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tiva dos programas oficiais do liceu: Platão , Descartes e Kant, A república e sua caverna de Icleias, o Discurso do método e a substância pensante, depois a Crítica da razão pura , com seus
fenômenos, decerto, mas principalmente com seus númenos, reencarnação germânica da Ideia platônica. Com isso, dá para vender a ilusão do diverso e entregar um mesmo mundo chamado por outro nome... 3 Uma contra-história da filosofia Para construir esse jardim tão lindo com alamedas lim pinhas e arbustos bem cortados, é preciso cortar muito, podar, talhar. O relevo dado a este ou àquele autor, a certo pensamento em vez de outro, o realce de uma corrente, a instalação de todo o aparato útil para fazer triunfar sua tese constrangem a relegar nomes, teses, livros, conceitos ao porão... Pôr à luz aqui supõe guardar no esquecimento ali: existe no entanto nesses quartos de despejo um material considerável, inexplorado. O objeto do meu curso na Universidade Popular de Caen ver La communauté philosophique [A comunidade filosófica] propõe exumar essa historiografia alternativa. Portanto, a historiografia esqueceu, negligenciou no melhor dos casos; fez silêncio, conscientemente ou não; às vezes organizou essa marginalização; de tempos em tempos, o preconceito auxiliando, o questionamento não se faz: não se tomou o costume de considerar os cínicos como filósofos, aliás Hegel põe isso pretom>4mwK;o: a respeito deles só existem anedotas... Os sofistas? Até reabilitações recentes, eram vistos com os olhos de Platão: mercenários da filosofia para os quais a verdade não existe e aos olhos de quem só conta o que tem êxito! Tudo para evitar ver a modernidade desse pensamento do relativismo, do perspectivismo, do nominalismo, numa palavra: do antiplatonismo! Os agentes da historiografia tradicional realizam o incrível sonho de Platão: os fatos se encontram em Diógenes Laércio Vida, doutrinas e sentenças dos filósofos ilustres (IX, 40) e acho singular que nunca se trate filosoficamente dessa
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história. De fato, Platão aspirava acender um grande braseiro para nele precipitar todos os livros de Demócrito! A soma considerável de obras, seu sucesso, a presença de seus textos em muitos lugares levaram dois pitagóricos Amiclas e Clínias a dissuadir Platão de cometer esse feito. Um filósofo inventor do auto de fé moderno... f" Assim, dá para entender por que, em todas as obras de Platão, o nome de Demócrito não é citado uma só vez!;Esse esquecimento vale por um auto de fé conceituai: porque a importância da obra e, mais ainda, da doutrina em melhores condições de pôr em dificuldade, ou mesmo em perigo, as fabulações de Platão, supunha uma explicação nítida e franca, honesta, intelectual. O parti pris antimaterialista do platonismo se manifesta ainda em vida do filósofo: a lógica da historiografia clássica e dominante repete esse tropismo: nem pensar em conceder qualquer dignidade a essa outra filosofia, sensata, racional, antimitológica e verificável pelo bom senso que tantas vezes falta nos filósofos... A continuação parece escrita: Epicuro e os epicurianos, reativando o materialismo do homem de Abdera, deflagram o tiroteio dos partidários do idealismo. N ão faltam calúnias contra o filósofo do Jardim, e isso ainda em vida dele: grosseiro, lu xurioso, preguiçoso, glutão, beberrão, comilão, desonesto, ga stador, malevolente, maldoso, ladrão de ideias alheias, arrogante, soberbo, pretensioso, inculto, etc. Numa palavra, um porco indigno de figurar, ele e seus discípulos, no Panteão dos filósofos. A calúnia sobre a obra persiste: a ataraxia que define o prazer, a saber, a ausência de perturbação obtida por um sábio e dosado uso dos desejos naturais e necessários se torna volúpia trivial de animal abandonado ao seu gozo mais brutal. O atomismo que reduz o mundo a uma combinação de átomos no vazio passa por uma incapacidade de dispor de uma inteligência digna desse nome. A acolhida no Jardim de escravos, mulheres, estrangeiros lhe vale a reputação de arrastar para lá essas presas da sua sexualidade desenfreada, etc. E vinte séculos de pensamento retomam essas calúnias por sua conta sem mudar uma vírgula.
