ESPECIAL | NOVAS ESTRATÉGIAS PARA VENCER A DOR CRÔNICA ANO XII
OBESIDADE Cirurgia bariátrica muda o corpo, mas não evita angústia
NEUROCIÊNCIA psicologia
psicanálise
neurociência
Os códigos secretos da memória
SAÚDE
9 771807 156009
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ISSN 1807-1562
00294
O tempero que combate Alzheimer e Parkinson
Atitudes aparentemente simples podem ter grande impacto sobre os efeitos graves da sobrecarga no trabalho e na vida pessoal
para enfrentar o
estress e
carta da editora
A dose certa
U
m pouco de estresse faz bem. Quando nos preparamos para expor um ponto de vista, fazer uma viagem tão sonhada ou apresentar um projeto numa reunião profissional, a resposta cerebral entra em ação para aguçar a atenção, o estado de alerta e nossa predisposição para “lutar ou fugir”. Nos primórdios da evolução humana, para sobreviver era preciso enfrentar feras. Hoje, grande parte dos embates ocorre no dia a dia e, em especial, no ambiente profissional. Daí a conclusão, bastante compreensível, de que a sensação de nos sentirmos pressionados, capaz de operar transformações físicas e mentais “necessárias” para a sobrevivência, pode ser benéfica. Mas, como sabiamente disse Paracelso (pseudônimo do médico, físico e alquimista alemão nascido no século 15 Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim), “a dose certa diferencia um veneno de um remédio”. Ou seja: se a sobrecarga é muito frequente, a mente e o corpo sofrem com o excesso – e aí surgem as manifestações patológicas que, em casos extremos, podem levar à morte. Embora a maneira como ocorre esse processo (mais letal para uns que para outros) e as formas de evitá-lo ainda intriguem especialistas, várias pesquisas têm mostrado que medidas cotidianas aparentemente simples têm efeitos tanto psíquicos quanto bioquímicos importantes, capazes de aliviar e reverter sintomas provocados pela exaustão mental e emocional continuada. Obviamente, a responsabilidade não pode ser atribuída exclusivamente ao sujeito. Como acontece com qualquer epidemia, o estresse não tem influência apenas sobre os indivíduos – também estão envolvidos aspectos culturais, sociais e econômicos. Estima-se que o prejuízo decorrente de faltas no trabalho, baixa produtividade, acidentes e doenças em decorrência do problema chegue a algumas centenas de bilhões de dólares. No Brasil não há estatísticas oficiais, mas certamente a situação seria é melhor se organizações investissem numa “educação para a diminuição dos índices do estresse”, incentivando a autonomia e a criatividade dos profissionais, e oferecessem rotinas mais flexíveis. Enquanto essa consciência não é disseminada, cabe a cada pessoa se perguntar, com alguma periodicidade, quais são suas prioridades. Esta edição de Mente e Cérebro apresenta maneiras eficientes, cientificamente comprovadas, de lidar com o desgaste excessivo e evitar que a “medicação”, que deveria nos impulsionar à vida, se torne mortal. É tudo uma questão de dose e cuidado consigo mesmo. Boa leitura!
GLÁUCIA LEAL, editora-chefe
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sumário | julho 2017 CAPA: SHUTTERSTOCK/FVAL
capa
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Como a ciência pode ajudar você a vencer o por Joachim Retzbach A pressão crônica pode causar graves problemas de saúde física e mental. Várias pesquisas recentes mostram, porém, que algumas atitudes nos permitem relaxar e, mesmo em condições externas desfavoráveis, preservar o próprio bem-estar
28
Por que elas
sofrem mais? por Debra A. Bangasser Respostas de homens e mulheres ao esgotamento físico e emocional são biologicamente diferentes, mesmo no nível celular mais básico. Além de levar em conta os aspectos sociais que as expõem frequentemente a situações de pressão emocional, é preciso considerar especificidades quando se estuda transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), ansiedade e depressão
A desconstrução da
dor
Associada a sintomas depressivos, a sensação dolorosa constante compromete as interações sociais e afetivas, a capacidade produtiva e intelectual. Cada vez mais especialistas concordam que, mesmo potentes, os medicamentos muitas vezes não são suficientes e é preciso recorrer a outras técnicas, que ajudam a ressignificar psiquicamente a experiência
58 Repensando o alívio 68 Internet para lidar com a dor 4
por Tori Rodrigues
Metais têm efeito poderoso sobre nossos estados de humor; o excesso ou a falta de determinados compostos podem trazer efeitos nocivos
36 Palpite, dúvida ou certeza Experimentos revelam como o grau de confiança naquilo que percebemos ou pensamos influi diretamente em nossas opiniões, apostas e decisões
38 Cirurgia altera cérebro, mas não aplaca angústia
especial
57
14 Além da tabela periódica
Relação com o alimento pode sofrer mudanças no nível neurológico, mas, se conflito que leva à compulsão não for tratado, sintomas aparecem de outras maneiras. Muitas vezes, surgem ou se agravam quadros psiquiátricos como ansiedade, compulsão e depressão – apesar do corpo magro tão almejado
44 Os misteriosos códigos da memória por Rodrigo Quian Quiroga, Itzhak Fried e Christof Koch
Em meio a debates a respeito de como as recordações são armazenadas, duas teorias científicas rivais destacam-se. Uma sugere que cada conceito, pessoa ou coisa de nossa experiência diária está associado a um neurônio específico. A outra hipótese afirma que recordações são distribuídas por milhões de neurônios. Vários experimentos recentes revelam, porém, que pequenos conjuntos de células cerebrais são responsáveis pela decodificação mnêmica
seções
podcast
3
Vale a pena ouvir
CARTA DA EDITORA
6 PALAVRA DO LEITOR
8 ASSOCIAÇÃO LIVRE Notas sobre atualidades, psicologia e psicanálise
11 NA REDE O que há para ver e ler na internet
52 CIÊNCIA PARA VIVER MELHOR
Tempero do bem por Gary Stix
Uma parceria entre o podcast Mentalistas (antes veiculado pela Rádio Estadão) e Mente e Cérebro é mais uma oportunidade para acompanhar temas das áreas de comportamento e saúde mental. Criado e apresentado pela jornalista e psicóloga Camila Tuchlinski, o programa recebe semanalmente especialistas para discutir, de forma clara e acessível, os mais variados temas relacionados a psicologia, psicanálise e neurociência. A partir de julho, a psicanalista e jornalista Gláucia Leal, editora-chefe de Mente e Cérebro, fará participações quinzenais no Mentalistas. Ouvintes podem baixar a edição em dispositivos móveis (celulares, tablets e laptops). Os novos conteúdos são publicados todas as terças-feiras, às 10h, no portal do jornal O Estado de S. Paulo (http://brasil.estadao.com.br/blogs/estadao-podcasts).
especial digital Para entender a criatividade Embora durante muito tempo a capacidade de ter boas ideias tenha sido considerada uma espécie de dom, hoje se sabe que é possível cultivar processos mentais que ajudam a expandir esse potencial. O especial digital Mente e Cérebro 59 – Criatividade trata desse assunto. Alguns especialistas defendem que mesmo as pessoas geniais talvez não se destacassem se tivessem vivido em A construção da outro contexto. No artigo “De repente, um clique”, os pesquisadores Günther Knoblich e Michael Öllinger mostram como funciona o insight, uma compreensão repentina que se transforma em conhecimento. Em “Produção coletiva”, os autores argumentam que a originalidade não é mérito de um único indivíduo. Grupos, portanto, desempenhariam papel essencial na criação. Por outro lado, opiniões de outras pessoas podem inibir a criatividade. Leia mais em Mente e Cérebro 59 – Criatividade. Acesse lojasegmento.com.br. EDIÇÃO ESPECIAL ANO X I
76 LIVRO 9 lições sobre arte e psicanalise por Erane Paladino
78 LIVROS/LANÇAMENTOS
82 NEUROCIRCUITO Padrões mentais Novidades nas áreas de psicologia e neurociência
psicologia • psicanálise • neurociência
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criatividade • O que atrai boas ideias • O papel dos grupos no processo criativo • Como a paixão nos impele a criar
colunas 12 PSICANÁLISE Amar e trabalhar
Acompanhe a @mentecerebro no Instagram Saiba com antecedência qual será o tema da capa da próxima edição
por Christian Ingo Lenz Dunker
80 LIMIAR Guerra e paz no país dos desinformados por Sidarta Ribeiro
www.mentecerebro.com.br NOTÍCIAS Notas sobre fatos relevantes nas áreas de psicologia, psicanálise e neurociência. AGENDA Programação de cursos, congressos e eventos. A localização das estruturas cerebrais nas imagens desta edição é apenas aproximada Os artigos publicados nesta edição são de responsabilidade dos autores e não expressam necessariamente a opinião dos editores
julho 2017 • mentecérebro
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Em primeiro lugar ESPECIAL | AD OLESCENTES E parabenizo pela SUICÍDIO temática sobre o cuidado apresentada pela revista Mente e Cérebro, edição 293, de junho, que trouxe uma visão muito aprofundada Como aliviar o estresse e o risco de adoecimento e interessante, de quem se dedica a prestar possibilitando assistência a um ente querido reflexão e idoso ou doente conhecimento sobre questões tão pertinentes à noss contemporaneidade. Particularmente, me interessou muito a reportagem de capa porque estou desenvolvendo uma tese sobre o tema do cuidado e penso que o assunto deveria ser trabalhado nas escolas. Minha proposta é justamente pesquisar sobre a importância de propiciar o cuidado para cuidadores como uma disciplina no currículo em cursos de ciências da saúde e educação. Acho fundamental esse alerta que foi inserido na reportagem sobre como o assunto é essencialmente preventivo na dimensão social também. Creio na necessidade de ampliar essa discussão sobre o papel desempenhado tanto pelo profissional da saúde quanto pelo educador. Simone Andrade – São Paulo, SP
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MENTE E CÉREBRO
Presidente: Edimilson Cardial Diretoria: Carolina Martinez, Marcio Cardial e Rita Martinez
A A capacidade do cérebro de se acostumar à desonestidade EMOÇÃO
Quando a empa tia causa mais prejuízo que benefício
HÁBITO
Biologia pode explicar a mania de adiar tarefas
cuidados
para quem
cuida
MUDAR HÁBITOS Vocês tocaram na edição 293, de junho, num ponto que tenho pensado muito: de que maneira o cérebro se acostuma com os comportamentos, como por exemplo a desonestidade, que é o foco do texto trazido pela Mente e Cérebro. Quanto mais uma pessoa mente, como diz a reportagem, mais ela desenvolve uma espécie de aptidão para a mentira. Se é assim, então está na nossa mão escolher o que faz bem e fazer um “treino de cabeça” no que queremos. Minha sugestão é que a revista também dê prioridade ao que traz coisas boas e faça uma bela reportagem sobre desenvolvimento de hábitos positivos. Os psicólogos devem ter novidades sobre isso. Célia Barreto – Santos, SP
JEJUM I O artigo sobre jejum me fez pensar nas imposições que recebemos da indústria e da mídia em relação ao que aprendemos a gostar de comer, adotando preferências que não questionamos e tomamos como nossas sem pensar muito no que está por trás disso. Com isso temos um paladar infantilizado, que privilegia o que nos traz um prazer imediato e não o que faz bem. A quantidade de alimentos de que precisamos também deveria ser questionada. Fico pensando que as pessoas deveriam ingerir o que de fato precisam (não para apaziguar as
carências e manter os hábitos e as dependências), para ter uma relação mais saudável com o alimento, tanto do ponto de vista físico quanto mental; seria preciso repensar, por consequência, os modos de produção, as estratégias econômicas e até nossos desejos e necessidades. Maria Cristina Passos São Paulo, SP JEJUM II Penso que jejuar é privilégio, se pensarmos nos milhões de famintos no mundo. Maria Angela Vasconcellos Belo Horizonte, MG
CORPO Gosto muito quando Mente e Cérebro traz artigos sobre a relação mais específica do corpo com os processos mentais. Se puderem fazer mais coisas sobre esse assunto será muito bom. Juliana Siqueira São Paulo, SP CRIATIVIDADE Parabéns pela edição digital sobre criatividade. Material de excelente qualidade! Valter R. Fortaleza, CE
CONCURSO CULTURAL: ESCREVA E GANHE UM LIVRO! Mande sua opinião sobre um dos artigos desta edição para o e-mail
[email protected] ou uma sugestão e concorra a um livro. Por limitação de espaço, tomamos a liberdade de selecionar e editar as cartas recebidas. A premiada deste mês é Simone Andrade – São Paulo, SP
XEXPOSIÇÕES
Retratos dos bastidores dos bordéis de Paris Destaque do projeto sobre sexualidade do Masp, eixo temático do museu em 2017, mostra reúne telas emblemáticas de Henri de Toulouse-Lautrec, além de cartas que tratam de deficiência física, o abuso de álcool e a internação psiquiátrica
henri de toulouse-lautrec, repos pendant le bal masqué (repouso durante o baile de máscaras),1899. óleo e guache sobre cartão, 56 x 39 cm. denver art museum
E
REPOUSO DURANTE O BAILE DE MÁSCARAS (1899): o dia a dia das profissionais do sexo e a homossexualidade feminina foram temas centrais de sua trajetória 8
m outubro, o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp) exibe pela primeira vez no Brasil uma grande mostra com telas e documentos pessoais do pintor Henri de Toulouse-Lautrec (1864-1901). Filho de um casal de aristocratas, morto com apenas 36 anos, passou a maior parte da vida dentro dos bordéis da Paris do século 19, um período no qual artistas de todo o mundo buscavam a capital francesa para trabalhar e viver a vida noturna. Assíduo em casas de entretenimento e prostituição, como o Moulin Rouge, o artista passava as noites observando a movimentação, por vezes ajudando a servir nos bares – mas sua maior inspiração foi o cotidiano das “horas mortas” do dia, quando as profissionais do sexo descansavam, se aprontavam para a noite e cuidavam de suas tarefas comuns. Toulouse-Lautrec, que não raro morava nessas casas, retratou com olhar atento e sensível os bastidores do mercado do sexo, tendo como temas centrais o dia a dia das prostitutas e dançarinas e a homossexualidade feminina. O título da exposição, Em vermelho, faz menção a um dos salões que o artista frequentou e foi cenário de suas obras. Deficiente físico, o artista tinha uma síndrome rara de origem genética que afetava o desenvolvimento ósseo e impediu que suas pernas crescessem, ficando com estatura de pouco mais de um metro e meio – distúrbio que posteriormente ficou conhecido na comunidade científica pelo nome do pintor. De saúde frágil, abusava do álcool e, nos últimos anos de vida, foi internado
henri de toulouse-lautrec, rolande, 1894. óleo sobre cartão, 55,8 x 75,5 cm. fundação bemberg – toulouse
associação livre
ROLANDE (1894) e A grande Maria (1886), abaixo: produções do período em que o pintor morou e trabalhou em casas noturnas
henri de toulouse-lautrec, la grosse maria (a grande maria), 1886. 79 x 64 cm. von der heydt-museum wuppertal, alemanha
em uma instituição psiquiátrica por surtos de violência e sintomas de piromania, que lhe causaram sérias queimaduras, como relata sua biógrafa Julia Frey, que fez uma pesquisa profunda de cartas trocadas pelo artista com a mãe e amigos. Ela identificou nos relatos do artista um profundo interesse por tudo que parecia feio, disforme e oculto, tecendo relações entre aspectos da vida de Toulouse-Lautrec e sua obra. Cerca de 50 documentos pessoais do artista, como cartas e fotografias, fazem também parte da exposição, que traz obras emblemáticas, como O divã (1893), com prostitutas numa atitude melancólica à espera de seus clientes no bordel ainda fechado, e Rolande (1894), com duas mulheres num momento de intimidade sexual, além de cartazes que o artista produziu para fazer propaganda dos bordéis, que se tornaram símbolo do art nouveau. Toulouse-Lautrec em vermelho. Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp). Avenida Paulista, 1578, São Paulo. De terça a domingo, das 10h às 18h; quinta, das 10h às 20h. R$ 30. Informações: (11) 3149-5959. Até 1º de outubro.
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associação livre
A ARTISTA PLÁSTICA LUISE WEISS criou colagens, desenhos e pinturas usando fotografias antigas e objetos de parentes
divulgação
recordações de família – fotos, objetos, roupas, filmes. Um exemplo é a série de colagens Vestígios, criada sobre uma caixinha com bitucas de cigarro, única lembrança do tio-avô Pepi, morto na Primeira Guerra Mundial, trazida à família por um companheiro de batalha. Já as obras do segmento Copo d’água trazem recortes fotográficos imersos em água, numa alusão à fluidez das memórias e sua relação com o inconsciente e os sonhos.
Memórias de família
“C
erto dia tentei lembrar com detalhes e também representar o rosto do meu avô paterno. Notei as dificuldades da memória, as facilidades do esquecimento”, conta a artista plástica Luise Weiss sobre as motivações para compor os trabalhos da mostra Labirinto e memória, um compilado de obras que unem desenho, pintura e fotografia, feitas a partir de
Labirinto e memória. Caixa Cultural São Paulo. Praça da Sé, 111, Centro,
São Paulo. De terça a domingo, das 9h às 19h. Informações: (11) 33214400. Grátis. Até 23 de julho.
XTEATRO
Monólogo fala sobre preparação psicológica para cirurgia bariátrica oão, de 29 anos, chega ao consultório do psicólogo para sua primeira consulta antes de uma cirurgia bariátrica. Na conversa, na qual relembra episódios de sua vida em que se sentiu excluído por ser obeso, recupera memórias dolorosas de rejeição e se questiona sobre a necessidade de passar por uma intervenção invasiva não só por questões de saúde, mas para aproximar-se dos padrões estéticos e ser aceito. Escrito e interpretado pelo ator Hernane Cardoso, o texto Maior que o mundo aprofunda-se nos questionamentos de um jovem obeso, com pitadas de ironia e humor. Destaque para as passagens em que o personagem fala da necessidade que sempre se impôs de parecer inteligente e divertido para tornar sua presença tolerável para as pessoas, em um mundo que atribui qualidades e mesmo o direito ao prazer e à felicidade aos corpos magros. Maior que o mundo. Teatro das Artes. Shopping da Gávea. Rua Marquês de São Vicente, 52, Gávea, Rio de Janeiro. Quinta, às 21h. Informações: (21) 2540-6004. R$ 60. Até 19 de julho.
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AMBIENTADO EM UM CONSULTÓRIO de psicologia, o texto Maior que o mundo aprofunda-se nos questionamentos de um jovem obeso
maria soares
J
o que há para ver e ler
Óculos para daltônicos
Ensaio fotográfico alerta sobre depressão pós-parto
C
A
XTECNOLOGIA
VOLUNTÁRIOS EXPERIMENTAM AS LENTES produzidas pela EnChroma. Construídas com base em um modelo matemático de filtros de luz, permitem que pessoas com alterações em células fotorreceptoras vejam tons de verde e vermelho
americana Kathy DiVincenzo tem o perfil que o senso comum acreditaria “imune” a uma depressão pós-parto – é doula, proprietária de uma empresa que oferece suporte emocional a gestantes, mãe de duas crianças. No entanto, ela vivencia essa experiência e decidiu expô-la abertamente, com a intenção de ajudar mulheres que sentem os mesmos sintomas, porém não buscam ajuda por vergonha ou falta de apoio do companheiro ou pessoas da família. Junto com uma amiga, a fotógrafa Danielle Fantis, produziu um ensaio fotográfico que retrata os altos e baixos de suas emoções. As fotos foram divulgadas em seu perfil pessoal do Facebook, acompanhadas de um texto comovente e esclarecedor. “Temos que parar de tachar o período pós-parto como um momento de euforia, pois para muitos não é. É preciso aprender a ler os sinais, conhecer sintomas e fatores de risco e planejar-se para as condições do pós-parto”, escreve. Publicado com a hashtag #EndTheSilence, o texto teve mais de 70 mil compartilhamentos na rede e está fixado no topo do perfil de Kathy DiVincenzo.
reprodução
aracterizado pela dificuldade de distinguir cores, o daltonismo é um distúrbio da visão de origem hereditária, mais comum em homens. A maioria dos daltônicos não enxerga os tons verde e vermelho. Outros, menos frequentes, amarelo e azul. Isso ocorre por alterações nos cones, células fotorreceptoras da retina. Os daltônicos não são raros na população – estima-se que são 300 milhões no mundo –, de forma que é interessante imaginar que muitas pessoas passam a vida inteira sem ver determinadas cores. A startup americana EnChroma, porém, usou a ciência para “corrigir” o daltonismo de verde e vermelho, criando lentes com base em um modelo matemático do sistema visual humano que prevê o efeito de uso de filtros sobre a percepção de cores. Já no mercado, a linha de óculos da empresa tem exemplares de cerca de US$ 400 e é vendida online (enchroma.com). Os criadores do produto afirmam que as lentes, quando usadas por pessoas sem daltonismo, “intensificam” as cores, proporcionando uma nova experiência sensorial. Numa ação de divulgação, a EnChroma produziu uma série de vídeos em que pessoas testam os óculos e conhecem novas cores pela primeira vez, que podem ser assistidos no site da empresa.
reprodução
| na rede
PUBLICADO COM A HASHTAG #EndTheSilence no Facebook, o depoimento e as fotos da americana Kathy DiVincenzo relatam sua experiência pessoal com os sintomas julho 2017 • mentecérebro 11
psicanálise
inconsciente a céu aberto
Amar e trabalhar
H
á dois remédios universais para o mal-estar: o trabalho e o amor. “Quando casar passa”, ouvimos diante de nossos machucados infantis; “Trabalha que daqui a pouco você esquece”, escutamos quando surgem as agruras da vida adulta ; ou “Trabalha e ora” (ora et labora), aconselhamos na velhice. O trabalho é um santo remédio: garante os meios para consumir e sobreviver, além de oferecer a perspectiva de autoaperfeiçoamento pela qual criamos futuros possíveis e nos permite pertencer a uma comunidade que se entranha em nossa história. O trabalho e o amor são as duas fontes de nossa vida e deveriam também governá-la, afirmava W. Reich. Era esta também a tese de Freud. A psicanálise faculta que o sujeito possa amar e trabalhar, mas não apenas como um fim ou efeito, mas também como meio do tratamento: trabalho de luto (Trauerarbeit), trabalho de elaboração (Ducharbeit), trabalho do sonho (Traumarbeit), trabalho da pulsão (Triebarbeit). Por uma dessas estranhas mirabolâncias destes tempos de pós-verdade à brazileira (com “z” mesmo), parece que embarcamos em uma espécie de oposição forçada. Agora é amar ou trabalhar. Se o trabalho é bom, que tal trabalhar em vez de amar? Quanto mais remédio, melhor a cura. Portanto, aqueles que não podem, não querem ou são impedidos de aceitar a cura em seus corações merecem o nosso desprezo. Aliás, por que não 12
usar a violência ou a coerção para fazêlos aceitar a redenção? No debate que se seguiu à intervenção desastrosa da prefeitura na Cracolândia em São Paulo vimos esta progressão pela qual um argumento razoável inicial pode levar a conclusões descabidas, ainda que retoricamente eficazes. É o justiciamento popular contra usuários de crack, apoiado pela maioria da população, que parece ter embarcado na óbvia convicção de que o trabalho cura. Agora não é mais justiça com as próprias mãos, é também saúde com as próprias mãos. Eleito em nome desta moral, nada mais coerente do que praticá-la: cidade limpa, linda e acelerada. Contra todos os especialistas e experiências nacionais e internacionais, que dizem que não é assim que se faz, e dizem também como deve ser feito (só que aí fica caro e demorado), nosso novo Robespierre exibe trabalho, cura com trabalho e ataca os que estão sem trabalho. O trabalho cura, mas trabalho sem amor corrompe. Ao mesmo tempo o novo presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Paulo Rabello Castro, declara em seu discurso de posse: “O Brasil está mais para psicanálise do que para análise econômica. E aqui o banco tem que descomplicar a análise econômica, e atropelar a
CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER
psicanálise”. De novo nós devemos ser atropelados em nome do aumento da velocidade, da urgência e da necessidade de “fazer alguma coisa” (qualquer coisa, mesmo que seja uma bobagem). Posta em contexto, a afirmação alude ao fato de que estamos chorando, nos achando quebrados e à beira da falência, quando temos R$ 370 bilhões em caixa. Tem meu perdão porque sua entrevista começa com a declaração de que o país tem que “voltar a sonhar”, ou seja, mais psicanálise e menos discurso consolatório, vitimizante e manipulador. Tudo verdade, só que quem está dizendo que estamos quebrados não são os preguiçosos, desempregados ou miseráveis, mas os que estão sentados chorando em cima do dinheiro. O crack é um problema de saúde mental e de economia, requer intervenções com palavras e com recursos materiais (moradia, trabalho, assistência social), requer tanto o trabalho do amor quanto o amor ao trabalho. O trabalho cura. O trabalho sem amor corrompe. O trabalho sem amor e sem dinheiro mata.
CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER,
psicanalista, professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).
arquivo pessoal (foto), shutterstock (imagem)
A intervenção desastrosa da prefeitura na Cracolândia, em São Paulo, se embasa em argumentos iniciais até razoáveis, mas que podem levar a conclusões descabidas
saúde mental
Além da
tabela periódica Metais têm efeito poderoso sobre nossos estados de humor; o excesso ou a falta de determinados compostos podem trazer efeitos nocivos; há décadas o lítio vem sendo usado no tratamento do transtorno bipolar e, mais recentemente, foi demonstrado o efeito do zinco sobre a depressão por Tori Rodrigues, jornalista e psicóloga
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A mente e os metais Muitos estudos constatam que níveis baixos ou elevados de certos elementos químicos estão ligados à saúde cerebral. Confira algumas associações bem fundamentadas pelas pesquisas: FERRO A deficiência desse metal impede a neurotransmissão e o metabolismo celular; alguns estudos encontraram ligação com déficits cognitivos em crianças e adultos.
C
obre, ferro e outros elementos químicos desempenham papel crucial tanto na manutenção da saúde quanto em processos de adoecimento. Conhecemos os efeitos tóxicos do chumbo, por exemplo. Mas não é fácil determinar os impactos precisos desses materiais em nosso organismo porque eles interagem de formas variadas entre si e com diversos tipos de moléculas encontradas no nosso corpo. No entanto, uma pesquisa recente aponta algumas ideias importantes, que podem levar a novos tratamentos para distúrbios mentais. Um desses estudos investigou a associação entre zinco e depressão, revelando que a deficiência do elemento químico pode causar sintomas da patologia.
