Coleção História da Igreja volume 1
JSinodal
Coleção História da Igreja. volume 1
A história cristã é transmitida em comunidades. Foi nas primeiras co munidades que se contou de Jesus; é nas comunidades de hoje que se conta de sof rrmento, luta, sobrevivência, de lutas individuais, mas principalmeni de que foi foi vivido vivido conjuntamente. É essa memória cristã que se encontra na Coleção História da Igreja, que não apenas apresenta episódios, mas aborda as causas e os moti vos dos acontecimentos. Estamos iniciando uma caminhada que certa mente ajudará na reflexão sobre a caminhada de cada um dos leitores. No fundo, fundo, estamos estamos perguntando pelas pelas nossas nossas raízes, que nos são des conhecidas. Temos raízes que nos tornam parte de uma realidade coletiva. tiva. Nessa Nessa realidade coletiva coletiva exis existe tem m tesouros do passad passado: o: as experiê experiên n cias de fé e de vida dos que foram antes de nós, daqueles que segui ram e creram antes de nós. Neste volume — A Igreja no Império Romano — vamos nos aproxi mar dos cristãos e comunidades que viveram e testemunharam sua fé sob a dominação do Império Romano. Estudar História da Igreja é comemorar, é buscar a memória cristã de cada um. Por quê? Porque Deus entrou na história, atuou na histó ria e está levando a história a um alvo.
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i Editora
fSinodal
9"7 8 852 3'l 3 0 3 2 5 í
Coleção História da Igreja. volume 1
A história cristã é transmitida em comunidades. Foi nas primeiras co munidades que se contou de Jesus; é nas comunidades de hoje que se conta de sof rrmento, luta, sobrevivência, de lutas individuais, mas principalmeni de que foi foi vivido vivido conjuntamente. É essa memória cristã que se encontra na Coleção História da Igreja, que não apenas apresenta episódios, mas aborda as causas e os moti vos dos acontecimentos. Estamos iniciando uma caminhada que certa mente ajudará na reflexão sobre a caminhada de cada um dos leitores. No fundo, fundo, estamos estamos perguntando pelas pelas nossas nossas raízes, que nos são des conhecidas. Temos raízes que nos tornam parte de uma realidade coletiva. tiva. Nessa Nessa realidade coletiva coletiva exis existe tem m tesouros do passad passado: o: as experiê experiên n cias de fé e de vida dos que foram antes de nós, daqueles que segui ram e creram antes de nós. Neste volume — A Igreja no Império Romano — vamos nos aproxi mar dos cristãos e comunidades que viveram e testemunharam sua fé sob a dominação do Império Romano. Estudar História da Igreja é comemorar, é buscar a memória cristã de cada um. Por quê? Porque Deus entrou na história, atuou na histó ria e está levando a história a um alvo.
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Coleção História da Igreja Volume 1
Martin N. Dreher
A Igrej a no Império Romano
3a edição
mi
Editora
fSinodal
2001
© Editora S i n o S l 1993 Rua Amadeo RoH, 467 930 -poldo/RS Fone: (51) 590-236 Fax: (51) 590-266 n Home-page:www.ed Foto da capa: Centro Baúcho de Audiovisuais - Porto Aleg Produção editorial: Editora Sinodal Produção gráfica: Gráfica Sinodal ISBN: 85-233-0325-1 ISBN: 85-233-0326-X (série)
Da
Í InterJcionais de Catalogação na Publicação (( (Calara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Dreher, Mártir! Coleção do, RS : Sinodal
da Igreja / Martin N. Dreher. - São Leop
Bibliograi^ Conteúdo Igreja no Império Romano. - v. 2. no mundo medievj v. 3. A crise e a renovação da Igreja do da Reforma |" A Igreja latino-americana no cc ISBN 85-21 3326-X (obra completa) 1. Igreja - História I. Título
93-0687
CDD índices para catálogo sistemáti"
1. Igreja : História : Cristianisrr
Para Karl Gottschald Jr., Pastor-Presidente da IECLB de 1969-1978, em respeito e admiração
Sumário Apresentação 1. História Eclesiástica — algumas considerações 2. Império Romano na época do nascimento de Cristo 3. Situação religiosa no Império Romano
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4. Palestina e judaísmo palestino
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5. Plenitude do tempo
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6. Comunidade de Jerusalém 7. De Jerusalém a Roma
19 22
8. Comunidades gentílico-cristãs, posteriores a Paulo 9. Heresia e catolicidade
25 33
10. Formação do cânone neotestamentário e a mulher na Igreja Antiga
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11. Fé cristã e filosofia 12. O Imperador e os cristãos
47
13. Igreja Imperial
59
14. Doutrina e vida da Igreja
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51
15. "Qual é o rico que se salva?" — Temática da riqueza e da pobreza
na Igreja Antiga 16. Final da história da Igreja Antiga
Literatura
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Apresentação O que está escrito nas páginas seguintes é algo provisório. Talvez seja esta uma das características do fazer história: sua provisoriedade. Quando escrevi, con sultei, formulei, pensei nos estudantes da Faculdade de Teologia da Escola Superior de Teologia da IECLB, em São Leopoldo, para os quais se deveria falar da caminha da do povo de Deus através da história. Quando revisei este manuscrito para ser o primeiro volume da Coleção História da Igreja, percebi que ele poderá ser um auxí lio também para os professores de Ensino Religioso, Escola Dominical, Culto Infan til, Ensino Cenfirmatório e para todas as pessoas interessadas em aprofundar seu conhecimentoSobre como se desenvolveu a história do povo de Deus através dos tem pos. Notei também quão difícil foi poder falar do povo cristão. Normalmente, o po vo não "escreve" história, "sofre"-a. Mesmo assim, espero que se possa notar, pe lo menos um pouco, a vida desse povo. De onde tenho minha sabedoria? Sou devedor. Os anos em que tenho podido pesquisar não foram suficientes para esquadrinhar "toda" a história da Igreja. Po derá alguém fazer isso? Por isso sou devedor. Devo a Hans Lietzmann, a Adolf von Harnack, a Karl Kupisch, a Hans von Campenhausen, a Georg Kretschmar, a Karl Heussi e a muitos outros. A Coleção História da Igreja está programada para quatro volumes. Nesse pri meiro volume, abordo o surgimento da comunidade cristã na época do Império Ro mano. No segundo, abordarei a vida cristã na Europa medieval, procurando ressal tar os aspectos importantes para a compreensão de nossa vida de fé no contexto lati no-americano. No terceiro, quero falar da Reforma e do mundo da Reforma do sé culo XVI. O quarto volume buscará apresentar os últimos 500 anos, a partir de uma perspectiva da América Latina. No final desse livro, apresento alguma bibliografia para aqueles que quiserem aprofundar seus conhecimentos. Martin N. Dreher
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1 História Eclesiástica — algumas considerações Para muitos, a História Eclesiástica está, usando palavras de um historiador de nossos dias (Karl Kupisch), mais ou menos na mesma situação de um professor de educação física na escola: faz parte do corpo docente, mas não tem nada, ou só muito pouco, a dizer. Partindo dessa colocação, muitos pastores, mesmo teólogos e estudantes-de Teologia, não vêem muito sentido no estudo da História Eclesiásti ca em um centro de formação teológica. À primeira vista, essa visão das coisas po de ter sua razão de ser, pois a História Eclesiástica parece ter mais afinidade com a Faculdade de Filosofia do que com a Faculdade de Teologia. Com a Faculdade de Filosofia ela tem em comum o seu método de trabalho. Não pode ser separada da História Geral da Humanidade e, por isso, tem algo a ver com a política, a econo mia e a vida social. Realmente, à primeira vista, a História Eclesiástica pouco tem a ver com a Teologia. A questão merece, porém, ser discutida. A Teologia ocupa-se com as coisas que Deus disse aos seres humanos, através de sua revelação em Jesus Cristo. Com isso já estamos nos situando num certo ponto da história, pois a revelação de Deus em Cristo aconteceu em um determinado momento histórico. Ao contrário de mui tas outras religiões, o cristianismo é, assim como outra na qual ele tem profundas raízes, uma "religião da memória" (Hoornaert). O povo judeu teve profunda cons ciência de sua história, lembrando sempre que Deus tinha libertado seus antepassa dos do domínio egípcio. Temos um pequeno resumo dessa memória do povo judeu, por exemplo, em Deuteronômio 26.5-9: "Arameu, prestes a perecer, foi meu pai, e desceu para o Egito, e ali viveu co mo estrangeiro com pouca gente; e ali veio a ser nação grande, forte e numerosa. Mas os egípcios nos maltrataram e afligiram, e nos impuseram dura servidão. Clamamos ao Senhor, Deus de nossos pais; e ele ouviu a nossa voz e atentou para a nossa angús tia, para o nosso trabalho e para a nossa opressão; e nos tirou do Egito com poderosa mão, e com braço estendido, e com grande espanto, e com sinais, e com milagres; e nos trouxe a este lugar, e nos deu esta terra, que mana leite e mel". A experiência no Egito possibilitou a formação de uma memória entre os ju deus; essa memória possibilita-lhes saberem quem são e a partir de quem são e exis tem. Para os judeus, a história não era algo que se repetia sempre, mas algo que tem um fim. Aquilo que iniciou com a libertação no Egito vai ser concluído quando Deus se revelar de maneira plena no final dos tempos, no final da história. Essa memória judaica transferiu-se para a fé cristã. Jesus era judeu, e judeus eram seus primeiros e principais seguidores. Mas há uma pequena diferença entre a memória dos judeus e a dos cristãos. O cristianismo lembra muito bem da encarna7
ção, vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo, entendendo-o como liberta dor de todas as formas de dominação. Basta lembrar uma pequena passagem do li vro dos Atos dos Apóstolos. Em Atos 2.22-24,32,36 lemos: "Jesus, o Nazareno, varão aprovado por Deus diante de vós, com milagres, pro dígios e sinais, os quais o próprio Deus realizou por intermédio dele entre vós, como vós mesmos sabeis; sendo este entregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-o por mãos de iníquos; ao qual, porém, Deus ressus citou, rompendo os grilhões da morte; porquanto não era possível fosse ele retido por ela. (...) A este Jesus Deus ressuscitou, do que todos nós somos testemunhas. (...) Este ja absolutamente certa, pois, toda a casa de Israel de que a este Jesus que vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo".
Essa memória da ação de Deus em Cristo vai se repetindo ao longo de todo o Novo Testamento e continua, através dos tempos, nos escritos cristãos. No entan to, há uma diferença fundamental entre o judaísmo e o cristianismo. Os judeus con tinuam esperando o messias; quando ele vier, será alcançado o alvo da História. Pa ra os cristãos, esse messias já veio e é Jesus Cristo. Ele é o centro da História. En quanto os judeus esperam a irrupção do Reino de Deus, quando vier o messias, os cristãos já sabem que este Reino de Deus está presente em Jesus e se entendem co mo cidadãos deste Reino e seus colaboradores. Mas num aspecto os cristãos continuam ligados aos judeus: ainda esperam a vinda do messias. Para os últimos será a primeira vinda, para os primeiros será a segunda vinda. A esta segunda vinda os primeiros cristãos chamavam de parusia. Por isso, sabem que Jesus veio e têm seus olhos fixos neles. Eles não só têm memó ria de que ele veio e provocou libertação, mas esperam que ele venha e traga liberta ção. Estes dois aspectos são importantes: sem a memória não há esperança; sem a esperança a memória se vai. A lembrança é algo essencial para os cristãos. É, por isso, que os cristãos ensinam. No ensino cristão, todos são lembrados da ação de Deus em Cristo e de que Deus vai consumar esta ação iniciada em Cristo. Além dis so, são admoestados a não esquecer que são colaboradores do Reino. É por causa da memória, da lembrança que os cristãos celebram culto, que eles têm um calendá rio litúrgico. Seguindo este calendário litúrgico, os cristãos comemoram Jesus. Assim, caminhando do Advento até Pentecostes, lembram de Natal, Páscoa, Ascensão, Des cida do Espírito Santo Presente, para após reiniciarem com o anúncio da esperança cristã no Advento. No centro do culto cristão está a comemoração, a memória do fato básico: Cristo. Na eucaristia, os cristãos ouvem: "Fazei isto em memória de mim". Orações, canto, estudo bíblico, dia da Reforma, o kerb (dia da dedicação do templo na região de colonização alemã no Rio Grande do Sul), os sinos que ba tem três vezes ao dia para lembrar que é hora de rememorar, o crucifixo, as velas... tudo isso está em função da memória cristã. O cristianismo depende da veracidade de sua lembrança. Por isso, os cristãos escrevem. Foi por causa disso que Lucas escreveu seu Evangelho e os Atos dos Após tolos (cf. Lc 1.1-4; At 1.1). Mas os cristãos também valorizam a pessoa idosa, por que ela tem memória. Pena é que, como conseqüência de nossa sociedade de consu mo, onde a gente vale pelo que produz, a pessoa idosa venha sendo deixada de la do, não se preservando, assim, sua memória. Por isso, nós ficamos muitas vezes na dependência de uma "história oficial", na qual se trabalha apenas com documen z
tos escritos, produzidos por um certo tipo de pessoa. Na memória popular, porém, transmitida pelos idosos, continua presente uma história não escrita, que muitas ve zes traz o outro lado da memória. Quero mostrar alguns exemplos: nas histórias de congregações luteranas, se formos olhar os livros impressos, apenas existiram pasto res e presidentes de comunidades, sendo feitas, ainda, construções e edificações. Pe lo escrito, nada sabemos de mulheres, crianças, pobres, pessoas marginalizadas da vida das comunidades. Na memória do idoso, porém, a comunidade tem vida: há mulheres, crianças, pobres, gente esmagada debaixo de árvore, picada por cobra, tem pessoas que pensavam diferente, tem heresia, tem Mucker, Contestado, tem Missão Evangélica União Cristã, Cristianismo Decidido... Do que foi exemplificado fica um alerta a nós: autêntica memória cristã é me mória de marginalizados, de vencidos e de humilhados, de gente que não entra nos grandes manuais de história. Isso não poderia ser diferente, quando lembramos que Jesus morreu na margem: fora dos muros da cidade, numa cruz, abandonado. A história cristã é transmitida em comunidades. Foi nas primeiras comunidades que se contou de Jesus; é nas comunidades de hoje que se conta de sofrimento, luta, so brevivência, de lutas de indivíduos, mas principalmente do que foi vivido conjuntamente. É essa memória cristã que pretendemos estudar. Não queremos estudar apenas episódios, mas saber das causas e dos motivos dos acontecimentos. Vamos iniciar uma caminhada que busca ajudar na reflexão sobre a caminhada de cada um dos leitores. No fundo, estamos perguntando por raízes. Elas são a parte mais importan te da planta, mas também a parte que está mais escondida. Também nós temos raí zes, mas eias nos são desconhecidas. Temos raízes que nos tornam parte de uma re alidade coletiva. Nessa realidade coletiva existem tesouros do passado: são as experi ências de fé, de vida dos que foram antes de nós, daqueles que seguiram e creram antes de nós. Nessa realidade coletiva também existem pressentimentos do futuro, da esperança da comunidade cristã. Essas raízes são naturais; elas nos ligam a luga res, a nascimento, a ambientes, a profissões. Essas raízes ajudaram a formar nossa vida espiritual, intelectual. Estudar História da Igreja é comemorar, é buscar a memória cristã de cada um. Por quê? Porque Deus entrou na história, atuou na história e está levando a história a um alvo.
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2 Império Romano na época do nascimento de Cristo O palco em que iniciou a história da Igreja é o oriente do mundo antigo. Toda a região desde as Colunas de Hércules, o atual Gibraltar, até os rios Tigre e Eufrates, da Britânia até o Reno, o Norte da África, tudo isso e mais a região do Danúbio estavam sob o domínio do Império Romano. A unidade desse Império apresentava-se de maneira visível na figura do Im perador, que reunia na sua pessoa os principais cargos da antiga república romana. Resquício dessa antiga forma republicana era o Senado, que, porém, praticamente não tinha poderes. Estes concentravam-se no Imperador. O poder do Imperador ba seava-se nas legiões. Veremos que, muitas vezes, as legiões nomeavam os imperadores. Administrativamente, o Império estava dividido em Províncias. Havia diversos tipos: a) as Províncias imperiais, dirigidas por um legatus Augusti pro praetore; b) as Províncias senatoriais, dirigidas por um proconsul; c) as Províncias especiais, diri gidas por um procurator. Estas últimas recebiam cuidados especiais por se tratar de regiões com características culturais próprias (por exemplo, a Judéia e o Egito). Ca da Província tinha uma espécie de assembléia provincial, denominada de concilium, que assessorava o governador e regulamentava as questões internas da região. A menor unidade administrativa era a cidade. A área rural, vizinha à cidade, era consi derada parte da própria cidade para fins administrativos. Observando as dimensões do Império Romano, é fácil constatar que o mes mo abrangia uma infinidade de povos, raças e culturas. Na época do nascimento de Cristo, deparamo-nos, porém, com uma situação em que se evidencia claramen te uma uniformização da cultura. Esta uniformização cultural foi propiciada pelo próprio sistema administrativo do Império, pelo exército e, principalmente, pela gran de comunicação que se estabeleceu entre as diversas partes do Império. Gostaria de apontar apenas para as fabulosas estradas romanas. Quem hoje viaja pela Itália po de fazê-lo por estradas construídas na época do nascimento de Cristo. Naquele tem po, o Imperador Augusto ainda propiciava paz e tranqüilidade ao Império. Esta paz e tranqüilidade, cantadas pelos poetas romanos, foram outro fator importante para a uniformização da cultura. Onde há paz, há comunicação. Além da uniformização da cultura, deparamo-nos ainda com uma forte miscigenação étnica, que também era propiciada pelas facilidades de locomoção, comércio, deslocamento de legiões, comércio de escravos. Principalmente as cidades mediterrâneas transformaram-se em centros culturais, onde encontramos representantes de todas as partes do mundo. Concluo este ponto, apontando para aquele movimento que é o grande respon sável pela uniformidade cultural do Império Romano. Penso no Helenismo. É a cul tura da era de Alexandre Magno (356-323 a.C), quando língua, costumes, utensílios, arte, literatura, filosofia e religião dos gregos se espalharam por todo o Oriente, ín:C
dia e regiões do Danúbio. As principais características deste movimento foram a pe netração e a misturadas tradições dos diversos povos e culturas, sob a liderança da cultura grega. No campo religioso, fala-se aí de sincretismo. Houve também influên cias do mundo do Oriente sobre a cultura dos gregos, como não poderia ter deixa do de ocorrer. Sob o regime dos romanos, este processo de interpenetração chegou ao seu auge. Através do movimento helenista, a religião judaica e, posteriormente, a fé cristã e o culto ao deus sol (Mithras) penetraram no mundo greco-romano. Naquela época, encontramos um mundo romano influenciado por um helenismo que é, agora, uma cultura urbana e burguesa. Sua maior preocupação é o mate rial. As classes superiores da sociedade preocupam-se com o aquém e com o mate rial. Isso se mostra no campo da religião e da moral. Para os romanos, religião não era uma convicção pessoal, mas dever de todo cidadão. Este dever civil era cumpri do através de sacrifícios no templo. Aqui não havia lugar para a "fé". Ainda falare mos disso ao tratar mais a fundo a situação religiosa do Império Romano. . Quando do movimento helenista, a língua grega passou a ser a língua da comu nicação; era o koinê diálektos. Com a língua, também a filosofia grega se espalha va por todo o mundo. Algumas regiões jamais puderam ser totalmente atingidas pelo helenismo. Aqui devem ser mencionadas a Judéia, a Síria e o Egito.
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Situação religiosa no Império Romano A situação religiosa por volta do nascimento de Cristo apresenta um quadro multicor. Em toda parte encontramos os mais diversos cultos. A interpenetração das culturas dentro do Império fizera com que muitas religiões locais se espalhassem por todo o Império. O centro para o qual todas as religiões tendiam era a cidade de Ro ma, capital do Império. O Império era tolerante em relação aos cultos; muitas vezes chegou, inclusive, a fomentar os cultos das regiões subjugadas. Só poucas regiões tiveram seus cultos proibidos. Entre os cultos proibidos destacam-se aqueles que exi giam sacrifícios humanos e os que permitiam orgias. Sob a influência do helenismo, as diversas religiões locais e/ou estatais haviam desaparecido paulatinamente. Em contraposição, passaram a se difundir os cultos de mistério. Tinham eles um caráter panteísta e místico-extático. Aqueles que, no entanto, vieram a ter maior penetração foram os cultos de mistério do Oriente. No Oriente também surgiu o culto ao Imperador. Não será possível estudar, pormenorizadamente, todas as religiões do Império Romano na época do nascimento de Cristo. Citaremos apenas alguns exemplos. Já na época imediatamente posterior a Alexandre Magno (356-323 a.C), deparamo-nos com uma invasão de cultos egípcios e orientais na Grécia. Grande difusão teve na época também a crença nas estrelas, com todos os mistérios da astrologia. Como não poderia deixar de ser, para fugir às influências dos astros desenvolveuse todo um sistema de magia. Tanto a crença nas estrelas quanto a magia tinham sua origem no Oriente. Com os sucessores dos gregos, os romanos, o ingresso dos cultos orientais na região do Mediterrâneo alcançou o seu ponto culminante, principalmente no século III. Da Frígia vieram os cultos de Cibele, a Grande Mãe, e de Attis; posteriormen te deparamo-nos com os cultos de Isis e de Osiris, provenientes do Egito. Os Baalins da Síria, com os quais nos deparamos constantemente no Antigo Testamento, foram trazidos por soldados, comerciantes e escravos. No fim do século I, após o nascimento de Cristo, o culto de Mithras penetrou no Império e alcançou o seu au ge no século III, vindo a ser o grande concorrente da fé cristã. O dia do nascimen to do deus Mithras é 25 de dezembro, data para a qual, mais tarde, o Imperador Constantino transferiu a festa do nascimento de Jesus. Na língua alemã, o domin go leva até hoje o nome do deus Sol, como podemos verificar na palavra Sonntag. O mesmo acontece na língua inglesa, onde encontramos a palavra Sunday. O culto de Mithras era o culto dos soldados romanos. Teve suas origens na Ásia Menor. Partindo do dualismo persa, sofreu influências de elementos de outras religiões per sas e de religiões caldéias. Era o culto que atraía mais os homens, enquanto as mu lheres encontravam sua identidade nos cultos de Cibele e de Isis. 12
Na época do nascimento de Cristo, encontramos também, como movimento paralelo aos demais cultos já mencionados, o desenvolvimento e a propagação do Culto ao Imperador. Esse tem duas formas: há o culto ao imperador morto e tam bém o culto ao imperador reinante. Essas duas formas têm, novamente, suas raízes no Oriente, mais precisamente na veneração do governante. Foi este o caso no Egi to, na Babilônia e na Pérsia. O livro do profeta Daniel apresenta, claramente, o pro testo do povo judeu contra esse tipo de culto. No Império Romano, oficialmente só se admitia o culto ao imperador morto, mas houve imperadores que também fa voreceram a religiosidade popular que se expressava em adoração ao imperador rei nante. É o caso de Calígula e Domiciano. Quando os romanos se tornaram senhores do mundo, o sincretismo passou a ter uma importância sempre crescente. Era a mistura dos cultos, resultante do en contro das mais diversas regiões do Império. Dessa mistura dos cultos surgiu uma relativa unidade das religiões pagas, com as quais a fé cristã teve que se confrontar. Eram elas, em sua maioria, religiões de salvação, que anunciavam a imortalidade, propiciada através de algum soter (salvador). O título soter também podia ser secularizado e aplicado a governantes. Tais cultos também tinham ceias sacrais e ritos se melhantes ao batismo cristão, através dos quais prometiam o renascimento, vida no va, perdão dos pecados e imortalidade. Fator importante para alcançar a salvação era, nesses cultos, a ascese, a mortificação, que ia desde a negativa de consumir de terminados alimentos até a castração ou a promessa de eterna virgindade. Apesar da pluralidade de cultos, o sincretismo preparou o caminho para uma crença monoteísta dentro das religiões não-cristãs. O mesmo aconteceu por parte da especulação filosófica que colocou, no lugar de divindades pessoais, poderes im pessoais. Entre as pessoas mais cultas do Império, o movimento helenista com seu sin cretismo religioso levara a uma espécie de ateísmo. Para elas, a filosofia veio a ocu par o lugar da religião. Dificilmente, porém, as pessoas cultas falavam abertamente de sua incredulidade, evitando romper com a crença de seu povo e com os deuses nacionais. Assim, nos primórdios do cristianismo, nós nos deparamos entre as classes cul tas romanas com o fato de que religião para elas não era mais uma convicção pesso al, mas um dever de todo cidadão. Este dever civil era cumprido através de sacrifí cios no templo. Aqui não havia lugar para a "fé". Assim, podemos facilmente che gar à conclusão de que, enquanto os deuses ainda eram vistos como algo pertencen te à ordem política, enquanto isso ainda era um valor, então o sacrifício cultuai aos deuses ainda tinha seu valor. Mas quando o ceticismo e o agnosticismo começaram a ver nesse culto meras futilidades, pois os deuses não se preocupavam com este mundo, os templos foram se esvaziando mais e mais. Augusto tentou reavivar os cultos, reconstruindo templos, mas não logrou êxito. O caminho estava preparado para que novas formas de religião viessem a substituir as antigas.
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4 Palestina e judaísmo palestino 4.1. A Síria era uma das províncias mais exploradas do Império. Fazia parte
dessa Província a Judéia. Seus habitantes eram judeus, um resto do antigo povo de Israel. Em 722 a.C, o rei assírio Sargão havia deportado as dèz tribos do reinodo norte; em 586 a.C, a Judéia e Jerusalém foram conquistadas, e boa parte da popu lação foi deportada para a Babilônia. Essa deportação é a origem da diáspora, da dispersão judaica. Em 538 a.C, parte dos prisioneiros pôde voltar a Jerusalém e re construir o templo com o auxílio dos persas. Depois disso, veio a terceira tormenta, quando Alexandre (356-323 a.C.) se apossou da Pérsia e dos países vizinhos. A Ju déia passou a ser dominada pelos gregos. Houve a revolta dos nacionalistas macabeus (169-164 a.C), mas o país passou a sentir, cada vez mais, as influências do pen samento helenista. A política nada feliz dos hasmoneus, os sucessores dos macabeus, levou a Judéia a cair na dependência dos romanos, sob cuja proteção a dinastia dos herodianos ascendeu ao poder. No ano de 37a.C, Herodes, um político competen te, mas inescrupuloso, subiu ao poder. Ele governou até 4 a.C. Desde cedo, Hero des caiu nas graças dos romanos. Obteve o reconhecimento oficial da religião judai ca, que passou a ser religio licita, i.e.,religião oficialmente tolerada pelos romanos. Tal titulação, além disso, isentava os seus adeptos de prestarem culto às divindades oficiais do Império. Na época de Herodes, Jerusalém há muito deixara de ser o Sião de Javé. A vida religiosa estava dividida em partidos. As origens desses partidos remontam à época do exílio. Ali surgira o grupo dos sadoquidas, que veio a dar origem ao parti do dos saduceus. Tratava-se de um grupo liderado por uma família de sacerdotes. Em contraposição a este grupo surgiu outro que desejava que a vida religiosa fosse concretizada fora da vida cultuai; estes esperavam pelo dia em que Deus provocaria a grande mudança na história do povo judeu. Esse grupo teve no apocalipsismo sua fonte ideológica, vindo a gerar mais tarde os zelotes. O partido mais importante, sem dúvida, era o dos fariseus, um movimento reformista, que desejava um cumpri mento ao pé da letra da lei mosaica: a Tora. Almejavam um "judaísmo decidido". Tinham grande influência no seio da população. Os saduceus eram um partido elitis ta, sendo seus representantes membros das camadas superiores da população. Um partido extremamente piedoso era o dos essênios, que se tornaram conhecidos, espe cialmente após a Segunda Guerra Mundial, com a descoberta do convento de Qumran, junto ao Mar Morto. Eles viviam uma vida monástica, não admitindo o conta to com mulheres. No entanto, um grupo dissidente admitia o matrimônio. Os zelo tes dedicavam-se à libertação política da Palestina. Alguns discípulos de Jesus perten ceram a esse grupo: Simão, o zelote (Lc 6.15), Judas Iscariotes (seu nome também pode ser lido sikarioth, aquele que usa o punhal curvo), Tiago e João; talvez, inclu sive, Pedro. Ao lado desses grupos existiam ainda aqueles que eram chamados de am-ha-arez (zé povo) e os que eu gostaria de chamar de os silenciosos, seguindo 14
uma sugestão de Hans Lietzmann. Estes últimos viviam sua fé sem as influências do apocalipsismo e sem toda a sabedoria dos escribas e dos fariseus. Do seu meio nasceria aquele que iria mudar o curso da história: Jesus de Nazaré. Herodes morreu no ano 4 a.C. Depois de sua morte, seu reino foi dividido en tre seus três filhos. Pouco antes dessa mudança de governo, Jesus nasceu. 4.2. Vimos acima que as sucessivas deportações deram origem à diáspora ju daica. Nos dias do Imperador Augusto, o escritor Strabo relatou que o povo judeu podia ser encontrado em todas as cidades do Império e que dificilmente havia algum lugar no mundo onde os judeus ainda não tivessem chegado (Josefo, Antigüidades 14,115). As palavras de Strabo conferem. No Egito e na Síria, em cada qual habita vam um milhão de judeus; na Palestina encontramos 500.000 judeus e, no restante do Império Romano, certamente havia um e meio milhão de judeus. No Império Romano, de uma população de 55 milhões de habitantes 7% eram judeus. Como explicar esse crescimento extraordinário do povo judeu? O fato permanece um misté rio, interpretado pelo próprio povo judeu como uma conseqüência da promessa fei ta por Javé ao patriarca Abraão. Esse considerável número de judeus torna-se mais apreciável ainda, se levar mos em conta que mantinham sua unidade cultural e religiosa. Jerusalém não era para eles apenas um ideal religioso, mas um centro político-religioso. Anualmente, milhares de judeus dirigiam-se a Jerusalém para a festa da páscoa, para lá realizar seu sacrifício. Anualmente, também, todo judeu maior de vinte anos pagava seu im posto ao templo de Jerusalém. Nas cidades onde residiam no Império Romano, os judeus podiam manter li vremente suas tradições cúlticas. Participavam do comércio, da agricultura, gozavam da cidadania romana e estavam inclusive dispensados do culto ao imperador, da pres tação do serviço militar no sábado etc. Unido religiosa e culturalmente, esse judaísmo foi um movimento missionário. Não ficava com sua religião para si, mas queria torná-la conhecida em seu ambien te. Sentia-se responsável em relação às "gentes". Assim, podemos ler em Mt 23.15: "Rodeais o mar e a terra para fazer um prosélito". Donde vem esse ímpeto missio nário? Desde os dias de Deuteroisaías, o povo judeu não mais esquecera a sua tare fa de ser luz para os gentios e de anunciar-lhes a salvação. A conversão dos gentios traria a revelação final do Senhor consigo (cf. Is 49.1-6; 60.1-6). Movida por essa certeza, surgiu toda uma literatura que se voltava contra o politeísmo e a adoração dos ídolos pagãos. O dogma central da pregação judaica era o monoteísmo, o cul to sem imagem de Deus, a Lei (Tora) como norma ética para a vivência da pessoa. Diante dos povos, o judaísmo sentia-se chamado a ser uma religião universal. Na cidade de Alexandria, no Egito, o Antigo Testamento foi traduzido para o grego. Inicialmente, esta tradução destinava-se apenas à comunidade judaica. Pos teriormente, escritores judeus procuraram interpretar o texto veterotestamentário pa ra o ambiente helenista, surgindo daí as mais variadas formas de literatura judaica, muitas vezes com flagrantes aberrações. Um instrumento da propaganda judaica foi a Epístola de Aristeas, na qual se descreve a miraculosa tradução da Septuaginta (LXX), a versão dos setenta. A missão judaica teve êxito. Houve muitos prosélitos. Em torno das sinagogas criaram-se os círculos dos "tementes a Deus", que acompanhavam os costumes ju-
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deus (observância do sábado, obediência à Tora etc); alguns destes eram circuncidados e assumiam a lei com todas as suas conseqüências. Eram eles os "prosélitos", que passavam a ser participantes da esperança do povo judeu. Não eram "filhos de Abraão", mas podiam invocar o Deus de Israel. 4.3. Na época do nascimento de Cristo, deparamo-nos, no Império Romano, com acentuadas tendências de anti-semitismo. O fenômeno anti-semita, o anti-semitis mo, não é algo peculiar dos nossos dias; ele acompanha toda a história do povo ju deu. Falando de anti-semitismo, é importante que se pergunte pelas causas de tal fe nômeno. A primeira de tais causas seria a peculiaridade dos judeus. Tinham uma religião diferente das demais, não se misturavam, procurando preservar sua etnia. O fato de os judeus não terem nenhuma imagem de seu Deus levou à ridicularização da religiosidade judaica. Surgiu, por exemplo, a lenda de que em Jerusalém existia, no templo, uma estátua com a cabeça dourada de um burro. Todo judeu era, conse qüentemente, adorador de burro! As peculiaridades dos judeus levaram ainda ao surgimento de outras lendas. Contava-se, por exemplo, que todos os anos os judeus prendiam um grego, matavam-no e comiam seu coração. A lenda deve ter sua ori gem na tradição do cordeiro pascal. Esta lenda pode ter dado origem à outra que encontramos nos tempos de existência da comunidade cristã, quando se dizia que os cristãos sacrificavam crianças, comiam sua carne e bebiam seu sangue. Por trás dessa lenda, certamente, está a notícia de que, na ceia eucarística, os cristãos confes savam estar comendo e bebendo o corpo e o sangue de Jesus Cristo.
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5 Plenitude do tempo O apóstolo Paulo escreve em Gaiatas 4.4: "Vindo, porém, a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho...". Como historiador não posso responder à pergun ta: Como foi possível Paulo fazer essa afirmação? Como pode-se dizer que com a vinda de Jesus havia chegado "a plenitude do tempo"? Essa afirmação é fruto da fé e, por isso, é singular. Nós não a encontramos em outros escritos, fora das Sagra das Escrituras dos cristãos, nessa época. O que encontramos em escritos de autores não-cristãos não é reprodução de pesquisa, mas de palavras de cristãos. Tais autores são Tácito, Suetônio e Plínio. Aludindo ao incêndio que destruiu a cidade de Roma, em 64 d.C, Tácito es creveu em seus Anais (XV.44): "Mas os empenhos humanos, as liberalidades do imperador e os sacrifícios aos deuses não conseguiram apagar o escândalo e silenciar os rumores de ter ordenado o in cêndio de Roma.Para livrar-se de suspeitas, Nero culpou e castigou com supremos refi namentos da crueldade uma casta de homens detestados por suas abominações e vulgar mente chamados cristãos. Cristo, do qual seu nome deriva, foi executado por disposi ção de Pôncio Pilatos durante o reinado de Tibério". Suetônio, em sua Vida de Cláudio (XXV.4), escrevendo a respeito da expulsão dos judeus de Roma, por volta de 52 d.C, disse:
"Como os judeus, à instigação de Cresto (Cristo ?), não deixassem de provocar distúrbios, expulsou-os de Roma". Plínio, o Jovem, escrevendo ao imperador Trajano, por volta de 112 d.C, ci tou por diversas vezes pessoas renitentes que se negavam a fazer retratação e que se guiam Cristo. Sobre Cristo, Plínio nada soube dizer. Os dados trazidos por esses autores são bem menos do que o Novo Testamen to nos oferece. Quem quiser se informar a respeito de Jesus depende exclusivamen te da literatura neotestamentária. O que os evangelhos nos relatam já é, porém, fru to de uma interpretação. Nenhum dos autores (Mateus, Marcos, Lucas e João) quis escrever história. Isso não significa que o que eles escreveram seja sem importância. As narrativas fazem parte de uma outra dimensão: são pregação, confissão de fé, expressão de fé. Nisso reside sua peculiaridade. Por isso, a ciência neotestamentária terá sempre que ter o cuidado para que os textos bíblicos não emudeçam ante a pes quisa, perdendo assim seu caráter de testemunhos. Não conseguimos mais deduzir uma imagem clara e precisa de um Jesus "histórico", mas sabemos da atividade e das palavras de um Jesus "terreno", das quais surgiram cristãos e Igreja. Valho-me, aqui, da terminologia de Leonhard Goppelt, mesmo sabendo quão cara tem sido nos últimos anos a expressão "histórico" para a teologia latino-americana. O centro da doutrina de Jesus foi a mensagem do Reino de Deus, o qual irrom-
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peu com a vinda de Jesus e que será consumado quando de sua volta. Esta mensa gem não quer ser uma sabedoria abstrata, mas um acontecimento que só pode ser compreendido e aprendido em diálogo com o próprio Jesus. Fé em Jesus é um pre sente para aquele que é libertado pela Verdade. Desta fé brotou uma esperança: a de um novo céu e de uma nova terra. Essa afirmação foi feita a partir da certeza de que aquele Jesus que fora crucificado haveria de voltar, depois de haver ressusci tado e subido ao céu, para erguer seu Reino em plenitude. A comunidade de Jerusa lém esperava que Jesus viesse manifestar-se novamente em Jerusalém. A pregação de Jesus se dirigia, basicamente, aos humildes e oprimidos. Conde nava a riqueza e a nobreza sacerdotal e os teólogos de seu tempo como guias de ce gos. A esperança da comunidade era, pois, que o início dessa nova era iria trazer uma mudança social. Esperava-se também que esta mudança aconteceria durante a vida daquela primeira geração de cristãos. A mensagem de Jesus era tida como váli da para todos os seres humanos: romanos e bárbaros, judeus e gregos, libertos e es cravos, homens e mulheres. E, mais, punha fim ao domínio do homem sobre a mulher.
