiros a diagnosticar e classificar as afasias foram os próprios mé dicos e neuropatologistas que as descreveram a partir do que exibiam seus paci entes. Na realidade, as classificações vigentes em sua maioria não divergem entre si e reafirmam de certa forma descrições e concepções tradicionais. Desde a primeira metade do século XX os lingüistas passaram a estudar as afasias com o intuito de testar ou comprovar suas teorias. Dessa forma, a Afasiologia tomou-se uma importante fonte de dados para o desenvolvimento da teoria lingüística. Contudo, apenas recentemente os lingüistas passaram a se interessar pela análise mais abrangente do fenômeno afásico pois, conforme ressalta Coudry (1988), os primeiros afasiólogos (médicos ou lingüistas) enxer gavam a linguagem “pela fresta estreita de descrições gramaticais e modelos redutores ”1.
1. Coudry, M. I. Diário de Narciso - discurso e afasia. São Paulo, Martins Fontes, 1988, pp. 21-22.
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Se a falta de uma ciência da linguagem obrigou os primeiros afasiólogos a levarem em conta o bom senso e a intuição na análise da linguagem em contex tos patológicos (à maneira de Lordat, Bailanger ou Trousseau, por exemplo, que faziam inúmeras observações interessantes, embora algo subjetivistas, a respeito das implicações da afasia na linguagem e na vida de seus pacientes), a institucionalização inicial do aquilo estudoque das envolvia afasias no terreno da Neurologia fez com que fosse afastado tudo seus aspectos socioculturais, ideológicos, afetivos2— devido à “exótica” inclinação filosófica que o estudo das afasias suscitava e que era rejeitada à época em função da idéia de ciência que se estabelecia. A distinção entre língua e fala, central no nascimento da Linguística (Saussure, 1981) pelo viés do estruturalismo, conduziu os estudos da afasia em direção ao estudo da língua, vista como sistema fechado, autônomo, homogê neo e inato, dissociada das atividades que com ela fazem os falantes. Esta con cepção de língua ajustava-se com a veiculad a nos estudos afasiológicos iniciais, que a consideravam uma espécie de representação do pensamento (ou da me mória, ou da percepção). Com isso, a afasia acabava sendo definida não como um problema de linguagem em toda a sua abrangência, mas basicamente como um problema de aspectos internos, subjetivados, representacionais: em suma, como um problema de “linguagem interna” (Françozo, 1987). A tradição estruturalista dividiu as afasias em dois grandes tipos: fluentes e não-fluentes, anteriores e posteriores, motoras e sensoriais. As primeiras têm como características os problemas de expressão (como alterações fonéticofonológicas, estereotipias, perseverações, disprosódias, parafasias — sobretu do fonológicas — , fala telegráfica, agramatismo, falta de iniciativa verbal, alte ração de linguagem escrita, apraxia buco-lábio-lingual) e são creditadas a le sões na parte anterior do córtex cerebral. As segundas têm como características problemas de compreensão, ausên cia de déficits articulatórios e alteração nos aspectos semânticos da linguagem (como anomias, dificuldades de evocar ou selecionar palavras, dificuldades maiores com a linguagem escrita, parafasias — sobretudo semânticas —, circunlóquios, confabulações). Os problemas perceptivos e gestuais mais freqüentes e numerosos nesse tipo de afasia, que é creditada a lesõessão na parte posterior do córtex cerebral. 2. A propósito, tomemos o seguinte comentário do neurologista inglês Oliver Sacks (1995): “A tradi ção das histórias clínicas ricamente humanas atingiu um ponto culminante no século XIX e depois decli nou com o advento de uma ciência neurológica impessoal. Luria escreveu: O poder da descrição, tão co mum nos grandes neurologistas e psiquiatras do século XIX, hoje quase desapareceu”. Sacks, O . Um antropólogo em Marte. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
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INTRODUÇÃO A LINGUÍSTICA
Sem maiores especificações, esse é o quadro geral das classificações das afasias (que acaba por orientar a classificação de outras síndromes neurológi cas, como as demências, por exemplo). Tanto os neuropsicólogos quanto os neurolingüistas têm tentado colocá-lo à prova mediante a apresentação de ou tras descrições ou análises de fenômenos afásicos. Contudo, novas descrições e explicações acabam sendo “encaixadas” nas velhas classificações de maneira ad hoc. O fato é que, sob contestações de toda ordem, elas continuam a vigorar firmes e fortes, sobretudo quando evocadas para serem aplicadas ao contexto clínico-terapêutico. Foi preciso que a forte distinção língua x fala fosse diluída para que aqueles objetos considerados “heteróclitos” por Saussure (ou seja, os falantes, os aspectos histórico-culturais etc.) passassem a ser incorporados ao estudo da linguagem.
2.1. Sobre as afasias
Segundo Coudry (1988), a afasia é uma perturbação da linguagem em que há alteração de mecanismos lingüísticos em todos os níveis, tanto do seu aspec to produtivo (relacionado com a produção de fala), quanto interpretativo (rela cionado com a compreensão e com o reconhecimento de sentidos), causada por lesão estrutural adquirida no Sistema Nervoso Central, em virtude de acidentes vasculares cerebrais (AVCs), traumatismos crânio-encefálicos (TCEs) ou tu mores. A afasia pode e geralmente é acompanhada de alterações de outros proces sos cognitivos e sinais neurológicos, como a hemiplegia (paralisia de um dos lados do corpo), a apraxia (distúrbio da gestualidade), a agnosia (distúrbio do reconhecimento), a anosognosia (falta de consciência do problema por parte do sujeito cérebro-lesado) etc. Não se trata de afasia a alteração de linguagem que se manifesta nas psicopatologias (como a esquizofrenia ou o autismo), nas defi ciências mentais e auditivas ou nas demências, ou mesmo nas amnésias. Ainda segundo Coudry (1988), dizemos que um sujeito está afásico quando lhe faltam recursos próprios da linguagem, tanto produtivos quanto interpretativos. O afásico, que experimentara uma eficácia no uso da linguagem em sua vida prémórbida, passa a não dispor mais dela, já que não mais lhe são disponíveis os recursos necessários para que ele participe a contento da interação com seus interlocutores e dê representabilidade ao mundo em que vive. A afasia é, basicamente, uma questão de linguagem; um problema essen cialmente discursivo, não redutível aos níveis lingüísticos, isto é, à língua. En volve o funcionamento da linguagem e os processos cognitivos de alguma ma-
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neira a ela associados; envolve, dessa maneira, as práticas lingüísticas e discur sivas que caracterizam as rotinas significativas humanas. É interessante observar que o sujeito que tem afasia tem também uma lesão no cérebro (provocada por doença sistêmica, como uma cardiopatia, por exemplo, ou por algum dano relacionado à intimidade do tecido cerebral, como a ruptura de um aneurisma, por exemplo), o que provavelmente perturbou ou tros processos cognitivos e muitas vezes implica consequências devastadoras para o sujeito (e para sua família e seus amigos, vale dizer). Após o dano cerebral, a qualidade de vida do sujeito cérebro-lesado será proporcional à intensidade do impacto da afasia. E isso dependerá, entre outras coisas, do grau de extensão e importância do comprometimento lesional, da etiologia da afecção (AVC, TCE, tumor etc.), das seqüelas neurológicas e neurolingüísticas resultantes (afasia, agnosia, hemiplegia, apraxia etc.) e das características do próprio sujeito (idade, atividade sócio-ocupacional, interes ses eculturais, escolaridade, habilidades, ele seus familiares ou amigos reagemhumor a isso etc.), tudo. bem como da forma como Não é difícil, nesse sentido, imaginar o impacto da afasia, bem como dos distúrbios cognitivos e neurológicos que podem a ela ser associados, sobre as possibilidades interativas dos sujeitos cérebro-lesados. Do ponto de vista lingüístico (língua oral e escrita), podem faltar-lhe as palavras de maneira importante (anomias, dificuldades de selecionar ou evocar palavras), o que resulta muitas vezes em substituições ou trocas inesperadas e incompreensíveis de palavras inteiras ou de partes delas (são as parafasias, que têm diversas naturezas: fonético-fonológicas, semânticas, morfológicas), lon gas pausas ou hesitações, muitas vezes seguidas de desalentado abandono do tumo de fala ou do tópico conversacional, bem como da perda do “fio da mea da”; pode também acontecer de sua fala resultar muito laboriosa (alterações apráxicas, fono-articulatórias) ou ter um aspecto “telegráfico”, em função de dificuldades de ordem sintática (como o agramatismo) ou semântico-lexical (como as dificuldades de encontrar palavras). Ainda pode acontecer de o sujeito ter dificuldades para objetivar ou “con trolar” os sentidos e socioculturais) a forma de expressá-los tendoa em vista osdacontextos e aso regras (pragmáticas, que presidem utilização linguagem: sujeito as “infringe” ao confabular (isto é, produzir falsas informações ou falsas memórias), ao produzir circunlóquios, ao apresentar uma fala jargonafásica (uma fala permeada de abundantes parafasias de diversas naturezas, de modo a pare cer ininteligível para o interlocutor), ao atuar de maneira irrelevante com rela ção à atividade inferencial (subentendidos, implícitos, pressupostos etc.).
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Vale a pena ressaltar que esses últimos aspectos, em muito se melhantes ao que ocorre no contexto “normal”, extrapolam o terreno do sistema lingüístico e atingem a exterioridade da língua. É quando a afasia se exibe de maneira mais radical como uma questão discursiva3. Naturalmente, a maneira como se lida social e subjetivamente com a afasia condiciona, de certa forma, a sorte dos que com ela convivem. Além disso, tal maneira acaba por influenciar fortemente o processo de (re)construção lingüístico-cognitiva ou a possibilidade de adaptação ou reinserção sócio-ocupacional de sujeitos afá^icos. Nesse caso, a afasia deixa de ser apenas uma ques tão de saúde, uma questão lingüística, uma questão cognitiva. A afasia toma-se uma questão social4. Em 1875, Legroux definia a afasia como “perversão da faculdad e normal de exprimir ou compreender as idéias pelos signos convencionais”. Não é à toa que as teorias da localização cerebral tiveram como ponto de partida o estudo das afasias — a afecção somá tica de todas da lingua gem. srcem anatômica parecemenos dar a essa linguagem uma as m patologias orbidez indiscutível (daí a A medicalização, o organicismo, a psicologização etc.). Herdeira do logocentrismo greco-latino, a cultura ocidental, ao vigiar se veramente as formas de dizer ou falar, acaba por caracterizar a perda ou a alte ração da linguagem como um “escândalo” intolerável, como se o pathos não fosse constitutivo também da idéia de normal (algo tematizado com agudeza por autores como Freud, Canguilhem e Foucault). Como diz Porter (1993), a “doença põe a linguagem sob tensão” . Daí vê-se a preocupação com o sintoma, com a nosologia, com a forte distinção entre o normal e o patológico: “uma doença nomeada é uma doença quase curada”5. A pessoa que se torna afásica, em função dessa idealização (da linguagem, do falante, da saúde, do verbo judaico-cristão etc.), acaba por conviver com um estigma muitas vezes devasta dor (à maneira dos que conv ivem com a tuberculose ou o câncer, por exemplo). 3. Sobre os processos de constituição da linguagem e seu funcionamento, remetemos o leitor e a leitora aos capítulos “Análise do Discurso”, “Pragmática” e “Análise da Conversação”, neste volume, e ao capítulo “Lingüística Textual” , no volume 1 desta obra. 4. Pensando nesses aspectos é que, em 1989, num esforço conjunto do Departamento de Lingüística e do Departamento de Neurologia, foi criado o Centro de Convivência de Afásicos (CCA). Funcionando no Instituto de Estudos da Linguagem/UNICAMP em uma sede própria, o CCA é um espaço de interação entre pessoas afásicas e não-afásicas. Do ponto de vista institucional, o CCA, cujas atividades têm sido coordenadas pela Profa. Maria Irma Hadler Coudry e por mim, recobre três funções básicas e inter-relacionadas: de assistência e apoio a sujeitos cérebro-lesados e suas famílias, de docência (graduação e pósgraduação na área de Neurolingüística. bem como atividades de extensão, como cursos de formação e divulgação) e de pesquisa (estudos individuais e integrados). 5. Porter, R. Expressando sua enfermidade: a linguagem da doença na Inglaterra georgiana. In: Burke, P., Porter, R. (orgs.) Linguagem, indivíduo e sociedade. São Paulo, UNESP, 1993.
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2.2. O estudo das afasias no âmbito da Lingüística: Jakobson e a análise lingüística
O primeiro lingüista que se dedicou sistematicamente ao estudo das afasias foi Jakobson (ver, por exemplo, 1960, 1969, 1981, 1988). Baseado na classificação feita de porafasia: outro eminente cientista russo, Luria (que estipulouneuropsicológica seis formas básicas eferente, aferente, sensorial, di nâmica, semântica e amnésica), Jakobson estudou atentamente as afasias do ponto de vista lingüístico. Para Luria, as afasias afetam distintamente os as pectos motores e sensoriais (expressivos e receptivos), voltados para as tare fas de articular e compreender a linguagem, que pode ser alterada em suas diferentes modalidades (fala, audição, leitura e escrita), ainda que de maneira seletiva. Ao se dedicar às afasias, Jakobson estava, na verdade, interessado em cons truir uma teoria geral da linguagem, uma teoria que a explicasse no seu todo: aquisição, funcionamento, estrutura, alterações etc. Justamente por ferir a nor ma, a gramaticalidade, os padrões estruturais e funcionais da língua, as afasias dariam solidez empírica à sua teorização sobre o funcionamento da linguagem de um modo geral (e da sua aquisição pela criança de um modo particular). A partir dessa primeira incursão lingüística (as anteriores nada mais fizeram que coadjuvar, digamos assim, as investigações de neurologistas), passou-se a acre ditar que os linguistas e a Lingüística em muito contribuiríam para uma melhor descrição da semiologia e do diagnóstico das afasias. Na prática (isto é, na teoria), Jakobson ampliou, tendo como pano de fun do o estruturalismo e o funcionalismo lingüístico (sob sua forma mais produti va, o Círculo Lingüístico de Praga), algumas das idéiasde Saussure: no entendi mento dos tipos de afasia descritos em termos fisioneuropsicológicos por Luria, Jakobson trabalhou teórica e metodologicamente com dicotomias clássicas, es tabelecendo dois grandes eixos de relações (simbólicas) projetados um sobre o outro, duas formas de organização da linguagem, sintagmático/metonímico (res ponsável pela combinação de unidades) e paradigmático/metafórico (responsá vel pela seleção de unidades). Essa combinação conferiría unidade lingüística ao sistema de linguagem. Nas afasias, segundo o autor (1981), “um ou outro desses dois processos é reduzido ou totalmente bloqueado”6.
6. Jakobson, R. Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia. In: Lingüística e comunicação. São Paulo, Cultrix, 1981. (título srcinal, 1954)
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Lembrand o a tradição saussureana, as explicações de Jakobson partem do princípio de que o falante não apenas opera com unidades, mas tam bém com unidades em cade ia lingüísti ca. Essas com binações são chamadas de sintagmas e são qualificadas como relações in praesentia (como as estruturas sintáticas). Havería ainda uma outra classe de relações, só que entre entidades que têm entre si algo de comum. São chamadas de paradigmáticas e são qualificadas como relações in absaentia (como classes morfológicas e campos lexicais). Mais no início de seus estudos sobre as afasias, Jakobson (1954) era soli dário ao pensamento luriano, chegan do mesmo a afir mar que havería correl ação entre lesões anteriores e transtornos de codificação, assim como entre lesões posteriores e transtornos de decodificação. A hipótese de Jakobson era que as duas formas do eixo estari am na depen dência de estruturas cerebr ais diferent es e que, embora ambas possam atuar de maneira integrada na comunicação, são relativamente independentes. Considerando, posteriormente, que nem sempre os lingüistas estão aten tos para os dois processos (metafórico /paradigm ático; metonímico/sintagm ático) que estão interligados por uma relação de “predominância” no uso da lingua gem, Jakobson (1960) chega a afirmar que não há entre eles uma forte divisão de águas, e discute isso na análise dos eixos de reações substitutivas (metafóri cas), e de reações predicativas (metonímicas). De todo modo, as afasias seriam um bom lugar para a análise funcional da linguagem, já que perturbariam de maneira seletiva esses dois ei xos responsáv eis por todo seu funcionamento sim bólico. Para ilustrar minimam ente o teor da argumentação de Jakobson, tomemos um a dicotomia que decorre da consideração do eixo paradigmático/sintagmático, relacionados com os problem as de decodificação e codificação (da lingua gem). No processo de decodificação da linguagem, o contato inicial do falante é com o contexto lingüístico e depois com seus constituintes (seleção). O inverso dar-se-ia na codificação, em que a primeira etapa diz respeito à seleção dos constituintes que serão, posteriormente, combinados Ao processo de codificação subjaz a relação de contigüidade (que opera por meio da combinação das un idades lingüísticas entre si, a precedente deter minando a consecutiva e esta a posterior). Esse é o processo que determina o contexto verbal. Na afasia motora, um tipo muito recorrente, esse seria o pro blem a básico risto é, um a desordem de combinação e de contexto que se mani festaria no nível fonológico pela dificuldade no uso de grupo de fonemas, na construção da sílaba e na transição de um fonem a a outr o). Em termos de produ ção verbal, o que se nota é a ausência quase total dos conectivos que constituem
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o contexto gramatical e a permanência de palavras com conteúdo lexical: a isso a literatura afasiológica tem reservado uma expressão, “fala telegráfica”. Distanciando-se paulatinamente em suas reflexões dos interesses anátomoclínicos da Neuropsicologia, Jakobson passa a descrever ainda uma série de dicotomias que estariam na base do funcionamento comunicativo da lingua gem; limitação/desintegração, aplicada à situação naquequal há deterioração dos processos de combinação e seleção de constituintes compõem a sentença; seqüenciação/simultaneidade, aplicada à situação na qual há deterioração da ordenação ou da possibilidade combinatória dos constituintes (tal como ocorre nas afasias eferentes ou nas afasias amnésicas), bem como à situação na qual há perturbação de seleção de traços distintivos que compõem um fonema (tal como ocorre nas afasias aferentes). Além de representar uma espécie de marco no estudo das afasias, as refle xões de Jakobson também tiveram o mérito de incentivar o interesse dos lin guistas pelas patologias e de apontar propriedades comuns tanto às afecções quanto à aquisição de língua materna e demais fatos de linguagem ordinária. 3. UMA PERSPECTIVA DISCURSIVA DA NEUROLINGÜÍSTICA
Se o primeiro passo da antiga Afasiologia do século XIX em direção à Linguística foi a descrição, a semiologia e a classificação das afasias em termos linguísticos, o segundo, condição para que se expandisse sob a forma híbrida denominada “Neurolingüística”, foi preocupar-se com o arcabouço teóricometodológico geral da ciência da linguagem. No que diz respeito à Neurolin güística que vimos praticando nos últimos anos (e aqui referimo-nos basica mente à Neurolingüística desenvolvida no Instituto de Estudos da Linguagem/ UNICAMP), tal passo pressupõe a consideração da abordagem discursiva dos estudos que relacionam linguagem e cognição. É dentro dessa preocupação teórica que dos estudos na área da Pragmáti ca7a Neurolingüística procura extrair a preocupação com a análise das interações enquanto relações discursivas, com a manipulação das chamadas “leis discursi vas” (que são normas interativas que orientam o uso social da linguagem), com os fatos textuais que explicitam o primado de discursos preexistentes (seus pres7. Seguindo a sugestão de Vion (1992), a pesquisa pragmática relacionada com objetos lingüísticos pode ser dividida, grosso modo, em três grandes campos de estudo: 1. pragmática e análise conversacional; as leis discursivas; as implicaturas; 2. teorias dos atos de fala (oriundas da Filosofia da Linguagem); 3. teoria polifônica/argumentativa de Ducrot e colaboradores; o estudo das pressuposições.
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supostos, seus preconceitos) sobre o nosso próprio dizer (basta usar um provér bio ou enunciar algo como “segundo Fulano...” para termos uma idéia da pre sença desse “interdiscurso” em nossa própria fala), com o trabalho inferencial realizado pelos sujeitos e com suas atitudes relacionadas aos diferentes contex tos de uso da linguagem. Já em relação às teorias enunciativas, a Neurolingüística vai nelas procurar abrigo para a discussão que envolve a análise das interlocuções e de todo tipo de situação enunciativa (diálogo, narrativa, entrevista etc.), a dinâmica de papéis e posições dos interlocutores nas práticas com linguagem, os processos de referenciação semântico-discursivos. Quanto à Análise do Dis curso, a aproximação toma-se possível em função da preocupação com a cons tituição dos dados (lingüísticos, cognitivos), com o interesse por estudos que se dedicam à memória discursiva — que vincula as palavras tanto aos fatos quanto à repercussão subjetiva e social desses fatos — e com as condições (ideológi cas, culturais, afetivas) de produção da linguagem. *
E a questão do sentido, fundamentalmente, que interessa à Neurolingüística de abordagem discursiva. Assim é que ela procura dedicar-se ao estudo da heterogeneidade do uso da linguagem, à análise das interações humanas, às postu ras ou gestos interpretativos dos sujeitos, ao debate em tomo de universos discursivos (que arbitram, entre outras coisas, temas caros à Neurolingüística, como a questão normal x patológico, a análise de discursos considerados “intole ráveis”, a injunção ético-filosófica sobre a linguagem e a cognição), à inscrição histórico-cultural dos processos cognitivos (como a memória ou a percepção), às propriedades (relacionadas ao inconsciente e à ideologia) que nos privam de um controle do sentido daquiloque produzimos ou interpretamos; àrelação constitutiva entre linguagem e cognição (e aqui seguimos de perto a reflexão vygotskiana). Resumindo, o desenvolvimento da abordagem discursiva em Neurolingüís tica permite que explicitemos antigos problemas da Afasiologia e que descreva mos melhor outros tantos. Além disso, ela se apresenta como uma alternativa tanto ao cognitivismo do tipo forte (em parte porque não pode prescindir de um discurso sobre a cognição) — e mesmo ao fisicismo das neurociências —, quanto às teorias e/ou funcionalistas que caracterizam o trabalho vol tado para comunicacionais a análise de discursos orais (tomando-os em geral como encerrados em si mesmos). Por outro lado, ela não deixa de inaugurar determinadas questões que se tomam cruciais para quem a assume: como pode uma tal perspectiva trabalhar com diagnósticos clínicos, como pode aferir critérios de normalidade? Como pode decidir sobre o que é ou não aceitável (tolerável) do ponto de vista do lingüístico e do discursivo? Como pode impedir que o impacto e a estranheza
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causados pelos dados de sujeitos com afasia ou neurodegenerescência se trans formem em mera descrição e tipologia, cujo efeito — em geral — é uma espécie de “contenção normativa”? Uma das respostas a essas questões nos indica que há todo um funciona mento lingüístico-discursivo no contexto patológico que se aproxima e se afasta do que é considerado “normal”. Em sua monografia sobre as afasias, Freud (1891) apontou de maneira incomum para a época (e mesmo em nosso tempo seu texto pode ser considerado “ subversivo”) os limites da normalidade. S egun do Verdiglione (1977), num prefácio da edição portuguesa da obra de Freud, o problema da afasia é, em Freud, bem mais subversivo que a descoberta nela, por parte de Jakobson, dos princípios da normalidade. É uma constatação do fato de que “algo sempre nos escapa” . O estudo da afasia rea lizado por Freud (pratica mente ignorado tanto à sua época quanto à época atual, vale dizer) leva já ao estudo do lapso, do ato falho, do chiste, do sonho e sua relação com a lingua gem. Ao pôr em evidência os limites da Lingüística quando estão em jogo as sem-razões do sentido, a Neurolingüística também nos ajuda a entender melhor a frouxidão da fronteira da Lingüística com a Psicanálise ou com a Sociologia quando a linguagem é o tema. Dessa maneira, instanciada nos domínios da Lingüística, a Neurolingüística procura trabalhar sobre desafios teóricos aos quais tradicionalmente a ciência da linguagem se tem furtado. Em parte porque os “mistérios da significação”, na expressão de Lahud (1977), em geral, dizem mais respeito à Lingüística do que à linguagem. Em parte porque, afinal, há questões que duram mesmo uma vida. 3.1. 0 estudo da linguagem do afásico: questões lingüístico-cognitivas, injunções ético-discursivas
Como os estudos neurolingüísticos levam em conta não apenas a pesquisa lingüística, como também processos de avaliação e diagnósticos das patologias de linguagem, vale destacar algumas questões quanto a esse ponto. O principal problema do investigador dessa área é correr o perigo de defron tar-se com uma constelação de fatos clínicos dos quais ele deve dar conta. Tanto a exaustividade de observação dos dados quanto a objetividade com a qual ele os deve selecionar levam a Neurolingüística para uma tendência naturalista e descritivista (herdada das ciências naturais, vale lembrar). Outro problema é imaginar que o domínio empírico é mais apto que as teorias para tratar certos fatos clínicos. Ou seja, o contato com a pesquisa clínica ressalta o caráter “taxi dermista” das ciências naturais, voltadas para a tipologia e a classificação de
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INTRO DUÇÃO LINGUÍSTICA A
fenômenos, e não basicamente para a sua via explicativa. Há, quanto a isso, uma desconfiança de que a teoria lingüística não possa mesmo (e talvez não seja sua função) ser o lugar ideal onde se colocam questões que certamente serão resol vidas pelo progresso das Neurociências. Um outro problema finalmente se co loca e diz respeito à especificidade do objeto. As manifestações clínicas obser vadas sãoentendidas paradoxais, e não devem ser tomadas si mesmas; antes, elaspro de vem ser como conseqüências mais ouem menos explícitas de um cesso patológico (neuropsicológico) subjacente. Nesse sentido, o estudo da afasia é fundamental para o conhecimento da linguagem, visto que as dissociações e seletividades que ele explicita ou indica permitem a elaboração de hipóteses que a observação do processamento normal não faz mais que apenas sugerir. Que numerosos modelos estejam aptos a des crever a linguagem não implica forçosamente que possam explicá-la. Além dis so, o interesse precípuo da Neurolingüística no ambiente clínico não é exata mente medir ou diagnosticar a produção afásica, procurando revelar as diferen ças entre o normal e o patológico. Seu trabalho, antes, é destacar o que está implicado no funcionamento patológico, muitas vezes ocultado pelo fato clíni co. Nesse caso, é preciso “ver o invisível”, como diz Foucault (1977). Afinal, o que estamos analisando quando avaliamos linguagem? É preciso pensar nisso porque, quando falamos de linguagem, falamos de fato de várias outras coisas também (processos cognitivos e biológicos de que somos dotados, estados afetivos que constituem toda e qualquer ação humana, regras socioculturais que presidem as práticas civilizatórias, propriedades do inconsciente e da ideologia que nos privam de qualquer idéia forte de “controle” dos sentidos que damos a conhecer a nós mesmos e aos outros etc.). Vale lembrar, a propósi to, que os testes utilizados na área de Neuropsicologia e de Neurolingüística em geral dedicam-se a certos aspectos da linguagem, chamados metalingüísticos, ancorados em uma forte tradição gramatical. São, dessa maneira, uma caricatu ra do que vem a ser a linguagem, que não é redutível a certas “manobras” que podemos fazer com ela, como repetir, nomear, classificar, descrever, enumerar, memorizar etc. Sobretudo porque são formas descontextualizadas é que os tes tes, em si mesmos, são insuficientes para abarcar um fenômeno lingüísticodiscursivo tão complexo. 4. ALGUNS DADOS NEUROUNGÜÍSTICOS
Ainda que brevemente, passemos agora à análise de alguns aspectos da linguagem de sujeitos afásicos. Apenas para ilustrar as possibilidades teórico-
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metodológicas da pesquisa neurolingüística, tomemos dois exemplos de qua dros afásicos que comprometem aspectos basicamente lingüísticos (alterações fonético-fonológicas e sintáticas), e um exemplo de perturbações de aspectos semântico-discursivos (envolvendo interpretação de provérbio). Inicialmente, vejamos como a teorização no campo da Fonética e da Fonologia nos ajudam a enfrentar uma grave confusão conceptual na área, exis tente desde a antiga Afasio logia. Para isso, tomem os alguns exemp los extraídos da tese de doutorado de Freitas (1997). Em seu trabalho, Freitas retoma a velha questão a respeito da natureza dos distúrbios articulatórios nas afasias motoras, que aparentemente reúnem sob o véu de uma mesma classificação fenômenos diferentes do ponto de vista neuropsicológico e lingüístico. Teriam tais distúrbios uma natureza apráxica (isto é, resultante de uma alteração na programação dos gestos fonoarticulatórios), ártrica (isto é , resultante de uma alteração basica mente neuromotora) ou afásica (isto é, resultante de um déficit fonético-fonológico)? Valendo-se do estudo de diferentes quadros de afasia, Freitas discute essa polêmica por meio da análise acústico-articulatória e também de modelos fonológicos atuais que promovem uma integração do fonético com o fonológico8(tradicionalmente separados nos estudos afasiológicos em função da antiga distinção sensório/motor). Um dos sujeitos analisados por Freitas (EF) apresentava inúmeros proble mas fonéticos (articulatórios), sobretudo na implementação fonética (gerando produções como [‘pow.tsu.,go] por “pêssego”, e fonológicos (tanto na fala quanto na escrita), com produção parafásic a do tipo “ceolho” por “coelho” . Sua apraxia buco-facial (alteração na programação de gestos essenciais à linguagem oral) era tamanha que , associada aos demais problemas, fazia com que EF produzisse segmentos não encontrados no inventário fonológico do português. Outro sujeito (CF) estudado por Freitas apresentava também uma apraxia buco-facial, menos grave do que a de EF, não afetando o inventário fonológico do português. Contudo, CF apresentava uma falta de iniciativa verbal acentua da, que o impedia de iniciar espontaneamente sua produção (a não ser sob a forma de estereótipos do tipo “Santa Maria!” ou séries automatizadas de núme ros, por exemplo). CF também era capaz cantar(oalgumas músicas já capaz memode ri zadas sem as ocorrências de alterações fo de néticas que m ostra que era articular seqüências de gestos articulatórios sem problemas, diferentemente do sujeito EF, que não conseguia produzir seqüências lexicais sem problemas articulatórios). 8. Remetemos o leitor e a leitora aos capítulos “Fonética” e “Fonologia” no volume I desta obra.
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Se EF e CF eram classificados como portadores de afasia motora, na qual o aspecto mais saliente é alteração fonoarticulatória, o mesmo não pode ser dito de EV, outro sujeito cuja produção também foi analisada por Freitas (op.cit.). EV, cuja afasia era do tipo posterior (do qual o traço principal são os problemas gnósicos, de compreensão), também apresentava problemas fonéticos e fonológicos, como se pôde observar pela sua produção verbal repleta de abun dantes e diversificadas parafasias. Embora não apresentasse segmentos inexis tentes no inventário fonológico do português, EV produzia seqüências sonoras que não constituem propriamente palavras da língua. A análise fonológica em preendida po r Freitas pôde mostrar que a afasia é acompanhada ou não de apraxia, mas a apraxia, afetando a fala enquanto gesto articulatório, implica sempre uma afasia. Nesse sentido, a autora propõe que não vale a pena falar (ao contrário do que tem afirmado grande parte da literatu ra neurolingüística tradicional) no que se convencionou chamar de “apraxia da fala” (termo reservado a um quadro de problemas fonológicos que não seriam afásicos porque supostamente não apresentariam alteração de compreensão e demais distúrbios cognitivos). Segundo Freitas, em razão de que a “apraxia da fala” seria um “legítimo problema linguístico, de nível fonético”, o termo práxico, neste caso, seria não apenas desnecessário, mas “inapropriado”. Sua análise fonético-fonológica indicou que, estudados de um ponto de vis ta lingüístico, os casos reunidos sob a etiqueta “distúrbios fonoarticulatórios” evo cam na verdade diferentes processos neurolingüísticos e apontam para uma toma da de posição quanto às dicotomias afasiológicas aparentemente “intocáveis”. Quanto à produção dos sujeitos, a análise fonético-fonológica mostrou que os espaços vocálicos revelam a gravidade do problema fono-articulatório, bem como a duração dos itens lexicais. Além disso, a análise dos dados apontou que distintas dificuldades de processamento neurolingüístico estão na base dos problemas fonológicos aparentemente semelhantes (tal como as parafasias). Assim, na análi se realizada por Freitas, os dados dos sujeitos que apresentavam alterações fonoarticulatórias indicaram alguma alteração tanto na ativação da representação léxico-fonológica das palavras (“perdífia” por “perfídia”, por exemplo), quanto na “leitura do endereçamento fonológico” (o sujeito não acessa a palavra-alvo e a substitui, como em “gelatina” por “geléia”, ou “selo” por “gelo”). Vejamos, também brevemente, como a Neurolingüística pode enfrentar outro antigo problem a teórico, um verdadeiro fetiche no campo: a investigação do agramatismo e suas implicações para o estudo do processamento normal da linguagem. Segundo Novaes-Pinto (1997), o agramatismo é um dos fenômenos neurolingüísticos mais estudados e certamente um dos mais cercados de polê-
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micas. Entre elas, a questão se esse distúrbio sintático que afeta a linguagem do sujeito afásico é um distúrbio isolado de produção ou se ele pode envolver tam bém problemas de compreensão de linguagem (sempre as velhas dicotomias...). Em outros termos, seria o agramatismo uma alteração do “conhecimento” lingüístico ou mais propriamente de “processamento” lingüístico? O agramatismo atingiría apenas um dos níveis lingüísticos (o sintático) ou havería uma reper cussão em mais de um dos níveis que constituem a língua (como o semântico, o fonético, o fonológico)? Questões como essas são ainda muito discutidas na atualidade9. Resumidamente, Novaes-Pinto (1997) aponta as características do agrama tismo descritas na literatura: apagamento de palavras funcionais, como conjun ções, preposições, artigos, pronomes etc.; perda de flexão verbal (substituída pela forma nominal do verbo); perda da concordância de pessoa, número e gê nero (mais notadamente nas línguas flexionais). Essas alterações sintáticas acom panhariam outra característica das afasias motoras muitas vezes questionada, a ausência de problemas de compreensão10. A partir da análise de dados obtidos de um teste de julgamento de gramaticalidade, Novaes-Pinto demonstra que os testes em geral são limitados para o estudo do agramatismo, postulando que a investigação do tipo qualitativa de dados de afasia pode iluminar a teorização sobre o processamento normal da linguagem. Uma questão levantada pelo estudo de Novaes-Pinto, relativa ao juízo de valor que os sujeitos afásicos fazem quando são instados a decidir se uma senten ça é ou não aceitável do ponto de vista gramatical, aponta para os aspectos subje tivos, interativos e socioculturais do processamento da linguagem. Vejamos o exemplo a que recorre a autora para afirmar que a intenção que demonstram os testes ao tentarem evitar sentenças sem juízo de valor tem como dogma a tese da “autonomia da sintaxe”. Abaixo a investigadora (Inv.) apresenta uma sentença para o sujeito P, que deve considerá-la boa ou ruim do ponto de vista gramatical: Inv. “A carta estava cheia de erros” (sentença gramaticai, bem formada). P. R uim . Inv. Por que está ruim? P. Carta, erros, não pode, né?