MANGANÊS Segundo pesquisa publicada no periódico Journal of Alzheimer’s Disease, cientistas da China e do Japão investigaram o papel desse elemento químico (em níveis elevados, uma conhecida neurotoxina) na progressão do declínio cognitivo. Os pesquisadores constataram, em 40 adultos com mais de 60 anos, que a quantidade de manganês foi significativamente correlacionada com a pontuação de avaliações de funções cognitivas e demência. Além disso, os níveis dos emaranhados proteicos característicos do Alzheimer aumentaram à mesma proporção da quantidade do metal. O excesso de manganês costuma ser causado por poluentes transportados pelo ar ou pesticidas, mas comer muito ferro pode também aumentar sua absorção. julho 2017 • mentecérebro 15
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MAGNÉSIO O baixo consumo da substância tem sido relacionado com a ansiedade e depressão em pesquisas com humanos e roedores. Um recente estudo publicado na Acta Neuropsychiatrica sugere que essa associação é mediada por micróbios intestinais alterados, que, em pesquisas anteriores, já haviam sido relacionados com o distúrbio afetivo. Nesse experimento mais recente, ratos alimentados com uma dieta deficiente em magnésio mostraram aumento no comportamento depressivo e alterações na microbiota intestinal, o que foi claramente associado com uma neuroinflamação no hipocampo.
saúde mental A boa notícia é que, se por um lado várias evidências sugerem que a falta de zinco é um fator subjacente à doença, por outro a dieta complementar, com o uso do metal, pode ser um tratamento eficaz para quem tem níveis baixos da substância no organismo. Uma meta-análise recentemente publicada no periódico científico Biological Psychiatry avaliou 17 estudos e descobriu que indivíduos com o transtorno tendem a ter aproximadamente 14% menos de zinco no sangue do que a maioria das pessoas apresenta em média. A deficiência ficou ainda mais evidente entre aquelas com depressão mais grave. “No cérebro, o elemento se concentra nos neurônios glutamatérgicos, que ajudam a aumentar a atividade neural, além de desempenhar um papel na neuroplasticidade”, afirma a farmacologista clínica Krista L. Lanctôt, professora de psiquiatria e farmacologia da Universidade de Toronto, uma das coautoras do estudo. “Essas células alimentam o circuito do humor e da cognição”, diz. Por isso, a falta do elemento costuma prejudicar também a capacidade de memorização.
Resultados mais recentes apontam cada vez mais para uma relação causal. Há pouco mais de um ano, pesquisadores da Universidade de Newcastle, na Austrália, apresentaram dados de dois estudos longitudinais que demonstram relação inversa entre o risco de depressão e a ingestão de zinco na dieta. Depois de terem cuidado de todos os potenciais fatores de interferência na pesquisa, eles constataram que o risco de desenvolver depressão entre homens e mulheres que ingeriam maior quantidade da substância era aproximadamente de 30% a 50% menor do que aqueles com menor consumo. Embora estudos anteriores mostrem que a suplementação de zinco pode aumentar os efeitos de medicamentos antidepressivos, o estudo publicado na Nutritional Neuroscience é o primeiro a investigar os efeitos somente do metal sobre os sintomas da doença. O estudo foi duplo-cego, randomizado e controlado por placebo. Os cientistas distribuíram os participantes entre dois grupos: diariamente, durante 12 semanas, um recebeu 30 miligramas de zinco
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Pode fazer mais mal do quem bem
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Os suplementos alimentares são facilmente adquiridos, embora não sejam produtos muito baratos. Na maioria das farmácias, não é preciso sequer pedir aos balconistas: os frascos estão ao alcance das mãos dos consumidores – mas não são, necessariamente, uma boa pedida. Claro que, se o seu médico aconselhar você a tomar um complemento alimentar, a orientação deve ser considerada. Mas recorrer a esse tipo de produto por iniciativa própria pode não ser a melhor decisão. Os oligoelementos em níveis baixos ou elevados, por exemplo, podem causar complicações graves. E não é difícil passar da conta, mesmo sem querer. De fato, não é fácil dizer se uma pessoa realmente precisa de suplementos. O zinco, por exemplo, não pode ser mensurado de forma confiável pelo sangue ou pela urina. Pesquisadores usam uma complexa
variedade de medidas e indicadores para determinar a quantidade desse elemento químico no organismo do paciente. Além disso, a maioria dos pesquisadores e médicos acredita que melhorar a dieta é uma maneira muito eficiente para alcançar níveis saudáveis desses elementos. Alimentos integrais, legumes, frutas, azeite de boa qualidade, nozes e sementes oferecem à maioria das pessoas os nutrientes de que precisam. “É importante lembrar que evitar comida muito processada, com adição de açúcares e gorduras, também é fundamental porque esses alimentos impedem o corpo de absorver o que realmente precisamos”, enfatiza a bióloga molecular Elena Milanesi. Em outras palavras, a salada de espinafre será menos saudável se em seguida você comer uma barra de chocolate.
Há décadas o lítio tem ajudado a garantir alívio para pacientes com transtorno bipolar. Apesar de ser considerada a intervenção-padrão para a doença, a razão pela qual funciona para parte das pessoas que recebem a medicação e não faz efeito em pelo menos metade dos usuários permanece em grande parte um mistério. Descobertas recentes, porém, sugerem que um mecanismo hormonal pode fornecer explicações. Em pesquisa publicada no periódico Journal of Neuroscience Molecular, cientistas de várias universidades expandiram trabalhos anteriores para investigar o papel do fator de crescimento semelhante à insulina (IGF1) na sensibilidade ao lítio. Um artigo assinado por alguns dos autores desse novo estudo encontrou níveis mais altos do hormônio nas células sanguíneas dos pacientes com o distúrbio bipolar que respondiam ao tratamento com o metal, em comparação com aqueles que não sentiam efeito. Nessa pesquisa, os cientistas testaram os efeitos da administração do IGF1 no sangue desses mesmos voluntários.
Adicionar o hormônio aumentou a sensibilidade ao lítio apenas nas células de quem não respondia ao tratamento, o que “prova que de fato o IGF1 está fortemente implicado na determinação da resposta clínica ou na resistência ao metal”, afirma a bióloga molecular Elena Milanesi, pós-doutoranda da Faculdade de Medicina Sackler, da Universidade de Tel-Aviv. O IGF1 sintético humano já está aprovado para uso em pessoas com outros tipos de doenças, mas ela ressalta, porém, que ainda serão necessárias mais pesquisas para discernir as possibilidades de tratamento, incluindo o uso suplementar do hormônio ou de uma droga de ação similar em pacientes resistentes ao lítio.
e o outro, apenas pílulas inócuas. Ao final do experimento, o primeiro grupo mostrou diminuição acentuada de pontuação num rigoroso inventário que mede sintomas de depressão. “O sulfato de zinco será um tratamento para o distúrbio futuramente”, aposta o farmacologista Atish Prakash, pós-doutorando do Departamento de Farmácia da Universidade de Tecnologia Mara da Malásia, coautor de uma profunda revisão de estudos sobre o papel desse elemento químico em distúrbios cerebrais, publicado em abril na Fundamental and Clinical Pharmacology. Os pesquisadores censuram fortemente a su-
plementação por conta própria – em doses muito altas, há risco de o zinco causar outras complicações. Por isso, consultar um médico é essencial antes de passar a ingerir o produto com regularidade (veja quadro na pág. 16). Na maioria dos casos, aliás, ter uma dieta saudável costuma ser melhor do que a complementação para garantir níveis saudáveis do elemento no organismo. No entanto, para quem tem depressão ou alto risco de deficiência de zinco (como vegetarianos, pessoas com alcoolismo, problemas gastrointestinais ou diabetes e grávidas ou lactantes), vale a pena suplementar com a quantidade receitada pelo médico. julho 2017 • mentecérebro 17
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Novidades para pessoas com variação de humor
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Como a ciência pode ajudar você a vencer o
estress e No trabalho, nos relacionamentos e até no tempo livre, muitas pessoas vivem em constante estado de esgotamento. Essa pressão continuada pode provocar graves problemas de saúde física e mental. Vários estudos têm mostrado, porém, que é possível assumir – conscientemente – a responsabilidade por algumas atitudes que nos permitem relaxar e, mesmo em condições externas desfavoráveis, preservar o próprio bem-estar
por Joachim Retzbach
O AUTOR JOACHIM RETZBACH é psicólogo e jornalista científico.
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otivos para estar constantemente em estado de alerta não faltam. Podemos começar pelo trânsito caótico e pelos problemas de segurança das grandes cidades, para em seguida enumerar outras tantas demandas do dia a dia e imprevistos que gritam por soluções imediatas. Tudo parece urgente – ainda que não seja: as redes sociais, as decisões, as informações. E há, ainda, os relacionamentos com pessoas que amamos, mas que nem sempre são fáceis de serem manejados. No pano de fundo estão a instabilidade econômica e as incertezas acerca do futuro do país, do mundo e, em última instância, dos rumos que nossa vida pode tomar. No entanto, as mais frequentes queixas sobre o estresse costumam ser associadas à vida profissional – seja em razão do excesso de trabalho, da falta (e até da iminência da falta) dele ou mesmo dos impasses das relações com funcionários, colegas e chefes. É compreensível que assim seja, já que nesse ambiente não lidamos apenas com a pressão da necessidade de produção e avaliações diretas ou indiretas constantes; também convivemos muitas horas por dia com pessoas com as quais não escolhemos estar, nem sempre concordamos com as diretrizes adotadas pelas empresas e deparamos com figuras de autoridade que, por vezes, não primam pelas habilidades de liderança. Um levantamento da International Stress Management Association (Associação Internacional do Controle do Estresse) feito no ano passado aponta o Brasil como o segundo país do mundo com o maior nível de estresse (ficando atrás apenas do Japão). Segundo a estimativa, de cada dez trabalhadores, três pelo menos sofrem de esgotamento mental e físico intenso causado por pressões no ambiente profissional (veja quadro na pág 34). Trata-se da síndrome de burnout (do inglês burn out, consumir-se, queimar-se). O conceito de estresse, hoje onipresente, é relativamente novo. O psicólogo austro-canadense Hans Selye (1907-1982) apresentou o termo em 1936 para se referir à resposta 20
do organismo a qualquer estímulo ambiental que fuja da rotina e, consequentemente, possa ser interpretado como uma ameaça. Do inglês stress, a palavra era originalmente usada pelos físicos para falar dos efeitos causados a diferentes materiais quando submetidos à ação de forças externas. Selye usou o vocábulo para explicar o que ocorreu com cobaias que estudava. Ele havia ministrado nos ratinhos drogas que provocavam úlceras e atrofia dos tecidos. Curiosamente, o outro grupo de roedores, no qual o pesquisador tinha injetado uma solução salina, apresentava os mesmos sintomas físicos. Selye percebeu ainda que o comportamento era idêntico quando expostos a estímulos diversos, como barulho, variação intensa de temperatura e substâncias tóxicas. Ou seja: descobriu que organismos reagem – e se desgastam – quando são submetidos a uma agressão. Hoje se sabe que mesmo estímulos agradáveis, quando muito intensos, podem ser estressantes. UM ESPAÇO ENORME De fato, um tanto de estresse é fundamental para darmos andamento a qualquer projeto. E, obviamente, o fenômeno não ocorre apenas no trabalho, está também associado a interações sociais e afetivas, a situações em que precisamos provar algo sobre nós mesmos (provas e exames, por exemplo) e até a momentos de lazer. A verdade, porém, é que as complexas configurações ditadas pelo mercado profissional não ajudam muito. “As fronteiras entre o trabalho e o tempo livre estão cada vez mais flexíveis, e isso pode ser perigoso”, afirma o psicólogo Gert Kaluza, diretor do Instituto de Saúde Psicológica, em Marburg, na
Não é simples para o organismo viver a maior parte do tempo como se a cada momento tivéssemos de estar preparados para lutar ou fugir; mas a maneira como lidamos com aquilo que nos incomoda pode ser um grande diferencial
Alemanha. Atualmente ele coordena vários estudos a respeito da sobrecarga profissional e da insegurança vivida por muitas pessoas, visto que várias áreas estão ameaçadas de simplesmente não mais existir num futuro próximo. E ainda há o fato de que as estruturas tradicionais – famílias grandes, vizinhança e redes de apoio social – há décadas já não oferecem muito respaldo, como ocorria tempos atrás. “Cada vez mais pessoas enfrentam a sensação de profunda solidão e desamparo; muitos veem na profissão o único elemento de identidade pessoal, mas a contrapartida é que as tensões do trabalho ou mesmo da falta dele ganham um espaço enorme e definem grande parte da vida de homens e mulheres”, observa. O cenário ficará mais complicado se considerarmos que, em grande parte das vezes, a situação profissional não é algo que dependa única e exclusivamente do indivíduo, já que inúmeras variáveis bem mais amplas estão em jogo. Nesse contexto parece difícil nos vermos livres dos efeitos do estresse. A boa notícia trazida pela ciência é que a maneira como lidamos com as pressões que não podemos evitar é mais determinante do que as situações propriamente ditas, por mais potencialmente estressantes que sejam. O acompanhamento de 30 mil pessoas durante nove anos, em uma pesquisa realizada em 2012 na Universidade de Wisconsin-Madison, revelou que os participantes que viviam sob a pressão com mais frequência tinham risco de até 43% de morrer precocemente. Importante: as pessoas se tornavam especialmente vulneráveis se estivessem convencidas dos prejuízos do estresse em sua saúde e da impossibilidade de sair da
situação em que se encontravam. A sensação de vulnerabilidade e desamparo amplificava perigosamente a sobrecarga. Em outras palavras, a forma como lidamos com a situação é determinante para as consequências. Vale lembrar que o ser humano é o único animal capaz de produzir o próprio estresse. Em outras espécies, esse fenômeno está associado exclusivamente a estímulos externos, como a iminência do ataque de um predador. Numa avaliação instantânea, embasada na experiência, o animal que está sob ameaça de agressão tem basicamente duas opções: fugir ou lutar. Qualquer que seja a escolha, o bicho (caso sobreviva, obviamente) guardará a memória da situação – uma espécie de aprendizado que lhe dará subsídios para agir na próxima ocasião em que estiver em perigo. Mas, por falta de um córtex cerebral desenvolvido como o dos humanos, esse animal não será atormentado por resquícios da vivência traumática, permeados por embates ou escapadas fantasiadas, nem mesmo por reflexões a respeito dos possíveis desdobramentos, caso tivesse sido pego por seu perseguidor. Isso significa que não serão revividos, despertados e ampliados sentimentos de angústia, geradores de estresse, capazes de ativar o hipotálamo da mesma maneira que estímulos objetivos, experimentados no presente. Se, por um lado, a condição humana abre espaço para a ampliação do sofrimento, já que podemos pensar sobre ele e revivê-lo, por outro, nos oferece a possibilidade de, conscientemente, reverter atitudes mentais que provocam desconforto. Com base nessa constatação, cientistas argumentam que, por pior que seja o momento, é terapêutico – e muito eficiente – rejulho 2017 • mentecérebro 21
capa • estresse cuperar, ainda que parcialmente, a sensação de autonomia sobre a própria vida. Seis pontos, apresentados a seguir, podem ser fundamentais nesse processo.
ritante pode ser olhado de frente e, não raro, se apresentará de forma menos ameaçadora do que parecia visto de longe. Para isso, é preciso suportar permanecer no aqui e agora, em vez prender-se ao passado ou projetar-se no futuro – e, dessa maneira, olhar a situação sob um ângulo diferente. Exercitar essa atitude ajuda a diminuir sintomas de ansiedade, depressão e transtorno somatoforme. “É muito frequente que as pessoas vejam tudo o que pode dar errado e só considerem os pontos negativos da situação”, diz Gert Kaluza. “O que propomos é uma espécie de reestruturação cognitiva, capaz de ajudar a enxergar a situação de forma mais ampla.” Ele identifica o perfeccionismo e a autoexigência excessiva entre os principais fatores causadores de estresse. “Por que há sempre um desejo de agradar a todos, até àqueles de quem não gostamos? Talvez para responder a essa pergunta seja importante se conhecer melhor, entender quais são os nossos verdadeiros medos”, afirma o psicólogo.
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SÍNDROME DE AVESTRUZ: evitar situações desprazerosas aumenta a pressão interna
ACEITAR DÓI MENOS A pilha de papéis sobre sua mesa está cada vez maior? Nas próximas horas você terá uma conversa delicada que pode trazer mudanças para sua vida? Uma reação comum em circunstâncias desse tipo é negar ou adiar enfrentamentos desagradáveis, que nos tragam angústia. Vários estudos mostram, porém, que a postergação não é uma boa saída. A atitude mais eficiente do ponto de vista fisiológico é tomar consciência da situação – e, por mais desagradável que seja, reconhecer que “brincar de avestruz”, escondendo a cabeça para não ver a ameaça, aumenta o nível de risco (interno e, em geral, até externo). Assim, em vez de ficar nervoso e apenas reclamar, ou seja, “se estressar por causa do estresse”, o mais saudável é simplesmente aceitar as coisas como elas são. Assumir essa atitude é essencial para manter o foco no que realmente importa naquele momento, sem gastar energia procrastinando o que incomoda. Essa estratégia baseia-se no que alguns psicólogos chamam de terapia do compromisso: ao se comprometer com a questão, a pessoa costuma perceber que aquilo que parece tão assustador ou ir-
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TEMPO DE MUDANÇA Quando vivemos uma situação de sobrecarga continuada, é útil entender o que está acontecendo – o que nem sempre é óbvio. Alguns psicólogos falam sobre a “gestão instrumental do estresse”, que inclui gerenciamento de tempo, tanto na vida profissional quanto no âmbito pessoal e nos relacionamentos. Uma pesquisa desenvolvida pelo Centro Nacional de Desenvolvimento Organizacional (NCOD), nos Estados Unidos, revelou que uma das queixas mais frequentes de pessoas que se consideram bastante estressadas é a dificuldade de estabelecer prioridades – e impor limites, inclusive a si mesmas. Embora por trás desse comportamento, em geral, estejam funcionamentos psíquicos mais complexos, atitudes práticas como recusar mais tarefas quando estamos sobrecarregados ou desligar o celular no fim do expediente podem ser um bom começo. Segundo pesquisadores do NCOD, é curioso que, embora muitas vezes as pessoas defendam arduamente a ideia de que precisam fazer tudo sozinhas, quando começam a alterar seu comportamento, delegando ou recusando tarefas, descobrem que muitas das
demandas que antes assumiam não eram de seus chefes ou do próprio ambiente, mas de si mesmas. Algo que costuma incomodar muita gente no trabalho é a necessidade de lidar com a caixa de e-mail. Não raro, mensagens se acumulam ou, na ânsia de nos livrarmos rapidamente das mensagens, terminamos por perder algum conteúdo valioso. De acordo com um estudo britânico conduzido em 2015, uma das formas mais eficientes de lidar com mensagens é simplesmente não deixar que se acumulem e, assim, evitar atrasos em respondê-las. Especialistas sugerem, por exemplo, que seja adotada a prática de abrir a caixa de entrada de e-mail somente em intervalos determinados durante o dia e, nessas ocasiões, é eficiente resolver o máximo possível de pendências imediatamente, ainda que isso tome alguns minutos do tempo reservado para essa tarefa. Outro fator de estresse é a trajetória entre casa e local de trabalho. Cerca de um terço dos brasileiros leva de uma a quatro horas nesse deslocamento, segundo levantamento realizado com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “As horas gastas para se locomover são consideradas um ‘tempo morto’, que poderia ser mais bem empregado na academia de ginástica ou no convívio com a família ou com os amigos”, diz o sociólogo Norbert Schneider, da Universidade de Mainz, que desenvolveu a pesquisa sobre o tema. Os resultados do estudo mostram que a angústia das pessoas que enfrentam longos trajetos diariamente está relacionada ao medo de se atrasar e/ou sofrer acidentes. Como não poderia deixar de ser, a prevalência de doenças de origem psicossomática nessa população é bem maior do que naqueles que moram perto do emprego. Os problemas mais comuns foram dores nas costas, distúrbios gastrintestinais e de sono, hipertensão, fadiga crônica e dificuldade de concentração. Em cidades como São Paulo há um agravante: a disputa constante (e violenta) entre carros, caminhões, ônibus e motos. Tudo isso deixa marcas no corpo, na mente e nas relações sociais.
Não há uma maneira única e incontestável de combater os efeitos nocivos da sobrecarga; o uso flexível de métodos e estratégias diferentes para cada pessoa e situação ou a combinação de estratégias costuma oferecer resultados mais eficazes Uma saída adotada por muita gente para, entre outras coisas, evitar o desgaste do deslocamento – e pelas empresas para diminuir os custos de ter um profissional em suas dependências – é o home office. “Para que esse sistema funcione, é preciso ter uma forte autodisciplina e estabelecer a separação entre trabalho e vida pessoal”, diz a psicóloga Carmen Binnewies, professora da Universidade de Munster, na Alemanha. “O que temos constatado, porém, é que mesmo que a pessoa consiga se organizar, trabalhar por muito tempo em casa, frequentemente, faz com que se sinta isolada e perceba falta do contato pessoal”, destaca a psicóloga. Um estudo conduzido neste ano na União Europeia pela Organização Mundial do Trabalho mostrou que os trabalhadores que faziam home office tinham mais propensão a sofrer o burnout do que colegas que ficavam na organização. Essa predisposição foi verificada tanto naqueles que permaneciam exclusivamente em casa quanto nos que constantemente eram deslocados de lugar de trabalho (em razão de transferências, por exemplo).
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INSPIRA, EXPIRA... “Sente-se de forma confortável, feche os olhos e concentre-se na sua respiração...” Essas palavras simples podem ser a chave para evitar muito sofrimento tanto do corpo quanto da mente, com a redução da tensão física e psicológica. O grande “segredo” das técnicas de meditação e relaxamento, porém, está na persistência. Embora possam ajudar muito em fases críticas, quando enfrentamos fases agudas de estresse, os métodos embasados na sabedoria oriental milenar julho 2017 • mentecérebro 23
capa • estresse
Parar, respirar, transformar Esse exercício pode ser feito em 10 minutos, aproximadamente. Ele foi projetado para diminuir o desgaste causado pelo estresse, reforçar a capacidade de concentração e ampliar a consciência das sensações. • Sente-se em uma posição confortável, com a coluna reta, de forma estável e descanse as mãos sobre as coxas ou, se preferir, una-as sobre o colo. • Abaixe os olhos ou feche-os, o que lhe parecer melhor. • Respire pelo nariz de forma natural, sem forçar o movimento. • Preste atenção à sua respiração, seguindo mentalmente o trajeto que o ar percorre em seu corpo. Apenas observe o ar entrar nos pulmões e sair e, aos poucos, leve a inspiração para a barriga, na região abaixo do umbigo. • Caso surjam outros pensamentos, não se atenha a eles, deixe-os ir e volte a atenção à inspiração e à expiração. • Perceba as sensações em torno de sua barriga à medida que o ar flui. • Após 5 ou 10 minutos, mude para o monitoramento. Imagine sua mente como um vasto céu aberto e seus pensamentos, sentimentos e suas sensações como nuvens passageiras. • Sinta todo o corpo relaxar suavemente e mantenha a consciência de sua respiração. Seja receptivo a suas sensações, dê-se conta do que acontece no momento. Esteja atento para o que percebe: sons, aromas, brisa, pensamentos, mas não se prenda a nada. • Depois de alguns minutos, abra os olhos suavemente.
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Sentiu-se bem? Então repita, pois só a prática frequente o fará familiarizar-se com as sensações de bem-estar.
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precisam ser praticados com frequência, de preferência diária – mesmo quando tudo parece bem. Um dos procedimentos mais conhecidos é o relaxamento muscular progressivo. Em situações estressantes, a pessoa deve “apertar” os músculos de forma consciente e soltá-los. Uma maneira eficiente de fazer isso é elevando os ombros o máximo possível e, em seguida, retirar toda a pressão, relaxando também os braços e as mãos. A sensação de bem-estar costuma ser imediata, apesar de efêmera. Observar a própria respiração é um exercício clássico – e bastante eficiente –, base da mindfulness (atenção plena). Praticantes devem familiarizar a mente com o momento presente, sem se apegar a nenhum pensamento, apenas se mantendo no aqui e agora, sem se entregar a pensamentos e julgamentos, ou lutar para afastá-los. “A proposta é apenas se concentrar na própria respiração e, por alguns minutos por dia, simplesmente relaxar”, diz o doutor em psicologia Paul Elkman, que coordenou pesquisa sobre o assunto na Califórnia. Inúmeras pesquisas têm atestado os efeitos positivos da prática para a saúde. Exercícios de relaxamento, assim como a meditação mindfulness, favorecem a redução da tensão a longo prazo e são acompanhados da diminuição de sensações de medo e dor, funcionando como forma de prevenir sintomas de depressão, além de proteger os sistemas imunológico e cardiovascular. Um dos inúmeros estudos sobre o tema, feito por cientistas da Universidade da Califórnia (UCLA), comprovou recentemente que a meditação afeta diretamente o funcionamento da amígdala – um feixe de estruturas interligadas, em forma de amêndoa, acima do tronco cerebral e perto da parte inferior do anel límbico –, envolvida no funcionamento da memória e de emoções como empatia e medo. O resultado é a sensação de calma e bem-estar. Repetir a prátrica diariamente, de preferência pela manhã, ajuda a pessoa a voltar para um estado mental de tranquilidade e centramento com mais facilidade ao longo do dia, sem grande esforço. (Veja o quadro ao lado).