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6 Comunidade de Jerusalém Jerusalém é, por tudo o que aconteceu nesta cidade, a mãe do cristianismo pri mitivo. Nela se desenvolveu uma forma de fé cristã diferente da que nós conhece mos. Nós aprendemos a conhecer uma forma de cristianismo que devemos denomi nar de cristianismo greco-latino, sem nos esquecer das profundas influências germâ nicas pelas quais passou. O cristianismo de influências judaicas teve suas principais expressões até os séculos III e IV. Depois disso, foi encoberto pelo islão. Só 1600 anos mais tarde, ele voltou a ser conhecido para o ocidente cristão. Em nossos dias, muitos estudos estão sendo feitos a seu respeito. Sua expressão contemporânea mais forte encontramos na Síria. Foi em Jerusalém que se deu a aparição de Jesus ante os quinhentos (1 Co 15). Esta aparição teve sua fixação literária na história de pentecostes. Os seguidores de Jesus provinham dos círculos daqueles piedosos que pertenciam aos "silenciosos"; eles sabiam acerca das palavras do Senhor a respeito dos "pobres" e se autodenomi navam de "pobres" e de "santos". As esperanças desta comunidade estão resumi das no Apocalipse de João, um genuíno testemunho da fé judaico-cristã. Aqui é im portante que se diga que o cristianismo judaico-cristão se expressava em categorias do apocalipsismo; por isso temos dificuldades em entender o Apocalipse de João, pois em nossa tradição de piedade recebemos um cristianismo influenciado por cate gorias platônicas, gregas. É importante observarmos algumas características da comunidade de Jerusalém: 6.1. Na comunidade de Jerusalém, havia muito movimento. Qual a causa des se movimento? Por trás disso está aquilo que designamos de envio. A palavra envio tem como equivalente latino a palavra missio, donde se originou nosso conceito "missão". "Missão" é, porém, uma palavra altamente problemática para a fé cris tã, pois é proveniente da área militar. Missões eram atividades de conquista, realiza das por destacamentos militares. Para a atividade, para o movimento da comunida de de Jerusalém, é importante continuarmos a usar a palavra "envio". Tal envio ori ginou-se nas aparições pascais e foi confirmado pela ação do Espírito (Cf. 1 Co 15 e o relato de Pentecostes em Lucas); foi este o testemunho da primeira comunidade. Os homens e(!) mulheres incumbidos e comissionados nesse envio são chamados de apóstolos, ou são pessoas como Estêvão e Felipe (At 6.8; 8), os evangelistas (At 21.8), mas também muitas pessoas cujos nomes não conhecemos (At 8.4; ll,19ss). O que ensinavam esses enviados? No centro de seu envio estava o testemunho pascal, que podemos encontrar resumido nas pregações de Atos dos Apóstolos:
a) "Vós matastes a Jesus; Deus, porém, o ressuscitou" (At2.22ss; 3.13ss; 4.11; 5.30s) b) "Isso está de acordo com a Escritura" (2.25-31; 3.18; 4.11) c) "Disso somos testemunhas" (2.32-36; 3.15b,16; 5.32) d) "Arrependei-vos e voltai ao vosso Deus" (2.38s; 3.19; 4.12; 5.31b). 19
O objetivo, evidente, dessa pregação é o batismol O Novo Testamento nos mostra que desde os primórdios da comunidade cristã há batismo (At 2.38,41; 8.12s,36,38; 9.18). Quando Paulo se converteu, já eram realizados batismos (1 Co 12.13). Em Roma, a comunidade para a qual Paulo escreveu, todos eram batizados (Rm 6.3). At 2.38 informa-nos a respeito do sentido do batismo: "Arrependei-vos e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para a remissão dos peca dos; recebereis assim o dom do Espírito Santo". Essa passagem diz que 1) o batis mo é batismo de arrependimento para a remissão dos pecados (é um banho que pu rifica e propicia arrependimento e perdão). 2) Quando o batismo era realizado, invo cava-se o nome de Jesus. Esta invocação era feita sobre o batizando por aquele que batizava. O batizando concordava com a invocação por meio de uma confissão batismal (Rm 10.9; At 8.37). O batismo feito "em nome de Jesus" tinha um significa do especial. A fórmula indica que se pede que o Jesus ressurreto provoque no batiza do aquilo que o batismo prometia: perdão e arrependimento. Assim, por meio de seu batismo, o batizado passava a ter comunhão com Cristo. 3) O batizado recebe a promessa do Espírito Santo. Ele é entregue à ação do Espírito Santo. Aqui há uma novidade, pois o próprio Jesus não batizava (Cf. Jo 3.22 e Jo 4.2). Ele se dedicava às pessoas, chamando-as ao discipulado, oferecendo-lhes, assim, arrependimento e perdão. Após a páscoa, Jesus não estava mais aí para chamar ao discipulado, com as palavras: "Vem e segue-me!". Ele também não pôde mais dedi car-se pessoalmente às pessoas. Por isso, esse chamado ao discipulado é substituído pelo batismo. A base do batismo é, pois, o chamado de Jesus ao discipulado. Assim como Jesus chamara ao discipulado sem longo preparo catequético, o chamado ao discipulado da comunidade, em nome de Jesus, se dá sem longo preparo catequéti co. A comunidade batiza rapidamente. O batismo relaciona o batizado com o ressurreto e com os demais batizados e os discípulos que haviam recebido o Espírito Santo, em pentecostes, sem o batismo. Através do batismo, o batizando é distinguido do restante de Israel. Ele passa a fa zer, com os demais batizados, parte de um grupo próprio: a Igreja. 6.2. Atos 4.42 nos fala a respeito desse grupo: "Perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações". A formulação fala da estrutura da comunidade e de seu culto. Para os judeus, os primeiros cristãos não passavam de mais um grupo, uma hairesis (At 24.5,14; 28.22), semelhante ao dos fariseus (At 15.5; 26.5). O judaísmo tolerava muitos grupos, muitas "heresias". A única condição que lhes impunha era que aceitassem, incondicionalmente, a Lei, a Tora. E esse é o caso dos discípulos de Jesus: cumpriam a Lei e obedeciam às pres crições levíticas de pureza. Nisso eles eram bem mais ortodoxos que Jesus! At 10.14 e Gl 2.12 nos confirmam essa realidade. At 2.46; 3.1 nos informa ainda que os dis cípulos de Jesus continuavam a participar dos serviços religiosos no templo e que freqüentavam sinagogas. No entanto, o grupo de cristãos em Jerusalém deu-se um nome próprio: "os santos" (Rm 15.25s,31; 1 Co 16.1; 2 Co 8.4; 9.1,12; At 9.13,32,41; 26.10). São a ekklesia de Jesus (Mt 16.18). Com o termo ekklesia (tradução de kahal na Septuaginta) a comunidade declara que é o Israel do final dos tempos. É o Israel que aceitou o Jesus rejeitado na cruz. 6.3. Mesmo freqüentando o templo e a sinagoga, surgiu no seio desse grupo 2C
um novo culto. At 2.46: "Diariamente perseveravam unânimes no templo, partiam o pão de casa em casa, tomando as refeições com alegria e singeleza de coração". Esta passagem nos mostra que iam ao templo (At 3.1), mas que, ao lado disso, ti nham refeições paralelas ao culto do templo. Essas refeições tinham, portanto, cará ter de culto! O nome dado a essas refeições é "partir do pão". Nelas há comunhão de mesa. Partia-se o pão de casa em casa. Sabiam que o Senhor estava presente nes sa comunhão de mesa e, ao mesmo tempo, pediam pela sua vinda na oração Marana tha (Vem, Senhor nosso!). Aqui, o presente e o futuro se tornam realidade. Naquela comunidade também o Pai-Nosso passou a ter importância. Ele é a expressão da oração comunitária. Era orado três vezes ao dia, conforme podemos ler no mais antigo catecismo do qual temos notícia, o Didaquê: "Também não re zeis como os hipócritas, mas como o Senhor mandou no seu Evangelho: Nosso Pai no céu (...). Assim rezai três vezes por dia" (Didaquê 8). Do ambiente judeu a co munidade adotou a prática do jejum. Os motivos dessa prática são apresentados em Mc 2.18-20: o noivo não está mais aí, agora é chegada a hora do preparo para a época final. Isso se faz através do jejum. Às segundas-feiras e quintas-feiras, se guindo o costume judeu, aqueles cristãos jejuavam. Naquela comunidade também havia comunhão de bens. Ela não representava um ideal a ser seguido, mas surgiu da situação social em que os membros da comu nidade se encontravam. Os discípulos, em sua maioria pescadores da Galiléia, não podiam viver de sua profissão em Jerusalém, onde não havia lagos! (Cf. At 2.44s; 4.32,34s). 6.4. Líder daquela comunidade era Tiago, o irmão de Jesus. A seu lado nós encontramos presbíteros, a respeito dos quais pouco se sabe. Essa instituição era có pia do presbitério existente em comunidades judaicas. Terão sido 24 (Ap 4.4)? Ao lado desses aparecem "os doze", destacando-se entre eles "as colunas" (Pedro, Tia go e João). 6.5. Em breve também surgiriam diferenças em relação à comunidade judaica. Inicialmente foi a celebração do domingo como o dia mais peculiar da nova comu nidade. Era celebrado como "o dia do Senhor", no qual as pessoas se reuniam em suas casas para celebrar a ceia. Encontramos referências ao domingo em Paulo (1 Co 16.2; At 20.7), no Apocalipse (1.10) e no Didaquê (14). O domingo é o dia no qual é datada a existência da comunidade: o Senhor ressuscitou! Espera-se que ele volte em um domingo e, por isso, se ora, na celebração da ceia, Marana tha. Outra alteração ocorrida foi a transferência do dia do jejum, que passou a ser celebrado nas quartas-feiras (dia da prisão do Senhor) e sextas-feiras (dia da crucificação do Senhor). Lemos no Didaquê: "Vossos jejuns não sejam paralelos aos dos hipócritas; com efeito, eles jejuam no segundo e no quinto dia da semana; vós, po rém, jejuai na quarta-feira e na sexta (dia de preparação)" (Didaquê 8). Bastante cedo o grupo de Jerusalém viu-se acrescido de cristãos provenientes da dispersão, da diáspora; foram denominados de helenistas (Cf. At 6 e 7). Estes dedicaram-se à missão. Daí surgiu a missão entre os gentios. Antioquia, na Síria, é o berço dessa missão (At 11.19-20).
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7 De Jerusalém a Roma 7.1. O homem que levou a mensagem de Jesus ao mundo helenista-romano foi Paulo. Paulo era um missionário prático e, ao mesmo tempo, um teólogo de pri meira linha. Talvez ele tenha sido o único entre os apóstolos a ter entendido a fun do a mensagem central de Jesus, ensinando-a de maneira conseqüente. Paulo era judeu da dispersão, natural de Tarso, na Cilícia. Pertencia a uma fa mília de posses, partidária dos fariseus e detentora do direito romano. O ano de seu nascimento é desconhecido, mas deve estar no início da era cristã. Quis ser rabino e, por isso, foi estudar a Tora junto a Gamaliel, em Jerusalém. Além disso, apren deu a profissão de fazedor de tendas, pois a de mestre da Tora não garantia a uma pessoa os meios necessários para sua subsistência. Sua vida era determinada pela fi delidade à Lei. Na perseguição aos "helenistas", surgida após a morte de Estêvão, Paulo foi encarregado de advertir as comunidades judaicas dos perigos provocados pela nova seita. No caminho para Damasco, ocorreu sua conversão. Ali ele reconhe ceu que Cristo é o fim da Lei. Sua descoberta trouxe-lhe conflitos com os líderes do judaísmo, mas também com os líderes da comunidade judaico-cristã de Jerusalém. Todos os sofrimentos provenientes dessas discussões, no entanto, não o fizeram desa nimar. Ele pôde escrever à comunidade cristã de Roma: "Em todas estas coisas, po rém, somos mais que vencedores, por meio daquele que nos amou. Porque eu estou bem certo de que nem morte, nem vida, nem anjos, nem principados, nem coisas do presente, nem do porvir, nem poderes, nem altura, nem profundidade, nem qual quer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus que está em Cristo Jesus nosso Senhor" (Rm 8.37s). Seu interesse missionário era sério e por causa disso te ve que sofrer. Aos Coríntios escreveu: "Porque nos tornamos espetáculo do mun do ... somos loucos por causa de Cristo ... Até a presente hora sofremos fome, e sede, e nudez; e somos esbofeteados, e não temos morada certa, e nos afadigamos, trabalhando com as nossas próprias mãos ... somos considerados lixo do mundo" (1 Co 4.9ss). A vida do primeiro e maior teólogo cristão terminou no martírio. Na Via Óstia, onde hoje se encontra a Basílica de San Paolo fuora di Muri, os cristãos de Roma mostravam sua sepultura.
7.2. O significado de Paulo para o desenvolvimento da fé cristã no mundo he lenista-romano reside em duas descobertas teológicas: Paulo advoga a eliminação da religião da Lei e apresenta uma nova compreensão da escatologia. 7.2.1. Segundo a concepção da comunidade de Jerusalém, os cristãos gentios tinham que ser incluídos na história salvífica de Israel, isto é, eles tinham que ser circuncidados e seguir os ritos de purificação dos judeus. Não se podia imaginar dois tipos de comunidade cristã. Todas as comunidades eram vistas como filiais da cen tral Jerusalém. Os "helenistas" protestaram contra isso. Os maiores protestos, porém, vieram de Antioquia, que era uma comunidade formada por judeus helenistas e pa:/2
gãos que se haviam convertido. A oposição foi tão grande, que a direção da comu nidade de Jerusalém teve que enviar um levita, natural de Chipre, chamado Barnabé, para acalmar os ânimos. Este levou Paulo consigo. O pessoal de Antioquia exi gia que se eliminasse uma série de prescrições de admissão para os que não eram ju deus. Por isso, foi convocado para Jerusalém aquilo que se convencionou chamar de Concilio dos Apóstolos (At 15). Os líderes da comunidade de Jerusalém quiseram assegurar o direito de decisão. Nisso foram contestados por Paulo (Gl 2.1ss). Ele não podia admitir que os apóstolos de Jerusalém tivessem maiores direitos. A discus são deve ter sido violenta. Tiago e Pedro acabaram concordando com Paulo. Hou ve acordo em eliminar a circuncisão para os gentios. De pé permaneceram apenas algumas regras e o envio de uma coleta para Jerusalém. A paz, porém, durou pou co tempo. Quando Pedro fez uma viagem de inspeção através de Antioquia, depa rou com alguns mensageiros judeus que se negavam a celebrar a Santa Ceia com os de Antioquia. Pedro apoiou-os. O que havia acontecido? Num comunicado final do Concilio de Jerusalém, formulado após a partida de Paulo (At 15.23ss) e enviado como carta às comunidades da Síria e da Cilícia, escrevera-se, no final, que os cristãos liberados da circuncisão deveriam evitar o rela cionamento sexual fora do matrimônio e o consumo de carne sacrificada. É impor tante recordar que, no mundo antigo, toda a carne consumida e vendida nos merca dos era proveniente de animais mortos de acordo com rituais cúlticos. Assim, toda a carne vendida era carne de animal anteriormente dedicado à determinada divinda de. Os cristãos de Jerusalém, criados na tradição judaica, exigiam que os de Antio quia comessem carne kosher, isto é, carne de animal morto de acordo com as pres crições levíticas, ou então não teriam mais comunhão com eles. Mais tarde, Paulo se manifestaria a respeito da questão do consumo de carne sacrificada aos ídolos (1 Co 8). Os deuses aos quais a carne era sacrificada não existiam na sua opinião. E, por isso, ele podia consumir essa carne. Mas a liberdade contida nesse reconhecimen to teve seus limites no amor aos fracos que ainda estavam presos a superstições. Fren te aos judaístas, que queriam reintroduzir a Lei, Paulo não conheceu compromissos. Não era cabeçudice. Para ele, a fé na graça libertadora e justificadora é universal. Na cruz de Cristo, toda religião é desmascarada. O conflito com Pedro e seus adeptos nunca cessou. Também Barnabé abando nou Paulo. A tensão persiste até os dias atuais. Essa discussão foi para Paulo o ponto de partida para uma reflexão a respei to da mensagem de Jesus. A discussão fez dele o teólogo da fé cristã. Sem negar suas origens religiosas, procurou no Antigo Testamento tudo o que poderia apontar para Cristo. 7.2.2. Importante foi, também, a nova compreensão da escatologia. Paulo sem pre esperou que a) Cristo voltasse e que b) esta volta ocorresse em breve. Mas, pa ra ele, a volta de Cristo (a parusia) era uma comprovação da situação na qual o cren te já se encontra, pois com a ressurreição de Jesus o novo éon (era, tempo) já che gou. Se de acordo com as nossas percepções ainda vivemos no velho éon, neste mun do, "na carne", como diz Paulo, na fé, "no espírito", vivemos no novo mundo. Por isso, ele pode dizer: "Se alguém está em Cristo, aí há nova criação; o que é ve lho já passou, tudo se tornou novo (novidade)" (2 Co 5.17). Dessa maneira, Paulo passou a ser aquele que anunciou aos gregos que a salvação já ocorreu e que a salva ção é presente. Com esta doutrina ele prestou um serviço inestimável aos cristãos 23
de origem gentílica, que pouca coisa podiam fazer com as tradições e a história salvífica do judaísmo. Essa novidade na compreensão do Evangelho de Cristo, como aquele que cumpriu todas as promessas, preparou a expansão da fé cristã no mun do romano-helenista. A briga com a comunidade de Jerusalém só chegou ao fim quando sobreveio a catástrofe que terminou com o Estado judeu. Na Palestina, as discussões continua ram. Durante o governo do imperador Cláudio (41-54), os procuradores foram tira dos da Palestina. Depois da morte de Herodes Agripa (At 12.23), eles voltaram e foram brutais. O radicalismo se acentuou. No ano de 66, os sicários, um grupo de zelotes, iniciou suas atividades guerrilheiras. O Procurador foi obrigado a fugir, e a guarnição romana teve que capitular. Vespasiano avançou com 60 mil homens con tra Jerusalém. Em 10 de agosto de 70, Jerusalém caiu nas mãos de Tito, filho de Vespasiano. Antes da destruição da cidade, a comunidade cristã fugiu para Pella, na Transjordânia, onde terminou sua existência.
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8 Comunidades gentüico-cristãs, posteriores a Paulo 8.1. Fontes Há uma série de fontes que permitem uma visão bastante precisa das comuni dades gentüico-cristãs, posteriores a Paulo. Essas fontes podem ser classificadas em três grupos: a) os escritos neotestamentários, posteriores a Paulo; b) os pais (ou: pa dres) apostólicos; e c) os evangelhos e atos dos apóstolos apócrifos. O primeiro dos grupos é estudado na disciplina bíblica do Novo Testamento. Esta disciplina também se dedica ao estudo dos escritos apócrifos. Apresentamos, a seguir, alguns dados a respeito do segundo grupo, designado no século XVII, incor retamente, de pais (ou: padres) apostólicos. Os pais apostólicos são um grupo de oi to escritos, que são: a) Primeira carta de Clemente. Trata-se de uma carta da comunidade de Ro ma à comunidade de Corinto, na qual membros mais jovens se haviam rebelado con tra os presbíteros. Tema da carta é a exortação à submissão. Deve ter sido escrita por volta de 95/96 pelo presbítero romano Clemente. Na Igreja Antiga foi, muitas vezes, tida por canônica. b) Cartas de Inácio de Antioquia. Trata-se de um corpo de cartas, sete escritos dirigidos às comunidades de Éfeso, Magnésia, Trales, Roma, Filadélfia, Esmirna e a Policarpo. Ao que tudo indica foram escritas por Inácio, bispo de Antioquia, que foi aprisionado, morrendo como mártir em Roma. Os escritos datam de 110 a 117. Defendem o episcopado monárquico, sobre o qual ainda haveremos de falar. Apre sentam indicações importantes para o futuro desenvolvimento da Igreja, ao apresen tar a mais antiga designação da mesma como katholiké ekklesia (Esmirna 8.2) e ao usar uma "regra de fé", prenuncio dos credos que hão de se formar na discussão com os hereges (Trales 9, Esmirna 1). c) Carta de Policarpo. Na realidade, temos aqui duas cartas, fundidas em uma só. O escrito é dirigido à comunidade de Filipos e foi escrita por Policarpo de Esmir na, após a viagem de Inácio a Roma. Policarpo faleceu em 23 de fevereiro de 155. Esta data é a normalmente aceita. É, porém, possível que tenha falecido em 161 (cf. Eusébio de Cesaréia, H.E. IV. 15). d) Carta de Barnabé. Não se trata de carta e também não é da autoria de Barnabé. É um tratado escrito por um mestre gentílico-cristão, entre os anos de 130-135. É antijudaico, faz interpretações alegóricas do Antigo Testamento e descreve os dois caminhos para a salvação: o da luz e o das trevas. e) Fragmentos de Papias. Trata-se de poucos trechos do escrito Explicações de palavras do Senhor, formulado por Papias, de Hierápolis na Frígia, entre 120 e 160. Os principais fragmentos encontram-se em Eusébio de Cesaréia (H.E. 111,19). 25
f) Didaquê ou Doutrina dos doze apóstolos. Trata-se de uma constituição eclesiástica, redescoberta em 1883. Foi escrita entre 100 e 150, mas também é possí vel que já tenha sido escrita em 80, na Síria, na Palestina ou no Egito. Suas belas formulações nos evidenciam o quanto a fé cristã ainda se encontra próxima de suas raízes judaicas. Contém mandamentos éticos, descrevendo os dois caminhos para a salvação; prescrições para a vida de culto, no tocante a batismo, jejum, oração e eu caristia; prescrições para a vida em comunidade, falando de pregadores itinerantes, profetas, mestres, eleição de epíscopos e diáconos. g) Segunda carta de Clemente. Não se trata de uma carta. Seu autor também não é Clemente de Roma. Na realidade, trata-se de uma homilia, escrita por um presbítero, em Corinto ou Roma, entre 135 e 140. Interessante é o fato de apresentar ci tações de palavras de Jesus, que talvez tenham sido tomadas do Evangelho Egípcio. h) Pastor de Hermas. O escrito é um apocalipse, escrito em Roma por volta de 140. O autor é um leigo católico, denominado de Hermas, irmão do bispo Pio. Está dividido em cinco visões, 12 mandamentos e dez comparações. Contém prescri ções éticas para um reavivamento da comunidade.
8.2. Situação geral das comunidades e surgimento do episcopado monárquico O futuro da fé cristã estava garantido na forma do cristianismo gentio, que havia sido preparado por Paulo. Nos anos anteriores a 130-140, deparamo-nos, ain da, com uma grande pluralidade na vida de culto e na vida comunitária. Uma coi sa, porém, já se pode constatar como definitiva: o entusiasmo do cristianismo primi tivo estava desaparecendo. A evolução indicava que a fé cristã assumiria formas mais concretas e contornos mais palpáveis. Estava-se a caminho da institucionalização. Os primórdios desse desenvolvimento não nos são plenamente conhecidos. Co nhecemos apenas os seus resultados. Desconhecemos o desenvolvimento da constitui ção da comunidade, o surgimento do símbolo ou confissão batismal, o surgimento dos evangelhos, a coleção das cartas paulinas. Quase nada sabemos a respeito dos grandes líderes daquela época. Quem eram Timóteo e Lucas, os discípulos de Pau lo? Quem eram os epíscopos da comunidade de Roma? Quem era Clemente? Quem eram Papias de Hierápolis, Policarpo de Esmirna, Inácio de Antioquia? Quase na da sabemos sobre eles. Fato é que, na época em que estes nomes estiveram em evidência, surgiram formas mais rígidas na organização das comunidades. Na época em que o "Espíri to" atuara na comunidade, não houve a possibilidade de "funcionários" desempe nharem suas funções. Tudo fluía. A liderança espiritual estivera nas mãos de caris máticos: apóstolos, profetas e mestres. Os epíscopos e diáconos tinham apenas a fun ção de auxiliares dos carismáticos. Quanto mais desaparecia a ação do Pneuma/Espírito, tanto mais epíscopos e diáconos passaram a ter evidência.É dentro dessa li nha que surgiu o episcopado monárquico, o episcopado de apenas uma pessoa. Até o ano de 140, há uma imagem bastante heterogênea no que tange à lide rança na comunidade cristã. Também houve acentuadas diferenças entre uma comu nidade e outra. Parece que já na era apostólica aqueles que presidiam a comunida de, os proistámenoi, se dividiam em epískopoi (supervisores) e diákonoi (executores). ?;í
Em Roma, os epískopoi eram eleitos entre os presbyteroí (anciãos). Estes presbíteros eram pessoas honradas dentro da comunidade e que se assentavam em semicírculo, em lugares de honra, de frente para a comunidade, quando esta estava reunida pa ra o culto. Mais tarde, um dos epískopoi assumiu as principais funções deste ministé rio. A evolução final levou a que, finalmente, o título epískopos (bispo) fosse reser vado apenas a ele. O desenvolvimento acima descrito está, ao que tudo indica, relacionado com o culto. Outro fator que pode ter auxiliado no surgimento do episcopado monárqui co são os méritos de alguns bispos que se mantiveram firmes em situações de perse guição ou ainda mostraram grande autoridade na luta contra as heresias gnósticas. Por volta de 130 já encontramos este episcopado monárquico na Síria e, pouco de pois, na Ásia Menor, como podemos deduzir das cartas de Inácio de Antioquia. Em Roma, o episcopado monárquico apareceu sob Pio (140-154). Paralelamente à definição da função do bispo monárquico corre a definição do presbítero. Os presbíteros formavam, juntamente com o bispo, o presbitério e re presentavam o bispo no culto e no ensino. Tinham, pois, uma função representati va. Mais importantes eram as funções dos diaconos, que, hierarquicamente, estavam subordinados aos presbíteros. Normalmente havia sete diaconos na comunidade; a eles cabia a assistência aos doentes e necessitados e serviços no culto. Com isso, o clero da comunidade era constituído por um trinômio: bispo — presbítero — diácono. Em algumas comunidades, as viúvas (Xerai) eram contadas entre o clero. Durante um certo tempo, continuaram a existir as funções carismáticas dos apóstolos, profetas e mestres. Eram, agora, forças rivalizantes com o clero estabelecido. No todo, podemos dizer que a passagem do cargo de epískopos ao de bispo monárquico se deu sem grandes problemas. As comunidades não viram descontinuidade neste fato. No Didaquê, é dito a respeito dos bispos: "Eles exercerão entre vós o ministério dos profetas e mestres" (15.1). Um dos mais decididos defensores do episcopado monárquico foi Inácio de Antioquia, que afirmou que cada comunida de teria que ter um bispo ao qual deveria obedecer sem restrições. "Cuidemo-nos de não nos opormos ao bispo, para estarmos submissos a Deus" (Efésios 5.3). "Na hora em que vos submeteis ao bispo como a Jesus Cristo, me dais a impressão de não viverdes segundo os homens, mas segundo Jesus Cristo ..."(Trales 2.1). Inácio afirma que o batismo e a eucaristia só são válidos quando administrados pelo bis po: "Onde quer que se apresente o bispo, ali também esteja a comunidade, assim como a presença de Cristo Jesus também nos assegura a presença da Igreja Católi ca. Sem o bispo, não é permitido nem batizar nem celebrar o ágape. Tudo o que ele aprovar será também agradável a Deus, para que tudo quanto se fizer seja seguro e legítimo" (Esmirna 8.2). Também a Carta de Clemente Romano aos Coríntios se preocupou com uma doutrina hierárquica. Clemente, o bispo romano, acentuou que deve haver submissão (57.ls). Clemente também falou dos "leigos", que são contra postos aos ministros oficiais. Eles deviam obedecer e submeter-se aos ministros. Daí surgiu a Igreja clerical.
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8.3. Culto Também o culto cristão acompanhou essa institucionalização. Desapareceu a liberdade entusiasta dos tempos primitivos, e estabeleceram-se costumes fixos. As reuniões da comunidade passaram a ter uma seqüência preestabelecida. Além disso, estabeleceu-se uma espécie de ciclo semanal de comemorações. Com o surgimento da festa pascal cristã foram lançadas as bases para as celebrações de um ano eclesiástico. Com base na carta de Plínio a Trajano (Ep. X, 96), tem-se afirmado comumente que a comunidade cristã tinha dois tipos distintos de reunião: um culto de prega ção, antes do nascer do sol, e um culto eucarístico, à noite. No centro do culto no turno estava a ceia sacral, denominada de eucaristia. Neste culto eucarístico encon tramos também a leitura das escrituras, a pregação, cânticos e a bênção. Estes ele mentos também encontramos no culto sinagogal. Naquela época ainda encontramos orações livres, feitas por pessoas com dons proféticos. A regra, porém, já é a de se usar orações formuladas. Citamos alguns exemplos de orações formuladas: 1) o Pai-Nosso, 2) as orações eucarísticas (Didaquê 9-10), 3) a oração (de final de culto?) que encontramos na Carta de Clemente aos Coríntios 59-61. "A respeito da eucaristia, assim agradecereis: Primeiro acerca do cálice: 'Agradecemos-te, nosso Pai, pela santa vinha de Davi, teu servo, a qual nos tornaste conheci da através de Jesus Cristo, teu servo; a ti seja a glória em eternidade!' A respeito do pão partido: 'Agradecemos-te, nosso Pai, pela vida e pelo conhecimento que nos deste através de Jesus, teu servo; a ti seja a glória em eternidade'. 'Assim como este (pão) partido esteve espalhado sobre os montes e, recolhido, fez-se um, assim seja reunida a tua Igreja, desde os confins da terra, em teu reino. Pois tua é a glória e o poder, atra vés de Jesus Cristo, para sempre.' Mas ninguém coma ou beba de vossa eucaristia, a não ser os que foram batizados no nome do Senhor. Pois a esse respeito também disse o Senhor: 'Não deis aos cães o que é santo'." "Depois de estardes satisfeitos, assim agradecereis: 'Agradecemos-te, Pai santo, por teu santo nome, ao qual preparaste morada em nossos corações; e pelo conhecimen to e fé e imortalidade que nos deste a conhecer através de Jesus Cristo, teu servo. A ti seja a glória em eternidade'. 'Tu, Senhor todo-poderoso, criaste todas as coisas por cau sa do teu nome, deste comida e bebida aos homens para seu deleite, para que te agrade çam; a nós, porém, concedeste comida espiritual e bebida e vida eterna, por intermédio de teu servo. Acima de tudo agradecemos-te porque és poderoso; a ti seja a glória em eternidade.' 'Lembra-te, Senhor, de tua Igreja, para livrá-la de todo o mal e fazê-la per feita em teu amor, e reúne-a desde os quatro ventos, santificada, em teu reino, que pa ra ela preparaste. Porque teu é o poder e a glória para sempre.' Venha a graça e passe este mundo. Hosana ao Deus de Davi! Se alguém é santo, aproxime-se; se não o é, ar rependa-se. Maranatha. Amém." (Didaquê 9-10) As comunidades reuniam-se no dia do Senhor, ou ta mb ém em dias da sema na. A celebração do domingo surgiu em franca oposição ao sábado judeu. "Nós, depois disso, recordamos constantemente, para o futuro, um ao outro, es tas coisas: os que possuem (bens) socorrem todos os necessitados e sempre estamos uni dos uns com os outros. Por tudo quanto comemos louvamos o Criador de todas as coi sas, por meio de seu Filho Jesus Cristo e pelo Espírito Santo. E no dia que tem seu no me do sol há uma reunião, num mesmo lugar, de todos os que habitam nas cidades e nos campos. Lêem-se as memórias dos apóstolos ou os livros dos profetas, até onde o
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tempo o permite. Quando o leitor tiver terminado a leitura, o que preside, falando livre mente, admoesta e exorta (a comunidade) a imitar estes belos exemplos. Depois nos le vantamos todos juntos e enviamos orações (a Deus); e, como já dissemos, ao terminar mos á oração são trazidos pão, vinho e água, e o que preside, na medida de seu poder, envia orações e igualmente ações de graças e a comunidade aquiesce, dizendo o Amém. Então vem a distribuição e a recepção por parte de cada qual do (alimento) sobre o qual foi proferida a ação de graças, e o envio aos que não estão .presentes, através dos diáconos. Os que possuem bens e os que assim, Q. desejam dão o que lhes parecer. O que foi recolhido é entregue ao presidente. Ele socorre órfãos e viúvas, os que por doen ça ou qualquer outro motivo foram abandonados, os que estão presos e os forasteiros de passagem; em uma palavra: ele cuida de todos os que têm necessidade. No dia do sol fazemos todos juntos a reunião, porque é o primeiro dia, no qual Deus transformou as trevas e o caos, fez o mundo, e Jesus Cristo, nosso Salvador, neste dia ressuscitou de entre os mortos; pois crucificaram-no no dia anterior ao dia de Kronos; e no dia posterior ao dia de Kronos, que é o dia do sol, apareceu a seus apóstolos e ensinou aos discípulos oquevostemos transmitido para vossa consideração.'' (Justino, Apologia 1,67) Os dias de jejum, em latim dies stationum, vigílias dos soldados (milhes) de Cristo, eram em quartas-feiras e sextas-feiras. Nos domingos, a comunidade não je juava e também não ajoelhava. Neste dia, as orações eram feitas em pé (Didaquê 8). Os ritos que cercam o batismo ainda eram bastante multiformes. Não havia a necessidade de submersão. Podia bastar a aspersão. "A respeito do batismo; assim batizareis: Depois de haverdes ensinado previamen te tudo isso, batizai em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, em água viva. Mas, se não tens água viva, batiza em outra água; se não tens nem uma nem outra, derrama água na cabeça, três vezes, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Antes do batismo, jejuem o que batiza e o batizando e alguns outros, caso for possível. Ordenarão ao batizando que jejue um ou dois (dias) antes." (Didaquê 7) Ao contrário da situação inicial, quando se batizava com pressa, sem muito ensino, deparamo-nos na época dos pais apostólicos com uma catequese. Basta que nos lembremos do próprio texto do Didaquê. Das perguntas formuladas aos catecúmenos e de suas respostas surgiu o símbolo batismal, que aos poucos se transfor mou nos atuais credos. Existe a hipótese de que a formulação fixa mais antiga tenha surgido por volta de 150. Trata-se do simbolum romanum, o credo da comunidade de Roma: "Creio em Deus onipotente e em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor, que nasceu do Espírito Santo e da Virgem Maria, que foi crucificado sob o poder de Pôncio Pilatos e sepultado e ao terceiro dia ressurgiu da morte, que subiu ao céu e assentou-se à direita do Pai, de onde há de vir para julgar os vivos e os mortos. E no Espírito Santo, a santa Igreja, a remissão dos pecados, a ressurreição da carne, a vida eterna. Amém." B
8.4. Conteúdo da fé As evoluções havidas não deixaram de influir sobre os conteúdos da fé e da doutrina. O que mais contribuiu para essa fixação foram: a fixação literária da tra dição evangélica, a coleção das cartas paulinas e a formulação das afirmações bá sicas da fé na confissão batismal. Por outro lado, deve-se constatar, com base nas fontes, que a geração posterior aos apóstolos foi fraca em formulações teológicas e quase não apresentou nada de novo! Acentuados são, especialmente, o monoteísmo cristão e uma moral cristã. O cristianismo é visto como uma reedição da religião mosaica; pode ser apresentado como religiosidade intelectual. Cristo foi apresenta do como o portador do verdadeiro conhecimento de Deus e da lei moral. A esperan ça na parusia ainda existe, mas assume contornos milenaristas. Essa geração prestou um serviço inestimável a todas as gerações posteriores com a redação dos evangelhos. Há de permanecer um mistério o motivo que levou ao surgimento dos evangelhos como forma literária. Segundo Lc 1.1-4, havia um bom número deles. Ao que tudo indica, esses evangelhos foram reunidos nos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas). O de João é diferente desses evangelhos. Pressupõe a tradição sinótica, mas também outras tradições, o paulinismo, bem como o gnosticismo, se pensarmos no dualismo gnóstico, na imagem do discípulo amado etc. Sua proximidade ao gnosticismo levou a que, durante muito tempo, fosse rejeitado co mo gnóstico. Ao lado desses quatro evangelhos encontramos durante certo tempo diversos outros, mais tarde considerados apócrifos, por exemplo: O Evangelho dos Hebreus, que se assemelha bastante ao Evangelho de Mateus e que foi, durante mui to tempo, usado entre os judaico-cristãos da Palestina, o Evangelho dos Egípcios, o Evangelho de Pedro, o Evangelho de Tiago, o menor, o Evangelho de Tome. A grande devoção aos apóstolos fez surgir toda uma literatura que levava o nome dos apóstolos: 2 Tessalonicenses, 1 e 2 Timóteo, Tito, Hebreus, 2 Pedro, Ju das e Tiago. No segundo século, floresceu ainda o gênero dos Atos dos Apóstolos. Depois do surgimento dos Atos de Lucas, surgiram ainda muitos outros: Atos de Pedro, Atos de Paulo, Atos de Tecla, Atos de João. Parcialmente a piedade também foi influenciada pelo apocalipsismo judaico. O mais famoso Apocalipse é o de João. Ao lado dele, porém, encontramos ainda o Apocalipse de Pedro, semelhante à Divina Comédia de Dante, o Pastor de Hermas e a Epístola Apostolorum. O centro das concepções religiosas foi a fé em Cristo. As concepções cristológicas ainda são multiformes. Cristo é adorado como Deus, como podemos ler em 2 Clemente 1.1: "Assim deveis pensar a respeito de Cristo, como a respeito de um Deus, como a respeito dõ juiz dos vivos e dos mortos". Sendo Cristo Deus, surgiu a necessidade de diferenciação entre Deus e Cristo. Temos aqui os primórdios de uma cristologia que vai ser conhecida como modalismo. Deus se revelou ora como Pai, ora como Filho. Seus representantes vão dizer que Cristo é um modo de Deus ser. No mesmo período, porém, também aconteceu fato significativo que teve gran de importância para o desenvolvimento posterior da cristologia. Trata-se da inclusão, no linguajar teológico, do conceito "Logos", o "Verbo" de Jo 1.1. Um mundo religioso peculiar nos é apresentado nas Cartas de Inácio de Antioquia. Ali o conceito de Deus apresenta características místicas, ligadas à natureza. SC
A redenção não é algo ético, mas físico: redenção das cadeias da morte. O perdão dos pecados desaparece. A divindade é imaginada como uma espécie de substância, com a qual nós nos podemos fundir. A salvação (vida) é conseguida através do fa to de a divindade tomar morada no crente. Assim, o crente é tornado divino, rece be athanasia, imortalidade. Por isso, para Inácio, a eucaristia vai ser entendida co mo pharmakon athanasias, remédio para a imortalidade. Quem recebe o corpo e o sangue de Cristo tem dentro de si a imortalidade do Cristo ressurreto.