9. Novaes-Pinto, R. C. Agramatismo e processamento normal da linguagem. Cadernos de Estudos Linguísticosy n. 32, p. 75. 10. Ibidem, p. 74.
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Por último, vejamos como no plano enunciativo-discursivo questões de linguagem extrapolam os limites da análise lingüística stricto sensu, estando no exterior à língua as forças que as mobilizam e constituem". Vejamos a seguir um exemplo de um provérbio apresentado a sujeitos afásicos para que fosse interpretado ou para que fosse incluído em alguma situação na qual cabería o seu uso (Cazelato, 1998). O provérbio é “Feliz foi Adão que não teve sogra”1 12. Vejamos o que dizem os sujeitos CF, MS e CL: a) CF: É um provérbio conhecido , né? É muit o us ado , que é fa la r m al da sog ra , então eu não fa lo m al da sogra, eu gosto da sogra, eu ti ve três s ogras, né ? Então dá para perceber, eu tive sorte com as sogras, é grande amiga, uma morreu, outra tá vi va, e a terceir a m ora per to de casa. M e dou bem com as s ogras , ess e dit ado não é pra mim. b) MS: Ol ha , “Feli z fo i Ad ão que não te ve sog ra ”, eu, eu, eu, eu da minha sogra eu falo , por qu e ela era um a mu lher, é , é disti nta que ela, ela fo i um a heroína, eu fa la v a da m in ha so gra, eu não p osso fa la r da m in ha so gra , não é, é te ve dez filh o s e a m ulher que caso u, casaram né, e ta m bém não p o sso fa la r da m in ha sogra porqu e ela fe z também uma, ela, ela fe z a m ulher que eu tenho , ela um , ela uma batal hadora, eu não po sso fa la r da sogra.(. ..) É que o Adão não teve sogr a po rqu e ele, ele, ele, D eus não deu sogra p ra ele, ele. A dão f o i D eus que deu a mu lher pra ele, mas porque el e não te ve sog ra, porque ele fo i o homem que Deus ma ndou e a mulhe r que deu pra ele. Ele não teve sogra. c) CL(após ouvir o provérbio, indagando à investigadora): A h é, ele não se casou?
Para ser interpretado, esse provérbio exige conhecimento (enciclopédico) acerca de quem foi Adão (o primeiro homem criado por Deus) e conhecimento sobre o universo discursivo em tomo do qual circula o conceito de sogra em nossa sociedade. Portanto, é preciso conhecimento dc mundo para manipular e interpretar os recursos expressivos que resultam nos efeitos da língua e do dis curso. Dentre os processos lingüísticos-discursivos que caracterizam a enunciação proverbial, vale a pena destacar as inferências semântico-pragmáticas realiza das pelos sujeitos (reconhecimento de objetos investidos de propriedades se mânticas, pressupostos e/ou implícitos culturais), a passagem do plano enunciativo do uso para o plano enunciativo da menção, o reconhecimento dos efeitos dos sentidos em uma determinada enunciação proverbial, as diferentes posiç ões
11. Para maior fundamentação teórica, remetemos o leitor e a leitora ao capítulo “Análise do Discur so” neste volume. 12. Esse provérbio, bem como sua análise, consta do protocolo de investigação elaborado por Cazelato (1998), em seu projeto de iniciação científica, por mim orientado.
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NEUROLINGUISTICA
e fontes enunciativas, a inscrição lingüística em pré-construfdos (isto é, a remis são à memória discursiva). No caso desse provérbio, em particular, os sujeitos acima trabalham semântico-pragmaticamente sobre ele: derivam desse enunciado propriedades e relações semânticas (sogra/genro; mãe/filha; marido/mulher), evocam um co nhecimento enciclopédico (Adão foi o primeiro homem, criado por Deus; logo, não tinha sogra) e um pré-construído cultural (ésorte ter boas sogras, que nor malmente são vistas como perfeitas megeras). Contudo, os sujeitos mencionados fazem uma leitura acentuadamente pessoal/subjetiva do provérbio, retirando dele a situação enunciativa a que histori camente pertence, recusando ou negligenciando seus pré-construídos e identifi cando Adão com algum sujeito empírico e não universal (o que faz o sujeito CL). Ainda que identifiquem o pré-construído aí veiculado, não tratam o enun ciado proverbial como tal, indicando que não apenas sua identificação, mas também seuque “manejo”, competência pragmáticodiscursiva atua na dependem produção largamente e no efeito de deuma sentido. Com isso, observa-se que não basta o conhecimento semântico-lingüístico para atuar com a produção e a interpretação de sentidos. E a partir da prática discursiva e de seus constitu intes que aquilo que o sujeito identificou na língua passou ou passa a “fazer” sentido para ele. a
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A título de conclusão, gostaríamos de apontar o caráter interdisciplinar da Neurolingüística. Tradicionalmente voltada para as formas lingüísticas (isto é, para o sistema, suas regras e normas, seus constituintes e organização) e, por tanto, para uma certa Lingüística, a Neurolingüística tem cada vez mais condi ções de dialogar não apenas com uma determinada concepção de língua e de cognição, mas com as possibilidades que os próprios domínios ou campos da Lingüística oferecem. Parece-nos que esse é um investimento teórico a ser feito pela Neurolingüística no campo da pesquisa cognitiva: reconciliar linguagem com processos afeitos a ela, como a interação humana, os diferentes processos de significação, as propriedades do ideológico e do inconsciente. Num momento em que se esperariam respostas, não são poucas as ques tões que a Neurolingüística nos lança de maneira a conduzir-nos ao caminho da melhor pergunta. Ao fim e ao cabo, esperamos deixar à leitora e ao leitor um convite para participar dessa caminhada. Isso porque, no que concerne à maioria dessas ques-
168
INTRODU ÇÃO À LIN GÜÍ STI CA
tões, estamos na mesma situação de MS, um sujeito afásico que diss e, a respeito da interpretação de um provérbio: “O significado é além do que alguma coisa que interessa agora, né, mas eu não sei explicar”. BIBLIOGRAFIA'3
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que podem ser pesquisadas via Internet. A área de Neurolingüística da UNICAMP já conta com um acervo considerável de dissertações de mestrado e teses de doutorado, além de textos publicados em anais de eventos científicos (Associação Brasileira de Lingüística/ABRALIN; Grupo de Estudos Lingüísticos do Estado de São Paulo/GEL etc.) e periódicos especializados, como a série “Temas de Neuropsicologia e Neurolingüística”, editada pela Sociedade Brasileira de Neuropsicologia/SBNp. Também vale a pena co nhecer o número especial (32) dos Cadernos de Estudos Lingiiísticos/UNICAMP, dedicado especialmente à área. Além disso, o fruto das investigações da área tem sido divulgado em periódicos que circulam na área da Lingüística, da Educação, da Psicologia e da Neurologia, entre outras.
NEUROLINGÜÍSTICA
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6
PSICOLINGÜÍSTICA* Ari Pedro Balieiro Jr.
1. INTRODUÇÃO: AS RAÍZES E A EV OLU ÇÃO DO C AMPO 1.1. O problema da definição da Psicolingüística ✓
E freqüente que as disciplinas científicas, quando nascem, sejam iden tificadas muito mais em função de um agrupamento de trabalhos de pesquisa já existentes, e que apresentam alguma identidade, do que em função da existên cia formalizada de um campo de estudos que tenha um objeto e uma metodologia próprios. Como resultado, é muito comum que autores diferentes descrevam e delimitem a disciplina de maneiras diferentes. Assim acontece com o campo de estudos, ou conjunto de pesquisas, ou disciplina, abrigado sob o nome de Psicolingüística. Consultem-se fontes diferentes sobre a Psicolingüística e obter-se-ão delimitações às vezes tão diferentes que é mesmo possível que estejam falando de coisas diferentes*1. Partindo dessa con statação é preciso rec onhecer que a pretensão de apresentar uma visão panorâmica de qualquer assunto deve garantir alguma coerência e visibilidade para os critérios adotados em sua cons trução, sem desconsiderar a existência de versões diferentes, ou mesmo incom* Agradeço a leitura, as críticas e as sugestões das Profas. Ester Scarpa e Edwiges Morato. 1. Compare-se, por exemplo, Golbert (1988) e Kess (1992).
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INTRODUÇÃO À LINGUÍSTICA
patíveis, sobre o tema. Assim, começaremos nossa exposição pela declaração dos critérios adotados em sua elaboração e do plano que pretendemos que o capítulo siga. O primeiro critério fo i esc olher fontes de informação razoavelmente atua lizadas2e que parecem expressar o mainstream, a corrente principal, de traba lhos reconhecidos e auto identificados como pertencentes ao campo. Como cri tério adicional, decidimos com eçar por um levantamento histórico, que nos per mita entender a evolução da P sicolingüística e situá-la em relação a outros cam pos, principalmente, em relação à Psicologia e à Linguística, com as quais guar da evidentes relações de filiação. O plano do capítulo consiste em uma introdu ção histórica, que busca localizar as raízes e a evolução da disciplina, seguida de uma descrição do estado atual do campo e das principais questões com que as pesquisas que nele hoje se desenvo lvem estão concernidas. Em seguida, apre sentaremos algumas das questões que a Psicolingüística investiga, bem como alguns exemplos das soluções oferecidas. Algumas linhas de pesquisa que não são sempre identificadas como p ertencentes à área , mas que também concernem a problemas tipicamente psicolingüísticos, serão tratadas a seguir. À Psicolingüística Aplicada, que possui uma sociedade internacional e um i mpor tante periódico próprio, dedicaremos alguma atenção em separado, no final do capítulo. 1.2. A pré-história
O termo Psicolingüística surgiu pela primeira vez provavelmente em um artigo de N. H. Pron cko,3 e sugere que se trata de um campo interdisciplinar para o qual colaboram a Psicologia e a Lingüística. Os estudos típicos dessa colaboração eram srcinalmente denominados Psicologia da Linguag em , e abor davam uma questão central à Psicologia e à Ling üística: o relacionamento entre o pensamento (ou o comportamento) e a linguagem. Inicialmente, tais estudos eram mais uma tentativa de responder a questões comuns a duas disciplinas 2. As principais fontes foram Garman (1990), Scliar-Cabral (1991) e Kess (1992). Utilizamos tam bém, especialmente para a parte histórica, Titone (1971) e, para a seção sobre a Psicolingüística Aplicada, Appel & Dechert (1991). A escolha das fontes deveu-se à disponibilidade das mesmas e à sua diversidade de objetivos: um manual (Garman), um livro mais teórico (Kess) e um ensaio (Scliar-Cabral), a principal, e interessantíssima, obra brasileira de fôlego na área. Titone e Appel & Dechert foram utilizados por repre sentarem a corrente minoritária, às vezes chamada Psicolingüística Aplicada. 3. Proncko, N. H. Language and psycholinguistics: a review. Psychological Bulletin, n. 43, May, 1946, pp. 189-239. Citado em Titone (1971).
PSICOLINGUISTICA
173
ainda em vias de afirmação como disciplinas autônomas do que um programa de pesquisas comum que partisse de bases filosóficas e epistemológicas consis tentes. Podemos dizer que havia, nesta pré-história da Psicolingüística, dois movimentos opostos: um que caminhava da Psicologia para a Lingüística e outro que caminhava da Lingüística para a Psicologia. Na Psicologia, os estudos buscavam estabelecer as relações entre a orga nização do sistema lingüístico e a organização do pensamento, por meio do recurso à teoria e à pesquisa lingüística4. Os psicólogos queriam o auxílio do entendimento sobr e o funcionamento da linguagem para entender como func io nava a “mente” humana, partindo da hipótese de que a mente se estruturava de forma análoga à linguagem ou mesmo através dela. Esse movimento da Psicologia para a Lingüística trazia, porém, duas concepções diferentes: uma, oriunda da tradição européia, essencialmente mentalista, que buscava explorar o pensamen to através do estudo da lingua gem; e outra, oriunda da tradição norte-americana, essencialmente comportamentalista , que buscava entender o comportamento lingüístico , reduzindoo a uma série de mecanismos de estímulo-resposta. Após a devastação causa da pela Primeira Guerra Mundial, que gerou uma certa desorganização da vida intelectual européia, e o simultâneo crescimento da ciência nos Estados Unidos, a corrente mentalista declino u de im por tância 5, e o com portam entalismo norte-americano ganhou força. Na Lingüística, por outro lado, já havia uma busca anterior pela teoria psicológica, especialmente por meio dos introdutores do método histórico em Lingüística, entre os quais Hermann P aul6, que tentaram apoia r no associacionismo psicológico7 suas explicações para as mudanças lingüíst icas. Quando W. Wundt, um dos fundadores da Psicologia, em seu laboratório de Leipzig, come çou a sustentar e demonstrar que a linguagem podia ser explicada, ao menos em parte, à base de princípios psicológicos, encontrou a Lingüística “preparada para trocar sua velha avaliação romântica da linguagem, em termos de princípios
4. Como demonstram textos clássicos como os de Wundt (1902), Piaget (1923), Watson (1924), Vygotsky (1934) c Skinner (1957). 5. Com a possível exceção da psicologia soviética, influenciada por Vygotsky (1934) e da Escola de Genebra, caudatária da obra de Piaget (1923). 6. Citado em Titone, R. Psicolingüística Aplicada: introdução psicológica à didática das línguas. Trad. Aurora Fernandes Bemardini. São Paulo, Summus, 1971. 7. Corrente da Psicologia que demonstrou o princípio da associação: eventos percebidos ao mesmo tempo são associados. O associacionismo tentava explicar todos os fenômenos mentais, inclusive o uso da linguagem, pelo recurso a este princípio. Hoje não se fala mais em associacionismo, mas o princípio da associação ainda continua de pé.
INTRODUÇÃO À LINGÜÍSTICA
174
culturais e estéticos, por uma mais moderna abordagem ‘científica’ da lingua gem”8. Muitos jovens lingüistas, especialmente os históricos, aderiram com entusiasmo às propostas de Wundt, principalmente pelo rigor científico que suas propostas e métodos ofereciam, e ass im, po r algum tempo, o também emer gente campo da Ling üística reflet iu diretamen te alguns dos interesses da Psico logia. Essa tarefa, no entanto, não foi muito bem-sucedida, em razão da dificul dade de aplicar análises psicológicas aos fatos contemporâneos a partir de uma perspectiva histórica9. Sendo assim, a colaboração diminuiu até o surgimento dos lingüistas estrutaralistas, tendo à frente Saussure, que introduziram a orien tação descritiva sincrônica, tomando possível a colaboração entre a Psicologia e a Lingüística, com bases epistemológicas mais consistentes. Embora houves se certa preocupação em “despsicologizar” a linguagem, guardando a autono mia da Lingüística frente à Psicologia, preocupação esta manifesta por expres sivos ling üist as da ép oca 101 , havia um recurso implícito a mecanismos psico lógi 1 cos na explicação dos dinamismos lingüísticos. Esse período foi extremamente fecundo, em boa parte graças à emergên cia do estruturalismo na Lingüística e do comportamentalismo na Psicologia. Conform e nota Kess (1992), esses dois paradigm as eram fortemente operacionalistas , ou seja , buscav am “de rivar [suas] estruturas teóricas de dados observáv eis através do uso de um conjunto de operações verificáveis que são altamente ex plícitas” 11. Foi essa com característica que epermitiu um relacionam entre os dois campos, contribuições descob ertas de parte a ento parte.sim As étrico pró prias características teóricas do estruturalism o e do comportamentalismo, no entanto, impediram uma colaboração mais estreita, gerando, com raras exce çõ es,12um co njunto de desen volvim entos paralelos, sem um esforço em com um que pudesse de marca r a emerg ência de um novo campo. Con forme apo nta Scl iarCabral (1991), os comportamentalistas reduziram a linguagem a atos de fa la
8. Kess, J. F. Psycolinguis tics: psychology, linguist ics and the study o f natural language. Philad elphia , John Benja mins Publishin g Com pany, 1992, p. 15.
Amsterdam/
9. O método histórico, por estudar a evolução das línguas numa perspectiva diacrônica, através do tempo, tomava difícil aplicar os métodos da Psicologia, que buscava uma “descrição positiva dos fatos contemporâneos do observador”, assumindo, portanto, uma perspectiva sincrônica, independente da pas sagem do tempo. Ver Titone (1971: 18). 10. Tito ne (1971: 18-19) cita Blo om field (193 3), Sap ir (1922), Bally (1929, Praga.
1935) e a Escola de
11. Kess, J. F. Op. cit., p. 16. 12. Scliar-Cabral (1991) aponta como exceções os trabalhos de Whorf (1964), Sapir (1961, 1964), Buhler & Jakobson (1950), Piaget (1923) e Vygotsky (1934).
PSICOLINGUISTICA
17 5
, minimizando o papel de estruturas mentais ou cognitivas, enquan to os estruturalistas, especialmente Bloomfield (1933), acabaram por conside rar a semântica como não acessível à pesquisa lingüística. Uma Psicologia que não aceitava estudar a mente e uma Lingüística que não estudava o significado certamente tinham pouco a dizer uma à outra. observáveis
1.3. 0 período formativo
A Teoria da Informação, surgida logo após a Segunda Guerra, ofereceu um enquadramento epistemológico mais consistente paraos estudos psicolingüísticos. Shannon & Weaver (1949) definiam uma unidade de comunicação como formada por: Fonte
Transmissor/codificador
Canal
Receptor/decodificador
Destinação
Este modelo, claramente mecanicista, foi amplamente utilizado pela pes quisa da década de 1950, com fortes acentos comportamentalistas. Osgood & Sebeok (1954), por exemplo, definiram a Psicolingüística como o estudo dos “processos de codificação e decodificação no ato da comunicação na medida em que ligam [relacionam] estados das mensagens e estados dos comuni cadores”1314. Com o conseqüente aumento do acervo de descobertas, pesquisas e teo rias, surgiu a necessidade da coordenação de esforços entre os cientistas que trabalhavam, afinal de contas, em problemas comuns. Inaugurou-se, segundo Kess (1992), o período denominado p e r í o d o f o r m a t i v o , 14 cujos marcos ini ciais foram o “Seminário de Verão de Pesquisa em Ciência Social”, encontro realizado na Universidade Cornell (1951), e o “Comitê sobre Lingüística e Psicologia” dirigido pelo psicólogo C. Osgood. Um segundo Seminário de Verão realizou-se, em 1953, na Universidade de Indiana, sob a direção de Osgood e do antropolingüista T. A. Sebeok, que organizaram e publicaram os anais do P sycholi nguist ics : a survey o f theor y an d res earch Seminário,(Osgood com o título & Sebeok, 1954). A partir de então, estava “fundada” a Psicolingüística.
p ro b le m s
13. Citado em Titone (1971: 24). 14. É importante notar que o conceito de período, para Kess, não implica divisões abruptas em que um período é imediatamente substituído pelo outro, mas antes a caracterização do momento em que a corrente principal (mainstream ) das pesquisas na área assume um determinado paradigma teórico.
INTRODUÇÃO À LINGUÍSTICA
176
A Psicolingüística desse período era um amplo painel de pesquisas oriun das da Psicologia e orientadas para a Lingüística e de pesquisas oriundas da Lingüística e orientadas para a Psicologia. Enquanto os lingüistas tratavam pre ferencialmente dos “estados das mensagens”, os psicólogos tratavam preferen cialmente dos “estados dos comunicadores”, e, por extensão, dos processos de codificação e decodificação. Havia, ainda, muita dispersão teórica, sem um es forço amplo de definição da Psicolingüíst ica como disci plina ,15pipocando p es quisas em que a teoria se encontrava em grande parte implícita na pesquisa, ou dela emergia timidamente.
1.4. 0 período linguístico
Em 1957, o lingüista N. Chomsky publicou Syntatic Structures, onde apre sentava os fundamentos da Gramática Gerativa Transformacional. Em 1959, publica sua famosa resenha do livro Verbal Behaviour, do comportamentalista Skinner (1957), na qual critica fortemente o operacionalismo, vigente tanto no programa comportamentalista quanto no programa estruturalista, propondo uma abordagem racionalista e dedutiva para a ciência. Para Chomsky, a ciência da linguagem deve part ir de uma teoria forte, da qual deduz afirmações que devem ser testadas contra os dados, obtidos em experimentos especialmente desenha dos para efetuar tais testes. A crítica de Chomsky abalou no os fundamentos Psicolingüística efetuadaa até então, forçando uma guinada campo, o queda diminuiu gradativamente influência do comportamentalismo e reavivou o mentalismo, embora em novas bases. Segue-se, então, o período chamado por Kess (1992) de Período linguís tico, em que, de uma grande dispersão teórica e uma postura operacionalista, a Psicolingüística passa a ter o modelo chomskyano, oriundo da Lingüística, como paradigma teórico central, adotando uma postura metodológica fortemente racional-dedutiva no design de seus experimentos. O modelo gerativo16(Chomsky, 1957) propunha, entre outras coisas, que: a) as sentenças faladas, ou estruturas superficiais, derivar-se-iam de es truturas profundas, através de regras transformacionai s, que se orga nizam numa gramática, ou sintaxe;
15. Ou seja, com um objeto e um método próprios. 16. Ver os capítulos “Sintaxe”, no volume I desta obra, e “Aquisição da Linguagem”, neste volume II.
PSICOLINGÜÍSTICA
177
b) este componente sintático — a Gramática Universal, G.U. —, capaz de gerar qualquer (e somente uma) língua, deveria ser inato aos indivíduos da espécie humana; c) se distinguisse entre a compe tência (o conhecim ento que um falante/ ouvinte nativo ideal tem de sua língua) e a performance (a atividade do falante/ouvinte numa situação comunicativa concreta, sujeita a proble mas como imperfeições, lapsos etc.). A teoria lingüística teria como seu domínio próprio a competência e não a performance , e sua missão era construir e descrever uma Gramática Universal que permitisse entender como a linguagem surge e se diferencia, em línguas distintas, na mente humana. Assim também, o componente central da compe tência seria a sintaxe, mantendo a semântica fora do campo de estudos. Tal distinção permitia atribuir à Lingüística, “ciência hipotético dedutiva, subordi nada à Psicologia Cognitiva”, a missão de definir como se organizava a compe tência e à Psicolingüística a missão de gerar “uma teoria unificada da performance ”, investigando “como os processos mentais transformam o conhe cimento lingüístico (competência) em atuação”17. As pesquisas desse período, porém, acabaram por relegar também a teoria da performance a segundo plano, centrando seus estudos na testagem do modelo gerativista e privilegiando as sentenças nucleares como objeto de estudo. O grande problema consistia em evidenciar a realidade psicológica das unidades linguísticas (ou sintáticas), identificando se as unidades sintáticas pro postas pela teoria lingüística faziam parte integrante e necessária da performance real dos sujeitos, ou seja, se eram componentes das operações mentais necessá rias para que falem uma língua, do proce ssamento mental da língua. Assim nas ceu a Teoria da Complexidade Derivacional, que supunha que a percepção e a compreensão das sentenças deveria ser isomórfica à derivação da sentença por meio das regras da sintaxe, ou seja, os passos para derivar uma estrutura super ficial de uma estrutura profunda deveríam ser também efetuados na recepção e compreensão das sentenças. Os experimentos mais significativos da época fo ram os que buscavam tes tar se “o número e a complex idade das operações m en tais realizadas durante o processamento eram uma função do número e da com plexidade das transformações formais vistas na derivação sintática de cada sen tença”18. Essa linha de pesquisa acabou sendo abandonada não apenas por causa
17. Scliar-Cabral, L. Op. cit., pp.21-22. 18. Kess, J. F. Op. cit., p. 19.
17 8
INTRODUÇÃO À LINGÜÍSTICA
das poucas evidências experimentais que a apoiavam, mas também por causa do próprio refinamento do design dos experimentos, que foi gradativamente mos trando que não apenas a estrutura sintática é importante no processamento19de sentenças, mas são igualmente importantes fatores de ordem pragmática e se mântica20. Outro aspecto importante no declínio dessa Teoria foi a rapidez com que a Gramática Gerativa Transformacional começou a promover constantes revisões21 e modificações em seu modelo22, retirando boa parte da sustentação teórica da Teoria da Complexidade Derivacional. A busca da confirmação do modelo gerativo, por outro lado, já que visava descobrir como surgia e se orga nizava a Gramática Universal, impulsionou fortemente os estudos de aquisição da linguagem, abrindo um novo campo de pesquisas que, embora relacionado diretamente com a pesquisa psicolingüística, vem gradativamente assumindo cada vez mais autonomia23.
1.5. O período cognitivo
As mudanças na teoria lingüística, constantes na vertente chomskyana, juntamente com outros fatores, especialmente a consideração de fatores que a abordagem inicial desconsiderava, como os fatores semânticos e pragmáticodiscursivos, acabaram por desaguar em uma ampliação e enriquecimento da Psicolingüística, pelo aporte de contribuições de psicólogos e filósofos da lin guagem. Kess (1992) assinala aqui a emergência de um novo período,24o perío19. O termo “processamento”, muito utilizado em Psicolingüística, refere-se comumente ao conjunto de passos ou operações mentais que se supõe que sejam necessários para que o falante/ouvinte possa elabo rar, emitir ou interpretar mensagens lingüísticas. O termo está relacionado a performance, é geralmente restringido por regras psicológicas, e pressupõe conceitos da Psicologia, como memória, operações men tais etc. 20. Ver os capítulos “Semântica” e “Pragmática”, neste volume. 21. As revisões foram também provocadas por uma forte reação a certos elementos centrais do mode lo de 1957, especialmente: (i) sua assemanticidade; (ii) a má definição das regras transformacionais; (iii) a centralidade da sintaxe em relação à semântica. Ver Scliar-Cabral (1991) e Chomsky (1965). 22. Kess (1992) nota que “o rápido ritmo com que as formalizações mudaram na teoria lingüística [chomskyana] colocou uma pesada carga sobre os psicolingüistas (e sobre os lingüistas também!) que tentavam manter a trajetória de suas pesquisas” (Kess, 1992: 20). (Tradução do autor.) 23. Ver o capítulo “Aquisição da Linguagem”, neste volume. 24. Scliar-Cabral (1991), por sua vez, embora também aponte fases no desenvolvimento da Psicolingüística, divide tais fases (ou períodos, na terminologia de Kess) em apenas três, agrupando os períodos lingüístico e cognitivo de Kess em apenas uma fase (que correspondería ao período linguístico), atravessada por uma crise (que correspondería ao período cognitivo). Como são trabalhos praticamente simultâneos, desenvolvidos em lugares diferentes (Kess na Inglaterra e Scliar-Cabral no Brasil), utilizando as mesmas bases e com muitas semelhanças entre si, optei por utilizar a divisão de Kess, que me parece mais
PSICOLINGÜÍSTICA
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do cognitivo , no qual os aportes da teoria lingüística continuaram a ser impor tantes, mas perderam o caráter de exclusividade do período anterior. Os “cognitivistas”25postulava m a “su bordinaçã o” da linguagem a fatores cognitivos mais fundamentais, dos quais ela (a linguagem) seria apenas um fator. Vale notar que o próprio Chomsky também afirmav a26 que a Lin güístic a conce rne à cognição humana e que os lingüistas são, de fato, psicólogos cognitivos. Numa revisão dos experimentos sobre a realidade psicológica das estruturas e opera ções sintáti cas postuladas pelos seguidores da Gramática Gerativa Transformacional, Fodor, Garret & Bever (1974) mostraram que as descrições estruturais das sentenças, e as unidades constituintes que essas descrições especificam, têm um papel a desempenhar nas tarefas de memória e organização cognitiva. No entanto, há poucas evidências de que os processos transformacionais te nham algum papel na compreensão, armazenamento ou recordação lingüística. As estruturas lingüísticas (ou sintáticas) não são adquiridas separadamen te de conceitos semânticos e funções discursivas, além de estarem submetidas ao governo de princípios cognitivos. A aqu isição da linguagem é explicada com o o resultado da interação entre vários fatores, de tal forma que os sistemas lingüísticos são, em última análise, um produto de estruturas cognitivas mais básicas ou profundas. O paradigma cognitivo, então, rejeitou a centralidade e a independência da gramáti ca, sustentando não somente que a capacidade cognitiva descrita pe los estudos da gramática sobre a competência é apenas uma das ma nifestações da linguagem humana, mas também que não é mais importante que, ou independente de, outros sistemas cognitivos ou comportamentais envolvidos na aquisição e no uso da linguagem. Chegou-se mesmo a sugerir que a Gramá tica Transformacional é apenas uma teoria das intuições lingüísticas tendo, em relação à natureza última da linguagem, o mesmo status de outros aspectos lingüísticos relacionados, como a aprendizagem, a percepção e o desempenho ou fala. Os cognitivistas, trabalhando duro em questões que concernem mais de perto ao processamento lingüístico, além de ampliarem e tomarem mais eclético o campo de estudos da Psicolingüística, também acabaram por aproximá-lo das ciências cognitivas, com suas características marcantes de interdisciplinaridade, didática. O trabalho de Kess é mais panorâmico e sintético, enquanto o de Scliar-Cabral é mais rico em detalhes e mais informativo com relação às questões e problemas abordados em cada fase. Para os leitores que quiserem um maior aprofundamento, recomendo a leitura dos dois textos. 25. Kess (1992) aponta Fodor (1966), Lenneberg (1967), Bever (1970) e Slobin (1973) como os “cognitivistas” mais representativos deste período. Scliar-Cabral (1991) aponta também os estudos de Fodor & Garret (1967) e Fodor, Garret & Bever (1974). 26. E ainda afirma. Ver, a esse respeito, Chomsky (1968,1987).
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INTRODUÇÃO A LINGÜÍSTICA
e equilibraram a influência exercida pela Lingüfstica com aquela exercida por outras disciplinas próximas, como a Psicologia, a Antropologia e a Filosofia da Lingu agem , além de trazerem tamb ém para o campo a influência da Inteli gência Artificial e seus modelos computacionais.
1.6. O estado atual
No estado atual da Psicolingüística, denominado por Kess (1992) de perío do da teoria psicolingüística, realidade psicoló gica e ciência cognitiva , o campo se apresenta em um estado de transição, com p esquisas oriundas de várias escolas teóricas, como, por sinal, é também o caso da Psicologia e da Lingüfstica. Outra característica importante é o grande número de trabalhos interdisciplinares, atestando o reconhecimento de que problemas científicos em um campo afetam vários campos correlacionados. Adicionalmente, a questão da realidade ps icológ i ca readquiriu um status central na teoria psicolingüística, mais ainda que nos períodos ante riore s, princip alm ente se a te oria pre te nde re iv in dic ar poder explanatório sobre o processamento da linguagem, que é, em última análise, uma questão concernente ao funcionamento da mente humana. Sob esse ponto de vista, não se pode mais ignorar questões colocadas pelas investigações cognitivistas sobre o processamento, emb ora a teoria lingüfst ica, especialmente a teoria gramatical, mantenha um papel de destaque, porque é essencial para o estabelecimento dos limites impostos pelas estruturas gramaticais ao processamento da linguagem27. A influência do paradigma chomskyano, segundo Kess (1992), continua presente, menos em função de sua apresentação da Lingüfstica como uma Psicologia Cognitiva do que em função da natureza mesm a das descrições chomskyanas da competência lingüfstica do falante, que supõem, ou exigem, o entendimento dos processos cognitivos que lhe são subjacentes. Esta influência aparece, inclusive, na incorporação de termos srcinários da gramática ou da semântica às investigações sobre problemas de representação conceituai e da estrutura dos sistemas cognitivos humanos. Como exemplo, Kess (1992) cita Jackendoff (1983), que, discutindo semântica e cognição, admite que o problema semântico da Lingüfstica é um prob lem a de representação con ceituai, comum a todas as formas de cognição. Outro ex emplo fo rnecido pelo autor é o d e Langacker (1986) que, em sua “gramática cognitiva”, assume a premissa básica de que a linguagem não é um sistema autocontido, separado de outros sistemas cognitivos, e
27. Kato, M. A. (1997) afirma que a Gram ática Gera tiva concerne mais ao que não pode ser dito , e termos de estrutura, do que às predições sobre o que é permitido ou possível ao falante (notas de curso).