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PARAR ANTES DE ADOECER É uma questão até intuitiva: nos momentos em que nos sentimos sobrecarregados, devemos fazer pausas para repor as energias. Vários estudos mostram que o tempo de recuperação é vital para o bom funcionamento do organismo. A despeito disso, muitas pessoas passam anos a fio sem fazer interrupções na rotina. Na prática, os intervalos evitam o adoecimento deflagrado pelo estresse. E não se trata de três semanas de férias nas Ilhas Maldivas ou de um tour pela Europa, mas sim do que especialistas chamam de microrrecuperação. Pode ser uma curta pausa para tomar um café com um colega no meio do dia, ou um intervalo para almoçar tranquilamente, por exemplo. Mesmo quando a rotina está corrida, é eficaz incorporar ao dia a dia movimentos de pausa. O que fazer? Simples, levantar-se da cadeira. Mas e se em meio à correria você se esquecer? Basta ajustar o alarme do celular ou do computador a cada 30 ou 40 minutos para caminhar ao redor da mesa ou buscar um copo de água, por exemplo. Levar a sério o fim do expediente também é importante. Não por acaso, há situações em que psicólogos “orientam” os pacientes a tirar férias como uma medida terapêutica de regeneração. “O problema é que, na cultura consumista e determinada pela produtividade em que vivemos, muitas vezes trabalhar até a exaustão é considerado um valor a ser enaltecido”, observa Carmen Binnewies. A questão é que, quando não paramos por conta própria, o organismo “encarrega-se” de exigir a pausa – e nesse momento adoecemos. O prejuízo anual decorrente de faltas ao trabalho, baixa produtividade, acidentes e doenças causados pelo problema é estimado em mais de US$ 300 bilhões nos Estados Unidos e US$ 265 bilhões na Europa. “No Brasil, acreditamos que poderia haver uma economia de até 34% se fossem diminuídos os índices de estresse ocupacional”, ressalta a psicóloga Ana Maria Rossi, especialista no estudo do estresse e presidente da Isma-Brasil. “Tirar férias apenas a cada 11 meses, por exemplo, costuma ser prejudicial; nesse intervalo, o nível de estresse acumulado atinge patamares muito altos.” Segundo ela, períodos
menores de descanso, divididos ao longo do ano, costumam ser mais benéficos à saúde. De que maneira devemos recarregar as nossas baterias é uma questão secundária. “Alguns assistem a séries de TV, outros preferem escalar montanhas, correr ou ir a restaurantes”, diz Carmen Binnewies. O objetivo é recuperar o humor e essas distrações podem ajudar nessa tarefa. Acima de tudo, é preciso nos distanciarmos mental e emocionalmente do trabalho nos momentos de folga para garantir o bem-estar a médio e longo prazo. O psicólogo da saúde Mark Cropley, professor da Universidade de Surrey, na Inglaterra, destacou em diversos estudos que quando experimentamos seguidamente no ambiente de trabalho sensações negativas, como angústia ou medo, a atividade psicológica construída no expediente pode persistir durante a noite. Uma possível consequência: a ação do cortisol (o hormônio do estresse) pode prejudicar o sono. E noites maldormidas não apenas destroem a resistência contra o estresse no dia seguinte como também, ao longo do tempo, aumentam o risco de doenças mentais e físicas. Em casos de distúrbios de sono prolongados, é importante procurar ajuda profissional.
“TIRAR FÉRIAS apenas a cada 11 meses, por exemplo, costuma ser prejudicial; nesse intervalo, o nível de estresse acumulado atinge patamares muito altos”, diz a psicóloga brasileira Ana Maria Rossi, presidente da Isma-Brasil
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UM ABRAÇO, POR FAVOR Um antídoto fácil e comprovado contra o estresse é deixar-se abraçar. Um estudo conduzido por psicólogos e médicos da Universidade Carnegie Mellon, em Pittsburgh, julho 2017 • mentecérebro 25
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néfico para o estado físico e mental. “Quem está sob o estresse deve se perguntar: ‘Tenho tido relações sociais suficientemente profundas e agradáveis?’”, ressalta Kaluza. “Caso a resposta seja negativa, que tipo de relação é possível cultivar ou expandir, e como posso chegar lá?” Encontrar grupos de pessoas que tenham interesses afins – e cultivar esse convívio – não é apenas divertido, pode ser a diferença entre adoecer ou permanecer saudável.
O CONTATO FÍSICO afetuoso, em especial o abraço, libera ocitocina, substância que favorece a sensação de bem-estar
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constatou que o estresse e a falta de suporte social influenciam no risco de contrair gripes e resfriados. Voluntários que tinham pouco contato social estavam mais expostos aos vírus – e ficavam mais facilmente com o nariz entupido – sobretudo em ocasiões em que eram submetidos a forte pressão. Já aqueles que se sentiam acolhidos por outras pessoas não eram infectados com tanta frequência, mesmo quando enfrentavam tensões e conflitos pessoais. Uma importante variante do estudo foi o número de abraços que a pessoa recebia durante o dia. “Frequentemente, a importância das relações interpessoais é subestimada no estudo da tensão psicológica”, destaca Gert Kaluza. Mas o fato é que cônjuges, amigos, parentes e vizinhos podem dividir experiências e nos ajudar a resolver os problemas. Ou simplesmente fazer companhia em momentos ruins. “Trata-se de confiança e conforto; as pessoas trocam impressões, contam histórias, apresentam seus pontos de vista, dividem opiniões, e com isso sentimos que não estamos sozinhos, podemos relaxar um pouco, o que ajuda a reduzir o estresse”, ressalta Kaluza. No entanto, não é quantidade que conta, comprovam as pesquisas – e sim a qualidade. Muitos estudos mostram que o número de contatos sociais não influencia tanto assim na qualidade de vida. Importa de fato é nos sentirmos acolhidos. Por mais abstrata que seja a ligação com certos grupos sociais – clubes de esportes, partidos ou comunidades religiosas –, essa conexão tem efeito be-
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AUTONOMIA A maioria das grandes organizações considera a gestão do estresse dos funcionários uma questão a ser resolvida – de preferência de forma individual, pelos próprios profissionais. É esperado que as pessoas – em especial as mulheres – sejam flexíveis, socialmente competentes e resistentes às pressões. “As condições sociais nas organizações são frequentemente muito precárias; quando ocorrem os seminários para tratar do assunto gerenciamento de estresse nas empresas, parece haver certa responsabilização dos empregados e uma culpabilização sutil pela dificuldade de dar conta da sobrecarga de trabalho”, afirma Binnewies. Obviamente cabe, pelo menos em parte, a cada um se empenhar em ter uma vida mais saudável. Mas quem está na posição de combater o estresse e modificar essa situação também é responsável. “Executivos e políticos podem fazer mais para combater o estresse desenfreado”, acredita Kaluza. O pesquisador argumenta que é fundamental que as pessoas em cargos de liderança estejam atentas para preservar o clima de bem-estar nas equipes, evitando colocar os subordinados sob pressão. “Deve fazer parte da tarefa dos gestores escutar as queixas e ideias, evitar situações de bullying no trabalho e não esperar que os profissionais estejam acessíveis a qualquer hora ou que façam banco de horas.” O cerceamento da autonomia também prejudica muito a saúde física e mental das pessoas, subtrai o entusiasmo e, em última instância, as torna menos produtivas aos olhos da empresa. Permitir que os funcionários e colaboradores tomem decisões sobre como conduzir o próprio trabalho é vital para manter o ambiente saudável. Infelizmente, não é
O excesso que mata Quando um operador da cadeia de restaurantes fast-food japonesa Mister Donut resolveu abrir uma segunda filial da franquia, ele aumentou consideravelmente sua carga de trabalho. Passava em média 66 horas na empresa e, em épocas de maior movimento, até mais. Após nove meses, ele passou mal no carro a caminho do restaurante. Diagnóstico: ataque cardíaco fulminante. Em janeiro de 2017, o tribunal japonês sentenciou que a causa da morte havia sido por karoschi – uma palavra japonesa que significa morte ocasionada pelo excesso de trabalho. O grupo empresarial foi então condenado a pagar uma indenização equivalente a US$ 400 mil à família da vítima. No Japão, desde 1980, é possível entrar na Justiça contra empresas que teriam contribuído para a morte de seus funcionários, sobrecarregados por excesso de trabalho. Há uma série de estudos internacionais que abordam a temática de mortes causadas pelo estresse no trabalho. Uma pesquisa de 2015 mostra que aqueles que trabalham mais de 55 horas semanais têm 33% a mais de risco de sofrer um acidente vascular cerebral (AVC) fatal. E a possibilidade de terem um infarto sobe para 13%. Sem mencionar que pessoas que trabalham demasiadamente estão mais propensas a sofrer de problemas psicológicos, como depressão e ansiedade. O burnout começa com a sensação de exaustão. Nesse estado, tendemos a investir pouco no trabalho. Como resultado, produzimos menos, o que pode nos
difícil tolher a sensação de liberdade de uma pessoa no ambiente de trabalho. Gestores que estabelecem expectativas irreais para um funcionário ou interferem na comunicação entre colegas contribuem para o enfraquecimento da equipe. Além disso, a falta de diálogo pode deixar os dias de trabalho mais difíceis e imprevisíveis do que o necessário. Quando sentimos que não controlamos o que fazemos, tendemos a nos enxergar como impotentes e ineficazes – o que, em geral, é um equívoco. ESTRATÉGIAS FLEXÍVEIS Não existe uma fórmula patenteada contra o estresse. Esse estado não pode ser “curado”, até porque não se trata de um adoecimento, e sim de uma reação que pode causar o adoecimento – e até a morte. O mais indicado é lançar mão de maneiras para aliviar a pressão
levar a nos sentir pouco eficientes. Assim, a atividade profissional deixa de oferecer as mesmas recompensas psicológicas e começamos a desconfiar do nosso valor. Esse conjunto de emoções (desânimo, sensação de impotência e incompetência) se retroalimenta, o que pode produzir um ciclo perigoso que favorece o quadro. Nessa hora, costuma passar pela cabeça das pessoas a ideia de desistir do trabalho. Embora, obviamente, seja possível considerar outro emprego, nessas circunstâncias, pedir demissão não costuma ser a melhor saída. Já compreender conceitos básicos sobre o distúrbio de uma perspectiva psicológica pode ajudar a recuperar o pique. Décadas de pesquisa revelam dados fundamentais sobre o esgotamento profissional. Em primeiro lugar, é importante afastar a ideia de que o problema surge por causa de uma falha pessoal. Quem enfrenta o burnout não carece necessariamente de alguma qualidade específica ou falta de empenho, perseverança ou autoconfiança. O distúrbio representa justamente o desgaste dessas qualidades tão bemvindas. Estudos mostram de forma bastante consistente que projetos profissionais medíocres e o gerenciamento da própria carreira são as causas principais do problema. Para piorar, muitas vezes o modo como os gestores conduzem a equipe, bem como a estrutura da empresa e a carga horária, não favorece o melhor aproveitamento de competências de funcionários e colaboradores.
de acordo com cada situação. “É exatamente essa flexibilidade de estratégias, que podem ser usadas juntas ou em diferentes momentos, que explica os efeitos positivos do combate ao estresse”, diz Carmen Binnewies. Para alguns, o caminho mais atraente pode ser suar a camisa, dançando ou praticando qualquer exercício físico. Para outros, jogar conversa fora com amigos é condição para manter a saúde; e, para outros ainda, a melhor saída pode ser sentar-se em silêncio e meditar. Um pouco de cada coisa provavelmente será a forma mais eficiente de lidar com o estresse. Não importa de que forma; nessa hora, é importante tomar a responsabilidade sobre si mesmo e procurar o que faz bem – reavaliar prioridades, enfrentar os medos, recorrer a ajuda psicológica, respirar, buscar pessoas queridas e, quem sabe, pedir colo. julho 2017 • mentecérebro 27
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Por que
elas
sofrem mais? Respostas de homens e mulheres ao esgotamento físico e emocional são biologicamente diferentes mesmo no nível celular mais básico. Além de levar em conta os aspectos sociais que as expõem frequentemente a situações de sobrecarga emocional, é preciso considerar as especificidades físicas quando se estudam possibilidades de tratamento dos sintomas de psicopatologias como transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), ansiedade e depressão por Debra A. Bangasser
A AUTORA DEBRA A. BANGASSER é professora assistente da Universidade Temple e pesquisadora principal do Laboratório de Comportamento e Neuroendocrinologia, na mesma instituição. julho 2017 • mentecérebro 29
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Historicamente, cientistas estudaram quase que exclusivamente animais machos – mesmo quando investigavam distúrbios que pareciam ocorrer mais em mulheres; isso ajuda a explicar por que elas relatam mais reações adversas aos medicamentos
P
ense na última vez que se sentiu estressado. Sua frequência cardíaca acelerou? A respiração ficou superficial e rápida? Talvez seus músculos tenham se tornado tensos e você, entrado em alerta. O cérebro provoca todas essas mudanças fisiológicas para nos ajudar a sobreviver diante de uma situação potencialmente perigosa. Mas, quando a resposta é ativada de forma contínua e equivocada, pode se tornar perigosa. De fato, inúmeras pesquisas relacionam o estresse constante e descontrolado a diversos problemas de saúde, desde doenças cardíacas e diabetes até depressão e transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Um dado que chama atenção é o fato de mulheres terem probabilidade duas vezes maior, em relação aos homens, de sofrer de distúrbios psiquiátricos relacionados com o estresse, de acordo com análises epidemiológicas. Cientistas têm se perguntado por que isso acontece. Alguns especialistas argumentam que fatores culturais são, em grande parte, responsáveis por esse quadro. As mulheres estão muito mais sujeitas a violências cotidianas das mais variadas ordens, fazem jornadas duplas ou triplas e ainda são subjugadas no ambiente profissional, com salários significativamente menores do que seus pares do sexo masculino. Outro fator a ser considerado nas estatísticas: as mulheres 30
costumam ser mais dispostas do que os homens a procurar ajuda em relação a doenças mentais, o que aumenta as chances de esses casos serem contabilizados. Mas chamam atenção novas evidências surgidas com estudos de animais que sugerem que a biologia também pode desempenhar um papel importante para entendermos esse quadro. Pesquisadores começam a perceber notáveis diferenças na maneira como o cérebro de homens e mulheres reage e se adapta ao estresse. Esse conhecimento, porém, vem se construindo a passos curtos. Historicamente, cientistas estudaram quase que exclusivamente animais machos – mesmo na hora de investigar distúrbios que pareciam ocorrer mais frequentemente em mulheres. Muitos pesquisadores diziam temer que os hormônios femininos pudessem trazer complicações para os estudos e confundir os dados, criando a necessidade de investigar mais participantes, por um tempo longo e com maior custo. Pesquisas recentes contestam essa linha de raciocínio (dados coletados de fêmeas não variam mais do que de machos), mas a propensão ao masculino na pesquisa com animais persiste. Para resolver a questão, os Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH, na sigla em inglês), que financia grande parte dos estudos biomédicos do país, tem se empenhado numa nova empreitada. A partir
deste ano, a agência exige que os cientistas que realizam pesquisas com animais incluam o gênero como uma variável biológica, estudando tanto os machos quanto as fêmeas. Como resultado, pesquisadores que investigam o estresse crônico têm possibilidade muito maior de entender como isso afeta a saúde de pessoas de ambos os gêneros – um trabalho que poderia levar a tratamentos mais eficazes e específicos (de acordo com o sexo) para os distúrbios psicológicos. De fato, algumas das mais promissoras terapias em fase de pesquisa – como a administração de ocitocina para ansiedade e de cetamina para depressão – parecem ter efeitos muito diferentes entre homens e mulheres. CÉLULAS SUPERATIVADAS Os modelos animais que os cientistas usam para explorar os efeitos do esgotamento físico e mental assumem muitas formas. Alguns pesquisadores expõem os roedores a algo estressante (talvez um som) e os condicionam a associar o estímulo a um choque leve por vários dias seguidos. Outros alteram os níveis de substâncias químicas relacionadas com o estresse, como os glicocorticoides ou o fator de liberação de corticotrofina (CRF), no cérebro dos animais por meio da manipulação genética. Independentemente do método, as intervenções parecem produzir reações mais rápidas e mais fortes em cobaias do sexo feminino. Os processos celulares mais básicos envolvidos na resposta ao estresse diferem entre os gêneros. Por exemplo, a neurocientista Georgia E. Hodes, que trabalha no laboratório do neurocientista Scott Russo, da Escola de Medicina Icahn do Monte Sinai, conduziu recentemente um estudo em que ela e seus colegas provocaram estresse em camundongos machos e fêmeas ao longo de várias semanas. Eles notaram que levou 21 dias para haver aumento nos comportamentos similares ao de depressão e ansiedade em ratos machos, mas apenas seis dias para observar a mesma reação nas fêmeas. Em busca de uma explicação, os pesquisadores investigaram o núcleo accumbens, uma região do cérebro envolvida na busca de atividades gratificantes e prazerosas. Os cientistas acre-
ditam que a interrupção da sinalização neural normal nessa área pode contribuir com a anedonia, a incapacidade de experimentar o prazer, um sintoma comum na depressão e em vários outros transtornos relacionados com o estresse. Dentro do núcleo accumbens, Hodes identificou diferenças de sexo na regulação de um gene chamado Dnmt3a (ADN metiltransferase 3a). Após um período estressor de seis dias, ele ficou mais pronunciado em ratas. Esse gene codifica uma enzima que altera o DNA de uma célula de tal forma que impede que outros genes sejam lidos e utilizados para produzir proteínas. Para determinar o papel do Dnmt3a no estresse crônico, Hodes removeu o gene do núcleo accumbens das fêmeas. Assim, elas se tornaram mais resistentes e responderam de forma similar aos
Pedágio mais caro para as mulheres Elas têm maior probabilidade, em relação aos homens, de serem diagnosticadas com distúrbios psiquiátricos associados com o estresse, com exceção do abuso de substâncias. Essa discrepância pode estar, pelo menos em parte, relacionada com fatores sociais, como a relutância masculina em procurar ajuda, que faz com que homens sejam subdiagnosticados. Prevalência ao longo da vida Distúrbio
Mulheres
Homens
Depressão
20,2
13,2
Enxaqueca
18,2
6,5
Síndrome do intestino irritável
14,5
7,7
Insônia
12,9
6,2
Transtorno de estresse pós-traumático
9,7
3,6
Abuso de álcool
7,5
19,6
Ansiedade generalizada
7,1
4,2
Pânico
6,2
3,1
Abuso de drogas
4,8
11,6
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Qual o tamanho do susto desse rato?
Cientistas que estudam o estresse em humanos podem perguntar aos participantes da pesquisa como se sentem: estressados, temerosos, ansiosos, deprimidos? Isso não funciona com camundongos. Por isso, meus colegas e eu temos de tentar avaliar a resposta emocional de roedores ao estresse de forma indireta – o que significa que tomamos nota cuidadosa de mudanças nos comportamentos que acreditamos que refletem medo, ansiedade e sintomas de depressão. Infelizmente, essas dicas comportamentais foram todas validadas em machos e não necessariamente capturam sinais de estresse e medo de fêmeas. Em 2015, a neurocientista Rebecca Shansky e sua estudante de pós-graduação Tina M. Gruene, da Universidade Northeastern, demonstraram que ratos de ambos os sexos têm diferentes maneiras de expressar o medo aprendido. Em seus experimentos, elas seguiram um procedimento padrão de condicionamento do medo, ensinando roedores a temer determinado som, associando o estímulo repetidamente com um leve choque elétrico na pata. Para avaliar o quão bem um rato aprende a associação, os pesquisadores geralmente medem o quanto o bicho para de se mover (exceto para respirar) quando ouve o barulho. Quanto mais o rato congela e com maior receio se sente, melhor aprendeu – ou então a lógica continua. Mas, quando os cientistas começaram a testar as fêmeas da mesma forma, descobriram que não congelavam tanto quanto os machos. Isso significava que as ratas não haviam aprendido tão bem? Como se viu, não parece ser o caso. Com observação cuidadosa, Shansky e Gruene perceberam que, após o condicionamento, muitas fêmeas corriam em torno do cercado, talvez tentando escapar. Quando passaram a considerar esse comportamento como um indicador de medo, a aparente lacuna na capacidade de aprendizagem desapareceu. 32
machos. Os resultados sugerem que as ratas experimentam um aumento da expressão do Dnmt3a após apenas uma curta exposição a eventos estressores, o que então bloqueia outras proteínas que promovem a resistência ao estresse. Curiosamente, os pesquisadores estão desenvolvendo substâncias que inibem enzimas Dnmt para tratar certos tipos de câncer. Cientistas acreditam que drogas semelhantes podem ser úteis no tratamento de distúrbios relacionados com o estresse, particularmente em mulheres. Alterações na expressão gênica não são as únicas diferenças cerebrais relacionadas com o gênero. Na época do pós-doutorado, minha orientadora, a neurocientista Rita Valentino, do Hospital da Criança da Filadélfia, e eu apontamos distinções associadas com o sexo nos receptores que respondem ao hormônio CRF, que ajuda a iniciar a resposta bioquímica do corpo ao estresse. Embora existam receptores de CRF em muitas áreas neurais, nos concentramos no locus coeruleus, uma estrutura responsável por mudar nossos níveis de excitação: de sonolentos a completamente acordados. Durante um evento estressante, o CRF inunda o locus coeruleus, onde se liga a receptores CRF para manter um animal em alerta máximo. Normalmente, esses receptores se acomodam na superfície externa das células do cérebro, à espera de um sinal CRF. Na medida em que os níveis de CRF aumentam, no entanto, os receptores migram da membrana celular para o seu interior, ficando literalmente offline. Acreditamos que o processo ajuda a evitar que as células cerebrais fiquem superativadas. Observamos que em roedores machos os receptores de CRF recuavam para dentro dos neurônios após exposição a um estressor padrão. E também agiam assim em camundongos geneticamente modificados para expressar CRF em excesso. Nas fêmeas, entretanto, os receptores permaneciam na membrana celular, onde ficavam sensíveis aos níveis elevados de CRF. Os resultados sugerem que o CRF pode aumentar a excitação e o estado de alerta de forma mais intensa nas mulheres do que nos homens. Em algumas situações, essa diferença pode ser, na verdade, adaptativa: permanecer totalmente ligado durante
uma ocorrência estressante por ser algo positivo. Mas a superativação desse sistema também pode levar a hiperexcitação, um estado que, nos humanos, contribui com a insônia, o prejuízo da concentração e a sensação de sentir-se no limite. Pacientes com transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e depressão podem apresentar altos níveis de CRF e sintomas de hiperexcitação. Cientistas acreditam que, se encontrarem diferenças relacionadas com o gênero como essas nos receptores CRF humanos, estarão um pouco mais perto de explicar por que as mulheres são mais propensas a sofrer de TEPT e depressão. No entanto, pode não ser fácil demonstrar essa variação, já que, na hora de visualizar o cérebro humano, as limitações técnicas dificultam a detecção de alterações moleculares, como a localização do receptor de CRF. Mas temos outras razões para acreditar que, assim como camundongos fêmeas, mulheres podem ter maior sensibilidade ao CRF: injetá-lo na corrente sanguínea aumenta mais a quantidade de hormônios do estresse em mulheres do que em homens. EXPLOSÃO DE HORMÔNIOS De onde vêm essas particularidades? Pesquisas recentes apontam para os diferentes complementos de genes com que nascem machos e fêmeas – bem como as explosões hormonais no útero e durante a puberdade, que podem alterar permanentemente o cérebro em desenvolvimento. Além disso, níveis flutuantes de testosterona, estrogênios e progesterona podem modular funções neurais em adultos. Em meu laboratório na Universidade Temple, começamos a estudar o papel que esses hormônios circulantes desempenham na regulação das respostas comportamentais dos roedores a altos níveis de CRF, avaliando o grooming compulsivo (ato de se coçar, lamber ou morder). Quando um rato lambe a própria pele (grooming) de maneira compulsiva, às vezes a ponto de causar queda de pelos, acreditamos que isso reflita um estado de intensa ansiedade. O comportamento, porém, pode ser uma forma de se acalmar. Observamos que, quando injetávamos CRF em ratos para
A fêmea que protege seus filhotes, ou mesmo outros espécimes do grupo, mais jovens e vulneráveis, precisa manter um estado elevado de alerta em seu ambiente – ainda que à custa do desgaste físico e mental intenso induzir estresse, as fêmeas se lambiam mais que os machos. Além disso, a intensidade desse comportamento mudava ao longo do cio, que tem um paralelo ao ciclo menstrual humano, mas que dura somente de quatro a cinco dias. Na fase em que os hormônios ovarianos (como estrogênios e progesterona) atingiam o pico, o CRF desencadeava ainda mais o grooming – sugerindo que, de alguma forma, os hormônios amplificam os efeitos do CRF. Respostas comportamentais como o grooming dependem de muitas regiões neurais. Assim, ao tentar explicar as diferenças entre ratos machos e fêmeas, a pesquisadora Kimberly Wiersielis, que desenvolve estudos em meu laboratório, levantou a hipótese de que o CRF talvez ativasse circuitos diferentes no cérebro de cada indivíduo. Para testar a ideia, ela examinou os cFos em tecidos cerebrais, uma proteína expressa apenas quando as células neurais estão ativadas. Em seguida, comparamos estatisticamente os padrões de estímulo celular. A análise revelou que, independentemente do sexo, o CRF ativou diversas regiões do cérebro, embora com diferentes padrões – e principalmente entre machos e fêmeas durante o cio, quando elas tinham os níveis mais altos de estrogênio e progesterona. ESPERTAS E SOBRECARREGADAS Essas diferenças são importantes. Enquanto procuramos melhores medicamentos para tratar distúrbios psiquiátricos relacionadas com o estresse, é vital considerarmos esses aspectos. Até hoje, terapias potenciais são testadas em roedores machos com maior frequência. Mas os mesmos compostos podem ter efeitos muito diferentes nas fêmeas. Por exemplo, o neurocientista Brian Trainor e seu julho 2017 • mentecérebro 33
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Os
12 sinais de alerta
O estresse continuado se acumula, enredando a pessoa em uma espécie de círculo vicioso. É importante ter em mente que a síndrome do esgotamento profissional se desenvolve devagar, à medida que a relação com a atividade profissional se torna gradativamente marcada pela falta de entusiasmo. Diversos estudos reforçam a ideia de que a síndrome tem três componentes principais: esgotamento físico e mental, sensação de impotência e falta de expectativas (expressa como desânimo e pessimismo). As três características tendem a estar associadas, mas, em muitos casos, experimentar apenas uma delas já representa risco. Para fins didáticos, é possível agrupar os sintomas em estágios, que podem se suceder, se alternar ou ocorrer ao mesmo tempo, até que o quadro de fato se instale:
1. Necessidade de autoafirmação
7. Recolhimento
Anseio de fazer tudo de forma perfeita, medo excessivo de errar ou ambição exagerada na profissão levam à compulsão por desempenho
A pessoa se afasta dos outros, parece irritada e sem ânimo
2. Dedicação intensificada Para fazer jus às expectativas desmedidas, a pessoa intensifica a dedicação e passa a fazer tudo sozinha
Quem era tão dedicado e ativo revela-se amedrontado, tímido e apático. Atribui a culpa ao mundo, mas sente-se cada vez mais inútil
3. Descaso com as próprias necessidades
9. Despersonalização
A vida profissional ocupa quase todo o tempo. A renúncia ao lazer e ao descanso é vista como ato de heroísmo
Desvaloriza a todos e a si próprio, relega necessidades pessoais. Deixa de fazer planos, só pensa no presente e a vida limita-se ao funcionamento mecânico
4. Evitação de conflitos A pessoa percebe algo errado, mas não enfrenta a situação temendo deflagrar uma crise. Surgem os primeiros problemas físicos
5. Reinterpretação dos valores Isolamento e negação das próprias necessidades modificam a percepção. Amigos e passatempos são desvalorizados. Autoestima é medida pelo trabalho
6. Negação de problemas O profissional torna-se intolerante, julga os outros incapazes, exigentes demais ou indisciplinados
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8. Mudanças evidentes de comportamento
10. Vazio interior Sensação de vazio interno é cada vez mais forte. Excede-se na vida sexual, na alimentação e no consumo de drogas e álcool
11. Depressão Indiferença, desesperança e exaustão. Sintomas dos estados depressivos podem se manifestar, desde a agitação até a apatia. A vida perde o sentido
12. Síndrome do esgotamento profissional Total colapso físico e psíquico, pensamentos suicidas. É urgente recorrer à ajuda médica e psicológica
aluno de pós-graduação Michael Q. Steinman, da Universidade da Califórnia em Davis, testaram uma terapia com ocitocina em camundongos de ambos os sexos. O hormônio favorece a ligação social em mamíferos, por isso os cientistas levantaram a hipótese de que administrá-lo pelo nariz das pessoas, na forma de spray, poderia ajudar a reduzir a ansiedade social e a evitação de conflitos, bem como amenizar dificuldades no processamento de sinais sociais, um problema observado com alguma frequência em pacientes com distúrbios psiquiátricos relacionados com o estresse. O grupo de Trainor constatou que a ocitocina intranasal de fato ajudou a reduzir a inquietação em camundongos machos, mas em muitas situações estimulou a ansiedade nas fêmeas. Essa reação deve ser considerada e nos alerta para a necessidade de nos certificarmos de que os sprays de ocitocina não causam efeitos secundários adversos similares nas mulheres. A cetamina oferece outro exemplo. O medicamento, geralmente utilizado como anestésico, bloqueia o receptor N-metil-D-aspartato (NMDA), uma proteína que pode regular diversos processos, como aspectos da resposta ao estresse. A droga criou muita empolgação como terapia potencial contra a depressão, porque, ao contrário de antidepressivos tradicionais que podem levar semanas para oferecer qualquer benefício, baixas doses de cetamina podem ajudar a reduzir os sintomas rapidamente, em alguns casos, após uma única infusão. Infelizmente, altas quantidades da substância podem induzir delírios, alucinações e uma experiência “fora do corpo” (razão pela qual é também uma droga recreativa bastante popular). Pesquisadores têm estudado a cetamina em animais machos para desenvolver terapias mais direcionadas contra a depressão. Em 2013, porém, o neurocientista Mohamed Kabbaj e a estudante de pós-graduação Nicole Carrier, da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual da Flórida, também testaram a substância em ratas. Eles descobriram que foi necessária menor dose de cetamina para aliviar os sintomas de depressão nas fêmeas e que o motivo não estava relacionado apenas com uma questão de diferenças na
massa corporal, mas sim que parecia haver um mecanismo biológico distinto em ação. Se essas mesmas diferenças existirem nos humanos, os cientistas que pesquisam novos fármacos com propriedades semelhantes à cetamina podem ter de desenvolver terapias distintas para homens e mulheres. Atualmente, os cientistas avaliam a segurança e eficácia em longo prazo da substância. Esses estudos podem revelar que, assim como as fêmeas, as mulheres devem receber uma dose menor. Não sabemos por que fêmeas e machos teriam evoluído com diferentes respostas biológicas ao estresse. Uma possibilidade é que uma fêmea que protege seus filhotes, ou mesmo outros indivíduos mais jovens e vulneráveis do grupo, precise manter um estado elevado de alerta e consciência em seu ambiente – ainda que à custa do desgaste físico e mental intenso. Essa “vantagem cognitiva” parece intimamente associada à maior sensibilidade ao estresse, como maior vulnerabilidade à depressão e a transtornos de ansiedade. À medida que nos comprometemos a incluir fêmeas nas pesquisas, podemos aprender mais não apenas sobre distúrbios que são mais comuns em mulheres, mas também sobre aqueles que são mais frequentemente diagnosticados em homens, como autismo e transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Nesse caso, estudar as diferenças neurais do sexo feminino pode revelar fatores que conferem maior solidez. E isso levar ao desenvolvimento de tratamentos mais bem direcionados, de acordo com o sexo. É cada vez mais evidente que a abordagem tradicional de realizar estudos apenas com animais machos é falha. De fato, nossa antiga confiança em pesquisas de desenvolvimento de drogas com essa premissa pode explicar, pelo menos em parte, por que as mulheres relatam mais reações adversas aos medicamentos do que os homens. Isso também pode ter barrado medicamentos que poderiam ser altamente eficazes para esse público, mas que nunca chegaram ao mercado. Essa situação reflete questões culturais mais amplas, embasadas na opressão, que precisam ser revistas e mudadas com urgência.