8.5. Ética No campo da ética cristã começou a ocorrer uma mudança com forte acento na ascese, na mortificação. Começou a desenvolver-se a penitência. A prática ascética da continência já era conhecida no cristianismo primitivo. Ali encontramos o jejum e a abstinência de carne, vinho e sexo. Agora a piedade de cultos helenistas e orientais começava a influir na prática cristã. Começaram a surgir dois tipos de cristãos: os mais severos quanto à continência e a grande massa que se contentava com uma ascese mais moderada. No campo da penitência começou a surgir a diferenciação entre pecados perdoáveis e pecados imperdoáveis. Impressionante é a obra assistencial dessa geração. Cada comunidade auxilia va viúvas, órfãos, doentes, pessoas idosas, minorava os sofrimentos dos prisioneiros. Quando irrompia a peste, os cristãos se distinguiam pelo seu serviço. Notável foi o trabalho da comunidade de Roma, que se distinguia pelo auxílio prestado a outras comunidades.
8.6. Comunidades Até o governo do imperador Marco Aurélio (161-180), as comunidades eram constituídas principalmente de pessoas pobres, entre as quais predominavam escra vos. Na comunidade não se fazia distinção de classes sociais. Os cristãos não critica vam a escravidão, pois esperavam para breve a vinda do Senhor, ocasião em que to das as distinções seriam eliminadas. Com a expansão do cristianismo ocorreu também uma mudança na estrutura social das comunidades, pois a fé cristã penetrara em todas as camadas da socieda de. Certos profissionais, porém, continuaram a não ser aceitos nas comunidades. Entre eles encontramos gladiadores, cocheiros de carros de corrida, atores, cartoman tes, astrólogos, cáftens etc... Os dois primeiros punham constantemente suas vidas em risco. Os atores representavam o que não eram. Os cáftens viviam da exploração de corpos. Havia mais tolerância em relação a professores que haviam sido ex-escra vos ou mesmo escravos. Em suas aulas tinham que falar a respeito dos antigos deu ses e, indiretamente, faziam catequese em favor desses deuses. Admitiam-se funcio nários públicos, mas havia um certo cuidado na admissão de soldados, pois os anti gos cristãos negavam-se a prestar serviço militar. Mesmo quando o cristianismo fi cou um pouco mais liberal nessa questão, os problemas continuaram a existir, pois os soldados tinham que fazer um juramento, invocando os deuses, e venerar os lábaros. Cedo se colocava uma questão fundamental à fé cristã: o poder do império re pousava sobre o exército. Poderia a fé cristã deixar o exército de lado? 31
A importância dessa questão pode ser vista na figura de Tertuliano, que pode ser caracterizado como o mais ferrenho representante do antimilitarismo. Tertulia no (150/155-223) era filho de um oficial. Nascera em Cartago e tornara-se jurista. Em sua terra natal fora presbítero e era responsável pelo ensino aos catecúmenos. Em seu antimilitarismo, fazia uso do seguinte argumento: Em certa ocasião, Jesus tirou a espada de Pedro. Por isso, a profissão de soldado e a fé cristã são inconciliá veis. Tertuliano e outros que pensavam como ele não tiveram sucesso: funcionários públicos e soldados tornaram-se cristãos, sem deixar a profissão de lado. Prostitutas não tinham acesso às comunidades, enquanto permanecessem na prostituição. Mesmo assim, houve uma cristã que foi concubina do imperador Cô modo. Seu nome era Márcia. Sua posição na corte trouxe benefícios aos cristãos, pois intercedia por aqueles que se encontravam em perigo. Onde se reuniam os cristãos? Até o final do século II, as comunidades não ti nham locais de reunião, destinados exclusivamente aos seus cultos. Na maioria das vezes, as reuniões aconteciam em casas particulares. Apenas a partir do século III é que começaram a surgir locais destinados a reuniões. O motivo para tal desenvolvi mento não se deve ao crescimento das comunidades, mas ao surgimento da hierar quia sacerdotal cristã. Julgou-se que, nas sedes episcopais, os cultos não podiam ser realizados em lugares "profanos".
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9 Heresia e catolicidade 9.1. Gnose O mundo no qual a fé cristã penetrou era um mundo mágico. Foi para este mundo mágico que a fé teve que ser traduzida. As pessoas às quais a fé era prega da pensavam de maneira mítica. Sinais e milagres, visões eram para elas algo nor mal. Neste mundo, a gnose estava presente. A gnose não é uma corrente filosófica, mas uma doutrina de salvação, que se baseia em revelações "pneumáticas", espiri tuais. Sua existência sempre foi parasitária, isto é, jamais existe gnose de maneira pura. Ela só vinga em terra alheia. Houve muitos tipos de gnose. Conhecem-se as gnoses judaica, grega, egípcia e cristã. Suas origens estão na religião de Zoroastro. A gnose cristã criou uma piedade sincretista, que incluía fé e sabedoria. Frente à gnose, o jovem cristianismo estava desarmado, pois os hereges gnósticos também se consideravam "ortodoxos", visto que se baseavam na escritura, na tradição e no credo. Seu método de interpretação pouco divergia daquele usado pelos pais apostó licos. Era denominado de alegorese ou interpretação alegórica. Foram poucos os cris tãos que reconheceram que a gnose diluía os fatos da revelação divina, substituindo-os pelo mito de uma história transcendental. Estudiosos e pessoas sem cultura experimentavam os pensamentos da gnose como um bálsamo para a alma, e por es sa causa muitas comunidades cristãs, no final das contas, não passavam de seitas gnósticas. A luta contra a gnose foi uma das mais acirradas que a Igreja cristã teve que travar. Mesmo o teólogo Iríneu, bispo de Lyon desde 177/178, que escreveu monumental obra contra a gnose sob o título "Contra as heresias", não conseguiu captar todas as sutilezas da gnose. Na época em que a Igreja lutava pelo estabeleci mento do cânone normativo do Novo Testamento, as influências da gnose chegaram a seu ponto mais alto. Seu maior representante foi o egípcio Valentino, que viveu por volta do ano 170. Vejamos alguns exemplos de gnosticismo, descritos por Irineu de Lyon. Neles podemos detectar toda a sutileza do esquema gnóstico. O primeiro deles diz respeito a Saturnino, que viveu por volta do ano 120. De le disse Irineu: "Saturnino era antioquiano. Pensava ... que há um Pai absolutamente desconhe cido que fez anjos, arcanjos, virtudes e potestades; o mundo, porém, e tudo quanto ne le existe, foi feito por anjos em número de sete. (...) "O Salvador, conforme Saturnino, não nasceu, não teve corpo nem forma, mas foi visto em forma humana apenas em aparência. O Deus dos judeus, segundo ele, era um dos sete anjos; visto que todos os príncipes quiseram destruir seu Pai, Cristo veio para aniquilar o Deus dos judeus e para salvar os que nele mesmo acreditassem; esses são os que possuem uma faísca da vida de Cristo. Saturnino foi o primeiro que afir mou a existência de duas estirpes de homens formados pelos anjos: uma de, bons e ou tra de maus. Sendo que os demónios davam seu apoio aos maus, o Salvador veio para 23
destruir os demónios e os perversos, salvando os bons. Mas, ainda segundo Saturnino, casar-se e procriar filhos é obra de Satanás." Outro texto fala de Basilides, que viveu por volta de 130. Seus ensinamentos foram divulgados por seu discípulo Valentino. Irineu disse a respeito dos ensinamen tos de Basilides: "Ensinou que a Mente foi o primogénito do Pai Ingênito. A Razão foi gerada pela Mente e, por sua vez, gerou a Prudência, e esta gerou a Sabedoria e o Poder. Da Sabedoria e do Poder nasceram as Virtudes, os Príncipes e os Anjos, que são chama dos também de 'Os Primeiros'. Estes fizeram o Primeiro Céu, do qual derivaram ou tros céus, que, também, geraram outros céus. (...) "Os anjos que presidem sobre o Céu inferior, que é visto por nós, ordenaram to das as coisas que há no mundo, dividindo entre si a Terra e as nações da Terra. Seu che fe é aquele que tem sido crido como o Deus dos judeus. Ele pretendeu sujeitar os de mais povos aos judeus, provocando a resistência dos outros príncipes, que se coligaram contra ele... Então o Pai Ingênito e Inominado ... enviou sua Mente primogénita (cha mada o Cristo) para libertar os que nele cressem dos poderes que fizeram o mundo. Ele apareceu assim entre as nações dos príncipes, em forma de homem, e realizou atos de poder. Ele, porém, não sofreu, mas certo Simão de Cirene foi movido a levar a cruz por Ele; Simão foi equivocadamente crucificado, tendo sido transfigurado por Ele de tal sorte que o populacho o tomou por Jesus. Jesus, entretanto, transmutou-se na for ma de Simão, presenciando a agonia de seu sósia e dele escarnecendo. Quem, portanto, reconhecer e reverenciar o crucificado ainda não deixou de ser escravo e sujeito ao do mínio dos que fizeram nossos corpos. Quem, ao contrário, o negar fica livre deles e co nhece a disposição do Pai ingênito. "Basilides ensina também que a salvação só concerne à alma, pois o corpo é natu ralmente corruptível. As profecias em si mesmas provieram dos príncipes que fizeram o mundo. A lei foi dada pelo príncipe que tirou os israelitas da terra do Egito. Basili des prescreveu ainda a perfeita indiferença para com as coisas imoladas aos ídolos, per mitindo que as usemos sem temor; igualmente quer que consideremos como matéria ab solutamente inocente as sensualidades de toda classe." A respeito do gnóstico Cerinto, que viveu no final do primeiro século, Irineu afirmou: "... pensou que o mundo foi feito não pelo Deus Supremo, mas por alguma Vir tude muito afastada e separada do príncipe que está acima de todas as coisas e cuja sa bedoria absoluta é reconhecida por tal Virtude. Acrescenta que Jesus não nasceu de Vir gem, mas que foi filho de José e Maria, à maneira comum, embora seja superior aos demais em justiça, prudência e sabedoria. Após o batismo de Jesus, Cristo desceu so bre ele em forma de pomba, procedendo do Príncipe que está sobre todas as coisas. Depois disso Jesus revelou o Pai Incógnito, realizando atos de poder. No fim, porém, Cristo retirou-se, deixando Jesus abandonado: o homem Jesus sofreu sozinho e ressusci tou; porém, Cristo permaneceu impassível como convinha à sua natureza espiritual".
9.2. Marcião Outro grave confronto para a jovem Igreja representou o armador Marcião (outra grafia: Márcion) (81-160), natural de Sinope, junto ao Mar Negro. Marcião era filho de um bispo, mas seu pai o expulsara da congregação. Os motivos de tal expulsão não nos são claros. Expulso da comunidade de origem, Marcião dirigiu-se 34
a Roma, onde Valentino havia conseguido adeptos e fora candidato a bispo. Reco nhecido como herege, Valentino fora também expulso da comunidade de Roma. O fato é significativo, pois mostra a força e a penetração do movimento gnóstico. Marcião não era o tipo que devia ser considerado respeitador de tradições. An tes valia o contrário a seu respeito. Marcião negou, por exemplo, a interpretação cris tã do Antigo Testamento, a Bíblia da Igreja Antiga. O Javé dos judeus, dizia ele, é um deus imperfeito. A criação de Javé não é bênção, mas uma sem-vergonhice! Pois é uma asneira criar o ser humano para depois lançá-lo à perdição com a que da e, finalmente, levá-lo à salvação. A justiça de Deus, que acaricia os eleitos ape sar de seu pecado, enquanto condena outros, é, na realidade, crueldade. Marcião considerou, ainda, o ato de gerar e de parir uma grande indecência de Deus. Referindo-se à localização da vagina, afirmou: "Nascemos entre as fezes e a urina" (inter faeces et urinam nascimur). Também o mundo dos animais apresenta para ele irracionalidades e nojeiras: cobras, escorpiões, crocodilos e os exércitos de insetos. A este Javé Marcião contrapôs o Deus que se revelou em Jesus Cristo, no Novo Testamen to. Este Deus é totalmente diferente, pois não conhece o caminho hipócrita da salva ção, delimitado por "podes" e "não-podes". Sua mensagem é a do amor misericor dioso. Marcião baseou-se em Paulo, que, segundo ele, foi quem melhor entendeu a revelação de Deus em Cristo. A Igreja mal-interpretara Paulo, impingindo-lhe tradi ções judaicas. Por isso, Marcião fez uma "operação limpeza", para que aparecesse o verdadeiro evangelho paulino. O resultado foi uma coleção de escritos, constituída de duas partes: 1. O evangelho, constituído das partes "autênticas" de Lucas, e 2. O apóstolo, constituído de dez cartas paulinas. A teologia proveniente des te livro era simples: a) Marcião postulou uma doutrina de dois deuses, proveniente de especulações gnósticas. A confirmação para tal doutrina ele encontrou no próprio apóstolo Pau lo. Há o deus deste mundo, que é idêntico a Javé, o deus do mal, e o Deus do Evan gelho, da redenção, o Pai de Jesus Cristo. b) Com o Deus que se revelou em Cristo principia a mudança dos valores. Os que foram condenados pela lei de Javé encontram misericórdia, enquanto os fa riseus recebem a recompensa do deus da lei. c) Cristo nada tem a ver com a matéria do demiurgo veterotestamentário. Ne nhuma mulher o deu à luz; ele foi apenas "semelhança de homem" (Fp 2.7). Não tinha corpo real. Certamente Paulo teria sido o mais ferrenho adversário deste seu discípulo. A Igreja Antiga investiu com todas as suas forças contra Marcião, pois via que em sua doutrina elementos essenciais da fé cristã estavam sendo destruídos ou negados. Mes mo assim, a Igreja marcionita existiu até o século II em uma área que ia desde a Mesopotâmia até a França. O cânone dos escritos bíblicos, criado por Marcião, acelerou, sem dúvida, o processo de surgimento do cânone neotestamentário. Sua tentativa de eliminar tudo o que era judeu de dentro da Igreja levou a Igreja a confessar que o Deus do Anti go Testamento é o Deus de Jesus Cristo. Com isso, acentuou também a unidade do Antigo e do Novo Testamento. Por outro lado, tendo que confessar diante de Mar cião que o Antigo e o Novo Testamento lhe são normativos e determinando o câno25
ne neotestamentário, a Igreja cristã esclareceu o que é normativo para seu ensino e doutrina. Historicamente, a decisão da Igreja de formar o cânone, estabelecendo uma norma para seu ensino e doutrina, determinou o fim da história da Igreja Anti ga e o início da história da Igreja Católica Primitiva. Além de apresentar o Novo Testamento, ao lado do Antigo Testamento, co mo normativo para seu ensino, a Igreja cristã fez, diante de Marcião, para rejeitálo e a suas ideias, uma outra confissão. Assim como a outra, esta confissão é funda mental: O Deus do Antigo Testamento é o Pai de Jesus Cristo e também o criador do universo. A criação é e continua sendo a boa criação de Deus. Ao proclamar, pois, o Antigo e o Novo Testamentos como normativos para seu ensino e ao declarar que o Deus do Antigo Testamento, o criador, é o Pai de Jesus Cristo, a Igreja cristã fez uma colocação básica: todas as declarações posterio res têm que partir dessa base, a normatividade da Escritura, isto é: Tudo o que a Igreja disser tem o cânone como norma. E mais: Tudo o mais que a Igreja afirmar não pode estar acima do cânone, mas está subordinado a ele. Com isso podemos afirmar que, no confronto com Marcião, a Igreja estabeleceu o seu primeiro dog ma, sua primeira grande confissão de fé, pois dogmas são confissões de fé.
9.3. Montanismo Na Frigia, no interior da Ásia Menor, surgiu por aquela época um outro mo vimento. Este se voltou contra a institucionalização da Igreja e contra sua pretensa mundanalidade. Seu líder foi Montanus. Daí seu movimento ser denominado de montanismo. Nota-se que aqui temos um movimento de características distintas das do gnosticismo e de Marcião. O problema para a Igreja foi que estes movimentos eram simultâneos. Quando Montanus terminou de ser batizado (156), entrou em êxtase e come çou a falar em línguas. A maioria das pessoas não sabia mais do que se tratava. Apenas duas mulheres souberam. Elas também caíram em êxtase, abandonaram seus maridos e seguiram o novo profeta. Há muito que o dom de falar em línguas havia deixado de ser normal nas comunidades cristãs. O trio piedoso, formado por Montanus, Prisca e Maximila, queria testemunhar com sua glossolalia que a Igreja de seus dias era pobre em relação à Igreja antiga, pois lá a glossolalia fora algo nor mal. Por outro lado, eles anunciavam que o fim do mundo era iminente. Afirmavam que por seu intermédio falava o parákletos, o paracleto, o consolador, prometido por Jesus em Jo 14.16. Diziam ser portadores da segunda revelação, que punha fim a toda a atividade profética. Sua teologia, que anunciava o final dos tempos, pode ser resumida na seguinte sentença: "Eu sou o Pai, o Filho e o Parákletos". Sua ética correspondia às expectativas milenaristas do grupo. O matrimónio não foi eliminado, mas era desaconselhado. Um segundo matrimónio não era permi tido. O martírio, por seu turno, era supervalorizado. Montanus foi um excelente manager. A hierarquia e o sacramentalismo não eram aceitos pelo movimento, mas Montanus conseguiu estabelecer uma estratégia que possibilitou um rápido desenvol vimento de seu movimento. Inclusive na África surgiram comunidades montanistas. Havia muita disciplina nestas comunidades: carne e vinho eram proibidos; havia pres crições quanto ao vestuário; as mulheres tinham que usar o véu; as dádivas em di nheiro eram controladas; o jejum era observado com rigor. 36
A Igreja condenou Montanus como herege. Isso, no entanto, não significou que ele deixasse de ter influência em seu ambiente e fora dele. Seu maior adepto veio a ser Tertuliano (150-225). Já nos referimos a Tertuliano, quando falamos do antimilitarismo da Igreja Antiga. Tertuliano é, além disso, um dos grandes defenso res da Igreja, merecendo o título de apologista. Combateu os marcionitas e gnósti cos, mas viu, afinal, no rigorismo ético dos montanistas, a única possibilidade de eliminar as deteriorizações que estavam surgindo na Igreja. A Igreja procurou esquecer Tertuliano, mas ele não pode ser esquecido. Com seus muitos escritos, formulados em língua latina, tornou-se o criador do linguajar teológico latino. As formulações teológicas nas línguas românicas muito devem a Tertuliano.
9.4. Cipriano Uma das pessoas mais influenciadas por Tertuliano foi, sem dúvida, Cipriano (210-258), famoso pai da Igreja e bispo de Cartago, no norte da África. Cipriano descendia de pais ricos e deve ser considerado um bispo do tipo papalista. Em tor no de sua pessoa e de seus posicionamentos houve muitas discussões. Na época de perseguição aos cristãos do norte da África, Cipriano ocultou-se e fugiu, propositalmente, ao martírio. Foi, por isso, criticado. Defendeu-se, porém, afirmando que a partir de seu esconderijo pôde animar sua comunidade a permanecer perseverante. Mais tarde, Cipriano foi aprisionado e morto, sofrendo o martírio. Teologicamente, seu escrito "De unitate ecclesiae" (Sobre a unidade da Igreja) expôs concepções que fizeram dele um dos principais criadores da teoria do prima do de Pedro. Nesta sua teoria, o bispo de Cartago partiu das palavras de Jesus a Pedro (Mt 18.18s): "Tu és Pedro e sobre esta pedra hei de construir minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela". Em sua opinião, estas palavras não se referem apenas a Pedro; elas dizem respeito a todos os discípulos, aos quais Jesus teria anunciado: "Assim como o Pai me enviou, assim eu também vos envio. Recebei o Espírito Santo; se perdoardes os pecados a alguém, ser-lhe-ão perdoados; se os retiverdes, ser-lhe-ão retidos" (Jo 20.21-23). A partir destas palavras de Jesus, Cipriano concluiu que todos os bispos estão na linha de sucessão dos apóstolos. Por isso, a unidade da Igreja está manifestada na soma dos bispos. Estes bispos são to dos iguais, devem obediência somente a Deus e estão unidos entre si por laços frater. nos. Nessa concepção, Cipriano foi um tanto audaz, pois sua tese carecia de funda mentos exegéticos. No fundo, este pai da Igreja partiu da pressuposição de que o episcopado monárquico era uma instituição de Jesus Cristo. Nos dias de Cipriano, essa teoria foi de grande importância. Com ela Cipria no formulou teoria para mostrar onde se poderia encontrar a certeza da verdade em um mundo no qual começavam a surgir sempre mais interpretações da fé cristã. Para ele, o bispo que se encontrava na linha de sucessão dos apóstolos era a garan tia da verdade. Quando examinamos o desenvolvimento posterior da história da Igre ja, bem podemos imaginar as influências desse pensamento nas teorias eclesiológicas que viriam a ser desenvolvidas. Basta lembrar o surgimento do papado e o desenvol vimento da teoria papal.
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10 Formação do cânone neotestamentário e a mulher na Igreja Antiga No parágrafo anterior, buscamos mostrar como o jovem cristianismo teve que se movimentar entre heresia e catolicidade. Nas discussões formulou-se o cânone dos escritos sagrados para os cristãos. A Bíblia passaria a ser a norma para todos os ensinamentos cristãos. Na doutrina da sucessão apostólica encontrava-se, além disso, o critério para fazer frente a ensinamentos discordantes. As formulações e doutrinas, no entanto, não ocorreram sem grandes discussões. Os debates, por seu turno, não deixaram de ter consequências, como podemos verificar no exemplo da mulher na Igreja Antiga.
10.1. Interpretação do cristianismo primitivo por homens As fontes relativas ao cristianismo primitivo foram escritas e formuladas num contexto de cultura e de cosmovi cosmovisão são androcêntricas. androc êntricas. No mundo m undo em que ela elass surgiram, a mulher era um ser à margem. No mundo grego, a liberdade era atributo do ma cho. As palavras de Platão expressam essa realidade: "Se a natureza não tivesse cria do as mulheres e os escravos, teria dado ao tear a propriedade de fiar sozinho". Xenofonte vai afirmar: "Os deuses criaram a mulher para as funções domésticas, o homem para todas as outras". Para preparar a mulher para essa situação, Xenofon te dá o conselho: "(...) que viva sob uma estreita vigilância, veja o menor número de coisas possí vel, ouça o menor número de coisas coisas possível, faça o menor número de perguntas possível". Se as sentenças citadas revelam uma tendência do mundo grego, não muito diferente fica a situação no mundo mais restrito do ambiente palestino, berço do cris tianismo primitivo: "Louvado seja Deus, pois não me criou como gentio; louvado seja Deus, pois não me criou como mulher; louvado seja Deus, pois não me criou como ignorante". Assim orava o judeu piedoso. "Que as palavras da Tora sejam queimadas, mas não se jam jam tran transm smititid idas as às mulh mulher eres es ... Todo aqu aquele ele que que ens ensina a Tora a sua sua fil filha, ha, ensi ensina na-a -a a ser devassa" é o que podemos ler na Mishná, em passagem que proíbe a mulher de ler a Escritu ra. Segundo alguns rabinos, a única função da mulher era a de reproduzir o género humano. Expressões correntes diziam: "Bem estão aqueles, cujos filhos são homens, mal, no entanto, aqueles, cujos fi lhos lhos são filhas". filhas". "Quando "Quando um menin meninoo vem vem ao mundo, vem paz paz ao mundo; quando vem uma menina, nada vem." "Nossos mestres disseram: 'Quatro qualidades são evi dentes nas mulheres: são comilonas, mexeriqueiras, preguiçosas e invejosas'." 38
Nesse Nesse contexto de cultura cultu ra e de cosmovisão androcêntricas androcênt ricas foram f oram formuladas formu ladas as fontes relativas ao cristianismo primitivo. Não admira, pois, que nessas fontes a mulher seja apresentada como fenómeno marginal da história cristã primitiva. Jesus era homem. Homens eram os apóstolos, os profetas, os mestres e os missionários. Todos os escritos neotestamentários são atribuídos a homens. Será, por acaso, que a Teologia da Igreja Antiga é denominada de "Patrística"? Além disso, devemos constatar que as fontes não nos falam de mulheres nos grémios dirigentes do cristia nismo antigo. Ao contrário, 1 Tm 2.12 é contundente quando diz que a mulher não pode ensinar: "Não permito que a mulher ensine, nem que exerça autoridade...". No entanto, devemos perguntar-nos: já que tal proibição tem que ser expressa, será que alguma vez foi diferente? Será que 1 Tm 2.12 é convicção da Igreja Antiga? Se rá que a Igreja Antiga foi foi realmente patriarcal, ou é patriarcal a leitura da Igreja Antiga?
10.2. Exegese androcêntrica dos escritos neotestamentários As exposições da história do cristianismo primitivo partem, por via de regra, da pressuposição de que os missionários primitivos e os dirigentes da Igreja Antiga foram homens e não mulheres. Os textos que não estão de acordo com essa perspec tiva androcêntrica são reinterpretados! Mostro isso em alguns exemplos. Em Roma nos 16.7 lemos: "Saudai a Andrônico e Júnia, meus parentes e companheiros de pri são, os quais são notáveis entre os apóstolos, e estavam em Cristo antes de mim". Partindo da suposição de que o apóstolo só pode ser um homem, muitos dos comen tadores da Carta aos Romanos interpretam o nome Júnia como sendo nome de ho mem. Também em Romanos 16.1-3 aparece uma mulher de nome Febe, diákonos da Igreja em Cencréia, e que é também designada de prostátis. Almeida traduz diá konos com "que está servindo à igreja...". A Bíblia de Jerusalém fala em "diaconi sa da Igreja de Cencréia...". No entanto, o título usado é diákonos. A maioria dos autores, quando se trata de homem (Apolo, Timóteo ou Tíquico), traduz diákonos por diácono. Partindo de uma compreensão androcêntrica do Novo Testamento, os exegetas e tradutores pressupõem automaticamente que as mulheres mencionadas nas cartas paulinas sejam auxiliares de Paulo. Não conseguem admitir que essas mu lheres tenham sido missionárias, apóstolas e dirigentes de comunidades na era apos tólica. Em nenhuma oportunidade vai ser afirmado que essas mulheres estejam su bordinadas a Paulo em sua tarefa missionária ou de direção. O apóstolo Paulo tra balhou, lado a lado, com mulheres e reconheceu sua autoridade. Febe era diácona e presidia a comunidade de Cencréia. Outro aspecto que deve ser considerado, quando se fala em androcentrismo da exegese neotestamentária, é o fato de que conceitos como santos, eleitos, irmãos, filhos são considerados designativos para todos os membros da comunidade, portan to também para as mulheres, mesmo que os conceitos sejam masculinos. Por outro lado, como são interpretados conceitos como profeta, mestre, diácono, colaborador na missão, apóstolo e bispo? Todos estes também são masculinos, como os anterio res, mas na exegese só vão ser aplicados a homens, e não a mulheres. Dessa manei ra pressupõe-se de saída que Júnia e Febe foram auxiliares. Jamais se ousa dizer que também elas tenham tido função dirigente na comunidade. Ora, que isso seja assim tem sua razão de ser em toda a História da Igreja e também entre nós hoje. Como a Bíblia é modelo e norma para a Igreja, reconhecer que na Igreja Antiga a 39
mulher teve funções dirigentes significaria renunciar ao primado patriarcal na Igre ja j a . A mulher poderia poder ia ser ser bispo, bisp o, presidente de Igreja. Consequent Conse quentement emente, e, a dogmáti dogmá ti ca e o direito eclesiástico deveriam ser modificados em muitas denominações cristãs.