PSICOLINGÜÍSTICA
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que deve haver uma integração entre os achados da Lingüística e os da Psicolo gia Cognitiva. Como essa integração tem sido tentada sob a égide das ciências cognitivas, com seus modelos computacionais (ou seja, que utilizam o processamento da informação pelos computadores como modelo para entender o processamento mental), com sua interdi sciplin aridade28 e com sua capacidade de atração de financiamentos, a parceria entre a Psicologia e a Lingüística está experimentan do um recrudescimento, após um período de relativo esfriamento. Este renasci mento da parceria tem submetido a Psicolingüística, com seu foco na interação entre as estruturas l inguísticas e o processame nto mental, a um duplo critério d e rigor, da análise lingüística e da experimentação psicológica. Tal colaboração, entretanto, coloca em confronto dois conceitos filosóficos diferentes sobre a mente: a modularidade e a não-modularidade29. O enfoque modularista sugere que a mente é um sistema composto de módulos 30 que processam informação de forma independente, cabendo sua integração aos mecanismos de interface entre os módulos ou a um módulo integrador. O enfoque não-modularista, por outro lado, assume que não há limites definidos entre os níveis de conhecimentos lingüísticos, com uma troca ativa de informações entre esses níveis. Dessa for ma, as pesquisas têm confrontado as questões do campo a partir de duas pers pectivas diferentes. Em virtude do fato de as pesquisas psicolingüísticas estarem, tanto sob a abordagem gerativista, quanto sob a cognitivista ou a computacional, concernidas ao estudo da estrutura do conhecimento possuído pelo falante/ouvinte, essas podem ser descritas como apoiadas em paradigmas cognitivos. Dado ainda o papel interdisciplinar exercido pela Psicolingüística ao agregar conhecimentos oriundos de pesquisas nos campos da Psicologia e da Lingüística, tem sido às vezes argumentado que a própria Psicolingüística estaria subsumida na corrente maior das ciências cognitivas. Ainda assim, a questão da realidade psicológica das teorias sobre a linguagem natural, como apresentada, tem sido atualmente uma meta clara da Psicolingüística. Dessa forma, as questões da definição do objeto e do método de estudo, necessárias para que possamos falar em uma disciplina autônoma, parecem estar se encaminhando para uma solução.
28. Gardner (1985), descrevendo as chamadas ciências cognitivas, aponta a interdisciplinaridade e o recurso a modelos de caráter computacional como duas das mais evidentes características desta nova área de investigação. 29. Ver o capítulo “Aquisição da Linguagem”, neste volume. 30. A Gramática Gerativa, por exemplo, propõe um módulo sintático, um módulo fonético-fonológico e um módulo semântico-lexical, entre outros, não lingüísticos.
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IN T R O D ULINGUÍSTICA ÇAÃ O
2. QUESTÕES E PROBLEMAS DA PSICOLINGÜÍSTICA Apenas com o objetivo de mostrar como podem ser divididos os campos de estudo e os problemas da nascente disciplina denominada Psicolingüística, apresentaremos uma tabela com a lista dos assuntos abordados nas três obras utilizadas como fontes principais deste texto31. Kess (1992)
S c l i a r - C a b r a l (1 9 9 1 )
G a r m a n (1 9 9 0 )
Percepção e produção da fala
Processamento dos sinais lingüísticos
Morfologia e léxico mental
Reconhecimento de palavras Fundamentos biológicos da linguagem
Sintaxe
Memória semântica
Fontes de evidência para o sistema lingüístico
Discurso
Processamento a nível textual
Processando o sinal lingüístico
Semântica
Neurofisiologia da linguagem
Acessando o léxico mental
Linguagem e pensamento Aquisição da linguagem Pré-requisitos biológicos
Características do sinal lingüístico
Entendendo declarações
Relações entre pensamento e Produzindo declarações linguagem
Aquisição da primeira língua
Apropriação e processamento Prejuízos do processamento da leitura e escrita Psicolingüísticacomparada Fatores inatos, maturacionais e experienciais Relações com outras disciplinas Psicolingüística aplicada
O que pode ser depreendido desta simples listagem é a predominância das seguintes questões: a relação entre linguagem e cérebro, incluindo os funda
31. A pura e simples leitura de seus índices.
PSICOLINGUISTICA
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mentos biológicos da linguagem, sua neurofisiolo gia e os prejuízos do proce ssa mento caus ados por lesão cer ebral;32 as relações entre linguagem e pensam ento, como um produto do sistema cerebral; os sistemas de processamento mental da linguagem, incluindo os subsistemas lingüísticos como a fonética, a sintaxe, a semântica, o léxi co etc., e os subsistemas ps íquicos com o a percepção, a memó ria, o conhecimento do mundo etc.; oeprocessamento dede unidades amplas es daou linguagem, como o texto e o discurso; a aprendizag em outras atividad sistemas lingüísticos como a leitura e a escrita. Dessa listagem de assuntos ab or dados pela Psicolingüística podemos partir para uma breve análise de algumas questões do campo e dos problemas para os quais tais questões apontam, bem como identificar algumas asserções que podem ser feitas no atual estado do conhecimento33.
2.1. 0 método experimental e se us problemas
A primeira questã o concerne ao método ex perimental, seguramen te o mais utilizado em Psicolingüística, que consiste, bem simplificadamente, em elabo rar hipóteses que sugerem relações causais entre variáveis — a Variável Inde pendente (Vi) causando (—►) a Variável Dependente (Vd) — e elaborar experi mentos, ou um conjunto de procedimentos que permitam verificar a existência ou não das relaçõ es (—►). Podem os dizer que um experimento estip ula uma rela ção do tipo Vi —►Vd, provo ca variações e m Vi e, medin do as alter ações ocorri das em Vd, formula proposições sobre a natureza de ( -► ). O design dos experi mentos é essencial, porque implica iso lar a hipótese (Vi —►Vd) de outras v ariá veis — as Variáveis Intervenientes ou Ambientais (Va) — que possam também gerar efeitos na Vd. Por exemplo, algum cientista, em algum momento do surgimento da Psico lingüística, deve ter elaborado a hipótese de que a fala tem alguma relação com o funcionamento do cérebro. Falar é a Variável Indep endente (Vi); a ligação entre o cérebro e a linguagem é a relação causai (—►), e a ativação de algum conjunto de áreas cerebrais é a Variável Dependen te (Vd). Para confirm ar a hipótese, é preci so realizar o experimento, ou seja, falar, e verificar se o cérebro é ativado de alguma maneira34. Para que o experimento seja bem-sucedido, porém, é preciso 32. Ver o capítulo “Neurolingüística”, neste volume. 33. Para esta análise, utilizamos principalmente o trabalho de Scliar-Cabral (1991). Para um maior aprofundamento, remetemos o leitor ao próprio livro. 34. Com os modernos aparelhos de imagens cerebrais, isto é muito fácil, desde que os aparelhos estejam disponíveis. Ver, por exemplo, Mathias (1996) e Buchpiguel (1996).
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IN T R O D ULIN ÇÀÃ G O ÜÍSTIC A
verificar se algumas condiçõe s são cumpridas, como, po r exemplo, cert ificar- nos de que o falante está acordado, de que ele irá falar uma certa coisa de uma certa maneira, pois qualquer uma dessas condições é uma Variável Interveniente ou Ambiental (Va), que pode modificar o resultado do experimento. Dois são os principais problemas do método experimental: em primeiro lugar, o expe rime nto, ao tentar isolar (Vi — ► Vd) dos f enôm enos am bientais (Va) que podem ser intervenientes, cria situações de caráter artificial que po dem não ter uma co rrespondê ncia clara ou direta com as situa ções reais da vida das pessoas em que são empregados os processos que o experimento estuda; em segundo lugar, a própria delimitação das variáveis, que já se constitui em uma operação teórica, pode criar problemas para o design do experimento gerando, às vezes, experimentos extremamente bem-feitos, mas com muito pouca rele vância teórica ou experimentos relevantes para a teoria, mas com conclusões discutíveis por causa de problemas de design. Assim, a crítica epistemológica ao design dos experime ntos é a primeira preocup ação tanto dos experimentadores quanto dos seus críticos.
2.2. Processamento dos sinais acústicos da fala
Uma questão experimental típica concerne ao processamento dos sinais acústicos da fala, que implica a existência de procedimentos “mentais” realiza dos pelo indivíduo para poder entender o que ouve. Assim, do ponto de vista metodológico, o pesquisador enfrenta o problema da falta de acesso direto ao processamento, já que não dá p ara observar35o processam ento mental in loco, e, portanto, qualquer estudo im plica inferir, por meio dos dados observáveis, a validade ou não das hipóteses levantadas. Outro problema metodológico con siste na dificuldade em elaborar estudos experimentais sobre a produção dos sinais acústicos da fala, o que faz com que a maioria dos estudos se concentre no estudo da recepção, ou compreensão. A partir do que já se conhece sobre o processamento, emergem também várias outras questões, como, por exemplo: a) como o processam ento realiza a invariância implicada e necessária à transforma ção do sinal acústico d e entrada em um percepto, que possa ser processado mentalmente, dado que é evidente que as falas variam,
35. Devo lemb rar que as imagens citadas no exemplo anterior são essencialme nte transformaç õe isto é, versões codificadas dos fenômenos que representam, e que, portanto, o acesso continua indireto, se não for aceito o corte epistemológico que tal descrição comporta.
PSICOLINGUISTICA
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tanto considerando o próprio indivíduo em mom entos diferentes, quanto considerando as variações lingüísticas de uma dada sociedade falante? b) já que a fala é um fenômeno contínuo, como o processamento conse gue discretizar os vários segmentos que irá posteriormente identificar, e quais são, afinal, estes s egm ent os? 36 c) sabendo-se que a percepçã o utiliza pistas acústicas e que a percepçã o dessas pistas é dependente do contexto em que aparece, qual a impor tância deste contexto e a natureza de suas relações com as pistas utili zadas?37 Sabe-se , tamb ém, que, para cad a distinç ão de traço fon éti co38, existe m muitas pistas, e que essas pistas são utilizadas de maneira diferente conforme o contexto em que aparecem. Assim, encontram-se pistas e contextos diferentes dando srcem a perceptos iguais, bem como perceptos diferentes emergindo de pistas iguais em contextos diferentes ou pistas diferentes em contextos iguais. Uma das questões mais importantes que emerge dessas constatações é se o processamento é bottom-up, ou seja, percebe-se primeiro os segmentos, que depois são integrados em unidades significativas; ou top-down, ou seja, os seg mentos são discretizados a partir de hipóteses geradas no Sistema Ner voso Ce n tral (SNC). Dado que existem evidências experimentais que apoiam as duas po sições, assumo a postura de Scliar-Cabral (1991), de que um a teoria do processamento do sinal acústico da fala, tanto para a recepção quanto para a produção, deve conciliar processos essencialm ente bottom-up com processos essencialmente top-down , já que a percepção ou produção da fala não pode ser desligada dos processos de construção de significações: “a organiz ação de qual quer sistema lingüístico e o seu processamento, por mais complexos e sofistica dos que sejam, não têm finalidade em si mesmos: servem para que possamos compreender o que os outros estão querendo nos dizer”39.
36. Minha própria hipótese é a de que a invariância e a discretizaçao sustentam-se mutuamente em uma leitura que privilegie o aspecto digital do sinal, que pode ser avaliado qualitativamente, ao contrário do analógico, que varia de forma quantitativa, formalizável de outra maneira. 37. Minha própria hipótese é a de que este contexto ajuda o organismo a decidir, discretizar o sinal, por meio de escolhas ativas, embora não conscientes cognitivamente, resultantes do process amento de um circuito recursivo, ou de um conjunto deles, entre a entrada e a saída. Tais escolhas podem ser dirigidas pelo sujeito quando estão em jogo discrepâncias que ficam acima do lim iar de percepção do sujeito, mas são dirigidas pelo condicionamento (no sentido pavlov-skinneriano) quando tratam de processamentos subliminares. Tal assunto é muito longo para ser discutido neste texto. 38. Para maiores esclarecimentos sobre traços fonéticos, ver os capítulos “Fonética” e “Fonologia”, no volume I desta obra. 39. Scliar-Cabral, L. Op. cit., p. 41.
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IN T R O D ULIN Ç AÃ G O U ÍST IC A
2.3. Unidades de significação ou o problema do léxico
O reconhecimento de palavras, a capacidade do falante/ouvinte de distin guir palavras em uma determinada emissão verbal, ou, mais propriamente dito, de disti ngu ir unida des de s ignifi caçã o,40 é uma ques tão que surge da sup osição de que o proce ssam ento da fala, tant o na recepção quanto na produção, envolve algi:m tipo de léxico, que seria um “dicionário mental”, no qual estariam arma zenadas as palavras conhecidas pelo falante/ouvinte. As questões suscitadas dizem respeito tanto à natureza das unidades de significação armazenadas neste léxico quanto à sua estrutura, na qual deverão ser identificados, no mínimo, quais são os critérios de relacionamento das diversas informações armazenadas e quais as possíveis formas de entrada, ou acesso, para o léxico como um todo. Geralmente se admite uma estrutura de tabela bidimensional para o léxico, com no mínimo uma entrada (ou critério) de ordem fonológica e outra de ordem semântica, embora sobre esta última ordem haja muitas divergências. ✓
E, também, importante estudar como o léxico se relaciona com os outros sistemas de provimento das informações necessárias para o ato de falar/ouvir: as informações vindas dos sentidos ou da percepção, verbais ou não, as infor mações contextuais, lingüísticas ou não, e o conhecimento de mundo do falan te/ouvinte. A forma de acesso ao léxico, por seu turno, consiste em um proble ma teórico sobre o qual também há muitas diver gências . Um problema que po deriamos usar como exemplo seria um ouvinte que, ouvindo “óia”, é capaz de reconhecer a palavra “olha”. De maneira geral podemos dizer que existem três tipos de modelos: a) os modelos de acesso diret o, que propõem que a s informações perceptuais remetem diretamente a um conjunto de dispositivos que reconhe cem fragm entos ou aspectos da fala,4 1 e disparam o u não conforme reconheçam alguns aspectos da fala que entra pelos ouvidos, sem exi gir a construção de uma representação perceptual completa desta fala ou deste input. Sobre o exemplo citado, este modelo diria que apenas
40. Uma vez que a linguagem é um sistema extremamente complexo, assi m como o seu processa mento, é preciso ressaltar que a Psicolingüística também se depara com o fato de que os processos lingüísticos implicam articulações de significação em múltiplos níveis, desde o fonema, ou grafema, menor unidade lingüística identificável, até as questões enunciativo-discursivas, ou textuais, em que os processos de signi ficação devem levar em conta informações muito m ais complexas do que simples pista s acústicas, incluin do critérios de coesão e coerência textual ou aspectos pragmático-interacionais relativos às condições em que se encontram os falantes/ouvintes no momento em que se dá o fato lingüístico. Psycholinguistics Central topic s. 41. Também chamados logogens. Ver, a propósito, Gamham. London/New York, Routledge, 1994, pp. 43-68. (título srcinal, 1985)
PSICOIINGUISTICA
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alguns aspectos da fala, talvez a seqüência de vogais e a distribuição das sílabas tônicas, foram suficientes para acionar o léxico mental e selecionar a palavra “olha”, que é então reconhecida; b) os modelos de busca, que propõem a construção, a prior i , de uma re presentação completa do input sensorial, que depois será comparada com palavras contidas no léxico. Neste m odelo, dir- se-ia que o ouvinte constrói completamente a emissão verbal “óia” e, depois de comparála com as palavras armazenadas no léxico, seleciona a mais parecida, no caso “olha”, confirmando seu reconhecimento por pistas de caráter semântico e contextual; c) os modelos interativos, que propõem o uso simultâneo de dois proces sos, um que utiliza informações vindas dos sentidos, e inclui os modos a) e b) relatados anteriormente, tipicamente bottom-up , e outro que utiliza informações ou critérios de funcionamento gerados no SNC, como a necessidade de entende r o que é ouvido, pro cesso tipicam ente top-down. O reconhecimento ou seleção lexical seria o resultado da interação des ses dois processos. Neste caso, o psicolingüista diria que acontecem os dois processos indicados em a) e b), acompanhados de uma busca ativa da mente da pessoa, geralmente dirigida pela necessidade de encontrar um sentido naquilo que é ouvido e parece ser uma palavra. Do ponto de vista metodológico, o estudo também é afetado pelo processo escolhido como objeto . Quando estudamos a recepção, o principal pr oblem a diz respeito ao modo como se dá a identificação das unidades significativas, cuja resposta deve satisfazer as regula ridade s descobertas no estudo do processamen to do sinal acústico da fa la. Em outras palavras, à questão é como o ouvinte cons e gue regularizar o sinal irregular que ouve, conforme dito anteriormente. Quan do, porém, estamos estudando a produção, o problema principal refere-se ao sistema de seleção das unidades lexicais que serão inseridas na fala. Aqui, tratase de saber como o falante consegue selecionar aquela palavra específica para aquele lugar da frase. Finalmente, é necessário integrar o conjunto de informa ções perceptuais e contextuais que interage com o léxico, tanto na recepção quanto na produção. Aqui é preciso reconhecer a dificuldade de elaboração de modelos testáveis empiricamente, v isto que a quantidad e de inferências exigidas para esses testes é muito grande. Outra questão fundamental consiste em descobrir como a significação é representada na memór ia e como é usada na recepção/pr odução da fala. Pode-se dizer que a memória semântica deve trazer informações necessárias e compatí veis entre si, que integrem informações de caráter fonológico/grafêmico, de
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INTRODUÇÃO A LINGUÍSTICA
caráter morfológico, de caráter sintático e de caráter semântico, tanto da unida de, quanto da sentença, quanto textuais e pragmáticas42. O grande problema, aqui, consiste em explicar como a memória semântica é capaz de gerar e inte grar significações novas a cada momento. No nosso exemplo, poderiamos aven tar a hipótese de que o ouvinte conhece o sotaque caipira, em que há o decaimento43de “lh” para “i”, e, por isso, conseguiu realizar o reconhecimento.
2.4. Restrições psicobiológicas
Finalmente, é preciso compatibilizar os achados e teorias da Psicolingüística com os achados e teorias da Psicologia, da Neurologia e da Neuropsicologia, que apresentam um conjunto de restrições psicobiológicas para qualquer tipo de processamento mental. Assim, os modelos cognitivos correntes, tanto modularistas interacionistas, apresentam várias asserções fortes sobre a nature za e o quanto funcionamento dos processos de pensamento e das estruturas neuropsicológicas responsáveis por esses processos, asserções cuja plausibilidade deve ser verificada à luz dos conhecimentos trazidos pela Psicologia, pela Neurologia ou pela Neuropsicologia. Um exemplo desse tipo de restrições pode ser encontra do na afirmação de que qualquer processador mental que utilize a memória de curto prazo somente pode lidar com 7 ± 2 unidades simultâneas,44 o que exige que qualquer modelo para o processamento da fala deverá apresentar dispositi vos cujo funcionamento permita satisfazer essa limitação. Embora a maioria dessas restrições sejam estranhas à Lingüística e aos lingüistas, por estarem mais ligadas às ciências biológicas, é necessário apontar que mesmo entre os que propõem modelos fortemente ancorados na teoria lingüística, há grande concordância sobre a necessidade de submeter os modelos a essas restrições. 3. ALGUNS EXEMPLOS
Apresentaremos agora alguns exemplos de estudos psicolingüísticos,45 tanto teóricos quanto aplicados, tentando m ostrar como a Psicolingüísti ca pro42. Ver Scliar -Cabral, L. Op.cit., pp. 55-56. 43. Decaimento é o fenômeno fonético em que um fonema pode ser transformado em outro, como no caso do “e” no final das palavras em português brasileiro, que normalmente se transforma em “i”. O decaimento é um processo comum em uma língua, fazendo parte das regras fonológicas que sistematizam tal língua. Ver o capítulo “Fonética”, no volume I. 44. Ver Miller (1956). ✓ 45. E evidente que a apresentação será muito resumida, dado o objetivo a que se propõe.
PSICOLINGUISTICA
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cede no enfrentamento das questões e problemas com que se defronta. Assim, apresentaremos: (i) uma definição de níveis de análise e elementos da Psicolingüística, representando uma operação de definição de método e objeto de es tudos, ou corte epistemológico; (ii) um modelo simples das relações entre pensamento/linguagem e cérebro/mente, representando uma construção de modelo de processam ento 46 muito comum nos estudo s ps icolin güís ticos ; (iii) um estudo sobre ordem das palavras e coerência discursiva durante a aquisi ção de uma segunda língua, representando um estudo experimental; e (iv) uma teoria gramatical alternativa à Teoria Gerativa, representando uma ope ração teórica.
3.1. Níveis de análise e elementos da Psicolingüística (um corte epistemológico)
Garman (1990) apresenta um modelo esquemático simples da “cadeia da fala” (Figura 3.1) que ilustra o que ocorre entre um falante e um ouvinte e per mite distinguir três níveis de análise do processamento lingüístico: a) o nível lingüístico , relacionado à formulação (codificação/decodificação) da mensagem. No exemplo anterior, é neste nível que vamos veri ficar se o ouvinte entendeu a mensagem “óia” como um apelo para que olhasse para algo, ou como outra coisa qualquer; b) o nível fisioló gico, relacionado com a produção e recepção da fala,
nível em que devemos olhar para o aparelho fonoarticulatório do falan te que disse “óiri' e verificar, por exemplo, que o decaimento do “Ih” em “i” diminuiu a utilização dos músculos e, portanto, economizou energia; c) o nível acústico, em que ocorrem as ondas sonoras que formam a “pon✓
te” entre o falante e o ouvinte. E neste nível que tentaremos discernir quais características físicas ondas de som que foram identificadas como as “óia” e entendidas comodas “olha”.
46. A utilização dc modelos é uma prática comum em ciência e não supõe que os modelos seja “verdadeiros” no mesmo sentido em que um “fato” o é, mas elabora modelos que sejam úteis para explicar um determinado fenômeno. Numa ciência mais “madura”, como a Física, os pesquisadores já caminham para unificar os modelos, mas em uma disciplina jovem, como a Psicolingüística, talvez haja tantos mode los quantos sejam os pesquisadores. Garman (1990) e Scliar-Cabral (1991), por exemplo, apresentam nas obras citadas modelos bastante diferentes em forma, finalidade e complexidade.
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IN TR O D ULINGÜÍSTICA ÇÀÃ O
Figura 3.1. A cadeia da fala (Denes & Pinson,
in Garman, 1990: 4).
O autor aponta, ainda, três elementos fundamentais deste processamento: a) a existência de um sinal lingüistico , que diz respeito ao conjunto de eventos ambientais, acústicos no caso da fala e visuais no caso da escrita, que formarão o input a ser processado/entendido, e, ao mesmo tempo, ao conjunto de elementos motores necessários à geração de mensagens lingüfsticas, faladas ou escritas47. Esse ser definido por características físicas (como o som da vozsinal ou a pode velocidade de articulação). En quanto a produção do sina l lingüistico, na fala , no gesto ou na escrita, pode variar enormemente, especialmente em suas características físicas, a recepção lhe confere, de alguma forma, uma característica de invariância, ou constância, que é necessária para que essa produção seja interpretada e servir aos seus propósitos comunicativos. O estudo de como são produzidos/percebidos esses sinais conduz, geralmente, à formulação de modelos que buscam explicar suas propriedades características; b) a atividade neurofisiológica envolvida tanto na recepção quanto na geração da linguagem, que envolve tanto o processamento sensorial do
47. Ou ainda gesticu ladas , como no caso das linguagens de sinais. Para uma visão ampla do qu uma linguagem de sinais, ver Sacks (1989). Para uma abordagem mais lingüística, Sacks apresenta uma bibliografia com entada ao final do capítulo.
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input quanto o processamento motor do output, bem como o processa mento do conteúdo da mensagem, e está relacionada ao conjunto de operações ocorridas no cérebro, órgãos sensoriais e aparelhos articulatórios das pessoas envolvidas no evento lingüístico;
c) o sistema lingüístico, que se refere ao conjunto abstrato dos elementos da língua e às regras que regem as relações entre esses elementos. Usu almente se identifica no sistema lingüístico a existência de uma gramá tica, ou sintaxe, que diz respeito às regras de organização das palavras, uma fonologia, que diz respeito às regras de articulação e emissão so nora destas palavras, e uma semântica, que diz respeito às suas regras de significação, além de pressupor a existência de um léxico, ou “dici onário mental”, que é uma lista das palavras possíveis. Os elementos não se confundem com os níveis de análise, mas em cada um deles cruzam-se os três níveis de análise. O sinal lingüístico “óia”, por exemplo, tem propriedades acústicas, como volume ou tom; é produzido e recebido por meio de atividadesfisiológicas (sensoriais, motoras e cerebrais); e é organizado segundo o sistema lingüístico que compartilham o falante e o ouvinte, ou seja, é pronunciado “óia” porque o português admite o decaimento de “lh” em “i”, mas nunca “ora”, porque, neste caso, como o sistema lingüístico do português não admite o decaimento de “lh” em “r”; se for pronunciada “ora”, o falante-ouvinte nativo nunca a entendería como “olha”. Ao distinguir três níveis de análise e apontar três elementos do processa mento, Garman, numa operação normalmente chamada corte epistemológico, está colocando limites ao que pode ser estudado e ao que pode ser dito a respei to do fenômeno. A distinção dos níveis de análise impede que sejam confundi das declarações sobre um e outro nível, permitindo a construção de teorias cla ras. A distinção de três elementos de processamento, por seu turno, indica já quais são as principais evidências que os métodos deverão utilizar para a avalia ção das hipóteses suscitadas pela teoria.
3.2. Linguagem e pensamento (um modelo de processamento)
Dadas as bases indubitavelmente cerebrais (ou mentais) do pensamento e a hipótese de que este pensamento se articula com a linguagem, surgem alguns problemas no estudo desta articulação. O primeiro deles consiste em reconhe cer que o acesso que temos a este processamento é indireto, ou seja, supomos que existe um processamento lingüístico na mente ou no cérebro da pessoa, mas
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somente temos acesso aos eventos físicos a ele relacionados, sejam estes even tos a fala, o gesto ou a escrita48. Assim, elaboramos modelos que descrevam o que deveria acontecer dentro do cérebro para que surja um determinado evento físico e não outro. Garman (1990) descreve o processamento da linguagem usando a analogia de uma central telefônica (Figura 3.2), capaz de organizar uma seqüência de eventos de input/output (entrada/saída). Enquanto temos acesso aos eventos de input/output , podemos supor que o cérebro, ou a central telefônica, deve ser capaz de “reconciliar as consideráveis diferenças físicas e fisiológicas entre estes eventos, de tal forma que pode reconhe cer e gerar as ‘mesm as’ men sagens em diferentes formas”49. As atividades-chave devem incluir, no mínimo, o processamento dos si nais lingüísticos, o reconhecimento das palavras, a atribuição a elas de signifi cado, sua organização no nível sintático, sua organização (ou de seus significa dos) num nível textual, ou discursivo, e a interface com o mundo externo, nas atividades de produção/recepção. Essas atividades são constrangidas pelos li mites do sistema lingüístico, ao qual devem obedecer, mas são mais bem carac terizadas como processos de pensamento. Não devemos nos iludir com a sim plicidade do esquema, uma vez que cada uma dessas atividades pode ser muito mais complexa do que parece. Como exemplo, podemos citar o caso da “fala interior” , em que um a pessoa, “ao falar algo para s i mesm a”, transforma a ativi dade de interfaceamento em uma complicada cadeia de retroalimentações, já que o falante e o ouvinte são a mesma pessoa, com o mesmo cérebro. Um segun do problema consiste em identificar neste processamento, além dos efeitos das restrições oriundas do sistema lingüístico, já mencionadas, os efeitos das restri ções oriundas do próprio sistema cérebro-men tal, como os limites impostos pel o sistema sensório-perceptivo ou pelo funcionamento da memória.
3.3. A aprendizagem da segunda língua por adultos (um estudo experimental)
Trévise, Perdue & Dulofeu (1991), como parte de um amplo projeto de pesquisa destinado a investigar a aquisição do francês como segunda língua (L2) por imigrantes adultos, realizaram um estudo experimental no qual inves tigaram os mecanismos utilizados pelos aprendizes para suprir a deficiência de
48. Ou mesmo a atividade elétrica do cérebro, tal como pode ser medida pelos métodos da Neurofisiologia, como a eletroencefalografia. a tomografia cerebral, e outros. 49. Garman. Psycholinguisíics. Cambridge, Cambridge University Press, 1990, p. 5.
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PSICOLINGUISTICA
cérebro
Figura 3.2. O processamento da linguagem (traduzido de Garman, 1990: 5).
seu conhecimento da língua-alvo e conseguir manter a coerência discursiva. Contrariamente ao grosso dos estudos da área, esse estudo experimental aborda a produção e não a recepção lingüística. E também identificado como um estu do de Psicolingüística Aplica da. Ainda assim, sua escolha se justifica em virtu de da facilidade de nele identificar os passos básicos do procedimento experi mental, como o controle das variáveis, por exemplo. A questão fundamental do estudo era identificar se havería alguma “invariante lingüística (especialmente na ordem das palavras) nas diferentes interlinguagens do projeto, pelo menos nos primeiros estágios da aquisição”50. O desdobramento dessa questão incluía identificar: (i) se os diferentes sujeitos do estudo produziam estruturas discursivas comparáveis no começo do proces so de aquisição da L2; (ii) se obedeciam ao mesmo tipo de restrições de ordem semântico-pragmática, independentemente do par de linguagens envolvido; (iii) qual era o papel desempenhado pelas estruturas da Ll; (iv) quais eram os está-
50. Trévise, A. et al. Word order and discoursive coherence in L2. In: Appel, G. & Dechert, H. W. A case fo r psycholingu istics cases. Amsterdam/Philadelphia, John Benjamins Publishing Company, 1991, p.164.
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gios em que aspectos da L2 interferem, e como e se podiam ser identificadas progressões similares em sujeitos adquirindo a mesma L2. Uma vez que nosso objetivo é apenas mostrar como funcionam os estudos experimentais em Psicolingüística, vamos examinar apenas uma das questões: as relações entre as restrições semântico-pragmáticas e a ordem das palavras. O estudo partiu da constatação de que nos primeiros estágios da aquisição os aprendizes não dispõem da grande variedade de mecanismos lingüfsticos para a construção de proposições de que dispunham na LI e, assim, sua produ ção parece ser guiada primordialmente por razões semânticas (deixar claro quem é o agente principal do evento relatado) e pragmáticas (deixar claro qual é o tópico referido). Considerando também que, nesses estágios iniciais, o único mecanismo sintático disponível para o aprendiz planejar e realizar um discurso coerente é a ordem em que dispõe as poucas palavras que conhece, era funda mental estudar as relações entre a organização semântico-pragmática do discur so dos aprendizes e este mecanismo de ordenar palavras, em última análise, um mecanismo sintático. Assim, os pesquisadores selecionaram seis informantes, quatro falantes de espanhol e dois falantes de árabe, realizando com eles um estudo de caráter longitudinal que consistia em pedir aos informantes que desempenhassem uma mesma tarefa três vezes, com intervalo de dez meses entre cada desempenho. A tarefa consistia em assistir ao filme Tempos Modernos , de Charles Chaplin; logo em seguida, os informantes deveríam contar o filme para o pesquisador. Vemos aqui como os pesquisadores selecionaram a Variável Independente (a passagem do tempo) e a Variável Dependente (o aprendizado e domínio de mecanismos lingüfsticos), estabelecendo a hipótese de que Vi modificaria Vd, e definindo uma tarefa em que pudessem medir como seria esta variação. Como mecanismo de controle que garantisse que a situação experimental reproduziría as condições de uso ordinário da linguagem, ou seja, para isolar as Variáveis Intervenientes ou Ambientais, os dados foram comparados com gra vações de dados “puramente conversacionais”; nesta comparação, foram en contradas declarações com os mesmos padrões e submetidas às mesmas restri ções semântico-pragmáticas, embora houvesse uma diferença de caráter quanti tativo, atribuída à própria artificialidade da situação experimental. Os dados apontaram não apenas a existência de “esquemas”, ou padrões invariantes, como a relevante influência das restrições semântico-pragmáticas; além disso, tam bém foram encontradas indicações sobre a gradatividade da aquisição de outros mecanismos gramaticais.