PARA SABER MAIS Sex-specific effects of stress on oxytocin neurons correspond with responses to intranasal oxytocin. M. Q. Steinman e outros, em Biological Psychiatry, vol. 80, nº 5, págs. 406–414; 19 de outubro de 2016. Sex differences in nucleus accumbens transcriptome profiles associated with susceptibility versus resilience to subchronic variable stress. Georgia E. Hodes e outros, em Journal of Neuroscience, vol. 35, nº 50, págs. 16,362–16,376; 16 de dezembro de 2015. Sexually divergent expression of active and passive conditioned fear responses in rats. Tina M. Gruene e outros, em eLife, vol. 4, artigo nº e11352; 14 de novembro de 2015. Sex differences in the antidepressant-like effects of ketamine. N. Carrier e M. Kabbaj, em Neuropharmacology, vol. 70, págs. 27–34; julho de 2013. His brain, her brain. Larry Cahill, em Scientific American; outubro de 2012.
julho 2017 • mentecérebro 35
consciência
Palpite, dúvida ou certeza? Experimentos revelam como o grau de confiança naquilo que percebemos ou pensamos influi diretamente em nossas opiniões, apostas e decisões
É
inegável que muitas de nossas ações se passam fora do alcance da consciência: se ajustamos a postura corporal durante uma conversa ou se nos apaixonamos por determinada pessoa, em geral não temos ideia – pelo menos não exatamente – de por que ou de como fazemos essas escolhas. Para a maioria delas encontramos explicações superficiais (“fico mais confortável nessa posição” ou “gosto do meu noivo, temos muito em comum”, por exemplo). Por trás dessas justificativas, porém, pode haver muitos mistérios. Um exemplo simples: “Ao acionar um interruptor, você conscientemente viu a luz se acender?”. Embora pareça fácil responder à pergunta, mais de um século de pesquisas mostrou que não é bem assim. O problema-
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-chave aqui é definir a consciência de tal forma que seja possível medi-la de maneira independente do estado interno do cérebro, ao mesmo tempo que “captamos” seu caráter subjetivo. Um experimento comum no campo do estudo da consciência se baseia na avaliação do grau de confiança naquilo que percebemos ou pensamos. No teste, um voluntário tem de julgar se uma nuvem de pontos numa tela de computador se move para a esquerda ou para a direita. Ele em seguida relata quão confiante se sente assinalando um número – por exemplo, 1 para indicar puro palpite, 2 para alguma hesitação e 3 para certeza completa. Esse procedimento mostra que, quando o participante tem pouca percepção da direção do movimento dos pontos,
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sua confiança é baixa, mas, quando “vê” claramente o movimento, sua segurança é alta. Um relatório apresentado pelos pesquisadores Navindra Persaud, da Universidade de Toronto, e Peter McLeod e Alan Cowey, da Universidade de Oxford, introduz uma medida mais objetiva da consciência: o desejo de ganhar dinheiro. Esse método foi adaptado da economia, em que é usado para avaliar a crença a respeito do resultado provável de um evento. Aqueles que acreditam na informação que têm se mostram dispostos a apostar nela. Isto é, aceitam pagar para ver. Pense no investimento em fundos mútuos. Quanto mais certo você estiver de que a alta tecnologia vai render bem no ano seguinte, mais dinheiro alocará para um fundo destinado a esse setor. Persaud e seus colegas usam esse tipo de aposta para revelar a consciência – ou a falta dela. Em seus experimentos, os participantes não declaram confiança na percepção de maneira direta. Em vez disso, primeiro tomam uma decisão com base naquilo que perceberam e então apostam uma quantia em seu grau de confiança na própria decisão. Se a escolha se mostra correta, o voluntário ganha o dinheiro; caso contrário, perde. A estratégia ideal é apostar sempre que se sinta seguro. As experiências aplicam essa técnica de apostas para três exemplos do processamento não consciente. Um deles foi feito com o paciente G. Y. Devido a um acidente de carro que danificou áreas no seu cérebro responsáveis pelo processamento visual, ele tem o que se costuma chamar de “visão cega”. Essa condição
o deixa com a capacidade não consciente de localizar uma luz ou relatar a direção na qual uma barra colocada numa tela de computador está se movendo, embora ele negue ter a experiência visual – G. Y. insiste que está apenas chutando. O paciente pode indicar a presença ou ausência͒de uma rede fraca e pequena em 70% de todos os testes, bem mais do que uma chance média (50%). Apesar disso, ele falha em converter esse desempenho superior em dinheiro quando está apostando; coloca quantias altas em menos da metade de suas escolhas corretas. Quando está ciente do estímulo, G. Y. aposta alto – exatamente o que qualquer pessoa faria. Suas apostas parecem espelhar a percepção consciente que tem do estímulo (isto é, a crença de que ele o viu) em vez de sua detecção real (inconsciente) do estímulo. Isso sugere que as apostas podem servir de meio para medir a consciência. As técnicas de apostas usadas por Persaud, McLeod e Cowey dependem da capacidade intuitiva de fazer boas escolhas e obter lucros. Em comparação com a tática de forçar participantes a se tornar cientes de sua própria consciência – e, nesse processo, interferir no próprio fenômeno que se deseja medir –, as apostas representam uma forma mais sutil de avaliar a percepção, mostrando-se uma nova maneira mais lúdica – e reveladora – de estudar a percepção e os processos de tomada de decisão. Desses passos, aparentemente pequenos, surgem possibilidades para ampliar a compreensão de como a consciência surge da experiência. (Da redação) julho 2017 • mentecérebro 37
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obesidade
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Cirurgia altera cérebro, mas não aplaca
angústia
Relação com o alimento pode sofrer mudanças no nível neurológico, mas, se conflito que leva à compulsão não for tratado, sintomas aparecem de outras maneiras. Muitas vezes, surgem ou se agravam quadros psiquiátricos como ansiedade, compulsão e depressão – apesar do corpo magro tão almejado
M
uita gente deve ter se olhado no espelho hoje e pensado que emagrecer (ainda que à custa de uma cirurgia bariátrica) seria uma excelente solução para terminar de vez com a luta contra a balança – e, talvez, ajudasse a resolver problemas emocionais e de autoestima. De fato, existe uma cultura forte que associa padrões físicos de magreza considerados “ideais” a felicidade e sucesso. Em junho de 2016, várias organizações internacionais voltadas para o estudo da diabetes ratificaram novas orientações, bastante provocativas, sugerindo que os clínicos deveriam considerar a cirurgia bariátrica para um leque mais amplo de diabéticos, passando a incluir aqueles com índice de massa corporal (IMC) igual ou superior a 30 – e não somente aqueles com IMC igual ou superior a 40. A base para essa argumentação está em pesquisas: estudos mostram que a cirurgia para perda de peso ajuda os pacientes a alcançar níveis de glicose no sangue melhores do que daqueles que emagrecem com mudança de dieta e exercícios físicos. Um estudo recente realizado com ratos sugere que a eficácia da cirurgia bariátrica pode estar associada, pelo menos em parte, às mudanças que provoca no cérebro. julho 2017 • mentecérebro 39
obesidade Segundo artigo publicado no International Journal of Obesity, a cirurgia bariátrica deflagra a hiperativação de uma rota neural que parte dos neurônios sensitivos do estômago no tronco encefálico, passa pelo núcleo parabraquial lateral (uma área no mesencéfalo que recebe informações sensoriais do corpo) e então chega à amígdala, que funciona como o centro cerebral do processamento da emoção e medo. Os ratos obesos foram submetidos a um processo chamado derivação gástrica em Y-de-Roux, em que os cirurgiões removem a maior parte do estômago, deixando somente uma pequena bolsa conectada ao intestino delgado. Pouco depois da cirurgia, quando os ratos passaram a ingerir porções mais reduzidas, mostrando prefe-
rência por alimentos menos gordurosos, os cientistas detectaram uma ativação crescente nessa rota neural. Foi detectado também que os animais começaram a secretar níveis mais elevados de hormônios de saciedade. Padrões comportamentais e hormonais semelhantes são encontrados em seres humanos após a cirurgia bariátrica, sugerindo que as alterações no cérebro possam ser semelhantes. Os autores do estudo reconhecem, porém, que observar esse circuito por meio de imageamento cerebral é difícil e podem ocorrer distorções por causa da falta de resolução. Segundo o neurocientista Hans-Rudolf Berthoud, do Centro Pennington de Pesquisas Biomédicas da Universidade do Estado da Louisiana (LSU ), principal autor do
Acompanhamento psicológico no tratamento bariátrico* Do ponto de vista orgânico, a obesidade pode ser definida como alteração de processos biológicos (envolvendo basicamente genética e metabolismo) em interação com fatores psíquicos e ambientais, cujo resultado é o aumento do peso sob a forma de acúmulo de gordura. A maioria dos pacientes obesos tem uma longa história de tratamentos anteriores, com reduções de peso seguidas de reaquisição. Tais resultados parecem decorrer do enfoque excessivo na consequência (o peso), em detrimento do tratamento e modificação de suas causas. Outro aspecto característico é a interrupção precoce dos tratamentos. Em diversos países, as técnicas bariátricas e cirúrgicas têm apresentado bons resultados em termos de redução de peso, melhora da qualidade de vida e satisfação global dos pacientes. Isso se deve não somente a que tais procedimentos reduzem a ingestão calórica sem o desconforto de uma privação alimentar excessiva por parte do paciente, mas também ao fato de que a maioria dos centros aborda o tratamento de uma forma multidisciplinar. Grande parte dos pacientes obesos apresenta transtornos alimentares caracterizados pela compulsão alimentar relacionada à ansiedade e estados de humor depressivo. Sabe-se que tais pessoas tendem a “adaptar” seu padrão de alimentação compulsivo após 40
os tratamentos bariátricos (por exemplo, “beliscando” carboidratos continuamente, ingerindo grandes quantidades de alimentos líquidos hipercalóricos etc.), o que acaba comprometendo os resultados. Sabe-se também que a (em geral drástica) mudança na forma e imagem corporais que se segue a tais procedimentos traz consigo a emergência de conflitos psicológicos e necessidades de adaptação à nova condição. Em linhas gerais, esses são os motivos pelos quais a avaliação e o acompanhamento psiquiátricos são importantes no tratamento da obesidade. Na prática, o acompanhamento psiquiátrico ou psicológico do paciente obeso que se submete ao tratamento bariátrico segue uma abordagem multidisciplinar, um modelo que envolve profissionais de diferentes áreas e tem sido empregado nos diversos centros de referência para tratamento da obesidade em todo o mundo. A função do psiquiatra começa com uma avaliação inicial do paciente com indicações clínicas para o tratamento cirúrgico da obesidade. Nessa avaliação são explorados não só os aspectos relacionados com a história de vida (história da obesidade, o sofrimento físico e psíquico a ela relacionado, história de problemas psíquicos prévios etc.), como também uma série de aspectos pertinentes ao tratamento proposto, tais como:
estudo, a alteração da atividade cerebral é provavelmente causada pelo contato inédito e repentino do alimento não digerido (em vez da mistura pré-digerida que costuma vir do estômago) ao atingir o intestino delgado. “Basicamente, esses pacientes têm de reaprender a se alimentar; estavam acostumados a ingerir grandes porções de alimento e isso proporcionava sensação que lhes parecia agradável, mas, se o fizerem após a cirurgia, isso vai causar desconforto”, diz Berthoud. As áreas cerebrais que se tornaram hiperativas pela cirurgia provavelmente refletem esse feedback negativo, que é uma ferramenta poderosa de aprendizado. “Em poucas semanas, a rota pela qual passava o alimento não era mais hiperativa
1. Grau de motivação para cumprir os cuidados necessários 2. Tomada de consciência de estar se engajando em um projeto em longo prazo 3. Riscos envolvidos 4. Adesão do paciente a atividades físicas regulares e ao programa adequado de alimentação 5. Expectativas do paciente em termos de resultado estético e controle do peso etc. São fundamentais a identificação e o tratamento de problemas que possam interferir de modo negativo no resultado do tratamento. Condições psiquiátricas como abuso de álcool ou outras drogas, transtornos psicóticos (doenças em que podem ocorrer crises que causem prejuízo grave na apreciação realista dos fatos), transtornos de humor (depressões e/ou euforia) ou ansiedade e, sobretudo, alterações do comportamento alimentar são particularmente importantes e necessitam de uma avaliação criteriosa, que por vezes pode até contraindicar a intervenção cirúrgica naquele momento. A ideia não é “selecionar” pacientes que possam ou não ser operados, mas identificar e tratar problemas com potencial interferência negativa no processo. É importante não passar a ideia de que o paciente tenha algum perfil psicológico ou clínico típico da obesidade
DOCUMENTÁRIO BRASILEIRO Muito além do peso (2015) trata da obesidade de crianças
e deva ser tratado de modo homogêneo. Entretanto, as pesquisas e a experiência clínica demonstram que as pessoas com obesidade apresentam diferentes graus de sofrimento psíquico decorrente do seu padecimento. Em geral, sofrem discriminação e preconceito de diversos matizes, que por sua vez podem ser introjetados ao longo da vida, deixando marcas profundas. Para uma avaliação mais objetiva e economia de tempo, podem ser utilizados questionários a que o paciente pode responder em casa. Esse material é um instrumento de avaliação diagnóstica, de grande ajuda no planejamento terapêutico para cada paciente, como de resto também fornece informações importantes para o tratamento desses problemas com base científica. O acompanhamento psiquiátrico ao longo do tratamento depende, em parte, dessa avaliação inicial. É compreensível que a presença de condições psiquiátricas que possam comprometer aspectos de ordem prática (atividade física e adequação à dieta) ou o bem-estar psicossocial requeiram acompanhamento com consultas mais constantes, eventualmente com o uso concomitante de medicamentos e de psicoterapia para o aprofundamento das questões psíquicas e comportamentais. (*) Informações fornecidas pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica
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obesidade nos ratos, talvez indicando que o cérebro havia recrutado outros processos para sustentar a ingestão reduzida”, diz Berthoud. Segundo ele, essa constatação provavelmente constitui somente uma peça do quebra-cabeça. Estudos passados sugerem que a cirurgia bariátrica afeta também o sistema de recompensas do cérebro, tornando os alimentos gordurosos menos agradáveis. Uma questão que permanece é por que pessoas que passaram pela cirurgia bariátrica têm o metabolismo mais acelerado, em comparação com as que fizeram mudança de hábitos e do estilo de vida com o objetivo de perder
peso. Em um estudo divulgado no começo do ano passado, pesquisadores constataram que os competidores de um programa de televisão americano, The Biggest Loser, ainda apresentavam um metabolismo letárgico seis anos após a enorme perda de peso. Estudos semelhantes mostram que grande parte dos pacientes bariátricos alcança um metabolismo estável e normalizado no prazo de um ano – mas não todos. Além disso, especialistas alertam para os riscos e efeitos colaterais da cirurgia bariátrica. Psicólogos e psiquiatras chamam atenção para uma questão complexa: mais que
Reaprendendo a viver A psicóloga Marlene Monteiro da Silva, coordenadora do curso de transtornos alimentares e obesidade do Hospital das Clínicas (HC), compara o período pós-operatório dos pacientes às fases de desenvolvimento psicossexual na infância, segundo o modelo proposto por Sigmund Freud. “Nos três primeiros meses podemos fazer um paralelo com a fase oral: assim como acontece com o bebê, a maior preocupação da pessoa nesse momento é com a comida; o paciente só pode alimentar-se de sopas e papinhas, em geral fica emocionalmente regredido, alguns choram com muita frequência, e sente-se dependente.” A partir do quarto mês há uma espécie de “retorno” à fase anal, a pessoa começa a descobrir novas maneiras de encarar o próprio corpo e se relacionar com ele. Nesse momento, alguns chegam a ter 20 quilos a menos e sentem-se mais expostos. O paciente depara-se com uma agressividade da qual nem sempre se dá conta, tem medo da mudança de identidade e já não há a possibilidade de recorrer à comida para aliviar as angústias. “Por volta do sétimo mês, começa o que pode ser visto como um paralelo com a fase pré-genital, uma espécie de adolescência emocional”, compara. Com o corpo bastante modificado, 50 ou 70 quilos 42
a menos, muitos desses pacientes passam a querer aproveitar tudo, muitas vezes de forma inconsequente. É nesse momento que correm o risco de se tornar alcoólatras, dependentes de drogas, viver relações promíscuas e se colocar em situações de risco. Em geral, os casos de bulimia e anorexia costumam aparecer depois de dez meses, segundo a psicóloga. “Algo que agrava a situação é tentar ‘esquecer’ que ainda é preciso fazer cirurgias plásticas, negam cortes e cicatrizes tanto físicas quanto emocionais. Se as pessoas não derem atenção à “feridas emocionais” que precisam ser cuidadas, é possível que depois de dois ou três anos após a intervenção, estejam sujeitas ao aumento das compulsões, depressão ou ao risco de voltar a engordar, mesmo com o estômago reduzido. “Não se pode ignorar que, muitas vezes, é um desafio assumir o papel de adulto, retornar ao trabalho, se haver com os desejos (tanto os próprios quanto os dos outros) e mudanças na vida sexual e afetiva”, diz Silva. “Aí as pessoas se dão conta de que o problema não era só o excesso de peso, de que há sempre faltas e que é preciso conviver com elas.” Justamente pela complexidade dos fenômenos psíquicos envolvidos são tão importantes a avaliação psicológica antes da cirurgia e o acompanhamento depois dela.
Secção gástrica em Y-de-Roux Corte de porção do estômago Bolsa gástrica
Duodeno
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um quadro em si, muitas vezes a alimentação desregrada ou compulsiva – bem como a obesidade decorrente desses comportamentos – na realidade é um sintoma que pode estar vinculado a transtornos como depressão e ansiedade. O problema é que, quando se vê o excesso de peso como um fenômeno que se esgota em si mesmo, se deixa de lado o fato de que essa situação está intimamente associada a processos psíquicos que envolvem relações consigo mesmo e com os outros, afetos, experiências e até traumas. E o tratamento, obviamente, não pode se restringir a uma cirurgia tão delicada. E talvez o mais importante: se a angústia que está por trás do sintoma não for resolvida, ele tende a reaparecer, ainda que se manifeste de outra forma. Várias pesquisas realizadas nos últimos dez anos revelam que grande parte dos pacientes que se submetem à cirurgia bariátrica apresenta comportamentos compulsivos, depressão e chegam mesmo a cometer suicídio, ainda que tenham alcançado o corpo magro que tanto almejaram. Uma pesquisa desenvolvida com esses pacientes do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) mostrou que grande parte das pessoas apresentou melhora efetiva das condições clínicas e funcionais, como menos risco de morrer por doenças cardiovasculares (em 56% dos casos), câncer (60%) e diabetes (até 92%). Considerando que, segundo estimativas da literatura científica internacional, em 2030, de cada três pessoas de países ocidentais, uma será obesa, a importância da cirurgia bariátrica não pode ser desprezada. Apesar disso, as complicações psicológicas devem ser levadas em conta. Hoje, médicos reconhecem que há grande risco de que quadros psiquiátricos que já existiam se agravem ou até mesmo apareçam novas patologias após a cirurgia. “Sabemos que muitas pessoas utilizam o alimento como forma de aliviar a tensão e quando não podem fazer isso recorrem a outros comportamentos de forma patológica, como sexo, consumo de álcool e drogas, jogo e compras”, diz o psiquiatra Paulo
Jejuno
Jejuno
Bypassed do duodeno
Alimento Suco gástrico
Sallet, do Hospital da Clínicas de São Paulo. Segundo ele, em muitos casos, esses novos sintomas resultam de fatores como necessidade de adaptação psicossocial à nova condição e de alterações psíquicas decorrentes de déficit nutricional. Ele explica que alguns são mais susceptíveis a processos específicos deflagrados pela cirurgia, como a produção de neuropeptídios, que efeitos anoréxicos, por exemplo, e ao invés de comer de forma compulsiva, o paciente passa a evitar o alimento. “Estimamos com base na literatura médica que mais de 90% das pessoas que se submetem à cirurgia bariátrica se beneficiem do procedimento, mas há um percentual de indivíduos, em geral pessoas que já apresentavam algum quadro psiquiátrico, que enfrentam problemas mais graves após a operação”, afirma Sallet. Segundo ele, nesse grupo o índice de suicídio pode ser de quatro a oito vezes maior que o da população em geral. A Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM) orienta que as pessoas que desejam se submeter a cirurgia não apenas façam os exames pré-operatórios, que incluem avaliação nutricional, cardiológica e endocrinológica, mas também sejam submetidas a uma avaliação psicológica. Embora não seja obrigatório, o acompanhamento psicológico anterior e posterior é de grande importância.