10.3. Machismo no Novo Testamento Os relatos do Novo Testamento são pregação engajada, testemunho cristão. Ao fazerem sua pregação, os autores neotestamentários selecionaram o material de que dispunham, optaram por tradições e elaboraram suas redações tendo em vista intenções teológicas e práticas. Além disso, todos os escritos do Novo Testamento foram escritos atendendo a situações do momento, seus problemas. Isso não vale apenas para as epístolas, mas também para os evangelhos e para os Atos dos Após tolos. Lembro que os evangelhos e os Atos dos Apóstolos foram redigidos no final do primeiro século. É de supor que eles já não contenham mais muitas informações a respeito da mulher na Igreja Antiga e que muitas tradições se tenham perdido. Ou também é possível que algumas informações a respeito da mulher na Igreja An tiga tenham sido omitidas propositalmente. Nesse caso, seria necessário perguntar pelas causas. Permito-me apresentar algumas contradições existentes no Novo Testamento e que apontam para uma redação dos diversos escritos. Sabemos, por exemplo, que houve mulheres discípulas de Jesus (Mt 27.55; Mc 15.41).Sabemos também que mu lheres foram as primeiras testemunhas da ressurreição (Mc 16.9; Mt 28.1ss; Lc 24.1ss; Jo 20). No entanto, nenhuma mulher fez parte do círculo dos doze. Jesus curou mulheres, teve conversas com elas, tratou delas e de seu mundo em muitas parábo las, mas em nenhuma parte dos evangelhos nos é relatada com detalhes a vocação de uma mulher. Parece que só homens foram vocacionados. No entanto, os evange lhos sabem que mulheres foram as primeiras a descobrir o sepulcro vazio na manhã da Páscoa. Ao falarem das testemunhas da ressurreição, porém, só apresentam no mes de homens. Em Marcos, capítulo 14.3-9, é narrada a cena da mulher que ungiu Jesus, proclamando-o como o Cristo. No v. 9 é dito: "Onde for pregado em todo o mundo o evangelho, será também contado o que ela fez, para memória sua". A triste realidade, porém, é que não sabemos qual o seu nome. Foi esquecido! Os Atos dos Apóstolos citam muitas mulheres que põem suas casas e suas pro priedades a serviço da Igreja. Jamais, no entanto, Lucas falou em mulheres missio nárias. A missão é para ele tarefa masculina. Lucas conheceu mulheres profetas, mas nada disse sobre sua função na comunidade. Mesmo assim, existem algumas referências que deixam entrever a atividade feminina na comunidade de Lucas. Es sa atividade fica mais evidente ao levarmos em conta que um dos códices que repro duzem o Novo Testamento, o Códice Bezae Cantabrígiensis (D), altera todas as pas sagens que deixam entrever a possibilidade de alguma proeminência da mulher. Ci to alguns exemplos. Em Atos 17.4 lemos: "Alguns deles foram persuadidos e uni dos a Paulo e Silas, bem como numerosa multidão de gregos piedosos e muitas dis tintas mulheres". A autonomia das distintas mulheres incomodou tanto o autor do Códice D, que ele alterou o texto. Sua versão diz: "... e muitas mulheres de distin tos ...". Em 17.12, lemos: "Com isso muitos deles creram, mulheres gregas de alta posição, e não poucos homens". O Códice D altera: "... homens gregos de alta po sição e mulheres...". As mulheres passam, automaticamente, a ser esposas. Em At 40
1.14, lemos: "Todos estes perseveravam unânimes em oração, com as mulheres, es tando entre elas Maria, mãe de Jesus, e com os irmãos dele". D coloca após "mu lheres" as palavras "e crianças". Com essa pequena intercalação, as mulheres são transformadas em esposas dos apóstolos e fazem parte da família, perdendo sua au tonomia. Em At 18.26, Lucas fala de "Priscila e Áqiiila". Note-se que menciona a mulher antes do homem. Na opinião de D, isso não é correto. Por isso, ele inverte a ordem: "Áqiiila e Priscila". Sabemos que a pátria do autor do Códice D é a Ásia Menor. Ali, no século II, toda a mulher era, de saída, candidata à herege. Lembro duas que já mencionamos: Prisca e Maximila. Uma terceira encontramos em Ap 2.20: Jezabel. Diferente da realidade dos escritos de Lucas é a das cartas paulinas. Paulo co nhece, em 1 Co 11.2-16, mulheres que profetizaram na comunidade, mas exige que adotem a moda oficial. 1 Co 14.33-36, por outro lado, tem caráter claramente nega tivo. Entre os exegetas, porém, não há consenso quanto ao fato de a exigência da mulher calar na Igreja ser ou não intercalação posterior. Quanto mais dogmática for sua posição, mais propensos estarão em negar o caráter interpolatório do texto. Exegeticamente, porém, não há dúvidas quanto ao fato de o texto ser inserção poste rior, oriunda de 1 Tm 2.9-15. Os escritos neotestamentários não são unânimes quanto ao papel da mulher na Igreja Primitiva. Suas colocações são inclusive contraditórias. As cartas paulinas nos indicam que havia mulheres apóstolas, missionárias, colaboradoras e dirigentes de comunidades e profetas. Lucas, no entanto, não conhece nenhuma mulher que fosse missionária, apóstolo ou dirigente de comunidade. Ele parece saber que mulhe res tiveram tais funções (cf. At 18.2,18,26: Lucas sabe do trabalho de Prisca ou Pris cila; At 16.14,40: Lídia), mas não tirou qualquer consequência desse fato. Todos os evangelhos sabem que Maria Madalena foi a primeira testemunha da ressurreição. Paulo, no entanto, em 1 Co 15.3-5, não menciona nenhuma mulher entre as testemu nhas pascais. O Evangelho de João sabe que a primeira missionária na Samaria foi uma mulher (Jo 4.39). Para Lucas, porém, Felipe foi o primeiro missionário da Sa maria (At 8.4ss.). Marcos diz expressamente que havia mulheres que eram discípulas de Jesus. Segundo Marcos, algumas mulheres foram testemunhas da atuação públi ca de Jesus na Galileia e em Jerusalém. Foram elas as únicas testemunhas de sua morte na cruz, foram elas que receberam a mensagem pascal (Mc 15.40s.47; 16.1-8). Lucas, porém, desqualifica com tremenda sutileza o testemunho feminino: os onze não criam nas mulheres quando estas lhes traziam a mensagem pascal. Ou, como dizem as palavras de Lucas: "Tais palavras lhes pareciam como delírio, e não acredi taram nelas" (Lc 24.11). Somente quando Jesus apareceu a Pedro, um homem (Lc 24.34), começou a haver fé na ressurreição. Para quem julgar que a interpretação é tendenciosa, apresento uma referência a mais: quando se escolheu um substituto pa ra Judas, só homens entraram em cogitação (cf. At 1.21s). Se dermos uma olhada na literatura apócrifa, veremos que não é por acaso que Lucas deu preferência a Pedro, retirando a primazia das mulheres e de Maria Madalena. Na literatura apócrifa, a primazia do testemunho pascal foi de Maria Madalena. A preferência de Lucas por figuras masculinas, em detrimento do teste munho que fala de mulheres, é sinal evidente de que na Igreja Primitiva estava em andamento uma luta que vai culminar na eliminação da mulher de qualquer posição de destaque. Na literatura apócrifa, Pedro se queixa do fato de o Senhor haver fei
to revelações a uma mulher. O Evangelho de Tomé reflete essa concorrência entre Maria Madalena e Pedro, quando diz: "Simão Pedro disse-lhes: 'Maria deve sair de nosso meio, pois as mulheres não^ são dignas da Vida'. Disse Jesus: 'Eu mesmo vqu conduzi-la para fazê-la masculina, de modo que ela também possa se tornar um espírito vivente, semelhante a vós homens. Pois toda mulher que se fizer a si mesma masculina entrará no Reino dos Céus'". Também o Evangelho de Maria dá provas da disputa entre a tradição petrina e a tradição de Maria Madalena. Nesse Evangelho, Pedro concorda que o Senhor amou Maria Madalena "mais do que o restante das mulheres", mas não pode acei tar que o Senhor lhe tenha feito revelações que não foram feitas aos discípulos ho mens. "Teria ele preferido ela a nós?". Levi responde a essa acusação de Pedro, ar gumentando: "Pedro, você sempre foi um cabeça-quente. Agora eu vejo você contendendo con tra a mulher como os adversários (= a ortodoxia católica oficial!), mas se o Salvador fê-la digna, quem é você, na verdade, para rejeitá-la? Certamente o Senhor conhece-a muito bem. Isso, porque ele a amou mais do que a nós". Na mesma época em que esses textos foram escritos, surgiu a Ordem Eclesiás tica Apostólica. Ela reflete as teorias existentes no grupo eclesiástico que, mais tar de, ficou conhecido como ortodoxo e católico. Naquela Ordem, a mesma Maria Madalena argumentou que os fracos, as mulheres, serão salvos pelos fortes, os ho mens. Nos séculos III e IV, ainda estava em curso a discussão sobre a autoridade de Pedro e de Maria Madalena. Após Constantino, não havia mais possibilidade pa ra a mulher. Os textos apócrifos, no entanto, nos auxiliam a compreender uma ten dência que está presente no Novo Testamento. Lidos positivamente, eles nos falam de uma riqueza da Igreja Antiga. Eles nos testemunham de uma presença muito ativa e atuante da mulher.
10.4. Ortodoxia e heresia Durante muito tempo, fomos ensinados a ler a História da Igreja por meio do binómio ortodoxia e heresia. A sequência é importante, pois desde cedo foi elabo rada a tese de que todos os hereges foram originalmente ortodoxos, tendo posterior mente caído da verdadeira fé. Segundo ela, Jesus criou a Igreja, confiou suas revela ções aos apóstolos, os quais, então, levaram seu ensinamento a todo o mundo. Nes sa tradição apostólica está preservada a continuidade da revelação acontecida em Cristo e a continuidade com a Igreja Primitiva. Dentro dessa perspectiva, todos os grupos da Igreja Antiga procuraram provar que se encontravam na tradição de Je sus e dos apóstolos. Isso vale para montanistas, gnósticos e para a teologia patrísti ca. Também na discussão em torno da mulher na Igreja todos queriam ser ortodo xos e estar na tradição de Jesus e dos apóstolos. Aqueles que estavam a favor de uma participação da mulher na pregação e na direção da Igreja apontaram para Maria Madalena, Salomé e Marta. Os que eram contrários a essa tradição basearamse no fato de Jesus não haver enviado mulheres a pregar, nem haver tolerado mulhe res na última ceia. Citaram textos das regras de conduta das cartas deuteropaulinas, 1 Co 14, e, especialmente, 1 Tm 2.9-15, além de, naturalmente, os textos de Gn 2 e 42
3. Os grupos gnósticos, que derivaram sua autoridade apostólica de Maria Madale na, acentuaram que tanto mulheres quanto homens receberam revelações do Senhor. Autores patrísticos, por seu turno, procuraram enfatizar a primazia petrina. Esses mesmos autores procuraram minimizar as passagens bíblicas canónicas que falam da mulher e de seu papel. Seus adversários escolheram essas mesmas passagens pa ra acentuar a importância da mulher e de seu papel. O processo de canonização dos escritos neotestamentários foi, inclusive, usa do contra a mulher. Orígenes admitiu que houve mulheres profetas, mas afirmou que essas mulheres não se pronunciavam em público e, muito menos, em reuniões da comunidade. Crisóstomo concordou que houve mulheres missionárias no perío do apostólico, mas fez uma restrição, ao afirmar que isso só foi possível nos primór dios da Igreja, pois então existia uma situação "angelical", ausência de sexualidade, fato que não mais se repetiu posteriormente. As mulheres que pregavam e batizavam basearam-se na tradição da apóstola Tecla. Porém, para evitar que mulheres tivessem essas funções, Tertuliano acentuou a falsificação dos Atos de Tecla. Especialmente o último exemplo, o de Tertuliano, nos mostra que a canonização dos escritos neo testamentários foi usada contra a mulher. Todos os exemplos que mencionamos nos mostram o quanto se discutia em torno da mulher nos primórdios do cristianismo, e certamente com a participação ativa da mulher. Por outro lado, as discussões nos mostram que a patriarcalização da Igreja estava em marcha. Nessa marcha em direção à patriarcalização teve que ser "provado" que a teologia e a prática da Igreja Antiga, que reconheciam a parti cipação da mulher na missão e na direção da Igreja, eram de somenos importância. No decorrer de toda a História da Igreja, a continuação dessa realidade fácil de encontrar na polémica original levou a que se equiparassem mulher e heresia. A mulher tornada herege era mulher difamada ao longo da História da Igreja. Já o autor do Apocalipse lançou sua profecia contra uma mulher à qual dá o nome de Jezabel (Ap 2.20). Ao que tudo indica, essa mulher era líder de um grupo proféti co de grande influência em Tiatira. A profeta continuou na comunidade, apesar das admoestações e das denúncias de João. Isso significa que sua autoridade deve, no mínimo, ter sido tão grande em Tiatira quanto a autoridade de João. Creio que não deveríamos julgar insignificante a influência dessa mulher, pois, no século II, Tiati ra foi o centro do movimento montanista, no qual duas mulheres profetas, Prisca e Maximila, tiveram papel preponderante. No final do século II, as mulheres continuaram a ter grande influência na Igre ja. Isso fica claro na polémica de Tertuliano contra a mulher.
"Mas a petulância da mulher, que já usurpou o direito de ensinar, não se arrogue também o direito de batizar. Não! A menos que surgissem algumas novas bestas seme lhantes à antiga. Aquela pretendia suprimir o batismo; uma outra quer administrá-lo ela mesma. E se essas mulheres invocam os escritos que erroneamente levam o nome de Paulo e citam o exemplo de Tecla para defender o direito de ensinar e batizar, sai bam que foi um presbítero da Ásia que elaborou esse escrito, como que cobrindo sua própria autoridade com a de Paulo. Depois de reconhecida a fraude e tendo confessa do que agiu por amor a Paulo, foi deposto. De fato, como seria fidedigno que o após tolo desse à mulher o poder de ensinar e batizar, ele que só com restrição permitiu às esposas que se instruíssem? Disse: Devem silenciar e perguntar a seus maridos em casa."
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Para desqualificar a mulher, a teologia que temos em Tertuliano vai se voltar contra a mulher ativa na Igreja, que prega, ensina e batiza, dizendo que a mulher é "aquela que permitiu o acesso ao diabo". Ela é a ianua diaboli. Na Idade Média, essa tecla foi, então, dominante, quando Ambrósio de Milão disse que peccatum a mulieribus coepit ("o pecado começou com as mulheres"). Para ele, a castidade "ge rou os anjos; aquele que a conserva é anjo, demónio aquele que a perdeu". Jeróni mo, então, apresentou a mulher como fonte de toda a heresia: "Com o auxílio da prostituta Helena, Simão Mago fundou uma seita. Multidões de mulheres acompanhavam Nicolau de Antioquia, esse sedutor, para toda a imundícia. Marcião mandou uma mulher ante ele para Roma, para preparar os espíritos dos ho mens a fim de que caíssem nas falsas doutrinas. Montano, esse bocal de um espírito imundo, usou duas mulheres ricas de linhagem, Prisca e Maximila, primeiro para subor nar muitas comunidades e então corrompê-las ... Ario, predisposto a levar o mundo à perdição, principiou com enganar a irmã do Imperador. Os recursos de Lucila auxilia ram Donato a corromper tantos infelizes na África com seu anabatismo contaminado. Na Espanha, a mulher cega Ágape levou um homem como Elídio à sepultura. A ele se guiu Prisciliano, um inflamado defensor de Zoroastro e mágico, antes de se tornar bis po, e uma mulher de nome Gala apoiava-o em seus esforços e deixou uma enteada pa ra prosseguir em uma segunda heresia de menor importância". Num mundo em que a mulher é a porta para o pecado e em que o matrimó nio sob as mais variadas influências vai acabar sendo visto apenas como uma con cessão por causa da propagação da espécie, a mulher que quer sobreviver dentro do mundo cristão tem que viver como asceta. A mulher que foi apóstola, diácona e líder do presbitério da Igreja Antiga só consegue evidenciar sua piedade como monja.
10.5. Novo Testamento e legitimação do Patriarcado Eclesiástico O processo de patriarcalização da Igreja, que culmina na visão da mulher co mo herege, pode ser encontrado já no Novo Testamento, em seus escritos mais tar dios. As cartas autênticas do apóstolo Paulo sabem a respeito da liderança exercida pelas mulheres na Igreja Primitiva. Em discussão está a autenticidade de 1 Co 11.2-6 e de 1 Co 14.33-36. A partir dessa discussão não há unanimidade nas afirmações quanto ao fato de esse processo de patriarcalização haver sido iniciado por Paulo ou ao menos haver sido por ele fomentado. Fato é que, durante o processo de pa triarcalização, seus promotores puderam sempre referir-se a Paulo. Foi sob o seu nome e sob o seu patrocínio que o processo de patriarcalização foi promovido. Se há dúvidas em relação às cartas paulinas autênticas, tal não acontece em re lação às cartas deuteropaulinas. As regras de conduta das cartas deuteropaulinas acei tam e têm por legítima a ordem familiar patriarcal reinante no mundo contemporâ neo do Novo Testamento. A Epístola aos Efésios fundamenta teologicamente o rela cionamento patriarcal entre homem e mulher, comparando-o ao relacionamento hie rárquico do Cristo com a Igreja. 1 Tm 2.9-15, assim como 1 Co 14.33-36, exige o silêncio e a submissão da mulher na reunião da comunidade, isto é, no culto. O tex to tem, evidentemente, em mira a exclusão da mulher em todos os aspectos. No en tanto, onde o processo de patriarcalização mais se evidencia é na proibição categóri ca da docência feminina e na proibição à mulher de ter autoridade sobre o homem. "E não permito que a mulher ensine, nem que exerça autoridade sobre o marido." 44
A fundamentação teológica desse patriarcado crasso, que exige a submissão da mulher e sua exclusão do ministério docente e dirigente na Igreja, é feita não com referência a Jesus, mas com referência ao fato de o homem ter sido criado primei ro e a mulher ter sido a primeira a ter caído vítima da tentação. A mulher não é sal va por seguir Jesus; o envio missionário não é válido para ela. Ela é salva quando dá à luz e quando se submete ao marido! Com suas exigências patriarcais, as epístolas pastorais estão adaptando a fé cris tã ao mundo. As estruturas que passaram a dominar na Igreja eram as vigentes na sociedade. Segundo o texto das cartas pastorais, há critérios claros e precisos para a eleição de homens para cargos dirigentes na Igreja. Os dirigentes podiam ser casa dos com uma só mulher e tinham que demonstrar suas capacidades patriarcais. De viam saber educar seus filhos e dirigir com autoridade suas casas, sabendo adminis trá-las. Nesse sistema de governo não havia mais lugar para a mulher. A exclusão da mulher recebia fundamentação ideológico-teológica. Por que é que isso assim aconteceu? Fomos ensinados a ler essa transformação ocorrida na Igreja Antiga como consequência lógica, como algo necessário, como passagem da Igreja movida pelo Espírito para a Igreja determinada pelos ministé rios e pelas funções. As comunidades cresceram e, para sobreviver, tiveram que se adaptar às formas vigentes dentro da sociedade. Nessa vigorava um sistema patriar cal, que leva a que sempre mais os homens assumam as funções e as mulheres fi quem restritas a funções auxiliares. Esse modelo de interpretação está, aparentemen te, correto. Seu problema, no entanto, reside no fato de ver a marginalização da mulher na Igreja como algo inevitável. Se a marginalização da mulher na História da Igreja foi inevitável, então, por outro lado, o caráter patriarcal da Igreja também é algo inevitável. Logo, toda mulher que se volta contra essa situação inevitável volta-se contra a tradição da Igreja e é herege. Essa conclusão é o fim da Teologia. Se nos dermos ao trabalho de olhar mais detidamente essa afirmação da inevi tabilidade da marginalização da mulher e da patriarcalização da Igreja, veremos que ela não era tão inevitável assim. Ela se confrontava com uma tradição cristã primiti va, largamente praticada, que via a mulher como discípula e como cristã em pé de igualdade com o homem. Mais tarde, essa situação foi caracterizada de herética, co mo já o vimos. Para podermos ler a História da Igreja e a História da mulher na Igreja temos que recorrer aos primórdios do movimento jesuânico. Nele poderemos ver que, na interpretação e na pregação de Jesus, apresentada pelo movimento, o que consideramos inevitável não era inevitável. Na proposta de Jesus encontravamse possibilidades de uma releitura da História da Igreja, onde o herético pode se tor nar normativo para nós. Herético aqui é a igualdade de todos os cristãos.
10.6. Igualitarismo cristão-primitivo O cristianismo primitivo não foi desde os seus primórdios um movimento patriarcal, muito menos parte integrante da sociedade patriarcal da Antiguidade. Apesar de todas as tendências androcêntricas da seleção de material e da redação das fontes neotestamentárias, em nenhuma parte os evangelistas apresentam uma palavra negativa de Jesus a respeito da mulher. Essa constatação é importante, pois, como vimos, os Evangelhos foram redigidos em uma época em que o processo de patriarcalização já estava em marcha. Por isso, por causa dessa postura de Jesus, 45
nenhum dos autores neotestamentários pode fazer qualquer referência a Jesus, quan do se trata de desqualificar a mulher. Toda desqualificação da mulher vai ter que se basear na Tora, e ali, especialmente nas passagens de Gn 2-3. Jesus não é patriarcal, e as tradições evangélicas também não são. Elas nos fa lam do testemunho de mulheres (Mc 15.40s) e de seu discipulado. No discipulado de Jesus rompem-se as estruturas tradicionais da família, e surge a comunidade dos discípulos (Mc 3.35). A discípula não é mais colocada sob a lei de um matrimónio patriarcal. Destaque merece, na tradição que nos vem de Jesus, a fidelidade da mulher discípula. Foram mulheres as que permaneceram firmes junto à cruz, foram elas as testemunhas do sepulcro vazio e da ressurreição. Essa tradição não nos vem do judaísmo, nem se presta para ãs tendências -patriarcais que descrevemos. O movimento que nos vem de Jesus é renovador e, por isso, herético em seu ambiente judaico. Nele está presente a esperança da transformação do presente mun do com suas contradições, através da ação escatológica de Deus, que já está presen te, qual grão de mostarda, na ação de Jesus. Por causa da esperança dessa mudan ça, o movimento jesuânico aceitou todos os que estavam à margem da sociedade e, entre eles, a mulher. Jesus não excluiu, mas incluiu os que são excluídos; entre eles a mulher inferior e impura. No seu movimento não há senhores e escravos, nem gran des e pequenos. A realidade de que Jesus incluiu, e que entre os que o seguiram não há dominadores nem dominados, é base para a aceitação da mulher como discípu la, apóstola, teóloga e presbítera. Essa realidade mostrou-se em toda a atividade missionária da Igreja Primitiva. Na comunidade primitiva foram eliminadas as diferenças raciais, religiosas e de pa péis sexuais (dominar e obedecer). "Dessarte não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem e mulher; porque todos vós sois um em Cristo Je sus" (Gl 3.28). A fórmula de Gl 3.28, que é fórmula batismal, confissão de fé batismal, afirma que os batizados estão em oposição a todos os valores raciais, sociais, patriarcais e religiosos da sociedade judaico-greco-romana. A comunidade cristã não tolera discriminações, características da sociedade na qual vive. Na comunidade cris tã, a mulher e o escravo não estão à margem. São apóstolos, profetas e mestres. Marta e Pedro estão em pé de igualdade, pois ambos confessam que Jesus é o Cris to (cf. Jo 11.27 e Mt 16.16). A sociedade romana perseguiu religiões que declaravam eliminadas as diferen ças sociais entre homens, mulheres e escravos, pois via nelas revolucionários sociais em potencial. Seus ataques dirigiam-se contra o culto a Isis e a Dionísio. Esses cul tos punham a politeia em perigo, pois criavam animosidades nos lares e levavam mulheres e escravos a se rebelarem. Nesse sentido, a missão cristã primitiva também provocou conflitos. O filósofo ateniense Celso soube criticar os cristãos por isso, mas já antes dele outros o fizeram, levando a que Paulo formulasse a teoria do patriarcalismo do amor (a mulher submissa ao esposo, mas o marido amando a espo sa). Isso não tanto para submeter a mulher ao esposo, mas para defender, no cam po político, a fé cristã da acusação de estar subvertendo a ordem patriarcal estabele cida. Essa mesma linha foi seguida em 1 Pe. Esse interesse apologético deve estar nos primórdios do processo de patriarcalização da Igreja.
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11 Fé cristã e filosofia 11.1. A filosofia clássica dos gregos tivera seu fim em Aristóteles. Entre as diversas cosmovisões e novas tentativas filosóficas destaca-se a de Zenão (336-264 a.C). Ele foi o criador do estoicismo. Este veio a ser a corrente filosófica mais fa mosa do período helenista-romano. O estoicismo de Zenão não foi, porém, um siste ma filosófico compacto e, por isso, passou por muitas transformações. Sua visão do ser humano e sua doutrina das virtudes, fundamentada na racionalidade, fizeram com que muitas pessoas ilustres se sentissem atraídas pelo estoicismo. O jovem cristia nismo deparou-se com um estoicismo profundamente religioso, que difundia o prin cípio de uma moral natural, de uma teologia natural e de um direito natural. Seus escritos estavam repletos de conceitos como cura, expiação, consolo, pureza. Com seu discurso em Atenas (At 17) Paulo praticamente não impressionou os filósofos estóicos. Riram dele, quando começou a falar em ressurreição dos mor tos. É possível que não tenha sido essa a razão, mas Paulo se voltou contra a filoso fia a partir de sua concepção cristológica. Mais tarde, Tertuliano basear-se-ia em Paulo quando atacou estóicos, platónicos e sofistas em seus escritos. No entanto, encontramos em seus escritos uma expressão que mostra nítidas tendências estóicas: "A alma é cristã por natureza". Pode-se prever que a fé cristã não podia ficar sem pre nesta posição adversa à filosofia, caso quisesse entrar em contato com os intelec tuais de seu tempo. Ela tinha que se ocupar com a filosofia para usar a terminolo gia das pessoas de seu tempo.
11.2. Entre os apologetas cristãos, que procuraram estabelecer um diálogo com filósofos, Justino (110-165) foi o mais importante. Era natural da Flavia Neapolis, a antiga Samaria, e, provavelmente, de ascendência grega. Tornou-se cristão aos 25 anos, tendo antes disso estudado a filosofia em busca da verdade. Seus conhecimen tos filosóficos eram muito profundos, mas ele não queria ser simplesmente um filó sofo. Queria provar que a fé cristã é a consumação de toda a filosofia. O que quis afirmar foi muito simples e mostra as influências do estoicismo: os gregos usavam o conceito Logos. Logos é, para os estóicos, a Razão Universal que tudo penetra e tudo comanda, que tudo ordena. Também Justino viu no Logos a Razão Universal, que se teria revelado no cristianismo de maneira mais perfeita. O cristianismo, segun do Justino, não só é a mais antiga como também a religião mais natural e prática. A fé cristã foi preparada durante longo tempo pela razão divina, o Logos. Isso se evidencia nos profetas judeus e nos gregos. Toda a história, em última análise, se desenrola em direção ao cristianismo. Homens como Heraclito e Sócrates foram ins pirados pelo Logos divino, bem como os precursores do cristianismo: Abraão, Elias e outros profetas judeus. Em Cristo toda a filosofia chega à perfeição. Por isso, os cristãos são os verdadeiros seres racionais, e todos os verdadeiros filósofos têm que ser cristãos. 47
Em sua época, Justino não encontrou ouvintes. Mesmo assim, ele não dei xou de influenciar a história do pensamento humano, cristão. Até hoje, muitos usam o esquema por ele usado e que fala de uma ação de Deus na sequência: gregos — judeus — helenistas — cristãos. 11.3. As
influências do estoicismo continuaram a se fazer presentes na fé cris tã. Encontramos seus reflexos na ética e na teologia natural. Os escritos de Séneca (4 a.C. — 65 d.C.) e de Epíteto (50-120) tiveram muitos leitores entre os cristãos. Séneca era espanhol e teve acesso à corte romana durante o governo de Calígu la (37-41). O tom religioso de seus escritos foi admirado por muitos cristãos por cau sa de cartas, formuladas por autor desconhecido, que apresentavam uma correspon dência que teria sido trocada entre Paulo e Séneca. Ensinava Séneca que as paixões devem ser dominadas, que por natureza nós procuramos Deus e que devemos nos conformar ante as decisões do supremo destino. Estes pensamentos foram considera dos paralelos aos ensinamentos cristãos. Epíteto acentuou ainda mais estes pensamentos. Fora escravo, sofrera muito, chegando a ficar aleijado dos pés em consequência de maus tratos. Como filósofo estava convencido de que devemos estar prontos a desistir de muitas coisas e vivia de acordo com esse seu ensinamento e convicção. Em sua confiança em Deus ele era mais inabalável do que muito cristão declarado. Aos poucos, o estoicismo foi se transformando em estoicismo cristão. Os estói cos ensinavam que opressão, egoísmo e paixões destroem a harmonia original de igualdade e liberdade. Tais pensamentos os cristãos também conseguiam encontrar na Bíblia. O direito natural estóico-cristão passou a ser um elemento da cosmovisão oci dental. Foi aceito por Agostinho, reviveu no humanismo cristão, tornou-se base das doutrinas sociais da Igreja Católica Romana e serviu, ultimamente, para fundamen tar posições contrárias aos "bebés de proveta", além de fundamentar as opiniões papais sobre as relações sexuais no matrimónio. 11.4. Houve também ataques de filósofos à fé cristã. Por volta de 180, o ate
niense Celso escreveu um livro intitulado "Palavra da Verdade". Para Celso, os en sinamentos da fé cristã eram loucura e superstição. Celso estudara a fé cristã e a Bí blia a fundo. Conhecia muitos cristãos que não viviam de acordo com sua fé. Por isso, seu escárnio tinha razão de ser. Dizia ele que os cristãos eram convencidos ao dizer-se eleitos de Deus: "Um coro de sapos se encontra no charco e coaxa: por nos sa causa o mundo foi criado!" Segundo Celso, o monoteísmo dos cristãos é relacio nado com a curiosa afirmação de que o único Deus se tornou homem. Por isso, ele considera o cristianismo um antropomorfismo da pior espécie. Celso era um patrio ta conservador. Criticava o abandono dos deuses do Estado, a negação do sacrifício ao Imperador. Assim como Celso, também filósofos da categoria de um Porfírio, que escreveu 15 livros "Contra os Cristãos", ePlotino (205-270), o fundador do neo platonismo, escreveram abertamente contra a fé cristã. Colocações como as de Celso a respeito do Deus cristão levariam autores cris tãos a terem que esclarecer a fé trinitária. A Teologia podia brotar de perguntas feitas a partir de fora do arraial.
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11.5. O primeiro teólogo cristão a se ocupar positivamente com a filosofia foi Clemente de Alexandria, que viveu por volta do ano 200. Clemente convertera-se ao cristianismo e dirigia uma escola de catequese. Sua intenção era superar a tensão existente entre filosofia e fé. Assim como Justino, Clemente cria que a filosofia do Logos era precursora do Logos Cristo. No entanto, Clemente não queria ser simples mente apologeta. Sua intenção era, a partir da Bíblia, desenvolver uma teologia ba seada em conhecimentos filosóficos. A maioria dos cristãos, disse ele certa vez, assemelha-se aos companheiros de Ulisses, que tampam seus ouvidos porque têm medo de não encontrar o caminho que leva de volta para casa, caso abrirem seus ouvidos à ciência grega. O importante, dizia ele, era a "verdadeira gnose", que leva a uma comunhão com Deus por meio do Logos. Para que isso se torne possível, é necessá rio que surjam pedagogos que se tornem amigos e cura d'almas dos discípulos. Nem todos os cristãos precisam seguir esse caminho. Contudo, diz Clemente, em todo lu gar deve surgir um pequeno grupo que procura por uma sabedoria superior. Nestes pequenos grupos, o líder não deve ser o clérigo, mas o professor, o pedagogo. Por isso, uma das mais importantes obras de Clemente leva por título "O Pedagogo".
11.6. A pessoa mais fortemente influenciada pelo pensamento de Clemente foi seu discípulo Orígenes (185-254). Orígenes é filho de pais cristãos. Seu pai morrera como mártir. Estudou filosofia com o filósofo Ammonios Sakkas, que também foi mestre de Plotino e de Porfírio. Orígenes veio a ser o sucessor de Clemente na esco la de catequese de Alexandria e transformou essa escola em uma escola de teologia. Foi, aliás, a primeira escola de teologia da qual se tem notícia. Nessa escola ele pô de desenvolver sua doutrina, seus pensamentos. Orígenes escreveu muitas obras e, por esse motivo, tinha uma série de copistas a seu serviço. Conta-se que ele escreveu alguns milhares de livros e escritos. Suas obras mais famosas são a Hexapla, comen tários sobre quase todos os livros bíblicos, uma dogmática e escritos contra Celso. A Hexapla é uma edição monumental do Antigo Testamento, na qual, em seis colu nas, se encontram diversas traduções gregas do texto bíblico. Com ela era possível um estudo crítico do texto sagrado. O pensamento teológico de Orígenes foi desenvolvido em estreito relacionamen to com as especulações do neoplatonismo. Deus foi concebido por ele em termos platónicos. O Logos foi criado desde a eternidade. Está, porém, subordinado a Deus. O Espírito Santo está subordinado ao Filho. A esta Trindade subordinada es tão subordinados todos os demais seres espirituais. Estes eram, originalmente, per feitos e dotados de livre-arbítrio, mas por causa dessa liberdade caíram. Por isso, Deus criou a matéria e aprisionou-os em corpos (anjos, demónios, seres humanos). Todos eles pediam por salvação, que foi trazida pelo Logos, que se uniu a uma al ma pura, tornando-se, assim, Deus-homem. A redenção foi por ele obtida através de seu exemplo. Por isso, agora todo ser humano pode ascender até Deus com o au xílio da centelha divina que há nele. Essa ascensão se dá sempre de acordo com o grau de desenvolvimento moral até chegar à perfeição. Orígenes tornou-se um dos mais famosos sábios de seu tempo. Mesmo filóso fos não-cristãos o respeitavam. Foi considerado filósofo exemplar ao lado de Ploti no. O governador da Arábia convidou-o para palestras. Em Antioquia, chegou a dar aulas sobre a essência da fé cristã para a imperatriz Júlia Mamea, mãe do Impe rador Alexandre Severo. W
Mesmo famoso, Orígenes guardou sua simplicidade. Levava a continência tão a sério que, seguindo a palavra de Jesus (Mt 19.12), se automutilou, castrandose. Os últimos anos de sua vida foram caracterizados por desgostos. Levando em conta seus grandes conhecimentos teológicos, bispos amigos sagraram-no presbítero em Cesaréia. Tal ato provocou a inveja do bispo de Alexandria, Demétrio. Demétrio queria controlar o professor Orígenes e excomungou-o. Orígenes permaneceu em Cesaréia, onde criou nova escola de teologia. Ali foi atingido pela perseguição, mo vida pelo Imperador Décio contra os cristãos. Foi torturado, mas não negou sua fé. Foi libertado da prisão, mas veio a falecer poucos anos mais tarde em consequência das torturas. O significado histórico de Orígenes reside no fato de ter sido ele o primeiro a transformar a síntese de cristianismo e helenismo em um sistema. Ele sabia que seu sistema não se destinava à massa dos cristãos, mas para uma pequena elite de pensa dores. Não negava a fé tradicional das comunidades, mas dizia que a "verdadeira gnóse", o verdadeiro conhecimento, só podia ser alcançado pelos filósofos portado res do Espírito Santo, os filósofos pneumáticos. Em 553, no 5 o Concílio Ecuménico de Constantinopla, Orígenes foi declara do herege. Essa condenação foi consequência dos debates em torno da Cristologia e em torno da Trindade, que haviam ocorrido nos decénios anteriores. Sua doutri na tem muitas coisas que não estão de acordo com as Escrituras, mas quem o criti car não deveria esquecer que foi ele uma das pessoas que mais colaborou para que a fé cristã penetrasse na intelectualidade não-cristã. Após Orígenes e Clemente de Alexandria, a Igreja não podia mais deixar de lado a filosofia. Ela assumiu muitos elementos da cultura helenista. Na discussão com a filosofia, o cristianismo tornou-se grego. Por seu turno, o helenismo foi cris tianizado e desapareceu como cultura autónoma. Fora sugado pela fé cristã.
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12 O Imperador e os cristãos 12.1. Autoridade e religião Em seus primórdios, a fé cristã não foi adversa à autoridade. Justino escre veu ao Imperador e ao Senado: "Nós somos vossos auxiliares e lutamos convosco pela paz muito mais do que todas as outras pessoas". Também Tertuliano, que sem pre foi reservado, afirmou aos governantes: "Nós somos marinheiros e prestamos serviço militar (!) convosco e nos ocupamos com a agricultura e com o comércio". A referência ao serviço militar é especialmentre fidedigna, caso lembrarmos que Ter tuliano era ferrenho adversário do serviço militar. Os cristãos, é certo, não presta vam sacrifício ao Imperador, mas oravam pelo mesmo e viam nisso o cumprimen to de uma admoestação apostólica (Cf. 1 Tm 2.2). Quando Augusto renovou os cultos estatais, sua intenção era política, como já vimos. Honrando os deuses oficiais, o cidadão prestava um testemunho de sua fidelidade ao Estado. Mas Augusto também queria evitar que todos os tipos de reli giões asiáticas penetrassem no Ocidente. Por lei, a adoração de todos os deuses estra nhos era proibida, mas o Estado era tolerante. Todo o mundo podia "crer" no que quisesse, desde que prestasse culto aos deuses oficiais. Somente funcionários públi cos, oficiais e soldados eram obrigados a realizar sacrifícios nos templos. Um meio de provar a lealdade ao Estado era o culto ao Imperador. Este não fazia parte da antiga religião romana. Suas origens estão no Oriente (Babilónia, Pér sia e Egito), onde se conhecia desde há muito a veneração sacral do governante co mo "filho de Deus". Na época de Alexandre, estes cultos se desenvolveram mais ainda. Nas regiões conquistadas pelos romanos surgiram altares e templos dedicados ao culto ao Imperador. Augusto não se opôs à veneração de sua pessoa, mesmo que no Ocidente o culto só entrasse pouco a pouco. Em Roma e no Ocidente, as pesso as veneravam seu génio divino. Somente após a sua morte é que Augusto passou a fazer parte do clube dos deuses. Entre os sucessores de Augusto, o culto ao Impera dor chegou às raias da loucura. As únicas pessoas liberadas do culto aos deuses e ao Imperador foram os ju deus. Enquanto os cristãos puderam viver à sombra dos judeus, eles eram uma sei ta judaica aos olhos do público. Também as discussões entre judeus e cristãos eram vistas como questões internas do judaísmo. Mesmo depois do crescimento da comu nidade cristã, as autoridades permaneciam por muito tempo indiferentes frente ao cristianismo. Cedo ou tarde, porém, o conflito teria que surgir, pois os cristãos se negavam a prestar o culto ao Imperador. Nas tradições vindas até nós, Nero é, em geral, apon tado como o primeiro a perseguir os cristãos.
