Nesse momento Agostinho sentiu que Deus lhe havia concedido a paz interna e o p oder de abandonar o mundo para viver para Ele. Essa foi a conversão que Agostinho chamou de sua “conversão moral”, aos 32 anos. Agostinho foi batizado por Ambrósio no ano seguinte, em 387, e resolveu voltar para a África com sua mãe. Na viagem de volta, Mônica morreu em Óstia, antes que eles pudessem cruzar o Mediterrâneo. Ela tinha acreditado por toda a vida que Deus salvaria seu filho amado, e assim pôde morrer em paz. Adeodato, filho de Agostinho com a concubina da qual ele já havia se separado, nessa época já adolescente, foi batizado com o pai e morreu pouco tempo depois. Agostinho continuou a viagem e voltou para Tagasta, onde passou a ensinar a bíblia para leigos e até clérigos da região. Em 391, durante uma viagem à cidade de Hipona, Agostinho foi forçadamente ordenado presbítero da congregação local (prática não incomum na época). Quatro anos mais tarde, em 395, ele foi lá ordenado bispo de Hipona. As obras mais importantes de santo Agostinho são De Civitate Dei ( Da Cidade de Deus), na qual são discutidas as questões da vida espiritual e material, e a teologia da história, e Confessiones (Confissões), sua autobiografia escrita em forma de oração a Deus. Agostinho teve dois inimigos principais durante sua vida: os donatistas e Pelágio.
Donatismo Os donatistas eram um grupo Africano que tinha se separado da igreja Católica por acreditar que ela tinha se corrompido ao permitir que bispos “relapsos” ordenassem outros bispos. O começo da cisma foi em 311, quando, com a morte do bispo Mensúrio de Cartago, foi eleito em seu lugar Ceciliano. Muitos, argumentavam que os bispos que consagraram Ceciliano tinham, durante a perseguição de Diocleciano (284-305) se tornado traidores, isto é, tinham entregue os livros sagrados aos perseguidores. O imperador pagão Diocleciano havia decretado que todos os cristãos eram por lei obrigados a entregarem suas cópias das Escrituras às autoridades, ou serem torturados e executados. Muitos conseguiram esconder suas cópias, mas outros as entregaram para salvar suas vidas e, em muitos casos, suas igrejas. Em tais condições, diziam os adversários de Ceciliano, os bispos que tinham obedecido às autoridades haviam se corrompido e se removido da Igreja de Cristo, e, portanto, não podiam ter ordenado validamente o novo bispo de Cartago. Setenta bispos da Numídia (Norte da África) se reuniram então em Cartago e elegeram outro bispo, Majorino, ao qual sucedeu em 315 Donato o Grande (daí o nome “donatistas”). Estava aberto o cisma donatista. Eles se diziam a única igreja verdadeira, pura e imaculada, e re-batizavam qualquer pessoa que tivesse sido batizada pelos católicos. De um modo geral, os donatistas não tinham uma teologia diferente dos católicos (o termo “igreja católica” nessa época ainda não se referia à igreja romana, mas à igreja cristã espalhada pelo mundo). Sua liturgia era a mesma, mas eles não reconheciam o batismo católico como válido. Os donatistas eram um grupo situado somente na África, o que significava que enquanto o resto do cristianismo não lhes dava muita atenção ou credibilidade, eles eram uma realidade presente na vida de Agostinho, que se tornou bispo quando o cisma donatista já dividia a África por mais de 80 anos. 165