PARA SABER MAIS Concept cells: the building blocks of declarative memory functions. Rodrigo Quian Quiroga, em Nature Reviews Neuroscience, vol. 13, págs. 587-597; agosto de 2012. Percepts to recollections: insights from single neuron recordings in the human brain. Nanthia Suthana e Itzhak Fried, em Trends in Cognitive Sciences, vol. 16, nº 8, págs. 427-436; 16 de julho de 2012. Sparse but not “grandmother-cell” coding in the medial temporal lobe. R. Quian Quiroga, G. Kreiman, C. Koch e I. Fried, em Trends in Cognitive Sciences, vol. 12, nº 3, págs. 87-91; março de 2008.
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Os misteriosos códigos da
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memória
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Em meio a debates a respeito de como as recordações são armazenadas, duas teorias científicas rivais destacam-se. Uma sugere que cada conceito, pessoa ou coisa de nossa experiência diária está associado a um neurônio específico. A outra hipótese afirma que recordações são distribuídas por milhões de neurônios. Vários experimentos recentes revelam, porém, que pequenos conjuntos de células cerebrais são responsáveis pela decodificação mnêmica por Rodrigo Quian Quiroga, Itzhak Fried e Christof Koch
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erta vez, o brilhante neurocirurgião russo Akakhi Akakhievitch recebeu em seu consultório um paciente que dizia querer se esquecer da mãe, autoritária e cruel. Determinado a atender ao pedido, abriu o cérebro do rapaz e, um a um, retirou vários milhares de neurônios – todos relacionados à memoria da mãe. Quando o paciente acordou da anestesia, todas as lembranças dela, boas e más, haviam desaparecido. Eufórico com o sucesso, Akakhievitch voltou sua atenção para o empreendimento seguinte: a procura de células ligadas à memória de “avó”. É claro que se trata de uma ficção. Há 50 anos, o falecido neurocientista Jerry Lettvin (este sim de verdade) contou a história para uma multidão de estudantes do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), para ilustrar a ideia provocativa de que apenas 18 mil neurônios poderiam formar a base de qualquer experiência consciente, pensamento ou lembrança de uma pessoa ou objeto ao nosso redor. Lettvin nunca provou ou refutou sua hipótese audaciosa e, por mais de 40 anos, cientistas debatem, em geral em tom de brincadeira, a ideia de “células avó”. O conceito de neurônios que armazenam lembranças de forma tão específica remete ao filósofo e psicólogo William James, que, no final do século 19, concebeu a noção de “células pontifícias”, às quais nossa consciência estaria conectada. Mas essa tese contraria a visão dominante de que percepções específicas são possíveis graças à atividade coletiva de muitos milhões, ou até bilhões, de células nervosas – que o ganhador do Nobel Charles
Sherrington denominou “democracia de um milhão”, em 1940. Nesse caso, a atividade de qualquer célula nervosa individual é insignificante; apenas a colaboração de populações numerosas de neurônios cria significado. Neurocientistas continuam a discutir se são precisos relativamente poucos neurônios, da ordem de milhares (ou menos), para servirem como repositórios de determinado conceito, ou se são necessárias centenas de milhões distribuídos amplamente por todo o cérebro. Tentativas para resolver essa discussão estão levando a um novo entendimento do funcionamento da memória e do pensamento consciente. Há alguns anos, juntamente com Gabriel Kreiman, agora membro do corpo docente da Faculdade de Medicina da Universidade Harvard, e Leila Reddy, atualmente cientista do Centro de Pesquisas do Cérebro e da Cognição em Toulouse, França, realizamos experimentos que levaram à descoberta de um neurônio no hipocampo de um paciente, região do cérebro conhecida por seu envolOS AUTORES RODRIGO QUIAN QUIROGA é professor e diretor do Bioengineering Research Center da Universidade de Leicester, na Inglaterra. É autor de Borges and memory: encounters with the human brain (MIT Press, 2012). ITZHAK FRIED é neurologista, professor de neurocirurgia e diretor do Programa de Cirurgia da Epilepsia na Faculdade de Medicina David Geffen, da Universidade da Califórnia (UCLA), do Centro Médico Sourasky de Tel-Aviv e da Universidade de Tel-Aviv. CHRISTOF KOCH é doutor em biologia cognitiva e comportamental, professor do Instituto de Tecnologia da Califórnia e diretor científico no Instituto Allen para Ciência do Cérebro, em Seattle. julho 2017 • mentecérebro 45
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Células-conceito conectam a percepção à memória, produzem uma representação abstrata e esparsa de conhecimento semântico a respeito de tudo que compõe nossos mundos individuais e nos parece significativo vimento em processamento de memória, que reagiu de modo muito evidente a diferentes fotografias da atriz Jennifer Aniston, mas não a dezenas de outras atrizes, celebridades, lugares e animais. Em outro paciente, um neurônio no hipocampo se iluminou ao ver imagens da atriz Halle Berry e até mesmo diante do nome dela escrito na tela do computador, mas não reagiu a nada mais. Outro neurônio disparou seletivamente para imagens de Oprah Winfrey e para seu nome escrito na tela e falado por uma voz sintetizada por computador. Outro, ainda, reagiu às imagens de Luke Skywalker e a seu nome escrito e falado etc. COISAS DA VOVÓ Esse tipo de observação é possível pelo registro direto da atividade de neurônios individuais. Outras técnicas mais comuns, como a ressonância magnética funcional, podem identificar atividade em todo o cérebro quando um voluntário executa determinada tarefa. Mas, embora essa técnica possa rastrear o consumo geral de energia de basicamente alguns milhões de células, não consegue identificar pequenos grupos de neurônios, muito menos células individuais. Para gravar impulsos elétricos emitidos por neurônios individuais, é preciso implantar no cérebro microeletrodos mais finos que um fio de cabelo humano. Essa técnica não é tão usada quanto o imageamento funcional, e apenas circunstâncias especiais garantem a implantação desses eletrodos em humanos. Uma dessas raras circunstâncias ocorre em tratamento de pacientes epilépticos. Quando as convulsões não podem ser controladas com medicação, esses pacientes podem ser candidatos à cirurgia corretiva. 46
A equipe médica examina evidências clínicas que possam identificar o foco epiléptico, a área onde as convulsões começam e que potencialmente pode ser removida cirurgicamente para curar o paciente. Inicialmente essa avaliação envolve procedimentos não invasivos, como imagens do cérebro, consideração das evidências clínicas e o estudo da atividade elétrica patológica com gravações de EEG feitas no couro cabeludo do paciente: diversas descargas epilépticas que ocorrem ao mesmo tempo. Quando não é possível determinar com precisão a localização do foco epiléptico por esses métodos, neurocirurgiões podem implantar eletrodos profundos dentro do crânio para monitorar continuamente a atividade cerebral durante vários dias no hospital e depois analisar as convulsões observadas. Às vezes, cientistas pedem que pacientes se voluntariem para estudos de pesquisa durante o período de monitoramento, em que várias tarefas cognitivas são realizadas enquanto se registra a atividade do cérebro. Na Universidade da Califórnia (UCLA) em Los Angeles, desenvolvemos uma técnica singular para registros dentro do crânio usando eletrodos flexíveis com fios minúsculos; a tecnologia foi desenvolvida por um de nós (Fried), que dirige o Programa de Cirurgia da Epilepsia na UCLA, com outros cientistas do mundo todo, inclusive os do grupo de Koch, no Instituto de Tecnologia da Califórnia, e outros do laboratório de Quian Quiroga, na Universidade de Leicester, na Inglaterra. Essa técnica oferece uma oportunidade extraordinária de gravar diretamente de neurônios individuais durante dias, com o paciente acordado, e oferece a possibilidade de estudar o disparo de neurônios durante várias tarefas, monitorando a conversa incessante que ocorre enquanto pacientes olham para imagens em um laptop, recordam lembranças ou desempenham outras tarefas. É assim que descobrimos os neurônios Jennifer Aniston e sem querer reavivamos o debate inflamado pela parábola de Lettvin. As células nervosas, como o neurônio Jennifer Aniston, seriam as células-avó debatidas há tanto tempo? Para respondermos a essa questão temos de ser mais precisos sobre o
que entendemos por esse conceito. Uma forma radical de pensar sobre a hipótese da célula-avó é que apenas um neurônio responde a um conceito, mas, se pudéssemos encontrar um único neurônio que disparasse por Jennifer Aniston, isso sugeriria que deve haver mais – a chance de encontrar um, e apenas um, entre bilhões é ínfima. Além disso, se apenas um único neurônio fosse responsável pelo conceito integral de uma pessoa como Jennifer Aniston, e se fosse danificado ou destruído por doença ou acidente, todos os vestígios de Jennifer Aniston desapareceriam da memória, uma perspectiva extremamente improvável.
Um único neurônio reagiu à imagem, ao nome escrito e falado dos dois personagens relacionados Neurocientistas têm debatido duas teorias alternativas de como as memórias são codificadas no cérebro. Uma delas defende que a representação de uma única memória – a imagem de Luke Skywalker, por exemplo – fica armazenada como pedaços distribuídos em milhões ou talvez bilhões de neurônios. A outra hipótese, com maior receptividade científica nos últimos anos, afirma que relativamente poucos milhares de neurônios (ou talvez até menos que isso) formam a representação “esparsa” de uma imagem. Segundo a tese, cada célula neural acende a imagem de Luke, seja a distância ou em close-up. Embora não todos, alguns neurônios do mesmo grupo também disparam diante da imagem relacionada de Yoda. Da mesma forma, um conjunto separado de neurônios específicos se ativa ao perceber Jennifer Aniston. Distribuídos
Esparsos
Imagem de Luke Skywalker
Lobo medial temporal Imagem diferente de Luke Skywalker
Imagem de Yoda
Imagem de Jennifer Aniston shutterstock/divulgação
BILHÕES DE NEURÔNIOS Uma definição menos radical de células-avó postula que muitos neurônios, em vez de um só, respondam a um único conceito. Essa hipótese é plausível, mas muito difícil, se não impossível de demonstrar. Não podemos tentar todos os conceitos possíveis para provar que o neurônio é acionado apenas por Jennifer Aniston. Na verdade, o oposto costuma ser verdadeiro: costumamos encontrar neurônios que respondam a mais de um conceito. Assim, se um neurônio dispara apenas para uma pessoa durante um experimento, não podemos descartar que também poderia ter disparado para alguns outros estímulos que, por acaso, não mostramos. No dia seguinte, ao encontrarmos o neurônio Jennifer Aniston, por exemplo, repetimos a experiência, agora com muito mais fotos relacionadas a ela, e descobrimos que o neurônio também disparava com Lisa Kudrow, colega na série de televisão Friends, que catapultou ambas para a fama. O neurônio que respondeu a Luke Skywalker também disparou para Yoda, outro Jedi de Star wars. E ainda outro neurônio disparou para dois jogadores de basquete, sem contar um para um dos autores deste artigo e outros colegas que interagiram com o paciente na UCLA. Mesmo assim, ainda se pode argumentar que esses neurônios são células-avó que respondem a conceitos mais amplos, ou seja, a duas mulheres loiras de Friends, a Jedi de Star wars, a jogadores de basquete, ou a cientistas que fazem experiências com o paciente. Essa
Para reconhecer Luke Skywalker e Yoda
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definição expandida transforma a discussão sobre se esses neurônios devem ser considerados célulasavó em uma questão semântica. Mas vamos deixar a semântica de lado no momento e nos concentrarmos em alguns aspectos críticos desses chamados neurônios Jennifer Aniston. Primeiro, descobrimos que as respostas de cada célula são bastante seletivas – cada uma dispara para uma pequena fração de imagens de celebridades, políticos, parentes, marcos e assim por diante, apresentados ao paciente. Segundo, cada célula responde a várias representações de determinada pessoa ou local, independentemente de características visuais específicas da imagem usada. Na verdade, uma célula dispara de forma semelhante em resposta a diferentes imagens da mesma pessoa e até mesmo a seu nome escrito ou falado. É como se em seus padrões de disparo o neurônio nos dissesse: “Sei que é a Jennifer Aniston, e não importa como você a apresente para mim, seja com vestido vermelho, de perfil, como um nome escrito, ou mesmo quando você diz o nome dela em voz alta”. O neurônio, então, parece responder ao conceito – para qualquer representação de qualquer coisa em si. Assim, esses neurônios podem ser mais adequadamente chamados de células-conceito, em vez de células-avó. Células-conceito podem disparar para mais de um conceito, mas, se fizerem isso, os conceitos tenderão a estar relacionados.
WILLIAM JAMES: o conceito de neurônios que armazenam lembranças de forma específica remete à ideia proposta pelo filósofo e psicólogo no final do século 19; ele concebeu a noção de “células pontifícias”, às quais nossa consciência estaria conectada
IMAGENS EM MOVIMENTO Para entender a forma como um pequeno número de células se liga a um conceito particular, como Jennifer Aniston, ajuda saber algo sobre os complexos processos do cérebro para capturar e armazenar imagens de uma miríade de objetos e pessoas que se encontram no mundo ao nosso redor. Primei48
ro a informação coletada pelos olhos segue – através do nervo óptico, deixando o globo ocular – até o córtex visual primário na parte de trás da cabeça. Lá neurônios disparam em resposta a uma pequena porção dos detalhes minúsculos que compõem uma imagem, como se cada um fosse iluminado como um pixel de uma imagem digital, ou como se fossem os pontos coloridos em uma pintura pontilhista do francês Georges Seurat. Não basta um neurônio para dizer se o detalhe é parte de um rosto, de uma xícara de chá ou da Torre Eiffel. Cada célula faz parte de um conjunto, uma combinação que gera uma imagem composta apresentada, digamos, no quadro Uma tarde de domingo na ilha de Grande Jatte. Se a imagem muda ligeiramente, alguns detalhes podem variar, e o disparo do conjunto correspondente de neurônios também se altera. O cérebro precisa processar informações sensoriais para captar mais que uma fotografia – deve reconhecer um objeto e integrá-lo ao que já é conhecido. A partir do córtex visual primário, a ativação neuronal desencadeada por uma imagem se move por várias regiões corticais em direção a áreas mais frontais. Neurônios individuais nessas áreas visuais superiores respondem a rostos ou objetos inteiros, e não a detalhes locais. Apenas um desses neurônios superiores pode nos dizer que a imagem é um rosto, e não a Torre Eiffel. Se variarmos ligeiramente a imagem, movê-la ou alterarmos a iluminação sobre ela, ela mudará alguns aspectos, mas esses neurônios não se importam muito com pequenas diferenças em detalhes, e seu disparo permanecerá mais ou menos o mesmo, propriedade conhecida como invariância visual. Neurônios em áreas visuais de alto nível enviam suas informações para o lobo temporal medial – o hipocampo e o córtex circundante –, envolvido em funções de memória e onde encontramos os neurônios Jennifer Aniston. As respostas de neurônios no hipocampo são muito mais específicas que no córtex visual superior. Cada um desses neurônios responde a uma pessoa em particular ou, mais precisamente, ao conceito dessa pessoa: não só ao rosto e outras facetas da aparência, mas também a atributos intima-
relevante que Luke esteja sentado ou em pé, só é considerado se um estímulo tem algo relacionado a Luke. Eles disparam pelo conceito em si sem considerar como é apresentado. Tornando o conceito mais abstrato – o disparo para todas as instâncias de Luke –, reduz a informação que um neurônio precisa codificar e permite que ele se torne altamente seletivo, respondendo a Luke, mas não a Jennifer. Estudos de simulação por Waydo destacam ainda mais esse ponto de vista. Apoiando-se em um modelo detalhado do processamento visual, ele construiu uma rede neural baseada em software que aprendeu a reconhecer muitas fotos não rotuladas de aviões, carros, motos e rostos humanos. O software fez isso sem supervisão de um professor. Não lhe foi dito “este é um avião e aquilo um carro”. Ele teve de descobrir esses conceitos, usando a suposição de que a imensa variedade de imagens possíveis está, na realidade, baseada em um pequeno número de pessoas ou coisas e que cada um é representado por um pequeno subconjunto de neurônios, assim como encontramos no lobo temporal medial. Ao incorporar essa representação esparsa na simulação de software, a rede aprendeu a distinguir as mesmas pessoas ou objetos, mesmo quando mostrados de formas diferentes, um achado semelhante às nossas observações das gravações do cérebro humano. Nossa pesquisa está intimamente relacionada à questão de como o cérebro interpreta o mundo exterior e traduz percepções em memórias. Considere o famoso caso de 1953 do paciente H. M., que sofria de epilepsia de difícil controle. Numa abordagem desesperada para tentar cessar seus ataques, um neurocirurgião retirou o hipocampo e as regiões adjacentes dos dois lados do cérebro. Após a cirurgia, H. M. seria capaz de reconhecer pes-
CHARLES SHERRINGTON, neurocientista ganhador do Nobel em 1940, usou o termo “democracia de um milhão” para se referir à atividade coletiva de muitos milhões, ou até bilhões, de células nervosas
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mente associados, como o nome da pessoa. Em nossa pesquisa, tentamos explorar quantos neurônios individuais disparam para representar determinado conceito. Tivemos de perguntar se é apenas um, dezenas, milhares ou talvez milhões. Ou seja, como a representação de conceitos é “dispersa”? É evidente que não podemos medir esse número diretamente porque não podemos registrar a atividade de todos os neurônios em determinada área. Usando métodos estatísticos, Stephen Waydo, na época aluno de doutorado de um de nós (Koch), no Caltech, estimou que determinado conceito aciona o disparo de não mais que cerca de 1 milhão de neurônios, entre os cerca de 1 bilhão no lobo temporal medial. Mas, como usamos imagens de coisas familiares aos pacientes de nossa pesquisa, e que por isso mesmo tendem a provocar mais respostas, esse número deve ser tomado rigorosamente como um limite superior; com o número de células representando um conceito, pode ser dez ou cem vezes menor, talvez próximo à suposição de Lettvin de 18 mil neurônios por conceito. Contrariamente a esse argumento, um motivo para pensar que o cérebro não codifica conceitos esparsamente, mas os distribui por grandes populações de neurônios, é que podemos não ter neurônios suficientes para representar todos os conceitos possíveis e suas variações. Será que temos um armazenamento grande o suficiente de células cerebrais para retratar vovó sorrindo, tecendo, tomando chá ou esperando no ponto de ônibus, assim como a rainha da Inglaterra cumprimentando a multidão, Luke Skywalker quando criança em Tatooine ou combatendo Darth Vader etc.? Para respondermos a essa pergunta, devemos primeiro considerar que, de fato, uma pessoa comum não se lembra de mais de 10 mil conceitos, e isso não é muito em comparação ao bilhão de células nervosas que formam o lobo temporal medial. Além disso, temos bons motivos para pensar que os conceitos podem ser codificados e armazenados de forma muito eficiente, de modo esparso. Neurônios no lobo temporal medial simplesmente não se importam com diferentes instâncias do mesmo conceito – não parece
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CADA CÉLULA CEREBRAL faz parte de um conjunto, uma combinação que gera uma imagem composta, como no quadro Uma tarde de domingo na ilha de Grande Jatte
soas e objetos e se lembrar de eventos que conhecia antes da cirurgia, mas o resultado inesperado foi que ele não conseguiu mais reter lembranças novas por muito tempo. Sem o hipocampo, tudo o que se passava com ele rapidamente caía no esquecimento. O filme Amnésia, de 2000, gira em torno de um personagem que tem condição neurológica semelhante. O caso de H. M. demonstra que o hipocampo e o lobo temporal medial, em geral dispensáveis à percepção, são críticos para a transformação de memórias de curto prazo (fatos que retemos por curto tempo) em memórias de longo prazo (coisas lembradas por horas, dias ou anos). Alinhados com essa evidência, argumentamos que as células-conceito residentes nessas áreas são essenciais para traduzir o que está em nossa consciência – tudo o que é desencadeado por estímulos sensoriais ou recordações internas – em memórias de longo prazo, que serão posteriormente armazenadas em outras áreas do córtex cerebral. Acreditamos que o neurônio Jennifer Aniston que encontramos não era necessário para o paciente reconhecer a atriz ou se lembrar de quem ela era, mas fundamental para trazer Aniston à consciência para forjar novos laços e memórias relacionados a 50
ela, como mais tarde lembrar-se de ter visto seu filme. Nosso cérebro pode usar um pequeno número de células-conceito para representar muitas facetas de uma coisa como um conceito singular: uma representação esparsa e invariável. O funcionamento de células-conceito percorre um longo caminho para explicar como lembramos as coisas: recordamos Jennifer ou Luke em todas as formas, em vez de nos lembrarmos de cada poro do rosto deles. Não precisamos (nem queremos) lembrar cada detalhe do que ocorre conosco. CHEIRO, FORMA E COR O que é importante é compreender a essência de determinadas situações que envolvam pessoas e conceitos relevantes para nós, em vez de lembrar uma infinidade avassaladora de detalhes sem sentido. Se encontramos alguém que conhecemos em um bar, é mais importante lembrar alguns eventos marcantes nesse encontro do que o que exatamente a pessoa estava vestindo, cada palavra pronunciada ou como eram os outros desconhecidos que curtiam o bar. Células-conceito tendem a disparar para coisas pessoalmente relevantes porque normalmente nos lembramos de eventos que envolvem pessoas e coisas que nos são fami-
liares e não investimos em fazer lembranças de coisas sem relevância particular. As memórias são muito mais que conceitos isolados únicos. Uma memória de Jennifer Aniston envolve uma série de eventos dos quais ela – ou sua personagem em Friends nessa questão – é parte. A lembrança total de um episódio único de memória exige conexões entre conceitos diferentes, mas associados: Jennifer Aniston ligada ao conceito de você sentado no sofá enquanto toma sorvete e assiste a Friends. Se dois conceitos estão relacionados, alguns dos neurônios que codificam um conceito também podem disparar para outro. Essa hipótese cria explicação fisiológica de como os neurônios do cérebro codificam associações. A tendência de as células dispararem para conceitos relacionados pode ser a base da criação de memórias episódicas (como a sequência específica de eventos durante o encontro no bar) ou o fluxo de consciência, movimentando-se espontaneamente de um conceito a outro. Vemos Jennifer Aniston e essa percepção evoca a memória da televisão, do sofá e do sorvete – conceitos relacionados que fundamentam a lembrança de assistir a um episódio de Friends. Um processo semelhante pode criar também ligações entre aspectos da mesma noção armazenadas em diferentes áreas corticais, reunindo o cheiro, a forma, a cor e a textura da rosa – ou a aparência e a voz de Jennifer. Devido a vantagens óbvias de armazenamento de memórias de alto nível como conceitos abstratos, podemos perguntar também por que a representação desses conceitos tem de ser esparsamente distribuída no lobo temporal medial. Uma resposta é fornecida por estudos de modelagem, mostrando consistentemente que as representações esparsas são necessárias para a criação de associações rápidas. Os detalhes técnicos são complexos, mas a ideia geral é bastante simples. Imagine uma representação distribuída – em oposição à representação esparsa – para a pessoa que encontramos no café, com os neurônios codificando cada característica mínima dessa pessoa. Imagine outra representação distribuída para o bar em si. Fazer uma conexão entre a
Podemos pensar em blocos de construção para as lembranças de fatos e acontecimentos de nossa vida. Esse esquema bem estruturado permite que nossa mente deixe de lado inúmeros detalhes sem importância e retenha as experiências pessoa e o café exigiria a criação de ligações entre os diferentes detalhes que representam cada conceito, mas sem misturá-los com outros, porque o bar se parece com uma livraria confortável, e nosso amigo se parece com alguém que conhecemos. A criação dessas associações com redes distribuídas é muito lenta e leva à mistura de memórias. O estabelecimento dessas ligações com essas redes esparsas, pelo contrário, é fácil e rápido. Exige apenas algumas associações entre os grupos de células que representam cada conceito, fazendo com que alguns neurônios comecem a disparar para os dois conceitos. Outra vantagem de uma representação esparsa é que algo novo pode ser adicionado sem afetar profundamente tudo o mais na rede. Essa separação é muito mais difícil de conseguir com redes distribuídas, em que a adição de um novo conceito desloca limites para toda a rede. Células-conceito conectam a percepção à memória, produzem uma representação abstrata e esparsa de conhecimento semântico – pessoas, lugares, objetos, todos os conceitos significativos que compõem nossos mundos individuais. Formam os blocos de construção para as memórias de fatos e acontecimentos de nossa vida. Seu eficiente esquema de codificação permite que nossa mente deixe de lado inúmeros detalhes sem importância e extraia significados que podem ser usados para fazer novas associações e memórias, codificando o que é essencial reter de nossas experiências. Células-conceito não são completamente iguais às células-avó concebidas por Lettvin, mas podem ser uma importante base física de aptidões cognitivas humanas, os componentes do hardware do pensamento e da memória.
PARA SABER MAIS Concept cells: the building blocks of declarative memory functions. Rodrigo Quian Quiroga, em Nature Reviews Neuroscience, vol. 13, págs. 587-597; agosto de 2012. Percepts to recollections: insights from single neuron recordings in the human brain. Nanthia Suthana e Itzhak Fried, em Trends in Cognitive Sciences, vol. 16, nº 8, págs. 427-436; 16 de julho de 2012. Sparse but not “grandmother-cell” coding in the medial temporal lobe. R. Quian Quiroga, G. Kreiman, C. Koch e I. Fried, em Trends in Cognitive Sciences, vol. 12, nº 3, págs. 87-91; março de 2008.