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12.2. Nero Augusto faleceu sem ter herdeiros. Seu sucessor veio a ser seu filho adotivo Tibério (14-37). Tibério também faleceu sem ter herdeiros. Seu sucessor foi Calígu la, em cujos olhos se podia ver a loucura. Um dos integrantes da guarda pretoria na o matou. Foi então que o tio de Calígula, Cláudio (41-54), subiu ao trono impe rial. Afirmou-se que também ele era louco, mas foi tão sábio, a ponto de deixar o governo nas mãos de outros. Cláudio era um maníaco sexual; morreu envenenado. Um jovem de 17 anos, sobrinho de Calígula, tornou-se Imperador: New (54-68). Mas os verdadeiros governantes eram sua mãe e o filósofo Séneca. Logo Nero se cansou da tutela, mandou eliminar a mãe, convenceu sua primeira esposa a se suici dar e matou sua segunda esposa, grávida, com um pontapé no ventre... Roma era uma cidade velha, onde incêndios eram algo comum. Em julho de 64, dez bairros foram destruídos pelo fogo. Restaram apenas quatro. Muitas pesso as morreram. O interessante é que, logo após o incêndio, foi iniciada a reconstrução da cidade com base em plantas que já estavam prontas, provavelmente antes do in cêndio. Daí surgiu a ideia de que o Imperador planejara o incêndio. Não se podia provar nada, mas também não foi fácil para o Imperador provar que ele não era o responsável pelo incêndio. Não se sabe quem alertou Nero quanto aos cristãos. A ele não importou trans formar estas pessoas em responsáveis pelo incêndio. Depois de processos estúpidos, os cristãos foram mortos de maneira bestial. Foram crucificados, transformados em tochas vivas, costurados dentro de peles de animais e atirados às feras. Mesmo assim, não se pode falar aqui de uma perseguição aos cristãos por motivos religio sos. A ação ficou, além disso, restrita à cidade de Roma. Nero pôs fim à sua vida quando os soldados aclamaram um de seus coman dantes como Imperador.
12.3. Tolerância e perseguição Desde o governo de Nero e, principalmente, desde a destruição de Jerusalém sabia-se que os cristãos não eram uma seita judaica. Mesmo assim, as autoridades não agiram contra os cristãos. Somente sob o governo de Domiciano (81-96) as coi sas ficaram mais difíceis para os cristãos. Domiciano foi um governante competen te. Teve sucesso nas guerras, fez belas construções, mas com o passar dos anos co meçou a ficar desconfiado e convencido de si mesmo. Ordenou que fosse chamado de "Senhor e Deus", exigiu como saudação o beija-mão ou o beija-pé. Assumiu ele próprio a função de censor e responsável pelos bons costumes, para assim controlar a fidelidade política. Como seu pai, Vespasiano, lutou contra os estóicos, pois julga va encontrar neles o centro de toda a oposição. Toda vez que desconfiava de alguém, ordenava que essa pessoa sacrificasse ao Imperador. Quem não sacrificava era acusa do de "ateísmo", acusação esta que se dirigia principalmente contra os cristãos. As maiores perseguições ocorreram na Ásia Menor, tendo seu centro em Éfeso. Segun do Irineu de Lyon, o Apocalipse de João foi escrito a partir das experiências daque la época. É interessante comparar a maneira como o capítulo 13 do Apocalipse fa la a respeito da autoridade com o capítulo de mesmo número na Epístola de Paulo
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aos Romanos. Também a primeira Epístola de Pedro nos deixa sentir algo da si tuação daquela época. De 98-117 governou o espanhol Trajano, um general que queria paz e ordem. Dele provém o primeiro posicionamento oficial a respeito do tratamento que deveria ser dispensado aos cristãos. Trajano ordenou que não se deveria sair à cata de cris tãos; que não se deveria dar atenção a acusações anónimas e que quem fosse aprisio nado deveria invocar os deuses; caso não o fizesse, deveria ser castigado. Essa deci são de Trajano deve ser considerada uma decisão política, mas não tem qualidade jurídica. A teoria afirmava que todos os cristãos deveriam ser castigados, pois negavam-se a prestar o sacrifício aos deuses oficiais. Em todas as decisões do Império Romano contra os cristãos vamos poder notar que, para o Estado Romano, o pro blema não era a fé dos cristãos, mas a fidelidade dos cristãos ao Estado, que se ex pressava no sacrifício aos deuses. As perseguições tiveram, em geral, caráter local, devendo-se em grande parte à superstição do povo: uma epidemia, um terremoto, fome ou enchentes eram ra zões suficientes para fazer com que houvesse perseguições. As acusações eram apre sentadas ao governador, que, mesmo estando convicto de sua inocência, tinha que abrir o processo, caso não quisesse ser visto como favorável aos cristãos. Dessa ma neira, muitos cristãos perderam as suas vidas durante os governos de Trajano e de seus sucessores. Pessoas ilustres como Inácio de Antioquia, Policarpo de Esmirna, Justino e muitos bispos foram martirizados naqueles dias. Os perseguidores atacavam primeiro o clero, para que as comunidades ficassem sem líderes. Às vezes, nós nos deparamos também com ações que atingiram toda uma comunidade. Aos que mor reram confessando a fé a Igreja deu o título de mártires. Nem todos os cristãos, porém, foram perseverantes. Muitos fraquejaram, sa crificaram aos deuses, talvez inclusive com o pensamento de que este sacrifício não tivesse valor por ter sido forçado. Talvez pensassem que era preciso agir assim para salvar a vida. Tal maneira de pensar certamente não correspondia ao pensamento cristão. Mas nós temos que levar em conta que justamente naquela época as comu nidades eram atingidas pelas grandes tentações, que as marcavam mais do que as perseguições. A gnose que passava pelas comunidades, como um veneno corrosivo, negava todo martírio. A vida era mais importante para os gnósticos do que a mor te. Por outro lado, os montanistas, que viam no martírio a maior glória para um cristão, propagavam uma verdadeira mania de martírio com características patológi cas. As comunidades só podiam ficar confusas. É quase um milagre o fato de as co munidades terem conseguido passar por essas comoções sem desaparecer por completo. Mesmo assim, nós não devemos superestimar o número das vítimas das perse guições. Houve áreas do Império onde não ocorreram perseguições. No todo, os cris tãos viviam entre a tolerância e a esperança. Essa situação também não se alterou quando os imperadores "filósofos" subi ram ao poder. Mesmo assim, os governos dos imperadores de Adriano até Marco Aurélio tiveram suas influências positivas na vida da Igreja. Com Adriano (117-138) houve uma mudança. Adriano era um homem formado no espírito grego. Lia os fi lósofos Platão e Epiteto. Atenas era para ele um ideal, por isso procurou reconstruir parte da cidade. Ao mesmo tempo, iniciou-se nos cultos de mistério. Propiciado por Adriano, começou uma espécie de renascimento helenista com cultos de mistério en trando no Império. Estes cultos viriam a ser concorrentes da fé cristã. :;3
Com Marco Aurélio (161-180), o segundo sucessor de Adriano, a filosofia estóica se apossou do trono imperial. Marco Aurélio não simpatizava com os cris tãos, mas também não tinha interesse em criar mártires.
12.4. Crise do Império e da Igreja A morte de Marco Aurélio (180) trouxe uma mudança. Seu filho e sucessor Cómodo (180-192) não é lembrado com louvores pelos que o seguiram. Não teve ca pacidades políticas e entregou-se totalmente ao fanatismo religioso. Seu pai fora um homem da razão; ele era um homem da religião. Em seu governo, a Ásia tomou conta da Europa. As tradições romanas que Augusto quisera salvar foram engolidas pelas tradições orientais. Cómodo foi o primeiro dos imperadores romanos a se dei xar vencer pelo Oriente. Iniciou-se nos mistérios da "Grande Mãe", Cibele, de Isis (Egito), de Mithras (Irã), autodenominando-se de "o bem-aventurado" Cómodo. Pensava que Hércules voltara a se manifestar em seu corpo, pois era um homem forte, e nas estátuas fez-se representar vestindo pêlo de leão, tendo uma clava na mão. Morreu envenenado por sua concubina cristã, Márcia. A partir de sua morte, os imperadores passaram a ser nomeados pelo exército. O novo imperador foi Septímio Severo (193-211), natural de Cartago. Severo trouxe para Roma as divindades adoradas em sua terra (Isis, Serapis e Cibele). Todas as suas ações eram dominadas pela crença no destino, valendo-se da astrologia. Caracala (211-217), Elgabal (218-222) e Alexandre Severo (222-235) seguiram os cultos introduzidos pelos seus predecessores. O sincretismo religioso, favorecido por estes imperadores, possibilitou paz para o cristianismo. A fé cristã pôde se ex pandir e ascender inclusive às classes dominantes. Politicamente, os governos destes imperadores e de seus sucessores foram um fracasso. Houve retrocesso no crescimen to populacional, inflação e perda de territórios. O retrocesso no crescimento popula cional obrigou o governo a permitir o ingresso de trabalhadores de fora das frontei ras do Império. A partir de 249, imperadores naturais da Ilíria procuraram, através de uma concentração de forças, salvar a unidade do Império. Contra as forças desagregadoras dos cultos orientais é que se voltou o edito do Imperador Décio (249-253), no ano de 250. Segundo este edito, todos os habitantes do Império tinham que sacrifi car aos deuses e ao génio do Imperador. Feito o sacrifício, o autor do mesmo rece bia um certificado. O edito não se dirigia especificamente contra os cristãos, mas os atingiu em cheio, pois os adeptos das comunidades cultuais não-cristãs realizavam os sacrifícios sem maiores escrúpulos. As religiões sincretistas não proibiam tal sacri fício. Para os cristãos, a situação era diferente. Para eles, o sacrifício era uma ques tão de fé, de sobrevivência. Pois a negação do sacrifício significava automaticamen te prisão, perda da propriedade e morte. Houve casos de perseverança, cristãos cora josos que assumiam o martírio. Mas não foram eles que salvaram a Igreja de sua maior perseguição. A Igreja perdoou aqueles que fraquejaram. O número dos que fraquejaram foi enorme. Muitos acorriam aos sacrifícios; outros subornaram as au toridades, ou pagavam pessoas para que sacrificassem em seu lugar. Jamais se exigiu que cristãos deixassem de ser cristãos. Mais duro, porém, foi o imperador Valeríano (253-260). Valeriano via a situa ção do Império deteriorar-se rapidamente e voltou-se, através de éditos, diretamen5-
te contra os cristãos. Atacou o clero, proibindo-lhe a celebração de cultos, exigin do dele o sacrifício oficial e confiscando os bens da Igreja. Novamente houve márti res. Essas medidas fizeram as comunidades vacilarem, mas não as conseguiram ex terminar. Além disso, as autoridades locais não agiram de maneira uniforme. Já o filho de Valeriano, Galieno (260-268), agiu de maneira diversa do pai, sendo toleran te. Essa tolerância praticamente equivaleu a um reconhecimento do cristianismo. A fé cristã tornava-se, finalmente, religio licita. O texto do edito, publicado em 260 ror Galieno e que declarava a fé cristã religião lícita, está perdido. Existe ainda o :exto de seu rescrito de 261, no qual podemos ler o seguinte: "O Imperador César P. Licínio Galieno, Pio, Félix, Augusto, a Dionísio, Pina, Demétrio e demais bispos. Ordenamos que se estenda a toda a terra a indulgência que inspirou nossa bondade, de tal maneira que todos os nossos súditos abandonem os an tros de superstição. Podereis, pois, vós também, usar das disposições de nosso Rescri to, para que doravante ninguém vos moleste. Aliás, já foi concedido há tempo o que legalmente vós podeis fazer. Deixo o procurador de assuntos públicos, Aurélio Cirênio, encarregado de dar cumprimento a esta disposição em vosso favor".
O vencedor na política religiosa dos imperadores romanos foi o deus Sol. O culto ao deus Sol atraía os soldados, sob cujos ombros repousava a unidade do Im pério. Conta-se, em lenda, que o Imperador Aureliano (270-275), ao atacar o reino da rainha Zenóbia, na Ásia Menor, teve uma visão na qual lhe apareceu o sol invictus. Esta visão foi tida como um sinal de que o deus Sol tomara o partido dos roma nos. Aureliano venceu as tropas de Zenóbia e construiu um templo ao deus Sol na cidade de Emesa. Mithras tornara-se o deus do Império Romano.
12.5. Luta final Após a morte de Aureliano, houve nove anos em que se sucederam sete im peradores, até que Diocleciano (284-305) assumiu o poder. Diocleciano era natural da Dalmácia. Ele queria restaurar o Império. Sua restauração levou a conflitos. Diocleciano iniciou com ações militares, que tinham a finalidade de garantir as fronteiras. Feito isso, pôde dedicar-se a reformas internas. No centro dessas refor mas estava a reconstituição do Império. Significativa foi a divisão de poderes, inicia da pelo Imperador. Para poder controlar melhor o Império, nomeou seu colega de armas Maximiano como co-regente, dando-lhe o título de Augusto. Havia, assim, dois imperadores. Maximiano governava sobre o Ocidente, tendo como capital a ci dade de Milão, enquanto que Diocleciano sobre o Oriente, tendo como capital a ci dade de Nicomédia. Diocleciano não precisava temer que seu colega viesse a derru bá-lo do poder. Como os dois imperadores não tinham uma árvore genealógica a apresentar, valeram-se do mundo dos deuses. Diocleciano deu-se o cognome "Jovius"; Maximiano, o cognome "Herculius". Com os cognomes estava expressa a subordinação de Hércules a Júpiter, de Maximiano a Diocleciano. Diocleciano era da opinião de que as dimensões territoriais do Império torna vam necessário o surgimento de auxiliares para os imperadores. Por isso escolheu Galeno como César para o Oriente e para o Ocidente um César chamado Constân cio Cloro. Os dois césares deveriam vir a ser, algum dia, os sucessores dos dois Augusti. Para ligá-los um pouco mais a seu superior imediato, Galério teve que se caS5
sar com a filha de Diocleciano, Valéria. Constâncio, que até então vivera amigado com uma garçonete, Helena, abandonou-a e casou-se com a enteada de Maxiamiano, Theodora. Com a garçonete Helena Constâncio tivera um filho de nome Cons tantino. Com essa política casamenteira, os dois césares eram agora genros dos seus Augusti. Galério tinha sua residência em Sirmium, na Eslovénia, enquanto que Cons tâncio foi morar em Tréveres (Trier). Diocleciano não era um tipo romântico, muito menos um entusiasta religioso. Ao adotar o cognome Jovius, quis expressar que colocava o Império sob a proteção de Júpiter. Pouco lhe interessava que os soldados de então imaginassem Júpiter co mo o sol invictus. Estava convencido de que "os deuses imortais serão propícios ao nome romano", caso todos os homens "que estão sob o nosso governo levarem uma vida piedosa, calma e pura". Diocleciano tolerou o cristianismo, que nos últi mos decénios crescera espantosamente. Na corte, entre os oficiais e no exército, ha via muitos cristãos. Sua esposa Prisca, sua filha Valéria, a esposa de Galério, e The odora, a enteada do outro "Augusto", Maximiano, e esposa de Constâncio, eram tidas como cristãs. Diocleciano não simpatizava com a fé cristã, mas também não queria iniciar uma guerra religiosa. Diocleciano foi duro contra uma outra doutrina, proveniente da Pérsia e que tinha pretensões de ser religião de toda a humanidade. Seu fundador Mani (218-276), descendente de uma família real iraniana, reconhecera que todas as religiões só ha viam tido uma influência bastante limitada. Esse seria o caso de Buda, Zoroastro e Jesus. Mani via nestes homens precursores de sua doutrina, que era dirigida a toda a humanidade. Sua cosmovisão era dualista. Luz e trevas são opostos, assim como o bem e o mal. Também as pessoas estão incluídas nessa luta dos opostos, mas deus quer redimi-las, enviando-lhes um mensageiro e mostrando-lhes, assim, o caminho no qual a pessoa é libertada das algemas das trevas para que a luz venha a brilhar nela com toda a clareza. Essa libertação se dá através de uma ascese radical, de uma separação de todas as ligações materiais. Mani teve uma grande atividade missionária; pregou durante trinta anos, vin do a se chocar com a classe dominante de sacerdotes da Pérsia. Foi preso e crucifica do. Após a morte de Mani, ocorreu a expansão do maniqueísmo, que chegou a al cançar o Norte da África e a China. Agostinho veio a conhecer o maniqueísmo e a ser maniqueísta durante parte de sua vida. Diocleciano viu no maniqueísmo a dou trina do inimigo. A Pérsia, pátria de Mani, não fazia parte do Império, e, assim, os missionários maniqueístas eram vistos como agentes políticos da Pérsia. Com um edito do ano 298, Diocleciano iniciou a luta contra o maniqueísmo. No ano 300, o Imperador iniciou, ainda, com uma "operação limpeza" no exército. Todos os soldados foram obrigados a realizar sacrifícios. Quem não os re alizasse era afastado do exército. Esse procedimento ocorreu sem derramamento de sangue. Mas havia pressões, oriundas da alta oficialidade, que exigiam uma elimina ção radical do cristianismo. Para eles, a Igreja se tornara muito forte, quase que um estado dentro do Estado. Em muitos casos, a presunção com que certos repre sentantes do clero se apresentavam provocara a ira dos oficiais. Galério estava entre aqueles que queriam a eliminação dos cristãos. Sua vitória sobre os persas dera-lhe grande prestígio. Talvez também houvesse uma rivalidade em relação ao Imperador. Provavelmente Galério tenha querido mostrar sua superioridade em relação a Diocle-.'-.: Não c sal emos zz certo, Em sua posição em relação ao cristianismo existia, :-
entre ambos, apenas uma divergência na tática. Diocleciano era um político mais sá bio que Galério. Tinha dúvidas quanto ao sucesso de um ataque radical aos cristãos. Depois de muito repensar e seguindo as previsões de um oráculo, resolveu atacar. Os quatro éditos, publicados entre fevereiro de 303 e maio de 305, foram assinados pelos quatro governantes e tinham validade para todo o Império. As determinações anunciavam: destruição das salas de reuniões das comunidades; entrega dos livros bíblicos e litúrgicos; perda dos direitos civis para todos os que se confessassem cris tãos; todas as pessoas pertencentes à nobreza e cristãs deveriam perder seus cargos. O passo seguinte foi o encarceramento de todos os clérigos. Quando as prisões esta vam cheias, começou-se a forçar os clérigos ao sacrifício. Por fim, foi desferido o ataque contra o povo cristão, forçando todos ao sacrifício. Não se proibiu o cristia nismo. Pretendia-se matar as comunidades de dentro para fora. Mas isso era, em grande parte, teoria. Podia-se entregar outros livros que não fossem os livros exigi dos. Mesmo assim, o número de mártires não foi pequeno. Muitos desapareceram nas minas ou em campos de trabalho forçado, após sofrer torturas. A perseguição estendeu-se a todo o Império, ainda que não mostrasse o mesmo rigor em todas as regiões. Houve regiões, principalmente no Ocidente, onde quase não teve sofrimen to. Onde, porém, os perseguidores agiam, ali quase todo o trabalho da Igreja aca bou paralisado. Apesar de tudo isso, o governo logo teve que reconhecer que o cris tianismo não podia ser destruído. A resistência era maior do que se esperava. O pri meiro a reconhecer isso foi Diocleciano. O reconhecimento do fiasco e sua doença levaram-no a renunciar em maio de 305 e a convencer o outro Augusto a fazer o mesmo. Em seu lugar, os Césares Galério e Constâncio Cloro tornaram-se Augusti. Dois protegidos de Galério tornaram-se Césares: Maximino Daza e Severo. Constâncio governou pouco tempo; adoeceu durante combates na Inglaterra e faleceu em York (306). Com ele estava seu filho Constantino, que havia fugido da corte de Galério, onde fora refém. O exército proclamou-o Augusto em lugar de seu pai. Constantino teve que lutar muitos anos para ser reconhecido como Au gusto. O sistema de governo idealizado por Diocleciano desmoronava. Houve épo ca em que seis Augusti lutavam pelo poder. Para os cristãos do Ocidente havia che gado a paz. No Oriente, as perseguições continuaram. Mas também os dias de Galé rio estavam contados. Foi acometido de um mal incurável; houve tensões com Maxi mino Daza, que não podia esperar a hora de se tornar Augusto. Tudo isso debilitou o ânimo de Galério. Foi Licínio, a quem ele colocara como Augusto no Ocidente em lugar de Constantino — a quem ele jamais reconhecera como Augusto —, que admitiu a falta de possibilidades de sucesso na perseguição aos cristãos. Licínio con seguiu que Galério assinasse, cinco dias antes de sua morte (311), um edito de tole rância que pôs fim a toda a perseguição no Império. É o seguinte o teor do edito de tolerância: "Entre outras providências para promover o bem duradouro da comunidade, temo-nos empenhado em restaurar o funcionamento das instituições e da ordem social do Estado. Foi nosso especial desejo que retornem ao correto os cristãos que têm aban donado a religião de seus pais. Após a publicação de nosso edito, ordenando o retor no dos cristãos às instituições tradicionais, muitos deles foram constrangidos a decidirse mediante o temor, e outros passaram a viver numa atmosfera de perigos e intranqui lidade. Sendo, porém, que muitos persistem em suas opiniões e evidenciando-se que, hoje, nem reverenciam os deuses, nem veneram seu próprio deus, nós, usando da nos-
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sa habitual clemência em perdoar a todos, temos por bem indultar a esses homens, outorgando-lhes o direito de existir novamente e de reconstruir seus templos, com a ressalva de que não ofendam a tranquilidade pública. Seguirá uma instrução aos magistrados de como se devem portar nesta matéria. Os cristãos, por esta indulgência, obrigar-seão a orar a seu Deus por nossa convalescença, em benefício do bem geral e do seu bemestar em particular, de modo que o Estado seja preservado de perigo e eles mesmos vi vam a salvo no seu lar". O edito foi publicado em nome de Galério, de Licínio e de Constantino. Maxi mino Daza negou-se a assiná-lo.
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13 Igreja Imperial 13.1. Ascensão de Constantino Quando Constantino sucedeu a seu pai, sua meta era ser o único governante do Império. Mas ele sabia que jamais alcançaria isso lutando contra a Igreja. Por seu turno, a Igreja estava disposta a apoiar um governante que estivesse pronto a apoiar sua existência. Mas ainda havia muitas dificuldades a serem vencidas até que se pudesse concretizar aquilo pelo que muitos ansiavam: um Imperador, um Impé rio, uma Igreja. Nascido por volta de 285, Constantino obteve sua formação política na corte de Diocleciano. Ali noivou com Fausta, a filha de Maximiano, que na época conta va com três anos de idade. Teve uma concubina, com a qual teve, por volta de 305, um filho de nome Crispo. Depois da "aposentadoria" de Diocleciano, Galério pro curou prender Constantino como refém em Nicomédia. Este, porém, conseguiu fu gir e, após a morte do pai, usurpou o trono. Com isso iniciou uma violenta luta pelo poder. Galério quis apenas consentir que Constantino fosse César e não Augusto; por isso designara Severo, que já era César, como Augusto. O filho do ex-imperador Maximiano, Maxêncio, seguiu o exemplo de Constantino e se fez proclamar Augus to. Com o auxílio do pai, ele conseguiu ser aceito como Augusto na Itália e na Áfri ca. Galério mandou, então, Severo lutar contra Maxêncio. Severo nada conseguiu, a não ser sua própria morte. Quando o velho Maximiano pensou em começar a go vernar novamente, Maxêncio expulsou o pai de seu território. Maximiano procurou, então, proteção junto a Constantino, o qual casou com sua filha Fausta. Constanti no recebeu o sogro, permitiu que este o incluísse festivamente na dinastia dos Hercú leos, para depois eliminá-lo. Para substituir Severo, Galério nomeou Licínio como novo Augusto, mas Licínio só conseguiu governar sobre algumas províncias do Da núbio. Depois da morte de Galério, Constantino quis ajustar contas com Maxêncio, invadindo a Itália em 312. Em 20 de outubro de 312, ante a cidade de Roma, aconte ceu a batalha decisiva. Maxêncio ordenou que suas tropas saíssem da cidade de Ro ma e atravessassem o rio Tibre. Para impedir que as tropas retornassem à cidade, ordenou que a ponte Mílvea fosse destruída. Depois, diante da pressão das tropas de Constantino, Maxêncio mandou que fosse construída uma ponte provisória, so bre a qual ele e os soldados começaram a tentar retornar à cidade. A ponte ruiu, e Maxêncio morreu afogado no rio Tibre. Constantino era agora o Imperador do Oci dente. Em fevereiro de 313, Constantino encontrou-se com Licínio em Milão. Ali estabeleceu-se o casamento de Constância, irmã de Constantino, com Licínio, o qual conseguiu que a esposa e o irmão concordassem com a adoção do filho que ti vera com uma escrava. Em Milão, os dois chegaram ainda a um acordo quanto à política religiosa a ser seguida. O texto resultante desse acordo reza:
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"Nós, Constantino e Licínio, Imperadores, encontrando-nos em Milão para conferenciar a respeito do bem e da segurança do Império, decidimos que, entre tantas coisas benéficas à comunidade, o culto divino deve ser a nossa primeira e principal pre ocupação. Pareceu-nos justo que todos, cristãos inclusive, gozem da liberdade de seguir o culto e a religião de sua preferência. Assim Deus, que mora no céu, ser-nos-á propí cio a nós e a todos os nossos súditos. Decretamos, portanto, que, não obstante a exis tência de anteriores instruções relativas aos cristãos, os que optarem pela religião de Cristo sejam autorizados a abraçá-la sem estorvo ou empecilho e que ninguém absoluta mente os impeça ou moleste ... Observai, outrossim, que também todos os demais terão garantida a livre e irrestrita prática de suas respectivas religiões, pois está de acordo com a estrutura estatal e com a paz vigente que asseguremos a cada cidadão a liberdade de culto segundo sua consciência e eleição; não pretendemos negar a consideração que me recem as religiões e seus adeptos. Outrossim, com referência aos cristãos, ampliando normas estabelecidas já sobre os lugares de seus cultos, é-nos grato ordenar, pela presen te, que todos que compraram esses locais os restituam aos cristãos sem qualquer preten são a pagamento (...) "Use-se da máxima diligência no cumprimento das ordenações a favor dos cris tãos e obedeça-se a esta lei com presteza, para possibilitar a realização de nosso propó sito de instaurar a tranquilidade pública. Assim continue o favor divino, já experimenta do em empreendimentos momentosíssimos, outorgando-nos o sucesso, a garantia do bem comum."
Para a Igreja havia iniciado uma nova era. Licínio tornou-se Augusto do Oriente, após haver vencido Maximino Daza. Com isso o Oriente cristão também pôde respirar aliviado. A paz entre Constanti no e Licínio, porém, não foi duradoura. Constantino forçou Licínio a abdicar e mandou executá-lo como inimigo do Império. Em 324, Constantino era o único im perador. Também a Igreja pôde jubilar, pois estava convicta de que agora ela tinha um imperador cristão.
13.2. César cristão Constantino não só propiciou paz à Igreja; presenteou-a, deu-lhe igualdade em relação a outros cultos e concedeu inúmeros privilégios a seu clero. Ele, que era leigo, que não pertencia à Igreja, que até o fim de seu governo foi pontifex maximus, sumo sacerdote de todos os cultos romanos, e que foi batizado apenas em seu leito de morte, teve, mesmo assim, grande influência sobre a Igreja, levando-a inclu sive a formular definitivamente sua doutrina. Suas intenções eram políticas. Ele que ria fazer da Igreja o poder espiritual sobre o qual podia repousar o Império. Por seu turno, a Igreja não queria ser uma seita, mas uma instituição que pudesse agir em todo o mundo. Aqui um auxiliou o outro. A essa tentativa de estabelecer um univer so cristão designamos de "Era Constantiniana". O regime instituído denominamos de "Cristandade". Constantino chegou à fé cristã via culto ao sol invictus. O culto a Mithras ti nha, na realidade, muitas semelhanças com a fé cristã. O culto a Mithras conhecia um batismo, uma ceia sagrada, épocas de jejum e outras práticas ascéticas. O discí pulo de Mithras fazia o sinal da cruz. O culto confirmava os neófitos para que vies sem a ser soldados na luta da luz contra as trevas. Além disso, falava-se nesse cul to de um novo nascimento, de conversão, redenção e ressurreição. e:
Para a pessoa da Antiguidade, um Estado sem religião era algo inconcebível. Essa era também a con vicção de Constantino. Como as lutas religiosas dos últimos decénios quase haviam destruído o Império, Constantino passou a adorar a "divindade" supre ma, que estava acima de todas as demais divindades, sem, no entanto, negá-las. A partir dessa concepção é que foi escrito o edito de tolerância de Milão. Já antes, quando lutara contra Maxêncio, Constantino colocara nos escudos de seus soldados uma cruz enviezada, que era cortada no centro por uma barra que tinha uma abertura no alto. Mais tarde, esse em blema foi interpretado como sendo o monograma de Cristo. No ano de 315, Eusébio de Cesaréia escreveu, no 9 o livro de sua história ecle siástica, que o Imperador obtivera a vitória junto à ponte Mílvea depois de haver im plorado a vitória do Deus dos céus e de seu Logos, Jesus Cristo. Após a morte do Imperador, Eusébio soube contar ainda outros fatos. Disse ele que o Imperador lhe confidenciara que, nos dias anteriores à batalha, aparecera a ele e ao exército, na hora do meio-dia, uma luz sobre o sol com a inscrição: Através disso vence (in hoc vincé). Na noite posterior, Jesus lhe aparecera com a cruz luminosa na mão, admoestando-o a confeccionar este sinal como meio de proteção, isto é, como amuleto. Por isso, o lábaro para a guarda pessoal do Imperador teria sido confeccionado com o monograma de Cristo. Outro historiador, Lactâncio, apresenta-nos uma narrati va não menos legendária a esse respeito. A tradição cristã viu nessas narrativas a "conversão" de Constantino. O úni co que nada ou pouco sentiu dessa "conversão" foi o próprio Constantino. Constan tino não conhecia uma fé cristã que dirige a vida a partir do coração. Sua "conver são" ao cristianismo talvez tenha sido sincera, mas não tinha profundidade teológi ca. Quanto mais reconhecia a importância da Igreja para sua política de governo, tanto mais desapareciam as formas do culto a Mithras que ainda eram conservadas, tais como monumentos e moedas, mas a linguagem simbólica do sol invictus ficou. Também ficou o culto ao imperador, que agora era apoiado pelos teólogos da corte que acompanhavam o governante. Podemos compreender os louvores e agradecimen tos que o episcopado apresentava ao imperador. Era festejado em toda a parte co mo o salvador, o segundo Moisés, homem escolhido por Deus como seu instrumen to. Ele próprio se via no papel de executor da vontade de Deus. No fundo, compreendia-se como o dono da Igreja, que tinha que obedecer às suas ordens. Como vigá rio terrestre da "suprema divindade", ele também não estava preso à ética que valia para os súditos cristãos. Era ele mesmo quem considerava válida ou não uma ação sua; era juiz de seus próprios atos. O que atrapalhava suas intenções era sumaria mente eliminado. Foi assim que mandou matar seu sogro, Maximiano, e Licínio. Ao filho de Licínio, com cuja adoção concordara em Milão, fez escravo; quando este tentou fugir, mandou açoitá-lo e, posteriormente, deportou-o para trabalhos forçados. Mandou matar seu filho Crispo, nascido de sua ligação com uma concubi na, anterior a seu casamento com Fausta, e a quem devia a vitória sobre o exército de Licínio, aparentemente por haver cometido adultério com sua madrasta. Pouco £
tempo mais tarde, sua esposa Fausta perdeu a vida: foi estrangulada e afogada em uma banheira. Além disso, Constantino foi responsável pelo assassinato de pessoas não tão conhecidas. Tudo isso aconteceu numa época em que o imperador já era ti do como cristão. Sua maldade não parava nem mesmo ante as leis cristãs que ele mesmo promulgara. Os teólogos da corte, porém, não viam suas mãos cheias de san gue. Viam, apenas, o imperador vestido de púrpura, ouro e pedras preciosas, o qual comparavam a "um anjo do Senhor, vindo do céu". Os primeiros conselhei ros cristãos do imperador foram o egípcio Ósio, bispo da cidade espanhola de Cór doba, e Eusébio de Nicomédia. Ósio representava os interesses da Igreja estatal e era um hábil político eclesiástico; Eusébio era um daqueles tipos de prelado que sem pre tem louvores nos lábios, mesmo quando há incertezas em seu coração. Ósio e Eusébio ensinaram ao imperador a linguagem eclesiástica, criando assim um estilo eclesiástico oficial. Por volta de 320, os cristãos ainda eram uma minoria, perfazendo 10% da po pulação do Império. Ao imperador não interessava o número de "crentes" cristãos, mas a Igreja cuja organização o atraía e com a qual ele queria celebrar um pacto.
13.3. Donatismo Logo após a sua vitória sobre Maxêncio, foi apresentado ao imperador um problema de disciplina eclesiástica. No Norte da África havia surgido uma violenta discussão a respeito da maneira como se deveria tratar aqueles que, durante a épo ca da perseguição, não haviam sido suficientemente perseverantes. Em geral havia opinião de que os que haviam caído, designados de lapsi, deveriam ser tratados sem muita severidade e perdoados. Um grupo pequeno, mas muito ativo, dirigido por um clérigo jovem e resoluto de nome Donato, desde 316 bispo de Cartago, voltouse contra essa prática. Os donatistas, como eram designados os adeptos de Donato, não estavam dispostos a reconhecer bispos que haviam fugido ao martírio na época da perseguição. Em decorrência da discussão surgiu um cisma, havendo dois bispos em Cartago. Para todo o Norte da África havia o perigo de toda a região ser dividi da em dois partidos religiosos. Aconselhado por Ósio, o imperador reconheceu a le gitimidade de Ceciliano como representante da Igreja Católica. Para defendê-lo, Constantino ofereceu-lhe o auxílio de seus funcionários. Uma lista de nomes de "al guns servos do correto e santíssimo culto católico", feita por Ósio, e para os quais o imperador fizera uma doação em dinheiro, não continha nomes de donatistas. Os donatistas não concordaram com este ato partidário do imperador. Para eles, Ceciliano tornara-se bispo de maneira incorreta, por haver sido ordenado por um traditor, por uma pessoa que entregara livros sagrados aos perseguidores. Além dis so, ele próprio não tivera a coragem de visitar cristãos encarcerados. Por isso, dirigi ram um apelo ao imperador, pedindo que a causa fosse julgada por três bispos galicanos. O imperador entregou a questão nas mãos do bispo romano Miltíades. Miltíades deveria formar, com três bispos galicanos, um grémio de juízes ante o qual Ceci liano e dez bispos de cada um dos dois partidos deveriam aparecer para serem julga dos. Miltíades convocou ainda 15 bispos italianos e transformou a questão em um Sínodo romano. O Sínodo, isto é, a reunião dos bispos, constatou que o carisma está sobre o ministério e não sobre o bom ou mau caráter do depositário do ministé rio. Ceciliano foi reconhecido como bispo, e Donato foi excomungado. A briga, po52
rém, não estava concluída. Os donatistas apelaram ao imperador, que convocou um Sínodo para Aries. Compareceram 50 bispos. O cisma foi aprofundado. Os do natistas apelaram, então, a um tribunal civil, mas o imperador os impediu. Ao mes mo tempo, Constantino teve que reconhecer que não dava conta do cisma. Até o século V, os donatistas continuaram a existir. Seu fim se deu com o surgimento do islão. Pouco depois, o imperador teve que fazer novas experiências com a Igreja. Na Igreja do Oriente surgira uma briga que tocava o cerne da fé cristã.