A igreja católica argumentava que a visão da igreja como sendo perfeitamente pura na Terra era errônea. Assim como a arca de Noé, que continha animais limpos e imundos, e como o campo da parábola que Jesus propôs, contendo joio e trigo, a igreja também contém cristãos e hipócritas, que serão separados somente por Jesus e somente no juízo final. Os católicos também argumentavam aos que os donatistas eram um grupo local, e por isso não podiam se considerar a igreja verdadeiramente católica. Por fim, os católicos argumentavam que os sacramentos tinham sido instituídos por Deus, e não dependiam da pureza dos ministradores para que fossem válidos – do contrário, nenhum batismo seria válido pois nenhum ministro era inteiramente perfeito. O batismo era válido se fosse administrado por um ministro segundo o mandamento de Cristo, i.e., em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Nada mais era requerido para a validade do batismo. Por isso, os católicos reconheciam o batismo dos donatistas, ainda que eles estivessem em erro e cisma, enquanto que os donatistas não reconheciam o batismo dos católicos. Agostinho seguiu a linha dos católicos, e atacou duramente os donatistas. Ele, nessa época, fez uma distinção entre o que ele chamou de “Igreja visível” e “Igreja invisível” – distinção essa que foi extremamente importante para a Reforma Protestante. Agostinho argumentou que Cristo tinha claramente ensinado que a Igreja visível, na Terra, continha verdadeiros cristãos bem como hipócritas (e.g., como na parábola do trigo e do joio, já mencionada acima). Muitos dos que se dizem cristãos não o são, mas só Deus pode conhecer o coração das pessoas. Por isso, todos os que recebem batismo e se dizem crentes em Jesus devem ser considerados cristãos, ainda que muitos possam não o ser. O julgamento final e perfeito, porém, cabe somente a Deus. A Igreja invisível, por outro lado, é o Corpo de Cristo composto somente por aqueles que são realmente salvos, e ela é conhecida perfeitamente somente por Deus. Somente ela é perfeita e sem mácula, porque é objeto da graça do Espírito Santo. Qualquer tentativa humana de tornar a Igreja visível idêntica à Igreja invisível, ou seja, decidir quem é ou não salvo dentre aqueles que se dizem crentes em Cristo e professam o credo ortodoxo, leva ao legalismo, à cisma, e ao erro. Os reformadores do século 16 usaram esses conceitos agostinianos para explicar por que, por um lado, havia pessoas salvas que ainda faziam parte da Igreja Católica Romana – a qual, ao seu ver, havia se tornado uma igreja falsa por ter corrompido o evangelho da salvação somente pela fé. Por outro lado, também podiam explicar por que havia pecadores e hipócritas dentre aqueles que haviam deixado a Igreja Romana. Os reformadores também usaram esses conceitos contra os anabatistas, que argumentavam que somente pessoas salvas podiam receber batismo – ou seja, bebês não podiam ser batizados por que não podiam fazer profissão de fé, e sem profissão de fé não podiam ser salvos. Os reformadores contra-argumentavam dizendo que o batismo era o sinal de entrada da pessoa na Igreja visível , não na Igreja invisível. Ou seja, batismo não conferia salvação por si só (como os Católicos Romanos argumentavam), nem poderia ser restrito aos que eram salvos por sua profissão de fé (como os anabatistas argumentavam), já que muitos que faziam tal profissão abandonavam a Igreja mais tarde (o que provava que nunca tinham sido salvos em primeiro lugar). Além disso, somente Deus conhecia o coração dos que faziam profissão de fé. Somente a fé verdadeira salva, diziam os reformadores, não a profissão de fé ou o batismo. Por isso, o batismo poderia ser administrado aos filhos de cristãos, o que os incorporava à Igreja visível , e ao mesmo tempo apresentava a promessa visível de Deus de que a lavagem dos pecados representada pela águas lhes seria aplicada se eles tivessem, mais tarde, fé em Cristo. Os reformadores também reconheciam que bebês poderiam, em alguns casos, serem salvos pela graça soberana de Deus antes mesmo de poderem crescer e exercitar fé em Cristo (como, por exemplo, ocorreu com João Batista, quando ele estremeceu de alegria ainda no ventre, quando Maria visitou Isabel). 166