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ciência para viver melhor
Tempero do bem D A curcumina, ingrediente do curry, apresenta propriedades antivirais e antioxidantes, úteis na proteção do sistema nervoso, com potencial para combater Alzheimer, Parkinson, câncer, diabetes, alergias, artrite e outras doenças crônicas por Gary Stix, jornalista
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iversos compostos naturais – como o resveratrol presente no vinho tinto e os ácidos graxos ômega-3 do óleo de peixe – passaram a ser investigados mais profundamente, depois que pesquisas indicaram seu potencial para proteger o cérebro e prevenir doenças, com a vantagem dos custos baixos e poucos efeitos colaterais. O açafrão-da-índia, pó amarelo-alaranjado da planta asiática Curcuma longa, por exemplo, já não é apenas um ingrediente dos pratos orientais que, desde a antiguidade, dá sabor à comida e evita que estrague. Nos últimos anos, centenas de artigos científicos e técnicos mencionaram componentes biologicamente ativos do açafrão-da-índia – a curcumina – em arquivos como o PubMed, da Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos. Há razão para isso. A curcumina e os compostos relacionados chamados curcuminoides apresentam propriedades antioxidantes, anti-inflamatórias, antivirais, antibacterianas, antifúngicas e antissépticas, com atividade potencial contra doença de Alzheimer, Parkinson, câncer,
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diabetes, alergias, artrite e outras enfermidades crônicas. Na Universidade Johns Hopkins estão sendo investigadas as propriedades da curcumina, que podem proteger o sistema nervoso de prejuízos de doenças neurodegenerativas como o Parkinson. Cientistas já observaram que a substância age sobre proteínas que provocam a morte de neurônios: ao entrar em ação, diminui a proporção de células danificadas de 50% para cerca de 20%. Apoiado em resultados positivos obtidos em pesquisas com roedores, o pesquisador Greg Cole, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, trabalha atualmente um ensaio clínico em humanos para testar se a curcumina é capaz de impedir o acúmulo de placas amiloides que sobrecarregam o cérebro dos pacientes com doença de Alzheimer. Caso seja bem-sucedido, ele planeja propor formulações a serem misturadas no óleo de cozinha e outros alimentos para impedir a acumulação de placas. Por ter muitas vias biológicas como alvo, a curcumina poderia também ser útil em te-
rapias de combate ao câncer, mas como as células comprometidas adquirem lentamente resistência à substância, elas teriam de passar por várias mutações a fim de evitar ataque. Apesar dos benefícios do tempero, alguns estudos sugerem que deve haver precaução, pois o composto, capaz de afetar tantas vias biológicas, pode atingir o “interruptor errado” e causar problemas. Conhecido como haldi em hindi, jiang huang em chinês e manjal em tâmil, o açafrão-da-índia tem uma história medicinal de mais de 5 mil anos. Ao longo do tempo, foi usado para tratar ferimentos, curar problemas do estômago e “purificar” do sangue. O primeiro registro de pesquisa sobre a atividade biológica da curcumina, na PubMed, data de 1970, quando um grupo de cientistas indianos relatou os efeitos da substância sobre os níveis de colesterol em ratos. Na década de 80, a equipe coordenada pelo indiano Bharat Aggarwal, que se destacou nos estudos sobre tratamento de câncer, foi a primeira a isolar duas importantes moléculas julho 2017 • mentecérebro 53
VASCO DA GAMA: navegador foi precursor das especiarias na Europa
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do sistema imune – os fatores de necrose tumoral (TNFs, na sigla em inglês) alfa e beta –, identificadas como possíveis compostos anticancerígenos. Essas moléculas podem, de fato, matar células doentes quando empregadas em áreas localizadas, mas, se colocadas para circular na corrente sanguínea, agem como potentes causadores de tumores. Os TNFs ativam uma proteína importante, o fator nuclear kappa B (NF-kappa B), que então passa a estimular uma série de genes envolvidos na inflamação e proliferação celular.
A ligação entre inflamação e proliferação desenfreada de células doentes incitou Aggarwal a voltar às suas raízes. Em 1989, ele se transferiu para o Centro de Câncer M. D. Anderson, da Universidade do Texas, e começou a procurar compostos que pudessem interromper a inflamação e ter efeito anticancerígeno. Lembrando-se de sua juventude na Índia, onde o açafrão era um anti-inflamatório citado na literatura aiurvédica, ele decidiu dar uma chance à especiaria. “Pegamos um pouco na cozinha e jogamos em algumas células. Não dava para acreditar. Bloqueou inteiramente o TNF e o NF-kappa B.” Mais tarde, Aggarwal publicou estudos mostrando que o bloqueio da via do NF-kappa B com a curcumina inibe a replicação e disseminação de vários tipos de células do câncer. Esse trabalho serviu de trampolim para ensaios clínicos iniciais de pequeno porte no M. D. Anderson, utilizando a curcumina como terapia adjunta para tratar câncer de pâncreas e mieloma múltiplo. Diferentes centros iniciaram ensaios clínicos sobre a prevenção do câncer de cólon e a doença de Alzheimer, entre outras. Os primeiros estudos feitos com células isoladas e em animais mostraram que a curcumina pode agir contra uma gama de doenças inflamatórias, entre elas pancreatite, artrite, colite, gastrite, alergia e febre. Ela também se revelou promissora para diabetes e doenças autoimunes e cardiovasculares. Por ora, ainda precisam ser realizados ensaios clínicos de grande porte para comprovar a eficácia contra câncer e outras doenças. Ainda assim, Aggarwal tornou-se um dinâmico defensor da especiaria, levada pela primeira vez à Europa por Vasco da Gama. O M. D. Anderson, instituição líder mundial em pesquisas sobre o câncer, também começou a promover o uso da curcumina de maneira mais intensa que seria de esperar para um tratamento que não passou pelos rigores de um conjunto completo de ensaios clínicos. Na seção de perguntas mais frequentes do site da entidade, sugere-se que os pacientes com câncer adotem de forma gra-
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ciência para viver melhor
Pesquisadores investigam como o produto de baixo custo e sem efeitos colaterais para a maioria das pessoas pode combater doenças autoimunes e impedir o acúmulo de placas amiloides que afetam o cérebro e causam doenças degenerativas dual uma dose diária de 8 gramas, cerca de 40 vezes a quantidade presente na dieta indiana média, e “ao final de oito semanas, espera-se uma melhora significativa”. Indagado sobre a preocupação com o aparecimento de possíveis efeitos colaterais com uma dose de 8 gramas, Aggarwal disse que ensaios clínicos menores de outras instituições ministraram até 12 gramas. Se houvesse qualquer efeito desfavorável com a dosagem recomendada pelo M. D. Anderson, os pacientes o teriam notificado. Aggarwal, que toma uma pílula de curcumina todos os dias, afasta-se da cautela típica dos pesquisadores antes que tenham sido realizados ensaios clínicos de larga escala bem controlados. O site do M. D. Anderson e a torrente de comunicados de várias instituições sobre as maravilhas da curcumina ignoram uma pequena parte da literatura que aponta para um lado obscuro: a possibilidade de que a especiaria estimule a sobrevivência de células cancerosas. Em 2004, Yosef Shaul, do Departamento de Genética Molecular do Instituto de Ciências Weizmann de Rehovot, Israel, estudava a enzima NQO1, que regula a quantidade de uma proteína bem conhecida, chamada p53. Quando os níveis de p53 aumentam nas células, a proteína institui uma manobra defensiva para o organismo, induzindo as células com câncer a parar de se dividir ou mesmo de se autodestruir. CONCENTRAÇÃO ELEVADA Shaul e seus colegas descobriram que um anticoagulante, o dicumarol, e compostos relacionados bloqueavam a NQO1, o que impedia a p53 de fazer seu trabalho. Os pesquisadores se perguntaram o que aconteceria se expusessem a p53 de células saudáveis e de
células da leucemia mieloide a antioxidantes, como a curcumina e o resveratrol. Para surpresa deles, a curcumina, ao inibir a mesma enzima, impedia a p53 de dar às células aberrantes a sentença de morte; descoberta relatada no Proceedings of the National Academy of Sciences. Outros pesquisadores relataram resultados semelhantes. Para responder a esse grupo de trabalho, Aggarwal cita estudos que mostram como a curcumina, na verdade, ativa a p53. Os especialistas precisam investigar agora se o trabalho de Shaul em culturas celulares tem relação com o que acontece quando uma pessoa ingere o composto. As concentrações de curcumina usadas pela equipe do Weizmann em culturas de células – de 10 mM a 60 mM (micromolar) – podem ser comparáveis aos níveis atingidos em alguns dos experimentos em cultura celular realizados no M. D. Anderson. Mas como a curcumina é pouco absorvida do intestino para a corrente sanguínea, também é rapidamente degradada no corpo. Um paciente que consuma 8 gramas provavelmente acabará com uma concentração no plasma sanguíneo inferior a cerca de 2,0 mM, observa Shaul, embora esse nível possa variar para mais no trato gastrointestinal e no fígado. Também poderão permanecer em nível elevado se os pesquisadores conseguirem desenvolver maneiras diversas de aumentar a concentração da curcumina na corrente sanguínea. É sempre fundamental definir a dose de um novo fármaco – qualquer agente terapêutico, incluindo a aspirina, se torna tóxico em níveis elevados. Para a maioria dos novos produtos farmacêuticos, a melhor forma para atingir os níveis plasmáticos desejados é, em geral, encontrada por meio de uma incontájulho 2017 • mentecérebro 55
vel sucessão de ensaios clínicos em culturas celulares e camundongos. Ainda assim, as empresas farmacêuticas não estão em competição pelo primeiro lugar na condução de testes com curcumina. Elas têm preferência por terapêutica com alvos altamente específicos: golpear determinado receptor, por exemplo, pode tratar a doença e, ao mesmo tempo, reduzir os efeitos colaterais, enquanto um fármaco com várias ações poderia, em teoria, aumentar as chances de que ocorra um efeito indesejado.
PARA SABER MAIS The molecular targets and therapeutic uses of curcumin in health and disease. Organizado por Bharat B. Aggarwal, Yung-Joon Surh e Shishir Shishodia. Springer, 2008. Multiple biological activities of curcumin: a short review. Radha K. Maheswari et al., em Life Sciences, vol. 78, págs. 2081-2087, 2006. 56
NOVAS SUBSTÂNCIAS O açafrão-da-índia é um exemplo proeminente de um dos casos mais célebres de biopirataria de propriedade intelectual, que colocou um instituto de pesquisa apoiado pelo governo indiano contra uma patente de 1995 emitida para a Universidade do Mississippi para o uso do condimento no tratamento de feridas. O Gabinete de Patentes e Marcas Registradas dos Estados Unidos invalidou a patente depois que o Conselho Indiano de Pesquisas Científicas e Industriais questionou se um dos critérios da patenteabilidade – que uma invenção seja nova – havia sido satisfeito. Para fazer a objeção, o Conselho apontou um artigo de 1953 de uma revista indiana sobre o condimento e ofereceu uma citação sobre as propriedades curativas do açafrão de um texto em sânscrito antigo. O gabinete de patentes emitiu registros para aplicação da curcumina como uma ação isolada. Mas a rejeição implica que as
indústrias farmacêuticas jamais obterão uma patente de “produto” com um alcance bem mais amplo, que ajudaria a empresa a se defender de concorrentes com fármacos baseados no condimento. Algumas empresas ainda estão tentando explorar a promessa da substância, alterando a sua composição química a fim de aumentar sua atividade e, ao criar uma nova substância, justificar a proteção de propriedade intelectual. A AndroScience de San Diego trabalha atualmente em ensaios clínicos com fármacos para acne à base de compostos derivados da curcumina que foram descobertos na Universidade da Carolina no Norte em Chapel Hill. Da mesma forma, a Curry Pharmaceuticals, também da Carolina do Norte, tenta obter financiamento para passar a incluir os derivados da curcumina da Universidade Emory em ensaios clínicos. Mas, numa era de produtos farmacêuticos com alvos específicos, os aventureiros do capital de risco têm se mostrado hesitantes em patrocinar novos medicamentos que atuam em várias vias. Mesmo sendo cofundador da Curry Pharmaceuticals e dono de patentes sobre a curcumina, Aggarwal afirma que os químicos podem ter dificuldade em melhorar a Natureza: é possível que a modificação da curcumina só aumente os efeitos colaterais indesejados nos pacientes. Se a infinidade de obstáculos ao desenvolvimento for superada e a segurança, garantida, a curcumina poderá oferecer uma alternativa econômica aos produtos farmacêuticos predominantes.
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ciência para viver melhor
especial
A desconstrução da
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dor
Associada a sintomas depressivos, a sensação dolorosa constante compromete as interações sociais e afetivas, a capacidade produtiva e intelectual. Cada vez mais especialistas concordam que, mesmo potentes, os medicamentos muitas vezes não são suficientes e é preciso recorrer a outras técnicas, que ajudam a ressignificar psiquicamente a experiência
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especial dor •
Repensando o alívio A sensação dolorosa persistente por mais de seis meses interfere nos padrões de atividade cerebral, provocando alterações, em especial nas áreas associadas a sensações físicas, raciocínio e emoções. Essa interferência deflagra quadros graves de depressão e ansiedade e pode levar ao aumento de taxas de mortalidade entre pacientes. Preocupados com a situação, especialistas começam a deixar de lado os opioides para tratar a dor crônica, preferindo tratamentos não medicamentosos e intervenções psicológicas por Stephani Sutherland, jornalista com especialização em neurociência
* Os nomes dos pacientes foram mudados para proteger a privacidade 58
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especial • dor
Pacientes sentem-se presos em uma delicada situação: tomam doses cada vez mais altas de medicamentos para conter o desconforto incapacitante, enquanto tentam esquivar-se dos graves efeitos colaterais
U
ma em cada três pessoas sofre de dor crônica em algum momento da vida. Só no Brasil, essa estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS) representa um universo de quase 70 milhões de pessoas. Nesses quadros, a sensação dolorosa persiste um longo tempo depois de um ferimento ter cicatrizado e, em muitos casos, produz diversos sintomas, como dores de cabeça, no corpo e fadiga. Pode resultar também de uma condição subjacente, como osteoartrite ou esclerose múltipla, ou ainda não ser resultante de nenhuma causa óbvia. Para alguns, a dor crônica começa com danos nos nervos causados por diabetes, quimioterapia, vírus ou algum trauma, por exemplo. Nesses casos, as fibras nervosas lesionadas continuam, por engano, a enviar sinais de incômodo para o cérebro, No entanto, não importa muito como o desconforto persistente começa. O fato é que frequentemente aumenta e se espalha, fazendo com que muita gente procure por mais medicamentos. Infelizmente, doses mais altas de opioides não garantem alívio – e podem até agravar a situação. Os pacientes desenvolvem tolerância a esses medicamentos e, com o tempo, é preciso mais opioides para amenizar os mesmos níveis de dor. Cargas mais elevadas aumentam o risco de perigosos efeitos secundários, como dependência e, em situações extre60
mas, coma e morte (veja quadro na pág. 62). Pesquisas recentes mostram que mesmo doses relativamente baixas de opioides também podem causar hiperalgesia ou aumento da sensibilidade ao desconforto: em alguns casos, essas drogas intensificam o próprio incômodo que se pretende suprimir. Por essas razões, um número significativo de pessoas que sofrem com dor crônica sente-se preso em uma delicada e perigosa armadilha: precisa tomar mais medicamentos opioides para conter o mal-estar incapacitante, enquanto, de alguma forma, tenta se esquivar dos graves efeitos colaterais dessas drogas. Alguns conseguem manter-se nesse limiar por décadas. Mas aqueles que perdem o controle inundam as salas de emergência e camas de hospital, lutando contra a abstinência, overdose acidental e diversas complicações relacionadas ao uso de opioides. UM COQUETEL PERIGOSO Em março de 2016, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), nos Estados Unidos, emitiram diretrizes mais rígidas para a prescrição dessas substâncias. Contrariamente ao que tem sido uma prática comum, o órgão desaconselha o tratamento da dor crônica com essas drogas, a menos que os benefícios superem claramente os riscos. O cirurgião geral Vivek H. Murthy reforçou essa mensagem cinco
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meses depois, quando escreveu diretamente a todos os prestadores de cuidados de saúde do país (a primeira vez que um cirurgião geral fez isso) incitando 2,3 milhões de profissionais a se comprometer a “virar a maré na crise dos opiáceos”. Na mesma época, a Administração de Alimentos e Drogas (FDA) exigiu rótulos de advertência mais firmes em todos os medicamentos opioides. O Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS) se juntou à causa e emitiu uma nova Estratégia Nacional contra a Dor (NPS), enfatizando a necessidade de maior prevenção, medicamentos mais seguros e abordagens mais amplas para o tratamento. A mensagem está sendo ouvida. Em muitos avançados centros de dor em todo o país, os médicos começam a explorar diversas alternativas não medicamentosas, de intervenções psicológicas a terapias complementares. Os pesquisadores trabalham também na próxima geração de opioides, juntamente com novos analgésicos sem essas substâncias (veja quadro na pág. 66). Essas iniciativas representam a única vantagem da crise dos opiáceos: “A situação está nos forçando a rever como cuidamos das pessoas que sofrem com o problema”, diz Sean Mackey, que coordena o Centro de Gestão da Dor, da Universidade Stanford, e copresidiu o comitê de especialistas de várias agências dos Estados Unidos que
desenvolveram a nova estratégia da HHS. “Não sou pró-opiáceo; também não sou antiopioide, sou pró-paciente”, afirma Mackey. “Não existe nenhuma bala mágica, nenhuma pílula. A dor crônica requer tratamento multifacetado.” Em agosto de 2016, David*, professor aposentado, entrou no consultório da psicóloga Beth Darnall na Clínica de Dor de Stanford, um dos poucos centros multidisciplinares dos Estados Unidos que oferecem tratamento para o problema. David tinha sido submetido a uma pequena cirurgia no pé direito havia apenas um dia e ainda usava uma bota azul do hospital, mas nada o impediria de manter esse compromisso, marcado várias semanas antes. A psicóloga fez uma investigação detalhada do histórico médico. David descreveu
AUTORRETRATO COM CHANGUITO (1945): pintora mexicana Frida Kahlo, nascida em 1907, passou a maior parte de seus 47 anos sentindo fortes dores; sua obra é marcada pelo sofrimento
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divulgação
especial • dor
CAKE: UMA RAZÃO PARA VIVER (2014): filme dirigido por Daniel Barnz apresenta história de uma mulher marcada por angústias e sensações dolorosas crônicas
as dores nas costas e no corpo, que tinham começado em 1995, a última vez que se sentiu bem o suficiente para trabalhar em tempo integral. Em relação à saúde, o ano tinha sido terrível: ele havia contraído meningite de uma picada de carrapato e sido diagnosticado com câncer. Além da quimioterapia, as doenças haviam devastado seus nervos, causando desconforto constante, o que o levou a enfrentar grandes desafios, tanto físicos como psicológicos.
NO LIMIAR DA MORTE Nos Estados Unidos, as vendas de medicamentos opiáceos prescritos quase quadruplicaram entre 1999 e 2014. Só em 2012, os clínicos emitiram 259 milhões de receitas desses remédios – o suficiente para dar uma cartela de comprimidos para todos os adultos no país. E, em 2015, mais de metade de todas as mortes por overdose naquele país envolveram o uso de opioides vendidos em farmácias, como OxyContin e Vicodin, ou substâncias ilícitas, como ópio e heroína. Para pôr essa estatística em perspectiva, os opioides causaram quase tantas mortes em 2015 quanto os acidentes de carro. A dependência é, sem dúvida, parte do problema, mas hoje os especialistas concordam que o verdadeiro responsável por essa epidemia é a dor crônica. De acordo com um estudo publicado em 2011 pelo Instituto de Medicina dos Estados Unidos, estima-se que 100 milhões de adultos americanos vivam com o problema. Muitos dependem de opioides apenas para se manter em movimento. Não há dúvida de que essas drogas oferecem a melhor defesa contra o desconforto, quando surge de forma aguda e é de curto prazo, alertando-nos para uma lesão ou doença e que diminui durante a recuperação. 62
Muitos especialistas agora consideram a dor crônica como uma doença com particularidades próprias. Ao longo do tempo, ela interfere nos padrões de atividade cerebral (e muda-os), em especial nas áreas associadas não apenas com sensações físicas, mas com sono, pensamento e emoções. Não nos admira que os estudos mostrem que o problema está relacionado com altas taxas de mortalidade, distúrbios do sono, depressão e ansiedade. Durante 20 anos David tomou doses cada vez maiores de opiáceos, como a metadona, um analgésico opiáceo de ação prolongada, e o Dilaudid, de ação rápida, ocasionalmente suplementado com Demerol, outro opioide. Mas, além disso, ele dependia de Valium para amenizar a ansiedade e Ambien para ajudar a dormir. Para a maioria das pessoas, esse coquetel de drogas seria mortal. Para David, tinha se tornado uma rotina. Darnall ouviu a história do paciente e depois perguntou se alguém já havia lhe falado sobre o perigo dessa combinação de medicamentos. “Não”, ele respondeu, embora tivesse experiência em primeira mão: em três ocasiões, David foi levado às pressas para o hospital, com risco de morte. Darnall sabia que era preciso oferecer outras opções. Segundo pesquisa realizada pelo Washington Post e Fundação Família Kaiser, no ano passado, com pessoas que tomam analgésicos prescritos durante pelo menos dois meses, aproximadamente um terço afirma não ter recebido do médico informações sobre os perigos dos opioides. Apenas um terço garan-
te ter tido acesso a algum plano para reduzir e suspender o uso do fármaco. E outro terço relata que o clínico nunca discutiu tratamentos complementares além dos medicamentosos. “Tratar as pessoas de forma mais eficaz vai exigir uma mudança importante na forma como pensamos a respeito da dor”, diz David Shurtleff, vice-diretor do Centro Nacional de Saúde Complementar e Integrativa (NCCIH), a parte do Instituto Nacional de Saúde (NIH) que estuda terapias não medicamentosas. “Agora entendemos que a dor não é apenas uma sensação, mas um estado cerebral, e as intervenções mente-corpo podem ser particularmente úteis.” A equipe de Stanford reúne psicólogos especialistas em dor, como Darnall, além de médicos, psiquiatras, neurologistas, anestesiologistas, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais e profissionais de enfermagem, que ajudam os pacientes a reduzir com segurança o uso de opioides e substituí-los por alternativas não medicamentosas. Os membros da equipe reúnem-se todas as semanas para ajustar os planos de tratamento em evolução, que podem incorporar terapia cognitivo-comportamental (TCC), fisioterapia, prática de mindfulness (atenção plena), ioga, biofeedback e acupuntura. Acima de tudo, trata-se de uma abordagem personalizada para atender cada paciente. Para David, o plano começou com uma internação para reduzir de forma segura e significativa sua dependência de medicamentos opioides. Ao mesmo tempo, Darnall abordou a ansiedade, o encaminhando a um psicólogo para psicoterapia após a alta, depois de prescrever um regime de relaxamento guiado gravado em CD. “A ansiedade piora a dor; ferramentas capazes de amenizá-la ajudam a diminuí-la.” OLHANDO PARA DENTRO Uma abordagem tão ampla não é simples nem barata (exige melhor cobertura de planos de saúde em relação a intervenções não medicamentosas e, assim, tornar a prática amplamente aceita). Mas especialistas como Mackey afirmam que a complexidade envolvida no tratamento da dor crônica justifica isso. Talvez a terapia complementar
O QUE INCOMODA MAIS OS BRASILEIROS? A dor faz parte na vida da maior parte dos brasileiros. Segundo pesquisa encomendada pela empresa farmacêutica Mundipharma, realizada com 800 pessoas em 2013, 67% dos entrevistados lembram-se claramente da última vez que sentiram dor. E a recordação é recente. O estudo mostrou também que as dores de cabeça são as mais frequentes e atingem mais de 80% dos entrevistados. As abdominais vêm em segundo lugar (54%), seguidas das dores musculares (39%). E, para surpresa de muitos, as dores psicológicas ocupam o quarto lugar (34%).