PSICOLINGÜÍSTICA
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3.4. A teoria léxico-funcional da gramática (uma operação teórica)
Em busca de uma integração entr e teoria lingüística e fatores de proce ssa mento, a Teoria Léxico-Funcional da Gramática (LFG)51 é proposta como uma alternativa à Gramática Gerativa, chomskyana, que pressupõe que o falante possui uma Gramática Universal incorporada estrutura de suada mente52. tindo do pressuposto de que armazenar àe própria recuperar informações memóriaPar é uma atividade essencialmente semântica, ligada à significação, e que a comple xidade dessas informações não aumenta muito o trabalho da memória, a LFG critica a proposta da Gramática Gerativa de que o falante aplica as regras gra maticais através de operações mentais, as chamadas transformações, e propõe que as informações gramaticais, como classe das palavras e condições para o relacionamento sintático entre elas, estejam incorporadas diretamente no léxi co. O léxico, então, além das entradas fonológica e semântica referidas anteri ormente, teria também uma entrada gramatical, em que ficariam armazenados os aspectos sintáticos das palavras. Um forte argumento de apoio é o fato de que nós lembramos mais facil mente a essência semântico-discursiva de uma sentença do que sua forma sintá tica real. Repare, por exemplo, que quando você vai contar para outra pessoa, ou recontar, uma história ouvida ou lida, você não repete as palavras da história exatamente como ouviu ou leu, mas usa outras palavras, ou parafraseia, a histó ria, mas mantém as estruturas de significação, como os acontecimentos e a or dem em que ocorrem, bastante intactas. Essa teoria exemplifica bem a forma como ocorrem as operações teóri cas na Psicolingüística: partindo do estudo de tarefas reais, tais como enten der, armazenar e recuperar estruturas lingüísticas, os autores elaboraram o pressuposto de que é mais fácil recuperar informações da memória do que executar transformações gramaticais. A partir daí, criticaram uma teoria já existente (a Gramática Gerativa) e elaboraram uma teoria alternativa. E preci so apontar que o corte epistemológico dos autores incorporava, entre outros, a regra da parcimônia, ou navalha de Occam, podesimples. ser resumida que, entre duas explicações, devemos preferirque a mais Como dizendo diz Kess (1992): “uma teoria realística da linguagem, então, descreve nosso conheci mento da linguag em e habilidades lingüísticas de forma a incorpora r habilida51. Bresnan (1981), Bresnan & Kaplan (1982), Kaplan & Bresnan (1982). Para um resumo, ver Kess, J. F. Psycholinguistics: psychology, linguistics and the síudy o f natural language. Amsterdam/Philadelphia, John Benjamins Publishing Company, 1992, pp. 22-23. 52. Ver o capítulo “Sintaxe”, no volume I desta obra.
INTRODUÇÃO A LINGUÍSTICA
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des de p e r f o r m a n c e que sejam cruciais para tarefas de processamento de in formação”53.
4. LINHAS ALTERNATIVAS AO
MAINSTREAM
Evidentemente a descrição feita até aqui, pretendendo ser introdutória, apenas deu nome àquelas correntes teóricas que têm relação direta com o cha mado brand Harvard-MIT, ou a pesquisa auto e hetero denominada psicolingüística por um conjunto de fontes independentes. Há, porém, que se reconhe cer pelo menos duas fontes de paradigmas alternativos aos dominantes no mainstream das pesquisas. Um, vindo da Psicologia, apóia-se nas reflexões te óricas de dois grandes mestres, Piaget e Vygotsky, enquanto o outro, vindo da Lingüística Aplicada, relaciona-se com as aplicações das descobertas psicolingüísticas a diversos campos de atividade humana.
4.1. Piaget e Vygotsky
Dois dos mais importantes pesquisadores da Psicologia, L. S. Vygotsky e J. Piaget, dedicaram parte dos seus estudos ao entendimento do relacionamento entre o pensamento e a linguagem. Embora suas concepções e estudos tenham tido uma influência muito maior na Psicologia54do que na Lingüística ou m es mo no surgimento da Psicolingüística, sua contribuição não pode ser ignorada, tanto por sua relevância em termos conceituais quanto pela persistência de sua influência. Enquanto a publicação do livro A lin g u a g e m e o p e n s a m e n to d a criança, de Piaget (1923/1966), teve grande impacto no campo da Psicologia, especialmente da Psicologia da Inteligência, a obra Pensamento e linguagem, de Vygotsky (1934), foi proibida em 1936, confinando sua influência à antiga União Soviética e, mesmo lá, a um pequeno número de colaboradores e alunos que tiveram contato pessoal com ele, vindo a ser editada apenas em 1956 e apresentada aos cientistas ocidentais somente em 1958. Atualmente, podem ser encontrados reflexos das concepções de Piaget principalmente nos trabalhos de Emília Ferreiro55 sobre a aquisição da escrita pela criança e, de forma geral, nos estudos das ciências cognitivas, das quais é
53. Kess, J. F. Op. cit., p. 22. 54. Ver prefácio de Jerome Bruner em Vygotsky (1934). 55. Ver, a propósito, Ferreiro & Teberosky (1984).
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geralmente considerado um precursor56. As concepções de Vygotsky, por seu turno, são bastante influentes no Brasil, especialmente nos estudos conduzidos por psicólogos e educadores. Em um texto introdutório como este, seria impos sível apresentar adequadamente as concepções desses dois grandes estudiosos sem deformá-las57.
4.2. Psicolingüística Aplicada
O nome Psicolingüística Aplicada é geralmente utilizado para identifi car os estudos da Psicolingüística que se dedicam a resolver questões de apli cação das descobertas do campo, e abrange obras relacionadas com áreas bas tante diversas. A International Society of Applied Psycholinguistics (ISAPL), que publica um importante periódico, o I n t e r n a t i o n a l J o u r n a l o f A p p l i e d P sych oling uistics
, realizou, na Alemanha, seuexemplo SegundodaCongresso Internacional, no qual os tópicos abrangidos em são 1987, um bom diversi dade dos campos e interesses da Psicolingüística Aplicada. Foram apresenta dos neste Congresso trabalhos sobre os seguintes tópicos58: bilingualismo, dis curso, desenvolvimento da primeira língua, ensino de língua estrangeira, grafêmica, teoria e metodologia psicolingüística, leitura, desenvolvimento de segunda língua, linguagem de sinais e comunicação não-verbal, patologia da fala, e tradução. Embora correndo o risco de simplificação, pode-se identificar, em estudos referidos sob o nome de Psicolingüística Aplicada, uma espécie de linha alter nativa59 ao m a in s tr e a m psicolingüístico geralm ente iden tificado com os paradigmas nascidos do modelo gerativo-transformacional, chamado às vezes de brand Harvard-MIT ou Psicolingüística Cartesiana. O brand Harvard-MIT implica uma pesquisa experimentai centrada em um modelo psicológico indivi dualista que, assumindo a asserção chomsk yana da existência de uma faculdade universal e inata da lingu agem60 e modelos ess encialm ente comp utacion ais/ representacionais, rejeita, de certa maneira, a construção intersubjetiva do sig nificado ou do sentido. Conforme nota Rommetveit (1991), o
brand
Harvard-
56. Ver, por exemplo, Gardner (1983). 57. Para uma boa introdução às idéias de Piaget e Vygotsky, além das obras já apontadas, dos próprios autores, indicamos também Dolle (1974), sobre Piaget, e Morato (1996), sobre Vygotsky. Ver também o capítulo “Aquisição da Linguagem”, neste volume. 58. Ver Appel & Dcchert (1991). 59. Ver Rommetveit (1991). 60. Ver, a propósito, Pinker (1994).
INTRODUÇÃO A LINGUÍSTICA
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Mit não é a única maneira de estudar a cognição humana e existe uma busca de paradigmas alternativos que permitam resolver problemas filosóficos causados pelas “assunções filosóficas dúbias embutidas nos modelos representacionais/ computacionais”61. Baseando-me na classificação proposta por Figueiredo (1989) para as matrizes de pensamento que marcaram o surgimento da Psicologia, e inspirando-me no próprio título do artigo de Rommetveit, posso nomear esta abordagem de Hermenêutica, por seu constante esforço em enfrentar “aquelas questões difíceis e vagamente definidas com a firme assunção de que respostas não nos proverão verdades finais, mas sim as condições necessárias para refor mular as questões e as bases para novas descobertas”62.
5. CONCLUSÃO: UM CAMPO EM EVOLUÇÃO
Aceitando o que propõe Winograd (1983), Kess (1992) descreve as mu danças de paradigma na pesquisa lingüística como uma sucessão de emprésti mos de modelos e metáforas oriundos de paradigmas bem-sucedidos nas ciên cias hard. Assim, no século passado, sob a influência de Darwin, tinha-se uma Lingüística “biológico-evolucionária”, com as atenções voltadas para o modo como as línguas evoluem e o delineamento de “famílias” de línguas. Com o operacionalismo estruturalista, que bus cava a delimitação da s unidades compo nentes, os átomos, das estruturas lingüísticas, passou-se para uma Lingüística “químic a”, como é o caso da fonologia es truturalista, que procurava a unidade funda mental, o fonem a, e suas s ub-unidades63. O paradigma cho mskyano, com seu modo dedutivo de investigação, que parte de uma teoria para deduzir afir mações que vão ser testadas contra os dados, e a ênfase dada à formalização abstrata, gerou uma Lingüística “matemática”. E hoje, com a emergência e a influência das ciências cognitivas, as metáforas e modelos têm apontado para um paradigma “computacional”, em que a linguagem é entendida como um processo simbólico, que símbolos tomapostura decisõesenvolve baseadas em conhe cimento armazenado e/ouopera deduzido deste.e Esta a Psicolingüística (e a Lingüística também) com questões mais amplas como a natureza do conhecimento, a estrutura das representações mentais e se u papel no proces samento.
61. Rommetveit, op. cit., p. 7. 62. Ibidem, p. 13.
63. Ver os capítulos “Fonética” e “Fonologia”, no volume 1 desta obra.
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A Q U IS IÇ Ã O D A L I N G U A G E M Ester Mirian Scarpa
1. A AQUISIÇÃO D A LINGUAG EM: BREVÍ SSIMO HI STÓRICO E ABR AN GÊ NC IA
A linguagem da criança sempre provocou especulações diversas entre leigos ou estudiosos do assunto. Seja essa linguagem a manifestação imperfeita de um ser incompleto, seja a expressão primitiva da palavra de Deus, o fato é que relatos mais ou menos esparsos, porém constantes, têm sido registrados ao longo dos séculos e chegaram até nós. Tais relatos dizem respeito às primeiras palavras emitidas pelas crianças, ou a que condições a criança deveria ser exposta para aprender a falar. Heródoto, por exemplo, narra que, no século VII a.C., o rei Psamético do Egito ordenou que duas crianças fossem confinadas desde o nascimento até a idade de dois anos, sem convívio com outros seres humanos, a fim de se observarem as manifestações “lingüísticas” produzidas em contexto de privação interativa. Sua hipótese era que, se uma criança fosse criada sem exposição à fala humana, a primeira palavra que de emitisse espontaneamente pertencería à língua mais antiga do mundo. Ao cabo dois anos de total isolamento, as crianças emitiram uma seqüência fônica interpretada como “bekos”, palavra frigia para “pão”. Concluiu, então, que a língua que o povo frígio falava era mais antiga que a dos egípcios1.
1. Para maiores detalhes, ver Campbell & Grieve (1982).
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Estudos sistemáticos sobre o que a criança aprende e como adquire a linguagem, porém, foram feitos, como tais, apenas mais recentemente. Desde o século XIX, alguns lingüistas, guiados tanto por interesse paterno quanto profissional, elaboraram diários da fala espontânea de seus filhos. Algumas das amostras mais abrangentes da fala infantil foram registradas nas primeiras décadas deste século pelos chamados “diaristas”, que eram lingüistas ou filólogos estudando seus próprios filhos. Os mais interessantes deles são um estudo do francês por Antoine Grégoire, um sobre a aquisição bilíngüe alemão-inglês de Werner Leopold (1939), além do trabalho de Lewis (1936), sobre a descrição de uma criança aprendendo o inglês. São trabalhos descriti vos e mais ou menos intuitivos, que, ao contrário das pesquisas aquisicionais das últimas décadas, não se voltam à procura, nos dados da criança, de evi dência em prol de alguma teoria lingüística ou psicológica, embora se insiram nas teorias lingüísticas e psicológicas da época (como o de Lewis, com ten dência behaviorista). Esses trabalhos são do tipo longitudinal, uma das metodologias de pesqui sa com dados de desenvolvimento hoje já bem estabelecidos, iniciada exata mente pelos diaristas. Trata-se do estudo que acompanha o desenvolvimento da linguagem de uma criança ao longo do tempo. As anotações, em forma de diá rio, do que a criança diz, em situação naturalística (isto é, em ambiente natural, em atividades cotidianas), foram posteriormente substituídas por registros em fitas magnéticas, em áudio ou vídeo. Assim, grava-se a fala de uma criança por um período de tempo preestabelecido (por exemplo: meia hora, 40 minutos, 1 hora etc.), em intervalos regulares (sessões semanais, quinzenas, mensais etc.), dependendo do tema a ser pesquisado. Esse material é posteriomente transcrito da maneira mais apropriada para a pesquisa em pauta (transcrição fonética, prosódica, cursiva, codificada segundo orientações sintáticas, semânticas etc.). A suposição é que, registrando-se uma quantidade razoável da fala da criança de cada vez, pode-se ter uma amostra bastante representativa para se estudar como o conhecimento da língua pela criança é adquirido e/ou como muda no tempo. A partir da metade dos anos 1980, bancos de dados da fala de várias crianças do mundo todo têm sido formados, seguindo codificações informatizadas2. Uma outra metodologia de pesquisa em aquisição da lingua gem, a de tipo transversal, baseia-se no registro de um número relativamente grande de sujeitos, muitas vezes classificados por faixas etárias. Embora não exclusivamente, a pesquisa de tipo transversal geralmente também é do tipo 2. Um exemplo de uma dessas transcrições, codificadas segundo o CHAT, código de transcrição programa CHILDES de banco de dados, pode ser encontrado no site http://poppy.cmu.edu/childes .
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experimental (por oposição a naturalístico), em que os fatores e as variáveis intervenientes no-fato analisado são isolados e controlados e depois testados. Dados naturalísticos destinam-se sobretudo à análise da produção; os ex perimentais prestam-se mais à observação e análise da percepção, compreensão e processamento da linguagem pela criança. De qualquer maneira, deve-se sem pre ter cuidado com ae avisão ingênua dedos quedados os dados aquisicionais “falam”. A metodologia adotada própria seleção dependem da postura teórica que norteia a pesquisa. A Aquisição da Linguagem é, pelas suas indagações, uma área híbrida, heterogênea ou multidisciplinar. No meio do caminho entre teorias lingüísticas e psicológicas, tem sido tributária das indagações advindas da Psicologia (do Comportamento, do Desenvolvimento, Cognitiva, entre outras tendências) e da Lingüística. No entanto, na contramão, as questões suscitadas pela Aquisição da Linguagem, bem como os problemas metodológicos e teóricos colocados pelos próprios dados aquisicionais, têm, não raro, levado tanto a Psicologia (sobretudo a Cognitiva) como a própria Lingüística a se repensarem e a se reno varem. Por isso é que se diz que a Aquisição da Linguagem tem sido uma arena privilegiada de discussão teórica tanto da Lingüística quanto da Psicologia Cognitiva3. Hoje em dia, a Aquisição da Linguagem alimenta os tópicos recobertos pela Psicolingüística,4 além de ser de interesse central nas ciências cognitivas e mesmo nas teorias lingüísticas, sobretudo nas de inspiração gerativista, como veremos mais detidamente adiante. A área recobre muitas subáreas, cada uma formando um campo próprio de estudos. Eis algumas delas: a) aquisição da língua materna , tanto normal quanto “com desvios”, recobrindo os componentes “tradicionais” dos estudos da linguagem, como fonologia, semântica e pragmática, sintaxe e morfologia, aspec tos comunicativos, interativos e discursivos5 da aquisição da língua materna. Sob a égide de “desvios”, contam-se: aquisição da linguagem em surdos, desvios articulatórios, retardos mentais e específicos da lin guagem etc.;
3. Mais apropriadamente, a ciência cognitiva, uma grande área multidisciplinar que congrega interes ses da Lingüística, da Psicologia, da Filosofia, da Ciência da Computação, da Inteligência Artificial, das Neurociências, entre outros, tem tomado o lugar da Psicologia Cognitiva e da própria Psicolingüística como um grande campo de indagação sobre a aquisição de conhecimento e sobre o funcionamento da mente, campo este que reserva um espaço especial para questões da linguagem e sua aquisição. 4. Ver o capítulo “Psicolingüística”, neste volume. 5. Ver os capítulos “Fonologia”, “Morfologia” e “Sintaxe” no volume I desta obra, e os capítulos “Semântica”, “Pragmática”, “Análise da Conversação” e “Análise do Discurso”, neste volume.
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b) aquisição de s egunda língua , quer como bilingüism o infantil ou cultu ral, quer na verificação dos processos pelos quais se dá a aquisição de segunda língua entre adultos e crianças, seja em situação formal esco lar, seja informal de imersão lingüística; c) aquisição da escrita, letramento, processos de alfabetização, relação entre a fala e a escrita, entre o sujeito e a escrita nesse processo etc. 2. TEMAS E ABORDAGENS TEÓRICAS SOBRE A AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM 2.1. O velho debate pendular sobre nature (natureza) versus nurture (criação, ambiente). O inato e o adquirido. O biológico e o social
Os estudos sobre processos e mecanismos de aquisição da linguagem to maram dos trabalhos do lingüista NoamnaChomsky, no fim um da grande década impulso de 1950,a partir em reação ao behaviorismo vigente época. O quadro científico era na época dominado pela corrente behaviorista ou ambientalista, dominante exatamente nas teorias de aprendizagem. A aprendi zagem da linguagem seria fator de exposição ao meio e decorrente de mecanis mos comportamentais como reforço, estímulo e resposta. Aprender a língua materna não seria diferente, em essência, da aquisição de outras habilidades e comportamentos, como andar de bicicleta, dançar etc., já que se trata, ao longo do tempo, do acúmulo de comportamentos verbais. Skinner (1957), psicólogo cujo trabalho foi o mais influente no behaviorismo, parte de pressupostos tanto metodológicos (como ênfase na observabilida de de manifestações comportamen tais, externas, mensuráveis, da aprendizagem) quanto teórico-epistemológicos (como a premissa da inacessibilidade à mente para se estudar o conhecimento, postura contrária à mentalista e idealista nas ciências humanas) e propõe, então, enquadrar a linguagem (ou “comportamento verbal”) na sucessão e contingên cia de mecanismos de estímulo-resposta-reforço, que explicam o condiciona mento e que estão na base da estrutura do comportamento. Chomsky adota adquire uma postura inatista na A consideração processodapor meio do qual o ser humano a linguagem. linguagem, do específica espécie, dotação genética e não um conjunto de comportamentos verbais, seria adquiri da como resultado do desencadear de um dispositivo inato, inscrito na mente. Tom ou-se famosa esta p olêmica c riada pela publicação, em 19596, da devasta6. É sempre interessa nte voltar a esses trabalhos pioneiros. Recomendo um passar de olhos em Skin (1957) e em Chomsky (1959), sendo que este último cont ribuiu para lançar Chomsky no debate cie ntífico
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dora resenha, de autoria do então jovem Chomsky, do livro Comportamento verbal, de Skinner. Nela, o lingüista posiciona-se contra a visão ambientalista de aprendizagem da linguagem. Chomsky começa por rejeitar a projeção das evidências skinnerianas, provenientes de experimentos laboratoriais com ani mais, para a linguagem humana, específica da espécie, resultado de dotação genética e inscrita na mente do sujeito falant e. E continu a argume ntando que as estruturas de condicion amento e de aprendizagem, segundo as quais um modelo A é reproduzido, pelo aprendiz, por mecanismos de contingenciamento ou imi tação, como A’, nem de longe começa a explicar a complexidade e a sofistica ção do conhecimen to lingüístico (na primeira versão da teoria chamado de com petência lingüística) que tem bases biológicas (porque genéticas) e, portanto, universais. Os enunciados produzidos pelo falante e as próprias línguas do mundo são manifestações da faculdade da linguagem. Assim, a criança que aprende a sua língua nativa é uma imagem a que Chomsky retoma repetidamente, desde seus primeiros escritos, de man eira que se tom a difícil discrim inar sua teoria da linguagem de sua visão da aquisição da linguagem. O argumento básico de Chomsky é: num tempo bastante curto (mais ou menos dos 18 aos 24 meses), a criança, que é exposta normalmente a uma fala precária, fragmentada, cheia de frases truncadas ou incompletas, é capaz de dominar um conjunto complexo de regras ou princípios básicos que constituem a gramática internalizada do falante. Esse argumento, constantemente reafirma do, é chamado de “pobreza do estímulo”. Um mecanismo ou dispositivo inato de aquisição da linguagem (em inglês, LAD, language acquisi tion d evice ), que elabora hipóteses lingüísticas sobre dados lingüísticos primários (isto é, a lín gua a que a criança está exposta), gera uma gramá tica específica, que é a gramá tica da língua nativa da criança, de maneira relativamente fácil e com um certo grau de instantaneidade. Isto é, esse mecanismo inato faz “desabrochar” o que “já está lá”, através da projeção, nos dados do ambiente, de um conhecimento lingüístico prévio, sintático por natureza. No bojo de modificações e reajustes que a teoria gerativa sofreu num se gundo momento7, introduzindo a chamada Teoria de Princípios e Parâmetros , o argumento da “pobreza do estímulo” foi retomado e refraseado com uma ati tude francamente platonista ante a linguagem. A “pobrez a do estímulo” , um dos
de sua época. Esses trabalhos também contribuem para uma melhor compreensão dos fundamentos v í . epistemológicos da polêmica behaviorismo v í . inatismo, parte da velha polêmica secular empirismo racionalismo. 7. Ver Chomsky (1981), (1986). Para uma abordagem mais recente, ver Chomsky (1995), onde aparato descritivo da gramática se encontra modificado, mas não a visão sobre o inatismo.
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INTRODUÇÃ O A LI NGUÍ STI CA
mais importantes argumentos em prol do inatismo, vincula-se à metáfora do problema de Platão , ao qual, segundo o lingüista, filiam-se as questões centrais relativas à linguagem. O problema de Platão coloca-se da seguinte maneira: como é que o ser humano pode saber tanto diante de evidências tão passagei ras, enganosas e frag men tária s? Transferindo para a linguagem, essa questão quer dizer que o conheci mento da língua é muito maior que sua manifestação. Assim, a linguagem está vinculada a mecanismos inatos da espécie humana e comuns aos membros dessa espécie, daí a idéia de universais lingüísticos. Esta visão, que coloca a lingua gem num domínio cognitivo e biológico, admite que o ser humano vem equipa do, no estágio inicial, com uma Gram ática Universal (GU), dotad a de princípios universais pertencentes à faculdade da linguagem, e de parâmetros “fixados pela ex periência” , isto é, parâmetros não-marcados que adquirem seu valor (+ ou -) por meio do contacto com a língua materna. Essa teoria de aquisição tem sido chamada de “princípios e parâmetros” ou “paramétrica”8. Alguns dos parâmetros que têm sido estudados são: se a língua opta por sujeito nulo ou por sujeito preenchido, por objeto nulo ou objeto preenchido, pela colocação dos clíticos, pelo tipo de flexão ou estrutura temática do verbo etc. A separação estrita entre conhecimento e uso é decorrência direta da postulação de conhecimento tácito, prévio, biológico, de cunho linguístico, in dependente dos fatores ambientais, culturais, psicológicos ou histórico-sociais determinantes da aquisição da língua materna. Oposto ao “problema de Platão” está “problema de Orwell/Freud”, apropriado, segundo o lingüista, para ques tões osociais, históricas e políticas, ou para os desdobramentos sócio-históricopsicanalítico-ideológicos do uso da linguagem, que fogem à alçada da teoria lingüística. Este “problema de Orwell/Freud” parafraseia-se assim: como pode o ser humano saber tão pouco diante de evidências tão ricas e numerosas? Em suma, no processo de aquisição da linguagem, a criança é exposta a um input (conjunto de sentenças ouvidas no contexto), sendo o output um siste ma de regras para a linguagem do adulto, a gramática de uma determinada lín 8. Ver, a respeito da fixação de parâm etros e sobre os conce itos e interpretaç ões da aquisi paramétrica, Radford (1990), Lightfoot (1991). Galves (1996) e Meisel (1997), entre outros. Há hoje três tendências na chamada “aquisição paramétrica”, como se convencionou chamar os trabalhos sobre aquisi ção da linguagem de inspiração gerativista: (i) a hipótese da competência total (Hyams, 1986): todos os princípios da Gramática Universal estão disponíveis para a criança desde o começo e é suficiente uma exposição mínima aos dados lingüísticos primários para a fixação de parâmetros; (ii) a hipótese da apren dizagem lexical (Clahsen, 1992) todos os princípios da Gramática Universal estão disponíveis, mas a apren dizagem de novos itens lexicais e morfológicos e seus traços guia o desenvolvimento sintático; (iii) a hipótese maturacional (Radford. 1990): alguns princípios da Gramática Universal precisam m aturar antes que as categorias funcionais sejam adquiridas.
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gua 1. Numa primeira versão da teoria, postulava-se a existência de uma série de regras gramaticais, mais um procedimento de avaliação e descoberta, pre sentes no Dispositivo de Aquisição da Linguagem (LAD); ao confrontá-las com o input, a criança escolhe as regras que supostamente fariam parte de sua língua (Chomsky, 1957, 1965). Num segundo momento, postula-se que a criança nas ce pré-programada com princípios (universais) e um conjunto de parâmetros que deverão ser fixados ou marcados de acordo com os dados da língua à qual a criança está exposta. A criança não escolhe mais as regras, nesta versão de prin cípios e parâmetros, mas valores paramétricos. A que tipo de dados ou a que quantidade de dados lingüísticos a criança deve ser exposta? Trabalhos recentes (Lightfoot,1991) afirmam que a criança pre cisa ser exposta a uma quantidade relativamente pequena de linguagem, mera mente a algum gatilho crucial, como pequenas cláusulas simpies, a fim de des cobrir que caminho sua língua materna tomou. Uma vez descoberto tal cami nho, ela já sabe, automaticamente, por meio de pré-programação, um bom tanto sobre como funcionam as línguas daquele tipo. A aprendizibilidade é, assim, uma questão teórica central da teoria paramétrica de aquisição da linguagem. Como é a linguagem aprendível, se se pode só contar com as migalhas de fala ouvidas pelas crianças, que não fornecem pistas suficientes para o estado final da língua a ser aprendida? Este é também chamado de “problema lógico da aquisição da linguagem” : como, logicamente, as crianças adquirem uma língua se não têm informação suficiente para a tarefa ? A resposta lógica é que trazem uma enorme quantidade de informações a que Chomsky chama de Gramática Universal (GU), que é “uma caracterização destes princípios inatos, biologica mente determinados, que constitutem o componente da mente humana — a fa culdade da linguagem”9. Deve ainda ser lembrado que, de acordo com os princípios chomskianos, as diferenças entre as línguas do mundo não são assim tão grandes do ponto de vista sintático, gramatical, o que ajuda a explicar o universalismo (Chomsky, 1993). Uma outra decorrência do inatismo lingüístico é a modularidade cognitiva da aquisição da linguagem: o mecanismo de aquisição da linguagem é específi co dela, não exibindo interface óbvia com outros componentes cognitivos ou comportamentais. A relação entre a língua e outros sistemas cognitivos, como a percepção, a memória e a inteligência, é indireta, e a aquisição da linguagem — ou o desencadeamento da Gramática Universal junto com a fixação de parâmetros 9. Chomsky, N. Knowledge o f Icinguage: its naíure , srcin and use. Londres, Praeger,1986, p. 24.
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— não depende, necessariamente, de outros módulos cognitivos, muito menos de interação social. As colocações inatistas de Chomsky suscitaram uma série de estudos, a partir dos anos 1960, que se concen tra ram sobretudo na cham ada fase sintática, onde a prioridade de aná lise pendeu para o estudo da aquisição da gramática da criança por volta do seu segundo ano de vida, quando a criança já começa a produzir enunciados de mais de um a palavra. Tais trabalhos foram criticados e contra-evidenciados por duas vertentes teóricas que, junto com os trabalhos gerativistas, têm no rteado os estudos na área . São ela s: o cognitivismo construtivista e o interacionismo social, que veremos a seguir.
2.2. O cognitivismo construtivista: Piaget, Vygotsky
A idéia de que a aquisição e o desenvolvimento da linguagem são deri vados do desenvolvimento do raciocínio na criança contesta a autonomia do chamado mecanismo de aquisição da linguagem ou da GU como domínio es pec ífico de conhecim en to lingüístico. Em outras palavras, a aq uisição da lin guagem depende do desenvolvimento da inteligência na criança. A aborda gem cham ada de cognitivismo construtivista ou epigenético 101foi des en vo lvi da com base nos estudos do epistemólo go suíço Jean Piaget, segun do o qua l o aparecim ento da linguagem se dá na superação do estágio sensório-motor, por volta dos 18 meses. Neste estágio de desenvolvimento cognitivo, numa espé cie de “revolução copemiciana”, usando as palavras do próprio Piaget (1979), dá-se o desen volvim ento da função sim bólica, por meio da qual um significante (ou um sinal) pode representar um objeto significado, além do desenvolvi mento da representação, pela qual a experiência pode ser armazenada e recu perada. Essas duas funções estão estreitamente ligad as a outro s três proce ssos que ocorrem concomitantemente e que colaboram para a superação do que Piaget chama de “egocentrismo radical”, presente no período sensório-motor, segundo o qual existe “uma indiferenciação entre sujeito e objeto ao ponto que o prim eiro não se conh ece n em m esmo com o fonte de suas a ções ” 11. Em outras palavras, o autor fala aqui da indiferenciação cognitiva entre o sujeito e o mundo ou pessoas que o cercam. Estes três processos são os relacionados a seguir:
10. Estas duas denominações evocam a proposta de explicação da srcem e do desenvolvimento das estruturas do conhecimento (cognitivas) pela interação entre ambiente e organismo. 11. Piaget, J. A ep istem olog ia gené tica. São Paulo, Abril, 1979, p. 11. (Série Os Pensadores)
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a) o da descentralização das ações em relação ao corpo próprio, isto é, entre sujeito e objeto (ou entre “eu” e “o outro” ou “eu” e “o mundo”); o sujeito começa a se conhecer como fonte ou senhor de seus movimentos; b) o da coordenação gradual das ações: “em lugar de continuar cada uma a formar um pequeno todo em si mesmo”,12elas passam a se coordenar para constituir uma conexão entre meios e fins; c) o da permanência do objeto, segundo o qual o objeto permanece o mes mo e igual a si próprio mesmo quando não está presente no espaço perceptual da criança. Por meio de (a), (b) e (c), é possível o uso efetivo do símbolo, da representa ção de um sinal por outro, de exercer o princípio de arbitrariedade do símbolo. A criança passa, por exemplo, a ser capaz de usar uma caixa de fósforo para “fazer de conta” (representar) que é um caminhãozinho. Assim também, para a crinaça, um objeto, se deslocado do seu campo perceptual, continua existindo (isto é, o objeto toma-se permanente). Com a linguagem, ojogo simbólico, a imagem men tal, as sucessivas coordenações entre as ações e entre estas e o sujeito, surge a possibilidade de internalizar e conceptualizar as ações: “... com mais capacidade de se deslocar de A para B, o sujeito adquire o poder de representar a si mesmo esse movimento AB e de evocar pelo pensamento outros deslocamentos”13. Quando essas conquistas cognitivas se unem, na superação da inteligência sensória e motora, a caminho da inteligência pré-operatória de fases posterio res, possibilidade criança adotar os pessoais: símbolos em públicos comuni dadesurge mais aampla em lugarde deaseus significantes outrasda palavras, a linguagem se toma possível (já que a linguagem é entendida, por Piaget, como um sistema simbólico de representações), assim como outros aspectos da fun ção simbólica geral, como é o desenhar. Em contraposição ao modelo inatista, a aquisição é vista como resultado da interação entre o ambiente e o organismo, através de assimilações e acomo dações, responsáveis pelo desenvolvimento da inteligência em geral, e não como resultado do desencadear de um módulo — ou um órgão — específico para a linguagem. Daí se diz que a visão de Piaget sobre a linguagem é nãomodularista14. Assim também, a visão behaviorista é rechaçada, com a crença 12. Ibidem, p. 8. 13. Ibidem, p. 11. 14. A epigênese (aquisição e desenvolvimento da linguagem) tem sido retomada, nos anos 1990, por abordagens conexionistas, como a de Plunkett & Sinha (1991) e Plunkett (1993) (1997), que se contra põem ao inatismo. Plunkett & Sinha (1991) afirmam que o fato de o conceito de desenvolvimento ter sido
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INTRODUÇÃO À LINGUÍSTICA
de que as crianças não esperam passivamente que o conhecimento de qualquer espécie lhes seja transmitido. As pesquisas de inspiração piagetiana floresce ram nas dé cad as de 1970 e 8015. As crític as ao m odelo p iagetian o, q ue criaram
virtualmcnte excluído da teorização psicológica sobre o estudo
da mente trouxe como resultado o domínio
da dicotomia não-dialética. não-interativa. empirismo vs. nativismo. Segundo os autores, o cognitivismo inatista apresenta duas desvantagens: a) asserções fortes e negativas sobre o desenvolvimento, pela contraposição entre uma estrutura inatamente especificada de um estado inicial e uma estrutura computacionalmcnte não-dccidívcl do estímulo ("pobreza do estímulo”). A esta visão opõe-se o conceito clássico de epigênese. que pretende exata mente explicar o desenvolvimento através da intera ção entre org anism o e meio; b) as versõ es mais mo dernas do cogn itivism o ina tista, pelo fato de serem anti-d esenvolvime nta is, recusam a “interdisciplinaridade” e tendem ao “modularismo”; no caso da aquisição da lingua gem, o modelo gerativista-cognitivista prevê o papel nuclear da sintaxe sobre os demais compo nentes linguísticos. Os modelos conexionistas de aprendizagem são baseados em modelagens matemáticas baseadas em sistemas detreino redes eneurais e cm programas de simulação de entendem aprendizagem que levam em conta a exposição aos dados, generalização do conhecimento. Como que a linguagem é desencadeada por diversas "entradas ", tais modelos conexionistas computam todo c qualquer tipo de estímulo, lingüísti co ou não, como fatores de aprendizagem. Uma das características do modelo é que pode gerar tanto dados “corretos”, compatíveis com o alvo da aprendizagem, como alvos “incorretos”, dando conta, assim, da gradiência c dos erros constantes que aparecem na fala da criança durante o processo de aquisição e desen volvimento da linguagem. 15. Eis um exemplo de um estudo dentro da chamada vertente da hipótese do mapeamento lingüís tic segundo o qual a linguagem se desenvolve cm decorrência de etapas vencidas do desenvolvimento de estruturas de inteligência da criança. A seguir, faço um resumo de Sinclair-Zwart (1973). Investigando a natureza das estruturas sintáticas responsáveis pela ordem SVO, a autora fez um expe rimento com crianças de dois anos e seis meses a sete anos. cm que as crianças teriam de representar, com pequenos bonec os, o q ue enten diam de frases com verbos transitiv os e intransitivos que lhes eram apresen tadas com o verbo sempre pronunciado no infinitivo. As frases eram do tipo: • chevcux couper papa (cabelo cortar papai • garçon fil ie pousser (menino menina • ours plcurcr sauter ( urso
)
empurrar)
chorar pular) etc.