13.4. Quem é Jesus Cristo? Quando Jesus perguntou aos discípulos: "E vós, quem dizeis que eu sou?", Pedro respondeu com a confissão: "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo" (Mt 16.16). Paulo formulou essa confissão com as palavras: "Jesus é o Senhor" (1 Co 12.3). Essa confissão era o suficiente para os cristãos do século I. Com o contato da fé cristã com o mundo exterior, essas confissões tiveram que ser interpretadas. Os cristãos foram, em suma, forçados a fazer teologia. Tiveram que fazer formula ções dogmáticas. Da prática das comunidades surgiram as primeiras confissões. O credo batismal da comunidade romana, com o qual nos deparamos por volta do ano 150, tinha o seguinte teor: "Creio em Deus, o Pai, onipotente, E em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor, Nascido do Espírito Santo e da virgem Maria, que foi crucificado sob Pôncio Pilatos e sepultado, ressuscitou no terceiro dia de entre os mortos, subiu aos céus, está assentado à direita do Pai, de onde virá para julgar vivos e mortos; E no Espírito Santo, a santa Igreja, a remissão dos pecados, a ressurreição da carne". O Espírito humano procura sempre descobrir aquilo que a razão não consegue compreender. A adoção da filosofia grega na teologia cristã, tentada por Orígenes, provocara o surgimento de muitas perguntas. Havia muitas divergências no tocante à natureza do Salvador e de sua relação para com o Pai: especulações em torno da doutrina do Logos haviam acirrado os ânimos. Um dos centros de discussão era Antioquia, a comunidade-mãe do cristianismo gentio. Por volta de 260, Paulo de Samosata fora bispo daquela comunidade. Paulo fora ferrenho adepto do monoteís mo, pregando, por isso, que Jesus fora um filho adotivo de Deus, no qual o Logos agira de maneira impessoal, e, graças a sua grandeza moral e seu amor, fora eleva do a Deus. Paulo foi excomungado, mas seus pensamentos continuaram a agir. Um de seus discípulos foi Luciano, que criou uma escola independente da Igreja. Luciano morreu em 306, vítima das perseguições do Estado romano. De Antioquia também era natural Ário, que levou a discussão a seu ápice. Ário já era conhecido no mundo teológico, quando se dirigiu a Alexandria, onde veio a ser presbítero. Na quela época, Alexandria era uma cidade onde caíam as decisões da política eclesiásti ca; era também o antipólo teológico de Antioquia. Em outros tempos, a cidade fo ra um dos centros teológicos, devido à atividade de Orígenes. Agora havia uma li nha conservadora, que deixava de lado a teologia em voga entre os teólogos do OrienS
te, a qual ensinava que o Pai e o Filho não tinham a mesma essência, ou como diziam em grego, a mesma ousia. Essa teoria, rejeitada em Alexandria, era defendi da por Ário. Desde 312, o bispo de Alexandria era Alexandre. A ele Ário escreveu, dizendo: "O Filho não é igual ao Pai e também não é da mesma essência (ousia) que ele. Ele foi criado através da vontade do Pai antes dos tempos e éons, mas não assim que tivesse sido antes de ser criado (...) Cristo é uma criatura feita do nada". O próprio Alexandre não era um teólogo muito seguro de si mesmo. Durante sua juventude, a metafísica de Orígenes havia influenciado seu pensamento teológico e, quando ele teve que formular a sua própria confissão de fé, aí se evidenciou quão frágil era sua posição. Foi por isso que ele vacilou muito antes de entrar na discus são. Os muitos inimigos de Ário aproveitaram essa vacilação para ligar a heresia dogmática a discussões de ordem político-eclesiástica e providenciaram assim sua de missão e seu exílio. Ário não teve medo. Viajou através do Oriente e conseguiu o apoio de quase todos os homens letrados. Pessoas influentes como Eusébio de Nicomédia, mais tarde capelão de Constantino, e Eusébio de Cesaréia conseguiram que dois sínodos o declarassem ortodoxo e reinvestissem em suas funções de presbítero. Foi aí que a discussão pegou fogo. O bispo Alexandre tinha entrementes um novo auxiliar, um jovem diácono chamado Atanásio (295-375). Este se lançou decidida mente contra Ário, dizendo que para ele não havia mais lugar na Igreja. Houve tu multos. A discussão tomou conta do Egito. Todo o Oriente estava em chamas. Foi essa a situação com a qual Constantino se deparou ao se tornar senhor de todo o Império. Constantino ficou aturdido por ver que a Igreja, sobre a qual ele queria colocar as bases do Império, estava por se dividir. Logo viu que não podia pôr fim às brigas com simples admoestações. Escreveu uma carta a Ário e a Alexandre, mas os dois permaneceram irredutíveis. Ósio convocou um Sínodo para a cidade de Antio quia. As teses arianas foram julgadas heréticas, e três adeptos de Ário, entre eles Eusébio de Cesaréia, foram excomungados. O termo homoousios, de igual essência, nem entrou em discussão. Só mais tarde viria a ter a importância que veio a ter. A maioria dos bispos nem tinha noção do problema, e por isso o resultado do Síno do foi bastante questionável. Esse fato motivou o imperador a interferir diretamente na questão. Convocou um Sínodo de todo o Império, que deveria se reunir na re sidência de verão do imperador, em Nicéia, no verão de 325. Nem todos os 400 bis pos de então foram convidados. O imperador escolheu apenas alguns. Dos que fo ram convidados compareceram 250 com seus séquitos particulares. Antes do início do Sínodo, aqueles que haviam sido excomungados em Antioquia foram readmiti dos. Todos viajaram por conta do Estado. O maior contingente de bispos provinha do Oriente. Do Ocidente vieram apenas quatro bispos, além de Ósio, representan do Cartago, a Gália, a Calábria e a Panônia. Roma fez-se representar por dois presbíteros. O imperador foi um hospedeiro exemplar, mas também deu a entender que ele era o dono da conferência! Ele próprio abriu o Sínodo em 20 de maio de 325. Após ser saudado pelo bispo Eusébio de Nicomédia, Constantino saudou os presentes e admoestou-os a preservarem a unidade. A maioria dos bispes-não era do tipo que se chama de intelectuais. Eram pessoas sem complicações, homens práticos que não tendiam a fazer especulações teológicas. Por outro lado, o vício da fofoca estava bastante difundido entre eles. Por isso, "os amados irmãos" apresentaram ao impe rador uma porção de moções que nada tinham a ver com a fé, mas que continham uma série de acusações mútuas. Constantino não lhes deu atenção, mandando quei£4
má-las. A ala "esquerda" dos bispos era fraca. Havia 20 arianos radicais, que apre sentaram uma fórmula de fé que foi imediatamente rejeitada. Mas nesse consenso o imperador interveio. Os conciliares haviam formulado: "gerado da ousia (da essên cia) do Pai". Constantino exigiu que se incluísse o termo homoousia, que nem entra ra em discussão. A passagem do "Credo de Nicéia", que foi aprovada, tinha o se guinte teor: "Cremos em um Deus, o Pai onipotente, criador de todas as (coisas) visíveis e in visíveis. E em um Senhor, Jesus Cristo, o Filho de Deus, gerado como unigénito do Pai, isto é, da ousia do Pai, Deus de Deus, Luz de Luz, verdadeiro Deus de verdadei ro Deus, gerado, não criado, homoousios com o Pai (...)". Não se sabe quem sugeriu o termo homoousios ao imperador. O que o impera dor queria era pôr um fim, com este termo, a toda a especulação a respeito do Logos. Os bispos curvaram-se ante as exigências do imperador. Os arianos foram exco mungados. Eusébio de Nicomédia e o bispo de Nicomédia, Theognios, que assina ram o credo, mas não queriam reconhecer a excomunhão de Ario, foram exilados. O imperador estava satisfeito com o resultado e publicou o Credo como lei imperial: "Cremos em um só Deus, Pai onipotente, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis; e em um só Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, gerado pelo Pai, unigénito, is to é, da substância (ex tes ousías tou patrós) do Pai, Deus de Deus, Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado não feito, de uma só substância (homoousion to patrí) com o Pai, pelo qual foram feitas todas as coisas, as que estão no céu e as que estão na terra; o qual por nós seres humanos e por nossa salvação desceu, se encar nou e se fez pessoa humana e sofreu e ressuscitou ao terceiro dia, subiu ao céu, e nova mente deve vir para julgar os vivos e os mortos; e no Espírito Santo. E a quantos dizem: 'Ele era quando não era' e 'Antes de nascer, Ele não era', ou que 'Foi feito do não existente', bem como a quantos alegam ser o Filho de Deus 'de outra substância ou essência', ou 'feito', ou 'mutável', ou 'alterável', a todos estes a Igreja Católica e Apostólica anatematiza." Aos poucos, passado o Concilio, voltou-se à realidade. Respeitando o impera dor, cada um interpretava o homoousios a sua maneira. O imperador, que não en tendia muito de sutilezas teológicas, foi envolvido. Ário apareceu perante o impera dor e apresentou-lhe uma confissão, onde se dizia de acordo com o credo de Nicéia. O imperador ordenou a realização de um Sínodo local, em Nicéia (327), onde Ário foi readmitido. Os dois bispos excomungados em 325 também foram readmitidos. Atanasio, que desde 328 era bispo de Alexandria, esbravejava e negava-se a reintroduzir Ário em seu cargo no Egito. Nada nem ninguém conseguiu demover Atanasio de suas decisões. Constantino teve que reconhecer sua firmeza. Um Síno do realizado em Tiro (335) teve a finalidade de demiti-lo de seu cargo. Os convencio nais só o conseguiram demitir, apresentando denúncias políticas: anunciaram ao im perador que Atanasio ameaçara interromper o fornecimento de cereais para a nova 55
capital Constantinopla, caso fosse forçado a readmitir Ário. O imperador ficou fu rioso. Sem qualquer julgamento, mandou demitir Atanásio e enviou-o para o exílio em Tréveres. Atanásio foi sem murmurar. Sua luta, porém, não chegara ao fim. Pouco tempo depois, Ário morria. Não conseguiu mais fixar-se em Alexandria. Morreu na via pública em Constantinopla (336). No exemplo de Ário pode-se ver como a Igreja Antiga lidava com hereges, pois Atanásio nos relata uma morte deveras singular para o mesmo. Conta Atanásio que Ário estava passeando com Eusébio de Nicomédia, quando se sentiu mal e pro curou uma instalação sanitária. Nesse local, seu corpo'se partiu em "dois, a exemplo do que acontecera com Judas (At 1.18). Os órgãos internos e os intestinos ter-se-iam diluído, Ário encolhido sempre mais até que caiu pelo orifício do sanitário, juntando-se aos demais excrementos. Morte de herege...
13.5. Resultados de uma revolução Constantino é um dos grandes revolucionários da história. Ele pôs fim à An tiguidade. Sua política foi uma revolução, que provocou um desenvolvimento que viria a se completar naquilo que designamos de Idade Média. Alguns historiadores, inclusive, deixam a Idade Média começar com Constantino. Pouco a pouco, ele convenceu-se de que o futuro pertencia à fé cristã. Por isso, na unidade da Igreja tinha que residir também o futuro, a unidade do mundo e da história: política e religião tinham que formar uma unidade. Inevitável era que ele, o imperador, fosse o coman dante dessa Igreja. Seu alvo era a criação da Igreja estatal. Não atacou os cultos pa gãos. Sua maneira de presentear as comunidades cristãs, porém, levou os cultos pa gãos a uma sempre menor importância. A "Era Constantiniana" é criticada até hoje. Não podemos deixar essa críti ca simplesmente de lado. Não podemos esquecer as consequências negativas que trou xe, ao atrelar a Igreja ao Estado, criando o modelo da "Cristandade". Criou-se a Igreja que estava aí para justificar as ações do governante. Por outro lado, não va mos conseguir eliminar história, ou então idealizar uma história, onde poderíamos dizer quê sem Constantino a Igreja ter-se-ia tornado uma "verdadeira comunhão". A realidade é outra: a intervenção de Constantino na Igreja do século IV, em certo sentido, evitou sua extinção. Que teria sido da Igreja, se ela tivesse ficado entregue às mãos dos-teók>gos~e bispos? A situação em que a Igreja se encontrava no início do quarto século só podia ser consertada por uma mão forte. Foi Constantino quem forneceu garantias para a existência da Igreja. Assim ela pôde tornar-se uma potên cia. A Igreja deveria ser a representante da fé cristã e não uma pluralidade de peque nas comunidades. Constantino sancionou o episcopado monárquico, dando-lhe rega lias no Império.... No ano dí~32i, o* domingo tornou-se dia de descanso no Império. Era o dia dó" deus Sol, mas os cristãos, que comemoravam o primeiro dia da semana como "dia do Senhor", podiam sem maiores problemas ver em Cristo o "sol da justiça" e relacionar o domingo ao primeiro dia da criação, o dia em que "se fez luz". Com isso, o sábado foi deixado de lado. Aos poucos transferiu-se também a data do nas cimento de Jesus de 6 de janeiro para 25 de dezembro, o dia do nascimento do deus Sol. Constantino esmerou-se em construir igrejas e basílicas. Sua mãe Helena não foi menos pródiga nesse sentido. No Bósporo, Constantino ordenou a construção bí
de uma nova cidade, Constantinopla; ela deveria servir de sinal de que o Oriente ven cera o Ocidente, a fé cristã sobre o paganismo. Nela não se permitiu a construção de templos pagãos. No dia de pentecostes do ano 337, o imperador morreu; tinha 63 anos. Foi batizado no leito de morte por Eusébio de Nicomédia. A teologia oficial celebrou-o como 13° apóstolo.
13.6. Igreja estatal Pouco antes de sua morte, Constantino ordenara a divisão do reino entre seus filhos: Constantino II, Constâncio II e Constante. Além disso, nomeara seu sobri nho Dalmácio como César sobre a Dalmácia. Brigas entre os herdeiros levaram a lu tas, das quais restou Constâncio II (350-361). Constâncio não foi tão sábio quanto seu pai no tocante à política religiosa. Proibiu os cultos pagãos, fechou os templos, em parte mandou destruí-los. O resulta do foi muita corrupção e muita hipocrisia. Quem dizia ser "cristão" tinha uma car reira garantida. Logo após a morte de Constantino, recomeçaram as discussões dogmáticas. O nível em que essas discussões se travaram era tremendamente baixo. O povo foi fanatizado pelos bispos. Estes usavam o povo para fazer com que suas pretensões fossem aceitas. Os ânimos se acirraram quando Atanásio voltou a Alexandria. No Oriente, quase ninguém mais aceitava a fórmula de Nicéia. Atanásio, porém, não conhecia compromissos. O único a apoiá-lo foi o bispo de Roma. As coisas se torna ram difíceis para ele, quando Constâncio II caiu sob a influência do arianismo. Cons tâncio II convocou um Sínodo para a cidade de Sárdica, hoje Sófia, que terminou com um cisma e um novo exílio de Atanásio. Atanásio foi a grande figura daquela época. Assemelha-se quase à figura de um romance. O partido ariano, impossibilitado de continuar batalhando pelas antigas posi ções, lutava agora pela fórmula homoiousios, que era interpretada da seguinte ma neira: o Filho de Deus é igual ao Pai, mas não é igual ao Pai no que toca a substân cia, a essência. Esta formulação permitia muitas interpretações. Assim mesmo, Cons tâncio II procurou torná-la obrigatória em todo o Império. Contra ela Atanásio voltou-se-se com todo o vigor. Constâncio II não teve filhos. Seu primo Juliano (361-363) veio a sucedê-lo. Juliano recebeu educação cristã. Passou toda a sua juventude em prisão domiciliar. Seu pai e seu irmão haviam sido assassinados. A fé cristã não conseguiu cativá-lo. Aos 20 anos, foi solenemente iniciado nos mistérios e passou a declarar-se, se bem que não publicamente, adepto do deus Sol. Desde então frequentava, em público, os cultos cristãos; em oculto, dedicava-se. à filosofia e aos mistérios. Dez anos mais tarde, ao tornar-se imperador, ordenou tolerância para com toda a filosofia e para com todas as religiões, também para com a fé cristã. Permitiu que os bispos exila dos por Constâncio retornassem, eliminou de sua corte todos os funcionários cris tãos corruptos. Não perseguiu o cristianismo, mas afastou os cristãos dos cargos pú blicos e vedou-lhes o acesso ao ensino superior. Os antigos cultos deveriam ser res taurados, mas não se obteve êxito nesse mister, pois o povo não acompanhou a res tauração. A estrutura eclesiástica não ruiu. Juliano morreu em guerra com os persas. A lenda conta que suas últimas palavras teriam sido: "Venceste, Galileu". Essas pa51
lavras lendárias refletem uma realidade: em 361, a fé cristã já estava por demais en raizada para ser eliminada. Atanásio, com seu caráter resoluto, não calou ante as decisões de Juliano, sen do novamente exilado. Ao ter que deixar novamente Alexandria, disse à comunida de: "Não vos enganeis, irmãos, trata-se apenas de nuvenzinha e rapidamente passa rá". Em 364, Atanásio estava de volta a Alexandria. Após a morte de Juliano, Joviano (363-364) foi aclamado imperador. Com sua morte, em 364, Valentiniano (364-378) assumiu o poder e governou sobre o Oci dente. No Oriente, Valentiniano colocou seu irmão Valêncio (364-378) como impera dor. Os dois imperadores, ao que tudo indica, eram de origem germânica. Isso tal vez explique o fato de Valêncio haver protegido o partido ariano. Houve protestos de Atanásio e novo, porém breve, exílio do bispo. Valêncio morreu lutando contra os godos. De 379 a 395 governou Teodósio. Um ano após o início de seu governo, Teodó sio publicava, em 28 de fevereiro de 380, um edito religioso, no qual era decretada a unidade religiosa do Império: "Queremos que as diversas nações sujeitas à nossa Clemência e Moderação conti nuem professando a religião legada aos romanos pelo apóstolo Pedro, tal como a pre servou a tradição fiel e tal como é presentemente observada pelo pontífice Dâmaso e por Pedro, Bispo de Alexandria e varão de santidade apostólica. De conformidade com a doutrina dos apóstolos e o ensino do Evangelho, creiamos, pois, na única divindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo em igual majestade e em Trindade santa. Autoriza mos os seguidores dessa lei a tomarem o título de Cristãos Católicos. Referentemente aos outros que julgamos loucos, cheios de tolices, queremos que sejam estigmatizados com o nome ignominioso de hereges, e que não se atrevam a dar a seus conventículos o nome de Igrejas. Estes sofrerão, em primeiro lugar, o castigo da divina condenação e, em segundo lugar, a punição que nossa autoridade, de acordo com a vontade do céu, decida inflingir-lhes". Existem alguns aspectos nesse edito que chamam atenção: o bispo romano Dâ maso e o sucessor de Atanásio (fal. 373), Pedro, são citados como garantia da orto doxia. Além disso, deparamo-nos com formulações confessionais que falam da divin dade do Espírito Santo. Aqui temos fixada a Doutrina da Trindade na formulação de uma nova geração de teólogos. Dessa geração fazem parte os grandes capadócios: Basílio, metropolita de Cesaréia (329-379), Gregório de Nissa, bispo da diocese de Ponto (335-394), e Gregório de Nazianzo, metropolita de Constantinopla (329-390). O labor teológico dessa geração encontra sua formulação definitiva no Credo Niceno-Constantinopolitano, aprovado em 381 no Concílio de Constantinopla: "Cremos em um Deus, Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis; e em um Senhor Jesus Cristo, o unigénito Filho de Deus, gerado pelo Pai antes de todos os séculos, Luz de Luz, verdadeiro Deus de verdadeiro Deus, gerado não fei to, de uma só substância com o Pai, pelo qual todas as coisas foram feitas; o qual, por nós seres humanos e por nossa salvação, desceu dos céus, foi feito carne do Espírito Santo e da Virgem Maria, e tornou-se humano, e foi crucificado por nós sob o poder de Pôncio Pilatos, e padeceu e foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia conforme as Escrituras, e subiu aos céus e assentou-se à direita do Pai, e de novo há de vir com gló ria para julgar os vivos e os mortos, e seu reino não terá fim; SS
e no Espírito Santo, Senhor e Vivificador, que procede do Pai, que com o Pai e o Filho conjuntamente é adorado e glorificado, que falou através dos profetas; e na Igreja una, santa, católica e apostólica; confessamos um só batismo para remissão dos pecados. Esperamos a ressurreição dos mortos e a vida do século vindouro".
Atanásio não presenciou mais o final do debate ariano. No entanto, o resulta do do mesmo foi fruto de sua perseverança. Com as medidas de Teodósio havia surgido a Igreja Imperial. Uma lei impe rial proibiu a volta ao paganismo. Ninguém mais podia deixar de ser cristão! As co munidades cristãs perderam sua autonomia e ficaram completamente sob a tutela dos bispos, por sua vez tutelados pelo Estado. O regime de Cristandade se completava.
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14 Doutrina e vida da Igreja 14.1. Primórdios do papado Segundo a tradição católico-romana, Pedro foi o primeiro bispo da comuni dade cristã de Roma. Teria sido seu líder por 25 anos. Segundo a doutrina católicoromana, todos os demais bispos de Roma são seus sucessores. Não se pode contestar a posição primordial que Pedro teve no círculo dos após tolos. Nada sabemos a respeito do surgimento da comunidade romana. Está, porém, confirmado que nem Pedro tampouco Paulo foram seus fundadores. At 28.30s nos relata que Paulo esteve prisioneiro em Roma, e I Clemente nos fala que os dois após tolos teriam morrido como mártires em Roma. Seja como for, os inícios da comunidade de Roma estão envoltos por muitas lendas, onde lenda e história se confundem. A perseguição de Nero parece ter sido superada em pouco tempo pela comunidade. Logo ela veio a se tornar a maior co munidade cristã. No ano de 150, ela tinha 30 mil membros e um clero de 155 pesso as. As mais antigas listas de bispos têm essencialmente nomes gregos, tendo sido gre ga também a língua do culto. Somente a partir de 250 iniciou um processo de latinização, favorecido pelo trabalho de Tertuliano e Cipriano. A comunidade era pródiga no auxílio a necessitados. Mas também não era uma figura muito pura do que deva ser Igreja. Havia brigas internas, e os bispos nem sempre foram "santos". Na Igreja antiga, ninguém pensava em dar a Roma uma posição de liderança; somente na Itália é que Roma assumiu essa posição. Quando a Igreja cristã se tornou Igreja Imperial, por desejo de Constantino, Roma não teve participação. Em Nicéia, Roma se fez representar por apenas dois presbíteros. Com a transferência da capital para Constantinopla, o peso da política se trans feriu para o Oriente. Os monarcas continuaram a favorecer Roma com construções de belas igrejas, mas nem de longe pensavam em dar a Roma uma posição de pre ponderância. Roma tentou ir contra essa situação histórica na segunda metade do século V, por meio de uma lenda. Na 1 biografia do bispo Silvestre (314-335), um bispo sem maior significado, constava que ele curara Constantino da lepra, após a vitória deste sobre Maxêncio. Dois séculos mais tarde, a lenda de Silvestre foi relacionada à maior falsificação de documentos da Idade Média, a Donatio Constantini, a Doação de Constantino. Segundo estes documentos falsificados, Constantino teria doado a Sil vestre e a seus sucessores os Estados Papais. Uma grande mudança aconteceu com a ascensão de Teodósio I, em cujo gover no se deu a volta à ortodoxia católica. Naquela época, Dâmaso (366-384) era bispo de Roma. Sua intenção era fazer valer a supremacia de Roma em relação ao Orien te. Dâmaso era um homem letrado e de interesses teológicos. Sua eleição não ocor7C
reu pacificamente. Uma minoria elegera o diácono Ursino. Ursino acabou expulso de Roma após violentas lutas nas ruas de Roma. Seus adeptos esconderam-se em uma igreja, que foi aberta à força das armas. Os adversários de Dâmaso tiveram 137 mortos. Mal haviam cessado as lutas, Dâmaso foi acusado de ser mandante de um assassinato. O processo instaurado absolveu Dâmaso. O imperador não tinha in teresse em deixar cair o homem que fora eleito com seu apoio. O caso, porém, não serviu para melhorar o conceito do bispo. As únicas a estimarem o bispo eram as senhoras da alta burguesia, que o subvencionavam materialmente. Por isso, Dâma so, na época com mais de 60 anos, recebeu a alcunha de "orelhão das matronas". Oito anos mais tarde, Dâmaso convocou um Sínodo romano, que confirmou a deci são imperial de absolver o bispo. O mesmo Sínodo enviou ao imperador uma peti ção no sentido de que o bispo de Roma tivesse supremacia em questões jurídicas de ordem eclesiástica. O imperador da época era Graciano (375-383); este, por decre to, declarou que o bispo de Roma era a autoridade eclesiástica máxima no Ociden te em questões jurídicas. Este decreto foi de grande influência para o futuro. Em breve, os decretos papais foram considerados de valor idêntico aos dos concílios. A Dâmaso e a seu sucessor Siríaco (384-399) convencionou-se designar de os primeiros "papas". Tal designação, no entanto, não confere, pois, no século II, o título "papa" é conferido a todos os bispos. Título exclusivo para o bispo de Ro ma a palavra "papa" vem a ser somente a partir do final do século V. Na época de Dâmaso e de Siríaco, a pessoa de maior poder e autoridade foi, sem dúvida, Am brósio, bispo de Milão.
14.2. Ambrósio de Milão Ambrósio (339-397) nasceu, provavelmente, em Tréveres, como filho de uma família romana. Seu pai, falecido pouco após seu nascimento, era governador da Gália. Ele próprio seguiu as pegadas do pai. Em 370, tornava-se governador do Nor te da Itália. Quando procurava, como governador, mediar a luta surgida em Milão por cau sa da sucessão do bispo Auxêncio, os partidos litigantes se uniram em torno de sua pessoa, elegendo-o bispo. Ambrósio concordou, após vacilar; foi batizado e sagra do bispo em 7 de dezembro de 374. Foi um grande político eclesiástico, conseguin do defender a autonomia e o prestígio da Igreja frente ao Estado, se bem que nem sempre consigamos concordar com suas decisões e métodos. Logo no início de seu episcopado, conseguiu evitar o confisco de uma das Igre jas de Milão, que seria entregue aos arianos. Ambrósio evitou o confisco, entrando com a comunidade na igreja; ali, para fazer com que a comunidade permanecesse firme, ensinou-a a cantar antífonas e hinos. Em Ambrósio temos um dos criadores do hino latino-cristão. Os arianos deixaram de ter importância entre os romanos, quando Teodósio I se tornou imperador. Este imperador tinha Ambrósio em alta conta, curvando-se duas vezes às suas exigências. Em 388, Teodósio ordenara que a comunidade cristã reconstruísse uma sinagoga que fora destruída por cristãos exaltados na Mesopotâ mia. Ambrósio fez com que o imperador voltasse atrás, negando-lhe o lugar de hon ra na igreja, fazendo-o sentar-se entre o povo e negando-se a celebrar a eucaristia em sua presença. Em outra oportunidade, no ano de 390, o general Buterico manda-
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ra prender, em Tessaloniki, um famoso corredor de carros; o povo exaltado matara o general. Teodósio pôs fim ao movimento, cercando o circo com seus soldados e mandando matar os que se encontravam no circo. Ambrósio não gostou do castigo e chamou o imperador à ordem, exigindo dele que fizesse penitência. Somente no natal daquele ano, Teodósio pôde participar novamente da comunhão. Quando o im perador morreu (395), Ambrósio proferiu-lhe um necrológio em que louvou suas vir tudes de imperador e de cristão exemplar. Em 397, Ambrósio faleceu; a liderança eclesiástica, no Ocidente, voltou para Roma, onde, após uma série de personalida des de pouca expressão, Leão I (440-461) veio a ser o primeiro papa de renome. Teodósio dividira seu reino entre seus dois filhos: Arcádio, de 18 anos, e Honó rio, de 11 anos. O homem que realmente mandava no Império era o vândalo Stilicho. O governo do vândalo é mais um dos sinais do fim que se aproxima.
14.3. Germanos Até o final do século II, os romanos conseguiram manter os germanos do ou tro lado das fronteiras do Império. Forçados a retirar tropas das fronteiras para lu tar contra os persas, os germanos puderam entrar no Império. Foram, em parte, tor nados sedentários e tiveram acesso ao exército. No governo de Constantino, encon tramos os primeiros oficiais germânicos no exército. Aos poucos, alguns vão chegan do a postos de mando. Quem, no fundo, pôs os germanos em movimento foram os hunos, que, impe didos de entrar na China, mudaram o rumo de seus ataques para o Ocidente. É bom lembrar que ainda hoje existe a Muralha da China, construída para impedir o avan ço dos hunos. No sul da Rússia, os hunos toparam com os godos, povos naturais do sul da Suécia e que em virtude da superpopulação da região já haviam migrado para a Rússia. Ao mesmo tempo, foram postos em marcha os burgúndios, vândalos, langobardos e outras tribos. Os godos estabeleceram-se na Criméia e nas regiões en tre os rios Dnjestr e Danúbio. Aí ocorreu a divisão em ostrogodos e visigodos. A palavra "ostro" significa "brilhante". Por volta de 332, os godos tiveram seu pri meiro contato com a fé cristã. Houve uma adoção parcial da fé cristã através da atividade missionária de Úlfila, também conhecido como Wúlfila (322-383). Úlfila ti nha pai godo e mãe grega. Em 341, Úlfila foi ordenado bispo para os godos por Eusébio de Nicomédia. Eusébio era antiniceno, adotando, em boa medida, os ensina mentos de Ário. Com a pregação de Úlfila, os godos tornaram-se "arianos", aconte cendo o mesmo com todos os germanos do Oriente. Úlfila deu a seu povo uma tra dução completa da Bíblia. No século V, deparamo-nos com os germanos em movimento. Os ostrogodos invadiram a Itália, mas ainda foram rechaçados, enquanto que os visigodos, sob o comando de seu rei Alarico, não puderam ser contidos. Durante três dias, Alarico e suas tropas saquearam Roma. No sul da Gália, os visigodos criaram um reino no ano de 415. Em 429, os vândalos, que haviam fundado um reino em Andaluzia, na Espanha, partiram para o Norte da África, criando ali um reino ariano, independen te de Roma. Os hunos, unificados sob Átila (451/52), que passou para a história com o cog nome "o flagelo de Deus", também invadiram a Itália. Em meio a esses ataques, o Império Romano do Ocidente ia desmoronando. 72
14.4. Formas de vida cristã O cristianismo saiu de um mar de sangue e de lágrimas. Foi arrastado para dentro de um processo doentio pelo qual passava o Império Romano e teve que sen tir todos os sofrimentos da humanidade daqueles séculos. A fé cristã não provocou o fim da Antiguidade, mas também não o pôde evitar. A morte dos velhos deuses não podia ser evitada. Gnose, neoplatonismo e o culto ao deus Sol não ofereciam soluções religiosas para o futuro. O reconhecimento, por parte do Estado, de sua falência em questões de política religiosa trouxe uma nova situação para a Igreja. A Igreja Imperial passou a ser uma instituição privilegiada, que aceitava a intromis são do Império em questões de fé. Isso traria problemas no futuro. Quase não temos documentos a respeito da vida diária dos cristãos. Temos quase que a impressão de que a história da Igreja se desenrolou nas camadas supe riores, que se expressavam de forma literária. Mas as disputas teológicas não haviam passado despercebidas do povo. Gregório de Nissa descreveu a conversa do povo com o qual se deparou nas ruas de Constantinopla: "Tudo está cheio de pessoas que falam de coisas inimagináveis nos casebres, ruas, praças, mercados e encruzilhadas. Pergunto quantos óbulos devo pagar; respondem-me com filosofismas a respeito de coisas nascidas e não nascidas. Se quero saber o preço de um pão, respondem-me: O pai é maior do que o Filho. Pergunto se meu banho está preparado, ouço que o Filho foi criado do nada". Essa conversa é o mesmo tipo que podemos ter hoje com o motorista de táxi. Ela, no entanto, é característica para a versatilidade da pessoa simples. Religião era conversa política naqueles tempos. Tais descrições, porém, na da dizem a respeito da vida interior de cada cristão. No entanto, desde as leis de Teodósio, o homem da rua era "cristão". A proibição dos cultos pagãos e das here sias levara as massas à igreja ortodoxa. A maioria desses cristãos imperiais permane ceu catecúmena, isto é, postergou o batismo até pouco antes da morte. Não eram, pois, membros em sentido pleno. Somente os batizados podiam ser membros em sen tido pleno da comunidade e participar da eucaristia. Somente adultos eram batiza dos; crianças eram batizadas em caso de doença. O culto consistia de duas partes: pregação e eucaristia. Por ocasião da eucaristia, os não batizados tinham que aban donar a igreja. Mas, quando havia corridas, a maioria não ia aos cultos. Nas gran des cidades dava-se valor ao bom pregador. O astro entre os pregadores era João de Antioquia, mais tarde denominado de Chrysostomos. Crisóstomo significa "bo ca de ouro". Mas como era a vida do cristão fora da igreja, fora do templo? A pessoa pie dosa sempre precisou de coisas visíveis para sua piedade. A celebração da eucaristia foi ampliada, dando lugar a uma maior veneração. Mas a pessoa piedosa queria mais sinais de santidade. Quando o cristianismo se tornou fé estatal, houve o peri go de desaparecer a diferença entre mundo e igreja. A massa dos indecisos, dos "mornos", superava o pequeno grupo dos "decididos". Se antes era necessário cora gem para confessar a fé, agora ser cristão era um adorno a mais entre tantos outros. Contra essa mundanalidade voltaram-se aqueles que queriam ser cristãos "sérios". Isso ocorreu de muitas maneiras. Os mártires, aqueles que haviam morrido confes sando a fé, sempre foram venerados. Iniciou-se um verdadeiro culto aos mártires. Os santos eram lembrados no dia de sua morte. As sepulturas dos mártires eram en feitadas, e suas capelas eram o local onde se reverenciava sua memória. Mas os már73
tires não eram apenas lembrados. Logo surgiu a ideia de que suas relíquias tinham o poder de realizar milagres. A Igreja reconheceu o significado pedagógico dessa corrente religiosa, assumindo-a e propagando-a. Dessa maneira surgiram os calendá rios de santos. Logo se passou a descobrir relíquias de santos, tais como vestes, go tas de sangue, restos de esqueletos. Muitas vezes, preservaram-se esqueletos inteiros, guardados em lugares especialmente consagrados. Mas também foram encontrados cavacos da cruz de Jesus. Em uma viagem pela Palestina, Helena, a mãe de Cons tantino, "descobriu" as três cruzes do Calvário. Com auxílio divino, descobriu tam bém qual delas pertencera a Jesus. Alguns pedaços da cruz foram enviados a Constan tinopla. A parte maior foi guardada na Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém. Como para tudo há comerciantes, o comércio com as relíquias foi adquirindo formas cada vez mais grotescas. Não se perguntava pela autenticidade da relíquia, mas apenas pelo seu poder miraculoso. Por trás de tudo estava uma crassa supersti ção, que tinha suas bases no culto pagão aos heróis. Os deuses antigos estavam mor tos por lei, mas penetravam nas comunidades, mascarados como demónios e maus espíritos, que deveriam ser expulsos pelo poder de Cristo, o qual se encontrava nos ferimentos dos mártires. Não foi, pois, muito grande o passo a ser dado do culto aos santos até o culto de imagens. O poder miraculoso dos santos foi transferido para as imagens, que eram veneradas por meio de beijos, genuflexões, velas e incenso. O mundo tomara-se cristão, mas era difícil ser cristão nesse mundo. Principal mente aqueles que se preocupavam com a santificação da existência sofriam com is- • so. A partir dessa situação é que surgiu o monasticismo. Abandono ao mundo, asce se, tudo isso já existia antes e ao lado do cristianismo. Foi, no entanto, somente no cristianismo que, a partir de determinada época, o abandono radical do mundo se tornou uma possibilidade de exame de consciência. Procurou-se por exemplos em Elias e em João Batista. Certamente, pode-se dizer que Jesus, mesmo que não tenha convidado seus discípulos a abandonarem o mundo, disse aos mesmos que rejeitas sem tudo o que dificultasse o acesso ao Reino de Deus. Enquanto os primeiros cris tãos esperavam a vinda iminente de Cristo, não ocorreram problemas nesse campo. Os cristãos viviam separados do mundo pagão. Mas os primeiros contatos com o mundo pagão levaram muitos a sérios conflitos. Lembremo-nos das críticas dos montanistas e suas exigências ascéticas. Quanto maior era a mundanalidade da Igreja, quanto mais se procurava fugir a perseguições, quanto mais se evidenciava o pacto da Igreja com o Estado, tanto mais surgia a pergunta: Será que tudo isso não é con tra a vontade de Deus? Rebelar-se contra tudo isso não adiantava, pois o próprio clero não dava exemplo. Somente o exemplo isolado de alguns podia ajudar. A par tir daí, aquela ideia do cristianismo primitivo, de que o cristão é peregrino, passou a ser bastante sublinhada: Quem souber que a comunhão com Deus é mais impor tante do que todos os prazeres mundanos deve desistir de matrimónio, família e pro priedade. "Quem ama a sua vida perde-a; mas aquele que odeia a sua vida neste mundo preservá-la-á para a vida eterna" (Jo 12.25). Foi assim que, em primeiro lu gar, a vida sexual foi vista como um empecilho na entrega total e pura a Deus. A castidade do homem e da mulher foi vista como alvo supremo no caminho para a santidade. Nas concepções religiosas dos povos orientais, especialmente do judaís mo, a mulher era um ser inferior. O ciclo da vida natural de seu organismo tornava-a, por certo tempo, "impura". Por outro lado, suas formas físicas ofereciam, desde uma perspectiva masculina, estímulos para seduções pecaminosas. Quando a 74
ascese e a meditação mística começaram a dominar os espíritos piedosos, a mulher virgem passou a ser o protótipo da santa. Com isso, começou também a surgir um certo tipo de veneração por Maria. Não era mais Maria, a mãe de Jesus, que sem pre tivera seu lugar na pregação cristã, quem era importante, mas a virgem imacula da, a madona, a mãe de Deus. Pode-se supor aqui influências dos cultos a Isis e a Diana. Agricultores egípcios e cristãos sírios foram os primeiros ermitãos cristãos. Iam para o deserto, perto de suas cidades natais, montavam ali suas tendas, para viver uma vida reclusa. Era uma existência semi-ermitã, pois podiam voltar à terra de origem. O primeiro monge no sentido pleno da palavra foi Antão ou António. Antão, influenciado por uma pregação a respeito do jovem rico (Mt 19.16-22), tomou a de cisão de afastar-se completamente do mundo. Foi viver no deserto, onde queria oferecer-se a Deus. A princípio, os amigos lhe levavam pão. Recebia visitas de curiosos. Outros ficavam morando perto dele, perturbando-lhe o sossego que procurava. Com isso, ele se afastou ainda mais, morou em um túmulo e desistiu de todo auxílio hu mano. As necessidades pelas quais passou foram tantas, que só um organismo mui to resistente as pôde enfrentar. Ao falecer, aos 105 anos de idade, era visto por mui tos como exemplo de uma vida ascética. Em pouco tempo, homens e mulheres dirigiam-se em grupos ao deserto. Havia ali comunidades conventuais. Cada um, porém, vivia a seu modo. Alguns subiam em altas colunas, onde permaneciam orando, só baixando um cesto, de quando em vez, para receber pão. O primeiro a pôr ordem nessa confusão foi Pacômio (292-346). Antes de se tornar monge, Pacômio fora sol dado. Acostumado à disciplina, não podia se agradar do monaquismo com o qual se deparou, pois entre os monges havia também toda a sorte de maus elementos que punham em jogo a reputação dos verdadeiros monges. Pacômio formulou regras monásticas de caráter militar. Pontos principais dessas regras eram: obediência abso luta ao abade; castidade; desistência de propriedade privada; trabalhar para conse guir o sustento. Não havia um voto prescrito para a admissão, e cada um podia retirar-se da vida monástica quando quisesse. O Concílio de Calcedônia (451) aceitou as regras de Pacômio, mas exigiu que a vida monástica não fosse interrompida e que os conventos ficassem sob o controle dos bispos. No Ocidente, a vida monástica só se fez sentir a partir de 370. O mais conheci do monge do Ocidente foi Jerónimo (340-420). Ao lado de Ambrósio e de Agosti nho, Jerónimo é um dos três grandes mestres da Igreja latina. Era um homem sábio e letrado, mas ao mesmo tempo orgulhoso e ambicioso; seu caráter não era muito firme. Conheceu o cristianismo como movimento ascético. Viajando pelo Oriente, conheceu colónias monásticas, que o impressionaram. No deserto da Síria, morou em uma caverna, que transformou em sua sala de trabalho. Ali reuniu sua bibliote ca, recebia visitas e mantinha uma intensa correspondência. Depois de permanecer por certo tempo em Constantinopla, foi para Roma, onde teve, sob a proteção do papa Dâmaso, sua época áurea. Tornou-se confidente e arquivista do papa. Era um homem que jamais navegava contra a correnteza. Mesmo quando escreveu seus es critos mais polémicos, procurou proteção. Era pessoa aceita principalmente pelas damas da alta sociedade romana, de quem se tornou confessor. Depois da morte de Dâmaso, Jerónimo teve que deixar Roma, partindo para Jerusalém. Em Belém, construiu uma série de conventos masculinos, além de um convento feminino, no qual residiam mulheres, em boa parte oriundas de Roma e que colaboravam na edi ção de suas obras. Belém é local de intensa produção literária. Aí Jerónimo escreveu 75
comentários bíblicos e concluiu a tradução da Septuaginta (LXX) para o latim. Es sa tradução ficou conhecida como Vulgata. É ela que lhe trouxe a maior fama, pois é o texto bíblico canónico da Igreja Católica Romana. A maior parte da Vulgata, porém, foi traduzida pelo círculo de mulheres do convento de Belém. Aqui merecem ser mencionadas Paula e Eustóquia. Ao escrever o necrológio de Paula, Jerónimo reconheceu, muito a contragosto, que Paula entendia mais da língua hebraica do que ele. Essa observação mostra-nos que, na história da Igreja, ainda está por ser escrita uma "matrística", à semelhança da "patrística".