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I Na Antiguidade, a contrahistória da filosofia parece fácil: ela reúne todos os inimigos de Platão! Ou quase... Leu cipo, o fundador do atomismo, Demócrito, como vimos, An tístenes, Diógenes e outros cínicos, Protágoras, Antífon e o punhado de sofistas, Aristipo de Cirene e os cirenaicos, Epicuro e os seus gente fina. Mais tarde, como contraponto à íicção cristã construída a partir do personagem conceituai chamado Jesus, aos Padres da Igreja preocupados em fornecer o material ideológico para o devir cristão do império e aos escolásticos medievais, podemos tirar da sombra em que apodrecem os gnósticos licenciosos Carpócrates, Epifânio, Simeão, Valen tino... , seguidos dos Irmãos e Irmãs do Livre Espírito Ben tivenga de Gubbio, Heilwige Bloemardinne, os irmãos de Brünn e outros exaltados... Obscuros desconhecidos muito mais estimulantes porém, com seu panteísmo teórico e suas orgias filosóficas práticas, do que os monges do deserto, bispos contritos, cenobitas de mosteiro e outros... Mesmas observações no que concerne à constelação do epicurismo cristão inaugurada por Lorenzo Valia no Quat trocento (com um De voluptate nunca traduzido em francês em quatro séculos, até essa lacuna ser reparada por uns amigos a quem avisei...), ilustrada por Pierre Gassendi e passando por Erasmo, Montaigne e alguns outros dos libertinos barrocos franceses Pierre Charron, La Mothe Le Vayer, SaintEvre mond, Cyrano de Bergerac... dos materialistas franceses o abade Meslier, La Mettrie, Helvétius, Ho lbach... dos utili taristas anglosaxões Bentham, Stuart Mill dos ideólogos interessados pela fisiologia Cabanis dos transcendentalis tas epicurianos Emerson, Thoreau dos genealogistas des construtores Paul Rée, Lou Salomé, JeanMarie Guyan; dos socialistas libertários, nietzschianos de esquerda Deleuze, Foucault e tantos outros discípulos da volúpia, da matéria, da carne, do corpo, da vida, da felicidade, da alegria, todas elas instâncias culpadas! O que se recrimina a essa gente? Querer a felicidade na terra, aqui e agora, e não mais tarde, hipoteticamente, em
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outro mundo inalcançável, concebido como uma ficção para crianças. J A imanência, eis a inimiga, o palavr ãoljOs epicu rianos devem seu apelido de porcos ao fato de que sua compleição fisiológica os determina: sua existência gera sua essência. Não podendo agir de outro modo que como amigo da terra conforme a feliz expressão do Timeu de Platão... , esses materialistas se condenam a remexer o chão com o focinho sem nem sequer saber que acima da sua cabeça existe um Céu repleto de Ideias. O porco ignora para sempre a verdade, porque somente a transcendência conduz a ela, e os epicurianos apodrecem ontologicamente na mais total imanência. Ora é só isto que existe: o real, a matéria, a vida, o vivo. E o platonismo declara guerra contra tudo isso e persegue com sua vindita tudo o que celebra a pulsão de vida. O ponto comum a essa constelação de pensadores e de pensamentos irredutíveis? Uma formidável preocupação em desconstruir os mitos e as fábulas para tornar este mundo habitável e desejável. Reduzir os deuses e os temores, os medos e as angústias existenciais a encadeamentos de causalidades materiais; domesticar a morte com uma terapia ativa aqui e agora, sem convidar a morrer em vida para melhor partir quando chegar a hora; construir soluções com o mundo e os homens efetivos; preferir modestas proposições filosóficas viáveis a construções conceituais sublimes, mas inabitáveis; recusarse a fazer da dor e do sofrimento vias de acesso ao conhecimento e à redenção pessoal; proporse o prazer, a felicidade, a utilidade comum, o contrato jubiloso; compor com o corpo em vez de propor detestálo; domar paixões e pulsões, desejos e emoções, em vez de extirpálos brutalmente de si. A aspiração ao projeto de Epicuro? O puro prazer de existir... Projeto sempre atual.