Principais resultados: (i) os itens intransitivos foram os mais fáceis, sobretudo para as crianças mais novas; não há diferença de estratég ias entre as crianças mais novas e mais velhas com relação aos intransitivos; (ii) as soluções dadas para as séries com verbos transitivos variam de idade para idade: no Grupo I (dois anos c dez meses a quatro anos), há duas est ratégias: la. o verbo “empurrar" é entendido como ativi dade: a criança não se vê como agente, mas demo nstra apenas a ação de empurra r os dois bonecos, o do menino c o da menina, sobre a mesa; 2a. a própria criança realiza a ação de empurrar: “eu empurro eles”, isto é. uma ação cm que a criança mesma toma parte, em vezvelhos, de supor outros (animais ou objetos) realizem a ação. Estas estratégias desaparecem nos grupos mais m que as uma outra estratégia transi cional aparece nos grupos 2 c 3 (idade intermediária): VNN. algo como “empurrar menino-menina” ou como NV (intransitivo). Fi nalmente, esses dois padrões se combinam para formar a trilogia SVO nas cria nças mais velhas (grupo de 4 a 7 anos de idade). A interpretação da autora sobre o aparecimento dessas estruturas é a seguinte. Primei ro a criança expressa um (possível) esquema de ação relacionado consigo própria, no qual agente, ação e eventual paciente são uma coisa só. Depois, ela expressa ou o resultado de uma ação feita por al guém (VO), ou uma ação que ela própria realiza ou vai realizar (SV). A estrutura posterior c mais madura. SVO, é resultado de coordenações de esquemas de ação. da representação de uma atividade mais complexa c da descentração do sujeito, etapas totalmente vencidas quando estes tipos de “acerto” ocorre m [as maiusculas significam: S = sujeito; V = verbo; O = objeto; N = nome (substantivo)].
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força também neste período, baseiam-se na interpretação de que Piaget avaliou mal e subestimou o papel do social e das outras pessoas no desenvolvimento da criança e que um modelo interativo social se fazia necessário para explicar o desenvolvimento nos pri meiros dois anos, mod elo esse que desse conta de como a criança e seu interlocutor exploram os fenômenos físicos e sociais. Aí é que surgiram nas elaborações teóricas ocidentais, as propostas de Vygotsky para melhor dar conta do alcance social da aquisição da linguagem. Psicólogo soviético, morreu prematuramente em 1934. mas o grosso de sua obra só começou a ser amplamente traduzido para o francês e para o inglês a partir dos anos 1960. Sua grande influência nos estudos de aquisição da linguagem começa efetivamente nos anos 1970, no bojo dos questionam entos ao inatismo chomskiano e como uma alternativa ao cognitivismo construtivista piagetiano. De orientação construtivista como Piaget, explica, porém, o desenvolvimento da linguagem (e do pensamento) como tendo srcens sociais, externas, nas tro cas comunicativas entre a criança e o adulto. Tais estruturas construídas social mente, “externamente”, sofreriam, com o tempo (mais ou menos por volta de 2 anos de idade), um movimento de interiorização e de representação mental do que antes era social e extemalizado. Vygotsky (1984) parte do princípio de que os estudiosos separam o estudo da srcem e desenvolvimento da fala do estudo da srcem do pensamento práti co na criança. Em outras palavras, o estudo do uso dos instrumentos tem sido isolado do uso dos signos. Vygotsky propõe, ao contrário, que fala e pensamen to prático devem ser estudados sob um mesmo prisma e atribui à atividade sim bólica, viabilizada pela fala, uma função organizadora do pensamento: com a ajuda da fala, a criança começa a controlar o ambiente e o próprio comporta mento. O poderoso instrumento da linguagem é trazido pelo que chama de intemalização da ação e do diálogo. Vygotsky entende o processo de intemalização como uma reconstrução interna de uma operação externa, mas, diferente mente de Piaget, para a intemalização de uma operação deve concorrer a ativi dade mediada pelo outro, já que o sucesso da intemalização vai depender da reação de outras pessoas. Assim é que, entre criança e ação com o mundo, existe a mediação através do outro. São as seguintes as transformações que ocorrem no processo de intemalização:16 a) uma operação que, inicialmente, representa uma atividade externa é reconstruída e começa a ocorrer intemamente, daí a importância da atividade simbólica através do uso de signos; 16. Ver Vygotsky, L. Thought and language. Cambridge, Harvard University Press,1984, p. 64.
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b) um processo interpessoal é transformado num processo intrapessoal: as funções no desenvolvimento da criança aparecem primeiro no nível social e, depois, no individual. Em outras palavras, primeiro entre pes soas (de maneira interpsicológica) e, depois, no interior da criança (intrapsicológica). Assim, segundo Vyg otsky, todas as funções superio res (memória lógica, formação de conceitos, entre outras) srcinam-se das relações reais entre as pessoas; c) a transformaçã o de um processo i nterpessoal num processo intr apessoal é resultado de uma longa série de eventos oco rridos ao longo do desen volvimento, isto é, a história das relações reais entre as pessoas são constitutivas dos processos de intemalização. Segundo o autor, a intemalização das atividades socialmente enraizadas e historicamente desenvolvidas é a principal característica da psicologia humana. Os trabalhos de inspiração vygotskiana entendem a aquisição da lingua gem como um processo pelo qual a criança se firma como sujeito da linguagem (e não como aprendiz passivo) e pelo qual constrói ao mesmo tempo seu conhe cimento do mundo, passando pelo outro. Esses trabalhos têm sido considerados parte do cham ado “interacion ismo social”, que não se esgota nos trabalhos vygotskianos, como veremos a seguir.
2.3. 0 interacionismo
social 17
Num a visão que se distancia em graus variados tanto do cognitivism o piagetiano quanto do inatismo chom skiano, está o interacionism o dito “social” . Segundo esta postura, passam a ser levados em conta fatores sociais, comunica tivos e culturais para a aquisição da linguagem. Assim, a interação social e a troca comunicativa entre a criança e seus interlocutores são vistas como prérequisito básico no desenvolvimento lingüístico. Segundo essa abordagem, ri tuais comunicativos pré-verbais preparam e precedem a construção da lingua-
17. O leitor deve ter, a esta altura, perceb ido a ambig üidade que o termo “interac ionismo ” tem dentro da área de aquisição da linguagem. Numa perspectiva piagetiana (o chamado “interacionismo piagetiano”) tem a ver com a interação entre ambiente e meio para explicar a gênese e o desenvolvimento das estrutu ras da inteligência e, indiretamente, da linguagem. Dentro de uma perspectiva funcional ou comunicativa, “interacionismo”, como veremos, faz apelo à interação dialógica, comunicativa, como pré-requisito da aquisição da lingua gem. Já o sociointeracionismo - como também veremos - tem-se referi do à constr ução conjunta e inseparável da linguagem e da dialogia. Facetas mais recentes do interacionismo (Lemos, 1992) o vêem como relação entre o sujeito e a língua.
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gem pela criança. As características da fala do adulto (ou das crianças mais velhas) são estudadas e consideradas fundamentais para o desenvolvimento da linguagem na criança. Alguns estudos demonstram como esquemas de ação e atenção partilhadas pela criança e pelo adulto interlocutor-básico precedem ca tegorias lingüísticas. A fala a que a criança está exposta (input) é vista como importante fator de aprendizagem da linguagem. A este respeito, uma das questões que se tem colo cado é se o bebê será atingido por toda e qualquer amostra lingüfstica ou mani festações iingüísticas ao seu redor ou se as amostras que irão ter influência na aquisição têm um caráter seletivo. Embora essa questão não tenha ainda tido uma resposta definitiva, as pesquisas têm apontado para a segunda alternativa: a criança é afetada pela fala dirigida a ela. A afirmação inicial de Chomsky sobre o input degradado, composto de frases truncadas e agramaticais, foi desafiada por pesquisas subseqüentes, abun dantes nos anos 1970 e 80, que examinaram dados naturalfsticos da fala adulta dirigida à criança (Snow, 1978, Bullowa, 1979). Tais estudos apontam, isso sim, para modificações que a fala adulta sofre quando dirigida à criança, em contraposição à dirigida ao adulto e a crianças mais velhas, além de caracterís ticas específicas de comunicação entre adultos e bebês que nada tinham de “agramatical” propriamente, como a hipótese de “pobreza do estímulo” sugere. Vejamos algumas das características mais reportadas na literatura sobre tais “modificações” que a fala dirigida à criança sofre, em comparação com a fala dirigida a crianças mais velhas e a adultos. Trata-sede modificações fonológicas, morfológicas, sintáticas, semânticas e pragmáticas: a) entonação “exagerada”, reduplicações de sílabas (“au-au”, “papai”, “dodói”), velocidade de fala reduzida, qualidades de voz diferencia das, tendendo para o “falsetto”; b) frases mais curtas e menos complexas; expansões sintáticas a partir de uma palavra dita pela criança ou “tradução” de gesto feito por ela; c) referência espacial e temporal voltada para o momento da enunciação; d) palavras de conteúdo lexical mais corriqueiro, mais familiares efreqüentes na rotina cotidiana da criança; e) paráfrases, repetições ou retomadas das emissões da criança. Desde o nascimento, o bebê é mergulhado num universo significativo por seus interlocutores básicos, que atribuem significado e intenção às suas emis sões vocais, gestos, direção do olhar. Até mesmo os diversos tipos de choro são “interpretados”, “significados” e “classificados” pelo adulto interlocutor. O bebê
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é, assim, visto como potencial parceiro comunicativo do adulto, que empreende uma “sintonia fina” com as manifestações potencialmente comunicativas e sig nificativas da criança, qualquer que seja seu conteúdo expressivo (gesto, voz, balbucios, palavras ou frases). Há um ajuste mútuo nas conversações entre adulto e criança, de maneira que as vocalizações infantis não caem num vácuo comu nicativo. Segundo Ochs & Schieffelin, os adultos “respondem às ações de be bês muito peq uenos como se fossem intencionalmente direcionadas a eles” e “esta prática de tratar o bebê como um autor corresponde a tratar o bebê como um destinatário, pois os dois papéis combinados instituem o bebê como um parceiro co nversa cional”18. Essas características foram encontradas numa variedade bastante grande de com unida des cu lturais e lingüísticas, de t al modo que a conclusão imediata é que são características universais. A suposta universalidade da fala modificada adulta dirigida à criança desencadeou reações opostas. Citarei duas delas. A primeira recrudesce o inatismo. Relaciona-se com a retomada, nos anos 90, de interpretações que nos anos 1970/80 tinham caráter cultural-comunicativo, mas, desta vez, com roupagem inatista. Assim é que propostas recentes têm visto a universalidade de modulações de voz da chamada entonação “afetiva” (negação, conforto, privação, atenção) como manifestações de comportamentos pré-adap tativ os da criança, numa visão declarad am en te neodarw inista. Seg un do esta visão, a criança vem pré-programada, devido a processos de seleção natural, a reagir às curvas entonacionais próprias de situações de conforto, des conforto, privação etc. Tais modulações propiciariam a saliência prosódica de constituintes gramaticais que seriam, assim, desencadeados (Femald, 1993). A segu nda reação d esafia a visão universalista do ti po de interação adultobebê e ex plora diferen ças cultu rais de interação e de transm issão cultural. Tra balho s de campo realizados com co munidad es outras que não a branca, classe média, ocidental, mostram diferentes características na interação adulto-bebê que as até então reportadas na literatura. Os trabalhos mais famosos nesta dire ção são com os m aias do grupo qu iché da Guatem ala (Pye, 1992), com os kal uli, povo de Pap ua-Nova Guiné (Schieffelin, 1990), e com os samoanos da Sam oa Ocidental, na Polinésia (Ochs, 1988). Nessas comunidades, a interação verbal entre crianças e adultos é mínima, isto porque a criança não tem o papel de destinatário até que consiga pronunciar palavras reconhecíveis pela língua. As
18. Ochs, E. & Schieffelin, B. O impa cto da socializaçã o da linguage m no desen volvim ento gram at cal. In: Fletcher, P. & Macwhinney, B. Porto Alegre, Artes Médicas, Compêndio da linguagem da criança. 1997, p. 75.
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vocalizações do bebê são ignoradas pelos adultos e não há intenção atribuída a elas. Segundo Ochs & Schieffelin (1997), os kaluli adultos ficaram surpresos com o fato de os pais americanos (presentes na comunidade) utilizarembaby talk (fala infantilizada) para as crianças pequenas e se espantaram com o fato de as crianças americanas conseguirem aprender adequadamente uma língua sen do expostas a amostras “deturpadas” de fala segundo a visão de sua cultura. Dentro ainda de uma postura oposta ao universalismo da fala dirigida à criança, a proposta neodarwinista, exposta anteriormente, também tem sido ques tionada Cavalcante (1999), replicando os experimentos de Femald em duas díades brasileiras, também contesta a universalidade de marcas vocais interacionais e chega à conclusão de que nem as situações de “afetividade” são sempre assim tão marcadas como a que Femald encontrou em seus sujeitos interagindo com os respectivos adultos, nem as modulações de altura, consideradas foneticamente recortadas e universais por Femald, dos sujeitos brasileiros analisados seguem o mesmo padrão de contorno entonacional mostrado pela autora ameri cana. Cavalcante chega igualmente à conclusão de que traços culturais e discursivos da interação adulto-criança contribuem para marcar lingüisticamente as interações entre mãe e bebê. A meio caminho entre propostas cognitivistas construtivistas (desenvolvi mento da inteligência — e da linguagem — pela interação entre organismo e ambiente) e interacionistas sociais, Bruner (1975) pode nos fornecer um exem plo sobre como a aquisição do sistema de transitividade pode decorrer da cons trução e intemalização de estruturas lingüísticas a partir da interação do bebê com o outro e com o mundo físico. A partir dos 6 meses de idade, a criança e o adulto engajam-se em jogos (empilhar blocos, esconder o rosto atrás de um obstáculo e depois mostrar a face etc.) que patenteiam instâncias de atenção partilhada e ação conjunta. Tais esquemas interacionais formam o espaço da partilha com o outro, no qual a criança vai desenvolver determinadas funções, quer lingüísticas, quer comuni cativas, primeiro em nível gestual e depois em nível verbal. Assim, pode-se traçar uma trajetória entre a ação conjunta adulto-bebê e o estabelecimento de papéis no discurso e no diálogo (pessoas gramaticais) mais ou menos da seguin te maneira: nos jogos referidos, o adulto instaura a brincadeira enquanto a cri ança observa (esconder o rosto, por exemplo). Assim, o adulto toma o papel do “agente” ou tomador do turno (“eu”), ao passo que a criança funciona como “paciente” e interlocutor (“tu”). Numa etapa posterior, a criança vai reverter os papéis: tomar a iniciativa de começar o jogo ou a etapa do jogo, isto é, tomar o papel do “falante”, enquanto o adulto será o espectador, o “interlocutor”. Esses
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esquemas gestuais, de início, serão lingüísticos quando a criança tiver meios expressivos para exprimir as funções. Essas funções primárias têm, além disso, um papel na determinação das funções gramaticais de agente/ação/paciente, responsá veis, s egundo m odelos funcio nalistas de gram átic a,19pelos sistemas de transitividade nas línguas. Nos jogos descritos, a criança aprende uma espécie de embrião, na ação e interação, em fases pré-verbais, do que mais tarde emergirá como marcação lingüística. E primeiro “paciente” ou “objeto da ação” pra ticada pelo adulto, que é, neste momento, “agente” da ação instaurada por ele próprio. Num a etapa posterior, a estrutura se reverte, com a partilha de papéis: a criança aprende a ser “agente” da ação conjunta, isto é, da qual participam ela e o adulto interlocutor básico. A atenção partilhada, por sua vez, desenvolverá conceitos como tópico/ comentário, uma das maneiras de expressar sujeito/predicado. O adulto, numa fase pré-verbal, focaliza um ponto de atenção qualquer, espera que a criança acompanhe seu foco de atenção e comenta sobre ele. Isto é, a criança participa de esquemas em que se fo caliza ou topicaliza para depois se comentar ou predicar. Já noções de ação completa ou realizada vs. ação não-completada, que serão responsáveis pelas marcações de tempo e de aspecto nas línguas, seriam igualmente instauradas em esquemas interativos. Os pontos salientes de um evento são sempre marcados lingüisticamente (pelo adulto) ou vocal ou gestualmente (tanto pelo adulto como pela criança). O que é gesto ou balbucio da criança numa situação de troca comunicativa será ve rbal em etapas posterio res, por meio, neste caso, de flexão verbal de tempo e uso de partículas tempo rais ou aspectuais20. Um exemplo corriqueiro é “cai/caiu”, que, tanto na fala do adulto, quanto na da criança observando ações ou eventos ou realizando ações, indica ação incompleta (ou em progresso)/ ação completada ou presente vs. futuro. As expressões “cai”/“caiu”, quando instauradas, são “coladas” à ação tanto realizada pela criança quanto pelo interlocutor e posteriormente se inte gram ao sistema temporal e aspectual do verbo na língua-alvo. Uma das vertentes do interacionismo social é a que se convencionou cha mar de “sociointeracionismo ”. Propostas sociointeracionistas2 1 afirmam que a linguagem é atividade constitutiva do conhecimento do mundo pela criança. A lin guagem é o espaço em que a criança se constrói como sujeito; o conhecimento do mundo e do outro é, na linguagem, segmentado e incorporado. Linguagem e 19. Ver o capítulo “Sintaxe”, no volume I desta obra. 20. Uma crítica pertinente a esta visão, como a outros tipos de interacionismo, pode ser encontrada em Lemos (1992), que frisa a falta de explicação sobre a srcem do que é lingüístico propriamente. 21. Ver, por exemplo. Lemos (1982) e Scarpa (1987).
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conhecimento do mundo estão intimamente relacionados e os dois passam pela mediação do outro, do interlocutor. Os objetos do mundo físico, os papéis no diálogo e as próprias categorias linguísticas não existem a priori (isto é, não estão a priori segmentados, conhecidos ou interpretados), mas se instauram através da interação dialógica entre a criança e seu interlocutor básico. Esta interação vai proporcionar, ao mesmo tempo, a criação da criança e do próprio interlocutor como sujeitos do diálogo, a segmentação da ação e dos objetos do mundo físico sobre os quais a criança vai operar, e a própria construção da linguagem, que por si é um objeto sobre o qual a criança também vai operar. Essa proposta não se centraliza sobre o produto lingüístico (o que a criança, de um lado, e a mãe, de outro e separadamente, dizem), mas no processo comum aos dois interlocutores. Segundo Lemos (1982), o objeto de estudo que se toma é a linguagem enquanto atividade do sujeito. Neste caso, enfrenta-se a indeterminação, a mudança e a heterogeneidade deste objeto. Os processos dialógicos são revalorizados. Há três processos básicos no diálogo: especularidade (identi ficação entre os sinais dos dois interlocutores), complementaridade (incorpora ção de parte ou de todo o enunciado, ou gesto, do interlocutor e complementação criativa) e reversibilidade de papéis (assumir o papel do outro e instituir o outro como interlocutor).
2. 3. 1. Facetas atuais do sociointeracionismo
Dando continuidade às suas indagações sobre como, através da interação com o adulto, a criança chegaria à língua, Lemos (1992, 1995, 1998, 1999)22 deu uma direção alternativa ao sociointeracionismo presente nos seus escritos até os anos 1980, preferindo, atualmente, chamar sua postura simplesmente de “interacionista”. Inspirada em leituras de Saussure e do psicanalista Lacan, es tuda as relações do sujeito com a língua e questiona as noções de desenvolvi mento e conhecimento lingüístico que têm sido a base das teorias psicolingüísticas, psicológicas e linguísticas. Posiciona-se contra a noção de conhecimento própria do “sujeito psicológico”, que está presente nas noções de desenvolvi mento, e de sujeito onisciente, e contra a noção de representação mental, que é a fonte e o alvo da aquisição do conhecimento lingüístico. Assim, recusa-se a ver a aquisição da linguagem como a aquisição ou construção de conhecimento
22. A exigüidade de espaço me impede de dar uma idéia mais completa e fiel das colocações atuais Cláudia Lemos. Remeto o leitor às referências indicadas para evitar um reducionismo perigoso da proposta pioneira da autora.
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da língua, concepção consagra da pela expressão “desenvolvimento lingüístico”. A autora não mai s assume que, num determ inado momento, o conhecimento da língua permite à criança passar de interpretado a intérprete, da incorporação da fala do outro à assunção da própria fala, tornando-se, assim, um falante em pleno controle de sua atividade lingüística. A presença de fragmentos da fala do outro na fala da criança, além de autocorreções e hesitações, não autoriza, se gundo a autora, que se fale em “conhecimento pleno da língua” nem de um estágio estável final. Passa, então, de uma visão diacrônica para uma visão es trutural. E m vez de “co nstrução ” e “desenvolvimento ”, entende que a criança é colocada numa estrutura em que comparece o outro, como instância representa tiva da língua, a própria língua em seu funcionamento e a criança como sujeito falante. Essa estrutura é a mesma em que se move o adulto, daí que não há propriamente “desenvolvimento”, nem “construção”. O que identifica as mu danças no processo de aquisição são as diferentes posições da criança nesta estrutura, ou melhor, as diferentes relações do sujeito com a língua, em que o pólo dominante da estrutura pode ser o outro, a língua ou o próprio sujeito. O leitor é agora convidado a exam inar uma ilustração da polêmica inato v í . adquirido ou natureza v í . ambiente : a questão popular e recorrente do período crítico de aquisição da língua materna e de segunda língua (L2). Vamos a ela.
3. A QUESTÃO DO "PERÍODO CRÍTICO"
Todos sabemos como é difícil (tentar) dominar uma segunda língua em idade adulta, ainda mais em situação formal, escolar. Por mais brilhante e esfor çado que seja o aprendiz, mesmo que a proficiência final seja bastante satisfatória, tanto em termos gramaticais quanto lexicais, e suficiente para atingir plenos objetivos de comunicação numa s egunda língu a, sempre ficam, na fala do apren diz, certas construções gramaticais m al-ajambradas, erros fossilizados, ou , mais certamente, um sotaque “estranho” aos ouvidos dos falantes nativos. Segundo Pinker (1994), o sucesso total em aprender uma segunda língua em idade adul ta, ainda mais em situação de sala de aula, existe, mas é raro e depende de “puro talento”. Lenneberg (1967) buscou bases biológicas para argumentar em favor do “período crítico” para a aquisição da linguagem. Eis suas palavras: Entre dois e três anos de idade, a linguagem emerge através da interação entre maturação e aprendizado pré-programado. Entre os três anos de idade e a adoles cência, a possibilidade de aquisição primária da linguagem continua a ser boa; o
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indivíduo parece ser mais sensível a estímulos durante este período e preservar uma certa flexibilidade inata para a organização de funções cerebrais para levar a cabo a complexa integração de subprocessos necessários à adequada elaboração da fala e da linguagem. Depois da puberdade, a capacidade de auto-organização e ajuste às demandas psicológicas do comportamento verbal declinam rapidamen te. O cérebro comporta-se como se tivesse se fixado daquela maneira e as habili dades primárias e básicas não adquiridas até então geralmente permanecem defi cientes até o fim da vida23. Pinker (1994) afirma que a aquisição de uma linguagem normal é garanti da até a idade de 6 anos , é compr omet ida entre 6 até pouco depois da puberdade, e é rara daí para a frente. Este autor chega a especular que o período crítico se explica por mudanças maturacion ais no cérebro, tais como o declínio da taxa d e metabolismo e do número de neurônios durante a idade escolar e da diminuição do metabolismo e do número de sinapses cerebrais na adolescência. No entanto, nem mesmo essas justificativas biológicas têm sido explica ções finais e convincentes para o fenômeno do “período crítico” de aquisição. Aitchinson (1989) aponta para a insuficiência explicativa dos argumentos arro lados em favor desta hipótese. Pelo menos quatro deles têm sido citados: a) casos de estudos de indivíduos que foram isolados de qualquer con ví vio social ou troca lingüística e adquiriram a linguagem tardiamente; b) o desenvolvimento da fala de crianças com síndrome de Down; c) a suposta sincronia do período crítico com a lateralização hemisférica; d) dificuldades de aquisição de segund a língua depois da adolescência. Vejamos mais detalhadamente cada um deles. Em relação às crianças isoladas lingüística e socialmente, os casos mais conhecidos, reportados neste século, são de Isabelle, Genie e Chelsea. Isabelle era a filha ilegítima de uma mulh er surda e cérebro -lesada com a qual passava a maior parte do tempo, ambas enclausuradas num quarto escuro, na casa de seu avô, no interior do Estado de Ohio. Quando mãe e filha escaparam da prisão domiciliar nos anos 1930, Isabelle tinha 6 anos e meio e não falava; apenas emitia sons guturais. Mas, uma vez resgatada para o convívio social, seu pro gresso na aquisição da linguagem foi fantástico: em dois anos e meio, sua lin guagem mal se distinguia da de crianças da mesma idade que tiveram condições normais de desenvolvimento. Ela dizia, por exemplo: “What did Miss Mason
23. Lennebcrg, E. Biological foun da tio ns o f language. New York, Wiley, 1967, p. 158.
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say when you told her I cleaned my classro om?” (O que a senhorita Mason disse quando você lhe contou que eu limpei minha sala de aula?) Genie, entretanto, não teve a mesma sorte. Descoberta em 1970, com quase 14 anos, tinha vivido toda sua vida em condições sub-humanas. Confinada a um cubículo desde a idade de 20 meses e agredida fisicamente pelo pai quando emitisse qualquer som, não falava nada. Apesar de, depois de resgatada, ter aprendido a falar de modo rudimentar, progredia mais lentamente do que uma criança normal. Êis um exemplo do que ela conseguia dizer, depois de anos de aprendizado: “Mike paint” (Mike pintar); “Applesauce buy store” (Molho de maçã comprar loja); “Neal come happy. Neal not come sad” (Neal vir contente. Neal não vir triste). Genie demonstrava, porém, grande habilidade em memorizar vocabulário. No entanto, memorizar listas de itens lexicais não é evidência de saber falar uma língua. O caso mais recen te foi o d e Chelsea, deficiente auditiva, que fora incor retamente diagnosticada como mentalmente retardada e por isso criada numa cidade rem ota do norte da Califórnia. Aos 31 anos de idade, el a foi encam inha da para um neurologista, cuja primeira providência foi instalar um aparelho de audição, que fez melhorar muito sua capacidade auditiva. Foi só então que Chelsea começou a aprender sua língua materna, sob tratamento intensivo com uma equipe especializada. Ela tem um vocabulário razoável, lê, escreve, comu nica-se e t rabalha. Sua linguagem, porém, ficou “agra matical” . Eis algu ns exem plos: “The small a the haf ’ (O pequeno um o chapéu); “Banana the eaf ’ (Banana a come). Aitchinson (1989) ressalta que tais casos, além de isolados, devem ser tomados cautela quanto a representarem evidência cabal em prollembra da exis tência de com um período crítico de aquisição da linguagem. É possível, o autor, que a extrema privação física, comunicativa e emocional de Genie tenha propiciado um certo retardo mental: seu hemisfério esquerdo é levemente atrofiado. Genie e Chelsea têm, portanto, problemas não-lingüísticos que po dem explicar, pelo menos parcialmente, sua linguagem rudimentar. Em relação ao segundo argumento, é corrente na literatura a afirmação de que as crianças portadoras de síndrome de Down e de Williams seguem as mes mas trilhas na aquisição e desenvolvimento da linguagem que crianças nãoportadoras desta deficiência, mas muito mais lentamente24. 0 consenso, até pouco tempo atrás, era de que estas pessoas nunca conseguem alcançar a criança nor mal porque sua capacidade aquisicional diminui bastante depois da puberdade. Mais recentemente, esta explicação tem sido constestada pelo fato de que há grandes diferenças individuais no desenvolvimento lingüístico de portadores da síndrome de Down (Camargo & Scarpa, 1996), de tal maneira que há desde 24. Ver Camargo & Scarpa, 1996, para detalhes e discussão.
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crianças que param num estágio estável de aquisição bem antes da puberdade até jovens que continuam seu processo de aprendizagem tanto de diferentes modalidades discursivas, como o desenvolvimento de processos bem criativos e autônomos de escrita. Já em relação ao terceiro ponto, até pouco tempo atrás, achava-se que o processo de lateralização cerebral ocorria aproximadamente dos 2 aos 14 anos de idade — período este estipulado como coincidente com o “período crítico” de aquisição da linguagem. Pesquisas neurolingüísticas mais recentes, porém, mostram, de um lado, que a lateralizaçã o começa na criança já a partir de alguns meses de vida. Assim, como não há evidências, em relação a este fenômeno, de um súbito começo do período crítico por volta dos dois anos, também não há evidências cabais de um súbito cessamento deste mesmo fenômeno depois da adolescência. Por outro lado, há cada vez mais evidências que contestam a es pecialização hemisférica compartimentada da linguagem25. Por último, um argumento contencioso tem sido a contraposição entre o bilingüismo infantil, o bilingüismo sucessivo na infância ou adolescência e a aquisição de segunda língua na idade adulta. De acordo com interpretações inatistas, o que pode explicar a dificuldade do último em contraposição à facili dade e naturalidade dos dois primeiros seria o acesso — ou a falta dele — à Gramática Universal por parte do aprendiz. Essa discussão tem servido de labo ratório para teorias de aquisição. Apes ar de haver discordâncias m esmo entre os adeptos da teoria gerativa, pma interpretação mais ou menos comum é que, nos dois primeiros casos, a GU está disponível e dela desenvolvem-se duas ou mais línguas. Já a disponibilidad e à Gramátic a Universal não é tão óbvia em casos de aquisição de segunda língua por adultos. Segundo Meisel (1993), a aquisição de segunda língua depois da adolescência não é mais função de Gramática Univer sal, mas é um processo cognitivo, de aprendizag em de habilidades. Daí se expli cam as fossilizações e julgamentos limitados de gramaticalidade. No entanto, explicações não-gerativistas desafiam esta explicação. A difi culdade de aquisição de segunda língua depois da adolescência tem sido revista e relativizada. Argumentos interacionistas são levantados com relação às dife renças entre a aquisição da língua materna ou estrangeira na infância e depois da adolescência. Contemplam diferentes fatores interativos e socioculturais de aquisição nas duas situações, o que explicaria a extrema diferença individual tanto no processo de aquisição de L2 em idade adulta, quanto no alvo a ser atingido: o grau de domínio do alvo pretendido é muito variado. Fatores
25. Ver o capítulo “Neurolingüística”, neste volume.
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interativos também contemplam as modificações e ajustes da fala simplificada, dirigida ao falante não-n ativo da língua. Este tipo de fala (foreigner talk ) é igual mente muito variado e de modo algum semelhante aos ajustes da fala dirigida à criança. Mais recentemente, as diferentes relações do sujeito com a língua na aquisição da língua materna e na aquisição de segunda língua ou língua estran geira também têm sido invocadas como explicação para os casos em questão. 4.