80% dos entrevistados reclamam de
dor de cabeça
que mais tem recebido atenção nos últimos anos seja a redução do estresse com base em mindfulness (MBSR), uma adaptação clínica e secular de práticas de meditação budista. O psicólogo Jon Kabat-Zinn, hoje professor de medicina emérito da Escola de Medicina da Universidade de Massachusetts, desenvolveu técnicas embasadas em práticas milenares de atenção plena na década de 1970. Desde então, cursos de MBSR surgiram pelos Estados Unidos e em mais de 30 países. Um crescente corpo de evidências sugere que a técnica – que estimula a consciência sem julgamentos do momento presente e favorece maior percepção sobre mente-corpo – pode abrandar sintomas de doenças, como câncer, depressão, toxicodependência e dor crônica. Em 2016, o pesquisador emérito Daniel C. Cherkin, do Instituto de Pesquisas em Saúde de Seattle, e seus colegas testaram três tratamentos para dor lombar crônica de 342 adultos jovens e adultos de meia-idade: MBSR, terapia cognitivo-comportamental (TCC) focada em pensamentos e comporjulho 2017 • mentecérebro 63
ALÉM DOS REMÉDIOS: práticas que estimulam o corpo como exercícios regulares, tai chi e acupuntura têm se mostrado fundamental no sucesso dos tratamentos
tamentos, e cuidados-padrão em relação à dor. Eles descobriram que, em comparação com os participantes que haviam recebido cuidados tradicionais, mais pacientes tratados com MBSR ou TCC demonstraram queda significativa da sensação de “incômodo dolorido” após 26 semanas. Além disso, os grupos que receberam essas intervenções aprimoraram habilidades funcionais. Outros pacientes que sofrem com dor crônica têm demonstrado ganhos com o biofeedback. Com o auxílio de sensores para acompanhar sinais corporais, como tensão muscular e frequência cardíaca, desenvolvem a consciência dos processos fisiológicos e aprendem a modular o próprio mal64
-estar. Uma metanálise finalizada nos primeiros meses de 2017 avaliou o biofeedback como tratamento para dor lombar crônica em 1.062 pacientes e concluiu que a terapêutica ajuda não só a reduzir a intensidade do incômodo, como também a melhorar a capacidade da pessoa de enfrentar o problema, além de reduzir a incidência de depressão. Mackey e outros testaram também uma técnica mais sofisticada chamada neurofeedback, que oferece aos pacientes imagens da própria atividade cerebral com a ajuda da eletroencefalografia e ressonância magnética funcional (fMRI). Esse tipo de exercício pode auxiliar os pacientes a controlar regiões cerebrais associadas com o processamento da dor. Evidências adicionais sugerem que a acupuntura pode ajudar a aliviar o desconforto contínuo em alguns casos – talvez, acreditam alguns cientistas, ao estimular sinais anti-inflamatórios na pele ou ao influenciar a atividade neural. A prática permanece controversa, em parte porque é difícil de estudá-la. Mas uma análise de 29 ensaios clínicos de acupuntura para os casos de incômodo persistente, feita em 2014, com aproximadamente 18 mil pacientes mostra que, em comparação com o tratamento sem agulhas, a forma tradicional (com agulhas colocadas de acordo com a prática chinesa centenária) produz maior alívio do desconforto. Mas, ao mesmo tempo, um número significativo de pessoas dos grupos de controle também demonstrou benefícios, o que sugere um forte efeito placebo. Os resultados reforçam a ideia de que, quando se trata de dor, simplesmente estar sob o cuidado de um profissional de saúde acolhedor pode ser paliativo. Os pesquisadores agora investigam como todos esses tratamentos complementares funcionam. “Mas já não esperamos que a ciência básica nos diga a melhor maneira de tratar o problema”, argumenta Shurtleff. Há um amplo consenso de que mindfulness, ioga, biofeedback e acupuntura funcionam ao mudar a relação dos pacientes com o seu mal-estar em vez de realmente diminuir a intensidade da sensação física. No NCCIH, Shurtleff e outros tentam descobrir como aplicar melhor
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especial • dor
os tratamentos complementares. “Muitos sofrem com o problema, queremos descobrir o que realmente funciona. Optamos pela abordagem pragmática”, diz. Recentemente, o NCCIH conduziu uma extensa revisão de ensaios clínicos publicados sobre diversas terapias complementares. O objetivo foi descobrir quais tratamentos podiam funcionar melhor e para quais pacientes. Constatou-se que acupuntura e ioga beneficiam principalmente aqueles com dor crônica nas costas. Acupuntura e tai chi se mostram mais úteis para quem tem desconforto contínuo resultante da osteoartrite. A terapia que envolve massagem proporcionou benefícios de curto prazo para os casos de dor de garganta. E as técnicas de relaxamento foram mais eficazes para pessoas com enxaquecas leves e severas. O INCÔMODO DA SOLIDÃO Há outra razão pela qual o cuidado individualizado faz sentido para os casos de dor crônica: pessoas diferentes podem experimentar o mesmo tipo de incômodo de maneiras muito distintas. Em particular, os pesquisadores começam a compreender que o tanto que a dor crônica afeta determinado indivíduo depende fortemente de fatores biopsicossociais, que têm a ver com o modo de reagir emocionalmente a esse tipo de desconforto, com outras fontes de estresse e com o tamanho do apoio social. Atingir essas influências pode não só reduzir o mal-estar dos pacientes como também melhorar drasticamente a qualidade de vida. De fato, dificuldades relacionadas ao incômodo persistente muitas vezes deixam as pessoas isoladas do convívio social e privadas de experiências afetivas – o que pode intensificar a dor. Para identificar fatores rapidamente biopsicossociais, os pacientes da clínica de Stanford preenchem um extenso questionário online, que abrange histórico profissional, experiências infantis adversas, hábitos de sono e níveis de raiva. Mackey acredita que a coleta desse tipo de dado é o segredo para encaminhar o paciente aos tratamentos mais eficazes. O questionário faz parte de um repositório gratuito e de código aberto que ele e seus colegas de Stanford criaram
A catastrofização, tendência a ampliar a ameaça de dor, o medo do pior e o foco na experiência negativa, ajuda a prever o impacto da dor crônica sobre a vida de uma pessoa muito melhor do que qualquer outra medida
O CUSTO DO BEM-ESTAR Os opioides funcionam bem no curto prazo porque imitam as moléculas semelhantes à morfina do cérebro, chamadas opioides endógenos, que são liberadas para afogar os sinais de desconforto recebidos. Essas moléculas são lançadas apenas onde são necessárias, nos circuitos neurais de dor. Mas os fármacos opioides atingem várias áreas e ativam receptores em todo o corpo. Como resultado, as drogas causam diversos efeitos colaterais:
Nos circuitos cerebrais: amortecem o desconforto, mas desenvolvem tolerância rapidamente, o que exige doses cada vez mais elevadas para obter o mesmo efeito. No circuito de recompensa, as drogas produzem sensações altamente prazerosas, muitas vezes levando à dependência
No tronco cerebral: é onde há maior perigo, pois os opioides podem abafar os sinais dos neurônios que controlam a respiração, levando à morte por depressão respiratória
Na medula espinhal: algumas pessoas desenvolvem coceira intensa em resposta aos opioides
No intestino: opioides se movimentam lentamente no trato digestivo, levando à constipação
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especial • dor
Os fármacos opioides funcionam bem para a dor aguda, mas não para a crônica, que é fundamentalmente diferente e requer uma abordagem de tratamento mais ampla e multifacetada
Pesquisadores trabalham atualmente no desenvolvimento de opioides que podem amenizar a dor sem causar grandes efeitos colaterais. Por exemplo, as drogas de liberação prolongada, já disponíveis, produzem menor recompensa, e não uma única explosão, reduzindo a probabilidade de dependência. Mas pesquisas mais sofisticadas também estão em andamento. A ativação dos receptores opioides desencadeia duas vias de sinalização dentro das células. Em termos gerais, uma delas leva ao alívio da dor e a outra aos efeitos colaterais. Os cientistas estão agora focados na criação de compostos que podem seletivamente ativar uma sem a outra. Por exemplo, em ensaios clínicos em andamento a oliceridina está em fase de teste, ou TRV130, um agente produzido
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pela Trevena, empresa biofarmacêutica da Pensilvânia. E em setembro de 2016 pesquisadores descreveram outro composto, chamado PZM21, que causou analgesia em camundongos sem efeitos colaterais. “O objetivo principal do PZM21 e TRV130 é reduzir a depressão respiratória opioide, algo que tem sido possível tanto em estudos pré-clínicos (com animais) e pesquisas clínicas”, diz William Schmidt, consultor farmacêutico da NorthStar Consulting, em Davis, na Califórnia. “Além disso, ambas as drogas parecem mostrar menor tendência ao abuso e efeitos reduzidos no trato gastrointestinal e, portanto, menor risco de constipação.” Para encontrar o novo composto, o PZM21, os pesquisadores usaram modelagem computacional para testar como 3 milhões de “moléculas virtuais” diferentes interagiam com a estrutura do receptor opioide. Com base nessas interrelações, eles chegaram a 23 compostos, que ainda testaram em células em uma placa de laboratório. Nessas células, o PZM21 ativou fortemente a via para o alívio da dor, mas não a que produz efeitos colaterais. Em ratos, o PZM21 foi mais eficaz do que a morfina em relação ao amortecimento do mal-estar. Mas só futuros ensaios clínicos do PZM21 e estudos em curso com o TRV130 poderão determinar se esses agentes cumprirão a promessa.
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PRÓXIMA GERAÇÃO DE ANALGÉSICOS
em parceria com pesquisadores do NIH. O sistema, chamado de Registro Colaborativo de Informações de Resultados em Saúde (CHOIR, na sigla em inglês), com dados de mais de 15 mil pacientes, começa a ser usado em centros médicos pelos Estados Unidos e em breve estará em vários outros países. Os prestadores de cuidados de saúde podem utilizar o sistema para acompanhar o progresso das pessoas em tratamento ao longo do tempo e comparar trajetórias de casos semelhantes. Esse conjunto de dados revelou que um fator em particular pode prever o impacto da dor crônica sobre a vida de uma pessoa muito melhor do que qualquer outra medida. Trata-se da “catastrofização”, a tendência a exagerar ou ampliar a ameaça do desconforto, temer o pior e permanecer focado na experiência negativa. Para quem está preso nessa forma de pensar, o incômodo parece esmagador. Essas pessoas têm pouca esperança de que vão se sentir bem novamente. “Isso leva a um forte desejo de fugir do mal-estar, o que os faz lançar mão de medicamentos”, esclarece. “A catastrofização é uma força poderosa na experiência da dor”, afirma Darnall. Uma de suas pacientes, Angela*, pontuou alto na escala de catastrofização da CHOIR quando visitou a clínica de Stanford pela primeira vez. Depois de ter sofrido uma lesão cerebral traumática, Angela apresentava havia anos severas de dores de cabeça e de garganta, além de fibromialgia, uma síndrome pouco compreendida que inclui desconforto corporal e fadiga. Ela tomava analgésicos opioides e vários outros medicamentos potentes contra a enxaqueca. Ainda assim, o mal-estar muitas vezes a deixava em uma cadeira de rodas. Essa condição chegou a interferir na capacidade de cuidar dos filhos, de gerir seu negócio e de manter relacionamentos saudáveis com o marido e os pais. Como muitos pacientes com dor crônica, Angela também lamentava não ter mais a vida que tinha antes do problema, quando costumava praticar diversos esportes. Abrir mão dessas atividades deixava a paciente indignada. A sensação de impotência e raiva experi-
mentada por Angela é comum entre aqueles que vivem um luto desse tipo. Quando cirurgias ou outros tratamentos não ajudam, os pacientes aprendem a esperar o fracasso. “As pessoas chegam até nós inconformadas, sentindo-se desmoralizadas, maltratadas”, afirma Darnall. Num primeiro momento, ela se propõe a ajudar os pacientes a se reconhecer novamente, recuperando a sensação de controle sobre sua vida, mesmo que minimamente. “Eles precisam escutar que sua dor é real, que não é culpa deles e que podemos ajudá-los a resolver isso”, afirma a psicóloga. Como costuma fazer com todas as pessoas que acompanha, ela convidou Angela e sua família para um seminário educacional gratuito de duas horas para que aprendessem sobre como a dor e fatores biopsicossociais interagem. A paciente também recebeu o CD de relaxamento como o de David. Darnall explica que a experiência auditiva ajuda a acalmar e, por isso, o relaxamento deve ser encarado como uma dose de medicamento mente-corpo. “Procure praticar regularmente, estabelecendo um novo padrão, mesmo que não puder fazer isso por 20 minutos, tente por cinco. Fazer algo é sempre melhor do que nada”, diz às pessoas em tratamento. Angela começou a usar o CD imediatamente, iniciou também sessões de ioga, passou a fazer massagem terapêutica regular e psicoterapia focada na dor. Agora, vários meses depois, ela demonstra ganhos mensuráveis: aprendeu a controlar melhor as emoções durante os momentos mais estressantes, o que favoreceu significativamente seus relacionamentos. A pontuação no teste que mede a catastrofização está bem menor e ela trocou os opioides por uma dose bem baixa de naltrexona, uma droga que bloqueia receptores opioides e que ajuda a reduzir a inflamação. O corpo também respondeu positivamente às intervenções e, cada vez com maior frequência, ela consegue andar novamente por muitos quilômetros, sem dor. E algo muito importante: Angela começou a definir metas para o futuro. “Não posso correr ou dançar como costumava, mas posso me mover um pouco, e isso é bom”, diz sorrindo.
PARA SABER MAIS A painful descent into addiction. Daniel Barron, em Scientific American Mind; março/abril de 2017. Efficacy of biofeedback in chronic back pain: a metaanalysis. Robert Sielski e outros, em International Journal of Behavioral Medicine, vol. 24, nº 1, págs. 25-41; fevereiro de 2017. Evidence-based evaluation of complementary health approaches for pain management in the United States. Richard L. Nahin e outros, em Mayo Clinic Proceedings, vol. 91, nº 9, págs. 1292-1306; setembro de 2016. Effect of mindfulnessbased stress reduction vs cognitive behavioral therapy or usual care on back pain and functional limitations in adults with chronic low back pain: a randomized clinical trial. Daniel C. Cherkin e outros, em JAMA, vol. 315, nº 12, págs. 1203-1299; 22 de março de 2016. National pain strategy: a comprehensive population healthlevel strategy for pain. Interagency Pain Research Coordinating Committee. U.S. Department of Health and Human Services, 2016. https://iprcc.nih.gov/ National_Pain_Strategy/ NPS_Main.htm The effectiveness and risks of long-term opioid therapy for chronic pain: a systematic review for a National Institutes of Health pathways to prevention workshop. Roger Chou, em Annals of Internal Medicine, vol. 4, nº 162, págs. 276-286; 17 de fevereiro de 2015. Acupuncture for chronic pain. Andrew J. Vickers e Klaus Linde, em JAMA, vol. 311, nº 9, págs. 955956; 5 de março de 2014.
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especial dor •
Internet para lidar com a dor Entender como a sensação dolorosa se instala e os efeitos desse processo no corpo e na mente ajuda as pessoas a enfrentar medos e crenças a respeito dos próprios sintomas. Criado há poucos meses por especialistas, um portal online apresenta, de forma lúdica, informações e reflexões para esses pacientes por Felipe Reis
O AUTOR FELIPE REIS é fisioterapeuta, doutor em ciências médicas, professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ), pesquisador na área de neurociência na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador visitante da Universidade McGill, em Montreal. 68
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especial • dor
u nunca havia sentido uma dor como essa. Em uma escala de 0 a 10, poderia marcar a pontuação máxima. A pior dor da minha vida apareceu de repente na região lombar e passou a comprometer as atividades mais simples. Nunca pensei que pegar uma caneta no chão, amarrar os cadarços dos sapatos, segurar meu filho no colo, subir escadas ou ficar sentada para ler um livro pudessem ser atividades acompanhadas por tanto sofrimento. As atividades que antes eram prazerosas deixaram de ser assim. Sentar em um restaurante para o jantar com minha família era uma eterna busca – sem sucesso – da cadeira e da mesa ideais. Minhas noites de sono já não eram tão revigorantes e dia a dia estava mais limitada. As dores eram cada vez mais frequentes e variavam de intensidade sem que fosse possível identificar o que as fazia piorar. Passei por inúmeras consultas e fui submetida a uma série de exames de imagem por mais de uma vez. O “dossiê coluna lombar” só aumentava. Junto com o diagnóstico de lombalgia tomei conhecimento de termos como degeneração, espondilolistese, disco vertebral, nervos, vértebras lombares e outros que agora faziam parte do meu vocabulário. As visitas aos profissionais de saúde também me levaram a mais limitações. Compreendi que algumas atividades ou movimentos já não eram mais seguros. A partir de então, já não poderia carregar sacolas de supermercado, dobrar o corpo para pegar algo no chão, nem ficar muito tempo de pé; as caminhadas deveriam ser evitadas e só as 70
tarefas domésticas mais leves eram permitidas. A cada consulta com diferentes especialistas, novas teorias eram propostas para explicar a causa da minha dor. No auge dos meus 37 anos, vivia uma agonia, cercada de restrições, sem saber ao certo como explicar a minha dor. A narrativa no parágrafo anterior representa a realidade de muitas pessoas e a rotina diária na vida de profissionais de saúde que lidam com dores musculoesqueléticas. No âmbito da saúde pública, a dor, em especial a crônica, vem se tornando um grande problema mundial. Os dados provenientes de pesquisas nos Estados Unidos mostram que o custo direto e indireto com dor crônica pode chegar a US$ 630 bilhões por ano. Essas cifras são superiores às gastas com doenças cardíacas, neurológicas e diabetes. Além disso, se olharmos o número de adultos que sofrem com dor crônica nos Estados Unidos, chegaremos a aproximadamente 100 milhões de pessoas. No Brasil não existem números oficiais precisos, mas há indicativos da gravidade do problema (veja quadro na pág. 63). O fisioterapeuta Ney Meziat Filho, doutor em saúde coletiva, avaliou a distribuição das aposentadorias por invalidez por dor nas costas no Brasil e constatou que a taxa de incidência foi de 29,9 por 100 mil contribuintes em 2007 – um número elevado para uma condição musculoesquelética. Para avaliar quanto determinada doença impacta a vida das pessoas, levando em consideração o tempo, o estudo de Global Burden of Disease calculou a medida de anos vividos
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com incapacidade (YLD, na sigla em inglês). A maior causa de YLD foi a dor lombar crônica, estimada em mais de 146 milhões de YLDs em 2013, com aumento de 61% desde 1990. Outras condições caracterizadas pela presença de dor (cervical, outros distúrbios musculoesqueléticos e enxaqueca) estão entre as dez condições responsáveis pelo maior YLD. Ou seja, a dor de maneira geral, mas principalmente a crônica, coloca carga substancial sobre as pessoas, suas famílias, a sociedade e o governo. Na maioria das pessoas, o quadro afeta negativamente as percepções de saúde geral, interfere consideravelmente nas atividades cotidianas, está associada a sintomas depressivos, compromete as relações e interações com os outros, a qualidade de vida, o bem-estar e o desempenho do trabalho. AS TRÊS DIMENSÕES Se tentarmos definir a dor de maneira acessível, é possível que a primeira imagem que venha à cabeça seja de uma lesão. No entanto, trata-se de algo mais amplo. Segundo a Associação Internacional para o Estudo da Dor (IASP, na sigla em inglês), pode ser definida como “uma experiência sensorial e emocional desagradável associada a um dano real ou em potencial, ou descrita em termos de tal dano”. Em novembro de 2016, foi publicada na reconhecida revista Pain a sugestão de atualização da definição considerando a dor como “uma experiência angustiante associada a dano teci-
dual real ou potencial com componentes sensoriais, emocionais, cognitivos e sociais”. Em ambas as definições, está inserido o conceito de experiência. Isso significa que a dor é individual e tem relações particulares para cada pessoa. Outro ponto que merece destaque é a presença de múltiplos aspectos – emocionais, cognitivos e sociais – em vez de um fator físico único, relacionado a uma lesão. Dessa maneira, entende-se que é possível ter dor mesmo que não se tenha mais ferimento ou mesmo nunca sofrido um. Um exemplo são os casos de depressão, em que as pessoas estão mais propensas a ter dor mesmo sem ter sofrido algum traumatismo. Em termos de classificação por tempo de duração da dor, é possível dividi-la em aguda e crônica. A primeira é aquela com duração menor que três meses, pode ser indicativa de lesão e funciona como uma espécie de alarme do corpo, motivando a pessoa a se proteger e a evitar novo ferimento. Já a dor crônica, ou persistente, permanece por mais de três meses – e pode durar anos. Nesse caso, ocorrem alterações neurobiológicas, psicológicas, comportamentais e sociais que costumam contribuir para a permanência da dor. A função de alarme perde um pouco da sua eficiência, uma vez que a sensação dolorosa já não é um indicador confiável de lesão. É como se o “sistema de alerta” estivesse desregulado e passasse a disparar com os menores estímulos ou na presença de estímulos inespecíficos. julho 2017 • mentecérebro 71
especial • dor O CAMINHO DA RECUPERAÇÃO O Grupo Pesquisa em Dor (PED) reúne pesquisadores de várias universidades brasileiras e do exterior que têm como área de interesse principal o estudo da neurociência e da dor. Esse grupo lançou, em dezembro de 2016, a primeira intervenção online totalmente em português sobre educação em dor voltada tanto para profissionais quanto para o público em geral. Nessa intervenção, o usuário encontra o personagem chamado Davi, que tem dor lombar crônica, e o acompanha numa trajetória virtual, o “caminho da recuperação”. Para isso, basta clicar em um dos nove pontos distribuídos no mapa. A cada número escolhido, Davi apresenta conceitos e temas referentes à dor, que incluem neurofisiologia, influência do sono e dos fatores psicológicos, aceitação e maneiras de amenizar o problema, por meio do retorno às atividades diárias, prática de exercícios físicos e cultivo de relações interpessoais. Ao longo de dois anos, liderei a busca de estudos clínicos já publicados sobre intervenções online para pessoas com dor, a elaboração do conteúdo e a escolha do layout. O acesso ao caminho da recuperação pode ser feito pelo link http://pesquisaemdor.com.br/?page_id=59 (veja imagem abaixo) na área de pacientes do portal do PED. É possível ver uma cartilha e vídeos sobre o tema, assim como planilhas que estimulam a modificação de comportamentos. O portal do PED dispõe ainda de uma seção destinada a profissionais de saúde, onde é permitido o download de materiais que facilitam a aplicação da educação em dor. Apesar de ainda não haver estudos clínicos com a ferramenta desenvolvida no Brasil, esperamos que esse recurso possa se tornar referência para busca de conhecimento sobre dor pelas pessoas que sofrem com o problema crônico, trazendo a esse público benefícios como modificação de crenças, diminuição da ansiedade e da catastrofização. E que o portal do PED contribua para difundir entre profissionais da saúde as descobertas mais recentes sobre dor e, na prática, melhore a vida das pessoas.
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Considerando que a dor vai além de um dano físico, podemos reconhecer nessa experiência três dimensões. A sensorial-discriminativa identifica a localização e as características físicas (por exemplo, mecânicas, químicas, térmicas) do estímulo. A afetivo-motivacional, intimamente ligada à emoção, estimula comportamentos defensivos como evitar determinado movimento ou situação e a sensação de medo de sentir o extremo desconforto. Por último, a dimensão cognitivo-avaliativa está relacionada às crenças e aos significados sobre o funcionamento do corpo, assim como as consequências de uma lesão ou da dor em si. Apesar de essas dimensões estarem presentes tanto na dor aguda como na crônica, é interessante destacar que, no último caso, as dimensões afetivo-motivacional e cognitivo-avaliativa parecem ter grande influência na experiência da dor. NOVIDADES DA NEUROCIÊNCIA No texto De homine, o filósofo francês René Descartes (1596-1650) propôs um dos primeiros conceitos da fisiologia da dor. O autor comparou o estímulo doloroso e seu caminho até o cérebro à corda de um sino. Puxar uma extremidade imediatamente faria soar o sino pendurado na outra ponta. Em outras palavras, um estímulo iniciado nas terminações nervosas periféricas seria propagado até o cérebro, onde produziria uma imagem do estímulo. Esse trajeto pode ser ilustrado na famosa figura representada por um menino com o pé em uma fogueira. A teoria de Descartes foi uma grande evolução para o entendimento da fisiologia da dor e base para compreensão dos receptores periféricos (nociceptores) e o papel da medula na transmissão do estímulo. Até há pouco tempo, os nociceptores eram vistos como receptores de dor no corpo. Hoje se sabe que eles são responsáveis por captar estímulos mecânicos (como a pressão de um sapato), térmicos (a temperatura de uma superfície) e químicos (a ardência de uma substância) – e nem sempre serão dolorosos. Para que ocorra dor, é importante que haja a participação de estruturas cerebrais específicas. Um exemplo é o estudo realizado com Henry Gustav Molaison, que se tornou um
CRENÇAS E COMPORTAMENTO Nos últimos anos, houve um aumento do interesse dos pesquisadores para entender a influência de aspectos cognitivos, emocionais e do comportamento na dor. As emoções negativas como o medo, a raiva e a tristeza são componentes da experiência da dor. Dessa maneira, espera-se uma interação próxima ou até mesmo a sobreposição dos processos cerebrais relacionados com a dor e as emoções. Na década de 90, foi proposto um modelo cognitivo-comportamental de dor que se tornou conhecido como o modelo de medo-evitação. Esse modelo teórico tem sido proposto para justificar a cronificação, a manutenção
Sensação dolorosa O circuito da dor estende-se da periferia do organismo – pele e outros tecidos fora do sistema nervoso central – até a medula espinhal e o cérebro. Estímulos dolorosos ativam neurônios especiais sensíveis à dor – nociceptores (rosa) – que deflagram impulsos que se propagam até neurônios do corno dorsal da medula espinhal (azul). Essas células, por sua vez, repassam os sinais para o cérebro, que os interpreta como dor.
Intestino Impulso (sinal de dor)
Ramificações periféricas dos nociceptores
“Dor”
Projeção até o cérebro
Gânglio da raiz dorsal
Inflamação
Corno dorsal da medula espinhal Corpo celular do nociceptor
amadeo bachar
conhecido caso da neurociência. O paciente foi submetido a uma cirurgia de ressecção de partes do cérebro, incluindo os lobos temporais para tratar epilepsia grave, que mostrou que mesmo com as vias periféricas intactas ele não era capaz de perceber dor ainda que com estímulos fortes. A importante participação do cérebro no processamento da dor surgiu com a teoria da neuromatriz, apresentada pelo psicólogo Ronald Melzack, da Universidade McGill, no Canadá, e pelo neurocientista Patrick Wall, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, no fim da década de 80. Essa tese desmistifica a ideia de que haveria uma área específica para dor no cérebro e traz o conceito de que a dor seria processada por uma rede de conexões entre diferentes regiões. Com o desenvolvimento das técnicas de neuroimagem como a ressonância magnética funcional (fMRI), a magnetoencefalografia (MEG) e a tomografia por emissão de posítrons (PET-scan) foi possível entender o que ocorre em nossa cabeça nas situações em que sentimos dor. Atualmente, sabemos que estruturas como o tálamo, a ínsula, o córtex cingulado anterior, o córtex somatossensorial, o córtex motor, a amígdala, o córtex pré-frontal, o cerebelo e o tronco encefálico apresentam papel no processamento da sensação dolorosa. Essas regiões não são exclusivamente associadas à dor, também participam de outras funções como cognição, comportamento e processamento de emoções.
Tecido lesionado
Neurônio do corno dorsal
da dor e também as limitações das atividades. O princípio básico do modelo medo-evitação é que após uma lesão, ou mesmo episódio de dor, pode haver duas vias de enfrentamento. Inicialmente, se a dor for percebida como não ameaçadora, as pessoas tendem a ter um enfrentamento adequado, mantendo suas atividades diárias e favorecendo a recuperação. Já na outra via, a pessoa pode entrar em um ciclo de eventos caso a dor inicial seja acompanhada de pensamentos negativos (pensamentos catastróficos) que darão origem ao medo e à avaliação superestimada do nível de risco de movimentos ou mesmo de situações, o que levará a comportamentos excessivos de proteção como a ansiedade e a hipervigilância. É evidente que a adoção desses comportamentos de medo-evitação levará a limitações nas tarefas diárias. A evitação pode ser entendida como o comportamento que visa adiar ou prevenir julho 2017 • mentecérebro 73
especial • dor que uma situação aversiva ocorra. No entanto, na presença de dor crônica, o estímulo aversivo está presente a todo momento, muitas vezes instaurando ou agravando quadros de ansiedade e comportamentos de hipervigilância e passe a evitar situações ou movimentos que façam a dor aumentar ou aparecer. A ansiedade que surge em virtude da dor é um estado afetivo que considera a previsão de um evento futuro, sem um foco claro, como se houvesse uma contínua permanência do risco de se ter dor ou mesmo de uma nova lesão. Diferentemente do medo, que faz com que a pessoa adote comportamentos de defesa na presença de um estímulo identificável, a ansiedade gera comportamentos preventivos que incluem a hipervigilância (aumento da busca por pistas e da atenção a estímulos potencialmente de risco). A complexa interação entre o medo e a dor envolve fatores emocionais, cognitivos, comportamentais que modulam a experiência. A expectativa da dor, assim como as crenças sobre ela, tende a se transformar em medo. Nessas situações, a sensação de incapacidade pode estar diretamente relacionada ao medo, e não à intensidade ou tempo de duração da sensação dolorosa. A catastrofização, que pode ser vista como o componente cognitivo do medo, envolve o exagero dos sintomas (magnificação), a presença do pensamento negativo repetidamente (ruminação) e a percepção da incapacidade em prosseguir. A catastrofização da dor tem sido consistentemente associada à incapacidade em pessoas com dor crônica.