Pelagianismo O outro inimigo de Agostinho foi Pelágio, e a controvérsia teológica entre os dois foi fundamental para o desenvolvimento do cristianismo, e especialmente para a Reforma Protestante. Pelágio era um monge britânico que vivia em Roma. Com a invasão dos visigodos em 410 (o que marcou a desintegração do Império Romano), Pelágio se refugiou na África. Ele era extremamente austero, disciplinado e moralista. Ainda quando estava em Roma, Pelágio teve conhecimento da reputação internacional de Agostinho, mas detestava seus ensinamentos. Uma oração famosa de Agostinho, encontrada no seu livro Confissões, pedia a Deus que nos concedesse o poder de querer e cumprir o que Ele comandava, e então comandasse o que quisesse. A oração expressava o pensamento de que somente pela graça que Deus nos dá podemos lhe obedecer, e não por nossos próprios esforços ou livre arbítrio. Isso irritava Pelágio profundamente, porque ele achava que isso levaria as pessoas ao relaxamento moral. Para Pelágio, a queda de Adão e Eva não tinha acarretado nem culpa, nem transmissão da natureza pecadora para seus descendentes. Ou seja, seres humanos nascem no mesmo estado de Adão e Eva antes da queda: sem pecado, sem culpa, e com total habilidade de serem perfeitos. Para Pelágio, nós pecamos somente como resultado de maus ensinamentos e maus hábitos, não como resultado de uma natureza pecaminosa que nos foi transmitida desde o nascimento. Por isso, qualquer pessoa tem não só a obrigação, mas também a capacidade natural de crer no evangelho e de obedecer perfeitamente os mandamentos de Deus. Segundo Pelágio, se não tivéssemos plena capacidade de obedecer aos mandamentos de Deus, ele não poderia nos condenar justamente quando falhássemos; culpa só pode ser atribuída àqueles que pecam enquanto tendo pleno poder de não pecar. Uma das características principais de Agostinho era sua consciência aguda e clara tanto do pecado do homem, quanto da soberania e graça de Deus. Por isso, ele combateu ferrenhamente os ensinamentos de Pelágio, argumentando que a queda de Adão e Eva nos afeta diretamente. Segundo Agostinho, o ensinamento da bíblia (e.g., Sl. 51, “ Eu nasci na iniqüidade, e em pecado me concebeu minha mãe ”), e principalmente de Paulo, é que antes da salvação, estamos espiritualmente mortos em nossos pecados, estando por natureza sob a ira de Deus (Ef. 2). Sem a graça salvadora de Deus, estamos todos no reino das trevas (Cl. 1:13; 1 Pe. 2:9; 2 Cor. 4:6; At. 26:18), cegos pelo Diabo (2 Cor. 4:4), sem poder de vir a Deus se não por Sua intervenção direta (João 6:44). A queda de Adão e Eva não somente nos coloca sob a culpa judicial de seu ato, sendo que eles são nossos pais e representantes (cf. Romanos 5), mas também nos transmite uma natureza pecadora. Como resultado, somente podemos exercitar fé em Cristo somente se Deus diretamente intervier e nos conceder um coração novo (2 Cor. 4, Jo. 6, Jer. 31). Agostinho não negava que tivéssemos livre arbítrio, mas ele o definia de uma maneira diferente de Pelágio. Para Pelágio, o verdadeiro livre arbítrio é a capacidade de pecar ou não pecar, ou seja, de escolher entres todas as possibilidades. Para Agostinho, Adão e Eva tinham esse tipo de livre arbítrio, mas nós não o temos mais após a queda. Desde então, temos livre arbítrio somente no sentido de que somos livres para seguir nossos próprios desejos e nossa própria natureza. Porém, a nossa natureza é pecaminosa, e os desejos por ela produzidos são pecaminosos. Somos então livres para pecar, mas não temos liberdade, pelo nosso próprio esforço, de não pecar, ou de buscar a Deus, da mesma maneira que não temos a liberdade de criar asas e voar. Pecamos livremente; buscamos a Deus e somos salvos somente pela intervenção direta de Deus nas nossas vidas individuais. 167