ESTÁGIOS DE DESENVOLVIMENTO DA LINGU AGE M
Antes de qualquer coisa, é preciso que se diga que o conceito de estágio é dinâmico e não estático, como aponta Perroni (1994). A autora afirma que a sucessão de estágios não se dá linearmente, e, para descrevê-la, a “metáfora da espiral (é) mais apropriada (...) que a dos degraus de uma longa escada”26. É um conceito intrinsecamente ligado ao de desenvolvimento; assim, os estágios “não são pedaços justapostos uns após os outros, mas cada um se enraiza no outro, precedente, e se prolonga no seguinte”27. Dito isso, o que segue é uma breve exposição sobre os estágios de desen volvimento lingüístico por que passa a criança pré-escolar. Segundo Bates & Goodman (1997), a trajetória do desenvolvimento da linguagem parece ser, com algumas especificidades, universal e contínua. As crianças começam com balbucio, primeiro com vogais (cerca de 3 a 4 meses, em média), depois com combinações de vogais e consoantes de complexidade crescente (geralmente entre 6 e 12 meses). As primeiras palavras emergem en tre 10 e 12 meses, em m édia, emb ora a compreensão de palavras possa começar algumas semanas antes. Depois disso, as crianças passam várias semanas ou meses produzindo enunciados de uma palavra. No começo, a taxa de crescimen to de seu vocabulário é reduzida, mas há um súbito acréscimo nela mais ou menos entre 16 e 20 meses. As primeiras combinações de palavras geralmente aparecem entre 18 e 20 meses e, no começo, te ndem a ser telegráficas. Lá pelos 24 a 30 meses, há ou tra espécie de ex plosão v ocab ular e aos 3 ou 3 anos e meio, ademaioria das crianças normais dominou as estruturas sintáticas e morfológicas suas línguas maternas. O quadro anterior seria perfeito se não fosse tão polêmico e tão cheio de contra-exemplos, como as próprias autoras alertam. Para efeito deste texto, po-
26. Perroni, M.C. Desen volvim ento do dis curso narrativo. São Paulo, Martins Fontes, 1992, p. 10. 27. Ibidem, p. 10.
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rém, vou limitar-me a apontar alguns aspectos do desenvolvimento da lingua gem na criança, sobretudo baseada num prisma sociointeracionista, que pode acrescentar pelo menos certas nuances no quadro delineado. Desde que nasce, a criança já é inserida num mundo simbólico, em que a fala do outro a interpreta e lhe imprime significado. Por outro lado, segundo alguns trabalhos, com alguns dias de vida, a criança tem uma reação positiva aos sons da fala, que lhe são confortadores e gratificantes. A partir de algumas semanas de vida, a criança já consegue discriminar a fala de outros sons, rítmi cos ou não. Com 3,4 meses de idade, os bebês começa m a balbu ciar seqüências de sons que se aproximam da fala humana. A freqüê ncia do balbucio aum enta e este começa a ser cada vez mais padronizado até cerca de 10 meses. O ritmo, a entonação, a intensidade, a duração da fala, que no início são assistemáticos, começam a ser recorrentes e estruturados. As sílabas começam a se estruturar (discriminação entre C e V) e se repetem (reduplicação). Aparentemente, os sons que a criança balbucia no começo são universais: os sons do balbucio inicial não são específicos de sua língua materna. As crian ças surdas conseguem balbuciar nesta fase, embora, depois disso, não acompa nhem o desenvolvimento normal da criança ouvinte. Conforme o balbucio se padroniza, antes do aparecimento das primeiras palavras, a seqüência e o acer vo de sons passam a se assemelhar mais às características fonéticas da língua materna. Os elementos prosódicos, como ritmo e entonação, são bastante sali entes tanto na fala da criança quanto na percepção que a criança tem da fala do adulto. São recursos expressivos muito importantes, na falta de recursos léxicogramaticais do adulto. Vários trabalhos mostram o ajuste mútuo entre adulto e criança nesta fase e o papel fundamental que esses elementos prosódicos aí representam. Alguns trabalhos apontam para os processos dialógicos que se instauram já nesta fase. A contribuição da criança é gestual e vocal; a do adulto, gestual e lingüística, através da ação e atenção partilhadas. Os estudiosos adeptos desta visão afirmam que o adulto in terpreta primeiro os gestos da criança, depois suas manifestações vocais, inclusive imp rimindo-lhes intenção. D essa maneira, a fala da criança se enquadra numa interpretação dada pela fala do adulto através de seus gestos e sons vocais e o próprio adulto se vê “interpretado” pela criança. Um rápido lançar de olhos aos dados de uma interação verbal entre adulto e criança nesta fase mostra os processos de especular idade e complementarid ade que perpassa m as emissões de ambos os interlocutores. Exemplo: 1 (1) A criança estende a mão para um brinquedo e vocaliza algo; a mãe imediata mente interpreta o gesto e a voz da criança e responde com algo como: O au-au!
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(nomeando)... É o au-au que você quer? (enquadrando o turno da criança em algum significado ou numa cadeia de signos lingüísticos). Isto é, a mãe para fraseia a suposta inten ção da criança, po r um processo de especularidade e complementa a paráfrase, expandindo seu enunciado. No fim do período do balbucio, começam a aparecer na fala da criança as primeiras palavras reconhecíveis como tais pelo adulto. Para algumas crianças, o balbucio cessa quando as primeiras palavras aparecem, mas outras crianças continuam a produzir seqüências balbuciadas junto com as palavras. A produção das primeiras palavras e frases (incorporadas como um bloco do discurso do interlocu tor básico) mostra indeterminação semiótica (o mesmo significado pode ser veiculado por um número bastante grande e variado de sinais), fonética (a variação fonética do sinal é grande) e categorial (o mesmo significado pode ser expresso por uma boa variedade do que, na língua adulta, pertencería a categorias diversas). O que também se observa, na transição de enunciados de uma ou mais palavras, é a não-segmentabilidade de seqüências de sons em palavras. Muitas vezes, frases inteiras são incorporadas da lingua gem adulta, sem que haja nelas evidência de que a criança analisa o sinal em unidades discretas. O que acontece é que a criança incorpora, junto com a seqüência fônica, o contexto específico que deu srcem àquele enunciado, como se vê no exemplo a seguir, selecionado da fala de uma criança de 1;728: (2) “Tatente” (“tá quente”) para denotar café. Assim, as formas maduras aparecem, num primeiro momento, em contex to de especularidade imediata de algum item da fala adulta. Num momento pos terior, ou a forma desaparece para reaparecer adaptada ao sistema fonológico da criança muito tempo depois, ou sua forma “menos madura” , variável, perco r rerá vários meses de mudança até se tomar estável. A forma “desviante” indica reorganizações que a criança empreende na sua trajetória lingüística. Com as primeiras palavras aparece também a flexão ou a aparente flexão. Digo aparente porque em muitos casos não há ainda evidência de qu e realmente as flexões representam morfemas categoriais ou de classes gramaticais como na linguagem adulta. Exemplo: 28. Na área de aquisiçã o da linguagem , a conven ção para expres sar a idade dos sujeitos é: po vírgula (;) sep ara o número do ano do número de meses, e ponto (.) separa o número de meses do número de
dias. Assim, hipoteticamente em relação a 1; 7.10, deve-se ler “um ano, sete meses e dez dias”.
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(3) O possível sufixo -eu,na fala de umacriança, por volta de 1;7 a 1;8 “sendeu ”, correspondente ao adulto “acendeu”, não indica passado, nem pessoa. Pode deno tar: (i) anunciar aos presentes que acabou de acender ou apagar a luz ou tocar a campainha de um telefone de brinquedo ou que está prestes a realizar uma dessas ações; portanto, neste caso, denota tanto uma ação completada quanto a intenção de realizar uma ação; (ii) pedir ao adulto que faça uma dessas ações; (iii) nomear o feixe de luz que entra pela janela. O que esse exemplo mostra é que não se pode considerar a desinência -eu como um morfema de tempo e pessoa. Mostra também que o que acontece com o significado nesta fase de aquisição é um fenômeno que na literatura é chama do de superextensão ou super generalização, segundo o qual a faixa semântica de uma palavra é alargada a limites muito mais amplos que na linguagem do adulto (é conhecido o exemplo, em português, da palavra “au-au”, cujo sentido abarca pelo menos todos os animais de quatro patas, o bichinho de pelúcia e a figura de animais). Uma possível explicação para a superextensão semântica é aquela não restrita às propriedades componenciais do significado da palavra29. A criança incorpora, via especularidade, todo ou parte do enunciado do interlo cutor, emitido naquela situação específica. Dá-se, então, um processo chamado de recontextualização, isto é, a extensão do item em questão para outras interações dialógicas, com a recorrência ou a associação a outros discursos. Em muitos casos, não há clara evidência, no começo, de seg mentação ou análise gramatical propriamente dita. A análise (ou reanálise) se dá num estágio posterior, com a reorganização do sistema da criança, dentro de outros diálogos. Coincidentemente, as primeiras sentenças espontâneas da criança são jus taposições de enunciados mono vocabulares (de “uma palav ra”) que ela produz à maneira de fala telegráfica. Por exemplo, veja a seqüência de enunciados da fala de uma criança de 1;10: (4) Babadoi (gravador) Chão Põe badadoi chão (põe o gravador no chão). Os erros ou desvios da norma muitas vezes indicam, segundo alguns estu diosos, que um processo de análise e segmentação está se instaurando, pois revelam as hipóteses que a criança faz sobre o objeto lingüístico. Por exemplo, numa fase posterior à produção aparentemente “correta” do sufixo verbal de 29. Ver o capítulo “Semântica”, neste volume.
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INTRODU ÇÃO À LI NGUÍ STI CA
passado, a m esma criança, com 1; 11, produz alguns itens que indicam a adição do sufixo a raízes não-verbais. (5)
Vai lá (observando o pica-pau de brinquedo descendo a haste, bicando-a). Vailô (observando a chegada do pica-pau na base da haste). Guarda (da cama) (observando a mãe baixando a guarda da cama). Guardo (emitido após a completude da ação por parte da mãe).
A colocação do morfema fofa de seu lugar usual indica que um processo de análise está se efetuando e que a criança reorganiza seu sistema para passar para outros níveis de análise e aquisição. A partir de 2 a 3 anos, a criança já começa a contar histórias. A produção do texto narrativo como tal exige descentração do contexto srcinal da história, capacidade de compreender e expressar sucessão e concatenação de eventos (que implica, entre outras coisas, dominar lingüística e cognitivamente a categoria tempo), relação causai entre eventos e uma provável gramática do texto. No começo, a criança ainda não domina estas categorias — sua aquisição, de fato, é tardia. O que se dá é a construção conjunta de textos, num jog o instaurado pel o adulto e logo incorpo rado pela criança, que preenche os arcabouços ou “esquemas narrativos” subjacentes às histórias ou relatos narrados. A trajetória para a aquisição do discurso narrativo é longa: aparentemente, não é antes dos 5 anos que a criança se tom a u ma narrad ora profic iente30. O quadro de desenvolvim ento lingüístico aqui traçado obedece a uma de terminada visão do problema, chamado, genericamente, de interacionista. Ob viamente, o quadro seria outro se a interpretação seguisse outro programa cien tífico ou outro enf oque te óri co31.
5.
ALG UMAS CONCLUSÕES
O que você leu nas páginas anteriores é apenas a eleição de alguns temas e o esboço de algumas posturas teóricas colocadas no campo da investigação so bre a aquisição da linguagem. Tal seleção não esgota absolutamente a eleição de temas, metodologias e correntes de pensamentos que acompanham o recorte dos fenômenos que envolvem a área.
30. Ver Perroni, 1992, para maiores detalhes. 31. Remeto o leitor para Galves (1995). Kato (199 “'), e Perroni (1999), para uma visão alternativa, baseada na aquisição param étrica, gerativista, do desenvolvim ento lingüístico.
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E preciso, porém, deixar claro que as polêmicas que envolvem as grandes questões da área estão ainda em aberto. Se, por um lado, é pouco afirmar que a aquisição da linguagem se restringe à intemalização de regras fonológicas, morfológicas, sintáticas, semânticas e pragmáticas da língua materna do apren diz, por outro lado é ainda pouco clara a natureza da passagem entre estruturas interativas pré-lingüísticas e a gramática adquirida, a natureza do conhecimento lingüístico vinculado ou não ao conhecimento do mundo, a dificuldade metodológica causada pela falta de transparência da fala da criança (e da pró pria fala do interlocutor), entre tantos outros mistérios. Ainda mais, apesar de recentes avanços no estudo do cérebro, pouco se sabe hoje sobre a relação entre conexões neurais e o uso/conhecimento da linguagem ou sobre a relação entre men te e cérebro e seu papel nessa aquisição. Em outras palavras, o desafio ainda continua a ser a relação entre o inato e o adquirido, entre o biológico e o sóciohistórico, entre o lingüístico e o extralingüístico, entre o sujeito aprendiz e o objeto a ser aprendido. Felizmente, o campo continua aberto a uma gama bem variada de investigações. Uma coisa é certa, porém: quando vai para a escola, a criança já percorreu um longo caminho elaborando sua linguagem, inserindo-se na língua de sua comunidade. Lingüisticamente, a criança não é tabula rasa. Ela é perfeitamente proficiente em sua língua materna e continua a aprender outras formas perten centes a outras modalidades da fala/linguagem, dentro e fora da escola. Isto é, a operar com objetos lingüísticos. Assim, a escola vai lhe proporcionar o acesso a outras “gramáticas”32 pertencentes a modalidades escritas.
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32. Entre as formas gramaticais hoje próprias da escrita para falantes do português brasileiro, cuj acesso, portanto, é propiciado pelo contato com textos escritos, contam-se o uso dos pronomes clíticos, objeto direto pronominal preenchido, e formas de coesão textual, entre outras.
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LÍNGUA E ENSINO: políticas de fechamento Marina Célia Mendonça
Um relato imaginário: — Você dá aulas de quê? — Lingüística. — Ah! (silêncio). Ou: — Você dá aulas de quê? — Gramática. — Ah, matéria importante, né? (ou: Que chato!) Ou ainda: — Você dá aulas de quê? — Língua. — Língua portuguesa ou línguas? — Língua portuguesa. — Ah, gramática! As cenas acima indicam, por um lado, o lugar que a Lingüística encontra na sociedade leiga: aquele destinado às ciências acadêmicas que são ilustres
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INTRODUÇÃO À LINGÜÍSTICA
desconhecidas. Por outro lado, as duas últimas cenas indiciam que, na institui ção que está autorizada a “distribuir conhecimento”, a “gramática” ainda é a protagonista: personagem idosa que permanece em nossa lembrança como uma porção daquilo que se desejaria esquecer. Já estudantes de Letras costumam ver a Lingüística como disciplina im portante para sua formação, muito que distante de sua futura atuação: a sala de aula. Tomando-se professores,mas percebem a Lingüística precisa ser retoma da, por exemplo, para se prestar um concurso. Enquanto isso, aquilo que comumente é entendido como “gramática” continua ocupando, senão o papel principal, pelo menos um desses papéis, nas aulas de língua portuguesa. A propósito, o que é língua1 O que é gramatical Língua é sinônimo de gramatical A resposta a essas perguntas é uma das contribuições da Lingüística ao ensi no. Isso já foi colocado po r lingüistas , e vem sendo reafirmad o consta n temente, de forma que as respostas a essas perguntas já têm uma história. Va mos a um recorte dela.
1. CONCEITOS DE GRAMÁTICA
Franchi (1991) comenta três conceitos de gramática muito difundidos en tre lingüistas: normativa, descritiva e internalizada. Tem-se, na citação a seguir, o conceito de gramática normativa. Um de seus objetivos é ditar regras sobre “o bom uso da língua”. Gramática é o conjunto sistemático de normas para bem falar e escrever, estabelecidas pelos especialistas, com base no uso da língua consagrado pelos bons escritores. Dizer que alguém sabe gramáticasignifica dizer que esse alguém conhece essas normas e as domina tanto nocionalmentequanto operacionalmente1. A gramática normativa é a mais conhecida pelos leigos, porque é ela que adentra pela escola, veiculada por livros didáticos e pelas conhecidas “gramáti cas tradicionais”12; ensinar gramática costuma ser entendido como ensinar re1. Franchi, C. Mas o que é mesmo “gramática”? In: Língua portuguesa: o currículo e a compreensão da realidade. São Paulo, SE/CENP.1991, p. 48. (Projeto Ipê) 2. Na verdade, nossas gramáticas tradicionais são ao mesmo tempo normativas e descritivas, porque, enquanto assumem uma postura prescritiva, também descrevem de forma mais ou menos satisfatória aqui lo que se imagina ser a norma culta escrita formal. Quanto a essa descrição, ver Perini (1985, 1997). O autor aponta incoerências conceituais em nossas gramáticas tradicionais, especialmente nas definições de sujeito oracional.
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e ensino
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gras para usar bem a língua. Atente-se para o fato de que as chamadas “gramá ticas tradicionais” tomam por língua uma de suas variedades, desprezando as outras. Nesse caso, es tudar gramáti ca é estudar as regras que regulam a “norma culta”, é saber o que pode ser dito e o que não pode — que costuma ser visto quase como sinônimo do que pode ser escrito e do que não pode. Ensinar gra mática, nessa concepção, é ensinar língua, que, por sinal, é ensinar norma culta, o que significa ensinar a desprezar outras variedades — não só por ignorá-las, mas por considerá-las inferiores. A gramática aí tem um caráter prescritivo e discriminatório: para a gramática normativa, é errado todo uso da linguagem que esteja fora dos padrões lingüísticos estabelecidos como ideais. Além de tentar “unificar” a líng ua, as nossas gramáticas normativas homo geneizam a norma culta, higienizando-a, produzindo e difundindo uma imagem do que seria a norma culta escrita fo rm al, tendo por base o modelo dos conside rados bons escritores do passado. Pois bem, convém recuperar um pouco daqui lo que os lingüistas escreveram sobre normas linguísticas. Segundo Castilho (1988), a norma culta, que é transmitida pela escola (norma pedagógica) e vem descrita em dicionários e gramáticas normativas (nor ma gramatical ou prescritiva), pode ser objetiva ou subjetiva. Objetiva quando corresponde ao uso efetivo do dialeto social de prestígio (e ela vai variar de região para região, de situação para situação, da oralidade para a escrita etc.)3. Subjetiva quando representa a atitude do falante desse dialeto em face dessa norma, suas expectativas quanto ao seu uso — e, é claro, essas expectativas também variam. Portanto, não se pode falar em norma, no singular, mas em normas e em imagens da norma. Castilho chama a atenção para o fato de que a norma culta subjetiva traz consigo preconceitos. Eles podem ser percebidos em discursos de professores de ensino fundamental:
“A norma culta representa o português correto; tudo o que foge à norma represen
ta um erro”. “O bom português é aquele praticado em determinada região. Se compararmos Portugal ao Brasil, o português europeu é mais correto — basta ver como se colo cam bem os pronomes por lá, e ainda se faz a concordância e se conjugam os verbos com perfeição. Agora, se ficarmos no Brasil, o melhor português é o do Rio de Janeiro. Ou o de São Luís do Maranhão”.
3.
A respeito dos fatores externos à língua que são responsáveis pela variação lingüística, ver o
tulo "Sociolingüística”, no volume I desta obra.
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INTROD UÇÃO À LI NGÜÍ STI CA
“O bom português é aquele exemplificado nas chamadas épocas de ouro da litera tura. Os séculos clássicos, portanto. Depois dos clássicos veio a decadência da língua portuguesa”4.
Pode-se perceber que aquilo que Castilho denomina norma culta subjetiva — ou imagem que as classes privilegiadas fazem da norma culta — é formado, produzido, pelo discurso autorizado pela escola. Isto é: os preconceitos presen tes nas falas dos professores, acima, são constantemente apontados como recor rentes em gramáticas normativas; em contrapartida, os professores transmitem esse conceito de norma — e língua — a alunos que se tomam pais que, por sua vez, transmitem os mesmos preconceitos a seus filhos que adentram pela esco la... Uma teia que se prolonga interminavelmente. No entanto, Preti (1997), em estudo realizado a partir de dados coletados pelo projeto NURC5, mostra que a norma culta falada nos grandes centros urba nos — no caso, o autor estuda especificamente aquela falada na cidade de São Paulo — está muito próxima da linguagem usada pelos falantes de pouca esco laridade. Esse é mais um indício de que, quando as gramáticas normativas esti pulam um ideal de linguagem, hoje, elas estão produzindo uma imagem de nor ma bastante distante da norma culta objetiva , como diria Castilho. Se há imagens produzidas sobre a norma culta que se distanciam bastante do uso oral que os falantes fazem dessa norma, o mesmo se pode dizer sobre a distância entre o que se imagina que seja a escrita dessa norma e a realização dessa escrita. Vale a pena lembrar que as gramáticas normativas tomam por padrão o que se acredita ser a variedade culta escrita da língua... Mas onde se busca esse padrão de escrita? Em sonetos de Camões? Nos de Bandeira? Em Clarice Lispector? Em Guimarães? Em Rubem Fonseca, ou Saramago? Caeta no Veloso e Chico Buarque de Holanda? Paralamas do Sucesso? Folha de S. Paulo e Veja! Ou Caras e B undasl Variedade culta e não-culta, escrita e oralidade, formalidade e informali dade, todas elas se entrecruzam em teias cuja complexidade lingüística o mode lo adotado pelas gramáticas normativas não deixa entrever. Pelo que foi dito,
4. Castilho, A . T. Variação lingüística, norma culta e ensino de língua materna. In: Subsídios à pr op os ta cu rricular de língua po rtug ue sa pa ra o I o e 2 o graus. São Paulo, SE/CENP, 1988, p. 54. 5. O projeto NURC tem por objetivo pesquisar a norma culta falada em grandes centros urbanos espalhados pelo Brasil. O projeto tem resultado na publicação da Gramáti ca do português falado (vários volumes), além de possibilitar pesquisas cujos resultados são expressos em artigos e livros que versam sobre essa norma culta. Para um acesso a esta bibliografia, ver o capítulo “Análise da Conversação”, neste volume.
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espera-se que tenha sido resp ondida uma parte da pergunta: gramática é sinôni mo de língua ?
O outro conceito de gramática comentado por Franchi é o de gramática descritiva, que descreve as regras de estruturação e uso de uma língua: Gramática um sistema associar de noções mediante as quais se língua descrevem fatos de uma língua,é permitindo a cada expressão dessa uma os descrição estrutural e estabelecer suas regras de uso, de modo a separar o que é gramatical do que não é gramatical. Saber gramática significa, no caso, ser capaz de distinguir, nas expressões de uma língua, as categorias,as funções e as relações que entram em sua construção, descrevendo com elas sua estrutura interna e avaliando sua gramatical idade6. Uma das observações que devem ser feitas sobre as diferenças entre uma gramática descritiva e outra normativa é que, além do caráter prescritivo desta estar ausente daquela, a gramática descritiva não pode valer-se de critérios esté
ticos (bonito, elegante, fino etc.), puristas ou quaisquer outros menos “científi cos”. Uma gramática descritiva deve dizer, da forma mais objetiva possível, como é uma língua ou uma variedade, como é usada essa língua ou essa variedade. No entanto, os lingüistas têm desenvolvido gramáticas descritivas das lín guas ou de suas variedades à luz de diferentes quadros teóricos produzidos no interior da Lingüística. Assim, por exemplo, pode-se descrever uma variedade utilizada por aumnorma determinado de falantes —asvariedade quedepode coincidir ou não com culta —,grupo estabelecendo-se suas regras formação e uso; essa descrição poderá enfocar aspectos sintáticos, semânticos, fonéticos etc. Em suma, as gramáticas descritivas, apesar de não avalizarem preconceitos lingüísticos, elegem variedades a serem descritas e o fazem segundo determi na do construto teórico, o que faz com que também elas não sejam neutras. É por essa razão que Possenti (m Geraldi,1984) relaciona esse conceito de gramática à política (como também o faz com a gramática normativa e a internalizada). Outra diferença entre a gramática normativa e a descritiva é a noção de erro. Já foi dito que, para a primeira, toda realização lingüística que esteja fora dos padrões estabelecidos como ideais é considerada errada . E para a gramática descritiva, existe errol Sim: segundo essa concepção de gramática, é erro o que não ocorre sistematicamente na língua, em nenhuma de suas variedades7. Supo6. Franchi, C. Op. cit., pp. 52-53. 7. Possenti, S. Por que (não) ensinar gramática na escola. 1996, p. 79. (Coleção Leituras do Brasil)
Campinas, ALB/Mercado de Letras,
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INTRODUÇÃO À LINGÜiSTICA
nha-se, por exemplo, que o enunciado “a gente vamos” não foi encontrado em um estudo descritivo da norma culta falada no Brasil; mas, confirmando-se que essa construção ocorra sistematicamente em outra variedade do português, ela não é um erro , e sim uma inadequação à norma culta. Erros para a gramática descritiva, segundo Possenti (1996), seriam construções como “uma menino” — que só poderiam ocorrer epor fala um falante nativo — e hipercorreções com o “solvete” “vitengano ror”, em na lugar de de “sorvete” e “vitrô”, surgidas a partir de hipóteses equivocadas a respeito do funcionamento da língua. Além das gramáticas normativa e descritiva, pode-se considerar mais um conceito de gramática, a internalizada: Gramática corresponde ao saber lingüístico que o falante de uma língua desenvol ve dentro de certos limites impostos pela sua própria dotação genética humana, em condições apropriadas de natureza social e antropológica. “Saber gramática” não depende, pois, de princípio da escolarização, ou de quais quer processos de aprendizado sistemático, mas da ativação e amadurecimento progressivo (ou da construção progressiva), na própria atividade lingüística, de hipóteses sobre o que seja a linguagem e de seus princípios e regras8. Nesse caso, saber uma língua pode ser entendido como ter internalizada a gramática dessa língua. É segundo essa perspectiva que se diz que todo fala nte nativo de portug uês sabe o portu guês , sabe a gramática de sua língua e conhece as diferenças das variedades lingüísticas com as quais tem contato. Assim, vis tas sob essa perspectiva, concordâncias como “a gente vamos” e “nós vai” não são erradas, já que são fruto do conhecimento lingüístico de falantes do portu guês no Brasil. São fruto de um processo de construção de uma gramática que teve como base as relações sociais vivenciadas pelo falante e uma capacidade para a linguagem, inata e presente em todos os seres humanos que não possuem patologias que o impeçam de construí-la. A gramática internalizada nasce de uma concepção gerativista da lingua gem e não prescinde de uma visão inter acionista do processo de aquisição e amadurecimento da linguagem. Isso significa que gramática tem como pressuposto umproduzida conceito de línguapelo que falante se pro duz essa nas relações sociais vividas pelo falante, também que opera sobre a linguagem construindo hipóteses a respeito de seu funcio namento9. 8. Franchi, C. Op. cit., p. 54. 9. Ver o capítulo “Aquisição da L inguagem”, neste volume. Neste capítulo, a autora expõe o quadro teórico que dá sustentação a esse conceito de gram ática intern alizada pelo falante nos contextos de interação. Também dá exemplos de hipóteses construídas pelas crianças no processo de aquisição da linguagem.
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e ensino
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nessa concepção de gramática, também é aquilo que não ocorre sis tematicamente na língua. Seria o caso, por exemplo, de “a vamos gente” e “o homens foi”, que são agramaticais no português. Pois bem. Colocados esses três conceitos de gramática, convém assinalar que outros poderíam ainda ser citados, como gramática reflexiva, gramática Erro,
histórica etc., cada uma delas definida em função do tipo de olhar que se dirige
aos dados lingüísticos. Em suma, as gramáticas são múltiplas porque as formas de conceber a língua e operar com ela são múltiplas. É por isso que não é possível ser neutro no ensino de língua e que uma concepção de linguagem deve ser adotada nas relações de ensino. Veja: ensino de língua, e não necessariamente ensino de “gramática”. 2.
CONCEITO DE LÍNGUA E SUJEITO
Se um conceito de língua precisa ser adotado para que se pensem práticas com e sobre língua em sala de aula, ele será adotado a partir desse momento para que se façam coerentes as reflexões que se seguem, já que elas têm por referencial esse conceito. E a concepção bakhtiniana de linguagem que inspira rá o que se segue: A palavra é fenômeno ideológico por excelência. (...) ideológico confrontam-se índices de valor contraditórios. O signoemse todo tomasigno a arena onde se desenvolve a luta de classes. Sabemos que cada palavra se apresenta como uma arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam os valores sociais de interação contraditória. A palavra reve la-se, no momento de sua expressão, como o produto da interação viva das forças sociais. (...) na prática viva da língua, a consciência lingüística do locutor e do receptor nada tem a ver com um sistema abstrato de formas normativas, mas apenas com a linguagem no sentido de conjunto dos contextos possíveis de uso de cada forma particular. dicionárioPara (...).um falante nativo, a palavra não se apresenta como um item de Na realidade, não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagra dáveis etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial.10 10. Bakhtin, M.Marxismo e filosofia da linguagem. 4. ed. São Paulo, Hucitcc, 1988, pp. 36,46, 66, 95.
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INTRODUÇÃO A LINGUÍSTICA
O lingüístico, como sugere Bakhtin (1929/1988), é ideológico em todas as suas manifestações: não existe palavra sem valor ideológico. Nesse sentido, a língua está sempre afetada pelo que lhe é exterior, este sendo constitutivo dela. O leitor de Saussure (1916/1971) pode estar se questionando se não deveria ter sido utilizada aqui, em vez de língua , a palavra linguagem. Esse leitor sabe que a língua em Saussure é sistemática, objetiva, homogênea, o que toma difícil sua relação tão estreita com um exterior que faz parte dela. Pois bem: o conceito de língua de Bakhtin confronta-se com o de Saussure, que é diretamente questio nado por aquele autor por ret irar da língua seu caráter ideológico, considerando o signo com valor imutável, imanente — ver o último fragmento anteriormente citado, em que Bakhtin diz que nós não percebemos a língua como um “sistema abstrato de formas normativas”11. Esse conceito de língua de Bakhtin inclui a fala, excluída por Saussure do âmbito da Lingüística por ser “individual”, não passível de homogeneização, espaço do heterogêneo. Para Bakhtin, não há discurso “individual”, no sentido em que todo discurso se constrói em função de um outro, todo discurso se cons trói no processo de interação — real e imaginária. Toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita, é uma resposta a algu ma coisa e é construída como tal. Não passa de um elo da cadeia dos atos de fala. Toda inscrição prolonga aquelas que a precederam,ava tr uma polêmica comelas, conta com as reações ativas da compreensão, antecipa-as1 12. Aquilo que para Saussure é próprio da fala, sua singularidade e precarie dade (e por isso prejudicial para um fazer científico, porque seria um obstáculo à sistematização), para Bakhtin não pode ser desprezado nas reflexões produzi das por esse fazer “científico”. Geraldi (1996), em suas reflexões sobre Bakhtin, chama a atenção para o fato de que, para este autor, o processo da tomada de consciência do sujeito se dá nas relações interativas do eu com um outro, através da relação do eu com a palavra do outro, na intemalização dessa sua palavra, num processo ininterrupto e sempre inacabado. Esse processo de construção do sujeito e da sua linguagem não prescinde da atividade de criação e aponta caminhos para avançar na busca do heterogêneo no sujeito e na linguagem.
11. Para uma leitura mais detalhada do que Bakhtin chama de objetivismo abstrato, e de como o Saussure do Curso de Lingüística geral pode ser visto nessa perspectiva, ver Bakhtin (1988), especialmen te o capítulo 4. 12. Bakhtin, M. Op. cit., p. 98.
ENSINO LÍN E G UA
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Um enunciado nunca é somente reflexo ou expressão de algo já existente, dado ou concluído. Um enunciado sempre cria algo que nunca havia existido, algo absoluta mente novo e irrepetível, algo que sempre tem que ver com os valores (...). Porém o criado sempre se cr ia do dado ...). ( Todo o dado se tr ansforma no criado13. Buscar o heterogêneo na língua é lançar olhar para a polifonia presente no discurso, polifonia que se faz presente na materialização de outros discursos (com seus valores etc.) no discurso em questão. Mas é também olhar para a constituição desse discurso afetado pelos outros discursos, em trama tecida cons tantemente nas relações interativas. Como não poderia deixar de ser, é acreditar na diferença advinda desse processo de constituição, é acreditar na possibilida de de criação que aponta aqui e ali, mas ininterruptamente, fazendo a história dos sujeitos e de sua linguagem. (...) a monologização da consciência resulta do processo de esquecimento das srcens das palavras dos outros, para o sujeito inicialmente palavras alheias, de pois palavras próprias-alheias, e somente no esquecimento das origens, palavras próprias. E estas resultam das diferentes articulações que com suas contrapalavras produziram uma interpretação das falas dos outros. Enfim, este é um sujeito constitutivamente heterogêneo, de uma incompletude fundante que mobiliza o desejo de completude, aproximando-o do outro, também incompletude por definição, com esperança de encontrar a fonte restauradora da totalidade nunca alcançada, construindo-se nas relações sociais, entendidas estas como espaço de imposições, confrontos, desejos, paixões, retornos, imaginação e construções14. Segundo essa perspectiva, é preciso descartar, como é esperado, uma con cepção de sujeito passivo, à mercê das ideologias, dos discursos, dos mecanis mos disciplinares presentes na sociedade. Esse sujeito só ocuparia lugares preestabelecidos e seria espaço de acontecimento do discurso dado, que conti nuaria como discurso dado, perdendo as especificidades desse acontecimento15.