14.5. Agostinho Agostinho (354-430) foi um berbere africano, que deu à Igreja latina sua con formação teológica. Sua vida, inicialmente, nem parecia levar a esse caminho. Nas ceu em Tagaste, na Numídia, filho de um funcionário público. Sua mãe, Mónica, queria que ele viesse a ser alguém de importância. Seguindo esse desejo é que seu estudo foi programado. Agostinho era uma pessoa muito inteligente, alegrava-se com as ciências e também com os prazeres dessa vida. Teve uma série de casos amorosos e uma concubina, que permaneceu com ele por 15 anos e lhe deu, aos 18 anos, um filho, ao qual deu o nome de Adeodato. Foi por pressões da mãe que ele a abando nou; a mãe lhe escolhera uma noiva rica. Mas o casamento não saiu. Tomou, então, nova concubina. Como professor de retórica fora a Roma e de lá a Milão. Foi então que ocor reu a mudança religiosa em sua vida. O caminho que o levou a essa mudança não foi fácil. As primeiras impressões cristãs lhe foram transmitidas por sua mãe, sem, no entanto, determinar sua vida. Mónica, a mãe, sempre procurou influir na vida do filho. Em seu livro "Confissões", Agostinho praticamente erigiu um monumen to à mãe. O livro de Cícero "Hortensius" levou-o a fazer profundas reflexões sobre a vida. Depois disso, em Cartago, entrou em contato com o maniqueísmo, fazendo parte do círculo de "ouvintes". Cícero despertou nele o amor à filosofia. Os nove anos em que foi adepto do maniqueísmo fizeram com que Agostinho se voltasse ao ceticismo. Quem o libertou desse ceticismo foram o neoplatonismo e as pregações de Ambrósio. Ambrósio levou-o à leitura da Bíblia. A pessoa de Cristo ficou sen do para ele a fonte de toda a revelação. Por fim, ele viu a necessidade da autorida de eclesiástica. Sua conversão não foi uma decisão momentânea, mas um longo pro cesso de lutas. No fim desse processo estava o batismo, que ele recebeu de Ambró sio na páscoa de 387, juntamente com um amigo e seu filho Adeodato. Vista a par tir do batismo, a conversão de Agostinho foi uma ruptura radical com a vida mun dana e a passagem para uma vivência cristã pessoal. A vida da qual ele se despedia era a vida formada por bens materiais, profissão, prestígio, amor, matrimónio e fa mília. A vida nova era ascese para experimentar a riqueza de Deus. Agostinho relatou sua conversão no livro das Confissões (VIII,29):
"Eis que, de súbito, ouço uma voz vinda da casa próxima. Não sei se era de me nino, se de menina. Cantava e repetia frequentes vezes: 'Toma e lê; toma e lê'. Imedia tamente mudando de semblante, comecei com a máxima atenção a considerar se as crian ças tinham ou não o costume de trautear essa canção em algum dos jogos. Vendo que em parte nenhuma a tinha ouvido, reprimi o ímpeto das lágrimas e levantei-me, persuadindo-me de que Deus só me mandava uma coisa: abrir o códice e ler o primeiro capítu"f
lo que encontrasse. Tinha ouvido que Antão, assistindo, por acaso, a uma leitura do Evangelho, fora por ela advertido, como se essa passagem que se lia lhe fosse dirigida pessoalmente: 'Vai, vende tudo o que possuis, dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; depois vem e segue-me'. Com este oráculo se converteu a Vós. Abalado, voltei aon de Alípio estava sentado, pois eu tinha aí colocado o livro e li em silêncio o primeiro capítulo em que pus os olhos: 'Não caminheis em glutonarias e embriaguez, nem em desonestidades e dissoluções, nem em contendas e rixas; mas revesti-vos do Senhor Je sus Cristo e não procureis a satisfação da carne com seus apetites'. — Não quis ler mais, nem era necessário. Apenas acabei de ler estas frases, penetrou-me no coração uma espécie de luz serena, e todas as trevas da dúvida fugiram".
Agostinho não se tornou monge, mas amava a vida em retiro com amigos, pa ra assim, como teólogo-filósofo, entregar-se ao reconhecimento da sabedoria divina. Em sua cidade natal, Tagaste, transformou a casa paterna em um "convento", on de os moradores se encontravam para levar uma vida dedicada a Deus. Em 391, Agostinho foi ordenado sacerdote em Hippo Regius, sendo bispo dessa cidade a par tir de 397. Seu interesse principal concentrava-se na teologia. Escreveu muitas obras teológicas, mas também inúmeros escritos, nos quais aparecia como defensor da fé católica. Agostinho foi um dos mais fervorosos adversários do donatismo, e isso por motivos de ordem teológica. Para ele, a Igreja é uma instituição de salvação, um corpo misto, onde coexistem piedosos e impiedosos. Nela vive a comunhão dos san tos. Além disso, Agostinho afirmava que a validade do sacramento não dependia da sinceridade do oficiante; o sacramento é santo em si. Quando os visigodos atacaram Roma (410), encontrou-se entre os fugitivos um asceta de nome Pelágio, que já provocara certa confusão com seus escritos. Pro palara uma ética rigorista, que tinha suas raízes num estoicismo cristão popular. Se gundo essa ética, o ser humano não só é chamado a fazer o bem, mas também ca paz de fazê-lo. "O ser humano pode cumprir os mandamentos de Deus, por isso deve cumpri-los." Pelágio não podia concordar com a doutrina de que o ser huma no é todo ele pecado e imperfeito, porque via nessa doutrina um subterfúgio para fazer toda a sorte de imoralidades. Na África, sua doutrina logo encontrou adeptos. Seu maior adversário veio a ser Agostinho, que, discutindo com Pelágio, desenvol veu uma doutrina de pecado e graça. Para Agostinho, o ser humano, criatura de Deus, fora livre outrora. Sua liberdade, porém, só consistiu em poder perpetrar a queda, afastando-se de Deus. Através da queda, o ser humano caiu totalmente sob o domínio do pecado, que o destruiu. O pecado destruiu Adão e agora domina so bre toda a humanidade como pecado hereditário, termo que também pode ser tradu zido por "pecado original". Todas as pessoas que vivem "em Adão" são más e inca pazes de fazer o bem por si mesmas. Mas infinitamente mais poderosa e irresistível em sua atividade é a graça de Deus. Ela se encontra no início de todas as coisas co mo a verdade eternamente válida de que tudo é graça. É através dela que a pessoa, destruída pelo pecado, é reconduzida ao estado original. Quem vive sob a graça faz o bem. A vontade da pessoa natural só pode querer o mal; a vontade dominada pe la graça tem apenas a liberdade de ver tudo como o poder da graça. A redenção é, no fundo, a libertação da vontade humana, para que possa ser obediente à graça. Essa graça libertadora, no entanto, não se destina a todas as pessoas, e sim apenas a uma pequena parcela. Esses eleitos, predestinados à salvação segundo a livre vonta77
de de Deus, são todos aqueles que são destinados a serem partícipes da graça. To dos os demais, a massa perditionis, são os condenados e como tais irremediavelmen te perdidos. Há, pois, uma dupla predestinação: paia a redenção ou para a perdição. Nenhum dos condenados pode esperar graça. Para Pelágio, essa doutrina de Agostinho era inadmissível. Pelágio reconhecia o significado da graça de Deus através da qual somente a pessoa pode ser salva. Pa ra ele, porém, a graça era um poder que ajuda o ser humano a tomar uma decisão livre em favor de Deus. Por ocasião de um Sínodo realizado na Palestina, as teses de Pelágio foram aceitas; em 411, um Sínodo realizado em Cartago declarou heréticas algumas senten ças radicais de Celestio, amigo de Pelágio. O que mais incomodava Agostinho foi o fato de Celestio negar o batismo de crianças, que se havia tornado comum em sua diocese. Um Sínodo Geral, realizado em Cartago em 418, condenou todo o pelagianismo. No Oriente, o pelagianismo jamais chegou a desaparecer. Também no Oci dente, a doutrina da graça e pecado, patrocinada por Agostinho, foi alvo de muitas controvérsias. Depois da conquista e depredação de Roma pelos visigodos, em 410, muitas pessoas perguntavam pelas causas dessa catástrofe. Entre os cristãos começou-se a duvidar da providência divina. Os patriotas viam na catástrofe o castigo dos antigos deuses, que não eram mais adorados. Contra tais suposições Agostinho escreveu, en tre 412-426, a obra De civitate dei (A Cidade de Deus). De civitate dei é a mais im portante obra histórico-filosófica do Ocidente. Sua concepção básica é a seguinte: a história universal é, desde a queda de Adão, uma luta entre fé e descrença. Dois prin cípios estão em luta: a civitas dei e a civitas terrena, o Reino de Deus e o Reino do mundo, o reino do diabo. Sua obra mais pessoal são as "Confissões", escritas nos anos 397 e 398. Trata-se de uma autobiografia, refletida teologicamente. Agostinho faleceu em 430, em Hippo Regius, enquanto a cidade era cercada pelos vândalos. Cem anos mais tarde, suas obras viriam a ter significado para a his tória da Igreja latina.
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15 "Qual é o rico que se salva?" Temática da riqueza e da pobreza na Igreja Antiga A temática da riqueza e da pobreza preocupou a fé cristã desde os seus pri mórdios. O mundo em que viviam os primeiros cristãos era caracterizado por horren dos desníveis sociais, e para esse mundo os cristãos ofereciam propostas de transfor mação. Quais foram elas? Na resposta a essa pergunta, podemos exercitar, em boa medida, a história da interpretação da Bíblia na Igreja Antiga. Importante é que se saiba, também, que a questão do direito à riqueza foi muito controvertida entre os primeiros cristãos. Pode um cristão ter riqueza? Pode um cristão ser rico? Pode um cristão ter propriedade? A concentração da temática nessas perguntas vem do fato de que, na sociedade antiga, a posição social do indivíduo estava ligada à rique za. Era ela quem determinava sua posição social, legal e política. Esse aspecto já se reflete claramente no Novo Testamento. 15.1. No Novo Testamento é conhecido o relato sinótico acerca do homem que se dirige a Jesus, denominando-o de "bom mestre", e pergunta o que deve fa zer para herdar a vida eterna. Jesus rejeita a designação "bom", pergunta-o pelos mandamentos básicos do Antigo Testamento e recebe a resposta de que estes vêm sendo obedecidos desde a juventude. Retrucando, Jesus diz: "Só uma coisa te falta: Vai, vende tudo o que tens, dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu; então vem e segue-me" (Mc 10.21). O homem não consegue seguir o conselho de Jesus, "por que era dono de muitas propriedades" (Mc 10.22). No contexto desse relato vamos encontrar nos Evangelhos ainda uma série de sentenças acerca da riqueza como em pecilho para entrar no Reino de Deus. O relato encerra com a promessa de grandes recompensas para os discípulos que abandonarem sua propriedade e sua família. Em Mt 19.16-30 vamos encontrar um relato algo diferente. Mateus não admi te que Jesus não possa ser denominado de "bom" e acrescenta a exigência do amor ao próximo aos mandamentos citados por Jesus. O jovem responde que observou tudo isso, e Jesus diz-lhe: "Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens...". Al guns autores julgam que Mateus está indicando aqui uma ética diferente para dois tipos de cristãos, a grande massa e os perfeitos. Esses autores, no entanto, esquecem que o termo "perfeito" é um conceito usado por Mateus para toda a comunidade. Mateus não conhece, pois, dois tipos de cristãos: nele as palavras de Jesus se dirigem a todos os cristãos indistintamente. Mesmo assim, é sintomático que haja autores que pretendem ver, na perícope que nos foi legada por Mateus, palavras de Jesus li mitadas a apenas alguns cristãos ou a apenas um grupo de cristãos, que seriam os "perfeitos". Essas colocações de autores de nossos dias, contudo, não são únicas. Parece que já antes de Mateus existiam ideias semelhantes e depois dele também.
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Na narrativa de Marcos, é contado que Jesus teria dito: "Quão dificilmente entrarão no Reino de Deus os que têm riquezas" (Mc 10.23). Os discípulos estra nham as palavras de Jesus, e este então generaliza, dizendo: "Quão difícil é — pa ra todo o mundo — entrar no Reino de Deus". Temos, então, a hipérbole: "É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agul\a do que entrar um rico no Reino de Deus". Aqui a questão é levada à ponta de faca, mas alguns intérpretes posterio res, quando os cristãos procuravam conquistar pessoas ricas para a fé cristã, "rein terpretaram" a hipérbole, afirmando que em Jerusalém existia uma "porta do came lo", através da qual um camelo podia passar de joelhos (!), ou liam kamilos ao in vés de kamêlos, o que daria amarra de navio. O susto dos discípulos ante essas palavras de Jesus^ no relato sinótico, eviden cia que nenhuma das interpretações acima está nas cogitações de Jesus. Pois eles per guntam: "Então, quem pode ser salvo?" (Mc 10.26). A resposta de Jesus é que a desistência dos bens será, muitas vezes, recompensada "já no presente" e "no mun do por vir". As promessas de Jesus mostram que o contexto dessa narrativa é a vin da do Reino de Deus. Nele, os laços familiares e a propriedade serão eliminados e nada contará, a não ser a ligação de cada um com Jesus no discipulado, ou a nega ção dele. No texto não encontramos uma doutrina social, como proposta para sua estrutura ou reestruturação, pois a esperança para o Reino é a de que não mais ha ja estruturas. O que encontramos no texto é a expectativa de ver como aquele que se encontra com Jesus assume as suas palavras. Na História da Igreja, a relação en tre o assumir e as palavras de Jesus é que vai determinar o posicionamento e os en sinamentos dos cristãos com respeito à propriedade privada e à riqueza. 15.2. Por volta dos anos 130-140, um cristão de Roma, conhecido pelo nome de Hermas, teve diversas visões. Na terceira foi-lhe mostrado quais as pessoas que podem pertencer à Igreja. O que ele viu na visão foi o seguinte: uma torre é construí da sobre águas com pedras quadradas brancas e reluzentes. Sempre mais pedras vão sendo trazidas, tiradas das profundezas ou da terra firme. As pedras tomadas das profundezas são logo usadas para a construção, pois são trabalhadas e se ajustam às demais. Das pedras trazidas da terra firme algumas são atiradas fora, outras são usadas na construção, outras ainda são quebradas e atiradas para bem longe. Mais outras pedras ainda estão em volta da construção em grande quantidade e não po dem ser usadas nela. Algumas dessas últimas pedras são muito ásperas, outras têm rachaduras, outras, defeitos, e algumas são brancas e redondas e não servem para a construção. A visão foi interpretada alegoricamente. Na interpretação, Hermas fi cou sabendo que a torre que está sendo construída é a Igreja. As pedras quadradas brancas são os apóstolos, bispos, mestres, diáconos, mártires, justos e neófitos. São pessoas apropriadas para a construção da Igreja. Diferente dessas pedras é um segun do grupo, só parcialmente apropriado para a construção da Igreja, isto é, caso fizer penitência. São eles: os pecadores dispostos a fazer penitência, aqueles que não con vivem com os santos, os não-pacíficos, os não totalmente justos. E as "pedras bran cas, redondas, que não se adaptam à construção"? Quem são elas? "São os que têm fé, mas também a riqueza desse mundo. Quando surge aflição, negam a seu Senhor por causa de sua riqueza e de seus negócios." Ao obter essa interpretação, Hermas perguntou: "... quando se tornarão apropriadas para a construção?" E recebeu a resposta: "Quando a riqueza, que é sua alegria, for cortada deles, aí eles se tornarão :.z
apropriados para Deus. Pois assim como a pedra redonda não pode se tornar qua drada, caso não for talhada, perdendo um pouco de seu formato, assim também os ricos desse mundo não podem se tornar apropriados para Deus, caso a riqueza não for cortada deles. Aprende primeiro em tua própria vida: enquanto eras rico, eras imprestável, agora, porém, és prestável e podes promover tua salvação. Tornaivos prestáveis para Deus". O terceiro grupo de pedras são os excluídos da Igreja: os filhos da injustiça, os que duvidam, os impenitentes, os que negaram o batismo. A interpretação para o nosso tema é clara: Ser cristão e ter propriedade são aspectos inconciliáveis. Hermas não é um solitário ao fazer tal afirmação. Já antes dele, a carta de Tiago fez colocações semelhantes. Em três oportunidades, Tiago se posicionou a favor dos potwes contra os ricos e, além disso, atestou em dois exem plos sua simpatia para com*os pobres. A animosidade de Tiago contra os ricos vem das péssimas experiências que as comunidades cristãs fizeram com os ricos. Em 6.1ss, Tiago anuncia, em tom profético, aos ricos o castigo por causa de sua riqueza. Quan do se lêem essas palavras, tem-se a nítida impressão de que as palavras de Tiago se dirigem a todos os ricos sem distinção: "Atendei agora, ricos, chorai lamentando, por causa das vossas necessidades que vos sobrevirão" (5.1). E, no início da carta (1.9-11), Tiago fala com a maior naturalidade do fim dos ricos. Para ele, todos os ricos estão maduros para perecer: "... ele passará como a flor da erva. Porque o sol se levanta com seu ardente calor, e a erva seca, e a sua flor cai, e desaparece a formosura do seu aspecto; assim também se murchará o rico em seus caminhos". Tiago não tirou essas afirmações do ar. Ele se encontra dentro de uma tradição que vem desde os tempos do declínio da hegemonia territorial de Israel, passa pelos pro fetas (Is 41.17; 49.13), pelos Salmos (SI 109.31), pela literatura sapiencial (Pv 23.4s; Siraque 11.18s; Eclesiastes 5.12s), pelo período entre os Testamentos (Enoque 94ss; Salmos de Salomão 1.4ss) e se encontra novamente na comunidade de Jesus, onde se ouvem palavras como as de Lc 6.20-26: "Bem-aventurados vós, os pobres... mas ai de vós, os ricos!" Aí o rico é o homem que vive sem Deus (Lc 12.16ss; 16.19ss), aí se encontram palavras como as acima referidas de Mc 10. Aqui se espera por uma mudança das estruturas sociais, que não vem da violência do ódio, mas do po der de Deus (Lc 6.27-36). Mesmo assim, nessa tradição ser cristão significa ser po bre. Essa é a convicção de Tiago. No entanto, a ênfase com a qual Tiago se colocou contra os ricos e as riquezas, com que expressa sua convicção, está a evidenciar ou tra questão. Quando Tiago diz: "Não são os ricos que vos oprimem, e não são eles que vos arrastam para tribunais? Não são eles os que blasfemam o bom nome que sobre vós foi invocado?" (2.6b-7), fica evidente que para pelo menos parte de sua comunidade não existem mais problemas quanto ao ingresso de ricos na Igreja. A mesma situação, aliás, pode ser dita quanto à comunidade de Hermas. Contra a ten dência que se manifesta em sua comunidade é que Tiago se volta (22a). O desenvol vimento posterior evidencia que a história correu de maneira diferente. Hermas colo ca os ricos no segundo grupo de cristãos, os que ainda podem ser salvos, com a con dição de que deixem sua riqueza totalmente de lado. Na tradição descrita ainda vamos encontrar Tertuliano. Esse cristão do norte da África, nascido por volta de 160 e falecido após 260, afirmou que Deus "sempre justifica os pobres e condena antecipadamente os ricos" (semper pauperes iustificat, divites praedamnat) e que'' difícil é para uma mulher rica a permanência na casa de Deus''. Do texto de Marcos 10 até Tertuliano, essa tónica é clara e evidente: a proprie8/
dade e a riqueza prendem. Como essas coisas são um empecilho para o ReirTo de Deus, o cristão deve desistir delas. Poderíamos dizer que a escatologia determina o posicionamento cristão. Existe, no entanto, uma outra perspectiva, que não deveríamos perder de vis ta. Trata-se da estrutura social das próprias comunidades. Já apontamos para isso quando nos referimos a Tiago e a Hermas. Enquanto as comunidades eram forma das por pessoas das camadas inferiores da sociedade, a afirmação de que ser cristão e ter propriedade são situações excludentes era válida, sem ser contestada. O proble ma surgiu quando pessoas de posse começaram a ingressar na comunidade. Aí teo ria e praxis tiveram que entrar em conflito. 15.3. Foi nessa situação que, em Alexandria, na época a segunda maior cida de do Império Romano, surgiu por volta do ano 200 o {escrito de Clemente: "Qual é o rico que pode ser salvo?". O escrito tem importância singular quando se obser va a questão da riqueza e da propriedade na Igreja antiga, pois é o primeiro escrito a se ocupar exclusivamente com a questão. Toda a obra gira em torno da pergunta: Como se pode ser rico e mesmo assim ser cristão? Ou: Quando o rico se torna cris tão, tem que dar seus bens aos pobres? Ou deles desfazer-se? Clemente partiu de um pressuposto: os ensinamentos éticos cristãos não podem ser vistos como lei, não podem ser vistos como uma soma de exigências. O que é exigido dos cristãos tem que ser evidente, caso contrário os cristãos serão pessoas movidas pelo temor, que agem sem saber o motivo, a causa e a finalidade do que fazem. Esse pressuposto está presente em toda a obra "Qual é o rico que se salva?", da qual não sabemos mais se foi originalmente pregação, estudo bíblico ou tratado. Em todo caso, sua exposição é feita com grande simplicidade e quer ser auxílio pa ra aqueles que a lerem. Formalmente, Clemente nos oferece uma exegese da perícope do jovem rico (Mc 10.17ss) em forma de homilia. Para Clemente, esse texto do Evangelho não tem um sentido literal, "carnal", mas deve ser compreendido em seu significado mais profundo, o "espiritual". Isso se evidencia no fato de que o pró prio Jesus, no texto, apresenta seu ensinamento a partir da interpelação do jovem, "bom mestre", "ao dirigir (a atenção d) o discípulo a Deus, o bom e primeiro e único dispensador de vida eterna, que o Filho dele recebeu e nos dá". Disso, Cle mente deduziu que "o ponto maior e mais importante dos ensinamentos que levam à vida" é "conhecer o eterno Deus, o doador do que é eterno... e que é o primeiro e mais alto, o único e bom Deus", do qual tudo o mais deve obter vida. De sua bondade também nos vêm os bens terrenos, que em si não são nem bons nem maus. Tudo depende do uso que deles fazemos. Por isso, não são as riquezas que devem ser abandonadas, mas as más inclinações do coração. O rico é uma pessoa à qual foram confiados bens, não por sua causa, mas por causa do próximo necessitado. A riqueza é um bem para ele, pois lhe dá a oportunidade de auxiliar o necessitado e de assim libertar-se dos grilhões da cobiça. O que levou Clemente a fazer essas co locações? Clemente afirmou, no texto que estamos estudando, que foram questões de ordem poimênica em relação a ricos, "que já conheceram o poder do Salvador e da redenção nele manifesta", que o levaram a se pronunciar a respeito da ques tão. Ele não se preocupou com os ricos "que ignoram a verdade". Clemente, pois, não se preocupou em sua abordagem com questões socio-econômicas. Sua preocupa ção era aconselhar pessoas em conflitos de consciência, ricos que perderam a espe z:>..
rança de salvação, assim como aquele jovem rico que, tendo ouvido a palavra a respeito do camelo e do buraco da agulha e a admoestação a respeito da venda de todos os seus bens, entendeu que sua salvação era impossível. Clemente quis desper tar nova esperança no coração dos ricos da comunidade(!) e despertar, com isso, neles o sentido e a disposição para repartirem, de modo que a mão direita não sai ba o que a esquerda faz. Clemente sabia que não existe um "tarde demais!". Tam bém o arrependimento tardio é válido aos olhos de Deus para a salvação. Por isso concluiu seu tratado com a narrativa apócrifa de um discípulo de João. Este, tendose desviado da vida de fé, é levado por João à penitência e reconquistado para a Igre ja. A mesma narrativa foi reproduzida por Eusébio na História Eclesiástica (111,23.6-19). Clemente viu no relato um «uadro para a salvação daquele que está aparentemente perdido, através da penitência autêntica. O que Clemente fez em seu estudo foi distanciar-se claramente da compreen são literal-legalista do texto de Mc 10.17ss e, além disso, da ideia de que a pobreza já por si é uma vantagem no campo religioso. Ao mesmo tempo, Clemente se distan ciou da piedade de pobreza, a piedade ebionita, com a qual nos deparamos na Car ta de Tiago, no Pastor de Hermas e em Tertuliano. Segundo Clemente, para se fazer uma avaliação correta do ser humano, tanto a riqueza quanto a pobreza são insignificantes e eticamente indiferentes. No entan to, deve ficar claro que, na questão da riqueza, está em jogo a salvação da pessoa, como já o evidencia o título do tratado de Clemente: "Qual é o rico que se salva?". Quando se aborda o tema da riqueza, está em jogo a comunhão com Deus ou a se paração de Deus! Clemente lembra que o perigo da riqueza está em sua força sedu tora, que quer se apossar da pessoa, tornando-se sua senhora em lugar de Deus. Pa ra vencer a riqueza e sua força sedutora precisa-se de mais do que boa vontade. Precisa-se da lembrança do "tesouro prometido no céu" e, principalmente, do mistério do amor proveniente daquele que ante a morte deixou sua última vontade nas pala vras: "Meu amor vos dou". Mesmo assim, Clemente não advogou o ideal da pobre za total, que eliminaria o perigo da força sedutora da riqueza. Ele sabia que há ne cessidade de bens mínimos para a manutenção do indivíduo. Tudo, porém, que pas sa desse mínimo necessário só pode ser fundamentado com uma justificativa: Não haverá mais a possibilidade de se demonstrar comunhão quando ninguém mais pos suir alguma coisa. Pobreza total e geral não ajuda ninguém e está "completamente em oposição e conflitua com muitos outros excelentes ensinamentos do Senhor" que nos chama para auxiliar o próximo concretamente. Em Clemente, o próximo se torna a medida para toda a questão que envolve riqueza e propriedade. E é justamente a partir dessa visão que ele considerou a pro priedade algo "digno de ser possuído", porque a "propriedade" tem a "proprieda de de realizar algo" e "serve para o serviço do/ao homem e foi criada por Deus". Isto é, para Clemente o uso correto da propriedade é determinado pela prática do amor ao próximo. Usando palavras do próprio Clemente: Quem possui sua proprie dade "como dádiva de Deus e serve a Deus — que a cedeu — com ela, para o bem dos seres humanos, e que está consciente de que ele possui tudo isso mais por cau sa de seus irmãos do que por causa dele mesmo ... esse é considerado bem-aventurado pelo Senhor e designado de 'pobre de espírito', digno de ser considerado herdei ro do Reino dos céus...". Aqui encontramos um aspecto fundamental da ética cris tã na Igreja antiga: a liberdade do cristão é serviço ao próximo; ele só é livre enquan63
to serve. Em um outro de seus escritos, Clemente afirmou: "Deus criou nossa espé cie para a comunhão, ao dar-nos por sua vontade participação no que é seu e ao en viar o seu próprio Logos, comum a todos os homens, como auxílio, depois de ha ver criado tudo para todos. Todas as coisas são propriedade comum, e os ricos não devem reivindicar mais para si do que os demais ... Deus nos deu o direito, eu bem sei, de usar o que existe, apenas até ali onde não for além do necessário; e sua von tade expressa é a de que o uso seja comum a todos. Além disso, é irracional quan do um único vive em abundância, enquanto a maioria passa por necessidade". O escrito de Clemente não foi a primeira legitimação teórica para compatibili zar o ser cristão e a riqueza. Também não foi sua intenção fornecer aos ricos um álibi teológico para sua riqueza. É bom observar que Clemente não julgou necessá rio que se abandone tudo o que se possui para ser cristão; por outro lado, também é bom que se veja sob que "condições" aquele que possui pode continuar detendo o que possui. Clemente não tratou da questão riqueza e propriedade sob uma perspectiva económica. Para ele, a questão é um problema ético-religioso. Ele não fez considera ções que visassem uma mudança das estruturas, muito menos ainda quis apresentar uma nova proposta económica. O que ele quis é decisão pessoal e responsabilidade pessoal de cada um de seus leitores. Faltou a Clemente uma política social. Suas su gestões não modificaram a sociedade. Isso é correto. No entanto, o Clemente que fez as propostas não é um Clemente que fala para o mundo, mas para a comunida de. Nele podemos aprender o que é Evangelho. Não uma nova lei, também não uma doutrina de salvação individualista, mas a mensagem da ação de Deus que cria nova realidade. Essa nova realidade não se esgota na admoestação feita aos crentes individualmente de que dêem aos outros mais do que a justiça exige e do que é ne cessário para a manutenção do status quo. A ação criadora de Deus visa a comuni dade, que é a nova criatura, na qual Deus age dando, libertando, alegrando, crian do comunhão. Essa perspectiva do Evangelho foi, em grande parte, perdida no cris tianismo posterior.Para Clemente, riqueza e propriedade são questões eminentemen te eclesiológicas. Essa perspectiva eclesiológica se perdeu.