Ansiedade gera comportamentos preventivos que incluem a hipervigilância, com aumento da busca por pistas de perigo e maior atenção a estímulos potencialmente de risco
Alvos periféricos As extremidades dos nociceptores que inervam pele e órgãos internos são dotadas de moléculas especializadas – receptores – capazes de detectar estímulos nocivos, como a capsaicina das pimentas, calor intenso ou substâncias liberadas pela inflamação. Ao reconhecer tais estímulos, os receptores permitem a entrada de íons sódio e cálcio na célula. Esse influxo induz os nociceptores a disparar sinais dolorosos.
Pele
Segmento periférico do nociceptor
Área do detalhe
Capsaicina
Canal de sódio dependente de voltagem resistente a TTX
Receptor de capsaicina Íons cálcio
Calor
Íons sódio
Prótons
ASIC (canais iônicos ativados por ácido) Receptor de bradicinina
Enzima COX
Pele
Receptor de prostaglandina
Tecido danificado Bradicinina
Prostaglandina
Botão terminal do nociceptor na periferia amadeo bachar
Célula inflamatória
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PENSAR E SENTIR Ao procurar um serviço de saúde, é comum que as pessoas busquem por respostas. Quando se trata de dor crônica, os questionamentos são frequentes. “O que há de errado comigo?”; “Quanto tempo demora para passar?”; “Qual o melhor exame para identificar o meu problema?”; “Qual tratamento levará à cura?” Muitas dessas perguntas podem não ter respostas simples. Por exemplo, estudos recentes mostram que para alguns casos de dores musculoesqueléticas, como a lombar, a cervical e no ombro, entre outras, os exames de imagem como radiografia e ressonância
magnética podem não ser úteis para explicar os sintomas. Em outras palavras, algumas alterações observadas nesses exames de imagem são provenientes do próprio envelhecimento e serão encontradas mesmo em pessoas sem sintomas. Os profissionais de saúde devem estar atentos ao próprio discurso para não provocar efeito nocebo (expectativa negativa de evolução da doença), atribuindo causas quando estas não existem efetivamente. Informações que produzem efeito nocebo podem contribuir para pensamentos catastróficos, ansiedade e hipervigilância. Considerando a dor como um recurso importante para a sobrevivência, é preciso reconhecer que ela também motiva a pessoa a adotar comportamentos de defesa na identificação de sinal de perigo. No entanto, esse risco pode ser proveniente de “crenças mal-adaptativas”, que surgem quando a pessoa com dor passa a acreditar que ainda tem uma lesão ou fragilidade em alguma estrutura. Nesses casos, posições, movimentos ou atividades passam a ser vistos como arriscados, gerando limitações. Para que essas crenças e esse comportamento sejam modificados, é fundamental que haja ressignificação de conceitos. No entanto, estudos recentes mostraram que explicar a dor com foco na estrutura anatômica como modelos de vértebras (aqueles vistos em consultórios), alterações observadas nos exames de imagem, detalhes de técnicas cirúrgicas ou desarranjos posturais e biomecânicos contribuíram para aumento da ansiedade, do medo e da catastrofização. Tornou-se necessário um novo modelo que explicasse a dor de maneira a permitir a sua modulação e a diminuição das limitações sem que isso levasse a repercussões negativas. Esse é o objetivo de uma intervenção chamada de educação terapêutica com base em neurociência (therapeutic neuroscience education), educação em dor com base em neurociência, ou simplesmente educação em dor. Os primeiros trabalhos a indicar a necessidade de uma visão mais ampla da dor foram realizados por Gifford no fim da década de 90. Esse modelo foi então popularizado com a publicação do livro Explain pain (2009, traduzido online para o português), de Lori-
mer Moseley e David Butler. Escrito em linguagem acessível para profissionais e público em geral, apresenta ilustrações e metáforas para explicar conceitos de neurofisiologia e traz informações sobre nociceptores, transmissão de impulsos, processamento da dor no cérebro, influência de fatores biológicos, psicológicos e sociais na dor, neuroplasticidade, sensibilização do sistema nervoso, mecanismos de modulação da dor e retorno às atividades e práticas de exercícios. Outra referência no assunto é o livro Therapeutic neuroscience education – Teaching patients about pain (International Spine and Pain Institute, 2013, sem edição em português), dos pesquisadores Adriaan Louw e Emilio Puentedura. A literatura especializada no assunto, por meio de estudos de alta qualidade, tem demonstrado que ensinar sobre a neurociência da dor para as pessoas produz mudanças imediatas e a longo prazo, como: diminuição da intensidade da dor, retomada de atividades, pensamentos mais positivos sobre seu estado, redução do número de consultas no serviço de saúde, diminuição da ansiedade, do medo e da hipervigilância, retorno a uma vida mais ativa. É possível que os mecanismos envolvidos tenham relação com a regulação cognitivo-emocional. A educação em dor pode ser feita em grupo ou individualmente (esta última tem se mostrado mais efetiva). As intervenções duram de 15 minutos a até mais de uma hora e utilizam diferentes recursos como vídeos, imagens, metáforas, analogias e jogos. No entanto, realizar a educação em dor pode não ser tão simples. É fundamental que o profissional de saúde reconheça e respeite as crenças do paciente – e saiba o momento de propor a ressignificação dos conceitos. Uma atitude aberta para mudança, assim como a relação profissional-paciente adequada, marcada pela empatia e confiança, são importantes para o sucesso desse processo. Em muitos casos, o profissional da saúde pode apresentar mais resistência à mudança e à aceitação de novos conceitos do que da própria pessoa que busca auxílio. Cabe destacar que, em alguns casos, a educação em dor não substituirá outros tratamentos, mas poderá facilitar a aderência.
PARA SABER MAIS The role of psychosocial process in the development and maintenance of chronic pain. Robert R. Edwards, Robert H. Dworkin, Mark D. Sullivan, Dennis C. Turk e Ajay D. Wasan, em Journal of pain, vol. 17, edição 9, págs. T70-T92; setembro de 2016. Assessment of psychosocial functional impact of chronic pain. Dennis C. Turk, Roger B. Fillingim, Richard Ohrbach e Kushang V. Patel, em Journal of pain, vol.17, edição 9, págs. T21-T49; setembro 2016. A nation in pain: healing our biggest health problem. Judy Foreman. Oxford University Press, 2014. Therapeutic neuroscience education – Teaching patients about pain. Adriaan Louw e Emilio Puentedura. International Spine and Pain Institute, 2013. Explicando a dor. David S. Butler e G. Lorimer Moseley. Noigroup Publications, 2009. Portal do PED: www. pesquisaemdor.com.br
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livro | resenha 9 lições sobre arte e psicanálise. J.-D. Nasio. Zahar, 2017. 160 págs. R$ 44,90.
Nove lições e um diálogo infinito O autor argentino J.-D. Nasio aproxima a expressão artística e o olhar psicanalítico, propondo ao leitor um percurso sutil, que escapa à lógica racional por Erane Paladino
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A sublimação é uma ação psíquica frutífera, à medida que parte de uma busca narcísica em direção a uma solução capaz de estimular efeitos psíquicos saudáveis frente às angústias pessoais
e as possíveis definições acadêmicas de arte variam de acordo com o contexto cultural e o momento histórico, o trabalho artístico, por outro lado, pode ter um caráter fora da lógica e torna-se, muitas vezes, universal e atemporal. Qual o segredo do artista capaz de capturar e encantar pessoas atravessando tempos? O psicanalista argentino J.-D. Nasio acredita que a obra de arte produz efeitos importantes: hipnotiza quem as contempla, ao mesmo tempo que suscita estado similar de paixão que levou o artista a concebê-la. Trata-se também de uma forma de comunicação e, assim, traz ao espectador a oportunidade de novas revelações. Por atingir cada um de forma singular, permite infinitas respostas diante de um mesmo estímulo. Também pode despertar diferentes motivações e sentimentos para o mesmo observador. “A obra de arte adormece a nossa consciência e permite o despertar de nossos impulsos criadores”, escreve. Segundo o autor, a arte seria uma projeção imperiosa de um sentimento, de uma ideia ou de uma imagem que, uma vez exteriorizados, se cristaliza numa forma perceptível e sugestiva, isto é, numa forma
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que faz fantasiar e vibrar quem a capta. Em respeito a essa espécie de transgressão de uma linguagem meramente conceitual, o autor de 9 lições sobre arte e psicanálise evita um texto explicativo ao convidar o leitor a, previamente, pesquisar e apreciar na internet as obras a serem comentadas. Como livre-pensador faz considerações, hipóteses analíticas, associando o conteúdo das produções a algumas experiências particulares na história de cada artista citado. É esta livre-associação que tece o livro. Para fundamentá-lo, Nasio articula as diferentes manifestações artísticas e seus autores, recorrendo a um importante mecanismo de defesa – apresentado por Freud e desenvolvido também por Lacan –, capaz de transformar em produção criativa as dores e sofrimentos humanos: a sublimação. Trata-se de uma ação psíquica frutífera, à medida que parte de uma busca narcísica em direção a uma solução capaz de estimular efeitos psíquicos saudáveis frente às angústias pessoais. O destino de uma pulsão, quando sublimada, não tem finalidade utilitária ou decorativa e traz um impacto de caráter inédito e intrigante. Por essa razão, a ligação direta
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entre sublimação e transmissão é inevitável. Basta o observador se deixar penetrar e ser fecundado pela força que emana da obra. Logo de início, Nasio faz referência a Maria Callas. Para ilustrar as reflexões, traz à luz a infância turbulenta da cantora de voz intensa e contagiante, fala da relação da artista com a mãe e levanta a questão sobre a importância da música e da expressão como a busca de uma solução para suas marcas e angústias. Mais feliz como cantora do que como mulher, Callas costumava dizer: “Tudo que é necessário saber sobre mim está na música”. O mistério de sua voz não estava tanto em sua fonte, mas na emoção que atingia a todos. Ao transcrever uma palestra proferida sobre o pintor suíço Felix Valloton no Grand Palais, o autor propõe um mergulho imaginário em seu inconsciente para buscar entender sua doença, fonte de sua paixão criadora. Observa nos trabalhos a presença da amargura como a força de seu talento. Como se condenado à solidão, pinta nas telas o que não consegue realizar na vida. Ao falar de Francis Bacon, lembra seu encantamento pelo trabalho de Diego Velasquez, especialmente por Retrato do Papa Inocêncio X. Numa espécie de fixação obstinada pelo ídolo, Bacon buscava copiar apaixonadamente sua perfeição. E foi esta a dinâmica que pôde tê-lo condu-
zido a se tornar um dos pintores originais e perturbadores da era moderna. Sobre a dança, Nasio traz observações feitas num espetáculo de ballet. Relaciona os sacrifícios disciplinares que sobrecarregam o bailarino e acabam por transformar seu corpo em expressão artística pura. Um sofrimento que condensa o gesto sublime de seus movimentos. Também se refere a Picasso, concentrando-se especialmente no quadro A menina com a pomba e traz um caso clínico, propondo um paralelo entre a dor expressa no olhar triste da menina do quadro e a melancolia de uma paciente que conviveu com a tela em sua casa de infância. A respeito do prazer de observar imagens eróticas, apresenta o mundo mental como a zona erógena primordial que permite prolongar na imaginação a imagem que nos excita. Com um texto acessível e reflexões independentes, Nasio traz a aproximação entre a arte e a psicanálise, num diálogo que pode ser infinito. A linguagem artística manifesta e exterioriza o universo subjetivo, ânsias e conflitos de forma singular, num percurso de sutilezas psíquicas para os quais a lógica racional parece sempre ser insuficiente. ERANE PALADINO é psicóloga e psicanalista, mestre em psicologia clínica, professora do Instituto Sedes Sapientiae. julho 2017 • mentecérebro 77
livros | lançamentos INTERFACE
Neurociência e educação
Guia prático de neuroeducação. Organizado por Waldir Pedro. Wak Editora, 2017. 344 págs. R$ 92,00
Desde os anos 90, a “década do cérebro”, a neurociência, a neuropsicologia e a psicologia cognitiva apresentaram um volume significativo de descobertas capazes de influenciar a educação. Guia prático de neuroeducação traz um panorama desse conhecimento científico produzido nos últimos anos. Organizada pelo filósofo e jornalista Waldir Pedro, a obra traz artigos de pesquisadores desses campos de estudo, com a intenção de ajudar educadores a entender os mecanismos cerebrais envolvidos na aprendizagem e inspirar novas estratégias de ensino.
TERAPIA COGNITIVA
Tratamento preventivo
ÉTICA
Histórias do bem Sucesso editorial nos Estados Unidos e Europa, a coletânea O livro das virtudes reúne textos clássicos, de passagens da Bíblia a Shakespeare e Martin Luther King, que tratam de valores, como disciplina, compaixão, responsabilidade, coragem, lealdade, fé e amizade. Organizada por Wiliam J. Bennett, secretário de educação do governo de Ronald Reagan, chegou a vender 3,2 milhões de exemplares na década de 1990. A editora Nova Fronteira relança edição revista e adaptada, com capa dura, acrescida de textos de Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Mello Neto e outros ícones da nossa história cultural.
O livro das virtudes – Vol. 1 e 2. Willian J. Bennett. Editora Nova Fronteira, 2017. 1.328 págs. R$ 149,90
A prática cognitiva na infância e na adolescência. Organizado por Renato Maiato Caminha, Marina Gusmão Caminha e Camila Arguello Dutra. Sinopsys, 2017. 768 págs. R$ 186,00
Intervenções preventivas no início da vida podem ajudar a evitar o surgimento de transtornos psicológicos no futuro, poupando gastos na saúde pública e perda da produtividade da população, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). A prática cognitiva na infância e na adolescência tem o objetivo de esclarecer sobre aplicações da terapia cognitivocomportamental em crianças e adolescentes. Referência para estudantes e profissionais da saúde mental, a obra compila artigos de especialistas em TCC, de universidades brasileiras e do exterior, trazendo um panorama dos fundamentos dessa técnica e de suas aplicações.
FILOSOFIA A um clique de obter notícias sobre o que ocorre no mundo todo, em tempo real, é comum a sensação, por vezes angustiante, de que algo realmente grandioso acontece a cada momento, em escala coletiva ou individual – acidentes ambientais, conflitos políticos, guerras ou mesmo o nascimento de um filho ou uma pessoa que se declara apaixonada. O filósofo e cientista social esloveno Slavoj Žižek discute a concepção moderna de evento em Acontecimento – Uma viagem filosófica através de um conceito. Passando por referências históricas e culturais, de Jesus Cristo a clipes musicais que “viralizaram” na internet, o autor analisa como a noção de acontecimento mudou nas últimas décadas, fazendo uma crítica inteligente à avalanche de referências característica de nosso mundo contemporâneo, hiperconectado. 78
Acontecimento – Uma viagem filosófica através de um conceito. Slavoj Žižek. Zahar, 2017. 192 págs. R$ 49,90
imagens: divulgação
Avalanche de acontecimentos
Estilos do cuidado: a psicanálise e o traumático. Daniel Kupermann. Zagodoni, 2017. 176 págs. R$ 55,00
PSICANÁLISE
FAMÍLIA
A ética do cuidado
Guarda compartilhada
Cuidado e empatia na prática psicanalítica são objeto de reflexão do novo livro do psicanalista Daniel Kupermann, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Partindo dos desenvolvimentos teórico-clínicos de Sándor Ferenczi e Donald Winnicott, em suas interlocuções com Freud, Kupermann apresenta algumas de suas principais elaborações sobre a psicanálise contemporânea. Como lidar com o traumático, uma vez que seus efeitos atravessam tanto os espaços individuais quanto coletivos da nossa sociedade? Para o autor, na ética do cuidado residem respostas para grandes questões.
O divórcio é uma das transformações sociais mais impactantes da sociedade contemporânea. Tomando como perspectiva as mudanças na organização familiar das últimas décadas, Guarda compartilhada – Uma visão psicojurídica propõe uma interface entre direito e psicologia. Escrita por uma advogada e uma psicóloga, a obra aborda especialmente a guarda compartilhada, modalidade de separação que propõe que os filhos passem tempo com o pai e a mãe e recebam de ambos cuidados de forma equivalente.
Guarda compartilhada – Uma visão psicojurídica. Verônica A. da Motta CezarFerreira e Rosa Maria Stefanini de Macedo. Artmed, 2016. 240 págs. R$ 71,00
Atendimento psicanalítico em diversas regiões de São Paulo
www.redepsicanalise.com.br telefone (11) 3672 4205
[email protected]
limiar neurociências
Guerra e paz no país dos desinformados SIDARTA RIBEIRO
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erante a Inquisição, Galileu Galilei foi forçado em 1633 a renegar a noção de que é a Terra que se move em torno do Sol, e não o contrário. Galileu teria murmurado “Eppur si muove” – “no entanto ela se move” em ato de resistência ao irracionalismo eclesiástico. Essa situação esdrúxula tem paralelo hoje no impasse verificado no debate público sobre maconha medicinal. Há fartas evidências de que a maconha e seus princípios ativos têm grande potencial terapêutico para uma ampla gama de doenças, tais como epilepsia, isquemia, doença de Alzheimer, mal de Parkinson, síndrome de Tourette, depressão, psicose, esclerose múltipla, esclerose lateral amiotrófica, anorexia, diabetes, fibrose cística, bem como dores crônicas e neuropáticas. Pacientes com essas doenças frequentemente são refratários aos medicamentos disponíveis, um problema que costuma ser abordado clinicamente pelo aumento das doses dos medicamentos, com elevação dos riscos de efeitos colaterais como paradas cardíaca ou respiratória. Medicamentos canabinoides são bastante seguros, por não haver receptores dessa substância em centros neurovegetativos. Um dos avanços recentes mais promissores diz respeito ao uso da maconha na terapia de câncer. Sabe-
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mos hoje que os canabinoides são úteis não apenas para aliviar ansiedade, dor, falta de apetite e sono decorrentes da químio ou radioterapia, mas também por suas surpreendentes propriedades antitumorais. Um bom exemplo é a sinergia entre tetrahidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD) no aumento da eficácia da radioterapia para o tratamento do glioma. Outro avanço recente se refere ao uso geriátrico da maconha. Um estudo feito na Alemanha e Israel, publicado no periódico científico Nature Medicine em maio de 2017, demonstrou que o tratamento crônico com THC reverte o declínio cognitivo em camundongos idosos, restaurando a capacidade de aprendizado, a plasticidade sináptica e o perfil de expressão gênica típico de animais jovens. O estudo mostrou ainda que camundongos adolescentes ficam cognitivamente prejudicados após o mesmo tratamento, por excesso de plasticidade. A maconha caminha a passos largos para suplantar a bengala como melhor amiga da velhice. Diante desse quadro, é gritante o descompasso entre ciência e medicina no Brasil. Apenas em maio de 2017 a Agência Nacional de Vigilância Sanitária incluiu a maconha na lista de plantas medicinais, mas o Conselho Federal de Medicina e a
Associação Brasileira de Psiquiatria logo se manifestaram contra a medida. “Não li e não gostei” tem sido a tônica dessas instituições, ignorando que o cultivo caseiro da maconha medicinal é uma realidade na Holanda, Canadá, Alemanha, Espanha, Chile, Itália, Austrália, República Checa, Colômbia e várias regiões dos Estados Unidos. Até quando persistirá a interdição ideológica do tratamento de pacientes em sofrimento, contra tantas evidências científicas? Os riscos associados ao uso da maconha e sobretudo do THC têm sido usados como espantalho intelectual nesse debate, pois muitas das substâncias vendidas em farmácia são agudamente perigosas em altas doses, o que não ocorre com a maconha. Justificar a proibição da maconha com base em seus grupos de risco é ignorar que toda substância os tem. Para dar um exemplo cotidiano, não é porque existem pessoas intolerantes à lactose que o leite deva ser proibido. Os efeitos indesejados do THC podem ser evitados com segurança pela mistura com o CBD, tal como tipicamente ocorre na planta. Isso se embasa na noção de efeito entourage, termo cunhado em 1998 pelos químicos Raphael Mechoulam e Simon Ben-Shabat para se referir aos efeitos cooperativos dos múltiplos
andrei verner (foto); shutterstock (imagem)
Artigo publicado em maio na Nature Medicine mostra que o tratamento crônico com THC, um componente da maconha, reverte o declínio cognitivo em camundongos idosos e restaura a capacidade de aprendizado
compostos presentes na maconha, que podem potencializar a eficácia clínica e atenuar efeitos colaterais. Os compostos orgânicos chamados terpenos, abundantes na maconha, podem facilitar a passagem dos canabinoides pela barreira hematoencefálica e contrabalançar os déficits de memória induzidos pelo THC. Do ponto de vista psiquiátrico, CBD e THC têm efeitos complementares, causando respectivamente relaxamento e excitação. Enquanto o CBD é ansiolítico e antipsicótico, o THC é ansiogênico. A presença de ambos os compostos na planta resulta em um efeito tamponado que é clinicamente seguro. Por todas estas razões é crucial legalizar o uso e o cultivo medicinal da maconha. Isso dará aos médicos, pacientes e pesquisadores o máximo de opções, reduzindo custos, oferecendo acesso conforme cada perfil de paciente ou tipo de pesquisa, evitando dependência de produtos estrangeiros, e também que pacientes recorram à compra de maconha no mercado ilícito (de qualidade questionável e com princípios ativos em concentrações desconhecidas), fomentando a produção por associações de pacientes e promovendo o autocultivo. O uso fitoterápico da maconha é muitas vezes atacado como se houvesse mais conhecimento sobre os efeitos dos canabinoides purificados
do que sobre os efeitos da planta. Isso não procede. O uso da maconha tem milênios de experiência cultural, enquanto que os canabinoides isolados apenas recentemente começaram a ser investigados. A seleção artificial da maconha, realizada sistematicamente ao redor do Himalaia nos últimos 6 mil anos, originou cepas com misturas de canabinoides, em vez de cepas dominadas por um único canabinoide. Se os compostos purificados fossem realmente melhores para as terapias, as cepas contendo um único princípio ativo deveriam ter sido selecionadas ao longo do tempo, o que não ocorreu. A principal questão agora em jogo é o fato de que a maconha medicinal tem custo baixo devido ao cultivo doméstico. Canabinoides purificados, por outro lado, necessariamente chegarão ao consumidor final a preços muito mais altos. Literalmente uma questão de bilhões de dólares... Enquanto tudo isso passa ao largo, ainda não superamos a discussão sobre o valor medicinal da maconha. Felizmente, a TV aberta começa a encarar a polêmica. O jornalista Pedro Bial abriu seu programa na rede Globo, em 30 de maio, enunciando a máxima de Paracelso: a depender do uso e da dose, qualquer droga pode ser veneno ou elixir. O que se seguiu foi extremamente revelador da estratégia
avestruz de muitos médicos brasileiros. Arthur Guerra, coordenador do desastrado programa de internação forçada na Cracolândia, foi questionado sobre a base científica para a proibição da maconha e outras substâncias atualmente ilícitas. Saiu-se com a seguinte pérola: “A base científica é a estrutura da medicina, Pedro. É a partir dessa convicção que nós podemos dar passos mais avançados. Que drogas não são boas, óbvio, por isso que o nome usado são as drogas (...) qualquer uso de droga não vai fazer bem ao cérebro”. É de se perguntar o que Guerra pensa das drogarias que vendem as drogas que ele prescreve. Dogmático e preconceituoso, jogando para a plateia sem compromisso com a pesquisa, Guerra se apresentou como a vanguarda do atraso. Soou como um defensor da escravidão em 1887. Felizmente Bial e o neurocientista Stevens Rehen, o neuropediatra Eduardo Faveret e o psiquiatra Dartiu Xavier fizeram o contraponto necessário à desinformação, apresentando pesquisas que corroboram o uso medicinal da maconha. Guerra, os pacientes precisam de paz. Eppur si muove. SIDARTA RIBEIRO, neurobiólogo, diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e professor titular da UFRN. julho 2017 • mentecérebro 81
neurocircuito X
PADRÕES MENTAIS
Traçar planos ajuda a mudar hábitos indesejáveis
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Artigo publicado no Personality and Social Psychology Bulletin argumenta que deixar cérebro de “sobreaviso” favorece novas possibilidades de ação
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Tem coisas que fazemos e adoraríamos não repetir, mas qualquer um que já tenha tentado alterar os próprios hábitos sabe que esse não é exatamente um desafio fácil. Atualmente, pesquisadores reconhecem que, do ponto de vista neurológico e comportamental, para ter sucesso em nossos propósitos é necessário muito mais do que boas intenções. O primeiro passo, considerado essencial por psicólogos, é a consciência de que conseguir agir de forma diferente daquela a que estamos acostumados realmente não é fácil. No entanto, entender os motivos de determinados comportamentos ajuda a amenizar as dificuldades inerentes ao processo. “O que torna complicado mudar hábitos é justamente o que os faz tão úteis no dia a dia”, diz a psicóloga e especialista em comportamento Wendy Wood, da Universidade do Sul da Califórnia. Eles tornam a vida mais fácil e ajudam a ganhar tempo por não termos de pensar, por exemplo, em como colocar os sapatos antes de sair de casa. Só o fato de estarmos em determinado lugar é suficiente para agirmos de determinada maneira – fato que, infelizmente, é igualmente verdade para o que queremos eliminar.
Um experimento realizado por Wood e seus colegas e publicado no Personality and Social Psychology Bulletin demonstra claramente essa realidade. Os pesquisadores distribuíram porções de pipoca fresca e da semana anterior para pessoas que, habitualmente comiam esse alimento no cinema. Os pesquisadores fizeram o teste em vários ambientes e descobriram que embora os voluntários que receberam porções murchas e ressecadas não tivessem gostado, comeram até o final a quantidade que lhes foi oferecida. A boa notícia é que esse padrão se manteve apenas quando estavam assistindo a cenas de filmes na sala de cinema, mas não enquanto assistiam a vídeos de música em uma sala de conferências, onde a mudança de disposição anulou o impulso irracional de comer. Ou seja: pensar com antecedência em situações potencialmente “perigosas”, que se tornam verdadeiras armadilhas, deixa o cérebro de “sobreaviso”. Por isso, o planejamento diminui os “riscos” e ajuda efetivamente a quebrar hábitos. A pessoa que pretende parar de consumir cafeína, por exemplo, pode encontrar outro caminho para o trabalho que não passe por uma cafeteria.