13. Bakhtin (1992) apud Geraldi, J. W. Linguagem e ensino: exercícios de militância e divulgação. Campinas, ALB/Mercado de Letras, 1996, p. 19. 14. Geraldi, J. W. Op. cit., p. 20. 15. Ver, a esse respeito, o capítulo “Análise do Discurso”, neste volume. Esse sujeito “passivo” ga nhou um adjetivo que foi muito difundido: assujeitado, por influência da obra de Althusser (1970). Peça fundamental do quadro teórico da corrente francesa de análise do discurso em seus dois primeiros momen tos (AD-1 e AD-2), esse sujeito seria assujeitado à maquinaria da formação discursiva com a qual ele havia se identificado. Maquinaria esta que, posteriormente, Pêcheux (1983, in Gadet, F. & Hak, T. (orgs.) 1990) reconhece desestabilizada, porque discurso e sujeito não poderíam mais ser considerados estáveis.
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INTRODUÇÃO À LINGUÍSTICA
Neste capítulo, serão considerados alguns desses mecanismos disciplinares, que atuam na tentativa de fazer esquecer a heterogeneidade característica do su jeito e de sua linguagem. Será tomado como referência Foucault (1996); o autor analisa mecanismos de controle, seleção, organização e redistribuição dos discur sos e dos sujeitos, por meio dos quais ambos seriam “ordenados” de forma que seus perigos e poderes fossem conjurados. Em Foucault (1996), esses mecanismos divi dem-se em: externos ao discurso, internos, e de rarefação (seleção) dos sujeitos. Os mecanismos externos são de exclusão e dividem-se em: proibição de dizer (há assuntos proibidos, há circunstâncias em que é proibido dizer algo, há sujeitos que estão proibidos de dizer algo); rejeição (há discursos condenados a não circularem, a não terem sua existência reconhecida, como é o caso do discur so “louco”); vontade de verdade (a oposição entre o verdadeiro e o falso é produ zida institucionalmente, historicamente, com a valorização e distribuição do dis curso que se considera verdadeiro). Mas o controle do acontecimento e do acaso do discurso pode partir do próprio discurso, nesse caso temos os mecanismos internos de controle: comentá rio (o comentário de um texto literário, religioso, por exemplo, é sempre domina do pelo texto “fundador”, mas este também é dominado por aquele, já que o co mentário limita o acaso do discurso pelo jog o de uma identidade que tem a forma da repetição); autor (para Foucault, o autor não é um indivíduo, mas uma função — “função autor” — que dá unidade e coerência ao discurso, limitando-lhe o acaso); disciplina (a disciplina controla a produção do discurso que faz parte dela , pois ele deve preencher uma série de requisitos para que possa pertencer a ela). Já os mecanismos de rarefação, seleção dos sujeitos dividem-se em: ritual (define qualificações e papéis dos sujeitos); sociedades de discurso (conservam e produzem discursos, fazendo-os circularem em espaço restrit o, isto é, são pou cos os sujeitos que podem fazem parte delas); doutrina (realiza a sujeição do sujeito ao discurso que se pode proferir no seu interior, diferenciando-o dos outros sujeitos que não seguem a doutrina); apropriação social dos discursos (há sistemas de apropriação dos saberes produzidos na sociedade, e os sujeitos que passam por esses sistemas é que estão autorizados a formular determinados discursos)16. A escola é um exemplo típico desses sistemas de apropriação do discur so. Ela forma professores que constituem sociedades de discurso — são os su-
16. Esse texto de Foucault (1971/1996), A ordem do discurso, foi resenhado por outros autores, comentam a obra. A esse respeito, ver Geraldi (1993a) e Alvarez (1999).
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jeitos pertencentes a elas que podem “ensinar” determinados conteúdos. Por sua vez, o discurso produzido por esses sujeitos deve estar nos limites fixados pela disciplina, a qual, por sua vez, determina tanto o que é verdadeiro e o que é falso dentro de suas fronteiras “científicas ”, quanto o discurso que pode circular no interior de suas fronteiras e aquele que é indizível (ou “/owco”). Em casos extremos, há uma censura {proibição) de determinados conteúdos. Por outro lado, o professor, atado a determinadas concepções p edagógicas {doutrina), pode produzir uns discursos e não outros. Preso a práticas já consagradas no interior da escola, e que se aproximam dos rituais — como “aplicação de prova”, “cha mada” — o professor sofre coerções que tolhem sua atividade. Como se vê, esses mecanismos possibilitam uma reflexão sobre os embates entre a homoge neidade e a heterogeneidade nas relações de ensino. A despeito desses mecanismos disciplinares, acredita-se (Certeau, 1998) que o sujeito, astuciosa e sutilmente, ao usar, “consu mir” o produto imposto por uma ordem social dominante, desenvolve táticas para se livrar dessa teia. Utili za sua criatividade dispersa para fazê-lo. Se é verdade que por toda a parte se estende e se precisa a rede da “vigilância”, mais urgente ainda é descobrir como é que uma sociedade inteira não se reduz a ela: que procedimentos populares (ta mbém “minúsculos” e cotidianos)jogam com os mecanismos de disciplina e não se conformam com ela a não ser para alterálos; enfim, que “maneiras de fazer” formam a contrapartida, do lado dos consumi dores (ou “dominados”?), dos processos mudos que organizam a ordenação sociopolítica17. Neste capítulo, serão aproximados os conceitos de contrapalavra de Bakhtin — que representa um trabalho do sujeito sobre a palavra do outro, sobre o dado — e de consumo, de Certeau. Ambos os conceitos apontam para a possibilidade de diferença, heterogeneidade, que se quer destacar aqui.
3. LÍNGUA E ENSINO: POLÍTICAS DE FECHAMENTO
Em obra que dá contribuição significativa à reflexão sobre o ensino de gramática e língua na escola, Britto (1997) destaca a ausência de mudança nes se ensino. Segundo o autor, essa ausência pode ser explicada, entre outras ra zões, pelos formadores de opinião — no caso, mídia, livros didáticos e vestibu-
17. Certeau, M. de. A invenção do cotidiano: 1. A rte s de fazer. Petrópolis, Vozes, 1998, p. 41.
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lares —, que atuam no sentido de reforçar valores lingüísticos equivocados, tendo em vista conhecimentos recentes produzidos pela Lingüística. Estendendo a atuação dos formadores de opinião, será comentado, a se guir, como eles produzem um fechamento das possibilidades de trabalho com língua na escola, em algumas das situações que o ensino de língua abrange — leitura e produção de textos, atividades de reflexão sobre variação lingüística. Essas políticas de fechamento, como os mecanismos de controle do dis curso e do sujeito, postulados p or Foucault (1996), agem con tra a heterogeneidade e imprevisibilidade do discurso. Principalmente, elas estão na convergência de três desses mecanismos: disciplina, sistema de a propriação de conhecimento e sociedade de discurso. Pode-se dizer que há discursos sobre língua autorizados, produzidos por sujeitos autorizados (que constituem uma sociedade de discur so) que são os formadores de opinião; esses interferem na imagem que a socie dade faz da língua e, como autorizados, adentram pelo sistema de apropriação do conhecimento, neste caso, a escola (via livros didáticos, aulas pela TV, jor nais, palestras etc.), direcionando o trabalho do professor — veja que também o professor faz parte dessa sociedade de discurso, mas num degrau inferior na hierarquia por ela constituída. Direcionando o trabalho do professor, esses for disci madores de opinião (ou sociedade de discurso) instituem o que deve ser a plina Língua Portuguesa, como ela deve ser ministrada, excluindo de seus do mínios formas outras de conceber a língua e lidar com ela.
Se bem-sucedidas, as políticas de fechamento que serão apontadas a se guir realizam momentaneamente um silenciamento das inúmeras possibilidades de sentidos de textos, uma estereotipação do gênero discursivo e um banimento das variedades lingüísticas não-privilegiadas a terreno ocupado por aqueles que “não terão oportunidades na vida”. Essas políticas realizam um trabalho co ntra ações sobre a linguagem (c ria ção de novas formas lingüísticas) e contra ações com a linguagem — Geraldi (1993a) —, destituindo os sujeitos de autonomia para realizar atos de lingua gem com a proficiência que poderiam ter.
3.1. A leitura de textos: silenciamento de sentidos
Considerando-se a língua como uma atividade que constitui os sujeitos e é constituída por eles ininterruptamente, tendo em vista necessariamente sua historicidade — isto é, sua relação com um contexto socioideológico, com as funcionamen to suas condições de produção —, é necessário atentar para o discursivo: por que ele é o que é, o que ele faz, o que parece que ele quer fazer ,
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o que ele não faz etc.Interpretar um texto, nesse sentido, é investigar não só seu conteúdo — estar atento à sua “semântica” —, mas refletir sobre aspectos prag máticos e discursivos que constituem esse texto e que o fazem ser aquilo que é, aspectos que o fazem estar imerso em um processo histórico, sendo constituído por “realidades” e constituindo outras. Em conseqüência, é necessário atentar para a polissemia do discurso: as suas condições de produção lhe restringem os sentidos (isto é. só é possível dizer ou ler algumas coisas em determinados contextos) e, ao mesmo tempo, ampliam suas possibilidades, porque os sujeitos e os contextos sociais em que se inserem são heterogêneos. Isso quer dizer que, ao internalizar a palavra do outro e lançar uma contrapalavra (nesse caso: ao produzir uma interpretação do texto), o sujeito está produzindo, necessariamente, uma nova palavra. A entonação expressiva, a modalidade apreciativa sem a qual não haveria enunciação, conteúdo ideológico, O o relacionamento com uma situação social determinada,oafetam a significação. valor novo do signo, relativamente a um “tema” sempre novo, é a única realidade para o locutor-ouvinte. Só a dialética pode resolver a contradição aparente entre a unicidade e a pluralidade da signifi cação. O objetivismo abstrato favorece arbitrariamente a unicidade, a fim de po der “prender a palavra em um dicionário”. O signo é, por natureza, vivo e móvel, plurivalente; a classe dominante tem interesse em tomá-lo monovalente18. ✓
E importante destacar que determinados sentidos de textos (principalmente os sentidos dos textos literários, que têm sua história de leituras mais conhecida) são naturalizados. A seleção desses sentidos é feita da perspectiva dosleitores privilegiados (diga-se, formadores de opinião: críticos literários, autores de livros didáticos etc.), que se utilizam também da escola e do professor — este, umleitor suposto não iniciante(Mendonça, 1995) — para produzir a monoleitura autori zada. O que é a significação natural, nesse sentido, não passa de umestado passa geiro que se pretende eterno. Um fenômeno ideológico que se pretende estrutural, porque a significação é vista como imanente. Tomando a literatura como exem plo, pode-se dizer que os textos literários ganham estatutos diferentes em épocas diversas e esses estatutos, valores, são tomados como “verdadeiros” para os sujei tos que vivem o momento em que esses valores são instituídos. Mas não só com textos literários essa política de silenciamento de senti dos de textos ocorre. Em livros didáticos, freqüentemente, a prática de leitura de quaisquer textos segue de perto um conceito de sentido transparente, não 18. Yaguello, M. Introdução. In: Bakhtin, M. Op. cit., p. 15.
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com a opacidade própria da heterogeneidade discursiva. Procura-se abolir dos textos sua tendência natural à ambigüidade, ao meio-tom, à relatividade. A análise de um exercício de leitura em livro didático, a seguir, foi adapta da de Mendonça (1995), em que analisei o silenciamento de sentidos presente em dois livros, o qual se man ifesta de diversa s m ane iras 19. O exercício a seguir é um exemplo desse silenciamento. REBENTO Rebento, substantivo abstrato, O ato, a criação, o seu m om ento, Como a estrela nova e seu barato Qu e só Deus sabe lá , no fir m amen to.
Rebento, tudo que nasce é rebento, Tudo que brota, que vinga, que medra, Rebento raro com
o flor na pedra,
Rebento farto como trigo ao vento. Outras vezes rebento simplesmente No presente do indicativo, Como a corrente de um cão furioso, Como as mãos de um lavrador ativo. Às vezes, mesmo perigosamente, Còmo acidente radioativo, As vezes, só porqueem ficofomo nervoso, V
Rebento. V
As vezes somente porque estou vivo. Rebento, a reação imediata A cada sensação de abatimento. Rebento, o coração dizendo “bata”, A cada bofetão do sofrimento. Rebento, esse trovão dentro da mata E a imensidão do som desse momento20. 19. Será abordado aqui o que chamei de formas de silenciamento 1, ou seja, o silenciamento decor rente da construção de relevâncias a partir da formulação de perguntas (Mendonça. 1995). Fora m perce bi das também, nos livros analisados, duas outras formas de silenciamento de sentidos: pela imposição de estruturas clichês de textos e pela produção de identidades negativas tanto no leitor iniciante (aluno) quan to no leitor suposto não-iniciante (professor). 20. Gil, Gilberto. Literatura come nta da. São Paulo, Abril Educação, 1982, p. 65.
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TRABALHANDO O TEXTO 1. Em quais sentidos a palavra rebento é utilizada no texto? R — a) como sinônimo de ato de criação; b) como sinônimo de broto; c) como flexão do verbo rebentar. 2. Qual desses sentidos predomina nas três últimas vezes que aparece no texto? R — Parece predominar nessas três últimas vezes o sentido de ato de criação, ainda que impregnado pelos dois outros sentidos. 3. Com o que se relaciona o conteúdo do texto? R — O texto se refere basicamente à atividade criadora do artista, cujo rebento (ato criador) rebenta (forma verbal) como rebento (broto) em diversas ocasiões: seja por nervosismo, seja por fúria, seja por atividade laboriosa. (...)
6. Boa parte da riqueza das imagens do texto provém das comparações. Faça um levantamento das várias comparações empregadas e comente a impressão causa da por elas. R — (...) O aluno deve observar a riqueza dessas imagens comparativas, todas de força expressiva profunda; particularmente, a imagem do trovão dentro da mata é de profundo vigor e beleza .2I Percebe-se que há um fechamento das possibilidades múltiplas de sentido tanto nas perguntas feitas pelo autor do livro (um leitor privilegiado ) quanto nas respostas, contidas no livro do professor. As perguntas apontam para o “sin gular” (no pior sentido do termo!): “Com o que se relaciona...”; “ Qual desses sentidos predomina ...”. Apesar de a questão 1 apontar para a presença de vários sentidos (“Em quais sentidos...”), ela pressupõe um conjunto fechado e comple to dentre esses sentidos. Compare-se a formulação feita pelo autor com uma questão como “Aponte alguns dos sentidos possíveis...” As respostas dadas pelo autor, seguindo a tendência das perguntas, tam bém silenciam sentidos. Analisando a resposta à questão 1, pode-se perguntar: quantos são os sinônimos do ato de criaçãol e de broto ? O profissional que lida com a língua sabe que uma resposta a essas duas perguntas é impossível. Inclu sive porque, afetada pela historicidade, cada uma dessas palavras pode assumir diferentes sentidos dependendo dos sujeitos inseridos no processo interativo, do contexto de uso, do momento histórico etc. Por exemplo: broto, para um biólogo, tem um significado diferente do que tem para um leigo em biologia; criação, para um artista, assume um significado diferente daquele assumido por um editor, ou por um consumidor de livros de auto-ajuda, ou por um padre... Em 21. Infante, U. Do texto ao texto: curso prático de leitura e redação. São Paulo, Scipione, 1991, p. 43.
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suma: uma resposta com o a que foi dada à questão 1 é muito redutora. E o que dizer dos sentidos do verbo rebentar ? Só no dicionário Aurélio, esse verbo tem treze sentidos diferentes... Considerando-se que os dicionários são “cemitérios das língua s” (na conota ção que lhes dá Bak htin), já que os sentidos se produzem ininterruptamente, a cada acontecimento discursivo e sob o signo da heterogeneidade que sob constrições a no tarefa do aluno (mesmo — responder comas quais sentidoshistóricas a palavrahomogeneizantes), rebento é utilizada texto — é irrealizável. A resposta à questão 2 parece mais difícil ainda. Além do fato de que os sujeitos lêem os textos de forma diferente (graças, como se disse, à historicidade que os constitui), pode-se dizer que o sentido da palavra rebento vai sendo pro duzido e novamente produzido à medida que a leitura do texto se desenrola, a partir das inferências que o leitor vai fazendo sobre o sentido que a palavra vai assumindo nos vários contextos. Não é possível separar um momento, desse processo, em que se possa dar um significado exato e completo dessa palavra. E um significado que carrega consigo os anteriores e, ao mesmo tempo, está à espera dos outros que virão. Isto é, quando ele passa a outro sentido, esse outro não pode mais ser separado do anterior. É por isso que, no final do texto, a palavra não parece ter um sentido exato nem para o leitor privilegiado (ver resposta à questão 2). Na resposta à questão 3, o leitor privilegiado procura fechar os sentidos múltiplos do texto quando lhe propõe como tema a atividade criadora do artista. *
Entretanto, é perfeitamente possível que se leia esse t exto sem fazer ta l interpre tação. Uma outra proposta de leitura para o poema é que o poeta faz um elogio à vida e às suas manifestações mais evidentes. Poderiamos, neste caso, ler a pri meira estrofe como referindo-se ao ato sexual, ao ato do desvirginamento (que não deixa de ser um rebento) e, simultaneamente, à criação da vida, do rebento. O barato da estrela nova pode ajudar a validar essa leitura, pela sugestão de prazer. Na segunda estrofe, graças à recorrência de palavras do campo semânti co do uma desenvolvimento (a saber: nasce, estrofes, brota, vinga, medra), pode haver confirmação biológico dessa leitura. Nas outras o poeta estaria se referindo a outras manifestações evidentes de vida (nesse caso, por oposição à apatia ): fúria, dor, nervosismo, sofrimento, barulho... O rebento, como ato “ex plosivo”, em todas as sutilezas de sentido que a palavra vai assumindo no pro cesso de leitura, seria a prova dessa manifestação evidente. Mas esse não é um sentido que vai se produzindo por um leitor livre, que pode ler o que quiser no texto. E uma leitura também condicionada pela lingua ✓
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gem e pela relação que o sujeito mantém com essa linguagem. É nesse sentido que se pode dizer que há leituras erradas. Uma das razões pelas quais essas leituras existem é que a história cristaliza sentidos para as palavras e nós, sujei tos históricos, aceitamos uns sentidos e não outros. Isto é: segundo a perspecti va de linguagem que foi ado tada aqui, não há leituras erradas e m si, mas erradas consideradas as interações em que ocorrem, os sujeitos queaberto participam delas, osemomento histórico a que estão presas. Mas convém estar para aceitar que o sentido sempre pode ser outro, já que as relações dos sujeitos com a língua não podem ser postuladas como um conjunto finito e definido de possibi lidades. Com relação à resposta à questão 6, o leitor privilegiado que nos perdoe: impressão é uma coisa tão pessoal que nós, leitores, damo-nos o direito de ter nossas preferências no texto de Gilberto Gil. Nesse livro didático, são constan tes as respostas taxativas (que fecham ) a perguntas que supostamente pedem a opinião, impressão do leitor: 6. Qual é, nasua opinião, a função do trecho colocado entre parênteses no final do primeiro parágrafo? R — Há uma função óbvia, que é a exemplificação; ao lado dela, percebe-se, no entanto, uma evidente intenção crítica. Foi provavelmente essaa razão pela qual o autor optou pelo uso dos parênteses. (...)
8. No texto, há abundância de reticências. O que, na sua opinião,justifica seu uso? R — Elas acentuam o caráter de vaguidão melancólica que permeia todo o texto. (...) 9. Expliqueo que você entendepor “jogo entre sujeitos”. R — O aluno deve ressaltar o caráter interlocutório do texto argumentativo22. O que se percebe nessas perguntas/respostas analisadas é um projeto de silenciamento e seu sucesso depende da disponibilidade do professor em “ado tar” não só o livro mas também as respostas dadas pelo autor. Depende também da crença do aluno, por um lado, em sua incompetência como leitor, em sua pouca importância na escola e, por outro lado, crença no valor/qualidade do professor e do livro didático. Como o autor do livro didático costuma ser toma do como autoridade pelo professor — funcionando, portanto, como formador de opinião — e como o professor, pela hierarquia escolar, é visto pelo aluno 22. Infante, U. Op. cit., pp. 70, 92, 104; grifos adicionados.
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como alguém que sabe mais que ele — funcionando também como um forma dor de opinião —, o silenciamento tem grande chance de ocorrer. Pelo menos, há chance de o modelo de leitura apresentado ser visto como natural e passar a fazer parte de outros exercícios de leitura propostos pelo professor.
3.2. A produção de textos escritos: estereofipação do gênero
Acreditar que a língua se produz em processo dialógico ininterrupto in terfere na forma de conceber a escrita. Esta não pode ser tida como uma ativi dade solitária, mas como uma atividade em que um sujeito-autor, constitutivamente formado por outros sujeitos, lança uma palavra a um sujeito-leitor no mundo, cuja representação imaginária é produzida pelo sujeito-autor. Segun do Bakhtin (1988), um discurso nasce de outros discursos e se produz sempre para um outro sujeito, sendo que esse outro é construído imaginariamente pelo sujeito-autor em um processo de antecipação de contrapalavras23. Em suma, a linguagem — incluindo-se a escrita —, nessa perspectiva dialógica, é uma teia tecida necessariamente por muitos sujeitos, numa versão produzida pela lingüística dos “fios de sol de gritos de galo”, dos “galos que, sozinhos, não tecem uma manhã” de João Cabral de Melo Neto. Essa concepção de linguagem pode ajudar a repensar a atividade de pro dução de textos na escola. Em situações naturais de uso da linguagem, escrevese sempre para alguém, um alguém de quem se constrói uma representação; na escola, quando o produtor do texto não encontra um interlocutor — ou não consegue construí-lo imaginariamente — a atividade de escrita toma-se artifi cial, porque aparentemente monológica. Lemos (1988) atentou para isso em estudo realizado a partir de redações de vestibulandos. Segundo a autora, os vestibulandos, quando se utilizam de estruturas estereotipadas, produzindo seqüências de idéias sem coesão e coe rência24, estão realizandoestratégias de preenchimento da folha de papel em 23. A Análise do Discurso de linha francesa, na figura de Pêcheux (1969, in Gadet, F. & Hak, T., 1990), coloca as formações imaginárias como constituintes das condições de produção do discurso, reguladoras do discurso; também as antecipações das imagens que poderiam ser construídas pelo sujei to-leitor são fundantes do discurso. Para um maior detalhameno, ver o capítulo “Análise do Discurso”, neste volume. 24. Os conceitos de coesão e coerência são desenvolvidos no capítulo “Lingüística Textual”, no volu me I desta obra.
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branco, sem interesse em produzir linguagem (diálogo: exposição de idéias e argumentação, por exemplo). Falta a esses vestibulandos interação com o outro, isto é, falta-lhes uma representação do outro como sujeito sócio-histórico-ideológico, sujeito com quem se produz um diálogo imaginário que é fundamental para a construção do texto e de sua coerência. Sem essa interação, a atividade de produção de textos objetivo — a então, não serà oescola, objetivo, digamos “artificial”, de preencher a folhafica emsem branco. Caberia, recuperar a atividade de produção de textos como um trabalho dialógico, de forma que resgate o sujeito-autor que diz, resgatá-lo através da construção imaginária de um sujeitoleitor que lhe devolve uma contrapalavra. Essa é a proposta de Lemos — a autora contrapõe-se, portanto, a qualquer atividade de escrita que procure anu lar a presença do leitor (imaginário ou real) sob o pretexto, por exemplo, de “desautomatização” da escrita. Por outro lado, caberia também resgatar a produção de textos como ativi dade em que se deseja dizer algum a coisa para alguém — nesse sentido, im porta o que se quer dizer e para quem. A esse respeito, vale a pena retomar artigo de Geraldi (1984), em que o autor faz a distinção entre redação e texto. Segundo ele, na escola produzem -se redações , e não textos , isto é, a situação de prod ução do texto escolar é tão artificial que esse perde sua característica básica: o caráter interlocutório. Faz-se redação; escreve-se preenchendo um modelo, um arcabouço, como afirma Lemos, sem lançar palavra em busca de contrapalavra. Para Geraldi (1984, 1993b), resgatar o sujeito-autor é tarefa do professor: este deve colocar-se como leitor , não simplesmente como avaliador do texto do aluno. O autor mostra que o professor, muitas vezes, está mais preoc upado com a “higiene” do texto (correção gramatical, adequação a um padrão de gênero etc.) do que com o “conteúdo” propriamente dito: o que o aluno diz? por que ele diz? para que ele diz? Um leitor efetivo, em um contexto natural de leitura, não procura correção, mas informação, tese, argumento, história, emoção, entre ou tras coisas. Quando o professor não é leitor , a interlocução não se constrói na produção do texto; isso porque o aluno não encontra no professor alguém que “recebe” o que foi dito e lhe dá um retomo. Nessas práticas escolares de escrita, a palavra do sujeito-aluno é silencia da e seu texto, quando não é desinteressante, cheio de clichês, fragmentado, contraditório etc., toma uma forma padronizada (diga-se: estereotipada) de gê nero. Também nessa segunda possibilidade há silenciamento, fechamento de possibilidades de linguagem se se considerar, como Bakhtin, que o gênero discursivo é heterogêneo não só porque são muitas as suas manifestações, mas também porque elas se entrecruzam e se constroem continuamente.
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A riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à volve e fi ca m ais medida que a própria esfera se desen complexa. Cumpre salien tar de um modo especial a heterogeneidade dos gêneros do discurso (orais e es critos) (...). A ampliação da língua escrita que incorpora diversas camadas da língua popular acarreta em todos os gêneros (...) a aplicação de um novo procedimento na orga nização e na conclusão do todo verbal e uma modificação do lugar que será reser vado ao ouvinte ou ao parceiro etc., o que leva a uma maior ou menor reestruturação e renovação dos gêneros do discurso25.
Tome-se como exemplo desse silenciamento o seguinte fragment o, extr aí do de livro didático direcionado a alunos da terceira série do ensino médio e curso pré-vestibular: (...) Esses quatro fragmentos analisam um “mito” da sociedade contemporânea, propondo discussões profundas a respeito de uma questão mais ampla — as rela ções do homem com a televisão. Trata-se de um debate atual de que todos podem participar, desde que tenham um mínimo de conhecimento sobre o assunto, dese jo e condições de assumir uma posição defensável. Aqui está o convite: entre nesse debate, delimitando um dos vários temas que nascem da associação dos fragmentos lidos. Escolha aquele com o qual você man tém maior afinidade e a respeito do qual possui conhecimentos mais seguros. A seguir, elabore apenas o parágrafo introdutório, observando as seguintes especificações: a) contextualização que sustente o tema; b) explicitação da tese (tema + posicionamento); c) problematização (destaque de um problema a ser analisado posteriormente); d) apresentação de alguns itens que nortearão o percurso argumentativo26.
O problema em atividades como essa não é o de fornecer modelos (no plural), mas o de fornecer só um modelo, o que leva à compreensão equivocada de que um gênero discursivo (no caso, o dissertativo) só deve ser realizado segundo uma determinada forma de desenvolvimento do raciocínio, abrindo caminho para a compreensão da atividade de escrita como de preenchimento aleatório de um arcabouço inalterável, independentemente das intenções do autor,
25. Bakhtin, M. Estética da criação verbal. São Paulo, Martins Fontes, 1992, pp. 279, 285-86. 26. Souza, A. C. M. de.Laboratório de redação I. São Paulo, Anglo, 1991, pp. 64, 65. (Coleção Anglo)
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de suas idéias, de seus argumentos, independentemente do interlocutor e da situação em que o texto é produzido. Perceba que o exercíci o se inici a com um discurso em que se procura valorizar o caráter dialógico da linguagem, pedindo-se que o aluno entre em um debate, posicione-se, assuma uma posição de fensável; no entanto, o diálogo não se concretiza na proposta porque o sujeitoaluno, além de seguir um modelo aleatório (como já foi colocado anteriormen te), deverá fazer só a introdução do texto — isto é , a defesa da tese não ocorrerá. O professor que trabalha com “redação” em sala de aula (conceito que, inclusive, se confunde com nome de disciplina) sabe como as técnicas de reda ção são constantes em meio escolar. Um livro didático que contém essas técni cas e que é bastante difundido en tre professores é o de G ranatic (1988). A au to ra propõe, para o desenvolvimento do gênero dissertativo, cinco esquemas, o que é menos redutor que a proposta de introdução citada anteriormente. No entanto, esses esquemas são simplificações daquilo que sabemos que ocorre no gênero: em um, devem ser selecionados três ou dois argumentos em favor de uma tese (esses argumentos d evem vir expressos já na introdução do text o); em outro, expõem-se primeiro as causas e depois as conseqüências de determinada problem ática; ainda em outro modelo, devem ser expostos argumentos em favor e contra determinada polêmica; o quarto esquem a propõe o desenvolvimento do tema usando -se uma retrospectiva histórica em que se se gue a ordem crono lógi ca dos fatos; o quinto e último sugere uma comparação tendo em vista a locali zação espacial . P or que o sujeito-al uno não pode fun dir dois, tr ês, quatro.. . d es ses esquemas? O que impede que a dissertação faça uso só de enumeração de causas, sem trazer as conseqüências geradas pelo problema? Por que o sujeitoaluno não pode centrar seu texto só em um argumento-chave? Por que a retros pectiv a histórica não pode ter como base para sua organização, em vez da cro nologia, os temas — por exemplo, falar do século XX enfocando as barbáries nele ocorridas e não as ordenar segund o um a cronologia, mas segundo o grau de violência/intolerância percebido nos fatos, aproveitando a oportunidade, na re trospectiva, para comparar essas barbáries? Visto segundo essa outra perspectiva, o gênero dissertativo, em sua cons tituição, pode-se co nfigura r de infinit as formas, tantas quantas forem as idéi as e os conhecimentos do sujeito-aut or, seus ob jetivos, seu interesse na produção do texto. .. O gênero v aria em função de sua historicidade, qu e inclui sujei tos, con texto socioideológico, relação com outros gêneros. No entanto, os formadores de opinião — neste caso, os autores dos livros didáticos — influenciam as rela ções de ensi no, constituindo “gêneros esco lares” e colocando a redação distante dos textos produzidos no exterior da escola. Ela, portanto, não form a escri tores,
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INTRODUÇÃO A LINGUÍSTICA
autores, mas redatores — no sentido daq uele que só faz redações , preenchendo modelos aleatoriamente. Portanto, ao tentar auxiliar o sujeito-aluno, que precisaria dos modelos estruturais para “não estar perdido” quando da tarefa da produção do texto — como sugere Granatic (1988): “os esquemas das diversas modalidades de reda ção apresen tados neste livro são os mapas que, com certeza, o auxiliarão a ati n gir os objetiv os que esperamos alcançar”27— o professor, na adoção indiscrimi nada do modelo, está tirando desse sujeito-aluno a palavra. “Dando op ortunida de”, retira-a. 3.3. Norma culta escrita: construção de imagem de estabilidade
Já foram comentadas, neste capítulo, as tentativas de “unificar” a língua nas gramáticas normativas, a partir do “esquecim ento” das variedades lingüís ticas. Além disso, comento u-se a homo geneização da norm a culta que é realizada nessas gramáticas. Como se disse, a Lingüística desautoriza, com suas pesqui sas, essas práticas. A seguir, encontram-se formadores de opinião emitindo juízos/ conselhos que se assemelham a essas políticas de fechamento. Ver Britto (1997), para uma reflexão mais aprofundada da ação desses formadores de opinião no ensino de língua e gramática. LÍNGUA ASSASSINADA No Brasil, as trapalhadas contra o idioma, em placas e anúncios comerciais, vira ram o samba do analfabetismo doido e retrógrado. Não sei se, por aqui, há alguma lei que facilite e estimule essas mutações inestéticas e inúteis nos vocábulos. O que se constata, e que irrita, é que o abuso das letras K e S (trocadas por C e/ou Z) é de lascar e desesperar.Nossas criançassimplesmente entram em pa rafuso com o que aprendem nas escolas e com o que deparam nas ruas, nos shoppings e lojas. Evidentemente que alguma coisa precisa ser feita e já. Sem pieguice pueril nem perfeccionismo à Rui Barbosa. A mobilização em nosso defesameio. do escrever correto, sério e MG)28. coerente já devia ser uma realidade em Renzo certo, Sansoni (Uberlândia, O autor, leitor da Folha de S. Paulo, é um representante da sociedade letrada que pode opinar sobre o uso da língua, e como representante desse gru 27. Granatic, B. Técnicas básicas de redação. 3. ed. São Paulo, Scipione, 1988, p. 3. 28. Painel do Leitor, Folha de S. Paulo, 14/04/99.