15.4. Clemente visava a comunidade em suas considerações. Bem à margem de suas colocações, vamos encontrar outras, que vão mais longe. No capítulo 31 de seu escrito, Clemente disse, interpretando a palavra de Jesus a respeito da riqueza injusta (Lc 16.9), que "toda a riqueza que alguém possui para si como propriedade e não a coloca à disposição para o bem-estar geral dos necessitados é injusta por na tureza". Riqueza que não está a serviço é injusta! Isto é, bem à margem de seu es crito, Clemente mostrou que a distribuição de propriedades em seu tempo foi injus ta. Com isso, no entanto, não questionou a posse de propriedade privada. A legitimidade da propriedade particular seria questionada mais tarde nas con siderações de alguns Pais da Igreja. A situação em que eles viveram era diferente da de Clemente. Na época de Clemente houve perseguições: o seu mais famoso dis cípulo, Orígenes, foi vítima dessas perseguições. Os Pais da Igreja a que passo a me referir viveram após Constantino. A fé cristã gozava das bênçãos do Estado e era frente ao "Estado cristão" que esses Pais fizeram suas colocações. Observemos Basílio Magno, Gregório de Nazianzo e João Crisóstomo e suas colocações relativas 84
à responsabilidade social da fé cristã. O estuda desses autores é importante, pois vi viam em um Estado que se dizia cristão. Na segunda metade do século IV, quando o Império Romano foi de encontro a tempos difíceis, encontramos pronunciamentos desses Pais da Igreja a respeito da propriedade privada. Suas palavras não são tanto considerações contra a proprieda de privada, mas contra seu acúmulo nas mãos de ricos. Por trás de suas considera ções vamos encontrar motivos da ascese cristã. As ideias ascéticas e monacais haviam sido difundidas no Oriente e no Ocidente através do escrito de Atanásio, "Vida de Antão". Outro grande difusor do ideal ascético e monacal foi o eremita Basílio, que escreveu sua regra entre 358 e 364. Basílio fora introduzido na vida ascética por sua irmã Macrina. Por isso, boa parte da "regra" deve ser creditada a ela. Tanto Basílio quanto seu amigo Gregório passaram do monacato à dignidade episcopal. Basílio foi bispo em Cesaréia, na Capadócia, e Gregório primeiro em Nazianzo e, posterior mente, em Constantinopla. Basílio proferiu uma série de homilias a respeito do te ma "propriedade", que foram saudadas com entusiasmo por Ambrósio, em Milão, portanto no Ocidente. João Crisóstomo também foi monge, vindo a ser, posterior mente, presbítero em Antioquia e, finalmente, bispo em Constantinopla. Ainda me rece ser citado Teodoreto, que foi educado em um convento, onde se tornou mon ge, para mais tarde vir a ser bispo na Síria. O caminho seguido por esses homens não pode ter deixado de influenciar seu pensamento. Além disso, tanto Basílio quan to Gregório provinham de ricas famílias da Capadócia. O pai de Ambrósio fora pre feito pretoriano em Tréveres. O pai de Crisóstomo fora general. Somente Agostinho, que entre os Pais da Igreja era o que tinha mais respeito diante da propriedade pri vada, era filho de "um homem livre pobre". O posicionamento dos Pais que agora estudaremos tem, pois, raízes na ascese cristã e no conhecimento que eles próprios tinham das classes dominantes de seu tempo. Basílio, bispo de Cesaréia de 370-397, não foi um adversário radical da proprie dade privada. Sua argumentação assemelha-se bastante à de Clemente. A proprieda de era para ele dádiva de Deus, e nós só podemos questionar a sua posse pelo rico, quando este não a usa como Deus quer, isto é, em favor dos pobres. Uso e abuso ilimitado da propriedade foram, pois, questionados por Basílio. Propriedade não partilhada com os pobres é injustiça. Assassino é o proprietário que nada dá ao po bre explorado, deixando-o morrer de fome. Em seu sermão a respeito da cobiça, Basílio perguntou se é injusto acumular riqueza e respondeu com o exemplo de que o rico age como o frequentador de teatro que ocupa todos os lugares como se fos sem seus e impede o acesso dos demais espectadores. Os bens são propriedade co mum, e é tão-somente devido ao fato de os ricos se haverem apoderado deles antes dos outros que se pode explicar suas grandes posses e a desigualdade na distribuição dos bens. Eles transformaram em propriedade privada o que era comum a todos. Isso é roubo, injustiça em relação aos demais seres humanos, e, por isso, os ricos não têm o direito de dizer que receberam seus bens de Deus. Ele lhes deu os bens; no entanto, apenas para que pudessem ter o necessário para a vida e suprir os po bres com tudo o mais. Os bens lhes foram confiados para fins de administração, e se não derem participação aos outros, sua propriedade é roubo, pois pertence a Deus e, com isso, aos pobres! Vemos que Basílio não fez mais considerações poimênicas como Clemente. Suas palavras dirigiam-se à sociedade de seu tempo, à maneira como estava estrutu35
rada a propriedade. A estrutura era uma perversão da criação. Basílio criticou os ri cos, afirmando que foi de maneira injusta que vieram a ter o que possuem, mas não vai ao ponto de negar qualquer propriedade. O que ele fez foi atacar a riqueza de determinadas pessoas. Para ele, a propriedade particular do rico é teoricamente in sustentável! Por isso, a Igreja pode exigir(!) de seus membros financeiramente bem situados a aplicação de seus bens para fins sociais, e não ficar somente pedindo por esmolas. Basílio não deixou de pedir esmolas, mas foi um passo adiante ao não fi car apenas nas esmolas. A partir dali, Basílio procurou dar um passo adiante na solução dos proble mas sociais de seu tempo. Para cada indivíduo possuir apenas o que necessita para a vida, todos os ricos têm que distribuir seus bens. Assim os desníveis sociais serão nivelados. Essa prática foi adotada pelo próprio Basílio, que distribuiu todos os seus bens para fins sociais. Por outro lado, suas exigências ficaram sendo utopia. Quem faz as exigências acima descritas é um asceta. Entre os ascetas é que va mos encontrar a exigência da distribuição dos bens entre os pobres. Aqui continua a tradição ebionita do cristianismo primitivo. A partir dessa sua tradição, Basílio desenvolveu a teoria de que, quando um rico morre, para o bem da salvação de sua alma, a metade de seus bens deve ser dada aos pobres e somente o restante pode ser distribuído entre os herdeiros. Nessa sua teoria, Basílio partiu da concepção de que a propriedade pertence a Deus. Logo, porque Deus é o dono, é inadmissível que tu do seja legado aos herdeiros. Propriedade herdada é pior do que a conseguida por esforços próprios. Na prática, Basílio introduziu uma espécie de imposto social, que seria usado na erradicação da miséria. A Igreja e o Estado de seu tempo não acom panharam suas ideias. Gregório de Nazianzo, mesmo sendo fundamentalmente diferente de Basílio, concordou com ele na crítica à situação vigente: pobreza e riqueza são doenças, di vergências da situação original. A terra, as fontes, os rios, as florestas, o ar e a água são bens comuns desde a criação. Inveja e discórdia destruíram, posteriormente, es sa situação. Por isso é que ele se dirigiu aos ricos, dizendo: "Esforça-te para que a ordem antiga volte a vigorar". Gregório esperava que o estágio original voltasse, ca so o rico desse esmolas aos pobres e doentes. Ele não disse que o rico deveria inves tir toda a sua propriedade. Gregório ainda disse que os pobres são os irmãos dos ri cos, criados com a mesma natureza, igualmente imagem de Deus, revestidos de Cris to tanto um como o outro, tendo ambos recebido o Espírito. Essa colocação, no en tanto, ficou sem consequências, porque Gregório não chegou a afirmar que o rico tinha a obrigação de repartir o que possuía, ficando apenas no apelo à esmola. Is so confere com sua personalidade: mesmo monge, Gregório não repartiu em vida as suas muitas posses. João Crisóstomo é de longe o mais famoso "economista" entre os Pais da Igre ja. Pregador reconhecido em Antioquia, entre os anos de 386 e 398, veio a se tornar arcebispo de Constantinopla de 398 a 403. Seu episcopado foi de cinco anos! Crisós tomo não conseguiu permanecer mais do que cinco anos como bispo. Era honesto, asceta e possuidor do dom da falta de tato! Tudo isso, aliado à inimizade da impera triz Eudóxia, que via em todas as críticas de Crisóstomo à moral reinante na capital do Império críticas a sua própria pessoa, e ao ódio que por ele nutria Teófilo, patriar ca de Alexandria, tudo isso levou à destituição e ao desterro do arcebispo. Quando 5£
estudamos alguns dos pronunciamentos de João Crisóstomo, compreendemos por que o exílio após cinco anos. Crisóstomo procurou melhorar as condições miseráveis em que viviam as mas sas e analisou a situação em que se encontravam. É impressionante a capacidade que tinha esse homem quando se tratava de analisar a sociedade "capitalista" em que viveu. Na homilia 61, relativa ao Evangelho de Mateus, podemos ler as seguintes palavras: "... passemos a outros que são, ao que parece, mais justos. Quem são, pois, es ses? Os que possuem os campos e tiram da terra sua riqueza? Mas pode haver coisa mais iníqua que esses homens? Quando se examina como tratam os pobres e míseros lavradores, ver-se-á que são mais cruéis do que os bárbaros. Aos que são consumidos pela fome e passam a vida trabalhando impõem exações contínuas e insuportáveis e obrigam-nos aos mais penosos trabalhos. Seus corpos são como de asnos ou de mulas, ou, para dizê-lo melhor, como de pedra, sem concederem-lhes um momento para respirar. Produza ou não produza a terra, oprimem-nos da mesma maneira, sem perdoar-lhes nada. Miserável espetáculo! Depois de trabalhar todo o inverno, depois de consumir-se no frio e na chuva em vigílias, têm que retirar-se com as mãos vazias e ainda por cima carregados de dívidas. E, mais do que essa fome, mais do que esse naufrágio, temem e tremem os infortunados ante as torturas dos administradores, os comparecimentos an te os tribunais, as prestações de contas, os suplícios a que são conduzidos, as cargas ine xoráveis que lhes são impostas. Quem está em condições de contar todas as coisas que com eles se faz, os vis tráficos a que são submetidos? Às custas do trabalho e do suor daqueles infelizes se enchem os lagares e graneleiros de seus amos, enquanto que a eles não se permite levar para a sua casa nem uma mínima parte. Todo o fruto tem que ir encher seus tonéis de iniquidade e só umas míseras moedas são atiradas ao trabalhador. Inventam inclusive novos tipos de usura, não permitidos nem pelas leis dos gentios, e compõem cartas de dívida que são pura maldição. Pois já não se contentam com o cen tésimo, mas exigem a metade. E isso quando o infeliz de quem o exigem tem mulher e tem que alimentar seus filhos, e é homem pobre, e com seu próprio trabalho lhes en cheu eiras e lagares. Mas eles nada disso consideram. Por isso, esse seria o momento de citar o profeta e exclamar: 'pasma, céu, e estremece, terra! (Jr 2.12)', quando se con templa até onde chegou em sua fúria a ferocidade da linhagem humana".
Crisóstomo não transformou essa sua crítica em crítica a toda a sociedade, ao sistema em que viveu. Ele criticou e condenou moralmente os indivíduos: Esses latifundiários são mais desumanos do que bárbaros; assemelham-se a animais! Em outra homilia, Crisóstomo examinou capital e trabalho e perguntou por seu valor para a sociedade. Ele falou, então, de dois Estados: um formado de ricos que não trabalham e vivem de sua riqueza; outro formado de artesãos. O primeiro não pode subsistir porque não se constroem casas, não se cultiva o campo, não se produzem alimentos. O segundo faz progressos porque nele não se necessita de ou ro, mas de gente laboriosa! Os "capitalistas", segundo Crisóstomo, não servem pa ra nada: a não ser para destruir a sociedade. Os "capitalistas" só existem porque outros trabalham para eles. O capital põe a sociedade em perigo. Na 12a homilia a respeito da I a Carta a Timóteo, Crisóstomo chega a negar a legitimidade da riqueza. A homilia principia com um diálogo entre o pregador e um rico imaginário. O rico defende a riqueza, baseado no Antigo Testamento. Teria sido injustiça a riqueza de Abraão? E a de Jó? Crisóstomo responde que a riqueza deles foi concedida por Deus. Surgiu por crescimento natural; não foi adquirida in justamente. 87
"Dize-me donde vem tua riqueza? De quem? De meu avô, dizes, e de meu pai. Podes retroceder em tua família e provar que aquela propriedade foi adquirida corretamente? Não, não podes. O início, a origem tem que ter vindo da injustiça de alguém. Por quê? Porque, no princípio, Deus não fez um rico e outro pobre. E porque não con duziu um e lhe mostrou muitos tesouros de ouro, enquanto impedia o outro de procu rar. Não, ele deu a mesma terra para o proveito de todos. Já que ela é propriedade co mum, como é possível que tu tenhas tantos e tantos hectares, enquanto teu vizinho não tem nem sequer uma concha cheia de terra? Meu pai, dizes, mo legou assim. E donde ele tinha? De seus antepassados. Assim tens que continuar retroagindo para encontrar o princípio. Jacó era rico, mas ele o era a partir do salário de seu trabalho..., mesmo que concordemos que teu antepassado não era ladrão, mas tinha ouro que de algum modo brotou da terra. Que há? Isso tornou o ouro bom? Quando não adquirida com avareza, a riqueza não é má, quando é usada para auxiliar o que passa por necessida de. Caso contrário, é ruim e má. Quando um homem não faz nada de mal, também não é mau, dizes; mesmo quando nada faz de bom. Certo. Mas será que isso não é mau: alguém reservar só para si o que é do Senhor, para uso próprio o que é proprieda de de todos? Ou será que não é 'do Senhor a terra e o que nela se contém'? Se o que é nossa propriedade pertence a nosso Senhor comum, então pertence a nossos conservos; pois toda a propriedade do Senhor é propriedade comum. Ou não conseguimos ver que, nas grandes famílias, as coisas estão assim regulamentadas? Uma determinada quantidade de pão é distribuída entre todos da mesma maneira, pois vem das provisões do senhor. A casa do senhor está aberta a todos. Do mesmo modo, toda a proprieda de imperial é propriedade de todos: cidades, praças, arcadas estão à disposição de to dos; todos nós temos do mesmo modo parte nelas. Olha, pois, o mundo de Deus! Algu mas coisas ele as fez propriedade comum, para envergonhar os homens, quais sejam, ar, sol, água, terra, céu, mar, luz e estrelas; tudo isso distribuiu igualitariamente como entre irmãos. Fez olhos iguais para todos, o mesmo corpo, a alma igual, uma mesma imagem para todos, tudo fez da terra, todos os homens do mesmo homem, todos na mesma casa. Mas nada disso fez-nos criar vergonha. E ele faz outras coisas comuns a todos, quais sejam, banhos públicos, cidades, praças, arcadas. Vê como não há briga em torno de propriedade comum, mas tudo é pacífico. Mas quando um procura tomar alguma coisa e apropriar-se dela, aí a inveja avança como se a própria natureza estives se ofendida, porque nós, mesmo que Deus nos reúna de todas as partes, nos esforça mos para nos separar e afastar uns dos outros e nos apropriar de coisas e dizemos meu e teu — essa palavra fria. Daí surge então a briga, daí vem a raiva." Com suas palavras, Crisóstomo quis evidenciar que a situação em que se en contrava a sociedade ia contra a natureza. Por isso, seu esforço para que todos se deixassem motivar pela visão de que toda a propriedade é de Deus. Por isso, seu constante apelo para que se coloque à disposição do conservo o que é comum a to dos por ser propriedade de Deus. Em uma de suas homilias a respeito dos Atos dos Apóstolos, Crisóstomo pre gou a respeito da comunhão de bens na comunidade primitiva de Jerusalém. Disse ele que os primeiros cristãos eliminaram a desigualdade da propriedade ao reunirem seus bens por não verem neles propriedade privada. Todo o necessário para a vida era tirado de uma caixa comum. Essa maneira de repartir os bens foi apresentada por Crisóstomo como exemplo para a comunidade de Constantinopla. Se todos os habitantes da cidade reunissem seus bens, certamente poder-se-ia obter um milhão de libras de ouro, que formariam a base da caixa comum. Nesse caso, não haveria mais problemas para a alimentação dos 50 mil pobres de Constantinopla. Todos te-
riam o suficiente para comer e estariam eliminados os problemas sociais. "Dêemme ouvidos e conseguiremos organizar a coisa corretamente." — "Não transforma ríamos a terra em céus?" Olhando as sugestões de Crisóstomo, devemos considerá-las ingénuas. Elas não observam o jogo dos interesses económicos nem a realidade que está por trás dos problemas sociais. Por outro lado, suas colocações são a tentativa de concreti zar, na prática, a crença de que toda a propriedade é de Deus e tem que ser adminis trada assim como ele o quer. Sua solução não é realista, assim como não o foram as soluções apresentadas por seus antecessores. Mesmo assim, sua solução deve ser vista como a preocupação de um líder eclesiástico que quis eliminar a pobreza e não as causas da pobreza. Nisso ele é filho da Igreja antiga. 15.5. No século IV, a Igreja obteve de fato a oportunidade de dar nova for ma à sociedade de seu tempo. Por que não usou essa oportunidade para dar forma a suas concepções de justiça e de responsabilidade? A pergunta é difícil de ser res pondida. Fato é que houve pessoas que procuraram apresentar propostas: Clemen te para a comunidade intra muros, Basílio, Gregório e Crisóstomo para o "mundo cristão". Suas propostas, no entanto, não foram "oficializadas" pela Igreja de en tão. Lembro que João Crisóstomo foi deposto. Ele e seus companheiros foram ho mens solitários. Os demais líderes eclesiásticos da época, os representantes da Igreja, sustentáculo do Estado constantiniano, identificavam-se sempre mais com aquelas camadas que se protegiam e defendiam a sociedade estabelecida. A maioria dos teó logos via na propriedade dos ricos uma boa dádiva de Deus, nos desníveis sociais, a vontade de Deus e, por isso, o direito à propriedade privada como algo intocável. Foi, por isso, que a Igreja ficou com toda uma diaconia de esmola, que prometia dádivas celestes aos doadores.
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16 Final da história da Igreja Antiga 16.1. Concílio de Éfeso A característica do final da história da Igreja Antiga pode ser dada da seguin te maneira: enquanto no Ocidente o Estado Romano se diluía, permitindo assim o surgimento do papado, no Oriente havia a luta do Estado para manter a unidade da Igreja, para que ela fosse o seu sustentáculo. No Oriente continuavam as rivalida des dogmáticas, sobressaindo as rivalidades entre os patriarcados de Alexandria e Constantinopla. Cada um dos patriarcas praticamente esperava pela hora em que o outro cometesse um deslize dogmático, para, então, atacar. As questões de ordem cristológica sempre ofereciam motivos para a discussão. Apesar das resoluções de 325 e 381, a luta cristológica não chegara ao fim. O desenvolvimento do culto a Maria serviu de estopim. A ele se ligou a pergunta pela encarnação de Cristo. Segun do a doutrina de Alexandria, o filho de Deus só tinha uma natureza após a encarna ção, qual seja, a divina. Maria tinha, pois, dado à luz um Deus; por isso ela era de signada de Theotókos (Deípara). Por isso, os alexandrinos eram denominados de monofisitas. Para o culto a Maria, a doutrina dos monofisitas era de suma impor tância. Era a doutrina que o povo aceitava. Na adoração do divino, que entrara na humildade humana e que tornara essa humanidade imortal, o povo se tornava parti cipante da carne divinizada do salvador, assim como o mistério da eucaristia lhes demonstrava. Uma doutrina que negasse a perfeita união de Deus e homem em Cris to tinha, pois, que ser vista como herética e destruidora do ato salvífico. Essa era também a acusação que se fazia à escola de teologia de Antioquia: negação "da úni ca natureza encarnada do Logos". Pois o grupo de Antioquia falava da existência de duas naturezas, separadas em Cristo: uma divina e outra humana. A entrada do Filho de Deus no homem Jesus teria sido o maior triunfo da natureza humana e uma garantia para o fato de que a humanidade fora libertada do pecado e da mor te. Maria não teria dado à luz um Deus, mas um ser humano. Seu nome deveria ser Anthropotókos. Desde 428, Nestórío era bispo de Constantinopla. Estudara em Antioquia. Ho mem culto, excelente pregador, não possuía, porém, habilidades políticas. Em Cons tantinopla, o clero e o povo estavam grandemente influenciados pelas doutrinas de Alexandria. A fórmula Theotókos havia entrado na língua do culto. Nestório voltouse, sem qualquer tato, imediatamente contra a fórmula Theotókos e sugeriu o termo Chrístotókos (paridoura de Cristo), pois Cristo significava tanto o Logos quanto o ser humano assumido pelo Logos. Os ouvintes de suas prédicas concordaram com ele, não, porém, o clero e os monges que logo começaram a combatê-lo. Maiores ainda foram os ataques que vieram de Alexandria. Desde 412, Grilo era patriarca de Alexandria. Cirilo era o tipo do homem nas cido para ser imperador e estava a ponto de transformar o Egito em um Estado ecle-, •JO
siástico. Em 415, com a complacência de Cirilo, o povo havia assassinado a filó sofa Hypathia em uma das igrejas de Alexandria. Além disso, Cirilo foi responsável pelo assassinato em massa de judeus em Alexandria. Em toda a parte, Cirilo tinha seus agentes secretos, monges egípcios. Além disso, era um político sagaz, capaz de esperar. Não fazia ataques diretos. Mandou uma circular pascal ao clero de sua Igre ja, onde, de leve, tocou na "heresia do Bósporo", referindo-se a Nestório, residen te em Constantinopla, localizada junto ao Bósporo. Nestório ficou furioso e respon deu dizendo que ficara sabendo, por meio de clérigos fugidos de Alexandria, de cer tas coisas a respeito de Cirilo, que seriam o bastante para a convocação de um Sínodo. Com o acirramento da discussão, Cirilo e Nestório dirigiram-se, através de car tas, ao bispo de Roma, Celestino (422-432). Celestino convocou, então, um Sínodo dos bispos vizinhos e se colocou ao lado de Cirilo, ao qual nomeou seu vigário pa ra o Oriente. Fortalecido, Cirilo dirigiu-se ao imperador Teodósio II (408-450) e con seguiu que este convocasse um Sínodo imperial para 431, em Éfeso. O Concílio foi muito mal preparado. Não existia nem mesmo uma ordem do dia. O primeiro a aparecer foi Cirilo, com um séquito considerável. Não esperou pela vinda dos bispos sírios e romanos e, assumindo as funções de vigário do Papa, abriu o Sínodo. Nestório encontrava-se em situação minoritária. Por uma maioria de 168 bispos, Nestório foi afastado de suas funções. Os antioquenos, que chegaram atrasados, fizeram um Contra-Sínodo, excomungando Cirilo e seus adeptos. Os ro manos, chegados depois, aprovaram, em um escrito em separado, a cristologia de Cirilo. Quando os representantes de Roma assinaram a ata do Concílio, um coro começou a anunciar: "Um juízo justo! Salve o novo Paulo Celestino, o novo Pau lo Cirilo! Celestino, o guarda da fé, Celestino que concorda com o Sínodo! O Síno do agradece a Celestino! Um Celestino, um Cirilo, uma fé de todo o mundo!" Fo ra da igreja o povo gritava: "O inimigo da santa virgem está vencido. Honra à gran de, sublime, gloriosa mãe de Deus". A decisão final teria cabido ao imperador Teodósio II. Este, no entanto, não teve a coragem de tomá-la. Procurou negociar com o partido de Cirilo e com os an tioquenos. Mostrando toda a sua inescrupulosidade, Cirilo fez uso de todos os meios à sua disposição para alcançar a condenação oficial de Nestório. A peso de ouro conseguiu o apoio do eunuco real Crisófio, e este influenciou o fraco Teodósio II. O resultado do Sínodo foi confirmado. Nestório foi mandado para o exílio no deser to da Líbia. Ali morreu mártir de suas convicções.
16.2. Concílio do banditismo Poucos anos mais tarde surgiu, em Constantinopla, uma nova discussão teo lógica. A questão era a mesma da discussão em torno de Nestório. O abade Euti ques, partidário da teologia alexandrina, afirmara que o corpo de Cristo não fora um corpo humano, mas que tão-somente parecera ser um corpo humano. O patriar ca de Constantinopla, Flaviano, afastovr Eutiques de suas funções. Eutiques recebeu, porém, o apoio de muitos lados. O imperador e o novo patriarca de Alexandria, Dióscoro, estavam entre aqueles que apoiavam Eutiques. O bispo de Roma, Leão I, também apoiou Eutiques e atacou Flaviano. Dióscoro, que governava no Egito co mo um Faraó, exigiu do imperador a convocação de um Concílio, que foi marcado para o ano de 449, em Éfeso. Antes de o Sínodo iniciar, houve uma mudança sensa91
cional em Roma. Em uma encíclica papal, Flaviano foi considerado ortodoxo, en quanto Eutiques foi excomungado! Essa encíclica, que interpreta a doutrina das duas naturezas de Cristo e a fé em uma pessoa, certamente não é fruto da teologia do próprio Leão I. Leão tinha objetivos de ordem político-eclesiástica. Como o Síno do tinha que ser realizado, Leão não queria que Roma fosse vista como simples se guidora de Alexandria. Leão queria que o primado de Roma fosse reconhecido tam bém no Oriente. Enganou-se, porém, redondamente ao pensar que suas pretensões seriam atendidas. Quem mandou no Concílio foi Dióscoro com seus monges. Arma dos com porretes, os monges bateram a valer nos adversários de seu bispo. Flavia no apanhou tanto, que veio a morrer em consequência dos ferimentos recebidos. Não se deu ouvidos aos enviados de Leão I. Estes, aliás, tiveram que fugir, deixan do para trás suas bagagens. Leão perdera, Dióscoro triunfara. Leão dirigiu-se, atra vés de carta, ao imperador, protestando. Não recebeu resposta. Teodósio, ao contrá rio, promulgou os resultados do Concílio como lei imperial. Em fins de 450, no en tanto, Teodósio veio a falecer. Não tinha filhos. Sua irmã, Pulquéria, que se consa grara a uma vida celibatária, estabeleceu laços matrimoniais aparentes ou formais com o general Marciano, para permitir que esse fosse legitimado como imperador. Marciano convocou novo Concílio.
16.3. Calcedônia Marciano anulou as decisões de Éfeso, reabilitou Flaviano e ordenou que seus restos mortais fossem sepultados na igreja de Santa Sofia. Além disso, convo cou para outubro de 451 o 4 o Concílio imperial, que se reuniu em Calcedônia, um bairro de Constantinopla. Dele participaram mais de 600 clérigos. Nesse Concílio fi cou evidente a liderança romana, e o resultado dogmático do Concílio já estava fixa do na sua abertura, pois base para as discussões foi a encíclica de Leão I. Estabeleceu-se a validade do Credo de Nicéia, mas se teve que ir além de Nicéia nas ques tões que haviam provocado as controvérsias anteriores: a doutrina das duas nature zas. Houve tumultos e a intervenção do imperador, que convenceu os conciliares a chegarem a bom termo em suas negociações. Dióscoro foi afastado de seu cargo. No aspecto doutrinal, a fórmula encontrada significava mais um compromisso: "Fiéis aos santos padres, todos nós, perfeitamente unânimes, ensinamos que se deve confessar um só e o mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito quanto à divindade, e perfeito quanto à humanidade, verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, constando de alma racional e de corpo; consubstancial (homoousios), segun do a divindade e consubstancial a nós, segundo a humanidade; 'em todas as coisas se melhante a nós, excetuando o pecado', gerado segundo a divindade antes dos séculos pelo Pai e, segundo a humanidade, por nós e para nossa salvação, gerado da Virgem Maria, mãe de Deus (Theotókos); "Um só e mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigénito, que se deve confessar, em duas naturezas, inconfundíveis e imutáveis, conseparáveis e indivisíveis (en dyo physesin, asygchytôs, atréptós, adiahétôs, achôristôs); a distinção de naturezas de modo algum anulada pela união, mas, pelo contrário, as propriedades de cada natureza permanecem intactas, concorrendo para formar uma só pessoa e subsistência (hypóstasis); não dividi do ou separado em duas pessoas. Mas um só e mesmo Filho Unigénito, Deus Verbo, Jesus Cristo Senhor; conforme os profetas outrora a seu respeito testemunharam, e o mesmo Jesus Cristo nos ensinou e o credo dos padres nos transmitiu". 92
Todos os bispos presentes, com exceção dos representantes do Egito, subs creveram o novo Credo. No campo político-eclesiástico, o Concílio declarou que o patriarca de Constan tinopla tinha as mesmas prerrogativas que o bispo de Roma. Para Leão I, essa decla ração era inaceitável. Esse fato viria a provocar a cisão entre a Igreja Latina e a Igre ja Oriental Orie ntal..
16.4. Fim do Império Em 476, o germano Odoacro literalmente aposentou o último imperador romano do Ocidente, Rómulo Augustulo, e assumiu o governo do que restava do Império Romano no Ocidente. O que restava era pouco: o território italiano. Sobre a África e a Sicília governavam os vândalos; sobre a Espanha e a Provence, os visi godos; sobre a Gália, os burgúndios e os francos. Na Itália, a vida política estava dividida em partidos. A única autoridade era o papado. Desde Leão I, o papado transformara-se em um poder de características peculiares. Leão era sacerdote e polí tico, um aristocrata romano, e não podia conceber que Roma, a mãe do Império, viesse a se tornar algum dia uma província do Oriente grego. Essa preocupação seria um fato contínuo entre seus sucessores. Divergências teológicas e políticas levaram Félix III (483-492) a excomungar, em julho de 484, o patriarca de Constantinopla; era o cisma entre os cristãos do Oriente e do Ocidente. Em retribuição, o imperador Zenão forneceu armas ao ostrogodo Teodorico, que invadiu a Itália, tomando Ravena, em 493. Ali matou Odoacro e passou a governar sobre a Itália. Na Itália católi ca governavam os godos arianos. Em 518, o comandante da guarda pessoal do imperador, Justino (518-527), as sumiu o comando no Oriente. Escreveu ao Papa, comunicando sua eleição e pedin do por sua intercessão. No verão de 519, o cisma estava encerrado. De 527 a 565 governou Justiniano. Seu objetivo era eliminar os hereges e reunificar o Império. Mandou fechar a escola de filosofia de Atenas. Ordenou que todos os habitantes do Império fossem batizados: a certidão de batismo passou a ser importante. No campo militar, conseguiu recuperar a África e a Itália, fazendo do Mar Mediterrâ neo, mais uma vez, um mar romano. Em 553, convocou o 5 o Concílio Ecuménico, realizado em Constantinopla. Nele procurou reconciliar os monofisitas com a Igre ja ortod or todoxa oxa.. Não Nã o obteve êxito. As Igrejas monofisitas (nestorianos, (nestor ianos, jacobita jaco bitass e cop tas) continuam a existir até os nossos dias. Justiniano não conseguiu esboçar planos para o futuro. Após a sua morte, o Império voltou a ruir. O Oriente e o Ocidente seguiram cada um o seu próprio ca minho. A ruptura política determinou a ruptura eclesiástica.
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Literatura 1.Compêndios: Justo L. Gonzalez. E até aos confins da terra: Uma história ilustrada do cris tianismo. Volume 1: A era dos mártires, São Paulo, 1980 Volume 2: A era dos gigantes, São Paulo, 1980 Volume 3: A era das trevas, São Paulo, 1981 Williston Walker. História da Igreja Cristã. Vol. I., São Paulo, 1967. Eduardo Hoornaert. A memória do povo cristão. Uma história da Igreja nos três primeiros séculos. Petrópolis, 1986.
2. Fontes: Documentos da Igreja Cristã, São Paulo, 1967. Henry Bettenson. Documentos Selecionadas dos Cirilo Folch Gomes. Antologia dos Santos Padres. Páginas Selecionadas a antigos escritores eclesiásticos, 2 edição, São Paulo, 1979.
Coleção Fontes da Catequese 1. Didaquê ou Doutrina dos Apóstolos, Petróp Pet rópolis olis,, 1970 1970.. 2. Cartas 2. Cartas de Santo Inácio de Antioquia, Petrópolis, 1970. 3. Carta de S. Clemente Romano Romano aos Coríntios, Coríntios, Petrópolis, 1971. 4. 4. Tradição Apostólica de Hipólito de Roma. Petrópolis, 1971. os mistérios. Petrópolis, 1972. 5. Santo Ambrósio. Os sacramentos e os 6. Peregrinação de Etéria. Petrópolis, 1977. Agostinho, A instrução dos catecúmenos. catecúmenos. Petrópolis, 1978. 7. Santo Agostinho, 8. São Cipriano, A unidade da Igreja Católica. Petrópolis, 1973. São Leão Magno, Sermão sobre natal e epifania. Petrópolis, 1974. 9. São Diogneto. Petrópolis, 1976. 10. 10. A Carta a Diogneto. São Leão Magno, Sermões sobre as coletas, a quaresma e o jejum de pen 11. São tecostes. Petrópolis, 1977. 12. São Cirilo de Jerusalém, Catequeses mistagógicas. Petrópolis, 1977. episcopal. Pe Pe 13. 13. São Leão Magno, Sermões sobre santos, jejuns e ordenação episcopal. trópolis, 1978. pré-batismais. Petrópolis, 1978. 14. 14. São Cirilo de Jerusalém, Catequeses pré-batismais. Coleção: Os Padres da Igreja 1. São João Crisóstomo, O Sacerdócio. Petrópolis, 1979. 2. Santo Ambrósio, A virgindade. Petrópolis, 1980. 3. Tertuliano, O sacramento do batismo. Petrópolis, 1981. 4. São Basílio Magno, As regras monásticas. Petrópolis, 1983. 5. São Gregório de Nazianzo, Discursos Teológicos. Petrópolis, 1984. 6. Basílio Magno, Gregório de Nissa, Gregório de Nazianzo, João Crisósto Igreja e a questão social. Petrópolis, 1986. mo. Os Padres da Igreja 94
3. Literatura para os diversos parágrafos: História Eclesiástica. In: Estudos 1: Joachim Fischer. A disciplina teológica da História Teológicos, São Leopoldo, 9(1): 52-60, 1969. história da Igre Kurt Dietrich Schmidt. Deus e o ser humano na história e na história ja. In: In : idem, A presença de Deus na história. histór ia. São Leopoldo Leop oldo,, 1982 1982,, p. 144144-15 152. 2. fundamentação da história eclesiástica. eclesiástica. In: idem, A Kurt Dietrich Schmidt. A fundamentação Presença de Deus na história. São Leopoldo, 1982, p. 153-164. 2: Theodor Mommsen. Rómische Geschichte. Vols. 1-8, Munchen, 1976. Helmut Ristow. Siíuacion politica y social dei Império Romano en los siglos I a.C. y I d.C, In: J. Leipoldt Leipoldt e W. Grundm Gr undmann ann.. El mundo mund o dei Nuevo Testamento. Vol. Vol. I, Madr Ma drid id,, 1973, 1973, p . 19-74 19-74.. 3: Franz Cumont. Die orientalischen Religionen im rõmischen Heidentum. a 6 edição, Darmstadt, 1972. Giinter Haufe. Religiosidad helenistica popular. In: J. Leipoldt e W. Grund Gr und mann ma nn.. El mundo mun do dei Nuevo Testamento. Vol. Vol. I, Madrid, Madri d, 1973 1973,, p . 75-109 75-109.. Giinter Haufe. Los mistérios. In: J. Leipoldt e W. Grundmann. El mundo dei Nuevo Testamento. Vol. I, Madrid, 1973, p. 11-140. Gunther Hansen. El culto ai soberano y la idea de la paz. In: J.Leipoldt e W. Grundmann. El mundo dei Nuevo Testamento. Vol. I, Madrid, 1973, p. 141-158. 4: Martin Metzger. História de Israel. São Leopoldo, 1972. judios de Palestina entre el levantamiento de los maWalter Grundmann. Los judios cabeos y el de la guerra judaica. In: J. Leipoldt Leipoldt e W. Grundma Gr undmann. nn. El mundo dei dei Nuevo Testamento. Vol. I, Madrid, 1973, p. 159-304. Harald Hegermann. El judaísmo helenistico. In: J. Leipoldt e W. Grundmann. El mundo dei Nuevo Testamento. Vol. I, Madrid, 1973, p. 305-358. 5: Gunther Bornkamm. Jesus de Nazaré. Petrópolis, 1976.
6: Leonhard Goppelt. Teologia do Novo Testamento. I. Jesus e a comunidade primitiva. São Leopoldo/Petrópolis, 1976, p. 257-282. 7: Gunther Bornkamm. Pablo de Tarso. Salamanca, 1979. Leonhard Goppelt. Teologia do Novo Testamento. II. Pluralidade e unidade do testemunho apostólico apostólico a respeito respeito de Cristo. São Leopoldo/Petrópo Leopoldo/P etrópolis, lis, 1982, p. 309-415. 8: Cf. os títulos 1.2.3 da Coleção Fontes da Catequese e Henry Bettenson. Do cumentos da Igreja Cristã. São Paulo, 1967.
9: Hans-Martin Schenke. La gnosis, In: J.Leipoldt e W. Grundmann. El mun do dei Nuevo Testamento. Vol. I, Madrid, 1973, p. 387-431. Adolf von Harnack. Marcion. Das Evangelium vom fremden Gott, 2 a edição, Darmstadt, 1960. Bonwetsch. Montanismus. In: Realencyklopãdie fúr protestantis prote stantische che Theologie und Kirche. Vol. 13, Leipzig, 1903, p. 417-426. Hans von Campenhausen. Lateinische Kirchenvãter. 2 a edição, Stuttgart, 1965, p. 12-56. 95