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po tem sua voz exposta em meio de comunicação de ampla circulação. É um sujeito letrado que fala a outros sujeitos letrados em mídia, que é formadora de opinião. E nesse sentido que esse leitor se transforma em form ador de opinião sobre a língua. Já na primeira frase, o autor da carta ao jornal deixa claro seu conce ito de idioma : norma culta escrita. Além disso, são recorrentes em seu texto os preconceitos lingüísticos: “sam ba do analfabetismo doido e retrógrado”; “mutações inestéticas e inúteis”; “em defesa do escrever certo, correto, sério e coerente”. As formas linguísticas que extrapolam o que é estipulado pela norma — no caso da carta do leitor, a norma ortográfica — são incoerentes, erradas, inúteis, feias, retrógradas, doidas e pró prias de analfabetos (ou, se se preferir, próprias de analfabetos doidos e retró grados). O preconceito contra a língua mistura-se ao preconceito contra o us uá rio da língua. Um argumento que pod eria ser levantado em favor do discurso do leitor da Folha é que ele fala em escrita, em defesa do escrever correto. E a língua escri ta seria mais homogênea que a oral. Outro argumento: ele fala em ortografia e esta só poderia ser pensada em relação à escrita que é homogênea. No entanto, a escrita e, consecutivamente, a ortografia também variam. Essa variação é mais lenta, menos perceptível, mas tanto a manifestação oral quanto a escrita da lín gua podem ser entendidas na concepção aqui adotada, advinda de Bakhtin: a palavra traduz os conflitos ideológicos e históricos, e se produz continuamente nos processos interativos. Obviamente, o “k” que esse leitor abomina é fruto de interferência do inglês em nossa língua, fruto de um claro processo de domínio econômico e cultural. E inevitável que essa interferência chegue à inclusão de palavras es trangeiras em nossos dicionários — das quais o “shopping ” utilizado pelo leitor é exemplar. Por outro lado, neologismos podem ser criados, mesmo que não sejam incluídos nos dicionários — atente-se para “serv serv” (ou “serve-serve”), por “self Service”. ✓
Essas formas também poderiam ser incluídas na reflexão que se faz, na escola, sobre a língua. Isso feito de forma que a língua presente “nas ruas, nos shoppings e lojas” não estivesse tão distante da imagem de língua produzida pela escola. O que se propõe não é que as normas ortográficas não sejam segui das, mas que os erros, os estrangeirismos, os neologismos sejam objeto de refle xão nas relações de ensino, de forma que, na escola, se estude uma língua viva e não uma língua morta. Nessas relações, deveria haver espaço para o apareci mento de conflitos ideológicos, de maneira que o sujeito-aluno, a partir da
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INTRODUÇÃO À UNGÜÍSTICA
internalização de várias palavras, possa lançar sua contrapalavra. Seguem-se outros exemplos de discursos sobre a língua produzidos, neste caso, por um inegável formador de opinião. f
(...) Trata-se de caso clássico da diferença entre o padrão oral e o escrito. Na fala, no dia-a-dia, a preposição simplesmente some antes do relativo “que”. “A firma que que eu meu pai trabalha”, “Anogarota estava semana passada”, “O copo bebi”, “Ele cuspiu pratoque quevocê comeu”, pornaexemplo, são cons truções freqüentes na língua oral. Ao pé da letra, o que significa “Ele cuspiu no prato que comeu”? Que o cidadão não é adepto de hábitos higiênicos. Antes de deglutir o prato (tomado no sentido lato ou no de “refeição”), dá-lhe uma sonora cusparada. Haja estômago! Para que a frase tenha o sentido desejado, é preciso acrescentar-lhe um “em”: “Ele cuspiu no pratoem que comeu”(...)29. Na semana passada, tratei do emprego do pronome relativo regido por preposi ção. A base da conversa foi uma questão do vestibular da Fuvest, de 1999. Faltou discutir esta frase: “Eis o documento____ cópia me refiro”. (...) Qual é o pronome adequado então? Tchã, tchã, tchã! Ninguém menos que um moribundo: o pronome “cujo”, que, como dizia mestre Otto Lara Resende, “bateu asas e voou”. Voou na língua do dia-a-dia, mas não na língua padrão (...)30. Pasquale Cipro Neto, em sua coluna, veste um discurso “moderno” sobre a língua: Trata-se de caso clá ssico da diferen ça en tre o pad rão oral e o es crito. Na fala, no dia-a-dia, a preposição simplesmente some antes do relativo “que Ninguém menos que um moribundo: o pronome “cujo”, que, como dizia mestre Otto Lara Resend e, “bateu a sas e voou ”. Entretanto, esse discurso não se apli ca à “língua padrão”: Voou na língua do dia-a-dia, mas não na língua padrão. Pela lógica do colunista, a língua padrão preserva formas “moribundas”. O as pecto “vivo” da língua — suas variações — lhe é negado. Veja que se produz, em falas como essa, um a imagem e quivoca da de língua padrão, já que, como se disse no início deste capítulo, a norma culta — que é tomada por base na cons tituição do padrão lingüístico — varia. Percebe-se, no primeiro texto do colunista, uma divisão estanque entre oralidade e escrita: um enunciado — “Ele cuspiu no prato que comeu” — tem um sentido quando oral e, quando escrito, muda de sentido. Ora, um falante que usa correntemente essa frase não lhe atribui o sentido indesejado citado pelo
29. Cipro Neto, P. Folha de S. Paulo, 16/09/99. 30. Cipro Neto, P. Folha de S. Paulo, 23/09/99.
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colunista; antes, seja oralmente ou por escrito, seja como ouvinte/leitor ou falante/autor, acredita que essa é uma expressão que traduz muito bem o que se quer dizer. Em outras palavras: é uma expressão que tem seu sentido cristaliz a do neste momento histórico. O “mau sentido” é fruto de uma visão muito fecha da de padrão escrito de linguagem, em que a exatidão é imprescindível, em que as variações são inadmissíveis. Esses discursos a respeito da escrita produzem uma imagem congelada dessa modalidade, que é tomada como modelo de língua. Acrescentando-se a eles os discursos que circulam via gramáticas normativas — que também são formadoras de opinião e, como se viu no início deste capítulo, tomam por língua a imagem cristalizada de uma de suas variedades — a tendência na escola é não permitir que a variedade linguística tenha aí espaço. Por outro lado, também os formadores de opinião congelam a imagem do gênero discursivo, interferindo na produção de textos na instituição escolar, agindo contra a heterogeneidade própria da linguagem. Some-se a essa política de fechamento outra, o silenciamento de sentidos em exercícios de leitura veiculados em livros didáticos, e tem-se configurada uma teia em que se pretende prender o sujeito e seu discur so, num processo (diga-se: projeto) não só de homogeneização e monologização, mas também de silenciamento do sujeito. São políticas que agem contra o movimento próprio do sujeito e sua lin guagem. Apesar de restringirem-lhe esse movimento, não são de todo bem-su cedidas. Segundo a concepção de sujeito e linguagem assumida, pode-se dizer que, ao consumir o produto produzido pelos formadores de opinião, ao internalizar suas muitas vozes, o sujeito devolve-lhes uma contrapalavra, que é necessariamente um novo produto. Mesmo que seu caráter de novidade não seja facilmente perceptível, é possível vislumbrá-lo nas entrelinhas, insinuando-se su tilmente, em táticas astuciosas (Certeau, 1990) e — por que não? — subversivas.
4.
NO CONTRAFLUXO: A CONTRIBUIÇÃO DA LINGUÍSTICA
O professor é um dos sujeitos que, ao consumir esses produtos31, desen volve essas táticas. Como este não é um texto que nasce de uma pesquisa de campo, de observação da atividade do professor nas relações de ensino, apon tam-se a seguir algumas possíveis alternativas de trabalho — táticas—; o pro-
31. Mesmo que o professor deixe de usar o livro didático, como é a proposta de muitos pedagogos lingüistas, entre eles Geraldi (1987), outros formadores de opinião (como os gramáticos, os exames vesti bulares, a mídia) continuam agindo sobre o professor, levando-o necessariamente a “consumir produtos”.
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IN TR O D ULINGUÍSTICA ÇAÃO
fessor que lê este texto perceberá que elas já fazem parte do dia-a-dia escolar. Por certo, são muitos os caminhos que o professor poderia tomar, em trabalho de artista dando nova forma ao produto consumido. Alguns deles: 1. Possibilitar o aparecimento de várias leituras de um texto oral e escrito, de forma que o aluno possa, na atividade de interpretação, lançar sua contrapalavra, isto é, fazer sua leitura. Isso seria facilitado: a) se não houvesse um questionário direci onand o as leituras; b) se houvesse respostas esperadas (no plural) e abertura para a aceita ção de inesperadas — isso só seria possível caso o professor respei tasse o universo cultural do aluno, já que é dele que emergirá essa contrapalavra; c) com a ampliação do leque de leituras do aluno, de forma que ele tenha acesso a vários universos culturais, a várias formas de lidar com a rea lidade — já é senso comum que a leit ura do mundo precede a leitura da palavra, e que uma e outra se entrelaçam. 2. Fazer da produção de textos escritos na escola uma atividade menos artificial: a) com a escrita de textos para leitores efetivos: cartas a serem enviadas efetivamente para outras pessoas, dentro e fora da escola; livros, con tos, poemas, artigos a serem lidos por outros; textos a serem usados na confecção de um jornal, tais como relato policial, relato de eventos sociais, entrevista, reportagem, editorial, crônica, piada, tira humorís tica, charge; textos que a serem usados na produção de uma revista direcionada a um público determinado etc. Em suma, recuperar a ativi dade de escrita como interlocução, diálogo primeiramente imaginário e depois real, com a presença efetiva de leitores; b) com uma leitura efetiva feita pelo professor, este agindo não só como corretor, mas como leitor real — que gosta ou não do texto, que se emociona com ele, que quer saber do que se trata etc.; c) com uma abertura na concepção do gênero, aceit ando no te xto do aluno tanto aquilo que tem aparecido no que é veiculado pela socie dade letrada, quanto o que seja possível no texto, considerando-se o objetivo do aluno, seu universo cultural, a situação de produção e recepção etc.; d) com a aprese ntação de vários textos de apoio (orais e escritos), amplian do as possibilidades do dizer do aluno, para que ele possa, cada vez
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melhor, lançar seu “fio de sol” em meio a tantos outros na tecedura da manhã. 3. Possibilitar que o aluno use com eficiência a língua em diversas situ ções e saiba refletir sobre ela. Isso seria alcançado se os alunos participassem de atividades como: a) manter contato com textos escritos/falados em diversos dialetos e graus de formalidade; b) refletir sobre as diferenças entre o texto oral e o escrito, entre dialetos, entre texto formal e informal; c) ter comentados seus textos escritos e falados, de forma que possam ter um retomo das atividades de linguagem que realizam; d) ter acesso à norma culta vigente na sociedade em que vivem; e) ter acesso à metalinguagem usada pelos gramáticos nas gramáticas normativas, às descrições e normas presentes nessas gramáticas e re fletir sobre elas. Fica claro que os três itens enumerados se relacionam. Usar com eficiên cia a língua é produzir textos orais e escritos nessa língua, é ler textos nessa língua, é conseguir expressar-se em diversas situações. Refletir sobre a língua só é possível se se mantiver contato com textos nessa língua, por meio da leitu ra; reflete-se sobre a língua utilizada por si mesmo se se discute a própria produ ção escrita/falada. Produz-se um texto, uma contrapalavra, a partir do contato com outros textos; por sua vez, a produção do texto leva à vontade de contato com outros textos, isto é, à leitura de outros textos. O trabalho com língua na escola só é possível com o entrelaçamento de diversas atividades. Como já foi dito, as atividades citadas não são srcinais, já têm uma história na escola. Essa história foi desenhada por professores e alunos, por pedagogos e lingüistas (esses dois últimos, aliados aos professores, também funcionam como formadores de opinião, mas, muitas vezes, no contrafluxo do discurso do poder, no contrafluxo das políticas de fechamento). Pois é: os discursos produzidos pelos lingüistas, ao contrário do que se propaga, não estão distantes das relações de ensino. Alguns desses discursos, entre os quais se encontram os já citados aqui, são protagonistas nessa atividade de bricolagem das estruturas de poder — ou melhor, antagonistas, no sentido daqueles que vêm no contrafluxo. Geraldi, por exemplo, organizou um livro no início dadécada de 1980 (1984) que serviu como referência para muitas das reflexões sobre ensino de língua
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INTRODU ÇÃO A LI NGUÍ STI CA
que se faz hoje; fez parte desse livro, artigo em que Geraldi propunha que se aliassem a prática de leitura, a prática de produção de textos e a análise lingüística, esta última centrada nas produções dos alunos. Para o autor, o texto deveria ser o eixo em torno do qual se construiría o próprio conteúdo de ensino de língua. Essa coletânea surgiu num momento em que vários outros trabalhos esta vam sendo desenvolvidos na convergência da Lingüística com o ensino de lín gua. Em 1977, foram publicados artigos de Lemos, Osakabe, Pécora, entre ou tros, sobre a produção de textos em vestibulares. Esses estudos contribuíram com uma refl exão sobre estratégias d e preenchimento do papel em branco — já comentadas neste capítulo — argumentação, clichês, coerência e coesão em textos escolares. Soares (1985), em texto m uito difundido, refletiu sobre o ensino de língua no Brasil e a teoria da reprodução social (Bourdieu & Passeron, 1982). A autora apontou preconceitos que circulavam, na escola, sobre a língua e seus usuár ios, sob os quais se encontravam ideologias como a ideol ogia do d om e a ideologia A proposta da autora era que, na escola, houvesse das deficiências culturais. um bidial etal ismo para a transform ação social , ao contrário de um bidialetalismo f u n c i o n a l , que desapossava o aluno de sua linguagem sob o pretexto de permi tir-lhe ascensão social. Como se vê, a autora já relacionava diretamente ensino de língua e c ontexto so cioideológico, além de apresentar proposta que incluía a presença de variedades linguísticas diferentes no interior da escola, isso sem desprestígio de uma delas. Ainda na década de 1980, estudos em diversas áreas da Lingüística rende ram publicações nas quais se refletia sobre leitura. Ver Kato (1985), Orlandi (1988), e Kleiman (1989). A leitura — prática obviamente interdisciplinar — hoje é um tema caro à Lingüística e ganhou status tal que é tema de congresso de nível nacional, o COLE (Congresso de Leitura do Brasil), o qual tem se realizado de dois em dois anos na Universidade Estadual de Campinas (Campinas-SP). Na mesma década também muito se produziu, no interior da Lingüística, sobre ensino de língua e gramática. Por exemplo, destacaram-se Ilari (1985), Luft (1985), Perini (1985), e Franchi (1988), que, ao mesmo tempo que critica vam o ensino de gramática como era então m inistrado nas escolas , apresentavam contribuições da Lingüística para as reflexões sobre esse ensino. Pode-se dizer que, na década de 1980, houve um boom da relação entre Lingüística e ensino, que culminou em publicações oficiais de subsídios a pro-
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fessores com textos produzidos no interior da Lingüfstica, cujo exemplo, em São Paulo, são os Subsídi os à proposta curricul ar de lí ngua portuguesa para o 1° e 2 og ra u s (1988). As pesquisas no interior da Lingüística continuaram avançando na mesma direção. Os estudos sobre redações de vestibulares, por exemplo, são abundan tes, ainda temas coesão coerênciafonte textuais, clichês,deproble mas enfocando de argumentação. Textoscomo escolares tême parecido inesgotável pesqui sa32. Da mesma forma, o ensino de gramática ainda é assunto de controvérsias e a Lingüfstica tem servido como uma referência para sua reestruturação33. Os Parâm etr os cu rri culares nacionai s: língua portugu esa (1997) são um exemplo de como a influência da Lingüística é patente na concepção de ensino de Língua Portuguesa hoje, de forma que interfere diretamente em texto produ zido por órgão oficial e distribuído para escolas da rede. Ver, nos parâmetros, a recomendação para se desenvolver o u s o da língua, para se estudar a língua oral, para fazer do texto o eixo dos estudos de língua — inclusive o texto do aluno, que deve ser a base para o ensino de gramática —, para se considerarem aspec tos como coesão e coerência textuais, para a necessidade de diversidade de tex to oferecidos para leitura etc. No entanto, os parâmetros vão de encontro à política do atual governo federal de distribuição de livros didáticos às escolas públicas — as recomenda ções presentes neles não são realizáveis se se pretender seguir um livro e, conseqüentemente, ter um conteúdo preestabelecido anteriormente à produção de textos realizada pelos alunos. Como o professor vai trabalhar os aspectos gra maticais que são interessantes no texto do aluno e ao mesmo tempo seguir a ordem gramatical proposta pelo livro? Como o professor vai trazer para a sala de aula textos que procurem sanar uma deficiência de leitura percebida em seus alunos e ao mesmo tempo seguir a ordenação temática e tipológica de textos proposta pelo livro? Essa é só uma das contradições presentes na escola. Na verdade, ela é formada por muitas vozes, é heterogênea. Como espaço de confrontos, lutas, revela a heterogeneidade do sujeito suas práticas sociais —que incluindo-se aí a linguagem.característica O discurso sobre ensinoe de língua, sobre língua, adentra pela escola, também é heterogêneo, como se procurou mostrar neste 32. Lara (1994), cm artigo para a revistaLeitura: teoria e prática , faz um histórico das pesquisas sobre produção de textos desenvolvidas no Brasil nas últimas dócadas. É uma boa referência, com indica ções bibliográficas. 33. A esse respeito, ver Britto (1997) e Castilho (1998).
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INTRODUÇÃO A LINGUÍSTICA
capítulo — de um lado, os formadores de opinião e suas políticas de fechamento; de outro, os lingüistas e os caminhos alternativos. Sem dúvida, são muitos os fios de galo que têm tecido nossas manhãs. Resta, agora, darmos a esse produto nosso toque de artesão.
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e ensino
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SOBRE OS AUTORES
Ana Paula Scher - Professora do Departamento de Lingüística da Universidade
de São Paulo. Mestre em Lingüística pela Universidade Estadual de Campinas, e doutoranda em Lingüística pela mesma universidade, trabalha na área de Sin taxe sob a orientação do Prof. Dr. Jairo Nunes. Em sua pesquisa de doutorado, trata da representação sintática e da interpretação semântica de sentenças com verbos leves no português do Brasil, discutindo, em especial, as sentenças com expressões do tipo “dar uma olhada”. E-mail:[email protected]
Angel Corbera Mori - Professor da graduação e pós-graduação do Instituto de Estudos da Linguagem - UNICAMP, na área de Lingüística Antropológica. Doutor em Ciências (Lingüística) pela Universidade Estadual de Campinas. Realiza pesquisa lingüística da língua Mehináku (Arawak) no parque indígena do Xingu, MT, sendo membro assessor do projeto de formação de professores índios do parque Xingu, coordenado pelo Instituto Socioambiental (ISA) e Mi nistério de Educação. Tem publicado trabalhos sobre a língua indígena Aguaruna (Jívaro) e temas que envolvem a educação intercultural e problemas de planeja mento lingüístico. Foi professor de línguas amazônicas na Universidade Nacio nal Mayor de San Marcos, em Lima, Peru, e ministrou aulas de Lingüística e Educação Indígena na Universidade Ricardo Palma (Lima, Peru) e Universida de de la Frontera (Temuco, Chile). E-mail:[email protected]
Ângela Paiva Dionísio - Professora de Língua Portuguesa do Departamento de Letras da UFPE, atuando também na pós-graduação em Letras e Lingüística da mesma universidade. Doutora em Lingüística pela UFPE, sob a orientação da Profa. Dra. Judith Chambliss Hoffnagel, trabalha em uma perspectiva interdisci-
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plinar envolvendo Análise da Conversação, Lingüística Textual e Lingüística Cultural. Tem trabalhos publicados nas áreas de Análise da Conversação, Lin güística Textual, Lingüística Cultural e Lingüística Aplicada. Atua em cursos de formação de professores de língua portuguesa em outras cidades do Estado de Pernambuco, bem como de outros Estados do Nordeste. Desenvolve, atual mente, o projeto de pesquisa “A organização textual das adivinhações” com apoio do CNPq e da FACEPE. E-mail: [email protected] - Professora de Lingüística e Língua Portuguesa da Universidade Federal do Pará. Graduada em Letras pela Universidade Federal do Pará, é Mestre em L ingüística pela U niversidade Federal de San ta Catarina e Doutora em Lingüística pela Universidade Estadual de Campinas. Tem publi cado sobre narrativas orais po pulares e, em co-autoria, sobre outros temas. Seus interesses de pesquisa são narrativas orais, gêneros textuais orais, nas perspec Anna Christina Bentes
tivas da So ciolingüística Interaci onal, da Etnografia da Com unicação e da Socio logia da Linguagem. E-mail: [email protected] - Psicólogo e pro fessor de Psicologia e Psicolingüística da Universidade de Fr anca. É mestrando em L ingüíst ica pe lo IEL - UNICAMP, sob a orientação da Profa. Dra. M aria Irma H adler Coudry, na área de Neurolingüística. Tem pesquisado áreas fronteiriças da Psicologia e da Lingüística e publicado artigos versando sob re estas mesm as áreas. E-mail : [email protected]
Ari Pedr o Balieiro Jr.
- Profe ssora de Lingüística da Universidade Estadual de Cam pinas, atua na graduação e na pós-graduação do Instituto de Estudos da Lingua gem. Atua também na pós-graduação da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas, no curso de Neuropsicologia. Mestre e Doutora em Lingüística pela Universidade Estadual de Campinas, realizou par te de seu doutoramento na França, na Université de Sorbonne-Nouvelle (Paris III) e n o Centre Paul B roca (INSE RM). Autora de várias publicações na área de Neurolingüística, é pesquisadora do CNPq e da FAPESP. Seus interesses de pesquisa estão voltados para as relações entre linguagem, cérebro e cognição e também para os processos de significação em uma perspectiva enunciativodiscursiva. E-mail: [email protected] Edwiges Morato
- Professora de Lingüística no Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP desde 1973. Foi chefe do Departamento de Lingüís tica e coordenadora dos program as de mestrado e doutorado em Lingüísti ca da mesma universi dade. Mestre pela UNICA MP e PhD pela Univers idade de Lon Ester Mirian Scarpa
AUSOBRE T OO SR ES
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dres, Inglaterra, foi pesquisadora visitante do Centro de Ciências Cognitivas da Universidade de Oxford (1996) e do Depa rtment o f Speech da Universidade de Newcastle, Inglaterra (1998). Organizou o livro Estudos de Prosódia , publica do pela Editora da UNICAMP, em 1999. Seus principais interesses de pesquisa são aquisiçã o da linguagem, prosódia (ritmo e entonação) e prosódia na fala de cerébro-lesados. E-mail: [email protected] Fernanda Mussalim - Professora de Lingüística e Língua Portuguesa da Univer sidade de Franca (SP). Mestre em Lingüística pela Universidade de Campinas e doutoranda em Lingüística na área de Análise do Discurso pela mesma universi dade, sob a orientação do Prof. Dr. Sírio Possenti. Sua dissertação de mestrado aborda a questão da heterogeneidade discursiva e do jogo de imagens em propa gandas destinadas ao público feminino. Em sua tese de doutorado se propõe a verificar a extensão da noçãoE-mail: de semântica global para outros domínios que não o essencialmente lingüístico. [email protected] Filomena Sândalo - Professora visitante do Departamento de Lingüística da Universidade Estadual de Campinas e pós-doutoranda no mesmo departamen to. Doutora pela Universidade de Pittsburgh e pós-doutora pelo Massachusetts Institute o f Technology, onde trabalhou sob a orientação de S arah Thomason e Kenneth Hale, respectivamente. Seu trabalho tem como perspectiva a teoria gerativa. A autora tem publicado regularmente no Brasil e Estados Unidos nas áreas de Morfologia, Fonologia e Sintaxe. Seu trabalho de doutorado e pósdoutorado tem como foco (i) a morfossintaxe de línguas polissintéticas (tema da tese de doutoramento), (ii) a descrição de línguas indígenas brasileiras e (iii) a prosódia do português brasileiro e europeu. E-mail: [email protected] . Gladis Massini-Cagliari - Professora do Departamento de Lingüística, área de Língua Portuguesa, da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista Júl io de M esquita Filho (UNESP), campus de Araraquara. Graduou-se em Letras pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) em 1987, ob tendo, nessa mesma Universidade, seus títulos de Mestre em Lingüística, na área de Fonética e Fonologia, em 1991, e de Doutora em Ciências, na área de Lingüística Histórica, em 1996. Ao lado do seu projeto principal de pesquisa, na área de Lingüística Histórica, tem atuado nas áreas de Fonética e Fonologia e Alfabetização. Nessas duas áreas do conhecimento lingüístico, é autora de quatro livros e de diversos artigos, publicados no Brasil e no exterior. No mo mento, dedica-se a investigar aspectos da fonologia do português arcaico, por
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meio da análise dos sons e dos ritmos das cantigas medievais galego-portuguesas. E-mail: gladis @lexxa.com.br
Joana Plaza Pinto - Mestre em Lingüística pela UNICAMP. Atualmente, como bolsista da FAPESP, é doutoranda em Lingüística nesta mesma instituição sob a orientação do Prof. Dr. Kanavillil Rajagopalan. Parte dos seus estudos doutorais está sendo desenvolvida na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, França, sob a orientação do Prof. Dr. Jacques Derrida. Envolvida em pesquisas lingüísticas desde 1993, tem desenvolvido linha de inquirição dedicada à lin guagem ordinária, sempre preocupada em debater aspectos imprevisíveis consi derados como “erros” do uso lingüístico, como o mal-entendido e o discurso ordinário sobre a linguagem. E-mail: [email protected] /
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Luiz Carlos Cagliari - Foi profes sor de Fonética e Fonologia do Departamento de Lingüística do Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP, de 1974 a 1996, estando atualmente aposentado. Graduou-se em Letras Neolatinas pela Universidade Católica de Campinas (1966), defendeu tese de mestrado no De partamento de Lingüística do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP (1974) e obteve o título de PhD em Lingüística (Fonética) junto ao Departamento de Lingüística da Universidade de Edimburgo, Escócia (1978). Fez sua livre-docência em 1982, na UNICAMP e um pós-douíorado junto a School Oriental and African Studies da Universidade de na Londres, em 1987. Obteve of o título de Professor Tit ular de Fonética e Fonologia UNICAMP, em 1992. Desde 1978, tem desenvolvido projetos com o apoio do CNPq. Suas prin cipais linhas de pesquisa têm sido: (i) Fonética e Fonologia; (ii) sistemas de escrita; (iii) alfabetização e ensino de português. Nessas três áreas de investiga ção, é autor de cinco livros publicados no Brasil e de vários artigos publicados no Brasil e no exterior. E-mail: [email protected]
Marina Célia Mendonça - Professora de Lingüística no Departamento de Le tras da Universidade de Franca (SP) e professora do curso de pós-graduação lato sensu, na área de Língua Portuguesa, na mesma universidade. Graduou-se em Letras pela Universidade Estadual de Campinas (SP), onde também fez mestrado na área de Lingüística. Em sua dissertação de mestrado, realizada na área de Análise do Discurso, sob a orientação do Prof. Dr. João Wanderley Geraldi, apresentou um estudo sobre o silenciamento de sentidos em livros di dáticos. Atualmente desenvolve pesquisas na mesma área na Universidade de Franca. E-mail: [email protected]
SOBRE OS AUTORES
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Marina R. A. Augusto - Mestre em Lingüística pela Universidade de Campi nas e doutoranda em Lingüística na área de Sintaxe pela mesma universidade, sob a orientação do Prof. Dr. Jairo Nunes. Em sua tese de doutorado se propõe a oferecer uma análise minimalista à questão das restrições de movimento, com enfoque particular sobre a ilha factiva. E-mail: [email protected] Nilson Gabas Jr. - Pesquisador do CNPq/Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém, Pará. Doutor em Lingüística pela Universidade da Califórnia, Santa Bárbara (UCSB), sob a orientação de Marianne Mithun e Wallace Chafe, na área de línguas indígenas. Suas publicações, tanto nacionais quanto internacio nais, tratam de descrever e analisar aspectos estruturais (fonético, fonológico, morfológico, sintático), discursivos e de classificação lingüística de línguas in dígenas. Sua tese de doutorado foi uma gramática da língua Karo (Arara de Rondônia). E-mail: [email protected] Roberta Pires de Oliveira - Professora de Lingüística e Língua Portuguesa da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisadora do CNPq. Mestre em Lingüística pela Universidade de Campinas e Doutora em Lingüística pela Katholieke Universite Leuven (Bélgica). Trabalhou na dissertação de mestrado e na tese de doutorado com o tema da metáfora de um ponto de vista lingüísticofilosófico. Atualmente, desenvolve pesquisa na área de Semântica, Filosofia da Linguagem e tem um interesse especial por questões em epistemologia da Lin
güística. Publicou o livro Semântica form al: uma introdução , pela Mercado de Letras. E-mail: [email protected] Roberto Gomes Camacho - Professor e pesquisador do Departamento de Teoria Lingüística e Literária do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da UNESP, campus de São José do Rio Preto, nas áreas de Sociolingüística e Sintaxe Funcional. Mestre em Lingüística pela Universida de Estadual de Campinas e Doutor em Letras (área de Lingüística e Língua
Portuguesa) pela Universidade Estadual Paulista, campus de Araraquara. E-mail: [email protected] Rosane de Andrade Berlinck - Professora de Língua Portuguesa da Universi dade Estadual Paulista (UNESP), campus de Araraquara. Mestre em Lingüísti ca pela Universidade Estadual de Campinas e Doutora em Lingüística pela Katholieke Universite Leuven (Bélgica), na área de Sintaxe Históric a. Tem tra balhado sobre a sintaxe do português brasileiro e europeu, com especial ênfase
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nos processos de variação e mudança por que passaram/passam essas varieda des. E-mail: berlinck@ fclar.unesp.br Tania Maria Alkmim
- Professora do Departamento de Lingüística do Instituto
de Estudos da Linguagem, UNICAMP. Mestre em Lingüística pela UNICAMP, na área de Sintaxe do português. Doutorado em Lingüística pela Universi té Paris V (Sorbonne), na área de Sociolingüística, sobre uma comunidade crioulofone da cidade de Zinguinchor, sul do Senegal, que fala um crioulo de base portuguesa. Pós-doutorado na Unité Mixte de Reserche Langues, Langage e Cultures d’Afrique Noire, Paris. Publicou, em co-autoria com Fernando Tarallo, o livro Falares crioulos. Seus principais interesses de pesquisa são as línguas crioulas, sociolingüística do português e etnolingüística. E-mail : [email protected]
Joana Plaza Pinto é doutora em Lin-
güística pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Parte de seus estudos doutorais foi desen volvida na École des Hautes Études em Sciences Sociales, França, sob a orientação do Prof. Jacques Derrida. Marina Célia Mendonça é profes
sora de Lingüística e Lingüística Aplicada ao Ensino de Língua Ma terna na Universidade de Franca (SP) e doutoranda em Lingüística na Universidade Estadual de Cam pinas (UNICAMP). Roberta Pires de Oliveira é douto
ra em Lingüística pela Katholieke Universiteit Leuven (Bélgica) e pro fessora de Lingüística e Língua Por tuguesa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Sobre as organizadoras Fernanda Mussalim é professora de Lingüística da Universidade Fe deral de Uberlândia (UFU). é professo Anna Christina Bentes ra de Lingüística da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
A
importante coletânea que a Cortez Editora òra assume o desafio de trazer a público — INTRODUÇÃO À LIN— vem, sem dúvida, GÜÍSTICA: domínios e fronteiras preencher uma grande lacuna no cenário editorial brasileiro. Os diversos textos que compõem o livro, escritos por pesquisa dores altamente gabaritados em suas respectivas áreas de especialização , cobrem as diversas ramificações da Lingüística, aqui entendida como a ciência da linguagem verbal humana, desde as mais tradicionais — o chamado “núcleo duro” dessa ciência, do qual fazem parte a fonologia, a morfologia, a sintaxe — até as que, paulatinamente, foram sendo incorporadas — como foi o caso, entre outras, da psicolingüística, da sociolingüística, da análise do discurso, da lingüística textual, da neurolingüística. Estou plenamente convencida de que a obra atingirá os objeti vos aos quais as organizadoras se propuseram, ou seja, o de preparar o terreno dos seus leitores para um posterior contato mais aprofundado com textos que se ocupam dos fenômenos da linguagem, bem como o de tornar acessíveis a leitores ini ciantes ou não-especialistas as várias perspectivas sob as quais vem sendo empreendido o estudo da linguagem humana. Para tanto, os textos propiciam uma leitura agradável, apresen tando uma linguagem clara e didática, sem cair em reducionismos que poderíam prejudicar a apreensão da natureza e da complexidade dos fenômenos examinados. Para que o leitor tenha uma visão de conjunto global e coerente, seria de recomendar-se a leitura de todos os textos que com põem os dois volumes desta coletânea, evidentemente na ordem em que lhe aprouver e que mais vier a satisfazer seus objetivos e interesses. Gostaria, enfim, de cumprimentar as organizadoras e os autores dos vários textos pela relevância da empresa em que se enga jaram, bem como Cortez Editora, pelo apoio de à concretização desse projeto, que,a com certeza, será coroado pleno sucesso. Ingedore Grunfeld Villaça Koch
C O RTEZ
EDITORA